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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE LETRAS
Jefferson Eduardo Pereira Bessa
Leitura e Poema: O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro
Rio de Janeiro
2008
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Jefferson Eduardo Pereira Bessa
Leitura e Poema: O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro
Dissertação apresentada como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Literatura Portuguesa.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta
Rio de Janeiro
2008
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
P475 Bessa, Jefferson Eduardo Pereira.
Leitura e poema: O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro /
Jefferson Eduardo Pereira Bessa. – 2008.
103 f.
Orientador: Marcus Alexandre Motta.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Pessoa, Fernado, 1888-1935. O Guardador de rebanhos – Teses.
2. Poesia portuguesa – Teses. I. Motta, Marcus Alexandre. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III.
Título.
CDU 869.0-95
Jefferson Eduardo Pereira Bessa
Leitura e Poema: O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Literatura Portuguesa.
Aprovado em:
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta (Orientador)
Faculdade de Letras – UFRJ
________________________________________
Prof. Drª Ana Luiza Marques Bastos
Departamento de Letras – PUC-RJ
________________________________________
Prof. Dr. Mário Bruno
Faculdade de Letras – UFRJ
Rio de Janeiro
2008
DEDICATÓRIA
A todos os amigos que juntos comigo estiveram,
doando o apoio e o incentivo necessários para a
realização dos caminhos traçados por mim.
AGRADECIMENTOS
Ao professor-orientador Marcus Alexandre Motta – pelo seu trabalho seguro,
competente e dedicado.
A meus pais pelo acompanhamento dedicado e estimulante em todos os
momentos necessários.
A meu irmão – amigo de todos os questionamentos intelectuais e de todos os
assuntos particulares.
Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las, qual numa jarra,
Nós pomos flores.
Ricardo Reis
Mestre, meu mestre querido!
(...)
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti
nem de nada,
Alma abstrata e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre
múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...
Álvaro de Campos
RESUMO
BESSA, Jefferson Eduardo Pereira. Leitura e Poema: O Guardador de Rebanhos de Alberto
Caeiro. 101 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
A partir da obra O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa, o trabalho
consiste em desenvolver três temas presentes na obra: Os Sentidos, A Crença e A Natureza.
Apresentados em três capítulos separadamente, os temas se pautam em uma Leitura posicionada
em admitir os versos como a única fonte possível para a compreensão da obra. Dessa forma, a
Leitura em simplicidade dialoga frente a frente ao poema por uma abertura ao próprio dos versos,
escutando-os e seguindo-os não em busca de uma explicação fixa, mas num encontro possível
entre a sensibilidade do autor deste texto e a sensibilidade presente da obra. Para isso, ressalta-se
a atenção dada a uma Leitura que se volta a um acompanhamento dos versos no ritmo dos
próprios versos. Ou seja, os versos são lidos por eles mesmos na propriedade de um caminho
trilhado somente pelos versos presentes na obra.
Palavras-chave: Leitura; Sentidos; Crença; Natureza.
.
ABSTRACT
From the poem O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro / Fernando Pessoa, the text is to
develop three themes: The senses, The belief and The nature. Presented in three chapters
separately, the themes are guided in a Reading positioned in admitting the verses as the only
possible source for understanding the poem. Thus, in Reading simplicity argue face to face with a
poem to the actual opening of the verses, listening to them and following them not in search of an
explanation fixes, but in a possible meeting between the sensitivity of the author of this text and
sensitivity of this poem. For this, emerges the attention given to a Reading that is based on
observation verses in the rhythm of the verses themselves. In other words, the verses are read by
themselves in the property, a path followed only by verses in the poem.
Keywords: Reading; Sense; Belief; Nature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................09
OS SENTIDOS...............................................................................................................13
A CRENÇA....................................................................................................................47
A NATUREZA...............................................................................................................75
CONCLUSÃO................................................................................................................97
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................100
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho se estrutura numa leitura que segue separadamente cada poema presente
em O Guardador de Rebanhos. Divido em três capítulos: Os Sentidos, A Crença e A
Natureza, o trabalho faz a leitura dos quarenta e nove poemas do livro. Selecionou-se da
maneira mais adequada para inserir cada poema no capítulo em que um determinado assunto
estiver mais relacionado ao tema de cada capítulo. Tal estrutura se mostra adequada quando se
decide reencontrar o olhar de Caeiro em cada passagem, em cada parada breve ou em cada
atenção dada a uma coisa vista. Assim, os cantos separadamente são vistos e lidos com
atenção e com compreensão num movimento próprio apresentado por Alberto Caeiro, por isso
cada poema é transcrito inteiramente durante o trabalho. Caminhar atenciosamente por todos
os momentos se firma na provocação de olhar e sentir os cantos por si mesmos, pois assim se
fica imerso no movimento dos passos, que se fazem os mesmos passos desta dissertação.
O caminho pelo qual trilha esta dissertação se faz no próprio ato de caminhar sobre os
versos de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Caminhar aqui ganha a força de uma
passagem pelos versos, os quais são objetos únicos que falam por si mesmos. E que, por isso,
não haverá qualquer tentação de caminhar através do que com eles não está, ou seja, nenhuma
explicação dentro de um quadro de provas lógicas será possível, porque a proposta de um
caminhar se realiza por intermédio de uma leitura simples. Leitura que avança aberta a ouvir e
a passear rente ao que se escreveu em versos. Ouvir e passear, enquanto vejo o que diz cada
poema, é a revelação em propriedade das palavras que se mostram em si mesmas para que
cada passo seja o caminho de ouvir e de sentir os versos-Caeiro. Em simplicidade, a leitura
tateia sem buscar ou fixar um entendimento ou uma explicação que poderia estar para além
dos próprios versos. Generosamente, a leitura se abre ao que lê – os versos; isto é, a leitura em
si contém a compreensão recriada, sobretudo, pela aproximação de ver e ouvir os versos em
caminhos que remetem a uma simplicidade de não querer explicá-los, mas sim da aventura de
passar pelos cantos e instalar a vida naquilo que se acha integramente neles mesmos – os
versos.
Alberto Caeiro, segundo o discípulo Ricardo Reis, é o poeta do Objetivismo Absoluto
ou Paganismo Absoluto – teoria que se aproveitará para assegurar as trilhas de uma Leitura
Absoluta; próxima, portanto, ao modo próprio de Caeiro de ver e sentir as coisas
independentes de qualquer outra coisa, ou seja, de quaisquer pensamentos e conceitos, seja
10
religioso ou filosófico. A leitura dos versos de O Guardador de Rebanhos feita nesse trabalho
incidirá tão-somente sobre o absoluto dos versos – independente de explicações categóricas
do pensamento conceitual. Qualquer leitura feita embasada em sistemas interpretativos será
uma contradição; os versos-Caeiro somente podem ser lidos num percurso que se inicia e
termina nos próprios versos. Não há, portanto, o que fora deles se possa falar. Olhar e ouvir
num objetivismo tal qual Caeiro vive torna o modo mais justo de receber aquilo que os versos
são em si mesmos. Nenhum pensamento periférico de análise deve ser aproximado ao que se
lê em O Guardador de Rebanhos; porque se Caeiro não é nada além de seus versos, a leitura
digna é a Leitura Absoluta, que nos restitui a simplicidade de ver, de sentir e de pensar
apenas, retirando a complexidade que confirma o esquecimento de que os versos bastam em si
mesmos.
Ricardo Reis, responsável pelo prefácio explicativo da obra O Guardador de
Rebanhos, indica a impossibilidade da tentativa de uma leitura definitiva sobre a obra. Reis
sabe que não pode definir o seu Mestre, porque este não pensou no mundo, portanto ele não se
conforma à negação nem à afirmação. Nele não se descobre uma interpretação, não havendo,
pois, em seu universo, consideração de significações. Com relação ao seu Mestre, os
discípulos são tolhidos a não enredar Caeiro nas malhas de um quadro interpretativo. Seus
versos se apresentam isentos de qualquer operação intelectual que tende, através de sua
poesia, explicar alguma coisa. Qualquer tentativa de definição seria uma resolução que
certamente contraria o mundo do mestre, uma vez que
Toda obra [O guardador de rebanhos] fala por si, com a voz que lhe é própria, e
naquela linguagem em que se forma na mente; quem não entende não pode entender,
e não há pois que explicar-lhe. É como fazer compreender a alguém um idioma que
ele não fala. [...] Ignorante da vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio
nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como
aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o
desenvolvimento lógico das civilizações. Foi um progresso de sensações, ou, antes, de
maneiras de as ter, e uma evolução íntima de pensamentos derivados de tais sensações
progressivas. Por uma intuição sobre-humana, como aquelas que fundam religiões
para sempre, porém a que não assenta o título de religiosa, por isso que como o sol e a
chuva, repugna toda a religião e toda a metafísica, este homem descobriu o mundo
sem pensar nele, e criou um conceito do universo que não contém meras
interpretações. Pensei, quando primeiro me foi entregada a empresa de prefaciar estes
livros, em fazer um largo estudo, crítico e excursivo, sobre a obra de Caeiro e a sua
natureza e destino fatal. Tentei com abundância escrevê-lo. Porém não pude fazer
estudo algum que me satisfizesse.
1
Se não há possibilidade de explicar os versos-Caeiro, podemos, então, dizer que a
melhor maneira de sentir e de conhecer Caeiro se faz lendo os seus versos. Os versos-Caeiro
1
PESSOA, Fernando. Obras em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. p. 115-116.
11
podem ser considerados mestres, já que a experiência que se tem com os versos de O
Guardador de Rebanhos se assemelha diretamente com a existência de Alberto Caeiro. Os
versos se manifestam como o maior conceito de quem é Caeiro. A Leitura Absoluta, então,
acontece não como um comentário explicativo, porque a leitura direta não esclarece. A
Leitura Absoluta, em simplicidade, vive a partir de uma leitura direta como a visão e a
audição, isto é, ver e ouvir diretamente os versos-Caeiro. Não há tentativa de definição do que
escreve Caeiro, pois isso é impossível. Os seus discípulos sabem que não se pode relacionar o
Mestre a nada além dele mesmo. Alberto Caeiro não é explicável por qualidades que se
apresentam em uma categoria de pensamento para designar o modo como as coisas e os
homens são. Determinar Alberto Caeiro precisa e conceitualmente seria contrariá-lo, pois a
mais completa “definição” de Alberto Caeiro somente se faz naquilo que falou e escreveu.
Como Álvaro de Campos disse: o meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode
ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada
2
. Isto é, naquilo que se lê e se vê
plenamente de Caeiro nos seus versos.
Vale observar que tal tentativa de explicação se torna irrealizável até mesmo quando
Fernando Pessoa tentar justificar o surgimento de Caeiro como heterônimo. Pessoa diz que
escreveu numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir
3
. Assim conclui a
particularidade com que compõe a poesia do Mestre: por pura e inesperada inspiração, sem
saber ou sequer calcular que iria escrever
4
. Campos, ao ouvir uma frase de Caeiro, expõe:
Há frases que repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou,
antes, com que um homem se define, sem definição
5
. A leitura, portanto, mais íntegra da obra
O Guardador de Rebanhos sucede em ler e estar nela e com ela não como apropriação
intelectual dos versos sob um julgamento do que a obra significa. Ao contrário, essa leitura
sucede como um modo que se aproxima dos versos para abri-los e abrir-se a eles, nascendo
desse modo uma leitura que se escreve no caminho absoluto junto aos versos.
A Leitura Absoluta se constitui semelhantemente à experiência a qual relata Ricardo
Reis sobre o efeito dos versos-Caeiro. O discípulo, frente ao Objetivismo Absoluto de Caeiro,
afirma que ele – Ricardo Reis
era como um cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu
conhecimento com O guardador de rebanhos foi a mão do cirurgião que me abriu,
2
Ibidem, p. 110.
3
Ibidem, p. 96.
4
Ibidem, p. 98.
5
Ibidem, p. 109.
12
com os olhos, a vista. Em um momento transformou-se-me a Terra, e todo o mundo
adquiriu o sentido que eu tivera instintivo em mim
6
.
Assim, a Leitura Absoluta se fundamenta nessa abertura nos olhos de pessoas que
possuem a possibilidade de ler, mas que, pelo véu imposto por uma tradição acadêmica,
embota a leitura por intermédio, sobretudo, de explicações conceituais alheias. Contudo, tais
explicações, geralmente, até contradizem as idéias contidas no texto principal em estudo,
porque a leitura feita parte de um pensamento predisposto a adaptar idéias alheias ao texto
literário nem sempre lido absolutamente. Como diz Reis, a leitura mais generosa, no caso a
leitura feita sobre O Guardador de Rebanhos, ganha força somente quando se abrem os olhos
aos versos somente; num frente a frente indispensável para manter a sensibilidade do leitor a
par da sensibilidade do autor – o que instala a sintonia simples entre os dois. Dessa forma, o
texto não perde a sensibilidade, tornando-se apenas um instrumento de análise. A Leitura
Absoluta acolhe o texto sem perguntas, isto é, não a milhas de distância, mas, ao contrário, tão
próximo que os próprios sentidos o encontram numa compreensão do texto em si mesmo.
6
Ibidem, p. 112.
13
Os Sentidos
Segundo Fernando Pessoa, Alberto Caeiro é o fundador do Sensacionismo. Tal
movimento se constitui, basicamente, na concepção de que, entre as sensações e o objeto,
nada se interpõe. Nenhuma emoção se sobrepõe às coisas, pois a emoção, assim como a
reflexão, sempre acompanha a deformação delas. A obscuridade do interior, do psíquico, da
emoção ou da alma embota as coisas pela prevalência destes aspectos centralizados na
atenção de conceitos que manipulam as coisas exteriores, sendo radicalizado por um olhar no
qual elas se tornam indiretas. Isto é, o excesso conceitual formulado pela idéia de sujeito –
junto a tudo que nele está – torna as coisas do mundo encobertas. Por isso, o sujeito se torna
um veneno, especialmente, pela ilusão de conceitos que interferem no ser, o qual no mundo
deveria se instalar a partir de suas tendências e instintos. Sendo tudo sensação – Deus é uma
sensação assim como também é qualquer pensamento – o mundo, portanto, se fundamenta
pelo homem através das sensações. No entanto, as sensações surgem para a abertura do ser ao
mundo pelo que ele é sensivelmente. A descoberta das sensações realça que o encobrimento,
até então do sensível, resultou em sensações dominadas por um juízo carregado de mentiras e
de insatisfação, pois a tendência particular daquele que compreende sensivelmente foi
substituído por algo comum a todos homens, tornando, assim, incompreensível para um ser
que, em seus instintos, encontra a incompatibilidade referente ao que é sensivelmente e o que
prega a moral vigente e repressora.
Admite-se que a base de toda arte é a sensação. Contudo, Fernando Pessoa apresenta
uma teoria que subdivide etapas de realização para a manifestação estética. A sensação em
seu estado primário existe simplesmente, mas em seu processo surge a consciência dessa
sensação, a qual, pelo caráter criativo da arte, traz um valor que assegura, pois, a sua marca
estética, iniciando a possibilidade artística de uma obra. Na passagem da simples emoção à
emoção artística, tem-se a sensação intelectualizada, que decompõe os elementos primitivos
da sensação por uma análise dirigida, por isso provocadora de um acréscimo consciente de
elementos inexistentes na sensação primeira. Nessa sensação intelectualizada, surge o poder
de expressão o qual realça o resultado definido por intermédio de algo que não existe na
primitiva. Dessa forma, apresenta-nos Fernando Pessoa as etapas processuais das sensações
em arte:
14
(1) A sensação, puramente tal.
(2) A consciência dessa sensação, que dá a essa sensação um valor, e, portanto, um
cunho estético.
(3) A consciência dessa consciência da sensação, de onde resulta uma intelectualização
de uma intelectualização, isto é, o poder de expressão.
7
Baseando-se nessa sucessão de estágios das sensações, identifica-se o sensacionismo,
atribuído a Alberto Caeiro, como o primeiro estágio das sensações. Ou seja, a sensação,
puramente tal. As sensações em Caeiro se encontram em um nível primário e simples. De um
modo direto e puro, Caeiro não possui consciência das sensações a fim de que fizesse uma
poesia com um valor estético, uma vez que sua poesia é natural; em outras palavras, a poesia
caeiriana não é poesia com um valor estético, mas é uma poesia que acontece diretamente
pelas sensações, por isso é natural. Não ultrapassa a fim de chegar ao extremo da
intelectualização de uma sensação, perdendo a força primitiva das sensações. Muito menos é
uma poesia com uma sensação intelectualizada como apresentada em alguns parágrafos
anteriores.
A sensação em Caeiro se manifesta no modo direto de sentir dos sentidos. As coisas tais
como são – esta é a vertente sensacionista de Caeiro. As suas sensações são puras a tal ponto
que as coisas são sentidas como elas são. Pelos sentidos, abre-se a uma objetividade que sente
as coisas como elas existem. Realiza-se na propriedade do objeto puro, isolando os objetos
uns dos outros – o que afirma o apagamento de qualquer pensamento, juízo ou emoção que
esteja entre o sentidos e o exterior.
Caeiro é o sensacionista puro e absoluto que se curva diante das sensações qua exterior
e nada mais admite. (...) A sensação é tudo, afirma Caeiro, e o pensamento é uma
doença. Significa Caeiro por sensação, a sensação das coisas como são, sem
acrescentar a isto quaisquer elementos de pensamento pessoal, convenção, sentimento,
ou qualquer outro lugar da alma.
8
Caeiro é somente o exterior, ao qual tem acesso pelos sentidos diretamente. Para isso,
elimina tudo o que não pertence ao próprio do objeto: abole todas as determinações ou
qualidades, as quais não têm vínculo necessário ou casual nenhum com as coisas. Assim,
Caeiro, com a força dos sentidos, não vê o objeto sentido, mas o sente pelo que ele vê, quer
dizer, pela propriedade exterior do objeto visto. Nenhum sentimento, ternura ou pensamento
envolve o objeto, portanto tudo sente o que ele apenas vê; as coisas são como são.
***
7
PESSOA, Fernando. op. cit., nota 1, p. 448.
8
Ibidem, p. 130.
15
Primeiro canto
Eu nunca guardei rebanhos
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza
Vem sentar-se a meu lado
.
A contrariedade nos dois primeiros versos indica o caminho que trilha seus versos, isto
é, não há fixação das coisas sob a ordem da razão, quer pela afirmação, quer pela negação.
Em confronto com esta ordem, reconhecemos em Caeiro a ausência de uma apreensão das
coisas estruturada e ordenada, principalmente, por uma dinâmica lingüística que fundamenta o
pensar. Ambas agem sob esquemas organizacionais da percepção e do intelecto. Baseando-se
nesses questionamentos lógicos, podemos observar a dinâmica discursiva dos versos de
Alberto Caeiro. Certificaremos de que não há proximidade nenhuma com a lógica clássica,
preocupada em fixar processos intelectuais para a apreensão da realidade
9
.
Existe em Caeiro uma outra maneira de conhecer. O conhecimento de Caeiro se origina
não do pensamento, mas das sensações. A ação de guardar e de não guardar rebanhos aqui
não pode ser avaliada como contradição, a não ser se esquecêssemos dos versos caeirianos e
os analisasse sob a luz da lógica aristotélica. No entanto, Caeiro experimenta as coisas pelas
sensações _ fenômeno que permite determinar a si mesmo como guardador e não-guardador
simultaneamente e que veremos com mais detalhes nas linhas abaixo. Vale observar, por
enquanto, nesses versos, a sensação em que se pauta o poeta: um andarilho.
O elemento comparativo como se se insere impossibilitando qualquer fixação. A
afirmação introduzida pelo como se em O Guardador de Rebanhos _ elemento freqüente em
todo o poema _ assume a potência do sensível, que sucede inseparavelmente das sensações e
9
Diante desses versos, podemos trazer o sistema lógico desenvolvido por Aristóteles, que, ao estudar os
sistemas formais do raciocínio, determinou como elemento central da lógica a lei da não-contradição. Essa idéia
de que nenhuma informação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo fundamenta a estrutura de pensamento
que julgará a validade de uma argumentação. Eis a técnica lógica que tende, por operações intelectuais, afirmar
um conhecimento verdadeiro. Molda-se, dessa maneira, o ato do pensamento, da razão.
O procedimento proposicional manifesta-se como um instrumento do pensar, que busca conclusões que
chegamos através da apresentação de evidências a que sustentam. O conhecimento racional se pauta na
verificação que diferencia, descreve, controla as coisas. Enfim, tal conhecimento se apropria do objeto pelo
pensamento, como quer que se conceba essa apropriação: como definição, apreensão completa, análise, etc.
No âmbito da lógica aristotélica, consideremos agora os termos de um enunciado, as quais representam
um conceito. O termo, como parte de uma argumentação, divide-se em sujeito e predicado. Esse conjunto dos
termos, ligado pelo verbo ser, estabelece uma determinação: o sujeito o recebe por intermédio do verbo ser e o
predicado, que se apóia no sujeito, para determiná-lo. Criam-se, dessa maneira, categorias de entendimento nas
quais não se permitem contradições.
16
o faz juntar-se às coisas; ou melhor, o que faz sentir-se pastor se manifesta, em seu
conhecimento, na relação com que as coisas se aproximam sensivelmente umas às outras e a
ele mesmo, como se as coisas fossem um prolongamento de outras coisas ou mesmo do seu
corpo. Caeiro se consome no ato da sensação de sentir-se um pastor.
O comparativo como no poema tem uma função fundamental, uma vez que exprime a
inexistência de qualquer mediação entre Caeiro e as coisas. Abre um caminho para o fluxo
direto entre as coisas mesmas: consome as suas sensações nas sensações, as coisas nas
próprias coisas, a natureza na natureza. O como é a expressão que conecta Caeiro às coisas
nesse movimento tautológico, que o prende às coisas mesmas. Nenhuma interferência do
espírito entre a alma de Caeiro e o pastor. Entre o pastor e a sensação da alma de Caeiro há
somente a sensação de pastor. Quando diz: Minha alma é como um pastor, o poeta coloca a
alma em prática de pastoreio. Existe nessa circunstância uma inerência da sensação em quem
sente. O como dirige não apenas Caeiro às coisas sensivelmente, mas também faz Caeiro
dirigir, em suas sensações, as coisas às outras coisas como veremos em alguns versos do poeta
10
.
Caeiro, então, dá uma forma corpórea à sua alma, o corpo de um pastor, que deambula
pelo campo. Numa instância de corpo e alma, o poeta se apresenta imerso nas sensações
pastoris. Coloca a sua alma no chão e em movimento, distanciando-se da imaterialidade ou da
unidade dada à alma pela tradição. Fixado num cimo de um outeiro, no entanto, a alma do
poeta nada estabelece, ou ainda, nada oferece à sua sensação além dela mesma, por isso vive
sentindo um pastor. Diferentemente de uma alma interiorizada, a alma de Caeiro age, isto é,
conhece, anda, a seguir e a olhar como um corpo que ocupa um lugar no espaço e que é
conhecido através dos sentidos.
A idéia de alma – associada às questões da imortalidade, da personalidade, da
individualidade, da consciência – ganha em O Guardador de Rebanhos um caráter
intermitente, descontínuo, caracterizado pelo nomadismo que não o permite fixar ou
determinar nenhum sistema e leis de vida e de pensamento. Caeiro apresenta-se como um
homem primitivo (adjetivo freqüente em O Guardador de Rebanhos), isto é, livre e sem
pretensões de ordenar princípios naturais e sociais.
10
Sabe-se que, principalmente a partir do cristianismo, surge uma névoa entre a sensação e a realidade; o
que se interpõe é a figura divina que desvia a relação direta. A alma é considerada tradicionalmente como o
princípio da vida, por isso se torna no mundo a realidade mais alta ou última e se apresenta como entidade a que
se atribuem, por necessidade de um princípio de unificação, as características essenciais à vida e ao pensamento,
e que se define em oposição, sobretudo, ao corpo.
17
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva das estradas,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Já que é o Sol o elemento que mais sensivelmente se aproxima de Caeiro, o ocaso da
maior estrela faz o poeta sentir a tristeza. O desaparecimento do astro no horizonte faz o poeta
também extinguir sua claridade e sua luz. As imagens desses versos constituem a sensação de
Caeiro, que sente a sua tristeza da mesma forma que sente o movimento do declínio do sol e o
frio do entardecer. A tristeza como pôr de sol fundamenta a sensação que se despede dos raios
solares, os quais são uma fonte de vitalidade e de clareza; luminosidade que revela as coisas
aos olhos de Caeiro. Nessa experiência, a noite se torna tão sentida que o poeta sente a ação
de entrar da noite como uma borboleta pela janela. O pôr-do-sol, o frio e a noite denotam
tristeza, pois são elementos que retiram de Caeiro a luz, que fomenta as suas sensações;
impelindo o seu corpo a recolher-se em um espaço fechado de sua casa. Vale observar o uso
adjetivo de entrada, que faz a noite, então, ganhar corpo e movimento a procura de um
abrigo. Tudo isso caracteriza a tristeza do poeta: a evasão da luz solar, que o deixa sem a
presença e a claridade das coisas.
Mas a noite e a ausência da luz não perturbam Caeiro. A calma de sua tristeza é a
abertura de seu corpo à realidade, que também se recolhe. Nem mais, nem menos: sua
percepção nem recusa a realidade a favor de seus desejos e nem se rende, portanto, ao
desequilíbrio frente às coisas. Sua tristeza é justa, porque se manifesta como estado
correspondente ao meio. Injusta seria se resistisse ao exterior, descendo uma cortina que
encerraria a controvérsia entre a noite e a sua vontade de Sol a favor, naturalmente, de seus
desejos de raios solares.
18
No entanto, Caeiro explicita que o que deve estar na alma, ao deparar-se com o que
entristece, é a assunção da realidade sem desejos. A prática racional certamente desvia o
indivíduo, fazendo-o admitir a possibilidade de opor-se à realidade. Contrariamente, o
caminho de Caeiro aponta para uma compreensão em que as coisas existem, mas nenhum
pensamento deve dar conta. Nenhum pensamento deve estar junto à sensação, isto é, não deve
estar nem mesmo algum sentimento ou reflexão pessoal. Cada ato se apresenta sem a
possibilidade de poder ser refletido ou conceituado. Então, a tristeza de Caeiro não poderia ser
angustiada se não estaria em desacordo com a realidade ao se voltar contra ela. A tristeza de
Caeiro é tranqüila ainda quando não pode sentir a luz do sol – o qual ilumina as coisas e que
abre o caminho das coisas para as sensações.
A alegria do pensamento em Caeiro evidencia que a agitação ou a realização do seu
pensamento acontece muito distante de qualquer caminho tortuoso que manifesta movimentos
difíceis a fim de alcançar um fim desejado _ característicos de um pensamento reflexivo. No
entanto, um ruído interfere, algo não é mais o mesmo. Embora afastado, ouve-se o barulho,
atravessando as coisas. Como uma tentação, ainda que longinquamente, soa o tilintar da
alegria do pensamento, que surge nesse momento para Caeiro aproximar-se da atividade
intelectual que determinará os sentimentos de alegria e de tristeza. O elemento comparativo
como, que como vimos, abre a sensação para o mundo, nesses versos, anuncia que Caeiro
experimenta, nesse momento ainda à distância, um perigo: a prevalência do pensar sobre o
sentir.
O padecimento de Caeiro surge ao reconhecer que há um saber que diferencia os
sentimentos de alegria e de tristeza, pois a atitude de saber que seus pensamentos são
contentes pressupõe um pensamento que também sabe sobre a tristeza. Um pensamento que
sabe sobre os sentimentos torna-se o desgosto de Caeiro nessa passagem. Um saber contente
conhece um saber triste, pois a presença de um é a ausência de outro, embate que, com efeito,
faz o poeta pensar na destruição que isso ocasionou com relação aos pensamentos alegres e
contentes que teria.
Caeiro conhece, portanto, o pensamento que se propõe a criar conceito. Tal experiência
o permite sentir o pensamento, que perturba e importuna; portanto o pensar é desagradável. O
como nos dois últimos versos mostra a sensação nociva ao experimentar o pensamento, que
assim o é. Não poderia indicar um conceito negativo sobre o pensamento, pois Caeiro
conhece pelas sensações; então, o que sente ao pensar é o desconforto e o transtorno. Andar à
chuva sob um vento forte é a sensação de Caeiro ao pensar.
19
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Caeiro apresenta-se poeta, mas sem nenhum desejo ardente de alcançar um objetivo de
ordem superior. Leva-nos, assim, a pensar em uma tradição de poetas que se vêem com a
missão de trazer aos homens uma verdade que os homens comuns são incapazes de alcançar.
A ambição de ser poeta recai, principalmente, sobre o acesso que possuem os poetas aos
mistérios do mundo e da natureza. Como um medicamento, esses poetas suavizam e
apaziguam todos os conflitos dos homens, causados por desejos ambiciosos. Ser poeta, nesse
caso, significa manter uma relação freqüente com as pessoas para manter suas idéias vivas e
manter, conseqüentemente, sua posição respeitada de um homem detentor de uma imaginação
inspirada e extraordinária.
Ser poeta, ao contrário, para Caeiro, é a sua maneira de estar sozinho, encontrar-se com
a suas sensações próprias. Não aspira a nenhuma ação sobre o exterior, ou melhor, não possui
o desejo de acrescentar nada à realidade exterior. Seu conhecimento sensacionista faz o poeta
Caeiro voltar para sua prática que significa sentir as coisas como elas são. Por isso, o
exercício poético de Caeiro pratica a solidão, pois este estado se harmoniza com aquilo que
preza Caeiro: não sentir nada além do que as coisas são. Ser poeta, então, é simplesmente
estar sozinho. Nenhuma fortuna de visionário, de vidência ou de profecia faz o poeta Caeiro.
A solidão das coisas, que estão sempre para si mesmas, se manifesta no “ser poeta” de Caeiro.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos e pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
O ato de fazer versos_ seja sentado, seja andando_ manifesta em Caeiro a sua maneira
de apreender a expressão poética. Para Caeiro, os seus versos não se limitam a fixar e a
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registrar, encaixotando em papel desencarnado suas idéias ou emoções; o papel, no qual
escreve, está em seu pensamento, por isso os seus versos apresentam-se em sua forma como
objeto de suas sensações. Não há nos versos de Caeiro nenhuma descarga poética que, sobre o
papel, esteja simples palavras que representem ou que criem imagens das coisas. Tanto as
palavras quanto os seus versos possuem uma existência íntegra em meio a várias coisas do
mundo. Caeiro escreve versos com a experiência de um poeta: cada verso seu é um objeto no
qual se transformou uma sensação. Cada verso, cada palavra, cada expressão escrita possui
uma sensação a qual se assemelha ao objeto criado e a ele mesmo. A imagem do cajado nas
mãos, quando escreve versos, explicita o ato de vida em sua língua e afirma a potência que o
seu corpo sensível imprime nas formas criadas por ele mesmo. Formas que no caso são versos
e que subsistem como recortes do corpo de Caeiro.
Dessa maneira, como um pastor, Caeiro se dirige para o seu rebanho. Como uma guia,
abriga e protege as coisas ao aceitá-las como algo pleno em seu exterior. Guarda as coisas
como o pastor guarda um rebanho, isto é, vigia para proteger e defender a integridade das
coisas como elas são à vista. Guardião das coisas, Caeiro não as esconde, isto é, retendo na
clausura da lembrança ou da mente e deixando fugir a presença de vê-las, de ouvi-las e de
senti-las – questões desenvolvidas em poemas como X (p. 63 deste trabalho) e XIX (p. 71
deste trabalho). Guardar não é ocultar; guardar é ação de buscar com a vista o que está sendo
visto. A vigília pelo seu rebanho atua guardando em sua retina atentamente as coisas em sua
forma. Com os olhos de ver, o poeta segura com firmeza ao cravar o olhar sobre as coisas. Eis
o guardador de rebanhos que, ao passear pelos caminhos ou pelos atalhos, desliza da mesma
maneira os olhos sobre o que o rodeia, resguardando em seus sentidos somente o que estiver
descoberto sob a sua visão.
Em sua honestidade, a sentinela que pastoreia arrisca afirmar que as suas “idéias”
começam e acabam na visão das coisas. Ou seja, suas idéias se definem nesse ato de recolher
as coisas à vista. No entanto, Caeiro desprende um sorriso _ talvez ligeiramente irônico, sem
rumor e indefinido _ pois a tentativa de compreensão que está possuindo das coisas é um
fingimento _ tema caro à obra de Fernando Pessoa. O sorriso expressa o efeito do desejo de
entender, que indubitavelmente é uma falsidade, uma vez que perde a coisa vista e a prende
no pensamento.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
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E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe rasgado.
A última estrofe do primeiro canto encerra com uma mensagem de Caeiro aos leitores
dos versos de O Guardador de Rebanhos. O cumprimento dado aos seus leitores se junta a um
pedido do poeta: ao lerem os meus versos pensem/Que sou qualquer cousa natural. Aqui
estão em jogo o poeta e os seus versos e a natureza; a atitude de Caeiro nesse momento
desembaraça muitas idéias que perpassam a uma tradição que diferencia a natureza _ “por si
mesmo”_ e o artifício _ “o que se produz”.
A ausência dessas idéias de natureza em Alberto Caeiro nos ajudará a pensar o poeta,
que age criando, e os seus versos, a própria criação. Caeiro não reconhece nenhuma natureza
que se interponha entre as suas sensações e as coisas, logo não há nem mesmo nenhuma
atitude de Caeiro que nivele ou diferencie as produções não-humanas às humanas. Assim,
como a experiência de Caeiro que se aventura na sua travessia às coisas, o poeta exige uma
existência de leitura àqueles que se propuserem a ler os versos: desfazer o cerco do espírito e
ficar aberto aos elementos naturais e deixar-se retornar à forma mais original e íntegra de
conhecer do homem: as sensações. Caeiro, como a sombra de uma árvore antiga, pede aos
leitores que sintam os versos como um momento de repouso e de tranqüilidade no qual a
simplicidade lúdica de aventurar-se a cada circunstância e à existência das coisas envolve os
versos de O Guardador de Rebanhos.
Segundo canto
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda.
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
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Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...
O olhar de Caeiro se compara ao grande olho do girassol que se volta diretamente para o
astro maior e absorve-o nitidamente sem nenhum elemento intermediário. Sob a luz do sol, os
olhos de Caeiro ficam embebidos das coisas vistas. Sorvido o elemento, o pastor sente e vê a
clareza das coisas. A experiência de voltar-se para a coisa e cravá-la nas vistas surge de tal
maneira que o próprio ato de ver se evapora nesse mesmo ato de ver; a duração da coisa se
exprime na efemeridade do instante de volver-se a outro elemento que alcança a sua visão. As
coisas chegam e passam no corrimento dos passos de Caeiro pelas estradas ao encontrarem
seus olhos as coisas. A sensação de pastor guarda nos olhos a presença momentânea em
claridade. O passeio que dirige o olhar vagarosamente, ora para um lado, ora para outro
exprime o passar das coisas em seu passo, que se movimenta atravessando e olhando.
A novidade das coisas se confere no passar do mundo que não acontece pelo círculo
temporal ou pela repetição. O passeio de Caeiro não regressa a um ponto anterior, nem
mesmo como atitude afirmativa da crueldade temporal do eterno retorno nietzschiano. Ao
contrário, a eterna novidade do mundo de Caeiro se vivencia na travessia do instante em que a
coisa mostra-se à vista. Nenhum rastro da coisa fica em Caeiro, por isso tudo é diferente. Há
um esquecimento no qual o fato de nada se fixar na memória ou na lembrança deixa o poeta
envolto à singularidade das coisas. A eternidade do presente desses versos pode ser um tempo
relacionado aos próprios passos de Caeiro como pastor, quer dizer, cada momento é uma
passagem e um instante em que as coisas se mostram novas a cada olhada.
Assim, Caeiro aproxima os termos _ eternidade e novidade_ aparentemente
inconciliáveis, pois o eterno se identifica com o intemporal que julga a identidade das coisas;
e a novidade, ao contrário, surge como temporalidade que se movimenta e que se diferencia
de si mesmo. Caeiro, então, se mantém no tempo em que a duração é o efêmero. A igualdade
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para o guardador de rebanhos se revela no eterno regresso da diferença, ou melhor, da
novidade.
Caeiro fundamenta o mundo na possibilidade ver as coisas. Ter o mundo por certo é ver
tudo como o que está sob a sua visão. A existência do mundo se evidencia no limite das
coisas, pois a linha de demarcação de cada coisa determina a existência real do mundo.
Assim, o mundo existe, porque a visão vê as coisas em sua forma apenas.
No entanto, a experiência do pensar se opõe à realidade do mundo, já que a
compreensão do mundo nada tem a ver com o pensamento, processo mental que se concentra
nas idéias e afasta a coisa vista. Isso é uma doença, diz Caeiro. O desuso da visão a favor do
pensamento se mostra como um desvio do estado natural. Ou seja, o homem em sua condição
natural possui como primordial o conhecimento que se processa através dos sentidos.
Experimentar o pensamento, então, sedimenta um artifício violento derivado de um
estado anormal que entra em desarranjo com o mundo, embaraçando os sentidos. Pensar é não
estar no mundo em sua plenitude. A harmonia se realiza no olhar, que conhece sensivelmente
no modo e no lugar em que o homem e as coisas se encontram.
Explicitamente Caeiro se opõe a qualquer filosofia em sua atitude de sentir o mundo;
não há, portanto, intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, no sentido
de apreendê-la na sua totalidade. Uma experiência que se distancia de idéias de sujeito e
objeto, de consciência e de representação, de natureza e de história e que rejeita qualquer
humanismo. A assunção dos sentidos leva Caeiro a revelar uma experiência do sensível que o
dirige às coisas pelas sensações.
A referência de Caeiro à Natureza não se faz a fim de compreendê-la em suas entranhas,
mas o amor que sente por ela o faz falar sobre a Natureza. No entanto, o amor de Caeiro não
transforma a Natureza em algo, pois assume o amor como pura inocência. Ou seja, o amor de
Caeiro nada sabe sobre o amor _ nem o quê nem o porquê ama. Dessa maneira, o amor à
natureza não possui desejos de entendê-la e de possuí-la, forçando o homem a desenvolver um
impulso de agir, de procurar o prazer e de alcançar os objetos de seus desejos.
Caeiro ama a natureza, por isso fala nela; amar é estar em estado de inocência, isto é,
não pensar, não interrogar sobre a essência das coisas. Fala nela sem interpretá-la ou sem
significá-la. Amar é estar inocentemente na Natureza em sua simplicidade. Este amor é o que
nada sabe sobre a Natureza: nenhum princípio supremo, nem culpa ou redenção a envolve. Na
inocência de não pensar, que nem mesmo se faz saber inocente, o homem vive em estado de
indeterminação em que a Natureza se mostra em presença que se completa por si mesma.
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Sétimo canto
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo do outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Em sua simplicidade, Caeiro reconhece a amplidão do universo presente ali mesmo no
pequeno espaço da sua aldeia. A grandeza de sua aldeia abarca toda a Terra, que se estende a
tudo ou por toda a parte. Nenhum espanto nem dificuldade com o que o rodeia, pois não se
confronta o desejo do conhecer o infinito. Vive de modo simples e limitado, logo o que vê da
sua aldeia é a presença do quanto da terra se pode ver do universo. O problema do homem,
ao sentir-se ameaçado e tão pequeno e inferior em relação ao desmedido, significa que o
homem já se entende como estranho ao incomensurável e, conseqüentemente, inicia a busca
por uma sabedoria categórica e conceitos universais que pretendem conhecer a totalidade e a
medida das coisas, sentindo-se o homem, desse modo, maior e superior a qualquer instância
extraordinária. Conhecimento desejoso de domínio e de posse, uma vez que supostamente
cumpre o poder do homem em controlar o que, em dimensão, se mostra maior que ele.
Contudo, o tamanho das coisas não torna o ser humano ínfimo em relação à imensidão
do universo. A grandeza do universo para o poeta não se exibe como um assombro, por isso a
dimensão física do homem nada importa. Caeiro, então, pondera o tamanho do homem: que
não está nos limites do corpo, mas na grandeza de ver. O ver que torna maior o viver, pois
traz a experiência de aprender com as coisas. Sendo assim, a sua pequena aldeia tem em si o
mundo inteiro, por isso é grande. Ali se pode ver como em qualquer outra terra.
A imensa vida que se tem em sua aldeia se explica no contacto visual e sensual com as
coisas naturais. A vivência rústica devolve ao homem a nobreza de ver as coisas, logo o
natural das coisas ensina que o homem deve compreender sendo atravessado pelo que vê,
gerando, assim, uma compreensão não por algo pensado ou já vivido, mas sim por uma ação
singular e mutável em que os sentidos e o corpo se inter-relacionam ao mundo e às coisas.
Nono canto
Sou um guardador de rebanhos.
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O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Assumindo que é um guardador de rebanhos, Caeiro guarda os seus pensamentos que
são inteiramente sensações. Não é um pastor de pensamentos, logo não é um pastor de
homens. Nem mesmo é um pastor de animais. Ele é pastor por sensação, por isso vive uma
pastoral em que guarda as coisas em sensações. Compreende as coisas por guardá-las nas
sensações. Compreende intimamente as flores por guardá-las em seu olfato. Compreende o
fruto por guardá-lo em seu paladar. Compreende-os plenamente por trazê-los nas sensações a
propriedade das coisas. Entre as sensações e o exterior, existe uma relação imediata na qual
todo objeto surge como sensação daquele que se dispõe a dirigir as sensações para um dado
objeto.
Ao guardar as sensações nelas mesmas, o pastor-Caeiro incita o devotamento às suas
sensações, vigiando e protegendo o seu rebanho. Cada momento se movimenta num gozo de
sentir os sentidos numa vigília em que nunca deixará o seu rebanho adormecer. Caeiro,
guardião prudente e atento, observa as coisas em presença, guardando-as sensivelmente. Em
alerta permanentemente aos seus sentidos, nutre as coisas e a si mesmo sensivelmente;
deixando-o integrado e com o corpo deitado na realidade pelo gozo daquilo que o faz
humano no mundo. Eis o sustento de Caeiro que admite um único trabalho: o de pastorear as
sensações que atravessam as coisas, mantendo-os na propriedade do sensível. Trabalho que o
esgota e o cansa nesse trabalho pleno e suficiente de viver. Como um hábil pastor vigia
detalhadamente cada um de seu rebanho, vive completamente cada um dos sentidos que o
fazem um ser humano, abrindo-o ao mundo pela capacidade humana de ter sentidos.
O pastor, então, conhece as coisas pelas sensações. Não a consciência que se exacerba e
pensa as sensações ou pensa o pensamento. A consciência em Caeiro não força a teoria ou
exame submetido a um sistema; ao contrário, o impulsiona à lucidez do mundo em que as
coisas são diferentes por serem naturalmente. Se a consciência afirma a ação humana, o odor
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é o que faz uma flor ser flor. Nota-se que essa diferença nada tem a ver com a diferença que
funda o princípio de contradição da lógica ocidental em que, baseando-se em comparações,
decide o ser que é e o não-ser que não é; privilegiando, dessa forma, a elevação por diferença
o ser que pensa como o ser que é. Como também faz a metáfora que, por comparação, alia ou
reaproxima as coisas; cria-se uma realidade paralela diferente da que se vê, afirma uma
unidade de contrários. A metáfora associa coisas opostas, gerando uma idéia detalhadamente
examinada para, enfim, confrontá-las e justificá-las em uma comparação. Recria-se uma
existência para além da que vemos, isto é, das diferenças em que cada coisa se manifesta
satisfatoriamente.
A diferença em Caeiro não conhece contrários, mas sim diferença simplesmente. A
consciência revela a simplicidade de não determinar a alteridade. A claridade que assim
acontece mostra uma distância indispensável que mantém uma relação não de oposições, pois
isso seria afirmar a diferença a favor de si mesmo, esquecendo o que o outro é num modo de
entendê-lo pelo que tenho e sou. No entanto, Caeiro se responsabiliza por uma atitude anterior
a qualquer pergunta em direção ao outro, assumindo que a sua compreensão das coisas só
pode acontecer numa acolhida em que o sentido do outro seja aquilo que o faz presente. Logo,
o sentido que tem um fruto para Caeiro se fundamenta em comê-lo e conhecer a presença de
seu paladar, recebendo o que ele é.
As sensações fundamentam um conhecimento honesto, que vai ao encontro do outro por
uma distância que se dispõe a lançar-se à verdade das coisas, permitindo-se a conhecer pelo
sensível. Guarda a certeza das coisas em seus sentidos, os quais pulsam em suas extremidades
uma compreensão, que não explica, mas que goza o mundo por uma via de acesso própria ao
humano que o faz pleno; abrindo-se ao mundo na experiência de sua morada própria na qual
vive sossegado.
Décimo quarto canto
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o exterior.
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento.
As rimas contrariam tudo o que existe e se produz no Universo, pois a uniformidade
entre as coisas raramente acontece. Seu ritmo não deriva, pois, de um artificialismo de rimas e
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medidas. O caráter artificial e abstrato dos versos metrificados e ritmados substitui a corrente
rítmica natural da fala e da escrita. O ritmo dos versos de O Guardador de Rebanhos ganha
uma seqüência simples e trivial que se interliga à fala espontânea de “sua” prosa. Não a prosa
de cunho discursivo que, com a presença de jogos eruditos de significação, parte de um início
e dirige-se a um fim, que caracteriza o pensamento conceitual preocupado em comprovar.
Mas a poesia que é se apresenta como elementar da disposição humana de falar, ou melhor, de
poetizar que é a prosa. O ato da fala é o ato de poetizar prosaicamente. Ser poeta é o estado
primário do homem, que naturalmente expressa o falar em versos _ as formas primordiais do
humano.
A poesia concentra as manifestações mais simples do homem, confundindo-se com a
fala e com a vida. O ritmo vem ao mundo simultaneamente ao falar de cada um, conforme a
sensação de quem emite o som das palavras. O ritmo se mantém natural e inerente à língua. A
experimentação de Caeiro ao elemento mais antigo e inerente à língua _ que é o ritmo _ revela
que a poesia caeiriana, como forma natural de expressão, se harmoniza aos dados simples e
primários da língua. Em um estado natural da língua realiza a poesia, assim como o seu
pensar e o seu escrever numa expressão não totalmente perfeita, pois o que caracteriza o seu
dado interior não o permite ser plenamente o exterior _ a “simplicidade divina”.
Dessa maneira, radicalmente, Caeiro experimenta o anseio de ser todo aquele que está
por fora ou da parte de fora, como a flor que se exprime pela cor sem ter consciência do que a
diferencia. Podemos falar que o exterior ao qual se refere não se opõe a um interior, que se
passa no âmago, no mais íntimo da alma e que faz trabalhar sobre os objetos por intermédio
dele mesmo. Logo, o que existe não é interior, mas as sensações _ algo adverso do exterior
absoluto. Compreende a diferença que o caracteriza como naturalmente humano, que sente e
fala. Discussão que inclui o modo de revelar os seus versos, assinalando o que gera as
palavras: não o exterior radical, mas as sensações. Versos que são objetos convertidos em
sensações. Sendo assim, todas as palavras e versos suscitam uma relação dos sentidos com as
coisas em que há comoção, ou seja, momento em que as sensações se põem em movimento,
em um leve agito. Sentir também é escrever versos à medida que compreende que não fica na
plenitude do exterior como uma flor ou uma árvore. A poesia existe no natural das sensações,
o que faz trazer a poesia como algo que funda o mundo nas sensações dos que as têm.
Sensações que acontecem como movimento natural em que tudo se aligeira. As sensações se
potencializam e se manifestam em suas palavras, as quais se oferecem à compreensão do
mundo através das sensações que vão ao encontro direto com as coisas. Não há entre as
sensações e o exterior nada que intervenha nas sensações. Inclina-se a escrever versos
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naturalmente, isto é, num movimento próprio dele a poetizar ou exprimir-se como a
propensão apropriada do movimento presente de levantar-se vento.
Vigésimo primeiro canto
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma cousa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...
Não se exacerbar nem na felicidade, nem na infelicidade. Senti-las naturalmente é sentir
a calma precisa, sentindo a felicidade como também se sente a infelicidade. Entre ambas, não
há nenhuma idéia de que se pode tornar feliz ou infeliz. A luz, que não está na mente, mas que
está nas sensações, deixa-se ser natural para, assim, sentir a claridade que, ao mesmo tempo,
as diferencia e as vive nas sensações, porque tal distinção se dá naturalmente na própria
clareza do sensível, que não os confunde, mas traz às sensações a existência nítida do
momento de felicidade e de infelicidade.
Encontram-se uma com a outra, não estão uma para a outra: o que declara que a
felicidade não busca a chegar a qualquer parte e que está em concordância com a infelicidade
como algo simples. Se a felicidade estivesse para alguma coisa, teria ela que ir e voltar num
movimento incessante e conflituoso o qual decidiria o desejo de estar do outro lado; desse
modo, estaria a fundamentar um pensamento e uma definição de um estado direcionado a
atributos favoráveis a uma moral do bem-estar. Tornar esses estados conscientes de si
mesmos implicaria certamente experimentar um desespero pela unidade perdida.
A calma se resguarda àquele instante de intensidade que leva Caeiro ao impulso de uma
vontade de sentir a terra inteira em seu paladar. Isso certamente o deixaria mais pleno de
prazer, reconhecendo a felicidade sob uma fé que, na busca do que é realmente bom para a
vida, relacionaria a felicidade ao prazer, o que o faria viver num desespero de afastar a dor da
infelicidade. No entanto, a calma não reduz esses estados nem ao prazer nem à dor. Para nada
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os estados se remetem, pois são apenas sentidos. Certamente também não há aquela atitude de
indiferença ao viver esses estados como uma fatalidade obrigatoriamente aceita, como uma
apatia que receberia “feliz” a própria infelicidade, visando a uma existência racionalmente
pacífica. Ser calmo e natural é sentir a felicidade ou a infelicidade apenas. Não valorá-las
como natural, mas vivê-las naturalmente sem estar para nada além delas mesmas.
O mesmo se dá com a morte; viver com a morte. Não entendê-la como nada, nem como
um caminho fatal nem mesmo como um “arrepio”. Viver com a morte é viver com o dia, quer
dizer, com a ordem da morte do dia; pois natural ao dia é natural à vida humana. Independente
de qualquer vontade, a morte existe. Caeiro vive a segurança da morte que o leva a não se
desesperar, tornar-se infeliz ou temeroso, por que a morte aqui não é nem amiga nem inimiga.
A morte como morte dispõe apenas de um momento em que faz desse limite não um conflito
que, pela inconformidade da transitoriedade da vida ou finitude da existência, buscaria
essências universais e verdades imutáveis. Entretanto, a morte como morte declara uma
claridade natural que se dissolve como a luz durante o pôr do sol; em outras palavras, a morte
passa pela terra como o pôr-do-sol chega ao fim do dia, por isso o limite da vida é o limite do
dia em que o momento do poente se liga a alguma experiência de viver a morte naturalmente.
Vigésimo segundo canto
Como quem num dia de Verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos,
E eu fico confuso, perturbado, querendo perceber
Não sei bem como nem quê...
Mas quem me mandou a mim querer perceber?
Quem me disse que havia que perceber?
Quando o Verão nos passa pela cara
A mão leve e quente da sua brisa,
Só tinha que sentir agrado porque é brisa
Ou que sentir desagrado porque é quente,
E de qualquer maneira que eu o sinta,
Assim, porque assim o sinto, é que isso é senti-lo...
A existência das coisas somente se dá plenamente nas sensações. Nada fora delas é
possível, quer dizer, as coisas somente têm a realidade das sensações. Por um momento,
Caeiro em suas experiências se afasta dessa vivência e envolve-se numa vontade com a
finalidade de espreitar e de apreender pelos sentidos aquele momento. Querer apoderar-se
pela percepção o sentido de alguma coisa é adquirir o conhecimento por uma outra via que
não as sensações. Qualquer pretensão de buscar a verdade fora das sensações será buscar o
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que não existe. A intensidade da luz do sol e do calor no verão parece também intensificar por
um momento as sensações de Caeiro, levando-o a uma experiência de buscar um significado a
partir de uma tentativa perceptiva de conhecer as próprias sensações. Como num instante de
espanto, deixa-se de sentir e se volta para a apreensão inteligível. Assim, a percepção não
identifica o mundo como ele é, mas como efeito artificial da consciência em direção a um
interesse pronto a significar.
Mas aqui, sendo as sensações a única existência verdadeira, vive-se num movimento de
apenas sentir e não questionar ou pensar nela mesma ou em algo para além das sensações. A
sensação não deseja significar, mas apenas viver a sensação que nasce e vive em sua relação
com o mundo, isto é, vive as sensações que oferecem o mais simples e fundamental frente às
coisas. Sente, então, agrado ou desagrado sem sugerir nenhuma idéia ou impressão. Volta a
esse estado simples das sensações as quais não sugerem nada além do que é dado a elas. No
primado das sensações, revela-se simplesmente a sensação de estar sob o sol de verão, quer
dizer, sentir o agrado pela brisa do verão ou desagrado pelo calor excessivo. Tal diferença, diz
Caeiro, só é possível porque ele assim sente. O sentir que, sob o único fundamento do sentir,
revela o efeito de uma ou outra maneira de receber sob os sentidos o calor do verão.
O corpo revela o contato simples com as coisas _ corpo que traz a compreensão plena
das coisas nas sensações, as quais recebem sentindo natural e imediatamente os elementos
num movimento simples que compreende completamente, pois a sensação da coisa sentida
dentro das sensações se revela inteiramente no corpo que, nesse instante, incapaz de
diferenciar interior e exterior, se manifesta como próprio da experiência humana no mundo. A
sensibilidade, portanto, é a única forma íntegra de compreender as coisas, uma vez que elas
me trazem o que são pelo contato direto de sentir que permitem os sentidos.
Vigésimo terceiro canto
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas no prado
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo.
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
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Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)
Com os olhos abertos permanentemente, Caeiro continuará desse mesmo modo uma
relação aberta com o mundo. Assim, chega-se à presença das coisas em seu olhar azul, o qual
possui atenção direta à coisa vista; manifesta-se como um olhar sem limitações, límpido e
livre de todos os pensamentos que possam interferir essa atenção. Olhar que não se apega a
nenhuma percepção que dos sentidos pode chegar. Olhar imediato, estabilizado na calma, que
se coloca numa precisão natural. A visão aqui recebe o mundo num reflexo calmo sob as
retinas que se integram totalmente com o elemento visto e que recebem com a exatidão
natural, sob a sua camada fina e límpida.
Na superfície dos seus olhos, o que se vê recosta no seu ser para compreender que,
como a água ao sol, as coisas existem límpida e lucidamente, uma vez que a visão é tida como
inseparável daquilo que olha. Assim como Caeiro vê a água como algo inseparável do sol, as
coisas quando olhadas por ele se tornam inseparáveis de sua visão. A calma fundamenta uma
relação sobre a qual não se pode falar de “efeitos” da visão sobre as coisas ou vice-versa, mas
sim sobre uma relação interdependente de corpos que não se separam nunca, assim como um
reflexo em que os elementos presentes fossem uma coisa somente, pois tal relação acontece,
sobretudo, na camada mais simples e superficial da visão.
A tranqüilidade perante o mundo deixa o ver no ver, o ouvir no ouvir, isto é, sem
afeição, interrogação ou espanto em direção ao que se vê. Nenhum vestígio, portanto, da
origem do pensamento filosófico, o qual, segundo Aristóteles, surge a partir do espanto e da
admiração dos homens diante de algumas dificuldades, enunciando problemas como os
fenômenos do Sol, da Lua e até mesmo da gênese do universo. Interrogar e espantar-se é
esquecer-se de olhar e, logo, perder a inocência, tornando dessa maneira o mundo mais
distante e estreito. Nesse estado doente, vê-se tudo deformado por conteúdos que criam
condicionamentos que afastam gradativamente os sentidos. Ver se torna uma crença que
esconde a visão a fim de alcançar uma identidade na qual todas as coisas escapam sob a
construção de uma realidade falseada pelo intelecto no ato de perguntar e exaltar-se ante o
mundo.
Entretanto, quando há calma não surge nenhuma resistência, esforço ou intenção. Caeiro
direciona atenção espontânea apenas para o que vê, esquecendo qualquer coisa que esteja na
periferia. A singularidade se concentra numa calma que foca o objeto distanciado de qualquer
tensão ou de qualquer preocupação com estímulos externos ou internos. Cada coisa é o que é.
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Vigésimo quarto canto
O que nós vemos das cousas são as cousas.
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seriam iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem do desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhe chamamos estrelas e flores.
A experiência entre Alberto Caeiro e as coisas se particulariza por uma postura lúcida e
transparente. A freqüente tentativa de Caeiro em retificar a visão aponta para: a consagração
do homem que confia apenas nas coisas que vê e nada mais em detrimento de um homem
crente na existência de algo além nas coisas que vê. Indiferente aos elementos históricos,
subjacentes e fictícios incutidos aos objetos e às coisas, a satisfação deste homem se faz plena
a partir da experiência apenas da especificidade do que é visto. Harmoniza-se por uma via em
que as coisas do mundo não dispõem outra possibilidade, a não ser não ver outra coisa além
do que vê.
Nota-se nos primeiros versos que a presença dos verbos no futuro do pretérito do
indicativo e no pretérito imperfeito do subjuntivo confirma um caráter impossível, portanto
um devaneio do homem da crença. O tempo verbal de veríamos indica um fato futuro em
relação a um passado que, conseqüentemente, se expõe sob uma condição irrealizável, isto é,
um fato futuro duvidoso, que não sucedeu. Do mesmo modo ocorre também na forma
houvesse, que indica hipoteticamente a existência daquilo que eles acreditam. Caeiro se
contrapõe à incerteza e à ausência das coisas na qual se enraízam os crentes. Contrariamente,
o poeta só tem o tempo presente para expressar-se: vemos e são, que denotam uma situação
simultânea ao momento da enunciação. Em Caeiro, o tempo presente interessa especialmente,
pois estabelece a ação de assistir pessoalmente, ou seja, que a coisa está à vista, que é patente,
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evidente e manifesto. O tempo presente ou, no caso, presencial configura plenamente a visão
de Alberto Caeiro.
Restitui nesses versos a confiabilidade sobre os sentidos, que a tradição racionalista
desprezou a sensibilidade por ser impossível conhecer a essência de qualquer coisa. A
sensibilidade para eles deveria estar separada do entendimento, porque o sensível mente e
ilude à medida que apenas traz somente a aparência ou o devir da realidade. Eis, então, o
sentido dessa tradição: negar tudo o que estivesse relacionado aos sentidos. A razão se torna o
principal motivo para falsificação ou desprezo do testemunho das sensações. Na última
estrofe desse poema, Caeiro parece, ao contrário, nos mostrar o erro e a ilusão dessa prisão
onde nos colocou a razão. Tal preconceito da razão aprisionou todos os homens num mundo à
parte no qual a verdade fundamentada em ilusões como identidade, duração, substância,
causa, coisidade se afastava radicalmente do sensível. Isso Caeiro já identifica na linguagem
de alguns poetas os quais separam a palavra estrela, por exemplo, não mais para se referir à
própria estrela, mas sim para relacioná-la a algo que via como soberano num “eu” pautado no
crédulo subjetivo pelo uso da razão. A vontade aqui atua criando uma mentira: a vontade
como faculdade que recai sobre a consciência por criar conceitos a fim de conhecer a “coisa”.
Pela crença no “eu”, projeta-se o que está somente em “sua” idéia para todas as coisas.
Caeiro reclama um exercício capital: uma aprendizagem do desaprender. Fazer dos
sentidos o caminho simples sem precisar pensar, isto é, certificar-se de que a visão traz em si
a possibilidade de compreender a existência das coisas. A visão constata com firmeza como
um valioso dispositivo o que se vê, adquirindo pela presença tudo o que elas permitem que
nós compreendamos: cor, forma, movimento, etc. Então, por que ver e ouvir seriam iludirmo-
nos/ Se ver e ouvir são ver e ouvir?. Este é modo pelo qual Caeiro afirma a força que existe
nos sentidos. O conhecimento que têm os sentidos se completa pela sua capacidade de
experimentar a existência das coisas. As coisas só existem nos sentidos. Se existe aquela cor,
é porque ele vê; se existe o amargo e o doce, é porque existe o paladar. Tudo existe, porque
tudo existe nos sentidos.
O ver se torna o ponto crucial para que se saiba o essencial dos objetos. Ver justamente
não precisa do pensar, já que quando se vê se tem a compreensão plena das coisas. O
essencial está nos sentidos; não no interior de um pensamento que se propõe a penetrar o
interior de tudo para conhecer. Encontramos a substância das coisas pelo exterior do que
apresenta aos sentidos. Sendo assim, a essência de tudo está em saber ver, ou melhor,
desnuda-se a visão para aproximar-se do essencial que se coloca à frente. O pensamento nada
tem a ver com a visão que é fundamental pelo seu contato digno que faz com o exterior de
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todas as coisas existentes. O cerne das coisas se encontra no centro do que se vê delas. Saber
ver é ver o essencial; parar e olhar, assim se compreende a natureza e o centro das coisas as
quais existem por aquilo que se vê somente.
Vigésimo quinto canto
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de um palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amiga dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
Experimenta-se por esses versos a maneira pela qual se “olha” para as coisas. Como
bolas de sabão, Caeiro dispõe generosamente toda a sua experiência, que tem como principal
característica compreender a clareza das coisas pelos sentidos. Ao sentir a coisa pelo que ela é
– sem sentido para além dela mesma –, vive-se a existência das coisas sob a nitidez de senti-
las somente. Nada possui uma significação ou algo oculto que seja invisível, por isso as coisas
não constituem nada, nem possuem mistério algum. Logo, a transparência aqui das coisas
revela as coisas sem qualquer pretensão de que elas sejam outras coisas senão elas mesmas.
Transitórias, as coisas passam levemente sem nenhum esforço para chegar a um lugar ou
mesmo ser algo “fora” delas, como um ser transcendental. A transparência é dada aos sentidos
pela sua experiência imediata. Não há desse modo nenhuma transparência, como disseram
muitos filósofos, sobre o conhecimento racional, que foi reconhecido como único caminho
possível para se conhecer a coisa como algo durável e inteligível. Contrariamente, revela-se o
mundo pela transparência exata e precisa das coisas vistas. A existência acontece quando se
vê a forma sob a luminosidade que traz o descobrimento do ser que se vê. O que se vê é a
verdade dele mesmo, encostado à visão. Momento lúcido e conciso da luz sobre tudo,
revelando a simplicidade, a inocência e a bondade do mundo. A clareza revela certamente o
mundo pela generosidade de compreender as coisas pelo que elas são. E, assim, somente a
visão abarca a plenitude de assegurar a iluminação de deixar as coisas existirem por si
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próprias e ser iluminado por todas elas, sobretudo, pelo contato imediato da visão que
possibilita essa clareza.
Vigésimo sexto canto
Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta,
Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às cousas.
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão
Não significa nada.
Então porque digo eu das cousas: são belas?
Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as cousas,
Perante as cousas que simplesmente existem.
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
Exatidão, rigor e perfeição são as principais propriedades que oferecem os raios de luz
solar sobre o mundo. São, por isso, a manifestação completa para a nossa visão de que se deve
estar o olhar pronto a dirigir-se ao movimento certo. Nesse momento de luz perfeita e exata,
tudo existe cabalmente pela sua forma e cor sem a necessidade de nenhum artifício conceitual
ou racional. A sua expressão, portanto, é o revelar-se para aquilo que traz como expressão,
que se torna inteiramente a coisa mesma: o seu exterior na visão. É essa a existência das
coisas: sua forma, sua cor, seu movimento na sua revelação que traz a luz forte e correta.
Caeiro põe em questão, nesse instante, a falsidade que há na atitude de atribuir beleza às
coisas. Beleza seria um julgamento que chega em acordo com o agrado que proporciona aos
sentidos. A beleza estaria, nesse caso, em mim, não nas coisas. Todas as coisas têm a sua
forma e a sua cor, essa é a sua existência. A beleza não possui nenhuma importância, porque
qualquer critério de perfeição e harmonia doada às formas da natureza se declara mentiroso e
falso por um juízo ínfimo recebido aos sentidos que não pertence à coisa, portanto. A
integridade se relaciona à simplicidade de ver apenas o visível. O ver senão o visível se
apresenta como próprio do sentido do ver. No entanto, a mentira faz da visão outra coisa e,
assim, começa o “desvio” da propriedade da visão para uma direção que pensa numa
correção do olhar. Eis o erro e a mentira de tal correção: o afastamento da visão para chegar a
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um olhar que não vê, mas que pensa. Pensar no belo é deixar de ver, é esquecer a coisa para
criar uma idéia que estaria “fora” do que se vê, quer dizer, uma idéia mentirosa que não
existe, por isso nada significa por estar incrustada em uma idéia apenas.
Provido da visão em estado primordial, não se usa a razão para ver o mundo. Permanece
aberto em paz em relação a tudo. Deixa seus sentidos simplesmente abertos, de forma natural,
tal como são, sem se contagiar por algum pensamento que deles possam derivar. Os sentidos,
assim, concentrados e usados forte e fielmente serão de igual modo generosos ao mundo e a si
mesmo. Não surgem obstáculos para os seus sentidos, nada é imposto. Não exclui nem a coisa
vista nem a visão e, assim, se mantém num modo direto, verdadeiro de relacionar-se com o
mundo.
Trigésimo terceiro canto
Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram à solta para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
A limitação de viver em espaços limitados e regrados por entre quintais e canteiros,
cultivados por homens, aprisiona flores - isoladas sob o delineamento de linhas e regras dos
jardins. As aparências de proteção e de abrigo dadas a essas flores apontam para o artifício de
vida delas em jarros os quais julgam promover uma tal qualidade de vida. Pobres e medrosas,
pois são aparentemente privadas de florir. Na regularidade dos canteiros, essas flores
poderiam deixar de florescer em sua propriedade de vir ao mundo em cor e forma. Deixar de
abrir-se em generosidade poderia ser a tal decorrência de colocá-las em quadrados murados e
jarros, como aquilo que se vê vigiado e, sob certa ordem, garantir o cuidado e o zelo para com
o que têm de melhor. Submissas ao amparo, esconder-se-iam no cerco do medo que faria
delas o que não são. Guardariam consigo mesmas o seu viço de flor: frescor e simplicidade.
Entretanto, as flores são elas mesmas. No que elas têm de presença, vêm ao mundo,
abrindo-se no que tem de próprio. São boas, porque são certas – certas em florescer. São o
que são. Do mesmo modo florescem e abrem-se ao mundo. Não poderiam esquecer-se da
vibração que as revela ao mundo: florescer simplesmente. A integridade de sua competência
responde naturalmente ao que a todas elas pertence: o desabrochar. Honestas em seu ato
inicial, não reagem a nada que se encontra para “fora” delas, continuam ali, firmes e simples
na inocência da vida de uma flor que anuncia o sorriso antigo como expressão digna que nada
tem a dizer e a saber nem a entender e a explicar. As flores a florir sorriem, lançando
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levemente o ensinamento que possuem, o qual os ditos homens doentes identificam esse
instante como algo para além do que eles mesmos e todas as coisas são. Elas continuam elas
próprias e assim se mostram nas tentações frustradas de homens desejosos da curiosidade de
conhecê-las; caminhos idos do primeiro olhar do primeiro homem que, ao deixar de ver,
desejou também tocá-las no desejo de sentir para saber o que faziam ou eram. Essa mão que
se estende é a mesma que busca apreender; mão pensante que se aproxima, controlando e
segurando na forma da manipulação de um olhar que toca. Olhar que não mais vê, mas um
olhar tocante dentro de uma direção que se movimenta a fim de saber e de entender,
fundamentada, pois, no pensar. Perde a sua propriedade de sentir a sensação táctil para
receber no pensamento táctil aquilo que simplesmente deveria ser tocado.
Trigésimo quarto canto
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me cousas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...
Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas coisas,
Deixava de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar, tenho a Terra e o Céu.
Não pensar, como já se disse, é tão espontâneo que não se poderia relacionar a um
trabalho mental de pensar no não-pensamento. Proferir um riso a pessoas que pensam mostra
a sensação de Caeiro, que não pensa, mas que sente pelo gesto simples da contração dos
músculos da face a impropriedade desses homens. Pensar desagrada como qualquer sensação
desagradável ocorrida no corpo. Logo, o pensar desagrada sensivelmente assim que se
experimenta o exercício da mente o qual se apresenta pela possibilidade de indagar as coisas
ao que elas pensam ou são.
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Nada pensa nada. A propriedade do pensamento de uma coisa para outra é nada como
nada mesmo. Não afirma o nada como algo que não é verdadeiro ou que se opõe ao ser da
filosofia. As coisas pensam nada das outras: eis a certeza que Caeiro vê nas coisas. Se
esquecesse de ver, ficaria preso nos olhos do pensamento e a partir daí, talvez, poderia sonhar
o que as coisas pensam as outras. Perder a coisa vista institui o pensamento de ver, que não
vê. Não vive o olhos do corpo – pensar na coisa escapa à luz para emitir na obscuridade da
representação da mente aquilo que não está mais ali como presença, mas como o que não
existe. No pensamento, nada existe, sobretudo, pela constituição de uma idéia, que dilui o que
existe na imagem do puro pensamento – profundamente triste pela atitude forçosa de retirar-se
do mundo e ficar no vácuo do pensamento.
Trigésimo quinto canto
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais,
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através do altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
O olhar dos poetas se manifesta como um olhar que não vê. Vêem o que está neles, mas
isso não é ver, é pensar. O que eles pensam não existe, pois pensar é um “mais” que ultrapassa
o que sentidos recebem. O luar através dos altos ramos é, para eles, algo a “mais”, desse modo
não é mais isto. Quer dizer, para o luar não ser um “mais”, o luar deve ser somente isto – o
luar através dos altos ramos que se vê, já que os olhos não mentem. Olhar que se apresenta tão
simplesmente que recebe o que olha como a indicação do dedo que aponta. Os olhos, como
principal sentido dêitico, se voltam para um prestar a atenção a nada “mais” senão para a
coisa mesma. Não saber o que se pensa é ver a coisa como ela é.
As enormes sombras do luar através dos altos ramos não provocam nenhum desespero
que fizessem produzir uma analogia ou simbologia; alguma mentira como o mistério ou o
íntimo que pensam ter os homens as coisas. A mentira dos poetas recai justamente sobre o
engano de sua vontade, que tenta alcançar o absoluto para além da superficialidade das coisas.
No desejo do oculto ou do sentido profundo das coisas, os poetas que assim fazem sofrem de
uma doença: a procura de apreender um sentido para o mundo. Sentido que, no fundo, serve
somente às imagens que se faz do mundo exterior, por isso qualquer significação, por ser
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separada do sensível, nada apresenta de válido por ser uma coisa que não existe, já que está
em mim a idéia que dela se faz. Então, o que dizem os poetas do luar através dos altos ramos é
uma falsidade dependente unicamente do que eles dizem que o luar é – reduz-se ao que eles
dizem, vale ressaltar. Mas o que eles dizem é mentira, porque ver o luar é compreender o que
ele é.
Trigésimo sexto canto
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem construi um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre boa e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem não pensa,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao colo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos,
E não termos sonhos no nosso sono.
Eis aqui um tipo de poeta: aqueles que são artistas, que fazem do poema uma
atividade coordenada, de caráter físico e/ou intelectual, necessária à realização de uma tarefa.
A poesia se faz pelo artifício da razão em manipular, corrigindo e aperfeiçoando. Como em
um trabalho, tais poetas inserem a aplicação de forças e de faculdades humanas para alcançar
um determinado fim artístico. Numa briga com o som e o ritmo, especula à procura de
satisfazer estética e intelectualmente uma poética que conta com certas regras
convencionadas. Pelo trabalho inteligente, a poesia como matéria verbal tende a uma precisão
de molde e de adaptação que, comparado a um artifício de um carpinteiro, busca dar uma
forma à matéria disforme. Caracteriza-se, por sistemas impróprios, o desejo poético de
determinar uma unidade e um sentido ao que é natural.
Diferentemente, existe o poeta que não é artista, pois sabe ser natural, ou melhor, sabe
florir ao escrever, vivendo a poesia como um simples ato natural. A poesia é poetar em ação
natural e inevitável de abrir-se ao mundo. Poetar acontece como florescer: abrir-se ao que as
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suas sensações se abrem. Movimento de abertura, de desabrochar para o mundo que se
encontra antes mesmo de qualquer vontade poética _ a poesia que se mantém no mundo, que
brota de suas sensações com o brilho nascente de uma novidade ao mundo. Ir e viver pela
Terra é viver na liberdade divina da iluminação, que traz o que se revela aberto. A sua poesia,
que começa a ter vida externa por si mesma, se faz acontecer como a natureza, sem um
sentido, sem um motor que o impulsiona. Não é um ser poeta que impulsiona a poesia de
Caeiro. O que é natural se lança na poesia que nasce do solo e abre-se como a flor floresce. A
poesia está lá onde o poeta vive por que faz poesia; traz ao mundo algo inelutável: fazer
poesia pelo dado sensível que o faz poeta num ato sensível em que as palavras se dão como se
dá o nascer do dia. A poesia origina, porque funda o viver como sendo elementar ao mundo;
é, portanto, a expressão mais simples e natural, confundindo-se com a fala e com a vida.
Trigésimo sétimo canto
Como um grande borrão de fogo sujo
O sol-posto demora-se nas nuvens que ficam.
Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.
Deve ser dum comboio longínquo.
Neste momento vem-me uma vaga saudade
E um vago desejo plácido
Que aparece e desaparece.
Também às vezes, à flor dos ribeiros,
Formam-se bolhas na água
Que nascem e se desmancham
E não têm sentido nenhum
Salvo serem bolhas de água
Que nascem e se desmancham.
Caeiro compreende o retardamento da luz do sol-posto sobre as nuvens. Assim,
compreenderá o que a sua sensação viverá a partir do que acontece naturalmente. Receber a
luz do que está ausente, do que já está posto é assumir a ausência de algo que ainda em
pensamento emite fracos feixes de luz sobre o corpo; instante que atrasou e não passou
inteiramente. Aquilo que não vê mais, que não existe mais, embora não esteja sob os sentidos,
ainda dá sinais. Tarda com certa persistência, portanto, o que já se foi. A saudade é sentida
como a luz do sol que se foi e ainda incertamente marca, como uma mancha, as nuvens que
ficam. Nos sentidos, a fusão de cores na tarde de pôr-do-sol sobre as nuvens faz surgir uma
agitação em que a exatidão da presença das coisas pode ser abafada por algum tempo. No fim
da tarde, quando se põe o sol, a saudade, ainda que fique por um leve atraso de tempo, pode
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existir como algo que hesita e afirma o declínio da força do sol numa incerteza só possível
com a hora do crepúsculo vespertino. Com a chegada do lusco-fusco, a saudade pode
acontecer nas sombras que avançam. Momento passageiro, pois que se abre para um instante
arriscado de um atraso em que ali se instala, porém se efetua em pouco tempo.
Nessa instabilidade, a saudade aparece e desaparece. Do mesmo modo o desejo se esvai
rapidamente até o momento em que nada fica daquela luz que já se foi – desejo plácido que
possivelmente se declara em atitude pretensiosa de reter, de segurar com firmeza, ainda que
por instantes, o que não está mais sendo vivido pelas sensações diretamente. Entretanto,
desfaz-se tudo ligeiramente. Naturalmente se sente saudades na insegurança daquele momento
do pôr-do-sol. Passando como todas as coisas passam, a saudade não fica, desmancha-se no
próprio minuto que nasce como o impulso simples e natural sem sentido nenhum. A
naturalidade de sentir saudade acaba em si mesma, por isso a saudade deve ser apenas sentida
e deixá-la desmanchar-se. Ela nunca ficará a não ser que pense nela e guarde-a aqui nas
idéias.
Quadragésimo primeiro canto
No entardecer dos dias de Verão, às vezes,
Ainda que não haja brisa nenhuma, parece
Que passa, um momento, uma leve brisa...
Mas as árvores permanecem imóveis
Em todas as folhas das suas folhas
E os nossos sentidos tiveram uma ilusão,
Tiveram uma ilusão do que lhes agradaria...
Ah, os nossos sentidos, os doentes que vêem e ouvem!
Fossemos nós como deveríamos ser
E não haveria em nós necessidade de ilusão...
Bastar-nos-iam sentir com clareza e vida
E nem repararmos para que há sentidos...
Mas graças a Deus que há imperfeição no mundo
Porque a imperfeição é uma cousa,
E haver gente que erra é original,
E haver gente doente torna o mundo engraçado.
Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,
E deve haver muita cousa
Para termos muito que ver e ouvir
(Enquanto os olhos e ouvidos se não fecham)...
No momento do entardecer em que todas as coisas perdem a claridade do sol, surge
também o momento de ilusão dos sentidos. Essa impressão ilusória se declara a partir de uma
morbidez voltada ao que é agradável a mim. Assim, ilude-se em sensações falsas, imaginadas.
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No entanto, tal ilusão fundamenta os sentidos daqueles homens doentes que vêem e ouvem
ver e ouvir experimentados por artifício de uma doença que pensa o ver e pensa o ouvir,
deixando de viver com clareza e vida os sentidos. A ilusão dos sentidos só acontece pela
vontade que possuímos de enganarmos a nós mesmos. O desejo desvirtua a exatidão de viver
os sentidos, uma vez que se esquece de apenas sentir as sensações para constituição de um
pensamento que se faz sensação. Desse modo, conseqüentemente os sentidos se farão também
ilusão, pois o trabalho do pensamento vigia, escondendo o natural das sensações. O desejo
que deseja o homem doente é o engano de buscar o que é impróprio a si mesmo – recusar as
sensações, substituindo-as por uma necessidade que se põe fora de qualquer sensação sentida
simplesmente. Mas os sentidos se sentem exata e lucidamente quando a sua claridade recai
naturalmente sobre o que está em cada sensação conjugada à generosidade de simplesmente
sentir o que se aproxima.
A isso Caeiro responde jocosamente. Num movimento de gracejo, a doença e a
imperfeição desses homens só deixa em Caeiro uma única reação: o riso, o qual se manifesta
pela dimensão de loucura e de estupidez desses homens, que em sua insanidade, fabula que os
sentidos são ilusórios. Na inocência de criança, só resta rir daqueles que fecham as suas
sensações para explicações errôneas e delirantes. Em estado de imperfeição, tais homens
existem, porque haver gente que erra é original. Mas os homens doentes também existem,
mas como uma qualquer coisa que faz o mundo ficar engraçado. A eles não se deve ficar
atento pelo exagero que depositam no ver e ouvir; basta deixar-se aberto ao que largamente é
mais simples e franco aos sentidos e àquilo que somente se sente.
Quadragésimo terceiro canto
Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar.
A lembrança guarda firmemente o que não é mais; trai a natureza, pois deixa de ver para
reter na memória algo que não está mais presente. A recordação predispõe de vestígios que se
apresentam fixamente a partir da marca consumada. Assim, as sensações, conservadas na
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lembrança, se reduzem a uma experiência “fora” das sensações. Lembrar é sentir o que não
mais se sente, compartilhando sim de uma loucura da nossa mente em aceitar que há uma
possibilidade de resgatar ou reter as sensações passadas, uma vez que, segundo os homens
doentes, a marca prescrita permite reviver o que ficou em marca. A doente tentativa de manter
o passado como registro do presente faz da memória uma falsidade, uma vez que o que se tem
da natureza não pode ser vivido pela lembrança, mas sim pelo que se vê naquele instante.
O vôo do pássaro ensina que o esquecimento é atravessar sem mesmo receber qualquer
marca pelo que ficou e desapareceu no espaço. O que não se pode mais ver não existe, porque
passou e o que é deve ser o momento em que se vê e se sente. Livre de indícios e sinais de
acontecimentos passados, o movimento se faz no decorrer natural do tempo, que segue em
frente. Passando e esquecendo, a ave ensina – e assim deve ser – que o que foi não é, e
lembrar é não ver. Identifica-se, assim, a fidelidade vivida pelas sensações: o que se vê
enquanto se vê a passar e a esquecer.
Quadragésimo oitavo canto
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e deve mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.
Passo e fico, como o Universo.
44
Sendo Caeiro os próprios versos, compreende-se cada palavra e cada verso no papel
como ele mesmo em presença. Portanto, Caeiro e seus versos são uma única coisa. O que ele
é se faz presente no que escreve, então os versos são o movimento natural de Caeiro que será
exposto e lido como a cor da flor aos nossos olhos ou ainda como o correr de um rio sem o
esforço de reter ou até mesmo de enviar os seus versos. Se eles – os versos – seguem é porque
assim é. Próprio de Caeiro são os seus versos, por isso não esconderá nunca algo que com ele
se realiza. Agora Caeiro em versos se submete aos olhos, às sensações alheias como tudo
aquilo que existe no universo. Isto é, como tudo aquilo que pode estar sob os nossos sentidos
– como a flor aos olhos, os frutos à boca, o rio em movimento – os versos, da mesma forma,
farão sentir Caeiro, que nesse instante sente e também faz sentir. Cada palavra é uma sensação
que faz também sentir; dessa forma, ele mesmo fica em versos. Ler aqui é, então, uma
sensação, pois se manifesta nos sentidos, sobretudo, no olhar. Uma leitura é olhar. Como se
olha uma flor, se olham os versos e os sentem. Vê-se e lê-se por sensação; o ato de expor-se
em palavras é o mesmo gesto que se expõe uma flor aos olhos, quer dizer, uma leitura
acontece simplesmente como leitura, que se sente pelas palavras-Caeiro ali presentes. Nem ler
idéias, nem ler explicações, pois leitura não se aproxima de nenhum exercício da mente. Ler é
uma simples atenção dos sentidos em que a sensação de ver existe simplesmente; experiência
comum e simples de olhar, ler e sentir.
No movimento natural de passagem, os versos devem seguir o caminho que os levará à
humanidade. Assim, Caeiro está entre o passar e o ficar. Se os versos-Caeiro ficam, é simples
compreender que não ficam na esfera do tempo e da lembrança nem mesmo para fixar uma
experiência passageira que em versos ficou registrada. Ficam em existência, em dispersão;
nos versos, Caeiro fica, pois cada palavra ali presente é ele mesmo em presença. Versos que
ficam e que, ao mesmo tempo, passam num movimento de passagem próprio daquilo que
existe no mundo, prosseguindo naturalmente a olhos atentos que não buscarão nenhum ideal,
nem farão esforço. Nos versos que são Caeiro, tudo ali fica e tudo segue e passa, pois ler é
olhar e olhar é apenas olhar - não requer nenhum esforço nem da palavra, nem do
pensamento, nem da idéia. Olhar ou ler acontecem pela atenção e pela compreensão nas
sensações e nos sentidos. O verso é um gesto natural como o de olhar e, assim, também deve
ser o da leitura, que nada retém, pois apenas se sente.
45
Quadragésimo nono canto
Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem candeeiro e dão as boas-noites,
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.
Ao recolher-se no espaço fechado de casa sem mesmo a abertura da janela, a solidão de
um quarto fechado não se faz no aprisionamento dos sentidos para, assim, fechar-se ao
pensamento. Despede-se com um olhar amigo enquanto os últimos raios também se esvaem.
Assim, Caeiro se recolhe. Calmamente, compreende que esse momento de reclusão também é
o do sol e, conseqüentemente, de todas as coisas, pois tudo surge claramente aos sentidos pela
incidência da luz solar, que aos sentidos todas as coisas se fazem presentes. O recolhimento,
no entanto, não proporciona contrastes entre interior e o exterior. A noite em reclusão se
experimenta em simplicidade, por isso ali, fechado, nem se busca entender nem refletir e fica
sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir. Definitivamente a aproximação da noite
acontece e nenhum mistério ou inspiração surgirá com ela. Nem os espaços fechados das
casas, nem o silêncio noturno se apresentam aqui como um momento de trevas ou mesmo de
medo em que tudo se desaparece pela ausência da claridade do sol.
A simplicidade de compreender que as coisas deixam de ser vistas e que ficam em
silêncio é compreender a noite como algo vivido simplesmente, que existe como um momento
natural. Sentir a noite chegar em simplicidade é sentir a vida correr por mim como um rio por
seu leito. Própria e naturalmente, a noite passará pelas sensações sem a inquietação de perigo
ou de temor, do pensamento ou da inspiração; passará pela compreensão de que se deve viver
a noite como também se sente a tempestade ou o dia ensolarado, ou seja, da maneira mais
simples de apenas ver e sentir. Cada uma delas é vivida por si mesma. Não é por ausência de
claridade que a noite deixará em mim o desespero. Na calma e na simplicidade, o
recolhimento que se experimenta acontece como um momento simples em que nada se escuta
ou se revela, pois o que se ilumina e se desvela só se faz possível com a luz do sol que traz
aos sentidos todas as coisas. Nem o isolamento nem o silêncio dá em poesia, pois a poesia é
46
sensação; e, na noite, em recolhimento, se não houver simplicidade e calma, não haverá
poesia, mas sim pensamento e idéia.
47
A Crença
A experiência do “ver” como um olhar de crença se assinala num exercício do ver que
ultrapassa a coisa vista, a qual deixa de ser o que é, por exemplo, em forma e volume para
tornar-se uma qualquer coisa possível – menos aquela que se encontra à frente. É ver além do
que se vê. Esta atitude se explica por haver uma cisão entre o olhar e a coisa vista. No olhar
da crença, essa cisão manifesta se define no preenchimento responsável por determinar tal
coisa que ali à frente abre o olhar ao além, ou melhor, um olhar que se dirige para além da
cisão aberta. A perda da visibilidade dos corpos durante a cisão se dá, sobretudo, por uma
experiência do ver a qual não é um ver com os sentidos, ou seja, com os olhos de ver. Quando
se vê pela memória, pela imaginação ou pelo pensamento, reconhece-se a perda do objeto, já
que se baseia não no visível do objeto, mas naquilo que o possibilita estar num nível
metafísico de transcendência.
Salienta-se brevemente que o olhar da crença se opõe ao olhar da tautologia. Sendo a
tautologia o olhar simples, Caeiro não vive a idéia de infinito, porque está sempre limitado ao
objeto visto. Isto é, não há nenhum valor distanciado à forma e nem ao que apresenta o visível
do que o objeto é. Caeiro começa e termina sempre no objeto – não retira os olhos do objeto,
por isso vê somente o que vê. Entre as coisas e a visão existe uma relação direta. Nessa cisão,
há uma tranqüilidade responsável por uma objetividade que não fantasia ou incute elementos
inexistentes. Ao contrário, o olhar tautológico só conhece o visível das coisas, isto é, o que se
vê apenas é isso que se vê e nada mais. Quando Caeiro diz que o vento é o vento, temos a
construção tautologia a qual explicita a relação que faz do vento sempre a ele mesmo. Nada
mais se remete ao vento, só o vento mesmo.
O olhar da crença é o olhar do além. O preenchimento, da mesma forma, é o olhar crente
que acrescenta um “mais” na experiência do olhar: o que se vê não é apenas o que se vê, é
muito “mais” do que isso. Por exemplo, para os poetas, uma estrela é muito mais do que uma
estrela vista no céu. Por conta de sua crença, a sua experiência de ver ultrapassa a estrela para
ver outra coisa; ou melhor, vê junto à estrela muitas outras coisas: saudade, morte, amor,
memória, tristeza etc. O preenchimento se relaciona à cisão que abrange qualquer domínio da
invisibilidade como uma visibilidade crente.
48
A ação do homem crente pode ser notada, além do olhar do poeta, por intermédio da
iconografia cristã, sobretudo nas figuras que representam as tumbas
11
, identifica-se o
procedimento fictício, no qual a ausência ou esvaziamento dos corpos nos túmulos se justifica
pela trasladação da alma do mundo do concreto e da matéria, ou seja, o corpo que eles não
vêem nesses túmulos subsiste em um espaço inalcançável à vista do homem. A vida não se
encontra mais ali, mas sim em outro mundo, sonhado e belo _ o paraíso. O modelo maior
continua sendo a representação da ressurreição de Cristo, em que a pedra deslocada e a
ausência do corpo confirmam a perpetuação de sua vida. Nesse momento, o olhar da crença,
prefere esvaziar o espaço das carnes putrificadas a fim de ver o sublime e a salvação após a
morte.
O homem da crença, como diz Didi-Huberman, acrescenta um “mais” nas coisas. A
inquietação se apresenta como a responsável pela inserção de significações, as quais são
construídas pelos homens doentes, como os chama Caeiro. Esses homens doentes são os
homens de crença. A cisão é ocupada por um olhar que, pelo desassossego, excede os objetos
sobre uma série de falsos triunfos embaraçadores os quais acreditam em supostas latências
existentes nas coisas. A inquietação se abre para ver além, depositando nos objetos uma
identificação derivada de camadas dispostas por uma diferença pautada na temporalidade do
objeto, no trabalho de memória ou mesmo da imaginação. Busca deliberadamente tornar
presente o oculto das coisas.
Na busca de um algo a mais, os objetos se tornam complexos. A sua avidez sempre
irrequieta rejeita a objetividade dos sentidos para assim se deixar frente a um véu que embaça
as coisas, fabulando, dessa forma, conceitos e imaginações providos de uma atitude ficcional.
A angústia e o temor, por exemplo, motivam a busca pelo objeto transcendente como um
escape de algo doloroso ou incompreensível. O ilusionismo aponta para uma profundidade
que direciona o homem a uma determinada crença relacionada a uma fé, a qual o faz esquecer
do visto para assim ver pela fé que atravessa ou que se interpõe à sua visão.
Abandona-se o próprio da visão, pois se julga o pensamento e, ainda, qualquer fé como
a idéia de alma ou de essência o principal fundamento que nos leva à compreensão das coisas.
A inquietude assume o ilusionismo como fundamento de sua visão. O excesso de ilusão força
a visão exceder ao seu exercício mais simples, uma vez que não se contenta com o que é
visto. Esse modo de ver acredita que tudo existe em si mesmo por uma essência invisível, por
isso subjacente à visão. Inicia-se, assim, a busca por uma compreensão do mistério.
11
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. (Coleção TRANS)
49
***
Quarto canto
Esta tarde a trovoada caiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme...
Como alguém que duma janela alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por caírem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cair,
A chuva chiou do céu
E enegreceu os caminhos...
Quando os relâmpagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê – eu não tinha medo –
Pus-me a querer rezar a Santa Bárbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém...
Ah! É que rezando a Santa Bárbara
Eu sentia-me ainda mais simples
Do que julgo que sou...
Sentia-me familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranqüilamente, como o muro do quintal;
Tendo idéias e pensamentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...
Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...
Ah, poder crer em Santa Bárbara!
(Quem crê que há Santa Bárbara,
Julgará que ela é gente e visível
Ou o que julgará dela?)
(Que artifício! Que sabem
As flores, as árvores, os rebanhos,
De Santa Bárbara?... Um rumo de árvores,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos...
Poderia julgar que o sol
Alumia, e que a trovoada
É uma quantidade de gente
Zangada por cima de nós...
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estúpidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das árvores e das plantas!)
Com referência à primeira comparação da estrofe, encontramos Caeiro a transformar a
trovoada em pedregulho enorme, ou melhor, a trovoada provoca a sensação da queda de um
pedregulho. Tal experiência de Caeiro, por tão simples, tão expressiva e sentida, se anuncia de
forma que todos os homens, ao ler esses versos, possam reconhecer as sensações da trovoada
50
ao ouvi-la. Caeiro não deseja saber nada sobre o fenômeno da trovoada, por isso, a partir de
suas sensações, o que ele pode expressar é a sensação introduzida pelo como. Ao falar sobre a
chuva que acompanha a trovoada, fala do barulho da chuva como uma toalha que se sacode de
uma janela alta e que deixa cair as migalhas de pão. Toda essa realidade sensacionista de
Caeiro transforma esse momento ameaçador em tranqüilidade; como algo simples e comum à
natureza de todos os dias.
No entanto, Alberto Caeiro, como um simples homem sujeito às experiências de
inquietação, quando ouve o estrondo do relâmpago, algo nele subitamente se agita. A ameaça
do relâmpago o deixa perplexo e o sente como uma advertência. Nesse instante, o relâmpago
produz uma descarga de estranhamento no poeta. Aquilo que fugiu da sua tranqüilidade e da
sua normalidade lhe conferiu uma dimensão de ameaça sobrenatural. A reação de espanto,
conseqüência do extraordinário, desestabiliza Caeiro e o seu desejo se volta para uma
realidade pacífica, sem perigos.
A natureza, ao apresentar uma alteração dos domínios de sua estabilidade, faz Caeiro,
num movimento de agitação, significando o fenômeno à ordem religiosa. A oração a Santa
Bárbara torna-se nesse instante o acrescentado de Caeiro ao relâmpago, pois, desse modo, ele
poderia garantir o auxílio para sua proteção e para o restabelecimento da natureza.
Rezar a Santa Bárbara abria à alma de Caeiro uma sensação de humildade que, durante
alguns momentos, sentiu estar vivendo tão naturalmente como as flores, existindo com a
mesma certeza simples e sossegada que de um muro de quintal. A relação que se fixa
compreende uma experiência circundante que o aparta, protegendo-o dos espaços exteriores.
Como se Caeiro perdesse a visão e a sensação das coisas, algo se interpõe: a crença no
invisível.
Tudo isso o emprestava uma familiaridade que o fazia perder o receio do estranho, do
exterior desordenado pela tempestade. Com essa experiência de perturbação, Caeiro sentiu-se
muito mais simples em comungar, pela reza, com o infinito, com a natureza. Aqui a crença na
graça divina produz em Caeiro um efeito de comodidade e de tranqüilidade que, no caminho
de seus versos, torna-se o primeiro momento em que o poeta relaciona a sua experiência às
forças divinas. A modéstia que provoca a sua proximidade à santa traz um instante que,
provindo do medo e do assombro, confere uma simplicidade diferente da que ele possui frente
às coisas. Tal simplicidade parece ser maior pela união que faz da santa às forças naturais.
Sabe-se que essa circunstância pode levar uma pessoa a crer que juntar alguma coisa a outra
pode torná-la maior em força, por isso a simplicidade aqui implicada, ao rezar a santa, se
relaciona a uma reação de poder crer no além.
51
O estranhamento proporciona o homem a voltar-se para aquilo que ultrapassa o natural,
já que o homem, na sua possibilidade de atribuir valores, justifica o instável em um além-
mundo. Parece que Caeiro declara que a origem da religião provém dessa perplexidade e
desse receio, que se volta para o além. Esse desvio Caeiro chama de artifício. Surge o
momento de questionamento: Caeiro indaga a legitimidade de Santa Bárbara a partir da
visibilidade, que se apresenta, portanto, como o seu modo de entender e de receber as coisas.
Caeiro não compreenderia nada que não estivesse à sua visão. A existência das coisas
depende de seu arranjo à visibilidade. O poeta, então, não admite a existência de Santa
Bárbara.
O mundo de Caeiro é o mesmo mundo das coisas. A sua existência se compõe da
mesma textura da existência delas. O modo de variação do homem frente ao movimento do
rio ou ao canto dos pássaros nada tem a ver com uma construção reflexiva e artificial de
demarcar o modo de ser próprio do homem na sua concretude individual e singular. Ao
contrário, Caeiro sente a variação apenas como um dado natural em que as coisas e o homem
são e não são uma mesma coisa simultaneamente. São da mesma textura mundana, mas o que
os separa é tão natural como a disposição do pássaro para o vôo ou a disposição de uma
árvore para o fruto. Assim, tudo se harmoniza sem o pretensioso anseio antropocêntrico
humanista ou existencialista em apropriar-se das coisas.
Caeiro, então, pergunta-se o que a natureza sabe de Santa Bárbara. Abre-se ao que é
possível à natureza para identificar o artifício ou a doença humana em crer em santos e anjos.
Ou ainda pensar que há pessoas no céu. A simplicidade de Caeiro se firma em deixar-se ver
na composição da natureza como uma parte entre muitas, as quais contêm uma existência
saudável e clara de viver e de habitar o mundo ao lado, ou seja, próximo às coisas.
Quinto canto
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
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O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquela árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
<Constituição íntima das coisas>
<Sentido íntimo do universo>
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no íntimo das cousas
É acrescentado, é como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
A presença de interrogações apresentada nesses versos reproduz o anseio de homens
doentes que buscam refletir e obter respostas para os fenômenos e os mistérios do mundo.
Perguntas constituem os campos investigativos, por exemplo, da religião e da metafísica.
Perguntas que buscam o fundamento das coisas em sua essência ou em sua origem. Caeiro
responde negativamente a todos os questionamentos. A negação aqui alude principalmente à
doença de homens que entram na busca pelo princípio governador do mundo. Assim, refuta a
metafísica, a religião, a ciência, a filosofia. A recusa se manifesta como impossibilidade e
incoerência do conhecimento desses artifícios humanos para entender o mundo.
Caeiro de nada sabe. Esses homens desse modo agem, pois padecem da ausência do sol.
Fechar os olhos e correr as cortinas das janelas é prender-se no interior e perder-se do
exterior. A conseqüência de tal movimento aponta para a doença do desejo de atingir a
intimidade do mundo, da alma, das coisas: o que vêem em evidência com olhos abertos torna-
se insuficiente ou ilusório. Ou seja, esquece-se do exterior para adentrar nos interiores do
53
pensamento que tudo fabula. A profundidade buscada pelo conhecimento intelectual marca
essa penumbra em que ele ainda se encontra sem aquela abertura necessária para atingir as
coisas em sua claridade. A luz do sol nos faz ver as coisas como elas são. Por isso, vale muito
mais que qualquer pensamento sobre elas, já que as coisas em sua plenitude são vê-las como
são em sua forma. Conhecer uma coisa é deixá-la sob a luz do sol; luz que tem em seu efeito
grande força e vigor, que, ao abrir-se a ela, as coisas se apresentam em sua completude.
Quando assim é vista há a realização de uma aproximação da coisa como ela é. Por isso, a luz
do sol já traz em si toda metafísica. Olhar como Caeiro sob um céu claro e azul em nada faz
pensar. Essa metafísica em nada reflete. Pois o pensamento, no contato com a luz do sol, se
estiver com olhos fechados a imaginar coisas cheias de calor, pode proporcionar muitas
idéias. No entanto, Caeiro, que sempre anda com olhos abertos, se prende à própria coisa,
simplesmente as vê em seus limites. Existe metafísica em não pensar. A metafísica para
Caeiro se manifesta na luz do sol sobre o mundo, já que introduz o poder eminente de trazer
uma abertura ao visto. O brilho permite uma iluminação dupla: o estar aberto ao que se
também se abre. O corpo que se abre recebe as coisas, as quais também se encontram abertas
pela luz _ grande força que descobre abrindo o mundo aos olhos.
Esquecer de ver, ou melhor, fechar-se aos seus próprios sentidos certamente se identifica
como a principal causa da doença a qual progressivamente distanciou as experiências
sensoriais de suas condições primeiras e naturais, assegurando-as, contrariamente, na
atividade pura do pensamento. Ocorre que deixar de ver motiva um desejo que se aprisiona ao
pensamento. O que não mais se vê constitui a aspiração ao provável. Como fechar os olhos,
após ver atentamente o mar, e desejar a possibilidade de ver algum horizonte para além do
oceano. Caeiro se coloca antes desse modo primeiro de conhecimento intelectual, pois Caeiro
é anterior ao possível e ao desejo do além.
À pergunta-chave do pensamento filosófico sobre a essência dos objetos Caeiro
responde repudiando a impossibilidade de algo possuir um íntimo que não se apresenta
exteriormente. Isso é ilusão. Contudo, a tradição filosófica acredita no que está além das
coisas físicas e naturais como o mundo verdadeiro. O conhecimento da essência das coisas ou
do ser real e verdadeiro delas significa um íntimo em que as coisas são em si mesmas, apesar
das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer. A metafísica possível no
mundo, para Caeiro, somente existe à medida que temos conhecimento da presença dos
objetos. O pensamento se valida na sutileza da existência manifesta: a metafísica das árvores
se apresenta em sua cor, em sua forma, em seus frutos. Não pensar no que elas se constituem
fora de si, pois nisso se encontra a falsidade do ser das árvores. A metafísica da qual fala
54
Caeiro, que poderia parecer insuficiente e insatisfatório para o conhecimento metafísico de
homens doentes, ao contrário, nem mesmo faz surgir nenhuma dúvida à possibilidade de não
saber dar por elas.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?)
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
A possibilidade da visibilidade de Deus é o único critério para Caeiro acreditar no
Divino. O verbo no presente de Aqui estou confirma a validade do visível para Caeiro. No
entanto, Deus nunca se apresentou. A visibilidade, explica Caeiro, torna-se o único modo
possível de aprendizado que as coisas, à vista, podem oferecer.
Dessa maneira, Caeiro expõe a possibilidade presencial de Deus no chamado panteísmo,
que doutrina a realidade de Deus em todas as manifestações do mundo. Todo universo como
testemunha da Presença criadora. Essa experiência do Mistério que faz o homem religioso
viver num estado transcendente de encontrar o Divino no fundo da alma e do mundo.
No entanto, a visibilidade de Deus nas coisas do mundo não parece suficiente para
Caeiro crer no Divino. A realidade de Caeiro, manifesta sem mistérios, recusa a idéia de que
há um nome acima das coisas que o representam. Se Deus se apresenta a partir de alguns
elementos exteriores e naturais, devemos conhecê-lo e chamá-lo apenas por aquilo que Ele se
fez mostrar: pelo sol, árvores, montes etc. Caeiro não acredita na existência de outro Ser que
não estivesse presente nesses elementos. Assim, Caeiro obedece a Deus, pois não o conhece
pensando no que fundamenta o Divino, mas o pensa vendo, ouvindo e amando o luar, o sol, as
flores etc.
Sexto canto
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos
Por isso se nos não mostrou...
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
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E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Nós como as árvores são árvores
E como os regatos são regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos...
E não nos dará mais nada, porque dar-nos mais seria tirar-nos mais.
A existência de Deus não deve ser pensada, pois a sua escolha por não nos querer
mostrar força os homens a não continuar entendendo Deus como tem sido. Caeiro faz os
homens experimentarem um mundo sem idéias de Deus. Pensar já é transgredir, pois qualquer
impulso da idéia sobre Deus se torna uma idéia contra Deus. A invisibilidade de Deus já
sinaliza a impossibilidade de pensá-lo, por isso o abandono Dele em sua solidão é a sua
realização plena. As várias tentativas de justificação da existência divina se mostraram
incapazes de aproximação de Deus, pois Deus existe por si só. Os questionamentos, portanto,
apenas ocasionam distância e incompreensão.
Assim, Caeiro exige simplicidade e tranqüilidade, pois, ao viver tal estado, o homem
estará em conformidade com a existência de toda a natureza. Encontrar-se-á o homem,
portanto, em sua condição mais própria, isto é, condição que constitui o homem como ele
mesmo é, sem vontade que explica e tematiza o ser humano. O injustificado abre ao homem a
existência digna de si mesmo e do mundo.
Contudo, para isso, deve manter-se sem ambições e sem desejos. Nada pedir a Deus,
pois pedir já é acrescentar, movimento que faz o homem perder-se, retirando-se ainda mais do
seu estado íntegro de ser, aquele que se esgota em si mesmo.
Oitavo canto
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra.
No sol de meio-dia, em que o foco luminoso desce do céu límpido, a exatidão das coisas
se abre ao mundo. Assim é o meio-dia: momento culminante da verdade das coisas. A poesia
ao sol do meio-dia de Caeiro ensina que no visível se encontra a certeza da existência das
coisas; nesse momento, portanto, sob a nitidez da luz solar, o mundo se exprime cabalmente.
Sem sombras, sem dúvidas, as coisas existem em sua presença.
Diferencia-se da vontade “do meio-dia” da Filosofia, que tinha como propósito único
apontar, como nessa hora do dia, em que o visível se mostra, chegando a transparência do
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pensamento diante do mundo. O pensamento, nesse caso, ilumina a verdade das coisas como
o sol esclarece a aparência das coisas. O sol aqui é simples comparação, já que acima da luz
própria do sol existem as Idéias, as quais trazem ao mundo a Verdade, que traz à baila o
oculto das coisas; a grande nudez e transparência do ser.
Nos versos de Caeiro, a luz, o sonho, a fotografia constituem, dessa maneira, as
articulações naturais da experiência. O sonho visto, sonho em que a propriedade se manifesta
objetivamente. Ou seja, o sonho procede de uma realidade presencial das coisas. Caeiro
precisamente vê Jesus Cristo, porque o sonho aqui assegura a presença de uma coisa ao ato de
ver um referente. O que quer que se figure em um sonho tem de forçosamente ter estado
diante do olhar.
O sonho assim tem um compromisso sólido com a realidade física, pois a visão e a
sensação em sonho existem. Caeiro valida rigorosamente o sonho; não pensa na ausência dos
objetos, o que certamente enfraqueceria a potência de sua existência. O descrédito da
imaginação para muitos pensadores se justifica que a imaginação, assim como a sensibilidade,
limita-se a apreender a aparência e não a essência das coisas.
Entretanto, o sonho se manifesta e é observável como é o ato de uma fotografia.
Portanto, o sonho se faz do mesmo modo que a fotografia. Os olhos do sonho se lançam ao
mundo sob a luz do sol do meio-dia, como o filme usado numa câmera, que, para se abrir ao
mundo e receber o referente, dependerá de luz. Os olhos de Caeiro, o filme; assim, a luz do
sol indubitavelmente revela o referente e o captura em presença. O presencial deles aqui não
se relaciona a nada de essencial, pois nem a fotografia nem o sonho trazem em si o problema
da distinção entre a realidade e o fantasmagórico. Ambos se realizam imediatamente, não há
intermediário entre o sonho e o exterior ou entre a máquina fotográfica e o seu referente: o
resultado do que se vê se realiza a partir do que vê apenas.
Jesus Cristo revela a aventura fundamental para que se apresente ao mundo o divino que
observa o poeta. A factualidade da descida de Cristo se assegura pela visão assim como
acontece com o registro que possibilita o material fotográfico.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
Da segunda pessoa da trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
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E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe.
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
A afeição infantil que compõe o Cristo de Caeiro se mostra fundamental para a
indispensável maneira de vivenciar o mundo não com a angústia e melancolia cristãs, mas
com a tranqüilidade e alegria mundanas. A inocência é a experiência da existência em que a
liberdade, a leveza e a felicidade se relacionam a fim de afirmar a vida, portanto sem a
culpabilidade e a punição da vida cristã. Cristo aqui volta ao que sempre foi. A criança em O
Guardador de Rebanhos se estende também ao próprio Caeiro, que sabe ter o pasmo com ele
mesmo como o que tem uma criança. A inocência e o esquecimento, o contentamento e a
leveza, a brincadeira e a alegria habitam o Menino Jesus, que corre pelas ervas e se encanta
com as flores e seu sorriso é sempre aberto. Esse advento recupera a simplicidade e a inteireza
do homem perante a vida.
Caeiro vê um Jesus Cristo divergente daquele pregado pela Igreja Católica. A
transformação de Jesus Cristo em uma criança constitui uma crítica jocosa que assinala o
caráter moralizante e ressentido do Cristo católico, que coloca a vida em acusação,
justificando-a pela necessária salvação alcançada pelo sofrimento, pela piedade e pela
purificação dos pecados. A falsidade do mundo criado no além pela instituição católica ganha
nesses versos uma crítica em que a fabulação da religião cristã se mostra mesquinha, infeliz e
mentirosa. A narrativa dada à vida de Cristo, de seu nascimento à sua filiação, se apresenta
infundada, uma vez que sua história provém de acontecimentos enganosos. Mentiras que
somente serviram para reduzir Cristo à condição de escravo em um céu predisposto a falsear o
verdadeiro Cristo e a dominá-lo moralmente. A implicação moral incutida em Jesus proclama
ao homem a necessidade do sentimento de culpa a fim de alcançar o além-mundo. Para tanto,
deve o homem abdicar-se de seus desejos. Pregado na cruz, Cristo serviria assim para cravar a
bondade e a justiça na vida dos homens pela sua encenação de sofrimento e piedade.
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Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar
(...)
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Depois de sua fuga, Cristo em liberdade vive com Caeiro. Inicia-se a aventura de viver
num estado de indeterminação. No estado de inocência, desconhece-se não só a idéia de
pecado e de culpa, mas também qualquer tentativa de determinar as coisas. Viver é a aventura
que, como o Menino Jesus, não pergunta nem deseja respostas. É a aventura de viver as coisas
como elas são. Seguir pelo mundo prestigiando a existência das coisas num domínio prático
indiferente a qualquer cálculo que busca agarrar e fixar as coisas. Aventureiros, Caeiro e
Cristo caminham tranqüilamente, pois não há nada a perder. A sua simplicidade é a
ignorância que em face da existência das coisas não a sujeita à interpretação. Seriam,
portanto, incapazes de comentar a natureza.
O grande aprendizado que Caeiro recebe de Cristo compõe um mundo de contentamento
e satisfação, pois a simples existência faz dela mesma uma fonte de júbilo. Menino que aguça
os olhos de Caeiro a abrirem-se ao mundo. Menino que volta à sua generosidade de ser
criança: ensina não mais a culpa e a dor, o bem e o mal; ensina a inocência que harmoniza e
pela qual sente incondicionalmente a vida. Sente-se, desse modo, o ritual que os libera de
qualquer obrigação de dívida para colher na ignorância a indiferença de ser ante as coisas que
nenhuma razão e adversidade possuem.
E a criança tão humana que é divina
59
É esta a minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o do saber por toda parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
Nesses versos, Caeiro acolhe, para celebrar, a manifestação verdadeira de Jesus Cristo:
uma criança capaz de ser e de viver sem pensar no que diz, no que vê, no que é. Faz-se, assim,
a presença de um deus, que não está mais em ausência, mas se revela num “humano” herdeiro
de um eterno esquecimento e inocência infantis. Herdeiro de um ser sem origem, que não tem
princípio nem fim. A criança sem procedência, sem futuro.
Insere-se, numa Nova Trindade, o Menino Jesus de Caeiro. O sagrado sempre encoberto
dá lugar a um sagrado humano. Aqui se manifesta o deus que faltava. O verdadeiro Jesus que
é não evoca nenhuma verdade, mas, ao contrário, confere um destino sujeito a vaguear por
todos os lados numa errância que enuncia uma intensa garantia por não garantir nada. A
divindade humana que se mostra em seu estado natural não poderia viver senão pela
brincadeira e pela alegria, as quais lançam eternamente sorrisos e satisfações. Vive-se, assim,
na plenitude da existência, a qual nem mesmo é pensada e, por isso, nunca deixará de viver
nesse estado eterno. A repressão do cristianismo, como mostra Caeiro, escravizou a criança de
Jesus na cruz como adulto e sofredor. O furto cristão da criança transformou todos os homens
em adultos, para os quais o céu, assim como o mundo, se constituiu num ambiente repressor,
chato, tolo e desconfortável em que vivem Deus, José e Maria. Revelação: a criança sempre
encarcerada equivocadamente na Trindade Cristã volta a terra, volta a ser o que sempre foi.
Com uma existência cheia de novidades, sem comparar a nenhuma outra ou a nenhum
passado, a Eterna Criança, por viver o esquecimento, perde-se na existência pela alegria de
nela estar; vive sem pensar na própria existência. Em alegria e inocência vivem no mundo que
existem, experimentando a sua inserção nele.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
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São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e esquerda.
O espanto de Caeiro e de Menino Jesus com as coisas se encaminha por aquilo que
apenas é apontado. Assim, ambos se satisfazem por aquilo que não esconde nada. O que
indica em simplicidade revela o mundo. Não precisa dizer nada, nem pensar em nada, ou
melhor, o sinal de indicar as coisas com o dedo manifesta um procedimento o qual não possui
nenhum outro intento senão olhar a coisa apontada. O espanto é o de ver e esquecer-se ao
voltar-se para outra coisa. Esse movimento despretensioso, assim como a alegria, afirma uma
indiferença a qualquer desejo de esclarecer o que surge a sua frente. O inefável do dedo que
indica ou da alegria que é impensável se completa em seu contentamento pela sua própria
faculdade aprovadora.
A alegria e a satisfação conciliam o que existe tão harmonicamente que qualquer
compartilhamento se vive a partir de um acordo íntimo. Sem a preocupação da afirmação do
outro, pois não há alguma coisa para que possa coagir a uma similitude abrangente aos
homens. Existir está em não pensar um no outro. Relação que não questiona o que o outro é,
na tentativa de entendê-lo. Ambos seguem na companhia de tudo, porque cada um em sua
simplicidade deixa o outro ser. Apresentam-se um ao outro e ao mundo como numa relação
em que qualquer tentativa de posse e de conteúdo inexiste.
Décimo canto
<Olá, guardador de rebanhos,
aí a beira da estrada,
que te diz o vento que passa?>
<Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?>
<Muita coisa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram>
<Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.>
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Os versos desse diálogo apresentam a experiência comum dos chamados homens de
crença, os quais sofrem de uma fé fundamentada na existência de algo além das coisas vistas.
Tal homem nunca se prende à presença das coisas, pois sua fé o desvia sempre para longe
delas. A crença dele já se evidencia logo no início do poema ao trazer à baila a pergunta sobre
o significado do vento. Interrogações que só se apresentam a partir de um desejo pautado na
transcendência, por isso uma pergunta sobre qualquer elemento já aponta uma atitude de fé
em que a exacerbação do pensamento suplanta as sensações simples que as coisas trazem às
próprias sensações. A negatividade do homem crente em diálogo com Caeiro consiste na
fábula de significar o vento como algo que “fala” para além de muitas coisas, trazendo em si,
sobretudo, uma temporalidade fixada em passado, presente e futuro que proporciona muitas
lembranças.
A fé que ultrapassa o vento vive o desvio das sensações, deixando o pensamento
prevalecer e estabelece, assim, um revestimento de todas as coisas. Por isso, Caeiro o chama
mentiroso. A mentira recai nessa busca crente pela criação fantasiosa que acrescenta valores
que só representam uma negação da existência das coisas para subir degraus antropomórficos
de até mesmo ouvir o vento falar sobre memórias e recordações do que não se realizou.
No entanto, a verdade do vento é o vento; o vento nada “fala” além de si mesmo.
Conhecer o vento é ouvi-lo apenas. A tautologia em Caeiro revela que as coisas sempre se
referem a elas mesmas; o advérbio ratifica a circunstância de que todas as coisas se voltam
unicamente a elas mesmas. No verso o vento só fala do vento, a tautologia se apresenta no
complemento em que a transição de seu verbo retoma o sujeito, ou melhor, a transição verbal
entre a ação do sujeito e o complemento do verbo se compõe da mesma coisa: o vento. Vale
somente quando o objeto da ação do verbo se dirige tautologicamente ao sujeito que pratica a
ação do verbo. A travessia de uma coisa à outra se revela íntegra somente a partir de uma ação
que começa e termina nela mesma, que é a tautologia. Qualquer ação do sujeito se remete a si
mesma e a mais ninguém. A transição redundante entre sujeito, verbo e complemento verbal
admite a passagem natural que deve existir entre o homem e as coisas num movimento em
que os homens atravessam as coisas as quais devem regressar a si mesmas. Em sua inteireza,
Caeiro ouve este vento por deixar a sua ação de falar como sujeito e objeto sem
diferenciação.
A mentira está nesse interlocutor pela passagem que trilha, esquecendo a sensação de
ouvir o vento e ultrapassando a uma transição que se afasta da ação do ventar para chegar a
um objeto oposto ao sujeito; objeto que vira um motor da ação, mostrando o seu
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esquecimento da ação do sujeito vento, que por si só mostra a força de sua atuação. Assim, a
ação do sujeito vento se desfaz para manifestar-se no objeto, que não deveria possuir
nenhuma ação. Tal ação do complemento se identifica no valor dado, que indica uma
transição da ação do vento para uma ação humana, antropomorfizando, assim, o vento. Revela
que a ação de quem “fala” não é do vento, mas do homem que fala pelo vento. Assim
acontece quando o trânsito, que permite a relação sujeito/objeto, desvia e, como uma rua de
mão única, segue-se em direção direta, atravessando sem ser atravessado e, dessa forma,
esquecendo que a ação de cada um existe por si só. E que não receber é viver num estado de
mentira.
Desse modo, Caeiro responde à mentira do pensamento que se formou na transitividade
dos verbos ou na transitividade entre sujeito e objeto. A travessia, então, do vento à memória
se faz por uma ação que se desviou da audição do ventar, quer dizer, de reconhecer que o
vento possui a sua própria ação e que nenhum sujeito tem o direito de agir sobre ele a fim de
saber o que diz ou o que é o vento. Atitude ativa que se exacerba e recebe o vento como
objeto ameaçador e melancólico. Nenhuma vontade, desse modo, possui a faculdade de
transformação ou de criação através de um processo ativo, já que a natureza por si mesma
manifesta a sua ação.
Décimo quinto canto
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que penso,
Mentem a tudo o que eu sinto,
São do contrário do que eu sou...
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam...
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são
(senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira...
Devo ser todo doente – idéias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
A doença aqui não surge como negação da saúde, por isso não se trata de submeter o
estado doente ao estado saudável como se implicasse uma ilusão de perseguir uma predileção
ao bem do permanecer na saúde. Negação que tem a afirmação da saúde como uma
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infatigável seleção do bom, traçando, pela resolução da razão, um binarismo centrado num
arbítrio de estar na saúde ou estar na doença. Doença que não existe sem a saúde e vive-versa.
Isto conclui a busca, o esforço por aquilo que é aprazível ou bom separado do que é doloroso
e penoso. Separação que se volta “para” outra coisa que se vive numa direção circular
impelida por uma vontade de voltar a viver o que se perdeu em determinado momento. A
busca pela saúde como possibilidade de superar o atual estado a fim de sentir-se melhor e
buscar uma síntese.
Entretanto, a saúde se separa da doença por uma diferença contrária em que a saúde é
saúde e a doença é doença. A saúde e a doença não são abstrações que se contrastam, mas
diferenças que vivem a indiferença pela própria diferença. A diferença de cada uma não está
para nada senão para elas mesmas. Aqui a doença chega como um dado natural de ser; não a
doença sentida como sensação de desconforto contrastada ao estado de saúde, mas a doença
como acontecimento espontâneo em que se experimenta um estado que é ele mesmo e que se
revela pelas sensações que traz. Não há, portanto, nenhuma idéia de saúde e de doença; sentir-
se doente não é pensar na doença, mas sentir a doença com algo natural e espontâneo.
Sem indícios de contrários, a doença chega como algo inerente à vida e, por isso,
inevitável. Como um momento único não indo para parte alguma, sentem-se sensações
doentes ou saudáveis vivas de um mundo que expressam um instante sem tempo. Dessa
maneira, a doença que afeta os sentidos e os pensamentos constitui uma simplicidade em que
a doença não se mostra como um desvio ou uma irregularidade de um estado ideal/normal de
estar. Por isso, a doença não estabelece um problema; a doença como uma fase natural existe
num curso temporário.
Os poemas doentes de Caeiro não traem a sua poesia na saúde, porque cada verso tanto
na saúde quanto na doença são versos que se expressam pelas sensações correspondentes a
cada uma delas; logo, a doença não poderá ser uma negação da saúde ou até mesmo uma
ausência de saúde, pois cada estado se revela por si só. A doença renega pelo pólo contrário
em que se encontra a saúde, no entanto não é capaz de renegar, sobretudo, pelas sensações
independentes que regem cada uma separadamente. Temos, então, a alma de dia (saúde) em
oposição à alma de noite (doença) em que cada uma se abre a um caminho de sentir a
realidade. Em linhas gerais, a alma de noite, isto é, contrária, experimenta naturalmente o
minuto da doença que proporciona a noite e as suas angústias numa disposição humana que
não desespera. Na espontaneidade humana de sentir, a doença se vive num momento em que o
mundo perde a sua claridade do dia e a existência das coisas perde a lucidez.
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Na alma de noite, algo diferente acontece. A supressão desse mundo se reveste numa
exaustão de quem fala contido em si mesmo. O mundo sofre um processo no interior da alma
e, assim, torna-se algo estranho e distante. Os versos doentes se revertem no contrário do
mundo, no contrário do dia, exaurindo-se à medida que tudo se movimenta em direção ao
avesso e, conseqüentemente, à violação da fidelidade que traz o mundo em sua existência.
Viver esse contrário é esquecer-se do dia. O que, em outras palavras, quer dizer encarcerar no
egoísmo obscuro uma exacerbação que, como se verá nos poemas seguintes, se pauta numa
emoção perturbada que trai a espontaneidade da vida por uma via relacionada à sua própria
vontade, a sua própria escolha de querer e não querer. Vontade que, assim, sobrepõe-se à
força fidedigna das sensações para adentrar num caminho de sofrimento e de arrependimento,
de dor e de morte.
Duas almas, duas sensações que existem separadamente. Doença e saúde
impossibilitadas de alguma relação. A sensação de ambas e a passagem por elas nada têm de
decisão entre a fidelidade do dia e a sombra da noite. Conhecer uma como ausência da outra
seria pensá-las para cair numa fixação de um raciocínio fundamentado em suas relações e
funções para então optar ou buscar uma solução, como num processo dialético. No entanto, a
experiência só permite opô-los para revelar cada uma em sua sensação. Se Caeiro passa da
saúde para a doença e da doença volta para a saúde, é por que no inexprimível e no
indecidível o poeta passa naturalmente por estados próprios que se realizam simplesmente.
Décimo sexto canto
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Quem vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde vem volta depois,
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças – tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelos brancos...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente,
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.
Quem me dera desponta como uma expressão doente que o remete, por um desejo
também doente, a uma realidade estranha e irrealizável. A vontade doente substitui, desse
modo, a singularidade da experiência das sensações por uma forma reduzida e fixada. Como
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também fixado também em ritmo e rimas, o canto se lança no anseio de determinar a sua
individualidade em caráter especial. A poesia se inscreve agora em uma posição doentemente
expressa na tentativa de construir para si mesmo uma imagem em que seu ser se define; a
poesia recua ao movimento de exprimir sentimentos que o permite criar uma realidade, no
caso, o sentido individual. Sob a marca do conflito, a poesia como meio para atingir o que sou
ou o que desejaria ser, tal experiência poética mira a particularidade ou originalidade que faz
definir a mim mesmo a partir da substituição do mundo e do significado que dele faço pela
propriedade do que é.
A individualidade é pensada à medida que o mundo deixa de existir para satisfazer à
representação de mim mesmo. Vive a ilusão de que existe como indivíduo.
Conseqüentemente, a diferença entre o que sou e o que outro é se institui de forma que a
separação definitiva o deixa sem saber o que é, uma vez que o conscientiza de que é diferente.
Entretanto, a doença da individualidade se eterniza na doença pela tentativa que traça na força
de saber em que é diferente. O que representa para si mesmo – um carro de bois – assume o
desespero de um cansaço como resposta de uma individualidade pelo nada vive e porque não
existe. Às sombras, a vontade de definir-se se volta contra si mesmo: a impossibilidade de
conhecer-se como indivíduo ressalta a falha e a doença da consciência que pensa a si mesma.
Tal pensamento se exercita na explicação em que os seres se diferenciam em sua identidade;
entretanto, nunca será dito no que me diferencio dos outros, pois qualquer resposta se dissipa
nela mesma e no esquema racional que pretendeu explicá-la, ou seja, qualquer idéia não faz
jus à vida. Morto em si mesmo, viver a individualidade é fechar-se num círculo em que as
coisas rodam em si mesmas. Na rota de uma viagem em que se sabe o seu fim, sabe que
sucessivamente voltará ao ponto de partida; pela mesma estrada, seria um carro de bois,
libertando-se da angústia de ser. Porém, nem isso mais pode desejar ser, já que sabe em sua
doença que nem a representação que tem de si nem o que realmente o que é serão respostas
críveis. Qualquer tentação recairá na ilusão; acreditou, mas a resposta é que nunca me diriam.
Décimo sétimo canto
A salada
No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas,
As companheiras das fontes, as santas
A quem ninguém reza...
E cortam-nas e vêm à nossa mesa
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E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas,
Pedem “salada”, descuidosos...
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu
O arco-íris se esbateu.
A doença nesse canto recai, principalmente, sobre o conteúdo espiritualizado depositado
nos elementos da Natureza, os quais plenamente se configuram a partir de uma
espiritualização dela. Essa doença que se experimenta se baseia numa vontade de pensar que
busca a natureza a partir de um entendimento para além dela mesma, isto é, no âmbito
religioso. Conceber uma Natureza é não sentir a natureza. A natureza como algo divino é
deixar de compreender simplesmente as plantas para depositar a presença divina nas coisas –
o que é ilusão; o avesso, então, do que podem os sentidos sentir. Ver Deus nas coisas é uma
doença que desvia os sentidos para uma significação doentia que as impregna falsamente de
um sentido sublime, as quais têm em seu modo de existir apenas aquilo que os sentidos
sentem.
Considerando, então, a vivência de uma irmandade entre a natureza e os homens, a
doença persiste numa idéia transcendente pautada num respeito profundo perante a natureza
divina - manifesta com almas e sentimentos. A salada oferecida desponta uma idéia doente de
que a natureza se manifesta por aquilo que não se vê: a crença da presença de Deus em todas
as coisas da Natureza. O ensinamento de caráter sagrado se dá na figura de Noé, que ratifica a
necessidade de reverência e de cuidado com a obra sublime da Natureza, a qual por uma vez
fora destruída pela desobediência e pela destruição das coisas da Terra. O pensamento
determina, então, a invenção de uma ordem sacrílega na esfera ecológica, uma vez que o
caráter religioso dado à Natureza produz uma relação de extrema preocupação e preservação
pela manifestação divina incutida nos seres naturais. Respeitar já constitui um sistema de
idéia que impele o surgimento de um questionamento voltado para a corrupção ecológica.
Amar a natureza nem é pensar, nem respeitar; amar nada tem a ver com as medidas do
pensamento; amar é a eterna inocência e os sentidos não pensam, apenas sentem.
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Décimo oitavo canto
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E as lavadeiras estivessem à minha beira...
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...
A comparação que Caeiro vive agora na doença se vale da expressão quem me dera.
Comparação doente, anunciada por um paralelismo em um ritmo obstinado, que se
fundamenta no desejo de vida posta numa impossibilidade de uma realidade que, entre um
futuro e um passado, insiste em renunciar o presente dado. O momento pleno de insatisfação e
de arrependimento se retalha em paixões que vão para além do não vivido. Quem me dera
assume, portanto, uma comparação por substituição em que a vida não está nela mesma, mas
em outro lado para lá onde se supõe que haja mais simplicidade e humildade. Simplicidade
falsa e doente pelo que se destrói ao colocar-se no lugar do que não se faz a partir de sua
propriedade. A negatividade é essa humildade que se separa e perturba-se no afã de viver não
mais o que o faz abrir-se ao mundo, mas se fechar no afã de ser, sabendo que já está morto,
naquilo que é insensível. Sob a doença da idéia de humildade, o sofrimento constrói o desejo
de ser nada, relacionando-o a imagens imaginadas a fim de que se assegure de uma virtude
pautada na fraqueza, modéstia, pobreza, reverência e submissão.
Num esforço de viver na humildade, tal doença se apresenta como uma opressão _ que
lembra a doutrina cristã _ por saber que seu lugar não é aqui. Uma vontade de retornar pelo
esforço à humilde condição de nada ser no mundo. Impossibilitado de qualquer sinal de
vaidade, apresenta-se servil envolto a uma compaixão que se oferece ao arrependimento. E,
assim, entende-se por uma qualidade filantrópica pronta a receber todo o sofrimento do
mundo como prova de que, sem vaidade, ele nada é nesse mundo que está. Inferioriza-se ao
desejo de evitar o egoísmo ou a soberba de tal modo que esta negação se consome na
submissão que, simultaneamente, reverencia pelo que instrui o que de muito humano doa para
outros homens.
Aqui a humildade expressa a tristeza de ser sempre ele mesmo. A virtude da humildade
se concentra em voltar-se para os outros, apartando o que é para ser os outros ou estar
submisso aos homens. Vai ao fundo radical de anular-se inteiramente numa pequenez que o
liberta de um possível passado penoso o qual seria feito de ilusão em que o eu se ofereceria
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como o centro. Deriva daí o amor, que dissolve a si mesmo pelos outros. A doente grandeza
da humildade se constitui pela assunção da miséria e do nada que sou; a caridade doente que
se oferece pelo teor mascarado da idéia do individualismo a via de anular antes de uma idéia
que se tem de si para personificar a pobreza e a miséria em si mesmo.
Décimo nono canto
O luar quando bate na relva
Não sei que cousas me lembra...
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava à noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas...
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
A doença da memória ressalta a ultra-significação relacionada ao luar quando bate na
relva. A memória, sendo um dispositivo artificial e falso, força um registro por uma
associação injusta para com as coisas. Indicia, assim, uma relação nostálgica em que o
pensamento força uma lembrança; dessa forma o canto se inicia: há uma indefinição sobre o
que lembra o luar. Entretanto, as reticências respondem ao pensamento ainda vago que o
poema carece ser a marcha de um canto memorialístico. Nesse momento, a procura pela
memória se declara bastante rígida pelo princípio de que há um dever em reter aquilo que não
possui mais – o passado da infância e o encantamento noturno que o envolvia.
Inflexível em sua doença, a memória procede de um pensamento que significa a partir
do que julgo importante e imprescindível de uma outra doença: o meu interior. Tal
movimento leva a uma sucessão de associações em que as coisas se perdem para servir às
lembranças. Doença que ocasiona um estado grave de crença em que se torna uma condição
indiscutível para afirmar a doença de que nada apenas existe e que tudo que se vê se deve
depositar um significado que se acha para além do visto: a verdade do que está em mim; na
tentativa de acreditar de que tenho de evocar uma suposta realidade mais real que aquela que
se vê. Na ausência desse princípio, não poderia viver, uma vez que, para esse homem doente
ser verdadeiramente, sob a crença da lembrança, as coisas devem estar na subordinação de um
contrato em que se deve ultrapassá-las a fim de entender e atingir a verdadeira existência.
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Vigésimo oitavo canto
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
O comentário se dirige aos poetas místicos, como também a filósofos doentes, os quais
se apresentam como homens que vivem num estado de crença. Crença esta que vive uma
ilusão que se aparta radicalmente do que o mundo é. Conclui-se um estado impróprio dado às
coisas. A partir de um deslocamento antropomórfico, tais poetas místicos se entregam a um
modo de viver que dispensa compreender o outro como ele é; recebe o outro pela idéia que
tenho em mim do aquilo seja, isto é, originando-se de uma animação mentirosa dada à
natureza. Criando, desse modo, um mundo, esses poetas não se referem às coisas, mas a si
mesmos, pois o sentimento que eles lá põem são os deles mesmos. O falso olhar que passa
para além da coisa pode ser como um olhar da crença. A atitude de manter-se sempre para
além da realidade se identifica na sistematização e na fixação de elementos, as quais julgam
descobrir o íntimo dos seres. Crença, porque tais sistemas se fundamentam somente de uma
certeza: a mentira, que é a única certeza da existência. Tal falha ocorre pela adequação
impossível e doente de um sentimento ou, genericamente, de uma animação. Em outras
70
palavras, a realidade estará sempre muito distante de qualquer pretensão que queira conhecê-
la inteiramente.
Caeiro, assim, se opõe a uma tradição poética que, pautada numa posição subjetiva,
reconhecia entre as suas sensações e o objeto uma consciência perturbadora do interior. Esse
misticismo, sobretudo, está ligado a um esquecimento radical do mundo exterior, por isso
vivem-se as coisas como se elas fossem sentidas apenas. Ou melhor, o mundo dessas coisas
passa a realizar-se no sentimento de que se tem delas. Num mundo obscuro, esses poetas,
entre a falsidade do pensamento, passam a significar para lá ao longe do que a coisa é. A
principal mentira se conjuga na doença da poesia assumir uma maneira de vida que está para
“fora” de tudo aquilo, porque incutir características humanas a elementos inanimados é
afastar-se, sabendo que fora desse esquema interior nada existe e que tudo isso é uma doença,
loucura e falsidade. Identificada sob a frivolidade e a vulgaridade de todo esse esquema, a
poesia encontra a Natureza por uma via subjetiva que busca a unidade, colocando alma nas
próprias coisas.
A poesia aparece como uma doença que perturba a clareza das sensações, as quais
sofrem de uma intervenção que deixa de receber as coisas direta e lucidamente pelos sentidos
para desvirtuar-se em elementos espirituais que impõem à alma uma noção intermediária com
relação ao exterior. A atenção se centraliza na alma, o que denuncia que o objeto não existe
independente das sensações, mas existência que reside somente na doença do sentimento que
age sobre as coisas, recobertas, pois, por uma ordem que dissolve as sensações e engana-se
num mundo de idéias que se esforça a fim de atravessar o íntimo das coisas. As sensações na
sua naturalidade se realizam no contato imediato dos sentidos com o exterior, com o visto.
Logo, a Natureza se compreende inteiramente por essa ligação em que a atenção se volta para
as coisas diretamente. Sob a claridade do dia, a revelação da Natureza dispõe somente o que
ela nos traz aos nossos sentidos.
Trigésimo segundo canto
Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
71
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu – não sofrerão.
Todo mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os resgatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só como o florir e ir correndo.
É essa a única missão do mundo,
Essa - existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?
Tanto o bem quanto mal realça uma atitude certamente a mais que, pelos homens, é
determinada a partir não do que é, mas do que deveria ser – como acontece com o ideal da
Justiça. Assim, enredam-se tais homens nesses grilhões em que, como conseqüência, tem-se o
sofrimento – ou um suposto sofrimento, como Caeiro explicita em verso. Daí derivam todos
as aflições humanas: Todo mal vem de nos importarmos uns com os outros. Começar por uma
conclusão de um saber que define o que é realmente bom para o povo gera o maior problema
dos conflitos e dores até mesmo pelos antagonismos entre as classes sociais.
Contraditoriamente, identifica-se o mal ou a infelicidade naquilo que fazem os homens em
desejar o bem para todos, pois o que se julga bom provém de um conceito de Justiça; sob a
pretensão de tal justiça se vive uma vontade de reformas a qual, no entanto, se verá num
infinito problema como uma prisão às reformas necessárias e ligadas constantemente a várias
outras mudanças sociais; assim, se verá num ciclo vicioso de fazer e refazer as necessidades
judiciárias num infindável sofrimento e acomodação, impedindo, dessa forma, a mudança
verdadeira.
72
A lágrima de Caeiro, contudo, cai por sentir a simplicidade das coisas que nele se sente.
Compreende que a transformação deve estar no modo mesmo de compreender as coisas e no
modo mesmo de existir das coisas: sejam como eu – não sofrerão. Transformando os sentidos
e a compreensão do mundo, isto é, retornando à vida, ao estado simples, todos da mesma
forma deixarão de viver sob o sofrimento. Preocupar-se com os outros, sendo bom ou mau, é
retirar-se do seu estado natural para voltar-se a favor ou contra em posições sociais; sendo
assim, o desejo de mudança em sociedade surge junto a conflitos e a destruições. Mas tudo
isso deriva, principalmente, da vontade de ser bom ou de ser mal com os outros. Tudo isso
deriva de um padrão social estabelecido pelo homem, o qual impõe a isso uma importância
desnecessária - é um algo a mais, uma vez que o homem independe da sociedade. Logo,
qualquer mudança dentro da sociedade será uma mudança temporária, pois o sofrimento
persistirá, já que a mudança justa será não em sociedade, mas no modo do homem
compreender e voltar a seu modo mais simples de ser e de viver na terra.
Deixar-se em estado simples se vive num movimento próprio, que se constitui com a
simplicidade de não se preocupar com nada. Restituir-se ao egoísmo natural é estar numa
existência comum que se move naquilo que se tem de natural; colocar-se numa preocupação é
a insistência de trilhar um caminho, combatendo o que não é. Saber fazer o que possui
propriamente sem pensar nisso é viver simplesmente - é não se preocupar com o bom e o mau
ou com esse modo que deveria ser.
Trigésimo oitavo canto
Bendito seja o mesmo sol de outras terras
Que faz meus irmãos todos os homens,
Porque todos os homens, um momento do dia, o olham como eu,
E nesse puro momento
Todo limpo e sensível
Regressam lacrimosamente
E com um suspiro que mal sentem
Ao Homem verdadeiro e primitivo
Que via o sol nascer e ainda o não adorava.
Porque isso é natural – mais natural
Que adorar o sol e depois Deus e depois tudo o mais que não há.
O sol enquanto sol se compreende somente nas sensações, porque isso é natural. Como
a luz solar deixa a clareza plena das coisas às sensações, a limpidez em sentir e compreender a
luz do sol se faz do mesmo modo simples em receber simplesmente – o que faz uma sensação
simples e presente em todos os homens pela mesma competência sensorial. O sol assim é o
mesmo para todos os homens, os quais também são igualmente a todos os homens, pois a
73
simplicidade de sentir puramente nada tem a ver com qualquer valor ou idéia - interpretações
que trazem os homens em sua ilusão de pensar alguma coisa em sua significação. A
irmandade, o que há de igual em todo homem, é ser por um momento somente o sensível e,
por isso, sentir nitidamente o sol que ali está sobre todos os homens. Esse momento se revela
como aquilo que existe em todo ser humano, o que se manifesta puro no ato mesmo todo
limpo e sensível de sentir o sol.
Assim, todos os homens são os mesmos, pois sentem em sua capacidade de apenas
sentir o sol; isto é, não há nesse instante nenhuma idéia que fará do sol algo que eu penso que
ele é, criando, logo, variados entendimentos e significações que em nada se relaciona com a
propriedade do sol. A adoração ao sol praticada pelos povos primitivos não assegura a relação
sensível com o sol, por exemplo. Pelo contrário, ao adorar o sol, tais homens respondem a
uma crença pautada numa posição em que o sol é tido como um deus – digno, portanto, de
adoração e de reverência pelo esclarecimento originário de uma energia geradora de todas as
formas existentes na Terra. Buscando perguntas e respostas a inquietações pessoais, aparecerá
eternamente uma rede responsável por entrelaçamentos infindáveis de perguntas e respostas –
responsáveis também por um cadeia ilusória de tudo o mais que não há. Assim, toda resposta
é formular mais uma pergunta e criar, por conseguinte, mais uma ilusão, pois nada disso
existe. Perde-se o natural e se fecha em fórmulas que começam com a adoração ao sol para
chegar a conclusões relacionadas a origem do próprio sol – Deus. Nesse movimento
incessante, as mentiras se propagam no tudo o mais que não há.
Trigésimo nono canto
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum.
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que todos os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: –
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
74
O mistério é o que não aparece. Não se mostra nem mesmo como mistério, como uma
coisa. Não é visto nunca, logo é um sonho ou uma idéia jamais encontrada. As coisas ensinam
que elas mesmas não possuem mistério, anunciando, pois, que o mistério não têm existência.
Está na redoma do pensamento e do devaneio de homens doentes. Pertence a um artifício
voltado para uma busca que nunca achará. Falso esforço de um trabalho imaginativo que se
esquece da existência das coisas para confiar numa crença que arquiteta um sistema ínfimo
voltado para si mesmo. Qualquer sistema de pensamento está sob o efeito do sonho. Todos
eles se encontram sob um eterno engano, porque a fé age de uma maneira que traz o
encobrimento da realidade pelas explicações e esclarecimento da verdade das coisas. Anula a
realidade, que não possui nenhuma justificação, por uma outra sonhada e imaginada. Num
sono profundo, arquiteta-se um além inexistente estabelecido pela fé: a crença. Dialoga,
assim, com uma tradição crente que pensava o pensamento como algo possível no
afastamento desta existência fugidia como via de acesso ao verdadeiro mundo,
freqüentemente associado a um desejo de imobilidade e de imortalidade. Seu entendimento se
dissipa nele mesmo, ou seja, qualquer idéia não faz jus à vida, uma vez que se sustenta e se
apresenta possível somente para esse entendimento que o formulou. Não existe mistério
algum, portanto, a ser encontrado.
Num gesto cheio de leveza, Caeiro ri dessa doença de homem. Ri na leveza de uma
alegria que o faz passear pelo mundo, guardando o único sentido oculto das cousas: que é elas
não terem sentido oculto nenhum. Se tudo vive nos seus sentidos, ri da loucura dos homens
que depositam em uma espécie de sonho (pensamento) as coisas do mundo. Não recebe a
angústia e o desespero desse pensamento que pensa e que, por isso, é um eterno mistério. A
isso se relacionam homens sonhadores que pensam na diferença e na superioridade da razão
que traz o homem frente às coisas. Olhar para as coisas é afirmar que nada nelas têm de
mistério nem alguma significação. Isso é deixar todas as coisas as quais olho ensinar-me.
Tudo nesse olhar leva a aprender com as coisas que elas se revelam como elas mesmas. As
coisas são as coisas – tal é a existência delas mesmas. Já que se vivem os sentidos
generosamente, sabe-se que aprenderam sozinhos como a via mais digna para com o mundo
que têm os sentidos; permitem abrir-se ao mundo a partir do contato imediato que é o modo
mais simples e aberto para o mundo. Nos meus sentidos, as cousas são o único sentido oculto
das cousas.
75
A Natureza
A constituição de um conceito de Natureza sempre se opôs ao próprio dela mesma.
Segundo Merleau-Ponty
12
, a natureza possui um sentido que não se determina pelo
pensamento, mas por si mesma. A natureza se faz num interior que produz o seu próprio
sentido para além dos esquemas de entendimento do pensamento humano. Sem a
possibilidade para a constituição de um sentido do pensamento, a Natureza não é um simples
objeto que se possa identificar uma causa, a partir da qual se entendam os efeitos. Não se
apresenta como um puro objeto, que se pode observar as partes as quais possuem a finalidade
de compor a totalidade.
Contudo, o conceito de Natureza se fundamenta por um pensamento básico: a síntese
das partes é obtida pelo agrupamento delas, que sozinhas não são parte de nada, mas de uma
composição total unicamente. Entre o naturado e o naturante, a Natureza se desdobra
13
.
Antes, no entanto, de introduzir as características de ambos, saibamos da importância do
conceito de infinito. Esse elemento novo se aproxima de uma idéia que se apresenta em Deus
dentro da tradição judaico-cristã. Deus é o sentido da essência do infinito e do eterno que
pode ser o interior à Natureza, isto é, o naturante. Conhece-se como uma causa, que, de seu
interior indeterminado, é responsável diretamente pelas particularidades finitas e
determinadas do mundo exterior. O outro extremo desta cisão encontra-se no naturado, o qual
surge como produto da necessidade do que resulta do infinito de Deus. Ou seja, o finito do
infinito como uma exterioridade que comprova a concepção de Deus como uma natureza
absoluta responsável por uma outra natureza das coisas finitas e determinadas, a qual ele
mesmo produz. Isto é, a Natureza Naturada.
Do outro lado, ainda se pode reconhecer na análise do pensamento mecanicista o rastro
desta cisão lida acima. A natureza como um sistema autoriza uma idéia de leis naturais feitas
num interior que, assim como Deus, rege em ordenação o caos da existência do mundo. O ato
criador – a existência de leis do Sistema Universal ou Deus – ordena esse interior para que
haja a harmonia necessária entre as partes – o exterior. Pela união destas partes se manifesta o
Todo, que é o infinito, uma vez que um sistema, ao se formar como tal, constitui-se por uma
parte que é sempre parte de um todo. Um sistema é geral para as partes que o compõem, no
entanto é parte da composição de um outro sistema mais geral de um todo. Numa infinita
12
MERLEAU-PONTY. A natureza: curso do Collége de France. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção
Tópicos).
13
Idem. p. 10.
76
expansão um todo sempre é parte de um sistema maior. Logo, identifica-se o conceito de
infinito no sistema, que, no caso, identificamos também a infinidade do motor que é Deus.
Entretanto, essa constituição do conceito de natureza é puro objeto do pensamento. Esse
conjunto que explica a Natureza se reduz a pensamentos somente. Nesse momento, a
natureza, enquanto exterioridade, se opunha a uma interioridade. Inicia-se, então, a partir
dessa cisão, a busca pelo Grande Segredo – como diz Caeiro. Ou ainda, pela descoberta do
que se constitui a interioridade da natureza. Em outras palavras: se existe apenas o exterior da
natureza, torna-a um objeto exterior – em oposição à crença da existência de um interior – a
fim de que seja encontrado o suposto dentro, como diz Caeiro.
Diz o poeta no poema XLVII: A natureza é partes sem um todo. Compreende-se que as
partes existem separadamente sem pertencerem a uma totalidade para além delas mesmas.
Portanto, não há Natureza como um conceito. Existem as partes apenas. Logo, não há também
um interior ou um segredo que precisarão ser descobertos. Descobertas estão já as partes. Por
isso, ele diz: Porque sei que compreendo a Natureza por fora / E não a compreendo por
dentro / Porque a Natureza não tem dentro (poema XXVIII).
O fora aqui é o exterior, mas que não está como um objeto exterior, produto de uma
causa primeira e superior. O fora não se opõe ao dentro, porque este não existe, já que o fora
revela o exterior a partir de uma objetividade dos sentidos. Sendo assim, o que se vê são as
partes, não o todo. Cada parte existe isoladamente. Compreender a natureza por fora recai no
sensível a potência de um sentido que está numa inter-relação do exterior e dos sentidos.
Afirma-se o fora a partir de uma simplicidade dos sentidos a qual afirma o ser do exterior.
Mas para a generosidade dos sentidos, não deve haver também uma idéia de sujeito. Se
não há um dentro da Natureza, não há da mesma forma um íntimo relacionado ao humano
enquanto sujeito. A alma, o íntimo e o sujeito se relacionam a um dentro que nada pode
conhecer do exterior. Ao contrário, nada existe como uma idéia imutável e essencial resultado
de um íntimo. A natureza, como qualquer pensamento sobre a sua existência, se faz não por
um conjunto que se constitui por uma essência ou um dentro. Mas simplesmente do fora que
se vê.
***
Terceiro canto
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
77
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas pessoas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem não anda pelo campo
E triste como esmagar flores em livros
E por plantas em jarros...
Cesário Verde se apresenta em O Guardador de Rebanhos como o único poeta lido e
estimado por Alberto Caeiro. A experiência de Cesário se avizinha à de Caeiro na concessão
do exercício perceptivo, que surge nesse momento acompanhado do percurso do andarilho.
Ambos possuem uma forma particular de olhar as coisas e recebê-las. Isto é, a busca, por
captar as coisas em sua simplicidade e abstração, manifesta uma experiência sensorial que os
cerca com uma grande objetividade dada à superfície delas. Apesar desse fundo muito
próximo entre os dois, Caeiro interpõe uma oposição: de um lado a cidade pela qual andava
Cesário; de outro, o campo, de onde provinha, e que, portanto, conhecia muito bem o modo
pelo qual um camponês sente e vê as coisas.
Caeiro aponta para o resultado pernicioso da vida na cidade. A leveza inerente do modo
de olhar em Cesário o deixava na cidade com um olhar nostálgico do campo. Caeiro, dessa
maneira, aponta uma enorme desarmonia que o entristece, uma vez que lê um poeta que vê a
cidade como se visse o campo. Eis a prisão em liberdade de Cesário: um olhar franco e livre
que, no entanto, limita-se a ver coisas cativas na paisagem da cidade.
Por tal desarmonia Caeiro identifica em Cesário uma grande tristeza implícita, já que a
sua experiência se manifesta mutilada. Por isso, Caeiro se opõe à possibilidade de aceitação
de um modo de conhecer em que as coisas vistas não se harmonizam com esse mesmo modo.
No espaço da cidade, Cesário não poderia andar como andava no campo, ainda que a sua
disposição fosse a de quem possui um olhar campestre. Esse desconcerto significa em Caeiro
um sinal de tristeza que provém de uma estúpida e violenta condição: entre o que Cesário é e
o local onde está ou ainda entre o modo que vê e o que se vê. Disparidades de uma adequação
imprópria que violentamente empurram o natural a um espaço postiço ao seu de origem.
78
Décimo primeiro canto
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
A emissão sonora da Natureza atinge um grau muito mais elevado do que a arte musical
de combinar sons agradáveis à audição por meio de algum instrumento. Embora seja
agradável o som do piano, não é o som da natureza que ali se ouve. A música executada por
um piano é dispensável por ser uma música acrescentada que se dispõe artificialmente por
uma técnica sistemática, criando harmonias, ritmos e sons que se fundamentam na percepção
auditiva entre relações de consonância e de dissonância. Então, o melhor é atentar para os
sons naturais que não surgem como criação, mas como autônomos que existem na e pela
natureza. Certamente, não se organiza a fim de manifestar-se como produção artística.
Caeiro não denomina música a expressão dos sons, já que música denota uma arte
formal de conjugar e de executar sonoridades a partir de uma operação técnica expressiva que
distingue medidas para uma composição formal. Exige da atenção auditiva um diálogo
comunicativo que tanto deve emitir como deve recepcionar uma mensagem. Compartilha-se
uma música que deseja disseminar a emoção através de um trabalho artístico e modificador do
estado natural do mundo. Nem a música como técnica expressiva, nem como realidade divina
e suprema, ou ainda mesmo, como um estado de repouso em que ocorre a suspensão de todos
os desejos; Caeiro se volta para os sons de coisas que nascem com os sons. Não é música,
portanto. Ouvir o som do correr do rio ou o som das árvores exprime o amor pela natureza,
que é abrir-se ao som que se produz pelo princípio do movimento e por si mesmo.
Desconsidera-se, dessa forma, o resultado da ação de produção sonora arranjada por qualquer
modo artificial.
Antes da música, os sons da natureza. Amar a natureza é inteirar-se de ouvir os sons que
nascem das coisas, os quais revelam às sensações o movimento vivo de cada coisa que há em
si uma expressão leve ou intensa do som, porque nos seus versos Caeiro não conjuga as
sonoridades num desejo de harmonia. A separação que se faz entre um som e outro se
explicita no uso da conjunção correlativa não (...) nem, que anuncia uma posição similar à
conjunção alternativa ou, quando designa exclusão. Nos versos assume a existência de
elementos sonoros expressos cada um em sua singularidade. A correlação que se faz compete
79
conhecer que cada som se manifesta por ele mesmo. A harmonia ou desarmonia estaria,
parece, numa doença em pensar que a natureza produz sons simultâneos a fim de criar uma
sintonia perfeita ou, ainda, em associar sons conjuntamente em um todo, o que já seria ritmo,
sob um processo de conceber entre o vazio e o preenchimento de som um intervalo que
proporcionaria uma musicalidade. Não se ouve nenhuma relação correlativa entre os sons
dados, logo nenhuma totalidade ordenada e harmônica surge da natureza. Parar, ouvir cada
som naturalmente produzido e ter ouvidos para amar a natureza se faz ao ouvir o som tanto
dos rios como das árvores separadamente.
Os sons nem mesmo se dão por interações de elementos físicos. Nem mesmo se pensa
que o som se produz pelo debater do vento nas árvores ou pela vibração do encontro das
águas de um rio. Ouvir a natureza é apenas ouvir o som que se emite das árvores e dos rios, o
que é amar, pois não se pensa nem na causa nem no efeito dos sons. Mas Caeiro poderia falar
que o rio corre e que árvores murmuram? Não são qualidades humanas? Caeiro não estaria a
antropomorfizar a natureza? Não. Correr e murmurar são ações humanas que vários
elementos da natureza também possuem. As ações não são exclusivamente humanas nem
mesmo as ações citadas. Se árvores emitem sons, se rios se deslocam em movimento, as
árvores murmuram e os rios correm.
Nesse momento, nota-se que nenhum fundo metafórico, mais especificamente nenhuma
prosopopéia, há nesses verbos, o que levaria equivocadamente a identificar o uso dos verbos
como uma figura pela qual se dá vida e, pois, ação e movimento, a coisas inanimadas. No
entanto, como vimos, não são usos de figuras. São ações próprias dos elementos referidos. O
Mestre, então, aponta para a faculdade ativa própria da natureza, ou melhor, marca a presença
do som que emanam as árvores e os rios. Assim, nada está para além do som que sempre
nasce da propriedade das coisas.
Décimo segundo canto
Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousas
E cantavam de amor literariamente
(Dizem – eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?).
Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio.
E a Natureza é bela e antiga.
Caeiro aponta, como pastor, que seus versos não poderão aproximar-se nunca daqueles
pastores de Virgílio. Caeiro se encontra antes de Virgílio, já que o que vive nada tem a ver
80
com tais pastores virgilianos, sobretudo, pelo elemento literário que fundamenta o caráter das
canções de amor. Ressalta-se, assim, que a plasticidade com que os pastores de Virgílio
cantaram o amor, isto é, literariamente, transforma o sentimento de amor num elemento
literário. A vida desses vários pastores se falseia ou inexiste pelo seu fundamento literário –
atividade que afasta a sinceridade e a espontaneidade da poesia por sensação. Inventa-se ou
finge-se uma sensibilidade para vários pastores que são Virgílio e não eles mesmos, já que o
poeta latino vive um artificialismo literário de fingir vidas e sensações assentadas em outras
figuras pastoris.
Assim, Caeiro nos leva a pensar na atitude literária de Virgílio que substitui a natureza
pela literatura. Por isso, os seus versos implicam uma poesia que se converte em uma idéia
daquilo que reproduz: o amor e a natureza. O ato literário se mostra como ato de fingimento
em que a vida dos pastores se anula para dar lugar a uma vida pastoril criada por Virgílio, a
qual se separa daquilo que era verdadeiramente o viver campestre. A literatura que se coloca
no lugar da natureza se torna o mundo em que os pastores de Virgílio não existem, então os
pastores não são pastores. Virgílio em seus versos designa em si mesmo uma variedade de
pastores, os quais, por isso, não vivem em si mesmos, mas no mundo pastoril poético de
Virgílio. Mundo já orientado em discernir o mundo real dos pastores e o mundo literário do
poeta. Fala-se, então, do literário que se ajusta num dado significativo e referencial separado
do mundo sob esquemas de representação, falseados por um mundo apartado de outro em que
resta substituir a natureza pelo mundo literário e representativo. Representar, desse modo,
constitui o afastamento pleno por uma tematização que distingue a realidade do mundo da
realidade humana.
Antes, entretanto, dessa separação, existe a natureza, não como conceito, mas como
realidade dada em que se institui a vida. Se Caeiro é pastor, ele é por sensação, portanto é um
pastor que está antes, isto é, na Natureza anterior (antiga) em que nada se torna distinto. A
poesia se descobre nesse momento em que o mundo primordial é poesia pela sua força
pulsante de viver em poesia. O canto da poesia aqui vibra em um estado em que sua fruição se
sustenta pelo próprio canto e poesia. Nenhum fingimento, pois poetar se mantém no guardar o
mundo nas sensações; o mundo, então, é poesia num movimento, que não é literário, porque
se faz simples e modesto em um mundo fundado na inocência daquilo que fica no mundo.
Aqui, então, têm-se a poesia e a natureza que não saem delas mesmas em direção a outro
mundo que não o pertence.
81
Décimo terceiro canto
Leve, leve muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.
Eis aqui a grande experiência que expõe e que sintetiza clara e plenamente a vivência do
poeta: a leveza. O modo como o vento leve passa, Caeiro pousa no mundo. Com um
movimento com pouco ou nenhum peso, ele atravessa suavemente a vida, sem quaisquer
embaraços. Não há busca, por isso há simplicidade e leveza. Simples e brando, o poeta
descobre o mundo à solta e a sua travessia se compõe por uma ligeireza de ida e volta no
mesmo modo da simplicidade das coisas, isto é, sem saber o que vai encontrar ou o que trará
após a sua travessia. Nenhum espanto ou admiração na sua passagem que se completa pela
sua inocência perante a existência das coisas no mundo. O vento que atua sem direção vai e
volta num eterno fluxo temporal indefinido. Move-se no vago do espaço e do tempo que
passa. Tempo que ininterruptamente atravessa e inaugura o mundo sem nenhuma garantia de
continuar a ser o que passou.
A grande claridade resulta de não pensar o próprio pensamento. Por isso, abre-se ao
mundo lucidamente; a inocência e as sensações originalmente sentidas anunciam o poeta que
estará inteiramente inserido na realidade, uma vez que o seu existir se passa sem nenhuma
interpretação de mundo. Tudo são sensações, nada é pensado. A existência não é pensada,
logo não deposita nela nenhuma finalidade que satisfaça a qualquer inquietação ou desejo.
Esse estado contínuo se vale do sossego e da calma, pois ante a inocência da vida não há nada
contra o que lutar. Assim, a leviandade caeiriana expressa a claridade do amor, da alegria e do
prazer. Não há sentido nenhum a ser buscado na existência; não há nenhum mistério, por isso
não há ali qualquer razão de viver. A partir do movimento frouxo, o mundo gira suavemente
sobre as sensações de Caeiro, as quais são o fundamento da leveza: é a aventura e a leveza de
viver as coisas como elas são; de guardar as sensações para, então, saber que as coisas nada
têm para além delas mesmas. Possuindo, assim, o amor vivido ele revela a natureza através da
simplicidade que põe as coisas em sua existência íntegra, ou seja, permite a elas serem quem
são.
Vigésimo canto
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
82
Ms o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
O reconhecimento da singularidade entre a imagem do Tejo e a presença do rio de sua
aldeia ressalta as camadas de significação que ainda carrega o Tejo. O que leva um rio deixar
de ser rio para tornar-se Tejo? A significação histórica incrustada ao rio através de um aparato
memorialístico ao qual vitórias e riquezas incutiram. Às vistas daqueles que ainda vêem o
passado, que reveste o Tejo, faz desaparecer o rio que ali está para torná-lo Tejo _ nome que
carrega em si a narração dos notáveis acontecimentos praticados pelo povo português. Quer
dizer, os homens que ali estão não recebem e não vêem mais o rio em presença – o rio
simplesmente. Mas vêem o que não mais está ali: o passado de Portugal e as naus, as riquezas
e o caminho para a América. Por tal motivo, o Tejo vive encarcerado, sobretudo, por aqueles
que vivem ainda, ali, ao pé dele, um momento passado. Entre os homens e o rio, existe
somente o nome Tejo, submetendo não somente as sensações, como também a existência do
rio a uma experiência simbólica de uma vida que não pertence à coisa. Torna-se preso aos
grilhões de um marco histórico que se caracteriza, aos olhos do homem ocidental, como o
cumprimento de um grande projeto de civilização.
Observa-se o sistema de significação que origina um pensamento, que substitui a
simplicidade de um rio. Maior e mais livre é o rio da aldeia, pois nem mesmo um nome ou
qualquer definição existe para o rio de sua aldeia. O rio que ali se encontra somente vive
como um rio que em seu curso natural se desloca progressivamente até desaguar no mar. Não
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se sabe o lugar para onde se dirige seu percurso ou o que encontrará para além dele. Por isso,
o rio da aldeia, livre de qualquer grande fato, não remete ninguém a outra coisa a não ser a ele
mesmo. Nunca se pensou nele, sobre que é ou que há para além dele.
A diferença existente entre o rio da aldeia e o Tejo recai na própria nomeação que
significa e distingue a importância do Tejo; o nome como valor que se relaciona não mais a
um rio qualquer, mas um nome que busca significar para, assim, tornar significativo o
referente. Prática definitiva que afasta a coisa manifesta para encobri-la de camadas que estão
sobre condições prejudicais da nomeação - relacionada à lembrança de um passado em uso a
favor de um referente esquecido e encoberto. Tejo que não é mais rio desde as navegações;
deixa de ser rio para surgir como episódio orientado para além dele mesmo como rio.
Vigésimo sétimo canto
Só a Natureza é divina, e ela não é divina...
Se às vezes falo dela como de um ente
É que para falar dela preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas.
Mas as cousas não têm nome nem personalidade:
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...
Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
É isso tudo que verdadeiramente sou.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol.
A linguagem usada pelos homens para se referir à Natureza já fica comprometida,
sobretudo, por ser uma linguagem que dá nome aos objetos; isto é, como Caeiro mesmo diz,
uma linguagem que dá personalidade às cousas, e impõe nome às cousas. Portanto, essa
linguagem se manifesta como algo limitado e injusto, pois se pauta em nomeá-las. O nome
classifica e designa as coisas, ou seja, impõe um nome que individualiza, criando assim a sua
identidade própria. Mas como se sabe as coisas não têm nome. Portanto, a linguagem dos
homens se resume a uma maneira de apenas saber o que é tal objeto e, assim, o nome e a coisa
se tornam uma única coisa. Naturaliza-se o nome como se este fosse a própria coisa.
Exprimir-se pela linguagem dos homens é já se esquecer de que elas existem, uma vez que se
acumula no nome a própria capacidade que julga o homem ter de, por intermédio do saber, o
conhecimento do mundo; assim, a linguagem dos homens se manifesta como uma constatação
de que as coisas são certas pelo nome que possuem. Esta, então, é a linguagem dos homens
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que emprega nomes, substituindo, dessa forma, a existência das coisas pelos nomes que se
atribui às coisas por pensar que a linguagem supõe a existência delas.
A existência das coisas, contudo, não está nas palavras, pois a palavra enquanto impõe
uma personalidade se distancia da existência das mesmas as quais não tem personalidade
nenhuma. Tal linguagem, portanto, se faz no ato de diferenciação das coisas, mas se diz que
essa diferenciação se dá somente entre as palavras que nomeiam, porque as coisas não se
diferenciam; ou seja, a linguagem dos homens quer diferenciar, no entanto as coisas mesmas
ensinam que não possuem individualidade nenhuma, pois elas existem. Existir independe de
nome ou de personalidade, pois fazer com que uma coisa exista por intermédio do nome é
assumir que ela também existe como idéia, o que retém a existência das coisas pela identidade
e pelas diferenças que o nome no caso se responsabiliza em determinar. A existência dos
objetos, ao contrário, desconhece qualquer personalidade; logo, nomear é falso, pois as
cousas não têm nome nem personalidade. Elas existem apenas. A existência das coisas é
muito maior do que qualquer nome, porque, assim como as coisas se mostram aos nossos
sentidos, elas existem pelo contato sensorial e pela eterna novidade de vê-las.
Vigésimo nono canto
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
Do que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda.
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmo pés –
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
A mudança se compreende como algo natural, simples a todas coisas. Sente a sua
mudança do mesmo modo que as vê mudarem conforme a luz do dia ou da noite. A claridade
e o escuro, assim como a saúde e a doença, acontecem naturalmente. Não há qualquer
condicionamento ou vontade por trás de tal mudança. Não há um “eu” que determine as suas
ações ou mesmo uma predeterminação do destino. Logo, não possui escolha, ou melhor, livre-
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arbítrio para o desejo de alcançar um dado efeito; o que seria uma mentira pela produção
mental que fundamenta essa idéia.
Tudo muda pelo movimento simples da mudança. Sendo sempre o mesmo na própria
mudança, não há o que escolher, por isso não vive conflito algum, já que, se assim
acontecesse, estaria pautado no fundamento dialético: bom e ruim, certo e errado, direita e
esquerda. Na sua simplicidade, concilia, porque vive a presença de cada um, por exemplo, a
flor mesma com a mudança que nela ocorre; concilia ele mesmo com a mudança que nele
ocorre. A presença dos corpos faz sentir a mudança, deixando para os sentidos aquela certeza
de que tudo é o mesmo e que tudo muda também. Os sentidos generosamente acompanham os
objetos naquilo que são propriamente. Caeiro, então, vive os sentidos que estão sempre
atentos, na sua propriedade de não esquecer nunca da força do que neles existe. Os olhos e os
ouvidos, principalmente, asseguram que o que mudou continua ali. Eles não enganam nunca,
porque o que se tem das coisas encosta inteiramente nas sensações.
A simplicidade, do mesmo modo, sem interrogar e sem explicar, não busca partir dos
sentidos para chegar à intelecção a fim de conhecer o íntimo das coisas. O fator da mudança
não faz dos sentidos uma ilusão sob a base de um desejo de conhecer o imutável. Ao
contrário, pela atenção dada aos sentidos, revelam-se as coisas como as mesmas na sutil
mudança. Por isso, os sentidos só conhecem a sombra pela luz do sol que se põe, mas, ainda
sob as sombras, se o ser que ali está. As sombras aqui não são um fator para qualquer
desconfiança dos sentidos como fizeram os filósofos que, na busca pelo Ser verdadeiro,
determinaram os sentidos como ilusórios, os quais só eram capazes de conhecer sombras.
Declara-se o parâmetro desses filósofos, que se baseavam em conhecer pelo intelecto;
certamente esqueceram de atentar aos sentidos.
Pelas sensações, vivem-se a simplicidade e a calma, compreendendo que tudo se torna
completo nos sentidos _ a única maneira íntegra de voltar-se para as coisas. Quer dizer, o que
os sentidos compreendem é a coisa ali à sua frente, a presença do que os sentidos podem
alcançar. Como a mais confiável maneira de estar no mundo, a sensação desempenha o
principal acesso que permite a mais fiel relação com o mundo pela inserção do seu corpo no
mundo que com ele Caeiro o compreende não de outra forma senão pelas sensações.
Trigésimo canto
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
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É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha.
E essa é a minha definição.
Frente a uma doença de homens que se satisfazem somente com a definição e o
fundamento, explicando e determinando os limites de uma experiência, Caeiro graceja com
esses e, então, assume o que o limita: o corpo. O primeiro verso, com certa posição incisiva
possibilita a fazer uma ressalva aos próprios leitores de seus versos, que bem poderiam
relacionar Caeiro a uma classificação mística. Distribuir seus versos em categorias místicas
seria um equívoco, pois Caeiro vive suas experiências, suas sensações – impossíveis de serem
submetidas a um princípio. Ser místico seria viver no pensamento sistemático do
espiritualismo, o que o subjugaria, portanto, à crença que aspira a uma união com forças
cósmicas extraídas da consciência e do conhecimento transcendental. Nem mesmo ao
Budismo ou Zen Budismo, pois, seria possível atribuir uma justaposição. A qualidade mental
budista que capacita a distinção para um ato de evitar o mal e fazer o bem, desfazendo-se,
assim, de todo o sofrimento para alcançar o Nirvana (grosso modo, ausência total de
sofrimento), confessa bases de ensinamento e doutrinas. Reduzidos a esse modo sistemático,
tais homens, que não têm o necessário à vida, somente compreendem por esse mesmo modo
impróprio.
Caeiro assume que o seu misticismo é o corpo. Momento também que declara o
embasamento de seu pensar: não querer pensar. Claro, tudo isso é uma atitude burlesca de
Caeiro com o modo estreito de vida desses homens. Caeiro não pensa no impensável, nem
mesmo nas sensações, pois não vive entre o pensar e o não-pensar. Negar alguma coisa
declara a força de uma afirmação que identifica a ausência ou a falta de outra coisa. Tal
sistema recai sobre o pensamento determinista o qual funciona entre o que deve e o que não
deve ser. Um sistema, portanto.
Caeiro, na última estrofe, diz visivelmente que sua definição é viver no cimo dum
outeiro, numa casa caiada e sozinha. Qualquer outra definição não poderá dar conta. Não há
idéias, conceitos, interiores possíveis para definir quem é Caeiro. Ele é o que vive, onde e
como vive. É isso e não outra coisa que o define; qualquer tentativa de enquadrar Caeiro a um
regulamento ou a uma justificação do que ele é ou significa será um erro, uma negligência,
pois ele mesmo nesses dois últimos versos se mostra aos seus leitores. Se a experiência
caeiriana revela o contato imediato das sensações, não há nisso nenhum problema místico,
mas um modo vivo e simples, isto é, sem duplo, sem desdobramentos que buscam, assim, a
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purificação e iluminação de tudo em mim. A plenitude em Caeiro não passa por fusão. A
iluminação é viver a clareza da luz e das coisas nas sensações pela força que elas trazem em
apenas senti-las. Caeiro apenas canta a Natureza, não sabe o que ela é. Cantar aqui é a ação
de leveza de sentir a natureza; cantar e ser poeta se reúnem pela expressão e pela capacidade
de reverter em palavra escrita ou falada cada coisa sentida e revelada às suas sensações.
Cantar é sensação; uma manifestação inocente que não espera nada ao longe dela mesma. Por
isso, cantar não é compor hipóteses, buscando saber definições sobre as coisas, sobre a
natureza. Quando Caeiro canta a natureza, vive a amá-la como algo que existe nos sentidos
inocentemente.
Trigésimo primeiro canto
Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me
Porque não me aceito a sério,
Porque só sou essa cousa odiosa, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma...
Tal coisa odiosa – ser um intérprete da Natureza – acontece aos homens quando esses
decidem identificar uma linguagem da Natureza, a qual, ao contrário, não possui linguagem
nenhuma. Por exemplo, dizer que as flores sorriem ou que os rios cantam é afirmar essa
atitude desprezível de um intérprete da Natureza, pois assim se faz imaginar algo que
ultrapassa o que se vê para substituir a coisa por algo que se imagina, criando, assim, uma
projeção de sentidos ilusoriamente ditos em imagens. Sob tal estupidez dos sentidos, esses
homens vão se tornando dessa maneira essa cousa odiosa, um intérprete da Natureza.
Caeiro, para se fazer sentir ainda mais a esses homens, escreve, como no poema XXXIII
de O Guardador de Rebanhos, que há um sorriso antigo nas flores e que elas parecem ter
medo da polícia. No entanto, Caeiro compreende, pelos seus sentidos, que a Natureza não tem
linguagem, por isso o que ele disser será o seu sacrifício para que os homens compreendam
generosamente os seus sentidos e, assim, sentirem a existência verdadeiramente real das
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flores e dos rios. Embora ele não concorde com ele sendo um intérprete, há uma absolvição
própria, porque ele, ao se ver como um intérprete, não há de merecer nenhum cuidado ou
seriedade, por isso mesmo se desculpa. Compreende que, se diz sobre a Natureza como um
intérprete, assim diz para que os homens encontrem o modo íntegro de sentir sem colocar
alma às coisas.
Quadragésimo canto
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Pela primeira vez no universo, Caeiro fixa a atenção e repara que uma borboleta, por
exemplo, não tem cor nem movimento. Vemos a cor e movimento num movimento próprio na
borboleta, já que cada parte existe separadamente e, assim, cada coisa existe por si mesma. Da
mesma forma, a cor e perfume estão numa flor não como propriedades qualitativas de um
todo pelas quais um flor é, mas sim como elementos que existem isoladamente. Por isso, a
borboleta não tem movimento, mas o movimento por si mesmo acontece nas asas da
borboleta. Cada coisa existe por si mesma, ou seja, a borboleta é só ela mesma, não é a cor
nem o movimento, assim como a flor é apenas flor e não é a cor nem o perfume, porque a cor,
o movimento, o perfume, a borboleta e a flor são coisas que existem por si mesmas. Não há,
portanto, o perfume de uma flor ou a cor de uma borboleta. Observando o uso da preposição
de, identifica-se a cor ou perfume como a matéria ou a composição da própria coisa, mas, ao
contrário, nos versos se usa o em - A cor é que tem cor nas asas da borboletao qual já se
relaciona de outro modo, porque indica a localização da cor – onde está – sem perder a
atenção de que a cor existe por si mesma e que somente está em alguma coisa – na flor ou na
borboleta – revelando, dessa forma, que a relação entre as coisas não é de natureza essencial
ou acidental.
Cada coisa é uma coisa; está como acontecimento naquela superfície no qual se
apresenta, mas sem perder a propriedade de sua existência. Não há relação de qualidade ou
mesmo de determinação para que as coisas sejam determinadas. Caeiro não vê nenhuma inter-
relação de conjuntura entre os elementos já supracitados, cada qual, no entanto, referindo
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sempre a si mesmo. Um conjunto seria uma idéia doente da mente, logo não há conjunto ou
associação possível que determine ou individualize uma borboleta pela cor, por exemplo. O
que é próprio da cor é a cor mesma, assim como o que é próprio da borboleta é ela mesma.
Quadragésimo segundo canto
Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.
Os simples versos de Caeiro deixam à vista a eterna simplicidade da ação humana. A
diligência ao atravessar a estrada desaparece: qualquer ato humano no mundo se vive a partir
de uma simplicidade em que a trilha seguida, assim como a diligência, se abre apenas para
passar à nossa frente; passar e esquecer. Os atos humanos simplesmente acontecem, por isso
passam e não causam nenhuma alteração. Deixar passar e esquecer sem apego ou rejeição,
pois afinal essas obras humanas que devem passar não representam nada além daquilo que
elas são. Agem sem se relacionarem a nenhum princípio artificialista ou naturalista, pois
Caeiro desconhece uma idéia de natureza, ou melhor, não existe idéia que fundamente a ação
humana em uma diferenciação dada pela capacidade humana de transformar e de atuação
sobre elementos naturais. Essa é a ação humana: nada tiramos e nada pomos. Tudo continua
no mesmo lugar; as coisas continuam as mesmas. A simplicidade e a inocência de Caeiro
ensinam que o esquecimento não participará nunca de nenhuma trama ou de nenhuma relação
estranha com as coisas, sobretudo, porque Caeiro nada tem a responder ou a resolver. Cada
coisa feita pelo homem se deve deixar atravessar enquanto passando se apresenta; coisas
comuns e ordinárias as quais não despertam interesse nem pela particularidade nem mesmo
pela suposta grandiosidade produzida pelo homem. Ao mundo todas essas obras acontecem
em um estado físico que não apresenta nada de particular, por isso não se deve reconhecê-las
como resultado da qualidade humana que, dessa maneira, surge pela força, audácia, coragem,
valentia e vigor. Ao contrário, indiferentes, nada fazem mudar o mundo; nem os milhares
versos dos milhares poetas nem as inúmeras invenções de pensadores. Deixemos passar;
atentemos, porém, ao sol do qual não se pode esquecer pela presença de sua luz, a qual faz
revelar o mundo a mim, e também porque o sol é sempre pontual todos os dias. Esquecer ou
lembrar do sol não ocorre, o seu acontecimento diária e pontualmente é exato; não se poderia,
portanto, nem esquecer nem lembrar. As ações humanas não alteram a pontualidade e a
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existência do sol. Lá está ele todos os dias, em presença ele revela as coisas aos sentidos. A
luz solar sobre as coisas ensina que as ações humanas nunca poderão agir sobre as coisas, pois
no fim estas continuarão as mesmas – a isto é que se abre a luz do sol.
Quadragésimo quarto canto
Acordo de noite subitamente
E o meu relógio ocupa toda a noite.
Não sinto a Natureza lá fora.
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.
Lá fora há um sossego como se nada existisse.
Só o relógio prossegue o seu ruído.
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da mesa
Abafa toda a existência da terra e do céu...
Quase que me perco a pensar o que isto significa,
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,
Porque a única coisa que meu relógio simboliza ou significa
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme
É a curiosa sensação de encher a noite enorme,
E esta sensação é curiosa porque ele não enche a noite
Com a sua pequenez.
O tempo do relógio junto ao estreitamento dos limites das paredes da casa gera a
possibilidade de uma substituição da existência das coisas lá fora pelo tempo do relógio. Ao
prender-se na escuridão do quarto, não vê as coisas, portanto o ruído do relógio se evidencia
pelo silêncio noturno delas; isto é, abafa toda a existência da terra e do céu. O silêncio e a
escuridão noturnos ocasionam, portanto, instantes de um possível esquecimento da existência
das coisas para assim pensar, por exemplo, no sentido do tempo. Em outras palavras, viver o
tempo do relógio anula a existência de tudo o que há, pois pensar no tempo nada tem a ver
com as coisas da natureza; pensar no tempo do relógio é trocar as sensações silenciosas da
noite e da escuridão pelo pensamento que pode surgir ao ouvir o ruído relógio.
Cria-se, então, uma sensação curiosa, sobretudo, por sentir que a atenção pode se voltar
para a pequenez do ruído do relógio durante a noite e, assim, pensar que isso pode significar
alguma coisa. Mas Caeiro estaca, como ele mesmo diz, por sentir aquilo somente como uma
sensação. Quer dizer, antes mesmo de criar pensamentos sobre o tempo do relógio, Caeiro
dissipa o processo pensante que poderia levá-lo a pensamentos cada vez mais complexos.
Estaca para viver aquilo só como sensações que se iniciaram ao ouvir o barulho do relógio,
mas que não passam de sensação – curiosa, pois compreende que o relógio não enche a noite
com a sua pequenez. Mas sensação que não assusta nem espanta, por isso não remete as suas
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sensações a idéias conflituosas e geradoras de teorias sobre o tempo. A compreensão em
Caeiro se experimenta nas sensações e qualquer fé em tal desvio será ilusória e falsa.
Quadragésimo quinto canto
Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta.
Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.
Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes.
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,
Que traçam linhas de cousa a cousa,
Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,
E desenham paralelos de latitude e longitude
Sobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso!
Não só o renque, mas também o plural de árvore são nomes apenas, que buscam fixar
uma ordenação arbitrária pautada na linguagem. Portanto, os nomes não são as coisas. Na
tentativa de substituí-las pelos nomes, a nomeação se torna um pobre artifício pelo qual os
homens cristalizam seus pensamentos. Pela idéia de plural ou de ordenação, os nomes fundam
uma identidade; das palavras, então, quando pensadas de tal modo, resulta a unidade e a
identidade das coisas. O princípio ordenador, que possui sua maior expressão na razão, aqui
se manifesta como um modo de universalizar a singularidade de cada coisa no mundo. Os
nomes, como formadores da linguagem, se afirma ao anular a singularidade de cada árvore,
por exemplo, e fazer um conjunto ou renque de árvores, a partir de um idéia de identidade,
com o objetivo de ordená-las.
Tal unidade, portanto, só existe em nome. Mas nomes são apenas nomes e não coisas.
Ressalta-se a ilusão que permite o nome em criar um pensamento que é um pensamento
somente, a qual se mantém na instituição de traçar uma equivalência essencial e exata entre o
nome e as coisas do mundo. O ato de nomear falha, pois simultaneamente a ele há a pretensão
de substituição das coisas mesmas por nomes que abarcam todas as coisas em um só – um
nome. Assim se dá com as árvores, as quais em sua singularidade são substituídas por renque,
porque a disposição em alinhamento na qual se encontram é o suficiente para nomeá-las de tal
modo. No desejo de ordem, esquecem de cada árvore para adaptá-las a uma ordem geométrica
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem, /Que traçam linhas de cousa a
cousa. Diferente também não é com o plural árvores – reduzidas a uma mesma árvore em um
nome plural. A nomeação, portanto, se fundamenta em traçar nas próprias linhas da palavra
que nomeia um desejo no qual se fortalece a substituição do ver pelo nomear; impõe uma
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identidade ao múltiplo, principalmente, por uma idéia que pensa a possibilidade de medição e
de simplificação de todas as coisas do mundo.
Quadragésimo sexto canto
Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me ao sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da Natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
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Na naturalidade de escrever seus versos, Alberto Caeiro, com a simplicidade em vida,
experimenta sem a pretensão de nenhum conhecimento certo. Escrever não é algo certeiro e
exato para Caeiro. Quer dizer, podendo às vezes dizer o que penso / E outras vezes dizendo-o
mal e com misturas. Escrever aqui também não é feito de gestos, nada com o ato de expressão
de um movimento voltado para idéia e emoções pelo qual a escrita também surgiria a partir de
ação expressiva dotada de significação. Qualquer gesto corporal não se contrapõe ao domínio
das palavras, já que também um gesto se faz por uma vontade de enunciação, denotando uma
intensidade ou dos sentimentos ou de algum estado moral. Tal expressão, assim como a
escrita, se sustenta por um processo simplificador que reduz às palavras a uma idéia , fazendo
das palavras o principal modo de ordenação dirigido por ele mesmo como homem.
Ao escrever versos, Caeiro os faz sem querer, por isso escrever acontece nele
inocentemente, ou melhor, acontece em suas sensações como qualquer outra coisa que
exteriormente também acontece em suas sensações – escreve como dar-me ao sol de fora.
Seus versos são, portanto, a constituição de uma sensação nas sensações. Entre a idéia e as
sensações, Caeiro diz em palavras. Num movimento em que a sensação e a idéia emergem
simultaneamente, a palavra passa a existir revelando o momento de suas sensações. A palavra
escrita aparece como uma palavra inocente que traz uma força indefensável; indica as coisas
simplesmente, por isso injustificada sem precisar dum corredor do pensamento para as
palavras.
Entre erros e acertos, segue um aprendizado pleno de destruição das camadas
prejudiciais que inibiram as sensações em favor de uma concepção valorativa do pensamento,
que depositava toda experiência sensorial no próprio pensamento, cobrindo e sufocando,
portanto, o modo mais íntegro que certamente nos abre ao mundo e o mundo se abre a nós.
Daí o resgate do que há de mais próprio em cada animal humano. Esquece-se inteiramente da
idéia que o faz ser um nome – Alberto Caeiro –, que, a partir do que se julga o que é ser
homem, vive através do pensamento a ilusão de que se pode conhecer como espécie que se
distingue por apresentar o maior grau de complexidade. No entanto, Caeiro quer viver o
animal humano que é e que vive as suas sensações verdadeiras por sentir apenas, isto é, sem
apoio nenhum do pensamento voltado a entender e a explicar. Por esse modo, Caeiro torna-se
o Descobridor da Natureza, ou seja, os versos de Caeiro fazem sentir a força luminosa, que
indica o caminho da verdade das sensações, as quais possuem cada um. Descobridor, pois
abole todas as determinações ou qualidades, as quais não têm vínculo necessário ou casual
nenhum com o ser; destrói o pensamento e idéias as quais ocultavam total ou parcialmente as
coisas numa nebulosidade que não o deixava ver. Caeiro traz, pois, o Universo ele-próprio – o
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que sempre foi em propriedade; em serenidade e placidez, os versos se potencializam, porque
revelam, com a mesma intensidade da luz do sol, as coisas por elas mesmas, na presença do
modo como elas se mostram. A nudez das coisas nesse momento é a nudez que traz também
seus versos a iluminar as coisas à vista e a clarear para se ter uma única certeza: de que as
coisas são elas mesmas e que, ao escrever, recebe pela luz as coisas em seus sentidos. E desse
modo termina o canto: em aurora, quando o sol já ilumina a parte da superfície terrestre ainda
na sombra, começa a surgir o momento primitivo e inicial que o faz despontar também em seu
regresso ao animal humano que a Natureza produziu. Isto sente e isto escreve, sabendo que o
instante ainda indefinido – o amanhecer – iniciará a abertura a revelar o mundo em inocência
e a eliminar toda a vestimenta de sombras com a qual os homens fizeram encobrir o mundo e
as sensações.
O animal humano que é Caeiro se apresenta diretamente, abolindo uma idéia de
Natureza fabulada por pensamento impossibilitado de conhecer o interior de tudo. Dessa
forma, concluímos que a natureza humana é uma ilusão de uma idéia de conjunto que, dado
pela reflexão, julga como inerentes propriedades imutáveis que diferenciam o homem de
todos os animais em essência. Deriva daí a idéia de sujeito, que afirma uma cisão com o
exterior que se julga conhecer o exterior pelo interior, sendo capaz de alcançar o ilimitado e
assentar-se como único. A idéia de natureza humana é como a idéia de Natureza, que nada
conhece, uma vez que o interior não existe. Compreender o exterior por intermédio do interior
é uma mentira. Da mesma forma, Caeiro não se denomina um homem, pois este é um conceito
embasado em uma natureza complexa que o diferencia do todo o resto da espécie animal.
Assim, deixa de sê-lo com características humanas para tornar-se um homem em uma escala
evolutiva como julga a ciência. Caeiro, um animal humano, é somente o exterior dos sentidos.
Possui as propriedades humanas como a flor possui suas propriedades. Cada coisa se
diferencia simplesmente a partir de suas propriedades; sem a criação de fantasias de idéia de
sujeito que fundamenta as diferenças para lançar mão de um conhecimento que não existe por
existir somente nele mesmo.
Quadragésimo sétimo canto
Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
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Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que a Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isso é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que não acham,
E que só eu, porque a não fui achar, achei.
Pela nitidez que traz a luz às coisas do mundo, Caeiro vê que Natureza não existe, pois o
conceito de Natureza precede de uma doença da mente que determina a Natureza como um
conjunto de todos os seres que compõem o Universo. A doença da mente, então, programa em
idéias um todo que participa de uma mesma ordem natural em que todas as partes são
interdependentes.
Inicia-se, assim, a busca pelo Grande Mistério e pelo Grande Segredo de que falam os
falsos poetas. Na tentativa de descobrir o sentido e o segredo, tais homens se propõem a achar
uma coerência raciocinada disposta a dar a mais um sentido a si mesmo e também ao mundo.
Pela busca nada se acha, pois o caminho que busca falhará sempre para com a vida. Essa
resposta realça ainda mais a doença da direção ao mais: mais experiência, mais profundidade,
mais amplitude em relação ao saber sobre a Natureza. Quer dizer, o mais é sempre o falso,
sobretudo, pela procura da razão das coisas, o que salienta a ida para além das coisas onde
elas não existem.
Caeiro por não buscar achou, pois a busca recai sobre o processo mental de inventar e
falsear tudo aquilo que podemos ver por uma via esclarecedora das idéias. Caeiro em sua
simplicidade de seus sentidos apenas vê, sob a nitidez daquilo que os olhos proporcionam, a
plena certeza de que a Natureza é partes sem um todo. A natureza não se dá por nenhum
conjunto. Existe somente em partes, portanto. As árvores, as flores, as ervas, as montanhas
existem para Caeiro, pois são partes que ele mesmo vê. Tudo isso é natureza em partes. No
entanto, todos eles como um conjunto não seria impossível existir, uma vez que os sentidos
não alcançam todos eles como um conjunto em que se reúnem elementos formadores de um
todo. Esta relação interdependente quem faz são idéias já doentes. Mas Caeiro em sua
simplicidade nem mesmo precisou pensar sobre isso, pois seus sentidos revelam
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simplesmente que a natureza são partes e tudo isso Caeiro sente. Portanto, não há idéias, nem
mistérios ou segredos. O sofrimento e angústia desses homens se fundamentam, então, nessa
busca pautada em algo para além dos sentidos que, diante de saberes complexos e falsos,
destoam para a aflição viciosa cada vez que se distancia dos sentidos, formulando mais uma
teoria ou mais uma idéia do que possa ser a Natureza.
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CONCLUSÃO
Após o desenvolvimento do trabalho, conclui-se a importância da posição para uma
Leitura que definirá o modo pelo qual se dará a aproximação do autor/leitor ao texto em
questão. Afirma-se, então, uma Leitura Absoluta, que fundamenta a simplicidade necessária
para a compreensão dos versos. Os passos dados a partir dos versos e juntos a eles certificam
a abertura ao que lhes é próprio, traçando uma Leitura Absoluta que não se propõe a explicá-
los, mas que se envereda por uma aventura de passar pelos poemas a fim de lê-los numa
recriação possível por aquilo que se lê nos versos. Essa experiência permite, através dessa
abertura, afirmar a Leitura Absoluta como da maior importância. A sua simplicidade se
verifica na trilha de que cada verso tem a sua voz, por isso, por cada um deles, se fez uma
pausa para que a atenção voltada para cada poema pudesse ser a mais íntegra aos presentes
versos. Como a leitura feita por Ricardo Reis, o qual denomina Caeiro como um poeta do
Paganismo Absoluto ou, ainda, do Objetivismo Absoluto, que resumidamente não vê nada
além daquilo que vê, a Leitura Absoluta desconhece conceitos e pensamentos alheios – de
outros autores, sobretudo – que possam dar conta da compreensão dos versos de Caeiro. Por
isso, o Absoluto dos versos é essa leitura que vê, ouve e sente o próprio dos versos de O
Guardador de Rebanhos.
Identificou-se no caminho, de poema a poema, a freqüência de algumas dicussões
desenvolvidas na Leitura que se resumem nesta dissertação na divisão de capítulos. São eles:
Os Sentidos, A Crença e A Natureza. Contudo, cada um desses elementos nem sempre
surgem isoladamente nos poemas, portanto a escolha do canto para um determinado capítulo
se afirma por uma seleção feita através de uma posição que privilegia tal assunto, já que, para
o desenvolvimento deste, a Leitura se direcionou mais preocupada em abrir-se. Da mesma
maneira, não se pode acreditar que em cada canto, por estar em um determinado capítulo, terá
unicamente desenvolvido um único assunto ou, ainda, apenas aquele tema do capítulo ao qual
o canto está inserido. Esses assuntos, então, baseiam a estrutura do trabalho – o que não
impede de que outros assuntos apareçam no texto a fim de que se amplie a discussão.
Sabe-se que os sentidos em Alberto Caeiro se abrem a uma verdadeira objetividade do
poeta em relação ao mundo. A sua compreensão plena de tudo pelos sentidos ganha uma força
vivente pela força da propriedade única deles. Não há uma intelectualização dos sentidos o
qual institui um modo de ver indireto. Mas, ao contrário, pelos sentidos Caeiro vive um modo
direto de vivê-los. Por isso, nada mais existe entre o que ele vê e a coisa vista: nem
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pensamento ou mesmo alma. A vertente sensacionista de Alberto Caeiro radicaliza o
exercício do sensível, uma vez que às coisas vistas não se acrescenta nenhum elemento que
com ela não esteja. Cada qual é uma parte que existe sem nada exterior ao que se vê. Uma flor
é apenas uma flor. Só uma flor. Nada que não pertença ao que se vê não faz parte da coisa
vista – portanto, se assim for, não passa de uma ilusão, de uma mentira, de uma doença, como
ele mesmo escreve. Caeiro limpa, assim, todo o acidental já impregnado por uma tradição que
impõe aos objetos algumas significações as quais, com o decorrer do tempo, criaram angústias
e tensões entre os homens. Caeiro é julgado o Mestre, sobretudo, pela luz que irradia tão
intensamente em seus versos que eliminam todos os acidentais já existentes.
Por conta desse “mais”, os homens se esqueceram de ver o que se vê por algo fixado
entre o ver e a coisa. A tradição cristã, por exemplo, com a idéia de alma interpôs esse
elemento a “mais”. Ver as coisas pela alma é impulsionar a surgir à frente uma outra coisa,
menos o que está frente aos olhos. A Crença vive os sentidos para o além; o olhar da crença se
desenvolve por esse olhar do além do que se vê. Essa doença, no caso do olhar, acontece
também na expressão póetica que vê nos objetos outra coisa. Enfim, qualquer motivo - o
pensamento, a imaginação ou memória – que faça desviar a atenção justa dos sentidos faz
afirmar um olhar de crença. A calma e a tranqüilidade de Caeiro detêm o exercício certo e
justo do ver, uma vez que o seu sossego o faz firme e atencioso aos sentidos. Nenhuma
agitação ou angústia surge entre o que ele vê.
Entre o ver e o visto, não há nenhum mistério. Como não existe em Caeiro uma cisão,
muito menos existe uma cisão desassossegada. Por isso, não vê o mundo separado dele
mesmo. Sendo assim, o que está lá não está longe dele. Dele as coisas se diferenciam, claro.
Mas essa diferença é natural e tranqüila – não provoca medo ou questionamentos. Na sua
calma e na sua atenção aos sentidos, compreende tudo neles mesmos. O que está à sua frente é
só o exterior e não um segredo profundo que todas as coisas guardam em si, sendo este
segredo o que todos os homens buscam numa cisão vertiginosa. No que se distanciam do que
vêem, os homens imaginam algo para além do visto.
Tal atitude fundamenta também o caminho percorrido pelos homens pretensos em
conhecer a Natureza. Acontece que, com tal pensamento, a Natureza se divide em um interior
e um exterior; sendo o interior uma origem em totalidade que se deve buscar na tentativa de
descobrir. Esse todo em que se pauta a idéia essencial de Natureza recai numa idéia de
mistério e de segredo experimentadas em um invísível responsável pela criação e pela idéia de
um infinito que tudo rege e movimenta o mundo exterior. Na busca pelo interior e pelo seu
conhecimento, esquecem-se dos sentidos, por isso crêem num todo que constitui a idéia de
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Natureza. Contudo, os sentidos sentem somente as partes, porque não há um conjunto ao qual
essas partes correspondam.
Caeiro, então, é considerado Mestre por seus discípulos, justamente porque nos ensina a
abertura do sentido que vê as coisas como elas são. Na sua tranqüiilidade, experimenta-os não
como uma origem, mas como aquilo que é próprio do humano. A compreensão verdadeira,
portanto, se dá por ter o exterior apenas pelos sentidos; quer dizer, em seus versos o que existe
é o exterior somente, porque os sentidos por si só bastam para a plena compreensão das
coisas. Tudo se descobre, porque aos sentidos todas as coisas já estão descobertas sem sombra
alguma.
A luz solar de Caeiro não tem função como o de semear para converter. Não está a
serviço, ou seja, não ministra a sua palavra com o objetivo de transformar. Se Caeiro
transforma, essa sua maestria recai sobre o efeito natural dos seus raios solares – os seus
versos – que continua lá como a luz do sol de todos os dias. Basta sentir os versos para
compreendê-los. Assim, frente a uma voz própria, dependerá da sensibilidade dos leitores
para que estes recebam a chama que extinguirá os elementos suplementares, secundários
atribuídos a seus seres. Caeiro, assim, semeia como o duplo do sol. A sua semeadura é tão
natural que o seu efeito sucede sem pensar em colheita, sem pensar em resultados, ou seja,
não pensa em fazer nada sucumbir para depois renascer como imaculado.
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REFERÊNCIAS:
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SENA, Jorge de. Fernando Pessoa & Cª Heterónima (estudos coligidos 1940-1978). Lisboa:
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