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religioso ou filosófico. A leitura dos versos de O Guardador de Rebanhos feita nesse trabalho
incidirá tão-somente sobre o absoluto dos versos – independente de explicações categóricas
do pensamento conceitual. Qualquer leitura feita embasada em sistemas interpretativos será
uma contradição; os versos-Caeiro somente podem ser lidos num percurso que se inicia e
termina nos próprios versos. Não há, portanto, o que fora deles se possa falar. Olhar e ouvir
num objetivismo tal qual Caeiro vive torna o modo mais justo de receber aquilo que os versos
são em si mesmos. Nenhum pensamento periférico de análise deve ser aproximado ao que se
lê em O Guardador de Rebanhos; porque se Caeiro não é nada além de seus versos, a leitura
digna é a Leitura Absoluta, que nos restitui a simplicidade de ver, de sentir e de pensar
apenas, retirando a complexidade que confirma o esquecimento de que os versos bastam em si
mesmos.
Ricardo Reis, responsável pelo prefácio explicativo da obra O Guardador de
Rebanhos, indica a impossibilidade da tentativa de uma leitura definitiva sobre a obra. Reis
sabe que não pode definir o seu Mestre, porque este não pensou no mundo, portanto ele não se
conforma à negação nem à afirmação. Nele não se descobre uma interpretação, não havendo,
pois, em seu universo, consideração de significações. Com relação ao seu Mestre, os
discípulos são tolhidos a não enredar Caeiro nas malhas de um quadro interpretativo. Seus
versos se apresentam isentos de qualquer operação intelectual que tende, através de sua
poesia, explicar alguma coisa. Qualquer tentativa de definição seria uma resolução que
certamente contraria o mundo do mestre, uma vez que
Toda obra [O guardador de rebanhos] fala por si, com a voz que lhe é própria, e
naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não pode entender,
e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que
ele não fala. [...] Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio
nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como
aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o
desenvolvimento lógico das civilizações. Foi um progresso de sensações, ou, antes, de
maneiras de as ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de tais sensações
progressivas. Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que fundam religiões
para sempre, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que como o sol e a
chuva, repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descobriu o mundo
sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém meras
interpretações. Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa de prefaciar estes
livros, em fazer um largo estudo, crítico e excursivo, sobre a obra de Caeiro e a sua
natureza e destino fatal. Tentei com abundância escrevê-lo. Porém não pude fazer
estudo algum que me satisfizesse.
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Se não há possibilidade de explicar os versos-Caeiro, podemos, então, dizer que a
melhor maneira de sentir e de conhecer Caeiro se faz lendo os seus versos. Os versos-Caeiro
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PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. p. 115-116.