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contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro novo da feira de
Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.
Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além Reno, que
escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto — o que
diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele
que há dois princípios no mundo: o espiritualismo, que marcha sem atender
à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e
abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-
se, simbolizar-se pelo famoso mito do Cavalheiro da Mancha, D. Quixote;
— o materialismo, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que
não crê e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem
representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo, Sancho
Pança.
Mas como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão
avessos, tão descontrados, andam contudo juntos sempre, ora um mais atrás,
ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas,
mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao progresso humano.
E eis aqui a crônica do passado, a história do presente, o programa do
fututo.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.
Depois há de vir D. Quixote. (GARRETT, 1992, p.90-91)
Assim, Viagens não retrata somente uma viagem ao Ribatejo. Aqui, mais do que
tudo temos viagens pela história, pela tradição e pela literatura. Garrett criou o estilo
digressivo, como se a obra se organizasse na presença do leitor, com quem dialoga
familiarmente, em tom despreocupado, como se brincasse, ora se confessando, ora
utilizando um tom íntimo.
Garrett também faz uma crítica a um determinado tipo de romance, que para ele é
subliteratura, por seu aspecto pouco realista e escapista. O autor percebe que a literatura,
que deveria ser a expressão da sociedade, não o é. Assim, Garrett faz questão de explicar ao
leitor como está sendo produzida a literatura do seu tempo, e assim, ironicamente, se inclui.
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te vou explicar como nós hoje
em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo;
depois desta desgraça, não me importa já nada. Saberás, pois, ó leitor, como
nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama — cuidas que vamos estudar a
história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios,
as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o