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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Patrícia Rodrigues Alves Lage
A Poética de Torquato Neto:
Tradição, Ruptura e Utopia
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2010
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Patrícia Rodrigues Alves Lage
A Poética de Torquato Neto:
Tradição, Ruptura e Utopia
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida
Junqueira.
SÃO PAULO
2010
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Banca Examinadora:
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, à minha mãe, ao meu irmão Rodolfo e à minha cunhada
Marcella por todo apoio e compreensão, por serem a minha família e por
sonharem junto comigo, onde quer que estejamos, dia-a-dia, nesta trajetória
acadêmica.
Aos meus amigos Estevan, Socorrita e Mayla por toda acolhida, por
transformarem um pedaço da própria casa em um lar para mim.
Aos outros amigos todos, que respeitaram a minha escolha pela
Literatura e, assim, entenderam a minha ausência em momentos de
fraternidade.
Aos meus alunos, fonte da minha sede de saber.
Ao Guilherme, pessoa-amor.
Aos professores do Programa de Literatura e Crítica Literária da PUC-
SP que, direta ou indiretamente, contribuíram para que este trabalho se
realizasse.
E, especialmente, à Maria Aparecida Junqueira, mais que professora e
orientadora, por toda paciência, gentileza e sabedoria que me conduziram a um
estágio maior de maturidade para trilhar os caminhos do universo literário.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo traçar a trajetória do poeta Torquato Neto na
arte literária a partir da análise de alguns poemas, inclusive os poemas
concretos publicados na revista de volume único Navilouca, projeto idealizado
por ele e Wally Salomão e lançado em 1974. Tal objetivo foi traçado,
considerando-se que a obra de Torquato Neto revela uma linguagem circular
justamente por caracterizar-se pela mistura de vozes da arte e da vida do
poeta. A análise foi impulsionada por questionamentos ligados à estrutura, à
forma de composição, a fim de verificar a sua relevância literária sem esquecer,
entretanto, do contexto histórico-cultural. Como centro de nossas
preocupações, perguntamos: até que ponto a poética Torquato Neto
caracteriza-se como espaço de manifestações utópicas, distópicas e/ou
heterotópicas? A fundamentação teórica baseia-se nas concepções poéticas dos
irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Mário Faustino e Heloísa Buarque de
Hollanda, e nos conceitos de utopia e distopia propostos por Teixeira Coelho e
Dubois Claude-Gilbert, e de heterotopia por Michel Foucault. O trabalho reúne
três capítulos que exploram a trajetória do poeta inserido no contexto histórico-
cultural da época juntamente com sua obra, fiel reflexo do que foi a sua vida.
Concluindo, apreende-se que a poética de Torquato Neto configurou-se como
único espaço que suportou todas as faces de um poeta que eternizou a vida
em versos.
Palavras-chave: Torquato Neto Navilouca Poesia e Vida Tradição
Contracultura – Utopia
ABSTRACT
This research aims to trace the trajectory of the poet Torquato Neto literary art
from the analysis of some poems, including concrete poems published in the
journal volume Navilouca single, idealized by him and Wally Solomon and
released in 1974. This objective was outlined, considering that the work of
Torquato Neto reveals a circular language precisely characterized by the
mixture of voices - of art and life of the poet. The analysis was driven by
questions related to the structure, form of composition in order to verify its
literary relevance without forgetting, however, the historical-cultural context. As
the center of our concerns, we ask: to what extent the poetic Torquato Neto
characterized as a space for events utopian dystopian and / or heterotopic? The
theoretical framework is based on poetic concepts of the brothers Haroldo and
Augusto de Campos, Mário Faustino and Heloisa Buarque de Hollanda, and
concepts of utopia and dystopia proposed by Teixeira Coelho and Claude-
Gilbert Dubois, and heterotopias by Michel Foucault. The paper presents three
chapters that explore the history of the poet inserted into the historical and
cultural context of the time along with his work, a faithful reflection of what was
his life. In conclusion, to captures the poetry of Torquato Neto was configured
as a single space that supported all the faces of a poet who immortalized the
life in verse.
Key-words: Torquato Neto Navilouca Poetry and Life Tradition
Counterculture – Utopia
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................................9
Capítulo I – O Poeta e o Contexto Histórico-cultural.........................................14
Capítulo II – A linguagem poética de Torquato Neto.........................................47
2.1 – Toda palavra é ..........................................................................48
2.2 – Os estilhaços – Uma palavra ....................................................56
2.3 – Em todas as medidas ...............................................................65
2.4 – Contra a linguagem em favor da linguagem .............................69
2.5 – Torquato Neto e a Navilouca: Projetos Estéticos ....................74
Capítulo III – Utopia, Distopia e Heterotopia na poética de Torquato Neto......88
Considerações Finais......................................................................................108
Referências......................................................................................................112
8
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.
Paulo Leminski
Não nada mais poderoso do que uma idéia
cujo tempo chegou.
Victor Hugo
9
INTRODUÇÃO
10
Para abordar a poesia dos anos 60 e 70 no Brasil faz-se necessário
refletir não sobre as produções experimentais e artísticas, mas também
sobre o contexto sócio-político que foi conduzido e dominado pela censura,
pelo autoritarismo militar e pelo AI-5.
As produções de artistas dessa época muitas vezes foram tomadas
como respostas à ditadura militar, implantada no Brasil a partir de 1964. Essa
produção não foi apreendida como poesia, mas como manifestação contrária
ao regime em vigor. Suas características estéticas não eram realçadas,
implicando perda das qualidades literárias.
Torquato Neto, morto em 1972, foi um dos poetas desse período que,
juntamente com outros artistas, encabeçou alguns projetos e movimentos
importantes como a Tropicália e a revista Navilouca. No que chamamos hoje
de arte marginal, ele atuou e produziu poeticamente, lançando mão da própria
lucidez e da própria vida em função da resistência, da ruptura e do movimento.
Foi um desses poetas que usou a poesia tanto como instrumento rico, quanto
como registro das angústias de sua geração. Torquato Neto experimentou, por
meio da poesia, muitos caminhos para registrar o conflito entre arte e cultura,
razão e loucura, subjetividade individual e social, militância e crise existencial.
Torquato Neto uniu, em sua obra poética, recursos artísticos diversos;
soube também apropriar-se de espaços e atuar neles. Sua obra reúne poemas,
canções, cinema, textos jornalísticos, dentre outras produções vanguardistas
do final dos anos 60 e começo dos 70. Nela, se encontram múltiplos códigos
justapostos e/ou cruzados, dando espaço para a expansão da linguagem
poética; sua experiência não se firma numa unidade, mas em diversos campos
de linguagem. Apreender a diversidade labiríntica de sua obra poética é traçar
11
um mapa da representação das vozes, das temáticas e dos estilos
presentificados nela.
Esta pesquisa é um exercício de leitura que se propõe a dar atenção à
produção poética de Torquato Neto. Pretende uma análise crítica e
interpretativa de alguns textos que compõem a sua obra enquanto poeta;
nossas reflexões o voltadas para os poemas que antecederam e sucederam
o movimento tropicalista (1969-1972). Tais poemas revelam uma conturbada
relação entre vida e obra, o que nos levou a empreender uma análise que
buscasse apreender não o aspecto estético, mas também o valor cultural
estabelecido por sua geração. Incluímos também os trabalhos experimentais
presentes em Navilouca revista de volume único organizada por Torquato
Neto e Wally Salomão e publicada em 1973, um ano após o seu suicídio.
A análise de textos poéticos foi impulsionada por questionamentos
ligados à estrutura, à forma de composição, a fim de verificar a sua relevância
literária sem esquecer, entretanto, do contexto histórico-cultural. Como centro
de nossas preocupações é que perguntamos: até que ponto a poética Torquato
Neto caracteriza-se como espaço de manifestações utópicas, distópicas e/ou
heterotópicas? Se, de acordo com Claude-Gilbert Dubois (2009, p. 28), Utopia
“está ligada a um fracasso, ou ao menos a um sentimento de fracasso”, como
os sentimentos materializados nos poemas revelam essa condição do sujeito
lírico frente ao mundo, à sociedade e a si mesmo?
O objetivo desta pesquisa é evidenciar a obra de Torquato Neto como
literatura que propõe uma revisão crítica da diversidade cultural brasileira,
diferente das obras engajadas da época. A análise acontece sob a luz de
abordagens diferentes.
12
O trabalho divide-se em três capítulos. Ao primeiro, intitulado “O Poeta e
o Contexto Histórico-cultural”, está reservado um panorama contextual que diz
respeito à atuação do poeta como um dos principais mentores da Tropicália.
Os principais acontecimentos da vida de Torquato Neto são relatados e
inseridos no cenário de sua época, antenados e ligados, assim, ao contexto. A
vida de Torquato é causa e conseqüência dos anos 50, 60 e 70.
O segundo capítulo, denominado “A linguagem poética de Torquato
Neto”, consiste em analisar poemas produzidos sob a estética tropicalista e
mostrar como rompem com o movimento da década de 60 e não se aliam à
direita militar. Estão incluídos na análise os poemas publicados na revista de
volume único Navilouca Almanaque dos Aqualoucos lançada no início dos
anos 70, idealizada por Torquato Neto e o amigo Wally Salomão e que reúne
obras de outros poetas e autores atuantes em outras artes. Pretende-se
evidenciar os primeiros indícios de inovação poética promovidos por Torquato
Neto e que se configuram como outra forma de ruptura, embora mantenham
aspectos poéticos de outros momentos literários. Os poemas de Torquato Neto
propõem duas linhas de julgamento: primeira, como ato de resistência fruto de
não-conformismo moderno; segunda, como fidelidade a determinados aspectos
da estética clássica. A partir dessas possibilidades, a poética Torquato Neto
une abordagens distintas num mesmo espaço e concebe outra nova.
As reflexões feitas nos capítulos anteriores são base para o estudo
realizado no terceiro capítulo, nomeado “Utopia, Distopia e Heterotopia na
poética de Torquato Neto”. Aqui, as estéticas de resistência e clássica
concebem a obra poética de Torquato Neto segundo os moldes do gênero
utópico. Inaugurado por Thomas More na prosa “Utopia” e seguido por tantas
13
outras narrativas posteriores. A utopia se constrói na poesia de duas maneiras:
uma procede pela continuidade do espaço real, reiterado na estética clássica; a
outra, por ruptura e desligamento total da realidade.
14
CAPÍTULO I
O Poeta e o Contexto Histórico-cultural
15
Minha história é viver.
Poeta que viveu a intensidade da própria obra, Torquato Pereira de
Araújo Neto é um importante integrante inserido no movimento marginal da
poesia do Brasil das décadas de 60 e 70. Teve uma infância difícil em
Teresina, Piauí, e na adolescência mudou-se para Salvador, Bahia. Em plena
Ditadura Militar, Torquato e outros artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Helio Oiticica, dentre outros, usam a arte como arma contra as imposições, os
limites, os valores e as proibições engessadas pelo Ato Institucional n° 5, talvez
a maior medida governamental repressiva que o país já viveu.
Nascido em 9 de novembro de 1944 (ano em que também nasceram
Chico Buarque de Holanda, Naná Vasconcellos e Egberto Gismonti) na cidade
de Teresina, estado do Piauí, Torquato Neto é oriundo de uma família de
classe média alta, sendo o filho único do promotor público Heli da Rocha
Nunes com a professora Maria Salomé da Cunha Araújo. Foi em “Tristeresina”
como ele, brincando com as palavras, a batizaria mais tarde –, cidade onde
viveram os poetas Olavo Bilac, Félix Pacheco e o também piauiense Mário
Faustino, que Torquato passou sua infância e parte da adolescência. Como
aponta seu biógrafo Toninho Vaz
1
: na escola, desde cedo, Torquato
manifestava interesse pelos poetas que lhe foram apresentados no currículo
escolar: Castro Alves, Olavo Bilac, Fagundes Varela, Casimiro de Abreu e
Gonçalves Dias”. Mais tarde, começou a ler Machado de Assis, Carlos
1
As informações sobre a biografia e os eventos históricos que marcaram a vida de Torquato Neto foram
extraídas de duas fontes: VAZ, Toninho. Pra Mim Chega A Biografia de Torquato Neto. São Paulo:
Casa Amarela, 2005, e TORQUATO NETO. Torquatália / organização de Paulo Roberto Pires. Rio de
Janeiro: Rocco, 2004, Volumes 1 e 2.
16
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Sommerset Maughan e
Edgar Allan Poe, entre outros. Quando criança, aos nove anos de idade
aproximadamente, mostra os primeiros passos na poesia:
“O meu nome é Torquato
O de meu pai é Heli
O de minha mãe Salomé
E o resto ainda vem por aí”
O nascimento de Torquato e sua infância coincidem com o surgimento
da televisão brasileira, Rede Tupi, idealizada e inaugurada por Assis
Chateaubriand. Este foi o início da produção da cultura de massa no país, o
mesmo início que propiciaria a aparição do movimento Tropicalista, do qual
Torquato Neto é um dos principais mentores. Em 1951, Samuel Wainer criou o
mencionado jornal “Última Hora”, que se tornaria um veículo importante para
os interesses do governo varguista, no qual nos primeiros anos da década de
70, Torquato assinaria a coluna “Geléia Geral”.
O suicídio de Getúlio Vargas, em 1955, engendrou uma fase de
perturbação política que duraria até a eleição de Jucelino Kubicheck eleito no
ano seguinte, trazendo a proposta de um movimento caracterizado como “50
anos em 5”, ou seja, uma política voltada para um ximo de desenvolvimento
em curto prazo de tempo. A corrente desenvolvimentista e a efervescência
política tiveram grande impacto na vida intelectual de Torquato Neto e na
construção de um novo perfil da política e arte brasileiras.
17
A cada que começou com o sucesso estrondoso do samba-canção
terminaria assistindo ao surgimento da bossa nova. Em 1956, o até então
jovem Tom Jobim se juntou a Vinícius de Moraes uma das grandes
influências de Torquato para compor as canções do espetáculo “Orfeu da
Conceição”, que entraria em cartaz no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Na literatura, a chamada “geração de 45” marca o surgimento de novas
tendências artísticas e culturais, com o objetivo de dar um novo aspecto aos
meios de expressão a partir de uma pesquisa sobre a linguagem. Esse grupo
era formado, entre outros poetas, por Lêdo Ivo, Péricles Eugênio da Silva
Ramos, Geir Campos e Darcy Damasceno poetas estes que negaram a
liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras "brincadeiras" modernistas e
partiram para uma poesia mais equilibrada e séria, distante do que eles
chamavam de "primarismo desabonador" de Mário de Andrade e Oswald de
Andrade. A preocupação primordial era quanto ao restabelecimento da forma
artística e bela; os modelos voltam a ser os mestres do Parnasianismo e do
Simbolismo.
O projeto concreto dos anos 50, conciliando experimentalismo e
marcos histórico-literários e buscando um novo conceito de poesia brasileira,
foi consolidado também pela figura de Mario Faustino (parente distante de
Torquato), entre 1956 e 1958, sobretudo por meio da coluna batizada “Poesia –
Experiência”, no suplemento literário do Jornal Brasil, que trazia novidades de
produções mais alternativas de autores até então pouco conhecidos, não-
traduzidos e de difícil circulação no país. Sua grande influência era Ezra Pound
que, por sua vez, também iria constituir um dos vértices da poesia concretista
dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari, todos futuros e
18
fundamentais interlocutores de Torquato e da Tropicália. No ano de 1958, a
cantora Elizeth Cardoso gravou, pela primeira vez, a canção “Chega de
Saudade” no álbum “Canção do amor demais”. Entre os músicos que a
acompanhavam, estava o aentão jovem João Gilberto que, naquele mesmo
ano, estrearia sua carreira sólo com “Chega de Saudade”, disco considerado
fundador da bossa nova, no qual apresentava a famosa batida do violão na
releitura da canção anteriormente gravada pela cantora.
Torquato finalizou o curso ginasial em 1959, em Teresina. Sentindo-se
sufocado pelo ambiente da cidade e pretendendo preparar-se para ser
diplomata, convenceu os pais a deixá-lo estudar em outro estado. Terminou,
em 1960, sendo mandado para Salvador onde foi matriculado no Colégio
Nossa Senhora da Vitória, em regime de internato. Nesta mesma escola,
estudou Gilberto Gil que, sendo dois anos mais velho, iniciava, em 1961, o
curso de Administração na Universidade da Bahia. Notadamente, a cidade de
Salvador vivia uma fase de intensa efervescência cultural principalmente em
torno desta universidade que, sob o comando do reitor Edgard Santos,
concentrava uma série de artistas como a arquiteta Lina Bo Bardi, o cineasta
Glauber Rocha que iniciara o seu Barravento, contando com a ajuda de
Torquato nas filmagens que, apaixonado por cinema, acabara de se tornar um
grande amigo de Glauber
2
e o maestro alemão Hans Joachim Koellreutter,
idealizador do grupo “Música Viva” e ex-professor de Tom Jobim. Segundo seu
biógrafo, foi nesta fase que Torquato, aos 16 anos, começou a ter intenso
contato com a obra de Mário de Andrade. Vaz cita como algumas referências
2
A relação de amizade mudaria mais tarde sendo profundamente abalada pelas declarações que Torquato
publicaria em torno do Cinema Novo em sua coluna “Geléia Geral”, no jornal “Última Hora”.
19
fundamentais para ele naquela época as obras Macunaíma, de Mário de
Andrade, Frutos da Terra, de Andre Gide, Cartas a um Jovem Poeta, de
Rainer Maria Rilke, Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo, assim como
Vidas Secas e São Bernardo, de Graciliano Ramos. O aprofundamento na
literatura o levou a escrever, ainda em 1961, o ensaio “Arte e Cultura Popular”,
publicado em um jornal escolar de Teresina. No texto, o poeta utilizava como
base o pensamento de Gilberto Freyre para refletir sobre aquilo que, para ele,
parecia urgente: uma transformação da cultura nacional “capenga e
importada em quase sua totalidade” (VAZ, 2005, p. 25). Como salienta Vaz, o
artigo demonstra que Torquato ainda não aceitava a poesia concreta e criticava
duramente aqueles que se tornariam, mais tarde, seus amigos. Além disso, ele
também endossava argumentos semelhantes àqueles que se tornariam pilares
da cultura nacional-popular que viria a se firmar a partir de 1964. No mesmo
ensaio, aos 16 anos, ele disparava:
“Em São Paulo, Décio Pignatari lidera um
movimento híbrido, horrível, de poesia
concretista. E no Rio, finalmente, Ferreira Gullar,
antes concretista, agora redimido, procura um
caminho de salvação para a nossa poesia dentro
da literatura popular de cordel nordestino.”
(TORQUATO NETO apud VAZ, 2005, p. 39)
Torquato, contudo, não imaginava que o tempo o faria romper com a
perspectiva nacional-popular defendida tão ardorosamente. Voltando ao
começo dos anos 1960, ainda nesta época ele circulava com desenvoltura
naquela cena cultural de Salvador e convivia com os também jovens Tom e
Caetano Veloso que havia conhecido naquele ano. Caetano, três anos mais
velho do que Torquato, estava entrando na Faculdade de Filosofia e
20
escrevia, eventualmente, crítica de cinema nos suplementos culturais do
“Jornal da Bahia”, cujo diretor de redação era João Ubaldo Ribeiro. O país
passava por um período conturbado da história política: a posse de Jânio
Quadros na presidência seguida de sua renúncia levou o Estado a uma crise
institucional. O então vice-presidente João Goulart assumiu o poder em um
regime parlamentarista de transição.
Segundo Toninho Vaz, também foi em 1961 que Torquato começou a
manifestar o desejo de se mudar para o Rio de Janeiro. O poeta foi para a
capital carioca no ano seguinte, instalando-se no bairro de Botafogo.
Contrariando a vontade da família, que esperava que ingressasse no Instituto
Rio Branco para seguir a carreira diplomática, Torquato prestou vestibular para
jornalismo na então Universidade do Brasil, onde foi aprovado. Argumentou
com os pais que sua vocação era escrever e que no Rio de Janeiro conseguiria
emprego facilmente, pois seu tio, João Souza Lima, jornalista da Rádio
Nacional, poderia ajudá-lo com boas indicações. Iniciou seus estudos na
Faculdade Nacional de Filosofia, mas, um ano depois, os trocou pela prática
jornalística, realizando trabalhos esporádicos para alguns jornais. Assim,
enquanto Gilberto Gil que viria a tornar-se seu grande amigo e parceiro em
composições gravava seu primeiro compacto simples fazendo algumas
aparições na televisão da Bahia, Torquato se enveredava pelo caminho do
jornalismo e começava a se engajar em projetos políticos de esquerda. O
espaço para tal engajamento era a sede do Centro Popular de Cultura, no
bairro do Flamengo. Isto porque por diversas partes do país nasciam os
Centros Populares de Cultura (CPCs) da UNE, que terminaram influenciando o
pensamento de esquerda dos artistas da MPB engajada em torno do projeto
21
nacional-popular, e determinaram a personalidade estética da geração de
artistas centrados num projeto nacional popular de cultura voltado para uma
nova diretriz da arte em geral. Podem-se identificar, naquele período, duas
correntes hegemônicas no CPC: uma voltada para uma atitude mais “radical” e
revolucionária, liderada por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha; e outra, a dos
“moderados”, que encontrava respaldo na figura de Carlos Lyra, bossanovista
que ambicionava produzir uma sonoridade engajada. Torquato interagia
intensamente com esses atores sociais e enxergava no CPC da UNE, o espaço
no qual poderia desenvolver projetos políticos. Um aspecto merece ser
ressaltado neste momento: a imagem que entrou para a história foi aquela do
Torquato Neto tropicalista. No entanto, desconhece-se o fato de que ele
também foi, em sua fase inicial, um engajado defensor da ideologia nacional-
popular. A sede do CPC da UNE constituía um lugar em torno do qual aquela
geração se aglutinava e se via capaz de refletir sobre as possibilidades do país
naquele contexto histórico. Sob este aspecto, nenhum dos artistas à época
incluindo aqui Caetano Veloso e Gilberto Gil, que se tornariam tropicalistas
mais tarde – deixou de sofrer algum tipo de influência da ideologia “cepecista”.
De acordo com Toninho Vaz, no campo da música, três lançamentos
importantes contribuíram para a complexidade daquele cenário, em 1963:
“Garota de Ipanema”, de Vinícius de Moraes um dos grandes ídolos de
Torquato e Tom Jobim, regozijados pela notoriedade alcançada diante do
público norte-americano no ano anterior em função do show no Carnegie Hall,
e compreendendo que a bossa nova de fato se conformava como um
movimento musical articulado; “Parei na contramão”, composta por Roberto
Carlos, por outro lado, ainda não transformado pelos músicos engajados em
22
símbolo máximo de entrega cultural; e “Samba esquema novo”, álbum de Jorge
Ben o qual ilustrou suas intenções. Criando uma batida de violão diferente
daquela de João Gilberto, o disco de Ben trazia canções que também se
tornariam clássicas como “Chove chuva” e “Mas que nada”. O jovem negro,
carioca e filho de uma etíope, transformaria brevemente aquela cena, tornando-
se um dos mais talentosos músicos de sua geração. No campo político, um
plebiscito deu fim ao parlamentarismo e João Goulart terminou empossado
presidente. Insatisfeito com o momento político vivido pelo país, Torquato,
embora tivesse a casa dos tios para viver no Rio de Janeiro, passou
praticamente a morar na sede do CPC. Suas aproximações com a cultura
nacional-popular e com o pensamento de esquerda eram cada vez mais
intensas naquele período.
Foi na inauguração do Teatro da UNE que Torquato, aos 19 anos,
conheceu Ana Maria Santos Silva, sua eterna namorada, com quem se casaria
em 1967. Ainda neste ano, o poeta reencontrou Caetano Veloso pela primeira
vez desde que havia se mudado de Salvador. Caetano viera ao Rio de Janeiro
acompanhado do cineasta Alvinho Guimarães para promover o filme do
cineasta, chamado Moleques de rua. Por meio de Torquato, Caetano foi
apresentado a Jards Macalé e aos demais parceiros que compunham aquele
grupo. Como destaca seu biógrafo, Torquato adorava reunir-se com os amigos
para discutir música, cinema, literatura e política, freqüentemente, aproveitava
os encontros para apresentá-los às novidades literárias e cinematográficas que
descobria. Ainda segundo Toninho Vaz, nesta época, dentre as referências
fundamentais para o autor pode-se citar a tradução da obra Cantos, de Ezra
Pound, realizada por Décio Pignatari e os irmãos Campos o que evidencia
23
que Torquato não oferecia tanta resistência ao concretismo –, à poesia de
Mário Faustino e ao cinema de Visconti, Buñuel e Godard, entre outros.
Também naquele ano outros fatos agitaram a cena cultural do país: Nelson
Pereira dos Santos estreou Vidas secas e Glauber Rocha iniciou as filmagens
de Deus e o diabo na terra do sol, clássico do Cinema Novo que seria visto
como uma das representações máximas da estética tropicalista no cinema. Em
São Paulo, José Celso Martinez Corrêa, outro vértice da tropicália, estreou seu
grupo “Oficina” ainda sem a perspectiva transgressora que caracterizaria seus
espetáculos posteriormente. A primeira peça encenada foi uma montagem
considerada histórica de Os pequeno-burgueses, do russo Máximo Górki.
Em 1964 a ditadura se instalou no país por meio do golpe militar,
levando o marechal Humberto Castelo Branco ao poder. A paisagem da cidade
do Rio de Janeiro mudou de forma drástica com ruas bloqueadas por
barricadas, jipes militares circulando ininterruptamente e pessoas ainda
sofrendo o impacto dos recentes acontecimentos. Segundo Hélio Silva,
cunhado de Torquato, o poeta escapou de ser preso pelos militares na manhã
do dia 31 de março daquele ano. Dormindo na sede da UNE, no bairro do
Flamengo, o poeta foi acordado por Hélio que, aos gritos, informava que o país
se encontrava nas os dos militares e pedia para que ele abandonasse a
sede imediatamente, pois havia o risco de o prédio ser explodido a qualquer
momento. Toninho Vaz relata que poucas horas depois de terem deixado o
local, partindo em direção ao bairro da Tijuca, as tropas invadiram a sede e a
incendiaram sob o comando do civil Flavio Cavalcanti, famoso jornalista e
apresentador de televisão. Apesar da resistência de alguns estudantes que
permaneceram no local e que terminaram presos –, o prédio foi inteiramente
24
queimado. Vários objetos pessoais, roupas e a máquina de escrever de
Torquato foram destruídos. Vianinha, João das Neves e Carlos Vereza foram
algumas das últimas pessoas a deixarem o prédio em chamas. A atuação dos
militares pelas ruas, aliada ao processo de silenciamento sofrido pela
imprensa, produziu manchetes como “Gorilas invadem o JB” “Jornal do
Brasil”; “Carros blindados na rua deixam o povo sob tensão” – “Diário de
Notícias”; “Fora! uma coisa a dizer ao senhor João Goulart: saia”
“Correio da Manhã”. Com a consolidação do regime, em 11 de abril, o quadro
nacional se agravou enormemente. As demissões em massa no funcionalismo
público, o fechamento da UNE, o desmantelamento dos sindicatos, os jornais
censurados e a tortura que se iniciava marcariam a história do Brasil e a de
Torquato Neto. Receoso por conta dos recentes eventos envolvendo a política
nacional, o pai do poeta, também conhecido como Doutor Heli, foi ao Rio de
Janeiro e o levou de volta para Teresina, onde ele permaneceu por pouco
tempo. Naquele ano, os intelectuais começaram a se articular para fazer frente
ao regime autoritário e Carlos Heitor Cony se tornou um dos intelectuais
perseguidos pela denúncia realizada em “O ato e o fato”, coluna que mantinha
no mencionado “Correio da Manhã” e, ainda, pelo livro que lançara
agrupando os textos publicados no veículo. As respostas contrárias ao governo
surgiram de várias direções: Vianinha, Paulo Pontes e Ferreira Gullar deram
origem, no interior do CPC, ao grupo “Opinião” e, como apontamos antes, em
dezembro de 1964 Nara Leão estreou o famoso show “Opinião” ao lado de
Kéti e João do Vale. Na música internacional, o estrondoso sucesso da canção
“She loves you”, dos Beatles, transformou o“yeah, yeah, yeah” em “iê-iê-iê”,
sinônimo do rock nacional.
25
No ano de 1965 as canções “Opinião”, de Kéti e “Carcará”, de João
do Vale, pertencentes ao repertório do espetáculo, estouraram nas paradas.
Sem dúvida, as músicas, naquele contexto, ganhavam uma conotação política
inquestionável à medida que o regime endurecia. “Carcará”, interpretada
inicialmente por Nara Leão, acabou se destacando na voz de Maria Bethânia,
uma jovem desconhecida que, recém-chegada da Bahia ao lado do irmão
Caetano, substituiu Nara no show, que teve problemas de saúde. O espetáculo
terminou impulsionando a carreira de Bethânia no Rio de Janeiro. Por outro
lado, Gilberto Gil, então funcionário da alfândega em Salvador, recebia uma
proposta da Gessy-Lever para trabalhar como economista em São Paulo. Ele
aceitou a proposta e se mudou para a cidade, tornando-se amigo de Chico
Buarque, àquela altura estudante de Arquitetura da USP e grande incentivador
da carreira de Gil. Praticamente na mesma época, desembarcaria no Rio José
Carlos Capinam que se revelaria um dos mais importantes letristas daquela
geração –, jovem ativista do Centro Popular de Cultura (CPC) filiado ao Partido
Comunista Brasileiro, que traria na bagagem sua versão teatral de “Bumba-
meu-Boi”, uma produção do CPC de Salvador proibida pela censura. Chegando
ao Rio de Janeiro, todos se apressavam para arrumar formas de sustento,
que ainda não viviam exclusivamente da música. No caso de Torquato,
acostumado com a cidade, o caminho foi o jornalismo. O primeiro emprego
surgiu por intermédio da intervenção do tio João Souza Lima cassado na
Rádio Nacional e trabalhando na redação do jornal “Última Hora” –, que
solicitou ao jornalista Natalício Norberto uma vaga na agência de notícias que
estava sendo criada para ter seu funcionamento em uma sala do aeroporto
internacional do Galeão. Natalício contratou dois repórteres poliglotas para
26
trabalhar em sua agência: um deles era Torquato Neto; o outro jovem
contratado e até então desconhecido se chamava Elio Gaspari. Criava-se,
deste modo, a Empresa Jornalística Eniservice Ltda.
Ainda de acordo com Toninho Vaz, o intenso convívio com outros
jornalistas e profissionais fez com que Torquato tivesse acesso a outras
referências artísticas e literárias. Ao lado do citado Cantos, de Pound que se
tornara seu livro de cabeceira , Torquato começou a ouvir a música de John
Cage, conheceu o teatro de Jo Celso Martinez Corrêa e passou a se
identificar a antes rejeitada poesia concreta. Começou, ainda, a se dedicar aos
estudos de toda a obra de Oswald de Andrade. Sobre a relação de Torquato
com a antropofagia, Gilberto Gil admitiu, em entrevista ao crítico musical Tárik
de Souza, que ignorava Oswald de Andrade, o modernista “que Torquato
conhecia por inteiro” e ressaltou não apenas as qualidades do poeta piauiense
e de Capinam como parceiros e letristas, como também a influência da poesia
concreta sobre ambos: “O concretismo era mais transado por Capinam e
Torquato, na época muito mobilizados pelo verso livre, a poesia abstrata,
aquela coisa de tijolo sobre tijolo das palavras. Isso, junto com toda a temática
dinamitada, aquele concreto feito, tornado brita no mundo poético”
3
. Em
relação às novas preferências estéticas e culturais de Torquato, Toninho Vaz
observa que
Suas escolhas culturais (...), antes
marcadamente regionais, agora ganhavam
dimensão mais que nacional, planetária,
funcionando como uma blindagem de valores a
lhe proteger os sonhos e utopias. Este o dilema
3
Entrevista ao jornalista Tárik de Souza para o Projeto Torquato Neto, Rio Arte, fevereiro de 1985 apud
VAZ, Toninho.
27
e o drama de uma geração que encontraria a
saída na criatividade e na renovação,
fornecendo os códigos para um novo
comportamento social. (VAZ, 2005, p. 64)
Acredita-se que, nesta fase, ainda que intuitivamente e a partir das
múltiplas referências internacionais as quais teve acesso, Torquato iniciou o
processo de incorporação e deglutição de tais experiências estéticas, fundindo-
as a um conjunto de manifestações culturais nacionais com o qual lidava e
conhecia. As primeiras alusões ao consumo excessivo de álcool e aos hábitos
desregrados também datam desta época, assim como os indícios de profunda
depressão. Seu estado psicológico costumava se alternar de forma
surpreendente, entre a euforia extrema e a melancolia intensa. No entanto, por
outro lado, mesmo apresentando problemas psicológicos, ele mantinha um
ritmo frenético de trabalho e escrevia poesias em abundância com a intenção
de oferecer aos amigos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria
Bethânia para que fossem musicados. São desta época algumas de suas
primeiras composições com Gil: a pouco conhecida “Meu choro para você” e
“Louvação”, uma canção considerada clássica da dupla. Entre este ano e 1966,
Torquato compôs diversos poemas, dentre eles especificamente três que se
transformaram em músicas, desta vez em parceria com Edu Lobo a também
clássica “Pra dizer adeus”, “Veleiro” e “Lua nova”. Edu Lobo, modernista
convicto e engajado artista do CPC, destacou-se neste ano também por
assinar, com Gianfrancesco Guarnieri, as composições de “Arena canta
Zumbi”, espetáculo que marcou o início das atividades do Teatro de Arena, em
São Paulo. Como sabemos, Edu Lobo se tornou um dos grandes símbolos da
era dos festivais, que teria início em abril daquele 1965, fechando seu ciclo
28
com a sétima edição do Festival Internacional da Canção em 1972. Vale
colocar, ainda, que em maio daquele ano o 1º Festival de Música Popular
Brasileira foi promovido pela TV Excelsior no Rio de Janeiro e em São Paulo, e
a canção vencedora foi “Arrastão”, uma composição de Edu e Vinícius de
Moraes, defendida por Elis Regina que seria considerada, mais tarde, como
um dos baluartes da MPB engajada. Além disso, o surgimento de “O fino da
bossa” sob o comando de Elis e Jair Rodrigues fez com que parte
significativa daquela geração passasse a ter um valioso espaço na TV. O
programa saiu do ar no final de 1967, ano em que Torquato se estabeleceu
como um grande nome no campo da música – por ser letrista e um dos
principais ideólogos da Tropicália e da crítica ao escrever sua coluna no
“Jornal dos Sports”. Atenta aos movimentos do mercado fonográfico e da
música, a TV Record lançaria, ainda, em setembro, o musical Jovem Guarda,
comandado por Roberto Carlos alçado ao status de grande vendedor de
discos e ídolo da juventude, o que causaria a fúria de artistas como o próprio
Torquato –, Erasmo e Wanderléa.
Naquele período, como resultado de todos os esforços implementados
por intelectuais e críticos desde os anos 1930, o samba era incensado como
a música brasileira por excelência pelos artistas “engajados”, inclusive por
Torquato. Além de Kéti, que se legitimava como sambista de prestígio, o
ritmo também possuía espaço em espetáculos como “Rosa de Ouro” em que
Hermínio Bello de Carvalho, um dos maiores defensores do samba carioca,
revelou a cantora Clementina de Jesus e “Samba pede passagem”, que
contava com a participação do grupo vocal MPB-4 e, ainda, de veteranos como
Ismael Silva e Aracy de Almeida. Do mesmo modo, outro jovem cantor e
29
compositor até então desconhecido que se tornaria também amigo pessoal
de Torquato surgia naquela cena musical em 1965: Chico Buarque de
Holanda, aos 25 anos, estreava com um álbum cujo título era seu próprio
nome. O disco trazia, entre outras canções, “Pedro Pedreiro”, que se
converteria em grande sucesso.
Os festivais seguiam, em 1966, no processo de legitimação como um
espaço fundamental de articulação e debate sobre os rumos da música
brasileira e do país: a edição do Festival de Música Popular Brasileira,
também realizado na TV Record, teve como vencedoras as canções “A banda”,
de Chico Buarque, e “Disparada”, de Théo de Barros e Geraldo Vandré. Esse
ano é apontado, ainda, como um dos mais frutíferos para a dupla Torquato
Neto e Gilberto Gil. Vendo suas canções serem interpretadas e gravadas por
outros artistas, Torquato compôs, em parceria com Gil, dentre outras, “Vento
de maio”, “Zabelê”, “A rua” e “Minha senhora”, esta última apresentada por Gal
Costa no Festival Internacional da Canção. O FIC, porém, acabou tendo
como vencedora a canção “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta. Além
disso, no até então recém-lançado álbum “Edu & Bethânia”, ambos
interpretaram “Lua Nova”, Pra dizer adeus” e “Veleiro”. As duas últimas
canções também foram gravadas por Elis Regina em seu disco “Elis”.
Torquato, aos 21 anos, trabalharia, ainda, como roteirista ao lado de Caetano
e Capinam no espetáculo “Pois é”, que reuniu Gil, Bethânia e Vinícius de
Moraes. Apesar da crescente publicidade de suas canções entre os artistas – e
conseqüente respeito adquirido como compositor e da constante interlocução
com amigos e parceiros, Torquato, que era como uma figura de bastante
prestígio naquela cena, permanecia com exígua visibilidade perante o público.
30
Desta maneira, a incipiente popularidade adquirida pelos amigos Caetano, Gil,
Gal e Bethânia não era alcançada por Torquato. Por não ser músico e não
saber cantar, ele não aparecia em frente às meras, não era figura conhecida
do público dos festivais, configurando-se como o que poderíamos chamar de
“homem dos bastidores”. Em função de sua atuação apenas como letrista, o
poeta ainda tinha participações menores nos direitos autorais e, por isso, não
conseguia sobreviver com o dinheiro recebido pelas suas incursões na vida
artística, motivo pelo qual Torquato jamais abandonou o jornalismo.
Talvez uma das tentativas mais significativas para buscar consagrá-lo
não apenas como um letrista, mas também como um intelectual fundamental
naquele cenário cultural brasileiro tenha sido a reportagem de capa da revista
Realidade, publicada em novembro daquele ano. De acordo com Toninho Vaz,
faz-se necessário salientar que a publicação possuía bastante prestígio por
sua grande penetração entre a classe média universitária e, ainda, por servir de
palco para personalidades de destaque do meio cultural nacional. O repórter
Narciso Kalili, escalado para produzir uma longa matéria sobre o momento
vivido pela música brasileira, publicou uma lista com alguns nomes que,
segundo ele, seriam seus novos talentos. Torquato figurava entre os eleitos e
o repórter fazia referência à sua influência e ao seu intenso trabalho como
poeta e letrista. Ao lado dele, Kalili mencionou aqueles que seriam alguns dos
mais promissores músicos e compositores daquela geração: os irmãos Marcos
e Paulo Sérgio Valle, Jards Macalé, Francis Hime, Sydney Miller, Edu Lobo,
Capinam e Caetano Veloso. A matéria chamaria a atenção do concretista
Augusto de Campos para as palavras de Caetano, que expunha seu desejo
de retomar a “linha evolutiva” iniciada, segundo ele, com João Gilberto. De
31
acordo com Carlos Calado, o interesse de Augusto de Campos pelas idéias de
Caetano iniciara nesse ano, durante os festivais das TVs Excelsior e Record.
As canções do intérprete premiadas nestes festivais “Boa palavra” e “Um dia”
carregavam uma estrutura poética e melódica diferentes da maioria das
músicas da MPB naquela época, o que teria cativado o poeta concreto. Em um
texto que escreveu para o jornal “Correio da Manhã”, o então Carlos Calado fez
inúmeros elogios a Caetano Veloso e à sua proposta de retomar a “linha
evolutiva”, “dar um passo à frente” e transformar a música brasileira utilizando
“a informação da modernidade musical”. Citando textualmente o músico baiano
e fazendo alusão às suas palavras durante o debate para a Revista
Civilização Brasileira, realizado naquele ano, Augusto de Campos atacou os
artistas identificados com a perspectiva nacional-popular, chamando-os de
“conservadores xenófobos”. Assim escreveu o crítico em seu artigo:
No panorama ainda difuso e confuso da
moderna música popular, alguns compositores,
dos melhores por sinal, da nova safra musical
brasileira, parece que se vão apercebendo da
cilada que lhes armavam os xenófobos
conservadores, momentaneamente apaziguados
com a semântica do protesto e do Nordeste (...).
(CAMPOS, 14/10/1966)
Fazendo menção ao trecho do discurso de Caetano, no qual o cantor
questionava os pressupostos de autenticidade do samba e afirmava que
apenas a retomada da “linha evolutiva” seria capaz de fornecer uma
“organicidade” para selecionar as informações da modernidade musical e
realizar julgamentos no ato da criação, Campos, em seguida, foi taxativo na
defesa do cantor baiano:
32
Dificilmente se poderia fazer crítica e autocrítica
mais esclarecida e radical do que esta, do jovem
compositor baiano. Não se trata de nenhuma
“volta a João Gilberto”, de nenhum
“saudosismo”, mas da tomada de consciência e
da apropriação da autêntica antitradição
revolucionária da música popular brasileira,
combatida e sabotada desde o início pelos
verdadeiros saudosistas”, por aqueles que
pregam explícita ou implicitamente a interrupção
da linha evolutiva da música popular e o seu
retorno a etapas anteriores à da bossa nova, na
expectativa de uma vaga e ambígua
“reconciliação com as formas mais tradicionais
da música brasileira
. (CAMPOS, 14/10/1966)
É interessante salientar que o crítico, embora pretendendo rebater
todos os princípios da cultura nacional-popular, baseados em suposta
autenticidade, usa o mesmo argumento da autenticidade da “antitradição da
revolucionária música popular brasileira” para questionar aqueles que
considerava meros “saudosistas”. havia aqui uma franca disputa pela
delimitação dos pressupostos de nossa identidade musical e Augusto de
Campos se engajava neste programa. Notadamente, o crítico e seu irmão
Haroldo de Campos se tornaram grandes defensores e parceiros do grupo
baiano e, ainda, amigos pessoais de Torquato Neto. Foi a crença nas idéias
vistas como revolucionárias daqueles jovens e o encantamento pelo projeto de
transformação e evolução estética no campo da música popular que motivaram
Augusto de Campos a escrever outros artigos também em 1967 –, nos quais
ratificava a relevância do grupo. Sem dúvida, Torquato, Caetano e Gil, entre
outros, perceberam no concretista um aliado estratégico neste processo de luta
pela legitimação no cenário musical brasileiro e de difusão do projeto na
imprensa. Isto porque Augusto de Campos, um intelectual considerado genial
por alguns e marginal por outros por ter lançado o movimento concreto nos
33
anos 1950 tinha reconhecido espaço em grandes veículos de comunicação
do país.
No período entre 1966 e 1967, Torquato Neto deixou a agência de
notícias do Galeão e passou a dividir-se entre várias atividades profissionais no
eixo Rio - São Paulo, atuando no setor de divulgação da gravadora Philips e no
departamento de propaganda da Editora Abril. No entanto, era no Rio de
Janeiro que o poeta mantinha sua base e encontrava freqüentemente os
amigos e interlocutores para debater sobre as questões políticas e traçar
estratégias para enfrentar o quadro que se apresentava. As reuniões
costumavam se realizar em dois endereços, especificamente: a casa de Teresa
Cesário Alvim, na qual intelectuais engajados como Ênio Silveira e Flávio
Rangel estavam sempre presentes; e na residência de Vinícius de Moraes, no
bairro do Jardim Botânico, em que se reuniam alguns integrantes da esquerda
musical. É necessário salientar um aspecto: os habituais desentendimentos
ocorridos durante tais encontros demonstravam que, em meio àqueles artistas,
havia marcantes diferenças estéticas, políticas e ideológicas como o que
atestaria mais tarde a cisão entre o “grupo baiano” e os músicos da MPB
engajada. Todavia, acredita-se que o que fazia com que todos, mesmo com
posturas tão diversificadas, permanecessem relativamente unidos e articulados
era a luta contra os militares, na medida em que, em sua totalidade, eles se
sentiam encurralados politicamente e viam suas atividades e possibilidades
artísticas ruírem frente às intervenções do regime.
No mês de janeiro de 1967, enquanto os militares apresentavam ao
país a Lei de Imprensa, um conjunto normativo elaborado para controlar e
reprimir os atos considerados “subversivos” dos jornalistas, Torquato
34
permanecia trabalhando como diretor de relações públicas da Philips, então
uma das maiores gravadoras do mercado fonográfico. Sua função era escrever
textos de divulgação dos discos o que conhecemos atualmente como press
releases acompanhados de comentários e breves entrevistas com os artistas.
Ele continuava, ainda, no setor de propaganda da Abril. Contudo, o ano
começaria de fato, para o crítico-compositor, com seu casamento com Ana
Maria Santos Silva, em 11 de janeiro, no Rio de Janeiro. Três anos mais tarde,
todavia, descobriram que o casamento não possuía validade, pois esqueceram
de registrá-lo em cartório. Ao repercutir a notícia do casamento, diversos
jornais já se referiam a Torquato como “o mais ativo letrista do grupo baiano”.
Ainda naquele ano, um dos elementos que serviram de inspiração para
a formulação “baiana” da versão tropicalista do que deveria ser a música
popular brasileira foi apresentado: a exposição de Hélio Oiticica em abril de
1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, quando Torquato
completava quase um mês de trabalho no “Jornal dos Sports”. Uma de suas
criações, chamada de “Tropicália” – daí o nome com que foi batizado o grupo e
a canção homônima de Caetano, lançada em 1968 –, misturava artefatos do
cotidiano urbano – como, por exemplo, uma televisão –, com plantas tropicais e
referências ao morro da Mangueira. Um mês antes do início da exposição, em
entrevista, Oiticica explicou sua proposta artística:
A cultura brasileira é toda calcada na Europa e
América do Norte, num arianismo inadmissível
aqui. Quis criar, com a Tropicália, o mito da
miscigenação somos negros, índios, brancos,
tudo ao mesmo tempo. o negro e o índio não
vieram com a cultura européia. Quem não tiver
consciência disso que caia fora. (OITICICA apud
VAZ, p. 84)
35
Hélio Oiticica, que se tornaria um dos melhores amigos de Torquato,
com quem o poeta viajaria para a Europa no ano seguinte, construía uma
visão do Brasil bastante semelhante àquela que seria desenvolvida pelos
tropicalistas. Ainda naquele contexto, o processo de criação artística de
Torquato era cada vez mais evidente e ele se destacava como um dos mais
talentosos letristas daquela geração. Seus amigos Caetano e Gal Costa
lançavam o disco “Domingo”, que trazia três de suas canções “Zabelê” e
“Minha senhora”, com Gil, e “Nenhuma dor”, composta em parceria com
Caetano; e Gilberto Gil também estreava em LP com “Louvação” que, além da
faixa-título, contaria com outras músicas escritas em parceria com ele – “A rua”
e “Rancho da rosa encarnada” (composição de ambos com Geraldo Vandré).
Sua atividade mais importante naquele ano foi, contudo, “Música Popular”.
Publicada quase diariamente no “Jornal dos Sports” entre março e outubro, a
partir do mês de setembro passou a circular em “O Sol”, suplemento
experimental mantido pelo veículo a o fim daquele ano sob o comando de
Reynaldo Jardim. Retrospectivamente, como foi dito, 1967 é apontado como
o ano de gestação da Tropicália e de transformação no curso que seguia a
MPB. Os escritos de Torquato constituem documentos essenciais, pois este
processo foi, em sua inteireza, refletido na coluna. Mais do que isso, a coluna
“Música Popular” compõe um relevante documento histórico acerca da versão
elaborada por Torquato sobre a música brasileira naqueles anos 1960 na
medida em que o crítico a utilizou para formular uma proposta de identidade
musical nacional tão contraditória, paradoxal e rica quanto sua própria
biografia.
36
Torquato Neto registrou e absorveu as angústias do seu tempo e de
sua geração, deixando sua marca por todos os veículos por onde passou -
artísticos ou não. Essas passagens o reveladoras do constante estado de
transição de sua voz que se envolve com tudo. Torquato Neto é mais um
romântico maldito e a singularidade de sua poética atesta uma tensão trágica
entre o eu lírico e os padrões culturais da época. Unindo-se a outros artistas e
moldando o movimento tropicalista, Torquato Neto, “entre a exigência política e
a solicitação a indústria cultural, optou-se pelas duas”, afirma Heloísa Buarque
de Hollanda e Marcos A. Gonçalves em Cultura e participação nos anos 60.
Nesta mesma publicação, encontra-se uma entrevista com Caetano Veloso em
que este declara:
Então eu acho que o Tropicalismo teve a
grandeza não porque arrombou a festa ou
porque falou do arcaico e do moderno, mas
porque nós tivemos grandeza no ato, eu, Gil,
Torquato, Gal, Rogério, Duprat, o teatro, o
cinema, o Hélio Oiticica que fez obra que deu
nome ao movimento e que o Luis Carlos Barreto
pegou e botou na música. A gente fez essa coisa
com grandeza colocando em xeque a pequenez
dessa elite colonial que é a sociedade brasileira,
uma nação que não é ainda inteiriça, que não
acontece, onde as coisas não rolam e onde as
pessoas não têm acesso a quase nada.
(HOLLANDA; GONÇALVES, 1982, p. 86)
O Tropicalismo, embora breve, estremeceu as estruturas sociais e
culturais no Brasil de forma definitiva. Ou, senão exatamente isso, levou a uma
reflexão profunda em torno dos valores e critério de elaboração e análise da
arte às cabeças daquele período fervilhante, pois não se resumia apenas em
um movimento engajado e focado na revolução social como princípio da
criação artística. Configurou-se como um movimento que assume as
37
contradições da modernização e redescobre o Brasil ao esvaziar este tema até
então tido como referência por outros movimentos aproximação da realidade
nacional. Muitos movimentos artísticos do início da década de 60 propunham
uma revisão cultural: volta às origens nacionais, internacionalização da cultura,
dependência econômica, consumo e conscientização. Como afirma Celso
Favaretto (2000) em Tropicália: Alegoria Alegria, tais preocupações foram
responsáveis pelo engajamento de grande parte dos artistas e intelectuais
brasileiros na construção de um país novo por meio das militâncias políticas.
Os movimentos artísticos mais significativos
foram: os de cultura popular, como o CPC da
UNE, em que, além de estudantes, se engajaram
poetas, cineastas, e teatrólogos; espetáculos
mistos de teatro, música e poesia, como os do
Grupo Opinião; o Cinema Novo; Teatro Arena e
Oficina; a poesia participante de Violão de Rua e
alguns romances como Quarup, de Antônio
Calado, e Passach, de Carlos Heitor Cony. Estas
produções se dirigiam a um público
intelectualizado de classe média, principalmente
estudantes e artistas. (FAVARETTO, 2000, p. 28 e
29)
Havia um misto de agressividade e desprezo pela arte experimentalista
e formas engessadas de estilos. Tudo com o objetivo de polemizar arte
alienada e arte participante. O Tropicalismo surge daí, dessas discussões
gastas pela repressão, propondo uma posição essencialmente artística.
Rearticulando uma linha de tradição abandonada
desde o início da década, retomando pesquisas
do modernismo, principalmente a antropofagia
oswaldiana, rompeu como discurso explicitamente
político, para concentrar-se numa atitude
“primitiva”, que, pondo de lado a “realidade
nacional”, visse o Brasil com olhos novos.
Confundindo o nível em que se situava as
discussões culturais, o Tropicalismo deu uma
38
resposta desconcertante à questão das relações
entre arte e política. (FAVARETTO, 2000, p. 30)
Panis Et Circencis é o disco que integra e firma a proposta estética e
o exercício da linguagem tropicalista. Seria reconhecido como o estatuto deste
movimento. É também o resultado da produção coletiva da “baianada”
composta por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto,
Capinam, Mutantes, Rogério Duprat, Tom e Nara Leão. Apresenta
procedimentos variados e efeitos da mistura de carnavalização, festa, alegoria
do Brasil, crítica musical, crítica social e cafonice que resultam,
propositalmente, num ritual antropofágico. O disco tem caráter metalingüístico,
pois expõe um objeto que se configura no próprio ato de fazê-lo. Celso
Favaretto afirma: “Disco para se ouvir e ‘ler’ como se fosse uma alucinação,
propõe ao ouvinte-crítico a participação de um sonho de onipotência criadora”
(FAVARETTO, 2000, p. 79).
Ainda entre 1967 e 1968, Rogério Sganzerla lança O bandido da Luz
vermelha, clássico do underground - renomeado movimento udigrudi - seria
reconhecido e definido por Torquato nos seus escritos. São Paulo se anima
para o “primeiro programa Tropicalista” da TV. Parte do roteiro é de Torquato e
Capinam. O festival de música deste ano termina com vaias após “Sabiá”, de
Tom Jobim e Chico Buarque, ter vencido “Pra não dizer que não falei das
flores”, de Geraldo Vandré. A canção, hoje considerada um dos grandes
clássicos da MPB engajada e da luta contra o regime, era a predileta dos
estudantes universitários que ocupavam o Teatro da Universidade Católica de
São Paulo, em 15 de novembro. Na mesma ocasião, Caetano resiste às vaias
da canção protesto É proibido proibir”. O tropicalismo, inimigo da classe
39
média, começa a ser visto como moda por parte dela. A censura bloqueia
muitas apresentações de Caetano e Gil e as exposições de Hélio Oiticica, entre
elas “Seja marginal, seja herói” em homenagem ao assaltante Cara de Cavalo.
O programa “Divino Maravilhoso”, idealizado por Guilherme Araújo, leva à TV
boa parte dos tropicalistas em quadros happenings - cada vez mais loucos.
Logo em seguida, o programa é censurado e o congresso é fechado após o
decreto do Ato Institucional número 5. Gil e Caetano são presos. Torquato não
está bem. Em São Paulo, passou pela sua primeira internação devido aos
excessos alcoólicos. A Tropicália tem seu fim. No dia 13 de dezembro de 1968
o AI-5 foi decretado, fechando o Congresso Nacional e instituindo a fase mais
obscura da ditadura militar no país. Como conseqüência direta deste quadro, o
programa “Divino, maravilhoso” foi retirado do ar no dia 27 de dezembro, com a
prisão imediata de Gil e Caetano. Em crise e isolando-se dentro de si, Torquato
rompe com os amigos tropicalistas e, juntamente com Hélio Oiticica, embarca
para a Europa.
O ano 69 é o ano do exílio proposital de Torquato Neto. Ele vai para
Londres com Hélio Oiticica, Ana Maria vai encontrá-lo e de vão para Paris
onde convivem com exilados de vários lugares. Antes de voltarem ao Brasil,
conhecem Portugal e Espanha. Os tropicalistas, ex companheiros de Torquato,
ficam no país e sofrem a punição da ditadura: o presos num quartel no Rio
de Janeiro e voltam a Salvador beneficiados por uma liberdade condicional
concedida pela Justiça. Após o show que originará o disco “Barra 69”,
embarcam para o exílio em Londres.
Matou a família e foi ao cinema, de Julio Bressane, consolida o
“udigrudi” e, em Canes, Glauber Rocha é escolhido, mais uma vez, melhor
40
diretor com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Os festivais de
música tornam-se mais brandos, ou seja, perdem a efervescência típica dos
primeiros. Paulinho da Viola vence o Último festival com “Sinal Fechado”. O
general Emílio Garrastazu Médici assume a presidência, o que só faz aumentar
a censura e a tortura, principalmente, aos artistas marginais. A guerrilha urbana
se intensifica, o líder de esquerda Carlos Marighella é assassinado pela polícia.
“O Jornal Nacional” e o “Correio da Manhã” estréiam e, no Rio de Janeiro, “O
Pasquim” é fundado por intelectuais, humoristas e jornalistas como Ziraldo,
Millör Fernandes, Jaguar, Sérgio Augusto, Sergio Cabral, Ivan Lessa, Claudius
e Paulo Francis.
Quase um ano depois, Torquato retorna ao Brasil e firma residência no
Rio de Janeiro, num apartamento alugado no bairro da Tijuca. Volta a trabalhar
na área jornalística como copydesk no “Correio da Manhã”. Torquato ainda era
uma figura de prestígio no meio jornalístico pela coluna que havia assinado no
“Jornal dos Sports” e por ter sido compositor de algumas das canções mais
importantes da Tropicália. Outras publicações alternativas aumentam
combatendo a censura, uma delas é o jornal “Flor do Mal” para qual Ana Maria
colaborava. Em 27 de março de 1970 nasceu Thiago, único filho de Ana Maria
e Torquato. Torquato, alguns meses depois, seria internado no Sanatório
Botafogo mais uma vez para combater o alcoolismo.
Tinha à sua disposição uma máquina de escrever, na qual dias depois
começaria a registrar impressionantes relatos sobre a loucura por trás das
paredes de um sanatório. Sua rotina no hospital incluía as visitas de Ana, dos
pais Heli e Salomé que não o viam pessoalmente havia alguns anos e do
amigo Jards Macalé, que o encontrava para tentar estimulá-lo a escrever novas
41
letras e retomar as parcerias musicais. Uma semana antes de fugir do
sanatório para, num tempo posterior, ser encontrado vagando pelas ruas do
bairro, ele escreveria sobre a luta para se livrar do alcoolismo. A dramaticidade
do texto assusta:
“É preciso não beber mais. Não preciso sentir
vontade de beber e não beber: é preciso não
sentir vontade de beber. É preciso não dar de
comer aos urubus. É preciso fechar para balanço
e reabrir. (...) É preciso poder beber sem se
oferecer em holocausto. É preciso não morrer
por enquanto.” (TORQUATO NETO apud VAZ,
2005, p. 159)
Em 20 de outubro, ainda internado e bastante depressivo, Torquato
criaria os versos de “Cogito”, que entrou para a história como um dos mais
belos poemas brasileiros. Ainda neste ano, o alcoolismo e, segundo Vaz, um
quadro de esquizofrenia, levaram Torquato a mais duas internações, uma delas
no Hospital Psiquiátrico Pedro II, também no Rio.
1970 é também o ano de lançamento de “Lit it Be”, último álbum dos
Beatlles, e da morte dos artistas Jemi Hendrix e Janis Joplin, o que
representaria uma grande crise nas aspirações utópicas dessa geração. No
Brasil, a censura persegue Chico Buarque e A Rede Globo mantém o Festival
Internacional da Canção, vitrine para novos artistas. Ainda internado, Torquato
escreve os textos de “O Engenho de Dentro”.
Em 1971, Torquato escreve para diversos jornais alternativos e
participa da criação do “Plug”, caderno de cinema e cultura inserido no “Correio
da Manhã”. Mantém uma intensa correspondência com Hélio Oiticica que es
em Nova York. Luta contra a depressão. Continua na música compondo em
várias parcerias. “Que película, quase adeus” e “O homem que deve morrer”
42
com Nonato Buzar nunca foram gravadas. Trabalha como ator em Nosferato
no Brasil, filme de Ivan Cardoso, e torna-se defensor agressivo do cinema
marginal. Inicia a coluna “Geléia Geral”
4
, que significaria uma minúscula e
discreta mudança na imprensa da época no jornal “Última Hora” –, adota uma
nova linguagem para estampar suas críticas. Unido à Waly Salomão, busca
criar uma revista de arte e cultura, sem sucesso. Seria Navilouca, única edição
lançada dois anos depois. Caetano e Gil lançam em Londres discos cantados
em inglês e Gal, no Rio de Janeiro, estréia o show “Gal a todo vapor”, dirigido
por Waly Salomão. “Vapor Barato”, de Waly e Macalé, e “Hotel das Estrelas”,
do mesmo Macalé com Duda Machado – o espetáculo se transforma na grande
sensação daquele verão.
Em 1972, Torquato encerra a “Geléia Geral’. Empenha-se em reunir
instrumentos do movimento alternativo para a Naviloca e, entre amigos,
declara o desejo de reunir seus escritos em livro denominado Do lado de
dentro. Continua participando como ator de produções udigrudi” de Ivan
Cardoso e Luiz Otavio Pimentel. Vai à Teresina para sua última Internação, no
sanatório Meduna e produz com amigos o O terror da Vermelha, uma
película quase autobiográfica. Volta ao Rio de Janeiro e não param as
parcerias musicais. Jards Macalé lança disco com a gravação de “Lets play
that”, parceria com Torquato. Caetano e Gil voltam do exílio e formam Os
Novos Baianos. Luiz Melodia, descoberto por Torquato, firma seu lugar com
“Pérola Negra”. Outros clássicos são lançados: “Águas de Março”, de Tom
4
A coluna “Geléia geral” seria considerada um marco do jornalismo brasileiro pelas polêmicas travadas
com os antigos companheiros do Cinema Novo, por mudanças implementadas pelo poeta no campo da
linguagem e por ter se constituído como uma rica fonte sobre o que ocorria no campo cultural e,
especificamente, no cinema daquela época.
43
Jobim, e “Partido Alto”, de Chico Buarque. Cacá Diegues cria o musical
“Quando o carnaval chegar” e leva às telas Chico Buarque, Maria Bethânia e
Nara Leão. O engajamento da época anterior lugar às manifestações da
contracultura, difusa e confusa.
Como bem lembrou Ivan Cardoso, Torquato Neto é de escorpião,
“signo dos que não temem a morte” não não a teme como a persegue nas
cinco tentativas de suicídio. A última e fatal ocorre na madrugada de 10 de
novembro de 1972. Torquato Neto, depois da festa de seu aniversário de 28
anos, tranca-se no banheiro do seu apartamento, veda todas as saídas de ar
com lençol e abre o gás do aquecedor. Este fato choca a família, os amigos e
toda a classe de artistas marginais, inicialmente. Porém, diante daquele
panorama social e artístico, e destruindo aos poucos seus escritos, Torquato
viu-se sem saída. Deixou um bilhete de despedida sucinto e surpreendente (na
grafia original):
atesto q
FICO
Não consigo acompanhar o progresso de minha
mulher ou sou uma grande múmia que pensa em
múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher
em sua louca disparada para o progresso. Tenho
saudades como os cariocas do tempo em que me
sentia e achava que era um guia de cegos. Depois
começaram a ver e enquanto me contorcia de dores
o cacho de banana caía.
44
De modo
q
FICO
sossegado por aqui mesmo enquanto dure.
Ana é uma
SANTA
de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao
lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso
que eu
FICO
E vou ficando por causa de este
AMOR
Pra mim, chega.
Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o
Thiago. Ele pode acordar.
Torquato Pereira de Araújo Neto foi enterrado em 11 de novembro, no
Cemitério Municipal de Teresina, no bairro da Matinha, no estado do Piauí.
Alguns anos depois de sua morte, admiradores, amigos, ex-amigos,
companheiros e ex-companheiros se manifestaram sobre a importância do
compositor.
Muitas declarações e composições foram realizadas para homenageá-
lo. Os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, sob o impacto da notícia do suicídio
de Torquato, compuseram a canção “Samba Fatal”, gravada no álbum
“Previsão do Tempo” em 1973. Em 1977, foi publicado o poema-homenagem
45
“Coroas para Torquato” escrito por Paulo Leminski. Em celebração aos 10 anos
de sua morte, declarações importantes foram dadas:
Torquato era um criador-representante da nova
sensibilidade dos não especializados. Um poeta
da palavra escrita que se converteu à palavra
falada, não a palavra falada idioletal
brasileira, mas a palavra falada internacional.
(Décio Pignatari)
Quando penso que devo e quero dizer algo
sobre Torquato penso em quanto como e/ou não
dizer nada (...): (...) Mais amei e disse e fiz
quando com ele fuipara Londres e quando
brigamos (...).
(Hélio Oiticica)
Torquato é, talvez, o único ‘mito’ poético dessa
geração que está, mito, aqui, no sentido
originário de figura-síntese de uma idéia com
força e valor coletivos. Arquétipo. Modelo.
Forma-cristal. Para esta geração (como delimitá-
la?). Torquato encarna um dos mitos mais caros
da nossa gente: o mito do poetamorto jovem.
Esse mito de extração romântica tem uma
linhagem que começa no Werther de Goethe,
passa por Musset, Nerval, e, entre nós, por
Álvares deAzevedo, Casimiro de Abreu, Castro
Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, os
“prematuramente desaparecidos.
(Paulo Leminski)
Em 1985, numa entrevista para o “Projeto Torquato Neto” produzido
pela RioArte, Gilberto Gil lamenta:
Eu realmente tenho a sensação de que Torquato
não deu tempo pra gente. Com um pouquinho
mais de tempo, acho que o circunstancial afetivo
teria de uma certa forma se mobilizado
beneficamente pra ele. Desenrolaria o nó. Uma
coisa que eu gostaria muito era de ter
amadurecido a seu lado. Muitas coisas que eram
problemáticas e torturantes para ele, hoje
teriam ficado mais simples. Mas ele tinha pressa,
abriu o gás.
46
No ano seguinte, no evento “Tropicália, 20 anos” realizado no Sesc
Pompéia em São Paulo, o então parceiro de Torquato nos anos 60 Rogério
Duarte declara:
Fundamentalmente, o que faltou a Torquato no
momento mais crítico, num momento de grande
dificuldade no país, foram exatamente as
referências e os apoios mais sólidos. Ele se
sentia sozinho. (...) Se Torquato tivesse sido
entendido, amado e reconhecido, se as
circunstâncias fossem outras aquilo não
aconteceria. É a história do homem, o “eu” e as
circunstâncias. Eu não queria que a obra de
Torquato fosse reduzida a poemas de um
suicida. (...). Torquato era um Dom Quixote, (...)
que se lançava contra os moinhos de vento com
uma coragem total.
Paulo Andrade (2002, p. 26) recupera o depoimento do jornalista José
Geraldo Couto para o jornal Folha de S. Paulo sobre Torquato Neto em que
usa uma expressão de José Miguel Wisnik: “...perigo, na ressurreição do ‘mito
do suicida’, é deixar de dar atenção devida à real produção artística e
intelectual de Torquato, uma das mais fecundas da cultura brasileira nas
últimas décadas”.
Foi em um contexto de extrema politização e engajamento no campo
da cultura que Torquato Neto começou a dar sua contribuição para a formação
de uma relativamente recente história sobre a arte brasileira. Sua participação
não foi meramente coadjuvante, como a historiografia habituou-se a mencionar.
Evidenciar o papel primordial desempenhado por Torquato Neto na arte e na
crítica nacional e reiterar sua contribuição é o mesmo que permitir que seja
dedicado a ele um lugar de destaque na história dos movimentos artísticos
brasileiros.
47
CAPÍTULO II
A linguagem poética de Torquato Neto
Debaixo da tempestade
Sou feiticeiro de nascença
48
Atrás desta reticência
Tenho o meu corpo cruzado
A morte não é vingança
(Torquato Neto)
2.1 – Toda palavra é
Na cada de 60, Torquato Neto optava por viver da adversidade em
resposta à desordem do mundo e aos desacertos das idéias dos Trópicos.
Passageiro de uma época de indefinições e mudanças traçou, na Vereda
Tropical, um percurso individual de criação. Experimentando viver o aqui e o
agora de sua geração, seu espírito inquieto mostrou-se em sintonia tanto com o
complexo processo sócio-político pelo qual passou o país após o golpe de 64
quanto com a revolução cultural, fruto de uma crise de valores que abalou o
mundo nesse período. “Todo regime autoritário engendra mais cedo ou mais
tarde o processo que vai culminar na sua negação” inicia o ensaio de Luciano
Martins (2004, p 13). Torquato Neto não esperou o tempo passar para negar o
que se viveu na ditadura militar. Imediatamente, negou o contexto político dos
anos 60 por meio da poesia de resistência.
A capacidade do poeta de reler o lirismo, tangenciar a tristeza sem a
morbidez dos poetas menores, como declarou Eduardo Martins em matéria
para o “Jornal do Brasil” (09/11/1982), permitiu a Torquato levar às últimas
conseqüências a linguagem de seu grupo e partir ao lado de outros para uma
viagem libertadora. Correndo o risco da aventura e de estar condenado à
grande morte, viveu a inquietude e a dor de quem assume o desafio de cumprir
o destino de poeta nos anos 60.
49
Guiado por uma sabedoria trágica, Torquato caminhou sem uma direção
clara, movida pela determinação de quem, segundo Walter Benjamin (1984, p.
137), “teme a morte como algo que lhe é familiar, pessoal e imanente”. Em
seus escritos, o poeta deixou registrada uma alma ferida de morte a qual
resistiu o quanto pode às intempéries da viagem por acreditar que lhe cabia
providenciar certos acabamentos antes de partir para o encontro marcado
acabamentos estes, pode-se dizer, dotados de poesia.
A vida de um predestinado desdobra-se a partir da morte, não como fim,
mas como uma forma, pois, de acordo com Walter Benjamin (1984, p. 137)
mais uma vez, “a existência trágica pode assumir sua tarefa porque seus
limites, tanto os da vida lingüística, quanto os da vida física, lhe são dados
desde o início e lhe são inerentes”. Da mesma forma, Torquato viveu a sua
peça trágica ao som da linguagem amarga da época, aquela que, entre tantas
outras coisas, pregava o silêncio obrigatório como forma única de permanência
e inclusão:
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser fim
do seu início;
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam assim,
50
do precipício:
(fragmento de “Literato Cantabile”)
Ao aceitar desconstruir a linguagem de seu tempo, Torquato seguiu
cantando a palavra como um acorde dissonante. O poeta fundou o sentido de
sua linguagem entre a palavra e a música e, nesse espaço intermediário entre
o verbalizável e o o verbalizável, circulou às avessas, desconcertando o
“coro dos contentes”.
Pelos anos 60, Torquato conferiu a essência dos acontecimentos e fez
da poesia um documento vivo/humano da época. Munido das artimanhas de
um canto dionisíaco, tornou-se um passageiro pelas ciladas da linguagem,
ousando proferir as palavras antes caladas:
a guerra acabou
quem perdeu agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício.
e não se sabe nunca mais do fim. agora o nunca.
51
agora não se fala nada, sim. fim, a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.
(fragmento de “Literato Cantabile” - p. 169)
5
Consciente dos fatos correntes do lado de dentro e do lado de fora,
Torquato Neto, segundo Mário Faustino (1977, p. 37), “tem que ser perigoso
como Dante foi perigoso: uma força respeitável frente às demais forças
sociais”. Junto a outros artistas, Torquato fortaleceu o coro dos marginais e, ao
destoar o tom daquela realidade, viveu a experiência de quem “tinha o corpo
cruzado como proteção” (FAUSTINO, 1977, p. 37), tinha a linguagem poética
como salvação.
Podemos reforçar que o desregramento anárquico acompanha a própria
relação de Torquato com a linguagem enquanto “corpo arrebentado”, tal como
se em “Marcha à Revisão”, texto escrito por ele em 1971, publicado na
coluna Geléia Geral e que cria um diálogo com o poema “Literato Cantabile”:
Quando eu a recito ou quando eu a escrevo,
uma palavra um mundo poluído explode comigo
e logo os estilhaços desse corpo arrebentado em
lascas de corte (como napalm) espalham
imprevisíveis significados ao redor de mim:
5
TORQUATO NETO. Torquatália: Do Lado de Dentro / organização de Paulo Roberto Pires. Vol. 1
Rio de Janeiro: Rocco, 2004.366p. Todas as outras citações, quando não devidamente indicadas, foram
extraídas dessa edição e vêm acompanhadas somente da indicação de páginas.
52
informação. Informação: palavras que estão nos
dicionários e outras que não estão e outras que eu
posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha
disposição, aparentemente limpas, estão imundas e
transformam-se, tanto tempo, num amontoado de
ciladas.
Uma palavra é mais do que uma palavra,
além de uma cilada. Elas estão no mundo e
explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada e
tudo é um gesto e em sua orla os pássaros sempre
cantam nos hospícios. No princípio era o Verbo e o
apocalipse, aqui, será apenas uma espécie de caos
no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem
puder.
As palavras inutilizadas são armas mortas e a
linguagem de ontem impõem a de hoje. A imagem
de um cogumelo atômico informa por inteiro seu
próprio significado, suas ruínas, as palavras
arrebentadas, os becos, as ciladas. Escrevo, leio,
rasgo, toco fogo e vou ao cinema. Informação?
Cuidado, amigo. Cuidado contigo, comigo.
Imprevisíveis significados. Partir para outra, partindo
sempre. Uma palavra: Deus e o Diabo.
(TORQUATO NETO, Vol. 2, 2004, p. 261-262)
53
Numa época de crise, observa Mário Faustino, os poetas têm nas mãos
o destino da poesia. Ao sobrepor o canto alegre de sua voz tropicalista à
melodia sombria da época, Torquato sentiu “na própria carne e até aos ossos a
necessidade de experimentar (e não apenas observar) o universo”. Como um
“ser humano perigosamente vivo”, construiu sua palavra como expressão do
sentimento de seu tempo e do mundo (FAUSTINO, 1977, p. 27-41). Torquato
Neto, relacionando a época com ele mesmo, realizou o mistério da comunhão
com o anjo louco e, ao encontrar na poesia sua unidade existencial, fez do eu
lírico o limite para o caminho trágico, ou seja, usou a voz em primeira pessoa
do singular no poema como caminho para exercer contrariedades as quais foi
destinado; como se observa em “Let’s play that”:
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre os dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
54
let’s play that
(p. 131)
Retomando “Poema de Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade,
essa letra de música de Torquato anuncia a própria tragédia e oferece-se a ela.
A tragédia configura-se em romper a estrutura do coro de quem é satisfeito
com a melodia tocada naquela realidade. Vale lembrar que esta composição,
com arranjos e interpretação de Jards Macalé, usa recursos de acordes
dissonantes, rupturas de ritmo e ruídos vocais que reforçam o desejo contido
no conteúdo da letra de “desafinar”.
Esse radicalismo se torna ainda mais evidente quando comparamos a
letra da canção e o poema inspirador. Enquanto o “gauchismo” de Torquato é
auto-modificador propõe a própria mudança –, o de Drummond é auto-irônico
– dá um teor cômico à condição trágica em que se encontra:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
55
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
56
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Dizendo o que não devia nos dizer, Drummond relativiza o tom grave
inerente, nesse caso, à tragédia do poeta gauche que o poema vinha
assumindo até a penúltima estrofe. A fala gauche torna-se, assim, uma fala
duvidosa, sugerida de forma irônica como sendo fruto passageiro de uma
comoção entorpecida, ainda que essa gravidade não seja totalmente perdida.
Em “Let’s play that”, uma tentativa de manter a imagem do poeta
maldito configurada pela oposição do “eu/desafinado” e “vasto mundo/coro
dos contentes” intocada até o fim da canção ou externando o campo
específico da instância verbal/musical até o fim da vida, esta encerrada tão
incisivamente pelo suicídio. Torquato desafina porque não é contente; Torquato
tornou-se o próprio anjo torto consciente.
2.2 – Os estilhaços – Uma palavra
A dificuldade que se tem em definir os gêneros literários na obra de
Torquato Neto diz muito do êxito mais profundo de seu projeto estético. Nesse
universo de referências e estilos, é grande a tentação de delimitar a obra
poética por uma definição negativa, ou seja, que não deve ser reconhecida
porque não se enquadra em um gênero/movimento comum. Legítimo
representante do que Décio Pignatari chamou de “nova sensibilidade dos não
57
especializados”, Torquato Neto partia da poesia (entendida como um gênero
específico de escrita e criatividade) para as demais artes, sempre mutante.
De acordo com Paulo Andrade (2002, p. 185), a obra de Torquato Neto
tem uma natureza fragmentária, de dilaceramento, que instaura um tipo de
visão de mundo. Mas a aparente incompletude da escritura tem o poder de
emancipar o discurso poético, deixando de lado qualquer projeto de obra
totalizante em si mesma. Ao contrário, Torquato busca a potência de cada
efeito poético, conseguindo peculiar coerência interna em sua obra. Como
afirma Feliciano Bezerra:
Trata-se de uma produção densa, que não se
distribui igualitariamente, não se enfeixa em
compartilhamentos delimitados. Em lances
escriturais assistemáticos, não segue nenhuma
ordem clara e é muitas vezes tautológico, numa
ânsia pelo reiterativo desejo de potencializar o
discurso pela repetição de células poéticas.
(BEZERRA, 2004, p. 12)
Torquato Neto usa o mesmo verso em textos distintos, em poesia ou em
prosa – como visto anteriormente em “Literato Cantabile” e “Colagem”. É
possível identificar sentenças muito parecidas ou mesmo idênticas em textos
diferentes Torquato Neto reforça uma idéia, recuperando um verso ou um
fragmento usado em um poema ou texto crítico numa nova produção. A
mesma citação num poema pode ser revista numa canção ou numa crônica.
Vejamos o texto intitulado “Pessoal Intransferível” publicado na coluna “Geléia
Geral” no dia 15 de setembro de 1971:
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com
versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem
58
medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando
dificuldades pelo menos maiores, é destruir a
linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas
mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena etc. Difícil é o correr
com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar
o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não
é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando
bem, não é nada, se você está sempre pronto a
temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos
sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente
mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que
levaram a coisa até o fim e continuam levando,
graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não
pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao
matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o
homem, nem que seja o boi. Adeusão.
(TORQUATO NETO, Vol 2, 2004, p. 227)
Além do título do texto acima recuperar um verso do poema “Cogito”,
outras passagens retomam versos de outros poemas:
o poeta nasce feito
59
assim como dois mais dois;
se por aqui me deleito
é por questão de depois
6
(p. 184-185)
O poeta não seu cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar o meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira
(p. 172)
Torquato Neto utiliza sínteses experimentais a fim de estabelecer um
discurso num cruzamento de partículas poéticas. Daí, o retorno freqüente às
mesmas expressões que retomam significados explorados em suas
publicações. O tráfego pelas múltiplas linguagens alterna sua escritura em
formas artísticas diversificadas. É como se a poesia, vestida dos versos
obsessivamente requisitados e à frente reescritos, tomasse outras
manifestações de arte por sua presença. Tanto é que a sua obra é dispersa
Torquato não se restringe à publicação de um livro, o que seria
tradicionalmente reconhecido. Até a sua morte, sua obra não estava
organizada. São poemas esparsos e experimentais, cartas, crônicas, crítica,
letras de canções, diários que expressam a multiplicidade de interesse e uma
vocação para o lírico.
6
Fragmento de um poema até então inédito, dedicado ao letrista Ronaldo Bastos.
60
Essencialmente no caminho poético, pode-se confirmar o interesse
múltiplo de Torquato Neto em verificar outros modos de expressão. em sua
produção uma variedade de gêneros poéticos: desde versos coloquiais a líricas
subjetivas e com profundos retratos do íntimo, poemas visuais, grafismos e
outros mais. Torquato Neto foi um poeta inquietante com sede de esgotar as
possibilidades de poesia.
O poema “A Matéria O Material 3 estudos de som, para ritmo”, de 1969,
é um exemplo de uma das tentativas do poeta em explorar mais uma face da
poesia. Nele, está presente também um procedimento que capta o empenho
experimental de construção e traduz a linguagem “verbivocovisual”, termo
criado pelos concretos para definir uma linguagem que não se esgota no
significado, expressando-se na própria forma:
I
arco
artefato
vivo
auriverde
sirvo
o
a
(ri)
da fa
61
da, moça
in
feliz :
II
arco
art & fato
vi-vo
auriver-
te,
sir v
o
a fe
ri D
a fa
da (in)
feliz - : vivo (a) o –
crefoto
cr&ivo &
não/o
qui-Z
a o
rc
o
62
auriver...
te eu
sir
v.o.
§ a raia-raiz
§ a raia-raiz
III
a o
rc
o
arte fa-
liz & vi-o.o.
:
auriv/ver
te,
raí
Z
Paris, 1969.
(p. 160-162)
O poema é formado por três blocos compostos por versos de
basicamente uma só palavra. Essa palavra/verso se apresenta em uma rotação
63
de leitura que fragmenta a sintaxe, parte a própria palavra e o seu significado.
O poeta materialidade às palavras fragmentando-as e distribuindo-as pela
página, uma (des)montagem mais preocupada com a estrutura formal do que
com as conseqüências semânticas. Aliado a isso está o uso não convencional
da pontuação e outros sinais gráficos.
A materialidade é anunciada no próprio título do poema, “A Matéria O
Material”, um jogo de significados caracterizado com o uso dos artigos
definidos. A linguagem poética apresenta o material poético responsável por
comportar a matéria da poesia, ou seja, as palavras. O sentido do texto está na
disposição das palavras, no jogo de posição e sonoridade que estas promovem
e são conduzidas nessa engenharia lírica.
Porém, apesar de levar a sério a experiência poética e as orientações
teóricas do universo concretista, Torquato não obedecia a um procedimento
sistêmico de composição estética, tal como propunham os concretos no “Plano
Piloto da Poesia Concreta”, de 1958, registrado por Augusto de Campos:
...comunica a sua própria estrutura: estrutura-
conteúdo. O poema concreto é um objeto em e
por si mesmo, não um intérprete de objetos
exteriores e/ou sensações mais ou menos
subjetivas. Seu material: a palavra (som, forma,
visual, carga semântica). Seu problema: um
problema de funções-relações desse material.
(...) contra uma poesia de expressão, subjetiva e
hedonística. Criar problemas exatos e resolvê-
los em termos de linguagem sensível...
(CAMPOS, 1975, p.157)
Ao mesmo tempo em que os concretos apresentavam esse desejo de
colocar a poesia no horizonte da sociedade industrial moderna, intensificavam
a pesquisa estética do “novo pelo novo” típica das vanguardas modernistas.
64
Para a poesia, existia o que o crítico e poeta americano Erza Pound denominou
de “poetas inventores”: “Homens que descobriram um novo processo ou cuja
obra nos o primeiro exemplo conhecido de um processo” (POUND, s/d, p.
42).
Torquato foi concreto sem assumir, formalmente, um compromisso com
o movimento. Conceitos teóricos do concretismo que definem “a poesia de
invenção” e o abandono do verso coexistem com um comportamento estético-
existencial anárquico, desregrado, desbunde contracultural na poesia do
anjo torto. Para Torquato, a palavra aparece como um signo perigoso
inalienável do sujeito. É essa maneira de encarar a linguagem o traço que
diferencia Torquato da poesia concreta e, ao mesmo tempo, o aproxima da
poesia marginal. Como resumiu Heloísa Buarque de Hollanda nos textos sobre
os poetas marginais:
...uma linguagem que traz a marca da
experiência imediata de vida dos poetas, em
registro às vezes ambíguos e irônicos e
revelando quase sempre um sentido crítico
independente de comprometimentos
pragmáticos... (HOLLANDA, 1981, p.98)
O poema “A Matéria O Material 3 estudos de som, para ritmo” está
presente em Os Últimos Dias de Paupéria e, em 1997, foi publicado na
antologia Nothing the Sun could explain, organizada pelos poetas brasileiros
Régis Bonvicino e Nelson Ascher juntamente com o poeta norte-americano
Michael Palmer. Além desse, outros três poemas de Torquato compõem a
antologia e são seguidos por textos de dois outros poetas brasileiros: Ana
Cristina Cesar e Paulo Leminski, ambos com elementos comuns a Torquato,
como a maneira enfática de lidar com a poesia vivencial. A sua inclusão em
65
publicações como esta reitera e repensa a importância da obra de Torquato,
que instiga o pensamento poético contemporâneo brasileiro.
A obra de Torquato Neto não deixou de despontar, seja por interesses
ligados ao histórico–cultural referente a sua atuação na Tropicália, seja por sua
diferenciada presença dentro da atmosfera artística e poética, preocupada em
confrontar os padrões e valores da arte brasileira e inventar outros novos.
2.3 – Em todas as medidas
Como um anjo torto, Torquato Neto, elegendo a morte como tema
estruturador ou desestruturador de seus textos e da própria vida, viveu em
situação-limite. “Cogito”, um dos poemas mais importantes de toda a obra
poética de Torquato, mostra a densidade da transcrição da experiência-limite e
revela a presença da loucura e da morte como opção escolhida e consciente
de um sujeito estilhaçado:
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
66
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
A fórmula cogito ergo sum (penso, logo existo) é, para Descartes, o
primeiro princípio da filosofia, que elege o pensamento e não a presença do
mundo como consciência do existir. Conclui Descartes, fundador do
pensamento racional moderno: “Esta proposição eu sou, eu existo é
necessariamente verdadeira todas as vezes que a pronuncio ou que a concebo
em meu espírito”.
Ao estabelecer um diálogo com o pensamento cartesiano, Torquato
mostra a sua verdade como definição da própria existência. O “cogito” proposto
por Torquato aponta para a existência desagregada e contraditória, que vive
nas fronteiras entre o existir e o não existir, entre a vida e a morte. Ao contrário
de Descartes, Torquato duvida da própria identidade do “eu”. Sem verdades
eternas, o eu lírico é uma ocorrência singular das faces plurais do poeta
mostradas com totalidade e a cada “eu sou” repetido no poema. Essa verdade
é transitória.
Julgando-se um pedaço de si, o poeta desfaz a ilusão do sujeito
absoluto construído pelo mundo moderno. Desvelando a subjetividade na ânsia
de apontar-se como um indivíduo “desferrolhado”, Torquato repensa a história
do “eu” e do próprio Humanismo, estando atento ao pensamento que circulou
pelo mundo ocidental na década de 60 e atingiu sua geração.
67
O presente “aqui e agora” também enquanto tempo verbal tem todo
valor e impera nos versos do poeta. Não é um ponto fixo, nem um lugar seguro,
mesmo que o poeta se anuncie como “vidente” do agora, vivendo “todas as
horas do fim”. Essa vivência obsessiva do presente reforça ainda mais a
própria consciência sobre a fatalidade da vida:
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
(p. 165)
A valorização do “agora” é uma negação do passado e do futuro e uma
saída para afirmar a vida e a liberdade. Entretanto, para Octávio Paz, abrir o
caminho da liberdade é andar em direção a morte: “viver no agora é viver com
o rosto voltado para a morte” (PAZ, 1984, p. 74). Segundo o poeta e crítico
mexicano, o homem está enganado quando inventa conceitos abstratos para
fugir da morte porque o próprio agora lhe total noção da finitude do ser.
“Apenas diante da morte nossa vida é realmente vida. No agora, nossa morte
não está separada de nossa vida: são a mesma realidade, o mesmo fruto”
68
(PAZ, 1984, p.76 ). Com a alma ferida de morte, o poeta prossegue indo ao
encontro de um ponto de origem vivendo “tranquilamente/todas as horas do
fim”. Para Foucault,
o cogito fala a linguagem do grande retorno,
retorno lírico por uma fulguração instantânea
que, amadurecendo de repente a tempestade da
realização, ilumina-a e tranqüiliza-a na ordem
reencontrada (FOUCAULT, 1991, p. 511)
O poema carrega o desencanto do “eu” meditando sobre a existência
(quem sou seu?). O homem iniciado “na medida do impossível” é este mesmo
que anteriormente reconhece a palavra como uma cilada. No seu caso,
“pronome intransferível”, não ter a palavra é igualmente fechar todas as
possibilidades de viver possivelmente. No jogo da linguagem, a definição do
“eu” se constrói por meio de um signo vazio um pronome a fim de que a
identidade do sujeito se atualize como “verdade” a cada oportunidade de
discurso, de uso da palavra. O sujeito recolhe-se a uma partícula gramatical,
desmembrado de si mesmo, com uma vidência reduzida à lucidez necessária
para aceitar-se e aceitar calmamente sua hora, sem buscar elevar-se a modelo
mas tão só declarar sua experiência vivencial.
Torquato canta a verdade secreta de um passageiro para liberar, por
meio da palavra, o próprio destino. Durante a passagem, o poeta está sereno e
tem a tranqüilidade de quem cumpriu o desafio de desafinar em meio às
ciladas da linguagem. Consegue construir o espaço-limite entre a interioridade
e o lado de fora, a passagem. E, voltando para dentro de si, o poeta alcança a
maturidade por meio da meditação.
69
“Cogito” representa mais um esforço de Torquato para construir uma
linguagem que lhe permita fugir da “captura social da subjetividade”, isto é, o
poeta investe numa linguagem que lhe permita escapar dessa captura” que
funciona nos obrigando a ler-nos e escrevermo-nos de uma maneira fixa, com
um padrão estável. A possibilidade de realizarmos a experiência de auto-
reconhecimento das nossas especificidades grupais como reconhecimento da
multiplicidade de modelos existentes pode parecer, sem dúvida, um
aprendizado muito árduo e em grande escala provavelmente impossível.
Contudo, é sobre essa experiência que “Cogito” nos fala, mesmo na sua real
ausência. Não nos furtemos, então, ao esforço de sua compreensão.
2.4 – Contra a linguagem em favor da linguagem
“Chega de metáforas. Queremos a imagem nua e crua que se na
rua”. Com esta declaração do final de 1971, Torquato Neto conclui um longo
processo de reflexão sobre a linguagem e começa a dar contorno àquilo que
foi chamado de contra-linguagem de Torquato Neto. Raciocinando sempre em
termos de “lado de dentro” e “lado de fora”, o poeta parecia perceber a
transparência da linguagem como o lugar de mascaramento do caráter material
do sentido das palavras e dos enunciados. Ao mesmo tempo, percebia serem
as palavras “poliedros de faces infinitas”, que sempre se permitiriam ser
utilizados no sentido da subversão de significados. Encontra-se, então, o
núcleo da contra-linguagem de Torquato Neto.
70
Em razão do empreendimento dessa espécie de guerrilha semântica,
Torquato pode ser historicamente visto como um bom exemplo da vertigem que
assaltou os sujeitos no final da década de 60 no Brasil. À medida que a
realidade se desfaz, que o real se “desreferencializa”, ele acentua a ilusão de
que é possível encontrar a realidade sob a máscara da aparência. Ao
proclamar “chega de metáforas”, o poeta estaria sugerindo a existência de
duas realidades – uma aparente, metafórica, e outra “real” (tais realidades
retomadas no próximo capítulo à luz da Utopia). A contra-linguagem que
propõe, então, é proposta no sentido de libertar o olho das metáforas, remover
a cortina das aparências e investir no desnudamento de um real “puro”, limpo
das palavras que o esconderiam sob o mascaramento ideológico produzido
pela linguagem.
Pode-se, portanto, dizer que para Torquato Neto o mundo estaria
necessariamente cindido entre o “lado de dentro” e o “lado de fora”, entendidos
como entidades que demarcariam a fronteira do mundo ordenado, regulado.
Torquato Neto é dos poucos de sua geração que demonstrou uma
preocupação com o conhecimento das questões implicadas com o fenômeno
da comunicação humana. Isto fez dele não apenas um comunicador
apaixonado pelas experiências experimentais, como também o transformou em
alguém que intuía a subjetividade como uma dobra do social. Disto decorreu o
seu esforço para desdizer-se, transmutar-se infinitamente em outro, fazendo
um giro sobre si mesmo, escapando das palavras que lhe diziam, que diziam o
Brasil, que, enfim, nomeavam e significavam um mundo que ele queria
renomear e transformar, uma vez que estava informado por categorias
modernas que lhe ensinavam existir uma realidade falsa, aparente, metafórica,
71
ideológica, e uma outra realidade pura, desejável. A grande encruzilhada, para
Torquato Neto, aquilo que o conduziria a um beco sem saída, seriam as
palavras, ciladas que, por um lado, instituíam uma realidade indesejável e, por
outro, eram as únicas armas de que o sujeito Torquato dispunha para subverter
os discursos que inventavam sua realidade.
“Dentro” e “fora”, portanto, enquanto blocos de intensidade da obra de
Torquato Neto, devem ser vistos como elementos que margeiam a sua contra-
linguagem. Percebendo a realidade como uma resultante de práticas
discursivas que nomeiam as coisas e introjetam nas relações a percepção do
“fora”, impedindo que os indivíduos sejam tragados pelo mundo não nomeado,
Torquato propõe “destruir a linguagem e explodir com ela” (TORQUATO NETO,
Vol. 2, 2004, p. 227), valendo-se de uma linguagem visual, seja ela na arte que
for, como o instrumento ideal para esta operação. Furar o bloqueio da
linguagem, transitar por dentro e por fora do mundo nomeado ou habitar,
segundo o próprio Torquato, a “subterrânea debaixo da pele do uniforme de
colégio que me vestem” (TORQUATO NETO, Vol. 2, 2004, p. 198), foi o projeto
que mobilizou o seu maior esforço. Inicialmente, esse esforço realizou-se por
meio da palavra escrita até o momento em que o poeta conclui que as palavras
eram insuficientes e precárias para expressarem suas mensagens.
Inserida no amplo contexto da produção artística de Torquato Neto, a
poesia representa menos um ponto de chegada do que mais um degrau na
busca de Torquato Neto em escapar de si enquanto sujeito composto de
palavras. O seu esforço mais constante é tanto para entender como se
constituiu “não sei direito onde estou entre as massas” –, ato para resistir às
palavras que lhe constituem. Não é à toa, portanto, que Torquato Neto explora
72
tantas linguagens em suas produções, levando-as a serem questionadas em
relação ao seu valor literário. De acordo com Viviana Bosi, a poesia brasileira,
especialmente chamada de marginal ou pós-tropicalista, é alvo desses
questionamentos:
O coloquialismo e a mescla de gêneros, tendo
começado no modernismo como ruptura,
radicalizou-se muito mais a partir dos anos 70.
Deparamo-nos com um tipo de texto literário
indiscriminado entre carta, diário, poema,
reflexão, ou poema sem nenhum “pedestal” ou
“moldura”, compartilhando totalmente da
linguagem comum, como se não fosse um
artefato artístico.
(BOSI, 2009/2010, p. 11)
O “lado de dentro” e o “lado de fora” tornam-se evidentes na poética de
Torquato Neto por exibirem sua arquitetura lingüística, ou seja, a maneira como
constrói e desmonta significados a partir de uma linguagem fragmentada.
Citando mais uma vez Viviana Bosi:
Vários textos de Ana Cristina Cesar, Wally
Salomão, Torquato Neto, Cacaso e Francisco
Alvim oferecem esse jogo entre exposição do
processo e momentos de acabamento, como se
houvesse por vezes um desnudamento do fazer
literário, uma exposição crua de seus andaimes:
são poemas-conversa entre arte e vida
cotidiana. (BOSI, 2009/2010, p. 12)
Os textos de Torquato Neto, assim como a poesia produzida em sua
época, configuram-se em poemas que combinam falas cotidianas com imagens
e pensamentos formalizados. Essas combinações resultam na sensação de
espontaneísmo e, assim, na vida sobre se são falas retiradas diretamente da
vida sem passar pelo filtro estético.
73
O poeta parece querer se dizer a partir do esforço para obrigar sua
subjetividade a deslizar para fora e expor o caos que o habita do lado de
dentro. O gesto de entrar e sair, ainda que o fira de morte, é também o que o
salva. A desordem que apresenta, então, seria um gesto para combater os três
grandes estratos que nos amarram e nos sujeitam, fazendo-nos ser como
somos: o organismo, que nos faz sentir articulados a um mundo racional e
organizado; a significância, que nos posiciona num universo de sujeitos; a
subjetivação, que nos sujeita e articula a um modelo de racionalidade.
Torquato Neto, como poeta marginal, que fez de sua obra poética um
caminho para concretizar a própria vida, sabia o que queria dizer quando
declarou que “um poeta o se faz com versos”. Ferreira Gullar, importante
poeta exilado nos anos 70 e pertencente a uma geração mais velha que os
poetas marginais, afirmou: “O que importa não é fazer um poema – nem
mesmo fazer um não-objeto mas revelar o quanto de mundo se deposita na
palavra” (GULLAR, 2007, p. 99).
A tentativa de quebrar a linguagem, de removê-la, de destruí-la, atitude
que era impulsionada pela crença de que existe mundo fora da linguagem,
resultou em abalo – quando não na destruição – de seus próprios mundos, pois
quando colocamos a linguagem sob suspeição é de nosso próprio mundo que
suspeitamos.
74
2.5 – Torquato Neto e a
Navilouca
: Projetos Estéticos
Torquato Neto e Wally Salomão ou “Sailormoon” como assinava
pensaram e conceberam o que foi uma das sensações do início dos anos 70
na arte impressa experimental no Brasil: a revista de volume único Navilouca,
o último projeto em que Torquato Neto participou ativamente. O então
“Almanaque dos Aqualoucos”, valioso material pós-tropicalismo, foi criado em
1972 e publicado em 1974.
Nome de música do compositor carioca Pedro Luís, gravada junto ao
grupo A Parede, não foi escolhido por acaso – como nada é por acaso vindo de
seus mentores. Navilouca remete também à Stultífera Navis, a nau que
recolhia os loucos e desgarrados na Idade Média e os levava para fora do
convívio social. Parafraseando Ana Cristina César, os colaboradores da
Navilouca eram os “desbundados mas letrados” da década de 60, a chamada
contracultura brasileira que Carlos Alberto Messeder Pereira explica:
Corriam os anos 60 e um novo estilo de
mobilização e contestação social, bastante
diferente da prática política de esquerda
tradicional, firmava-se cada vez com maior força,
pegando a crítica e o próprio Sistema de
surpresa e transformando a juventude, enquanto
grupo, num novo foco de contestação radical.
(...) Aos poucos, os meios de comunicação de
massa começavam a veicular um termo novo:
contracultura. (...) Começava a se delinear,
assim, os contornos de um movimento social de
caráter fortemente libertário, com enorme apelo
junto a uma juventude de camadas médias
urbanas e com uma prática e um ideário que
colocavam em xeque, frontalmente, alguns
valores centrais da cultura ocidental,
especialmente certos aspectos essenciais da
75
racionalidade veiculada e privilegiada por esta
mesma cultura. (PEREIRA, 1985, p. 5-6)
O termo “contracultura” surgiu na imprensa norte-americana, nos anos
60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que
floresceram, não nos Estados Unidos, como em vários outros países,
especialmente na Europa e também na América Latina, embora com menor
intensidade e repercussão. Na verdade, é um termo adequado porque uma das
características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes
maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das
sociedades ocidentais. Entende-se a contracultura como, primeiro, um
fenômeno histórico dos anos 60 e, segundo, como uma postura contrária à
convencional. Diante disso, se entendemos a cultura como um produto cujo
modelo é a Arte, a contracultura é a cultura marginal.
Reunindo trabalhos de Augusto e Haroldo de Campos, Rogério Duarte,
Décio Pignatari, Duda Machado, Hélio Oiticica, Jorge Salomão, Stephen Berg,
Luiz Otávio Pimentel, Chacal, Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Ivan Cardoso,
Lygia Clark, Caetano Veloso, do próprio Torquato Neto e Waly Salomão, a
Navilouca é esta embarcação de portas abertas às manifestações e trocas
artísticas e marginais de diversas áreas destes “loucos e desgarrados” da
sociedade brasileira em plena ditadura militar. O projeto da revista é uma
reunião de fragmentos e contraposições de discursos de diferentes linguagens
artísticas:
Navilouca recolhe também a intelectualidade
desgarrada, louca, cuja marginalidade é vivida e
defendida por conceitos produzidos pela ordem
institucional; seus viajantes estão, portanto, fora
76
mas ao mesmo tempo dentro do sistema.
(HOLLANDA, 1981, p. 73)
Inseridos num contexto hostil e completamente desfavorável à arte
engajada, os tripulantes da Navilouca produzem o que chamam de arte
marginal e de resistência. Em um texto duro, que reúne todos no mesmo barco.
A esse respeito, Iumma Maria Simon e Vinícius Dantas afirmam:
...nos poemas dessacralizados compõe-se um
painel caótico e banal do cotidiano que é a
imagem da dessacralização geral de um mundo
igualmente caótico e absurdo. que é difícil
discernir no vale-tudo dessa sensibilidade se os
poemas são menos banais que o mundo que os
inspirou. (SIMON e DANTAS, 1990, p. 48)
Várias viagens, um barco só: textos literários de poetas, contribuições de
artistas plásticos, músicos e cineastas, um intercâmbio de linguagens típico da
intervenção cultural do momento e, mais ainda, desse grupo e de seu trabalho
coletivo e múltiplo. Todos unidos pela diferença, o único traço em comum era a
radicalidade na busca por um caminho próprio, recusando as formas
acadêmicas e institucionais da racionalidade, dos modelos prontos – “antitudo”.
Sinônimo de produção literária independente e contraposta a interesses ou
tendências dominantes, essa produção corresponde tanto ao desejo de
transformações das esquerdas, quanto à busca de espaços alternativos à
grande imprensa pelos jornalistas da época.
Mas ser uma revista “multimídia” como a Navilouca o era apenas
juntar trabalhos de artistas de áreas diferentes: o maior diferencial era a
maneira como a revista fez isso. Os trabalhos não se resumiam em apenas
relatar com fotos e textos explicativos (cogitar isso é pensar um produto de
77
uma época bem distinta dentro do conceito de revista cultural que temos hoje,
nem tão ousadas comparadas com o projeto editorial da Navilouca). Isso seria
impensável para esses artistas. Ao folhear a revista, tem-se a impressão de
que o grupo via a revista como um espaço para a arte em estado bruto,
espécie de galeria em forma de papel, preenchida com trabalhos inéditos,
pensados especialmente para a revista; propostas artísticas diferentes, com
linguagens também diferentes, mas com unidade de pensamento num discurso
articulado.
A preocupação com uma linguagem “do nosso tempo”, já presente no
concretismo, passa a ser relacionada com uma opção existencial a partir do
tropicalismo. Torna-se cada vez mais forte entre os artistas a relação entre a
arte e a vida. O fragmento, o mundo espedaçado e a descontinuidade marcam
de vez a produção cultural e a experiência de vida dos tropicalistas e dos que
nos anos imediatamente seguintes aprofundam essa tendência no chamado
pós-tropicalismo.
O s-tropicalismo foi um momento marcado pela ambigüidade: de um
lado, a marginalidade urbana, a liberação erótica, a experiência das drogas, a
atitude festiva e, de outro, uma atenção a certos referenciais da cultura
consagrada, como o rigor técnico, a preocupação com a competência na
produção das obras, a valorização do bom acabamento. Assim também seria
Navilouca:
Navilouca evidencia a atitude básica pós-
tropicalista de mexer, brincar e introduzir
elementos de resistências e desorganização nos
canais legitimados do sistema. Assim, o fator
técnica é preservado, mas, simultaneamente
subvertido. A diagramação, a manipulação de
fotos, os tipos gráficos, a cor, o papel, etc. são
78
manipulados pelas técnicas mais modernas do
design, contra a normalização da leitura operada
pelas revistas conhecidas no circuito. (…) a
marginalidade é vivida e definida por conceitos
produzidos pela ordem institucional, seus
viajantes estão, portanto, fora, mas ao mesmo
tempo, dentro do sistema. (Ana Cristina Cesar)
O que tinham em comum, o que queriam era defender as diferenças, a
arte livre, livre também da polaridade que dominava o ambiente artístico, no
qual era colocada de um lado, a arte social”, para o “povo”, ligada às “raízes”
e, de outro, a arte de pouquíssimo rigor formal dos artistas desbundados que
“ficavam na queimação de fumo o dia inteiro”, como declarou Torquato Neto
nas correspondências com Hélio Oiticica. O rigor formal e alto nível de
acabamento da revista representam uma oposição à opção artesanal da
produção de mimeógrafo daquele momento, e parte da poesia marginal que
seguiria adiante, assim como a valorização das linguagens industriais, dos
aspectos gráficos e visuais significam um apreço pela informação teórica e
cultural do concretismo. Daí entende-se a presença dos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos, representantes da vanguarda concretista, referência
formal que muito influenciava até mesmo usado como padrão estético o
trabalho de grande parte daqueles artistas, como Hélio, Lígia, Torquato. Porém,
a Stultífera Navis brasileira dos anos 70 não pretendia ser uma publicação em
favor da continuidade da poesia concreta, assim como não se resumia num
agrupamento de textos tropicalistas. Primeiro, a intenção era o diálogo entre as
diferentes manifestações, linguagens, experimentalismos da arte dos anos 60
que sinalizavam a virada para os anos 70. Funde-se assim a arte aos novos
comportamentos e à tecnologia.
Segundo Maria Lucia de Barros Camargo:
79
Ao longo do século XX, as revistas literárias e
culturais atuaram como forma de organização do
campo literário, constituindo-se no veículo
privilegiado da produção poética e,
especialmente, das idéias e princípios estéticos
de grupos que se articulavam, freqüentemente,
em torno da própria revista. (CAMARGO, 2001,
p. 29)
Sobretudo no caso de Torquato Neto, que jamais teve em vida algum
livro publicado com conteúdo que representasse sua obra poética, mesmo
porque esta nunca foi sua aparente preocupação, a Navilouca representou o
único projeto gráfico e poético de sua autoria, e mesmo assim, publicada quase
dois anos depois de seu suicídio.
Observando e analisando os elementos estéticos da produção desse
período, como fez Heloisa Buarque de Holanda (1981), compreende-se que a
preocupação com a qualidade técnica das obras e a valorização da teoria
casam-se com a sedução pela marginalidade urbana, pela liberação erótica, ou
com a experiência das drogas e a festa dionisíaca. Sobretudo a fragmentação
dos textos marca a produção cultural e a experiência de vida da geração de
artistas que viveram a revolução musical do tropicalismo, permanecendo
resistente em tempos de AI-5.
A loucura e a tensão vida/morte perpassam os textos e as imagens da
revista. Na capa, a foto de Torquato Neto no sanatório de Meduna, em
Teresina, Piauí, anuncia os temas que estão presentes nos ensaios, nas
imagens e nos poemas. Continua assim a participação de Torquato Neto, não
como comandante, mas como mais um “aqualouco” embarcando na
Navilouca apresenta uma obra cuja estética híbrida revela uma poesia
enlaçada pelo concretismo e fotografias. O projeto estético de toda revista é
80
também o projeto estético de Torquato Neto enquanto poeta contribuidor:
“resultado de um trabalho de invenção que contempla um campo
intersemiótico, realizando o encontro entre diferentes códigos como o cinema,
a poesia e as artes plásticas”, como define Paulo Andrade (2002, p. 168).
Os trabalhos de cada artista tinham a sua autoria sinalizada na página
inicial de cada seqüência. Os trabalhos de Torquato Neto são sinalizados pela
seguinte imagem:
Figura 1
Composta pela própria fotografia do poeta, uma circunferência e linhas
retas cruzando-se, a estrutura vai se repetir nas próximas duas páginas, desta
vez também apresentando texto. Aparentemente tranqüilo, Torquato Neto fuma
um cigarro. Sua face encontra-se no centro da circunferência – o próximo
81
“aqualouco” a ser carregado para dentro da Navilouca como se o indicasse
ao alvo: é a vez da obra de Torquato Neto estar na mira do leitor.
Figura 2
Obviamente, percebemos o espelhamento no trabalho através da
disposição da circunferência e das linhas retas as mesmas presentes na
figura 1. Na figura 2, no trabalho artístico em si, uma mistura de texto,
imagem e desenho que vai além de um poema concreto. O espelhamento vem
82
nos trazer a idéia de uma circunstância única, sem saída e sentida em todo
lugar (como retratam as fotos dos poemas), tanto na arte (fig.2) quanto na vida
real (fig. 1). Embora a fotografia seja também uma manifestação artística,
assim usada no trabalho acima, ela é o veículo de representação do real. A
arte e a vida casam-se e diluem-se em e para Torquato Neto.
No campo do significado, constatamos que o que está na mira dos alvos
inscritos na figura 2 é a violência urbana. A primeira parte traz a mesma
imagem quatro vezes exposta lado a lado e acima e abaixo –, repetição esta
que traduz a expressão “aqui ali” registrada na linha vertical que cruza todo o
poema. O mesmo corpo estendido no chão, em meio a sangue escorrido e
latas vazias, está por toda parte assim como a violência que assola a
sociedade moderna. Não é apenas o corpo da imagem a vítima desta violência,
mas também o leitor que mira e é mira, como o próprio Torquato que vive
“tranquilamente todas as horas do fim” na figura 1. Está para que todos
venham e vejam idéia sugerida pela inscrição “ver ou virna linha horizontal
cruzando o poema.
A segunda parte do poema traz a imagem de uma senhora sorridente
que ocupa todo o espaço, não se repetindo, porém, sob as mesmas linhas
cruzadas e os mesmos escritos “aqui ali / ver ou vir”. Embora a imagem
traduza o contrário do retrato exposto na primeira parte do poema – um homem
assassinado –, não está livre da condição de alvo. É possível, então, constatar
que todas as realidades estão na mira não só do leitor, mas da sociedade e do
sistema que Torquato denuncia e ao qual tenta resistir. Ao colocar-se também
na mira do sistema, o poeta reafirma a sua posição de resistente, reforçando
ainda mais o motivo pelo qual é alvo.
83
Além dessas considerações, vale observar a temática da morte (outras
vezes usada) presente nesse texto por meio da imagem de uma cruz que se
sustenta pelas retas cruzadas. Sabemos que a cruz é o sinal de morte
constatada. Sendo assim, as personagens atuantes nos poemas (fig. 1 e fig. 2)
não somente são alvos do sistema, mas são vítimas fatais, por resistir ou não a
ele. Os poemas servem como jazigos que guardam a sociedade e nos
aguardam, visto que a morte é, ao contrário de saída, mais uma prisão de
todos nós. Não os artistas aqualoucos” são tripulantes da Stultífera Navis;
com esses poemas, todos nós estamos nessa embarcação como objetos de
um projeto estético no qual compomos e também vivenciamos as
peculiaridades da sua linguagem poética.
O próximo trabalho é um típico poema concreto e ainda metalingüístico.
Com letras grandes, unidas e envolvidas por um retângulo, o conteúdo das
palavras sugere a apresentação inicial com a leitura linear das primeiras
palavras, mas o processo se interrompe antes do fim. A partir do que podemos
chamar de quarto verso, as letras deixam de compor sentido, enquanto
formadoras de palavra, e este deve se compor pela junção delas, como se o
quebra-cabeça lingüístico e poético não estivesse terminado por Torquato Neto
e dependesse de nossa “manha” para terminá-lo. O poeta “mãe das artes” se
configura no leitor, o responsável por decifrar o sentido iniciado no poema,
tornando-se assim também poeta. A arte ocupa esse papel de criação
obrigatoriamente nascida de óticas posicionadas em todo e qualquer ângulo.
84
Figura 3
O “poeta mãe das artes” é aquele que reúne todas as artes em um
trabalho e o chama de poesia. No anterior (fig. 2), Torquato Neto realiza
exatamente esta sentença defendida em seu poema seguinte (fig. 3). O poeta
(re)cria todas as artes pelo viés da poesia; usa recursos concretos, imagéticos,
plásticos.
Os trabalhos de Torquato Neto, publicados em Navilouca, produzem
uma espécie de microcosmo em relação ao projeto estético de toda a revista
macrocosmo. Talvez por ser o idealizador da revista, Torquato Neto cria
poemas com o mesmo cunho e estética da Navilouca: todas as artes
acontecendo ao mesmo tempo e no mesmo espaço e simplificadas pela
poesia.
85
Apesar da inegável assimilação dos projetos da modernidade, os
embarcados pela Navilouca não estão interessados em reeditar qualquer
experiência anterior. Torquato Neto na Navilouca (e fora dela também) não
deseja repetir a poesia concreta, mas apontar a necessidade de construções
artísticas abertas numa contínua experimentação, abordando todos os níveis e
códigos. Sobre Torquato Neto e os outros “aqualoucos”, Paulo Andrade diz:
...como um motor de luta contra as formas
estanques e convencionais, defendem, em
síntese, uma abertura polêmica a favor de um
“novo”, não no sentido único de ruptura verbal
das neovanguardas formalistas de 50/60, mas
como experimentalismo que traz em sua base as
marcas da subversão do estar nu mundo.
(ANDRADE, 2002, p. 170)
Não se quer o novo, puramente; quer-se o novo do que já existe,
experimentar e mostrar outras possibilidades a partir do mesmo. É a ótica
marginal que e escancara o que o resto vive por esconder; o conserto pelo
que se quebrou. O projeto estético se diz e se faz na transformação radical
no campo dos conceitos e valores existentes e até então solidificados. Mas não
apenas isso, como afirmou Hélio Oiticica: modificações no comportamento-
contexto, que deglute e dissolve a convi-conivência”. Oiticica ainda argumenta
que a arte experimental tende a estagnar-se, a tornar-se ‘oficial’ transformando-
se em algo reacionário pelos diluidores. Propõe, portanto, a crítica permanente.
Repetindo o que foi dito no início deste texto, não é à toa que a Navilouca, ao
contrário das publicações periódicas, se fez em volume único não se
tornando padrão, nem se estabelecendo como tendência artística.
Assim, como é difícil uma exatidão de definição, uma denominação para
o que foi a Navilouca, é igualmente penoso estabelecer simploriamente os
86
propósitos de Torquato Neto como poeta, como compositor, como jornalista,
como cidadão e como homem. Como arte e vida, nos dois casos – Navilouca e
Torquato tomam os limites uma da outra, o projeto inicial é de sobrevivência,
a estética é de uma belíssima e propícia confusão. Como considera o poeta
Chacal, “foi um começo, mas acho que foi o canto do cisne das vanguardas” a
Navilouca e Torquato Neto.
Pensar a revista Navilouca e os trabalhos do poeta marginal Torquato
Neto publicados nela é chegar a um único projeto estético: conceber outras
linguagens e chamar a esta reunião de poesia. O “Almanaque do Aqualoucos”,
como também é chamada, é uma reunião de trabalhos artísticos experimentais
que envolvem outras artes, não a poesia, mesmo assim, é considerada uma
publicação literária.
Os trabalhos de Torquato Neto na revista não se compõem distante
disto. São poemas que estão além do concretismo dos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos. São poemas concretos, imagéticos e plásticos, assim
como todo o conteúdo da Navilouca – que traz para o restante de suas
páginas trabalhos de fotografia, artes plásticas, cinema, música, teatro,
literatura. Todos tomam a definição de texto, mas texto literário.
Certa vez Torquato Neto escreveu em sua coluna jornalística, a Geléia
Geral”: “A primeira providência continua a ser a mesma de sempre: conquistar
espaço, tomar espaço, ocupar espaço”. Eram os anos 70. O pensamento de
Torquato se faz atual. Mais de trinta anos depois parece que não aprendemos
a lição direito. Mas Navilouca e as obras de Torquato Neto estão para
serem lembradas e, mais ainda, servirem de inspiração para novas revistas ou
qualquer publicação ou produto cultural que seja, pela ousadia, pela pertinência
87
diante dos desafios de seu tempo, pela qualidade de seus trabalhos artísticos
e, sobretudo, pelo projeto estético autêntico que não nega o que cabe dentro
da arte já manifestada e que manifesta sempre.
88
CAPÍTULO III
Utopia, Distopia e Heterotopia na poética de Torquato Neto
89
Cajuína
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina
(Caetano Veloso)
Entre 1978 e 1979, Caetano Veloso encontrou-se com seu Heli, pai de
Torquato Neto, ao visitar Teresina pela primeira vez. Após uma conversa sobre
o amigo também tropicalista e sua morte em 1972, Caetano caiu num choro
sentido. Instantes depois, seu Heli lhe entregou uma pequena flor e lhe
ofereceu um cálice de cajuína, bebida típica do Piauí, um extrato cristalino do
caju. No mesmo dia, em viagem de volta, Caetano compôs “Cajuína”, letra
registrada como epígrafe deste capítulo e que “é também uma canção sobre o
dom e sobre a falta (...) é sobre a falta de resposta para a pergunta
fundamental”
7
. Na letra em homenagem ao amigo Torquato, Caetano recupera
no primeiro verso uma questão corrente nos poemas do amigo morto
“existirmos, a que será que se destina?”. Essa questão, pode-se dizer, faz
parte do sujeito da canção de Caetano assim como veste a voz dos poemas de
Torquato Neto. Não é uma questão para ser respondida, mas que está aí, tanto
para Caetano quanto para Torquato, para caracterizar o movimento circular na
canção (ao atualizar-se em cada repetição três vezes) e para registrar a
constante reflexão em torno da existência e da postura humana no mundo
presente nos diversos versos do “anjo torto”.
7
WISNIK, José Miguel. Cajuína Transcendental in Sem Receita. São Paulo: Publifolha, 2004.
90
Na canção de Caetano Veloso, a figura de Torquato Neto é,
implicitamente, o centro e também o caminho para uma possível resposta à
questão existencial, já que foi composta em sua homenagem. Na obra de
Torquato Neto, as citações existenciais e as suas retomadas, assim como
sugere a canção acima, são estruturadas em intervalos. Torquato Neto é o
poeta do intervalo, do trânsito, da passagem. A sua poesia é o espaço físico
construído por uma linguagem em trânsito, incorporando e renovando o lirismo
de suas influências; é o lugar de inscrição e instalação de idéias e imagens. As
produções artísticas e poéticas dos anos 60 e 70 no Brasil tinham esse caráter
arquitetônico e recriaram uma nova roupagem de linguagem lírica.
Torquato Neto, experimentador da contracultura e integrante do grupo
de poetas chamados “marginais”
8
, configura suas idéias e imagens em
poemas, sobretudo, caracterizados por uma linguagem atípica e condizente
com as idéias perseguidas na época. Atuando como um agente cultural e
polemicista, defensor das manifestações artísticas de vanguarda como a
Tropicália
9
, o Cinema Marginal e a Poesia Concreta, e circulando no meio
cultural efervescente da época, ao lado de amigos como os poetas Décio
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Ivan Cardoso e o artista
8
Denominação esta ainda nebulosa e questionada, visto que não há uma preocupação clara em determinar
um modelo ou um conceito para a produção poética dos poetas oriundos desta época.
9
Tropicalismo ou Movimento tropicalista foi um movimento cultural brasileiro que surgiu sob a
influência das correntes artísticas de vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira (como o pop-rock
e o concretismo); mesclou manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais.
Tinha também objetivos sociais e políticos, mas principalmente comportamentais, que encontraram eco
em boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da década de 1960. O movimento manifestou-se
principalmente na música (cujos maiores representantes foram Caetano Veloso, Torquato Neto, Gilberto
Gil, Os Mutantes e Tom Zé); manifestações artísticas diversas, como as artes plásticas (destaque para a
figura de Hélio Oiticica), o cinema (o movimento sofreu influências e influenciou o Cinema novo de
Gláuber Rocha) e o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anárquicas de José Celso Martinez Corrêa). Um
dos maiores exemplos do movimento tropicalista foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada
exatamente de "Tropicália".
91
plástico Hélio Oiticica, Torquato Neto passou a ser visto, nessa época, como
um dos participantes do Tropicalismo. Em suas palavras,
Assumir completamente tudo que a vida dos
trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem
estética, sem cogitar de cafonice ou mau
gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o
novo universo que ela encerra, ainda
desconhecido. (TORQUATO NETO, Vol. 2,
2004, p. 208 )
Torquato deixa claro o fundamento dos papéis que assume e a crença
às propostas do posicionamento que incorpora em meio à realidade social
brasileira na década de 60. Em suma, o que se propôs, o que se perseguiu e o
que se defendeu pelos jovens ativistas, incluindo os tropicalistas, nos anos 60
em oposição principalmente ao AI-5
10
, foi a tentativa de impor alternativas
utópicas para melhor viver numa sociedade mais justa. Teixeira Coelho
defende:
É a imaginação utópica, ponto de contato
entre a vida e o sonho, sem o qual o sonho é
uma droga narcotizante como outra qualquer
e a vida, uma sequência de banalidades
insípidas. (COELHO, 1981, p. 8)
Entendida desse modo, a imaginação utópica é a base mais remota
sobre a qual se assenta o ideal da transformação social. Imaginação que
alimenta generosos valores imateriais, sentimentos profundos que levam o
militante social e político - o verdadeiro, o legítimo, não o falso, o oportunista - a
empenhar-se pela justiça social, pelo fim das desigualdades, pela cultura, pela
10
O Ato Institucional Número Cinco foi o quinto de uma série de decretos emitidos pelo regime militar
brasileiro nos anos seguintes ao Golpe militar de 1964 no Brasil. instrumento de poder que deu ao regime
poderes absolutos (em destaque a Censura e o fim da liberdade de expressão atingindo diretamente os
artistas), e cuja primeira conseqüência foi o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano.
92
beleza, pela democracia, enfim, pela construção de um novo mundo, generoso
e solidário, sem que, para tanto, espere qualquer tipo de vantagem pessoal.
Torquato Neto também expressa seu desejo de ver na própria pátria o
espaço em que encontrará esses aspectos condizentes com um mundo
embarcado em justiça:
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro.
(“Geléia Geral”, p. 126)
Recuperando Oswald de Andrade, o poeta deposita e na terra
brasileira a esperança e a imagem de um país ideal. Conseqüentemente,
retoma a “Canção do Exílio”, do poeta Gonçalves Dias, o primeiro a propor a
saudade da pátria utópica e inexistente. Torquato Neto utiliza o espaço da
poesia para defender a sua utopia que o princípio de todo o progresso e o
ensaio preparatório para um futuro melhor", segundo Anatole France. Porém, a
palavra utopia, que se menciona tanto nos dias de hoje, foi usada originalmente
pelo humanista inglês Thomas More (1478-1535), em 1516, para designar a
ilha que imaginou, onde vigoraria um sistema sociopolítico ideal, com leis justas
e instituições verdadeiramente voltadas para o bem estar social. Foi uma
latinização do prefixo grego “ou” (negação) somado a “topos” (lugar), também
93
do grego, ou seja, o não lugar, o lugar que não existe a não ser na imaginação.
Tradicionalmente utopia foi isso: idéia generosa, no entanto sem exatidão, por
ser mera fantasia.
Em sua acepção mais contemporânea, no entanto, a palavra utopia vem
sendo usada num sentido não tão utópico, ou seja, menos ligado às fantasias
do que a sonhos potencialmente concretos, que pode se executar mediante a
ação do homem.
É a força que faz o ser humano não se
conformar com o que realmente existe,
opondo-lhe um projeto alternativo. (COELHO,
1981, p. 10)
Isso caracteriza a humanidade de que somos portadores e impulsiona,
ainda segundo Teixeira Coelho, “as invenções, as descobertas, e também as
revoluções”. Em outras palavras: a imaginação utópica é factível porque está
de acordo com o real, mas só se viabiliza com a ação humana.
A utopia promove a tomada de consciência de que existe um abismo
entre o País das Maravilhas e a terra dos homens, e, se ela se revela incapaz
de ligar com uma ponte este mundo e “o outro mundo”, ao menos ela provoca a
idéia de um desacordo entre o fato de viver e a possibilidade de viver melhor: a
fecundidade da utopia e seus limites devem-se à sua característica de ser a
tomada de consciência de um problema e a tomada de consciência de um
desejo.
"Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, disse Vladimir
Mayakovsky, poeta russo, e não disse à toa. Como toda revolução não deixa
de ser um culto à utopia, é nesse caminho que Torquato Neto transita sua
poética, revolucionando a forma a linguagem para transformar a realidade.
94
Torna o poema, de fato, o espaço de explicitação de toda sua subjetividade, o
lugar de mostrar e concretizar o que habita a sua mente, o veículo de
exposição de suas crenças. Essa construção poética tem a utopia reforçada
pela linguagem, exclusivamente, o fruto da realidade de Torquato Neto, que
defende:
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com
versos. É o risco, é estar sempre a perigo
sem medo, é inventar o perigo e estar sempre
recriando dificuldades pelo menos maiores, é
destruir a linguagem e explodir com ela (...).
Quem não se arrisca não pode berrar.
(TORQUATO NETO, Vol. 2, 2004, p. 227)
O poeta se faz além do verso, não é apenas aquele que escreve
poemas. Mas sim, o que o faz destruindo linguagens e criando novas. O berro,
a expressão e o pensamento tornam-se tocantes porque nos chegam por
uma linguagem igualmente tocante.
Notamos a utopia na composição “Minha Senhora”, de Torquato Neto,
gravada por Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil em 1967:
Minha senhora
Onde é que você mora
Em que parte desse mundo
Em que cidade escondida
Dizei-me que sem demora
Lá também quero morar
Onde fica essa morada
95
Em que reino, qual parada
Dizei-me por qual estrada
É que eu devo caminhar
Minha senhora
Onde é que você mora
Venho da beira da praia
Quantas prendas que eu lhe trago
Pulseira, sandália, e saia
Sem saber como entregar
Quero chegar sem demora
Nessa cidade encantada
Dizei-me logo senhora
Que essa chegança me agrada
(p. 113)
O lugar para onde o eu lírico deseja mudar-se é encantado, reino como
os reinos dos contos de fada, explícito na segunda e na quarta estrofe da
canção. Porém, ainda desconhecido. É o espaço em que a sua senhora se
encontra, onde se configura um lar verdadeiro para este sujeito vindo da beira
do mar chegando de viagem, suponha-se. Notamos o uso de certas
expressões próximas ao coloquialismo e que se chocam com elementos da
forma clássica recuperados “Em que reino, qual parada (...) Dizei-me logo
96
senhora / Que essa chegança me agrada”. É uma linguagem “malandra” ainda
que poética, característica desse poeta.
A utopia na poesia de Torquato Neto faz-se no desejo do eu lírico em
encontrar um espaço em que as suas angústias possam ter fim. Angústias
estas que correspondem à ânsia de uma sociedade mais justa, principalmente.
Torquato Neto é um espírito especulativo e sua poética é reflexo utópico por
configurar-se num espaço grávido de vida e grávido de morte. O poeta vive as
duas faces – morte e vida – na poesia e na biografia.
Mas toda utopia na poética de Torquato Neto pode unir-se também a
uma espécie de conscientização, para não dizer desilusão da realidade. Os
desejos e idéias projetadas se mantêm numa dimensão estática, isolada do
“movimento real” e, assim, transformam-se em mera ideologia, seja em forma
de crença para diminuir o sofrimento dos dominados, seja de alívio de
consciência aos dominadores, que o ideal é para o futuro e está dissociado
do movimento social real presente. Enfim, a utopia se faz no poema e não o
desabita para habitar a realidade. Instaura-se, portanto, uma “anti-utopia” ou
um desejo rasteiro, limitado, que não consegue ultrapassar as conveniências
centradas no “eu”, alheias a paradigmas coletivos e totalizantes. Sem de
alguma forma alterar essa subjetividade subserviente e individualista, torna-se
difícil visualizar as transformações políticas e sócio-econômicas que o mundo
atual demanda, assim como caminhar no sentido de sua consecução. Vejamos
o poema “Fixação de momento”, escrito em 1962:
a pequena vila vai ficando longe.
o rio sinuoso, águas barrentas e provavelmente frias
97
vai circundando tudo.
os fios do telégrafo em louca disparada
riem de quem fica e de quem passa,
verde por todos os lados.
pelos três lados, verde, verde, verde:
este trem ruma pra minas...
vagão “c” com rostos cansados
ansiosos
e aquele casalzinho em lua-de-mel.
vagão restaurante com garçons de cara dura
e bifes de carne dura...
vacas, bananeiras
pés de cana e de eucalipto
lá embaixo, mangueiras.
eu cansado...
o céu é azul
o sol é refrescante
...penso que o trem se esqueceu
de que minas não há mais...
(p. 44)
Os primeiros versos do poema vão compondo claramente um cenário de
um espaço utópico. A linguagem é carregada de termos que representam a
98
natureza mais pura, isolada dos efeitos catastróficos da metrópole, da
industrialização doutrinada pelo capitalismo. “verde por todos os lados”.
Mas então, ao inserir a figura humana no contexto, eis que a atmosfera vai se
transformando e perdendo toda idealização inicial: o eu rico encontra-se
cansado mesmo assim. E assim continuará, que a viagem não o transporta
para um espaço perfeito e livre dos males da cidade utópico -, pois “minas
não há mais”. O trem é o próprio poema, o espaço para o surgimento de outros
novos espaços utópicos e antiutópicos juntos. Ao mesmo tempo em que as
palavras levam nossos olhos aos espaços do poema, as imagens suscitadas
por elas transportam nossa imaginação a dois espaços opostos: Utopia e
Distopia.
Uma Distopia ou Antiutopia é o pensamento, a filosofia ou o processo
discursivo baseado numa ficção, cujo valor representa a antítese da utópica ou
promove a vivência em uma "utopia negativa" (JACOBY, 2007, p. 31). São
geralmente caracterizadas pelo totalitarismo, autoritarismo bem como por um
opressivo controle da sociedade. Nelas, cai-se as cortinas, e a sociedade
mostra-se corruptível; as normas criadas para o bem comum mostram-se
flexíveis. Assim, a tecnologia é usada como ferramenta de controle, seja do
Estado, de instituições seja de corporações.
O primeiro uso conhecido da palavra “distopia” apareceu num discurso
no Parlamento Britânico por Gregg Webber e John Stuart Mill em 1868. Nesse
discurso, Mill disse: "É, provavelmente, demasiado elogioso chamar-lhes
utópicos; deveriam em vez disso ser chamados dis-tópicos, ou caco-tópicos. O
que é comumente chamado utopia é demasiado bom para ser praticável; mas o
que eles parecem defender é demasiado mau para ser praticável. "O seu
99
conhecimento do grego antigo sugere que Mill se referia a um lugar mau, em
vez de um oposto de utopia. O prefixo grego "dis" ou "dys" significa "mau",
"anormal", "estranho" junta-se à “topos”. Assim, utopia significa "lugar nenhum"
e distopia significa "lugar mau".
A literatura distópica costuma ter, ao menos, alguns dos seguintes
traços: costumam ser contos morais explorando como os nossos dilemas
morais presentes figurariam no futuro; oferecem crítica social e apresentam as
simpatias políticas do autor; exploram a estupidez coletiva; o poder é mantido
por uma elite pela somatização e consequente alívio de certas carências e
privações do indivíduo; discurso pessimista, raramente "flertando" com a
esperança.
No poema “Fixação do momento”, apresentado, o poeta expõe
claramente os dois conceitos Utopia e Distopia configurando espaços que
se contrapõem e se negam, mas se ligam.
Em outra composição podemos identificar esse traço. Vejamos um
fragmento de “Deus vos salve a casa santa”:
Ó deus vos salve esta casa santa
Onde a gente janta com os nossos pais
Ó deus vos salve essa mesa farta
Feijão verdura ternura e paz
(p. 94)
Entendemos esta “casa santa” um lugar utópico, onde a família reune-se
para jantar fartamente e em paz, algo raro na época. As pessoas envolvidas
100
com a arte e inseridas em atividades contrárias à ditadura, no fim, buscavam a
paz perdida em seus lares. O “deus” evocado no trecho não é este Deus
maiúsculo, divino e todo poderoso conhecido; é um deus mais próximo ao
comum, incapaz de dar conta das intempéries vividas na realidade.
Notemos um fragmento de “Daqui pra lá, de lá pra cá”:
mas certo dia deu-se um caso
e ele embarcou num disco
e foi levado pra bem longe
do asterisco em que vivemos
ele partiu e não voltou
e não voltou porque não quis
quero dizer: ficou por lá
já que por lá se é mais feliz
(...)
vietvistavisão
terramarear atenção
fica a morte por medida
fica a vida por prisão
(p. 142)
O lugar ideal e utópico passa a estar fora da Terra, no espaço, longe das
diretrizes aqui presentes. E “já que por se é mais feliz” o homem abduzido
escolhe não voltar; o aqui é a distopia. A última estrofe compõe um bilhete
101
enviado pelo homem no espaço: com uma linguagem reestruturada com
palavras justapostas, Torquato Neto caracteriza o espaço utópico. Deixa ainda
claro que a morte para esta terra na imagem da ida e a escolha em ficar por
lá – é a única saída para uma vida de prisão.
A utopia nasce sob duplo signo da esperança e da ilusão. A esperança
se exprime na recusa de uma realidade que não assegura ao espírito sua
necessidade de plenitude. A utopia é o ponto extremo de uma reivindicação
que pode também se manifestar sob as formas mais realistas de uma mística
ou de uma ideologia. Ela estabelece o direito de o homem ter um porvir, dando
uma forma pensável ao possível e ao impossível. A utopia é uma maneira a
mais abstrata, é verdade de crer no futuro. Nesse sentido, pode-se dizer que
o desaparecimento da utopia acarretaria um estado de coisas estático, no qual
o próprio homem não é mais do que uma coisa. Utopia também é uma ilusão e,
freqüentemente, ilusão consciente. Há um abismo entre o real e o ideal que ela
apresenta: ela propõe um mundo onde as coisas não são o que elas são, ou
seja, a utopia relaciona-se com o seu contrário, a distopia, não em oposição,
mas em implicação.
Todo o desconforto e a impaciência como conteúdo e siginificado da
poesia de Torquato Neto podem caracterizar-se como elemento distópico. A
inicial energia contida na atividade de luta e protesto do poeta configuram a
essencia utópica de seus escritos poéticos. A distopia faz-se presente
juntamente com a utopia no sentido de que o espaço encontrado não é o
desejado e o eu lírico já não se encontra esperançoso, como duas inimigas que
se aliam. Não utopia sem distopia; não distopia sem utopia. Torquato
Neto promove a união da utopia e da distopia não como oposição – o que seria
102
mais natural –, mas como implicação. Percebe-se a utopia no fato de que a ela
não se tem mais crença. Assim, ambas, utopia e distopia, acontecem
simultaneamente na poesia de Torquato Neto porque ele próprio vive essa
dualidade:
quarenta e sete quilates
sessenta e nove tragadas
vinte e sete sonhos, noites
calmas, desperdiçadas.
saiba, ronaldo, acontece
um vez em qualquer vida:
as teias que a gente tece
abrem sempre uma ferida
no canto esquerdo do riso?
No lado torto da gente?
talvez.
o que mais forte preciso
não sei sequer se é urgente.
(p. 41)
No fragmento acima, poema sem título e dedicado ao letrista Ronaldo
Bastos, fica clara a concepção de que as idéias utópicas abrem espaço para a
atuação de uma total desilusão, constituindo assim um universo inteiramente
distópico o jogo de oposições de idéias nos dois primeiros versos e imagem
103
contida em “as teias que a gente tece / abrem sempre uma ferida”. O segundo
verso da terceira estrofe inicia-se maiúscula para destacar este lado torto da
gente” que é atingido por uma realidade distópica sobre a utopia.
A recusa do real se faz em nome da dignidade do homem ultrajada por
uma engrenagem social que corrompe suas faculdades e impede seu completo
desenvolvimento. O mundo real é um mundo ao contrário: a propriedade
privada cria alienação social; a opressão se funda na liberdade dos tiranos; a
representação estabelece a extensão do crime ao qual ela dá direitos. A utopia
é uma recusa da incoerência, mesmo que essa recusa se torne irrealismo. O
utopista, criador de paraísos, retoma por sua própria conta o desígnio de uma
deus, pode-se dizer. Mas ele não é: seu mundo tem apenas uma forma ideal e
a encarnação da idéia o parece poder escapar à dialética da queda. Em
nome da dignidade humana, o homem novo é introduzido em um mecanismo
no qual se colocou bastante óleo, perfeitamente desumanizado, do qual ele é
apenas uma peça.
Torquato Neto caracteriza-se por mais um poeta romântico maldito
porque traz à tona assuntos angustiantes e de forma polêmica. Em “Soneto da
contradição enorme”, Torquato Neto recupera a forma clássica para desaguar a
angústia em ter que esconder constantemente os sentimentos ruins nascidos a
partir da sua relação com o mundo. A utopia faz-se no “querer não sentir”, mas
é o estado distópico em não conseguir que verdadeiramente instaura-se:
Faço força em esconder o sentimento
Do mundo triste e feio que eu vejo.
Tento esconder de todos o desejo
104
Que eu não sinto em viver todo o momento
Que passa. Mas que não passa inteiro.
Deixa comigo o rosto da lembrança
E o fantasma de só desesperança
Que me empurra e de mim me faz obreiro
De sonhos. Faço força em esconder
Do mundo, a dor, a mágoa e a cabeça
Que pensa tão-somente em não viver.
Faço força mas sei que não consigo
E em versos integral eu me derramo
Para depois sofrer. E então, prossigo.
(p. 46)
A utopia e a distopia, presentes na poética de Torquato Neto, tornam-na
um espaço heterogêneo, ou seja, sem uniformidade e conflitante embora
possuindo identidade -, capaz de configurar um lugar de fuga para essas
realidades. Utopia e distopia configuram-se em um espaço intervalar na poética
de Torquato Neto como forma de instaurar a consciência de uma instabilidade
sem solução. Tornam-se juntas, numa linguagem renovada, um centro de
idéias em crise, mas que o poeta não vive completamente porque não pertence
ao lugar de sua origem, ou seja, a poesia é lugar de atuação da crise embora
seja a própria harmonia. Michel Foucault (1991) chama esse lugar de uma
105
espécie de utopia efetivamente promulgada, inteiramente desligada da
realidade mesmo contendo uma localização certa, um endereço fixo e real. São
lugares extremamente diferentes do que refletem do real: é o que ele chama de
Heterotopia, “uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do
espaço em que vivemos”. Foucault descreve efetivamente os espaços
heterotópicos em tópicos que ele chamará de “princípios”. Basicamente, são
lugares reais e sociais em que o indivíduo, vivendo e sobrevivendo às crises
promovidas pela utopia, que lhe é urgente, e a distopia, que lhe é imposta, se
refugia e finalmente experimenta sensação de satisfação, acolhimento,
proteção e harmonia passageiros. São casos de bares, casas noturnas,
parques, hospitais, cemitérios, situações de viagens, etc.
É no espaço em trânsito, nesse universo intervalar entre a utopia e a
distopia na poesia de Torquato Neto que se instaura a heterotopia. O poeta o
faz conscientemente e reconhece esse espaço como espaço “indecidível”, ou
seja, um encontro de caminhos contrários que leva a um lugar provisório o
próprio poema. Torquato Neto faz da sua poética um lugar de refúgio em que
deposita seus ideais e suas frustrações. O poema, neste caso, não configura
um lugar físico de atuação do ser humano enquanto corpo que ocupa espaço,
mas sim de atuação de suas idéias em crise. Torquato Neto produz uma
poética que é espaço heterotópico, pois estabiliza os conflitos entre a utopia e
a distopia de sua poética:
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
106
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim
(p. 165)
O eu lírico compreende a crise entre o que deseja e o que lhe é possível
na escritura do poema, numa linguagem estruturada e ordenada em espelhos,
em versos paralelos. A forma das estrofes se repete e a composição dos
versos é regular. Porém, o conteúdo apresentado é contraditório à forma, numa
espécie de conflito entre significado e significante. Este “eu” é um eu que não
107
cabe na realidade, que se inicia “na medida do impossível”, mas que insiste e
se integra ao meio porque é desprovido de mistérios, “sem grandes segredos
dantes / sem novos secretos dentes”. Retalhado pelo que é utópico, este “eu”
assume apenas uma parte de si e encara os fins de uma vida sem solução. O
próprio poema é o único espaço para a manifestação desse “eu”, a saída ímpar
que o poeta encontra para extravasar.
Além de ser porta-voz do poeta, “Cogito” é um poema essencialmente
metalingüístico. Disserta sobre o ofício de Torquato Neto, coloca em cada
estrofe a sua atividade utópica, distópica e heterotópica, e expõe o
procedimento de criação de sua poética, porque o próprio poema é este
espaço que lhe representa, “pronome”, cuja autoria não se transfere. É simples,
sem segredos ou artifícios lingüísticos que possam comprometer o seu
entendimento. É o seu representante daquele momento no tempo, daquela
realidade, é sua parte, “um pedaço”, nascida do todo. E vive “tranquilamente /
todas as horas do fim” porque se encerra obedecendo à estrutura e à forma
das estrofes anteriores, a mesma maneira previsível com que Torquato Neto se
impõe o fim da vida.
Torquato Neto foi este poeta que carregou um mundo utópico nas
costas, o dividiu com toda distopia vigente e viu na arte poética o único espaço
heterotópico que podia lhe envolver e o acolher para sempre.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
109
Ao darmos atenção à trajetória de Torquato Neto, percebemos seus
vinte e oito anos de existência presentes em sua produção diversificada:
poesia, letras de música, jornal, cinema, entre outros meios de comunicação.
Toda sua obra, publicada postumamente, reúne desde um lirismo sensível e
intimista até tropicalismo, enveredando por uma linguagem cada vez mais
radical. A multiplicidade de sua obra leva o leitor à crença de que são
documentos independentes, quando, na verdade, é uma obra única constituída
de intervalos em que opostos fundamentais se implicam e se complementam.
As conexões entre as produções de Torquato Neto registram o diálogo
permanente entre vida e arte, o qual confirma e se alia aos preceitos de arte
dos anos 60 e 70. Como visto no primeiro capítulo, “O Poeta e o Contexto
Histórico-cultural”, Torquato levou a vida alinhada aos fatos que marcaram a
arte e a sociedade de sua época.
Torquato Neto não produziu artisticamente com intuito de transformação
da sociedade. Sua poética mais se aproxima de uma posição resistente, que
assume um inconformismo diante de uma realidade, segundo ele, inconcebível.
Torquato faz-se de uma linguagem experimental tropicalista no qual realiza
críticas sociopolíticas ao subdesenvolvimento do Brasil e demonstra profunda
descrença nos projetos da modernidade. Ao usar aparatos antropofágicos na
linguagem, Torquato e os tropicalistas rompem com qualquer ideologia vigente
da época e destroem a visão harmônica do mundo como totalidade. A partir de
uma visão fragmentária, livre de discursos conservadores, a sociedade passa a
assumir um espaço caracterizado por estilhaços.
“Mesmo com a violenta repressão às ilusões revolucionárias, Torquato
Neto mantém viva a chama da resistência” (ANDRADE, 2002, p. 185).
110
Considerado romântico maldito, Torquato percebe a perda da força de
denúncia de seu grupo e, inevitavelmente, interioriza sua linguagem e passa a
retratar o estilhaçamento do eu e o desencanto de estar no mundo. As
produções do poeta nesse momento tornam-se estreitas e ignoram os limites
entre vida e arte. Acabam por trazer um caráter autodestrutivo que, ao mesmo
tempo, sugerem um estranho desejo de permanecer vivo, com paixão pela
morte e proclamação a vida. Considerando as análises feitas no segundo
capítulo, “A linguagem poética de Torquato Neto”, subdivido em outros cinco
subtítulos, nota-se o quanto a linguagem presente nos poemas de Torquato
Neto estão refletindo a relação do poeta com o mundo. Certos temas são
correntes, como a consciência do trágico, a ruptura com o sistema, o
autoconhecimento e autodestruição, e mostram como a sua vida dilacerada
pode ficar inscrita por meio da radicalidade de seus versos.
Quando Torquato Neto sentiu a impossibilidade de ceder e resistir, deu
cabo da própria vida enquanto para uns o suicídio é reflexo de fraqueza e
fragilidade, para outros é um ato radical de negação. Torquato percebeu na
morte a única saída para perpetuar a sua ideologia e prevalecer-se como mais
um poeta maldito que optou por trilhar a contramão das regras estabelecidas. A
poesia, no entanto, configurou-se como energia vital para Torquato e para
outros artistas da época. O anjo torto fez da linguagem poética o meio para
transpor suas experiências, suas ideologias e suas frustrações e, assim, torná-
la inseparável de sua vida. Torquato Neto é sujeito e objeto de sua poética,
completando-se.
Como apresenta o terceiro capítulo, “Utopia, Distopia e Heterotopia na
poética de Torquato Neto”, a utopia, gênero inaugurado por Thomas More ao
111
usar a palavra para nomear seu paraíso imaginário, passou a designar
qualquer espaço irreal ou ideal, sem que os problemas da vida coletiva e da
organização social fossem evidenciados ou mesmo enfatizados. Inicialmente, é
este caráter que Torquato Neto destina aos seus versos: os situa como espaço
em que imagens ideais sejam moldadas. Porém, por também não conseguir
desvincular o ideal do real, Torquato faz de sua poética utópica, uma poética
igualmente distópica, visto que os dois mundos utópico e distópico
ultrapassam a coexistência oposta e implicam-se. Implicando-se e
completando-se, utopia e distopia juntas dão lugar a um espaço heterotópico
de poesia, ou seja, um lugar composto de extravagâncias e possibilidades
provisórias. Torquato Neto usa o poema como lugar de esgotamento e
transição, de modo que os intervalos presentes na vida do poeta sejam ao
mesmo tempo preenchidos e evidenciados. Na verdade, a heterotopia da
poética de Torquato Neto configura-se como uma poética de reunião utópica e
distópica em eterno estado transitório.
A arte faz-se de passagem ao mesmo tempo em que perpetua idéias e
sentimentos. Com Torquato, a poesia não é diferente: faz-se de refúgio e
espaço físico de constâncias utópicas, distópicas e, conseqüentemente,
heterotópicas. Após a crença no fracasso de todas as “viagens” que não pôde
romper com o real, Torquato Neto atinge sua imortalidade como poeta ao
entregar a própria morte à vida da poesia.
112
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