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GILSON SOARES RASLAN FILHO
DAI-ME ALMAS
O pastoreio midiatizado da TV Canção Nova
São Paulo
2010
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GILSON SOARES RASLAN FILHO
DAI-ME ALMAS
O pastoreio midiatizado da TV Canção Nova
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Comunicação da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências da Comunicação
Área de Concentração:
Interfaces sociais da Comunicação
Linha de Pesquisa:
Comunicação e Cultura
Orientador: Prof. Dr. Celso Frederico
São Paulo
2010
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Nome: Raslan Filho, Gilson S.
Título: Dai-me almas. O pastoreio midiatizado da TV Canção Nova
Tese apresentada Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Ciências da
Comunicação
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. (Orientador):____________________________________________________
Instituição: _______________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituição: _______________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituição: _______________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituição: _______________________ Assinatura: _________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________
Instituição: _______________________ Assinatura: _________________________
À Janaina e ao Miguel: porquês
AGRADECIMENTOS
Há muito o que e a quem agradecer neste momento.
Agradeço ao professor Celso Frederico, meu orientador, leitor generoso.
Agradeço principalmente pelo fato de ter demonstrado, na prática, como se dá a
pedagogia da autonomia.
Agradeço aos meus alunos, que me auxiliaram na pesquisa quantitativa:
Christiane, Gabriel, Kleyton, Maria, Marina, Nilo, Petrúcia, Rafael. Sem vocês teria
sido difícil a empreitada
Agradeço muito especialmente ao Divino e à Fátima, que também
participaram das pesquisas quantitativas, mesmo não sendo meus alunos. E agradeço à
Eloísa Borges, pela gentileza de tê-los me indicado.
À Janaina, minha amiga, minha esposa, também por ter me acompanhado,
leve, nas pesquisas.
Agradeço a cada um dos homens e mulheres que se dispuseram a abrir suas
casas, seus corações e almas para as entrevistas que possibilitaram este trabalho.
Agradeço à Miriam e às meninas da Pós-Graduação da ECA, pela
disponibilidade, todas as vezes que precisei procurar orientação.
Agradeço à Rose, da pós-graduação da Funedi, capaz de manter a calma
com o nosso mundo cainho à sua volta.
Agradeço à Funedi/UEMG, que me proporcionou as condições para que
conseguisse uma trilha para as necessárias reflexões.
Agradeço à Fapemig, pela bolsa de doutoramento, sem a qual seria bem
mais difícil terminar o percurso.
Agradeço aos amigos Clênia, Fred, Ivana, Márcia, Mateus, pela força, pelas
interlocuções, pela paciência em me ouvir quando nem eu mesmo me ouvia.
Agradeço à Ângela e ao Filipe, pela revisão no adiantado da hora.
Aos tios Délio, Nágime e à querida Clera, que mesmo à distância
acompanharam e acompanham a luta.
Aos meus sogros Eustáquio e Maria Luisa, pelos momentos de descanso.
À Darcy, minha mãe: atenta até não poder mais – e ela pode sempre.
Mais uma vez, preciso silenciosamente agradecer à minha amada Janaina:
pela paciência infinda, pela generosidade, pelo exemplo, pela força, pela leitura, pelo
Miguel.
O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam e
desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que
me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo é às brutas; mas Deus
é traiçoeiro! [...] Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na
lei do mansinho – assim é o milagre. (Grande Sertão: Veredas)
RESUMO
RASLAN FILHO, Gilson S. Dai-me almas. O pastoreio midiatizado da TV Canção
Nova. Tese de Doutorado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo: São Paulo, 2010.
É necessário questionar as religiões para que se compreendam as estruturas do mundo?
Como o sagrado do divino católico cristão, narrado pelos aparelhos propagadores
eletrônicos da TV Canção Nova, dialoga com uma época que tem o seu próprio sagrado:
o dinheiro? Todo o esforço de pesquisa desta tese, forjada em dois polos, de produção e
de recepção, se direcionou para responder essas duas questões. Para tanto, se dispôs a
compreender, na história do telerreligioso, como se processa o diálogo entre os sagrados
– e como as narrativas, armadas em torno do religioso, se realizam como um
enfeitiçamento do mundo, com o propósito de apagar a materialidade dos meios por que
são transmitidas. Por outro lado, a história das políticas de comunicação católica aponta
para o caminho de uma estrutura fundada no pastoreio, cujo resultado é uma
ambiguidade entre a afirmação e a negação do sagrado contemporâneo. É essa
ambiguidade que se vê na história da TV Canção Nova e em sua programação, bem
como se estabelece como uma força entre os personagens que fazem a Igreja: padres e
fiéis que consomem o catolicismo miditalizado da TV Canção Nova.
Palavras-chave: TV Canção Nova; telerreligião; fetiche; sacralização do consumo;
crítica
ABSTRACT
RASLAN FILHO, Gilson S. Give me souls. The shepherd of TV Canção Nova. Tese de
Doutorado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo: São Paulo,
2010.
Is it necessary to question the religions to understand today's world? As the holy TV
Canção Nova talks to a season that has its own sacred: the money? All the research
effort of this text was intended to answer these two questions. For this, the study tried to
understand, in church electronics history, how is the dialogue between the sacred - and
how narratives are used as a religious fetish, aiming to erase the materiality of the
means by which they are transmitted. Moreover, the history of Catholic political
communication points to the logic of master and slave. Even if there is negation of
capitalism, he ends up being claimed by religious media practice and the result is an
ambiguity between the affirmation and negation of the sacred contemporary. This
ambiguity is seen in the history of TV Canção Nova and his programming, and is
narrated by the characters that make the Catholic Church: priests and faithful who
consume the media Catholicism of TV Canção Nova.
Keywords: TV Canção Nova, electronic church, fetish, sacralization of consumption,
critical
Resumen
RASLAN FILHO, Gilson S. Dame las almas. El pastoreo de la TV Canção Nova. Tese
de Doutorado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo: São Paulo,
2010.
¿Es necesario preguntar sobre las religiones para comprender mundo en curso? ¿Como
el sagrado de la TV Canção Nova dialoga con una temporada que tiene su propio
sagrado: el dinero? Todo el esfuerzo de investigación de este texto pretende dar
respuesta a estas dos preguntas. Para ello, la tesis trató de comprender, en la historia de
la iglesia electrónica, como correr el diálogo entre los dos sagrados - y como las
narrativas religiosas se transforman en un fetiche, con el objetivo de borrar la
materialidad de los medios por los que se las transmiten. Por otra parte, la historia de la
comunicación política católica puntos a la lógica del amo y el esclavo. Incluso si hay
negación del capitalismo, el termina siendo ratificado por el práctica religioso de los
medios de comunicación y el resultado es una ambigüedad entre la declaración y la
negación del contemporáneo sagrado. Esta ambigüedad se ve en la historia de la TV
Canção Nova y su programación, y es narrada por os personajes que hacen la Iglesia
Católica: sacerdotes y fieles que consumen lo catolicismo de TV Canção Nova.
Palabras claves: TV Canção Nova, iglesia electrónica, fetiche, sacralización del
consumo, la crítica
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Categorias e gêneros televisivos ................................................................ 147
Quadro 2 - Formatos televisivos................................................................................... 147
Quadro 3 - Programação da TV Canção Nova............................................................. 149
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Cruzamento entre Sexo e Frequência a missas........................................................................209
Tabela 2 - Cruzamento entre Sexo e Participação em
eventos da Igreja..................................................210
Tabela 3 - Cruzamento entre Sexo e Assistê
ncia a programas religiosos de TV......................................211
Tabela 4 - Cruzamento entre Sexo e Assistê
ncia a Canais Católicos de TV............................................212
Tabela 5 - Idade........................................................................................................................................212
Tabela 6 - Escolaridade............................................................................................................................213
Tabela 7 - Renda fam
iliar.........................................................................................................................214
Tabela 8 - Consumo cultural....................................................................................................................214
Tabela 9 - Cruzamento entre renda
familiar e consumo cultural..............................................................215
Tabela 10 - Frequência de consum
o das fontes de informação................................................................216
Tabela 11 - Canal católico a
que assiste...................................................................................................216
Tabela 12 - Cruzamento entre Escolaridade e Assistência a
programas e canais de TV religiosos .........218
Tabela 13 - Cruzamento entre Escola
ridade e Renda familiar .................................................................218
Tabela 14 - Cruzamento entre Renda familiar eAssistência
a programas e canais de TV religiosos.......220
Tabela 15 - Cruzamento entre Renda familiar e Ca
nal católico de TV a que assiste ...............................222
Tabela 16 - Cruzamento entre Escolaridade e
Canal católico de TV a que assiste ..................................223
Tabela 17 - Cruzamento entre Renda familiar e
Desejo de assistir à TV Canção Nova...........................224
Tabela 18 - Cruzamento entre Renda familiar e Razã
o por que não se assiste à TV Canção Nova.........225
Tabela 19 - Cruzamento entre Escolaridade e
Participação em atividades da Igreja................................226
Tabela 20 - Cruzamento Frequência em missas e
Assistência a programas religiosos de TV .................228
Tabela 21 - Cruzamento Participação em
atividades da Igreja e Assistência a programas religiosos de TV
...........................................................................................................................................230
Tabela 22 - Cruzamento Frequência em missas e
Assistência a Canal Católico de TV...........................231
Tabela 23 - Cruzamento Participação
de atividades da Igreja e Assistência a Canal Católico de TV
Agrupamento .....................................................................................................................232
Tabela 24 - Cruzamento Participação
de atividades da Igreja e Assistência a Canal Católico de TV......232
Tabela 25 - Participação
na TV Canção Nova..........................................................................................233
Tabela 26 - Por quem a TV Canção N
ova deve ser sustentada................................................................235
Tabela 27 - Opinião sobre programação e ca
nais de TV religiosos..........................................................237
Tabela 28 - Opinião sobre programação e ca
nais de TV religiosos..........................................................238
Tabela 29 - A Igreja Católica apoia a T
V CN? .......................................................................................239
Tabela 30 - Opinião sobre presença de autori
dades eclesiásticas na TV Canção Nova ...........................240
Tabela 31 - O que pensa de venda de pr
odutos em programas religiosos................................................242
Tabela 32 - O que pensa da venda de pr
odutos em programas religiosos................................................242
Tabela 33 - Relação entre TV Canção Nova
e programas de TV não católicos.......................................243
Tabela 34 - Opinião sobre programas religios
os de TV não-católicos.....................................................244
Tabela 35 - Programas religiosos
de TV modificam a fé.........................................................................246
Tabela 36 - Programas religiosos
de TV modificam a fé.........................................................................246
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................14
1. O percurso da pesquisa: do problema ao marco teórico..............................................................14
2. Percurso metodológico da pesquisa.............................................................................................22
2.1. A estrutura da tese.................................................................................................................................22
2.2. Os métodos de pesquisa ........................................................................................................................26
2.2.1. A pesquisa bibliográfica – estado da arte......................................................................................26
2.2.2. A pesquisa quantitativa: relato de percurso...................................................................................27
2.2.3. As pesquisas qualitativas...............................................................................................................30
2.2.4. Análise dos discursos....................................................................................................................31
PARTE I - D A P R O D U Ç Ã O
CAPÍTULO I - DEUS EX MACHINA: BREVE HISTÓRIA DO RELIGIOSO NA TV BRASILEIRA ........36
1. Aurora de um novo tempo.............................................................................................................44
2. Nova velha religião.......................................................................................................................50
3. Uma teogonia: evolução da telerreligião no Brasil......................................................................55
4. A diáspora.....................................................................................................................................63
5. Crescei e multiplicai-vos...............................................................................................................65
6. O padre nosso de cada dia............................................................................................................70
CAPÍTULO II - ENTRE O PÚLPITO E O AREÓPAGO: O PENSAMENTO E A PRÁTICA DE
COMUNICAÇÃO CATÓLICA
....................................................................................................................84
1. Entre as maravilhas: o pensamento comunicacional do Vaticano...............................................88
2. Da utopia sequestrada: o pensamento comunicacional latino-americano.................................110
3. O velho testamento: as políticas (vaticanas) de comunicação católica no Brasil......................116
4. Em busca do dialógico perdido ..................................................................................................126
CAPÍTULO III - O EPISCÓPIO: UMA ANÁLISE DA TV CANÇÃO NOVA .......................................133
1. O carisma - ou: como o sujeito faz a história.............................................................................135
2. Canção Nova: a incrível máquina de produzir humanos ...........................................................141
3. Visão geral da programação da TV Canção Nova.....................................................................145
4. Análise dos programas ...............................................................................................................156
4.1. Escola da fé......................................................................................................................................... 157
i) Estrutura geral do programa............................................................................................................157
ii) Vinheta de abertura......................................................................................................................... 159
iii) Cenário ...........................................................................................................................................159
iv) Análise do corpus ............................................................................................................................ 160
a) Programa de 14/01/2010 ............................................................................................................160
b) Programa de 28/01/2010 ............................................................................................................164
c) Programa de 04/02/2010.............................................................................................................169
d) Programa de 11/02/2010 ............................................................................................................173
4.2. PNH – Por hoje não vou pecar............................................................................................................176
i) Estrutura geral do programa............................................................................................................176
ii) Vinheta de abertura......................................................................................................................... 178
iii) Cenário ...........................................................................................................................................179
iv) Análise do corpus ............................................................................................................................ 180
a) Programa de 19/01/2010 ............................................................................................................180
b) Programa de 26/01/2010 ............................................................................................................184
c) Programa de 02/02/2010.............................................................................................................187
d) Programa de 09/02/2010 ............................................................................................................190
4.3. Direção espiritual ................................................................................................................................ 192
i) Estrutura geral do programa............................................................................................................192
ii) Vinheta de abertura......................................................................................................................... 194
iii) Cenário ...........................................................................................................................................194
iv) Análise do corpus ............................................................................................................................ 195
a) Programa de 14/01/2010 ............................................................................................................195
b) Programa de 21/01/2010 ............................................................................................................197
c) Programa de 28/01/2010.............................................................................................................199
d) Programa de 04/02/2010 ............................................................................................................201
PARTE II - DA RECEPÇÃO
CAPÍTULO IV - VIDA NAS SOMBRAS: UMA ANÁLISE DAS PESQUISAS QUANTITATIVAS ..........205
CAPÍTULO V - (U)TOPIAS: A TV CANÇÃO NOVA ENTRE O SIMBÓLICO E O DIABÓLICO............247
1. Guerra dos deuses.......................................................................................................................249
2. Identidade ...................................................................................................................................272
3. Consumo.....................................................................................................................................290
4. Corpo – ou: ainda o materialismo..............................................................................................306
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................322
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................................340
14
INTRODUÇÃO
1. O percurso da pesquisa: do problema ao marco teórico
Duas instituições sociais de transmissão simbólica; duas tecnologias de
moralidade; duas máquinas que criam humanos e coletividades. Assim podem ser
relacionados os mundos da comunicação social – ou antes: do sistema midiático secular
– e da religião. E, dada a amplitude com que transmissão, moralidade e criação de
humanos se apresentam, são dois mundos que compartilham muito mais do que a
capacidade de forjar o mundo: trata-se de tecnologias a um só tempo concorrentes e
complementares. Muito mais a Igreja Católica. Se antes ela detinha o quase monopólio
do simbólico, hoje tal monopólio foi transferido para o sistema midiático monopolizado.
Transmissão, moralidade e criação de humanos: eis o que o que aproxima e, não
obstante, afasta sistema midiático e Igreja Católica.
A Igreja Católica, entidade universal e, nas palavras de Régis Debray
(1999), a primeira transmissora de massa da história, sempre se interessou pelos meios
modernos de informação e comunicação. Todavia, essa relação, que parece tão
naturalmente estabelecida, sempre foi tensa – trata-se efetivamente de tecnologias em
disputa. A tensão da relação ganhou contornos dramáticos quando da autonomização
das relações sociais tendo em vista a hegemonia católica de transmissão simbólica
(RODRIGUES, 1997) – e em momentos parecia que a nova tecnologia de transmissão,
moralidade e criação de humanos mataria a antiga mídia. Parecia, de fato, que o mito
estava fadado a desaparecer, como chegou a acreditar o século XIX. Apenas parecia.
Não só foi criada uma nova mitologia segundo a nova tecnologia de transmissão
simbólica, como o velho namoro não tardou a reatar – entre tensões, é verdade, mas, aos
olhos de quem vê de fora, parece um namoro predestinado à eternidade: por um lado, o
sistema midiático criou sua própria mitologia, mas também lançou mão da velha
mitologia; por outro, a recente e crescente apropriação dos meios de comunicação pelas
religiões e, especialmente da Igreja Católica em nosso caso, fez do namoro tenso uma
promessa de felicidade.
A pesquisa que originou esta tese teve como objeto a TV Canção Nova,
televisão de programação religiosa vinculada ao catolicismo, que se apresenta hoje
como um fenômeno em comunicação social, com atuações, além da TV e a rádio, em
webtv, portal de internet e media móveis, como telefone celular, além de media
15
impressos. Se, há bem pouco tempo, o sistema Canção Nova era visto com desconfiança
por grande parte dos católicos e aceita por aqueles que se aproximavam dos rituais da
Renovação Carismática Católica, hoje ele é certamente uma referência de qualidade
entre a maioria dos católicos, embora haja aqueles que o veem com desconfiança.
Observando-se essa tensão, buscou-se compreender, a princípio, se havia um outro
Deus nascente – ou, como ver-se-á, um outro sagrado - com o sistema de transmissão
simbólica que modifica a relação tempo-espaço.
Trata-se aqui de nos apoiar na noção de midiatização desenvolvida por
Muniz Sodré (2002): relação das instituições com o complexo midiático que forja a bios
midiática. O próprio Sodré, em seu estudo sobre o ethos midiatizado, quando,
brevemente trata da religião e mídia, aponta para essa articulação – na verdade, retirada
de um importante teólogo da libertação brasileiro, Hugo Assmann (1986):
Nos Estados Unidos desde o final dos anos setenta, como introito à era
neoconservadora que resultaria no economicismo de Reagan (...) floresceu
uma espécie de “capitalismo cristão” coadjuvado pelo tele-evangelismo
eletrônico. Debruçada sobre a derrocada dos valores tradicionais (...) e
centrada no messianismo do espetáculo místico, a “igreja eletrônica”, ou
ainda “igreja comercial”, passou a constituir verdadeiros impérios televisivos.
Nesse contexto, tudo se vende e se compra – da fé à redenção –, marketing e
teologia andam de mãos dadas (SODRÉ, 2002: 68).
Sodré trabalha com uma noção de “messianismo do espetáculo místico” e
“igreja comercial”. Embora pertinente, a abordagem aqui proposta trata não da igreja
comercial, mas da possibilidade de a religião dialogar com o comércio enquanto igreja;
da mesma forma, por outro lado e em consonância com a ideia anterior, o propósito não
é questionar o “messianismo do espetáculo místico”, mas verificar o misticismo do
espetáculo de que a telerreligião se alimenta. Aliás, essa ideia de um capitalismo cristão
vindo desde os EUA foi desenvolvido justamente por Assmann (1986). Embora
imprescindível para esta pesquisa, por tal conceito realizar uma articulação entre o
aspecto transcendental do capitalismo em seu quadro histórico atual, é preciso atentar
para o fato de que se pretende aqui apontar para os elementos sagrados no mundo
secular – e não o contrário.
Nessa medida, de início, a tentativa era perscrutar as narrativas sobre Deus:
a partir programação da Canção Nova, dos fiéis da Canção Nova e de autoridades
eclesiásticas – melhor: de chefes paroquiais na Diocese de Divinópolis, cidade de cerca
de 250 mil habitantes, que se marca por sua modernidade.
1
O cenário da pesquisa,
1
Sobre isso, CORGOZINHO, 2003.
16
portanto, apontava para a possibilidade real de se mostrar provável em relação a uma
realidade universal. A pesquisa guardava surpresas, todavia.
Embora, a princípio, se constituísse numa pesquisa exploratória e descritiva
de um fenômeno, ela apresenta como hipótese justamente essa modificação do sagrado
– que seria capturada por suas narrativas. A pesquisa de campo, no entanto, exigiu que
as ferramentas preparadas para a compreensão do fenômeno (ver, adiante, em
metodologia de pesquisa) e a própria hipótese fossem modificadas. O objeto, dinâmico
e histórico, modificou o sujeito e seu olhar – histórico - para o objeto. Agora, ainda que
se mantivesse a disposição em perscrutar as narrativas sobre o divino, e embora se
aceitasse que tal narrativa pudesse ser modificada pela experiência ética e estética
midiática, percebeu-se que havia algo que permanecia desde antes de a imprensa
explodir o poder absoluto da Igreja Católica, conservou-se no início e consolidação da
telecomunicação eletrônica e continua ainda hoje, quando um novo dispositivo promete
colocar por terra, novamente, todas as nossas convicções sobre o mundo. Trata-se, pela
constituição de uma máquina de transcendência – que é a religião constituída como
Igreja e seu funcionamento -, de criar formas de crenças universais, que garantam a
organização da vida humana coletiva. Assim, a pesquisa, mesmo considerando que
haveria nas narrativas uma divindade distinta daquela narrada em outros ambientes
midiáticos (outras midiasferas, diria Debray, 1993), percebeu que, efetiva e
empiricamente, se tratava de uma máquina de gerar e gerenciar consensos para o
exercício do poder. E, mais, que esse poder se dava na capacidade de gerar e gerenciar o
maquinário por onde eram transmitidos esses consensos. E, ainda, que tal poder de se
apropriar dos meios de criação e transmissão de transcendências coincidia com a
apropriação dos meios de produção material, do fruto da atividade humana. Nesse caso,
a Igreja seria uma mídia de uma classe dominante de outrora, cujo ambiente midiático
se dava por oralidades, códices, vitrais – e silêncios obsequiosos –, e cujo suporte eram
as catedrais, igrejas e capelas, onde quer que houvesse um gentio.
Eram outros os tempos. Desde então, a classe dominante se modificou e,
com ela, suas formas de criação de consensos – mas o poder, o poder de um humano
sobre o outro, embora tenha se modificado em suas formas, manteve-se. Como
manteve-se, já se disse, o maquinário de transcendência, o organizador universal das
vida humanas, que gera o consenso para o exercício do poder. Assim, se delineava a
nova hipótese: seria o capital uma força transcendente?
O modo de produção capitalista, muito mais do que modo de produção, é
17
relação social, é modo de vida – e por isso precisa gerar consensos e semióforos,
estrelas-guias, capazes de nos conduzir à felicidade eterna. É o aparelho midiático
contemporâneo o responsável por transmitir e criar o novo consenso e a nova
transcendência. Com a Igreja Católica ou, mais especificamente, com a TV Canção
Nova se declarando segundo a moderna tarefa de evangelizar pelos meios de
comunicação, o esforço era descobrir como dialogam esses dois maquinários de
transcendência, porque, embora resistindo e muito embora faça críticas à transcendência
por eles forjada, o primeiro maquinário se apropriou dos meios de comunicação.
A pesquisa, então, se deparava com a dupla tarefa de compreender as
narrativas sobre Deus advindas do maquinário telemático da TV Canção Nova e dele
recolher, em seus diálogos com o mundo contemporâneo, marcado pela atomização dos
humanos e pela re-união graças ao aparelho midiático, as tensões e a própria traição –
em outras palavras: de que forma, na tentativa de se manter viva, a boa-nova da TV
Canção Nova só faz reforçar o sagrado que recusara e contra o qual se arma: o sagrado
do capitalismo. E mais ainda: qual seria a razão de ser de a Igreja Católica, no nosso
caso, na figura da Canção Nova, se apropriar dos meios de transmissão simbólica,
quando apenas uns poucos são deles proprietários.
Para tanto, era preciso questionar, de início, em que medida a Igreja
Católica era – e continua sendo – um medium. A teologia católica, como ademais a
cristã, se sustenta em princípios, acontecimentos e atos de natureza profundamente
comunicacional: o Deus trinitário e a relação entre as pessoas que compõem a trindade;
a encarnação do filho de Deus como expressão da comunicação divina com o humano:
Deus, segundo a teologia cristã, assume a condição humana para melhor comunicar a
divina – ele se seculariza, nas palavras de Gianni Vattimo (1996). A revelação, o
descimento da condição divina não ocorre fora, mas dentro da história, da cultura e da
simbologia humanas. Jesus é considerado o comunicador perfeito, pois, divino, ao
encarnar, se lançou na mesma tragédia daqueles que viria, posteriormente, salvar.
O Deus teológico da cristandade é, e sempre foi, um problema de
comunicação. Mas este texto não se interessa pelo Deus teológico. Ou, se se interessa,
busca-se surpreender na teologia as formas como aquela comunicação se procede. Aqui,
então, é forçoso assumir, deve-se compreender a teologia como produto – não produtor
– da eclesiologia; e a eclesiologia, produto da forma material como se estrutura o
medium.
Note-se, portanto, que a pesquisa – e a tese que ora se apresenta – são
18
tributárias do materialismo histórico de Karl Marx. Isso implica dizer: o ser humano é
um ser social, um produto da história e de suas condições materiais – mas também
capaz de produzir história: ela, a história é realizada pelo embate entre classes pela
apropriação de tais condições materiais, ou, melhor, pela apropriação dos meios de
produção e do produto do trabalho humano. E, assim, de que é possível o humano
apropriar-se dos produtos de seu trabalho para modificar suas condições de explorado.
Há, nesse caso, um constrangimento em relação ao objeto desta pesquisa e
desta tese: a religião. A tradição marxista costuma associar a religião à ideologia – e
ideologia, em Marx, sabemos, possui um caráter negativo. Assim, a religião seria
apenas a forma de alienação em relação ao fetiche da mercadoria
2
- e isso geraria a ideia
do marxismo, mas não de Marx - de que a superestrutura, onde se movimenta a
cultura, incluindo a religião, obviamente, é apenas um reflexo das condições materiais,
da infraestrutura.
Muito embora o próprio Marx, em O Capital,
3
tenha dito algo estranho a
uma teoria do reflexo, serão necessários, ainda assim, para tentar superar esse
constrangimento, três movimentos. O primeiro é alienígena: tentando solucionar essa
aporia, Bourdieu (2004, 79-99) recorre a Weber para dizer que há uma autonomia
relativa do campo do simbólico em relação à infraestrutura econômica. No entanto, diz
Bourdieu, procurando realizar uma síntese entre Marx e Weber, este, na tentativa de
rivalizar ao reducionismo daquele, desenvolveu um conceito que seria, no entendimento
do francês, sua maior fragilidade: a teoria do carisma individual. Assim, diz, ao
conceber como força revolucionária o caráter heroico do indivíduo, Weber deixa de
perceber o campo da cultura em diálogo com as condições materiais de existência.
Esta pesquisa, todavia, não seguirá o caminho proposto por Bourdieu – por
dois motivos: primeiro, ao propor o estudo da estrutura material de poder na
organização da religião, ele faz, como é óbvio, uma pesquisa sociológica, e esta é uma
pesquisa em comunicação. Isso significa que interessa aqui como essa estrutura de
poder é feita de e pelo simbólico e por quais dispositivos tal simbólico é transmitido,
2
Sobre o conceito de alienação, MÉSZÁROS, 2006.
3
Diz MARX (1968, 88): “De acordo com a relação social de produção que tem validade geral numa
sociedade de produtores de mercadoria, estes [produtores] tratam seus produtos como mercadoria, isto é,
valores, e comparam, sob aparência material das mercadorias, seus trabalhos particulares, convertidos em
trabalho humano homogêneo. Daí ser o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, a forma religião
mais adequada para essa sociedade, notadamente em seu desenvolvimento burguês, o protestantismo, o
deísmo etc.” LÖWY (2000, 15-16) também reconhece em Marx passagens em que se associam o
protestantismo e o capitalismo.
19
como ele circula e se transforma em realidade material. O outro motivo é o fato de que,
embora a pesquisa também não siga o caminho weberiano, ela concorda com Weber na
proposição do carisma como força de ação. Se é verdade que as condições sociais, sua
estrutura material, são imprescindíveis para que o indivíduo forje o carisma, interessa a
esta pesquisa o fato ainda mais concreto de saber como indivíduos conseguem fazer
circular suas mensagens carismáticas e, delas, obtêm a adesão para a realização de suas
ideias. Isso, aliás, aconteceu, como veremos, com Monsenhor Jonas Abib e sua Canção
Nova. Preservar a força do indivíduo sem perder sua ontologia social é a tarefa que
parece a mais primordial numa época marcada pela dissolução do indivíduo e dos laços
sociais nas ideologias individualistas.
Restam-nos, então, os dois outros caminhos. O primeiro deles, pode-se
dizer, é de lastro em relação ao materialismo histórico – ou da passagem do idealismo
ao materialismo.
4
A proposição de Feuerbach (1988) ainda é possível atualmente? Dizer
que a religião é a alienação de todas as aspirações humanas a Deus ainda é plausível? É
possível ainda questionar as religiões para que se compreendam as estruturas do
mundo? Elas não teriam sido superadas pelas palavras do próprio Marx, quando
conclama:
A religião é o suspiro do ser oprimido, o íntimo de um mundo sem coração e
a alma de situações sem alma. É o ópio do povo. A miséria religiosa constitui
ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria
real. O banimento da religião como felicidade ilusória é a exigência de sua
felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito de sua
condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões.
A crítica da religião é, pois, a crítica do vale de lágrimas de que a religião é o
esplendor (...) A tarefa da história (...) é constituir a verdade deste mundo. A
imediata tarefa da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a
auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi
desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste
modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a
crítica da teologia em crítica da política (MARX, 2003, 46)?
De fato, exibir a religião da mercadoria talvez seja a tarefa mais premente
da pesquisa, porém, as perguntas de Feuerbach ainda ressoam (como um fantasma que
ronda o mundo capitalista), sobretudo quando a matéria se desmaterializa, a mercadoria
se torna tão fantasmagórica que se transforma em imagem, em espetáculo, como nos
lembra Guy Debord (1997). É na associação entre os transmissores do espetáculo e as
religiões que persistiram onde talvez esteja a resposta para as perguntas realizadas
acima. Respondê-las, no entanto, é tarefa para a conclusão deste trabalho.
4
Para uma discussão sobre Feuerbach, ver: SAMPAIO & FREDERICO, 2006 e SCHÜTZ, 2001.
20
E então o terceiro caminho na tentativa de superar o constrangimento
marxista quanto à religião – agora no interior da própria tradição marxista: Gramsci e
Raymond Williams.
Gramsci
5
talvez tenha sido o primeiro marxista a denunciar a limitação do
conceito de ideologia em Marx. A ideologia para Marx, diz, torna-se na superestrutura
“um fator de equívocos”. E o principal equívoco, aquele que costuma se verificar com
maior frequência, é o que consiste numa visão "ideológica" da ideologia e que resulta
numa desqualificação dos fenômenos ideológicos (cf. KONDER, 2002, 104). Por outro
lado, Gramsci chama a atenção para a força do conceito de ideologia em Marx – a
despeito de sua negatividade:
É preciso que se recorde a frequente afirmação de Marx sobre a "solidez das
convicções das crenças populares" como elemento necessário de uma certa
situação. Ele diz, mais ou menos, "quando este modo de conceber terá a força
das convicções populares" etc. Outra declaração de Marx é que uma
convicção popular tem frequentemente a mesma energia que uma força
material ou algo semelhante; é uma declaração muito significativa. Eu
acredito que a análise desta declaração leva a reforçar o conceito de "bloco
histórico" no qual as forças materiais são o conteúdo e as ideologias a forma;
esta distinção de forma e conteúdo dá-se somente para efeitos didáticos,
porque as forças materiais não podem ser concebidas historicamente sem
forma e as ideologias seriam caprichos individuais sem as forças materiais
(GRAMSCI, 1970, 37).
Assim, diz-nos Konder,
a concepção de ideologia adotada por Gramsci está ligada a uma certa
unificação das supraestruturas em torno dos valores históricos do
conhecimento e da cultura. O pensador italiano é, sem dúvida, um
materialista; seu materialismo, porém, tem uma feição peculiar: está
permanentemente atento para a importância da criatividade do sujeito
humano, para o poder inovador dos homens, tal como se expressa nas
criações culturais (KONDER, 2002, 108).
Dessa forma, somos levados a um conceito que é caro à pesquisa, o de
hegemonia,
6
segundo o qual o poder se dá como forma (poder simbólico), pelo
convencimento e consenso; e conteúdo, como a força material propriamente. Isso nos
conduz para os mecanismos de transmissão simbólica, além, é claro do próprio material
simbólico transmitido, para que se consiga o consenso hegemônico. E a reflexão então
se abre ao segundo dos pensadores marxistas que, além de ultrapassar o mecanicismo da
relação entre infra e superestrutura, ainda trabalha explicitamente com as formas de
produção, transmissão e reprodução do material cultural circulante e delas
5
Cf.: KONDER, 2002, 101-110.
6
Sobre esse conceito, GRAMSCI, 1988; 1966. Para um estudo sistematizado do conceito de hegemonia,
ANDERSON, 1981.
21
inextrincáveis: Raymond Williams (2000 e 1997).
Williams procura marcar a produção histórica do conceito de cultura, sem
que ela, a cultura, fosse tomada como entidade percebida, um a priori, um dado
imediato. Para tanto, ele recuperou a trajetória do termo em sua viagem para a
desmaterialização. Até o século 16, cultura era associada à ideia do cultivo – numa
associação entre physis e hybris, entre natureza e cultura. Há, portanto, uma articulação
entre o cuidar e o cuidado, entre o ato da vontade e a matéria necessária que resiste e
persiste no cuidado. A partir do Iluminismo, cultura ganhou o significado de
conhecimento erudito e logo houve a cisão entre cultura e natureza – e dessa forma foi
se tornando um algo a ser alcançado, despregado de qualquer embaraço material, seja a
história, sejam as condições sociais. Ao contrário, como chama atenção Terry Eagleton
(2005), cultura se tornou estratégia de purificação da sociedade. Porém, a partir
principalmente do século 19, com o recrudescimento da lógica capitalista, a relação
entre cultura e civilização foi questionada, já que uma não levava necessariamente à
outra – mas continuou o percurso do conceito de cultura para longe de sua realização
material. Agora, cultura passou a se referir a processos íntimos, como a vida intelectual
e o apreço pelas artes e, segundo um idealismo que lhe é próprio, como algo dado,
distinto e fora da realidade social.
Williams também atacou o pensamento materialista mecanicista, além de
questionar a noção idealista de cultura. Para o pensador inglês, um marxismo vulgar, ao
tentar se contrapor aos idealistas, não faz mais do que inverter os campos de infra e
superestrutura: enquanto para o idealismo apenas as ideias são válidas, para aquele
marxismo, ao contrário, todas as ideias são um reflexo das condições materiais.
Para tal movimento, duplo, de crítica, Williams recuperou os estudos sobre
a linguagem em Bakhtin (2004), que a tratava, a linguagem, como uma atividade social
prática e, como tal, um meio de produção material. Nessa acepção, e seguindo Bakhtin,
a linguagem (e sua matéria significante, o signo) feita em discurso se torna “a arena
onde se desenvolve a luta de classes” (BAKHTIN, 2004, 46). O diálogo com o russo foi
importante para uma teoria materialista da cultura, ao mesmo tempo em que se
superavam as concepções marxistas reducionistas que propunham a cultura como
superestrutura determinada pela infraestrutura. Essa ideia da determinação para
Williams foi decisiva também para a sua concepção de forças produtivas, que, para ele,
seriam os meios de produção e reprodução da vida real. O material simbólico circulante,
a cultura, então, além de ser reunida a seu conteúdo material, e por isso mesmo, é vista
22
por Williams como uma força na produção dos indivíduos e das coletividades.
Raymond Williams conseguiu, assim, desconstruir o edifício teórico da
teoria do reflexo, que via no material simbólico (arte, cultura, religião) um simples
reflexo da realidade social. O autor ainda criticou um tipo de pensamento que apontava
para a possibilidade de uma relação imediata entre base e superestrutura. Dessa forma,
então, Williams contribuiu para a elaboração de uma teoria materialista de cultura, com
a qual esta pesquisa concorda – principalmente por, ao ampliar o conceito de cultura,
integrá-lo ao processo real da vida e apontar para a inextrincabilidade, a despeito da
autonomia relativa dos campos, das várias esferas da realidade social e a atuação de tais
esferas como forças produtivas, ou seja, como elementos ativos na transformação social.
É nessa medida que caminharão os capítulos a seguir: procurando, por um lado, a força
material, de disputa na arena da vida real, que ganham os signos da TV Canção Nova
em seu diálogo com a cultura capitalística hegemônica; e, por outro, nas formas como o
conteúdo cultural circula e ganha sentido – ou seja: é preciso pensar os meios e sua
apropriação, com, mas também além das mediações.
Preparado o terreno teórico, é possível então visualizar o percurso
metodológico da pesquisa.
2. Percurso metodológico da pesquisa
2.1. A estrutura da tese
Para que se alcancem os objetivos propostos, a pesquisa foi pensada
segundo dois “polos”: o da “produção” simbólica e o da “recepção” simbólica, o que
implica o esforço justamente de tensionar historicamente a telerreligião narrada pela TV
Canção Nova – de seus produtores em diálogo com o mundo e dos telefiéis em diálogo
com que a programação da TV Canção Nova realizada no mundo.
Na primeira parte da tese, que reúne a reflexão sobre a produção da TV
Canção Nova, estão organizados os três primeiros capítulos. No primeiro capítulo, é
feita uma reflexão sobre o fenômeno da telerreligião, das igrejas eletrônicas;
compreende-se o desenvolvimento de tal telerreligião, desde o seu surgimento e
amadurecimento nos EUA, até seu nascimento, desenvolvimento e expansão no Brasil –
inclusive e sobretudo com a “reação” católica para o proselitismo televisivo, a partir da
década de 1990, já que a pesquisa tem na TV Canção Nova, católica, seu objeto. Nesse
capítulo, há muitas recorrências aos discursos sobre religião realizados na imprensa
brasileira, desde a década de 1970. O expediente é importante para que se pudesse situar
23
tanto o desenvolvimento da presença da religião na mídia, especialmente na TV, como
para esclarecer um fenômeno que se observou: a naturalidade do catolicismo no Brasil
ocorre também na programação profana da mídia brasileira – incluindo a presença de
religiosos ou religiosidade nas telenovelas brasileiras. Isso demarca uma constatação: a
despeito da reclamação de um silêncio mortal dos media brasileiros para as coisas da
Igreja, a rigor, o catolicismo sempre foi constantemente representado e, mais, teve
acesso a eles, media, ainda que nem sempre de forma satisfatória para a própria Igreja.
A esse respeito, é feito um tipo de inventário da presença do religioso na
teledramaturgia no País. Mesmo que não tenha havido um quadro exaustivo de análise
de tal presença, o percurso é suficientemente trabalhado para que se compreenda aquela
naturalidade – bem como para o apontamento tanto da presença não católica na TV
quanto da reação católica, ocorrida desde meados dos anos 1990.
A análise da teledramaturgia também é importante para a abertura do
segundo capítulo. Aqui é abordada a evolução do pensamento e a prática em
comunicação católica. Duas imagens norteiam essa análise: o púlpito e o areópago,
imagens bastante presentes nos documentos - e especialmente no que se pode chamar
de teoria católica da comunicação - da Igreja Católica sobre as comunicações,
produzidos sobretudo a partir do Concílio Vaticano II. Trata-se de uma disputa de
modelos para a concepção e a prática da comunicação pela instituição: o púlpito resume
uma preocupação com os meios e tem uma concepção, além de meramente
instrumental, linear da comunicação; o areópago propõe um modelo em rede e
pressupõe, por estar ocupado com as mediações, uma formação crítica dos cidadãos
para a leitura do material simbólico midiático, além da assunção de uma cultura dos
media pela Igreja em sua atuação pastoral e sua presença nos media. Porém, e esse é o
argumento principal do capítulo, talvez não haja uma radical diferença entre as duas
posições – ao menos a radicalização não se dá de forma efetiva como modificação da
estrutura de transmissão simbólica: as propostas ganham status espiritual, ideal, ao
passo que a construção de um areópago implica um combate material.
Para efeito de organização, o segundo capítulo é estruturado da seguinte
maneira: primeiro são analisados os documentos sobre comunicação e mídia produzidos
pelo Vaticano, sejam encíclicas papais, documentos do Conselho Pontifício para as
Comunicações Sociais, em mensagens dos papas para o Dia da Comunicação Social.
Em seguida, são analisados os documentos produzidos por organismos episcopais
latino-americanos e, depois, os documentos produzidos por autoridades eclesiásticas
24
brasileiras, bem como reflexões de religiosos ou estudiosas ligados à Igreja sobre o
setor. Deve-se ressaltar que será focalizada a reflexão sobre as políticas relativas à
televisão. Por fim, discute-se justamente a proposta mais comum presente nos estudos
sobre comunicação: a necessidade de se criar uma teologia da comunicação católica em
que seja privilegiado o elemento dialógico como princípio. Trata-se, como se verá, de
discutir a superação de modelos teóricos, ainda que libertadores, baseados no púlpito,
em prejuízo ao areópago. Dois dos mais importantes pensadores da comunicação cristã,
os católicos Ismar de Oliveira Soares e Joana Puntel, são clamados para um diálogo a
fim de, em sua obra, se tentar compreender as razões e consequências práticas para tal
superação.
O terceiro capítulo é destinado à análise do histórico da Canção Nova e da
TV Canção Nova, e da programação da TV Canção Nova. São analisados três
programas, escolhidos entre aqueles mais assistidos pelos fiéis católicos, resultado
apurado a partir da pesquisa quantitativa (ver metodologia, mais adiante). Assim, a
despeito de tal pesquisa ter apontado “Missas” e “Terços” como os programas mais
assistidos, optou-se, para as análises, pelos três programas seguintes: “Direção
espiritual”, comandado por padre Fábio de Melo; “PHN”, apresentado por Dunga; e
“Escola da fé”, apresentado por Felipe Aquino.
A opção por não realizar a análise dos programas citados como mais
assistidos – embora se admita a pertinência em analisá-los, dada a distinção dos rituais
apresentados em duas mídias distintas, Igreja e a TV, o que é, inclusive, motivo de
preocupação das autoridades eclesiásticas católicas – se dá por dois motivos. Primeiro:
quando do estudo da programação da TV Canção Nova, em que serão feitas reflexões
sobre a telerreligião no medium TV, será exigida, senão uma análise, certamente a
compreensão do formato de tais programas. Depois, para esta pesquisa, a escolha dos
três outros programas é muito mais proveitosa, ainda que as ideias aqui defendidas
pudessem ser confirmadas também naqueles programas que foram preteridos.
A segunda parte da tese trata das produções de sentido de atores que fazem
a religião – e dialogam, em suas realidades sociais, com a produção da TV Canção
Nova. Trata-se então, dessa segunda parte, com o quarto e o quinto capítulos, das
reflexões sobre a “recepção”. O quarto capítulo faz uma análise dos resultados apurados
da pesquisa de campo quantitativa. Busca-se ali uma espécie de esboço dos homens e
mulheres reais, cujo rosto será melhor visualizado no capítulo que analisa as entrevistas
em profundidade. Esse é o caso do quinto e último capítulo: ele faz um diálogo com os
25
humanos reais que fazem o catolicismo, que forjam a Igreja Católica e refletem sobre a
Canção Nova, sua ética, sua TV e sua programação. Isso significa que os discursos
criados a partir da relação com a Canção Nova, especialmente a TV Canção Nova, serão
analisados. Trata-se dos discursos recolhidos a partir das entrevistas realizadas com seis
párocos na diocese de Divinópolis; com sete fiéis católicos que disseram, na pesquisa
quantitativa, assistir à TV Canção Nova; e com peregrinos que estavam presentes na
sede da Canção Nova, em Cachoeira Paulista, em dois eventos: no chamado
Acampamento da Sobriedade, que reuniu padres, religiosos e leigos de Pastorais da
Sobriedade de todo o País; e um grande evento, o Hosana Brasil, que, segundo relatos,
chega a reunir 200 mil pessoas em um fim-de-semana. Recolher os depoimentos em
dois eventos teve uma importância grande para a compreensão do fenômeno – inclusive
da TV Canção Nova -, para que se visualizassem dois tipos de público: aquele que vai
para grandes acontecimentos, que desejam assistir a grandes nomes do catolicismo
midiatizado da Canção Nova, e outro, que normalmente vai para conhecer a sede da
Canção Nova e sua estrutura ou para se reunir em grupos de oração e pastorais. Este foi
o outro fator de importância para o recolhimento de depoimentos em dois eventos
distintos: o Acampamento da Sobriedade foi o primeiro ocorrido na Canção Nova e
causou um impacto muito grande entre os presentes e os membros da comunidade
católica. Tanto que foi marcado, antes mesmo do término da primeira edição, o encontro
de 2010. Não foi esse impacto o motivo da relevância, todavia: foi o próprio encontro
de pastorais de diversas dioceses, o que demonstra a completa aceitação e
reconhecimento da Canção Nova e da TV Canção Nova, o que acaba por reforçar a
relação existente entre a “religião virtual” do meio de comunicação e a “real” da
máquina eclesiástica.
Esse capítulo procura mapear, por temáticas, os diálogos com os
entrevistados. Assim, as entrevistas serão vistas conforme a seguinte organização: i)
Guerra dos deuses: numa apropriação do título do livro de Michel Löwy (2000) – que,
por sua vez, retirou o nome da conhecida expressão de Weber, como indicativo do
choque se sistemas de crenças na modernidade -, essa parte procura analisar os relatos
sobre relação dos fiéis com a Canção Nova. Aqui, buscam-se surpreender as tensões
externas da Canção Nova em relação aos concorrentes da Igreja Católica,
principalmente os protestantes neopentecostais e suas igrejas eletrônicas, bem como as
tensões internas na Igreja Católica, sobretudo aquelas que dizem respeito às críticas à
Canção Nova e desde a Canção Nova contra outros grupos – especialmente o grupo
26
reunido em torno da Teologia da Libertação; ii) Identidade: nessa parte, são
identificados os discursos que narram a hegemonia contemporânea em relação às
políticas de identidade, a forma como se organiza a sociabilidade – e o sagrado –
contemporâneos: o flanar individual pelo mundo esteticamente vivenciado. As práticas
identitárias se estruturam justamente na prática do capitalismo desmaterializado – e
sacralizado do consumo, que é discutido no terceiro subtítulo do capítulo; iii) Consumo:
nessa parte, como continuidade à anterior, são articulados e analisados os discursos dos
entrevistados na tentativa de neles surpreender as marcas da relação entre o sagrado
transmitido pela TV Canção Nova e o outro sagrado, contra o qual aquele se debate. Em
ambos os casos, os conceitos trabalhados exigem um diálogo teórico com o pós-
modernismo; Por fim, iv) Corpo – ou: ainda o materialismo: lá, são discutidas as
práticas do presenteísmo como uma experiência do tempo em que as políticas de
identidade e do corpo são possibilitadas, justamente porque tem havido uma constante
desmaterialização da vida – e a última fronteira é justamente o corpo, tornado signo,
espetáculo e mercadoria. Por isso se diz de uma persistência do materialismo: aqui, são
percebidas nas narrativas dos entrevistados a força material dos meios de produção e de
reprodução simbólica. Dessa forma, busca-se mostrar como, a despeito de haver uma
clara cisão entre o capitalismo e a Canção Nova, bem como com os discursos católicos,
a tarefa de evangelizar pelos meios de comunicação a partir de sua apropriação – ou
monopolização – acaba por reforçar uma posição a que se julga contrapor.
Com isso, espera-se que, enfim, as respostas realizadas sejam respondidas e
a hipótese de trabalho, confirmada.
2.2. Os métodos de pesquisa
2.2.1. A pesquisa bibliográfica – estado da arte
A pesquisa bibliográfica empreendida procurou mapear o estado da arte na
relação entre sistema midiático e religião. A pesquisa mostrou a complexidade do tema
e sua relativa novidade. A maioria dos estudos feitos se refere ao fenômeno do
neopentecostalismo, especialmente em relação à Igreja Universal do Reino de Deus.
Nos trabalhos defendidos em instituições como ECA/USP, Unicamp, Umesp, em São
Paulo e sobretudo a Unisinos, no Rio Grande do Sul, há pouca variedade de
tematização. Por outro lado, é pequena a produção na temática que dialogue com a
tradição marxista.
Assim, conhecido o estado da arte, procurou-se realizar uma leitura
27
qualificada dos autores com quem foram travados diálogos – mas a pesquisa
bibliográfica se mostrou efetiva depois de vislumbradas as temáticas que se
manifestaram no decorrer da pesquisa empírica, inclusive com a pesquisa nos
documentos da Igreja Católica sobre os meios de comunicação social.
2.2.2. A pesquisa quantitativa: relato de percurso
Desde que foi apresentado seu projeto ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Comunicação da ECA/USP, em 2006, a pesquisa se mostrava bastante
complexa. Embora não houvesse, naquela época, clareza quanto aos passos
metodológicos que seriam necessários, apenas a proposta de pesquisa de recepção junto
a telefiéis da TV Canção Nova já seria suficientemente trabalhosa. Com o avanço da
reflexão, a maior proximidade com o objeto, as pesquisas bibliográficas, tanto durante a
fase de cumprimento dos créditos, nas disciplinas, como, posteriormente, com as
pesquisas bibliográficas visando à parte empírica, aquela complexidade se tornou
patente.
De fato, à medida que havia uma aproximação com o objeto de pesquisa e
se delineavam tanto as hipóteses teóricas, quanto, sobretudo, a necessidade de
desenvolvimento da parte empírica, percebeu-se que, a despeito da complexidade da
pesquisa de recepção, cada capítulo exigia uma pesquisa autônoma. Independentemente
disso, a coleta de dados da pesquisa de recepção seria a mais trabalhosa – e exigiu um
grande esforço para a elaboração de ferramentas de pesquisa: os questionários que
seriam aplicados junto aos telefiéis.
Em um primeiro momento, a ideia era que se fizessem apenas pesquisas
qualitativas, com entrevistas em profundidade. No entanto, incursões em campo
mostraram que: a) haveria o risco, sempre presente, de a hipótese teórica servir não
como pano de fundo para a pesquisa empírica, mas como uma camisa-de-força. b)
Assim sendo, não havia senão uma hipótese teórica – ou seja, não havia uma hipótese
empírica. Dessa forma, não seria possível realizar as entrevistas em profundidade.
Embora houvesse objetivos claros para levar a cabo a empresa, sem uma hipótese
empírica não haveria possibilidade de a pesquisa se mostrar eficiente. c) Diante do
problema que se apresentou, levantou-se a dúvida, além disso, sobre a cientificidade da
empreitada com aquele método. A dúvida era sobre a representatividade social dos
grupos e indivíduos escolhidos, já que se corria o risco de haver vício de amostragem:
as primeiras incursões em campo foram capitaneadas pelos contatos com grupos ligados
28
à Renovação Carismática Católica, e eles seriam o único grupo a ser “testado”. Mais
uma vez, colocou-se em dúvida a hipótese. d) A saída encontrada foi procurar uma
hipótese empírica. A partir dos cadernos de campo, dos contatos com grupos de
carismáticos e com párocos, foi desenvolvida a ferramenta que pareceu a mais
adequada: alguns questionários se aliariam à ideia inicial, de pesquisas qualitativas, que,
assim, todavia, seria sustentada por resultados mais “concretos.” A solução foi sair a
campo para testar uma hipótese: de fato havia, como sugeriam as leituras sobre o
mesmo fenômeno, uma “igreja eletrônica”, distinta da “Igreja real” e com rituais
próprios? Parecia que, com dados empíricos nas mãos e com essa hipótese refutada ou
confirmada, a pesquisa poderia ser mais bem trabalhada.
A partir disso, foi desenvolvido um questionário estruturado em múltipla
escolha para pesquisa quantitativa, que seria aplicado nas portas de Igrejas, junto a fiéis
católicos. Antes de sua aplicação, porém, seria necessário compreender melhor a relação
entre os futuros entrevistados – os fiéis católicos – e os líderes paroquiais.
Posteriormente, depois de aplicados os questionários quantitativos, a antiga proposição,
de entrevistas em profundidade, teria melhor proveito. Assim, criou-se uma dinâmica da
pesquisa. Foram desenvolvidos quatro tipos de questionários: o primeiro, qualitativo,
visaria à compreensão da relação existente entre a máquina eclesiástica e os fiéis: de que
forma a condução de homilias, o trabalho pastoral e as conversas pessoais de padres
com seus fiéis poderiam interferir em sua visão de mundo, inclusive em relação à TV
Canção Nova? Foi desenvolvido um questionário semi-estruturado para ser aplicado aos
padres. Para a escolha de quantas e quais paróquias participariam das duas primeiras
partes da pesquisa, foi feito um levantamento, junto à diocese de Divinópolis, sobre o
número de paróquias, quais regiões atendiam, e qual a tendência ideológica de cada um
dos párocos: se adeptos, simpáticos ou refratários e críticos da Renovação Carismática
Católica. Das 77 paróquias componentes da diocese, foram escolhidas sete, que
pareceram representativas segundo regiões de maior ou menor carência social, centrais,
periféricas e uma em zona rural, além da distribuição equitativa das tendências
ideológicas-teológicas. Das sete escolhidas, duas paróquias eram comandadas
declaradamente por padres ligados ou simpáticos à Renovação Carismática Católica;
duas, por padres críticos ao movimento católico pentecostal, sendo um deles ligado aos
movimentos sociais e outro à corrente conservadora da igreja; as demais foram
escolhidas pela região: uma central e “de elite econômica”; uma, de classe média baixa;
e a outra em um bairro de muita carência na cidade – cujo pároco, alegando não
29
conhecer suficientemente os fiéis por ser novato na paróquia, preferiu não realizar a
entrevista. Ao todo, então, foram seis os párocos entrevistados.
Definidas as paróquias, as entrevistas com párocos, se mostraram, a
princípio, inócuas, já que o resultado das entrevistas quantitativas apresentaria um
resultado geral, e não por paróquia. Isso inviabilizaria a intenção de mostrar a relação
existente entre os chefes paroquianos e os fiéis que frequentam cada paróquia. Todavia,
as entrevistas com párocos se mostraram úteis: seus discursos são analisados e cruzados
com os discursos dos fiéis e da própria TV Canção Nova.
Para a realização da pesquisa quantitativa, primeiro, foi definida a margem
de erro aceitável para a pesquisa, levando-se em conta a escassez de recursos e de
tempo. Chegou-se a uma margem de erro máxima de 5%, o que obrigaria a aplicação de
pelo menos 400 questionários. Antes, no entanto, seria necessário testar o questionário
quanto à sua cientificidade, clareza e tempo de duração. O questionário possuía 20
variáveis, importantes para o aferimento de dados básicos até fontes de informação e
frequência e participação em eventos ligados à igreja; 20 questões ligadas
especificamente ao consumo de religião pela TV; e ainda dez questões abertas sobre a
opinião geral acerca da Igreja Católica, a programação de TV religiosa; a concorrência
religiosa; e a TV Canção Nova, sem que houvesse necessidade de os fiéis a assistirem
para que respondessem.
Foram aplicados, em duas paróquias que não participavam da seleção de
locais, em duas missas – no domingo pela manhã e à noite -, durante dois finais de
semana, 67 questionários. Em média, cada entrevista tinha a duração de 25 minutos –
em razão das questões abertas, que se mostraram então inviáveis. Identificados os
problemas de coerência e clareza, bem como a extensão das entrevistas, o questionário
foi refeito, com as questões abertas sendo transformadas em questões fechadas, com
lâminas de respostas, obtidas a partir dos resultados que surgiram nas entrevistas.
Novamente, houve um teste, em apenas uma paróquia, e foram obtidas, em duas missas,
63 respostas. O tempo para cada questionário caiu para a média de dez minutos e não
foram observados problemas de coerência ou de clareza. Foram, então, realizadas 406
entrevistas aproveitáveis – no total, haviam sido 417, mas onze entrevistas, por motivos
alheios à vontade dos pesquisadores, não puderam ser completadas e foram excluídas -,
o que permitiu uma margem de erro de 4,96%.
7
Os dados foram tratados no programa
7
Resultado obtido pela seguinte fórmula: E= (1/n) / 100, sendo “E” a margem de erro desejada ou
30
SPSS 15 e não houve problemas estatísticos a ser solucionados: as variáveis foram
classificadas como nominais ou, nas questões que apresentavam opções excludentes,
classificadas como ordinais.
2.2.3. As pesquisas qualitativas
Em seguida, viriam as entrevistas em profundidade com fiéis e ainda as
entrevista semi-estruturadas com autoridades ligadas à Canção Nova, especialmente à
TV Canção Nova, desde que fossem “consagrados” no carisma da comunidade. Porém,
desde o início houve resistência por parte dos membros da Canção Nova em conceder
entrevistas, sob a alegação, em algumas delas, de que, em outros tempos, havia a
disposição dos membros em participar de pesquisas acadêmicas, mas que, com as
constantes críticas negativas recebidas, havia sido criada mesmo oposição à
colaboração. Na maioria das vezes, os contatos eram sequer respondidos. Essa
resistência, embora prejudicial à investigação e tenha obrigado a realizar uma nova
estratégia de pesquisa, apontou para duas hipóteses. A primeira: de fato, havia a
resistência a partir de suas experiências anteriores com pesquisadores que os criticaram.
Nesse caso, reforça-se a ideia do carisma e a certeza de que a Canção Nova deve, contra
tudo e todos, lutar para continuar a evangelizar. Por outro lado, indica também, e isso
foi importante para a reformulação das hipóteses, um esforço de distinção em relação
aos não consagrados. Isso se comprova nos discursos de membros da Canção Nova
presenciados durante as visitas à sua sede, em Cachoeira Paulista e reforça a hipótese do
repisar de uma ética da diferença – ou da lógica do senhor e do escravo.
Com relação às entrevistas com os chefes paroquianos, elas foram descritas
acima. Basta acrescentar que, diferentemente das entrevistas realizadas com os fiéis em
Divinópolis, não houve qualquer tentativa de impressionar o entrevistado – ao contrário,
e isso seria previsível, houve esforço mais de esclarecimento e muito menos de
magistério. Todas elas foram feitas nas casas paroquiais, gravadas e posteriormente
transcritas, para análise do discurso, num total de 5h08min48s de entrevistas recolhidas
e transcritas.
A pesquisa quantitativa descrita acima, como já dito anteriormente, foi
importante também para parte das pesquisas qualitativas. A fim de que se realizassem as
entrevistas em profundidade com os fiéis, foram sorteados, aleatoriamente, mas
respeitando-se o critério de assistência à TV Canção Nova, 32 entrevistados. Desses,
esperada; e “n” o tamanho da amostra.
31
foram escolhidos, também aleatoriamente, oito que se dispuseram a conceder as
entrevistas em profundidade – mas respeitando-se o equilíbrio entre sexo e, na medida
do possível, de idade e de estrato social. Ao final, foram entrevistados três homens e
quatro mulheres. Uma característica deve, aqui, ser ressaltada: os homens entrevistados
se mostraram mais ligados à religião, e, por acaso, possuíam uma condição social
superior à das mulheres, mais religiosas, no entanto. Nem por isso, ao contrário, as
entrevistas com elas foram menos proveitosas. Os questionários semi-estruturados
foram divididos em etapas de qualidade, de modo que se aferisse: a) a biografia
religiosa do entrevistado; b) as lógicas de produção de sentido e c) as práticas religiosas
e produção de sentido. Todas as pesquisas foram feitas na residência dos entrevistados e
todas elas foram gravadas e posteriormente transcritas – procurando-se obedecer o ritmo
e os maneirismos da oralidade, exatamente para que fosse analisado o discurso. Foram,
ao total, 3h11min41s de entrevistas recolhidas e transcritas.
Já com os fiéis peregrinos na sede da Canção Nova, foram feitas, ao todo,
nove entrevistas. Os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente, tentando-se apenas
respeitar o equilíbrio de sexo e idade aparente, entre os peregrinos que circulavam na
sede da Canção Nova. Muitas entrevistas foram curtas, em razão da situação de
entrevista. Diferentemente das anteriores, embora houvesse esclarecimento quanto aos
objetivos da entrevista, a gravação delas não foi anunciada, para que não houvesse
qualquer impedimento quanto à naturalidade dos depoimentos – ou houvesse um
instrumento a mais, além do próprio fato de se anunciar a entrevista formal, que
reduzisse a naturalidade ou constrangesse os entrevistados. As entrevistas, embora
semi-estruturadas, não foram impressas em qualquer suporte, pelo mesmo motivo
expresso anteriormente. Elas buscaram responder a temáticas como a motivação de
visitar a Canção Nova, as diferenças entre estar na Canção Nova e assistir pela TV,
aspectos de fé, consumo e identidade. Foram realizadas um tempo total de 59min38s de
entrevistas, que foram transcritas para análise.
2.2.4. Análise dos discursos
Embora haja um diálogo com a escola francesa de Análise do Discurso, esta
pesquisa não se filia propriamente à disciplina análise do discurso, justamente pelo fato
de nela identificar, apesar de preceitos teóricos indicarem o contrário, um formalismo
que deixam escapar aquilo que interessa – e como foi anunciado anteriormente:
compreender o discurso como uma arena de disputa na luta de classes, conforme nos
32
ensinou Bakhtin (2004).
A despeito das posições distintas assumidas, como na análise do discurso de
corrente francesa, aqui, discurso implica ato, prática efetiva e cotidiana e, como tal,
processo, movimento. Nesse caso, deve-se observar muito mais a enunciação do que o
enunciado – muito mais a produção de sentido do que o sentido, ele mesmo. Pois como
nos lembra Pêcheux (1997), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia
– o que aponta, novamente, para a materialidade do signo como uma arena da luta de
classes. Igualmente, nos ensina Eni Orlandi,
para a Análise de Discurso, não se trata apenas de transmissão de informação,
nem há essa linearidade na disposição dos elementos da comunicação,
como se a mensagem resultasse de um processo assim serializado:
alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um código, e o
receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na realidade, a língua não é
só um código entre outros, não há essa separação entre emissor e receptor,
nem tampouco eles atuam numa sequência em que primeiro um fala e
depois o outro decodifica etc. Eles estão realizando ao mesmo tempo o
processo de significação e não estão separados de forma estanque. Além
disso, ao invés de mensagem, o que propomos é justamente pensar aí o
discurso. Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação
apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação
sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo
processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não
meramente transmissão de informação (ORLANDI, 2005, 22).
Da mesma forma, analisar um discurso implica não procurar um sentido verdadeiro, diz
Orlandi, mas o sentido da materialidade sígnica e histórica.
Dito isso, as entrevistas serão analisadas como atos e situações concretas de
comunicação. Isso implica dizer que, no caso dos párocos, serão analisadas, além dos
meandros ideológicos do discurso proferido, as condições sociais dos entrevistados –
sua postura ideológica, suas ações no mundo, sua vontade de distinção etc.
Da mesma forma, os discursos dos fiéis serão analisados segundo o contexto
de produção de sentido, segundo o ato de comunicação propriamente dito. Assim, os
fiéis entrevistados em Cachoeira Paulista, muito em razão da ausência, para eles, de um
instrumento de gravação que denotasse poder – pela memória, pela reprodução -, mas
sobretudo pelas circunstâncias em que foram abordados – na própria Canção Nova,
onde se sentiam confortáveis e invisíveis pela multidão -, puderam se expressar sem um
contrato de hierarquia. As entrevistas foram tomadas como conversas, como diálogos e
dessa forma precisam ser analisadas. Por outro lado, com os fiéis entrevistados em
Divinópolis, muito provavelmente em razão da posição em que o entrevistado se
colocou – e, igualmente, pelo contexto em que as entrevistas foram concedidas: nas
residências dos entrevistados, o que sempre gera um contrato de acolhimento e devassa
33
da intimidade -, a análise deve levar em conta o esforço para que fossem dadas respostas
certas às perguntas.
Por isso, a interpretação, diz-nos ainda Orlandi (2005, 61), é um dispositivo
em que o analista não pode se colocar numa posição de neutralidade. E, assim, a
construção do edifício analítico
resulta na alteração da posição do leitor para o lugar construído pelo
analista. Lugar em que se mostra a alteridade do cientista, a leitura outra que
ele pode produzir. Nesse lugar, ele não reflete mas situa, compreende, o
movimento da interpretação inscrito no objeto simbólico que é seu alvo. Ele
pode então contemplar (teorizar) e expor (descrever) os efeitos da
interpretação. Por isso é que dizemos que o analista de discurso, à diferença
do hermeneuta, não interpreta, ele trabalha (n)os limites da interpretação. Ele
não se coloca fora da história, do simbólico ou da ideologia. Ele se coloca em
uma posição deslocada que lhe permite contemplar o processo de produção
de sentidos em suas condições (idem, 62).
No caso da análise do discurso produzido pela TV Canção Nova, nos
programas que serão analisados, igualmente, por maior esforço que haja, a Análise do
Discurso é falha, embora forneça importantes ferramentas que possibilitem sua
aplicação a outro regime semiótico que não o linguístico. Respeitando-se, porém, a ideia
do ato comunicativo do discurso e a produção desse discurso como um lançar-se na
arena simbólica da luta de classes, a análise do discurso televisivo poderá, sim, ter
elementos retirados do método analítico aqui demarcado. Nesse caso, será preciso
compreender o dispositivo, ele mesmo, ou seja, a televisão como uma tecnologia social,
que faz circular mensagens de tal ou qual forma, mas sempre, ao mesmo tempo, como
nos ensina Raymond Williams, produto das forças sociais delas limitadoras (cf.
WILLIAMS, 2003, 77-120).
De qualquer forma, é preciso, no interior do texto televisivo, para a
compreensão do seu discurso, analisar, além do dispositivo tecno-social, o gênero - talk-
show, programa de auditório, destino-receptor direto e destino-receptor indireto (sobre
isso, THOMPSON, 1998; também DUARTE, 2004) - e o contrato de interlocução, tanto
intratextualmente, ou seja, quando for o caso, de interlocuções realizadas para a
transmissão televisiva -, quanto o contrato com o telespectador; o fluxo, o que implica
tanto a análise da programação, quanto dos intervalos, além do fluxo simbólico do
próprio mercado televisivo e, nesse caso, deve-se assumir uma condição híbrida para os
programas e sua ideologia. Há ainda os enquadramentos ideológicos e estéticos, como a
abertura dos programas e suas vinhetas, o cenário e a movimentação em cena –
inclusive com modificações de tomadas.
Dada a metodologia de análise dos discursos exposta, é possível
34
compreender que se trata, efetivamente, de surpreender nos discursos o enfeitiçamento
de que a religião é, nas atuais circunstâncias históricas, apenas um desdobramento – e
por isso pode-se dizer de pastoreio midiatizado da TV Canção Nova, como um
fenômeno particular, cujas singularidades serão aqui vistas, que se lança no universal.
PARTE I
DA PRODUÇÃO
36
CAPÍTULO I
DEUS EX MACHINA:
Breve história do religioso na TV brasileira
O que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o
sobre os telhados (Mateus 10, 27)
De início, uma digressão, necessária, para localizar o título proposto para o
capítulo, e relacioná-lo com o seu propósito – a saber: perscrutar, numa história da
presença do religioso na mídia no Brasil, a prevalência de acesso da Igreja Católica aos
meios de produção simbólica modernos, os media, a despeito, como veremos, de uma
posição crítica em relação a eles. Isso demonstra, de saída, uma ambiguidade católica,
que acompanhará toda sua trajetória na relação com os meios de comunicação em seus
mais diversos suportes – do livro à web.
Deus ex machina, deus por meio da máquina. Trata-se de recurso pelo qual,
diante de uma situação cênica sem solução, o poeta faz surgir uma entidade
supramundana que garanta a unidade dramática. Aristóteles (1992) condenou o recurso
que opõe, ao aniquilamento do herói, a perspectiva de uma mudança favorável,
antecipada na fala das divindades que se interpolam à ação dramática (cap. XV, 1454b).
Segundo sua doutrina, o deus ex machina atentava contra a verossimilhança e, tal como
fizera Platão com a imagem, por a ela imputar a fonte dos enganos, Aristóteles
condenou o recurso, por ser esteticamente menor. Há mais do que isso, no entanto.
Embora seja um estudo sobre a perfeição dramática, é possível inferir da
proposição aristotélica e sua condenação do deus ex machina a presença da sua
Metafísica (1969) e propriamente de sua teologia. Ainda que a arte dramática seja
classificada por Aristóteles, segundo sua perspectiva, de acidente, a condenação do deus
ex machina é um apontamento para o que, na Metafísica (1032b), é chamado de
substância – o ser, ele próprio. O que está em jogo nessa discussão, menos do que as
distinções entre o estatuto – e a estatura – da metafísica, inclusive a contemporânea, de
que a racionalidade científica é senão um desdobramento tardio, é a relação do discurso
persistente entre o acidente – o mundo sensível ou a realidade – e a substância. Mas eis
que Aristóteles propõe a sua metafísica para pesquisar o ser-substância a despeito do
acidente. É como se ele clamasse por uma factibilidade, uma realidade do ser-em-si.
Há claramente uma fluidez no pensamento aristotélico que o faz ressoar
37
ainda hoje: não podendo escapar dos acidentes proporcionados pelas engrenagens
maquínicas de seu tempo, Aristóteles propõe uma metafísica que estude a essência da
substância. Assim, admitindo-se que a substância é feita de acidentes, como separá-la de
seus acidentes? A resposta de Aristóteles é justamente o cerne de sua metafísica: a
substância pode ser em potência antes de ser em ato – e potencialmente, segundo a
finalidade-fim, todo ato é regido pelo bem. Dessa forma, não obstante sua teoria da arte
poética ser efetivamente voltada para a compreensão do acidente drama, Aristóteles
condena o acidentedeus ex machina” como ameaçador à substância “arte dramática”.
Mas, segundo sua metafísica e só ela, a intromissão da imagem divina, artificial, no
drama ameaça a realidade. Isto é: embora tenha encontrado o prumo entre substância e
acidente (ou entre humano e máquina), Aristóteles condenou o acidente (deus ex
machina) de uma possível substância/essência dramática. E então a essência, desejada
no reino do acidente, voltou ao reino do além, do ser imutável platônico.
Na poética aristotélica, o deus ex machina era o que hoje pode-se chamar de
milagre. Naquele caso, a condenação se dava por um preceito estético: é sempre
preferível que, segundo a verossimilhança, as soluções dramáticas sejam encontradas de
forma racional. Se vivesse hoje, Aristóteles ficaria confuso e repensaria o seu conceito.
Aqui, deus ex machina é um duplo: razão que se sustenta na desrazão. Racionalidade
instrumental do mito, diriam Adorno e Horkheimer (1985). Pois é precisamente este o
dilema que estabelece o deus ex machina contemporâneo: o uso racional das formas de
expressão e distribuição simbólicas hegemônicas pelas religiões indica a presença
material dos media, mas em nome do milagre cotidiano, do inefável que forja nossas
vidas na insegurança de nossa modernidade, de cujo drama nós necessitamos - drama
que se mostra como aparição mágica da matéria transformada em espírito. Em outras
palavras: o acesso das religiões, inclusive as católicas, aos meios de comunicação
deve-se insistir: meios de produção e circulação simbólica – não tem nada de
miraculoso. Pelo contrário, trata-se de um privilégio, dado ou conquistado, pouco
importa, compartilhado pelos reais proprietários dos meios de produção – simbólicos e
não simbólicos. Por outro lado, porém, é preciso lançar mão do discurso miraculoso,
porque efetivamente os meios de comunicação estabelecem uma relação de milagre com
o cotidiano. Em uma sociedade que substitui o sentimento de liberdade pelo de medo, a
religião midiática resolve o drama pela aparições mágicas através dos meios que unem
os indivíduos isolados. Juntos somos mais seguros, mas os meios não juntam
suficientemente para nos apaziguar. O deus ex machina das religiões, porém, não
38
consegue sair da desgraça cotidiana. Se, pela magia da imagem (imago), por sua
aparição fantasmagórica, há uma promessa de apaziguamento, a paz logo se dissipa no
mesmo cotidiano, que permite apenas uma transcendência: a promessa da magia que a
mercadoria traz consigo. De qualquer maneira, deus ex machina: no nosso caso, ao
menos por ora, nos interessa apenas o milagre que permite o milagre – a apropriação
dos meios de comunicação, que diz quem e o que poderá ser dito, transmitido,
consumido. Obviamente, há sutilezas que diferenciam a apropriação dos meios e seu
uso pela ética católica e a não católica, especialmente as religiões urbanas
neopentecostais, chamadas e reconhecidas propriamente como televangelizadoras. Isso
será aprofundado mais adiante. Agora, nos interessa enxergar de perto a ação do deus ex
machina: como os milagres são possibilitados graças ao acesso e a presença das
religiões na mídia. Aqui, o foco será a realidade brasileira, mas, como é óbvio supor, é
mister compreendermos sua aparição naquele que é considerado o berço da
televangelização: os EUA. Veremos ainda que os católicos brasileiros não teriam muito
do que reclamar se se observa apenas o acesso aos meios de comunicação.
Os milagres não cessam de acontecer na realidade brasileira: entre ondas
sobre telhados, entre satélites – em rádios e sobretudo, dada sua força, em TVs. Dados
da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel -
8
apontam para um crescimento,
de todo percebido, do controle dos meios de comunicação social por grupos religiosos.
A evangelização pela rádio é bastante conhecida e, como veremos, a própria tecnologia
de comunicação tem seu nascimento vinculado à televangelização, nos EUA. Até 1995
– data emblemática, cuja importância será aqui explorada –, a Igreja Católica no Brasil
não se aventurava verdadeiramente pela TV – tinha, ao contrário, uma posição bastante
crítica em relação a ela, como, a despeito de sua crescente participação e controle de
canais de televisão, ainda tem. Essa resistência precisa ser compreendida desde uma
instituição sabidamente complexa e não homogênea – e, a seu tempo, isso será
explorado. De qualquer maneira, é possível verificar em relação à TV uma ambiguidade
que, como veremos, é plausível, haja vista a propriedade de transmissão e recepção
simbólica ou, como nos lembra Joana Puntel (2005), a ambiência cultural criada pelos
signos televisivos. Isso não acontecia com a rádio, todavia – talvez pela proximidade
entre as formas de transmissão: multimilenar, a Igreja Católica, religião da palavra e da
escrita, se fez na oralidade. Há, portanto, um reconhecimento entre as mídias, em
8
Cf. MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES, s.d.
39
relação à rádio.
Convênios com o governo brasileiro, nas décadas de 1950 e 1960
principalmente, para educação a distância, tornaram possível um quase monopólio da
Igreja Católica em concessões de rádio. Se, de fato, havia o caráter educativo de tais
emissoras, isso não implicava que, pelas mesmas ondas, se fizesse chegar a palavra do
Cristo católico. Havia, aliás, uma convergência bastante íntima, a despeito de a
República Brasileira ter-se constituído como laica, entre o catolicismo e o Estado no
País. Cessados os convênios de educação a distância com o governo brasileiro, as rádios
educativas católicas continuavam a operar seu ensinamento – agora, se ensinava a
palavra de Deus.
Pouco a pouco, sobretudo na década de 70, diversas organizações religiosas
não-católicas conseguiram concessões de rádios – muitas “educativas”. Atualmente,
estudos apontam para uma verdadeira simbiose entre religião e rádio. Os dados da
Anatel, porém, não permitem que se verifiquem, com exatidão, as concessões – e
estamos tratando aqui apenas de rádios com outorgas garantidas oficialmente – ligadas a
grupos religiosos: a maioria das concessões está em nome de pessoas físicas e
pouquíssimas ligadas diretamente a igrejas ou a associações devocionais. Estima-se, no
entanto, que pelo menos 30% das concessões de rádios FM e AM estejam de posse de
grupos religiosos. Entre as rádios comunitárias, segundo estudo dos professores Venício
Lima e Cristiano Aguiar Lopes (LIMA & LOPES, 2007), intitulado “Coronelismo
eletrônico de novo tipo (1999 – 2004). As autorizações de emissoras como moeda de
barganha política”, das 2205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das
Comunicações brasileiro, 120 (5,4%) estavam diretamente vinculadas a grupos
religiosos. O estudo revela que, das 120 rádios comunitárias religiosas, 69,2% eram
ligadas à Igreja Católica; 27,5% a igrejas não-católicas de diversos matizes; duas a
grupos católicos associados a grupos não-católicos – sem precisar de qual tendência;
uma rádio a grupo de umbanda e outra a grupo ligado ao espiritismo kardecista.
9
ainda as rádios que funcionam sem a concessão do Estado brasileiro. Estimativas
apontam para 10 mil rádios irregulares, das quais, ao menos 50% estão nas mãos de
9
O estudo, desenvolvido em pareceria com o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, ligado à
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, mostrou ainda o “coronelismo eletrônico” em relação
às rádios comunitárias vinculadas a políticos profissionais: 50,2% das outorgas foram destinadas a eles.
Como muitas delas têm dupla vinculação – político e religioso -, estima-se que os canais “comunitários”
são predominantemente de proselitismo político e/ou religioso. O interessante no estudo é perceber como
há uma relação umbilical entre concessões de canais eletrônicos de comunicação, Estado brasileiro e
grupos religiosos, com nítida vantagem para grupos católicos.
40
grupos religiosos.
10
De qualquer forma, há uma clara predominância do catolicismo em relação
ao controle da radiodifusão brasileira. A Rede Católica de Rádios é formada por 215
concessões de rádios FM, AM, ondas curtas e ondas tropicais. Esse contingente
representa, segundo os dados da Anatel, aproximadamente 5% de todas as concessões
de rádios no País, o que a torna a maior concessionária de radiodifusão entre os grupos
religiosos.
Se a relação entre Estado e Igreja Católica garante a supremacia nas ondas
radiofônicas, o mesmo não pode ser dito em relação à TV – não em razão da ausência
de disposição católica em conseguir canais, mas muito pelas restrições que a própria
igreja se impôs em relação ao medium. Muito se disse sobre a timidez católica em
relação à busca por controle de audiovisual, enquanto suas concorrentes, sobretudo as
neopentecostais, criaram verdadeiros imrios televisivos. A década de 1990 marca a
reação católica. Não se pode dizer, embora tudo leve a crer que se trata de uma reação
concorrencial, que as lideranças eclesiásticas e movimentos religiosos católicos tenham
sido impelidos exclusivamente em virtude da crescente perda de fiéis para agremiações
não católicas, observada década após década. De qualquer forma, a Igreja, impelida ou
não pela concorrência do mercado religioso, entrou com força nos anos 1990 pelo
controle da TV. Isso é um sinal de que a televisão é o aparelho que, a despeito da
alegada agilidade do rádio e, segundo a hipótese levantada atrás, pela proximidade em
relação ao veículo preferencial católico, a oralidade, certamente mais promove o
impacto cotidiano pretendido. É evidente: a TV monopoliza a produção de sentido do
mundo contemporâneo – e isso foi, ainda que tardiamente, percebido pela Igreja
Católica. Por essa razão, como se desenvolverá posteriormente, e não obstante a
importância do sistema radiofônico para o que se chama de telerreligião, este texto se
baseia na análise do fenômeno televisivo da religião: trata-se de tecnologia social
central para a sociabilidade contemporânea e, veremos, para as estratégias miraculosas
de uma pretensa nova religião.
Desde 1989, quando a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo-
empresário Edir Macedo, comprou a Rede Record de Televisão, o fenômeno só faz
crescer. A Igreja Universal possui atualmente 79 emissoras geradoras – 19 apenas da
10
ATHAYDE, 2006. A reportagem da CartaCapital revela também que, das rádios sem concessão, cerca
de 20% são vinculadas a políticos – e há ainda duplicidade de vínculo, entre políticos religiosos ou
religiosos políticos, com clara vantagem para grupos católicos. Assim, a rede de comunicação eletrônica
brasileira está muito evidentemente colonizada por grupos religiosos.
41
“cabeça de rede” Record – e 47 repetidoras. A Igreja Católica – grupos ou pessoas a ela
ligados – tem 12 emissoras em funcionamento, mas ao menos 14 outras concessões já
estão concedidas pelo governo federal brasileiro. O aparelho midiático católico possui
ainda 178 repetidoras. Até a inauguração da Rede Vida, em 1995, a Igreja Católica tinha
só uma emissora, a Sudoeste, no interior do Paraná, da Ordem dos Frades Menores. Em
1998, entraram no ar a primeira geradora da TV Canção Nova (hoje são quatro) e a TV
Horizonte, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Um ano depois, surgiu a TV Século 21,
cuja proprietária é a Associação Senhor Jesus, liderada pelo padre estadunidense
Eduardo Dougherty. Radicado no Brasil desde a década de 1970, o padre jesuíta é um
dos nomes de destaque da Renovação Carismática Católica. Em 2002, surgiu a TV
Nazaré, da Arquidiocese de Belém, à qual se seguiram a TV Educar, em Ponte Nova,
Minas Gerais, em 2003, e a TV Imaculada Conceição, em Campo Grande, em 2004. Em
2005, foi lançada a TV Aparecida, com a pretensão de ter cobertura nacional. Há ainda
a TV Alvorada, pertencente à Diocese de Parintins, Amazonas; e a TV Fraternidade,
que, além de programação própria, é retransmissora das redes católicas Vida, Canção
Nova e Século XXI, no Rio Grande do Sul. Entre as TVs católicas, apenas a Canção
Nova e a Imaculada Conceição são mantidas exclusivamente por um sistema agressivo
de arrecadação junto a fiéis. Por isso, dispensam a venda de espaço publicitário – salvas,
e não raras, as mercadorias ligadas às próprias comunidades religiosas: respectivamente
a Fundação João Paulo II e a Fundação Padre Kolbe.
Além dos inúmeros espaços pagos em diversas emissoras comerciais, outras
agremiações religiosas, quase todas elas pertencentes às chamadas agremiações
neopentecostais, de inspiração estadunidense (CARRANZA, 2000), detêm outorgas de
TV de norte a sul do País, sejam em sinal aberto, geralmente em sistema UHF, com
recepção por satélite, sejam disponibilizando-o em sinal para assinatura. A Igreja
Assembleia de Deus mantém a TV Boas Novas, com cobertura via satélite e
programação completamente voltada para a evangelização; a Rede Gospel, da Igreja
Apostólica Renascer em Cristo, dos bispos Estavam e Sônia Hernandes, também
voltada para evangelização, tem sinal aberto, em UHF, e mantém contratos com
operadoras de TV a cabo para sua transmissão; a Rede Gênesis pertence à comunidade
evangélica Sara Nossa Terra. Diferentemente de suas irmãs, a Gênesis, fiel ao seu
slogan “A unção está no ar – Entretenimento cristão para toda a família”, promete – e
cumpre – uma programação que ultrapassa as tradicionais pregações evangélicas.
Oferece programas infantis, filmes, jornalismo – além, é claro, de cultos, leituras
42
bíblicas e palestras proselitistas. A Rede Internacional de Televisão (RIT) é de
propriedade da Igreja Internacional da Graça de Deus, comandada pelo missionário
Romildo Ribeiro Soares, o R.R. Soares. Depois de adquirir espaços em redes de TV
aberta – e causar um desconforto entre as afiliadas,
11
o missionário montou sua própria
TV, em 1999, para, em 2002, promover sua expansão. Atualmente, a Rede Internacional
de Televisão é composta por oito emissoras e mais de 62 canais de Rádio e TV. A RIT
pode ser sintonizada, em sinal aberto, por UHF, ou nas TVs a cabo.
Entre as televisões ligadas às religiões protestantes históricas, há ainda a
Rede Super, mantida, desde 2002, pela Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte.
Transmitida por sinal fechado e também em sinal aberto, em UHF, a Rede Super, antes
limitada ao entorno da capital mineira, atualmente tem alcance nacional. Entre os
protestantes restauracionistas, há a TV Novo Tempo, controlada pelo Sistema
Adventista de Comunicação. No início da década de 1990, os Adventistas receberam
concessão do Ministério das Comunicações brasileiro, como TV Educativa e Cultural,
afiliada, desde o Vale da Paraíba paulista, à TVE – atualmente TV Brasil – e TV
Cultura de São Paulo. Desde 2006, a TV Novo Tempo, após a concessão de outorga do
governo federal, gera programação própria e transmite por sinal aberto UHF para vários
estados, e em sinal fechado, a cabo.
A Legião da Boa Vontade, organização parareligiosa liderada pelo também
missionário José Paiva Neto, que, como o missionário RR Soares, se notabilizou por
comprar espaços na grade de programação de televisões comerciais abertas, também
adquiriu seu próprio canal em 2000. Com o slogan “A TV que faz bem”, a Boa Vontade
TV transmite em sinal aberto, além das TVs pagas, para o país inteiro, e também para os
EUA, México e Canadá, com cobertura nacional, e para Portugal, Argentina, Paraguai e
Uruguai. Há, ainda, funcionando no Brasil desde 2007, a TV Enlace (com o slogan
“Uma imagem que vem do alto”), surgida nos anos 1980 em Porto Rico e ligada ao
movimento cristão neo-pentecostal Enlace juvenil. Segundo seus prospectos, está
presente em mais de 60 países. Promete, com sua chegada no Brasil, fazer o que
realizou em território estadunidense:
11
No início de 2002, R.R. Soares, segundo notas da imprensa da época, aproveitando a crise do mercado
publicitário, ofereceu R$2 milhões por mês à TV Bandeirantes para ocupar, diariamente, o horário
“nobre” das 20h30 às 21h30 (cf. JIMENEZ, O ESTADO DE S.PAULO, 13/12/2002). Mais tarde, as TVs
afiliadas à rede ensaiaram uma rebelião contra a decisão – tratava-se de um horário nacional (cf.
CASTRO, FOLHA DE S. PAULO, 07/01/2003). A “rebelião” não durou muito tempo. Depois de um
boicote, um acordo de bastidores, não divulgado, colocou a casa em ordem. O Show da fé, programa do
missionário, ainda em 2008 ocupa o horário que provocou a revolta – mesmo depois de ter havido
recuperação do mercado publicitário.
43
Los contenidos de nuestra programación son de índole espiritual, por lo que
la señal ha experimentado un crecimiento extraordinario en muy pocos años.
Cada día millones de hispanos se interesan por nuestros programas, según lo
confirma el desarrollo explosivo que estamos viviendo y que algunos han
calificado como: "El Fenómeno ENLACE".
Nuestra programación se presenta como un complemento en la oferta de la
televisión habitual, no una competencia, ya que Enlace viene a cubrir las
necesidades de personas con inquietudes espirituales, un segmento del
mercado no atendido hasta la fecha en la televisión por cable y en empresas
de televisión por satélite directo a las casas (DTH) en español.
Actualmente, los estudios de audiencia en los Estados Unidos han
demostrado la creciente demanda de esta opción que se ha reflejado en un
crecimiento asombroso de nuevos suscriptores. La tendencia actual de las
empresas de cables es incorporar en su oferta ésta alternativa que ofrece
Enlace, en cuanto a variedad y calidad de programación con valores
familiares (http://www.enlace.org).
Como se vê, as possibilidades de sucesso da TV Enlace em terras brasileiras
podem ser prodigiosas, haja vista as estratégias profissionais adquiridas em terras
estadunidenses. Não deixa de ser interessante observar, a partir da experiência da
Enlace, um fenômeno de inversão: a telerreligião teve seu nascimento a partir de grupos
neopentecostais estadunidenses – em que muitos autores enxergam traços do
fundamentalismo cristão, advindo dos movimentos carismáticos de renascimento
(ASSMANN, 1986; SILVEIRA CAMPOS, 2004; GOMES, 2004).
12
Porém, essa
importação ocorre em um momento quando os grupos religiosos nacionais já
colonizavam a mídia eletrônica e se preparam, e não raro têm conseguido, para uma
ofensiva de internacionalização. É interessante observar que a lógica da mercantilização
religiosa via mídia eletrônica, especialmente a TV, foi completamente aplicada em
terras brasileiras – como ademais, na América Latina. Assim, a promessa de
crescimento da TV Enlace não se daria em função de sua tecnologia de transmissão,
mas porque encontra aqui um terreno já bastante fertilizado pelas suas concorrentes
12
Karen Armstrong (2001), no esforço para a compreensão do fenômeno fundamentalista entre cristãos,
judeus e muçulmanos, aponta para uma díade logos x mythos. Segundo ela, tradicionalmente, as religiões
tendem ao equilíbrio entre uma postura racional de explicação da vida e outra, fundada na pura emoção.
Sempre houve, diz Armstrong, em todas as religiões abraâmicas, monoteístas, movimentos de
reavivamento da fé imediata, que caracterizariam o fundamentalismo. Tais movimentos indicam ora uma
falência da racionalidade em vigor – e de qualquer forma assentada no logos -, ora, como resultado de tal
falência, uma revolta conservadora de líderes carismáticos em busca de uma fé além daquela sustentada
pelas religiões. A autora se refere, é claro, àquilo que o pensamento ocidental caracterizou como uso da
razão versus a emoção. Há que se discutir, no entanto, a pertinência desse modelo para a compreensão do
fenômeno religioso, ao menos em sua versão contemporânea, hegemonicamente telerreligiosa. Aqui,
mais razão onde houver mais emoção; o mito é logocentrado. Se não se pode dizer que a colonização
universal praticada pelo capital tenha o transformado em uma verdadeira religião – ou como disse Marx
(apud LÖWY, 2000, 16) o progresso capitalista é um “monstruoso deus pagão que só quer beber o néctar
nos crânios dos mortos” -, não se pode negar que sua colonização alcançou lugares insuspeitos outrora,
como a própria transcendência. O capital criou, aliás, a sua própria máquina transcendental, que tem no
consumo capitalístico o seu serafim, em cuja fonte bebem as telerreligiões – inclusive a católica da
Canção Nova, a despeito de apontar para uma outra divindade, como veremos posteriormente.
44
brasileiras. Com isso, quer-se acreditar que o mercado telerreligioso, longe de ser
limitado, é a condição para a entrada de vez na modernidade capitalística hegemônica.
Por fim, uma TV espírita: a TV Mundo Maior, uma emissora da Fundação
Espírita André Luís, no ar, via satélite, em sinal aberto, desde 2006, tem uma
programação completamente voltada para o proselitismo. Seus prospectos dizem ser a
Mundo Maior voltada para “princípios cristãos, em especial por meio da prática da
solidariedade e assistência social. Engajada no contexto de responsabilidade social tem
como missão contribuir para a construção de uma sociedade digna ligada às práticas de
atos saudáveis.” Ou seja, trata-se de, como suas irmãs – católicas, protestantes históricas
e neopentecostais -, servir de contraponto para o que elas, as detentoras de canais de TV
religiosos, chamam de mídia secular: a mídia comercial, em geral. A despeito da clara
contradição – uma vez que o princípio básico da telerreligião é o marketing religioso -,
é mister admitir que se constituem, os canais de TV religiosos, de contraponto moral
para a mídia comercial secular: o valor, aqui, é o comunitarismo, embora, como
também veremos e como já muito se explorou (entre muitos outros, MARIANO 1999;
CAMPOS, 1997; e, a respeito da moralidade dos carismáticos católicos, PRANDI,
1997), valores individualistas lhes sejam caros. Nem mesmo aí existem elementos
excludentes, todavia: a moralidade individualista coincide com a outra, gregária, na
nova religião. Eis então a diferença na abordagem aqui proposta: deve-se ir além das
estruturas de leitura, segundo as quais se procura observar semelhança entre a lógica do
capital e a novíssima lógica religiosa – a telerreligião. O que está em jogo, e que
obviamente é perpassado pela mercantilização da religião, é o que podemos chamar de
metafísica da subjetividade: não há contradição entre religião e capitalismo, ainda que
sejam, sistemas midiáticos seculares e religiosos, contrapontos entre si, especialmente
em relação à mídia católica e a TV Canção Nova em específico. Será preciso olhar para
as estruturas liquefeitas de um e outro sistema, como ademais para a própria
materialidade imaterial do capitalismo contemporâneo. Só assim será possível
compreender como mito e racionalidade coincidem para forjar humanos dóceis. O
caminho até lá será longo, todavia. Antes, é necessário adentrar na teogonia da
telerreligião católica, e especificamente da TV Canção Nova, compreendermos de que
forma há uma relação, digamos, fraterna entre religião e mídia eletrônica desde o
surgimento desta, nos EUA. Depois disso, poderemos avançar até o Brasil.
1. Aurora de um novo tempo
45
Há relatos que apontam para o surgimento da telerreligião desde o
nascimento da mídia eletrônica: no Natal de 1906, um engenheiro canadense, em
Massachusetts, EUA, realizou, experimentalmente, transmissão de leitura do evangelho
de Lucas sobre o nascimento de Jesus (SILVEIRA CAMPOS, 2004). Tratava-se apenas
de uma transmissão experimental – contudo, são mostras de como o imaginário
midiático, desde seu nascimento, era apropriado para a colonização do que hoje se
chama de igreja eletrônica. A rigor, deve-se questionar se de fato não se trata de
equipamentos, tecnologias irmãs – a igreja e a mídia, inclusive como tecnologias
sociais.
De qualquer forma, já em 1921, numa rádio comercial de Pittsburgh, nos
EUA, pastores utilizavam as ondas milagrosas da eletrônica para alcançar seu rebanho
e, em 1922, surgia, em Chicago, a primeira rádio exclusivamente religiosa: a Where
Jesus Blesses Thousans. (BIERNATZKI, 2000 e 2001; SOUKUP, 2002; GOMES,
2004). Como demonstrou Karen Armstrong (ARMSTRONG, 2001), os EUA viveram
uma série de movimentos carismáticos fundamentalistas até o início do século XX. O
amadurecimento das tecnologias de transmissão simbólica a distância naqueles anos – e,
depois da década de 1950, com a TV – serviria, a tais movimento, como uma extensão
de sua tarefa calvinista: ter boa vida e capitanear novas ovelhas para ela.
Embora seja um fenômeno de todo identificado com o amadurecimento do
capitalismo estadunidense, a partir dos primeiros anos do século XX a mídia eletrônica
era templo religioso em vários países da Europa Ocidental. Mas foi mesmo nos EUA
onde a telerreligião encontrou seu terreno fértil: em 1925, cerca de 10% das estações de
rádio nos EUA eram ligados a Igrejas ou a grupos religiosos (GOMES, 2004).
Estudos apontam para cinco gerações dos televangelistas estadunidenses –
ao menos os que alcançaram maior notoriedade, e isso significa: audiência em suas
pregações e riqueza. A primeira geração seria encabeçada pelo batista Billy Graham:
nascido, como a maioria dos televangelistas estadunidenses, no Sul dos EUA e membro
da Convenção Batista Sulista, produziu e apresentou o Hour of Decision, programa de
rádio ouvido em todo o mundo há mais de 50 anos. Criou ainda a produtora de cinema
World Wide Pictures, responsável pela produção e distribuição de filmes dedicados ao
evangelismo – e, por isso, tem seu nome gravado da calçada da fama de Hollywood,
como um verdadeiro pop star que é.
A segunda geração tem em Oral Roberts seu ícone. Sulista e batista como
Graham, Roberts, no entanto, inaugurou um novo tempo: a partir de sua cruzada de cura
46
e libertação, os meios eletrônicos passaram a ser um instrumento poderoso de
interferência direta no corpo dos telespectadores – era como disse Lucien Sfez (SFEZ,
1996) o início da utopia da saúde perfeita e da religião do corpo, que hoje embalam
sistema midiático, moralidade capitalística e teologia telerreligiosa. Como se verá mais
adiante nesta tese, tal culto ao corpo, iniciado nos anos 60, é mais um indício de que,
diferentemente do que se costuma dizer a respeito da telerreligião, não se trata ela de
mera coadjuvante no jogo da ética capitalista. Ao contrário: a telerreligião é a parte
visível – e espetaculosa – de uma lógica que ela toma emprestado, ou antecipa, do
sistema capitalístico como moralidade universal.
Uma terceira geração de televangelistas, surgida já com a TV consolidada,
na década de 1960, tem em Rex Humbard, organizador de uma igreja feita
especialmente para a TV, seu grande nome. Em seu auge, Humbard conduziu o
programa religioso mais assistido ao redor do mundo, o Cathedral of Tomorrow. Pat
Robertson seria o emblema da quarta geração de televangelistas estadunidenses – e
provavelmente o que melhor representa seu espírito. Apresenta um dos programas de
maior audiência ao redor do mundo, o Clube 700. Criou a e a Christian Coalization,
coalizão cristã, organização destinada a influenciar na política de direita estadunidense.
Robertson foi além: disputou, nas eleições de 1988, a presidência estadunidense pelo
Partido Republicano. Certamente, confiava em sua própria rede de TV religiosa, a
Christian Broadcasting Network, CBN. Criada em 1987, a CBN foi fechada em 1991,
depois de seu proprietário e líder religioso carismático se ver envolvido em escândalos
sexuais. Na década de 1980 aparece a quinta geração de televangelistas, entre outros,
liderados por Jerry Falwell, polêmico por suas declarações homofóbicas – e, antes de
sua morte, em 2007, também envolvido em escândalos sexuais homossexuais; Robert
Swaggart, também envolvido em escândalos sexuais, depois de uma vida pregando
contra homossexuais; e Jim Baker (GOMES, 2004; ASSMAN, 1986). De comum entre
eles – além da origem: o conservador sul estadunidense - há o talento para os negócios;
a utilização da telerreligião para alavancá-los e justificá-los; o envolvimento em
negócios muitas vezes nebulosos; e a defesa irrestrita do ideário conservador,
marcadamente contra a autonomia e autodeterminação dos povos e a favor da liberdade
de mercado – que deve ser entendida como liberdade de mercado capitalista, ou seja,
liberdade para expropriar e explorar o trabalho alheio. E, nesse caso, uma vez mais, a
tecnologia midiática é coincidente com a tecnologia religiosa.
Na América Latina como um todo e no Brasil, em específico, o rápido
47
crescimento da telerreligião se deu sobretudo nos anos 1960 e 1970, graças
principalmente aos programas de rádio e TV de Pat Robertson, Rex Humbard e Billy
Graham, num fenômeno denominado por Décio Monteiro de Lima (LIMA, 1989) de
exportação do demônio: o diabo, no esquema dualista simplificador do
fundamentalismo pietista do calvinismo, hegemônico em terras estadunidenses, era a
razão para a falência – ou, antes, insucesso – de todas as esferas do cotidiano. Lima
enxerga uma conspiração das agências de inteligência e da direita estadunidenses no
fenômeno da colonização dos televangelistas na América Latina – mas não só eles:
também movimentos como Mórmons e Opus Dei fariam parte de um plano
transnacional e imperialista, que visava a um só tempo a neutralizar a influência do
bloco soviético na região e preparar o terreno para torná-la, a América Latina, um
quintal dos EUA. É interessante observar que o livro de Monteiro de Lima foi
amplamente difundido entre os católicos brasileiros – tornado um quase manual contra a
invasão estadunidense. A orelha do livro reproduz um trecho do nº 52, de 24 de
dezembro de 1987, do Boletim Semanal da CNBB, onde se lê:
É a denúncia mais global e documentada dessa invasão de seitas nos países
da América Latina (...) Mostra o compromisso das seitas com os interesses
norte-americanos, sua ação alienante frente ao social e sua aliança com as
forças de repressão dos movimentos populares (...) De hoje em diante, os
católicos não têm o direito de ser ingênuos. Nem os protestantes históricos e
os movimentos religiosos fiéis ao bem do povo brasileiro podem ficar
neutros. Quem quer o desenvolvimento dos países da América Latina, sua
preservação cultural e sua unidade, é instado a formar uma frente comum
contra o imperialismo despudorado, que usa as seitas como instrumento de
dominação.
Além da utilização da nomenclatura para denominar os invasores -
reafirmada pelo Papa Bento XVI como seitas -, o Boletim deixa entrever algumas
verdades históricas: até então, a CNBB parecia muito próxima da real defesa dos
interesses populares. Não que neste momento não esteja, mas há que se questionar se se
trata efetivamente de apontar para os interesses populares como autonomia e
autodeterminação. Essa discussão será abordada no próximo capítulo desta tese, quando
se questionará uma teologia da comunicação católica, e melhor aprofundada nos
capítulos seguintes, mas, de qualquer forma, o trecho destacado aponta para uma real
opção preferencial pelos pobres – mas também para o chamamento para a unidade dos
verdadeiros cristãos contra as seitas. Seitas aliás era o nome dado a qualquer
agremiação não católica, até o pontificado de Paulo VI e a edição do Concílio Vaticano
II. Por outro lado, a utilidade de uma conspiração imperialista pela religião é bastante
evidente: denunciavam-se ali não apenas as seitas, o imperialismo – denunciava-se
48
também a invasão em um terreno católico por excelência: a América Latina. É ainda
interessante - a despeito, por exemplo, da diferença entre a Rede Vida de TV e as
concorrentes católicas, principalmente a TV Canção Nova – como os próprios católicos,
pouco mais de dez anos depois da denúncia de conspiração, lançar mão, de forma
contundente, dos mesmos expedientes então denunciados. Agora, como naquela época,
são atitudes verdadeiras, que visam efetivamente a buscar uma fé, uma confiança no
futuro diferente da proposta pela moralidade capitalística. Todavia, a ambiguidade
apresentada será determinante para que a empreitada não se cumpra de modo efetivo.
Se há controvérsias quanto a tal teoria conspiratória, parece consenso o fato
de que o desenvolvimento da telerreligião nos EUA e, por conseguinte, sua expansão
para a América Latina e para o Brasil, foram uma espécie de ajuste do capitalismo
estadunidense, em um momento de crise da acumulação do capital, nos anos 1950
(ASSMANN, 1986). Ali começava a saga global do tele-evangelismo. Em outro
momento de crise de legitimação do capital, na década de 1980, novo movimento de
expansão, agora, graças à tecnologia midiática de alcance global, sentida de maneira
categórica. Nesse caso, é preciso dar ouvidos, senão à teoria conspiratória de Monteiro
de Lima, ao menos a outra coincidência: o início dos anos 80, com a América Latina
quase completamente tomada por ditaduras militares, instaladas na religião com apoio
dos EUA, marcou também o ápice do plano de mundialização do neoliberalismo,
representado pelo pacto conservador entre Ronald Reagan e Margareth Thatcher.
A década de 80 também teve seu evento emblemático: em 1986, Jimmy
Swaggart elaborou um plano para espalhar a palavra de Deus para todos os lugares do
mundo. Produziu programas semanais e os vendeu para televisões de vários países ao
redor do globo. Swaggart acreditava que a comunicação eletrônica iria superar os
obstáculos culturais e políticos para a evangelização mundial. E isso de fato ocorreu. Os
evangélicos nos Estados Unidos montaram desde então várias e poderosas – e pouco
diversas - redes de TV, inclusive por satélite, cuja estrutura é marcadamente voltada
pelo empreendedorismo e organizadas na National Religious Broadcasting (NBR). As
próprias redes midiáticas e suas mensagens evangélicas traziam um tipo de boa nova: a
palavra de Deus deveria e só poderia ser pronunciada se houvesse uma forte estrutura de
marketing e negócio que a sustentasse.
Aparentemente, o fenômeno é semelhante, ou um desdobramento, em
relação àquele estudado por Weber (1996). Trata-se do chamado de Deus e a eleição do
fiel atento ao chamamento; da liberdade para o acúmulo de capital, em função do
49
próprio chamamento – que libera o eleito para o mundo da vida – e também do
ascetismo, que organiza a vida racionalmente; e por fim a obrigação, pelo chamamento,
do proselitismo. Mesmo que se trate de um movimento carismático – o que coloca em
suspenso a racionalidade em nome da fé imediata -, é a ética protestante que continua a
fundamentar o espírito do capitalismo. Porém, o estudo de Weber apontava para as
condições encontradas pelo capitalismo, para seu florescimento, na ética protestante.
Pode-se inclusive apontar, com Weber, para uma afinidade eletiva entre os dois: a
forma religiosa protestante e exigência de vida para o capitalismo. Os tempos são
outros, todavia – o capitalismo já não necessita de uma forma religiosa em específico
para florescer. Nesse caso, a telerreligião não serve de base para o capitalismo – mas o
contrário pode ser aceitável. Tais características serão aprofundadas posteriormente,
mas desde já se devem apontar os elementos de materialidade imaterial, presente nas
crises de acumulação do capital em época de mundialização simbólica pelo sistema
midiático eletrônico, sobretudo com a TV. Não por acaso, a lógica empreendedora
sustenta o avanço telerreligioso: a palavra de Deus – e, nesse caso, o próprio calvinismo
hegemônico – só se propaga mundo afora com a forte estrutura de organização
empresarial capitalística. Aqui se vê a modificação: o ascetismo, agora, cultua uma
divindade apropriada pelo ascetismo chão capitalístico – é justamente essa
transcendência para baixo o que provoca o temor que marca o tempo contemporâneo e
faz alimentar a busca pelo religioso. Como, no entanto, a temporalidade vivida exige de
nós uma postura alerta, voltamos nossa atenção para o torvelinho imagético (mágico) do
aparelho midiático. E nesse caso, não resta à religião senão voltar-se para a transmissão
por meio de algum medium contemporâneo. E assim se fecha o ciclo capitalismo-
transcendência no consumo-termor-religião midiática-capitalismo.
A teologia da prosperidade, então, não é uma consequência sociocultural e
econômica apenas: é a própria razão de ser da ética do capital, como modo de vida.
Com relação ao catolicismo, no caso brasileiro - mas, pode-se dizer, também universal -
, cujo ascetismo é distinto do calvinista, ele tampouco se livra dessa inversão. Se não se
pode negar que se trata concorrência no mercado religioso, tampouco é possível fechar
os olhos para as táticas semelhantes em um e outro. Assim, o máximo a que se pode
chegar nessa luta entre telerreligião católica e pentecostal protestante é na concorrência
pelo pastoreio dos telefiéis. Ou seja, trata-se de uma guerra de deuses, para tomar
emprestada a expressão, usada por Michel Löwy (2000), que teve na Teologia da
Libertação latino-americana seu ápice, para denominar o verdadeiro Deus cristão em
50
luta contra o deus capitalístico (ASSMANN & HINKELAMMERT, 1989) e que, se
mantida, e tudo indica que assim o será, no templo eletrônico, haverá a vitória de um
deus: a divindade pagã capitalística. Evidentemente, mesmo considerando a supremacia
transcendental da divindade material do capitalismo, é inegável que a religião está
interessada na salvação da alma – embora, é preciso admitir, o capitalismo tem no
presenteísmo corpóreo, tão bem delineado pelas políticas de consumo, inclusive e
sobretudo a identitária, a sua utopia salvacionista. Nesse caso, o que está em jogo é o
uso, pelas religiões, da tecnologia ascética capitalística, o que coloca os deuses
novamente em guerra – agora, como dito, pela forma de moralidade capaz de criar
humanos dóceis. Foi o que se viu com o desenvolvimento da telerreligião no Brasil.
Antes, porém, é preciso que voltemos para as mágicas cotidianas que tecem, como disse
Roger Silverstone (2002), a experiência contemporânea.
2. Nova velha religião
Embora nem todas as experiências telerreligiosas sejam fruto direto daquilo
que Reginaldo Prandi (1997) chamou de sopro do espírito – o movimento carismático
religioso que se caracteriza pelo renascimento, chamado pelos pentecostais
estadunidenses de born again, com fortes traços de entronização e consequente
revitalização da fé, seguido do chamamento para uma poderosa ação evangelizadora –, é
possível verificar no fenômeno da telerreligião os traços do pentecostalismo nascido da
sociedade de massas estadunidense. Nesse ponto, há que se recordar o que diziam os
teóricos das massas, em sua vertente política, psicológica e metafísica, como escreveu
Martín-Barbero (2003) sobre o (pré)conceito em relação a tal forma de organização
social: em Tocqueville, Gustave Le Bon, Spengler e Ortega Y Gasset.
13
Tocqueville, diz Barbero, enxergou nas massas urbanas que se avolumavam
em razão da revolução industrial uma ameaça para a, por ele mesmo elogiada,
democracia estadunidense. Embora constituinte e fundamento de tal democracia, as
massas representavam o perigo da instituição de uma tirania da maioria, em razão de
sua ignorância e falta de moderação, que “sacrificam permanentemente a liberdade em
altares de igualdade e subordinam qualquer coisa ao bem estar” (apud MARTÍN-
BARBERO, 2003, 57).
Ignorância e falta de moderação das massas, dizia Tocqueville. Algo bem
semelhante ao que Gustave Le Bon dizia delas, as massas, porém com o acento na
13
TOVQUEVILLE, 2000; LE BON, s/d; SPENGLER, 1973; ORTEGA Y GASSET, 2002.
51
manipulação – e falta de controle – psicológica. Para Le Bon, nos lembra Barbero, a
melhor definição para as massas seria um legítimo fenômeno psicológico pelo qual os
indivíduos, por mais diferentes que sejam seus modos de vida, suas ocupações ou seu
caráter,
estão dotados de uma alma coletiva que lhes faz comportarem-se de maneira
completamente distinta de como o faria cada indivíduo isoladamente. Alma
cuja formação é possível só no descenso, na regressão até um estado
primitivo, no qual as inibições morais desaparecem e a afetividade e o
instinto passam a dominar, pondo a “massa psicológica” a mercê da sugestão
e do contágio. Primitivas, infantis, impulsivas, crédulas, irritáveis, as massas
se agitam, violam leis, desconhecem a autoridade e semeiam a desordem
onde quer que apareçam (apud ibidem, 59 - 60).
Por fim, diz ainda Martín-Barbero, as massas estavam configuradas
cientificamente pela Sociologia e pela Psicologia. Faltava uma metafísica, tarefa
assumida, segundo ele, por Ortega Y Gasset e Spengler. Para o primeiro, as massas
tinham marcadas em sua alma evidências de especialização e mediocridade –
características muito distintas daquelas desejadas pela cultura humanista e a
racionalidade dela decorrente, que até aquele momento eram hegemônicas no ocidente e
cuja decadência se iniciaria justamente em razão daquela racionalidade responsável pelo
nascimento das massas. Já para Spengler, as massas eram a evidência de que, como tudo
o que nasce, prospera e morre, a cultura ocidental estava prestes a morrer – mas para o
surgimento de uma nova cultura, um novo humanismo.
É conhecido o conservadorismo de Ortega Y Gasset, Spengler e Le Bon – e,
ao menos para os dois últimos, suas relações evidentes com o nacional socialismo e
teses deterministas. Porém, os escritos de Tocqueville estavam longe de poder ser
considerados conservadores. Ao contrário, é conhecida sua afeição pela revolução
estadunidense. Martín-Barbero, todavia, parece ter aproveitado aquela vinculação dos
três primeiros para sua defesa, de todo aceitável, do conceito de massa – e das próprias
massas. O autor pensa com razão nos preconceitos que acompanharam a noção de
massa e nela enxergaram senão o sintoma da decadência humana – e o faz em nome da
compreensão mais aguda do fenômeno cultural contemporâneo, que tem no aparelho
midiático e, em especial, na televisão seu principal sustentáculo. Em sua cruzada para
compreender as massas urbanas como o popular contemporâneo e os produtos
midiáticos como manifestação – inclusive pelo mercado –, o autor lança mão do
conceito de hegemonia de Gramsci para apontar caminhos não preconceituosos e de
qualquer forma extemporâneos, dada a complexidade da cultura contemporânea, para
uma sociedade menos autoritária. O problema foi ter colocado no mesmo barco o liberal
52
Tocqueville. Por mais que tenha razão na crítica à concepção de massa, ao apontamento
de Tocqueville para o que chama de perigo à democracia; e por mais que vise a uma
sociedade efetivamente democrática – e, para tanto, concilie massa e popular -, Martín-
Barbero, em sua defesa da cultura popular, perde de vista, se não a dimensão política,
certamente a dimensão ora de autonomia, ora de emancipação.
A rigor, Martín-Barbero destina a esses dois conceitos o que considera uma
miopia, de toda extemporânea, e mais uma tentativa de diminuição do conceito de
massa e, assim, do próprio popular. Trata-se de sua crítica a ilustrados/liberais e
marxistas que desejariam ora educar as massas, ora conscientizá-las de sua alienação
enquanto classe trabalhadora. Não se pode perder de vista que o estudo de Martín-
Barbero pretendeu, em meados dos anos 1980, inverter o que lhe parecia uma
incompreensão e uma injustiça em relação às massas e seu consumo cultural, e uma
inconsistência teórica que privilegiava os meios de comunicação e sua produção
simbólica – fosse para apontar neles o aspecto ideológico de manipulação, fosse para
lhes garantir, segundo a lógica dos efeitos dos meios, o poder de manipulação e controle
social. Martín-Barbero sugeriu a compreensão das mediações, para que só então se
compreendam os meios – embora não haja nenhuma obra sua que efetivamente trate dos
meios. Não se nega a importância, de todo comprovada, dessa perspectiva. Porém, tal
como ocorreu em sua retrospectiva sobre o conservadorismo do olhar sobre as massas e
a associação entre o liberal Tocqueville com os conservadores Le Bon, Spengler e
Ortega Y Gasset, Martín-Barbero abriu mão de perceber que a cultura midiática e, se se
pode aqui antecipar, a telerreligião, são a parte visível daquilo que Muniz Sodré (2002)
chamou de turbocapitalismo, regulado e fortemente controlado por uma lógica
tecnoburocrática, que colonizou sociedades inteiras, estados, corações e mentes. Se não
se pode deixar de observar que “ilustrados” e “marxistas” de fato esvaziam a dimensão
popular e sua dinâmica cultural – de conformismo e resistência -, tampouco é possível
deixar de enxergar que o sistema midiático – de que a telerreligião é não apenas um
fenômeno, mas a própria condição – impede justamente a autonomia e a emancipação:
coletiva e individual. Embora não se deva abrir mão do conceito de mediação,
igualmente não deve ser perdida de vista a totalidade
14
a que indivíduos e coletividades
estão submetidos.
É a partir dessa perspectiva que se pode compreender o que Martín-Barbero
14
Sobre esse conceito e o debate acerca dos efeitos, mediações e produção midiática, especialmente para
os estudos de comunicação, cf.: FREDERICO, 2008.
53
pensa da telerreligião. Segundo suas palavras, só são “igrejas eletrônicas” aquelas que
não se limitam a utilizar os meios de comunicação eletrônicos para simples proselitismo
– mas aquelas que efetivamente vivem a ambiência da cultura midiática:
(…) a mi ver las Iglesias electrónicas son iglesias que se han convertido
especialmente al medio radio y al medio TV, haciendo de la TV y de la radio
una mediación fundamental de la experiencia religiosa. Es decir, el medio no
es simplemente una ayuda para amplificar la voz sino que es un elemento
importante, en elemento fundamental del contacto religioso, de la celebración
religiosa, de la experiencia religiosa. (...)
A mi ver la iglesia electrónica está devolviendo la magia a las religiones que
se habían intelectualizado, que se habían enfriado, que se habían
desencantado. (...) No se trata simplemente de expandir el culto, se trata de
acrecentar, dar continuidad, intensificar la propia experiencia religiosa
(MARTÍN-BARBERO, 1995, 78)
No texto de que foi retirado o trecho acima, Martín-Barbero entende que o
fenômeno da religião midiática é uma resposta ao que chamou de institucionalização
excessiva da Igreja Católica – hegemônica na América Latina -, o que a teria afastado
sobretudo da juventude latino-americana, porque “los protestantes han entendido que
los medios de comunicación también son reencantadores del mundo, que por los medios
de comunicación pasa una forma de devolverle magia a la experiencia cotidiana de la
gente” (ibidem, 79). Obviamente, o texto foi escrito em uma época de grande avanço, na
América Latina e no Brasil, dos programas pentecostais – e quando a Igreja Católica
parecia ainda sem poder para reagir a tal colonização teomidiática. Nesse caso, parece
premonitório a afirmação de que o uso dos media foi uma forma de aproximação entre a
esfera religiosa e o mundo secularizado,
15
expediente que, desde então, ao menos no
Brasil, parece ter sido utilizado também pela Igreja Católica.
Chama a atenção a própria conceituação do autor para igreja eletrônica, que
aqui é chamado de telerreligião. Obviamente, Barbero trata de uma experiência
exclusivamente latino-americana, mas, de qualquer forma, intriga o fato de considerar
que a experiência religiosa contemporânea, comprovada pelo crescente uso dos meios
eletrônicos de comunicação pelos crentes e pelo igual aumento de canais de TV e rádio
controlados por grupos religiosos, seja intensificada por tal uso, por tais meios. E, mais
ainda, em um legítimo – e tocante – esforço pela dignificação do homem qualquer,
como nos diz Michel de Certeau (1994), e de sua cultura, Martín-Barbero, ao encarar o
processo de encantamento pelo aparelho midiático, desconsidera os mecanismos de
15
No texto, Martín-Barbero faz uma discussão, a partir do conceito de desencantamento do mundo de
Weber, sobre o processo de modernização desigual ocorrido na América Latina. Assim, a produção
simbólica midiática serviria como uma revolta contra as promessas não cumpridas da modernidade e o
mecanismo pelo qual tem havido um reencantamento do mundo.
54
controle psíquico e moral promovidos não apenas por tais igrejas eletrônicas – mas pelo
próprio aparelho midiático. E, o que nos parece mais grave, desconsidera por completo
o acesso aos meios de produção simbólica. Estranhamente, Martin-Barbero lança mão
do conceito de hegemonia de Gramsci, mas ignora o fato de o marxista italiano pensar
uma superação da dicotomia infraestrutura-superestrutura e a prisão em que o marxismo
ortodoxo colocou as formas ideológicas. Não pensar o meio significa um retorno das
possibilidades de superação de uma hegemonia perversa, que reifica o humano, que ele
mesmo, Martín-Barbero, denuncia.
Certamente, Martín-Barbero tem razão quando dispõe sobre uma nova
forma de religiosidade em função da mediação dos aparelhos eletrônicos de produção
simbólica – embora possamos discutir aqui se não se trata apenas da forma como tal
religiosidade opera, o que forçosamente modifica como se processa a própria
religiosidade. E, mais: pode-se questionar se há distinção entre máquina eclesiástica
sólida, termo de Bauman (2003) a respeito da distinção entre a modernidade, e o
capitalismo, imateriais, que presenciamos atualmente, e máquina eclesiástica eletrônica,
líquidos.
16
Parece óbvio que a forma e o suporte de transmissão do religioso, ao
modificar a temporalidade e a espacialidade, modifica as formas de religiosidade. É
possível, inclusive, que haja modificação da própria estrutura eclesiástica, máquina de
transmissão simbólica que forçosamente se relaciona com os receptores - fiéis em busca
da salvação ou do conforto pela fé. A perspectiva apontada é outra, no entanto. O que se
discute é se a eclesiologia – a mudança portanto no suporte da transmissão da palavra de
Deus – foi modificada de modo a apontar para uma transcendência, para um sagrado, no
sentido dado por Debray (1993, 372), como o que está “exterior ao campo da
experiência”, “o que não pode ser manipulado, escarnecido, ou transgredido, ao nosso
bel-prazer”, para um sagrado que potencialize o humano, não o despotencialize; que
conceba o humano, de modo a que “cada um, de acordo com suas habilidades, a cada
um, de acordo com suas necessidades” (MARX, 2000, 27-8). E isso, com efeito, não
segundo práticas caritativas que mantêm o estado de escravidão – física e moral – da
maioria dos humanos. Pois é justamente isso o que se vê: uma moralidade do pastoreio;
uma prática simbólica profundamente marcada pela lógica do consumo como
organizador universal – em outras palavras: uma sacralização do consumo como modus
operandi preferencial do capitalismo de nossos dias.
16
Devo a percepção de que a as religiões, no geral, e a Igreja Católica, em particular, em razão de sua
universalidade, configuram a primeira mídia de massa a Régis Debray (1993).
55
A despeito disso, é preciso admitir que Martín-Barbero está correto quando
afirma ser a experiência religiosa contemporânea – deve-se insistir novamente: a
religiosidade, não a religião - marcada pela mediação do aparelho midiático, além de a
própria religiosidade servir como um mediador para a recepção do conteúdo simbólico
daquele aparelho. Por outro lado, como veremos adiante, é possível inferir que, entre o
público religioso, há uma disputa acirrada na assistência entre os canais e programas
religiosos e a programação secular da mídia. Nesse caso, será preciso não perder de
vista o reencantamento, apontado pelo autor espanhol, promovido pela produção
simbólica midiática, especialmente a televisiva. Porém, diferentemente da percepção de
Barbero, há que se questionar se tal reencantamento midiático, inclusive para a religião
racionalizada e institucionalizada, de fato é um procedimento contrário ao
desencantamento; há que se questionar em que medida aquela dupla mediação – do
aparelho midiático em relação à experiência religiosa, e desta em relação à produção
simbólica midiática – de fato são estranhos uma à outra. Há que se questionar enfim o
quanto existe, e sempre existiu, de religioso e mitológico na construção do aparelho
midiático secular – e portanto o quanto a telerreligião, seu espírito, não são promovidos
pela ética do capitalismo, sustentado justamente pelo aparelho midiático. Se, como nos
disse Weber, tal desencantamento do mundo é produto de um paradoxo das
consequências, em que a racionalização burocrática capitalística é produto,
paradoxalmente, da ética ascética protestante (WEBER, 1991),
17
é preciso não perder de
vista, por outro lado, o mundo encantado, enfeitiçado, criado pela lógica do capital de
que nos diz Marx (1968). Nesse caso, a percepção de Martín-Barbero é incompleta – e
cabem as perguntas: a religião institucionalizada, sólida, não tem o mesmo efeito da
telerreligião, líquida? Não se trata, ambos, daquilo que Raymond Williams (2003) disse
a respeito da TV como tecnologia e forma cultural: uma invenção com intenções
militares, administrativas e comerciais específicas?
3. Uma teogonia: evolução da telerreligião no Brasil
Um retorno ao início deste texto, sobre a presença atual da religião na mídia
no Brasil, especialmente na TV, e é possível observar algumas coincidências: a década
de 1990 foi, para todas as agremiações religiosas, decisiva para a disputa pelos telefiéis.
Não por acaso, aqueles anos foram marcados, no Brasil, como ademais na América
Latina, pela assunção definitiva do neoliberalismo, produto da última crise de
17
Sobre o conceito weberiano de desencantamento do mundo: PIERUCCI (2003).
56
acumulação do capital internacional da década de 1980, com privatização de empresas
públicas – estratégicas ou não – e serviços públicos; desregulamentação, quase
desmontagem do aparelho estatal para o benefício da coletividade; desmonte da
seguridade social e precarização do trabalho. O sacrossanto mercado ganhava mais um
templo onde receberia seus sacrificados: a maioria do povo brasileiro e latino-
americano. O País então retornava ao eixo de uma modernidade que se desenhava
universalmente, cuja imagem emblemática talvez possa ser resumida na célebre frase da
ex-primeira ministra britânica Margaret Thatcher: “Não existe essa coisa de sociedade,
apenas indivíduos e as suas famílias”. Inaugurava-se então a crença pós-modernista de
que o indivíduo, atomizado, em sua caminhada pelo bem-estar seu e dos seus,
prescindia, ou, antes, era atrapalhado pela sociedade. É a tal fenômeno universal a que
se refere o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, quando discute um possível mal-estar
na pós-modernidade – uma referência ao clássico freudiano Mal-estar na civilização,
obra em que Freud chama a atenção para o fato de o humano ter aberto mão de sua
liberdade individual em nome de uma maior segurança. Bauman então identifica os
fundamentalismos religiosos – e étnicos – contemporâneos com esse mal-estar:
O fundamentalismo é um fenômeno completamente contemporâneo e pós-
moderno, que adora totalmente as “reformas racionalizadoras” e os
desenvolvimentos tecnológicos da modernidade, tentando não tanto “fazer
recuar” os desvios modernos quanto “os ter e devorar ao mesmo tempo” –
tornar possível um pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o
preço que elas exigem. O preço em questão é a agonia do indivíduo
condenado à autossuficiência, à autoconfiança e à vida de uma escolha nunca
plenamente fidedigna e satisfatória (Bauman, 1998, 226).
De qualquer forma, os recentes fenômenos dos fundamentalismos étnicos e
principalmente religiosos - e eles são coincidentes - parecem confirmar a tese de
Durkheim (1989), segundo a qual as religiões reforçam o sentido de pertença coletiva e,
com ela, dos laços sociais. Por outro lado, é preciso não perder de vista que a
religiosidade e as religiões contemporâneas estão fortemente fundamentadas na
dinâmica cultural midiática e naquilo que se pode chamar de ética do consumo. Se,
como diz Nestor Canclini (2001), o consumo serve para pensar; se, de fato, processos
identitários e sentido de pertença têm sido construídos pelo ato e pela lógica do
consumo universalizados, por outro lado, porém, numa sociedade marcada pela
monopolização dos meios de produção, a consequência única disso é justamente um
reencantamento pela mercadoria e seu feitiço, com mais mal-estar, mais temor, mais
57
sentimentos de vazio.
18
Tal percepção nos permite apontar para dois lugares: primeiro, a
despeito da crença pós-modernista, que tem na frase de Margaret Thatcher seu libelo, a
sociedade continuava a existir e a forjar os indivíduos. Segundo, a regra universal que
unia os indivíduos era ditada pela lógica do consumo capitalístico; isto é: há uma
moralidade individualista capitaneada pela lógica do consumo – e aqui deve-se assumir
o paradoxo. O dever-ser da mercadoria se limita ao consumo – mas também, como toda
moralidade, há ideologias que o sustentam e que nos fazem acreditar em sua força,
inclusive transcendental, senão emancipatória, certamente de uma liberdade estética,
que torna a vida mais leve. O problema é que isso não se cumpre efetivamente para a
maioria dos humanos – muito ao contrário. Se se atenta para o fato de que os
reavivamentos da religião são codificados pela racionalidade tecnoburocrática
contemporânea – ou como disse Bauman, as religiões desejam “tornar possível um
pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço que elas exigem” – e
têm, por isso mesmo, justamente na telerreligião uma forma de manutenção e
sustentação contemporâneas, é possível inferir que, a despeito de serem uma reação à
insegurança do neoliberalismo pós-modernista, as religiões comungam da lógica que
paira sobre elas: a mitologia do capital. Assim, como nos lembra Bauman (2001) em
outro local, nas condições da cultura contemporânea, em que se abriu mão da segurança
social em nome da liberdade, a individualização não é uma escolha, mas uma fatalidade.
A telerreligião se entrega a tal fatalidade, ao mesmo tempo em que propõe uma outra
forma de moralidade – que supera e, de certa maneira, nega a força transcendente do
capital. E, no entanto, ambas comungam da moralidade do consumo e, assim, é possível
já dizer, propõem uma máquina de forjar humanos que vivem um cotidiano enfeitiçado
pela mercadoria e, quando procuram transcendê-lo, se deparam com rituais que os
lançam novamente no enfeitiçamento do cotidiano.
Por isso, embora o fenômeno da telerreligiosidade remonte, mesmo no
Brasil, a décadas anteriores, é possível afirmar que, não apenas porque a década de 1990
marca seu visível crescimento, a ideologia neoliberal foi fundamental para tal
crescimento, em razão de ter sido momento importante do continente no que se costuma
chamar de modernização ou desenvolvimento, em distinção à tradição, atraso ou
subdesenvolvimento latino-americano. Obviamente, modernizar-se significa aderir ao
capital internacional. Foi o que aconteceu.
18
Essas ideias serão mais bem trabalhadas nos capítulos seguintes, especialmente no capítulo 5 desta tese.
58
Leonildo Campos (2004) trata desse processo. Ele tem opinião bastante
próxima daquela de Martín-Barbero sobre as igrejas eletrônicas. Campos trata
especificamente da Igreja Universal do Reino de Deus, mas, ao fazer a relação entre
religião, magia e teologia da prosperidade, é possível aí compreender o milagre da
multiplicação de fiéis por aparelhos midiáticos. Citando, em nota, Cristian Parker e seu
Outra lógica em América Latina: religion popular y modernizacion capitalista,
Leonildo Campos diz:
(...) Esse autor defende a ideia de que o processo de urbano-industrialização
capitalista provocou na América Latina o surgimento de um tipo particular de
secularização que, ao invés de destruir o tecido religioso do Continente,
construiu uma sociedade pluralista, na qual as religiosidades populares, entre
elas o pentecostalismo, reconstroem as relações sociais dentro de novos
moldes, obviamente, mais adequados ao contexto econômico-social
(CAMPOS, 2004, 45).
Como se vê, o enfoque dos estudos tem sido no fenômeno das poéticas
cotidianas e nas mediações, ou seja, no fenômeno em seu contexto sociocultural e
econômico. De fato, não se podem perder de vista tais poéticas e mediações, como foi
dito. Todavia, o interesse aqui está em enxergar tais poéticas segundo a perspectiva
construída pela ideologia que sustenta a crença no individualismo regulado pela cultura
do capital. Isso muda a perspectiva de análise: trata-se de compreender, para além das
poéticas, ou através delas, para onde caminha o sagrado, complexificado e circunscrito
pelos discursos midiáticos. É bem verdade que o próprio Leonildo Campos chama a
atenção para o fato de que “o sucesso do pentecostalismo da Igreja Universal do Reino
de Deus pode ser compreendido e explicado a partir da crescente hegemonia do
mercado sobre todos os setores da vida, inclusive o religioso (...)” (ibidem, 467. Itálico
meu). Se é importante pensar por essa perspectiva para desvelar o sagrado
contemporâneo, observar a colonização do mercado em todos os setores da vida,
inclusive na religião, não esclarece o fato mais importante de que essa lógica é mais do
que tudo relação social, modelo de sociedade forjada pela apropriação dos meios de
produção – simbólicos e não simbólicos. É nessa medida que parece haver uma relação
simbiótica entre a telerreligião e a lógica do capital. Há que se perguntar por que razão
os meios de produção simbólica midiática foram – e são – tão facilmente apropriados
pelos grupos religiosos. É nessa medida que nos interessa aqui a teogonia da
telerreligião, cujo ápice está na década de 1990.
* * *
Além da coincidência entre o início da expansão da telerreligião, pela TV, e
59
a assunção da ideologia universalista do neoliberalismo, na América Latina, outras
coincidências também podem ser verificadas. Como já foi explicitado – e iremos nos
limitar ao caso brasileiro -, o início da expansão ocorreu com a aquisição, em 1989, da
Rede Record pela Igreja Universal do Reino de Deus. Tal processo não se deu sem
alguma polêmica – o que se prolonga ainda hoje, com a série de suspeitas de crimes
envolvendo bispos e missionários de igrejas não católicas. Muitos são os
acontecimentos que envolvem a compra da Rede Record e, de fato, conforme relatos na
mídia à época (cf.: HAMBURGER, Folha de S.Paulo, 20/02/1995; O GLOBO,
13/05/2005; O GLOBO, 21/05/2005; NASCIMENTO, Isto É, 25/05/2005;
NASCIMENTO; HOLLANDA, Isto É, 01/06/2005), as transações pareciam nebulosas,
tanto pela rapidez das negociações e do pagamento, que envolveu 45 milhões de
dólares, quanto pela ligeireza da concessão federal para a rede. Até hoje a compra da
Record é responsável por inúmeros processos contra o bispo Edir Macedo, o senador
Marcelo Crivella (bispo da IURD e sobrinho de Edir Macedo) e pastores deputados que
respondem a ações judiciais nas varas criminais do Rio e de São Paulo (MARIANO,
1999; FONSECA, 2006; ORO, 2004). Há ainda inquéritos que envolvem empresas
lidadas à IURD sediadas em paraísos fiscais, que participaram da compra e transações
da TV Record (O GLOBO, 13/05/2005; NASCIMENTO, ISTO É, 25/05/2005).
Há que se considerar, contudo, que o bispo Edir Macedo, para além de suas
transações nebulosas – ademais, próprias do capitalismo à brasileira e que não se
limitam à IURD: basta lembrar o caso Time Life e Rede Globo, na década de 60
(SODRÉ, 1999; BRITTO & BOLÃNO, 2005), apenas para ficar no mercado de
comunicação e mídia -; o bispo e sua IURD entravam em terreno minado. Desde sua
primeira aquisição, a Rádio Copacabana, em 1984 – a Igreja Universal foi fundada em
1977 -, o poderio de Edir Macedo só fez aumentar. Com uma proposta clara de tomar
para si a hegemonia midiática – em que, aliás, repete líderes evangélicos
estadunidenses, como é o caso, por exemplo, de Jimmy Swaggart -, Macedo começava a
incomodar os donos da mídia no Brasil. E eles tinham razão: além da Rede Record, a
IURD é proprietária de um império em rádios, possui revistas e jornais, voltados para o
público de fiéis da Igreja, com tiragem de centenas de milhares, até milhões de
exemplares, e um jornal de notícias seculares – o Hoje em Dia, de Belo Horizonte,
mesmo que não faça frente aos principais jornais diários nacionais, e nem mesmo do
mercado mineiro, liderado pelo Estado de Minas, dos Diários Associados, que, até sua
morte, era de propriedade do percussor da TV no Brasil, Assis Chateaubriand. E, quanto
60
a ele, o jornalista Fernando Morais (1994) traz histórias de disputas societárias, políticas
e econômicas que não são exatamente exemplo de honestidade e respeito ao interesse
público.
Assim, o bispo Edir Macedo, com a compra da Record, deflagrou uma
guerra santa no mercado de comunicação brasileiro. Essa guerra, travada
principalmente pela Rede Globo, teve início tímido, em razão da pequena participação
tanto em audiência quanto na fatia do mercado publicitário da Record em seus primeiros
anos. Em 1995, houve um dos episódios conhecidos como ponto alto da disputa: em
setembro daquele ano, a TV Globo levou ao ar a minissérie de Dias Gomes Decadência.
Em seus 12 capítulos, a Globo anunciava que entrava naquela disputa para valer. A
minissérie era um ataque frontal à ascensão da Igreja Universal do Reino de Deus. Na
trama, o pastor Mariel Batista (vivido Edson Celulari), que viu sua família ruir
financeiramente, encontra na construção de um império eclesiástico – o Templo da
Divina Chama – a chance de retomar a antiga condição social. A presença do padre
(Cássio Gabus Mendes), com seu “depósito moral”, em contrapartida às “ações
inescrupulosas” do neo-pastor, deixa clara a aliança proposta: a Igreja Católica,
“natural”, era a segurança contra os espertalhões que surgiam – e, por óbvio, esses
espertalhões usam a pregação e o santo nome de Deus apenas para a construção de um
vão – e vil – império econômico. Por outro lado, um pastor humilde, vivido por Milton
Gonçalves, coloca as coisas em seu devido lugar: negro, está interessado apenas na
evangelização – porque afinal, esta vida é um vale de lágrimas e é preciso admitir os
desígnios de Deus para os pobres.
19
Evidentemente, é preciso matizar a análise de peças ficcionais para a
compreensão da realidade sociocultural e econômica, mas não há como negar a força
imaginária da representação ficcional, sobretudo em relação à teledramaturgia
televisiva. E foi tal força que gerou o lance seguinte na guerra santa, e que marcou o
início da reação católica: o evento conhecido como chute na santa. O evento é
conhecido e foi amplamente explorado – mas vale a pena reproduzir a sua
dramaticidade.
Madrugada de 12 de outubro de 1995, dia de Nossa Senhora Aparecida,
padroeira do Brasil. Um então obscuro pastor da Igreja Universal, Sérgio Von Helder,
19
Mais à frente, neste capítulo, será analisada a presença religiosa na teledramaturgia brasileira. Mas já se
pode adiantar a clara presença “natural” dos religiosos católicos como uma opção contra a ética
protestante – ou a teologia da prosperidade – em um país que teve entre os primeiros colonizadores
membros da Igreja Católica e proprietários de capitanias hereditárias.
61
em uma ainda mais obscura programação religiosa – o Palavra de Vida - da Igreja, em
um horário de pouca audiência, proclama a todo pulmão que aquela estátua, da santa, à
sua frente era senão um pedaço de gesso. Ninguém deveria acreditar em sua divindade.
O caso ganhou uma inesperada repercussão – graças à desproporcional, nos dias que se
seguiram, cobertura da mídia brasileira, principalmente a Rede Globo de Televisão. A
revista Veja assim narrou o evento:
PEDAÇO DE GESSO - O caso teve início na madrugada de 12 de outubro,
em pleno feriado nacional em homenagem à padroeira do Brasil. No
programa Palavra de Vida, transmitido ao vivo pela TV Record, o bispo
Sérgio von Helder, falando feito uma matraca, suando como uma fonte, tinha
uma estátua de Aparecida ao seu lado e, com microfone na mão, dizia que
ninguém devia acreditar em seus poderes divinos. Para provar a veracidade
do que dizia, Von Helder bateu na imagem 22 vezes - doze vezes com o pé e
dez vezes com a mão. Como a escultura não reagia aos tabefes, o bispo
esperava convencer sua plateia de que não havia razões para temê-la,
tampouco adorá-la. E dizia:
- Esse pedaço de gesso, quase do meu tamanho, feito pela mão do homem.
Nós queremos mostrar uma coisa ao Brasil. Isso não funciona, óóó (bate na
santa como quem testa sua resistência), isso aqui não é santo coisa nenhuma,
óóóóóó (bate na imagem com o pé), isso aqui não é Deus coisa nenhuma,
óóóóóó.
REINO DA MÍDIA - Foram cenas grotescas com o bispo beócio desafiando
os mais comezinhos conceitos de bom senso: ele queria que a estátua
reagisse, que os espectadores acreditassem que estava vencendo? Como o
programa vai ao ar na madrugada, e sua audiência é ínfima, a coisa só foi
virar um escândalo no dia seguinte, com a ampla cobertura dada pela Globo.
Na sexta-feira, a emissora exibiu as cenas de Von Helder nos seus três
telejornais. No sábado, reprisou-as mais duas vezes. No domingo, as cenas
apareceram no Fantástico. No dia seguinte, voltaram ao ar. Até a sexta-feira
passada [20/10/1995], foram doze aparições das cenas na tela da Globo. A
emissora, ficou evidente, queria vingar-se da Igreja Universal, já que está
sendo processada por ter abusado da imagem do bispo Macedo na minissérie
Decadência (VEJA, 25/10/1995).
Não deixa de ser curiosa a análise feita pela revista semanal de maior
circulação no País – e, é bom que se ressalte: trata-se de uma concorrente tanto do
Grupo Globo de Comunicação, quanto a crescente IURD e sua Rede Record. A matéria
de Veja – como ademais dos outros veículos brasileiros, que deram grande repercussão
ao caso do chute na santa – chama a atenção para a “vingança” da Globo contra o
processo que a concorrente movia contra si, em razão da minissérie Decadência. O
bispo, depois afastado pela própria direção da IURD, foi, no texto, chamado de
“beócio” – e abilolado, já que pretendia, com os golpes, que a estátua reagisse. A
ausência de isenção no tratamento do fato – a despeito da legítima defesa da liberdade
religiosa, feita pelo sistema midiático, mesmo entre os concorrentes, junto a outras
liberdades da democracia liberal – deixa entrever um enigma: as empresas de
comunicação se juntam quando o assunto é a defesa do ideário do liberalismo – desde
62
que os concorrentes participem do clube de barões da mídia. Pode-se argumentar: no
caso de Veja, trata-se de uma denúncia contra um ato ilegal, com dinheiro e ações
políticas nebulosas. No entanto, deve-se contra-argumentar, em nenhum momento se
viu qualquer dos concorrentes criticar os negócios nebulosos em que tenham entrado os
parceiros de então. Porém, argumenta-se ainda, trata-se da defesa de um ideal laico de
sociedade, contra aliás o uso de charlatanismo, flagrante no caso da Igreja Universal,
seu bispo Macedo e sua Record. Nesse caso, por outro lado, questiona-se a própria
naturalidade do catolicismo, em nenhum momento chamado de charlatão ou de uma
ameaça à sociedade laica. Obviamente, e é bom que se deixe claro, há uma enorme
distância – institucional e por isso mesmo teológica – entre a Igreja Católica e as novas
agremiações neopentecostais. Porém, o que nos interessa aqui é discutir as razões por
que o catolicismo é tratado com parcimônia pelo sistema midiático brasileiro.
O discurso de Veja – e os ataques da Globo, ainda em vigor atualmente,
após o evento do chute na santa – parece ser de outra ordem: aquela da ameaça ao
monopólio midiático, que, a rigor, segue o receituário do liberalismo econômico, como
se pode ver com a série de aquisições e fusões ao redor do mundo, inclusive e sobretudo
em relação às corporações midiáticas (sobre isso, ver: HARVEY, 2005; MORAES,
2005; RAMONET, 2005; ARBEX JR., 2005).
Luís Nassif, no último dia daquele 1995 marcante, apontou justamente para
esses ataques e para o monopólio “dos brancos”. E vaticinou:
Se não for destruída pela atual campanha, acontecerá com ela [a Rede
Record] o mesmo que com os sindicalistas do ABC, com a CUT e com os
trabalhadores rurais. À medida que seu espaço foi sendo reconhecido, cada
um desses setores se civilizou e passou a praticar políticas de alianças-base
de qualquer regime democrático (NASSIF, 31/12/1995).
De fato, o jornalista tinha razão: a Rede Record foi civilizada – e hoje,
diferentemente daquele 1995, é uma real ameaça ao poderio das Organizações Globo. A
marca de sua civilidade está na limpeza de sua programação: há, hoje, muito pouco de
telerreligião – algo comparável apenas com a própria TV Globo. Como apontou Nassif,
seu processo civilizatório disse respeito àquilo que o liberalismo mais preza: a
tolerância – ou ausência de radicalidade -, que nesse caso, como teria acontecido com
“a CUT e os trabalhadores rurais”, significa tão-somente uma forma de adesão ao
sagrado do capitalismo praticado em terra brasilis.
O advento do chute na santa é, senão determinante, exemplar do que
aconteceria nos anos seguintes – seja com o fortalecimento da própria IURD e a Rede
63
Record; seja com o surgimento, em TVs abertas, de outras agremiações religiosas; seja
com a reação católica e sua investida no mundo midiático televisivo – inclusive com o
surgimento de seus conhecidos padres cantores (sobre isso, entre outros, SOUZA,
2005). Se, de fato, o ano de 1995 foi marcante para a telerreligião no Brasil, essa
história remonta a antes.
4. A diáspora
Se as décadas de 1970 e sobretudo 1980 foram marcantes para a evolução
da igreja eletrônica no Brasil; e se, como visto, a década de 90, e o ano de 1995, podem
ser considerados o marco zero, inclusive pela reação católica no setor da telerreligião
no País, essa história está assentada em décadas atrás. Nem mesmo o fenômeno dos
padres cantores católicos que visitam, com maestria, o star system midiático, como
veremos mais adiante, é tão novo.
Como vimos, até os anos 1960, a Igreja Católica mantinha um sistema de
rádios educativas – cuja concessão foi fruto de convênio com o governo brasileiro para
educação a distância. Mas tratava-se de uma experiência, até então, de educação a
distância. Somente depois, já na década de 70, as emissoras, ainda mantendo o caráter
educativo e cultural, se abriram para o proselitismo. No caso das agremiações não
católicas, o primeiro programa evangélico brasileiro de que se tem notícia data de 1943:
A voz da profecia, com direção do pastor adventista Roberto Rabello, escolhido para ser
orador oficial do programa para a língua portuguesa. O programa era produzido desde
1929, em Los Angeles, pelo pastor H.M.S. Richards. Em 1943, 52 programas foram
gravados nos EUA e enviados, em discos de vinil, para o Brasil. No dia 23 de setembro
daquele mesmo ano, 17 emissoras de rádio das principais cidades brasileiras
transmitiram A voz da profecia.
Na TV brasileira, o sistema adventista também foi pioneiro. Data de 1962 o
primeiro programa pentecostal televisionado no País – é preciso considerar apenas os
programas declaradamente proselitistas. O fé para hoje, transmitido pela TV Tupi na
década de 60, ainda hoje ocupa espaço pago na grade de programação da TV Gazeta.
Não obstante, a força da produção local dos televangelistas – salvas raras exceções – era
bastante limitada. Até os anos 1980, eram muitos os programas de televisão
pentecostais estadunidenses - entre eles, os mais assistidos eram os de Rex Humbard -
Alguém ama você - e de Pat Robertson – o Clube 700. Os cultos de Jimmy Swaggart,
todavia, eram os programas mais populares – razão por que ele pode ser considerado o
64
mais influente entre os televangelistas brasileiros (ASSMANN, 1986; SANTANA,
2005; FONSECA, 2003).
A partir de meados dos anos 1980, a produção brasileira evangélica para a
TV se tornou independente e passou a ocupar espaços em redes nacionais. Os primeiros
e mais conhecidos televangelistas brasileiros foram R.R Soares, Nilson Amaral Fanini,
Edir Macedo e Estevam Hernandes.
Nilson Fanini, pastor batista, produziu e apresentou, nos 1970, o programa
Reencontro, veiculado pela TV Educativa do Rio de Janeiro e retransmitido
nacionalmente em sua versão radiofônica. Além do Brasil, o programa, depois de
consolidado, alcançou a África do Sul, o Paraguai e os EUA. A estratégia de exportação
de conteúdo também foi importada dos televangelistas estadunidenses. Mais tarde, suas
relações com a ditadura militar brasileira foram muito bem aproveitadas. Em 1983, o
pastor Fanini recebeu das mãos do general João Batista Figueiredo a concessão da TV
Rio, que manteve até ser vendida para Edir Macedo, 15 anos depois.
Outro pop star televangelista brasileiro foi – e continua sendo - Romildo
Ribeiro Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus. R.R. Soares é o pentecostal há
mais tempo no ar: desde os anos de 1970 – inicialmente pela TV Record e depois por
diferentes emissoras -, possui programa veiculado em horário pago na Bandeirantes,
CNT, Rede TV e TV Gazeta. Os seus programas diários, em que o missionário está
sempre trajado em um impecável terno, têm ênfase na cura e no sucesso econômico-
financeiro.
O terceiro pai do televangelismo brasileiro é Edir Macedo, cuja história foi
por ele próprio contada em uma biografia, e cuja trajetória foi amplamente estudada, o
que nos desobriga a aqui fazê-lo (entre muitas referências, ver CAMPOS, 2004;
GOMES, 2004; ORO, CORTON & DOZON, 2003).
Há ainda o caso dos missionários Estevam e Sônia Hernandes, da Igreja
Renascer em Cristo. Além das recentes encrencas em que se meteram,
20
tentaram e
quase conseguiram comprar a extinta TV Manchete. Em janeiro de 1999, a Fundação
20
Uma série de reportagens da revista Época, do grupo Globo, que se inicia em 2002 e intitulada O lado
sombrio da Renascer, denunciava os “golpes, contratos irregulares e processos” que “fazem parte do dia-
a-dia de uma das igrejas que mais crescem no Brasil” (cf. DANTAS, Época, 20/05/2002). As notícias de
irregularidades continuaram e o Ministério Público os indiciou por lavagem de dinheiro, estelionato,
formação de quadrilha e falsidade ideológica, até que, no final de 2007, o casal foi preso nos EUA, sob a
acusação de tentarem entrar no país com dinheiro não declarado. Em 2008, a justiça brasileira congelou
os bens do casal, cuja fortuna foi estimada, pelo próprio Ministério Público, em aproximadamente R$130
milhões – conseguidos com a mais pura ação evangélica.
65
Renascer, da Renascer em Cristo, assinava um contrato de parceria com Rede
Manchete de Televisão. A R.G.C. Produções Ltda. (produtora pertencente à fundação),
que fazia os programas da Igreja Renascer exibidos na Manchete, passava a dividir a
responsabilidade pela produção, operacionalização e comercialização das cinco
emissoras que compunham a rede, sob pagamento mensal de R$ 4,8 milhões, por 15
anos. Segundo o bispo Antonio Carlos Abbud, sócio do missionário Estevam
Hernandes, não se tratava da compra da rede, mas de uma sociedade (FOLHA DE
S.PAULO, 5 de janeiro de 1999). No final daquele mesmo mês, contudo, o governo
brasileiro julgou ilegal o acordo e exigia que a Fundação Renascer assumisse tudo – a
programação e as dívidas. O tal acordo era uma jogada do missionário para que sua
fundação não assumisse a dívida da TV. Depois de idas e vindas, ameaças de
Hernandes e contra ele, finalmente, em abril de 1999, Amílcare Dallevo Júnior,
proprietário da TeleTV e da TV Ômega, adquiriu a TV Manchete e a transformou em
RedeTV! – a emissora comercial com a segunda maior programação telerreligiosa,
segundo dados da Ancine – Agência Nacional de Cinema brasileira.
21
Mais uma vez,
entre os negócios e Deus, o lance da venda e transformação da Manchete em RedeTV!
mostrou que não há excludência entre eles. Quanto à Igreja Renascer em Cristo, depois
do fracasso no negócio de uma rede de TV pronta, os missionários Hernandes
montaram a Rede Gospel de TV. Em função dos escândalos em que se envolveram, o
Ministério das Comunicações brasileiro cassou algumas concessões de rádio e de
retransmissoras de TV (FOLHA DE S.PAULO, 31/01/2007). Dessa vez, não houve
como Deus operar milagres.
5. Crescei e multiplicai-vos
A Igreja Católica e sua investida nos sistema televisivo é narrada como uma
história de milagres.
22
A primeira incursão católica pela TV - sem contar, como
veremos, a naturalidade da presença de católicos na programação televisiva brasileira -
21
Dados da Ancine, do primeiro semestre de 2009, indicam a seguinte distribuição da programação de
TV aberta no Brasil: A TV CNT tem 30% de sua programação ocupada por programas religiosos,
seguida da Rede TV, com 22,8%, Record, com 17%, Band, com 16,8% e Gazeta, com 11,6%. A TV
Globo e as públicas TV Brasil e Cultura têm menos de 1% de sua grade ocupada com programas
religiosos. Esses números já seriam interessantes por si mesmos – mas a Ancine, sintomaticamente,
enxergou uma relação entre a telerreligião e televenda – isso considerando é claro apenas os programas
que claramente versam sobre religião ou vendem de forma explícita produtos. Segundo esses dados, 25%
da programação da TV aberta brasileira são feitos da somatória entre programas religiosos e de televenda.
22
O histórico a seguir se limitará às redes de televisão católicas: a Rede Vida, A TV Canção Nova, a TV
Século XXI e a TV Aparecida. Serão, portanto, deixadas de lado as TVs católicas isoladas ou
retransmissoras das cabeças-de-rede.
66
data do início dos anos 70, com a experiência dos Freis Franciscanos Capuchinhos, do
Rio Grande do Sul, que fundaram e mantiveram a TV Difusora, em Porto Alegre, como
emissora comercial, com alguns programas religiosos, e a TV Pato Branco, no Paraná.
A experiência pioneira durou até 1980, quando, em dificuldades, os Capuchinhos
venderam as emissoras. Parecia que os milagres cessariam. Mas apenas parecia. Eles
retornaram, com força, na década de 90.
Milagre é, aliás, a explicação dada para a criação e consolidação das duas
maiores redes católicas de Televisão: a Rede Vida e a Canção Nova. Os prospectos da
Rede Vida, nascida em 1995, assim narram sua trajetória:
A TV QUE ACREDITA EM MILAGRE
Um jornalista de Barretos, interior paulista, terra da Festa do Peão, montou a
maior rede católica de televisão do mundo. Um ato de fé que muitos
classificam como um verdadeiro milagre.
- Sim, é o milagre da normalidade – responde o jornalista João Monteiro de
Barros Filho, filho de peão de boiadeiro, nascido no dia 5 de novembro de
1938 (http://www.redevida.com.br/redevida.html - acesso em 07/03/2008).
Eis precisamente o milagre: a normalidade. A Igreja Católica assistiu um
tanto passiva ao desdobramento e avanço das agremiações não católicas pelo mundo da
TV. Quando ocorreu o marco zero, o evento do chute na santa, o catolicismo já
começava a se movimentar em busca do terreno perdido. Mas tal evento foi, de fato,
determinante para o avanço católico. E os milagres tornaram a acontecer – milagres da
normalidade. Como na década de 1950, quando Igreja e Estado brasileiro firmaram
acordos que deram à instituição religiosa inúmeras concessões de rádio, que depois
formariam a Rede Católica de Rádio, agora as concessões também começavam a
aparecer. Não que as concessões para as chamadas seitas, geralmente pentecostais, não
acontecessem também por essa relação tão estreita entre grupos religiosos e Estado. A
questão aqui está justamente na naturalidade do catolicismo brasileiro. Em pouco mais
de 15 anos, a Igreja Católica, que se movimentou apenas em meados dos 1990, se vê
transformada em um império telemidiático.
A narrativa, em seu sítio eletrônico, sobre o milagre da Rede Vida continua:
A vitória na disputa pela geradora de Rio Preto foi o primeiro milagre da
trajetória da emissora católica. O segundo imbróglio era convencer a CNBB a
aprovar o projeto. Monteiro Filho conseguiu duas importantes adesões para
levar avante o projeto: o arcebispo metropolitano de Botucatu, Dom Antonio
Maria Mucciolo, e o arcebispo de Mariana, Dom Luciano Mendes de
Almeida.
- A solução é formar um instituto, porque a CNBB não tem como
administrar uma rede de televisão – orienta o arcebispo carioca da diocese
primaz mineira (ibidem)
67
E, diante do imbróglio, foi criado o INBRAC – Instituto Brasileiro de Comunicação
Cristã, com a presidência de João Monteiro de Barros Filho
Atualmente, é da Rede Vida tem o segundo maior número de outorgas de
repetição de sinal do Brasil: está em 436 cidades brasileiras e tem mais de 500 outorgas
- números superiores até aos da própria Globo, uma vez que, na maioria dos Estados e
regiões, a TV Globo é retransmitida por parceiros/afiliados. Em termos absolutos, a
Rede Vida só perde para a TV Canção Nova, como veremos adiante. Seja como for, a
Rede Vida é um portento. Cerca de 35% da sua programação é religiosa, composta por
missas, reza do terço e reflexões, e destina-se à evangelização. Alguns dos programas
religiosos líderes de audiência, como a Missa de Aparecida e o programa do Padre
Marcelo Rossi, são patrocinados por anunciantes - a Universidade do Vale do Paraíba e
o laboratório Teuto Ultrafarma. Os outros 65% da grade de horários, e seguindo o
slogan, O canal da família, são avessos a conteúdos agressivos. São veiculados desde
programas infantis, passando pelo futebol, filmes – de caráter religioso e,
acrescentemos, desde que não estejam condenados pelo índex do Vaticano – e musicais.
Sua programação conta com algumas muitas inserções comerciais – ou melhor, com
televendas. Essa é a fonte de receita para a manutenção da TV.
Bem diferente é a manutenção da TV Canção Nova,
23
feita exclusivamente
por doações de seus sócios – responsável por cerca de 70% da receita – ou por venda de
produtos exclusivos da comunidade religiosa, anunciados pela TV. A manutenção da
rede de comunicação é um verdadeiro milagre: em 2007, a receita chegou a R$127
milhões, arrecadados apenas com aquele expediente. Para tanto, o Sistema Canção Nova
de comunicação mantém um agressivo programa de arrecadação, denominado Dai-me
almas. A captação pode ser acompanhada pela página da Internet, que em 2007 teve
média mensal de mais de quatro milhões de acessos. No site da TV na internet, há um
ícone com o título do programa de doação, em que um gráfico mostra o percentual da
necessidade de fundos da rede que já foi satisfeita pelas doações. Há ainda outros
programas, como o Juntos Somos Mais, que incentiva novos sócios e transmite
encontros de arrecadadores; o Deus Proverá, que presta contas dos gastos, necessidades
e conquistas da Comunidade Canção Nova; e o Momento de Adoração, dedicado
especialmente para as intervenções dos sócios. O Sistema Canção Nova é mantido pela
Fundação João Paulo II - entidade sem fins lucrativos, caracterizada como uma obra que
23
Informações e reflexões mais aprofundadas sobre o sistema Canção Nova e, em particular, sobre a TV
Canção Nova, objeto de estudo desta pesquisa, serão feitas no terceiro capítulo desta tese.
68
subsiste pela Divina Providência. Trata-se efetivamente de um milagre.
Milagre, aliás, é a palavra usada pelo criador da Comunidade Canção Nova
– voltada para a evangelização pelos meios de comunicação social -, o carismático
Padre Jonas Abib, para se referir à própria criação da comunidade religiosa e seu
poderio midiático (CHALITA, 2006). A TV Canção Nova foi criada em 1989, mas
somente em 1997 formou-se a Rede Canção Nova de Televisão com a compra da TV
Jornal em Aracaju, até então afiliada à Rede Bandeirantes, transformada em TV Canção
Nova Aracaju e responsável pela geração da programação para o Nordeste brasileiro.
Em 2007, com apenas dez anos de formação da rede, a TV Canção Nova estabeleceu-se
como a maior emissora de televisão católica do Brasil e ultrapassou a até então líder no
segmento, a Rede Vida. Desde setembro de 2005, a TV Canção Nova chega a todas as
regiões da Europa. Recentemente, passou a atingir também os televisores do Oriente
Médio, Ásia, África e Oceania, além de transmitir sua programação por webtv, atividade
em que foi pioneira. Atualmente, a TV Canção Nova mantém produtoras em Cachoeira
Paulista, onde é sua sede; São Paulo, Rio de Janeiro, Aracaju, em Portugal e em Roma.
Mantém ainda geradoras em Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis e Campos dos
Goitacazes. Possui retransmissoras em mais de 500 municípios brasileiros; cobertura em
todo o Brasil pela parabólica; e em cerca de 200 operadoras de televisão por assinatura.
Isso sim é reação católica à altura – um milagre sem precedentes, só comparável ao
poderio alcançado pela Rede Globo de Televisão, sob os auspícios da ditadura militar
brasileira.
Talvez, entre as Redes Católicas de TV, a única que não se declara produto
de um milagre é a TV Século XXI. Nem precisava: o milagre a acompanha desde seu
fundador, o padre Eduardo Dougherty, um dos responsáveis, ainda nos anos 1960, por
trazer a Renovação Carismática Católica (RCC), dos Estados Unidos para o Brasil. Até
então, a Associação Senhor Jesus (ASJ), que trabalha com a evangelização a partir dos
meios de comunicação, fundada em 1979, em Campinas, mantinha programas de rádio
em diversas estações pelo Brasil. No início dos anos 1980, porém, se anunciava o
futuro: a ASJ criou uma produtora de televisão especializada em programas
dramatúrgicos.
Em 1999, enfim, foi criada a TV, como específica da Renovação
Carismática Católica brasileira – a TV Canção Nova, embora igualmente carismática,
tem, segundo seus membros, “carismas próprios” e, por isso, não está associada à RCC.
A rede de TV Século XXI faz parte de um grupo de comunicação multimídia construído
69
pela ASJ. Além de caracterizar-se como televisão religiosa católica, a Século XXI é
uma das maiores produtoras independentes de programas religiosos e minisséries e, por
isso, consolidou-se como núcleo de produção teledramatúrgica, com produtos
exportados para países do Leste Europeu, Ásia, África, América Latina, Estados Unidos
e Europa. A despeito de obter receita de patrocinadores, a TV Século XXI é mantida
pela ASJ, que, por sua vez, é sustentada por milhares de sócios contribuintes espalhados
por todo o Brasil e pelo mundo.
Por fim, a caçula entre as redes católicas de TV – ao menos por ora, uma
vez que, haja vista a velocidade com que grupos católicos têm investido na tecnologia
de comunicação de massa, é plausível prever que, nos próximos anos, novas redes
surjam, como que por milagre: a TV Aparecida. Com atraso de dez anos em relação ao
evento do chute na santa, a rede católica é a resposta mais evidente à heresia do bispo
von Helder: a TV Aparecida, depois de longa luta política nos bastidores para que
conseguisse a concessão do Governo Federal, iniciou sua programação em 2005.
Segundo o histórico oficial da emissora, “a TV de Nossa Senhora Aparecida não nasceu
por acaso. Como tudo o que diz respeito a Nossa Senhora e ao projeto de anunciar Jesus
Cristo, a TV foi sonhada há pelo menos 40 anos”
(http://www.TVaparecida.com.br/index_org.php - acesso em 04/06/2008). O projeto de
criação de uma TV do Santuário de Aparecida vinha sendo alimentado na década
seguinte à criação da Rádio Aparecida, em 1950. “O desejo guardado com carinho até
que chegasse a hora certa”, diz o prospecto da TV. E continua o relato do milagre: “a
‘plenitude dos tempos’ chegou a partir do ano 2000”, quando enfim a Fundação Nossa
Aparecida, mantenedora do sistema de comunicação dos Redentoristas, entrou com o
processo de pedido de concessão e outorga.
A Ordem dos Redentoristas, fundada em 1732, é especializada em
comunicação de massa e, hoje, encarregada de administrar o santuário de Nossa
Senhora Aparecida, na cidade de Aparecida. O Santuário de Aparecida é um verdadeiro
exemplo de como sistema midiático e eclesiástico não são tecnologias excludentes.
Anualmente, o Santuário recebe cerca de oito milhões de fiéis, em romarias ou, num
novo mercado emergente e amplamente explorado, no turismo estritamente religioso. A
TV Aparecida surgiu para “dar continuidade ao relacionamento com os devotos e
romeiros”, como salienta o diretor da TV, Padre César Moreira. E, para tanto, contou
com o apoio e consultoria de ninguém menos que José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,
o Boni, o ex-mago da TV Globo e membro do alto clero da TV Brasileira.
70
A programação da TV Aparecida é predominantemente de caráter religioso,
mas também apresenta programas de entretenimento, musicais, de variedade e
jornalísticos. Com essa programação voltada para a variedade, a direção da TV
Aparecida quer atrair patrocinadores e anunciantes – atualmente, a maior parte da
receita é conseguida com a comercialização de outros produtos de divulgação religiosa,
como livros, revistas e jornais. Um exemplo de como os Redentoristas mantêm o
contato com fiéis é a Revista de Aparecida. Com periodicidade mensal e distribuída
gratuitamente para os sócios contribuintes da Campanha de Devotos, a revista tem
tiragem de 490 mil exemplares. O sinal da TV, aberto, em UHF, pode ser sintonizado,
via satélite, em todo o território brasileiro, e também em sistema fechado, em
operadoras de TV a cabo. Uma história de persistência, articulação política - e fé em
milagres, pois, como diz ainda o prospecto no sítio eletrônico da TV, “tudo foi possível
porque a presença materna da Mãe Aparecida nunca deixou de abençoar tão importante
projeto” (ibidem).
Como se vê, a reação católica à investida midiática na TV dos não católicos
teve uma resposta demorada – mas bastante à altura. Isso talvez seja resultado não da
reação católica e sua investida no cenário televisivo – talvez seja muito mais resultado
de uma compreensão de que tal investida já era esperada e que, tendo acontecido,
colocou as coisas em seu devido lugar. Talvez por isso, para a maior parte dos
entrevistados, a concorrência para a principal TV ligada ao catolicismo esteja dentro do
próprio catolicismo. E, por outro lado, que as TVs abertas não sejam confundidas com
os programas não católicos por elas veiculadas. É muito plausível: o sistema televisivo
brasileiro é naturalmente católico.
6. O padre nosso de cada dia
É importante ressaltar que, a seguir, será feita apenas uma espécie de
inventário da telenovela brasileira, principalmente da Rede Globo de TV, notória
produtora e notável nessa produção. Tampouco é pretensão deste texto realizar uma
análise exaustiva. Serão apontadas apenas, ao longo da história da teledramaturgia
brasileira, as telenovelas que, de alguma forma, são exemplares para o empreendimento
aqui realizado.
24
Pode-se separar a história da telenovela brasileira em pelo menos três fases
24
As informações sobre telenovela e sua história têm como base as seguintes referências: FERNANDES,
1994; BRAUNE &RIXA, 2000; ALENCAR, 2002; MOYA, 2004; DICIONÁRIO DA TV GLOBO, v.1,
2003 e XAVIER, 2007.
71
– que coincidem com o avanço da telerreligião na TV e, obviamente, com a estrutura
social brasileira. Uma primeira, nas décadas de 1950 e 1960, pode ser chamada de
amadora, quando ainda havia poucos recursos técnicos e de pessoal, e grande parte das
telenovelas tinham seus roteiros importados. Uma segunda fase, inaugurada no final dos
anos 1960 e consolidada na década seguinte, pode ser chamada de profissional. Lá,
surgiram os grandes astros da teledramaturgia; a técnica dramatúrgica havia sido
dominada e escritores se profissionalizaram como telenovelistas. Tal profissionalização
teve seu ápice no decorrer dos anos 1970 e então uma nova fase, que pode ser chamada
de exportadora, dado o apuro técnico e a grande audiência alcançados, que tornaram o
Brasil referência global na produção de teledramaturgia. Aqui vale uma nova ressalva:
embora as TVs Record e Excelsior tenham se notabilizado na produção de telenovelas,
sobretudo a última, a pesquisa se limitou à Rede Globo e à Tupi. Apenas a retomada da
Record, já com a Igreja Universal como mantenedora, é avaliada. O mesmo vale para
outras redes de TV. A justificativa para o recorte e preferência pela Globo, se não foi
feita, está na óbvia hegemonia da emissora no setor – além de ser ela a principal
responsável pela naturalização do catolicismo aqui tratado.
São poucas as telenovelas brasileiras que não têm um representante da
Igreja Católica entre seus personagens e seria exaustivo enumerá-los todas. Isso ocorre
em todas as fases e, como veremos, apenas a partir dos anos 1980 - e em alguns raros
casos de novelas ecumênicas, em que há a presença de espíritas, principalmente, ou em
outras poucas novelas, geralmente consideradas “de época” ou de temáticas rurais, há
representação de membros de religiões afro-brasileiras.
Na primeira fase, amadora, a Tupi produziu Alma cigana – história do
cubano Manuel Muñoz Rico, adaptada por Ivani Ribeiro, que depois se notabilizaria por
escrever peças com temática espírita. Na trama, Irmã Estela é cercada de mistério: um
duplo seu a perturbou durante toda a novela. Eram gêmeas, sósias ou a Irmã era uma
mulher com dupla personalidade? Durante o dia ela é uma freira convicta. À noite
aparecia dançando num acampamento na pele da cigana Esmeralda. Ao final descobre-
se que eram gêmeas separadas na infância. Aqui, desde o título, percebe-se a
naturalização: a alma em questão era cigana e não católica. O exótico, a trama se
resolve quando se percebe que a cândida irmã de caridade não estava tomada pelo
demônio – era seu duplo.
Já na TV Globo, que, nessa fase, ainda iniciava sua aventura na
teledramaturgia – a Tupi, criada 15 anos antes, concorria com a Excelsior e a Record
72
pela hegemonia -, duas telenovelas podem ser destacadas de maneira categórica. Padre
Tião, exibida entre dezembro de 1965 e fevereiro de 1966, foi baseada em O Pequeno
Mundo de Dom Camilo, de Giovanni Guareschi. Escrita por Moysés Weltman e dirigida
por Graça Mello, narrava as desventuras de um padre numa cidade do interior. Na
trama, Padre Tião, vivido por Ítalo Rossi, era um “não-conformista” e vivia em
constante embate com o prefeito – comunista – da pequena cidade, desejoso, com seu
ateísmo, de ver os fiéis convertidos – ou dizimados. A novela do escritor italiano já
havia sido transformada em série, na Tupi, entre 1954 e 1957. Ganhou ainda
adaptações, também como série e na própria Tupi, em 1972, com o sugestivo nome de
Os cabeludos.
Ainda na Globo, outra novela com enredo importado foi O santo mestiço,
exibida em 1968. Escrita por Glória Magadan e dirigida por Fábio Sabag, era baseada
na história de São Martim Porres – vivido por Sérgio Cardoso -, um frade dominicano
nascido no Peru e canonizado pelo Papa João XXIII, em 1962. Foi o primeiro sul-
americano canonizado pela Igreja Católica.
Pode-se argumentar, com razão, que a teledramaturgia apenas reflete a
realidade cultural popular. E, nesse caso, com a TV ainda incipiente, não havia outras
manifestações religiosas na América Latina que não fossem católicas. Esse argumento
seria válido caso não houvesse, de fato, outras manifestações religiosas no continente.
Porém, pode-se ainda argumentar, como bem mostrou Martín-Barbero (2003), a
telenovela é a expressão da própria mediação cultural: resistência, mas igualmente
conformismo. Assim, seria o catolicismo, exclusiva e naturalmente, já que por séculos
colonizou a América Latina, representado nas novelas. Esse argumento, embora
perfeitamente aceitável, só reforça o que esta pesquisa pretende comprovar: quando do
advento da telerreligião, essa naturalização indica tão-somente que mídia e seus
produtos – inclusive os telerreligiosos – são uma tecnologia complementar à
eclesiástica, a despeito da resistência católica em aceitar a cultura midiática bem como
seu atraso, em relação às irmãs protestantes, em dominar o medium. Ambas, estruturas
eclesiástica e midiática, ao se juntarem, não se estranham e se alimentam na tarefa de
diminuir a potência humana. E, mais: ambas se forjam segundo o mesmo mito
universal: a lógica do capital, desmaterializado e deificado. Não fosse assim, à medida
que a sociedade assumisse – como se já não existissem outras formas de crença e outras
instituições religiosas – novas crenças e organizações religiosas, a telenovela passaria a
representar tal pluralidade. Mas não foi isso o que ocorreu.
73
A segunda fase, profissional, da telenovela brasileira, quando já havia uma
estrutura própria de novelistas, pouco a pouco deixou de lado as tramas em torno de
figuras religiosas – muito embora sejam raras as tramas em que não surja a
representação de uma celebração litúrgica católica. O esforço era, igualmente, pela
profissionalização da religião – ou que ela se esforçasse ora pela tolerância religiosa,
ora por sua secularização - tanto nas novelas da Tupi, quanto nas da Globo. Isso não
quer dizer que não houvesse, também nas representações teledramatúrgicas, uma
hegemonia católica.
Um exemplo isolado, mas contundente, e que pode ser apontado como o
marco da fase profissional da telenovela brasileira que então era inaugurada, é Meu pé
de laranja lima – que também marcava o início de um gênero, amplamente explorado
pela Rede Globo posteriormente: os enredos nostálgicos, romantizados, “de época” ou
“rurais” da telenovela “das 18h”. A novela, adaptada por Ivani Ribeiro do livro infanto-
juvenil homônimo de José Mauro de Vasconcelos, foi refeita, exibida e reexibida mais
algumas vezes, na TV Bandeirantes: reescrita em 1980 e 1999, com reexibições,
respectivamente, em 1989 – às 10h – e em 1996. Tal processo de replicação pode, sim,
mostrar a própria face da indústria de telenovelas no Brasil, bem como a carência
técnica da TV Bandeirantes, se comparada com a Tupi, em seus áureos tempos, e
principalmente a Globo, que, salvo pelo programa Vale a pena ver de novo
inaugurado, sintomaticamente, em 1980, e que significava um apontamento para a fase
exportadora –, poucas vezes lançou mão do recurso de reexibição em horário nobre.
Por outro lado, o número de vezes que Meu pé de laranja lima foi reprisada e refeita
mostra também o quanto o imaginário romântico e nostálgico permeou a cultura
brasileira. Ao mesmo tempo em que o Brasil perseguia a modernidade – e suas
telenovelas representavam bem esse desejo, com tramas urbanas e embates entre vilões
inescrupulosos, quase sempre ricos ou em busca de riqueza; injustiçados, geralmente
em núcleos “populares”; e justiceiros, geralmente ricos misericordiosos, num esquema
próprio do melodrama, codificado por Martín-Barbero (2003, 174 e ss) -, representava a
saída para a dureza da vida moderna pela via nostálgica. E, nesse esquema, a presença
católica era não apenas hegemônica – era exclusiva e naturalizada pelos núcleos de
autoridades eclesiásticas, secundárias nas tramas.
É o caso de Meu pé de laranja lima: a ternura vivida pelo menino Zezé, suas
descobertas existenciais eram permeadas pela presença constante – e natural – do afeto
e beleza tão bem encarnados pelos valores religiosos de padre Juca, bispo Don Carlos
74
Cruz, Madre Celeste e Irmã Teresa. Porém, embora a naturalização católica fosse e
permanecesse uma constante, a fase profissional da telenovela brasileira reservava à
Igreja um caráter secundário. A luta pela modernização da sociedade brasileira carecia
de uma posição bastante evidente em relação à religião e suas instituições – aqui,
claramente, tratava-se da Igreja Católica, que deveria ser matizada, abrir-se para a
secularização premente. Nesse caso, valores modernos passaram a ter presença
constante nas telenovelas, principalmente a tolerância religiosa. Nem assim, todavia, o
catolicismo desapareceu – ou surgiram nas tramas outras formas de religiosidade ou de
outras instituições religiosas. A tolerância, como valor moderno e secular, era
representada pelo ecumenismo ficcionalizado.
Na Tupi, os grandes marcos dessa fase talvez tenham sido as novelas
espíritas de Ivani Ribeiro: A viagem, de 1976, baseada nos livros E a Vida Continua e
Nosso Lar - ditados pelo espírito de André Luis a Chico Xavier; e O profeta, de 1977.
Ambas as novelas foram posteriormente reprisadas pela Tupi e regravadas pela Rede
Globo anos depois. É preciso ressaltar de antemão que a trama espírita, mesmo quando
não há a presença de autoridades eclesiásticas, reforçam sobejamente a moralidade
cristã: divisão entre bem e mal, forte moralidade do pastoreio. Porém, o mais
importante, para além do proselitismo espírita, é a própria presença do espiritismo como
o local em que há uma espécie de inversão platônica: agora, é no cotidiano em que os
milagres se efetuam, nos atos comezinhos. Vivemos não mais em uma caverna rodeados
de sombras que acreditamos realidade – agora, as sombras platônicas são a garantia de
um mundo menos inóspito, elas são a própria realidade. E então a secularização se torna
um mito a ser alcançado.
De qualquer forma, a telenovela se abria para além do catolicismo – ou,
mais propriamente, para um ecumenismo, ainda que marcadamente católico.
Ecumenismo, aliás, foi a marca de O profeta. Apesar do tema principal espírita, a
novela era ecumênica, tratando de várias religiões e crenças, e teve aparições da
apresentadora Hebe Camargo, do Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e
do médium Chico Xavier. De fato, o ecumenismo e a tolerância eram aspirações – o que
permitia que se representassem, numa mesma trama, a rainha Hebe Camargo, o espírita
Chico Xavier e a autoridade católica que, talvez, melhor representasse a cisão interna da
Igreja Católica e sua opção preferencial pelos pobres.
Um artigo, de 1978, da revista Movimento, da UNE, surgida da utopia da
classe média esclarecida brasileira, desde os Centros Populares de Cultura, assim
75
resumia, a partir do ecumenismo prometido de O profeta, o espírito secularizante que
permeava o sentimento brasileiro da época:
(...) A colocação de D. Paulo e Chico Xavier em cena é facilitada pela forma
como vem se desenvolvendo a novela. Por trás de cada um dos personagens
religiosos, e também do psiquiatra, está um assessor: pela Igreja Católica, o
padre Antônio Haddad; do lado do espiritismo e da parapsicologia, o
jornalista Herculano Pires; da psiquiatria, Paulo Gaudêncio, sem esquecer o
candomblé, Jamil Rachid. Na polêmica religiosa, o padre católico apresenta a
imagem mais nova e progressista da Igreja. Não por acaso, seu assessor, o
padre Antônio Haddad, é responsável pela Pastoral de Comunicações da
Região leste-2 da periferia de São Paulo.
Numa das cenas do tão esperado capítulo 94, D.Paulo entrega uma carta ao
Padre Olavo (Luis Carlos de Moraes), e diz: “Leve esta carta; nela está um
pedaço de meu coração”. Nas cenas seguintes, estão reunidos o Padre Olavo,
o jovem Daniel e seu pai numa sala de estar onde Daniel inicia a leitura da
carta, quando ocorre um corte e surge novamente no vídeo D.Paulo, para
falar da recém-lançada Campanha da Fraternidade: “O Grande pecado de
hoje é a injustiça e a exploração. Como pregadores da mensagem de Cristo,
nós temos a obrigação de ajudar nossa sociedade a tomar consciência da
gravidade desse pecado e orientá-la a descobrir o pano de Deus: a dignidade
da pessoa humana, a fraternidade, a igualdade e a justiça. Quantos só pensam
em subir na vida, espezinhando os outros? Quantos ganham salários
exorbitantes e a maioria de nosso povo mal consegue sobreviver com o
mísero salário mínimo? Meu bondoso padre (isto é, Daniel), neste tempo da
Campanha da Fraternidade pregue com muita coragem: Trabalho e Justiça
para Todos”.
“’O Profeta’ é a tentativa de se fazer uma novela ecumênica. Há um clima de
liberdade entre nós, os assessores e os textos estão sendo respeitados pela
autora”, diz o padre Antônio Haddad. E acrescenta que uma de suas tarefas
na assessoria “é mostrar ao grande público, através da telenovela, o padre de
hoje: o padre sem batina, não caricaturado, como geralmente acontece. O
espírita, na telenovela, sempre contesta a posição de uma Igreja que se
preocupa em abordar problemas sociais, políticos e econômicos, como base
para a sua pregação evangélica.”
“O padre tem que mostrar aos telespectadores a interpretação dentro da mais
renovadora teologia de hoje”. Cita um livro de autoria de D. Paulo em que ele
manifesta o desejo de que as telenovelas “registrem a vida real do povo
sofrido, ao invés dos valores frívolos da classe média, que estão por aí”. E,
conclui o padre Haddad: “esta é uma tentativa de resposta a um apelo feito
por D. Paulo no sentido de mudar a imagem do padre na televisão e no
cinema”. Por fim, adianta que “o objetivo da autora, no final da novela, é
contentar a todos. Todos sairão ganhando. Daniel perderá seu ‘dom’, pois ao
comercializar os espíritos, os oxuns o abandonarão.” Daniel não será mais
caso para seções de espiritismos, parapsicólogos, terreiros de candomblé,
psiquiatras e poderá, até, acreditar em Deus. No entanto, o destino de Daniel
será decidido, como em toda novela, pelo Ibope, por enquanto o deus mais
forte e influente da televisão brasileira (MOVIMENTO, 27/02/1978).
O ecumenismo de O profeta – a despeito das possibilidades de crítica – foi
um exemplo único da telenovela brasileira. A presença de D. Paulo Evaristo Arns foi
vetada pela ditadura (JORNAL DO BRASIL, 18/03/1978). D. Paulo teve, pouco a
pouco, seu terreno de atuação diminuído pelo Vaticano – ao mesmo tempo em que
surgia, forte, no Brasil, com apoio de Roma, a Renovação Carismática Católica. Essa,
76
porém, é uma outra história, que deverá ser explorada em momento e local oportunos.
Aqui, interessa que O profeta talvez seja um caso isolado no projeto modernizador
brasileiro, representado na telenovela. Como o artigo de Movimento questiona, tal
projeto não implica – ou antes, prevê – a supremacia da sacralidade capitalística – ou
autoritária, o que, veremos, apontam para o mesmo caminho. De mais a mais, a Rede
Globo já se consolidara, em 1978, como a potência de unidade nacional, sob os
auspícios da ditadura. E o projeto de secularização e modernização representado pela
telenovela, na Globo, se daria de forma bastante diferente: se havia outras formas de
religiosidade e presença de outras religiões além da católica, quase sempre isso se dava
de maneira caricaturada ou, no mínimo, folclorizada – quando não marcada e
ostensivamente ideologizada.
O autor Dias Gomes talvez tenha sido o que mais agudamente fez o Brasil
se enxergar além do catolicismo – mas sempre de forma caricatural. Até a censura de
Roque Santeiro, em 1975 – em 1985, a novela iria ao ar -, Dias Gomes - notório pelo
realismo fantástico de teor rural, em que as polêmicas em torno da Igreja Católica,
principalmente a relação entre ação política e celibato - levou ao ar folhetins que
tratavam manifestações populares em contraste ao “sisudo” catolicismo. Esse foi o caso
de Verão Vermelho, de 1970. Ambientada em Salvador, a telenovela fez surgir para a
TV festas típicas de rua, capoeira, candomblé e uma série de signos e símbolos de
cunho popular. Mas nada disso retirava do catolicismo sua naturalidade como religião.
Não obstante, o projeto modernizador colocava a Igreja Católica em uma posição de
tradição, ao passo que a trama se desenvolvia a partir de uma renovação dos costumes,
principalmente o divórcio, ainda não legalizado na época e, até hoje, condenado pelo
catolicismo.
O tema do celibato voltaria pelas mãos de Dias Gomes, ainda em 1970, na
novela Assim na terra como no céu. Na trama, o padre Vitor Mariano (vivido pelo
nascente galã Francisco Cuoco) abandona a batina para se casar com a jovem Nívea
(Renata Sorah), que é assassinada. Ele volta a usar a batina, mas, ao tentar desvendar o
assassinato, conhece Helô (Dina Sfat), filha de um milionário, e se apaixona por ela.
Mais uma vez ele abandona a batina em nome da felicidade.
Foi em Saramandaia, de 1976, todavia, um clássico, ainda hoje referência
para o realismo fantástico teledramatúrgico, que o projeto de secularização foi levado
adiante por Dias Gomes. Na novela, novamente, o padre católico – e apenas ele – é
invocado como representante da tradição. Uma análise de Dermeval Coutinho Netto e
77
Delfim Afonso Jr., publicada na utópica – e atenta – Movimento, em julho de 76 –
intitulada Cultura popular na TV ou a voz do dono -, critica a forma como a indústria
cultural, no caso a TV e a novela em questão, olha para a cultura popular a partir do
lugar da elite produtora:
A proposta temática da referida telenovela se põe exatamente na tentativa de
inaugurar esse novo ponto de vista, acreditando e tentando fazer crer que o
universo cultural do Nordeste, a vida do homem rural, as significações de
uma cultura popular brasileira, possam ser reproduzidas em suas conexões e
articulações reais pelos aparelhos da indústria cultural (NETTO & AFONSO
JR.; MOVIMENTO, 12/07/1976).
Segundo a crítica, Dias Gomes não fere a ideia de espetacularização e
sobretudo a imposição de cenários que a elite deseja enxergar – ou marcar:
Essa lógica de funcionamento dos mídia, que não é propriedade apenas deles,
se encontra diretamente relacionada com a ideia de um “arbitrário cultural
dominante”. Referimo-nos ao fato de que a sociedade elege e reproduz
através de suas práticas culturais determinados valores que dizem respeito
aos interesses das classes dominantes desta sociedade, e que se constituem
em significações dominantes que devem preencher o espaço social. A
formação de “um arbitrário cultural dominante” é, portanto, o resultado do
processo de imposição dos interesses das classes dominantes nos diversos
lugares da sociedade (ibidem).
Assim, o olhar para a religião nesse ambiente de folclore e “cultura popular”
demarca o desejo de um Brasil urbano, em que a religião só é aceita como folclore rural,
fantástico, no caso de Saramandaia – mas de qualquer forma controlável e contornável.
Isso não impede, todavia, que se perceba a hegemonia católica, ainda que no ambiente
de enquadramento desde o olhar da elite produtora da indústria cultural.
Não era só Dias Gomes que se empenhava na tarefa modernizadora pela
telenovela. Outra maga do gênero, Janete Clair, se notabilizou na tarefa. Porém,
diferentemente do colega, a escritora não se propunha a trazer o universo rural e
fantástico para as tramas – nem se preocupava em esconder a naturalização do
catolicismo. Esse foi o caso de Selva de Pedra, exibida de 1972 a 1973. A trama girava
em torno da morte de um playboy, no interior do Rio de Janeiro, pelo filho de um
pregador evangélico, Sebastião, o “Seu Sessé”, vivido por Mário Lago. É a saga do
evangélico que nos interessa aqui. “Seu Sessé” tem origem rural e isso é determinante
para caracterizá-lo como um fanático, um beato – ou como nos diz Arthur da Távola,
em duas crônicas publicadas em O Globo, em 1972, uma referência aos beatos do
nordeste atrasado, avesso da modernidade desejada (cf. TÁVOLA, O GLOBO,
28/12/1972 e 29/12/1972). Todavia, a tal comportamento fanático, seguiu-se o que
Arthur da Távola chamou de “cristianismo verdadeiro”: “Seu Sessé” agora era
78
equilibrado, muito próximo daquele de outro religioso representado: o padre Jaime,
vivido por Aldo Delano. A secularização do religioso, portanto, passa pela urbanização
e sobretudo pelo comportamento racional e tolerante – em uma palavra: previsível. E, o
mais importante, a nossa Igreja Católica já detinha tal civilidade. Eis mais uma vez o
catolicismo acima do bem e do mal, uma referência a ser seguida – como,
continuamente, depois, os Estados Unidos seriam referência.
Ainda nessa fase profissional da telenovela, houve a criação – e posterior
consolidação – de outro gênero, que tinha como referência o horário de exibição: a
telenovela bufa ou do absurdo, “das 19h”. A primeira do gênero foi Estúpido cupido, do
então jovem Mário Prata - que, depois, se consolidaria como um dos mestres desse tipo
de trama –, levada ao ar entre 1976 e 1977. O humor leve, de comédia de situações,
trazia uma trupe católica: Irmã Angélica (Elizabeth Savalla); Irmã Consuelo (Suely
Franco); Madre Superiora Encarnación (Ida Gomes); Padre Almerindo (Emiliano
Queiroz); Padre Batistão (Antônio Pantiño) e Frei Damasceno (Carlos Kroeber).
Literalmente, uma trupe: eles se envolviam na confusão cotidiana criada na trama,
própria do gênero que se inaugurava. E assim, a Igreja se modernizava, dialogava com
os novos tempos, se abria para o milagre cotidiano. Os religiosos – e sobretudo as
freiras, sempre vigiadas pelas tradicionais madres, as representantes retrógradas de um
tempo passado, mas que logo se dobrariam aos novos tempos – viviam a espiritualidade
que o mundo moderno oferecia: a espiritualidade, senão da carne, ao menos do corpo.
Foi exatamente essa a razão do louvor que o mesmo Arthur da Távola fazia à novela,
em sua coluna diária em O Globo:
(...) enquanto os dramaturgos mais velhos sempre desenham a Igreja que eles
conheceram (ou sofreram), dura, punitiva, implacável, fechada, sempre do
lado do poder, Mário Prata coloca na figura de padres e freiras jovens,
principalmente a Irmã Angélica (Elizabeth Savalla) não apenas o discurso
renovador de tempos mais abertos, como simpatia, uma extrema simpatia
pela figura do religioso e da religiosa, transformando-se aos olhos do grande
público em seres menos vedados ao convívio dos leigos, seres feitos de
dádiva e dúvida em função das quais optaram pela fé através do sacerdócio.
A simpatia com que um dramaturgo jovem, pessoa seguramente cheia de
ideias renovadoras na cabeça (desconheço-o, mas imagino) desenha
religiosos e religiosas em sua obra é um sintoma da força da mudança. E é
positivo para a Igreja. Ele chega até a idealizar em excesso a abertura à
mudança daquele grupo, quando faz a madre superiora se convencer tão
rapidamente das ideias pedagógicas da doce, boa e inteligente Irmã Angélica
(...)
Desconheço o que disso tudo pensam religiosos e religiosas. Mas desconfio
que por primeira vez nos defrontemos não com o clássico cura bondoso ou
freira milagrosa, oriundos de imagens destinadas ao proselitismo da Igreja,
79
mas com seres de carne e osso, que sabem descobrir o mundo através de uma
entrada em contato com o ser humano (TÁVOLA, O GLOBO, 16/1/1977).
É claro que não se pode perder de vista que o desejo de abertura da Igreja
Católica era pertinente – não apenas com o projeto de modernização que se desenhava,
mas também em um cenário sociocultural, político e econômico de ditadura militar, que
exigia uma postura mais adequada ao mundo, uma atuação mais efetiva dos religiosos.
No entanto, igualmente não se pode perder de vista a naturalização desse projeto em
relação ao catolicismo e principalmente como o diálogo modernização e religião se
dava, em benefício de outro projeto: o liberal burguês, que mais tarde iria patrocinar a
telerreligião, seguramente a forma mais alta de diálogo entre a modernidade - que a
década de 1970 desejava tão ardentemente - e o templo.
Essa fase da construção de uma tolerância religiosa ou de confrontação da
Igreja Católica com seu anacronismo teve fim com o surgimento da terceira fase da
evolução da telenovela – a exportadora. Agora, pouco a pouco, a naturalidade da
presença católica seria substituída por uma relação ambígua da instituição em relação
aos folhetins: quando se tratava das cenas e tramas referentes ao catolicismo, a Igreja
Católica era toda elogios. Por outro lado, e essa passou a ser uma situação hegemônica,
com a pregação de uma revolução dos costumes – principalmente em relação a
relacionamento homossexuais -, sempre havia quem, entre representantes católicos,
senão autoridades, visse nas telenovelas motivo da decadência moral e perdição
religiosa do mundo contemporâneo. E os católicos ganharam a companhia de crentes
não católicos, cada vez mais numerosos.
Duas telenovelas, no entanto, ainda ressoaram, nos estertores da fase
profissional e sua passagem àquela que prevalece ainda hoje, ora a tentativa de
representação de um ecumenismo tolerante e modernizador; ora representando a divisão
e o pecado da Igreja Católica. A primeira foi Os gigantes, de Lauro César Muniz, levada
ao ar entre 1979 e 1980. A cena em que o Padre Justino (Carlos Gregório) beija a mão,
em reverência, da mãe-de-santo de umbanda Maria (Esther Mellinger) causou polêmica
– da censura, mas também do público, que não admitia que um padre se rebaixasse a
ponto de reverenciar uma negra diabólica. A Globo ouviu os pedidos – e esclareceu que
não se tratava de reverência, mas de um gesto carinhoso. Obviamente, a polêmica se
estabeleceu justamente em razão da naturalidade com que o catolicismo era tratado,
representado e construído – inclusive para o público. E esse mesmo imaginário seria
explorado posteriormente pela telerreligião: agora, não se trata mais do catolicismo
80
hegemônico, mas do capitalismo líquido, que foi sendo naturalizado como lógica, como
cultura, como forma de vida.
Outro folhetim, muito marcante, que fazia ressoar os tempos globais da
telenovela, foi Roque Santeiro. Em 1975, em comemoração aos 10 anos de existência da
TV Globo, Dias Gomes começou a escrever A Saga de Roque Santeiro e a incrível
história da viúva que foi sem nunca ter sido. A novela, então dirigida por Daniel Filho,
já tinha 10 capítulos editados e quase 30 gravados, quando, no dia de sua estreia, teve
sua exibição proibida pela censura. No Jornal Nacional do dia 27/08/1975, o locutor
Cid Moreira leu um editorial escrito por Armando Nogueira, anunciando o veto. A
censura justificava: "A novela contém ofensa à moral, à ordem pública e aos bons
costumes, bem como achincalhe à Igreja".
Para além do simples autoritarismo, a censura mostrava a completa ausência
de critério do regime armado brasileiro – e também a ligação entre Estado, autoritarismo
e Igreja Católica. A rigor, a trama só reforçava as posições de igreja e ditadura: no
contraponto entre o conservador Padre Hipólito (Paulo Gracindo) e Padre Albano
(Cláudio Cavalcanti), chamado de "padre comunista", a novela abordou um tema em
voga na época: a divisão da Igreja Católica entre tradicionalistas e adeptos da Teologia
da Libertação. Progressista, Padre Albano lutava pelos trabalhadores e contra o mito de
Roque Santeiro. Porém, ao final, a luta mundana de padre Albano lhe reserva o que,
certamente, lhe reservaria o Vaticano. Em meio aos perigos do mundo, o “padre
comunista” se apaixona carnalmente – e acaba optando pelo mundo e pela carne. Aqui,
o recado parece claro: o corpo, morada de Deus, só deve ser evidenciado como
louvação. A Igreja não deve se meter com assuntos terrenos – pois isso é coisa ou do
demônio, ou do materialismo mais chinfrim. Vitória do conservadorismo; vitória da
religião do corpo – vitória do capitalismo.
A partir daí, com a Rede Globo reinando sozinha, desde o fechamento da
Tupi, em 1980, o ciclo de modernização se tornava completo – então as telenovelas
poderiam partir para a construção exclusiva do reino capitalístico. Isso não quer dizer
que a presença religiosa não se fazia sentir, contundente – inclusive com a contínua
naturalidade do catolicismo. Agora, porém, uma nova conjuntura social, em relação ao
campo religioso, se formava no Brasil: não haveria como negar o crescimento dos não
católicos no País. Ainda assim, havia a naturalização do catolicismo. É o caso de Corpo
a corpo, de Gilberto Braga, levada ao ar entre 1984 e 1985. Na novela, a presença do
diabo, segundo o esquema melodramático, é caracterizada como o responsável – ou, se
81
não, a figura emblemática – do capitalismo a qualquer custo. As figuras do cristianismo
católico, a quem recorrem os personagens todas as vezes que o diabo trai um pacto,
apontam para a naturalização da Igreja Católica – e prenunciava a guerra dos deuses
entre catolicismo, a própria Globo e os televangelistas não católicos, capitaneados pela
IURD e sua fixação com o diabólico cotidiano.
Outras vezes, houve o reforço de que padres progressistas estão na verdade
afastados de Deus – e quase sempre se viam entre a paixão carnal e a Igreja, com
benefício da primeira. É o caso das novelas Renascer (1993), em que Padre Lívio
(Jackson Costa), um progressista, apaixonou-se por Joana (Teresa Seiblitz); O fim do
mundo (1995/96), em que Frei Euzébio (Norton Nascimento), negro, ousou assumir seu
amor por Maria de Socorro (Tatiana Issa); ou A indomada (1997), em que Padre Joseph,
associado à Teologia da Libertação, é um beberrão, com frouxidão moral, despreparado
para as coisas do alto.
Há ainda as telenovelas que, como dito, buscavam o que se convencionou
chamar de merchandising social, com campanhas por tolerância de todo tipo: a
homossexuais, a portadores de necessidades especiais, contra o racismo.
25
Não obstante,
diante da renovação dos costumes, a reação de grupos religiosos sempre foi barulhenta.
Foi o caso, apenas para citar alguns exemplos, das telenovelas Torre de babel
(1998/1999), em que a reação contrária de membros da Igreja Católica e do movimento
Tradição, Família e Propriedade obrigou o autor Sílvio de Abreu a matar o casal de
lésbicas vivido por Cristiane Torloni e Sílvia Pfeifer. Há ainda Porto dos milagres
(2001), que trazia referências ao Candomblé que causaram reação dura contra sua trama
– e não só de grupos católicos -; Estrela guia (2001), que trazia referências a
esoterismo; e O anjo caiu do céu (2001), que tratava, como o próprio título sugere, da
encarnação de anjos e sua derrocada diante dos prazeres do mundo – capitalístico. Entre
todos os telenovelistas excomungados, principalmente por grupos e autoridades
católicas, o maior deles talvez seja Manoel Carlos. Suas novelas, a despeito de serem
profundamente conservadoras, sempre resultam em xingamentos de membros, grupos
ou fiéis da Igreja Católica – mas não só dela -, que acusam suas tramas de “doentias”,
“propagadoras de valores doentios” e “desestruturadoras da família.”
25
Interessante anotar aqui que as telenovelas, a despeito de sua campanha civilizatória pela tolerância,
jamais deixaram de alimentar o que Renato Janine Ribeiro chamou de “afeto autoritário”: um tipo de
relação em que, cotidiana e naturalmente, os “de baixo” eram humilhados – e aceitavam tal humilhação
com naturalidade crua, o que acaba por reforçar o autoritarismo latente da sociedade brasileira. Sobre
isso, RIBEIRO, 2005
82
As reações de grupos religiosos se tornaram mais constantes a partir de
meados da década de 1990 e se aprofundaram dos 2000 em diante. Não por acaso,
foram esses anos os marcantes para o crescimento da telerreligião no Brasil. Isso pode
indicar que se trata de uma reação, com as mesmas armas, contra o que instituições e
grupos religiosos consideram degradação moral do mundo. Um olhar atento, no entanto,
nos permite verificar que ambos, degradação moral e telerreligião, pertencem ao
mesmo fenômeno. Ao menos se se trata do catolicismo e sua reação teomidiática: a
despeito da reclamação católica contra as telenovelas, a Rede Globo aproveitou sua
hegemonia na teledramaturgia para tentar minar ou neutralizar o crescimento não
católico.
Além da já tratada minissérie Decadência, de Dias Gomes – que teve como
consequência o evento do chute na santa – e de América, já em 2005, novela de Glória
Perez que trazia a despudorada e esquizofrênica evangélica, encarnada pela voluptuosa
Juliana Paes, a Globo, logo em 1989, ano da compra da Record pela Igreja Universal do
Reino de Deus, fez do pastor Hilário, vivido por Jorge Dória, um inescrupuloso e
infame religioso, que, além de fornicador, se mostrava ocupado apenas com o engodo
dos fiéis para seu próprio enriquecimento.
* * *
Se a Globo defendia tão ostensivamente o catolicismo – a despeito dos
ataques de grupos católicos -, a Record, depois de sua consolidação, resolveu atacar
com a mesma moeda. Entre 1997 e 1998, a rede ligada à IURD produziu uma série
chamada Caminhos do coração, com novelinhas de temática especificamente religiosas.
A filha do demônio e Olho da terra, ambos de 1997, apostavam na mensagem de que o
demônio era cotidiano e presente na vida de todos – e que só a IURD e seu
pragmatismo poderiam ser a salvação. Janela para o céu, ainda em 1997, tinha em sua
trama ainda elementos de bruxaria, mas agora acrescentava as drogas e o alcoolismo
como provas do mal diabólico. Em Velas de sangue e A sétima bala, ambas em 1997,
Alma de Pedra e Do fundo do coração, de 1998, há personagens degradados,
marginalizados, excluídos, que só encontram paz em Jesus – da Igreja Universal do
Reino de Deus. Houve ainda as tramas com histórias bíblicas exibidas na Record, como
O desafio de Elias e História de Esther. O ano de 1998, no entanto, marcou a virada
secular da Record. A partir daquele ano a emissora deixa, paulatinamente, de transmitir
conteúdos exclusivamente religiosos em sua programação.
De nada adiantou a guerra da Globo contra o crescimento da IURD. Em
83
2010, a Record é a segunda maior rede de televisão do Brasil e uma real ameaça à até
anos atrás intocável hegemonia Global. Por outro lado, a reação católica foi efetiva e, se
não ameaça o poderio secular televisivo, certamente seu crescimento, sobretudo em
relação à TV Canção Nova e, em razão da persistente naturalidade católica no Brasil,
bem como a guerra, ainda em vigor, entre a católica Globo e a evangélica Record – que
mantém uma programação quase completamente secular -, aponta para uma confusão
entre telerreligião ostensivamente proselitista e outra forma de proselitismo: a da
divindade capitalística. Nessa guerra santa particular, em que a Igreja Católica tem o
apoio da Rede Globo, surge, com efeito, a guerra de deuses: sobre a moralidade
fragmentária do secularismo capitalístico e a moralidade monádica da eternidade do
espírito telerreligioso está o sagrado capitalístico. Antes, porém, de compreendermos
melhor tal sagrado, será necessário percorrermos a teologia da comunicação católica e
verificarmos se nela há indícios, a despeito da firme posição católica contra o
capitalismo, de, ao acender uma vela para Deus, estar glorificando o diabo.
84
CAPÍTULO II
ENTRE O PÚLPITO E O AREÓPAGO:
O pensamento e a prática de comunicação católica
Se quiserdes e me ouvirdes,
comereis o melhor desta Terra
( Isaías 1:19)
Este capítulo realiza uma reflexão a partir de uma recapitulação das políticas
de comunicação da Igreja Católica – ou antes, do pensamento católico sobre o
fenômeno da midiatização moderna, especialmente aquelas voltadas para o uso e a
compreensão da mídia televisiva. Aqui, são analisados documentos da Igreja advindos
do Vaticano, do Celam – Conselho Episcopal da América Latina e do Caribe, para que
se compreenda um pensamento latino-americano, e no caso brasileiro, documentos
sobre a comunicação, e em especial sobre a TV, da CNBB. Como se verá, a orientação
da própria hierarquia da Igreja, os estudos sobre a comunicação e a relação entre a
Igreja e a midiatização foram fundamentais para alimentar o pensamento eclesiástico
sobre o setor, inclusive para uma teologia da comunicação.
26
A Igreja Católica sempre manteve uma posição ambígua em relação aos
meios de comunicação. Até o início do século 20, em sua luta contra toda forma de
secularização, a postura da instituição era restritiva: aos profissionais de propagação e
aos meios – e estamos tratando da imprensa -, que deveriam ser controlados,
censurados, ter sua circulação evitada. Com o surgimento dos modernos meios
eletrônicos de comunicação, tal postura se manteve, até meados do século 20. Pouco a
pouco, para o Vaticano e para a hierarquia eclesiástica, os media foram incorporados no
discurso católico como valores positivos, capazes de gerar a unidade universal –
católica mesmo – entre os povos. Porém, ainda assim, mantinha uma política de
distanciamento providencial: criticava os meios mundanos, e se esforçava, ainda que
timidamente, por manter seus próprios meios. Já em 1931, o Vaticano inaugura sua
própria rádio, mas só treze anos depois o papa, então Pio XII, fez seu primeiro
pronunciamento. Na TV, houve um pronunciamento papal em 1949 – e a tecnologia
26
Entre as muitas obras de autoridades eclesiásticas e leigos, destacam-se aqui CARRANZA, 2000;
DALE, 1972; DIEZ, 1997; GOMES, 1995; NEOTTI, 1994; SOARES, 1988; PESSINATTI, 1998;
PUNTEL, 1994 e 2005.
85
ainda se esforçava por consolidação. Isso mostra que haveria uma mudança de postura
da hierarquia eclesiástica em relação aos meios. A questão é saber: por que houve tal
mudança? E quais foram as suas consequências?
Tratava-se de fato de uma nova política: em vez de formular index, comuns
ainda hoje – embora de forma a parecer orientação moral, sem, portanto, a ameaça de
excomunhão - em relação por exemplo a filmes, em que uns são julgados edificadores e
indicados à assistência cristã, e outros, degradantes, são proibidos -; em vez de formular
index, ao mesmo tempo em que mantinha rigidamente o discurso sob tensão, a Igreja
Católica começava a perceber que a estratégia deveria ser modificada. Como os meios
de comunicação só faziam crescer sua influência sobre uma nova entidade, a opinião
pública, a Igreja iniciou um processo de confecção de práticas concatenadas para
também interferir nessa opinião pública – formada grande parte por profissionais da
comunicação. Eles e “cristãos de todo o mundo” eram conclamados a aproveitar a
grandiosa possibilidade de união dos povos inaugurada pelos meios de comunicação.
Tal encaminhamento redundou no primeiro documento oficial da igreja que
claramente tratava da comunicação e dos “meios modernos”: Miranda Prorsus, sob o
pontifício de Pio XII, de 1957, que, além de identificar os valores positivos dos novos
meios – se usados para o bem da dignidade humana – e realizar, a partir dessa
constatação, a habitual crítica à forma como os meios serviam à degradação moral,
aponta, pela primeira vez, para a necessidade de formação crítica dos receptores, de
modo que,
ao assistir de maneira consciente e não passiva aos espetáculos, [isso] fará
diminuir os perigos morais, permitindo ao mesmo tempo ao cristão aproveitar
de todos os conhecimentos novos do mundo para elevar o espírito até à
meditação das grandes verdades de Deus (MIRANDA PRORSUS, 9).
Miranda Prorsus foi fruto de um intenso debate interno na Igreja Católica –
que saiu do puro reacionarismo, para uma compreensão mais adequada à inevitabilidade
e complexidade da realidade forjada pelos meios de comunicação. O ponto alto dessa
evolução foram, sem dúvida, os documentos surgidos do Concílio Vaticano II: o Inter
Mirifica, de 1963, e seu desdobramento em Communio et Progressio, de 1971. Nele, a
discussão passava do controle, limitação e proibição para a participação na cultura da
mídia. Ao poder dos meios, a igreja era conclamada a se contrapor com seus valores – e
para tanto, apontava para formação de líderes e profissionais católicos da Comunicação
Social.
E assim o debate se deu em torno de duas imagens, que surgem de forma
86
recorrente nos documentos oficiais da Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, para o
campo da comunicação social e seus meios de difusão, e são exemplares dessa busca
por uma teologia e teoria da comunicação católicas: o púlpito e o areópago. A primeira
imagem traz consigo a ideia de uma comunicação assimétrica, de sentido único, de um
emissor para um conjunto de destinatários. Trata-se, portanto, de um modelo linear de
comunicação. Já a imagem do areópago evoca o conceito de espaço público e também o
papel que os meios massivos de difusão simbólica nele ocupam, como propositores de
temas e formas, e de construtores do que ocorre nesse espaço público mediado. Assim,
o modelo de comunicação proposto confronta os conglomerados midiáticos, mas não
mais pelo controle e a restrição.
O que fundamenta a imagem do modelo do areópago é a ideia de
comunicação em rede, de mediações por que os receptores significam os conteúdos
simbólicos midiáticos. Ao mesmo tempo, e haja vista a crítica de tal modelo às práticas
das corporações midiáticas, devem-se preparar os receptores para o bom e consciente
uso dos meios. Perceba-se desde já a proximidade entre as duas posições que se julgam
tão distantes: aqui, o areópago é transformado em púlpito, uma vez que, como se verá,
desde sempre houve a identificação de que o perigo para a Igreja Católica era iminente
desde a chegada dos meios massivos – imprensa incluída. Vê-se que não há exclusão
entre púlpito e areópago porque a Igreja entende que participa da cultura midiatizada
sendo o que ela sempre foi. Se uma nova postura é prevalecente hoje, aquela que não
toma os meios massivos como instrumentos, há nessa tomada de consciência duas
possíveis respostas: não há dúvida de que os estudos de católicos, desde a década de
1980, forçaram a hierarquia nesse sentido, mas parece haver uma compreensão da
inevitabilidade dessa cultura e sua hegemonia. Então, de duas uma: ou compreender-se-
ia a nova cultura midiática, ou haveria contínua perda do prestígio acumulado em quase
dois mil anos e, consequentemente, de ovelhas; ou dever-se-ia assumir a nova cultura –
mas isso não significa abrir mão daquela posição de outrora. Assim, numa segunda
leitura possível do fenômeno, embora confrontando duplamente os dois – os meios e o
sistema cujos valores transmitem, o capitalismo -, houve a percepção de uma simbiose
entre duas vidas que apenas aparentemente são estranhas, já que ambas, hegemonia dos
media burgueses e aquela, da Igreja Católica, não modificam o humano que a rigor
forjam.
Por isso mesmo, se os documentos da Igreja para a comunicação social
tentam superar o modelo teórico do púlpito e avançar para o modelo do areópago, isso
87
não significa que as práticas da hierarquia católica não mantivessem uma postura
ambígua em relação aos meios e à cultura midiática. Tem prevalecido, tanto no espaço
eclesiástico, quanto no eclesial, aqui compreendido sobretudo por grupos religiosos,
“uma interpretação demasiado utilitarista ou instrumentalista” da comunicação social,
marcada por preocupações éticas ou morais e de incidência pastoral (DIÉZ, 1994: 46-
62): o uso adequado; a ética dos media; a relevância destes na evangelização, entre
outros aspectos. E isso pode ser comprovado pelos documentos vaticanos que,
sobretudo a partir, sintomaticamente, de 2000, trouxeram mensagens pela criação e
consolidação dos meios católicos.
Eis então inaugurada uma nova fase: da necessidade de se pensar uma
teologia da comunicação, muito além da pura instrumentalização dos meios – embora os
meios ainda fossem considerados instrumentos, para o bem ou para o mal. Em
Communio et Progressio (1971, n.1), há a proclamação de que “a comunhão e o
progresso da convivência humana são os fins primordiais da comunicação social e dos
meios que utiliza, como sejam a imprensa, o cinema, a rádio e a televisão”. A mesma
ideia aparece de forma explícita no documento “Ética nas Comunicações Sociais”, do
Conselho Pontifício para o setor: “A pessoa e a comunidade humanas são a finalidade e
a medida do uso dos meios de comunicação social” (Ética nas comunicações sociais,
21).
Ainda assim, percebe-se que permanece um certo mal-estar da Igreja em
aceitar os media. Isso talvez explique a posição ambígua, mas, sobretudo, talvez, seja
explicada pelo fato de ser a própria igreja um medium – para a revelação – que, durante
séculos, utilizou os suportes de que dispunha e que monopolizava – o códice, as
imagens sacras, os vitrais, os cânticos, as procissões e a própria edificação eclesiástica,
cuja presença indicava a vitória da tarefa paulina de inculturar o gentio, cumprindo a
ordem de Jesus: “Proclamai por cima dos telhados!” (Mt. 10, 27), mas também a tarefa
política do Império Romano.
Os novos tempos, porém, trouxeram ameaças ainda mais agudas: a disputa
pelo mercado religioso, antes limitado ao campo do impresso, que rapidamente – mas
não sem tensões, mais uma vez – foi dominado pela máquina eclesiástica – foi para o
campo dos media eletrônicas, de alcance infinitamente maior. Isso exigiu uma profunda
– e traumática – modificação. A “marquetização da religião” (cf.: LIBANIO, 2002, p.
30) deu origem ao catolicismo midiático. Duplo trauma: o marketing e a mídia. O
segundo, pela disputa de suportes de transmissão simbólica; o primeiro, pelo perigo de
88
ser confundida com as “seitas” neopentecostais e sobretudo por ter de admitir uma
ferramenta do capitalismo para sua sobrevivência.
Os documentos eclesiásticos, por meio dos quais a Igreja Católica
demonstra sua posição oficial sobre os mais diversos assuntos, são mais de caráter
doutrinal-institucional e de orientações pastorais, e têm quase sempre um caráter
normativo para o corpo da Igreja. Como esta pesquisa se interessa pela televisão, a
atenção em relação às declarações e as políticas de comunicação católicas tentarão se
cercar do debate sobre esse medium. Ver-se-á como de fato existe, no discurso
eclesiástico, um movimento pendular: ora de profunda negação e condenação dos meios
audiovisuais, especificamente da TV, ora um verdadeiro fervor no sentido de conclamar
para a atuação mais agressiva de seus membros para a utilização dos meios e, assim,
para a qualificação da cultura criada por eles. Note-se então que entre o púlpito
tradicional transferido ao eletrônico e o areópago, o pensamento católico não se
contradiz.
Isso posto, a seguir serão abordadas, nos documentos da Igreja Católica
sobre as políticas para o setor das comunicações sociais, o pensamento eclesiástico
sobre a comunicação social, atentando para o medium TV. Para melhor organização,
serão separadas as instâncias a partir das quais se explicitam as políticas de
comunicação da Igreja Católica: primeiro a partir do olhar desde o Vaticano, como
centro da estrutura eclesiástica católica; segundo, a partir do contexto eclesiástico
latino-americano e, por último, procurando, no contexto eclesiástico católico brasileiro,
as conjunções e disjunções que apontem para um caminho do catolicismo brasileiro ou,
ao contrário, para a manutenção da universalidade também nas políticas de
comunicação, o que aponta para o fenômeno da Canção Nova e seu pastoreio
midiatizado.
1. Entre as maravilhas: o pensamento comunicacional do Vaticano
As transformações do pensamento vaticano sobre os meios de comunicação
modernos se deram quase na mesma velocidade com que as transformações do
equipamento de produção, reprodução e circulação simbólica no século 20 se
processaram. Não se pode, portanto, acusar a Igreja de elefante branco nesse aspecto:
para uma instituição de 2000 anos, as respostas eram verdadeiramente ligeiras. Afinal,
ela teve um treinamento de 500 anos, desde que Gutemberg explodiu o monopólio do
simbólico exercido pelas autoridades eclesiásticas católicas.
89
Ainda assim, até que a Igreja Católica percebesse a inevitabilidade das
novas máquinas simbólicas levaria um tempo. Com a revolução da imprensa, a Igreja
começou a perceber que forças políticas, econômicas e culturais emergentes
conseguiam romper com facilidade seu controle hegemônico sobre os processos de
divulgação e comunicação na sociedade europeia. Desde o século 13, os manuscritos
circulavam com alguma liberdade e fora do controle eclesiástico. Peter Burke (2004)
aponta para os circuitos de informação e comunicação que foram gerados, estreitamente
ao avanço do comércio e ao qual fez só se aprofundar, até o século 16 e suas astutas
odisseias d’além-mar; o século 17 e sua industrialização; e o século 18, com a
circulação intensa dos periódicos impressos, a criação dos clubes literários daquele
fenômeno decorrente – que foi bem identificado por Habermas (2003) como a mudança
estrutural da esfera pública – e como esse processo antecedeu a derradeira batalha
contra a tradição e redundou nas revoluções burguesas de antanho. Máquina de
circulação simbólica de outros tempos, de outros modos de produção, até quando pode,
a Igreja da época tentou evitar a circulação simbólica bancada pela burguesia. A
despeito da velocidade com que as mudanças se davam, é difícil exigir que uma
instituição se mova com a velocidade das mudanças. Como nos lembra Ismar de
Oliveira Soares (SOARES, 1988), a Igreja procurava se cercar de seu populus, de modo
a condenar-lhes o consumo de material imoral e ofensivo à fé. Essa era uma prática que,
embora tenha sido matizada no decorrer do século 20, até que fosse praticamente extinta
depois do Concílio Vaticano II, volta, como um fantasma recalcado – porque ninguém,
nem mesmo a Santa Igreja, é capaz de saltar sobre a própria sombra. Nesse caso, o
fantasma que persegue carece, todavia, do poder de outrora. Como vimos no capítulo
anterior, houve reações – é verdade que muito mais de religiosos do que da hierarquia
da igreja – aos conteúdos que feriam a moralidade católica nas telenovelas. Se não se
trata de censura, isso só não ocorreu por absoluta falta de oportunidade e poder.
Veremos: a saída é controlar, desde o púlpito, segundo a ideia de areópago.
Inter Multíplices - Entre múltiplos -,
27
publicado no pontificado de
Inocêncio VIII foi, já no século 15, o primeiro documento eclesiástico sobre a moderna
mídia – a então nascente imprensa. Como seria habitual a partir de então, o documento
estabelece um receituário sobre o novo medium: a maneira de usá-lo e a ameaça de
censura aos escritos que contrariassem a moralidade da Igreja. A Santa Inquisição,
27
Sobre isso, cf: OLIVEIRA, 1988; PUNTEL, 1994.
90
criada desde o século 13, só ganhou corpo e foi efetivada justamente no século 15
(BERNARD, 2008; GONZAGA, 1994). Embora não haja uma relação que se possa
dizer imediata entre os dois fenômenos, trata-se de eventos irmãos: o recrudescimento
do tribunal da inquisição, quando da retomada, aos mouros, da Península Ibérica pelo
mundo cristão. Anos mais tarde, haveria a expansão do mundo cristão na aventura
asiática, americana e africana, além do advento da contrarreforma. Aqui, vê-se,
novamente, a ambiguidade da posição católica: ao mesmo tempo em que lutava contra
os avanços proporcionados pela burguesia que se fortalecia, a ela se unia, conforme o
sabor de sua autopreservação.
O desdobramento – ou recrudescimento – desse tipo de atitude logo seria
sentida, com a gradual perda de poder simbólico da Igreja central como consequência
do descentramento provocado pelos impressos circulantes. Já nos primeiros anos do
século 16, o papa Leão X publica a constituição Inter Sollicitudines - Entre nossas
preocupações -, na qual, como o próprio nome indica, a Igreja assume uma autoridade
normativa – que, a rigor, já começava a perder – e decreta penalidades para os que
descumprirem a carta magna. Se é verdade que a temporalidade ainda se arrastava no
ritmo da tradição católica medieval, o mundo cristão já começava a sentir os efeitos da
aceleração da experiência do tempo com os novos canais de produção – simbólica e
material – surgindo e se aperfeiçoando (BURKE, 2004; HUBERMAN, 1986). É tanto
que, rapidamente, já em meados do século 16, a Igreja Católica, impotente diante do
quadro de circulação de material simbólico, com a imprensa tendo sido transformada
em um negócio pela burguesia, mas detentora do lastro simbólico multissecular, editou
o index canônico de obras e autores proibidos de serem editados e lidos.
A Igreja Católica já não era a único medium de propagação simbólica – um
novo, de uma nova classe, e com um novo evangelho, surgia. E, com eles, pouco a
pouco o poder católico diminuía – inclusive, como desdobramento e configuração do
novo quadro histórico, novas agremiações religiosas que, se não eram adeptos da nova-
boa-nova, tampouco lhe eram contrárias. Só restava à Igreja, então, um caminho: a
resistência. E ela o fez, com as armas de que dispunha: como é próprio de toda e
qualquer instituição que concentra poder, a Igreja Católica continuou a lançar mão da
censura. No século 17, o papa Gregório XV criou a Congregação para Propagação da
Fé, para reforçar e identificar a posição católica, segundo o princípio de sua
evangelização. Nos séculos seguintes, o espírito se censura se manteve: na encíclica
Mirari Vos (1832), Gregório XVI condena a liberdade de imprensa.
91
O agitado século 19 também reservou surpresas. A essas alturas, o
capitalismo estava nas últimas fronteiras para a sua consolidação e o mundo católico
precisaria, mais uma vez e lançando mão de seu imenso cofre de poder simbólico, de se
resguardar e diferenciar. Pio IX foi o primeiro papa que identificou a necessidade de
distinção católica e, ao mesmo tempo, do diálogo com o mundo em transformação. Na
encíclica Quanta Cura - Com quanto cuidado -, recusa qualquer conciliação com a
modernidade liberal, ao mesmo tempo em que condena de forma peremptória as
sociedades secretas, a maçonaria e o comunismo. Demarcação de território contra os
sagrados concorrentes. Em outra frente, porém, o papa mais longevo da história católica
reafirmava sua instituição como universal, mas agora perseguia a universalidade do
capitalismo internacional. Pio IX restabelece a hierarquia católica na Inglaterra,
Holanda e Escócia, mundo então tomado pela reforma protestante; na França, condena
as doutrinas galicanas, que cindiam a igreja por dentro; envia missionários ao polo
norte, à Índia, à Birmânia, à China e ao Japão e cria um dicastério para as questões
relativas aos orientais. Entre as medidas de Pio IX está a publicação do Syllabus
errorum, no qual condenou os erros do modernismo. Um desses erros seria justamente a
liberdade de pensamento e opinião – mas, ao mesmo tempo, fez circular o jornal
Osservatore Romano (SOARES, 1988). Aqui se delineava a justaposição entre púlpito e
areópago: não podendo contrariar as conquistas seculares, restava à igreja, do alto de
seu lastro simbólico, participar da nova cultura para qualificá-la. Não fosse pelo termo
intempestivo, Pio IX poderia ser considerado o primeiro papa pop, antecedendo em um
século João Paulo II – mas certamente ele compreendeu, inclusive por convocar o
primeiro Concílio Vaticano e fazer publicar a Dei Filius, sobre a fé católica, a nova
dinâmica cultural do mundo: sua globalização. A Igreja estava preparada, a seu modo,
para o novo século. Papa que sucedeu Pio IX e seguindo-lhe a trilha aberta, Leão XIII
procura uma conciliação da Igreja com a imprensa. Mas, como seria previsível, persiste
o espírito de desconfiança e intolerância da Igreja frente aos novos meios de propagação
simbólica.
O pontificado de Pio XI, todavia, a despeito da desconfiança, marca
novamente a ambiguidade católica em relação aos media e à sua cultura. Interessado no
poder de propaganda da rádio, Pio XI inaugura, em 1931, na presença de seu inventor,
Marconi, a Rádio Vaticana e veicula, em latim e para todo o mundo, a mensagem Quid
arcano Dei. Foi também Pio XI quem assina com o governo de Mussolini o Tratado de
Latrão, que garantia a soberania do Estado do Vaticano. A Igreja Católica
92
definitivamente se modernizava – e se colocava efetivamente como um modelo a par
dos modelos que se desenhavam: publica a encíclica Quadragesimo anno, motivado
pela depressão de 1929 e por ocasião dos 40 anos da encíclica Rerum Novarum, de Leão
XIII. No documento, reitera a condenação ao comunismo e o considera inteiramente
incompatível com a prática e a fé católicas, bem como condena os abusos
do capitalismo e do livre mercado. Ainda que não fosse consciente, Pio XI se
posicionava contra dois sagrados concorrentes. Os meios de propaganda da ideologia
burguesa, todavia, eram considerados neutros, uma dádiva de Deus, uma oportunidade
para o evangelho cristão e sua doutrina social, edificada e organizada no pontificado de
Leão XIII. Os novos meios, que surgiriam um após o outro a partir de então, seriam não
apenas úteis, mas imprescindíveis – ainda que, sabiamente e demonstrando nova
ambiguidade, o pensamento católico procurasse manter uma distância crítica dos novos
meios de propagação simbólica. Ou seja: havia necessidade de utilizá-los como meios,
mas a cultura por eles criada não estava sob seu controle. Utilizá-los significava,
segundo a doutrina católica, qualificar essa nova cultura. Novamente há o casamento
entre púlpito e areópago.
O exemplo do cinema é sintomático nesse sentido. Apesar de ter se
posicionado contrariamente à exibição de filmes no interior das igrejas – em uma
intuição espantosa, uma vez que não se trata apenas de uma prática de imposição de
limites, mas de distinção dos sagrados – o cinema interessou particularmente ao papa
Pio XI. O papa, em sua encíclica Vigilanti Cura, de 1936, e fazendo referência à Legião
da Decência, formada por padres e leigos nos EUA com a finalidade de combater a
produção de filmes moralmente prejudiciais à doutrina católica (DARIVA, 2003),
destaca o poder do cinema como tecnologia de comunicação,
mas adverte contra os
perigos dessa nova tecnologia e chama pela necessidade de seu controle moral. Diz o
documento:
19. O poder do cinema provém de que ele fala por meio da imagem, que a
inteligência recebe com alegria e sem esforço, mesmo se tratando de uma
alma rude e primitiva, desprovida de capacidade ou ao menos do desejo de
fazer esforço para a abstração e a dedução que acompanha o raciocínio. Para
a leitura e audição, sempre se requer atenção e um esforço mental que, no
espetáculo cinematográfico, é substituído pelo prazer continuado, resultante
da sucessão de figuras concretas. No cinema falado, este poder atua ainda
com maior força, porque a interpretação dos fatos se torna muito fácil e a
música ajunta um novo encanto à ação dramática. Se nos entreatos se
acrescentam danças e variedades, as paixões recebem excitações das mais
perigosas, que avultam vertiginosamente.
20. A cinematografia realmente é para a maioria dos homens uma lição de
coisas que instrui mais eficazmente no bem e no mal, do que o raciocínio
93
abstrato. É, pois, necessário que o cinema, erguendo-se ao nível da
consciência cristã, sirva à difusão dos seus ideais e deixe de ser um meio de
depravação e de desmoralização (VIGILANTI CURA).
Chama a atenção que o documento aponte efetivamente para a potência do
cinema: a sua capacidade de fazer pensar o corpo, cujo processo cognitivo se dá não
apenas pelo intelecto, mas pelos sentidos corpóreos. Contudo, é exatamente essa virtude
que chama a atenção do Vaticano, que lhe causa temor. Não em razão apenas da
ausência do controle eclesiástico em relação a tal maquinário simbólico; tampouco se
trata de uma alerta em razão da ameaça dos sentidos contra a razão, por uma instituição
da razão. Como mostra Serge Gruzinski (2006), em um recorte temporal apenas a partir
do século 15 americano, a Igreja Católica utilizou fartamente imagens para sua
educação transcendental dos novos povos. E, sabe-se, Igreja Católica se valeu dessa
estratégia em toda a sua história. É exatamente essa a razão de seu temor: aqui,
percebia-se que o cinema efetivamente apontava para um outro sagrado, em que o
corpo, agora liberado, seria, como veremos adiante, o novo altar. A despeito disso, o
documento apontava para os cuidados contra o degradação moral dos “maus filmes”:
21. É geralmente sabido o mal enorme que os maus filmes produzem na
alma. Por glorificarem o vício e as paixões, são ocasiões de pecado; desviam
a mocidade do caminho da virtude; revelam a vida debaixo de um falso
prisma; ofuscam e enfraquecem o ideal da perfeição; destroem o amor puro,
o respeito devido ao casamento, as íntimas relações do convívio doméstico.
Podem mesmo criar preconceitos entre indivíduos, mal-entendidos entre as
várias classes sociais, entre as diversas raças e nações.
Os media eram aqui reconhecidos em sua potência revolucionária –
inclusive no que diz respeito à revolução social dos modos de produção. O mesmo papa
que condenou de forma muito firme o comunismo, chama a atenção para o perigo que o
cinema pode trazer, como “os mal-entendidos entre as várias classes sociais”. A solução
para isso era a velha prática: vigilância e censura. Para tanto, o documento orienta a
prática de bispos e padres:
34. Dada a importância da matéria, julgamos oportuno traçar algumas
indicações práticas. Antes de tudo, todos os pastores de almas se esforçarão
por obter dos fiéis que façam anualmente, como os católicos dos Estados
Unidos da América, a promessa de se absterem dos filmes que ofendem a
verdade e as instituições cristãs. Este compromisso pode ser obtido de modo
mais eficaz por meio da Igreja paroquial ou das escolas; e para este fim os
bispos reclamarão a diligente cooperação dos pais e das mães de família, que
têm, nesta matéria, graves deveres e responsabilidades. Igualmente podem
usar da imprensa católica, que mostrará, com afinco e proveito, a importância
desta santa cruzada.
E por fim sugere:
94
35. A execução dessa promessa solene requer que o povo conheça claramente
quais os filmes permitidos a todos, quais os filmes permitidos com reserva,
quais os filmes prejudiciais ou positivamente maus. Isto exige confecção de
listas e sua publicação regular, em forma de boletins, em que, a miúdo, se
classifiquem os filmes em forma acessível a todos. (VIGILANTI CURA)
Classificação. Proibição. Essa posição, embora presente, será matizada nos
anos posteriores – e segundo novos e ainda mais poderosos meios de propagação
simbólica.
Em 1957, sob o pontificado de Pio XII, a Igreja Católica sistematizou o seu
pensamento sobre a comunicação social. Sob o impacto da invenção da televisão, anos
antes, a encíclica Miranda Prorsus - Os maravilhosos progressos – prenunciava a
adesão, ambígua, católica ao novo mundo. Nele, há uma reflexão elogiosa – e temerosa
– dos novos media: cinema, rádio e TV. Não havia qualquer menção à imprensa,
medium com que a Igreja já se acostumara e, ainda que andasse às turras em seu início,
estava plenamente dominado, ao ponto de ser desconsiderada como medium – ao menos
no documento, o que não deixa de ser sintomático. Aqui, a ambiguidade é patente: a
despeito do encanto provocado pelos maravilhosos novos meios, o documento se
justificava em razão dos “tremendos perigos” que podem nascer dos progressos
técnicos, já realizados ou que se continuam a realizar, “nos importantíssimos setores do
cinema, do rádio e da televisão.” Por isso, os meios de comunicação social devem
servir para “apertar mais os laços entre os povos, fomentar a compreensão mútua e a
solidariedade e aumentar a colaboração entre os poderes públicos e os cidadãos” –,
28
mas tem ocorrido justamente o contrário e, por isso, a Igreja precisa estar vigilante. Os
maravilhosos progressos trazem também horripilantes ameaças.
Definitivamente, a Igreja Católica estava alerta para os novos meios. Pio
XII, entre declarações, discursos e textos, se pronunciou mais de 60 vezes sobre os
meios de comunicação de massa, especialmente sobre o cinema. Ismar de Oliveira
Soares lembra que o papa, antes da publicação de Miranda Prorsus, utilizou a TV para
caracterizá-la como instrumento de transmissão de informação, mas também de
formação e transformação (SOARES, 1988, 85 e ss). Era evidente o entusiasmo
despertado pela TV e suas possibilidades para a propagação da fé. Perceba-se:
instrumento, meio, veículo. No entanto, esse olhar instrumental – a rigor, material -
para os media não implica que não se percebesse a cultura da mídia. Voltaremos a essa
discussão adiante.
28
Cf. em DARIVA, 2003, 33-65.
95
Em um estudo pioneiro sobre a relação católica com os meios de
comunicação de massa, Paula Montero (cf: DELLA CAVA & MONTERO, 1991, 136-
145) afirma que essa nova relação com os media estabelecida em Miranda Prorsus,
bem como o surgimento da televisão, se dá em um momento quando a Igreja iniciava
sua abertura ao diálogo cultural e sentia uma necessidade premente de percorrer o
caminho em busca das ovelhas perdidas. Assim, o poderio da televisão se mostrava
bastante apto para a investida global pretendida. Novamente, deve-se chamar a atenção:
o uso dos meios implica a compreensão da cultura por eles criada: púlpito e areópago
não se excluem.
Nem mesmo o plano de ação desse documento é muito diferente daqueles
propostos depois dele – caso do Inter Mirifica, produto do Concílio Vaticano II, por
exemplo, e tido como o documento que inaugura uma nova era da relação Igreja e meios
de comunicação de massa. Trata-se de exultar as maravilhas humanas como criações
divinas, mas de lhes sugerir parcimônia quanto ao uso. A tarefa, portanto, era de criar
condições para a educação para os meios – e, obviamente, a formação, no caso do
cinema, de críticos católicos. Há ainda o chamamento para os meios de produção e
distribuição:
90. É óbvio que as salas cinematográficas dependentes da autoridade
eclesiástica, devendo garantir aos fiéis e particularmente à juventude
espetáculos educativos e ambiente são, não podem apresentar filmes que não
sejam irrepreensíveis sob o ponto de vista moral.
91. Vigiando atentamente a atividade destas salas, mesmo se dependem de
religiosos isentos, mas estão abertas ao público, os Bispos recordem aos
Eclesiásticos responsáveis que, para cumprirem os fins do seu apostolado tão
recomendado pela Santa Sé, têm de observar escrupulosamente as normas
publicadas e possuir espírito de desinteresse. É também muito de recomendar
que as salas católicas se unam em associações - como louvavelmente se fez
nalguns países -, para poderem assim defender mais eficazmente os interesses
comuns, segundo as diretrizes do organismo nacional.
92. As recomendações que demos aos empresários aplicam-se também aos
distribuidores. Estes, financiando até não raro as produções, terão maior
possibilidade, e por conseguinte mais grave dever, de apoiar o cinema
moralmente são. Distribuir filmes, de fato, não pode de modo nenhum ser
considerado mera função técnica, porque - como já recordamos
repetidamente - não se trata de simples mercadoria, mas de alimento
intelectual e escola de formação espiritual e moral das massas. O que
distribui e o que aluga, filmes participam portanto dos méritos ou das
responsabilidades morais em tudo o que diz respeito ao bem ou ao mal
causado pelo cinema. (MIRANDA PRORSUS).
É evidente que, como instituição moral, a Igreja Católica, em seus
documentos, procura travar um debate ideológico, de modo a sugerir – já que já não
estava mais em condição de exigir – que os meios em geral e especialmente as
produções audiovisuais devessem ser mantidas sob vigilância para que elas transmitam
96
“valores humanos, sobretudo espirituais” (MIRANDA PRORSUS, 41, 42). Mas, note-
se, há uma clareza quanto à necessidade de avançar além do debate ideológico
simplesmente. Desde aqui, há a urgência de se pensar os meios de produção e
distribuição simbólica, sem os quais o debate ideológico se torna ociosidade. A tarefa
era adaptar os velhos media eclesiásticos aos novíssimos, a cuja potência ela, Igreja,
como poderio de transmissão simbólica, não se compara. Assim, meios de produção e
humanos como propagadores: eis a nova investida da velha mídia. O mesmo acontecerá
com a reflexão sobre a televisão.
Sob o impacto e o entusiasmo com a TV, suas possibilidade de propaganda
e seu óbvio perigo, Miranda Prorsus dedica 17 parágrafos sobre os usos corretos do
meio e a necessidade de senso crítico do telespectador cristão para usá-lo. Quanto às
considerações sobre o medium, o documento não só chama a atenção sobre seus
progressos e possibilidades, mas manifesta um desejo expresso de que houvesse a
utilização dos meios para a tarefa paulina de evangelização – mas é evidente que, até
quanto a essa possibilidade, é preciso que haja vigilância:
137. Temos conhecimento do interesse com que vasto público segue as
transmissões católicas na televisão. É óbvio que a assistência à Santa Missa
pela televisão - como há alguns anos dissemos - não é a mesma coisa que a
assistência física ao Sacrifício Divino requerida para cumprir o preceito dos
dias festivos. Todavia, os frutos copiosos que, para o incremento da fé e
santificação das almas, provêm das transmissões televisivas das cerimônias
litúrgicas, para aqueles que não podem, com presença normal, assistir a elas,
induzem-nos a encorajar estas transmissões.
138. Será da competência dos Bispos de cada país, julgar da oportunidade das
várias transmissões religiosas, e confiar a sua execução ao competente
Organismo nacional, que, como nos precedentes sectores, desenvolve
conveniente atividade informativa, educativa, de coordenação e de vigilância
sobre a moralidade dos programas (MIRANDA PRORSUS).
Qual a novidade de Miranda Prorsus em relação aos documentos anteriores?
Não se trata simplesmente de uma modificação quanto à posição em relação aos meios.
Sim, há essa modificação – e ela se dá muito em razão da inevitabilidade dos media e da
compreensão dessa inevitabilidade por parte da Igreja. Uma instituição de 2000 anos
não acumulou material simbólico em vão. Se houve essa modificação importante, a
maior novidade do documento é a disposição da Igreja Católica em participar, de
maneira efetiva e como produtora de material simbólico, da nova cultura surgida com o
novo sensorium midiático. Nessa medida, Miranda Prorsus é credor de Inter Mirifica,
embora o discurso do documento surgido do Concílio Vaticano II apresente novidades.
Inter Mirifica, Entre as maravilhas, de 1963, foi certamente o documento
mais cercado de expectativa quanto às suas posições em relação aos meios de
97
comunicação de massa. Primeiro, por ser produto de um Concílio Vaticano que foi
convocado justamente para modernizar a Igreja Católica e suas relações com o mundo.
Segundo, por ter sido o Concílio o primeiro a se interessar pelo problema da
comunicação na sociedade – obviamente, porque os anteriores não dispunham de
elementos para garantir que seria a comunicação, como fenômeno, e seus meios de
propagação, o elo social da sociedade do espetáculo, como nos lembra Lucien Sfez
(2000). Mas, a rigor, a expectativa foi muito maior do que a efetiva renovação
proporcionada pelo documento.
No documento, a Igreja Católica se expressa, comme d’habitude, como
master et magistra, mãe e mestra, e, nesse papel, aconselha a respeito dos meios de
comunicação social, que, segundo ela, devem ser usados corretamente para prestar
serviço ao gênero humano. Na parte doutrinal do documento, afirma-se o dever da
Igreja de anunciar a salvação por todos os meios e o direito da instituição de possuir e
usar esses meios. O decreto também chama atenção para a responsabilidade moral dos
meios, uma vez que os considera poderosos o bastante para se imporem
irresistivelmente à maioria dos seres humanos. Inter Mirifica expressa, de forma clara,
algo que havia sido apenas entrevisto em documentos anteriores: o direito à informação.
O documento se rende, ainda que de forma temerosa, à constatação de que a informação
se tornou indispensável para a constituição daquilo que se configurara um século antes
como opinião pública. Dessa maneira, é a informação o elemento indispensável para o
bem comum – devendo a Igreja se abrir a ela. Ressonâncias da necessária abertura da
igreja que, inclusive, modificou os rituais litúrgicos.
Os ventos da mudança, como costumam dizer os católicos, dependem da
direção para onde o espírito sopra. Apesar da assunção do fenômeno da opinião pública,
Inter Mirifica também aponta para a necessidade de autoridades para orientar quanto ao
uso dos meios de comunicação social e declara ser dever dos receptores escolher e
favorecer os produtos da virtude, da ciência e da arte, além de evitar o que lhes seja
prejudicial. Nesse caso, o perigo é sanado pela vigilância contínua. Contra a
possibilidade de má influência dos meios, a Igreja indica o auxílio de “pessoas
competentes”, ou seja, dos especialistas que serão iniciados no espírito para a tarefa. Em
outras palavras, a despeito da mudança de ares e da compreensão de que uma nova
cultura surgia dos novos media, a força simbólica da Igreja a mantinha tensa no papel de
formadora concorrente. Noemi Dariva (2003) chama a atenção para o fato de o decreto,
ao utilizar a expressão “comunicação social”, compreender os meios de comunicação
98
não mais como simples instrumentos técnicos de transmissão, mas como processo entre
os humanos. Se isso indica, com efeito, uma posição mais adequada para a compreensão
da cultura dos media, não se pode negar, por outro lado, a manutenção da ambiguidade
católica: para os que confiam no poder do receptor, a insistência de Inter Mirifica em
convocar especialistas - numa palavra: pastores – para a orientação dos fiéis quanto ao
bom uso dos meios é a prova definitiva de que o pensamento católico em nada havia
avançado. Porém, a despeito de ter havido a expressão teórica dessa cultura, é notória
que ela já havia sido assumida como tal. A proposta de pastoreio ou, de forma matizada,
educação midiática, não obstante sua importância, além de estar presente em
documentos anteriores ao Inter Mirifica, reafirma de qualquer maneira que os meios de
comunicação transmitem material simbólico e, ao fazerem, criam uma nova ambiência.
O que pode ser apontado como novidade desse decreto é a disposição católica em
participar dessa nova cultura – mas nem isso de fato é inaugurado por Inter Mirifica.
A perspectiva de formação, por outro lado, é reafirmada no documento.
Aqui, definitivamente, o pensamento comunicacional da igreja deixa de ser apenas de
tentativa de controle – embora essa linha de ação não tenha sido abandonada, não
apenas por força do hábito, mas por força moral. O importante é questionar se, vindo de
uma instituição fortemente hierarquizada, a própria ideia de formação do público não
traz em si a sanha de controle e censura. Essa é a razão de ser de uma máquina, uma
tecnologia da transcendência e de moralidade que durante séculos se viu eterna e
eternamente detentora do monopólio simbólico para a hegemonia.
De qualquer maneira, apesar de não efetivar os avanços esperados em
relação à comunicação social, Inter Mirifica indicou caminhos importantes para a
política de comunicação da Igreja. O principal deles foi a abertura às críticas, sobretudo
de leigos e religiosos. O resultado disso foi a criação do Dia Mundial das Comunicações
Sociais, nos quais, desde então, os papas se expressam sobre a cultura midiática a partir
da doutrina eclesiástica, o que revela, senão o pensamento da Igreja, certamente a luta
travada ou a ser travada pelos religiosos católicos. Inicialmente, a data comemorativa
para esse dia foi o 5 de maio – depois, sintomaticamente, adotou-se o Dia da Ascensão
do Senhor como o Dia Mundial das Comunicações Sociais.29 Outro desdobramento – e
29
A partir de 1986 fixou-se a data comemorativa em 24 de janeiro, na festa de São Francisco de Sales,
padroeiro da imprensa católica. A nova data, com referência à imprensa, o primeiro dos media a
confrontar o poder simbólico da Igreja e a própria mudança de datas – inclusive a decisão de fazer
coincidir o Dia Mundial das Comunicações Sociais com o dia da Ascensão de Cristo (4º Domingo depois
da Páscoa) - por si só gera uma pesquisa que, por sua riqueza, certamente dispendiosa, a torna impossível
99
assunção de que, definitivamente, a cultura midiática entrara na pauta católica, foi a
criação do Secretariado para os Meios de Comunicação Social, transformado
posteriormente, em 1989, no Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, além
do incentivo para a criação de secretariados nacionais de imprensa, cinema, rádio e
televisão. E foi justamente o órgão criado para pensar, desde o Vaticano, a cultura
midiática quem redigiu a instrução Pastoral Communio et Progressio.
Publicada em 1971, Communio et ProgressioComunhão e Progresso - é
um documento pastoral da Igreja que não tem caráter dogmático. Não é uma encíclica,
nem um documento conciliar, como o Inter Mirifica, e seu nome completo é "Instrução
Pastoral para a aplicação do Decreto do Concílio Ecumênico Vaticano II sobre os Meios
de Comunicação Social". Embora não tão cercado de expectativa quanto Inter Mirifica,
a instrução pastoral é resultado da nova postura da Igreja Católica em relação não
apenas aos meios de comunicação e à comunicação social – mas tal ocupação indicava a
rigor que a Igreja estava realmente disposta a um diálogo perene e, na medida do
possível, sereno com o mundo. O documento, marcado pela abertura que caracterizou os
documentos do concílio, mas sobretudo a evolução das mentalidades nos anos
seguintes, desenvolve-se em 187 artigos e distingue-se do decreto Inter Mirifica
particularmente por seu estilo. Apresenta um tom mais otimista de valorização dos
media, colocando-os como “dons de Deus”, que têm como fim primordial a comunhão e
o progresso humano (COMMUNIO ET PROGRESSIO, 1, 2).
Se, de fato, havia novos ares que sopravam desde a Igreja, isso não
significava uma mudança radical de posição em relação aos meios e sua cultura – salvo
pela disposição irrestrita e, alguns garantem, pueril, em aderir a eles. Como vimos,
desde Miranda Prorsus a Igreja se dispusera a dialogar com a nova cultura e bem antes
disso havia compreendido que de fato se tratava de uma nova cultura a surgida com os
meios de comunicação de massa. O que se distingue agora é o verdadeiro entusiasmo
com as possibilidades dos meios.
A instrução é relevante pelo seu tom e pelo desenvolvimento dos caminhos
segundo os quais a ação pastoral deve utilizar os meios de comunicação: a esperança e o
otimismo são dominantes e o caráter moralizador e dogmático desaparece. Sobressai no
documento, como uma de suas características principais, o fato de que ausculta a
sociedade contemporânea, levantando questões sobre a presença das tecnologias da
para esta pesquisa e esta tese.
100
comunicação no mundo: "a Igreja deve saber como reagem nossos contemporâneos,
católicos ou não, aos acontecimentos e correntes de pensamento atual" (COMMUNIO
ET PROGRESSIO, 122). Uma terceira característica desse documento é que ele
considera as peculiaridades de cada veículo de comunicação, inclusive o teatro. Leva
em conta a situação psicossocial dos usuários na elaboração de projetos de comunicação
para a Igreja, pois "todos esses fatores exigem, por parte da pastoral, uma atenta
consideração" (COMMUNIO ET PROGRESSIO, 162) e o povo deve ser atendido por
um "pessoal bem preparado" (ibidem). Finalmente, a Communio et Progressio ressalta
que a comunicação social é um elemento que articula qualquer atividade da Igreja,
reconhecendo a legitimidade da formação da opinião pública dentro dela.
Quanto à televisão, embora não haja um título que trate apenas dela, há
referência aos processos de produção, circulação e recepção televisivos. Como já vinha
ocorrendo, o documento apresenta uma preocupação com a disputa de transmissores e
suas tecnologias. Porém, aqui, houve clareza quanto a tais diferenças entre as
transmissões midiáticas e na mídia eclesstica – ou seja: a igreja, ela mesma. Diz o
documento:
151. A Missa e outros ofícios litúrgicos deveriam ser incluídos no número
das transmissões religiosas. É necessário, porém, que tais programas sejam
devidamente preparados, do ponto de vista técnico e litúrgico. Tenha-se em
conta a grande diversidade de público e, se os programas se destinam
também a outros países, deve-se respeitar a sua religião e costumes. O
número e duração destas transmissões sejam regulados também a juízo dos
ouvintes ou espectadores.
152. As homilias e alocuções devem conformar-se com a natureza do
programa. Quem for chamado a desempenhar esta função, deve ser
cuidadosamente escolhido e possuir o devido conhecimento prático das
técnicas de rádio e televisão.
153. Os programas religiosos, como noticiários, comentários, debates
televisivos ou radiofônicos dão um válido contributo à instrução e ao diálogo.
Têm também aqui aplicação as normas antes dadas sobre imprensa católica;
assim como as normas universais sobre o respeito pela diversidade de
opiniões, sobretudo nos casos em que a Rádio e Televisão são governadas
por um autêntico monopólio. (COMMUNIO ET PROGRESSIO)
Há ainda, no documento, o incentivo à participação dos telespectadores: “os
ouvintes e espectadores, manifestando o seu juízo sobre os programas religiosos,
contribuirão para o seu aperfeiçoamento” (COMMUNIO ET PROGRESSIO, 155). No
mesmo espírito, pede-se a indispensável colaboração entre os católicos que se dedicam
aos programas religiosos e o pessoal técnico das emissoras e redes televisivas
(COMMUNIO ET PROGRESSIO, 156). De fato, novos ventos arejavam a velha Igreja.
Pode-se considerar que o discurso eclesiástico e sua orientação pastoral
estão se referindo não a uma disputa de mídia, mas, muito ao contrário, a uma
101
preocupação de uma instituição de moralidade e que viu a oportunidade e os perigos
para uma efetiva e grandiosa vulgarização de sua doutrina. É possível que seja,
realmente, essa a posição da Igreja – e também dos leigos e religiosos que, com o
Vaticano II e depois dele, se esforçaram por compreender a relação entre mídia secular
e Igreja. Mas, por outro lado, é possível inferir dessa relação uma proximidade sentida
pelo Vaticano e apontada por seus documentos sobre o setor. Não se identificasse tal
proximidade, a Igreja não se mostraria tão entusiasmada com as potencialidades de
evangelização dos meios e com a própria cultura midiática. E isso parece ser bastante
para indicar não só que a Igreja, ao pensar os meios, pensava na cultura por eles criada,
mas sobretudo que enxergava na mídia burguesa um mal necessário – ou, no caso de
Communio et Progressio, nem mesmo esse mal é apontado.
As principais críticas ao documento – e ademais à própria posição da Igreja
em relação aos meios e sua cultura – dizem respeito justamente à visão instrumentalista
da comunicação, numa perspectiva ingênua de desenvolvimentismo (SOARES, 1988,
111). Ismar de Oliveira Soares aponta como principal falha da instrução pastoral a
pressuposição de que “o bom uso dos instrumentos de comunicação” se dará na
ilustração dos receptores, sem perceber a “dependência sistêmica” de tais instrumentos
– em relação a grupos políticos e econômicos (ibidem, 128 e ss). Há ainda o
apontamento do excessivo idealismo e a exaltação do avanço tecnológico, e a
obliteração da “função ideológica” dos meios de comunicação. Joana Puntel, que, ao
lado de Ismar de Oliveira Soares, pode ser considerada à época uma importante crítica
das políticas de comunicação da Igreja ora pela incapacidade eclesiástica de perceber a
dimensão da nova cultura, ora por desconsiderar as limitações sociológicas de uma
adesão imediata aos meios, apontou para a necessidade de uma análise sociológica por
parte da Igreja (PUNTEL, 1994). As críticas, vindas dos dois estudiosos anos depois,
indicam que, a rigor, se houve – e houve – uma abertura aos estudiosos católicos e não-
católicos da comunicação, essa luta permaneceria ativa. De qualquer maneira, havia
consenso de que Communio et Progressio se abria para o diálogo crítico, o que iria
colocar a Igreja numa posição, se não de vanguarda em relação aos debates acadêmicos
e ao próprio avanço tecnológico dos media, ao menos não se punha à parte deles.
As críticas avançam: a despeito de conquistas apontadas como importantes
da Communio et Progressio, incluindo a promulgação do Novo Código de Direito
Canônico pelo papa João Paulo II em 1983 e da abertura justamente aos críticos, há uma
sensação de que permanece uma visão instrumentalista da comunicação, cabendo à
102
Igreja a tarefa de vigilância – e cura. Essa sensação é reforçada pelo conteúdo do Novo
Código de Direito Canônico, segundo o qual “se vê a importância e efetiva incidência
dos meios de comunicação na transmissão da palavra divina quando se diz que a Igreja
deve possuir meios próprios para seu anúncio a todas as gentes (cf. SOARES, 1988,
119). A despeito da visão otimista quanto aos meios, aponta ainda Ismar de Oliveira
Soares, permanece a tarefa de fiscalização e censura. Nisso se apoiam as críticas – e a
rigor demonstram de fato a ambiguidade católica em relação aos meios e sua cultura.
No entanto, a própria ambiguidade demonstra que a Igreja Católica estava acuada em
relação aos novos meios justamente porque: i) neles enxergava um concorrente que de
fato poderia lhe oferecer uma ameaça à existência, pois ii) eles forjavam uma nova
cultura, com nova transcendência e novo sagrado; mas iii) para sua sobrevivência era
preciso pactuar com os novos e extraordinários meios de transmissão e então tentar sua
sobrevivência. Apesar das críticas, portanto, não se pode negar que a ambiguidade era
senão cuidado misericordioso e compreensão de que a nova cultura midiática não
poderia ser eivada – ou edificada, já que a Igreja é mater et magistra – segundo os
valores católicos. Se de fato têm razão os críticos em apontar a falha eclesiástica quanto
à mera instrumentalização, por eles passou despercebido que o instrumento e seu
domínio criam uma nova cultura – e a Igreja Católica não estava alheia a ambos. Ao
contrário, percebeu que ter acesso aos meios era a única forma de criar - ou tentar fazê-
lo – e consolidar uma cultura midiática católica, segundo seus valores. As críticas,
todavia, não foram em vão.
Joana Puntel (PUNTEL, 2005, 129 e ss) identifica um silêncio católico em
quase vinte anos, depois de Communio et Progressio. A rigor, houve de fato esse
silêncio ruidoso – ou uma balbúrdia que provoca uma silente perplexidade -, em um
período de profundas mudanças no universo da comunicação social e suas tecnologias e,
consequentemente, da face do mundo, em razão das modificações nas interações sociais.
Em 1992, sob o pontificado de João Paulo II, o Pontifício Conselho para as
Comunicações Sociais publica uma nova instrução pastoral, Aetatis Novae - Nova
Época -, para comemorar o vigésimo aniversário da Communio et Progressio. O
documento, diz-nos Puntel, não apenas faz uma síntese das discussões que já haviam
sido levantadas em documentos de vinte anos antes, mas aponta de forma muito
decisiva para a necessidade de uma pastoral da e na comunicação, estimulando novas
perspectivas e planos pastorais da comunicação (PUNTEL, 2005, p. 129). Isso indica
de fato que a comunicação social entraria de vez no debate da Igreja em seus mais
103
diversos níveis. As pastorais da comunicação, embora tenham sido criadas antes, ainda
sob os ventos que preparariam o Concílio Vaticano II, apenas agora, sob o pontificado
de João Paulo II, foram com efeito incentivadas. Isso, todavia, não mudou a postura da
Igreja em relação a seu pensamento sobre a cultura midiática. Tanto que, a partir de
então, houve uma intensificação na procura pelo domínio dos meios católicos,
especialmente a TV, e inclusive no Brasil, como vimos.
Sobre os documentos da Igreja que, de forma apensa alusiva e bastante
superficial, tratam da Comunicação Social, Noemi Dariva (cf.: DARIVA, 2003, 447 e
ss.) faz um levantamento minucioso e indica os seguintes documentos eclesiásticos
onde a comunicação é tratada: a Constituição conciliar Gaudium et Spes (6, 54, 61); o
decreto Ad Gentes (19, 26, 36); o decreto Christus Dominus (13); decreto Optatam
Totius (2); declaração Gravi-ssimum educationis (4); na Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi (40 a 48); na Exortação Apostólica Catechesi Tradendae (46); na exortação
apostólica Familiaris Consortio (76); na Exortação Apostólica Christifideles laici (44);
na encíclica Redemptoris Missio (37, 83); na exortação apostólica Ecclesia in África
(52, 71, 122 a 126); na exortação apostólica Vita Consecrata (99).
O que significou esse silêncio parcial? Não se trata de estupefação diante das
mudanças na face do mundo. A rigor, o silêncio demonstra uma adaptação vigorosa:
não há mais nada a ser dito, além do que já havia nos documentos. Mais uma vez,
púlpito e areópago se conjugam. O que estava em vigor agora não era mais a adaptação
da Igreja Católica em relação aos meios e sua cultura, mas como a comunicação
eclesiástica se tornaria mais efetiva e competente com os meios e sua cultura. A
encíclica Redemptoris MissioMissão Redentora -, de 1990, na seção 37c, do capítulo
IV, demonstra bem que esse silêncio não é mais do que a naturalização do diálogo entre
a Igreja e a cultura midiática – mas, de qualquer forma, não deixa de indicar um novo
caminho para o pensamento comunicacional da Igreja. No documento, o discurso enfim
se abre de forma clara para a própria cultura da mídia, com suas temporalidade e
espacialidade, suas técnicas e sua ética. Assim a comunicação social, vista como o
elemento que re-liga os humanos em uma unidade mundial – mas, diga-se, isso não
deixou, como vimos, de ser percebido em outros documentos da igreja -, o universo da
comunicação é visto como o “areópago do tempo moderno”:
Paulo, depois de ter pregado em numerosos lugares, chega a Atenas e vai ao
areópago, onde anuncia o Evangelho, usando uma linguagem adaptada e
compreensível para aquele ambiente (Cf. A 17, 22-31). O areópago
representava, então, o centro da cultura do douto povo ateniense, e hoje pode
104
ser tomado como símbolo dos novos ambientes onde o Evangelho deve ser
proclamado.
O primeiro areópago dos tempos modernos é o mundo das comunicações,
que está a unificar a humanidade, transformando-a — como se costuma dizer
— na “aldeia global”. Os meios de comunicação social alcançaram tamanha
importância que são para muitos o principal instrumento de informação e
formação, de guia e inspiração dos comportamentos individuais, familiares e
sociais. Principalmente as novas gerações crescem num mundo condicionado
pelos mass-media. Talvez se tenha descuidado um pouco este areópago: deu-
se preferência a outros instrumentos para o anúncio evangélico e para a
formação, enquanto os mass-media foram deixados à iniciativa de
particulares ou de pequenos grupos, entrando apenas secundariamente na
programação pastoral. O uso dos mass-media, no entanto, não tem somente a
finalidade de multiplicar o anúncio do Evangelho: trata-se de um facto muito
mais profundo porque a própria evangelização da cultura moderna depende,
em grande parte, da sua influência. Não é suficiente, portanto, usá-los para
difundir a mensagem cristã e o Magistério da Igreja, mas é necessário
integrar a mensagem nesta “nova cultura”, criada pelas modernas
comunicações. É um problema complexo, pois esta cultura nasce, menos dos
conteúdos do que do próprio facto de existirem novos modos de comunicar
com novas linguagens, novas técnicas, novas atitudes psicológicas O meu
predecessor Paulo VI dizia que “a ruptura entre o Evangelho e a cultura é,
sem dúvida, o drama da nossa época”; e o campo da comunicação moderna
confirma plenamente este juízo (REDEMPTORIS MISSIO, 37c)
Aqui se demonstra de forma didática o pensamento comunicacional católico
– o que antes era apenas entrevisto. Se, com efeito, coube ao papa pop João Paulo II
esclarecer tal pensamento, ele mesmo, ainda que de maneira pontual, evidencia a sua
herança. Ainda que a aponte em Paulo VI, pode-se dizer que o lastro de tal pensamento
vem desde a primeira derrota simbólica da Igreja e sua reação com a tentativa de
censura. Como já mencionado, uma instituição de 2000 anos não acumulou riqueza
simbólica em vão. A ausência de novidade dos documentos é a própria configuração do
pensamento comunicacional da Igreja. É o que pode ser visto também em outros
documentos sobre o setor e principalmente em textos do Dia Mundial das
Comunicações Socais.
Celebrado a partir de 6 de maio de 1967, sob o pontificado de Paulo VI, o
Dia Mundial das Comunicações Sociais indica os dois movimentos aqui delineados:
primeiro, aquele que aponta para a disposição eclesiástica para dialogar com dos meios
de comunicação modernos e a partir deles. Segundo e percebendo-se o seu discurso, tais
pronunciamentos dos papas podem ser vistos como a insistência de uma política
instrumentalista em relação aos meios, mas preferimos adotar a ideia de que tal
instrumentalização, cuja crítica é pertinente, em nada diminui o fato dramático de que a
Igreja se apropria dos meios para participar da cultura por eles criada – e para tanto
admite que é necessária uma adequação entre os media: não é possível evangelizar
desde o púlpito sem a percepção de que se participa de um areópago. Mas, como aqui
105
insistimos, essa mudança de postura a rigor não representa uma mudança efetiva: o
areópago não implica abrir mão do púlpito – porque afinal Igreja ou tele-igreja
continuarão a ser master et magistra; continuarão a restringir o que será dito, mesmo
que perfeitamente adaptada à nova ambiência midiática.
A mensagem do papa Bento XVI para o Dia Mundial das Comunicações
Social em 2010, por exemplo, conclama para a evangelização pela internet. Pode-se
dizer que enfim chegamos a um termo e que os novos media não mais são vistos como
meros instrumentos para a evangelização – mas que tal tarefa é compreendida como
aquela do areópago:
A tarefa primária do sacerdote é anunciar Cristo, Palavra de Deus encarnada,
e comunicar a multiforme graça divina portadora de salvação mediante os
sacramentos. Convocada pela Palavra, a Igreja coloca-se como sinal e
instrumento da comunhão que Deus realiza com o homem e que todo o
sacerdote é chamado a edificar n’Ele e com Ele. Aqui reside a altíssima
dignidade e beleza da missão sacerdotal, na qual se concretiza de modo
privilegiado aquilo que afirma o apóstolo Paulo: «Na verdade, a Escritura
diz: “Todo aquele que acreditar no Senhor não será confundido”. […]
Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Mas como
hão de invocar Aquele em quem não acreditam? E como hão de acreditar
n’Aquele de quem não ouviram falar? E como hão de ouvir falar, se não
houver quem lhes pregue? E como hão de pregar, se não forem enviados?»
(Rm 10,11.13-15).
Hoje, para dar respostas adequadas a estas questões no âmbito das grandes
mudanças culturais, particularmente sentidas no mundo juvenil, tornaram-se
um instrumento útil as vias de comunicação abertas pelas conquistas
tecnológicas. De fato, pondo à nossa disposição meios que permitem uma
capacidade de expressão praticamente ilimitada, o mundo digital abre
perspectivas e concretizações notáveis ao incitamento paulino: “Ai de mim se
não anunciar o Evangelho!” (1 Cor 9,16). Por conseguinte, com a sua
difusão, não só aumenta a responsabilidade do anúncio, mas esta torna-se
também mais premente reclamando um compromisso mais motivado e eficaz.
A este respeito, o sacerdote acaba por encontrar-se como que no limiar de
uma “história nova” porque quanto mais intensas forem as relações criadas
pelas modernas tecnologias e mais ampliadas forem as fronteiras pelo mundo
digital, tanto mais será chamado o sacerdote a ocupar-se disso pastoralmente,
multiplicando o seu empenho em colocar os media ao serviço da Palavra.
Contudo, a divulgação dos “multimídia” e o diversificado “espectro de
funções” da própria comunicação podem comportar o risco de uma utilização
determinada principalmente pela mera exigência de marcar presença e de
considerar erroneamente a internet apenas como um espaço a ser ocupado.
Ora, aos presbíteros é pedida a capacidade de estarem presentes no mundo
digital em constante fidelidade à mensagem evangélica, para desempenharem
o próprio papel de animadores de comunidades, que hoje se exprimem cada
vez mais frequentemente através das muitas “vozes" que surgem do mundo
digital, e anunciar o Evangelho recorrendo não só aos media tradicionais,
mas também ao contributo da nova geração de audiovisuais (fotografia,
vídeo, animações, blogues, páginas internet) que representam ocasiões
inéditas de diálogo e meios úteis inclusive para a evangelização e a catequese
(...)
A vós, queridos Sacerdotes, renovo o convite a que aproveiteis com
sabedoria as singulares oportunidades oferecidas pela comunicação moderna.
106
Que o Senhor vos torne apaixonados anunciadores da Boa Nova na «ágora»
moderna criada pelos meios atuais de comunicação
.
30
De fato, a percepção de Bento XVI em relação aos media – aqui,
especialmente em relação à Internet – aponta naquela perspectiva reivindicada:
compreender a cultura midiática e só então realizar a evangelização. Mas de fato haverá
novidade nisso?
Para não tornar este texto cansativo além do suportável, tentaremos mapear
essa ausência de novidade em sincronia – para então apontarmos para o diacrônico.
Trataremos de dois momentos distintos, de Paulo VI e de João Paulo II, além daquele,
cujo trecho foi acima transcrito, de Bento XVI para então verificarmos que as
diferenças, se há, são epidérmicas.
Para que se consiga uma visualização quanto à empresa, façamos uma
retrospectiva – iniciemos desde o passado. Em seu pronunciamento em co-memoração
do segundo Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 1968 e intitulado “A imprensa,
o rádio, a televisão e o cinema para o progresso dos povos”, Paulo VI admite os novos
tempos que se mostram céleres nos novos media – e admite-os como dom de Deus:
Hoje, ao contrário, os ecos da imprensa, do cinema, do rádio e da televisão
abrem-lhes horizontes sempre novos e os colocam em sintonia com a vida do
universo. Quem poderia não se alegrar com um tal progresso? Quem não vê
nele o caminho providencial para a melhoria de toda a humanidade? O futuro
abre-se a grandes esperanças, se o homem souber dominar estas novas
técnicas; mas tudo poderia ser perdido se ele abdicasse das próprias
responsabilidades. (...)
A nova visão do universo, que é oferecida ao homem, graças aos meios de
comunicação social, permanecerá para ele como estranha ou inútil se não
oferecer a possibilidade de tornar o seu juízo mais iluminado — sem orgulho
e sem complexos — sobre as riquezas e sobre as lacunas de sua civilização;
se não lhe permitir que descubra — sem presunção e sem angústia — as
riquezas e as lacunas dos outros; que tome nas mãos o próprio destino com
confiança, e o construa em colaboração fraterna com seus irmãos, e que
perceba, além disso, que "não há verdadeiro humanismo se não for aberto ao
absoluto" (In: DARIVA, 2003, 293-95)
O discurso pode ser compreendido como meritório, produto dos novos
ventos vindos do Vaticano II – e o diálogo com o mundo implica o diálogo com os
media e sua cultura. Paulo VI reivindica a encíclica Populorum Progressio, que tratava
de forma clara sobre política e economia de seu tempo e foi um fundamento para a
Doutrina Social da Igreja, ao dizer que o desenvolvimento, para ser autêntico, deve ser
integral, promovendo “todos os homens e o homem todo.” Apenas dessa forma, diz o
30
Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/noticias/1298-mensagem-do-papa-bento-xvi-
para-o-44o-dia-mundial-das-comunicacoes.
107
Papa, será possível proporcionar aos homens meios de enxergar as visões dos outros e
tomar em suas mãos seu próprio destino e construí-lo em fraterna colaboração com seus
irmãos. Trata-se, como se vê, de uma tocante ação de identidade: a Igreja Católica
estava atenta aos movimentos do mundo e com ele se preocupava – mas apenas
idealmente, muito embora o resultado do Concílio Vaticano II foi a ação – seja Teologia
da Libertação, seja da Renovação Carismática Católica e seu braço midiático mais forte,
a Canção Nova, conforme disse, com efeito, em entrevista, o coordenador das pastorais
da diocese de Divinópolis.
Evidentemente, tal reflexão exige um aprofundamento – o que será feito no
capítulo 5 desta tese. Por ora, basta-nos perceber que o discurso de Paulo VI, ademais
visto em outros discursos seus e de seus sucessores, não recusa, ao contrário, reafirma a
ideia de que a Igreja deve ser um protagonista no debate sobre a cultura da mídia. Há,
sim, um quê do autoritarismo, do desejo do controle e da censura, mas que não se
manifesta nesse discurso e nos posteriores – pouco a pouco, o desejo de censura é
matizado. Porém, a posição secular da Igreja mater et magistra a coloca naturalmente
nessa posição de censura, como guardiã da ordem moral. Por outro lado, somente
depois haverá uma teorização sobre a necessidade de se apropriar dos meios – e nesse
caso, de forma mais aguda, há a crítica à política de púlpito. Deve-se notar, porém, que
não há, de fato, distinção, entre o púlpito e o areópago. Como se insiste, há uma
necessidade premente da Igreja em sua percepção de uma teologia da comunicação de
qualificar a cultura midiática. Isso significa que há o pressuposto, como assunção, da
nova cultura. Se o uso dos meios pela Igreja ainda não visualizavam a necessidade da
adequação da liturgia católica aos novos meios – e isso foi uma conquista teológica, por
assim dizer, da crítica às políticas de comunicação católicas –, tal fato forçosamente iria
acontecer à medida que a Igreja dispusesse de seus meios, como efetivamente ocorreu
também com a criação da própria cultura midiática: um medium e sua força não
desaparecem com o surgimento de outro medium; a TV, como tecnologia e máquina de
transmissão simbólica, só foi amadurecida depois do diálogo com teatro, rádio e
cinema.
31
Paulo VI não foi inimigo dos media e de sua cultura. A ambiguidade em
relação aos meios se deveu muito mais à posição ambígua da própria Igreja, como
máquina secular detentora de um pretenso saber eterno, com a necessidade de se abrir
31
Sobre isso, ver WILLIAMS, 2007, 26-38.
108
ao diálogo com a secularização. Nesse caso, coube a João Paulo II – e aqui não será
feita qualquer reflexão quanto a um possível recrudescimento conservador de seu
pontificado em relação às possibilidades do Concílio Vaticano II – aprofundar ainda
mais a relação entre o mundo criado pela burguesia industrial, suas máquinas de
transmissão simbólica e a Igreja. No pronunciamento para o Dia Mundial das
comunicações sociais de 1989, intitulado “A religião nos mass media”, João Paulo II
escreve:
2. A Igreja, na sua ação pastoral, pergunta-se naturalmente qual deveria ser a
atitude dos meios de comunicação social diante da "religião". Ao mesmo
tempo que se desenvolvem os meios e as técnicas de comunicação, o mundo
industrial, que lhe deu um impulso muito grande, manifestava um
"secularismo" que parecia comportar o desaparecimento do sentido religioso
do "homem moderno".
3. Apesar disso, constata-se hoje que a informação religiosa tende a
conseguir mais espaço nos meios de comunicação, por causa do interesse
maior para com a dimensão religiosa das realidades humanas (...)
5. A questão que a Igreja se coloca não é mais a de saber se o homem da rua
pode ainda receber uma mensagem religiosa, mas a de encontrar linguagens
de comunicação melhores para obter o maior impacto possível da mensagem
evangélica (...) (In: DARIVA, 2003, 384-85),
Não parece aqui uma assunção tardia da mesma natureza do mito – a
religião dos media de massa e a religião do cotidiano de que trata Marx (1968). Mas
certamente parece haver, na urgência demonstrada de que a Igreja assuma os seus
próprios media, assuma também a cultura midiática e seus espetáculos. Assim, não
haverá, de forma não assumida - e, sejamos justos, sem qualquer sacrifício ao bom
espírito cristão -, uma assunção de que se trata de máquinas, embora concorrentes,
complementares: Igreja em diálogo com o mundo espetacular, religião midiatizada e
media não se sustentam no espetáculo, entendido aqui com aquele sentido dado por Guy
Debord, (1997, 25) como o enfeitiçamento em seu ápice, quando transformado em
imagem? Ou melhor: não haverá aqui o desejo de diálogo, em que a religião se torna
enfim espetáculo, com óbvio prejuízo para a religião, mas não tanto para um projeto de
mundo de parte a parte – a saber: o pastoreio? Esse é um debate que, por exigir muito,
será retomado posteriormente. Fica, no entanto, a justa sensação de que, media
concorrentes, ao se aproximarem forjam um mundo semelhante – a despeito, é preciso
que se diga sempre, de ser o catolicismo moral e eticamente contrário ao capitalismo.
Dez anos depois do pronunciamento de João Paulo II transcrito acima, em
1999, outro texto publicado em razão do Dia Mundial das Comunicações Sociais,
intitulado “Mass media: presença amiga ao lado de quem procura o pai” tem um
109
discurso no mínimo curioso – e certamente sintomático:
3. Durante todo o itinerário da busca humana, a Igreja deseja ser a amiga dos
mass media, pois ela sabe que qualquer forma de cooperação será em
benefício do bem de todos (...)
4. A recente explosão das tecnologias da informação deu a possibilidade, que
jamais foi tão grande, de comunicar entre indivíduos e grupos em todas as
partes do mundo. Paradoxalmente, as mesmas forças que podem contribuir
para o melhoramento da comunicação podem levar, de igual modo, ao
aumento do isolamento e à alienação (...) (In: DARIVA, 2003, 423-425)
Desde o título, o pronunciamento é bastante sintomático: dizer que os mass
media são amigos significa que são distintos. Isso é bastante óbvio, mas a moralidade
nos ensina que professar a amizade talvez indique uma inimizade a priori, uma amizade
conquistada e neófita. Assim, pode-se apontar para a insistência da instrumentalização
dos media – tendo a Igreja como máquina que os salvará do perigo que contêm em si,
do aumento do “isolamento” e da “alienação”. Porém, essa instrumentalização dos
media indica muito mais: a amizade implica uma disputa de media e sobretudo um
desejo incontido em retomar, “pela amizade”, o controle da circulação simbólica. Para
isso é necessário, como em toda amizade, empatia: o catolicismo se tornará doravante
irremediavelmente midiatizado.
O tom dos pronunciamentos segue a ideia, bastante aperfeiçoada, dos
documentos da Igreja pós-Vaticano II – mas que a rigor pouco se distinguem das ideias
anteriores: aprovam e glorificam os meios de comunicação – inclusive os do
ciberespaço -, mas é preciso estar atento à sua produção: secularização, materialismo,
individualismo. Dessa forma, a Igreja, mater et magistra, aconselha seu rebanho a viver
o mundo, mas a tomar cuidado com ele. Aqui, o discurso é matizado: em vez da simples
censura, aponta-se para a formação dos fiéis e dos comunicadores. É dessa forma que,
acredita-se, a Igreja participa da cultura da mídia, é um ator no areópago. Porém, há
pouca distinção ética nessa ou naquela posição, quando se supunha – ao menos aos
olhos dos críticos - que os meios eram apenas meios e não forjadores de cultura. Aqui,
então, púlpito e areópago não se distinguem – e ainda que haja o desejo de manutenção
da identidade moral da Igreja, o discurso da “amizade” não prevê que púlpito e
areópago da religião midiatizada irão transformar, como acontece em todo e qualquer
regime de produção, transmissão e reprodução simbólicos, as forças de transcendência
que a Igreja Católica pretende manter. Mãe e mestra, a Igreja Católica desenvolve sua
política de comunicação, vista aqui apenas a partir do Concílio Vaticano II, muito
propriamente segundo propósito extratemporais: a longa tradição, o fundo do baú de
110
riqueza simbólica une papas, momentos históricos, sistemas midiáticos diferentes. Não
será muito diferente, para uma instituição fincada no catholicus, para os locais latino-
americano e brasileiro.
2. Da utopia sequestrada: o pensamento comunicacional latino-americano
Não se pode dizer que exista um pensamento comunicacional católico
latino-americano sistematizado. Embora haja um contrassenso aí, uma vez que grande
parte das críticas aos documentos sobre comunicação social da Igreja tenham vindo
justamente do contexto eclesial latino-americano; ser um possível pensamento
comunicacional no continente advindo dos quadros de crítica e pensamento católicos;
32
e ser o Conselho episcopal latino-americano – Celam - um organismo gestado pelos
mesmos ventos novidadeiros advindos do Concílio Vaticano II, houve uma espécie de
sequestro de um possível pensamento autônomo latino-americano pela política do
Vaticano. Como se sabe, o Celam é um órgão de articulação pastoral na América Latina
e tem como objetivo servir de elemento de unificação da Igreja no continente. Fundado
somente depois da 1
ª
Conferência Episcopal, no Rio de Janeiro, em 1955, suas origens
remontam ao século 19, no entanto: bispos latino-americanos indicaram a necessidade
de haver um órgão centralizador em uma reunião ocorrida em Roma com o papa Leão
XIII. A ideia, embora tenha se mantido viva, esperou até a metade do século para se
efetivar. Não se trata, também aqui, nem de respostas pouco ligeiras, nem de urgência
pela modificação ligeira do mundo. Diferentemente, o Celam é resultado de uma
mudança contextual provocada pela aceleração das coisas – e pela qual os media têm
uma responsabilidade enorme. Depois de 1955, as cidades de Medellín, na Colômbia,
em 1968; Puebla, no México, em 1979; Santo Domingo, na República Dominicana, em
1992; e a recente, realizada em 2007, em Aparecida do Norte, Brasil, assistiram a um
verdadeiro paradoxo: o Celam, com efeito, se fortaleceu institucionalmente, mas, de
forma contraditória, logo depois de Medellín e Puebla, sob os auspícios do Vaticano II,
houve um recrudescimento institucional, com a consequente perda da autonomia e da
promessa de efetiva renovação de uma Igreja que tinha seus próprios problemas a
enfrentar, muito distantes daqueles vindos da Europa. O mesmo ocorreu com o
pensamento sobre a comunicação social latino-americano.
33
Não que não tenha havido tentativa de um pensamento autônomo e,
32
Sobre isso, ver: MARQUES DE MELO et alli, 2002.
33
Sobre a temática de comunicação tratada nos documentos da Celam, cf.: DARIVA, 2003, 481–511.
111
inclusive, de uma sistematização desse pensamento, com consequente apontamento de
uma teologia – e, acrescentaríamos, eclesiologia dela resultante – da comunicação. Se,
de fato, na primeira das reuniões episcopais, no Rio de Janeiro, em 1955, não houve
uma reflexão sobre a comunicação, isso se deveu ao ambiente ideológico no qual a
Igreja central se encontrava: como vimos, o Papa Pio XII preparava a Igreja para uma
decisão quanto a seu destino, e o movimento por ele iniciado redundou no Concílio
Vaticano II. Nesse ambiente, a reflexão sobre os media apenas se iniciava de forma
sistematizada e a Igreja latino-americana tinha problemas mais urgentes do que discutir
um fenômeno que lhes parecia distante. Houve, se muito, pequenas e genéricas
passagens sobre os meios especiais de propaganda (cf.: DARIVA, 2003, 484-486). Os
encontros seguintes foram cercados do espírito utópico
34
do Vaticano II que originaram
a Teologia da Libertação e, assim, Medellín e Puebla se apresentaram como o lugar
onde seria gestada uma nova Igreja, efetivamente democrática – e isso implicava um
novo processo de comunicação. Nos anos 90, em Santo Domingo, no entanto, a
Teologia da Libertação já havia sido quase completamente desmontada – e a utopia
deixou de ser de libertação, para ser de televangelização. Será preciso, todavia, antes,
compreender o contexto sociocultural latino-americano que proporcionou um ensaio
daquilo que poderia ser uma teologia da comunicação latino-americana.
Paula Montero (1991) já havia dito que a Igreja latino-americana se
encontrava em uma encruzilhada quando percebeu que a modernização capitalística do
continente colocava a Igreja em pé de igualdade no mercado de bens simbólicos. Assim,
a disputa pelos fiéis se dava nos mercados de consumo e, nas sociedades que então se
dispunham ao desenvolvimento capitalista, os meios eletrônicos de comunicação
ganharam uma importância definitiva nesse imaginário do desenvolvimento. E então os
fiéis são engendrados como consumidores de massa (cf.: MONTERO, 1991, p. 144). O
propósito é, portanto, inserir-se de forma eficaz no mercado. Se os meios de
comunicação passam a ter um papel central nesse mercado de venda do
desenvolvimento, a Igreja latino-americana se depara com o dilema: como transformar a
sua boa-nova em uma mensagem capaz de competir no mercado de bens simbólicos?
Como compreender fiéis, se outro sagrado lhes parecia mais atraente – e certamente
prometia uma recompensa mais imediata? Como lidar com fiéis-consumidores que,
como consumidores, são infiéis? A maioria dos analistas, como já vimos, inclusive a
34
Sobre isso, ver LÖWY, 2000, 56-134.
112
própria Paula Monteiro, aponta para a necessária mercantilização do sagrado e do
milagre midiático – inclusive para a colonização do religioso:
Num momento em que todos acreditavam nas teses da modernização, os
meios de comunicação apareciam como “instrumentos milagrosos” capazes
de transformar o homem subdesenvolvido num ser ambicioso e capaz. Eles
pareciam poder realizar rapidamente o que séculos de atraso e pobreza
haviam até então obstaculizado” (DELLA CAVA & MONTERO, 1991,
146).
Aqui, optamos pela perspectiva inversa: a sacralização do mercantil
justamente quando o sagrado se midiatiza.
35
Em todo caso, dilema era realmente
grandioso.
Naqueles anos de forte ação utópica, a América Latina acordava para o seu
papel subalterno na divisão do trabalho do capitalismo internacional. Os movimentos
culturais que afloraram no fim da década de 1950 e, sobretudo, durante a de 1960 dão
bem a dimensão desse espírito utópico.
36
Seria um exercício de ociosidade questionar
aqui a primazia desse movimento: se o espírito de libertação latino-americano foi
produto ou produtor da utopia cristã desenvolvida posteriormente pelo padre católico
peruano Gustavo Gutiérrez e seu clássico Teologia da Libertação. O fato inegável é que
a comunicação – que seja como negatividade, se se pensa no maquinário tecnológico
dos media – teve papel decisivo para esse espírito democrático e de libertação popular.
E é esse o espírito, entre o cristianismo e o marxismo, como nos lembra José Marques
de Melo (MARQUES DE MELO et alli., 2002) que forjaram não apenas uma política
da comunicação para a Igreja Católica, mas a própria teoria da comunicação de matriz
latino-americana, que comumente é denominada, como veremos adiante, de leitura
crítica de comunicação.
Como vimos, durante todo o período colonial latino-americano, as políticas
de comunicação eram definidas por cada Igreja, localmente, e segundo a diretriz traçada
desde o Vaticano. Em um período em que a temporalidade era vivenciada
tradicionalmente e a Igreja Católica ainda mantinha-se no centro da sociabilidade de
então, a política de comunicação era quase sempre apologética, centrada na autoridade
do padre como o pastor das almas, o comunicador da palavra da salvação e em sua fé
35
Alguns autores apontam nessa perspectiva, entre eles ASSMANN, 1989 e SUNG, 1989. Insiste-se, a
despeito de esta pesquisa dever grandemente aos autores citados, na ideia do elemento transcendental da
religião do cotidiano, ou seja, insiste-se no fato de a mercadoria ter se fetichizado de tal maneira, que se
mostra como valor transcendente – o novo sagrado, cuja manifestação tentaremos mostrar ao longo do
texto, adiante nesta tese.
36
Apenas como referência e apenas no caso brasileiro, ver RIDENTI, 2000.
113
(cf.: SOARES, 1988, 152). Quando do advento da consolidação da sociedade burguesa
e industrial; com a transformação dos meios de comunicação a distância em negócios –
incluindo-se o telex, o rádio e posteriormente a TV -, e com o advento do surgimento
das massas industriais urbanas, as ações católicas foram direcionadas para elas: cada
paróquia e cada padre se tornaram, mais do que simplesmente confessores,
verdadeiramente orientadores espirituais, num fenômeno descrito por Antônio Flávio
Pierucci e Reginaldo Prandi como montagem de balcão de serviços espirituais
(PIERUCCI & PRANDI, 1996). A tarefa agora era criar um canal contínuo de
comunicação com fiéis e não fiéis, ovelhas e desgarrados, para que os mantivesse por
perto, contra os perigos que se anunciavam – inclusive pela possibilidade de disputa no
mercado religioso. Foi nessa época em que a Igreja manteve diversos canais de rádio à
sua disposição, como visto no capítulo anterior.
O cenário sociocultural latino-americano modificava rapidamente, no
entanto. Logo, aquele fenômeno, já descrito, de intensa urbanização e de modernização,
na qual os aparelhos audiovisuais de produção, reprodução e circulação simbólica eram
centrais, acirraria a disputa simbólica no mercado religioso, ao mesmo tempo em que
expunha a situação miserável da maioria povo latino-americano. O quadro histórico
exigia um outro tipo de teologia, uma outra Igreja, uma atitude profética que fizesse da
Igreja um local para o impulso libertador em uma ambiente eclesial efetivo – ou seja:
participativo e horizontalizado. Esse era o caldo cultural que fervia quando da segunda
Conferência de bispos latino-americanos em Medellín, em 1968. Se havia desconfiança
com a modernização, havia também, como consequência, desconfiança em relação a
todo o aparato industrial, inclusive em relação aos media eletrônicos, vistos como
verticais e alienantes. Para a resistência cultural do povo latino-americano, uma geração
de católicos radicais utópicos, capitaneados pelo brasileiro Paulo Freire e sua pedagogia
do oprimido, lançaram mão de um circuito comunicativo que consideravam
verdadeiramente horizontal, democrático e dialógico.
37
A comunicação é vista portanto
como parte essencial dos processos de reprodução e mudança social.
O documento da Conferência de Medellín trata de forma explícita da
problemática comunicacional no n
º
16, intitulada exatamente Meios de comunicação
social, embora haja referência a eles em outros títulos. Trata-se do último título das
conclusões apresentadas, mas que conseguiu uma influência significativa em todos os
37
Sobre Paulo Freire, FREIRE, 1987; FREIRE, 1991; FREIRE, 1977, este como indicação mais próxima
do pensamento comunicacional mais sistematizado do educador.
114
demais documentos do relatório conclusivo (cf.: DARIVA, 2003, 487-96). O título é
dividido em três partes: I. Situação, em que se faz uma caracterização da situação de
comunicação e meios massivos no contexto sociocultural latino-americano; II.
Justificação, em que, a exemplo de documentos vaticanos, apontam-se os meios como
uma conquista humana e um dom de Deus e retomam-se princípios, além de lembrar o
surgimento de uma nova cultura midiática; e III. Recomendações Pastorais, que oferece
critérios sobre presença nos media, os usos dos media, produção de materiais, formação
do espírito crítico em relação aos conteúdos midiáticos. Para tanto, há clareza quanto ao
papel dos órgãos da Igreja para educação midiática, formação profissional e apropriação
de meios próprios dos católicos.
38
Como se vê, desde aqui se inicia o sequestro da
utopia: de fato, como relata Michel Löwy (2000), embora tenham feito bastante barulho
com os debates durante a Conferência, os religiosos radicais foram desde então
silenciados – pela modéstia das posições e o tom excessivamente otimista do discurso
das Conclusões da Conferência de Medellín diante de posições tão críticas dos radicais.
A hierarquia eclesiástica descobria os meios de comunicação – e definitivamente se
encantava com eles. Anos mais tarde, esse encantamento geraria frutos.
Houve, ainda assim, desde Medellín, ressonâncias da utopia democrática.
As indicações sobre a necessidade de experimentar novos circuitos comunicativos,
coma criação de micromídias – a comunicação alternativa, implementadas nas
Comunidades Eclesiais de Base – já indica, por si só, que havia, se não a compreensão
da necessidade de uma máquina ideológica para a criação de uma nova hegemonia –
bem entendido: democrática e horizontal -, certamente a compreensão de que o debate
sobre a comunicação e sobretudo a cultura midiática era central para a mudança social
desejada. As práticas então, inclusive com o fortalecimento dos órgãos de
desenvolvimento e das pastorais da comunicação, cuja proposta foi implementada em
1957, com Miranda Prorsus (PUNTEL & CORAZZA, 2007), era de consolidação de
uma comunicação popular – e houve um sucesso relativo. Tanto que uma das principais
pensadoras e ativistas dessa prática comunicativa alternativa, Joana Puntel, chama a
atenção para a possibilidade de a utopia se realizar – e a sua obliteração:
38
Trata-se do Departamento de Comunicação Social do Celam – DECOS-CELAM, e de organizações
eclesiais como a Associação Católica Latino-americana para o Rádio e a Televisão – UNDA-AL, o
Secretariado para a América Latina da Organização Católica Internacional do Cinema – SAL-OCIC, a
União Católica Latino-americana de Imprensa, UCLAP, e as Comissões Episcopais Nacionais de
Comunicação Social.
115
O documento Perspectiva do comunicador social (1974) (...) desqualificou os
meios massivos por seu processo vertical e unilateral de comunicação.
Considerou-os inadequados para a evangelização ou para a incrementação da
comunicação pessoal. Privilegiou, ao invés, os ‘minimeios’ como os únicos a
propiciar uma verdadeira evangelização (...) Por outro lado, as críticas aos
meios massivos foram mal recebidos em muitos círculos, particularmente
pelas organizações encarregadas da comunicação, por várias Conferências
Episcopais e pelo próprio Vaticano (PUNTEL, 1994, 121-2).
O sucesso das propostas de democratização da comunicação – e obviamente
da própria Igreja – foi a razão de sua derrocada. Ainda no início da década de 1970,
provavelmente como resultado da Conferência de Medellín – não em razão do relatório
com as conclusões, mas por causa das potencialidades geradas pelos debates e a adesão
que se seguiu -, o Vaticano mexeu suas peças no xadrez eclesiástico, procurando
neutralizar este tipo de heresia: a proposta de democratização. Iniciava, a partir de
Medellín, o movimento para colocar em xeque a Teologia da Libertação e todas as suas
propostas. O primeiro movimento foi impor a ala conservadora, afinada com o
pensamento eclesiástico, na direção do Celam (cf.: LÖWY, 2000, 58). O resultado desse
movimento seria visto na III Conferência do Celam, em Puebla, em 1979 – e bem mais
tarde, com a vitória final do pensamento vaticano, cuja ação se mostra na apropriação de
meios massivos de comunicação, e que tem na Canção Nova seu ápice.
Embora ainda presentes, os religiosos da Teologia da Libertação que, em
Medellín, tiveram alguma margem para manobras, foram quase praticamente
silenciados em Puebla. Apesar dos esforços de bispos progressistas em proteger e dar
voz e vez aos teólogos da libertação, o próprio documento conclusivo da Conferência
indica que a proposta de modernização eclesiástica foi a vitoriosa. Puebla e Santo
Domingo só fizeram reforçar a posição oficial da Igreja. E, mais: se em Medellín a
comunicação ganhou uma posição central, haja vista a leitura da modernização que se
fazia da América Latina quanto ao papel da comunicação social, nas Conferências
seguintes o tema foi tratado de modo protocolar e a rigor de maneira tangencial, com
ênfase na perspectiva instrumental para o desenvolvimento da evangelização – com a
mesma euforia em relação aos meios.
Pouca coisa mudou na V Conferência do Celam, ocorrida em Aparecida do
Norte, em 2007.
39
Há, de forma pouco sistematizada, uma reflexão sobre a onipresença
dos meios de comunicação social e sua cultura, que, inclusive, seriam responsáveis pela
crise contemporânea de sentido, seguida de crise moral e social (parágrafos 37, 38, 41,
43); e que a Igreja corresponde exatamente à transmissão de valores contrários àqueles
39
Ver http://www.veritatis.com.br/article/4844
116
transmitidos pelos media (parágrafo 57). A despeito disso, constata-se a necessidade de
evangelizar pelos meios de comunicação. Sobre isso, o documento diz expressamente,
no capítulo 99, item f, em um subtítulo denominado “Situação de nossa Igreja nesta
hora histórica de desafios”:
Tem-se desenvolvido a pastoral da comunicação social e mais do que nunca a
Igreja tem contado com mais meios de comunicação para a evangelização da
cultura, neutralizando em parte outros grupos religiosos que ganham
constantemente adeptos, usando com perspicácia o rádio e a televisão. Temos
rádios, televisão, cinema, jornais, internet, páginas de web e a RIIAL que nos
enchem de esperança.
Eis aí a novidade do documento: a RIIAL, segundo a página do órgão na
internet,
“é um projeto iniciado em 1987 desde o conselho Pontifício para as
comunicações sociais e o conselho Episcopal Latino-americano (CELAM)
para impulsionar a informatização e a cultura do uso das novas tecnologias na
missão da Igreja Católica na América Latina, chamada a comunicar na
sociedade atual.
40
Como reforça o documento do Dia das Comunicações Sociais de 2010, cujo
trecho foi acima transcrito, a Igreja Católica está preparada definitivamente para a nova
ambiência: a santa Internet. Púlpito para o areópago; areópago, só com púlpito - quem
detém os meios de produção e transmissão simbólica, detém a chance de dizer o que
será ouvido e dito. E então se vê que a velha utopia latino-americana de uma
comunicação horizontal em uma sociedade democrática foi definitivamente soterrada –
ou se desmaterializou nos bits da realidade virtual, esse novo paraíso dos crentes.
3. O velho testamento: as políticas (vaticanas) de comunicação católica no Brasil
O ainda maior país católico do mundo tem motivos de sobra para orgulhar-
se desse título também em relação às políticas de comunicação social. De fato, com
vimos em relação à América Latina, grande parte do que se apontou como novo no
continente foi gestado graças à participação ativa de religiosos e leigos brasileiros.
Porém, como ademais no caso latino-americano, as intenções foram solapadas pela
hierarquia eclesiástica – de maneira muito adequada aos interesses do patrimonialismo
brasileiro.
41
E essa história vem de longa data.
Como já havia narrado Ismar de Oliveira Soares (cf.: SOARES, 1988, 143-
295), tanto o pensamento como a prática comunicacional da Igreja Católica no Brasil
têm se mostrado bastante eficientes desde o período colonial – e, embora não haja
40
http://www.riial.org/nueva/portugues/quienes/que_es.php
41
Sobre o patrimonialismo brasileiro: FAORO, 2003; HOLANDA, 1996.
117
exatamente uma cisão entre o Brasil e Roma, pode-se dizer que há uma autonomia
relativa, sobretudo depois do Concílio Vaticano II. Soares aponta para três grandes
momentos históricos, que seguem de perto os momentos da política comunicacional do
Vaticano, tratada anteriormente: o primeiro, entre os séculos 16 e 19, foi caracterizado
por uma comunicação pelo espanto da quebra do monopólio cultural da Igreja Católica
com o surgimento da imprensa. A censura de Roma deu vezo às práticas autoritárias dos
senhores coloniais sobre a plebe brasileira. A rigor, como é mais do que sabido, a Igreja
Católica, tanto como catolicismo oficial, quanto na sua vertente popular, foi agente da
sociedade senhorial brasileira. No segundo momento histórico, entre a segunda metade
do século 19 e primeiros decênios do século 20, como também já foi tratado aqui, as
autoridades eclesiásticas brasileiras, seguindo orientações do Vaticano, fizeram da
Igreja um orientador espiritual: por um lado, ampararam as populações urbanas que
surgiram do primeiro movimento de desenraizamento das populações tradicionais
rurais; por outro lado, assumiram funções que as elites burguesas urbanas não tinham
condição de desempenhar para a população rural. A República instaurada sob os
auspícios positivistas separou Igreja e Estado, mas a velha proximidade se manteve –
bem como o velho patrimonialismo, agora com o verniz racionalista. Para exercer sua
tarefa educadora e normativa, além da mídia eclesiástica - templos, santuários,
procissões, festas -, as autoridades católicas lançaram mão dos novos media: a
imprensa, que os bispos usaram como medium preferencial de propaganda até meados
do século 20; e, quando foi possível, de rádios. Em ambos os casos, a proximidade com
o Estado brasileiro foi providencial, sobretudo em relação às rádios, cujo funcionamento
necessita de autorização estatal. O terceiro momento histórico apontado por Ismar de
Oliveira Soares compreende justamente o período de modernização brasileira: do
Estado Novo ao período de ditadura militar no Brasil. Foram tempos de adaptação da
Igreja local a uma estrutura social em movimento – inclusive em relação à estrutura da
Igreja, em seu período conciliar.
Aqui se delineia a autonomia relativa da Igreja no Brasil em relação ao
Vaticano – e nesse caso, não apenas os leigos e religiosos mobilizados em torno das
propostas libertadoras foram importantes, mas também uma posição firme de muitos
bispos brasileiros. Se houve, por parte do pensamento comunicacional eclesiástico
brasileiro, uma aproximação às diretrizes vindas de Roma quanto por exemplo uma
abertura aos meios de comunicação para a evangelização, por outro lado, a aceitação da
reflexão católica brasileira produziu o apoio da CNBB à chamada comunicação
118
dialógica – entendida aqui como um tarefa de preparação da opinião pública para a
cultura da mídia. Embora não sejam contrárias às diretrizes vaticanas, essas
proposições, como vimos, tinham em si o germe da mudança.
Também no Brasil, os agitados anos 1960 foram decisivos para uma política
de comunicação católica brasileira. Sob influência do Concílio Vaticano II e sua
promessa de mudanças profundas, alguns religiosos brasileiros começaram a utilizar – e
pensar - os meios de comunicação. Entre eles, destaca-se Romeu Dale, nomeado por
Dom Helder Câmara, bispo identificado com a ala progressista da Igreja no Brasil,
como assessor de imprensa da CNBB durante o Concilio Vaticano II (DALE, 1973;
DALE, 1969 e também PESSINATTI, 1998). É obra de Dale, juntamente com ativistas
da comunicação católicos, entre eles José Marques de Melo, a fundação da União Cristã
Brasileira de Comunicação Social (UCBC). O órgão teve grande influência na definição
das políticas comunicativas da Igreja no Brasil – e, para além delas, também nas teorias
de comunicação das escolas brasileiras. Porém, como aconteceu no restante da América
Latina, a autonomia parou por aí. O encantamento com as possibilidades midiáticas para
a evangelização fez da política de comunicação da Igreja no Brasil um aprofundamento
das diretrizes do Vaticano. Os debates se tornaram surdos: de um lado, pensadores e
ativistas da comunicação católicos, inicialmente, insistindo em uma comunicação
efetivamente horizontal e, posteriormente, procurando adequar a insistência – ou
necessidade – eclesiástica de possuir os próprios meios de comunicação ao formato
midiático, aos dispositivos midiáticos (AUMONT, 1993, 135-195). Trata-se então de
convencer a hierarquia a não enxergar os media como instrumentos apenas – mas como
mecanismos sociotécnicos que exigem inclusive uma tradução da liturgia. Essa luta, no
entanto, não precisaria ser travada: a própria Igreja Católica cuidaria para que isso
acontecesse.
Algumas autoridades católicas se esforçaram grandemente nessa
apropriação dos meios para a evangelização, entre eles o próprio Romeu Dale, Romeu
Alberti e Alfredo Novak, que se destacaram – aos olhos da Igreja - pelos seus
empreendimentos no setor dos meios eletrônicos de comunicação. Novak foi além:
organizou os Encontros Nacionais sobre Liturgia no Rádio e na Televisão. Outro nome
importante nesse processo de midiatização eclesiástico foi o monsenhor Arnaldo
Beltrami, chefe de assessoria de imprensa da CNBB e um dos primeiros a supervisionar
a transmissão da missa do domingo pela TV – a Santa Missa em sua casa, hoje
celebrada pelo padre Marcelo Rossi, é o mais antigo programa em rede nacional da
119
Rede Globo de Televisão, transmitido desde 1968. Beltrami, muito propriamente e
muito cedo viu a necessidade de conformar a missa televisada às exigências técnicas e
de audiência do próprio meio de comunicação. Esse empenho para utilizar os media
como propaganda da boa-nova católica guarda em si mais do que aquele otimismo em
relação aos media, como um contrassenso vindo desde o espírito crítico de Medellín;
guarda mais do que a falência de um projeto que animou os debates sobre a
comunicação e a Igreja nas décadas de 1970 e 1980 – que propunha uma Igreja mais
democrática justamente em razão de sua comunicação horizontal. Essa sanha em buscar
os meios de comunicação, mais do que tarefa primordial, tantas vezes repetida em
diversos documentos da Igreja, de evangelizar por todos os meios e que marca a
abertura católica ao mundo, a vitória da modernidade propugnada pelo Concílio
Vaticano II, guarda em si a marca da relação histórica entre o pensamento eclesiástico e
as elites brasileiras. Se não se pode negar a importância da Igreja Católica em diversos
momentos, inclusive na resistência e oposição à opressão, não se pode fechar os olhos
tampouco para o fato de, na evolução da relação entre Igreja e comunicação, a
apropriação dos meios – chamada, a nosso ver, impropriamente, de instrumentalização –
indica não apenas a permanência da vanguarda católica em relação aos processos
decisórios brasileiros, mas a sua intimidade com o poder patrimonialista. De qualquer
maneira, será necessário surpreender nos debates travados e em documentos da Igreja
brasileira sobre comunicação o que acaba de ser dito.
Como vimos, se houve a lufada, um perfume de democratização da Igreja
pelo processo de comunicação na Conferência do Celam em Medellín – e que foi de
qualquer forma neutralizado justamente pela azáfama de ter acesso aos meios, sobretudo
os eletrônicos -, esses ventos foram completamente dominados na Conferência de
Puebla. Uma obra, organizada por Clarêncio Neotti, frei franciscano que durante
muitos anos foi editor da Revista Vozes, pode nos dá as pistas do que seria o debate de
fundo e as efetivas práticas comunicacionais católicas no Brasil (NEOTTI, 1981).Trata-
se de uma coletânea de artigos sobre o capítulo dedicado à comunicação no documento
conclusivo da Conferência de Puebla, intitulado Puebla/Brasil: comunicação, um
estudo crítico.
O texto de abertura do estudo é assinado por Dom Luciano Metzinger,
bispo auxiliar de Lima e presidente do departamento de Comunicação Social do Celam.
Segundo Metzinger, Puebla mostrou-se ser inovador, já que, em todos os documentos
anteriores, a Igreja demonstrava ver a comunicação social como um meio para a
120
evangelização e que pela primeira vez percebeu-se seu verdadeiro sentido. O progresso
de Puebla, afirma o bispo, consistiria em perceber a comunicação como um fato cultural
e que por ela se estabelecem relações interpessoais e grupais e dela nascem diversas
sociedades culturais. Segundo Metzinger a comunicação passa a ser o próprio centro das
atenções, o lugar onde pulsa a vida (cf.: METZINGER, in: NEOTTI, 1981, 13-24).
Como se vê, ainda que seja apenas uma percepção ou uma teorização distante da
prática, a cultura midiática não é um fato alheio às autoridades eclesiásticas – e
certamente não será à própria Igreja. Tampouco a necessidade de compreensão dos fatos
culturais dos media, inclusive para a evangelização, escapa à percepção de Metzinger.
Para ele a comunicação, como ambiência cultural, se dá por meios de signos não eternos
e isso implica que deve haver uma expressão apropriada para anunciar o evangelho
pelos media. Trata-se então de montar uma máquina de transmissão paralela – mas para
isso é preciso se apropriar dos meios. Por outro lado, enquanto não houver uma nova
hegemonia católica, e ao lado da evangelização pelos meios, a Igreja precisa estar atenta
aos malefícios da cultura midiática. Para tanto, como forma de ação, o bispo propõe: i)
formação em comunicação social dos aspirantes a sacerdotes, colocando essa formação
no curriculum normal dos estudos, e dos agentes de pastoral; ii) formação crítica dos
públicos; iii) estudo da linguagem; iv) uso global dos meios de comunicação social,
tanto massivos como grupais. Embora haja, com efeito, uma disjunção em relação às
propostas de democratização do processo comunicativo advindas de críticos católicos,
não se pode dizer que a hierarquia eclesiástica fosse cega às questões levantadas por
essa mesma crítica. Não se trata, como veremos, de ausência de compreensão – trata-se
efetivamente de uma política de comunicação eclesiástica, uma escolha mais apropriada
aos interesses da Igreja – enfim, uma teologia da comunicação.
Dois dos principais pensadores da comunicação católica – o padre
dominicano Romeu Dale, um dos fundadores da UCBC, e o professor Ismar Soares -,
mesmo observando que o documento de Puebla pouco avançou em relação a Medellín,
acabam por fazer ressoar o que foi dito pelo bispo do Celam. Romeu Dale (DALE, in:
NEOTTI, 1981, 51-6) observa, muito propriamente, talvez antecipando uma frustração
ainda maior por vir, que as políticas e práticas no campo dos meios de comunicação
social no Brasil estão estagnadas àquela altura. No entanto, diz Dale, em certas
propostas ela caminhou, e destaca alguns órgãos como a Cineduc – Cinema e Educação
- e a UCBC, iniciativa de vanguarda, que, criada por um grupo de católicos que
trabalhavam nos meios de comunicação social, passou a congregar, além de sacerdotes,
121
religiosos e leigos, cristãos de outras igrejas, profissionais, professores, pesquisadores e
estudantes de comunicação. Tratava-se efetivamente de um grupo importante de
pesquisa e proposição de práticas e políticas de comunicação. Porém, diferentemente do
que aponta Dale, o problema não é a falta de interesse da Igreja em escutar as propostas
- o problema é da natureza da própria Igreja, que não pode abrir mão de sua condição de
pastoreio, sob o risco de se dissolver enquanto a instituição que existe para esse fim.
Isso será retomado posteriormente.
Foi a UCBC que gestou outro dos principais nomes do pensamento e prática
católica. Ismar de Oliveira Soares (SOARES, in: NEOTTI, 1981, 57-64), talvez ainda
sentindo no ar o perfume que o fez vislumbrar uma real comunicação, nos moldes
propugnados por Paulo Freire, e não apenas transmissão, indicava o caminho da
necessária formação – de líderes católicos, para a comunicação, e dos cristãos para os
produtos da indústria cultural. Em um caso e em outro, todavia, não há, a rigor, uma
radicalização com o discurso apresentado pela hierarquia da Igreja. Vê-se, além disso e
sobretudo, que se trata de um medium – ou máquina de criar sociabilidades pela
transmissão simbólica – espreitando a outra: a primeira, a Igreja, como máquina da
tradição e do assentar-se no eterno, desde sempre querendo utilizar a segunda, máquina
burguesa de transmissão do consumo como valor. É nessa medida que é possível
entender os dois órgãos citados por Romeu Dale: o Cineduc, como o próprio nome
indica, pretende preparar os receptores para a recepção. A UCBC foi um importante
órgão para a democracia na época da ditadura militar no Brasil – compreendendo
democracia como acesso às liberdades civis, e não necessariamente a aspectos de
autonomia, subjetivações ou emancipação coletiva. Trata-se enfim de órgãos que a rigor
ressoam tantas e tantas posições oficiais da Igreja. As posições que aqui se delimitam
indicam, sim, uma crítica, mas não se pode dizer que sejam posições contrárias. O jogo
espiritual não é páreo para a apropriação dos meios de produção simbólica proposta no
seio da Igreja.
Embora, como dito anteriormente, seja compreensível, muito além do real
deslumbramento causado pelos media, o uso das tecnologias de reprodução simbólica
por uma instituição que tem como tarefa primordial o anúncio e a profissão, não se pode
negar que as posições, criticadas, do Vaticano pouco a pouco prevaleceram – e não foi
por imposição. Embora Hugo Assmann (1986), então um atento e presente teólogo da
libertação que iniciava, logo depois de Puebla, sua reflexão sobre a comunicação e os
media, tenha questionado firmemente a eficiência da apropriação dos meios como tele-
122
evangelização, Puebla, ao menos no Brasil, dava asas a tal solução. O bispo Romeu
Alberti (ALBERTI, in: NEOTTI, 1981, 65-71), responsável pelo setor de liturgia da
CNBB, é claro nesse esforço eclesiástico para ocupar os meios de comunicação. Sua
preocupação é em adequar a liturgia ao rádio e à TV – pois que sem as “fronteiras
materiais de um templo, uma assembleia litúrgica mais heterogênea, mais anônima,
mais dispersa, mais numerosa e, muitas vezes, mais angustiada”, (idem, 68), era preciso
correr para que o mundo midiatizado não carecesse do evangelho cristão. Mais do que o
uso simplesmente – a angústia, o desenraizamento são um produto da própria circulação
simbólica midiática, a que a igreja deve se contrapor -; mais do que o uso dos meios
contra tais sentimentos (o que, vale dizer, significa colocar-se em uma contraposição
moral), aqui se anuncia, de forma sub-reptícia, a entrada, reclamada, da Igreja na cultura
e socialidade das mídias. Isso talvez indique que não há contraposição entre as teorias:
meios e mediações, púlpito e areópago são, a rigor, teorias complementares. A Igreja,
portanto, portadora de uma verdade a ser transmitida, apenas se movimenta como um
pêndulo entre o púlpito e o areópago. Mais tarde, será discutido como a moralidade do
consumo é assumida pela transmissão midiática da Igreja: essa é a condição de ainda se
fazer ouvir, apesar do discurso contrário. O problema está na defesa de uma moralidade
da hierarquia, como se estabelece a moralidade da mercadoria: o corpo é valorizado,
mas como um espelhamento de um outro consumível, e ao mesmo tempo há uma
valorização – tanto lá quanto aqui – do virtual, do imaterial, do espiritual. A formação
para a luta moral talvez não seja de fato suficientemente forte para essa batalha.
Os documentos da CNBB sobre comunicação (cf.: DARIVA, 2003, 515-70)
dão, igualmente, a dimensão dessa batalha ideológica com pouco fruto material – já que
os discursos oficiais se renovam ao se apropriarem das críticas, que se mostram afinal
epidérmicas. O teor dos documentos episcopais brasileiros segue de perto as propostas
oficiais do Vaticano – e eles quase sempre apontam para a necessidade de evangelizar
pelos meios, mas ressalvando a disposição moral da máquina de fé católica para se
contrapor a eles, meios, divulgadores de uma moralidade perigosa. Ou, para ser mais
fiel ao conteúdo dos documentos: a contraposição se dá entre a moralidade e a
imoralidade. Já em 1974, a CNBB publica um documento sobre a pastoral da eucaristia,
em que glorifica o uso dos meios de comunicação massivos. No item 1.4.9., intitulado
Liturgia de televisão e rádio, o texto diz:
1.4.9.1. Apesar do escasso uso que a Igreja faz dos MCS, as missas são
frequentemente transmitidas e a quantidade de pessoas que sintonizam tal
123
programa não é indiferente. Esse fato repercute de modo decisivo na
renovação litúrgica.
1.4.9.2. Sabendo que a participação está condicionada à transmissão, é de
suma importância que se explorem todas as possibilidades tanto do ponto de
vista técnico como litúrgico.
Neste sentido, a preparação técnica de liturgos, como a iniciação litúrgica de
técnicos se faz indispensável.
1.4.9.3. Não é suficiente televisionar ou irradiar uma missa. Os MCS têm
exigências tão decisivas que só uma liturgia preparada adequadamente
poderá atingir os objetivos a que se propõe um esforço neste campo da ação
pastoral.
A liturgia não pode ignorar as chances que os MCS lhe oferecem, mas as
exigências próprias deste mundo técnico não devem obscurecer o autêntico
sentido da liturgia (DARIVA, 2003, 516).
O ano era 1974 – e as críticas presentes depois de Puebla já eram
incorporadas. Havia, portanto, no mínimo, uma prática de interlocução - ou, ao
contrário, poder-se-ia dizer que tais críticas se deram pela não realização do discurso –
pelo distanciamento entre o discurso e as ações efetivas. Isso é plausível. Porém, não se
pode negar que a apropriação deixa a claro a ineficiência das críticas, por um lado, e,
dada sua ineficiência, que a tarefa de educação proposta não apenas não se cumpriu,
mas não se cumpriria pelo simples fato de o princípio mesmo não estar sendo tocado:
educar para a comunicação implica um reposicionamento da instituição de fé, que não
poderia acontecer sem uma radical destruição das bases sobre as quais ela, a Igreja
Católica, se sustentou e se sustenta. De qualquer maneira, o trecho em destaque deixa
claro que a tarefa da Igreja é se colocar não como concorrente, mas como máquina
simbólica – da verdade – que, propagando a boa-nova, irá se apresentar como um lugar
seguro em um mundo imoral.
Dez anos depois, no 7º Plano bienal dos organismos (1983/1984), isso se
torna ainda mais claro (cf.: DARIVA, 2003, 522-526). Em sua linha 6, título 3 (Setor de
Comunicação Social – Orientações para a ação), o texto, demonstrando mais uma vez
a proximidade com as reflexões e críticas feitas comumente, sobretudo em relação à
instrumentalização dos meios, diz:
No esforço de contribuir para a realização do Objetivo Geral da Igreja no
Brasil, o Setor Comunicação Social procura fazer com que, tanto os
comunicadores como os usuários, tenham consciência da realidade e da sua
responsabilidade diante da mesma. Dessa maneira, intenta provocar
transformações, visando à libertação integral do homem e da sociedade.
Porém, isto só será possível através de uma Pastoral da Comunicação, que se
realiza em três momentos:
– através dos meios de comunicação, buscando expressar-se com a
linguagem do veículo, da área e do receptor, sendo voz dos que não têm voz
e abrindo espaço aos que não a têm;
124
– nos meios de comunicação, levando a Igreja a ser uma presença
evangelizadora entre os profissionais, procurando conseguir “uma ordem
mais humana e mais justa na Comunicação” (NOMIC, 1982).
– “diante” dos meios de comunicação, promovendo a formação do povo para
que tenha uma atitude crítica diante do impacto das mensagens ideológicas,
culturais e publicitárias. Neste sentido, é de importância continuar apoiando e
assessorando grupos especializados que atuam junto a escolas, oferecendo
elementos que facilitem o trabalho de formação da consciência crítica dos
alunos (DARIVA, 2003, 522-3).
O espírito – controlado – de Puebla, bem como todos os esforços críticos
presentes nas reflexões de brasileiros a partir de Puebla foram completamente
contemplados no documento – inclusive a esperança de uma Nova Ordem Mundial de
Informação e Comunicação, que sonhou com uma participação democrática dos povos
em um novo mundo. Tratava-se de uma luta ideológica, todavia – e, como sempre, ela
careceu de meios materiais de transmissão para a construção da hegemonia. O mesmo
não acontece com a política efetiva de comunicação adotada pela Igreja e explicitada no
documento da CNBB. Chamam atenção algumas passagens: primeiro, a convicção
materialista de que uma pastoral da comunicação deve se dar “através” dos meios, “nos”
meios e “diante” dos meios. É importante perceber como há uma primazia dos meios,
sem que isso signifique abrir mão da cultura, da mediação. Isso ocorre, como nos indica
o início do trecho destacado, porque a Igreja deseja retomar a hegemonia – mas aqui se
deve salientar não apenas o fato de essa hegemonia se oferecer pelos media, mas
principalmente, como medium, ela precisa, a fim de alcançar os objetivos que o mundo
forjado pelos media lhe coloca, manter-se firme na tarefa de evangelização de um tipo
de sagrado – e não outro. A relação ambígua entre púlpito e areópago é, senão, uma
teologia e, assim, uma eclesiologia.
Essa posição se mantém nos documentos seguintes e naqueles que se
marcaram como a preparação para a virada do milênio: os documentos da CNBB de nº
56, intitulado Rumo ao novo milênio: Projeto de evangelização da igreja no Brasil em
preparação ao grande Jubileu do ano 2000 (CNBB, 1996); e o de nº 59, intitulado
Igreja e comunicação rumo ao novo milênio (CNBB, 1997; DARIVA, 2003, 552-67).
No documento 56, há uma retomada das posições constantes em outros
documentos da CNBB e do Vaticano, bem como do Celam. Um capítulo chama
atenção: em “Impacto da modernidade”, há uma reflexão, extemporânea, sobre o
desenraizamento da população rural e seu êxodo para as áreas urbanas. Segundo o texto,
há, nesse êxodo, a perda do sentido comunitário. O resultado disso para a religião é um
comportamento individual e privatizado, que mistura elementos da antiga devoção dos
125
santos e algumas práticas sacramentais. Mais adiante, há uma reflexão sobre o papel dos
media nesse processo de desenraizamento. Para a CNBB, a forte religiosidade do povo
vem encontrando acolhida em novas formas de organização religiosa, que se sustentam
na busca do maravilhoso e do emocional, na oposição do bem contra o mal. Trata-se, na
verdade, de uma rejeição do mundo moderno e uma nostalgia da tradição rural. Trata-se
de uma nostalgia alimentada pelo processo de secularização, que separa diversos setores
da sociedade da religião e da ética. Um dos responsáveis por isso são justamente os
meios de comunicação, que, difundindo a cultura do consumismo e do individualismo,
reforçam a criação de pequenos grupos fechados, sem qualquer vínculo institucional e
com a luta pela justiça social. Há portanto uma formulação teórica sobre os tele-
evangelizadores protestantes – mas também sobre movimento de católicos renovados e
sua Canção Nova, então iniciando seu caminho rumo à hegemonia entre os católicos.
Como se verá depois, quanto à Canção Nova não há que se preocupar.
Não obstante, há, na sequência, uma orientação para a utilização dos meios
de comunicação. O mundo da comunicação, diz o documento é um areópago moderno.
É preciso, por isso mesmo, desenvolver mais a presença pastoral junto aos
comunicadores e formadores de opinião. Aqui, mais uma vez, púlpito e areópago são
assumidos como, senão sinônimos, certamente complementares. De qualquer maneira,
fica demonstrado o esforço do episcopado brasileiro em dominar os meios e sua cultura
com o propósito, legítimo, de continuar a ser protagonista na formação do Brasil. A
questão é saber que Brasil está sendo criado.
Já no documento 59, há uma preocupação patente: a formação do
comunicador cristão – dos praticantes e dos não-praticantes. Também há uma
preocupação em sistematizar os estudos sobre a comunicação da igreja para que se
possa desenvolver e consolidar uma política de comunicação eclesiástica. Propõem-se
rever os modelos e práticas de comunicação da Igreja no Brasil, tanto no campo das
relações interpessoais, grupais e organizacionais, quanto no uso dos instrumentos ou
meios de comunicação na tarefa evangelizadora. Aqui, ganha peso especial a
necessidade de que a Igreja disponha de circuitos de mídia massiva. Aponta-se para a
necessidade, além disso, de aproveitar os espaços de mídia disponíveis – trata-se
claramente de uma preocupação de resgate do espaço de propaganda.
Como plano de ação, o documento propõe, entre outras mídias – impressas,
rádio e internet – especificamente para a televisão: i) apoiar a iniciativa de implantação
de canais de televisão, especialmente a Rede Vida de Televisão e ii) sugere a ampliação
126
do leque da programação da Rede Vida, de modo a alcançar não apenas os fiéis que já
frequentam os espaços eclesiásticos e eclesiais, mas também populações afastadas da
igreja.
Estamos em 1997 e o documento anuncia o novo milênio. A estranha
sensação de déjà-vu talvez indique a morosidade de uma instituição que se move
segundo a eternidade; ou, mais propriamente, que as questões se avolumaram de forma
efetiva ao longo dos anos, sem que houvesse uma resposta célere, como é exigido. Mas,
de qualquer forma, a conclusão de Joana Puntel (1994) parece se cumprir dia a dia: na
Igreja oficial a luta pela democratização da comunicação parece estar indo para trás. Há
aqui a novidade todavia – e que só comprova a percepção algo melancólica de Joana
Puntel: a Rede Vida de TV. E novamente se estabelece o conflito – que, parece, é
insolúvel: Liana Gottlieb narra o esforço de Ismar de Oliveira Soares em transformar a
Rede Vida em um mecanismo de diálogo com toda a sociedade, e não apenas em meio
de propaganda institucional. Diz a autora a respeito de Soares:
Na verdade, esta é a tese que sempre defendeu: as Igrejas precisam dialogar
com a sociedade e o conseguirão somente quando souberem sair de seu
próprio universo e promoverem um discurso aberto e inteligível com os
vários setores que compõem o universo mais aberto das relações sociais.
Cita, para ilustrar seu pensamento, dois exemplos extremos: a comunicação
realizada pela Pastoral da Criança, da CNBB, centrada em temas de interesse
de toda a sociedade e a comunicação mais intimista e voltada para um certo
catolicismo internalizado, promovida pela Rede Vida de Televisão.
(GOTTLIEB, 2002, 4).
Pelo tom, houve a óbvia frustração do professor Ismar quanto a tornar a
Rede Vida de TV aberta ao diálogo. Mas, se se pode dizer de vingança, tampouco a
Rede Vida teve os seus objetivos atingidos. A julgar pela hegemonia conquistada pela
Canção Nova e sua TV junto aos católicos, não só houve o cumprimento de uma
promessa. Fez tudo aquilo o que se propôs a Rede Vida, como TV oficial, e mais: abriu-
se ao diálogo com o mundo – das políticas de identidade, do corpóreo utópico, do
consumo redentor. Resta saber para onde irá a utopia não realizada dos críticos desse
modelo de comunicação – e afinal de Igreja: de sagrado.
4. Em busca do dialógico perdido
No último capítulo de sua obra Do santo ofício à libertação, referência para
os estudos de comunicação da Igreja Católica, de 1988, intitulado O caráter
essencialmente dialógico da nova teoria cristã da comunicação, Ismar de Oliveira
Soares lembra o costarriquenho Francisco Gutiérrez, para quem “uma comunicação
somente será cristã se for simultaneamente: histórica, dialógica, periférica, verídica,
127
veraz, biofílica, interpessoal, participativa, libertador, eficiente e humana” (apud
SOARES, 1988, 378). Ismar Soares concorda com o autor e diz que todos os atributos
distintos por Gutiérrez dizem respeito à comunicação dialógica, retirada da teoria de
Paulo Freire. Soares, no entanto, faz uma ressalva: “Não se pode assegurar que a
comunicação dialogal esteja incorporada no discurso oficial da Igreja na América Latina
ou na prática da grande maioria dos agentes qualificados” (ibidem, 379). Há, desde
título, algo melancólico – o que a rigor irá se comprovar na prática. O caráter
essencialmente dialógico da nova teoria cristã da comunicação: há uma aproximação
entre a essência e a nova teoria. Isso implica assumir, por óbvio, que a velha – ou
tradicional ou, nesse caso, usual - teoria cristã não é essencialmente dialógica. Assim,
nenhum dos qualificativos apontados por Francisco Gutiérrez pode ser atribuído à real
teoria da comunicação cristã? Ou que a teoria – e a prática – comunicacional cristã
(católica) é idealista, autista, centralista, inverídica, inautêntica, biofóbica, autocrática,
autoritária, carrasca, ineficiente e desumana? Não nos cabe responder – mas interessa
saber a razão de as teorias de comunicação verdadeiramente cristãs não mais
radicalizarem – e aceitarem passivamente, ou, para sermos mais justos,
pragmaticamente, o que antes era julgado inaceitável.
Contemporânea e parceira de Soares, a religiosa paulina Joana Puntel, uma
importante atora tanto nas reflexões quanto nas críticas às políticas de comunicação
católicas, redigiu um estudo, também importante, que foi apresentado como um
inventário dos esforços da Igreja Católica latino-americana para a configuração de uma
doutrina da comunicação democrática, participativa e pluralista. Estamos em 1994 e o
texto foi apresentado por José Marques de Melo. Tratava-se de uma percepção,
autêntica, de que era da Igreja Católica o inventário. Isso significava que ainda se via,
no seio da Igreja, a despeito da luta a ser travada, uma chance de que haveria a
disposição para a democracia. Puntel, em seu trabalho, faz um esforço de pesquisa
considerável, para apontar caminhos, estreitamente vinculados à ideia de libertação, de
uma comunicação horizontal, dialógica, democrática. Sobre isso, diz a autora:
Segundo o meu ponto de vista, este tipo de discussão sobre a comunicação
alternativa, como um processo participativo, e sobre o sujeito da mudança
social leva-nos a considerar duas saídas possíveis. Primeira, se alguém vê a
comunicação popular como uma luta para competir com os meios de
comunicação comerciais, tal luta seria sem perspectivas desde o começo, já
que não há equilíbrio de forças nesse combate. No entanto, se entender a
comunicação popular como um processo participativo para os movimentos
populares, cooperativas, movimentos feministas, CEBs etc., e se se
compreender a mídia alternativa como uma forma de criar maior consciência
128
e mobilizar o povo na busca de uma mudança, então a comunicação popular
se torna o terreno para a análise de práticas e experimentos de uma ação
coletiva. Em outras palavras, a comunicação popular desenvolvendo uma
democratização da comunicação, visa a uma transformação a partir de baixo
(PUNTEL, 1994, 265-6).
A tarefa de democratizar os processos comunicativos – ao lado dos media
comerciais, ou seja, a despeito e contra eles – se dava, como era de se supor, como
democratização no interior da Igreja. Isto, ainda que não fosse essa a perspectiva da
autora, implicava assumir a Igreja como meio de produção e reprodução simbólica.
Democratizar os processos comunicacionais implicava democratizar os processos de
produção simbólica no interior da Igreja: uma teologia, uma eclesiologia – enfim: a
construção de um outro sagrado. O tom, porém, era de serenidade. Para Joana Puntel, a
batalha estava sendo lenta e progressivamente perdida, segunda ela, pelas constantes
intervenções da hierarquia da Igreja, a substituição de bispos progressistas ou
nomeações de conservadores para cargos importantes e lugares estratégicos e, por
consequência, redução do espaço de participação da base da Igreja (cf.: PUNTEL, 1994,
271).
Menos de 20 anos depois, quando de uma edição comemorativa daquilo que
seriam os 50 anos das Pastorais da Comunicação, a perspectiva modificou
completamente. Na obra, redigida a quatro mãos pelas paulinas Joana Puntel e Helena
Corazza, chama-se a atenção para equívocos conceituais comuns nas décadas de 1970 e
1980, sobretudo a corrente que concebe a comunicação segundo a perspectiva
tecnológica apenas – obliterando os aspectos de ambiência: culturais, sociológicos,
antropológicos. Dizem as autoras, apontando para modificações de concepção
importantes:
Daí a superação do discurso da década 1970-1980, quando se perguntava se
seria a “pastoral dos meios” ou, ainda, “pastoral nos meios”. Nesses casos, a
pastoral era reduzida a “difundir a mensagem, a garantir o adequado fluxo de
informações, a facilitar espaços para que a opinião dos pastores e dirigentes
se faça ouvir...”, como também “a usar os recursos técnicos na produção e
divulgação de mensagens.” Assim como afirma Ismar de O. Soares, a gama
de metas sintetizava dois objetivos básicos: informar e persuadir (PUNTEL
& CORAZZA, 2007, 22. Itálicos originais).
O diálogo do texto era com outro, redigido por Ismar de Oliveira Soares, em
1989, intitulado Pastoral da comunicação: além dos meios e mensagens. Tratava-se de
uma autocrítica, evidentemente. O texto de 2007 continua:
Entretanto, a necessidade efetiva de uma Pastoral da Comunicação, que
inclua o trabalho dos meios ou nos meios, está sendo concretizada aos
poucos, e com muita dificuldade. Trata-se de superar a “visão simplesmente
pragmática”, força que advém dos próprios documentos da Igreja, que
129
incentivam a considerar a comunicação não simplesmente reduzida à técnica,
mas como uma cultura. Importa conceber a comunicação como um fenômeno
global, que se conjuga com tantos outros aspectos da vida social e eclesial
(ibidem).
Aí estava traçado o novo caminho da comunicação católica – ou, antes:
cristã. Tratava-se efetivamente de superar equívocos. E, pela forma como os argumentos
foram construídos, inclusive este, construído por José Marques de Melo, em um livro
organizado, em 1985, por Ismar de Oliveira Soares e Joana Puntel, um importante
produto da União Cristã Brasileira de Comunicação Social, intitulado Comunicação,
Igreja e Estado na América Latina:
Nas sociedades, os modos de comunicação refletem os modos de produção.
Quem detém o controle dos meios de produção detém também a propriedade
dos meios de comunicação. E, naturalmente, determina o modo hegemônico
de comunicação. Essa lição de História aplica-se plenamente às instituições.
As práticas de comunicação dominantes estão intimamente articuladas às
estruturas de poder. Os fluxos de interação simbólica refletem os mecanismos
de controle social e político. Analisar as práticas de comunicação das Igrejas
latino-americanas significa entender como se estruturam politicamente tais
organizações religiosas e como se exercem ali os mecanismos de poder
(MARQUES DE MELO, in: SOARES & PUNTEL, 1985, 59).
Eram outros os tempos. Na obra, há textos dos teólogos da libertação
Leonardo Boff e Hugo Assmann, sobre, ainda, a necessidade de modificar a estrutura
feudal da Igreja Católica para que houvesse de fato democracia, inclusive na
comunicação, já que são fenômenos inextrincáveis. Com efeito, todavia, esse discurso
era de uma época quando ainda se escrevia história com maiúscula. A cultura da mídia
embaralhou tudo: ficção e realidade não são agora identificáveis. O problema é admitir
isso a priori para uma instituição da verdade, como o é a Igreja. Seria temerário e
leviano da parte deste texto dizer que a superação de posições teóricas – que inclui essa,
defendida por Marques de Melo de outros tempos – é a mostra definitiva da adesão a
um tipo de discurso marcado pelo relativismo absolutista das ideologias pós-
modernistas. Porém, não se podem negar as consequências – teóricas e práticas – dessa
superação, desse aparato conceitual além dos meios e das mensagens. Isso implica
tentar seguir de perto as mutações teóricas – com o risco de injustiça: pretende-se aqui
apenas iniciar o debate, não esgotá-lo -, ao menos dos principais atores principais
presentes no ato, até agora: Ismar de Oliveira Soares e Joana Puntel.
O que deveria ser superado como modelo teórico era o chamado
reducionismo dos estudos sobre a ideologia da cultura midiática, advinda da corrente
marxista da crítica da comunicação cristã, e sobretudo uma recusa da Teologia da
Libertação a tudo o que advinha do sistema midiático como manipulação ideológica
130
burguesa – como ademais, como vimos e trataremos mais tarde, de toda forma de
tecnologia como impossibilitadora da real emancipação humana. De fato, para continuar
a pensar a comunicação, seus produtos, sua cultura, era preciso pensar além desse
paradigma. Foi o que fizeram Soares e Puntel.
Ismar de Oliveira Soares tem, segundo Liana Gotllieb (2002), três fases
distintas em seu pensamento comunicacional, que seguem de perto a superação da mera
instrumentalização dos meios e das mensagens: i) a busca de uma teoria para a
comunicação cristã; ii) a busca de uma prática alternativa para a comunicação popular e
iii) a busca de um estatuto teórico para a inter-relação comunicação-educação. Note-se
que, a rigor, há uma continuidade, uma evolução sem rupturas no pensamento de
Soares, inclusive no que diz respeito às propostas das décadas que seriam superadas
como modelo teórico e que fazem parte do ideário humanista da Igreja para a
comunicação: a preparação para a resistência dos receptores. Nesse caso, sempre pelo
ideário de Paulo Freire, há uma ocupação com o perfil dos profissionais – ou sua
profissionalização – em comunicação, não apenas católicos, uma vez que se tratava de
criar práticas alternativas de comunicação popular. Há portanto a manutenção do ideário
de democracia participativa e comunicação dialógica. Trata-se então de, ao superar o
modelo de meios e mensagens, criar mecanismos de micro resistências no interior do
sistema. O problema está em abrir mão justamente do conceito de sistema – e
consequentemente de modelos que associem aquilo apontado por Marques de Melo: a
relação existente entre a emancipação e a apropriação dos meios de produção –
simbólicos e não simbólicos.
A outra modificação do arsenal epistemológico que aponta para a
superação foi promovida por Joana Puntel. Trata-se de uma postura teórica que sustenta
a de Soares e é dela desdobramento, e diz respeito ao conceito de mediação
desenvolvido sobretudo por Jesús Martín-Barbero, teórico com grande impacto nos
estudos de Comunicação na América Latina. A novidade trazida por Martín-Barbero
(1997) foi dotar de poder o receptor: a produção simbólica do receptor é, a despeito e
porque é invisível, dotada de potências criativas impossíveis de serem planejadas pelos
sistemas dos formatos industriais, ou seja, pela indústria cultural. Martín-Barbero dá
especial atenção à televisão, justamente por ser a mídia mais poderosa do continente. A
tarefa dos estudos da recepção é compreender e valorizar os rituais de semantização
social dos conteúdos simbólicos industriais na criação de uma cultura de negociação
com a cultura hegemônica. Por outro lado, tais estudos da ambiência da cultura
131
midiática – e nesse caso há a nova aproximação (jamais houve cisão) entre Joana Puntel
e Ismar de Oliveira Soares – vão conceber uma espécie pedagogia da recepção, de modo
a criar metodologias de educação midiática para a resistência. Vê-se como a ideia de
horizontalidade do processo de comunicação está presente, uma vez que se trata de
ensinar aprendendo: a metodologia de educação midiática implica perceber, nos estudos
de recepção, como se dá essa resistência. E vê-se como tal metodologia, então a ser
aplicada nas Pastorais da Comunicação, ganha, segundo o parceiro de Martin-Barbero,
Orozco Gómez (1997) diversas nomenclaturas: recepção crítica, leitura crítica dos
meios, recepção ativa, educação para a comunicação, alfabetização televisiva, educação
para a recepção. Na verdade, são momentos diferentes de uma pedagogia mais ampla.
Se parece estranha uma pedagogia que retira dos próprios receptores a matéria do
ensinamento para a recepção – a rigor e de fato, trata-se da ampliação da proposta
pedagógica de Paulo Freire -, é embaraçoso pensar em uma política de comunicação
que, se não nega os meios, os coloca em uma posição marginal. Abre-se mão, com
efeito, por mais estranho que se possa parecer, justamente do conceito de hegemonia,
que, como nos ensina seu conceptáculo, o arsenal marxista de Gramsci, é o esforço pelo
consenso, de modo que a opressão seja vista como um projeto de emancipação aos
olhos dos oprimidos. E, de qualquer forma, a opressão se dá como obliteração ao acesso
aos meios de produção – tal como expresso naquele trecho de Marques de Melo
destacado acima.
Por que ocorreu essa superação – da forma como ocorreu? Há duas
possibilidades hipotéticas: a primeira, que diz respeito à diminuição da margem de
manobra dos teóricos da comunicação democrática – o que implica a luta pela
democratização dos meios de produção, incluída a própria Igreja. A outra possibilidade,
e que diz respeito diretamente à anterior, é de fato uma tentativa de superação pelo
marco teórico, como chama a atenção Joana Puntel no texto destacado acima. Nesse
caso, há que se questionar se a diminuição dos espaços eclesiásticos não está
diretamente relacionada com a ausência de uma posição mais incisiva da crítica da
comunicação. Então será preciso adentrar a própria teoria que foi buscada como o
marco para a superação e verificar se nela não falta algo que sobra na posição que tem
na TV Canção Nova seu mais visível edifício: o conceito de totalidade.
Ao buscar superar o modelo teórico da teoria crítica, advinda do marxismo,
e ao apontar para, sobretudo, as teorias da recepção latino-americanas, abre-se mão de
compreender o sistema midiático e a realidade em sua totalidade. Porém, como nos
132
mostra Celso Frederico, a própria teoria da recepção deita suas raízes no marxismo, e
não haveria qualquer necessidade de superar a ideia de totalidade. A partir do debate
acerca do método entre Lazarsfeld e Adorno, Celso Frederico nos chama a atenção para
esse embotamento da categoria de totalidade, advinda das escolas empiristas
estadunidenses, de que, grande parte, as teorias da comunicação, inclusive esta, da
superação, são tributárias:
Falar em “totalidade”, para o pensamento pragmático do empirismo, é referir-
se a uma abstração, um jargão de filósofos metafísicos. Mas não é difícil
compreender como, de fato, existe uma totalidade e como ela se impõe à
nossa vida cotidiana. O próprio Adorno nos oferece um exemplo. Ele diz:
para saber o que é um operário é preciso saber “antes” o que é a sociedade
capitalista. Um olhar imediato apenas constata que aquele indivíduo é um
trabalhador. Mas, como tal, ele não se distingue de outros trabalhadores,
como o escravo e o servo da gleba, personagens do mundo escravista e
feudal. Mas, também, não se distingue de um trabalhador autônomo da
sociedade capitalista. Somente um conhecimento prévio da totalidade (a
sociedade capitalista), aquela em que vigora o trabalho assalariado, permite
definir com exatidão o que vem a ser um operário (FREDERICO, 2008, 162).
Seria absurdo associar simplesmente as teorias empiristas de Lazarsfeld aos
estudos de recepção latino-americanos, de que surgem as novas teorias cristãs da
comunicação. A questão é, justamente ao contrário, perceber como se lastreiam tais
teorias não em contraposição, como a rigor parecem ter se estabelecido, ao conceito de
totalidade e à necessidade epistemológica que ela carrega. O que nos interessa é como a
recusa da categoria de totalidade resvala na acepção de mediação, cara aos recentes
estudos da comunicação latino-americanos e onde se sustenta a superação do modelo
teórico cristão.
Assim, é necessário perguntar se a busca pelo dialógico perdido não passa
por trazer de volta a ideia de totalidade encarnada na de mediação, presente de forma
peremptória tanto no trecho destacado de Marques de Melo, quanto na ausência – ou no
silêncio obsequioso – de figuras como Hugo Assmann nas reflexões contemporâneas
sobre a comunicação cristã. E principalmente, se se recusa, como parece, o modelo de
comunicação adotado de forma exemplar pela TV Canção Nova, será preciso questionar
o que ela significa para a totalidade do mundo contemporâneo – inclusive para a própria
Igreja, cujas políticas e práticas de comunicação vencedoras são materializadas pelo
complexo midiático, capitaneado por sua TV, da Canção Nova.
133
CAPÍTULO III
O EPISCÓPIO:
Uma análise da TV Canção Nova
Dar-te-ei as chaves do reino dos céus;
o que ligares, pois, na terra será ligado
nos céus, e o que desligares na terra
será desligado nos céus (Mateus, 16:19)
Este capítulo, o último da primeira parte da tese, “da produção”, pretende
analisar a programação da TV Canção Nova. Para tanto, além de uma visão geral da
grade de programas, há uma análise mais sistematizada a partir de um corpus,
constituído por programas que foram indicados, na pesquisa quantitativa, como os mais
assistidos pelos entrevistados. Os corpora para análise, todavia, indicam não
exatamente os programas mais assistidos – a saber: missas e terços. Optou-se por
analisar programas não advindos do medium católico tradicional – e não obstante é
necessário que se os compreenda como uma atitude própria do maquinário tele-
evangelizador católico da TV Canção Nova. Em outras palavras: a ausência das missas
e terços como corpus de análise indica tão-somente que, excetuando a opção
metodológica que os preteriu, trata-se de apontar, no corpus, o movimento próprio de
que se reveste o catolicismo da Canção Nova: ao buscar um diálogo com o mundo e a
cultura contemporânea, o que se dá pela cultura midiática, sem perder a dimensão
tradicional do catolicismo, a TV Canção Nova só faz esconder o maquinário de
produção e transmissão simbólica de que dispõe, para chamar a atenção exclusivamente
para o líquido e leve material simbólico que projeta.
Por isso, foi proposta, como título do capítulo, uma imagem que faça justiça
ao que se pretende construir: episcópio. Tirante um não sutil jogo de palavras entre a
imagem e episcopal, relativo aos bispos, trata-se de compreender de que forma a TV
Canção Nova reforça não apenas uma teologia da comunicação que separa as instâncias
de produção e de recepção simbólicas para a realização de seu pastoreio, mas sobretudo
como há de fato, ainda que de forma involuntária, um reforço da sacralização da forma
de sociedade criado pelo capital: trata-se de compreender como a imaterialidade
simbólica dos programas analisados ganha materialidade mundana e, ao contrário, como
134
imaterialidade da igreja midiática a um só tempo se materializa como signo e, assim,
como luta social e, por outro lado, como se dá a materialização da própria máquina
eclesiástica e sua manipulação naquela que é a mais talentosa e visível TV católica – a
TV Canção Nova. Em outras palavras, como será aprofundado nos capítulos seguintes,
como a criação do consenso, da hegemonia, implica o poder de manipulação do
maquinário de produção e reprodução simbólica.
É nessa medida que se deve compreender o sentido de episcópio: trata-se de
um aparelho para projetar imagens e objetos opacos, que utiliza luz refletida no objeto e
um sistema ótico de projeção constituído por uma colimadora e uma objetiva.
Colimador é um sistema ótico, com que se colima um feixe de raios luminosos; um
sistema ótico que propaga a imagem de um objeto no infinito. E, finalmente, colimar
possui os sentidos de mirar, observar; pretender, visar; e tornar paralelas ou quase
paralelas as trajetórias das partículas de um feixe de luz. O episcópio então carrega
consigo tanto o sentido de “supervisão”, o que o aproxima de episcopal – uma vez que
não há ruptura, mas reforço da cultura católica em sua totalidade como TV Canção
Nova; quanto, ao mesmo tempo, carrega a força que chama atenção apenas para o feixe
de luz projetado desde o objeto opaco – obliterando a posse exclusiva do poderoso
maquinário de produção e transmissão simbólicos construído com o esforço coletivo e a
louvável capacidade de convencimento de MS Jonas Abib. Há ainda, no sentido do
episcópio, em seu funcionamento, a necessidade de colimar feixes de luz – de torná-los
paralelos. É assim que a TV Canção Nova, ao projetar o seu sagrado no infinito pelo
aparelho midiático televisivo, carrega consigo, por força técnica, e de forma paralela,
como que lhe assegurando o conteúdo, o sagrado capitalístico, que se movimenta
igualmente no esforço de apagar o maquinário de produção daquilo que é projetado
como pura imaterialidade.
É assim que as narrativas sobre a criação do poderio da Canção Nova
interessam: miraculosas, elas também funcionam como um episcópio, que colima – e
oblitera – o verdadeiro potencial humano: o de criar sua própria vida. Por isso, para
chegarmos aos programas da TV Canção Nova, será necessário recuarmos até as
narrativas sobre a criação do sistema Canção Nova, além de passarmos pelo poderio
construído por mãos humanas – mas projetado ao infinito como um milagre que
provoca milagres.
135
1. O carisma - ou: como o sujeito faz a história
42
A atendente, responsável por apresentar a estrutura Canção Nova, em sua
sede em Cachoeira Paulista, e direcionar as pessoas que a procuram, estava orientando
uma jovem mulher, que, pelo diálogo que travavam, estava realmente desorientada,
fragilizada. Esta é a principal razão da Canção Nova – seja em sua sede, seja pelos
demais meios de comunicação, os eletrônicos: atender e auxiliar no desespero
contemporâneo; ou, numa referência pascalina universal, que muito se ouve dos
peregrinos, orientar humanos miseráveis, porque todo humano é miserável.
Insatisfeita com a resposta obtida, a peregrina desesperada mostrou-se
irritada e saiu, à procura das respostas que lhe satisfariam imediatamente. Parece, com
efeito, uma contradição que tenha havido tal situação justamente em uma comunidade
católica criada pela “aliança no espírito santo” e cujo carisma é a evangelização pelos
meios de comunicação.
É preciso compreender a Canção Nova em geral e a TV Canção Nova, em
específico, como um desdobramento da Renovação Carismática Católica (RCC). É bem
verdade que a Canção Nova, por seu carisma mesmo, ultrapassou, e muito, as
pretensões da RCC, mas não se pode dizer que a Canção Nova deixou de ser
carismática.
As “comunidades de aliança e vida no Espírito Santo” são grupos de oração
compostos por pessoas que se reúnem para a louvação e se dedicam intensamente a
obras sociais. As narrativas sobre isso são tocantes. Há relatos sobre o desprendimento
caritativo dos carismáticos, que não se furtam em levar miseráveis para dentro de suas
casas. Os membros desses grupos são forjados em uma espécie de consagração
religiosa. Organizados naquilo que chamam de comunidades de vida, eles passam a
compartilhar recursos financeiros, residem juntos – e são submetidos a uma rígida
disciplina moral. Há todo um ritual de aceitação paulatina de novos membros, que
devem ser iniciados nos carismas do grupo para serem enfim consagrados (MARIZ,
2006). A Canção Nova é a primeira e maior dessas comunidades de aliança e vida a se
formar no Brasil, a partir do trabalho pastoral – e incansável – de MS. Jonas Abib com
doze jovens leigos, no município de Queluz, próximo a Cachoeira Paulista, escolhida
42
As informações desta parte podem ser confrontadas com CHALITA, 2006; ABIB, 2000; e
http://comunidade.cancaonova.com/ (acesso em 19/01/2010). Há, igualmente, muito de história oral,
ouvida dos peregrinos e telefiéis do sistema de comunicação Canção Nova, que, confrontada com a
historiografia oficial, pode ser comprovada.
136
posteriormente como sede do sistema de comunicação Canção Nova. Atualmente, a
comunidade Canção Nova está presente em onze unidades federativas brasileiras e
mantém as chamadas “casas de missão” em Portugal, Itália, França, Estados Unidos e
Israel, países que também recebem o sinal da TV Canção Nova (ABIB 2000;
OLIVEIRA 2004; BRAGA 2004).
É segundo essa organização que se deve compreender o diálogo entre a
atendente da Canção Nova e a peregrina em busca desesperada por um alívio moral. No
confronto entre as duas está também a ambiguidade que se estabelece: a caridade
desmedida não implica necessariamente partilha, mas doação. Sabe-se que, para que
haja doação, é necessário que uns tenham de mais, outros, de menos. É assim também
que se diferencia o carisma dos consagrados e a vida comum dos que precisam de ajuda
e orientação. Esse foi o quadro que se viu no embate angustiado, de parte a parte, entre
as personagens. A peregrina desejava uma resposta imediata para suas angústias, mas a
atendente poderia apenas mediar a situação e encaminhar a fiel para um dos
consagrados, que por sua vez atendem e orientam melhor - porque o fazem para um
sem-número de pessoas - pelos meios de comunicação do que imediatamente.
Essas são situações comuns, no entanto – afirma a atendente que, entre a
complacência e algum aborrecimento, volta a sua atenção para o pesquisador, que não
demanda mais do que aquilo para o qual ela foi contratada: orientar e, caso haja
necessidade, contar a história da comunidade, de seu fundador, MS. Jonas Abib, e do
poderio material mobilizado para o pastoreio de espíritos – desesperados ou
simplesmente em busca de um porto seguro identitário. A atendente é uma das muitas
pessoas contratadas nas diversas funções exercidas na estrutura da Canção Nova. Os
comunitários congregados, os que de fato participam da Canção Nova, não têm a missão
de recepcionar. O contato com o público, a partir de uma hierarquia, pode ser realizada
por meios de comunicação ou nos diversos estabelecimentos comerciais – lojas, clube
de evangelização etc – no interior da Canção Nova.
O diálogo que se segue ocorreu entre a atendente, no esforço de
cumprimento de sua função, e o pesquisador:
(...) a Canção Nova, ela surgiu, foi fundada pelo MS Jonas, né, por meio de
da compra... De encontros que tinha, que era o arredão. Não sei o senhor já
ouviu falar. Que acontecia lá na... em Lavrinha, em Queluz. Então, conforme
foi aparecendo esses encontros, foi tendo necessidade de ter um local pra se
realizar, né, nos finais de semana. Moças e rapazes que queriam fazer esse
encontro. Aí, tinha um fazendeiro lá em Queluz, onde ele cedeu, nos finais de
semana, pra poder realizar os encontros. Aí, MS Jonas, conforme foi, viu a
necessidade de ter um local mesmo noss... da comunidade para fazer o
137
encontro, né? Aí, ele procurou o dono, se quisesse vender... Isso, lá em
Queluz. Mas ele disse que no momento que não. Aí MS Jonas jogou uma
medalhinha de Nossa Senhora lá na fazenda. A medalhinha que ele sempre
faz isso. Ele olha, pra onde ele vai ou tudo que ele, que a comunidade
precisa, ele vai e joga uma medalhinha de Nossa Senhora. Passou o tempo, o
dono ofereceu a fazenda para o Monsenhor. Aí o Monsenhor comprou com
muito custo. Aí que foi a primeira casa da comunidade, onde eram realizados
os encontros. Daí, Monsenhor veio... Sabe onde era aquele prédio da TV,
anexo ao TI [tecnologia da informação]? Lá era a rádio Bandeirantes. MS
Jonas comprou sem ter dinheiro até pra pagar, não sabia como. Daí, nasceu o
clube do ouvinte. Só que a rádio era pegada só na cidade. Daí que foi
comprar o gerador pra fazer todo... [alongando as sílabas], pra pegar na
região inteira. Daí, MS. Jonas... Surgiu o sistema de comunicação, que é
rádio, TV, web, né? Aí, aquele pedaço lá MS Jonas comprou. TI, rádio. Aqui,
eram umas chácaras vizinhas. Não sei se você conhece a área. Na verdade,
isso era uma chácara vizinha. Monsenhor Jonas também jogou a medalhinha.
Aí ele comprou essa parte. A única estrutura no começo foi ali, a Casa de
Maria, que é mantida desde o começo. Não tem nenhuma modificação. Aí,
Monsenhor Jonas, num encontro, propôs aos jovens quem quisesse viver
durante um ano a serviço de Deus. Daí, surgiu doze, né, entre eles Luzia
Santiago, eles vieram com o Monsenhor morar nessa casa, né. E ele viu quem
sabia conviver. Depois, esse prédio aqui da... A infraestrutura, conforme foi
viajando, né, crescendo, vieram pra cá. Hoje, a Casa de Maria é oração.
Depois que os membros saíram daqui, veio o confessionário. Aí, como foi
crescendo, construíram o confessionário aqui. Daí, depois, o passo foi... o
gerador, né, da TV. Aí foi e pediu novamente [a N.S. Aparecida],
compraram. Daí a TV, ela pega em todo, praticamente em todo o país, né.
Aqui na região, a rádio. Hoje, tem todo o sistema de comunicação. Né. Aí,
nasceu a ermida da Mãe Rainha. Monsenhor Jonas, quando ele foi visitar o
padre Antônio Maria, ele se consagrou a Maria. Prometeu que ia construir
uma capelinha e a ermida. Então, tem a capelinha de Nossa Senhora. Aqui
tem a estrutura das pousadas. Hoje, alguns funcionários moram aqui nessas
casas, mas a maioria mora fora porque não tem espaço pra tá construindo
aqui dentro.
Mas as casas são de quem? São da comunidade ou dos próprios
funcionários?
Não, é tudo dos funcionários. Aí tem o auditório São Paulo, agora. Ali, é os
casos mais avançados, se você quer um atendimento, assim, ou você vai
direto na Casa de Maria. Hoje o todos... A Canção Nova tem mil e
duzentos funcionários, mantidos pela fundação. Tudo aqui é mantido pelo
shopping. Tudo o que é vendido aqui é revertido para a obra.
São quantos funcionários?
Olha, se eu não me engano, são dois mil e pouco.
Só aqui?
No Brasil todo. Onde tem mais é aqui, que é a sede. Tem algumas casas,
Brasília, tem algumas. Mas aqui é onde estão a maioria. Tem um ou outro
espalhado por aí, porque quando é mais longe assim, aí vão os consagrados
(Silmara, recepcionista da Canção Nova, Cachoeira Paulista, Caderno de
pesquisa, 2010).
43
Chama a atenção no discurso de Silmara – o que explica grande parte do
diálogo com a peregrina que busca, desesperada, uma resposta imediata para seus
problemas -, muito além da fabulação miraculosa em torno da criação da Canção Nova,
as idas e vindas, os silêncios do discurso. É isso o que se nota no trecho “Aí, MS Jonas,
43
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Acampamento da Sobriedade.
138
conforme foi, viu a necessidade de ter um local mesmo noss... da comunidade para
fazer o encontro, né?” Há uma sensação ambígua, própria da relação estabelecida com a
Canção Nova, seja por funcionários, sejam pelos peregrinos ou pelos moradores de
Cachoeira Paulista, que reconhecem sua importância, mas a detratam e acusam seus
líderes de enriquecimento. Aqui, no discurso da atendente, essa ambiguidade está
presente no ato falho e sua correção: ela pertence e não pertence à Canção Nova.
Pertence, como desejo e como funcionária, mas logo percebe que deve manter a
distância – que aliás é exigida pelos membros consagrados: eles rigorosamente
cumprem uma missão e os contatos com o “público” se dá no estritamente necessário.
Eles, os consagrados, porque iniciados, sim, podem dizer que é “nosso” o local; a
Silmara, sem o carisma e sem o ritual de iniciação, o espaço é “da comunidade” de que
ela faz e não faz parte. Por isso o seu incômodo com uma peregrina que exigia dela mais
do que sua função prometia – exigia um milagre instantâneo; um milagre como o
narrado, de forma espontânea, em todas as ocasiões, para explicar o crescimento da
Canção Nova; um milagre atribuído à perseverança de MS. Jonas Abib. A
personalização das ações de Abib, portanto, se dá em razão desse ímpeto pelo milagre –
o que, ademais, seria perfeitamente compreensível em se tratando de um líder religioso
carismático, que buscava, mais do que renovar a Igreja Católica, transformar-se no
catolicismo hegemônico.
A história narrada por Silmara, então, é apenas mais um relato entre os que
cercam e dão sentido à Canção Nova. Nessa personalização e na fabulação miraculosa
das narrativas, se esconde justamente a ambiguidade do catolicismo midiatizado da
Canção Nova: seu diálogo com a cultura hegemônica contemporânea na tentativa de
resgatar uma hegemonia católica perdida. Para tanto, há o relato centrado em uma figura
histórica que, não obstante, reparte sua aventura com o milagre divino que representa.
Consegue com isso apenas desnudar o carisma que carrega: o aprofundamento da
hierarquização católica transmudada pelo star system da cultura midiática capitalística.
Vale então a pena ouvir um pouco da aventura de MS Jonas Abib na construção do
império da Canção Nova.
O ano era 1978, quando o padre salesiano Jonas Abib, cuja ordem tem como
missão a evangelização de jovens, assumiu a tarefa de construir um maquinário de
propaganda católica que dialogasse com o tempo presente. Ele, um padre-cantor de
relativo sucesso, iniciado na carreira para se curar de uma gagueira (CHALITA, 2006),
e animador de jovens em retiros espirituais da então nascente Renovação Carismática
139
Católica, convenceu doze jovens para iniciar a jornada de uma comunidade católica
reunida para evangelizar pelos meios de comunicação.
Nascido em São Paulo, em 1936, Jonas Abib, já seminarista, descobriu-se
pneumopático e, para tratar-se, foi transferido para o clima serrano de Lavrinhas, no
Vale do Paraíba; em seguida, para Piquete e Lorena, onde participou de um encontro
dos Focolares,
44
que lhe deu, pela ideia de unidade, o combustível para criar sua própria
comunidade autossustentável. Eis aí o primeiro “milagre” narrado por MS Jonas Abib:
sua relação com o Vale do Paraíba e o encontro com Jesus, pelo Focolares (cf.:
CHALITA, 2006, 109-131). Os relatos, de qualquer forma, dão grande peso à patologia
do padre missionário, o que lhe garante algum lastro na cristologia oficial.
Estávamos em meados dos anos 1960 – e a RCC ensaiava os primeiros
passos, nos Estados Unidos. Logo, o movimento despontaria no Brasil, mas seus ares já
podiam ser sentidos.
Depois da missão de evangelização pela música, Jonas Abib, em 1968,
organizou os primeiros encontros com jovens – e era lançada a semente de uma árvore
frondosa em que se transformou a Canção Nova. Novamente, segundo o relato oficial, a
doença lhe atravessou o caminho – e com ela, Deus. A narrativa pormenorizada da vida
de Abib segue o mesmo trajeto daquela, tecida pela atendente Silmara: feita de saltos
que garantem sentido unitário; construída para garantir o caráter miraculoso de todos os
eventos. E dessa forma é narrado seu encontro com a Renovação Carismática Católica.
No final de 1969, Abib descobriu-se tuberculoso e se transferiu para um
sanatório em Campos do Jordão e, em seguida, novamente para Lorena. Nessa cidade,
Jonas Abib disse ter recebido o “xeque-mate de Jesus”: em 1971 o padre estadunidense
Haroldo Rahn, que trouxera a Renovação Carismática Católica para o Brasil, ofereceu
um encontro para os seminaristas de Lorena “sobre a efusão e os dons do Espírito
Santo” (CHALITA, 2006, 197). Assim relata, em biografia, MS. Jonas Abib:
Como nunca deixei de crer em milagres, uma mudança começou dentro de
mim. Comecei a ouvir falar do que o padre Haroldo Rhan andava fazendo.
(...) Corriam rumores de que padre Haroldo estava fazendo um encontro do
Espírito Santo, algo assim. Estavam acontecendo coisas novas (...) Dom
Irineu Danelon, na época no instituto de Filosofia de Lorena, convidou padre
Haroldo a fazer (...) um retiro para os seminaristas salesianos (...) O encontro
era um dia só. Padre Haroldo pode fazer pouca coisa. Isso era final de 1971.
Contou que houve, lá nos Estados Unidos, um maravilhoso derramamento do
Espírito Santo, e que isso estava acontecendo também em outros lugares. Era
44
Fundado pela italiana Chiara Lubich, morta em 2008, filha de pai socialista, o Folcolares é um
movimento eclesial católico que, a partir da ideia de unidade, desenvolve ações em política, economia e
cultura em diversos países. Tem forte maquinário de propaganda.
140
a chamada Renovação Carismática. Falou dos dons do Espírito Santo, de
pessoas que oravam em línguas, pessoas que oravam para a cura e pessoas
que eram curadas. Era tudo muito fantástico. Fui bebendo o que estava sendo
apresentado. O interessante é que eu não conseguia compreender. Mas
alguma coisa em mim estava de acordo com aquilo (...) Renovação que vinha
do carisma do Espírito, não com o objetivo de ser um movimento apenas, um
movimento festivo que atraísse mais e mais pessoas para a Igreja, mas vinha
com a proposta de fazer com que a Igreja permanecesse em movimento
(CHALITA, 2006, 198; 199; 200; 206).
Estavam lançadas as bases para a constituição da Comunidade Canção Nova
– inclusive a necessidade material. Os encontros com jovens, ainda com o carisma
próprio não desperto, aconteceram em locais improvisados e em torno da ideia de
evangelizar pela música. Daí a Canção Nova. Em 1976, uma fazenda em Areias, na
região do vale do Paraíba, sediou os encontros – e inaugurou uma marca importante do
discurso que obliterava a história do extraordinário poder de mobilização de MS. Jonas:
tudo o que se conseguia se dava em nome da “divina providência”. Assim “dois anos
depois, Deus providenciou um objetivo maior e a primeira Casa de Missão, batizada de
Canção Nova - a Casa de Maria, começou a ser construída, em Queluz” (CHALITA,
2006, 211).
Com as bases lançadas, com a mobilização efetivada, havia necessidade de
um último carisma – o que ocorreu a partir de 1976, ano em que o então padre Jonas
Abib recebeu a missão de seu bispo, Dom Antônio Afonso de Miranda, na época bispo
de Lorena, de colocar em prática a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi:
Evangelização no Mundo Contemporâneo, assinado pelo Papa Paulo VI em 1975. O
documento, já estudado, conclamava os católicos, mas especialmente a hierarquia da
Igreja, pela evangelização de “milhões de pessoas por intermédio dos meios de
comunicação”. Os ventos do Concílio Vaticano II ainda sopravam, todavia – e os
religiosos, católicos leigos, foram intensamente mobilizados nessa tarefa de construir as
condições para a evangelização eletrônica. Era o que se necessitava. Os jovens que
participavam dos encontros de evangelização foram chamados a deixar a suas vidas para
se entregarem à vida comunitária.
Seguindo a risca o que propunha o documento apostólico, a Canção Nova
não pararia de crescer – para que fossem colocados, a serviço do Evangelho, os meios
de comunicação de massa que poderiam ampliar,
quase até o infinito, o campo para poder ser ouvida a Palavra de Deus e fazer
com que a Boa Nova chegue a milhões de pessoas. A Igreja se sentiria
culpável diante de Seu Senhor se ela não lançasse mão desses meios potentes
que a inteligência humana torna cada dia mais aperfeiçoados. É servindo-se
deles que ‘apregoa sobre os terraços’ a mensagem de que ela é depositária.
141
Neles encontra uma versão moderna e eficaz do púlpito. Graças a eles
consegue falar às multidões (Evangelii Nutiandi, 45).
Estava escrito: a Canção Nova, pelo poder da providência, seria
efetivamente catholicus – e MS. Jonas à frente, pessoalmente, carregando consigo a fé
no poder dos humanos em construir o mundo. É assim que ele deixará um legado
profundamente humano – mas que é constantemente alienado em nome da providência.
Em 1979, “os enviados do Senhor”, que haviam adquirido terrenos, inclusive uma
chácara, a Chácara Santa Cruz, em Cachoeira Paulista, providenciaram a construção de
quatro casas que serviriam de base para a comunidade na cidade. A comunhão em
espírito, todavia, tinha a missão maior de evangelizar pelos meios de comunicação – e
eles, um a um, foram sendo adquiridos. Desde então, a Canção Nova não parou de
crescer em poder de mobilização, em capacidade material de mover humanos.
2. Canção Nova: a incrível máquina de produzir humanos
45
Depois da aquisição da Chácara Santa Cruz, a comunidade comprou mais
terras adjuntas até alcançar os cerca de 372 mil m², onde fica o Centro de Evangelização
Dom João Hipólito de Moraes (para 70 mil pessoas), construído com a venda de ouro
arrecadado junto aos fiéis; o Rincão do Meu Senhor (para 4 mil pessoas); e o Auditório
São Paulo (para 700 pessoas). Além de capelas; posto médico; escola; restaurante;
padaria; postos bancários; lojas de artigos religiosos; pousada; área de camping e, no
entorno, prédios administrativos e obras sociais. A mais nova obra, também ela sendo
erguida com doação de ouro dos fiéis ao redor do mundo, é a monumental igreja Pai das
Misericórdias que, quando pronta, “terá capacidade para 10.000 pessoas com uma
fachada inteira de vidro, através da qual teremos a maravilhosa vista da serra da
Mantiqueira.”
46
É com essa estrutura que a agenda da Canção Nova realiza uma média
de 18 acampamentos por ano – sem contar os eventos como o kairós, que acontecem
aos domingos; e a Quinta-feira de Adoração. Ao total, estima-se que, anualmente,
visitem a sede dessa extraordinária obra humana cerca de 600 mil pessoas, vindas de
vários locais do Brasil e do exterior.
Toda essa estrutura é mantida por duas frentes: a doação dos quase 600 mil
sócios colaboradores, que contribuem, em média, com R$15, o que totaliza perto de
R$9 milhões mensais. O restante do orçamento mensal, que está perto de R$15 milhões
45
As informações podem ser conferidas em ABIB, 2000; ABIB, 2005; e
[http://comunidade.cancaonova.com/] (acesso em 19/01/2010).
46
Disponível em http://blog.cancaonova.com/eto/construcao-da-igreja-pai-das-misericordias/ (acesso em
19/01/2010)
142
e não para de crescer, é conseguido com a venda de produtos licenciados – em diversas
frentes de venda – e outras fontes diversas, como convênios com os poderes públicos. É
evidente que há dificuldades em fechar o orçamento – mas nem de longe o maquinário
de mobilização humana da Canção Nova se parece com aquele, tradicional, da Igreja
Católica, também ela movida a mobilização, persuasão e doação. A distância entre as
duas formas de materializar o imaterial está no maquinário midiático de que dispõem
uma e outra.
No caso da Canção Nova, trata-se justamente de seu carisma o que a
diferencia: ser um movimento de propaganda – e arrecadação financeira – em nome de
uma promessa, de uma transcendência. A Canção Nova possui atualmente 27 rádios
AM, FM e de ondas curtas - 80% desse sistema estão completamente digitalizados e
operam, por satélite, 24 horas por dia para todo o Brasil. A Rádio Canção Nova é a
geradora de programação para outras 191 emissoras (ABIB, 2005, 33-37).
Se a rádio é importante por seu pioneirismo e penetração, o sistema de
comunicação Canção Nova se sustenta de fato em sua TV. A rede de televisão Canção
Nova possui seis geradoras (Aracaju, Cachoeira Paulista, Belo Horizonte, Brasília,
Campos de Goytacazes e Florianópolis) e quatro produtoras (São Paulo, Rio de Janeiro,
Roma e Fátima). Sua programação chega aos milhões de fiéis-consumidores por meio
de seus 500 retransmissores com sinal aberto para antenas parabólicas, sinal aberto para
operadoras de canais por assinatura e pela presença em 200 operadoras de TV a cabo.
No esforço de internacionalização – ou universalização, segundo o princípio catholicus
que persegue -, seu sinal alcança os EUA, incluindo o Alasca, a Europa, o norte africano
e, na América do Sul, o Paraguai, o Uruguai e a Argentina (ABIB, 2005, 33).
É pela TV que a Canção Nova conseguiu se alavancar para se constituir
como a principal comunidade católica – e não só do Brasil – e aspirar, de forma
legítima, a ser a própria Igreja Católica. Isso não quer dizer que haja uma ruptura no
seio da Igreja – ao contrário: tudo o que a Canção Nova quer é ser reconhecida como
católica e, para tanto, se esforça não na ruptura, mas na propagação de posições oficiais,
sejam elas quais forem. O resultado disso – e, diga-se, de forma justa - foi o
reconhecimento apostólico, pelo Vaticano, em novembro de 2008, do estatuto da
Canção Nova. Tal reconhecimento significa que a sua missão vai estar a serviço não
somente da Igreja no Brasil, mas do catolicismo no mundo inteiro. Com efeito, o
reconhecimento pontifício foi muito comemorado pela comunidade Canção Nova – e
ademais, a se julgar pela importância e notabilidade que alcançou, também por
143
católicos, brasileiros ou não.
Sustentada pela TV Canção Nova, o sistema de propaganda católico lançou-
se nas águas ainda rasas do maquinário midiático contemporâneo. Dispõe também de
uma revista com periodicidade mensal – impressa e eletrônica -, distribuída aos “sócios-
evangelizadores”; o portal na internet que atingiu, segundo dados da própria página, 70
mil acessos em um único dia e mantém uma média de dois milhões de acessos mensais;
a webTV, a primeira católica do mundo; uma comunidade virtual na internet que conta
com mais cerca de mil participantes; uma “ilha” no site Second Life (com shopping
virtual); tecnologia Mobile, que permite a transmissão de músicas, fotos, imagens,
vídeos e pregações pelo celular, palmtops e iPods; um cartão pré-pago de celular, o CN
chama, que permite baixar, para o celular, conteúdos de evangelização. A Canção Nova
também produz e comercializa produtos como livros (perto de 1.300 títulos editados),
CDs e DVDs (com quase 450 lançamentos), além de contar com uma central de
atendimento telefônico, o call-center, que recebe, em média, 120 mil chamadas
mensais. O responsável por produzir todo esse material comercializável, grande fonte de
receita – uma vez que a marca Canção Nova se tornou uma grife importante, não apenas
entre católicos -, é o DAVI (Departamento de Audiovisuais), que conta com uma
estrutura multicanal de comercialização com iniciativas no varejo, atacado, porta-a-
porta, catálogo e e-commerce.
Tudo isso construído com o poder de mobilizar e forjar humanos – em nome
de uma divindade que promete proteção contra um mundo convulso, sem que haja
necessidade de abrir mão desse mundo. A promessa é interessante: o mundo sem as suas
angústias. Para conseguir isso, todavia, arrisca-se em transmitir uma forma sagrada que
julga combater – o sagrado capitalístico é mantido intacto não apenas em razão da
propagação simbólica, que constrói um mundo que cinde o espírito de seu corpo, mas,
sobretudo, como veremos, porque essa cisão ocorre em razão da obliteração dos meios
de produção simbólica e, é claro, com a fetichização, ao extremo, das mercadorias
comercializadas como pura abstração. O que interessa nesse caso não é tanto a produção
simbólica propriamente dita, mas a forma como os fiéis se apropriam dela para
consagrar o modo de produção capitalista, que paira, sempiterno, acima dos
programadores, apresentadores, dos fiéis – dos homens e mulheres que vivem em busca
de uma segurança e julgam encontrá-la no consumo simbólico transmitido pelos
inúmeros canais de comunicação do sistema Canção Nova – mas especialmente pela
TV.
144
De qualquer forma, é preciso louvar a força carismática de um humano que,
em nome de uma fé, sem negá-la e afirmando o mundo, propõe transformá-lo, o mundo,
pela fé. É de se louvar – e suas ações, sua potência de afirmação precisam ser miradas
como exemplares. O império que MS Jonas construiu, sua capacidade de mobilização,
de persuasão – ainda que não se possa perder de vista a estrutura social, que, como
vimos, vincula o catolicismo às formas de poder terreno, o que obviamente facilita a
vida de um, digamos, revolucionário -; esse império de propaganda grandioso tem sua
sustentação nas formas televisivas de transmissão simbólica, com grande penetração em
diversos estratos sociais. Vale então a pena ouvirmos, ainda que brevemente, as
narrativas sobre a consolidação da TV Canção Nova.
De forma muito semelhante ao que é relatado a respeito da consolidação da
rádio Canção Nova, a pioneira no sistema de comunicação, a TV Canção Nova também
é narrada como um drama cristão, feito de certeza, dificuldade, dúvida, oração,
perseverança, mistério, revelação e profecia – numa palavra: milagre. É o que se vê
pelas palavras de MS. Jonas Abib, em seu relato sobre a criação da TV:
No Rebanhão de 1989, Orlando (...) da equipe de Serviço da RCC em
Cruzeiro, SP, tinha pedido a um senhor, que desenhava e pintava muito bem,
que fizesse um painel para o fundo do palco. Inspirado, fez uma torre de
rádio no morro da cidade de Cruzeiro e, saindo da torre, o rosto de Cristo. O
rosto, bem pequeno, saía da torre e ia crescendo até “explodir” com o rosto
de Jesus em um tamanho bem grande (...) No sábado à tarde, no começo do
Rebanhão, cheguei para a missa. Quando entrei, vi aquele quadro à minha
frente, e algo muito lindo aconteceu dentro de mim. Então eu disse: “Meu
Deus, agora não dá mais para voltar!”. Num relance vi tudo o que estava ali.
O artista não tinha feito uma torre de rádio. O que ele fez foi uma torre de
televisão. Da torre de rádio não sai imagem, sai som (...) Repeti: “Não dá
mais para voltar!” No início Deus foi dando inúmeros sinais de que queria
não só programas de rádio, mas uma rádio. Agora Ele vinha trabalhando por
dois anos em nosso meio para que entendêssemos que, além da Rádio, queria
que tivéssemos uma televisão (...) Apesar dos sinais, eu tinha medo! Já
tínhamos enfrentado muitas dificuldades na Rádio... e esse Rebanhão foi logo
depois de o transmissor ter se incendiado. Nessa época, após o incêndio,
vimos a glória de Deus! Vimos que o povo se levantou e não somente
substituiu o transmissor que tinha se queimado, mas conseguimos um
transmissor muito melhor que o anterior. (...) Aconteceu o Rebanhão.
Orlando tinha deixado pra fazer uma única coleta no último dia. Houve as
despedidas. Fui a orar com o pessoal da cozinha no final do encontro.
Orlando me entregou uma nota de um dólar dizendo: “Padre, apareceu na
sacola. Quando o pessoal foi juntar o dinheiro, um dos encarregados, que a
encontrou, não sabia que tipo de nota era (...)” (...) Ele e eu pensamos a
mesma coisa: “Sinto que esta nota é para o começo da televisão”. E disse-
lhe: “Quando se entra para a televisão, não se compra nada em dinheiro
brasileiro. Para esse tipo de compra, tudo é na base do dólar”. Peguei a nota
e escrevi: “Semente de mostarda da TV Canção Nova que o Senhor vai
fazer crescer - Rebanhão/89, na coleta” (ABIB, 2000, 77-79. Itálicos e
negritos originais).
Pelo poder de Deus – e do dólar -, a TV Canção Nova foi fundada em
145
dezembro de 1989. Diferentemente das demais TVs católicas – salvo pela TV
Aparecida, criada em 2004 - não existem inserções publicitárias que não sejam aquelas
que vendem os produtos com a marca Canção Nova. Conta hoje com um número de
retransmissoras instaladas que lhe garantem cerca de 55 milhões de telespectadores. Em
1997, formou-se a Rede Canção Nova de Televisão com a compra da TV Jornal, em
Aracaju, ano em que também nasceu projeto Dai-me almas, um agressivo programa de
arrecadação financeira e venda dos diversos produtos e serviços religiosos. Em 2007, a
TV Canção Nova se estabeleceu como a maior emissora de televisão católica do Brasil.
O céu é o limite.
3. Visão geral da programação da TV Canção Nova
Embora não seja o objeto desta pesquisa, é inevitável, já que trataremos,
neste tópico, da programação da TV Canção Nova, que haja uma problematização
sobre a televisão, seus formatos e seus gêneros. Tratar de programação implica apontar
para uma grade de programas, organizado industrialmente segundo os públicos-alvo e
os gêneros discursivos que se relacionam a aspectos de comunicabilidade. Há, todavia,
entre os estudiosos desse medium, uma grande dificuldade em estabelecer critérios para
classificação de programas e gêneros. Raymond Williams (2003, 78-118), por exemplo,
questionou até mesmo o conceito de programa, por considerar que, na televisão, não
existem unidades fechadas ou acabadas, que possam ser analisadas separadamente do
resto da programação. Em lugar do conceito de programa, ele contrapôs o conceito mais
dinâmico de fluxo televisivo, em que os limites entre um segmento e outro não são mais
considerados tão marcados como em outros meios:
Em todos os sistemas mais desenvolvidos de radiodifusão, a forma
característica de organização e, consequentemente, a experiência mais
marcante, é a sequência ou fluxo. O fenômeno do fluxo planejado, portanto,
talvez seja a marca definidora da radiodifusão, simultaneamente como
tecnologia e como forma cultural (WILLIAMS, 2001, 86).
Talvez por isso, Williams prefira apontar para formatos televisivos – que
carregam consigo as marcas da tecnologia de produção, circulação, distribuição e, por
fim, consumo simbólico. Williams propõe como hegemônicos
47
os seguintes formatos:
47
Obviamente, é preciso estar atento a que a proposta de Raymond Williams se refere ao início da década
de 1970 e à televisão inglesa. A própria dinâmica industrial televisiva, desde então, fez amadurecer
formatos e surgirem outros – mas, sobretudo, é preciso atentar para o fato de que a principal rede
televisiva inglesa é a BBC, televisão pública, muito diferente do que acontece na maioria dos demais
países, e principalmente no Brasil, onde as TVs públicas na verdade são estatais e o Estado é identificado
com os governos que o ocupam. De outro lado, sempre houve, no caso brasileiro, uma oligarquia
midiática, fato que só recentemente tem ocorrido em outros países, inclusive nos EUA.
146
notícias, programas de debate, programas educativos, teledramaturgia, filmes,
variedades, esporte, propaganda e brincadeiras/jogos (pastimes). Há ainda formas
mistas, que gerariam novos formatos: docudramas, como um misto de filmes,
teledramas e notícias; telecursos, que misturam programas educativos, de variedade e
jogos; programas de discussões, que não são propriamente os programas de debate, mas
deles retiram uma forma, que se hibridiza com os programas de variedades e são
centrados nas celebridades; programas de perfis, também voltados para celebridades e,
como tal, misturam variedades e documentários; seriados, que são uma variação do
drama para televisão; e, por fim, programas que têm como tema a própria televisão.
Nessa medida, Williams se recusa a apontar que a televisão desenvolve
gêneros, tanto quanto há uma impropriedade em tratar de programas fechados em si,
sem que se perceba tanto a hibridização de formatos, quanto a noção, por isso mesmo,
do fluxo da programação televisiva, dentro de uma mesma emissora e nas emissoras
concorrentes. A forma cultural televisão é agudamente marcada pela tecnologia
televisão.
Também por isso, não é possível apontar uma separação, para se pensar o
medium, entre informação – e, por extensão, educação – e entretenimento. Esse é o
argumento tanto de Elizabeth Duarte (2004), quanto de José Carlos Aronchi (SOUZA,
2003) - o último propõe uma categorização específica para a televisão brasileira. Nessa
medida e, tal como havia apontado Raymond Williams atrás, porque a forma simbólica
que a televisão faz circular é profundamente marcada por sua tecnologia, não é possível,
segundo Elizabeth Duarte, dizer de gêneros televisivos:
Por gênero televisivo, compreende-se uma macro articulação de categorias
semânticas capazes de abrigar um conjunto amplo de produtos televisivos
que partilham umas poucas categorias comuns. Nessa perspectiva, a noção de
gênero em televisão não passaria de uma abstração; seria da ordem da
virtualidade, uma vez que nenhum produto se manifesta circunscrito apenas a
essas categorias genéricas em sua extensão e exclusividade. O gênero
funcionaria, então, em cada caso, como substância de uma forma que sobre
ele se projeta, decorrente da articulação de um subgênero(s) e formato(s), e
não teria outra existência possível além dessa de ser substância – em-formada
(DUARTE, 2004, 67).
José Carlos Aronchi, por outro lado, não obstante concordar com Duarte
sobre a impropriedade de se pensar em gêneros televisivos, bem como sobre o erro de se
separarem programas de entretenimento e de informação; e, com Williams, pensar em
formatos, formula uma tipologia da televisão e propõe que a TV seja compreendida
segundo categorias, que conteriam gêneros que, por sua vez, teriam em si diversos
formatos possíveis – conforme se pode ver nos quadros 1 e 2, abaixo:
147
Quadro 1 - Categorias e gêneros televisivos
CATEGORIA GÊNERO
ENTRETENIMENTO
Auditório, Colunismo social, Culinário, Desenho
animado, Docudrama, Esportivo, Filme, Game-show,
Humorístico, Infantil, Interativo, Musical, Novela,
Quis-Show. Reality-Show, Revista, Série, Série
brasileira, Sitcom, Talk-Show, Teledramaturgia,
Variedades, Western,
INFORMAÇÃO Debate, Documentário, Entrevista, Telejornal
EDUCAÇÃO Educativo, Instrutivo
PUBLICIDADE
Chamada, Filme Comercial, Político, Sorteio,
Telecompra
OUTROS Especial, Eventos, Religiosos
Fonte: SOUZA, 2003.
Quadro 2 - Formatos televisivos
Formato
Ao vivo, Auditório, Câmera Oculta, Capítulo, Debate, Depoimento, Documentário, Dublado, Entrevista, Episódio,
Esquete, Game Show, Instrucional, Interativo, Legendado, Mesa-redonda, Musical, Narração em Off, Noticiário,
Quadros, Reportagem, Revista, Seriado, Talk-Show, Teleaula, Telejornal, Teletexto, Testemunhal, Videoclipe,
Vinheta, VoiceOver
Fonte: SOUZA, 2003.
Assim, o formato está, sempre seguindo Souza, associado a um gênero, assim como
gênero está diretamente ligado a uma categoria. Por isso, em um gênero podemos
encontrar vários formatos de programas. Por exemplo: como categoria, teríamos um
programa de entretenimento, que por sua vez poderia ser, como um gênero entre outros,
um programa de variedades, que tem, entre os diversos formatos possíveis, entrevistas,
musicais, televendas, jogos, reportagens etc.
Como já se disse, não cabe a este texto aprofundar nesse debate sobre a
televisão. O que nos interessa nesse debate, que teve um estrato aqui expresso, é: para se
pensar a TV Canção Nova nos interessa que, para todos os pesquisadores do medium,
não é possível separar entretenimento e informação. Em outras palavras, é inevitável
que, ao se pensar na programação da TV Canção Nova, tenhamos que pensá-la
obrigatoriamente como, por maior que seja o seu esforço ao contrário, produtora de uma
educação religiosa feita segundo o formato da propaganda mercantil; produtora de
programas educativos como um espetáculo para entretenimento. E isso ocorre não
apenas porque a televisão se forja, como uma tecnologia, nessa indefinição ontológica e
genérica – isso ocorre porque é preciso pensá-la segundo o fluxo de programas e de
televisões. Não é possível isolar a programação da TV Canção Nova do restante da
cultura televisiva; tampouco é possível isolar cada programa, compreendido como um
texto fechado em si mesmo, sem relação com a textualidade televisiva em sua
complexidade. Assim nós temos que a TV Canção Nova, mesmo sendo vista, como
148
deseja, como um contraponto à cultura do capital, acaba sendo assistida
necessariamente segundo o fluxo dessa cultura.
Por outro lado, José Carlos Aronchi, apontando para a televisão brasileira
como um todo, separa os programas religiosos como um gênero – e um gênero
pertencente à categoria “outros”. Isso, obviamente, causa embaraço para uma análise de
programas de uma TV mantida exclusivamente por uma agremiação religiosa e cujo
interesse expresso é a propaganda de valores religiosos, como é o caso da TV Canção
Nova. Porém, categorizados como “outros”, os programas religiosos não apenas não
dizem respeito a nenhum dos outros gêneros – eles poderiam se encaixar em todos os
demais. É assim que se deve olhar a programação da TV Canção Nova, expressa abaixo,
no Quadro 3: toda a programação religiosa, embora haja programas estritamente
religiosos, trazem em si, de alguma maneira, o formato “religião”. E, para se tornar
ainda mais complexo, há, em alguns casos, mistura entre informação, educação,
entretenimento, religião – e propaganda, seja ela religiosa, seja como venda,
propriamente. Assim, se se pensa nessa infinitude de possibilidades da TV Canção
Nova, como uma TV religiosa – que aliás se articula com as demais formas e
tecnologias de mídia -; e se se pensa que, diante dessa infinitude, só nos resta como
referência o próprio mundo simulado da TV, é possível analisar a programação da TV
Canção Nova segundo essa auto-referencialidade, uma vez mais como forma cultural
em fluxo e como tecnologia, que nesse caso é apropriada como meio de produção. É
claro que não se trata daquele formato “televisão”, misto em si mesmo, apontado por
Raymond Williams – mas, assim como não é possível separar os programas de
entretenimento dos demais, também aqui não parece implausível pensar a TV senão
como uma auto-referencialidade. Dessa maneira, o episcópio da TV Canção Nova, cuja
projeção se dá em nome da pura espiritualidade, com obliteração deliberada da
tecnologia – como forma e como meio de produção – se faz senão como esse mundo
auto-referenciado construído pela lógica do capital – que transforma mercadorias em
fantasmas. Voltaremos adiante a esse debate. Vamos, agora, à programação da TV
Canção Nova – que, para fazer justiça ao esforço de classificação voltado
especificamente à TV brasileira, se baseou nas proposições de José Carlos Aronchi.
48
48
Note-se que Souza (2003) optou pela categoria “publicidade”, enquanto estamos tratando de
“propaganda.” Não cabe, nesta tese, aprofundar o debate, mas deve-se justificar a modificação proposta:
se se trata de televisão, parece-nos pleonasmo dizer de uma categoria “publicidade”, na medida em que
tudo ali veiculado é tornado público. Assim, a categoria “propaganda”, que implica a propagação de
estratégias discursivas com o propósito de persuasão, parece-nos mais apropriada e, por isso, será adotada
149
Quadro 3 - Programação da TV Canção Nova
49
Programa Conteúdo Gênero/Formato
Dias e horários
de exibição /
Duração
Ajuda a Igreja que
sofre
Série de documentários sobre
histórias de ações da Igreja Católica
ao redor do mundo em obras de
caridade.
Informativo / Documentário;
Propaganda / Gravado - Estúdio
4ª-feira às
16h30 / 30 min
Amigos do céu
Infantil de contação de história sobre
a vida dos santos católicos
Entretenimento / Infantil;
Religioso; Educativo – Gravado
- estúdio
De 2ª a 4ª e 6ª-
feira., às 9h30 e
às 17h/ 10 min
Bem da hora
Programa voltado para os pré-
adolescentes
Entretenimento / Variedades;
Educativo - Talk-Show,
Videoclipe, Instrutivo / Gravado
– Estúdio
De 2ª a 6ª-feira,
às 17h30 / 30
min
Caminhos de unidade
Propaganda do Movimento
Focolares, movimento católico
nascido na Itália, que defende a
“unidade”.
Informativo propagandístico/
Gravado
2ª, 3ª, 4ª e 6ª-
feira, às 16h55 /
10 min
Canção Nova notícias
Jornalismo diário Informativo / Telejornal / Ao
vivo
De 2ª a 6ª-feira,
às 19h30 / 30
min
Cantinho da criança
Indicado para crianças com uma
faixa etária de até sete anos,
pretende-se educativo e traz
informações sobre o universo
infantil, baseado na doutrina católica.
Entretenimento / Infantil,
Educativo / Gravado - Estúdio
De 2ª a 4ª-feira,
às 9h15 e 3ª, 5 e
6ª-feira às
19h05 / 10 min
Catequese com o Papa
Bento XVI
Com tradução simultânea, apresenta
discursos do Papa.
Informativo / Religioso;
Instrutivo / Gravado
4ª-feira às 13h /
60 min
Celebrando Pentecostes
Produzido em conjunto com a
Renovação Carismática Católica
Religioso / Gravado - Estúdio Domingo, às
22h/ 30 min
De mãos unidas
Programa religioso em que se veem
mensagens dos “sócios” sendo
transcritas da tela. Orações e
músicas.
Religioso, Musical / Ao vivo -
Estúdio
2ª-feira, às 20h
/ 60 min
Desenvolvendo talentos
Instruções sobre como se preparar
para o mercado de trabalho,
conforme as “tendências”
Educativo-Instrutivo / Gravado -
Estúdio
Domingo às
22h30 / 30 min
Deus proverá
Informativo sobre as metas de
arrecadação financeira da Canção
Nova
Propaganda / Informativo/
Religioso – Ao vivo - Estúdio
3ª e 5ª-feira, às
12h/ 60 min
Diálogo com Deus
Louvor Religioso – Musical / Ao vivo -
Estúdio
Domingo, às
17h / 60 min
Direção espiritual
Aconselhamentos (Autoajuda) com
músicas
Educativo/Instrutivo – Gravado
/ Estúdio
5ª-feiras, às
22h30 / 60 min
É tempo de amar
Louvor com músicas Religioso – Musical / Ao vivo -
estúdio
De 2ª a 6ª-feira,
às 17h55 / 10
min
Em pauta
Debate com representantes da CNBB
em torno da bioética
Informativo / Debate - Ao vivo -
estúdio
6ª-feiras às 22h/
60 min
Em sintonia com meu
Deus
Religioso: orações e ensinamentos Religioso – Educativo /Estúdio -
Ao vivo
De 2 a 6ª-feira,
às 6h30 e às
18h30/ 15 min
cada (30 min)
Escola da fé
Ensinamento e exegese bíblica; Talk-
Show com convidados.
Educativo / Talk-Show /
Estúdio - Ao vivo
5ª-feira, às
20h30 / 120
para efeito de análise da programação da TV Canção Nova.
49
Conforme http://www.cancaonova.com/portal/canais/tvcn/tv/progs.php?dw=1 (acesso em 25/03/2010).
150
min
Flash jornalismo
Jornalístico Informativo / Telejornalismo/
Estúdio- Ao vivo
2ª, 3ª, 4ª e 6ª -
feiras às 13h55
/ 5min
Histórias de
solidariedade
Apresentado por Lu Alckmin, traz
depoimentos e testemunhos de
“pessoas que deram a volta por
cima”.
Informativo / Depoimento/
Estúdio - Gravado
6-feiras, às
19h20 / 10 min
Histórias em oração
Testemunhos de conversão /
Religioso
Informativo / Depoimento –
Religioso / Gravado
6ª-feiras, às
23h30 / 60 min
Igreja no Brasil
Informativo da CNBB sobre a Igreja
Católica no Brasil
Informativo/ Jornalístico –
Gravado
6ª-feira, às
16h30 / 30 min.
Igreja no novo milênio
Divulgação e debate sobre a Carta
Exortação do Papa João Paulo II,
Novo Millenio Ineunte.
Informativo/ Educativo –
Debate/ Estúdio - Ao vivo
2ª-feira às
18h20 / 35 min
Juntos Somos Mais
Programa de exortação à
contribuição para a Canção Nova.
Propaganda/ Televenda –
Informativo - Depoimento - Ao
vivo;
2ª, 3ª, 4ª e 6ª-
feira às 13h45
(Programa
adaptável aos
eventos) / 60
min
Kairós (tempo da graça
de Deus, em grego)
Cânticos/Oração/Pregação -
Programa religioso,
Religioso – Ao vivo Aos domingos
que não têm
eventos
especiais, às 8h
/ 120 min
Lição de vida
Informativo, com depoimentos de
ações que visam à caridade
Informativo / Depoimento;
Educativo/ Estúdio Ao vivo
Domingo, às
19h30 / 30 min
Mais Brasil
Programa de Auditório Apresentado
pelo religioso e político, deputado
estadual por Minas Gerais, Eros
Biondini
Entretenimento / Musical-
Auditório- Talk-Show /
Gravado – Estúdio
Sábado, às 13h
/ 60 min
Manhã viva
Programa de variedade, para
concorrer com os matinais do gênero
(Mais Você etc)
Entretenimento / Variedades
(Talk-Show, Musical, Revista);
Informativo (Depoimentos,
Jornalismo)/ Estúdio - Ao vivo
2ª, 4ª e 6ª-feira,
às 9h45 /30 min
Mãos que evangelizam
Religioso voltado para surdos-mudos Religioso / Educativo - Gravado 5ª-feira às
15h30 / 30 min
Memórias do Líbano
Documentários sobre a Igreja
Maronita
Informativo / Documentário -
Gravado
5ª-feira, às
20h/ 30 min
Minha família é assim
Educativo e informativo, de
planejamento familiar no “Método
Billings”
Educativo /Informativo -
Depoimento / Gravado
3ª-feira, às
15h30 / 60 min
Nossa missão é
evangelizar
Pregações e palestras ocorridas
durante eventos na sede da Canção
Nova.
Educativo; Religioso/ Palestra
- Gravado
De 2ª à sexta-
feira, às 3h30 e
às 5h; também
às 4ª-feiras, às
15h30, 5ª-
feiras, às
23h30, e 6ª-
feiras, às 12h./
60 min
O amor vencerá
Programa de oração, com Luzia
Santiago, que também traz
propaganda e pedido de doações
financeiras
Religioso - Propaganda – Ao
vivo
De 2ª a 6ª-feira,
às 11h / 60 min
Palavras de vida eterna
Orientação espiritual com Dom
Alberto Taveira, Arcebispo de
Palmas
Educativo / Instrutivo / Gravado de 2ª a sábado,
às 6h50 / 10
min
Papo aberto
Apresentado por Gabriel Chalita, tem
um formato talk-show,
Informativo / Talk-show 2ª-feiras, 22h/
120 min
151
Pelos caminhos da fé
Variedade: turismo em Minas Gerais Entretenimento / Variedade
(Turismo) / Gravado - Externo
6ª-feira, às 22h
/ 30 min
PHN
Variedade, com formato talk-show e
musical
Entretenimento/ Talk-show;
Informativo – Depoimento/
Falso vivo - Estúdio
3ª-feira às 22h,
60 min
Porta a porta
Televenda de produtos da Canção
Nova
Propaganda / Televenda /
Gravado
2ª-feiras às 12h
e 6ª-feiras às
20h / 30 min
Preservação ambiental
Parceria da TV Canção Nova com a
Polícia Militar Ambiental do Estado
de São Paulo, com ações de
educação e coação a crimes
ambientais.
Informativo/ Jornalístico /
Gravado
5ª-feira, às
17h30 / 30 min
Repórter Canção Nova
Revista eletrônica, que visa à
concorrência com programas do
gênero.
Entretenimento;
Informativo / Revista eletrônica
Domingo, às
18h30 / 45 min
Revolução Jesus
Programa de variedades, com
diversos quadros e formatos
Entretenimento / Variedade /
Gravado - Estúdio
4ª-feira, 23h/ 90
min
Santa Missa
Evento mediado Religioso / Ao vivo Diariamente, às
7h, 2ª-feira, às
15h; 4ª-feira, às
20h, 5ª-feira, às
16h, Em
acampamentos
de adoração: 6ª-
feira, às 20h,
Sáb., às 16h30,
Dom., às 14h30
/ 60 min
Santo Terço
Evento mediado Religioso / Ao vivo De 2ª a 6ª-feira,
às 6h / 35 min
Sorrindo pra vida
É um programa religioso,
apresentado pelos fundadores da
Canção Nova, Luzia Santiago e
Wellington Silva Jardim, este
também administrador da fundação
mantenedora. É uma mistura de
programa religioso com
propagandístico.
Religioso;
Propaganda / Ao vivo
De 2ª a 6ª-feira,
às 8h; 3ª-feira,
às 20h e sáb., às
7h / 60 min.
Terço da misericórdia
Evento mediado Religioso / Ao vivo 3ª, 4ª e 6ª-feira
às 15h / 30 min
Tô ligado
Programa infantil de auditório Entretenimento / Variedade;
Infantil; Religioso; Programa de
auditório / Gravado - Estúdio
De 2ª a 4ª e 6ª-
feira., às 9h30 e
às 17h/ 10 min
Todo dia é dia
Programa infantil de leitura de
propaganda bíblica
Entretenimento;
Educativo/ Variedade; Infantil;
Religioso/ Ao vivo - Estúdio
De 2ª a 4ª e 6ª-
feira., às 9h30 e
às 17h/ 10 min
Trocando ideias
Programa interativo com Ricardo Sá,
em que o apresentador responde a
mensagens enviadas.
Entretenimento /Variedade;
Interativo / Ao vivo - Estúdio
3ª-feira, às
21h30 / 90 min
Vitrine Canção Nova
Programa de televenda dos produtos
Canção Nova
Propaganda / Televenda / Ao
vivo
De 2ª a 6ª-feira,
às 13h, 30 min
É importante ressaltar que o quadro acima, com a grade de programação, se
atém à programação inédita e não contabiliza as reprises de programas no decorrer da
semana. Ressalte-se ainda que se trata de um visão geral da programação – que, é claro,
pode ter variações quanto ao conteúdo e a posição na grade semanal. Dito isso, é
possível que se faça uma análise da programação, considerando-se a categoria e o
152
“gênero” – ou formato.
Para efeito de análise, foram consideradas cinco categorias na programação
da TV Canção Nova: i) Informativo; ii) Educativo; iii) Entretenimento; iv) Religioso; v)
Propaganda. Vejamos como é distribuída, por tempo semanal, a sua programação:
i) Informativo
No total, são 635 minutos semanais – ou 10h35min - de programas que se
podem classificar como prioritariamente informativos. Porém, desse total, apenas
4h20min da programação semanal podem ser considerados estritamente informativos
(3h50min semanais de telejornais e 30min de documentários). O restante é assim
distribuído: 1h10min para propagandas institucionais – ou informes publicitários
institucionais -; e 5h05min de debates, entrevistas e depoimentos, que também têm um
propósito instrutivo, moral ou não.
ii) Educativo
Por semana, é transmitido um total de 810 minutos – 13h30min - de
programas que se podem chamar prioritariamente educativos, por seu formato de
formação moral, ética; por exemplaridade ou por instruir sobre questões cotidianas e
existenciais.
Como ocorre em outras categorias, não é possível perceber uma categoria
ou formato puro, que possa ser classificado como educativo. Muitos deles têm caráter
religioso; outros, de autoajuda. Pode-se, assim, separar a categoria “programas
educativos” da seguinte forma: 150 minutos (2h30min semanais) se dedicam a
autoajuda; 60 min a depoimentos, com caráter de exemplaridade, que também trazem
em si uma carga da categoria informativo; 120 minutos por semana transmitem
entrevistas em forma de talk-show, o que caracteriza os programas também como
entretenimento; e 480 minutos ou oito horas da programação são destinados à
transmissão de palestras, geralmente gravadas durante acampamentos na Canção Nova.
Essas palestras, embora possam ser classificadas como educativas, por seu conteúdo de
instrução, também trazem formas de programas religiosos e, como consequência do
carisma da Canção Nova, de apresentações musicais. Trata-se então de uma
hibridização entre programas educativos, entretenimento e programas religiosos.
iii) Entretenimento
Podem ser classificados como prioritariamente com a finalidade de
entretenimento, seguindo o projeto da TV Canção Nova, de ser uma alternativa à mídia
secular – e lhe propor inclusive um “entretenimento sadio” – programas que totalizam
153
775 minutos semanais de programação – ou 12h55min. Também, nesse caso, mesmo
aqueles que se esclarecem com a finalidade de entreter apenas – sejam para servir como
contraponto à mídia secular, sejam para servir de respiração na grade de programação -,
há uma hibridização entre categorias. Do tempo total, 220 minutos (3h40min semanais)
são destinados à programação infantil e infanto-juvenil, que misturam formatos de
programas religiosos, educativos e musicais; 60 minutos semanais são dedicados a um
programa de auditório – com suas especificidades e hibridizações; 60 minutos dos
programas de variedade são em formato de talk-show, que, diferentemente de outros
programas, privilegiam menos o caráter educativo-instrutivo e mais os debates acerca
do cotidiano. Embora haja um privilégio do entretenimento, há, sem dúvidas, uma
intencionalidade de hibridização com os gêneros educativos. Outros 300 minutos por
semana (5h) se destinam a programas de variedades. Nesse caso, como o próprio nome
indica, há uma intensa hibridização de categorias e formatos, em que se misturam
musicais, educativos, depoimentos, entrevistas, reportagens – e religiosos.
iv) Religiosos
Vimos que o religioso atravessa boa parte da programação – mas há, na
grade de programação da TV Canção Nova, programas que são ou estritamente
religiosos, ou prioritariamente religiosos - ou que se autodenominam religiosos, para
também dedicarem à sagrada missão de “arrecadar para manter a obra”. Assim, temos
um total de 2085 minutos por semana (34h45min semanais) de programação dedicada à
religião na TV Canção Nova. Desse total, 955 minutos (15h55min) são estritamente
religiosos: transmitem rituais identificados com a tradição católica, como missas e
terços. Outros 240 minutos (4h) semanais são programas que hibridizam o religioso
com o educativo, por trazerem um esforço de instrução – mas não se dedicam
prioritariamente ao educativo. Há ainda 170 minutos semanais (2h50min) que, mesmo
tendo como preponderância o religioso, se misturam a formatos de entretenimento,
como musicais. Por fim, há a programação religiosa, em que os apresentadores
efetivamente cuidam da espiritualidade, por meios de orações, glossolalia, postação de
mãos e outros rituais ligados à Renovação Carismática de que a Canção Nova é
tributária – mas, com a mesma intensidade, há venda de produtos e serviços e pedido de
contribuição financeira: são 720 minutos semanais (12 horas) de programação com essa
mistura de gêneros e formatos: religião e comércio.
v) Propaganda
Quando se diz de programas de propaganda, está-se referindo
154
exclusivamente aos programas que, de forma exclusiva e notória, foram montados para
venda ou pedido de doação financeira. A programação de marketing, portanto, exclui,
nesta análise, os intervalos comerciais durante toda a programação. E é claro que, como
já ressaltado, também estão excluídos os programas de propaganda institucional –
embora, como veremos, não é possível separar, segundo o fluxo de programação,
nenhuma dessas instâncias, com claro privilégio para a associação entre religião e
marketing. São, segundo essa classificação, 570 minutos semanais (9h30min por
semana) de programas que visam à venda de produtos e serviços, e de pedidos de
doação financeira, o que exige a venda de uma ideia: a própria missão da Canção Nova.
Desse total, 210 minutos semanais (3h30min) são destinados especificamente a
televenda – ou seja: não há qualquer subterfúgio, qualquer outro objetivo que não seja
especificamente a oferta, para venda, de produtos licenciados da marca Canção Nova.
Outros 360 minutos semanais (6h) são de programas que visam ao marketing – de
serviços, produtos ou da própria ideia Canção Nova -, mas se misturam a outros gêneros
e, assim, utilizam diversos formatos. Há, entre um pedido e outro, orações,
depoimentos, histórias, participações de fiéis – o que torna esses programas, de forma
ostensiva, um espaço aberto para que os fiéis participem, seja ao vivo, seja por meio de
canais de comunicação a distância – uma espécie de ágora ao contrário, em que os
debates cedem espaço para o mercado. Assim, cumpre-se uma dupla função: os fiéis
têm existência midiática e se sentem participantes da obra Canção Nova. Em outras
palavras: eles, com efeito, são fiéis consumidores.
Não há surpresa, portanto, que uma TV católica tenha como principal
produto de transmissão a religião: em números absolutos, e considerando apenas os
programas que se destinam a missas, terços e orações, os programas religiosos são os
que ocupam o maior tempo na grade de programação da TV Canção Nova. A surpresa,
ao menos para os tradicionalistas, fica por conta da relação muita estreita entre os
programas religiosos e os rituais tradicionais católicos. Isso não apenas mostra o
catolicismo da Canção Nova – ou o destino católico sendo cumprido pela TV Canção
Nova e seus demais meios de comunicação. Isso também mostra a razão por que os fiéis
católicos não têm duvida, em sua maioria, em identificar na TV Canção Nova o
catolicismo que não é reconhecido de forma tão intensa em outros canais católicos. Isso
acontece, sem dúvida, pela maior competência da TV Canção Nova em dialogar com a
forma cultural televisiva.
É isso o que ocorre com os rituais tradicionais católicos transmitidos. Uma
155
das principais críticas ao catolicismo telemático é quanto a uma alegada não
compreensão da forma cultural produzida pela televisão – seu formato. A crítica aponta
para a necessidade de considerar a ambiência cultural midiática – o que, nesse caso, é o
mesmo que dizer que tem havido, por parte dos canais televisivos católicos, a simples
transmissão de um evento que existe sem a televisão. Tratar-se-ia, então, não de uma
necessária adaptação, mas de pensar eventos como missa ou terço para a televisão,
como eventos televisivos.
É claro que a crítica advém de uma real dificuldade – e não apenas da TV
Canção Nova – na transmissão de eventos não necessariamente midiáticos. Como
transmitir acontecimentos que ocorrem fora da televisão? Porém, por outro lado, e
correndo-se o risco de uma ideologia da hipertrofia do televisivo no mundo
contemporâneo, é preciso questionar se a transmissão televisiva não é, por si só, uma
tradução do acontecimento para os recursos retóricos da televisão. E, sobretudo, dada a
centralidade dessa tecnologia e forma cultural no mundo contemporâneo, talvez seja
necessário refletir sobre se o mundo contemporâneo não é televisivo; se tudo o que hoje
acontece não é pensado para a televisão, não é um evento televisivo. Com efeito, é
quase impossível pensar os acontecimentos do mundo sem a presença desse medium.
Trata-se de uma via de mão dupla: a TV traduz os eventos ocorridos no mundo como
espetáculos, mas, por outro lado, os próprios acontecimentos são encenados como
espetáculos para a televisão. Novamente estamos diante da circularidade – ou da auto-
referencialidade e autorreplicação. O resultado disso, no caso da TV Canção Nova, é
que justamente o sucesso de sua empreitada significa sua falência: a tradução de missas
e terços como espetáculos televisivos implica o sucesso da TV Canção Nova entre os
católicos – até o limite da transformação do olhar dos espectadores em telespectadores.
Em outras palavras: os fiéis consumidores da TV Canção Nova fruem sua programação
até o final e cobram o mesmo espetáculo televisivo quando vão assistir a missas ou
participam de terços em suas vidas cotidianas, fora da televisão. Isso indica que a TV
Canção Nova e sua programação só ganham sentido em um texto total: uma totalidade
da cultura televisiva capitaneada pela lógica do consumo capitalista, que atravessa a
totalidade textual da programação da própria TV Canção Nova. Isso significa que, no
intenso intercâmbio entre as categorias, os gêneros e os formatos, toda a programação
da TV Canção Nova é compreendida como um espetáculo a ser consumido. A tal
fenômeno se soma o fato de que se constrói uma lógica em que o consumo se distancia
de sua produção: a TV Canção Nova produz uma divindade para que seja consumida
156
pelos fiéis.
Se não há dúvida de que o religioso atravessa toda a programação da TV
Canção Nova, por um lado, é sintomático perceber que, em programas estritamente
religiosos – de adoração ou de oração, por exemplo –, é comum que haja anúncio de
produtos e serviços para venda ou o pedido de contribuição financeira. Isso caracteriza
alguns programas religiosos também como “de propaganda”, compreendida não como
proselitismo religioso, mas efetivamente como marketing. Se se pensa que não é
possível analisar o programa, mas o fluxo, essa produção de sentido perpassa toda a
programação da TV Canção Nova – e, por necessidade, perfaz o seu catolicismo
midiatizado. É segundo essa perspectiva que devem ser compreendidos os programas
que compõem o corpus da análise que vem a seguir.
4. Análise dos programas
Como dito anteriormente, a pesquisa empírica quantitativa forneceu os
programas que comporão o corpus para o estudo. A pesquisa demonstrou uma grande
dispersão quanto aos programas citados pelos fiéis católicos entrevistados. Além de um
sem número de programas citados, verificou-se que muitas respostas apontam para o
mesmo programa com nomes diferentes e principalmente para os apresentadores dos
programas. Isso indica que, sim, assiste-se aos programas com uma atenção difusa, mas
também que há uma pessoalidade em relação a tal assistência. Ou seja, muitos fiéis
encaram a TV Canção Nova – e não apenas ela – como mais uma TV entre as demais,
além de identificar a programação pelo seu apresentador, segundo a lógica do star
system próprio do esquema mítico midiático-capitalístico.
No agrupamento de respostas obtidas na pesquisa quantitativa entre os três
programas mais assistidos, que forneceu o objeto de análise, os resultados foram: “Não
respondeu/não sabe”, em primeiro lugar, com 36,2%; “Missa”, com 21,2%, em seguida;
“Direção Espiritual” em terceiro, com 14% das respostas; “Terço” em quarto, com
10,8% das respostas; “PHN”, comandado por Dunga, e sigla para “Por Hoje Não vou
pecar”, foi o quinto mais citado, com 6,2%, e “Escola da fé”, com 5,7% das respostas.
Os resultados da pesquisa quantitativa são sintomáticos: embora garantam
que assistem à TV Canção Nova, a maioria não sabe precisar o nome do programa
preferido. Isso indica um fenômeno próximo àquela mistura entre categorias, gêneros e
formatos, que forjam a programação da TV Canção Nova, como ademais a própria
televisão, como tecnologia e como forma cultural. Trata-se, nesse caso, não de misturar
157
a programação religiosa e não religiosa – mas de lhes misturar os formatos. Em outras
palavras: não se trata de pensar que haja uma transferência da televisão religiosa para a
televisão não religiosa, mas, ao contrário, de consumir a programação religiosa como
um porto seguro contra as mazelas do mundo. De qualquer maneira, trata-se de um
consumo marcado pela lógica de produção televisiva, hegemonicamente tramada
segundo o modo de produção capitalista.
Por outro lado, a presença de “Missa” e de “Terço” entre os programas mais
assistidos indica a não-ruptura entre a programação da TV Canção Nova e a Igreja
Católica. Isso foi debatido anteriormente, mas é importante reafirmar essa não ruptura,
da mesma forma como não há uma real ruptura entre o consumo da produção televisiva
em geral e este, da programação da TV Canção Nova. Isso é decisivo para a melhor
compreensão dos programas que serão analisados.
Os programas da TV Canção Nova que compõem o corpus de análise são os
semanais “Direção Espiritual”, “PHN” e “Escola da Fé”. Para a composição do corpus,
são analisados quatro programas de cada um deles. Para efeito de análise, optou-se por
seguir a lógica do menos assistido ao mais assistido, segundo a pesquisa quantitativa,
para que, dessa forma, possa haver uma ressonância entre as análises e os discursos de
atores católicos, como ver-se-á na próxima parte da tese. Os programas analisados
foram transmitidos nas seguintes datas:
Escola da fé: dias 14/01, 28/01, 04/02 e 11/02 de 2010;
PHN: dias 19/01, 26/01, 02/02 e 09/02 de 2010;
Direção Espiritual: dias 14/01, 21/01, 28/01 e 04/02 de 2010.
Para todos os programas, haverá uma análise, de saída, dos elementos gerais
que o compõem: i) descrição geral; ii) vinheta de abertura; iii) cenário – que devem
compreender elementos visuais e sonoros; iv) análise do corpus, por data.
4.1. Escola da fé
i) Estrutura geral do programa
Escola da fé vai ao ar, ao vivo, às quintas-feiras, às 20h30, com reprise aos
sábados às 3h30 e tem duas horas de duração. O programa é apresentado por Felipe
Aquino, que, em seu site, é descrito da seguinte forma:
O Prof. Felipe Rinaldo Queiroz de Aquino é doutor em Engenharia Mecânica
pela UNESP e pelo ITA e mestre na mesma área pela UNIFEI. Foi diretor
geral da FAENQUIL (atual EEL-USP) durante 20 anos. Escreveu 59 livros
de formação católica pelas editoras Cléofas, Loyola, Canção Nova e Raboni
(http://www.cleofas.com.br/professor.html).
158
Já o seu programa é assim descrito no mesmo site:
Programa exibido todas as quintas-feiras às 20h30min. Teve início no ano de
1998 e foi criado com o objetivo de levar ao público de modo geral,
informação e formação ético-religiosa de acordo com a doutrina da fé
católica.
Apresentado pelo Prof. Felipe Aquino, profundo conhecedor da fé católica,
[que] com muita simplicidade e sabedoria transmite seu conhecimento aos
telespectadores através desse programa. Ele toma como base o 'Catecismo da
Igreja Católica' e os 'documentos do Santo Padre', além dos escritos dos
santos da Igreja e, de forma especial, dos doutores da Igreja que tanto
ensinamento nos transmitem.
Os assuntos abordados - com uma linguagem simples - estão todos
relacionados com a fé católica e com a teologia de modo geral: Igreja,
Magistério, Bíblia, Tradição Apostólica, Moral Católica, Sacramentos,
Mandamentos, Escatologia, História da Igreja, Mariologia, Patrística,
Liturgia, Direito Canônico, etc (http://www.cleofas.com.br/professor.html).
O programa pode ser classificado como educativo, mas grande parte dele se
estrutura como um talk-show. Como tal, há o privilégio do que é dito, em relação ao que
é mostrado, e sempre há entrevistados, convidados por sua notoriedade quanto às
temáticas tratadas. O talk-show, porém, se caracteriza pela primazia do entrevistador
sobre o entrevistado – e isso implica que, nesse caso, o apresentador se estabelece como
alguém que, proprietário do saber que se deseja transmitir, permite, concede a palavra
ao entrevistado, que, por sua vez, reafirma o saber do entrevistador.
Nessa mesma medida, o talk-show se estrutura e geralmente é compreendido
como um entretenimento, que, eventualmente e en passant, por ser interessante a
temática tratada, também traz consigo ensinamentos. O programa, todavia, também se
estrutura como educativo. Na maioria dos programas, Felipe Aquino comenta fatos e
notícias que afetem a doutrina da Igreja Católica. Há, além disso, passagens de “povo-
fala”, estratégia pela qual há participação de telespectadores – que pode se dar tanto por
vídeo, quanto por outros canais de comunicação: carta, e-mail, twitter etc. O programa é
estruturado em quatro blocos e sua dinâmica, com pequenas variações, se dá em
conformidade, geralmente, com o entrevistado do dia. As questões enviadas pelos
telespectadores são respondidas, preferencialmente, por Felipe Aquino, mas também
pode haver participação do entrevistado.
Gravado em estúdio e transmitido ao vivo, Escola da fé tem, como
programa de talk-show, um auditório, com um público que acompanha a transmissão. O
auditório raramente participa do programa – salvo quando é chamado a se manifestar e,
na transmissão, em tomadas – com planos-conjunto ou planos fechados. Essa textura
cria sentidos de participação exclusivamente virtual – o que, no caso de um programa
159
educativo, reforça os lugares e sujeitos do saber: de um lado, nesta ordem, Felipe
Aquino e o entrevistado; de outro, a audiência ao vivo e os telespectadores.
Os blocos têm a mesma estrutura. O programa sempre se inicia e termina
com uma oração, puxada por Felipe Aquino. O primeiro bloco é destinado à localização
da temática e à entrevista com o entrevistado. Os blocos seguintes sempre se iniciam
com Felipe Aquino comentando notícias de fatos ocorridos em data próxima ou
perguntas de telespectadores. No segundo bloco, há um quadro, posteriormente
comentado por Felipe Aquino, denominado Palavra do papa, com discursos do papa,
transmitidos pela TV Vaticano; no terceiro bloco, há perguntas dos telespectadores; e,
no quarto, comentários de notícias, fatos ou exegese de passagens bíblicas. Após os
ensinamentos, o entrevistado do dia é convidado a comentar sobre o que foi dito.
ii) Vinheta de abertura
Toda a vinheta de Escola da Fé é feita virtualmente, com a arte gráfica e
tem como princípio o que se pode chamar de distinção: a sinfonia de cordas entra em
harmonia com o passeio por um mapa virtual da Europa medieval, que se mistura com
recortes de livros e passagens bíblicas – com o firme propósito de demarcar saberes. À
medida que a sinfonia avança, surgem imagens de santos católicos, igualmente em um
passeio – indicando tratar-se de um panorama do saber, vinculado ao passado católico.
Como notas ou ondas sonoras, frases saem desse terreno do saber, se despregam como
se fossem circular – ou para serem transmitidas. Há livros que se abrem, ao som da
sinfonia, sempre de passagem – até que a imagem se fixa em alguns livros. O primeiro é
a Bíblia, de onde, agora, partem as palavras, que sobem, para que se mostre a luz
advinda de vitrais de uma Igreja. O passeio continua, até que a imagem se estabiliza em
um livro, com uma caneta tinteiro do lado e um trecho do quadro “A criação”, de
Michelangelo – destacando o detalhe em que os dedos do criador e da criatura se tocam.
Sobre esse livro cai um outro e lhe sobrepõe. Nele está inscrito: Escola da fé.
iii) Cenário
Trata-se de um cenário com cores neutras ao fundo, para garantir o destaque
que se deseja: o próprio apresentador, eventualmente o convidado. Há também uma
estante, com alguns poucos livros, suficientes para demarcar o que se pretende: que ali é
a sala de aula de um professor, autorizado a ensinar por sua sapiência. Ainda ao fundo e
contrastando com a neutralidade das cores e o minimalismo necessário da estante, há
um imenso retrato do papa Bento 16, que, em determinado enquadramento de câmera –
160
em plano conjunto – demarca também a autoridade do apresentador: Felipe Aquino
pode falar, pois tem ao seu lado o saber dos doutores e a autorização do chefe da Igreja.
Esse sentido é conseguido com um outro elemento do cenário: a mesa onde Felipe
Aquino recebe seus convidados. É uma mesa com tampo de vidro, com muitos livros,
invariavelmente escritos pelo próprio Aquino – com a temática que será discutida no
dia. O enquadramento que consegue compor o quadro de autoridade de Aquino,
inclusive com a semantização em relação à imensa fotografia do papa, é estabelecido
pelo posicionamento do apresentador e do entrevistado: enquanto Felipe Aquino está
em posição central, com controle do restante do quadro que se compõe, o entrevistado
está na lateral da mesa – efetivamente como um convidado, uma espécie de escada, que
serve para reforçar a autoridade do “professor”. O imenso retrato do papa está, ainda
que lateralmente, sob as vistas de Aquino, mas o convidado está de costas para ele, o
que acaba por colocar qualquer convidado numa posição de subserviência moral em
relação ao papa – e principalmente a Felipe Aquino, que super-visiona o que é dito, para
garantir a sua própria autoridade.
iv) Análise do corpus
a) Programa de 14/01/2010
Com a temática “Ciência e fé”, o programa daquele dia, uma reprise, em
razão das férias, teve como convidado o doutorando em astrofísica Alexandre Zabot,
que visava ao estabelecimento da relação irrefutável entre Deus e ciência – ou, de outra
forma, pela irrefutabilidade de Deus, cuja existência se dá até mesmo pela ciência. O
fato de ser uma reprise diz muito do programa, já que se anunciou que, nesse período de
férias, os melhores programas de 2009 seriam reprisados – e este, que ora se analisa, foi
eleito entre os quatro melhores do ano. Saibamos a razão dessa eleição.
Antes de iniciar a primeira parte do programa, de entrevista com o
convidado, Felipe Aquino apresentou uma série de livros de sua autoria – sobre a
temática da relação entre ciência e religião – e o seu último lançamento: O socorro de
Deus para as aflições da alma. Nessa apresentação, há o estabelecimento de um status
conquistado e mantido pela autoridade de um cientista que acredita em Deus e que por
isso está autorizado a não apenas realizar diálogos com o mundo da ciência, mas ser um
doutor em Deus – já que consegue realizar a ponte entre a probabilidade científica e a
piedade (irrefutável) de Deus.
A entrevista se inicia com a auto-apresentação do entrevistado – o que se dá
161
pela motivação do entrevistador: o currículo científico. Depois de ouvir que Alexandre é
astrofísico, perguntar o que é astrofísica e receber como resposta que se trata de uma
especialidade, entre muitas, da física – assim como ocorre “na medicina, que tem
diversas especialidades” -, Felipe Aquino interveio: “É verdade!” A expressão marcou o
início de sua própria apresentação como físico, do relato sobre o seu próprio doutorado
em física dos materiais. Isso ocorreu de forma natural, sem que houvesse ruptura no
discurso televisivo: não há mudança de plano de imagem, de enquadramento. A
intervenção teve um propósito de demarcação de terreno, mas para fazê-lo em relação
ao outro, a Alexandre, indicando com clareza, quem ali é autorizado a saber e ensinar.
A intervenção – a rigor, demarcação de territórios de autoridade do saber
científico e, dado o discurso que se tecia, do saber religioso – ensaiou um retorno, uma
concessão à autoridade, àquela altura claramente menor, do entrevistado: “Mas eu não
entendo nada de astrofísica”. Feita a concessão, é retomado o caminho de outrora, com
os terrenos de autoridade bem demarcados, a razão de ser da presença de Alexandre
Zabot como escada, como personagem secundário, que forma o núcleo do protagonista:
“Bem, tudo isso foi para dizer que a física é ampla. E Deus está nisso, não é
Alexandre?” A resposta, obviamente, comprova uma tese já comprovada de antemão
pelo apresentador: Deus está na criação de tudo.
Em um exercício de autorreferência, Aquino perguntou: “E como um
homem de física, um cientista, pode acreditar em Deus?” A resposta não poderia ter
sido melhor: “Eu já fui um ateu”. E, para não deixar dúvidas sobre a credibilidade das
coisas, de modo que o ineditismo da situação, sua imprevisibilidade, que só reforçaria o
discurso montado, Aquino retrucou: “É mesmo?” E virando-se para a câmara,
rompendo o pacto da estratégia discursiva de destino-receptor indireto para destino-
receptor direto, asseverou: “Olha, eu quero deixar claro que eu conheci o Alexandre
agora”, ainda que Alexandre Zabot seja um colaborador, desde 2008, no site mantido
por Aquino.
50
Essa ruptura do pacto do discurso televisivo, juntamente com o enunciado
verbal, uma vez mais, serviu para alimentar a autoridade de Aquino: ele sabe que Deus
existe e é provável; Alexandre, que acaba de conhecer, apenas comprova esse seu saber.
E assim foi: o convidado, incitado por Felipe Aquino, discursou sobre o
cientificismo – a ciência sem Deus; a prepotência do ateísmo. Como se deu essa
conversão? Com uma situação limite, para a qual a ciência não oferecia resposta
50
Cf.: http://www.cleofas.com.br/virtual/doc.php?doc=OPINIÃO (Acesso em 18/03/2010)
162
suficiente. E diante dessa situação, disse Alexandre, sob a aprovação - e supervisão do
professor – “ou eu pulava da janela ou eu dobrava o joelho e pedia ajuda a Deus.”
Graças a Deus, ele dobrou o joelho. A religião é mais do que a ciência, porque a
compreende. Qual o conselho daria o astrofísico convertido para os jovens cujos pais os
educaram no cristianismo e, quando foram para a universidade, se perderam? A resposta
é peremptória: não se preocupem com o mundo material, com o mundo à sua volta e
seus problemas.
Mais uma vez, com o terreno bem arado, Alexandre pode dizer sobre a
divindade no Big Bang, sobre a existência de outros planetas e assuntos que relacionam
a ciência e a religião – sempre com as intervenções pontuais e constantes de Felipe
Aquino, ora para reafirmar a sua tese e demonstrar que isso vinha sendo dito por ele em
outras ocasiões; ora para demarcar novamente a sua própria autoridade. Ali, o que
interessa é repisar da grandiosidade da Igreja – uma grandiosidade compatível com o
tamanho do retrato de Bento 16 no fundo do cenário. E então se passou a tramar o
discurso sobre a importância da Igreja para a ciência.
Enquanto Alexandre discursava, os cortes de imagem se sucediam: plano
fechado no entrevistado, cujo olhar se dirigia a Felipe Aquino; plano conjunto, com
entrevistado sob a supervisão do entrevistador; plano fechado no entrevistador – que se
dirige, no entanto, para a câmera, para o telespectador, uma maneira de demarcar sua
liderança intelectual sobre o entrevistado e sobre os telefiéis, muito mais do que a
interlocução. E o discurso verbal, menos do que se tramar como um diálogo de
especialistas, era direcionado para o reforço do discurso que era construído: a
autoridade de Felipe Aquino e, por consequência, a infalibilidade da Igreja Católica. O
uso de sintagmas pouco comuns na TV (“referencial inercial”, “exegeta”, “exegese
bíblica” entre outras tantas), menos do que apontar para o leitor-modelo pretendido,
exigia que esse leitor se dobrasse diante de tanta sapiência. Pouco importa então que
não haja compreensão do que é expresso, desde que se reconheça a autoridade de
Aquino. Isso seria útil, como se verá depois.
O segundo bloco do programa se iniciou com notícias, direto do Vaticano,
no quadro A palavra do papa, com discursos proferidos por Bento 16. Nesse caso, em
perfeita harmonia com o Escola da fé, o papa dizia que era preciso viver em comunhão
com Deus e que isso era conseguido não apenas com o conhecimento que vêm dos
livros – mas era preciso viver a fé. O retorno ao estúdio do programa é grandiloquente:
o entrevistado não está no quadro. Felipe Aquino, em plano médio, o suficiente para
163
deixar à mostra, no fundo, uma TV de plasma, comenta o discurso do papa. Diz ele que
Bento 16 disse algo que é imprescindível para o cristão encontrar Deus: a direção
espiritual. E essa direção só é alcançada se há alguém para ensinar o caminho – porque
a leitura da Bíblia é “muito difícil” para os leigos. Por isso ele está ali – para auxiliar as
pobres ovelhas a encontrar o criador. Isso é dito de forma direta: “é preciso alguém que
entenda da exegese da Bíblia, de hermenêutica, da doutrina da Igreja, para te orientar.”
E, claro, alguém como ele, Aquino, que está ali, na TV Canção Nova, que faz crescer
espiritualmente. Por isso a Canção Nova precisa da ajuda dos fiéis. Simples assim:
ajude-nos a ajudar vocês, algo dito com uma voz mais doce do que a comum. Vocês,
sem nós, estão perdidos, andarão por caminhos sem volta. Vocês precisam da Canção
Nova – deem-nos a matéria que vai nos ajudar a direcionar vocês, fiéis.
O retorno do entrevistado, que iria responder a questões de telespectadores,
mostra o quanto eles, os entrevistados, são escolhidos a dedo na tarefa de elevar a Igreja
ao lugar da imutabilidade e da justiça eterna. O astrofísico, explicando sobre a querela
entre a Igreja e Galileu Galilei, disse, sob a aprovação de Felipe Aquino, que o papa de
então foi justo e exigiu “apenas” que Galileu escrevesse um livro relacionando os
argumentos contra e a favor do heliocentrismo. A história, as condições sociais, o
poderio católico, muito além do simbólico – nada disso importa, se a Igreja é elevada ao
saber supremo desde sempre. E, eterna, feita a ponte para os dias de hoje, nota-se a
estratégia discursiva: a Igreja é e sempre foi um celeiro de cientistas; hoje, o Vaticano
mantém um Observatório grandioso e, como outrora, não separa ciência e Deus.
Resultado da operação – além da óbvia relação entre a Igreja e o saber: a Igreja, que é o
caminho para Deus, detém o seu saber, inclusive o científico. Como tal, e por ser eterna,
é inquestionável. Aquino, o cientista religioso, é autorizado pela Igreja para orientar no
caminho de Deus; tudo o que ele disser tem sustentação científica e da Igreja. Portanto,
não será questionável. Isso é decisivo – e constante em todos os programas. O terceiro e
o quarto blocos do programa têm a mesma estrutura do segundo, com uma diferença:
Felipe Aquino reafirma sua sapiência, ao responder, de forma didática – e reafirmar a
estratégia discursiva – sobre dúvidas enviadas por, aparentemente, fiéis. E na conversa
com o entrevistado persiste sobre a indissociabilidade entre ciência e religião: Big Bang,
evolução e teoria da evolução; matéria e antimatéria; os dinossauros, asteroides, criação
do humano com barro e metáforas bíblicas – nada mostra que haja separação entre Deus
e saber. Ao contrário, e diante da limitação da ciência, as teorias e os fenômenos sobre
os quais se dedica são provas irrefutáveis da existência de Deus e, mais, por isso
164
mesmo, a religião, como a forma como se alcança o saber de Deus, prescinde e supera a
ciência. Se a religião é irrefutável, a Igreja também o é. Ou, o que seria o mesmo: o que
é e será dito pela Igreja e por Aquino, que se mostra como um cientista que aceita Deus,
é irrefutável.
O que importa no diálogo entre Felipe Aquino e Alexandre Zabot não é o
tom jocoso que muitas vezes foi utilizado por Zabot para detratar o que ele chama de
pseudo-teorias, sobretudo as que vieram pelas perguntas de telespectadores; menos
ainda que, nesse diálogo, haja um esforço, legítimo, de parte a parte, de ilustrar o
público. O que importa é como esse diálogo se trava pelo discurso televisivo: como
Alexandre pede permissão - e às vezes socorro (como em relação à pergunta: quem é
Deus, que Alexandre preferiu transferir para o professor) a Aquino, que por sua vez se
enche de autoridade do saber e da verdade. Isso se torna especialmente sintomático
quanto às campanhas políticas de Aquino. O fato de o programa em questão ter sido
reprisado em razão de ser considerado entre os melhores programas do ano diz muito
das estratégias discursivas desejadas e montadas – estratégias que precisam ser
compreendidas como o discurso pretendido pelo programa em sua totalidade.
b) Programa de 28/01/2010
Aquele dia marca a volta dos programas transmitidos ao vivo. Logo depois
da oração inicial, Felipe Aquino faz uma reflexão sobre a necessidade de, antes de
iniciar a “aula”, realizar as orações – “porque é preciso pedir a proteção de Deus. Deus
nos protege de muitos perigos.” A participação do auditório se resumiria àquela – e a
truques de edição, as chamadas imagens de passagem, para que a transmissão não fique
excessivamente enfadonha, o que acaba por forçar uma participação virtual, não efetiva
– ou, o que é o mesmo, como espectadores. Nessa edição, o convidado a participar do
talk-show é um conhecido do público da TV Canção Nova: padre Paulo Ricardo de
Azevedo, consultor da Congregação do Clero para assuntos de catequese junto à Santa
Sé, professor de Filosofia e Teologia e reitor do Seminário Cristo Rei de Cuiabá, e um
contumaz ativista contra o que chama de materialismo do marxismo cultural, sempre
presente em diversos programas da TV Canção Nova.
51
A temática da “conversa” seria uma exortação de Bento 16, publicada no
final de 2009, contra a Teologia da Libertação. Felipe Aquino não teve dúvidas: “O
51
Um interessante entrevista de padre Paulo Ricardo sobre o assunto pode ser acessada em
http://www.cancaonova.com/portal/canais/entrevista/entrevistas.php?id=336 (Acesso em 18/03/2010).
165
papa condenou, de forma muito pesada, a Teologia da Libertação de cunho marxista. E
como padre Paulo Ricardo e eu vamos realizar pregações no acampamento que vamos
ter aqui para estudantes, resolvemos aproveitar para falar sobre essa exortação e esse
assunto aqui no programa. Vamos conversar, nesse acampamento, sobre as coisas da
Igreja; sobre as coisas que estão acontecendo no Brasil, sobre esse Programa Nacional
de Recursos Humanos.” Felipe Aquino, em ato falho, naturalmente se referia ao
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que viria a ser retomado em
programas seguintes. A repetição é uma marca importante de Escola da fé. Repete-se
não apenas a temática, mas também os convidados – se não em nomes de pessoas,
certamente no tipo de personalidade, que reafirma as posições e os saberes do próprio
Felipe Aquino. E isso a despeito da convicção anunciada por ele: “vocês notam que
estou sempre trazendo pessoas diferentes aqui. São diferentes, mas sempre pessoas que
têm uma determinação muito clara a respeito da Igreja”. O discurso não deixa dúvidas:
diferentes. Mas iguais. E iguais na tarefa de repisar não apenas o assunto e a posição
ideológica, mas sobretudo para reafirmar a autoridade do próprio “professor”.
Ao realizar uma breve chamada para o programa da semana seguinte, que
traria um jornalista católico, Felipe Aquino daria o tom da conversa: os ataques contra a
Igreja vindos da mídia. E isso foi o mote para a primeira pergunta, sobre o
pronunciamento do papa, exortando os sacerdotes a evangelizar pela internet. Padre
Paulo Ricardo não teve dúvidas – reforçando o sentido construído por Escola da fé e
pelo professor Felipe Aquino: os ataques da mídia contra a Igreja se dão pelas barreiras
criadas a ela; pela constante desaparição a que a mídia submete a Igreja. Daí a
importância de usar a internet: meio de comunicação barato e eficiente, será por ela que
as barreiras serão quebradas. Comme d’habitude, Felipe Aquino toma para si a palavra,
para deixar claro de quem é a voz, de quem é o direito de permitir quem pode ou não
tomar a palavra.
De forma concatenada, o assunto seguinte, que antecedia à temática
principal – a Teologia da Libertação e o “marxismo cultural” – foi o PNDH (chamado,
mais uma vez, por Felipe Aquino, de Plano Nacional de Recursos Humanos. Seria
necessária uma ilação para tentar compreender esse ato falho). O professor foi ao ponto:
misturar questões morais a políticas. O Plano deve ser condenado porque é a favor do
aborto, à união de pessoas do mesmo sexo; quer retirar os símbolos do cristianismo dos
locais públicos; é uma “certa” mordaça à imprensa – e é uma ameaça à propriedade
privada. Tudo dito diretamente para a câmera, a despeito de a pergunta se dirigir ao
166
entrevistado.
Esta pesquisa se interessa apenas pelo discurso proferido – e a confusão
entre temáticas, realizada de forma proposital, só pode ser compreendida segundo o
esforço de autoridade, montado por cada elemento do discurso de seu programa e do
fluxo televisivo. Autoridade que é reafirmada pelo padre Paulo Ricardo: “Essa é uma
mentalidade que contaminou toda a classe política e não se limita a um partido
político.” Culpa de quem? Da mídia, refratária à Igreja, e por isso anticristã, e ao
marxismo da Teologia da Libertação, contra quem a sociedade não pode lutar sem a
Igreja. Entrevistado e entrevistador fecham questão: o PNDH tem um forte viés
marxista, quer acabar com a propriedade privada, tapar a boca da imprensa, por ter forte
viés autoritário, e pavimentar o socialismo, pergunta Felipe Aquino. Exato!, responde
padre Paulo Ricardo, que complementa: esse “Plano Nacional de Recursos Humanos”,
num espelhamento até mesmo dos atos falhos, é na verdade um golpe de estado.
E a reflexão vai longe, às vias de um plano mundial marxista. Padre Paulo
Ricardo chamara a atenção para um governo mundial, marxista e anticristão, que se
forjava. “Porque, veja, se fosse apresentado ao Obama esse Plano, ele assinava na hora”.
“Na hora”, retrucou Aquino. “Todos os governos, do mundo inteiro, estão em uma
sinfonia desastrosa, todos voltados para uma sociedade ditatorial e anticristã”, finalizou
padre Paulo Ricardo, sob o olhar de aprovação de Felipe Aquino.
O quadro A palavra do papa não ganhou qualquer destaque naquele dia. A
temática era muito mais interessante. Antes de restituir a palavra ao convidado, Felipe
Aquino concedeu voz a um membro do Conselho Nacional da Renovação Carismática
Católica, que informou sobre um “grande evento” voltado para políticos. A estratégia
discursiva se mostrava inteira.
Era chegada a hora de entrar na temática Teologia da Libertação – e ela se
deu pela lembrança do documento do papa, lidas com sincera intensidade por Felipe
Aquino: as teses marxistas da Teologia da Libertação deixam como sequela a rebelião, a
divisão, o dissenso, a ofensa e a anarquia nas comunidades. Mais uma vez tínhamos um
auditório e um convidado, a quem se dirigia a questão – mas Aquino falava diretamente
para a câmera. Sua autoridade, preparada desde sempre, e o terreno ideológico,
preparado imediatamente antes, permitia e reforçava a estratégia do discurso televisivo.
A estratégia é assumida por padre Paulo Ricardo, que dizia diretamente para
a câmera: “Diziam da Teologia da Libertação o mesmo que diziam do marxismo com a
queda do muro de Berlim. Mas a queda do muro fez com que o marxismo deixasse o
167
lado de lá e viesse para o lado de cá.” E sabe por que não notamos que vivemos um
socialismo?, perguntou, se dirigindo concomitantemente para a câmera e para o
entrevistador. “Porque o peixe não nota a água enquanto está nadando. O socialismo, o
marxismo está para todos os lados: entre os professores, psicólogos, jornalistas.” Era a
ponte que faltava para chegar à temática: “Ninguém mais fala na Teologia da
Libertação, mas ela está forte e atuante em nosso país.” Mas, padre Paulo, retrucou
Aquino, como, depois do trabalho pesado do cardeal Ratzinger e do papa João Paulo II
contra a Teologia da Libertação, como ela pode ter sobrevivido dentro da Igreja?
“Porque ninguém sabe o que é a Teologia da Libertação”, respondeu de pronto o
entrevistado, sob a atenta concordância do entrevistador. “Vou explicar para os que não
sabem o que é a Teologia da Libertação”, voltou à carga, didático e incisivo, o padre.
“Ela não é uma ideia, é um jeito de pensar. É um novo jeito de ver o cristianismo como
um todo. E esse jeito ainda está atuante.” Como é isso, retrucou Aquino. Como é esse
jeito de ver o cristianismo? “Porque me parece que aí está o veneno, aí está o perigo”,
disse o sapiente professor. “Significa abolir”, dizia o padre, saboreando as palavras,
“abolir todo o sentido anagógico, místico, todo o sentido transcendente da fé.” E qual o
sentido de transcendente? Apenas aquilo que diz respeito ao espiritual. E o espiritual?
Diz respeito ao céu. Pronto: a Teologia da Libertação quer acabar com o céu. E acabar
com o céu significa acabar com a própria fé. Por exemplo, a eucaristia: ela não é a
presença real de Deus, uma “força transcendente, o espírito santo que vem sobre o pão e
o vinho, realizando uma transformação ontológica, sobre o ser.” O discurso era
exaltado, para se acalmar em seguida, numa representação da enunciação de um teólogo
da libertação: “Não! É que a eucaristia significa alguma coisa. A festa da comunidade
etc e tal.” E isso está, como uma praga, espalhada na casa do senhor. E o perigo maior
está no fato de esse jeito pretender ser científico – porque a ciência é usada contra a
Igreja. E, sabemos, o espírito científico está do lado de cá, com o professor Filipe
Aquino, com o papa, com a Igreja.
E como perceber que se trata do perigo, se ele não é perceptível? “A
Teologia da Libertação corta a transcendência, corta aquilo que é a verdadeira fé. E
transforma o cristianismo como um todo num mecanismo de transformação da
sociedade. Então, é muito fácil”, disse o padre, se dirigindo e apontando para a câmera.
“É muito fácil você perceber, você, que está em casa, ouve a homilia. Se você não ouviu
do padre de sua paróquia, graças a Deus. Mas você já ouviu homilias desse tipo”. Eis o
juízo final: fuja da leitura sociológica. E, mais, complementa Felipe Aquino,
168
reivindicando o saber: outro traço é negar a existência do demônio, o exorcismo. Que
Jesus não estava expulsando o demônio. Sim, retomou padre Paulo Ricardo, porque é a
transformação de todo transcendente em imanente. “Isso tem um nome: materialismo”,
asseverou. E não existe uma só Teologia da Libertação que não seja marxista.
Exorcizemo-los completamente, porque, concluiu, do alto de sua sapiência, como quem
daria a palavra final, Felipe Aquino – porque a Teologia da Libertação não é mais uma
heresia: é a pior heresia. É a heresia que se traveste de cristianismo, para negar o
cristianismo. Você, que quer aprofundar, leia o meu livro: Teologia da Libertação. São
muitas as armas contra o demônio.
Antes de chamar o intervalo comercial, Felipe Aquino permitiu que um
telespectador fizesse uma pergunta para a resposta de padre Paulo Ricardo. A pergunta
escolhida foi, aparentemente, de um seminarista que desejava saber como descobrir que
uma determinada congregação religiosa não é influenciada pela Teologia da Libertação.
Depois do intervalo. A última propaganda, institucional, era do Projeto Dai-me almas –
e o pároco dizia: esse é um seu projeto – dirigindo aos telespectadores. Nós precisamos
de vocês para continuar nosso trabalho de pastoreio. Nada mais sintomático. Na volta
do programa, o padre respondeu: primeiro, o remédio para essa doença é a fidelidade ao
papa, ao catecismo da Igreja. Segundo: não queira, você, jovem incendiário, modificar o
seu seminário. Não tenha atitudes de reitor. Deixe para o seu bispo, que sabe do todo.
Em outras palavras: limite-se à sua ignorância. A atitude, no entanto, interessa pelo
próprio remédio – prescrito pelo padre e pelo professor: contra um inimigo que é
totalizante, é preciso que haja uma resposta também total. Tudo é perigoso, desconfie de
tudo o que não fale do diabo e do Deus que vai combatê-lo. Felipe Aquino ajudou: é de
cortar o coração ver jovens que eram fervorosos, que adoravam o santíssimo, que
tinham tudo para ser um brilhante padre se perder nessa água turva em que se
transformaram alguns seminários que na verdade são não-cristãos. Nem tudo está
perdido, todavia: os jovens querem romper com “tudo isso”, querem o verdadeiro
cristianismo da fé no reino dos céus.
De fato, a presença de padre Paulo Ricardo ali era o próprio espelhamento
necessário de Felipe Aquino. Até mesmo na ordem dos interditos, daquilo que permeia
o imaginário dos locutores, mas não pode ser dito, por razões históricas – até mesmo aí
eles coincidiam: padre Paulo Ricardo, com a anuência firme de Felipe Aquino, disse:
“Eu não estou pedindo o retorno da Inquisição. Não quero que os padres da Teologia da
Libertação sejam queimados na fogueira.” “É claro que não”, retrucou, convicto, Felipe
169
Aquino. A única coisa que desejam, ambos, é a concordância com a palavra do papa: o
ex-cardeal Ratzinger, da santa Inquisição moderna, não queimou os teólogos da
libertação – os colocou em silêncio obsequioso. Padre Paulo foi peremptório: desafiou
alguém a dizer que está errado por exclusivamente seguir as palavras do papa. Aplausos
fervorosos da plateia. Sorriso gozoso de Felipe Aquino. A Igreja afinal tem em sua
doutrina social uma proposta de libertação do pobre, sem perder o céu como mirada –
não precisamos da ruptura com a hierarquia, com a instituição, com o pastoreio, para
sermos caridosos. Quem dera todos pudessem ser como o padre.
Antes do término e fazendo ecoar como suas as palavras de padre Paulo
Ricardo, Felipe Aquino reforça o convite para o Congresso para políticos católicos,
organizado pela Renovação Carismática Católica – porque a política é maravilhosa; o
que não presta é a politicagem. O que seria o mesmo: política é tudo o que aqui vocês
encontram, o que está nas palavras do padre aqui à minha frente – e tudo o que
combatemos é a politicagem. Está fechado o ciclo. Passemos a outra frente do combate:
até o nosso próximo programa, se Deus quiser.
c) Programa de 04/02/2010
A edição do programa se iniciou sob o impacto da entrevista do padre Paulo
Ricardo Azevedo na semana anterior, que obteve enorme repercussão – positiva, a se
julgar pelos comentários no início do programa de Felipe Aquino, e do próprio
entrevistado daquela noite, o jornalista católico
Márcio Antônio Campos, escritor do
blog Tubo de ensaio, de ciência e religião.
52
Mas essa repercussão tornou o entrevistado
bastante prejudicado – ele, desde o início da entrevista, foi atropelado pela tematização
imposta pelo professor Felipe Aquino. Se, normalmente, o apresentador do Escola da fé
toma para si a palavra, concedendo-a a quem, da forma e com o tom que deseja, com o
jornalista, que parecia acuado diante da convicção de Felipe Aquino, apenas se
confirmava a autoridade do professor.
Naquele dia, a plateia no auditório, que normalmente se manifesta
espontaneamente quando há motivos para isso, não deu o ar de sua graça. Não havia o
chamariz para tanto. E, como já havia sido anunciado anteriormente, o programa
discutiria os constantes ataques sofridos pela mídia – ataques infames, ele completaria,
porque injustificados e baseados exclusivamente em uma mentalidade diabólica. Porém,
como ver-se-ia depois, a real motivação por que o jornalista foi convidado era sua
52
http://www.gazetadopovo.com.br/blog/tubodeensaio/
170
pesquisa sobre Galileu Galilei e seu blog sobre religião e ciência. Tudo isso, contudo,
foi deixado para segundo plano. O importante, naquele dia, era dar continuidade ao que
havia sido, de forma contundente, iniciado uma semana antes. E, nesse caso, a mídia, é
claro, fazia parte do plano que o demônio possui para dominar o mundo - e, para isso,
deveria destruir a Igreja. A presença do jornalista ali parecia só um pretexto – mas ele
acabou se tornando um estorvo.
Como a mídia é feita de jornalistas, a conclusão é óbvia: a culpa é dos
jornalistas. Não adiantava Márcio Campos dizer que não se tratava de um complô contra
a Igreja; que não havia um movimento orquestrado; que a Igreja não era notícia
constante, mas era notícia, e que funciona assim nas empresas de comunicação; e que a
maioria dos “preconceitos” dos jornalistas se deve a falta de informação, mas que não
existe má-fé. De nada adiantava o jornalista tentar dialogar – àquela altura estava
havendo um monólogo. Por fim, Felipe Aquino apontou um caminho: “Minha cabeça é
uma cabeça de físico, de matemático. A mídia é formada nas universidades, os
profissionais da mídia. E a universidade hoje é antirreligiosa – pelo menos em sua
maioria.” Assim, para mudar a mídia, é preciso mudar a universidade. O campo de
batalha estava armado – mas ouvia-se a ressonância das vozes que saíram do programa
anterior: o anticristo é o marxismo, que, silenciosamente, trama, em diversas instâncias,
contra a Igreja. “Estou certo nisso?”, questionou por fim o professor.
Márcio não tinha outra saída: “Sim, está certo. A universidade é a
responsável por passar essa ideologia.” Conclusão: há uma força silenciosa entre os
jornalistas, que acabam assumindo “automaticamente” que a Igreja foi omissa na 2ª
Guerra Mundial, que a Igreja matou milhões de pessoas na Inquisição, que a Igreja
atrapalha o progresso científico. A resposta não havia sido satisfatória – e precisou que
Felipe Aquino voltasse à carga, tentando de todas as formas mostrar o caminho da
verdade – e falou de lendas negras sobre a Igreja, mentiras escabrosas sobre ela. Enfim,
o jornalista esteve à altura: de fato, como diria o ministro da propaganda nazista, uma
mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Logo: aqueles que detratam a Igreja
são nazistas – ou marxistas, o que dá no mesmo. Resposta certa. Aquino retornou:
“Então essas lendas negras são plantadas, orquestradas, criadas para minar a Igreja.”
Não daria para retroagir: “Foram orquestradas décadas atrás, e hoje se divulgam por
inércia”, tentou, ainda, Márcio. Quase ignorando o entrevistado e lhe cortando a fala, o
professor procurou ensinar: “É um trabalho gigantesco o que precisamos fazer hoje,
esse de desmistificar essas lendas negras na cabeça dos jovens.” Estava feito. O
171
professor então dá sua última cartada: pega um livro seu e mostra ao aluno à sua frente.
E dirigindo-se para a câmera, mostra o livro Uma história que não é contada, sobre as
belezas que a Igreja Católica construiu ao longo de sua história; esforço de quem está
desmistificando as lendas negras, essa coisa de nazistas e marxistas – ou marxistas,
invariavelmente nazistas. É preciso que nossos universitários deixem de engolir tudo o
que veem pela frente.
Dessa vez, a campanha era contra o Plano Nacional de Direitos Humanos.
Questionado sobre o assunto, o entrevistado, mais uma vez, se mostrou útil: para
Alexandre, trata-se da prova definitiva de que “esse” governo é autoritário. E como lutar
contra o plano, retomou o professor, praticando a dialética socrática como método
pedagógico. Ao que o aluno responde: em um primeiro instante, se mobilizando, mas,
depois, elegendo outro projeto político. A verdade irrefutável tem enfim suas vantagens
práticas.
O quadro A palavra do papa, desta vez, ganhou importância estratégica.
Bento 16 tratou de Domingos de Gusmão – um santo extraordinário, nas palavras de
Felipe Aquino. Que completou: “Me chamou a atenção na palavra do papa que ele
disse: São Domingos viveu a pobreza – e o estudo”, disse, com ênfase para a última
palavra. “Então, o evangelizador precisa estudar muito”, porque há muitos
evangelizadores que acham que não precisam estudar. “Não!”, exclamou, vitorioso de
sua própria sapiência. O discurso tinha um endereço: os jornalistas, inclusive aquele,
Márcio, que demorou a compreender a verdade das coisas; os estudantes universitários;
a própria universidade. E, mais uma vez, demarca terreno: sou evangelizador e estudo
muito. Mais do que isso: sou sábio, como São Tomás de Aquino, reivindicado, não por
acaso, em seu discurso. Enquanto isso, no rodapé da tela, um aviso: “Venha participar
do Kairós ‘Que ninguém vos faça prisioneiro’”. “Vos” faça – não “nos” faça. A vós,
prisioneiros das sombras, temos a saída – o nosso carisma.
A participação dos telespectadores reforçou esse quadro. A pergunta já
havia sido respondida, mas pouco importava: agora, o alvo era o próprio entrevistado. À
pergunta “é má-fé ou ignorância dos jornalistas os equívocos sobre a Igreja”, Márcio
respondeu: é ignorância! Mas Felipe Aquino deseja levar mais adiante – mostrar que
não pode haver tanta ignorância assim. Por exemplo: editoriais de jornais grafam
“Igreja” em minúsculo e continuam a fazê-lo, mesmo depois de o próprio professor ter
enviado cartas de correção àquele jornal de grande circulação em São Paulo. “Pelo amor
de Deus!”, exclamou o professor em sincera indignação. “Qualquer criança sabe que
172
Igreja, instituição, é em maiúsculo.” A razão era uma só: não há tanta ignorância assim,
meu rapaz. Qualquer criança sabe disso – há uma orquestração contra a Igreja. Felipe
Aquino estava tendo muito trabalho naquele dia. E tudo era motivo para tomar a palavra
do jornalista – inclusive o anúncio do encontro “fé e política”, promovido pela
Renovação Carismática Católica e anunciado no programa anterior. Havia ainda a série
de notícias, que deveriam ser comentadas pelo entrevistado – mas no momento em que
Márcio se arvorava a dizer algo, logo era interrompido. O professor não poderia correr o
risco de qualquer relativização em torno de assuntos sérios, como o aborto – ou Plano
Nacional de Direitos Humanos, que novamente vinha à tona. Tudo era motivo para não
passar a palavra ao jovem convidado: Felipe Aquino fez questão de ler muito dos nomes
dos bispos católicos que assinavam um repúdio ao documento do governo.
Enfim, a palavra foi concedida a Márcio – que desta vez não decepcionou:
“Eu queria destacar duas palavras desse documento de repúdio: métodos autoritários.”
O aluno, acuado, tropeça nas palavras, mas, agora sim, ganha a aprovação do professor
e trata do absurdo do aborto. Como é absurdo que o documento preveja que a mulher
tome posse de seu próprio corpo. Isso é antidemocrático, porque o povo não quer.
Márcio falou do aborto, mas se esqueceu do casamento entre sujeitos homoeróticos. É
verdade – lembrou-se Márcio, aliviado. Mas não é só esse ponto que ofende não apenas
a doutrina da Igreja – mas a própria democracia, quando quer controlar a mídia ou
descriminalizar os movimentos sociais, e muito especialmente os movimentos de
trabalhadores rurais sem terra. E há ainda, ajuda o professor, a revogação da lei da
anistia, contra a qual se “arrepiaram os militares. Até porque o projeto só previa a
punição contra os militares, mas não contra os terroristas que eles combateram”,
apontou o didático professor Felipe Aquino. É verdade – o que mostra o quanto é
antidemocrático, já que os terroristas queriam instalar uma outra ditadura. “Tirar uma
ditadura militar para instalar a ditadura socialista.” Ditaduras têm valor – e apesar da
pequena falha de chamar terroristas de guerrilheiros, o aluno estava indo bem. E como
lutar contra o plano, retomou o professor. Ao que o aluno responde: em um primeiro
instante, se mobilizando, mas, depois, elegendo outro projeto político. Porque não é
possível “separar a criatura, o PNDH, do criador, o governo que o propôs. Então é
preciso que os católicos se conscientizem que tem partido no Brasil que não dá para
votar nem para síndico de condomínio.” O professor ficara satisfeito.
Com o intuito de fazer com que o jornalista falasse o menos possível, Felipe
Aquino fez uma longa chamada por doação para a Canção Nova, esse “mutirão de
173
evangelização”, mantido “sem propaganda, sem intervalo comercial”. Pouco importava
que acabara de haver um intervalo comercial – com propaganda. E continuou: mas é
preciso ser perseverante, doar sempre, sem interrupção. Quanto mais ficasse ali, menos
riscos correria com aquele rapaz sem preparo. E assim ficou, durante longos três
minutos. O restante do programa, que ainda teria dois blocos, se arrastou em um quase
monólogo – em assuntos que giravam em torno do assunto que angustiava e mobilizava
o professor: o Programa Nacional de Direitos Humanos. Porque a ameaça à democracia
que esse Programa representa é na verdade uma ameaça à Igreja – e, como lembrou
Felipe Aquino, São Paulo disse que a Igreja é a coluna da verdade. O discurso estava
armado: o ataque à Igreja pela mídia era um ataque à democracia e à verdade – e todos
pertencem ao mesmo fenômeno, cujo núcleo está no PNDH e nos “marxistas” que o
propuseram. Por fim conclamou: “O sr. Marx e os comunistas que fizeram aquela
revolução na Rússia tinham um slogan: ‘Trabalhadores do mundo, uni-vos!’. Será que
não está na hora de lançarmos o lema: ‘Católicos, uni-vos’?” E iniciou um longo
parlatório solitário sobre as estratégias para enfrentar os inimigos que estão de todos os
lados. O entrevistador não precisava mesmo do entrevistado. O restante do programa,
sobre o trabalho de Márcio Campos, sobretudo sobre Galileu – os erros que cometeu até
ser excomungado e as injustiças cometidas contra a Igreja por esse evento –, é menor,
porque os objetivos do programa daquele dia haviam sido alcançados – a despeito do
convidado.
d) Programa de 11/02/2010
Em um programa que, segundo seu apresentador, visa a olhar as pontes que
ligam ciência e religião, e que tem em Felipe Aquino alguém que faz questão de se
autointitular professor, que não deixa esquecer que ele é um físico com doutorado etc,
seria normal que houvesse recorrência a fatos científicos, como o que ocorreu no início
do programa daquele dia. Logo depois da tradicional oração, Felipe Aquino lembrou
que aquele 11 de fevereiro era dia de Nossa Senhora de Lourdes, responsável por
inúmeros milagres, comprovados não pela Igreja, mas pela medicina. Seria normal, não
fosse pela tensa confusão que provoca essa recorrência. Lembremo-nos, todavia, que a
ciência deve se submeter à religião – e não o contrário. E que qualquer tentativa de fazer
a religião se submeter a algo é na verdade um subterfúgio para destruí-la, para o
regozijo do diabo e seus amigos comunistas. Não se pode dizer que essa confusão seja
uma estratégia discursiva – é mais produto da ambiguidade que carrega consigo um tipo
174
de religiosidade que necessita do diabo para existir; que necessita defender-se a
qualquer custo – e para tanto, o mundo precisa se tornar mágico, encantado.
O auditório, lotado em razão do carnaval que se aproximava – a Canção
Nova recebe gente de todo o Brasil em seus acampamentos de carnaval -, buscava
justamente fortalecer seu próprio sentido de encantamento do mundo. A simples
presença na gravação de alguém tão sapiente das coisas de Deus era um passo em
direção a seu propósito. E Felipe Aquino não se fez de rogado: a “grande festa de Nossa
Senhora de Lourdes”, que não deixa dúvidas na Igreja quanto a seus milagres. “E como
é que a gente sabe que não tem dúvida?”, pergunta-se, com convicção. “Porque diversos
papas já foram a Lourdes – João Paulo II foi, papa Bento XVI. Quando um papa vai ao
local de uma aparição, é porque ela [a Igreja] está atestando, com a presença do papa,
que ela acredita nas aparições naquele local e nas revelações.” E iniciou o ensinamento
das circunstâncias históricas – mas de uma história da profecia – da aparição de NS de
Lourdes, e o fazia não para o auditório, mas diretamente para a câmera.
Agora, sim, o discurso se manifesta: o mundo é mágico, mas a única que
pode atestar sua magia é a Igreja. Não aceitar a magia significa não aceitar a Igreja – o
que, por sua vez, significa a vitória do diabo. Por outro lado, a magia só se manifesta
para aqueles que aceitam a orientação – do contrário, será engano, astúcias do anticristo.
E Felipe Aquino era um legítimo orientador – porque autorizado pelo papa e porque,
sábio das coisas da Igreja, sabe – e são poucos os que sabem, são poucos os que são
capazes que criar uma escola da fé – que a ciência, a verdadeira ciência é esta,
subjugada pela Igreja, para a salvação dos frágeis humanos.
Todo o programa daquele dia giraria em torno desse ensinamento: o mundo
encantado e explicado às ovelhas. Terminada a narrativa, Felipe Aquino se dirigiu à sua
bancada – e sacou o seu último lançamento: um livro em que ensina aos casais “o que
pode e o que não pode” em suas vidas sexuais: Vida sexual no casamento. Os livros,
sabemos, hoje mais do nunca, são apenas indicativo de autoridade intelectual. Pois que
livros são matéria de sábios – e sábios são aqueles que explicam a magia do mundo para
ovelhas desorientadas. Sexo não é ato – é milagre, e como tal, precisa ser explicado. O
corpo não é corpo, é morada do espírito – e como tal não deve ser negado (o que seria
uma temeridade), mas transformado em signo. Felipe Aquino preparava o terreno,
enfim, para aquela “aula”: naquele dia, não havia convidado a ser entrevistado. Talvez
fosse um reflexo traumático do “entrevistado” da semana anterior – talvez apenas
constatação: para que convidados?
175
E assim foi: no costumeiro comentário sobre notícias, as boas novas
escolhidas eram repetidas – mas tinham um sabor algo cômico. Na China, há milhões de
homens que não têm parceira. Qual a causa disso? O aborto e os casamentos
homossexuais. É claro que um pacto sub-reptício tornava a notícia de cômica a trágica:
o “regime” chinês produzia abortos e permitia a união de casais homoeróticos. Mas, de
qualquer forma, a estratégia montada era pela ridicularização – e o público presente no
auditório se manifestava positivamente, gargalhando aqui e ali. Todos estavam
engajados na leve luta política como símbolo – mas, ao contrário, a tarefa era
ridicularizar o homoerotismo e apontar para o absurdo que é a mulher ter controle sobre
seu corpo. Isso no entanto não é machismo ou homofobia – a Igreja ama as mulheres e
os homossexuais; eles só não podem agir livremente, porque isso não é “normal”.
E o que é “normal”? A entrega absoluta à Igreja; o pastoreio. Por isso Felipe
Aquino estava ali, se entregando de corpo e alma às ovelhas. É isso o que diz o papa,
conforme a interpretação de Felipe Aquino a partir do quadro A palavra do papa. Era
preciso respeitar a história da Igreja – e sua palavra trazia naquele dia palavras sobre o
doutor da Igreja, Santo Antônio Gusmão, um sábio, uma maravilha.
O programa estava leve – apenas o ensinamento moral: aborto,
homoerotismo, código moral eclesiástico. Mas também havia as maravilhas – e a mídia
só faz aparecer os casos de pedofilia. E as maravilhas? E as obras de caridade? E o fato
de que 26% dos hospitais do mundo serem da Igreja Católica? “Aí está, meu irmão!
Atiram tantas pedras na Igreja. Mas será que as pessoas falam disso?”, questionou-se,
resignado, o professor. Afinal, embora seja puro espírito, a Igreja se preocupa com o
corpo, com a matéria – e tamanha generosidade lhe dá suficiente autoridade para dizer
sobre as coisas do mundo, sobre essa luta desenfreada pela matéria do mundo. Eis que
surge a razão de ser do discurso entre o leve e o pesado: o MST. Sobre a decisão da
justiça de prender preventivamente membros do movimento brasileiro em razão da ação
na fazenda da produtora de suco de laranja Cutrale, em São Paulo, no evento em que
foram gravadas e divulgadas cenas – “horríveis”, segundo Felipe Aquino – de tratores
derrubando pés de laranja. Como resposta, Aquino reivindica a palavra mágica do papa
João Paulo II, que, mestre dos sábios, antevira a situação – e, em discurso aos Bispos do
Brasil, em Março de 1996, disse:
Recordo as palavras do meu predecessor Leão XIII quando ensina que “nem
a justiça, nem o bem comum consentem danificar alguém ou invadir a sua
propriedade sob nenhum pretexto” (Rerum Novarum, 55). A Igreja não pode
estimular, inspirar ou apoiar as iniciativas ou movimentos de ocupação de
176
terras, quer por invasões pelo uso da força, quer pela penetração sorrateira
das propriedades agrícolas.
Apenas para que recordemos o que foi expresso no capítulo anterior desta
tese: o tal documento a que fazem referência João Paulo II e Felipe Aquino é um
manifesto contra o comunismo, ainda no final do século 19. Nosso professor não apenas
fez dele as palavras do papa – reforçou-as. E perguntou, indignado: como podem bispos
e padres caminharem à frente “desses” movimentos? Como pode contrariar dessa forma
a palavra verdadeira do papa? “Gente, isso aqui é marxismo, isso aqui é comunismo.
Diz respeito à propriedade agrícola”, ensinou. “Ninguém pode entrar a força no seu
apartamento e tomar ele de você, não!”, vociferou o professor. E a edição daquele dia,
inteiramente, girou nesse jogo entre a magia e a articulação do diabólico com
“comunismo e marxismo”.
Interessa, nesta análise, menos a forma ideológica – e mais a maneira como
ela se constrói: pela articulação entre sujeito do saber, ciência e religião. E, mais,
articulando a própria autoridade ao saber científico e religioso. Ou, dito de outra forma:
pela construção de uma autoridade em que ciência e religião se juntam para o
fortalecimento de uma prática social de distinção e de pastoreio. E essa prática é
utilizada para as questões cotidianas – de maneira marcada. O resultado disso é óbvio: a
transformação do mundo em uma magia, que precisa de tutores para ser compreendida
e, por isso, vivida. Como consequência, há a transmudação do material em imaterial, da
máquina de transmissão, que é apropriada por uns, no simbólico que é transmitido –
numa palavra: em um episcópio, máquina pela qual se projeta um objeto, aos céus; um
objeto, mas o que interessa é a projeção, que no entanto retorna à máquina do mundo
para se concretizar em lutas diárias – ou em manutenção, pelo pastoreio, das formas de
pastorear.
4.2. PNH – Por hoje não vou pecar
i) Estrutura geral do programa
O programa PHN, com duas horas de duração, é veiculado, como falso-
vivo, às terças-feiras, 22h, com duas reprises semanais: sábado, às 21h e 1h. O
programa tem forte vinculação – para não dizer que todo o seu sentido é construído a
partir dele – com seu apresentador, o ex-mecânico e ex-metalúrgico Francisco José dos
Santos, o Dunga, paulista de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba. A história de vida
de Dunga é tramada, aliás, em fabulações que justificam não apenas a ideia de
santidade, tão cara no propósito do programa, mas estende-se à estrutura do PHN, que
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se baseia nos depoimentos, chamados de testemunhos, de superação de uma vida em
perversão, longe de Deus, e a conversão. Quando se diz de fabulação, não se pretende
apontar para uma invenção, mas apenas uma tradução de fatos. Ou seja, fatos isolados
da vida de Dunga e dos convidados são superdimensionados, por um lado, e tramados
em uma lógica de causa e consequência, que tem a ausência de Deus como causa do
desvio moral e, como consequência, a perdição; o encontro com Deus como causa do
encontro de si mesmo e a saída das drogas e, como consequência, quase sempre, uma
vida regrada e, por isso, prenhe de conquistas pessoais – que são traduzidas, por sua
vez, como uma vida em família heterossexual, com filhos; em uma palavra: o protótipo
do humano da classe média consumidora.
As fabulações, como tal, não levam em conta os trabalhos prévios do
apresentador – como as visitas a presídios, à Febem, casas de apoio ao portador de vírus
HIV. O que importa é o próprio chamado: Por hoje não vou pecar. Por isso o programa
é centralizado na personalidade de Dunga, que participa do chamado ministério da
música da Comunidade Canção Nova. É esse ministério, além da fabulação em torno de
sua própria história de conversão, que são levados ao ar como estrutura básica do
programa.
São três blocos e alguns quadros, sempre com a mesma ideia: dizer a um
público preferencialmente jovem, aquele julgado sob os riscos dos chamados diabólicos
do mundo contemporâneo. Assim, para fornecer uma alternativa de vida santa, o
programa se apresenta como uma grande comunidade virtual, feita de amigos
conquistados com música e internet. Essa comunidade, que não tem participação no
programa, se constrói com o envio de perguntas, por exemplo – o programa é
basicamente de testemunho de santidade, partilha de experiência, com o intuito de se
criar o sentido de “galera”, vocábulo utilizado a todo instante, durante todo o programa.
No início e no final de cada um dos blocos, Dunga – ou, eventualmente um
convidado – executa canções, sempre acompanhado de uma banda de formação básica:
guitarra, contrabaixo elétrico, teclado e bateria. Durante a execução das canções, quase
sempre com uma tonalidade pop-romântica, a edição do programa dá o tom de
jovialidade. São três câmeras: uma, sempre solta, acompanha os músicos e
instrumentos, em um ritmo acelerado, típico dos concertos de rock veiculados pela TV,
como tecnologia. Uma câmera está sempre fixa, e é responsável pelas cenas de corte e
os planos de conjunto. A outra câmera, quando da execução das canções, fica solta,
também para dar sentido de mobilidade e jovialidade, mas quando está havendo uma
178
entrevista, ela se fixa em um tripé, e fornece os textos de intimidade, com planos
fechados e closes.
Em todos os três blocos, há participação do convidado do dia, que dá seu
depoimento, seguindo uma ordem cronológica de causa-consequência: infância difícil,
geralmente por desagregação familiar – afastamento de Deus – juventude desregrada –
encontro com Deus – recusa – milagre – insistência da recusa – novo milagre –
conversão – final feliz: família estruturada e prosperidade profissional e material.
Os testemunhos são sempre entrecortados por lições de moral do próprio
Dunga, que, nesses momentos, reforça o sentido de personalismo do programa. É nessa
medida que ele, Dunga, é a autoridade máxima – e assim o seu próprio testemunho e
sua condição de missionário o autorizam. Nessas intervenções, Dunga deixa claro o tom
e a direção do programa: ele oferece o ritmo e permite a entrada de outros personagens,
cujas aparições funcionam como quadro: Marisa Reyes, responsável por ler os e-mail da
“galera”, a quem, juntamente com Dunga, distribui abraços aos amigos – e forma a
comunidade de santos do PHN; e Tiba, um jovem de Divinópolis que conta piadas e
vende produtos Canção Nova para o público jovem. Há ainda alguns quadros, que se
intercalam nas edições do programa, como o Controle remoto, em que a própria TV
Canção Nova é o assunto – uma espécie de túnel de tempo, com imagens do próprio
Dunga em apresentações musicais, com a justificativa de trazer a história dos que fazem
a comunidade. Esse centramento na personalidade de Dunga permite que haja uma
flexibilidade no formato do programa: às vezes, o PHN é transmitido de acampamentos
em outras cidades; na própria Canção Nova – chamados acampamentos PHN ou
missões de música; em “viagens santas”, em que Dunga é um dos orientadores
espirituais – viagens que são comercializadas pela Canção Nova; e ainda em eventos da
Canção Nova no exterior, como o Hosana Londres, ocorrido no final de abril de 2010.
Qualquer que seja o formato – em estúdio ou em externas -, procuram-se manter alguns
indicativos que identificam o programa: música, testemunho e a centralização na
autoridade espiritual de Dunga.
ii) Vinheta de abertura
A abertura do programa, no intuito de ser identificado com e pelo público
jovem, realiza uma espécie de colagem frenética de elementos, que apontam na direção
do videoclipe. Apenas dois elementos se mantêm: a imagem de Dunga, em diversas
situações e suportes: álbuns fotográficos, televisões, telas de computador, simulando
179
internet, grafites, recortes de jornal; e o nome do programa, PHN, impresso em diversos
suportes: selo, cartazes, inclusive os chamados “lambe-lambe”, placas de automóvel,
grafites. Esses dois elementos vão sendo colados por uma espécie de partitura musical,
marcada pela melodia de fundo, um solo de guitarra destorcida, com a base de outra
guitarra, um contrabaixo e bateria. Essa “onda” em forma de partitura vai atravessando
elementos como guitarra, crucifixos, ilustração de igreja, bicicletas, placas de trânsito,
semáforo de pedestre, com o ícone verde de siga, que constrói o sentido de siga para o
PHN, se se observa a placa de trânsito com o ícone “pare” e, a seu lado, a inscrição
“PHN”. A onda musical em forma de partitura, à medida que encontra os elementos em
colagem, faz surgir os outros, digamos, paradigmáticos: a imagem de Dunga e o nome
PHN. Além do diálogo com a cultura industrial de massa, voltada para o público
juvenil, há clareza quanto à identificação do programa à autoridade de Dunga.
iii) Cenário
Diferentemente de outros programas analisados, o cenário de PHN é amplo,
justamente para dar a dimensão do sentido proposto: a jovialidade. Mas não há qualquer
vinculação dessa ideia com ícones de modernidade – ao contrário, o cenário é
minimalista quanto a seus elementos icônicos. Como precisa ser suficientemente
espaçoso para a banda que acompanha Dunga nas execuções musicais, o cenário é
construído pela ideia de descontração. Na câmera em plano conjunto, vê-se que a banda
se concentra no lado esquerdo do cenário – junto a Marisa Reyes, que se mantém de pé,
tendo o computador, por onde recebe as mensagens “da galera”, sempre ligado. Ambos,
banda e Marisa, acabam por reforçar a primazia e a autoridade de Dunga: eles formam a
“cozinha” do programa e compõem o seu cenário, onde Dunga assume sua autoridade.
É o que se vê, sobretudo no centro do quadro, em que Dunga pode ficar só, tendo ao
fundo o selo que marca o nome do programa: uma enorme bandeira com esse selo,
inscrito PHN. Assim, apresentador e programa se confundem.
Alguns elementos que compõem o cenário dão a dimensão da
informalidade: a textura da parede imita tijolos a vista, sobre os quais se colam
elementos como instrumentos musicais, pneus, imagens de carro. Pneus sobrepostos
pintados em cores vivas – alaranjado e verde bandeira – servem como assentos, onde
são recebidos os convidados para seu testemunho. A chamada “tripa” – a aparição
proposital dos bastidores do estúdio, como os câmeras, as ferragens, onde se sustenta a
iluminação, e a própria iluminação, além da coxia – é importante tanto para garantir a
180
ideia de informalidade, quanto para servir à construção de um falso-vivo: embora seja
gravado e, depois de editado, levado ao ar, os personagens agem como se o programa
estivesse sendo transmitido ao vivo. Isso é importante para a ideologia geral do PHN: a
instantaneidade e a espontaneidade, como elementos para a fé ali desenvolvida e
transmitida: o encontro experiencial com o divino – e, claro, a verdade espontânea dos
testemunhos.
Outros elementos garantem a ideia de minimalismo, informalidade e
descontração – para uma vida santa, desvinculada do mundo do consumo desenfreado -
são um velho rádio, uma bicicleta e uma pequena e antiga geladeira, de onde sai, para
seu quadro, Tiba, o piadista vendedor, e baús de madeira. Obviamente, uma enorme
igreja, pintada como se fosse um grafite, não deixa esquecer do que programa é feito.
Porém, outros elementos traem esse sentido: os carros, que são presença forte, e um
velho ônibus escolar amarelo, em que se vê inscrito bus – um daqueles velhos ônibus
presentes nos inúmeros filmes de Hollywood. Eis então a tensão: contra a atual
“loucura” do mundo, Dunga e seu PHN propõem uma era romantizada da sociedade do
consumo. E isso é demarcado nos programas, sejam eles gravados do estúdio ou de
outro local, como nas missões de música.
iv) Análise do corpus
a) Programa de 19/01/2010
A estrutura do programa é anunciada logo no início - e está nítida a
estratégia discursiva montada: o propósito é entreter, e por isso há a música e a
composição de cena, com sua movimentação, seus quadros, as piadas eventuais. Mas
tudo isso é forma – cujo conteúdo está no que o apresentador chama de testemunho de
vida, exemplaridade, de uma “lição de vida, mais um incentivo a não pecar por mais um
dia”, diz Dunga. E continua: “A nossa luta é diária, dura 24 horas. Para você ter a
oportunidade de dormir com a sensação... Aliás: com a certeza de uma grande vitória.”
O recado é límpido: é possível viver neste mundo sem a sua insegurança.
Para que esse milagre ocorra, todavia, é preciso que haja auxílio – e ali está ele, Dunga,
para ser o suporte necessário. Viver este mundo e assumir o seu gozo implicam, então,
como deixa entrever o discurso apropriado a um leitor-modelo presumido – os jovens -,
viver o dia-a-dia, o presente eterno. E para fazê-lo sem riscos, é preciso um autocontrole
que “dura 24 horas por dia”. Só assim podemos ter a certeza de que dormiremos leves –
sem pecar por hoje. Tarefa difícil? Sim – apenas homens santos conseguem-no. Mas,
181
caso haja a disponibilidade para seguir as palavras de Dunga e da Canção Nova como
um todo, as coisas ficarão mais fáceis. A prova disso? Os muitos convidados
exemplares que se superaram e vão ali, exemplarmente, se colocarem como símbolos de
santidade, testemunhos de uma vida controlada pelo senhor.
A dinâmica daquele PHN tampouco deixa dúvidas: como acontece em todos
os programas da TV Canção Nova, há uma clara hierarquia: os que estão autorizados a
tomar e doar a palavra são também os que detêm a capacidade de julgar, perdoar,
direcionar, pastorear. E isso ocorre não apenas com os convidados a testemunhar –
também os que compõem o enquadramento discursivo, igualmente consagrados na
Canção Nova, também eles têm a palavra concedida; e respeitam esse ritual de forma
rígida – porque aí está a salvação.
Esse formato identificado em tudo com a ideologia liberal, segundo a qual o
humano se faz por si mesmo (o self-made-man) ganha profundidade em PHN. “Sabia
que você, você”, disse, em close, apontando para a câmera, “você”, continuou agora em
outra câmera, em plano conjunto. Ao fundo se vê Marisa, responsável por receber as
mensagens dos telespectadores e lê-las. “Você é um vencedor. Sabia? Que todas as
derrotas fazem parte da vitória na guerra. Porque uma guerra é feita de muitas batalhas.
Algumas dessas batalhas a gente vai perder. Mas quem disse que vai perder a guerra? A
guerra já está vencida. É preciso vencer uma batalha todos os dias e dizer: ‘Por hoje
Não’”, finaliza o vitorioso Dunga. Os convidados são esses vencedores – e esse espaço
é o espaço do humano comum, como veremos. Os vencedores são os amigos virtuais do
PHN, porque, como disse em outro lugar:
Inclusive o plano do diabo não é vencer Deus, porque ele é um eterno
derrotado. Qual é então o plano dele? É juntar perto dele mais derrotados.
Jesus já declarou que somos mais que vencedores. Essa vitória é para ser
vivida na expectativa da sua segunda e definitiva vinda
(http://blog.cancaonova.com/dunga/?p=3958).
O PHN é um espaço para tomar do diabo essas almas que tem ao redor de si. Espaços de
inclusão de humanos santos, sempre – uma inclusão concedida, de eleitos. “Você!” ou
os amigos, muitos, a quem Dunga, generoso, informal, aconchegante, abraça pela
televisão.
O testemunho do programa, diz Dunga, é muito especial – também essa
pessoa está pautada na música. “Nós vamos ouvir seus momentos difíceis, sua
conversão. Ela vai contar para nós como é que Deus a livrou das drogas, a curou de
erros do passado. A nossa convidada de hoje é Luciana Antunes.” Luciana entra, mas
182
ainda não lhe é dada a palavra. Dunga lembra que PHN é assistido por muitos, e muitos
o assistem para ter a sua fé renovada. Eis o poder dos testemunhos – mas eis sobretudo
o poder da máquina Canção Nova de criar humanos.
Dunga e os convidados têm certeza desse poder. O testemunho de Luciana
segue o script: da separação dos pais, quando tinha seis anos, surgiu um desencanto que
a marcou pela vida toda. Ela, ainda criança, teve que se mudar, com a mãe depressiva,
para a casa dos avós. A falta do pai, a carência, o ressentimento, a falta de Deus, porque
havia uma corrida pelas coisas materiais – tudo se juntou, tornou-se unidade do drama
narrado. “Fui muito amada por meus pais”, disse, sem medo da contradição, mas
demonstrando a estratégia de fabulação, apropriada para aquele testemunho, “porém
aconteceu isso e faltou Deus na minha vida”.
As pausas nas narrativas são marcadas e ditadas pelo apresentador – que,
como em outros programas, detém o ritmo e exige que haja maior ou menor fabulação
por parte dos entrevistados. Cada interrupção indica também uma pausa no diálogo –
porque não interessa a testemunha; apenas o testemunho, que, como ele dissera, desde
sempre é uma vitória. E Dunga se dirige ao telespectador – diretamente para a câmera.
Nesse programa, Dunga falava sobre como Deus marca as nossas batalhas ao longo da
vida, rumo à vitória final. De como essas batalhas ficam “marcadas como um DNA” em
nossas vidas. Não importava - mas também isso acontecia com Luciana.
Voltando-se a ela, lembrou que ouvir histórias dos outros ajudava a
compreender melhor o sofrimento alheio – e que isso era especialmente importante para
o ministério da música. Dunga dialogava – mas o diálogo era mais útil a si próprio,
ministro da música. Era como se, ao dizer a ela, dissesse de si mesmo – e Luciana era
apenas um detalhe da vitória que ele próprio era testemunha e de que era um general.
E, assim, como um comandante, concedeu a palavra à paraguaia,
consagrada na Canção Nova, Marisa Reyes, responsável pela leitura das mensagens de
telespectadores que chegam, especialmente, por e-mail. Marisa se dividia entre falar
para a câmera e para Dunga, mesmo que não houvesse intervenção do apresentador –
mas é sempre bom reverenciar quem permite que se faça uso da palavra, que é generoso
com mulheres e homens comuns, ao ponto de lhes conceder espaços, de lhes enviar
abraços. Diferentemente de outros programas, todavia, que têm participação de
telespectadores com perguntas, no PHN a participação é efetivamente de inclusão, de
participação – e há uma intensa leitura de nomes, de diversos locais do Brasil e da
América do Sul. Pessoas comuns, cuja existência agora era atestada pela leitura em rede
183
internacional.
“Bem, querida”, voltou Dunga, se dirigindo novamente à convidada.
“Vamos dar um salto. Vamos para a adolescência”. Era preciso tensionar a narrativa.
“Na adolescência veio tudo a tona”, reiniciou Luciana, respondendo à altura ao
chamado. “Aos onze anos, veio o ódio, a revolta. Não podia ver meu pai. Eu me dava
bem com ele aparentemente. Mas por dentro, no meu coração, eu estava muito revoltada
com ele. ‘Eu tenho ódio de você. Eu quero te matar’. Tudo dentro de mim.” Era o
desespero encarnado – numa menina de onze anos refeita pelos adultos que, daqui, a
criavam. Até que uma colega lhe perguntou por que tanta revolta, se o seu pai troca de
carro todos os anos, se mora em uma supercasa no centro da cidade. Mas Luciana não
conhecia o verdadeiro amigo – Jesus – e por isso contou à falsa amiga sua história. Ela
lhe deu a solução: “vamos para a balada. Você, rica e bonita, vai ficar aí chorando? Eu
vou te mostrar o que é liberdade. Me traz amanhã duzentos reais que eu vou te
apresentar uma coisa que você vai ser livre.” A colega: Mefisto. A promessa: drama.
Ainda restavam algumas cenas para que a narrativa alcançasse seu clímax: “Peguei o
dinheiro. Não era difícil. Eu pegava uma pratinha, um real. Duzentos não era difícil.
Levei, às 10 horas da manhã para o colégio particular onde estudava.” Pais de classe
média, incautos, tremei. O diabo espreita, suave. Dunga, seu peso, sua autoridade, dava
verdade à fabulação. A narrativa estava tensa – uma epopeia, que precisa de uma
solução. Deus ex-machina: “Me dê um mi maior, por favor”, ordenou Dunga. Fez-se a
música. Intervalo, com peças mágicas, produtos da graça de Deus.
Voltamos, com o poder de Deus: Luciana era quem cantava, renovada.
Pequena pausa para o anúncio do segundo CD de Luciana. “Que bacana poder
entrevistar alguém que a droga poderia ter estragado tudo, mas... A misericórdia de
Deus... É como diz a palavra: onde abunda o pecado, ali superabundou a graça de
Deus.” Voltemos ao drama de Luciana: “Graças a Deus, foi um período curto esse que
passei nas drogas. Dos onze aos 19 anos. Vi muitos amigos entrarem em overdose,
roubei muito, menti muito para a minha mãe. Só derrota. Deus me livrou do pior.
Porque Deus tinha um plano.”
Dunga é terno – e o seu discurso é verdadeiro. É com sua ternura que ele
abraça os amigos – porque só amigos que Deus dá podem preencher o buraco que fica
dentro de nós. “Não queira preencher esse buraco com as drogas, porque só Deus, com
as amizades que ele coloca em nosso caminho, pode preencher.” Não há ternura maior –
mas isso não significa que, em nome dessa ternura, não se estabeleça um tipo de
184
sociedade do isolamento – ao contrário, justamente ao contrário do que sai da sua boca.
Uma sociedade que separa, uma sociedade que coloca de um lado os que podem e os
que não podem. É isso o que fazia, mais uma vez: um monólogo. Afinal, no caso de
Luciana, ou de todos nós, a vitória está garantida. E em nome dessa vitória, Luciana
venceu batalhas: os maus amigos, as drogas, a rubéola na gravidez, o aborto. Até que
encontrou o caminho da salvação – como que por um milagre. Um instante, um único
instante da magia percebida. Mas ela foi fruto de uma luta entre o espírito santo e o
diabo. No caminho para o aborto, duas vozes digladiavam dentro de si. Ela não queria e
pedia a Deus. No último instante, porém, o próprio médico que faria a intervenção, “o
assassino” nas palavras de Dunga, voltou atrás: não poderia fazer o aborto. Deus ouvira
Luciana; o milagre, no último instante, fora operado. E ele não cessa – ainda havia a
noite, de onde retirava seu sustento, como música. Deus lhe exigiu que a deixasse.
“Mas, senhor, esse é meu ganha pão!”, tentou argumentar Luciana. Mas o espírito santo
começou a brincar – e, ainda na noite profana, chamava o público para orar. Até que
não foi possível mais fugir – e ela enfim se transformou em cantora católica. A guerra
estava, para ela, vencida. Ao final, cantou com a família reunida – todos convertidos.
A guerra pode ser vencida por qualquer um. Basta que se ouça o rumor ao
longe dos tambores do exército de Deus – e onde ele se encontra? Na Canção Nova.
Nos CDs anunciados durante o programa – Dunga na pista, com remix para santas
baladas; e Transfiguração. Ou nas piadas contadas por Tiba, esse mineiro engraçado,
que oferece outros produtos para a juventude, como o almanaque do Bem da hora, “que
custa apenas R$4,90”. Por isso, é importante repetir: Por hoje não vou pecar! Só por
hoje – porque outras batalhas há por vencer.
b) Programa de 26/01/2010
Naquela edição do PHN, havia um convidado especial – ao menos segundo
as palavras do mestre de cerimônias Dunga, que o apresentou com entusiasmo: “Olha só
a lenda viva que está hoje aqui com a gente.” A lenda viva em questão foi chamado de
Boy, “o primeiro guitarrista da música católica. Sabe o que é isto?” Boy, no entanto, só
estaria ali para abrilhantar as apresentações musicais do programa – ele não daria o seu
testemunho. O simples fato de ser quem é transforma Boy, ele próprio, em um
testemunho – ao menos para um sistema que valoriza o entretenimento como forma de
evangelização.
A estrutura da edição daquele dia seria a mesma – a “galera” participava
virtualmente, e o testemunho de Cassiano de Meireles Júnior seria mais um nessa
185
história sem ruptura em busca da vitória de Deus contra o diabo. Era preciso dar o tom,
no entanto - e assim o fez Dunga: “Vocês têm algum problema com seus pais? É um
cara que gosta de ficar, assim, meio isolado? Tá todo mundo na festa e você fica
trancado no seu quarto? Você é sempre do contra? Esse programa é pra você!” A
normalidade de uma vida sem grandes rupturas ganhou o drama da trama diabólica –
normalidade que Cassiano encontrou ao trabalhar no sistema Canção Nova. No DAVI –
o Departamento de Audiovisual da Canção Nova, ele, além do salário, encontrou o
caminho da verdade. Uma santa profissão – ele encontrou o caminho da graça, ainda
que de forma indireta. Porque, afinal, os caminhos do senhor são plenos, mas os atalhos
dos homens são tortuosos.
A graça de Cassiano era, assim, atrelada à profissão: “Comecei no DAVI e
depois de tantos anos Deus me deu a graça de voltar a trabalhar aqui.” Ele se referia ao
fato de ter começado, aos 12 anos, como “adesivador” do material audiovisual que
sairia para a venda. Eis que Dunga traduziu a graça: “Começou como adesivador e
agora está trabalhando no setor de marketing do DAVI. É maravilhoso ver o progresso
das pessoas dentro da obra.” A Canção Nova é, em si própria, mesmo para aqueles que
não são religiosos, um milagre. Ele mesmo se questionou, quando iniciou a tradicional
narrativa da infância à graça: “Falar o quê? Nunca bebi, nunca fumei.” Mas é claro que
o diabo, ardiloso como só, estava à espreita – e fez morada na família de Cassiano, na
vida do pai. Dono de um bar, diz Cassiano, sempre o via no “mundo da bebida”. Isso
não seria suficiente para indicar a presença maléfica do demônio. Então, fabulemos: “Vi
meu pai virando assim uma garrafa de conhaque e voltar quebrando tudo.” Não há
família que suporte.
Muita coisa ficou marcada na memória de Cassiano – desde os seis anos de
idade via o pai se afundar na bebida, a mãe chorar. Cada um tem o martírio que
consegue carregar, mas Deus, misericordioso, salva a todos. É claro que ainda careceria
de uma provação – e uma explicação: a família do pai de Cassiano era espírita. E desde
menino, diz, lembra-se dos “centros de macumba” que frequentava com a irmã, levados
pelo pai. Agora sim o plano diabólico estava completo. “Mas graças a Deus foi só ali na
infância. Graças a Deus, Deus usou a mim e a minha irmã pra quebrar a maldição de
nossa casa.” O testemunho agora fazia sentido. E Dunga sabia disso: ele próprio
lembrou novamente, como de costume diretamente para a câmera: esse testemunho seria
útil para aqueles que estão na cultura do bar; estão iniciando nessa cultura. Vejam como
esse simples divertimento pode causar um enorme estrago na vida de uma criança.
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Vejam como ficaram marcas profundas no Cassiano. “Ainda bem que nós temos os
veículos de comunicação da Igreja Católica, como a TV Canção Nova, que servem de
antídoto para esse veneno que é o alcoolismo nas nossas casas.”
Não seria necessário mais nada – o recado estava dado; e com Dunga
assumindo o seu papel de pastor da cultura pop. Levemos até o fim, de qualquer forma,
a graça de Deus: de uma infância marcada pelo alcoolismo do pai, produto da maldição
da “macumba” e que resultou no silêncio, na solidão, se transformou num “trampolim”:
“Quando eu crescer, tiver minha família, quando eu casar, quando eu tiver filhos, eu
nunca vou beber. E assim foi na minha adolescência, na minha juventude. Hoje sou
casado e com filhos – e nunca bebi”, disse o emocionado Cassiano. Deus escreve certo
por linhas tortas – e ainda reservava mais graça para superar as desgraças.
Na adolescência, continuou Cassino, “não sei o que aconteceu com meu pai
que, do nada, me chamou ao bar e me mostrou inúmeras revistas pornográficas.” O
resultado disso era inevitável: “Caí no vício da masturbação, dos filmes pornográficos.”
E esse é um erro que os pais cometem, retomou a palavra Dunga, “porque ficam
preocupados se os filhos vão ser viris.” Em outras palavras: seu filho será viril. Não é
preciso tomar o caminho do demônio. Porque a virilidade é um valor divino. Esse é um
erro grave, “gravíssimo”. “Por isso era bom que você veja esse testemunho”, insistia
Dunga, prevenindo a sensação de que aquele testemunho não tinha um drama
verdadeiro.
O diabo espreita e age no dia-a-dia, contudo - e aquele testemunho,
justamente por sua simplicidade, era profundamente verdadeiro e útil, porque marcado
pela despretensão, pelos atos comezinhos, eivados de maldade – e, no entanto, de
milagres. A conversão definitiva apontaria para a fabulação, para a necessária fabulação
que dá unidade ao texto e força ao milagre. Ao final de um acampamento na Canção
Nova, dizia Cassiano, os coordenadores procuram os pais, para que eles digam e
escrevam sobre seus filhos. “Era tudo o que eu sempre quis: ouvir de meu pai e de
minha mãe que eu era especial, que eu era amado, que eu fazia diferença.” Cassiano
saboreava as lembranças: “Podia ver meu pai do lado de minha mãe, a letrinha de minha
mãe ali na carta. Então Deus me quebrou de vez. Não tinha mais volta.”
Dunga, atento, pontuava para dar peso à narrativa: “Cassiano tinha tudo para
dar errado. Sabe o que é tudo para dar errado? Como você, que pode ter uma vida
tranquila, pode ser um médico, mas à sua volta há muita coisa que te leva ao pecado.
Tudo ao seu redor te leva ao pecado. E você segue firme.” E essa firmeza faz milagres:
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“Minha postura é que mudou dentro de casa. Deixei de falar alto dentro de casa,
comecei a ir às missas, comecei a ouvir os CDs do Dunga dentro de casa, né.”
Brincadeira com fundo de verdade: o consumo faz de fato milagres. Algo diferente
acontecia: Cassiano tinha a certeza de que se tornara luz. Aos poucos, Deus habitou
aquela casa – e o pai, antes completamente entregue ao diabo, também encontrou o
caminho de luz. E esse caminho está ali, bem em frente – e Dunga era o pastor para esse
caminho. Ele, a Canção Nova, Tiba, Marisa, Boy, a “galera”, os produtos Canção Nova.
A luz que emanava de Cassiano iluminou o caminho do pai, que conseguiu, entre os
muitos “colegas de copo” que morreram, se salvar.
E não era apenas o pai que recebia a graça – toda a família, que tinha
histórico de bebida. E de espiritismo. “Quer dizer: isso mudou a história de sua família
inteira, né”, repisou o atento Dunga. Hoje, cercado de uma família equilibrada, livre do
demônio, consagrado na Canção Nova, útil, casado, com filhos, Cassiano pode viver a
plenitude de sua vida. A narrativa estava completa – e Dunga, satisfeito: “Bom, gente.
Esse é o Cassiano que, como eu disse, tinha tudo para dar errado e deu certo.” Histórias
simples, comuns – mas tocantes. “Eu fico pensando”, continuava Dunga, “em você, que
nos assiste toda terça-feira. Você, enquanto não vier aqui. Você”, disse apontando o
indicador para a câmera. “Enquanto você não vem aqui dar o seu testemunho, pode
fazer em sua comunidade. Seja um testemunho de santidade.” Dupla promessa: nos
assista e consiga ser a luz que pode testemunhar; nos consuma e terá um dia a
oportunidade de, como Cassiano, ser um dos nossos. Mas ainda havia surpresas. Marisa
leu uma mensagem de uma “galera muito especial”: a família de Cassiano, que não o
assistia, porque o programa não é ao vivo, mas sabia que ele estaria ali, que o e-mail
seria lido, que isso provocaria um efeito televisivo. E provocou. Dunga foi generoso:
“Tá vendo, os filhos vendo o pai testemunhando na televisão. Se a gente, quando vê
uma pessoa na TV, já admira, que dirá o próprio pai.” Close nos olhos marejados de
Cassiano. “Você faz as suas escolhas e as suas escolhas fazem você. A gente tem a
graça de pertencer a essa geração PHN, tome conta dessa graça. Acredite na família,
acredite no seu matrimônio. Pense no seu futuro, vivendo bem o seu presente, hoje.”
Cassiano falava para a “galera”. “Você faz as suas escolhas e as suas escolhas fazem
você”, repetiu Dunga, olhando para a câmera. As coisas são muito naturais no mundo
mágico – e miraculoso – da TV Canção Nova.
c) Programa de 02/02/2010
188
Música e testemunho – eis o a razão de ser do PHN. E isso foi conseguido
na edição daquele programa. O convidado a dar o seu testemunho era o músico
Sebastião Prudente do Nascimento, apresentado como Sapo – ou, segundo a geração de
caracteres, Sebastião Sapo -, recebido com um enorme entusiasmo por Dunga. Sapo
lançava, gravado pela Canção Nova, um CD de música instrumental, sem uma, sequer
uma palavra de referência a Deus. Mas ele trabalhava na Canção Nova havia dez anos –
e isso o credenciava a dar seu testemunho. Sapo apenas encontrou no nicho católico o
seu ganha pão – ele próprio não era exatamente um santo, mas procurou desenhar sua
vida como um encontro com a música católica. Isso era suficiente para o sinal da graça
de Deus: embora não consagrado, ele é um membro da Canção Nova em “comunidade
de aliança”. Em outras palavras: Sapo é Canção Nova, mas mantém a sua vida.
Dunga, como sempre, apontou o caminho da salvação: Sapo, músico
convertido à música católica, iria contar sua trajetória desde o tempo de músico de baile,
da noite, do mundo, profano – até o encontro com a possibilidade de redenção da alma:
a boa nova da Canção Nova. Sapo não se fez de rogado – e, é claro, alimentou espíritos:
aquele disco que estava lançando era uma graça de Deus, um presente divino. Como o
presente que Dunga havia preparado para os telespectadores: uma viagem, por ele
coordenada, a um turismo santo – Israel, Itália, Grécia, Turquia – os chamados
caminhos de São Paulo. O impulso de internacionalização da “galera”, aliás, já se via
desde a primeira participação de Marisa: ela mandou os abraços virtuais costumeiros
para “toda a América Latina” - e o fez em castelhano. Talvez fosse esse ímpeto pela
internacionalização que se manifestava no programa daquele dia o responsável pela
escolha de Sapo e sua música instrumental-católica – ainda que nada indicasse esse
novo gênero, salvo, é claro, alguma tonalidade romântica das melodias executadas
durante o programa e que faziam parte do repertório do disco.
Aquele era um programa sui generis, de qualquer forma – e seria difícil
garantir a unidade temática, sua coesão e, sobretudo, o princípio de testemunho em
busca da santidade, que caracteriza o PHN. Essa ruptura aliás podia ser vista na edição
do programa. Enquanto Sapo narrava sua vida biográfica musical, abruptamente houve
um corte para que Dunga anunciasse o programação da semana seguinte – também ele,
como ver-se-á adiante, em flagrante ruptura com o formato e, por isso, com o discurso
do programa: “Você não pode perder o programa da semana que vem. Um programa
especial, um ‘PHN na estrada’”, disse, se dirigindo à câmera. E, imediatamente, se virou
para Sapo e, aprofundando a ruptura, perguntou: “Sapo, e Deus? Como Deus entrou na
189
sua vida?” Não havia coesão na edição da imagem – e a narrativa foi completa e
abruptamente interrompida. Era como se Dunga e os profissionais da edição do
programa, desejando manter um sentido unitário para ele e esclarecendo tratar-se, como
as demais edições, de uma narrativa fabulada para garantir o intuito do “por hoje não
vou pecar mais”, desejasse mostrar que não havia história melhor de santidade do que
servir à Canção Nova. Bastava isso – bastava que músicos, cinegrafistas, produtores,
vigilantes, esses inúmeros profissionais que mantêm o sistema Canção Nova, sem
qualquer vínculo religioso, tivessem encontrado a Canção Nova em seu caminho para
ter uma vida santa.
É claro que Sapo não estava ali à toa. Sua narrativa apontava para a
santidade desejada – ainda que estranhamente cheia de rupturas de sentido. “Tinha
relação com a Igreja apenas quando era criança. Depois que fui para Barra Mansa,
nunca mais entrei numa igreja”, narrou Sapo, a respeito de sua carreira como músico de
banda de baile, que se iniciou na cidade fluminense. Foram 34 anos sem Deus. Dunga
apenas se mostrou espantado – porque ele sabia os desígnios de Deus para Sapo. “Tem
um detalhe, Dunga: eu nunca bebi, nunca fumei maconha, nunca mexi com drogas.
Acho que Deus já vinha me preservando desde a época de criança.” Deus, em sua
misericórdia, não deixa seus filhos sós pelo caminho.
Sapo, todavia, tinha alcançado uma condição privilegiada – e Dunga a
anunciou, pedindo a Deus que mais músicos católicos pudessem viver, manter suas
vidas tocando para Jesus, exclusivamente para Deus, “para a Igreja Apostólica
Romana”, numa associação comum feita por Dunga e, ademais, pela TV Canção Nova.
Enquanto não alcançavam a graça que Sapo tinha – ainda que, veremos, a narrativa do
músico precisasse ser torcida para caber no molde de testemunho físico de santidade -,
esses músicos católicos que precisam se manter na noite poderiam se mirar no exemplo
de Sapo, que não se perdeu no caminho das drogas, do sexo – e do rock'n roll. Depois
de se deliciar com histórias da noite narradas por Sapo, Dunga vaticinou: “Ainda bem
que Deus pegou o Sapo, porque, não mexeu com droga, graças a Deus, mas topava
qualquer parada.” De fato, o caminho já estava traçado. O encontro com Deus pela
música era conveniente a Sapo – mas ainda bem que existia a Canção Nova.
Tudo, no entanto, denunciava que Sapo se convertera por sorte – e reforça a
ideia de que o testemunho dele naquele dia era apenas a certeza de que o contato com a
Canção Nova era suficiente para garantir a santidade. Dunga gargalhava com as
histórias – como a que Sapo, recém-contratado pela Canção Nova, fez um “fundo
190
musical” com música profana. Chamaram a sua atenção: “Não, Sapo, música de igreja!”
Sapo não titubeou: “Música de Igreja? Vocês pegaram o cara errado”. Fabulações de um
músico que deveria testemunhar sua conversão.
As gargalhadas de Dunga mereceriam uma explicação, se dirigindo para a
câmera: “Estou rindo assim, mas é porque o Sapo é uma exceção. O músico, para ser
aceito na Canção Nova, tem toda uma formação, uma espiritualidade. Sapo, com 35
anos sem ir a uma igreja, foi aceito, porque nós sabíamos de seu potencial. Só Deus
pode planejar isso – e nós somos dóceis para acolher quando percebemos que é uma
exceção. E isso tudo para dizer que a Canção Nova foi um resgate na vida dele.” Se no
início Sapo não era ligado a Jesus e “apenas tocava e ia embora pra casa”, logo
apareceram as diferenças: a cura de um cisto na mão, a conversão da esposa, nascida
evangélica, para o catolicismo.” Dunga enfim deu a intensidade à narrativa, ao milagre:
“Ele sempre ganhou bem e nunca teve uma casa, nada. E veio, para ganhar bem menos,
para ser um ministro de música. Graças a Deus, Sapo tem a sua casa, tem um carro, tem
uma família cada vez mais unida.” “É dinheiro santo”, completou Sapo. Dunga
concordou. Consumo e fé se complementam no milagre cotidiano. Com a história do
Sapo, Deus, de fato, mostrou que escreve certo por linhas tortas. Bendita seja a Canção
Nova.
Era a hora de Tiba, que, além das piadas misturadas às vendas de produtos
Canção Nova, tinha um recado sério a dar – e, com tom grave, falou sobre sua luta
contra o aborto. “A gente tem a oportunidade de mostrar o que está por trás daqueles
chavões feministas, a liberdade das mulheres, o direito de decidir sobre o seu próprio
corpo. Mas isso é uma máscara. O que está por trás é algo podre e muito sério.” Recado
dado, voltamos ao Tiba piadista. E nesse relaxamento, nessa informalidade, misturada
ao ato relaxado e simplório do consumo, mantemos a nossa santidade.
d) Programa de 09/02/2010
A agenda dos membros da Canção Nova é sempre cheia. No caso de Dunga,
por exemplo, além do ministério da música, que o obriga a fazer viagens pelo Brasil e
pelo exterior, onde a Canção Nova, especialmente a sua TV, alcança, há ainda os muitos
pacotes de turismo religioso que o tira de Cachoeira Paulista e o obriga a colocar no ar
PHN especiais. Esse era o caso da edição daquele dia: o PHN foi uma espécie de road
movie da participação de Dunga em um evento católico chamado Hallel, em sua 21ª
edição, ocorrido em Franca, São Paulo. Segundo a sua página,
191
O Hallel é o maior evento de música católica da América Latina, com uma
proposta inovadora de evangelização e anúncio da Palavra, estando a serviço
da Igreja e em comunhão com ela, buscando aproximar mais corações de
Deus, reavivando a fé e o ardor missionário. Em 1988, um grupo de pessoas
queria fazer algo novo para comemorar os 10 anos da RCC em Franca e
pensaram numa espécie de "Rock in Rio" cristão. Aquele som que contagia a
juventude, só que uma mensagem totalmente diferente: de amor, de fé, de
paz. A palavra Hallel vem do aramaico e significa 'cântico de louvor a Deus'.
O louvor é antes de tudo, uma "confissão das grandezas de Deus". O nome
Hallel é hoje marca registrada pertencente à Associação Nova Evangelização,
existindo necessidade de autorização para seu uso
(http://www.hallel.org.br/historico.php. Acesso em 18/03/2010).
Era nesse evento do senhor – mas com copyright – que Dunga cumpriria o dever de
colocar no ar as duas horas semanais do PHN.
O formato do programa, todavia, não era apropriado para dar continuidade
formal ao propósito de PHN. Estava tudo lá: música, testemunhos – e, mais, o que seria
proporcionado apenas nas situações em que se deu a gravação: os testemunhos foram de
fato recolhidos de pessoas comuns, e não de consagrados da Canção Nova, como
normalmente acontece, inclusive por condições de produção. Isso daria ao programa
algo em que ele se esforça: a ideia de partilha, de convivência, de comunidade – numa
palavra: de “galera”. Havia ainda o ingrediente da viagem, em si mesma: seu
preparativo, o percurso, a apresentação dos músicos que o acompanham nos shows em
uma churrascaria onde pararam para comer. Era promessa de entretenimento puro – e
um entretenimento horizontal e santo.
Mas nada disso efetivamente funcionou. A começar dos problemas técnicos
para captação de áudio: feita de forma direta, sem possibilidade de tratamento, os sons
captados das apresentações musicais, inclusive aquelas de que Dunga participou e que
tinham uma enorme estrutura, com que os músicos estão acostumados, o som veiculado
pela televisão era quase inaudível. Com a forma conseguida no programa – e, insiste-se,
com a necessidade de programação que exigia que o programa fosse ao ar com 120
minutos – nem o propósito de fazer propaganda do grande evento católico, nem fazer
respirar o PHN foram cumpridos.
Por outro lado, a tentativa de formatar o programa como uma espécie de
road movie tampouco foi eficiente. Esse formato exige uma composição dramática mais
complexa do que aquela que PHN constrói: a narrativa, ainda que miraculosa, do
programa de Dunga possui temporalidades que não se entrecruzam nem se sobrepõem,
ao passo que o road movie propõe tramas paralelas, que se cruzam, e que se unem,
eventualmente, apenas no desfecho dramático. O resultado foi uma narrativa arrastada,
muito longe da dinâmica veloz proposta pelo programa, desde a ideia de videoclipe
192
presente em sua vinheta de abertura.
Havia, de qualquer forma, os testemunhos – e eles tinham a vantagem de
terem sido recolhidos junto aos humanos comuns que se santificaram. Embora com essa
vantagem, que reforça a ideia de “galera”, de compartilhamento, de cotidianidade do
programa, a ausência de um fio condutor que garantia a unidade e a dramaticidade da
narrativa – além de pontuar a fabulação, quando necessário -, esse caráter se perdeu e as
narrativas se tornaram frágeis demais, frouxas demais para serem uma verdadeira
história de conversão. Esse fio condutor é, como vimos, dado pelo próprio Dunga – que,
no evento, não pode cumprir essa tarefa. Porém, ainda assim, o escopo do programa foi
mantido – e não poderia ser diferente: tratou-se, obviamente, do programa PHN e, como
tal, havia marcas de sua textualidade, sobretudo aquela que promete uma vida sem
pecado em um mundo de pecados. Em outras palavras: mesmo quando o formato do
programa foi modificado, foi mantido o seu espírito, assentado na ideia de um
entretenimento santo, de um divino que deve e existe para ser consumido como um
espetáculo que é forjado pelas mãos santas da TV Canção Nova.
4.3. Direção espiritual
i) Estrutura geral do programa
Direção espiritual é apresentado pelo padre cantor Fábio José de Melo
Silva, que nasceu em Formiga, Minas Gerais, em 1971. Desde cedo, deu indicações de
que seguiria uma carreira de ídolo pop – pois elegeu como seus guias espirituais os
padres cantores Zezinho e Joãozinho – além do carismático padre Léo, que o fez
aproximar-se da Canção Nova. Padre Fábio de Melo formou-se em teologia em Taubaté
e fez mestrado, em teologia antropológica, no Instituto Santo Inácio, da Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte.
Essa sua formação, entre os padres cantores e a filosofia, é o que busca levar
para o seu programa de uma hora semanal, veiculado toda quinta-feira, às 22h, na TV
Canção Nova, com reprise às segundas-feiras, 1h. O resultado desse encontro inusitado
– música romântica religiosa católica e mestrado em antropologia teológica - é um tipo
de orientação espiritual muito emotivo, com elementos da cultura melodramática – na
música, nos temas escolhidos para montar os seus discursos verbais, na postura
corporal, com um gestual marcado, na forma algo terna de olhar, no meio sorriso
sempre estampado e ademais nas estratégias discursivas montadas para o seu programa.
O que mais se ouve de sua boca – além das canções românticas que ele
193
mesmo compõe – é que não se trata, o seu programa, as suas palestras, o seu magistério,
de fórmulas prontas para ajudar as pessoas – por isso, insiste que seu programa não é de
autoajuda. O que busca – e aqueles que o ouvem devem também fazê-lo - é a
humanização: solidariedade, serenidade e perseverança nas perdas, respeito às
diferenças, alteridade, simplicidade, decisões; em uma frase, a que talvez resuma o seu
discurso e seja, com efeito, a sua frase predileta: eu sou humano demais.
É com esses valores – presentes em cada canção que compõe, em outras
tantas que escolhe, inclusive no cancioneiro popular brasileiro (entre outros exemplos O
caderno, de Toquinho, e Romaria, de Renato Teixeira) – que padre Fábio de Melo é
hoje o nome mais popular do catolicismo brasileiro – e fora dele. O que faz é tentar
traduzir para um discurso presente em manuais de aconselhamento espiritual alguns
preceitos do cristianismo que julga fundamentais. E com efeito faz isso: há, nos dois
blocos do programa, primeiro uma reflexão sobre uma temática e, a partir de leituras,
sobretudo de e-mail, responde a telespectadores que enviam mensagens com dúvidas,
angústias, situações cotidianas.
Nesse caso, não importa um proselitismo católico; ao contrário: seu esforço
é, ao organizar antropologicamente os valores espirituais contemporâneos; ao perceber
que seus seguidores desejam autoafirmar-se, afirmando o mundo e lhes propor algumas
reflexões sobre o sentido do viver do contemporâneo – um viver na sociedade do
consumo, da fugacidade -; ao formular seu guia espiritual como uma “livro de
pensamentos”, tão próprio da espiritualidade da cultura do consumo; ao fazer isso,
Padre Fábio vai ao âmago da angústia contemporânea: individualismo não precisa gerar
indiferença ou endurecimento; para viver bem no torvelinho do mundo é preciso estar
voltado para dentro de si; diante da fugacidade das coisas, que desmoronam ao seu
redor, e da maldade dos humanos que vivem nesse mundo, não os recuse – ignore-os,
sem feri-los; respeite a sua diferença, sem conviver com eles; seja tolerante e legal.
Essa é a estrutura do programa semanal da TV Canção Nova que padre
Fábio conduz. Com tanto sucesso e a agenda de apresentações musicais sempre cheia, é
inevitável que, às vezes, não haja tempo de gravar o programa – e é comum haver
substituições por programas já veiculados ou palestras proferidas em eventos na Canção
Nova. Nessas ocasiões, embora haja uma mudança importante no formato do programa,
seu fundo, a rigor, não é modificado: há, sempre, um violão ou um teclado sendo
dedilhados, enquanto padre Fábio profere suas palavras; o tom é de intimismo, seja nos
programas inéditos, sejam nas palestras. E, ainda que não haja o aconchego produzido
194
pelo cenário e pela estratégia de discursos televisivo destino-receptor direto (padre
Fábio sempre olha para a câmera ao falar), o que representa e os valores em que se
sustenta estão presentes de forma muito aguda também nas palestras – e não é raro a
câmera focalizar, nessas palestras, pessoas chorando.
ii) Vinheta de abertura
Sobre um solo de saxofone, com uma base nítida de teclado, contrabaixo
guitarra e bateria – um solo melodioso, ao estilo do estadunidense Kenny G -, surgem
imagens fixas que compõem exatamente o espírito do programa: um pôr-do-sol muito
vermelho sobre o mar, acompanhado da palavra esperança; um caminho na videira,
com o quadro circundado de flores brancas; duas pessoas que caminham e deixam atrás
de si as suas sombras, e sobre essa imagem, a palavra sentido; uma pessoa, de quem se
vê apenas uma sombra, sai de uma espécie de galeria, para forjar a ideia de que sai da
caverna em busca da luz – e sobre essa imagem, a palavra busca, que permanece, até
que surge a próxima imagem: rastros de uma pessoa que andou na areia; e logo depois
surge a amplidão de uma praia, com uma miragem de pessoa ao fundo, e sobre essa
imagem a palavra conforto. E, enfim, sobre uma imagem de uma encruzilhada em um
campo, surge a assinatura do programa – Direção espiritual – em uma tipologia que
lembra o cursivo: tipos desenhados, que harmonizam com os valores construídos pela
vinheta e que serão reafirmados pelo aconselhamento de padre Fábio de Melo. Tudo, na
abertura, surge familiar para um tipo de classe média que gostava de receber cartões em
datas comemorativas com inscrições edificantes; são leitores dos chamados livros de
pensamento, de autoajuda e, atualmente, servem como transmissores para as correntes
de mensagens, formatadas em power point ou similares, enviadas por e-mail.
iii) Cenário
Tudo no cenário é completamente familiar. Feito para parecer uma sala de
visitas de classe média, o fundo apresenta cores claras – bege ou verde - em placas que
lembram as texturas que estão em voga nos espaços sociais das residências de classe
média. Padre Fábio, em camisa social ou, na maioria das vezes, com um blazer escuro
sobre uma camisa social, sapatos com desenhos modernos, mas também eles
“alinhados” e, geralmente, com uma calça jeans, que o deixa informal, mas elegante, se
senta em uma poltrona com assento branco e braços – com material que lembra couro.
Ao lado, uma pequena mesa de centro, com tampo de vidro, que serve de suporte para
uma escultura em gesso - com a representação de Jesus morto nos braços de sua mãe - e
195
os eventuais livros, escritos por padre Fábio. Quando algum convidado vai ao programa,
ele se senta em poltrona semelhante e a disposição deixa o “dono da casa” e a visita não
frente a frente, mas o suficiente para que possam se olhar e compor um quadro habitual,
quando há enquadramento em plano conjunto. No centro do cenário, afixado em uma
parede também com textura e em uma tonalidade em ocre – ou verde mais escuro -, há
um crucifixo iluminado. Há variações no cenário, visto no corpus: a poltrona branca é
substituída por uma marrom; os tons em bege da parede de fundo, pelos tons de verde.
Outros elementos entram no cenário: uma planta, um divã – e um tecladista, que o
acompanha durante toda a fala e, ao final, quando o padre cantor exerce a sua arte.
Neste ou naquele cenário, tudo, com efeito, como na abertura e, veremos, em Direção
Espiritual, é, mais do que familiar, uma aspiração da classe média brasileira.
iv) Análise do corpus
a) Programa de 14/01/2010
Tudo naquela edição especial do programa giraria em torno da imagem do
encontro. Mas não seria um encontro qualquer. Diferentemente de outros programas,
quando está só, padre Fábio de Melo contou com a presença de Gabriel Chalita, com
quem escreveu livros e mantém uma relação, ao que parece, de amizade. Chalita foi
apresentado como filósofo – e isso importou muito naquele programa: eram dois
“filósofos”, juntos, na tarefa de humanizar o humano.
A introdução de Fábio de Melo é sintomática nesse sentido – e sintomática
não apenas daquele programa, mas de todo o seu esforço de evangelização com o
propósito de humanização. Ou, no caso da introdução, descoisificação: “Os filósofos
gregos se encontravam na ágora, que era também um mercado. E enquanto as pessoas
trocavam coisas, elas se encontravam e conversavam.” A introdução era, obviamente,
uma referência ao encontro de filósofos que ocorreria naquele programa – para o
privilégio dos telespectadores. Mas também, segundo a reflexão conferida
posteriormente, uma tematização do que viria: a necessidade do diálogo – mesmo que
seja no mercado. Eis então o sintoma: por mais que os diretores espirituais apontassem
para o mundo – e dissessem, como disseram, que as relações humanas estão se tornando
coisificadas, que o mundo contemporâneo tem dado pouco espaço para encontros e para
diálogos, em função de seu “crescente materialismo” - mesmo assim, a simples alusão à
ágora como lugar de filósofos e de mercadorias aponta para a própria condição de
mercadorias em que ambos, mas principalmente padre Fábio se tornara. É como se
196
dissessem: nós somos mercadorias, como vocês, mas estamos aqui, no supermercado de
bens simbólicos, para mostrar a vocês que é possível que haja humanidade. Estamos
aqui para nos vender e para vender a nossa direção espiritual – e enquanto o fazemos
nós nos encontramos, conversamos, dialogamos: nos humanizamos.
A própria condição de mercadorias, de coisas vendáveis em que se colocam
os amigos, torna límpida a tarefa anunciada: a saída é nos humanizarmos
individualmente, em encontros no mundo de coisas. Os mesmos problemas que eu
tenho, que uma pessoa que me enviou e-mail tem – “cada um de nós se encontra
espiritualmente” e se reconhece nessa ágora que é o programa Direção espiritual. Há,
portanto, um adensamento da proposta pedagógica do programa: a um só tempo
encontrar saídas para este mundo, sem no entanto modificá-lo, por um lado; e realizar
um encontro espiritual universal, genérico mesmo, em que cada um se reconheça no
outro que ali se faz presente espiritualmente, por outro lado. O humano genérico
coisificado se humaniza individualmente nos encontros semanais com o programa de
padre Fábio. Mais e de forma radical: esse encontro, nas condições do triste mundo
contemporâneo, é mais prudente se acontece na segurança de casa, realizado de forma
segura, como um exame do espírito feito individualmente.
Todas as conversas, as leves conversas entre Gabriel Chalita e padre Fábio
de Melo – os encontros ali, os encontros do livro que escreveram juntos – giravam em
torno dessa necessária humanização em um mundo desumano. E a humanização se dá
nessa leveza, nesse jeito cool de se relacionar, individualmente, com o mundo
coisificado. A responsabilidade humana, o discurso que, aparentemente, desmistifica as
relações humanas, ao lançar o humano diante de sua vida – o que distinguiria Direção
espiritual de muitos outros programas da TV Canção Nova, mas sobretudo de PHN e
Escola da fé, onde o misticismo é clamado ao centro organizador – se desfaz na
mistificação dessa feitura individual da vida, inclusive no consumo. Essa
responsabilização se dá sempre de forma individual – e nessa medida mantém-se o
misticismo, uma vez que há um sagrado em que se mirar, um sagrado espiritual,
imaterial, que organiza as vidas individuais, que coletivizam apenas como uma
abstração. É como se houvesse uma certeza na dúvida: sabemos que o mundo do
consumo é ruim. Mas, por ser inevitável, é melhor que o consumo seja santo, que se
consuma algo que eleve o espírito. Pois só assim os encontros e a humanização são
possíveis – e ocorrem, ao menos uma vez por semana, ao menos em contato virtual, ao
menos ali, nos livros, nos discos, em Direção espiritual, na TV Canção Nova.
197
b) Programa de 21/01/2010
Naquela edição, padre Fábio estava só – mas isso não significava ausência
de comunhão. Novamente, o apresentador se referia à ideia, muito cara, de
compartilhamento – e deixava claro que estava ali compartilhando com os
telespectadores. Eis a novidade: o encontro, o diálogo pela humanização que dá forma
ao programa, se tornava, pelo discurso de Fábio de Melo, o próprio encontro com Deus.
Ainda que seja temerário realizar uma interpretação excessivamente restritiva, o que se
entrevê no discurso proferido é: estou aqui para, nesse direcionamento espiritual, lhes
oferecer Deus – porque só aqui vocês o encontram. E encontrar Deus significa a um só
tempo compartilhá-lo e estar ligado a Deus – porque, estando re-ligado a Deus (e essa é
a promessa do programa), é possível realizar os encontros humanos. Padre Fábio
propunha os dois: realizar a ligação com Deus e, assim, realizar o compartilhamento dos
encontros que humanizam; ou, ao contrário, por esse encontro que seu programa
permite encontrar Deus, que humaniza.
Seja como for, esse era o mote para a problematização do dia. Referindo-se
ao deslizamento de terras que matou inúmeras pessoas, no início de 2010, no litoral
fluminense, padre Fábio, de forma não percebida, demarcou a quem se referia: a
tragédia ocorrera com pessoas que estavam em Ilha Grande para se divertir. Sua
“direção espiritual” tinha endereço: a classe média, não os muitos favelados perderam a
vida em Angra dos Reis. Ainda assim, padre Fábio se referia às tragédias em geral –
inclusive aquela ocorrida no Haiti. “Como é possível acreditar em Deus, como é
possível manter a fé com tantas tragédias acontecendo?”, questionou, para responder:
“Se não temos dúvida, não é possível ter fé. Porque fé é confiança, é esperança”. Ter
dúvidas é humano demais – ter sensação de que Deus falha é humano demais. Como as
próprias tragédias são, na maioria das vezes, humanas demais – porque Deus não tem
responsabilidade sobre a liberdade humana. “Se não cuidamos para que as tragédias não
aconteçam. Se não cuidamos para que o lixo seja tratado, se não cuidamos para que esse
lixo não se volte contra nós e cause tragédia – se não assumimos a responsabilidade que
jogamos para Deus, como podemos continuar a ter esperança?”
A responsabilização humana, filha do iluminismo, parece, uma vez mais,
distinguir padre Fábio de todos os demais programas da TV Canção Nova. Parece, com
efeito, que a sua tarefa se dá naquele esforço pela entronização da experiência divina,
num processo contínuo de desencantamento do mundo. Mas eis que o discurso guarda
surpresas: essa mesma tarefa de entronização – o que implica aquela relação individual
198
não apenas com o divino, mas com o mundo – aponta para a sacralização intocada da
estrutura do mundo. A responsabilidade humana deve estar em todos os lugares –
inclusive no consumo ético. “O que é o consumo ético? Não é você viver de restrições”,
disse, calma e serenamente, para a câmera. “Consumo ético é o que, antes de você
comprar, você pensa uma, duas, três vezes se precisa daquilo.” Na tarefa de desencantar
o mundo, padre Fábio deixava intocada a sacralização do consumo.
A esperança em Deus não estava em restringir o consumo – mas, para
manter a chama de Deus acesa, o que significa humanizar o humano e realizar o
compartilhamento entre indivíduos, era preciso assumir um termo de responsabilidade.
Porque o mundo do consumo, do sacrossanto consumo e o mundo por ele criado – essa
sociedade do consumo que permite que o próprio Fábio de Melo se disponha como
mercadoria que humaniza – tudo isso é produto de Deus e, como tal, inviolável. Se o
mundo é desumano; se esse mundo das mercadorias descartáveis, do consumo que gera
lixo e tragédias é desumano, não se pode responsabilizar Deus por isso. E com o lixo,
produzido pelo consumo desumano, também Deus é descartado, também a humanidade
é lançada fora.
Esse mundo é humano demais, porém – e como tal, sujeito a erros. Mas um
mundo do consumo responsável é possível – e é esse o mundo da promessa; é esse
mundo que nos mantém firmes, no compartilhar das coisas do mundo. Tributário do
velho humanismo, padre Fábio, o desencantador do mundo, torna a encantá-lo pelo
feitiço de que ele próprio é produto – mas também produtor. Ele é a prova viva de que é
possível humanizar este mundo – apenas pelo consumo. Afinal, ele precisa ser “um
padre responsável”; ser místico, sim – mas a sua mística, dizia, “precisa estar encarnada
no tempo. Eu não posso ser divulgador de uma religião que faz esquecer a vida.”
Parecia um recado – ao interior da Canção Nova. “Da mesma forma, eu não posso ser
um padre que faz lembrar a vida e esquecer o céu”. Um padre equilibrado, dizia ele;
uma autoridade – que, em seu caso, está no centro da cultura do consumo. A vida e o
céu se misturam. Apontando para a estátua que compõe o seu cenário, tramou esse
compartilhamento: “Eu respeito o que essa imagem representa – mas não devo adorá-la
ou esperar dela o milagre. Porque só Deus faz milagres; só a Deus devemos adorar”.
Dizia, humanizando-se: “Não podemos adorar as pessoas – mas adorar o Cristo que há
nelas. Não adorá-las – venerá-las, imitar as suas ações.” Ele era um para ser venerado e
imitado – e canta.
Padre Fábio, o orientador espiritual que é produto, é também produtor – pela
199
sua sapiência e, sobretudo, pela sua posição de orientador espiritual. Isso é determinante
para distingui-lo dos consumidores que o consomem, que enviam suas mensagens
angustiadas para serem respondidas de pronto, que consomem seus CDs e seus diários
espirituais, anunciados naquele programa – e isso é suficiente para torná-lo sagrado
demais.
c) Programa de 28/01/2010
Eu quero lhe dizer que é impossível esquecer, que não estou só nessa
batalha entre o bem e o mal. Quando se é cristão, não se para de lutar, até chegar aos
céus”, cantava padre Fábio, logo de início na edição daquele dia de Direção espiritual.
Se os bons combates eu não combater, minha coroa eu não conquistarei. Se minha
carreira eu não completar, de que vale a minha fé tanto guardar?” Padre Fábio de
Melo é um combatente – e por isso tem seus seguidores, seu exército. Sua luta é por
colocar em prática um cristianismo sem radicalismo; um cristianismo adequado. Sua
luta é por que se consuma um Deus da construção diária da vida – mas essa vida é uma
luta espiritual, porque a luta material já está ganha. “Se na fornalha ardente eu não
entrar, de Tua glória não irei provar. Se perseguido aqui eu não for, sinceramente um
cristão não sou”.
A superação da dicotomia entre transcendência e imanência se dá não como
um milagre – mas como uma confiança, uma orientação, uma direção espiritual: “Não
importa o quanto tenhamos errado até agora, o quanto tenhamos sofrido. O que importa
é que nós estamos vivendo esse processo de melhoria contínua. Uns pouco mais
avançados, outros menos - tudo depende do quanto nós deixamos essa palavra de Deus
trabalhar em nós”. Obviamente, padre Fábio se coloca não apenas entre aqueles em que
a palavra de Deus foi melhor trabalhada – ele se coloca como a própria encarnação da
palavra de Deus; a sua palavra é aquela que promove e faz mover o exército na luta do
bem contra o mal. Imanência é transcendência – aqui se revela o segredo, enfim. No
processo contínuo de entronização do sagrado, processo de desencantamento do mundo,
padre Fábio se coloca, na história, como representante do mistério, do místico.
É com esse talento que ele promete ser um lapidador de gentes em busca de
aperfeiçoamento contínuo, um descobridor das luzes internas. E como ele o faz, se está
distante? Justamente assim: dizendo, usando sua imagem, sua magia/imago – e diz ao
indivíduo, para que procure dentro de si a chama divina que o lance, da história, de
volta ao céu; do imanente de volta ao transcendente. Essa é uma luta contínua, como
200
dizia a canção com que iniciou o programa – e por isso padre Fábio continua a sua
própria luta: ser consumido, para que cada indivíduo que o consome, que consome seus
discos, suas palestras, encontre a graça que Deus desde sempre colocou nos corações
humanos, que a faça nascer. Todavia: “Tudo passa pela nossa escolha, minha gente.
Deus vai perder ou vai vencer”, dizia, elevando gentilmente o tom da voz sobre o fundo
musical do teclado. “É você que decide. É você que hoje escolhe se Deus terá uma
chance na sua família ou se não terá essa chance. É você que vai escolher se Deus vai
ter chance no seu local de trabalho, ou se Deus não vai ter chance. É você o território
dessa ação. O ser humano é um lugar privilegiado da ação divina”, dizia, em close. A
tarefa de padre Fábio estava demarcada: um agricultor – ou antes um pastor de almas da
história para o céu. Ou, ao contrário, a ação cotidiana dos indivíduos - “a sua ação no
mundo pode trazer Deus para a história, ou pode afastá-lo”.
Padre Fábio dizia a humanos sensíveis – àqueles dispostos a “fazer
diferença no mundo”, ao seu exército. Esse era o seu desejo: que homens santos
mudassem o mundo, unindo céu e terra. Mas ao mesmo tempo convidava esse exército
a consumi-lo segundo o princípio-chão do puro consumo – convidava a ligar para
compartilhar as angústias. E dizia: mesmo não sendo ao vivo, a central de call center irá
atender os que ligam; as mensagens enviadas por celular iriam aparecer no vídeo, para
que os humanos genéricos pudessem compartilhar a sua alma. E o exército não parava
de responder ao comandante: naquele dia, as mensagens, com pedidos de oração, com
exposição de problemas – com espécies de votos eletrônicos – não paravam um segundo
de rolar no rodapé da tela, sob a face serena de padre Fábio.
Ele pediu – seu exército respondeu. Mas o fez na precisa ação proposta – só
que ao contrário. Se padre Fábio falava da liberdade; falava que Deus permitiu ao
homem optar entre trazer, por sua ações, Deus para a história ou não; se padre Fábio de
Melo falava ao indivíduo que opta e assim se faz – só, sozinho -, seu exército lhe
respondia tornando a história um enfeitiçamento. Sob os olhos generosos do lapidador
de almas, os indivíduos que arregimentou para o exército de humanos livres – que, por
suas escolhas individuais, cumprem a promessa de Deus para o mundo – tornavam a
história uma forma de alienação. E, miseráveis, colocavam na tela de TV mais do que
seu desespero – colocavam o produto de uma história que se faz segundo um sagrado
que é negado e afirmado por padre Fábio de Melo: “Que suas palavras entrem no
coração de minha irmã que tanto amo”, diz uma dessas mensagens. Ou: “Peço oração
pelo meu casamento”. Ou ainda: “Estou com depressão. Acabei com um relacionamento
201
de quatro anos, mas ainda não deixei de amá-lo. Tô sofrendo muito. Ore por mim. Sua
bênção”. E: “A sua bênção, padre. Peço a Deus que me abençoe na vida financeira. Eu
creio. Amém. Deus Abençoe.” E também: “Padre Fábio, peço que ore para que o
Senhor traga o Maurício de volta para mim.”
As mensagens rolavam no pé da tela - e padre Fábio, alheio a elas, ainda
dizia: “O que vai fazer com que você se sinta verdadeiramente feliz é você saber que
combateu o bom combate. É você saber que fez as escolhas certas.” O lapidador de
almas; o descobridor da chama divina no interior dos indivíduos; o feitor da ponte entre
o céu e a terra nada poderia fazer senão cantar e colocar-se como uma mercadoria - um
fabricador de milagres; um produto que produz uma promessa que não se cumprirá: “Se
os bons combates eu não combater, minha coroa eu não conquistarei. Se minha
carreira eu não completar, de que vale a minha fé tanto guardar?
d) Programa de 04/02/2010
Tal como ocorre com Dunga e seu PHN, também padre Fábio de Melo, e de
maneira superlativa, tem problemas com a sempre lotada agenda para apresentações
musicais em todo o Brasil e no exterior. Os compromissos de agenda, por vezes, o
impedem de gravar um programa inédito. Isso obriga os programadores da TV Canção
Nova a encontrar uma solução, como dito anteriormente – ou reprisam algum programa
já veiculado ou, o que normalmente é feito, é veiculada alguma palestra, proferida por
padre Fábio em algum evento da Canção Nova. Foi esta a solução encontrada para o
programa daquele dia.
Diferentemente do programa de Dunga, todavia, a mudança de formato não
foi decisiva nem prejudicial para Direção espiritual. Exatamente pelo caráter do
programa gravado em estúdio, forjado quase exclusivamente na fala, na orientação de
Fábio de Melo, a palestra conseguia manter o princípio pedagógico. As diferenças
importantes, se, com efeito, indicavam perdas formais, indicavam também ganhos. Por
se tratar de um evento mediado pela TV, padre Fábio não se dirige jamais à câmera,
como faz em seu programa gravado em estúdio. Se isso retira um pouco do sentido de
partilha que o ato discursivo gera, não há como negar que a palestra gera um sentido de
partilha talvez ainda maior – já que são focalizadas as pessoas presentes no imenso
auditório, suas reações, suas emoções.
A palestra escolhida naquele dia foi especialmente emocionante – e isso era
constantemente comprovado pelo Centro de Evangelização lotado; pelos olhos
202
marejados de casais que eram focados pelas câmeras. A edição da palestra, transmitida
ao vivo no dia 19 de julho de 2009, durante o acampamento de casais, foi iniciada com
um hino de paixão: “Incendeia minha alma, incendeia minha alma, incendeia minha
alma, Senhor!” O tema da palestra era O matrimônio é território santo”, e padre Fábio,
novamente se referindo ao processo contínuo que é a descoberta de Deus dentro de cada
indivíduo, a descoberta do fogo divino no interior das mulheres e homens ali presentes,
descoberta que se dá de forma concomitante à descoberta do fogo que faz os indivíduos
brilharem – padre Fábio faz ecoar a canção em sua fala: “Para ter fogo é preciso ter
lenha. Deus é o fogo. Nós precisamos ser essa lenha onde Deus queime. Deus quer
incendiar e o galho dessa fogueira sou eu, é você. Somos nós.” Ali, em presença física,
o sentimento de pertença se dava com força, com calor – ali, o “nós” vocalizado
queimava como fogo. E os que, do lado de cá, assistiam pela TV, sentiam esse calor e
partilhavam como nunca o sentido desenhado pelas palavras de padre Fábio.
Deus é epifania, dizia padre Fábio. Deus é revelação. Todos os milagres de
Deus na história não serviram para demonstrar o seu poder – mas para chamar a atenção
de homens e mulheres, para conquistar os seus corações. Daí a beleza dos milagres de
Deus. O palestrante ia do céu à Terra: “O poeta diria diferente. O poeta diria: 'Tudo o
que é belo me chama' – e eu vou.' A beleza a que o poeta se refere, a beleza em que
Deus se manifesta não se limita a ser uma beleza estética, exterior.” Havia um
complemento, um algo a mais, um conteúdo “além daquelas formas” que é necessário
em cada vida, de cada humano.
E o que é o amor? Não é uma epifania? Não é uma revelação? Não é um
ardor do fogo, que chama e faz mover? Uma beleza de Deus – muito além da forma?
Um algo necessário para vida de quem ama? Uma chama que ardeu, entre os muitos
galhos secos? Padre Fábio respondia, ele próprio: “Amar é isso, minha gente”, dizia,
chamando, com emoção, o enorme público à sua frente. “Amar é isso! É você descobrir
que no meio da multidão existe alguém que não é multidão. O que há de mais
aterrorizante que pode existir na vida é você ficar na multidão.” É como se padre Fábio
dissesse: eis-me aqui, galho candente do fogo de Deus – alguém que se desvencilha da
multidão. Vejam-me, para que vocês não fiquem perdidos na multidão, invisíveis no
lugar comum. Compartilhemos – mas cada um em seu lugar. Essa força da diferença, da
alteridade, é a mirada que devemos buscar – nossa única mirada. Eis o fogo de Deus:
preservá-lo significa todos os dias chegar para o ser amado e dizer: eu vi você na
multidão. Muito prazer. O outro é território sagrado. E, queimando em entusiasmo
203
retórico, diz: “Não deixe que transformem você em uma mercadoria, em um objeto de
taras, para a pornografia. Não deixe que sua casa seja acessada pelo espírito destruidor.”
O sujeito da frase é oculto, não por acaso – porque o espírito destruidor é ardiloso e se
oculta na mercantilização da vida. Contra ele, padre Fábio pratica a glossolalia; e canta:
Sou consagrado ao meu Senhor, solo sagrado eu sei que sou, vida que o céu
sacramentou, marcas do eterno estão em mim.” Porque o amor enxerga a beleza além
das formas – eis o seu conteúdo. No rodapé da tela, sempiterno, um anúncio que
lembrava: “Adquira esta palestra. Atendimento 24 horas.”
PARTE II
DA RECEPÇÃO
205
CAPÍTULO IV
VIDA NAS SOMBRAS:
Uma análise das pesquisas quantitativas
Pois todos fomos batizados num só Espírito
para sermos um só corpo, quer sejamos judeus
ou gregos, quer escravos ou livres. E todos
bebemos de um só Espírito (I Coríntios 12:13)
Este e o próximo capítulos tratam da recepção da TV Canção Nova – isto é:
como os discursos sobre a Canção Nova e a partir da TV Canção Nova se constroem em
mediações e como tais. Neste capítulo, são analisadas as entrevistas, transformadas em
números, que conseguem senão um retrato fugidio dos atores vivos que perfazem o
catolicismo: os fiéis católicos. Pois, se a intenção é trazer a vida que pulsa no cotidiano
do católico, é necessário, para dar um mínimo de coesão para esta peça, tentar enxergar,
através das sombras, um pouco da vida real dessas pessoas reais, que têm na religião a
mais severa esperança de um mundo seguro. É de bom tom, portanto, assim nos ensina
a narratologia, que se apresente cada ator de forma geral, para que seu corpo e seu
espírito se configurem e se apresentem pouco a pouco.
Daí a pertinência - quase exigência: para a pesquisa, os atores vivos se
entremostraram como sombras para só então se revelarem aos poucos nas entrevistas em
profundidade e na análise fugidia de seus discursos -; daí a pertinência de buscar um
retrato, ainda que opaco pelas circunstâncias, desse receptor vivo nos resultados da
pesquisa de campo quantitativa. É importante anotar que, embora estejam presentes nos
resultados das pesquisas quantitativas, dois dos grupos de atores cujos discursos são
analisados – párocos e peregrinos – não foram contemplados materialmente nas
pesquisas que neste capítulo se analisam. Isso não implica que: i) eles não estejam ali
presentes, uma vez que, como nos ensinou Bakhtin (1997), diversas vozes atravessam
nossos discursos cotidianos e não cotidianos. Assim, como os atores se entrecruzam –
não apenas como conclusão desta pesquisa: os fiéis efetivamente dialogam com a TV
Canção Nova, tanto quanto com a tradição católica, o mercado simbólico religioso e não
religioso, os párocos, o desejo, ou ausência dele, de visitar a sede da Canção Nova, de
serem peregrinos ou de criticarem essa atitude etc -, suas vidas estão entrelaçadas nos
resultados auferidos na pesquisa de campo junto aos fiéis. ii) Por isso, os resultados aqui
206
apresentados indicam apenas um esboço desses atores, cujo desenho procura-se
completar, no capítulo seguinte, onde os discursos, por mais próximos, se mostram
menos sombrios. Nessa medida, a pesquisa quantitativa junto aos fiéis os apresenta de
forma genérica, tanto quanto aos demais atores. Trata-se, portanto, de perscrutar, nos
resultados das pesquisas, o que só será mostrado nos discursos recolhidos nas
entrevistas em profundidade.
Eis o argumento e o cenário minimamente arranjados – é hora de apresentar
os atores. Os resultados apurados dizem respeito a uma mostra dos católicos praticantes
no Brasil – as pesquisas foram realizadas nas portas de igrejas e obviamente trata-se de
católicos praticantes, em sua maioria. É nessa medida que os resultados da pesquisa se
distanciam tanto do Censo de 2000, do IBGE, quanto de uma pesquisa coordenada pelo
Ministério da Saúde e cujos resultados foram publicados em 2000. O IBGE mostrou um
declínio constante dos que se declaram católicos, em relação a resultados anteriores:
segundo o Censo de 2000, cerca de 74% da população brasileira se declaravam
católicos. Já a pesquisa Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções
do HIV/Aids (COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST/AIDS, 2000), realizada em
todo o Brasil, em 1998, revelou que 26% da população mudaram de religião e indicava
um número ainda menor de católicos autodeclarados: cerca de 67%. Por outro lado,
considerando-se o declínio do número de católicos brasileiros e observando-se ainda
que há igualmente um decréscimo no número de católicos que se dizem praticantes,
pode-se dar razão às estimativas que apontam para que apenas 20% dos que se declaram
católicos participam da vida eclesial – seja dos momentos eucarísticos, seja com o
dízimo ou grupos de oração. Esse é o universo desta pesquisa.
Não obstante, a respeito do Censo de 2000 e da queda no número de
católicos, o sociólogo católico Luís Alberto Gómez de Souza, ex-diretor executivo do
Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais - Ceris –, órgão ligado à CNBB,
disse que o catolicismo tende a deixar de ser uma adesão tradicional para ser uma
adesão pessoal e, por isso, o número de católicos que se declaram como tal tende a se
aproximar ao de católicos praticantes (SOUZA, 2004) Dar razão a tais convicções
significa de duas situações, uma: aceitar o completo declínio do religioso no Brasil, de
modo que haja efetivamente uma coincidência – mesmo que em longo prazo – entre os
naturalmente católicos e os que praticam o catolicismo. E, mais, que tem havido, a
despeito da perda de fiéis, uma qualificação na comunidade católica: não apenas os
católicos não-praticantes, que não interessam à Igreja, saem da Igreja, como tem havido,
207
em razão dessa qualificação, um retorno de fiéis que, por motivos vários, mas sobretudo
em razão daquela desqualificação, deixaram de ser católicos. Da mesma maneira, e
como desdobramento da convicção anteriormente descrita, a recusa da naturalidade
católica implica um cercamento da religiosidade em torno da religião. Dessa maneira,
formula-se um mundo separado entre o secular não-religioso e o religioso, com o
catolicismo em pleno declínio, mas em profunda qualificação. Sabemos, no entanto, que
a realidade não procede dessa forma – e os números da pesquisa quantitativa
demonstram isso. O religioso permeia o cotidiano – e por isso há tantos católicos não
praticantes que permanecem católicos: é sempre bom ter uma religião à mão na hora do
aperto, e os “ave-marias”, “pelo-amor-de-deus”, “nossa-senhoras” ou “fique-com-deus”
pronunciados cotidiana e despretensiosamente pelos não convictos de sua religião
anunciam mais do que um hábito simplesmente. Trata-se do esforço de religiosidade no
cotidiano e, mais do que isso, parece apontar para a necessidade de se ter a religiosidade
em dia – e é melhor que a religião seja reconhecível – para dar conta de uma vida
cotidiana em que a experiência do sagrado deixou a intimidade para alcançar as relações
humanas mais comezinhas, em que o mundo tornou a se encantar pelo maquinário
midiático secular, que transforma as relações materiais pela mercadoria em algo
efetivamente sagrado - transcendental. Assim, as pesquisas quantitativas – e também a
qualitativa, como veremos - indicam que a naturalidade católica permanece – mesmo
entre os praticantes – e, mais, que há um esforço dos fiéis para fazer dialogar o sagrado
que praticam na Igreja e aquele vivenciado cotidianamente pelo religioso organizado
por uma religião não constituída sociologicamente como tal.
Esta pesquisa, todavia, não se interessa mais pelo trânsito religioso no
Brasil, sobejamente estudado,
53
do que já foi explorado no capítulo 1 desta tese, em que
a disputa pelo mercado religioso foi decisiva para a movimentação da máquina
eclesiástica católica para a apropriação dos meios de comunicação de massa. Assim,
como anunciado, há, em razão do universo distinto, diferentes resultados entre esta
pesquisa e outras, que tiveram como universo toda a população brasileira – o que não
significa que não se possa realizar um prognóstico de alguns resultados para além do
universo estudado, a saber: se há uma relação entre formas do religioso católico e o
sagrado cotidiano apurado entre católicos praticantes, é provável que haja manifestações
desse sagrado cotidiano entre os não-praticantes.
53
Ver entre outros SOUZA, 2004; MONTERO & ALMEIDA, 2001; PIERUCCI & PRANDI, 1996.
208
Assim, diferentemente das pesquisas oficiais, há um desequilíbrio apurado
entre mulheres e homens católicos: a pesquisa anotou que 57,4% dos entrevistados são
mulheres e 42,6% são homens. Esse resultado parece confirmar uma sensação corrente
de que religião é coisa de mulher. Porém, se se atenta para outros números, essa relação
guarda algumas surpresas. Por exemplo: é possível verificar que as mulheres têm uma
religiosidade mais apurada, o que significa que se mantêm mais abertas às experiências
do sagrado – seja aqui, na Igreja Católica, seja alhures, na telerreligião, seja no sagrado
cotidiano e sua magia. Por outro lado, ainda que o homem não seja religioso, é possível
dizer que ele é mais ligado à religião do que ela. Isto é: se as mulheres são maioria nos
templos sagrados, inclusive nos grupos religiosos, para que alimente a sua fé, os
homens, quando convictos de sua religiosidade, participam mais das estruturas da
máquina eclesiástica, inclusive entrando em disputa com ela. A tabela 1, com o
cruzamento entre sexo e frequência a missas, aponta para essa perspectiva, embora não
seja conclusiva.
54
Os dados mostram uma ligeira diferença, em favor dos homens, entre
os que declararam ir às missas pelo menos três vezes por semana – o que configura uma
intensa participação na vida eclesiástica: quase 16% dos homens e quase 14% das
mulheres vão às missas com essa frequência. Nem mesmo a grande diferença entre
homens e mulheres entre aqueles que disseram participar das missas com uma
frequência eventual retira a força de que os homens religiosos são mais presentes na
vida da Igreja.
54
Todas as tabelas expressas têm como fonte os dados tabulados a partir das entrevistas realizadas, como
pesquisa de campo, para a confecção da tese
209
Tabela 1 - Cruzamento entre Sexo e Frequência a missas
1. Sexo
Masculino Feminino Total
Freq
27 32 59
% fila
45,8% 54,2% 100,0%
Todos os dias/ Três ou
mais dias por semana
% coluna
15,6% 13,7% 14,5%
Freq
118 177 295
% fila
40,0% 60,0% 100,0%
Uma vez por semana
% coluna
68,2% 76,0% 72,7%
Freq
21 16 37
% fila
56,8% 43,2% 100,0%
Eventualmente
% coluna
12,1% 6,9% 9,1%
Freq
7 8 15
% fila
46,7% 53,3% 100,0%
Raramente
% coluna
4,0% 3,4% 3,7%
Freq
173 233 406
% fila
42,6% 57,4% 100,0%
13.
Frequência de
missa/culto
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Note-se ainda, a partir dos dados desta tabela, o ritual natural dos católicos
praticantes: quase 73% dos entrevistados – sendo 68% dos homens e 76% das mulheres
– disseram assistir à missa uma vez por semana. Se não se pode dizer que tais resultados
indiquem ausência de calor católico, certamente se pode afirmar, sobretudo se se
observa a participação global dos entrevistados em eventos da Igreja – compreendidos
como grupos de oração, trabalhos comunitários e outros, inclusive ministério -, como
observado na tabela 2, que os praticantes católicos o são por tradição e por manter acesa
a chama de uma fé. Se assim for, é preferível que isso ocorra com relação à Igreja
Católica, religião que eles conhecem e que reconhecem como participante de suas vidas:
entre os que não participam e jamais participaram e os que participam eventualmente de
atividades da Igreja, o total chega a quase metade dos entrevistados. Se se juntam a esse
total aqueles que disseram já terem participado e já não mais participam, o número
alcança quase 65%, ao passo que cerca de 35% dos entrevistados participam de eventos
ligados à Igreja – e destes 75% dizem participar de alguma atividade devocional:
comunidades religiosas ou grupos de oração. Ou seja: uma minoria participa e, dentre
eles, a maioria se coloca ora como uma continuidade da tarefa devocional da Igreja, ora
como uma experiência estética, tal como observada no sagrado não religioso. Esse dado
é importante quando for se observar a relação entre a devoção e/ou participação com a
telerreligião, o que se fará adiante. Por ora, é importante observar, por fim, em relação
ao sexo dos católicos praticantes, que a religiosidade feminina não significa que haja
uma menor participação masculina; ao contrário: apesar do menor número de homens
210
praticantes, há um equilíbrio entre eles e elas em relação ao fervor – ou à ausência dele.
Melhor dizendo: trata-se de compreender, a partir do número maior de mulheres
católicas praticantes e o equilíbrio entre mulheres e homens no que se refere à fé,
compreendida como participação religiosa, que as mulheres são menos ligadas à religião
e mais à religiosidade.
Tabela 2 - Cruzamento entre Sexo e Participação em eventos da Igreja
1. Sexo
Masculino Feminino Total
Não participa Freq
76 95 171
% coluna
43,9% 40,8% 42,1%
Já participou, mas não
participa mais
Freq
25 38 63
14. Participa das
atividades da
igreja?
% coluna
14,5% 16,3% 15,5%
Participa regularmente Freq
60 85 145
% coluna
34,7% 36,5% 35,7%
Participa eventualmente Freq
12 15 27
% coluna
6,9% 6,4% 6,7%
Total Freq
173 233 406
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Por outro lado, os homens, mais religiosos, também se apresentam ligados à
religiosidade, justamente em razão dos resultados de sua participação em rituais e da
vida eclesiástica, mas também, em razão contrária, porque, sendo mais religiosos e mais
adeptos da religião do que as mulheres, não obstante terem menor participação na
religião, eles acabam por se mostrar igualmente solícitos em relação ao sagrado –
inclusive na relação entre o sagrado católico e aquele, vivenciado em seu cotidiano e
não preso a qualquer religião.
Quando se analisam as tabelas 3 e 4, que articulam sexo e assistência a TV
religiosa e a TVs católicas, há uma clareza quanto ao que foi dito anteriormente: mais
mulheres assistem a programas religiosos de TV (tabela 3), o que indica uma maior
religiosidade feminina – mas, se se compreendem os resultados masculinos, embora
haja menor assistência por parte deles, verifica-se que a diferença é pequena. Isso
indica, como dito, sim maior religiosidade feminina – e não se pode perder de vista uma
situação social ainda muito presente na modernidade urbana brasileira: mais mulheres
do que homens ficam em casa durante todo o dia, realizando tarefas domésticas -, e uma
maior ligação masculina com o religioso. Mas não se pode perder de vista a articulação
entre religiosidade, religião e o sagrado cotidiano.
211
Tabela 3 - Cruzamento entre Sexo e Assistência a programas religiosos de TV
1. Sexo
Masculino Feminino Total
Freq
120 173 293
Sim
% coluna
69,4% 74,2% 72,2%
Freq
53 60 113
Não
% coluna
30,6% 25,8% 27,8%
Freq
173 233 406
16. Vê programas/Canais de
TV Religiosos?
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
É tal articulação que a tabela 4 nos permite ver. Nota-se o que foi dito
anteriormente a respeito da distribuição entre homens e mulheres quanto à assistência da
preferida TV Canção Nova, identificada com o devocional e com a Renovação
Carismática Católica, e da Rede Vida, ligada à hierarquia da Igreja e, pretensamente,
mais secularizada do que a TV Canção Nova. Observando-se os resultados obtidos na
coluna e na fila, obtemos que 83% das mulheres dizem assistir à TV Canção Nova,
enquanto 73,5% dos homens dizem fazê-lo; 30% deles e 23% delas disseram assistir à
Rede Vida. Há, portanto, na identificação Canção Nova-mulheres, uma possibilidade de
enxergar o devocional e a maior religiosidade feminina, justamente porque preferem o
corpóreo e efusivo daquela TV ao pretensamente racional da Rede Vida, ao passo que,
com os homens, aconteceria o contrário. Se se analisam os dados por sexo em relação à
fila, representada pelos canais católicos de TV, os resultados são ainda mais claros: a
assistência da TV Canção Nova tem participação de 38% dos homens e de 62% das
mulheres.
Quanto à Rede Vida, as mulheres ainda continuam a assistir mais, com 53%,
mas a diferença em relação aos homens diminui sensivelmente: são 47% dos homens
que dizem assistir à programação da TV ligada à hierarquia da Igreja Católica. É
importante dizer que essa variável da pesquisa permitia múltiplas respostas. Isso é
indício de que, com efeito, as mulheres assistem a mais programação religiosa na TV do
que os homens. De qualquer maneira, note-se o que se pretendeu aqui dizer: as mulheres
formam um importante contingente religioso e de religiosidade, e são mais abertas às
sensações estéticas – religiosas e não religiosas. Os homens vivem a sua religiosidade
mais proximamente àquilo que é institucionalizado. De toda forma, os resultados gerais
indicam uma associação clara entre a religiosidade e a telerreligião – o que nos abre o
leque interpretativo para articular o religioso ao sagrado cotidiano justamente pelo
telerreligioso.
212
Tabela 4 - Cruzamento entre Sexo e Assistência a Canais Católicos de TV
1. Sexo
Masculino Feminino Total
Canção Nova Freq
86 141 227
% fila
37,9% 62,1% 100,0%
% coluna
73,5% 82,9% 79,1%
Rede Vida Freq
35 39 74
% fila
47,3% 52,7% 100,0%
% coluna
29,9% 22,9% 25,8%
18. Canal
Católico a
que assiste
TV Aparecida Freq
10 18 28
% fila
35,7% 64,3% 100,0%
% coluna
8,5% 10,6% 9,8%
TV Século XXI Freq
3 11 14
% fila
21,4% 78,6% 100,0%
% coluna
2,6% 6,5% 4,9%
Outro Freq
0 2 2
% fila
,0% 100,0% 100,0%
% coluna
,0% 1,2% ,7%
Total Freq
117 170 287
% fila
40,8% 59,2% 100,0%
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Outros dados obtidos na pesquisa apontam para o desmonte de sensações
correntes quanto ao religioso, ao catolicismo e ao telerreligioso. Os resultados quanto à
idade, por exemplo, contrariam uma sensação constante de que tem havido um
envelhecimento do público católico. Seguindo números oficiais censitários do Brasil,
há, nos resultados apurados na pesquisa quantitativa realizada, entre os católicos
praticantes, uma massa de 60% que têm até 45 anos, sendo 30% na faixa até 30 anos, e
outros 30% de 30 a 45 anos. Apenas cerca de 14% dos respondentes declararam ter 60
anos ou mais (tabela 5).
Tabela 5 - Idade
Freq % % válidos
15 a 30 anos
125 30,8% 30,9%
31 a 45 anos
119 29,3% 29,5%
46 a 60 anos
102 25,1% 25,2%
60 anos ou mais
58 14,3% 14,4%
Não respondeu/não sabe
2 ,5% ,0%
2.
Idade
Total
406 100,0% 100,0%
Também próximo dos dados referentes à população brasileira, aqueles
relativos ao grau de instrução do católico aponta para aquilo que já havia sido sentido
em outra pesquisa (PIERUCCI & PRANDI, 1986): tem havido uma evolução contínua
da população urbana no Brasil, em termos de quantidade, com seu crescimento
213
ininterrupto, e sua qualificação em termos de escolaridade. Como se vê na tabela 6, o
número de católicos que se declararam sem escolaridade é desprezível; por outro lado,
há uma concentração entre os que se declararam com no mínimo o secundário
completo: mais de 50% dos respondentes têm aquele grau de escolaridade, curso
superior incompleto ou completo.
Tabela 6 - Escolaridade
Freq. % % acumulado
Válidos Sem escolaridade
11 2,7 2,7
Primário incompleto
58 14,3 17,0
Primário completo
74 18,2 35,3
Secundário incompleto
46 11,3 46,7
Secundário completo
118 29,1 75,8
Superior incompleto
25 6,2 82,0
Superior completo
73 18,0 100,0
Total
405 99,8
Perdidos Não respondeu/não sabe
1 ,2
Total
406 100,0
Esse número indica, mais do que o óbvio resultado do avanço da
massificação da educação, inclusive a superior, nos últimos anos, um traço importante,
também já demarcado: o público católico é, além de urbano, constituído da classe média
brasileira. É claro que o resultado aponta também, como não poderia deixar de ser, para
a terrível situação financeira por que passa a maioria do povo brasileiro. Mas não deixa
de ser interessante – a despeito de ser dramático – que mais da metade dos respondentes
tenham declarado que sua renda familiar situa-se acima dos três salários mínimos, muito
embora não se possa fechar os olhos para o fato de que, em números absolutos, o maior
contingente continua sendo daqueles que declararam ter uma renda familiar de até três
salários mínimos (Tabela 7). De qualquer maneira, é importante perceber que o
catolicismo é uma religião que agrega pessoas de classe média, tanto em renda familiar
– ou, segundo as planilhas da Fundação Getúlio Vargas, proponente da classificação dos
estratos sociais por renda, o que dimensiona o lugar social é mais o consumo do que a
renda propriamente - quanto em formação escolar.
214
Tabela 7 - Renda familiar
Freq % % válidos
Até 03 SM
148 36,5% 40,1%
De 03 a 05 SM
135 33,3% 36,6%
De 05 a 10 SM
57 14,0% 15,4%
Acima de 10 SM
29 7,1% 7,9%
Não respondeu/não sabe
37 9,1% ,0%
5. Renda
familiar
Total
406 100,0% 100,0%
Esses dados são importantes para que seja refutada uma constante
percepção de que a telerreligião é um fenômeno das camadas mais pobres e menos
instruídas da população. Apenas como análise prévia, e tomando por base as tabelas 8 e
9, há uma evidente aceitação dos programas religiosos de TV pelos católicos, que têm
em sua maioria renda familiar acima dos três salários mínimos e onze ou mais anos de
estudos.
Tabela 8 - Consumo cultural
Fontes de informação principais
Freq. %.
Jornais
144 35,5%
Revistas
46 11,3%
Rádio
158 38,9%
TV
343 84,5%
Internet
85 20,9%
Outros
31 7,6%
Total
406 100,0%
215
Tabela 9 - Cruzamento entre renda familiar e consumo cultural
6. Fontes de informação principais
Jornais Revistas Rádio TV Internet Total
5. Renda
familiar
Até 03
SM
Freq.
41 10 79 131 17 146
% fila
28,1% 6,8% 54,1% 89,7% 11,6%
% total
36,1%
De 03 a
05 SM
Freq.
48 19 51 116 32 135
% fila
35,6% 14,1% 37,8% 85,9% 23,7%
% total
33,4%
De 05 a
10 SM
Freq.
29 7 9 46 20 57
% fila
50,9% 12,3% 15,8% 80,7% 35,1%
% total
14,1%
Acima de
10 SM
Freq.
16 9 2 16 11 29
% fila
55,2% 31,0% 6,9% 55,2% 37,9%
% total
7,2%
Total Freq.
144 46 158 343 85 404
% fila
35,6% 11,4% 39,1% 84,9% 21,0%
% total
100,0%
A análise dos dados das tabelas 8 e 9 aponta para uma ambiguidade: os
entrevistados se referem aos programas e canais religiosos, mas também apontam para a
sua principal fonte de consumo cultural: a TV. Para 84,5%, a televisão é fonte de
informação principal (tabela 8). O rádio, de forma surpreendente, apareceu com 38,9%,
muito próximo de jornais, com 35,5%. Outro número instigante apontado pela pesquisa
de campo diz respeito ao cruzamento entre instrução e consumo de TV: como esperado,
quanto maior a escolaridade, menor a indicação de TV como principal fonte de
informação. Mas o menor contingente de respostas para esse consumo se deu no público
que se declarou sem escolaridade (72,7%), menor até do que o número de respondentes
com ensino superior completo (74%). Em relação ao cruzamento entre consumo cultural
e renda familiar, não há surpresas: quanto maior a renda declarada, menor o consumo de
TV – ainda que, também para os mais bem remunerados, essa é fonte de informação
preferida. Para o público com renda superior a dez salários mínimos, a TV é consumida
como principal fonte para 55,2%, o mesmo número dos que leem jornal (tabela 9).
Deve-se considerar ainda que a maioria dos católicos entrevistados, 72,2%
(tabela 3), diz assistir a programas religiosos de TV. Deve-se atentar ainda a outros
números, do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação – EPCOM – de 2002,
216
que indicavam que 87,7% dos brasileiros possuíam aparelho de TV em casa e 81%
assistem à TV todos os dias. O mesmo EPCOM (2002) calculava que o brasileiro assiste
a 3,5 horas diárias de TV – a rigor, um quarto de seu tempo útil, de 16 horas. Os
números se aproximam daqueles recolhidos em pesquisa de campo junto ao público
católico: dos que responderam ter como fonte primária ou secundária de informação a
TV, 89,5% a assistem sempre e 27,7%, quase sempre (tabela 10).
Ou seja, a TV,
efetivamente, forja a sociabilidade do brasileiro, em todas as faixas de rendimento,
escolaridade e etária.
Tabela 10 - Frequência de consumo das fontes de informação
6. Fontes de informação principais
Jornais Revistas Rádio TV Internet Total
7. Frequência
de Consumo
Fontes de
informação
Sempre Freq.
127 38 145 307 79 359
% linha
35,4% 10,6% 40,4% 85,5% 22,0%
% total
89,1%
Quase sempre Freq.
53 26 30 95 20 115
% linha
46,1% 22,6% 26,1% 82,6% 17,4%
% total
28,5%
Às vezes Freq.
5 6 2 10 2 14
% linha
35,7% 42,9% 14,3% 71,4% 14,3%
% total
3,5%
Raramente Freq.
24 8 26 58 8 64
% linha
37,5% 12,5% 40,6% 90,6% 12,5%
% total
15,9%
Total Freq.
143 46 158 343 85 403
% linha
35,5% 11,4% 39,2% 85,1% 21,1%
% total
100,0%
Obviamente isso vale para a assistência à TV Canção Nova, apontada na
pesquisa como a preferida entre os canais religiosos de TV católicos (tabela 11).
Importante anotar que apenas aqueles que disseram assistir a programas religiosos de
TV e os que disseram assistir a programas católicos responderam ao questionamento.
Tabela 11 - Canal católico a que assiste
Canal católico a que assiste
Freq %
Canção Nova
227 79,1%
Rede Vida
74 25,8%
TV Aparecida
28 9,8%
TV Século XXI
/ Outro
16 5,6%
18. Canal
Católico a
que assiste
Total 287 100,0%
217
Aprofundando a análise dos dados, no entanto, e realizando cruzamentos
entre as respostas, poderá ser visto que a percepção de que a telerreligião é coisa de
pobre e analfabeto, num preconceito típico da cultura de elite e principalmente míope
em relação à dinâmica cultural contemporânea, é completamente infundada.
São vários os resultados que indicam que a telerreligião é um fenômeno
aceito pelos fiéis e, mais, que ela dialoga sobremaneira e com efeito com o sagrado que
paira e está entranhado no cotidiano da cultura do capital. Obviamente, trata-se, a
telerreligião, de um fenômeno localizado entre os praticantes de religião – e só isso é
possível ser mostrado pela pesquisa realizada junto a católicos praticantes. Porém, o
resultado pode indicar um transbordamento em direção à cultura não vinculada
estritamente ao religioso, como veremos adiante, quando se analisarem dados relativos
ao consumo cultural dos católicos. E, de toda forma, interessa aqui a compreensão de
como há uma transferência do transcendental, entendido como o projetivo, da esfera do
religioso para o cotidiano e seu sagrado-consumo apartado da produção.
Por ora, como se pode ver na tabela 12, embora haja, de fato, uma
concentração importante dos que se declararam sem escolaridade quanto à assistência
de TVs e programas religiosos – 90% dessa faixa responderam assistir a programas e
canais e TVs religiosos -, é mister não perder de vista nem o fato de ser irrisório o
número desses católicos sem escolaridade, conforme tabela 12, nem, principalmente, os
dados obtidos nas faixas de escolaridade seguintes. Se os católicos sem escolaridade
representam, em termos absolutos, os que mais assistem a programas religiosos de TV,
por outro lado, os que declararam ter o primário incompleto assistem menos a tal
programação do que os que disseram possuir maior tempo de escolarização: 31% dos
que têm ensino básico incompleto disseram não assistir, 28% dos que não assistem
estão na faixa de escolaridade com ensino médio completo e 30% dos que não assistem
têm curso superior. Há dois aspectos que precisam ser compreendidos nessa análise:
primeiro, há outras razões além da simples escolha que poderiam indicar que os de
baixa escolaridade não assistem a programas de TV religiosos.
A tabela 13, de cruzamento entre escolaridade e renda familiar, mostra, além
do óbvio incremento de renda com o aumento de escolaridade – em um país que
tradicionalmente valoriza o trabalho imaterial, o país dos bacharéis -, que mais de 50%
dos que têm baixa escolaridade pertencem à faixa dos mais pobres. Isso poderia indicar
uma dificuldade em conseguir sintonizar o sinal das TVs religiosas. Elas têm sinal
aberto, mas necessitam, quase sempre, de uma antena parabólica para serem
218
sintonizadas. O argumento é aceitável, mas facilmente refutável, haja vista que outras
faixas de escolaridade, com igual renda familiar, apresentam um percentual de
assistência importante. De qualquer maneira, o argumento não esconde o fato ainda
mais concreto de que mais de 70% dos católicos assistem a programas de TV religiosos
e que esses números se mantêm constantes entre todas as faixas de escolaridade - e eis o
segundo aspecto a ser considerado na análise.
Tabela 12 - Cruzamento entre Escolaridade e Assistência a programas e canais de TV religiosos
Vê programas/Canais de TV Religiosos?
Sim Não Total
Freq % da linha Freq % da linha Freq % da linha
Instrução Sem escolaridade
10 90,9% 1 9,1% 11 100,0%
Primário incompleto
40 69,0% 18 31,0% 58 100,0%
Primário completo
60 81,1% 14 18,9% 74 100,0%
Secundário
incompleto
31 67,4% 15 32,6% 46 100,0%
Secundário completo
85 72,0% 33 28,0% 118 100,0%
Superior incompleto
15 60,0% 10 40,0% 25 100,0%
Superior completo
51 69,9% 22 30,1% 73 100,0%
Total
292 72,1% 113 27,9% 405 100,0%
Tabela 13 - Cruzamento entre Escolaridade e Renda familiar
4. Instrução
Sem
Escolaridade /
Primário
incompleto
Primário
Completo/
Secundário
incompleto
Secundário
completo
Superior
incompleto/
Completo Total
Freq
37 55 43 13 148
% fila
25,0% 37,2% 29,1% 8,8% 100,0%
Até 03
SM
% coluna
62,7% 52,9% 39,1% 13,7% 40,2%
Freq
17 41 44 33 135
% fila
12,6% 30,4% 32,6% 24,4% 100,0%
De 03 a
05 SM
% coluna
28,8% 39,4% 40,0% 34,7% 36,7%
Freq
2 7 18 30 57
% fila
3,5% 12,3% 31,6% 52,6% 100,0%
De 05 a
10 SM
% coluna
3,4% 6,7% 16,4% 31,6% 15,5%
Freq
3 1 5 19 28
% fila
10,7% 3,6% 17,9% 67,9% 100,0%
Acima de
10 SM
% coluna
5,1% 1,0% 4,5% 20,0% 7,6%
Freq
59 104 110 95 368
% fila
16,0% 28,3% 29,9% 25,8% 100,0%
5. Renda
familiar
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Como antevisto, tampouco há uma relação evidente entre pobreza e
assistência de TV religiosa – como se pobres fossem mais manipuláveis e mais
219
alienados, como diversas vezes alguns discursos dos entrevistados na pesquisa
qualitativa deixaram ver e como alguns resultados da pesquisa quantitativa apontaram.
O cruzamento entre renda familiar e assistência a canais e programas religiosos de TV
tampouco sustentam aquele preconceito de que quanto mais pobre, mais manipulável
pelas formas corpóreas e fórmulas emotivas apresentadas pela religião televisionada. É
mais prudente aceitar que, se há manipulação e consumo alienado das formas corpóreas
e fórmulas emotivas, isso não se dá em razão da escolaridade ou renda. De qualquer
maneira, é ainda mais prudente apontar, novamente, para o conceito de hegemonia, que
perpassa faixas de renda salarial e escolaridade segundo a mesma promessa: justamente
aquela do corpóreo e do emotivo – no consumo, deslocado, ou alienado, de sua
produção. É nessa medida, e somente nela, que se pode dizer de alienação.
As tabelas seguintes, com cruzamentos de renda familiar e escolaridade com
assistência de TV religiosa e de TV católica, mostram bem que aqueles preconceitos
não se sustentam – e principalmente apontam para um fato bastante importante de que:
i) há uma relação estreita entre o sagrado católico e o sagrado telerreligioso católico; ii)
há uma relação estreita entre o sagrado cotidiano e o sagrado católico consumido
primordialmente pelos mecanismos telemáticos – e tanto uma quanto a outra percepção
apontam para um fato ainda mais forte de que há um diálogo entre as culturas religiosas
e não religiosas que ultrapassa o sociológico e ruma para o transcendente. Por isso,
pode-se dizer de um pastoreio midiatizado da TV Canção Nova: aqui, chama-se a
atenção para o fato de que esse pastoreio está presente justamente na alienação
provocada pelo fetiche da mercadoria, que produz uma forma de organização social que
mobiliza apenas para o consumo desprovido de sentido que não seja aquele centrado em
si mesmo. Ou seja: ao reivindicar-se como valor de uso, a cultura do consumo faz senão
lançar os incautos – ricos e pobres, doutores e analfabetos, ainda que de forma não
monolítica. Eis o segredo do sagrado: a promessa é mantida tensa em razão da não
uniformidade com que se manifesta – na temporalidade destituída de valor ou cujo valor
é exaurido no ato mesmo de consumir. Senão, vejamos.
A tabela 14 mostra que, sim, há uma maior assistência de TV e programas
religiosos por esse medium entre os que têm menor renda familiar - e que de fato há um
declínio nessa assistência à medida que cresce a renda da família. Porém, é preciso
considerar que essa queda não é acentuada a ponto de justificar o argumento – e o
estereótipo aí inscrito – de que programas religiosos são afeitos aos pobres. Há uma
queda contínua desde os 75% dos que têm renda familiar até três salários mínimos e que
220
dizem assistir a programas de TV religiosos, para 73% dos que têm renda de três a cinco
salários mínimos e 65% dos que têm renda entre cinco e dez salários mínimos. Porém,
há uma estabilização nessa assistência entre os mais ricos, com uma leve recuperação:
65,5% dos que têm renda acima de dez salários mínimos dizem assistir a programas
religiosos de TV. O que significam esses números?
Tabela 14 - Cruzamento entre Renda familiar eAssistência a programas e canais de TV religiosos
5. Renda familiar
16. Vê programas/ Canais de TV
Religiosos?
Até 03
SM
De 03 a
05 SM
De 05 a
10 SM
Acima de
10 SM Total
Sim Freq
111 99 37 19 266
% da coluna
75,0% 73,3% 64,9% 65,5% 72,1%
% da tabela
30,1% 26,8% 10,0% 5,1% 72,1%
Não Freq
37 36 20 10 103
% da coluna
25,0% 26,7% 35,1% 34,5% 27,9%
% da tabela
10,0% 9,8% 5,4% 2,7% 27,9%
Total Freq
148 135 57 29 369
% da coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
% da tabela
40,1% 36,6% 15,4% 7,9% 100,0%
Além do inconteste fato de todas as faixas salariais, majoritariamente,
assistirem a programas religiosos de TV – o que já havia sido entrevisto em relação à
escolaridade -, pode haver nessa queda e nessa recuperação (ou estabilização) da
assistência fatores próprios à distinção de cada estrato social, ao habitus, como diria
Bourdieu (2004), segundo o qual seria fora de propósito pessoas com determinada
formação acadêmica e faixa de renda perderem tempo com telerreligião. Nesse caso,
haveria um repisar da ideologia que afirma ser a telerreligião uma coisa de pobres e
analfabetos – e, assim, em contrapartida, há a recusa do consumo da religião
midiatizada como demarcação de distinção social. Pode-se ainda, seguindo esse
raciocínio, inferir que há uma estabilização entre os de maior renda familiar justamente
por sua condição privilegiada: tendo as condições materiais para um consumo
quantitativo e qualitativamente maior em relação àquele da faixa salarial imediatamente
anterior, os mais ricos não têm razão para não assistir aos programas telerreligiosos. Há,
nesse raciocínio, um apontamento para a disputa e complementaridade dos sagrados:
enquanto a faixa salarial média procura um consumo cultural que a qualifique como tal
– e assim a telerreligião, sendo comumente atribuída aos mais pobres, deve ser
substituída por uma outra programação, mais adequada -, a faixa salarial superior, já
tendo resolvido a condição da distinção, associa sua religiosidade ao telerreligioso de
221
maneira mais tranquila.
O mesmo fenômeno pode ser visto no cruzamento entre renda, escolaridade
e assistência a canais católicos de TV, como se observa na tabelas 15 e 16. De fato, há
um declínio importante na assistência à TV Canção Nova da classe média baixa (ou
classe “c”, segundo a taxonomia da FGV, os que têm até cinco salários mínimos de
renda familiar) em relação à classe média alta (classe “b”) e alta (classe “a”): 90% da
primeira, a 68% da segunda. Não obstante haver, em números absolutos, um resultado
importante, que nos faz confirmar que há uma relação entre a fé católica e a telefé
católica representada não pela Rede Vida, mas pela TV Canção Nova –; não obstante
esse resultado, com efeito, o declínio na assistência chama a atenção. Para compreender
tal declínio, é preciso atentar para os números do estrato social com renda mais baixa,
que são semelhantes àqueles com renda familiar mais alta tanto no que diz respeito à
TV Canção Nova, quanto na Rede Vida. No primeiro caso, dos que têm menor ganho
financeiro, parece tratar-se daquilo que havia sido dito anteriormente: impossibilidade
de assistências por razões materiais - financeiras e, assim, técnicas. É isso o que mostra
a tabela 18, que realiza um cruzamento entre renda familiar e as razões escolhidas pelos
entrevistados que disseram não assistir à TV Canção Nova. Voltemos, no entanto, por
ora, à análise dos dados das tabelas 15 e 16. No caso da tabela 16, de cruzamento entre
assistência a TVs católicas e a renda familiar, a semelhança dos números entre os
estratos sociais extremos indica, por um lado, a impossibilidade técnica, no caso dos
mais pobres, e por outro, esforço por distinção social no consumo, no caso dos mais
ricos. Há mais do que isso, no entanto. Trata-se da tipologia – e da teologia – veiculada
pela TV Canção Nova. Notemos que nos estratos médios de faixa salarial, a assistência
à TV Canção Nova é grandiosa. Isso significa uma identificação real entre a forma
como o divino é narrado pelo canal católico e a forma como os entrevistados constroem
a sua esperança. De um lado, os mais pobres, impossibilitados tecnicamente de
assistirem a TV Canção Nova, preferem a Rede Vida e a TV Aparecida. No meio, os
estratos intermediários, que dispõem de aparato técnico para sintonizar a TV Canção
Nova e a preferem porque ela representa uma religião e sobretudo um sagrado que lhes
diz respeito no cotidiano. Por fim, o estrato social com maior renda familiar diz assistir
a TV Canção Nova tanto quanto aqueles com menor renda. E isso por uma razão: os
valores, a divindade narrada pela Canção Nova é mais tranquilamente reconhecível em
outro lugar - justamente aquele em que esse estrato se movimenta de maneira mais
confortável em relação aos demais estratos: o mundo do consumo.
222
Tabela 15 - Cruzamento entre Renda familiar e Canal católico de TV a que assiste
5. Renda familiar
Até 03
SM
De 03 a
05 SM
De 05 a
10 SM
Acima de
10 SM
Total
18. Canal Católico a que
assiste
Canção
Nova
Freq
73 87 31 13 204
% fila
35,8% 42,6% 15,2% 6,4% 100,0%
% coluna
67,6% 90,6% 86,1% 68,4% 78,8%
Rede Vida Freq
36 17 9 7 69
% fila
52,2% 24,6% 13,0% 10,1% 100,0%
% coluna
33,3% 17,7% 25,0% 36,8% 26,6%
TV
Aparecida
Freq
13 10 2 2 27
% fila
48,1% 37,0% 7,4% 7,4% 100,0%
% coluna
12,0% 10,4% 5,6% 10,5% 10,4%
TV Século
XXI
Freq
4 5 1 2 12
% fila
33,3% 41,7% 8,3% 16,7% 100,0%
% coluna
3,7% 5,2% 2,8% 10,5% 4,6%
Total Freq
108 96 36 19 259
% fila
41,7% 37,1% 13,9% 7,3% 100,0%
% coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Resultado semelhante pode ser obtido quando se analisa a tabela 16, de
cruzamento entre assistência a TVs católicas e escolaridade. Vê-se, no acumulado entre
faixas de escolaridade, que há um incremento na assistência da TV Canção Nova à
medida que aumentam os anos de estudos, o que indica não apenas que quanto mais
estudo, maior é a audiência em relação à telerreligião, em especial da TV Canção Nova;
mais do que isso, trata-se de um processo de identificação, por um lado, do que o
Umberto Eco (1986) chama de leitor-modelo, o receptor presumido de qualquer
produção simbólica, especialmente aquelas destinadas a um receptor desconhecido pelo
produtor, com esse tipo de público, a saber: o de classe média, identificado com valores
seculares tramados pela cultura hegemônica, a capitalística. Por outro lado, há a real
identificação dos que estão acima na pirâmide social com a TV Canção Nova,
justamente em razão do sagrado narrado por ela. Não há, nesse caso, conflito entre a
cultura que desejam para si e com a qual pactuam, e a tecida pela TV Canção Nova. Ao
contrário: os sagrados se tocam e se complementam, mais do que se refutam. De
qualquer forma, como veremos mais tarde, trata-se de um lugar seguro de a um só
tempo estar no mundo e transcendê-lo em busca de segurança que o mundo desejado
não dá. O problema é que essa transcendência acaba por se esgotar, também ela, nos
limites do mundo que se deseja transcender.
223
Tabela 16 - Cruzamento entre Escolaridade e Canal católico de TV a que assiste
4. Instrução
Sem
Escolaridade /
Primário
incompleto
Primário
Completo/
Secundário
incompleto
Secundário
completo
Superior
incompleto/
Completo Total
Freq
30 70 72 54 226
% fila
13,3% 31,0% 31,9% 23,9% 100,0%
Canção Nova
% coluna
63,8% 79,5% 84,7% 81,8% 79,0%
Freq
12 24 21 17 74
% fila
16,2% 32,4% 28,4% 23,0% 100,0%
Rede Vida
% coluna
25,5% 27,3% 24,7% 25,8% 25,9%
Freq
11 9 3 5 28
% fila
39,3% 32,1% 10,7% 17,9% 100,0%
TV Aparecida
% coluna
23,4% 10,2% 3,5% 7,6% 9,8%
Freq
1 5 3 5 14
% fila
7,1% 35,7% 21,4% 35,7% 100,0%
TV Século XXI
% coluna
2,1% 5,7% 3,5% 7,6% 4,9%
Freq
0 2 0 0 2
% fila
,0% 100,0% ,0% ,0% 100,0%
Outro
% coluna
,0% 2,3% ,0% ,0% ,7%
Freq
47 88 85 66 286
% fila
16,4% 30,8% 29,7% 23,1% 100,0%
18. Canal
Católico a
que assiste
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Apesar de uma queda da audiência verificada no estrato com maior
escolaridade, em relação aos estratos anteriores, percebe-se que a razão dessa queda,
sem importância para o fato de haver uma audiência alta da Canção Nova entre os mais
instruídos, se dá por aquela razão mesma da distinção de estrato social. Há uma
coincidência em relação à queda também em outros canais de TV católicos observados.
Como se vê nas tabelas 17 e 18, com o cruzamento entre renda familiar, i) se há desejo
de assistir à TV Canção Nova (tabela 17); e ii) a razão por que não se assiste à TV
Canção Nova (tabela 18), tanto aquele esforço de distinção, por parte dos que pertencem
ao estrato social com maior renda, quanto a impossibilidade técnica, em razão
justamente das dificuldades financeiras para a assistência à TV Canção Nova, são
perceptíveis. Se, entre os mais ricos e com mais anos de estudo, a TV Canção Nova é a
mais vista de forma inequívoca, há, entre os mais pobres e com menos anos de escola,
uma disputa entre a Canção Nova, a Rede Vida e a TV Aparecida. Poder-se-ia dizer que
estão aí os traços, ao contrário do que se imaginava – a TV Canção Nova é coisa de
pobre e analfabeto por seu caráter mais emotivo -, de que os mais pobres e com menor
tempo de estudo preferem o reconhecimento de sua religião tradicional, e isso seria
realizado de maneira formal pela Rede Vida, ligada à hierarquia da Igreja, e a TV
224
Aparecida, associada diretamente ao forte imaginário mariano, tão caro à religiosidade
popular no Brasil. Mas as razões são outras. Como se vê na tabela 19, 60% dos entre os
que têm maior renda e que não assistem à TV Canção Nova não o fazem por convicção
e disseram não ter desejo de assistir à sua programação. Já entre os de menor renda
familiar, ao contrário, quase 79% disseram estar dispostos a ser um telespectador.
Tabela 17 - Cruzamento entre Renda familiar e Desejo de assistir à TV Canção Nova
19. Gostaria de assistir à TV Canção
Nova?
Sim Não Total
Freq
55 15 70
% fila
78,6% 21,4% 100,0%
Até 03
SM
% coluna
51,4% 28,8% 44,0%
Freq
36 14 50
% fila
72,0% 28,0% 100,0%
De 03 a
05 SM
% coluna
33,6% 26,9% 31,4%
Freq
10 14 24
% fila
41,7% 58,3% 100,0%
De 05 a
10 SM
% coluna
9,3% 26,9% 15,1%
Freq
6 9 15
% fila
40,0% 60,0% 100,0%
Acima de
10 SM
% coluna
5,6% 17,3% 9,4%
Freq
107 52 159
% fila
67,3% 32,7% 100,0%
5. Renda
familiar
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Assim sendo, e considerando que a TV Canção Nova é assistida também
pelo estrato social com maior renda, nos resta pensar que se trata de distinção social.
Com efeito, quanto maior a renda familiar, maior é a convicção dos que não são
espectadores da TV Canção Nova – o que denota justamente esse esforço de distinção,
corroborando o discurso corrente de que a telerreligião, em geral, e a Canção Nova,
especialmente, por diversos motivos, não devem pertencer à cesta de consumo de
estratos sociais esclarecidos e que dispõem de condições para outras formas de
consumo identitário. Por outro lado, à medida que nos deslocamos para estratos com
menor faixa salarial, vai crescendo o desejo de assistir à TV Canção Nova. E por que os
mais pobres assistem a outros canais católicos? Porque – e é importante dizer uma vez
mais: a TV Canção Nova é massivamente assistida por católicos de todas os estratos
sociais -; porque a Rede Vida e a TV Aparecida, por sua vinculação com o maquinário
tradicional católico, têm maior facilidade de montar e manter repetidores de sinais nas
cidades, o que desobriga a utilização de antenas de satélite ou assinatura de TV a cabo –
muitas vezes fora do alcance dos mais pobres -, ao passo que a Canção Nova depende
225
de seus próprios membros ou simpatizantes para que a estrutura de sinal aberto em
antenas comuns seja viável. E, mais, como veremos, não há uma disputa declarada entre
as paróquias e as TVs toleradas pelas igrejas locais, como há entre elas e a Canção
Nova, em busca da contribuição – financeira - dos fiéis.
É isso o que deixa entrever a tabela 18: entre os mais pobres, na somatória,
mais de 70% das respostas que apontam as razões por que, mesmo havendo desejo de
assistir à Canção Nova, ela não é assistida, dizem respeito às limitações técnicas: “falta
oportunidade” pode indicar, além da ausência de tempo para assistir a ela, também
ausência de sinal; “assiste a outros programas/TVs” pode indicar, além do efetivo gosto
por concorrentes, que não há o sinal da Canção Nova como há de outros canais – e que
por isso, mesmo havendo o desejo de ser um espectador, não há condições de
assistência; e, por fim, “não há sinal da TV”. Já entre os mais ricos perceba-se
claramente a preponderância para alegação de que não se assiste em “outros motivos”,
além das limitações técnicas. Isso indica, com efeito, que, mesmo havendo um desejo
expresso, a distinção social faz com que não haja assistência.
Tabela 18 - Cruzamento entre Renda familiar e Razão por que não se assiste à TV Canção Nova
5. Renda familiar
Até 03 SM
De 03 a 05
SM
De 05 a 10
SM
Acima de
10 SM Total
Freq.
21 14 7 3 45
% fila
46,7% 31,1% 15,6% 6,7% 100,0%
Falta oportunidade
% coluna
32,3% 29,2% 30,4% 20,0% 29,8%
Freq.
13 12 3 4 32
% fila
40,6% 37,5% 9,4% 12,5% 100,0%
Assiste a outros programas/
TVs
% coluna
20,0% 25,0% 13,0% 26,7% 21,2%
Freq.
15 10 12 6 43
% fila
34,9% 23,3% 27,9% 14,0% 100,0%
Outro motivo
% coluna
23,1% 20,8% 52,2% 40,0% 28,5%
Freq.
16 12 1 2 31
% fila
51,6% 38,7% 3,2% 6,5% 100,0%
Não possui TV/
Não possui
parabólica/
Não há sinal
da TV
% coluna
24,6% 25,0% 4,3% 13,3% 20,5%
Freq.
65
48
23
15
151
% fila
43,0% 31,8% 15,2% 9,9% 100,0%
20. Por que
não assiste à
Canção
Nova?
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Desfeito o preconceito sobre a relação entre consumo de telerreligião e a
pobreza e a ignorância, e evidenciada que a TV Canção Nova, além de reconhecida
pelos católicos como a sua TV, narra um divino com que se pactua e que se deseja,
justamente em razão do próprio consumo, o que pode ser observado na relação entre as
226
camadas sociais mais instruídas e ricas e a adesão à Canção Nova – desfeito o juízo
equivocado, é chegada a hora de buscar os elementos que mostrem o que foi anunciado
como hipótese do trabalho e desenvolvido teoricamente no primeiro capítulo desta tese:
a telerreligião, menos do que tomar o lugar da religião tradicional, lhe serve como um
complemento; aquela, longe de ser uma concorrente desta, em verdade realiza o mesmo
pastoreio vestida de uma religiosidade mais apropriada ao sagrado contemporâneo.
Antes de adentrarmos esse terreno, porém, é necessário que se compreenda,
segundo as variáveis de escolaridade e renda familiar, a relação existente com a Igreja
paroquial – e buscar, nesse elemento, evidências de um possível declínio da Igreja
tradicional.
O primeiro dos dados que devem ser revelados diz respeito ao cruzamento
entre a frequência de comparecimento às missas e a participação em trabalhos ou
atividades desenvolvidos pela ou na Igreja, conforme a tabela 19.
Tabela 19 - Cruzamento entre Escolaridade e Participação em atividades da Igreja
14. Participa das atividades da igreja?
Não participa
Já participou,
mas não
participa mais
Participa
regularmente
Participa
eventualm
ente Total
Freq
17 5 31 6 59
% fila
28,8% 8,5% 52,5% 10,2% 100,0%
Todos os dias/Três ou
mais dias por semana
% coluna
9,9% 7,9% 21,4% 22,2% 14,5%
Freq
119 47 109 20 295
% fila
40,3% 15,9% 36,9% 6,8% 100,0%
Uma vez por semana
% coluna
69,6% 74,6% 75,2% 74,1% 72,7%
Freq
22 9 5 1 37
% fila
59,5% 24,3% 13,5% 2,7% 100,0%
Eventualmente
% coluna
12,9% 14,3% 3,4% 3,7% 9,1%
Freq
13 2 0 0 15
% fila
86,7% 13,3% ,0% ,0% 100,0%
Raramente
% coluna
7,6% 3,2% ,0% ,0% 3,7%
Freq
171 63 145 27 406
% fila
42,1% 15,5% 35,7% 6,7% 100,0%
13.
Frequência
de
missa/culto
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
Os dados são reveladores – e bastante tranquilizadores para os temerosos
sobre o presente e o futuro da Igreja Católica. A primeira observação: embora haja um
227
número maior de não participantes – entre os quais, aqueles que não participam e dão a
entender que não têm pretensão de participar de atividades da Igreja; os que participam
eventualmente, como de alguma data ou ocasião especial; e aqueles que já participaram,
mas não participam mais de atividades da Igreja -, é importante notar, de forma
otimista, é verdade, que quase 36% dos entrevistados participam regularmente de
atividades. Se juntarmos a eles a possibilidade de filhos pródigos – os que já
participaram e não participam mais, temos mais da metade dos católicos praticantes que
vivenciam, vivenciaram e poderão vivenciar novamente as atividades promovidas.
Outro dado importante – e, aparentemente, óbvio - diz respeito à articulação entre a
frequência às missas e participação em atividades da Igreja. Quem mais participa das
atividades eclesiásticas ou eclesiais é também quem mais frequenta missas. A maioria
dos católicos praticantes, que vão à missa uma vez por semana, numa manutenção de
sua fé, porém, não participa das atividades da Igreja. Isso, é claro, denota aquela prática
de uma fé formalizada, necessária para atravessar tempos difíceis e vazios de sentido –
ou cujo sentido é dado por um sagrado fugaz demais para ser apreendido como tal. Mas,
de qualquer maneira, também segundo aquele espírito otimista, é possível visualizar um
quadro positivo para essa relação: há, a despeito de uma maioria que não participa
(65%), um equilíbrio entre os que declararam não participar (40%) simplesmente e os
que participam (37%). O problema é que o otimismo não esconde uma verdade
dramática de que estamos tratando de católicos praticantes nesta pesquisa. Nesse caso,
dos 20% de católicos autodeclarados no Brasil, mais de 70% apenas mantêm sua fé viva
– e, insistimos, o fazem para eventualidades cotidianas. Quase 60% não participam da
vida da Igreja tal como ela exige, com seu sentido de ecclesia, de comunidade. Ventos
frios chegam da cumeeira do mundo.
Ainda assim e não obstante, os resultados mostram que a Igreja está viva –
mas esta Igreja, a Igreja edificada sobre valores medievais, justamente porque é um
medium de outros tempos, essa sim corre perigo. Não de desaparecer enquanto um
edifício; não de ver findar seus cultos e rituais, tampouco de ver ruir, por inanição, suas
paredes e sua moralidade. Os media que se sobrepõem e se ultrapassam não fazem
desaparecer um ao outro. Nesse caso, a telerreligião, em diálogo com o sagrado do
consumo, veremos, terá no edifício da Igreja mais do que uma curiosidade, uma peça de
museu, peça única em ruína de um seu antepassado glorioso. A Igreja medieval é o
templo de segurança para a telerreligião, sustentada no sagrado do consumo. Por isso, a
participação em atividades da Igreja é absorvida pelas atividades comezinhas do
228
cotidiano sacralizado do consumo; os rituais, automatizados, ali permanecem, mas
capturados por aquele mesmo sagrado – e, ainda assim, ali está ela e ali ela
permanecerá, tal como a vida eclesial. A questão é saber o significa essa vida – como é
narrado o sagrado católico.
A resposta a tais questões está nos resultados das tabelas que se seguem. A
relação de proporcionalidade entre os dois media – religião na Igreja e telerreligião –
realmente chama atenção. Com efeito, os números mostram que quanto mais frequente e
efetiva é a relação com a Igreja – tanto na assistência às missas, quanto em participação
em atividades eclesiásticas e eclesiais, que, como vimos, já apresentam uma relação de
reciprocidade -, tanto maior é assistência a programas de TV religiosos. Esse resultado,
por si só, mostra que não há, a rigor, ao menos aos olhos dos fiéis, competição entre as
duas máquinas; ao contrário há, senão semelhança nas posições (os fiéis não as
entendem como uma e a mesma máquina), certamente eles as compreendem como
complementares – e de qualquer maneira, não enxergam concorrência entre elas. A
tabela 20, que faz o cruzamento entre a frequência em missas e a assistência a
programas de TV religiosos, é nítida quanto a esse aspecto. Tanto que há uma
coincidência de resultados entre os que dizem ir a missas uma vez por semana e aqueles
que dizem assistir à programação religiosa de TV: 72% dos fiéis vão à missa uma vez
por semana e igual número diz assistir a programas religiosos de TV. Não se trata de um
resultado aleatório: trata-se de sobreposição de formas de vida e sistemas de crença.
Tabela 20 - Cruzamento Frequência em missas e Assistência a programas religiosos de TV
16. Vê programas/Canais de TV
Religiosos?
Sim Não Total
Freq
51 8 59
% fila
86,4% 13,6% 100,0%
Todos os dias/Três ou
mais dias por semana
% coluna
17,4% 7,1% 14,5%
Freq
213 82 295
% fila
72,2% 27,8% 100,0%
Uma vez por semana
% coluna
72,7% 72,6% 72,7%
Freq
21 16 37
% fila
56,8% 43,2% 100,0%
Eventualmente
% coluna
7,2% 14,2% 9,1%
Freq
8 7 15
% fila
53,3% 46,7% 100,0%
Raramente
% coluna
2,7% 6,2% 3,7%
Freq
293 113 406
% fila
72,2% 27,8% 100,0%
13.
Frequência de
missa/culto
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
229
O observado na tabela anterior é, de maneira diferente, reforçado pela tabela
21, que faz o cruzamento entre participação em atividades da Igreja e audiência a
programas religiosos de TV. Nesse caso, como no anterior, há uma nítida divisão entre
os que participam e os que não participam em relação a uma maior assistência de TV
religiosa. Dos que não participam de atividades, 63% disseram assistir a TV religiosa,
número muito próximo daqueles que já participaram e não mais participam de
atividades ligadas à Igreja. Do outro lado, 85% dos que participam regularmente e
outros 85% dos que têm participação eventual disseram assistir à programação religiosa
de TV. Os números são reveladores, mas ainda assim podem gerar controvérsias. O fato
de não participarem de atividades ou de assistirem a missas com menor frequência
poderia indicar, ao contrário do que as pesquisas trouxeram, que haveria maior
audiência de telerreligião. Esse argumento vale tanto para a percepção da própria Igreja
ao defender a apropriação de meios de comunicação de massa (fiéis que têm dificuldade
em participar in loco da eucaristia poderiam criar uma comunidade virtual e, a partir
dela, partilhar a palavra católica), quanto para indicar uma possível contradição de
posições aqui defendidas (deveria haver um acréscimo na assistência à telerreligião,
pois se trata de católicos praticantes que fazem dialogar os sagrados de sua religião e do
cotidiano justamente pela religião telemática). Mas não há razões para aceitar tais
argumentos – e os próprios números indicam isso. Pode-se dizer que a simples relação
frágil dos praticantes católicos – aqueles que nem participam da ecclesia, nem dela
partilham virtualmente – é razão suficiente para a intensificação de programas
telerreligiosos e canais católicos de TV. Nesse caso – também -, graças à Canção Nova.
E há coerência: os de frágil relação na comunidade Igreja, que também não ouvem a
palavra à distância, pela TV, têm outro sistema de crença – mas estão mais fragilizados
em relação ao vazio deixado por ele, tal sistema de crença. De outro lado, os que
mantêm uma relação estreita com a religião e também com a telerreligião mostram a um
só tempo a intrínseca relação existente entre os dois media e a organização de dois
sagrados em um só: a religiosidade de um e outro se diferencia e, no entanto, a religião
é a mesma. Há então, por parte dos realmente praticantes – de religião e telerreligião –
uma espécie de pragmatismo religioso, algo como uma realpolitik da fé: o religioso está
à mão em um e outro medium, mas o sagrado que faz tremer e é cultuado é outro –
ambos tocam o corpo e dele desdenham; cultuam só o espírito, mas o fazem atuar no
corpo, feito parque do aqui e do agora.
230
Tabela 21 - Cruzamento Participação em atividades da Igreja e Assistência a programas religiosos
de TV
16. Vê programas/Canais de TV
Religiosos?
Sim Não Total
Freq.
108 63 171
% fila
63,2% 36,8% 100,0%
Não participa
% coluna
36,9% 55,8% 42,1%
Freq.
39 24 63
% de la fila
61,9% 38,1% 100,0%
Já participou, mas não
participa mais
% coluna
13,3% 21,2% 15,5%
Freq.
123 22 145
% de la fila
84,8% 15,2% 100,0%
Participa
regularmente
% coluna
42,0% 19,5% 35,7%
Freq.
23 4 27
% de la fila
85,2% 14,8% 100,0%
Participa
eventualmente
% coluna
7,8% 3,5% 6,7%
Freq.
293 113 406
% de la fila
72,2% 27,8% 100,0%
14. Participa
das
atividades da
igreja?
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Pode-se obstar, contra essa posição, que a relação entre religião e
telerreligião é não apenas necessária – é natural. Que, embora sejam media diferentes,
ambos pertencem à mesma tarefa evangelizadora e de propaganda de uma mesma
divindade. Isso seria verdade se, como vimos nos capítulos anteriores, realmente não
houvesse mudança de conteúdo, com a forma de comunicá-la; se não houvesse mudança
de Deus com a modificação da experiência de tempo-espaço provocada pelos novos
media; e se, enfim, no caso específico da TV Canção Nova, realmente levássemos a
sério que o diálogo com a cultura do capital – ou do diabólico, se assim preferimos – é
uma contingência para fazer chegar a palavra de Deus aos ouvidos e olhos acostumados
com o mundo sacralizado pelo capitalismo; se, como vimos, não houvesse, no desejo de
pastoreio da TV Canção Nova, mais do que a assunção de um espírito que nos supera e
nos ordena. Porém, e as pesquisas quantitativas e qualitativas mostraram-no, esse
espírito está não apenas contaminado – está circunscrito, irremediavelmente circunscrito
pela cultura do consumo apartado de sua produção. O resultado disso, como veremos
adiante, é justamente a espetacularização do religioso. Ou seja: em vez de existir uma
espiritualização do mundo, como desejo expresso do catolicismo, há, ao contrário, um
cultivo do transcendental recusado. Em outras palavras, religião e telerreligião estão
umbilicalmente unidos não por semearem o mesmo sentido apenas – mas porque essa
semente é fruto de uma árvore, senão estranha, certamente recusada por ambos, religião
e telerreligião católicos.
231
É isso o que pode ser, uma vez mais, reforçado pelas tabelas 22 e 23: a
primeira, com o cruzamento entre frequência às missas e assistência a canais católicos; a
segunda, dividida em duas, com o cruzamento entre o canal católico assistido e a
participação em atividades da Igreja – e os números guardam conclusões ainda mais
importantes.
Tabela 22 - Cruzamento Frequência em missas e Assistência a Canal Católico de TV
18. Canal Católico a que assiste
TV Canção
Nova Outros Total
Freq.
46 13 50
% fila
92,0% 26,0% 100,0%
Todos os dias/Três ou
mais dias por semana
% coluna
20,3% 11,7% 17,4%
Freq.
165 79 208
% fila
79,3% 38,0% 100,0%
Uma vez por semana
% coluna
72,7% 71,2% 72,5%
Freq.
14 12 21
% fila
66,7% 57,1% 100,0%
Eventualmente
% coluna
6,2% 10,8% 7,3%
Freq.
2 7 8
% fila
25,0% 87,5% 100,0%
Raramente
% coluna
,9% 6,3% 2,8%
Freq.
227 111 287
% fila
79,1% 38,7% 100,0%
13.
Frequência de
missa/culto
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
A tabela 22, acima, mostra que os fiéis fervorosos, aqueles que participam
da eucaristia mais de uma vez por semana, são também os que mais veem a TV Canção
Nova: impressionantes 92% disseram assistir a ela, enquanto 26% disseram assistir,
também ou exclusivamente, a outros canais católicos de TV. À medida que se torna
menor o envolvimento com a máquina eclesiástica e seus rituais, também diminui a
assistência à TV Canção Nova, até chegarmos aos que dizem assistir “raramente” às
missas. Aqui, há uma inversão em relação ao que foi visto no público mais fervoroso:
25% disseram assistir à Canção Nova e 75% a outros canais católicos. Da mesma
forma, no cruzamento entre participação em atividades da Igreja e audiência a TVs
católicas, vê-se que a participação implica uma maior assistência da TV Canção Nova
(tabelas 23 e 24). Se atentarmos para, exclusivamente, o critério de participação ou não
participação, esses números ficam mais nítidos: entre os que não participam das
atividades da Igreja, há 75% de indicações de audiência à TV Canção Nova e 43% de
outras TVs católicas; entre os que participam de atividades da Igreja, 83% indicaram a
232
Canção Nova e 34% citaram outras TV católicas como fonte de seu consumo
telerreligioso.
Tabela 23 - Cruzamento Participação de atividades da Igreja e Assistência a Canal Católico de TV
– Agrupamento
Canal Católico a que assiste
Canção Nova Outros Total
Freq.
107 62 143
% fila
74,8% 43,4% 100,0%
Não
participa
% coluna
47,1% 55,9% 49,8%
Freq.
120 49 144
% fila
83,3% 34,0% 100,0%
Participa
% coluna
52,9% 44,1% 50,2%
Freq.
227 111 287
% fila
79,1% 38,7% 100,0%
14. Participa
das atividades
da igreja?
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
Tabela 24 - Cruzamento Participação de atividades da Igreja e Assistência a Canal Católico de TV
18. Canal Católico a que assiste
TV Canção
Nova
Outros Total
Freq.
73 47 104
% fila
70,2% 45,2% 100,0%
Não participa
% coluna
32,2% 42,3% 36,2%
Freq.
34 15 39
% fila
87,2% 38,5% 100,0%
Já participou, mas não
participa mais
% coluna
15,0% 13,5% 13,6%
Freq.
103 42 122
% fila
84,4% 34,4% 100,0%
Participa
regularmente
% coluna
45,4% 37,8% 42,5%
Freq.
17 7 22
% fila
77,3% 31,8% 100,0%
Participa
eventualmente
% coluna
7,5% 6,3% 7,7%
Freq.
227 111 287
% fila
79,1% 38,7% 100,0%
14. Participa
das
atividades da
igreja?
Total
% coluna
100,0% 100,0% 100,0%
A TV Canção Nova – a despeito de dificuldades técnicas, que aos poucos
vão se desfazendo justamente em razão de sua hegemonia entre os católicos – é,
definitivamente, o canal dos católicos. Seu consumo significa ser mais católico, de
acordo as conclusões a que se podem chegar da pesquisa quantitativa. E, como tal, é
impossível não se observar que o esforço de evangelização pela profissionalização – de
equipamentos de TV e adequação de técnicas de comunicação – exige um diálogo com
o mundo a que se deseja ser um contraponto. Mais ainda: é inevitável pensar nos limites
éticos que a programação da TV Canção Nova, como vimos, deve transpor e, assim o
233
fazendo, não faz senão compartilhar e reforçar um outro organizador universal, um
outro semióforo, um outro elemento de transcendência, um outro sagrado. De qualquer
maneira, eis o que se nos mostram, à sombra, os fiéis católicos praticantes sobre si
mesmos. E trata-se de telefiéis que consomem, em sua maioria, a ética construída pela
TV Canção Nova. Como nos mostra a tabela 25, os fiéis católicos que assistem à
Canção Nova dizem dela participar exclusivamente como telespectadores: 60% dos
católicos que assistem à TV Canção Nova disseram assistir exclusivamente, sem
qualquer outra atividade; 26% disseram que participam adquirindo os produtos
oferecidos durante a programação televisiva; 19% dizem que participam colaborando
financeiramente e 20% dizem que assistir apenas não é suficiente: eles procuram trazer
para o seu cotidiano os ensinamentos propagados pela TV Canção Nova.
Tabela 25 - Participação na TV Canção Nova
%
Assiste
60,0%
Adquire produtos
oferecidos
26,2%
Colabora
financeiramente
19,1%
Faz em casa ou
comunidade o que é
pedido
20,0%
Outros
12,0%
31. Como
participa da
Canção Nova
Total
100,0%
O que significa tamanha disparidade? Mesmo que não ocorresse de fato,
seria normal que os fiéis, abordados nas portas das paróquias, optassem pela resposta
ética: assistimos e colocamos em prática o que aprendemos. O resultado apurado, nesse
caso, seria uma demonstração cabal de que há uma frieza, para dizer o mínimo, em
relação à vivência do religioso? E tal frieza, com o consumo do telerreligião, não seria a
demonstração de que a recepção se dá de forma passiva? Os dados não nos permitem
dizer isso. Ao contrário, parece indicar muito mais que o propósito da religiosidade e da
adesão à religião acontece de forma imediata no consumo do medium. Mesmo que haja
mediação – no caso, pela compra de produtos ou pela colaboração financeira -, trata-se
de uma experiência viva, a do consumo, a da mediação pelas coisas, cujo valor é
justamente o transcendental, a palavra de Deus etc. Eis aí a segurança desejada para o
enfrentamento das intempéries cotidianas, marcadas por um mágico aspirado, mas não
controlado ou controlável. Ao apontar ora para o simples consumo da telerreligião como
234
suficiente para garantir sua participação não apenas na Canção Nova, mas na própria
comunidade espiritual proposta, ora para outras formas de consumo, digamos, mais
participativos, os entrevistados indicam se tratar de um fenômeno que efetivamente
transborda o sistema de crenças limitado ao religioso – eis aí a mobilização de uma
outra crença: justamente aquela que é organizada pelo consumo capitalístico, com o
qual se vive e contra o qual há a promessa do telerreligioso de não haver ruptura e ao
mesmo tempo haver segurança. Isso não é pouco.
Não se trata, todavia, é preciso dizer uma vez mais, de aceitação de uma
comunidade virtual exclusiva. Se ela existe; se o telerreligioso funciona como uma
barreira importante contra a fragmentação dos humanos na vida ordinária, organizada
pelo consumo, e re-lança o humano no universal, como ente genérico; se é criada, com
efeito, uma comunidade virtual, isso não significa que se abra mão da comunidade real
cotidiana, da coletividade concreta, à mão – seja ela organizada na paróquia
exclusivamente, inclusive como simples participação nos rituais da Igreja, sem outra
atividade, como vimos; seja como um desejo, no caso da Canção Nova, de uma
realização: o turismo religioso, feito viagem espiritual, à sede material de onde provêm
aquelas imagens que geram segurança existencial e cotidiana. O problema é justamente
esse – e as respostas agrupadas apontam nesse sentido: “assistir”, “comprar” ou
“contribuir” financeiramente, embora sejam de escalas diferentes, pertencem a um
mesmo fenômeno. Trata-se de formas hierarquizadas de participação. Se se compreende
o fenômeno no interior do transbordamento para o sagrado cotidiano, por um lado, e,
por outro, como essa participação dá garantias a um só tempo de vida cotidiana normal
e segura contra tal normalidade ameaçadora, percebe-se que o telerreligioso e em
especial a TV Canção Nova, ao realizar uma operação assentada no consumo apartado
de sua produção – e tornando-a, a produção, como o consumo, mágico, na medida em
que o discurso aponta para o além, para o transcendental, e por isso justifica a magia
que gera curiosidade -; se isso é construído, não há como evitar que o religioso ali
narrado, que o divino ali contado, que o sagrado ali construído não sejam organizados
por esse outro sagrado: justamente o capitalístico.
As análises feitas acima disseram respeito apenas aos entrevistados que
afirmaram assistir à TV Canção Nova. Uma série de questões, ao final do questionário
quantitativo, foi respondida por todos os entrevistados, ou seja, os que assistem ou não à
TV Canção Nova, inclusive aqueles 27% que disseram não assistir a programas
religiosos de TV. São questões que pretenderam dar respostas a problemas relativos ao
235
telerreligioso, ao mercado religioso e àqueles acerca do diálogo entre a cultura
hegemônica e o campo religioso. Os resultados apurados na pesquisa só fazem reforçar
o que foi observado até agora – e isso sem a necessidade de filtragem das respostas
entre os que assistem ou não a programas religiosos de TV, por sexo, faixa etária,
instrução ou renda familiar. Evidentemente, tais filtragens dariam elementos de análise
distintos do que os que foram empreendidos – mas apenas indicariam caminhos vicinais
da mesma grande rodovia por que passam as análises aqui realizadas e que leva à vila
mundana do sagrado capitalístico entranhado no sagrado do religioso.
A tabela 26, por exemplo, apresenta a opinião dos entrevistados sobre quem
deveria sustentar a TV Canção Nova, reafirma um sentimento de pertença e de
apropriação pelo consumo, que talvez esteja faltando sobremaneira nas paróquias.
Primeiro, deve-se notar que, se os que não assistem a programas e canais religiosos de
TV são 27% dos entrevistados, aqui os que disseram não se interessar ou não se
preocupar com o assunto são 11%, chegando a 14% se a tais respostas forem juntadas a
daqueles que preferiram não responder.
Tabela 26 - Por quem a TV Canção Nova deve ser sustentada
Freq. %
Paróquias/Bispos/Outro
31 7,6%
Fiéis
193 47,5%
Igreja Católica/Vaticano
98 24,1%
A própria Canção Nova
27 6,7%
Não me preocupo/Não me
interesso
44 10,8%
Não respondeu/Não sabe
13 3,2%
32. Por quem a TV
CN deveria ser
sustentada?
Total
406 100,0%
Os dados apresentados na tabela acima indicam que, para a maioria dos
entrevistados, em números relativos, a TV Canção Nova deve ser, como é, sustentada
pelos fiéis, que enviam recursos financeiros e adquirem os produtos da enorme e variada
produção que a comunidade religiosa possui: 47,5%. O resultado que compete com esse
diz respeito à identificação feita pelos católicos entre a Igreja e a Canção Nova: 32%
das respostas indicaram a TV Canção Nova deveria ser sustentada pela Igreja – seja
pelo “Vaticano”, sejam pelas paróquias e/ou dioceses. Isso revela duas importantes
relações: os fiéis desejam estreitar os laços da sua ecclesia: Canção Nova e paróquias
não podem nem devem ser distantes. Por outro lado, a um só tempo, há uma
reivindicação de que a Igreja – tele-igreja incluída – deva ser dos fiéis. Aqui, é
236
necessário compreender que os católicos estão dispostos a manter a Igreja, desde que
haja uma renovação do discurso religioso, já identificado na TV Canção Nova. Em
outras palavras: trata-se de exigir maior participação dos fiéis, maior horizontalidade
nas relações, como já acontece na audiência à TV Canção Nova – o que implica uma
reestruturação, uma adaptação do sagrado ao contemporâneo. Ou ao sagrado
contemporâneo. Assim compreendido, é possível inferir que quase 80% dos
entrevistados dizem que a TV Canção Nova deve ser sustentada pelos fiéis.
De qualquer maneira, e nos atendo apenas ao número expresso dos que
disseram que ela, a TV Canção Nova, deve ser sustentada pelos fiéis, como realmente
acontece, é preciso perguntar: trata-se então de uma aceitação conservadora de algo que
já funciona dessa forma? Não. Parece muito mais aquele fenômeno descrito atrás: sendo
os fiéis os responsáveis pelo sustento de algo tão grandioso e importante – não apenas
aos olhos dos próprios fiéis -, existe, além do efetivo sentimento de pertença, que joga o
ser humano singular, o indivíduo, na universalidade, pela dupla operação de consumo e
da partilha espiritual; há, também, por essa mesma operação, um sentimento de potência
despertado nos fiéis. É como se dissessem: aquela obra é minha também. Eis aí, uma
vez mais, a inexorável relação entre os sagrados: trata-se de um sentimento de pertença
e de participação embalado, sim, pelo divino da TV Canção Nova, mas entranhado pelo
sagrado presente no consumo, um sagrado sedutor e temerário. De qualquer maneira,
resistir aos temores e perigos de tal sagrado implica não recusá-lo – e para isso a TV
Canção Nova existe e, por isso, se aceita a ideia de doar o que não se tem ou não se
pode para a garantia da salvação do indivíduo singular e do humano genérico.
Como explicar, todavia, uma análise anterior, que mostrou a pequena adesão
dos fiéis como doadores ou compradores, as formas de sustento indicadas pela Canção
Nova, e essa, em que os católicos indicam, majoritariamente, que a TV Canção Nova,
tão importante em suas vidas, deve ser sustentada pelos fiéis? Nesse caso, os resultados
agora apurados não apenas entrariam em choque com aqueles, como reforçariam uma
posição de passividade do consumidor e de participação em uma comunidade virtual? A
resposta para essa armadilha pode ser visualizada nas tabelas seguintes. As tabelas 27 e
28 mostram que não há passividade na recepção, no consumo de telerreligião. O fato de
haver uma aparente contradição entre os resultados, explorada atrás, só mostra que os
católicos praticantes, mesmo não entendendo o consumo puro simples da programação
telerreligiosa como um consumo; mesmo, sequer, aceitando a hipótese, como veremos
adiante, de que o consumo propriamente dito de produtos ou a contribuição financeira
237
tenham relação com um outro sagrado além daquele que dizem ser o sagrado - isto é:
sequer admitem que haja um outro sagrado, um outro elemento transcendental além
daquele que cultivam, e menos ainda que o seu sagrado é feito de outro, que julgam
temerário e contra o qual colocam o seu sagrado religioso -; por tudo isso, os católicos
entendem que estão efetivamente apenas ritualizando à distância. Em outras palavras: a
assistência à programação da Canção Nova, como a TV preferencial, ou qualquer outra
telerreligião -, tal assistência é apenas uma extensão da religião que eles alimentam e
sempre alimentaram na mídia presencial do púlpito da Igreja.
Tabela 27 - Opinião sobre programação e canais de TV religiosos
Freq %
Importante
363 89,4%
Prejudicial
9 2,2%
Não assisto
26 6,4%
Não respondeu/Não sabe 8 2,0%
34. Opinião sobre
programação e canais
de TV religiosos
Total
406 100,0%
A tabela 27, acima, evidencia o óbvio: quase 90% dos entrevistados
consideram ser a telerreligião importante. As razões por que acham, no entanto, não são
tão nítidas ao primeiro olhar, como mostra a tabela 28, a seguir. Pelas respostas, é
possível agrupar dois blocos de resultados: o primeiro, que reúne a maioria das
respostas (51%), diz respeito às condições imateriais, se assim se pode dizer: a religião
televisionada é importante em razão do reforço ou reafirmação da fé. No segundo caso,
com 33% das respostas, a religião televisionada é importante porque substitui a Igreja
de concreto. Nos dois casos, há não apenas uma associação entre a religião da televisão
e aquela do altar – há uma noção de complementaridade entre as duas formas de
religião. Isso implica uma admissão de que se trata de religiosidades distintas, mas há
uma mesma religião. Em outras palavras, e reivindicando Gramsci (1970), são formas
diferentes, mas o mesmo conteúdo: a ideologia é modificada em razão de sua forma de
transmissão, mas, ao fim e ao cabo, as forças materiais mobilizadas permanecem em seu
jogo de poder. É estranho pensar dessa forma, uma vez que há uma implicação entre
forma e conteúdo: se uma é modificada, o outro necessariamente o será. No entanto, e a
sensação dos católicos praticantes em relação ao telerreligioso indica isso, o poder
transmitido nos dois media e a concepção de mundo organizado pela apropriação do
maquinário de produção, transmissão e reprodução simbólica permanece inalterado.
238
Tabela 28 - Opinião sobre programação e canais de TV religiosos
Freq. %
Outros
35 8,6%
Não assisto a programas
religiosos
26 6,4%
Acho importante porque
aumenta a fé
78 19,2%
Acho importante para a
evangelização
128 31,5%
Acho importante para quem
não pode ir à Igreja
77 19,0%
Acho importante porque ajuda
as pessoas
54 13,3%
Não respondeu/Não sabe
8 2,0%
34. Opinião
sobre
programação e
canais de TV
religiosos
Total
406 100,0%
Se há, como indicado, uma modificação na religiosidade, a religião
permanece inalterada. Isso implica que a narrativa sobre Deus se modificou; ela, a
narrativa, e o próprio divino narrado, estão circunscritos pelo sagrado capitalístico. Isso
poderia indicar uma contradição dos termos aqui reivindicados: se há, como dito, uma
modificação do divino, seria forçoso que houvesse uma modificação do religioso. O que
se verificou, todavia, é que, tendo havido, com efeito, alteração no sagrado, isso se deu
em função da religiosidade, da experiência da religião, da forma como a religião é
experimentada e ganha sentido na prática social. A apropriação do poder, da potência
advinda dessa nova forma de narrar o divino, de viver o sagrado, não foi alterado. Aqui,
como veremos, a horizontalidade se dá apenas no consumo – eis a sua potência, e,
todavia, alienada de sua potência, uma vez que sagrado e religião continuam sendo
consumidos sem que haja a apropriação de sua produção.
As tabelas 29 e 30, uma vez mais, reforçam os resultados e as análises
realizadas. Com efeito, aos olhos dos católicos praticantes, embora haja, com clareza,
distinção entre o maquinário de transmissão simbólica, há uma evidente relação de
proximidade entre eles. Com relação especificamente à TV Canção Nova, quando
perguntados se a Igreja Católica apoia a TV carismática, mais de 80% disseram que sim,
há esse apoio, enquanto 12% disseram que não há o apoio. Destes, apenas 1,5%
responderam que o apoio não existe e nem deveria existir. Apesar de ser estaticamente
desprezível, preferimos trazer o número para indicar o quanto há essa associação entre a
TV Canção Nova e o seio da Igreja. Note-se que são mais de 90% dos entrevistados que
enxergam a relação entre os dois maquinários, e mais metade afirma que, mesmo sendo
239
importante para a Igreja – perceba-se: há uma indicação de importância para a Igreja,
não a percepção de que se trata de máquinas autônomas -, esta deveria apoiar mais a TV
Canção Nova.
Tabela 29 - A Igreja Católica apoia a TV CN?
Freq. %
Apoia
146 36,0%
Apoia, mas deveria
apoiar mais
186 45,8%
Não apoia e deveria
apoiar
42 10,3%
Não apoia nem deveria
apoiar
6 1,5%
Não respondeu/Não sabe
26 6,4%
33. A
Igreja
Católica
apoia a TV
CN?
Total
406 100,0%
A tabela 30, em outros termos, mostra essa relação – e essa insatisfação com
uma disputa interna na Igreja, ou, o que parece mais evidente, apesar do crescente apoio
do povo de Deus, a TV Canção Nova, especialmente, ainda é alvo de críticas e de
boicotes, principalmente dos chefes paroquiais. Para 44% dos entrevistados, a presença
de autoridades eclesiásticas na programação da TV Canção Nova é importante porque
isso demonstra que a Igreja está unida. Outro resultado, que aponta para outro caminho,
mas cujo objetivo é o mesmo – demonstrar a relação estreita entre as máquinas de fé -,
diz que a presença de bispos e padres na TV Canção Nova garante credibilidade à sua
programação. Evidentemente, por um lado, pode-se dizer que os católicos enxergam
uma fragilidade teológica naquela que é a sua TV religiosa preferida. Mas tanto essas
respostas como aquelas que apontam para a necessidade de que padres e bispos de todas
as tendências estejam presentes, sejam convidados a participar dos programas da TV
Canção Nova, não entram em choque com a necessidade de “união da Igreja” – ao
contrário, corrobora esse clamor popular. A rigor, mesmo havendo uma crítica implícita
tanto à hierarquia da Igreja quanto aos que mantêm e fazem a TV Canção Nova, os fiéis
católicos apontam para o apaziguamento das estruturas, porque nelas eles enxergam um
complemento entre si: Igreja Católica e TV Canção são uma e a mesma coisa.
240
Tabela 30 - Opinião sobre presença de autoridades eclesiásticas na TV Canção Nova
Freq. %
Outros
18 4,4%
Concordo, porque deve haver
união da Igreja
180 44,3%
Concordo, porque a TV ganha
credibilidade
94 23,2%
Concordo, para que haja além
de leigos e pregadores
37 9,1%
Concordo, mas padres de
todas as tendências deveriam
estar presentes
62 15,3%
Não respondeu/Não sabe
15 3,7%
36. Opinião
sobre
Padres e
Bispos na
TV CN
Total
406 100,0%
É nesse sentido que deve ser compreendida a superação – ou, antes,
inexistência – de contradição entre as posições dos católicos no que diz respeito à sua
participação como receptores da TV Canção Nova e a ausência de uma ação mais forte
no sentido de adquirir os produtos anunciados ou contribuir mais efetivamente com o
sustento da obra, como dito anteriormente. E também isso reforça a hipótese de que,
mesmo sem percebê-lo e recusando tal associação, os fiéis, quando transferem sua fé
para o consumo de telerreligião, fazem-no fortalecendo o sagrado construído na cultura
do capital. A crítica feita à distância entre a Igreja institucional e a TV Canção Nova é
igualmente uma constatação de que se trata, ou deveria se tratar, aos olhos dos fiéis, de
uma mesma máquina, porque proclamam – ou deveriam proclamar – a mesma fé. Isso é
um indício forte de que os fiéis, ao realizarem o encontro entre as duas esferas de
transmissão do evangelho, e mesmo as considerando distintas, por complementares, têm
visto a Igreja a partir da telerreligião. Noutras palavras: os rituais in loco nas Igrejas são
enxergados à distância, como um espetáculo midiático, a que assistem de suas casas.
Não se pode, assim, dizer que a permanência da Igreja se deve, apenas, a um problema
eucarístico da tele-igreja. Há a sensação de que o consumo corpóreo pelo maquinário
midiático a distância é insuficiente para a construção da fé dos católicos. Por isso, o
sentido de complementaridade entre os maquinários se dá conforme a demarcação, no
corpo dos fiéis, da sensação de incompletude própria do consumo. Definitivamente, não
se pode dizer que o consumo do religioso – na Igreja ou na tele-igreja – é da mesma
natureza do consumo mundano. Não são fenômenos iguais, não há uma demarcação
corpórea de mesma intensidade. No entanto, trata-se de uma tradução entre os
fenômenos. O consumo do telerreligioso, mesmo sendo de natureza diferente do
241
consumo cotidiano, mesmo demarcando-lhes o corpo de maneira diferente, é uma
conquista advinda do consumo cotidiano. Daí a crítica feita à Igreja quanto às distinções
entre as paróquias e a TV Canção Nova. A crítica se dá porque o consumo, ao menos
segundo o sagrado que o embala, é horizontal e democrático. A crítica então se refere à
verticalidade presente na Igreja – ao passo que os fiéis a querem horizontal. Por isso o
consumo do telerreligioso é suficiente para que os fiéis se sintam participantes da
religião – e por isso a simples assistência à TV Canção Nova, sem contribuição
financeira ou aquisição de produtos que a sustentam, é suficiente para o sentido de co-
laboração. A um só tempo eles são iguais e distintos; pertencem à coletividade genérica
dos humanos e se demarcam individualmente. O resultado disso não poderia ser outra
coisa que não a espetacularização da eucaristia.
O que se demonstra nas tabelas 31 e 32 é justamente essa sensação de
ambiguidade que se apresenta no sentido de consumo mundano e religioso, marcado
pelo telerreligioso. Perguntados claramente sobre o que pensavam sobre a venda de
produtos em programas religiosos de TV – e isso inclui eventuais cessões de espaços de
venda de produtos alheios à religião -, vê-se como há uma distribuição equilibrada entre
as opções. Chama atenção, como explicitado na tabela 31, que, embora mantida a
coerência de posições vistas anteriormente, há um tensionamento, que mostra
justamente aquela ambiguidade: 69%, entre as respostas válidas (67% do total), dos
entrevistados dizem concordar com a venda de produtos em programas religiosos, ao
passo que 31% dizem não concordar. Ainda que seja a maioria entre os que concordam
com a venda de produtos, é alto o número dos que não concordam, relativamente a
outras questões positivas apuradas – isto é: chama a atenção o fato de quase um terço
dos fiéis, entre os quais estão aqueles que dizem não assistir, não concordarem com a
venda de produtos, ao passo que essa é uma prática comum aos canais religiosos.
Parece, todavia, haver uma conjunção entre os que não assistem à programação religiosa
de TV e os que não concordam com a venda de produtos em tal programação. Porém,
como vimos atrás (tabela 17), dos 27% dos que não assistem a religião pela TV, apenas
um terço não deseja assistir à TV Canção Nova. A rigor, então, a discordância em
relação à venda de produtos é de fato um tensionamento. Essa recusa é parte da
compreensão de que venda e consumo não pertencem ao reino da religião; ao contrário,
em um mundo marcado pela insegurança e identificado justamente com a venda e com o
consumo generalizados, a religião serve como um importante anteparo, um ordenador
contra o sentimento de desordem generalizada do mundo.
242
Trata-se então de demarcação de terrenos – ou de sagrados. Isso é
importante para que se perceba o quanto o divino narrado pelo telerreligioso católico e,
em nosso caso, porque é o canal preferido, pela TV Canção Nova, é de fato uma
alternativa e uma resistência ao capitalismo como organizador universal da vida. Essa
demarcação é vista também entre aqueles que concordam com a venda de produtos,
como se vê na tabela 32: 18% dos que aceitam a venda de produtos só o fazem caso tais
produtos sejam religiosos; e, na somatória, a venda de produtos é identificada ora como
um mal menor, ora como um processo inevitável – e neutro – para que se alcance a
tarefa infinitamente mais importante de manter a TV no ar, manter a obra ou a
evangelização.
Tabela 31 - O que pensa de venda de produtos em programas religiosos
Freq %
Não concordo
123 30,3%
Concordo
273 67,2%
Não respondeu/Não sabe
10 2,5%
38. Opinião sobre oferta
e venda de produtos nos
programas religiosos
Total
406 100,0%
Tabela 32 - O que pensa da venda de produtos em programas religiosos
Freq. %
Não concordo, afeta a crença/
Afeta a religião
54 13,3%
Não concordo, não se devem
misturar religião e comércio
69 17,0%
Concordo, é a forma de
manter a TV
65 16,0%
Concordo, é preciso arrecadar
para evangelizar
67 16,5%
Concordo, é preciso manter as
obras
68 16,7%
Concordo, mas só se forem
produtos religiosos
73 18,0%
Não respondeu/Não sabe
10 2,5%
38. Opinião
sobre oferta e
venda de
produtos nos
programas
religiosos
Total
406 100,0%
Em um ou em outro caso, contudo, dentre os que concordam com a venda e
os que não concordam, percebe-se que há, com efeito, uma separação entre a venda e o
consumo puro e simples e a religião. Nessa medida, as tabelas 33 e 34 são
esclarecedoras. Elas trazem os resultados sobre o que pensam os católicos entrevistados
sobre a relação existente entre a TV Canção Nova e os programas de TV não católicos –
compreendidos como programas e canais religiosos não católicos (tabela 33); e a
243
opinião geral sobre esses programas não católicos de TV (tabela 34). As respostas dão a
dimensão daquela paúra demonstrada na articulação simples entre consumo e religião e
no esforço em isolá-las em campos distintos.
Tabela 33 - Relação entre TV Canção Nova e programas de TV não católicos
Freq. %
São a mesma coisa/ Pedem
dinheiro e vendem da mesma
forma
47 11,6%
Não sei, não vejo Canção
Nova / Programas evangélicos
e Canção Nova
45 11,1%
Não sei, não vejo programas
evangélicos
99 24,4%
Não enxergo qualquer relação
62 15,3%
São concorrentes
42 10,3%
A TV Canção Nova é mais
séria porque é Católica
74 18,2%
Os programas evangélicos
enganam as pessoas
28 6,9%
Não respondeu/Não sabe
9 2,2%
39. Relação entre TV CN e os
programas e TVs
Evangélicos/Protestantes
Total
406 100,0%
A tabela 33, acima, demonstra bem esse esforço de distinção: se se somam
os resultados das respostas “Não sei, não vejo programas evangélicos”, com 24,4%;
“Não enxergo qualquer relação”, com 15,3%; “A TV Canção Nova é mais séria por que
é católica”, com 18,2%; e “Os programas evangélicos enganam as pessoas”, com 6,9%,
teremos um quadro importante que aponta para uma mesma seara: cerca de 65% dos
entrevistados identificam os evangélicos à cultura do dinheiro, representada pela venda
e consumo destituídos de outro sentido que não eles próprios, ao passo que, para o
telerreligioso católico, venda e consumo só têm valor por uma causa maior: a própria
evangelização, como sinônimo de salvação do mundo. É claro que é preciso matizar
esses resultados – sobretudo em relação à primeira das respostas (“não vejo canais
evangélicos”): com efeito, pode-se tratar simplesmente de uma ignorância por não haver
consumo. Mas esse efeito lógico é conseguido muito mais em outras opções. O que está
em jogo aí é justamente a demarcação do terreno católico, identificado, como seria
óbvio, com seriedade, tradição – e distinção entre os mundos do consumo e da religião.
Se se junta àqueles itens o seguinte – a relação existente entre a TV Canção
Nova e a televisão religiosa não-católica é de concorrência -, há ainda mais clareza
244
desse fator que, a um só tempo, demarca a posição ontológica assumida pelos
entrevistados entre consumo e religião, e entre a religião que julga de consumo e a sua.
Tabela 34 - Opinião sobre programas religiosos de TV não-católicos
Freq %
São uma ameaça/ um
desrespeito à Igreja
Católica
34 8,4%
São concorrentes da Igreja
Católica
53 13,1%
Só estão interessados no
dinheiro dos fiéis
54 13,3%
Eles tornam os fiéis
alienados
50 12,3%
Não vejo problema, mas
seria melhor que não
existissem
28 6,9%
Não vejo problemas e
devem continuar existindo
170 41,9%
Não respondeu/Não sabe
17 4,2%
37. Opinião
sobre
programas de
TV
Evangélicos/
Protestante
Total
406 100,0%
Nos resultados apresentados pela tabela 34, isso se torna ainda mais patente:
para quase metade dos entrevistados, os programas de televisão não-católicos pertencem
ao reino impuro do consumo mundano. É claro que, para se obter tal resultado, é preciso
compreender as respostas que apontam os programas de religiões protestantes –
claramente identificadas com o neopentecostalismo – como concorrentes da TV Canção
Nova e da própria Igreja Católica. Trata-se com efeito de disputa pelo mercado de fiéis,
mas também de disputa entre modos de vida – ao menos por força de distinção.
Igualmente, esse elemento de discriminação pode ser utilizado para uma outra análise:
aquela que aponta para o viés de tensão propriamente. Se há uma demarcação de
divindades e de sagrados por parte dos católicos, não se pode negar, por outro lado, que
metade ou mais da metade dos católicos, aqui, entendem, à maneira do liberalismo de
comportamento, ademais exigido pela horizontalidade do consumo sacralizado, e
desejam a coexistência de sagrados, mesmo que isso signifique uma ameaça.
Se não se pode dizer que há, nessa postura, digamos, tolerante uma
aceitação ou sequer apontamento para a sacralidade do consumo – isto é: se não se pode
apontar, pelos resultados obtidos, para essa disputa de deuses e do entranhamento, no
sagrado católico, do sagrado do consumo -, não se pode perder de vista, todavia, a
confiança material que os entrevistados demonstraram ter no telerreligioso. As tabelas
245
35 e 36 trazem essa dimensão de materialidade. Primeiro, é evidente, e como já havia
sido anotado, os entrevistados depositam grande fé no telerreligioso: para 70% dos
entrevistados, a telerreligião pode aumentar a fé das pessoas. Esse resultado era
previsível, pelo que se viu anteriormente. O detalhe, o que deve ser analisado, são as
razões por que a religião midiatizada pode tocar fé dos humanos. Embora em termos
absolutos os itens que podem ser considerados como respostas idealistas (se se somam
as respostas negativas com o item “sim, mas só se a pessoa tiver vocação de fé”) sejam
maioria (56%), em termos relativos, chama atenção o fator material de depósito de fé no
telerreligioso: 31% entendem que a telerreligião modifica a fé – leia-se: a aumenta –
porque ela, a religião midiatizada, tem facilidade de alcançar mais pessoas; outros 12%
disseram que há esse aumento porque ela está acessível a qualquer momento. Para mais
de 50% dos entrevistados que apontaram a telerreligião como decisiva para a fé, há uma
relação direta com a forma material de transmissão simbólica. Isso não significa, como
vimos, que haja uma dissociação entre o telerreligioso e o religioso, aqui entendido
como o religioso institucionalizado pelo catolicismo. Vimos que há uma relação direta
entre as máquinas. O resultado apurado nas tabelas 35 e 36 diz respeito justamente ao
fato apontado na tabela 34 e anteriores: a reafirmação do catolicismo implica, ao mesmo
tempo, a negação e a afirmação do outro, identificado com o consumo capitalístico.
Aceitar e conviver com o telerreligioso não-católico, apontado como muito mais
próximo do capitalismo e seus perigos do que o telerreligioso católico, é da mesma
família fenomênica daquele que enxerga a horizontalidade no consumo e deseja a
religião para consumi-la. O que está em jogo aí, nessa tensão entre o si e o outro – que
implica a aceitação-negação do telerreligioso não católico, da mesma maneira que a
aceitação-negação do consumo como organizador transcendental, inclusive de minha
própria sacralidade -; o que está em jogo é aquela tensão mesma entre o interior e o
exterior; a forma e o conteúdo, o espírito e a matéria. Nessa tensão, uma vez mais, e a
despeito da compreensão – aspiração – do consumo como a forma mais democrática
como se pode viver a religião, há um clamor pela real democratização: se há, no
consumo, a horizontalidade desejada, isso se dá porque, em outros locais, permanece a
verticalidade. E isso acontece na Igreja e na tele-igreja. A materialidade da telerreligião
é apontada como determinante para a modificação da fé justamente onde ela é mais
horizontal: no consumo. Isso implica, por outro lado, um cercamento do horizontal e
seu apartamento da produção. Resta portanto a sacralidade do consumo.
246
Tabela 35 - Programas religiosos de TV modificam a
Freq. %
Não
121 29,8%
Sim
276 68,0%
Não respondeu/Não sabe
9 2,2%
40. Os programas
religiosos da TV
podem mudar a fé das
pessoas?
Total
406 100,0%
Tabela 36 - Programas religiosos de TV modificam a
Freq. %
Não, apenas confirmam a fé/
Não, a fé é pessoal/ Não, eles
alienam
121 29,8%
Sim, porque têm facilidade de
alcançar mais pessoas
128 31,5%
Sim, porque estão acessíveis a
qualquer hora
47 11,6%
Sim, mas só se a pessoa tiver
vocação de fé
101 24,9%
Não respondeu/Não sabe
9 2,2%
40. Os
programas
religiosos da
TV podem
mudar a fé
das pessoas?
Total
406 100,0%
Há, assim, a despeito do orgulho de ser católico e sua convicção, uma
hipertrofia não anunciada do religioso – de que a religião é cúmplice e, ao mesmo
tempo, vítima. Viver a religião católica implica ser consumidor de religião e, para
manter viva a fé no mundo organizado pelo consumo, deve-se viver a religião, seja onde
for, como um ato igualitário do consumir. A fé, de fato, é transformada pela telerreligião
– porque nela múltiplas esperanças são tecidas. Ser católico implica, ao um só tempo,
recusar o consumo como organizador. Mas só se pode ser católico, de fato e segundo o
sonho de justiça do cristão, se, ao mesmo tempo, ele for também consumidor. Eis então,
na disputa entre deuses, a vitória de um deles. Mas, ainda assim, para me garantir
minimamente seguro em meu cotidiano e sonhar um futuro seguro para mim, indivíduo
que me comprazo com meus semelhantes, aceito o pastoreio, porque aceito em meu
sagrado a presença de outro sagrado, temerário e mais forte. Ou, como disse Riobaldo,
de Grande Sertão: Veredas: “Muita religião, seu moço! Eu, cá, não perco ocasião de
religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… (…) Tudo me quieta, me
suspende. Qualquer sombrinha me refresca” (ROSA, 2006, 14-15).
247
CAPÍTULO V
(U)TOPIAS:
A TV Canção Nova entre o simbólico e o diabólico
Porque a carne luta contra o Espírito,
e o Espírito contra a carne; e estes se
opõem um ao outro, para que não façais
o que quereis (Gálatas 5:17)
Este capítulo, apresentado após terem sido esboçadas, desde a sombra, no
capítulo anterior, as faces dos personagens que fazem o catolicismo, intenta visualizar
as vidas reais de tais personagens, pessoas reais. Obviamente, não há qualquer
presunção de um retrato panorâmico dos católicos – mas certamente buscam-se, por
esse retrato, por essa aproximação íntima com os atores vivos do catolicismo, os traços
singulares que os lançam na universalidade. Ou, antes: o que é universal em suas vidas
irrepetíveis. Neste capítulo, a compreensão da recepção da TV Canção Nova – isto é:
como os discursos sobre a Canção Nova e a partir da TV Canção Nova se constroem em
e como mediações – precisa se dar de maneira mais viva, mais intensa. Para tanto, como
já dito, foram feitas entrevistas com diversos atores: párocos, fiéis católicos e peregrinos
em visita à sede da Canção Nova, em Cachoeira Paulista. Por isso, mais do que mapear
os discursos e neles compreender a empreitada proposta, é necessário surpreender a vida
em sua dinâmica – a vida real, efetiva, material. Porque só assim pode-se perceber como
se movimenta a hegemonia e, sobretudo, como se configura o sagrado contemporâneo.
Antes, porém, de iniciarmos essa cartografia dos atores que se movimentam
na pesquisa e para que sejamos minimamente justos com tais atores que, queiramos ou
não e por maior que seja nosso esforço ao contrário, são violentados pela tarefa analítica
– já que eles se desnudam sem a sua permissão e por isso com um despudor não
consentido -, é necessário uma explicação sobre o título do capítulo. O jogo de sentido,
por demais utilizado, conseguido com o recurso gráfico dos parênteses – que isola, mas
também une e desloca o sentido, o “u” de “topia” –, a um só tempo pretende dar conta
do subtítulo proposto, como da própria dinâmica por que o capítulo se move, além dos
intertítulos propostos – a saber: “Guerra dos deuses”, “Identidade”, “Consumo” e
“Corpo – ou: ainda o materialismo”. O jogo de sentido se estabelece no ritmo mesmo
248
com que se dá o recurso gráfico utilizado: trata-se ora da utopia que se faz no topoi, no
lugar, entendido como o local da vida ordinária, mas também recusa da universalidade;
como corpo, a corporeidade do aqui e agora, e sua desmaterialização como uma nova
utopia. De qualquer maneira, trata-se desse jogo contemporâneo, pelo qual o sagrado se
manifesta, em que há uma contínua desmaterialização da vida, um constante
afastamento da cultura humana dos materiais que lhes dão significado, como valor, ao
mesmo tempo em que o lugar – identidades, corpos e consumos - é estabelecido como o
novo local de esperança para o humano.
É nesse sentido que deve ser compreendido o subtítulo proposto. Aqui, o
jogo ambíguo de topoi – como lugar comum em que a vida coletiva e individual se
desenrola – e utopia - como a esperança para um lugar comum equilibrado, termo de
Thomas Morus para lugar ideal – mostra em sua intensidade o próprio sagrado
contemporâneo: como a um só tempo o lugar da vida é reivindicado para se
desmaterializar, em que o corpo é desvencilhado de suas determinações, tal como o
indivíduo que é desamarrado de suas implicações coletivas. Por isso, simbólico e
diabólico devem ser compreendidos em suas etimologias: as forças que unem e separam
os indivíduos entre si e da materialidade de suas vidas. Com a promessa de um lugar
equilibrado, utópico, o sagrado contemporâneo nos lança de volta ao lugar em que o
corpo se movimenta: na identidade e no consumo; mas para isso necessita isolar,
separar instâncias de espírito e corpo, identidade no consumo e processo de produção
material dessa identidade para esse consumo. Os resultados das pesquisas – tanto a
quantitativa, como vimos, quanto a qualitativa, que ora vemos -, apontam exatamente na
direção de um sagrado entre o simbólico e o diabólico, entre a promessa de pacificação
pelo re-ligare, mas sua impossibilidade, justamente em razão de sua dinâmica, que
exige separação: entre indivíduos; entre eles e as razões para que se mantenham
organizados coletivamente; entre o seu consumo que os perfaz e o esforço – individual e
coletivo – que propicia, pela produção, tal consumo. A Canção Nova e em especial a
TV Canção Nova – como ademais a tarefa de pastoreio que permeia a midiatização da
cultura contemporânea e a armadilha de pastoreio em que caem os empreendimentos
teóricos que desejam superar as aporias de tal cultura e do pastoreio -; Canção Nova e
sua TV, objetos desta pesquisa, ficam exatamente entre o simbólico e o diabólico,
apesar de recusar de forma peremptória o último. O resultado disso é justamente o
pastoreio, que se travestiu de midiatização, mas que mantém sob controle suas ovelhas
tal como a cultura que julga combater – e nesse caso não faz senão perpetuar, pelo
249
simbólico, o diabólico, criando, não obstante, um simbólico de humanos alienados de
sua potência humana.
Também elas, as pesquisas, como se viu, apontam para as temáticas que são
desenvolvidas – ou, melhor, a partir das quais os discursos são analisados. Além dos já
abordados intertítulos identidade, consumo e corpo, as pesquisas indicaram
efetivamente uma guerra dos deuses, o que significa, nesse caso, uma disputa pela
hegemonia do sagrado, sem que se perceba, todavia, que, nas circunstâncias em que a
disputa se dá, o sagrado alimentado é o mesmo e continuará a sê-lo: o sagrado que
aparta a matéria de seu espírito, o espírito de sua matéria. Por isso, o intertítulo,
“corpo”, aponta “ainda” para o materialismo – não como um jogo retórico, mas para a
presença inevitável do sentido histórico e material nos discursos idealistas dos atores
que se movimentam na pesquisa. Isso posto, é a hora dos atores.
1. Guerra dos deuses
Jô Soares era todo deferência com o principal entrevistado daquela edição
de seu programa de talk-show do dia 21 de maio de 2009: padre Fábio de Melo. O
apresentador, em todos esses mais de 20 anos à frente do programa, costuma dispensar
esse tratamento apenas para altas personagens do mainstream do sistema. Esse parecia
ser o caso de padre Fábio de Melo. Ao menos para uma indústria fonográfica que, em
crise, tem em padre Fábio um dos principais vendedores de discos.
55
Esse sucesso
comercial, no entanto, não foi a única razão da deferência. A imagem construída por
padre Fábio - um galã da moralidade e principalmente alguém que é um testemunho de
resistência às tentações do corpo e, por isso, tem autoridade para dirigir espiritualmente
seus semelhantes, com palestras e livros com teores de autoajuda -; essa imagem
construída paulatina e minuciosamente faz do entrevistado de Jô Soares, com efeito,
alguém por quem se ter deferência.
Aquela entrevista da noite, que tomaria dois blocos de programa – a duração
das entrevistas não é decidida previamente, mas conforme a dinâmica que elas ganham
– teve início com uma piada, que demarcaria os terrenos a partir de então. Uma redação
escolar na Bahia, que “levou zero”, quando, na opinião de Jô Soares, deveria ter “levado
dez pelo senso de humor”, precisaria versar sobre “o humano”. O aluno teria escrito,
segundo relato jocoso do apresentador: “Quando eu tiver um humano, ele vai se chamar
55
Notícia do portal Folha Online informa que, até outubro de 2009, o disco Eu e o tempo, de padre Fábio
de Melo, vendeu 189 mil cópias e ficou em segundo lugar no mercado fonográfico brasileiro. Cf. NEY,
2010.
250
errar. Porque errar é humano”. Gargalhadas. Jô Soares completou: “E perdoar é divino.
E falando em divino, está aqui o padre Fábio de Melo. Vem pra cá!” Corte seco.
Enquadramento no padre que, impecavelmente vestido, é acompanhado pela câmera e
pelo entusiasmo da plateia que o ovaciona.
O apresentador, em sua piada incidental, na verdade, fazia referência a algo
que tem marcado a trajetória do padre Fábio – e que intitula um dos seus sucessos: errar
é humano. E o complemento da piada, antes de ser apenas um recurso retórico,
demarca: esse que aqui vem e que merece a minha deferência erra. O padre Fábio de
Melo é humano – como eu. Mas ele faz a mediação entre o humano e o divino – e
perdoa. Por ser humano e divino em um só, padre Fábio se abre para o relativo – e por
isso merece ser perdoado.
A conversa se inicia com troca de informações sobre o fenômeno do padre-
cantor na indústria cultural. Mas também do padre-escritor – e é isso o que faz dele uma
referência importante. Por isso, a deferência de Jô Soares: há, naquele pop star à sua
frente – além da clara identificação, do claro reconhecimento -, algo diferente dos
padres. Sua doçura, sua flexibilidade, sua disposição para não constranger com
absolutos e convicções – são verdadeiramente práticas do perdão, próprias de uma
época cuja teoria referencial se orgulha de sua tolerância e que tem na diferença, nas
políticas de identidade, de respeito às diferenças, seu objetivo.
Jô Soares se sentiu à vontade então para realizar algumas questões que, a
seu ver, seriam respondidas por um igual, e sem constrangimentos. Foi aí que a parte
divina do padre precisou entrar em cena – ele precisaria do perdão, por um lado, e da
condescendência, por outro: justamente essa tolerância foi o motivo de um intenso
debate em diversas páginas na internet – uns, com posições conservadoras, outros, em
defesa da liberalidade com que agia o padre Fábio de Melo. O debate, em verdade,
demonstra bem que não se pode entender a Igreja Católica segundo uma perspectiva –
há, em seu interior, a despeito do enorme esforço de unificação, uma infinidade de
pensamentos, visões de mundo. Em uma palavra, há aquilo que foi explorado por
Michel Löwy (2000) – que, por sua vez, havia retirado da obra de Weber: uma
verdadeira guerra dos deuses.
O interessante no debate que se seguiu à aparição do padre Fábio no
Programa do Jô foi a consideração de posições progressistas e a crítica a elas. Ou seja:
há, por um lado, na crítica que se fez à alegada liberalidade excessiva de Melo, uma
reivindicação da ortodoxia católica – e um apontamento, na posição do padre, de uma
251
ameaça à Igreja. Por outro lado, os defensores de Fábio de Melo reivindicam o Concílio
Vaticano II para defender as posições assumidas pelo seu mestre existencial.
Uma dessas páginas, com posições conversadoras a respeito da Igreja
Católica, intitula-se Veritas Splendor – Esplendor da verdade – e se apresenta da
seguinte maneira:
Nosso Apostolado têm [sic] origem na fusão de diversos outros Apostolados
católicos que, na Internet, vinham trabalhando na defesa da Fé Católica e na
divulgação do Evangelho que o Senhor confiou aos cuidados da Santa Igreja
Católica. Assim, juntos, podemos oferecer um trabalho de melhor qualidade
ao público, servindo a Cristo com mais eficiência e disponibilidade de tempo.
Muitos de nossos membros são ex-protestantes que após conhecerem os
Escritos dos Santos Padres se converteram à Fé Católica após descobrirem
que Sua Doutrina é a mesma doutrina que sempre foi pregada desde os
primeiros anos do Cristianismo. Por este motivo este site tem o objetivo
maior de colocar à disposição do grande público estas obras maravilhosas,
além de dissipar na medida do possível a falta de informação que é a
principal origem do preconceito ao Catolicismo. Nosso apostolado encontra-
se em perfeita comunhão com a Igreja de Roma e com seu pastor supremo, o
Santo Padre. (...) Constituímos, hoje, um dos maiores sites católicos em
língua portuguesa do mundo e recebemos mais de duas mil visitas por dia.
Desejamos sob a graça de Deus, assim prosseguir.
(
http://www.veritatis.com.br/area/9)
Pois esse site, que reúne católicos estudiosos que buscam “dissipar a falta de
informação que é a principal origem do preconceito ao catolicismo” e que, com o seu
trabalho, disse ter conseguido “converter ex-protestantes” – numa alusão óbvia ao
principal temor católico: sua perda de terreno para outras agremiações religiosas no
mercado da fé -; esse site publicou uma série de textos ácidos sobre a aparição de padre
Fábio de Melo no Programa do Jô. O teor das críticas dizia respeito a uma dita
anuência do padre católico às heresias ditas pelo apresentador-humorista. Nesse caso,
tratou-se de, segundo a missão expressa pelo site, defender a instituição católica contra
as ignorâncias sobre ela ditas. E para tanto, os autores colocaram o dedo na ferida.
Em um dos textos – foram ao todo nove texto publicados, apenas com o
ensejo de comentar (ou condenar) a aparição do padre no programa de entrevistas -,
intitulado “Derrapadas do padre Fábio/Fashion de Melo”, juntamente com o texto, foi
publicado a charge, reproduzida abaixo.
252
Fonte: http://blog.veritatis.com.br/index.php/2009/05/26/derrapadas-do-padre-fabiofashion-de-melo/
Os detalhes da charge, que lhe dão sentido, dizem por si. De um lado, Jô
Soares, representado com um sorriso que se manifesta como inepto – representação que
se aguda em razão do assunto tratado: o Jesus Cristo em destaque denota tal inépcia
majorada. De outro lado, um padre Fábio de Melo, galã ególatra, mais preocupado com
sua própria carreira artística; os seus CDs saindo do bolso e uma postura corporal algo
pernóstica ali representada; os sapatos com brilho, a gravata com tipos “divertidos” e
deslocada em relação ao que se espera de uma autoridade da Igreja, a etiqueta com o
anúncio “eu sou cool” – o que seria o mesmo que dizer: “consumam-me, pois sou
palatável” - e a claque de mulheres apaixonadas pela figura de pop star do padre –
elementos que colocam os personagens em questão em posição de paridade segundo o
olhar de seus detratores.
O texto que se segue à charge aponta para uma alegada incapacidade que
teve o padre Fábio de Melo de defender a Igreja das ilações, fruto de sua ignorância, de
Jô Soares. E destaca trechos de falas do padre
56
– seguidos do tempo decorrido da
56
A entrevista pode ser vista, dividida em cinco partes, em:
http://www.youtube.com/watch?v=HzN-ZzN_pGY;
http://www.youtube.com/watch?v=HSAfyget0RA;
http://www.youtube.com/watch?v=h5Nm3noVi7U;
http://www.youtube.com/watch?v=y5g-l15pJuQ;
253
entrevista - que mereceriam as críticas feitas:
É igual à gente querer evangelizar os índios, que às vezes têm uma vida
muito mais saudável do que nós, uma vida muito mais divina do que nós!
(3:22)
… Ah, aquela pessoa se converteu ao protestantismo, que pena! Peraí… se
aquilo que ela está acreditando faz bem ao coração dela, se Deus está ali
presente, se Jesus está agindo mais no coração dela através da voz do pastor
do que da minha, vamos dar graças a Deus que ela encontrou um pastor que
falasse ao coração dela. (3:50)
É que eu acho, minha gente, que a religião mais importante do mundo é a que
Jesus ensinou: é o amor. (perto dos 4:49)
Se nós somos cristãos, não importa que você seja evangélico, que eu seja
católico…não importa! O que importa é que a gente descubra o essencial que
Jesus nos ensina. (5:23)
Eu não vou ficar dizendo: “a sua religião está errada, a minha está certa…”
Não! (5:45)
57
As críticas dos católicos conservadores à sua performance, como se vê nos
trechos destacados, são justamente à liberalidade de Padre Fábio de Melo. E pelo que se
viu dos muitos comentários que acompanharam os textos, inclusive e sobretudo esse a
que se faz referência – o mais comentado deles -, as posições de defesa e de crítica
ostensiva ao padre se dão a tal liberalidade. Trata-se então, embora haja posições bem
demarcadas, de uma ambiguidade: por um lado, os “defensores do catolicismo”,
representados aqui pelos detratores de padre Fábio de Melo, também se colocam na
vanguarda da Igreja, inclusive reivindicando o Concílio Vaticano II para legitimar suas
críticas a uma importante autoridade católica – e uma autoridade que passeia bem pela
cultura hegemônica midiática, dando ao catolicismo legitimidade, como se viu na
deferência de Jô Soares ao padre cantor. Porém, as posições de vanguarda da crítica
conservadora reivindicam um tipo de teologia e de eclesiologia que está longe daquilo
que é comumente apontado como os ares democráticos conquistados pelo Concílio
Vaticano II. Do outro lado, os que defendem o padre Fábio o fazem porque reconhecem
nele, justamente em sua liberalidade, em sua tolerância sem medida, a sabedoria dos que
não querem viver a religião à margem da vida – e para viver a vida, esta vida, a
tolerância, a flexibilidade, é a principal virtude. E, assim, ao contrário do que se pensa
ou do que indicam os críticos, padre Fábio só fortalece a Igreja.
A ambiguidade, todavia, persiste em outras searas. Os textos do site
Veritatis Splendor dão conta de que a Canção Nova é importante para a evangelização
e, assim, para a Igreja Católica – desde que seja controlada. Há então, nesse
http://www.youtube.com/watch?v=a-7uYHiRnzs
57
Cf.: http://blog.veritatis.com.br/index.php/2009/05/26/derrapadas-do-padre-fabiofashion-de-melo/
254
apontamento, uma certeza de que a Canção Nova representa a modernidade do
catolicismo, com as virtudes de expandi-lo, e os perigos de tal vulgarização. Essa tensão
no relacionamento talvez explique as razões por que ambos, Canção Nova e os
“conservadores” católicos tenham um inimigo em comum: a Teologia da Libertação.
Vimos, no capítulo três desta tese, como há, na figura de Felipe Aquino, uma clareza
quanto à posição da comunidade católica hegemônica em relação àquela teologia,
considerada subversiva e, portanto, perigosa para um catolicismo voltado para a
conservação não dos rituais ou dos dispositivos de evangelização, mas da estrutura
social e da ideia do pastoreio – uma vez que a moralidade ali propugnada é de uma
entidade que assenhoreia os humanos. Evidentemente, não se pode dizer que haja,
também na Canção Nova, uma posição institucionalizada em relação à Teologia da
Libertação – mas não há dúvida de que ela é uma inimiga a quem se deve combater, o
que, então, aproxima a comunidade carismática dos católicos conservadores.
É estranho, por isso, pensar que a Canção Nova é acusada de progressista e
que padre Fábio de Melo é o alvo principal dessa acusação. É estranho porque, mesmo
sendo ele uma espécie de guru dos novos tempos – e por isso mesmo -, isso não faz dele
um progressista. Ao contrário, há uma postura bastante conservadora em suas posições,
que busca uma adaptação aos novos tempos. A rigor, trata-se, com efeito, de um pastor
para almas entregues às delícias e desgraças do consumo em si mesmo. A despeito
disso, não se pode dizer, também do padre Fábio de Melo, que ele é um ideólogo contra
a Teologia da Libertação. Mas igualmente aqui não se pode negar que sua postura,
inclusive de restrição à direção espiritual, confronta uma teologia da luta social, da
efetiva libertação neste mundo.
Em um e outro caso, na Canção Nova e nos conservadores católicos, nessa
união providencial, aí está um importante indício de que, diferentemente do que se
pensa, a Teologia da Libertação está viva - mas como um fantasma. Por isso, assusta,
por rondar cada paróquia, cada comunidade onde houver um miserável ou um oprimido.
De qualquer maneira, é nesse jogo de acusações mútuas; nessa percepção e
incômodo sobre a importância da Canção Nova para o catolicismo e para o católico; e,
enfim, nessa união em torno do combate à Teologia da Libertação – ou de ações que
indiquem um divino da autonomia, que vão além da simples caridade com o outro - que
se movem os atores católicos. E o conflito permanece conforme a posição assumida:
entre padres e suas formações, sua eclesiologia; entre eles e os fiéis; entre os fiéis e a
forma como tecem as suas vidas materialmente. O olhar dos católicos para a Canção
255
Nova ganha essa dimensão ambígua, quase conflitante, mas não excludente entre si.
Os próprios chefes paroquiais entrevistados, como era de se supor,
apresentam posições distintas em relação ao que pensam do padre Fábio de Melo.
Inegavelmente, ele não pode ser ignorado, qualquer que seja a posição assumida em
relação à Canção Nova e muito especialmente à TV Canção Nova. Na verdade, há um
misto de admiração e de recusa à sua figura – admiração, não apenas pelo sucesso que
alcançou, mas principalmente pela forma como esse sucesso se dá. Em outras palavras,
o que se admira é sua imagem institucional: um padre intelectualizado e que consegue,
sem abrir mão disso, obter seguidores. Por outro lado, esse sucesso e a sua própria
imagem pública despertam preocupação, porque se trata de uma ameaça às figuras de
líderes espirituais dos párocos, que se limitam a atuar no púlpito de sua igreja e em
grupos locais de sua paróquia.
Essa ambiguidade pode ser vista no discurso do padre José Carlos que,
como todos os padres, se apresentou, na entrevista, como autoridade intelectual e se
comportou, diante de um pesquisador, como iguais. No caso do padre José Carlos,
porém, essa similitude ganhou contornos de um diálogo, pensado como um ato
horizontal de trama simbólica. As reflexões por ele realizadas sobre a Canção Nova
apontavam para um caminho de crítica ao que considerou uma ausência de
racionalidade em seus programas. Mas os programas dos parceiros e amigos padre
Fábio de Melo e Gabriel Chalita receberam a ressalva positiva. Disse padre José Carlos
a respeito do padre Fábio de Melo e seu programa:
Ele é uma presença teórica racionalizada. No sentido de que não dá apenas
uma teoria devocional da fé, mas ele consegue elaborar bastante esse
discurso. E outros poucos. A verdade é que esse é um programa fora de hora,
o programa dele é muito tarde e não são programas entre aspas “religiosos”.
São programas de veiculação de uma temática, problemazinhos, de pergunta
e resposta. Agora eu acho que o grande grupo ligado à Canção Nova é o
grupo ligado à liturgia da Canção Nova, são as missas da Canção Nova, os
retiros da Canção Nova, as pregações da Canção Nova. E é aqui que você
veicula... Não vejo tanto essa teologia racionalizada, mas essa teologia
devocional, moralista (Padre José Carlos, Caderno de pesquisa, 2010).
58
A distinção realizada no discurso entre o programa – e a figura do padre
Fábio – e o que ele entende ser o ideal de religião mostra, obviamente, que padre José
Carlos considera o programa televisivo deslocado. Note-se de antemão que o discurso
procura se localizar numa proximidade providencial em relação ao entrevistador: o uso
da segunda pessoa do singular em substituição ao impessoal (“É aqui que você veicula”)
58
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2007, na Casa Paroquial da Paróquia S.
Judas Tadeu – Divinópolis/MG
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aponta para esse esforço de proximidade entre os interlocutores. Há, portanto, uma
indicação de contrato de situação de comunicação, de modo que o diálogo se dê entre
iguais – o padre que critica o princípio teológico e o cientista, que normalmente critica a
programação da TV Canção Nova em razão de sua carência de racionalidade. Esse
contrato é importante para demarcar os mundos: de um lado, há um pacto, já firmado,
entre a racionalidade que se identifica na lógica científica e em uma forma de religião.
Esse pacto, esse contrato, no entanto, não se dá de forma prévia, por ser natural. Ele é
configurado a partir de posições ideológicas que entraram em negociação e cuja
manifestação simbólica desnuda a tensão de classes que o perfaz. Nesse caso, há uma
reivindicação, como se fora prévia, de uma racionalidade que os padres e os
pesquisadores universitários comungariam: aquela da pequena burguesia, da classe
média, preferencial na sociedade do consumo. Há nessa medida uma contradição
aparente: é a classe média que fomenta e dá forma à sociedade baseada no consumo,
que por sua vez é identificada com a ausência de racionalidade, com a não-mediação,
com o imediatismo da sensação. Porém, para se constituir como classe média –
consumidora – é mister recusar o imediatismo e proclamar a racionalidade, de todo
identificada com a lógica científica praticada nas universidades. É por isso que o
discurso do padre José Carlos realiza tantas concessões: o programa do padre Fábio de
Melo é diferente do que normalmente se vê na maioria dos programas da Canção Nova.
E isso é calculado: a racionalidade é uma permissão de uma agremiação religiosa – a
Canção Nova - que não se realiza de maneira efetiva segundo essa racionalidade. Ao
contrário, a TV Canção Nova se especializou em missas, em acampamentos, em
pregações. Pouco importa que tais características, assim compreendidas, aproximem a
Canção Nova do seio da Igreja e das paróquias. Mas o discurso, como veremos depois,
nesse momento, é importante para demarcar posições.
Os programas do padre Fábio de Melo são aceitos por serem positivos –
apesar de não serem vistos, em razão do horário de veiculação. Há, porém, em mais
uma concessão, uma identificação crítica entre os programas de padre Fábio e a
programação “devocional” da TV Canção Nova. Primeiro: por que um programa bom é
veiculado na TV Canção Nova? A resposta é dupla: como vimos, porque é um
programa fora de hora e, assim, para não ser visto. Segundo: ele é bom porque não é
religioso – e religioso é identificado como o devocional e, por isso, não racional. Há
então uma identificação entre a religião e a ausência de racionalidade. Se parece
estranho que haja um posicionamento desse tipo vindo da boca de um padre, de um
257
chefe de uma casa de religião, deve-se atentar para o fato de que o discurso aponta para:
i) a religião nas paróquias é ritual; na televisão, é consumo puro e simples; ii) na
paróquia, a religião é controlável e eu, chefe paroquial, posso ultrapassar o mero
ritualístico em direção ao racional, ao passo que na TV, e na TV Canção Nova, com sua
programação voltada para o devocional, isso não é possível. Mas em um e outro caso o
perigo está na ausência de controle.
As concessões vão mais longe: a vinculação entre o “bom” e “aceitável”
programa de padre Fábio de Melo não impede que ele seja classificado como
programinha, igualmente palatável, se associamos o sintagma ao qualificativo utilizado
“problemazinhos”, de “pergunta e resposta”. É racional, é aceitável por isso, mas não
deixa de ser perigoso – porque está , não é feito por mim. É nessa medida que a
aproximação entre os interlocutores ganha mais força: o pacto é para denunciar a lógica
ora do mero devocional, ora de “programinhas fáceis” que discutem “problemazinhos”
de fiéis aflitos. Assim, os discursos dos párocos “progressistas” se aproximam daqueles
“conservadores”, que acusam o padre Fábio de Melo de frouxidão na defesa do
catolicismo.
Essa proximidade de posições não exclui, obviamente, o fato de que se trata
de disputa institucional interna, uma guerra dos deuses, propriamente. Mais tarde,
quando voltarmos nas razões e principalmente consequências dessa disputa, veremos
que a distinção a rigor se apresenta como esforço de pastoreio. Por ora, todavia, nos
interessa como há uma relação estreita entre a condenação da TV Canção Nova e sua
fragilidade teológica, e a distinção de classe. O discurso do frei Patrício, franciscano,
não deixa dúvidas: a Canção Nova é coisa de pobre e ignorante:
Eu não tenho esse contato com a multidão aqui. Eu tenho alguns grupos, que
eu gosto, sempre de casais. Chama-se Equipe de Nossa Senhora, eu tenho um
grupo de casais, que é médico, psiquiatra, psicólogo. Normalmente eles não
gostam da Canção Nova. Eles não gostam desse grupo de oração. Eles
também dizem: não faz o meu gênero de ver a Igreja. Mas o comum dos fiéis
aí é que ficam o dia inteiro ligado. Todo mundo fica ligado na Canção Nova.
Eu acho que, se pergunta, se manda suspender o braço, quem assiste Canção
Nova aqui nas missas domingo, eu aposto com você que a maioria levanta o
braço. O povo que frequenta aqui o Santuário. As missas vespertinas, nem é o
povo aqui desse miolo, não. O povo da periferia que vem aqui. É gente dos
bairros. Isso a gente vê com toda a clareza que se fosse só dos paroquianos a
igreja estava vazia. Mas a igreja é central, tem toda a facilidade de
comunicação (Frei Patrício, Caderno de pesquisa, 2010).
59
Os meandros do discurso, na verdade, são o seu cerne. Frei Patrício, durante
59
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
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a entrevista, embora igualmente tenha se posicionado de forma igualitária em relação ao
entrevistador-pesquisador, teceu um discurso com sabor memorialístico. Esse
posicionamento é importante para que se perceba seu esforço em esclarecer que ele
mesmo não possui contato com o povo que vem e enche a igreja: o povo da periferia.
Evidentemente, nota-se que a paróquia de que faz parte está localizada em uma região
central e nobre da cidade. Por outro lado, essa localização é facilitadora para sua
acessibilidade a fiéis estranhos à paróquia. O desejo de Frei Patrício é ambíguo, nesse
sentido: ao mesmo tempo em que ele reconhece que os paroquianos não seriam
suficientes para garantir boa audiência para, inclusive, as missas – o que seria indício
de fragilidade -, por outro, procura manter uma distância providencial da multidão.
Assim, o povo é desejado como um número, mas recusado em razão de sua ignorância.
No final das contas, ele é tolerado – e eis que o sabor memorialístico dado ao
depoimento se realiza, como discurso, tal qual um filtro: o frei, ele mesmo, não entra em
contato com esse povo da periferia que vai à sua igreja. De alguma maneira então ele se
sente não-responsável pelo fato de o povo assistir à TV Canção Nova. Povo chamado de
multidão, com toda a carga de significação que o sintagma possui e que se desnuda
numa frase adiante: “(...) se pergunta, se manda suspender o braço (...)”. Há então, de
forma sub-reptícia, uma tendência a dizer que o povo é conduzido, controlado,
pastoreado. Em outro polo, há aqueles com quem o frei mantém contato. São “médicos,
psiquiatras, psicólogos”, que não gostam “da Canção Nova”, não gostam “desse tipo de
oração”. Perceba-se que há uma reivindicação pelo tipo de religião que é consumida por
um determinado estrato social. Há uma assunção de que se trata de uma prática de
consumo identitário – o que é o mesmo que dizer que se trata de uma escolha individual
entre outras tantas que perfazem o indivíduo no mundo do consumo. Mas não é só isso:
à “multidão” não é dado esse poder de escolha – a ela, basta que alguém ordene; a
multidão é simplesmente guiada e esse é o poder da TV Canção Nova. As profissões
enumeradas pelo frei são limítrofes desse fenômeno um tanto elitista – e que na verdade
são indicativas de uma forma de consumo cultural, de identidade e por isso mesmo de
modo de vida: não foram engenheiros ou professores, mas médicos, psiquiatras,
psicólogos, que anunciam mais uma vez a distinção a que se refere o discurso. A um só
tempo, o discurso enunciou uma função social reconhecidamente distintiva – médico – e
apontou para as formas de sofisticação próximas a tal distinção, em relação à matéria da
profissão: o mental. Nesse caso, reafirma-se que aqueles com preparação intelectual,
inclusive e, sobretudo, os que têm como matéria científica o mental, não se deixam
259
seduzir e conduzir pela TV Canção Nova; esses, ao contrário da multidão, do povo da
periferia, não são “todo mundo” – ou um qualquer - para ficar “ligado na Canção
Nova”.
A essa ideia forte de manipulação dos espíritos – e dos espíritos
manipuláveis, por serem pouco distintos e pouco ilustrados – se junta outra, muito
próxima, que aponta para o sentimento de perigo pela invasão à seara católica que é a
América Latina. Nesse caso, é um plano obscuro advindo de fora, geralmente dos EUA,
como uma arma ideológica do capitalismo, contra a terra santa que são as novas terras
da América não anglo-saxônica. Os discursos são repetidos, mas, ao analista do
discurso, essa repetição é preciosa. É o caso do frei Patrício:
Que, às vezes, há uns anos atrás, a gente tinha desconfiança e tinha prova que
eram grupos capitalistas que estavam financiando a Renovação Carismática
aqui. Grupos de oração nesse mercado também. Grupos de capitalistas,
europeus, alemães, holandeses, americanos que estavam financiando. Que
eles antes financiavam os evangélicos. Até 1950, 60, eles só financiavam os
evangélicos americanos, os capitalistas. Mas quando eles viram que não
tiveram retorno em conversões. E pensavam que iam conseguir no Brasil, por
exemplo, 50%, 60%, 70% de conversão do povo brasileiro, ia virar
evangélico, ia ser evangélica, eles desistiram daquele entusiasmo que ia
conseguir. Viram que o catolicismo era muito arraigado. A devoção a Nossa
Senhora Aparecida era muito forte, que eles não iam tirar. Aí eles começaram
a financiar a Igreja Católica também. Só sei que conseguiram e financiaram
mesmo. Chegaram a financiar no começo. Para padre para ir fazer curso lá na
Europa. Carismático. Avião com 200 padres para fazer um curso de
atualização teológica numa linha carismática. Houve isso com certeza. Pago!
[ênfase] Houve isso e eu interpretei como... Que eles viram que não
conseguiram, não tiveram retorno que esperavam que iam ter de conversões.
Então o jeito é financiar o lado católico carismático (Frei Patrício, Caderno
de pesquisa, 2010).
60
A memória prega peças – e o discurso o denuncia. O depoimento de frei
Patrício deixa claro que se trata de uma construção do passado em relação ao que ele
vive hoje. A primeira frase do trecho destacado é tramada entre a certeza e a dúvida,
resultado da rememoração e sua necessária fabulação: “Que, às vezes, há uns anos atrás,
a gente desconfiava e tinha prova...” A conjunção aditiva não une ideias - as coloca em
tensão. Porém, diferentemente de estruturar uma contradição, aponta para, na
imprecisão da memória, a formulação de uma certeza segundo a perspectiva atual. E,
dessa maneira, no diálogo com o pesquisador, procura-se a um só tempo tecer uma
identificação entre ambos – supondo ser essa a expectativa da racionalidade científica -
e a demarcação do lugar ideológico. A conjunção aditiva “e”, então, corrige falhas da
narrativa, para dar garantias de que o narrado, o resgatado pela lembrança confere com a
60
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
260
realidade vivida.
A narrativa vai ficando telegráfica, com frases curtas, entrecortadas – e com
isso sobe o tom da dramaticidade. Logo, numa frase com puro teor referencial – “avião
com 200 padres para fazer um curso de atualização teológica” -, o discurso se entrega à
dúvida e, para garantir sua unidade temática e temporal, utiliza recursos
metadiscursivos: “Houve isso com certeza”. E o tom sobe, com ênfase e condensação da
temporalidade narrativa, conseguida com a ênfase na narração e com o breve silêncio
que a segue: “Pago!” Os capitalistas tramaram uma invasão e o fizeram naquilo que
mais caracteriza a América Latina e o Brasil: o seu catolicismo. E, então, a certeza
demonstrada anteriormente pela narrativa volta a se fragilizar, a mostrar lacunas:
“Houve isso e eu interpretei como...”. Nesse caso, o perigo é iminente – e tem na TV
Canção Nova sua materialidade: a Igreja está cheia de adeptos da Canção Nova, de fiéis
controlados por ela, de fiéis que nem imaginam que se trata de um plano de capitalistas
para invadir e controlar o Brasil.
Embora esteja localizado, o discurso do frei Patrício se estende a outros
locais nessa guerra dos deuses. E mesmo entre os párocos que não apenas não recusam a
TV Canção Nova e seu carisma, mas enxergam neles um importante aliado no serviço
de evangelização, inclusive nas paróquias, têm ressalvas que apontam na direção do
perigo de invasão ou falta de controle, levado ao paroxismo pelo discurso acima
analisado. O próprio frei Patrício, dando continuidade à sua narrativa memorialística – e
sua interpretação da realidade e da Canção Nova a partir da perspectiva dos fantasmas
do passado que rondam o presente – diz que se trata de um movimento silencioso,
apesar de sua eloquência midiática, quase sorrateiro:
É... A orientação religiosa do povo é o Pe. Jonas. A gente vê direitinho. Então
Jonas é carismático também. Tá na cara que é todo um sistema carismático de
religião. Agora, a Igreja Católica tem esse problema, não é? Que entrou com
certa tranquilidade esses grupos pentecostalistas católicos, que chamava no
começo, oração do Espírito Santo, que veio trazido pra cá sobretudo por
alguns padres americanos. Que os jesuítas até chamaram... Por exemplo,
padre Haroldo Hans, de Campinas, ele veio e trouxe o movimento
pentecostalista lá dos Estados Unidos aqui para o Brasil, sobretudo da região
do Texas. Trouxe pra cá e era até um grupo bem sossegado, mas
devagarzinho foi entrando tipo Assembleia de Deus, Igreja Quadrangular,
esse mesmo tipo de religião de línguas, profecias, milagres, curas. Entrou
nesse imbróglio do pentecostalismo. O católico americano que tinha muita
afinidade com o protestantismo da Assembleia de Deus. Veio no mesmo
estilo, mais ou menos, e devagarzinho esse grupo predominou e que
predomina atualmente também. O que se percebe por aí... É difícil ter uma
paróquia em que a renovação carismática não está predominando na piedade
do povo. É muito difícil. A maioria é o grupo carismático que predomina,
mesmo que o vigário não está o tempo todo, mas eles vão assim mesmo.
261
Aqui, por exemplo, a gente vê direitinho (Frei Patrício, Caderno de pesquisa,
2010).
61
Às informações – e, portanto, se não a uma neutralidade do material sígnico,
certamente a um esforço por referencialidade – se seguem os esforços de interlocução e
a presunção de compreensão mútua, entre entrevistado e entrevistador. Há por exemplo
a localização do fantasma no Texas, que exige o diálogo a partir de conhecimentos
prévios semelhantes, de um universo sígnico compartilhado, para que haja a
semantização: é preciso que o interlocutor apreenda do discurso o perigo latente no qual
se sustentam informações passadas de forma pretensamente neutra. No exemplo, ao
lado das informações de igrejas pentecostais citadas, a localização espacial pressupõe a
série de valores simbólicos movimentados: o Texas é uma região de fundamentalistas
cristãos, de moralidade preconceituosa e segregacionista etc. Esse é o perigo apontado –
e eis o indicativo, no discurso, do “problema da Igreja”: sendo universal e presente em
todos os locais, ela, a Igreja, se abre a toda forma de experiência, sem que se avaliem os
reais perigos que porventura possa correr e, como denota o discurso, efetivamente vive.
A narrativa ganha a dimensão, novamente, de tensionamento e
distensionamento. Há, inclusive, o desejo expresso de intriga: os personagens
envolvidos tramam a realidade ao se encontrarem. E quais seriam esses personagens? O
antagonista é o líder da Canção Nova, monsenhor Jonas Abib; o protagonista é,
também, agonístico: o católico em geral, que é ameaçado pelo antagonista, formado
tanto pelo “povo da periferia” que é conduzido pelo espírito pentecostalista, como por
aqueles que não concordam com esse tipo de religião, mas se sentem ameaçados por ele.
Entre os últimos está o próprio frei e seus médicos, psiquiatras, psicólogos, humanos da
elite.
Note-se como se dá a tensão da narrativa: a frase “A Igreja tem esse
problema, não é?” é quase uma autorreflexão, um pensar alto. Soa como um pesar pelos
avisos não ouvidos e que resultaram ao final, hoje, na efetivação do que outrora era
apenas ameaça. Essa autorreflexão abre o tensionamento da narrativa. É claro que a
Igreja, aberta, não poderia antever o perigo: o inimigo é sagaz e entrou “devagarzinho”,
sem se mostrar por inteiro.
Depois da série de informações, de descrições referenciais, que, como
vimos, pretendem garantir a verdade histórica do que é narrado, há o tensionamento
61
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
262
final: “Entrou nesse imbróglio do pentecostalismo”. A Igreja permitiu que o inimigo
entrasse por sua porta da frente e agora vê o visitante, antes pouco ameaçador, dominar
as ações, dominar o espírito. É a vitória final.
O perigo representado, segundo os padres e também entre os fiéis católicos,
como vimos na pesquisa quantitativa, para a hegemonia da Igreja, se transmuda, em
consonância à posição ideológica do enunciador. Caso haja uma proximidade com os
carismas que fundamentam a TV Canção Nova e que são por ela propagados, o perigo
apontado se torna institucional. Evidentemente, os discursos se atenuam ou se tornam
mais agudos em conformidade com a visão de mundo de cada pároco: conforme seu
tempo de sacerdócio, sua congregação religiosa, o público que atende. Mas, via de
regra, os perigos apontados são de configuração semelhante, se se compara àquele
perigo, estudado anteriormente.
O padre Luis Carlos, por exemplo, é um pragmático. E, por isso, mesmo não
sendo exatamente um teórico, um eclesiólogo, tem posições muito firmes em relação à
TV Canção Nova. Sua entrevista ficou em suspenso por uns instantes, porque o padre
não compreendia as razões por que estudar a TV Canção Nova. “Tem tanta coisa mais
interessante na Igreja”, disse, de entrada, para demarcar o seu terreno. O interessante, à
pesquisa, porém, é exatamente seu pragmatismo: pároco de uma igreja considerada de
ricos, ele se orgulha das ações sociais que desenvolve para ajudar “os pobres”. Seu
discurso caminha nesse sentido – mas o perigo advém do temor da invasão:
Essa semana mesmo eu participei de um pedacinho de uma celebração, era já
de noite, eu não lembro mais que hora que era. Um dia que tinha uma reunião
marcada aqui e não teve a reunião e eu fui ver televisão que é uma coisa que
eu não faço muito. Não tenho paciência, nunca aprendi ter paciência na frente
da televisão, porque eu acho que sou crítico demais, então não consigo às
vezes nem ouvir certas coisas que as pessoas engolem com facilidade (Padre
Luis Carlos, Caderno de pesquisa, 2010).
62
A guerra dos deuses, na boca de um padre que se mostrou, de início,
diferentemente dos demais, bastante refratário a sequer conversar sobre a temática
proposta, se esclarece desde já na distinção: a Canção Nova, tema do discurso
incidental, é colocada no mesmo patamar de sua principal máquina de transmissão
simbólica: a TV. Nesse caso, as atividades do padre, quaisquer que sejam elas, mas,
segundo o que nos desnuda o discurso, as atividades paroquianas, são mais importantes
do que qualquer coisa na TV – logo, na Canção Nova. E por que? Porque na sua
62
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
263
paróquia, onde há prioridade para as reuniões, as pessoas que delas participam não são
as mesmas que “engolem com facilidade” o que é visto na TV – e, mais uma vez, na
Canção Nova. Isso ocorre não apenas por afinidade entre paroquianos, mas por uma
distinção, que inclui a si próprio, obviamente – e, mais, de que ele é o responsável
direto: a formação crítica. É claro que o objeto a que se refere o discurso é o próprio
padre Luis Carlos, mas a frase que demarca sua posição em relação ao discursado é
cheia de nuances: “(...) porque eu acho que sou crítico demais, então não consigo às
vezes nem ouvir certas coisas que as pessoas engolem com facilidade”. O advérbio
adjetivado “demais” aponta para as razões mesmas do ser crítico: é sua tarefa, como
pároco, ser crítico além da crítica, ser mais crítico que os outros, para que os seus
paroquianos não engulam o que as outras pessoas engolem. A frase seguinte também
aponta para isso: se os seus paroquianos veem Canção Nova, é seu dever, ainda que às
vezes, para que a distinção excessiva não crie uma barreira entre si e os paroquianos,
sequer ouvir. A distinção é providencial – e diz respeito à sua própria ideia de Deus,
ainda que ela seja pragmática. A sequência do discurso indica isso, revestido de um
princípio de caridade, que o coloca em choque com o divino narrado na Canção Nova:
Mas, quer dizer, a missa estava distante do povo. É uma missa para Deus, e a
missa não é para Deus. A missa é a celebração de um povo de fé - está certo?
- que reúne para escutar a palavra de Deus, manifestar o louvor a Deus, a
gratidão a Deus e que Deus abençoe e santifique o povo. Então, a missa é
voltada para Deus. Quer dizer, a gente nota que é uma – a palavra não é boa
não, mas é essa mesmo – ideologia do movimento religioso e não da
catequese da Igreja. Acho que nós não celebramos pra Deus, não, Deus não
precisa de nosso louvor, não. Nossa Igreja tem que se preocupar e fazer com
que nosso povo encontre com Deus, celebre com Deus e encontre em Deus
uma força que realmente a gente precisa. Agora que teve uma religião pra
Deus, o louvor é só pra Deus. Porque na verdade quem está construindo o
mundo é o homem, quem está construindo o mundo hoje somos nós. Com
toda essa situação confusa que está aí, não é? Porque somos nós que estamos
construindo o mundo à imagem e semelhança de Deus, que ele nos fez. Então
eu acho assim que talvez é preciso dizer isso pra que a pessoa não fique,
como diz... ficando besta, né? (Padre Luis Carlos, Caderno de pesquisa,
2010).
63
Há, no discurso, um posicionamento ideológico importante, que será
explorado posteriormente. Por ora, interessa notar o matiz daquilo que foi anunciado
anteriormente: a invasão praticada pela Canção Nova. Essa invasão é enunciada com os
tons de uma eclesiologia: a missa é para o povo, não para Deus. A questão é como se
enunciou tal proposição: note-se que o discurso parte do impessoal e, à medida que se
vai refutando a posição ideológica que é julgada equivocada, na mesma proporção há
63
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
264
uma aproximação do sujeito da enunciação. Primeiro, com o uso da locução “a gente”,
para, em seguida, o narrador se posicionar na primeira pessoa do plural. Enquanto
esteve tratando do outro, a narrativa era heterodiegética – o uso do impessoal garante
esse recurso do narrador “de fora”. Feita a distinção e com o relato se dirigindo para a
própria concepção de Igreja e de Deus, o narrador se torna homodiegético – narra “de
dentro”, mas ainda enxerga as ações “de fora”. Porque o “a gente” implica o “todos
nós”, inclusive o ele. A questão é que o “ele” se recusa a participar do “todos nós”. Por
fim, na distinção final, e já tendo conseguido o recurso narrativo de separar o
personagem do narrador, este se torna autodiegético: o “nós” inclui, sim, o “todos nós”
e, obviamente, o “a gente”, mas ele se refere a um nós potente. Isso implica: nós
estamos construindo um mundo – todos nós somos responsáveis e “eu” tenho
responsabilidade sobre todos nós. É nessa medida que o narrador se torna autodiegético:
narrador “de dentro”, participante da fábula e personagem principal dela. O ato final do
discurso retoma o narrador heterodiegético para afirmar: “eu” acho que é preciso dizer
para que “a pessoa” não fique “besta”. Na trama geral do discurso, compreendido como
uma narrativa, é possível dizer que “ele” são os que engolem facilmente a Canção Nova,
ao passo que “eu” sou o guardião crítico para o “a gente”, que não engole com
facilidade o que vem pela TV Canção Nova, e para nós, que inclui e ao mesmo tempo
exclui o ele – a Canção Nova e seus seguidores, contra o qual “eu” sou guardião e do
qual um salvador.
Evidentemente, as razões para que se realize tal posicionamento não foram,
ainda, esclarecidas – e elas são de fato nobres, mas tão nobres quanto a própria Canção
Nova, motivo da crítica. Além disso, essas narrativas, esses olhares que enxergam a
invasão vinda desde a Canção Nova – seja por que perspectiva for: do capitalismo
internacional ou nos corações e mentes dos incautos que engolem qualquer coisa -, são
contadas por críticos da TV Canção Nova. Isso é em parte verdadeiro. Como nosso
esforço, aqui, tem sido de buscar semelhanças nas diferenças, pode-se dizer que também
entre os padres cujos discursos se apresentaram como simpáticos – ou no mínimo
menos refratários à Canção Nova -, também para eles há um apontamento de perigo.
É o que se vê no discurso do jovem padre Crystian Shankar, que
recentemente se lançou como padre cantor, mantém programas de rádio com estratégias
carismáticas, e tem suas missas sempre com lotação máxima:
Quando eu entrei, a rejeição era total à Canção Nova. Total. Hoje em dia a
gente não vê esses comentários, né. Tem muito seminarista que assiste
265
Canção Nova, que tem CD da Canção Nova, que tem aquele jeito de pregar
da Canção Nova. Eu vejo que tudo aquilo que é do Espírito Santo, ele tende a
consolidar na paz. O que não pode haver, que até alguns padres já falaram e a
gente tem que ficar atento, é que a Canção Nova não se transforme, eu vou
falar e você vai entender bem, numa igreja dentro da Igreja, quer dizer, a
gente tem um jeito... Não! O nosso jeito é esse. Então, não existe. Existe se
você é católico o seu jeito católico é mundial, né? O que difere é a
espiritualidade. Hoje em dia eu não ouço tanto, não, mas numa época a gente
ouvia mais: “Ah, você é o que? Ah, eu sou católico. E você? Ah, eu sou
carismático, eu sou católico carismático”. Parece que era um outro tipo de
católico. Até na fala mesmo da Canção Nova mudou muito. Eu mesmo já
escutei padre Jonas falando várias vezes, quando eu era seminarista, a
questão da vinda de Cristo. Que o Cristo viria, que vai nos levar pra salvação
no paraíso. Hoje em dia você não ouve mais esse discurso, acabou, em livro,
acabou. Quer dizer, houve uma evolução na questão da escatologia, na
questão do fim. Então eu acho que a Canção Nova, ela tem, ainda, pra fazer
pra Igreja muita coisa boa. Que ela está amadurecendo. Igual um bebê, ele
começa a andar, começa a errar muito, mas depois ele vai acertando. Eu acho
que a Canção Nova está nesse processo. Até mesmo as reflexões que vão ter
com os bispos, vamos lá, outros pregadores, eles estão diminuindo muito
aquela questão daquela fala miraculosa e pegando mais a identidade da
pessoa enquanto agente de transformação. Eu vi um dia desses, não sei quem
é o padre, nem sei se é padre, ele falando sobre a ação do homem. Eu vi
pouco, uns dez minutos. Espetacular! Pelo que parece, ele é filósofo. Ele
falou sobre que o homem é responsável pelo meio que vive e pela ação. Quer
dizer, esse discurso, há dez anos atrás, nunca que a Canção Nova ia transmitir
uma coisa dessas. Porque ela transmitia essa questão de Deus. Tudo estava na
mão de Deus. Hoje eles já estão falando uma linguagem mais rebuscada, até
na própria teologia. O livre arbítrio, a opção do homem. Acho que foi um
caminho bom. O que não pode acontecer jamais com a Canção Nova ou com
outra emissora qualquer é ela ter uma linha paralela à linha da igreja,
pastoral. Se caminha de mão dadas, o modo como caminha, isso não influi,
não. Se mantém o essencial. Tem até aquela frase, né? No essencial, a
unidade; no secundário, a liberdade; em tudo, a caridade. Se o essencial está
tranquilo, o modo como vai passar está tranquilo (Padre Crystian Shankar,
Caderno de pesquisa, 2010).
64
A perspectiva tem uma mudança considerável na voz de um padre jovem,
que se identifica com a Renovação Carismática e tem na Canção Nova, na TV Canção
Nova, senão um espelho, uma matriz de Igreja importante. De qualquer maneira, há um
perigo – o perigo da transmissão mesma. É verdade que o discurso, feito por um
narrador que nutre simpatia pelo objeto da fábula narrada, matiza bastante esse perigo.
A cronologia narrativa demonstra bem isso: antes, havia uma rejeição total. Aos poucos,
a aceitação foi se consolidando, em duas frentes, que se interligam: o consumo, pelos
religiosos, inclusive padres e seminaristas, aumenta, e exige um reposicionamento
institucional da Igreja e da própria Canção Nova. De fato, padre Crystian parece se
referir àquele movimento, descrito por Weber (1996), de toda renovação carismática:
primeiro, há uma radicalização das posições carismáticas; mas à medida que a ruptura é
64
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
266
aceita e renova a Igreja, elas se enfraquecem e se institucionalizam. Nessa medida, o
discurso de padre Crystian, embora faça referência ao fenômeno estudado por Weber
(1996), indica uma perspectiva teórica apenas: há o perigo de a Canção Nova, por meio
de TV, se transformar em uma igreja dentro da Igreja? Não: havia. Por que a Canção
Nova é do espírito santo – e se consolidou na paz. Encontrou um caminho bom, que
coloca nas mãos dos homens, e não de Deus, a tarefa de construir o mundo – e, mais, a
própria Igreja. A Canção Nova, inegavelmente, não romperá com o catolicismo - e isso
pode ser visto pela sofisticação de seu discurso, pela presença, outrora impensável, de
filósofos, de teólogos, de pessoas ligadas à hierarquia da Igreja. Está bem comportada.
Ou, mais ainda: é útil à Igreja Católica, por seu poder de alcance, seu maquinário de
transmissão simbólica. Como um bebê, foi lenta e seguramente “socializada”, para se
tornar hoje um adulto bem comportado.
Evidentemente, o discurso aponta para a própria condição do narrador: sua
proximidade com a linha teológica da Canção Nova, sua relação com as formas de
transmissão, de alcançar os fiéis pela espetacularização dos rituais. Trata-se de um
posicionamento, senão defensivo, certamente, mais uma vez, de distinção. Aos críticos,
que consideram suas performances exageradas, ele manda um recado: está apenas
ajustando os rituais aos novos tempos – e isso não é ameaça à Igreja. Ao contrário,
vejam a Canção Nova e sua contínua evolução; sua transformação; sua civilidade;
vejam como ela é importante para a Igreja Católica. A despeito da narrativa do padre
Crystian e sua convicção – com efeito comprovada – de que os novos tempos exigem
novas formas de evangelização, e que só assim a Igreja Católica sobreviverá à
concorrência no mercado simbólico – religioso e não religioso -; a despeito da sua
narrativa e do apontamento de que a teologia da Canção Nova evoluiu para uma teologia
do “livre arbítrio, da opção do homem”, essa ação humana é restrita à manutenção da
vida, à conservação das condições sociais. Há então um tipo de eclesiologia, com que
concorda e de que partilha padre Crystian, voltada para uma Igreja devocional,
espiritualizada, mas também da ação humana. Claro, de uma ação de classe média: de
compreensão das estruturas da vida, por um lado, e, por outro, de uma atitude caritativa
em relação aos pobres e oprimidos.
Assim visto, não parecem claras as razões por que se critica o excessivo
devocional da Canção Nova e a transmissão de tal divindade pela TV Canção Nova.
Não são claras porque, a rigor, há uma defesa de posições de classe também por quem
critica, e as ações propostas também dizem respeito às caritativas. No entanto, é
267
exatamente isso o que fazem os padres críticos – e esse é o centro da crítica.
Padre Luis Carlos anuncia o âmago crítico – e antevê a contradição que se
estabelece nos discursos que apontam na perspectiva de um debate eclesiológico:
Desde o começo foi observado e é observado até hoje, quer dizer, há algum
fanatismo religioso nisso daí também. Então, eu respeito as pessoas que é
desse movimento, respeito o movimento, eu não tenho nenhuma relação com
o movimento. Até mesmo, tem grupo aqui em Divinópolis, como o Maria de
Nazaré, muitas vezes me convidou para ir fazer palestra para eles. Aliás, é
um grupo que eu admiro muito, que é fruto da Renovação Carismática. Mas
eles têm um trabalho muito bonito em Divinópolis hoje, muito bonito. E eles
não ficam nessa coisa do movimento. Quer dizer, eles, acho que eles
avançaram. Acho que eles avançaram, como tem outros grupos por aí, que
são frutos da Renovação Carismática e que estão hoje fazendo um trabalho de
assistência social, de promoção humana extraordinário. E é isso que Deus
quer. Se Deus nos ajuda, nós temos que fazer uma parte. Vou rezar lá e
deixar o povo morrer de fome? Espera aí, vamos buscar comida agora (Padre
Luis Carlos, Caderno de pesquisa, 2010).
65
Padre Luis Carlos se refere à Renovação Carismática Católica – e seu
discurso vai da acusação de um fanatismo religioso à compreensão de que houve
“avanço” em relação às ações daqueles que critica. Obviamente, esse avanço se dá em
relação àquilo que o narrador considera ser o correto, e é claro que se trata de sua
própria concepção da ação correta. É nessa medida que deve ser compreendida a
evolução da crítica – do fanatismo à concreta e correta teologia, a da ação, há um
contínuo procedimento de concessão.
Depois de identificar um fanatismo religioso dos movimentos carismáticos –
que, reitera-se, são utilizados para fundamentar a crítica à TV Canção Nova -, há,
imediatamente, um recuo em nome da convivência religiosa. O movimento de
semantização é interessante: porque há fanatismo, eu não tenho nenhum envolvimento;
mas em nome da convivência pacífica, há o respeito às pessoas “desse movimento”. O
processo de significação seguinte é realizado para justificar a aparente contradição. “A
mesmo” – ou até porque tem um grupo que faz atividades com que padre Luis Carlos
concorda e que são as atividades que julga serem as corretas, fruto de uma teologia que
pratica. Em seguida, novo reforço de aproximação, sem deixar de demarcar posições.
Há, para tanto, uma série de articuladores com valor concessivo: “aliás”, é um grupo
que admiro muito – o que é um mesmo que dizer: admiro, apesar de ser carismático.
Em seguida, há o conectivo adversativo, com valor igualmente concessivo: “mas” eles
têm um trabalho muito bonito. Ou seja: apesar de serem carismáticos, têm um trabalho
65
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
268
bonito. Por fim, o articulador aditivo “e”, igualmente com valor concessivo, desta vez
para reforçar o sentido construído anteriormente: “e” eles não ficam nessa coisa de
movimento – só por isso concordo com eles. Os demais articuladores reforçam tal
posição concessiva – inclusive o metadiscursivo “quer dizer”. Há um esforço do
narrador para dar conta da completude e não contradição do que é dito – e apontar para
a sua própria ideia de Igreja, para sua própria versão de Deus.
Mais adiante, padre Luis Carlos faz uma reflexão sobre a TV Canção Nova
e volta à carga nas críticas – e ao cerne de sua crítica.
A Igreja diz que todas as pessoas têm direito de ter missa no domingo. Mas
como que nós aqui na diocese de Divinópolis vamos atender a quinhentas e
quarenta e cinco igrejas se nós temos hoje setenta padres para atender? E
quando eu falava isso, um jovem lá disse: padre, mas por que a Igreja permite
uma TV Canção Nova celebrar uma missa lá com dez, quinze, vinte padres?
Por que esses padres não vão celebrar nas comunidades? Então, ele dizia,
eles estão fazendo um desfile de vaidade religiosa lá. Essa é a palavra que o
moço falou. Por que eles se mostram na televisão, se aparece na televisão
como padre, mas o povo está morrendo de fome? Morrendo de sede da
presença do padre que abençoa, que santifica, que sacramenta. No entanto
eles enchem lá o estúdio, enche lá aquela coisa deles lá, quer dizer, para as
mesmas pessoas, enquanto o povo aqui morre de fome. Então eu acho que a
mídia católica tem que fazer uma mudança. E a Canção Nova,
principalmente, ela precisa fazer uma mudança. Dar espaço, levar outras
pessoas ou mesmo, que sejam eles mesmos, do movimento da Renovação
Carismática, que é o que sustenta hoje a Canção Nova. Quer dizer, inclusive
não concentrar essa quantidade de pessoas, que, aos olhos do povo da igreja,
isso é um mal (Padre Luis Carlos, Caderno de pesquisa, 2010).
66
O que se vê aqui é o pomo da discórdia: a luta material pelos recursos dos
disponibilizados pelos fieis. Porque a ação, como veremos adiante, a rigor, é a mesma:
Canção Nova ou paróquias realizam caridade, amparam o povo necessitado. E TV
Canção Nova leva mais além esse amparo – muito além do que o medium físico da
paróquia pode levar. A disputa, que tinha tons ideológico-espirituais, ganha contornos
materiais: a TV Canção Nova é condenável, enfim, porque deveria, mas não se abre
para todos nós, que somos a diversidade da Igreja. Nesse caso, o “todos nós” é
reivindicado de forma diferente em relação àquele narrador anteriormente analisado.
Aqui, “todos nós” pode implicar a totalidade da Igreja, mas certamente indica mais uma
reclamação muito presente da ausência de grupos da Igreja, entre os quais o padre Luis
Carlos se encontra. “Todos nós” então significa: nós que sabemos o que fazer com o
que “eles” têm. Há, por isso mesmo e é claro, uma assunção do poder da TV Canção
Nova – e é isso o que assusta. O susto faz provocar as críticas que se avolumam: a TV é
66
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
269
o lugar do espetáculo, da vaidade – e, assim, há um contraponto entre a verdade e a
mentira, percebido pelo desdém com que o discurso nomeia a TV Canção Nova: “eles
enchem lá o estúdio, enchem lá aquela coisa deles lá, quer dizer, para as mesmas
pessoas, enquanto o povo aqui morre de fome.” Além da demarcação dos terrenos, o
uso dos sintagmas denuncia uma disputa mais acirrada: “enchem lá aquela coisa lá
deles”, ao passo que “aqui o povo morre de fome” denuncia uma disputa de tecnologias
de transmissão, uma disputa que claramente está sendo perdida pelo maquinário
“daqui”. É, afinal, a matéria que é mobilizada: a Canção Nova tira oportunidades das
paróquias porque é muito mais forte.
É frei Patrício em sua narrativa memorialística, que indica o sentimento
geral das críticas: a colonização dos espíritos, realizada nesse caso, pela Renovação
Carismática Católica – mas completamente identificada com as razões do sucesso da
TV Canção Nova:
Eu tenho que o frei Theodoro, que era o vigário aqui, não concordava com
aquela gritaria que tinha aqui, sempre segunda-feira. Mas eles... Vamos
supor, com a juventude, eles conquistaram a juventude, tem que ver isso com
clareza, eles conquistaram os jovens, uai. Para rezar, essas coisas, eles não
querem mais saber... Vamos supor, padre que tenta fazer uma PJ, Pastoral da
Juventude, tentando resgatar aquele período de JAC, JEC, JOC, JUC. Aquela
coisa de reflexão crítica, compromisso sociopolítico, de comunidades
eclesiais de base. A PJ que tem feito esforço para isso não consegue êxito
não, viu. O pessoal prefere ficar duas horas louvando o senhor do que ficar
meia hora refletindo um tema político, um tema social, um tema de miséria
(Frei Patrício, Caderno de Pesquisa, 2010).
67
O “eles” em questão no discurso de Frei Patrício denuncia sua negativa em
participar – o que é óbvio e já foi apontado anteriormente. Mas, desta vez, a demarcação
de terreno eclesiológico ganha contornos melancólicos. Como a juventude prefere
louvar o senhor, e “eles” têm sido a maioria nas Igrejas, o terreno do “nós” tem sido
cada vez mais restrito. O discurso apresenta algo de introspectivo. A interjeição “uai”,
marca do regionalismo, é utilizado como se houvesse uma interrupção no discurso,
como se o narrador respondesse a alguém que lhe tenha contra-argumentado – e exigido
dele uma posição didática, exclamativa, quase estupefata: “uai!” Como quem diz: “eles
conquistaram os jovens – eis o seu poder”. E, assim, a narrativa memorialística toma
corpo: há uma falta “daqueles tempos”, quando os diversos movimentos da juventude
católica, enumerados de forma automática, como uma sequência de vogais num jogo de
67
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
270
palavras.
68
Mas por que “aqueles” tempos não são resgatáveis? Aí está o tom
melancólico em questão: ora porque não há espaço efetivo para que se faça o resgate de
uma utopia perdida; ora porque tal utopia, como será discutido posteriormente, foi
rechaçada pela Igreja justamente em razão de sua eclesiologia atacar o seio eclesiástico
e propor uma divindade distinta da Católica Apostólica Romana; ora porque há aí uma
assunção de que os recursos retóricos que mobilizam a juventude – e ademais os
católicos em sua maioria – não são completamente apropriados por aquela Igreja que
precisa, mas não pode, ser resgatada. Não pode porque se trata afinal de uma disputa de
deuses – ou antes: de sagrados.
É dessa maneira que, embora haja uma percepção clara de que o catolicismo
seja um foco de resistência à civilização construída pelo capitalismo, há, na maioria das
críticas, uma associação entre a TV Canção Nova e esse modo de vida capitalista. Tal
associação se dá na relação feita entre a TV católica criticada e as religiões não-
católicas, especialmente as cristãs neopentecostais e mais especialmente aquelas
mantidas no e pelo sistema midiático. É o que faz monsenhor Eustáquio, que também
pode ser considerado “aberto” em relação às formas de evangelização telemáticas:
A influência é grande tanto nos canais de outras igrejas como os canais
católicos. Só que as outras igrejas salientam muito essa posse do demônio,
que a falta de dinheiro é... E elas fazem uma verdadeira lavagem cerebral na
cabeça das pessoas. O sujeito chega lá, o pastar, o R.R. Soares faz uma
verdadeira lavagem cerebral na cabeça das pessoas. Porque se você fizer isso,
você vai fazer isso... Você tem de dar. Você dá uma contribuição de cem
reais. Ele começa falando de cem reais. Né? Então, a pessoa ela é
sugestionável. Eu acredito que as canções, que as televisões que são
católicas, elas não fazem, graças ao bom Deus, elas não fazem muito
mercantilismo (MS. Eustáquio, Caderno de pesquisa, 2010).
69
Essa proximidade - ou, mais própria e justamente: essa tolerância - de MS.
Eustáquio com as formas midiáticas do catolicismo o faz dar uma guinada ideológica no
discurso. O ímpeto inicial é de associação imediata entre o que considera demoníaco e a
TV Canção Nova. O intradiscurso, notadamente tradicional, numa lógica que
acompanha, ademais, a crítica que se faz à TV Canção Nova normalmente, realiza uma
aproximação perigosa entre demônio, capitalismo, mídia e tele-igrejas, de um lado, e o
contraponto a esse diagrama, com a Igreja Católica como princípio e fim. O ímpeto
inicial de associar imediatamente o demônio a qualquer forma de telerreligião é logo
68
JAC: Juventude Agrária Católica; JEC: Juventude Estudantil Católica; JOC: Juventude Operária
Católica; JUC: Juventude Universitária Católica.
69
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03/10/2007, Casa paroquial da Paróquia de N.S.
Aparecida – Bairro Bom Pastor - Divinópolis/MG
271
sanada pela lembrança tardia e forçada de que a TV Canção Nova é afinal católica. O
resultado disso é o isolamento do demônio e todo seus acólitos infernais “do lado de lá”,
entre os não-católicos, que imediatamente são associação ao capitalismo.
O discurso, nessa mesma medida, de padre José Carlos, é muito mais
nuançado. Ele a rigor aponta para o caráter religioso do capitalismo e a incapacidade
que vem tendo o cristianismo hegemônico – e não só aquele da telerreligião da TV
Canção Nova – de se contrapor como um outro lugar de transcendência, como outro
lugar de organização da vida:
Qual a diferença entre capitalismo e cristianismo? Acho que a questão passa
pelos critérios, pelos valores, pelo valor do outro, pela utopia comum ou
particular que os dois têm diferenciadamente, né, pela visão de história, não
é... Pelo lugar que ocupam os que o sistema relegou à margem. Há duas
maneiras de lidar com os pobres: uma a partir do capitalismo e outra a partir
de um cristianismo original. Aqui são... Esse grupo de pobres, ele é visto de
maneira bem diferenciada por esses dois, essas duas leituras, o capitalismo e
o cristianismo. E até isso o cristianismo perdeu. A sua vinculação com os
pobres, a sua proximidade com os pobres, né... Até isso está grandemente
perdido. Não... Assim, eu não vejo, vamos dizer assim, que o cristianismo
tomou a parceria dos grandes. Mas o que eu vejo é que perdeu o profetismo,
o que é pior. Eu não acho que o cristianismo está do lado dos grandes. Eu só
acho que ele se calou. Ele perdeu o sabor. Ele não incomoda mais. Ele perdeu
as suas opções preferenciais. Ele perdeu seu público alvo, que deveriam ser
os pobres de Deus. Para mim, aqui está a grande guinada do cristianismo.
Quer dizer, teoricamente, está a serviço da máquina. Ele não está falando, ele
não está falando contra a máquina, mas ta a favor dela. Quer dizer: ele não
falando a favor da máquina, mas também está a favor dela enquanto não fala
nada. Na cabeça de Jesus, o cristianismo tinha que ser um projeto alternativo
viável, possível, que fosse encarnado ou que... ou que poderia ser encarnado
em qualquer tipo de regime ou situação humana e social. Agora, hoje, como o
cristianismo está posto, eu não o vejo assim. Não vejo assim exatamente por
isso. O cristianismo, eu não vejo o cristianismo como um projeto paralelo.
Deveria ser. Deve ser. Essa é a utopia do cristianismo. Ele vai ser utopia,
enquanto ele for um projeto diferenciado daquela utopia capitalista (Padre
José Carlos, Caderno de Pesquisa, 2010).
70
Aquela melancolia, antecipada em outro momento no discurso do mesmo
padre José Carlos, aqui também se faz presente. A diferença é que, agora, essa
melancolia se abre à possibilidade – representada aqui pelo vocábulo “utopia”, repetido
ao longo do trecho em destaque. Aqui, no lugar da perda incontornável representada
pela preferência demonstrada pelos fiéis em relação à utopia do capitalismo – se se pode
fazer coro com o discurso analisado -, perda que está associada à ideia da telerreligião e
suas consequências: individualismo, consumismo etc. -; no lugar dessa perda, há
apontamento das formas de sagrado que se digladiam: o capitalismo e seu ato mesmo, o
consumo, e o cristianismo, compreendido como a construção local do comunitário. De
70
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2007, Casa Paroquial da Paróquia S. Judas
Tadeu – Divinópolis/MG
272
qualquer maneira, há uma certeza de que se trata de dois projetos distintos para o
humano – mas, se há potência no discurso, ele se perde no próprio projeto de construção
de um sagrado “paralelo” à religião do consumo. Pois a proposta, na superfície do
discurso – e, assim, onde ele se ancora - está em quem pastoreia melhor os “pobres de
Deus”.
Assim, veremos que a guerra dos deuses se estabelece também como uma
guerra pelos recursos materiais mobilizados – e que, no fim, o que interessa é o domínio
desses recursos. Em outras palavras: a crítica que se faz à TV Canção Nova, inclusive
aquele que diz respeito a um fortalecimento do virtual, das identidades forjadas no
consumo, em detrimento do comunitário presencial, face-a-face, se dá em nome das
ações para os pobres. Mas em nenhum momento há uma proposta além da ajuda a eles,
os pobres; em nenhum momento a ação escapa das mãos autorizadas da Igreja, essa
pastora. Em um ou outro caso, a disputa pelo sagrado se dá no interior do mesmo
sagrado: aquele do pastoreio. É nessa medida que interessa compreender melhor como
se constroem as identidades forjadas por esse sagrado.
2. Identidade
A identidade, compreendida como direito à diferença, se tornou uma das
principais armas da luta política contemporânea – ao menos tem sido essa a bandeira
levantada por uma ideologia que se recusa como tal: o pós-modernismo. Trata-se da
tentativa de transferir para o indivíduo o que, segundo os pós-modernistas, a
modernidade aprisionava na sociedade. É nessa medida que as políticas de identidade e
do corpo, numa estetização da vida e numa liberação da história material, ganharam o
poder político, senão emancipatório, certamente estético.
É praticamente impossível não se pensar em identidade e em políticas de
identidade contemporaneamente. É a ela a que se refere o sistema midiático; é em torno
dela que são travadas as disputas simbólicas. Por isso, não haveria outra forma de a TV
Canção Nova se desenhar no horizonte contemporâneo. Essa luta, por se mostrar viável
no mercado das identidades, contudo, tem um caráter ambíguo, no caso da TV Canção
Nova: ela não pode abrir mão das políticas de identidade e de se colocar como um
produto de forjar identidades; mas, por outro lado, é preciso que essa fluidez não seja
levada a ferro e a fogo pelos fiéis, pois isso acarretaria uma crise importante no seio da
Canção Nova - que se deseja Igreja Católica, universal e assentada no poder eterno, na
segurança do imutável, contrário, portanto, à mutabilidade das identidades negociadas
273
ao sabor da fugacidade do consumo.
Essa ambiguidade da Canção Nova é levada ao extremo, de forma
consciente, em seus programas de televisão ou em suas missões ao redor do mundo.
Seus programas, vimos, trabalham no limite entre a mutabilidade do consumo e a
segurança da instituição multimilenar católica. Ao final, claramente, a solução está em
reunir os elementos ambíguos em torno da simbologia de Deus. Em outras palavras, há
uma expectativa de que a assunção das políticas e práticas do consumo identitário seja
um instrumento para se chegar ao divino em uma época que diz respeito à
individualização das experiências e que tem justamente nas identidades forjadas pelo
maquinário midiático planetário o elemento de unificação. Esse movimento não é
realizado sem consequências, no entanto: o toque de Midas da hegemonia assentada na
sociedade do consumo transforma também a TV Canção Nova em uma máquina
transmissora de espetáculos midiáticos que forjam identidades. Nesse caso, o eterno se
torna fugaz – e o fugaz é eternizado.
É nessa medida que se deve compreender a evolução do slogan da TV
Canção Nova: de, outrora, “Canção Nova: um jeito de ser”, ao atual “Ser Canção Nova
é bom demais”. Tal evolução pode, certamente, traduzir o processo de transformação –
ou de amadurecimento – institucional da comunidade católica, com consequente
aumento de poder simbólico, conquistado, maior parte, em razão do alcance da TV
Canção Nova. O que, entretanto, não deixa de apontar para aquela ambiguidade que a
um só tempo alimenta e incomoda uma instituição assentada na ideia do eterno.
A evolução do slogan da Canção Nova coincide com o processo de contínua
aceitação por parte de seu público preferencial – os católicos em geral. “Canção Nova –
um jeito de ser”, portanto, demarcava, sim, a identidade, a diferença reivindicada pela
comunidade, em nome de seu carisma, em relação, inclusive, à Renovação Carismática
Católica. Na despretensão da frase (“um jeito de ser”), há o poder de autoafirmação:
muito mais do que simples reivindicação de diferença, há aí um convite, uma vontade
de persuasão – sim: mais do que convencer, o que implica, portanto, um estar-com
sensorial, emotivo, a tarefa é persuadir racionalmente.
71
E isso ocorre pela distinção
prévia, conseguida com o recurso retórico da referência às políticas de diferença e
identidade. O jogo se estabelece assim nesse ir e vir do sentido – na afirmação-negação
das políticas de diferença. “Um jeito de ser”, diante dessa estratégia, ganha o sentido
71
Sobre isso, PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 2005.
274
grandioso de “aqui há existência plena”, sem que se perca a promessa deste mundo.
Uma vez estabelecido o jogo, pode-se enfim abrir mão do sentido primeiro da afirmação
da identidade, para a demarcação de um qualificativo definitivo: “é bom demais!” O
discurso implica, por óbvio, uma nova etapa de existência da Canção Nova: a do
reconhecimento de seu público, da aceitação do “jeito de ser”, para a afirmação
peremptória: aqui, você conhece, é melhor do que lá; ou: aqui tem tudo e mais – e
melhor – do que lá. O em questão tanto pode ser o mundo secular, quanto as
agremiações religiosas que assombram o catolicismo – e mesmo, pode-se dizer, ou
inferir do temor sentido pela maioria dos chefes paroquiais: melhor do que as suas
paróquias. Com efeito, a mudança do slogan coincide com o amadurecimento
institucional da Canção Nova e o aumento exponencial da audiência da TV Canção
Nova. Por isso mesmo, há uma relação estreita entre o dito pelo slogan e uma
transformação do discurso, especialmente nos programas de TV. Como bem notaram
alguns padres entrevistados, a Canção Nova já não trata mais do diabo como antes; ao
mesmo tempo, seu maquinário de produção e distribuição de produtos religiosos foi
enormemente incrementado.
Embora haja uma prevalência do sentido de segurança – diferentemente do
sentido de fugacidade qualificada do slogan anterior -, isso não quer dizer que tenha
havido o abandono da reivindicação da ideia de diferença. Ao contrário, o que se
conseguiu foi liberar a força desse sentido. E isso é sinal de poderio – simbólico e
material. Em vez de clamar pelo jeito de ser, afirma-se o ser Canção Nova de qualquer
jeito de ser. Ou, segundo a perspectiva aberta pelo slogan, cada um tem um jeito de ser
Canção Nova. Não importa o que você seja: seja Canção Nova. Há então uma
reafirmação da ambiguidade entre a política da diferença e a necessidade teleológica,
necessidade do fundamento último no eternamente igual a si próprio. O telos se torna
eficiência, resultado.
O resultado desse tipo de estratégia não poderia ser diferente – mas, no caso
do sistema Canção Nova de comunicação, capitaneado por sua TV, esse risco é
calculado. Como vimos no capítulo 3, a sede da Canção Nova é estruturada para ser
efetivamente uma espécie de parque de diversão – não apenas dos fiéis e peregrinos,
que se organizam em caravanas cada vez mais numerosas e se amontoam nas ainda
precárias instalações disponibilizadas por comerciantes da própria pequena Cachoeira
Paulista, ou moradores, que desocupam suas casas para transformá-las em pousadas e
restaurantes. Há também os fiéis estrangeiros, que enxergaram no crescente movimento
275
do turismo religioso uma oportunidade de negócio – e largaram tudo em suas terras para
encontrar a paz perto da Canção Nova.
O fato é que os turistas, cada vez mais exigentes e diversos, mantêm a
agenda de eventos na sede da Canção Nova sempre cheia durante todo o ano. Em época
de grandes eventos, chegam a Cachoeira Paulista, de cerca de 30 mil habitantes, até 200
mil pessoas. Nessas ocasiões, caso se queira comprar algum produto no próprio
shopping mantido dentro da Canção Nova, os fiéis terão de ter paciência, mesmo com
as mais de 15 caixas de pagamento, com os mais simpáticos e ágeis atendentes. Aos
finais de semana, invariavelmente, mas principalmente durante os eventos de grande
apelo popular – geralmente com a presença dos principais cantores católicos,
promovidos pelo sistema Canção Nova de comunicação -, invariavelmente podem-se
ver dezenas de ônibus, com caravanas de peregrinos, curiosos ou conhecidos, com
tempo livre para realizar uma pequena viagem. Não é raro que esses ônibus tragam na
bagagem, além da fé, alguma bebida alcoólica – e levem de volta para sua rotina alguns
bêbados.
É claro que, embora seja comum, não é a maioria dos que visitam a Canção
Nova que chega com essa postura de turistas irresponsáveis. Não se pode negar,
todavia, que a comunidade religiosa, muito em função do poderio de sua TV, se tornou
uma referência também para os que não estão muito interessados em fortalecer a sua fé.
Os diálogos que se seguem, realizados entre o pesquisador e os entrevistados na sede da
Canção Nova, dão bem a mostra disso. O primeiro foi travado com um jovem casal,
ambos com 17 anos, piercing nos narizes e orelhas, e cabelos coloridos. Eles residem
em Cruzeiro, cidade vizinha a Cachoeira Paulista, e para lá se deslocaram durante um
grande evento na agenda anual da Canção Nova, o Hosana Brasil:
É a primeira vez que vocês vêm à Canção Nova?
Júlio: Não.
Quantas vezes vocês já vieram?
Júlio: Nós já viemos... umas doze, eu acho.
Vocês vieram a primeira vez a qual evento?
Júlio: Era... PHN. Não, era Carnaval.
E qual é a motivação de vocês pra virem?
Júlio: Sei lá... [risos]. É... pra ter uma ideia de...
Stefani: Pra ver o movimento. Pelo evento.
Como assim pelo evento? O evento é importante?
Júlio: É, né. Tem muita gente.
276
Stefani: A gente prefere, né. Quando tem muita gente, assim, é melhor, né.
Júlio: Ver gente nova. O movimento mesmo, né.
E vocês seguem a Canção Nova?
Júlio: Não. [risos]
(Júlio e Stefani, estudantes, 17 anos, Cachoeira Paulista, Caderno de
pesquisa, 2010).
72
O segundo diálogo aconteceu em um evento de menor porte – mas nem por
isso a conversa entre o pesquisador e um casal de motoqueiros, regiamente
paramentado, com seus coletes e roupas pretas, seus anéis, suas caveiras, é menos
importante:
Eu vi vocês passeando, me deu vontade de perguntar se vocês são fiéis.
Porque é curioso, né...
Homem: Não, a gente tá viajando e passou por aqui pra conhecer. É, não,
perguntaram inclusive por causa da divisa, que é de capitão. É mania do
pessoal do motoclube, né. Aonde a gente vai, a gente troca figurinha. Eu
daria o meu brasão e você daria o seu. E a gente tem essa convivência. E
outra: eu ainda nem fui escudado. Escudado tem esse emblema, de tamanho
grande, aqui atrás. Eu tô no motoclube, mas não sou escudado. Eu sou falcão,
mas ainda não fui legalizado. Mas a gente saindo de moto, com esse chapéu
oficial e paramentado, o que acontecer na estrada, até os guarda apoia a
gente, como motociclista mesmo.
E o pessoal da Canção Nova, os peregrinos, eles estão parando vocês?
Homem: Não, a gente tá sendo ainda...
Mulher: Teve até um que parou ali.
Homem: Eu falei com ela: se prepara porque a cidade é pequena. Os trajes da
gente é diferente. Entendeu? Isso aqui é... Quando eu saio de moto, os meus
traje é esse. É como se fosse o meu cartão de visita (Casal de motoqueiros,
Cachoeira Paulista, Caderno de pesquisa, 2010).
73
Os diálogos são transparentes – embora os discursos empreendidos guardem
riquezas que merecem seu escavamento. No primeiro caso, os jovens que se identificam
com alguma tribo urbana, o fazem por mimesis, por tradução – ou por metonímia, uma
vez que se costumam se associar tais tribos a megalópoles ou à complexidade do modo
de vida urbano. Embora haja o consumo – e identificação – do casal com essas
personas, não se pode negar que eles, em Cruzeiro, estão deslocados em sua
expectativa. Eis, nesse caso, a possibilidade aberta de análise: há, no depoimento dos
jovens, algo de constrangimento por terem sido, de alguma forma, descobertos naquilo
que poderia ser considerado uma fraude. Eles não são fiéis e vão à Canção Nova, com
72
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
73
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 01/11/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Acampamento da Sobriedade.
277
alguma frequência, em razão do movimento gerado pelos grandes eventos, que preferem
e pelos quais se mobilizam. Há então, ao que parece, uma espécie de simulação da
megalópole e seus signos, com que se identificam. Se de fato houve algum
constrangimento pela descoberta da fraude, ele logo se dissipou. Por isso o discurso está
entre o lacônico e o blasé. Fomos descobertos, mas pouco nos importa – e é isto o que
parece buscar o jovem casal: desaparecer na multidão. Serem diferentes, mas iguais; e
isso só é possível em um lugar que promete a um só tempo diferença e semelhança. Eis
aí a Canção Nova lançada, sem filtros, na selva do simbólico excessivo.
O segundo diálogo é, a despeito de sua proximidade fenomênica com o
primeiro, diametralmente oposto em relação ao discurso. Aqui, o que o casal de
motoqueiros quer – e isso fica evidente pelo discurso proferido – é ser visto. Há, no
discurso, um certo afã por dizer tudo o que foi aparentemente preparado para ser dito. O
fato de serem aspirantes em sua tribo parece aprofundar esse desejo por dizer – e por
serem vistos. A segunda parte do diálogo enuncia tal desejo: primeiro, pelo uso, com
certa aflição, do sintagma “ainda”, na frase “a gente tá sendo ainda”. Poder-se-ia
completar: ignorados - apesar de terem preparado a visita, o que é entrevisto na parte
seguinte do discurso: “(...) se prepara, porque a cidade é pequena.” Há duas
possibilidades de compreensão desse discurso: há uma transferência de locus da Canção
Nova para a cidade pequena. O que se vê, todavia, é o choque que se deseja criar. Mas
por que a Canção Nova? Porque ela é evidenciada, por sua força simbólico-midiática,
como o lugar da tradição e da segurança, ao mesmo tempo como o lugar da intensa
circulação e consumo simbólicos. O choque que se deseja causar é estético, uma vez
que, e o discurso faz questão de frisar, trata-se de um comportamento marcadamente
hierarquizado, ritualizado. Nessa medida, mesmo havendo aflição pela invisibilidade e
certa frustração, que se observa no uso do sintagma “até”, na frase “teve até um que
parou ali”, há, a rigor, uma naturalidade quanto ao fato de eles estarem ali: a Canção
Nova é terreno para todas as tribos. Eis o que une os dois diálogos – e eis o risco
calculado da própria Canção Nova: pouco importa que ela seja confundida com um
parque de diversões e que atraia pessoas pouco afeitas à religião. O que importa é sua
presença, sua circulação – sua penetração em todas as camadas sociais, em todas as
formas culturais. Há uma leveza teológica como missão – e isso é cumprido ao pé da
letra, com competência e obediência ao preceito paulino: levar o evangelho a todos os
lugares, ainda que a boa nova proferida não seja, em seu fundo, a religiosa.
Essa percepção é tramada nos discursos dos párocos entrevistados,
278
igualmente com grande carga de ambiguidade. Padre José Carlos, por exemplo, trata
dessa leveza do ser Canção Nova, que muito a aproxima das práticas identitárias
contemporâneas, cuja temporalidade é marcada pelo consumo – pelo fugaz, portanto.
Diz ele, inclusive se referindo ao padre Crystian Shankar, que, como vimos, tem uma
visão de mundo bem próxima daquela forjada na TV Canção Nova:
Pouco importa a religião que você tenha. Importa que você venha aqui e que
me escute. Eles não têm esse bairrismo religioso. Eu sou “x”, você é “y”, a
gente não se dá. Não. O discurso pentecostal, neopentecostal é bem esse, né.
Aqui, não importa a religião. Importa que estejamos buscando Deus. E esse é
um pouco, assim, um pouco da mentalidade da Canção Nova, do padre
Crystian e outros, que diz assim, ó: pouco importa a paróquia a que você
pertence. Se você quer ser do meu grupo, você pode ser da sua paróquia aí e
estar vinculado a nós aqui, desde que nos ajude, que esteja conosco e tal.
Então... Ou seja, se rompe com a identidade próxima, local, para se criar essa
identidade, né, virtual, global, independente da que você venha... Esse que é
pra mim o grande mal desses grupos midiáticos e esses que estão nascendo
aqui também, in loco, porque tiram os sujeitos religiosos de seus ambientes,
onde eles poderiam estar, servir, crer, celebrar e jogam esses sujeitos para
outro mundo (Padre José Carlos, Caderno de Pesquisa, 2010).
74
O esforço teórico de padre José Carlos é importante e, nesse caso, poderia
merecer uma análise ideológica, antes da análise do discurso propriamente dita. Isso,
com efeito, deverá ser levado em conta – mas igualmente importante é a trama como o
discurso se deu. Novamente, importa notar o uso dos pronomes pessoais.
Diferentemente de outras situações de enunciação – e justamente pelo fato de ter
havido, aqui, um esforço de distanciamento teórico para explicar o fenômeno sobre o
qual se discursa -, há um procedimento de empatia do narrador – que, nesse caso, se
aproxima do enunciador teórico, aquele que pretende fazer coincidir o sujeito da
enunciação ao autor do enunciado. O uso ostensivo do pronome de segunda pessoa
“você” aponta para a referência do discurso teórico: os humanos que são persuadidos
por “esses grupos de mídia”. O uso dos demais pronomes pessoais do caso reto se
realiza igualmente segundo essa trama teórica: o “eu” e o “nós” são, providencialmente,
utilizados como representação do sujeito de uma outra enunciação – aquela que
persuade. Em seguida, no entanto, ao discurso teórico, há um posicionamento que se
esclarece de forma bastante aguda – e o “eles” se torna ambíguo. A operação é de
traição à normalidade teórica do discurso. Ele vinha, de forma distanciada, utilizando os
pronomes “eu”, “nós” e “você” como representação de uma enunciação a que se faz
referência teoricamente. Mas a frase “rompe com a identidade próxima, local, para se
74
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2007, Casa Paroquial da Paróquia S. Judas
Tadeu – Divinópolis/MG
279
criar essa identidade, né, virtual, global, independente da que você venha...” funciona
como uma peripécia, um tensionamento do discurso, em que a teoria deixa
imediatamente de existir para dar lugar à defesa ideológica – e, veremos, material.
Nesse caso, o “você” se torna, como outrora, “todos nós” ou “qualquer um”. Então, na
frase seguinte, há a distinção que não teria efeito em uma reflexão formalmente teórica:
“eles” são tanto os grupos midiáticos, que persuadem o “eles”, os paroquianos,
fragilizados pelas tentações do “outro mundo” – o virtual, sensual, espetacular,
consumista, construído por “eles”, esses grupos midiáticos e seus seguidores. Se o
primeiro movimento, o teórico, ainda dá mostras da potência do sujeito da enunciação,
justamente em razão de seu distanciamento, o segundo aponta para uma espécie de beco
sem saída em que estão os párocos “in loco”, diante do poder demonstrado pela religião
midiática. O clima de vale tudo religioso apontado causa um temor que se desnuda
quando o discurso se estabelece como ideológico – mas antes houve mostras desse
temor na associação entre o catolicismo midiático, inclusive do padre Crystian, e os
movimentos pentecostalistas não católicos.
É a esse temor a que se refere o monsenhor Ordones, chefe paroquial, já
idoso, de uma paróquia tradicional:
Nós estamos começando uma nova etapa na história da humanidade. Com
Internet, com essas porcarias de celular, porque celular hoje já faz tudo, né? É
uma coisa impressionante. A gente não saber dizer, a gente não sabe entender
o que vai haver com as relações humanas no futuro, porque... Eu sou de um
tempo em que, em Campos Altos, a terra onde eu nasci, metade de meus
irmãos é de Campos Altos, metade é aqui de Divinópolis... Eu sou daquele
tempo em que, escurecia, minha avó se sentava no banco em frente à casa
dela e havia aquele número de pessoas que, frequentemente, iam lá e
conversavam, conversavam, conversavam... Acabavam ali as conversas, já
estava escuro, ia para dentro, com a lamparina acesa, com a vela acesa, e
vamos dormir cedo e levantar de madrugada. Agora, Campos Altos, a gente
ia, eu fui muitas vezes, acabava a aula, muitas vezes ia à estação ver quem
estava chegando, quem não estava chegando... Então, o mundo está
mudando. As relações pessoais estão, assim, se esvaindo. O negócio está,
através de... Contatos através de mecanismos. Então, a gente não sabe dizer.
A gente não sabe o que vai acontecer com a mídia daqui a 50 anos... Eu não
sei, eu não sei... Essa interferência, essa interatividade entre a televisão, o que
está vindo na televisão. Eu não sei... Agora, atualmente, a Igreja, como
instituição, a sua pregação, a sua catequese... Ainda considero a mídia um
pouco à margem de onde passa a grande comunidade. Acho que ainda está à
margem. E vejo, num ponto eu vejo, é maravilhoso... As pessoas com
dificuldade de locomoção, as pessoas que se trancam em casa, às vezes até
por insegurança, por medo, a essas pessoas [a mídia] tem feito um bem muito
grande. Aqui na paróquia, quantas pessoas enfermas que veem, todos os dias,
à missa através da televisão? E quantos, essa é uma novidade para nós,
quantos que fazem a comunhão espiritual todos os dias? A comunhão
sacramental, eucarística, ela é dada uma vez por semana para os enfermos e
são mais de cem aqui na paróquia que recebem uma comunhão toda semana.
Mas há um número muito grande desses enfermos que, todos os dias, fazem
280
essa comunhão espiritual, que vê televisão, acompanha a missa e comunga.
Então, é uma realidade nova que meus avós nunca nem imaginavam, né? A
possibilidade de acompanhar a missa todos os dias e fazer uma comunhão
espiritual (Monsenhor Ordones, Caderno de pesquisa, 2010).
75
Aqui, o discurso se constrói como uma reflexão distanciada apenas
aparentemente – e isso é deixado claro. Não é por acaso que a reflexão é entrecortada
pela reminiscência, tomada como exemplo retórico, mas principalmente para
demarcação entre o que considera a vida real, concreta, não-virtual – e controlável -, do
passado, que tinha na Igreja a organizadora das experiências, e este fenômeno,
atualmente vivenciado e, senão recusado, temido. O discurso se organiza retoricamente,
como se espera de um padre idoso, como o estabelecimento do choque entre a tradição e
a modernidade – o que vale dizer: entre o seguro e o inseguro; entre a estabilidade e a
instabilidade; entre o calor e o frio. E, evidentemente, o sujeito da enunciação leva ao
paroxismo o peso do valor que estabelece na comparação e entre o positivo e o
negativo. É verdade que o positivo é estabelecido justamente na relação com o negativo.
Nesse caso, o positivo, que é gerenciado e garantido pela tradição marcada pela Igreja
Católica, é representado pelas “relações humanas”. Por outro lado, elas, as relações
humanas – e assim, a Igreja Católica e com isso, segundo o procedimento discursivo, o
próprio humano, - são ameaçados pelas “porcarias” de tecnologia.
O discurso vai-se demarcando nesse tensionamento para estabelecer o valor:
MS. Ordones se diz impressionado – e não é para menos: a seus olhos, o impressiona
menos a magia das tecnologias contemporâneas de comunicação e muito mais a
degradação de um mundo com que se acostumara e que julga positivo; e com ele do
próprio humano, identificado na tradição e, assim, na lenta fluidez das coisas, que
coincide com a divindade tecida no medium tradicional da Igreja Católica. Nesse
esforço, que se pode chamar de teórico-existencial, dada a luta que é travada e que deixa
marcas na superfície do discurso, há uma associação contínua: tecnologia =
superficialidade = emotividade = individualismo = ausência de Deus = instantaneidade
= fugacidade = tecnologia ; ao contrário, no lado positivo: não-tecnologia =
profundidade = racionalidade = coletividade = Igreja Católica = presença de Deus =
tradição = perenidade = não-tecnologia. O discurso pende claramente para o lado
positivo da escala proposta – porém, no lugar do terror, do pânico em admitir a
mudança e consequente perdição das coisas observadas pela experiência mesma,
75
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 12/09/2007, Casa paroquial da Paróquia de N.S.
da Guia , Vila Belo Horizonte, Divinópolis/MG
281
monsenhor Ordones prefere a segurança da tradição, e nela se fia. A frase “eu não sei”,
repetida algumas vezes, demonstra mais do que uma espécie de certeza de que o mundo
em que acredita está se perdendo – demonstra mesmo que, nesse mundo da
negatividade, o humano não tem vez, as relações humanas, que carecem de não-
mediação tecnológica, não são possíveis. Contudo: esse mundo está “à margem de onde
passa a grande comunidade”. É claro que, nesse caso, a percepção indica as relações
humanas centradas nas interações face-a-face, e isso indicaria por si só uma crença na
relação não-mediada entre os humanos – e, mais, que só haveria relações humanas
genuínas caso elas fossem imediatas. De qualquer maneira, porém, percebe-se, no
discurso, que, embora haja uma ameaça – ao humano porque à Igreja -, ela, a ecclesia,
não necessita, para existir, desse maquinário diabólico. Por isso, o discurso não se
constrói como concessão, mas como condição: só haverá humano se a Igreja Católica e,
por consequência, a comunidade de humanos, forem mantidas. É nessa medida, por
condicionalidade, que se observa a saída para este mundo: a tecnologia só é aceitável se
ela for apropriada pela Igreja Católica; uma comunidade virtual, uma comunhão
espiritual efetiva só é possível se ela for realizada pela religião católica.
É nessa condicionalidade que os discursos de MS. Ordones e padre José
Carlos a um só tempo se aproximam e se distanciam. Este não enxerga outra saída
senão a comunidade local, a Igreja, a paróquia. O problema está na própria comunidade
virtual. Monsenhor Ordones aponta para o mesmo caminho, mas enxerga no controle e
na sobrevivência da Igreja, entendida, uma vez mais, como o espaço comunitário físico,
o medium igreja, a forma como o humano não se perderá. Um vê a perdição da Igreja
pela mídia; o outro, em tal perdição, o perigo de se perder a humanidade do humano.
Esse é o problema enfrentado pela Canção Nova e sua TV, e a comunidade virtual
identitária forjada por seu maquinário midiático – problema entrevisto na evolução dos
seus slogans. Trata-se precisamente de uma identidade tecida entre o simbólico católico
e o diabólico midiático, identificado com a cultura da fugacidade, colonizada pela
prática horizontal do consumo. Identidade que se nega como tal – e é essa a sensação de
ambiguidade que vivem e narram os fiéis católicos. Por um lado, há uma prática de
acusação do outro – numa antítese da política de identidade que, longe de ser
contrassenso, é resultado da tensão fratricida entre o simbólico e o diabólico da TV
Canção Nova. Por outro, é certeza da segurança neste mundo de insegurança.
Essa ambiguidade é trazida como marca por uma narrativa que se sustenta
nas políticas tecidas por aquilo que Gianni Vattimo (1996) chamou de retículas
282
midiáticas, que constroem identidades fluidas, ao sabor do consumo marcado pela
temporalidade midiática. Ao mesmo tempo, tal identidade precisa reafirmar o que é
desconstruído por tal prática identitária: a eternidade. O resultado disso não poderia ser
diferente: alguma injustiça com o semelhante; uma moralidade a um só tempo frágil e
forte demais; e o flanar religioso sob o sagrado do consumo. É o que se vê nos
depoimentos a seguir:
A única coisa que falta pela Canção Nova seria a eucaristia, cê receber a
eucaristia. Mas a própria pregação, a explicação, a homilia, todos os ritos,
substitui sim. Se a pessoa ficar o dia todo na Canção Nova, seis horas da
manhã ela vai ficar rezando o terço, meio dia ela vai tá rezando, seis horas da
tarde ela tá rezando, tem a missa todo dia, ela vai tá assistindo à missa, vai tá
recebendo ensinamento, as leituras dos evangelhos e tudo. Faltaria mesmo a
eucaristia. Ela receber a eucaristia. (...)
Vou falar que aqui em casa tem a Rede Vida e a Canção Nova, dos católicos.
São os canais católicos. Eu acho que a Canção Nova tem mais jovens, ela
atrai mais. A comunicação deles é mais direta... com a... com o público. Eu
acho ela, assim... São... Se ocê pegar... São mais novos do que... os da Rede
Vida e tudo. Então, eu acho ela mais atrativa por isso. E também a...
realização desses acampamentos que eles fazem. Sabe... é a mesma coisa,
tem um monte de gente... Vai atraindo também as pessoas. Então, às vezes
tem um acampamento, tem um acampamento grande, então... Várias pessoas
estão assistindo, porque eu quero ver se vai passa minha filha, ver se vai
passar minha sobrinha que tá lá, minha vizinha que tá cá, tá ali. Então, vai
atraindo mais as pessoas. Por isso, eu acho ela mais atrativa por causa disso
(Alex, 56 anos, veterinário, Divinópolis, Caderno de Pesquisa, 2010).
76
É preciso anotar aqui a distinção em relação às situações de enunciação
previamente analisados. Como se viu, en passant, quando da análise de depoimentos de
fiéis entrevistados na sede da Canção Nova, e poder-se-á ver adiante, há, entre eles, uma
certa segurança conseguida justamente em razão do quadro de enunciação. Além de
estarem em um lugar a um só tempo apropriado para a segurança – física e moral -, os
fiéis, durante as abordagens de entrevista, se mostraram aptas a conversar sem qualquer
subterfúgio. Diferentemente, os fiéis entrevistados em casa, em Divinópolis, se
colocaram em uma posição de necessidade em acertar as respostas – talvez em razão da
situação em que a entrevista se deu: em suas casas e com um gravador à sua frente. Isso
é claro inibe qualquer ator social. No caso dos entrevistados na sede da Canção Nova,
há o espaço e a forma como essa abordagem ocorreu – sem equipamentos de gravação
aparentes. O resultado disso é uma permissividade na tessitura dos discursos, como
quem, na multidão, fosse enfim visto como diferente e pudesse dizer a que veio.
Os depoimentos dos fiéis entrevistados em suas residências, como se vê no
76
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30/04/2009, na residência do entrevistado
Divinópolis/Centro
283
trecho acima, são cheios de fissuras de sentido, de pausas, de lacunas para raciocínio –
de certificações de verdade. E isso é decisivo na construção do sentido, sobretudo em
relação ao segundo trecho destacado acima. No primeiro trecho, há uma espécie de
contrarresposta ao que é dito pelos chefes paroquiais. Nesse choque de posições – e,
como vimos, numa articulação do discurso dos padres entre a paúra e a impotência -,
fica estabelecida: i) a distância entre o pastor e suas ovelhas; ii) essa distância se dá não
em razão de uma revolução em busca da autonomia dos outrora mansos fiéis, mas
justamente porque há um deslocamento do eixo do pastoreio do pároco para o
palestrante; do púlpito físico, para o púlpito virtual. Porque, do contrário, o que
explicaria a dificuldade dos párocos em mobilizar seu rebanho, segundo a sua visão de
mundo? Só há uma explicação: os fiéis, que têm na Canção Nova uma importante forma
de estar no mundo sendo católicos, são pastoreados por outros veículos, segundo outro
sagrado. É assim que os temores presentes nos discursos dos padres, como vimos antes,
são a um só tempo reafirmados e refutados pelo discurso de Alex: há sim uma
comunidade virtual, mas ela não é nem menor, nem substituta da comunidade real. Há
uma proximidade entre os mundos: a prática religiosa é uma forma de estar em um
mundo inseguro de forma segura. E, para que isso ocorra, basta que se reafirmem alguns
rituais tradicionais – e nesse sentido, à TV Canção Nova “faltaria mesmo” a eucaristia
para ser completamente Igreja. Mas essa falta é decisiva: uma parte do ritual é
conseguida pelo consumo simbólico virtual, mas a principal parte não é ali adquirida.
Assim, temos os dois momentos da vida contemporânea sendo tecidas: a TV Canção
Nova garante aos fiéis, por suas missas, mas também palestras, ensinamentos “e tudo”,
o estar no mundo contemporâneo, da cultura do consumo, ao mesmo tempo em que
garante uma falta para a segurança, que é conseguida justamente na paróquia e sua
comunidade. A questão é que essa comunidade não é organizada pelo medium paróquia.
Ali, buscam-se os rituais em falta para que se consiga a segurança em um mundo
construído sobre um sagrado que traz insegurança: o consumo. É nessa medida que a
identidade forjada pelos equipamentos midiáticos, a TV Canção Nova inclusa, se
tensionam – entre a mesmidade do eterno e a fugacidade do aqui e agora do consumo.
Eis o que é enunciado no trecho seguinte ao analisado. Ali, sim, há as tais
lacunas de sentido, as pausas reflexivas como esforço para a construção exata da
verdade. O discurso demonstra que o entrevistado teme ser pego em contradição ou em
heresia – já que faz um comparativo entre a TV Canção Nova e a Rede Vida, o que
implica de alguma forma assumir sua preferência segundo uma razão concreta. E a
284
razão assumida não deixa dúvidas: prefere-se a TV Canção Nova por sua jovialidade. E
o que significa isso? Justamente a experiência do tempo associada a essa etapa da vida:
intempestividade, imprevidência, instantaneidade, fugacidade. O tempo do consumo –
que por fim é assumido ao final do trecho. O uso do pronome pessoal, nesse caso, é
intensificado pela experiência tramada na enunciação: o “eu” é a um só tempo o sujeito
da enunciação e o sujeito a que se refere e que se constrói singularmente: “a minha
sobrinha” a “minha vizinha” são instantes reais do cotidiano experimentado por um
sujeito real. É esse sentido corpóreo mobilizado pela prática do consumo que torna a
existência pela mídia desejável, mobilizadora – porque ali nós, que apenas consumimos,
enfim, existimos. E se esse consumo ocorre pelo religioso, pela busca da segurança,
pelo assentamento no mesmo, então a existência neste mundo enfim ganha sentido real,
cotidiano, sem oferecer perigo.
Esse parece ser o movimento temido pelos párocos e construído pelos fiéis.
Mas isso não se dá sem tensão – e acusações soçobram a relação e fazem aprofundar os
temores:
A maioria dos que vêm pra cá vem para fazer parte de uma tribo. Vêm
porque é bacana. Vestem uma camisa da Canção Nova, passeia pra lá e pra
cá. Tem pessoas que só vêm para passear. Querem chegar lá [de onde vêm] e
dizer: tenho uma camisa da Canção Nova. Fui à Canção Nova. Apareci na
TV Canção Nova. Muitos que vêm, a maioria não vem pela fé, não. A
maioria só vem pra passear. A gente vê isso o tempo inteiro. Pessoas que
acabam de escutar uma palavra cristã e, na hora de comer no refeitório,
empurram, fazem exatamente o contrário daquilo que acabaram de ouvir. Nos
acampamentos grandes, é uma guerra. Tem gente aqui que vem para ver os
ídolos. Tem mulher aqui que vem para ver o Fábio de Melo como homem. E
muita gente vem para um shopping, uma exposição (Renato, empresário, 48
anos, Cachoeira Paulista, Caderno de pesquisa, 2010).
77
*
A maioria é oba-oba. Que é legal, porque tem excursão, que a galera vai. Por
exemplo, eu vim sozinha. Com mais ninguém. Só eu e Deus. Eu embarquei
num ônibus que era longe de minha... eu moro no Recreio. O ônibus para eu
vim era em Bangu. Distante. Peguei engarrafamento, fiquei duas horas e meia
parada sem conseguir sair, quase desistindo. Aí eu falei: Senhor! Por que
tanta dificuldade, as coisas? E aí eu falei: não vou desistir! O Senhor falou:
Taís, não desis... A última coisa é você desistir de ir. Última coisa. Consegui.
Vim sozinha porque eu precisava disso. Precisava. Entendeu? Mas a maioria
aqui teria desistido, é oba-oba. Vem com a turma, diz que participa de grupo
de oração, vem, veste camiseta da Canção Nova, boné da Canção Nova, mas
sai daqui, chega em casa e a primeira coisa que faz é ofender pai, ofender a
mãe, a esposa. Se bem que... ééé.. Às vezes a palavra de Jesus chega no oba-
oba mesmo, né (Taís, fisioterapeuta, 22 anos, Cachoeira Paulista, Caderno de
Pesquisa, 2010).
78
77
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 04/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
78
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
285
O primeiro trecho, coadunado ao segundo, foi destacado por dois motivos:
primeiramente, para dar a dimensão de como esse discurso é recorrente entre os fiéis.
Isso só reforça a tensão entre o consumo identitário, do flanar entre a hipertrofia
simbólica, e a busca do fundamento primeiro, como é de bom tom a todo discurso
monoteísta. Mas também reforça um sentido da lógica do consumo como o organizador
– inclusive transcendental – universal. Trata-se, o primeiro trecho, de um depoimento
espontâneo de um ex-contador que se mudou para Cachoeira Paulista, depois de uma
visita, vislumbrando o paraíso: a independência financeira. Montou então uma pousada,
“diferente, com ar condicionado e TV de plasma nos quartos”, como faz questão de
frisar, demarcando seu terreno de distinção de classe. E, como que antevendo e se
antecipando à acusação – ou autoacusação – de oportunismo herético, enxerga na
maioria dos visitantes uma ética vazia – ou, veremos, frágil, fugaz. Perceba-se: a
acusação se dá segundo aquele tensionamento da prática identitária, entre o puro e leve
consumo e o peso da moralidade cristã assentada na eternidade. No caso de Renato, o
olhar distanciado é permitido, ao que parece, por um peso de culpa que carrega consigo:
a exploração da fé de um povo; o ganhar a vida, inclusive com requintes no negócio
montado, se se compartilha um mínimo de senso moral, provoca algum tipo de dor do
espírito. Dizer, todavia, que a maioria está ali para fazer parte de uma tribo, por puro
consumo identitário, é sem dúvida tirar um pouco desse peso das costas.
As razões de Taís para realizar a mesma acusação são diferentes – a
justificativa para estar ali e a legitimidade para realizar aquelas acusações se
estabelecem como esforço de distinção. Ela não está ali por “oba-oba”, não está ali
porque “é legal” – não consome a TV Canção Nova como um produto qualquer, como
“a maioria” que está ali, mas buscando o que a Canção Nova tem de perene e pesado: a
identidade-mesmidade. Daí a pertinência de seu exemplo: ela viajou só – sem a
“galera”, portanto, como a maioria. Era ela “e Deus”: a força da expressão popular,
quando tecida em discurso, ganha dimensão: trata-se de um reforço na acusação de que
a maioria presente na sede da Canção Nova – e que assistem à TV Canção Nova – o
fazem sem a presença de Deus. O exemplo continua – e com ele, o reforço na
argumentação para a acusação: falta à maioria a perseverança para superar as
dificuldades, perseverança que ela mesma, Taís, possui. A narrativa ganha contornos de
dramaticidade – e então a personagem busca compreender junto a seu único
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
286
acompanhante, Deus, as razões para tanta dificuldade. Deus lhe responde – como que a
garantir sua identidade. As frases se tornam curtas, como se representassem pequenas
cenas montadas em cortes simultâneos: “E aí eu falei: não vou desistir! O Senhor falou:
Taís, não desis... A última coisa é você desistir de ir. Última coisa. Consegui. Vim
sozinha porque eu precisava disso. Precisava. Entendeu?” Na intensidade da cena,
Deus fala a Taís para não desistir. E Deus a ajudou – só a ela, porque, quanto aos
demais, que não vieram com Deus ou em Sua busca; que não precisavam de Deus como
ela, Taís, precisava; quanto à maioria, Deus não ajudaria, pois não está com eles, porque
eles não estão com Deus.
O problema é saber se esse Deus a que se refere a entrevistada não
acompanha, também, aquela maioria de “uns quaisquer” acusada de estar ali, na terra de
Deus, por outro motivo que não o divino. Parece ser a isso a que refere Taís ao final do
trecho destacado – como que vislumbrando a tensão entre identidades fluidas, de “oba-
oba”, segundo sua narrativa, e o peso de uma identidade fixa. Mas esse movimento é de
retrocesso – e por isso o discurso é tão lacunar, diferente do discurso de certeza
proferido anteriormente. A dúvida demonstrada parece mesmo um exame de
consciência - e de qualquer forma indica aquele tensionamento entre formas de
identidade construída pela TV Canção Nova. É a essa dúvida, afinal, que trata padre
Crystian Shankar, como em uma resposta ao que disse dele padre José Carlos, no trecho
destacado e analisado acima – e como que corrobora com a dúvida final de Taís,
confirmando-lhe a veracidade – e indo além:
A gente nota nessas pessoas que veem a Canção Nova com mais frequência e
estudam mais, a gente vê nelas uma fé mais coerente com a vida. Eles
conseguem levar a fé no seu dia-a-dia. O que eu acho difícil, a gente até fala
mais, é a pessoa que só frequenta a missa. Não assiste, não vamos falar só a
Canção Nova, nenhuma TV católica, não tem uma vida de oração pessoal de
bíblia, de estudo. A gente nota que a vida da pessoa deixa a desejar. A pessoa
vive na igreja, a sua fé... Mas parece que falta combustível para que suas
ações da semana sejam ações cristãs. A diferença que eu noto para as pessoas
que assistem constantemente a Canção Nova. Agora, na questão de
juventude, questão de jovens... Eu acompanho muito grupo de jovens. Tem
aqui em Divinópolis o Maria de Nazaré. A gente nota que a vida deles é mais
centrada no evangelho. Por aquela constância, eles vivem melhor, na fé
(Padre Crystian Shankar, Caderno de pesquisa, 2010).
79
Embora não tenha sido essa intencionalidade – inclusive porque a entrevista
com o padre Crystian foi realizada antes da realizada com padre José Carlos – a resposta
parece ter sido feita por encomenda à crítica de que a telerreligião da TV Canção Nova
79
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
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tem enfraquecido o espírito comunitário locais. É claro que se trata, a rigor, de discursos
e temáticas distintas: a primeira, de padre José Carlos dizia respeito, como analisado, a
uma reflexão teórica sobre possíveis males causados pela religião midiática. Padre
Crystian aponta para a não incongruência entre as duas religiosidades, e apenas isso. Há,
todavia, um choque de posições: mesmo que Crystian diga respeito a uma forma de
experiência religiosa avessa àquela defendida por José Carlos – mais participativa e
racionalizada, do que devocional e emotiva -, aquele diz, com clareza, não haver
exclusão entre a telefé e a fé presencial. Ao contrário: a narrativa aponta para uma
espécie de experiência efetiva em relação aos fiéis. Só assim padre Crystian tem
condições de afirmar, com tanta segurança, que aqueles que vivem a fé pela TV o fazem
mais e melhor também nas paróquias. O que deixa entrever o discurso, de qualquer
forma, é a razão de se procurar tanto a TV Canção Nova quanto a paróquia – e aqui
podemos destacar: a paróquia onde ministra o padre Crystian, identificado com a
religião forjada na Canção Nova. Trata-se efetivamente da busca pela segurança. O
destaque dado aos jovens no final do trecho transcrito indica exatamente essa relação
entre os perigos do mundo, especialmente para eles, os jovens, e a segurança encontrada
na TV Canção Nova e transposta para a vida comunitária e ordinária. Numa palavra:
contra os perigos do mundo, é preferível que os humanos sejam conduzidos a um
ajustamento, a uma constância – a uma ritualização cotidiana, que ressoa o pastoreio.
Também aqui, eis a tensão entre a identidade da diferença e aquela, da semelhança.
É claro que esse movimento de pastoreio, também ele, guarda perigos – mas
nem de longe são tão graves os perigos quanto aqueles encontrados no mundo:
Eu acho que a mente da pessoa, quando ela entra num descompasso, ela
precisa de alguém que guia a pessoa. Então se você falar para alguém carente
assim: eu vou te ajudar, mas você vai fazer o que eu disser. Mesmo a pessoa
não acreditando, ela vai fazer. Eu atendo, às vezes, não são tantos casos,
pessoas que, realmente, perderam um equilíbrio na vida e que acharam uma
linha de segurança, vamos supor, na Canção Nova. Então eu noto que para
essas pessoas é muito negativo, porque na cabeça delas, elas vivem em
função daquilo que ela ouviu. São vários exemplos, pode variar de pessoa
para pessoa. Um exemplo, eu atendi um casal de Divinópolis, eles eram
namorados... mundanos. Tinham relação sexual normalmente. Aí fizeram um
retiro e, a partir dali, eles resolveram mudar de vida. E para aumentar a
espiritualidade, eles começaram a assistir à Canção Nova, sempre. Então,
retiro de acampamento, namorado etc., etc. Eu não sei o que aconteceu, que
eles começaram a ter o namoro santo, que é o normal, né? Mas eles pegaram
uma linha diferente: eles casaram e me procuraram depois de seis meses. Até
hoje eles não conseguem ter relacionamento sexual. Na cabeça deles, eles são
irmãos e irmãos não precisam de sexo, eles não conseguem. Quer dizer,
enquanto para uma parte enorme de gente fez um bem, para eles fez um mal.
E eu não sei como eles vão sair dessa. Eles estão no psicólogo, estão
acompanhando padre, eles não conseguem se desligarem. Então aí que tem...
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A gente tem que prestar muita atenção, é algo que tem ser olhado, é que a
televisão por ser uma coisa que pega a massa, ela não pode jamais
generalizar. À medida que a pessoa se sente impulsionada a fazer algo que
não é de seu próprio ser, ela vai cair (Padre Crystian Shankar, Caderno de
pesquisa, 2010).
80
Há dois movimentos no discurso: o primeiro aponta para a inevitabilidade
do pastoreio – e obviamente isso não é algo negativo. Por mais que aponte para tal
pastoreio apenas em relação a pessoas cuja “mente entrou em descompasso”; e nesse
caso, por exclusão, para a possibilidade de haver autonomia em relação às ordens
recebidas para as pessoas normais – apesar disso, o discurso age por distinguir os
anormais e indicar que mesmo os normais necessitam de ser guiados. Isso pode ser
inferido pelos elementos textuais presentes na superfície do texto: há poucos exemplos
de pessoas anormais, para quem a Canção Nova é um perigo. A frase “Eu atendo, às
vezes, não são tantos casos, pessoas que perderam um equilíbrio na vida” demonstra
bem que se trata apenas de exemplos raros: não é sempre que tais pessoas são atendidas,
porque não são tantos os casos. E isso é deixado claro posteriormente: “Quer dizer,
enquanto para uma parte enorme de gente fez um bem, para eles fez um mal.” O
exemplo, obviamente, é singular – mas essa singularidade é importante para se
compreender a generalidade, porque, para a maioria, a Canção Nova só faz o bem. Eis
aí o segundo movimento do discurso: a TV Canção Nova é perigosa apenas para
algumas pessoas desequilibradas. Como elas são a minoria, o perigo é menor – e
contornável, desde que haja uma sensibilidade dos párocos para as questões
contemporâneas de seu rebanho. Em outras palavras: desde que haja uma proximidade
teológica entre o pároco e a Canção Nova, não haverá disputa entre paróquias e o
grande sistema de comunicação católica. Exatamente como pensa o chefe da paróquia
de São Sebastião, em Cachoeira Paulista, MS. Luiz Carlos, para quem não há qualquer
tensão entre a Canção Nova e sua paróquia, uma vez que aquela faz um trabalho de
evangelização por sensibilização, um trabalho justo às massas, as paróquias – ou, ao
menos, a sua paróquia – faz um trabalho pastoral, comunitário.
Adiante, veremos que está em jogo nessa nova tensão justamente o direito
de existir materialmente. Por ora, basta-nos perceber que a TV Canção Nova é narrada,
por quem nela enxerga não uma ameaça, como uma forma de existir com segurança em
um mundo inseguro. Mas essa insegurança é tecida pela mesma matéria de que é feita a
religião da TV Canção Nova: o excesso – e por isso há o perigo, narrado por padre
80
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
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Crystian, também na Canção Nova. Não obstante, trata-se de um lugar procurado pelos
católicos para a um só tempo tecer a própria identidade no mundo e tranquilizar o seu
mundo com a construção de uma identidade não ameaçadora. É exatamente a isso que
se referem os fiéis em suas narrativas sobre a religião – e, claro, sobre o que pensam da
TV Canção Nova. A jovem Taís que o diga:
Ser jovem católica eu acho que é uma das missões mais difíceis que tem.
Você ser um adolescente católico é tranquilo; você ser um adulto católico, eu
acho tranquilo, ou um idoso católico. Ser jovem católico... É complicado.
Porque o mundo tá aí fora te falando um monte [alongando a vogal “o”] de
coisa. Às vezes o mundo, dentro da Igreja, te fala: não, mas o que a Igreja
fala é muito simples. Entendeu? Pode liberar um pouco mais, entendeu? Aí,
você tem que voltar lá, procurar o Pai e ele: não. Calma aí. Não é assim.
Tudo pode, mas nem tudo me compete. Eu falo muito que é difícil ser
católico, mas ser católico jovem... O mundo – é trabalho, é faculdade, é
família, é amigos – todo fala assim: não! Sai, vai, vai! Faz isso. Sabe, o
tempo de quem tem fome demais. Eu tenho que chegar e dizer: não! Eu quis
vir hoje à Canção Nova porque eu falei: eu preciso de três dias longe desse
mundo pra encontrar Jesus de novo. Daquele jeito que eu sempre vivi. Eu tô
deixando ele ir embora. Eu sei que eu não vou deixar. Mas ele já tá
diminuindo, porque... o mundo... não me, não me, não me... não me deixa
mais ficar com Jesus (Taís, fisioterapeuta, 22 anos, em Cachoeira Paulista,
Caderno de Pesquisa, 2010).
O discurso é dramático – e é representado com tal dramaticidade.
Novamente, a idade da juventude é reivindicada para garantir o tom dramático da
narrativa. É claro que, como já havíamos visto anteriormente, em outro trecho da
mesma personagem, a dramatização cria um sentido de distinção. O sujeito da
enunciação se fixa em uma posição narrativa – e então lança mão de interlocuções
fabuladas, para demarcar essa distinção e essa dramaticidade. A luta estabelecida entre o
mundo “lá fora”, que grita, seduz justamente pela fugacidade, se apresenta com a
indumentária do fugaz: não é preciso deixar a religião para viver o mundo. E mesmo o
mundo mais corriqueiro ameaça com sedução: as identidades várias construídas no
consumo simbólico diário – “é família, é faculdade, é família, é amigos” – afasta a
personagem, então em plena intensidade de representação dramática, do intuito
primeiro: o eterno, a identidade-mesmidade, visto como o eu-próprio. Há então a
identificação final: esse eu-próprio é conquistado com a proximidade de “Jesus”, o
amigo que ameaça se perder no calor juvenil do mundo. Eis então a saída: consumir
Jesus, ainda que isso possa significar perdê-lo e ao eu-próprio. Para que isso não
ocorra, é preciso perseverar – porque o mundo clama lá fora. A narrativa alcança seu
clímax: “porque... o mundo... não me, não me, não me... não me deixa mais ficar com
Jesus”. Consumir Jesus é a única saída para que o mundo deixe a personagem em paz –
para que o mundo, desejado, sedutor, seja minimamente seguro. Daí a sua presença na
290
sede da Canção Nova: para largar o mundo sedutor, que promete mil identidades, e, no
consumo de uma dessas faces, encontrar o caminho que promete a segurança da
eternidade. Seguir adiante significa então deixar-se levar.
3. Consumo
O diálogo a seguir foi travado entre o pesquisador e duas peregrinas,
consumidoras da programação da TV Canção Nova, na sede da comunidade religiosa
em Cachoeira Paulista:
Você é de onde?
De Angra.
E você acompanha a Canção Nova?
Não, é a primeira vez.
Não, eu tô falando na televisão...
Acompanho.
E tem diferença...
Não.
Entre ver pela TV e...
Senhora 1: Não, eu gosto de ver pela TV. Mas aqui, né, você vê mais... É ao
vivo, né. É outra coisa. A filha dela tá assistindo televisão e tava perguntando
onde nós távamos. Ela quer ver. A filha dela.
Senhora 2: Olha, que camisa bonita!
Senhora 1: Conseguiu? Conseguiu, Valdete? [tirar fotos da Ermida]
(Senhoras de meia idade, Cachoeira Paulista, Caderno de Pesquisa, 2010).
81
Se, como vimos anteriormente, nos diálogos de “peregrinos” que se
interessam, na Canção Nova, por qualquer coisa, menos por sua vocação religiosa – se,
como vimos, poderia se inferir algum constrangimento gerado por consumidores
deslocados ou periféricos, no caso do diálogo acima, embora aquela ambiguidade se
mantenha, não se pode dizer que haja qualquer constrangimento. Não se trata de um
público-alvo alheio àquele planejado pela Canção Nova, quando de seu esforço de
evangelização pelos meios de comunicação, especialmente por sua TV. Eis aí a própria
dimensão do sagrado con-sagrado: o esforço de religião, e de uma religião
profundamente moral, é inequívoco, em se tratando da TV Canção Nova. Mas a forma
como essa moralidade se constrói no mundo colonizado pelo consumo a obriga a, mais
do que dialogar, subjugar-se a esse conteúdo. O diálogo acima é, nesse caso,
81
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Acampamento da Sobriedade.
291
transparente. Ainda que seja um fragmento de uma situação singular, não é possível que
se perca de vista uma regularidade no comportamento conotado pelos discursos
proferidos, o que implica, objetivamente, a força ideológica do consumo como forma de
vida hegemônica. Há, na dispersão demonstrada pelo discurso, algo muito próximo do
“tempo de quem tem fome demais” a que se referiu a jovem Taís em trecho analisado
anteriormente: o tempo da consumação, do instantâneo, do que vai subitamente acabar.
Por isso, a atenção necessita ser dispersa – para dar conta de todos os elementos que
ameaçam desaparecer à frente do consumidor.
Nesse caso, é possível compreender como as temporalidades se sobrepõem:
o trabalho de edição da TV, que exige a atenção a um só tempo dispersa e concentrada
tanto de produtores e consumidores a distância, justamente em razão de sua
fragmentação, é transferida para o aqui e agora do “ao vivo”. O tempo do espetáculo é
assumido – e os consumidores ávidos querem andar rápido para “ver mais”.
Rapidamente, como em um corte seco da TV, as fotos precisam ser tiradas, para que
nada, nada – nada escape ao momento do consumo, esse organizador da vida que se
precariza em sua temporalidade.
É segundo essa temporalidade do consumo e pelo olhar que ele constrói que
os telefiéis da TV Canção Nova praticam o catolicismo em um mundo em derrocada.
Porque o consumo, destituído de sua materialidade, a produção, é pura simbologia, pura
construção estética de identidade – ainda que tal consumo e tal identidade sejam
projeções, pactos de ascensão e desejo de demarcação social. É o que acontece no
diálogo a seguir, algo truncado, em razão das condições sociais precárias da
interlocutora, Cássia, acompanhante de idosos, e seu marido, Marcos, aposentado por
invalidez, que a acompanhou durante toda a entrevista e interveio muitas vezes:
Você assiste a programa religioso, Cássia?
Cássia: Gosto muito de assistir o padre Fábio de Melo. Assisto na...
Canção... Canção... Canção Nova, eu assisto muita coisa. O padre, de vez em
quando uma missa.
E o que você acha? Por que você assiste?
Cássia: Porque eu gosto de assistir. Acho muito interessante as conversa
dele, que ele fala.
Marido: Cê assiste o padre Reginaldo...
Cássia: Ah, o padre Reginaldo, é...
Que você...
Cássia: Que eu escuto no rádio, é.
Marido: Escuta no rádio, fica de joelho, tem muita fé...
292
Cássia: É
Como é que você começou a assistir...
Cássia: O padre Reginaldo?
É, o padre Reginaldo e o padre Fábio de...
Cássia: Padre Fábio de Melo. No meu serviço... A minha patroa. Eu conheci
o padre Fábio de Melo foi... Já conhecia, mas fui conhecer mesmo na
televisão. Eu gosto muito dele, do programa. Eu fico lá, assistindo. Passei a
gostar do programa.
E vocês conversam...
Cássia: Conversam.
Sobre...
Cássia: Sobre as explicação que ele dá, a gente discute uma com a outra.
Tudo que ele fala, a gente vê que tá tudo certo, aqueles trem que ele...
Encaixa tudo, as palavra que ele fala...
Marido: Com o sim e com o não, tem as parte ruim e tem as parte má. Tem
as parte... As pessoa agradecendo.
Mas, partes boas e partes más? Você acha também?
Cássia: Tem umas coisa que a gente acha assim, né. O padre Fábio de Melo,
ele fala só as coisa certa, mesmo, que ele fala. Igualzinho o padre Reginaldo.
Tudo é certo. Tudo é coisa certa.
Marido: Fica falando: maconheiro!
Cássia: Ele explica... filho com mãe...
Marido: Com o pai...
Cássia: É, ele fala tudo.
Como o programa ajuda ou não ajuda na sua vida?
Cássia: Ajuda muito. Eu escuto muito... Eu gosto muito. Tem hora que eu
tiro muitas coisa que ele fala. A gente fala assim, né: é verdade tudo que ele
tá falando. Encaixa direitinho nas palavra dele (Cássia, acompanhante de
idosos, 27 anos; Marcos, aposentado, 34 anos, Divinópolis, Caderno de
pesquisa, 2010).
82
As intervenções do marido são um elemento importante da enunciação. Não
por tornar o diálogo truncado – mas porque revela um traço distintivo dos atores, que
não se nota nem nos párocos entrevistados, nem nos peregrinos ou mesmo em outros
fiéis, consumidores da TV Canção Nova, ainda que em situações sociais semelhantes.
Mais do que o desejo de acertar a resposta, presente também nas interlocuções com os
outros fiéis em Divinópolis, há aqui um desejo expresso em demonstrar que eles são
visíveis, que consomem o que, e agem como, se espera deles. Tal esforço é notável no
marido de Cássia, em um movimento de proteção à esposa – para que ela possa
demonstrar que existe ao “doutor” à sua frente. E, com efeito, ele consegue isso. Deixa
claro que se trata de um ato de fé, não puro consumo simbólico, já que ela “escuta o
82
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 26/05/2009, na residência da entrevistada, em
Divinópolis, bairro Niterói.
293
rádio, fica de joelho, tem muita fé”.
Cássia, nesse esforço, ainda que de maneira menos ostensiva, procura não
desagradar seu interlocutor. De qual programa religioso gosta? Dos mesmos que a
maioria gosta, que estão na boca do povo – mas sobretudo segundo o gosto da patroa,
idosa de classe média, e da filha desta, que às vezes aparece por lá. Ela, que conhecia
padre Fábio de Melo, mas “foi conhecer mesmo na televisão”, a que assistia juntamente
à patroa de classe média, confia em tudo que diz o ídolo. Tudo o que ele diz é verdade,
“tudo encaixa direitinho” – porque se trata de aspiração, de desejo de manter sua
identidade segundo o que se espera dela ou o que ela deseja construir. E tal aspiração
precisa ser reafirmada, o que acontece seja com o interlocutor à sua frente, seja com a
sua patroa de classe média. Assim se constrói o pastoreio – e assim a sacralização do
consumo é efetivado.
Pode-se apontar, com razão, para uma injustiça na análise – já que toda
análise é uma espécie de violência contra a complexidade das coisas. Pode-se apontar
para uma impropriedade analítica: afinal, o que dizem padre Fábio de Melo e padre
Reginaldo Manzotti - outro padre-cantor campeão de audiência e de venda na Som
Livre, o braço na indústria fonográfica das Organizações Globo – é universal justamente
porque eles o fazem pelo sistema midiático de massa. Esse argumento é verdadeiro –
mas só reafirma o que é proposto: a forma retórica da tele-evangelização católica está
correta, em seu princípio, mas o elemento de alienação da potência é mantido intacto
justamente em razão da forma de evangelização. São criados ídolos inalcançáveis,
modelos éticos a serem consumidos – e é isso o que retira a potência, uma vez que há o
apartamento entre a produção de sentido no ato de consumir e o sentido construído por
quem produz o que será consumido.
Essa entidade consumo carece, de todo modo, como nos lembra Celso
Frederico (2008) de realidade. É por isso que é necessário voltar a compreender o
consumo em sua tensão com a produção, pois, só assim, seremos conduzidos de volta
“ao mundo real”, sem ficarmos presos ao “mundo fantasmagórico das imagens sem
referente, das atividades sem sentido” (FREDERICO, 2008, 87). É nesse mundo real
onde vivem os atores que agem neste texto. É nesse mundo real, construído, no entanto,
sobre o sagrado do consumo como discurso consensual, que fazem críticos e adeptos da
TV Canção Nova travarem uma batalha por dentro de sua religiosidade. É do mundo
real e seus temores de que trata o tradicional monsenhor Ordones:
294
Nós estamos vivendo uma época da tecnologia superavançada, sobretudo os
meios de comunicação. Então as pessoas estão se isolando. Comecei a
lembrar a história de Campos Altos, quando eu era criança... As pessoas estão
se isolando. Cada um na frente da sua televisão, cada um na frente do seu
celular, cada um na frente do seu computador. E há muita solidão, muita
solidão; e há muito individualismo. Você, pode pesquisar, você vai ficar
espantado de saber quanta gente mora sozinho, quanta gente mora sozinho. A
mãe ficou viúva e mora sozinha, com os filhos morando por perto. Quantas
pessoas viveram e estão vivendo uma época de depressão por solidão, por
isolamento. E nessa hora a televisão, sobretudo o aspecto religioso, tem uma
influência muito grande, sobretudo as pessoas às vezes vão se sentir membros
de uma comunidade, vamos dizer assim, aérea, ou extraterrena, porque é uma
comunidade que fica muito na imaginação da própria pessoa. Ele não é mais
aquela pessoa que vai, uma pessoa que frequenta a comunidade. Então, a
pessoa vai se apegar muito, muito, muito a, vamos dizer um nome, ao padre
Marcelo Rossi, ao padre Léo [ligado à Canção Nova e já falecido]. Então a
pessoa vai se apegar a determinadas pessoas como há 30, 40 anos atrás...
Quanta mulher se pegava ao Roberto Carlos. Ela morava aqui em Divinópolis
e, no sonho delas, ela namorava o Roberto Carlos. É que aquela pessoa de
referência para os seus pensamentos, seus sonhos, que a pessoa aceita viver...
um mundo de fantasia, um mundo de ilusões, um mundo de sonhos. E então,
a televisão, eu não sei não sou capaz de dizer, mas pelo número de
programação religiosa, tenho impressão que a Canção Nova, mais do que as
outras, atinge ummero grande de pessoas. Ou seja, ao número grande de
pessoas que a frequentemente ligam televisão na Canção Nova, católicos, é
claro, em busca da religiosidade ou da religião (Monsenhor Ordones,
Caderno de pesquisa, 2010).
83
A voz da tradição se mostra evidente aqui: novamente, MS. Ordones recorre
a imagens do passado, de seu passado, para explicar a angústia do presente – e
obviamente valora positivamente esse passado. E também é clara a associação entre o
mal-estar, o presente tecnológico, a solidão e a ausência da Igreja tradicional, de um
lado, e a presença da Igreja como máquina organizadora da vida comunitária em um
passado apontado como sem mal-estar, de outro lado. Embora aqui haja referência
exclusiva aos males contemporâneos, ausentes no passado em virtude do tipo de
sociedade que seria tramada sem o aparato tecnológico de comunicação contemporâneo,
pode-se claramente dizer que há uma associação entre o mal-estar e a diminuição de
importância da Igreja.
Por outro lado, há uma percepção difusa de que se trata de uma apropriação,
pelo capitalismo, da tecnologia. É claro que há, na defesa irrestrita de uma vida do
passado – e isso implica defendê-la contra a tecnologia – aquilo que Raymond Williams
(1988) chamou de formas residuais de cultura. E é na defesa dessa cultura que MS.
Ordones realiza a operação de sobreposição entre capitalismo, apontada como a cultura
do consumo, com toda a carga negativa que carrega o sintagma, tecnologia, mal-estar
83
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 12/09/2007, Casa paroquial da Paróquia de N.S.
da Guia , Vila Belo Horizonte, Divinópolis/MG
295
contemporâneo e formas, senão dominantes, emergentes de cultura, representadas pela
TV Canção Nova e seus ídolos. Não obstante haver uma concessão à programação
religiosa de TV, que é apontada aqui como um elemento de cura do mal-estar, há, logo
em seguida, o apontamento da impossibilidade de que isso ocorra, uma vez que também
ela, a religião, pode-se dizer, criada pelo aparato tecnológico, é sintoma do mal-estar.
Dessa forma, se torna impraticável que tal religião seja efetivamente o antídoto contra
os males contemporâneos, porque ela é, igualmente, um fenômeno de ilusão (contra, é
claro, a certeza de que o passado é a realidade), uma comunidade aérea. É nessa medida
que o discurso aponta para a impossibilidade de a TV Canção Nova se livrar da
armadilha que ela mesma criou: mais do que a busca, inglória, pelo consumo do
religioso, MS Ordones deixa entrever que a forma cultural dominante, segundo o
esquema, até a construção do individualismo solitário e a tentativa de superá-lo pela
criação de amigos imaginários, é um mundo mitológico, uma espécie de religião que
tomou o lugar da própria religião. Em outras palavras: há, no discurso de MS. Ordones,
e na associação entre o mal-estar contemporâneo e a sociedade do consumo, o
apontamento para um sagrado concorrente àquele defendido pelo religioso e
identificado com o passado.
É claro que, poder-se-ia dizer, trata-se de um olhar desde o passado – e,
assim, não se pode afirmar que o consumo, de fato, se realiza como um organizador
universal das vidas, inclusive como uma força transcendental. A forma como a cultura
dominante é narrada, todavia, dá razão a tal percepção – e aqui, diga-se, não há qualquer
tentativa de defesa de formas residuais de cultura. O diálogo a seguir, realizado com
uma fiel de classe media baixa, dá bem mostras de como o consumo se move segundo
uma força transcendental:
Como é a relação da senhora com a televisão? A senhora assiste muito?
Assisto. Eu gosto muito de televisão. Gosto da... gosto da Canção Nova. Eu
gosto da Paraná Educativa, porque eu gosto de ver o padre Reginaldo
Manzotti, né, eu gosto de ver a missa de domingo, sabe?
Mas a senhora prefere os programas religiosos?
Ah, eu assisto... Eu gosto também de novela. Assisto novela. E gosto também
muito os programas religiosos.
E qual a relação a senhora faz entre os programas religiosos e a televisão
no geral?
Não, a gente tem muito mais proveito, né, quando os programa é religiosos,
né? Tem muito mais aproveito pra vida da gente.
E qual é o programa preferido da senhora? Da Canção Nova? Que a
senhora costuma ver e...
296
Eu gosto muito é da missa mesmo.
Por que a senhora começou a assistir às missas? Na Canção Nova?
Foi por influência mesmo, dos outros falar, sabe? A gente vê os outros
falando, né? Nó, a Canção Nova ééé...Eu até não era muito de assistir, não.
Aí, de tanto os outro falar, aí influenciou a gente a assistir também.
E isso muda, mudou alguma coisa na vida da senhora?
Nó, muda, uai, nó.
O que mudou?
Mudou muito para melhor, uai. Igual eu tô te falando... A gente... ééé...
aprende muita coisa boa... Sabe? (Elizabete, 53 anos, dona de casa,
Divinópolis, Caderno de pesquisa, 2010).
84
Ao primeiro olhar, o discurso parece confirmar o que disse MS Ordones – e,
nesse caso, que há, com efeito, uma “comunidade aérea”, que causa angústia na busca
pelo antídoto contra o mal-estar. Mas se trata apenas de um primeiro olhar. Se há a
relação entre a cultura dominante, do consumo, e a manifestação da religião, que é
denunciada na correspondência feita entre a TV não-religiosa e a religiosa, note-se que
há uma persistência da cultura residual, passadista – aquela, reclamada por MS.
Ordones. Isso pode ser visto quando Elizabete se referiu, sem qualquer dúvida, à
programação religiosa preferida: as missas. Trata-se então, diferentemente do que pensa
MS Ordones, daquilo que Raymond Williams (1988) chamou de cultura emergente,
feita dos resíduos de uma forma cultural do passado em confluência com a forma
dominante de cultura. Nesse caso, é fácil perceber que se trata efetivamente de uma
cultura mista – em que há a efetiva aceitação da cultura dominante, sem que suas
práticas sejam completamente assumidas. E tal prática é muito apropriada: de um lado,
há a vida concreta, vivida segundo uma cultura baseada no fantasmagórico – o
consumo; de outro, a reação à fantasmagoria, com a transcendência se realizando em
uma religião tradicional traduzida para a cultura do consumo. O resultado disso, e que
se manifesta nessa cultura emergente, é a sacralização do consumo, uma prática avessa
em tudo, e sobretudo em sua temporalidade, ao sagrado. Mas é justamente por isso,
porque há a sacralização do consumo, que é possível viver essa cultura do instantâneo.
Do contrário, a vida seria completamente vazia. Isso ocorre aqui, com o catolicismo,
mas igualmente nas diversas religiosidades que se vinculam à prática cultural
dominante, do new age ao espiritismo. Eis aí então como as máquinas de
transcendência, as religiões, reproduzem uma cultura do consumo mais do que
naturalizada – tornada ponto de chegada, mirada, uma utopia do aqui e agora que nunca
84
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30/04/2009, na residência da entrevistado, em
Divinópolis, bairro São Judas Tadeu.
297
chega justamente por se dá no instante vazio de sentido.
Algumas marcas do discurso de Elizabete apontam para essa ação de
tradução de uma cultura residual a partir das práticas culturais dominantes: se, para
demonstrar que preferia as missas como programação de TV religiosa, a personagem
não demonstrou dúvida, efetuando a resposta de forma límpida, à questão sobre a
relação entre a programação não religiosa e a religiosa, o discurso indica impaciência,
quase incredulidade, com a pergunta: “Não, a gente tira muito mais proveito, né”. O
advérbio “não” ganha um sentido de interjeição, numa reação, escondendo impaciência,
quanto à aparente obviedade da pergunta. O mesmo pode-se ver adiante, de forma muito
mais ostensiva, com a interjeição “uai”, quando do questionamento sobre as mudanças
provocadas pela assistência à programação religiosa na TV. Aqui, a impaciência é
incontida – Elizabete se espanta com a pergunta, que deveria ter sido pressuposta. E
pressuposta porque é óbvia, no discurso proferido e na própria dinâmica cultural narrada
– a experiência de Elizabete -, que se trata de algo positivo: se todos com quem ela
convive veem e se se trata de uma programação religiosa, é claro que é bom e é claro
que é bom para a sua vida. Da mesma forma se deu a avaliação sobre a TV Canção
Nova: “Nó, a Canção Nova ééé...” tem um sentido límpido para a enunciadora, que
utilizou a enunciação de outrem para demarcar o terreno de sua concordância. Não tem
como comparar a programação religiosa com a não religiosa – embora ela permaneça
consumindo a última, como um ato contínuo da cultura hegemônica, que, aliás, é
também consumida “por todos”.
Na cultura emergente narrada por Elizabete, não se pode dizer que haja uma
superposição de uma cultura sobre a outra; tampouco pode-se dizer que a religião é
menos importante que a cultura do consumo. A cultura emergente, e é essa a proposta
da própria TV Canção Nova, recusa os elementos julgados perniciosos na cultura
hegemônica, mas o faz sem conseguir abrir mão do princípio pelo qual a forma cultural
dominante se movimenta. É assim que, mais do que consumir a religião, os fiéis, ainda
que tentando se proteger da insegurança, pretendem manter o consumo como a prática
social que lhes determina.
É o que pode ser visto no discurso de Alex. Questionado sobre as razões
por que prefere a TV Canção Nova entre as televisões católicas, ele disse:
Eu gosto mais da Canção Nova... Acho que é mais pela diversidade de
programas. Tem programa infantil, tem programa adulto. Éééé...Ela tem uma
programação fixa, mas que muda muito. Por exemplo, chega no fim de
semana, na época de carnaval, um programa de carnaval. Então a
298
programação muda tudo. Chega na semana santa, programação de semana
santa, ela muda tudo. Então não é aquela programação fixa, ela varia muito e
atende a todos os, as faixas etárias e tudo. E acho que a gente prefere ela.
Ultimamente eu tô gostando muito de assistir o... Chama Escola da fé,
professor Felipe, Felipe Aquino. Ele vai enriquecendo a gente com
conhecimento e tudo. Mas vários programas eu gosto. Por exemplo, assistir
uma missa, com um padre diferente, escutar uma pregação diferente, mais
interessante. Éééé... O próprio programa do... Padre Fábio de Melo, também
muito interessante, gosto. São programas rápidos e dá a mensagem rápido,
assim. Mas, ultimamente, eu tô... gosto de muito assim... Assim, um
programa lá... tá passando, né, que eu vou assistir, é do professor Felipe
Aquino, Escola da Fé. Identifico muito, porque fala assim muitas coisas que,
às vezes a gente não sabia e ele tá explicando pra gente, falando como é que
é. Vai... desde a formação da igreja, depois de Jesus Cristo, ele vai
explicando tudo, como aconteceu isso, aquilo, tudo. Gosto! Dá mais
argumentação pra gente falar. Até, por exemplo, aqui... muitas
argumentações é que eu vejo ele falando, que eu tô argumentando aqui, é que
eu escuto ele falando. Ele ajuda muito a gente argumentar certas questões que
a gente tem (Alex, 56 anos, veterinário, Divinópolis, Caderno de Pesquisa,
2010).
85
Novamente, a relação entre formas culturais residuais e dominantes é
evidenciada: de um lado, a estreita relação realizada entre a programação cultural
televisiva hegemônica e a tradição católica, representada pelos programas de Felipe
Aquino. É interessante, todavia, as razões narradas para justificar o gosto especial por
tal programa. Ainda que Alex tenha se lembrado do programa do padre Fábio de Melo,
o que, claramente, o configura, o programa, como uma referência de consumo, Felipe
Aquino, o conservador exegeta e historiador amador da Igreja Católica, é reivindicado
como autoridade em discussões de reafirmação no grupo de convivência religiosa, que,
conforme denuncia o discurso, é fundamental para sua prática social e a formação de
sua identidade. Isso indica um reforço na distinção de classe – e por isso padre Fábio de
Melo não foi esquecido. Claramente, nota-se que a cultura residual católica,
reivindicada por esse posicionamento ideológico, se entrecruza com a cultura
hegemônica, de consumo, uma vez que se trata de uma forma cultural hibridizada, em
que, deve-se ressaltar, o importante é deixar evidente a identidade católica – o que é
conseguido com o lançar mão da tradição -, sem deixar de compreender a cultura
contemporânea. Em outras palavras: mais uma vez, a cultura do consumo, segundo o
que se coloca em movimento no discurso, paira sobre todas as demais formas culturais.
Paira – não se sobrepõe; a cultura do consumo carece de conteúdo, já que a sua foi
subtraída desde que o consumo se tornou uma prática destituída de seu sentido, de seu
valor na produção. Esse conteúdo é conseguido com a religiosidade, que toma
85
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30/04/2009, na residência do entrevistado, em
Divinópolis – Centro.
299
emprestado da cultura do consumo sua forma. O que se consegue, no entanto, é a
irmandade entre forma e conteúdo de lado a lado, uma vez que há a sensação de
individualidade – prometida pela cultura do consumo – de um lado, e, de outro, a
segurança pela busca do preenchimento do vazio de sentido. Mutatis mutandis, a relação
social é marcada pelo pastoreio de vidas despotencializadas de um lado e de outro. E,
nessa medida, há a garantia da vida concreta contemporânea, organizada pela lógica do
consumo, ao mesmo tempo em que se busca a saída para as aporias e angústias dessa
vida, não em forma de comunidades aéreas, ilusórias etc. – mas na prática cotidiana
mesma. Isso significa que a lógica do consumo é indicada como a totalidade onde e por
que se vive – mas ela deve ser fissurada pela vida religiosa, para que os temores por ela
provocados sejam minimamente sanados. De qualquer forma, a vida em sua totalidade é
tramada pelo consumo esvaziado de seu valor, que, por sua vez, é preenchido pela
prática religiosa evocada no consumo.
É o que se vê no relato de Nilza. Encarregada de produção da pequena
confecção do filho, Nilza retomou os estudos e, depois de lidar na fábrica, vai à escola,
tentar finalizar o ensino fundamental. Por isso, disse, chega em casa cansada e, ato
contínuo, liga a TV, que zapeia em busca de algo que lhe prenda os sentidos. Foi essa
fábula que narrou – e, instigada a contar sobre a relação que tem com a programação
religiosa de TV, ela disse: se for mais interessante, ela prefere a programação religiosa:
É, se tornou um hábito, porque, parece que se torna automaticamente, eu
chego da escola e tenho que ligar a televisão, porque eu tô sozinha em casa,
então... Não porque parece... que eu tô com tanto interesse pra assistir um
programa, mas por interesse, parece que tem alguma pessoa dentro de casa
para mim poder tá tendo um contato. Então...é... Eu gosto dos programas
[religiosos], eu procuro. Sabe, eu não tenho, igual...assim... essa opção tão
grande pela novela, não. Mas se eu, no intervalo da novela, tá passando uma
programação religiosa interessante, eu fico naquele programa religioso. Ligo,
porque automaticamente ele já tá no canal da novela, então eu fico vendo.
Mas, no intervalo, eu sempre tô trocando de canal. Se tem alguma coisa
assim que eu gostei num canal religioso eu fico, eu assisto lá (Nilza, 48 anos,
encarregada de produção, Divinópolis, Caderno de pesquisa, 2010).
86
Uma vez mais, as palavras de MS. Ordones reverberam: a solidão da vida
contemporânea é aplainada pelo uso da tecnologia preferencial de lazer do brasileiro: a
TV. Nilza vai mais longe ainda – o que faria o pároco arrepiar de horror: ela associa a
TV ao humano possível. Mas não é plausível perder de vista, no discurso, as suas
circunstâncias: realizada no sábado de manhã, único horário disponibilizado pela
86
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 09/05/2009, na residência da entrevistada, em
Divinópolis, bairro São Sebastião.
300
entrevistada, a conversa teceu uma narrativa para gerar comiseração. De fato, Nilza
estava visivelmente cansada – e todas as suas falas giraram em torno ora de tal cansaço,
ora da falta de perspectiva da própria vida. Seja como for, o ressoar da voz teórica, algo
melancólica, de MS Ordones é nítido. Ele, em sua fala, recordemos, havia provocado
que procurássemos, pesquisássemos e encontraríamos muita solidão. Encontramos
mais: encontramos ausência de potência e de perspectiva de ação. E Nilza, exausta,
acaba por narrar a própria exaustão em atos contínuos que denunciam a cultura – e o
sagrado - em que se movem os humanos: ligar a TV, zapear, não enxergar muitas
diferenças entre o que está à sua frente; permanecer no hábito; consumir o religioso
como se consome qualquer coisa. E o cansaço se aguda no recomeçar da vida na manhã
seguinte.
No tecido do discurso, todavia, o sagrado do consumo se mostra: parar no
religioso, caso ele seja interessante, indica, mais do que a transformação do religioso em
um produto consumível, que o interesse individual se dá pela possibilidade aberta, por
uma promessa feita: a de que é possível recomeçar o ciclo de outro lugar – desde que o
consumo se mantenha intacto. E, nesse caso, a promessa do religioso, consumido na
hora do cansaço impotente, é bastante demonstrativo de que ele, o religioso transmitido
pela TV, pertence e cria uma forma cultural nascente: não rompe com o sagrado do
consumo; ao contrário, aprofunda-o. Apresenta-se como um pharmacos, um antídoto
para a doença de que ela é apenas sintoma.
A percepção geral dos párocos – salvo aqueles, como MS. Ordones, que
representam a resistência de uma forma cultural que persiste, apesar de estar em vias de
se extinguir – é que, a rigor, falta à telerreligião, mas muito especialmente à telerreligião
católica, inclusive à TV Canção Nova, identificada como a mais competente entre todas,
falta a elas justamente a competência técnica para que seja reconhecida como uma
legítima pertencente da cultura do consumo. É evidente que isso é a assunção definitiva
da vitória de uma forma de cultura e, acrescentaríamos, de um força transcendental de
organização universal da vida. Não deixa de ser instigante, de qualquer forma, que
mesmo os párocos resistentes e críticos à religião forjada pela TV Canção Nova
enxerguem nela a necessidade de aprofundar o espetáculo em que se aventuraram. Esse
é o caso de Frei Patrício:
É só religioso. É missa. Dois canais com missa e três quatro canais com
evangélicos falando. Eu não gosto desses programas, de propósito, eu não
gosto. E por que eu não gosto? Primeiro, do lado católico, eles põem às vezes
uns bispos, uns padres feios pra chuchu, num sermão que não faz o meu
301
gênero o jeito de falar. O que sai de missa lá na Globo e o que sai de missa na
Canção Nova... eu não gosto daquele estilo de fazer missa, de celebrar missa.
Eu não tenho paciência de ouvir aquilo. Nesse sentido os evangélicos estão
mais espertos do que nós. Eles conseguem fazer hoje em dia, a gente ver que,
eles mostrando o desespero das pessoas e mostrando quase uma telenovela de
alguém que não deu certo, que está fracassado o casamento, que de repente o
pastor entra e salva a situação. Se fizesse algo bem feito. Uma televisão bem
feita, que atingisse o público, emocionasse o público. Que o público vive
hoje é de emoções. Sem querer quando... antigamente era o... como que ele
chama...da Globo, que noticiava esse jornal da Globo de noite, o Cid
Moreira. Agora é o Bonner e a Fátima. Às vezes tem dia que eles conseguem
fazer as coisas tão bem feitas que a gente fica com nó na garganta. Às vezes
uma notícia, uma coisa assim, dá um impacto tão grande que você se
emociona. Você até fica satisfeito quando não tem ninguém perto, você fica
com vontade até de chorar daquele fim de programa. Mas vamos supor que se
conseguisse fazer uma coisa bem feita, como a Globo consegue fazer coisas
sobretudo bem feitas. Sobre qualquer notícia. Quando eles querem jogar um
produto aí ele jogam com facilidade (Frei Patrício, Caderno de pesquisa,
2010).
87
Frei Patrício – ainda que de forma oblíqua, uma vez que reivindica a
naturalidade da sociedade do espetáculo – aponta, em seu discurso, para a forma como o
espetáculo, alimento do consumo apartado da produção, se movimenta de forma livre na
sociedade contemporânea, como bem nos lembra Guy Debord (2001). É assim que
também os fiéis realizam críticas à programação televisiva católica – não por seu
deslocamento teológico, mas por sua fragilidade formal. É o que nos diz Taís:
Eu vendo a televisão, tem hora que eu falo assim: ah, isso aí não tá legal.
Porque o irmão evangélico... ele faz melhor [ênfase]. Eu tenho um vizinho,
ele fala que tem um programa aí, protestante. Chegou em casa. Tava mal
[alongando a vogal]. Aí ligou a televisão: [imitando exaltação] você que esta
aí! Você que ta precisando, você que bebe, que não sei quê! Virou: esse cara
tá falando comigo! [risos] Esse cara é bom! Entendeu? Então assim: eu não
sei qual é a receita que eles usam, mas às vezes eles conseguem ser mais
atraentes do que nós, católicos (Taís, 22 anos, fisioterapeuta, Cachoeira
Paulista, Caderno de pesquisa, 2010).
88
A utilização de uma enunciação dentro da própria enunciação é
providencial: nesse caso, colocar na boca de um personagem uma história que é
inadmissível para si mesma é uma estratégia importante. O “amigo” narrado como
personagem da enunciação garante a um só tempo a legitimidade do que é dito e
argumentado, bem como a exemplificação necessária, que garante a validade universal
do que é dito – e isso é conseguido com a dramaticidade imprimida na narração. Para
um católico, ainda que em posição teórica, admitir que assiste a programas não-
católicos e que neles encontrou a segurança que procurava poderia soar como uma
87
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
88
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil
302
traição. Há, na própria enunciação de Taís, uma ruptura no ritmo da narrativa que
garante a distância entre o que ela narrou como exemplo e a totalidade do enunciado.
Percebe-se essa quebra quando há a finalização da enunciação do personagem escalado
em sua própria enunciação. Nesse momento, ela retoma uma racionalidade no discurso,
que a coloca numa posição de espectadora. Se há uma concordância tácita com o que
lhe foi narrado pelo amigo, isso não significa que não haja necessidade de demarcar
terrenos: de um lado “programas evangélicos ”; de outro, os católicos. Imediatamente,
percebe-se a valoração impressa no discurso: católicos sérios versus evangélicos, que
topam qualquer coisa – a despeito de serem denominados “irmãos”. A competência
demonstrada por seus programas não significa que eles devam ser simplesmente
copiados – devem ser compreendidos: “eu não sei qual é a receita que eles usam, mas
às vezes eles conseguem ser mais atraentes do que nós, católicos”. Eis aí a ruptura na
narrativa que se apontou acima. Ela é decisiva para a demarcação de terreno – mas
também indica as falhas da programação telerreligiosa católica. E tais falhas devem ser
sanadas, tecnicamente sanadas. Padre Crystian Shankar, enuncia as estratégias para que
esse incômodo seja resolvido:
Hoje me dia eu analiso até melhor. Porque eles estão usando uma coisa que
eu acho que a Igreja que falta, não na Igreja como um todo, mas em muitos
ambientes, a questão de você ter uma técnica, a palavra não é bem técnica...
Você vai me entender bem. Não é que eu estou falando de pegar a fé e
transformá-la em um produto... Mas você tem que saber como apresentar essa
fé para o povo. É uma questão do... de sair um pouco do improviso, né? É
que a gente vê que os programas católicos que tinham, hoje em dia não mais,
mas que tinham, eram programas muito improvisados. Era um programa para
o público, muitas vezes a gente falava, beato. O pessoal via um padre
falando, eles já tocavam. Hoje em dia não, o pessoal ta entrando com uma
técnica melhor, né. Programas mais bem feitos, com um design, com uma
linha de ação na televisão. Eu acho, com o pouco que eu já li, que não se
pode pegar uma ação pastoral e transformá-la em um programa de televisão.
Não funciona não. A televisão tem uma outra linha. Que a televisão tem que
ter, a televisão católica, ela tem que ter na cabeça que eles estão vendendo
um produto. E o produto é Jesus. E eles têm que vender de uma maneira que
atraia o gosto do consumidor. Isso é a linguagem televisiva, né? Eu acho que
a televisão é um veículo... é a solução... não vou falar a solução, mas é um
caminho eficaz que a Igreja teria de fazer programas bem arranjados e bem
elaborados, com visão da fé. Vamos supor, a gente tem na televisão, eu já dei
até essa ideia, aquele programa passa e repassa. Você já viu? Sabe qual é o
programa? É um programa de dinâmica, que os jovens vão. Podia ter um
programa católico muito bem, idêntico ao passa e repassa com questões
religiosas. Ao invés de ter um padre fazendo uma pregação sobre o livro de
Mateus, fazer uma dinâmica, um programa animado com músicas etc, com
banda católica. Com questões de fé, não tanto com a roupagem somente da fé
cristã, mas uma roupagem que atraia para evangelizar. É mais fácil você
chamar mais pessoas para a igreja entrando na vida concreta delas, do que
com a fé primeiro. Uma sequência boa que eu li uma vez, que eu não
esqueço, que a gente pensa muito na questão da fé, a doutrina. Mas no caso aí
teria que ser inverso. As palavras são: a vida, a ação, a oração e a doutrina. É
303
mais fácil você chamar mais pessoas para a igreja entrando na vida concreta
delas, do que com a fé primeiro. Então, vamos supor uma pessoa, tem, por
exemplo, problema de alcoolismo, vamos supor. Um programa de
alcoolismo, divulgado, etc., ela vai atrair tanto quem é cristão católico quanto
quem não é. Porque é um problema do próprio ser humano. Então olhando o
alcoolismo, é o assunto, né? A vida. Então a gente faz. É bom. Ação. O que
fazer? Aí tem a ação. Na ação já pode entrar. Só a ação sozinha não
compensa. É necessário entrar com a oração. Na oração eles vão começar a
conhecer a Deus e vem a pergunta: quem é esse Deus que nos ajuda? A
doutrina. Então: vida, ação, oração e doutrina. Se eles pegarem esse caminho,
acho que muitos canais já têm, é um caminho bom, que eu tenho adotado em
palestras, pregações e que a gente atrai não só quem é da igreja como quem
não é (Padre Crystian Shankar, Caderno de pesquisa, 2010).
89
Padre Crystian, Taís e frei Patrício discursam segundo o mesmo
intradiscurso: o de que é natural que a religião como um todo e o catolicismo em
particular se organizem segundo o princípio da cultura do consumo. As diferenças entre
os discursos – e, claro, entre as visões de mundo – não apagam a força impressa nessa
naturalização – e parece haver um consenso de que o catolicismo estará a salvo, embora
corra perigos, da tentação de comungar dessa cultura, ao ponto de perder sua identidade
e seu sagrado, que, a rigor, contraria de maneira aguda o sagrado que tange a cultura do
consumo. Essa é uma sensação comum entre os católicos – e o problema está
justamente aí: na imperceptibilidade dos liames materiais (portanto na superfície da
vida, e não em suas profundezas, o que exigiria uma exegese para iniciados) de que o
consumo de algo pressupõe, necessariamente pressupõe, sua produção e todos os
esforços que isso implica.
Padre Crystian, todavia, vai ao limite dessa imperceptibilidade, ainda que
assumindo o risco, ao propor o aprofundamento da espetacularização como saída para o
catolicismo. E ele faz isso de forma radical: tornando Jesus um produto. Há ressalvas no
discurso, é verdade – ressalvas importantes, que servem para marcar uma licença
poética, uma tomada de empréstimo de um sistema social alienígena. Mas as ressalvas,
é claro, para o analista dos discursos, só reforçam a positividade da ação social – e da
visão de mundo: não, não se trata de transformar a religião em um produto a ser
consumido, mas é exatamente isso o que ocorre, na medida em que há a assunção de
uma prática hegemônica na cultura contemporânea.
O mesmo ocorre com o marketing católico. Nos últimos anos, tem crescido
no seio da Igreja a aceitação de práticas comuns ao marketing. Há um Instituto
89
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
304
Brasileiro de Marketing Católico,
90
que em 2010 promove seu 15º Encontro de
Marketing Católico. Embora seja sintomático uma instituição de marketing católico, o
que denunciaria, mais do que a reação católica aos concorrentes não-católicos no
mercado religioso, chama a atenção não a assunção de uma ferramenta de propaganda
hegemônica da burguesia – mas o fato de não haver a mínima percepção de que se trata
de uma colonização da propaganda por uma classe social. O, digamos, progenitor dessa
ideia do marketing católico é Antônio Miguel Kater Filho (KATER FILHO, 1996), que,
em sua dissertação de mestrado, apresentada na ECA/USP e transformada em livro, se
debruçou sobre a tarefa de tecer uma teoria do marketing para a Igreja Católica.
91
Para
ele, o cristianismo é, desde sempre, um importante case de marketing e o que ele faz é
senão buscar as raízes dessa prática:
Nós nos propomos a demonstrar como a Igreja Católica, adotando novamente
a postura de marketing que era uma de suas fortes características, pode outra
vez disputar o lugar de hegemonia na condução dos rumos da sociedade
atual, pois inegavelmente detém o melhor produto, pelo menor preço e
bastante disponível aos seus consumidores (KATER FILHO, 1996, 47).
Note-se aí a inversão, completamente compreensível, mas não menos
sintomática: a máquina de propaganda que é e sempre foi a Igreja Católica foi
reconsiderada segundo a propaganda burguesa – justamente o marketing. Ao afirmar ser
a tarefa católica adotar “novamente a postura de marketing que era uma de suas fortes
características”, Kater Filho confunde a luta pela hegemonia com a venda como
hegemonia. Da forma como foi proposta, a história da propaganda cristã, pela Igreja
Católica, foi remontada como a história do marketing cristão – e marketing é senão a
propaganda de mercadorias a venda, além de ser, por sua própria natureza, o realizador
do fetiche da mercadoria, a forma pela qual a mercadoria se torna um discurso que lhe
garante o valor, perdido no momento em que se apartou do esforço de produção. Ao
assumir o marketing como a propaganda existente, o catolicismo não apenas se coloca
sob o manto sagrado do consumo de produtos enfeitiçados – transforma-se na razão de
ser desse consumo, ao lhe confirmar o sentido sagrado. O resultado disso não poderia
ser outro que não a transformação dos rituais religiosos em espetáculo do consumo:
Ah, eu enxergo a igreja como, assim...um ídolo muito... muito... muito
bonito, pra mim. Assim, muito grandioso pra população também, porque, de
primeiro, eu ficava, assim, muito triste quando eu ia à igreja e via a igreja
super vazia, né. Hoje em dia, eu vejo que a igreja tem aumentado bastante
nas pessoas. Então, a gente chega na igreja e a igreja tá lotada, cheia. Não sei
90
Ver em http://www.ibmc.com.br (Acesso em 11/02/2010).
91
Ver também: MARQUES, 2007; MARQUES, 2001.
305
se tá todo mundo lá com a mesma fé, né. Mas eu acredito que sim, que pelo
menos um pouco de fé tem, pelo menos um pouco, assim, de... de carisma,
né, pela Igreja, pela religião, né. Eu acredito que sim, se não, não estaria ali,
né? (Nilza, 48 anos, encarregada de operação, Divinópolis, Caderno de
pesquisa, 2010).
92
Há, no discurso de Nilza, algo que contraria sua autocomplacência, um instante de
potência: quando ela transfere a benfazeja reviravolta na audiência da Igreja de si para a
coletividade. Se a igreja está cheia, isso significa, além da alegria para Nilza – porque,
para ela, o vazio da igreja, como uma loja sem compradores, significava a ausência de
Deus -, uma reação da própria sociedade. Agora, ela, Nilza, bem como a sociedade, têm
alegria de ter Deus em uma igreja cheia, ou seja, sem o constrangimento de que se trata
de algo alheio à vontade de “todos”. Note-se, aqui, portanto, uma relação estreita, íntima
mesmo, entre os católicos, que querem a Igreja e seus rituais como um espetáculo, e os
fiéis da sacralização do consumo, que vão à sede da Canção Nova para terem a sensação
de movimento, de fluidez simbólica que os lace na universalidade do consumo.
É na mesma medida que se deve compreender a associação entre o consumo
de produtos religiosos e a própria religiosidade católica, entendida como uma forma
cultural emergente, discutida atrás. Questionada sobre a venda de produtos na TV
Canção Nova, Elizabete disse:
Ah, eu sou a favor. Sou a favor, porque ali mostra uma coisa que a gente não
tem conhecimento... Pela... pela televisão, pelos canal católico a gente vai ter
aprofundamento, vai conhecer muita coisa que a gente não... Livro, né. Igual,
muitos livro a gente não conhece e atras da religião, dos canal religiosos, a
gente fica conhecendo (Elizabete, dona de casa, 53 anos, Divinópolis,
Caderno de pesquisa, 2010).
93
Há, nesse caso, uma elipse na construção do sentido: a venda de produtos é defendida
para a manutenção das TVs católicas. Fica subentendido então, nessa primeira relação,
que os produtos religiosos servem para a manutenção da estrutura das TVs – porque se
trata de um maquinário não concorrente, mas complementar. Mais ainda: trata-se de
manter o elemento de segurança – a telerreligião – vinculado a um medium que
representa um modo de vida do qual não se quer abrir mão. Assim também é apontado,
como exemplo, um dos produtos comercializados: o livro é importante para transmitir
conhecimento. Mas é nessa articulação que o discurso relaciona o produto, qualquer
produto, desde que seja religioso. Há então, em um primeiro relance, a clara noção de
que se trata de uma luta material – a manutenção da estrutura material de transmissão
92
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 09/05/2009, na residência da entrevistada, em
Divinópolis, bairro São Sebastião.
93
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30/04/2009, na residência da entrevistada, em
Divinópolis, bairro São Judas Tadeu.
306
simbólica, que vai garantir a segurança em um mundo inseguro. Posteriormente, há,
contraditoriamente, a permissão de que essa matéria seja condicionada pelo espírito que
a tange e a preenche como conteúdo. Há uma inversão, portanto: o material é a forma e
o espiritual o puro conteúdo. É dessa ambiguidade que vivem os inimigos íntimos:
capitalismo e tele-catolicismo. Não há por que recusar tal fenômeno – eis aí o problema,
todavia: a cultura transmitida em uma e outra máquina material de transmissão implica
o domínio dessa máquina. Nesse caso, o consumo é apartado da produção justamente
porque fiéis ou consumidores não têm acesso aos meios de produção; resta-lhes
produzir o sentido vazio do ato de consumir em um esforço de transcendência que os
joga novamente no chão do cotidiano, onde recomeça o ciclo. O fetiche da mercadoria
se expande no enfeitiçamento completo da realidade, cujo poder está localizado no ato
simplório do consumir por ele mesmo. Resta então, como última fronteira, o corpo
íntimo – mas nem ele está a salvo da ambiguidade que forja o novo sagrado. A despeito
de ser o corpo o vestígio último de materialidade em um mundo que se quer pura
imaterialidade, também ele está ameaçado pela força mágica que a tudo transforma em
signo que se auto-referencia para a própria consumação.
4. Corpo – ou: ainda o materialismo
Em uma tarde quente de dezembro de 2009, Felipe Aquino era o
responsável por proferir a palestra no Rincão de Meu Senhor, durante Hosana Brasil,
em Cachoeira Paulista, “mais importante evento do ano da Canção Nova”, como o
próprio palestrante disse. Sem os recursos de iluminação e contando apenas com suas
habilidades auto-proclamadas, Aquino falava para uma plateia não muito atenta – talvez
em razão do horário e consequente calor; talvez em razão dos encontros de grupos de
oração que aconteciam ao mesmo tempo (mas qual a razão de os grupos se encontrarem
enquanto ocorria a palestra de Felipe Aquino? Por que não houve esses encontros
quando padre Fábio de Melo e seu indefectível fundo musical ao teclado proferia sua
palestra, na manhã do mesmo dia?); talvez como sintoma, compreensível, de
preferência, como disse uma fiel em entrevista:
Sempre que eu assisto a televisão a maior parte é Canção Nova. Mas, assim,
com muita sinceridade, nem tudo que, nem toda a programação da Canção
Nova não me prende, não. No dia que alguma coisa impede a gente [de
assistir a Direção espiritual, programa de padre Fábio de Melo
], faz falta.
Acho, assim... Eu ainda revejo muitas, muitas palestras de padre... de padre
Léo, de padre Fábio. Porque, assim, acho que toda pessoa tem uma
identidade. Eu me identifico muito com a linha de padre Fábio, padre Léo.
Tem mais, mas tem algumas coisas que eu... eu não me atenho. Valorizo,
307
acho que é importante, atinge, também... às vezes... Atinge outras pessoas.
Mas tem uma programação que eu ainda não me atenho, algumas palestras.
Por exemplo: eu assisto Dunga há muito tempo. Mas eu não me prendo muito
à palavra do Dunga, não. Agora, não, de jeito nenhum tirando o valor e o
mérito. Acho que ele é um ícone para a juventude, pra tudo. Mas, eu me
prendo muito na fala de padre Fábio. O professor Felipe Aquino: é uma
sabedoria em pessoa, mas nem toda palestra dele eu consigo me prender. Às
vezes eu fico meio... assim, com preguiça (Orlene, professora, 53 anos,
Cachoeira Paulista, Caderno de pesquisa, 2010).
94
Talvez fosse essa ausência de simpatia que afastava os presentes naquele dia
das palavras de Felipe Aquino. E isso só faz aumentar o mistério: por que razão seu
programa na TV Canção Nova é citado com um dos mais assistidos? Há uma
explicação: sua sabedoria, como disse Orlene. Assistir ao seu programa, muito além do
gosto por um determinado produto, implica reafirmar a identidade católica. Assim, ele
tinha um público – disperso, em constante movimento, interessado inclusive nos
produtos à venda, mas tinha. Por isso ele continuava: fez uma retrospectiva de seus
programas na TV e na rádio Canção Nova; falou das conquistas e das dificuldades que,
num esforço de aproximação retórica, mas sinceramente se colocando como um humano
genérico, relatou as dificuldades “como cada um de nós aqui tem e teve nessa
caminhada.” Obra de Deus, que atua cotidianamente na vida de cada um; que marca a
textura do dia-a-dia. Desde já, Felipe Aquino, mestre na história espiritual da Igreja, em
sua potência imaterial, sabe da importância da matéria e do corpo para a TV Canção
Nova e seus consumidores.
Seu discurso, todavia, carregava a ambiguidade que marca não apenas a
telerreligião da TV Canção Nova, mas o próprio cristianismo. Entre citações bíblicas e
alusões a teorias científicas diversas, que, justas e relacionadas, demarcavam sua
autoridade, Aquino foi desenvolvendo seu discurso sobre a importância da presença do
espírito de Deus – na carne, no mundo. E o corpo sempre ali: devemos agradecer ao
Deus presente o simples motivo de estarmos vivos. “A primeira vitória de um homem
foi ter nascido”, disse Aquino, se referindo a Alceu de Amoroso Lima, o conservador
jornalista católico. E complementou, previdente: ‘homem e mulher”, numa correção
sexista importante. Porque ali, afinal, há corpos femininos e masculinos. E continua: a
primeira vitória é ter nascido porque muitos, “milhões e milhões são destruídos no
ventre da própria mãe”. Corpos ausentes; corpos mutilados, lembrados na cruzada
moralista, para a “salvação das almas”.
94
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
308
O discurso prossegue, desfiando o rosário de fórmulas teológicas prontas:
“Deus, quando nos criou, não usou modelo, usou a si próprio, porque nos fez à sua
imagem e semelhança.” Eis então que a ambiguidade se torna aguda: “a beleza que cada
um de nós traz... não essa beleza física”. Silêncio breve e complemento: “Apenas. É
claro que essa beleza física nossa também é importante”. Mas: “tudo isso passa. Por
que? Porque Deus tem coisa melhor para nós.” Eis que o discurso tomava corpo – e ia
nesse caminho. Falando aos jovens, que, disse, o alegravam pela grande presença,
porque “os jovens são o futuro da Igreja, porque os jovens são o futuro da sociedade” –
em uma articulação importante entre a temporalidade juvenil, o tempo da Igreja e da
sociedade –, disse da importância de se criar um mundo sem corrupção. E emendou: o
importante não é a beleza física, cultuada pelo consumismo, pela propaganda.
Demarcação de terreno – e ambiguidade: presença e ausência do corpo. “Vamos cuidar
bem do corpo, é claro, mas aquilo que, em nós, é imagem e semelhança de Deus não é o
nosso corpo. É a nossa alma, onde estão nossa faculdades intelectivas.” E, adiante:
“Nós, católicos, também estamos dominados pela propaganda, que nos escraviza no
corpo. Tudo é o corpo. Não! O mais importante é a alma.”
Eis a primeira graça. A segunda, igualmente, trazia consigo a ambiguidade –
Felipe Aquino conclama a graça de ser cristão. E disse: “Jesus morreu para que
participemos de seu corpo, de sua Igreja. Essa Igreja de 2000 anos, repleta de vitórias”.
Corpo. Matéria. E novo rosário de demarcação de autoridade: as vitórias (se
mitológicas, pouca importa) da Igreja Católica Apostólica Romana ao longo dos séculos
e séculos. Sangue de mártires no solo de Roma, até que o Império Romano, “o maior
império que o mundo conheceu” dobrou os joelhos – e se tornou cristão. Vitórias
históricas, de fato.
Por fim, a última graça: da Canção Nova, esse “mutirão internacional de
evangelização”; uma vitória de Deus, não de MS. Jonas. Uma “vitória esplendorosa”.
Esse complexo, esse “sistema maravilhoso de comunicação que entra nos lares e que
salva o mundo”, cumpridor da meta estabelecida pelo papa João Paulo II para o século
21: “a Igreja precisa ir a alto mar. Vamos pescar em águas mais profundas”. Essa não é
uma tarefa simples, contudo. É preciso estar bem equipado, “para pegar peixe grande”.
“A Canção Nova é uma dessas companhias de pesca espiritual que vai buscar peixe em
alto mar.” A vitória final está próxima: matéria que movimenta o espírito.
Com efeito, a questão do corpo no cristianismo é central – e ambíguo. Todo
o cristianismo gira em torno do corpo. O mistério da encarnação, a fé na ressurreição
309
corporal de Jesus e a presença sacramental de Jesus no pão, que alimenta o corpo. Mas,
por outro, lado, como o infinito pode habitar o finito? Como o espírito de Deus pode ter
se tornado carne? O platonismo, fonte do cristianismo teológico, resolveu o problema: o
corpo é a prisão da alma e dele os humanos devem se libertar. Mas ao mesmo tempo,
dada a impossibilidade dessa libertação, é preciso controlar o corpo em nome do espírito
– e, nesse caso, o esforço é pela desmaterialização do corpo. A Igreja, como corpo de
Deus, é material por contingência humana; mas o que nela importa é o puro signo, a
pura latência do vir-a-ser. E esse corpo é portentoso, ornamentado, rico – contingências,
graças a Deus.
É dessa ambiguidade que não consegue se libertar Felipe Aquino em seu
discurso. É nessa mesma medida que não se podem acusar as ideologias pós-
modernistas em sua tentativa de transformar o corpo em signo, como discurso auto-
referenciado. Está aí, na longa história da metafísica, o lastro idealista do pós-
modernismo. Tão longa, que é assumida de forma bastante tranquila pelos católicos –
que naturalizam a materialidade imaterial católica, e estranham a riqueza do outro.
Tratando da diferença entre as práticas de venda de produtos religiosos e pedido de
recursos financeiros entre católicos e não católicos, Alex não tem dúvidas: uma
enriquece materialmente; o catolicismo é rico espiritualmente:
Os resultados que eu vejo muito aí é o enriquecimento demais dessas igrejas.
A gente vê as igrejas enriquecendo de uma hora para a outra, né? A gente vê,
mesmo aqui em Divinópolis, a maioria das igreja tá em pontos... ééé.. como
diz... os melhores pontos da cidade, né, locais de aluguel muito caro. Ééé...
Aluguel muito caro. Então, pra bancar isso tudo aí, o aluguel, ééé...
equipamento de som, tudo, o próprio pastor, que parece até... Posso até estar
falando bobagem, mas parece que o pastor recebe um salário, mas vive... só
trabalha como pastor. Então, é muito dinheiro. Então, eu vejo esse
enriquecimento. A gente tá vendo muito isso. Esse enriquecimento. E a Igreja
Católica... Pode falar: ah, mas a Igreja Católica também é rica. É rica, mas
talvez já foi muito mais rica do que é hoje. Ééé... Antes da reforma de Martin
Lutero, antes... Ela era muito mais rica do que ela é hoje. Eu acho a Igreja
Católica hoje muito rica... A riqueza maior dela e pela conservação que ela
existe, de... Como que eu falo? De imagens, de... As próprias igrejas antigas.
Então, cê vê falando assim: a Igreja Católica é muito rica, porque olha o
Vaticano. Mas o Vaticano foi feito por... por gênios, né? Michelangelo, que
foi lá e pintou. Então, esse acervo. Essa é a palavra. Acho que o acervo da
Igreja Católica, ele é muito rico. Isso que enriquece mais. Não tanto quanto
essa localização de igrejas, por exemplo (Alex, 56 anos, veterinário,
Divinópolis, Caderno de pesquisa, 2010).
95
O discurso, todo ele, é uma tentativa de transplante de sentidos de um
fenômeno a outro, no esforço de justificar o argumento central defendido. A saída,
95
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30/04/2009, na residência do entrevistado, em
Divinópolis – Centro.
310
como se viu, foi um malabarismo retórico – e, ainda que haja cuidado, expresso com as
ressalvas, o indicativo é de acusação efetiva justamente àquilo que é julgado
pecaminoso, aos olhos católicos: o enriquecimento. Nesse caso, enxerga-se apenas a
atualidade e perdoa-se a eventual história das riquezas católicas. O esforço é claro:
associação entre o moderno enriquecimento das igrejas não-católicas ao pecado do
corpo, ao diabólico capitalismo; e consequente dissociação entre capitalismo e Igreja
Católica, numa operação de desmaterialização das riquezas da Igreja. Pouca importa
então que os templos católicos sejam, quase sempre, um atrativo simbólico nos tecidos
urbanos, o que implica, necessariamente, que a sua localização é nobre – e, nesse caso,
justamente por causa da igreja, e não o contrário. Reivindicada a tradição, o lastro
temporal para explicar a eventual riqueza contemporânea da Igreja, esse poderio é
estancado quase exclusivamente no passado – e é preciso perdoá-la, a Igreja, por isso.
Mas esse mesmo passado de riqueza, esse mesmo distanciamento fez com que o mundo
católico hoje se diferencie: do passado de “gênios”, como “Michelangelo”, com seu
intelecto privilegiado, seu desapego das coisas materiais, a Igreja Católica herdou sua
principal riqueza: o conhecimento. Ou, como gostaria de dizer André Gorz (2005), seu
capital imaterial.
A despeito, portanto, de um lastro bastante antigo para esse esforço de
desmaterialização da vida, como sua valorização imaterial, há algumas novidades pós-
modernistas no atual discurso católico, o que pode ser visto desde a Canção Nova e sua
programação televisiva – como se viu no discurso de Felipe Aquino -, até nos discursos
de párocos e fiéis, de todas as correntes de pensamento. Essa nova perspectiva é tanto
de valorização do capital intelectual, em detrimento do esforço físico, e consequente
associação entre corpo e alienação, até na justificação para essa atitude, de toda
assumida pelas ideologias pós-modernistas, e que leva ao paroxismo a transformação do
mundo e, como última fronteira de desmaterialização, do corpo em signo autorreferente:
a interface entre máquina e corpo.
Tratando de uma prática comum na telerreligião, inclusive, ainda que
continuamente decrescente, na TV Canção Nova, a de cura e milagres a distância, MS.
Eustáquio diz:
Bom, pela doutrina cristã o milagre é algo extraordinário, por isso supera as
normas, as leis da natureza. Acontecem milagres? Acontecem. Eu acredito
em milagres. Mas o milagre é algo que Deus usa para chamar a atenção do
fiel, dizendo: Oba! Eu estou aqui! Seja bom. Seja justo. Eu estou aqui.
Vamos dar um exemplo: um câncer no pâncreas. A pessoa está com um
câncer no pâncreas. Como você sabe, câncer no pâncreas não tem cura. A
311
medicina ainda não encontrou um remédio pro câncer. E a pessoa muito
piedosa diz: vou rezar pro Frei Galvão. E de repente ela se cura. Então, isso
aí é um milagre. Raro. Por quê? Porque é extraordinário. Agora, por que o
povo gosta muito de milagres? Porque é próprio do ser humano gostar do que
é fantasioso. Nós gostamos de usar muita fantasia. Por exemplo: você está aí,
numa cidade, e você vai falar assim: Ivete Sangalo vai cantar aqui. Você está
num hotel ali pertinho do local. Você dá uma chegada lá. Curiosidade. Então,
a pessoa é chamada ao que é extraordinário. Agora, as curas por sugestão,
elas não são milagrosas. São curas. Que adianta, adianta. Quando você está
muito tenso, nervoso, com dor de cabeça. Aí vem um psicólogo ou mesmo
um padre, fala: oh, Gilson, senta aqui. Vamos conversar um pouco. Você
conversa, um papo agradável. Depois eu falo. Vou colocar a mão na sua
cabeça. Rezo. Uai, padre, o que o Sr. fez? Acabou minha dor de cabeça. A
dor de cabeça era ocasionada por uma tensão nervosa sua, entendeu? Mas
milagre existe. Agora, o que as igrejas pentecostais fazem é falar esse
imediatismo. O erro tanto de alguns programas da Canção Nova como das
outras igrejas é pregar esse imediatismo. Tudo vai acontecer agora se você
crer (MS. Eustáquio, Caderno de pesquisa, 2010).
96
Aqui, vê-se o duplo movimento que se pretende focalizar – e ainda mais:
primeiro, o movimento de associação entre a mídia e o corpo desmaterializado. Nesse
caso, trata-se de uma valorização do imaterial por ele mesmo, da prática do consumo
destituído do produto consumido; em outras palavras, da transformação do corpo social
em um tecido criado segundo a exclusiva tessitura do simbólico, cujos fios são os puros
signos midiáticos. O segundo movimento, que diz respeito ao primeiro, é a clara
valorização do espiritual em relação ao corpóreo. Nesse caso, alienação e consciência se
dão exclusivamente no nível imaterial. Por fim, como desdobramento dos dois
movimentos, há a última valorização do imaterial como um valor em si mesmo: há os
que têm poder de manipulação desse imaterial – nesse caso, o próprio sujeito da
enunciação – e os que são “sugestionáveis”, aqueles que são manipulados
espiritualmente. Perceba-se: a manipulação espiritual se manifesta no corpo, aqui
representado no corpo cotidiano. Assim, o material é rebaixado como resultado da
manipulação espiritual – e o povo “sugestionável”, que acredita no milagre da mídia
como pura espiritualidade, só poderá ser salvo por um pastor que não se deixa conduzir
corporeamente, por seu preparo espiritual.
A associação entre máquina e corpo, com a desmaterialização de ambas
como fator positivo – já que o resultado é a transformação do corpo em pura potência
simbólica, é levado ainda mais adiante por padre Crystian:
Eu noto que as pessoas, não só as que acompanham a Canção Nova, que tem
muita gente também. Mas eu noto as que acompanham mais. Eu noto que a
diferença da vida delas é que elas vivem vinte quatro horas com a
consciência de que Deus está com elas. Resumindo é isso. Então influi em
96
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03/10/2007, Casa paroquial da Paróquia de N.S.
Aparecida – Bairro Bom Pastor - Divinópolis/MG
312
tudo, influi na família, influi no trabalho, influi no namoro. Então a pessoa
tem consciência que Deus está... Então, em casa, um dos exemplos clássicos.
A pessoa, eu já conversei com várias pessoas, a pessoa tinha mania de gritar
palavrões. Depois que ela tem acompanhado a Canção Nova, tomado essa
consciência, na hora que ela vai gritar, ela lembra que o irmão é ser de Deus,
ela não grita. Houve uma transformação. Questão da missa: a pessoa faz o
jejum eucarístico antes, vem fazer uma adoração antes, tem uma vida maior
de oração. É essa a transformação. Resumindo é isso: a pessoa vive mais na
presença de Deus (Padre Crystian Shankar, Caderno de pesquisa, 2010).
97
Diferentemente de MS Eustáquio, padre Crystian compreende a demarcação
corpórea da mídia não como uma negatividade – porque ele se recusa a entender a
assistência à mídia, ou, para ser mais preciso, à TV Canção Nova, como uma
manipulação negativa do espírito. Aqui, diferentemente, o signo midiático é
transportado para o corpo do fiel. E, assim, positivamente, como um dever-ser, o fiel
lança-se no consumo midiático transformado em puro signo. Seu corpo, dessa maneira,
pode, dançando, orando em línguas, cantando com louvor num transe consciente, ser
libertado de sua materialidade constrangedora. Como puro signo, a matéria é enfim
rebaixada e o corpo flana, leve, em busca da eternidade. E, então, o movimento final:
consumir a eternidade implica estar eternamente na estrutura do aqui e agora do
consumo, ele mesmo:
Se a gente pega no início, no início, tirando a questão da fé, é o produto. A
televisão, ela está vendendo um produto. Se você for lá na Canção Nova,
conversar com qualquer pessoa e perguntar: qual que é finalidade da TV
Canção Nova? Eles vão falar: levar Jesus, levar a conversão. Na TV, o
produto é Jesus. O que eu noto que Canção Nova difere das demais é que ela
não está vendendo Jesus, apenas um Jesus livresco, um Jesus da doutrina,
mas um Jesus experiencial. É esse Jesus que o pessoal gosta, porque é um
Jesus de experiência. A maioria de falas da Canção Nova é aquela fala do
tipo: eu experimentei, ele fez isso para mim e ele pode fazer também na sua
vida. Acho que o grande diferencial é esse. A própria Rede Vida. A Rede
Vida foi um processo ao contrário da Canção Nova. A Canção Nova
começou muito aquele, como se diz, Jesus pessoal e a Rede Vida começou
muito de um Jesus de doutrina, aquele que forma. Hoje em dia a Canção
Nova veio um pouco para o lado da razão, de firmar o pé. E a Rede Vida ela
veio mais para o lado da emoção. Então eu acho que tanto uma quanto a
outra... Eu acho que olhando sua pergunta, você diz qual que é o diferencial
da Canção Nova; acho que o diferencial número um da Canção Nova é que o
discurso converte, porque eles primeiros falaram com Deus para depois falar
de Deus (Padre Crystian Shankar, Caderno de pesquisa, 2010).
98
Eis a diferença da TV Canção Nova; eis a razão por que ela é a preferida
entre os católicos – porque, transformando matéria em signo, permite aos
telespectadores a experiência da fé corpórea; e esta como um puro signo, um livrar-se
97
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
98
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 25/10/2007, no Escritório da Paróquia de N.S.
Carmo – Carmo do Cajuru/MG
313
do próprio corpo em sua determinação, em sua materialidade. O resultado disso, é claro,
é a sensação de que a TV Canção Nova representa o futuro do catolicismo:
Eu acho que a gente tem que encarar a realidade, a Igreja Católica hoje ela
não consegue... Ela só consegue administrar o pessoal mais antigo. O pessoal
de tradição, o pessoal... entendeu? Aqueles... Éé... Pessoas tradicionais,
católicos tradicionais a ponto de... de... Como diz: só de ver uma imagem de
uma mulher nua, ali já é sinônimo de pecado. E a Canção Nova, ela vem pra
nós, num... num tempo real, como uma ampliação maior, uma ampliação
moderna. Então, eu acho assim: a Igreja, em relação à Canção Nova, ela...
ela... ela não consegue acompanhar a intensidade da Canção Nova. A Canção
Nova tem uma coisa que ela... ela evangeliza muito rápido e evangeliza de
uma forma, hoje, real. E a igreja, a evangelização dela não evangeliza mais.
Simplesmente, ela prende aquelas pessoas que foram educadas, criadas no
sistema antigo. E infelizmente eles se vão. Os filhos deles, a gente pode ver,
muito poucos estão acompanhando. Então, a tendência da Canção Nova é
realmente ficar com o domínio da Igreja Católica. Na minha opinião,
principalmente no Brasil, né (José, 42 anos, comerciante, Divinópolis,
Caderno de pesquisa, 2010).
99
Enfim, a sensação da vitória final do espírito: num movimento contínuo, a
“comunidade aérea” substitui a comunidade real – mas, contraditoriamente. é ela, a
virtual, mais real do que a comunidade “real”. Em seguida, essa virtualidade marca,
cotidianamente, o corpo dos fiéis, mas para transformá-los em puro signo, em pura
potência, em pura virtualidade. Só assim o corpo, desvencilhado das limitações
materiais, se torna morada do espírito, ao mesmo tempo em que se move no mundo
contemporâneo. E assim há a sensação de pertencimento, de generalidade em um
mundo habitado por corpos transformados em signo. Porque o corpo, a despeito de ser
marcado, preparado, agitado, é obliterado, e por mais que ele se prepare, se mantenha
em alerta contínuo, tal atitude é sumariamente ignorada pela máquina do mundo, a leve
máquina sígnica do mundo, se, com esse corpo teso em sua mobilidade imaterial, não
está uma alma que consome e se coloca na estante do consumo identitário universal. E
mesmo para os corpos que se dispõem a aceitar essa nova moralidade, que se mantêm
disponíveis e dispõem de seu espírito no banquete do consumo identitário – mesmo eles
se veem sob o risco contínuo de serem lançados, como bodes expiatórios, para os
descrentes. E seus corpos sarados – no sentido amplo que ganhou e possui a expressão:
saudável, malhado em insistência e educação moral -, já apartados de seu espírito,
também eles se movem de um lado a outro, à procura do simbólico que lhes garanta a
existência. Logo o encontram, mas para perdê-lo novamente.
O consumo religioso está aparentemente livre dessa maldição – e por isso a
99
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23/05/2009, na loja de roupas do entrevistado
Divinópolis/ Centro.
314
certeza de que a TV Canção Nova é o futuro do catolicismo. Aqui, o consumo está
acomodado, acorrentado ao eterno, ao mesmo. O corpo, então, se torna - diferentemente
da carne, transitória - pouso para o espírito santo. Mas apenas aparentemente essa
essência prevalece. Também do corpo do religioso, que tem a promessa de não apartar-
se do espírito, justamente pelo consumo dos produtos religiosos – também dele, todavia,
o perigo se aproxima. Apesar da promessa de uma vida santa pela moralidade ali
consumida e edificada, essa busca deve se dar incessantemente. E, incessantemente, a
busca é reiniciada – nunca o espírito santo está comigo. Nunca estou suficientemente
preparado para ele. Nunca meu corpo-carne está suficientemente purificado. E o corpo,
esvaziado de sua materialidade, inicia a nova busca – sem se dar conta de que as
moralidades, unificadas pelo consumo, se tecem, se embaraçam e se tornam as duas
faces de uma mesma moeda.
Então, aquela ambiguidade cristã para o corpo e o esforço por
desmaterializar, em nome inclusive do trabalho imaterial – moralmente cercado -,
realizado pela TV Canção Nova acabam por reforçar a mistificação, presente no tempo
do “capitalismo imaterial”, que guarda como segredo o fato de que aqueles que
produzem a riqueza social não poderem usufruir dessa produção, senão como
consumidores. Mais do que isso, mais do que reforço de tal mistificação, trata-se, no
caso da TV Canção Nova, de um movimento complexo, em que os corpos são
traduzidos a partir do consumo de sua programação, ao mesmo tempo em que os
consumidores, que realizam essa sobreposição entre o material e o simbólico que
consomem e seus corpos, são apartados do processo de produção. Isso não quer dizer
que a materialidade das forças produtivas seja esquecida – ao contrário, ela é colocada
no centro da arena em que se trava a disputa pelo sagrado.
Em sua narrativa memorialística, frei Patrício procura as razões por que,
afinal, a Igreja Católica investiu no domínio do maquinário midiático – e as encontrou
na disputa que se estabeleceu entre as máquinas de transmissão simbólica:
Hoje o povo está muito na mídia. Assim como o povo está na novela, religião
também é muito pela mídia. Quer dizer, tem seu lado positivo que a mídia
também aceita a Igreja Católica que não aceitava em um período. A Igreja foi
muito bem aceita durante o período militar. Porque a Igreja era a única voz,
que abria a voz, gritava, que denunciava a repressão. Então a igreja ficou com
muito cartaz. Na mídia também, na Veja também. Passou o período da
repressão, a Igreja se retraiu diante disso, que não tinha mais precisão, e daí
houve uma guinada contra a Igreja até. A Veja foi uma delas, que deu uma
guinada forte contra a Igreja. A gente percebeu isso com muita clareza. A tal
ponto que a CNBB falou: “Por amor de Deus, não assinem a Veja, que ela é
contra nós.” A CNBB chegou a se pronunciar na época, chegou a pronunciar-
315
se que a Veja era contra a Igreja. Depois que passou o período da repressão,
que a igreja era a única, a OAB, Ordem dos Advogados do Brasil e a Igreja
eram as únicas plataformas que tinha para defender o povo durante um
período ai, para denunciar. E quando não conseguia denunciar, denunciava
no exterior. O sistema ficava atacando a Igreja Católica, que era covarde, em
vez de falar aqui, foi para a Europa, para as universidades denunciar aqui a
repressão, não sei o que. Mas é claro. A Igreja não tinha vez aqui e a mídia
era proibida de... Dom Hélder era um homem proibido da mídia. O dom
Hélder começou a ser aceito pela mídia foi quando o João Paulo II veio ao
Brasil, em Recife, que lá, numa daquelas pontes, antes de celebrar, lá, de ser
recebido pelo povo, o dom Hélder foi ao encontro dele, o papa abraçou dom
Hélder e dom Hélder encostou a cabeça, chorando no peito do papa. A partir
desse momento não tinha mais jeito de proibir dom Hélder na mídia. Dom
Hélder era um homem proibido da mídia. Até as emissoras do interior todas
recebiam aviso. Não publica nada, nada, nada. Eu acho que a Igreja entrou
nesse sistema da mídia, porque viu que estava perdendo terreno se
continuasse de birra com a mídia. Ia perder terreno que o povo vai todo hoje
é pela mídia. Eu acho que as comunicações hoje é essencial. Uma das
comunicações que eu falo é a televisão. Rádio, televisão. Eu não vejo nada
contra, desde que não seja para alienar o povo (Frei Patrício, Caderno de
pesquisa, 2010).
100
O tom memorialístico do discurso guarda em si uma confusão de
sentimentos: ora a mídia é identificada com “o sistema”, o que a coloca em oposição à
Igreja; ora é dito que a mídia era proibida de se expressar livremente sobre os fatos e,
nesse caso, a Igreja, “a única a estar do lado do povo”, era proibida de aparecer na mídia
por “ordens superiores”. Toda a digressão, no entanto, serve para justificar o fato de o
catolicismo se esforçar pelo controle de equipamentos midiáticos. Se não havia chance
para a Igreja na mídia; se foi necessário um fato incontornável para que ela “aparecesse”
na mídia, não há outra saída que não buscar controlar os próprios meios.
Nesse caminho, há algumas rupturas no curso da narrativa, com o propósito
de justificar a investida católica pelo controle de maquinário midiático – identificado
especialmente com a TV -, o que implica, nesse caso, como vimos anteriormente,
controlar o material simbólico circulante. A primeira foi aquela em que o enunciador
reclamou Dom Hélder Câmara para fundamentar o seu argumento. Pode-se obstar que
frei Patrício se referia a uma Igreja no Brasil – aquela realmente identificada com os
pobres, com a corrente à esquerda e com a Teologia da Libertação e que se referia a ela
quando apontou para a obstrução que a Igreja sofria na mídia. Nesse caso, haveria uma
sincera opção do narrador por uma corrente da Igreja e, consequentemente, de uma
teologia. Mas esse argumento só reforça a estratégia adotada no discurso: identificar “a
Igreja” a D. Hélder implica assumir um efeito discursivo para justificar as duas outras
rupturas. A segunda ocorre logo no início do trecho destacado e se dá por
100
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 19/09/2007, na Casa paroquial da Paróquia de S.
Antônio (Santuário) - Centro – Divinópolis.
316
condicionalidade. A expressão “quer dizer” demarca a ruptura: o povo está na mídia, é
manipulado por ela. Mas a religião também está na mídia. Seria fácil manter a unidade
semântica do discurso se a Igreja Católica também não estivesse na mídia. Assim, por
condicionalidade, a mídia, que é negativa, também pode ser positiva, se for católica. E
então se segue a digressão memorialística, de modo que se consiga preencher de sentido
essa ruptura – e nesse caso D. Helder, associado à Igreja, é providencial, já que, como
um pacto entre interlocutores, não há dúvida da identificação ideológica existente com o
nome do arcebispo de Olinda e Recife. Assim ocorre a terceira ruptura – que nesse caso
retoma o sentido da primeira: por que a Igreja Católica investe no controle dos meios de
produção midiáticos? Porque não tinha espaço na mídia não religiosa e, sobretudo, para
que o povo, manipulado por ela, mídia, pudesse se libertar. O fechamento do discurso se
dá nesse sentido: “não vejo nada, desde que não seja para alienar o povo” implica
definitivamente apontar para uma prática julgada anteriormente condenável: o próprio
controle da mídia. Porque o povo está na mídia, “na novela” e é alienado. Mas a religião
também está na mídia. Tudo bem, “desde que” seja católica.
Padre Luis Carlos é mais direto – e sem medo da própria contradição.
Lembremos: padre Luis Carlos era peremptório ao denegar qualquer uso da mídia –
porque isso faria um grande mal à Igreja, por afastar os fiéis da prática comunitária; que
a Igreja deve privilegiar a caridade, não o louvor que se via na TV Canção Nova. Mas
ninguém, nem mesmo ele, é capaz de negar o poder desse maquinário de produção e
circulação simbólica de alcance mundial:
Eu acho que isso daí é muito positivo. Eu acho que a Igreja deu um grande
passo. E eu louvo todas as TVs que fizeram isso. Tanto a TV Vida que foi a
primeira, Canção Nova. O esforço que a Canção Nova faz para se manter no
ar. Porque a exigência financeira é muito grande. TV Aparecida também
agora. A TV Horizonte. Então eu acho que a Igreja deu um passo muito
interessante. E precisa realmente usar bem a mídia para ter certeza da
evangelização do povo. Porque a Igreja tem que formar o povo. É tarefa dela
dar uma boa formação, ajudar as pessoas, mostrar, apontar um caminho com
toda segurança. Então eu acho que isso daí foi muito bom, tanto a televisão
quanto o rádio, né. Um espaço que a gente não tinha (Padre Luis Carlos,
Caderno de pesquisa, 2010).
101
Aqui se delineia, a despeito da contradição de padre Luis Carlos, a
ambiguidade entre a matéria e o espírito – ou entre o idealismo e o materialismo. A
Igreja efetivamente não é uma matéria, não é um medium – é puro espírito. Por isso, o
recuo de padre Luis Carlos não é, com efeito, problemático, ainda que haja o perigo de
101
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
317
admitir o que não deseja: que a TV Canção Nova é Igreja Católica. De qualquer
maneira, há o reconhecimento de que se trata de uma materialidade necessária para a
tarefa da Igreja. Nesse caso, não há dúvidas – e então se compreende a razão não da
concessão ou da ausência de temor pela contradição: não há contradição. Uma e outra
são pura espiritualidade; a matéria evocada, a matéria movimentada não importa,
porque a finalidade é uma só: a formação do povo. Nessa medida, não se separam, a
despeito do registro das forças produtivas desse material simbólico forjado pela TV
Canção Nova, ou da ausência dessas forças produtivas no caso das paróquias; a despeito
disso, TV e paróquia não se separam – porque ambas apenas cumprem o que deve ser
cumprido: uns poucos produzem o material que os demais devem consumir, para sua
própria salvação. É assim que, também aqui, o mistério se realiza. A riqueza social
produzida, nesse caso, é duplamente mistificada: como mecanismo de produção e
transmissão simbólica, já produto da produção social, é transferido para outrem, em
nome de um serviço de orientação – numa palavra: de pastoreio – que faz circular um
material simbólico também ele produzido socialmente, mas apropriado, seja pela
paróquia, seja pela Canção Nova.
Não se pode negar, todavia, que haja eficiência nessa tarefa, dupla, de
mistificação. Os discursos dos fiéis apontam nessa direção, como pode ser observado
nos trechos transcritos abaixo, todos recolhidos na sede da Canção Nova:
Orlene: Aí eu digo a você: pedir pra que? Não tá vendo? Em que lugar ia
agregar um grupo tão grande de pessoas? Com qualidade? Por que não?
Pedro: Se vê, vai ter sempre essa dúvida. O ser humano, ele... Eu não vou
dar esse dinheiro, não. Será que faz? Faz?
Orlene: Tem que discernir, tem que julgar, em que...
Pedro: São eles que fazem mesmo isso aí. Então eu acho que... Nem todo
mundo também pode vir. Mas quem vem deve chegar e realmente dizer o que
viu. Quer dizer: testemunhar. A gente vai chegar lá e vai testemunhar. Se
alguém colocar dessa forma, a gente tem o testemunho, né (Orlene, 53 anos,
professora; Pedro, 57 anos, professor, Cachoeira Paulista, Caderno de
pesquisa, 2010).
102
*
Daniela: Essa é a quarta vez que a gente vem à Canção Nova, né. A gente
acompanhando, a gente vê pra onde vai, entendeu?
Eduardo: É, igual ela fala: a gente vê a necessidade que eles têm. Eles
mostram...
Daniela: Se não tem a colaboração, né, como é que eles...
102
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
318
Eduardo: Porque chega aqui tem banho pra todo mundo. Não é uma coisa
fácil para se manter, né. Chegando aqui, você pode tomar banho a vontade,
você tem água a vontade. Então... é complicado, né. Toda a estrutura, né.
Então, eles precisam, né. Não acho ruim, não (Daniela, 22 anos, estudante;
Eduardo, 25 anos, estudante, Cachoeira Paulista, Caderno de Pesquisa,
2010).
103
*
Eu não vejo problema, não. Vejo não. As pessoas precisam se manter, né. É
igual em casa: a gente precisa comprar as coisas, né. Como é que as pessoas
aqui se mantêm? Não vejo problema, não. Não tem propaganda, né? É a
mesma coisa: as outras pedem dinheiro, mas pros outros. A Canção Nova
pede dinheiro pra ela. Tem que se manter, né. Né? (Vinícius, 24 anos,
Serviços gerais, Cachoeira Paulista, Caderno de Pesquisa, 2010).
104
É desnecessário dizer que as respostas foram estimuladas por uma questão a
respeito dos pedidos de doação financeira, sobretudo aquele programa de arrecadação,
de quem esta tese toma, por empréstimo, o nome: Dai-me almas. Seria demasiado
inocente, portanto, que se exigisse de uma instituição de orientação espiritual que ela: i)
privilegiasse as forças produtivas que movimenta, em lugar do material simbólico que
transmite; ii) que houvesse efetivamente outra tarefa que não a do pastoreio. Como
vimos, porém, o pastoreio se dá segundo a ilusão de individualização, como quer a
ideologia dominante, a forma cultural dominante. Assim, e só assim, é possível
compreender as estratégias discursivas dos peregrinos, como ademais dos fiéis
católicos, que hegemonicamente têm na TV Canção Nova sua forma de consumir a
Igreja Católica na cultura do consumo. Os discursos apontam, é claro, como houve
incentivo, para uma reação de uma possível crítica: a ostensiva e crescente campanha de
arrecadação. E a crítica é rebatida segundo a mesma estratégia: é preciso testemunhar;
não há enriquecimento dos membros da Canção Nova, diferentemente de outras
agremiações. Se pairarem dúvidas, é preciso ver para crer. Todo o recurso arrecadado é
revertido para a tarefa espiritual. Testemunhar implica, nesse caso, tornar habitual, ver
com os próprios olhos, marcar na própria carne – para então, novamente, perceber como
o corpo se transforma em espírito.
Seria demasiado inocente exigir outra atitude – mas não deixa de ser
instigante perceber como a cultura do consumo, hegemônica, é identificada no mundo e
na Canção Nova. Lá ou aqui, a desmaterialização é primordial, ainda que se dê grande
valor ao material disponibilizado, sem o qual o espírito se torna menor. Não obstante, a
103
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
104
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/12/2009, na Sede da Canção Nova, em
Cachoeira Paulista, SP, durante o evento Hosana Brasil.
319
desmaterialização se movimenta segundo o mesmo esforço místico que torna a cultura
do capital um sagrado, que ordena, por transfusão, todas as esferas da vida. É nessa
medida que a recusa desse sagrado se torna inócua: porque os meios de produção, no
mundo e na Canção Nova, são apropriados e escondidos, em nome do espírito, por
alguns que produzem para os demais consumirem. Lá, como aqui, o pastoreio é o
mesmo: aquele da mistificação do consumo.
Enganam-se, porém, as críticas que apontam esse movimento
exclusivamente na “comunidade aérea” da TV Canção Nova. A luta material é
desnudada também nas paróquias, em qualquer que seja a forma cultural com que o
padre se identifica – e, também nelas, aquele esforço místico se faz presente, tornando o
pastoreio uma prática hegemônica. É o que se vê nos trechos abaixo, em que padre Luis
Carlos e padre José Carlos, ambos críticos da “religião devocional”, da “perda do
sentido de comunidade”, enfim, de uma “religiosidade aérea” da TV Canção Nova,
apontam para uma disputa que vai além, muito além da ideologia:
Então eu acho que a palavra de Deus pela televisão, seja por qualquer canal,
principalmente a Canção Nova, ela é importante. Então eu acho isso daí...
Agora o que ela pode fazer é sensibilizar as pessoas para a promoção
humana. Eu acho que é isso que está faltando. Articular mais as pessoas.
Então a gente precisava sensibilizar as pessoas, falar. Hoje as pessoas não
querem ser voluntárias. Ele aceita ser voluntário, mas tem que receber
alguma coisa. Quem é que vai conseguir dinheiro, para poder pagar uma
pessoa para fazer um trabalho social. Quer dizer, a TV devia sensibilizar as
pessoas para se dispor mais para isso (Padre Luis Carlos, Caderno de
pesquisa, 2010).
105
*
Tem gente que pergunta: “Padre, eu recebi uma cartinha aqui de fulano de
tal.” Não é só da Canção Nova, não. Tem muitas outras. “O que que eu faço?
Mando ou não mando?” Bom, aí eu digo: “Minha senhora, se a senhora mora
aqui ou se não mora aqui, não me interessa. O que me interessa é que a
senhora tem que vir pro lado da sua comunidade local, onde a senhora vive,
celebra, reza e crê. Se a senhora pode ajudar aqui e lá, faça as duas coisas. Se
não, enfrente
essa cartinha que a senhora recebeu. Ajude aqui, que
é aqui que a senhora vive a sua fé. Sua igreja está aqui. Aquilo
lá é parte da sua igreja, é legitimamente da igreja, mas a sua
igreja está aqui. E isso tem acontecido com certa frequência. Tem gente que
tem feito as duas coisas (Padre José Carlos, Caderno de pesquisa,
2010).
106
Algo de melancólico atravessa os discursos, como que anunciando que a
guerra está perdida. Uma guerra efetivamente material – seja na utilização dos
105
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 05/10/2007, na Casa paroquial da Paróquia de
São Cristóvão – Bairro Sidil - Divinópolis/MG
106
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2007, na Casa Paroquial da Paróquia S.
Judas Tadeu – Divinópolis/MG
320
mecanismos mais eficientes de transmissão simbólica dominados pela Canção Nova,
seja na assunção de que se trata de um pastoreio mais eficiente – ao menos aos olhos
dos fiéis. Algo como um grito abafado de desespero se ouve: mantenha a paróquia;
mantenha a comunidade, a ecclesia de pé. Nenhuma ideologia, todavia, é mais
imponente do que a materialidade real dos meios de produção simbólica que estão em
jogo. E, de qualquer maneira, a disputa continua sendo pelo pastoreio. Ainda que haja
uma real intenção libertária, ela se enfraquece caso se mantenha o vínculo com uma
Igreja Católica que determina quem produz e quem consome. E assim a matéria faz o
espírito - e, ainda que o espírito possa fazer a matéria, pela disposição que tem em
transformar a realidade dura, isso não acontece, porque desde sempre houve, na
eclesiologia que perfaz a teologia, um sagrado que esconde seu poderio material como
uma força mística que rouba dos fiéis sua própria força de produção.
Há sempre uma esperança, no entanto: a da justa manipulação dos meios de
produção. É o que se ouve, ao fim, na voz esperançosa de padre José Carlos:
Eu fico pensando, assim, que a Canção Nova, ou se tivesse, se fosse o
presidente de uma Canção Nova, se fosse lá um âncora da Canção Nova, um
Dom Luciano Mendes de Almeida, que já morreu. Ou um Marcelo Barros,
que é um monge lá beneditino, ou qualquer outro. Aqui está a junção
perfeita: uma cabeça que pensa direito, que pensa com o nosso tempo, e um
meio de comunicação extremamente eficaz. Então o meio está nas mãos e na
cabeça de quem tem um discurso aquém daquele que nosso tempo precisava.
Nós temos, assim, uma tal presença de Igreja, não posso dizer que estão
errados não. Eu posso dizer que a Igreja precisa mais. Não é propriamente
que aquela presença devocional que a Igreja precisa hoje. Tem que ter uma
presença muito mais incisiva, em outros campos que não só o campo
propriamente religioso que nem aquele que a Canção Nova ataca. A gente
não vê nenhum tipo de apelo da Canção Nova por algum tipo de
comprometimento social, por algum tipo de conscientização política, isso
está praticamente ausente (Padre José Carlos, Caderno de pesquisa, 2010).
107
A salvação estará garantida se houver certeza de que a história será
produzida por mãos piedosas. Eis o sentido ético da esperança que persiste, apesar do
sentimento de que a guerra pouco a pouco é perdida, que está chegando a hora da
batalha final, uma batalha, pode-se ver, de antemão derrotada, dada a disparidade das
armas que, nessa guerra dos deuses, são empunhadas de lado a lado. Pouco importa ao
esperançoso que o pastoreio se mantenha naquela mágica que esconde um modo de
produção, nesse caso simbólico, em que o produto social é apropriado por poucos.
Importa menos ainda que a história caminhe por rotas tortas; que a vida não dá garantias
nem passa promissórias; que a cultura, a vida humana, sua história é um produto que
107
Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 31/10/2007, na Casa Paroquial da Paróquia S.
Judas Tadeu – Divinópolis/MG
321
resiste no produzir. Ou, como diz Raymond Williams (2001), é um cultivo do que
cresce naturalmente:
Enquanto ela viver, uma cultura sempre é ignorada em parte e em parte
irrealizada. A construção de uma comunidade sempre é uma exploração,
porque a consciência não pode preceder à criação e não há nenhuma fórmula
para a experiência desconhecida. Devido a isto, uma comunidade boa, uma
cultura viva não só darão espaço, como encorajarão ativamente todos e cada
um dos que podem contribuir para o avanço da consciência, que é a
necessidade comum. (...) Nós temos que planejar o que pode ser planejado,
de acordo com nossa decisão comum. Mas a ênfase na ideia de cultura é
legítima quando nos lembrar que uma cultura, em essência, não é planejável.
Temos que assegurar os meios de vida e os meios de comunidade. Mas nós
não podemos saber ou dizer o que a pessoa fará por esses meios. A ideia de
cultura se baseia em uma metáfora: o cultivo do que cresce naturalmente. E,
em verdade, deve-se dar ênfase ao crescimento, como metáfora e como fato
(WILLIAMS, 2001, 272-3).
Eis o desafio de uma época que acredita, segundo o puro voluntarismo, na possibilidade
de desmaterializar a vida, de desvencilhar o humano de sua incômoda realidade:
desmistificar uma cultura que se prende no etéreo do consumo talvez signifique tornar o
seu sagrado uma produção de todos os humanos.
322
Conclusão
As modernidades do século 19, cujo amálgama resultou nas modernidades
do século 20, acreditaram em uma miragem; acreditaram no mundo sem uma ilusão -
acreditaram ser o estertor de Deus. Freud e Marx apontaram para a religião como
ilusão; Nietzsche foi além: matou, ele próprio, Deus.
Em O futuro de uma ilusão, Freud (1997a) garante serem as ideias religiosas
“proclamadas como ensinamentos” e “não constituem precipitados de experiência ou
resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e
prementes desejos da humanidade” (FREUD, 1997a, 53). Depois de realizar a reflexão
sobre o fenômeno psíquico das religiões e suas crenças, ele conclui:
É possível que a educação libertada do ônus das doutrinas religiosas não
cause grande mudança na natureza psicológica do homem. O nosso deus
logos talvez não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar
apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram (...) Não,
nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência
não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar (FREUD, 1997a, 87).
Freud foi premonitório: de fato, o deus logos não era tão poderoso – porém,
mal sabia ele que a sua psicanálise seria, um século depois, mais uma personagem a
encenar os “mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade”, mais uma ilusão
buscada freneticamente no mercado de bens religiosos.
Nietzsche, e sua “mania de razão” (TÜRCKE, 1993), só poderia anunciar o
super-homem, o humano que afirma a vida sem recorrer aos céus, pela morte de Deus.
Mas como matar Deus? O louco, eivado do delírio de razão, disse: “Que fizemos
quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao sol?” (NIETZSCHE, 1981:
133-4). Sem Deus, nós, que o matamos, para onde vamos? Morto Deus, livre o super-
homem para a afirmação da vida, resta a loucura de um mundo sem rumo. A razão
delirante de Nietzsche anteviu essa loucura e por isso o louco deixou atrás de si rastros
do Deus morto. Rastros perseguidos por seus seguidores pós-modernistas, como
veremos – e que, no entanto, apenas cultuam uma divindade que flutua no ar; que, como
nenhuma outra divindade de outrora, se mostra como um fantasma; que, como um
estranho demiurgo, enlouquecido de razão que se nega como tal, constrói um mundo
feito de miragens, de ilusões, de não-realidades.
Marx (2003), igualmente, não admitia a religião senão como uma força
ilusória que impede a realização humana na história, sua emancipação – e propôs,
323
superando Feuerbach, que
a imediata tarefa da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a
auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi
desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se deste
modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, e a
crítica da teologia em crítica da política (MARX, 2003, 46).
Marx vai além – e diz da divindade decaída do dinheiro, tornado ídolo, um
“deus mundano”, “um deus da necessidade prática e do egoísmo” (MARX&ENGELS
s/d, apud ASMANN & HINKELEMMERT, 1989, 402), um “deus entre as
mercadorias” (MARX, s/d, apud ASMANN & HINKELEMMERT, 1989, 402). De
qualquer forma, Marx ainda travava sua luta contra as divindades e não previu, nem o
poderia, como nos diz Régis Debray e como o século 21 não nos cansa de mostrar, que
“o homem (...) tem competência genérica e genética para o sobrenatural, bem como para
a articulação de sons articulados” (DEBRAY, 2004: 34).
Se se trata de uma crença em uma miragem, tinham razão, todavia, as
modernidades do século 19 em anunciar o fim de uma ilusão - porque efetivamente o
mundo, como nos antecipou Marx, via nascer uma nova ilusão. O capitalismo e suas
estruturas de fazer acreditar criaram uma nova crença, novos ídolos, que circulavam
livremente pelo mundo e o habitavam. Eis mais uma guerra de deuses – porque aquele
deus que aparentemente morria, o deus trazido da idade média e de seu modo de
produção, era a rigor um sagrado que estava sendo superado por outro sagrado. Todo o
esforço desta tese se limitou à busca pela compreensão de como o sagrado do divino
católico cristão poderia sobreviver em uma época que tinha o seu próprio sagrado: o
dinheiro, a mercadoria, o consumo.
A sobrevivência do divino como sagrado em uma forma cultural que
formatou um outro tipo de sagrado, todavia, não se fez sem uma tensa ambiguidade.
Ambiguidade, aliás, talvez seja o sintagma que melhor explique não apenas essa
tradução entre sagrados de duas épocas e duas formas culturais transmitidas por
maquinários distintos – a Igreja Católica medieval como medium e a mídia burguesa -;
ambígua é a própria relação da TV Canção Nova, e ademais do catolicismo midiatizado
do século 21.
Ambíguo, vimos no primeiro capítulo, foi o nascimento da telerreligião, e
especialmente da telerreligião católica no Brasil. Se havia uma compatibilidade
tecnológica entre o surgimento dos novos meios eletrônicos de comunicação de massa –
a videofesra, nas palavras de Debray (1993) – e a telerreligião, isso só confirma essa
324
relação de ambiguidade na transação entre formas e conteúdos. De um lado,
coincidências tecnológicas a parte, a telerreligião estadunidense, hegemonicamente
pentecostal e neopentecostal, tinha como proposta o que se convencionou chamar de
“teologia da prosperidade”. Assim, havia a permanência do sagrado da divindade cristã,
mas subsumido ao outro sagrado, o capitalístico, que, desde então, se consolidou, para
enfim se desmaterializar completamente no culto ao e como consumo. Eis a
ambiguidade, cujo aprofundamento veremos adiante: a telerreligião é forma; seu
conteúdo é o modo de produção capitalista.
No caso católico, e no catolicismo brasileiro da TV Canção Nova, essa
ambiguidade é levada ao extremo. Embora haja um consenso sobre a reação católica
contra o avanço de neopentecostais em território preferencial do catolicismo – o Brasil e
ademais a América Latina -, vimos como sempre houve uma relação estreita entre meios
de comunicação eletrônicos, desde o seu surgimento em território brasileiro, e a Igreja
Católica. Pouco a pouco, o esforço de internacionalização, especialmente dos
neopentecostais estadunidenses, que tinham na mídia eletrônica seu púlpito, exigiu da
Igreja Católica brasileira uma política mais agressiva de acesso aos meios – mas em
nenhum momento houve de fato uma distância entre Igreja e meios. Tampouco em
relação ao material simbólico circulante havia dúvida: o Brasil era território católico.
Mesmo que, ainda hoje, se ouçam reclamações sobre o silêncio da mídia em relação à
Igreja, os grupos econômicos de mídia no Brasil sempre foram quase exclusivamente
católicos. Havia, portanto, na luta política midiática, uma supremacia católica nas duas
frentes: na material, em que a Igreja detinha facilidades para conquistar concessões de
rádio e TV e igualmente facilidades para a montagem de infraestrutura de transmissão; e
na imaterial, porque a Igreja, bem ou mal, sempre esteve presente, seja nos
informativos, seja nos programas religiosos, seja na teledramaturgia, nos programas
transmitidos pela mídia. O catolicismo, material ou imaterialmente, sempre foi uma
existência efetiva na mídia brasileira, ao passo que todas, salvo eventualmente o
espiritismo, as demais agremiações religiosas, cristãs e não cristãs, simplesmente
inexistiam para a mídia brasileira.
É essa relação estreita com o poder de ter acesso ao controle dos meios e
aparecer na mídia que fez o catolicismo no Brasil – e, não obstante sempre houve
alguma tensão nessa relação. Tensão que, mais uma vez, pode ser compreendida pela
ambiguidade que marca a relação entre os sagrados. É o que isso o que pudemos ver no
segundo capítulo, que tratou das políticas de comunicação da Igreja desde o Vaticano,
325
na América Latina e, pela CNBB, no Brasil. Inicialmente, tratou-se de uma reação típica
de uma forma cultural que se via ameaçada – ou, mais: de uma máquina de propaganda
que, com o surgimento da mídia burguesa, se viu lançada pouco a pouco no ostracismo.
Nos primeiros séculos da ascensão burguesa, a Igreja Católica, como acontece
invariavelmente com poderes constituídos, enveredou pelo caminho da censura pura
simples: no início, houve tentativa de censurar os propagadores; em seguida, os próprios
meios; até que, perdida a batalha como máquina de propaganda, houve uma dupla
jornada: tentar censurar as mensagens que julgava inoportunas e, ao mesmo tempo,
investia em seus próprios meios e mensagens. É dessa maneira que, como foi discutido
no capítulo, é inadequado se pensar nas políticas de comunicação católicas como uma
disputa entre o púlpito e o areópago. A participação católica na cultura da mídia –
novamente: da mídia burguesa – se deu em razão de sua condição de ser uma
proponente de uma verdade universal, de um sagrado que em muito se parecia com o
sagrado capitalístico: aquele que separa humanos, os despotencializa e os aliena de sua
potencialidade.
Tampouco se pode pensar no surgimento e consolidação do poderio
midiático da Canção Nova, capitaneado por sua TV, como um resultado periférico da
política de comunicação católica. Ao contrário, ela é central – e se dá justamente sob a
égide da ambiguidade. De um lado, há uma estreita relação com o diálogo produzido
entre o divino católico e o sagrado capitalístico – o que se comprova pelas estratégias de
marketing assumidas como forma de propaganda e de disponibilização contemporâneas.
De outro lado, há uma clareza quanto ao tipo de sagrado que se construiu ao privilegiar
a comunicação da Igreja, como máquina de produção do caminho de transcendência, e
não como efetivamente o diálogo, que se manifestava em um sagrado democrático
presente sobretudo na Teologia da Libertação. Se, com efeito, também a Teologia da
Libertação guardava em si o germe da ambiguidade, uma vez que recusava de forma
peremptória qualquer tecnologia moderna, como manifestação do mito do dinheiro – e
isso a tornava quase igualmente idealista -, seu simples rechaço do seio da Igreja já
indicava que o sagrado do pastoreio estaria mantido. E então o diálogo entre o sagrado
católico com o tempo presente, como marketinga propaganda burguesa - fez o
restante do serviço.
Não há dúvida de que, máquina de propaganda de outro tempo e proponente
de um sagrado de outra forma cultural, o catolicismo, inclusive em sua forma
telerreligiosa, é anticapitalista. É isso o que se viu na programação e nas narrativas de
326
criação da TV Canção Nova. É o que se vê na Campanha da fraternidade, da CNBB, de
2010. Com o tema Economia e vida, temática voltada para a chamada economia
solidária e peça de propaganda que traz um trecho do Evangelho de Mateus - Vocês não
podem servir a Deus e ao dinheiro (MT 6,24) -, a campanha parece ter retomado com
força algumas bandeiras da Teologia da Libertação – sobretudo aquela que aponta no
dinheiro uma forma decaída de deidade. Ademais, todas as narrativas da Canção Nova e
dos fiéis apontam para a necessidade de uma recolonização do mundo por Deus – e essa
seria a sua tarefa, por mecanismos e métodos pelos quais as ovelhas ouvirão. Daí o uso
intenso do marketing. Nem por isso, todavia, deixa de haver ambiguidade, seja aqui,
seja na própria Campanha da fraternidade. Antagonizar, da forma como foi feito, os
deuses e seus sagrados - uma guerra entre espíritos – só aprofunda a vitória que
sacraliza a lógica do capital.
Isso ocorre por alguns motivos: primeiro, a estrutura social hierarquizada é
mantida intacta, uma vez que há pastores, responsáveis por conduzir as ovelhas ao
caminho da salvação. Segundo: trata-se, como desdobramento do primeiro motivo, de
obliterar os meios de produção e privilegiar o consumo do sagrado. O resultado desse
procedimento é duplo: o primeiro é justamente a separação entre as esferas de produção
e consumo; depois, consequentemente, há uma mistificação dos produtos circulantes ou,
segundo a terminologia marxiana, um enfeitiçamento dos produtos, transformados em
mercadoria, cuja referencialidade está em si própria. Assim, as tecnologias, como
componentes das forças produtivas, se tornam pura miragem, imagem, magia –
fantasmagorias que fazem o sagrado capitalístico pairar e fornecer conteúdo ao sagrado
da divindade católica.
Em torno dessa miragem são construídas as narrativas sobre a consolidação
da Canção Nova. Dupla alienação: o poder humano de transformar o mundo é alienado
em nome de uma divindade de outrora, mantida viva para combater um sagrado
apontado como diabólico, mas utilizando as mesmas armas e com resultados muito
semelhantes. É o que se viu também na programação da TV Canção Nova e em alguns
de seus programas analisados. Não obstante as diferenças entre os programas e
pensando que se trata de uma forma cultural, a televisão, que também é tecnologia – e
que, por isso, só pode ser compreendida em fluxo -, viu-se como, de fato, há, a despeito
da vontade expressa, a sacralização do consumo apartado de sua produção – numa
palavra: a sacralização do dinheiro. As narrativas mágicas de consolidação do sistema
Canção Nova, espraiadas nos relatos oficiais, reafirmadas nos discursos de consagrados
327
e funcionários, e repisadas pelos peregrinos e consumidores dos produtos midiáticos da
Canção Nova e, dado o seu poderio, muito especialmente pelos telespectadores de sua
TV, tramam um discurso coeso, feito, como vimos, de uma lógica de causa-
consequência, justamente para caber na narrativa maior que é a justificativa do
encantamento divino no mundo. Os discursos, assim, ganham, em suas diversas
dimensões, aquele tom de mistificação que, se é previsível em uma visão de mundo
religiosa, torna-se sintomática no tramar mesmo das narrativas – pois a dimensão
material é constante e sutilmente dissimulada em nome não da habitação divina, mas do
pastoreio. É nessa medida que o projeto Dai-me almas, de arrecadação financeira, que
configura certamente a ação principal da Canção Nova e a sacralização do consumo, em
nome da manutenção do divino, torna-se o centro irradiador e ponto de encontro das
narrativas dos diversos atores – e por isso legítimo atrator, que justifica seu uso como
título da tese.
Se isso está fortemente presente na produção simbólica, igualmente se faz,
de forma muito marcante, no consumo, na recepção, desse simbólico. Novamente, as
narrativas, compreendidas tanto pelos resultados da pesquisa quantitativa, quanto vistas
de forma mais delineada nos relatos recolhidos em entrevistas qualitativas, mostram o
quanto de ambiguidade há no diálogo entre a divindade católica da TV Canção Nova e o
“deus decaído”, que dá forma à sacralização do consumo. E, aqui, uma nova, e
poderosa, ambiguidade se delineia – uma ambiguidade teórica -, fruto justamente da
tensão entre o sagrado divino do catolicismo e o sagrado capitalístico contemporâneo.
Ainda que lhe recuse os fundamentos, vimos; mesmo que sua persistência em um
mundo que cultua outro sagrado aponte para caminhos da necessária superação de tais
sagrados em nome da humanidade do humano – ainda assim o divino católico da TV
Canção Nova se faz e se refaz segundo as formas do novo sagrado; e, o que é pior,
segundo o seu conteúdo. Foi o que se viu nos relatos dos personagens que perfazem o
catolicismo midiatizado da TV Canção Nova – telefiéis e pastores de paróquias. Vimos
como, em ambos, aparentemente em posições tão díspares, o espírito do novo sagrado
se mostra inteiro, a ponto de fornecer o escopo do divino católico, que se constrói aqui
ou alhures, nas paróquias ou nas ondas e bits do sistema Canção Nova. Mais ainda: a
tensão e a ambiguidade estão também em temas caros à ideologia pós-modernista, que
dão sentido à forma como se estabelece o sagrado contemporâneo. É nessa medida que
os relatos dos atores católicos – e ademais a TV Canção Nova, ela mesma – recusam e
afirmam conceitos, tornadas práticas, como identidade, consumo e corpo. No diálogo
328
entre sagrados, na guerra de deuses, a recusa ao pós-modernismo acaba por se tornar sua
afirmação.
Há uma relação estreita, vimos, entre as identidades forjadas na prática
cotidiana da cultura contemporânea e sua temporalidade tecida pelo maquinário
midiático, e a busca de uma identidade outra, segura, não fugaz – ao contrário, eterna.
Vimos que a TV Canção Nova narra uma divindade que se esgueira entre os dois polos
– ou entre o diabólico das identidades contemporâneas e o simbólico da identidade de
outrora. E que párocos, contrários ou signatários, bem como fiéis, se enredam em tal
trama. De qualquer forma, há uma espécie de fantasma que ronda a religião e a
divindade tramadas desde a TV Canção Nova. Esse mesmo fantasma ronda o mundo
contemporâneo, tecido na fugacidade – só que o aterroriza ao contrário. A TV Canção
Nova, a forma religiosa católica que, segundo relatos dos párocos e pelas narrativas dos
fiéis, tende a se tornar hegemônica, teme o fantasma em sua face consumista, por sua
fugacidade. O mundo, ao contrário, mas muito especialmente as teorias que buscam
afirmar tal fugacidade, temem a outra face do espectro: sua razão suficiente, seu rumor
da eternidade.
Ao fim e ao cabo, trata-se de um mesmo fantasma, que utiliza as sombras
para a representação de duas faces aterrorizantes. Nossa tarefa de compreensão dessa
ambiguidade – agora dupla: da telerreligião da TV Canção Nova e do sagrado assentado
no consumo – talvez exija uma aproximação a esse fantasma. Foi o que fez Gianni
Vattimo, filósofo católico italiano, ao se deparar com o ressurgimento contemporâneo
do religioso - uma ironia que esconde o terror para encarar o fantasma: é como se o
universal e a busca pela eternidade de fato tivessem sido deixados de lado em razão das
teorias que desejaram superar tais fantasmagorias.
Vattimo espera encontrar a resposta filosófica para o retorno da religião em
um lançar-se na Babel contemporânea, forjada pelas retículas midiáticas. Dessa forma,
ele espera cumprir a tarefa de ordenar o mundo pós-metafísico pela aventura no próprio
mundo como uma Babel; e, indo mais longe, propõe retirar do cristianismo seu
fundamento metafísico, para lhe garantir a aventura no mundo-da-vida desmistificado,
o que só é compreensível no interior daquilo que se convencionou chamar de fim da
modernidade.
As teorias do pós-modernismo partem – e se fundamentam - daquilo que
Nietzsche e, posteriormente, Heidegger chamaram de niilismo. Embora muito da teoria
vulgar pós-modernista leve ao paroxismo a nadificação da vida, o que conduz ou ao
329
cinismo profundo ou, o que seria o mesmo, ao puro hedonismo, como um jogo livre dos
sentidos, a reflexão empreendida por Nietzsche e Heidegger, mas especialmente pelo
primeiro, apresenta o niilismo como uma transmudação dos valores, que só
sobreviveriam segundo sua permuta, sua livre troca, sua, digamos, transformação em
valores de troca – movimento que é decorrente do empreendimento secularizante da
desaparição de valores supremos onde repousa a verdade essencial. Tal ação traz em si,
a partir do anúncio da “morte de Deus” (cf. NIETZSCHE, 1981, 133-5), a um só tempo,
o debilitamento da força coercitiva da realidade – o estranho limite material -
justamente, por outro lado, por retirar da vida humana a necessidade de um fundamento
verdadeiro último. Trata-se então de um jogo retórico, em que os relatos circulam
livremente, porém sem que necessariamente percam o ressoar da metafísica. É nessa
medida que Vattimo lança mão do conceito de Verwindung, de Heidegger (2001a),
como um lançar-se/destinar-se na história da metafísica para seu enfrentamento do
retorno do religioso. Só assim é possível assumir a religião, sem abrir mão da uma
racionalidade frágil pós-modernista, não disposta a procurar por seu fundamento
primeiro e dirigir-se à finalidade última (VATTIMO, 1998; 2000; 2004).
Eis que surge o elemento frágil admitido por Vattimo em seu cristianismo
não-religioso: a caridade. Mas, estranhamente, trata-se de uma caridade compreendida
não universalmente, mas como um livre dançar dos sentidos individuais; caridade como
ato ontológico fraco, como um flanar dos sentidos - como um estilo de vida. Embora
conceba uma coletividade de fiéis livres da ontologia forte metafísica, a operação para
libertá-los e prepará-los para o flanar das interpretações continuará a ser do indivíduo –
não cada indivíduo, mas o poeta ou o filósofo, pastores pós-metafísicos. O problema
persiste, dessa maneira: não obstante ter configurado um universal – a caridade -, a
cultura proposta pelo pós-modernismo, avessa aos universais, poderá enfrentar os
fantasmas que a rondam e a assustam pela manutenção da tarefa individual? Pior: como
escapar da verdade primeira, se há pastores que conduzem ovelhas para a liberdade?
E os fantasmas se multiplicam: contra a busca insensata pelas certezas, não
basta apenas sua compreensão como história da metafísica em que o filósofo deve saltar
e, serenamente, compreender o destino do ser – no seu passeio pela Babel cultural das
retículas midiáticas; não basta apenas a dança ao sabor da música cacofônica
contemporânea. Mais do que isso: sob o pretexto de esvaziar o absoluto, a radicalidade
pós-modernista apenas o inverte no absoluto relativismo. Enquanto isso, uns poucos se
fartam no banquete da identidade polifônica do consumo identitário, enquanto os
330
demais, “todos nós” ou “qualquer um”, se pavoneiam fora do banquete em nome da
liberdade identitária – e a pagam com pequenas liberdades que lhes cobram em
impossibilidades de toda ordem na vida ordinária.
Eis o fantasma por que o leve pós-modernismo ainda se vê assombrado. Eis
que também ele, o pós-modernismo, se vê enredado em teias da ambiguidade
justamente por sua leveza. As políticas de identidade são assim duplamente fracassadas:
nem constroem identidades suficientemente fluidas, que garantam a desaparição dos
incômodos limites materiais, sua solidez; nem, por isso mesmo, fazem desaparecer do
horizonte os universais, presentes em seus próprios lindes. Mas esses fantasmas o pós-
modernismo não se dispõe a enfrentar, sob o risco da própria extinção. Nessa medida,
os fantasmas que assombram a TV Canção Nova e sua prática identitária em busca do
eterno são menos assustadores – já que nem há recusa dos universais, nem recusa,
mesmo com o esforço de desmaterialização, daquela busca pelo fundamento primeiro.
Mas isso não significa que tais fantasmas tenham sido domados. A Canção Nova e sua
TV, para existirem em um mundo que se deseja líquido, por sua fugacidade, necessitam
de soltar os seus fantasmas, na esperança de que eles sejam domesticados – e nesse caso
a esperança está na pueril convicção de que o diálogo com a cultura do consumo é
neutralizada pela tarefa de propaganda da palavra de Deus. Mas os fantasmas da cultura
do consumo, que são o próprio organizador universal de vidas, não estão tão dispostos a
serem domados – ao contrário, eles exigem adoração contínua.
É nessa mesma medida que a defesa pós-modernista do consumo se torna
problemática. Como se sabe, as práticas e políticas identitárias se dão em razão do
consumo, que, segundo muito teóricos do pós-modernismo, e por diversas razões, deve
ser levado em conta como um ato repleto de potência: o “consumo serve para pensar”,
asseverou o argentino Canclini (2001); “consumo é a forma social pela qual se constrói
a cidadania”, garantiu o estadunidense George Yúdice (2004). Eles têm razão – em uma
época que faz crer que o consumo é puramente simbólico, imaterial, e nada tem a ver
com o produto e sua produção, resta apenas a produção do consumo como prática social
coletiva. Esse é o argumento de um já clássico pós-modernista: o inglês Mike
Featherstone (2007) e seu Cultura de consumo e pós-modernismo. Vale a pena retornar
a ele.
Para Featherstone, o consumo é um ato de construção da individualidade, de
autoexpressão e da consciência estilizada de si (FEATHERSTONE, 2007, 119). Trata-
se, diz o autor, de uma transformação de modo de vida em estilo de vida, justamente
331
possibilitada pela democratização do ato de consumir – e, em consequência há uma
estetização contínua da vida. Nesse estilo de vida, o movimento vai em direção a uma
cultura “baseada numa profusão de informações e proliferação de imagens, que não
podem ser estabilizadas de maneira definitiva, nem hierarquizadas em um sistema
correlacionado com divisões sociais fixas”, o que demonstra a irrelevância das divisões
sociais e, em última análise, o fim do social enquanto ponto de referência importante.
Assim, os indivíduos “usam os bens de consumo como signos culturais por livre
associação para produzir um efeito expressivo” para si próprios (FEATHERSTONE,
2007, 120).
É também essa transformação do modo de vida em estilo de vida provocado
pelo consumo que exige uma mudança teórica em relação a ele. O consumo, então, “não
deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades
materiais, mas primordialmente como o consumo de signos”, que opera uma “negação
do referente, substituído por um campo instável de significantes flutuantes”
(FEATHERSTONE, 2007, 123). Por isso, a cultura do consumo “é capaz de
desestabilizar a noção original de uso ou significado dos bens e afixar neles imagens e
signos novos, que podem evocar uma série de sentimentos e desejos associados”
(FEATHERSTONE, 2007, 160). Trata-se de considerar a prática do consumo como
uma dimensão expressiva e comunicativa, como o estilo de vida e a estetização da vida
exigem. E, assim, o consumo se torna a prática social mais relevante, porque complexa,
bem ao contrário de uma “concepção de uma cultura de massa conformista e cinzenta.”
Por isso “a cultura de consumo parece ser capaz de se aproximar mais da libertação da
individualidade e das diferenças que sempre prometeu” (FEATHERSTONE, 2007, 123-
4).
Featherstone compreendeu a experiência religiosa neoliberal também nos
quadros dessa estetização da vida pelo consumo. Ele diz que religiosidade se aloja
“comodamente no mercado de consumo, ao lado de outros complexos significativos”
(FEATHERSTONE, 2007, 157-8). Dessa forma, seguindo os passos do autor, a
experiência religiosa ganha uma dimensão estética e por isso as religiões precisam se
adequar, tornando-se mais um produto plástico na prateleira dos bens que prometem a
individualização – num ressoar “do salto na Babel midiática” de Gianni Vattimo em seu
reencontro com o religioso.
Partindo disso, Featherstone propõe algumas questões:
332
Se a tendência nas sociedades modernas é a religião transformar-se numa
atividade de lazer, adquirida no mercado como qualquer outro estilo de vida
da cultura de consumo, é preciso então fazer algumas indagações sobre o
efeito dessa mudança sobre a religião. Será que isso trouxe a religião mais
perto de outras mercadorias e experiências de consumo; será que a religião
tem de se apresentar como um modo de vida e um complexo significativo,
que proporcionam uma espécie de reconforto emocional semelhante a outras
atividades de lazer? Será que outras experiências associadas aos momentos
de lazer, como os espetáculos da cultura de consumo, teriam assumido a aura
do sagrado? Qual a importância das questões relativas ao sentido último da
vida, à fé, nas práticas cotidianas diárias e nas balanças de poder nas quais os
indivíduos estão envolvidos? Que conhecimento prático efetivo é oferecido
pelos complexos significativos religiosos, quase-religiosos e não-religiosos?
Será que as questões do sentido e da fé são mais relevantes para grupos e
classes sociais específicos – por exemplo, os intelectuais? De que maneira a
“escolha” de tipos específicos de complexos significativos religiosos e quase-
religiosos associam-se a outros gostos culturais e atividades relacionadas com
estilo de vida, que podem ser mapeados sobre o universo dos gostos e estilos
de vida ativos numa sociedade específica? (FEATHERSTONE, 2007, 159).
Por isso, diz o autor, “o consumismo continua a sustentar uma dimensão religiosa”, uma
vez que, na “cultura de consumo, o sagrado é capaz de se manter fora da religião
organizada” (FEATHERSTONE, 2007, 174).
Por fim, Featherstone exige que, diante do ato eminentemente simbólico,
haja um distanciamento em relação às abordagens que só concebem o consumo como
uma prática associada à produção. Só assim, diz, retornando ao consumo do religioso,
pode-se “reconhecer que, embora o consumismo resulte numa inflação da quantidade de
bens em circulação, isso não resulta num eclipse geral do sagrado, algo que fica
evidente se focalizarmos os simbolismos que os bens possuem na prática”
(FEATHERSTONE, 2007, 169).
As proposições de Featherstone são sagazes e importantes - em que pese sua
anacrônica novidade e, o que é mais grave, a falta de sutileza para universalizar um
modo de vida particular, transformando um “estilo” de vida da classe média ocidental
no próprio estilo, compreendido como força ética, de todo humano. Anacrônica
novidade: em que momento da história da humanidade a prática do consumo deixou de
ser produtora de significantes? Por que só na sociedade conhecida justamente como “do
consumo” essa dimensão, desde sempre presente, ganhou importância central? Só há
uma resposta, e ela está justamente no fato de o pós-modernismo insistir em um delírio,
uma ilusão nietzscheana: a de que o sistema simbólico não possui qualquer referência
além dele próprio. Só assim é possível desmaterializar o consumo da forma como
Featherstone e, ademais, o pós-modernismo, o fazem; só assim é possível compreender
essa prática como puramente simbólica, sem qualquer ligação com o produto
consumido; tampouco perceber o simbólico construído no ato de produzir, além, é claro,
333
do consumo subsumido em toda produção.
Por outro lado, há, entre as perguntas feitas pelo autor, expressas no trecho
em destaque acima, a respeito do consumo do religioso, uma que é, com efeito,
instigante: “Será que outras experiências associadas aos momentos de lazer, como os
espetáculos da cultura de consumo, teriam assumido a aura do sagrado?” Featherstone
deixa no ar a pergunta – e o faz com a frágil convicção da leveza pós-modernista. Não
há, em seu quadro teórico, razões para respondê-la, porque a resposta já está dada na
pergunta: há, sim, uma substituição de sagrados, mas nesse caso pouco importa, uma
vez que o “lazer” e o “consumo”, compreendidos como sinônimos, são fugazes demais
para se prenderem a algo tão pesado como o sagrado a que se refere o texto – o sagrado
divino, das religiões tradicionais e “modernas”. O que importa aqui é a
autorreferencialidade do consumo e sua expansão, como “estilo de vida”, para todas as
esferas da vida. A ausência de resposta, no entanto, deixa outra pergunta no ar: não
teria, com efeito, o consumo se tornado sagrado, inclusive como prática simbólica de
transcendência? Não seria esse modo de vida da classe média burguesa universalizada a
forma como se organiza a vida, segundo as promessas que, contraditoriamente, se
esvaem no ato do consumir por ele mesmo, sem que seja embarcado pela
impossibilidade da maioria de ter acesso aos meios de produção? Ou, no caso do
consumo autorreferenciado e meramente simbólico, na impossibilidade da maioria dos
humanos de produzir os próprios significantes, por não terem acesso aos meios de
produção, reprodução e circulação simbólica? O que está em jogo nessas perguntas é
justamente o paradoxo do consumo autorreferenciado: seja como ideologia, seja como
prática social efetiva, o consumo é, a despeito de sua transformação histórica, como nos
lembra Raymond Williams (Cf.: WILLIAMS, 2007, 109-10), um ato de absorção ou
dilapidação completa, o que implica sempre uma instantaneidade. Todavia, não obstante
sua temporalidade centrada no agora, há, nesse consumo grandiloquente do pós-
modernismo, algo de projetivo: consome-se aqui e agora, mas tal ato conduz à promessa
de transcendência do aqui e agora. Nesse jamais alcançar a realização da promessa que,
no entanto, está sempre recomeçando, graças à temporalidade própria do ato de
consumir -; nesse ir e vir constante, surge uma nova temporalidade, efetivamente
transcendental. E assim o ato do consumo se torna uma entidade-consumo, que paira
sobre as cabeças dos humanos, lhes organizando a vida.
Trata-se, com efeito, como chegou a anunciar Featherstone, em trecho
destacado atrás, de uma entidade que se materializa naquilo que Guy Debord (2001)
334
chamou de sociedade do espetáculo – e aqui deve-se chamar a atenção para os itálicos
da frase, uma vez que o espetáculo é justamente a fase alta do esforço teórico pela
desmaterialização do mundo: a transformação da mercadoria em imagem; a deificação
final do ídolo capital. Pode-se obstar, na base, o conceito desenvolvido por Debord – e
afirmar que não se pode caracterizar a sociedade do consumo como do espetáculo, uma
vez que esse é um fenômeno social sempre presente nas coletividades humanas. Essa é,
aliás, a crítica feita por Régis Debray (2003) a Debord. Para Debray, A sociedade do
espetáculo, de Guy Debord, é na verdade uma versão atualizada de A essência do
cristianismo, de Feuerbach:
A sociedade do espetáculo (primeira edição: 1967) data na realidade de 1841,
primeira edição de A essência do cristianismo. Na realidade: na sintaxe e no
vocabulário. Feuerbach não contribui somente com uma epígrafe para
Debord, mas também com uma estrutura completamente pronta de raciocínio.
(...) O que há de original em A sociedade do espetáculo é a reunião de duas
banalidades: a sobreposição de objetos de 1960 (consumação, cultura,
publicidade) à temática 1840 da alienação, sem faltar um iota (DEBRAY,
2003, 104-5).
Debray continua com seu esmeril: na sobreposição, Debord indica que, na
sociedade mercantilizada, ela se alienou de si mesma no espetáculo. E, ainda: escapa a
Debord que o fenômeno da espetacularização é muito anterior à própria sociedade do
espetáculo; espetáculo é a própria razão de ser dos rituais sociais etc. E, nesse caso,
deve-se dizer, a TV Canção Nova, e ademais a religião midiatizada, diriam respeito
senão a fenômeno universal do espetáculo, que deve ser aprofundado, segundo suas
potencialidades retóricas.
Régis Debray tem razão quanto à percepção de que o espetáculo sempre fez
parte da vida humana, como ritual e como elemento de socialização - inclusive, como
nos lembram Asa Briggs e Peter Burke (BRIGGS & BURKE, 2004), como ritualizações
de poder e contrapoder. Mas escapou a Debray que Guy Debord se refere a um conceito
– o espetáculo não são apenas rituais desde sempre presentes na vida social humana: é a
forma como o capitalismo, já uma relação social, se organiza contemporaneamente. Em
nenhum outro momento da história esse espetáculo, vastamente consumido, se tornou
razão de ser de toda uma sociedade; em nenhum outro momento, o espetáculo é a forma
assumida de esferas tão distintas da vida como a economia e a política, a arte, o sistema
jurídico e as esferas da intimidade; em nenhum outro momento histórico, o espetáculo
foi, como é, o centro das relações sociais. Nesse caso, a sociedade é, ela mesma, uma
fantasmagoria – e dessa sombra se alimenta, num ciclo terrificante de aparição e
desaparição contínuas, para aparecer logo ali, novamente, como uma promessa que
335
jamais será cumprida. A alienação a que se refere Debord, portanto, e que Debray não
levou em conta, é a incapacidade que humanos têm de enxergar a concretude da vida, de
suas próprias vidas, em uma sociedade que se organiza, inclusive, como uma
transcendência para baixo que caracteriza o ato de consumir e sua promessa, como uma
sombra sem corpo. E, não obstante, ali está o corpo, vivendo em uma cultura que insiste
em lhe esvaziar de sua materialidade.
Ainda assim, o pós-modernismo persiste nesse esforço para compreender a
desmaterialização, como bem disse Mooers (s.d), como um sinônimo de emancipação:
nossos corpos, “liberados dos constrangimentos de sua corporeidade”, se nos apresenta
como nossa liberação “de várias formas de discriminação corporal expressas no racismo
e sexismo” (MOOERS, s.d., 17). Desmaterializados, nossos corpos, transformados em
puro significante, libertos de um passado material incômodo e de uma necessidade do
porvir projetivo, podem enfim se lançar na aventura do instante. É disso o que trata, por
exemplo, Maffesoli (2003), para quem o mundo contemporâneo, chamado por ele de
pós-moderno, ao se livrar da linearidade da história pela falência do projeto do
progresso, vive o apogeu do instante, do carpe diem, pelo qual advém um retorno do
trágico – ao invés do drama histórico da utopia. Igualmente, a experiência mística “pós-
moderna” tem no corpo, na corporeidade suas marcas mais evidentes (MAFFESOLI,
1996). Morta a utopia, é o topos, o local em que o corpo se encontra e no próprio corpo
em que se inscreve o prazer de viver, cotidianamente, pelo consumo hedonista. O corpo
cotidiano: sagrado reencontrado, na repetição cotidiana da vida, nos afazeres mais
comezinhos que se repetem, o corpo pavoneia-se na busca do igual prazer de viver – e
nele se inscreve, pela moda, pelo profundamente sensual. E então, contraditoriamente,
ele precisa se torna signo, se desmaterializar, para sua livre circulação. A topia se torna
utópica. Porém, como nos lembra Terry Eagleton: “Para uma nova somatologia,
nenhum corpo velho serve. Se o corpo libidinoso está in, o corpo laborioso está out.
Existem corpos mutilados aos montes, mas poucos corpos subnutridos” (EAGLETON,
1998, 74). Nesse caso, não importa se o trabalho seja material ou imaterial – importa
que corpos reais são colocados à disposição para que se realize o trabalho. E alguns
corpos são mais importantes do que outros – eis o que está em jogo na
desmaterialização da vida.
É desses corpos subnutridos, esses corpos materiais, de que trata Marx
(1968). Na relação entre trabalho concreto e trabalho abstrato está a exploração real da
vida do trabalhador que dispõe de seu corpo e de seu espírito para os proprietários dos
336
meios de produção – e essa exploração, eis aí o segredo, se dá como uma aparente
relação igualitária. Há, todavia, ambivalência nessa relação, uma vez que o patrão, ao
comprar a capacidade de trabalho, abstratamente considerada, a consome
concretamente, como mais-valia. Dessa relação desequilibrada, produto da divisão
social capitalista do trabalho, inicia-se uma complexa rede, que é emaranhada como
relações sociais em sua totalidade, e que invade cada expressão, cada ato de cada
humano. Por isso, não somente o trabalho, como atividade singular, dispêndio corpóreo
do indivíduo, interessa, mas o mundo do trabalho como um todo, o que implica o modo
de produção e suas mediações culturais. É nessa medida que não se podem sobrepor o
consumo e a circulação à produção – já que o modo de produção capitalista implica a
totalidade das relações sociais, estabelecidas para a produção das relações sociais.
As teorias que apontam no marxismo aquele cheiro de mofo da
modernidade - que traria consigo a impropriedade do projeto, do futuro – e assim
propõe seu abandono, justamente em nome da primazia do consumo; essas teorias
entendem que há uma nova configuração das forças produtivas, o que implica uma
modificação do modo de produção. A desmaterialização do mundo faz sentido, então,
porque o próprio trabalho, hegemonicamente constituído na contemporaneidade, é
imaterial.
Esse é o argumento de André Gorz (2005) e de Antonio Negri e Michael
Hardt (2001). Num debate justamente com Negri, e com o também italiano Maurizzio
Lazzarato, Henrique Amorim (2009) escreve:
(...) tanto na interpretação de Lazzarato quanto na de Negri vemos que a
apropriação do conceito de trabalho imaterial dentro da relação capital versus
trabalho é, mais uma vez, mediada pela figura do indivíduo, do trabalhador
isolado (...) caracterizar-se-ia a figura do produtor consumidor como sujeito
político central no contexto de uma sociedade produtora de mercadorias
imateriais. Na prática, a mudança das formas de exploração do trabalho
ocasionou a recomposição do conteúdo das qualificações necessárias às
formas de produção. Contudo, hoje, esses conteúdos que geraram uma
subjetividade específica capacitariam o segmento dos trabalhadores portador
desses novos conteúdos a formar uma luta anticapitalista. Ao comprar, ao
consumir uma informação, criar-se-ia um processo de resistência. A luta
política está, assim, posta no varejo (AMORIM, 2009, 125).
Não há por que esta tese entrar a fundo nesse debate, mas é importante
localizar, ainda que tangencialmente, o conceito de trabalho imaterial, “que seria aquele
que produz os bens imateriais como a informação, os saberes, as ideias, as imagens, as
relações e os afetos [e] tende a tornar-se hegemônico” (NEGRI, 2004, 44, apud
AMORIM, 2009, 124). Por isso, a
337
heterogeneidade das atividades de trabalho ditas ‘cognitivas’, dos produtos
imateriais que elas criam e das capacidades e saberes que elas implicam,
tornam imensuráveis tanto o valor das forças de trabalho, quanto de seus
produtos (GORZ, 2005, 33).
Vê-se que se trata de um fenômeno que teria surgido justamente do
maquinário de comunicação globalizado – e que seria responsável por isso mesmo por
uma primazia do consumo. É claro que, além da crítica feita por Henrique Amorim,
concebe-se apenas o material simbólico circulante por esse maquinário, sem que se
questione o tipo de sociedade criada por sua materialidade, que possui proprietários.
Nessa configuração teórica, o consumo passa a ser concebido como a única esfera em
que o corpo é “produzido” e “reproduzido”, ao mesmo tempo em que ele se torna um
dos principais objetos e o grande provocador do consumo. Seria aquilo chamado por
Lowe (1995) de práticas corporais: há, segundo o autor, no “capitalismo tardio
estadunidense,” uma intensa mercantilização e exploração das práticas do corpo, sejam
elas relativas ao sexo ou à etnia. Perceba-se: reivindicam-se conceitos naturais nessa
cruzada da desmaterialização. A natureza é a última fronteira – mas, contraditoriamente,
a transformação da matéria em signo, da determinação em produto da vontade, esconde
atrás de si a naturalização das relações sociais mercantilizadas. Estranhamente, a
transformação do corpo em signo faz dele não uma potência real, mas uma
determinação que deve se dispor para a reprodução concreta das relações sociais
capitalistas. Isso, com efeito, diferencia o capitalismo contemporâneo daquele, forjado
pelas revoluções industriais – porque há uma associação direta entre o corpo e o
consumo e, assim, a busca pela transformação do corpóreo em signo consumível.
Vimos, seja nos discursos tecidos desde a produção ou aqueles forjados
como mediação, que TV Canção Nova reforça a desmaterialização do corpo. Embora
chame atenção, por meio de seus rituais carismáticos, justamente para o corpo, os
discursos tecidos a partir da TV Canção Nova tendem a negá-lo, o corpo material. Isso
ocorre, mais uma vez, pela ambiguidade presente na tensa disputa de sagrados: o corpo
é morada de Deus, mas, por ser consumível, deve ser negado – e é negado pela
transformação em signo, no caso do corpo, ele mesmo; ou em material simbólico
circulante, no caso do equipamento material de transmissão simbólica que a TV Canção
Nova detém, para a manipulação exclusiva dos produtores. Assim, fica duplamente
mantida a mistificação, presente no tempo do “capitalismo imaterial”, cujo segredo
habita o fato de que aqueles que produzem a riqueza social não poderem dela usufruir,
mas são levados adiante em uma crença de que participam da riqueza sendo
338
consumidores.
Eis a face do sagrado contemporâneo, negado e afirmado pelo catolicismo
midiatizado da TV Canção Nova. Eis que a questão, exposta na introdução desta tese,
pode enfim ser respondida: depois de Marx, Feuerbach ainda é necessário? É necessário
questionar as religiões para que se compreendam as estruturas do mundo? E eis as
respostas – para as duas questões: sim. Porque, como vimos no desenvolvimento desta
tese, o sagrado proposto pelo consumo, que tensiona o divino persistente do catolicismo
e dá forma a ele, na verdade necessita do divino para continuar a existir. Porque se há
transcendência no consumo, trata-se de uma transcendência destituída de valor –
obliteração que se dá pela apropriação, como imaterial, da produção coletiva e sua
disponibilização, para o puro consumo, como mercadorias com valor em si mesmas.
Assim, o sagrado capitalístico toma emprestado do sagrado divino de outrora sua
metafísica – que tem valor em si mesma – e, dessa maneira, garante sua replicação,
forjando uma realidade para humanos que são encorajados a crer que, consumindo o
sagrado, terão a segurança que lhes é tomada pelo consumo puro e simples das
mercadorias. Por outro lado, empresta ao divino a promessa, o vir-a-ser eterno da
temporalidade do consumo.
Questionar as religiões ainda hoje significa questionar como se constroem
as máquinas de transcendência em um mundo que fabrica um sagrado segundo a
promessa de ser ele o transcendente. Deve-se, por fim, questionar as religiões que, como
a Canção Nova, prometem um sagrado antigo transmitido através do novo sagrado – e
os torna, ambos, promessas suspensas por um pastoreio que é feito de
despotencialização do humano, separação, obliteração. Precisamos, nós, criadores de
mitos, questionar o sagrado contemporâneo tornado forte nas religiões – porque, como
lembra Karen Armstrong,
Precisamos de mitos que nos ajudem a nos identificar com nossos semelhantes, e
não apenas com que pertende a nossa tribo étnica, nacional ou ideológica.
Precisamos de mitos (...) que nos ajudem a desenvolver uma atitude espiritual, para
enxergar adiante de nossas necessidades imediatas, e nos permitam absorver um
valor transcendente que desafia nosso egoísmo solipsista (ARMSTRONG, 2005,
114-115).
Necessitamos lembrar Feuerbach – mas não podemos nos esquecer de Marx: “A crítica
do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do
direito, e a crítica da teologia em crítica da política.” Lembrar Marx sem perder de vista
que humanos constroem sagrados e que a terra a que ele se refere está colonizada por
um tipo de sagrado material em sua imaterialidade. Para que enfim nós, humanos,
339
animais que creem, não tenhamos em nossas vidas um sagrado que nos conduza ao puro
delírio – para que, como disse Caetano Veloso, não estejamos presos à sina de cultuar
uma outra idade média situada no futuro.
340
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