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Pretendemos buscar no reconto de Lobato as marcas do estilo de Miguel de Cervantes, ou
seja, procuraremos observar se a atitude do escritor espanhol ante a língua se mantém no discurso
lobatiano.
Miguel de Cervantes, ao escrever Dom Quixote, ampliou o ideal de língua, demonstrou
constante preocupação com o idioma, inaugurando, com sua obra, uma nova fase da língua
espanhola. Trabalhou sempre as duas vertentes da linguagem: (i) crítica à afetação cultista, (ii)
prevaricações
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da fala vulgar. Aqui já se aproximam os ideais do escritor espanhol com os do
escritor paulista. Lobato também se batia contra as amarras da gramática normativa, limitadora,
segundo ele.
O fragmento destacado do capítulo XIX, da 2ª parte, “onde se conta a aventura do pastor
enamorado com outros sucessos na verdade graciosos”, ilustra, através do diálogo, o ponto de
vista de Cervantes no que concerne ao uso da língua.
A discussão gira em torno das venturas de Camacho, Quitéria e Basílio.
_Não tenho mais que dizer – acudiu o estudante, bacharel ou licenciado, como
Dom Quixote lhe chamou –senão que, desde que Basílio soube que a formosa
Quitéria casava com o opulento Camacho, nunca mais o viram rir, nem dizer coisa
com coisa, e anda sempre triste pensativo, falando sozinho, dando assim claros e
certos sinais de que lhe ourou
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o juízo. Come pouco e pouco dorme, e o que come
são frutas, e dorme no campo, se dorme, em cima da terra dura, como animal
bravio; olha de quando em quando para o céu, e outras vezes crava os olhos no
chão, com tal embevecimento, que não parece senão estátua vestida, a que o ar
move a roupa. Enfim, dá tais mostras de angustiado, que receamos todos os que o
conhecemos, que proferir a formosa Quitéria amanhã o sim fatal seja o sinal da
morte.
_ Deus fará melhor – acudiu Sancho – quem dá o mal dá o remédio; ninguém
sabe o que está para vir; de hoje até amanhã não me doa a cabeça, e numa
hora cai a casa; tenho visto chover e fazer sol ao mesmo tempo; a gente deita-
se são e acorda doente; e digam-me se há por ventura quem se gabe de ter
travado a roda da fortuna; entre o sim e o não da mulher não me atrevia eu a
meter a ponta do alfinete, porque não caberia; queira Quitéria de coração e
deveras a Basílio, e pode este contar com um saco de ventura, que o amor,
pelo que tenho ouvido dizer, olha de tal maneira que cobre lhe parece ouro; a
pobreza riqueza e as remelas pérolas.
_Aonde vais parar, Sancho, amaldiçoado sejas –disse dom Quixote –que em tu
começando a enfiar provérbios
e contos só te pode apanhar o diabo que te leve!
Dize-me, animal, que sabes tu de rodas e de alfinetes, nem de coisa nenhuma?
_ Pois se me não entendem – respondeu Sancho –não admira que as minhas
sentenças sejam tiradas por disparates; mas não me importa, eu cá me entendo e
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Termo usado por Cervantes no livro, quando chama Sancho de “prevaricador da boa linguagem,” (II, XIX).
Em Houaiss, encontramos a seguinte acepção para o verbo prevaricar: corromper, perverter.
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Ourar: perder o uso da razão