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DANIELA PALMA
A praça dos sentidos
Comunicação, imaginário social e espaço público
Tese apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em
Ciências da Comunicação
Área de Concentração: Teoria e
Pesquisa em Comunicação
Orientador: Prof. Dr. Boris Kossoy
São Paulo
2010
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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho,
por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e
pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES / USP
SERVIÇO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO
Palma, Daniela
A praça dos sentidos: comunicação, imaginário social e
espaço público / Daniela Palma. -- o Paulo : D. Palma, 2010.
320 p. il.
Tese (Doutorado) Ciências da Comunicação/Escola
de Comunicações e Artes/USP.
Orientador: Prof. Dr. Boris Kossoy.
Bibliografia
1. Cultura urbana São Paulo 2. Comunicação 3. Imaginário
social 4. Praça Roosevelt 5. Artes São Paulo I. Kossoy, Boris
II. Título.
CDD 21 ed. 306
ads:
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Comissão julgadora:
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_________________________________
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_________________________________
_________________________________
4
5
Para Ligia
e Miguel
e Lauro
e Laura (da Mima).
6
7
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Boris Kossoy, orientador do trabalho,
pela confiança e apoio de sempre.
Às Profas. Dra. Cremilda Medina e Dra. Ana Luiza Martins,
pelas leituras e observações generosas.
Aos entrevistados e autores que me enviaram seus textos.
Ao Arquivo do Estado de São Paulo e à Emurb,
por informações e materiais fornecidos.
Ao Jimmy, pela versão.
E ao Lauro, pelos auxílios, leituras, sugestões e estímulos.
8
9
Resumo
O objetivo deste trabalho é observar como se constroem sentidos sociais de um
espaço público, a partir do caso da praça Roosevelt. Localizada no centro de São Paulo, a
praça teve, ao longo de sua existência, grande alternância de usos. A proposta é ler e
articular discursos, imagens e narrativas sobre a praça, um espaço que está em uso e em
constante processo de significação e ressignificação.
Com isso, a comunicação na esfera da vivência urbana em São Paulo ganha
tratamento temporal e espacial. Sobre a questão temporal, o presente da praça é
tomado aqui como confluência de memórias e projeções de futuro. Assim, buscou-se
relacionar sentidos residuais de dinâmicas do passado, formas emergentes de pensar o
espaço e também versões e projetos institucionais.
A tese divide-se em duas partes. A primeira concentra discussões teóricas e de
contextualização sobre as concepções de espaço público e imaginário na cidade de São
Paulo. A segunda parte destina-se ao caso da praça, tomando três eixos principais: a
construção de uma narrativa sobre a “degradação” da região; a praça como imagem de
lugar libertário e os sentidos oficiais e de mercado para o espaço.
Palavras-chave: Cultura urbana São Paulo; comunicação; imaginário social; Praça
Roosevelt; Arte São Paulo.
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11
Abstract
The objective of this work is to observe how social sentiments are constructed in a
public space through examining the case of Roosevelt Place. Located in downtown São
Paulo, this square has been used in diverse ways over the course of its existence. This
project reads and articulates discourses, images, and narratives about the plaza, a space
with on-going changes related to its meaning and significance.
In this way, time and space receive treatment in considering communication in
urban life. Regarding questions of time, the square is considered to be the confluence of
memories of the past and projects for the future. As such, this study seeks to relate
residual feeling of past dynamics, emerging ways of thinking about space, and
institutional proposals and projects.
The thesis is divided into two parts. The first focuses on theoretical discussions and
contextualizes concepts of public space and the imaginary of the city of São Paulo. The
second part examines the specific case of the plaza, looking at three main questions: the
construction of a narrative of the decline of the region, the square as an image of a place
where one can be free, and the official and market notions about the space.
Key words: Urban culture São Paulo; Communications; Social imaginary; Roosevelt
Place (São Paulo); Arts in São Paulo.
12
13
Sumário
Introdução, 15
PARTE I: São Paulo: espaço urbano e imaginário
Capítulo 1: O espaço público paulistano, 29
Espaço urbano na esfera pública, 29
A formação de uma “opinião pública” em São Paulo, 45
Ações modernizadoras, 49
A racionalização da cidade, 64
Miragem da globalização, 74
Capítulo 2: Imaginários urbanos em São Paulo, 83
Pensar o imaginário urbano, 84
Simbólico, imaginário e social, 91
Imaginários paulistanos: imagens totalizantes, 100
Imaginários paulistanos: vozes, versões..., 113
PARTE II: A praça e seus sentidos
Capítulo 3: Narrativas da degradação, 127
Quando era o glamour..., 128
Considerações sobre corrupção urbana, 137
Projeto da praça e deterioração, 143
O entorno e a geografia do submundo no centro paulistano, 154
Personagens da degradação, 165
Capítulo 4: A praça do teatro, 187
Boemia teatral, 201
O “pedaço” na cidade, no papel, na rede, 209
Imaginário dionisíaco e dramaturgia, 220
Do outro lado, 235
Capítulo 5: Moda e institucionalização, 251
Sob o rótulo da cultura “alternativa”, 253
À luz da mídia, 258
De pedaço a mancha, 270
O poder e a praça, 276
Considerações finais, 301
Referências bibliográficas, 309
14
15
Introdução
16
17
I. Sobre praças: a pracinha do meu bairro
Moro em apartamento. E tenho criança e cachorro. Frequentar a “pracinha” faz
parte do meu cotidiano. A Horácio Sabino, no Jardim das Bandeiras, zona oeste de o
Paulo. A praça de bairro, que traz o nome do empreendedor imobiliário da Companhia
City, fica em uma área residencial nobre sendo esta, pontuada de reentrâncias mais
populares: um casebre aqui, outro acolá; um pequeno cortiço; sobradinhos sem charme;
um boteco que durante a semana atende o pessoal do cortiço e trabalhadores da região
(carregadores, motoristas, peões de obra, manicures...); aos sábados, é tomada por
jovens de visual pós-hippie frequentadores do Maracatu; há ainda o chaveiro, o conserto
de geladeiras e lavadoras que ocupa parte da calçada com eletrodomésticos em
desuso , um mercadinho... Um cenário em que a cidade-jardim foi invadida pela rua.
A praça fica em um terreno um pouco íngreme. Na parte de cima, uma semi-arena,
seguida por um grande gramado arborizado com muitos eucaliptos e algumas outras
espécies de menor estatura. Na parte de baixo, dois níveis concretados em meio a mais
gramados e árvores, também dois tanques de areia um, para as crianças, onde há
alguns brinquedos de parquinho; outro, para os cachorros; conforme convencionado
pelos frequentadores. também barras para exercício e alguns bancos. É uma bela
praça, embora nem sempre bem mantida comumente, mais suja do que o esperado;
eventualmente com o mato crescido, bancos quebrados... Mas, diante do quadro geral
de manutenção das praças da cidade de São Paulo, pode ser considerada sim uma
espécie de oásis urbano.
A frequência do lugar é aparentemente variada, mas basicamente diurna. Mães,
pais e babás com suas crianças. Donos de cachorros, passeadores e adestradores e seus
animais. Estudantes. Inconstantes moradores de rua. Grupos de tai chi chuan. Pessoas
que se exercitam. Pessoas que encontram em seus gramados um local para leitura.
Malabaristas. Skatistas. Ciclistas. Durante a semana, no meio do dia, é comum que
trabalhadores em trânsito pararem por ali para uma breve sesta.
nessa praça um personagem que merece destaque, o João. É um vira-lata de
rua, magrelo, pêlo curto de cor caramelo. O típico cachorro comunitário: todos o
conhecem, sempre alguém para alimentá-lo e cuidá-lo, recebe banhos e cuidados
18
médicos do petshop da vizinhança e atenção de boa parte dos moradores, trabalhadores
e frequentadores da região. O João domina a territorialidade da praça e do bairro como
ninguém.
Mas nessa pracinha de multiculturalismo idílico, também conflitos. alguns
anos, a poderosa associação de moradores conseguiu que a prefeitura colocasse
algumas faixas de paralelepípedos em meio ao asfalto do leito da rua, para impedir a
prática do skate no local (episódio que rendeu algumas matérias de jornal e protestos no
Orkut). Praticantes de tai chi incomodam-se com a agitação dos cães e vão tirar
satisfação com os donos dos animais. O uso de drogas por alguns estudantes e garotos
de rua é tomado como acinte por alguns frequentadores e moradores. Até o João (o
vira-lata) já foi objeto de disputa entre alguns de seus diversos cuidadores...
Essa pracinha de bairro do meu cotidiano é disputada tanto no seu uso efetivo,
quanto simbólico quando, por exemplo, uma reivindicação de moradores (muitos
deles que nem se quer frequentam de fato a praça) é considerada mais legítima pelas
autoridades, do que uma prática de grupos de jovens vindos de bairros mais distantes.
II. Sobre praças: a praça globalizada
Em 2008, foi inaugurada em São Paulo, no bairro de Pinheiros, a praça Victor Civita
praça com subtítulo: “espaço aberto da Sustentabilidade”. Resultado de uma
“parceria” do Instituto Abril (do Grupo Abril, um dos maiores e mais influentes grupos
empresariais que atuam na área da comunicação no Brasil) “com a Subprefeitura de
Pinheiros, o Itaú, a comunidade e a Petrobras”
1
.
Com a praça “ecológica” da rua Sumidouro, que homenageia o fundador da
Editora Abril e se localiza bem ao lado da sede desta, completa-se o panteão dos marcos
arquitetônicos paulistanos que carregam o nome de patronos da grande mídia em
companhia da Praça Julio de Mesquita, com sua fonte art nouveau em plena av. São
João (atualmente a praça triangular é ocupada principalmente por usuários de drogas), e
do viaduto Julio de Mesquita Filho, junto à sede do jornal O Estado de S.Paulo, na
1
Site oficial de divulgação do projeto.
19
Marginal Tietê; da avenida Roberto Marinho, próxima à sede paulista da Rede Globo, e
da espalhafatosa ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira, sobre o rio Pinheiros.
As coberturas jornalísticas sobre a inauguração da praça, bem como os
comunicados oficiais, ressaltavam a preocupação do projeto com as questões
ambientais (a praça foi construída sobre um terreno de solo contaminado, o que exigiu
soluções arquitetônicas especiais) e com a recuperação dos espaços públicos da cidade.
Quem administra e coordena os horários e as atividades da praça é o Instituto Abril (a
praça tem horário de funcionamento; fora dele, permanece fechada).
Seja pela arquitetura, pela localização, pela proposta “ecológica” de apelo
atualizado ou pelo perfil das atividades programadas para o local, pode-se dizer que é
uma praça sob medida para um certo estereótipo de classe média paulistana, tão caro
na definição do público de algumas publicações da Editora Abril como o da sua
principal revista, a Veja.
Curiosamente, na outra lateral do prédio ocupado pela editora, fica a área onde,
em janeiro de 2007, as obras do metrô causaram a abertura de uma gigantesca cratera,
que matou sete pessoas e destruiu várias residências. Essa obra do metrô vinha sendo
anunciada como um dos grandes modelos de parceria público-privada para viabilizar a
gestão pública em São Paulo e o grave acidente não teve, até o momento pelo menos,
atribuição clara de responsabilidades. A revista Veja, semanário noticioso de maior
tiragem no Brasil e cuja redação funciona no prédio da Abril, vizinho ao local da cratera,
não dedicou muito espaço de sua cobertura na época ao acidente, apesar da
“preocupação” da empresa declarada mais tarde com a inauguração da praça de
atuar em seu entorno.
E, sobre a praça de Pinheiros, alguns tímidos debates apareceram sobre o assunto
principalmente em blogs de internet especializados em urbanismo: dá para chamar de
público um espaço gerido por um dos principais grupos empresariais do Brasil?
2
2
Existe a figura arquitetônica da praça aberta ao uso público, um espaço privado, normalmente vinculado
a uma empresa ou prédio corporativo, aberto a utilização pública. Em São Paulo, um exemplo seria a
praça do Centro Empresarial Itaú, junto ao parque da Conceição (ROBBA, F.; MACEDO, S. S. Praças
brasileiras. São Paulo: Edusp/Imesp, 2002. p. 156.). Diferente da Praça Civita que é conceitualmente um
espaço público, construída em terreno da prefeitura, apesar do subtítulo” reforçar o caráter dúbio:
chama de espaço “aberto” e não de público.
20
III. Sobre praças e sentidos
Gaston Bachelard considera que o espaço dá sentido à existência humana, sobre a
casa, comenta: “é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as
lembranças e os sonhos do homem. (...) afasta contingências, multiplica seus conselhos
de continuidade. Sem ela, o homem seria um disperso”
3
. Bachelard toma o espaço
como um “corpo de imagens” – o relacionamento homem e espaço estaria no âmbito da
“imaginação poética”.
Não apenas os espaços íntimos, mas os espaços públicos também são dotados
historicamente de uma carga simbólica, constituída a partir de redes comunicativas e de
sociabilidades. Weber notou como sentidos religiosos foram impregnados nas
concepções dos espaços nas cidades medievais
4
. Henri Lefebvre, sobre o contexto
modernista, diz que o “urbanismo dos canos, da limpeza pública, dos medidores” é
ideologia, que se ocupa de responder questões de espaço, deixando de lado variantes
de tempo e devenir
5
. Os situacionistas, liderados por Guy Debord, em meados do século
XX, pregavam posturas apaixonadas e afetuosas dos cidadãos com o espaço público para
romper com o sentido único da cidade espetacular capitalista.
6
Sobre as praças, Camillo Sitte lamentava já no século XIX que elas estivessem
desvalorizadas nas cidades modernas
7
. Para o arquiteto austríaco, a praça seria o espaço
público por excelência, é o que definiria a cidade como tal local de agregação, da vida
em comum, evoca espírito cívico e o sentimento de pertencimento. Tem consistência
física e simbólica.
O uso que fazemos do espaço urbano relaciona-se aos sentidos que a ele
atribuímos. Sentidos pessoais e sentidos constituídos socialmente. Assim, o imaginário
sobre uma praça pode situar-se no âmbito comunitário (como no caso da pracinha do
meu bairro), pode se inscrever em um referencial mais amplo de identidade, história e
3
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 201
4
WEBER, M. Economia e Sociedade, v. 2. Brasília: UnB, 1999.
5
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2006.
6
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
JACQUES, P. B. Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra,
2003.
7
CHOAY, F. O urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2003. pp. 205-218.
21
civismo (a praça da como símbolo do processo de redemocratização, por exemplo),
ou ainda, ter retórica de apelo promocional (como a praça Victor Civita na valorização
do espaço imobiliário e de comunicação “globalizada” da Marginal Pinheiros).
Os sentidos sobre o espaço público não estão nele. Não se dão apenas pelo
caráter urbanístico e arquitetônico e pelas funções. Muitas vezes, temos imagens
concebidas de lugares que sequer costumamos frequentar, ou até ao qual nunca fomos.
Pensemos aqui na figura do turista que mesmo antes de aterrissar em seu destino já tem
algumas imagens prontas e até narrativas constituídas sobre o local a ser visitado.
A cidade por seus moradores tem provavelmente leituras muito mais complexas
do que o esquema básico que o turismo de massa oferece, observa Beatriz Sarlo
8
.
Grandes narrativas de caráter dominante e versões pontuais, residuais de dinâmicas
passadas ou emergentes, alinhavam ou desfiam tramas sobre os lugares que afetam e
definem modos de vida. Atuam instituições, tradições remanescentes e novas
formações sociais. Os sentidos dos espaços públicos não são estáticos, são
constantemente formulados e reformulados, expondo sua densidade comunicacional.
Se a memória é espacializada, como defendeu Bachelard, então a ideia de
desespacialização que normalmente aparece como marca das metrópoles
contemporâneas pode aderir somente em certos níveis de discurso. “A rua
metropolitana é um dos ambientes modernos básicos, e uma das cenas centrais em toda
a mídia da cultura moderna”, afirma Marshall Berman
9
, o discurso da modernidade
depende das formulações sobre o espaço urbano inclusive do contraste construído
com o campo.
Nestes termos, pensar a cidade é pensá-la como uma rede complexa de
comunicação, que passa por projetos urbanísticos, arquiteturas, políticas e ações
oficiais, códigos morais, meios de comunicação de massa, artes, literatura, cartazes,
grafites, tecnologia, historiografia, corpos de habitantes e usuários, festas e
manifestações públicas, bate-papos etc. A materialidade das pedras e dos meios de
comunicação e expressão liga-se à imaterialidade de formulações ideológicas,
percepções, crenças, sentimentos etc.
8
SARLO, B. La ciudad vista. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2009.
9
BERMAN, M. Um século de Nova York: espetáculos em Times Square. São Paulo: Companhia das Letras,
2009. p. 113
22
As tramas de sentidos construídos definem o que uma cidade é, como pensá-la,
como senti-la, como com ela se relacionar e como projetar seu futuro. O imaginário
assim não é um conjunto de representações definido por ser aquilo que se separa do
social. A experiência social aqui tem como tópico o imaginário e suas fabulações,
fabulações que podem servir como lubrificante dos mecanismos de dominação ou que
representam possibilidades de resistência ou transformação o que pode remeter às
noções de ideologia e utopia. Com possibilidades de a primeira incorporar e desfigurar a
segunda (por exemplo, mudando seu estatuto revolucionário para uma chave
reformista), ou também da segunda resistir ou subverter a primeira.
assim imagens ou espectros sobre a cidade que vão se constituindo
historicamente. Visões mais totalizadoras que talvez tenham nos meios de
comunicação de massa seu principal canal de disseminação e versões mais
particularizadas, assumidamente enviesadas, que se espalham no cotidiano e por meio
de diversas redes que se estabelecem no urbano ou a partir dele.
A problemática central que se coloca nesta tese não foca exatamente no porquê,
mas fundamentalmente em como se formulam os sentidos sobre a cidade: como se
constituem então os imaginários urbanos em uma metrópole latino-americana como
São Paulo? Como se expressam as contradições da modernização nos imaginários sobre
as cidades? A construção simbólica sobre o espaço tem potencial de criar e recriar
formas de percepção e de sociabilidade ou ela é sempre uma representação reflexiva de
percepções e sociabilidades sedimentadas na experiência? O local reflete ou se
retroalimenta das “imagens globais”? ainda possibilidades de se pensar as utopias
nas formulações sobre o espaço?
IV. A praça sem jardineiros
Esta tese é sobre uma praça. Uma praça e seu imaginário. Uma praça e as
narrativas e imagens sobre ela. Não é sobre uma pracinha pitoresca como a Horácio
Sabino. Nem sobre um espaço de grandiloquência consagrada como a Sé. Nem de uma
praça que se pretende “globalizada” como a Victor Civita. A praça em questão aqui é
feiosa, esquisita, pesada, difícil até entender porque o nome praça para aquele espaço.
23
Um edifício de concreto, com um estacionamento no subsolo, vários níveis e “sem
jardineiros”, como anunciava orgulhosa a prefeitura na época da inauguração.
Praça Franklin Delano Roosevelt. Ou simplesmente, praça Roosevelt. Roosevelt,
nome de leitura e pronúncia não tão simples para falantes do português.
Situada na ligação entre o centro tradicional e a região da avenida Paulista, é uma
área de grande circulação e atração de vários grupos sociais, um entroncamento de vias
e circuitos, além disso, de concentração de comércio, serviços e apartamentos de classe
média e quitinetes. Mistura assim dinâmicas típicas do centro (convivência entre
estranhos, diversidade sócio-cultural, impessoalidade, limites morais mais tênues etc.) e
de bairros residenciais (espírito de corpo comunitário, laços de pessoalidade, limites
maiores aos forasteiros, código de moralidade pública mais rígido...).
A praça ganhou fama ao longo de sua existência, como ponto de referências
variadas, algumas de curtíssima duração: área sofisticada, grande obra de engenharia,
espaço cívico, região degradada, “pico” de skate, pedaço de artistas e boêmios, off
Broadway paulistana” (ou off off Broadway), ponto estratégico para as políticas de
revitalização do centro... Estas últimas “famas” têm rendido nos últimos anos atenção
midiática especial, e a formulação de novos sentidos para aquele espaço encontra-se em
grande ebulição.
Desta maneira, além do contexto mais recente da Roosevelt, a escolha do recorte
também se justifica também por: 1) a praça localiza-se na região central da cidade e
condensa em seu redor tanto dinâmicas consideradas “de centro”, quanto “de
periferia”, embaçando aquelas noções tradicionais de margem, o que pode propor
novos entendimentos sobre a metrópole; 2) grande alternância de usos em termos
diacrônicos, o que também pode fornecer pistas valiosas sobre “ordens” de
funcionamento da cidade; 3) espaço em que muitos circuitos se cruzam; 4) há uma rica e
extensa simbologia que envolve a praça Roosevelt, expondo o jogo semântico que
identidade a diversos grupos sociais.
O objetivo desta tese é tomar a praça Roosevelt para observar como se constroem
sentidos sociais de um espaço, e com isso pensar a comunicação em suas formas
residuais, emergentes e institucionalizadas de maneira temporal e espacial, na esfera
da vivência urbana em São Paulo. A cidade foi a primeira esfera pública moderna,
24
aponta Habermas, mas se criou uma ideia de superação disso, como se a comunicação
desespacializasse completamente a cidade. Pois aqui a proposta é justamente
espacializar a comunicação por meio da cidade, ou mais especificamente, da praça.
A pesquisa também buscou evidenciar novos espaços comunicacionais que não se
definem no sentido estrito da “comunicação de massa”, mas que também ultrapassam o
âmbito da interpessoalidade o que pode sugerir questões similares as que se colocam
na discussão sobre público e privado no espaço da cidade.
Esta tese trabalha com o tempo presente, com uma praça que está em uso e em
constante processo de significação e ressignificação. Se o presente não é um tempo
estanque, há nele a constante projeção de futuro, sem a interrupção de seus fluxos com
o passado ontem e amanhã sob a ótica de hoje. Na verdade, o presente aqui é tomado
como convergência de tempos. Por isso, o forte viés histórico adotado.
A história aqui não tem o objetivo de fornecer “porquês”, mas ajuda a
compreender “como”. Por exemplo, dizer que a praça Roosevelt degradou “porque” o
centro degradou não resolve a questão fundamental: como degradou? Ou,
principalmente: degradou? O que significa degradar? Assim, acompanhar processo de
usos e construções de discursos pode dar muito mais vazão à correnteza de tempos e
sentidos em torno da cidade.
Não se optou pelo viés dos personagens individuais ou de um grupo específico, e
sim das narrativas ou das imagens. Não com isso a negação das pessoalidades na
constituição de imaginários sociais sobre a cidade, mas elas não foram tomadas como
pressuposto. A postura de pesquisadora assumida não foi a de um arqueólogo
escavando por memórias e versões inéditas, de um descobridor de lembranças
trancafiadas no ambiente das intimidades dos moradores da cidade. Também não optei
por mergulhar em meio aos grupos sociais da praça, com eles convivendo e
estabelecendo vínculos, até porque se tratam de várias redes sociais. Procuro colocar-
me nos cruzamentos entre grupos, personagens e entre o imaginário e o vivido. Assumo
a posição de observadora (ou leitora), parto de mensagens e visões produzidas para
serem públicas. No entanto, é claro que as limitações da noção moderna de esfera
pública pode dissolver muitas destas vozes, amplificando apenas algumas. Assim, as
lacunas também ganham espessura aqui, como também o pressuposto de que por baixo
25
das hegemonias conflitos e debates. No fundo, este é um trabalho de análise de
discursos.
A tese está estruturada em duas partes. A primeira concentra discussões teóricas e
de contextualização, de densidade histórica, sobre as concepções de espaço público e
imaginário na cidade de São Paulo. O capítulo um abre com algumas sinalizações sobre o
debate em torno da vida pública e desenvolvimento urbano. Na sequência, traça um
panorama da configuração histórica da noção de espaço público em São Paulo,
explorando as tensões com o privado, as contradições do processo de modernização, a
delimitação de áreas de exclusão, a mercantilização e midiatização do urbano, bem
como as zonas de resistências e as práticas de ressignificação.
No segundo capítulo, a apresentação de algumas concepções sobre imaginário
urbano e das distinções e relacionamentos conceituais entre imaginário, simbólico e
social. A seguir, algumas imagens generalizantes recorrentes na simbologia e na
percepção da vida urbana em São Paulo são destacadas, e também exemplos de leituras
alternativas e pontuais que continuamente ganham corpo podendo ou não ser
formatadas e incorporadas pela cultura dominante.
A segunda parte da tese destina-se propriamente ao caso da praça Roosevelt. O
capítulo três tem como foco a construção social de narrativas sobre o processo de
degradação que é atribuído à praça, o que teria iniciado poucos anos após a inauguração
da grande estrutura de concreto. A memória sobre o período anterior que relaciona o
local à efervescência da Bossa Nova ganha então tessitura romântica, no choque de
comparações. Depois com a construção da superpraça, a tentativa oficial de colar um
imaginário de espaço cívico à Roosevelt, que logo acabou sendo desfigurado com a
aparição do fantasma da degradação. entram questões de projeto e manutenção da
estrutura física, bem como na mudança de perfil geral por que passou o centro da
cidade de São Paulo. Por fim, as imagens estereotipadas do “submundo” que são
projetadas sobre aqueles que povoaram a praça durante este período; e possibilidades
de quebras deste sistema identitário com outras leituras sobre a ocupação da praça.
O capítulo quatro analisa a aproximação de grupos de teatro com a região da
Roosevelt, onde acabaram por se instalar e a promover nova dinâmica em um dos
26
quarteirões ao redor da praça. O espaço passa a ter forte presença simbólica na
produção dramatúrgica e começa-se a formação do que se pretende um polo cultural.
Junto com as atividades teatrais, houve a intensificação da vida boêmia, apresentada
como parte de uma proposta estética dos artistas locais. O capítulo também faz
referência a “outros lados” da praça durante este processo de ocupação (simbólica e em
presença) pelos teatros, tanto o outro lado físico para além do quarteirão onde se
situam as salas como outros focos e personagens.
No quinto capítulo, a visibilidade dedicada pela mídia à praça é analisada, como
também os processos de incorporação da retórica sobre o “polo cultural” pelas políticas
públicas e ações de mercado voltadas ao centro metropolitano.
Parte I
São Paulo:
espaço público e imaginário
Noturnos São Paulo (2002), por Cássio Vasconcellos: Marginal Pinheiros, Cemitério do
Araçá e Viaduto Santa Ifigênia.
a Bolsa de Valores e os Fonógrafos pintaram seus lábios com urtigas
sob o céu de prata do ditador Tacanho e o ferro e a borracha
verteram monstros inconcebíveis
Roberto PIVA. Visão 1961. In: Paranoia. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2009. p. 38
Progréssio, progéssio
Eu sempre escuitei falar
Que o progréssio vem do trabaio
Então amanhã cedo nóis vai trabaiá
P(r)ogréssio
Quanto tempo nóis perdeu na boemia
Sambando noite e dia
Cortando uma rama sem parar
Agora escuitando o conselho das mulher
Amanhã vou trabaiá
Se Deus quisé
Mas Deus não qué [breque]
Adoniran BARBOSA. Conselho de mulher. 1953.
29
Capítulo 1. O espaço público paulistano
Não são apenas as políticas públicas oficiais, as determinantes econômicas e a
indústria cultural que definem a esfera pública urbana. dinâmicas e microdinâmicas
culturais e sociais diversas que atuam aí. Estas dinâmicas alternativas, subalternas, ou
qualquer outro nome que queiram dá-las, elas não são apartadas de outras
determinantes, há um processo de retroalimentação mútua. A cidade é desenhada pelo
mercado e adere marcas populares. Segrega e aproxima.
A partir desse jogo de dualidades, propomos pensar São Paulo em perspectiva
histórica dentro deste trabalho. O foco aqui é tomar como eixo a tensão público-privado
na delimitação dos espaços de convivência e na formação de uma esfera pública que
atua sobre a cidade. Foi feita a opção por uma narrativa que tenta entender a dinâmica
da vivência cotidiana no espaço público da cidade, que pontua algumas questões das
transformações do espaço público paulistano. Para constituir essa narrativa a opção pela
alternância entre planos gerais estruturantes e zooms de cotidiano mais
particularizados. Uma narrativa panorâmica não pode prescindir de algum
equacionamento cronológico, mas aqui as fases e modelos não são pensados de
maneira estanque na dinâmica urbana, identificamos transformações, mas sempre
permanências, resíduos, que ficam aderidos à textura da vida urbana.
Espaço urbano na esfera pública
Henri Lefebvre parte de um dado aparentemente óbvio e sem grandes implicações
para pensar a questão urbana moderna: o de que a cidade preexiste à industrialização.
Identifica modelos anteriores de cidade conforme a função definidora: cidades orientais
e arcaicas (gregas e romanas), com essência política; e a medieval, definida como local
do comércio.
O aumento de concentração de riquezas na área urbana, ao fim do Feudalismo, fez
com que se definisse também como lugar do conhecimento, da técnica e das obras. A
própria cidade se transformava em obra exigindo investimentos constantes
“orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção das trocas, na direção dos
30
produtos”
1
. O uso propriamente de seus espaços ruas, praças, monumentos, edifícios
é o que o autor define como “festa”, aquilo que consome recursos de maneira
improdutiva sem outras vantagens que não prazer ou prestígio. a tensão entre a
acumulação de capital na cidade, produção de valor urbano, em termos monetários, e
por outro lado a dilapidação de recursos pelas dinâmicas de uso.
Naquele momento, as indústrias foram implantadas esparsamente, não se
caracterizando como um fenômeno primeiramente urbano, tampouco rural. Lefebvre
frisa que não havia uma regra, uma lei, sequer uma tendência; a “implantação das
empresas industriais, inicialmente esporádicas e dispersas, depende de múltiplas
circunstâncias locais, regionais, nacionais”
2
. Nesse momento, as cidades cumprem o
papel de mercados, fontes de capitais, reserva de mão-de-obra e residência dos
dirigentes políticos e econômicos.
mais tarde, a indústria começou a se aproximar dos centros urbanos que
tinham a capacidade de concentrar a produção em um pequeno espaço (ferramentas,
mão-de-obra e matérias-primas). Assim a cidade passava a ser fundamental na
arrancada da industrialização. O autor identifica nesse processo eixos conflitantes:
industrialização e urbanização, crescimento e desenvolvimento, produção econômica e
vida social. “Existe historicamente um choque violento entre a realidade urbana e a
realidade industrial”
3
. E essa seria uma das grandes problemáticas da cidade moderna.
É no tecido urbano que se desenvolve um modo de vida a sociedade urbana.
Esse modo de viver define-se por uma trama em que se amarram questões sociais e
culturais em uma base econômica. Na sociedade urbana, assentam-se sistemas de
objetos e sistemas de valores. Nos objetos incluem-se desde os elementos de
infraestrutura básica (saneamento, luz, eletricidade, asfalto...) até de comércio,
passando pelos meios de transporte e comunicação. No sistema de valores, estão os
lazeres, os costumes, as modas; além de um tipo de racionalidade urbana, expressa nas
preocupações com segurança e planejamento de futuro.
1
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2006. p. 4
2
Ibidem. p. 7.
3
Ibidem. p. 9.
31
Dentro dessa concepção, uma praça, fisicamente falando, estaria englobada
dentro do sistema de objetos a intervenção no terreno, a colocação de mobiliários
públicos etc. Mas historicamente a praça é o lugar da festa sistema de valores. Assim,
a praça seria um espaço que faz parte da infraestrutura urbana, participa de projetos
oficiais de definição e traçado da cidade, mas cuja ocupação ou uso se daria em bases
eminentemente culturais aquelas que causam a dilapidação de capital. Mas com as
tentativas de imposição da lógica industrial à definição dos espaços das cidades, surge o
anseio de tornar produtivo aquilo que não é em si produtivo, subvertendo o que seria
até então parte de certa “essência” urbana. Nesse processo, o autor identifica a
atribuição de valor monetário às áreas de lazer. Os núcleos ou centros, principalmente
no caso europeu, são tomados como “históricos” e concentram qualidades estéticas e
atividades que passam a ser pensadas e planejadas em termos do mercado de diversão,
cultura e turismo, ou seja, transformam-se em centros de consumo.
O primeiro grande modelo de adaptação do espaço urbano à lógica industrial,
segundo Lefebvre, foi a remodelação de Paris, promovida pelo barão Haussmann no
século XIX. Na reforma da capital francesa, foram substituídas “as ruas tortuosas mas
vivas por longas avenidas, os bairros sórdidos mas animados por bairros aburguesados”.
Os boulevards de Haussmann não seriam orientados por preocupações meramente de
ordem estética, não “os vazios têm um sentido: proclamam alto e forte a glória e o
poder do Estado que os arranja, a violência que neles pode se desenrolar”. A segregação
planejada encontrava sua primeira concepção urbana, e a primeira resposta a isso foi a
Comuna de 1871 que representava “o forçoso retorno para o centro urbano dos
operários relegados para os subúrbios e periferias, a sua reconquista da Cidade, este
bem entre os bens, este valor, esta obra que lhes tinha sido arrancada”.
4
Posteriormente, Lefebvre identifica o que ele chama do isolamento da noção de
habitar. Antes, habitar confundia-se com o participar da vida social de uma cidade,
depois apareceu a concepção de que habitar é na verdade é isolar-se, afastar-se da
agitação dos centros em busca de “qualidade de vida”, no caso da burguesia; e por
imposição, no caso do proletariado, para excluí-lo da dinâmica da vida nuclear da
cidade.
4
Ibidem. p. 16.
32
A criação dos subúrbios equivale para o autor a um paradoxo: “urbanização
desurbanizante e desurbanizada”.
5
Esse caminho vai desaguar na concepção racionalista
do espaço urbano. “O racionalismo vai instaurar ou restaurar a coerência na realidade
caótica que ele observa e que se oferece à sua ação”.
6
O racionalismo acaba por se
desdobrar em formalismo, urbanismo tecnocrático e urbanismo a serviço do mercado.
Lefebvre atenta que considerar a cidade como “uma rede de circulação e de
consumo, como centro de informações e de decisões” é ideologia. Lefebvre considera
que a cidade é “uma mediação entre as mediações”, e que ela produz, mais do que
objetos, relações sociais. A cidade tem uma história, é obra da história e engendra
história. A cidade está imersa em uma “realidade cultural”.
A experiência social e cultural da rua que promove simbioses entre os cidadãos é o
aspecto relevante da vida pública nas grandes cidades também para Jane Jacobs. A
autora ataca o racionalismo do urbanismo que instaurou o que ela chama do
“pressuposto da separação”, na busca por um ordenamento urbano baseado na
repressão. O imperativo da impessoalidade nos espaços que se transformaram em vias
de circulação representaria a morte da noção de viver em público. Em sua crítica, ela
identifica que o “moralismo sobre a vida pessoal confunde-se com os conceitos
referentes ao funcionamento da cidade”.
7
A autora narra o episódio em que uma assistente social que atuava em um
conjunto habitacional em Nova York ficou intrigada com as constantes manifestações de
desagrado e irritação dos moradores em relação a um gramado que ocupava lugar de
destaque no residencial. Até que um dia uma veio a explicação: os moradores não
tinham sido ouvidos quando o conjunto fora construído eles foram afastados dos
amigos e perderam locais de convivência antigos e que aquele gramado fora tomado
como espécie de símbolo da imposição de uma dinâmica de vizinhança que eles não
desejavam. Perderam seus espaços de interação com os vizinhos e ganharam um jardim
decorativo que permanecia vazio e sem função.
8
5
Ibidem. p. 18
6
Ibidem. p.23.
7
JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 42.
8
Ibidem. p. 14.
33
Sobre a construção de parques e praças nas cidades, a autora considera que eles
não garantem uma atmosfera de prazer à cidade. Espaços livres que não estabelecem
uma relação de contiguidade com a dinâmica das áreas adjacentes tenderiam a se
transformar em áreas de abandono, acentuando o tédio e a insegurança de alguns
bairros áreas vazias que, por exemplo, constrangem a circulação de pessoas durante o
período noturno.
Jacobs valoriza o papel dos indivíduos no espaço. Seriam as pessoas e não a
assepsia dos traçados que garantiriam a vida das ruas. A proximidade com estranhos
propiciada pela vivência nas grandes cidades seria o grande feito da modernidade, e o
espaço público só poderia ser pensado em termos de um local marcado pela
diversidade.
Por óticas distintas Lefebvre pensando em uma concepção dialética do espaço,
de filiação marxista, e Jacobs com uma compreensão que alguns classificam como certo
tipo de liberalismo na relação dos indivíduos com a rua , os dois autores apontam para
a presença humana não apenas no uso, mas na própria produção do espaço urbano,
como condição para a restituição do caráter público das cidades. Produção do espaço
aqui entendida não apenas no sentido físico, de obras, mas fundamentalmente na
constituição de significados e funções. Ambos consideram que os urbanismos
racionalistas são autoritários e promovem a morte das ruas; camuflando a luta de
classes, para Lefebvre, ou a diversidade, para Jacobs.
David Harvey busca relativizar as críticas ao modernismo, em resposta
principalmente a Jacobs. O autor analisa o urbanismo racionalista do pós-Segunda
Guerra ao contrapô-lo às propostas pós-modernistas. Ele entende que “a aparência de
uma cidade e o modo como seus espaços se organizam formam uma base material a
partir da qual é possível pensar, avaliar e realizar uma gama de possíveis sensações e
práticas sociais”
9
.
As propostas e modelos estéticos modernistas para a cidade ganharam força no
contexto do poderoso programa reconstrução urbana logo ao fim da Segunda Guerra
Mundial. A racionalização urbanística, a despeito de todas as críticas sobre o viés
9
HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo:
Loyola, 1992. P. 69.
34
autoritário, foi fundamental, assinala Harvey, para a reconstrução, reformulação e
renovação do tecido urbano em caráter emergencial e em dimensões absolutamente
inéditas.
Observa que enquanto os países europeus, de modo geral, adotaram legislações
rigorosas de planejamento urbano, nos Estados Unidos o processo de criação de
subúrbios, com o consequente abandono dos centros, teve pouco controle e foi
realizado por empresas privadas, embora com subsídios habitacionais do governo. Vale
lembrar que na Carta de Atenas, Le Corbusier defendia que, para efetividade de um
projeto de cidade modernista, todo o solo urbano deveria ser público.
Mas, da padronização racional, pouco tempo depois, estourou a tendência a certa
desordenação, ao caos. Da noção opressiva de totalidade, a concepção de um tecido
urbano completamente fragmentado vide o caso emblemático de Los Angeles, cidade
sem centro. A arquitetura do pastiche, eclética, que trabalha com sobreposições de
formas e usos efêmeros, de citações históricas e geográficas diversas, painéis de
publicidade, referências pop, kitsch, retrô...
O pós-moderno perde a noção de urbanismo e reduz-se à arquitetura o
abandono do propósito social tão caro a vários modernismos , as construções pós-
modernas têm existência por si próprias, independentes de um contexto mais amplo
espaços privados cumprem a função de espaços públicos, como no caso dos shoppings,
o que obviamente desfigura a noção de público. Embora, conforme assinalam os
arquitetos Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour grandes defensores da
arquitetura pós-moderna , que os modernistas teriam sido intolerantes com o meio,
que “preferiam mudar o entorno existente em vez de realçar o que já existe”
10
.
Analisando o caso de Las Vegas, os autores a definem como uma cidade que não
cabe nas categorias urbanísticas existentes, descrevem o tecido urbano como um
“espalhamento” de atividades entrelaçadas sobre o solo. Um espaço urbano que se
define mais por seus letreiros do que pela composição entre vazios e volumes “a
cidade no deserto é comunicação intensificada ao longo da estrada”
11
. Otília Arantes
que rejeita o rótulo pós-moderno, pois não ruptura no processo da modernidade
10
VENTURI, R.; BROWN, D.S.; IZENOUR, S. Aprendendo com Las Vegas: o simbolismo (esquecido) da
forma arquitetônica. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 25.
11
Ibidem. p. 40
35
afirma que não tem mais cabimento definir as cidades contemporâneas como “centros
urbanos” e sim como redes urbanas interligadas.
12
Harvey observa que, neste movimento de se livrarem de uma ordem imposta por
urbanistas, as cidades passaram a ser regidas pela lógica do mercado imobiliário,
conforme o modelo norte-americano de suburbanização, desde o pós-guerra. A
tentativa de volta ao comunitário dentro do esfacelamento do tecido urbano ao invés de
gerar vizinhanças vivas, entrosadas e com grande senso de distinção entre público e
privado, como imaginado por Jane Jacobs, teria desaguado em condomínios cercados,
guetos e outros tipos de áreas de exclusão.
Em uma interpretação mais cultural desse processo, Harvey atenta que o
modernismo acabou por reprimir a significação do capital simbólico da vida urbana
como os meios para comunicar distinção social por símbolos de status , e do desejo
reprimido, apareceram as demandas. Em um primeiro momento, na década de 1960,
com ocupações e performances políticas nas ruas (direitos civis, manifestações de
contracultura, distúrbios urbanos etc.). E depois pela teatralização do espaço urbano
promovida pelo mercado: revitalização de antigas áreas, ecletismo como símbolo de
diversidade, espaços públicos lúdicos etc.
Saskia Sassen ressalta os papéis das cidades contemporâneas no contexto do
processo de globalização econômica; e esses papéis definiriam a própria geografia dos
espaços públicos. A autora não concorda com a tese de que com a internacionalização
da economia as cidades vêm se tornando obsoletas, para ela, a centralidade urbana é de
grande importância para os setores econômicos dominantes a criação da ideia de
espaços transnacionais. A caracterização das cidades globais, como Nova York, Londres e
Tóquio, relaciona-se à concentração de ampla gama de serviços e redes tecnológicas de
comunicação, além de sediar os escritórios centrais de firmas com atuação planetária,
tendo papel nuclear na condução das operações da economia global. Algumas
metrópoles européias tradicionais, como Paris e Roma, funcionam como referências
políticas e culturais consistentes, com grande integração ao sistema econômico
12
ARANTES, O. Urbanismo em fim de linha: e outros estudos sobre o colapso da modernização. o
Paulo: Edusp, 1998. P. 132
36
internacional. As megacidades superpovoadas, como São Paulo, típicas de países
subdesenvolvidos ou de desenvolvimento tardio, caracterizam-se pela inserção nos
circuitos econômicos internacionais (escritórios, serviços etc.) em coexistência com
marcas de profunda desigualdade social e a forte presença da cultura popular. Sassen
ressalta que a presença de uma cultura corporativa dominante abrange apenas parte
das cidades, sempre existem forças diversas, principalmente por meio da imigração, que
atuam no espaço urbano.
13
Todas essas concepções sobre o espaço urbano em seu desenvolvimento histórico
articulam, em maior ou menor grau, dados de economia, política, tecnologia e cultura na
tentativa de entender o tecido urbano como espaço público. E para aprofundar essas
articulações se faz necessário pensar a consistência da participação de indivíduos e
populações na constituição e uma esfera pública urbana ou, pelo contrário, como
denúncia do esvaziamento desta. A formação de sociabilidades e o isolamento. um
duplo movimento neste sentido: um que pensa em termos de uma intensa força
disciplinadora dos espaços nos corpos, que marcam o processo de individualização nas
cidades modernas, e outro que enxerga a possibilidade de ação humana constante no
cotidiano urbano.
Georg Simmel fez trabalho pioneiro ao debater a metrópole a partir da ótica da
relação do citadino com o espaço público e as implicações psicológicas desse
relacionamento
14
. Observando historicamente o desenvolvimento das cidades, Simmel
identifica que a relação do homem moderno com espaço urbano é marcada pelo
confronto entre dois tipos de liberdade. O primeiro, nascido do ideal do liberalismo do
século XVIII, que considera que a liberdade é a substância nobre que pode aflorar de
qualquer indivíduo submetido às condições adequadas. O outro, do romantismo do
século XIX, baseia-se na crença que os homens anseiam a liberdade para se distinguirem
um dos outros. Na metrópole, essas duas concepções se colocariam em constantes lutas
e entrelaçamentos.
13
SASSEN, S. As cidades na economia mundial. São Paulo: Nobel, 1998.
14
SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, O. G. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar,
1967. pp. 13 28.
37
Se a pequena comunidade força a desindividualização, o indivíduo metropolitano
estaria liberto dos preconceitos provincianos. Mas, afirma Simmel, o local da solidão é a
multidão, assim ao mesmo tempo em que o metropolitano tem essa liberdade
propiciada pela grande cidade, sofre do desconsolo emocional da falta de vínculos
sociais.
O âmbito subjetivo do indivíduo urbano é emanado de suas relações tempo-
espaciais. A superestimulação do exterior exigiria uma rapidez tão grande de reagir às
transformações ao seu redor que, sem tempo para recuperar as forças, os nervos seriam
estirados de forma brutal. O intelecto humano, então, criaria formas de resistência ao
meio. Organizaria um sistema comunicativo entre os indivíduos metropolitanos
hierarquizando simpatias, indiferenças e aversões.
No caminho inverso, para respirar em meio à padronização do modo de vida, o
indivíduo teria o impulso de provar sua individualidade, por meio da especialização no
mundo do trabalho, bem como pela noção de exclusividade bancada pelo consumo.
Objetividade e subjetividade, público e privado. O espaço público define o
indivíduo; o indivíduo atua sobre o meio. Dualidades que dão a tônica à questão pública
nas cidades modernas. A base monetária como eixo estruturante da vida urbana
moderna embaça as distinções de público e privado de tal forma que vem gerando
longos e complexos debates teóricos. Desde Simmel, passando por Benjamin, e seguindo
por vários campos das ciências humanas.
Mais tarde, Michel Foucault pensou o espaço como dimensão do poder. Os
mecanismos de controle e disciplinamento agiriam principalmente por meio da
organização espacial. Desenvolve a ideia de uma visibilidade isolante, a partir da figura
do panóptico sob olhar constante a possibilidade de ação tende a se anular. Foucault
chega a descrever a racionalização da cidade promovida pelo saber médico, na
constituição de uma medicina social, mas acabou mesmo por concentrar seus estudos
na espacialidade dos locais de reclusão mais extrema (hospitais, hospícios, prisões...),
não aprofundando as implicações dos sistemas de controle nos espaços públicos
urbanos propriamente.
Foi provavelmente Richard Sennett um dos autores que mais explorou essa
relação entre disciplinamento e espaço público na cidade. Sennett discute o espaço
38
público com o foco na concepção do homem público o “sentir-se em público” pelos
indivíduos. Ele aponta que, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, houve um
processo de imposição de visualidade social excessiva da vida pessoal e a destruição do
domínio público
15
.
Aqui é útil a noção arendtiana de desaparecimento da esfera pública no mundo
moderno e, ao mesmo tempo, a perda do caráter privativo da esfera privada. A esfera
pública para Hannah Arendt carrega dois sentidos. O primeiro relaciona-se à ideia de
aparência: o caráter público aparição às coisa e logo sentido de realidade; e o que se
identifica com a vida privada teria existência incerta. O outro sentido de público coincide
com o que é mundano, pensando o mundo, não como extensão territorial, mas como
artefato humano. Neste sentido, a esfera pública nos reúne e nos organiza para manter-
nos juntos. Segundo Arendt, a sociedade de massa é que reuniu um grande número de
pessoas, mas tirou a força que as permitia se manterem juntas. Perda dos laços de
relação entre as pessoas. “Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser
construído apenas para uma geração e planejado somente para os vivos: deve
transcender a duração da vida de homens mortais”.
16
Essa falta de transcendência na esfera pública moderna representaria então seu
próprio esvaziamento. O apagamento do público implicaria também na quebra da ideia
de que o espaço privado é o lugar do resguardo, da privação (onde poderíamos nos
privar de ter existência para os outros). Esse apagamento do privado representa o
reforço da solidão.
Sennett identifica que foi provavelmente no século XVIII que um termo começou a
ser usado para definir a vida urbana: cosmopolitismo. O indivíduo cosmopolita
movimenta-se de maneira despreocupada em meio à diversidade; seria a figura do
homem público perfeito. Essa sobreposição entre cosmopolitismo e vida pública fez com
que esta última passasse a ser entendida como aquilo que acontece fora do âmbito
familiar ou do círculo de amigos, no local público, urbano, principalmente na capital, em
meio a grupos díspares. O autor aponta que, nessa época, o crescimento das cidades
propiciava o desenvolvimento de redes de sociabilidades e o aparecimento de locais de
15
SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
16
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 64.
39
passeio, onde estranhos podiam se encontrar com regularidade. Parques urbanos, cafés,
bares, estalagens, teatro e ópera tornaram-se mais numerosos e abertos a um público
bem maior, que ultrapassava “o pequeno círculo da elite e alcançou um espectro muito
mais abrangente da sociedade, de modo que a mesmo as classes laboriosas
começaram a adotar alguns hábitos de sociabilidade”.
17
Estes lazeres transformados em atividades públicas, ou seja, entre estranhos,
geraram novas modalidades de interação. Havia a necessidade de uma nova ordem para
a vida urbana, ordem esta fundada no campo dos discursos, dos vestuários e dos
comportamentos. O confronto entre a civilidade expressa no comportamento
cosmopolita e os direitos de natureza, representados na ordem familiar, dava a distinção
entre vida pública e vida privada. Equilibrar o comportamento entre essas duas esferas
definia o ser social; e os manuais de civilidade, que apareciam em meados do século
XVIII, expressam bem essa busca por uma ordem pública na cidade.
No século XIX, as tentativas em controlar a ordem pública desgastaram-se, e se
observou então o impulso de autoproteção contra a desordem dos espaços de
convivência, buscando refúgio no seio familiar. Sennett identifica a presença do
capitalismo industrial nas cidades e a reformulação do secularismo, como as forças que
atuaram nessa transformação da noção pública oitocentista. A distribuição em massa de
mercadorias criou uma “mistificação” da vida material em público ou o fetichismo. Ao
mesmo tempo, passou-se a se conceber que sensações e fatos imediatos não
precisavam se encaixar em esquemas transcendentais preexistentes, mas que
sentimentos e acontecimentos cotidianos podiam ter realidades e sentidos por si
próprios. A grande crença na objetividade: o que é visível é tangível, logo é verdadeiro.
Assim, as aparições em público suas roupas, seus modos, suas falas poderiam dar
indícios sobre a personalidade do indivíduo. “Era em público que ocorria a violação
moral e onde ela era tolerada; em público podia se romper as leis de respeitabilidade”.
18
A repressão comportamental da era vitoriana seria então explicada por esse temor
em se expor publicamente, pois qualquer detalhe em excesso na forma de se mostrar
poderia fornecer indícios sobre a personalidade. O comportamento público passa a ser
17
SENNETT, R. Op. cit. p. 32.
18
Ibidem. p. 39
40
definido como o silêncio público; o conhecimento passa a ser gerado pela atitude
voyeurística e não mais pelo trato social.
O autor identifica que a esse impulso repressor da subjetividade seguiu-se uma
vontade liberalizante de exposição individual, como parte do mesmo processo. A
visualidade excessiva da intimidade ganha aparição pública, mas isso ao invés de gerar
mais sociabilidade, pelo contrário, tornou mais drástico o isolamento. Sennett usa o
exemplo da superexposição na arquitetura: no projeto de um escritório, quanto mais
expostas as pessoas que ali trabalham, umas às outras, pela ausência de divisórias,
cantos e reentrâncias, menor a possibilidade de conversas e da criação de vínculos
interpessoais. As paredes de vidro de prédios empresariais mostram o interior de seu
saguão, mas aquele espaço ao nível da rua é invariavelmente morto, serve só para
passagem. Áreas muito abertas tendem a constranger a permanência humana. Assim,
essas arquiteturas fundadas na ideia de uma grande visualidade cortam o vínculo da
construção com o entorno, e criam grande efeito de isolamento.
Sennett descreve uma grande confusão psicológica trazida aos indivíduos por essa
situação: a busca da liberação comportamental, o eu sem limites, no espaço público
acabou por produzir angústias semelhantes às experimentadas aos que viviam sob a
repressão vitoriana. E o mesmo valeria ao se observar o desenvolvimento da
comunicação e dos transportes. Todo o empenho tecnológico em produzir a abertura de
expressão e o fim dos limites na movimentação acabou por gerar plateias passivas e
transeuntes entorpecidos.
A crença na impessoalidade como grande mal da vida urbana resultou na busca
por um remédio que Sennett considera equivocado, pois também esvazia a noção
pública: o sentimento de fraternidade na experiência comunal moderna. A ideia de
comunidade trabalha com a construção de uma personalidade compartilhada por seus
membros e atua em afastar forasteiros e dessemelhantes. Com o abando da crença na
solidariedade de classe, o círculo se tornou mais estreito e rejeição ao que é de fora
mais marcante. “Esta rejeição cria exigências por autonomia em relação ao mundo
41
exterior, por ser deixado em paz por ele, mais do que exigências para que o próprio
mundo se transforme”
19
. Isso seria um exemplo de incivilidade.
A negação da civilidade representaria a ruína do espaço público. Pois, para
Sennett, a civilidade é compreendida não como regras de conduta e etiqueta de caráter
reacionário ou esnobe, mas como as limitações necessárias do eu para a convivência
com ou outros.
“Cidade” e “civilidade” têm uma raiz etimológica comum. Civilidade é tratar os
outros como se fossem estranhos que forjam um laço social sobre essa
distância social. A cidade é esse estabelecimento humano no qual os
estranhos devem provavelmente se encontrar. A geografia pública de uma
cidade é a institucionalização da civilidade. (...) As máscaras precisam ser
criadas por ensaio e erro, por aqueles que a usarão, por intermédio de um
desejo de viver com os outros, mais do que pela compulsão de estar perto dos
outros. Quanto mais esse comportamento tomar corpo, mais vivos se
tornarão a mentalidade de cidade e o amor pela cidade.
20
O tema da privatização da esfera pública no contexto da urbanidade moderna tem
ainda como um dos autores centrais Jürgen Habermas. Ele define uma divisão entre o
setor público e o setor privado, que equivale à divisão entre Estado e sociedade. O
primeiro corresponde ao poder público (Estado e, por algum tempo, também a Corte). O
segundo se desdobra em uma esfera pública a esfera pública burguesa, “esfera das
pessoas privadas reunidas em um público”
21
e uma esfera privada. Essas esferas
burguesas envolvem as trocas de mercadoria, o trabalho social e a esfera íntima da
família. A esfera pública burguesa configura-se em uma esfera pública literária, da qual
brota uma esfera pública política.
Segundo Habermas, a cidade “não é apenas economicamente o centro vital da
sociedade burguesa; em antítese política e cultural à ‘corte’, ela caracteriza, antes de
mais nada, uma primeira esfera pública literária”
22
. É da experiência cultural da cidade
que surge a modificação na esfera pública. A noção de público no século XVIII
corresponde a plateias, audiências, espectadores, leitores, que têm lugar na corte e na
cidade. Salões, teatros, óperas, museus, cafés são o locais urbanos em que uma reunião
de pessoas, em boa parte, estranhas entre si começam a aparecer umas frente a outras;
19
Ibidem. p. 325.
20
Ibidem. P. 323-324.
21
HABERMAS, J. Mudança estrutural na esfera pública: investigações quanto a uma categoria da
sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1984. p. 42.
22
Ibidem. p. 45.
42
ou seja, tornam-se públicos. A partir daí intensifica-se a circulação e o embate de ideias
e gostos. Habermas liga a aparição dessa esfera pública literária ao surgimento de um
mercado de bens culturais. A produção e intermediação do mercado instituem um
caráter inicialmente mais democrático, pois como mercadorias conceitualmente
estariam disponíveis a todos. É claro que as determinantes econômicas afastariam em
grande parte a participação popular desse processo, mas Habermas concorda que houve
uma assimilação de estratos sociais variados em diferentes graus, conforme algumas
condições locais.
A formatação do público arraigou-se a partir da crítica de arte leiga o debate
como meio de apropriação das obras artísticas pelo público. Essa prática do debate, nos
locais da cidade e também por meio dos materiais impressos (livros, periódicos etc.) que
começaram a circular mais amplamente, estava no cerne da constituição de uma esfera
pública burguesa.
Mas, observa Habermas, esta esfera pública estava também impregnada da esfera
privada burguesa. As obras artísticas e literárias que davam consistência à esfera
literária eram produtos inseridos na lógica comercial e que se originavam das
necessidades do público-leitor. Esse “tematizar sobre si mesmo” aflorou publicamente
uma “subjetividade específica”, em que o lar burguês ganhava novo estatuto na
configuração da cidade. Ele analisa o desenho das residências e a função dos cômodos
na definição de sociabilidades: aposentos recônditos e individualizados como espaços da
vida íntima, e salões amplos para recepções públicas. “A linha entre a esfera privada e a
esfera pública passa pelo meio da casa. As pessoas privadas saem da intimidade de seus
quartos de dormir para a publicidade do salão: mas uma está estreitamente ligada à
outra”.
23
Essa presença do privado na esfera pública também poderia ser notada pelo
desenvolvimento de gêneros literários de grande influência de público, nascidos de
modalidades discursivas tipicamente íntimas, como a carta e o diário, e da inserção da
“quarta parede” no teatro, que reforçava a ideia de intimidade no contexto das cenas
representadas.
23
Ibidem. p. 62.
43
Assim, conclui Habermas, que as práticas culturais e comunicativas nascidas da
vivência urbana, que reúnem pessoas privadas e dão vazão aos anseios destes grupos,
são a ponte para a formação de uma esfera pública política, por meio da constituição de
uma opinião pública.
Sem negar a tentativa de racionalização e controles do espaço, Michel de Certeau
reconhece a possibilidade da ação humana criativa no cotidiano das cidades. Os espaços
urbanos estão abertos a um incontável mero de experiências em sua definição. A
ideia central de Certeau é que em meio à massa, existem singularidades; e em meio aos
sistemas de controle totalizantes descritos por Foucault, uma “retórica pedestre” se
desenvolve. Essas criatividades dispersas encontram expressão no desvio do uso de
objetos impostos pelo sistema de consumo urbano discurso de tática que se impõe a
discursos de estratégia. Resistência por meio da ressignificação cotidiana constante que
espacializam as práticas sociais pelo tecido urbano. Mas, observa Certeau, essas práticas
cotidianas podem ser assimiladas pelos sistemas de consumo, passando por um
processo de racionalização e massificação.
24
A cultura popular então aparece como um dos elementos centrais para pensar o
espaço público das grandes cidades. A antropologia urbana, desde os estudos da
chamada Escola de Chicago, vem buscando um olhar de curiosidade frente ao homem
urbano, quebrando as análises de base totalizadora sobre as cidades, e recorrendo ao
trabalho etnográfico, à pequena escala, às faíscas do cotidiano. Esses trabalhos
apontaram para a relação contínua entre o urbano e rural: traços de uma dinâmica
relacionada a um modo de vida urbano aparecem em comunidades rurais, e também
vestígios de ruralidade sobrevivem em meio à vida nas grandes cidades.
Estudos mais recentes valorizam a questão da interculturalidade principalmente
os cruzamentos entre cultura popular e mercado e tecnologias de comunicação como
traço marcante da vida urbana. Néstor García Canclini observa as mesclas resultantes da
cultura popular com as dinâmicas urbanas da modernidade-mundo como elemento
definidor do caráter cultural das grandes cidades latino-americanas. A América Latina
passou por um processo de urbanização muito vertiginosa ao longo do século XX. O
autor estima que no começo do século os países do continente tinham por volta de 10%
24
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano, I: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1996.
44
de população urbana, passando mais recentemente a concentrar por volta de 60 ou 70%
de suas populações nas cidades. De
sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais com culturas
tradicionais, locais e homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes
indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a uma trama
majoritariamente urbana (...), renovada por uma constante interação do local
com redes nacionais e transnacionais de comunicação.
25
Canclini identifica na abrangência dos meios de comunicação, principalmente
eletrônicos, o cerne da ideia da formação de uma esfera pública. A vida nas metrópoles
superpopulosas é definida por uma lógica principal: da organização para o consumo e a
“dramatização de signos de status”. Mas o habitante deve percebê-la como
fragmentada e isolante, já que um embotamento da capacidade de apreender a
cidade em sua totalidade. A rua como lugar de passagem, em meio a
congestionamentos de carros, as pessoas aceleram-se para cumprir compromissos, e
mesmo a diversão converte-se em prolongamento do trabalho. Essa cidade esvaziada
não oferece mais a liga suficiente para a constituição de identidades coletivas, e os
circuitos midiáticos adquirem mais relevância na formulação de sentidos para o espaço
do que propriamente os locais públicos de convivência.
26
Assim, para Canclini, refletir sobre a ideia de uma “cultura urbana” é pensar não
exatamente em uma substituição da vida urbana pelas tecnologias de comunicação, mas
em um “jogo de ecos”, em uma “circularidade do urbano com o comunicacional”. O
autor frisa que não se trata de uma perspectiva histórica linear em que as heranças são
substituídas pelos novos meios. Ficam reminiscências, e estas se misturam aos novos
dados da vida urbana, forjando novos significados. O autor analisa, por exemplo, a
presença dos monumentos públicos na Cidade do México e a relação que os moradores
estabelecem com eles. São oferecidos signos da história, do mercado, da política, mas os
lugares destinados a cada uma destas mensagens entram em simbiose na forma de
percebê-los e novos sentidos são tirados. A vida urbana transgride as ordens e
ressignifica, a cada momento, locais e objetos.
25
CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp,
2003. p. 285.
26
Ibidem. p. 289.
45
Na mesma linha, Jesús Martín-Barbero entende a urbanização latino-americana
como a mescla de três dinâmicas ditadas pelos movimentos por melhores condições de
vida, pela cultura do consumo e pelas novas tecnologias de comunicação. Ele enxerga a
vida urbana não como uma dinâmica que se apenas em um “espaço ocupado”, mas
também em um “espaço comunicacional”. Assim, a modernização urbana, marcada por
contradições, busca se regular por meio de um “paradigma informacional”, ou do fluxo,
“entendido como tráfego não-interrompido, interconexão transparente e circulação
constante de veículos, pessoas e informações”
27
.
Esse fluxo seria experimentado pelo cidadão nas cidades latino-americanas de,
pelo menos, três maneiras. A primeira, Martín-Barbero a chama de desespacialização, se
relaciona à desvalorização histórica da cidade, em prol da racionalização para o mercado
tecnologia e circulação o que provoca um grande sentimento de insegurança no
espaço urbano, que o autor descreve como uma “angústia cultural” e uma
“pauperização psíquica”. A segunda é o descentramento, que equivaleria à perda do
centro, não no sentido da degradação das regiões antigas, mas sim a uma proposta de
configurar a cidade como um circuito de redes, em que todos os lugares se
equivaleriam. Isso causaria o apagamento de espaços que serviam antes de locais de
sociabilidades, como as praças, e reduz a geografia urbana a avenidas retas e diagonais.
Uma terceira maneira seria a desurbanização, ou seja, a diminuição da cidade usufruída
pelos cidadãos, deixando em desuso “espaços públicos carregados de significados
durante muito tempo”
28
. A desurbanização também pode ser compreendida como o
processo de ruralização das cidades, envolvendo sentimentos e temporalidades
tipicamente rurais.
A formação de uma “opinião pública” em São Paulo
São Paulo, fins do Império. Uma cidade que, acredito, devia cheirar a terra. Mas a
esse cheiro aldeão, outros cheiros começavam a se mesclar, cheiros esses que
representavam o crescimento rápido, que desembarcou por aqui pelos caminhos da
27
MARTÍN-BARBERO, J. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São
Paulo: Loyola, 2004.p. 289.
28
Ibidem. pp. 291-292.
46
estrada de ferro. Nos jornais paulistanos, artigos e cartas de leitores, com regularidade,
comentavam ou reclamavam dos cheiros e outros incômodos, causados pelo despejo de
materiais fecais nas várzeas e ruas da cidade.
O Correio Paulistano, em edição de 1870, faz alarde dos “casos de tifo e febres
semelhantes” em função das “immundicies que infectam a cidade” e que chegam a ser
jogadas até mesmo “nas proprias bocas de lobo e sargetas das ruas”. Antes disso, em
1866, o satírico Cabrião havia estampado uma charge de Ângelo Agostini em que urubus
de casaca dirigiam-se ao Paço para “agradecer a conservação dos monturos na Varzea
do Carmo”.
No Diario de São Paulo, em 1873, um suposto grupo de leitores que assina como
“Muitos indignados” reclama dos despejos nas ruas e sugere o escoamento para as
várzeas. A Provincia de São Paulo publica em 1877 uma carta de um leitor que assina
como “Uma das victimas” ao chefe de polícia. Na mensagem, a denúncia de que os
despejos da ladeira do Porto Geral seriam obra de “certos indivíduos sem educação,
especialmente os criados dos hoteis proximos”.
A partir desses exemplos e outros mais, a antropóloga Fraya Frehse apresenta
como a noção de espaço público começa a se formar na São Paulo do século XIX, a partir
da constituição de uma “opinião pública” sobre os assuntos urbanos
29
. A autora
completa seu elenco de fontes com as atas da Câmera Municipal, relatórios dos
Presidentes da Província e as fotografias de Militão de Azevedo.
Conforme análise de Frehse, o adensamento da cidade naquele momento e uma
maior presença de pessoas na rua a convivência forçada com estranhos inauguram
uma espécie de moralidade pública. Na pauta dessa moralidade sobre a rua oitocentista
de São Paulo, a autora identifica, além dos despejos de dejetos, outros assuntos como
os banhos em logradouros públicos, o comércio ambulante, as criações de animais e
alimentos, além de alguns rituais festivos, como o entrudo.
um caso analisado por Frehse que exemplifica bem o debate nos jornais das
questões sobre a vida urbana. Em julho de 1889, ano da República, o jornal a A Provincia
de São Paulo colocou na primeira página de uma de suas edições uma notícia trivial, de
29
Os exemplos (Correio Paulistano, 18 mai 1870; Cabrião, 30 set. 1866; Diario de São Paulo, 16 dez 1873;
A Provincia de São Paulo, 18 jul. 1877 ) foram retirados de: FREHSE, F. O tempo das ruas: na São Paulo de
fins do Império. São Paulo: Edusp, 2005. pp. 95-152
47
cotidiano, redigida a partir de uma reclamação recebida. O texto dizia que uma “senhora
distinctissima”, ao embarcar em um bonde, acompanhada das filhas pequenas,
percebera que tinha perdido o dinheiro que havia trocado para as passagens, e ofereceu
então em pagamento uma nota de outro valor. O condutor irritado a teria insultado
“grosseiramente, esquecendo-se, de que se tratava de uma senhora”. O texto da
matéria mostrava indignação e pedia providências das autoridades.
No dia seguinte, o mesmo jornal volta ao episódio, mas dessa vez publicando uma
carta em que cinco signatários afirmavam ter presenciado, na condição de passageiros,
o ocorrido no bonde e que a senhora não teria sido destratada pelo condutor. Em
resposta, o jornal justifica-se argumentando que o “informante” da matéria, marido da
tal senhora, era “homem perfeitamente bem conceituado”, que relatara que a esposa
teria entrado em casa chorando, “sentida com os maus tratos que recebêra”. E encerra
com a posição da companhia, que teria suspendido o funcionário “até a averiguação do
facto”
30
.
No caso apresentado, não temos uma narrativa única do episódio, mas versões
contrastadas sobre o ocorrido. Curioso observar o posicionamento do jornal, que
assumiu a versão do marido da mulher e depois, frente à contestação dos leitores,
precisou justificar seu julgamento para isso, inclusive, revelando a fonte da matéria. Há
assim uma clara definição de campos do debate, modulando os discursos em base
polêmica
31
. Evidenciam-se também os limites do próprio debate. Pronunciaram-se por
meio dos textos publicados o marido, os cinco passageiros (que como observa Frehse
carregavam sobrenomes ilustres no contexto paulistano da época), o jornal e a
companhia. As vozes dos dois personagens mais diretamente envolvidos, a mulher e o
condutor, não aparecem de maneira expressa no embate.
Esses debates das questões urbanas no século XIX giravam em torno de duas
preocupações básicas higiene e decoro; expressos na reivindicação pela melhoria de
30
FREHSE, F. Op. Cit. pp. 21-23.
31
Eni Orlandi categoriza as formações discursivas conforme o grau de persuasão e de participação dos
interlocutores e do referente na formulação de uma mensagem: autoritário (grau máximo de persuasão,
com espaço muito reduzido de participação do receptor, uma direção interpretativa é imposta ao leitor);
polêmico (grau intermediário, estabelece o local da divergência, do debate, estrutura dialógica entre polos
interlocutores que tentam dominar o objeto presente) e lúdico (polissemia aberta, interlocutores
expostos à presença do referente, a enunciação incentiva a participação interpretativa do leitor,).
ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1996.
48
infraestrutura, pela regulação ou proibição de comportamentos e festas e em seu
cerne traziam concepções específicas sobre o espaço. A figura do transeunte começa a
assumir contornos mais politicamente definidos neste contexto e a documentação
consultada pela antropóloga guarda registros da difusão de algumas das vozes que se
colocavam na formação da esfera pública paulistana.
A ideia de espaço público começou então a se formar não apenas em função do
uso que ruas, largos e várzeas passavam a ter naquele momento, mas também por todo
um circuito comunicativo que dava vazão a algumas formas de conceber a cidade. A rua
tomada como “lugar residual” da casa local em que se podia despejar as sobras sujas
do espaço privado; ou onde “a qualquer hora do dia” banhavam-se “homens e moços
algumas vezes Evas em completa nudez”
32
confrontava-se nas páginas dos diários ou
nas atas oficiais com reivindicações por uma rua que permitisse a circulação saudável e
decente dos transeuntes.
Essa nova concepção de espaço urbano que começava a se delinear pode ser
também entendida a partir de uma dinâmica cultural inédita na cidade. Ernani Silva
Bruno observa que a partir das últimas três décadas dos oitocentos as manifestações
religiosas definidoras da vida cultural paulistana até então perdiam importância. A
população local passava a contar com locais de passeio e entretenimento, como parques
e clubes, e o aparecimento de sociedades recreativas, artísticas e literárias.
33
Ao longo do final do século XIX e começo do XX, teatros, salões e circos apareciam
por todo o centro e também em alguns bairros mais populosos, como o Brás e a Barra
Funda. Companhias e grupos dramáticos e musicais, a maioria de origem estrangeira,
começaram a se apresentar pela cidade, sendo os principais gêneros os dramalhões, as
comédias, as operetas, os shows de mágicas, de revista e de variedades. Embora a maior
parte do repertório fosse também estrangeira, surgia uma produção local em que a
cidade ganhava representação, como a do autor amador de teatro, Francisco Emílio
Opperman, conhecido como Chico Metralha, que ganhou alguma projeção local, e nos
32
A Provincia de São Paulo, 12 mai. 1888, apud FREHSE, F. Op. cit. p. 178.
33
BRUNO, E. S. História e tradições da cidade de São Paulo, v. III (Metrópole do Café; São Paulo de
Agora). São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo; Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
pp. 1215-1217.
49
anos 1870 escreveu a comédia A costureira, passada no Beco do Sapo
34
. Representações
da cidade ganhavam também espaço na pintura de artistas locais de relevo, como Pedro
Alexandrino e Almeida Júnior.
35
Nessa relação arte e cidade na época, pode-se citar a associação que aparecia
entre o universo artístico e a vida boêmia. Espaços como cafés, bares e cabarés podiam
contar com grande frequência de artistas e literatos. Vicente de Paula Araújo relata que,
ainda no finalzinho do século XIX, “um grupo limitado de boêmios resolveu fundar nesta
Capital um ponto de encontro nos moldes do famoso Chair Noir parisiense”. E fundaram
o “Cabaré do Sapo Morto”, cujo intuito era, entre “tournées de chopps”, “criar e divulgar
a cançoneta brasileira”.
36
Espaços de lazer e para atividade física começavam também a figurar na geografia
da vida pública da cidade no século XIX, como o velódromo construído na chácara de D.
Veridiana Prado (e inaugurado para corridas em 1893), na região da Consolação na
área que hoje fica entre a rua Nestor Pestana e a Praça Roosevelt. Alguns anos depois, o
velódromo passou também a apresentar outras modalidades: corridas a pé e a novidade
recém-trazida da Inglaterra, o futebol.
37
Ações modernizadoras
Havia nesse cenário urbano de São Paulo a partir do fim do Império uma brisa
de modernidade soprando ao fundo dessas novas práticas e dos debates públicos.
Aconteceram transformações notáveis da vida nas ruas, como o florescimento comercial
e a presença das mulheres que antes permaneciam reclusas ao ambiente doméstico. A
garantia dos espaços de circulação de gente e mercadorias, a exigência de obras
infraestruturais e regulação do uso das ruas por meio de códigos de posturas faziam
contraste com a indistinção entre o urbano e rural do vilarejo de taipas ou de um certo
desregramento boêmio do monótono burgo estudantil.
34
Ibidem. p. 1296.
35
Ibidem. p. 1311.
36
ARAÚJO, V. P. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo: Perspectiva, 1981. p. 22.
37
O velódromo foi fechado em 1915, quando foi desapropriado em função de obras de abertura para
abertura de ruas: REIS FILHO, N. G. São Paulo e outras cidades. São Paulo: Hucitec, 1994. pp. 69-77.
50
Mas quando se fala em modernidade brasileira é sempre preciso alguma
relativização do fenômeno internacional ao contexto local. Para Candido Malta Campos,
as vantagens da modernidade foram incorporadas sem mudanças estruturais, e
representaram “novas fontes de poder e prestígio para aquelas mesmas classes que
tendem a se fundir com os portadores das propostas modernizantes”
38
confirmando o
caráter excludente e desigual da sociedade brasileira.
Do ponto de vista urbanístico, podem, sim, serem observados impulsos
modernizantes em cidades brasileiras como a reforma Pereira Passos no Rio de Janeiro
ou dos melhoramentos de São Paulo mas que esbarrariam sempre nos interesses
fundiários e no liberalismo exacerbado. O processo de urbanização de São Paulo ligava-
se à presença cada vez mais constante de famílias da aristocracia cafeeira na capital,
“onde iriam constituir um modo de vida que exigia, entre outras coisas, um espaço
público que não os envergonhasse”.
39
Assim, aqueles anseios expressos nas páginas dos jornais paulistanos de fins do
Império vão se materializar, em parte, em ações modernizadoras de embelezamento e
higienização urbana, que tomaram corpo a partir das últimas décadas do século XIX.
O Código de Posturas municipais de 1886 trazia uma concepção clara de
civilidade: nos pavimentos térreos das construções ficavam proibidas portas, janelas e
cancelas que abrissem para o lado de fora, para evitar acidentes com transeuntes;
também eram vetados vasos e vidros quebrados em janelas viradas para rua; ficava
definida a obrigatoriedade da limpeza dos logradouros e o impedimento de lançamento
de materiais excretais em locais públicos; cavalos aos trotes, para a cavalaria em
serviço; punição ao vandalismo contra árvores; repressão a pedintes, golpistas e
vagabundos; regulação do uso de armas; organização do lazer; restrições ao barulho e à
urinação nas ruas; proibição de pichações e obscenidades. E ainda o artigo 66 que dizia
que “toda família que tiver sobre sua guarda algum louco ou furioso” deveria recolhê-lo
38
CAMPOS, C. M. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização. São Paulo: Senac, 2000. p. 28.
39
YÁZIGI, E. O mundo das calçadas: por uma política democrática de espaços públicos. São Paulo:
Humanitas FFLCH-USP/Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 81.
51
a um hospício, ou “conserva-lo em boa guarda, a fim de não incomodar o público e seus
vizinhos”
40
.
O mesmo código definia também que a construção de cortiços ficava proibida na
zona urbana de São Paulo. Esse tipo de moradia não deixou, com isso, de existir, apenas
foi sendo empurrada para regiões em que a fiscalização oficial efetivamente não
chegava. Conforme analisa Raquel Rolnik, desde as posturas de 1886, há um duplo
movimento a definir a legislação urbanística paulistana: “por um lado, garantir a
‘proteção’ de determinados espaços contra a invasão de usos e intensidades
degradantes, por outro, definir uma fronteira, para além da qual estes mesmos usos
seriam tolerados”.
41
assim uma lógica de segregação marcada na ocupação espacial de São Paulo e,
dentro desta lógica, se assentam diversos projetos urbanos. Como diz Rolnik, linhas
imaginárias foram definindo muros da cidade: de um lado uma cidade com aspirações
modernas, em que o espaço público é debatido e regrado; e o outro lado, suburbano
(e/ou submundano), onde por força da própria lei a legislação não legisla, são criados
espaços de exceção que buscam camuflar as contradições do processo. Ecléa Bosi, ao
analisar as falas de seus depoentes, antigos moradores de São Paulo, observou que eles
tinham suas biografias marcadas por constantes mudanças de endereço, o que a
permitiu entender que “o paulistano tornou-se um migrante urbano, empurrado pela
especulação imobiliária de um lugar para outro”
42
. Reflexo direito das políticas urbanas
de veio segregacionista.
Então, quando se fala nos debates sobre os melhoramentos de São Paulo no
começo do século XX, é preciso ter em mente que se tratava ali de questões ligadas a
somente uma parte da cidade. O fenômeno da Belle Époque, que buscava dar contornos
de cidade moderna européia à “metrópole do café”, não caracterizava São Paulo como
um todo, mas apenas algumas áreas do Centro.
40
Ibidem p. 91.
41
ROLNIK, R. “Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936)”. In: SOUZA, M. A.
... [et al.] (orgs.). Metrópole e globalização: conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo: CEDESP, 1999.
p. 103
42
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê, 2003. p. 76.
52
O conjunto de fotografias do suíço Guilherme Gaensly
43
, produzido nas primeiras
décadas do século XX, mostra-nos algumas dessas feições centrais de uma elegante
capital paulista. Palacetes com jardins e pátios nos Campos Elíseos, Higienópolis e na
avenida Paulista. Pelas ruas e largos 15 de Novembro, Direita, São Bento, Florêncio de
Abreu, Líbero Badaró... , o ordenamento visual de figuras que se repetem. Calçamento
com jeito de novo e ruas asseadas. Carroças e carruagens, que aparecem nas fotos mais
antigas, sem conotar contraste social. Altos postes de eletricidade com fios, trilhos,
bondes e, nas imagens mais recentes do fotógrafo, automóveis: símbolos da tecnologia
tomando o espaço público. Predinhos elegantes, às vezes, alguma casinha simpática.
Lojas, hotéis, restaurantes, cafés: vitrines, letreiros e toldinhos tudo em harmonia com
as calçadas. Grandes construções: Museu do Ipiranga, Estação da Luz, Teatro Municipal.
Aprazíveis parques e praças ajardinadas. Rowing no rio Tietê. E gente: cavalheiros
(muitos), algumas damas e, eventualmente, crianças. Ao que parecem, todos bem
vestidos. Agente de polícia e garoto jornaleiro: não exatamente personagens, mas
funções da cidade em modernização. Em uma panorâmica, vemos os jardins do Parque
do Anhangabaú, viaduto do Chá, o alto e eclético edifício Sampaio Moreira e os
imponentes palacetes Prates um dos conjuntos urbanos mais espetaculares que a
cidade já teve, e figura das mais recorrentes nos postais da época.
Essas imagens, boa parte produzida para a confecção de cartões postais ou sob
encomendas oficiais ou de empresas, tinham um claro recorte geográfico (centro e
bairros elegantes) e de viés (cultuar os aspectos da modernização de São Paulo). Elas
valorizavam, acima de tudo, o componente estético sobre o espaço urbano.
A ideia de uma cidade civilizada e salubre estava presente em um conjunto de
obras de saneamento e de embelezamento do espaço público, incluindo principalmente
a construção de praças e parques e a arborização de ruas, desde o final do século XIX. A
região da Luz ganhou, em 1901, a nova estação, juntamente o jardim foi remodelado e a
avenida Tiradentes, arborizada. Na mesma época, houve também a remodelação do
Largo do Arouche, o ajardinamento da Praça da República e a implantação do grande
43
Sobre Gaensly ver: KOSSOY, B. São Paulo, 1900. São Paulo: CBPO/Kosmos, 1988.
53
jardim em frente ao Museu do Ipiranga. E árvores, muitas árvores, por ruas e avenidas
centrais.
44
Alguns anos depois, o impulso de embelezamento urbano de São Paulo vai ao seu
ápice com o projeto do então diretor de obras municipais, o engenheiro Victor Freire,
com o arquiteto francês Joseph-Antoine Bouvard, que havia trabalhado nos
melhoramentos de Buenos Aires e em várias obras em Paris. O plano mostrava a
preocupação viária, com avenidas que partiam do centro, mas que deveriam respeitar os
contornos do relevo natural dos terrenos. Harmonizava a criação de espaços livres e
centros de vegetação, emoldurados por edifícios. Como observam Somekh e Campos,
“Bouvard procura integrar princípios paisagísticos com interesses imobiliários: ‘nem
tudo belvedere, nem tudo palácios’”
45
.
Apesar do poder público tomar a frente dos projetos de embelezamento, os
financiamentos vinham da iniciativa privada, conforme informa Hugo Segawa, o que
obrigatoriamente orientava as proposta de intervenção no espaço urbano conforme os
interesses empresariais lembrando que companhias de capital estrangeiro dominavam
os serviços públicos municipais. “Esta situação tornar-se-ia o paradigma das limitações
do poder público e da atuação do empreendimento privado na evolução da cidade de
São Paulo até hoje”.
46
Havia cada vez mais a delimitação da região mais nobre da cidade que se iniciava
no sofisticado bairro dos Campos Elíseos o Champs Elysées local com seus palacetes.
“Eu tinha razão de sentir que essa região era o Centro do Universo”, comenta Jorge
Americano sobre a importância simbólica dos Campos Elíseos, pelos idos de 1908
47
. É
o ponto de partida para constituir o que Rolnik
48
chama de uma “centralidade da elite da
cidade”, na linha do setor sudoeste Campos Elíseos, Higienópolis, Avenida Paulista e,
mais tarde, o Jardim América com os loteamentos da Companhia City.
44
ACKEL, L.; CAMPOS, C. M. “Antecedentes: a modernização de São Paulo”. In: SOMEKH, N.; CAMPOS, C.
M. (0rgs). A cidade não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo:
Mackpesquisa, 2002. P. 26
45
SOMEKH, N.; CAMPOS, C. M. “Freire e Bouvard: a cidade européia”. In: _____ .(Orgs). A cidade não
pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpesquisa, 2002.p. 40.
46
SEGAWA, H. Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX
ao XX. São Paulo: Ateliê, 2004. p.61.
47
AMERICANO, J. São Paulo naquele tempo (1895-1915).o Paulo: Carrenho/Narrativa Um/Carbono 14,
2004. p. 133.
48
ROLNIK, R. Op. cit. p. 104.
54
Esses bairros e regiões nasceram da ideia de uma “periferia saudável” para a
aristocracia/burguesia abastada e a nascente classe média alta: os Campos Elíseos foram
abertos entre 1879 e 1881, por Frederico Glette e Victor Nothmann, e se caracterizou
como o primeiro bairro “planejado” de São Paulo, destinado à classe dominante que
começava a deixar a região do triângulo
49
. A avenida Paulista teve inauguração em 1891,
empreendimento de Joaquim Eugênio de Lima, com uma inédita concepção de espaço
público aprazível e sofisticado. O bairro de Higienópolis é de 1898 e seu nome
escancara a lógica higienista por trás da concepção desse espaço. A Companhia City,
criada em 1912, foi a mais importante urbanizadora de São Paulo nesse período. Os
loteamentos comercializados pela companhia traziam a concepção das cidades-jardim
(“O ar livre do campo e todo o conforto da cidade”, dizia um anúncio). A Companhia
City foi responsável pela urbanização de bairros como Jardim América, Pacaembu,
Perdizes e Alto da Lapa.
50
As residências da burguesia cafeeira assumiam também um importante papel na
configuração de uma esfera pública literária na cidade. Seja nas recepções na chácara de
D. Veridiana Prado em Higienópolis, ou na Vila Kyrial, do senador Freitas Vale, na Vila
Mariana, ou em vários outros palacetes, senhoras da sociedade elegante, políticos e
autoridades, artistas, jornalistas discutiam literatura e artes, entre outros assuntos.
51
Recorrendo mais uma vez a Gaensly, vemos em uma das muitas fotos que fez da
sofisticada rua 15 de Novembro, bem à frente da imagem, um cavaleiro com jeito de
dândi a se exibir. Terno bem cortado, panamá à cabeça e uma bengala que lhe confere
ao andar aquele ar blasé tão típico de urbanos modernos, conforme descritos por
Simmel. O corpo humano é parte integrante da visualidade do espaço urbano, e grande
fonte de sentido para este. As ruas da Belle Époque paulistana encheram-se. Pequenas
multidões. “Ser moderno” implicava ação, segundo Sevcenko, e a ação estava na rua
assim, “todos para rua!”. “Estar na rua” e “divertir-se” entrelaçavam-se. E as atividades
se multiplicavam:
49
ACKEL, L.; CAMPOS, C. M. Op. cit. p. 17.
50
SEGAWA, H. Op. cit. p. 127.
51
RAGO, M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-
1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. pp. 70-73
55
esportes, danças, bebedeiras, tóxicos, estimulantes, competições, cinemas, shopping,
desfiles de moda, chás, confeitarias, cervejarias, passeios, excursões, viagens,
treinamentos, condicionamentos, corridas rasas, de fundo, de cavalos, de bicicleta,
de motocicletas, de carros, de avião, tiros-de-guerra, marchas, acampamentos,
manobras, parques de diversões, boliches, patinação, passeios e corridas de barco,
natação, saltos ornamentais, massagens, saunas, ginástica sueca, ginástica olímpica,
ginástica coordenada com centenas de figurantes nos estádios, antes dos jogos e nas
principais praças da cidade, toda semana.
52
Na década de 1920, afirma Nicolau Sevcenko, a relação dos corpos com a cidade
se transformou radicalmente, um certo desbunde hedonista a definir a vivência do
indivíduo moderno na metrópole. A valorização dos esportes e outras atividades físicas
como a dança vem na relação direta dessa presença, cada vez intensa e cheia de
significados, do corpo nas ruas. Também se identificam com esse processo a maciça
participação feminina no espaço público e as grandes transformações nos trajes,
acessórios e penteados. Lugar para ver e ser visto.
Podemos identificar como uma das principais características do espaço público da
elite paulistana nessa época a espetacularização. Até mesmo misérias e tragédias “dos
outros” despertavam o voyerismo e se transformavam em entretenimento. Sevcenko
apresenta o caso das grandes enchentes de 1919, na congruência dos rios Tamanduateí
e Tietê região de aluguéis baratos, densamente povoada. Relatos de cronistas nos
jornais contam que uma multidão disputava entre si lugar na Ponte Grande para assistir,
em clima de convescote, o “espetáculo” das águas barrentas invadindo os casebres
pobres.
53
Neste ambiente propício ao espetáculo, as sonoridades pelo jeito tiveram também
papel importante na constituição da ideia de metrópole nos anos 20. Sevcenko observa,
ao analisar a Semana de 22, que apesar de tudo que o movimento representou na
transformação da literatura e das artes plásticas brasileiras, as grandes sensações de
público do festival vieram da sica: seja pelo virtuosismo de Guiomar Novaes, ou
especialmente pela originalidade de Heitor Villa-Lobos. Segundo o autor, Villa-Lobos fora
52
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 33.
53
Ibidem. pp. 29-30.
56
quem de fato “conseguira um público policlassista. Empolgara a cena pública. Ele era a
própria plataforma viva da nova arte”.
54
Podemos completar ainda essa estetização de São Paulo recorrendo ao filme São
Paulo, a sinfonia da metrópole, de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig, produzido e
em 1929. O documentário silencioso exaltava a metrópole, em tom propagandístico e
ufanista, por meio dos sons imaginários da urbe: motores, campainhas, sirenes, passos,
marteladas, burburinhos, cliques, claps, tic-tacs, bléns, dings, bruns... Tudo orquestrado
por meio de uma narrativa visual que queria se aproximar das propostas estéticas das
vanguardas européias: ângulos inusuais, closes, enquadramentos que decepam objetos,
colagens, sobreposições, solarizações, cortes rápidos... Referências futuristas, dadaístas,
construtivistas, surrealistas...
Nesse processo de constituição de uma cidade-espetáculo, estabeleceu-se um jogo
de ecos entre as ruas e a imprensa. Além dos jornais diários, houve um pipocar de títulos
de publicações, principalmente, de perfil cultural e de variedades no período da Belle
Époque. Heloísa de Faria Cruz
55
analisa que a partir da última década do século XIX
observa-se a formação de uma cultura letrada e tipográfica na cidade com a
disseminação da publicidade e do jornalismo, por meio de uma grande variedade de
formatos cartazes, folhetos, embalagens de produtos, estampas, cartões postais,
álbuns, almanaques, jornais, folhas, revistas, opúsculos, brochuras, livros etc.
Se nos jornais diários os debates sobre o espaço público se tratavam desde os
fins do Império, nas revistas ilustradas e imprensa cultural a visualidade de um projeto
de cidade que se queria moderna ganhava forma. A explosão de títulos propiciou a
formação de diversos circuitos de difusão “da donzela ao operário”, como diz Heloísa
Cruz o que representaria a “popularização de uma cultura letrada”
56
.
No circuito da burguesia, as revistas ilustradas mais refinadas, como Vida Moderna
e A Cigarra, com farto uso de fotografias e recursos gráficos exibiram à exaustão os
melhoramentos da cidade, estabelecimentos comerciais da moda, o corso do triângulo e
da avenida Paulista, a perambulação exibicionista de moças e rapazes pelas ruas (bem
54
Ibidem. p. 273.
55
CRUZ, H. F. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana 1890-1915. São Paulo:
Educ/Fapesp/Arquivo Estado/Imprensa Oficial, 2000.
56
Ibidem. pp. 135-136.
57
como a difusão de termos e expressões de línguas estrangeiras para a designação de
novas práticas urbanas, como footing ou trottoir), eventos artísticos, competições
esportivas, inaugurações, comemorações, novas tecnologias etc. A própria
especialização temática de alguns títulos refletiam esses novos modos de ser no espaço
da cidade: esportes, cinema, teatro, artes plásticas, moda, automobilismo... E na
preocupação de aplainar as exacerbações comportamentais da metrópole, havia
também publicações de tom mais moralizante como algumas das revistas femininas,
educacionais e religiosas.
57
O consumo como modo de vida urbano começa se caracterizar mais claramente
em São Paulo, a partir dos anos 20. Essa congruência entre o citadino e o consumidor se
pela significação emanada das mercadorias, significação essa construída do contato
com espaço físico de lojas, magazines e cafés juntamente com a publicidade espalhada
por revistas e pelas paredes, placas e vitrines na cidade. Marcia Padilha analisa o papel
da publicidade como um dos elementos que constituíam a vida urbana em São Paulo da
década de 1920. Ela afirma que os anúncios publicitários da época somavam-se aos
esforços modernizantes das elites, “apresentavam imagens que, embora não
correspondessem imediatamente ao espaço no qual circulavam, correspondiam às
expectativas correntes sobre a organização da cidade”
58
.
Do outro lado da cidade-espetáculo, estava a São Paulo varrida para debaixo do
tapete. Era uma metrópole vista como suja, doente, feia, vadia e pervertida; alvo dos
discursos higienistas que nortearam boa parte das intervenções urbanas em grandes
cidades brasileiras.
Desfolhar esse “lado B” de São Paulo é buscar a diversidade da metrópole, outras
cores, outros tempos. E outros sons. No Brás, bairro “do outro lado do Tamanduateí”,
chaminés fuliginosas misturavam-se às casas dos operários nas “vilas higiênicas” e aos
cortiços, focos da miséria incômoda. Imagino burburinhos cheios de sotaque
57
Sobre a variedade de títulos, bem como da tipologia temática e de blico ver: CRUZ, H. F. (org.). São
Paulo em revista: catálogo de publicações da imprensa cultural e de variedade paulistana 1870-1930. São
Paulo: Arquivo do Estado, 1997.; e MARTINS, A.L. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em
tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Fapesp/Edusp/Imprensa Oficial, 2001.
58
PADILHA, M. A cidade como espetáculo: publicidade e vida urbana na São Paulo dos anos 20: São Paulo:
Annablume, 2001. p. 99.
58
principalmente italiano e espanhol mesclando-se nas ruas do Brás aos sons repetitivos
e brutais de máquinas, entrecortados por apitos, sirenes e roncar de motores. Os sons
do Brás talvez não exibissem a cadência vanguardista dos sons do centro, como sugere o
filme silencioso de Kemeny e Lustig. Sylvio Floreal fala da “lufa-lufa” no bairro, que
“retroa, revira, sarabanda, controla e pinoteia, perpassam, lascando o barulho,
chicoteando o ar, berros, gritos, vozes, assobios, numa debandada estridente que
cloroformiza os ouvidos e verruma os nervos”
59
.
A crônica de Floreal, em Ronda da meia-noite, livro publicado originalmente em
1925, pode nos servir como guia inicial pelo outro lado da São Paulo do começo do
século XX. Sobre a distinção entre as “duas cidades”, o autor explicita sua visão de
observador: “se os bairros aristocráticos são interessantes na fachada, no conjunto, na
epiderme, as suburras, os bairros pobres onde se acoita a plebe diogênica das fábricas,
são interessantes nas minúcias, nas reentrâncias e na alma”.
60
Com alguns excessos estilísticos e tom moralista, o cronista promove em sua obra
um passeio por espaços e o contato com vivências que não integravam a pauta dos
melhoramentos da cidade-espetáculo: bairro operário, vizinhanças de imigrantes
japoneses, presídio, hospício, albergue, casas de prostituição, pensão, áreas ocupadas
por negros... Da cidade embelezada, da aristocracia sofisticada e da suposta “civilidade”,
o cronista busca os desvios por exemplo, a referência ao Viaduto do Chá como “o
suicidouro construído pela municipalidade”, ou da caracterização dos coronéis como
“um tipo lastimável que oscila entre o ingênuo e o devasso, esmaltado de sem-
vergonhice por dentro e por fora”
61
. Universo de grande deformação moral, a São Paulo
de Floreal desvirtuava homens e mulheres, fazendeiros e pobres, brasileiros e
imigrantes.
No entanto, a relação entre as camadas populares excluídas com a cidade pode
receber outras leituras. Margareth Rago analisa que a inserção de novas práticas sexuais
extraconjugais na sociedade paulistana, bem como o processo de constituição de uma
visualidade pública da mulher, permitiu a formação de uma cultura erótica e
59
FLOREAL, S. Ronda da meia-noite. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 27.
60
Ibidem. p. 58.
61
FLOREAL, S. Op cit. p. 38.
59
pornográfica na cidade no período da Belle Èpoque. A autora observa que uma “rede
subterrânea de sociabilidade” se constituía “em torno da prostituição, nos bordéis,
cabarés, pensões, teatros, restaurantes, e que possibilitava a emergência de múltiplas
formas de manifestação cultural”.
62
Maria Célia Paoli e Adriano Duarte afirmam que, sem negar o caráter predatório
dos processos de exclusão em São Paulo, cada pedaço da cidade “acolheu a discussão e
ação coletivas em certos momentos nos quais a vida local foi ameaçada pela voracidade
acelerada da tensa modernização da Cidade e dos desencontros sucessivos das políticas
urbanas adotadas”
63
. Poderiam ser observados, assim, processos de aparecimento e
apagamento públicos que incidiriam diretamente na formação de múltiplas redes de
sociabilidade e, logo, de relação com a cidade.
Alguns exemplos analisados pelos autores mostram processos por meio dos quais
invisíveis sociais de São Paulo ganham visibilidade na esfera pública. Em um desses
exemplos, a greve de 1917, em especial o cortejo fúnebre do sapateiro espanhol
assassinado, teria sido um dos marcos do processo de aparecimento público da classe
operária paulistana.
Em 9 de junho de 1917, a Força Pública reprimira um piquete de operários em
frente a uma tecelagem, de propriedade da família Matarazzo, o que resultou na morte
de José Ineguez Martinez, de 21 anos. As organizações proletárias transformaram o
funeral do operário em um evento simbólico contra a violência policial. Um grande
cortejo, que se estima ter chegado a 10 mil pessoas, muitas carregando bandeiras
vermelhas, foi formado desde o Brás e cruzou boa parte do centro da cidade, seguindo
para a região da avenida Paulista, onde viviam as famílias dos grandes industriais e
autoridades públicas da época.
O funeral teve grande repercussão nos meios de comunicação de massa e na
vivência da cidade. Os órgãos de impressa deram cobertura considerável ao evento. A
prestigiosa revista A Cigarra, por exemplo, publicou uma reportagem fotográfica do
cortejo fúnebre. Depois da morte do sapateiro, a greve ganhou mais corpo, e agitações
62
RAGO, M. Op. cit. p. 111.
63
PAOLI, M. C. DUARTE, A. São Paulo no plural: espaço público e redes de sociabilidade. In: PORTA, Paula
(org.). História da Cidade de São Paulo, v. 3: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e
Terra, 2004. p. 53.
60
como piquetes, comício e saques tomavam as ruas; o trajeto de alguns bondes chegou
a ser mudado por grevistas. No centro e nos bairros ricos, medo era sentido, portas e
janelas, fechadas. Relatos dão conta de que garotos atiravam pedras em lampiões
públicos, deixando algumas ruas às escuras. Nos bairros operários, atividades
organizadas pelas Ligas se tornaram mais frequentes, ocuparam espaços e ganharam
maior engajamento popular
A partir de então, aquele evento, que “teatralizou agonisticamente seu
aparecimento público [do sapateiro e, por conseqüência, de toda uma classe] diante da
Cidade, que insistia em ignorá-lo”
64
, deu visibilidade a uma cultura que já vinha se
formando havia algum tempo e vivia encoberta pelo manto da civilidade e da elegância
da cultura dominante. Os autores lembram que “nas ruas e vielas do Bexiga, nos
botequins da Barra Funda, o teatro, o cinema, a ópera são atividades eminentemente
populares”
65
, promovidos principalmente pelas ligas operárias. Desencadeia-se, assim,
um fenômeno da maior importância: “a cultura popular se infiltrava pela cidade”
66
, de
forma visível e articulada.
Da análise de conflitos como esse, do funeral do sapateiro e a inserção da cultura
anarco-sindicalista na cidade, e outros, como das territorialidades dos negros na cidade
entre as décadas de 1930 e 1950, Paoli e Duarte identificam que “os dramas e as
solidariedades cotidianas” das classes populares, vividos no universo do trabalho ou na
rotina dos bairros, constituem elementos fundamentais para se pensar a formação de
uma “’esfera pública plebéia’, na qual se protesta e se negociam espaços, constitui-se
um saber específico, forja-se a auto-estima, configura-se uma cultura política que
estabelece uma relação singular entre o público e o privado”.
67
A cultura anarquista fundou-se sobre a ideia de uma ação de “agitação nas ruas”
para obter visibilidade às lutas sociais. Como descreve Raquel Rolnik, os movimentos
operários nascidos nos becos e pátios dos bairros se convergiram para os espaços
64
PAOLI, M. C.; DUARTE, A. Op. cit. p. 56.
65
Ibidem, p. 57.
66
PAOLI, M. C.; DUARTE, A. Op. cit. p. 58.
67
Ibidem, p. 99.
61
públicos, “sair às ruas, paralisando e modificando a ordem reinante na cidade, era a
estratégia de disseminação e articulação dos setores oprimidos e explorados”
68
.
Além das manifestações políticas, a cultura popular também ocupava os espaços
públicos dos bairros operários por meio das atividades de lazer e artísticas. O
memorialista Jacob Penteado nos descreve o Belenzinho de sua infância, por volta de
1910, mesclando episódios do cotidiano fabril com brincadeiras de garotos nas ruas,
serestas, o samba dos negros do Treze de Maio, mergulhos no rio Tietê, o jogo do bicho,
casamentos, vendedores ambulantes, parteiras, festejos, futebol de várzea, o carnaval
do Brás, apresentações teatrais dos diletantes, espetáculos de variedades, vedetas no
Cinema Belém, circos e exibições cinematográficas.
69
Um curioso depoimento recolhido por Ecléa Bosi mostra que até mesmo algumas
das mazelas da vida nos bairros muitas vezes eram subvertidas ou ressignificadas no
cotidiano popular. D. Alice, na época costureira que vivia com a mãe em um quartinho
alugado no Bom Retiro, conta:
Quando chovia muito, a baixada do Bom Retiro ficava a Veneza brasileira. A enchente
tomava conta de tudo. As famílias todas tinham barco e, durante a noite, passeavam
nas ruas inundadas, com iluminação nas barcas, cantando e fazendo serenata. Para
nós, os moços, aquilo era uma alegria, quando o Tietê transbordava.
70
O movimento das artes na cidade encontrou terreno profícuo nas atividades
desenvolvidas pelas associações operárias e estrangeiras dos bairros de cercania.
Antonio Candido, referindo-se ao trabalho de Maria Rita Galvão, observa que enquanto
a burguesia paulistana promovia uma renovação nos campos das artes plásticas, da
música e da literatura, em torno da Semana de 22, “a pequena-burguesia e o
proletariado faziam também a sua, produzindo uma espécie de recalcada cultura dos
bairros nos domínios então menos cotados do teatro e do cinema”
71
.
Galvão mostra como a cultura teatral se implantou, através da presença imigrante,
nos bairros operários. Companhias de vasto repertório, ligadas ás associações culturais
operárias, disseminaram o teatro e, depois, o cinema como atividades recreativas e de
68
ROLNIK, R. “São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política”. In: KOWARICK, L. (org.). As lutas
e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. pp. 87-88.
69
PENTEADO, J. Belènzinho, 1910: retrato de uma época. São Paulo: Carrenho/Narrativa Um, 2003.
70
BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 108.
71
CANDIDO, A. “Feitos da burguesia”. In: ______. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. pp. 95-96.
62
orientação política na vivência dos habitantes dessas regiões da cidade
72
. Fora da esfera
dos grupos anarquistas, vale notar que nesses bairros existiram importantes casas de
teatro e cinema, como o Politeama e o Colombo no Brás. Foi no Politeama do Brás que,
em abril de 1923, Villa-Lobos apresentou-se, como parte de sua segunda temporada na
cidade, tendo uma grande acolhida popular, o que fizera um crítico do jornal O Estado
de S. Paulo comentar: “o Brás mais uma vez dará lições aos bairros aristocráticos”
73
.
Indício da aparição dos operários e seus bairros de arrabalde na esfera pública da
cidade.
Sobre a presença da cultura popular na imprensa, Heloísa Cruz cita que algumas
publicações de perfil de variedades mas que poderíamos dizer de “segunda linha” se
comparada em termos técnicos aos títulos mais sofisticados da época faziam
referências “a bailes em associações recreativas da Barra Funda, do Brás, aos pic-nics e
festivais no Parque da Luz, aos grupos de teatro das fábricas e dos bairros, aos times de
várzea, às reivindicações dos bairros e do movimento operário”. Isso, segundo a autora,
mostrava “a disseminação de novas formas de vivência e de pleitos sobre a cidade para
além dos círculos das elites”, e articulavam “como personagens e leitores potenciais as
camadas populares da população”.
74
Assim, além dos espaços culturais e de convivência nos bairros, o florescimento
uma imprensa voltada ao universo operário e popular foi fundamental no processo de
relacionamento de populações excluídas com o espaço público da metrópole. Por um
lado havia a imprensa operária propriamente dita que estabeleceu uma rede de
comunicação articulada e teve papel determinante na politização de trabalhadores da
época. Entre os vários jornais que compunham o periodismo operário, Ana Luiza Martins
localizou duas revistas, formato esse que pressupunha o direcionamento maior ao
público feminino, o que segundo a autora fica claro em pelo menos um desses títulos a
revista Anima e Vita.
75
A esse universo impresso que desenhava a participação popular na cultura da
cidade, poderíamos acrescentar os jornais de bairro, a imprensa imigrante e as
72
GALVÃO, M. R. E. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975. pp. 29-35
73
Apud SEVCENKO, N. Op.cit. p. 273.
74
CRUZ, H. F. São Paulo em papel e tinta. p. 143.
75
MARTINS, A. L. Op. cit. p. 388; 392-393.
63
chamadas folhas e revistas domingueiras. Heloísa Cruz nota que muitas vezes essas
categorias operárias, de bairro, imigrante e domingueira mesclavam-se de maneira
indistinta
76
. O que não quer dizer que todas essas publicações mantinham um tom
político mais contestatório, alguns jornais de bairro e de imigrantes eram bem
conservadores, assim como muitas folhas domingueiras afastavam-se completamente
de qualquer engajamento político um pouco mais eloquente.
Em especial, nessas folhas e revistas que saíam aos domingos, a vivência cotidiana
das classes populares era fartamente representada e articulada, “nelas, a imprensa
mistura-se muito mais ao dia-a-dia dos habitantes da Paulicéia, dando visibilidade aos
novos hábitos das elites que nas primeiras décadas expandem-se para outros setores da
população”.
77
Também dentro do espectro de uma imprensa que expressava e articulava
questões de identidade e/ou de luta política de grupos excluídos na cidade, pode-se
destacar o aparecimento da imprensa negra, desde o final do século XIX. Havia ainda
casos de busca por visibilidade social até mesmo em espaços de reclusão mais drástica,
como na cadeia pública, onde circulou o jornal manuscrito A Tesoura (do qual se
conhece apenas um único exemplar de 1900), redigido por presos.
78
O aparecimento público de trabalhadores, comunidades étnicas e, em menor
escala, de um certo tipo de lúmpen forçou cada vez mais intervenções oficiais no espaço
público e privado desses grupos. As forças policiais desde o final do século XIX atuavam
na cidade no propósito de manutenção da ordem pública, tanto que os principais tipos
de delitos registrados, entre fim dos oitocentos e a primeira década do século XX, eram
a vadiagem, a desordem e a embriaguez. As populações mais visadas eram os negros e
estrangeiros. O uso da polícia para manter a segregação urbana tornou-se cada vez mais
intenso, chegando ao Estado Novo a realizar vigilância constante de grupos
considerados subversivos, como estrangeiros e supostos comunistas.
79
Além da vigilância e repressão policial, outras formas de intervenção oficial nas
áreas mais pobres da cidade aconteceram no intuito de aumentar o controle sobre
76
CRUZ, H. F. São Paulo em papel e tinta. p. 117
77
Ibidem. p. 94.
78
Ibidem. p. 129.
79
CALDEIRA, T. P. R. Op. cit. pp. 145-147.
64
aquelas populações. Uma das mais acionadas, principalmente, no Estado Novo teria sido
o programa de assistencialismo social.
A racionalização da cidade
Claude Lévi-Strauss, que viveu em São Paulo na segunda metade da década de
1930, como integrante da missão francesa de professores contratados pela recém-criada
Universidade de São Paulo, descreve a cidade como indômita ao seu olhar europeu,
marcada pela convivência de contrastes: gado e automóveis, chácaras e avenidas em
construção, arquitetura de ornamentação pretensiosa realizada com materiais pobres...
Tensões entre a ruralidade e o urbano, a modernização e a decrepitude precoce. De
tudo isso, segundo o antropólogo, resultaria “uma sensação de irrealidade, como se
tudo aquilo não fosse uma cidade, mas um simulacro de construções edificadas às
pressas para atender a uma filmagem cinematográfica ou a uma representação
teatral”.
80
Nas décadas de 1930 e 1940, várias ações oficiais sobre a cidade e seus moradores
tiveram o intuito de aplainar a visualidade urbana sob os imperativos da ordem pública e
do progresso econômico. Os cortiços tornaram-se o principal alvo das intervenções
urbanas em São Paulo. E, conforme Adriano Duarte, no período do Estado Novo, foi
através da assistência social que o poder público voltou os olhos “para as vivências
cotidianas no cortiço”, percebendo que ali estava “a possibilidade de construir o
cidadão, adequando-o às necessidades da nova ordem política e econômica".
81
Relatórios de assistentes sociais da época chegavam a apresentar conclusões
como a de que o cortiço é a realização de uma “sociabilidade típica dos pobres”, que
estes não teriam apego a casa e uma espécie de necessidade de convivência excessiva
com o coletivo e com a rua. Assim, observa Duarte, no discurso oficial, o cortiço não se
configuraria como um problema de falência ou ausência de políticas blicas de
habitação, mas “uma opção cultural dos trabalhadores pobres”. E continua: “para a
assistente social, mais do que as casas, são seus moradores que precisam de reforma,
80
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 93.
81
DUARTE, A. L. Cidadania e exclusão: Brasil 1937-1945. Florianópolis: UFSC, 1999. p. 61.
65
porque são desordeiros, imundos e vivem uma insalubridade mais moral do que física”
82
.
O papel do Estado seria então o de reconduzir o pobre à esfera privada, mas com isso
transformando o âmbito da vivência doméstica dos trabalhadores em política pública,
provocando um esvaziamento da própria esfera pública.
Margareth Rago assinala que os espaços ocupados por práticas marginais na
cidade vinham desde a virada do século sendo empurrados para a periferia, mas de
maneira não muito planejada. E é na década de 1940 que o confinamento do submundo
ganha uma geografia mais racionalizada a zona de prostituição, por exemplo, fica
restrita ao bairro do Bom Retiro, nas proximidades das estações ferroviárias da
Sorocabana e da Santos-Jundiaí
83
. Na mesma época, os espaços de lazer da população
negra no centro da cidade eram alvos de ão da polícia, que acabava sistematicamente
com aglomerações e ordenava o fechamento de salões de dança, até as organizações
negras conseguirem um acordo com as autoridades que restringiram o espaço da
sociabilidade negra à rua Direita, e mesmo assim sob vigilância constante.
84
E as ruas da cidade que se vislumbrava a partir daí eram espaços que se
esvaziariam de outros sentidos oficiais que não o da circulação de gente e mercadorias
para gerar o progresso. Nesse intuito, foi nessa época realizado o grande projeto
urbanístico que definiria o novo traçado da metrópole, orientado pelo crescimento
industrial. Trata-se do Plano de Avenidas, do engenheiro e depois prefeito Prestes Maia.
Em elaboração desde a década de 1920, o plano foi implantado propriamente na gestão
de seu autor a partir de 1938. Consistia basicamente em um grande projeto viário que
pretendia a expansão do centro, criando um perímetro de irradiação, formado por rings,
com funções urbanas específicas e cortadas por artérias radiais.
O projeto iniciou o processo de descentralização da cidade, distribuindo a vida
comercial, e abriu caminho para a constituição de periferias cada vez mais longínquas,
que separariam o trabalhador do local de trabalho. Na década de 1940, nota-se, por
exemplo, um esvaziamento habitacional dos bairros operários tradicionais.
82
Ibidem. p. 64
83
RAGO, M. Op. cit. p. 101.
84
PAOLI, M.C.; DUARTE, A. Op. cit. pp. 59-60.
66
Não se tratava mais de um modelo de cidade para agradar o gosto europeizado da
oligarquia, mas uma metrópole racionalizada para atender as necessidades da
industrialização. Os grandes símbolos metropolitanos então passam a ser o automóvel, a
avenida e o viaduto, criando “a associação idealizada entre circulação e progresso, a
expansão horizontal e vertical da cidade seria vista como representação física da
expansão econômica e da modernização”.
85
A constituição das periferias é uma das características mais importantes do
processo de urbanização da segunda metade do século XX. O período entre fim da
década de 1940 e 1964, além da consolidação do padrão periférico, conforme Lúcio
Kowarick e Nabil Bonduki, é marcado pela intervenção do Estado na cidade, tanto para
as obras dos espaços públicos, quanto para a habitação, a substituição do bonde pelo
ônibus urbano, o grande crescimento da frota de veículos, a verticalização e o
surgimento de novos movimentos populares urbanos.
86
O crescimento da cidade rumo às periferias baseava-se no “trinômio loteamento
periférico/casa própria/autoconstrução” isso é particularmente notado até a década
de 1970. nesse período de meados do século XX a substituição da imigração
estrangeira pela migração interna do Brasil, na composição das camadas mais populares
que habitavam a cidade de São Paulo. Essa população foi progressivamente sendo
empurrada para regiões mais distantes, em busca de uma espécie de graal prometido
pelas autoridades municipais e empreendedores imobiliários: a casa própria. O
oferecimento de loteamentos significava a venda de terrenos rurais com valores
urbanos, o que representou o enriquecimento de loteadores e proprietários de terra.
Ecléa Bosi, em seu trabalho sobre os hábitos de leituras de operárias, descreve a
caracterização de um loteamento no sentido da padronização iniciação, das marcas da
pobreza, até a subversão de algumas das características originais pelos moradores , a
partir principalmente do trabalho de campo que a autora realizou em um bairro popular
periférico em Osasco, município da região metropolitana de São Paulo, na década de
1970.
85
CAMPOS, C. M. Os rumos da cidade. p. 399.
86
KOWARICK, L.; BONDUKI, N. Espaço urbano e espaço político: do populismo à redemocratização. In.
KOWARICK, L. (org.). Op cit. p. 136.
67
Entremos num recanto descurado e mísero do município de Osasco. Talvez
seja o bairro que se abriga atrás das refinarias da Via Castelo Branco. A fábrica
absorveu e desfigurou o bairro, imprimindo o seu selo de esqualidez às ruas e
às casas cujas cores rouba e cuja fisionomia rói. (...) Os tratores abriram
gangrenas incuráveis ao redor da fábrica, onde se aninham as moradias.
Quando o novo morador chega, começa por comprar tábuas velhas de
construção e erguer seu barraco, ficando-lhe desse início uma dívida que para
ser saldada cobre três meses de trabalho. (...)
Todo o colorido foi sugado pelos cartazes da indústria, pelos letreiros, pelo
verde do ajardinamento de seus declives.
A iluminação fria do mercúrio roubou a noite do bairro, roubou o negrume
que rodeia o sono e ameniza o cansaço.
No entanto, dê-se tempo ao tempo.
Depois da absorção do bairro pela fábrica um movimento contrário, lento,
inexorável, de desabsorção.
A casa vai crescendo junto ao poço, ganhando cômodos de tijolo, alterando
sua fachada. Isto pode levar dez, quinze anos.
A rua vai ganhando fisionomia tão peculiar que às vezes não identificamos
uma série de casas planejadas e outrora idênticas. (...) uma composição
paciente e constante da casa no sentido de arrancá-la à “racionalização” e ao
código imposto.
87
Juntamente com a disseminação do mercado de loteamentos periféricos, a
consolidação do sistema de ônibus urbanos era fundamental para viabilizar o sucesso
dessas ocupações, e poder municipal concedeu a exploração de linhas de ônibus a
empresas privadas.
Seja pelo aumento da frota de ônibus, ou pela de carros particulares, a circulação
na cidade passou a ser definida pelo transporte rodoviário, em consonância com a
implantação da indústria automobilística nacional. E os projetos urbanísticos de São
Paulo, desde Prestes Maia, tiveram como principal marca a preocupação viária.
A ideia ufanista de progresso associada ao crescimento industrial de São Paulo da
época implicava em intervenções de renovação urbana e arquitetônica constantes.
“Demolir, passar as picaretas no que é velho – mesmo que só tivesse 20 anos é
progresso: é o nascer dos arranha-céus”
88
. As áreas mais consolidadas, como o centro,
foram alvos principais do apetite do mercado imobiliário. As revistas de reportagem
fotográfica, como O Cruzeiro e Manchete, que viviam seu auge nos anos 50 e 60, apesar
de não focarem sua cobertura exclusivamente em São Paulo, ajudaram muito a
consolidar uma imagética da urbanidade na época, dando fotogenia à arquitetura
87
BOSI, E. Cultura de massa e cultura popular: leitura de operárias. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 19-21.
88
KOWARICK, L.; BONDUKI, N. Op. cit. p. 141.
68
modernista, à industrialização, aos edifícios, à racionalização, ao automóvel, às grandes
obras.
É na década de 1950 que uma primeira “versão” da Praça Roosevelt é criada. Na
verdade, não sei se a palavra “criada” é exatamente adequada para o caso, já que não se
trata propriamente de um espaço que foi concebido ou planejado, mas o resultado de
um conjunto de desapropriações, em curso desde a década de 1930, na antiga rua
Olinda, região da Consolação
89
. Sobrados antigos deviam dar lugar a empreendimentos
imobiliários o que resultou nas construções do “paredão” de edifícios residenciais na
região. Houve uma sobra de terreno, logo atrás da Igreja da Consolação, que foi logo
ocupado por outro ícone da época: os automóveis. Em uma das cenas do filme São
Paulo Sociedade Anônima (1965), de Luis Sérgio Person, podemos ver o grande
estacionamento que o ocupava a Praça Roosevelt.
O filme de Person, aliás, pode nos fornecer vários elementos sobre a geografia e as
vivências da classe média em São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960. Ruas do centro
tradicional, como a av. São João, tomadas por veículos, pessoas, letreiros e burburinhos;
o estacionamento da Praça Roosevelt como dito ; o modernismo do Parque do
Ibirapuera e as exposições de arte; a Via Dutra; as plantas da indústria automobilística;
salas de aula lotadas do curso de inglês Yázigi, uma pacata São Miguel Paulista de
feições interioranas; televisores em casas de classe média; a fábrica de autopeças que
começa a prosperar graças ao plano de nacionalização da produção de automóveis;
moças que querem trabalhar na televisão; o bem-humorado industrial e as condições
precárias de trabalho em sua fábrica, indivíduos ensimesmados e entediados... O
personagem do empresário Arturo discursa sobre a indústria nacional, enquanto dirige
seu automóvel importado: “Quem é que comanda? Quem é que puxa tudo isso para
frente? É São Paulo, meu velho. É São Paulo. Essa terra de gente que trabalha. Somos
nós que impulsionamos o Brasil. Somos nós o motor. São Paulo cresce e não parará de
crescer”.
O filme também apresenta em vários momentos espaços de lazer da classe média
paulistana: restaurantes, casa alemã de chopp, salão de baile, bem como, viagens para o
litoral... Além da presença da televisão. O lazer em bases do consumo começou então a
89
Conforme levantamento da Emurb, 2005.
69
configurar parte da paisagem urbana para a classe média e a burguesia industrial,
habitante da cidade. Ao redor da Praça Roosevelt, desde a década de 1950, se formava
uma região de lazer noturno sofisticado.
Nessa época, as atividades financeiras começavam a se deslocar do centro
tradicional da cidade para a Avenida Paulista. Segundo Heitor Frúgoli Jr., a Paulista
passara, entre as décadas de 1940 e 1960, por uma primeira mudança de fisionomia: os
casarões postos abaixo e edifícios de apartamento eram erguidos, aumentando a
densidade habitacional da área. A construção do Conjunto Nacional, em 1956, e a do
Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1968
90
, iniciaram um processo, que se efetivaria
propriamente na passagem para os anos 70, de ocupação terciária da avenida, que se
tornaria então o centro financeiro, comercial e cultural da metrópole.
91
Com a constituição dessa nova centralidade em torno da avenida Paulista, o centro
tradicional começou a sofrer a evasão de empresas e sedes de bancos, e
concomitamente a manutenção dos equipamentos públicos foi sendo abandonada pelos
poderes públicos, principalmente a partir das intervenções urbanas realizadas durante a
ditadura militar, em particular na configuração do Plano Urbanístico Básico do Município
de São Paulo (PUB), de 1968. A proposta central incorporada pelo PUB era a da
estabelecer uma estrutura mais policêntrica, criando subcentros terciários em regiões
mais distantes, como Santo Amaro e Itaquera.
Neste momento, observa Frúgoli, o centro começa a receber cada vez mais
contingentes populares, formados principalmente por migrantes nordestinos. Essa
população foi desenvolvendo atividades informais como meio de sobrevivência,
constituindo assim
uma enorme diversidade sociocultural dos espaços do Centro, complexa e
conflitiva, sendo impossível constituí-la em sua totalidade, bastando aqui
frisar seu forte caráter interclasses, em que membros das classes médias e
altas que trabalham em empresas, escritórios e instituições cruzam
cotidianamente com os oriundos das classes populares, desde os que também
trabalham e moram na região, até os milhares de usuários do transporte
coletivo, em meio à ocupação mencionada de seus espaços públicos para
90
Em 1951, aconteceu a I Bienal Internacional de Artes de São Paulo no pavilhão construído para este fim,
onde havia antes o belvedere do Trianon. Depois o local foi cedido para o Masp as obras do prédio do
museu iniciaram em 1957 e finalizaram em 1968.
91
FRÚGOLI JR., H. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São
Paulo: Edusp, 2006. pp. 116-121.
70
atividades informais, isso sem tentar abarcar outros inúmeros usos ligados a
consumo, entretenimento, lazer etc.
92
Uma obra emblemática do fim da década de 1960, inaugurada durante a
administração municipal de Paulo Maluf, é considerada como um dos símbolos do
processo predatório sobre a região central da cidade: o Elevado Costa e Silva. O
Minhocão, como popularmente é conhecido o elevado, é parte de um grande complexo
viário que faz parte da ligação leste-oeste. Especificamente liga o Largo Parque Péricles,
na zona oeste, à região central da Praça Roosevelt que em função destas obras
recebeu nova feição: foi transformada em edifício-praça, todo em concreto com
diversos níveis. A grande via expressa elevada passa a uma pequena distância das
janelas dos edifícios das avenidas São João e Amaral Gurgel, conferindo à área aparência
desolada.
Observa-se também que, ao mesmo tempo em que era a constituída a
centralidade da avenida Paulista, havia uma tendência de expansão do centro
econômico para o oeste, com a abertura e transferência de escritórios de empresas para
a Vila Buarque e a Santa Ifigênia. Mas, a construção do elevado foi decisiva na
interrupção desta transferência.
93
Boa parte das praças centrais passou a sofrer pela falta de manutenção e pela
deterioração física. Algumas delas foram reformuladas ou fragmentadas para a
construção do met ou para abertura de avenidas, sendo desfiguradas, afastando
vivências anteriormente constituídas e intensificando a onda predatória sobre a região.
Com o descaso oficial pelo centro, os bairros de classe média, principalmente no
setor sudoeste, sofrem um adensamento populacional, e os edifícios de apartamento
passam a dominar a paisagem. Estes bairros foram cada vez mais dotados de
equipamentos públicos, áreas de lazer e de concentração de comércio e de atividades
culturais. ainda o fenômeno, que se inicia nos anos 70, da construção de residenciais
fechados, condomínios fechados de casas ou edifícios de apartamentos com
infraestrutura privatizada e acesso restrito, como o empreendimento de Alphaville, de
1973, localizado nos municípios metropolitanos de Barueri e Santana do Parnaíba.
92
Ibidem. p. 59.
93
CORDEIRO, H. K. A “Cidade Mundial” de São Paulo e a recente expansão do seu centro metropolitano.
Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro, 54(3): 5-26, jul./set. 1992. p. 11.
71
No campo da observação dos tipos de sociabilidades nessas regiões, no entanto,
uma lacuna de estudos que dêem conta do uso do espaço público por essa camada
da população. Teresa Caldeira em sua pesquisa sobre a percepção da violência por
moradores de São Paulo, realizada no fim da década de 1980 e começo dos anos 90,
uma pista a respeito dessa ausência. Metodologicamente, a autora tomou três regiões
com padrões socioeconômicos distintos e comenta:
Enquanto os bairros de periferia ainda têm uma vida pública e são
relativamente abertos à observação e participação, nos bairros residenciais
das classes médias e alta a vida social é interiorizada e privatizada e muito
pouca vida pública. Como nesses bairros os observadores são vistos com
suspeita e tornam-se alvos dos serviços de segurança privada, a observação
participante é inviável.
94
Heitor Frúgoli também faz referência a essa vivência intramuros das classes
médias e alta, mas pondera que não é possível falar em um abandono total do espaço
público pelos segmentos socais mais abastados. Pontualmente se observam locais
públicos de uso frequente por estes grupos, mas pondera que normalmente se tratam
de espaços vinculados ao lazer, como praças e parques, e em “regiões valorizadas ou
devidamente dotadas de certos códigos seletivos”.
95
o campo dos estudos sobre as vivências operárias e populares nos bairros de
periferia é abundante. É estabelecida uma relação entre o sindicalismo do final da
década de 1970 com a intensificação dos movimentos de bairro na época. Na verdade,
são observados como processos concomitantes de tentativas de estabelecimento da
cidadania no momento da redemocratização na esfera do trabalho e na das condições
de vida nos bairros residenciais. Vera da Silva Telles observa que os sindicalistas se
recompõem da repressão no começo dos anos 1970 e criam articulações principalmente
em regiões em que movimentos populares vinham se consolidando pela atuação da
Pastoral Operária
96
.
Assim, ao mesmo tempo em que a figura do sindicalista que lutava por condições
de trabalho mais decentes aparecia na esfera pública da cidade, o morador dos bairros
pobres, os próprios operários, como também suas esposas, mães, vizinhos,
94
CALDEIRA, T. P. R. Op. cit. p. 14.
95
FRÚGOLI Jr., H. São Paulo: espaços públicos e integração social. São Paulo: Marco Zero, 1995. pp. 92-93.
96
TELLES, V. S. Anos 70: experiências, práticas e espaços políticos. In: KOWARICK, L. Op. cit. pp. 266-267.
72
reivindicavam por regulamentação dos terrenos, transporte, saneamento, saúde
pública, escolas etc. Nos meios de comunicação de massa, os movimentos pelo trabalho
tinham mais visibilidade do que as manifestações pelo espaço urbano.
Os padrões de consumo da classe média também começam a se incutir cada vez
mais nas classes populares, principalmente por meio da televisão. Eder Sader diz que
essas aspirações por mais conforto em suas casas adquiriu o contorno de um
movimento coletivo de “reivindicação de participação no consumo de bens produzidos
com a industrialização”.
97
Sader assinala a tentativa de esvaziamento dos espaços públicos para os
trabalhadores nos anos 70, por meio do impedimento de manifestação política, da
disseminação de produtos culturais que buscavam apagar o debate, da “destruição de
física de lugares culturalmente significativos como resultado do ritmo avassalador da
remodelação urbana: praças e parques, campos de várzeas, botequins ou quarteirões
inteiros desaparecem, dissolvendo espaços de convivência” e da imposição de
deslocamentos bruscos, o que dificultava a constituição de vínculos territoriais entre os
moradores. E se podiam observar também mecanismos de controle da circulação da
população da periferia: a carteira de trabalho funcionava como uma espécie de
passaporte para os pobres, e no caso dos portadores negros, depois terem seu
documento conferido, tinham de oferecer as mãos para exame e “se não apresentando
calosidades”, concluía-se estar frente a um suspeito, “no mínimo de vadiagem”.
98
Mas, assinala o Sader, “em cada lugar novas referências são teimosamente
recriadas”, como no caso da transformação da visualidade dos loteamentos descrita por
Ecléa Bosi. Sader cita o conto vazio, do operário metalúrgico Roberto Franco,
publicado em 1983, em que o protagonista, de maneira heróica, busca dar sentido ao
seu cotidiano de humilhação.
Sem a forma condensada literária, no dia-a-dia da cidade, do Parque Dom Pedro
ao Largo 13, em salões de sinuca, terreiros, feiras livres, botequins, salões de
baile, cabeleireiras, pontos de ônibus, fliperamas, foram se reconstruindo
espaços de encontros, onde se trocavam informações sobre emprego, futebol,
novela da TV, assim como sobre a escola dos filhos, a excursão do Santos, sobre
97
SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 110.
98
MAGNANI, J.G.C. Festa no pedaço. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1998. p. 116.
73
as conquistas amorosas, a meningite, o Esquadrão da Morte, o incêndio do
Joelma, a construção do metrô, o quebra-quebra dos trens.
99
Sobre essas formas de resistências que aparecem dissolvidas no cotidiano das
classes populares paulistanas, José Guilherme Cantor Magnani, em sua pesquisa
realizada entre final da década de 1970 e começo de 1980, traz uma figura territorial
determinante da sociabilidade na periferia: o pedaço. O pedaço figuraria como uma
espécie de marca territorial localizada entre o espaço da casa e o da rua não
fisicamente falando, mas no caráter simbólico. Há um núcleo físico que constitui o
pedaço: “o telefone público, a padaria, alguns bares e casas de comércio, o ponto do
‘búzio’, o terreiro e o templo, o campo de futebol e algum salão de baile”
100
. Esses
espaços formam uma rede de serviços básicos e de entretenimento, que definem o
estabelecimento de laços de vizinhança. Mas, não basta frequentar esses locais, tudo vai
depender da consistência das relações que os indivíduos estabelecem entre si. Esses
laços sociais entre os participantes do pedaço normalmente vão além desse núcleo
físico, como nas excursões para a praia ou para Aparecida do Norte, nos torneios de
futebol de várzea, nos concursos de violeiros, no circo etc.
A configuração do pedaço é uma maneira clara de apropriação e ressignificação do
sentido do espaço público depauperado dos loteamentos periféricos, imprimindo
marcas e estabelecendo vínculos de grupo, que representa a instituição da noção de
comunidade, com traços de ruralidade parentesco, vizinhança, procedência.
Magnani também ressalta o papel dos meios de comunicação de massa nas
práticas cotidianas dos moradores da periferia. A televisão e, especialmente, o rádio
figuram como formas de lazer muito citadas pelos entrevistados pelo autor. O estudo de
Magnani, que tem o foco principal nos circos-teatro, apresenta como era constante a
relação entre os programas radiofônicos e as atrações circenses: os apresentadores dos
programas faziam participações nos espetáculos, e essas participações eram anunciadas
nos programas; as peças do repertório dos circos estabeleciam vários vínculos com
elementos da cultura de massa, seja pelos enredos inspirados em canções muito
99
SADER, E. Op. cit. pp. 118-121.
100
MAGNANI, J. G. C. Op. cit. p. 115.
74
populares no rádio, ou por citações constantes de artistas e programas radiofônicos e
televisivos, nos espetáculos teatrais.
Miragem da globalização
Em setembro de 1995, o suplemento Veja São Paulo trazia a manchete: “Nasce
outra cidade. Prédios arrojados e uma atração atrás da outra fazem explodir a região da
Marginal Pinheiros e Berrini”
101
. O skyline” da Marginal Pinheiros: linha horizontal
definida pelo rio com a margem repleta de corpulentos edifícios de feições pós-
modernas, que comumente aparecem, em fotografias promocionais, refletidos nas
águas de intenso brilho artificial, sob céus de cores irreais. Espaços definidos mais por
sua força comunicativa no cenário da cidade, do que pelo seu uso público efetivo.
Paisagem-simulacro da “cidade global” que afeta as leituras mais recentes sobre a
geografia e os sentidos do espaço urbano de São Paulo.
Helena Cordeiro e Heitor Frúgoli identificaram a constituição de uma terceira
centralidade do poder econômico que começou a partir do final da década de 1970 e
ganha mais definição nos anos 90, concentrada em torno da região da Marginal
Pinheiros e da avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini, zona sul de São Paulo em função
principalmente do esgotamento do potencial imobiliário da avenida Paulista. A
ocupação empresarial da Berrini é descrita como uma ação monopolista da empresa
Brakte-Collet, que desde os anos 70 passou a explorar a possibilidade de desenvolver
um núcleo imobiliário empresarial de alto padrão na avenida então descampada.
Aproveitando-se dos valores baixos dos terrenos cheios de brejos, de uso residencial,
que estavam nas mãos de proprietários de baixa renda que “não tinham ideia do valor
de suas propriedades com benfeitorias”
102
, a Brakte-Collet reuniu investidores, projetou
os edifícios (projetos de Carlos Brakte), negociou as ocupações (os prédios eram
destinados exclusivamente à locação) e continuava em cena na administração dos
imóveis e contratos.
101
FIX, M. Parceiros da exclusão: duas histórias da construção de uma “nova cidade” em São Paulo: Faria
Lima e Água Espraiada. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 109.
102
FIX, M. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. São Paulo: Boitempo,
2007. p. 41.
75
Essa ação na Berrini avenida que foi apelidada de “Braktelândia” e a
construção de outros grandes empreendimentos na Marginal Pinheiros, como o
“pioneiro” Centro Empresarial São Paulo (Cenesp), dos anos 70, e o Centro Empresarial
Nações Unidas (Cenu), do final da década de 1990, além dos vários lançamentos na
avenida Faria Lima, acentuaram a tendência de desenvolvimento do vetor nobre da
cidade, o sudoeste, conforme vem sendo assinalado algum tempo por urbanistas,
como Raquel Rolnik e embora a vinculação com qualquer política pública nesse
sentido seja negada pelos principais idealizadores dos projetos imobiliários da área.
Helena Cordeiro assinala que o deslocamento do complexo corporativo foi
acompanhado da instalação do que ela chama de “amenidades urbanas”: hotéis e
restaurantes de luxo, galerias de arte e outros espaços de lazer cultural
103
. Observa-se
que mais recentemente a região vem concentrando empreendimentos de comércio de
luxo, como a Daslu e o Shopping Cidade Jardim, e residenciais de alto padrão, como o
bairro Panamby, além da constante valorização do nobre bairro do Morumbi.
Instalaram-se ainda na região a sede da Editora Abril, na Marginal, e os estúdios
paulistanos da Rede Globo, na avenida Dr. Chucri Zaidan.
Em depoimento a Frúgoli, Regina Meyer, urbanista que participa da Associação
Viva o Centro, descreve a Berrini como um “urbanismo sem cidade, porque você não
tem as características de cidade, você tem aquela coisa um pouco Las Vegas: aquela
imensa área, aquela edificação e a vida se dentro da edificação e não fora, você não
tem cidade, tem edificação de espaços de vida”
104
. Essa ideia de um urbanismo de
arquitetos, ou de uma “cidade voltada para interiores” e definida pelos grandes volumes
de edifícios corporativos, shoppings e condomínios, além obviamente de representarem
o esvaziamento do espaço público, traz consigo um processo que Frúgoli explica por
meio da paráfrase de um comentário de Lévi-Strauss sobre a São Paulo dos anos 30
chega-se à “decadência sem ter experimentado o auge”
105
. Ele observa como a Berrini
conforme depoimentos que colheu, em meados da década de 1990, de arquitetos,
urbanistas e agentes do mercado imobiliário era considerada obsoleta, em vários
sentidos.
103
CORDEIRO, Helena. Op. cit. p. 19.
104
FRÚGOLI JR., H. Centralidade em São Paulo. p. 198.
105
Ibidem. p. 196.
76
Os autores que estudam o processo de valorização da região assinalam como
investimentos públicos constantes são direcionados para como a modernização do
trem metropolitano e das estações (em grande contraste com as condições de uso dos
trens de superfície que atendem regiões pobres) e projeto de metrô, ambos pelo
governo estadual, que tem sua sede localizada, desde 1970, no Morumbi. um caso
que expressa essa relação do poder público com os interesses imobiliários: em troca da
aprovação do projeto do empreendimento do bairro Panamby com grandes
empecilhos de zoneamento , foi oferecida à prefeitura um terreno, no próprio bairro,
para a construção de um parque público, o Burle Marx. Apesar de espaço público, o
parque é gerido por uma fundação privada, que impôs uma série de restrições de uso do
local, que seria destinado ao “lazer contemplativo”, em que a única atividade
praticamente permitida é o jogging. E, como salienta Mariana Fix, o parque “revelou-se
um dos grandes atrativos imobiliários do Panamby, que passou a ser anunciado pelos
agentes imobiliários como a ‘mais bela reserva verde da cidade’”.
106
Desde os anos 90 principalmente, observa-se muitas ações do poder municipal,
como a remoção de favelas e desapropriação de áreas residenciais de classe média, para
realização de obras que claramente beneficiavam a exploração imobiliária destinada ao
setor terciário.
Mariana Fix descreve o processo de remoção da favela Jardim Edith em 1995 para
a construção da avenida Água Espraiada (atual av. Jornalista Roberto Marinho) mais
tarde o cruzamento da Água Espraiada com a Berrini foi apelidado de “esquina da
riqueza”. O episódio envolve um acordo entre um pool de empresários da região e a
prefeitura. Os empresários teriam se cotizado para levantar um fundo que serviria para
construir novas moradias para as famílias que ali viviam e para o pagamento de
indenizações. No processo, a prefeitura juntamente com a construtora responsável
pelas obras da avenida lançaram mão de uma sequência maus-tratos e pressões
psicológicas violentas sobre os favelados por meio de assistentes sociais, advogados,
burocratas e da força policial. A autora narra casos de suicídio, soterramento de criança,
cooptação de lideranças comunitárias, um quase confinamento dos habitantes nos
precários e violentos alojamentos “provisórios”, dos quais as pessoas também foram
106
FIX, M. Parceiros da exclusão. p. 22.
77
expulsas sem que as tais novas habitações estivessem prontas, além de outras ações
desesperadas dos moradores.
E o resultado da remoção: o inchamento das outras favelas da região como
Paraisópolis e Real Parque –, o que acarretou um aumento de preços no “mercado” de
barracos, obrigando grande parte das pessoas despejadas a se instalarem na área de
manancial da Represa Billings, o que representou condições de vida ainda mais precárias
àquela população e um grande problema ambiental e de abastecimento de água para a
cidade como um todo. Em compensação, a avenida Água Espraiada se transformou em
uma verdadeira mina de ouro para o mercado imobiliário corporativo e de luxo.
Mais recentemente a favela Real Parque foi alvo de empreendimentos imobiliários
de luxo, no caso, o complexo Parque Cidade Jardim, cujo o projeto compreende
apartamentos de alto padrão, um shopping, spa e hotel. A empreiteira responsável pelo
empreendimento ofereceu dinheiro para moradores abandonarem a favela, além disso,
houve violenta ação policial de despejo.
107
Mariana Fix compara o tratamento que o episódio do Jardim Judith recebeu pelos
meios de comunicação de massa com o que foi dado ao processo de desapropriação de
residências de classe média para a extensão da avenida Faria Lima, na mesma época.
Sobre a visibilidade das ações dos movimentos de moradores da região da Faria Lima
comenta: “poucas vezes um projeto urbano despertou tanta atenção dos jornais”,
teriam sido cerca de 400 matérias em menos de três anos, nos três principais jornais
impressos de São Paulo, conforme levantamento da autora, um total que
corresponderia a mais de dez vezes o que teria sido publicado sobre a remoção da
favela, “apesar de os favelados também procurarem os jornais e as redes de televisão
para denunciar a remoção”.
108
O skyline da Marginal Pinheiros equivale a uma espécie de miragem da inserção da
metrópole periférica na economia global, pois a região não passa de um “enclave
globalizado”, realizado de modo truncado, e sem eliminar as “formas ditas arcaicas”
109
,
apesar da grande visibilidade dessa miragem, ela passa ao largo das inúmeras dinâmicas
de usos e negociações do espaço público de São Paulo.
107
MARTINS, R. Metrópole para poucos. Carta Capital, São Paulo, n. 580, p. 24, 27 jan. 2010.
108
Ibidem. p. 56.
109
FIX, M. São Paulo cidade global. p. 20.
78
Fora desse “espaço global”, observa-se nas últimas décadas um novo “despertar”
de consciência da periferia, mas agora não tanto por meio dos movimentos operários,
sindicais ou associações comunitárias convencionais, mas pelos movimentos de
juventude, principalmente em torno da cultura hip hop. Em suas memórias, o ex-
detento escritor e poeta Jocenir comenta, ao narrar a visita de Mano Brown, líder da
banda de rap Racionais MC’s, à Casa de Detenção:
Não tive nenhuma reação de contentamento ou euforia, até aquele momento
não tinha muita referência sobre o rap e o mundo que o envolve, o hip-hop.
Sou de uma geração anterior a essa realidade e cresci ouvindo rock e música
brasileira, além disso, para mim a periferia era uma coisa distante: seus
dramas, suas peculiaridades, sua miséria, sua violência, percebi de verdade
quando estava cumprindo pena, pois a grande maioria dos companheiros vem
da periferia.
Entretanto sabia da admiração e do respeito que os presos cultivavam pelo
rap, em especial os mais jovens. Sempre ouvia falar do som dos Racionais
MC´s, e sabia da identificação daquela gente sofrida e condenada com Mano
Brown. Eram da mesma realidade. Ainda são. Ele é uma espécie de referência
para muitos jovens trancafiados em celas. Algum tempo depois fui entender o
porquê.
110
O movimento nascido nos guetos de cidades norte-americanas chegou a São Paulo
nos anos 80, não pela periferia, mas primeiramente pela dança break nas danceterias de
bairros de classe média como Moema, e depois foi levado de fato para a rua e então
ganhou os espaços de muitos bairros de periferia
111
. Muitos trabalhos sobre o tema
assinalam a forte fixação de uma identidade positiva conferida à juventude pobre e
majoritariamente negra da periferia da cidade por meio do hip hop. Maria Rita Kehl
afirma que “os rappers não querem excluir nenhum garoto ou garota que se pareça com
eles (...) à diferença das bandas de rock pesado, não oferecem a seu público o gozo
masoquista de ser insultados por um pop-star milionário fantasiado de outsider
112
.
A cultura hip hop marcou presença em espaços públicos não periféricos, por meio
do grafite, do break e do rap e, como é comum observar em práticas culturais urbanas e,
apesar de não perderem a consistência de sua marca periférica e negra, passou por
processos de cruzamentos com a cultura de massa e com outras formas da cultura
110
JOCENIR. Diário de um detento: o livro. São Paulo: Labortexto, 2001. pp. 99-100.
111
CONTIER, A.D. O rap brasileiro e os Racionais MC's. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE,
1., 2005, São Paulo.
112
KEHL, M.R. As fratrias órfãs.In: Estados Gerais da Psicanálise, s/d.
79
popular chegando a ser assentada pela mídia dentro do quadro da multiculturalidade
metropolitana. No centro de São Paulo, o Largo de São Bento e a Praça Roosevelt foram
referências do movimento. A praça do Banco Itaú, junto à estação de metrô Conceição,
foi tomada como local para a prática da break dance, nos fins de semana, tanto por
b.boys (jovens que vêm da periferia da zona sul), como por streeteiros (jovens nipo-
descendentes de classe média que moram normalmente na região próxima da Saúde e
Conceição)
113
.
Há a retomada de uma visibilidade pública da periferia por meio do hip hop,
expressa tanto no uso de vários espaços públicos, como também no circuito cultural e
midiático mais amplo da cidade. Pode-se citar os movimentos de literatura na periferia
que ganham aparição por meio de eventos, como saraus, e também por publicações de
pequenas tiragens ou mesmo por alguns veículos de comunicação por exemplo, a
revista Caros Amigos.
114
Outra referência muito forte da cultura popular na cidade é o que poderia
genericamente se designar como “cultura nordestina”. Seja disseminação de uma
culinária típica regional ou pelas várias formas musicais e de danças, que ultrapassam
certos limites geográficos dentro da cidade.
José Ramos Tinhorão descreve um processo de assimilação do forró pela classe
média paulistana. Ele observa historicamente os arrasta-pés, entre as décadas de 1940 e
80, mantiveram-se circunscritos a algumas regiões da cidade de perfil popular (Largo da
Concórdia, Brás, Ipiranga e depois bairros periféricos de formação mais recente, além de
uma área do Baixo Pinheiros, próxima ao Largo da Batata) e com frequência
predominante de migrantes. No contexto urbano, o gênero foi sofrendo alterações e
misturas, o distanciando de sua forma rural original, e teve forte intercâmbio com alguns
programas de rádio. E, na década de 1990, se consolida o forró eletrônico, ou new-forró,
resultado da mistura com vários outros gêneros, inclusive estrangeiros, como o formato
de forró mais tocado para animar os bailes populares da cidade.
113
NORONHA, F.; PIRES, P.; TOLEDO, R. Japas e manos (ou streeteiros e b.boys) na estação Conceição do
metrô. In: MAGNANI, J.G.C.; MANTESE, B. (orgs). Jovens na metrópole: etnografias de circuitos de lazer,
encontro e sociabilidade. São Paulo: Terceiro Nome, 2007. pp. 117-134.
114
NASCIMENTO, E.P. “Literatura marginal”: os escritores da periferia entram em cena, 2006. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) FFLCH, USP, São Paulo.
80
E é justamente nessa época, observa Tinhorão, que a classe média começou a se
aproximar do forró, mas não da versão eletrônica, constituindo um discurso da
recuperação da “autenticidade” perdida. Assim, essa aceitação
não se processou pacificamente, mas em meio a um quadro típico de luta de
classes, cabendo aos nordestinos o papel de perigo para a preservação dos
padrões do bom gosto cultural burguês, e às famílias tradicionais locais o de
responsáveis pelo enfrentamento dessa ameaça.
115
Tinhorão identifica ainda que a assimilação do forró pela classe média também
deslocou fisicamente os espaços dos bailes para “redutos boêmios de áreas
elegantes”
116
.
Heitor Frúgoli identifica uma cultura própria da vivência nas ruas em São Paulo,
vinculada a moradores e trabalhadores das ruas, mas também aos agrupamentos de
jovens que ocupam espaços e perambulam pela cidade. Por esta “cultura da rua”,
entendem-se práticas de sobrevivência marcadas por definições “espontâneas” de
territorialidades entre grupos, relações informais e limites tênues entre a legalidade e a
ilegalidade. É uma cultura que se apropria do espaço público, pautada por códigos
próprios que normalmente conflitam com a ordem instituída, marcadas assim pela
transgressão (mesmo que não se configure propriamente como ilegalidade) e “aversão a
aversão a qualquer tipo de institucionalização”.
117
O centro de São Paulo passa a ser uma região especialmente reivindicada por
vários movimentos “espontâneos” ou organizados, que com posturas e atuações
diversas têm como ponto principal a ideia de que a “questão urbana” de São Paulo passa
pela recuperação dos espaços de sociabilidade da região. Observa-se por um lado
reassentamentos e reelaborações constantes das práticas culturais populares
marcados pela imigração estrangeira e migração interna, pelos movimentos de jovens
com forte influência de uma cultura de massa internacional e mais pontualmente por
atividades artísticas experimentais. E também a ação intensificada dos movimentos por
115
TINHORÃO, J.R. Os sons que vêm da rua. São Paulo: 34, 2005. p. 224.
116
A pesquisadora Daniela do Amaral Alfonsi identifica que uma das primeiras formas de aproximação da
classe média com o forró foi por meio dos chamados “forrós universitários” nos anos 90, concentrados
principalmente na região de Pinheiros e Vila Madalena (ALFONSI, D.A. O forró universitário em São Paulo.
In: MAGNANI, J.G.; MANTESE, B. Op. cit. pp. 43-65).
117
FRÚGOLI JR., H. São Paulo: espaços públicos e interação social. pp. 70-71.
81
moradia, como o MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro de São Paulo), nascidos em
função das crises constantes de habitação e o crescimento desenfreado das periferias,
enquanto existe uma grande quantidade de imóveis abandonados na região central, em
razão da especulação.
Para outros, a recuperação do centro não é pensada a partir da presença popular,
mas ao contrário trazem à pauta pública da cidade de São Paulo a figura da revitalização
de áreas degradadas, que busca destinar o centro para atividades do setor terciário.
Poderes públicos, organizações de proprietários urbanos e mercado imobiliário entram
aqui em um jogo de forças na definição das intervenções nesses espaços. Frúgoli
descreve como, por exemplo, as ações da Viva o Centro carregam uma concepção de
esvaziar a presença popular no Centro, pois a associação considera que como lugar de
passagem a região fica esgotada com essa ocupação maciça, que acabaria revertida em
mendicância e trabalho informal
118
. assim, uma proposta de voltar o Centro para sua
“vocação” empresarial e cultural, desenvolvendo outras regiões para atração dessa
população e a antiga figura da higienização social, com roupagem discursiva
atualizada, começa a ecoar novamente.
O espaço blico de São Paulo é marcado historicamente por ações de cunho
privatizante. Os agentes dessas ações passam normalmente por autoridades do poder
público ou ainda pelos grupos econômicos dominantes ligados à indústria, ao
comércio, ao mercado imobiliário, ao capital financeiro nacional e internacional e às
empresas de comunicação e transporte. As tentativas de modernização da cidade
sempre tiveram de conviver com contrastes, tanto econômicos e sociais, quanto
culturais, e ficaram sempre circunscritas a algumas regiões e acessíveis a uma parcela da
população. E a isso se somam as políticas repressivas e a instauração do sentimento de
medo generalizado, expresso nos aparatos de segurança privado de condomínios
residenciais e empresariais. Assim, muitos autores observam um traçado segregacionista
na geografia da cidade. Tudo isso acabou por deixar a imagem de um espaço público
volátil.
No entanto, a constante ação de grupos populares, organizados ou não, buscou
formas de reivindicar espaço, constituindo redes de sociabilidades e de ressignificação
118
FRÚGOLI JR., H. Centralidade em São Paulo.
82
do urbano. E é com essa referência de espaço urbano, formado nas contingências locais
da cidade de São Paulo, que o caso da Praça Roosevelt deverá ser observado. Mas, antes
ainda de partir para o estudo de caso, vamos discutir alguns dados sobre a constituição
imaginária da cidade.
83
Capítulo 2. Imaginários urbanos em São Paulo
Em um artigo de jornal, publicado em 2006, o filósofo Vladimir Safatle faz uma
curiosa proposta: perder São Paulo.
alguns meses, os cinemas da cidade de São Paulo receberam um filme
publicitário sintomático. Nele, a avenida Paulista era apresentada em fim de
tarde chuvoso enquanto um locutor declamava em "off": "Você imaginou
São Paulo com mais verde?". Nesse instante, árvores apareciam no meio da
Paulista. Animado, o locutor continuava: "E com menos chuvas?"; então a
chuva se desfazia. "Com menos prédios?"; prontamente, prédios iam embora.
"E com menos trânsito?" Então, nesse momento sublime, boa parte dos carros
sumia, e uma cidade aprazível ganhava corpo.
No entanto, quando começávamos a nos acostumar com tal cidade, a voz do
locutor, marcada pelo tom de uma certa cumplicidade publicitária de quem
julga saber o que realmente queremos, lembrava: "Só que essa cidade não
seria São Paulo". Tudo, então, retornava como antes, movido por uma alegre
afirmação do caos; e isso sem que tivéssemos tempo de simplesmente
perguntar: "E, afinal, qual o problema?".
Sim, qual o problema em perder São Paulo para ganhar uma cidade com
especulação imobiliária controlada, espaços públicos e prioridade para
transporte coletivo? Afinal, perder São Paulo não seria a condição necessária
para uma profunda autocrítica urbana que teima em não vir?
1
Na sequência do artigo, Safatle explica que perder São Paulo equivaleria
desconstruir o imaginário totalizante, indigente, que se coaduna em grande parte com a
ideologia mercantil e procura justificar as mazelas e impasses cotidianos que
vivenciamos na cidade. Aponta as duas imagens que sintetizariam esse discurso:
(cidade que não pára, motor do país) que servem apenas para esconder os
resultados de um processo concentrado e descontrolado de desenvolvimento
urbano. Nem declarações multiculturais do tipo: "Esta é a única cidade em que
podemos ir a um restaurante húngaro à meia-noite".
2
No fechamento do texto, reforça que os sonhos de progresso e grandeza,
“capitaneados por uma elite socioeconômica que prefere viver em uma ‘outra’ cidade -
esta que é composta por bairros murados, condomínios fechados, shopping-bunkers e
helicópteros”, criaram monstros. Para extirpar os fantasmas, novas imagens precisariam
aflorar, imagens essas criadas por outros atores sociais.
1
SAFATLE, V. Perder São Paulo. Folha de S. Paulo, São Paulo, Mais!, 29 jan. 2006.
2
Ibidem.
84
O breve artigo relaciona diretamente o imaginário urbano com as dinâmicas
impostas à cidade. A cidade imaginada afeta a cidade vivida. Essas imagens impositivas
sobre São Paulo atuariam na noção degringolada de espaço público no curso do
desenvolvimento paulistano. A reconstituição de um espaço verdadeiramente público
passaria primeiro pela amplificação de vozes roucas, destoantes do coro do progresso.
Pensar o imaginário urbano
Ao fim da Idade Média, camponeses da região alemã do “além-Alba” teriam criado
o aforismo “Os ares da cidade libertam!” (Stadtluft macht frei!), expressão do desejo de
libertação dos “vínculos jurídico-comunitários”, e da figuração da cidade como local de
salvação
3
. Essa projeção do anseio de liberdade desdobrava-se em narrativas e em
figuras, que poderiam orientar o uso social da cidade no(s) período(s) subsequentes,
como também se mesclar a outras formas de conceber simbolicamente o espaço.
E, se para alguns camponeses, a cidade chegou a representar a corporificação da
liberdade, para a aristocracia rural o sentido poderia ser diverso. Raymond Williams, ao
analisar os vínculos entre campo e cidade na Inglaterra, entre os séculos XVI e XX,
tomando como referência os registros literários, mostra a complexidade dessa relação, a
partir das construções mútuas de imagens e autoimagens. Aponta que é tradicional o
“contraste retórico entre a vida urbana e a campestre”, isso desde pelo menos as
literaturas grega tardia e latina, segundo o autor
4
. Na poesia bucólica inglesa
quinhentista, por exemplo, observa a clara construção da polaridade natureza e
mundanidade; ingenuidade e corrupção. E analisa como essa figuração de um
submundo urbano como o oposto das virtudes da vida campestre na corte é grande
expressão do cinismo que boa parte das agitações, golpes, subornos e intrigas que
aconteciam em Londres eram gerados por necessidades da classe dominante rural em
proteger seu patrimônio, o que envolvia acordos e contratos de casamento. “E era
3
FORTUNA, C. Identidades, percursos, paisagens culturais: estudos sociológicos de cultura urbana. Oieras
(Portugal): Celta, 1999. p. 23.
4
WILLIAMS, R. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.
69
85
precisamente neste ponto que a ficção de ‘cidade e campo’ era útil: para promover
comparações superficiais e impedir comparações reais”.
5
Williams observa a persistência dessa retórica sobre a inocência rural em contraste
com o vício urbano nos séculos seguintes, o que não quer dizer que não existiram
contradiscursos neste sentido. E na medida em que se desenvolveu uma literatura
urbana propriamente, um adensamento nas leituras sobre as relações na cidade.
Sobre Charles Dickens, por exemplo, comenta que a essência londrina na visão do
escritor não se encontra em “dados topográficos” ou “exemplos locais”, mas na própria
estrutura narrativa de suas obras. “Tanto faz dizer uma coisa ou o seu oposto: a
experiência da cidade é o método da ficção; o método da ficção é a experiência da
cidade. O importante é que a visão e não se trata de uma visão única, e sim de uma
dramatização contínua é a forma da escritura”
6
. Considera que Dickens foi talvez o
único autor inglês que conseguiu transformar a experiência da pobreza urbana em
romance.
E desta maneira, Williams alinhava literatura e história, sem hierarquizá-las, e
tece uma rica seda das concepções de cidade historicamente construídas
(particularmente, o caso inglês). Historiciza, assim, os temas associados às cidades:
dinheiro e lei (séculos XVI e XVII); riqueza e luxo (século XVIII); turba e massa (séculos
XVIII e XIX) e mobilidade e isolamento (séculos XIX e XX). Mas, ele observa que
enquanto algumas dessas ideias apresentam certa persistência, como a vinculação da
cidade ao dinheiro, a noção de isolamento, por exemplo, aparece no contexto da
metropolização. Observa que apenas a identificação “do que está sendo dito” sobre a
cidade e o campo, relacionando aos grandes discursos ou narrativas, não é suficiente
para análise, é preciso, sim, também atentar “que outras coisas estão sendo ditas”
7
, as
outras falas.
A noção de cidade que Williams identifica na literatura inglesa do século XIX
apresenta um rico e diversificado painel de imagens. A ideia de um ambiente
perturbador despertava a nostalgia bucólica e o antiurbanismo romântico, e
5
Ibidem. p. 79.
6
Ibidem. p. 216.
7
Ibidem. p. 389.
86
desencadeou a “imagística do inumano e do monstruoso”
8
, associada ao medo da
multidão. A imagem de uma cidade cruel aparecia também em linha distinta desta que
vê o enfraquecimento dos sentimentos humanos pelo homem urbano: o local da
exploração do trabalho e de modos de vida alienantes. Mas essa visão traz um
paradoxo, de que o espaço do empobrecimento material e moral dos operários é
também a possibilidade da experiência comunitária de classe, que cria uma nova
consciência, a autoconsciência proletária.
Esse espaço predatório e potencialmente libertador vai encontrar expressão nos
romances que projetam o futuro: sociedades utópicas igualitárias, ou ao contrário
completamente embrutecidas e supercontroladas pelo capitalismo e pela tecnologia
(distopias), ou simplesmente aniquiladas do ponto de vista civilizatório; há ainda a
imagem recorrente do fim do campo, com o predomínio total do urbano sobre o
território, e também a busca de constituir novos espaços urbanos em outros planetas.
Essas projeções de futuro, que se desdobram diretamente no gênero da ficção
científica, mas não se restringem a este, são para Williams a própria consistência
imaginária das metrópoles e vão dar a tônica geral da produção cultural do século XX.
A ideia de experiência urbana vincula-se a uma própria experiência de futuro e
novamente reacende o contraste com o campo, que representa então o passado, a
organização da memória ganha espessura de lembranças rurais (a felicidade e a
ingenuidade acionadas constantemente), mesmo quando se referem a vivências nas
cidades.
Se isolarmos deste modo, fica faltando o presente. A idéia do campo tende à
tradição, aos costumes humanos e naturais. A idéia da cidade tende ao
progresso, à modernização, ao desenvolvimento. Assim, num presente
vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entre campo e cidade para
ratificar uma divisão e um conflito de impulsos ainda não resolvidos, que
talvez fosse melhor encarar em seus próprios termos.
9
E para suprir uma possível perda de rumo temporal, os meios de comunicação
(para o autor não apenas as redes de informação, mas também os sistemas e as lógicas
de transporte) apareceriam como orientadores fundamentais da vida urbana. Mais do
8
Ibidem. P. 293.
9
Ibidem. p. 397.
87
que um conjunto de técnicas, Williams entende as comunicações como o lenitivo da
experiência nas cidades modernas, pois oferece consolo à insegurança de viver entre
estranhos: seja na possibilidade de mergulho na subjetividade, ou na construção do
senso comunitário sendo que uma não se descola da outra. Assim, a cultura urbana
moderna equivale a uma cultura midiática, pois os meios de comunicação justamente
por se colocarem de modo central e marginal em nossas vidas funcionam como uma
nova espécie de consciência. Essa consciência compartilha de maneira desigual e
insistente eventos externos, dando-lhes narratividade, construindo sentidos gerais,
estabelecendo hierarquia entre as informações sobre o mundo social.
Walter Benjamin, ao analisar a modernidade oitocentista, distingue a experiência
de sensação, associando-as respectivamente à narração e à informação. As
comunicações de massa que tomam e orientam (ou acentuam a desorientação) o viver
nas metrópoles capitalistas afastavam-se da narrativa, e “esta não tem a pretensão de
transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação faz); integra-o
à vida do narrador, para passá-lo aos ouvintes como experiência”
10
. O caráter
fragmentário e disperso das formas comunicativas modernas justifica o próprio
método de Benjamin que se funde com a própria lógica que ele identificou nas
escrituras de Baudelaire , que não toma a cidade como narrativa única, mas como
uma sucessão de figuras, de imagens. Assim, a galeria imagética constituída por
Benjamin, a partir principalmente da obra de Baudelaire, situa-se no campo da
percepção.
Mas a fragmentação também deve ser entendida como fisionomia e não como
estrutura, como coloca Willi Bolle, “pela superposição de palavras, gêneros literários e
perspectivas de apresentação, Benjamin cria uma radiografia da mentalidade das
classes médias”
11
. A enxurrada de estímulos tem assim algum tipo de orquestração: a
empatia do homem moderno pela mercadoria e o flâneur, “no reino dos
consumidores, é o emissário do capitalista”
12
.
10
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.
107.
11
BOLLE, W. Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em Walter Benjamin. São
Paulo: Edusp, 2000. p. 103.
12
BENJAMIN, W. Op. cit. p. 199.
88
O sistema de consumo como fonte do imaginário predominante nas cidades
modernas encontra várias análises. Ben Singer estuda o aparecimento do
sensacionalismo na imprensa novaiorquina da Belle Époque, relacionando o pipocar de
imagens emocionantes de multidões enfurecidas, bondes e automóveis ensandecidos,
referência a mortes por acidentes, assassinatos, entre outros, com o desajuste frente às
transformações, o “choque do novo”. O sensacionalismo naquele contexto compunha o
quadro de “ansiedade de uma geração”
13
, vinculado ao grande desenvolvimento
comercial da imprensa. No mesmo livro, outro ensaio, de Vanessa Schwartz, associa
imprensa e o desenvolvimento de distrações urbanas na Paris do final do século XIX, que
dariam corpo a um sistema de turismo de massa na cidade. Os fait divers rubrica de
matérias publicadas no jornal sobre acidentes, crimes e excentricidades em geral
funcionavam em uma relação bidirecional retroalimentada por atrações muito
populares na cidade, como o necrotério (exposição pública de cadáveres não-
identificados), o Museu Grévin de figuras de cera e os panoramas e dioramas
14
.
Marshall Berman aponta que mesmo itens do sistema de consumo são suscetíveis a
ganhar novos sentidos no cotidiano urbano, ao falar sobre as relações entre
novaiorquinos e os anúncios publicitários de Times Square:
A capacidade humana de dar novos nomes às coisas é uma capacidade que
não deve ser eliminada pelas enchentes de mercadorias, nem ser reduzida a
uma aquiescência passiva, mantendo-nos íntima e imaginativamente vivos.
(Mas muitas vezes, exatamente quando estamos nos sentindo em casa com
nossos anúncios especiais, chegamos ao local e eles desapareceram. Tudo
que é sólido desmancha no ar”).
15
A cidade, ou o imaginário urbano, no sistema das mercadorias é o eixo para Beatriz
Sarlo pensar a Buenos Aires contemporânea, sem negar a historicidade
16
. Em La ciudad
vista, livro originado da proposta jornalística de uma coluna para a revista semanal do
jornal Clarín, a autora passeia pela cidade, por calles, galerias e shoppings, para perceber
13
SINGER, B. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, L.;
SCHWARTZ, V. R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 142.
14
SCHWARTZ, V.R. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela
realidade na Paris de fim-de-século. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. R. Op. cit. pp. 411-440.
15
BERMAN, M. Um século de Nova York: espetáculos em Times Square. São Paulo: Companhia das Letras,
2009. P. 42.
16
Essas reflexões de Sarlo foram estruturadas na obra Cenas da vida pós-moderna e ganham mais
espessura com o recente La ciudad vista.
89
a urbe: observa, fotografa, indaga passantes, mas também busca sentidos nas linhas das
gravuras, em formas fotografadas, nas escrituras de Borges, Arlt e outros, em páginas
de jornal, em relatos de viajantes e guias de turismo. Seu intento declarado é o de se
postar nos cruzamentos entre a cidade real e as cidades imaginadas principalmente
em um momento particular da Argentina, marcado por crises de identidade em função
das transformações e abalos na história recente local.
Na “cidade das mercadorias”, Sarlo contrasta a retórica espacial do shopping
center, modelo central e símbolo de todas as formas de consumo, com a ocupação tensa
e intensa das ruas pelos vendedores ambulantes, figuras típicas dos cenários urbanos de
Terceiro Mundo. A segunda cidade de Buenos Aires é a “cidade dos pobres”, dos
espaços da sociabilidade dos moradores das ruas da capital argentina, os cenários que
se associam à pobreza e a questão do imaginário da violência nas cidades
latinoamericanas. Da formação imigrante de Buenos Aires, Sarlo desenha a vivência dos
“estranhos na cidade”, apontando as tensões entre a imagem do cosmopolitismo com
os preconceitos arraigados e as delimitações espaciais. ainda a “cidade imaginada”
traçadas nos roteiros turísticos de Buenos Aires, narrada na constante reconstrução dos
índices de autenticidade da cultura portenha, da ação cultural da classe média para
ressignificação dos espaços e da dissolução territorial na configuração de uma
cibercidade.
Além disso, discute a instituição de narrativas e imagens de cidades que existem
como idéias das utopias modernistas à visão distópica de Borges, e as representações
gráficas do espaço urbano. Trabalhando a noção de “cidades escritas”, Sarlo afirma que
essas escrituras mesmo quando ligadas a um referente existente não devem ser
tomadas por explicações fáceis como a de que “a literatura produz a cidade”, mas deve-
se sim entender essa relação em função das dinâmicas espaço-temporais. “A literatura
se refere às consciências do desaparecimento da cidade velha ou da emergência da
cidade nova”
17
. Fantasmas do passado e projeções de futuro: nostalgias, esperanças,
medos, culpas... (“conflitos de impulsos ainda não resolvidos”, como disse Williams).
Mas tempo e espaço são inseparáveis, quando não são indistintos apoia-se aqui em
17
SARLO. B. La ciudad vista: mercancías y cultura urbana. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2009. p. 147.
90
Bachelard, que concebe o tempo espacializado: nossa recordação não é de um
tempo, mas de um espaço.
Mas o tempo do espaço vivido é o presente passado e futuro são vividos no
que se mostram na atualidade e é nesse atrito de tempos que a “cidade escrita”
resvala na “cidade real”. Na experiência do turista, esse fluxo de passado e futuro no
presente é mais facilmente notado. O que o turista busca, de modo geral, são
experiências de antemão definidas. Assim, tanto o tempo, quanto o espaço do
turismo nas grandes cidades encontram-se em suspensão, que os roteiros atendem a
determinadas formas de apreendê-las, a partir de um repertório limitado de
experiências e sensações, ligado normalmente ao apelo histórico e de modernidade dos
locais visitados. “Para se mover pela cidade estrangeira, o turista não tem outro
remédio, que não o de construir um argumento e definir personagens”
18
.
Os habitantes têm também muitas imagens estereotipadas sobre sua cidade, mas
pelo fato de terem sido acumuladas ao longo de suas vidas, alternando momentos de
distração e atenção para vários aspectos, a identificação de um “enredo” único pode ser
um pouco mais difícil. E isso pode ser mais agravado pelo processo de desurbanização
(entendida como a restrição, virtualização ou pura simulação dos espaços públicos),
propiciado principalmente pelas novas tecnologias.
A simulação é a forma elementar de invenção de um relato, um momento de
imaginação praticado com os materiais que se tem a mão, sobras e desejos,
valores e preconceitos, do mundo das mercadorias que se aloja na cidade real.
Ela [a simulação], todavia, fixa os ritmos das cidades imaginadas e define os
estilos inclusive de aqueles que imaginam uma independência original.
19
E os efeitos das formas comunicativo-expressivas, no contexto de um mundo
globalizado sedento por definições identitárias, apontam para um campo de
classificações sobre a cidade.
Criando um quadro teórico sobre a produção social do urbano no capitalismo,
Henri Lefebvre amarra as noções de imaginário e práxis e identifica três dimensões do
espaço: o vivido, o percebido e o imaginado. No plano do vivido, Lefebvre situa as
práticas sobre o espaço materialmente concretizadas (a produção de infraestrutura, o
18
Ibidem. p. 188.
19
Ibidem p. 216.
91
uso do solo, a propriedade privada, a circulação de mercadorias e valores, as relações de
trabalho etc.). No segundo nível, do percebido, estariam localizadas as maneiras de
perceber sensorialmente o espaço, as representações do espaço, o mapeamento, as
formas arquitetônicas, as hierarquias de ocupação espacial, as demarcações territoriais,
a comunicação espacial etc.
E o plano do imaginado engloba a noção dos “espaços de representação”, que vão
desde os sentidos construídos pela publicidade ou pelo grafite na textura da cidade até
as mitologias sobre o espaço, passando pelas projeções utópicas e pelas paisagens
criadas na ficção (“espaço literário, espaço ideológico, espaço do sonho, topologias
psicanalíticas e assim por diante.”
20
). Esses espaços de representação estabelecem as
ligas de relacionamento afetivo com o espaço (laços de familiaridade), as noções de
insegurança e estranhamento, bem como a ideia de tradição e civismo, as poéticas de
espaço etc.
O relacionamento dialético entre essas três dimensões, segundo o autor, é o que
consistência histórica às práticas espaciais. O espaço mentalmente concebido age
diretamente nas representações (o percebido), bem como nas forças de produção
material e das práticas espaciais (o vivido). Lefebvre atenta, assim, que a produção
mental do espaço e as representações não podem ser tratadas como um dado extra-
ideológico tratamento esse que o autor identifica nos estudos semiológicos , por mais
que na aparência alguns fenômenos espaciais apontem para isso.
Simbólico, imaginário e social
A noção de imaginário apresenta complexidade conceitual, principalmente devido
à sua consistência imaterial atrelada a suportes simbólicos que atuam e organizam a
vida social. Há concepções diferentes que não obrigatoriamente carregam relação
mútua de exclusão que identificam o imaginário com a transcendentalidade
(metafísica, poética, racionalismo), ou ainda, como componente da psique humana, e
também em dinâmicas e fluxos sociais de poder e cultura.
20
LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Anthopos, 2000. p. 3
92
Gilbert Durand define que a consciência dispõe de duas maneiras de representar
(e se relacionar) com o mundo: direta por meio da percepção e das sensações e
indireta quando o objeto representado está ausente. Neste segundo caso, o que
aparece são os signos, que por sua vez podem ser de dois tipos: arbitrários (por
convenção) ou alegóricos (signos complexos, que figuram parte do que representam).
Destas formas sígnicas, Durand difere a ideia de imaginação simbólica, que não se refere
a um objeto sensível, mas a um sentido. Assinala ainda que o símbolo imaginário
poderia ser tomado como o inverso do signo alegórico, pois enquanto este parte de uma
ideia abstrata para chegar a uma figura (a representação, a alegoria), aquele toma uma
figura como fonte para a constituição de ideias.
Assim, o significado do símbolo imaginário não é acessível, mas é tido como uma
“epifania, isto é, aparição, através do e no significante do indizível”
21
. O autor aponta
então para o domínio do simbolismo como o inconsciente, o metafísico, o sobrenatural
e o surreal. A constituição do mito seria uma espécie de redundância simbólica
entendida como a repetição de relações lógicas e linguísticas sobre um tema. Durand
relaciona o símbolo imaginário com a transcendência, e assim quando ele reaparece na
cultura ocidental mais recente reduzido ao seu “poder sociológico”, na verdade uma
transformação do símbolo em signo: “a imagem simbólica, ao encarnar-se numa cultura
e numa linguagem cultural corre o risco de esclerosar-se em dogma e em sintaxe”
22
.
Buscando distanciar-se do determinismo das estruturas, e identificar “capacidades
geradoras” criativas, inventivas e ao mesmo tempo fugindo da figura da
transcendentalidade, Pierre Bourdieu também oferece ferramentas teóricas para pensar
o simbolismo
23
. Partindo de Durkheim, Bourdieu define que os sistemas simbólicos
podem funcionar como meios de conhecimento e comunicação porque são estruturas
estruturantes como a religião, a língua, a arte. Mas para exercer esse papel
estruturante, afirma o autor, esses sistemas são estruturados ou seja, as formas
simbólicas são passíveis de terem sua estrutura isolada para análise.
21
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 2000. p. 11.
22
Ibidem. p. 30.
23
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
93
Os símbolos, organizados em sistemas, estabelecem um sentido de ordem para o
mundo, atuando na integração social. Esse poder comunicante possibilita a constituição
do consenso sobre a ordem estabelecida, e aí que já é possível verificar a função política
que cumprem os sistemas simbólicos. O poder simbólico pode, assim, impor
significações para o mundo social e legitimá-las constituindo a face ideológica do
simbolismo (a violência simbólica).
Bourdieu assinala as produções ideológicas não devem ser tomadas como mitos,
pois não são “totalidades autosuficientes e autogeradas”, têm sua estrutura e função
ligada às condições sociais que as geraram, atendendo assim a uma lógica específica do
campo de produção e dos interesses do criador. Assim, os sistemas simbólicos localizam-
se em campos que servem para organizar os embates e legitimar sentidos, o que
funciona, segundo Bourdieu, como uma forma de eufemizar ou de mudar a feição do
discurso político, que está na base da constituição dos campos. E estritamente ligada à
noção de campo, aparece o conceito de habitus que o autor define como um conjunto
de interiorizações e exteriorizações dos agentes que participam do campo e que faz com
que os primeiros ajam de acordo com as possibilidades que existem dentro da estrutura
do segundo.
Cornelius Castoriadis entende que o sistema simbólico é fundamental para a
existência das instituições sociais e que estas não se esgotam no símbolo. Discute neste
ponto a noção de alienação, que define como a automatização das relações entre a
sociedade e suas instituições. O autor observa que as instituições não cumprem apenas
um papel econômico-funcional, que não operam somente no fornecimento de
respostas a necessidades anteriormente formuladas, mas elas atuam na própria
definição das necessidades.
O simbolismo gerado nunca é inteiramente novo, ele “se edifica sobre as ruínas
dos edifícios simbólicos precedentes”
24
. Práticas antigas ganham novos nomes e marcas
e passam a significar coisas novas. E os significantes apresentam capacidades ilimitadas
de aderência a novos significados. Analisa que a noção de racionalidade das instituições
apresenta-se, muitas vezes, “indiferente” à própria funcionalidade o sistema racional
se impõe às funções.
24
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 147.
94
Agora isso não quer dizer que as formas simbólicas têm existência autônoma, elas
existem na materialidade social, e também não determinam o “conteúdo” da vida
social, pois não há relação de anterioridade entre o símbolo e o mundo.
O simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que estava lá);
participa enfim, do racional. Tudo isto faz com que surjam encadeamentos de
significantes, relações entre significados, conexões e consequências, que não
eram nem visadas nem previstas. Nem livremente escolhido, nem imposto à
sociedade considerada, nem simples instrumento neutro e medium
transparente, nem opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem
senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, nem meio de
participação direta e completa de uma ordem racional, o simbolismo
determina aspectos da vida da sociedade (...) estando ao mesmo tempo, cheio
de interstícios e graus de liberdade.
25
Existe então a utilização automática dos símbolos, mas também o uso refletido da
simbologia. Castoriadis toma como exemplo a linguagem: ao mesmo tempo em que
estamos presos ao sistema comunicativo-expressivo, a linguagem nos oferece
possibilidades ilimitadas, inclusive de questionarmos nossa relação com ela. O
simbolismo é passível de ser dominado.
Mas os símbolos não são autônomos e sentidos que não vêm propriamente do
mundo social, falta assim algum elemento: o imaginário. Tomando inicialmente o
imaginário como aquilo que se descola do real, Castoriadis observa que as fabulações
imaginárias não apenas se exprimem, como também existem por meio do simbólico.
Assim o significante (simbolismo) e significado (imaginário) se aderem tão fortemente,
que seus limites não seriam facilmente reconhecíveis.
Pois, se o simbolismo se adere tanto ao mundo social, como ao imaginário, supõe-
se que essas duas esferas (social e imaginária) não se encontram assim tão destacadas
uma da outra. Castoriadis concebe o sistema simbólico como a amarração entre o
imaginário e o social, estabelecendo uma relação de interdependência. A rede de
significações pela qual a sociedade se liga aos símbolos partiria de três concepções: o
percebido, o racional e o imaginário. Mas o percebido e o racional configurariam sempre
um sistema de significações secundárias, que brotariam a partir de uma significação
central (imaginária), e se multiplicariam e se modificariam.
25
Ibidem. p. 152.
95
O imaginário está na raiz da alienação, pois embaça as distinções entre significante
e significado, automatizando o simbolismo institucional a rede de significações presa
às coerções sociais, Castoriadis a chama de imaginário efetivo. E também na da criação
(o imaginário radical) se tomarmos o campo artístico para exemplificar, a arte mais do
que descobrir algo, evoca ou constitui algo (consistência inconsciente). E como a criação
está dentro de um campo (Bourdieu) de legitimação, logo afeta ao mesmo tempo em
que é afetada pela institucionalização. Novas significações podem, assim, ser assimiladas
pelo imaginário instituído socialmente, como também, promover fissuras nele.
Castoriadis identifica que a racionalidade é o grande sistema de produção
simbólica da modernidade e assinala que a consistência imaginária deste sistema fica
evidente na criação explícita de necessidades pela economia. A história equivale para
Castoriadis ao fazer histórico e é inconcebível fora da imaginação criadora (ou
imaginário radical), pois constitui um universo de significações que articula sentidos para
uma variedade infinita de formas de o homem ser no mundo. Essas significações
imaginárias respondem a questões também imaginariamente formuladas questões
essas assentadas basicamente no campo das identidades sociais.
Exemplifica ainda utilizando as figuras do historiador e do etnólogo: ambos devem
compreender o universo de babilônios ou bororos, afastando determinações que não
sejam destas culturas; mas eles não deverão se transformar em bororos ou babilônios,
pois estes não são etnólogos ou historiadores; logo os pesquisadores não devem se
assimilar a seus “objetos” e sim “explicar aos parisienses, aos londrinos, aos
novaiorquinos de 1965 esta outra humanidade”
26
. Constituem narrativas estruturadas
dentro do campo de seus saberes Clifford Geertz assinala bem a distinção entre o
relato etnográfico (construído a partir de percepções e interpretações) do pesquisador e
as experiências nativas
27
.
Símbolos, práticas e imaginário, entrelaçados, dão assim a consistência da
existência humana, ou como afirma Castoriadis:
O homem é um animal inconscientemente filosófico, que fez a si mesmo as
perguntas da filosofia nos fatos, muito tempo antes de que a filosofia existisse
26
Ibidem. p. 195.
27
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
96
como reflexão explícita; e é um animal poético, que forneceu no imaginário
respostas a essas perguntas.
28
Na concepção de imaginário de Castoriadis, o social não se reduz ao simbolismo,
como dito, mas o canal para o simbólico atingir o mundo parece reduzidos às
instituições. O imaginário radical, o campo da criação, da subversão, localiza-se na
psique, que na sua confrontação histórica com as determinações institucionalizadas
permite que se constitua a autonomia do indivíduo para refletir, deliberar e atuar
criativamente sobre o mundo.
A questão da autonomia dos indivíduos não deve ser negada, mas pensando-a nos
termos de Bourdieu, podemos perceber sua dinâmica: o campo, a estrutura
estruturante, não aniquila a ação individual, mas orienta (consciente e
inconscientemente) as opções desta. O habitus pode, então, ser entendido como uma
marca identitária, mas seu princípio é o de mediação entre sociedade e indivíduos, e não
determinista, ou seja, atua em mão dupla. Assim, se o campo não é uma figura
transcendente, é um sistema em continuo processo de construção, resultado do jogo de
relações entre os agentes.
Talvez a noção de campo nos uma pouco mais de flexibilidade para pensar o
social e habitus, como instância do simbólico, mas Raymond Williams aparece com um
conceito que aprofunda essas relações: a estrutura de sentimento. Williams não trabalha
explicitamente o conceito de imaginário social, mas, conforme analisa Beatriz Sarlo, é
possível situar os estudos do culturalista inglês justamente nesse campo, apesar do
termo nunca ter aparecido nos trabalhos do autor.
29
Da lista de conceitos trabalhados por Williams, é possível extrair elementos que
tentam dar conta da complexidade do cultural, com os emaranhados que ligam o
simbolismo às dinâmicas sociais. Ele questiona a vinculação do termo social a processos
do passado, ou seja, acabados, apresentados de maneira fixa e explícita. Em
contraposição a isso, haveria a experiência presente, associada à subjetividade e ao
pessoal.
28
CASTORIADIS, C. op. cit. p. 178.
29
SARLO, B. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 2005. P.
95
97
A proposta de Williams, então, é a de pensar o social não como formas fixas, mas
como algo movediço, e que pode operar rupturas ou releituras. Para isso, é útil a
conceituação tripla das dinâmicas sociais: dominante, residual e emergente. O
dominante obviamente vincula-se à ideia de hegemônico, de cunho generalizante. Mas
essa noção ganha relevo se não se excluir ou relegar a posições secundárias ou
marginais as outras duas. Residual é o que foi formado em tempo pretérito, que
diferente de “arcaico”, o primeiro continua ativo no processo social presente, logo é
dificilmente reconhecido como elemento do passado, embora sua presença seja
evidente. Junte-se isso práticas, relações, valores e significados que são continuamente
criados o que Williams chama de emergente. O autor observa que o emergente pode
ser difícil de ser percebido, que a possibilidade de incorporação pelo dominante é
constante e há caso que nem se trata de uma incorporação, mas sim de uma nova fase
do dominante. O próprio sentido da incorporação não é também único, pois pode ser
tomado como a limitação do emergente, ou como o reconhecimento e a aceitação dele.
A essas dinâmicas aparecem atreladas a outros três aspectos: as instituições, as
tradições e as formações. As instituições cumprem o papel de legitimação da cultura
dominante ou hegemônica, que compreendem família, educação, igreja, trabalho, como
também, nas sociedades modernas, “os grandes sistemas de comunicação, que
materializam notícias e opinião, e uma ampla variedade de percepções a atitudes
selecionadas”
30
. Mas, ressalta, a soma das instituições não resulta em uma “hegemonia
orgânica”, a própria cultura dominante é um processo complexo, em que se pode
identificar contradições e conflitos não-resolvidos.
A tradição, como campo do residual, não é “inerte e historicizada”, mas é definida
como um dos principais elementos que marcam os limites da cultura dominante ou da
atuação das instituições. Pensa na ideia de uma “tradição seletiva”, que trabalha
sempre colocando ênfase em alguns significados e práticas, ao mesmo tempo, que exclui
outros. E nesse sentido, executa um dos movimentos fundamentais da organização
social e cultural contemporânea. Além desses, atuam ainda as formações, que são
identificadas com movimentos e tendências da literatura, das artes, da filosofia e da
ciência que não se equivalem totalmente às instituições. Pois é às formações que o
30
Ibidem. p. 121.
98
emergente se cola, embora elas também possam atuar em consonância com a cultura
dominante.
Com essa ideia de dinâmicas culturais em interação, apontando para movimentos
complexos, Williams frisa que “nenhuma ordem social dominante e portanto nenhuma
cultura dominante, nunca, na realidade, inclui ou esgota toda a prática humana, toda a
energia humana e toda a intenção humana”
31
. E é para dar conta dessas formas sociais
em movimentação, que aparece a noção de estrutura de sentimento. A expressão,
ressalta Williams, foi criada para se distinguir de visão de mundo e ideologia.
uma diferença entre consciência prática (o campo das experiências) e
consciência oficial (ideologia ou cultura dominante). “A consciência prática é aquilo que
está sendo realmente vivido, e não aquilo que acreditamos estar sendo vivido”
32
. Ou
seja, Williams restitui o campo da experiência, como o do momento original.
Modificações na estrutura de sentimento fazem notar sua presença, antes de serem
definidas, classificadas e racionalizadas (ou seja, em processo de institucionalização).
Williams cita como exemplo a língua: uma geração nunca fala a mesma língua de seus
antecessores, pois sempre modificações, e estas não são pontuais, uma mudança
geral de tom, de estilo, que é acompanhada em outros campos como no jeito de se
vestir, de se comportar, na arquitetura, entre outras formas. Assim, a estrutura de
sentimento define qualidades especiais da experiência e das relações sociais, o que
ajuda a construir as distinções entre gerações e períodos.
Essas formas não são tomadas como algo alheio à experiência, mas elas
configuram a própria experiência não são reflexo, nem mediação
33
. “O problema é
diferente, desde o início, se virmos a linguagem e a significação como elementos
indissolúveis do próprio processo social, envolvidos permanentemente na produção e na
reprodução”
34
. E a estrutura de sentimento seria então a resposta metodológica de
31
Ibidem. p. 128.
32
Ibidem. p. 133.
33
Williams entende reflexo como a separação total entre realidade e representação, sendo que a segunda
poderia então tomar a primeira em sua verdade, por meio da objetividade ou do naturalismo, ao se
afastar disso, a realidade apareceria deformada. A noção de mediação pressupõe a simbolização como um
processo ativo, é sempre uma construção, que não reflete, mas intermedia, atuando socialmente. Pois,
Williams assinala que, tanto uma noção quanto outra, as metáforas do reflexo e da mediação, partem da
ideia de duas áreas separadas: a “realidade” e o “falar sobre a realidade”.
34
Ibidem. p. 102.
99
Williams para identificar algo imanente no formalizado Beatriz Sarlo diz que é “uma
noção quase tão inapreensível quanto o que busca definir-se por intermédio
dela”
35
.Tons, impulsos, estilos, afetos, consciência, experiência, sentimentos: noções
difíceis que Williams traz para dentro de seu conceito e as igualam em relevância às
convenções estabelecidas. Mas é uma estrutura, logo apresenta relações e hierarquias
internas “ao mesmo tempo engrenadas e em tensão”
36
.
E talvez o mais importante, a estrutura de sentimento conta de uma
experiência social em processo (por isso, Williams utiliza o conceito mais comumente
para tratar de períodos de longa duração), ou seja, no momento presente em que
acontece. Então Williams identifica que em traços materiais, principalmente nos objetos
artísticos, é possível detectar as marcas de uma presença que foi vivida, e isso não se
localiza perfeitamente nem no campo das instituições, nem na ideologia, nem nos
recursos culturais locais, nem nos indivíduos e suas particularidades, mas também não
está fora de nenhum deles. É social, atua na organização de sentidos e valores, que
no momento em que emergiam (e mesclavam-se ao dominante e ao residual) eram
formações semânticas sociais ainda não sistematizadas. A partir do momento que essas
formas são assimiladas pelas instituições, elas ficam mais reconhecíveis, mas aí já deram
lugar a uma nova estrutura de sentimento que começa a se formar.
E nessas formas do sentimento ou da experiência pensadas por Williams podemos
enxergar a noção de imaginário, que tem sua origem no social e engendra relações e
sentidos, vivências e imagens e deixa suas marcas no simbólico
37
.
35
SARLO, B. Paisagens imaginárias. p. 91.
36
WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. p. 134.
37
Sobre a ausência da palavra imaginário na descrição desses processos culturais por Williams, tomamos a
seguinte passagem para entender uma possível objeção do autor no uso do termo: “as formas sociais são
então admitidas com desprezo, de qualquer relevância possível para essa significação imediata e atual de
ser. E das abstrações formadas por esse ato de exclusão a ‘imaginação humana’, a ‘psique humana’, o
‘inconsciente’ e suas ‘funções’ na arte, no mito e no sonho formas novas e deslocadas de análise e
categorização social, sobrepondo-se a todas as condições sociais específicas, são mais ou menos
rapidamente desenvolvidas”. (Ibidem. p. 132)
100
Imaginários paulistanos: imagens totalizantes
As imagens e narrativas totalizantes, aqui, podem ser tomadas como mito,
conforme a conceituação de Durand “um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e
esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a compor-se em
narrativa”
38
, é a redundância semântica sobre um tema que incide na organização da
vida social. Poderíamos também nos referir a elas a partir da ideia de imaginário efetivo
de Castoriadis ou ainda como formações ideológicas, conforme expressão de
Bourdieu. Das grandes narrativas sobre a cidade de São Paulo, construídas
historicamente, espirram inúmeros espectros que tomam formas variadas no sistema
comunicativo-expressivo. Pensando em uma sociedade urbana, de massa, a ideia de
imagens totalizantes associa-se principalmente aos sistemas culturais dominantes
(Williams), notadamente pelos meios da comunicação de massa, mas também presentes
na construção historiográfica, na ciência, no direito, nas linguagens, na literatura e nas
artes. E por esse caráter redundante e abrangente, podem ser tomadas como a base
para a constituição políticas de um sistema identitário a “identidade paulistana”.
Non Ducor Duco
“O que é teimoso, birrento, turrão” é uma das acepções que constam no verbete
“paulista” do dicionário Houaiss. Não informa se se trata de algum tipo regionalismo,
nem a origem de tal concepção.
O historiador Elias Thomé Saliba, ao se propor traçar um panorama da identidade
histórica de São Paulo, observa que a narrativa sobre a figura do “paulista” (paulista
mais no sentido de habitante da capital do que do estado, equivalente a paulistano)
começou a ser formada a partir da chamada “segunda fundação” da cidade. Essa ideia
de uma refundação significativa já por si, como assinala o autor coincide com o início
do processo de metropolização a partir de 1870. assim o destacamento do período
anterior uma espécie de “pré-história” da cidade e a sua formação identitária com
isso passa a se vincular ao próprio contexto da metrópole.
38
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 62
101
Observa-se, segundo Saliba, um processo de esquecimento, um vácuo, e com isso
a necessidade de criação de um passado para a cidade, nas décadas de transição do
século XIX para o XX. Essa constituição de uma histografia paulistana funda-se, então,
tomando por base a construção de nobiliarquias e de elaboração de um passado
bandeirante. “Trata-se de uma narrativa monumental que se sobrepõe às narrativas
menores e fragmentadas, amealhadas pela crônica circunstancial”
39
.
A vinculação entre paulista e bandeirante foi um processo longo. os primeiros
movimentos na historiografia, conforme descreve Saliba, nas primeiras décadas do
século XX, de erguimento de narrativas que apresentam as bandeiras como empreitadas
heróicas. A “raça de gigantes” era então caracterizada, de forma mítica, por sentimentos
nobres: audácia, lealdade, vocação de mando, emancipação. E é a partir do final da
década de 1930, que o autor encontra registros histográficos em que paulista e
bandeirante aparecem sobrepostos. E é curioso notar que mesmo na constituição de
uma identidade para a nascente metrópole moderna e negando a história desta, o
arquétipo do discurso dominante não é propriamente um tipo novo, um homem
moderno, mas a idealização de uma figura de tempos remotos que originalmente pouco
tinha de traços urbanos. Indício de que o imaginário se constitui a partir de imagens
existentes, como afirmou Castoriadis ou como Williams percebeu em muitos de seus
estudos.
Todo esse processo de construção identitária do “paulista” é parte de um processo
maior de afirmação de uma posição de hegemonia de São Paulo no cenário nacional,
principalmente depois da derrota política das elites locais na Campanha Civilista, de
1910. Esse processo ganha mais força quatro anos depois com o início da administração
de Washington Luís, que explicita um “nacionalismo paulista”, fortificando a ideia de
que São Paulo como expresso no escudo da cidade, criado nesta época por Wasth
Rodrigues e Guilherme de Almeida não é conduzida, mas conduz a nação ao
progresso.
40
39
SALIBA, E.T. Histórias, memórias, tramas e dramas da identidade paulistana. In: PORTA, Paula (org.).
História da Cidade de São Paulo, v. 3: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra,
2004. p. 570.
40
SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole. pp. 137-138.
102
O mito do bandeirante foi, assim, um conjunto de símbolos que serviu à afirmação
do poderio de São Paulo e da adesão à federação, que se desdobrou na imagem da
locomotiva que puxa os vagões “São Paulo, a locomotiva do Brasil”.
Cosmopolitismo e paulistanidade
A figura do bandeirante, devidamente desodorizada dos assombros da violência
que marcou o processo de ocupação territorial brasileiro, funcionou tanto para agregar
como discriminar, conforme observa Saliba. O termo emboaba, utilizado desde o século
XVII, fornecia a imagem do outro para o personagem: emboabas eram os que não
descendiam das famílias de bandeirantes. E, no contexto da metropolização, a palavra
“voltaria a ser utilizada, primeiro de forma sutil, para estabelecer diferenças com a
chusma de adventícios que, com os tumultuários fluxos migratórios, veio a estabelecer
em São Paulo nas décadas iniciais do século XX”
41
. Foi inclusive cunhado o termo
quatrocentão, para designar a nobiliarquia bandeirante e criar contraste com a
burguesia emergente de origem imigrante.
Mas, ressalta Saliba, bandeirante (ou paulista) ganhou forte conotação
assimiladora, designando todos que participassem da vida na cidade (todos os que
“trabalhassem para São Paulo crescer”). Assim, a visão de um tipo cosmopolitismo
começou a pairar sobre as concepções da cidade.
Nicolau Sevcenko narra a construção do mito da “Babel invertida” para o Brasil,
sugerido inicialmente por Alberto Torres. O romance Canaã, de Graça Aranha, lançado
em 1901 na França e no ano seguinte no Brasil, apresentava o embate sobre a formação
racial brasileira com o fluxo migratório da Europa: de um lado a visão racista, ecoando
um certo darwinismo social, representada pelo personagem Lentz; de outro, a crença na
fusão das raças selvagens e avançadas, como meio para a humanidade rejuvenescer, do
personagem Milkau, para quem o Brasil, com sua miscigenação, seria a terra
prometida”.
O mito da Babel invertida, recorrente na crônica de jornais paulistanos, responde
diretamente a esses dilemas da miscigenação e da formação identitária brasileira, e São
Paulo aparecia como a encarnação perfeita do cosmopolitismo tropical o novo mundo
41
SALIBA, E. T. Op. cit. p. 574-575.
103
vigoroso e aberto, em comparação à velha Europa dividida. Sevcenko assinala que se
trata de um mito de raiz claramente urbana, seja pelas metáforas entre torres e
edifícios, ou por se apoiar na ideia de que um supraestranhamento propiciaria uma nova
percepção que levariam a humanidade a um novo estágio de civilização.
E a força deste cosmopolitismo harmonioso parece reverberar até os dias
recentes, com seu desdobramento para a noção de multiculturalismo, expressa em
evocações do tipo: a mistura de sotaques, uma das maiores variedades gastronômicas
do mundo, a convivência pacífica entre árabes e judeus, churrasco grego e tapioca
oferecidos na mesma calçada, o rico calendário de festas étnicas, maracatu e forró
universitários... ou ainda, onde mais encontrar um bairro pontuado por sinagogas,
letreiros de lojas e escritórios em coreano e passantes bolivianos de feições índias? Em
um filme promocional recente produzido para veiculação em rede internacionais de TV,
o slogan dizia “São Paulo, todas as cidades do mundo”.
Mas, comenta Sevcenko, o mito não inverteu a Babel. A situação de penúria e
desenraizamento de ádvenas ficou registrada ao longo da história da cidade. Os
preconceitos contra negros, índios (os escassos que fugiram dos consecutivos
extermínios), caipiras, imigrantes europeus e, podemos acrescentar migrantes
nordestinos e imigrantes bolivianos, africanos, entre outros, em São Paulo não se
dissolveu simplesmente nas fabulações sobre o cosmopolitismo doce, foram no máximo
encobertos por estas. A necessidade de sobrevivência mais do que algum tipo de
idealismo trouxe essas populações para a cidade, e seus cotidianos não podem ser
descritos exatamente a partir de uma visão idílica da “terra prometida”. “Mais do que o
mito de Babel, nessa ordem de metáforas, São Paulo para estes grupos evocaria o
Cativeiro da Babilônia”
42
.
A questão da identidade paulistana foi tópico que permeou as propostas
modernistas, lembrando que este movimento artístico “nasceu na esteira daquela busca
da hegemonia pelas elites paulistanas”
43
. Saliba observa que o modernismo paulista foi
paradoxal, pois ao mesmo tempo em que aderia a alguns dos radicalismos estéticos das
vanguardas européias, ligava-se ao ideário mais conservador das elites locais. “O mito
42
SEVCENKO, N. Op. cit. p. 39.
43
SALIBA, E. T. Op. cit. p. 575.
104
bandeirista também permitiria justificar, de forma flexível e plástica, a fusão com as
populações nativas ou, com aquilo que sobrou delas depois do perverso processo de
metropolização”
44
.
Saliba identifica que havia uma cisão no grupo com relação a este ponto. De um
lado, os que defendiam uma identidade hegemônica paulista que mantivesse laços com
uma identidade nacional: a paulistanidade dos verde-amarelistas, que definia São Paulo
como o centro da nacionalidade, justamente pelo caráter assimilativo da metrópole.
Obras como o livro Raça, de Guilherme de Almeida, ou o Monumento às Bandeiras, de
Brecheret, seriam representantes desta vertente. E de outro lado, artistas e intelectuais
críticos à ideia da paulistanidade, que trabalhavam menos pelo viés da identidade
hegemônica (expresso no conceito de “raça”), e mais com a concepção de cultura, como
Mário de Andrade.
Progresso
O processo de urbanização e modernização da cidade de São Paulo foi anterior à
industrialização e bancado pela oligarquia cafeeira. Este dado, acredito, vincula-se
diretamente à ânsia progressista que tomou os discursos oficiais sobre a cidade ao longo
do século XX. A ideia de progresso é muito marcante no imaginário urbano ocidental de
modo geral. No caso paulistano, isso talvez tenha sido amplificado para que justamente
a distinção cidade-campo ganhasse contornos mais nítidos, em função do quadro
histórico local (e não no caso de grandes centros urbanos, veja que ainda hoje é
comum em certos pequenos municípios, a autocaracterização como “a progressista
cidade” ou similar).
Um imaginário constituído em torno da noção de progresso expõe claramente a
projeção de futuro sobre a experiência do presente. A tematização do progresso liga-se
diretamente à valorização do moderno e da racionalidade. Sevcenko identifica que o
vocábulo “moderno” se transformara numa espécie de palavra-fetiche no contexto
metropolitano dos anos 20. Ele observa a absoluta disseminação do termo na
publicidade e no jornalismo para descrever e caracterizar objetos e atividades das mais
variadas naturezas (talvez, algo semelhante ao que acontece atualmente com termos
44
Ibidem. p. 576.
105
como cidadania, consciência, respeito e responsabilidade), vinculadas principalmente às
esferas do consumo, da comunicação, da cultura.
Medicina moderna, modelos da última moda em Paris, fiambres enlatados, vitrola
moderna para os jovens ouvir os novos ritmos, reconstruções históricas no cinema...
Formas atualizadas, tecnologia de ponta, retórica cientificista: elementos básicos a
constituir o moderno. Sevcenko descreve um ilustrativo anúncio publicitário do sapólio
Radium:
a pequena barra do saponáceo irradiava uma auréola de brilho espontâneo ao
seu redor, idêntica àquela do mineral radioativo descoberto pelos cientistas
Marie e Pierre Currie apresentados no quadrinho ao lado, idêntica também à
substância da equipagem terapêutica usada por médicos no quadrinho
seguinte e idêntica, por fim, ao brilho radiante das louças e panelas no último
quadrinho.
45
O autor assinala que o vocábulo “moderno” representou uma “palavra-origem”
que deu um novo sentido à história da cidade, que se naturaliza em discurso não como
uma cidade do passado, mas do futuro. O mundo do trabalho também aparecia
embebido na retórica do moderno. Cursos, nas escolas ou em manuais, ofereciam
formação para as “profissões modernas” e que davam “estímulo à iniciativa, à ruptura
de laços, à ousadia”
46
. Verdadeiros bandeirantes modernos.
E o trabalho é uma das esferas importantes a compor o imaginário ligado ao
progresso em São Paulo. O orgulho tão pronunciado de ser “cidade do trabalho”, “de
gente trabalhadora” ou “a cidade que não para”. A ética do trabalho aparece totalmente
entrelaçada na trama discursiva que constitui o imaginário efetivo de São Paulo. Figuras
associadas à “vadiagem” ganham normalmente carga negativa no contexto paulistano,
contrastando, por exemplo, com figuras carismáticas como a do malandro tão forte em
outros folclores regionais.
A racionalização do trabalho, do urbanismo, dos transportes, das políticas
públicas, do conhecimento é tomada como a chave para alavancar o progresso de São
Paulo. Sevcenko descreve, por exemplo, como o governo de Washington Luís deu ênfase
a “processos de racionalização administrativa, gerenciamento tecnocientífico,
45
SEVCENKO, N. Op. cit. p. 230.
46
Ibidem. p. 230.
106
historiografia, museologia, ciências socais, estatísticas e censos, desfiles militares,
ginástica, esportes, corridas, fotografias, cinema, carros e aviões”
47
. Mais tarde com o
deslanchar do processo de industrialização, as marcas dessa retórica calcada na
racionalização do cotidiano e da cidade ficam mais fortes, desdobrando-se inclusive em
estereótipos ligados à sisudez do paulistano.
Nas comemorações do IV centenário da cidade de São Paulo, em 1954, todas estas
imagens bandeirante, mistura de raças, paulistanidade, modernização, racionalização
ganham forte eloquência, agora em um contexto de plena industrialização. É curioso
notar que, apesar do clima de comoção criado em função da efeméride, as mensagens
amplamente divulgadas pela imprensa, pela publicidade, pelas artes, pela comunicação
oficial, pela arquitetura não exaltam a cidade em termos puramente emocionais,
quase sempre um tom de sobriedade, conotando o caráter racional do progresso
paulistano. Podemos tomar como exemplo a exaltação do formalismo e da
geometrização influenciada por movimentos e tendências estéticas influentes na
época nos cartazes dos eventos ligados à comemoração, ou ainda, como observa Silvio
Luiz Lofego, o amplo uso de fotografias aéreas da cidade, o que segundo a consultoria
técnica do serviço de propaganda permitia “com exatidão, dar uma idéia da grandeza de
São Paulo”
48
.
Mais recentemente o fantasma do progresso industrial é sucedido pela projeção
da cidade-global, corporativa, desespacializada. O cartão-postal mais emblemático da
cidade é o skyline da Marginal Pinheiros. Em um site de divulgação turística de São
Paulo, uma relação de roteiros sugeridos aos turistas para explorar a metrópole
museus, “contrastes” arquitetônicos, do multicultural cadinho cultural, dos espaços
verdes, dos esportes, da gastronomia (mais uma vez o multiculturalismo) etc. e, entre
eles, os seguintes:
SÃO PAULO DOS NEGÓCIOS - UMA VOCAÇÃO NATURAL
Berço da industrialização brasileira e capital econômica do País, São Paulo
detém o maior pólo de negócios do Brasil e América Latina. Não à toa a
imagem típica do paulistano é o do executivo, pasta na mão e quase sempre
apressado. A cidade atrai as maiores e mais importantes feiras e congressos
47
Ibidem. p. 231.
48
LOFEGO, S. L. IV Centenário da Cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado e o futuro. São Paulo:
Annablume, 2004. p. 188.
107
internacionais, como também grandes eventos culturais e esportivos. Destaca-
se por apresentar centros de eventos bem localizados e equipados, oferta
diversificada de hotéis, variada gastronomia (cardápio de mais de 40 países),
facilidades de transporte, a mais avançada e moderna tecnologia em
comunicações e ainda profissionais qualificados. (...)
SÃO PAULO DAS COMPRAS - DA AGULHA À FERRARI
Na gigante metrópole é possível adquirir quase de tudo, de objetos antigos a
aparelhos de última geração, da moda casual do dia-a-dia às grandes grifes
internacionais, dos artesanatos de rua às obras de arte de grandes mestres
nas mais requintadas galerias da América, do carro popular às quinas de
sonho, como Ferraris e Porsches, do escargot francês às legítimas azeitonas
portuguesas. São Paulo, dizem, está entre as melhores cidades do mundo para
o turismo de vitrine, ou “Windows shopping”. (...).
49
Negócios e compras são provavelmente duas das figuras mais fortes relacionados
às narrativas totalizantes mais recentes pensemos nos estereótipos do executivo
engravatado e mulheres carregadas de sacolas. Um certo orgulho da variedade
comercial de São Paulo dos badulaques da 25 de março, aos produtos étnicos
espalhados por vários pontos, até os luxos superdimensionados de espaços como a
Daslu ou a rua Oscar Freire é recorrente em mensagens promocionais, jornalísticas e
outras. Vale notar a arquitetura pós-moderna dos “templos” de negócios e consumo,
bastante eloquente, da projeção de tempos passado e futuro nesse imaginário efetivo,
com a mistura excessiva de referências neoclássicas e high-tech. A gastronomia e as
artes são também campos especialmente valorizados na construção identitária
hegemônica que busca expressar o caráter global da metrópole sul-americana.
Mobilidade
A mobilidade é tema recorrente na configuração dos imaginários sobre as
metrópoles modernas por várias partes do mundo. Em São Paulo, é difícil falar da
sensação de gigantismo da cidade sem cair no lugar-comum. E isso forma quase que
obrigatoriamente à imagem da fragmentação espacial (e cultural) “várias cidades
dentro da cidade”. Essa cidade que se imagina descentralizada, desespacializada ou
ainda desurbanizada encontra substancialização e identidade visual urbana nas vias, nos
túneis e viadutos.
49
Disponível em: http://www.visitesaopaulo.com/cidade/roteiros-saopaulo.htm. Acesso em: 16 out.
2009.
108
Grande expressão do processo de “racionalização”, que não foi mais do que a
abertura de fendas pelo mapa da cidade para atender às necessidades da indústria e do
mercado imobiliário, a definição viária deixa muitas marcas simbólicas desde cartões-
postais com imagens de viadutos, até a recorrência das figuras de vias e meios de
transporte em músicas, filmes e outros textos que tomam como objeto ou cenário a
capital paulista.
A mobilidade não tem aquele caráter de cidade de caminhantes, em que se perder
em suas idas e vindas faz parte da experiência urbana. Locomover-se por São Paulo
exige trajetos previamente planejados. O antropólogo italiano Massimo Canevacci, ao
descrever sua primeira estada na cidade, discorre sobe a impossibilidade de percorrê-la
a pé:
A primeira coisa que comprei e que ainda conservo foi o mapa da cidade.
Mas em vez de ajudar esse mapa teve inicialmente o poder de contribuir mais
para minha confusão: nunca teria imaginado que São Paulo pudesse ser tão
enorme e ao mesmo tempo tão viscosa. (...) a única coisa que um
“estrangeiro” como eu, com um conhecimento escassíssimo de português
podia fazer (além da imobilização) era perder-se na cidade. Mesmo o mapa da
cidade era tão enorme que abri-lo em meio da rua era impossível, além de
inútil. Era como se o mapa coincidisse com o próprio território, em vez de ser
sua reconstrução simbólica restrita; fato esse que poderia lançar-me no
desespero, ou deixar-me me perder. (...) O certo é que perder-se em qualquer
cidade é fácil (...), perder-se em São Paulo é vertiginoso. É como imergir-se
na vertigem em si mesma.
50
algo de paradoxal na ideia de mobilidade em São Paulo, pois ao mesmo tempo
em que as longas distâncias são fantasmagóricas na vivência da metrópole (tomemos a
quantidade de estatísticas que aferem as distâncias médias percorridas diariamente por
paulistanos), algo de imobilizantes na imagem da cidade voltada para os interiores,
dos vistosos aparatos de segurança e dos congestionamentos.
Feia, suja e malvada
Uma pesquisa divulgada pelo Instituto Datafolha em 2001, sobre a percepção do
paulistano a respeito da cidade, apresentou os seguintes dados:
50
CANEVACCI, M. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo:
Nobel, 1997. P. 14.
109
A primeira idéia que vem à cabeça de 75% dos moradores de São Paulo
quando pensam na capital paulista está associada a aspectos negativos, sendo
que as maiores menções são para a violência (33%), problemas gerais na
cidade (16%), que envolve entre outros a falta de coleta de lixo (7%) - e
desemprego (10%). Nota-se que na pesquisa de janeiro de 1997, a violência
era citada por 17%, no ano passado essa taxa subiu para 29% e agora atinge
33%.
51
Outra pesquisa do mesmo instituto de 2004 diz que 51% dos paulistanos deixariam
a cidade, se pudessem (na de 2001, o índice era de 61%, o que o relatório do instituto
avalia como um aumento de “satisfação” do paulistano). No levantamento de 2004,
foram ainda apresentadas aos entrevistados frases e solicitado que eles dissessem se
concordavam ou não com elas. Os índices de concordância para algumas delas foram:
52
“São Paulo é a locomotiva do Brasil”, 89%
“Os paulistanos se importam mais com seus problemas do que com os problemas dos outros”, 67%
“Os paulistanos trabalham mais do que os demais brasileiros”, 52%
“O povo paulistano é uma mistura de raças” (e isso é positivo), 88%
“Os paulistanos são bons, mas a cidade não”, 49%
Tanto a formulação deste tipo de pesquisa quanto seus resultados revelam a
curiosa confluência de imagens sobre a cidade. Evocações de um imaginário formulado
anteriormente, nos inícios do processo de metropolização, (locomotiva do Brasil, gente
trabalhadora, mistura de raças) e percepções negativas como individualismo, sujeira,
violência, desemprego etc. E talvez a forma narrativa que melhor busca desatar o
aparece expressa na afirmação “os paulistanos são bons, mas a cidade não”.
No começo de 2010, nova pesquisa do Datafolha que “mede” o grau de satisfação
do paulistano com a cidade é publicada na Revista da Folha, que estampa os títulos
“Satisfação no caos”, na capa, e “De bem com São Paulo”, na matéria interna. A tese de
que “o paulistano está mais feliz com a cidade” é sustentada pela revista com base no
comparativo entre os índices de 2001 e 2010: os que se declaram “muito satisfeitos
passam de 25% para 47%, e os que declaram que desejariam se mudar da cidade cai de
61% para 41%
53
.
51
Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=592. Acesso: 18 out. 2009.
52
Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=642. Acesso: 18 out. 2009.
53
MENEZES, M.E.; BALMANT, O. De bem com São Paulo. Folha de S. Paulo, Revista da Folha, n. 900, pp.
20-22, 24 jan. 2010
110
No mês seguinte, a revista Época São Paulo também publicou texto baseado em
pesquisa semelhante, realizada pelo Ibope: 57% dos paulistanos deixariam a cidade
(contra 46% da pesquisa do ano anterior do mesmo instituto), além de outros índices
sobre insatisfação com relação a aspectos específicos da cidade e da administração
pública (segurança, saúde, trânsito...). 62% aparece na pesquisa como o índice de
pessoas insatisfeitas com a conservação dos espaços públicos paulistanos.
54
É lugar-comum a caracterização do caos urbano para se referir à cidade. As
lamúrias cotidianas sobre as dificuldades e asperezas do viver em São Paulo talvez sejam
grande indício desta formação discursiva sobre a metrópole. Trata-se de uma retórica
que comumente transforma negatividade em orgulho, como no filminho publicitário
descrito por Vladimir Safatle no trecho transcrito no início deste capítulo.
“São Paulo é feia, mas tem Daslu”. A frase é do colunista Ancelmo Gois do jornal
carioca O Globo a respeito de uma matéria publicada no New York Times sobre a capital
paulista e tem claramente tom mordaz, mas brinca justamente com esse sistema
discursivo que recorre a antíteses para tratar da cidade, como num jogo de
compensações. O poeta curitibano Paulo Leminski, no verso de um de seus poemas,
refere-se a São Paulo, como um “monstro com nome de santo”
55
. Poderíamos ainda
tomar as imagens da “deselegância discreta” e “do avesso do avesso do avesso do
avesso do avesso” da célebre música de Caetano Veloso.
O fantasma do caos paulistano fulgura principalmente por meio dos temas feiúra,
sujeira, impessoalidade, trânsito e violência. Na pesquisa comparativa de Armando Silva
sobre os imaginários de São Paulo e Bogotá constituídos pelos habitantes de cada uma
das cidades, mais de 38% dos entrevistados para o estudo de Silva consideram São Paulo
“cinza”, e mais de 32% acham os paulistanos “agressivos”
56
.
A impessoalidade é contrabalançada com as referências multiculturais e
multirraciais. O urbanismo predatório das vias em convivência com a grande
desigualdade social gerou paisagens desoladas marginais, Minhocão, avenida do
Estado, Largo do Glicério, Praça Roosevelt, entre tantas outras. Sem a conservação da
54
VANUCHI, C. Ele quer que você fique tranquilo. Época São Paulo, São Paulo, n. 22, pp, 42-49, fev. 2010.
55
“Poeta itinerante” (1988), Paulo Leminski: Poeta itinerante e peregrino,/pelas ruas do mundo,/ arrasto o
meu destino/ Mundo? Uma aldeia de nome tupi,/ um monstro com nome de santo,/ Curitiba, São Paulo.
56
SILVA, A. Imaginários urbanos. São Paulo: Perspectiva, 2001. p.187.
111
arquitetura histórica ou as belezas naturais de outras capitais, como Rio de Janeiro e
Salvador, a marca cinza do concreto e o vazio da cidade desespacializada se impõem na
visualidade urbana. Juntam-se isso a poluição do ar as emblemáticas chaminés que
tanto representaram a cidade industrial e os rios fétidos. Mas tem as compensações:
os interiores de sofisticados shoppings, hotéis, restaurantes; ou ainda os parques que
permitiriam a cidade respirar.
Falas sobre trânsito em São Paulo parecem ter se tornado um mantra cotidiano. É
função fática. Mais do que a multidão, o congestionamento é talvez o grande símbolo da
cidade. O trânsito tomado como discurso apresenta verniz individualizante, ao reduzir o
tema social do transporte público a desventuras de ordem pessoal. Observa-se a
proliferação de estatísticas sobre o assunto. No rádio, os serviços de cobertura sobre o
trânsito nos horários de pico também se multiplicam. Uma emissora de rádio
especializada neste tipo de cobertura foi criada como ação promocional para uma
companhia de seguros, e registra grandes audiências. Comunidades no Orkut, em blogs
e no Twitter em que participantes debatem e exibem seus conhecimentos sobre
legislação de trânsito, trajetos, atuações dos órgãos competentes, bem como relatam
experiências vividas em congestionamentos. A revista Veja São Paulo, em matéria sobre
o sucesso de público da rádio SulAmérica, faz referência aos laços de “amizade” criados
entre os profissionais da emissora, os ouvintes-repórteres (ouvintes que ligam para
passar informações à rádio) e participantes das comunidades de internet chegam a
organizar festas de confraternização, segundo a revista
57
. O trânsito como experiência
comunal através dos meios de comunicação de massa.
No caso da violência, não é novidade falar que a violência sentida (o medo) é
maior e mais intensa que a violência de fato vivenciada. Tereza Pires do Rio Caldeira
apresenta em seu estudo sobre segregação em São Paulo de que forma a arquitetura de
muros e grades, a disseminação da cobertura policial podemos destacar os programas
jornalísticos televisivos de fim de tarde , mensagens publicitárias bancadas pelo
mercado imobiliário ressaltam o sentimento de insegurança.
Essa “fala do crime” também permeia grande parte do entendimento e da vivência
por parte dos moradores da metrópole. A autora transcreve depoimentos em que atos
57
SOARES, F. Na sintonia do trânsito. Veja São Paulo, São Paulo, 03 jun. 2009. p. 20.
112
de violência funcionam como marcos de inflexão na construção das narrativas
biográficas (o antes e o depois do assalto) e como referência para a categorização social
apoiada na noção de bem e mal, que seleciona o outro do discurso obviamente
apoiado em preconceitos a quem é atribuída a transformação (negativa) da cidade
(como o caso de identificar que, quando a cidade era habitada basicamente por
“europeus”, era segura e depois da chegada dos “nortistas” a violência e o caos se
instauraram, em um dos depoimentos transcritos por Caldeira)
58
.
A praça cívica
Alguns espaços pontuais da cidade também ganham papéis relevantes dentro de
narrativas totalizantes. A Praça da é provavelmente um dos exemplos mais
eloquentes aqui. É a praça paulistana que mais se aproxima da concepção tradicional de
praça central, o “marco zero da cidade. Inicialmente um largo, a tem sua história
pontuada pelos meios de transporte: estacionamento de fiacres, passagem de bonde,
aglomeração de paradas de ônibus, estação de metrô. No período colonial foi ocupada
pela Igreja Matriz, depois, substituída pela Igreja São Pedro da Pedra e, no século XX,
pela Catedral.
O início do processo de metropolização foi especialmente importante no processo
de significação da Sé. A ideia de um espaço público “que não envergonhasse” a
burguesia cafeeira naquele momento passava não apenas pelas agitações dos salões ou
pelo embelezamento de ruas e praças centrais, mas também pela inscrição do que
Nicolau Sevcenko chama de uma “geografia cívica” na fisionomia da cidade, na década
de 1920. Isso significava dotar alguns espaços de uma simbologia “unânime”, como
transformar o Largo da Sé na praça cívica da cidade, para onde convergiria “os símbolos,
da pujança e da alma coletiva”
59
. Segundo Sevcenko, o processo de simbolização oficial
da ligava-se a um ímpeto de reordenação do espaço e de aplacamento do estado
emocional exacerbado catalisado pelo surto de metropolização.
A Praça da Sé incorpora um espaço urbano privilegiado para manifestações, para o
ritual, para o espetáculo. No início do século XX, eram as festas religiosas, como as
58
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo:
34/Edusp, 2000. pp. 27-98.
59
SEVCENKO, N. Op. cit.. p. 103.
113
procissões de Corpus Christi. A partir da segunda metade do século, já com a Catedral
pronta, começa a atrair as manifestações políticas, e passa a caracterizar-se com um
espaço de concentrações, de multidões. Acolheu passeatas e comícios dos mais variados
matizes: da ultradireitista a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964, ao
comício pelas Diretas Já, em 1984. Este último inclusive aderiu-se de tal forma à imagem
recente da Sé, que a simples menção da praça evoca o evento marcante do processo
de redemocratização brasileira.
O acontecimento, a festa, resgata a como centro de São Paulo; entretanto
essa centralidade nada tem a ver com a praça funcional, mas com um ângulo
da cidade em seu espaço emblemático, como uma justificativa social da praça
que nunca existiu, mas que corresponde à necessidade popular de um espaço
que sirva de amparo para sua vontade, que agasalhe o eco de suas falas e
aspirações.
60
Lucrécia D´Aléssio Ferrara inseriu aí a ideia de que usos e simbologias foram sendo
incorporadas à Praça da ecoando ou rompendo (algumas rupturas foram
posteriormente incorporadas à retórica dominante veja o caso das Diretas) com as
narrativas oficiais sobre o local.
Imaginários paulistanos: vozes, versões...
Podem não ser muito audíveis isoladamente, são pontuais, mas ajudam a compor
(e dar mais vida) ao imaginário urbano. Imagens e versões, que rompem com ou
“simplesmente” parodiam as narrativas totalizantes, são elaboradas, esquecidas,
relembradas, reelaboradas continuamente na dinâmica cultural das cidades. Situam-se
no imaginário radical. Como formas emergentes, nascem fora da cultura hegemônica,
podendo eventualmente ser total ou parcialmente incorporadas a esta. Mas podem
também ser residuais, formas de resistência nas leituras e interpretações da cidade.
Essas vozes dissonantes não representam obrigatoriamente a negação das narrativas
totalizantes muitas vezes, podem ser tomadas dentro da dinâmica habitus-campo.
60
FERRARA, L. D. Leitura sem palavras. São Paulo: Ática, 1991. p. 46.
114
Visões noturnas
Durand entende que a imaginação simbólica pode funcionar em dois regimes:
diurno e noturno. O regime diurno trabalha com a antítese luz (figuras positivas) e
sombra (figuras negativas); logo, atua em sistemas de distinções, separações, cortes,
classificações, tem representação masculina, da luta, do combate, das estruturas
heróicas. Já o regime noturno está no campo da antífrase, eufemismo das imagens
negativas (sombras) do diurno. Concilia opostos, desfaz classificações, restitui os ritmos
cíclicos, possui estruturas mística e sintética. Figuras como morte, carne e noite são
valorizadas no sistema simbólico deste regime imaginativo.
61
Muitas das imagens de São Paulo operam no regime diurno. Mas um imaginário
noturno sobre São Paulo foi (e é) continuamente formulado. Uma cidade de noites e
ruínas, que embaçam certas distinções de ordem e progresso racional. Saliba observa,
por exemplo, como anteriormente ao processo de metropolização, a figuração de uma
cidade noturna ganhou densidade na vertente do romantismo local. O caráter cíclico da
cidade aparece, por exemplo, no Macario, de Álvares de Azevedo, em que a figura de
“um Satã quase profético, que parecia não apenas antecipar o paradoxal juízo de
‘fabricantes de ruínas’, mas sugerir o envelhecimento precoce e o obsoletismo rápido da
metrópole nos primórdios da modernidade”
62
. A São Paulo romântica de Azevedo do
século XIX era um vislumbre embriagado da urbe, metaforizado na figura satânica.
Saliba destaca ainda a visão sintética da poesia de Paulo Eiró, em que luz e sombra
se fundem, passado e presente são indistintos nas pedras da cidade, ou nas paredes do
sobrado onde vivia o poeta. Destaca também a imagem da mobilidade na poética de
Eiró, a “afirmação única e inefável da peregrinação, da mobilidade por ela mesma –
tema que caberia também num romântico, mas num romântico bem paulistano”
63
.
O historiador identifica no século XX, no cerne das narrativas hegemônicas, o
caráter ambíguo da cidade sombria dos românticos. Na obra de Manuel Batista Cepellos,
por exemplo, que tanto ajudou a construir poeticamente a figura do bandeirante na
mitologia paulistana, o eco da “errância melancólica do jesuíta” confunde-se com a
“mobilidade vocacional” do bandeirante. Observa também que figuras noturnas a
61
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário.
62
SALIBA, E. T. Op. cit. p. 562.
63
Ibidem. p. 565.
115
população madrugadora da cidade, como operários, bêbados, mascates etc. ganham
tratamento generoso e cumplicidade na poética de Cepellos.
64
A face noturna de São Paulo é identificada por Saliba também no romance noir
Nos misteriosos subterrâneos de São Paulo, de João de Minas, lançado em 1936. No
romance, a cidade é aterrorizada por gangsters que ameaçam explodir edifícios,
comentem assassinatos e se disfarçam usando a pele de suas vítimas. Para Saliba, o
romance é a “síntese metafórica para onde convergem todas as histórias noturnas e
anárquicas de identidade paulistana”
65
.
Damos agora um salto para os anos 2000, da literatura para a fotografia. O
fotógrafo Cássio Vasconcellos lançou em 2002 uma série de imagens intituladas
Noturnos
66
. São quase cem vistas noturnas que Vasconcellos produziu utilizando uma
máquina Polaroid da década de 70. As cores e texturas das imagens em Polaroid dão
uma aura de irrealidade, até de um certo misticismo àquelas vistas. Aparecem mais
como fulgurações do que como registros. As cores intensas fundem-se à escuridão. Aliás
as oposições são contrastadas e, ao mesmo tempo, se integram: elementos naturais e
concreto, manchas e brilhos, estrutura e superfície, acabado e inacabado, sólido e
esfumaçado, decrepitude e florescência, santo e profano... Vestígios arquitetônicos de
várias épocas mesclam-se. A integração de opostos não significa que não haja tensão, há
quase que uma relação dialética entre os elementos. Praticamente não aparecem
figuras humanas na cidade de Vasconcellos na introdução do livro, o fotógrafo afirma
que sua opção foi por imagens “silenciosas como a noite tende a ser” e completa: “não
porque não pessoas nelas, afinal meu objetivo foi captar os vestígios humanos e não
personagens. E sim porque a vida e a inquietação da cidade estão apenas implícitas no
cenário”
67
.
A metrópole feia e caótica parece nestas imagens estranhamente bonita, estranha
porque carrega uma beleza que não se consolida, que se esvai, uma beleza fulgural.
Começo e fim também se fundem na cidade fantasmagórica de Vasconcellos, fazendo
64
Ibidem pp. 566-568.
65
Ibidem. p. 584.
66
VASCONCELLOS, C. Noturnos São Paulo. São Paulo: Bookmark, 2002.
67
Ibidem. p. 8.
116
dela a síntese das relações entre tempo e espaço, uma síntese de densidade mais
poética do que narrativa.
Pauliceia onírica
Um cavaleiro medieval de armadura dourada e espada em punho sobe até o 22°
andar de um edifício da avenida Paulista, esquarteja duas pessoas, sofre ameaça de
outras e se atira pela janela. Uma mulher encontra-se afugentada em um pequeno
quarto de sua casa, pois os outros cômodos haviam sido transformados em espaço
público, tomados por passantes. Outra mulher vive em um lugar onde as pessoas falam
um idioma que ela não consegue compreender. Uma jovem toda vez que tenta usar o
banheiro é exposta publicamente. Alguém é perseguido na rua por um ninja.
Estes são alguns dos relatos de sonhos recolhidos pelo grupo de pesquisadores
na época, alunos do curso de Ciências Sociais da USP coordenados por José de Souza
Martins, para um estudo sobre a vida cotidiana em São Paulo, a partir do imaginário que
ganha forma nos sonhos de moradores da metrópole. Martins afirma que os sonhos,
analisados sob uma perspectiva da sociologia do conhecimento do senso comum, “ao
invés de serem meras repetições deformadas do que ocorre na vigília são também
resíduos insubmissos da racionalidade e dos poderes dela derivados”
68
. Os sonhos
podem, assim, fornecer uma compreensão de como as situações e processos sociais são
vivenciados, ou seja, ajudam a constituir sentidos para o mundo da vigília.
A proposta era recolher relatos de sonhos de paulistanos e depois solicitar ao
sonhador que fornecesse uma interpretação. Nas análises resultantes, Martins e os
pesquisadores observam que há a predominância de sensações de mal-estar, de terror e
de temor. É recorrente a figura do estranho (um indivíduo ou uma situação) que ameaça
o sonhador. Casa e rua aparecem em oposição, a confiança e a desconfiança. Enquanto
a casa é normalmente o lugar de rostos conhecidos; a rua é povoada por figuras
desfiguradas, por estranhos, por estrangeiros, e comumente está associada à morte e ao
desamparo. Assim, Martins afirma que o mundo do sonho dos paulistanos é “o mundo
da tradição e das relações sociais tradicionais, em oposição à ideia de mundo racional e
68
MARTINS, J.S. (org.). (Des)figurações: a vida cotidiana no imaginário onírico da metrópole. São Paulo:
Hucitec, 1996. p. 16.
117
moderno”
69
. Ou seja, o universo da imaginação onírica ao mesmo tempo sofre com as
angústias vividas na vigília, rompe com esta, atribui-lhe outras leituras. O estudo de
Martins e seus alunos mostra, de maneira original, como os sentidos da metrópole não
são construídos apenas por paulistanos despertos.
Paródias e humor
Figuras da Belle Époque paulistana, os cronistas macarrônicos, apresentaram
através de seus textos e charges visões contrastantes às narrativas hegemônicas. O
grupo de humoristas, formado por “cronistas obscuros, jornalistas ou caricaturistas de
ocasião ou escritores bissextos”
70
, sofreu um processo de esquecimento na história da
literatura e da cultura, segundo Elias T. Saliba. As razões do esquecimento teriam sido o
seu não enquadramento aos cânones modernistas de 1922 e o “caráter anárquico e
visceral” dessa produção.
O termo macarronismo refere-se aos estilos caracterizados pela mistura de
referências linguísticas e apego à oralidade. O estilo macarrônico mais marcante foi o de
Juó Bananére, pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, que buscava, por meio
da deformação linguística, mimetizar uma fala não letrada, misturando referências
italianas e caipiras. Também se pode destacar, de modo geral nos cronistas
macarrônicos, uma escrita ligeira, sem maiores acabamentos, mais próxima das
dinâmicas do jornalismo cotidiano e do próprio ritmo metropolitano que começava a
se impor do que do processo de produção literária tradicional.
As paródias cheias de acidez não poupavam a burguesia local e seus novos modos
de vida, nem mesmo a intelectualidade ligada à cultura dominante. Não eram raros
embates nas páginas de jornais e revistas, entre cronistas macarrônicos e modernistas,
como Oswald de Andrade
71
. E, principalmente, a produção macarrônica dava aparição às
ranhuras e reentrâncias da sociedade paulistana da Belle Époque, mesmo que, em
69
Ibidem. p. 25.
70
SALIBA, E. T. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Bélle Époque aos
primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 160.
71
Saliba identifica que os dois modernistas que representaram uma exceção com relação ao tratamento
preconceituoso geral conferido à crônica macarrônica foram Antônio de Alcântara Machado, que inclusive
carregou para sua obra um pouco do coloquialismo popular e do tom anedótico, e Manual Bandeira, que
em um texto ctico rechaçou o nacionalismo programático da Poesia Pau-Brasil e defendeu a mescla.
(Ibidem. pp. 207-209)
118
alguns casos, assumisse tom moralizante: uma cidade caipira, ainda ligada às raízes do
campo; o desejo de ser cosmopolita, disseminando esnobismos; a presença imigrante,
cheia de sotaques; o caráter submundano, de becos e perversões...
As marcas de ruralidade, tão fortes nos textos de Bananére e Cornélio Pires,
faziam remissão a um fantasma do passado que definia a cidade do presente. A mescla
de imigrantes, tão representada nas charges de Voltolino, e sobre a qual escreveu
Agrippino Grieco: “falar todas as línguas em guinchos confusos, mesclando Torre de
Babel e Arca de Noé”
72
. O cinismo social da burguesia pela visão bem humorada de Jo
Agudo. A crônica noturna de Sylvio Floreal. Ou ainda, a utopia futurística de Godofredo
Barnsley que em São Paulo no ano 2000 descreve a cidade transformada em um “grande
automóvel social”.
Vale citar ainda a subversão às referências urbanas nas crônicas macarrônicas.
Ignoravam denominações oficiais de logradouros e outros espaços públicos e usavam os
nomes antigos, fazendo ecoar o passado escravista e aldeão: largo do Pelourinho;
caminho do Quebra-bunda; largo da Forca; beco do Mata-Fome, Piques etc.
Saliba observa que a verve humorística tão forte em parte crônica impressa da
Belle Époque ganhou mais tarde configuração nos primeiros tempos do rádio. Foi, neste
universo radiofônico, que apareceu uma figura marcante na constituição de visões
alternativas sobre São Paulo de meados do século XX. Adoniran Barbosa nasceu João
Rubinato, no interior do estado. Iniciou na década de 1930 carreira no rádio, com o
pseudônimo, que décadas mais tarde se tornou um símbolo de paulistanidade
73
justo
ele, que tanto subverteu a simbologia hegemônica sobre a cidade.
No rádio, ficou famoso com o personagem do negro Charutinho, no programa
História das Malocas, escrito por Osvaldo Moles. E depois se consagrou como o “criador
do samba paulista”. Como os macarrônicos, criou seu linguajar popular a partir de
híbridos de falas caipiras brasileiras e de imigrantes italianos, e vez ou outra pontuava
72
Ibidem. p. 181.
73
Em 2001, uma pesquisa de um jornal identificou Adoniran como a “personalidade que mais tem a cara
de São Paulo”, em meio a outros “candidatos” da política e das artes em atividade na época (Adoniran
morreu em 1982). No ano 2000, a Rede Globo promoveu uma eleição da música que mais representa São
Paulo e Trem das Onze foi a campeã. Informações retiradas de: ROCHA, F. Adoniran Barbosa: o poeta da
cidade. São Paulo: Ateliê, 2002. pp.140, 169.
119
expressões em inglês, criando léxico e sintaxe próprios (dim dim donde nóis passêmo;
táuba de tiro ao álvaro...). Sobre a “língua” de Adoniran, Antonio Candido comenta:
tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não
concordo. Da mistura, que é o sal da terra, Adoniran colheu a flor e produziu
uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e
da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se aliaram
com naturalidade às deformações normais do português brasileiro, onde
Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém,
exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na
filigrana.
74
A deformação de linguagem de Adoniran não tem a textura do escracho das
paródias dos macarrônicos, mas é sim revestida de uma poética única (pensemos em
como ele vai do humor escancarado ao lirismo em suas canções). A partir da
interpretação de Candido sobre a obra de Adoniran, Francisco Rocha o caracteriza como
o “poeta da cidade” ou ainda o “narrador da metrópole”, aquele que inventou um “jeito
paulistano de ser”
75
.
A poética calcada na oralidade deu consistência a uma cidade particular. Uma
poética que desnuda a “metrópole do progresso” para dar aparição a cidade em que o
progréssio se conhece só de ouvir falar, onde trenzinhos chegam a bairros distantes,
uma cidade de varredores de rua, de peões de obra, de migrantes, de imigrantes, de
malocas e favelas, de boemia, de mulheres fogosas, de maridos traídos, de mocinhas
com medo do mar, de atropelamentos, de mascates, de despejos, de sem-teto, de
samba cantado em italiano... E de lugares afetivos: o querido Bexiga, o Brás dos amigos,
o Jaçanã materno... E de gente que não se reduz a uma tipologia social, personagens
com nome: Iracema, Arnesto, Nicola, Matogrosso, Joca, Eugênia, Inês, Mané, Gioconda,
Marcelo... Esta cidade que acabou, como afirma Candido, “Adoniran não a deixará
acabar”.
Céu de pipas
A imagem da metrópole desespacializada pelo consumo e pela tecnologia de
comunicação ganhou na última década uma leitura angulada a partir de suas margens. A
74
Fragmento do texto de Antonio Candido publicado originalmente no encarte do LP Adoniran Barbosa
(São Paulo, EMI-Odeon, 1975).
75
ROCHA, F.Op. cit. p. 115.
120
periferia agora se autodenomina comunidade, troca o termo conotativo da exclusão da
cidade e busca impor uma autoafirmação identitária positiva. A segregação é mantida,
mas há uma inversão: periferia é o que está fora; comunidade é o que está dentro.
A cultura hip hop cumpriu papel determinante. Funcionou como um megafone
para vozes da juventude pobre. As falas do rap caracterizam-se por uma poética dura,
palavras que parecem arame-farpado. ódio, mas principalmente desprezo por todos
aqueles que estão fora dos laços de identidade: a elite branca, a classe média
consumista boy, burguês, perua, babaca, racista otário; a designação do outro é
xingamento.
A figura central é da irmandade, as “fratrias órfãs”, segundo Maria Rita Kehl.
Irmandade que não exclui nenhum garoto pobre e negro, mas que se apresenta como
exército para os de fora, os “cinquenta mil manos”, dos versos dos Racionais MC’s.
Como analisa Kehl, a poética do grupo liderado por Mano Brown é impregnada pelo real.
O real é definição da periferia. Não gozo, alegria e elevação no universo seco,
opressivo e desamparado da humilhação, da espoliação e da violência. É como se os
poetas do Rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se
reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria; por isso eles não
deixam a favela, não negam a origem”.
76
Em um imaginário que parece não sobrar espaço para o sublime, Kehl identifica
uma brecha. Pequenos momentos de contemplação:
hoje acordei cedo pra ver
sentir a brisa da manhã e o sol nascer.
É época de pipa, o céu tá cheio
quinze anos atrás eu tava ali no meio.
Lembrei de quando era pequeno, eu e os caras
faz tempo- diz aí! - o tempo não para
77
O vislumbre do céu com pipas é a madaleine dos pobres”, compara a autora, que
os conduzem ao tempo perdido da inocência, quando se permitia em meio à miséria
criar com papel, cola, vareta e fio a sensação leve da liberdade de uma pipa voando no
céu. “O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria e a
76
KEHL, M.R. As fratrias órfãs. In: Estados Gerais da Psicanálise, s/d.
77
Fórmula mágica da Paz, música de Mano Brown, gravada pelos Racionais MC´s.
121
recusa da desumanização que ela promove”
78
. Contemplar pipas é erguer a cabeça, é
dar vazão à beleza em meio ao campo minado, é linguagem humana que sentido à
vida, mesmo no campo de morte.
Sob o viaduto
Um dos símbolos da racionalização da cidade, os viadutos pontuam a paisagem da
cidade. Estrutura viária arquitetonicamente fria, despersonalizada, desumanizada. Serve
a veículos, não a pedestres.
Adoniran Barbosa já dera figuração afetiva ao viaduto Santa Ifigênia, que fora
ameaçado de ser derrubado pela prefeitura na década de 1970, mas acabou sendo
apenas reformado. Na canção, o viaduto marca a biografia da personagem Eugênia:
Venha ver, venha ver, Eugênia
Como ficou bonito o viaduto Santa Ifigênia
(...)
Foi aqui que você nasceu
Foi aqui que você cresceu
Foi aqui que você conheceu
O seu primeiro amor
Eu me lembro que uma vez você me disse
Que o dia que demolissem o viaduto
De tristeza, você usava luto
Arrumava sua mudança e ia embora pro interior
79
Mais recentemente, em 2008, a minissérie de televisão O louco dos viadutos,
dirigido por Eliane Caffé, retoma a tematização da ressignificação de espaços urbanos
inóspitos como os viadutos. A série de quatro capítulos fez parte da terceira edição do
programa Direções, da TV Cultura e Sesc TV, que tinha como proposta abrir espaços para
experimentação em teledramaturgia, para isso eram convidados diretores de teatro e
cinema para criarem para televisão.
A cineasta conviveu durante um ano e meio, sob os viadutos Alcântara Machado e
Avanhandava, com os participantes do projeto social Garrido-Boxe. O projeto, criado e
coordenado pelo ex-pugilista Nilson Garrido, já ocupou desde 2004 os vãos inferiores de
vários viadutos de São Paulo e os transformou em academias de boxe para jovens
carentes, moradores de rua, ex-presidiários etc.
78
KEHL, M.R. Op. cit.
79
Viaduto Santa Ifigênia, de Adoniran Barbosa e Alocin.
122
A série mescla de maneira extrema o documentário e a ficção. Garrido e seus
“guerreiros” atuam em seus próprios papéis, ora roteirizados, ora por improvisações.
Alguns personagens “ficcionais” são interpretados por atores profissionais. Os
protagonistas, ao lado de Garrido, são Benjamin (interpretado por Alvise Camozzi, que é
também um dos roteiristas) e Jeremias (vivido pelo ator João Miguel). Benjamin é um
turista italiano que faz um desenho, um rosto de mulher, sobre o mapa de São Paulo e
começa a vagar seguindo seus traços, chegando aos baixos do viaduto Alcântara
Machado, na feia Radial Leste, e acaba por ficar hospedado na academia de Garrido.
Jeremias supostamente é o louco do título (ou será que o louco é o Garrido?), figura
errante e alucinada que também passa a viver na academia.
Os dois personagens de fora (o turista e o louco) funcionam como observadores da
rotina dos lutadores e provocadores de novas situações. Benjamin é narrador do filme e
uma certa ambiguidade no off: quem fala é a voz do personagem ou a voz do filme?
No primeiro capítulo, a diretora chega a aparecer comentando a experiência com
Garrido, e a voz dela quase se mistura com o off de Benjamin/Camozzi.
O ex-pugilista é apresentado como uma figura que tomou para si a missão de
ocupar e dar novos sentidos aos viadutos de São Paulo, por meio do boxe. Em uma cena
chega a dizer: “quando eu morrer, o único desejo que eu quero é que enterrem meu
coração sob um viaduto”. E a consciência de que, mais do que o uso prático de um
espaço, era principalmente a construção de um novo discurso sobre a metrópole que
estava sendo formulado fica evidente quando o narrador italiano comenta que Garrido
faz gosto de ter sempre por perto alguém de fora que escreva sobre o projeto, que
filme, que fotografe, que desenhe. E ao longo do filme aparecem vários visitantes com
câmeras, gravadores, blocos de anotação.
Existe a ameaça da associação de moradores da região que considera indesejável a
presença da academia ali. Uma das moradoras não para de dizer que aquilo é um espaço
público, logo ele (o Garrido) não pode ir ocupando a área deveria ficar “livre”. Em
outra cena, duas personagens que se apresentam como alunas de ciências sociais da
PUC pedem para filmar uma simulação: que elas representassem uma família que vive
sob um viaduto e que Garrido mostrasse como ele as tiraria de para ocupar o espaço
com seu projeto. As moças, interpretando os sem-teto, lançam acusações a Garrido,
123
questionando a legitimidade e justiça de suas ações. Nessa curiosa inversão de papéis
as estudantes de classe média falando em nome dos pobres oprimidos e Garrido no
papel do opressor Eliana Caffé aponta direto para o cinismo e a confusão entre público
e privado tão marcante do espaço urbano paulistano.
A figura de “guerreiros” urbanos ganha, no decorrer da narrativa, contornos mais
precisos. Para se preparar para a grande luta há um treino em uma pedreira distante. Na
cena, os personagens não lembram lutadores de boxe, mas guerreiros míticos:
marretadas para quebrar pedra, machadadas num tronco de árvore, carregamento de
toras e rochas... A grande luta é o projeto anunciado por Garrido no começo da série:
um ringue armado sobre o viaduto Santa Ifigênia. O confronto seria entre um lutador
treinado por Garrido e outro preparado pelo seu filho: o embate entre “cria e criador”.
Eles lutam entre si durante a preparação. Parecem se desestruturar.
Mas na luta de justos ou apenas loucos sonhadores sobre o viaduto central
repleto de gente, não perdedores. Todos são aclamados campeões. O narrador com
seu carregado sotaque italiano encerra declarando sua admiração pela capacidade
criadora:
Nessa cidade tão longe, desenhada no acaso, desenhada nesses rostos de
ninguém (...). Eles acreditam. Acreditam nas palavras, nas possibilidades, na
possibilidade de inverter, de virar. Virar esse piso de cimento armado,
armado, farpado, imaginar. Imaginar que embaixo tem uma grama verde-mar.
E que seja virar essa grama, essa rua, e pisar na parte de baixo que virou a
parte de cima. Nessa grama. E imaginar que são piratas, guerreiros, os
campeões universais do boxe. Pisando nessa grama verde-mar que se espalha
na cidade. O mundo salvo pelos meninos.
Apesar do encantamento, a fala do narrador finaliza admitindo sua incapacidade
de mergulhar totalmente naquele sistema imaginário dos “meninos”, com isso explicita
um choque. Mas que choque é este: entre imaginário e experiência? Entre imaginários?
**
A hegemonia de visões racionalistas nos discursos totalizantes sobre a cidade de
São Paulo apoiados na historiografia, no urbanismo oficial, nas estatísticas, na
economia etc. acaba por atribuir a estas leituras um uma aura de realidade,
empurrando outros tipos de relação (o afetivo, o etéreo, o paródico, o amoral, o
124
utópico) para o campo do “fantasioso”, um campo tido como secundário nas
formulações institucionais. No entanto, as versões emergentes ou de resistência,
expressas em manifestações simbólicas aqui e acolá, não estão necessariamente
descoladas do imaginário efetivo, podendo inclusive, parte dela, se institucionalizar. Ou
ainda, como frisou Williams, muitas vezes o que se apresenta como emergente não
passa de um novo figurino para valores já assentados da cultura dominante.
Assim, estes universos simbólicos não estão apartados um dos demais, eles
funcionam em fluxo de trocas contínuas, embora, na maior parte das vezes, desiguais.
No caso paulistano, a inserção global e as questões locais estão talvez muito mais
mescladas no cotidiano urbano do que possa inicialmente se supor. E é, dentro desta
perspectiva de construções de sentidos para o espaço urbano paulistano, que a seguir
proponho uma análise do caso da praça Roosevelt.
Parte II
A praça e seus sentidos
A praça Roosevelt (1975 e 1987), por Carlos Moreira.
Acelera o carro ainda úmido da neblina noturna, dá a volta pela praça
Roosevelt assustando os pombos, os sinos da Consolação vibram
solenes na bruma da manhã e ela ri. O calçamento lavado cheira a
peixe, a bagaço de laranjas.
Osman LINS. Avalovara. São Paulo: Melhoramentos, 1974. p. 21
Um dia entrei numa livraria para descobrir por que a praça tinha o
nome de Roosevelt. Que significa isso, perguntei a uma senhora atrás
do balcão. Uma pergunta simples: meu trabalho não tinha sentido.
Eu sabia. Talvez fosse diferente se eu conseguisse encontrar relação
nas coisas. Roosevelt fez o quê, exatamente? E por que essa praça de
merda tem esse nome? O que esse Franklin tem a ver com a gente?
Onde está a nossa história e onde eu apareço. Não pode ser tudo
pura arbitrariedade. Tem de haver uma razão para eu estar aqui.
Dea LOHER (trad. C. Röhrig; adapt. R.G. VÁZQUEZ). A vida na praça
Roosevelt. São Paulo: Goethe Institut, 2005. p. 5.
127
Capítulo 3. Narrativas da degradação
Em agosto de 1994, a Folha de S.Paulo publicou a seguinte nota:
Praça mal conservada vira abrigo de mendigos
A leitora Marilene de Oliveira, moradora no centro de São Paulo, reclama da
má conservação da praça Roosevelt e dá sugestões para a Regional Sé.
Segundo Oliveira, "a praça tornou-se um imenso sanitário ao ar livre.
Mendigos, desocupados e skatistas correndo por todos os lados reúnem-se
neste local".
Oliveira pede à administração regional a promoção de eventos, além de
cuidados gerais com a praça. "Promover eventos permitiria o constante
movimento de pessoas na praça e também sua limpeza diária", diz a leitora.
"Com todos os cuidados necessários, a praça poderia transformar-se em um
"boulevard". Será que ninguém ainda pensou nisso?", pergunta Oliveira.
Resposta
De acordo com Roberto Ralph Lesser, assessor de imprensa da Regional Sé, a
limpeza da praça é feita diariamente com varrição e lavagem. Em relação aos
skatistas, a regional informa que está solicitando à Guarda Civil Metropolitana
que mantenha vigilância no local, impedindo com isso a ação dos mesmos.
No que tange aos mendigos frequentadores do local, Roberto afirma que a
Regional da está solicitando aos órgãos de Assistência e Promoção Social as
providências que o caso requer.
1
As décadas de 1980 e 1990 são identificadas em grande parte dos relatos atuais
como o auge do processo de degradação da praça Roosevelt. Além da deterioração física
acentuada, a sua frequência e de seu entorno geraram uma galeria de personagens
associados à decadência do espaço: michês e travestis, boêmios, traficantes, meninos de
rua, moradores de rua, skatistas, rappers, entre outros.
O chamado processo de degradação inicia-se pouco tempo após a inauguração da
praça de concreto, tendo vivido a Roosevelt anteriormente uma fase de grande
sofisticação ligada ao lazer noturno, à música e ao teatro. Assim, é comum que a
degradação seja creditada à inadequação do projeto arquitetônico e urbanístico. No
entanto, transformações mais amplas no centro e a configuração do entorno da praça
devem ser levados em conta na definição do espaço, bem como nos sentidos e nas
narrativas associados a ele.
1
PRAÇA mal conservada vira abrigo de mendigos. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, p. 3-2, 29 ago.
1994.
128
Quando era o glamour...
Uma cidade escura, vultos de edifícios, manchas fracas de iluminação. Os dois
protagonistas circulam à caça de distração para aplacar o tédio de suas vidas ricas.
Passam por bares e boates, ambientes silenciosos, dançantes, sofisticados e exóticos. E,
depois de uma noitada alternada por sexo e apatia em uma garçonière, abandonam ao
amanhecer Cristina e Mara, prostitutas vividas por Odete Lara e Norma Bengell, em
meio a um grande terreno descampado, chão de terra irregular e a igreja da Consolação
ao fundo.
O vazio da noite burguesa do filme de Walter Hugo Khouri (Noite Vazia, 1964)
finaliza-se na praça também vazia, de feições pouco urbanas, mas que ironicamente era
um dos focos da badalação noturna dos endinheirados, como os representados pelos
personagens Luis e Nelson. A praça Roosevelt era um terreno residual de
desapropriações ocorridas desde a década de 1930 na região da Consolação e Augusta.
Cláudia de Arruda Campos, em seu livro sobre o Teatro de Arena, descreve a Roosevelt
como um grande pátio vazio (“nunca teve jeito de praça”), “era escura e tinha pelo
meio, lembrança de antigos canteiros, umas gradinhas quebradas, excelente para
derrubar os menos avisados”
2
. Durante os dias de semana servia como estacionamento
de automóveis estacionamento nada racional, selvagem, coisa de tempos anteriores
à Emurb” e aos domingos era ocupada por uma feira livre
3
. Em suas noites,
caracterizava-se como mancha de cultura, lazer e boemia chiques nos anos 50 e 60.
O jornalista Helvio Borelli inicia o seu livro nostálgico sobre a noite paulistana
daquelas décadas destacando a Roosevelt como “coração da noite naquele período”:
Houve um tempo em que, no centro da cidade de São Paulo, vivia-se a música
e a arte do Brasil. No pequeno trecho da Praça Roosevelt, ainda não tomada
pela arquitetura moderna e feia que a transformou num amontoado de
concreto, ecoavam, da noite de São Paulo, os acordes dos pianos, violões,
baixos e baterias.
As vozes masculinas e femininas que se tornaram famosas foram entoadas
naquela praça, ainda com jeito de interior, com sua igreja da Consolação ao
centro. O lugar era cercado de bares e boates que fizeram a história, com
2
CAMPOS, C. A. Zumbi, Tiradentes. São Paulo, Perspectiva, 1988. p. 3.
3
Ibidem. p. 3.
129
requinte e bom gosto na noite da cidade. Era um tempo romântico em que as
pessoas viviam de bem com a vida.
4
Há, aliás, toda uma aura “romântica” nas narrativas relacionada à praça Roosevelt
no período anterior ao da construção da estrutura de concreto. Essas narrativas dão
consistência a uma memória sobre o lugar que reverbera posteriormente e serve como
elemento contrastante na elaboração dos discursos sobre a degradação a partir do final
dos anos 70.
no começo do processo de metropolização de São Paulo, a região fora ponto de
divertimentos para a burguesia paulistana, com o velódromo da família Prado, usado
depois como campo de futebol, e sede do Clube Atlético Paulistano. Mais tarde, na
época de formação da praça, conforme observa Rubens Reis, a Roosevelt acabou por
assimilar a movimentação das áreas vizinhas, principalmente da chamada “Cidade Nova”
(avenida São Luis, Rua Marconi, rua Sete de Abril e rua Barão de Itapetininga), que
concentrava pontos de boemia e cultura da metrópole.
5
Em 1950, é inaugurado na Nestor Pestana, rua contígua à Roosevelt, o Teatro
Cultura Artística. A sala foi construída pela sociedade de mesmo nome, que existia desde
a década de 1910, e da qual participaram diversos intelectuais e artistas de prestígio,
além de representantes da burguesia cafeeira e industrial. O prédio do teatro da Nestor
Pestana quase inteiramente destruído em 2008 por um incêndio foi projetado por
Rino Levi, tendo na fachada um grande afresco de Di Cavalcanti. O foco principal das
atividades da sociedade era (e a ainda é) a música erudita e a programação de sua sala
sempre tiveram caráter marcadamente elitista.
O movimento da música, do teatro e da boemia no entorno da Roosevelt
intensifica-se em 1960, quando a Sociedade Cultura Artística, com problemas
financeiros, arrenda o teatro para a TV Excelsior
6
. A emissora incialmente teria seu
estúdio sediado no bairro de Santo Amaro, nas proximidades do Teatro Paulo Eiró, onde
aconteceu seu show de estreia. Mas por falta de infraestrutura, a Excelsior, de
4
BORELLI, H. Noites paulistanas: histórias e revelações musicais das décadas de 50 e 60. São Paulo: Arte &
Ciência, 2005. p. 15
5
REIS, R. Praça Roosevelt. Emurb, São Paulo, 26 set. 2005.
6
MOYA, A. Glória in Excelsior: ascensão, apogeu e queda do maior sucesso da televisão brasileira. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004. p. 30.
130
propriedade do grupo Simonsen, acabou adotando o teatro da Nestor Pestana como
auditório para seus shows.
Nas décadas de 1950 e 1960, casas noturnas sofisticadas abrem nos arredores da
Praça Roosevelt, que passam a ser palco, além da boemia grã-fina, de apresentações de
grandes músicos do cenário nacional, principalmente da Bossa Nova. Praça Roosevelt,
centro de São Paulo. Foi lá que os músicos paulistanos fizeram seu calçadão de Ipanema.
Em bares e boates, a Bossa Nova ganhou vida em uma terra que fora chamada de
túmulo do samba”
7
.
Na mesma matéria de O Estado de S.Paulo, a cantora Alaíde Costa associa a Praça
Roosevelt ao movimento Bossa Nova em São Paulo: "O ambiente da praça era propício.
Parecia que todo mundo gostava e entendia de música por lá. Em qualidade musical,
mesmo em se tratando de Bossa Nova, São Paulo nunca ficou atrás do Rio de Janeiro. A
Praça Roosevelt foi um lugar inesquecível"
8
.
Uma das boates mais famosas que funcionou na Praça Roosevelt foi a refinada A
Baiúca. De acordo com Zuza Homem de Mello, a casa foi uma mais mais duradouras:
“centro obrigatório de músicos e frequentadores da noite”
9
. Inicialmente funcionava na
rua Major Sertório, mas foi fechada pelo Comando Sanitário, e reabriu em 1956 na
Roosevelt. Entre os nomes que passaram pela Baiúca, Johnny Alf, Pedrinho Mattar,
César Camargo Mariano, Maysa, Claudette Soares... Um depoimento recolhido por
Néstor Perlongher faz referência à Baiúca também como ponto de homossexuais “da
classe média intelectualizada e de teatro”, com postura “muito comedida, muito
elegante”, no começo da década de 1960, quando não eram comuns as boates
exclusivas gays
10
.
À casa, são associadas muitas narrativas episódicas que funcionam ou como
“marcos” históricos ou “curiosidade” que ajudam a compor a visão “romântica” sobre a
Roosevelt: local de formação do Zimbo Trio
11
, da visita de Sarah Vaughn para assistir
7
AMENDOLA, G. Bossa Nova. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno2, 26 abr. 2008.
8
Ibidem.
9
MELLO, Z. H. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: 34, 2003. p. 41
10
No depoimento que consta do livro de Perlongher (do personagem Clóvis), a referência também à
frequência gay no Juão Sebastião Bar, que é identificado como situado na praça Roosevelt. O referido bar
funcionou, na verdade, na rua Major Sertório. PERLONGHER, N. O negócio do michê: a prostituição viril
em São Paulo. São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 94.
11
MELLO, Z.H. Op. cit. p. 40
131
uma apresentação Johnny Alf
12
, da famosa frase de Vinícius de Moraes “São Paulo é o
túmulo do samba”
13
, ou ainda da passagem, narrada pelo pianista Pedrinho Mattar,
sobre um dos raros casos de briga no sofisticado estabelecimento e que envolveu uma
estrela internacional:
A atriz norte-americana Vivien Leigh, do filme “E o vento levou”, estava na
cidade com uma companhia de teatro, para representar Shakespeare no
Teatro Municipal. Depois do espetáculo ela foi jantar na Baiúca. Lembro que
toquei o tema de Tara, em homenagem a ela. Era fim de noite e sabe como é,
tem gente que não sabe se portar depois de uns goles a mais... Tinha um
sujeito muito conhecido na noite, o Vavá. Sóbrio ele era uma flor, mas quando
bebia virava um furacão. Naquela noite ele achou de arrumar confusão com o
pessoal que estava com a atriz. Foi uma pancadaria! Ela saiu correndo
assustada pela praça Roosevelt, em plena madrugada com os sapatos na
mão.
14
Outra boate que fez fama na Roosevelt foi a Djalma´s. Originalmente era o
Farney´s, bar de propriedade de Dick Farney, que depois continuou a se apresentar na
Djalma´s. A casa abrigou shows de nomes de relevância da música popular da época,
mas o episódio mais recorrente nos relatos sobre o lugar é a primeira apresentação de
Elis Regina em São Paulo. Segundo o produtor musical Walter Silva, foi na cidade que a
cantora ainda não muito conhecida começou ganhar notoriedade no meio musical, “Elis
veio ganhando cinco cruzeiros por noite, mais hospedagem no Hotel Marrocos, que
ficava na esquina da Praça Roosevelt (ao lado da boate) e ao lado do canal 9, TV
Excelsior”
15
. Sobre a apresentação, Zuza Homem de Mello comenta:
Por volta de 1 da manhã de quarta-feira, 5 de agosto, estreava na boate
Djalma em São Paulo um novo show reunindo o cantor Sílvio César e Elis
Regina. A diminuta platéia ficou com a impressão de presenciar o surgimento
de uma estrela. O show poderia ter sido um acontecimento histórico na noite
paulista, não fosse a falta público.
16
12
CASTRO, R. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras.
p. 266
13
AMENDOLA. G. Op. cit.
14
BORELLI, H. Op. cit. p. 81.
15
SILVA, W. Começo do sucesso foi em SP. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 4-7, 18 jan. 1997.
16
MELLO, Z. H. Op. Cit. p. 55.
132
Mas a referência histórica parece ter se consolidado. Em uma matéria recente, o
dono do bar Pinga, Papo e Petisco, que ocupa atualmente o imóvel onde funcionava o
Djalma´s, diz que seu bar é ponto de visitação de fãs de Elis
17
.
Do outro lado da praça (atual rua João Guimarães Rosa), funcionou o Stardust,
segundo Mello, “o bar mais freqüentado pelas socialites de São Paulo”
18
. Ignácio Loyola
Brandão, que morou na Roosevelt entre 1960 e 1970, conta que figuras constantes na
Stardust eram o estilista Dener e suas modelos
19
. se apresentaram o conjunto
Robledo, Jair Rodrigues e Hermeto Paschoal (“de cabelos curtos, apelidado de
Coalhada”
20
).
Na mesma linha do Stardust, havia a boate Cave, na rua da Consolação, onde se
apresentava Baden Powell, Aracy de Almeida e os integrantes do Jongo Trio. “Cave e
Stardust eram as boates society na capital paulista onde as contas freqüentemente
penduradas ‘no cabide ali em frente’, nunca tinham menos de quatro algarismos antes
da vírgula”.
21
Dentro do cenário da música popular na noite de São Paulo, chegaram a funcionar
na região mais próxima à praça: o Bom Soir, no quarteirão do Stardust; o Brasão, casa de
iê-iê-iê de propriedade de Erasmo Carlos; o Moacyr´s, do pianista de jazz Moacir
Peixoto, na rua Nestor Pestana, que depois se transformou na boate Zumzum. Estas
casas da região da Praça Roosevelt definiam junto com as da rua Major Sertório (do
outro lado da Consolação), da rua Augusta, o Hotel Claridge, na avenida Nove de Julho, e
mais tarde dos bares da Galeria Metrópole, na praça Dom José Gaspar, o que é
considerada a geografia da MPB em São Paulo dos meados do século XX.
22
Em 1955, o Teatro de Arena inaugurou sua sala na Teodoro Baima, rua do outro
lado da Consolação, bem em frente à igreja. Com sua proposta de comprometimento
político e social e a valorização da dramaturgia brasileira contemporânea, o Arena, além
da representatividade dentro da história do teatro brasileiro, marcou a formação de
uma cultura teatral fora do universo das grandes produções em São Paulo a
17
AMENDOLA, G. Op. Cit.
18
MELLO, Z. H. Op. Cit. p. 43
19
BRANDÃO. I. L. A praça Roosevelt e o Arena. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 20 nov. 2005.
20
MELLO, Z. H. Op. Cit. p. 43
21
Idem.
22
BORELLI, H. Op.cit.; MELLO, Z. H. Op.cit.
133
companhia se opunha a um tipo de teatrão comercial, de formato mais tradicional, na
época, representado principalmente pelo TBC.
A sala da Teodoro Baima trazia a inovação dos pequenos espaços, não tinha
saguão e eram 163 lugares em “assentos incômodos” rodeando uma área onde
aconteciam as apresentações. “Sala tão diminuta, nos anos sessenta, a do vizinho
Cine Bijou”
23
.
O Arena teve participação ativa na movimentação teatral e musical de São Paulo
de modo geral, e da região da Praça Roosevelt mais particularmente. A Excelsior
produziu teleteatros com textos dos autores do Arena e o teatro da Teodoro Baima
serviu de palco a shows de Bossa Nova, entre vários outros tipos de intercâmbios e
relações. A Roosevelt como área de ligação entre pontos culturais definidores da cidade
na época é ressaltada em relatos: “do Arena para Excelsior, da Excelsior para o Arena,
era atravessar a Praça Roosevelt, uma sopa”
24
; ou “a Roosevelt era ponto de
circulação entre o Arena e o Oficina, cuja primeira sede foi na rua Santo Antônio. E
também ponto de passagem para o Gigetto, na rua Nestor Pestana, e para a TV Excelsior
no Teatro Cultura Artística”
25
.
Sobre a boemia da Praça Roosevelt, são ainda lembrados o Marino´s Bar e o Bar
Comunidade. Borelli conta que no Marino´s, no início dos anos 60, reunia-se a “turma da
rolha”, grupo de jovens do qual participavam Tony Campello, “o príncipe do rock
brasileiro”, e Solano Ribeiro, músico de rock, ator do Arena e depois organizador de
festivais de música. Com mesa exclusiva no Marino´s, os rapazes usavam uma rolha
pendurada no pescoço e se embebedavam de Cuba Libre
26
. O Bar Comunidade era um
boteco que funcionava ao lado da Baiúca, Mello registra vários apelidos para lugar:
Sujinho, Baiuquinha, do Mané Português. “Decorado com o indefectível painel de
azulejos do Atelier Artístico e Mural, servia café até o último freguês, um sico com
certeza. Além das parcerias e criações que nasceram (...), célebres passagens
desfilavam na voz dos seus protagonistas”
27
. Mello conta que foi no Comunidade que o
músico Sérgio Ricardo teria ido se refugiar para tomar um café depois de jogar o violão
23
CAMPOS, C.A. Op. cit. p. 5
24
MELLO, Z. H. Op. cit. p. 53.
25
BRANDÃO, I.L. Op. cit.
26
BORELLI, H. Op. cit. p. 11.
27
MELLO, Z. H. Op. cit. p. 46
134
na plateia ao ser vaiado no festival da Record de 1967
28
. Na Nestor Pestana, havia dois
restaurantes tradicionais: a cantina Gigetto e a churrascaria Eduardo´s.
A praça Roosevelt teve também casas de prostituição de luxo, ambas de
propriedade de Laura Garcia e Hercílio Paiva
29
: a Vogue e a La Licorne, esta última
começou na Roosevelt e depois se mudou para a Major Sertório. Do La Licorne, são
lembrados os shows de travestis Le Girls e das apresentações de Roberto Carlos em
início de carreira
30
, além, é claro, de “suas mulheres espetaculares”
31
. Loyola Brandão
cita ainda “o Hotel Marrocos com as putas entrando e saindo”.
Além dos bares, boates e teatros, a partir de 1963 começou a funcionar na Praça
Roosevelt o Cine Bijou, um dos cineclubes ou os chamados “cinemas de arte”
pioneiros em São Paulo, que segundo Inimá Simões “teve sua fase áurea no final dos
anos 60, quando era ponto de encontro dos universitários que estudavam na rua Maria
Antonia”
32
. Chegou a ter uma segunda sala no mesmo quarteirão que foi chamada Bijou-
Sérgio Cardoso. Uma das salas do Cine Bijou foi substituída na década de 1980 pelo Cine
Clube Oscarito, que manteve o mesmo perfil de programação de seu antecessor.
Em um perfil do projecionista do Bijou, publicado O Estado de S.Paulo em 2007,
a descrição da praça como local agregador de artistas e intelectuais também é
ressaltado:
De 1971 a 1996, Nelson "morou" na cabine do cineminha da Praça Roosevelt,
no centro da cidade. Por ele circularam artistas e intelectuais de São Paulo,
universitários ávidos por derrubar a ditadura, uma diversificada fauna urbana,
hippies, desocupados, padres, senhoras bem vestidas, meninas de colégio,
olheiros da repressão (vai ver até que algum era cinéfilo), fora os famosos
moradores das redondezas. Quem, por exemplo? Até o vendedor de frutas do
pedaço, ainda hoje com banquinha na ativa, é capaz de lembrar: Marília
Gabriela, Ignacio de Loyla Brandão, Jardel Filho, Jacinto Figueira Jr., o Homem
do Sapato Branco, a cantora Leni Everson...moradores da praça, sim senhor. Jô
Soares, além de devorador das massas do Gigetto, também circulava no
pedaço e não raro acomodava o corpanzil bem abastecido nas poltroninhas
vermelhas do Bijou. Idem para a atriz Dina Sfat, ok, sem corpanzil, mas com
uma beleza que faz o Nelson suspirar ainda hoje: "Vinha sempre aqui. Às vezes
com o marido, Paulo José. Adoravam cinema."
33
28
MELLO, Z. H. Op. cit. p. 219.
29
A SEMANA. Festa vip. IstoÉ, São Paulo, n. 1665, p. 10, 29 ago. 2001.
30
BORRELI, H. Op. cit. p. 72.
31
BRANDÃO, I. L. Op. cit.
32
SIMÕES, I. Salas de cinema em São Paulo. São Paulo: PW/Secretaria Municipal de Cultura/Secretaria de
Estado da Cultura, 1990. p. 128.
33
GREENHALGH, L. O cinema na alma. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno Aliás, 5 ago. 2007.
135
O texto que se utiliza das memórias do projecionista do Bijou ainda faz referências
ao movimento mais “diurno” na Roosevelt, lembrando do “cabeleireiro da moda”, o
Jacques Janine, e a “doceria parisiense no estilo”, a Vendôme. Ignácio de Loyola Brandão
também lembra da Vendôme, e da agência Standard Propaganda. O relato do escritor
ressalta os contrastes diurno-noturno, com o convívio de sistemas morais distintos:
Na outra lateral, havia um salão de beleza que atendia tanto as mocinhas que
iam para as festinhas nas noites de sábado como as garotas de programa dos
inferninhos da Boca do Luxo.
(...)
A praça obedecia aos rituais de tribos diferentes. Durante a semana era
estacionamento e via-se homens de terno escuro fechando o carro de manhã
e voltando à tarde. Nas manhãs de domingo eram as beatas indo às missas da
igreja. Na manhã de sábado surgia uma população heterogênea comprando
na feira livre que ia até 2 da tarde: donas de casa, travestis, gays, prostitutas,
empregadas, atores, modelos, bailarinos, jornalistas. O Biju, cinema de arte,
catalisava o pessoal da USP-Maria Antônia, os freqüentadores da Cinemateca,
do Cine Coral, do bar do MAM e da Galeria Metrópole, do Arena e do Oficina,
publicitários.
(...)
No fim da tarde de sábado, o asfalto, lavado depois da feira, era invadido
por moleques jogando futebol até a noite cair e não se enxergar mais a bola,
que a praça era escura, impossível iluminá-la decentemente sem plantar
postes. Porque esta é a cidade dos postes fincados e dos fios aéreos, um
horror. Ah, não posso me esquecer também das jovens de família que nos fins
de tarde circulavam de bicicleta, aproveitando que os automóveis partiam,
liberando o vasto espaço.
34
A configuração da chamada Boca do Luxo, principalmente, nos anos 60, que
engloba a Vila Buarque e a Nestor Pestana, começa a caracterizar a região da praça
Roosevelt como área de fluxo de prostituição. Na Nestor Pestana, as casas Vagão e Kilt
(anos 70) passaram a representar o novo momento. Coincide com isso, as intervenções
viárias de ligação leste-oeste e a construção da estrutura de concreto para a nova Praça
Roosevelt. As casas tradicionais vão aos poucos fechando ou se mudando para outras
regiões. As atividades financeiras e culturais e de diversão da classe média começam a
subir em direção à avenida Paulista e Jardins, seguindo cada vez mais pelo vetor
sudoeste.
Com a mudança de perfil que fica mais claramente definido a partir dos anos 80, a
Praça Roosevelt passou a ser identificada como região degradada e a figurar como parte
34
BRANDÃO, I. L. Op. cit.
136
de um certo “submundo” do centro de São Paulo. Os relatos sobre o período “áureo” da
Roosevelt, nos anos 50 e 60, utilizados aqui (com a exceção da passagem do filme de
Walter Hugo Khouri), falam de forma pretérita, dando consistência de histórica, com
estruturas mais fixas, como diria Williams. marcadamente um tom “nostálgico” de
exaltação da alegria, da camaradagem da noite, do glamour, das tiradas bem
humoradas, de cenas míticas como a de Vivian Leigh correndo pela praça com os
sapatos na mão em plena madrugada , da mistura harmoniosa. Estes relatos contam a
praça com olho no “futuro” seguinte, o degradado:
Essa vida foi a vida que desapareceu quando a Prefeitura construiu um
monstrengo arquitetônico inadequado, triste, que agora começa a ser
repensado. Aquela vida, que era até meio provinciana, se foi, os tempos são
outros. Melhores? Difícil de dizer. Mas não eram como hoje, decadentes,
deteriorados, violentos, ameaçadores.
35
Pode ter sido mera coincidência, mas quando no final dos anos 60
transformaram a praça Roosevelt num amontoado de concreto e na passagem
subterrânea de uma via expressa interligando a zona leste a oeste, começou a
desaparecer também o circuito cultural que a cidade nunca mais conseguiu
estabelecer.
A agitação cultural do centro cedeu lugar à sujeira deixada pelos camelôs e à
violência dos meninos de rua, embalados na loucura das drogas e sempre à
espreita de sua próxima vítima.
36
Por causa do movimento na Baiúca, José Renato Romano, 63 anos, abriu um
salão para cortar o cabelo dos fãs de Bossa Nova que freqüentavam o lugar.
"Foi um período de ouro. A Praça Roosevelt era linda, não tinha violência, não
tinha sujeira. Só charme e música", lembra Renato.
(...)
Se os bons tempos da Praça Roosevelt podem voltar, ninguém é capaz de
afirmar.
(...)
Sobre a expectativa de ver a Praça Roosevelt brilhando novamente, Zuza
[Homem de Mello] é pessimista. "Não. Não mais. Hoje aquele lugar nem
pode ser mais chamado de praça. Quem viveu aquele período viveu. O trem
passou e quem pegou, pegou".
37
Assim, em oposição ao passado feliz que sintetizava a figura de praça interiorana
com a agitação cultural super atualizada , a degradação. Estabelece-se o confronto
entre as lembranças reconfortantes (traços de ruralidade) e o futuro ameaçador (corte
da felicidade). A arquitetura da praça feia, aberração, inadequada, pesada etc. é uma
35
BRANDÃO, I. L. Op cit.
36
BORELLI, H. Op. cit. p. 147.
37
AMENDOLA, G. Op. cit.
137
das principais vilãs a que se atribui a culpa pelo processo de empobrecimento da região.
Mas o debate sobre a degradação urbana não se esgota nos projetos de arquitetura,
vários outros processos sócio-culturais interferem aí. Assim, é preciso dar maior
consistência à própria ideia de degradação, que aparece usualmente associada a
“abandono”, o que também merece reflexão no âmbito discursivo que essas ditas
áreas degradadas nunca são esvaziadas, sempre populações que vivem, ocupam e
dão sentidos a esses espaços.
Considerações sobre corrupção urbana
A degradação urbana é temática intrínseca à própria noção de cidade moderna.
Em boa parte, o urbanismo moderno (e depois, o modernista e também o próprio pós-
modernismo) propõe meios para impedir que as cidades “morram” (no caso
moderno/modernismo visando o conjunto geral da cidade, e do pós-modernismo com
intervenções mais pontuais e fragmentadas). A “morte” não significa
obrigatoriamente a supressão da vida das ruas, em muitos casos, pode indicar até o
contrário, representando apenas o apartamento da cidade (ou de trechos dela) das
dinâmicas econômicas vigentes. O modelo de cidade moderna responde à tentativa de
ordenação do espaço em que diferentes grupos sociais estão em constante interação,
“onde a diversidade e os conflitos sociais decorrentes se intensificam e ganham maior
visibilidade e dramaticidade”
38
. A ausência de algum ordenamento levaria ao abandono
e degradação.
Daniel Roche, ao analisar o cotidiano popular na Paris do século XVIII, caracteriza
que a cidade estava em contínua desordem, em decorrência da dificuldade cada vez
maior que as pessoas tinham em perceber as aceleradas mudanças no cenário e no
modo de vida. O autor observa que havia duas propostas urbanísticas simultâneas. Uma
ditada pela monarquia que buscava dar o aspecto triunfal à cidade, a outra definida
como um “urbanismo selvagem e livre, aberto às iniciativas populares e às investidas
38
FRÚGOLI JR., Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São
Paulo. São Paulo: Edusp, 2006. p. 20.
138
dos especuladores”
39
(Pierre Francastel observa que foi travada uma verdadeira guerra,
por meio do arte e da arquitetura em Paris, entre monarquia e burguesia para
demarcação de poder
40
). Os dois modelos afetaram agudamente a mobilidade e a
fixação da população.
Havia assim em curso uma nova dinâmica no espaço parisiense entre final do
século XVII e o século XVIII a configuração de uma cidade que respondia ao modelo
liberal. Segundo Leonardo Benevolo, a cidade liberal o primeiro momento do
urbanismo industrial era caracterizada pelo adensamento populacional dos centros,
ruas estreitas com grande tráfego, moradias operárias insalubres, abandono de
residências nobres e conventos, construções levantadas em áreas verdes e a ocupação
periférica das cidades pelas classes dominantes. A representação dos espaços centrais
“ambiente desordenado e inabitável”
41
, com seus cortiços superlotados pelas
chamadas “classes perigosas”, começa a se associar diretamente com a idéia da
deterioração urbana.
neste momento, Roche identifica discursos que se preocupavam em distinguir o
povo “trabalhador” do “populacho” (o mais baixos dos estratos sociais). Eram os
desocupados, desempregados, indigentes, delinquentes, prostitutas, enfim, todo o
submundo urbano, “desumanizado pela miséria”. A Revolução Francesa viria a dar
consistência a essa distinção: separar o povo do populacho
42
. Karl Marx definiu como
lumpemproletariado para enfatizar a diferença do trabalhador proletário o “produto
passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade”
43
, é a franja não
produtiva que escorre do capitalismo. Esse refugo humano, segundo Marx, estaria tão
absorto no curso de sua sobrevivência bem imediata, que tenderia mais a se vender à
reação, do que a ser arrastado para a revolução. Na França bonapartista, descreve a
massa de sustentação de poder como “arruinados e aventureiros rebentos da
burguesia” que foram organizados lado a lado a
39
ROCHE, D. O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Edusp, 2004. p. 63
40
FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 38
41
BENEVOLO, L. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 567
42
ROCHE, D. Op. cit. pp. 75-77
43
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In:______. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-
Omega, s/d. v. 1. p.29.
139
vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos
das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzaroni, punguistas, jogadores, maquereaus,
donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de
facas, soldadores, mendigos em suma, tôda essa massa indefinida e desintegrada
44
.
E é a esse universo submundano do lumpesinato que a idéia de deterioração está
fortemente relacionada. Roche identifica no debate da época a idéia de uma “patologia
citadina”, causada pelo rompimento dos vínculos dos homens com a natureza, o
desenraizamento, resultante da vida na cidade. Michelle Perrot define o submundo
como uma figura discursiva das falas burguesas a burguesia, apesar de fincar seu
poder na cidade, desenvolveu uma representação pessimista do urbano: o “campo
virtuoso” e a “cidade viciosa e infernal”
45
. Raymond Williams apontou para a associação
discursiva da cidade com a degradação moral em contraste com a pureza da vida
campestre na literatura inglesa dos séculos XVIII e XIX, conforme apresentado no
capítulo 2.
Maria Stella Bresciani faz referência à “teoria da degeneração urbana”, do final do
século XIX, que se disseminou entre médicos, cientistas e administradores, e que mescla
questões sanitárias e morais em uma abordagem apoiada no darwinismo social
(degeneração urbana hereditária) para definir o caráter do trabalhador pobre nascido e
criado em Londres
46
. A autora assinala também que, principalmente a partir da análise
do caso londrino “a cidade monstro” e da projeção futura para a situação parisiense,
foram produzidos ainda na primeira metade dos oitocentos uma grande quantidade de
relatórios e registros literários em que, de modo geral, “o argumento central consiste
em estabelecer um vínculo entre cidade, pobreza e criminalidade”
47
.
assim disseminado um discurso naturalista que vai ganhar consistente
representação também por meio da literatura de ficção que identifica um
comportamento patológico dos homens submetidos à miséria urbana. Antonio Candido,
em sua análise do romance L´Assommoir (1887), de Emile Zola, traça o percurso da
44
MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Op. cit. p. 243.
45
PERROT, M. Os excluídos da História: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988. p. 115.
46
BRESCIANI, M.S.M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo: Brasiliense,
1985. pp. 28-31
47
Ibidem. pp. 52-53
140
personagem Gervaise, muito representativo do processo de degradação humana e
urbana:
a dimensão cultural da cidade é dissolvida num desmesurado ambiente natural, formado
pela noite, o frio, a chuva, a lama, a neve, o vento, a escuridão. Cuspida do universo da
técnica e do objeto manufaturado, Gervaise retorna a uma situação primitiva, que
procura superar usando o próprio corpo como objeto negociável. Ou seja: indo ao cabo
do processo alienador, ela se define como coisa, no espaço de um mundo que lhe nega
condição para se humanizar. É uma recuperação monstruosa da natureza, pela
impossibilidade de participar da cultura industrial. Depois disso, pode morrer.
48
Vale também mencionar a disseminação de neros de uma chamada literatura
popular a partir do século XVIII. Temáticas relacionadas ao crime, à violência, ao horror,
à pornografia e à escatologia remetiam diretamente a esses ambientes urbanos, em sua
face mais degradada. A teoria literária identifica parte desta produção como uma linha
diretamente relacionada à literatura do grotesco, conforme a análise de Bakthin, do
contexto medieval. Bakthin associa o grotesco ou burlesco à degradação do sublime. É a
representação do homem com ênfase às suas necessidades corpóreas: sexo, comida,
bebida, excreções...
49
No contexto moderno, o grotesco dialoga diretamente com o ambiente urbano a
miséria urbana como matriz da deformação moral e física. No século XIX, com a
apropriação de alguns gêneros pelo mercado e a consequente massificação, a figura do
submundo ganha força. Entre junho de 1842 e outubro de 1843, o folhetim Les mystéres
de Paris, de Eugène Sue, foi publicado no Jornal des Débats, transformando-se em um
dos maiores e mais emblemáticos sucessos da cultura de massa oitocentista. A Paris
misteriosa de Sue era basicamente submundana, pervertida, deformada. No vácuo do
folhetim, chegou a ser publicado na época um dicionário com termos e expressões do
calão falado nos tapis-francs, casas mal-frequentadas, intimamente relacionadas à
perversão e criminalidade (inferninhos, espeluncas). Umberto Eco, no entanto, identifica
o caráter moralista da obra de Sue, apoiada na ideia que somente a benfeitoria dos ricos
seria capaz de aliviar a miséria da vida urbana.
50
48
CANDIDO, A. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades/Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p.
79
49
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.
50
ECO, U. O Super-Homem das massas. São Paulo: Perspectiva, 1991.
141
A degradação vincula-se, assim, aos espaços de criminalidade o submundo e ao
ambiente das populações pobres. Robert Park, da Escola de Chicago, observava no
começo do século XX que as cidades modernas não possuem apenas uma planta de sua
estrutura física, mas também mapas morais. “Crescendo a cidade em população, as
influências de simpatia, rivalidade e necessidade econômica mais sutis tendem a
controlar a distribuição da população”
51
. Afetos e preconceitos seriam os principais
demarcadores das regiões morais urbanas. No caso dos preconceitos, Park apontava a
configuração de guetos raciais, bem como, as áreas de vício e criminalidade segregadas.
Na complexidade das grandes cidades, Park assinalava o papel dos meios de
comunicação e transporte na definição da moralidade urbana.
O autor definia assim que as regiões morais respondem à dualidade permissividade
e restrições que a vida urbana impõe. As regiões de vício responderiam a territórios em
que “os impulsos, as paixões e os ideais vagos e reprimidos se emancipam da ordem
moral dominante”
52
. A cidade exporia à vista pública a natureza humana traços que
ficariam obscurecidos nas comunidades menores. Mas, Park já observava que essas
regiões morais não seriam sempre tão claramente delimitadas devido ao dinamismo da
vida citadina.
Nos EUA, desde o início do século XX, a figura das regiões de vício muitas vezes se
associava à questão racial nos guetos étnicos. Marcados por uma forte experiência
comunal e estrutura compacta, os guetos negros a partir da década de 1970,
fragmentaram-se, existindo ainda como áreas de exclusão, mas marcadas por uma
economia delinquente (roubos, drogas), desestruturação familiar e violência. Estas
populações passaram a ser designadas “no imaginário social e científico norte-
americano” como underclass, termo que, segundo Loïc Wacquant, apesar de
apresentado como “neutro” por cientistas e autoridades, acabou por estigmatizar estes
grupos sociais e a definir de maneira arbitrária territorialidades.
Periculosidade e imoralidade representam, associadas a uma categoria
etnorracial estigmatizada (afro-norte-americanos e, secundariamente, porto-
riquenhos e mexicanos), os traços peculiares que motivam a atribuição de
51
PARK, R.E. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In:
VELHO, O. G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. P. 33.
52
Ibidem. p. 70
142
autoridade a esse “grupo” de pobres cuja a aparição explicaria a deterioração
contínua de guetos e barrios da metrópole nos Estados Unidos que existe
no papel (...). Artefato estatístico nascido da reunião arbitrária de populações
que apresentam relações e mecanismo sociais divergentes, a underclass é
uma designação própria do espaço social, local vilipendiado, esquivo e
percebido de longe (e do alto) sobre o qual cada um pode projetar seus
fantasmas.
53
Os processos de descentralização urbana e periferização, a demarcação das
fronteiras do submundo ficou mais instável. A partir dos anos 1960-70, os centros
tradicionais de muitas metrópoles (principalmente no caso das cidades norte-
americanas e latino-americanas) começaram a perder suas funções, ficando também
abandonadas pelas políticas públicas a precarização dos equipamentos públicos, falta
de investimento, ausência de policiamento etc. Este abandono deu aparência desolada a
muitas áreas, que passaram a ser utilizadas por populações em situação de miséria,
desarticuladas do ponto de vista político e comunitário, mesclando em ambientes
próximos atividades subversivas (como tráfico de drogas e prostituição), comércio
informal e outros tipos de subempregos, concentração de imigrantes e migrantes,
população de rua, comércio popular, com reminiscências não associadas ao submundo
como focos de habitação de classe média/média-baixa e de escritórios ligados ao poder
público e mesmo à iniciativa privada.
Esta dinâmica das territorialidades urbanas modernas apontou na direção da
territorialidade mais extremada do corpo. David Harvey indica a política do corpo como
uma das chaves para pensar as relações de tempo e espaço na contemporaneidade. O
corpo representa fronteiras, bem como possibilidades de resistência e emancipação. “O
estudo do corpo tem de basear-se na compreensão das relações espaço-temporais
concretas entre práticas materiais, representações, imaginários, instituições, relações
sociais e estruturas vigentes de poder político-econômico”
54
. Pensando nas populações
ferreteadas com o estigma do submundano, é particularmente explícito o modo como a
corporeidade desenha preconceitos e subversões à ordem.
53
WACQUANT, L. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro:
Revan; FASE, 2001. p. 97.
54
HARVEY, D. Espaços da esperança. São Paulo: Loyola, 2004. p. 178.
143
Projeto da praça e deterioração
Durante a construção da Praça Roosevelt a revista Manchete publicou uma
matéria, em que aparecia estampada em página dupla uma foto das obras
acompanhada do texto:
Uma cidade mais humana
Pela audácia de sua concepção arquitetônica, a Praça Roosevelt é um resumo
da nova São Paulo. Uma praça de quatro andares, única no mundo, como
única no mundo é a metrópole paulista. Em São Paulo, o futuro foi antecipado
pelas obras, que conseguiram o milagre de engrandecê-la e torná-la mais
humana, porque foram feitas com vistas voltadas para o homem.
55
Ecoando o discurso oficial, o aspecto destacado pela matéria é o do “humanismo”
da obra, apesar de todos os predicados de referência arquitetônica “internacional”. Veja
bem, estavam falando de uma estrutura de mais 60 mil metros quadrados de concreto
armado, construída para ocupar uma área remanescente de uma grande obra viária.
A construção do edifício-praça insere-se nas transformações ocorridas na cidade a
partir do Plano Urbanístico Básico (PUB), plano diretor elaborado no final da gestão de
Faria Lima (1965-1969) na prefeitura da cidade. O PUB, principal projeto urbano em São
Paulo durante o período de ditadura militar, tinha como objetivo orientar o crescimento
da cidade até a década de 1990. Conforme assinala Somekh e Campos, o plano dizia-se
focado em “humanizar” a metrópole, “não definir a construção de avenidas e
viadutos, mas atender os setores de educação, cultura e saúde, parques e jardins e
‘quebrar o tabu do metrô’”
56
.
A expansão da cidade era vista como necessária, mas também como causa dos
principais problemas urbanos e o PUB reforçava esse discurso do “crescimento
humanizado”, supostamente superando o modelo rodoviarista. Mas, observam Somekh
e Campos, que o projeto previa “nada menos que 815 km de vias expressas”, embora
55
UMA cidade mais humana. Manchete, Rio de Janeiro, dez. 1969.
56
SOMEKH, N.; CAMPOS, C.M. O Super-plano: PUB Plano Urbanístico Básico. In: In: _____ .(orgs). A
cidade não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo: Mackpesquisa, 2002. p.
112.
144
tenha havido uma valorização do transporte coletivo, principalmente por meio do
metrô
57
.
A principal obra viária do PUB, inaugurada pela gestão de Paulo Maluf, fazia parte
da ligação leste-oeste, que previa a construção de uma via elevada (Elevado Costa e Silva
ou Minhocão) para ligar o Largo ricles, na zona oeste, ao centro e ao início da Radial
Leste. Bem na confluência do Minhocão com a Radial fica a praça Roosevelt. Em uma
primeira versão do projeto, a praça seria totalmente aniquilada pela obra: restaria
apenas uma ilha perdida com a Igreja da Consolação, e o seu redor seria tomado por
feixes de vias que caracterizaria a região como entroncamento.
1. A praça Roosevelt na confluência de vários eixos viários. Fonte: MapLink
Mas, dentro da proposta de “humanização”, o local remanescente do grande
sistema viário foi então tomado como praça para aglutinar funções de lazer, cultura,
educação e (provavelmente o item mais “precioso” na concepção do espaço)
estacionamento subterrâneo com 700 vagas para responder ao fluxo de automóveis
vindos dos bairros para o centro. Assim, a nova praça Roosevelt foi projetada como um
57
Ibidem. p. 116.
145
edifício-praça. O projeto da praça ficou a cargo de Roberto Coelho Cardoso, Antonio
Augusto Netto e Marcos de Souza Dias. Cardoso é considerado um dos paisagistas mais
importantes (e pioneiros) na arquitetura brasileira.
A obra não corresponde à totalidade do projeto original, que previa a ocupação
também da área do quarteirão seguinte à rua Olinda (atual João Guimarães Rosa), entre
a Consolação e a Gravataí. Ali, o prédio ocupado na época pelo Dispensário de
Tuberculose do Estado que seria, conforme o projeto, adaptado para um centro cultural
com um grande auditório, atividades musicais e educacionais interligadas ao playground
da praça. O centro cultural não foi criado, e o limite da praça ficou na Guimarães Rosa.
58
Conforme informações da Emurb, a praça antiga (o descampado) tinha uma área
de 25.110 m
2
e a praça inaugurada em 1970, com seus vários níveis e funções, somava
um total de 65.250 m
2
(considerando as praças públicas, serviços de abastecimento,
estacionamento, atendimento a público, recreação e educação e sistema viário
enterrado).
A praça construída consiste de três cleos principais (Maior, dos Pombos e
Antepraça) e praças ou espaços secundários (Esplanada da Consolação, Pátio Pergolado
e Mercado de Flores), ligadas entre si por rampas e escadas, além do estacionamento no
subsolo
59
. A Esplanada da Consolação, o nível mais baixo acima do solo, fica a 1,5 metro
da rua da Consolação, e chegou a ter o espaço para um restaurante com mesas ao ar
livre e acesso a um playground coberto, e a Praça do Mercado de Flores, para abrigar
barracas de venda de plantas e flores. Nesta área mais próxima à rua da Consolação,
chegou a ser ocupada pelo acervo circulante da Biblioteca Mário de Andrade, por um
Batalhão da Polícia Militar, por uma Base da Guarda Metropolitana e pelo Centro de
Informação da Mulher (CIM).
A Praça dos Pombos é uma área ensolarada sobre o restaurante e o playgroud
coberto, onde havia um pombal, mais tarde retirado devido à falta de cuidados e
manutenção, o que gerava um foco de sujeira. Na outra extremidade, a antepraça, que
funcionaria como “antessala” à Praça Maior. Sob a antepraça, seriam acomodados
58
FERREIRA, J.C.M. Praça Roosevelt: possibilidades e limites do uso do espaço público, 2009. Dissertação
(Mestrado em Geografia Humana) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo. p. 44
59
Informações de projeto fornecidas pela Emurb.
146
serviços: informações turísticas, agência de Correios e de telefone, administração da
praça e ambulatório médico. E no nível mais alto, a Praça Maior, núcleo principal da área
de lazer e espaço para concentrações cívicas e espetáculos, tem formato de pentágono
com 52 metros de lado. Sob o pentágono, havia uma proposta de instalação de um
mercado municipal, onde mais tarde funcionou um supermercado e a Escola Municipal
de Educação Infantil Patrícia Galvão.
A inauguração da nova praça Roosevelt aconteceu no da 25 de janeiro de 1970,
anunciado como o evento mais importante das comemorações de 416 anos da cidade
que incluía também a partida de futebol de estreia do estádio do Morumbi.
2. Praça Roosevelt, vista geral em 1970 (foto de Ivo Justino/DPH), e do pentágono com o Minhocão ao
fundo, em 2008 (foto de Fabio Mattos/Viva o Centro).
Anúncios oficiais da prefeitura, convidando a população para a festa, foram
estampados em diversos jornais. Com a presença do presidente Médici, a inauguração
da praça também ganhou destaque e primeiras páginas na cobertura jornalísticas de
praticamente todos os grandes veículos de comunicação. A praça seria o palco do
147
discurso principal de Médici em sua visita, e a imagem da “praça do povo” ganha ecos na
imprensa:
No discurso que pronunciará na praça Roosevelt, o presidente Médici falará
de maneira franca e simples ao trabalhador paulista, dizendo de seu desejo de
integrar todo o povo brasileiro. Destacará que escolheu o trabalhador para
dialogar sobre os problemas do País e que é na praça pública que encontra o
povo, com o qual frisará quer partir para a integração nacional.
60
Médici falará amanhã aos trabalhadores
(...) O presidente Médici em discurso que fará amanhã, na inauguração da
praça Roosevelt, vai anunciar a política de seu governo em relação aos
trabalhadores (...) suas palavras serão retransmitidas por das as emissoras
do País, em rede comanda pela Agência Nacional.
61
A figura do “trabalhador” (“oitocentos homens trabalhando dia e noite ergueram
importante centro turístico”
62
) e do “povo” aparece frequentemente nas matérias sobre
a inauguração da praça. Na capa do caderno especial do aniversário da cidade, do jornal
O Dia, uma grande foto área da Roosevelt com o texto: “São Paulo completa 416 anos
com um prefeito voltado para o povo”
63
. Junto com a figura “humanizada”, os dados
hiperbólicos do tamanho da obra, as toneladas de cimento e ferro, o número de
operários empregados, a capacidade de veículos no estacionamento etc.
64
Na programação oficial da inauguração, foram anunciadas atrações como
apresentações de bandas mirins e da Guarda Civil; concerto sinfônico regido pelo
maestro da sinfônica de Dallas, Donald Johannos (“o quarto maestro mais famoso do
mundo”); exposição fotográfica de planos urbanísticos para a cidade; Salão de Portinari,
com desenhos do pintor; artistas do Circo Orlando Orfei; exposição de esculturas ao livre
com participação de Flavio de Carvalho, Mário Cravo Júnior e Caciporé Torres; mostra de
posters-poemas de Maria Bonome, Bia Kondo e Cláudio Tozzi. Para o encerramento,
evoluções das escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro e Padre Miguel e fogos de
artifício.
60
MÉDICI vai dialogar com o povo na praça. Diário Popular, São Paulo, pp. 1-1; 1-4, 15 jan. 1970.
61
MÉDICI falará amanhã para os trabalhadores. O Dia, São Paulo, p. 1, 24 jan. 1970.
62
INAUGURAÇÃO da Roosevelt. O Dia, São Paulo, p. 1, 22 jan. 1970.
63
AZEVEDO, L.E.D. São Paulo completa 416 anos com um prefeito voltado para o povo. O Dia, caderno
especial, p. 1., 25 jan. 1970.
64
RIBEIRO, C. Roosevelt: 3200 toneladas de ferro. O Dia, São Paulo, p. 3, 24 jan. 1970.
148
Em contraste com os grandes festejos e dos discursos construídos em torno da
obra, uma matéria do Jornal da Tarde ressalta que a praça não estaria totalmente
pronta na data da inauguração. O título da matéria apresenta questionamento: “A
Roosevelt pronta para sua festa. Pronta?”. Segundo o jornal, não estariam prontos o
obelisco que controla toda a iluminação da praça, o restaurante (“de 600 metros
quadrados”), o estacionamento, as lojas, o supermercado, o mercado de hortifrúti, o
bar, a agência de banco.
65
No dia da inauguração, o Jornal da Tarde retoma que a praça não estava pronta,
jogando em suas descrições elementos de certa precariedade contrastante com verniz
de grandiosidade e modernidade que cobria os discursos oficiais. Dos serviços
prometidos apenas o estacionamento estaria funcionando. A mesma matéria também
descreve as atrações da inauguração destacando os problemas burocráticos, um tanto
prosaicos, enfrentados pela organização do evento, como a exigência de abrir
concorrência pública para contratar o maestro e a escola de samba (o que foi
contornado), a dificuldade em conseguir a partitura de uma peça que seria executada
pela orquestra e a falta dos canhões necessários para acompanhar a Abertura 1812, de
Tchaikowsky “para chegada de um presidente em uma cidade é necessário uma salva
de 21 tiros de canhão 105 milímetros (...) pela falta de canhões Garrastazu Médici
também não receberá a salva devida quando chegar a São Paulo
66
. O jornal O Dia
também confirma que as instalações terceirizadas e o obelisco não estavam prontos,
embora esta matéria carregue mais um tom de justificativa do que de
questionamento
67
.
Cerca de um ano mais tarde, com a abertura do Minhocão, a região volta aos
noticiários. Novamente a associação das grandes obras do período ao progresso da
cidade ganha coro. Uma matéria publicada na revista Veja tenta dar tons “humanizados”
à grande via suspensa, construindo uma curiosa tese de que os moradores da cidade e
da região se divertiam na tentativa de assimilar a obra em seus cotidianos. Há a
evocação do “tipo ideal” do paulistano: “foi uma reação típica de paulistano diante de
qualquer coisa absolutamente novo *sic+ que aconteça em sua cidade” e, mais a frente,
65
A ROOSEVELT pronta para sua festa. Pronta?. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 13, 14 jan. 1970.
66
A NOVA Roosevelt é sua. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 6, 24 jan. 1970.
67
RIBEIRO, C. Op. cit.
149
classifica como “bem paulistanas” as conclusões de “dona Cleusa”, moradora de um dos
prédios da região, que dizia na matéria ser preciso “se sacrificar pelo progresso”, ou
ainda, que pela economia de tempo na vida dos paulistanos, “certamente valeu a pena
devastar uma floresta de 5000 eucaliptos”.
O texto apresenta personagens que estariam se divertindo com o elevado que
devassa as residências lindeiras: os visitantes que iam passear de carro pela via com
“famílias, crianças e cachorros”, os estudantes da Casa do Estudante, que teriam mais
motivos para brincadeiras, o que ajudaria a manter a “divertida fama de baderneiros”,
ou um casal de idosos que diz que com o elevado seu apartamento, antes animado
pela visita dos netos e pela televisão, ficou “mais alegre”. E o texto encerra com a
aclamação: “o Minhocão é um espetáculo”.
68
Mas o espetáculo parece não ter aderido ao imaginário geral sobre a região. Não
tardaram a aparecer críticas e manifestações de descontentamento com a configuração
de espaço resultante da praça Roosevelt. Existem histórias em tom especulativo e até
anedótico em relação à obra, constantemente lembrados ainda recentemente em
relatos de moradores e frequentadores antigos do local. Um dos boatos lembrados é o
de que o projeto da Roosevelt seria o protótipo para testar modelos de praça que não
permitisse aglomerações
69
. No campo do anedotário, um suposto episódio (em
estrutura narrativa similar ao famoso chiste sobre os brioches de Maria Antonieta) que,
frente às constantes críticas sobre a falta de áreas verdes na praça, o prefeito Paulo
Maluf teria ordenado então que se pintasse o concreto da Roosevelt desta cor.
Na imprensa, encontramos algumas matérias sobre os problemas apresentados pela
praça em vários momentos a partir da inauguração. Em 1975, reportagem sobre o
tombamento da Ladeira da Memória traz alguns trechos de entrevista com o arquiteto
Luís Saia, então chefe do Patrimônio Histórico do Estado. Em um momento, Saia fala
68
GANDARA, N. P. Um minhocão pela janela. Veja, São Paulo, n. 126, 3 fev. 1971, pp. 26-27.
69
Em um documentário sobre a praça, produzido como trabalho de conclusão de curso por alunos de
jornalismo, Paulo Maluf foi entrevistado e indagado sobre esta versão, o ex-perfeito depois de manifestar
ter achado graça no comentário, a entender que a ideia é totalmente fantasiosa. (SANTANA, A. V.; et
al. Praça Roosevelt: uma praça além do concreto. Trabalho de conclusão do curso de Jornalismo
(audiovisual), São Paulo, Anhembi-Morumbi, 2009. Exibido pela TV Cultura em 24 out. 2009)
150
sobre a necessidade de áreas verde na cidade e comenta: “a população não quer e não
precisa de outro monstrengo como a praça Roosevelt”
70
.
Em 1979, o Jornal da Tarde traz uma extensa matéria analisando vários aspectos
da “morte” da praça e propostas de solução que se discutiam naquele momento
71
. “O
que parecia sinal de vanguarda ‘uma praça sem jardineiro’, como anunciava a
Prefeitura Municipal, na época de sua inauguração, exatamente há oito anos escondia,
na verdade, uma realidade desagradável: a praça Roosevelt nasceu morta”. O texto
aponta problemas de projeto, de construção, de estrutura, de funcionalidade e de
estética, a partir de um levantamento preliminar realizado pela Emurb e de consultas do
jornal a especialistas.
3. Jornal da Tarde, 19 jan. 1979. Arquivo do Estado.
Assinala as qualidades de projeto: o aproveitamento do espaço pelo jogo de lajes
sucessivas, a geometria definida pelo desenho das ruas que a circulam e a harmonia com
as linhas dos edifícios vizinhos e da igreja da Consolação. No entanto, a “genialidade” da
ideia teria sucumbido no relacionamento com a população, a falta de manutenção e a
70.
TOMBADA a Ladeira da Memória. Folha de S. Paulo, São Paulo, 4 abr. 1975. Disponível em:
<http://almanaque.folha.uol.com.br/cotidiano_04abr1975.htm>. Acesso em: 10 dez. 2009.
71
A PRAÇA morta. Soluções:. Jornal da Tarde, São Paulo, pp. 8-9, 19 jan. 1979.
151
depredação. Um problema apontado é a não realização da integridade do projeto
original, este previa, por exemplo, densa arborização do pentágono, grama, espelhos
d´água e bancos para repouso
72
. O resultado foi então a aridez tanto no panorama visto
de cima, como sentido no ambiente pouco propício à permanência pela falta de
sombras. Isto aliado aos acessos pouco convidativos (“excesso de construção”)
acabaram por representar obstáculos ao papel de área de circulação que se pretendia ao
local “em tese a praça Roosevelt deveria ser usada por uma população circulante
maior que a população que circula pela praça da República” , e os pedestres
prefeririam assim circular pelas calçadas periféricas, no caso então de deficientes físicos
e pessoas com carrinhos de bebê, a praça era quase que um local intransponível.
Além de diversas outras falhas de execução do projeto, a matéria aponta também
a manutenção deficitária, que poderia ser notada pela quantidade de infiltrações
(decorrente também de erros de cálculo e de impermeabilização), falta de iluminação,
ventiladores que não funcionam e janelas e vidros quebrados.
A reportagem assinala impressões de especialistas, um chama o espaço de “caos”,
outro diz que “não é uma praça”, mas sim um edifício construído para fechar a abertura
resultante da obra viária, afirma ainda, por meio de uma curiosa metáfora, que as
necessidades urbanas do momento de sua construção haviam se modificado, como
“uma criança que usa um número de sapato, e depois cresce”.
Em 1980, uma matéria da Folha de S. Paulo destaca o jogo de empurra entre a
Emurb e a Regional da sobre as responsabilidades na manutenção da praça. “Bancos
quebrados, floreiras depredadas, árvores secas, muros pichados, luminárias
arrebentadas, lixo e muitos buracos: eis o que sobrou da praça Roosevelt, uma área pela
qual ninguém se responsabiliza”
73
. Mesmo sem assumir que a tarefa fosse de
competência da empresa pública, o representante do órgão afirma para a reportagem
que preparou um projeto de reparos, unicamente para dotar a praça de “condições
mínimas de uso”, embora não pudesse dar garantias que a Roosevelt pudesse “se
72
O geógrafo Jair Cesar Maturano Ferreira realiza o exame do memorial do projeto da praça Roosevelt e
identifica que além do centro cultural da rua Guimarães Rosa não foram realizadas várias outras partes do
que foi planejado pelos arquitetos responsáveis: a colocação de esculturas e espelhos d´água na
Antepraça; a iluminação do pentágono, bosque arborizado na área próxima à igreja e a feira modelo que
foi substituída por um supermercado particular. FERREIRA, J.C.M. Op. cit. pp. 46-47
73
NINGUÉM responde pela deterioração da praça. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 8, 31 mai. 1980.
152
transformar em um centro de lazer e atividades culturais, objetivos para o qual foi
projetada e que, na verdade, nunca foi atingido”.
Em 1997, o então prefeito Celso Pitta ordenou a transferência da feira de
artesanato da praça da República para a Roosevelt. Na época, reacendeu na imprensa o
debate sobre a situação estrutural do espaço, diante da mobilização dos artesãos contra
a transferência. Foi divulgado que a prefeitura pretendia iniciar em janeiro de 1998 as
obras de demolição da praça, pois um estudo da Emurb apontava que
a praça Roosevelt possui problemas de projeto, que impedem que ela dê certo.
Vários empreendimentos que foram tentados na praça fracassaram, como a
instalação de biblioteca pública, agência dos Correios e outros tipos de lojas.
O projeto de reurbanização inclui a demolição do prédio onde funciona hoje um
supermercado, transformando a Roosevelt em um grande espaço aberto.
A demolição seria necessária, segundo a assessoria de imprensa da Emurb, porque o
piso da praça possui muitos desníveis.
Com o piso plano, seriam plantadas árvores de pequeno porte, em canteiros e
desenhada uma pista para cooper e caminhadas.
74
Entre os problemas estruturais divulgados na imprensa na época, aparecem as
infiltrações e rachaduras na laje, causando goteiras, tubulação obstruída o que
atrapalhava o escoamento e o piso irregular que formavam “‘piscinas’ de água
empoçada em dias de chuva”
75
. Conforme o jornal, os artesãos também reclamavam da
falta de banheiros e a pouca circulação de pessoas na região
76
. Referências à sujeira da
praça Roosevelt e à falta de espaço expositivo também eram constantes: “‘ é mais
sujo e não há espaço para todos’, disse o artista plástico David Sobral”
77
.
Não apenas na imprensa os debates críticos sobre os problemas da praça
Roosevelt apareceram. Em sua análise semiótica da praça Roosevelt, Lucrécia D´Aléssio
Ferrara observa a arquitetura do local, a qual classifica como um “signo suicida”. A
autora analisa que existe uma “poluição aglomerativa” de elementos. Primeiro pelo
excesso de funções a que o espaço pretendeu dar conta. Segundo pelo uso desordenado
de formas: “ângulos pontiagudos, formas arredondadas, elipses, círculos, pentágonos
74
MUGGIATI, A. Praça condenada receberá artesãos em SP. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-7, 25 nov.
1997.
75
LAMBERT, P. Falta de espaço adequado adia início de feira na Roosevelt. Folha de S. Paulo, São Paulo, p.
3-6, 28 nov. 1997.
76
REPORTAGEM LOCAL, FT. Artesãos protestam em frente à Câmera. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-7,
25 nov. 1997.
77
COSTA, A. Artesãos vão tentar ficar na República. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-6, 24 nov. 1997.
153
que se manifestam abruptamente, e de materiais diversos, ou seja, concreto aparente,
pedra, pastilhas, mármore, todo em tom cinza”
78
.
A poluição de signos tornaria a praça ininteligível aos potenciais usuários. Ferrara
assinala como a visualização fica comprometida as “praças” que compõem toda a
Roosevelt não são visíveis entre si, por causa dos níveis, bem como a Praça Maior não
pode ser vista a partir da rua , não sendo identificada como espaço público, como
praça, e afastando o usuário.
Proposta como praça-edifício, ela se ergue mais como marco monumental da
cidade, com caráter de signo eterno e imperecível, feito não para ser usado ou
vivido como ambiente, mas para criar um marco representativo do poder de
uma sociedade.
79
A imagem do projeto equivocado de praça consolida-se na imprensa e em
relatórios e análises urbanísticas de São Paulo, desde pouco tempo depois de sua
inauguração. Uma matéria de 2002, sobre a ocupação da região por pequenas salas de
teatro, inicia-se tomando como cristalina a imagem do espaço “predestinado” à
degradação:
Como na canção de Chico Buarque, um "chato dum querubim" parece ter
predestinado a Praça Roosevelt, desde seu nascimento, a ser "errada",
perigosa, mais concreto do que verde, área de estacionamento e
supermercado e não de crianças e pássaros.
80
Cerca de dez anos mais tarde do episódio da tentativa de transferência feira de
artesanato, a reforma da praça foi mais uma vez anunciada pela prefeitura. E, no site
oficial, o coordenador das subprefeituras, Andrea Matarazzo, comenta: “Há muitas
reentrâncias e becos no local, que são um convite ao tráfico de drogas e à
marginalidade”
81
. Na mesma época (2007-2008), matérias na imprensa retomam o tema
dos problemas estruturais. No suplemento Veja São Paulo, da revista Veja, em 2007,
uma matéria sobre o estado de abandono e as propostas de intervenção da prefeitura
78
FERRARA, L.D. Ver a cidade: cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988. p. 47.
79
Ibidem. p. 50.
80
TEATROS ajudam a revitalizar a Praça Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 17 set.
2002.
81
Disponível em: http://www.prefeitura.sp.gov.br.Último acesso em: 30 jul. 2008.
154
em três praças do centro de São Paulo: Sé, República e Roosevelt. Sobre esta última, o
texto da matéria faz o “diagnóstico” do espaço:
Os sinais do abandono são nítidos. Pichações estampam muros, garrafas de
vidro e sacolas plásticas se acumulam sobre o gramado, um vazamento cria
poças d’água e o cheiro é repugnante. A situação piorou desde julho, quando
saíram do local um supermercado que locava da prefeitura um prédio
existente na praça e uma escola municipal de educação infantil.
82
E na Folha de S. Paulo, também aparece a versão oficial sobre a situação da praça:
Segundo a Emurb, será feita a ‘desobstrução total’ da área para resgatar o caráter de
praça que o lugar nunca teve. ‘O problema da praça é ela mesma. Foi um erro
urbanístico’, diz o arquiteto Rubens Reis, gerente de intervenções urbanas da Emurb”
83
.
O entorno e a geografia do submundo no centro paulistano
Dizer que a dinâmica de transformação da praça pode ser toda creditada ao
projeto arquitetônico e urbanístico pode ser considerado uma simplificação do
processo. Vamos agora abrir um pouco o enquadramento para a visualização do entorno
da praça.
O geógrafo Armando Correa da Silva realizou nos anos 70 e começo dos 80 uma
análise de funções, fluxos e planejamento do bairro da Consolação. A unidade da
Consolação é definida pelo perímetro: “rua Martinho Prado, rua Augusta, rua Antonio
Carlos, rua da Consolação, rua Maceió, avenida Angélica, rua Mato Grosso, rua Itambé,
rua Maria Antonio, rua da Consolação”
84
. No total, vinte quadras e uma praça (a
Roosevelt).
A rua da Consolação é historicamente uma importante via mestra dos vários
momentos do desenvolvimento de São Paulo. Em razão disto “a evolução do bairro está
82
VEIGA, E. Vamos salvar nossas praças. Veja São Paulo, São Paulo, n. 2037, p. ??, 05 dez. 2007.
83
GALVÃO, V. Q. Após atraso, Prefeitura de SP tem nova data para reforma da praça Roosevelt. Folha de
S. Paulo, São Paulo, p. 3-3, 17 jul. 2008.
84
SILVA, A. C. Metrópole ampliada e o bairro metropolitano, o caso São Paulo: o bairro da Consolação,
1982. Tese (Livre-Docência em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo. pp. 406-407.
.pp. 406-407.
155
marcada pela polarização exercida pelo fluxo de bens e serviços, assim como de usuários
diversos, que utilizam essa rua”
85
. Assim, em uma região de grande fluxo viário, o
estacionamento da praça Roosevelt desempenhava importante papel.
Pela lei de zoneamento de 1972, a região da Consolação era predominantemente
“Zona 5”, o que caracteriza as áreas com mais tipos de usos e alta densidade
populacional. Permite todos os tipos de residências, comércio de pequeno e médio
porte, pequenas indústrias e pequenas e médias unidades de educação, cultura, lazer e
saúde. Quanto à fisionomia paisagística, o bairro concentrava o moderno (edificações
novas e bem conservadas), sendo fortemente marcada também pelo que o autor
classifica como uma situação de transição (paisagem em transformação, não
consolidada). As referências tradicionais eram poucas e dispersas: a igreja, o cemitério e
casarões e edificações mais antigas. Observava-se grande crescimento vertical, embora
64% das edificações do bairro fossem horizontais (dados de 1978).
Vale destacar que a região tinha uma forte tradição educacional. Na rua Maria
Antonia, a Universidade Mackenzie (antigo Mackenzie College) e, até 1968, a Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Na praça Roosevelt (na antiga rua Olinda), a
Deutsche Schule (que depois se transforma no Colégio Visconde Porto Seguro) até 1974,
quando o prédio passa então a ser ocupado pelo Colégio Caetano de Campos. O
Instituto Sede Sapientae na região das ruas Caio Prado e Marquês de Paranaguá, que
depois foi transformado em um dos campi da Pontifícia Universidade Católica. Vale
ainda destacar, em um raio um pouco maior, a Escola de Sociologia e Política, na Vila
Buarque, a Faculdade de Economia da USP, na rua Dr. Vilanova, e a Faculdade de
Arquitetura da USP, na rua Maranhão.
Silva observa que a composição social do bairro da Consolação nos anos 70 era
também variada, com vários focos próximos uns aos outros: classe média, pequena
burguesia, área de deterioração social e alta burguesia residual. Apesar de ser
caracterizada como região mista, o uso residencial era considerado muito intenso, áreas
de comércio, com destaque para as ruas da Consolação e a Augusta e algumas oficinas
ou pequenas fábricas, principalmente de produção de calçados, e a praça Roosevelt,
85
Ibidem. 399.
156
como principal espaço de lazer. Assim, a unidade do bairro se daria principalmente pela
função da rua da Consolação e pela concentração residencial e de comércio varejista.
A região poderia ser entendida como área de transição entre o centro tradicional,
considerado em deterioração e esvaziado simbolicamente no imaginário dominante
sobre a cidade, e a avenida Paulista e o bairro dos Jardins, principais pontos de
constituição da centralidade econômica da metrópole na época. Assim, permanecem
certas funções mais “nobres”, como a concentração de residências de classe média e de
centros educacionais, em coexistência com dinâmicas que migravam do centro, região
que passava a ser identificada como espaço das classes populares.
Frúgoli observa que a transformação do centro passava pela ocupação de seus
espaços conforme as estratégias de sobrevivência de grupos populares. Entre as
atividades e práticas “de sobrevivência”, havia desde as definidas como parte da “esfera
do trabalho”, passando por vários tipos de informalidades, “pequenas práticas
transgressivas”, até outras propriamente inseridas na marginalidade:
camelôs, engraxates, desempregados, aposentados plaqueiros’, vendedores
de ervas, de bilhetes de loteria, de churrasquinho, pregadores religiosos,
videntes, prostitutas, travestis, homens e menores de rua, artistas de rua,
‘rolistas’, batedores de carteira, trapaceiros e muitos outros
86
.
A caracterização do centro como região popular ajudava a compor o imaginário
sobre a degradação. A função da circulação passou a ser praticamente a única
valorizada. E as praças, talvez por sua baixa funcionalidade neste contexto, sofreram
intensamente pela falta de cuidados e abandono dos usos originais. Muitas praças e
parques centrais transformaram-se em sinônimos de áreas de violência, locais a serem
evitados por quem não se identificasse com o submundo urbano.
Em seu trabalho de meados dos anos 1990, Frúgoli nota que muitas praças do
centro de São Paulo estavam em acentuado processo de deterioração, devido è falta de
investimento ou descaracterizadas como locais de sociabilidades, como o caso dos
espaços adaptados para as estações do Metrô; ou ainda, picotadas, destruídas ou
apartadas de uma dinâmica maior, devido à abertura de avenidas ou à construção de
86
FRÚGOLI JR, Heitor. Centralidade em São Paulo. p. 59.
157
viadutos
87
. E aqui vale lembrar a observação de Jane Jacobs de que praças e parques
públicos não funcionam como ilhas de lazer em meio a um entorno diverso. Estes
espaços cumprem algum papel de sociabilidade quando interagem contiguamente
com a dinâmica de sua vizinhança. Caso contrário, a tendência é que praças e parques
transformem-se em áreas esvaziadas, que fazem aumentar a sensação de insegurança
no bairro. Poderíamos também aludir à noção de não-lugar, de Marc Augé
88
espaço de
circulação, impróprio ao desenvolvimento de redes de sociabilidade e sobre o qual a
aderência de vínculos afetivos e históricos é muito baixa.
A praça Roosevelt, principalmente a partir dos anos 80 e 90, passa a figurar no
imaginário efetivo da cidade como área de alta periculosidade. Claro que a deterioração
física de sua estrutura, bem como as falhas de projeto, devem ter contribuído para esta
imagem, mas as transformações gerais no centro paulistano afetaram diretamente o
processo.
Se o centro de São Paulo, de modo geral, ganhou uma “aura marginal”, alguns
trechos passaram a ser mais intensamente identificados como parte de um
“submundo”, onde certas práticas são mais ou menos confinadas (mesmo sem a
explicitação legal), e onde se desenvolvem códigos próprios, configurando em certa
medida táticas de resistência. Neste sentido, equivaleria a “regiões morais”, conforme
conceito de Park. Figura discursiva, fugidia, para dar alguma concretude à ideia de
submundo, ou melhor, às dinâmicas e personagens associados a ele, encontramos uma
pista nas memórias de Hiroito de Moraes Joanides, personagem lendário da
criminalidade paulistana entre as décadas de 1950 e 1970. Buscando certo verniz
sociologizante, Hiroito no prólogo de seu livro:
Baixo-mundo, ou submundo do crime, não é necessariamente uma
designação de determinado local de uma qualquer cidade. Designa, isso sim, o
conjunto de seres humanos que nela vivem, à margem da lei ou dos bons
costumes, bem como a ambiência dentro da qual os seus destinos se
arrastam.
89
O submundo, entendido assim como um conjunto de práticas ligadas à
criminalidade e ao “desvirtuamento” de costumes, acaba por se concentrar em algumas
87
FRÚGOLI JR., H. Espaços públicos e interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995. P. 33.
88
AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 2004.
89
JOANIDES, H.M. Boca do Lixo. São Paulo: Labortexto, 2003. p. 25.
158
regiões, embora estas concentrações sejam móveis e os limites, muitas vezes, não
rigidamente demarcados. A atividade central que acaba por aglutinar essas áreas de
criminalidade, segundo Hiroito, é a prostituição.
Unicamente nela, prostituta, encontra o marginal, o delinqüente,
possibilidades para uma pálida satisfação das humanas necessidades de
relacionamento emocional-afetivo. Nos rastos de uma qualquer mulher da
vida, há de se ver, manquitolamente, o sentimentalismo.
90
Margareth Rago também relaciona o mundo do crime (“vagabundos, gigolôs,
delinqüentes, ex-presidiários, alcoolátras, viciados”) com a prostituição e a boemia,
configurando uma “ambígua rede de solidariedade e pequenas rivalidades, competições
e manifestações de amizade”, com marcas de violência frequentemente presentes
91
.
Assim, observar a configuração das regiões de prostituição na segunda metade do
século XX talvez nos ajude a compreender a inserção da praça Roosevelt na “cena
submundana” do centro de São Paulo.
Até os anos 50, a prostituição acontecia exclusivamente dentro das casas de
tolerância, no máximo havia a exposição pública das prostitutas pelas janelas e mais
raramente a abordagem na calçada em frente aos bordéis. Até a década de 1940,
embora existissem algumas tentativas de delimitação dos espaços de prostituição, não
havia um isolamento muito demarcado. As casas mais sofisticadas normalmente se
localizavam em áreas do centro, já as mais populares concentravam-se no Brás. No
Estado Novo, houve o confinamento oficial do submundo no bairro do Bom Retiro, com
a regulamentação da zona de meretrício e o cadastramento das prostitutas. Fora desta
região, continuou a existir prostituição, mas de maneira mais camuflada
principalmente por meio da figura dúbia dos hotéis, já que as casa de tolerância estavam
proibidas fora do perímetro de confinamento , como em Santa Ifigênia e no Brás.
É na década de 1950 que se a transformação, mais exatamente a partir de
1953, quando o governador Lucas Nogueira Garcez determinou o fechamento das casas
de prostituição supostamente com o intuito de eliminar o lenocínio, criminalizando-o
fortemente. O resultado da ação noticiada mais tarde como “desastrosa” pela
90
Ibidem. p. 26.
91
RAGO, M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-
1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 259.
159
imprensa foi que a prostituição se espalhou por várias áreas principalmente do centro.
E o que acontecia basicamente entre as paredes das casas de tolerância passou a ter
uma visibilidade pública muito maior, com a disseminação da prática do trottoir a
prostituição de rua.
Sarah Feldman identifica as territorialidades da prostituição feminina a partir da
década de 1950. As principais regiões eram as que tinham alguma movimentação de
prostitutas e concentração de hotéis, como as proximidades das estações ferroviárias do
Brás e de Santa Ifigênia, além de focos na avenida Liberdade, nas proximidades da
avenida Ipiranga e “embriões” de novos pontos na rua Nestor Pestana e no Glicério
92
.
Conforme observa Feldman, começa a se definir a partir daí uma estratificação
social da prostituição, com a divisão entre o baixo e o alto meretrícios, respectivamente
chamados de Boca do Lixo e Boca do Luxo. A primeira define-se pela presença de
“hotéis, pensões e apartamentos que funcionavam articulados ao ‘trottoir’ das mulheres
prostitutas de rua”
93
, e também cinemas, dancings, inferninhos, bares, restaurantes e
treme-tremes. O baixo meretrício é composto por áreas que se estruturam a partir da
prostituição e de práticas delinquentes. Em contraste, a Boca do Luxo é caracterizada
pelas boates e não pelo trottoir, são locais de trabalho e não de moradia, demarcando a
distinção entre a movimentação noturna e diurna.
Em Santa Ifigênia, a concentração de hotéis ao redor da estação ferroviária
funciona como núcleo para o desenvolvimento da Boca do Lixo, que logo se estende aos
Campos Elíseos, principalmente a partir de 1961, com a inauguração da rodoviária Julio
Prestes. Conhecida também como o “quadrilátero do prazer” (ou “polígono do prazer”),
a região passa a ser associada à boemia e a abrigar uma população marginalizada com
códigos específicos que em relatos posteriores ganham as tonalidades de uma
“badidagem romântica”. Outras áreas de baixo meretrício se formam também no Brás, e
de maneira mais limitada no Glicério.
A prostituição chique tem como área de concentração a Vila Buarque, que em
função de “sua localização no setor do centro novo voltado para o quadrante ocupado
92
FELDMAN, S. Segregações espaciais urbanas: a territorialização da prostituição feminina em São Paulo,
1989. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de
São Paulo, São Paulo. p. 109.
93
Ibidem. p. 114.
160
pelas classes altas vai direcionar as mudanças que ocorrem no sentido de se manter
como local que abriga atividades voltadas para estas classes”
94
. Na Vila Buarque, havia a
princípio alguma separação espacial entre as casas de prostituição e os demais tipos de
diversão noturna. A partir do final da década de 1960, muitos dos bares e boates de
música da rua Major Sertório começam a fechar ou a se transformar em casas de
prostituição. Nos anos 70, aparecem as casas de massagem.
A Boca do Luxo é também identificada na Liberdade e na rua Nestor Pestana (esta
quase como um prolongamento da Vila Buarque). Vale lembrar que na praça Roosevelt
funcionaram duas das mais sofisticadas casas de prostituição da cidade, a La Licorne
que logo se mudou para a Major Sertório e a Vogue. Assim, como região de boemia
elegante nos anos 60 e de sua contiguidade com a Nestor Pestana, a Roosevelt tinha
bastante relação com o circuito da Boca do Luxo. Também a Galeria Metrópole, na
avenida São Luis, começa a abrigar boates de prostituição.
Na década de 1970, começam a se disseminar os anúncios de jornal de casas e
serviços ligados à prostituição, e os estabelecimentos voltados às classes média e alta se
dispersam por vários bairros fora do centro. Há assim uma mudança de perfil da Boca do
Luxo, que perde sua clientela endinheirada. As calçadas das antes sofisticadas ruas de
lazer são ocupadas pelo trottoir, não apenas de mulheres prostitutas, mas também de
travestis e michês. E a delimitação entre o Luxo e o Lixo começa a desaparecer.
A figura dos homossexuais também se associava diretamente à imagem do
submundo. Néstor Perlongher observa que as regiões de concentração gay do centro
comumente se sobrepunham a pontos de prostituição. Conforme o autor, o território-
código
95
dos homossexuais era marcado por referências tanto do mundo gay
propriamente, como também pelas regras do submundo de modo geral
96
.
Conforme relatos colhidos por Perlongher, até os anos 60, a movimentação gay na
cidade era discreta, misturada ao movimento noturno geral. É nesta década, que se
identifica a ocupação gay mais ostensiva de alguns locais. Articulado à Boca do Luxo,
havia casas e concentrações de homossexuais na Galeria Metrópole, localizada na
94
Ibidem. p. 133.
95
Perlongher trabalha com a noção de região moral (Park) e associa a territorialidade mais aos códigos do
que às regiões geográficas, até porque em uma mesma área vários códigos podem interagir e/ou se
sobrepor.
96
PERLONGHER, N. Op. cit. p. 88.
161
avenida São Luis, em frente à praça Dom José Gaspar esta, ponto de prostituição
masculina ; no largo do Arouche, estendendo-se pelas ruas Vieira de Carvalho, Rego
Freitas; e a rua Nestor Pestana. O universo gay “mais intelectualizado” misturava-se
muito com a classe teatral, assim era comum frequência homossexual em bares
próximos às salas de teatro, como na vizinhança do Arena pode-se citar como
exemplo o famoso bar Redondo, na esquina com a avenida Ipiranga. Os focos gay mais
pobres e de prostituição masculina eram a região do cruzamento da Ipiranga com a São
João, a praça da República e a rua dos Timbiras (na Boca do Lixo).
Ao longo dos anos 70, seguindo as transformações das bocas, as distinções de
classe na frequência gay do centro de São Paulo vão ficando mais embaçadas.
Homossexuais de classe média começam a adotar outras regiões como os Jardins. As
travestis, provavelmente as figuras mais estigmatizadas do lúmpen submundano,
começam a aparecer mais no cenário do centro (antes travesti era uma figura ligada
basicamente aos shows e não à prostituição), bem como o trottoir (de prostitutas,
michês e travestis) se espalha para alguns bairros residenciais. Segundo Perlongher,
havia concentração de travestis no Arouche na direção da Rego Freitas, na rua Vitória e
na Major Sertório.
Em 1980, com apoio de moradores e comerciantes e de alguns veículos de
comunicação, uma forte repressão se sobre as bocas, encabeçada pelo delegado
Richetti, que ganhou notoriedade na época. O principal foco de “limpeza” foi a região do
Arouche, e os maiores alvos, as travestis e as prostitutas. Segundo Perlongher, “o largo
do Arouche é, então, um ponto particularmente sensível do centro da cidade, na medida
em que está como a praça Roosevelt circundado de prédios residenciais da classe
média”
97
. Lá (no Arouche) a pressão era grande, “os moradores não se limitavam a
protestos pacíficos: costumavam até jogar excrementos e garrafas contra os gays do
largo”
98
. Depois disso, o largo foi um pouco esvaziado, empurrando a movimentação gay
97
Ibidem. p. 106.
98
Ibidem. p. 108.
162
mais para a rua Marquês de Itu, embora o Arouche tenha continuado a figurar como
ponto do submundo
99
.
Outros personagens também passaram a ser alvo da repressão de costumes da
operação Richetti. Além dos gays, as casas que eram pontos de lésbicas no centro
também sofriam blitzes. O Ferro´s Bar, na rua Martinho Prado, bem próximo à praça
Roosevelt, era um dos ponto de lésbicas mais consolidados do centro. Esta frequência
caracterizava o Ferro´s durante o período noturno, de dia tinha clientela de
trabalhadores da região e famílias. O bar é considerado uma das referências da
resistência homossexual na cidade, principalmente em função do ato ocorrido no local
em 1983, em que foi lançado um manifesto pelos direitos lésbicos.
100
Ao longo das décadas de 80 e 90, as áreas de prostituição (mulheres, michês e
prostitutas) se espalham por inúmeros cantos do centro, bem como por muitas vias
localizadas em bairros residenciais. A rua Augusta (no sentido do centro, abaixo da
avenida Paulista), que até os anos era 70 considerada sofisticada com comércio de luxo,
muda de perfil e passa a abrigar grande número casas de massagem, saunas gay, hotéis
e prostituição de rua. Alguns pontos mais antigos tiveram a movimentação intensificada,
como a Rego Freitas, Bexiga, Anhangabaú, Luz, rua Vitória, avenida São João...
As transformações no submundo do centro de São Paulo, desde os anos 70,
também foram marcadas pela presença cada vez maior e determinante das drogas.
Hiroito identifica que na verdade esta mudança se dava na Boca do Lixo desde a
década de 1960, quando a cocaína e as drogas injetáveis começam a se tornar mais
presentes. Segundo ele, o tráfego mais intenso e a generalização do uso de drogas no
submundo estariam entre as causas do aumento da violência na Boca, relacionando a
isso a quebra nos códigos que definiam a vivência entre os delinquentes anteriormente
“aponto as picadas como a concausa no advento da cagoetagem como moda no
submundo”
101
.
99
OKAMURA, C. Arouche 2004: uma incursão no território urbano de São Paulo através de seus
personagens, 2004. Tese (Doutorado em Psicologia) Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo,
São Paulo.
100
MAGALHÃES, W. Ativistas falam sobre o Stonewall brasileiro. A Capa, São Paulo, 27 jun. 2009.
Disponível em: <http://acapa.virgula.uol.com.br/site/noticias.asp?codigo=8600. Acesso em: 30 dez. 2009.
BRICKMAN, C. A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar. Folha de S.Paulo, São Paulo, 21 ago.
1983. Disponível em: <http:www.umoutroolhar.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2009.
101
JOANIDES, H.M. Op. cit. p. 169.
163
4. A praça Roosevelt (vermelho) cercada de áreas (amarelo) com constantes
focos de prostituição. Base do mapa: MapLink.
O tráfico de drogas também acompanhou os eixos principais de concentração de
prostituição. A região da Boca do Lixo configurou-se como um dos focos mais famosos
de distribuição e consumo de drogas. Na década de 1990, com a disseminação do crack,
uma área de Santa Ifigênia passou a ser conhecida como Cracolândia, que além das
drogas concentra prostituição feminina e de travestis e um grande número de
moradores de rua
102
.
O aumento da população de rua contribui para dar força à figura da degradação do
centro. Os “meninos de rua”, ligados ao consumo de drogas, assaltos e roubos, também
emergem como personagens da degradação. Praça da Sé, os baixos do Minhocão,
Glicério e a praça Roosevelt foram alguns dos pontos de grande concentração de
menores de rua.
O estudo realizado, 1999, pelo Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações
Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) sobre população da
Cracolândia e sua ligação com o tráfico e o uso de drogas identifica um processo de
102
MINGARDI, G.; GOULART, S. As drogas ilícitas em São Paulo: o caso da Cracolândia. São Paulo: Ilanud,
Imprensa Oficial, 2001.
164
dispersão e movimentação constante de traficantes e usuários de drogas
(principalmente menores e moradores de rua) entre a região e outros pontos, com
destaque para a praça Roosevelt e a República.
103
Além da questão da prostituição e da delinquência, o centro tornou-se área de
atração e de resistência de grupos de comportamentos considerados desviantes, como
os homossexuais, e de boêmios e artistas de perfil “alternativo”. Juntem-se a eles, ainda
os grupos de identidade vinculados aos movimentos de contracultura, como hippies e
mais tarde punks e depois ainda parte da grande diversificação de agrupamentos jovens
metaleiros, góticos, grunges, skinheads, clubbers, grupos ligados ao hip-hop, skatistas
etc.
Falar da degradação da praça Roosevelt, que teve seu auge associado
principalmente às décadas de 1980 e 1990, não é falar de uma ocorrência isolada. Ela se
associa a toda uma dinâmica de transformação e leitura da cidade (deslocamento da
centralidade econômica e da cultura hegemônica) e a ocupação popular do centro
tradicional. A delinquência e as práticas consideradas desviantes ganham forte presença
e visibilidade no centro, e embora se configure em focos e bolsões, eles são dinâmicos e
as populações associadas à ideia do submundo apresentam grande mobilidade dentro
da região central.
No bairro da Consolação, região de transição para a avenida Paulista, mantiveram-
se áreas residenciais remanescentes de classe média, bem como grande fluxo,
principalmente durante o dia, de trabalhadores de escritórios e comércio. também
circulação de estudantes, em função das universidades e escolas na região, e de
frequentadores de cinemas, livrarias, bares, cafés, lojas de discos, sebos e outros
estabelecimentos de consumo cultural
104
. Assim, nos arredores da praça Roosevelt o
contraste ficou bem evidente, pois além desta presença da classe média, dinâmicas
ligadas à popularização do centro passaram a se misturar por ali. Cercada por diversos
focos de prostituição e delinquência, a praça Roosevelt, rapidamente destituída da
simbologia cívica do projeto original e descaracterizada de suas funções culturais e de
103
MANGARDI, G; GOULART, S. Op. cit. pp. 27, 30, 33.
104
José Guilherme Magnani observa em seu texto de 2007 que a região Consolação-Augusta resistiu como
mancha de lazer e consumo, apesar do “ar de decadência”. MAGNAN, J.G.C. Introdução ao circuito de
jovens. In:______; MANTESE, B. (orgs). Jovens na metrópole: etnografias de lazer, encontro e
sociabilidade. São Paulo: Terceiro Nome, 2007. pp. 15-16 .
165
lazer, passou também a ser ocupada como ponto de concentração de moradores de rua
e de tráfico de drogas e ainda, ao seu redor, de prostituição de mulheres, travestis e
michês.
Personagens da degradação
Os discursos sobre a deterioração e a degradação da praça Roosevelt tendem a
reforçar a ideia do abandono, de um local não frequentado, não utilizado pela
população. No entanto, mesmo nestes relatos é comum que apareçam alguns
personagens na praça, mas eles são tratados como uma presença negativa, funcionam
quase que como sombras que borram a paisagem urbana. Ao se inserir os personagens
no cenário deteriorado, o quadro de degradação aponta claramente para o atentado a
uma moralidade pública. E embora ganhem certa consistência “marginal”, muitas vezes,
esses personagens não se definem propriamente por alguma atividade transgressiva
como, por exemplo, os skatistas , outros são apenas identificados de maneira ambígua
“desocupados”.
Vamos tomar aqui duas matérias apresentadas anteriormente uma de 1979,
outra de 1980 que têm como foco questões de ordem estrutural e de manutenção da
praça, mas que acabam por vincular mesmo que implicitamente as más condições do
local à ausência da “população” e à presença destes personagens negativizados (e veja
que estes normalmente não cabem na designação “população” ou “paulistanos”).
Da reportagem do Jornal da Tarde, transcrevo a seguir um trecho um pouco longo,
mas que traz imagens generalizantes sobre as figuras que povoavam a praça:
A vida na praça
Até que sua população típica se definisse, a Praça Roosevelt passou por três
fases distintas: visitantes em busca da novidade urbana, que se misturavam
com crianças e velhos daquela região; invasão de hippies e desocupados; e,
finalmente, certa fixação de horários e setores freqüentados por
determinados tipos, ocorrida quase automaticamente, à revelia da Prefeitura
e da Polícia. Em geral, os frequentadores habituais noturnos não são os
mesmos da tarde. E entre eles há distinções.
Por exemplo, por volta das 18 horas de sábado, começam a chegar moças
excessivamente decotadas, a despeito do frio. Permanecerão sentadas, ou em
pé, em pontos que não lhe pertencem. Junto aos bancos da área coberta
esperarão companhia, e certamente retornarão durante a madrugada. As
moças da praça pentagonal, por outro lado, exibem roupas mais improvisadas
166
e jornais velhos para forrar o chão dos poucos canteiros, parcamente
escondidos pela vegetação maltratada.
Existem, nesse horário, rapazes solitários, vendedores de maconha e muitos
adolescentes pobres que consomem seu tempo brincando com skates,
improvisando batucadas com latas vazias de cerveja ou se divertindo como
agora. Um rapaz, cerca de 16 anos, em jeans sujos, se apossou da bicicleta de
um garotinho de aproximadamente 10 anos. A toda velocidade, contorna a
rampa circular de acesso à praça pentagonal, perseguido pelo menino aos
gritos.
O alvoroço não chega a perturbar a aparente calma da praça. Todos assistem
passivamente à cena: o rapaz de cor, vestido de branco, que interpela
notadamente homens e adolescentes com expressão de “eu cobro Cr$ 50”;
o mendigo de apelido Estilingue; os agrupamentos de adolescentes; um ou
outro bêbado; anciãos desamparados. Quando os três policiais aparecem (são
chefiados por um cabo de nome Leite, há três anos responsável pela
segurança da praça), o rapaz que roubou a bicicleta está longe. Voltará.
105
[os
grifos são meus]
Aqui temos algumas imagens que vale a pena comentar. A distinção dos vários
públicos da praça cria uma espécie de gradação: os indefesos “crianças e velhos” (que
representam os moradores da região, aqueles que teriam a presença mais legitimada na
praça), os visitantes curiosos (figuras que vêm de longe uma única vez, que, se não são
uma ameaça, também pouco representam para o local), “a invasão de hippies e
desocupados” (invadem logo não têm legitimidade alguma estar ali, além de que a
equivalência entre “hippies” e “desocupados”, sendo que esta última parece mais uma
designação sem referente muito claro que indivíduos corresponderiam exatamente a
desocupados?) e, por fim, “determinados tipos”, que ocupam a praça em horário
noturno.
Estes últimos são presenças tão negativas dentro do discurso, que sua
caracterização se por subentendidos, como se as palavras que os designassem
fossem impronunciáveis. Assim, ao invés de prostitutas, “moças excessivamente
decotadas”; os moradores de rua dividem-se entre “moças da praça pentagonal” que
“exibem roupas mais improvisadas” e “anciãos desamparados”; o michê é “o rapaz de
cor, vestido de branco, que interpela notadamente homens e adolescentes” e seus
clientes, “rapazes solitários”. O ladrão da bicicleta é um rapaz “de jeans sujo”. Na
referência aos skatistas, a demarcação de que não pertencem à região, são
“adolescentes pobres” e “consomem” seu tempo com a “brincadeira” ou em
105
A PRAÇA morta. Soluções:. Jornal da Tarde, São Paulo, pp. 8-9, 19 jan. 1979.
167
“batucadas” em latas vazias de cerveja (insinuação de vadiagem e de consumo de
bebida alcoólica). ainda o vendedor de maconha, o bêbado e o mendigo Estilingue,
os únicos que recebem designação explícita.
Chama atenção no texto também o uso dos verbos no futuro em alguns trechos.
Sobre as prostitutas, fala da chegada delas no presente (“começam a chegar”) e na
sequência todas as ações das “moças decotadas são descritas no futuro
(“permanecerão”, “esperarão”, “certamente retornarão”). Este expediente de texto
empregado indicaria a observação da primeira ação pelo repórter, e as demais como
especulação, com peso de fato, uma projeção estereotipada sobre as personagens. E
sobre o ladrão de bicicleta que fugiu, a sentença: “voltará”.
Mais à frente, a reportagem ainda fala sobre a atuação de trombadinhas e
traficantes na praça, ressaltando sempre a inoperância dos poderes públicos e a
coexistência destas “figuras do submundo” com “personagens antológicos da Praça”,
personagens estes que trazem referências religiosas para acentuar o contraste: a Irmã
Irene Lopes, que mantinha um lar para crianças carentes na região, ou Francisco
Roberto, morador de uma cobertura, que colecionava “arte sacra”.
Na matéria da Folha de S. Paulo de 1980, sobre a briga de competências entre os
órgãos que deveriam manter a praça, também é apresentada uma perspectiva dos
frequentadores, ressaltando a oposição entre os moradores da região e os de fora, entre
o comportamento decente e o transgressivo. Fala no uso principalmente noturno por
“desocupados e marginais”, enquanto os moradores da vizinhança são afastados, “só os
mais corajosos (...) ainda se arriscam a passear rapidamente na praça durante o dia”.
106
O apelo ao choque moral pode aparecer contrastado com a memória dos “tempos
áureos” da praça, como na matéria sobre a mudança do bar A Baiúca que deixa seu
endereço na Roosevelt pelo bairro do Itaim, em meados dos anos 90. O texto de Josimar
Melo, para a Folha de S. Paulo, ressalta a “herança” cultural da casa da praça Roosevelt
dentro do cenário musical paulistano, mesclado à dificuldade dos proprietários em
manter a Baiúca numa região que “perdeu sua aura boêmia e intelectual”. Descreve
ainda o processo de mudança de perfil do local: “as boates freqüentadas por jornalistas,
publicitários e a rica burguesia migraram ou fecharam. Sobrou A Baiúca, entre bares
106
NINGUÉM responde pela deterioração da praça. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 8, 31 mai. 1980.
168
mais pobres ou de público gay, que se espalha pela rua chocando a clientela
conservadora”. Encerra reforçando que a mudança de endereço representa a vitória da
“sobrevivência” sobre a “tradição”
107
.
O atentado à moralidade, às vezes, pode ganhar tintas de choque entre gerações,
como em algumas representações da figura dos skatistas. Na reportagem “Que
juventude é essa?”, matéria de capa da Revista da Folha de 1997, a violência e a
intolerância de uma “gangue” de skatistas é ressaltada:
Os skatistas da gangue "Dirty Family" têm 14 anos em média, estudam no
colégio estadual Caetano de Campos (região central) e se reúnem, nos finais
de semana, na praça Roosevelt para treinar manobras radicais.
Costumam "encher a cara" de 51 e Martini. Brigam com todo mundo que é
diferente. Nos patinadores, eles passam o pé. Os "coisas estranhas"
entenda-se os clubbers que frequentam a danceteria Nation, que fica na praça
--, eles xingam e "perseguem, dando porrada". Odeiam mesmo os gays. "Sou
louco para pegar um bicha e fazer como no filme 'Kids'", diz Dadi, 15,
referindo-se à cena em que um grupo de garotos espanca um transeunte.
"Essa história de homem beijando homem e mulher com mulher é muito
estranho", completa.
108
A figura do choque moral aparece ainda na nota, reproduzida no início deste
capítulo, no caso “desocupados” versus moradores, mais uma vez. "A praça tornou-se
um imenso sanitário ao ar livre. Mendigos, desocupados e skatistas correndo por todos
os lados reúnem-se neste local"
109
, diz um trecho da carta de uma leitora, moradora da
vizinhança da praça Roosevelt. Aí, além das referências aos personagens recorrentes
associados à degradação (“mendigos, desocupados e skatistas”), há menção explícita ao
uso do local para necessidades corpóreas (o sanitário ao ar livre). Este é outro elemento
forte da discursividade sobre a degradação, o sentimento de repugnância frente a
atividades privadas relacionadas ao corpo, realizadas em local público. Para ilustrar esta
imagem, ainda podemos citar a prisão do ator Patrício Bisso por prática de “atos
obscenos” na praça, conforme noticiado em dezembro de 1994
110
.
107
MELO, J. A Baiúca quer de volta seus bons tempos. Folha de S.Paulo, São Paulo, Ilustrada, Especial-2,
11 nov. 1994.
108
ANDERSON, J. et al. Que juventude é essa? Folha de S. Paulo, São Paulo, Revista da Folha, pp. 8-16, 27
abr. 1997.
109
PRAÇA mal conservada vira abrigo de mendigos. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, p. 3-2, 29 ago.
1994.
110
PRESO ator acusado de prática de ato obsceno. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-3, 3 dez. 1994.
169
Assim, o uso da praça como moradia seria um dos grandes índices de sua
degradação. Por algum tempo o assunto da ocupação de trechos do Minhocão, com o
principal foco sob a praça Roosevelt, foi pauta recorrente no jornal Folha de S. Paulo.
inclusive o uso da designação “mocolândia” pelo jornal, em referência à presenças de
“mocós”, que eram habitações precárias em espaços ocupados (buracos, construções
abandonadas), em que viviam grupos de 10, 15, 20 garotos. Neste universo dos mocós,
as drogas são elementos constantes: “meninos de rua se juntam a viciados em droga e
adultos guardadores de carro”; “o principal passatempo *dos meninos+ é a cola de
sapateiro, consumida continuamente”
111
. Em uma destas matérias, há uma foto de forte
impacto que mostra uma fila de garotos de mãos dadas e cabisbaixos, saindo de um
buraco, acompanhados de um policial. Nos textos, também referência a maus tratos
(pela polícia, pelas famílias), apresentados na voz dos moradores de rua:
''Antes nosso passatempo era uma televisão pequena, daquelas do Paraguai,
que funcionava à bateria, mas a polícia passou aqui anteontem e levou” (...)
''Minha mãe trafica drogas, rouba, faz tudo o que tem direito”.
112
''Eles sempre chegam batendo e queimam nossas coisas, nossas roupas.
Ficamos sem nada.''(...) ''Vêm com um aparelhinho e dão choque na gente.''
113
Outra série no mesmo jornal trata de assaltos praticados por crianças armadas
com pedras e cacos de vidro, nas imediações da praça Roosevelt, que tinham como
vítimas mulheres motoristas
114
. Mas o destaque da pauta não se tanto em função do
delito (o assalto), mas da combinação entre a caracterização dos delinquentes (crianças)
com o caráter primitivo das “armas”. O jornal se refere ao grupo de menores como a
“gangue da pedra” – sem deixar claro se se trata de uma alcunha atribuída ao grupo pela
polícia, pelos próprios integrantes, por algum uso “popular” generalizado ou pelo jornal.
As figuras que compõem as narrativas sobre os assalto aludem a um certo
barbarismo: crianças e jovens na criminalidade, vítimas mulheres, uso de pedras como
armas, cuspida no rosto, vidros riscados, ameaças, “arrastão” da polícia, pedras e
cachimbos de crack, cacos de vidro, fuga. Um ano mais tarde, o mesmo jornal noticia o
111
WASSERMANN, R. Buraco de viaduto vira moradia em SP. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 3-1, 10 set.
1996.
112
Ibidem.
113
PM tira garotos que viviam em buraco no Minhocão. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-6, 11 set. 1996.
114
GAROTOS usam pedras para assaltar mulheres. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 3-3, 21 jul. 1995.
170
apedrejamento de assistentes sociais em três praças (Roosevelt, República e Charles
Miller), durante uma operação para resgatar crianças usadas por traficantes e pais de
rua como fonte de renda. A história toda é muito dramática: educadores apedrejados,
crianças abandonadas, traficantes, pais de rua, exploração de crianças, recusa à
educação por algumas crianças, crianças bem pequenas (“1 e 3 anos”), bebê
abandonado na lata de lixo exposto ao frio. Temos assim caracterizados os ambientes da
criminalidade sem qualquer traço romântico, marcados pela pura vilania
115
.
Encontrei ainda referências a casos de tortura de menores na unidade da PM da
praça Roosevelt, suicídios, atropelamento, sujeira, problemas de trânsito... em
noticiários diversos ao longo da década de 1990. Juntamente com as matérias sobre
estrutura e conservação da praça, estes temas apontam para uma definição da
Roosevelt como um grande problema da metrópole, do projeto à ocupação, a narrativa
é a de um espaço que não deu certo, que agrega todos os predicados de uma
monstruosidade urbana.
No entanto, ao longo da pesquisa, também encontrei faíscas sobre versões
alternativas à essa “grande” narrativa de local torpe. Indícios que outras formas de
sentir e representar aquele ambiente foram e são constantemente formulados, nestas
outras versões, personagens que “insistiam” em ocupar a praça decrépita ganham
texturas variadas e leituras alternativas.
Gays
Nem falta de amor, que te falei da Teresângela, e tem também o Carlão ali da
Praça Roosevelt, quando bebo demais, fumo maconha, tomo bola, me
esqueço de mim e fico meio mulher, mais a Noélia, uma gatona repórter da
revista Bonita, que conheci no Bar uma noite que ela perguntou o meu signo
no horóscopo chinês, e eu sou Tigre e você, lembrei, Dragão.
Amor picadinho, claro, amor bêbado, amor de fim de noite, amor de esquina,
amor com grana, amor com fissura, chato nos pentelhos e doença, nas
madrugadas de sábado desta cidade que você não conhece nem vai conhecer.
De qualquer jeito, amor, Dudu, embora não mate a sede da gente. Amor aos
montes, por todos os cantos, banheiros e esquinas.
116
A praça Roosevelt aparece no conto “Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na
beira da sanga”, de Caio Fernando Abreu, como um dos locais dos amores da noite, no
115
EQUIPES do SOS são apedrejadas na rua. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-5, 13 jul. 1996.
116
ABREU, C. F. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 79
171
caso, o ponto do michê Carlão
117
. O protagonista-narrador dirige seu relato a Dudu, um
ex-amante a narrativa vai oferecendo flashes do romance vivido na cidadezinha natal
do personagem (Passo da Guanxuma, a cidade imaginária e memorialística de vários
personagens de Abreu, que tem sua primeira aparição neste conto) e que teria
implicado na fuga do narrador para São Paulo. Ao fim do conto, descobrimos que o
destinatário do relato, Dudu, estava morto, fora assassinado pelo protagonista, antes
deste ter que fugir para São Paulo.
Em uma análise dos contos de Abreu, realizada por Bruno Souza Leal, é observado
que a metrópole apresentada pelo escritor gaúcho é um ambiente propício ao
questionamento da própria identidade, empurrando os indivíduos a experiências
sempre transitórias de sexualidade, como também ao campo, de linhas tênues, da
marginalidade
118
. No trecho do conto reproduzido acima o narrador explicita que seu
sentir sobre a cidade grande coincide com as aventuras eróticas. E, neste contexto, a
Roosevelt é o local das experiências mais extremas, regadas a drogas e bebida, e Carlão,
o personagem da praça, é um figura que tem ao mesmo tempo um apelo de “realidade”
(o michê, o tipo social), como uma presença fantasmagórica. O narrador afirma ter visto
Carlão pela primeira vez em frente ao Bijou, onde passava A história de Adele H “o tipo
de filme que você gostava”, e era como se visse na figura do michê o próprio Dudu
“Essa foi só a primeira vez que te vi”
119
.
Se a homossexualidade ou a bissexualidade são a própria experiência da
metrópole, a praça Roosevelt aparece no conto como o lugar em que a identidade de si
do personagem se perde (“me esqueço de mim e fico meio mulher”), em que passado e
presente de fundem, em que vida e morte ficam indistintas. A visão melancólica e
poética de Abreu a este universo submundano e pervertido um caráter universal, em
que os tipos sociais locais são apenas as cascas de um sistema frágil de identidades.
120
117
Ibidem. p. 81.
118
LEAL, B.S. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e
sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002.
119
ABREU, C.F. Op cit.. p. 89
120
Não é a única vez que a região da praça Roosevelt-Augusta aparece em obra de Caio Fernando Abreu.
No romance Onde andará Dulce Veiga? (19??) por exemplo, o protagonista mora em uma quitinete bem
próxima à Roosevelt, e este ambiente tem grande relação com o percurso do personagem em suas buscas
pela cidade. ABREU, C.F. Onde andará Dulce Veiga?: um romance B. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
172
O lugar lúgubre de outros relatos que abriga identidades apartadas do sistema
discursivo hegemônico ganha simbologia distinta em algumas narrativas pronunciadas
por vozes identificadas com o universo homossexual de São Paulo. No texto para o
roteiro gay da Revista da Folha, em 1994, por exemplo, a região aparece como “a rua
mais alegre da cidade”, aquela “ali na lateral esquerda da praça Roosevelt”.
Por volta de nove da noite a farra começa sem hora para acabar.
A mureta do viaduto que desemboca na Consolação é o ponto mais
requisitado do pedaço. O difícil é conseguir uma vaguinha, por mais espremida
que seja. E o bar para a cervejinha é o Corsário. Tem cara de pastelaria sem
pastel, ou de padaria sem pão. Mas que é divertido, é. O clima é meio
misterioso, num misto de punk com -de-arroz e piratas em busca de
embarcações. Nos finais de semana é quase impossível conseguir um lugar no
Corsário. O negócio é ficar do lado de fora mesmo, ou fazer um "footing" até o
final da rua, tomada pela ferveção. Um pouco de cuidado sempre é bom, sem
preconceitos. Afinal, quem acha que algum lugar na cidade é seguro, que se
cuide.
121
Voltada ao público gay, a nota, que veio acompanhada de uma foto do local,
descreve um ambiente de festa, de diversão, não é um local abandonado, muito pelo
contrário, é muito disputado –“o difícil é conseguir uma vaguinha”. Para este universo
de leitores, a região moral ganha contornos de um lugar convidativo, que não se define
pela torpeza, pela marginalidade, mas como uma espécie de oásis de liberdade
alguns termos hiperbólicos da noção de liberação de comportamentos, de forte
conotação positiva para o grupo a que se destina a mensagem, como farra e ferveção. O
imaginário do lugar perigoso emana no final do texto, como aconselhamento, é preciso
“um pouco de cuidado”, mas é suavizado, ao falar em preconceito e na generalização a
praça Roosevelt oferece perigos como qualquer outro lugar da cidade.
Este ambiente de liberdade para os homossexuais aparece em tom de
rememoração em um comentário retirado de um fórum de internet. No site Jornal de
Debates, em que os participantes podem propor temas e deba-los, aparece um tópico,
postado em março de 2008, sobre a liberação legal da prática de atos sexuais em locais
públicos, a partir de uma notícia sobre uma lei que permitiria sexo entre em casais
heteros e gays durante período noturno em parques públicos de Amsterdã, excetuando
os parques e as praças com destinação a público infantil. Em uma das respostas ao
121
SILVA, P. A farra fica ao lado da praça. Folha de S. Paulo, São Paulo, Revista da Folha, p. 33, 8 mai.
1994.
173
fórum, um participante narra um passeio noturno por ruas do centro de São Paulo em
que se confrontou com várias cenas de sexo em locais públicos, principalmente entre
homossexuais, e a partir dcomeça uma digressão histórica sobre locais da cidade de
sua memória que eram marcados pela sexualidade explícita: “me fez lembrar os antigos
tempos da Praça Roosevelt... o bar Corsário... onde o pessoal se encontrava lá e transava
na praça. De repente vinha a polícia, todo mundo corria... e, 15 minutos depois, tudo
voltava ao normal (ou anormal, como queiram)”
122
. O breve relato não explicita uma
adesão do autor do texto naquele universo gay, mas é possível interpretar como sentido
implícito (“o pessoal se encontrava lá”), e traz a expressão de uma certa nostalgia
bem marcada, inclusive, pelo uso das reticências.
No estudo de Regina Facchini sobre as relações entre práticas eróticas, identidades
e lugares da cidade de São Paulo, entre homossexuais femininas, a região das laterais da
praça Roosevelt, nos anos 80 e 90, é definida como área ocupada “por uma mistura de
espaços culturais (teatros, cineclubes) e estabelecimentos dirigidos à sociabilidade
masculina”.
123
Em trabalho anterior, a mesma autora descreve as atividades do grupo Corsa de
direitos dos homossexuais, do qual ela fez parte, e o bar Corsário, na praça Roosevelt,
aparece como local de recrutamento de novos participantes
124
. O trabalho de
panfletagem do grupo, que era chamado de “arrastão”, foi primeiramente realizado em
locais de movimentação gay no bairro dos Jardins, onde a frequência era identificada
como de classe média. Segundo Facchini, neste público a recepção não tinha sido muito
boa, então o Corsa resolveu voltar sua abordagem para o público gay de menor poder
aquisitivo, que se concentrava em bares das imediações da praça Roosevelt e do largo
do Arouche.
A Roosevelt parece ter se fixado então como ponto de referencia da vivência gay e
acabou sendo escolhido como um dos marcos iniciais da movimentação política de rua.
122
Fórum do site Jornal de Debates, disponível em: http://www.jornaldedebates.com.br/debate/quais-as-
consequeencias-liberacao-sexo-em-locais-p/artigo/dificil, acessado em 10 dez. 2009.
123
FACCHINI, R. Entre umas e outras: mulheres, (homo) sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo,
2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas.
124
FACCHINI, R. “Sopa de letrinhas”?: movimento homossexual e a produção de identidades coletivas nos
anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
174
Em 28 de junho de 1996, aconteceu na praça um pequeno ato do orgulho gay, que
reuniu por volta de 150 pessoas e teve estímulo do jornalista Paulo Giacomini, por meio
de sua coluna gay na Revista da Folha. Este ato teria sido o embrião da Parada do
Orgulho GLT, que passou a ser organizada a partir do ano seguinte. Tendo como local de
partida a avenida Paulista, a parada de 1997 teve ponto final na praça Roosevelt. A
partir daí, nos anos seguintes, a manifestação reunia um número cada vez maior de
participantes, e se tornou um dos principais eventos de visibilidade pública do
movimento gay. O trajeto da parada se inicia sempre da Paulista e dirige-se ao centro,
adotando como ponto final a praça Roosevelt ou a da República.
Skatistas
Pico clássico, berço de skaters. Estas são algumas das definições da praça Roosevelt
no universo do skate em São Paulo. Segundo uma matéria recente em uma revista
especializada, a Roosevelt começou a ser frequentada por skatistas já no final da década
de 1970, tomada como “pico” espaço urbano público usada para a prática do street
skate, em função de determinadas características físicas.
Cercada por paredes com diversas inclinações, a praça Roosevelt sempre
propiciou wall rides para todos os gostos e habilidades. Uma elevação central,
de cerca de 50 cm de altura e formato circular, oferecia um solo liso, e a
possibilidade de fazer manobras descendo e subindo.
125
A “monstruosidade arquitetônica”, como brinca o título da matéria, propiciou um
espaço de deleite para as manobras do skate de rua. Do início desta ocupação e por
toda a década de 1980, a praça foi um polo fundamental para o desenvolvimento do
street em São Paulo. Nomes de skatistas que carregam hoje aura mítica dentro da
modalidade são associados diretamente ao local: Beto or Die, Rui Muleque, Fernandinho
Batman, Marcos ET, Zikk Zira, Marcos Hiroshi, Rodrigo Teixeira, entre outros
126
.
No Orkut, indícios da forte simbologia da Roosevelt no imaginário dos
praticantes de skate em São Paulo. A comunidade “Praça Roosevelt 2”, criada em 2005,
é descrita como “comunidade pra quem anda ou andou na praça roosevelt templo
125
PRIETO, D. A monstruosidade arquitetônica de Esteban Florio. Cemporcento Skate, São Paulo, n. 122,
pp. 74-91, mai. 2008.
126
Ibidem. p. 77.
175
sagrado do street paulista um dos picos mais roots de SP, formador de grandes
talentos...”. Em outra, a “Old School Skate”, a praça é várias vezes lembrada. Em um dos
tópicos, os participantes que se apresentam como skatistas “das antigas” debatem
sobre a mercantilização da prática atualmente, que os “muleques” de hoje
preocupavam em posar para fotógrafos e cinegrafistas e que haviam perdido a
“essência” do skate, que seria a diversão. E alguns comentários associam diretamente a
postura “desprendida” dos praticantes mais velhos com o ambiente da praça Roosevelt:
alvaro
putx cada (robada)
putz..grana é algo que quase sempre faltava uma vez fomos para Porto Alegre
para andar em um Half que tinhamos visto o Junae dando um Invert na foto o
half parecia maravilhoso ..chegando dois dias chovendo e ainda era meio
podrera como ficamos dias a mais a grana faltou ,nunca comi tanto miojo na
minha vida.... que era o que dava para comprar...sem tirar que eu passava a
gelinho(suquinho;..sei tem varios nomes aquele picole de saquinho..era
barato... Putz sem tirar os role na Polato iamos de bike com skate preso entre
a mochila e as costas..BONS TEMPOS praça Roselvelt (04/08/2007)
Skate
kkkkkkkkk
nossa eh msm pça roosevelt !!! a gente era junkie, usava umas roupas mto
esquisitas, fumava cigarro pra kct, ficava o dia todo na rua, sem grana, ía em
todos os picos e baladas... e éramos felizes pra kct!!! kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk
SKATE FOR EVER!!!!!!!!!! (05/08/2007)
Uma edição sobre a praça Roosevelt, em 2008, o programa Skate Paradise, do
canal de TV ESPN Brasil, traz vários depoimentos que ressaltam o valor simbólico do
local na constituição da memória do skate em São Paulo. O engenheiro de pistas, George
Rotatori, define a Roosevelt “como uma das coisas mais tradicionais que a gente tem em
São Paulo”. O skatista Daniel Crazy fala que a praça “é como se fosse um museu do
skate, saiu uma galera daqui para o mundo”.
127
O relato de hostilidades contra skatistas na época áurea da praça aparece na
matéria da revista Cemporcento Skate sem carregar o peso de algum sentimento de
opressão, mas como episódios que ajudam a temperar a memória de um certo heroísmo
jovem, bem-humorado:
127
Programa Skate Paradise, ESPN Brasil, abr. 2008. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=yduF9yN2Vak>. Acesso em: 20 fev. 2010.
176
A praça foi uma escola de street skate, formando skatistas de características e
especialidades distintas, mas aptos a enfrentar qualquer tipo de situação que
viesse a surgir dali em diante. Afinal, quem fazia uma sessão debaixo de uma
chuva de pedras, nada tem a temer: por mais de uma década, um incansável e
desocupado morador arremessava do seu apartamento (vizinho à praça)
pedras em cima dos skatistas. E ele mesmo era visto à noite recolhendo as
pedras, como munição para o dia seguinte.
128
O toque de ironia fina fica por conta da qualificação do morador que atirava pedras
pela palavra “desocupado”, aqui como adjetivo, mas que principalmente em sua forma
substantiva foi tanto associada ao estigma dos skatistas.
Nos anos 90, é identificada um esvaziamento do pico da Roosevelt, a causa
atribuída diz respeito a mudanças na própria modalidade: “o novo street skate requeria
bordas, degraus onde o skate deslizasse”. Na mesma época, início da década de 1990, a
reurbanização do Vale do Anhangabaú “oferecia aos streeteiros uma opção melhor para
aquilo que precisavam”
129
.
Mesmo assim, uma movimentação de skatistas manteve-se continuamente na
praça. Também foi sendo usada para a prática de bicicleta freestyle. No caderno
Folhateen, da Folha de S. Paulo, em matéria de junho de 1994, a praça Roosevelt é
citada como um dos principais picos noturnos de São Paulo. O texto ressalta o caráter
“subversivo” da prática noturna o que não ganha tom pejorativo aqui, ainda mais por
se tratar do caderno para público adolescente. A começar pelo título (“Skate noturno
não tem regras”), depois pela caracterização dos praticantes (“nada de grupo organizado
com camisetas iguais e coisas do gênero”). E ainda, nas falas de skatistas reproduzidas na
matéria:
"Skate é atitude"
"O skate é urbano, por isso gostamos do proibido".
"A polícia acha que a gente é marginal e vários lugares estão proibidos para o
skate",
"A gente já sai de skate e vai para os lugares assim mesmo. Nós nos divertimos
indo para as casas noturnas e dentro delas"
130
Nota do Folhateen, de 1997, faz referência à transferência da feira da República
para a Roosevelt e à perda do local pelos skatistas:
128
PRIETO, D. Op. cit. p. 77.
129
Ibidem. p. 79.
130
LEMOS, A. Skate noturno não tem regras. Folha de S. Paulo, São Paulo, Folhateen, p. 6-4, 27 jun. 1994.
177
Os skatistas que dropavam no centro de São Paulo haviam perdido o
Anhangabaú e agora ficaram sem a praça Roosevelt. Transferidos da praça da
República, os camelôs dominaram o pico.
131
Em 2008, o skatista profissional argentino que vive em São Paulo, Esteban Florio,
conseguiu da empresa que o patrocinava o custeio de uma pequena obra na Roosevelt,
criando e adaptando obstáculos às necessidade do street skate atual não fica claro se
houve autorização formal da prefeitura para a realização da pequena obra. Com os
novos obstáculos, o local voltou a figurar no circuito principal do street em São Paulo.
Mas agora a ameaça vem do âmbito oficial, com o projeto de demolição da praça.
O histórico infeliz da Roosevelt reflete-se na atual degradação do local. (...)
Mas a história da Roosevelt sempre brilha quando o elemento do skate é
introduzido. E o secretário [Andrea Matarazzo, subprefeito na época, que
coincidentemente visitou a praça na ocasião em que os skatistas inauguravam
os obstáculos] presenciou isso, nos olhos dos skatistas que lá estavam. E talvez
tenha percebido que a tristeza e a alegria estão nas pessoas, jamais nos
lugares.
132
Rappers
Em uma matéria na revista Raça Brasil, sobre a história do hip hop no Brasil, a
praça Roosevelt é destacada como um dos pontos de referência dos inícios do
movimento em São Paulo, antes que se consolidasse nos bairros de periferia, mais
especificamente como local de florescimento do rap:
(...) mudam o point para a Praça Roosevelt, onde versejam, usando uma
latinha de refrigerante como microfone. Rimam ao ritmo que emana dos
aparelhos de som portáteis. Chamam essa arte de "tagarela". Depois,
preferem o nome internacional: rap. A repressão policial no centro da cidade
empurra dançarinos e rimadores de volta às favelas e bairros da periferia da
Grande São Paulo. Lá, eles fazem arte e despertam em outros jovens o desejo
de participar dessa cultura.
133
A pesquisa de José Carlos Gomes da Silva sobre o rap em São Paulo conta que a
entrada do hip hop na cidade se deu por meio da dança, o break, primeiro praticada em
131
SARLI, C. WQS; Windsurf; Skate. Folha de S.Paulo, São Paulo, Folhateen, p. 4-2, 04 dez. 1997.
132
Ibidem. p. 81.
133
FAUSTINO, O. Uma história brasileira. Raça Brasil, São Paulo, n. 85, 06 abr. 2005.
178
danceterias e, depois, ganha as ruas
134
. Um dos primeiros pontos de concentração de
breakers foi o pátio do metrô São Bento, no centro. Dali começou a nascer o rap
nacional, mas logo o grupo de rappers resolveu adotar um espaço próprio, e foram
então para a praça Roosevelt. Isto, entre 1988 e 1989.
A história de ocupação inicial da praça Roosevelt pelos rappers apresenta
elementos de um forte caráter colaborativo, inclusive com a participação de instituições
e da vizinhança da praça. O grupo de rappers obteve autorização, por escrito, dos
Correios para ocupar o espaço da agência da empresa que deixara de funcionar na praça
mais tarde o local seria ocupado por uma escola infantil da prefeitura (EMEI Patrícia
Galvão). A energia elétrica para ligarem seus equipamentos de som era fornecida ao
grupo por uma galeria de arte, que funcionava no imóvel vizinho ao do Cine Bijou. João
Batista de Jesus Felix, em outra pesquisa sobre o tema, aponta que na Roosevelt
também ocorriam encontros de roqueiros, que conviveram amistosamente durante
todo o período freqüentado pelo pessoal do Hip Hop”
135
.
Silva observa que, embora fosse um espaço do rap, foi frequentado também por
breakers e grafiteiros. E é nesse ambiente que o pesquisador identifica a primeira
grande mudança e reorientação do hip hop em São Paulo: a inserção da temática racial
na definição do movimento. Esta conscientização maior da questão racial teria relação
com as mudanças sofridas pelo rap norte-americano no começo dos anos 90, que
adquire verve mais politizada ligada a temáticas dos direitos civis e do nacionalismo
negro, além do maior uso do sampler nas composições o maior símbolo daquele
momento do rap foi o grupo Public Enemy. E é desta reorientação do rap, refletida no
Brasil, e que começa de maneira mais organizada a partir das reuniões na praça
Roosevelt, que surge a primeira posse, o Sindicato Negro. Posse é a reunião de grupos
de hip hop com o intuito de desenvolver atividades de cunho político e social dentro de
uma comunidade. Segundo Silva, fizeram parte da posse da praça Roosevelt os grupos
134
SILVA, J. C. G. Rap na cidade de São Paulo: música, etnicidade e experiência urbana, 1998. Tese
(Doutorado em Ciência Sociais) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas. pp. 64-69.
135
FELIX, J. B. J. Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano, 2005. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo.
179
Balanço Negro, Lady Rap, MT Bronx, FNR, MNR, Aliança Negra, Doctor MC´s, Controle da
Posse e Personalidade Negra. quem considere que o hip hop se inicia no Brasil
como movimento a partir das experiências na praça Roosevelt.
Segundo relatos, colhidos por Felix, de alguns “pioneiros” do rap na Roosevelt, de
início, as reuniões que aconteciam na praça não tinham o intuito de organizar o
movimento em torno da questão racial, eles discutiam o hip hop norte-americano,
principalmente as músicas, e consideravam que no Brasil não havia a manifestação
explícita de racismo, como ocorria nos EUA. O contexto da praça acabou afetando a
própria leitura do grupo sobre o preconceito. Tornaram-se comuns batidas policiais ao
local, incentivadas por alguns comerciantes e moradores locais. assim uma
aproximação entre os garotos e as garotas do rap e a ONG Gélèdes, ligada ao
movimento negro, que identifica que as ações policiais tinham como motivação a
questão racial, já aconteciam há algum tempo e vinham sendo denunciadas pela ONG.
Outra explicação para tal ação policial é o fato daqueles jovens negros
escolherem a praça Roosevelt para se reunir. Diferentemente dos bailes Black,
eles passaram a exercer sua identidade na rua, levando para o espaço público
uma prática de construção de identidade que sempre foi tolerada em locais
fechados e privados.
136
A posse Sindicato Negro começa a ser desmontada em 1991, entre os motivos
aparecem rachas e divergências entre os participantes e o processo de “periferização”
do hip hop. Em um livro-reportagem sobre o assunto, a transcrição do depoimento
de Franilson, um ex-integrante do Sindicato, que depois organiza a posse Aliança Negra
em Cidade Tiradentes:
No Sindicato, um tirava sarro do outro porque não tinha uma calça legal. Nós
tínhamos porque a gente trampava, mas observávamos que outros com
menos condições financeiras sofriam. Se fossemos levar o pessoal da Cidade
Tiradentes para lá, eles iam tirar barato. O melhor era mesmo se afastar.
137
O movimento da praça Roosevelt serviu de modelo às posses que apareceram nas
periferias. Felix observa que enquanto nos EUA o movimento hip hop começou nos
bairros para depois ocupar espaços mais centrais, no Brasil o movimento do centro
136
Ibidem. p. 85.
137
ROCHA, J.; DOMENICH, M.; CASSEANO, P. Hip hop a periferia grita. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
p. 57.
180
serviu de referência para a periferia, e depois que as posses se consolidaram nos bairros,
a movimentação no centro praticamente desapareceu.
Grafiteiros
Cavalheiros com panamá à cabeça passeiam em um Ford T colorido, cheio de
grafismos, sobre o concreto da lateral da praça. Um indiozinho azul, meio curupira, dá o
ar de sua graça em pontos diferente da Roosevelt, ora carregando um skate, ora com
um cigarro entre os dedos, ora com uma vara comprida (talvez um rolo de tinta?). Um
estranho corcunda, de enorme cabeça e chifres (ou antenas?). Um amálgama de seres e
objetos: ganso, cubos coloridos, traseiro de sapo, móveis... Uma moça sedutora de longa
cabeleira rosa Love is not easy in SP”. Um delicado perfil de uma cabeça de traços
negros acompanha o recorte da mureta de uma escada. Símbolos e inscrições
misteriosas, com padrões cuneiformes, outros que lembram arabescos. Figuras
fantásticas povoam a praça com fama de abandonada. Cores e formas dão um tipo de
vitalidade específica “urbana” – à superfície cinza do concreto.
A região da praça é também muito associada à presença do grafite é considerada
um dos pontos tradicionais da arte de rua, juntamente com trechos do Minhocão e da
avenida 23 de Maio
138
. A prática da pintura com sprays na Roosevelt não tem laços
claros com o movimento hip hop, embora o papel do Sindicato Negro na articulação dos
quatro elementos (MC, DJ, break e grafite) seja ressaltado nos estudos e depoimentos
sobre o tema. O caso é que o grafite em São Paulo apresenta tanto uma vertente ligada
ao universo das artes plásticas (grafite de galeria), como a que se vincula mais
diretamente ao hip hop e à cultura de rua. Na Roosevelt, registros que contam sobre
a repressão, como de abordagens a grafiteiros no final dos anos 80 que coincide
justamente com o momento da ocupação pelos rappers.
Do grafite institucionalizado pelo poder local inclusive em suas formas mais
recentes como os stickers (lambe-lambe) às subversivas pichações, por boa parte da
superfície do concreto da Roosevelt (sobre e sob a praça), podemos visualizar diversas
138
JENIN, D. São Paulo vai ganhar sua 1ª Bienal Internacional de Arte de Rua. O Estado de S.Paulo, São
Paulo, Caderno 2, 04 dez. 2009.
181
manifestações. Uma nota da seção Cidade Nua, da Revista da Folha, em 1994, trata da
relação do grafiteiro Eduardo Castro com o espaço da praça Roosevelt:
A praça Roosevelt é considerada por muitos um deserto de concreto sobre um
labirinto de neis. Não é a opinião de Eduardo Castro, designer gráfico, que
desde 88 alegra o local com seus grafites. "Sempre achei a praça fantástica. É
gráfica, superurbana".
Quando fez o Zorro e a mulher de botas e luvas compridas, foi abordado por
não ter autorização para o trabalho.
Mas o grafite acabou vencendo. Em agosto deste ano, os alunos da "Oficina de
grafite para pichadores", promovida pelo Sesc/Carmo povoaram a praça com
novas imagens. Sob a coordenação de Castro, surgiram a zebra, o retrato de
Cazuza (do próprio Castro), o garotinho pichador observado por um guarda, a
Nossa Senhora com máscara de s etc. Desta vez, autorizados pela
Administração Regional da Sé, que aprovou o trabalho.
139
Neste, como em alguns outros exemplos já apresentados, nota-se como uma visão
positivada da praça opera no contraste com a imagem da degradação. Inclusive o texto
se organiza em boa parte na base de antíteses: deserto/povoaram; concreto/gráfica;
ilegalidade/legalidade. Tensões curiosamente aparecem também em alguns grafites:
garotinho pichador/guarda; Nossa Senhora/máscara de gás; índio-
mito/comportamentos urbanos etc. As sínteses entre elementos contrastantes, tão bem
expressadas pelos grafites, parecem ter forte eco em algumas visões sobre a praça.
A moradora de rua
Uma atividade com alunos de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da
USP, no começo dos anos 90, coordenada pela professora Cremilda Medina, propunha a
produção de reportagens, com abordagens mais “humanizadas”, sobre alguma região do
centro de São Paulo. Pedro Alexandre Sanches, à época um dos alunos, escolheu a praça
Roosevelt. Seu texto tem como foco uma moradora de rua, sem nome, ou com vários
nomes “Teresa, ou Estela, ou Rosário, ou Califórnia. Até Silvio Santos ela costumava
autodenominar-se”
140
.
A reportagem explora as tentativas de contato do repórter com a personagem.
“Logo nas primeiras frases, fica claro o que já se adivinhava pela simples observação: seu
pensamento não segue a lógica de todos os mortais. Tudo que pensa, ela fala, em fluxo
139
MORAES, C. Cidade nua. Folha de S. Paulo, São Paulo, Revista da Folha, p. 62, 10 abr. 1994.
140
SANCHES, P.A. Na linha do pensamento. In: MEDINA, C. (org.). Vamos ao centro. São Paulo:
CJE/ECA/USP, 1994. pp. 178-183.
182
ininterrupto e sem censura ou seleção prévia”. Este pensamento liberto da moradora de
rua, que mistura elementos desconexos e momentos de ternura, é o eixo de organização
da narrativa.
De início, uma simples pergunta feita pelo repórter “onde você mora?” ganha
um resposta sofisticada “na linha do pensamento”, que dá título ao texto. A moradora
do pentágono da Roosevelt vive no seu próprio pensamento, um pensamento sem
barreiras, como o texto reforça. a sobreposição da praça com o peculiar sistema de
pensamento da protagonista: se este último “não segue a lógica de todos os mortais”, é
“ininterrupto e sem censura”, o ambiente descortinado também tem sua
idiossincrasias.
A praça Roosevelt, o “lar” da personagem, é descrito como um lugar que
faria a alegria das teorias s-modernistas: nela convivem lado a lado a
austeridade da tradicional igreja da Consolação, o concreto da arquitetura
geométrica e anacrônica da praça, as galerias gigantescas de estacionamento
comercial (...), as árvores sobreviventes à fuligem do centro da cidade,
supermercados e floriculturas semi-subterrâneos, banca de revista, a fachada
semi-escondida do edifício Copan, os primeiros metros do elevado Costa e
Silva (...), os bares de homossexuais no parapeito do túnel.
Da mesma forma, nas falas da personagem um certo “caos” de referências e fluxos
também é apresentado:
De qual cantor você gosta mais?
Maisena.
Qual é o ator que você mais gosta?
A torneira.
Nas investidas do repórter em se aproximar do universo da mulher sem nome,
vários outros personagens e pontos de referência dos arredores da praça florescem em
meio à narrativa. Há os bares gays de “classe baixa”, Comunidade e Corsário, este último
é onde a personagem principal passava parte de seus dias, varrendo em troca de um
trago de caipirinha ou pinga. Também aparece a boate de travestis Álibi, no espaço
“onde funcionaram templos da juventude roqueira, metaleira e punk, como a
Hoellisch e a Cais”.
Sobre as travestis, a rua é comparada com uma “passarela de luxuosos travestis e
drag queens equilibrados em longuíssimos saltos altos e longos e elegantes vestidos”. A
relação da mendiga-protagonista com o mundo gay carrega elementos de humor: numa
183
breve conversa da mulher com um rapaz homossexual, ela declara paixão ao moço;
noutro trecho o autor afirma que as “novidades diárias” do mundinho divertem sua
personagem, como “o grupo de homossexuais surdo-mudos que conversa
freneticamente por meio de sinais e que ela tenta imitar, entretanto às gargalhadas na
conversa e participando por gestos largos como membro efetivo do grupo”.
O relato também destaque a Ruanda, vendedora de “pirâmides de pirita”, a
quem a mulher sem nome costuma pedir cigarros sempre com muita educação.
Ruanda nunca foi assaltada, era protegida dos “brasões” e usa um anel que lhe permite
ler o futuro. Considera que os gays da Roosevelt, tirando um ou outro, são “gente
ruim”. Ela conta que a mulher sem nome, a quem chama de “magrinha”, teve por um
período uma colega moradora da praça, a “revoltada”, com quem passava muito tempo
conversando.
A praça aparece na reportagem também em noite de tretacampeonato da seleção
brasileira: buzinas, rojões e torcedores que “festejam túnel afora”, gritando pelo Brasil e
xingando os homossexuais da Roosevelt. Um deles mostra a bunda para fora da janela
do carro. A personagem grita alguns sons em resposta e “joga copos vazios” nos carros.
Indagada se torceu pelo Brasil, responde: “não, pelo Boasil”. A mendiga solta ainda
menções desconexas sobre meninas bonitas filhas? amores? e, por fim, foge da
conversa e do mundo: “aí eu saí voando no aerógramo”.
A reportagem-crônica usa a mulher sem nome e as demais figuras para criar a
personificação de uma visão sobre a praça, que não toma o local como um espaço
indomável e nem considera o centro da metrópole como uma área em decadência.
uma marca de defesa, quase uma exaltação panfletária, sobre o espaço de resistência:
Acima de sua cabeça, os prédios enfileirados parecem assustadores. Ameaçam
cair sobre os mendigos, sobre a vendedora de pirâmides, sobre os garçons
arredios que se recusam a falar sobre sua varredora, sobre os travestis da Álibi
e das esquinas, sobre os homossexuais afetados e os discretos, sobre os
surdo-mudos.
Eles, no entanto, impõem-se sobre a paisagem. Dominam e escravizam-na.
Afinal, estão no centro de São Paulo, local notável onde os surdo-mudos
conversam mais alto que os falantes e as minorias se autoafirmam
agressivamente, deixando claro que ocupam por direito seu espaço e dele não
abrirão mão, por mais que os preconceitos e a opressão dos
“normais”esmaguem-nos contra o concreto dos edifícios enfileirados.
184
um último comentário a respeito da reportagem: é curioso notar pela própria
forma como o texto se apresenta que o sentimento de opressão aparece mais na voz do
próprio autor, assumidamente de “fora”, do que como marca presente nas próprias
representações que constrói dos personagens.
**
Além dos personagens abordados acima, referências mais esparsas a grupos e
episódios pontuais que não fazem simples eco das imagens de local degradado e
abandonado. Podemos citar o uso da praça para manifestações políticas diversas.
Também devemos fazer referência à variedade de grupos de culturas juvenis que
circulou pela região, atraídos por casas noturnas que funcionaram em vários momentos
ao longo das décadas de 1980 e 1990 no entorno da praça, como a Nation, que figura
nos relatos do início do estilo clubber em São Paulo. ainda registros da
movimentação de roqueiros, punks e vertentes de cultura negra, tanto por causa de
casas localizadas nas ruas laterais à praça, como Cais e Hoellisch, e também na rua
Augusta
141
. Como episódio isolado, um em que a praça Roosevelt ganha carinhoso
tratamento de “lugar público”, quando da apresentação, no Cultura Artística, em 1994,
da soprano Jessye Norman, que exigiu a colocação de telões na praça para transmissão
“popular” da ópera, depois de ter recebido a carta de uma menina que reclamava do
preço dos ingressos
142
.
O universo das drogas associado à praça ganha leitura particular no filme Nina
(2004), de Heitor Dhalia. O cenário da Roosevelt ganha destaque na São Paulo soturna,
cheia de bizarrices, que o filme constrói. Na adaptação livre de Crime e castigo, de
Dostoiévski, a personagem-título é uma garota junk e perturbada que fantasia assassinar
a proprietária do apartamento onde aluga um quarto. A cidade do filme é carregada de
141
Para algumas das referências citadas, ver: PALOMINO, E. Babado forte: moda, música e noite na virada
do século 21. São Paulo: Mandarim, 1999.; LIMA, C. Se liga no funk!. Folha de S. Paulo, São Paulo, Revista
da folha, p. 58, 19 mai. 1996; VIEIRA, A.; AUTRAN, T. Sucessos repetidos. Folha de S. Paulo, São Paulo,
Revista da Folha, p. 12, 01 dez. 1996.; BARROS, B.M. Thaíde & DJ Hum tocam na final. Folha de S.Paulo,
São Paulo, p. Especial-1, 24 fev. 1997.
142
JESSYE Norman pede telão em praça pública. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. 5-4, 09 dez.
1994.
185
referências do underground urbano, e povoada por uma velha avarenta e sádica,
drogados, um cego, prostitutas, travestis, pervertidos, mendigos, figuras indefiníveis da
noite... Esta cidade escura, cheia de concreto, pichações e grades oprime e liberta, ao
mesmo tempo, não porque seja desumana, mas excessivamente humana.
Enfim, a ideia de degradação da praça é elemento discursivo que acompanha a
própria versão de decadência do centro da metrópole. O geógrafo Jair César Maturano
Ferreira, em sua dissertação que analisa o processo recente de requalificação da praça
Roosevelt, apresenta essa ideia de decadência do centro, como “mito”, ou um discurso
ideologizado que ajudou a fundar a própria de noção degradação da praça
143
. O centro
“esvaziado”, como havia observado Heitor Frúgoli anteriormente, é figura retórica,
que nunca ficou efetivamente vazio, apenas houve a mudança de perfil social da
população que passou a ocupá-lo mais intensamente.
As narrativas sobre a praça Roosevelt apresentadas aqui apontam que os sentidos
da praça, no dito “auge da degradação”, não são unânimes, nem conexos. A figura do
“não lugar” se desfaz frente à caracterização constante de redes de sociabilidades na
história da praça. Relações afetivas, resistentes, amorais, utópicas e paródicas foram ao
longo de todo o período de existência da praça constantemente formuladas e
comunicadas, em convivência com as imagens de deterioração e “submundização” da
Roosevelt e do centro.
143
FERREIRA, J.C.M. Praça Roosevelt: possibilidades e limites do uso do espaço público, 2009. Dissertação
(Mestrado em Geografia Humana) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo. pp. 48-51.
187
Capítulo 4. A praça do teatro
A partir de meados dos anos 90, a região da praça Roosevelt começava um novo
processo, com a atração de salas de teatro em seu redor. Em seu redor não, na verdade,
concentradas na quadra da rua Martinho Prado, entre as esquinas com a Nestor Pestana e a
Consolação.
Durante todo este período, desde a década de 1950, o Cultura Artística se manteve em
funcionamento na Nestor Pestana, mesmo após o fim da TV Excelsior, a associação que o
administra retomou as atividade artísticas, normalmente focada em grandes produções
teatrais e apresentações de música de câmera e jazz, principalmente atrações de circuito
internacional. Para garantir a presença do público abastado à região mal-afamada, o Cultura
investia em segurança privada para garantir o percurso do estacionamento à entrada da
sala. Apareciam algumas ações para atrair público a salas mais tradicionais do centro por
meio de um aparato de segurança. A partir de 1994, por exemplo, redes de estacionamento
fizeram convênio com as secretarias de Transportes e da Cultura para oferecer um serviço
de ônibus executivo para translado entre estacionamentos na região da Consolação e da
Roosevelt até o Teatro Municipal, nos horários de espetáculo.
1
Havia maior movimentação teatral, nas imediações do centro, nas regiões do
Bexiga/Bela Vista, com salas importantes como o rgio Cardoso e o Ruth Escobar (teatros,
na época, de administração pública, ligados à Secretaria de Estado da Cultura) e o Bibi
Ferreira, o Zaccaro e o Imprensa (com perfil para grandes produções e/ou espetáculo de
apelo mais popular) e um pouquinho mais distante, na Vergueiro, as salas do Centro
Cultural São Paulo (ligado à Secretaria Municipal de Cultura). Também outros focos na Vila
Buarque, com os teatros do Sesc-Anchieta e da Aliança Francesa (que sediou o grupo Tapa).
Existiam ainda salas de teatros em hotéis, considerados espaços nobres, como a do Hilton,
na avenida Ipiranga, e do Crowne Plaza, na rua Frei Caneca já próximo à avenida Paulista.
Nestas áreas do centro e arredores, além dos teatros grandes e renomados, também
havia algumas salas menores ou aquelas em processo de decadência dentro da cena teatral,
como o TBC e o Maria Della Costa. Eram espaços com perfil e programação instáveis. Havia
1
MUNICIPAL faz convenio para estacionamento. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, 18 mar. 1994.;
BARROS, L. C. Vá de choffeur ao Municipal. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, 28 mai. 1995.
188
ainda teatros como o Eugênio Kusnet, no espaço que se tornara famoso nos anos 50 e 60
como sede do Arena, e que tentava reavivar a aura perdida após o fim do grupo mais tarde
foi ocupado pelo grupo Companhia do Feijão. Na Bela Vista, o Oficina recebeu projeto
ousado de Lina Bo Bardi em 1993, marcando uma nova retomada da companhia de Zé Celso
Martinez Corrêa.
Na tese de doutorado sobre salas de teatro em São Paulo, José Simões de Almeida Jr.
realiza levantamento dos “lugares teatrais” e seus perfis, por meio de guias de programação
diversos. Ele divide cronologicamente em “antes de 1999” e “entre 1999 e 2004”, nos dois
períodos, revela a predominância da região central na concentração de teatros: 55% (até
1999) e 51% (1999-2004). O autor considera, no entanto, significativa esta diminuição de
4%, como indício de uma tendência à descentralização do tecido cultural da cidade. Outro
dado destacado por Almeida Jr. é que, se até os anos 90, observava-se a predominância de
salas de médio porte, na passagem para os anos 2000, houve a polarização entre os
pequenos e os grandes espaços.
2
Em 1995, um grupo alugou a sala do recém-fechado Cineclube Oscarito na praça
Roosevelt. Batizado Teatro de Câmara, o grupo era formado pelo dramaturgo Bosco Brasil,
pelos atores Jairo Mattos, Ariela Goldmann e Lavínia Pannunzio, e o cenógrafo Luiz Frúgoli.
O nome da companhia expressava a proposta de teatro mais intimista, também teriam a
pretensão de montar um repertório de dramaturgia contemporânea, segundo declarações
de integrantes do grupo em matéria da Folha de S. Paulo
3
.
Menos de dois anos mais tarde, o grupo abandona o projeto e a administração da sala.
Nesta época, registros na imprensa de que a Igreja Universal do Reino de Deus pretendia
comprar o Teatro de Câmera e a outra sala do Bijou para construção de um templo
4
. Mas a
sala do Teatro de Câmera é assumida pelo dramaturgo Dema Francisco e pelos atores Dulce
Muniz e Roberto Ascar. O espaço é reinaugurado em 1997 com o nome de Studio 184
5
.
2
ALMEIDA JR., J. S. Cartografia política dos lugares teatrais da cidade de São Paulo 1999-2004, 2007. Tese
(Doutorado em Artes Cênicas) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. pp. 137, 147.
3
SANCHES, P. A. Teatro de Câmara vai se dedicar à dramaturgia contemporânea. Folha de S. Paulo, São Paulo,
p. 5-4, 20 abr. 1995.
4
ANTENORE, A. Clipe (coluna). Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 4-8, 6 mai. 1996.
5
BARROS, B. M. Trio assume teatro na Praça Roosevelt. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, Especial -1, 22
fev. 1997.
189
No ano seguinte, a outra sala do Bijou foi ocupada pela Escola Recriarte de teatro para
ser utilizada pelas montagens dos espetáculos produzidos com os alunos. Chamava-se Cine-
Teatro Recriarte Bijou, com intenção de manter ainda a função de cinema. Depois se
transformou em Teatro Recriarte Bijou e atualmente é o Teatro do Ator, que acolhe não
apenas os alunos da escola, mas tem programação de espetáculos de outros grupos.
A atriz Dulce Muniz afirma, em uma matéria de jornal alguns anos mais tarde, que os
proprietários das duas salas, os mesmos do Cine Bijou, que passavam por dificuldades
financeiras, recusaram ofertas de igrejas evangélicas para manter o perfil cultural do local.
6
Esta ocupação inicial por grupos e pequenas salas ganham um caráter desbravador, na
perspectiva do que a região se transformaria mais tarde, embora buscando na imprensa
deste final da década de 1990, bem como outras fontes teatrais da época, as referências são
muito escassas, o que talvez indique sua pouca inserção no cenário teatral da cidade.
É no ano 2000, que a companhia Os Satyros inauguram sua primeira sala na praça e na
sequência disto a movimentação em torno do teatro na praça Roosevelt começa a ganhar
alguma visibilidade. A companhia, liderada por Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral, tem
seu embrião no grupo Teatro de Ava Gardner, no final dos anos 80. Em 1991, já com o nome
Os Satyros assumiram a administração do Teatro Bela Vista, na rua Major Diogo, onde
começariam, segundo depoimentos dos fundadores da companhia, a experimentar o que
depois intensificariam na praça Roosevelt: o espaço próprio proporcionando maior
liberdade para experimentação e a atividade teatral interferindo diretamente na
vizinhança.
7
No livro sobre a companhia, Ivam Cabral diz:
Lembro que quando saímos da Major Diogo depois de dois anos de ocupação do
Teatro Bela Vista, a padaria e um bar que ficavam em frente do teatro fecharam,
tamanha era a importância do nosso trabalho ali. Sempre com muita gente vendo
as peças, com muita produção. Ali aprendemos que teatro tem que abrir todo dia,
e que tem que ter muitas peças. (...) Isso pode criar problemas de produção, de
montagem, de afinação de luz e tal. Mas você ganha na vida que esse rodízio acaba
dando ao espaço. Ganha com a circulação e a troca de idéias, de energia.
8
6
MORADORES lutam para manter a Praça Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 17 set. 2002.
7
Depoimentos de Rodolfo Garcia Vázquez e Ivam Cabral em: GUZIK, A. Os Satyros: um palco visceral. o
Paulo: Imprensa Oficial, 2006. E concedidos à autora em 09 abr. 2008 e 11 abr. 2008, respectivamente, na sede
da companhia na praça Roosevelt, São Paulo.
8
GUZIK, A. Op. cit. . 86.
190
A sala de teatro não é apresentada como um uma ilha idealizada à parte do mundo,
mas é um elemento social, urbano, comunicante com várias esferas da vida social. É neste
período do Teatro Bela Vista que os Satyros começam a se afirmar como grupo e como
proposta artística. Na verdade, antes de se instalarem na Major Diogo, uma montagem
talvez tenha dado um norte ao trabalho da companhia. Em 1990, resolvem levar Marquês
de Sade ao palco. No livro de memórias da companhia, seus fundadores afirmam que a
montagem nasce de um sentimento de raiva, de espoliação do sentido de cidadania, em
função do momento histórico traumático do Brasil, com os confiscos das poupanças pelo
governo Collor, e de outro episódio mais pontual em que se sentiram burlados em um
projeto que negociavam com a Secretaria Municipal de Cultura da época. Conta Ivam:
“estava claríssimo para nós que o que queríamos era denunciar, chocar, mexer com as
estruturas morais, sociais, políticas. (...) nós quisemos mijar no palco, no palco do Guairinha,
quisemos mostrar o cu, a bunda, a boceta, para ilustrar nossa insatisfação”.
9
A peça Sades ou noites com professores imorais teve dificuldade em encontrar palco
em São Paulo, depois da curta temporada de estreia em Curitiba, o espetáculo era taxado de
pornográfico demais pelos administradores das salas mais tradicionais, o que os levou a
procurar teatros eróticos, e Sades era tomado como muito intelectualizado. Então
apareceu a proposta do Bela Vista, onde a montagem estreou. O grupo ganha boa cobertura
de mídia, principalmente do jornal Folha de S.Paulo. A visibilidade midiática comumente
vem acompanhada de classificações ou rótulos, e os Satyros eram tomados então como um
grupo libertino. Sobre a pecha, Ivam comenta: “foi uma das épocas mais caretas da minha
vida (...), então era muito engraçada a aura que se criou em cima do grupo”.
10
Permaneceram por pouco mais de um ano no teatro Bela Vista, com novas montagens
entre elas, Saló, Salomé. Em 1992, com convites para participação em festivais
internacionais, partiram para a Europa e, entre várias viagens, acabaram se fixando em
Portugal, onde também passaram a oferecer cursos livres de teatro. Por algum tempo,
mantiveram dois núcleos, um em Lisboa, outro em Curitiba, cidade onde pretendiam
finalmente se fixar. Das idas e vindas entre Brasil e Portugal, o grupo acumulou repertório
considerável que incluía além de Sades (então renomeada com o título original da obra de
9
Ibidem. p. 76.
10
Ibidem, p. 89.
191
Sade, A Filosofia da Alcova), Saló, Salomé, adaptações de Sapho de Lesbos e Medea, além de
obras de Oscar Wilde, Nelson Rodrigues, Georg Büchner, Heiner Müller, Lautréamont,
Goethe, entre outros.
Em 1999, os Satyros resolvem retornar a São Paulo, não para apenas apresentar
algumas de suas peças, mas com o intuito de fixar a sede da companhia na cidade. Tocando
ainda projetos em Curitiba, buscavam espaços em São Paulo, até optar pela praça Roosevelt.
Sobre a escolha do local, Ivam Cabral relata:
Nunca fomos, por exemplo, procurar salas em Pinheiros, na Vila Madalena. Nosso
foco (...) era a Rua Augusta, a Praça Roosevelt, a Rua Aurora. Impressionante como
lembro de conversas nossas sobre os lugares em que queríamos trabalhar, e o mais
longe que a gente chegava do centro, da Praça Roosevelt, do centro velho de São
Paulo, era o Bexiga.
11
O imóvel que alugaram ficava em prédio abandonado de dez andares que tinha sido,
segundo relatos dos atuais ocupantes, hotel de travestis e antes ainda fora um apart-hotel
luxuoso nos tempos áureos da praça, era uma área que funcionara como marcenaria do
hotel e que depois se transformou em entrada de fundo para o restaurante Eduardo´s da
Nestor Pestana. Rodolfo Vázquez descreve que o local estava sem uso havia uns vinte anos,
tinha chão de terra, sem banheiros, sem instalação elétrica, aluguel barato.
12
.
Depois da reforma, o Espaço dos Satyros foi inaugurado em dezembro de 2000, com
Retábulo da avareza, luxúria e morte, de Ramón Del Valle-Inclán, que haviam montado
em Curitiba (com o título Pacto de sangue) e remontaram em São Paulo, com parte do
elenco nova. Conseguiram também montar uma exposição do artista plástico Guto Lacaz no
espaço para a inauguração.
13
Os relatos de Ivam e Rodolfo carregam bem nas tintas das dificuldades do período
inicial na praça, seja pela hostilidade de traficantes e travestis que atuavam na área, seja
pela resistência do meio teatral a frequentar a região.
IC Muito trash. Os travestis barra-pesada enfrentavam a gente. Sentavam-se ali
na praça e dominavam, mandavam naquilo. Os traficantes da praça também
começaram a prestar atenção na gente. Quer dizer, fomos pressionados por todos
os lados. E apesar disso inauguramos o Espaço dos Satyros [...] Foi muito difícil, no
11
Ibidem, p. 205.
12
Ibidem, p. 207-208.
13
MÁSCARAS de Guto Lacaz abrem Espaço dos Satyros. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 19 jan.
2001.
192
entanto, porque daí acordamos para a realidade: a dificuldade de atrair público.
Daí, fiz o trabalho de ligar para todo mundo, convidar as pessoas. E ouvia coisas
como: “Não vou ao centro”. Percebemos, ao contatar essas pessoas, que
estávamos em um lugar perigoso, estranho, difícil, ao qual muita gente se recusava
a ir. (...) Tivemos que negociar inclusive com os meninos de rua que dominavam a
praça. Era muito escuro. Pedíamos para a prefeitura trocar as lâmpadas
queimadas. Eles resistiam, não vinham imediatamente, mas enfim apareciam,
trocavam as lâmpadas durante o dia, elas ascendiam por volta das seis horas, sete
horas, e os traficantes mandavam quebrar todas. No dia seguinte, ligávamos para a
prefeitura, demoravam mais não sei quanto para vir, colocavam as lâmpadas, os
traficantes quebravam de novo. O lugar era muito escuro, e eles enfrentavam a
gente, de frente para nós. Sentavam na mureta em frente ao Espaço dos Satyros
marcando a gente, encarando, fazendo cara feia, ameaçando.
14
Na sequência do relato, Ivam Cabral conta que resolveu então partir para tentar
estabelecer algum contato com os traficantes. Comenta que ao puxar papo e perguntar o
nome deles era comum o espanto e a desconfiança de quem não está acostumado a ser
olhado na face: “Por que você quer saber meu nome?”. E que progressivamente, com essa
estratégia, foi conseguindo criar convivência, em alguns casos até houve relação de
amizade.
Contam que com as travestis era mais complicado, que havia grande agressividade
“pensavam que queríamos expulsá-las”
15
. Criaram também estratégias: Ivam, que vivia uma
mulher em Retábulo, ficava, quando não estava em cena, travestido de sua personagem no
café do teatro, voltado para rua, por onde as travestis passavam observando. Rodolfo
Vázquez observa que a peça de estreia do espaço da Roosevelt trazia vários atores em
personagens femininos e atrizes em personagens masculinos, estabelecendo um tipo de
sintonia com a região da praça, “lugar dominado pelas travestis”
16
. Foi um antigo conhecido
transexual, que começou a frequentar o espaço, e a aproximar as travestis do grupo. Nesta
ocasião, conheceram Phedra D. Córdoba, travesti cubana, que mais tarde passou a integrar
a companhia.
Em outros depoimentos de integrantes do Satyros reproduzidos na imprensa, esta
ambientação marginal da praça na época da chegada do grupo é normalmente ressaltada,
com grande dramaticidade. Alguns exemplos:
14
Ibidem, pp. 210-211.
15
Ibidem, p. 215.
16
Ibidem, p. 212.
193
“Quando chegamos, era um espaço inabitável, cheio de traficantes, prostitutas e
travestis. A gente foi inserindo esse povo. Não nos interessava tirá-los daqui, pelo
contrário, queríamos que participassem." (Ivam Cabral)
17
Na Praça Roosevelt, um dos diretores dos Satyros, Diogo Viana, 24 anos, fala dos
anos em que o grupo está sediado por lá. “No começo, aqui era um depósito de
lixo. Os traficantes de droga viviam ameaçando a gente. Hoje, a Roosevelt virou um
espaço para o teatro underground. Um teatro veloz, onde tudo pode acontecer.”
18
Estes relatos deixam bem definida a ideia de “desbravamento” da região pelo grupo
de teatro, expressando um projeto desde início de interagir com o entorno, até mesmo
para a própria sobrevivência da sala. Mas vale lembrar que estes relatos usados aqui não
foram produzidos no momento da ocupação inicial da praça Roosevelt pelo grupo, mas
formulados posteriormente, quando o processo de consolidação do “renascimento” da
região em torno do teatro já tinha forma, pelo menos discursiva, mais delineada.
Tomando agora os relatos da imprensa, no contexto da inauguração da primeira sala
dos Satyros, é curioso observar que o acontecimento teve um espaço considerável de
cobertura, no entanto, esta questão da atuação no entorno, da imagem do universo
associado à criminalidade da praça não aparece relacionado ao projeto das salas de teatro
na região
19
. Encontrei apenas uma pequena referência em meio a uma extensa matéria
sobre a inauguração da sala, mas em termos mais genéricos, de que a sala e as atividades
previstas pela companhia funcionariam como “mais um local de revitalização do centro da
cidade”
20
.
Neste período, os espaços de internet que mais tarde tanto serviriam à formulação do
projeto artístico em torno da praça ainda não tinham muito volume e as peças da
companhia, ao que parecem, também não dão pistas sobre esta relação entre o grupo e a
praça. Assim, não fica claro se este sentimento de transformação do espaço a partir da
intervenção artística, até mesmo se toda a carga dramática sobre a situação da praça e seus
personagens “degradados” eram formulações que nasciam naquele momento de ocupação,
17
SANTOS, V.; FIDALGO, J. Da alcova à luz. Folha de S.Paulo, São Paulo, Ilustrada, 08 fev. 2005.
18
AMENDOLA, G. As caras da Roosevelt. Jornal da Tarde, São Paulo, Variedades, 21 nov. 2009.
19
Na cobertura da época da abertura das outras salas que se instalaram anteriormente na praça também não
existe menção à criminalidade na área e da convivência da arte com este ambiente. Mas, como já dito, as
outras salas receberam muito pouca atenção dos meios de comunicação.
20
SATYROS abrem espaço cultural na Praça Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 28 nov.
2000.
194
embora não tivesse muitos canais comunicantes, ou se ganharam corpo como discurso
pretérito em relação à “experiência vivida”.
Usando as concepções de Raymond Williams: não indícios que nos permitam
classificar esta imagem dos artistas domando, através da arte e da assimilação, um
ambiente hostil como um sentimento ligado ao presente da experiência, os registros
encontrados tendem a apontar mais para uma formulação discursiva um pouco posterior a
essa etapa inicial.
O discurso que qualifica os grupos de teatro como desbravadores da região perigosa
começa a aparecer mais na imprensa a partir do ano 2002 e a se naturalizar uns dois anos
mais tarde. Nesta época, uma nova sala foi aberta na praça Roosevelt, o Estúdio Teatro X, de
um grupo formado por alguns ex-integrantes do Satyros de sua primeira formação, antes de
irem para Europa Paulo Fabiano e Eduardo Chagas
21
.
No jornal O Estado de S.Paulo, a matéria “Teatros movimentam praça com fama de
‘perigosa’” aponta para mudança no cenário da praça a partir das atividades dos teatros.
Depoimentos de frequentadores que afirmam que antes tinham medo de ir à região, mas
que as atrações teatrais serviram como estímulo. Também destaca a presença de um
pipoqueiro, o que seria indício de que as salas atraiam público e as falas de comerciantes
que passaram a estender o horário de funcionamento de seus estabelecimentos para
aproveitar o movimento dos teatros.
22
Matérias da época também apresentam a recuperação do espaço da Roosevelt como
uma ação colaborativa entre os grupos de teatro e os moradores da região. Uma matéria
traz uma fala de Dulce Muniz que reforça tanto a ideia das atividades conjuntas entre os
grupos, como a de pioneirismo e desbravamento da região:
No início foi mais difícil, estávamos sós, a praça destruída. Aos poucos os outros
teatros foram chegando. O Recriarte Bijou, o pessoal dos Satyros, que se tornaram
bons parceiros do Studio 184 e, ano passado, a turma do Teatro X. A praça abriga
ainda a sede da Companhia Paulista de Teatro e, por isso, durante toda a tarde,
muitos atores circulam por aqui.
23
21
GUZIK, A. Op. cit. p. 249. ; DUBRA, P.I. Teatro X dá início a mostra “radiográfica”. Folha de S. Paulo, São
Paulo, Acontece, 14 out. 2002.
22
TEATROS movimentam praça com fama de “perigosa”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Caderno 2, 17 set.
2002.
23
MORADORES lutam para recuperar Praça Roosevelt. O Estado de São Paulo, São Paulo, Metrópole, 17 set.
2002.
195
O livro de memórias do Satyros também aponta a interação entre os grupos: Dulce
Muniz fez parte do Satyros, participou de algumas montagens, e ela cedeu o Studio 184 para
as montagens do grupo, o local passou a ser chamado Espaço dos Satyros 2. Em 2003, Dulce
saiu da companhia e retomou seu teatro, que voltou a ser chamado Studio 184.
Na matéria “Moradores lutam para recuperar Praça Roosevelt”, de O Estado de
S.Paulo, também o reforço da participação da Associação Viva o Centro, por meio Ação
Local da Praça Roosevelt, (que cumprem o papel dos “moradores” que aparecem no título
do texto) no debate sobre a intervenções na praça.
A região e sua vinculação com o teatro começam a ganhar a partir dboa visibilidade
nos jornais. Em dezembro de 2002, a Folha de S. Paulo traz uma matéria especial sobre o
centro de São Paulo, sugerindo passeios e dois roteiros para o fim de semana, um para
sábado, outro para domingo e a praça Roosevelt aparece incluída como um dos pontos
turísticos. No “passeio para sábado”, é sugerido uma visita à Galeria do Rock, caminhada
pela região do Anhangabaú e Xavier de Toledo, depois pela São Luís, refeição no Edifício
Itália, seguir pela Ipiranga (passando pelo Copan e Hilton) e “então, você vai estar próximo
da pça. Roosevelt e de seus teatros, mas, antes de escolher uma peça, aproveite do bar do
Teatro Espaço dos Satyros”
24
. No mesmo especial, outro texto reforça o vínculos entre os
teatros e a Ação Local no processo de revitalização da praça Roosevelt.
25
Um outro grupo teatral começa a ser aproximar da praça, ficando fortemente
vinculado à Roosevelt, apesar de nunca ter fixado sala por lá. O Cemitério de Automóveis
fora criado na cidade de Londrina (PR), na década de 1980
26
, pelo dramaturgo, diretor e ator
Mário Bortolotto. Depois de uma passagem por Curitiba, o grupo se radicou em São Paulo a
partir de 1996. Em 2003, o grupo chega a se fixar por um período em espaço próprio, o
Teatro Zero Hora, no Bexiga, ao mesmo tempo em que inicia sua relação com a Roosevelt.
A montagem de um texto de Bortolotto, Hotel Lancaster, pelo diretor Marcos Loureiro
(não era uma montagem do Cemitério) estreou no Espaço dos Satyros, em 2003, no
chamado horário alternativo (às terças e quartas), e teve boa repercussão de público e
24
100 motivos para visitar o centro. Folha de São Paulo, São Paulo, Especial, 04 dez. 2002.
25
ONG e teatros mudam paisagem urbana. Folha de São Paulo, São Paulo, Especial, 04 dez. 2002.
26
Criado em 1982 chamava-se Chiclete com Banana, adotando o nome Cemitério de Automóveis a partir de
1987.
196
crítica. O ambiente e os personagens da peça também estabeleceram relação com a imagem
recorrente da praça Roosevelt e de seus personagens: um quarto de hotel barato, em meio
a uma região de tráfico de drogas em São Paulo, por onde passam drogados, traficantes,
travestis, prostitutas...
A partir daí, o Cemitério de Automóveis aparece mais frequentemente ligado às
atividades desenvolvidas na Roosevelt. O grupo era conhecido no meio do teatro e tinha
público cativo, e Bortolotto vinha com reconhecimento no campo teatral, com mais de
quarenta peças escritas, e recentes prêmios (APCA de melhor autor pelo conjunto da obra
em 2000, e Shell de autor por Nossa vida não vale um Chevrolet em 2001). O Cemitério de
Automóveis passa a ser identificado como um dos grupos da Roosevelt e Bortolotto,
personagem emblemático da movimentação teatral e boêmia em torno da praça.
Neste momento, a partir de 2003-2004, a praça Roosevelt se consolidava como
referência teatral na cidade off off Broadway” local, como comumente passou a ser
tratada por muitos jornais e ponto de atração de artistas de teatro, jornalistas, escritores e
boêmios. Em 2005, o Estúdio X, em dificuldades financeiras, seria fechado. Os Satyros
resolvem assumir o local, transformando-o em Espaço dos Satyros 2.
27
Outro marco a ser destacado na ocupação teatral da Roosevelt é a chegada do grupo
Parlapatões, Patifes e Paspalhões, em 2006. O grupo, criado em 1989, também chegou à
praça já consagrado dentro do meio teatral como uma das principais referências da comédia
brasileira. Trabalha com elementos da tradição do circo, centrado especificamente na figura
do palhaço. Inicialmente era um grupo que se apresentava nas ruas e praças de São Paulo,
tendo na sua formação forte relação com expedientes do teatro popular, como a grande
interatividade com o público e a improvisação
28
. Mas a essa base popular, fundem-se
referências do teatro contemporâneo, a meta-teatralidade, a paródia, ironia, citações e
autorreferência”
29
. Quando chegam à praça, possuíam um espaço anterior no bairro de
Pinheiros, estrutura consolidada e vários prêmio no currículo.
Mais tarde, ainda foram abertas mais duas salas, em 2007, o Opera Bufa (nº 82), com
programação musical de MPB e depois se transformou no Teatro Galharufas, de vida
27
GUZIK, A. Op. cit. p. 249.
28
SANTOS, V. Riso em cena: dez anos de estrada dos Parlapatões. São Paulo: Estampa, 2002.
29
KRÜGER, C. Experiência social e expressão cômica: os Parlapatões, Patifes e Paspalhões, 2008. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas. pp. 74-75.
197
efêmera. E o Miniteatro, aberto em 2009, como sede da Cia. De Revista, fundada pelo
diretor Kleber Montanheiro e pela dramaturga Marília Toledo
30
. Existem outras salas em
área bem próxima da Roosevelt, como o teatro da rua Teodoro Baima, ocupado pela
Companhia do Feijão, ou a sala Lucas Pardo Filho, do grupo Ria, na rua Gravataí, ou ainda o
Club Noir, na Augusta mas estas não são normalmente associadas ao “teatro da
Roosevelt”, que se concentra mesmo no quarteirão da Martinho Prado.
Todos os teatros da Roosevelt têm como característica comum o pequeno porte. O
Studio 184 (nº 184), o Teatro do Ator (nº 172) e o Espaço Parlapatões (nº 158) têm por volta
de 100 lugares, palco italiano, saguão e ar condicionado, sendo que os dois primeiros
aproveitaram as estruturas das salas de cinema que antes funcionavam (o do Ator
mantém a tela de projeção e as poltronas originais do Bijou), enquanto o Parlapatões foi
construído pela companhia em um imóvel que anteriormente era ocupado por uma padaria.
Além disto, o Parlapatões tem o maior saguão dos teatros da praça, onde funciona um bar
com um pequeno tablado para apresentações é considerado o melhor teatro da praça, em
questões de infraestrutura. O Miniteatro (nº 108) tem capacidade para 40 pessoas, em um
palco multifuncional, em que blocos de madeira podem organizados em arquibancadas ou
como mesinhas “em estilo cabaré”
31
, há um pequeno bar e um hall superior.
Os espaços dos Satyros têm capacidade média para 70 pessoas em cada uma das salas,
em bancos estofados. O Satyros 1 (nº 214) tem um bar-café no saguão e mais recentemente
conta com ar condicionado, também funciona o escritório da companhia. No espaço 2 (
134), na entrada um sebo e, em 2009, foi inaugurado um restaurante dos fundadores do
grupo com outros sócios.
As salas dos Satyros são descritas por José Simões de Almeida como grandes “caixas
pretas” que podem sofrer algumas modificações em sua configuração de acordo com as
montagens encenadas. O autor destaca também o aspecto de “inacabado” das salas:
“rugosidade das paredes, diferenças de altura do teto, pisos imperfeitos, recortes, vigas de
concreto, entre outras” que dariam uma significação específica de lugar adaptado, que
evoca seus usos anteriores, atuando no processo comunicativo não são lugares “neutros”,
mas trazem sentidos de uma opção estética. Além disso, a configuração dos espaços de cena
30
NÉSPOLI, B. A mesma praça, mas com 7 teatros. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Caderno 2, p. D-3, 13 abr.
2009.
31
Ibidem.
198
não permite, pela dimensão e pela alta rotatividade de montagens, cenografias pesadas de
pouca mobilidade.
32
As características gerais das salas, contrastantes de modo geral com os teatros
grandes e de infraestrutura mais sofisticada, poderiam ser tomadas como um dos elementos
que ajudaram a compor a imagem de “alternativa”, comumente usada para designar a
atividade teatral da região.
33
O aumento e a maior visibilidade dos pequenos espaços de
teatro nos anos 2000, em São Paulo, são tributados a uma maior organização política dos
grupos e o aparecimento de políticas culturais blicas municipais mais consolidadas
voltadas a esse segmento. O movimento “Arte contra a Barbárie” surge em 1998 reunindo
inicialmente os grupos Tapa, Folias D´Arte, Parlapatões, Pia Fraus e Companhia do Latão
com a proposta de discutir a mercantilização do teatro e reivindicar políticas estáveis para a
atividade teatral. Em 2000, realizavam reuniões na sede do Oficina com a participação de
mais de “90 nomes de artistas ou companhias que atuam no teatro paulista”
34
.
No manifesto do movimento, questionavam a omissão dos órgãos públicos que, por
meio de leis de incentivo baseadas na renúncia fiscal, transferiam a responsabilidade do
fomento à produção cultural para a iniciativa privada”. Reivindicavam apoio constante para
manutenção dos grupos, permitindo a pesquisa, programas regionais de acesso do público,
fomento à dramaturgia, política de construção e ocupação regular de teatros públicos e de
apoio a circulação de espetáculos pelo país.
35
Em 2002, foi sancionado pela prefeitura o Programa Municipal de Fomento ao Teatro
para a Cidade de São Paulo, a partir das reivindicações dos artistas e dos debates do poder
municipal com o movimento “Arte contra a Barbárie”
36
. Além da lei de fomento, Almeida Jr.
salienta que no mesmo período (governo Marta Suplicy), houve grande aumento dos
espaços públicos para teatro, principalmente por meio dos Centros Educacionais Unificados
(CEUs). Segundo levantamento do autor, existiam na cidade, até 1999, 42 salas de teatro
públicas (municipal, estadual e federal), e no período entre 1999 e 2004, foram construídas
32
ALMEIDA JR, J. S. Op. cit. p. 156-157.
33
Outros elementos sobre essa imagem serão analisados no capítulo 5.
34
ATORES e diretores debatem falta de ética na cultura. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, 26 jun. 2000.
35
Manifesto Arte contra a Barbárie. Disponível em: http://www.companhiadolatao.com.br. Acesso em: 01.
Fev. 2010.
36
PREFEITA de SP sanciona lei de apoio ao teatro. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, 10 jan. 2002.
199
mais 25 teatros (aumento de mais de 50%), sendo 22 pela prefeitura
37
. No começo de 2005,
com a mudança de governo municipal (gestão José Serra), foi anunciado o congelamento do
edital do Fomento (com risco de suspensão)
38
. Novamente houve grande mobilização dos
grupos teatrais o que fez a prefeitura recuar e dar continuidade ao programa. E ainda mais
recentemente, o anúncio da prefeitura (gestão Gilberto Kassab) de que repassaria
recursos a pessoas jurídicas, o que obrigaria boa parte dos grupos a contratar um
intermediário (segundo interpretação de alguns grupos teatrais, a medida atentaria contra o
princípio da autorregulamentação da Lei), gerou nova movimentação de alguns grupos.
39
A Lei de Fomento permite a inclusão de recursos destinados não apenas a montagens,
mas também voltados para a criação e manutenção de espaços, para a pesquisa,
documentação e divulgação. Possibilitou, assim, a muitos grupos manter espaços próprios e
um trabalho mais regular
40
. Almeida Jr. assinala que nesta retomada recente do teatro de
grupo na cidade, “o lugar teatral passou a ser um dos fatores determinantes na
continuidade do trabalho dessas companhias, tais como os Satyros, Cia. Do Feijão, Pessoal
do Faroeste, Parlapatões, Vertigem e Companhia do Latão, entre outros”
41
.
Assim, a configuração e visibilidade do teatro da Roosevelt também se inscrevem em
um contexto de certa vitalidade do teatro de grupo na cidade de São Paulo. Os Satyros
foram um dos vencedores da primeira edição do Programa de Fomento, em 2002, o que
segundo os próprios fundadores da companhia ajudou a dar mais visibilidade ao grupo, além
da possibilidade de manter o segundo espaço da companhia. Depois disso, tiveram projetos
aprovados em mais três editais 2005, 2006 e 2007 (considerando até a 15ª edição junho
de 2009). O Cemitério de Automóveis foi três vezes contemplado (2002, 2003 e 2005) e o
Studio 184, uma vez (2006). Os Parlapatões foram contemplados quatro vezes (2003, 2006,
2007 e 2009) com o fomento, o que foi fundamental para estruturarem seu espaço na
37
ALMEIDA JR, J. S. Op. cit. Pp. 143-144.
38
CLASSE teatral de SP protesta contra suspensão de auxílio financeiro. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada,
16 mar. 2005. NÉSPOLI, B.Artistas planejam ações de protesto. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Caderno 2, 16
mar. 2005.
39
MONCAU, G. Artistas se mobilizam para defender a Lei do Fomento Cultural. Caros Amigos, São Paulo, n.
155, fev. 2010.
40
Um balanço dos cinco primeiros anos da Lei de Fomento aponta que o programa municipal propiciou uma
grande alavancada do teatro de pesquisa em São Paulo. CAMARGO, I.; CARVALHO, D. A luta dos grupos
teatrais de São Paulo por políticas para a cultura. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.
41
ALMEIDA JR, J. S. Op. cit. p. 175.
200
Roosevelt o grupo também contou com patrocínio da Petrobras
42
. A novata da praça, Cia.
De Revista, foi aprovada na edição mais recente de 2009 do programa do município.
43
As salas da Roosevelt não são usadas somente para os trabalhos dos grupos
proprietários, mas são abertas também a outras montagens. A programação é diversificada,
muitas vezes, usando o que chamam de horários “alternativos” segunda a quarta-feira, ou
mesmo com sessões que adentram a madrugada (depois que a movimentação na praça
consolidou, os horários da meia-noite de sexta e sábado passaram a ser considerados
nobres). Em entrevista a um jornal especializado em cobertura teatral, Ivam Cabral justifica
a diversificação dos horários como maneira de criar um espaço “compartilhado” e sua
fala marca uma distinção entre o teatro que praticam na Roosevelt e o das “grandes
produções”:
Muitas pessoas que trabalham aqui são nossos parceiros, nós não alugamos os
espaços. O Satyros não está para ser alugado, não é essa a nossa intenção. Ele está
aqui para ser dividido e compartilhado. Isso é o que interessa mais para a gente. E
é uma coisa que a gente jogou desde o início da nossa vinda para a Praça, porque,
em dezembro de 2000, o roteiro teatral da cidade era assim: as peças, as
temporadas, eram de sexta a domingo e ainda estava deixando de existir a sexta.
As grandes produções faziam sábado e domingo, porque não tinha público, a
cidade estava muito violenta, muito transito... E quando a gente inaugura, é de
segunda a domingo. E nem sempre a gente tinha público pra ver nossas coisas. (...)
Mas nossa máxima era nunca cancelar um espetáculo, mesmo que fosse uma
pessoa, com um elenco de mais de dez.
44
Ainda recorrendo a dados levantados por Almeida Jr., no período de 1999 a 2004,
somente as salas dos Satyros tiveram uma média de doze a quinze apresentações semanais,
o que corresponderia a cerca de 10% da média de produções em cartaz na cidade.
45
Também vale destacar as atividades educacionais desenvolvidas nos teatros da
Roosevelt, como elemento de atração de jovens artistas e para a configuração da ideia de
polo cultural. O Teatro do Ator é definido pela vinculação com uma escola de formação de
atores. O Studio 184 chegou a oferecer sem regularidade oficinas de teatro, além disso,
costuma abrigar, assim como o Teatro do Ator, produções de artistas iniciantes. Os Satyros,
que vinham com as experiências educacionais desenvolvidas em Lisboa e em Curitiba,
42
KRÜGER, C. Op. cit. p. 118.
43
<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/fomentos/index.php?p=7214.>
Acesso em: 02 fev. 2010.
44
BUENO, R.; MELLO, J. H. Ivan Cabral e a ousadia do recomeço. Jornal de Teatro, Rio de Janeiro, ano I, n. 4,
pp. 10-11, 01 a 15 jun. 2009.
45
ALMEIDA JR, J. S. Op. cit. p. 159.
201
oferecem regularmente oficina em quatro módulos para atores e ainda um curso para
público infantil. Destas oficinas, costumam sair alguns atores que participam de trabalhos da
companhia. Os Parlapatões também possuem regularmente programação de oficinas de
interpretação, comédia, dramaturgia, produção e artes circenses.
Os preços dos ingressos dos teatros da Roosevelt ficam normalmente abaixo da média
dos praticados nos teatros maiores, e equiparados a outras salas de porte pequeno ou de
menor visibilidade e das salas vinculadas a entidades do terceiro setor, que normalmente
subsidiam as produções apresentadas em seus espaços. Para se ter uma ideia, tomaremos
valores mais recentes, de fevereiro de 2010, nas salas mais disputadas da praça (Satyros e
Parlapatões), o preço cheio variava entre 20 e 30 reais, e os Satyros oferecem ainda entrada
fixa a 5 reais para alunos das oficinas e moradores da praça. O Miniteatro oferecia no
mesmo período seu espetáculo a 5 reais. Nos teatros Cultura Artística (Itaim), Sérgio
Cardoso (Bela Vista), Faap e Folha (Higienópolis), Maria Della Costa (Bela Vista), Gazeta
(Paulista), os ingressos inteiros iam de 40 a 70 reais. Musicais “estilo Broadway” chegavam a
240 reais a entrada. As chamadas “temporadas populares” de alguns espetáculos traziam
valores entre 20 e 30 reais. Os espetáculos em cartaz nos teatros do Sesc tinham preços
entre 5 (comerciários associados) e 20 reais. Outras salas pequenas fora da Roosevelt,
concentradas no centro (muitas delas embora não localizadas na Roosevelt, ficam em área
próximas como Augusta e Consolação) e em alguns bairros do vetor sudoeste, como
Pinheiros e Vila Madalena, apresentavam a mesma faixa de preço de 15 a 30 reais
46
.
Boemia teatral
As referências à ocupação da Roosevelt pelos teatros normalmente não destaca
apenas a atividade teatral propriamente, mas toda a movimentação noturna em torno de
bares e outros estabelecimentos comerciais, no quarteirão da Martinho Prado. A festividade
é uma marca forte desta ocupação e dos sentidos construídos para a praça Roosevelt pelos
artistas teatrais nos anos 2000.
46
Os valores foram tomados de vários roteiros de jornal e internet, em fevereiro de 2010.
202
Os bares dos Satyros e dos Parlapatões costumavam atrair grande concentração de
gente. O pequeno café dos Satyros dependia da ocupação das calçadas com mesas. O bar do
Parlapatões já tem um espaço interno maior, que permite a disposição de suas mesas.
Em 2002, uma matéria de jornal destacava que o antiquário Museu do Lar (nº 118),
que funcionava na época havia seis anos na praça, adaptara os horários de funcionamento
para aproveitar o público dos teatros
47
. Com a movimentação artística e boêmia, a loja foi
adaptada também como bar, mas continuou expondo e vendendo objetos antigos foi
chamado Parada Obrigatória e depois Papo, Pinga e Pestisco (PPP), que além de bar expõe e
vende objetos antigos. O bar ainda carrega uma referência simbólica que paira sobre o local:
ocupa o espaço do antigo Djalma´s, onde Elis Regina fez sua primeira apresentação em São
Paulo. O proprietário, Esdras Vassalo (Doca), aparece em reportagem de 2005 com
declaração que eco à ideia de renascimento da praça: "Antes a praça era mal
freqüentada. Melhorou muito". Na mesma matéria, Renato Ortebelli, dono da barbearia e
charutaria Diplomat, que funciona em frente a praça regularmente desde o final dos anos
60, declara: "Isso aqui não tinha mais movimento".
48
Mais recentes na praça, há ainda o La Barca (nº 226), misto de café e restaurante, e o
Repertório Bar (nº 108). Este último, que foi inaugurado em 2006, era caracterizado,
segundo Regina Facchini, como local de predominância homossexual feminina seria o
único local da praça com perfil mais propriamente homossexual da Roosevelt. Além disso,
em comparação com outras casas de concentração lésbica do centro analisada pela autora,
o Repertório seria um pouco mais sofisticado, característica que se expressa inclusive na
programação musical de MPB em contraste com os estilos mais populares e comerciais
comuns das outras casas. Facchini identifica que este perfil do Repertório “parece estar sob
o impacto de estratégias de ‘revitalização’ do centro da cidade, assim como a multiplicação
de bares e teatros na praça”
49
. Nas proximidades, há ainda outros bares que também
costumam funcionar como uma continuação da Roosevelt, principalmente nas ruas Augusta
e Martins Fontes.
47
TEATROS ajudam....Op. cit.
48
SANTOS, V.; FIDALGO, J. Op. cit.
49
FACCHINI, R. Entre umas e outras: mulheres, (homo) sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo,
2008. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas (SP). p. 115.
203
O livreiro e editor Anselmo Luís Santos, mais conhecido como Bactéria, montou no
começo de 2004 uma barraca itinerante de venda de livros em frente ao Satyros. Mais tarde
com a abertura do Espaço dos Satyros 2, ele passa a ocupar parte da entrada do teatro,
onde abre o Sebo do Bac
50
. Em 2007, os artistas gráficos Gualberto Costa e Daniela Baptista
abriram no quarteirão da Martinho Prado a livraria HQMix (nº 142), especializada em
quadrinhos, e antes mesmo de ser inaugurada recebe tratamento como referência para
cartunistas, quadrinistas e “seguidores fieis” dos gêneros. No Jornal da Tarde, matéria no dia
da inauguração da loja traz uma fala de Gualberto que também reforça os laços da loja com
o ambiente cultural da Roosevelt: “A livraria é a cara da praça e a praça é a cara dela. A
gente nem ia abrir a loja antes da inauguração, mas foi muito legal. O pessoal que veio ver
as peças entrou para conhecer, comprou bastante”
51
. O funcionamento da livraria também
costuma acompanhar os horários noturnos dos teatros e de eventos realizados na região.
No mesmo quarteirão, ainda uma loja-ateliê de peças artesanais em mosaicos (nº 138).
Também funcionaram uma locadora de filmes raros e uma floricultura.
A figura das mesas nas calçadas tem forte significação dentro do projeto de ocupação
da Roosevelt pelas companhias teatrais. diversas referências a esse assunto em
entrevistas de integrante dos grupos de teatro locais. Tomando aqui o depoimento de Ivam
Cabral para o site de registro memorialístico Museu da Pessoa, ele afirma que dar
visibilidade à presença deles ali era um projeto político da companhia, para atrair gente e
dar novos usos e sentidos ao espaço. Conta que chegaram, muitas vezes, a manter a sala e o
bar abertos até três horas da manhã, sem ninguém lá, só para marcar presença, colocar uma
“luz” na praça.
Acho que quando você olha pra praça Roosevelt, hoje quando tem mesinha na
calçada, quando tem é uma coisa, quando a luz acesa é uma coisa; quando não
tem mesa na calçada, quando a luz tá apagada é outra coisa; quando a gente sai de
férias no final do ano (...) a gente chega lá e tá tudo escuro, roubaram os fios.
52
50
Dados tirados da minibiografia que consta em: SANTOS, A. Bactéria” (org.). Brothers cactus: contistas da
Roosevelt. São Paulo: Alaúde/EraOdito, 2006. p. 109.
51
UMA livraria em quadrinhos. Jornal da Tarde, São Paulo, Variedades, 26 out. 2007.
52
Depoimento de Ivam Cabral ao Museu da Pessoa, São Paulo (não há indicação da data de coleta do
depoimento). Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/depoimento
Depoente.do?action=ver&idDepoenteHome=15924>. Acesso em: 01 mar. 2010.
204
Assim, a ocupação noturna das calçadas é tomada como fator para garantir segurança
e aprazibilidade ao local. Esta boemia explícita, tomando o espaço público, é tida como um
dos pontos principais de conflitos entre artistas/frequentadores e moradores dos edifícios. A
ideia do incômodo público associado à quebra das leis sobre silêncio ganha vulto, com
insinuações, da parte de alguns artistas, que o problema dos ruídos é pretexto para
cerceamentos de ordem moral. registros de reclamações constantes, por parte de
moradores, sobre barulho e casos sobre como a ameaça do Programa de Silêncio Urbano
municipal (o PSIU) faz a dinâmica boemia sofrer mudanças: mesas que são levadas para o
palco do Satyros I, portas das salas são fechadas, denúncias de que alguns moradores dos
edifícios atiravam água e objetos pela janela nos frequentadores nas calçadas etc. No blog
de Rodolfo Vázquez um texto que se refere a retirada das mesas das calçadas, como a
quebra de um espaço do livre pensar:
Durante anos usamos as calçadas da Praça Roosevelt, para sentar, conversar,
beber, fazer projetos, discutir questões sociais, políticas, estéticas. Durante anos
muitas pessoas se utilizaram das nossas mesas nas calçadas para resgatar uma
pequena ágora, uma cidadania tão ofuscada por uma realidade violenta e cruel. E
durante esses anos, a Praça vicejou, lançou seus novos paradigmas, propôs uma
nova relação com o entorno social. As mesas na calçada fazem parte da nossa
estética, já dissemos isso mil e uma vezes.
Então a lei adormecida, e que sempre existiu durante esses anos todos, acordou e
rosnou contra nós. Arrancaram nossas mesas e cadeiras e nos deixaram sem
calçada, sem piso.
53
A boemia, prática que costuma acompanhar as movimentações artísticas várias ao
longo da história, no caso da Roosevelt, não é exatamente uma consequência, mas é
apresentado parte de uma concepção de relacionamento entre arte, artistas e espaço
urbano. Para configurar uma dinâmica de polo de cultura, a afluência constante de pessoas
é elemento importante, e as práticas boêmias ajudam a atrair e a formar vínculos, além de
servirem de estímulo criativo. Michel Maffesoli observa que os atos de despender tempo
livre, de se sentar em grupo à mesa, de beber, de comer funcionam como laços
comunicacionais: ritualizam e estetizam o cotidiano, compondo o quadro da teatralidade
social, que está na base da socialidade.
53
VÁZQUEZ, R. G. A lei das calçadas. In: De olhos sempre abertos (blog), São Paulo, 02 nov. 2007. Disponível
em: < http://olhossempreabertos.zip.net/arch2007-10-28_2007-11-03.html>. Acesso em: 10 mar. 2009.
205
Se a mesa pode ser o lugar onde se constituem as mais sólidas amizades e os mais
suaves laços afetivos, também é o lugar onde explodem e exprimem-se as mais
ferozes discórdias. Em torno da mesa, podemos nos amar ou nos dilacerar; em
suma, a mesa é o trono do ambíguo e perturbador Dionísio. Os efeitos do vinho,
que ele oferece aos homens, são muito variados e totalmente imprevisíveis.
54
Gente de teatro, ou com pretensões de, passa a ser atraída a frequentar salas e bares
da região, como possibilidade de estabelecer contatos. Os grupos Satyros e Cemitério de
Automóveis tiveram como uma de suas marca a assimilação de indivíduos de sua
convivência, em suas produções, tanto no elenco, como na equipe técnica ou de produção,
em alguns casos, mesmo sem experiência anterior. Muitos não-atores e não-técnicos foram
convertidos em atores e técnicos, em função da proximidade com as companhias. Conta
Rodolfo Vázquez sobre uma montagem que realizaram ainda no tempo do Teatro Bela Vista:
“acho que 90% do elenco nunca tinha pisado no palco, eram pessoas que circulavam no
Teatro Bela Vista, como agora tem muito também na Roosevelt. Atores, atrizes, pessoas
que ficam ali no bar, ficam em volta, e que vão se aproximando”
55
. Na convivência da
boemia local, também surgiram muitos projetos de montagens, formação de grupos etc.
Esta dinâmica inicial que se instituiu em torno da Roosevelt em um primeiro
momento talvez lembre um pouco o universo da Boca do Lixo, com relação à produção
cinematográfica. Lá, nos idos dos anos 70, era comum diretores e produtores levarem para
as equipes dos filmes frequentadores constantes de bares da rua do Triunfo, como eram
muitas vezes nas mesas destes mesmos bares que nasciam novos projetos, levantados a
toque de caixa, estabelecendo, segundo o pesquisador do tema Nuno C. P. de Abreu,
“relações de trabalho solidárias e primitivas”
56
.
54
MAFFESOLI, M. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e socialidade. Porto Alegre:
Sulina, 2009. p. 93.
55
GUZIK, A. Op. cit. p. 93.
56
ABREU, N. C. P. Boca do Lixo: cinema e classes populares, 2002. Tese (Doutorado em Multimeios) Instituto
de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP). p. 46.
Para evitar equívocos, esclareço que a comparação se no ponto indicado acima do fluxo entre relações
profissionais e boemia. A rua do Triunfo era um polo de produtores (Abreu chama o cinema da Boca do Lixo de
um “movimento de produtores”), com finalidades assumidamente comerciais, ligado à produção de filmes
voltados principalmente a público mais popular, exibidos nos grandes cinemas do centro o que não quer
dizer que inventividades próprias não tenham nascido desta cinematografia, e que ela pode ser lida dentro de
uma zona de resistência a outras formas hegemônicas de cinema.
Vale também observar que sobre o cinema na região de Santa Ifigênia não referências que indiquem que a
atividade cinematográfica tenha operado mudanças significativas na configuração do “submundo” local, e nem
que tiveram qualquer pretensão neste sentido, mas o que parece ter acontecido é que o movimento do
cinema da Boca se assentou espontaneamente à cultura local.
206
Ivam Cabral conta no livro de memórias que desde 2003 passaram a dar festas no
Satyros: “eram animadíssimas, aconteciam semanalmente. Muitos artistas de São Paulo,
escritores, músicos, atores e diretores de várias companhias começaram a se sentir atraídos
por nosso espaço e passaram a frequentar a Praça Roosevelt em noites muito lindas”
57
.
Também fazem referências à comemorações de fim de ano, com amigo secreto, bebedeiras
e “loucuras mil”
58
. Já desde a abertura da sala, em 2000, organizavam com freqüência
apresentações musicais no bar do teatro.
As festas e os eventos tiveram grande papel para atrair movimentação para praça. A
principal delas é a Satyrianas. Segundo Ivam e Rodolfo, a ideia nasceu ainda quando
ocupavam o Teatro Bela Vista, em 1991, ao acaso. Conta Ivam que eles tinham ganhado de
um amigo uma agenda cheia de telefones de figurões do teatro, da música, da televisão, e
que de brincadeira resolveram passar alguns trotes. Numa destas ligações, para a cantora
Vanusa, ele fingiu que era um produtor que queria contratá-la para cantar Manhãs de
setembro, andando por ruas do Bexiga para saudar a primavera. Diante da concordância
animada da cantora, ele resolveu de fato organizar o tal evento. Começou a ligar, desta vez
seriamente, para outros nomes da tal agenda, e montou uma programação de 24 horas de
atividades, entre apresentações, performances e debates, que batizaram de Folias Teatrais.
Conta Rodolfo:
A gente não sabia o tamanho que ia tomar o evento. Foi quando veio a Globo com
O Mauricio Kubrusly, link ao vivo e tudo, a TV Cultura, uma doideira. A rua estava
de um jeito que não passava carro, não dava para andar. Parada, de tanta gente ali.
E não sabíamos o que fazer. A gente nunca mais conseguiu reproduzir, nem na
Roosevelt, o que aconteceu na Major Diogo.
59
Em 2002, organizam as primeiras Satyrianas na praça Roosevelt. O evento é uma
espécie de festival com programação ininterrupta, em ambiente festivo, que evoca, em
ambiente metropolitano pós-moderno, as antigas festas ritualísticas gregas a Dionísio. Na
Grécia Antiga, somente nestas festas (eram três ao todo), as representações teatrais podiam
57
GUZIK, A. Op. cit. p. 232.
58
Idem.
59
Ibidem. p. 98.
207
acontecer. As Grandes Dionisíacas, ou Dionisíacas Urbanas, segundo Roland Barthes,
aconteciam em Atenas, na entrada da primavera, e duravam seis dias.
60
.
As Satyrianas reforçaram a ligação teatro e celebração. Passaram a ser organizadas
anualmente entre os meses de outubro e novembro, com duração de 78 a 80 horas. A
primeira edição do evento, produzida “a toque de caixa”, conta Ivam Cabral, teria sido
fundamental para dar mais visibilidade ao grupo, pois ainda não se sentiam totalmente
inseridos na classe teatral paulistana.
61
O festival traz a cada edição um grande número de artistas de São Paulo e de outras
cidades, além de um público não habitué dos teatros da praça. Em 2007, por exemplo, o
público que passou pelas Satyrianas tinha superado 30 mil pessoas, segundo
levantamento dos organizadores. Não existe ingresso fixo para as atrações da Satyrianas, as
entradas são abertas, e cada espectador decide quanto pode pagar.
A cartografia dos espaços participantes da maratona também ultrapassou o limite da
praça Roosevelt em 2009, por exemplo, havia atrações programadas em salas localizadas
na Vila Madalena e no bairro do Sumaré, com direito a transporte gratuito entre a Roosevelt
e estes locais. As atividades do festival não são apenas teatrais, tiveram apresentações de
música, debates sobre cultura e política, mostras literárias, de cinema, apresentações de
skate, exposições fotográficas, performances, instalações artísticas, homenagens, entre
outras. Ocupam espaços fechados, como também parte da rua e da praça. Desde 2007,
criaram o Dramamix: em uma tenda na praça são encenados, sem interrupções na
programação, textos de autores consagrados e estreantes produzidos para o evento. São
texto curtos, em montagens cenicamente simples, normalmente não contam com muito
ensaio o objetivo é mais a apresentação do texto do que o preparo da encenação, algumas
apresentações são mais uma leitura dramática do que uma montagem.
Em 2005, durante as Satyrianas, nasceu o Show de Boate, atração que sobreviveu por
algum tempo fora da programação do festival. Ivam e Rodolfo contam que os espetáculos
eram inspirados em shows de boate e cabaré: “um happening que explorava a estética dos
travestis, o shows de dublagem nas boates gays, o exagero das formas e das cores, as
revistas musicais dos anos 50 com seus esquetes cômicos”. Alberto Guzik, ex-crítico teatral
60
BARTHES, R. O teatro grego. In: ______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990.p. 68.
61
GUZIK, A. Op. cit. p. 223.
208
que retornou aos palcos e se integrou aos Satyros, era o mestre de cerimônia do show de
variedades bizarras. Ao final de cada sessão, atores pornôs faziam uma apresentação de
sexo explícito. Segundo Ivam Cabral, o Show de Boate atraía muito público: “o louco é que
nunca divulgávamos esse trabalho na imprensa. A gente resolvia fazer, e no sábado
apresentávamos. E era uma loucura a disputa por ingressos. Todo mundo se batendo na
bilheteria para conseguir um lugar na platéia”.
62
A inauguração do Espaço Parlapatões é também exemplo da ritualização das
atividades dos grupos teatrais na praça Roosevelt. Conforme relato de Cauê Krüger, que
acompanhou o evento e o relata em sua dissertação sobre a companhia, no dia 11 de
setembro de 2006 os integrantes da trupe saíram de seu espaço, trajando roupas de palhaço
e carregando um grande avião inflável faziam alusão ao atentado às torres de Nova York e
à falência da Varig brasileira. Eram aguardados por atores dos Satyros, também em trajes
cênicos, que derramaram açúcar em uma jarra colocada em frente ao Espaço Parlapatões,
simbolizando os vizinhos que dão boas-vindas aos recém-chegados. Depois deste happening,
houve leituras, apresentações dramáticas e musicais.
63
Na rotina dos teatros da praça, são muito comuns eventos os mais variados sobre
teatro, debates, saraus, leituras, lançamentos de livros etc. O Espaço dos Satyros sediou até
2007 a FLAP!, evento literário organizado inicialmente pelo centro acadêmico da curso de
Letras da USP e outros escritores e poetas, que se propunha ser contraponto à FLIP (Festa
Literária de Paraty), considerada uma festa mais do mercado editorial do que dos autores e
da literatura. Os Parlapatões também organizam com alguma regularidade concursos de
poesia.
Em 2008, a grife DASPU, da ONG Dadiva pelos direitos das prostitutas, fez um desfile
em plena Roosevelt, numa parceria com os Satyros. Além do desfile, houve ainda a
performance da atriz Paula Cohen, que vivia a personagem da prostituta Neusa Sueli da peça
Navalha na carne, de Plínio Marcos, e a apresentação de um espetáculo teatral baseado em
relatos de prostitutas.
64
62
GUZIK, A. Op. cit. p. 256.
63
KRÜGER, C. Op. cit. p. 136.
64
DASPU mostra em SP coleção criada por jovens estilistas. Beijo na rua, Rio de Janeiro, 17 jun. 2008.
Disponível em:< http://www.beijodarua.com.br/>. Acesso em: 12 dez. 2009.
209
O “pedaço na cidade, no papel, na rede
Sister Morphine
Tem dias em que é impossível andar por aqui.
Nos dias em que você está bem de saco cheio, não quer saber de amor, amizade, camaradagem,
nada dessas coisas positivas.
E existem dias em que você também não está a fim de conversar, de sentar-se à mesa do bar e
falar sobre tudo de que você gosta e não gosta. Há dias em que você não está para ninguém.
Nesses dias, corra daqui.
Porque aqui vivem os Brothers Cactus. E eles são espinhosos. Quem deu esse nome pro livro?
Paulo de Tharso, o “Picanha”.
Ele explicou pra quem quisesse ouvir (e pra quem não quisesse também): “Já esteve no deserto?
Moribundo de sede? Então você encontra um cactus e ele pode te salvar. Porque ele tem água
dentro e isso é tudo que te falta. Mas, meu caro, terás que machucar as mãos nos espinhos,
senão nada de água”. E completou: “Você já abraçou um cactus?”.
Eu já, Paulo de Tharso. Nessa mesma Praça. A Roosevelt.
Sabe aqueles caras que negociam em guerras? Aqueles caras da ONU, os mediadores de conflito
ou algo assim? Eu tenho um conselho pra eles: façam um estágio na Praça Roosevelt. Poucos
lugares no mundo são tão tolerantes quanto a Roosevelt. Tolerância não no sentido de covardia.
De concessão. Não isso é um erro.
Esses caras que você vai ler daqui a pouco (entre eles uma menina) são bem certos do que
querem. Não se deixam levar pela primeira carona que aparece. São do tipo que escolhe suas
caronas. Porque não saem fácil daqui. Porque sabem que fora rola uma guerra sanguinária,
vaidosa e enjoada. E eles querem a paz que um travesti e uma senhora católica pegando o
mesmo elevador podem te proporcionar. (...)
Quem é melhor que quem na Roosevelt? Diga você. Escolha se for capaz. Aqui é o lugar onde
pessoas de credo, extrato bancário, biblioteca e manequim totalmente diferentes convivem sem
fugir.
O que você vai ler agora é uma dose sem gelo dessa Praça onde as pessoas são livres. Eu caio por
terra, perco a razão, perco a vergonha e quase morro de sede.
Mas eles me têm como sua irmãzinha morfina. Eu sei que, de vez em quando, é a mim que eles
recorrem. E eu sei que, se estiver morrendo de sede no deserto, eles virão com seus textos, suas
longas conversas, suas generosas doses e seus espinhos.
E esses últimos, sim, fazem tudo valer a pena.
O texto, assinado pela atriz Fernanda D´Umbra, do Cemitério de Automóveis, funciona
como prefácio de um livrinho lançado em 2006: Brothers Cactus contistas da Roosevelt. O
livro é composto por 18 pequenos contos/crônicas de autoria de frequentadores da praça. O
organizador do volume é Anselmo “Bactéria” Santos, do sebo que funciona no Satyros. A
dedicatória é para Phedra D. Córdoba. Não referência explícita à praça Roosevelt em
todos os textos do volume. Em termos literários, parecem-me desiguais. No entanto, mais
do que destacar questões estéticas e formais, o interesse aqui está na proposta que
transparece em sua confecção: o livro como uma reunião de amigos para celebrar a praça e
a amizade o que o título e o texto de abertura, transcrito acima, explicitam.
210
Tomando ainda o texto de Fernanda D´Umbra, ali alguns pontos da caracterização
da praça Roosevelt pelo grupo de artistas. A imagem principal é a de um lugar de amizades
verdadeiras, para isso a figura central dos “irmãos cactus” espinhosos por fora, na
aparência, na relação mais superficial; fontes da vida por dentro, para os que conseguem
chegar a seu interior. Também o sentido do local como um espaço de tolerância a
convivência de “pessoas de credo, extrato bancário, biblioteca e manequim totalmente
diferentes” ou ainda a referência sobre “a paz que um travesti e uma senhora católica
pegando o mesmo elevador podem te proporcionar”.
Este último faz referência a um episódio várias vezes recontado por artistas e
frequentadores dos teatros locais. Em 18 de fevereiro de 2005, o blog de Ivam Cabral exibia
no título de um post: “Ontem a praça Roosevelt amanheceu em festa”. O texto trazia a
narrativa sobre o aniversário da travesti Marcinha, que morava no prédio onde funciona o
Satyros. “Amada pelos moradores da Roosevelt, Marcinha teve direito a 2 bolos” preparados
por moradores de prédios da praça, um, por três mulheres na faixa dos 60 anos, outro, por
um casal que vivia “no único prédio elegante da praça”. Marcinha teria sido “ovacionada”
por seus “fãs confessos”, moradores e artistas da praça Roosevelt. Cabral ainda ressalta que
a protagonista deste relato era a princípio arisca, e que naquele momento ela tinha amigos
na praça, como o próprio autor do texto e dona Rosa, “católica fervorosa, ex-professora do
Colégio Caetano de Campos” caracterização desta última personagem ganha contraste
com a observação de que a transexual “não esconde de ninguém que é ‘garota de programa’
e que se utiliza da prostituição para a sua sobrevivência”. Há ainda no texto a declaração de
que Marcinha carregava um sentimento de inadequação, de não pertencimento à
“sociedade”, mas que a mudança de sua postura seria tributada ao próprio ambiente da
praça “porque foi impossível pra ela não perceber que aquele povo, ali na praça, era tão
outsider como ela”. E mais um reforço à ideia de local de assimilação, de tolerância no
fechamento do texto: “enquanto subia para o meu escritório vim pensando... Essa praça não
existe; estou vivendo um sonho. Ou seria um pesadelo???”.
65
A praça Roosevelt é então apresentada como local de florescimento do sentimento de
pertencimento, mesmo para aqueles que normalmente vivem o desenraizamento. Local de
65
CABRAL, I. Ontem a praça amanheceu em festa. In: Terras de Cabral (blog), São Paulo, 18 fev. 2005.
Disponível em: http://terrasdecabral2.zip.net/arch2005-02-18_2005-02-19.html . Acesso em: 10 set. 2009.
211
laços afetivos bem amarrados, mas são vínculos de consistência bem urbana, no sentido da
convivência da diferença, de multiplicidades, da assimilação dos que vivem na sombra, de
fusão. A capa do livro Brothers Cactus traz uma ilustração de Paulo Stocker que nos uma
perspectiva “de dentro” do movimento diversificado da rua, um ambiente de feição bem
cosmopolita. Stocker chegou ainda a produzir vários cartuns intitulados “Praça Roosevelt”,
a praça é sempre sintetizada no quarteirão dos teatros, como se o olhássemos a partir da
própria praça, valoriza o desenho dos edifícios e o movimento da rua. As calçadas são
tomadas, animadas, como também os apartamentos vistos pelas janelas uma grande
vitalidade e interação entre as diversas figuras que compõem os desenhos. Em um dos
cartuns, no céu acima dos edifícios avista-se um grande globo terrestre a Roosevelt é um
mundo à parte?
O escritor Marcelo Mirisola, que morou nesta época na praça Roosevelt (na “quitinete
de marfim” que dá nome a uma coletânea de crônicas
66
) fez parte deste grupo de
frequentadores, colocou diversas referências ao local em seus livros. Em Animais em
Extinção, lançado em 2008, a praça é o local principal das memórias do protagonista.
Mirisola faz uma literatura confessional, seu narrador-protagonista é o escritor Marcelo
Mirisola e suas lembranças costumam não economizar em figuras sórdidas e um humor que
podemos genericamente chamar de “corrosivo” (a subversão se dá principalmente pela
exposição exagerada de certas banalidades). Neste clima, a praça Roosevelt aparece em
Animais em Extinção como um tempo, um tempo perdido (o personagem não morava
mais na Roosevelt no momento da rememoração, nem mais em São Paulo, vivia no Rio de
Janeiro) e que deixa marcas no protagonista. Obviamente, é inútil tentar separar aí o
ficcional do biográfico. Assim, vamos apenas pescar algumas destas narrativas da praça
construídas no livro de Mirisola.
A “madeleine” de Mirisola não é açucarada, mais precisamente ele a descreve como
sua “Sherazade às avessas”: suas memórias fragmentadas são contadas a uma menina
prostituta em um flat em João Pessoa. A primeira lembrança é sobre o seu “filho”: “Se eu
tiver que lembrar da Praça Roosevelt, e quiser fugir dos pleonasmos, a melhor lembrança vai
ser o único filho que conseguir fazer nessa minha merda de vida”. Um filhote panda, de
pelúcia. Presente que dera a travesti Paloma Holliday, durante um café no La Barca “o
66
MIRISOLA, M. O homem da quitinete de marfim. Rio de Janeiro: Record, 2007.
212
traveco gostou do Panda, e eu comprei o bichinho pra ele”. Agradecida, Papi (apelido de
Paloma) disse que era o filho deles, da travesti com o escritor. “Claro que é uma aberração.
Não podia ser diferente do meu amor: ele é a cara da Roosevelt”.
67
Nas memórias de infância do narrador, a Roosevelt e a Augusta com seus “bataclãs”
representavam para o menino de Alto de Pinheiros um ato de “subverter o que por natureza
era apodrecido. Era ser romântico, ora bolas”
68
. O romantismo da iniciação, do ser
seduzido, de imaginar, do momento em que começam a trincar as cascas do “garoto
mimado, filhinho de papai”. Voltar à Roosevelt coincidia com voltar a São Paulo o
personagem passara por vários lugares, de Santa Catarina ao Amapá. E a partir daí costura a
ideia de sua única experiência de enraizamento, ou quase. Amigos e inimigos, mulheres
fogosas, mulheres “arquétipos”, mulheres que o intrigaram, amores que vinham e esvaiam.
Personagens que são super-expostos nas memórias que não poupam infâmias, mas há
também deferências mesmo que em alguns casos meio tortas. Mário Bortolotto aparece
como figura de mais consistência neste processo de rememoração da praça, uma
reverência no seu tratamento, que talvez possa ser lido como a descoberta do sentimento
de admiração por parte do narrador iconoclasta.
Dos travestis, o narrador também não poupa os elementos sórdidos. Papi, a mãe de
seu filho panda, o velhinho de bengala e peitões da Augusta e Fofão, travesti-mendigo
agressiva que catava comida nos latões da Roosevelt e que fora um maquiador muito rico,
que promovia orgias regadas a na rua Grécia, das quais participavam celebridades e
políticos um ex-presidente que “fazia questão de desfilar de baby-doll nas embaladas
festas da bicha”. Phedra de Córdova (assim mesmo) aparecia como a única que tinha a
admiração do narrador, “traveco na medida certa”, amante de generais, íntima de Foucault
e Barthes, fez shows em cassinos “do Rio da época de ouro”: “Phedra é o elo perdido entre
os bataclãs que deviam satisfações ao garoto transido de falecimentos e o adulto travado
em que me transformei”
69
. ainda a própria descoberta do teatro “minha primeira e
última experiência no teatro (antes do Cemitério...) ficou por conta das coxas da Matilde
Mastrangi”
70
.
67
MIRISOLA, M. Animais em extinção. Rio de Janeiro: Record, 2008. pp. 11-12.
68
Ibidem. p. 15.
69
Ibidem. p. 134.
70
Ibidem. p. 22.
213
Enfim, a praça Roosevelt de Mirisola é o próprio sentimento de pertencimento do
narrador ou a lembrança dele. Ou ainda da capacidade de enternecimento pela projeção do
poderia ter sido: “sou um solitário por excelência. O fruto revirado em si mesmo. O pinote,
enfim. Aquele que vai embora antes que seja tarde demais. Antes de ser feliz demais”
71
.
A ideia de acolher os que não se sentem pertencidos é uma marca forte deste
imaginário sobre a praça. Ainda recorrendo à figura das travestis, e sua força expressiva no
contexto, outro episódio constantemente recontado é a do suicídio da travesti Camila, que
se atirou pela janela do apartamento e caiu sobre a calçada em frente à praça. No episódio,
a personagem que talvez não tenha conseguido resolver seu sentimento de inadequação
ganha acolhimento mesmo depois de sua morte. Mário Bortolotto, no seu blog, na época do
acontecido:
Camila pulou ontem do sexto andar do prédio em que morava. Camila pulou nua lá
de cima. Seu corpo precipitou do alto e terminou inerte na calçada em frente o “La
Barca”. Seu corpo nu e que ela devia achar estranho, apesar de belo. Sei lá. O
Alemão ficou velando o corpo dela. Pediu um lençol para o porteiro do prédio para
cobrir o corpo nu da garota que havia explodido na calçada. O cara negou.
Entenderam? O cara negou. Quem são essas pessoas, Jack? Jarbas passou e viu
Camila na calçada. Mirisola veio tomar café e viu Camila na calçada. Fiquei sabendo
pelo blog do Jarbas.
72
A história foi comentada em diversos blogs de artistas e frequentadores locais, como
explicita o texto de Bortolotto no livro dos brothers cactus, sobre o episódio um conto
assinado por Ivam Cabral, originalmente publicado em seu blog. As travestis como
representação do sentimento urbano de inadequação ganham simbologia própria no
desenho imaginário dos frequentadores da praça, e Phedra D. Córdoba, a transexual
cubana, é um dos grandes símbolos desta identificação. Em seu blog, Phedra comenta sobre
seu retorno a Cuba para a apresentação da montagem Lis, do escritor cubano Reinaldo
Montero, pelo Satyros: “ao ministro da cultura cubana me felicitó beijando a minha mão
dicendo orgulho conhecer a cubanita a diva da praça Roosevelt!
73
.
Dentro do projeto artístico de ocupação da Roosevelt, aquelas figuras “desviantes” do
imaginário da degradação passam a ter um papel central, pelo menos, para a estruturação
71
Ibidem. p. 12.
72
Retirado do livro de compilação de textos do blog de Mário Bortolotto: BORTOLOTTO, M. O Adeus de Camila.
In: ______. Atire no dramaturgo. Londrina: AtritoArt, 2006. p. 181.
73
CÓRDOBA, P. D. Em paz. In: Blog da Phedra, Diva Automática, São Paulo, 19 set. 2008. Disponível em:
http://phedra.zip.net/arch2008-09-14_2008-09-20.html. Acesso em: 10 mar. 2010.
214
das narrativas. A convivência com esses degradados em especial, a figura das travestis é
o que daria certa consistência moral aos frequentadores do lugar. A presença das travestis
em relatos, de caráter factual ou assumidamente ficcional, foi constante na definição da
relação entre artistas e a praça Roosevelt. Afirmações de que a convivência com travestis é
algo trivial são muito recorrentes em entrevistas, textos literários, peças, blogs etc. Esta
ênfase pode ser lida como um processo de construção discursiva, de forte estetização do
cotidiano, por meio da valorização de situações carregadas de lirismo ou humor.
Relatos sobre as idiossincrasias de caráter tolerante são muito comuns e valorizadas,
revelando outros personagens além das travestis. Reproduzo, como exemplo, um episódio
narrado por Alberto Guzik em seu blog, que carrega esta intenção:
Hora do almoço. O La Barca cheio. E a velhinha surda da primeira mesa diz pra
Isabel, bem alto (ela sempre fala tudo bem alto): "Isabel, hoje eu fui fazer pipi e
ardeu muito. A sua arde também?" Os clientes ao redor param de falar pra prestar
atenção. A Isabel, encabulada, mas divertida, responde: "Não senhora, a minha
não arde". Uma cliente aconselha: "A senhora tem que tomar mel". A velhinha
surda se assusta: "O que? Tem que passar mel?" Isabel responde: "Não senhora,
não tem que passar mel lá. Imagina." uma gargalhada e continua: "É pra
senhora tomar uma colherinha de mel. Tem que tomar o mel, entendeu? Diz que
ajuda". E a Isabel, que agora no trabalho usa uniforme, e não mais aquelas blusas
decotadas de que gosta, mas nem por isso perdeu a sensualidade felliniana, ri de
fazer gosto. E os clientes do La Barca, sorrindo, continuam a almoçar como se
nada. Coisas da praça Roosevelt.
74
Retomando agora o texto Sister Morphine, do início deste tópico, ainda o reforço
na afirmação de princípios dos “brothers cactus”, de uma atitude mais autêntica, menos
volátil. E, com isso, faz a demarcação de um lado de dentro e o “lá de fora”, este, lugar de
uma “guerra sanguinária, vaidosa e enjoada”. Então, embora a ideia da tolerância a
sustentação deste imaginário, as figuras apontam não para margens embaçadas, mas para a
existência de fronteiras traçadas. O lado de fora constantemente é apresentado como
intolerante e preconceituoso e os artistas mais despojados são frequentemente tomados
como alvos deste preconceito a relação conflituosa, por exemplo, com alguns moradores é
muitas vezes apresentada nestes termos. Outra marca disso é a distinção dos artistas da
praça pela forte dedicação ao trabalho, afirmações como “gente que rala pelo teatro”,
74
GUZIK, A. O mel e a velhinha surda no La Barca. In: Os dias e as horas blog do Alberto Guzik, São Paulo, 08
jul. 2008. Disponível em: < http://os.dias.e.as.horas.zip.net/arch2008-07-06_2008-07-12.html>. Acesso em: 30
mar. 2010.
215
“matar um leão por dia” não são exatamente raras na definição do ofício do ator, pelos
próprios atores.
Do lado de dentro, a valorização do descolamento de certos valores mesquinhos
que marcariam o lado de fora. No conto Winner na Praça Loservelt, Mário Bortolotto
explica:
Em São Paulo talvez seja o maior ponto de encontro de perdedores natos:
Dramaturgos que insistem numa temática desagradável, poetas que insistem em
escrever poesia e por isso podem ser considerados perdedores profissionais,
escritores venerados pela crítica e sem dinheiro pra comer uma esfiha, diretores de
curta-metragem em digital (nunca em película, e notem que eu disse “curta-
metragem”) e atores e atrizes de peças experimentais. Gente que nunca vai ganhar
um crachá de VIP em nenhuma festa importante, a não ser que mude de vida
urgentemente.
75
E para reforçar ainda mais um certo “romantismo” na caracterização personagem
típico da praça Roosevelt, ao final do conto, fica a associação entre o desprendimento do
loser e os momentos de felicidade espontânea: “nós ficamos por ali, tomando aquele vinho
vagabundo e falando de literatura e alucinações. Depois voltei a pra minha kitchenete e
ouvi a coletânea do Ronnie Lane. Eu sequer tenho carro e nunca me preocupei com IPVA. A
vida me parece boa. Bem boa”
76
. Outro trecho, agora de uma crônica de Miguel do Rosário,
publicada em seu blog, também expressa essa imagem de uma certa autenticidade nas
relações e nos frequentadores da praça:
Neste sábado, o re-lançamento dos livros do Mirisola reunião de uma cambada de
escritores na praça Roosevelt. Legal observar o pessoal se encontrando sem
objetivo determinado, sem pretensão de criar nenhum “movimento”, sem
compromissos mútuos, apenas o prazer e a liberdade de estar juntos, tomar umas
geladas, e fazer o velho e bom tráfico de idéias o que alguns também
denominam “filosofar”, ou simplesmente “falar merda”.
77
Observe que as caracterizações não se dão somente pelo que estes artistas são, mas
também e muito pelo que não são. A ocupação da praça Roosevelt por artistas e
boêmios nos anos 2000 ganha consistência justamente com a formação de uma certa ideia
de irmandade ou confraria ou ainda poderíamos usar o neologismo “brodagem” cujos
75
Texto que integra a antologia: LEITE, Ivana Arruda (org.). 35 segredos para chegar a lugar nenhum: literatura
de baixo-ajuda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 113.
76
Ibibem. p. 116.
77
ROSÁRIO, M. De novo na Roosevelt. In: Hell Bar (blog), Rio de Janeiro, 23 jul. 2006. Disponível em:
http://hellbar.blogspot.com/2006/07/de-novo-na-roosevelt.html>. Acesso em: 10 mar. 2010.
216
membros, em sua diversidade, pelo menos aparente, compartilham certas visões sobre arte
e o mundo, sobre modos de vida etc. E compartilham também uma leitura unificada dos
sentidos do local e do papel atuante da arte na configuração deste imaginário. O escritor
Claudinei Vieira, em seu blog, condensa por enumeração esta imagem: “poesia, literatura,
música, letras e notas, cerveja, livros, blues, cultura, beleza, cerveja, Praça Roosevelt, grande
praça, grandes amizades, grandes figuras, cerveja”
78
. A ideia de “movimento”, negada por
uns, é reafirmada por outros, como no texto do blog do ator Nelson Peres:
"A próxima geração necessita que lhe digam que a verdadeira luta não é uma luta
política, mas uma luta para terminar com a política. Há que ir-se da política a
metapolítica. Da política a poesia." (Norman Brown).
Esta frase me remete ao que acontece hoje lá na praça Roosevelt e nos seus
teatros. Remete ao Satyros. Remete aos que circulam por lá. Há algo de muito
novo por aquelas bandas. Independente. Acho que surge um movimento
armado: de persistência e muito talento. Camaradagem honesta.
79
Esta forma de apropriação do espaço talvez encontre equivalência na categoria
analítica do “pedaço”. José Guilherme Magnani define pedaço como uma das categorias de
arranjo do uso do espaço urbano de São Paulo. É um território tomado como intermediário
entre o privado e o público, composto por uma ordem espacial, física, e pelo elemento
social (rede de relações e símbolos).
As características desses equipamentos definidores de fronteiras (bares,
lanchonetes, salões, campo de futebol etc.) mostravam que o território assim
delimitado constituía um lugar de passagem e encontro. Entretanto, não bastava
passar esse lugar ou mesmo freqüentá-lo com alguma regularidade para ser do
pedaço; era preciso estar situado (e ser reconhecido como tal) numa peculiar rede
de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos
definidos por participação em atividades comunitárias e desportivas etc.
80
É assim um território-código, que estabelece referência para identificação de quem é e
de quem não é do pedaço. É lugar dos “colegas”, dos “chegados”, dos “brothers”. No caso
do pedaço no centro da metrópole, Magnani ainda acrescenta que os membros talvez mais
do que se conheçam, se reconheçam pelo compartilhamento de “símbolos que remetem a
78
VIEIRA, C. s/t. In: Desconcertos (blog), São Paulo, 17 jul. 2006. Disponível em:
<http://desconcertos.zip.net/arch2006-07-01_2006-07-31.html>. Acesso: 10 mar. 2010.
79
PERES, N. Década de 30/40. In: Escuta (blog), São Paulo, 03 fev. 2005. Disponível em:
http://escutaze.zip.net/arch2005-02-01_2005-02-28.html. Acesso: 10 mar. 2010.
80
MAGNANI, J. De perto de dentro: notas para uma etnografia urbana. In: RBCS, v.17, n. 49, jun. 2002. p. 21
217
gostos, orientações, valores, hábitos de consumo e modos de vida semelhantes”
81
. Há assim
um sistema de classificações, de distinções e também de hierarquias.
A própria noção de autenticidade, despojamento, integridade artística, apego às
amizades e à boemia, no caso dos frequentadores da Roosevelt, é marca de uma construção
identitária. Krüger, no relato etnográfico que faz parte da dissertação sobre os Parlapatões,
a partir das observações e interações do pesquisador no ambiente do espaço da companhia,
comenta a dificuldade que teve em estabelecer laços mais consistentes com os artistas,
apesar de sua frequência constante ao local. Conta que as amizades que firmou foram com
trabalhadores do bar do Parlapatões e com moradores das redondezas. Com os artistas,
afirma, “apesar de reconhecê-los, estar informado das atividades de suas companhias e
participar de seu modo de vida, sempre senti que me faltava certa ‘moeda de troca’ artística
para maior interação”
82
.
Fica evidente a presença dos blogs pessoais e de grupos como canais comunicantes do
projeto teatral para a Roosevelt e da formação de laços entre os participantes. Ter um blog
talvez fosse um elemento caracterizante do grupo de frequentadores mais assíduos da
praça, principalmente no período de maior coesão, a partir de 2003/2004. Há assim o indício
de que nesta cultura própria dos “artistas da Roosevelt uma grande valorização da
escrita. Nestes blogs, são publicados textos literários, comentários sobre os mais variados
assuntos, citações, divulgação de eventos, recados gerais, relatos etc. Disseminação de
informações e estabelecimento de debates. Formou-se assim uma verdadeira rede de blogs,
formalmente não articulados, mas que na dinâmica cotidiana mostravam vínculos: dos links
relacionados até a uma constante autocitação e estabelecimento de debates/diálogos entre
eles. Os próprios comentários deixados mostram como havia uma grande movimentação e
interação entre eles.
É curioso notar como as regras do pedaço se estendem aos blogs. As relações de
reconhecimento e não reconhecimento. É muito comum quando um leitor “estranho” posta
algum comentário de discordância com o autor do blog ou que exibe algum “excesso de
intimidade” deixando clara a falta do “capital simbólico” do meio uma interpelação do
tipo “eu te conheço?”, “não tenho que perder meu tempo com quem eu não conheço”.
81
Ibidem. p. 22.
82
KRÜGER, C. Op. cit. p. 145.
218
assim o estabelecimento de códigos e os infratores não são bem quistos. Os blogs guardam,
assim, muita similaridade com alguns aspectos estruturais do pedaço, pois também se
configura como um estágio intermediário entre o privado e público o acesso é aberto,
amplo, mas a participação efetiva pede que se compactue com certas regras, com certas
marcas de identificação.
Pelos blogs também se pode supor certa hierarquização das relações. As figuras de
mais ascendência sobre o grupo podiam ser notadas pelo fluxo de visitação e comentários
em seus blogs. Além disso, proliferam-se pela “rede de blogs” as citações de seus textos e de
como de certa maneira eles mais frequentemente “pautavam” os demais. Estes “mais
visitados e comentados” eram normalmente os blogs pertencentes aos artistas “mais
estabelecidos” os que possuíam mais capital simbólico dentro do cenário teatral e literário
ou maior proximidade com estes.
A rede de blogs com sua textura desespacializada contribuiu assim, de maneira
significante, para o processo de espacialização de um determinado sistema de identidades.
“Praça Roosevelt” é então uma marca identitária, uma espécie de rótulo, mas que não vem
de fora para dentro, que nasce do próprio grupo. Figura espacial e simbólica que abraça e dá
sentimento de pertencimento: “Contrariando Vinícius O Rio é bacana. O problema é que
você anda, anda, e nunca chega na Praça Roosevelt”
83
, diz Bortolotto em seu blog.
Em uma crônica de Mirisola, o escritor narra sua ida a um evento literário, marcado
pela presença de escritores vermes”, que “sabem jogar para a platéia, adquiriram
desenvoltura nos palcos, dão palestras e workshops, têm colunas em jornais e revistas”. Na
tal ocasião, uma pessoa começa um bate-boca com ele, o narrador, que então chama a
“praça Roosevelt” para o Copacabana Palace”
84
. A praça é seu próprio comportamento de
enfrentamento, de não-concessões e de deslocamento no ambiente deslumbrado e vazio.
É perceptível como os blogs e também os livros, as peças de teatro ajudaram não
apenas a dar visibilidade aos teatros da praça Roosevelt, mas também a formular certas
concepções artísticas e comportamentais que passam a ser associados ao grupo e à região.
Houve um forte impulso comunicante do grupo, interna e externamente, pela criação de
83
BORTOLOTTO, M. Contrariando Vinícius. In: Atire no dramaturgo (blog), São Paulo, 17 jul. 2008. Disponível
em: < http://atirenodramaturgo.zip.net/arch2008-07-10_2008-07-18.html>. Acesso: 17 jul. 2008.
84
MIRISOLA, M. A noite que levei a praça Roosevelt para dar uma volta no Copacabana Palace. In: Jornal de
Debates, 09 out. 2007. Disponível em: http://www.jornaldedebates.com.br/debate/nova-literatura-brasileira-
tem-futuro/artigo/noite-que-levei-praca-roosevelt-para-dar-uma-vol>. Acesso: 10 mar. 2010.
219
canais próprios os Satyros chegaram a montar também um protótipo de uma rádio livre
que fez uma ou outra transmissão em ocasião de eventos na praça
85
ou pela predisposição
em chamar atenção da “grande mídia” (este ponto receberá tratamento mais detalhado no
capítulo 5). O entendimento da Roosevelt que passou a ser comunicado não era apenas
como um local, mas como um jeito de ser e de fazer arte ultrapassou os limites dos
integrantes do pedaço e se tornou sinônimo da praça. Na imprensa, por exemplo, uma
matéria de jornal sobre a produção de um documentário que aborda o trabalho teatral dos
Satyros ganha o título: “Praça Roosevelt agora vai ao cinema”
86
.
Em vários comentários deixados nos blogs, principalmente dos fundadores das
companhias teatrais, deparei-me algumas vezes com mensagens postadas por jovens
artistas ou de outras cidades que declaravam algum tipo de admiração pela praça Roosevelt,
não no sentido do espaço físico, mas no caráter simbólico da arte e dos comportamentos.
Aqui também não posso deixar de fazer referência à ligação da Roosevelt, em especial
dos Satyros, com uma comunidade do Jardim Pantanal, bairro periférico da zona leste de
São Paulo. Reproduzo um trecho de um depoimento de Ivam Cabral:
(...) teve um expectador que brigou na bilheteria, porque ele ia assistir a peça [A
filosofia da alcova], tinha reservado a peça, a gente reserva até meia hora antes e
ele chegou 25 minutos antes e o ingresso dele tinha sido liberado pra outro
expectador que estava lá. E ele brigou e ele era negro e disse Vocês fizeram isso
porque vocês estão discriminando, porque eu sou negro, se eu fosse um branco eu
teria”, enfim, ele ficou muito revoltado e a gente não entendeu muito bem. Não
dava mais mesmo pra ele assistir e daí eu peguei e dei ingresso pra ele vir noutro
dia, era uma sexta-feira, meia noite. Então tá, não deu pra ver hoje dá pra vir
amanhã, ele e mais uma pessoa. Daí ele “Mas me dando de graça?” Sim, pra
você vir amanhã”, ele duvidou que seria de graça, ficou me olhando meio estranho
e contou que ele era do Pantanal. Eu pensava que era Pantanal do Mato Grosso,
nunca tinha ouvido falar do Jardim Pantanal em São Paulo.
No dia seguinte ele veio assistir a peça meio receoso assim, chegou bem antes,
assistiu e ficou muito agradecido porque ele estava assistindo a peça de graça e
ficou nosso amigo. Ele é um cabeleireiro do Jardim Pantanal. Na semana seguinte
ele ligou “Ah, vou ver de novo, faz desconto pra gente? Poderia ter um preço de
amigo aí?”, Sei lá, a gente fez pra ele, enfim, no final das contas... dele ligava e
“Olha, a gente indo, vocês não conseguiam cinco convites?” “Claro”, “Olha, a
gente indo em dez, você não pagava ônibus de quatro?”, e a gente estava
pagando pra eles virem pro teatro. E num determinado momento a gente foi
conhecer então eles no Jardim Pantanal e a gente chegou lá, o salão dele era
cheio de cartazes dos Satyros, e a gente era muito famoso lá. Quando eu cheguei
85
Segundo o livro da companhia a Rádio Livre Satyros funcionou entre 2003 e começo de 2006, transmitida em
FM 88,7MHz, em um raio de 5 km a partir da praça Roosevelt. GUZIK, A. Op. cit. p. 324.
86
NÉSPOLI, B. Praça Roosevelt agora vai ao cinema. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Caderno 2, p. D-9, 26 mar.
2008.
220
assim todo mundo “Ah!” A gente levou um susto. Mas é muito longe da praça
Roosevelt o Jardim Pantanal. E a gente era pop star no Jardim Pantanal, que
estranho, que fenômeno é esse?
87
Conta ainda que mais de mil pessoas do Jardim Pantanal teriam ido, durante
determinado período a partir de 2002 ou 2003, à praça Roosevelt para assistir espetáculos
dos Satyros. Alguns garotos do bairro chegaram a receber formação e trabalho como
técnicos dos Satyros. O tal cabeleireiro costumava reunir jovens do bairro para discutir
filosofia e teatro. O grupo teatral acabou abrindo uma sede lá, o Espaço dos Satyros 3 (que
mais tarde ficou por conta da comunidade e mudou de nome), onde ministravam cursos.
Grupos de alunos do espaço do Jardim Pantanal chegaram a se apresentar na Roosevelt
durante as Satyrianas.
Imaginário dionisíaco e dramaturgia
Teatro veloz: um teatro que reage rapidamente aos questionamentos que o
mundo nos coloca em contraposição a uma sociedade consumista de alta
velocidade aparente. O Teatro veloz busca resgatar o ritual dentro de uma
velocidade interior, uma alma veloz. A globalização e a massificação consumista
fizeram de nós consumidores vorazes e artistas instantâneos. Como forma de
resistência e redescoberta da humanidade perdida, o Teatro veloz propõe a
suspensão do “tempo-vale-ouro-capitalista” para o tempo do encontro, da
comunhão ritualística.
88
Assim Os Satyros, em seu livro de memórias, definem conceitual e metodologicamente
o seu trabalho. Esta concepção de “teatro veloz”, segundo o grupo, foi desenvolvida desde o
período em que estavam sediados em Lisboa. Afirmam que a questão central que move sua
proposta artística é a crítica à indiferença do teatro contemporâneo com outras áreas do
conhecimento, como a filosofia, a ética, o direito e as ciências sociais. Falam em tirar o
artista da alienação, ou seja, desatrelar o teatro do consumo, do mercado, idealizando a
figura do ator como agente social e como “fundador de sua própria existência”. Para isso, o
ator do teatro veloz é estimulado a “entrar em contato com seu eu profundo, seus
fantasmas, seus medos, sua posição na sociedade e as potencialidades de seu ser, que se
87
Depoimento de Ivam Cabral ao Museu da Pessoa, São Paulo (não há indicação da data de coleta do
depoimento). Disponível em: <http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/depoimento
Depoente.do?action=ver&idDepoenteHome=15924>. Acesso em: 01 mar. 2010
88
GUZIK, A. Op. cit. p. 289.
221
encontram não manifestadas”
89
. Almeida Jr. identifica, tanto pelos textos teóricos como
pelas como pelas montagens do grupo, afinidades entre o “teatro veloz” e os “conceitos
artaudianos em torno da criação contínua, consciência e espacialidade”
90
.
Dentro da concepção geral do grupo, apontam a valorização do imaginário do ator,
que deve ganhar concretude cênica, e o caráter ritualístico do teatro. O próprio nome da
companhia aponta para a figura da celebração dionisíaca e do elemento satírico, que
engendra a paródia, o grotesco, o patético. Os Satyros afirmam que a principal referência
teórica do grupo é Nietzsche, em O nascimento da tragédia, e que a metodologia do “teatro
veloz” pretende a conciliação entre o apolíneo e o dionisíaco.
Nietzsche projeta nas figuras de Apolo e Dionísio o cerne da duplicidade que se liga ao
desenvolvimento da arte: representam forças contrárias da religiosidade grega, que definem
os “estados artísticos imediatos da natureza”. O apolíneo, “a arte do figurador plástico
[Bildner+”, e dionisíaco, “a arte não figurada *unbildlichen+ da música”, “caminham lado a
lado, na maioria das vezes em discórdia aberta incitando-se mutuamente a produções
sempre novas”
91
. Nietzsche associa os dois estados respectivamente ao sonho e à
embriaguez.
O apolíneo, visão de sonho, situa a luminosidade, a beleza, o idealismo, o espírito
questionador, carrega o princípio da individuação. A luz é o que dá forma e limite ao mundo,
define classificações, distinções, ordenamento do mundo. O dionisíaco, estado de
embriaguez, liga-se à êxtase e ao terror, à perda da consciência individual e à integração
radical do homem à sua natureza e ao seu próximo, dando forma ao Uno-primordial.
Restabelece a harmonia universal, pondo fim às distinções “agora o escravo é homem
livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a
arbitrariedade ou a ‘moda impudente’ estabeleceram entre os homens”
92
.
Michel Maffesoli identifica no impulso dionisíaco, que ele chama de orgiasmo, a
estrutura da socialidade, a força passional que “anima o corpo social”. Aponta que a
ideologia burguesa desenhou um sujeito que não encontra realização, e estende a períodos
mais recentes a observação de Marx que “a burguesia ‘não tem moral; ela se serve de uma
89
Ibidem. p. 304.
90
ALMEIDA JR, J. S. Op. cit. p. 155.
91
NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. p. 27.
92
Ibidem. p. 31.
222
moral’ (...), esta atitude de tudo medir à bitola da utilidade, que não pode compreender o
que é da ordem da perda, da vida improdutiva
93
. Seria o tempo poético e erótico, e não o
tempo da produção, o que daria a liga ao coletivo e que acolheria o múltiplo. O autor analisa
historicamente o papel do tempo improdutivo, do erotismo, da embriaguez, da poesia na
constituição da vida cotidiana e dos laços de sociabilidade.
Estas concepções podem ajudar a compreender o processo de ocupação e construção
de sentidos da praça Roosevelt pelos artistas ligados à movimentação teatral. A
configuração do “pedaço”, como um todo coletivo, que ganha dimensão no virtual, e
constrói a ideia de unidade e multiplicidade ao mesmo tempo, e junto com isso o ambiente
de celebração, por meio da boemia, da bebedeira, da ocupação festiva das mesas nas
calçadas, das festas propriamente, como Satyrianas, que evoca a imagem antiga do festival
que celebra a entrada da primavera: vivências que buscam valorizar o a ritualização do
cotidiano. O desenho imaginário da região ocupada pelos teatros alude ao entrelaçamento
dos elementos apolíneo e dionisíaco, que encontra equivalente direto nos regimes diurno e
noturno de funcionamento do imaginário, conforme a conceituação de Gilbert Durand.
A imagem de lugar degradado para a praça Roosevelt, com toda sua estereotipagem,
fornece um elemento de “sombra” fundamental para o discurso que começa a se formar
para dar sustentação ao projeto teatral para o local. Este imaginário não se expressa apenas
em algumas práticas de vivência cotidiano, mas ganha também consistência na dramaturgia
dos grupos de teatro locais. Alguns pontos da proposta do “teatro veloz” dos Satyros
acabaram fundamentando o perfil de teatro com que a praça Roosevelt passou a ser
associada: um teatro que se autodefine alheio à função de mercado da cultura, do
entretenimento vazio, e que artisticamente assume uma postura mais “visceral” do que
apegada a formalismos que se encerram em si.
Assim, apesar das propostas artísticas bem diferentes entre os três grupos que têm
maior presença na praça Satyros, Cemitério de Automóveis e Parlapatões , como
identificar alguma unidade de projeto, no que tange justamente a esta postura do artista e
da arte. Tomo aqui três personagens-síntese do repertório de cada um dos grupos: o
libertino, o outsider e o palhaço. Veja bem, há a consciência de que concentrar o trabalho de
grupos estáveis em um personagem-arquétipo é uma ação redutora das possibilidades de
93
MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso: contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk, 2005. p. 19
223
leitura e interpretação. No entanto, a proposta aqui não é realizar o desmembramento e a
análise estética mais profunda das obras dos referidos grupos, mas é sim buscar identificar
nelas alguns sentidos mais genéricos, aparentes, que vêm com mais facilidade aderindo ao
imaginário sobre a praça. Sobre esta questão, recorro a Maffesoli que observa que
“símbolos nascem no grupo, eles permitem igualmente a continuidade do sentimento que o
grupo nutre por si mesmo”, e reafirma a importância que Durkheim dedicou ao
“emblemático” – o que se apresenta na superfície para a organização da vida societal.
94
A evocação do erotismo é recorrente no trabalho do Satyros, embora ganhe leituras e
usos variados. Esteticamente é difícil aplainar os trabalhos do grupo, de um espetáculo para
outro é possível verificar desenhos e estilos cênicos diferentes. Em alguns deles, uma
permissão do exagero, com uso de referências variadas como kitsch, pop, psicodélico, teatro
de revista etc. No entanto, mesmo nestes casos, o que se não é pura explosão ou delírio
visual, pois isso tudo é envolto por uma atmosfera poética e reflexiva. Mesmo assim, estes
“exageros” que compõem algumas montagens parecem muito fortes numa visão de
conjunto sobre o trabalho da companhia.
As montagens de textos de Sade
95
acabaram por ficar muito marcantes na imagem
geral da proposta artística da companhia, vide que os espetáculos que compõem a trilogia
libertina vêm sendo colocados frequentemente em cartaz, com regularidade de público.
Tudo isso fez com que o libertino fosse uma figura fácil de ser colada aos Satyros, e como se
trata do grupo que mais articulou esta ocupação teatral da praça, é possível que parte deste
rótulo seja transferido para a própria simbologia da Roosevelt.
A figura do libertino, ligada ao “desregramento dos costumes”, à devassidão, pode
encontrar leituras históricas específicas. A obra de Sade é provavelmente uma das melhores
representações desta figura no ambiente da modernidade, conforme o desenho que o
termo ganha no final do século XIX, que o contrasta a imagem do libertino, como “figura do
passado”, com a pornografia mais “superficial” ligada àquele contexto da sociedade de
massa. Daniel Wanderson Ferreira observa que no século XVIII não existia apenas a noção
de uma libertinagem mundana, mas também de uma postura reflexiva de contestação de
94
MAFFESOLI, M. Op. cit. p. 14.
95
Sades ou Noites com os professores imorais, montada pela primeira vez em 1990, teve várias remontagens
com A Filosofia da Alcova. Em 2006, estrearam Os 120 dias de Sodoma, e Justine, em 2009, formando a Trilogia
Libertina Sade, frequentemente colocada em cartaz pela companhia, obtendo normalmente bom sucesso de
público.
224
valores morais e religiosos. O erotismo libertino de Sade, por exemplo, envolve sempre
questões de poder. Desta maneira, consegue condensar vulgaridade e cultura cavalheiresca,
a unidade pela natureza humana e a distinção por meio do processo civilizador, experiência
e contemplação. Marcha-se assim numa ação contínua de prazer e pensamento, que a
libertinagem de Sade, de modo algum, dispensa o exercício da filosofia”
96
.
O grupo Cemitério de Automóveis trabalha uma dramaturgia calcada em personagens
solitários, que em grande parte sobrevivem à margem da lógica produtiva artistas
frustrados, ladrões de carro, bêbados, junkies, sequetradores idealistas etc. O crítico
Sebastião Milaré, em comentário no livro de peças de Mário Bortolotto, enxerga os
personagens como transgressores, que carregam angústias e resistem às banalidades da
vida da classe média brasileira. Identifica ainda a afinidade da dramaturgia do grupo com o
cartum, desapegada do psicologismo, caminha pelas sendas do non sense e do humor para
invadir o território trágico, onde o destino humano é manipulado por invisíveis e insensíveis
deuses”
97
.
uma associação constante do universo construído no trabalho do grupo com a
literatura norte-americana de John Fante, Charles Bukowski e dos beatniks embora estas
leituras assoaciativas, de idenificação de influências, com frequência escamoteiem o aspecto
destacado acima por Milaré na dramaturgia de Bortolotto, da forte contextualização ao
meio urbano brasileiro. De qualquer forma, emerge dos trabalhos da companhia a figura do
outsider, que não equivale exatamente ao excluído social (que é outra possibilidade de uso
da figura do outsider, aquele que não é aceito, que é barrado, empurrado para fora
98
), mas
ao sujeito mais existencialista, embora sem psicologismos, que por suas própias
inquietações, não cabe na forma do cidadão médio inserido no sistema produtivo. Então, o
outsider tomado aqui é a expressão do inconformismo, com alguma misantropia, e carrega
as angústias criadas pelo próprio sistema ao qual ele não se adequa. Não sei nem se poderia
96
FERREIRA, D. W. Erotismo, libertinagem e pornografia: notas para um estudo genealógico das práticas
relacionadas ao corpo na França moderna. In: História da historiografia, Ouro Preto, n. 3, pp. 123-134, set.
2009.
97
MILARÉ, S. Prefácio. In: BORTOLOTTO, M. Sete peças de Mário Bortolotto. Londrina: Midiograf, 2001. p. 13.
98
Nobert Elias e John L. Scotson, em seu estudo sobre uma pequena comunidade na Inglaterra, tomam o
termo outsider para se referir aqueles identificados como forasteiros, recém-chegados, e que são rejeitados e
mantidos à distância pelos “estabelecidos” há mais tempo na cidadezinha. O outsider aí não é o transgressor,
mas a vítima de um processo de estigmatização. ELIAS, N.; SCOTSON, J.L. Os estabelecidos e os outsiders:
sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
225
ser tratado como propriamente um arquétipo, que é uma figura aparentemente muito
contextualizada no ambiente da classe média urbana da segunda metade do século XX.
Inclusive vale destacar a importância que certos itens da cultura de massa têm na
caracterização deste outsider, notadamente a música no caso do Cemitério de
Automóveis, o rock´n roll.
No mundo de exageros do libertino, ou no universo seco e direto do outsider, a
frequente proximidade com os personagens da sombra da sociedade (prostitutas, ladrões,
drogados, mendigos...), que são essenciais para dar a ideia de mobilidade dos dois primeiros
pelo mundo de contrastes eles próprios acabam frequentemente por funcionar como a
amarração entre estes mundos. Estes relacionamentos não são propriamente sóbrios nas
encenações dos grupos teatrais, há frequentemente uma atitude paródica multilateral entre
os personagens o que ganha expressão clara no gênero da tragicomédia.
Esta mobilidade de conduta, Bakhtin identifica-a no palhaço (em suas várias
configurações históricas), figura tomada pelo Parlapatões, Patifes e Paspalhões como o
centro de suas pesquisas e realizações. Segundo Krüger o trabalho do grupo, mais do que
uma proposta de atualização do circo, usa expedientes circenses para criar uma espécie de
teatro “despojado”, e a figura do palhaço tem papel de valorizar a relação entre palco e
plateia
99
.
O palhaço é uma figura arquetítica segundo Jung, o trickster, uma espécie de herói
trapaceiro, marcado por grande ambiguidade: é transgressor e conciliador, cativa e causa
temor
100
. Historicamente, ganha contornos na Idade Média como o bobo da corte, o bufão e
a trupe de saltimbancos, que em seus exageros, segundo Bakhtin, funcionavam como
contrapontos populares à sobriedade da cultura oficial. É na Renascença, com a Comedia
dell´Arte, que o palhaço propriamente aparece, também muito ligado ao universo das festas
populares. Esta figura do cômico de circos e feiras, ao expor toda sua estupidez e
ingenuidade, operaria numa outra lógica, de desordenação, de carnavalização do mundo e
das convenções, assim, ganha aura de subversão
101
. Esta postura subversiva é a sua própria
permissividade para zombar da normatividade, sendo expressão de uma certa
99
KRÜGER, C. Op. cit. p. 67.
100
JUNG, C.G. A psicologia da figura do “trickster”. In: Obras completas de Carl Gustav Jung, v. 9, t. 1.
Petrópolis: Vozes, 2000.
101
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São
Paulo: Hucitec; Brasília: UnB, 1999.
226
espontaneidade assim, apesar da maquiagem pesada que normalmente cobre seu rosto, o
palhaço seria um indivíduo muito mais desapegado das máscaras sociais.
As figuras-emblema do libertino, do outsider e do palhaço estabelecem um diálogo
com o imaginário da degradação da praça Roosevelt. Não à toa, a própria praça transforma-
se em referência constante da dramaturgia dos grupos, a partir do momento que se
estabelecem por ali. Vamos tomar aqui alguns exemplos de peças que aludem diretemante
ao ambiente da Roosevelt, ou ao imaginário que se articulava a partir da esfera teatral.
Em 2004, os Satyros encenaram o espetáculo Transex, escrito e dirigido por Rodolfo
Garcia Vázquez
102
. A peça é tomada como a primeira parte da Trilogia da Praça Roosevelt,
em que o grupo se põe a refletir e dialogar mais diretamente por meio de sua dramaturgia
com o espaço público que ocupam e no qual tem claramente o projeto de deixar sua
marca.
A história se passa no apartamento de duas transexuais na praça Roosevelt. Uma
delas, Tereza, a heroina da tragicomédia, apresenta-se em seu texto inicial como Tereza de
Ávila, em homenagem à santa. A travesti diz também considerar-se, de certa maneira, santa,
pois, como “profissional do sexo”, o que faz é sagrado: “Eu chego no que existe de mais
íntimo de um homem, porque o sexo é uma experiência mística, única”. Em depoimento
para Rodrigo Arrigoni, Rodolfo Vázquez declara o jogo das comparações entre a santa e a
travesti, ressaltando a “relação com o divino que passava pelo erotismo”
103
.
Tereza, a transexual da peça, diz-se apaixonada por um ser de outra dimensão, vindo
das estrelas. A personagem carrega um romantismo singelo, mas cheio de angústias, de
sentimentos de inadequação. Sua colega, Marlene, autoafima-se frequentemente como
mais experiente, mais “pé no chão”. Acredita que o amor da amiga não é um ser de outro
planeta, mas um exu que pretende seduzir Tereza e levá-la à perdição. ainda mais duas
amigas transexuais, uma delas, Marcia, foi eleita a “boneca mais requisitada da internet”, e
por isso sofre ameaças de outra travesti invejosa que tem uma amante traficante.
Estes casos que compõem o eixo da trama são baseados em histórias relatadas por
travestis com quem o grupo travou contato. Duas destas transexuais, Bibi (Savana Meirelles)
e Phedra D. Córdoba participam do espetáculo no papel de personagens que carregam os
102
Para os comentários sobre Transex, foram utilizados como referência o texto da peça e anotações e
imagens da montagem constantes na dissertação de Rodrigo Arrigoni.
103
ARRIGONI, R. Op. cit. p. 35.
227
nomes das próprias atrizes. ainda na trama o zelador do prédio, evangélico, que usa
passagens da Bíblia quando tenta bulinar as travestis, e a professora de arte de Tereza,
René, esposa de um rico executivo. René é uma mulher transexual, que, para se sentir
castrada, colocou um pênis no lugar da vagina.
Os elementos bizarros que compõem a trama são ressaltado por Rodolfo, no livro dos
Satyros, como sua forma de sentir a praça Roosevelt naquele momento: “achava e continou
achando a trama da peça um absurdo, mas escrevi porque era muito louco aquilo, refletia
coisas que a gente vivia de verdade ali na Praça Roosevelt”. Em outro trecho do mesmo
livro, Ivam Cabral relata uma espécie de laboratório, meio happening, que ele e o outro ator
improvisaram, na ocasião de um teste de figuro e maquiagem, que revela este mesmo
sentimento em relação à praça:
Quando estávamos prontos, resolvemos sair um pouco na rua e ver o que rolava.
Mas não queríamos ser reconhecidos. Fomos, primeiro, tomar um café no La Barca
e depois decidimos ir ao supermercado. (...) Louco foi encontrar um travesti de
verdade por lá (com silicone etc). Eu e o Laerte, tão pobrezinhos perto dela...
Compramos um iogurte cada um, enfrentamos fila no caixa (com direito a trocas
de cumprimentos com uma senhora muito gentil que chegou logo após). Tudo
corria lindamente, quando nós resolvemos dar um tempinho num banco da praça.
Começamos a sentir olhares insinuantes. Percebemos que estávamos sendo
paquerados. E não é que dois caras se aproximaram da gente? Um veio direto falar
com o Laerte. O outro sentou-se num banco próximo e ficou roçando a mão no
pau. Até que as coisas começaram a sair do controle. Sim, porque um dos caras
queria levar o Laerte para transar e o outro, superexcitado, ficava se insinuando
pra mim. Então voltamos ao teatro. Mas fiquei intrigado. Nosso figurino era todo
inspirado nos anos 60. Tinhamos vestidos espalhafatosos, sapatos e perucas meio
estranhos. E fomos assimilados, tranquilamente, ao ambiente da praça. Então
pensei: e se saíssemos assim em Itaquera, o que aconteceria?
104
Mas a praça de Transex não representa completude, assimilação. Uma praça sem
artistas, uma praça no início do processo de degradação: este é o quadro. Veja que a
potencialidade libertadora do erotismo nos personagens não se efetiva, mesmo a expriência
erótico-mística de Tereza não a liberta, mesmo o pênis implantado de René não a liberta, há
uma eterna incompletude, um eterno deslocamento, o peso invisível de estruturas
morais de poder.
O segundo espetáculo da Trilogia da Praça Roosevelt nasce de um contratempo vivido
pela dramaturga alemã Dea Loher. Em estada no Brasil, em 2003, Loher foi ao Espaço dos
104
GUZIK, A. Op. cit. PP. 244-245.
228
Satyros para assistir a montagem de Hotel Lancaster, de Bortolotto, dirigida por Marcos
Loureiro. Rodolfo Vázquez, que tinha morado na Alemanha, estabeleceu contato e laços
de amizade com ela na ocasião. A dramaturga estava em São Paulo para escrever uma peça
sobre a cidade para a Bienal Internacional de Artes de 2004 que seria montada pelo Thalia
Theater de Hamburgo. Loher havia visitado favelas, cadeias, cemitérios e estava com o
texto em produção, quando o apartamento onde ela estava hospedada em São Paulo foi
roubado e levaram seu laptop com todo o trabalho que tinha realizado. Ivam e Rodolfo
acabaram dando hospedagem à autora enquanto sua situação não estivesse resolvida.
Neste tempo, Loher passou a frequentar os teatros da praça Roosevelt e a tomar contato
com a histórias do lugar contadas por seus anfitriões.
Alguns meses depois, a dramaturga enviou aos Satyros o texto Das Leben auf der
Praça Roosevelt, que seria montada pela companhia de Hamburgo. Rodolfo Vázquez fez a
adaptação para a montagem dos Satyros, que estreiou em 2005. Dea Loher é considerada
pela crítica especializada uma das autoras mais importantes do teatro alemão
contemporâneo. Em 2006, pouco depois de ter escrito A praça... recebeu o prêmio literário
alemão Bertold Brecht, pelo conjunto de sua obra.
A trama de A vida na praça Roosevelt contém muitas das passagens que também
aparecem em Transex, como a travesti apaixonada pelo extraterrestre. Os personagens
“típicos” da Roosevelt estão lá: travestis, velhas solitárias, traficantes, moradores de rua,
policial... Histórias da Phedra, de Ivam, de Bibi...
105
A peça baseia-se em histórias que Loher
tomou contato por meio dos relatos dos Satyros. Assim, em grande parte a visão sobre a
praça de Dea Loher coincide com a praça das narrativas de Ivam e Rodolfo sobre a chegada
do grupo ao local, à visão que tinham da Roosevelt de antes da intervenção teatral. Por
exemplo, a descrição do ambiente feita pelo personagem Sr. Mirador no começo da peça:
Nos prédios em volta da praça, ficam os bordéis. Nos bordéis é assim: vamos supor
que um prédio tenha 18 andares. Então, você vai até a entrada, digamos que
pelas nove ou dez da noite e paga, uns 50 reais. Você pega o elevador até o 18
andar. Aí você procura um quarto com uma mulher ou um homem, ou uma mulher
que é homem ou um homem que é mulher, ou com os dois, em cada andar você
105
Conforme explicitado por Ivam Cabral em seu blog: CABRAL, I. A vida por aqui na praça Roosevelt. In: Terras
de Cabral (blog), São Paulo, 29 jul. 2004. Disponível em: http://terrasdecabral2.zip.net/arch2004-07-25_2004-
07-31.html. Acesso: 10 fev. 2010.
229
pode escolher uma coisa diferente ou uma pessoa diferente. E aí você vai trepando
por todos os andares até chegar no térreo às 7 da manhã.
106
A dramaturga apresenta uma visão um pouco mais distanciada o que não significa
desumanizada, aliás não qualquer traço de desumanização dos personagens na peça. Na
verdade, esse distanciamento pode ser traduzido em um caráter mais universalizante, mais
descolado contextualmente da praça que dá nome ao texto. Esta maior universalização
também é verificado pelo fato do texto ter se tornado um dos mais importantes da
dramaturgia alecontemporânea, com montagens diversas por vários países Alemanha,
Cuba, Romênia, Rússia... Vale observar que o texto quando lido passa uma tristeza e
melancolia muito grande, sem heróis, sem classificações.
um personagem na trama que de certa forma cumpre o papel da própria autora:
Mundo, um mendigo mudo que fica pela praça e vai sobrevivendo do pouco de comida que
lhe deixam e das histórias que os demais personagens contam a ele. Mundo escreve
caladamente em “papel, papelão”– “versinhos”, “umas prece”. Os personagens da praça
Roosevelt de Dea Loher vivem situações-paradoxo: a secretária prestes a morrer que
pensa em garantir guarda a seus gatos, o policial que quer tirar o filho do tráfico, o que
acaba por causar da morte do rapaz, a moça que precisa eliminar o seu duplo e com isso se
eliminar, o empresário entediado que fabrica peças de revólver e se sente resposável pelas
mortes causadas por armas de fogo, a mulher que culpa o marido pela morte do filho, fruto
e símbolo da “noite alucinante” vivida pelo casal etc.
A vida... dá assim densidade universalizante existencial, filosófica ao sentimento de
desenzenraizamento, de deslocamento que tanto ganhou vulto nos imaginários da praça
Roosevelt. Em uma cena, a personagem Bingo explicita o despertencimento: “Como se a
vida que estava destinada ao senhor estivesse em outro lugar. Que existe. Existe em outro
lugar. Mas que em algum momento o senhor perdeu o caminho. Pausa. Tomou uma decisão
errada uma única vez. E agora a sua verdadeira vida está acontecendo sem o senhor”. Ou
ainda, nos questionamentos do Sr. Mirador: “O que esse Franklin tem a ver com a gente?
106
Tomaremos aqui por referência a tradução com adaptação brasileira da peça, que foi utilizada na
montagem dos Satyros: LOHER, D. (trad. C. Röhrig; adapt. R.G. VÁZQUEZ). A vida na praça Roosevelt. São Paulo: Goethe
Institut, 2005. p. 5.
230
Onde está a nossa história e onde eu apareço. (...) Tem de haver uma razão para eu estar
aqui”.
107
A terceira parte da chamada Trilogia da Praça Roosevelt foi anunciada incialmente
como uma obra coletiva que seria escrita por vários dramaturgos. Mas acabou sendo
apresentada uma mostra composta por sete peças inéditas, de vários autores e diretores,
com o tema de fundo “a praça Roosevelt”. E se fez a praça Roosevelt em 7 dias estreou em
2007 no Espaço dos Satyros, primeiro numa maratona com as sete montagem em sequência
e depois com cada uma delas ocupando um dia da semana na programação. Vale observar
que o título da mostra explicita a ideia de um renascimento, uma refundação da praça pelo
teatro.
Mário Bortolotto escreveu e dirigiu Uma pilha de pratos na cozinha. Passa-se em um
apartamento na praça Roosevelt, do personagem Julio, que se define como um sujeito
misantropo, um “gato de apartamento olhando pela janela”. Circulam por o amigo,
pianista frustrado que sobrevive tocando em uma boate GLS, o síndico homossexual e
evangélico, e a ex-namorada de Julio que está doente e vai morrer.
algumas referências corriqueiras da praça Roosevelt o síndico gay enrustido
evangélico (vide o porteiro de Transex), e na fala deste personagem a menção a “Ivan Cabral
tirando a roupa no balcão”
108
. Em cena, quatro personagens que transbordam em
sarcasmos. Os diálogos vão de comentários sobre certas banalidades a questões mais
existenciais. Mas o que é mais denso, como as considerações de Cristina sobre a morte, é
normalmente seguido ou cortado por algum comentário mais sórdido ou pelo silêncio na
montagem, havia muito silêncio em cena. Aliás me parece que o silêncio é a expressão do
mais visceral nos personagens, o inefável, enquanto no âmbito da palavra há uma
equiparação entre o banal e o mais “profundo”, com peso de metáfora ou não: a morte, a
série de filmes Star Wars, o abandono, a música de Elton John, a solidão, a pilha de pratos
na cozinha... O mundo desencantado pronunciado pelos personagens não tem hierarquias,
talvez só haja uma distinção simples: tudo o que é desprezado e o pouco que ainda permite,
mesmo que de forma precária, algum apego à vida Julio diz a Breno (o síndico): “Meia
garrafa de whisky, dois filmes do Cassavetes, dois shows do Van Morrison. Existe um tipo de
107
Ibidem. pp. 29, 05.
108
BORTOLOTTO, M. Uma pilha de pratos na cozinha. São Paulo, 2007. p. 6.
231
felicidade subterrânea que você não vai conseguir entender no seu dialeto”
109
. Aliás, apesar
do clima niilista, os personagens demonstram a todo tempo apego a vida e repulsa à morte
(sem nenhuma conotação psicanalítica).
Esta figura da “felicidade subterrânea”, outsider, que não pode ser entendida por
quem vive no mundo das realizações mesquinhas como a vaidade de sujeito que aplica
multas nos condôminos” é a própria ideia definição da praça Roosevelt como símbolo a
Loservelt de Bortolotto. A situação de imobilidade marca outra peça da mostra, Impostura,
escrita por Marici Salomão e dirigida por Fernanda D´Umbra. Também passada em um
apartamento na praça Roosevelt, onde uma mulher leva uma moça que acabou de
conhecer. também vive um escritor, talvez o marido da mulher. Os três embriagados
passam uma madrugada marcada por diálogos agressivos cheios de acusações perversas
entre o escritor e a mulher. A inadequação aí é absoluta, os vínculos, corrompidos.
Ainda na mostra a peça de Alberto Guzik, dirigida por Luis Valcazaras, Na noite da
praça, que parece primeiro na versão de um conto do livro Brothers Cactus, sobre um
apresentador de TV que é surpreendido em um ato de pederastia com um menor em plena
Roosevelt. Na peça, o “incidente” serve de mote para uma discussão mais “doméstica” das
relações de preconceito de alguns moradores locais com os artistas da praça. Com foco
também no papel do teatro da Roosevelt, a peça O Amor do Sim, de Mario Viana, dirigida
por Alexandre Reinecke, traz três personagens um iluminador, uma manicure e um garçom
que se refugiam em um teatrinho vazio de uma horda que assombra a cidade. E lá aparece
para eles a figura do “Espírito do Teatro”, claro que é um espírito bem humorado, que prega
a arte pura, autêntica, não comercial, em uma idealização talvez excessiva, que
representaria os próprios teatros da Roosevelt.
O submundo mais estereotipado define a praça Roosevelt nas outras duas montagens
que compuseram a mostra. O personagem do michê ganha um monólogo na peça Hoje é dia
do Amor!, de João Silvério Trevisan, com direção de Antonio Cadengue, sobre uma sessão de
sadomasoquismo em uma quinta-feira santa a principal discussão, me parece, é a relação
entre dor e poder. A última peça da mostra é Assassinos, suínos & outras histórias da praça
Roosevelt, de Jarbas Capusso, dirigida por Marcos Loureiro: uma dupla de assassinos de
109
Ibidem. p. 10.
232
aluguel que devem matar um morador da praça e no mesmo dia a esposa de um deles seria
batizada na Igreja Universal.
O dramaturgo Sérgio Roveri escreveu para a mostra A noite do aquário, que foi dirigida
por Sérgio Ferrara. A peça, não passada na praça Roosevelt, consegue se distanciar da
autorreferência dos grupos e tipos ligados a universo teatral local, discutindo mais
propriamente a praça e sua presença simbólica uma presença fantasmal. A ação acontece
em um vilarejo à beira-mar não identificado, no início de 1965. No vilarejo, o filho mais
velho de uma família retorna depois de vários anos de pouquíssimo contato com a família. O
pai havia os abandonado antes. O relacionamento em decomposição entre os três
personagens a mãe, o filho mais velho e o mais novo encontra paralelo no vilarejo que
estava desaparecendo o porto única fonte de renda do povoado tinha os dias contados, e
os habitantes iam lentamente abandonando o lugar.
A mãe vive o trauma profundo do abandono, tudo o que ela tinha em seus cuidados
(em seu aquário) foi partindo. A praça Roosevelt aparece na única carta do pai ao filho
novo, e que este copiou várias vezes pois sabia que a mãe a destruiria. Em cada cópia, o
rapaz teria feito alterações para deixar o texto mais “bonito”, excluindo o que não queria
como recordação do pai. Na carta, o pai conta que trabalhava como peão de obra em São
Paulo, na construção de um prédio que parece uma onda que o faz lembrar o mar.
Pertinho do prédio tem uma “praça de asfalto” que não serve para as pessoas passar, mas
para guardar carros: “O nome dela é Praça Roosevelt e tem a coisa mais bonita que eu vi
em São Paulo. É a raiz de uma árvore que quebrou o cimento e saiu inteirinha pra fora,
subindo pela calçada”
110
.
A mãe chegou a ir a São Paulo atrás do pai. Ele já não trabalhava mais no Copan, então
ela foi até a Roosevelt, não viu graça nenhuma nas raízes quebrando o asfalto e ficou lá,
enquanto acontecia num bar a apresentação de uma cantora que nunca tinha ouvido falar:
“Era um sexta-feira à noite, como hoje, eu estava sozinha na praça, do lado de uma calçada
rachada e ouvindo, de vez em quando, um monte de aplauso para aquela tal de Elis Regina.
Eu nunca me senti tão abandonada no mundo”
111
. Se para mãe a praça com seu asfalto
110
ROVERI, S. A noite do aquário. São Paulo, 2007. p. 14.
111
Ibidem. p. 21.
233
quebrado pela raiz da árvore é mais um símbolo do desamparo de sua vida, do aquário sem
oxigênio, para o rapaz mais novo era o sonho do reencontro, da recomposição familiar.
Estas não são as únicas peças que fazem referência à praça Roosevelt, como já disse o
lugar é um dos “personagens” recorrentes na dramaturgia do local. Até na televisão a praça
Roosevelt e suas travestis foram parar, no programa Direções (primeira edição), da TV
Cultura, no episódio O vento nas janelas, dirigido por Rodolfo Vázquez
112
. Há, na verdade,
um excesso de signos sobre a praça Roosevelt nesta dramaturgia, o que muitas vezes gerou
manifestações, tanto de artistas locais, quanto da classe teatral mais genericamente
falando, sobre o exagero de autorreferência nos trabalhos desenvolvidos ali, o que poderia
representar uma limitação em termos artísticos.
Ainda gostaria de destacar um trabalho dos Parlapatões, o espetáculo O Pior de São
Paulo, que não é focado na figura da praça Roosevelt, mas pelo diálogo que a montagem
propõe com a cidade e alguns de seus estereótipos permite uma ligação também com a
própria praça
113
. Montagem-performance de 2007 foi inspirada no projeto Viaje a lo peor de
Madrid, do bufão italiano Leo Bassi em seu site oficial o trabalho é descrito como um
roteiro de “turismo político”, que propunha discutir o tema da corrupção política por meio
de uma passeio ao “coração dos escândalos imobiliários” e das “aberrações históricas”
114
.
A ideia é a de um roteiro maleável, que poderia ser incorporar acontecimentos sempre
recentes da vida pública da cidade e do país.A versão dos Parlapatões teve seus roteiros
escritos por Hugo Possolo e Mario Viana. A paródia de city-tour começava na praça
Roosevelt, onde o público era recepcionado no melhor estilo Ilha da Fantasia, por Tatu,
representado pelo ator Helio Pottes, e por Raul Barreto”
115
, e então embarcava em ônibus
junto com a trupe, com direito a uma atriz no papel de uma rodomoça que servia café frio
aos passageiros. Havia encenações dentro do próprio o ônibus e nos pontos de parada que
compunham cada itinerário. Churrasquinho “de gato” foi distribuido aos espectadores em
frente ao requintado restaurante Fasano, comentários sobre o monumento “kitsch” de
112
Rodolfo Vázquez também dirigiu, junto com Carlos Ebert, o documentário Na Praça Roosevelt (2006),
focado em relatos de travestis.
113
Serão tomadas, como referências para comentar o espetáculo, a análise realizada por Cauê Krüger e
matérias da imprensa: KRÜGER, C. Op. cit. pp. 149-152.
114
Disponível em: <http://www.leobassi.com/bassibus/info-bassibus.html>. Acesso: 12 mar. 2010.
115
PARAJARA, F. Parlapatões levam público em viajem de ônibus pelo pior de SP. Globo online, 11 jul. 2007.
Disponível em: < http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/07/11/296728594.asp>. Acesso: 12 mar. 2010.
234
Borba Gato, na avenida Santo Amaro, uma praia na avenida Paulista, vendedor ambulante
nas proximidade da loja Daslu, estavam entre os esquetes encenados.
O mote é realizar cenas micas, irônicas e paródicas acerca dos “fenômenos
urbanos” da capital paulista, como o caos urbano, o Tietê, os engarrafamentos, a
poluição, seqüestros relâmpagos, sem deixar de tratar de acontecimentos recentes
na mídia, como as declarações da ministra do Turismo sobre a situação nos
aeroportos - cuja frase “relaxa e goza” motivou a execução de um ato sexual
simulado na frente de sua residência -, declarações do chef de cousine do Fasano
sobre os males do uso do alho na gastronomia do país, o fechamento dos bingos
da cidade, entre outras notícias que inspiraram as performances.
116
Pelas descrições e comentários sobre a montagem, transparece a ideia da subversão
paródica dos imaginários totalizantes da metrópole, como trâsito, caos, consumo, trabalho
etc. Da praça Roosevelt para um universo de estereótipos urbanos. Aparece então clara
esta postura (ou descompostura) do palhaço que pretende desarticular certos imaginários
sobre a cidade
117
. A metrópole tomada como espaço cênico parece, assim, como uma marca
possível de ser lida no relacionamento do grupo com o seu entorno mais imediato da praça.
Não vidas de que os grupos teatrais da praça Roosevelt criaram uma estrutura
comunicativa muito forte, não no sentido de uma comunicação organizacional, planejada,
mas que mostra uma certa espontaneidade em sua formação. Esta espontaneidade não
significa uma não consciência de certos objetivos, fica claro, principalmente nas ações
Satyros e mais tarde dos Parlapatões, um desejo claro, pronunciado, de “fazer história”, de
projeção de sentidos futuros para suas ações presentes.
5. Praça Roosevelt, por Paulo Stocker.
116
KRÜGER, C. Op. cit. p. 150.
117
Uma questão a ser colocada é se a atitude paródica no caso também ela não se baseia em um conjunto
de imagens estereotipadas.
235
Do outro lado
A explosão sígnica sobre a praça produzida pelos grupos de teatro acabou por se
sobrepor a outros personagens e a outras leituras do local no mesmo período. Com isso,
alguns outros sentidos podem ter sido ofuscados, relegados a segundo plano. E é
surpreendente como há a narrativização do lugar, seja pelos processos de rememoração, de
percepção, e por tantos outros expedientes, como os exemplos a seguir pretendem mostrar.
O “outro lado” proposto neste item tem duplo sentido: são tanto os significados
desencontrados destas versões, que não precisam ser obrigatoriamente discordantes, mas
simplesmente produzidos por outros atores e grupos sociais outros interesses, outros
focos , como também um outro lado físico mesmo, do que não está compreendido no
quarteirão dos teatros, em especial em referência à rua João Guimarães Rosa.
Moradores
A figura dos moradores da praça Roosevelt não se refere aos moradores de rua, mas
aos que vivem nos apartamentos e casas ao redor da praça. Claro que se trata de uma figura
bastante imprecisa, que morador não é um termo de identidade neste caso, embora
algumas vezes seja usado desta maneira. No imaginário mais poético dos artistas de teatro,
os moradores apareciam principalmente como velhinhas simpáticas e bem-humoradas e as
travestis. Nos relatos mais combativos do mesmo grupo, os moradores ganhavam contornos
de indivíduos preconceituosos e intolerantes, os que atiram ovos nos frequentadores dos
teatros, tentam sabotar projetos artísticos. Ou o porteiro sem qualquer traço de
sensibilidade que se recusa a dar um lençol para cobrir a travesti morta. Na dramaturgia,
chegaram a aparecem como os próprios outsiders, ou ainda como pervertidos que posam de
senhores de família, síndicos e zeladores evagélicos e gays enrustidos. também no
próprio grupo de artistas e boêmios os que moram no local.
De maneira mais genérica, a palavra “moradores” é frequentemente usada para
expressar o segundo grupo em função dos conflitos vividos entre os artistas e parte de
seus vizinhos. Tiro dois exemplos do blog de Rodolfo Vázquez. O primeiro é sobre o relato de
um episódio em que vários moradores de rua da praça boa parte deles que teria sido
236
expulsa da Cracolândia pelo projeto oficial de revitalização daquela região tinham sido
incendiados durante a madrugada:
Desta vez, ninguém sabe quem foi o assassino incendiário. Talvez um morador
revoltado com a chegada deles, talvez um policial, ou até mesmo alguém
contratado por um outro alguém...A questão é: Por quê? Porque essas pessoas
acreditam piamente que é a maneira mais prática de se resolver o problema delas.
Essa é uma forma simples de se resolver o problema: queimar, carbonizar aqueles
que me incomodam. A praça, na sua vaidade pequeno burguesa, agradece.
Sei de alguns moradores que reagiram com um alívio e um certo sorriso no rosto.
Afinal, com a fogueira dos mendigos, os sobreviventes vão fugir dali e a praça
voltará a ser um local tranquilo.
118
O outro caso é sobre a proibição oficial de colocar mesas nas calçadas, a partir de uma
reclamação feita por um morador:
Porque no início, os moradores assustados se ancoravam nas nossas ousadias de
calçada para enfrentar um dos lugares mais violentos da cidade. Agora que a
região está pacificada, que os imóveis explodiram de preços, que os artistas se
arriscaram, eles podem andar tranquilamente por lá. E nós, artistas, na tosca
opinião deles, não somos mais necessários. Aliás, o ideal é que fossem embora.
Então, a lei surge! Aquela mesma que durante todos esses anos nunca foi
mencionada...
119
Saindo da esfera das falas dos artistas de teatro e pessoas próximas a eles, há também
a figura de alguns moradores intolerantes (vide no capítulo 3 o relato sobre o homem que
atirava pedras nos skatistas). A cineasta Jussara Figueiredo filmou uma reunião de
moradores realizada em abril de 2006 em que seriam discutidas as propostas para a reforma
da praça e colocou disponível uma versão editada
120
. O tema principal que permeia a
discussão é a demolição, com posicionamentos contrários e favoráveis. Na defesa da não
derrubada, os definem a praça como patrimônio da cidade, ou ainda que seriam
necessárias apenas reformas e adaptações. Nas falas que pedem a derrubada mostra-se
clara textura preconceituosa: os argumentos baseavam-se na ideia de que a praça é a
responsável pela degradação da região, local que atrai drogados, desocupados e práticas
promíscuas. Os skatistas são um dos alvos que ganham destaque, caracterizados como os
fora. Em um determinado momento das discussões quando são mencionadas as
118
ZQUEZ, R. Para a fogueira... In: De olhos bem abertos (blog), 28 out. 2007. Disponível em:
http://olhossempreabertos.zip.net/arch2007-10-28_2007-11-03.html.
119
VÁZQUEZ, R. A lei das calçadas. Op. cit.
120
Clipe do documentário Praça Roosevelt Presente Passado Futuro disponível no site Youtube. O
documentário, pelas informações disponíveis, não foi lançando até o momento.
237
reivindicações dos skatistas para a obra, um dos participantes levanta a voz: “Não defende
skatista. Cuidado. [outra pessoa fala ao fundo que os skatistas têm o mesmo direito]. Eles
não têm direito nenhum. O senhor pensa que eles são daqui? Eles não são daqui. Eles são de
Suzano, são de Mogi (...)”.
A figura do morador, em alguns momentos, pode aparecer por meio de uma figura
institucional, como a Ação Local Roosevelt, ligada à Assciação Viva o Centro, que
normalmente tem representantes entre moradores, comerciantes e o próprio pessoal dos
teatros. Uma matéria de jornal de 2002, quando ainda não haviam conflitos tão aparentes,
destacava justamente o caráter colaborativos entre ali para a revitalização da praça. O título
era “Moradores lutam para recuperar Praça Roosevelt”, no corpo do matéria aparecem falas
de pessoas ligadas aos teatros e da presidente da Ação Local, esta última cumpre assim o
papel da designação “moradores”.
121
ainda as versões de moradores que contam uma história afetiva da praça,
relacionando-a à sua biografia. Tomo como exemplo um relato retirado do blog de Renata
Mielli, entitulado Vida e morte da Roosevelt. Começa com suas recordações de criança:
Eu nasci em 1971 e, bebê ainda, fui morar na Rua Rego Freitas, próximo à Igreja da
Consolação. No coração de São Paulo, tomado por grandes edifícios, o único
espaço público para brincar, caminhar e praticar alguma atividade física era o
recém inaugurado conjunto arquitetônico da Praça Roosevelt.
Eu amava aquela praça. Criança, nada entendia do desastre urbanístico que ela
representava, mas ficava fascinada com suas rampas, o parquinho, o amplo espaço
para lazer. Na parte que ladeava a rua Martinho Prado e a Igreja, muitas árvores e
banquinhas de flores abafavam o zunido dos carros. Eu subi em muitas árvores ali,
corria para cima e para baixo. Minha avó costumava comprar flores naquelas
bancas, na época a moda era ter em casa o Bico de Papagaio. Havia, ainda, no
centro da praça, um Pão de Açúcar. Era lá que fazíamos as compras.
Na Rua Martinho Prado havia várias lojas, um restaurante chique (era o que a
minha mãe sempre me dizia), um brechó que eu adorava visitar e uma papelaria,
onde comprei muitas vezes meus cadernos escolares.
Foi na Roosevelt que exercitei meus primeiros passos no patins primeiro aqueles
de ferro que colocávamos sobre o tenis; depois, de tanto azucrinar, consegui subir
ao topo do pódio e ganhei um patins de bota da marca Reebok, o mais badalado da
época. A rampa de acesso do pavimento inferior à parte de cima da praça era a
minha pista de patins. Tomei muitos tombos por ali.
Na parte de cima, a Praça Pentagonal abrigou durante muito tempo uma escola de
circo. Eu gostava de passear ali, ver as piruetas dos aprendizes ou ficar sentada em
um daqueles bancos de concreto vendo a cidade do alto. Achava lindo.
O outro lado da praça, que faz divisa com a Rua João Guimarães Rosa, era o ponto
de encontro de quem estudava no Caetano de Campos. Eu estudei ali em períodos
121
MORADORES lutam para recuperar a Praça Roosevelt. Op. cit.
238
distintos. Em 1979 e depois em 1990. No primeiro período, a praça era como uma
extensão da escola. As primeiras paqueras infantis, as primeiras travessuras.
122
Na sequência, ela fala sobre os sinais de deterioração que começaram a aparecer nos
anos 80, da falta de cuidado, da ausência de atuação do poder público e da tomada dos
“cantos e recantos” como abrigo de moradores de rua. Cita ainda depredações sofridas pela
escola infantil que funcionava e dos comerciantes que abandonavam o lugar “Roosevelt
foi sepultada à luz do dia”.
Dos anos 90, quando ela voltou a morar na região e a estudar no Caetano de Campos,
diz que “a praça era algo sombrio, a ser evitado de dia e de noite. As ruas ao seu redor
morreram com ela. Mesmos os cineclubes que ali resistiam ainda acabaram por sucumbir”.
Mais tarde, foi morar na Augusta, reafirma o abandono pelas autoridades e faz referência à
ocupação pelos teatros: “com seus bares-teatros resgataram um pouco da vida na região,
que convive ainda com os esqueletos da Roosevelt”.
Uma matéria da revista Carta Capital sobre a praça com foco nas transformações do
local pela chegada dos teatros toma como ponto de partida a história de um morador.
Roosevelt tem 34 anos, é formado em Letras, elegeu o Direito como segunda
faculdade e simultaneamente cursa pós-graduação em Direito Penal. Nas horas
“vagas”, entre as 6 e as 14 horas, trabalha como porteiro num prédio de classe
média alta em Higienópolis, na região central de São Paulo. Em horas ainda mais
vagas, volta para casa, na praça que, coincidência ou não, tem o mesmo nome que
ele.
123
Além do nome, a reportagem traça um paralelo entre a história recente da praça e a
do personagem. Conta que sete anos antes, o Roosevelt Alves era semi-analfabeto e que
atualmente costuma ler Pablo Neruda e Karl Marx e “vive às voltas com a comunidade
teatral”. Fez supletivo no Caetano de Campos, banca os estudos com ajuda da mãe, zeladora
do mesmo prédio em que trabalha. Foi influenciado a estudar pelo escritor Milton Hatoum,
que morava no prédio de Higienópolis, para quem costumava ir levar as correspondências,
na fala transcrita do rapaz, a brincadeira: “era O Porteiro e o Poeta”. Depois a matéria traça
um percurso da história da praça, fazendo a comparação da transformação nos últimos anos
122
MIELLI, R. Vida e morte da Roosevelt. In: Janela sobre a alma (blog), 08 dez. 2009. Disponível em:
http://www.vermelho.org.br/blogs/renatamielli/2009/12/08/vida-e-morte-da-roosevelt/. Acesso em: 15 mar.
2010.
123
SANCHES, P.A. A mesma praça. Carta Capital, São Paulo, n. 517, p. 6-7, 15 out. 2008.
239
entre o personagem e o lugar. Ao fim, os entrelaça de novo, contando sobre o processo
movido pelo síndico de um prédio contra os Satyros, por causa da atriz nua no cavalo branco
durante uma Satyrianas: “Pelo rumo que a nave vai, no futuro *os Satyros+ podem vir a ser
defendidos na Justiça por Roosevelt, o Alves”.
Em um dos contos do livro Brothers Cactus, assinado por Jarbas Capusso Filho, um
morador da praça Roosevelt, Clodoaldo, era o único ser vivo sobrevivente em todo mundo
após a devastação causada por um vírus solto por uma seita terrorista argentina.
Controlador, Clodoaldo checava compulsivamente o estoque de comida, remédios, bebidas,
pilhas etc., que guardava em seu apartamento, no 20º andar, voltado para a praça. Uma de
suas grandes distrações era ouvir CDs de Roberto Carlos. Certo dia, ouve um barulho de
baixo, corre para janela e uma mulher nua e faminta na praça. Clodoaldo não aguentou a
visão de outro ser humano conferiu a dispensa, checou suas listas, se encheu de cocaína e,
da janela, apontou a mira laser de sua AR15 e estourou a cabeça da linda moça.
124
Não por acaso (2007), de Phillippe Barcinski, um dos filmes mais interessantes e
originais a discutir certas imagens centrais na definição mais genérica da cidade de São
Paulo, tem como um dos personagens principais Ênio, um engenheiro de tráfico solitário,
que vive num apartamento na praça Roosevelt. Ênio é um sujeito metódico que acredita que
a cidade pode ser entendida como um modelo matemático complexo, a dinâmica dos
fluidos.
Numa cena, a câmera se coloca frontalmente à muralha de edifícios da Martinho
Prado, em frente a Roosevelt. Em meio aquele mar de janelas que chegam a embaralhar a
vista, a câmera vai fechando até uma delas, onde está apoiado Ênio “somos todos
partículas”, em locomoção, esta é sua crença, mas ele está ali imóvel observando o lado de
fora, como também fica imóvel frente às telas de sua estação de trabalho. Muda-se a
posição da câmera, então de dentro do apartamento observamos com Ênio a vista da
metrópole com seus emaranhados de vias e fluxos
125
. O filme exibe a todo tempo tomadas
de elevados, viadutos, pontes, grandes avenidas, além de referências a lculos, códigos,
esquemas, gráficos... O personagem metódico, que entende a cidade como um sistema
viário que precisa ser controlado, mora sobre o grande entroncamento de vias, na
124
CAPUSSO FILHO, J. Eva e o Rei na praça Roosevelt. In: SANTOS, A. B. Op. cit. pp. 57-62.
125
A vista mostrada aí é na verdade uma perspectiva a partir da rua João Guimarães Rosa.
240
confluência central, local que reforça justamente este sentimento (ou necessidade) de
controle.
Mas o filme vai, como podíamos pressentir, confrontá-lo com o imprevisível, no
trânsito e na vida. E trânsito e vida vão estar totalmente amarrados na trama. O encontro
com a filha que não conhecia. A formação de vínculos se principalmente por passeios
com a garota pelo centro de São Paulo: praça Roosevelt, o Minhocão fechado a carros aos
domingos, passarelas, calçadões. As vias que em todo seu planejamento são imobilizantes,
daquele ângulo pedestre são fluídas e desimpedidas. E na cena final, correndo por meio do
grande congestionamento que ele mesmo causou para impedir a partida da filha, Ênio enfim
se locomove.
Imobilidade e incomunicabilidade podem se dar entre elementos que estão a apenas
uma praça de distância. Em uma reportagem publicada em uma revista de internet, é
apresentada a moradora Rafaela Stuppiello, “herdeira da praça”. Conta que o avô de
Rafaela, o imigrante italiano José Stuppiello, era dono do terreno da praça o teria
comprado em 1900. O filho de José, Vicente construiu mais tarde vários imóveis no lugar,
entre eles, o que funcionou a casa de prostituição de luxo La Licorne. Depois teve uma
grande desapropriação para a construção da “superpraça”, durante a gestão do prefeito
Faria Lima. Rafaela considera a vida na praça tranquila, “é um lugar gostoso de morar”. Sua
casa fica do “outro lado da praça”, na rua João Guimarães Rosa, e sobre isso, Rafaela
comenta a divisão existente:
“Na Praça tem coisas interessantíssimas daquele lado de lá, mas ficou muito
dividido os lados. Depois que a rua ficou sem saída, ela ficou meio morta. O
comércio daqui caiu em relação ao lado lá. Com a valorização dos teatros, você
pode entrar e sair. E como a Praça está muito feia, ninguém se atreve a
atravessar”.
126
Essa ideia da divisão aparece também na entrevista de Fabrício Muriana, 24 anos,
crítico de teatro da revista virtual especializada Bacante. A entrevista, ele conta, teria sido
dada por e-mail para o jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, para uma matéria sobre a praça,
126
SILVESTRE, N. Sob a luz da praça Roosevelt. O texto foi divulgado antes de sua publicação na revista pelo
blog Suscitas, em 15 abr. 2009 (Disponível em: <http://suscitas.blogspot.com/2009/04/praca-roosevelt.html>.
Acesso: 05 mar. 2010). A versão publica na revista Boemia foi mais editada e não traz a fala transcrita acima
(Revista Boemia, Araraquara, 28 abr. 2009. Disponível em:
<http://www.revistaboemia.com.br/Pagina/Default.aspx?IDPagina=294>. Acesso: 20 mar. 2010)
241
mas como achou que suas poucas falas utilizadas estavam muito fora de contexto, resolveu
publicar a entrevista integralmente, como enviada ao jornal, na Bacante. Muriana mora na
esquina das ruas Gravataí e Guimarães Rosa, e quando perguntado se ele considera que a
companhias de teatro são responsáveis pelas mudanças da praça, responde:
As cias de teatro são responsáveis pelo fluxo de pessoas que frequenta um lado da
praça. Pra ser mais exato, os bares dos teatros são responsáveis pelo principal
movimento de pessoas que por ali passam. (...) Daquele lado, abriu também uma
loja de quadrinhos, uma galeria de arte, ou seja, o movimento aumentou. E isso é
muito positivo do ponto de vista político, que vemos uma parte do centro sendo
reocupada pela população que a havia abandonado. Mas não dá pra dizer que
essas mudanças alteraram a praça e sim que alteraram o movimento de um lado
da praça.
127
Samba da Roosevelt
E, lá do outro lado da Roosevelt, na Guimarães Rosa, vem ganhando certa notoriedade
nos últimos a roda de samba cujo nome é uma exaltação ao livre arbítrio: Você vai se quiser.
Trata-se de um bar, que funciona num imóvel de propriedade da dona Rafaela, “herdeira da
praça”
128
. Um dos proprietários do lugar é Paqüera, figura conhecida do samba em São
Paulo, ele é um dos fundadores do Samba da Vela.
A Comunidade Samba da Vela é uma roda do bairro de Santo Amaro, zona sul de São
Paulo, que se reúne às segundas-feiras para tocar “samba de raiz”, como afirma Paqüera em
uma entrevista
129
. A ideia da vela surgiu como uma forma de controlar a duração do samba,
pois era comum que os sambistas perdessem noção do tempo, adentrando com seu ritmo
pela madrugada. De origem trabalhadora, os participantes da roda precisariam pegar no
batente no dia seguinte... por isso, a vela, como uma ampulheta de cera e fogo. Na roda não
muita dança, sambistas e público ficam sentados ao redor de uma mesa onde é colocada
a vela, em alguns momentos falas dos organizadores que lembram um pouco pregações,
aliás, a roda parece um culto religioso animado com devotos ao samba.
130
127
MURIANA, F. Sobre o teatro e seus refletores. Revista Bacante (site), São Paulo, 02 jun. 2009. Disponível em:
http://www.bacante.com.br/blog/sobre-o-teatro-e-seus-refletores/. Acesso: 10 mar. 2010.
128
SILVESTRE, N. Op. cit.
129
TACIOLI, R. Periferia do Rio e SP dividem palco do samba. Antídoto (blog), 10 out. 2008. Disponível em:
<http://blogantidoto.blog.terra.com.br/2008/10/10/samba-da-uma-nova-cara-a-periferia-de-sp/>. Acesso: 12
mar. 2010.
130
Samba da vela, minidocumentário, de 13 Produções e Comunidade do Samba da Vela, 2007.
242
O samba da Roosevelt não parece tão religioso como o de Santo Amaro. É bem festivo,
com equipamentos de som, bebida, comida e dança, muita dança. Acontece nas tardes de
sábado, quando o bar com suas paredes cobertas de retratos que remetem a uma história
do samba costuma ficar lotado e os frequentadores chegam a tomar a calçada. No samba do
centro, parece que a figura de comunidade fica difusa demais para ser usada, por isso a
designação mais solta vai quem quer.
no Orkut uma comunidade sobre o Você vai se quiser, que não recebe o nome do
bar, mas da praça: Samba da praça Roosevelt (criada em 2007). É a designação mais comum
mesmo Samba da Roosevelt. Nas poucas mensagens deixadas no fórum, há algumas
reclamações como o tempo curto deixada para as apresentações de um dos cantores
“tradicionais” da casa, falta de cerveja a partir de um determinado horário e lotação. Mas o
que mais chama atenção são comentários que explicitam o vínculo dos frequentadores, não
exatamente entre eles, mas de cada um com o lugar-tempo-samba (samba da praça
Roosevelt-tardes de sábado):
Marisa 18/02/09
Eu fui, sempre vou a 5 anos
Lá estava sensacional como sempre. Esse lugar é o motivo que tenho pra trabalhar
a semana inteira, só pra esperar o sáb. chegar.
Rafael 16/03/09
Eh Marisa, falou td.. Ralar a semana toda, torcer pro sábado chegar logo, e ir pra
esse samba! Eh um astral maravilhoso!!
Sou novo em SP, e sempre q posso, apareço por lá!
131
Em um blog sobre samba, o reforço da noção de autenticidade e multiplicidade
associada ao lugar: “se você busca excelência em atendimento, um bar chique, ou requinte,
este não é o lugar. Se você procura a alma do samba, a cerveja gelada a um preço justo, esta
opção não pode ficar de fora (...) gente de todo estilo e principalmente adoradores de
samba”.
132
131
Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?>. Acesso: 30 mar. 2009.
132
ROTTA, R. Você vai se quiser. Sambacidade (blog), São Paulo, 11 set. 2008. Disponível em:
<http://sambacidade.blogspot.com/2008/10/voc-vai-se-quiser.html>. Acesso: 02 mar. 2010.
243
A ocupação
“Ocupar, resistir, construir e ir morar”, um dos gritos de manifestantes que ecoavam
pela praça Roosevelt, numa das cenas de um registro audiovisual realizado pelo Centro de
Mídia Independente (CMI)
133
. As imagens escuras, tremidas, muitas vezes borradas, em
enquadramentos cortados foram feitas durante a noite de 7 de novembro de 2004, época
de várias ocupações organizadas pelo MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro) e pelo
MMRC (Movimento de Moradia da Região do Centro), que fazem parte da FLM (Frente de
Luta por Moradia).
O prédio que estava sendo ocupado era de propriedade da Caixa Econômica Federal,
abandonado havia vários anos, ali na rua Guimarães Rosa. Em um relato de um voluntário
do CMI que participou do grupo que entrou no prédio, é narrado que os sem-teto reuniram-
se no fim de tarde na praça para o culto religioso a chamada “mística”, orações coletivas
realizadas antes das ações de movimentos por terra ou moradia. Num certo momento, ao
som de um chamado, as pessoas do movimento saíram em ‘procissão’ até a entrada do
prédio, enquanto outras abriam as portas”. Já havia movimentação policial por perto. Com a
dificuldade para abrir a porta do edifício, outras viaturas de polícia começavam a chegar.
Portas abertas, entrada desordenada, com os policiais jogando gás pimenta. Parte do grupo
entra, outra é impedida pela polícia.
134
No vídeo, depoimentos de uma mulher ferida que diz ter sofrido um golpe de
cassetete na cabeça. Do lado de fora, policiais dispersam manifestantes e pessoas que
passam pelo local. Sons de tiros, explosões de bomba (de efeito moral, afirma um policial
que depoimento a repórteres de televisão e rádio). Mais tarde, tropa de choque. O
documentário Dia de Festa (2006), do Toni Venturi e Pablo Georgieff, que acompanha as
rotinas de quatro mulheres do movimento sem-teto, também traz cenas da ocupação e
confronto. Numa delas, policiais da tropa de choque irrompem numa espécie de marcha
pela praça em direção ao prédio da Guimarães Rosa.
No vídeo do CMI, um momento em que a câmera angula para o alto do prédio
escuro, ouve-se uma batida metálica e uma voz gritada de cima, sem face: “esse aqui é o
patrimônio federal, é aqui que mora os ratos e baratas, e o pai de família sem lugar para
133
Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/static/video.shtml. Acesso: 02 mar. 2010.
134
CMI. [ocupação do prédio da Caixa Econômica Federal] Do lado de dentro. CMI, 09 nov. 2004. Disponível
em:< http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/11/294275.shtml>. Acesso: 20 nov. 2009.
244
morar”, seguem-se gritos de apoio (da rua? de dentro do prédio?). Correria, esvaziamento,
nova correria, gritos, objetos atirados, ruídos de tiros. Um homem apresenta-se aos policiais
como advogado dos manifestantes e pede para conversar com o comandante, um policial
responde: “aqui não tem ninguém precisando dos seus serviços”.
Do lado de dentro, o voluntário do CMI conta que as horas foram passando, com
muitas dificuldades ao que parece, não pretendiam permanecer tanto tempo, não era uma
ação de ocupação definitiva, mas com o intuito de iniciar negociação. Segundo o relato, uma
das motivações para as várias ocupações naquele período teria sido a vitória nas eleições
municipais do candidato do mesmo partido que muitos anos ocupava o governo do
estado, e cuja linha política era considerada muito vinculada aos interesses de mercado e
com histórico de hostilização dos movimentos sociais organizados por terra e moradia. Os
manifestantes não tinham comida, nem água. A polícia tentava impedir que jogassem
alimentação para o lado de dentro do prédio, embora tenham conseguido fazer por duas
vezes. Negociações do lado de fora. Os manifestantes deixaram o prédio no início da tarde
do dia seguinte à ocupação, “sob aplausos”.
Ivam Cabral escreve um relato sobre a noite da ocupação, publicado em seu blog.
Conta ter visto por volta das 18 horas umas 200 pessoas rezando na praça e não entendeu
muito bem do que se tratava. Mais tarde o avisaram que a polícia tinha dispesado o grupo
polícia dispersando um grupo de religiosos? Estranho”
135
. Entrou em cena em Transex, e
durante o espetáculo diz que se ouviam “tiros, bombas, barulhos de helicóptero”. Quando
saiu viu os atores e o público dos teatro saindo em disparada, assustados “um clima de
horror, mesmo”. Viu muitas pessoas na praça e foi até: “eram as pessoas do movimento
sem-teto enfrentando a polícia, tentando furar o bloqueio e tomar o velho prédio, nosso
vizinho”.
No texto, o ator se coloca ao lado dos sem-teto, inserindo no contexto das ações das
ações do movimento “afinal vivo numa cidade monstruosa, com centenas de espaços
desocupados e gente morando na rua, achocalhados e espremidos por uma sociedade
desigual, corrompida”. Uma senhora, negra, Maria, começa a falar com ele, cotando sua
135
CABRAL, I. No meio do caminho havia uma guerra. In: Terras de Cabral (blog), São Paulo, 08 nov. 2004.
Disponível em: <http://terrasdecabral2.zip.net/arch2004-11-07_2004-11-13.html. Acesso: 10 fev. 2010.
245
vida com seus seis filhos, e que sua família tinha resolvido o problema particular de moradia
e que estava para dar força ao movimento. Depois diz que vai apresentar a Ivam todos ali.
Mas a senhora conhece todos eles?, perguntei, incrédulo mesmo.
Todos. E pelos nomes, me respondeu, orgulhosa.
Conta então que começaram a descer a Consolação, cumprimentado todos os
integrantes do movimento que estavam sentados no meio-fio das calçadas, um ao lado do
outro “seguramente apertei mais de 50 mãos”. Barulhos de bombas eram com frequência
ouvidos, e dona Maria segura dizia a Ivam: Se intimide, não. Eles pensam que nos
assustam. Mas no fundo, essas bombas servem só pra nos deixarem mais espertos”.
O ator então oferece o teatro dos Satyros como local de refúgio, para um descanso.
“Mas dona Maria mais uma vez me explicou que precisariam ficar acordados, atentos e
fortes”.
A feira
Aos domigos, há feira na Roosevelt, mais especificamente na Guimarães Rosa. Já
desde antes a contrução da praça de concreto havia feira livre, mas no meio da praça, por
sinal uma feira com recorrência lembrada. Era considerada uma das maiores e mais variadas
da cidade. No site memorialísco São Paulo minha cidade em que texto com relatos
pessoais sobre a cidade são publicados e comentados pelos visitantes um texto
saudosista, assinado por Nelson de Assis, sobre as feiras do Bexiga nos anos 60. O autor
depois de comentar a relação de sua família com a feira da rua Santo Antonio, fala sobre a
da Roosevelt como uma daz mais famosas da redondeza:
(...) era enorme e bastante concorrida. Dado ao tamanho da praça, barraqueiras
das mais diversas localidades por ali se instalavam para venderem seus produtos. A
variedade de gêneros era mais apurada com frutas e hortaliças de todas as
espécies e procedências. Frutas da estação, nobres, nacionais e importadas,
hortaliças e verduras dos mais variados tipos, além dos cereais, secos e molhados,
peixes, embutidos, enlatados, confecções, ervas milagrosas, produtos naturais etc.
Também chamava a atenção os velhos carregadores de compras. Eram sempre
senhores de meia (ou alta idade, a exemplo de meu tio Pedro) que, com um grande
cesto de vime trançado e uma rodilha de pano para a cabeça, enchiam os tais
grandes balaios com as compras dos fregueses e transportavam-nas até suas
246
residências. Havia uma tabela de preços para tal frete e a depender da distância o
preço subia, mas nada que pudesse amendrontar o cliente.
136
Na sequência, o texto se ressente das feiras atuais, que teriam perdido o vigor um
dos comentários de leitores chega a a observar que “a feira da Roosevelt está reduzida a um
minguado quarteirão...” – a feira ficou comprimida na Guimarães Rosa.
A feira nos tempos da Roosevelt em sua versão de concreto aparece no relato de
caráter afetivo da autora de um blog especializado em culinária, que a partir de ingredientes
comprados no local ensina a preparar uma sopa francesa.
Ando com saudades de quando morava bem no centro da cidade. O nosso
apartamento era um terço do tamanho do atual, mas tinha um terraço enorme
onde a gente plantava alecrim, sálvia, tomilho, lavanda e manjericão. Tinha a feira
da praça Roosevelt, todo domingo. Tinha mais silêncio à noite. Tinha o frango
assado da Marajá e os sucos da Palma de Ouro. Tinha o Barbosa, o porteiro mais
educado que conheci e que resolveu, algumas semanas, voltar pro Ceará sem
se despedir de ninguém. Tinha os grafites que a prefeitura insistia em limpar e que
eram sempre renovados. E tinha as luzes do centrão, aquelas alaranjadas que eu
voltei a ver na Virada Cultural… Ai, ai.
Quando fico muito saudosista, logo me lembro de todas as coisas boas de morar
onde estamos agora, da nossa casa grande, da cozinha onde eu posso inventar mil
pratos, da proximidade com os cinemas, do acesso fácil para amigos e familiares…e
tento, sempre que posso, freqüentar mais o centro. E foi por isso que decidi voltar
a freqüentar a feira da praça Roosevelt. Ela não é sensacional, mas é caricata,
divertida, autêntica. Tem gente de todos os tipos, velhos, gringos, cachorros, putas
e modernos. Tem a doidinha que grita “reage praça Roosevelt”, o vendedor de
carne que oferece café, a moça dos temperos que sempre coloca um chorinho na
sacola do cliente, e todos os grafites novos ao seu redor, que a gente descobre e
fotografa quando dá.
137
A narrativa traz o abandono do centro como lugar de moradia e a opção por um bairro
com casa mais confortável e “acesso fácil para amigos e familiares”. Mas o centro é o lugar
da memória afetiva, numa curiosa inversão: o bairro de características residenciais, menos
urbanas, como marca da atualidade; o centro, cheio da mistura tipicamente urbana, como
marco de lembranças saudosistas, que segundo Raymond Williams carregam
temporalidades mais rurais. A feira, que é elemento urbano mas que também remete à
ruralidade, aparece no relato em meio a grafites, “velhos, gringos, cachorros, putas e
modernos”, além da “doidinha” “reage praça Roosevelt” e é para a narradora o símbolo
de autenticidade, por ser caricata e divertida.
136
ASSIS, N. Feiras livres do Bexiga São Paulo minha cidade (site/blog), São Paulo, 16 jul. 2009. Disponível em:
http://www.saopaulominhacidade.com.br/list.asp?ID=3382. Acesso em: 02 mar. 2010.
137
LIDIMES. Direto da Praça Roosevelt: soup au pistou. Lidimes na cozinha (blog), São Paulo, 19 mai. 2009.
Disponível em: http://www.lidimesna.com.br. Acesso: 02 mar. 2010.
247
Os estudantes
Nos tempos em que a Guimarães Rosa chamava-se rua Olinda, tinha ali um
tradicional colégio de São Paulo, o Deutsche Schule (que a comunidade alemã costumava
chamar de Olinda-Schule). Na década de 1970, a escola alemã foi se estabelecer no bairro
do Morumbi, com o nome Visconde de Porto Seguro. O prédio da Roosevelt foi então
ocupado pela tradicional escola pública do centro de São Paulo, o Caetano de Campos. Saído
da Praça da República, dividou-se em duas sedes, a da Roosevelt e outra no bairro da
Aclimação.
A figura dos estudantes é assim muito comum pela praça Roosevelt, ao longo de toda
sua história. No Orkut, diversas comunidades sobre o Caetano de Campos, uma delas
com mais de 4000 participantes. Há pequenos relatos de várias épocas, do Caetano da
República, da Escola Alemã, do Caetano da Roosevelt. lembranças sobre professores,
diretores, alunos, festas... Das rivalidades entre os estudantes do Caetano de Campos com
os do Marina Cintra, outra escola pública da região da Consolação. E histórias sobre a praça:
andar de skate, de bicicleta, matar aula, bater papo, dos festivais de músicas organizado
pelos alunos, de um desfile de moda...
Nil 31/07/2008
(...) tive toda minha "aborrecência" na praça, em 1980 frequentava a praça
aos 11 anos de idade, andava de bicicleta, patins, meu namoradinho conheci na
praça, estudei no Caetano, cla-ra-ro, namorei na praça, vi a praça passar por várias
cores desde cinza, vermelho, verde, adorava andar de patins naquele "redondo"
que tinha lá em cima, a gente chamava de palco, fui de uma época que no Caetano
a aula de educação física tinha ginástica olímpica, além de voley, basquete, futebol
para as meninas, teve um ano que tinha um circo montado lá na praça e o redondo
era o palco do circo, não é que a professora, D. Lucinda fez a apresentação de final
de ano da ginástica olímpica lá!!!! Muiiito bacana, era uma época linda, onde as
mães levavam as crianças para tomar sol (...), havia bancas de flores, Pão de
Açúcar, era o supermercado da época, muiitas pombas que vinham sempre que
um funcionário da prefeitura jogava milho, lindoooo parecia a "PIAZA SAN MARCO
em Veneza", tinha lojinha de artesanato, correios, pré-escola municipal, realmente
a praça era LINDA demais, limpa demais, point da galera!!!
Ou ainda:
Marcos 23/12/2008
Ninguém vai falar das "boas" brigas que rolavam na Praça?????15 ou 20
encostados no muro em frente à escola esperando outro 15 ou 20 sairem
dela.....rsrsrs!!!!Só paravam quando chegava a “baratinha”...
138
138
Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=132197&tid=5224718090845108>
. Acesso: 02 mar. 2010.
248
Também nestes microrrelatos, um constante tom saudosista, de uma época
afetuosa, de descobertas, mesmo para os mais novos (alunos dos anos 2000). Em uma
enquete colocada em uma destas comunidades, perguntava-se qual o personagem mais
importante da escola, entre várias opções (diretor, professor, o atendente da cantina etc.), o
mais votado foi o Seu Augusto, zelador. Justamente a figura do que “zela” pelo lugar físico
do colégio, talvez mais um pequeno indício de como o imaginário de uma época tem forte
apego espacial.
Filme de terror
Um roteiro de “baladas” em São Paulo anunciava em agosto de 2006:
Neste sábado (12/08), no único casarão do século 19 da Praça Roosevelt, acontece
a festa Terror, produzida por Ida Feldman. Durante a festa, haverá projeções de
cenas de um filme de terror, mostra de fotos tiradas na casa, fotos de Ida Feldman,
música, performance do coletivo de grafite Suicidas de Diadema, sangria e
cardápio especial vegetariano.
139
O tal casarão da rua Guimarães Rosa foi construído na verdade em 1923, meio em
ruínas e com fama de mal-assombrado, o imóvel foi comprado pela cineasta Jussara Félix
Figueiredo. Em uma entrevista para um site de internet, perguntada sobre a primeira
impressão que teve da casa, Jussara responde que parecia realmente assombrada: “as
pombas, umas 200, a casa em ruína, mas como uma linda rosa no jardim”
140
.
A casa seria usada para a produção de um filme de terror, e que a partir de histórias
que a cineasta começa a ouvir dos vizinhos a ideia ganha mais vulto, conforme matéria do
Jornal da Tarde: Comecei a pesquisar a região e conversar com pessoas que moram e
trabalham ali perto e descobri mil histórias. (...) começou a se deteriorar em 1850. Nesta
época, São Paulo era uma cidade cheia de pestes, um ambiente propício para uma história
de terror".
141
139
Disponível em: < http://www.obaoba.com.br/agenda/AgendaDetalhe.asp?festaID=169883>. Acesso: 20 set.
2008.
140
MILICI, M. Jussara Figueiredo (entrevista). Boca do Inferno (site), out. 2006. Disponível em:
<http://www.bocadoinferno.com/romepeige/entrevistas/jussara.html>. Acesso: 01 abr. 2010.
141
FÉLIX, L. Terror na Roosevelt. Jornal da Tarde, São Paulo, Variedade, 31 out. 2005.
249
Segundo informa ainda matéria do Jornal da Tarde, Terror na Praça Roosevelt “mistura
ficção, documentário e reality show em um longa metragem de 90 minutos”
142
. Por meio do
Orkut, foi feito parte do recrutamento da equipe para o filme, como foi na rede social que
apareceram muitas das histórias que entraram para o roteiro. Também estudantes do
Caetano de Campos teriam participado como figurantes. O estilo do filme seria inspirado em
A bruxa de Blair, que simula um documentário e que todos os participantes da produção
tinham ciência que poderiam ser filmados a qualquer momento, e as cenas usadas na edição
final, por isso reality show.
A casa estaria na própria concepção estética do projeto uma direção eclética como
a arquitetura da casa”
143
. Em entrevista, Jussara Figueiredo reafirma o clima sobrenatural
que envolve a região e o processo de produção do filme:
Já aconteceram coisas bem esquisitas deste que a gente comprou a casa....Eu
quebrei o meu pulso andando normalmente e tive que fazer uma operação bem
séria, muita morfina e dor... Outro dia caiu um cara daqui do telhado da minha
casa; houve um assalto, mas os ladrões foram surpreendidos por certas
"armadilhas" do destino: caíram em buracos feitos no assoalho do and ar de cima;
houve também um curto no aquecedor de água, quase rolou um incêndio. Além
disso teve muita gente que simplesmente desapareceu, tipo sumiu de um dia pra o
outro... sem deixar marcas. Não precisamos de nenhum exorcismo pois logo que
comprei a casa pedi pra minha mãe dar uma limpada no espaço.... e outro dia a
antiga dona , a Bartira, me deu um pano branco com bordados pra eu colocar na
porta da frente da casa e todos os "visitantes" são obrigados a deixar as más
energias no pano.
144
A trama, segundo o divulgado, envolve os integrantes de uma equipe está produzindo
um documentário sobre a revitalização do centro de uma metrópole sul-americana, a partir
da reforma de um sobrado da praça Roosevelt, quando se deparam com figuras e
acontecimentos sobrenaturais. Entre zumbis, vampiros e bruxas, a protagonista é Dimmy
Kieer, criatura enigmática, interpretada pela drag queen de mesmo nome, que viveu na casa
em meio do século XIX. E então cenas e visões de assassinatos e histórias de terror passadas
na região passam a ser revividas
145
.
Na matéria do JT, há a indicação de que o filme de terror faria parte de um projeto que
pretendia contribuir na revitalização do centro, ressuscitando a região “a partir da morte”.
142
Ibidem.
143
MILICI, M. Op. cit.
144
Ibidem.
145
Disponível em: <http://www.benfica-online.com/benfica/video/ pYdwOfeJBRM/ Horror-in-the-Roosevelt-
Square-Terror-na-Pra%C3%A7a-Roosevelt.html> . Acesso: 01 mar. 2010.
250
Jussara Figueiredo também estava produzindo um documentário sobre a praça para
acompanhar o filme de terror. O lançamento chegou a ser anunciado para final de 2006,
mas até o fechamento deste texto não havia nenhum anúncio sobre ele, apenas a
divulgação de clipes e trailers no site Youtube.
Ainda no tema terror e monstros em geral, a praça Roosevelt também foi o local
escolhido como ponto final para a Zombie Walk SP, evento de inspiração internacional, que
concentra participantes vestidos de zumbis, que vagam em procissão por ruas da cidade no
dia de finados. A edição de 2009 inicou na Praça Patriarca e encerrou na Roosevelt, onde
zumbis tomaram suas rampas e o grande pentágono.
146
6. Praça Roosevelt em cena: A vida na praça Roosevelt (cartaz da montagem do Satyros); Terror na Praça
Roosevelt (cartaz divulgado); Piata Roosevelt (montagem do Teatro Nacional de Timisoara, Romênia) e
fotograma do filme Não por acaso.
146
AMENDOLA, G. Quase um “Thriller”. Jornal da Tarde, São Paulo, Variedades, 01 nov. 2009.
251
Capítulo 5. Moda e institucionalização
“Cultura é a praia do paulistano”. Diz um dos textos de um guia turístico oficial da
cidade de São Paulo. Na sequência, apresenta alguns números de museus, salas de teatro,
cinemas, bibliotecas etc. Destaca, a partir daí, o “mercadode atrações teatrais na capital
paulista “que vão das super produções dos musicais da Broadway ao teatro de
vanguarda”. Apresenta vários espaços, a partir de curiosas definições e classificações, que
mais do que se fixarem em algum possível perfil das salas, parecem ter comprometimento
apenas como a estruturação do texto promocional:
(...) Outro gênero que nunca deixa de fazer sucesso é a comédia. E nesse quesito,
principalmente para as grandes montagens, o Teatro Folha é especial, assim como
os menores Teatro Frei Caneca e a maior parte dos estabelecimentos localizados
no entorno da Praça Roosevelt, como o Espaço dos Satyros 1 e 2. (...)
Muitos centros culturais também têm sua própria sala, como é o caso do Centro
Cultural São Paulo, sempre com alguma peça descolada e alternativa. Falando em
alternativo, o estilo “teatro de arena” faz história na capital paulista. Dois
excelentes exemplares desse tipo são o Tucarena e o diferente Teatro Oficina, que
proporcionam experiências sensoriais singulares.
1
Uma matéria do jornal carioca O Globo que traz roteiros em São Paulo para turistas de
fim de semana sugere visita à praça Roosevelt para conhecer “alguns dos grupos de teatro
de vanguarda do Brasil”
2
. A praça, considerada degradada até pelo menos começo dos anos
2000, aparece menos de uma década depois em roteiros de turismo. O aspecto “turístico”
destacado da Roosevelt não é a arquitetura, a história ou os grafites, mas a caracterização
como reduto do teatro alternativo paulistano. O crescimento da atenção dos meios de
comunicação de massa, como a do poder público ao local liga-se assim ao projeto de
formação do polo teatral.
E este campo do turismo parece um bom ponto de partida para pensar esta imagem
de “renascimento” da Roosevelt. A própria ideia de turismo em São Paulo pode soar um
pouco ruidosa, a metrópole parece tão distante dos modelos-padrão que servem aos
1
Guia oficial de turismo da cidade de São Paulo, 2009. Disponível em:
<http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/pontos-turisticos/227-teatros-e-musicais> Acesso: 10
mar. 2010.
2
ABOS, M. Confira um roteiro para curtir São Paulo em um fim de semana. O Globo, Rio de Janeiro, 25 abr.
2008.
252
roteiros turísticos: sem belezas naturais, sem grandes núcleos históricos preservados, nada
convidativa à caminhada, sistema de transporte público precário, poluída, vias
congestionadas... Ouvi em um programa televisivo norte-americano sobre turismo
gastronômico o comentário do apresentador, de que a primeira impressão sobre São Paulo
era como se Los Angeles tivesse vomitado sobre Nova York.
De qualquer modo, há o apelo às subespecializações do turismo de negócios, de
compras, de gastronomia e de cultura. Como observa Beatriz Sarlo, os guias turísticos
constroem narrativas que permitem que os estranhos a uma cidade “fantasiem mapas
mentais” para experimentá-la. Para isso, criam um sistema um pouco rígido de identidades e
classificações para que a cidade seja lida em seu conjunto a partir de alguns recortes bem
particulares. E assim criam imagens ou ideias rápidas e genéricas que funcionam como um
qualificativo geral, um aposto para o local. Das imagens postais a slogans: “a cidade que
nunca dorme, a meca do cinema, a cidade luz, a cidade do tango, a cidade santa etc.”.
3
Ou, aqui para São Paulo, textos que sintetizem a multiculturalidade (“várias cidades
em uma só” etc.) ou a valorização de uma atividade: “cultura é a praia do paulistano” até
algum tempo atrás, era corrente a mefora “o shopping é a praia do paulistano”. Em
tempos de discursos hegemônicos com capas política e ecologicamente corretas”, o
turismo de compras como fonte principal de apelo talvez tenha as suas limitações. Neste
contexto, o termo “cultura” pode permitir mais desenvoltura, pois em toda sua
generalidade fornece a possibilidade de englobar atividades várias sob uma aura
politicamente correta.
Esta “cultura” que aparece referenciada no guia de turismo funciona ali como recheio
para uma estrutura narrativa mais ou menos rígida. Vai receber classificações para compor
principalmente a ideia de certa diversidade e que pode misturar estilo, gênero, esfera de
produção etc.: o clássico, o popular, o vanguardista, o tradicional (“de raiz”), o kitsch, o
sofisticado, o despojado, a comédia etc. E assim o rótulo “alternativo” cola-se ao teatro da
Roosevelt veja que neste sistemas de classificações, pode-se chegar a confusões completas
com aparência de ordenação, como as referências do guia oficial reproduzido no começo do
capítulo. ainda as designações off Broadway ou off off Broadway paulistana, que são
alimentadas pelo antigo jogo imaginário de projeção de Nova York em São Paulo: a avenida
3
SARLO, B. La ciudad vista: mercancías y cultura urbana. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2009. p. 190.
253
Paulista como a “Wall Street brasileira”, ou a Vila Madalena como “nosso Soho ou
Greenwich Village etc.
Sarlo, ao comentar sobre a associação frequente entre Buenos Aires e Paris, observa
que a comparação pode aparecer como a expressão de um desejo, o que acaba por impedir
a descrição, pois se baseia em um jogo que opera totalmente no imaginário
4
. A praça
Roosevelt ao ser identificada a nossa off off Broadway indica a existência de Broadway (e
ainda uma off-Broadway) local? Em que exatamente consiste a analogia?
A cultura nas páginas de guias de viagem ou em boa parte da cobertura dos grandes
veículos de comunicação ganha rótulos. O imaginário dos artistas da praça Roosevelt ecoou
fortemente a ponto de motivarem ações oficiais do poder público e suplantaram outras
leituras. Mas este imaginário ganha então uma leitura de fora para dentro, pelos meios de
comunicação de massa/mercado e pelas esferas de poder. E será que aquele imaginário do
momento de formação do “pedaço” sobrevive ao processo de institucionalização ou são
novos sentidos que ganham formatação?
Sob o rótulo da cultura “alternativa”
Alternativo! Alternativo! Alternativo!", grita, em coro, a turma do grupo Os
Satyros, quando Marat Descartes é anunciado melhor ator. "Na verdade, R$ 8.000
não para nada. Mas teatro é um terreno tão árido que até isso salva", diz Ivam
Cabral, diretor do grupo.
5
A notinha acima foi publicada na coluna social de um dos jornais de maior circulação
de São Paulo. A ideia do “despojamento” material da arte alternativa, a aridezfinanceira
que marcada este campo cultural pela afirmação do texto, tudo isso noticiado em uma
coluna social cria um certo ruído. embutido na figura do “alternativo”, acredito, uma
crença na “pureza” artística, como se os artistas deste universo tivessem maior envergadura
ética, maior “autenticidade”, a arte do desprendimento. E o que ganha destaque na coluna
social e veja que não é apenas no caderno cultural, mas justamente na coluna social de
um grande jornal ainda pode ser chamado “alternativo”?
4
Ibidem. p. 191.
5
BERGAMO, M. R$ 8.000 e o terreno árido. Folha de S.Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. 5-2, 14 mar. 2007.
254
Aproveito, então, a brecha aqui para tecer algumas considerações sobre esta
classificação, em cima de um termo que ganhou uso fácil nos meios de comunicação e que
alguns artistas mesmo rejeitam. A expressão “teatro alternativo” define-se por uma
comparação, pela negação de algo. Este universo do teatro alternativo ganha certa
configuração em São Paulo, a partir principalmente da experiência e das propostas do
Arena, e depois o Oficina, dentro do cenário teatral da cidade em cada contexto
6
. Mais
recentemente “alternativo” é comumente associado à ideia de produções que primam pela
proposta artística e não pelos resultados de bilheteria, teriam assim mais qualidade como
manifestação de arte, do que trabalhos que ficariam fora da sombra do termo, que seriam
mais associados ao entretenimento.
Seria “alternativo” às grandes produções, estas, bancadas normalmente por
patrocinadores, espetáculos que privilegiam temas e formatos de fácil aceitação
principalmente por plateias de classe média (muitas vezes mimetizando expedientes
narrativos da dramaturgia televisiva) e que comumente usam a participação de atores ou
atrizes de televisão como atrativo de público.
Mas então o universo alternativo estaria situado no campo de produções precárias do
ponto de vista dos recursos materiais disponíveis e da pouca visibilidade midiática?
Vejamos. Tomando a ideia de um teatro que não nasce de motivação comercial, o que pode
ser aceito, mas tomando o cuidado de imaginar que algumas das produções taxadas como
“comerciais” possam ter também outros propósitos que não o de gerar grandes bilheterias.
As pequenas salas e a ausência de palco italiano são traços marcante desta produção
“alternativa”, mas também não definidores. Quanto à questão do patrocínio, é comum que
as montagens e a manutenção dos grupos não tenham patrocinadores constantes e
dependam de programas públicos de fomento ou de atividades paralelas das companhias e
dos artistas para que se realizem, embora por vezes possam obter patrocínios. A visibilidade
de mídia também não é um elemento determinante, pois existem espetáculos
absolutamente obscuros para a cobertura cultural, como outros que têm espaços muito
relevantes nos meios de comunicação até maiores que boa parte da das produções
6
Sobre a ideia da configuração da noção de teatro alternativo em São Paulo, principalmente a partir das
experiências do Arena e a cena do teatro “não comercial” em São Paulo nas década de 1970 -80, ver a
dissertação: COSTA, F. S. Dramaturgia nos grupos alternativos no período 1975 a 1985, 1990. Dissertação
(Mestrado em Artes Cênicas) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
255
“comerciais” (que normalmente ocupam mais espaço publicitário do que editorial). Existem
produções não-comerciais que são muito caras, com cenários e figurinos superelaborados,
e eventualmente, atores e atrizes de televisão participam deste tipo de montagem.
Outro elemento que pode ser levado em conta é que o dito teatro “alternativo” não
foca suas propostas no entretenimento, não se apresenta como uma diversão, mas como
uma reflexão sobre um tema e/ou sobre as linguagens. Agora isso não quer dizer que as
montagens precisem se situar num campo de hermetismo, aliás propostas consideradas
mais consistentes apresentam, sim, preocupação em estabelecer em certa medida
comunicação com a plateia
7
e podem também entreter.
Uma possibilidade seria falar em “experimental”, mas também há um problema, pois o
experimentalismo liga-se à ideia da pesquisa de limites e rupturas das linguagens. Embora,
estas pesquisas possam estar presentes em alguns casos, não é aspecto determinante,
grupos e projetos enquadrados neste universo que não trabalham com esta proposta. Colar
a concepção de alternativo a outros termos como “vanguarda”, “marginal”, ou
underground (ou “udigrudi”) acarretaria em mais excesso de bagagem lexical, sem
trazer propriamente esclarecimentos conceituais.
Também poderíamos fazer referência ao teatro de grupos estáveis, o que também de
cara traz o problema de que muitas montagens e artistas deste universo não estão ligados a
companhias regulares.
Sem estender mais, fica evidente que a dificuldade conceitual é enorme, pois se trata
de tentar englobar experiências variadas em um rótulo. Percebe-se também como é difícil
fugir do campo das comparações quando se trabalha com classificações, pois classificar é
tentar estabelecer limites. As comparações no caso dão leituras fáceis e mais rasas a certos
fenômenos sociais e culturais, muitas vezes, repetindo a afirmação de Sarlo embotando
a capacidade de descrevê-los. Estas classificações, muito explorada pelos roteiros culturais
dos veículos de comunicação, funcionam para compor o quadro de uma diversidade que
corroboram a imagem de cosmopolitismo e multiculturalismo metropolitano. Mas uma
diversidade ordenada, arranjada, classificada, e a figura do “alternativo”, com toda sua
7
Para citar um exemplo, é possível tomar o estudo de Rodrigo Arrigoni sobre a montagem Transex dos Satyros,
que a partir do acompanhamento das rotinas de ensaio, identifica as preocupações comunicativas da
encenação. ARRIGONI, R. O espaço comunicativo nos teatros dos Satyros: o ator e o espectador, 2006.
Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo.
256
imprecisão, cumpre papel fundamental, a oferecer experiências que carregam que a marca
da autenticidade artística.
Para discutir a ideia dentro do meio teatral, a revista virtual especializada Bacante
lançou um debate com diretores, dramaturgos e críticos sobre a figura do “teatro
alternativo” e a praça Roosevelt apareceu muitas vezes como referência para se pensar as
limitações do termo. As várias opiniões apresentadas no texto (e na íntegra das entrevistas)
demonstram que não há concordância sobre a consistência da palavra usada como conceito.
No texto, o teatro da praça Roosevelt é apresentado como figura de paradoxismo, pois
justamente a visibilidade midiática lhe atribui o rótulo de principal reduto do teatro não-
comercial de São Paulo.
A grande imprensa estava olhando para a Brigadeiro de helicóptero (pq eles
enxergam de longe), quando, de repente, virou os olhos para o centro e viu alguém
pelado na Roosevelt. (Não! Não era o Celso! Ele fica um pouco mais pra lá!)
Desde então, seus representantes vivem dando capas, matérias e fofocas sobre
teatro alternativo. Os grupos, acostumados à solidão do anonimato se assustaram,
mas, depois, o calor dos flashes trouxe conforto, comodidade e público,
aumentando a bilheteria e a gratidão.
-se, então, uma das relações mais complicadas e comentadas no cenário teatral
paulistano. É possível se manter alternativo depois de sair na capa da Bravo?
8
no trecho citado certo tom de deboche, que parece mesmo apontar o dedo para o
suposto atrito entre a imagem do despojamento ligada aos teatros da praça e a sua inserção
na grande mídia veja o destaque dado à Bravo!, revista cultural da editora Abril com um
perfil mais elitista. A revista Bacante, embora costume fazer cobertura regular da produção
e programação dos teatros da praça e das Satyrianas, mostra em vários textos o que me
parece um incômodo do corpo editorial do site com relação à supervalorização da produção
da Roosevelt. De maneira sutil ou um pouco mais explícita, frequente questionamento a
uma certa unanimidade midiática criada em torno do teatro e das ações produzidas pelos
grupos da Roosevelt inclusive alguns comentários deixados no blog da Bacante também
apontam para isto.
O crítico Sérgio Sálvia afirma que “alternativo” virou uma grife para alguns artistas,
que se utilizam dele como uma capa protetora para fugir da discussão sobre a qualidade
8
CODOGNOTTO, J.; PERRECHIL, L. Teatro alternativo. Revista Bacante (site), São Paulo, 01 mai. 2007.
Disponível: <http://www.bacante.com.br/especial/teatro-alternativo/>. Acesso: 10 jan. 2010.
257
artística. O mesmo crítico afirma que o teatro da Roosevelt é a “ponta do iceberg” de um
tipo de produção que se disseminou:
Ele afirma que são entre 50 e 100 os grupos que têm sede própria e desenvolvem
trabalhos regionais. Ele conta que, em casos como esses, quando os grupos
atingem alguma autonomia e conseguem um espaço, suas sedes funcionam quase
como um posto de saúde cultural e os grupos são levados a conhecer a realidade e
as demandas das regiões ocupadas. “Não é venda de um produto pronto, como
nos grandes teatros, é um diálogo, uma construção comum com a comunidade em
volta.”
9
A revista Época São Paulo traz, em dezembro de 2008, a matéria “A Roosevelt
explodiu” atribuindo a disseminação dos pequenos espaços de grupo (cita salas na região da
Consolação, na Vila Madalena, na Pompeia e na Lapa) à visibilidade obtida pelo teatro da
praça. Na matéria uma fala do dramaturgo carioca radicado em São Paulo, Roberto Alvim,
define como fenômeno tipicamente paulistano: “No Rio, espetáculos menos comerciais
saem em página inteira nos segundos cadernos de jornal e não atraem mais de 15 pessoas
numa noite. Aqui, a gente estréia um espetáculo com um mês de ingressos vendidos
antecipadamente”
10
. A matéria não faz ligação direta, por exemplo, entre a propagação das
salas pequenas e o programa de fomento da prefeitura, embora cite que um dos espaços
que ganhou mais destaque na matéria usou recursos públicos para se estruturar.
No debate da Bacante, a ideia de que os teatros da Roosevelt iniciaram um processo é
rebatida pela atriz Ângela Dip, que conta que no final dos anos 80 existia o Espaço Off
(“era um pouco isso que tem a praça Roosevelt, tinha show às duas da manhã… Edson
Cordeiro, a primeira vez que eu vi ele cantando na vida… ele cantava na rua, né? E ele foi se
apresentar lá”
11
) e que várias experiências de locais pequenos e obscura conseguem manter
trabalhos com regularidade, atraindo público.
Sobre Os Satyros, a matéria diz que a dramaturga Marici Salomão se referiu ao grupo
como uma espécie de “alternativo chique”. O dramaturgo Sérgio Roveri, apresentado como
um artista que circula entre os espaços da Roosevelt e salas “nobres”, afirma:
Nos últimos anos, Os Satyros foram contemplados com vários prêmios de
incentivo, excursionaram pelo Brasil e pela Europa, são referência na produção
9
Ibidem.
10
PRETO, M. A Roosevelt explodiu. Época São Paulo, São Paulo, n. 8, pp. 167-169, dez. 2008
11
CODOGNOTTO, J.; PERRECHIL, L. Op. cit.
258
teatral da cidade e transformaram a Praça Roosevelt num pólo de produção
cultural, onde as filas começam às 18h e não terminam antes da meia-noite. Então,
como dizer que um grupo como eles é alternativo?
12
Os Satyros possuem dois espaços próprios e escritório. Os Parlapatões possuem além
da sala na Roosevelt, um escritório no bairro de Pinheiros, um barracão que funciona como
depósito e um circo itinerante
13
. Não apenas a visibilidade de mídia, os prêmios no currículo,
mas também a estrutura por trás dos grupos contrastam com a imagem de grupos sem
muito recursos (que produzem seus espetáculos “na raça”). A imagem do que um dia
foram grupos obscuros, sem apoio, atuando em condições materiais precárias aparece,
às vezes, congelada no imaginário sobre o teatro da Roosevelt.
À luz da mídia
“Não sou Mãe Dinah, e digo apenas que a noite em que Gilberto Dimenstein fez seu
showzinho de horrores politicamente correto acompanhado do pianista aleijão... foi a
primeira noite dos últimos dias da Praça Roosevelt”, diz o narrador do livro de Marcelo
Mirisola.
14
A partir de 2007/2008,observa-se que a movimentação em função do quarteirão dos
teatros da Roosevelt ganha cada vez mais aparição nos meios de comunicação de massa
tradicionais, e uma narrativa mais rígida sobre os sentidos da praça e o papel da cultura no
local. Estas falas têm claramente um tom voltado para o público externo, ou seja, para
aqueles que não fazem parte do vínculo de convivência do “pedaço”. E internamente no
grupo original de artistas, certas fissuras, como o comentário de Mirisola evidencia os
“últimos dias da Praça Roosevelt” representavam o fim daquela praça de suas memórias
afetivas (às vezes, não tão afetivas assim...) e o aparecimento de outro significado, um
significado que em parte nega o imaginário sobre o qual a vinculação teatro e praça se
apoiou.
12
Ibidem.
13
KRÜGER, C. Experiência social e expressão cômica: os Parlapatões, Patifes e Paspalhões, 2008. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas. p. 134.
14
MIRISOLA, M. Animais em extinção. Rio de Janeiro: Record, 2008.
259
Com destaque ao trabalho das companhias (principalmente Os Satyros e Parlapatões),
como na configuração da dinâmica do espaço urbano, a praça Roosevelt ganha novo status
no tratamento que recebe dos veículos de comunicação de massa. Se nos anos 90, a praça
era pauta do noticiário policial, na fase mais recente está nos cadernos de cultura, na coluna
social e na cobertura sobre políticas públicas. Jornais, revistas, internet e até mesmo
televisão: a praça Roosevelt dos anos 2000 é uma das regiões metropolitanas com mais
espaço nos meios de comunicação de massa, e não só na cobertura local, como em matérias
de veiculação nacional, e também em jornais de outras cidades.
Apesar da grande enxurrada de mídia, o enredo principal das narrativas apresentadas
pela imprensa é, com raras, muito raras, exceções, o mesmo: a praça Roosevelt, antigo
reduto da cultura e da noite paulistana, degradou-se após a construção da grande estrutura
símbolo do autoritarismo do período militar e transformou-se em um amontoado de
concreto, viveu um período de ausência de vida, um vácuo de representação na história de
lugar e, depois disso, vem sendo revitalizada pela ação de grupos teatrais de perfil
“alternativo”. assim a naturalização nos meios de comunicação de massa da versão de
que os artistas deram vida (ou recuperaram a vida) ao espaço anteriormente morto, de que
a cultura estancou o processo de degradação.
Tomo aqui para exemplificar uma reportagem publicada no jornal Gazeta do Povo, de
Curitiba que por ser voltada a um público não paulistano, apresenta de forma condensada
a imagem mais padrão sobre o papel do teatro na praça. O texto inicia reproduzindo uma
suposta fala de um telefonema anônimo recebido pelos Satyros, nos primeiros tempos de
instalação da sala na Roosevelt, em que foi feita a ameaça de que se o grupo não pagasse 15
mil reais haveria “derramamento de sangue”. Depois da ligação anônima, três atores teriam
se desligado do grupo, amedrontados. A matéria do jornal reforça a ideia do abandono do
local desde a construção da praça de concreto, evocando ainda o passado notório com
citação do Djalma´s e do show de Elis Regina. Conta que a praça transformou-se em “reduto
fixo de traficantes, usuários de drogas e prostitutas” e, na sequência, uma fala atribuída a
Ivam Cabral “não tinha nada aqui”. Os adjetivos “perigosa” e “escura” para descrever a
praça são então contrastados com outra fala de Cabral: “nós chegamos iluminando esse
lugar”. Esta metáfora das “luzes” como representação dos artistas, proferida pelo fundador
dos Satyros, vai servir como liga do texto, e é repetida até o fim da reportagem. Sobre as
260
sete salas instaladas no quarteirão da Martinho Prado em 2009, o texto diz: “um verdadeiro
limite luminoso entre as duas partes antagônicas da praça: há ainda um lado escuro e
abandonado, que contrasta com o brilho das mesas espalhadas nas calçadas do outro lado”.
O lado “escuro e abandonado” é a rua Guimarães Rosa, onde funciona o samba, a escola, a
feira, além da movimentações de moradores e skatistas. Continuando, mais à frente: “a
parte luminosa da Roosevelt também é frequentada por atores, amadores ou não. Até Paulo
Autran (1922-2007) já sentou naquelas mesas de madeira”. E ainda para encerrar, mais uma
vez sobre os Satyros: “o grupo, hoje, ajuda a iluminar a praça com dois teatros”
15
.
A metáfora da luz o trazer à luz, o renascimento da praça como ação tributada aos
grupos de teatro aparece reproduzida em vários textos, entrevistas e depoimentos de
alguns integrantes das companhias e também no corpo de muitas matérias que assimilam
esta autovisão romantizada como uma narrativa factual. Em 2005, tinha sido publicada
uma reportagem na Ilustrada com o título “Da alcova à luz”. Na coluna social do mesmo
jornal, pelo menos em duas ocasiões, veio essa figura da luz que é usada tanto no sentido
denotado, de acender as luzes das salas sobre as calçadas, como também remete ao
metafórico “dar vida”. Em janeiro de 2008, a nota intitulada “Questão de luzque afirma
que no recesso de fim de ano a praça Roosevelt estava “às escuras, que os teatros do
local, que iluminam a rua” estavam de férias. Cerca de dois meses mais tarde, uma nota que
relata que houve correria na praça para recolher as mesas das calçadas para as salas não
serem autuadas pelo PSIU, e a reprodução de uma fala de Hugo Possolo: “somos nós que
damos luz, movimento e deixamos a praça segura”
16
. Na revista Boemia, em abril de 2009, o
texto também traz o título “Sob a luz da praça Roosevelt”.
17
O uso constante da figura da luz sobre a praça, ora na voz dos integrantes dos grupos
teatrais, ora na voz dos próprios textos da imprensa mostra como uma parte pelo menos da
versão dos artistas serve como base para a construção das narrativas jornalísticas. Também
vale observar que a própria descrição da “degradação” da praça é baseada nos
depoimentos, principalmente, dos fundadores do Satyros. Não há, no grande volume de
15
CASTILHO, C. Teatro ilumina praça em São Paulo. Gazeta do Povo, Curitiba, Caderno G, 31 mai. 2009.
16
BERGAMO, M. Questão de luz. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E2, 07 jan. 2008. ______. Luz,
movimento.... Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E2, 10 mar. 2008.
17
SILVESTRE, N. Sob a luz da praça Roosevelt. Revista Boemia, Araraquara, 28 abr. 2009. Disponível em:
<http://www.revistaboemia.com.br/Pagina/Default.aspx?IDPagina=294>. Acesso: 20 mar. 2010.
261
matéria levantado sobre o assunto, marcas de apuração ou pesquisa das reportagens sobre
outras fontes para descrever a tão propalada “degradação” ou o “abandono” da praça
quando aparecem “outras” fontes são normalmente sempre as mesmas “outras fontes”,
como os proprietários da barbearia e o do bar, e que na maioria das vezes são relegados ao
segundo plano, restritos a comentários rápidos de que a praça ganhara mais vida após a
chegada dos teatros. Também é verificável a repetição de certas figuras da degradação que
aparecem no relato dos integrantes do Satyros (tomando como base o livro de memórias da
companhia e algumas entrevistas), em algumas peças de teatro e também nos relatos dos
jornais, como por exemplo, o hotel de prostituição de travestis, a chacina no bar Corsário, os
traficantes intimidadores etc.
Outro ponto a ser destacado nas narrativas midiáticas sobre os teatros da Roosevelt é
a fala para fora para o universo de classe média não identificada como o perfil
“alternativo”. Um exemplo é da matéria da revista Veja São Paulo publicada em 2007:
“Praça Roosevelt: cult e agitada Peças transformam a Praça Roosevelt em ponto e
encontro alternativo”. O texto começa recorrendo à personagem de uma peça que
representa justamente o estereótipo de uma pessoa não familiarizada à “falta de conforto”
e de outros índices de modernidade das salas menos convencionais:
“Cadê os dourados, as cadeiras vermelhas, as cortinas de veludo?" Ditas com ar
incrédulo pela manicure Sueli, essas palavras fazem a platéia cair na gargalhada
logo nas primeiras cenas da comédia Segunda-Feira: o Amor do Sim, em cartaz no
Espaço dos Satyros Um. Explica-se: a reação da personagem é idêntica à de muitos
espectadores que pisam pela primeira vez no mais concorrido teatro da Praça
Roosevelt, no centro. O ar-condicionado comprado três meses atrás é um dos
poucos confortos.
18
E ainda não peca por falta (ou peca pelo excesso?) de didatismo e deixa explícita a
comparação a reação é “idêntica à de muitos espectadores” de primeira viagem. E depois,
para dar mais redundância semântica com significantes variados, ainda recorre à
comparação com a off off Broadway. no texto uma tentativa de aproximação entre um
certo perfil de “classe média”, leitor idealizado da revista, e a região que até alguns anos
antes era mal-afamada. Aquela cultura “alternativa” é apresentada no texto como algo
efervescente, que não corresponderia ao que é praticado nos teatros a que supostamente
este público estaria mais acostumado. inclusive a citação e depois o destaque em fotos,
18
SANTOS, M. Cult e agitada. Veja São Paulo, São Paulo, n. 2005, 25 abr. 2007.
262
de muitos dos espetáculos premiados em cartaz na Roosevelt, como atestado da qualidade
artística. E, para reforçar que o local tinha sido pacificado, são citadas celebridades de
televisão e do teatro que seriam frequentadores: dos diretores teatrais Antunes Filho e
Eduardo Tolentino, à “lenda” Paulo Autran, passando pelos televisivos Paulo Vilhena e
Marília Gabriela e desta última (descrita também como ex-moradora da praça) ainda a
transcrição de um comentário sobre a frequência dos teatros: eu senti um arrepio ao ver
tanta gente moderna e inteligente por ali".
Estes estereótipos para descrever o perfil de quem frequenta os teatros da praça
Roosevelt também passam a ter alguma constância. Tomarei aqui como exemplo duas
matérias, uma publicada na revista Bravo! e outra na Folha de S. Paulo, que focam nos
frequentadores dos bares e teatros.
A reportagem da revista Bravo! relaciona a movimentação boemia e a efervescência
teatral da Roosevelt, o foco da matéria não é a produção teatral, mas o ambiente do lado de
fora das salas de apresentação:
O bar está lotado, a cerveja é geladíssima e a conversa, animada. Camisetas de
bandas de rock, regatas, minissaias de brechó e coturnos vestem um público
predominantemente jovem. Como num pub londrino, perto da meia-noite toca
uma sineta. Ao contrário do que ocorre na Inglaterra, o toque não indica o fim da
festa, mas o início do espetáculo. (...) Regatas, minissaias e coturnos se
encaminham para a sala onde terá lugar a estreia de Natureza Morta, peça do
premiado dramaturgo Mario Vianna dirigida por Eric Lenate.
Banal nas noites de sexta-feira em São Paulo, a descrição acima embute uma
revolução.
19
A descrição dos vestuários para se referir aos frequentadores e depois as roupas
viram metonímias daqueles que as vestem marca um traçado de identidade local: jovens e
descolados. O modo de se vestir é novamente referência em outro trecho que usa o
comentário de uma atriz entrevistada, sobre aspirantes a papéis em montagens que vão aos
bares da praça para buscar contatos de trabalho, mas o veredito de que sem o figurino
suficientemente despojado não passa na seleção: “ator que se produz demais volta para
casa frustrado”. A tal “revolução” a que o trecho inicial faz menção é explicada, acredito,
por um comentário que aparece mais à frente, que carrega mais no efeito, do que na
demonstração de alguma consistência para a afirmação, e no fim também funciona na
19
MELLÃO, G. Boemia, ribalta e cerveja. Bravo!, São Paulo, n. 140, pp.48-53, abr. 2009.
263
definição identitária de um perfil de público que a matéria pretende construir: “o teatro
passou a disputar a atenção do público jovem com o cinema e o rock e, por incrível que
pareça, levou vantagem”. Apesar do reforço da juventude na definição dos frequentadores,
em determinado momento o texto apresenta algumas descrições genéricas para então
construir a imagem da diversidade local: “jovens, gente de meia-idade, senhoras e senhores
dividem mesas dos bares, com seus cabelos médios, curtos, compridos, pomposos,
cheirosos, ensebados, raspados, espetados, de cores e texturas variadas”.
As fotos da reportagem ajudam a compor o quadro de identidades, são retratos de
página inteira de figuras que funcionam ao mesmo tempo como personalidades e tipos da
praça, acompanhados de legendas em tom de texto publicitário: “um autor em busca de
personagens”, “uma atriz em busca de papéis”, “um músico em busca de inspiração”. O
texto atribui aos teatros da praça Roosevelt uma suposta mudança de hábitos na vida
noturna paulistana: “assistir a uma peça no lugar passou a ser algo para fazer depois da
happy hour e antes da festa, numa cidade cuja a vida noturna começa por volta das duas da
manhã”. Veja que todos os índices de comportamento levantados na matéria da Bravo! são
carregados de elementos que remetem a um perfil bem delimitado e estereotipado de
classe média (cuja vida noturna começa às duas da madrugada!, por exemplo) apesar de
generalizar “a praça Roosevelt (...) integrou o teatro à vida noturna da cidade”.
Assim, a diversidade que o texto tenta em alguns momentos construir para definir os
frequentadores dos teatros da praça dissolve-se no próprio texto. Vale observar que a
maioria dos personagens destacados pela reportagem é gente de teatro, o que também
fragiliza o argumento que a praça disseminou o gosto pelo teatro entre os “jovens”. As
tentativas de classificação do público local pela matéria demonstram todo o vazio de
formulação quando, a partir da fala de uma entrevistada, resolve dividir os frequentadores
em três tipos: os que vão para beber, os que vão para o teatro e os que fazem os dois
programas (!). E a ideia da diversidade, apesar de naufragada, ainda aparece no fim do
texto quando é apresentado o personagem de um jornalista que ia diariamente à praça e
acabou por se mudar para um imóvel próximo: “aqui convivo com todo o tipo de gente, dos
bairros chiques e humildes, passando por celebridades como o governador José Serra, a
apresentadora Adriane Galisteu e a jornalista Marília Gabriela”.
264
A reportagem faz ainda uso de comparações com cidades européias, para dar mais
cores à ideia de uma boemia artística do paralelo entre a sineta do teatro com a dos pubs
ingleses, à “ebulição intelectual” do Bar Marsella, “da Barcelona dos anos 50 do século 20,
que era frequentado por Pablo Picasso, Salvador Dali e outros artistas revolucionários”. E o
toque de pós-modernidade fica por conta do aspecto econômico destacado, pois o texto
apesar de ressaltar de maneira confusa o caráter despojado do lugar insere o teatro
praticado ali na lógica de mercado, chegando a usar expressões de apelo corporativo como
“o modelo de negócio do teatro alternativo” (sobre a importância dos bares na receita das
companhias teatrais), networking de atores e atrizes, ou ainda, “largou o emocionante
mundo das finanças e mergulhou no teatro”.
Uns meses depois o caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, deu também destaque a
uma matéria sobre a relação entre as atividades dos bares na Roosevelt e o teatro. O texto
inicia com a narrativa padrão de contextualização: a praça Roosevelt, “QG do teatro
alternativo em São Paulo”, a partir de 2003 foi “tomada por artistas”, e observa a
transformação de maneira um pouco mais cautelosa e menos naturalizada do que a média
da cobertura sobre o assunto, “que ajudaram a dissociar a área do binômio tráfico de
drogas/prostituição”. No parágrafo seguinte, a reportagem apresenta a tese:
boêmios e botequeiros de carteirinha, mais interessados na oferta etílica do que
nas peças, engrossam o movimento de ocupação da praça. Isso sugere uma
possível migração de foco na área: do teatro para o "oba oba" regado a álcool dos
encontros de compadres.
20
O texto aponta claramente para uma descaracterização da região como “polo cultural”
e a definição como área predominante de boemia, e o uso de algumas expressões de tom
depreciativo reforçam isso, apresentada pela matéria na voz de frequentadores ou da
própria reportagem: “oba-oba”, “baladinha”, “o aumento de pessoas por conta dos bares
elitizou a área”, “Vila Madalena de segunda”, “fanfarrão”, “modinha”. Um esquema
ilustrado com uma planta do quarteirão dos teatros, assinalando a localização de salas e
bares, vem como o título: “Roosevelt etílica ou teatral?”. Há ainda um outro esquema,
divulgado na internet, com ilustrações dos “tipos” novamente a tentativa de classificar os
frequentadores:
20
NEVES, L. A praça da balada. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E1, 12 jul. 2009.
265
As “tribos” da praça
Classe artística: este grupo inclui dramaturgo, diretores, atores e profissionais
que não raro acumulam duas ou todas essas funções. Jovens em busca de uma
chance na cena alternativa entram de rebarba na categoria.
Público de teatro: jornalistas, escritores, publicitários, designers e artistas plásticos
respondem por boa parte da platéia das peças. A classe artística também
comparece em peso.
“Botequeiros” de carteirinha: aqui entram os frequentadores (muitos deles,
também moradores) da Roosevelt que batem ponto exclusivamente nos bares.
Quando vão ao teatro, é fora da praça (musicais e comédias).
Donos de bares: a categoria, que tem os proprietários do La Barca e do Papo,
Pinga e Petisco, ganha em breve um reforço, com a abertura do restaurante e
cachaçaria Rose Velt.
21
Tirando os “donos de bares”, que a matéria identifica quem são (em um exercício
de certa redundância, convenhamos), as demais “categorias” também não passam de
generalizações e imagens-clichê para reforçar a tese do texto vale especial observação a
denominação e a caracterização dos “botequeiros de carteirinha”, que não se interessariam
pelo teatro da praça, pois teriam um perfil mais afeito a “musicais e comédias”. O suposto
esvaziamento artístico em decorrência do modismo é reforçado na matéria pelo
depoimento de Fernanda D`Umbra reproduzida:
É uma fábrica de teatro alternativo [...] A gente está tirando xerox do xerox: não é
só botar em cena uma "mina" com uma garrafa na mão e um cara falando palavrão
que se vai explicar alguma coisa. É preciso que as pessoas tenham de onde ter
tirado isso [...] Acho de uma importância ímpar a recuperação da praça, mas a
gente não pode se iludir.
Mais ainda, esta fala da atriz aponta o dedo para o que pode se supor uma certa
fragilidade na associação entre a arte (no sentido mais “puro”, e não no institucional) e a
intervenção no espaço urbano. Por tudo isso, a matéria da Ilustrada foi muito contestada
por alguns dos artistas, com respostas veiculadas nos blogs pessoais e uma delas no próprio
jornal. Esta última é assinada por Maurício Paroni de Castro, diretor do grupo Atelier de
Manufactura Suspeita, que reclama ter sido citado em duas matérias do jornal (a sobre a
praça e uma outra sobre uma série de TV da qual era roteirista) de abordagem que
considera “anacrônica”. No caso da reportagem sobre a praça, responde que o jornal não
cita que lá (na Roosevelt) será construída uma escola de teatro “para quem não pode
pagar”, e que essa informação extinguiria “qualquer elitismo etílico” (?). Na sequência faz
21
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u593917.shtml>. Acesso: 20 mar. 2010.
266
um comentário em que aparece a figura de “excluídos”, mas sem deixar muito clara a
amarração com a argumentação: “a parte não demolida pela demora na licitação da obra
(também ausente do mapa) abriga excluídos. Provavelmente ali estudarão [na escola de
teatro?+ para contar as suas histórias”. Depois reafirma, de maneira genérica, a
singularidade e o caráter democrático da experiência dos teatros na Roosevelt.
22
Rodolfo Vázquez, do Satyros, publica em seu blog uma resposta à matéria da Ilustrada,
com uma argumentação que considero mais clara. Ele reclama que o repórter o procurou,
no dia da realização da reportagem, com uma pauta totalmente direcionada (de que
imperava a balada e não o teatro na praça), e que o texto usou trechos de depoimentos,
muitos descontextualizados, que corroboravam a tese criada pela editoria do jornal. Aponta
também o que considera “preconceito explícito”, expresso na palavra “botequeiros”, e daí
faz uma digressão secular sobre a discriminação contra artistas:
Os velhos preconceitos seculares voltam, sob um novo manto. Aqueles
preconceitos que surgiram na Idade Média e nunca mais abandonaram o teatro
ocidental. Aqueles que levaram a enterrar Molière longe do solo sagrado de um
cemitério. Ou que obrigavam, não faz muito tempo, as atrizes brasileiras a usarem
a carteira de identidade vermelha, aquela que identificava as putas. Os
preconceitos usam de novas carcaças e surgem sob novas disfarces. Antigamente,
os atores eram bichas e as atrizes eram putas. Agora, os frequentadores da
Roosevelt (atores ou público, tanto faz) são botequeiros.
23
Depois ainda, comenta que a ofensa sofrida “Vila Madalena de segunda” – teria
dado à “comunidade” (e concretiza em um grupo reunido no La Barca: um ator, uma
moradora, uma garçonete, uma artista plástica...) um sentimento de unidade contra o
ataque do jornal à honra local “como se fossem um pequeno exército de Brancaleone”,
compara. Depois, a afirmação, com certo exagero dramático, de que o que fazem ali na
Roosevelt “incomoda muita gente”, que a matéria serviria aqueles que “odeiam com todas
as suas forças” o tipo de trabalho que realizam na praça.
Alguns pontos valem ser comentados. Primeiro, é que o texto do jornal é tratado não
como crítica, mas como ataque pessoal e veja bem que estamos falando de uma das
pouquíssimas matérias da grande imprensa no período que não tratamento de
22
CASTRO, M. P. Para que serve uma praça? Para que serve um jornal?. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada,
p. E4, 20 jul. 2009.
23
VÁZQUEZ, R. G. Voltando à matéria da Folha. In: De olhos sempre abertos (blog), São Paulo, 15 jul. 2009.
Disponível em: <http://olhossempreabertos.zip.net/arch2009-07-12_2009-07-18.html>. Acesso: 17 mar. 2010.
267
reverência em relação ao trabalho dos grupos de teatro na praça Roosevelt. O motivo
alegado é um suposto preconceito histórico e genérico contra artistas.
24
Outra questão que me chama atenção é que as respostas à matéria da Folha, ao
tratarem a reportagem como ataque, talvez deixem de lado o que considero a discussão
mais política sobre a relação arte e espaço urbano. O grande tema de fundo da matéria da
Ilustrada é o mesmo da matéria da Bravo!: há nos dois textos jornalísticos a apresentação
do embate produtividade versus improdutividade na relação arte e cidade.
As duas reportagens trabalham no mesmo sistema de moralidade, com relação ao uso
do espaço “cultural” para atividades boêmias. A diferença é que uma tom de
condenação, por considerar que a movimentação dos bares da Roosevelt não é produtiva; a
outra comemora a boemia da praça, justamente por considerá-la produtiva. A da Ilustrada,
por meio de termos e expressões depreciativos, e a “constatação” de que o principal
negócio da praça são os bares, e que o público “botequeiro” não se reverte em plateia. No
caso da revista Bravo!, o texto vincula a movimentação boêmia ao sistema produtivo dos
teatros da Roosevelt. Questões econômicas e profissionais são muito mais ressaltadas do
que elementos propriamente artísticos e ritualísticos da festividade assim, a manutenção
de bares insere-se no “modelo de negócio do teatro alternativo” e não em uma proposta
propriamente artística de estetização do cotidiano.
Estes textos também explicitam como as narrativas destes grandes veículos de massa
apoiam-se fortemente na construção de categorias de comportamento, por mais imprecisas
e genéricas que elas se apresentem. Há assim uma política de corpos para o qual os
discursos midiáticos apontam, corpos que são instrumentalizados para compor uma ideia
de variedade comportamental que ajuda a dar sustentação ao imaginário efetivo do
cosmopolitismo.
Há, ao que parece, no processo de rápida incorporação da cultura emergente dos
artistas teatrais na relação entre arte, celebração e espaço público, um enquadramento
24
Curioso que a esse respeito sobre um suposto preconceito histórico contra artistas, Richard Sennett observa
que no ambiente urbano moderno, ao contrário, os artistas cênicos obtiveram grande status social como
presenças fundamentais nas festas e salões que compunham a esfera pública burguesa. E eram aceitos e
admirados justamente por sua exuberância comportamental: “a ascensão social do artista era baseada na
ostentação de uma personalidade vigorosa, excitante, moralmente suspeita, inteiramente oposta ao estilo da
vida burguesa normal, na qual evitava, através da supressão dos seus sentimentos, ser lido como pessoa.
SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
p. 43.
268
desta cultura às imagens mais hegemônicas da cidade (“a cidade do trabalho”, por
exemplo), imagens estas sobre as quais se apoia boa parte das narrativas (re)produzidas
pela mídia convencional.
Só para citar mais um exemplo neste sentido, uso agora um artigo assinado por
Gilberto Dimenstein (aquele mesmo tomado por Mirisola como ícone da mediatização da
praça). O mote do texto não tem relação inicial com a Roosevelt, parte de uma declaração
de Chico Buarque, que teria dito considerar São Paulo uma cidade detestável. Como
contraponto, Dimenstein apresenta um jornalista inglês que se surpreendera em descobrir
alguns tesouros em meio a cenários de miséria em São Paulo, como a biblioteca mantida em
um barraco, onde havia uma coleção rara de vinis dos Beatles, ou ainda, crianças de
Heliópolis estudando uma reprodução dos girassóis de Van Gogh. O articulista diz que até
concorda com Chico Buarque no que se refere à arquitetura da metrópole, mas que se o
compositor se predispusesse a olhar a cidade da mesma maneira mais desimpedida como
a do jornalista inglês poderia perceber a “efervescência paulistana”. E a praça Roosevelt? É
destacada pelo autor justamente como um destes tesouros da cidade, a praça antes
ocupada por marginais e então transformada em polo teatral aliás todas as maravilhas
paulistanas citadas no texto são vinculadas a instituições e atividades culturais. É o sistema
de compensações em operação: somos feios, temos uma miséria terrível, mas nossas
atrações culturais compensam tudo isso “só assim é possível aprender como, ao lado da
cidade urbanística e socialmente detestável, prospera uma cidade cada vez mais
interessante e adorável”
25
.
Todo o sistema de identidades estereotipadas que começa a ser veiculado pelos meios
de comunicação sobre a praça Roosevelt, na segunda metade da primeira década dos anos
2000, aponta para um distanciamento daquela utopia de entrelaçamento da reflexão com
elementos que se associam a um imaginário em regime noturno ou dionisíaco.
Sem desconsiderar as carreiras sólidas das companhias teatrais da praça, é possível
fazer a inversão da metáfora da luz, pois não apenas os teatros ajudaram a iluminar as
calçadas da Roosevelt, como a praça também colaborou para jogar mais luz midiática no
trabalho dos grupos. Se tomarmos o caso dos Satyros, eles muitas vezes são tratados como
25
DIMENSTEIN, G. Chico Buarque e a detestável São Paulo. Folha de S.Paulo, São Paulo, Cotidiano, 14 mai.
2006.
269
sinônimo de praça Roosevelt, como se o espaço público fosse uma espécie de marca que
passou a ser colada junto com o nome da companhia teatral.
Em 2009, por exemplo, quando a companhia completou vinte anos de existência, a
Revista da Folha publicou uma reportagem de capa sobre o grupo, e a “ocupação” da praça
Roosevelt ganha boa parte do texto e dos destaques
26
. Na capa, a chamada é: “como o
grupo Satyros escandalizou São Paulo, tomou conta da praça Roosevelt e chegou a 65
montagens”. No destaque, depoimentos sobre o grupo (da atriz Denise Fraga, da crítica
Silvana Garcia, do parlapatão Hugo Possolo e do governador José Serra), e novamente a
praça aparece como figura central.
No final do mesmo ano, a Veja São Paulo fez uma edição apresentando os paulistanos do
ano, conforme seleção da revista as “quinze personalidades que deram o que falar neste
ano”. Hugo Possolo foi escolhido pela revista como “agitador cultural”. Ele é apresentado
em uma foto de página inteira, em que o ator posa envolto pela praça Roosevelt. No texto
que acompanha a imagem, Possolo é caracterizado como “um dos responsáveis pela
revitalização da praça Roosevelt”, além de referências a um espetáculo dos Parlapatões,
dados sobre o público do teatro, participação na formulação da escola de teatro e da
menção ao Circo Roda Brasil (do qual Possolo também é um dos responsáveis).
27
Além das celebridades locais que ganham aparição na mídia, tornou-se frequente
reportagens com foco em histórias de vida de “personagens anônimos” da praça, com
toques de maior “humanização” em suas narrativas algumas delas apresentadas em
outros capítulos desta tese. O projecionista do Bijou, o zelador do Caetano de Campos, o
porteiro-advogado chamado Roosevelt, a garçonete, o dono da barbearia, o morador de rua,
a “herdeira da praça”, a vendedora de trufas são alguns dos que compõem a galeria de
personagens-tipos que oferecem algum contraponto nos meios de comunicação de massa à
presença exclusiva dos artistas teatrais.
26
FIORATTI, G. Em boa companhia. Folha de S. Paulo, São Paulo, Revista da Folha, n. 867, p. 10-16, 24 mai.
2009.
27
NUNES, D. Hugo Possolo agitador cultural. Veja São Paulo, São Paulo, p. 43, 23 dez. 2009.
270
De pedaço a mancha
A superexposição na mídia cria dentro do próprio “núcleo duro” dos artistas da
Roosevelt fissuras e autocríticas, como também alguns ruídos de habitus, no universo um
pouco mais amplo da classe teatral da cidade. O depoimento de Fernanda D´Umbra na
matéria da Ilustrada (sobre os “botequeiros”), em que critica a imobilidade dos artistas da
praça e o excesso de autorreferência nas montagens, e aponta para uma suposta
contaminação da arte pelo projeto de visibilidade da Roosevelt, dá amostra de um processo
de desencantamento, se compararmos com o texto escrito pela atriz no livro dos Brothers
Cactus (reproduzido no capítulo 4).
Mário Bortolotto explicitava desconforto com a “transformação” da praça em seu
blog, sobre a edição de 2007 das Satyrianas:
E acabou as Satyrianas. É um evento bacana pra caralho. Mas nesse último ano
senti um pouco de desconforto e notei que o anjo do "Preacher" (ou era o
demôniozinho do Tom & Jerry, sei lá) tava me dando uns tapões na orelha. A praça
tava lotada demais. Era uma espécie de carnaval teatral. Parecia que eu tava na
Bahia, em alguma espécie de micareta. (...) Tô começando a acreditar que no
próximo ano a rapaziada vai estar vendendo abadá das Satyrianas. O comércio é
que sempre se dá bem. Os bares devem ter vendido pra caralho. (...)
28
No texto, a crítica principal de Bortolotto é que o teatro da praça estaria perdendo
espaço para a badalação deslumbrada. Protesta por muitos artistas que trabalham na praça
desde os primeiros tempos e estavam perdendo espaço para celebridades na programação
do festival. Chega a reproduzir um texto-reclamação publicado originalmente no blog do
jornalista Jotabê Medeiros:
estive na praça rusvel outro dia para ver os amigos.
não sou um frequentador da praça rusvel, mas me lembro perfeitamente de
quando o bortolotto e os amigos começaram a civilizar aquilo.
fizeram aquilo acontecer contra todos os prognósticos, todas as forças do atraso,
todo o preconceito.
bom, naquele dia nós fomos meio maltratados pelo garçom, ficamos chateados, e
o pinduca disse algo assim (não me lembro da frase precisa): “se fosse um global
daqueles que agora andam por aqui, esse imbecil ficava de quatro para ele sentar
em cima”, ironizou o poeta.
notei que havia mesmo um climão: os velhos confrades, os pioneiros, perdem
espaço para os emergentes, os deslumbrados.
28
BORTOLOTTO, M. Acabou o carnaval (?) ou alguma reflexão sobre a praça, as Satyrianas etc. etc. In: Atire no
dramaturgo (blog), São Paulo, 19 out. 2007. Disponível em:<http://atirenodramaturgo.zip.net>.
Acesso em: 20 out. 2007.
271
domingo, na coluna social, vi uma foto da adriane galisteu com o namorado no
boteco, e mais meia dúzia de estrelas das revistas de fofocas, espalhados pela
praça rusvel (copio descaradamente essa grafia do blog da clarah).
senti um calafrio: sinto que estavam ali apenas para ganhar um carimbo de
“descolados”. não tinham nada a ver com o lugar.
mas é um mundo grande, e democrático.
só não gosto quando o garçom me diz que eu tô atrapalhando, esperando herdar
minha cadeira para algum galã de novela. vá se foder.
29
Mesmo os integrantes dos Satyros, que parecem mais inseridos na movimentação, e
são os mais requisitados para as aparições na mídia, manifestaram publicamente algumas
hesitações sobre o status obtido pelo grupo em função da visibilidade da praça. Rodolfo
Vázquez em texto do seu blog reflete sobre o questionamento de que se a “revitalização da
praça” e as Satyrianas não ofuscariam o trabalho do grupo. Ele levanta que a proposta deles
é de “a arte invadir a rua”, e que assim a revitalização e o festival não representariam o
obscurecimento da estética, pois essas ações fariam sim parte da própria estética: Não
somos máquinas produtoras de espetáculos teatrais em salas fechadas com técnicas de
criação fechadas hermeticamente em um programa estético imutável, somos um grupo de
artistas velozes que intervêm e propõe novos paradigmas”
30
.
Em entrevista posterior, Ivam Cabral demonstra que a visibilidade midiática interfere,
não exatamente no trabalho em si da companhia, mas na percepção pública deste trabalho:
Criamos outra máxima: a gente está muito pop e não ganhamos fomento
nenhum, porque acho que fica essa névoa de que estamos nos dando bem, somos
famosos, temos grana... A partir de agora teremos que começar a brigar muito por
isso, pelo projeto artístico mesmo, e que é um puta projeto artístico que poucos
grupos, não em São Paulo, mas no Brasil, tem tão consistente quanto o nosso.
Essa história toda da Praça não pode ofuscar o nosso projeto artístico, que é muito
mais poderoso. Nesse momento convivemos com isso, brigando com a nossa
própria história, porque essa história da praça está maior que a gente, e não
pode.
31
A praça Roosevelt transformada em objeto de disputa simbólica ganhou inclusive
discussão na adaptação dos Satyros para o texto do modernista espanhol Ramón Dell Valle-
Inclán, Divinas Palavras, em 2007-2008. O tema da peça é a degradação humana. O enredo
29
MEDEIROS, J. Do Arena à praça Rusvel. In: Pássaro que come pedra (blog), São Paulo, 18 out. 2007.
Disponível em: < http://blog.estadao.com.br/blog/index.php?blog=17&m=200710>. Acesso: 10 mar. 2010.
30
VÁZQUEZ, R. G. O que é a estética do Satyros?. In: De olhos sempre abertos (blog), São Paulo, 24 out. 2007.
Disponível em: <http://olhossempreabertos.zip.net/arch2007-10-19_2007-10-25.html>. Acesso: 18 mar. 2010.
31
BUENO, R.; MELLO, J. H. Ivan Cabral e a ousadia do recomeço. Jornal de Teatro, Rio de Janeiro, ano I, n. 4,
pp. 10-11, 01 a 15 jun. 2009.
272
se estrutura em torno do personagem Laureano, um deficiente físico e mental, que é
disputado por uma família como fonte de renda, que sua figura patética é capaz de atrair
esmolas para o seu guardião. O cenário é uma praça Roosevelt “mais imaginária do que
realista”, segundo o programa da montagem. A encenação recorre e uma visualidade cênica
inspirada em Bosch e Goya. O medievalismo ou o barroco evocado por meio da estética do
grotesco, da monstruosidade do humano, encontra-se com elementos robóticos para dar
expressão a seres reduzidos a máquinas ou marionetes pela miséria material e moral e aí o
corpo, fisiológico ou mecânico, representa a prisão.
Esta prisão no enredo é a própria necessidade de sobrevivência, que transforma a
existência dos personagens em uma experiência de brutalização, moral e física. Os artistas-
mendigos sobrevivem de exibir Laureano em um showzinho, que viaja mundo afora, e
mistura a exploração da aberração com arremedos de “brasilidade” e de elementos da
cultura de massa. O rapaz abobalhado é disputado pelos mendigos talvez de maneira similar
a que a praça decrépita é disputada simbolicamente por vários atores sociais, conforme a
visão do grupo teatral. A praça como modo de vida, e como arena e objeto de disputas
bestiais.
Muito do debate apresentado principalmente pelos Satyros sobre a relação entre a
exposição midiática do grupo e a praça Roosevelt me parece endereçado à parte da classe
teatral de São Paulo. Em vários momentos, os fundadores da companhia expressam
publicamente que se sentem discriminados, que são incompreendidos, que são preteridos
no programa de fomento, e acusações de que muitos grupos desenvolvem trabalhos
herméticos, que não promovem transformação alguma em seu entorno etc. em todo
este debate um choque, ou um ruído no habitus do campo artístico, justamente em função
desta relação praça Roosevelt, grupos de teatro e mídia. uma insistência dos grupos da
praça a se autoafirmarem publicamente como outsiders, calcada inclusive na ideia de
ocuparem uma área anteriormente marginalizada da cidade. E isso entra em choque com o
status de “estabelecidos” que efetivamente estas companhias possuem na cena teatral
brasileira.
A utopia da união entre arte e vida não é exatamente uma novidade, desde pelo
menos as vanguardas históricas, vem ganhando algumas roupagens. A mais recente com
aura pós-moderna, conforme identifica Beatriz Sarlo, opera na ocupação de antigas áreas
273
produtivas que no processo de desindustrialização a partir dos anos 70 começam a ser
abandonadas e a se deteriorar por grupos de artistas que buscam a ressignificação dos
espaços. Mas a ressignificação, fique claro, não é a supressão total de sentidos anteriores,
mas justamente o elo entre uma nova estética, jovial, com elementos que caracterizavam o
uso original. Assim, por exemplo, a autora cita um antigo distrito industrial de Buenos Aires,
em que as fábricas falidas ou em crise foram recuperadas pelos trabalhadores para
formação de cooperativas de produção e centros culturais. A imagem construída é da união
entre “o trabalho intelectual e manual, separados pelo modo capitalista de produção”. A
criação artística jovem aparece como se fosse dotada da capacidade de revitalização da
figura do proletário, atualizando a “velha cultura operária”. Assim, afirma Sarlo, “a fábrica
cultural é um instante reconciliado da relação entre operários e classe média, acontecido em
uma época em que a culturalização é um estilo de vida e uma moda”.
32
O outro caso descrito pela autora é o do “bairro cultural” Palermo, que foi menos uma
ação de artistas, e mais de moradores os “vizinhos” com adesão do mercado imobiliário.
A transformação do bairro, descreve, não foi “uma gentrificação traumática, e sim uma
operação imobiliária, com traços de certa espontaneidade”
33
. Ambiente cool, onde as
antigas casas foram sendo reformadas, deixando pequenas marcas de passado, e a imagem
que impera é a de um lugar amável e sensível. Restaurantes, livrarias, “teatros off off”,
ateliês etc.: a figura do ócio é totalmente colada a um sistema produtivo, a um mercado.
Alguns autores como Sharon Zukin e David Harvey vêm descrevendo os processos de
remodelação urbana (na verdade, de alguns pontos da cidade) a partir de atrativos ligados à
cultura e ao lazer. Assim, Zukin explica o chamado processo de gentrificação ou
enobrecimento:
Às vezes, as classes médias formam involuntariamente um mercado, ao criar para
si um novo lugar na cidade. Esse novo lugar torna-se símbolo tão interessante
especialmente quando é um símbolo de inovação cultural que institui um
mercado para esse espaço. Embora essa temática da reestruturação das cidades
ainda não seja bem conhecida na América Latina, o bairro de Vila Madalena talvez
seja um exemplo de um espaço de sociabilidade e de consumo cultural, criado por
alguns intelectuais e pessoas de classe média, que se torna um estímulo para um
mercado de restaurantes, bares e apartamentos mais caros. Por fim, os que
32
SARLO, B. Op. cit. p. 203.
33
Ibidem. p. 205.
274
criaram o lugar são expulsos pelos aluguéis e preços mais altos; aqueles que
idealizaram e criaram o lugar precisam mudar-se de lá.
34
Define-se assim como uma ação de mercado e não de Estado, e é fundamentalmente
uma ação comunicacional. Assim, o processo recente da praça Roosevelt não parece destoar
deste quadro de tendências mais globais. O projeto teatral de ocupação da região construiu
uma imagem de conciliação entre a classe média e o lúmpen metropolitano, representado
principalmente pela figura da travesti, por meio da realização teatral e da boemia festiva.
Esta conciliação se deu num primeiro momento na configuração do pedaço, de forma
tanto simbólica, como presencial, da convivência nos bares, entre artistas e algumas
travestis. Mais tarde, parece que desta união restou só o símbolo, já que passou ser cada vez
mais raro ver travestis circulando pela praça Roosevelt, conforme depoimentos de
frequentadores. Phedra D. Córdoba é exceção, mas ela própria se tornou personalidade de
mídia, a “diva da praça”, com isso a identidade de artista fala mais alto do que a de travesti
dentro daquele contexto. Houve uma expulsão não-oficial das travestis da região (e não
travestis, mas de outros moradores das quitinetes locais que tinham perfil mais lúmpen).
Das mais pobres, há a questão primeira econômica, com uma supervalorização imobiliária
dos apartamentos da Martinho Prado em poucos anos
35
. Rodolfo Vázquez me disse, em
entrevista concedida, que mesmo as travestis que teriam condições financeiras de se
manterem na praça, abandonaram o local pelo constrangimento meio velado que passaram
a sofrer nos edifícios de moradia, com a mudança de perfil da região.
A praça Roosevelt como vedete cultural começou a atrair um público muito amplo,
provocando mudanças comportamentais e nas formas de sociabilidade formadas no
momento primeiro da ocupação da região pelos grupos de teatro, criando incômodos em
alguns antigos frequentadores. Isso, obviamente, abalou as relações que configuravam o
lugar como um pedaço dos artistas de teatro, boêmios e travestis. A figura improdutiva do
pedaço começa a ceder lugar a uma outra forma de relacionamento entre grupos sociais e
34
ZUKIN, S. Paisagens do século XXI: notas sobre a mudança social e o espaço urbano. In: ARANTES, A. (org.). O
espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 108.
35
Segundo matéria do jornal Destak, corretores informaram que a região da praça Roosevelt foi uma das de
maior valorização imobiliária na cidade, no ano de 2008. Como exemplo, cita que uma quitinete que até 2007
era vendida pelo preço médio de 35 mil reais, passou a ser comercializada a quase 100 mil reais no ano
seguinte. In: CENTRO: preço de apartamentos valoriza até 70% em um ano. Destak, o Paulo, 06 fev. 2009.
Disponível em: <http://portal.cofeci.gov.br/noticias.aspx?Codg=1528>. Acesso: 25 mar. 2010.
275
territórios urbanos, mais facilmente assimilável ao sistema de consumo, a mancha. José
Guilherme Magnani define “mancha” como uma área contígua do espaço urbano com
equipamentos (comerciais, a maior parte) que remetem a uma especialização por tipo de
atividade e/ou perfil de público (mancha de lazer adolescente, mancha gay, mancha de
saúde etc.). As manchas servem como ponto de referência para um maior número de
frequentadores, do que se comparado ao pedaço
36
.
As manchas, principalmente as de lazer e cultura, tendem a ser mais voláteis,
suscetíveis a modas, e atuam diretamente os meios de comunicação de massa. A praça
Roosevelt, como mancha cultural e de lazer noturno, tem ligação com outras manchas mais
próxima, como por exemplo os bares e casas noturna de perfil “descolado” da rua Augusta,
a mancha gay (de classe média) da rua Frei Caneca, ou ainda a rua Avanhandava, que
concentra bares e restaurantes com perfil de público de classe média alta.
A abertura de estabelecimentos comerciais de perfil cultural, mas não teatrais, como a
livraria de HQs e o ateliê de artesanato são elementos que indicam claramente o
alargamento da mancha cultural. Em 2009, os fundadores dos Satyros junto com outros
sócios abriram um restaurante ao lado do espaço dois da companhia que também ajudam a
caracterizar o processo de gentrificação e de transformação do pedaço em mancha. O nome
do “restaurante e cachaçaria” é Rose Velt, e não segue o estilo botecão” que imperava na
região até então.
Uma matéria do site Uol Estilo sobre a inauguração do restaurante, em que associa a
iniciativa à revitalização da região. A ambientação do lado de fora faz apelo à mistura
artistas e lúmpen (claro que um lúmpen domesticado, não ameaçador) “a cena é propícia:
artistas, palhaços e intelectuais bebendo cerveja e jogando conversa fora. A região também,
que abriga alternativos e mendigos numa mesma rua”. É apresentado como o “primeiro
restaurante cool da praça”. A reportagem foca totalmente na descrição dos ambientes e de
detalhes da decoração. Os elementos destacados são muitos, com referências ao teatro e à
cidade de São Paulo, principalmente: luzes cenográficas, cartazes de peças, mosaicos,
“ladrilhos hidráulicos das calçadas de São Paulo e do calçadão de Copacabana”,
paralelepípedos, latas de cerveja, cadeiras Charles Eames, madeira de demolição, mesas de
36
MAGNANI, J. G. C. De perto de dentro: notas para uma etnografia urbana. In: RBCS, v.17, n. 49, jun. 2002. p.
22.
276
brechó, tanques ao invés de pias nos banheiros, sofá em pneu de trator, tampas de bueiro,
cortinas de veludo, almofadas com estampa das calçadas de São Paulo etc.
37
Segundo o sócio do empreendimento, artista plástico e responsável pelo projeto, a
ideia era a de montar um restaurante “que fosse a cara da praça”. O estilo da casa é definido
como “luxo do lixo” ou trash chic o que diz muito sobre a concepção que é construída
sobre a “cara da praça”, ou sobre a imagem que projetam sobre a praça que aponta para
transformar o lugar em um point de lazer cool e cultural. A ideia do “caos” de São Paulo é
domesticada ao ser transformado em estilo, a ruína urbana é tematizada, mas com a leitura
de que é possível reciclá-la “tudo, inclusive o banheiro, tem um dedo de reciclagem e
demolição”, diz o artista plástico na matéria do Uol.
Mais do que tematizar a “ruína”, como foi dito antes, talvez o principal tema do
restaurante seja o próprio ato de revitalizar: “por falar em revitalização, esse foi um dos
motes para a construção do espaço. Os sócios quiseram se antecipar ao projeto proposto há
dez anos pela prefeitura da cidade e fazer uma casa que combine com uma nova Praça
Roosevelt”. Revitalizar então é transformar em ambiente cool, é a capacidade de inserir
no esquema do consumo de diversões urbanas para classe média a deterioração e o lúmpen
submundano como imagens estetizadas.
O poder e a praça
A gentrificação é definida como uma ação de mercado, segundo Sharon Zukin. Mas
observa-se que as políticas públicas acabam por se espelhar nestes movimentos de
“requalificação”. Otília Arantes considera que não existem mais políticas para a cidade, que
tudo foi substituído pela figura discursiva das “intervenções urbanas”, e que as ações oficiais
concentram-se cada vez mais “em transformar a cidade em imagem publicitária”
38
. Aponta,
assim, para um novo paradigma, ou ainda para um novo sentimento urbano, que seria a
substituição do que chama da “ideologia do Plano” dos modernistas, para a “ideologia da
37
ROSELL, D. Artistas abrem restaurante e apostam na revitalização da Praça Roosevelt. Uol Estilo, São Paulo,
22 dez. 2009. Disponível em: <http://estilo.uol.com.br/ultnot/2009/12/22/restaurante-na-praca-roosevelt-
destoa-do-cenario-mambembe-local.jhtm>. Acesso: 20 mar. 2010.
38
ARANTES, O. Urbanismo em fim de linha: e outros estudos sobre o colapso da modernização. São Paulo:
Edusp, 1998. p. 132.
277
diversidade”. Mas esta diversidade acontece no âmbito da encenação, da teatralização da
vida cotidiana os conflitos são deixados de lado ou encobertos por uma capa de
“estetização do heterogêneo”, a pluralidade como décor cultural”. Ao invés de pós-
modernidade, Arantes fala em uma “era da cultura”, o abandono da diretriz da
racionalidade e mobilidade, pelo “princípio da flexibilidade” – mas as duas fases compõem o
mesmo processo de configuração da cidade capitalista.
A valorização da cultura como mercadoria obviamente não é nenhuma novidade e
teve, desde pelo menos o século XIX, papel determinante na definição das cidades
modernas, com seus centros organizados de modo a permitir um desbunde das experiências
de consumo. Adorno e Benjamin chamaram a atenção para os processos de estetização de
várias instâncias da vida social, e da instrumentalização político-ideológica da cultura e
mais tarde também Habermas. Os modernistas tentaram desprivatizar o espaço e refundar a
figura de público e coletivo, e acabaram sendo acusados de racionalizar em excesso as
cidades, a ponto de aniquilar a presença do indivíduo. Desde meados do século XX,
aparecem as repostas apoiadas na ideia de um novo comunitarismo, da cidade organizada
em pequenas aldeias interligadas (e a figura das grandes vias), o que muitas vezes acabou
por configurar guetos e por dar aparência fragmentada às metrópoles. Com processo de
desindustrialização, o setor terciário que funcionava no vácuo da produção industrial torna-
se então a razão de ser das cidades. Atrair atividades financeiras, de consumo e turismo
passa a ser o alvo da gestão pública das cidades. Até mesmo metrópoles de poucos atrativos
hedonistas, como São Paulo, passam a depender da configuração do turismo
39
. Precisam
reconstruir assim a ideia de alguma unidade e os olhos voltam-se aos centros
“degradados”.
Patrick Baudry observa que o centro é o foco das intervenções públicas de limpeza das
paisagens urbanas nas grandes cidades nas últimas décadas. “O político quer ‘tratar’ a
cidade como o médico trata um paciente”
40
, compara o autor, e é principalmente para o
centro que o tratamento é prescrito. O centro sentido de unificação, e a sua imagem
39
Segundo levantamento do Ministério do Turismo/Fipe/Embratur (2008), São Paulo recebeu em um ano 9
milhões de turistas, sendo 50% deles vieram a negócios e 39% a lazer (motivação primária). A cidade seria o
principal destino brasileiro de turistas nacionais e o segundo destino dos turistas estrangeiros no país. De 6
bilhões de dólares de investimento no turismo brasileiro, 2,5 bilhões foram destinados ao estado de São Paulo.
40
BAUDRY, P. O urbano em movimento. In: JEUDY, H.P.; JACQUES, P. B. Corpos e cenários urbanos: territórios
urbanos e políticas culturais. Salvador: UFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006. p. 26
278
saneada pode ser projetada sobre a cidade. Aponta que uma das preocupações é que o
centro seja vislumbrado como um local de agregação “sem agregação, nada de unidade
nem coerência, portanto nem de sentido, segurança ou até de sociedade”.
David Harvey, analisando o caso de Baltimore, destaca a imagem negativa atribuída
aos centros ao longo do processo de suburbanização, inclusive com conotação religiosa
“nos Estados Unidos contemporâneos, a imagem dos respeitáveis subúrbios tementes a
Deus(...) funciona em contraposição ao centro da cidade, visto como um círculo dos infernos
em que estão apropriadamente confinados todos os malditos”
41
. Assim, a reconfiguração do
centro como local de agregação passa, além da retiradas dos pobres, obrigatoriamente por
ações comunicativas de configuração de novos imaginários para a região.
Cultura e esportes são as chaves para a atração aos centros, política pública ganha
muitas vezes a equivalência de uma política de eventos, segundo Baudry. “Nunca se falou
tanto em Cultura e seus derivados como nos dias de hoje”
42
, ressalta Otília Arantes. No final
dos anos 60, Guy Debord já dizia que a cultura é a “vedete da sociedade espetacular”
43
.
Zukin identifica que as políticas públicas sobre a cidade baseiam-se na imposição da
paisagem sobre o vernacular. A paisagem é entendida pela autora na combinação da
materialidade com o simbolismo sobre o espaço, é a expressão de uma visão dominante
sobre a cidade, “das restrições estruturais” dela, assim fala em “paisagem de poder”. O
vernacular é utilizado com o sentido tanto das construções materiais, quanto das relações
sociais realizadas pelos “desprovidos de poder”. Tem a capacidade de recompor a memória
sobre o espaço, com grande capacidade criativa é o que permite o próprio sentimento de
enraizamento. “O vernacular dos desprovidos de poder sempre atrapalha a expansão dos
poderosos; ele contesta a expansão física e econômica destes e o espaço social para a sua
auto-expressão”
44
. É tomado como um empecilho à modernização, por isso uma “sociedade
democrática”, ironiza Zukin, pode criar leis para impedir o uso vernacular do espaço.
Poderíamos lembrar Henri Lefebvre que já dizia que a cidade comporta um sistema de
objetos (que tem função instrumental ao sistema produtivo) e a festa (a improdutividade no
41
HARVEY, D. Espaços da esperança. São Paulo: Loyola, 2004. p. 209
42
ARANTES, O. Op. cit. p. 149.
43
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 126
44
ZUKIN, S. Op. cit. p. 107
279
uso do espaço). A modernidade impõe uma instrumentalização da cidade, e a festa (o
prazer, o status...) passa a ser pensado dentro da lógica da produtividade.
A paisagem, observa Zukin, é um palimpsesto, “uma sobreposição de conflitos”, que
acaba por ganhar orquestração nas narrativas hegemônicas. Assim, a paisagem está
constantemente em formação. “Há três temas principais que regem a fabricação da
paisagem: a memória histórica, a diversão como controle social e a cultura da natureza”
45
os dois primeiros ganham expressão nos modelos de museificação e disneyficação das
cidades. Os processos recentes de intervenções, os enobrecimentos ou gentrificações,
simulam incorporar de maneira voraz fragmentos do vernacular para compor paisagem, pois
“numa paisagem cada vez mais homogênea, a diversidade tem um valor de mercado”
46
.
Trata-se mais de um ato performativo, que o “vernacular” é selecionado, classificado e
ordenado a diversidade higienizada. O vernacular define a distinção entre o espaço e o
lugar, então esta assimilação dos traços pontuais na composição de uma imagem de apelo
promocional das cidades configuraria o que Zukin chama de “consumo de lugar”.
Esta incorporação do “vernacular”, Henri-Pierre Jeudy considera uma espécie de
encenação neo-simbólica, em que a teatralização das memórias coletivas o cotidiano
estetizado , em que as singularidades dos espaços são eliminadas em detrimento de uma
“história” da cidade enquadrada no padrão mediatizado internacional, que alimenta as
imagens turísticas e publicitárias
47
e a indagação de Otília Arantes de como seria uma
encenação do cotidiano que não estivesse “sintonia com a apologia moderna da
comunicação”
48
.
Nas últimas décadas, o centro de São Paulo vem passando por um processo de nova
valorização, com ações de grupos privados e políticas públicas que atuam no sentido de
atrair não tanto moradores, mas principalmente usuários para a região. Um dos marcos
deste processo foi a criação, no começo dos anos 90, da Associação Viva o Centro. Reunindo
proprietários urbanos, com papel fundamental de empresas multinacionais do setor
financeiro, chega a congregar empresas nacionais, sindicatos, igrejas, entidades de classes
profissionais e de direito público. Heitor Frúgoli destaca o papel de relevo que a associação
45
Ibidem. p. 109.
46
Ibidem. p. 108.
47
JEUDY, H.P. O espelho da cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
48
ARANTES, O. Op. cit. p. 136.
280
obteve como espaço de debates, de formação de opinião pública (tanto por meio de suas
publicações, quanto da mídia de forma geral) e de pressão (ou “diálogo”) sobre os governos
municipais e estaduais. Ou seja, a organização não-governamental tem participação
determinante na construção de sentidos hegemônicos para o centro da metrópole.
A ideia central apresentada oficialmente pela associação é a de um modelo de
“urbanismo repador”, ou seja, não se trata de “propor um padrão urbano totalmente novo”,
mas estabelecer “um diálogo crítico com a cidade existente”
49
. O autor registra inclusive a
mudança na designação usada pela Viva o Centro, de revitalização para requalificação, nas
palavras da urbanista ligada à associação, Regina Meyer:
(...) se você olha o Centro, a última palavra que você pode usar é revitalização:
aquilo é de uma vitalidade total. (...) Então, eu acho que revitalização é uma
palavra que denota até um tremendo preconceito, porque hoje o Centro é tão ou
mais vital que em outros momentos. Acontece que ele está apropriado por uma
classe social diferente, e essa nova classe social que está não se apropriou por
escolha, ela se apropriou porque aquele espaço se tornou um espaço residual
dentro da cidade (...).
50
O modelo declarado da Viva o Centro é o da renovação urbana de Barcelona. Tomam
o centro como “espaço estratégico para a vida metropolitana” na configuração de uma
“cidade mundial”. A requalificação do centro teria assim um papel que afetaria a cidade
como um todo. Uma das principais ações da associação seria a de “divulgar o centro”, nas
palavras do presidente da diretoria da Viva o Centro, Marco Antonio Ramos de Almeida, em
entrevista a Frúgoli (1997):
O que se via era uma divulgação muito negativa sobre o Centro, quer dizer a mídia
via o Centro de uma forma extremamente negativa, como o problema dos
“trombadinhas”. Então a Associação procurou elaborar um trabalho de divulgação
dos aspectos também positivos do Centro.
51
Frúgoli identifica algum ruído entre o discurso de integrantes da associação e certas
ações efetivas realizadas em nome da entidade. O principal ponto se dá na relação não
preconceituosa que afirmam pretender estabelecer com as camadas populares da região. O
programa da Viva o Centro de organização de núcleos comunitários do centro, as chamadas
49
FRÚGOLI JR., H. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo:
Edusp, 2006. p. 78
50
Ibidem. p. 85.
51
Ibidem. p. 76
281
Ações Locais, que teriam como proposta funcionar como “sociedades de amigos de bairro”,
de zeladorias urbanas, é apontado como um dos principais disseminadores de ações
higienizadoras. Com predomínio de comerciantes em suas comissões, as Ações Locais, com
raras exceções, são marcadas por uma postura muito conservadora, enfatizando nas
“soluções” os interesses ligados “às suas condições de proprietários”; entre as ações mais
recorrentes defendidas por estas zeladorias estão “a expulsão de camelôs e da população de
rua, além de maior policiamento, com base em razões que vão da concorrência desleal do
comércio informal a interesses diretamente ligados à valorização de seu patrimônio
imobiliário”.
52
Frúgoli chega a transcrever a fala de um representante da Ação da João Mendes numa
reunião da associação (em 1997) que diz expressamente ser preciso fazer uma “faxina”, pois
ele, se precisasse levar em visita à região um “construtor” com interesse em construir “uma
grande torre, um grande prédio, um grande shopping no Centro”, teria vergonha “é
prostituição, senhor secretário!”
53
. Os camelôs foram, principalmente na segunda metade
dos anos 90, grandes alvos dos discursos higienistas das Ações Locais e que encontraram
grande eco nos meios de comunicação de massa e no próprio poder local. Eduardo Yázigi
lembra que em 1996, por exemplo, a Rádio Eldorado criou e veiculou intensamente uma
campanha feroz e estigmatizante contra os camelôs
54
.
Em 1997, o prefeito Celso Pitta, por meio da Comissão ProCentro (Programa de
Requalificação da Área Central prefeitura e sociedade civil) , da qual a Viva o Centro faz
parte, definiu proibição total do uso de espaços públicos de centro para atividades ligadas
ao comércio informal. Frúgoli faz menção a uma matéria da revista Veja na época que dizia
que os habitantes de São Paulo haviam redescoberto a beleza da praça da com a saída
dos ambulantes. A ação municipal contra o comércio de rua, cinicamente nomeada de
“Operação Dignidade”, chegou a retirar “1,6 mil artesãos, artistas plásticos, vendedores de
selos, moedas e pedras preciosas e donos de barracas de alimentos” da praça da República,
onde a feira de artesanato funcionava havia mais de trinta anos, para transferi-la para o
52
Ibidem. p. 92
53
Ibidem. p. 93
54
YÁZIGI, Eduardo. O mundo das calçadas: por uma política democrática de espaços públicos. São Paulo:
Humanitas FFLCH-USP/Imprensa Oficial do Estado, 2000. p. 156
282
pentágono da Roosevelt, deixando a feira sem visibilidade que ficava num nível elevado
da rua e, além disso, impedindo usos que a Roosevelt tinham então, como skate, bicicleta,
reunião de estudantes...
Nesta época, em função da transferência dos artesãos, o debate na mídia sobre a
necessidade de intervenção na praça Roosevelt reaqueceu. Já desde os anos 70, falava-se na
necessidade de interferência na praça, seja em função da obra sempre ter ficado inacabada,
desde sua inauguração, da falta de manutenção e das dinâmicas “submundanas” em seu
espaço e ao redor. Em uma matéria de jornal de 1979 a qual foi feita referência no
capítulo 3 a discussão sobre intervenções na praça ganhava destaque. A reportagem
conta que, em 1978, a associação de pais e mestres do Caetano de Campos iniciou uma
“campanha a favor de reabilitação da praça”, em razão dos riscos “físicos e morais” aos
estudantes. A primeira providência seria a de desviar o tráfego da rua Olinda, considerado
muito intenso numa via de grande circulação de estudantes, principalmente para incentivar
o uso da praça pois precisariam atravessar a rua.
Segundo o texto, a Emurb propunha uma intervenção baseada em vários pontos,
como a retomada de alguns aspectos do projeto original não realizados, a intensificação do
policiamento e da regularização da manutenção, estimular “comércio miúdo” (como
pipoqueiro, bancas de revista etc.), extinção do supermercado, facilitação de acesso,
embelezamento, aumento da área verde, estímulo ao uso da biblioteca circulante que
funcionava na praça, reorganização do mercado de flores etc.
55
Em 1997, matérias na imprensa apontam que a ação ordenada de transferir a feira de
artesanato da República para a Roosevelt entrava em desacordo com o projeto de reforma
anunciado pela Emurb, o que deveria começar dali a dois meses. Na Folha, a
apresentação de alguns pontos do projeto da Emurb, que consistiria na demolição total da
praça Roosevelt para criar um espaço mais aberto, com piso plano, que permitiria o plantio
de árvores e a construção de uma pista de cooper.
56
Em 2002 (prefeitura Marta Suplicy), é divulgado o Programa de Reabilitação do
Centro, com investimento da prefeitura e do BID, que consistia em “uma série de ações
articuladas até 2004”, na região englobada nos distritos da e República. Reformas de
55
A PRAÇA morta. Soluções:. Jornal da Tarde, São Paulo, pp. 8-9, 19 jan. 1979.
56
MUGGIATI, A. Praça condenada receberá artesãos em SP. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 3-7, 25 nov. 1997.
283
áreas públicas, moradias populares e ações para diminuição da violência eram os eixos
principais do programa, conforme divulgado pelo jornal O Estado de S. Paulo. Sobre as
reformas, havia algumas que já estavam em curso, como as das praças Patriarca e República,
e entre as intervenções previstas constava a na praça Roosevelt
57
. Foi apenas realizada
neste período uma reforma emergencial: “foram demolidas algumas muretas para facilitar o
acesso de pedestres, reparados gradis e retirados bancos para evitar que moradores de rua
tomassem conta do local.
58
Em 2005 (prefeitura José Serra), reaparece mais uma vez o anúncio de intervenção na
Roosevelt. Na Folha daquele ano, era informado que havia duas propostas de reformulação
da praça, realizadas por José Eduardo Lefèvre, que previam “a demolição do ‘pentágono’ (...)
e a inclusão de alguma atividade 24 horas um café, por exemplo”. Não existia, no entanto,
uma previsão de início da obra
59
. Houve durante esta gestão um grande alarde sobre um
plano de várias intervenções no centro
60
:
O centro virou “vitrine” inicial da gestão de José Serra (2005 a março de
2006). O tucano incluiu a Roosevelt nos planos de intervenções. Foram
sugeridas mudanças: derrubar o pentágono - laje de concreto e com rampas
- para dar lugar a uma área verde, demolição das lajes perto da Igreja da
Consolação e construção de banheiros na garagem subterrânea, hoje
fechada.
61
Segundo informações divulgadas pela Viva o Centro, foram produzidos diversos
projetos para a Roosevelt. O arquiteto Eduardo Longo teria enviado à prefeitura em 2008 a
proposta curiosa denominada “Praia Roosevelt” de transformar a praça em um balneário
público, “inspirado nas praias sazonais de Paris”
62
. A Emurb apresentou novo projeto em
2008 (governo Gilberto Kassab). Prevê a demolição do conjunto construído acima dos
estacionamentos, e vem sendo apresentado nos últimos anos e até o momento presente
como a reforma que efetivamente acontecerá. Em 2007-2008 mesmo, a prefeitura havia
anunciado que começaria as obras, desocupando a o supermercado, a escola e o CMI, e
57
MARTA apresenta projeto para recuperar o centro de SP. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Cidades, 28 mai.
2002.
58
BONFIM, C.; CALIXTO, L. Novo prazo para a Roosevelt. Jornal da Tarde, São Paulo, Cidade, 13 dez. 2009.
59
DEGRADADA, praça espera reforma prevista em projeto. Folha de S.Paulo, São Paulo, Ilustrada, 08 fev. 2005.
60
RAMOS, V.; LAGE, A. Praças do centro terão obras de R$ 10 mi. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, 22
jun. 2005.
61
BONFIM, C; CALIXTO, L. Op cit.
62
Projeto divulgado em: <http://www.eduardolongo.com/urbPRR1.html>. Acesso: 20 abr. 2010.
284
desativando o estacionamento subiram paredes e colocaram alambrados para tentar
evitar ocupações (não evitou, pois constantemente o local foi tomado por moradores de
rua) e demoliram alguns muros. Mas, até o momento em que este texto está sendo escrito,
a obra não foi iniciada.
No diagnóstico da Emurb que baseou a proposta, os motivos da “degradação” da
praça são: rejeição da população à praça, o não entendimento pela população do espaço
construído, falta de verde e excesso de área construída, dificuldade de manutenção e
controle, “indefinições e irresponsabilidades” e “terra de ninguém”
63
. Este levantamento
demonstra assim uma concepção que vai definir a reforma proposta, pois não são somente
problemas detectados, mas principalmente formulados lembrando Castoriadis, que diz
que o processo de institucionalização não está somente nas soluções apresentadas, mas
fundamentalmente na formulação das necessidades, o que permitira perceber o caráter
imaginário (ou ideológico) da ação das instituições. Há no diagnóstico da Emurb a ideia clara
de que a praça é rejeitada de forma indistinta pela figura abstrata da “população”, que é um
ambiente incompreendido e abandonado. Parte de uma postura clara, de início, de negar
todo e qualquer aspecto vernacular que possa ser associado à praça um espaço que nunca
se configurou em “lugar”, conforme esta concepção.
O projeto propõe o ajardinamento de boa parte da área da laje, pela colocação de
jardineiras, floreiras e bancos e novo “conceito” de acessibilidade. Para ganhar mais área,
prevê o fechamento da abertura para ventilação do nel na parte voltada para Augusta.
Ligação da praça com a área do Instituto Clemente Ferreira e a construção de um edifício
para “uso institucional”, definido como um telecentro. Coloca ainda pequenas áreas para
um teatro de arena, um cachorródromo e um playground, sob o bosque ao lado da igreja; e
ainda um bicicletário e área com equipamentos de ginástica. Reforma dos estacionamentos.
E atuação no entorno, como ligação com a Nestor Pestana e a Avanhandava, recuperação do
Teatro Cultura Artística e a transformação de um edifício da Martinho Prado em uma escola
pública de teatro a ser administrada pelos Satyros.
Observando o projeto, sem me colocar no papel de especialista, fico com algumas
impressões. A primeira é a de que não vejo ali uma praça de permanência, tirando pelos
diminutos espaços da arena, do playground e do cachorródromo, parece-me que há a
63
Informações constantes na apresentação oficial do projeto, consultada no escritório da Emurb.
285
tentativa de restituir a circulação pela área, mais do que propriamente a destinação à
contemplação. Compreendo-a como praça de serviços e não de lazer: um telecentro,
área para floriculturas e ao “fundo” sim, porque o projeto me passa a ideia clara de uma
praça voltada para a Martinho Prado, e a Guimarães Rosa como um cenário de fundo um
conjunto de instituições: o Caetano de Campos, uma escola infantil (o Emei Patrícia Galvão,
instalado antes na praça), o edifício da Justiça Federal e o Instituto Clemente Ferreira. O
visual asséptico, conforme as perspectivas do projeto, me fez lembrar daquelas praças
instaladas em frente de alguns edifícios e condomínios corporativos.
7. Projeto de requalificação urbana, praça Roosevelt, 2008. Emurb.
Em uma matéria de jornal, a versão apresentada por Andrea Matarazzo, secretário de
coordenação das subprefeituras na época da produção do projeto, destaca alguns pontos
que nortearam a intervenção (a intenção de intervenção, para ser mais precisa):
De acordo com Matarazzo, a reforma da praça é mais uma ação para revitalizar a
área. As outras foram as reformas das Ruas Avanhandava e Augusta e a instalação
de teatros. Nos planos está ainda a futura construção de dois prédios residenciais
286
no cruzamento da Rua Augusta com a Caio Prado. “Havendo maior circulação de
pessoas, a área passa a ter vida e fica melhor”, conclui Matarazzo.
64
O aspecto da circulação pela praça e a agregação ao redor dela é destacado na fala do
secretário. Outra é a relação com as transformações da Augusta e Avanhandava, em
manchas de lazer de classe média. Os dois casos foram resultados de ações definidas por
interesses de mercado. A rua Avanhandava concentra bares e restaurantes, em sua maioria
pertencentes ao empresário Walter Mancini. Em 2006 passou por uma grande reforma, um
projeto megalomaníaco de Mancini que contou com a permissividade do poder público e
investimentos do setor financeiro foi apresentado como fruto de uma “parceria entre a
iniciativa privada e a prefeitura”. As calçadas foram alargadas e os fios e cabos enterrados,
além disso, foi usado um calçamento vermelho e instalada uma fonte “em estilo italiano”,
criando uma cenografia exagerada para remeter ao predomínio de cantinas entre os
estabelecimentos da rua. Boa parte da clientela dos restaurantes da Avanhandava é
formada por turistas (há muitos hotéis na região), segundo uma matéria jornalística
65
.
A rua Augusta, na região abaixo da avenida Paulista, no sentido do centro, conhecida
como Baixo Augusta, na mesma época, assistiu uma mudança de perfil: de área considerada
“degradada”, com concentração de prostituição de rua e inferninhos, passou a ser
reconhecida como um dos principais pontos de “balada” de classe média. Uma matéria de
capa da revista Veja São Paulo caracteriza assim a “diversidade” do público da mancha de
lazer noturno:
(...) a esquina das ruas Augusta e Fernando de Albuquerque, na Consolação, está
apinhada de jovens universitários, moderninhos e neo-hippies. perto, uma
calçada é ponto de encontro da tribo emo. Alguns metros para baixo e algumas
horas depois, uma fila de playboys forma-se na porta da casa noturna Vegas. No
meio do caminho, um boteco -sujo, o Bar do Netão, reúne a turma da moda e
das artes no esquenta pré-balada. Entre os clientes está a bela Bruna Prado, de 22
anos, acompanhada de dois amigos.
66
Segundo cálculo da revista, havia, na época da publicação, 52 bares, 18 baladas, 16
restaurantes, além do complexo de cinemas do Espaço Unibanco, galeria de arte e salões de
64
MAIA JR., H. Reforma da Praça Roosevelt deve sair do papel este mês. O Estado de S.Paulo, Metrópole, p.
C4, 07 abr. 2008.
65
“NOVA” Avanhandava é inaugurada hoje com pórtico, fonte e piso novo. Folha de S. Paulo, São Paulo,
Cotidiano, 20 jan. 2007.
66
ROMANI, G.; BATISTA JR., J. Augusta a 120 por hora. Veja São Paulo, São Paulo, n. 2139, 18 nov. 2009.
287
beleza. A revista considerou que “a mudança de perfil da Augusta é um exemplo bem-
sucedido do processo de revitalização do centro - ainda que tenha recebido mais
investimentos da iniciativa privada do que do poder público. Apesar da afirmação, a própria
reportagem informa que a prefeitura investiu mais de 2 milhões de reais, enquanto a
“Sociedade de amigos e moradores de Cerqueira César” bancou o plantio de 200 árvores. A
matéria ainda aponta que alguns problemas sofridos pela rua: o excesso de lixo acumulado,
a recorrência de furtos e venda de drogas.
A fala do secretário Matarazzo sobre a reforma da Roosevelt, bem como o próprio
projeto da Emurb também definem o quarteirão da Martinho Prado como espaço de
agregação que estabeleceria ligação direta com a Nestor Pestana (previsão da reforma do
Cultura Artística que passou por um incêndio em 2008), a Avanhandava e a Augusta. A
Guimarães Rosa tomada por instituições de ensino, do poder judiciário e de pesquisa na
área da saúde, conforme o projeto esvaziaria durante a noite. O descolamento de um lado
e outro da praça não fica resolvido (se é que houve a intenção de resolvê-lo).
O foco da proposta de intervenção parece assim eleger a “vocação” cultura e lazer
noturno para a região para um lado, e a concentração de prédios blicos do outro. Isso
indica que a proposição da obra vem também para aproveitar o espaço midiático aberto aos
grupos de teatro local. Mas também se insere em uma lógica maior de ações no centro da
cidade que ressaltam o viés da cultura.
Pode-se observar ações de limpeza social urbana pela concentração de instituições
culturais públicas, e o caso mais emblemático é o da região da Luz. Ali, em plena
Cracolândia, foi iniciado um programa de requalificação com clara configuração higienista.
Chamado primeiro “Luz Cultural”, ainda nos anos 80 (em 1995, a exposição de Rodin, na
Pinacoteca, é considerada um marco para a construção da visibilidade cultural do museu e
da região), ganhou mais corpo nos anos 2000, com o nome “Nova Luz”. Equipamentos
culturais vêm sendo criados na região ou transferidos para lá, e os existentes receberam
investimentos para reforma e atualização. Boa parte deles é ligada ao poder público
estadual, a própria Secretaria de Estado da Cultural foi transferida para a área. ainda
grandes instituições e programas como a Pinacoteca, o Museu de Arte Sacra, o Museu da
Língua Portuguesa, Sala São Paulo (sede da Orquestra do Estado de São Paulo), a Escola de
Música Tom Jobim, o Memorial da Resistência, entre outras. Também está em construção o
288
Teatro da Dança, orçado inicialmente em 300 milhões de reais, e que vem recebendo várias
críticas pela superdimensão do projeto. A valorização dos equipamentos culturais veio
acompanhada de ações de intensificação da segurança pública e a prefeitura mantém um
programa voltado à “recuperação” de jovens e crianças drogados. Anuncia-se a intenção de
estimular a habitação no local para exploração imobiliária de apartamentos de classe
média, que teria alguma contrapartida com habitações populares. Volta e meia, existem
denúncias do caráter “limpador” com relação ao lúmpen que povoava a área desde maus-
tratos até a dispersão de moradores de rua, usuários de drogas e traficantes por várias áreas
do centro, a praça Roosevelt inclusive.
Os eventos culturais de grande visibilidade são também usados como ferramenta de
requalificação do centro. De grandes exposições e apresentações pontuais, até eventos
sazonais que compõem uma agenda cultural oficial da cidade. Um destes eventos que mais
vem ganhando atenção da prefeitura e espaço nos meios de comunicação de massa é a
Virada Cultural. Trata-se de uma maratona anual realizada desde 2005 de 24 horas
ininterruptas de atrações culturais principalmente pelo centro, em espaços fechados e locais
públicos, que teriam como modelo o evento parisiense Nuit Blanche.
A praça Roosevelt vem participando da programação do evento. A edição de 2010
anuncia que a Roosevelt curiosamente não se destinará ao teatro, mas à Dimensão nerd”,
descrito como o grande encontro do cenário multi-facetado de infinitas dimensões e
tendências do universo nerd
67
. O programa informa a ocupação dos vários espaços da
praça pentágono, vão e estacionamento com atrações diversas ligadas ao campo das
histórias em quadrinho, RPG, jogo de tabuleiro, mangás, animês, ficção científica etc. Esta
escolha talvez indique o papel influente e simbólico que a livraria HQMix tem tido na
atribuição de novos sentidos para a região.
A inclusão da praça Roosevelt nos eventos oficiais não se apenas durante a Virada
Cultural, as próprias Satyrianas passaram a fazer parte do calendário cultural oficial do
estado. Além dos eventos é preciso comentar a institucionalização mais formal do teatro da
praça, por meio da montagem da escola, colocada como parte do projeto de requalificação
do local. Segundo foi divulgado pela imprensa, em entrevistas e no próprio site oficial da
67
Informações do site oficial do evento (a ser realizado entre 15 e 16 de maio de 2010), disponível em:
<http://viradacultural.org/programacao>. Acesso: 30 abr. 2010.
289
escola, em 2005 José Serra ficou sabendo do projeto dos Satyros no Jardim Pantanal e teria
sugerido ao grupo fazer algo semelhante na Roosevelt. Aliás, o grupo depois abandonou o
próprio projeto do bairro de periferia da zona leste (teriam passado para a administração do
espaço a moradores do bairro
68
).
Segundo matéria da Folha de S. Paulo, uma das poucas coisas publicadas na imprensa
sobre o assunto
69
, é contada uma versão (que tentar dar certo tom de “denúncia”) de que o
conselho de teatro da Secretaria da Cultura teria pedido o projeto da escola para análise e
nunca recebido. “O estranho é que não houve consulta ampla a universidades, debate para
conceber a escola. Fica um ar de camaradagem”, teria questionado um diretor teatral não
identificado na matéria (curioso inclusive o uso de fonte sigilosa em cobertura cultural). No
mesmo texto, o presidente da Cooperativa Paulista de Teatro (associação dos grupos de
teatro da cidade) diz que “o modo é questionável, mas que os Satyros e Parlapatões estão
capacitados”
70
. Alberto Guzik comenta a matéria em seu blog, tratando-a como ataque:
começaram. as primeiras agressões, insultos, injurias começaram a tomar corpo
hoje. era fatal. estava tardando. é preciso agora manter a coluna ereta, a mente
quieta e o coração tranquilo. nada do que estamos fazendo é condenável. as coisas
haverão de entrar nos devidos eixos.
71
Na reportagem da Folha ainda, o secretário de cultura liga o projeto da instituição
diretamente com a definição de um sentido para a região da Roosevelt: “*o intuito era+ fazer
uma escola de teatro usando os profissionais da praça, para consolidar a ocupação daquele
espaço pelas artes cênicas”, e que “informalmente” o projeto era conhecido como “Escola
da Praça”.
A SP Escola de Teatro (nome oficial), dirigida por Ivam Cabral, passou a funcionar em
2010 em um espaço da Oficina Cultural Amácio Mazzaroppi, no Brás, até que a sede
definitiva, em um edifício na Martinho Prado, em frente a Roosevelt, esteja pronta. Oferece
oito cursos de formação nas áreas: atuação, cenografia e figurino, direção, dramaturgia,
68
Conforme depoimento de Ivam Cabral para o site Museu da Pessoa. Disponível em:
<http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/depoimentoDepoente.do?action=ver&idDepoe
nteHome=15924&key=9126&forward=HOME_DEPOIMENTO_VER_GERAL&tipo=&pager.offset=11>. Acesso:
10 abr. 2010.
69
No mais, encontrei matérias ou notas na imprensa que se restringiam a informações pontuais sobre a escola
vai ser criada, será inaugurada dia tal etc.
70
NEVES, L. Escola de teatro custará R$ 8 mi/ano. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E6, 25 nov. 2009.
71
GUZIK, A. Pois é. In: Os dias e as horas (blog), São Paulo, 25 nov. 2009. Disponível em:
<http://os.dias.e.as.horas.zip.net/arch2009-11-22_2009-11-28.html>. Acesso: 10 mar. 2010.
290
humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco. O texto de apresentação do site oficial
da escola fala que o “mote” para a criação da escola foi “a falta de profissionais qualificados
nas áreas técnicas”, em possibilidades futuras de cursos de difusão “à distância” e que a
formação oferecida aos “aprendizes” tem “o objetivo de tornar efetiva a entrada destes
jovens profissionais no mercado da economia criativa”
72
. Há, assim, pelo menos por esta
apresentação oficial, um claro viés de formação de mercado de trabalho apesar do
secretário da cultura negar, na reportagem da Folha, a ideia de “mercado” na formulação da
escola: “não somos uma secretaria de formação profissional. Não sei se mercado é critério”.
A cultura como parte da esfera produtiva dentro das cidades contemporâneas é
fundamentalmente mercado de trabalho, afirma Sarlo
73
. E dentro desta lógica, o texto oficial
da escola da praça faz uma escolha lexical reveladora: não fala em formação de artistas, mas
de profissionais; aprendizes ao invés de alunos ou estudantes; não é criação artística, mas
“economia criativa”; destaca-se a técnica e não faz referência à reflexão, à estética ou ao
criticismo e ainda a referência a possíveis “cursos à distância”. Mais recentemente foi
ainda anunciada a montagem da Escola de Circo de SP a ser incorporada à escola teatral e
que deverá ser coordenada por Hugo Possolo
74
.
Sobre esta imagem que vem se desenhando da institucionalização da cultura na
relação com a requalificação da Roosevelt, há o próprio questionamento sobre o estatuto
artístico neste contexto. Jeudy chama atenção de como a arte vem sendo tomada dentro
das políticas públicas como uma terapia para as cidades tensionadas e esgotadas,
abandonado o espaço simbólico da subversão a não ser uma “subversão” também
encenada e totalmente enquadrada dentro do status quo. assim uma delegação dos
poderes públicos aos artistas. O autor coloca que esse processo de reparação “exacerba (...),
nos espíritos dos artistas e dos arquitetos, a relação (que se tornou política) entre ética e
estética”. neste processo uma “legitimação intelectual destes artistas e arquitetos, em
seus discursos e em seus escritos” a ponto de a própria degradação urbana, se sem riscos,
poder ser assimilada esteticamente. E neste ponto, Jeudy questiona o próprio estatuto dos
artistas: “como pode o artista ser ao mesmo tempo ‘provocador’ e ‘reparador’? E onde, para
72
Disponível em: < http://www.spescoladeteatro.org.br/a_escola/a_escola.php>. Acesso: 30 abr. 2010.
73
SARLO, B. Op. cit. p. 203
74
BERGAMO, M. Respeitável público. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E2, 03 mai. 2010.
291
tentar ser as duas, buscará ele os argumentos de sua ação criadora?”
75
. E Beatriz Sarlo
coloca também uma questão básica a ser feita: “a cultura repara?”
76
O imaginário que toma a arte como tábua de salvamento da praça degradada pode ter
mudado a própria percepção da relação entre artistas e cidade. Tomando, por exemplo, a
representação da praça nos blogs de alguns integrantes dos grupos teatrais, observa-se nos
últimos anos um esvaziamento desta presença e a relação Roosevelt-artes ganha tom mais
oficial ou formal.
Mário Bortolotto, que parece um pouco mais afastado deste processo de
institucionalização, reflete em seu blog, justamente sobre esta mudança de estatuto
artístico em função da profissionalização da arte:
Estou lutando contra a idéia de escrever algo. Simplesmente porque posso me
motivar e escrever muito por aqui. E eu tenho dois textos pra terminar hoje. E
tenho que entregar esses textos antes de ir pro teatro. Eu preciso terminar de
escrever esses textos. Tenho que parar de "trabalhar" tanto, mesmo porque tem
que me sobrar tempo pro que de mais importante, ou seja, escrever sem a
obrigação de terminar. Quero ficar a tarde assistindo filmes, lendo aqueles livros
que estão na pilha. Quero simplesmente ficar sem fazer nada, dormindo até mais
tarde. A profissionalização é o fim da diversão. Sempre pensei isso, e de alguma
maneira me deixei cair na armadilha. Espero que não seja tarde demais pra
escapar dela.
77
No final de 2009, um acontecimento de grande impacto nos frequentadores da
Roosevelt deu eco ainda maior sobre o tema requalificação da praça. Numa noite em que
um grupo de artistas confraternizava a portas baixadas no bar do Espaço Parlapatões, o local
foi invadido por ladrões que renderam o segurança e ameaçaram os presentes. Mário
Bortolotto e o ilustrador Carcarah acabaram sendo baleados na ocasião os dois
sobreviveram. O episódio gerou grande cobertura pelos mais variados meios e veículos de
comunicação. As leituras, abordagens e focos dados ao caso foram vários.
Parece que houve um reaquecimento momentâneo da noção de corpo entre os
artistas e frequentadores do teatro da praça, durante o período em que Bortolotto esteve
em coma, com textos e diálogos nos blogs e atos de caráter público contra a violência e
75
JEUDY, H.P. Reparar: uma nova ideologia cultural e política? In: ______; JACQUES, P.B. Corpos e cenários
urbanos: territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: UFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006. p. 22
76
SARLO, B. Op. cit. p. 203
77
BORTOLOTTO, M. s/t. In: Atire no dramaturgo (blog), São Paulo, 02 mai. 2010. Disponível em:
<http://atirenodramaturgo.zip.net/>. Acesso: 03 mai. 2010.
292
em homenagem ao dramaturgo
78
. Outro ponto foi a própria discussão de que se a proibição
de mesas nas calçadas seria responsável por tornar a região mais suscetível à criminalidade.
Em entrevista após deixar o hospital, Bortolotto afirma:
(...) enquanto os bares e os teatros estão abertos é muito tranquilo. O problema é
quando eles fecham as portas e os noias (viciados em crack) descem. O que
aconteceu no dia é que tem essa p... da Lei do Silêncio. Se os Parlapatões baixam
as portas, vira uma arapuca, uma armadilha para quem está dentro. (...) porque
senão as portas estariam abertas até as 6 horas da manhã. Entendeu? (...) A praça
fica segura. Agora, começa a baixar porta à 1 hora da manhã, vira um lugar ermo,
fica perigoso. Se não fosse a Lei do Silêncio não tinha acontecido.
79
Então ganha destaque justamente a discussão sobre a lei que coíbe o vernacular no
uso das calçadas e veja que se trata do centro e não de um bairro de perfil
predominantemente residencial. Nem mesmo com toda a visibilidade midiática positiva,
sobre a instalação dos teatros e a festividade local, trouxe legitimidade ou aceitação para se
“atrapalhar a circulação” ou “romper com o silêncio”. Em uma reportagem, estes
impedimentos legais são levados para o campo produtivo: comerciantes locais amargavam
com a queda de movimentação após o crime. Na mesma matéria, o morador que organizou
o abaixo-assinado entregue ao Ministério Público contra o uso das calçadas durante a
madrugada afirma estar sendo hostilizado por comerciantes: “não vou permitir que se
levante uma bandeira da segurança às custas do meu sono”
80
.
ainda a dimensão política, de âmbito mais institucional, que o crime teria tomado:
“anteontem, o governador José Serra (PSDB) foi visitar Bortolotto. (...) 15 dias antes do
crime, o prefeito Gilberto Kassab (DEM) assistiu uma peça no Parlapatões e conversou com
artistas e comerciantes sobre a importância da revitalização”
81
. E o reavivameto da figura
anacrônica do “submundo da Roosevelt”: “no entender dos policiais *que estariam
incomodado com a pressão “de cima” para resolver logo o caso+, o real motivo de Bortolotto
ao se dizer inapto [de fazer o reconhecimento dos ladrões] seria o fato de ele ser conhecido
78
ARTISTAS da Roosevelt reclamam de assaltos. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Metrópole, p. C4, 07 dez.
2009.
79
MEDEIROS, J. Dramaturgo renasce depois do pesadelo. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. D7, 22 jan. 2010.
80
OLIVEIRA, R. Roosevelt amarga queda de movimento. Folha de S. Paulo, São Paulo, Cotidiano, p. C3, 14 dez.
2009.
81
CALIXTO, L. Polícia não tem pistas de ladrões da Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Metrópole, p.
C5, 08 dez. 2009.
293
no submundo da praça Roosevelt, além de saber que, nesse universo, a delação é tida como
imperdoável”
82
.
Todos estes elementos apresentados fazem um painel curioso que apontam como os
discursos ideiais da “modernização” em termos globais, da autenticidade do uso do espaço
para sociabilidades e de visões consideradas arcaicasse misturam neste caso e produzem
contradições. Os artistas reclamam a perda de espaço de convivência e são saudados por
autoridades políticas que propõem ações na cidade de cunho saneador. O morador que
tenta impedir o vernacular das calçadas usa o argumento contra a “bandeira da segurança”
bandeira esta tradicionalmente usada para justificar políticas conservadoras de controle e
higiene social, e que justamente vem sendo erguida, no caso, por aqueles que teriam
posições em defesa de um espaço mais “democrático”. A polícia recorre à estigmatização
desatualizada, que projeta a inserção “submundana” no artista que trabalha com temáticas
do universo outsider, ao mesmo tempo, questiona a suposta prioridade ao caso por
autoridades preocupadas com a visibilidade negativa ao projeto de revitalização do local.
O crime e sua grande repercussão reaqueceram também o debate sobre a reforma da
praça. Foram veiculadas no período de dezembro de 2009 e março de 2010 um grande
quantidade de matérias jornalísticas sobre a obra prometida desde 2008 e não iniciada até
aquele momento. Nestas reportagens, ponto comum era a recuperação de um panorama
sobre as propostas de reforma e intervenções na praça, que ressaltavam que estas obras
foram anunciadas governo após governo e não efetivamente realizadas. E novamente a
prefeitura anunciou que a obras serão iniciadas em 2010
83
-- sendo que em maio deste ano
foi divulgado pela imprensa um corte da verba destinada a obra (o valor cortado seria
utilizado na organização da Virada Cultural).
84
Esta nova grande aparição jornalística do tema apresenta um tratamento que vai no
sentido de pressionar o poder público para realização da obra, mas em nenhum momento
aparece um debate sobre o projeto em si e sua condução.
82
VICTOR, F. Polícia tem um suspeito de atirar em Bortolotto. Folha de S. Paulo, São Paulo, Ilustrada, p. E11, 15
jan. 2010.
83
ALCALDE, L. Após diretor ser baleado, sai edital de obra na Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo,
Metrópole, p. C8, 13 jan. 2010.
84
KASSAB corta R$ 2,8 mi da reforma da Praça Roosevelt. O Estado de S.Paulo, São Paulo, Metrópole, p.C5, 05
mai. 2010.
294
A ideia de requalificação da Roosevelt insere-se em um plano maior de construção de
nova visibilidade para o centro, atraindo principalmente a classe média, e podemos supor
que o bairro da Consolação, como região de transição entre o “centro antigo” e a Paulista (a
rua da Consolação é uma das principais vias de ligação entre o centro e os bairros do vetor
nobre da cidade, o sudoeste), deve ter papel estratégico. Vamos tomar agora postura da
Viva o Centro sobre a proposta da Emurb.
A associação publicou relatório oficial
85
com o parecer sobre o projeto de intervenção,
a partir de uma apresentação que técnicos da Emurb fizeram para representantes da ONG.
Nas análises, o relatório aponta diversos problemas no projeto:
a) Gestão da praça: considera o projeto omisso sobre este ponto.
b) Usos previstos: considera que o projeto não apresentaria nenhum atrativo para
levar a população à praça, bem como não mostra claramente nenhum vínculo com
as atividades do entorno.
c) Partidos arquitetônico adotados: tirando a recuperação dos estacionamentos,
aponta inconsistência técnica e de concepção nos demais pontos.
d) Ações para o entorno: não comentam por falta de dados e estudos.
O relatório acha que o projeto deixa um vazio, não conecta um lado o outro da praça e
não apresenta nenhum atrativo de ocupação. Como proposta, aponta que o pentágono é a
grande marca de identidade da praça e não deveria ser derrubado. Precisaria, sim,
desimpedir o vão, sem construções ou paredes. Sugere explorar mais as relações entre
dinâmicas e usuários que a praça tem: moradores, estudantes, artistas, público de teatro,
skatistas, grafiteiros. Nas perspectivas simuladas desta proposta, o vão aparece com locais
para skates, as colunas cobertas de grafites, bancos com encostos e mesas, “bistrô da
música” (não deixa claro do que se trata), faz referência à possibilidade de usos para
“pequenas feiras temáticas” e eventos turísticos.
Contrastando as proposta da Emurb e da Viva o Centro, fica claro que a primeira tem
um viés mais saneador, com grandes obras para a sua execução. A proposta da associação
vem com a marca do “urbanismo reparador” e busca assentar a ideia de diversidade,
85
Análises e propostas da Associação Viva o Centro ao projeto apresentado pela Emurb para a Reforma da
Praça Roosevelt. Associação Viva o Centro, São Paulo, mar. 2009.
295
assimilando imagens do público jovem, da permanência para moradores, do perfil cultural e
ainda da articulação ao lazer noturno e ao turismo.
8. Dois projetos apresentados para a praça: a “Praia Roosevelt”, de Eduardo Longo, e duas perspectivas da
proposta da Associação Viva o Centro, 2009.
Em entrevistas à imprensa sobre a Roosevelt, Marco Antonio Ramos de Almeida, da
Viva o Centro, vem defendendo um maior debate e calma sobre um projeto de maior
impacto, mas que alguma ação imediata para recompor a praça é necessária (sem a
demolição). Apesar da posição oficial da associação, os representantes da Ação Local
296
mostram apoio declarado à proposta do Emurb, ou ainda propõem paliativos que vão ao
sentido oposto do discurso agregador bancado pela direção da ONG. O presidente da Ação
Local na época da elaboração do projeto, Enrique Marti, por exemplo, disse em diversas
ocasiões defender a demolição do pentágono e que a reforma deveria acontecer de uma
vez
86
. Em matéria do portal R7, por ocasião do crime no Parlapatões, Almeida aparece
defendendo a posição oficial da Viva o Centro, enquanto o presidente Ação Local naquele
momento, José Luiz de Oliveira Melo, dizia que sua proposta era cotizar moradores e
comerciantes para contratarem segurança privada para o quarteirão, que a polícia não
dava conta.
87
Menos de um mês depois do crime no Espaço Parlapatões, um blog sobre política,
produzido por um morador da Roosevelt, trazia um texto acompanhado de registros
audiovisuais, filmados de sua janela, sobre o assassinato de um morador de rua na praça e o
questionamento sobre o descaso dos policiais que atenderam a ocorrência, bem como do
desinteresse dos veículos de comunicação
88
. O caso mal foi noticiado pela mídia tradicional
apenas uma ou outra notinha nos jornais , mesmo depois da grande bandeira levantada
sobre a reforma da praça e a criminalidade no centro, fazendo grande contraste com o
tratamento ao crime anterior. Busquei também a repercussão deste crime que vitimou o
morador de rua em blogs, e vi referência a ele em alguns que tratam mais de temas
políticos, com perfil de esquerda (que usam o caso para críticas às administrações da
prefeitura e do governo do estado). Em blogs sobre cidade, urbanismo e nas páginas
pessoais de alguns moradores e artistas da região (e que com alguma frequência
costumavam trazer temas sobre a praça) também não achei quase referências ao crime.
No clipe de divulgação do documentário de Jussara Figueiredo (já citado no capítulo
4), trechos da gravação de uma reunião de moradores na praça em 2006. A reunião é
86
FERREIRA, J.C.M. Praça Roosevelt: possibilidades e limites do uso do espaço público, 2009. Dissertação
(Mestrado em Geografia Humana) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo. p. 126-128
87
FARIAS, C. Sem sair do papel, reforma da praça Roosevelt está três anos atrasada. In: R7 (site), São Paulo, 08
dez. 2009. Disponível em: <http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/sem-sair-do-papel-revitalizacao-da-
praca-roosevelt-esta-tres-anos-atrasada-20091208.html>. Acesso: 20 abr. 2010.
88
GARCIA, R. Assassinato na Roosevelt: apenas um número, uma estatística. Blog do Tsavkko The Angry
Brazilian, São Paulo, 04 jan. 2010. Disponível em: < http://tsavkko.blogspot.com/2010/01/assassinato-na-
roosevelt.html>. Acesso: 10 abr. 2010.
297
organizada pelo Comitê Gestor Praça Roosevelt
89
. Este comitê, informa Ferreira, foi
montado por Carmen Zilda Ribeiro, moradora que, não sentindo representada pela Ação
Local, propôs então a criação de uma organização alternativa de moradores. Carmen Zilda é
radicalmente contra a demolição do pentágono. Nesta posição, o geógrafo também aponta
O CIM (Centro de Informação da Mulher), que funcionava na praça até 2008, quando foi
retirado de lá (junto com o supermercado, a escola infantil e os postos de polícia), em
função do anúncio da obras.
As duas organizações teriam vínculos com o Fórum Centro Vivo, associação ligada aos
movimentos sociais e à luta pela garantia da presença popular no Centro, criada em
contraposição à Viva o Centro. O texto de apresentação do Fórum, no site oficial da
entidade, diz que a ONG nasceu no ano 2000 a partir de um evento acontecido na USP
“Movimentos populares e Universidade” , unindo estudantes da universidade, a Central
dos Movimentos Populares (CMP) e a União dos Movimentos de Moradia (UMM).
90
Ferreira define um embate entre “demolidores” (com viés tecnocrata) e “históricos”
(discurso construído em cima da valorização dos processos sociais)
91
. As posturas contrárias
à demolição aparecem não apenas por meio dos movimentos sociais organizados.
manifestações outras que pedem a preservação da estrutura do pentágono. Em
comunidades de Orkut sobre a praça, fóruns que propõem aos participantes se manifestar
sobre a derrubada, normalmente mais manifestações contrárias. Skatistas e veículos de
comunicação ligados a este grupo fecham posição contra a demolição, o site Tribo do Skate
traz a “nota triste” já em 2005:
(...) a Praça Roosevelt, pico clássico do street paulistano, corre o risco de sumir do
mapa, ao menos no Atlas do skate. Moradores e comerciantes da região,
revoltados com o fato de serem constantemente assediados por pedintes e
defumados por maconha, exigem que a praça seja revitalizada”, o que significa
que as muretas e bancos que compõem o “Pentágono” serão, provavelmente,
demolidos. O skate brasileiro, que não tem nada a ver com isto, sofrerá as
consequências. Não pedintes em países regidos por governos decentes, cujos
representantes não metem a mão em dinheiro público destinado à Educação e
Saúde. (...).
92
89
Clipe do documentário Praça Roosevelt Presente Passado Futuro, disponível no site Youtube.
90
Disponível em: < http://www.centrovivo.org/historia>. Acesso: 20 abr. 2010.
91
FERREIRA, J. C. M. Op. cit. p. 108-109
92
MÃE, C. Nota triste. Tribo do Skate, São Paulo, 27 out. 2005. Disponível em:
<http://triboskate.globo.com/whatsup.php?id=112> . Acesso: 20 abr. 2010.
298
Muitas vezes mais do que debater ser contra a demolição, há manifestações que
questionam a forma como a intervenção Roosevelt vem sendo conduzida por autoridades.
Em uma reportagem de um programa de televisão especializado em skate, é feita uma
edição que aponta justamente para o caráter autoritário em que se deu a confecção do
projeto. Em plena praça, no dia da “inauguração” dos obstáculos projetados por Esteban
Forio (ação esta que também deixa embaçada as noções de público e privado, mas que de
qualquer maneira está ligada a um uso vernacular do local), em 2008, o secretário Andrea
Matarazzo fazia coincidentemente visita à praça, acompanhado do presidente da Ação
Local. Na edição, em meio a várias falas de skatistas e gente ligada ao skate que reforçavam
a figura afetiva da praça para os praticantes, e com grande ênfase na ideia de que a
Roosevelt é elemento da história do skate na cidade “museu do skate”, skatistas saídos
dali, recordações de bons momentos vividos ali etc. o comentário de Matarazzo:
Não tem história, e a história dela não é feliz. Foi uma praça com uma arquitetura
que é feia, que acabou com uma área verde que existia aqui no lugar.
93
E o representante da Ação Local completa:
Qualquer coisa que seja feita em relação à praça Roosevelt vai ser melhor do que
hoje está. Hoje o que está é uma monstruosidade. Isso aqui é uma monstruosidade
arquitetônica.
94
O blog Tsavkko traz um relato sobre uma exposição, acontecida no Studio 184, em
2010, do projeto de reforma da praça, por representantes da Emurb, e aberto à participação
pública. O signatário do blog, Raphael Garcia, morador, afirma ser a favor da demolição, mas
aponta vários desconfortos com relação à condução da intervenção. Segundo seu texto, as
principais reclamações de alguns presentes se deram em função do projeto não contemplar
área para a prática do skate, bem como a derrubada do imóvel onde funciona o samba, na
Guimarães Rosa e, além disso, do fechamento das casas de prostituição Kilt
95
e My Love, e a
93
Programa Skate Paradise, ESPN Brasil, abr. 2008. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=yduF9yN2Vak>. Acesso: 20 fev, 2010.
94
Idem.
95
SORANO, V. Prefeitura quer terreno da Kilt para fazer jardim. Jornal da Tarde, São Paulo, Cidade, 24 ago.
2009.
299
de sadomasoquismo Valhala, na Nestor Pestana. Também ficaria comprometido o
funcionamento da feira livre.
Da forma que está, a Praça será esvaziada e transformada em um ambiente sem
vida, sem frequência e, obviamente, perigoso.
Durante toda a exposição e espaço para perguntas, os representantes da EMURB
deixaram claro que a reforma da Roosevelt vem em conjunto com a reforma do
Centro, com a Nova Luz, reforma do Parque Dom Pedro e etc... Todas obras de
higienização e marginalização da população de rua e até mesmo dos moradores
dos prédios da região. Uma Nova Luz livre de mendigos e "marginais", uma
Cracolândia com uma fachada de "limpeza" e o consequente espalhamento dos
drogados que precisam não de polícia, mas de políticas de inclusão social e de
reabilitação e agora uma Roosevelt "limpa", livre de skatistas, de "putas" e de
cultura. Apenas um lugar para se passar, olhar e ir embora.
96
O próprio texto da ata de uma reunião do Comitê Gestor, produzido por Carmen Zilda,
e que Ferreira reproduz em sua dissertação, ênfase mais na discussão sobre a
representatividade do que à demolição em si.
Sem a participação dos movimentos populares todos os Comitês Gestores da
Praças serão “natimortos” porque não representarão os muitos atores da completa
realidade da cidade de São Paulo. E a sistemática falta de representatividade da
Diretoria da Ação Local Roosevelt não dá a ela nem a Viva o Centro, o direito de
negociar sozinha, em nome da população, moradora e usuária, da praça e da
cidade.
97
Há assim uma movimentação política “subterrânea” sobre os sentidos da praça
quase toda ocultada, até o momento, pela grande mídia, apesar do grande espaço que esta
vem dedicando ao tema “revitalização da Roosevelt”. Estes questionamentos sobre os
sentidos que a praça Roosevelt tem ou deve ter expõem a tensão entre a paisagem e o
vernacular, e entre o vernacular rejeitado pelas falas dominantes e o vernacular incorporado
às versões oficiais.
96
GARCIA, R. Praça Roosevelt e o centro de São Paulo Reforma ou higienização? In: Blog do Tsavkko The
Angry Brazilian, 06 abr. 2010. Disponível em: http://tsavkko.blogspot.com/2010/04/>. Acesso: 20 abr. 2010.
97
FERREIRA, J.C.M. Op. cit. p. 154
Considerações finais
303
I. Degradação e submundização
David Harvey aponta que a cidade condensa sobre si imagens polarizadas. De um lado
como representação libertária e emancipatória, por outro das angústias da vida moderna e
da corrupção:
A associação entre a vida citadina e as liberdades pessoais, incluindo a de explorar, inventar, criar
e definir novos modos de vida, tem uma longa e intrincada história. Gerações de migrantes têm
buscado a cidade como um porto seguro contra as repressões rurais. (...) Mas a cidade é também
lugar de ansiedade e de anomia. É o lugar do estranho anônimo, da subclasse (ou, como
preferiam nossos predecessores, das “classes perigosas”), espaço de uma incompreensível
“alteridade” (imigrantes, gays, pessoas mentalmente perturbadas, pessoas diferentes em termos
culturais, os que trazem uma dada marca racial), o terreno da poluição (tanto física como moral)
e de terríveis corrupções, o lugar dos condenados que precisam ser encerrados e controlados, o
que torna cidade” e “cidadão” politicamente opostos na imaginação pública na medida mesma
de sua ligação etimológica.
1
O tema da corrupção urbana ganha configuração na imagem do submundo. Vários
autores vêm apontando o caráter discursivo e distintivo destas “regiões morais”. Observa-se
que boa parte da narrativização sobre as cidades se apoia no choque entre as visões sobre a
“rua libertadora” e a “rua ameaçadora”
2
. A degradação dos centros metropolitanos outra
temática-chave sobre as metrópoles contemporâneas suscita debates, que a própria
concepção pode trazer em seu cerne posturas estigmatizantes e preconceituosas.
Nascida de um projeto autoritário que aprofundava a lógica viária na formatação
metropolitana de São Paulo, a praça Roosevelt ao longo de cerca de quatro décadas vem
sendo objeto de várias formulações narrativas. Passado o primeiro momento do discurso
oficial, que tentava colar à Roosevelt representações sobre civismo e progresso, de acordo
com o ideário do regime militar, o local ganhou uma leitura que parece ter se naturalizado
podemos dizer hegemônica, que deu a tônica a mensagens midiáticas mais recorrentes,
como também aparece em análises técnicas variadas que norteiam políticas públicas e
também em algumas falas científicas: o local é um desastre urbanístico e foi rejeitado de
modo geral pela população.
1
HARVEY, D. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. p. 209
2
Estas concepções e contradições expressas nas visões sobre a rua metropolitana são brilhantemente
apresentada por Marshall Berman em seu livro sobre a Times Square. BERMAN, M. Um século de Nova York:
espetáculos em Times Square. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
304
A inauguração da praça de concreto coincidiu com o início da transformação do
centro de São Paulo em região de atração de classes populares e de desinteresse das
políticas para o espaço blico. Assim, criou-se uma ideia de que o centro tornou-se
território abandonado, quando se observa que a região sempre manteve grande vitalidade
de ocupação. Mesmo o abandono pela classe média foi também relativo, pois
principalmente como lugar de trabalho, embora possam ter havido diminuições em termos
relativos na quantidade de escritórios sediados no centro, um volume grande de órgãos e
entidades públicas, bem como de empresas privadas, continuou a funcionar por lá.
Há registros de muitas presenças que ocuparam a praça e deram a ela feição de
“lugar”. Mas as leituras dominantes sobre a praça foram impregnadas pela imagem da
degradação do centro metropolitano, somando-se a isso a concepção do equívoco em seu
projeto. Questões sobre moralidade e segurança públicas dão a tônica principal aí, e
também ecoam o imaginário do caos metropolitano. Acredito que tudo isso deixa como
questão principal uma necessidade de novas leituras sobre o processo de degradação
urbana em São Paulo.
II. Território livre e diversidade
Chama atenção a recorrência com que a praça Roosevelt foi usada por grupos
diversos, ou mesmo em narrativas pontuais, como espaço para formulações com força de
utopias ou rememorações afetivas.
Grupos de skatistas tomam o local como figura que compõe a lembrança de um
território livre não para a prática do esporte, mas como espaço que liga a algumas
sociabilidades tipicamente juvenis e de memórias afetivas. E, neste caso, a subversão
total de sentidos: a estrutura “monstruosa” de concreto é a grande qualidade, e o que
permitiu que dentro deste universo a praça se configurasse em “lugar” de uso efetivo e de
memória de grupo.
O concreto foi também a superfície de valorização dos grafites que compõem uma
referência visual de urbanidade, que adere à imagem do lugar e constrói olhares sobre a
cidade (memórias e projeções de futuro, expressas na imagética dos grafites). Também se
pode fazer menção à praça como elemento de espacialização da memória do processo de
305
conscientização política do hip hop em São Paulo, condensando a imagem dos garotos
negros e pobres que tomavam a praça do centro e davam mais visibilidade ao debate sobre
preconceito racial e segregação das periferias.
ainda a figuração da praça como espaço de liberdades sexuais seja pelo viés de
movimentos mais politicamente organizados, ou da utilização como local de aglutinação
gay. Também a construção de um imaginário libertário pelos artistas de teatro da praça
como território de deslocados. Ou a lembrança romântica do reduto da Bossa Nova
paulistana. Surgem imagens de entrelaçamentos, colaborações e também conflitos.
Associações e conflitos dão consistência a uma diversidade que não se restringe a um
arranjo para compor discursos promocionais politicamente corretos (que tendem a aplainar
os conflitos no desenho da multiculturalidade).
Diversidade, “espaços de diferenças”, heterotopias... As utopias aparecem
historicamente costuradas a representações de cidades, observa Harvey. O autor também
ressalta que as utopias são tipicamente representadas na vida em pequena escala com
exceções, claro, como as cidades modernistas e a utopia “de mercado” da desespacialização
completa das cidades (ou distopia, a depender do ponto de vista). Assim, a projeção de
bem-viver volta-se para uma escala mais “humana” e as pequenas utopias urbanas
estariam então normalmente ligadas ao anseio de humanização do cotidiano urbano.
então, podemos supor, a construção constante de micro-utopias por grupos urbanos, e essa
é uma das marcas centrais do imaginário urbano, da própria possibilidade de transformação.
III. A praça local e a lógica global
É, no entanto, impossível desvincular dinâmicas e representações de pequena escala,
dos movimentos e das lógicas gerais de ordenamento das cidades. O movimento de
revalorização dos centros urbanos como tendência mais ou menos global deixa também
suas marcas nas políticas públicas para São Paulo e da ocupação da área pelo mercado
(imobiliário, de diversões etc.).
Neste contexto, nos anos 2000, a praça Roosevelt é tomada como um dos pontos da
políticas de requalificação do centro metropolitano. Esta atenção sobre a praça se deu
306
principalmente em função da presença dos artistas também em consonâncias com a
tendência internacional de valorização de regiões urbanas consideradas degradadas.
Começou com a atenção midiática, o grande apelo da narrativa dos artistas “alternativos” a
“civilizar” a região ocupada pela marginalidade. Com isso, observa-se o início do processo de
gentrificação, com a formação de uma pequena mancha de cultura e diversão noturna. Até
propriamente a institucionalização proposta com a reforma da praça e a abertura da escola
de teatro.
O processo de institucionalização encontra-se em curso e pode vir a nem mesmo se
efetivar como anunciado, mas de acordo com as movimentações até o momento, observa-
se a tomada da cultura como remédio para a anomia urbana do centro de São Paulo. E
aquele imaginário inicial do território dos deslocados dos artistas da praça Roosevelt parece
ter perdido consistência, inclusive pela enxurrada de mensagens midiáticas que acabaram
por promover uma estereotipagem de ambientes e frequentadores do local, com objetivos
de compor décor multicultural aos discursos sobre cosmopolitismo na vida noturna
paulistana. A própria atuação boêmia dos artistas começou a encontrar limitações e
enquadramentos à “ordem pública”. Interpreto que os veículos de comunicação de massa e
os poderes públicos vieram a valorizar no caso da praça Roosevelt não propriamente a arte,
mas os artistas (tanto na figura genérica, como na eleição de alguns deles como
“celebridades” locais) como “agentes” de políticas públicas, ou seja, de caráter reformista. O
tempo poético, reflexivo e improdutivo da arte perde forma para a imagem de um “polo
cultural” inserido nas noções de produtividade da cidade capitalista em suas feições mais
recentes.
O embate entre a paisagem e o vernacular, conforme os termos de Sharon Zukin,
adquire assim forma neste processo atual em torno da praça Roosevelt. O vernacular é
tomado como as marcas culturais residuais ou ainda como expressão de dinâmicas
emergentes lembrando que parte deste vernacular pode ser incorporado na estruturação
de um sentido dominante, a configuração da paisagem de poder, que toma a cultura como
instância reparadora da experiência e, com isso, reforça um sistema de classificações
identitárias.
Isso alude ao processo de institucionalização de utopias. Harvey descreve que a
realização por meios institucionais de algumas utopias urbanas tem se degenerado em
307
comunidades fechadas, em multiculturalidade de mercado etc. “A dialética é reprimida, e a
estabilidade e a harmonia são asseguradas, mediante uma intensa atividade de vigilância e
controle”
3
.
IV. Memórias e projeções
Sobre a questão do debate com relação à demolição da praça, vale lembrar Maurice
Halbwachs que diz que o espaço fornece sentimento de perenidade a grupos e indivíduos
“o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem, uma à outra, nada
permanece em nosso espírito”
4
. Observa que transformações bruscas no grupo tendem a
gerar mudanças no espaço, e que alterações significativas no espaço normalmente
acarretam abalos nas configurações dos grupos sociais. Assim, a demolição da estrutura de
concreto pode envolver de acordo com a maneira como for conduzida não apenas novos
sentidos à região, como também o corte do vínculo de certos grupos com o espaço e o
apagamento de certas imagens e narrativas.
Lefebvre afirma que a produção do espaço precisaria acontecer como um processo
aberto, dialético, caso contrário, sobre a cidade, pesaria uma lógica de caráter autoritário
seja pelo poder público, pelo mercado... (as utopias degeneradas a que Harvey faz
referência). Projetos urbanísticos e arquitetônicos tendem a eleger “vocações” para as
regiões, com interpretações únicas e soluções definitivas para o espaço, o que impõe
coibição de várias outras dinâmicas como também relega ao apagamento ou esquecimento
certos sentidos alternativos.
5
Assim, a ideia de um espaço verdadeiramente democrático para Lefebvre teria a
possibilidade de se produzir continuamente, aderindo memórias e engendrando
transformações. Esta concepção envolve não apenas questões espaciais, mas trabalha com
todo um sistema mais ou menos complexo de produção de sentidos.
Se a utopia, como tratamos no item anterior, tem a capacidade de projetar futuro com
base em desejos e aspirações sociais, a memória apresenta também zonas de resistência e
3
HARVEY, D. Op. cit. p. 220.
4
HALBWACHS, M. Memória coletiva. São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. p. 143
5
LEFEBVRE, H. La production de l'espace. Paris: Anthopos, 2000.
308
subversão. As representações de passado e futuro teriam então a capacidade de
mobilização do presente. Claro que não se deve idealizar que utopias e memórias tenham
estatuto emancipatório fixo. utopias degeneradas (ou que se degeneram na tentativa de
realização), como observou Harvey, e também o uso das memórias como arranjo para
compor um jogo de cena da multiculturalidade casos em que os conflitos e diferenças são
encobertos por uma narrativa única falsamente conciliadora.
6
Mas é notável como a construção de pequenas utopias e a rememoração constante
estão presentes na construção de sentidos para a praça Roosevelt e é possível amplificar
para a própria cidade. Chamo atenção especial para como a internet, com todo seu caráter
dispersivo, vem sendo utilizada como meio para estas expressões de desejos e exercícios de
lembranças. E de que forma a valorização do urbano está de modo geral presente na rede.
Observa-se, por exemplo, que existe grande quantidade de comunidades virtuais, baseadas
em relações espaciais nota-se como o espaço urbano sentido de compartilhamento
de experiências, bem como de anseios, em relatos constantes em blogs e nas chamadas
“redes sociais”.
No caso da discussão recente sobre a possível demolição da estrutura de concreto da
praça Roosevelt, foi na internet que percebi mais claramente o que chamei de “debate
subterrâneo” sobre os destinos da praça de maneira tão pulverizada, com versões
inacabadas, incompletas, ou seja, com poucas marcas de embates orquestrados, sentidos
rígidos, como costumam aparecer nos veículos de comunicação institucionais.
O caso da praça Roosevelt mostra um espaço com capacidade enorme de aderência
semântica. Pensar a praça como uma sucessão de narrativas e como um feixe de sentidos
simultâneos é dar a ela dimensão espaço-temporal. E, neste processo, a amarração entre
imaginário e social deixou-se mostrar.
6
Henri-Pierre Jeudy chama atenção, por exemplo, de como a ideia de culto à memória acaba muitas vezes por
esvaziar criticamente a relação com as lembranças.
309
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