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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Letras
Maria Lilia Simões de Oliveira
Nas dobras da memória: a linguagem
dos clássicos e de suas adaptações
Rio de Janeiro
2007
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1
Maria Lilia Simões de Oliveira
Nas dobras da memória: a linguagem
dos clássicos e de suas adaptações
Tese apresentada como requisito a obtenção do título de
Doutor ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Língua Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Teresa G. Pereira
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B
O48 Oliveira, Maria Lilia Simões de.
Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas
adaptações / Maria Lilia Simões de Oliveira. – 2007.
169 f.: il.
Orientador : Maria Teresa Gonçalves Pereira.
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Linguagem – Teses. 2. Literatura - Adaptações – Teses. 3. Dom
Quixote - Adaptações – Teses. 4. Literatura infanto-juvenil –
Adaptações – Teses. I. Pereira, Maria Teresa Gonçalves. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III.
Título.
CDU 800
3
Maria Lilia Simões de Oliveira
Nas dobras da memória: a linguagem
dos clássicos e de suas adaptações
Tese apresentada como requisito a obtenção do título de
Doutor ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de
Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Língua Portuguesa.
Aprovada em___________________________________________________________
Banca Examinadora:
Professora Doutora Maria Teresa Gonçalves Pereira – UERJ
(Orientadora)
Professora Doutora Eliana Yunes – PUC-Rio
Professora Doutora Elizabeth Vasconcelos – UFRJ
Professor Doutor José Carlos de Azeredo – UERJ
Professora Doutora Maria Cristina Lírio Gurgel – UERJ
Professora Doutora Luci Ruas Pereira – UFRJ
Professor Doutor Cláudio Cezar Henriques – UERJ
Rio de Janeiro
2007
4
DEDICATÓRIA
A Cristiane e Daniel, razão que me faz continuar, sempre
A toda minha família, por entender minha ausência
Aos que se foram, tão presentes
nos momentos de solidão da escrita
À Fernanda Namora, por suas lições sobre música,
sobre leitura e, principalmente, sobre a arte de viver
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me presentear com amigos tão generosos, com professores
competentes e dedicados, com alunos curiosos e desafiadores
À professora Dra. Maria Teresa Gonçalves Pereira, minha orientadora, por
sua cumplicidade nesta jornada, pela leitura atenta ao trabalho e por me fazer acreditar no
impossível
Ao professor José Carlos Azeredo, por me presentear com sugestões, por
apontar rumos e, principalmente, por partilhar saber e amizade
Aos meus professores, Eliana Yunes, Elizabeth Vasconcelos, Luci Ruas,
Maria Cristina Lírio Gurgel, Cláudio Cezar Henriques, pela leitura crítica da tese, pelo tanto que
me ensinaram
A toda equipe da Pós–Graduação em Letras da UERJ
Ao Instituto Cervantes, em especial, ao bibliotecário Carlos, pela ajuda na
pesquisa bibliográfica; aos funcionários da Biblioteca Nacional; aos funcionários da biblioteca da
PUC-Rio
A Denise Salim, por me presentear com livros, pela ajuda na pesquisa e
pelo afeto de irmã.
A Marília Clara Nogueira, pela leitura minuciosa do trabalho, pelas
palavras amigas, sempre confortadoras
A Maria de Fátima Marques, pela amizade, pela paciência de ouvir e pelo
estímulo diário
A Lúcia Ramineli, pelo carinho, pelo riso amigo, pelo apoio nas questões
de informática e pela confecção dos slides para a apresentação
A Solange Garrido, pelo abstract
A Maria do Carmo Cardoso, pelo resumen
A Lúcia Helena, a Celina Rondon, a Marina, a Bartolomeu, pela
contribuição bibliográfica
Aos alunos de ontem e amigos de hoje, Maurício, Cléssio, Verônica, Hélio,
Zu, Fernanda Freitas, por tudo que vocês fizeram e representam
Minha gratidão, sempre
6
HOMENAGEM
À profa. Dra. Glória Pondé (In memoriam) ,
minha orientadora no Curso de Especialização,
pela suavidade, pelo conforto, das palavras
ditas em momentos de angústia
7
Muitas vezes peguei na pena para escrevê-la,
e muitas a tornei a largar por não saber o que escreveria
(Dom Quixote, I,Prólogo)
A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos,
que aos homens deram os céus:
não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra,
nem os que o mar encobre; pela liberdade,
da mesma forma que pela honra,
se deve arriscar a vida,
e, pelo contrário,
o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens.
(Dom Quixote, II, LVIII)
8
RESUMO
OLIVEIRA, Maria Lilia Simões de. Nas dobras da memória: a linguagem dos clássicos e de suas
adaptações. 169 f., il. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Estuda-se na tese a linguagem das adaptações de clássicos universais para leitores
iniciantes. No Brasil, a preocupação com a leitura para crianças e jovens torna-se mais intensa
com Monteiro Lobato – escritor, tradutor, editor e o principal responsável pela divulgação de
obras canônicas, lidas anteriormente em seus idiomas de origem. Observa-se na pesquisa a
importância da competência lingüística do escritor, para que possa desempenhar com eficácia o
papel de autor-adaptador, pois somente será bem sucedido na tarefa de verter um texto de uma
língua para outra, aquele que se dispuser a buscar a índole da “língua de chegada”. Considerado
um dos livros mais representativos do cânone ocidental, Dom Quixote de la Mancha, narrativa
escolhida para análise, é exemplar, no que concerne ao trabalho com a língua, uma vez que os
jogos semânticos, a seleção lexical, os diferentes usos de níveis de linguagem, entre outros
recursos, são primorosos, servem de modelo a escritores iniciantes. Por imposição do corpus,
procura-se observar a obra em outros códigos. A saga do “Cavaleiro Andante” ultrapassa
barreiras, impregna-se nas histórias em quadrinhos, no cordel, na música, na poesia, em outros
textos literários etc. Como a tese privilegia a tríade Língua Portuguesa-Ensino-Leitura, busca-se,
pelo cotejo entre a versão integral – dos Viscondes de Castilho e Azevedo – e as paráfrases de
Monteiro Lobato e de Ferreira Gullar, observar a capacidade de o autor-adaptador trabalhar
esteticamente o texto adaptado, elaborado numa linguagem mais acessível, mantendo, no entanto,
a marca do original, do prototexto.
Palavras-chave: Linguagem; Clássicos universais; Texto adaptado.
9
ABSTRACT
The thesis focuses on the language used in the adaptations of the universal classics for
beginner readers. In Brazil, the concern with reading for children and youngsters became more
intense with Monteiro Lobato – a writer, translator, editor and the main responsible for
publicizing the canons, previously read in their original language. It has been observed in the
research the importance of the writer’s linguistic competence so that the role of author-adapter is
played effectively, for one will only accomplish the task of translating a text from one language
to another if he is willing to seek the nature of the “target language”.Regarded as one of the most
representative books among the western canons, Dom Quixote de la Mancha, the narrative
chosen for analysis, is exemplary in respect to the work with the language since the semantic
games, the lexical choice, the different uses of levels of language, among other resources, are
exquisite, serve as models to beginner writers. As imposed by the corpus, the work has been
observed in other codes. The saga of the “Walking Knight” surpasses boundaries, impregnates
itself in cartoons, “cordel”, music, poetry, in other literary texts etc. As this thesis privileges the
triad Portuguese language – Teaching - Reading, by contrasting the unabridged version – by the
Viscounts of Castilho and of Azevedo – with the paraphrases by Monteiro Lobato and Ferreira
Gullar, it was observed the ability of the author-adapter to work the adapted text aesthetically, to
elaborate it in a more accessible language, though keeping the original mark of the prototext.
Keywords: Language; Universal classics; Adapted text.
10
RESUMEN
En esta tesis se estudia el lenguaje de las adaptaciones de clásicos universales para
lectores iniciantes. La preocupación con la lectura para niños y jóvenes en Brasil se intensifica
con Monteiro Lobato - escritor, traductor, editor y el principal responsable de la divulgación de
obras canónicas, leídas anteriormente en sus idiomas de origen. En la investigación se observa la
importancia de la competencia lingüística del escritor, para que pueda desempeñar con eficacia el
papel de autor-adaptador, pues solamente obtendrá éxito en la tarea de verter un texto de una
lengua a otra, aquel que se disponga a buscar la índole de la “lengua de llegada”. Considerado
uno de los libros más representativos del canon occidental, Don Quijote de La Mancha, obra
elegida para nuestro análisis, es ejemplar en lo que concierne al trabajo con la lengua, ya que los
juegos semánticos, la selección léxica, los diferentes usos de niveles de lenguaje, entre otros
recursos, son excelentes y sirven de modelo a escritores principiantes. Por imposición del
corpus, se procura observar la obra en otros códigos. La saga del “caballero andante” ultrapasa
barreras, se impregna de los cómics, del cordel, de la música, de la poesía, de otros textos
literarios, etc. Como la tesis se basa en la tríade Lengua Portuguesa-enseñanza-lectura, se busca a
través del cotejo entre la versión integral de los Viscondes de Castilho y Azevedo y las paráfrasis
de Monteiro Lobato y de Ferreira Gullar, observar la capacidad del autor para trabajar
estéticamente el texto adaptado, elaborado en un lenguaje más accesible que mantiene, sin
embargo, la marca del original, del prototexto.
Palabras clave: Lenguaje; Clásicos universales; Adaptaciones.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 14
I. A LINGUAGEM: PONTO DE PARTIDA, PONTO DE CHEGADA ..............................
20
1. Clássico e seus conceitos: ponto por ponto....................................................................... 24
1.1 Modelo do bem escrever: linguagem e memória do cânone........................................... 31
1.2 Clássico e tradição: linguagem e memória construídas................................................... 33
1.3 Clássico e modernidade: linguagem e memória em construção...................................... 36
II.A LINGUAGEM: PONTO DE INTERSEÇÃO..................................................................
38
1.Clássico fundador da cultura ocidental: a Bíblia................................................................ 38
1.1Texto e intertexto: uma questão polifônica........................................................................ 43
1.2 Parábolas e alegorias: uma questão discursiva.................................................................. 46
III.A LINGUAGEM: PONTO DE INTERROGAÇÃO..........................................................
48
1. Clássicos na Escola: tradição e permanência..................................................................... 48
1.1 Linguagem babélica: a tradução possível......................................................................... 51
1.2 Linguagem parafrástica: a adaptação necessária.............................................................. 56
2. Clássicos adaptados: forma e conteúdo em questão.......................................................... 58
2.1 Nas dobras da memória, na ponta da língua: Rei Artur, Robinson, Alice ...................... 68
2.2 Duelando com os moinhos: o porquê de Dom Quixote................................................... 71
IV. A LINGUAGEM: PONTO FINAL....................................................................................
75
1. Um clássico em múltiplas linguagens: possibilidades de representação do
Cavaleiro da Triste Figura.....................................................................................................
75
1.1 A imagem de Quixote na memória popular: a revista....................................................... 76
1.2 O Cavaleiro Andante e célebres pintores.......................................................................... 77
1.3 O Engenhoso Fidalgo nos poemas.................................................................................... 80
1.4 A saga quixotesca na música............................................................................................. 81
1.5 Dom Quixote e o burlesco das charges.............................................................................. 83
1.6 O clássico nas histórias em quadrinhos............................................................................. 84
1.7 O fidalgo cavalheiro por um fio: o cordel......................................................................... 88
2. Os "encantadores” nas adaptações literárias de Dom Quixote: recursos lingüístico-
discursivos...............................................................................................................................
99
2.1Quem conta um conto aumenta ou diminui um ou mais pontos: a língua como
instrumento de mediação...................................................................................................
101
3. “Soberana Senhora”: a língua nos planos léxico-semântico e morfo-sintático .............. 106
12
3.1 Dom Quixote das crianças, de Monteiro Lobato.............................................................. 106
3.1.1 Lugares-comuns: narrativas incomuns..................................................................... 116
3.1.2 Jogos com diferentes níveis de linguagem................................................................. 117
3.1.3 Formalismo de Dom Quixote: a língua a favor da imaginação.................................. 119
3.1.4 Termos arcaizantes: vestígio do barroquismo literário.............................................. 120
3.1.5 Coloquialismo de Sancho: a estilística dos provérbios.............................................. 121
3.1.6 Comparações como estratégia para a construção do cômico..................................... 123
3.1.7 Expressões metafóricas e sua dupla vertente: da fala popular e da fala culta........... 124
3.1.8 Antíteses e suas artimanhas........................................................................................ 126
3.1.9 Sinônimos voluntários: um reforço na expressividade............................................... 128
3.1.10 Repetições deliberadas, expressivas......................................................................... 129
3.1.11 Jogos de palavras: o engenho e a arte do escritor..................................................... 130
3.1.12 Artesania nos Nomes................................................................................................ 131
3.1.13.Ludismo e forma gramatical.................................................................................... 135
3.1.13.1 Os adjetivos nas malhas do burlesco........................................................... 135
3.1.13.2 O léxico e seus sortilégios........................................................................... 138
3.1.13.3 Um jogo interessant(íssimo) com o superlativo.......................................... 140
3.1.13.4 As onomatopéias: valorosa sonoridade ...................................................... 141
3.1.13.5 A formação verbal e o neologismo: humor e liberdade de criação............. 142
3.1.13.6 As quixotices dos gêneros e da negação enfática........................................ 143
3.1.14. Expressividade com a metalinguagem..................................................................... 143
3.2 Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar................................................................ 145
3.2.1 As vozes entrecruzadas............................................................................................... 147
3.2.2 A polifonia da voz narradora....................................................................................... 147
3.2.3 Quixote: a construção do personagem pela língua(gem)............................................ 149
3.2.4 A linguagem formal do fidalgo................................................................................... 150
3.2.5 A linguagem coloquial do Cavaleiro Andante............................................................ 150
3.2.6 A voz de Sancho: a voz do povo, seus provérbios e coloquialismos......................... 152
13
3.2.7 A voz que narra e a voz dos personagens................................................................... 153
CONCLUSÃO............................................................................................................................. 157
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 160
14
INTRODUÇÃO
E fez-se o homem pelo Verbo de Deus tornado palavra. É a palavra – ferramenta de nossa
comunicação diária – que nos impulsiona, que nos leva adiante. Buscar a palavra certa, a
expressão exata, é exigência de cada momento. A vida pulsa em “verbo”, até mesmo quando
silenciado, pois, de um lado, falam em nós as palavras adâmicas, fundadoras, antigas,
adormecidas em nossa memória; de outro, porém, estão as novas, as por proferir, aquelas em
processo de germinação, principalmente as que dormem em nossos discursos, tomadas por
empréstimos – conscientes ou não – do discurso do outro.
Dizem alguns escritores que muitas pessoas escrevem para escapar da solidão, para buscar
um encontro consigo mesmas, para encontrar-se com o imaginário...Tomo emprestadas, de Italo
Calvino, as palavras através das quais ele ensina que De certo modo, acho que sempre
escrevemos sobre algo que não conhecemos, escrevemos para dar ao mundo não escrito uma
oportunidade de expressar-se através de nós...
1
. Escrever este trabalho é, sem dúvida, uma
proposta de encontro – com minha infância, com as leituras que fiz, com as que gostaria de ter
feito, com minha trajetória de professora de Língua Portuguesa, com a palavra sagrada, comigo
mesma e com o outro que me habita travestido em signo.
Entre utopias seguimos... Esta tese é fruto de um sonho, ou melhor, de um desejo: estudar
a linguagem das adaptações de clássicos para leitores em formação.
Na década de 90 havia poucas publicações de clássicos adaptados para leitores iniciantes;
o tema é polêmico e controverso, sem dúvida. Existia, até então, uma corrente, bastante
prestigiada e de grande poder persuasivo, que se mostrava contrária a recontos em linguagens
mais “facilitadoras” para o público infantil/juvenil. Defendia, também, o ponto de vista de que a
obra canônica deve permanecer inalterada e só deve ser dada a ler ao leitor como foi concebida,
na íntegra. Devido a tal ideologia, os textos de autores nacionais ganharam espaço e quase
exclusividade nas escolas brasileiras durante algumas décadas.
Em nossa história da literatura, o destaque vai para Monteiro Lobato, que assume, no
início do século XX, o papel de mediador entre textos canônicos e leitores pouco proficientes nas
artimanhas da língua(gem) rebuscada e do estilo aristocrático das obras consideradas clássicas
1
Endereço eletrônico: o http://www.ricesu.com.br/colabora/n4/homenagem/index.htm
15
universais, como as que giram em torno das aventuras de Robin Hood, de Quixote e de outros
personagens. A década de 70 é um marco para a literatura infantil brasileira, que se apresenta
plena, exuberante. Entram em cena os “filhos de Lobato”, escritores como Ana Maria Machado,
Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Bartolomeu Campos de Queirós, Lygia Bojunga que,
confessadamente, seguiram as pistas deixadas pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo, espaço
democrático em que a polifonia era a principal característica, são ouvidas todas as vozes: a da
negra Nastácia, a dos personagens das histórias fabulosas, a das lendas e mitos nacionais e
estrangeiros.
A literatura brasileira produzida para os leitores iniciantes ocupou durante quase vinte
anos um espaço generoso nas escolas; os textos universais ficaram extra-muros. É sabido, porém,
que a história da leitura de cada indivíduo deve ser construída de forma plural. Alguns
professores reconheceram que a leitura de textos jornalísticos, a presença de gêneros variados nas
aulas e a exclusividade da literatura brasileira não era o suficiente para ampliar o conhecimento
enciclopédico do aluno. Percebia-se a limitação imposta a jovens que, talvez, tivessem na Escola
a única chance de entrar em contato com personagens que vêm atravessando fronteiras espaciais
e temporais.
Foi na década de 60 que a editora Tecnoprint (atualmente Ediouro) resolveu promover a
circulação de obras consagradas; ao lançar uma coleção de clássicos estrangeiros, trazia a público
um material bastante lucrativo, tanto para os editores quanto para os consumidores, no caso os
responsáveis pela compra do acervo escolar, espaço em que tais títulos deveriam circular, a
priori. Os autores convidados a escrever as adaptações eram escritores conceituados: Carlos
Heitor Cony, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Maria
Clara Machado...
As competências literária e lingüística dos adaptadores garantiriam o bom resultado do
trabalho. O objetivo era, sem dúvida, tornar os textos mais concisos, mais “leves”. Somente
escritores experientes poderiam recontar as narrativas tradicionais sem, contudo, banalizá-las.
Sabiam reconhecer-lhes o valor estético. Por isso, mantiveram-se, sempre que possível, fiéis ao
artista, ao texto primeiro, ao texto de linhagem, como diz Foucault em A ordem do discurso
(1996).
O que nos move na pesquisa, como já dito, é a linguagem, em geral; e a palavra,
em particular. Clássico é a primeira palavra que nos interroga, a fonte desta tese, que busca
16
entender tal conceito e a relação entre ele e a linguagem que o engendra. Por que um texto é tido
como clássico? Há uma linguagem própria para a literatura? Há realmente a necessidade de
adotar uma linguagem diferente para que a obra atinja maior número de leitores? Eis algumas das
questões que levantaremos no decorrer do trabalho.
Clássico nos levou longe: aos textos bíblicos. Considerada clássico dos clássicos,
a Bíblia é o livro mais lido no mundo ocidental. O discurso fundador em que se forjou o discurso
divino é a base ideológica de uma comunidade, quer religiosa quer agnóstica. O discurso
religioso, travestido em parábolas de Cristo, reforçou no povo do ocidente o gosto pelas
narrativas. Contar e ouvir histórias, dizer-se através de palavras, isto é o que diferencia o homem
dos outros animais. Dos textos bíblicos muito poderíamos dizer, principalmente se tomássemos o
conceito de intertextualidade. O diálogo com a palavra inspirada é recorrente e vem atravessando
séculos. Da mais simples conversa de nosso cotidiano ao mais elevado trabalho literário, muitos
são os discursos que se apropriam de alguma sabedoria passada por aqueles textos – sagrados
para uns, históricos para outros – a fim de produzir determinado efeito de sentido. Sabe-se que,
em muitos lares, o único livro existente era (é) a Bíblia Sagrada que, em tempos antigos, era lida,
em voz alta, diariamente em grupo, com a família reunida. Não se pode deixar de reconhecer,
portanto, o valor literário das Escrituras.
Se clássico é o texto que nunca terminou de dizer o que tem para dizer, como ensina
Calvino (1993), a Bíblia se encaixa perfeitamente na definição. Ela e outros tantos livros
poderiam desfilar ao longo das páginas desta pesquisa. Os limites, porém, determinam caminhos
e escolhas, bastante difíceis, visto que selecionar é também rejeitar. Escolher alguns títulos
significava deixar de fora outros. A decisão foi tomada, tendo Dom Quixote vencido a peleja. Por
ser o segundo livro mais lido no ocidente – perde apenas para a Bíblia – e por ser um dos
trabalhos mais bem realizados por Monteiro Lobato em matéria de adaptação, o livro de
Cervantes foi escolhido para corpus da tese. Outro fator concorreu para que a obra figurasse
como protagonista dos dados analisados: o quarto centenário do livro em 2005 contribuiu para
que, no mundo inteiro, houvesse grande movimento editorial; muitos livros (re) lançados, várias
adaptações escritas, recontos em diferentes linguagens... Como não reconhecer o valor literário
do Quixote na pena de Ferreira Gullar (2002)! Como não se encantar com o traço do quadrinista
Caco Galhardo (2005), ao levar para a história em quadrinhos Quixote, Sancho etc.! Como não
se deleitar com a paródia de J. Borges e Jô Oliveira (2005) no Quixote em cordel!
17
O caminho escolhido para estudar o amplo universo das adaptações de Dom Quixote foi a
análise de parte do material disponível em discos, em fitas, em livros, em charges... Precisou-se
delimitar, dentro do possível, o espaço ocupado pelo personagem cervantino no imaginário e na
cultura populares. A seguir, o foco voltou-se para as obras cifradas em língua portuguesa. O
ponto de partida foi o livro traduzido pelos consagrados viscondes de Castilho e Azevedo (1876-
1878), obra tradicional, reconhecida pelo rigor e pelo estilo apurado; fonte para o reconto de
Monteiro Lobato, fato comprovado na passagem Mas você devia respeitar esta edição que é rara
e preciosa. Tenha lá as idéias que tiver, mas acate a propriedade alheia. Esta edição foi feita em
Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de
Castilho e pelo Visconde de Azevedo.(Dom Quixote das crianças: 2004, p.9).
Existem ótimas traduções brasileiras, porém não foram utilizadas; primeiramente porque
nos afastaríamos do objetivo da pesquisa – cotejar a tradução (texto integral) com a respectiva
adaptação, a fim de observar o trabalho com a linguagem; depois, porque as traduções brasileiras,
reconhecidas pela crítica, só foram publicadas após nossa escolha do tema. Em 2002, Sérgio
Molina apresenta a primeira tradução bilíngüe da obra de Cervantes no Brasil; tem o trabalho
condecorado, em 2004, com o 3
o
lugar no prêmio Jabuti, na categoria “Tradução”. Em 2005,
Carlos Nougué, em parceria com o espanhol José Luis Sanchez, traduz o texto de Cervantes; a
obra também recebeu premiação – 7
o
lugar – pelo júri do “Jabuti” em 2006.
Curioso é saber que em Portugal a primeira tradução de Dom Quixote só aconteceu em
1794. Na França, o livro foi traduzido em 1612; na Inglaterra, em 1614. Os estudiosos atribuem o
“atraso” em terras lusitanas à semelhança entre as línguas dos dois países. Para os portugueses, a
leitura do original de Cervantes não apresentava maiores dificuldades.
Na década de 50, é lançada pela editora Bertrand a tradução feita por Aquilino Ribeiro; a
obra não teve, contudo, a consagração necessária para desbancar a dos viscondes.
Vale lembrar, ainda, a tradução brasileira feita por Almir de Andrade e Milton Amado. O
texto, publicado pela editora José Olympio em 1952, tornou-se valioso pelo prefácio escrito por
Luiz da Câmara Cascudo. O Quixote de Gullar (2002) estampa na capa a palavra “tradução”,
porquanto o poeta afirma ter escrito a paráfrase/ a adaptação a partir do original, em espanhol.
O passo seguinte levou-nos em direção ao confronto entre o texto dos viscondes –
tradução integral do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha – e os que se publicaram de
18
forma compactada, com o propósito de diminuir o grau de dificuldade da linguagem, a fim de
possibilitar a recepção da obra por leitores em formação.
Para as reflexões e análises lingüístico-discursivas, nos ajudarão os pressupostos teóricos
de Merleau-Ponty, de Foucault, de Barthes, de Bakhtin, de Kristeva, principalmente os conceitos
de linguagem, discurso, dialogismo, polifonia, intertextualidade, interdiscursividade. Outros
caminhos dos estudos da linguagem vêm em nosso auxílio: recorreremos à semântica e à
estilística para observar alguns recursos léxico-sintáticos e destacar aspectos fônicos,
morfológicos capazes de conferir à obra adaptada valor estético.
Buscaremos a literatura teórica sobre leitura e ensino, uma vez que esta pesquisa transita
pelas veredas da Escola, lugar da educação formal, espaço da leitura e da escrita, em que os
textos canônicos reinam absolutos; espaço em que, talvez, o indivíduo tenha a única chance de
deparar com personagens consagrados como Ulisses e Penélope, Quixote e Sancho, Romeu e
Julieta, Sherazade e Shariar, Peer Gynt, Cyrano de Bergerac entre outros...
Observar a artesania com a palavra na árdua tarefa de recontar uma história, sem que o
escritor-adaptador se deixe levar apenas pelo decalque, sem tornar a linguagem redutora; dar ao
mediador da leitura condições de reconhecer os diferentes trabalhos em múltiplas linguagens
sobre o mesmo tema, de modo que a seleção e a indicação da obra possa acontecer de maneira
criteriosa, observando-se o perfil do público-alvo; eis nossa proposta. Cada professor,
bibliotecário, pai, mãe, responsáveis em geral por apresentar os clássicos a crianças e jovens,
deve conhecer os diversos modos de se contarem as histórias.
É lícito dar a ler as obras adaptadas? Como reconhecer uma boa adaptação? Os recontos
servem à tradição e à permanência do clássico? Estas são algumas de nossas indagações.
A pesquisa acompanhará dentro do possível as trilhas do gênero textual a que se alinha
uma tese. Partindo de um arcabouço teórico sobre linguagem/língua, rumaremos em direção aos
textos adaptados. Antes, porém, há que se recorrer a teorias sobre obras canônicas. Como se
escolhem as que merecem figurar no cânone? Buscaremos, por meio de entrevistas e
questionários, argüir alunos de Letras, professores, a fim de saber o que consideram clássico.
O foco da pesquisa, entretanto, é mesmo o estudo da língua que aparece nas adaptações.
Para isso deveremos: a) observar a seleção lexical feita pelo autor-adaptador; b) perceber a opção
que ele faz pela língua formal ou informal; c) avaliar se o reconto caminha pela paráfrase ou pela
paródia. Para que tais metas sejam alcançadas é imperioso um trabalho de leitura e releitura das
19
diferentes adaptações. O cotejo entre o texto integral e as respectivas adaptações é o método
principal da análise.
Acreditamos na relevância desta pesquisa por reconhecermos a necessidade de um estudo
mais aprofundado dos inúmeros textos que surgem no mercado editorial – muitas vezes sem
qualidade literária, sem valor estético. Um leitor comum, dificilmente, saberia avaliar, diante de
tantas ofertas, o texto bem elaborado, bem escrito; um texto que, mesmo bebendo na fonte do
clássico, não se apequena e impõe sua identidade; um texto que reverencia o original, mas que
marca um novo território – o de clássico do clássico – e lá se coloca, permanecendo.
20
I. A linguagem: ponto de partida, ponto de chegada.
A perfeição da língua é de fato passar despercebida
Merleau-Ponty
2
A escolha do filósofo Maurice Merleau-Ponty para iniciar a reflexão sobre linguagem
deve-se ao interesse que nos move nesta pesquisa: a língua, como estratégia discursiva, como
suporte de ideologia, como mediadora de atividades interacionais.
Tomando como ponto de partida o livro A prosa do mundo (2002), nosso olhar voltar-se-
á, nesta seção do trabalho, para os postulados deste professor da Sorbonne e um dos mais
importantes filósofos do século XX. Merleau-Ponty faleceu em 1961, aos 53 anos de idade. O
livro, publicado postumamente, ainda na década de 60, revela as idéias do autor sobre linguagem;
consideradas de grande importância, nelas encontramos eco para nossas crenças.
O que chama a atenção para as idéias apresentadas é a acuidade demonstrada em relação
aos “mistérios” da linguagem. Para o filósofo francês, uma língua pode assinalar o que não foi
visto. Mas só pode fazer isso porque o novo é feito do antigo. (Op.cit, p.23).
A afirmação vem-nos ajudar a compreender o fenômeno lingüístico que orienta os
diferentes modos de contar a saga dos heróis clássicos, uma vez que toda significação nova parte
de “significações-chave”. Ao apreender uma língua, toma-se posse do mundo, inicia-se o
processo de significação. É a língua que nos permite exprimir um número indefinido de
pensamentos ou de coisas com um número infinito de signos escolhidos. (idem, p.24).
A língua, como potencialidade, traz em si o germe de todas as significações possíveis.
Precisa-se apenas encontrar a frase feita que habita o “limbo da linguagem” e captar as palavras
secretas que cada ser murmura.
Para Merleau-Ponty:
Quem fala ou quem escreve está inicialmente mudo, voltado para o que ele quer
significar, para o “que vai dizer”, de repente o fluxo das palavras vem em socorro
desse silêncio. (ibidem, p.26)
Desde sempre muitos estudiosos buscam explicações para o fenômeno essencialmente
humano: competência lingüística. Pesquisam-se as origens da linguagem humana. Fala-se em
linguagem adâmica. Busca-se a protolíngua. Investiga-se a língua pré Babel... Deixemos, todavia,
esta investigação para outros pesquisadores.
2
Merleau-Ponty:2002,p.32.
21
A verdade é que a língua está aí com seu vocabulário, com suas formas, com seus torneios
e arquiteturas. É para ela que nossa atenção se volta nesta jornada. Como Merleau-Ponty,
acreditamos que ela é tesouro de tudo que se pode ter a dizer. Nela já está escrita toda
experiência futura. Ela responde sempre ao apelo e presta-se a exprimir tudo.(p.26).
A língua, bem simbólico do ser humano, torna-o capaz de compreender seu semelhante,
porque sabemos de antemão o sentido das palavras que nos foram dirigidas. Segundo a linha
teórica aqui apresentada, só se compreende o que já se sabia (p.28). O ato comunicativo e
interpretativo é, pois, de (re)conhecimento. Só posso (com)preender um romance enquanto
gênero textual porque tenho posse da competência genérica; só posso entender aventuras
quixotescas porque conheço romances de cavalaria – reapresentados por Cervantes nas páginas
que contam a saga do fidalgo de la Mancha. E este raciocínio pode ser ampliado para outros
campos, como, por exemplo, para os estudos lingüísticos propriamente ditos; reconheço um
neologismo (quixotar) como verbo, porque domino o paradigma dos verbos na Língua
Portuguesa.
Digno de destaque nos estudos de Merleau-Ponty é o fato de que existem, a serviço da
expressão, duas linguagens: a “falada” e a “falante”. A primeira desaparece diante do sentido do
qual é portadora; a segunda se faz no momento da expressão. O processo vai do signo ao sentido.
Quando o falante sabe expressar-se, a interlocução ultrapassa os signos – constituídos de
significante e significado – para ancorar-se no sentido, produzido pelo contexto. Vale voltar à
epígrafe com o propósito de recuperar a idéia-chave do teórico que nos guia. A língua “perfeita”
é capaz de nos projetar para longe das palavras. O triunfo da linguagem é apagar-se e dar-nos
acesso para além das palavras. (p.32).
Eis o mistério da linguagem: é a partir do todo que compreendemos cada frase. À medida
que sou cativado por um livro não vejo mais as letras nas páginas. (p.31).
Um grande livro fica em nossa lembrança de forma compactada, como um todo
indissolúvel. Isto é instigante e aparentemente paradoxal. Se um texto me seduz porque o
conteúdo é atraente, sou arrebatado e afetado por intermédio da linguagem em que se forja tal
conteúdo. Quanto mais elaborada – no sentido mesmo de labor, de trabalho – for a linguagem da
obra, mais prazer estético provoca no leitor, como nos ensina Roland Barthes em O Prazer do
texto: ele [o texto] produz em mim o melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente; se,
22
lendo-o, sou arrastado a levantar muitas vezes a cabeça, a ouvir outra coisa. (1973: 35). Pode-
se dizer que este é um processo de autodescoberta de si.
O desafio nesta pesquisa é buscar na lingua(gem) marcas capazes de revelar em que
medida o autor foi exímio estrategista e mostrou competência para produzir um texto segundo os
pressupostos apontados por Merleau-Ponty e por Barthes. Em outras palavras, como fazer, por
meio de palavras (imagens), com que um texto mobilize o interlocutor a ponto de nada mais na
obra nos deixar indiferentes. O livro deve instalar-se em nós, em nosso mundo.
Somente um exercício nos leva a “desler” as linhas para ler as entrelinhas, como ensina o
poeta Mário Quintana (Educação, Caderno H). É preciso “desmontar” o brinquedo, como nos
tempos da infância, a fim de tentar entender seu funcionamento. O prazer de leitor
“descompromissado” dará lugar a outro tipo de prazer: ao do investigador, ao do leitor que volta
ao lugar conhecido em busca de detalhes, de explicações, de justificativas. Muitos porquês
ficarão sem respostas; outros encontrarão soluções possíveis; este é o percurso do pesquisador. É
impossível dar conta de todo o conhecimento, sabemos. Um fio, porém, junta-se a outro para
compor a trama que se tece no tear das investigações científicas. Uma pesquisa soma-se a outra
que virá unir-se à seguinte...
Nossa contribuição pretende seguir pelas trilhas lingüístico-discursivas, pelas quais
caminharam autores que se propuseram a recontar as aventuras de um dos mais famosos
personagens da literatura universal: o Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. A língua –
foco desta tese – será observada, principalmente, pelo binóculo da estilística e da análise do
discurso. Seria a lingua(gem) elemento de suma importância para a manutenção de um texto tão
tradicional como Dom Quixote? Ou o suporte teria maior responsabilidade pela divulgação de
uma obra que atravessou quatro séculos? Quixote permanece em nossa memória porque conta
uma história (ou várias histórias)? A língua de Cervantes é sedutora a todas as gerações, em todas
as épocas? O que dizer das traduções e das versões da obra espanhola? A intervenção do
adaptador colabora para manutenção de um clássico?
Não é nossa pretensão responder a todas as perguntas do parágrafo anterior, tarefa por
demais difícil para uma única tese. Elas mostram tão-somente por onde caminham nossas
inquietações.
O objetivo da pesquisa é observar a lingua(gem) de versões do texto de Miguel de
Cervantes de Saavedra escolhidas pela eficácia no uso de signos e ícones. Queremos, pelo estudo
23
da língua principalmente, refletir a respeito do processo de um trabalho que se pretende novo,
embora partindo do antigo, observando de que maneira o autor-adaptador procura ajustar seu
discurso ao discurso do interlocutor do texto adaptado.
É pela língua(gem) que me comunico. Se quero comunicar-me com o outro, primeiro
preciso de uma língua que nomeie as coisas visíveis a mim e a ele (Merleau-Ponty, p.42 ).
Foucault, em A palavra e as coisas, afirma que O mundo está coberto de signos que é
mister decifrar (1966:54). Para ele, conhecer é interpretar. Foucault diz também que a
linguagem é lugar das revelações; é espaço em que a verdade se manifesta, se enuncia (p.59).
Introduz-se neste ponto o conceito bakhtiniano de dialogismo – interlocutivo e
interdiscursivo – que muito nos vale quando pensamos na linguagem das adaptações de clássicos
para jovens. A idéia de alteridade destacada nas últimas décadas contribuiu bastante para os
avanços no que concerne aos estudos lingüísticos. O valor que se dava ao texto passou a ser
dividido com o interlocutor da obra. Os efeitos de sentido são produzidos também no momento
da recepção – defendem os que seguem esses postulados. Destaca-se hoje, pelas teorias do
discurso, o relevante papel do receptor. Fala-se em público-alvo, em leitor implícito, em leitor
modelo... As relações dialógicas são estabelecidas, também, entre todos os enunciados
produzidos sobre o mesmo objeto.
Enfim, reafirma-se o que disse Merleau-Ponty: A leitura é confronto entre os corpos
gloriosos e impalpáveis de minha fala e da fala do outro. (p.35)
Vale mencionar o valor do corpo na obra de Maurice Merleau-Ponty. Para o filósofo, o
corpo é visto como mediador de nossa relação com o objeto. Em nota de Marilena Chauí, no livro
Textos escolhidos de Maurice Merleau-Ponty (1984), da coleção Os Pensadores, encontramos o
ponto central do pensamento merleau-pontiano: a reflexão não é um evento que ocorra no
pensamento mas é um ato corporal. (Chauí, in Merleau-Ponty, p.137).
Destacamos da obra citada as seguintes passagens:
Cada ato de expressão literária ou filosófica contribui para cumprir o voto de
recuperação do mundo, voto pronunciado com a aparição de uma língua, isto é, de
um sistema finito de signos que, em princípio se pretendia capaz de captar todo ser
que se apresentasse. (p.139)
O escritor, como tecelão, trabalha às avessas:
preocupa-se unicamente com a linguagem e em sua trilha vê-se de repente rodeado
de sentido (...) O escritor instala-se por entre signos já elaborados, num mundo
24
falante, e de nós nada requer a não ser uma capacidade de reordenar as
significações conforme indicação dos signos que propõe. E se a linguagem
exprimir tanto pelo que fica entre os vocábulos quanto por eles mesmos? Pelo que
“não diz” quanto pelo que “diz”? E se houver, oculta na linguagem empírica, uma
linguagem à segunda potência, onde de novo os signos levem a vida vaga das
cores e as significações não independam de todo do comércio dos signos?
(p.145).
1. Clássico e seus conceitos: ponto por ponto
A palavra clássico é recorrente na vida intelectual dos homens, todavia as divergências
são inúmeras quando buscamos definição (limites) ou conceituação (avaliação) daquele termo.
É a seguinte a etimologia apresentada no dicionário Houaiss:
lat. classìcus,a,um 'que pertence à primeira classe, que é de primeira ordem, de
elite', der. de classis,is 'classe'; inicialmente, classìcus era o cidadão que, por sua
riqueza, pertencia à 1ª das cinco classes em que a reforma censitária atribuída a
Sérvio Túlio (578-535 a.C.) teria dividido a população de Roma; Aulo Gélio,
gramático e crítico latino do sII d.C., já usa a expressão classicus scriptor para
designar o escritor que, pela correção da linguagem, pode ser considerado de 1ª
classe, de 1ª ordem; essa idéia ganha corpo entre os eruditos alexandrinos, que
selecionaram os escritores greco-latinos considerados modelares; nos sXVII-
XVIII, embora se mantivesse o sentido de escritor modelar, em Sebillet (1512-
1589), p.ex., classìcus é o autor lido e comentado nas escolas, sentido que se
originou no b.-lat., quando o vocabulário foi associado às classes escolares; no
sXIX, clássico perde o sentido ligado a 'autor modelar, autor estudado nas escolas'
e passa a indicar corrente estético-literária; cp. classicismo; ver
class-
Da etimologia cruzam-se duas definições latinas:
(i) Clássico é o escritor notável pelo magnífico trabalho com a linguagem. Ser um autor clássico, neste
caso, é ser um bom autor, é ser escritor que domina a língua. Nesta linha de pensamento, seriam clássicos
os antigos, assim como os modernos; mesmo aqueles não lidos na escola;
(ii) Clássico é o escritor lido nas classes, como um modelo de boa linguagem. Por este viés, Rui Barbosa
não é clássico, pois seus textos não aparecem em livros didáticos.
Ser clássico é utilizar com perfeição a língua; é escrever com propriedade, com elegância.
Em 1535, escreve o professor doutor Diogo de Gouvêa, docente em Paris: Em imitar hos
25
escriptores de boa lingoagem, apreciados por sua pureza, e por isso chamados classicos, he que
aprendemos os segredos do bem escrever [sic]. (Apud Assis Cintra: 1922:10).
Segundo Assis Cintra, para que um escritor possa ser apontado como clássico, necessita de
várias qualidades que assegurem a pureza do falar, a elegância da expressão, a propriedade do
vocabulário, a simplicidade da idéia, a nitidez da observação. (idem, p.16). Cintra, quando fala
das qualidades de um clássico, reporta-se a três ilustres escritores em séculos diferentes:
(i) Padre Antonio Vieira, em Vida de S. Domingos, aponta as qualidades de um clássico:
3
O estilo claro com brevidade, discreto sem afetação, copioso sem redundância, e
tão corrente, fácil e notável que, enriquecendo a memória, e afeiçoando a vontade,
não cansa o entendimento... – dizendo o comum com singularidade, o semelhante
sem repetição, o sabido e vulgar com novidade e mostrando as coisas (como faz a
luz) cada uma como é, e todas com lustre.
(Assis Cintra, 1922:17)
(ii) No século XVIII, José Freire, referindo-se também às qualidades de uma obra clássica,
sintetiza: [...] abundância de termos cheios de propriedade e energia, a afluência de
expressões genuínas, nascendo tudo de um estilo claro e correto. (idem)
(iii) No século XIX, José Vicente Gomes Moura também nos ensina:
Para que na linguagem se dê a clareza cumpre: primeiro, que as palavras se liguem
sempre por todas as noções fixas e bem determinadas; segundo, que se fixe o
número das significações de cada um daqueles vocábulos que podem ter muitas;
terceiro, que nela haja a maior regularidade possível na derivação e composição
dos vocábulos, na sintaxe a colocação dos mesmos, e portanto nas inflexões dos
vocábulos declináveis. – É
copiosa a linguagem que não carece do cabedal de
vocábulos necessários para fins sobreditos; e que quando lhe falte possa supri-lo
antes do seu próprio fundo que recorrendo às línguas estranhas. – Será breve,
quando exprima o maior número de idéias pelo menor número de vocábulos. –
Corrente ou fluida, quando for de pronúncia tão fácil que fatigue o menos possível
o órgão oral de quem fala; e os sons simples de cada palavra possam ser
distintamente percebidos por quem ouve, depois de distintamente percebidos por
quem fala. –
Viva, quando retratar com a maior viveza as imagens dos objetos, e
com a maior sensibilidade os sentimentos do espírito;
versátil quando tiver cabedal
apto para todos os estilos (idem, p.18)
Inúmeras definições sobre os clássicos poderiam desfilar ao lado das apresentadas pelo
dicionário, ou pelo viés da qualidade do texto considerado clássico.
3
Optou-se por atualizar a linguagem, a fim de facilitar a leitura do texto, escrito em 1922, e que se remete a outros anteriores.
26
O escritor Italo Calvino é, porém, o mais citado em qualquer estudo sobre o tema. Sua
obra consagrada Por que ler os clássicos (1993) aparece como referência em todas as listas das
pesquisas cujo assunto seja a leitura de obras que se perpetuaram através dos tempos.
No primeiro ensaio, o crítico busca uma definição para clássicos. O que ele oferece ao
leitor, para surpresa deste, é um leque de definições; são 14 tentativas de pôr em palavras um
conceito bastante complexo:
1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer:
“Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”.
2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas
constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores
condições de apreciá-los.
3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e
também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo e individual.
4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.
5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.
7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a
nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente
na linguagem ou nos costumes).
8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas
continuamente a repele para longe.
9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se
revelam novos, inesperados, inéditos.
10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos
talismãs.
11. O “seu” clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e
talvez em contraste com ele.
12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele,
reconhece logo o seu lugar na genealogia.
13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não
pode prescindir desse barulho de fundo.
14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.
Cada leitor certamente tem a sua definição de clássico, como tem o seu livro-clássico
preferido. Elas não se afastariam, no entanto, de algumas das apresentadas por Calvino.
Com o objetivo de comprovar a hipótese de que leitores mais ou menos proficientes
trazem consigo um conceito de clássico muito semelhante, uma vez que foi disseminado por uma
27
ideologia dominante, realizou-se uma pesquisa no ano de 2006 com alunos universitários. Dos
questionários, foram colhidas algumas definições sobre o termo.
Alunos de graduação da PUC-Rio, do curso de Letras (30), de Informática (15), de
Engenharia (30); alunos de pós-graduação do curso de Letras da Faculdade de Filosofia Santa
Dorotéia (27) receberam uma folha (em anexo) em que havia 10 questões sobre os clássicos. Vale
ressaltar que o grupo da FFSD é formado, em sua maioria, por professores de Língua Portuguesa
e de Literatura. Na pesquisa, contudo, são considerados alunos.
O resultado mostrou que, em algumas áreas (informática e engenharia), boa parte dos
entrevistados-graduandos afirmam não ter um clássico (universal) preferido, pois a bagagem de
leitura do jovem não contempla tais obras. Outros (alunos de Letras), todavia, revelaram
dificuldade para escolher um título, pois elegeram vários clássicos como prediletos. Já alguns
alunos-professores, pós-graduandos, apontam os clássicos universais – a Ilíada, Os Lusíadas,
Romeu e Julieta, Madame Bovary, os Contos de Grimm – como seus preferidos; grande parte
deste grupo, entretanto, ficou restrita à literatura nacional; surgem, então, os livros de Machado
de Assis, de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, como os escolhidos.
Muitos apontaram dois ou três títulos como “seu clássico preferido”. É digno de nota o fato de
ninguém citar obras poéticas como clássicas.
Definir um clássico, contudo, não foi difícil para os jovens universitários de qualquer
área. Vejamos algumas definições que eles apresentam:
Aluno1: Obra literária renomada e tradicional. Tal conceito é atribuído pela
comunidade literária, pelos leitores e pela crítica.
Aluno 2: É um livro que perdura atualizado no tempo.
Aluno 3: É a obra aceita pelos especialistas como parte da literatura que
influenciou o pensamento de uma sociedade.
Aluno 4: Clássico possui uma qualidade acima da média das demais obras,
agrada grande parte do senso comum e é eternizado.
Aluno 5: Livros que marcam uma época e são tomados como referência.
Aluno 6: Um livro conhecido, em linguagem culta.
28
Aluno 7: Obra que tem valor universal independentemente da época em que
foi escrita.
Aluno 8: Clássica é toda obra que causa ao leitor uma certa estranheza, por
fugir do lugar-comum e por inovar a linguagem e a visão de mundo.
Aluno 9: É uma obra que desperta infinitas possibilidades de interpretação –
todas complexas, elucidativas, relacionais.
Aluno 10: Considero clássico o que atravessa uma época e continua sendo
lido, ouvido, estudado.
Aluno 11: Clássico: é uma obra literária cuja construção perdura por longos
anos como modelo; seu conteúdo é alvo de estudos ao longo da
história.
Aluno 12: Clássico, de acordo com a origem da palavra, vem de classe, isto é,
os livros eram dados nas classes da escola. Hoje clássico é uma
obra de reconhecido valor estético que se perpetua através dos
tempos.
Aluno 13: Uma obra que teve grande importância no processo artístico de sua
época, a ponto de tornar-se uma fonte de referência básica para um
estudo diacrônico, ou para uma formação erudita.
O grupo de alunos repete, em geral, um discurso pronto, ouvido na escola e na família,
provavelmente. Muitos deles, porém, não são leitores de obras clássicas. Dos citados acima,
quatro não apontaram o clássico preferido; um escolheu a Bíblia; outro optou por Romeu e
Julieta; um outro aluno destacou Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Outros títulos
aparecem como resposta, pois os critérios do leitor para escolher seu livro predileto são bastante
subjetivos.
Vale comentar o quadro apresentado. Sem dúvida, a Bíblia, Romeu e Julieta e Reinações
de Narizinho merecem destaque pelo muito que representam. Shakespeare é um escritor
canônico, considerado pelo crítico Harold Bloom (2001) como centro do Cânone Ocidental; para
Bloom, somente Cervantes pode ladear Shakespeare.
A Bíblia foi durante muito tempo a leitura oficial e obrigatória em muitos lares; é texto
fundador, ainda hoje texto-base para muitos escritores. As obras do “bardo” ficaram
29
imortalizadas e continuam influenciando escritores até os dias atuais. Lobato, por sua vez, é o
clássico da literatura para crianças no Brasil, precursor desta linhagem.
Portanto, nossos leitores demonstram, pela escolha dos títulos, que adotam critérios
passados ideologicamente pelos discursos da sociedade. Não apontaram textos de escritores
contemporâneos, de autores desconhecidos; ficaram apegados à Tradição e ao material canônico.
Talvez porque não tenham bagagem de leitura para assumirem o lugar de críticos e expandirem o
cânone, ou porque ficar ao lado da unanimidade é mais seguro.
O questionário aplicado à turma de Engenharia da PUC-Rio (curso Compreensão e
produção do texto técnico) provocou uma reação inusitada: um aluno daquela turma –Tiago C.
Fernandes – ofereceu-se para investigar junto a duas turmas de 4
a
. série, para as quais ele
ensinava Matemática, o conhecimento do grupo sobre Dom Quixote. Os resultados (em anexo)
mostram que a maioria dos 40 alunos consultados – quase todos na faixa de 10 anos – revelaram
desconhecer o personagem de Cervantes; quando o conhecem, o contato foi feito pela televisão,
através do programa O Sítio do Picapau Amarelo, que sofreu inúmeras críticas das crianças.
Vejamos algumas respostas dos alunos para as perguntas “Você conhece Dom Quixote?
Como ficou conhecendo?”:
Aluno1 Sim. Porque escutei na entrada do programa do Sítio do Picapau
Amarelo: “Vamos para o mundo de Dom Quixote”.
(Vitória Oliveira,11 anos). Ela acha o programa horrível, porque é
muita criancice.
Aluno 2. Sim. Por textos muito legais que a minha professora entrega em sala
de aula” (Moniky D. da Silva, 10 anos).
Aluno 3. Sim. Ouvi dizer na televisão que ele é o protetor das crianças e que a
espada dele pode até parar um carro.” (Matheus Mesquita, 10 anos).
O menino mostra ser leitor da obra de Monteiro Lobato; cita O
Minotauro, A chave do tamanho e As reinações de Narizinho. Conhece
os personagens de Lobato de livros e pela televisão; Matheus afirma
gostar muito do Sítio do Picapau Amarelo “porque tem muita aventura,
é criativo, e porque a leitura fortalece o português das pessoas”!.
[grifo nosso]
30
Passemos, a seguir, a observar os dados fornecidos por professores:
Grupo I, formado por professores da rede municipal de ensino, responsáveis pelo
trabalho em Salas de Leitura que atendem a leitores de diferentes níveis de escolaridade, da CA à
oitava série.
Professor 1 Clássicos são livros reconhecidos internacionalmente e de
linguagem por vezes sofisticada.
Professor 2 É o que possui beleza e graça e perdura através dos tempos.
Professor 3 Um texto de conhecimento (pelo menos parcial) dos leitores de
literatura. Textos bastante conhecidos e utilizados por estudiosos.
Professor 4 É o que não passa, não fica esquecido, é lembrado de geração
em geração”
Professor 5 É história que surgiu em outro século e é escrita, conhecida e
contada até hoje.
Grupo II: Professores de Língua Portuguesa (todos mestres/mestrandos). Para a pergunta
“O que clássico?”, encontramos estas definições:
Professor 1 “ É a literatura atemporal que veicula valores humanos universais e, por
isso, atravessa os tempos despertando o interesse dos leitores.”
Professor 2 “ É uma obra que, de algumas formas, serve de referência para outras
obras, possivelmente pela qualidade de sua produção, pelos ensinamentos que
transmite. Um modelo a ser seguido, aproveitado” .
Professor 3 “ Um clássico é um livro que nunca vou terminar de ler.”
Os professores chamam a atenção para (i) a universalidade de valores humanos, (ii) para o
caráter modelar e (iii) para a permanência das obras clássicas.
Quanto às outras perguntas, o quadro não se modifica muito: leram poucos clássicos
universais; até porque antigamente nas escolas era recomendada (obrigatória) a leitura de obras
de autores nacionais. Poucos leram Dom Quixote na versão integral; a maioria só o conhece por
filmes ou fragmentos da narrativa. Alguns títulos preferidos do grupo I: Romeu e Julieta, Rei
Lear, Odisséia, Bíblia, Gulliver, Robinson Crusoé, Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e
outras obras do universo infantil. No grupo II, citaram Alice no país das maravilhas, A
31
Tempestade, Madame Bovary. Nota-se que também não ousam ampliar o cânone; ou o conceito
de clássico leva imediatamente o leitor da pergunta para os séculos passados. O grupo ressalta a
intertextualidade da narrativa de Cervantes em outras obras, através das quais alguns chegaram
ao Cavaleiro Andante. Muitos leram e recomendam as adaptações, desde que estas mantenham o
máximo possível a estética do original e que tenham sido escritas por autores que demonstrassem
competência no trato da língua de uso literário, pois, segundo as opiniões recolhidas, a linguagem
deve-se adequar ao público-alvo, sem, porém, tornar-se reducionista.
Não poderíamos deixar de trazer a contribuição da consagrada escritora, com vasta
experiência no magistério na área de literatura, Ana Maria Machado. O livro Como e por que ler
os clássicos universais desde cedo, publicado em 2002, período em que as idéias para esta tese
começavam a tomar corpo, trouxe o argumento de autoridade de que necessitávamos. Diante de
muitos trechos do livro, nos reconhecíamos; parecia que Ana lera nossos pensamentos. Como
exemplo, transcreve-se a passagem O que interessa mesmo a esses jovens leitores que se
aproximam da grande tradição literária é ficar conhecendo as histórias empolgantes de que
somos feitos. (p.12).
Era isso que vínhamos fazendo nas “aulas de leitura” em turmas de ensino fundamental e
de ensino médio. Dar a ler as aventuras de Quixote, de Robinson Crusoé, de El Cid, de Ulisses,
do Rei Artur, mesmo que recontadas, era mostrar àqueles leitores em formação o grande tesouro
que herdamos e ao qual temos direito. E, com Ana Maria, dizemos: Direito e resistência são duas
boas razões para a gente chegar perto dos clássicos. Mas há mais. Talvez a principal seja o
prazer que essa leitura nos dá. (Op.cit, p.19).
1.1 Modelo do bem escrever: linguagem e memória do cânone
Basta passarmos os olhos por algumas definições sobre os clássicos e encontraremos em
muitas delas a ligação entre clássico e a arte de bem escrever. Clássico, para alguns, é referência
e modelo para quem deseja escrever corretamente, com estilo.
A quem cabe a responsabilidade de julgar uma obra e rotulá-la de clássica? Quais os
critérios para pertencer ao cânone? As repostas para tais perguntas estão na obra de Harold
32
Bloom: O cânone ocidental (2001). Segundo Bloom, a estranheza e um tipo de originalidade são
requisitos para tornar canônicos o autor e a obra. O ensaísta americano defende em seu livro a
autonomia da estética, pois literatura não é simplesmente linguagem; é também vontade de
figuração, o desejo de ser diferente, de estar em outro lugar (p.20), como nos ensina o autor no
prefácio do livro.
No livro de Harold Bloom, encontra-se a definição de Cânone:
palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam
uns com os outros pela sobrevivência, quer se interprete a escolha como sendo
feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica,
ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por
determinadas figuras ancestrais. Alguns partidários recentes do que se encara
como radicalismo acadêmico chegam mesmo a sugerir que as obras entram no
Cânone devido a bem-sucedidas campanhas de publicidade e propaganda.
(p. 27-28)
No Houaiss (2001), buscamos a etimologia da palavra:
Lat. canonìcus,a,um 'relativo a uma regra, a uma medida, relativo a uma
contribuição, canônico', do gr. kanonikós,ê,ón 'feito conforme as regras, relativo a
regras ou à teoria da música, relativo aos cânones da Igreja, relativo às regras do
cálculo'; para a acp. de orn, orig.obsc.; ver canon-; f.hist. sXV canoniquo, sXV
canonjco .
Canônico é, pois, o texto que segue regras. Ele vai também determinar as regras seguidas
pelos sucessores. Entende-se por regras, basicamente, o uso da língua. Saber usar as palavras com
força poética, ou seja, o autor deve fazer a junção dos seguintes elementos: domínio da
linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento; o artista deve buscar a
eficácia da palavra, a fim de conseguir um resultado de valor estético.
A obra que trabalha bem com os elementos destacados acima vai exigir releitura, sem o
que não se qualifica.
A leitura (releitura) dos clássicos deve ser, como nos ensina Ana Maria Machado (2002)
uma leitura crítica, porém amorosa, como se dialogássemos com certos idosos que trazem grande
bagagem de experiência, de sabedoria.
Muitos de nós, em algum momento, têm a curiosidade de saber como se forma o cânone.
Quem determina que tal livro é clássico? Quem aponta os critérios para uma obra ser alocada no
cânone ou ficar fora dele? A resposta parece óbvia a princípio: a classe dominante, a que tem o
poder de manipular os bens de uma sociedade, inclusive os simbólicos. A ideologia do poder
33
passa pela escola, pela imprensa, pela mídia. As listas dos livros eleitos por críticos são
publicadas e divulgadas em revistas e jornais. Antes, o valor da obra podia ser aferido pelas
citações em gramáticas e antologias. Havia um intercâmbio entre as gramáticas e os textos
clássicos, usados como modelo da boa escrita. O círculo se fechava: é clássico está nas
gramáticas; está nas gramáticas é clássico.
A formação de um cânone reflete sempre interesses de classe.” (Bloom, p.499)
Os cânones sempre servem indiretamente ao social e ao político e na verdade aos
interesses e objetivos das classes mais ricas de cada geração. É preciso capital para
cultivar valores estéticos.(idem, p. 39)
O crítico Harold Bloom apresenta uma lista em seu livro O cânone ocidental. Mais tarde,
em entrevista à revista Veja (2001), revela arrependimento de ter listado os títulos, pois, mesmo
assumindo que o Cânone Ocidental existe para impor limites, para estabelecer padrão de medida,
e que o conhecimento não pode prosseguir sem meria, Bloom admite um alto grau de
subjetividade na seleção das obras.
A língua é, sem dúvida, medida relevante, uma vez que nas obras clássicas, o discurso
literário é a estilização da língua geral, comum, com finalidade estética. Daí que saber utilizar os
recursos estilísticos da língua, realizar um primoroso trabalho discursivo é o que vai conferir à
obra – ao lado de um tema sedutor – o valor capaz de consagrá-la.
1.2 Clássico e tradição: linguagem e memória construídas
Há conceitos que se cristalizam através do tempo como verdades absolutas. Um deles é o
de “clássico”, noção polêmica que sofre um alargamento nos dias atuais. Ligar a palavra
“clássico” à palavra “tradição” é quase inevitável, pois a obra se torna clássica à medida que
sobrevive às marcas do tempo. Em outras palavras, clássico em literatura é o texto que dialoga
com leitores em diferentes épocas. Ele fica nas “dobras da memória” do leitor, forma o
imaginário de um povo, atravessa as barreiras geográficas e temporais.
34
Há consenso, parece, quando se afirma que a linguagem e a memória de uma geração são
construídas por meio de atos interativos. O homem se faz leitor de modo singular, ímpar; cada
indivíduo constrói sua história de leitura. Respeitadas as preferências pessoais, há, todavia, um
conjunto de textos que se entrecruzam na cadeia social, construindo, assim, o alicerce forte para
caminhos mais solitários durante a atividade leitora.
A memória guarda em si a lembrança e o esquecimento. Os que vivem em sociedade
letrada tomam contato com uma gama enorme de textos ao longo da vida, porém, somente alguns
permanecem vivos em nós. Por que não retemos todos os textos lidos? Isso nos remete a Adélia
Prado (1991), quando diz: o que a memória ama fica para sempre
4
. Então, podemos inferir que
nossa memória, seletiva por excelência, armazena o relevante e apaga o restante. Uma das
características marcantes de um clássico: permanecer na memória coletiva e ser imediatamente
reapresentado por meio da memória pessoal, quando solicitado.
O leitor das obras canônicas não tem, de início, liberdade para selecionar e construir seu
acervo mnemônico; a mediação da família e da escola acaba por interferir, ditando o que deve ser
lido, repetido, memorizado, enfim. A repetição, própria do ludismo infantil, acontece também nos
textos tradicionais; voltamos a eles do mesmo modo que a criança pede ao adulto para recontar
uma determinada história várias vezes. Embora saibam que vão sentir medo do Lobo Mau em
determinada passagem da história de Chapeuzinho Vermelho, as crianças não aceitam que o
contador salte esta passagem, pois precisam passar por aquela experiência novamente.
Algo semelhante acontece com nossas leituras dos clássicos. Voltamos a eles, mesmo
sabendo o desfecho. Quixote /Alonso Quejana morre ao final do segundo livro, mas nem por isso
deixamos de reler a obra-prima de Cervantes. Revisitamos o texto pelo desejo de sentir o
“prazer” de que fala Barthes, inclusive quando partilhamos a dor do personagem, quando nos
solidarizamos com o sofrimento do Cavaleiro da Triste Figura. O que nos move é, decerto, a
artesania da linguagem. O prazer do leitor consiste em perceber o quanto de epifania existe
naquele arranjo verbal. Quanta beleza e lucidez encontramos na linguagem rebuscada de Quixote,
mesmo nos momentos de desvarios! Quanta sabedoria nos passa Sancho Pança, em sua variante
lingüística menos formal! Eis uma das razões de tais obras permanecerem arquivadas na
memória.
4
Fragmento do poema “Para Zé”. In Poesia reunida
35
Nossa memória é construída. À medida que entramos em contato com a tradição, com os
textos seculares, vamos ampliando nosso acervo de leitor (das letras e do mundo). Os
responsáveis por formar e aumentar tal acervo, como sabemos, são as instituições. Daí a
importância da mediação. Podemos chegar aos personagens canônicos por diferentes caminhos,
mas é na Escola que deparamos com eles de fato. Nosso encontro com Ulisses é forte e
instigante quando lemos a Odisséia. Jamais esquecerá Penélope, tecendo durante o dia e
desmanchando o trabalho à noite, o leitor daquelas maravilhosas páginas de Homero. O exemplo
é bastante eloqüente, pois não são comuns, na sociedade, referências – quer na publicidade quer
na música etc.– da figura da mulher de Ulisses, assim como nos defrontamos com a dupla
Quixote e Pança, que entram para a memória do leitor, tanto pelas palavras (orais/escritas)
quanto por outros códigos e suportes.
Falar de memória não é simples, nem é o centro deste estudo, no entanto, cabe trazer à
cena Jacques Le Goff (1996) que, recorrendo a Piaget, nos ensina: o “comportamento narrativo”
é o ato mnemônico fundamental. Narramos para passar informações sobre acontecimentos ou
objetos que não estão diante dos olhos de nosso interlocutor. A narrativa tem, pois, a “função
social” como principal característica. Aqui intervém a linguagem, ela própria produto da
sociedade.
É a esta memória especificamente que nos referimos, quando falamos em memória
construída e memória em construção.
As narrativas orais e escritas ficam armazenadas na memória individual para, a seguir,
formarem a memória coletiva, uma vez que esta última é constituída da reunião de várias da
primeira. De boca em boca, de leitura em leitura, os textos fundadores e mantenedores do cânone
chegam até nossos dias. A escrita, sem dúvida, muito contribuiu para perpetuar a tradição. Forte
aliada da memória, é mais duradoura. Hoje, os recursos eletrônicos também contribuem, e muito,
para a memorização do que nos é informado. Quem escreve, quem grava, quem conta, afinal, os
gestos da humanidade é quem tem autoridade para isso, é aquele que domina as principais
instituições (família, igreja, escola, mídia). São esses os responsáveis pelo que fica gravado. Aqui
cabe lembrar que história e memória caminham de mãos dadas. A história, que também é
discurso, abastece nosso imaginário, nosso banco de dados com o qual desenvolvemos nossa
memória.
36
Voltamos a Ana Maria Machado, que sugere a leitura dos clássicos universais
desde cedo, mas alertando seus leitores para o caráter subjetivo das indicações
Nenhuma lista de livros fundamentais, porém, vale coisa alguma se não for
acompanhada por uma discussão honesta sobre o chamado cânone literário. Ou
seja, a própria listagem. Por que esses títulos e não outros? Por que considerar que
justamente esses livros são essenciais e não levar em conta outras obras? Por que
tantos autores homens? Tantos brancos? Tantos europeus? Por que sempre esses?
Por que não fazer outra lista, um cânone alternativo? (p.132).
1.3 Clássico e modernidade: linguagem e memória em construção
As perguntas feitas por Ana Maria Machado nos ajudam a refletir sobre permanência e
alteração do cânone. Para tanto, nos orientamos, primeiramente, pelas idéias de Wolfgang Iser,
que em O ato da leitura (1996) chama a atenção para o fato de que a obra literária tem dois
pólos que podem ser chamados pólos artístico e estético. O pólo artístico designa o texto criado
pelo autor e o estético a concretização produzida pelo leitor. (p.50).
A partir desse postulado, as margens para a entrada ou não no cânone alargaram-se. Se a
responsabilidade pelo sentido do texto é, também, do leitor, devemos deduzir que haverá tantas
leituras quantos leitores para uma obra literária. Logo, se o leitor do século XXI é bem diferente
do leitor dos séculos anteriores, a leitura que se fizer hoje será bastante diversificada da feita no
passado. O texto de Homero não pode ser lido hoje da mesma maneira como era por nossos
antepassados. Isso nos leva a pensar nas mudanças de valores no que tange à seleção dos títulos
considerados dignos de leitura. A linguagem atual não é a mesma de outrora. A vida pulsa, o
mundo gira e a língua se movimenta. Atualizar a linguagem é estratégia necessária para que se
mantenha a permanência de uma obra antiga, pois o contrário afastaria o receptor do texto, uma
vez que o leitor abandonaria a leitura por conta das dificuldades em decodificar mensagens e
operar sentidos. Exemplo: A língua de Cervantes não é a mesma dos escritores espanhóis da
atualidade. Se para o leitor contemporâneo de Cervantes as histórias de cavalaria estavam tão
presentes, para o leitor de hoje, devido à distância temporal, esta temática atrai principalmente
37
pelo valor histórico que traz em seu bojo. Logo, os textos antigos devem passar por um processo
de atualização da linguagem para que possam continuar dizendo seu verbo a mais gente.
O leitor em formação precisa contar sempre com a mediação da linguagem. A pluralidade
de linguagens trouxe mais visibilidade a textos tradicionais, a textos literários, que ficavam
restritos a um pequeno grupo de leitores privilegiados. Esses fatores colaboram para um
(re)arranjo do cânone. Aceitar o texto de um autor fora do cânone ou inserir o nome de um
escritor contemporâneo nesta lista privilegiada não é tão simples quanto possa parecer,
entretanto, já há uma receptividade maior de nomes novos que se tornam abonados pela crítica .
A nossa memória não interrompe seu processo de expansão. Todo um circuito volta a se
apresentar. O texto foi instigante, teve valor estético: vou armazená-lo em meu acervo; posso
dividir com outro(s) o prazer que o discurso literário me proporcionou. A teia se forma, mais
leitores vão passando adiante e assim pode cair no gosto da coletividade e ser incluído nas listas
dos melhores.
Novos títulos são publicados; os critérios da crítica transformam-se; novos clássicos vão-
se apresentando...assim o cânone se movimenta; afaga uns, rechaça outros.
Voltamos a Ana Maria, mais uma vez, para encerrar com palavras da escritora as
reflexões desta seção:
Com mais gente lendo mais e melhor, podendo comparar, argumentar, refutar, é
bem possível que alguns títulos e autores passem também a ser menos valorizados,
abrindo espaço no cânone. As substituições virão naturalmente pela prática leitora
crescente de novas camadas da população alfabetizada. Da mesma forma que não
creio que uma listagem velha deva ser imposta de cima para baixo, não creio que
alguém individualmente tenha o direito de determinar o índice de proibições ou
um novo cânone. (p. 134)
O cânone se mantém pela memória construída ao longo dos séculos; por outro lado, sofre
alterações pela memória em construção. E este círculo é ampliado infinitamente, porque sempre
haverá textos que fascinarão gerações e gerações de leitores.
38
II. A linguagem: ponto de interseção
1. Clássico fundador da cultura ocidental: a Bíblia
Muitos são os chamados poucos os escolhidos
(Mateus,cap.XXII,14)
Ao convocar Adão a nomear os seres, Deus decretou que o Homem estaria fadado – pela
linguagem – a interagir, a dialogar e a se (des)entender com seus semelhantes. Sabemos que, ao
se apropriar de uma língua histórica, o indivíduo recebe toda a carga cultural do grupo que dela
se utiliza. Projetando-se no tempo ou recuando na memória, o ser humano – via linguagem – vai
registrando seus valores, sua ética, seu ponto de vista, enfim.
É inegável o valor das Escrituras Sagradas na formação das mentalidades
5
no Ocidente.
Ao lado da influência tão marcante da mitologia greco-latina em nossa formação, a Bíblia (livro,
em grego) é, sem dúvida, o texto mais impregnado em nossas memórias. Esta narrativa ancestral
traz relatos fundamentais que até mesmo os sem crença religiosa conhecem ou devem conhecer,
uma vez considerados fundadores.
A Bíblia, como “palavra inspirada” – aquela soprada para dentro (in+spiro) – sendo
palavra de Deus, é também literatura, poesia, história e narrativa.
A “língua bíblica” influenciou, por meio de traduções, as línguas comuns dos povos
cristãos. Basta observar o recurso da intertextualidade que a todo momento nos reapresenta
passagens do Livro Sagrado. Como linguagem plural, o discurso da blia pode ser classificado
como “discurso lúdico”, no dizer de Eni Orlandi (1996), devido ao alto grau de
plurissignificação, pois admite múltiplas leituras e sua interpretação é inesgotável.
Enquanto linguagem, os Livros Sagrados apresentam diversidade de uso da língua. Ora
estilizada (Gênesis) ora com grande refinamento (Jó), pois, sendo linguagem de cultura, ela sofre
influências diversas. De início, os textos bíblicos eram transmitidos oralmente, devido às
circunstâncias da época, principalmente o alto índice de analfabetismo. Aos poucos, surgem as
transcrições e, segundo historiadores, é possível encontrar em velhos palimpsestos poemas
5
O conceito da expressão história das mentalidades é explicado por Chartier: “irredutível especificidade de uma maneira nacional
de pensar as questões”. (1990, p.30)
39
bíblicos escritos nos séculos XI e X aC. Este processo de “cópia” possibilita a potencialização da
língua comum; daí chega-se ao discurso literário, muito recorrente na Bíblia. Curioso também é o
fato de ter sido produzida uma edição da Bíblia somente com imagens; a Bíblia pauperum (Bíblia
dos pobres) buscava um interlocutor pouco proficiente nas letras góticas. Esta obra expunha suas
imagens aos fiéis, dia após dia; portanto a nossa era, tida como a da imagem, vem sendo
“forjada” desde há muito tempo. E a preocupação com o leitor, interlocutor da obra, também não
é novidade dos últimos séculos.
Com isso percebemos a importância e a força das Escrituras na formação de um código
de valores no Ocidente.
Embora a Igreja considere os testamentos livros sagrados e canônicos, pois foram
inspirados pelo Espírito Santo e têm Deus como “autor”, é inegável a maestria do homem que
põe em letras aquelas mensagens e ensinamentos.
Intencionalmente ou não, grande parte da Bíblia emprega linguagem literária; mesmo que
os autores não buscassem valor estético em seus escritos, muitas vezes esse é o resultado. Alguns
acreditam que falar de poemas bíblicos, de obras literárias bíblicas e da Bíblia como literatura é
tirar-lhes a importância reveladora e, portanto aniquilá-los. (Schökel,1992;171). O autor
defende que falar da Escritura como obra literária não é diminuir-lhe a importância.
A Bíblia é um livro, uma antologia; logo, produto da mente humana. Tal obra reúne um
conjunto de escritos produzidos por pessoas reais, que viveram em épocas históricas marcadas,
concretas, que usaram suas línguas nativas e formas literárias disponíveis na ocasião. Não fosse a
concepção religiosa tradicional, os textos bíblicos, em alguns aspectos, não seriam diferentes das
obras de Shakespeare, por exemplo.
Não nos podemos esquecer de que em muitos lares a Bíblia é o único livro existente. O
mérito é sua abrangência; é literatura em sentido amplo e estrito, pois em suas páginas não só
encontramos material das belles lettres: poesia, contos romances...como também leis, decretos
reais, epístolas, genealogias, mensagens proféticas, narrativas históricas... Esta notável
diversidade faz do conjunto de tais textos uma obra clássica, berço para as que vieram depois.
Como características básicas podemos apontar: (i) todo texto bíblico exprime um “tema”,
não um objeto. Em Gênesis, por exemplo, o tema é a concepção de como o Universo foi criado.
(ii) existe uma autoria, mesmo que desconhecida: o autor bíblico (os autores) é (são), como
qualquer outra pessoa, aquele que dá – via linguagem – expressão a um tema. A autoria na Bíblia
40
oculta uma história complexa, uma vez que quase toda a obra é produto de colaboração. O
material foi produzido por diferentes autores, separados no espaço e no tempo, pessoas que não
se conheciam. Por ser produto coletivo, a Bíblia apresenta-se formalmente como uma antologia;
não revela unidade, como concebemos nos livros atuais; não há na obra um estilo único, bíblico;
há vários pontos de vista e várias mensagens. É concebida em total polifonia.
Percebe-se a tentativa de unificar as diferentes vozes por meio da figura do redator. Fala-
se em tentativa, porque o objetivo não foi totalmente atingido: ainda aparecem duplicações ou
aparentes contradições, como, por exemplo, o desacordo, em Gênesis 37, quanto a quem levou
José para o Egito: os ismatitas ou os madianitas. Teria passado pelo crivo dos redatores? São
“contradições” intencionais?
No que diz respeito ao Novo Testamento, a atividade redacional fica evidente nos
evangelhos sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas –, cujos redatores teriam sido os próprios
autores.
Ao fazer uma abordagem da literatura da Bíblia, segundo Gabel e Wheeler (1993), os
estudiosos estariam limitando o valor dos Livros Sagrados. Os autores de A Bíblia como
literatura afirmam que tais estudos aproveitam narrativas como as de Adão e Eva, Caim e Abel;
ensaios morais: Sermão da Montanha; poemas, como o Cântico de Moisés, o Cântico de Débora;
os Salmos 1 e 23 ... Embora com materiais mais atraentes, essa abordagem seletiva é, segundo os
autores, redutora. Para eles a Bíblia é uma coletânea que tem sua própria existência como
literatura.
Há uma tentação natural de extrair dele [Antigo Testamento] as narrativas famosas
que parecem ter vida própria como documentos humanos, que apresentam
personagens com realismo psicológico e cujo enredo é estruturado com tal sutileza
e habilidade que produz impressionantes resultados para a análise literária. (1993,
p.26)
Ao estudar a Bíblia como literatura, pode-se fazer um levantamento de formas e de
estratégias literárias que o livro sagrado apresenta. No Antigo Testamento, a forma mais comum
é a narrativa, embora possam ser encontrados vários gêneros naqueles escritos. A vitória de
Moisés em Êxodo 15 é cantada na forma de poesia patriótica. A narrativa, no entanto, é
exuberante e assume várias formas: (i) etiológicas, as que vão contar histórias sobre a atribuição
41
de nomes; (ii) narrativas de nascimento; (iii) milagres; (iv) teofanias: aparecimento de Iahweh a
Moisés; (v) histórias heróicas: façanhas de Sansão, de Daniel...
No Novo Testamento, também aparecem as formas literárias tradicionais, porém uma das
mais populares é, sem dúvida, a parábola – estratégia bastante utilizada por Jesus para passar seus
ensinamentos. Por sua importância, dedicaremos adiante um espaço maior a tal gênero textual.
Encontram-se ainda nos evangelhos outras formas tradicionais: relatos de julgamento, narrativa
de nascimento, alegorias...
Quanto às estratégias, a literatura da Bíblia nos mostra que os autores sempre usaram,
desde o início da cultura literária, os mesmos meios para a obtenção de efeitos. Os autores
bíblicos beberam na mesma fonte que ainda hoje nos abastece.
Hipérbole, metáfora, simbolismo, alegoria, personificação, ironia, jogos de palavras,
poesia são alguns dos mais recorrentes mecanismos usados para garantir expressividade do texto.
Exemplifiquemos, com Gabel e Wheeler:
Hipérbole: exagero deliberado para alcançar algum efeito; ressalta a preocupação
com o interlocutor; recurso eficaz na busca da interatividade. Os estudiosos apontam
trechos da narrativa de Daniel e em todo livro de Ester como o auge do uso da
hipérbole nos textos bíblicos.
Se a tua mão ou teu pé são a causa de tua queda, corta-os e atira-os longe; melhor entrares na vida mutilado ou
manco do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançado no fogo eterno. E se teu olho é causa de tua queda,
arranca-o e atira-o longe... (Mateus 18,8-9)
Metáfora: mecanismo em que uma palavra, que é literal nos contextos onde costuma
ser encontrada, é usada em contexto diverso. O uso excessivo da metáfora tende a
fazê-la voltar à literalidade, ignorada ou transformada em clichê. As metáforas podem
ser bem ilustradas no Livro dos Salmos.
Deus é uma torre forte (9,9)
O homem em geral é um sopro (144,4)
Simbolismo: embora qualquer um dos sentidos humanos possa estar envolvido no
simbolismo, este costuma ser visual.
42
A figura de Cristo no Apocalipse 1,12-19
A imagem do sonho de Nabucodonosor em Daniel 2
Alegoria: recurso que depende da associação entre duas áreas de sentido. O exemplo
mais ilustrativo é a parábola.
Parábola do banquete nupcial: O Reino dos Céus é semelhante a um rei que celebrou as núpcias de seu
filho(...)Com efeito, muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos. (Mateus, 21-22)
Personificação: neste recurso, objetos inanimados ou grupo de pessoas (tribo, nação)
são tomados como única pessoa e recebem atributos humanos.
Batam palmas os rios todos,/e cantem as montanhas de alegria...” (Salmo 98,8).
Ironia: (i) dramática: esta estratégia envolve duas idéias opostas, não só diferentes,
mas irreconciliávies. O contraste entre a percepção – completa – do leitor(público) e a
percepção parcial dos personagens (atores)gera a ironia.
O exemplo que nos é apresentado conta o episódio em que Raquel revela esperteza ao esconder os teraphim
(“deuses domésticos”) na bagagem que transportava quando Jacó decidiu fugir de servidão a Labão. Jacó, que
de nada sabia, foi acusado do roubo. Labão envia dois homens atrás da família fugitiva; eles revistam a tenda;
Raquel senta sobre a bolsa em que escondia os objetos procurados e nada pode ser provado.
A ironia é gerada, nestes casos, pelo contraste entre a percepção parcial dos personagens e
a percepção total, completa, do leitor.
(ii) ironia lingüística: recurso em que as palavras são usadas de maneira dúbia. A
linguagem é superficialmente favorável, mas pretende ter o efeito oposto. Quando
a ironia é mais aguda denomina-se sarcasmo.
Como exemplo, transcrevemos a passagem em que Iahweh mostra sua onipotência ao
falar a Jó durante a tempestade:
Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra?
Dize-mo, se é que sabes tanto.
Quem fixou as suas dimensões?
Tu por certo o sabes.
(...) sem dúvida sabes tudo isso; pois já tinhas nascido,
tão grande é o número dos teus anos. (Jó 38, 4-5.21)
43
Não há sutilezas. Iahweh pretende silenciar Jó, e consegue.
Jogos de palavras
Fica difícil visualizar os jogos de palavras nas traduções dos textos bíblicos. Sabe-se,
porém, que na língua original, tais textos apresentam muitos daqueles jogos.
1.1 Texto e intertexto: uma questão polifônica
O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma “primeira” vez,
depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a página com um
novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem tanto quanto as puras
cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não deixe vestígios, a invenção,
nunca tão nova que não se apóie sobre o já-escrito.
(Shneider, 1990:71)
No que se refere à linguagem, clássico é um texto que serve de modelo, é exemplar, na
opinião de muitos estudiosos. Tal característica dá a ele o estatuto de proto-texto, observadas as
palavras do filólogo Antonio Houaiss que, em seu dicionário, ensina: do gr. prôtos,é,on
'primeiro; o que está à frente; o excelente, o mais distinto, o principal. O conceito de texto aqui
referido é trazido por Charaudeau e Maingueneau (2004:467), quando citam Halliday e Hasan:
texto é uma unidade de uso da língua em uma situação de interação e como uma unidade
semântica.
A Bíblia – obra em tela nesta seção do trabalho – por sua importância histórica, é o
proto-texto por excelência. É dele que partem tantos outros produzidos ao longo de milênios.
Podemos encontrar, na vasta produção literária, inúmeros autores que fazem suas obras com base
nos Livros Sagrados. O diálogo que se estabelece entre os textos produzidos – intertextos – e o
texto(proto) é muitas vezes sutil. O termo intertexto está também definido no Dicionário de
Análise do Discurso, organizado por Charaudeau e Mainguenau, como conjunto de fragmentos
convocados (citações, alusões, paráfrase...) (op.cit.,p.289). Avançando um pouco nos estudos
das relações explícitas ou implícitas entre textos de diferentes épocas, Julia Kristeva (1974:64)
44
afirma que qualquer texto se constrói como mosaico de citações e é a absorção e transformação
de um outro texto. É de Kristeva, pois, a responsabilidade sobre o termo intertextualidade.
Bakhtin falava de polifonia (heterogeneidade enunciativa) e de dialogismo (i) no que concerne à
interação verbal entre o enunciador e o enunciatário e (ii) diálogo entre textos da cultura e, antes
dele, outros teóricos da literatura já apontavam para essa característica formal na estruturação de
textos, como observa Edward Lopes no ensaio O discurso literário, publicado no livro
organizado por Diana Luz Pessoa Barros e José Luiz Fiorin (2003).
Dialogismo, polifonia e intertextualidade são termos intercambiantes. Recorremos a tais
conceitos por percebermos, com estudiosos, como Schneider – citado na epígrafe – e com Julia
Kristeva, que os textos são o resultado de vozes entrecruzadas; um texto dialoga em maior ou
menor grau com outros de idêntica ou diversa formação discursiva. Pode-se afirmar que
adaptações são textos cujo grau de intertextualidade é alto, e bastante explícito.
Voltando à Bíblia, vale citar alguns dos muitos exemplos de textos literários que dialogam
com os Textos Sagrados: Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, Cântico do Calvário, de
Fagundes Varela, Tempo e eternidade, de Murilo Mendes, Grande Sertão, de Guimarães Rosa,
Mar Morto, de Jorge Amado, Esaú e Jacó, de Machado de Assis, Escritura, de Bartolomeu
Campos Queirós, O dia da criação, de Vinícius de Moraes, Oráculos de maio, de Adélia Prado
etc. Estamos impregnados desta narrativa ancestral. Somente perceberemos a relação intertextual
entre a Bíblia e os outros textos, se tivermos o conhecimento prévio desse patrimônio da tradição.
No livro de Cervantes, há referências à Bíblia, como no momento em que Dom Quixote
conversa com seu escudeiro, no capítulo X da primeira parte (Dom Quixote, 1993:128): _Não
tenhas cuidado, amigo – respondeu D. Quixote; – das mãos dos caldeus te livraria eu. Nesta
passagem, Cervantes se refere a um dos livros da Bíblia, o de Jeremias, cap.L. O trecho mostra o
momento em que Iaweh dirige a Jeremias a palavra sobre as nações, especialmente sobre a
Babilônia, terra arrasada dos caldeus. Ou ainda, no mesmo capítulo, na página 130, quando Dom
Quixote é ferido na orelha e faz um juramento prometendo vingança: _ Faço juramento ao
Criador de todas as coisas, e aos quatro Santos Evangelhos, onde mais por extenso eles estejam
escritos (...) tomar inteira vingança de quem tal cortesia me fez. Para finalizar a exemplificação,
reapresentamos o trecho (p.134) em que Dom Quixote convidou Sancho para sentar à mesa e
comer com o amo; o escudeiro, porém, declinou do convite. Dom Quixote, então, adverte: _
45
Apesar disso hás de te sentar, porque quem mais se humilha mais se exalta. (São Lucas, XIV,11
e XVIII,14).
A relação intertextual nas adaptações será estudada mais adiante, quando fizermos
análises das obras e cotejarmos o texto integral com os respectivos recontos. Algumas
reapresentarão o texto de forma a preservar sua estética; embora haja cortes, nestes casos, o
proto-texto (o texto integral de Cervantes)
6
se impõe. Outras adotarão um processo
palimpséstico: o texto original é quase apagado, dando vez a um outro que, ao ser reescrito, deixa
entrever apenas as “sombras” do original. Quando a adaptação é feita de forma redutora,
podemos dizer que tal fenômeno aconteceu. Como exemplo, entre tantos, citamos o livro O meu
primeiro Dom Quixote, adaptado em espanhol pela equipe editorial Destino, do grupo Planeta, e
traduzido pela escritora portuguesa Alice Vieira, reconhecida como autora de livros infantis. A
saga do Cavaleiro andante é recontada para um leitor iniciante, uma criança. Fazemos a
afirmativa com base: (i) no título “O meu primeiro Dom Quixote”: pelo uso do numeral
“primeiro”, podemos pressupor que haverá, pelo menos mais umo segundo; (ii) a capa dura no
formato de livros para leitores iniciantes; (iii) o uso de cores, tanto no título (Quixote está em
vermelho sobre um fundo branco) quanto nas ilustrações; (iv) as poucas páginas não são
numeradas; (v) a linguagem simples e o discurso bastante didático deixam entrever a intenção do
narrador em resgatar o universo infantil com princesas presas em torres e príncipes que as
libertarão:
Dom Quixote era um homem de bom coração. Tinha lido tantos livros de
aventuras que, na sua imaginação, a vida real não passava de um conto. Um conto
fantástico, cheio de gigantes e guerreiros, de princesas prisioneiras em altas
torres de castelos longínquos que ele teria de libertar com muita valentia. [grifos
nossos] (Vieira, 2005)
O exemplo de Alice Vieira nos mostra como acontece o fenômeno de que nos fala Julia
Kristeva, quando estuda a questão da intertextualidade, pois, como “mosaico de citações”,
percebemos as vozes dos contos de fadas perpassando a dicção da narrativa que pretende
dialogar com a obra de Cervantes.
6
Não estamos levando em conta as múltiplas influências sofridas por um texto até sua publicação, pois sabemos que editor,
revisor e muitos envolvidos com o processo editorial acabam por interferir na obra; sendo assim, só poderíamos chamar de proto-
texto o original manuscrito.
46
O texto que resulta de um trabalho de adaptação é dialógico porque é resultado do embate
entre muitas vozes sociais, e polifônico, na medida em que traz um texto(proto) dentro de um
outro que se apresenta como novo, construindo o discurso literário. Pode-se falar, portanto, que
as adaptações apresentam polifonia lingüística – situada no nível da língua – e polifonia literária
a que estabelece um jogo entre várias vozes, a que diz respeito às múltiplas relações que
mantêm autor, personagens, vozes anônimas, diferentes níveis estilísticos etc.
(Mainguenau/Charaudeau, 2004:388).
1.2 Parábolas e alegorias: uma questão discursiva
Os textos canônicos desejam levar a uma reflexão e a uma possível mudança de
comportamento; falam a todos. Seguindo o caminho dos que defendem a Bíblia como clássico-
fonte das narrativas atuais, voltaremos nossa análise para as parábolas e alegorias bíblicas –
textos imagéticos por natureza – por entendermos que nesses gêneros está a base das narrativas
modernas. Sabe-se que o Jesus histórico fez uso das parábolas para falar a seu povo; ele não foi,
todavia, o criador de tais narrativas. Os hebreus já usavam as parábolas, textos que surgem
primeiramente na oralidade, pois Moisés, ao receber a tábua com os mandamentos que
precisavam ser transmitidos ao povo, simples e iletrado, recorre a estratagemas das histórias
orais, e seus seguidores acabam por difundir as parábolas.
Usar alegorias e parábolas foi estratégia encontrada também por Jesus Cristo para levar a
seus interlocutores a palavra e os ensinamentos de Deus, e deixar à margem aqueles que não
seriam seguidores legítimos. Umberto Eco define língua natural como sistema que se organiza
além da sintaxe e da semântica; ela vive, também, com base na pragmática, em regras da praxe,
que levam em consideração as circunstâncias e os contextos de emissão (2001:43). Eco nos
alerta, ainda, para a organização do sistema da língua em dois planos: o da expressão e o do
conteúdo. Ensina, também, o semiólogo e crítico literário, que a língua – sistema holístico –
enquanto estrutura implica uma visão de mundo a direcionar olhares.
Mais do que escritores, os autores bíblicos são compiladores que buscavam nas histórias
contadas/ouvidas pelo povo os dados necessários à sua tarefa. O homem nasceu para narrar; para
47
tanto utiliza diferentes estratagemas discursivos. É grande a eficácia da alegoria – tropo que se
caracteriza por apresentar algo no lugar de outra coisa. Juntamente com outras figuras de estilo –
comparação, metáfora, imagem –, funda o discurso bíblico, criando possibilidades de textos
como as parábolas. Concretizar o abstrato em malhas discursivas é a proposta da linguagem
(alegórica) que, numa espécie de jogo de sombras, vela e desvela sentidos para interlocutores de
maneira diversificada. Só entende a alegoria o interlocutor que consegue unir os dois pontos: a
idéia e a sua representação, visto que a alegoria contém a contradição: o que diz e o outro que não
é dito, mas é recuperado pelo dito.
Sob o signo da convivência, as narrativas sempre reuniram pessoas. Comparadas às
fábulas e aos apólogos, as parábolas tinham caráter didático. Parábola é, na sua origem
etimológica, “palavra” ou parabolé, em grego, que significa “pôr ao lado de”, “comparar”.
Por serem engendrados em linguagem figurada, os discursos alegóricos possibilitam
mobilidade no tempo e a interação com eles se atualiza, sempre. Imagem e doutrina são dois
elementos materiais dessas narrativas a que o termo da comparação dá forma específica.
48
III. A linguagem : ponto de interrogação
1. Clássicos na escola: tradição e permanência
Não me lembro do que li ontem, mas tenho bem vivo o Robinson inteirinho – o
meu Robinson dos onze anos. A receptividade do cérebro infantil ainda limpo de
impressões é algo tremendo.
7
No Brasil, é na escola e não em bibliotecas ou livrarias que os clássicos literários são
consumidos. Considerados “difíceis” e de linguagem mais elaborada, os textos canônicos
precisariam de um mediador (professor) para ajudar o leitor iniciante em seus primeiros
contatos com obras consagradas.
Manter a tradição – na acepção de herança cultural, conjunto de valores veiculados por
tais obras – era (é) objetivo da Escola, espaço de formação e de legitimação. A perseverança, o
instinto de sobrevivência e a capacidade de se relacionar com um outro (personagem Sexta-
feira), revelados por Robinson Crusoé, são modelos exemplares cujo valor pedagógico é
inegável, sem, contudo, apresentar qualquer tom “didatizante”; em Alice no país das
maravilhas, uma menina que cresce e diminui ao longo da narrativa alimenta o imaginário do
leitor; o amor impossível entre adolescentes de famílias adversárias é punido com a morte;
Romeu e Julieta podem espelhar bem a triste história de amores, também impossíveis, entre
jovens de comunidades, ditas carentes, “impedidos” de transitarem por determinadas áreas da
favela.
Os clássicos são, em geral, narrativas exemplares em sua forma e conteúdo; a leitura de
tais textos mexe com mentalidades, pois atualiza no leitor um conhecimento da própria
humanidade, um saber universal de todos os seres humanos.
Reconhecendo a força das narrativas consagradas ao longo dos séculos, a Escola busca
preservar este acervo cultural, transmitindo-o a cada nova geração que, sem dúvida, produzirá
novos sentidos para textos antigos, como nos ensinam os pressupostos teóricos da estética da
recepção. Indicar um título que atravessou a barreira do tempo é mais uma garantia de que a
história lida por diferentes leitores, já recebeu o aval para circular.
7
LOBATO. A Barca de Gleyre, 2
o
. tomo, p.346
49
Uma obra clássica se renova sempre, uma vez que possibilita múltiplas interpretações. Cada
época lê com a ética de seu tempo, elege seus títulos favoritos a partir de uma ideologia
vigente.
Por ser a Escola a principal fomentadora da leitura das obras canônicas, a ela cabe, também,
a responsabilidade de abrir espaços para as paráfrases das referidas obras. Vale lembrar sua
função reguladora, pois várias adaptações e recontos têm sido alterados pelas paráfrases a fim
de atender a um tipo de censura imposto por aquela instituição (Monteiro, 2006). De controle
dos textos, conforme as exigências morais e religiosas, nos fala Chartier (1990) em Textos,
impressos, leituras.
Além das mudanças, atenuações nos temas, a fim de que a narrativa não passe valores e
ensinamentos para os quais, segundo os responsáveis pelo ensino, as crianças e os jovens não
estariam preparados, as paráfrases escritas para o leitor em fase escolar são trabalhadas também
no plano da linguagem.
O primeiro nome lembrado na área de tradução é o do professor Carlos Jansen, alemão
naturalizado brasileiro. Desde logo o professor do Colégio Pedro II percebeu as deficiências no
terreno da literatura infantil e juvenil em nosso país. Em 15 de novembro de 1887, o professor
Jansen escreve uma carta a Rui Barbosa com o intuito de pedir-lhe um prefácio para a
adaptação que fizera de Viagens de Gulliver. O tema foi transformado por Rui Barbosa em
“magnífico ensaio” sobre Swift. Transcreve-se a seguir o trecho da carta, publicada no livro de
1968 – Literatura Infantil – de Leonardo Arroyo:
Como sabe, criei entre nós uma biblioteca juvenil, para ensinar a ler a geração
presente. Foram publicados já: Contos Seletos de Mil e Uma Noites, prefaciados
por Machado de Assis; Robinson Crusoé, com introdução de Silvio Romero;
Dom Quixote, patrocinado por Ferreira de Araújo. Tenho agora no prelo As
Viagens de Gulliver, obra de que lhe envio algumas folhas e os cromos que devem
acompanhar o texto, – e tenho a ousadia de pedir-lhe uma introdução, como o Sr.
Conselheiro, bom amante da instrução, as sabe fazer. (...)
Contento-me com as adaptações das boas obras que em original nos faltem.
Cabe citar em nosso breve estudo historiográfico das traduções e adaptações dos clássicos
no Brasil o nome de Figueiredo Pimentel. A importância do referido estudioso se deve ao fato
de ter apresentado uma nova orientação – popular – sobre a literatura infantil e juvenil.
Anteriormente as edições visavam exclusivamente ao público escolar. Ele traduz em 1896
contos de Perrault, de Grimm, e os publica sob o título Contos de Fadas. Na mesma década,
50
apresentara os Contos da Carochinha, História da Baratinha, entre outros. Figueiredo Pimentel
foi buscar tais narrativas em livros franceses e portugueses, traduzindo-os e adaptando-os em
linguagem brasileira (Arroyo,1988).
No final do século XIX início do século XX, alguns professores perceberam que a leitura
dos clássicos de várias línguas era “pesada” para as crianças.
O escritor-tradutor-adaptador Monteiro Lobato foi um dos mais importantes do grupo dos
pioneiros, no Brasil, a preocupar-se em levar às nossas crianças os clássicos universais em
linguagem mais acessível a um leitor iniciante. O criador de O Sítio do Picapau Amarelo
entendia a adaptação como atualização de um discurso literário; defendia a nacionalização da
literatura. Como editor, investiu na qualidade gráfica, cuidava da apresentação dos livros,
importou máquinas etc. Entrou no mercado editorial para concorrer com o mercado estrangeiro,
que dominava nosso país.
José Bento Monteiro Lobato já percebia um grande filão editorial: o livro de leitura para a
adoção escolar. Era, pois, um brasileiro escrevendo e editando livros para brasileiros que, antes,
consumiam tão-somente os importados.
Durante a década de 1930, as narrativas que recontavam os chamados clássicos universais
tiveram bastante prestígio, pois finalmente estávamos formando leitores por meio de livros
nacionais e não estrangeiros.
Este sentimento de nacionalidade instalou-se na base das orientações transmitidas aos
professores, porque durante anos houve a recomendação para que a leitura dos clássicos
nacionais ocupasse, soberana, a grade curricular. Este fato contribuiu para o “empobrecimento”
cultural do leitor em fase escolar, uma vez que os clássicos universais permaneceram fora dos
muros escolares em nosso país, tão carente de bibliotecas e livrarias; as poucas existentes se
concentram em grandes centros urbanos.
Não se pode esquecer da rede social no que se refere à formação do professor. Com a
democratização do ensino, as classes menos favorecidas tiveram acesso a cursos antes
procurados pela elite. A desvalorização do papel do professor também é um fator considerado
no processo, porque um professor não-leitor dificilmente conseguirá estimular nos alunos o
gosto pela leitura. A rede é complexa. A má-formação do professor aliada à falta de recursos
(acervo, formação continuada, bibliotecas escolares...) mostra que a maioria dos professores
não está preparada para tarefa tão importante: a de dividir com o outro o seu acervo de leitor.
51
Se o mediador desconhece a memória da tradição clássica, como será possível repartir um
conhecimento que não possui?
Viver nesse paradoxo e círculo vicioso é o que revela a realidade da sala de aula. Há que se
trabalhar em diversos lugares; portanto, falta tempo para uma efetiva formação continuada; os
baixos salários não dão muita chance para a atualização dos mestres; os alunos, oriundos de
classes populares, não têm condição de adquirir o material; o sistema governamental é
complexo e emperrado; além disso, a Escola precisa competir como os novos recursos
eletrônicos. Enfim, o professor sabe o quanto é importante o estofo cultural trazido, sem
dúvida, pelas obras canônicas, todavia ele não está devidamente preparado para tarefa tão
desafiadora. Em tal encruzilhada surgem as soluções possíveis. Uma delas é a que provocou
esta pesquisa: trabalhar com a tradição da literatura clássica de acordo com as condições
oferecidas pela sociedade moderna, pela sua conjuntura. A tradução e a adaptação surgem de
uma necessidade social. Ideal seria que lêssemos os textos na íntegra em suas línguas de
origem. Isto, contudo, é utopia. Dar a ler um reconto das obras consagradas ou deixar de fora
do acervo pessoal tais monumentos da tradição cultural da humanidade? O destino dos
clássicos seria ficar reservado a um pequeno grupo dos “escolhidos”? Cada um, como diz Dom
Quixote, “é artífice de sua própria sorte”. Cabe a nós, porém, favorecer a “sorte” dos jovens que
passam por nossas salas de aula. Eis a questão!
1.1 Linguagem babélica: a tradução possível
Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto
é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma
tradução: em primeiro lugar, do mundo não verbal e em segundo lugar, porque
todo signo e toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase. Entretanto,
esse argumento pode ser modificado sem perder sua validade: todos os textos são
originais porque toda tradução é diferente. Toda tradução é, até certo ponto, uma
criação e, como tal, constitui um texto único.
(Otávio Paz
8
)
Neste ponto, nossas reflexões direcionam-se para outro tema instigante e polêmico:
perdas e ganhos da tradução. Muitos estudos sobre o assunto vêm sendo realizados pelos
pesquisadores da área. Dos vários textos lidos, nossas idéias foram buscar abrigo no ensaio de
8
Apud ARROIO, ROSEMARY:2002, p.11.
52
José Paulo Paes, Tradução: a ponte necessária (1990). Com larga experiência, o autor traduziu
textos do inglês, francês, espanhol, italiano e grego moderno. A partir da prática, Paes escreve
suas reflexões sobre aspectos culturais, teóricos e práticos da arte de traduzir. Deixo a voz do
especialista falar com mais competência um pouco sobre a história da tradução no Brasil:
A tradução, entendida como atividade regularmente exercida para atender à
demanda literária de um público ledor, não existiu nem poderia jamais ter existido
no Brasil colonial. Durante três séculos em que se esteve sob a tutela sufocante do
absolutismo português, a vida intelectual do país foi mofina. Interessado tão-só
nos produtos agrícolas ou no ouro que daqui extraía, e na exclusividade do
mercado de que aqui dispunha para as suas mercadorias, Portugal fez o quanto
pôde para manter a sua colônia transatlântica em estado de inferioridade mental.
Não só proibiu a instalação no Brasil de uma universidade e de tipografias como
também, através de uma censura férrea e de um ensino jesuítico de índole
retrógrada e imobilista, cuidou de impedir a circulação de perigosas “idéias
estrangeiras”. Se se tiver em conta que o papel da atividade tradutória é
precisamente o de pôr as “idéias estrangeiras” ao alcance do entendimento
nacional, não será difícil entender por que ela praticamente inexistiu durante nosso
período colonial. (Paes, p.11-12).
José Paulo Paes vai explicar o uso do advérbio “praticamente”, apresentando-nos alguns
gestos isolados na atividade da tradução ao longo da história. O primeiro marco apontado pelo
autor está datado em 1618, quando o padre Antônio Araújo prepara e publica, em Portugal, um
Catecismo na língua brasílica. Não é uma obra de natureza literária, pois o texto revelava uma
intenção pragmática, uma vez que deveria servir de instrumento no trabalho missionário da
catequese. Nota-se que a tradução, “ponte” entre duas línguas estrangeiras, atendia à
necessidade de adaptar a doutrina cristã à língua dos silvícolas. Vale observar que, neste caso, a
língua estrangeira era o português.
Outro marco – desta vez com índole literária –, apontado pelo ensaísta, está na obra de
Gregório de Matos; é o que Paes chama de “tradução adaptativa”. Trata-se de paráfrases ou
imitações de Quevedo e Gôngora, realizadas pelo poeta barroco. Os críticos divergiam a
respeito do assunto; alguns consideravam plágios tais trabalhos, outros diziam que os “plágios”
não ficavam devendo nada ao original.
O percurso histórico vai mostrar que, ao final do século XVIII, principalmente entre os
poetas do arcadismo mineiro, a tradução sofre um “arejamento” e as barreiras vão um pouco
além do universo mental português; alargam-se para os amplos horizontes da literatura italiana
e francesa. Cláudio Manuel da Costa traduziu sete peças de Pietro Metastasio, criador do
53
melodrama poético; José Basílio da Gama também fez a tradução de um poema de Metastasio.
Muitos textos, como Nova Heloísa, de Rousseau, que, por serem censurados, não puderam ser
editados em livros, foram, porém, traduzidos por dois padres carmelitas da Bahia e circularam,
clandestinamente, copiados à mão.
Foi somente com a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808 que nosso país pôde abrir-se
para o mundo, porque, a partir de então, a impressão de jornais e livros tornou-se possível.
Do período romântico vale ressaltar a influência da literatura francesa, com traduções dos
textos de Lamartine e Hugo, entre outros. Dos grandes escritores do romantismo, o destaque
vai para Gonçalves Dias, um dos poucos conhecedores da língua alemã; verteu para o
português textos de Schiller e Heine, além de ser um sensível tradutor de Victor Hugo. José
Paulo Paes recorda que, durante o período romântico, os clássicos não ficaram esquecidos,
informando-nos que, em 1846, na Bahia, João Gualberto Ferreira dos Santos Reis editou a sua
tradução de Eneida . Ofereceu tal obra a D. Pedro II; poliglota, o imperador estudou árabe para
ler As mil e uma noites no original, que começou a traduzir, e hebraico, para conhecer melhor a
história do povo hebreu.
No terreno da prosa de ficção, Paes destaca, ainda no período romântico, o nome de
Caetano Lopes de Moura, considerado nosso primeiro tradutor profissional. Médico por
formação, com residência fixada em Portugal, Lopes sofreu as conseqüências da guerra civil de
1834 e, para sobreviver, dedicou-se profissionalmente à tradução. Na lista dos autores
traduzidos por ele, constam Alexandre Dumas, Walter Scott etc. Estava no auge, na França, o
romance-folhetim, moda seguida com muito entusiasmo em nossa pátria.
Na fase do realismo-parnasianismo, destaca-se o nome de Machado de Assis, tradutor de
poesias, tornando-se célebre sua versão de O corvo, de Edgar Alan Poe. O poema, como sabido,
é um dos mais citados em livros que discutem o tema da tradução, pois são inúmeras as versões
encontradas. Dois grandes autores, no entanto, colocam-se em posição privilegiada na lista dos
tradutores do famoso poema de Poe: um, já citado, é o brasileiro Machado de Assis; o outro,
não menos importante, é o poeta português Fernando Pessoa.
Nos últimos anos do século XIX e no início do XX, período do simbolismo e pré-
modernismo, vê-se a influência de Baudelaire. Eduardo Guimaraens foi o maior tradutor do
poeta francês; dos 158 poemas de As flores do mal, Guimaraens nos brinda com 81 versões
54
(Paes, p. 24). Vale citar, ainda como representante desse momento histórico, o nome de João do
Rio, tradutor da peça Salomé, de Oscar Wilde.
A tradução como atividade profissional só encontra condições mínimas para ocupar um
espaço na sociedade no século XX, a partir dos anos 30, porque tal ofício está diretamente
ligado a editores e a leitores. Com o crescimento quantitativo e qualitativo do público-leitor e
com uma indústria editorial verdadeira, tendo como pioneiro no ramo Monteiro Lobato, os
textos estrangeiros puderam chegar até nós. Lobato exerceu o ofício de tradutor por toda a vida;
traduziu Jack London, Hemingway, Saint-Exupéry, entre outros. É considerado o primeiro
escritor brasileiro a reabilitar o gênero tradução, deixando, até então, em total “apagamento” a
identidade do tradutor, quer pelo total anonimato quer pelas simples iniciais de seu nome no
livro.
Muitos são os que seguiram pelas veredas da tradução em nosso país. A editora José
Olympio, do Rio de Janeiro, e a editora Globo abriram as portas para este novo produto. Nomes
como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queirós, José Lins do Rego,
Rubem Braga etc. surgem nos estudos sobre o tema.
Uma breve releitura dos autores-tradutores citados nos leva a uma conclusão óbvia: os que
mais demonstram competência na arte de traduzir são os escritores que dedicaram parte de seu
tempo à tarefa de “recriação tradutória” (Paes, p.31). Isto porque as duas atividades se
entrecruzam. Criar um texto original ou recriar uma obra produzida em outra língua,
traduzindo-a, são gestos que exigem as mesmas competências. Talvez seja este um dos motivos
de a nossa memória reter os nomes de escritores e apagar os dos tradutores.
Em Arrojo (2002) encontramos três princípios básicos da boa tradução, apresentados por
Alexander Fraser Tytler e, segundo a autora, ainda exemplares. O primeiro diz que a tradução
deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; o segundo afirma que o estilo da
tradução deve ser o mesmo do original; e o terceiro recomenda: a tradução deve ter toda
fluência e a naturalidade do texto original (p.13).
Para ilustrar suas reflexões sobre os princípios apontados por Tytler, Rosemary Arrojo
recorre ao famoso conto de Borges: Pierre Menard, autor do Quixote. Nele, o autor discute os
mecanismos de linguagem no processo de tradução. O projeto do personagem Menard, poeta e
tradutor, é pretensioso e impossível, pois pretende recuperar não apenas a totalidade do texto
de Cervantes, mas também o contexto em que fora escrito (p.19); talvez por isso Menard chame
55
esse trabalho de obra “invisível”. Para que seu objetivo fosse alcançado, o tradutor pensa em
transformar-se em Cervantes, isto é, conhecer bem o espanhol, recuperar a fé católica,
guerrear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a história da Europa entre os anos de
1602 e de 1918, ser Miguel de Cervantes (Borges, 2001, p.57-58). Menard abandona o projeto
e se impõe a tarefa de repetir um texto estrangeiro, escrito em outra língua, por um outro autor
e num outro momento, sem deixar de ser ele próprio, isto é, sem poder anular seu contexto e
suas circunstâncias (Arrojo, p.20). O que nos ensinam as palavras ficcionais de Borges? Que
traduzir não é simplesmente transportar significados de uma língua para outra; até porque o
significado apresentado pelo texto na língua de partida só pode ser determinado no momento da
leitura; portanto, é provisório. O texto funciona como “máquina de significados em potencial”.
A autora de Oficina da tradução: a teoria na prática afirma:
O “palimpsesto” passa a ser o texto que se apaga, em cada comunidade
cultual e em cada época, para dar lugar a outra escritura(ou interpretação,
ou leitura, ou tradução) do “mesmo” texto. Assim, como nos ilustrou o
conto de Borges, o texto de Dom Quixote não pode ser um conjunto de
significados estáveis e imóveis, para sempre “depositados” nas palavras de
Cervantes O que temos, o que é possível ter, são suas muitas leituras, suas
muitas interpretações – seus muitos “palimpsestos”.
A tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que
protege os significados “originais” de um autor, e assume sua condição
produtora de significados; mesmo porque protegê-los seria impossível,
como tão bem (e tão contrariamente) nos demonstrou o borgiano Pierre
Menard. (p. 22-23)
Para endossar as idéias apresentadas até aqui, vale trazer as palavras de Jaques Derrida em
Torres de Babel: A tradução não buscaria dizer isto ou aquilo, a transportar tal ou tal
conteúdo, a comunicar tal carga de sentido, mas a remarcar a afinidade entre as línguas, a
exibir sua própria possibilidade. (2002, p.44).
Falar de tradução é falar de reescritura, de equivalência, de relação intersubjetiva, de
apagamento do sujeito-tradutor; enfim, a teoria é ampla, porém, para o objetivo do trabalho, as
idéias apresentadas até aqui nos parecem suficientes para nos transportar a outro ponto: o das
adaptações.
56
1.2. Linguagem parafrástica: a adaptação necessária
Pobres crianças brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso –
abrasileirar a linguagem.
Monteiro Lobato
Quando procuramos nas páginas da internet textos que apresentem a discussão sobre obras
adaptadas, surgem várias opções de leitura, no entanto, a maioria delas trata das adaptações
para cinema. Grande parte dos estudos lidos sobre o assunto revela que a crítica, em geral,
reconhece que um texto literário perde muito quando transposto para o código fílmico. A
palavra, quando trabalhada esteticamente, plena de plasticidade, é soberana e insubstituível. O
bom cinema, todavia, ajuda a divulgar as tradicionais histórias constituintes de nosso acervo
cultural.
É consensual a idéia de que não existe permanência sem mutação. Os clássicos
permanecem porque são forjados em discurso literário, que se atualiza sempre. Embora possa
parecer paradoxal, acredita-se que as obras canônicas são duradouras exatamente por sofrerem
(pequenas) mudanças, tanto na forma quanto no conteúdo, de acordo com o meio sociocultural,
marcado por um tempo em determinado espaço. É na adaptação para as telas que encontramos a
maioria das transgressões; mudanças bruscas e violentos cortes são defendidos com o
argumento da atualização e da adequação ao momento, ao público-alvo etc.
Não nos é possível enveredar pelas sedutoras trilhas do cinema. A atenção volta-se para o
texto literário e suas respectivas paráfrases também literárias.
Defende-se a necessidade das adaptações, paráfrases, recontos e quantos mais
substantivos pudermos encontrar para o exercício de apresentar o clássico literário a um leitor
que ainda não dispõe de material lingüístico e enciclopédico para interagir com obra de grande
porte, pois
A leitura dos clássicos universais é fundamental. Por meio da aproximação da
grande tradução literária, conhecemos as histórias empolgantes de que somos
feitos. Lidos preferencialmente na infância ou na adolescência passam a fazer
parte indissociável da bagagem cultural e afetiva incorporada pela vida afora,
ajudando-nos a ser quem somos, construindo a personalidade. As paixões, as
aventuras, os sentimentos, as ações, qualidades e defeitos do gênero humano estão
57
todos lá, à espera de resgate, da maneira peculiar de cada leitor buscá-los. Matéria
inesgotável para reflexão, contribuem para a formação do indivíduo ético, tocando
o íntimo da sua natureza humana.
(Pereira: 2005)
As palavras de Maria Teresa Gonçalves Pereira ecoam as idéias de Ana Maria Machado,
de Monteiro Lobato, de Carlos Heitor Cony, de Marina Colasanti, de Ferreira Gullar e de
tantas vozes que se colocam a favor de um texto intermediário, um texto que prepararia o
leitor para o verdadeiro encontro com a obra integral, ordenada, eminente em seu gênero.
A necessidade das adaptações para o público juvenil está diretamente ligada à formação
de uma bagagem cultural. A leitura dos clássicos (adaptados ou não) nos possibilita um
acesso mais tranqüilo a textos posteriores, uma vez que a intertextualidade é um recurso
bastante utilizado por todos os autores; é comum encontrarmos alusões e referências àquelas
obras. Só pode perceber o jogo intertextual o leitor que tiver posse do texto-base, aquele de
onde partiu o autor para dialogar com o passado, trazendo-o de volta de maneira renovada,
em forma de fábula ou de relato.
Os postulados da narratologia, apresentados por Mieke Bal (2002), crítica literária, foram
trazidos por Monteiro (2005), que os adequou aos estudos das adaptações. Ele resume com
clareza as idéias de Bal e mostra os três níveis básicos de narrativa apresentados por ela:
fábula (fabula), relato (story) e texto (text). Na fábula, os acontecimentos aparecem descritos
e obedecem a uma ordem cronológica; no relato, não há a preocupação com a cronologia, ele
pode ser apenas um recorte ou um resumo; no texto, o relato é tratado de modo a alcançar o
máximo de valor estético. Para Mário Monteiro
As adaptações escolares baseadas em clássicos da literatura, por serem paráfrases,
não se referem mais aos textos anteriormente escritos (e canonizados), mas aos
relatos e às fábulas pré-existentes. As melhores adaptações do ponto de vista
literário são as que se referem aos relatos (stories). As que se propõem a ser
meramente fábulas, mesmo que corretas e válidas pedagogicamente, são as que
tendem a ser classificadas como medíocres. (Monteiro, p.13)
O processo de adaptação muito se parece com o de tradução, pois ambos são processos de
produção de um novo texto; no caso das paráfrases, a tradição é apresentada de maneira
atualizada no contexto histórico no momento da produção.
Talvez pudéssemos, ainda uma vez, destacar a estratégia discursiva dos textos em foco.
No caso da tradução, percebe-se a intenção do tradutor: “apagar-se”. Parece que ele deseja dar ao
58
leitor a impressão de que estaria lendo o original. Em geral os nomes dos tradutores são
desconhecidos; é possível que se compre (leia) o livro pela “grife” do autor.
Já no caso da adaptação, o caminho iria na direção contrária: a “marca” valorizada seria
a do escritor-adaptador. A autoridade, expressa pelo nome de quem adapta, convence o leitor a
ler a obra. A tradução ganha credibilidade se realizada por escritor de reconhecido valor literário.
Se, por exemplo, Clarice Lispector ou Ferreira Gullar traduziram, então o texto deve ser bom,
pois são grandes escritores.
2. Clássicos adaptados: forma e conteúdo em questão
De tanto escrever para elas [as crianças], simplifiquei-me, aproximei-me do certo
(que é o claro, o transparente como o céu).
Ah, Rangel, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não
compreender isso e considerar a criança “um adulto em ponto pequeno”, é que
tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno.
Monteiro Lobato
Como vimos na seção anterior, Carlos Jansen e Figueiredo de Pimentel já demonstravam, no
século XIX, preocupação com textos lidos por crianças e jovens. Com a escolarização da leitura,
Monteiro Lobato, no século XX, passa a se ocupar do material oferecido aos jovens leitores; o
escritor-editor torna-se o grande responsável pela execução dos planos iniciados pelos ilustres
estudiosos.
Adequar o conteúdo dos clássicos universais, atualizando a forma para expressá-lo com
clareza, foi proposta apresentada e defendida, com galhardia, por Lobato ao longo de toda sua
vida. Por esta razão, o autor de Emília no país da gramática mereceu ocupar um espaço bastante
generoso na pesquisa. Ele é fonte obrigatória para quem deseja compreender o processo de
adaptação dos clássicos para leitores iniciantes. Sua crítica ácida aos dogmas da gramática
perpassa pela obra inteira. Emília, ao visitar o país da gramática, expressa as dúvidas de muitos
leitores. Ela é transgressora e propõe modificações radicais no sistema da língua.
59
Lendo as cartas de Lobato, principalmente as endereçadas a Godofredo Rangel, percebe-se a
preocupação do “pai da literatura infantil brasileira” em escrever para um público cuja
competência lingüística ainda se encontra(va) em processo de desenvolvimento.
Nas primeiras décadas do século XX, as histórias estrangeiras chegavam pelas traduções
portuguesas. A língua de Portugal era muitas vezes uma barreira para leitores brasileiros,
porquanto apresentava palavras desconhecidas em nossa variedade. Outras vezes o leitor caía em
verdadeiras armadilhas, quando se defrontava, por exemplo, com palavras iguais, porém de
significados diferentes.
Lobato desejava que os brasileiros compreendessem a essência das histórias. Em 1925,
escreve a Rangel: Estou a examinar os contos de Grimm, dados pela Garnier. Pobres crianças
brasileiras! Que traduções galegais! Temos de refazer tudo isso – abrasileirar a linguagem.
(1959, p.275).
Eis o seu propósito: dar ao público a oportunidade de conhecer os clássicos na língua
portuguesa do Brasil. Lobato, como tradutor ou como adaptador, deixa marca própria, pois
elabora o texto com a mesma artesania apresentada em seus trabalhos autorais.
A amizade com Anísio Teixeira, comprovada pela alentada corresponncia entre os dois,
propicia um olhar para o universo infantil, provocando uma reflexão sobre o papel da Escola na
formação dos brasileiros. Em carta de 1934 a Francisco José de Oliveira Viana, professor de
Direito, Ministro do Tribunal de Contas da República, membro da Academia Brasileira de Letras,
o autor de Emília no país da gramática afirma:
Há caminhos novos para o ensino das matérias abstratas (...). O livro como temos
tortura as pobres crianças – no entanto poderia diverti-las, como a gramática da
Emília o está fazendo. Todos os livros podiam tornar-se uma pândega, uma farra
infantil. A química, a física, a biologia, a geografia prestam-se imensamente
porque lidam com coisas concretas. O mais difícil era a gramática e é a aritmética.
Fiz a primeira e vou tentar a segunda. O resto fica canja. (1986, p.96)
O projeto lobatiano demonstrava o desejo de luta contra a educação proposta pelos
“pedagogos reformadores”. Estava nos planos do autor fundar um Centro de Educação Moderna,
caso ficasse rico. O inconformismo e a esperança eram companheiros do homem que, em
diversos momentos, usava o recurso da ironia para dizer “verdades”. Nem mesmo nas situações
mais sérias, abandonava o tom sarcástico.
60
No ano de 1911, em carta a Rangel, anuncia: fundei aqui um colégio para aproveitar
duas coisas: um casarão imenso deixado pelo meu avô e um parente que não conseguiu estudar.
Que fazer de quem não conseguiu aprender, senão pô-lo a ensinar? (1
o
. tomo, p.305).
Ao escrever para Anísio Teixeira, reconhece o valor do educador baiano: Você é o líder,
Anísio! Você é quem há de moldar o plano educacional brasileiro (...) Com escolas
especializadas, com jornais e revistas, com casa editora, com livrarias, com cinema, com
estação de rádio própria, com estação teleemissora de imagens...
9
(1986, p.100-101).
No trecho da carta, observa-se a visão bastante moderna de educação. O reconhecimento
da importância de se trabalhar com diferentes linguagens, em sua multiplicidade de códigos com
os quais o indivíduo convive no cotidiano, revela a profissão de fé de um homem que não se
resignava à inércia cultural de um país grandioso como o Brasil.
Leituras – no plural – preconizava José Bento Monteiro Lobato. Defensor de diferentes
suportes, preocupou-se, desde cedo, com o problema da leitura na infância. Não tardou em
perceber a importância da leitura de entretenimento para a educação das crianças; em 1920, a
editora e gráfica Monteiro Lobato lança o álbum ilustrado A menina do narizinho arrebitado. Ele
próprio distribuía seus livros pelas escolas. Os textos do grande contador de histórias foram,
porém, alterando sua rota: de pura imaginação para a preocupação com o ensino. Sem abandonar,
contudo, o mundo do divertimento, passa a “ensinar matérias escolares”: História (História do
mundo para as crianças), Geografia (Geografia de Dona Benta), Gramática (Emília no País da
Gramática), Aritmética (Aritmética da Emília). Como afirma Cassiano Nunes, na introdução do
livro Monteiro Lobato Vivo (1986), fazendo referência às palavras de Lúcia Miguel Pereira:
Lobato dera de maneira brilhante a sua contribuição ao modernismo brasileiro.
Note-se que Lobato realizou sua literatura infantil instigado por três necessidades:
a de influir espiritualmente no país; a de se manter e manter também suas
campanhas ruinosas, e, por fim, a de se esquecer das angústias da vida, se divertir.
(p.18)
Para atingir seus objetivos, o escritor lança mão de todas as possíveis influências capazes
de interferir no universo infantil. Voltou-se então, na série Sítio do Picapau Amarelo, para as
adaptações de textos infantis: Peter Pan e os piratas, Os trabalhos de Hércules, Hans Staden. Já
no primeiro volume da obra, Reinações de Narizinho, os personagens do sítio vão ao país das
9
Grifos nossos
61
fábulas e lá encontram La Fontaine e Esopo. Ele não deixou de fora os desenhos animados. Traz
ao sítio o Gato Félix e o marinheiro Popeye.
Em O Picapau Amarelo, o leitor vê desfilar personagens do mundo fantástico: Pequeno
Polegar, Hänsel e Gretel, Alice, Barba-Azul, Sherazade, Menina da Capinha Vermelha, Gata
Borralheira, Branca de Neve, Capitão Gancho, Barão de Münchausen... Para o sítio foram,
também, personagens da mitologia grega: Medusa, Perseu, Rei Midas, Centauros, Netuno...
O sítio de Dona Benta apresenta-se como um espaço democrático, pois abriga todos, sem
preconceitos. As vozes de adultos e crianças se misturam, assim como as histórias universais.
Dos hóspedes do sítio, a dupla Dom Quixote e Sancho Pança recebe um tratamento especial por
parte do narrador e de Emília que, entusiasmada, declara: Acho Dom Quixote o suco dos sucos. A
loucura chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes interessantes que há no
mundo. (Picapau Amarelo, p.169). Os personagens cervantinos foram homenageados por Lobato
com o livro Dom Quixote das crianças, escrito especialmente para contar a história do Cavaleiro
Andante. Sobre tal obra reservamos adiante uma seção especial.
Dona Benta recebe em sua casa o Cavaleiro de la Mancha. Ele, agradecido, dirige
algumas palavras à velha senhora: _ Ilustre dama – disse ele –, muito me penhora a gentileza de
tão alta acolhida. O vosso palácio me será de repouso e o vosso convívio me demonstrará que o
mel da bondade ainda flui dos nobres corações. (idem, p.170).
Neste ponto fica bastante clara a intenção de Lobato: refletir sobre o uso de diferentes
formas de linguagem, pois a fala seguinte é de Emília que, cochichando com Narizinho, critica o
modo de falar do herói espanhol: _ Que mania a dele falar complicado! _ É estilo antigo –
explicou a menina. – As palavras de dantes dançavam o minueto e usavam anquinhas e saias-
balão. Eu não entendo lá muito bem, mas gosto. (ibidem, p.170).
É recorrente na obra o valor dado aos bens culturais da humanidade. Lobato pretende
(re)apresentar os textos fundadores da nossa história, aqueles que formam a base do saber
universal. Em seu discurso, traz à cena, sempre que possível, temas relevantes para a reflexão. Ao
pedir a Belerofonte que falasse de sua vida, da vitória sobre a Quimera, Emília nos leva a
Homero, “um cego que andava pelas ruas contando histórias” (Picapau Amarelo, p.200). Lobato
põe diante dos leitores jovens o grande poeta da Antigüidade e os principais poemas daquela
época –Ilíada e Odisséia. Aí está mais uma oportunidade para o escritor passar suas crenças, suas
ideologias. Pela voz do herói grego, ouvimos o recado de Monteiro Lobato:
62
_A Ilíada e a Odisséia!
10
Vovó já nos falou neles.
_Mas não basta conhecê-los de nome – observou o herói; – é preciso lê-los.
_ Vovó diz que ainda é cedo – que há uma leitura para cada idade.
_ E tem razão. Realmente ainda é cedo para vocês compreenderem Homero –
disse o grego. (idem, p.200)
Emília, irreverente como sempre, interrompe a fala do herói grego e pede que ele conte as
aventuras para vencer a Quimera, apagando-lhe o fogo. Belerofonte começa, então, a buscar
velhas recordações a fim de descrever a cena em que se bateu contra o hediondo monstro de três
cabeças – uma de leão, outra de cabra, outra de serpente. O grego relata que, em sua época, era
comum os jovens saírem em busca de aventuras. Mais uma vez a boneca de pano interrompe para
comentar: _Tal qual o Senhor dom Quixote – lembrou Emília. –Ele também varejava a Espanha
atrás de aventuras – mas apanhou demais, o coitado. Cada sova... (ibidem, p.201).
Devemos destacar a habilidade discursiva do grande escritor. Observa-se a preferência
pelo diálogo, marca do estilo de Lobato. O uso de tal estratégia é intencional, por reconhecer que
a narrativa fica mais “viva”, uma vez que dela todos podem participar, opinando, questionando,
discutindo pontos de vista. A fusão do novo e do velho é outro recurso bem utilizado. No mesmo
episódio em que Belerofonte é protagonista, ouvimos a voz de Pedrinho, neto de Dona Benta,
trazendo notícias do mundo moderno; ele fala em Mauser, em bala dundum, em lança-chamas
usados pelos alemães na guerra. Percebe-se a troca de saberes entre tradição e modernidade.
Preocupado com os dois extremos da cultura, Lobato intercala forma e conteúdo da
tradição com forma e conteúdo da modernidade. Dona Benta, para ampliar o repertório de
contadora de histórias, escreve a um livreiro em São Paulo a fim de fazer algumas encomendas.
Ao grito de Nastácia: __ É hora!, todos corriam para ouvir as histórias contadas/lidas pela avó
que, como ninguém, sabia adequar a linguagem a seus interlocutores:
_ Leia da sua moda, vovó! – pediu Narizinho.
A moda de Dona Benta ler era boa. Lia “diferente” dos livros. Como quase todos
os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do
tempo do onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele
português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava, por exemplo,
“lume”, lia“fogo”; onde estava “lareira” lia “varanda”. E sempre que dava com um
“botou-o” ou “comeu-o”, lia “botou ele” e ficava o dobro mais interessante.
(Reinações de Narizinho, p. 194)
10
Grifamos os títulos das obras para distingui-los do restante do texto.
63
Com Lobato, o livro para adoção escolar nacionalizou-se. A alma do povo do Brasil se
fazia presente. Nada escapava ao humor de Emília. Por meio de paródias, os personagens do Sítio
exerceram forte influência sobre os “forasteiros” da literatura estrangeira.
Monteiro Lobato escrevia para crianças com o desejo de contribuir para que elas fossem
adultos melhores. A fim de alcançar seus objetivos, traduzia e adaptava para o público jovem os
clássicos universais, como Pinóquio, Contos de Grimm, Andersen, Robinson Crusoé. Ele não
fazia a tradução literal; realizava uma “ordenação literária” do texto. Garantem os especialistas
que, às vezes, as traduções de Lobato superavam os originais. A preocupação com a forma e com
o conteúdo era constante. Não banalizar, não reduzir as obras recontadas, era o principal objetivo
do consagrado escritor paulista, que desejava colaborar na formação de indivíduos críticos.
Muitos jovens e crianças questionam a linguagem usada por Monteiro Lobato.
Considerada difícil por uns, é muitas vezes empecilho para a leitura da obra. Há que se refletir
sobre as múltiplas possibilidades do leitor diante da diversidade de mídias. O menino de hoje não
é o mesmo do século XX. Os clássicos, porém, continuam a nos encantar, desde que apresentados
em “embalagem” mais atual, daí publicações em quadrinhos, adaptações para cinema, TV,
teatro... Não nos devemos esquecer, todavia, da lição do criador da boneca falante: Um país se faz
com homens e livros. (América, p. 45)
Recomenda-se, então, que, seguindo as trilhas de Monteiro Lobato, levemos aos leitores
em formação livros em que os leitores tenham vontade de morar (1959, 2
o
. tomo, p.293).
Para que as crianças e jovens, principalmente, se interessem por ler um livro, é
fundamental a linguagem não funcionar como barreira; usar modos de dizer que se aproximem do
leitor iniciante. Tal postulado pode ser conferido na extensa obra lobatiana. À guisa de
exemplificação, destacamos algumas passagens em que a modalidade oral da língua se faz
presente, quer pelo uso de variantes mais prestigiadas quer pelo uso de falares mais populares.
É pela utilização dos mecanismos de linguagem que aproximamos a obra de Cervantes à
de Lobato. Veremos, inicialmente, o funcionamento da língua no discurso literário lobatiano.
Destacamos uma série de fragmentos para exemplificar os jogos com as palavras, as construções
de valor estético; enfim, o fazer artístico do autor. Mais adiante, procederemos à análise
lingüístico-discursiva do reconto Dom Quixote das crianças, fazendo um cotejo entre o texto
original e sua respectiva adaptação. Tal análise nos possibilitará perceber o quanto se
aproximam, pela linguagem, os personagens Sancho e Tia Nastácia. Distantes pelo tempo e pela
64
geografia, ambos são egressos das camadas populares. Cervantes e Lobato se aproximam no que
tange ao trabalho com a linguagem, porquanto usam recursos semelhantes.
Tia Nastácia, a negra empregada de D. Benta, se expressa em língua do “povo”, do
segmento não escolarizado:
_Acuda, sinhá! Estão pulando pela janela! Olhe quem está atrás de mecê! Um bichinho de óculos, que é
verdadeiro “felómeno...” (Reinações de Narizinho, p.122)
A maneira de se expressar da negra Nastácia é bem característica de um grupo brasileiro.
O uso do substantivo “sinhá” – forma de tratamento com que os escravos designavam a senhora
ou patroa – consta no dicionário como regionalismo de uso informal. O pronome de tratamento
“você” é encontrado, também, na forma “mecê”: uso informal da língua em determinadas regiões
do Brasil. Lobato destaca com aspas a palavra fora dos padrões da língua: “felómeno”.
Café, criançada! Seu “Bolorofonte”, café!... (Picapau Amarelo, p.229)
A dificuldade em pronunciar palavras novas e “difíceis” leva a um equívoco, o que
provoca o riso. Neste caso – uso de Bolorofonte no lugar de Belorofonte – um leitor mais
proficiente vai jogar com a idéia de “bolor”, o que proporcionará um tom de humor no texto,
pois o herói grego estaria embolorado, mofado e, por extensão de sentido, ultrapassado, obsoleto.
1. _São eles, sinhá. Vem tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria... (Reinações de
Narizinho, p.282)
No uso mais cuidado da língua, Nastácia deveria dizer “Vêm todos encarapitados em um
burro”. A negra, todavia, desconhece as regras da gramática de prestígio, da variante das pessoas
escolarizadas.
2. _ Nossa Senhora! Isto vai virar “hospiço”. (Picapau Amarelo, p.156)
Tia Nastácia revela desconhecimento da pronúncia correta – segundo a variante de
prestígio – da palavra “hospício”.
3. _Sei, porque quando um canta um número os outros não “correge”.
_Corrigem, boba. Correge é errado. (Aritmética da Emília, p.228)
65
As crianças revelam maior conhecimento no trato da língua de prestígio. Têm consciência
do “certo” e do “errado” no uso da língua. Vale ressaltar que a Lingüística ainda não havia nos
ensinado a observar o valor das variedades da língua. O espaço reservado à linguagem do “povo”,
todavia, denota uma abertura para diferentes modos de dizer; o discurso popular adentra o
universo literário pela pena dos escritores pré-modernistas e modernistas.
4.Pois é este Senhor Visconde que está me bobeando – explicou a negra.
_Eu aqui quieta escamando estes lambaris para o almoço, e o “estrupício” aparece de livrinho na mão e
começa a mangar comigo, com uma história de “seno” de “coseno” e não sei que história de
mangaritmos”. Eu estou cansada de dizer que não sei inglês, mas o diabo parece que não acredita...
_“Mangaritimos!” –exclamou o Visconde erguendo os braços para o céu – e plaft! Caiu por terra com
ataque.
(Reinações de Narizinho, p.223)
Mais exemplos de linguagem informal: bobear = enganar; de regionalismo: estrupício =
coisa despropositada; de desobediência à regência verbal canônica: mangar (de) = caçoar,
debochar; de formações neológicas: mangaritmos e de onomatopéia: plaft.
A língua é um tema recorrente na obra de Lobato. Em Caçadas de Pedrinho, flagramos, a
partir de uma reflexão sobre a origem indígena de algumas palavras, o seguinte diálogo:
_Por que não falamos no Brasil a língua dos índios, em vez da portuguesa? Não era a língua natural da
terra?
_Quando numa região se chocam dois povos, como aqui, vence a língua do mais forte. Os portugueses
suplantaram os índios; era natural que predominasse a língua portuguesa sobre a tupi. Mas a nossa língua
brasileira, a que familiarmente falamos e serve sobretudo às populações no interior do Brasil, é uma
verdadeira mistura do português e tupi, três quartos de português para um de tupi.
_É verdade, vovó, que a nossa língua é a mais bonita e rica de todas?
_É, sim, minha filha, para nós; para os ingleses é a inglesa; para os franceses é a francesa, e assim por
diante. Para os índios a mais bela está claro que seria o tupi. (p.120-121).
Defesa de livros de diálogos e figuras engraçadas:
_Venha ver, Emília, quanta letra saiu de dentro do coitado – disse a menina indo ao quintal despejar o
balde. _Eu bem digo que é muito perigoso ler certos livros. os únicos que não fazem mal são os que têm
diálogos e figuras engraçadas. (Reinações de Narizinho, p.225)
66
Sobre livros e leituras:
_ Mas eu li! – gritou Emília.
_E que tem que você tenha lido, bonequinha? O fato de a gente ler uma coisa não quer dizer que seja exata.
Os livros mentem tanto como os homens. (Picapau Amarelo, p.227)
O discurso de Emília é outra fonte interessante para análises lingüísticas. A boneca
tagarela, entretanto, não sé dá por vencida, não gosta de ceder; sempre encontra um jeito de
defender suas idéias. Ela tem algumas dificuldades com as palavras, o que se pode justificar pelo
fato de ser boneca de pano. Situada entre o mundo humano infantil e o mundo dos objetos, a
criaturinha está autorizada a dizer tudo; as asneirinhas de Emília são explicadas pelas
características da personagem. Em Reinações de Narizinho, Dona Benta propõe um concurso
para encontrar idéias novas. Vejamos como se comportou a Marquesa de Rabicó:
_Não é “círculo”, Emília, nem “escavalinho”. É circo de cavalinhos.
_Mas toda gente diz assim –retorquiu a teimosa criaturinha.
_Está muito enganada. Eu também sou gente e não digo assim. O Visconde, que está quase virando gente,
também não diz assim.
Emília teimou, teimou, e por fim acabou aceitando a metade da emenda.
_Já que a senhora “faz tanta questão”, fica sendo circo de escavalinho.
Dona Benta ainda insistia, dizendo que o diminutivo de cavalo é cavalinho e que portanto
escavalinho era asneira. Mas a boneca não se deu por vencida.
_É que a senhora não está compreendendo a minha idéia – explicou. _ Escavalinho é o nome do diretor do
circo, o célebre Senhor Pedro Malasarte Escavalinho da Silva, está entendendo? (p. 222).
Mais uma vitória para Emília que recorre, intertextualmente, a outro personagem do
folclore nacional cuja marca é a esperteza: Pedro Malazarte!
Durante a apresentação do circo, acontece um imprevisto; para resolver a situação,
Narizinho entra no picadeiro com uma tabuleta, em que se lia a palavra “intervalo”.
_Intervalo tem dois LL! – gritou o Pequeno Polegar que era partidário da ortografia antiga, a complicada.
(idem,p.245).
67
Emília já revela sua forte personalidade desde os primeiros momentos em que começa a
falar; é determinada, teimosa:
_ Vou lá –dizia ela – e agarro nas orelhas da Dona Carocha e dou um pontapé naquele nariz de papagaio e
pego o Polegada pelas botas e venho correndo.
Narizinho ria-se, ria-se...
_Vai lá onde, Emília?
_Lá onde mora a velha.
_E onde mora a velha?
A boneca não sabia, mas não se atrapalhava na resposta. Emília nunca se atrapalhou nas
suas respostas. Dizia as maiores asneiras do mundo, mas respondia.
_A velha mora com o Pequeno Polegada.
_Polegar, Emília;
_ PO-LE-GA-DA! (Reinações de Narizinho), p.32)
Por meio da boneca e de Tia Nastácia, principalmente, Lobato cria neologismos,
onomatopéias, “desobedece” às regras da gramática canônica; “brinca” com o idioma. Passa,
implicitamente, aos leitores que a língua não é um sistema fechado; mostra que cada falante pode
manipular as palavras, jogar com elas, estimulando o ludismo da linguagem, enfim.
Inúmeros são os exemplos da criação na/com a linguagem encontrados na obra. Além dos
citados anteriormente, vale apresentar mais alguns de Emília: Vossa Cavalência (Reinações
Narizinho, p.199); Vossa Serência (Emília no país da gramática, p.60); deixe-se de fedorências...
(idem, p.99).
Voltaremos a explorar a forma dos textos lobatianos mais adiante, quando analisarmos a
linguagem de Lobato no reconto da obra de Cervantes. Em Dom Quixote das crianças, novas
reflexões serão trazidas, com o propósito de reiterar o que dissemos até aqui em relação ao
discurso produzido pelo escritor-tradutor-adaptador José Bento Monteiro Lobato, para quem, na
voz de Quindim, A língua é uma criação popular na qual ninguém manda. Quem a orienta é o
uso e só ele. (Emília no país da gramática, p.155)
68
2.1 Nas dobras da memória, na ponta da língua:
Rei Artur, Robinson, Alice...
Por que alguns textos ficam para sempre armazenados em nossa memória? Talvez esta
seja, provavelmente, uma indagação feita pela maioria dos leitores. Porque falam de temas
universais, dizem uns; porque são capazes de emocionar, afirmam outros; porque são atualizados,
defende um terceiro grupo. Enfim, muitas são as razões para que as histórias se imortalizem, se
perpetuem. Um par responsável por manter vivas personagens, eternizando-as, é, decerto, o
binômio transformação/continuidade ou, nas palavras de Mário Monteiro, mutação e
permanência (2006). Indissociáveis, quando o assunto gira em torno dos clássicos, porquanto
para se imortalizar, para permanecer ao longo dos tempos, uma narrativa freqüentemente sofre
modificações no plano da forma e do conteúdo.
Cabe chamar a atenção para o fato de muitas histórias clássicas circularem entre crianças
pequenas, que jamais tiveram acesso a livros com histórias de heróis universais. Qual a forma de
acesso deste público à narrativa? Evidentemente que a recepção é por meio de um contador de
histórias – avós, pais, tias, babás, professores etc. São muitas as oportunidades de se transmitir
um conhecimento guardado na memória. No caso dos pequeninos, a transmissão acontece pela
oralidade, estratégia utilizada no passado, e não só para crianças.
As influências da comunicação de massa no mundo moderno contribuem para a
manutenção de obras canônicas. Quanto ao recurso da oralidade, sabemos que certas histórias
viajam no tempo; transmitidas por várias gerações, podem sofrer ajustes, mutações, acréscimos,
reduções.
O mesmo ocorre quando um livro é transposto para outros códigos: história em
quadrinhos, cinema, TV... Antigamente o desafio do cinema era contar uma história já lida pelo
público. Hoje, tanto o cinema quanto a televisão encontram entre seu público-alvo um grande
contingente de interlocutores que não leram a obra anteriormente. Há, portanto, uma inversão no
percurso: em geral, assiste-se primeiramente ao filme, à minissérie, ao desenho animado, para,
depois, ler o livro, caso haja estímulo e motivação. Personagens memoráveis são aqueles que
extrapolam a realidade. Uns marcam sua presença em nosso acervo de leitura pela excentricidade,
outros pelo caráter, alguns se destacam pelo inusitado, pelo inesperado. Via de regra, são seres
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valentes, perseverantes em seus propósitos; participam de aventuras, tragédias, comédias capazes
de espelhar de maneira contundente as nossas audácias ou covardias. O mistério é outro
ingrediente a colaborar com a manutenção da imagem viva de certas figuras consagradas pelos
séculos.
Tomemos, como exemplo, Rei Artur com seus cavaleiros reunidos em volta da távola
redonda, traçando estratégias para encontrar o Santo Graal. Reis, rainhas, cavaleiros dominam o
imaginário. As aventuras do rei Artur conquistam o leitor que segue os passos do herói, sofrendo
com ele a cada batalha, espantando-se com a genealogia do rei, aventurando-se atrás do Santo
Graal – imagem emblemática do mundo religioso. Artur mexe com nossa sensibilidade de
diferentes maneiras, pois todos temos uma história familiar, vivemos grandes amores, lutamos
por nossos ideais. Além disso, que maior sedução a da espada poderosa, Excalibur, entregue pela
Dama do Lago ao que possui glória eterna.
Alice nos arrebata pelo tanto de fantástico que apresenta. Suas aventuras ficarão alojadas
para sempre na memória do jovem leitor.
Robinson Crusoé, por sua vez, espanta-nos por ser resistente à solidão, pela coragem de
continuar vivendo após um naufrágio, buscando solucionar as situações mais inusitadas. A
criatividade do protagonista serve de modelo aos jovens, dando-lhes verdadeira lição de vida.
Gulliver vive no imaginário coletivo devido às suas peripécias na ilha de Lilliput, terra
dos pequeninos, ou em Brobdingnag, terra dos gigantes... O romance satírico do pastor anglicano
Jonathan Swift (1976) critica a política e os costumes ingleses da época.
Robin Hood, herói também inglês, um fora-da-lei, que roubava dos ricos para dar aos
pobres, vive na floresta de Sherwood, à margem da sociedade. De autor anônimo, a história é
transmitida como “verdadeira”. Segundo contam, o protetor dos saxões teria vivido no século
XIII. A lenda foi escrita por Walter Scott e esta versão espalhou-se pelo mundo. No Brasil, são
inúmeros os recontos da história do “justiceiro”. Monteiro Lobato, Joel Rufino, Pedro Bandeira
são alguns autores que ajudaram a perpetuar as façanhas do ladrão Robin Hood.
A título de curiosidade, vale lembrar um episódio, acontecido no Rio de Janeiro, em que
estava envolvido um marginal cujo apelido era “Robin Hood do tráfico”.
A lista é infinita, mas cabe trazer o personagem criado por Alphonse Daudet: Tartarin de
Tarascon. Tartarin era um burguês pacato, vivia numa cidade francesa, Tarascon, de onde nunca
saiu. Sua história tem muito de semelhante à de Dom Quixote. O Cavaleiro Andante é de la
70
Mancha, Tartarin é de Tarascon; o herói de Cervantes possui grandes conhecimentos livrescos, o
de Daudet também. Personagem picaresco cuja mente cria ficções. Por meio de suas ilusões, ele
transmite simplicidade, poesia e humor para leitores de todas as idades.
Ulisses (Odisseu) luta na guerra de Tróia, vence o inimigo, principalmente pela astúcia.
Ao lançar a idéia do gigantesco cavalo de madeira, dentro do qual estariam alojados vários
gregos, prontos para atacar os troianos, Ulisses passa a ter um lugar de destaque entre seus pares.
Outro fator de sedução é a longa viagem que empreende de volta a sua cidade – Ítaca;
enfrentando provas e desafios preparados pelos deuses, ele se depara com verdadeiros rituais de
passagens. O leitor se solidariza com Ulisses, torce pelo retorno do herói ao lar, onde o
esperavam Penélope e Telêmaco – respectivamente mulher e filho do rei grego –, e para que
vença seus adversários.
Na Bíblia, há histórias que se perpetuam, que agradam a pequenos leitores, ficando
armazenadas na memória para sempre. Mesmo sem ler as páginas da Sagrada Escritura, a
maioria das pessoas tem conhecimento dos seguintes episódios: a expulsão de Adão e Eva do
Paraíso, a arca de Noé, a torre de Babel, a passagem do mar Vermelho, o nascimento de Jesus,
os Reis Magos etc.
Sem dúvida, Shakespeare não pode ficar de fora de qualquer lista dos clássicos
memoráveis. A obra mais popular do escritor inglês é Romeu e Julieta; o amor e a morte, temas
explorados no texto, mobilizam leitores de todas as idades. O cinema, contudo, tem sido muito
importante na divulgação de outros títulos desse autor, já que no Brasil ir ao teatro não é hábito
comum, ou porque o poder aquisitivo da população não permite ou devido a um problema
cultural. Em Otelo, Shakespeare nos leva a refletir sobre amor e ciúme, hierarquia e obediência –
sentimentos e valores comuns a todos. Hamlet, Macbeth e Rei Lear discutem o amor entre pais e
filhos, a disputa pelo poder – assuntos também universais, próprios da essência humana.
Das histórias orientais, que nos chegam basicamente pela oralidade, são inesquecíveis
Aladim e a Lâmpada Maravilhosa; Ali Babá e os 40 ladrões, As aventuras de Simbad, o Marujo.
Qualquer seleção é subjetiva, conforme já observamos nas primeiras páginas desta tese;
portanto os títulos citados poderiam ser outros. Acreditamos, porém, que, em se tratando de
histórias transmitidas, principalmente, pela voz de um contador, a lista apresentada não sofreria
tantas alterações.
71
Luta pela vida, confronto entre o bem e o mal, superação dos limites, entre outros, são as
principais razões para guardarmos de (cor)ação os bravos personagens que desfilam diante de nós
há séculos.
2.2 Duelando com os moinhos: o porquê de Quixote
Estudar um clássico da literatura universal é desafio para qualquer pesquisador da
atualidade, uma vez que a obra já foi explorada em (quase) todos os aspectos. Enfrentar a
provocação do texto ou render-se ao “inimigo”, mesmo antes do início do “combate”, é decisão
pessoal. Marche! – diz Moisés a seu povo. Assim fizemos, marchamos em direção à obra-prima
de Cervantes, monumento da literatura.
Em alguns momentos acreditávamos, como Sancho, que eram apenas “moinhos”. A
história do engenhoso fidalgo circula entre nós há quatrocentos anos e, ao longo desse tempo,
muitos estudos foram realizados. Estaríamos, portanto, respaldados por argumentos de autoridade
que nos ajudariam a analisar um texto de tamanha exuberância. Os simples “moinhos”
transformavam-se em “frestões”, mágicos encantadores, à medida que mergulhávamos no
universo quixotesco. Diante de uma fortuna crítica que gira em torno de cinco mil estudos, nos
espantávamos, mas não nos rendemos. Aceitamos o desafio e resolvemos observar a linguagem
da narrativa de Cervantes, enfocando suas respectivas adaptações para jovens, tema pouco
explorado e, acreditamos, de relevância para a história da leitura no Brasil.
A escolha de Dom Quixote de la Mancha como o clássico a ser estudado foi subjetiva,
mas não aleatória. Cervantes revolucionou a história da literatura ocidental. Segundo a crítica
especializada, com Dom Quixote inaugura-se uma nova forma de escrever; o romance moderno
surge das penas de Miguel de Cervantes. Não só por isso se deu a escolha, mas também porque o
texto cervantino é um manancial de recursos lingüístico-discursivos, utilizados com maestria,
servindo de fonte para tantos ilustres escritores que o sucederam. Como exemplo, poderíamos
citar a artimanha do narrador em “dialogar” com o leitor, modelo seguido por Machado de Assis
séculos depois. No prólogo, deparamos com as palavras: Desocupado leitor: Não preciso de
prestar aqui um juramento para que creias que com toda a minha vontade quisera que este livro,
como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse
imaginar... (1993, p.55).
72
Cervantes conseguiu! Produziu de fato uma obra ímpar, primorosa, cujo mérito principal é
a universalidade e a variedade dos elementos literários que apresenta. Do romance de cavalaria
aos episódios realistas, o livro reflete a vida, que pulsa com toda sua ambivalência, integralmente,
como ela é. Alonso Quijana é alto e magro; Sancho, baixo e gordo. O fidalgo é leitor; o
escudeiro, analfabeto. Um é solteiro, não tem filhos; o outro, casado e pai. Dom Quixote é louco,
tem visões, ao passo que Sancho Pança é racional, pragmático. Não há, porém, “o” melhor. De
toda dialética trazida às páginas do clássico espanhol, interessa-nos observar como tudo isso nos
é passado pela linguagem. Esta, sim, verdadeiro desafio de um escritor; moinhos que podem,
repentinamente, parecer gigantes.
Como os livros citados nas páginas anteriores, as aventuras de Dom Quixote, alojadas em
nossa memória, chegaram por diferentes caminhos. Câmara Cascudo chama a nossa atenção, em
Com dom Quixote no Folclore do Brasil, prefácio do livro de Cervantes (1952), para as marcas
da obra encontradas em solo brasileiro. Cascudo aponta, como prova da influência da cultura
espanhola em nossa pátria, a escolha do nome para um banco de pedra em que se instalou um
farol. Localizado na costa Atlântica do Rio Grande do Norte, o cabo fora “batizado”, em 1940, de
Teresa Pança, mulher de Sancho, fato comprovado pelos mapas de navegação. O pesquisador
encontra tal nome já mencionado em meado do século XIX, segundo o “Roteiro da Costa Norte
do Brasil desde Maceió até o Pará” (1877)
11
Além desse documento, Câmara Cascudo apresenta outras pistas – agora no plano da
linguagem – da presença da obra de Cervantes entre nós. O livro chega à América logo depois do
lançamento na Europa. A primeira remessa foi enviada em 1605, ano da publicação do
Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. O Brasil iniciava sua história e grande parte do
povo não era alfabetizada; logo, conclui-se que as histórias contadas por Miguel de Cervantes se
fixaram na memória popular via oralidade. As expressões usadas por Sancho, principalmente, que
circulam até hoje, já estavam na boca do povo brasileiro desde o século XVII. Os provérbios e
frases feitas são herança de fácil comprovação, pois ainda se fazem presentes em nosso falar. Dos
mais de duzentos rifões imortalizados pela pena de Cervantes, citamos alguns bastante utilizados:
Na primeira parte do livro:
11
Pereira, Felippe Francisco. Roteiro da Costa Norte do Brazil desde Maceió até o Pará...[Recife]: TYP do Jornal do Recife,
1877.
73
Vão buscar lã e voltam tosqueados (VII)
Quando uma porta se fecha abrem-se outras (XXI)
Uma andorinha só não faz verão (XIII)
Quem canta seus males espanta (XXII)
Tantas vezes vai o vaso à fonte (XXX)
Na segunda parte do livro:
De noite todos os gatos são pardos (XXXIII)
Para tudo há remédio, menos para a morte (XLVII)
Tendo eu a faca e o queijo na mão (XLVII)
Para dar e para ter muito rico é mister ser (LVIII)
Deus ajuda a quem madruga (LXXI)
Não só os ditos populares ficaram. Cascudo faz um levantamento de alguns usos e
costumes de nosso povo encontrados nas páginas de Miguel de Cervantes.
Na primeira parte, lemos a expressão pouco sal na moleira (VII), cujo significado pouco
juízo consta no dicionário de Morais desde 1831, segundo o estudioso. No capítulo XII, depara-se
com a forma de tratamento senhor meu da minha alma, forma também usada pelo povo
brasileiro.
Um costume nos sertões do Brasil era o de prender o pente no rabo do boi ou de cavalo.
Percebe-se, no exemplo, eco de hábitos trazidos pelos colonizadores, revelados por Cervantes em
seu texto literário: O barbeiro fez umas grandes barbas de um rabo de boi ruço ou ruivo, em que
o taberneiro costumava pendurar o pente. (I, XXVII)
Chamado tabu de fronteira, um risco no chão cria uma linha mágica delimitadora. No
capítulo XXXIV, ainda na primeira parte, Cervantes põe diante do leitor a encenação de Camila,
que finge querer matar-se diante do próprio amante, Lotário, para dissimular, na presença do
marido, Anselmo, o adultério: Lotário, repara bem no que te digo: se te atreveres a passar esta
raia, ou mesmo a chegar a ela, no mesmo instante me atravesso com este ferro.
Delimitar espaços por meio de linhas imaginárias era costume comum no interior do
nosso país, como nos ensinam as palavras do folclorista.
O autor do prefácio mostra que muitos contos registrados no livro de Cervantes
circularam oralmente entre nós: a história da princesa Megalona, os contos sem fim, as aventuras
de Carlos Magno etc. Vale lembrar que, à época, o Brasil era colônia portuguesa e Portugal
estava sob a jurisdição espanhola, cujo reinado pertencia a D. Felipe III. Enfim, hábitos, crenças e
costumes espanhóis entrecruzavam –se em terras lusitanas e viajavam para a América nas
caravelas dos navegadores.
74
Brito Broca, na introdução do livro prefaciado por Câmara Cascudo, classifica a obra de
Cervantes de novela picaresca”, gênero que surgiu na Espanha. Broca esclarece o termo pícaro:
indivíduo sem eira nem beira; semelhante a boêmio; aquele que se vai defendendo na vida de
qualquer jeito, por meio de múltiplas aventuras, conseguindo sempre se sair bem das mais
complicadas situações. O Cavaleiro da Triste Figura comporta-se, muitas vezes, como pícaro,
embora nem sempre consiga ser bem sucedido. Ele é mescla de duas linhagens: a do herói de
cavalaria, idealizado, em plena decadência no século XVI na Espanha, e a do pícaro, com suas
fraquezas e misérias.
Estas seriam justificativas suficientes para a escolha do clássico da literatura espanhola
representar todos os outros, entretanto, encontramos mais algumas: (i) o exemplo de fé: o herói é
leitor de Ignácio Loyola, cujo lema é em tudo amar e servir, fato comprovado no episódio em que
o padre e o barbeiro selecionam os livros da biblioteca de Dom Quixote a serem queimados. O
Cavaleiro andante também demonstra fé em si mesmo. Cervantes mostra pelas ações do herói
que acreditar nos ajuda a viver. Quixote (Dom Alonso) morre, quando deixa de acreditar em seus
sonhos. Vale a pena alimentar tal sentimento no leitor; (ii) o amor aos livros, o gosto que o
fidalgo demonstra pela leitura; (iii) a luta contra as injustiças, muitas vezes, às avessas, construída
via burlesco; (iv) a amizade entre Quixote e Sancho, elaborada de maneira espetacular ao longo
da narrativa. (v) o trabalho primoroso com a linguagem, a perfeição em jogar com o erudito e o
popular, indo de um lado a outro com tamanha competência etc.
Cervantes, sem dúvida, traz a público, de maneira exemplar, a essência humana, seus
pontos positivos e negativos. Nas malhas da narrativa cervantina nos enredamos, rimos e
sofremos com o Cavaleiro da Triste Figura. O jogo perdura por todas as páginas. Ao longo da
história, percebe-se o que Unamuno (1964) destaca em seu magnífico estudo: com o passar do
tempo, encontramos um Sancho quixotizado e um Quixote sanchizado. O prático, o incrédulo,
passa a sonhar, a ter visões ou afirmar que as tem, e o sonhador passa a enxergar a realidade.
Como exemplos do que acabamos de dizer, podemos citar (i) o momento do encontro entre
Quixote/Sancho e Dulcinéia(Aldonza) e outras lavradoras; (ii) o final da história, quando Dom
Quixote dá lugar a Alonso Quijana, que havia perdido o juízo para dar “vida” àquele que sairia
pelo mundo a fim de consertá-lo.
Portanto, a obra se eterniza porque apresenta forma e conteúdo singulares.
75
IV. A linguagem: ponto final
1. Um clássico em múltiplas linguagens: possibilidades de representação do
Cavaleiro da Triste Figura
Tanta gente
se esconde do sonho
com medo de sofrer
Tanta gente se esquece
que é preciso viver
César Camargo Mariano e Lula Barbosa
Nas primeiras páginas deste trabalho tivemos a oportunidade de conhecer definições de
clássico; algumas delas retiradas das entrevistas de alunos e de professores. Muitos confirmam
que clássico é o que perdura, o que ultrapassa as fronteiras geográficas e temporais. Vimos ainda
naquela seção que Dom Quixote é bastante popular; quase todos ouviram falar do Cavaleiro
Andante, porém pouquíssimos declararam ter lido a obra integral.
De posse dos dados trazidos pelos entrevistados, fez-se necessário observar os
mecanismos responsáveis pela manutenção da obra de Cervantes até nossos dias. Podemos inferir
que Dom Quixote tenha desembarcado no Brasil pelas mãos dos imigrantes, mas o que talvez
desconheçamos é que a história do fidalgo se ancora na oralidade. Mônica Pimenta Velloso, no
livro Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes (1996), estuda a revista satírico-
humorística D. Quixote, fundada no Brasil em 1895, pelo caricaturista Ângelo Agostini. Os
personagens de Cervantes são figuras centrais da revista, pois eles acompanham, comentando, os
acontecimentos sociais e políticos do cotidiano. A autora tenta resgatar algumas idéias de
Chartier (1992) no que diz respeito à nova relação leitor/texto, à simpatia do leitor pelo herói –
características marcantes no livro de Miguel de Cervantes. Em sua análise, a pesquisadora busca
dados em Câmara Cascudo (1976) e afirma:
Em um minucioso estudo etnográfico, Câmara Cascudo (1976) comprova a
presença dos personagens cervantinos, notadamente de D. Quixote, na memória
popular brasileira, via tradição oral
12
. O autor sugere a possibilidade de aquela
obra de Cervantes já ser conhecida aos olhos do Brasil seiscentista. Relembra que
ela foi escrita sob o reinado de Felipe II, período em que nosso país estava sob
domínio espanhol. Em 1605, ano em que foi publicado o 1
o
. volume do D.
Quixote, já se tem registro de mais de 300 exemplares na América hispânica
(Rodriguez Marin, 1911:40; e Cascudo, 1952:406). Portanto, a possibilidade de
intercâmbio cultural entre esses países é um fato a ser avaliado. (p.131)
12
Grifos nossos
76
Grande estudioso do nosso folclore, Cascudo analisa as interferências culturais sofridas
pelo povo brasileiro. O folclorista encontra muitos pontos de tangência entre as narrativas
populares brasileiras e as histórias e as lendas populares espanholas. Obras como O imperador
Carlos Magno e A donzela Teodora, originárias da Espanha, geralmente eram lidas em voz alta
para auditórios atentos. (Cascudo, apud Velloso, p.131)
Mônica Velloso orienta-nos a pensar na influência da narrativa espanhola em nossas
tradições populares a partir da dinâmica da “apropriação cultural” (Chartier,1992). A autora
adverte-nos: não se trata de concluir apenas que, entre nós, predominou uma leitura de
Cervantes via tradições populares, da mesma forma que soaria falso privilegiar essa leitura
através dos canais eruditos (p.132).
A construção do imaginário Dom Quixote/Sancho é resultado do entrecruzamento de
influências das culturas erudita e popular; as figuras do fidalgo e de seu fiel escudeiro, portanto,
não foram recortadas diretamente da obra de Cervantes por nossos intelectuais.
Ainda hoje personagens de Cervantes circulam entre nós. Tomaram a cena em 2005,
quando em vários países aconteciam eventos comemorativos dos 400 anos da obra. A
popularidade de Quixote levou-o às telas de cinema, aos palcos, ao mundo da música – erudita e
popular – à publicidade, aos quadrinhos, às charges, ao universo dos pintores e poetas. Enfim, a
imagem e a saga do cavaleiro andante, divulgadas oralmente, muito têm contribuído para a
imortalidade do mais famoso herói espanhol.
Rastreamos alguns momentos em que Quixote surge numa relação intertextual com outros
gêneros e em outros suportes. Escolhemos apenas alguns para ilustrar a pesquisa:
1.1 A imagem de Quixote na memória popular: a revista
A revista D. Quixote procura, através de charges, caricaturas e escritos satíricos,
expressar o caráter controverso e ambíguo da nacionalidade brasileira. Esta aparece
freqüentemente como algo ininteligível, absurdo e quixotesco. (Velloso, 1996:168). O humor, a
77
ironia e o contraste passados pelos personagens de Cervantes são aproveitados pela linha dos
colaboradores do periódico, que desejam mostrar o lado ridículo e inútil do sacrifício de
intelectuais da época para criar a nação e construir o Brasil moderno. As figuras de Quixote e de
Sancho são importantes neste cenário, pois expressam, paradoxalmente, os dois lados de nosso
país: imaginário/real. A caricatura aproveita a idéia do contraste para produzir o riso. A revista
desempenha um importante papel na sociedade brasileira: transformar a história da cidade e dos
intelectuais da época em matéria de memória.
Para ilustrar, destacamos do livro de Mônica Velloso, duas capas da revista: uma da
revista em sua primeira fase (1895-1902); e outra, a segunda (1917-1927).
Figura 1: revista Dom Quixote, 1
a
. fase Figura 2: revista Dom Quixote, 2
a
.fase
1.2 O Cavaleiro Andante e célebres pintores
Na pintura, o trabalho mais famoso, no Brasil, é o do paulista Cândido Portinari, que em
1956 pintou uma série de 21 gravuras em que retratava as duas personagens da literatura
universal: Dom Quixote e Sancho Pança. Estas gravuras foram motivo de inspiração para o
78
poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1972, escrever poemas alusivos à obra de Portinari. Em
2005, as gravuras de Portinari voltam a circular, agora na reescritura da saga do cavaleiro andante
elaborada por Ana Maria Machado. No livro O Cavaleiro do sonho: as aventuras e desventuras
de Dom Quixote de la Mancha, a autora faz uma parceria com Portinari; imagens e palavras
tecem, em verdadeira trança, uma narrativa para leitores em formação.
Salvador Dali e Pablo Picasso também contribuíram para a permanência dos personagens
cervantinos no imaginário popular.
Figura 3: Dom Quixote Figura 4: Dom Quixote e Sancho Pança
Dali (1946)
79
Figura 5: Dom Quixote
Picasso (1955)
Figura 6: Dom Quixote
Portinari (1956)
80
1.3 O Engenhoso Fidalgo nos poemas
Na literatura, especificamente em poemas, o destaque vai para o livreto com 21 poemas
de Drummond; os versos foram escritos quando o poeta completava 70 anos de vida. A título
de exemplificação:
Quixote e Sancho, de Portinari
Soneto da loucura
A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.
Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.
Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto em meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,
E não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá nas alturas.
Sagração
Rocinante
pasta a erva do sossego.
A Mancha inteira é calma.
A chama oculta arde
nesta fremente Espanha interior.
De geolhos e olhos visionários
me sagro cavaleiro
andante, amante
de amor cortês e minha dama,
cristal de perfeição entre perfeitas.
Daqui por diante
é girar, girovagar, a combater
o erro, o falso, o mal de mil semblantes
e recolher no peito em sangue
a palma esquiva e rara
que há de cingir-me a fronte
por mão de Amor-amante.
81
A fama, no capim
que Rocinante pasta,
se guarda para mim, em tudo a sinto,
sede que bebo, vento que me arrasta.
1.4 A saga quixotesca na música
Na música, há algumas obras merecedoras de nota, como Um sonho impossível, de Chico
Buarque e Ruy Guerra, versão brasileira para Impossible dream, de Joe Dorian, composição de
1965 para o musical da Brodway Man of la Mancha; O mundo é um moinho, de Cartola; Dom
Quixote, interpretada pelos Mutantes ; Dom Quixote, interpretação do grupo Engenheiros do
Hawaii e Dom Quixote, de César Camargo Mariano e Lula Barbosa, gravada por Maria Rita. Na
área da música instrumental, destaca-se William Pereira, violonista e compositor, que lançou, em
2004, um CD solo – Dom Quixote.
A intertextualidade nas letras das canções populares acontece de forma mais ou menos
implícita. Os famosos versos de Cartola, o mundo é um moinho/vai triturar seus sonhos, faz
alusão às aventuras quixotescas; na versão de Chico Buarque e Ruy Guerra para Impossible
dream: Sonhar / mais um impossível / lutar, quando é fácil ceder / vencer o inimigo invencível /
negar, quando a regra é ceder, também pode-se estabelecer uma relação entre o episódio em que
Quixote luta contra moinhos de vento.
O processo de recepção acaba por privilegiar sentidos ou mesmo por alterá-los. Quixote, de
início, era apenas um homem que enlouqueceu por causa das leituras dos livros de cavalaria.Ao
longo dos séculos, o personagem passou a representar o sonhador, o idealista. A teoria da estética
da recepção ajuda-nos a entender este movimento dos sentidos de um texto, pois vem mostrar que
no processo de leitura a obra literária se realiza na convergência do texto com o leitor (Iser,1996).
Como o leitor é marcado sócio-historicamente, o processo de recepção de um texto sofrerá, pois,
influências desse sujeito-leitor.
Abaixo, transcreve-se a letra da canção interpretada por Maria Rita
82
Dom Quixote
Cavaleiro andante estrela marginal
Sobre o Rocinante escravo de metal
Um acorde rasga o céu
Raio negro a cavalgar o som
E cavalgar sozinho...e cavalgar
Viverá pra sempre em nosso coração
O moinho vento nova geração
Um menino vai crescer
Procurando em cada olhar o amor
E caminhar, sozinho...e caminhar
Tanta gente se esconde do sonho com medo de sofrer
Tanta gente se esquece que é preciso viver
Combater moinhos, caminhar entre o medo e o prazer
Somos todos na vida, qualquer um de nós
Vilões e heróis, vilões e heróis
E seja onde for, qualquer lugar
Levar a luz que te conduz
Jamais abandonar o dom que te seduz
E seja onde for, qualquer lugar
Levar a luz que te conduz
Jamais abandonar o dom que te seduz
Pode-se perceber a manutenção do texto de Cervantes nos intertextos – poema e letra da
música. As marcas mais visíveis são as deixadas pela seleção lexical. Nota-se a recorrência de
certas palavras, como, por exemplo, Rocinante, cavaleiro, andante, sonhar, combater, lutar,
moinhos, sagrar. Elas servem de elo entre o texto original e suas paráfrases e paródias. Existe,
como poderemos observar mais adiante nos textos literários adaptados, um conjunto de
vocábulos responsáveis por sustentar a história do engenhoso fidalgo. São palavras-chave para
a manutenção da essência da narrativa. Os escritores-adaptadores ou autores de paródias não se
podem afastar do núcleo léxico-semântico, uma vez que, se o fizerem, correrão o risco de não
serem entendidos em sua intenção de manter um diálogo intertextual com o texto-base.
83
1.5 Dom Quixote e o burlesco das charges
As charges também dialogam com os personagens de Miguel de Cervantes. Em 2005,
Nani e Ziraldo exploram a figura de Quixote e do fiel escudeiro com o propósito de criticar os
atores da cena política.
Figura 6: Charge (Nani. JB, 2005)
A charge de Nani, publicada em 5/6/2005, no Jornal do Brasil, mostra dois cavaleiros em seus
cavalos: um é o Ministro Palocci; o outro, o Presidente Lula. Eles estão diante de alguns
ventiladores; dentro do balão lê-se “O problema, Dom Palocci, é o que vão jogar no ventilador”.
Vejamos o jogo intertextual.
A charge atualiza, na figura de Palocci, a idéia do louco, do sonhador; Lula nos passa a idéia
do ingênuo, do parvo.
A imagem constrói uma parte do sentido que o chargista pretende transmitir ao leitor, mas é a
palavra escrita dentro do balão que complementa a mensagem. A palavra “Dom”, como ensina
Aurélio, é Título honorífico de nobres ou de dignitários da Igreja. Ela traz imediatamente
Quixote à cena.
A sonoridade também joga no texto de Nani, pois os nomes PALOCCI e QUIXOTE têm três
sílabas, são paroxítonos e rimam na sílaba tônica. A palavra “moinho” joga com a imagem de
ventiladores, que recupera, pelo jogo de implicitude, a frase popular jogar merda no ventilador,
ou seja, estragar, deixar vir à tona a podridão, as “jogadas” ilícitas do governo. Ainda podemos
84
ler na charge, pela cor da roupa de Palocci, o perfil de um sonhador, de um idealista, de quem não
perde a esperança, representada simbolicamente pela cor verde; o vermelho no colete de Lula nos
remete à cor da bandeira e da estrela do Partido dos Trabalhadores (PT).
Para finalizar a leitura, observamos o antagonismo presente nas figuras em foco: Palocci está
para Quixote (letrado, leitor, com o saber formal, de livros, representante da elite cultural) assim
como Lula está para Sancho Pança (iletrado, operário,com o saber popular, usuário de metáforas
do cotidiano, provérbios).
Com o exemplo deste texto nada canônico, podemos reiterar o que diz a boneca falante de
Lobato, ao final da história contada por Dona Benta: - Morreu nada! – dizia ela – como morreu,
se Dom Quixote é imortal (Lobato, p.91).
1.6 O clássico nas histórias em quadrinhos
Não, a história em quadrinhos não é um gênero bastardo que veicula uma
subcultura nociva do agrado de voyeurs preguiçosos!
Ela é um modo de expressão que já se tornou um patrimônio cultural e artístico
imponente.
(QUELLA-GUIOT, 1994:5)
A leitura de imagens – procedimentos, estruturas, estéticas – atualmente vem sendo
acentuada pelos programas de ensino. A história em quadrinhos – imagética por excelência –
passou a freqüentar oficialmente a Escola a partir da década de 70. Primeiramente, a linguagem
iconográfica desse gênero textual servia de pretexto para as aulas de matemática ou para a
aprendizagem da língua pátria. Tal linguagem não deve, no entanto, ser um meio, mas um fim em
si mesmo.
Hoje já existe uma preocupação em formar o leitor dos códigos da HQ. Levar o jovem a
entender a estratégia narrativa deve ser o objetivo final do mediador da leitura, pois não só de
balões e onomatopéias se constitui a gramática da HQ, uma vez que, como todas as artes, ela
opera com matéria-prima própria, apresenta um modo particular de legendar o mundo, de
representar a realidade. Chamadas ainda de comics pelos anglófilos, as HQs podem, às vezes,
contar histórias sérias.
85
Sabe-se que o público leitor de tal gênero é muito grande. Pensava-se no início que
somente crianças se interessavam por esses textos. Mais tarde descobriu-se que muitos adultos
eram leitores vorazes das referidas histórias, cujo domínio é a aventura: faroeste, romances
policiais, ficção científica, narrativas burlescas etc. Alguns ficavam constrangidos de se
revelarem leitores de tal “literatura”, avaliada como menor, menos importante.
As histórias, publicadas em jornais e lidas por adultos que apresentam dificuldade na
leitura, principalmente dos clássicos, de linguagem mais elaborada e complexa, de difícil acesso,
ganharam prestígio à medida que foi estudada e valorizada pela instituição Escola.
As narrativas apresentadas pelos quadrinistas conquistaram seu lugar no mundo da leitura;
não da clandestina, da marginal, mas da leitura institucionalizada.
Pafúncio primeira história a atingir repercussão mundial (1913) –Tintin (1929), Asterix
(1959) e tantos outros ilustres personagens das HQs abriram as portas para esta forma de
expressão artística que, ao valer-se de imagens e palavras, engendra o mundo, muitas vezes pelo
lado humorístico.
Ditoso dia foi aquele em que o cartunista, roteirista e ilustrador Caco Galhardo aceitou
recontar a história do famoso clássico de Miguel de Cervantes – Dom Quixote de la Mancha – em
linguagem de HQ. Outros trabalhos já haviam sido publicados, como, por exemplo, o de Will
Eisner, pela Companhia das Letras e o de Márcia Williams, pela Ática, mas nenhum manteve
tamanha “fidelidade”, dentro dos limites de uma adaptação, ao texto original.
A pesquisa pretende observar algumas estratégias lingüístico-discursivas utilizadas pelo
cartunista da Folha de São Paulo na adaptação da saga do Cavaleiro da Triste Figura. Deseja,
ainda, conferir a competência de Galhardo na utilização da linguagem verbal e da não-verbal,
que, entrecruzadas, devem dar conta da intenção do artista: manter viva a tradição das Belas
Letras, sem, contudo, banir a modernidade.
Vale lembrar que o livro de Cervantes completou em 2005 – ano da publicação de Dom
Quixote em quadrinhos, de Caco Galhardo – quatrocentos anos de existência. Portanto, a
responsabilidade do autor da adaptação da obra-prima espanhola foi imensa. Inúmeros recontos
vêm surgindo ao longo dos séculos; logo há que se imprimir a marca pessoal para que o livro-
adaptação não seja mais um a contar a história de um fidalgo que enlouquece depois de ter lido
vários romances de cavalaria. Eis o desafio do autor de uma adaptação: deixar sua “grife”.
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O traço de Galhardo é singularizante, inconfundível. O Quixote que surge das tintas do
cartunista é ímpar, hilariante; provoca o riso desde a capa, quer pelo farto bigode quer pela
escassez de cabelos, contrastada pelos fiapos em forma de molas nas laterais da cabeça. Com
pitadas de exagero, próprio do mundo das HQs, o quarto e o quinto quadrinhos da página 5 já
revelam o estilo do autor: traços bem-humorados em perfeita sintonia com a narrativa que se
desenrola por meio de palavras nas legendas. No quadrinho número 4, Quixote aparece de cabeça
para baixo lendo seguidamente as novelas de cavalaria. No número 5, a imagem que vemos é a da
cabeça do herói partida ao meio; de dentro dela saem cactos, insinuando o que diz a legenda: E
assim, de pouco dormir e muito ler se lhe secaram os miolos. Colaborando para a produção do
sentido, expresso pelas palavras e pela imagem do fidalgo, há um sol escaldante. O leitor,
imediatamente, estabelece comparação e contraste com o quadro anterior, em que aparece Dom
Quixote lendo, à noite. Aí a lua brilha no céu e o texto diz: Enfim tanto ele se engolfou nas suas
leituras, que lendo passava as noites de claro em claro.
Lemos as HQs com imagens, palavras e cores... Sem remontar às grutas de Lascaux ou à
tapeçaria de Bayeux, os estudiosos apontam como ancestrais das narrativas em quadrinhos as
histórias em imagens do século XIX. Impressas em preto e branco, tais narrativas ganharam
cores e mais expressividade. Como exemplo, na página 30, no momento da luta com os moinhos
– gigantes aos olhos do cavaleiro da Triste Figura – vê-se, em quadro enorme, que ocupa toda a
página, a figura de um gigante surrando Quixote. Atrás do imenso homem, em letras também
gigantescas e em vermelho, está a onomatopéia PAF. O tamanho e a cor das letras são bastante
expressivos, revelando a violência com que o herói foi tratado.
Outra característica do texto em foco é o valor dado à língua, embora o livro apresente
algumas pranchas basicamente só de imagens, constituídas de uma única vinheta, como no citado
episódio em que Dom Quixote enfrenta os moinhos de vento (p 22-31). O recurso de usar
desenhos maiores é bastante eficaz, pois expressa a gravidade do momento e a fragilidade do
herói. Por outro lado, encontram-se, nas páginas 39-40, duas pranchas em que somente o código
verbal fica com a responsabilidade do sentido a produzir. A palavra, sem dúvida, assume um
lugar de destaque no livro. A presença do signo verbal se impõe em vários momentos. Percebe-se
o desejo de Galhardo: apresentar a exuberante arquitetura lingüística de Cervantes. Em certas
passagens, os diálogos e as falas do narrador são traduções fidedignas. A língua trazida às
87
páginas do texto em estudo não é redutora, não infantiliza a expressão de Miguel de Cervantes.
Eis alguns exemplos:
Ditosa idade e século ditoso aquele a cuja luz saírem as famosas façanhas minhas, dignas de gravar-se em
bronzes, esculpir-se em mármores e pintar-deste cativo coração! Praza a vós, senhora minha, memorar este
vosso sujeito coração, que tanto pelo vosso amor padece!
(Dom Quixote, p.7)
Valha-me Deus! Eu não disse a vossa mercê que visse bem o que fazia, que não eram senão moinhos de
vento, e só podia ignorar quem tivesse outros na cabeça?
(Sancho Pança, p.32)
Galhardo maneja bem o material com que trabalha. Revela, com maestria, em tom chistoso,
detalhes pictóricos; explora todas as possibilidades das HQs; destaca a letragem, quando acelera a
saga de Quixote (p.42-43). Utilizando o recurso da letra cursiva para contar em poucas palavras
muitos dos episódios vividos pelo cavaleiro e seu fiel escudeiro, o quadrinista garante mais
informação sobre o romance e estimula no leitor em formação a curiosidade para buscar o
original. Outra estratégia interessante é a de fazer o contraste de cores: fundo preto e letras
brancas nos enunciados do narrador; fundo branco e letras pretas nas falas das personagens.
Enfim, o livro Dom Quixote em quadrinhos, publicado pela editora Peirópolis, não é mais
um a contar as aventuras do Cavaleiro Andante. É, com certeza, uma obra de arte, um momento
de celebração ao clássico cervantino. Contribui para o trabalho de leitura de iniciação, sem,
contudo, deixar de agradar a leitores mais proficientes. Nós – leitores iniciados – também nos
deleitamos com o texto de Galhardo que, de forma primorosa, traz à cena a pujança da narrativa
cervantina em O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Percebemos as artimanhas
lingüístico-discursivas e reconhecemos o texto original neste primoroso trabalho de
intertextualidade.
Louve-se a sensibilidade do jovem cartunista que, de forma bem humorada, dialoga com a
tradição, empreendendo uma fantástica viagem pelo mundo da literatura. O simbólico e o
iconográfico, materiais de que se serve o artista para o gerenciamento de sentidos, são
manipulados com muita competência.
88
1.7 O Fidalgo Cavalheiro por um fio: o cordel
Não tinha muita comida
Mas tinha muita leitura
Não pensava nos problemas
Da casa e da agricultura
Não tinha ação, mas sobrava
Imaginação e cultura (p.4)
O projeto de J. Borges e de Jô de Oliveira – autor e ilustrador, respectivamente, do livro
Dom Quixote em cordel – é louvável, uma vez que almeja divulgar e imortalizar não só a obra de
Miguel de Cervantes como também a cultura popular brasileira, com seu modo de dizer em
estrofes e rimas, num tom narrativo bastante informal.
O livro é recomendado pelo MEC para utilização nas escolas, conforme noticiou o jornal
Folha de São Paulo do dia 27 de agosto de 2005. Dom Quixote em cordel traz a marca da
originalidade porque, ao recontar as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura, os autores contam
uma parte da história da cultura brasileira. Trava-se naquelas páginas um embate multicultural,
pois Quixote luta com Lampião, e Maria Bonita ocupa o lugar da formosa Dulcinéia. O cordelista
J. Borges propõe desta maneira um resgate da identidade de um povo para o qual notícias e
histórias chegam pelas pequenas páginas dos livretos, vendidos principalmente nas feiras, numa
linguagem simples, em forma de versos rimados.
O livro, em forma de cordel, faz um caminho inverso ao de Cervantes, uma vez que foi
traduzido para a língua espanhola por José Antonio Pérez. Este fato é interessante, pois os
leitores de uma outra cultura poderão entrar em contato com peculiaridades do Brasil, quer pela
história dos cangaceiros quer pelas imagens de Jô de Oliveira, que apresenta tão bem a paisagem
nordestina, com seus cactos e mandacarus, redes, peixeiras e facões, chapéus de couro etc.
Dado o primeiro passo – o livro foi lançado pela editora Entrelivros no primeiro semestre
de 2005, em Brasília –, logo a seguir veio à cena outra obra interessante, também em cordel: Dom
Quixote, do quadrinista Antonio Klévison Viana, publicado pela Tupynanquim, no segundo
semestre de 2005, em Fortaleza. Eis nossas raízes populares e o caráter artesanal do cordel
mesclando-se com o mito literário universal.
89
Oriunda de Portugal, a literatura de cordel chegou no balaio e no coração dos
nossos colonizadores, instalando-se na Bahia e mais precisamente em Salvador.
Dali se irradiou para os demais estados do Nordeste. A pergunta que mais inquieta
e intriga os nossos pesquisadores é "Por que exatamente no nordeste?". A resposta
não está distante do raciocínio livre nem dos domínios da razão. Como é sabido, a
primeira capital da nação foi Salvador, ponto de convergência natural de todas as
culturas, permanecendo assim até 1763, quando foi transferida para o Rio de
Janeiro.”
13
A literatura de cordel, como ensinam o historiadores, já existia desde os tempos dos
fenícios, dos saxões, dos conquistadores greco-romanos etc. Chegou à Península Ibérica por volta
do século XVI, e de lá – via Portugal – veio para o Brasil.
Por que tal gênero ainda encanta tantos leitores? Por que depois de tantos séculos ainda há
projetos para divulgar tal literatura? Estas perguntas nos inquietam e, a partir da leitura e análise
de Dom Quixote em cordel, tentaremos comprovar algumas hipóteses formuladas.
O desejo de divulgar a literatura de cordel é tão forte no povo nordestino que levou à
implantação do projeto Acorda Cordel, coordenado pelo poeta popular, radialista e publicitário
cearense Arievaldo Viana que, em janeiro de 2006, publicou no Rio Grande do Norte um cordel
intitulado Acorda cordel na sala de Aula. Viana preocupa-se com as questões lingüísticas dos
folhetos, como nos ensina José Romero Cardoso no segmento abaixo:
Arievaldo Viana desenvolve sua verve extraordinária alertando sobre a
necessidade de primar por normas ortográficas e gramaticais corretas, tendo em
vista que o cordel, quando usado para a alfabetização, principalmente de jovens e
adultos, deve respeitar a linguagem corrente, sem erros grosseiros que atrapalhem
os objetivos propostos em seu projeto de fomento ao processo ensino-
aprendizagem.
14
Nosso interesse está voltado exatamente para a linguagem desse livro-folheto. Rastreando
a linguagem verbal, suas astúcias, veremos a acuidade lingüística do poeta, ao pôr em versos a
história de Quixote em solo brasileiro. Observando o texto não verbal – as ilustrações –
estudaremos suas principais características e, finalmente, refletiremos sobre o diálogo entre texto
e imagem, a complementaridade das duas linguagens em seus modos de dizer tão particulares.
A primeira característica que chama a atenção do leitor é a disposição das palavras no
texto. Em forma de sextilhas, as estrofes apresentam-se rimadas, o que dá ritmo ao texto cuja
13
Informações obtidas no site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC)
14
Trecho destacado do artigo A importância do cordel em sala de aula, de José Romero Araújo Cardoso, consultado no site da
ABLC
90
principal característica é ser popular. A repetição da cadência melódica facilita a interlocução
com pessoas de diferentes grupos sociais, até mesmo com aquelas não escolarizadas. Vejamos o
exemplo destacado:
Existia uma grande aldeia
Igual a outras havia
E lá tinha um fidalgo
Magro, mas sempre comia
Carne, fritos e lentilhas
Ovos e tudo que existia (p.3)
A primeira estrofe do texto mostra um narrador na plenitude de seu ofício: contar uma
história. O uso da forma “existia” é uma estratégia discursiva, própria das narrativas, geralmente
em prosa. O verbo que abre o texto nos transporta, tal qual os contos maravilhosos, para um
tempo distante do nosso e recupera na nossa memória as histórias contadas por pais, avós etc. O
pretérito imperfeito torna presente o passado. Sabemos que expressões como “Era uma vez” ou “
“Há muito tempo atrás” e suas formas correspondentes são, na verdade, umbral para a entrada em
um momento histórico, real ou fictício. Tal recurso de linguagem revela também um modo
enunciativo: a voz narradora é a voz daquele que sabe e que vai contar, como testemunha
credenciada, episódios acontecidos.
Estabelecido o contrato de comunicação
15
o texto vai apresentar o universo cervantino,
trazendo à cena as informações sobre o fidalgo, traçando o perfil físico e psicológico do
personagem. Neste ponto vale discorrer sobre a camada lexical, fonte primária para a ligação
entre texto integral (original) e texto adaptado.
Um levantamento sobre o léxico aponta inevitavelmente para os termos recorrentes em
qualquer reconto. Um cotejo entre textos que reapresentam a história de Quixote nos mostra que
há um grupo de palavras (substantivos, adjetivos e verbos) indispensáveis. São palavras de efeitos
evocativos, capazes de tornar algo presente pelo exercício da memória ou da imaginação, pois
carregam informações e significados trazidos pelo autor do original.
Tais palavras, destacadas do livro em pauta, podem ser encontradas em quase todas as
adaptações da obra de Miguel de Cervantes:
15
“O termo contrato de comunicação é empregado pelos semioticistas, psicossociólogos da linguagem e analistas do discurso
para designar o que faz com que o ato de comunicação seja reconhecido como válido do ponto de vista do sentido.” Dicionário de
Análise do Discurso, p.130.
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Substantivos
aldeia
Alonso Quijano
amo
amor
armas
batalha
camponesa
castelo
cavalaria
cavaleiro
cavalo
dama
donzela
Dulcinéia
escudeiro
escudo
espada
Espanha
estalagem
feiticeiros
gigantes
herói
hospedagem
hospedaria
lança
leitura
loucura
Mancha
moinhos
pás
pátio
Quixote
Quixada
romance
sobrinha
SanchoPança
testamento
ungüento
vassalo
viseira
Adjetivos:
amada – fidalgo – formosa – louco – magrelo – nobre – plebéia
Verbos:
adoecer – enfrentar – ler – lutar – morrer
Apresentar Quixote no Brasil é a proposta da obra em cordel. Por seguir os caminhos da
paródia – no dizer de Afonso Romano de Santana: “intertextualidade das diferenças” (1988:28) –
o livro de J.Borges e de Jô Oliveira traz um cruzamento de vozes, a fim de proporcionar uma
nova maneira de ler o convencional. Sabendo-se que a paródia vai em busca da diferença, pode-
se constatar, inicialmente pelo léxico, tal estratégia dos autores.
O livro é “fiel” à obra de Cervantes até a página 15, momento em que Dom Quixote:
pensando em seu destino
pensou em seus descendentes
aprimorou o seu tino
e descobriu que ele era
brasileiro e nordestino.
Neste ponto o poema-narrativo muda o rumo e sofre uma estilização, dando forma estética
diferente ao original. Borges faz uma analogia entre o Cavaleiro da Lua Branca, personagem com
quem Dom Quixote se bate na história original, e Lampião. Ao final, a narrativa retoma o tom do
início e a história passa a ser contada tal como aconteceu no livro de Cervantes: o herói recupera
a lucidez, renega os livros de cavalaria, faz um testamento e morre.
A seguir, trazemos exemplos do universo lexical capaz de individualizar o texto em pauta:
92
/
Bahia baianos bandoleiro Brasil
Campina Grande cangaceiros
facão favela
Lampião
Maria Bonita Minas Gerais
Nordeste brasileiro
O léxico da memória e da história de nosso país é acionado a partir do grupo apresentado
acima.
Na tentativa de buscar mais envolvimento com o leitor, o autor usa recursos da oralidade.
Tais recursos são elaborados e arranjados no texto literário. Dino Preti, em estudo intitulado
Oralidade e narração literária, aponta algumas características da fala transportadas para o texto
literário, para simular uma interlocução oral. Preti mostra que tal estratégia cria uma ilusão no
leitor, pois este tende a acreditar estar diante de uma narrativa falada, “Mas o arranjo reflete um
árduo e coerente processo de elaboração da linguagem pelo escritor.”(Preti: 2004)
A literatura de cordel se relaciona diretamente com os repentistas, que falam de
improviso, desempenham o papel de jornalistas, noticiando em praça pública os eventos dignos
de divulgação. A linguagem dos livretos, por esse motivo, muitas vezes, não se ajusta muito às
regras da escrita; as marcas da oralidade se presentificam por intermédio de repetições, dos
marcadores conversacionais, de reduções, da seleção lexical, das estruturas sintáticas e de redes
semânticas populares.
Algumas ocorrências:
Repetição da camada sonora: ajuda a memorização, provoca efeito lúdico.
Lia tanto que ficava
delirando a vida inteira
e via em sua frente
bruxos, dragão, feiticeira
combates e desafios
que terminavam em asneira (p.4)
93
Repetição do verbo ter em lugar do haver
E lá tinha um fidalgo (p.3)
Tinha pouca gente em casa (idem)
Marcadores conversacionais
E nisso ele pensou (p.8)
Nisto ele pediu a todos (p.40)
Reduções
E pra caçar tinha dote (p.4)
Pra lutar com precisão (p.23)
Seleção lexical
Na boca do bestalhão (p.11)
Sai daqui seu bestalhão (p.19)
No dicionário Houaiss, encontramos a seguinte acepção para o termo destacado: “Uso:
pejorativo; que ou quem é ignorante, rústico ou falto de inteligência”.
Outro exemplo de trabalho de adequação do léxico à intenção de sentido do texto e ao
gênero textual:
Todos riam e comparavam
Ele com um pé de chinelo (p.12)
Houaiss ensina que a expressão “pé de chinelo” é considerada regionalismo e significa
“marginal pouco perigoso”.O substantivo composto aparece no dicionário grafado com hífen. O
cordelista não segue o rigor da gramática padrão, pois sua voz é a “voz do povo”, de uma camada
cujo saber não vem da instituição Escola, mas das vivências e experiências cotidianas, contexto
em que a língua informal tem mais espaço.
Se vierem são ralé
considerados cachorro (p.20)
94
O uso da palavra ralé reforça o tom coloquial da linguagem trabalhada no livro.
Encontramos, ainda em Houaiss, a explicação para o sentido: “Regionalismo: Brasil. Uso
informal: grupo que fica de fora de alguma coisa”.
A palavra cachorro também é apresentada de maneira a carregar um valor pejorativo. Para
o dicionarista, trata-se de um “diacronismo: obsoleto. Diz-se de o indivíduo cuja qualificação
social ou classe é muito baixa (p.ex: um escravo).”
50 anos tinha o cujo (p.4)
É muito comum em algumas regiões do Brasil o uso da forma substantivada do pronome
“cujo”, principalmente na variante que se apresenta em linguagem informal. No Houaiss
encontramos: “Regionalismo: Brasil. Uso: informal. Ser de que já se falou, quando não se
deseja, não se sabe ou não é possível nomeá-lo; sujeito, fulano, dito-cujo”
Ela mora na favela (p.27)
A palavra favela, originalmente, significa arbusto, muito comum em certas regiões do
Brasil (Canudos). Mudas da árvore foram trazidas para o Rio de Janeiro e plantadas em áreas
onde se estabeleciam pessoas de classes sociais economicamente menos favorecidas. Por
extensão de sentido, a palavra passa a significar “conjunto de habitações populares que utilizam
materiais improvisados em sua construção tosca, onde residem pessoas de baixa renda”.
(Houaiss)
Estruturas sintáticas
Me diga onde está
Dulcinéia meu amor (p.27)
o larga ele um só segundo (p.40)
Aqui se vê o uso dos pronomes em desacordo com a gramática padrão, a que legisla sobre o
texto escrito formal. No primeiro exemplo, o período é iniciado por pronome oblíquo,
contrariando as recomendações da referida Gramática. Na língua oral, todavia, este é uso
recorrente. No segundo exemplo, também seguindo o uso da fala, o pronome “ele” ocupa a
95
posição de objeto, quando a recomendação canônica é de ocupar somente a posição de sujeito da
sentença.
Redes semânticas populares
Que acertou a venta dele (p.28)
O emprego da palavra “venta” em sentido figurado, significando “rosto, cara”, é
recorrente na linguagem informal.
Deixando o mesmo moído (p.36)
O autor utiliza vocábulo da língua oral, às vezes desgastado pelo uso na linguagem
popular. Ao ligá-lo a uma rede semântica que progride com o decorrer do texto, o resultado é
uma forte valorização de significado e maior expressividade do termo.
Entre o popular e o formal caminha a linguagem de Dom Quixote em cordel. Há
nitidamente a intenção de jogar com as palavras, como nos exemplos: Maria Bonita/ Maria
bonita, na página 19, onde substantivos e adjetivos produzem efeitos de sentido diversos; o
antropônimo Maria Bonita dialoga com outro – Maria – que, acompanhado do adjetivo “bonita”,
nos faz pensar na possível beleza da mulher de Lampião. Teria sido a mulher do cangaceiro mais
famoso uma mulher bonita? Sabe-se que Maria Gomes de Oliveira era uma mulher muito
interessante.
Observa-se no texto o jogo com os parônimos cavaleiro e cavalheiro nas páginas 35 e 36:
Viu um cavaleiro vir; Cavalheiro da lua branca. Neste último verso percebemos a referência ao
personagem Cavaleiro da Lua Branca que, na obra original é o bacharel Sansão Carrasco. Ele se
disfarça em cavaleiro andante, primeiramente como Cavaleiro dos Espelhos. Desafia Quixote,
mas perde a luta. Mais tarde, como Cavaleiro da Lua Branca, derrota o fidalgo ensandecido e
exige que ele honre a palavra empenhada: abandonar as armas e abster-se de aventuras,
recolhendo-se de volta à sua terra por um ano.
O epíteto usado por J. Borges “Cavalheiro da lua branca” faz referência ao lendário
Lampião, chefe do bando que andava pelo sertão a pilhar casas e pessoas. Contam os
96
historiadores que Virgulino Ferreira da Silva usava chapéu em forma de meia lua, ornado com
estrelas prateadas. E foi exatamente com o perverso cangaceiro que Dom Quixote se bateu...
O texto oscila, ainda, quanto ao uso das regras da gramática padrão e da “gramática” da
língua falada. Se, em determinados momentos, as regras da primeira prevalecem, em outros, é a
segunda que domina, como nos exemplos:
1. Se estais com medo deixas (p.32)
mistura de pessoas – segunda do plural e segunda do singular.
2. Pertenço à cavalaria (p.8)
uso da regência verbal de acordo com a norma de prestígio
3. A mais formosa donzela
Que penso nela toda hora (p.36)
Trabalho de coesão textual normalmente apresentada na língua oral, no lugar de *A mais
formosa donzela em quem penso toda hora.
4. A derrota motivou-lhe
Um sofrimento profundo
Todos tentavam animá-lo
pra não vê-lo moribundo (p.40)
Mais uma vez a língua padrão surge exuberante ao lado de coloquialismos cotidianos; os
pronomes lhe, o (lo) – usados com rigor da modalidade escrita, ao lado da forma reduzida da
preposição para, recurso próprio da linguagem informal.
Esta é uma característica bastante importante para a construção de um texto que se apresenta
de forma híbrida: embora escrito, deseja manter as artimanhas da oralidade. O gênero cordel
simula na escrita a língua falada. Na obra analisada, pode-se afirmar que outro elemento entra em
cena: o desejo de ser prestigiada, pois já não é o simples livreto produzido para ser vendido em
feiras e locais populares. Dom Quixote em cordel ganhou estatuto de códice; é catalogado como
livro para ser vendido em livrarias.
As imagens de Jô de Oliveira são primorosas. Completam, em preto e branco, o universo
criado por Cervantes, adaptado por J. Borges. Os traços de Jô são fortes e dialogam com o texto
verbal em perfeita harmonia. Imitando a técnica da xilogravura, o artista plástico conta de
maneira iconográfica a saga do fidalgo que saiu pelo mundo a combater as injustiças.
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A estratégica disposição nas páginas surte um efeito excelente, pois – tomando a página
inteira – de um lado está posto o texto verbal; de outro, o não-verbal. Percebe-se que não há
privilégio de linguagem. O signo e o ícone entrecruzam-se para contar a história de Quixote,
embora os códigos mantenham suas especificidades e força narrativa.
Jô de Oliveira consegue expressar com maestria as características dos personagens. Sua
arte dá ao leitor a dupla dimensão: a do clássico e a da paródia. Somos apresentados ao Quixote
“original”, na página 21, em sua pose ao lado do escudeiro Sancho, cada qual montado em seu
animal; no entanto, ao transportar os espanhóis para o agreste do Brasil, o traço do adulto Jô de
Oliveira deixa emergir o conhecimento de mundo adquirido pelo menino Jô em suas experiências
na terra natal, Pernambuco. Surge, então, diante de nossos olhos, com força persuasiva, um Brasil
do cangaço, com uma flora bem peculiar e com uma plasticidade própria. São mandacarus,
chapéus de couro, facões, redes... que trazem para o universo do leitor um pouco do nordeste
brasileiro.
Na página 34, flagramos o encontro de Dom Quixote com Lampião. Neste momento da
narrativa, o escudeiro espanhol é derrotado pelo rei do cangaço, e segundo os versos
O Cavalheiro da lua branca
Só lhe fez essas torturas
Para que Dom Quixote
Perdesse suas bravuras
E chegasse a desistir
De toda sua loucura.”
(p.39)
Percebe-se a tentativa de suavizar a fama de mau de Virgulino, pois, para alguns, ele era o
próprio Robin Hood do sertão, capaz de roubar dos ricos e doar ao pobres.
Quixote e Lampião: dois justiceiros, dois loucos, duas lendas.
98
Figura 7: Quixote em cordel, p.21 Figura 8: Quixote em cordel, p.34
Encerrando o testamento
Sobre a cama desmaiou
Dando o último suspiro
A morte se aproximou
Para descanso do corpo
Dom Quixote se acabou. (p.43)
Lampião e Quixote. Duas figuras lendárias, sem dúvida. Um existiu de verdade: dele
vemos fotos, sabemos a data de nascimento, a cidade de origem, há provas, portanto é histórico.
Pode-se, enfim, atestar a existência física de Virgulino Ferreira da Silva. O outro é personagem
de ficção. Também tem nome, idade e cidade de origem, todavia tais dados são criados no
universo das palavras do discurso literário. Alonso Quijano, mais conhecido como Dom Quixote,
ou como Cavaleiro da Triste Figura, não teve existência física, mas vive e sobrevive até hoje
pela imaginação: de Cervantes, de J. Borges, de Jô de Oliveira, do leitor e de todos aqueles que o
imortalizaram em múltiplas linguagens.
Eis a conexão bastante feliz no livro Dom Quixote em cordel. Através de sextilhas –
recurso lingüístico próprio da literatura de cordel – e das ilustrações de Jô de Oliveira, o leitor de
qualquer idade pode tomar contato com dois (anti-)heróis da história da humanidade, de duas
lendas do ocidente. Cada um representa seu tempo e transita em espaços geográficos bem
singulares. Espanha do século XVII e cavaleiros andantes fazem parte do universo de Dom
Quixote; Nordeste brasileiro, século XX e cangaceiros são cenário de Lampião.
99
Esta é a essência do livro cuja narrativa pretende recontar a história do fidalgo que
enlouqueceu por ser leitor voraz de romances de cavalaria e revelar como, em seu último gesto de
loucura, o herói e o fiel escudeiro saem da Espanha e chegam a terras brasileiras.
Para tal empreitada, dois grandes artistas se uniram para trazer a público um livro que
deveria ser bastante parecido com o folheto de cordel. Conseguiram, cada um a seu modo, com
ferramentas próprias. J. Borges faz bom uso da palavra – matéria-prima do cordelista –
essencialmente oral, visto que voltada para o popular. As rimas, as repetições, os coloquialismos,
os jogos semânticos etc. foram trabalhados com bastante cuidado para que a escrita simulasse a
fala. Jô Oliveira contribui – e muito – com imagens de grande expressividade.
2. Os “encantadores” nas adaptações literárias de Dom Quixote:
recursos lingüístico-discursivos
Dom Quixote continua encantando leitores de todas as idades. No Brasil, o número de
adaptações para jovens e crianças tem aumentado e isto está relacionado ao movimento em prol
de um público leitor em formação. Iniciado por Lobato, o projeto ganhou força na década de 70 e
se mantém cada vez mais arrojado, graças a alguns abnegados que lutam contra verdadeiros
“moinhos” interpostos em seus caminhos.
Não podemos nos esquecer do fato de que não basta apenas uma boa história para fazer
um livro. É preciso saber contá-la! Para isso, é necessário jogar com a língua, a fim de tornar a
narrativa atraente, sedutora. Um texto é o equilíbrio entre o que está sendo dito e o como se está
dizendo. O prazer de ler os cinco volumes da obra original não reside somente na oportunidade
de conhecer a saga do cavaleiro errante. Está no brilhantismo demonstrado por Cervantes ao
produzir um discurso por meio do qual nos conta as peripécias de um homem que enlouquece por
influência da leitura das obras de cavalaria, cuja hegemonia o autor deseja criticar.
Tarefa difícil a de recontar uma obra tão extensa em cem páginas. O bom contador de
histórias, no entanto, sabe captar do texto original a essência e (re)arranjá-lo com maestria, a fim
de possibilitar a interação do interlocutor com o que há de mais relevante numa peça literária.
Este estudo toma como ponto de partida a narrativa integral, editada pela Aguilar,
traduzida em língua portuguesa pelos viscondes – Castilho e Azevedo. A editora justifica a
100
escolha: por conservar o sabor castiço de seus torneios e frases o que sem dúvida se deve ao
estreito parentesco existente entre as duas línguas
16
. A edição da Nova Aguilar, entretanto, não
se atém à tradução portuguesa; depois de cotejá-la com outras edições em língua castelhana, fez
alguns ajustes, principalmente em determinados momentos em que os autores lusitanos
suprimiram várias passagens, quer por ignorar o verdadeiro sentido ou intenção de certas
palavras, quer pelo desejo de suavizar os trechos em que se manifesta a linguagem popular da
época quer pelo uso de algumas expressões menos respeitosas em relação à Igreja. A referida
edição é enriquecida por um Esboço biográfico de Cervantes e por um Breve guia para o leitor
do Quixote; tais textos colaboram bastante com o leitor na medida em que ajudam a compreender
o momento sócio-histórico da produção e orientam o interlocutor pelos labirintos da rede
romanesca de Cervantes.
Pelo esmero, a edição em destaque é de grande valia a estudiosos da obra de Miguel de
Cervantes, principalmente aos que se debruçam sobre questões lingüísticas.
Partimos do postulado trazido por Wolfgang Iser: a recepção de uma obra literária
envolve vários fatores, por isso ser relevante o processo de editoração, a escolha de um texto
cuidado, a capa da obra... Em O ato da Leitura, Iser nos mostra o texto como processo: O texto é
processo integral, que abrange desde a reação do outro ao mundo até sua experiência pelo
leitor. (p.13). Com esse estudioso, aprendemos que existem efeitos de sentido no ato da leitura,
conceito importante para tratarmos das adaptações, pois, entendendo a noção de texto como
processo, há que se voltar para o leitor, antes colocado em um plano secundário. As paráfrases
dos clássicos pretendem levar obras canônicas a leitores iniciantes, cujo conhecimento de mundo
ainda é insuficiente para produzir sentidos em textos mais complexos.
O ato de leitura envolve cooperação, interação; e isso só acontece quando há sintonia
entre as partes envolvidas no jogo interlocutivo. Um jovem inexperiente só pode interagir com
textos cujo trabalho lingüístico não tenha atingido um grau muito elevado de dificuldade.
A estrutura da obra de que fala Iser é, portanto, um dos aspectos fundamentais para a
interação texto/ receptor. A obra literária se realiza então na convergência do texto com o leitor
(p.50). Tal estrutura é composta de um aspecto duplo: (i) aspecto verbal, que dirige a reação e
impede a arbitrariedade; (ii) aspecto afetivo, cumprimento do que está preestruturado
verbalmente pelo texto. (p.51)
16
CERVANTES, Miguel . O Engenhoso Fidalgo D.Quixote de La Mancha. Nota editorial.
101
Sendo o leitor peça chave para a teoria da estética da recepção – que muito contribuiu
para a mudança de atitudes por parte dos promotores da leitura, principalmente dos professores
de Língua Portuguesa e de Literatura –, é para ele e por ele que os adaptadores escrevem de
forma mais simplificada as narrativas que atravessam fronteiras espaciais e temporais,
constituindo o repertório de leitura, permanecendo na memória dos apreciadores de boas
histórias.
2.1 Quem conta um conto aumenta ou diminui um ou mais pontos:
a língua como instrumento de mediação
Agindo como Fristão, o sábio feiticeiro da narrativa de Quixote, o autor-adaptador usa,
algumas vezes, recursos lingüístico-discursivos com o propósito de deixar o leitor encantado com
a história do fidalgo Alonso Quijano. Uma leitura atenta do início do primeiro capítulo nos
direciona para uma análise comparativa. E assim foi feito. Tomando como ponto de partida a
tradução portuguesa dos viscondes, rumamos para outros textos cujo propósito é contar a saga do
cavaleiro andante por meio de um discurso literário.
A leitura comparativa põe diante de nós algumas questões: (i) o autor-adaptador, como
todo falante, é marcado sócio-historicamente e está impregnado da língua, que se movimenta e se
manifesta numa sincronicidade; (ii) a preocupação com o público-alvo é evidente; por isso o
escritor faz ajustes lingüísticos; (iii) a percepção de um mesmo objeto muda com o olhar de
quem o vê; daí encontrarmos algumas divergências entre a paráfrase e o original.
Num lugar de “La Mancha”, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia não há muito, um fidalgo, dos de
lança em cabido, adarga antiga, rocim, e galgo corredor.
(tradução integral, de Castilho e Azevedo: 1876-1878)
E Dona Benta começou, da moda dela: _ Em certa aldeia da “Mancha” (que é um pedaço da Espanha) vivia
um fidalgo, aí duns cinqüenta anos, dos que têm lança atrás da porta, adarga antiga, isto é, escudo de couro,
e cachorro magro no quintal – cachorro de caça...
(reconto de Monteiro Lobato: 1936)
102
O homem não tem importância. Era uma aldeia como tantas outras que havia na “Mancha”. Diferente era o
fidalgo, um desses de lança em riste, escudo antigo, magro rocim e galgo corredor...
(adaptação de Orígenes Lessa, 1976)
Fala do narrador: Houve uma vez em “la Mancha” um homem chamado Quixada, completamente
apaixonado pelos cavaleiros da Espanha antiga. Quixada gostava de ler sobre suas aventuras, e até vendeu
parte de suas terras para comprar mais livros sobre cavaleiros...
(adaptação em quadrinhos de Márcia Williams:1993)
Era um homem ossudo, de uns cinqüenta anos, o tipo fidalgo às antigas que ornamenta sua biblioteca com
lança, espingarda e um escudo bichado, artefatos que o ajudam a viver no passado...
Michael Harrison:1995 – em inglês.
(No Brasil, tradução de Luciano Vieira Machado: 2003)
Numa pequena aldeia da “Mancha”, província espanhola, vivia um fidalgo. Homem de costumes rigorosos
e decadente fortuna. Dom Quesada ou Quixano – nunca ninguém soube ao certo – vivia da exploração de
suas propriedades, que mal lhe rendiam para manter uma simples aparência de abastança. Homem forte,
altivo e nervoso, cultivava a caça como esporte e forma de abastecer melhor sua mesa.
(adaptação de José Angeli: 1997)
Na Espanha...há muito tempo... [em preto e branco dois homens conversam, Sancho e um outro. Sancho
começa a contar...] Em “la Mancha”, meu povoado, morava Alonso Quixano, o tempo todo mergulhado
em livros de cavalaria...
(adaptação em quadrinhos de Will Eisner, 1999)
Num lugar da “Mancha”, cujo nome não desejo lembrar, vivia, não faz muito tempo, um desses fidalgos
de lança no cabide, escudo antiquado, cavalo magro e galgo corredor.
(tradução e adaptação de Ferreira Gullar: 2002)
Era um fidalgo arruinado. Vivia na região da “Mancha”, na Espanha. Possuía apenas uma casa, um pedaço
de terra e um cavalo magricela. Jantava carne picada com cebola e vinagre. Comia lentilha às sextas-
feiras...
(tradução e adaptação de Walcyr Carrasco:2002)
Era uma vez um velho senhor dono de uma fazenda. Vivia na Espanha, num lugar chamado “Mancha”,
muito tempo...
(adaptação de Alexandre B. de Souza: 2004)
Num lugarejo em “la Mancha”, não há muito tempo, viveu um fidalgo desses de lança pendurada, adarga
antiga, rocim magro e cão bom caçador...
(adaptação em quadrinhos de Caco Galhardo: 2005)
Com certeza, vocês já ouviram falar de D. Quixote. Contam que viveu há muitos séculos em uma aldeia de
“la Mancha”, entre campos de trigo e moinhos de vento. O que talvez vocês não saibam é que Dom Quixote
não se chamava assim desde criança, pois na verdade havia sido batizado com o nome Alonso Quijano...
(Tradução de Marina Colasanti da adaptação de Agustín Sánchez Aguilar:2005).
Em algum lugar da “Mancha”, numa aldeia espanhola cujo nome não quero lembrar, vivia, faz muito
tempo, um nobre homem. Em sua casa às vezes faltava comida. Sua idade beirava os cinqüenta anos...
(adaptação de Leonardo Chianca: 2005)
103
14. Existia uma grande aldeia
Igual a outras que havia
E lá tinha um fidalgo
Magro, mas sempre comia.
Carne, fritos e lentilhas
Ovos e tudo que existia
(adaptação em forma de cordel , de J.Borges e Jô Oliveira:2005)
15. ......................................
Pois numa aldeia da “Mancha”
Residia, antigamente,
Um fidalgo sonhador,
Curioso, inteligente
Que lia dias e noites
De modo surpreendente
Seu nome: Alonso Quijano
Figura magra e esguia
Com cinqüenta e poucos anos
Gostava do que possuía
Comprando livros e livros
De heróis de cavalaria
(adaptação em forma de cordel, Antônio Klevison Viana:2005)
Em um lugar da Espanha, cujo nome ninguém lembra, mas ficava numa região chamada “Mancha”, há
uns quatrocentos anos, vivia um fidalgo empobrecido. Tinha uma lança e um escudo velhos, herdados de
algum tataravô, um cachorro magrelo e um cavalo esquelético, desses que eram chamados de rocim.
(Ana Maria Machado: 2005)
Tomando como referência o texto dos viscondes, passemos a comparar o início de 15
adaptações da obra de Cervantes. O léxico salta aos olhos do leitor-pesquisador por ser a
característica de alternância mais visível. Entre aspas, destacou-se a palavra “Mancha”, nome da
região onde se localizava a aldeia em que morava o herói. Somente dois autores deixaram de
mencionar tal informação.Quando a região de la Mancha não é citada – na versão de Harisson e
no cordel de J.Borges –, pode-se inferir que os autores das paráfrases não valorizaram o espaço
geográfico onde a história se desenrola, mas dirigem suas lentes diretamente para o homem. A
maioria mostra-se, portanto, fiel ao original, mantendo o topônimo como marca fundamental do
clássico de Cervantes.
Outras palavras e expressões modificam-se, atualizando-se, como, por exemplo, fidalgo. A
caracterização do personagem dá a nítida medida do quanto é subjetivo o ato de adaptar textos,
pois envolve processo de seleção e adequação. Alguns adaptadores mantêm a palavra “fidalgo”,
104
mesmo nas versões mais atuais; outros, porém, buscam formas mais próximas da linguagem do
jovem leitor. “Fidalgo” foi substituído por “velho senhor dono de uma fazenda”, “nobre
homem”, expressões em que permanece o sema da fidalguia, pois ser “dono de fazenda” ou
“nobre” era próprio dos que tinham a marca da fidalguia, da aristocracia. Vale observar as
diferentes formas de apresentação do herói: “Alonso Quixana”, “um homem chamado Quixadá”,
“Dom Quixote”, “Dom Quesada ou Quixano” “Alonso Quijano”. Trata-se do nome do herói,
portanto deveria ficar inalterado, uma vez que o nome de uma pessoa é marca individual, própria
da cada um, única. Há povos (indígenas), todavia, que nomeiam duplamente os indivíduos: um
nome para a família e outro para o restante da comunidade.
“Aldeia” é termo recorrente, quando se estuda o léxico da obra. Em alguns textos ela é
substituída por “lugar ou lugarejo”, “povoado”, ou simplesmente desaparece. “Lança” é uma
palavra que lemos em algumas versões; não há substituições para este termo.Se o autor acha
irrelevante tal informação, ele corta a palavra.
Já em “adarga antiga” (datação: 1041), o fenômeno é curioso. Somente três das quinze
adaptações usam tal palavra. Em geral ela é substituída por “escudo”: antigo, velho, bichado,
antiquado, de couro. “Rocim” é termo (datação: 1189) que dá origem ao nome do cavalo de Dom
Quixote. Nas adaptações, é substituído por “cavalo”: magro, magricela e esquelético. Nesta
seqüência de qualificadores, percebe-se com clareza que a figurativização do personagem sofre
graus de “rebaixamento”: magro, magricela e esquelético. O discurso em que tem lugar o adjetivo
magro (Gullar) ainda oscila entre o antigo e o novo, pois o autor troca “rocim” por “cavalo
magro” mas não faz o mesmo com “galgo corredor” (cão, cachorro). Já o texto em que o adjetivo
usado é “magricela” (Carrasco) mostra um “fidalgo arruinado” que “possuía apenas uma casa,
um pedaço de terra e um ‘cavalo magricela’” ; agora a descrição do personagem vai compor um
homem mais empobrecido do que o que nos apresentou Ferreira Gullar. O adjetivo “esquelético”
(Ana Maria Machado) revela um valor mais expressivo que “magricela”, além da intenção da
autora de não querer repetir palavras, uma vez que o cachorro já era “magrela”.
Outro ponto relevante destacado do confronto entre as diferentes adaptações foi a noção de
tempo. Curioso ver como em determinados textos os autores-adaptadores alteram radicalmente
esta noção. Pela categoria verbal, principalmente, o leitor recebe a informação de quando a
história acontece no passado. No “prototexto” (obra integral portuguesa: 1876) a tradução dos
viscondes informa que a história aconteceu "Não há muito [tempo]"; a enunciação está posta de
105
uma forma a aproximar o “tempo” do interlocutor ao do acontecido pelo herói. O leitor inscrito
no texto de Cervantes/Castilho é um leitor colocado próximo das histórias de cavalaria; ele é,
portanto, capaz de compreender bem o narrado.
Em 2 (vivia), 3 (era) , 4 (houve uma vez), 5 (era [uma vez] um homem ), 6 (vivia), 9 (era
[uma vez] um fidalgo), 10 (era uma vez), 13 (faz muito tempo) e 14 (existia), temos um grupo
de verbos e expressões que marcam a temporalidade da narrativa. Tudo ocorreu no passado e as
versões estão de acordo em manter dessa maneira.
Recuperando o tom dos contos fabulosos, o era uma vez e suas formas variantes – houve
uma vez, era, vivia e existia – com suas nuances semânticas nos transportam para um tempo
pretérito; o “contrato” assinado pelo leitor com o texto determina um deslocamento ao passado e
a possibilidade do imaginário, presentificando o vivido. Dividindo em grupos, talvez pudéssemos
dizer que era uma vez, houve uma vez e era trazem a marca do imaginário mais forte do que
vivia (=habitava, residia) e existia (= teve existência), porquanto estes dois últimos carregam
marcas de realidade. Na versão 15, o cordelista usa a forma residia; a escolha do verbo “residir”
acrescenta um valor de “verdade”, de comprovação, pois tal forma verbal denota estar
estabelecido, morar, ter residência fixa.
O jogo comparativo fica mais interessante quando ladeamos a versão 7: Há muito tempo
(Will Eisner: 1999) com a 8: Não faz muito tempo (Ferreira Gullar:2002) e nos interrogamos:
afinal, faz ou não faz muito tempo ? Talvez pudéssemos explicar a diferença entre o discurso de
Eisner e o de Gullar: os quadrinhos de Eisner trazem uma enunciação de um presente, logo muito
afastada da enunciação do discurso cervantino; o discurso de Gullar por sua vez quer ser fiel ao
do original, de onde partiu o tradutor e adaptador da obra.
Finalizando este percurso do uso do tempo, vejamos a versão 11 (Caco Galhardo: 2005). O
cartunista também mantém fidelidade ao original e usa Não há muito tempo. Nota-se que a
manutenção da língua usada por Cervantes é opção do artista, pois ele sabe que pode contar com
o apoio do código iconográfico para explicitar o sentido ao leitor do século XXI. Em 12 (tradução
de Marina Colasanti: 2005) – Há muitos séculos percebe-se um valor de precisão na passagem
do tempo. Em 16 (Ana Maria Machado: 2005) – uns quatrocentos anos – vale comentar o
tom informal trazido pelo termo indefinidor “uns” anteposto a quatrocentos anos.
Pode-se concluir que quem conta um conto transforma-o. Nos exemplos apresentados, ficou
clara a intenção de alguns autores-adaptadores: (i) ser fiel ao original; (ii) modificar parcialmente
106
a história e (iii) afastar-se bastante do prototexto, buscando o caminho da paródia (cordel de J.
Oliveira) ou produzindo um discurso bastante autoral (Lobato).
Há que se destacar ainda: (i) a imposição do código e do gênero; o texto em quadrinho exigirá
estratégias diferentes do literário. (ii) o cuidado do autor na adaptação de textos para leitores
iniciantes. Vê-se o uso da metalinguagem como procedimento criador de um tom pedagógico no
texto lobatiano. (iii) o caráter subjetivo da leitura realizada pelo autor da adaptação, pois os cortes
feitos no original não obedecem a critérios gerais, são caminhos de leitura escolhidos pelo
adaptador. (iv) há, no entanto, um léxico que se impõe, não permitindo um afastamento radical do
texto a ser recontado.
3. “Soberana Senhora”: a língua nos planos léxico-semântico,
morfo-sintático
3.1 Dom Quixote das crianças: um estudo da obra de Lobato
O menino queria saber se ela [Dona Benta] estava contando a história inteira ou só em pedaços.
_Estou contando apenas algumas das principais aventuras de Dom Quixote, e
resumidamente. Ah, se fosse contar o Dom Quixote inteiro a coisa iria longe! Essa
obra de Cervantes é bem comprida, passa de mil páginas numa edição in-16 mas
só adultos, gente de cérebro bem amadurecido, podem ler a obra inteira e alcançar-
lhe todas as belezas. Para vocês, miuçalha, tenho de resumir, contando só o que
divirta a imaginação infantil. (p.70)
A análise dos dados partirá fundamentalmente do estudo realizado por Ángel Rosenblat
17
intitulado La lengua Del “Quijote” (1971). A princípio, pensamos em cotejar simultaneamente as
três obras: O Quixote na narrativa de Castilho e Azevedo, na de Lobato e na de Gullar. A escolha
baseou-se na importância de cada texto para sua época. O livro dos viscondes, versão integral da
obra de Cervantes, vem sendo valorizado e reconhecido desde o século XIX, quando saiu, em
Portugal, a primeira edição. Lobato celebra a obra dos autores lusitanos, fazendo referências
diretas em sua própria paráfrase, consagrada pelo tanto de originalidade que apresenta; é, sem
dúvida, a versão brasileira para as crianças (e jovens) mais relevante do século XX. Gullar,
17
Ángel Rosenblat (1904-1984). Filólogo e professor universitário, nasceu na Polônia, aos seis anos foi para Argentina, morou
em Madrid, Equador, naturalizou-se Venezuelano. Discípulo e colaborador de Amado Alonso, de quem, como podemos perceber,
recebeu influências.
107
reconhecido poeta brasileiro, destaca-se no papel de tradutor e adaptador de Dom Quixote no
século XXI. Sua adaptação, uma das mais lidas por jovens, é cuidada, desde as ilustrações – as
mesmas do livro de Cervantes, de Gustavo Doré –, passando pela diagramação, pela capa, pelo
papel e, principalmente, pelo texto. O livro de Gullar foi premiado e distribuído pelas escolas.
Essa foi, enfim, a seleção das obras que serviram de base para a observação do trabalho
com a língua portuguesa em recontos para leitores iniciantes.
A proposta de estudar três obras concomitantemente tornou-se inviável porquanto o texto
de Lobato difere dos outros dois em termos discursivos. A estrutura do reconto lobatiano é ímpar.
Ele não parte do texto integral, selecionando passagens que devam ser cortadas. Para contar a
história do Cavaleiro da Triste Figura, Monteiro Lobato engendra duas narrativas: uma dá conta
do cotidiano do Sítio do Picapau Amarelo, leva o leitor a participar da rotina de Dona Benta, seus
netos, Nastácia e de todos os que lá habitam. Sabemos o que comem, a hora em que dormem,
presenciamos as discussões das crianças, rimos com as asneiras de Emília, enfim, passamos a
conviver com a família Encerrabodes de Oliveira. Uma vez dentro do universo lobatiano, o leitor
é levado a partilhar dos “serões” de Dona Benta, a ouvir a história lida ou contada pela avó de
Narizinho. Por obra da traquinas Emília, viajaremos para Mancha por meio das palavras de
Castilho,Azevedo e das de Dona Benta.
Era, pois, muito difícil debruçar-nos sobre as convergências e divergências encontradas
entre os três livros que contam a saga do fidalgo manchego, porque é impossível desprezar a
outra narrativa em Dom Quixote das crianças. O texto de Lobato foge aos padrões das versões,
mas não deixa romper o fio que o liga a história original ao prototexto.
Em obediência à cronologia, começaremos pelo livro de Monteiro Lobato. Emília
“descobre” o livro de Cervantes na estante da sala de Dona Benta, quando a velha senhora sai de
casa. A boneca adorava ver figuras. No caso, o narrador nos informa que as ilustrações eram de
Gustavo Doré. Ao se deparar com o nome “Saavedra” no primeiro capítulo do livro, ela
exclamou:
_Por que estes dois aa aqui, se um só faz o mesmo efeito – e, procurando um
lápis, riscou o segundo a. (p.8-9)
Uma questão lingüística se interpõe desde o início.
108
Dona Benta começa a leitura:
_Este livro – disse ela – é um dos mais famosos do mundo inteiro. Foi escrito pelo
grande Miguel de Cervantes de Saavedra...Quem riscou o segundo a de Saavedra?
_Fui eu, disse Emília.
_ Por quê?
_ Porque sou inimiga pessoal da tal ortografia velha coroca que complica a vida da gente
com coisas inúteis. Se um a diz tudo, para que dois?
_Mas você devia respeitar esta edição, que é rara e preciosa. Tenha lá as idéias que quiser, mas acate a propriedade alheia.
Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho
e pelo Visconde de Azevedo (...)
_ O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa, isto é,
um dos que escreveram em estilo mais perfeito. Quem quiser saber o português a
fundo, deve lê-lo – e também Herculano, Camilo e outros. (p.9)
Como vimos na epígrafe, as palavras da avó já traduzem o projeto de Monteiro Lobato:
selecionar da obra de Miguel de Cervantes trechos que pudessem agradar as crianças, que
alimentassem a imaginação delas.
Em sua correspondência ao amigo Godofredo Rangel, Lobato deixa clara a relação com a
língua
18
, como podemos constatar na passagem da carta de 17/1/1920:
Rangel:
Tens toda e não tens nenhuma razão. Tens-na no meu caso: não sou literato, não
pretendo ser, não aspiro a louros acadêmicos, glórias, bobagens. Faço livros e
vendo-os porque há mercado para a mercadoria; exatamente o negócio do que faz
vassoura e vende-as, do que faz chouriços e vende-os. Se por acaso algum dia fizer
outros livros, hei-de usar letreiros das fitas.
Na voz da boneca tagarela, a opinião do autor a respeito das regras gramaticais é revelada.
Já em 1924, Monteiro Lobato, ao publicar o conto O colocador de pronomes, expressa seu
pensamento sobre a rigidez das normas gramaticais.
Ainda nas primeiras páginas de Dom Quixote das crianças, Lobato deixa transparecer a
intenção de contar a história do clássico de Cervantes em linguagem acessível aos leitores
infantis.
18
Para este bloco do trabalho, recorreu-se à monografia produzida ao final do curso ministrado em 2004, na UERJ, pelo professor
Dr. José Carlos de Azevedo, O Português escrito no Brasil: a ngua literária.
109
_ Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia não há muito
um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor.
_Che! – exclamou Emília. – Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua até logo!
Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga, galgo
corredor... Não entendo essas viscondadas, não...(p.10)
A avó, como boa mediadora, percebe que a linguagem está mesmo desatualizada e
negocia com as crianças:
_ Meus filhos – disse Dona Benta – esta obra está escrita em alto estilo, rico de
todas as perfeições e sutilezas da forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas
como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da
forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas. (idem)
Emília acrescenta:
_Isso ! – berrou Emília. Com palavras suas e de tia Nastácia e minhas também – e
de Narizinho – e de Pedrinho – e de Rabi. Os viscondes que falem arrevesado lá
entre eles. Nós que não somos viscondes nem viscondessas, queremos estilo de
clara de ovo, bem transparentinho, que não dê trabalho para ser entendido.
(ibidem)
_ Eu gosto dos períodos simples, que a gente engole e entende sem o menor
esforço. (p.86)
Estava selado o contrato de comunicação. Daí em diante a história começa e
imediatamente um trabalho instigante pode ser observado. As vozes se cruzam nos fios de
Lobato, que deixa bem evidentes os lugares da enunciação: (i) Dona Benta, como narradora,
transita pelas variedades formal e informal, ora enuncia do lugar dos viscondes ora do lugar da
avó-contadora de histórias; (ii) na fala dos personagens de Cervantes, observa-se o uso de
linguagem mais formal, quando a voz é de Dom Quixote, do padre, do bacharel, entre outros.
Quixote era fidalgo, todos os outros eram leitores. A linguagem torna-se mais coloquial quando
personagens da camada popular participam da cena, principalmente quando Sancho Pança, que
não sabia ler nem escrever, toma a palavra; sua marca principal eram os provérbios, formas
simples da sabedoria do povo.
Gostaríamos de chamar a atenção para o malabarismo lingüístico na voz narradora. O
narrador prenuncia, muitas vezes, o perfil do personagem. Antecipando o lugar da enunciação,
ele se apropria do estilo e da linguagem, mais ou menos formal, que forjam o discurso dos doutos
ou dos rudes.
110
Dona Benta usa o discurso formal de Castilho:
O júbilo de Dom Quixote foi intenso e imediatamente a comichão das aventuras
fez-se sentir em seu corpo e em sua alma. Correu a selar Rocinante.
(Dona Benta porta-voz de Castilho, p.17)
Foram feitas algumas perguntas ao herói escalavrado, mas Dom Quixote não
queria saber de histórias. Só queria saber de comer e dormir, de modo que tiveram
de o deixar em paz. (idem, p.21)
Agora, a fala da avó é simples, coloquial
Dom Quixote, porém não quis almoçar.
Possivelmente vivia de brisas.
(Dona Benta, a avó, p.26)
Dom Quixote se dirige às “vagabundas” em linguagem ultraformal:
_Senhoras castelãs, não foi desventurado o acaso que me trouxe ao vosso
esplêndido castelo. O meu escudeiro dir-vos-á quem sou, já que a mim não me fica
bem gabar-me. Limito-me a agradecer-vos tantos e tão finos obséquios, dos quais
me lembrarei eternamente. (Dom Quixote, p.36)
Sancho e os provérbios, marca da fala do escudeiro, homem simples:
_Ah, isso há de ser difícil, meu amo, porque tenho na cabeça mais rifões do que os
há nos livros. Dá aos pobres que emprestas a Deus. Foi buscar lã e saiu
tosquiado. Quem quer vai, quem não quer manda. Os rifões são tantos dentro
da minha cachola, que quando abro a boca eles se atropelam para sair. E, afinal de
contas, não constituem a sabedoria popular? (p.81)
O livro Dom Quixote das crianças é, pois, fruto da proposta lobatiana. Já no título pode-se
observar a criatividade e a intenção do autor-adaptador, uma vez que o uso da preposição “de”
em lugar de “para” revela a idéia de posse, de interação com o texto. A história é “das” crianças,
com toda a idéia de “movimento” que a preposição “de” carrega, contrariando o caráter estático
da preposição “para”, que nos passa a idéia de silenciamento, de não participação do leitor; este
111
precisa movimentar-se para se apropriar. Lobato afirma em Emília no País da Gramática (1987)
que as preposições são cordinhas da língua; elas servem para amarrar as idéias.
Os pequenos poderiam alimentar a imaginação, ouvindo ou lendo as aventuras do
Cavaleiro da Triste Figura. Dom Quixote não é “para” as crianças, ele é delas. Isso nos lembra a
relação de posse afetiva demonstrada na fala infantil, quando freqüentemente os adultos
perguntam aos pequenos: “De quem é o Fulaninho?” e a resposta – “sou da mamãe” ou “sou do
papai” – é escolhida de acordo com o interlocutor, pois a criança sabe que está em jogo o amor, o
carinho, “dos” e “pelos” mais velhos.
Lobato dá às crianças do Sítio o direito de se apropriarem da narrativa, interferindo
quando bem entendem, perguntando, comentando, ou mesmo optando por não ouvir
determinadas passagens, como no episódio em que Emília, influenciada pela figura do cavaleiro
andante, afasta-se do grupo para brincar. Ela se transforma em Dona Quixotinha e, com lança,
espada e elmo, entra na cozinha montada em Rabicó, assustando Tia Nastácia, chamando-a de
“giganta Frestona” (p.72 e p.75). O desejo do autor é fazer livros “com” as crianças.
O texto de Lobato é singular pela multiplicidade de vozes que apresenta. Ouve-se a voz de
Cervantes (viscondes) na boca de Dona Benta; a linguagem fica rebuscada, “difícil”, mais formal,
como vimos. Em outros, a dicção muda completamente: a avó assume seu modo de dizer, usa
linguagem coloquial, mais informal, o tom do discurso passa a ser o de uma prosa em família.
Dona Benta, na verdade, traz à cena três vozes: a do espanhol Cervantes, a dos
portugueses Visconde de Castilho e Visconde de Azevedo e a sua própria, que representa um
discurso genérico das avós, em cuja fazenda os netos passam férias. Ao usar fidalgo, Dom
Quixote, Sancho Pança, Dulcinéia, Rocinante, Mancha etc., a narradora plasma o discurso
original produzido por Miguel de Cervantes; quando usa, porém (i)...mas Sancho que estava a
cair de sono (p.32), (ii) o cavalo correu a brincar (p.33), (iii) Vendo que não vinha mais nada,
o menino deitou a correr, gritando (p.57), (iv) _ Ah, senhor, como poderemos ir ter a castelos, se
nem de pé conseguimos ficar, segue as marcas estilísticas dos tradutores portugueses e da
sintaxe lusitana. A terceira forma é a que deixa emergir a fala simples, cotidiana. Dona Benta
conversa com os netos. Vale lembrar que o diálogo não é marca exclusiva de Lobato, o próprio
Cervantes lança mão de tal estratégia, sendo os diálogos forte característica encontrada ao longo
de toda obra cervantina.
Vejamos mais sinais da linguagem cotidiana na fala da avó:
112
Aquilo era demais. Gines não agüentou. Saltando para o lado, pôs-se a
bombardear o cavaleiro com pedras. Os outros fizeram o mesmo. E tal foi a
chuva de balas, que o herói da Mancha rolou por terra. Um dos forçados tirou-lhe
da cabeça a bacia e deu-lhe uma dúzia de baciadas no lombo. Outro furtou-lhe o
casaco, outro, isto ou aquilo, tanto ao cavaleiro como ao escudeiro e por um triz
não os largaram completamente nus.Feito o que, abalaram. (p.50)
Seria empobrecedora a análise que buscasse somente os recursos utilizados pelos
adaptadores em pauta. O texto de Lobato ultrapassa as fronteiras da adaptação. Recebe a “grife”
do autor.
A língua portuguesa usada no discurso literário de Monteiro Lobato é inovadora, criativa.
Ele abusa de estratégias lúdicas. Sua narrativa, de caráter coloquial, abre espaço para construções
populares, permitindo, assim, libertação das normas e, conseqüentemente, surpreendendo o leitor.
Eliana Yunes define bem o perfil de Lobato em estudo sobre o autor:
Sem romper ideologicamente com as raízes – e neste sentido não será modernista
– Lobato renovou a perspectiva de sua projeção na prática, através de seu texto e
portanto de sua linguagem – e neste sentido permanece moderno, atual.
19
Passaremos, a partir deste ponto, a adotar, como base de nossa análise, os postulados de
Rosenblat, anunciados no primeiro parágrafo desta seção. O objetivo é cotejar a língua trabalhada
esteticamente por Cervantes e por Lobato, ao contarem a saga do engenhoso fidalgo.
Cervantes, como ensina o filólogo que nos orienta, logo no início do livro La lengua de
“Quijote”, mostrava-se bastante preocupado com a língua castelhana, dialeto dos aldeões cuja
vida literária teve início nos séculos XVI e XVII. No século XV, procurou-se enobrecer o tal
dialeto. Antonio de Nebrija escreve em 1492 a primeira gramática da língua castelhana, o
primeiro compêndio sobre as regras de uma língua vulgar que se escreveu na Europa. Não
devemos esquecer que, na Europa, os séculos XVI e XVII assistiram ao florescimento do Barroco
ou Seiscentismo , como é chamado em Portugal.
As características principais, no uso da língua no período barroco, são as figuras de
linguagem, com suas metáforas, antíteses, hipérboles..., os arcaísmos, o léxico mais elaborado
etc. É nosso objetivo verificar se as obras em foco apresentam tais elementos, e com que
propósito.
19
Yunes, Eliana. Presença de Lobato, p.45
113
O discurso literário de Miguel de Cervantes é forjado a partir da língua que engendra os
textos barrocos. Cervantes, no entanto, elege o tom da crítica que se constrói pelo viés do cômico.
O projeto cervantino é o de ironizar a literatura produzida naquela época. Dona Benta explica às
crianças o porquê do livro:
Cervantes escreveu este livro para fazer troça da cavalaria andante, querendo
demonstrar que tais cavaleiros não passavam de uns loucos. Mas como Cervantes
fosse um homem de gênio, sua obra saiu um maravilhoso estudo da natureza
humana, ficando por isso imortal. Não existe no mundo inteiro nenhuma criação
literária mais famosa que a sua. (p.11)
Para alcançar seu objetivo, ele trabalha com o mesmo material, com os recursos
disponíveis na língua castelhana, porém, a forma de elaborar o discurso é inovadora,
transgressora.
Seguindo o modelo de língua barroca e da proposta daquele movimento literário, Miguel
de Cervantes traz às páginas de seu engenhoso fidalgo muitas das características do discurso
barroco, como, por exemplo, a antítese, figura de destaque em tais textos. O principal exemplo
perpassa a obra inteira; a oposição entre Dom Quixote e Sancho Pança é mostrada desde as
características pessoais – um é alto, o outro é baixo; um é leitor, outro é analfabeto – até o modo
de dizer de cada um deles: um se expressa numa língua cuidada, elaborada, aprendida nos livros;
o outro se comunica por meio da língua popular, coloquial. A antítese, todavia, não pretende
mostrar a oposição simplesmente. Com este recurso, Cervantes trabalha a idéia das diferenças
que se complementam; Sancho e Quixote são dois lados da mesma moeda: da essência humana.
Rosenblat aponta em Dom Quixote de la Mancha as principais marcas do discurso
literário cervantino. Primeiramente, o estudioso chama a atenção para a “atitude de Cervantes
ante a língua”. Remete-nos ao prólogo de Dom Quixote, a fim de comprovar que ali já se observa
a perspicácia do autor. Há referências ao uso do latim, tão prestigiado pelos intelectuais da época,
em detrimento do idioma falado pelo povo de Espanha. Ao usar esta estratégia em sua narrativa,
Cervantes quer de fato ironizar o comportamento de seus pares.
Ángel Rosenblat prossegue direcionando nosso olhar. Veremos os vários jogos
lingüísticos propostos pelo criador do Cavaleiro da Triste Figura. São muitos os elementos que
colaboram na composição de um estilo pessoal, a partir dos quais podemos afirmar “isto é
próprio de Cervantes”.
114
Pretendemos buscar no reconto de Lobato as marcas do estilo de Miguel de Cervantes, ou
seja, procuraremos observar se a atitude do escritor espanhol ante a língua se mantém no discurso
lobatiano.
Miguel de Cervantes, ao escrever Dom Quixote, ampliou o ideal de língua, demonstrou
constante preocupação com o idioma, inaugurando, com sua obra, uma nova fase da língua
espanhola. Trabalhou sempre as duas vertentes da linguagem: (i) crítica à afetação cultista, (ii)
prevaricações
20
da fala vulgar. Aqui já se aproximam os ideais do escritor espanhol com os do
escritor paulista. Lobato também se batia contra as amarras da gramática normativa, limitadora,
segundo ele.
O fragmento destacado do capítulo XIX, da 2ª parte, “onde se conta a aventura do pastor
enamorado com outros sucessos na verdade graciosos”, ilustra, através do diálogo, o ponto de
vista de Cervantes no que concerne ao uso da língua.
A discussão gira em torno das venturas de Camacho, Quitéria e Basílio.
_Não tenho mais que dizer – acudiu o estudante, bacharel ou licenciado, como
Dom Quixote lhe chamou –senão que, desde que Basílio soube que a formosa
Quitéria casava com o opulento Camacho, nunca mais o viram rir, nem dizer coisa
com coisa, e anda sempre triste pensativo, falando sozinho, dando assim claros e
certos sinais de que lhe ourou
21
o juízo. Come pouco e pouco dorme, e o que come
são frutas, e dorme no campo, se dorme, em cima da terra dura, como animal
bravio; olha de quando em quando para o céu, e outras vezes crava os olhos no
chão, com tal embevecimento, que não parece senão estátua vestida, a que o ar
move a roupa. Enfim, dá tais mostras de angustiado, que receamos todos os que o
conhecemos, que proferir a formosa Quitéria amanhã o sim fatal seja o sinal da
morte.
_ Deus fará melhor – acudiu Sanchoquem dá o mal dá o remédio; ninguém
sabe o que está para vir; de hoje até amanhã não me doa a cabeça, e numa
hora cai a casa; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo; a gente deita-
se são e acorda doente; e digam-me se há por ventura quem se gabe de ter
travado a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher não me atrevia eu a
meter a ponta do alfinete, porque não caberia; queira Quitéria de coração e
deveras a Basílio, e pode este contar com um saco de ventura, que o amor,
pelo que tenho ouvido dizer, olha de tal maneira que cobre lhe parece ouro; a
pobreza riqueza e as remelas pérolas.
_Aonde vais parar, Sancho, amaldiçoado sejas –disse dom Quixote –que em tu
começando a enfiar provérbios
e contos só te pode apanhar o diabo que te leve!
Dize-me, animal, que sabes tu de rodas e de alfinetes, nem de coisa nenhuma?
_ Pois se me não entendem – respondeu Sancho –não admira que as minhas
sentenças sejam tiradas por disparates; mas não me importa, eu cá me entendo e
20
Termo usado por Cervantes no livro, quando chama Sancho de “prevaricador da boa linguagem,” (II, XIX).
Em Houaiss, encontramos a seguinte acepção para o verbo prevaricar: corromper, perverter.
21
Ourar: perder o uso da razão
115
sei que não disse asneira; mas Vossa Mercê, senhor meu, é sempre friscal, dos
meus ditos e das minhas ações.
_ Fiscal é que tu queres dizer – acudiu dom Quixote e não friscal, prevaricador
da boa linguagem, que Deus te confunda!
_ Não se agonie Vossa Mercê comigo –tornou Sancho – que não me criei na
corte, nem estudei em Salamanca, para saber se aumento ou tiro alguma letra aos
meus vocábulos. Valha-me Deus! Como se há de obrigar a um saiaguês a falar
como um toledano, se há toledanos que falam como Deus é servido.
_Sem dúvida – acudiu o licenciado – não podem falar tão bem os que se criam nas
Tenerias e no Zocodóver, como os que passeiam todo o santíssimo dia no claustro
da Sé, e contudo são toledanos todos. A linguagem pura e clara falam-na só os
cortesãos discretos, ainda que tenham nascido em Majadahonda;disse discreto,
porque nem todos os são, e a discrição é a gramática da boa linguagem, que se
aprende com o uso. Eu, senhores por meus pecados, estudei cânones em
Salamanca e gabo-me de dizer as minhas razões em frase clara, chã e
apropriada.
22
A citação é longa, porém necessária; justifica-se, pois nos mostra o pensamento de
Cervantes sobre a língua. Vários temas para reflexão são abordados: a língua do povo,
representada pelos provérbios e trocas de letras de Sancho; o saber formal, adquirido em
Salamanca, a universidade mais antiga da Espanha; o preconceito contra o modo de dizer do
outro; a discrição como gramática da boa linguagem...
Em Lobato, a “prevaricadora” da linguagem é Tia Nastácia, quando diz:
_ Sinhá(...)Emília parece louca. Entrou na cozinha montada no Rabicó, toda cheia
de armas pelo corpo com uma lança e uma espada, e uma latinha na cabeça que diz
que é o “ermo” de Mambrino... (p.75).
Sancho também “erra” (prevarica) quando se refere ao elmo de Mambrino e diz “elmo de
Malino” (I, XLIV); quando fala tologias em lugar de teologia (II, XXI) ou cris quando queria
dizer eclipse; estil em vez de estéril (I,XII), presonagens quando quer falar personagens (II, III),
ou lógico por longínquos (II, XXIX).
Eis a construção do cômico por meio de palavras, pelos jogos entre “certo” e “errado” no
uso da língua. A ideologia a respeito da relação entre o poder (administrativo) e a gramática fica
evidenciada no seguinte fragmento: os que governam ilhas, pelo menos, têm de saber gramática.
(II, III)
22
grifos nossos
116
Observemos alguns aspectos listados por Ángel Rosenblat ao estudar a língua de
“Quixote”: 1) lugares-comuns; 2) comparações; 3) metáforas; 4) antíteses; 5) sinônimos
voluntários; 6) repetições deliberadas; 7) jogos de palavras; 8) jogos com nomes; 9) jogos com
forma gramatical; 10) jogos com diferentes níveis de fala.
De volta a Monteiro Lobato, e de posse das pistas citadas no parágrafo anterior,
buscaremos exemplos capazes de confirmar nossa hipótese, ou seja, que revelem a competência
lingüística do escritor-adaptador. Como bom leitor e como artesão da palavra, Lobato estrutura
seu texto com os mesmos elementos lingüísticos usados por Cervantes. A diferença fica por conta
das preferências individuais, empregar mais um recurso que outro é questão de escolha ou da
“índole” da língua.
3.1.1 Lugares-comuns: narrativas incomuns
Ángel Rosenblat prova que a frase inicial da história de Dom Quixote “Em um lugar da
Mancha” revela o trabalho intertextual com o verso de um romance burlesco –“El amante
apeleado” – incluído no Romanceiro Geral desde 1600. O outro verso “em tierra de que non me
acuerdo el nombre” já aparece no Conde Lucanor. Semelhantes palavras, segundo o pesquisador,
podem ser encontradas em um conto de Decamerão, adaptado por Antonio de Torquemada;
também podem ser lidas no começo da história de Aladim, em As mil e uma noites.
Os exemplos servem para nos lembrar que a língua é um bem cultural coletivo,
propriedade de todos. Ela é, todavia, expressão individual também. A criação literária consiste
em produzir individualmente, com originalidade, efeitos estéticos a partir da língua comum.
Abundante na fala da gente do povo, o lugar-comum é bastante explorado no discurso de
Sancho Pança.
...eu próprio tinha visto aquilo com estes olhos que a terra há de comer(...) o diabo que não dorme
nunca... (Castilho, I,XX)
No final do capítulo VII, em que se narra a terceira saída do cavaleiro andante:
a) Esteja descansado, senhor meu
E mais servindo a um amo tão principal como é Vossa Mercê.
(Castilho I, VII)
b) Os anjos digam amém
Palavra de cavaleiro não volta atrás
(Lobato, p.23)
117
Uma análise comparativa entre o texto integral (a) e a versão de Lobato (b) mostrou-nos
que o criador do Sítio, ao transpor as idéias de Cervantes/Castilho, lança mão do lugar-comum, o
que não acontece na tradução portuguesa.
Destacam-se outros exemplos do emprego do lugar-comum na narrativa lobatiana. Dona
Benta, ao saber que Visconde tinha ficado esmagado sob o livro de Cervantes, afirma:
O que não tem remédio remediado está. (p.9)
O cura e o barbeiro mandaram fechar com tijolos a porta que dava para a biblioteca a fim de cortar o mal
pela raiz. (p.21)
_ Ah, senhor, como poderemos ir ter a castelos, se nem de pé conseguimos ficar?
_São os ossos do ofício. (p.34)
Sancho, governador da ilha, julga causas e ouve os envolvidos.
_ “Juro por tudo que é mais sagrado que entreguei ao meu credor os dez escudos de ouro que ele me deu
de empréstimo”. (p.82)
_ “Que raio de diabo é isto, brada o governador. _É então costume comer nesta terra com os olhos?”
(p.82)
3.1.2 Jogos com diferentes níveis de linguagem
Dom Quixote é acolhido pelos cabreiros que lhe oferecem boa comida. Diante dos
simples homens, Quixote e Sancho discutem as regras da cavalaria, no que tange ao lugar do
escudeiro na hora da refeição; no entanto, os homens não entendiam aquele palavreado de
escudeiro e cavaleiros andantes... (Castilho, I, XI).
Saciado, Dom Quixote discursa para a platéia “inculta”:
_Ditosa idade e afortunados séculos aqueles, a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque
nesses tempos o ouro que nesta idade de ferro tanto se estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim
porque então se ignoravam as palavras teu e meu! Tudo era comum naquela santa idade; a ninguém era
necessário, para alcançar o seu ordinário sustento, mais trabalho que levantar a mão e apanhá-lo das
robustas azinheiras, que liberalmente estavam oferecendo o seu doce e sazonado fruto...(idem)
118
Em seus acessos de ira, O fidalgo perde a dignidade expressiva:
Pues voto a tal, don hijo de la puta, don Ginesillo de Paropillo. O como os lhamáis, que hábeis de ir vos
solo, rabo entre piernas, con toda la cadena a cuestas. (Cervantes, XXII)
Pelo Deus que me criou! – exclamou Dom Quixote já posto em cólera – Dom Filho da puta, dom
Ginesillho de Paropilho, ou como quer vos chamais, que haveis de ir agora vós só com o rabo entre as
pernas, com toda cadeia às costas. (Castilho, I,XXII)
Pelo Deus que me criou! – exclamou D. Quixote já posto em cólera – Dom filho duma tinhosa, dom
Ginezinho de Paropilho, ou como que vos chamais, que haveis de ir agora vós só com o rabo entre as
pernas, com toda a cadeia às costas. (atribuído
23
a Castilho, IXXII).
Não aceito desculpas – gritou Dom Quixote, já tomado de cólera. _ Ordeno-te Ginesinho de Parapilha, que,
com teus sócios, vás cumprir a penitência de que te falei, pois ao contrário pico-vos a todos com a espada.
(Lobato, p.50)
Na voz de Dona Benta, a linguagem passa por uma censura, o termo chulo desaparece,
pois crianças não podiam ouvir nem falar palavrão. O palavrão é também um tabu lingüístico em
outros discursos, como observamos pela substituição da expressão filho da puta por filho de uma
tinhosa na versão eletrônica apresentada.
Em outra passagem, Dona Benta recrimina Emília pelo uso da palavra besteira:
_Lá vem você com as palavras plebéias! Muitas professoras, Emília, criticam esse seu modo desbocado de
falar. “Besteira” Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie. Use expressão mais culta.
Diga, por exemplo, “tolice”.
_E não é a mesma coisa?
_É, mas não ofende o ouvido das pessoas finas.(p.80)
Sancho tenta recordar os termos da carta que o amo escrevera a Dulcinéia, porém
confunde os termos mais sofisticados.
_ Valha-me Deus, senhor licenciado; se me lembra algum ponto da carta, o diabo que o leve já. Só me
lembra, que no princípio dizia Alta soterrana senhora!
_Não havia de ser soterrana –disse o barbeiro –havia de dizer sobre-humana, ou soberana senhora.
_Tal qual – disse Sancho. (Castilho, I, XXVI)
O escudeiro, no cargo de governador, ameaça o lavrador que fora pedir seiscentos
ducados:
23
O texto, copiado da internet, da Wikisource é, segundo a página, versão dos viscondes.
119
_ Voto a tal, rústico e malcriado, que, se não saís imediatamente da minha presença, com esta cadeira vos
abro a cabeça de meio a meio! Filho da puta, patife, pintor do demônio em pessoa.
(Castilho, II, XLVII)
3.1.3 Formalismo de Dom Quixote: a língua a favor da imaginação
Parece simples colocar em termos dicotômicos o funcionamento da língua. Sabe-se que
não existem apenas dois lados na questão. Pode-se encontrar pelo menos quatro níveis de
formalismo lingüístico: ultraformal, formal, semiformal e informal (Oliveira, 2003), que estarão
diretamente atrelados à situação de uso da língua e aos diferentes gêneros discursivos. Adotou-se,
neste trabalho, a nomenclatura formal/coloquial, pois o objetivo é observar a construção de
personagens – Quixote e Sancho, principalmente – que representariam grupos distintos, embora
suas diferenças sejam partes de um conjunto maior: a humanidade. A essência humana é formada
de características antitéticas, como já observado. Tais aspectos estão bem explicitados por
Cervantes em sua obra-prima. A língua, bem simbólico da humanidade, traz em si “oposições”.
Suas regras, como tudo relacionado ao homem, também são muitas vezes contraditórias. Se o
tempo não pára, a língua também não. E isso concorre para que as contradições e as oscilações
fiquem mais visíveis.
Apesar das polêmicas entre lingüístas, filólogos e gramáticos, ainda se faz grande
diferença entre o uso formal e o uso informal da língua. Sabemos que o falante chamado “culto”
dispõe de mais estratégias lingüísticas de variação e demonstra competência ao adequar seu
discurso tanto a situações formais quanto a informais. Isso fica evidente no texto literário em
foco. Dom Quixote, embora portador de um discurso formal, quer do ponto de vista léxico quer
do sintático, sabe transitar com naturalidade para outra margem do rio. Há momentos em que ele,
ao dialogar com personagens menos escolarizados, ajusta sua linguagem à do interlocutor.
O discurso de Quixote torna-se mais elaborado, principalmente nos momentos em que a
fantasia domina o herói que se traveste, também pela linguagem, para os tempos dos cavaleiros
andantes.
120
3.1.4 Termos arcaizantes: vestígio do barroquismo literário
Para não eliminar o “gênio” da língua de partida (espanhol), Monteiro Lobato, em
alguns momentos, mantém a estrutura barroca. O discurso de Dom Quixote destaca-se pela
dicção elaborada, rebuscada. As palavras e a estruturação frasal seguem o modelo do movimento
barroco. O cômico se estabelece, principalmente, nas situações em que o desvairado cavaleiro
interpela pastores, cabreiros, prisioneiros que, evidentemente, desconhecem aquele modo de
dizer, tão longe de sua comunicação cotidiana.
O uso de termos antigos compõe um cenário, remete a um tempo também imemorial:
ao dos cavaleiros andantes, com seus ritos de sagração.
Destacam-se da obra alguns exemplos significativos:
s. abantesma –fantasma
s. avejão – assombração
Recuam os dois para uma das margens do caminho, Sancho atrás do cavaleiro. Aquilo lhes parecia avejões,
abantesmas. Cerca de vinte criaturas a cavalo. (p.42)
v. atroar - fazer grande estrondo
Dom Quixote soltou um berro de atroar e exclamou... (p.27)
s. boldrié – cinturão
s. alfanje – sabre
Meia légua dali Dom Quixote tem novo encontro – um homem montado em bonita égua, com um capote de
veludo verde sobre os ombros e boné do mesmo pano. )
Num rico boldrié trazia um alfanje mourisco. Botas de verniz rebrilhante, esporas também verdes. (p.69)
s. borrador – caderno de anotações
O livro devia ser um livro sagrado. Como não houvesse nenhum, ele trouxe o borrador onde fazia seus
assentamentos diários (p.16)
121
s. cura – vigário
O cura ficara a espiar de longe, escondido na moita. De repente, apareceu, fingindo grande surpresa de ver
ali Dom Quixote. (p.55)
s. esbirro – policial
O esbirro enfureceu-se e, jogando com a lanterna à cara do ex-defunto, afastou- se, rosnando mil desaforos
(p.37)
v. estrugir – estrondar
Mas a Dom Quixote o vulto do arrieiro representou-se como o próprio encantador Freston, seu inimigo, que
ali vinha para atacá-lo – e sentou-se na cama, preparando-se, apesar das dores, para agarrar o cruel inimigo.
Quando o arrieiro passa rente à sua cama, dois braços magros o ferram, enquanto uma voz triunfal estruge.
(p.32)
3.1.5 Coloquialismo de Sancho Pança: a estilística dos provérbios
Em relação à linguagem de Sancho, a marca estilística fica mesmo por conta do uso dos
provérbios (rifões), chamados por André Jolles de forma simples. É do livro de Jolles (1976) que
se destaca a definição de provérbio apresentada por Seiler: o provérbio é uma locução corrente
na linguagem popular, dotado de características didáticas e de uma forma que reflete um tom
mais elevado que o discurso comum.
O ditado existe em todas as camadas de um povo, em todas as suas classes, entre
camponeses, letrados e sábios. É empregado sempre que uma situação evoque um saber que
emana de uma experiência. Ele poupa o interlocutor do trabalho de elaborar vivências e
percepções. Talvez por isso seja mais freqüente nas camadas populares da sociedade e na língua
falada.
O saber de Sancho não vem dos livros, como o de Quixote, mas de suas experiências.
Sancho era analfabeto, sabia somente assinar o nome, porém dotado de memória prodigiosa.
Cervantes usa tais ditados para construir o perfil de um homem simples, de um camponês que,
com suas atitudes ponderadas, serve de contraponto ao tresloucado amo. As pesquisas anunciam
mais de duzentos rifões em Dom Quixote de la Mancha.
Uma pequena amostra dos provérbios empregados pelo escudeiro:
122
_Prega bem quem vive bem – respondeu Sancho – e eu não sei de
outras tologias. (Castilho, II, XX)
_ (...) – tornou Sancho _o que estava era a dizer comigo que bem
quisera ter ouvido a vossa Mercê antes de me casar, que talvez eu
agora dissesse: o boi solto lambe-se todo. (Castilho, II, XXII)
Sancho fala com seu jumento:
_ Lágrimas com pão, passageiras são. (Castilho, II,LV)
Quixote e Sancho encontram-se com lavradores que transportavam imagens de santos
para o retábulo da aldeia. O fidalgo explica a Sancho que São Martinho era caritativo; conta que
o santo homem repartiu a capa com um pobre.
_ Não havia de ser isso – acudiu Sancho – mas é que ele se ateve ao rifão que diz: para dar, e para ter,
muito rico é mister ser. (Castilho,II, LVIII)
Quixote chama a atenção de Sancho para que este não use provérbios exageradamente. Ao
que o escudeiro responde:
_ Muito bem, senhor meu amo! Hei de botar tento nisso, porque Deus ajuda quem cedo madruga, e
tantas vezes vai a bilha à fonte que um dia lá fica. Ou, como diz o outro, quem se faz de mel as moscas
atrai. (Lobato, 81)
Outros rifões encontrados:
Assinar meu nome sei eu – respondeu Sancho; quando fui bedel na minha terra aprendi a fazer umas letras
semelhantes às das marcas dos fardos, e diziam que era o meu nome; tanto mais que fingirei que tenho
tolhida a mão direita, e farei com que outro assine por mim, que para tudo há remédio, menos para a
morte, e tendo eu a faca e o queijo na mão, é o que basta; além disso, quem tem o pai alcaiade... e eu
ainda sou mais que alcaiade, porque sou governador, e metam-se comigo e verão: podem vir buscar lã e
voltar tosquiados; e mais vale quem Deus ajuda, que quem muito madruga; e as tolices dos ricos
passam por sentenças no mundo; e sendo eu rico, e governador liberal, como tenciono era, não haverá
falta que o pareça; nada, quem se faz de mel as moscas o comem; tanto tens, tanto vales; e com teu amo
não jogues as pêras.
_Maldito sejas,Sancho! – acudiu Dom Quixote – sessenta mil Satanases te levem a ti e aos teus rifões; há
uma hora que os estás enfiando uns nos outros, e cada um que proferes é uma punhalada que me dás. Eu te
asseguro que esses rifões ainda te hão-de levar à forca; por eles te hão-de tirar o governo os teus vassalos.
Dize-me aonde os vais tu buscar, ignorante? e como é que os aplicas, mentecapto? Que eu, para achar um
só e aplicá-lo a propósito, suo e trabalho como se cavasse. (Castilho, II, XLIII)
123
Em trecho pleno de imagens, comparações e produtividade lexical expressiva (desdigam),
elaborado para compor um novo perfil do ignorante escudeiro, Quixote elogia Sancho na segunda
parte da narrativa. Podemos dizer, com Unamuno (1964), que acontece a quixotização de Sancho,
o qual vai assimilando o modo de ser e de dizer do amo:
_ Cada dia, Sancho – disse Dom Quixote – te vais fazendo menos simplório e mais discreto.
_Pudera; alguma coisa se me há de pegar da discrição de vossa Mercê – respondeu Sancho – que as terras
de si estéreis e secas, em se estrumando, vêm a dar bons frutos; quero dizer que a conversação de Vossa
Mercê tem sido como um estrume deitado na terra estéril do meu seco engenho, e a cultura, o tempo em
que tenho servido e tratado, e como isso espero dar frutos de bênção, tais que me não desdigam nem
deslizem da boa lavoura que Vossa Mercê fez no meu acanhado entendimento. (Castilho, II, XII)
Sancho usa o discurso formal:
Todos os que conheciam Sancho Pança se admiravam de o ouvir falar tão elegantemente e não sabiam a
que haviam de atribuí-lo senão a que os ofícios graves e cargos, ou melhoram ou entorpecem os
entendimentos. (Castilho, XLIX)
Ao abandonar a ilha e o cargo de governador:
_Meus senhores, permitam-me que volte à minha liberdade de outrora, pois sem liberdade não há ventura.
(Lobato, p.85)
3.1.6 Comparações como estratégia para a construção do burlesco
Rosenblat afirma que, por meio das comparações, se manifesta o gênio hiperbólico do
espanhol. Observemos alguns usos expressivos deste recurso.
Sancho, já governador da ilha, foi preparado para a batalha. Puseram-lhe dois escudos, um
nas costas e outro na frente do corpo, e ele:
124
Ficou parecendo mesmo uma tartaruga metida na concha, ou como um pedaço de toucinho entre
duas masseiras ou um barco virado na areia. (Castilho II, LIII)
...e entupiu-se com as comidas que restavam, até ficar como um chouriço que com uma gotinha mais
rebenta. (Lobato, p.83)
[Sancho] só não estava gostando de serem negros como carvão os seus futuros vassalos. (Lobato, p.55)
Para reaparecer na aldeia atravessado um jumento ou metido numa gaiola, pálido que nem um cadáver e
por um fio. (Lobato, 65)
Gostaríamos de chamar a atenção para o último exemplo citado. Vê-se ali uma forma
comparativa (que nem) própria da língua oral.
3.1.7 Expressões metafóricas e sua dupla vertente:
da fala popular e da fala culta
O jogo metafórico, como ensina Rosenblat, está muitas vezes a serviço da metamorfose
quixotesca. Dom Quixote confunde estalagem com castelo. Alguns estudiosos vêem nesta
passagem marcas de religiosidade (remete à estrela que guiou os Reis Magos):
Olhando para todas as partes, a ver se lhe descobriria algum castelo, ou alguma barraca de pastores, onde se
recolher, e remediar sua muita necessidade, viu não longe do caminho uma venda, que foi como aparecer-
lhe uma estrela que o encaminhava, se não ao alcáçar, pelo menos aos portais da sua redenção.
(Castilho,I,II)
Dom Quixote, no episódio do casamento de Basílio com Quitéria, discorre alegoricamente
sobre a união entre pessoas enamoradas:
A formosura, só por si, atrai as vontades de todos os que a vêem e conhecem e, como a cordeirinho
gostoso, procuram empolgá-las as águias e os pássaros altaneiros; mas se à formosura se juntam o
aperto e a necessidade, também investem os corvos, os milhafres e as outras aves de rapina. (Castilho,
II, XXII)
125
As metáforas mais freqüentes na narrativa de Lobato são as da fala informal, da vida
cotidiana
24
:
De tanto ler aqueles livros de cavalaria, o pobre fidalgo ficou com o miolo mole.(p.11)
Por fim, lembrou-se duma camponesa das vizinhanças a quem andou arrastando a asa quando mais
moço, chamada Aldonça. (p.12)
_”Dinheiro! – exclamou Dom Quixote. _Jamais li em meus livros que os cavaleiros andantes andassem
munidos do vil metal.”
O estalajadeiro torceu o focinho. (p.16)
Disse e investiu da lança contra o mercador de língua solta. (p.19)
Ia caindo a noite quando parou à porta da casa de dom Quixote, onde tudo andava de pernas para o ar.
(p.20)
Pelo menos estes não mais mexerão com a bola do senhor meu amo.(p.21)
Dom Quixote tinha a bola virada. (p.25)
Estou vendo que esse Dom Quixote é o que Tia Nastácia chama de armazém de pancada. (p.25)
Dom Quixote não quis almoçar. Positivamente vivia de brisas. (p.26)
Sancho (...) deitou-se e incontinenti ferrou no sono. Dom Quixote, porém, cuja cabeça era um perpétuo
vulcão de aventuras e encantamento, conservou-se de olhos abertos como uma lebre. (p.36)
Vai fincando socos e pontapés naquela massa adiposa. Sancho senta-se estremunhado, julgando ser
pesadelo.(p.37)
Sancho escanchado no burrinho e com a ilha a lhe ferver nos miolos. (p.60)
Os efeitos cômicos conseguidos com as metáforas são inegáveis. Em Dom Quixote das
crianças, a linguagem, por pretender alcançar um público em fase de formação, busca uma
identificação com a fala popular, do dia-a-dia.
24
Para o estudo sobre metáforas, consultou-se Metáforas da vida cotidiana, de Lakoff e Johnson (2002). Eles defendem que
“metáfora não é somente uma questão de linguagem, isto é, de meras palavras (...) os processos do pensamento são em grande
parte metafóricos”. (grifos nossos). A professora Valéria Chiavegatto, numa exposição oral, apresentou a metáfora como processo
de pensamento; segundo ela, as palavras são o resultado de tal processo. Chiavegatto chama a esse resultado de “expressões
metafóricas”.
126
3.1.8 Antíteses e suas artimanhas
A principal antítese da obra de Cervantes está centrada nas figuras dos personagens
principais: Quixote e Sancho. Por serem tão diferentes em sua formação, em sua maneira de ser,
no modo de encarar a vida, representam dialeticamente, em estratégia magistral, toda a
humanidade e seus mistérios. Esta aparente contradição será o fio condutor da trajetória do amo e
do escudeiro ao longo da narrativa que, espetacularmente, acaba por inverter, em alguns
momentos, os papéis de ambos. O leitor percebe a quixotização de Sancho e a sanchização de
Quixote, para usarmos mais uma vez os termos de Unamuno (1964). Sancho, ao sair da ilha
aproxima-se do caráter de Quixote, ao qual não interessam conquistas e bens pessoais. Dom
Quixote, em situações de ira, revela traços rudes, próprios do homem bronco, representado por
Sancho. Ao final da segunda parte, quando o herói está morrendo, a inversão é clara, pois Dom
Alonso Quijana abandona o sonho, enquanto Sancho Pança insiste com o amigo para dar
continuidade às aventuras.
Os grandes diálogos, a conversação, travados entre o simplório Sancho e o letrado
Quixote são embates de ideologias, torneios de linguagem, verdadeiras “aulas” de argumentação.
Voltando nossas lentes para a concretização das idéias, para as palavras que estruturam o
texto em si, muitos exemplos da figura mais recorrente nas obras barrocas podem ser destacados.
Vejamos alguns:
Vede caterva enamorada, que só para Dulcinéia sou massa e alfenim e para todas as outras sou pedra;
para ela sou mel, e fel para vós, outras: para mim só Dulcinéia é formosa, discreta, honesta, galharda e
bem-nascida, e as outras são feias, tolas, levianas e da pior linhagem; para eu ser dela e de mais ninguém
me arrojou a natureza ao mundo. (Castilho, II,XLIV)
No episódio do espancamento de André, o jovem castigado pelo patrão:
Assim mesmo porém foi-se a chorar, e o amo se ficou a rir. (Castilho,I,IV)
Dom Quixote ao ser levado preso numa gaiola:
Depois que Vossa Mercê está engaiolado e encantado, como diz, já lhe deu vontade de fazer águas maiores e
menores como se costuma dizer? (Castilho,I,XLVIII)
127
Ao atacar um “exército” de ovelhas, Dom Quixote explica a Sancho:
_Querem-se mal – respondeu Dom Quixote – porque este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está
namorado da filha de Pentapolim, que é formosíssima, e ainda por cima muito engraçada senhora, e cristã.
Seu pai não quer dá-la ao rei pagão, sem ele primeiro renegar a lei do falso profeta Mafoma, e se converter
à sua. (Castilho, I, XVIII)
Mais exemplos de trabalho com as antíteses; agora na narrativa de Lobato:
O [exército] da esquerda pertence ao Imperador Alifanfarrão e o da direita ao Rei Pentapolim, seu
poderoso inimigo. O maometano Alifanfarrão quer impor suas malditas crenças ao Rei Pentapolim, que é
um fiel seguidor de Cristo. Logo, tenho de tomar partido deste último e juntamente com ele atacar os
infiéis. (p.40)
Quando vocês crescerem e lerem este capítulo de Cervantes, hão de achá-lo engraçadíssimo – e ao mesmo
tempo triste. A loucura é a coisa mais triste que há...
_Eu não acho – disse Emília. _ Acho-a até bem divertida. E, depois, ainda não consegui distinguir o que é
loucura do que não é. (p. 52-53)
O mal e o bem não são eternos. Nem um nem outro duram muito. E nunca estamos mais próximos da
vitória do que quando tudo parece perdido (p. 41)
_ Isso também não, Emília – disse Pedrinho Sai o mau e também o bom. Saem as invenções, saem as obras
de artes , os livros, como este...(p.40)
-Mas como pôde V. Sa. ver tantas coisas em tão pouco tempo em que esteve na caverna – só alguns
minutos?
Saiba que vi o sol nascer e morrer três vezes durante o tempo que estive lá. (p.75)
Para encerrar a reflexão sobre as artimanhas das antíteses nas obras estudadas, trazemos
as palavras do filólogo Rosenblat:
As antíteses de Cervantes nos apresentam duas visões aparentemente antagônicas,
mas que se complementam e até se interpenetram. Manifestam ou destacam as
duas caras de uma mesma verdade. O drama do cavaleiro com sua loucura, junto à
comédia do escudeiro com sua simplicidade e sabedoria natural, se desenvolve de
maneira cômica ou burlesca (...) os termos antitéticos se contrapõem e se
harmonizam como peças do grande jogo cervantino de vidas e mundos em
conflito. (p.113)
25
25
Tradução nossa
128
3.1.9 Sinônimos voluntários: um reforço na expressividade
A reiteração da idéia serve de suporte ao gênero narrativo, aproxima o discurso literário
ao da língua oral.
Sabemos que sinônimos são palavras com significação semelhante ou afim. Usados por
Cervantes como recurso de clareza ou realce expressivo, sobretudo com intenção de reiterar o
tom burlesco que se mantém em toda a obra, tal estratégia é bastante explorada na obra.
Observemos:
Dom Quixote, chamando-lhes aleivosos e traidores, e acrescentava que o senhor do castelo era covarde
(...) Dizia aquilo com tanto brio e denodo... continuou na vela das armas com a mesma quietação e
sossego que a princípio. (Castilho, I, III)
No exemplo a seguir a sinonímia está a favor de uma idéia de gradação.
Senhor, disse Sancho, eu sou homem pacífico, manso e sossegado (Castilho, I,XV)
Alguns sinônimos apresentam uma aparente antítese:
A veces iba a escuras y a veces sin luz, pero ninguna vez sin miedo (Cervantes, II, LV)
E umas vezes ia às escuras, outras vezes com luz, mas nunca sem medo. (Castilho, II,V)
Nos fragmentos transcritos acima comprova-se uma falha de tradução. No texto de
Cervantes, temos a sinonímia confundindo-se com a antítese. No de Castilho, o sentido é
alterado, pois se instaura uma verdadeira antítese; há oposição clara de idéias.
Em Dom Quixote das crianças quase não foram encontrados sinônimos; talvez porque a
característica do discurso de uma adaptação seja o corte, a simplificação; o uso de sinônimos
voluntários acabaria por retardar a narrativa.
129
Lobato, entretanto, não desprezou o estilo da “língua de partida”
26
, da dicção cervantina.
Exemplifiquemos com um fragmento do episódio em que o padre e o barbeiro queimam os livros
do fidalgo e mandam fechar com tijolos a biblioteca de Dom Alonso:
Mas ficou atônito ao dar com uma parede contínua, sem marca nenhuma na porta. Apalpou-a, sondou,
examinou.
Por fim chamou a ama. (p.21)
3.1.10 Repetições deliberadas, expressivas
Nem sempre as repetições denotam falha na elaboração de um discurso. Pode-se
perceber o emprego desse estratagema quando a intenção do enunciador é chamar a atenção
para o que é dito e/ou para instaurar o cômico. Eis o exemplo na fala de Sancho Pança:
_Esse costume, senhor escudeiro – respondeu Sancho – pode correr e passar entre rufiões e pelejantes
andaluzes (...) eu quero que seja verdade e ordenança expressa pelejarem os escudeiros, enquanto seus
amos pelejam (...) e, demais, impossibilita-me de pelejar o não trazer a espada, pois em minha vida nunca
a cingi. (Castilho, II, XIV)
A repetição do verbo “pelejar” e do adjetivo “pelejante” pode ser atribuída ao vocabulário
limitado de Sancho, homem de poucas letras, figura picaresca.
Ao cotejar duas edições da obra, encontramos um fato digno de comentário. Os exemplos
abaixo chamam a atenção pelo jogo de coesão que apresentam:
Vio, dice la historia, el rostro mesmo, la misma figura, el mesmo aspecto, la misma fisionomia, la mesma
efigie, la perspectiva mesma del bachiller Sansón Carrasco. (Cervantes, II, XIV)
Viu, – diz a história, o rosto, a figura, o aspecto, a fisionomia, a efígie, a perspectiva do bacharel Sansão
Carrasco! (Castilho, II,XIV)
Na tradução, desaparece o efeito estético da repetição, embora pudéssemos reconhecer um
valor do adjetivo “mesmo” por meio do recurso da elipse.
26
As expressões “língua de partida” e “língua de chegada” são recorrentes nos estudos sobre tradução. Não foi possível localizar a
origem da nomenclatura.
130
As repetições em Lobato estão presentes basicamente na voz de Dona Benta, quando a
avó assume a responsabilidade sobre o ato de narrar, pois a repetição expressiva é própria da
oralidade.
Alguns exemplos podem ilustrar o que dissemos:
Por isso é que ele era tão gordinho –observou a menina – Esse Sancho, aqui no desenho, parece um
chouriço O que quer é comer comer comer (p.25)
Dona Benta interrompeu a história nesse ponto. O relógio acabava de bater nove horas.
_ Cama, cama, criançada. (p.32)
Pare com Emília, vovó! – gritou a menina furiosa. A senhora até parece Lobato – Emília, Emília, Emília.
Continue a história de Dom Quixote. (p.53)
O pobre Visconde segue atrás como escudeiro, vestido de uma roupa larga. Só vendo, vovó! [Emília] Está
doida, doida (p.72)
Os donos da barquinha exigiram cinqüenta moedas de indenização, que Dom Quixote teve de pagar.
Depois de bem enxutos ao sol, os dois náufragos seguiram o seu caminho e andaram andaram andaram
até o encontro duns caçadores... (p.76)
3.1.11 Jogos de palavras: o engenho e a arte do autor
O jogo começa no próprio título do livro: O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la
Mancha. O substantivo “engenho”, base para a formação do adjetivo em foco, significa “talento,
habilidade, inventiva”. Rosenblat nos fala, todavia, de um outro sentido embutido na palavra:
“delírio paradoxal, melancolia, discrição”. Cervantes jogaria com a polissemia da palavra na
busca de um efeito de sentido irônico no texto.
Os jogos de palavras, aliados a outros recursos, são recorrentes em toda a obra. Na
verdade, tudo em Quixote é jogo para realizar uma significação ou uma dupla significação. Este
recurso contribui para manter uma atmosfera de engenhosidade.
Para ilustrar, transcreveremos uma fala de Sancho.
_Lá com o gramar entendia-me eu – tornou Sancho – com ticas é que não as entendo. (Castilho, II,III)
131
A discussão entre o escudeiro e o bacharel Sansão Carrasco sobre a importância da
gramática possibilitou o jogo com o verbo gramar, possivelmente, em se tratando do Pança, na
acepção de “comer de uma só vez, engolir”:
Da narrativa de Lobato, destacamos um exemplo na fala do narrador, ao descrever a
comedoria servida à noite por Nastácia:
E sempre um café coado na hora que era “da hora”, como Narizinho dizia. (p.48)
A expressão “da hora” é considerada gíria. Vale ressaltar que o uso estaria autorizado,
uma vez que tais palavras são proferidas no discurso da menina Lúcia. Sabe-se que a linguagem
dos jovens, em geral, é carregada de gírias.
Lobato revela consciência lingüística ao escrever entre aspas os termos que migraram de
um discurso para outro, ou seja, ao empregar “da hora” – expressão mais usada na região
paulista, e que significava naquele contexto histórico-social “ótimo, excelente” –, o autor mostra
que sabe adequar a língua à situação de uso. A gíria é efêmera, perde ou modifica muito
rapidamente seu sentido; “da hora” hoje ainda é uma expressão corrente, porém com sentido
diferente; usa-se tal expressão, quando se diz que algo “está na moda”, é atual, é “legal”.
Ainda outro jogo, agora com o nome de Pança:
_“Oh –exclamou Sancho (...) Mas, diga-me, senhor não acha que sejam horas de cuidar da pança? (p.25)
3.1.12 Artesania dos nomes
O nome tem um valor especial na obra de Cervantes. Logo no início, em um lugar da
Mancha de cujo nome não quero lembrar, nos deparamos com um jogo interessante de sentidos,
possibilitando múltiplas interpretações para a frase. O narrador não quer lembrar porque não
sabe? Faz questão de esquecer, porque nomear é reapresentar, e ele não quer reviver pela
memória certas experiências? Ou simplesmente quer fazer mistério, usando dessa estratégia a fim
de criar um caminho para o lúdico que se estabelece diante do leitor logo nas primeiras linhas da
narrativa?
132
Lobato mantém a indeterminação do lugar, mas adota um tom didático, ao explicar pela
voz de Dona Benta onde está localizada a região chamada “Mancha”:
Em certa aldeia da Mancha (que é um pedaço da Espanha), vivia um fidalgo... (p.10)
Os topônimos merecem um estudo especial, no entanto, nosso interesse no momento está
voltado para os antropônimos, espaço da criatividade de Cervantes que, tal qual um ilusionista,
cria e transforma os nomes de seus personagens, aproximadamente seiscentos, ao longo da
narrativa.
Antes de passarmos ao estudo de nomes de personagens, vale uma reflexão sobre o nome
da ilha Barataria. O topônimo sugere que Sancho recebeu barato, não pagou pela ilha da qual é
governador.
No primeiro capítulo, o narrador apresenta o fidalgo Dom Alonso, de quem não se sabe ao
certo o sobrenome. Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (...) que se
chamava Quijana. O “desocupado leitor” precisará percorrer as quase mil páginas do livro para
descobrir o verdadeiro sobrenome do herói, revelado no último capítulo, na hora da morte de
Dom Alonso:
_Dai-me alvíssaras, bons senhores, que já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas sim Alonso Quijano,
que adquiri pelos meus costumes e apelido de Bom. (II, LXXIV)
Dom Alonso perde o juízo e sai em busca de aventuras. Acreditando ser um cavaleiro
andante, inicia todo o ritual de sua sagração. Primeiramente, nomeia o cavalo com o qual
atravessará terras, buscando consertar o errado e fazer justiça. Batiza o animal de Rocinante que,
segundo Rosenblat, parece formado com o sufixo “ante”, já que Cervantes usa-o com certa
freqüência, como em “peleante, esperante, mirante, andante, perguntante, narigante”.
Com evidente intenção burlesca, Cervantes nos diz, no primeiro capítulo, que havia criado
o nome Rocinante com a forma “antes”, pois significava o que o cavalo tinha sido anteriormente:
um simples rocim, porque agora era o primeiro de todos os rocins do mundo.
Em Lobato, mais uma vez, a curiosidade das crianças exige uma explicação por parte de
Dona Benta.
133
_Que quer dizer [Rocinante]
_Nada. Talvez a palavra venha de rocim, que hoje significa animalzinho magro, cavalinho à-toa. O fidalgo
achou sonoro o nome de Rocinante e com ele batizou o seu cavalo. Esse nome se tornou tão célebre no
mundo inteiro que hoje quem vê um cavalo velho, magríssimo, diz logo: “Ali está um rocinante.” Passou de
nome próprio a nome comum.
Lobato, por intermédio de Dona Benta, não perde a oportunidade de ensinar algo às
crianças.
Escolhido o nome do cavalo, faltava arranjar um nome para o futuro cavaleiro. Ele gastou
oito dias para escolher o nome Quixote,
27
provavelmente a partir da base “Quixada” à qual se
agregou o sufixo “ote”, de valor pejorativo, como em “pipote, virote” etc. ou afetivo, como em
“muchachote, Arturote” etc. Mais um jogo com a duplicidade de sentidos, com as possibilidades
da língua. Na primeira parte, capítulo XXX, ainda encontramos outros nomes para o herói.
Dorotéia chama-o de “Dom Azote” e “Dom Gigote”. Percebe-se a intenção cômica na escolha
dos nomes dados por Dorotéia ao valoroso cavaleiro, principalmente quando sabemos que
naquela época gigote era um picadinho de carne com outros ingredientes (ensopadinho).
Depois de escolhido o nome, o herói manchego, por analogia com Amadis de Gaula,
grande herói da cavalaria, agregou o nome de sua terra e transformou-se em Quixote de La
Mancha. O título honorífico Dom confere ao cavaleiro honra, respeito e consideração. Embora
não pertencendo à linhagem dos nobres, Alonso Quijano metamorfoseou-se em Dom Quixote
de la Mancha. Uma vez nomeado, ganhou existência.
Ao desenrolar da história, Sancho, seguindo a tradição da cavalaria, agrega a Dom
Quixote outros epítetos: Cavaleiro da Triste Figura, depois de ter sido espancado e perder os
dentes; Cavaleiro dos Leões, quando conseguiu dominar os leões que iam transportados para a
corte.
Os nomes são plenos de significado e respondem ao sentido geral da obra. O antropônimo
Sancho emerge da realidade. Carrega várias acepções: (i) nome tradicional de reis; (ii) em
espanhol, significa “porco”. Combinado com Pança, surte um efeito especial na construção da
comicidade. Devemos ressaltar que o sobrenome Pança marca uma linhagem, pois o escudeiro
afirma com orgulho que tal sobrenome também tiveram seu pai e seu avô (II, XLV).
Outro sentido está na origem de “Sancho”. Do latim, sanctus, o nome do fiel escudeiro é
composto com um pouco de cada uma das características. Ele é gordo, guloso etc; aí está o
27
O sobrenome Quixote existiu na Espanha no século XVI. Covarrubias diz que “quixotes”, na armadura, são as peças que
cobrem as coxas. (Castilho, p.77)
134
sentido para a idéia de “porco”. Já a palavra sanctus se faz lembrada quando o escudeiro trata dos
ferimentos do amo, adverte-o dos perigos, cuida da alimentação dele; enfim Sancho vive para
comer e proteger Quixote.
A transformação cavaleiresca começa essencialmente com o nome. A lavradora Aldonça
se transforma em Dulcinéia Del Toboso.
Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa moça lavradora de muito
bom parecer, de quem ele em tempos andara enamorado, ainda que (segundo se entende) ela
nunca o soube, nem de tal desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a ele
pareceu bem dar o título de senhora dos seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não
desdissesse muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares de princesa e grã-
senhora, veio a chamá-la Dulcinéia del Toboso, por ser Toboso a aldeia da sua naturalidade;
nome este (em seu entender) músico, peregrino, e significativo, como todos os mais que a si e às
suas coisas já havia posto.
28
(I,I)
A doçura da moça está representada tanto no nome Aldonça quanto no nome Dulcinéia.
Segundo Covarrubias
29
, citado por Rosenblat, o nome Aldonza é formado pelo artigo Al mais o
nome donza, corruptela de dolze. A amada de Quixote era moça boa e doce; a mudança do nome
da pastora, como vimos, não foi arbitrária.
Os adversários imaginários do Cavaleiro da Triste Figura têm nomes extravagantes,
como, por exemplo, Pentapolim, Sansão Carrasco.
Os nomes que apresentam o projeto de vida pastoril (II, LVII) também são dignos de nota:
Quijotiz, Pancino, Sansonino Carrascón, Nicoloso (Nicolau, o barbeiro, Curiambro (o cura),
Teresona, (a mulher de Sancho, por ser gorda). Percebe-se, por meio do jogo onomástico, a
sátira ao universo da confraria dos pastores.
Lobato também brinca com nomes. Emília, ela mesma, a voz da irreverência, transforma-
se na Senhora Emília del Rabicó e em Dona Quixotinha:
_Ai, ai! –suspirou Emília. – Quem me dera ter um cavaleiro andante que corresse mundo berrando que a
mais linda de todas as bonecas era a Senhora Emília Del Rabicó... (p.27)
A mim ninguém me embrulha nem governa. Sou do chifre furado – bonequinha de circo. Dona
Quixotinha... (p.64)
É mesmo mágico, é alquímico, o trabalho com os nomes nas obras de escritores cuja
acuidade lingüística é inegável. O leitor entra no jogo e, se a sintonia for grande, acreditamos que
o prazer de ler fique bem próximo ao prazer de criar, de escrever. A matéria-prima do discurso
28
grifos nossos
29
Sebastián Covarrubias escreveu, em 1611, o primeiro dicionário da língua espanhola: Tesouro da língua castelhana ou
espanhola
135
literário, a palavra, é transmutada pelas mãos de escritores engenhosos, levando seus
“cúmplices”, os leitores, a um universo de encantamento ilimitado.
3.1.13 Ludismo e forma gramatical
3.1.13.1 Os adjetivos nas malhas do burlesco
Indiscutível a força expressiva da adjetivação em obras literárias cujo valor estético é
reconhecido. Usando a adjetivação binária, a anteposição, a posposição ou seqüência de
adjetivos, Cervantes vai construindo um universo risível.
No palácio ducal, Quixote e Sancho conversam:
[Quixote fala] _Dize-me, truão
30
moderno e malhadeiro
31
antigo: parece-te bem desconsiderar e afrontar
uma dona tão veneranda e digna de respeito como aquela (...) Por Deus, Sancho, reporta-te e não
descubras o fio, de forma que venha a perceber-se que és feito de pano grosseiro e vilão (...) Não reparas,
desgraçado, que se virem que és um vilão grosseiro, ou um mentecapto divertido, pensarão que sou
algum ichacorvos
32
ou algum cavaleiro de empréstimo (...) |Não, não Sancho amigo, foge, foge destes
inconvenientes, que quem tropeça em falador e gracioso, ao primeiro pontapé cai e dá um truão
desengraçado; refreia a língua, considera e rumina as palavras, antes de te saírem da boca... (II,XXI)
Neste fragmento, flagra-se um trabalho primoroso com a adjetivação. Em primeiro lugar,
a seleção lexical é bastante eficaz. O uso de palavras rebuscadas reforça a imagem de Quixote e o
cenário formal criados pelo autor, próprios do universo dos cavaleiros.
Vale comentar que a “veneranda e digna” dona não passava de uma das amas da
duquesa que os hospedava. Dona Rodrigues discute com Sancho por causa do jumento, pois o
escudeiro queria que ela cuidasse do asno, mas a ama ficou furiosa com o pedido. Aqui vale
ilustrar, mais uma vez, o pudor do tradutor, uma vez que no texto original, Dona Rodrigues xinga
Sancho Pança de hijo da puta, porém, na tradução de Castilho, o discurso é atenuado e o palavrão
substituído pela palavra patife.
30
aquele que diverte os outros, palhaço.
31
O que é alvo de zombaria
32
ichacorvo (echacuervos em espanhol): charlatão
136
Destacamos ainda o jogo com o arranjo entre palavras, como empano grosseiro e
vilão” e em “vilão grosseiro”, em que a palavra vilão assume inicialmente a posição de adjetivo
para, a seguir, fazer as vezes de substantivo.
A construção neológica desengraçada (des+engraçada), aliada ao substantivo truão,
provoca um certo estranhamento por parte do leitor; é possível que ele pare para pensar na figura
de um palhaço sem graça, na cena que tais palavras evocam.
Neste ponto, recorremos a Charaudeau & Maingueneau (2004) para entendermos melhor
a cenografia no trabalho de Cervantes.
Miguel de Cervantes elabora, dentro do discurso literário (cena englobante), um romance
de cavalaria (cena genérica) com o propósito de satirizar tal gênero, escrevendo uma paródia. Os
elementos textuais (cena enunciativa) são magistralmente organizados para que o objetivo do
autor seja atingido. Os adjetivos são de fundamental importância na composição da cenografia da
obra.
Os adjetivos comportam-se, em geral, da seguinte maneira: (i) emprega-se a anteposição
nas falas mais elaboradas do fidalgo e, em alguns momentos, mais solenes, nas do narrador; (ii)
usa-se a posposição nas falas mais coloquiais, como as de Sancho.
Observemos a engenhosidade de Cervantes no uso dos adjetivos.
Caso de anteposição
O duro, estreito, apoucado e fingido leito de Dom Quixote ficava logo à entrada daquele estrelado
33
estábulo. (I,XVI)
Então o governador disse à mulher:
_Deixai cá ver, honrada e valente mulher, essa bolsa.
Logo ela lha deu, e o governador restituiu-a ao homem (...) (II,XLV)
No primeiro exemplo, o narrador antepõe os adjetivos porque a descrição faz referência a
Quixote, fidalgo, cuja dicção é, via de regra, sofisticada.
Já no segundo fragmento, percebe-se no discurso de Sancho a força da formação
discursiva
34
dos que ocupam lugares de poder. O fiel escudeiro enuncia do lugar de governador.
O discurso de Pança, como todos os demais, é socialmente marcado. A fala do governador
33
o adjetivo estrelado quer dizer que pelas fendas se viam as estrelas.
34
Formação discursiva: noção introduzida por Foucault e reformulada por Pêcheux
137
Sancho precisa estar alinhada ao discurso das autoridades administrativas; portanto, o simples
lavrador, no cargo máximo na ilha Barataria, não poderia empregar qualquer nível de linguagem.
Anteposição em Lobato
Haja o que houver, a minha fiel espada tem que vencer no fim – e Freston será castigado.
_Amém! – tornou o escudeiro e ajudou o moído amo a repimpar-se sobre Rocinante, que mal podia
agüentar-se de pé. (p.24)
A vitória final o entusiasmou tanto que [Sancho] correu para Dom Quixote, para ajoelhar-se e beijar-lhe a
mão, dizendo:
-Que vitória estupenda, meu senhor! (p.28)
Sentindo-se vigoroso e alegrinho, Dom Quixote tratou de safar-se dali em procura de novas aventuras. Foi
ele mesmo selar Rocinante e o burro, sobre o qual colocou o descorado e gemebundo Sancho. (p.38)
_ Sancho! Sancho! Não bebas esse pérfido licor, porque te matará! Tenho aqui comigo o maravilhoso
bálsamo de Ferrabrás. (p.39)
_ “Requeijões frescos, senhor? Repetiu Sancho, fazendo-se de assombrado.
_Malditos encantadores! De que haviam de lembrar-se para perder-me no conceito do meu bom amo! Ma
passe para cá massa, senhor, que a guardarei no meu bucho.” (p.72)
O uso dos adjetivos antepostos são abundantes, podem ser encontrados por toda a obra.
A posposição
_Segue o teu conto, Sancho – disse Quixote.
_Digo pois – prosseguiu Sancho – que num lugar da Estremadura havia um pastor cabreiro, quero dizer:
um pastor que guardava cabras... (I, XX)
_”Ah, senhora! – exclamou o metediço Sancho – Foi uma viagem espantosa. (Lobato,p.80)
Pode-se observar o contraste entre o emprego do adjetivo metediço, anteposto na fala do
narrador, e o uso do adjetivo espantosa, posposto na voz do escudeiro. Nem sempre, porém, o
narrador se distancia da variante lingüística do personagem; muitas vezes, ele busca uma
aproximação, uma identificação com tal variante, como no exemplo: Enquanto o escudeiro ia
acomodando no bucho os requeijões esmagados, Dom Quixote enxugava a cara e a
barba...(Lobato, p.72). As palavras bucho e cara foram selecionadas por um narrador que se
deixa contaminar pelo modo de dizer do personagem. Tais vocábulos entrecruzam a voz do
escudeiro com a voz do narrador.
138
A plasticidade da exuberante adjetivação merece um destaque especial:
Aqui soltou Dom Quixote um grande suspiro, e disse:
_Não poderei afirmar se a minha doce inimiga
35
gosta ou não de que o mundo saiba que eu a sirvo. Só
posso dizer, em resposta ao que tão respeitosamente se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria El
Toboso, em lugar da Mancha; a sua qualidade há de ser, pelo menos, princesa, pois é rainha e senhor
minha; sua formosura, sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos
de formosura que os poetas dão à sua dama; seus cabelos são de ouro; a sua testa campos elísios; suas
sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes;
alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à
vista humana traz encobertas a honestidade são tais, segundo eu conjeturo, que só a discreta
consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las.
(Castilho,I,XIII)
Combinações inusitadas, expressões metafóricas espetaculares, ordenações incomuns e
elipses expressivas. Eis os principais elementos com que Cervantes, de maneira alquímica,
transforma a linguagem, produzindo uma peça de inegável valor estético.
3.1.13.2 O léxico e seus sortilégios
Este tema é extenso e instigante, todavia não é nossa intenção dar conta de todos os
recursos da língua utilizados por Cervantes, tampouco pelos autores-adaptadores.
Optou-se por destacar algumas formas mais recorrentes ou mais inusitadas.
A produtividade dos sufixos, verifica-se nos exemplos abaixo, é um dos recursos
responsáveis pela ambiência cômica da narrativa:
36
Ada: pratarrada, livralhada, ferralhada, poeirada, quixotada, espaldeirada, peneirada, barulhada (Lobato)
Udo:
Um governador...unhudo e sujo (Lobato, p.81)
(com as unhas mal cuidadas)
Partiu André algum tanto (...) trombudo (Castilho,I,IV)
(de fisionomia fechada;zangado)
barrigudo (Lobato), pançudo escudeiro (Lobato)
35
Em nota explicativa, ficamos sabendo que “Isso de minha doce inimiga é reminiscência de uma passagem do poeta italiano
Serafino Aquilano. (Castilho, p.148)
36
Optamos por contextualizar os exemplos, somente quando houver possibilidade de dúvida quanto ao sentido.
139
Ura: ...encontrei em baixo [do livro] uma chatura: era o pobre
Visconde.(Lobato, p.9)
Eira: Dom Quixote exausto da penitência e da caminheira (Lobato, p.57)
Ola: _Tá,tá,tá! Lá vem asneirola (Lobato, p.81), cachola (Lobato),
galinhola (Lobato)
Ona
: despachadona (Castilho, I,XX)
Oso: ditoso (Cervantes, Castilho, Lobato)
Ote: Quixote (Cervantes, Castilho,Lobato, Gullar )... meninote (Lobato, p 56)
Ica: Sanchica (Castilho, II,L); palmadicas (Cervantes, I,XXV)
Ito: Maravilhar-me-ia eu, Sancho, se não misturasses no colóquio algum
rifãozito. .Ora bem, perdôo-te, contanto que te emendes.
(Castilho, II,XXVIII)
Inho/inha: vestidinha, barquinha, loucurinha, boazinha, gordinho,
embrulhinho, picadinho, famosinha, vinhinho (Lobato)
Ão: cabeção (Castilho, II, XVII)
livrão, carão, gaiolão, bengalão , bioão, barbadão (Lobato)
As palavras formadas pelos sufixos inho/inha e ão em Dom Quixote das crianças
apresentam grande freqüência, pois estamos diante de uma narrativa recontada para os pequenos;
por isso a linguagem fica mais coloquial e, como se pode observar, os diminutivos e
aumentativos são marcas expressivas na língua oral.
No caso do diminutivo, a diferença é semântica porque o sufixo inho/inha tanto agrega
valor de pequenez quanto de afetividade aos seres. A maioria dos exemplos listados foi usada em
relação à boneca de pano, personagem muito especial para Lobato; nota-se um carinho muito
grande do autor por Emília, criatura autorizada a dizer as palavras irreverentes e a expressar
140
idéias “interditadas” no discurso do autor; afinal, ela é só uma boneca! Já na fala de Narizinho,
percebe-se uma ponta de ciúme da menina em relação à boneca:
_ Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar as suas
asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós (p.28).
O discurso infantil também se caracteriza pela expressividade do aumentativo.Tudo é tão
grande sob a ótica da infância! A boneca humanizada desejava os livros depositados nas mais
altas prateleiras da estante: (...) Mas como fosse muito pequena, só alcançava os da prateleira de
baixo (...).subiu na escada e alcançou os livrões. (p.7)
3.1.13.3 Um jogo interessant(íssimo) com o superlativo
Vamos abrir um espaço especial para o sufixo formador de palavras no grau superlativo,
pois que é abundante, tanto na narrativa original quanto na adaptação em foco. É uma das marcas
do estilo de Cervantes. Vale lembrar o personagem José Dias, de Machado de Assis, que se
notabilizou pelo uso das formas superlativas. Em Lobato a forma sobressai, o uso daquele
elemento é exuberante; são mais de 70 palavras formadas pelo sufixo íssimo.
. O que chama a atenção do leitor, nos textos analisados, é o uso intenso da forma
superlativa.
Exemplos de Cervantes no discurso de Dona Dolorida ao dirigir-se aos Duques, a Dom
Quixote e a Sancho:
_ Confiada estoy, señor poderosísimo, hermosísima señora y discretísimos circunstantes, que há de
hallar mi cuitísima en valerosísimos pechos acogimento(...)el acendradísimo caballero don Quijote dela
Manchísima y su escuderísimo Panza.
_ El Panza –antes que otro respondiese, dijo Sancho – aquí está, y el Don Quijotísimo asimismo; yasí,
podréís, dolorosísima duñenísima, decir lo que quisieridísimis; que todos estamos prontos y
aparejadísimos a ser vuestros servidorísimos (Cervantes, II, XXXVIII)
Bastante eficaz é o jogo na forma verbal “quisieridísimis”. Percebe-se a junção do sufixo
“isimo” à base e a manutenção da terminação de 2ª pessoa do plural (is). (quisierid+isim+is)
141
O discurso da Princesa Trifaldi, a Dolorida, na versão de Lobato, segue o jogo do texto
original:
A triste princesa disse:
_ Poderosíssimo senhor, e vós, belíssima dama e ilustríssimos ouvintes aqui reunidos: não
tardarei a comover-vos com minha triste história, mas antes de tudo desejava ser informada se o
gloriosíssimo cavaleiro Dom Quixote de la Mancha e o seu fidelíssimo escudeiro se acham presentes.”
_ “Sim, madamíssima – bradou Sancho. – Eis ali em pessoa o valentíssimo Dom Quixote de la Mancha, e
cá o seu fidelíssimo escudeiro Sancho Pança. Estamos os dois prontíssimos para defender em todos os
terrenos a vossa dolorosíssima beleza”. (p.78)
O uso excessivo do superlativo torna, também, superlativa a comicidade da situação.
Os exemplos são infinitos, tanto no original quanto na paráfrase. O ponto alto do jogo
com o sufixo íssimo está no momento em que os autores empregam tal elemento mórfico em
bases substantivas, o que foge à regra padrão, que nos orienta a empregá-lo com bases adjetivas.
Assim, em Quixotíssimo, Manchíssima, madamíssima e em outros substantivos o efeito cômico é
extraordinário; porém, quando Cervantes forma o superlativo a partir da base verbal “quiser” –
quiserdíssimos –, o inusitado da situação imprime intensidade no ambiente burlesco construído
pela rede textual.
3.1.13.4 As Onomatopéias: valorosa sonoridade
As onomatopéias são formações de vocábulos em busca de uma sonoridade. Não é
própria da linguagem de Cervantes. Sabe-se que tal recurso passou a ser mais explorado a partir
do simbolismo. Já em Lobato, encontram-se vários exemplos, pois o discurso em Dom Quixote
das crianças busca uma interação com o interlocutor infantil. Não podemos esquecer que Dona
Benta está contando a história para os netos. A criança gosta da teatralização, da encenação; daí o
apelo ao ludismo das formas onomatopaicas que tentam materializar o abstrato do som. Eis
alguns exemplos:
brolorotachabum -
Brolorotachabum! –despencou lá de cima...(p.8)
(barulho do livro caindo da estante)
lepte! - Mas o patrão não queria saber de nada, e lepte! (p.17)
(som das chicotadas nas costas do menino)
142
fugt - E Quindim em cima, fugt fugt, espetando [o patrão que surrou o rapaz] com o chifre. E eu cá a
berrar... (p.24)
(Emília, em sonho, se vinga do patrão)
més - [Sancho] _ “Não ouço nada do que V.Sa. diz. Ouço més de carneiros, só isso..” (p.40)
puff – A mecha incendiou a pólvora que recheava o cavalo. Puff! Uma
explosão. (p. 80)
3.1.13.5 A formação verbal e neologismo: humor e liberdade de criação
O jogo com a criação verbal mostra a ousadia de Cervantes.
bachillear - Soy bachiler por Salamanca, que no hay más que
bachillear. (Cervantes ,II,VII)
bacharelice - _Sei o que digo,senhora ama; vá e não comece com disputas, bem sabe que sou bacharel
por Salamanca, que não há mais bacharelice – respondeu Carrasco. (Castilho, II, VII)
escuderilmente - Vámonos los dos donde podamos hablar escuderilmente. (Cervantes, II,XII)
Vamos nós ambos para onde possamos falar escuderilmente. (Castilho, II,XII)
Afastemo-nos daqui para conversarmos à vontade. (Lobato,p.68)
bacyelmo - Y si no fuera por este baciyelmo, no lo pasara entonces muy bien, porque hubo asaz de
pedradas em aquel trance. (Cervantes,I,XLIV)
baci-elmo - e se não fosse este baci-elmo não passaria então muito bem, porque apanhou naquele
transe pedradas com fartura. (Castilho, I,XLIV)
143
3.1.13.6 As quixotices dos gêneros e da negação enfática
machoa [Sancho] (...) este pastor, como já disse, andava enamorado
de Torralva que era a tal pastora, cachopa roliça,
despachadona, e tirando seu tanto para machoa, porque até
bigodes tinha. (Castilho, I,XX)
ilhos herdera de um rico y grande estado de tierra firme, sin ínsulos ni
insulas. (Cervantes, I, XXVI)
herdeira de um rico e grande estado de terra firme sem ilhas ou
ilhós (Castilho, I, XXVI)
cavaleira Emília virou cavaleira andante (Lobato,p.70)
giganta Frestona Tia Nastácia é giganta Frestona (Lobato, 72)
Mais uma estratégia para a criação do ambiente de riso, da graça, do humor. O inusitado
da formação de gênero, em harmonia com os demais recursos, ajuda a estruturar a obra
monumental de Cervantes.
3.1.14 Expressividade com a metalinguagem
Recurso usado por Cervantes e muito explorado por Lobato, a metalinguagem é elemento
recorrente na narrativa. Mais uma estratégia para mostrar dois lados: o que tem um conhecimento
e o que não o tem. Em Cervantes, o letrado se contrapõe ao iletrado. Dom Quixote emenda a fala
de Sancho, dos cabreiros e pastores, sempre que eles desviam a linguagem padrão. Em Lobato,
não só o saber adulto tem destaque, as crianças também ensinam, porém o conhecimento infantil
ainda está em processo.
Rumemos aos exemplos.
Ao tomar posse na ilha, Sancho recebe uma série de conselhos de Dom Quixote:
_Toma cuidado em não comer a dois carrilhos e a não eructar diante de ninguém.
_Isso de eructar é que eu não entendo – interrompeu Sancho.
144
_Eructar, Sancho, quer dizer arrotar, e este é um dos vocábulos mais torpes que tem a nossa língua,
apesar de ser muito significativo, e então a gente delicada apelou para o latim, e ao arrotar chama eructar; e
ainda que alguns não entendam estes termos, pouco importa, que o uso os irá introduzindo com o tempo, de
forma que facilmente se compreendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso.
_Eructar, Sancho, e não arrotar – observou Dom Quixote.
_Pois seja eructar, e assim direi daqui por diante. (Castilho, II, XLIII)
O discurso na narrativa de Lobato apresenta mais recorrência do discurso pedagógico. É
preciso tornar claros os sentidos. Logo no início da história:
_Pois eu entendo – disse Pedrinho. _Lança em cabido quer dizer lança pendurada em cabido; galgo
corredor é cachorro magro que corre e adaga antiga é...é... (p.10)
_Nédia quer dizer gorda, desse gordo que deixa os animais lustrosos.(p.19)
_Mambrino, amigo Sancho, foi um mouro, possuidor dum elmo encantado. Um dia perdeu-o para
Sacripante, depois de tremenda luta. (p.42)
Há muito o que dizer sobre os recursos lingüísticos trabalhados, tanto por
Cervantes/Castilho, como por Lobato. Não é nossa intenção esgotar todas as possibilidades nesta
pesquisa, pois seu objeto é muito maior do que os limites de uma tese. Várias teses podem ser
escritas com o material oferecido por nossos escritores. Selecionamos, então, o que nos pareceu
mais marcante nos textos integrais (original e tradução) e no reconto lobatiano.
Somente para aguçar naquele que, por ventura, venha a ler este trabalho, o desejo de
buscar por si só o que faltou nestas páginas, elencamos alguns dos jogos lingüístico-discursivos
que continuam aguardando um leitor paciente para desvendá-los: (i) jogos intertextuais e
interdiscursivos; (ii) a importância do conhecimento prévio na atividade leitora, no que se refere à
presença da mitologia e da cultura helênica, por exemplo.
A análise mostrou-nos que Lobato usa possibilidades do sistema para combater o
anacronismo vigente no trato com a língua. Sua criação no plano lexical tem finalidade lúdica.
Embora ele não consiga se afastar efetivamente do tradicional, os recursos expressivos usados
pelo autor dão um ar de modernidade à obra, que respira com seu coloquialismo.
Palavras mais precisas sobre o trabalho com a língua portuguesa na obra de Lobato foram ditas
por Maria Teresa Gonçalves Pereira:
145
Monteiro Lobato busca constantemente uma renovação nas possibilidades
inúmeras que a língua oferece, dinamizando-a, explorando-lhe as potencialidades,
as suas realizações, não se prendendo ao convencional, mesmo quando dele
precisa para reavaliá-lo ou reaproveitá-lo. (1982, p.71)
Ouçamos a voz de tia Nastácia, ao acender a lamparina, anunciar: “É hora!”. Não mais de
ouvir somente as histórias contadas nos serões de Dona Benta, mas de reconhecer valor estético
nas palavras de um grande homem, de um escritor competente, que aprendeu muito com
Cervantes, sem perder, contudo, a identidade. Lobato assinou um contrato de comunicação com
leitores iniciantes, abrindo as portas para a literatura que pode ser usufruída também por crianças.
3.2 Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar
Não há dúvida de que verter um texto para outro idioma, ou mesmo para outro código, é
tarefa difícil, uma vez que, como sabemos, não basta substituir vocabulário, símbolos e ícones.
Deve-se “traduzir”, cortar, reduzir, uma obra clássica para que ela possa ser lida por leitores em
formação? Gullar aceitou o desafio e traduziu,adaptando para jovens o livro de Cervantes.
Elegemos para a pesquisa a versão do poeta por considerarmos um trabalho de qualidade
estética. Não é apenas mais uma tradução. Gullar não se afasta tanto do original e consegue
imprimir sua marca.
Retornando à epígrafe do trabalho, vale reiterar que defendemos a liberdade, o direito do
leitor. É bom que ele tenha opções.
Para tanto, os mediadores – escola, família – precisam de informação e de orientação para
ajudar o jovem em suas escolhas. Adaptações há muitas: as mais literárias, as mais imagéticas...
Neste estudo, Dom Quixote de la Mancha, de Ferreira Gullar, obra editada pela Revan em
2002, se destaca porque é considerada de grande valor pela crítica especializada; recebeu da
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 2003, o prêmio “Monteiro Lobato” de
melhor tradução para jovens. Quais os critérios adotados para premiar e consagrar um texto de
146
determinada categoria? No caso, por se tratar de um texto cujo trabalho se dá pela linguagem, a
análise recai sobretudo no trabalho com a língua portuguesa, na maestria em jogar com o
léxico, com as estruturas sintático-semânticas, com as intenções de sentido, enfim.
O poeta desempenhou com brilhantismo a tarefa e nos presenteou com uma narrativa
primorosa, cifrada em linguagem literária, cuja arquitetura exige talento.
A palavra é nossa guia. É a partir dela que as relações narrador/personagem,
personagem/personagem, texto/leitor se estabelecem. Ferreira Gullar movimenta com bastante
eficácia as peças do sistema lingüístico. Sem perder de vista as duas margens que delimitam a
tarefa do autor da adaptação, o poeta (re)apresenta em grande estilo Dom Quixote de la Mancha
(2002), livro apontado pela Academia Norueguesa como o melhor romance de todos os tempos.
Gullar consegue manter o tom da obra original e tingir com tintas próprias o texto em foco,.
Ao transpor uma obra para outra linguagem: um texto literário para cinema, para
quadrinhos, ou para outro suporte qualquer, percebe-se que o público-alvo e o meio pelo qual a
história será veiculada determinarão o trabalho do artista que pretende recontar aquela história.
Estruturalmente, observa-se que a maneira de “enxugar” o texto original, além dos cortes
nas historietas enxertadas nas andanças de Quixote pela Espanha, acontece também pela força da
voz do narrador; são poucos os diálogos entre personagens. Gullar consegue um tom bastante
singular no discurso do narrador, o que reforça a idéia de um proficiente contador de histórias. A
leitura flui, mesmo quando as informações para um leitor mais atento parecem repetitivas, como
é o caso de, em vários momentos do livro, o narrador reiterar a paixão de Quixote pelas novelas
de cavalaria e, repetidas vezes, informar ao leitor que tal comportamento foi aprendido através da
leitura daquelas novelas.
O foco neste ponto da pesquisa recai, então, sobre dois eixos: a voz do narrador e a voz
dos personagens principais. Tenta-se observar em que medida a teoria de Gusdorf (1995) pode
ou não ser confirmada, quando ele afirma a influência recíproca entre os interlocutores de um
processo comunicativo que se estabelece pela língua. Até que ponto Quixote influencia o dizer de
Sancho e vice-versa; de que maneira o narrador se aproxima ou se distancia de um e de outro
pela linguagem; quais as estratégias de mediação usadas pelo narrador para fazer a comunicação
entre o texto original e o recontado.
147
3.2.1 Vozes entrecruzadas
Cide Hamete Benengeli é o árabe que escreveu, segundo Miguel de Cervantes, a narrativa
original. Cervantes afirma ter comprado os cadernos de um mouro, a quem pagou para fazer a
tradução da história. Cervantes/Gullar traz ao leitor reiteradas vezes a informação de que a
história ali contada não é de sua autoria, portanto a responsabilidade do dizer recai sobre
Benengeli. Estratégia discursiva adotada em diferentes capítulos da obra: Conta Cide Hamete
Benengeli (p.53, p.172, p.176).
Este expediente deixa claro o distanciamento do narrador 2 (Cervantes/Gullar). O
compromisso com a “verdade” do que é dito fica, então, por conta do narrador 1 (Hamete). A
repetição é usada como recurso intencional de estilo, busca enfatizar a autoria do dizer.
3.2.2 A polifonia da voz narradora
A voz de Gullar se mistura com a de Cervantes e com a de Benengeli; porém, um leitor
observador percebe quando é o poeta quem fala em determinados momentos. Quer pela seleção
lexical quer pelas organizações sintáticas, a fala – concretização da língua por um indivíduo –
emerge com vigor, com suas marcas culturais, uma vez que, freqüentemente, narrador
(onisciente) e escritor acabam por se confundir numa mesma entidade. Vejamos alguns
exemplos:
Veja só o vovô! – respondeu a aldeã. Não estou aqui para escutar bobagens! Afastem-se e nos deixem
passar! (p.96)
_ Boa piada! – exclamou o comissário. – Este cara é um gozador. (p.56)
_ É melhor irmos para um lugar onde possamos falar escuderilmente... (p.102)
O humor, presente nas falas de personagens do povo (Sancho, aldeã, escudeiro), revela,
pela linguagem lúdica, o lado jocoso de Gullar. O poeta ratifica as criações neológicas de
Cervantes, como no caso do advérbio escuderilmente. Interessante observar a fala da aldeã
“Veja só o vovô!”. A ironia com que ela trata Quixote é revelada pela palavra “vovô”, que passa
148
neste contexto a idéia de desrespeito aos velhos. Tal uso nos leva a pensar que o poeta tem 70
anos e que esta frase revela um “modismo” da linguagem informal de antigamente, quando
Gullar era jovem. Dificilmente um escritor jovem da atualidade cifraria o desdém da aldeã em
tais palavras.
O narrador na obra de Ferreira Gullar transita muito bem entre a linguagem formal e a
informal. O autor/adaptador soube dosar os usos da língua. Se, por um lado, o texto fica “leve”,
próximo da linguagem do povo, por outro, sem perder de vista o original, escrito em 1605 e
sem banalizar o clássico em foco, a linguagem se apresenta rebuscada, elaborada, quer pelo
barroco da fala de Quixote quer pela realidade da sociedade da época.
Para retratar o mundo dos cavaleiros andantes, Cervantes recorre a palavras que o
reapresentam. No Houaiss, buscamos informações sobre alguns termos mantidos por Gullar:
alabardada: 1596, golpe desfechado com alabarda (arma antiga).(p.121)
alimária: séc. XIV, qualquer animal, especialmente quadrúpedes. (p.99)
funda: séc. XIV, arma de arremesso. (p. 51)
galés: séc. XIII, embarcações. (p.53)
jaez: 1512, conjunto de peças que permite o cavalgamento de montarias.(p.67)
odre: século XIV, saco feito de pele para transportar líquido. (p.65)
A linguagem figurada de uso corrente, o vocabulário do cotidiano, às vezes, chulo,
obsceno, também participam da estratégia do narrador para buscar maior sintonia com o leitor
moderno. Como vemos em:
À porta da venda estavam duas moças de vida fácil (p.13)
Sucedeu que Rocinante teve vontade de transar com as senhoras éguas dos
galegos. (p.32)
E correu-lhe um frio na espinha quando seu amo lhe disse... (p.93)
Eis a magia da linguagem literária apresentada pelo narrador de Gullar: sintonizar a
tradição com a modernidade pela seleção lexical, principalmente.
149
3.2.3 Quixote: a construção do personagem pela língua(gem)
Ao longo da história, Quixote revela cultura livresca bastante ampla. Conhece
personagens, poemas, teorias... É, pois, uma pessoa cuja cultura foi constituída, principalmente,
pelas letras dos livros que lia.
_Creia, formosa senhora, que pode considerar-se venturosa por ter alojado neste seu castelo a minha
pessoa, de cujos méritos não falarei por modéstia, mas meu escudeiro lhe dirá quem sou. (p.36)
As mulheres que quase não entenderam do que ele dissera agradeceram-lhe em língua de taverna suas
referências e se retiraram.
(idem)
Na fala de Quixote, flagramos recursos lingüísticos próprios de um alto grau de
formalidade, pelo léxico (formosa, venturosa, mérito) ou pelo torneio sintático em que usa o
relativo cujo. Já na referência à fala das mulheres, omitida propositalmente pelo narrador,
podemos inferir, via conhecimento enciclopédico, que as tais mulheres usavam uma variante
bastante informal, provavelmente repleta de gírias, de palavrões, bem próprios da linguagem oral
que circula nas tavernas, espaço de gente rude, pouco escolarizada.
Quixote é aquele que sabe, que conhece o que dizem os livros sobre fatos históricos; é um
homem culto a quem é dado o poder de corrigir, pois tem “autoridade” , conquistada pela leitura.
Vejamos o exemplo em que o fidalgo interpela mestre Pedro, o titereiro.
_ Isto não! – exclamou ele. –É incorreto pôr sinos repicando, uma vez que os mouros não usam sinos mas
atabales, que é uma espécie de charamela . (p.124)
A fala de Quixote, preocupada com a correção, com a precisão dos fatos, revela o tom
didático do discurso, expresso pelo recurso da metalinguagem. Mestre Pedro, porém, argumenta
que as comédias estão sempre cheias dessas impropriedades. (idem)
O herói é construído a partir de um lugar “privilegiado”, do lugar da escola, do saber
institucionalizado; do livro, que, ainda hoje, é objeto para poucos, para alguns “eleitos”. Isto se
comprova na fala do narrador, na seguinte passagem:
Sancho enxugou os olhos e nada respondeu, mal dando atenção ao discurso que o seu amo começou a fazer,
acerca de navegadores e navegações, linha equinocial, pólos e solstícios, coisas de que Sancho nunca
ouvira falar. Nisto, avistaram grandes moinhos, situados no meio do mar... (p.130)
150
3.2.4 A linguagem formal do fidalgo
Abaixo aparecem exemplos de uso da variante formal da língua na fala de Dom Quixote e
da preocupação do fidalgo em corrigir as falhas ou mostrar um conhecimento enciclopédico.
[Sancho] _ E que outra coisa poderia ser, se o homem que escreveu nossa história se chama Cide Hamete
Berinjela?
_ Isso é nome de mouro – observou Dom Quixote.
[Sancho] _ Deve ser mesmo, pois sempre ouvi dizer que os mouros gostam muito de berinjelas.
_Certamente disseste errado o nome desse Cide, que em árabe significa senhor. (p.83)
Cervantes (Gullar) brinca com a semelhança entre as palavras Benengeli e berinjela,
fazendo com que o parvo escudeiro troque uma pela outra.
_ Carreiro, cocheiro ou o diabo que sejas, não tardes a dizer-me quem és, aonde vais, e que gente levas
nessa tua carroça, que mais parece a barca de Caronte do que uma carreta comum. (p.98)
Quixote faz alusão a Caronte, personagem da mitologia grega que servia de barqueiro
dos mortos, pois transportava pelo rio Estige as almas dos falecidos. Conta a lenda que Caronte
era muito mal-humorado. Para agradar ao barqueiro, depositava-se uma moeda sob a língua do
morto.
_ Se tivesse de pagar-te o justo preço, nem todo o tesouro de Veneza e o ouro de Potosí bastariam. Vê
quanto tens de dinheiro meu contigo e calcula o preço de cada chibatada. (p.205)
Mais um exemplo da vasta cultura armazenada por Dom Quixote. Mesmo que Sancho
(e/ou o leitor) desconheça que Potosí, localizada na Bolívia e uma das cidades mais ricas da
América Latina, a informação da grande quantia que Sancho vai receber para se auto-flagelar, a
fim de desencantar Dulcinéia, é passada principalmente pelo léxico: tesouro, ouro.
3.2.5 A linguagem coloquial do Cavaleiro Andante
Nem sempre o ato de fala é a expressão verdadeira dos conhecimentos do
falante, de sua cultura e posição sócio-econômica, de seu “status”. As variações
de situação e a mudança de registros podem revelar uma atitude lingüística de
valorização de certos padrões lingüísticos (do culto ao popular, do registro
formal ao coloquial), na medida em que ele julga “melhor” certo tipo de
linguagem.
(Preti, 2004)
151
Dom Quixote transita pela registro coloquial na obra de Gullar. Se o fidalgo está
conversando informalmente com Sancho ou com pessoas do povo, sua atitude lingüística é a de
buscar uma identificação com a fala de seu(s) interlocutor(es).
_ Sim, sim, agora te entendo, Sancho. Tenho esse desejo muitas vezes e neste instante mesmo o estou
sentindo de novo. Tire-me daqui antes que me borre todo. (p.71)
O interlocutor do fidalgo no diálogo é Sancho, homem simples, que não sabia como
abordar seu amo a respeito das necessidades fisiológicas. Para tanto faz uso de metáforas,
linguagem figurada com que substitui a falta do vocabulário específico – urinar, defecar. Vemos
aí uma passagem exemplar do tabu lingüístico e da saída pelas imagens. Quixote entra na sintonia
e usa o verbo borrar (No dicionário, uso informal: sujar-se com matéria fecal) para que Sancho
entenda verdadeiramente a necessidade de o amo atender ao apelo do fluxo intestinal.
No diálogo com o cabreiro:
_ És um grandessíssimo velhaco – gritou Dom Quixote –, tu é que tens minguados os miolos. Eu, de
minha parte, os tenho mais cheios do que os teve a mui filha da puta que te pariu. (p.76)
No trecho, há primeiramente que se destacar o uso superlativo do adjetivo grande. Ao
duplicar o emprego do sufixo íssimo, o adjetivo ganha maior expressividade, denota a ira
(reforçada pelo verbo gritar) com que Quixote se dirige ao cabreiro. A escolha da palavra de uso
informal miolos para fazer referência ao cérebro também reitera a tese de que um bom
xingamento deve ser mesmo cifrado em linguagem informal, mais expressiva nesses casos. À
medida que Quixote vai-se exaltando, sua linguagem torna-se mais informal até chegar à
linguagem chula, como no final de sua fala, quando usa o palavrão que, talvez, mais ofenda um
ser humano: a mui filha da puta que te pariu (p.76), pois, na ideologia (ocidental) dominante,
mãe é uma figura (quase) sagrada. Vale destaque para o advérbio mui (originado da forma
espanhola muy), termo recorrente nas cantigas medievais, ainda hoje empregado como
intensificador em nosso idioma na região sul do Brasil. Usa-se também algumas vezes o advérbio
mui para expressar ironia, como visto no exemplo.
152
3.2.6 A voz de Sancho: a voz do povo, seus provérbios e coloquialismos
Não sei que má sorte é esta minha – disse Sancho –, pois não consigo dizer razão
sem refrão, nem refrão que não me pareça razão, mas vou procurar emendar-me, se
puder. (p.208)
Sancho é um homem simples, um lavrador que não sabia ler e tinha consciência de suas
limitações. Sua sabedoria, seu conhecimento empírico, entretanto, davam a ele muitas vezes a
clareza das situações. Seu senso prático, freqüentemente, direcionava o rumo a seguir, pois nos
momentos de delírio de seu amo era o escudeiro que tentava contornar as situações.
A linguagem deste personagem é bastante característica; ele comete “erros”, como vimos
no episódio em que troca o nome Benengeli por Berinjela; sua voz ecoa um saber popular.
Como marca de um estilo singularizante, encontramos nas falas de Pança, durante toda a
narrativa, os provérbios e os ditos populares, formas simples, no dizer de André Jolles. O
escudeiro tem consciência do modo de dizer que o caracteriza, o que pode ser comprovado no
seguinte diálogo entre Dom Quixote e Sancho Pança:
[Quixote] _ Proíbo-te de falar de agora em diante e de citar esses
malditos refrãos!
[Sancho] _ Se é para ficar mudo, prefiro voltar para a minha mulher e
meus filhos, com os quais, pelo menos, poderei falar tudo o
que deseje. (p.59)
O discurso de Sancho deixa entrever como o processo de comunicação se torna mais fácil
quando os interlocutores pertencem à mesma comunidade lingüística. Sabendo-se incapaz de se
expressar sem lançar mão das frases feitas e dos discursos cristalizados, ele reconhece que
emudeceria.
Abaixo, estão listados, destacados da fala de Pança, alguns exemplos de lexias
cristalizadas, de gírias e de expressões próprias de um registro informal:
_ Como tens passado, meu burrinho, menina dos olhos do
papai,companheiro meu? (p.64)
_ Teresa disse que eu ponha com vosmecê os pingos nos ii, que fique tudo preto no branco e que
mais vale um toma lá do que te darei. (p.90)
153
(iii) _ Já que assim manda – disse Sancho –, tenho de obedecer,
atendendo ao refrão que diz: amarra-se o burro à vontade do
dono... (p.129)
3.2.7 A voz que narra e a voz dos personagens
Em Estudos de língua oral e escrita (2004), Dino Preti dedica um capítulo à oralidade e à
narração literária. Ainda sobre o assunto, escreveu sobre os níveis lingüísticos do narrador
literário em A gíria e outros temas (2001). O objetivo desses ensaios é chamar a atenção para o
nível de elaboração lingüística dos textos literários. Preti defende a idéia de que, mesmo quando a
língua da literatura tenta aproximar-se do coloquial, é elaborada.
Observando o trabalho de construção do narrador da saga de Dom Quixote, percebe-se
que o formal e o informal mesclam-se na construção de um tecido literário bastante harmonioso.
Já vimos como o fidalgo e o escudeiro se comportam lingüisticamente, os modos de dizer de
ambos, ora mais formal ora mais coloquial. Há que se pensar, também, na voz do narrador. Como
se comporta aquele que conhece a história, no caso do Engenhoso Fidalgo? É alguém que narra
do lugar da cultura, que domina o registro formal, obedece a regras da gramática padrão? Ou é
aquela voz que emana do povo, do grupo que desconhece as leis da língua “culta”?
Com base nos exemplos listados abaixo, vemos que o narrador construído por
Cervantes/Gullar para contar a história do Cavaleiro da Triste Figura é um narrador pertencente
ao primeiro grupo, alguém com conhecimento da língua de prestígio. O destaque vai, no entanto,
para a eficácia com que este narrador adapta sua voz à dos personagens em foco no momento do
relato.
Sancho tentou mover-se e terminou rolando no chão, onde ficou caído feito uma tartaruga, de papo para
cima. (p.178)
Este exemplo deixa nítido que o narrador tenta aproximar-se do registro coloquial, próprio
do escudeiro analfabeto. Em registro mais formal, teríamos caído como uma tartaruga em lugar
de caído feito uma tartaruga. O Aurélio registra como uso brasileiro da palavra feito, que,
154
segundo o dicionarista, é classificada como conjunção, correspondente a “como, tal qual, que
nem”. Pode-se perceber na lista das conjunções uma certa preferência por umas e por outras, de
acordo com o grau de formalidade que o usuário pretende atribuir a seu discurso. Talvez uma
pesquisa profunda nos mostrasse que as formas “como e tal qual” aparecem mais na língua culta,
ao passo que as formas “que nem e feito” são escolhas mais freqüentes na língua popular.
Num lugar da Mancha, cujo nome não desejo lembrar, vivia, não faz muito tempo, um desses fidalgos (...)
galgo corredor. (p.11)
O tom pomposo e aristocrático já revela que o narrador domina um registro bastante
formal. O uso do relativo cujo, a construção de um período longo, de grande complexidade, e um
léxico pouco comum – galgo, fidalgo – são provas irrefutáveis.
Para não afugentar, entretanto, leitores iniciantes, que ainda não dominam o padrão mais
formal da língua, o narrador de Gullar busca o equilíbrio, lançando mão da língua comum,
aquela que atende tanto ao registro mais formal quanto ao mais coloquial. Os textos adaptados
buscam seduzir leitores para os clássicos e a linguagem é a ponte para este processo de
sedução.
Em alguns momentos o narrador recorre a estratégias da língua popular, informal, como
no exemplo:
Mas muito caminhou sem ninguém encontrar e, quando já estavam ele e seu cavalo mortos de cansaço e
fome, divisou ao longe uma venda que a seus olhos transformou-se num castelo – e para lá se dirigiu. À
porta da venda estavam duas moças de vida fácil que lhe pareceram ser damas graciosas ou formosas
donzelas. (p.13)
Do ponto de vista de Quixote, a venda era um castelo e as moças que lá trabalhavam,
damas e donzelas, porém o narrador joga com o registro coloquial para mostrar ao leitor a visão
deturpada, fantasiosa, do fidalgo. O espaço era na verdade uma venda e lá estavam algumas
prostitutas, pois damas e donzelas não freqüentavam tabernas. Este jogo, bem elaborado na teia
do texto, vai acontecer ao longo de toda a narrativa.
Depois de muito se divertirem com Sancho, trouxeram o asno e o fizeram montar nele. Maritornes, com
pena de Sancho, ofereceu-lhe um copo d’água, mas Dom Quixote gritou-lhe que não a bebesse, e sim, o
bálsamo. O escudeiro, porém, se negou, alegando que não estava disposto a vomitar o resto das entranhas
que lhe sobraram. Pediu a Maritornes um copo de vinho em vez de água, bebeu-o e foi embora, feliz da
vida por nada haver pago, embora à custa do seu habitual fiador, isto é, seu próprio lombo. (p.43)
155
Nota-se, pelas palavras e expressões utilizadas, que o narrador adota um perspectiva da
língua popular, pois as metáforas produzidas com as palavras entranhas e lombo são exemplos
de como a metáfora está infiltrada na vida cotidiana. A imagem que Sancho faz de si é meio
grotesca, pois, ao usar os termos entranhas e lombo, seu discurso, recuperado pela voz narrativa,
deixa entrever a comparação que Pança faz de seu próprio corpo com os corpos dos animais.
Ainda no exemplo, vale destacar as repetições (Maritornes, Sancho), característica forte da língua
falada, e da expressão (feliz) da vida, expressão intensificadora na língua coloquial. Esses
recursos, além de aproximar o discurso do narrador ao discurso do escudeiro, uma vez que é
deste que se fala, servem também para manter o tom da contação de história e fazer com que a
escrita, mimeticamente, se assemelhe à fala. A língua é veículo cultural de um povo, e este é
constituído de pessoas mais escolarizadas, pessoas menos escolarizadas, pessoas analfabetas etc.
Gullar corta o que considera superficial (as narrativas intercaladas nas aventuras de
Sancho e Quixote), acelera o ritmo da história, dando mais destaque à voz narrativa que aos
diálogos entre personagens. Isso, todavia, não torna simplória a história contada por ele. Dentro
do possível, o poeta se mantém bastante fiel ao mestre maior – Cervantes.
|No projeto de aceleração da narrativa, podemos incluir o tratamento dado aos títulos dos
capítulos. Na obra original, cada parte recebe títulos longos, pois o autor deseja sintetizar o
conteúdo e passar ao leitor uma idéia geral do que será contado nas próximas páginas. Lobato
mantém a estratégia cervantina, mas reduz bastante os títulos. Gullar radicaliza e elimina as
palavras do título, preferindo numerá-los, como podemos observar abaixo:
Capítulo primeiro
Cervantes: Que trata de la condición y ejercicio del famoso y valiente
Hidalgo Don Quijote de la Mancha (p.27)
Capítulo primeiro
Castilho: Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo Dom
Quixote de la Mancha (p.73)
Gullar: Capítulo I
156
Como mestre da poesia e, portanto, grande artesão das palavras e dos jogos lingüístico-
discursivos, nosso escritor não só (re)apresenta a história de Cavaleiro da Triste Figura como o
faz de maneira original, à sua moda. Ele deixa a sua assinatura, quer na seleção vocabular, quer
nas arquiteturas sintáticas das frases e períodos. É, pois, um texto verdadeiramente autoral.
157
CONCLUSÃO
Acreditamos que, assim como fez o herói de Cervantes ao final do romance, é chegada a
hora de tirar o elmo, a armadura, a lança... a fim de aquietar os pensamentos.
Antes, porém, de “encerrar” a pesquisa sobre a linguagem dos clássicos e de suas
respectivas adaptações, verdadeira peleja contra o tempo, desejamos trazer às páginas conclusivas
da tese alguns pontos essenciais com que nos deparamos ao longo desses anos. Primeiramente,
gostaríamos de registrar a quantidade de material sobre clássicos literários. Os estudos tornam-se
mais volumosos quando o tema abordado é a obra-prima da literatura espanhola, marco do
romance moderno: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trata-se de uma obra
inesgotável. Embora a fortuna crítica esteja por volta de cinco mil trabalhos (livros, teses,
ensaios, artigos etc.), sempre haverá algum aspecto a ser percebido e um novo ponto de vista
adotado.
Eis o argumento capaz de defender a tese que pretendeu observar o livro de Cervantes
pelas lentes da linguagem, iluminando principalmente as adaptações da saga do Cavaleiro
Andante. Privilegiamos a língua com seus malabarismos por entendermos, com Castilho, com
Dona Benta e com tantos outros, que clássicos são textos escritos com intenção estética, que
exploram as possibilidades da língua. São narrativas que ultrapassam fronteiras geográficas e
temporais e acabam alojadas nas dobras da memória do leitor, como nos ensinou Ítalo Calvino.
Seguir pelos caminhos léxico-semântico, morfo-sintático e discursivo foi opção, pois as
páginas cervantinas mostram-nos um fabuloso manancial de recursos lingüísticos.
Para nos orientar, logo no início, tivemos a preciosa colaboração das palavras de Merleau-
Ponty, no que concerne às reflexões sobre linguagem. A visão do filósofo francês sobre língua
ajudou a construir a base teórica para o trabalho. Complementando os postulados relativos à
linguagem, recorremos a Bakhtin e a outros nomes da área da análise do discurso, por sabermos
que por trás das palavras há outros fatores direcionando a interlocução. Os conceitos de
polifonia, intertextualidade, contrato de comunicação... ajudam a esclarecer as nuances
lingüísticas, quer no texto integral quer nas traduções e adaptações. Buscando equilíbrio entre
tradição e modernidade, rumamos em direção aos estudos consagrados da Estilística, por
exemplo.
158
Ditoso dia aquele em que a pesquisa em andamento foi submetida a uma banca
examinadora durante o “Exame de Qualificação”, pois naquela oportunidade pudemos enriquecer
as referências bibliográficas com um título essencial ao trabalho: La Lengua del “Quijote”, de
Ángel Rosenblat. O estudo do filólogo polonês apontou a direção para a leitura crítica de Dom
Quixote das crianças, reconto primoroso elaborado por Monteiro Lobato que, sem “trair” a
essência do original, conseguiu imprimir sua marca, sua assinatura. No livro de Lobato, vê-se
Cervantes com suas aventuras cavaleirescas, porém não nos esquecemos em momento algum de
que estamos no Sítio do Picapau Amarelo, ouvindo, ao lado de Emília, Narizinho, Pedrinho e os
demais personagens, a história contada por Dona Benta, a avó generosa e paciente. Sempre é
válida uma reflexão sobre a literatura de Lobato, escritor de relevante valor na história das
traduções e adaptações de clássicos universais.
A seleção dos títulos que deveriam constituir o corpus a ser analisado ficou por conta da
importância do escritor-adaptador. Ferreira Gullar foi o segundo autor escolhido, pois é poeta e
autoridade no trato com a língua portuguesa, principalmente no que se refere ao discurso literário.
Trata-se de consagrados escritores, de renomados intelectuais que escreveram narrativas para
dialogar com Dom Quixote. Uma volta-se mais para crianças e a outra busca leitores jovens ou
iniciantes. Pelo valor literário apresentado, ambas poderiam ocupar o lugar de “clássico’’ do
clássico.
Nosso objetivo inicialmente era analisar apenas os textos de Lobato e de Gullar, no
entanto a presença de Quixote e de Sancho em outras linguagens e em diferentes suportes aguçou
o desejo de observar a obra de Cervantes em variados códigos. As tintas dos pintores, os versos
dos poetas, as letras dos compositores, os traços dos cartunistas, a linguagem dos cordelistas, a
criatividade dos diretores de TV e de cinema nos ajudaram a reconhecer a imortalidade de Dom
Quixote.
Lobato e Gullar foram fios importantíssimos que nos levaram à trama iniciada por
Cervantes em 1604. Com eles percorremos as malhas da linguagem cervantina.
Bebendo na fonte primeira da tradição, a Bíblia, os clássicos entram no cânone e lá,
geralmente, permanecem, porque (i) tratam de temas universais, atemporais, (ii) usam o gênero
narrativo e (iii) apresentam um texto magistralmente produzido.
Conclui-se que o rol dos clássicos é constituído de histórias que falam ao coração do
indivíduo, que mexem com a essência humana e por isso se eternizam. Devem ser lidos, sempre.
159
A relevância da pesquisa está em provocar uma reflexão sobre a importância da leitura de
obras canônicas, buscando diminuir o preconceito em relação às suas adaptações. Acreditamos
que um texto adaptado, que apresente um trabalho primoroso de linguagem, possa estimular a
leitura da obra na íntegra. Pensamos ainda no quanto perde quem desconhece os monumentos da
literatura universal. A tese quer, então, estimular o gosto pela leitura e chamar a atenção para a
importância dos recursos da língua em que são forjadas as adaptações. Deseja abrir espaço para
um texto que não pretende, de maneira alguma, substituir o original, muito ao contrário, que
almeja ir na frente, como arauto, anunciando-o, preparando o leitor para o verdadeiro encontro.
160
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Acesso em fevereiro de 2007
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