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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
JOSIANE THETHÊ ANDRADE
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS
ROÇAS
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO - 2010
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JOSIANE THETHÊ ANDRADE
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROÇAS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História Regional
e Local, da Universidade do Estado da
Bahia/UNEB, como requisito parcial para
a obtenção do título de Mestre.
ORIENTADORA: PROFª DRª CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO 2010
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P553 Andrade, Josiane Thethê.
O Tabuleiro das vendas: cotidiano de um povoado marcado
pelas lojas das roças. / Josiane Thethê Andrade - 2010.
126 f.: il
Orientador: Prof. Dra. Carmélia Aparecida da Silva Miranda.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local, 2010.
1. História Oral. 2. Tradição Oral. 3. Vendas. 4. Mutuípe - Bahia I.
Miranda, Carmélia Aparecida da Silva. II. Universidade do Estado da
Bahia, Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 907.2
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga CRB-5/1396.
TERMO DE APROVAÇÃO
O TABULEIRO DAS VENDAS:
COTIDIANO DE UM POVOADO MARCADO PELAS LOJAS DAS ROÇAS
JOSIANE THETHÊ ANDRADE
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Profª Drª. Carmélia Aparecida Silva Miranda (Orientadora)
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
_______________________________________________
Prof. Dr. Gilmário Moreira Brito
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
_______________________________________________
Profª. Drª. Lina Maria Brandão de Aras
Universidade Federal da Bahia - UFBA
_______________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira (Suplente)
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
_______________________________________________
Profª. Drª. Vilma Maria do Nascimento (Suplente)
Universidade Católica do Salvador - UCSAL
SANTO ANTONIO DE JESUS - BA
SETEMBRO - 2010
À memória do meu pai Juvenal Santos
Andrade, vendeiro no Tabuleiro por
mais de 30 anos, fazendo deste ofício
sua vida e da venda o lugar derradeiro
de sua existência.
AGRADECIMENTOS
Escrever sobre o Tabuleiro significou mais do que relatar a história de um
lugar, pois me proporcionou descortinar o cotidiano do homem do campo em suas
múltiplas facetas. Mas para tornar possível uma história do povoado e de suas
vendas foi necessário a colaboração de inúmeras pessoas que, com boa vontade e
solicitude, tornaram esta pesquisa uma realidade, e às quais gostaria de aqui deixar
meus agradecimentos.
Inicialmente, a minha orientadora, professora Carmélia Aparecida Silva
Miranda, por ter me acolhido como orientanda em um momento difícil e, tamm, por
sua paciência em me ouvir e ler meus escritos sempre com desvelo e criteriosidade.
A dois outros professores que ajudaram a dar forma à pesquisa ainda na
graduação e na pós-graduação. Primeiro, ao professor Rogério de Souza que, na
graduação, com suas indicações e conselhos contribuiu de sobremaneira para a
concretização desse trabalho, fazendo com que ele deixasse de ser um sonho.
Segundo, à professora Edinélia Maria Souza Oliveira que, durante o curso de
especialização, abriu novos horizontes para a pesquisa propondo outras abordagens
para o tema.
Aos professores Gilmário Moreira e Lina Maria Brandão de Aras que,
durante a qualificação do meu trabalho, me indicaram possibilidades e fizeram
sugestões prestimosas para o crescimento qualitativo desta pesquisa.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em
História Regional e Local, da Universidade do Estado da Bahia, Campus V, em
especial ao professor Charles D‘Almeida Santana, a quem devo o incentivo para
enveredar pelo estudo do cotidiano do homem do campo.
Àqueles que tecem/teceram a história que aqui narro: Pedro Dudu (Pedro
Andrade); José Gajilo (José Gonçalves); Carmerino Thethê (in memoriam); Neide
(Aurineide Thethê); Caboclinha (Laura de Jesus Andrade - in memoriam); Antonio
Coração (Antonio de Jesus); Maninho (Manoel Amado); Dona Pomba (Maria Nunes
dos Santos); Hélio Nunes dos Santos; Madalena P. de Andrade e Domingos S. de
Andrade. Todas essas pessoas que, com boa vontade, ao me ―emprestaremsuas
lembranças, deram vida e pulsação ao trabalho.
A minha família que direta ou indiretamente contribuiu para minha
formação. Em especial, a minha querida mãe, Aurineide Thethê, e a minha irmã,
Joseneide Thethê, que me incentivaram e não me deixaram desanimar.
A Hildete Leal, pela revisão criteriosa do texto e a indicação de caminhos
para torná-lo leve e prazeroso à leitura.
Aos meus amigos e colegas de profissão, Derneval Ferreira, Luciene
Rocha e Leninha, pelas leituras e sugestões que enriqueceram o texto, além do
apoio em momentos difíceis na escrita da dissertação.
A Simone Figueiredo e Fabiane da Silva, pela ajuda e troca de
experiências durante o mestrado, com sugestões de textos e ideias que contribuíram
no desenvolvimento da dissertação.
Aos meus amigos e colegas de mestrado: Margarete Nunes, Cristiane
Lima, Caroline Lima, Lielva, Rejane, Rosângela, Daiane, Taiane, Regina,
Wanderson, Kleberson, Fatinha, Leila Carol, Soane Cristino, Camila, Oscar, entre
outros que não cito.
A minhas amigas, Aline Miranda e Anna Carolina Reis Costa de Lima,
pelas leituras de alguns dos meus textos e pelas críticas sempre bem vindas.
A Catia Matias pela ajuda no abstratc e por sua solicitude em ajudar-me.
E, por fim, mas não menos importante, toda minha gratidão a Deus que
me deu força nas horas difíceis, não durante a pesquisa, mas ao longo de minha
vida.
Muito obrigada.
É preciso dizer então como habitamos nosso
espaço vital de acordo com todas as
dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia
a dia, num "canto do mundo‖.
Bachelard. A poética dos espaços, p. 26.
RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo sobre as relações econômicas, sociais e
culturais desenvolvidas pela população local e fregueses no espaço das vendas
(estabelecimentos comerciais) do povoado do Tabuleiro, que está localizado no
município de Mutuípe - BA. Nos anos de 1960 a 2000 as vendas exerceram uma
grande influência sobre a vida cotidiana dos indivíduos que conviviam nessas
espacialidades, sobrepondo suas funções essencialmente comerciais para assumir
múltiplos papéis, dentre eles, destaca-se a função sociabilizadora das vendas que
se tornaram um verdadeiro observatório popular‖. Contudo, essas casas comercias
e, consequentemente, o povoado sofreram, ao longo do tempo, uma série de
mudanças que acabaram resultando na decadência das vendas e influíram na
dinâmica cotidiana do Tabuleiro ao gerar rupturas e permanências em costumes e
tradições, como por exemplo as que ocorreram nos festejos do brinquedo de roda e
da burrinha. No bojo dessas transformações vivenciadas no povoado podem ser
citadas: a introdução de elementos da modernização; as migrações; as reformas
infraestruturais; a ressignificação de antigas tradições, entre outras. Para a
realização da pesquisa foram utilizadas, sobretudo, narrativas de moradores locais,
que, por meio das memórias expressas pela oralidade, abriram perspectivas
variadas não para reconstruir uma história do povoado e de suas vendas, como
também para refletir sobre o processo de ressignificação da memória em diferentes
situações e temporalidades.
Palavras-chave: vendas; cotidiano; memória; cultura; sociabilidade; modernização.
ABSTRACT
This work presents a study about the economic, social and cultural relations,
developed by the local population and customers in the ―vendas‖ of the village of
Tabuleiro, located in the municipality of Mutuípe, State of Bahia. From 1960 to 2000,
the vendas‖ had a great influence on daily life of the people who lived in Tabuleiro,
leaving of being just a commercial establishment to assume many functions, among
them, become a true ―popular observatory‖. However, these commercial
establishments and, consequently, the village had suffered, throughout the time, a lot
of changes that had in result the decay of the sellings
and these facts influenced in
the Tabuliero‘s daily dynamics, transforming, for example, the customs and traditions
of that place, occurring into celebrations like: the ―brinquedo de roda‖ and ―burrinha‖.
Among the changes experienced by people who lived in the village can be
mentioned: the introduction of modernization elements; the migrations; the
infrastructural reforms; the changes in the old traditions, and others. For the
realization of this research had been used, principally, narratives of local inhabitants,
that through of memories expressed by the orality, had opened varied perspectives
not only to reconstruct a history of the Tabuleiro and its ―vendas‖, as well as to reflect
on the process of memory construction in different situations and temporalities.
Key words: ―vendas‖; quotidian; memory; culture; sociability; modernization.
LISTA DE FOTOGRAFIAS, FIGURAS E TABELAS
FOTOGRAFIA 01: Venda Santa Ana................................................................ 35
FOTOGRAFIA 02: Cantoria‖ na venda do Sr. José Gonçalves....................... 56
FOTOGRAFIA 03: Crianças na Venda............................................................. 66
FOTOGRAFIA 04: O festejo da burrinha na cidade de Mutuípe...................... 84
FOTOGRAFIA 05: Visão panorâmica do povoado do Tabuleiro...................... 104
FOTOGRAFIA 06: O vendeiro Juvenal Santos e sua esposa.......................... 110
FIGURA 01: Vale do peso de cacau assinado pelo vendeiro
Juvenal S. Andrade.......................................................................................... 47
FIGURA 02: Carta com pedido de noivado à Dona Maria Nunes..................... 81
TABELA 01: Evolução da utilização das terras na região do
Vale do Jiquiriçá 1970-1980........................................................................... 95
TABELA 02: Participação das áreas de lavoura na área total dos
estabelecimentos por municípios do Vale do Jiquiriçá 1975 1980................. 95
ABREVIATURAS
COBER Companhia Baiana de Eletrificação Rural
SEBRAE - Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Bahia
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................
14
CAPÍTULO I - O COTIDIANO DAS VENDAS......................................
32
1.1 As lojas das roças..........................................................................
32
1.2 A venda e suas múltiplas funções..................................................
41
1.3 Vendeiros e fregueses - uma relação marcada pela ética rural.....
46
1.4 Lugares de prosa...........................................................................
50
1.5 Venda: um espaço praticado e ressignificado...............................
58
CAPÍTULO II - VIVER NA ROÇA........................................................
68
2.1 O povoado do Tabuleiro ................................................................
68
2.2 Quando os facões e enxadas dão lugar à diversão.......................
75
CAPÍTULO III - O TEMPO E O VENTO: PERMANÊNCIAS E
MUDANÇAS NA VIDA COTIDIANA DO TABULEIRO........................
91
3.1 Ressonâncias, repercussões sentimentais e recordações do
passado................................................................................................
91
3.2 A decadência das vendas .............................................................
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................
1115
FONTES .............................................................................................
119
REFERÊNCIAS ..................................................................................
1122
14
INTRODUÇÃO
O povoado do Tabuleiro
1
, localizado no município de Mutuípe, estado da
Bahia, é o objeto de estudo desta pesquisa que, mais do que preocupada em
reconstituir sua origem e formação, busca analisar como uma comunidade rural,
distante cerca de 4 km da sede do município, esteve intrinsecamente ligada às suas
vendas, participando da dinâmica sócioeconômica e cultural do local.
A palavra ―vendas‖ designa as casas comerciais das zonas rural e urbana
de muitas localidades do Brasil. As vendas ainda constituem espaços tradicionais de
bairros de inúmeras cidades. Na Bahia, elas são comumente chamadas de bodegas,
bibocas, mercearias, armazéns, etc. Devido à organização espacial e variedade de
funções, a maior parte delas negocia com secos e molhados e complementa seus
estoques e encargos a partir das necessidades dos lugares em que se instalam. Na
essência, elas carregam o princípio de fornecer ―de tudo um poucoà população.
O Tabuleiro é um povoado formado por pequenos agricultores e
trabalhadores rurais, que vivem em torno da policultura da mandioca, feijão, milho,
coco, banana, guaraná, cravo, entre outros. Todavia, o cultivo do cacau e a criação
de gado, a partir dos anos de 1960, ganharam força, constituindo-se, atualmente, os
grandes responsáveis pelo sustento econômico da população local.
No que diz respeito à estrutura sica, esse povoado, outrora denominado
―Riacho do Mutum
2
, é, atualmente, formado por um arraial onde se encontram
algumas dezenas de casas residenciais, uma escola fundada em 1948 e uma venda
em funcionamento, além de propriedades rurais. Ao longo do tempo o povoado
sofreu algumas mudanças, como o esvaziamento populacional do lugar fruto de
migrações, mudanças na produção agrícola, entre outras. O que destoa do passado
quando as vendas se multiplicavam ao longo da antiga estrada vicinal que corta o
Tabuleiro, que nos dias de sábado era tomada por tropas de mulas carregadas de
mercadorias, animais de passeio e trabalhadores rurais do local e de povoados
vizinhos que se dirigiam às vendas para fazer feira‖, negociar os produtos da roça,
1
O povoado faz parte do município de Mutuípe. O município é localizado na sub-região do Vale do
Jiquiriçá, na zona fisiográfica do Recôncavo Sul, tendo uma extensão territorial de 358 Km², com
população de 20.462 habitantes. Cf: Diagnóstico dos Municípios Vale do Jiquiriçá. SEBRAE, março
de 1995.
2
A partir da observação de algumas escrituras de terra dos moradores do povoado, na segunda
metade do século XX, o local onde está situado o povoado do Tabuleiro era denominado Riacho do
Mutum. Cf: Comarca de Mutuípe. Escritura de terra do Sr. José Gonçalves, livro nº 24, fls. 112-114.
15
permutar animais e ―jogar conversa fora‖, quase sempre acompanhados de um copo
de cachaça e um cigarro de fumo picado envolvido em fina palha de milho ou papel
de seda.
No Tabuleiro, as vendas assumiam múltiplos papéis, além de fornecer
mercadorias variadas ao consumo dos fregueses, grande parte agregava as funções
de armazém, açougue e casa de jogos. Ao que parece, a sua essência múltipla se
constitui, ao longo do tempo, conforme as necessidades de consumo e lazer da
localidade, somando-se a outros fatores como a distância dos centros urbanos e a
própria opção dos consumidores pelas vendas locais no momento de realizarem as
compras e negociarem a produção agrícola de suas roças.
A preferência dos fregueses descortina outra faceta das vendas que é seu
caráter socializador. Por ser um espaço que promove a interação dos indivíduos, a
função comercial é o início de relações que, aos poucos, pela frequência e
intimidade, proporciona o estreitamento dos laços de amizade e solidariedade dos
seus frequentadores.
Segundo Sidney Chaulhoub (1986), a venda é ―um reduto de lazer
popular‖, pois congrega as pessoas em torno do lazer, da diversão, mas, tamm,
abre margem a relações diversas de convivência, expondo conflitos e tensões da
vida social. As vendas, desse modo, têm um significado importante na vida cotidiana
do Tabuleiro. O povoado tornou-se ―famoso‖, justamente, por ter um comércio
influente, que atraía compradores e negociantes de localidades vizinhas. A partir
dessas observações iniciais, a pesquisa se direcionou no sentido de compreender
como se davam as interações cotidianas entre os frequentadores das lojas rurais e
os desdobramentos na vida econômica, cultural e social do povoado.
Esta pesquisa se apoiou nas vivências e experiências de sujeitos de
carne e osso, que sentem dores, alegrias, saudades e sonham. Assim, ao privilegiar
suas lembranças e impressões sobre a vida ao longo de um tempo o incerto
quanto é o da memória, determinar um recorte temporal com precisão calendar
tornou-se inviável. Aquilo que é rememorado não se inscreve num tempo fixo; por
vezes, datas e objetos significativos ajudam o processo de desencadeamento das
lembranças, mas, neste trabalho, por sua natureza, optou-se adotar uma baliza
temporal, a determinar temporalidades monolíticas.
No que tange às memórias dos indivíduos entrevistados sobre os
aspectos históricos do povoado, elas remontam a quase todo o século XX. Porém,
16
pela própria formação histórica do Tabuleiro, pode-se dizer que, a partir da década
de 1960 até os primeiros anos século XXI, o vilarejo sofreu profundas mudanças e,
por seu caráter dinâmico e transformador, a pesquisa privilegiou as memórias
referentes a essa temporalidade. Dentre essas transformações, destacam-se: a
desativação da Estrada de Ferro de Narazé; a decadência do tropismo; a abertura
de uma ―estrada de chão‖ ligando o povoado à sede do município; a chegada da luz
elétrica; e o crescimento da pecuária e da produção cacaueira, entre outras.
Aliás, abro um parêntese aqui para explicar ao leitor alguns aspectos que
envolvem os sujeitos dessa pesquisa e a mim como pesquisadora. A escolha desse
povoado como objeto de pesquisa foi influenciado pelas minhas vivências no lugar,
visto que meu pai, Juvenal dos Santos Andrade (1948-2002), foi vendeiro no
Tabuleiro por mais de 30 anos. A história de vida das pessoas que narro aqui, de
certa forma, tamm é a minha, na medida em que vivenciei o cotidiano desse lugar.
Alguns dos entrevistados são meus parentes, como a Sra. Aurineide Thethê
Andrade, minha mãe, e o Sr. Carmerino Thethê, meu avô, e todos os outros citados
são pessoas com as quais convivi durante grande parte da minha vida. Foi por
compartilhar dessas vivências que decidi fazer um estudo das vendas e do povoado.
Esses lugares de memória, com características próprias, cheiros, sabores,
sensações táteis, remetem a lembranças de minha infância e juventude, das horas
que ficava sentada no balcão da venda, observando meus pais trabalharem. E,
embora, conserve a distância necessária para manter o rigor do ofício, deixo aqui
também minhas próprias experiências e memórias.
Ter vivido nesse povoado, assim como ter frequentado os espaços das
vendas foi o que despertou o desejo de desenvolver uma pesquisa histórica sobre o
Tabuleiro. No início, desde a graduação quando comecei a pesquisar esse tema, me
chamou a atenção o fato de um pequeno povoado possuir, em seu passado, uma
quantidade significativa de vendas que mantinham um comércio dinâmico,
absorvendo quase toda a produção agrícola local. A partir doutras indagações
emergiam à medida em que a pesquisa se desenvolvia, tais como: por que as
pessoas do lugar davam preferência às vendas no momento de comercializar a
produção agrícola de suas roças? Por que raramente iam ao centro urbano da
cidade de Mutuípe negociar? Por que o Tabuleiro era geralmente associado as suas
vendas? O que havia nesse lugar que atraía tanta gente? O que as vendas
representavam na vida dos moradores do lugar? Como elas influíam no cotidiano do
17
povoado? Como as pessoas do lugar viviam, trabalhavam, divertiam-se? Enfim,
esses questionamentos deram origem à problemática da pesquisa: analisar, através
de um olhar histórico, o cotidiano de uma comunidade rural marcado pelas vendas.
Para entender como esses estabelecimentos comerciais estavam
entrelaçados à vida dos moradores do lugar, bem como suas memórias estão
carregadas de impressões de um passado social, criado e recriado pela convivência
compartilhada entre os sujeitos e lugares, o diálogo com as fontes foi imprescindível
para dar liga a uma massa de lembranças de indivíduos únicos. Fossem escritas,
orais ou imagéticas, cada fonte, dentro de sua especificidade de abordagem,
contribuiu para compor um corpus de informações suficiente, se o apenas para
resolver as questões iniciais formuladas durante a pesquisa, mas para suscitar
outras tantas, que se configuram em indícios valiosos para os pesquisadores que
enveredam nas sendas incertas da história.
As fontes usadas na pesquisa foram variadas, somaram-se às narrativas
orais, documentos escritos e fotografias. Não obstante, as memórias expressas nas
narrativas orais dos entrevistados constituem o cerne deste trabalho, não pela
inexistência de outros tipos de evidências, mas por tratar-se de uma pesquisa que
lida com as sensibilidades de homem e mulheres do campo. O ato de narrar
demonstra comportamentos próprios de cada um, permeados de impressões tão
diversas da vida, que proporciona ricos objetos de investigação.
Nos momentos de diálogo com os narradores, um gesto furtivo, uma
pausa demorada na fala, uma queixa sobre a vida, os sorrisos provocados por
lembranças tão variadas acrescentaram pulsação à pesquisa, o que, às vezes,
escapa à impessoalidade do registro escrito. Para Raphael Samuel (1989-90,
p.231), ―há tipos de pesquisas que apenas podem ser realizadas com a ajuda de
uma testemunha viva‖, ou testemunhas, que, através de suas memórias expressas
pela fala, podem contribuir para acrescentar à pesquisa outras nuances muitas
vezes diferentes a outros tipos de fontes.
O historiador lida com seres únicos; portanto, depara-se com diferentes
versões de um determinado acontecimento. Cada pessoa pode produzir um grande
número de histórias em potencial, a memória não está desassociada do indivíduo,
mas passa por ele. Procurar semelhanças nas narrativas ou dados que confirmem
as informações pode levar o historiador ao anacronismo. Quem sabe sejam nas
diferenças, nas inconstâncias entre as impressões dos sujeitos que esteja aquilo que
18
vai descortinar um novo mundo de possibilidades à pesquisa. Para apreender tais
sensibilidades, Portelli (1997) alerta e, até mesmo, orienta o historiador que trabalha
com narrativas orais para o ato de ouvir e estar disposto a mudar seus
posicionamentos a partir dos indícios dados pelas fontes. Para esse autor,
A arte essencial do historiador oral é ouvir (...) se ouvimos e
mantivemos flexível nossa pauta de trabalho, a fim de incluir não
aquilo que acreditamos querer ouvir, mas também o que a outra
pessoa considera importante dizer, nossas descobertas vão superar
nossas respostas (PORTELLI, 1997, p. 22).
Durante a realização das entrevistas foram ouvidos diversos indivíduos,
dentre eles os vendeiros, fosse homem ou mulher, os moradores do Tabuleiro, além
de sujeitos que frequentavam o povoado e tinham memórias diversas do lugar. É
preciso destacar que muitos aspectos apreendidos nas entrevistas foram registrados
em longas conversas ―informais‖, ocasiões em que, muitas vezes, o gravador não
registrou, mas que, durante o momento do cafezinho, da conversa descontraída,
ficaram gravados na minha memória e, de alguma forma, permeiam as
interpretações das fontes e a escrita do texto.
As narrativas foram transcritas na íntegra, como uma forma de respeitar
valores culturais e formas orais de expressão de um grupo de pessoas que criaram
socialmente sentidos próprios as suas vivências. A intenção era não deixar fugir, na
transcrição reinterpretativa das fontes orais, aspectos linguísticos que caracterizam
as ―formas de dizer‖ dos indivíduos. Na fala, emoções podem ser captadas, logo,
uma transcrição feita sem critérios pode comprometer o sentido daquilo que se
queria dizer, quanto mais próximo ao dito pelo narrador, mais rico torna-se o relato
oral.
as fotografias constituem as fontes imagéticas, muitas delas recolhidas
entre os moradores locais, outras produzidas durante a pesquisa de campo. As fotos
foram utilizadas como objetos de investigação histórica que apreenderam
experiências de trabalho, de lazer e aspectos cotidianos dos moradores do
Tabuleiro. As imagens mostraram-se como elementos portadores de memórias,
objetos tácteis que carregam consigo valores sociais e afetivos, significativos nas
vidas das pessoas.
19
Susan Sontag (1981), que décadas vem se dedicando aos estudos da
fotografia, chama a atenção para o fato de que o ―sentido da imagem fotográfica
permite a presentificação do passado, que, todavia, ganha sentido se tiver sido
identificado ou caracterizado‖ (SONTAG, 1981, p.18). A imagem é um texto e
apresenta um contexto, sua compreensão fica afetada ao analisar a imagem por ela
mesma. Portanto, a fotografia ganha sentido no momento em que é mediada,
traduzida interpretativamente em palavras que a signifiquem. Daí a importância de
ter junto aos portadores da fotografia a história da própria imagem. Às vezes, o
contexto em que foi produzida pode contar mais sobre um determinado fato do que o
momento eternizado no papel.
Dentre os documentos escritos, utilizou-se uma carta, escritura de terra,
leis, vales de compra e venda cedidos por vendeiros, assim como estudos
econômicos e demográficos desenvolvidos por centros de pesquisa como o IBGE,
SEI e SEBRAE. O cruzamento de tais fontes foi importante por evidenciar aspectos
políticos e socioeconômicos constituintes da vida cotidiana e produtiva do povoado,
e proporcionar as conexões com acontecimentos regionais e nacionais, que o
Tabuleiro está inserido em um contexto macrorregional.
A análise de cada tipo de documento ajudou a formar um arcabouço de
informações que compõe não o trabalho aqui apresentado como contribui para
desmitificar as associações que comumente se faz do meio rural como ―lugar de
atraso, ignorância e limitação‖ (WILLIAMS, 1989, p.11), quando, constitui-se, dentro
de sua ampla gama de objetos e sujeitos, um vasto campo de estudo para história.
E, ao abordar os modos de vida da população local, suas manifestações culturais,
sua relação com as vendas, contribui-se para, através da oralidade e da memória,
apreender aspectos de sua vida passada, que os documentos o registraram e são
importantes para entender, hoje, as rupturas e permanências, valores e
experiências, comportamentos e atitudes marcantes e/ou constituintes de sua
história.
Nessa perspectiva, a relevância desta pesquisa está em mostrar como
uma localidade rural, aparentemente sem grandes acontecimentos importantes e
aspectos históricos ditos relevantes, pode constituir um rico objeto de estudo capaz
de revelar a história de um local e sua gente. Principalmente, por lançar luz sobre a
participação das vendas na vida cotidiana do homem do campo, que embora não
seja um tema desconhecido, é pouco abordado pelos historiadores. Assim, busco
20
aqui aprofundar e problematizar tais espacialidades enquanto lugares de
socialização e trocas econômicas e culturais.
A feitura de um trabalho de pesquisa histórica requer uma série de
cuidados e tratamentos específicos. Além de estabelecer os tipos de fontes que
serão usadas, os métodos de investigação, os referenciais bibliográficos e,
sobretudo, quais campos historiográficos irá percorrer, é importante ter um
referencial teórico-metodológico coerente com a pesquisa desenvolvida, pois evita
torná-la um apanágio de abordagens distintas, perdida na hiperespecialização do
conhecimento histórico.
Barros (2004) chama a atenção para esse aspecto ao enfatizar e discutir
como os historiadores têm sentido dificuldades em situarem os trabalhos
historiográficos nos diversos campos da história. Para esse autor, a crescente
fragmentação do conhecimento, consequentemente, da própria história em
subespecialidades tem gerado uma ―fragmentação de perspectivas‖. Assim, o
mais uma única maneira de ver os acontecimentos, justamente pela ausência de
certezas que serviam de modelo para o enquadramento do conhecimento científico.
O historiador não tem mais uma ideia homogênea de seu ofício. Os modelos de
história total passam por uma crise paradigmática. Diante disso, Barros (2004)
enfatiza que não uma obrigação de encaixar o trabalho historiográfico em um
determinado campo da história,
Na verdade isso não é possível, que a ampla maioria dos bons
trabalhos historiográficos situa-se na verdade em uma interconexão
de modalidades. Se são bons, o complexos. E se são complexos,
hão de comportar algum tipo de ligação de saberes, seja os interiores
ou exteriores ao saber historiográfico (BARROS, 2004, p. 7-8).
Uma alternativa proposta por Barros (2004) seria estabelecer alguns
critérios de divisão que facilitariam o processo de interconexão dos diversos
domínios da história. Segundo ele,
A chave para compreender estes vários campos, (...) está em
distinguir muito claramente as divisões que se referem a dimensões
(enfoques), as divisões que se referem a abordagens (ou modos de
fazer a História), e as divisões intermináveis que se referem aos
domínios áreas de concentração em torno de certas temáticas e
objetos possíveis (BARROS, 2004, p. 8).
21
As considerações iniciais sobre a problemática da feitura de um trabalho
historiográfico apontadas por Barros (2004) serviram para refletir as abordagens que
a pesquisa sobre o povoado do Tabuleiro requereu ao discutir sua vida cotidiana,
analisando as relações que as pessoas do lugar estabelecem com as vendas, bem
como as formas de sociabilidades e conflitos presentes na vida cotidiana daqueles
que vivem nessa localidade. Tais abordagens teórico-metodológicas se fizeram
necessárias visto que a pesquisa passeia por diversas dimensões da história e por
outros domínios. Essas ponderações deram um norte à pesquisa e ajudaram a
pensar os problemas e desafios inerentes a ela.
Ainda no que diz respeito à pesquisa em foco, foram contempladas, entre
as abordagens e dimensões propostas por Barros (2004), pelo menos, três ramos da
história: a História Regional e Local, a História Cultural e a História Oral, além de
outros caminhos pelos quais tais campos da história enveredam como os estudos do
cotidiano e da memória.
Dentre os diferentes conceitos de História Regional e Local, Neves (2002)
ressalta a ideia de pertencimento ao espaço, que o indivíduo o reconhece como
parte de sua História e a noção espacial se dilui, o homem se funde ao lugar,
reconhece-o como seu, criando uma identificação. Conforme esse autor,
A História Regional e Local consiste numa proposta de estudo de
atividades de determinado grupo social historicamente constituído,
conectado numa base territorial com vínculos de afinidades, como
manifestações culturais, organização comunitária, práticas
econômicas, identificando-se suas interações internas e articulações
exteriores e mantendo-se a perspectiva de totalidade histórica
(NEVES, 2002, p. 45).
Diferente de Neves (2002), que vê a região como uma construção história
de indivíduos que criam laços de pertencimento ao lugar, para Albuquerque (2003,
p. 8) a noção de região é mais que uma delimitação territorial, ela é uma construção
histórica, cultural e imagético-discursiva. Definição essa a que o autor chegou ao
observar como o surgimento de uma identidade nordestina se deu a partir de um
discurso circunscrito numa relação de poder, na qual a decadente aristocracia
nordestina, diante de um momento histórico que alimentava um discurso de
apagamento das diferenças regionais e integração nacional, se via ameaçada,
22
portanto fazia-se necessário manter uma memória espacial, que conservasse viva
essa dominação. A Região Nordeste surge, assim, como uma invenção discursiva.
Embora o Nordeste, estudado por Albuquerque (2003), tenha sido
resultado da construção discursiva de uma elite social, sua concepção de região
desenvolvida no livro A invenção do Nordeste‖ se configura uma realidade diferente
daquela na qual o Tabuleiro está inserido. Porém, os conceitos de História Regional
destacados por Albuquerque (2003), aplicados a essa pesquisa, fazem pensar como
o sentimento regionalista não se limita a meras fronteiras geográficas. A região pode
ser uma criação histórica, um discurso construído de uma dada visibilidade e
dizibilidade.
A existência física de um lugar, de um espaço, só ganha sentido na
prática cotidiana, nas relações afetivas, nas sensibilidades que se constituem entre
os sujeitos e os lugares por eles frequentados. Neves (2002, p. 45) destaca que o
regional e o local não estão desvinculados do extrarregional, do nacional, do que
acontece em outras localidades.
O Tabuleiro não esà parte de acontecimentos macrorregionais. Houve
a preocupação de fazer, sempre quando possível, a ponte entre os acontecimentos
não do lugar como do Brasil e do mundo. Afinal, como aponta Ana Fani Carlos
(1996, p. 28-29),
O lugar aparece como um fragmento do espaço onde se pode
apreender o mundo moderno, uma vez que o mundial não suprime o
local. O lugar se produz na articulação contraditória entre o mundial
que se anuncia e a espacialidade histórica do particular.
Como se pode depreender das ideias de Ana F. Carlos (1996), é nesse
processo de interação, entre o particular e o geral, do micro com o macro, que é
possível estabelecer ummero maior de relações e interpretações nas ações
cotidianas. As especificidades se explicam e ganham significado, possibilitando
atingir as sensibilidades dos homens do passado, revelar como eles representavam
a si próprios e ao mundo. Um mundo simbólico repleto de sentidos, por vezes
imperceptíveis, multifacetados e, ao mesmo tempo, mensuráveis em certos
aspectos, em ações concretas, palpáveis, passíveis de medição e comprovação.
O palco de atuação dos indivíduos não é o mero espaço delimitado por
seus passos inscritos, provisoriamente, no chão que corresponde ao território onde
23
habitam. O espaço é significado nas vivências diárias, na forma como os indivíduos
o praticam. As ações diárias urdem experiências de vida, que relevam como homem
e mulheres pensam e se comportam. Assim, o cotidiano é o lugar privilegiado para
observar como a vida se desenrola, porque longe de ser o lugar da banalidade, é no
dia-a-dia que as vidas ganham sentido.
No Tabuleiro, o cotidiano está ligado ao trabalho no campo, à ligação dos
moradores com a natureza, à agitação das vendas, às festas tradicionais, às
conversas nos passeios das casas, enfim a cada lugar por onde passam esses
indivíduos deixando suas marcas. Os estudos sobre o cotidiano se mostram de
grande valia para aqueles que se dedicam aos estudos locais. Muitas vezes, é na
vida de todo dia que os historiadores encontram as chaves que abrem as portas que
conduzem ao entendimento do conhecimento histórico produzido pelos indivíduos
nas relações sociais, sobretudo, em um ramo da história onde as experiências de
vida são fundamentais para sua compreensão.
Acerca dessas considerações, as ponderações feitas por Certeau (1994,
p. 41) no livro A Invenção do Cotidiano‖ são de grande valia. O autor argumenta
que os mecanismos de poder, regulamentação e disciplinamento da sociedade, que
tentam regular e controlar a vida dos homens, podem ser burlados por práticas,
táticas e estratégias de sobrevivência que os indivíduos criam na dinâmica cotidiana.
A vida social torna-se espaço de negociação dentro de um cotidiano improvisado,
sempre possível de ser re-inventado.
Por sua vez, Agnes Heller (1992, p. 17) argumenta que ―a vida cotidiana é
a vida de todo homem. Ele está imerso na cotidianidade, não escapa a sua
dinâmica. O indivíduo é, ao mesmo tempo, um ser particular e ser genérico, porque
cada sujeito é único e capaz de fazer escolhas individuais, assim como é produto de
suas relações sociais e sujeitos as suas influências a partir de assimilações. Esse
termo é usado pela autora para se referir às formas de intercâmbio social, nas quais
o indivíduo mediado por grupos (família, escola, comunidade, etc.) apreende os
elementos da cotidianidade (HELLER, 1992, p. 21).
Os estudos do cotidiano encontram guarida tamm na História Cultural,
pois, como afirma Barros (2004, p. 57), ―a vida cotidiana está inquestionavelmente
mergulhada no mundo da cultura.‖ Ao existir, o indivíduo já produz cultura. A história,
que, por muito tempo, se recusou em ver historicidade na cotidianidade, nas suas
práticas e representações sociais, tem na História Cultural uma gama de objetos de
24
estudo, diversidade tão grande que os historiadores que se debruçam sobre os
estudos culturais têm sentido dificuldade de estabelecer noções de cultura e limitar
seus domínios de investigação. que se trata de uma dimensão múltipla, plural,
complexa e que pode gerar diversas aproximações diferenciadas.
Diante dessa diversidade, é interessante abordar algumas das principais
discussões acerca da temática da cultura e dos teóricos que contribuíram com suas
concepções à pesquisa. Nas últimas décadas questões, como a própria concepção
de cultura, a legitimidade na divisão entre cultura popular e erudita, a consistência
de certos conceitos como: os de ―biculturalidade‖ de Burke (1989); ―circularidade‖,
utilizado por Ginzburg (1987); ―multiculturalismo‖, usado por Hall (2003); e
―hibridismo cultural‖ de Bhabha (2005). Esses são alguns exemplos de conceitos de
cultura que têm gerado uma larga produção historiográfica. Para se ter uma noção
do que vem sendo produzido, vale citar alguns nomes de referência nos estudos
culturais e como eles abordam o tema cultura.
A concepção de circularidade cultural que propõe como recíprocas as
influências entre a cultura dos segmentos dominantes e subalternos movendo-se
de baixo para cima constitui-se noutra importante contribuição de Ginzburg (1987),
inspirado nos trabalhos de Bakhtin (1987). No movimento de circularidade, ambas as
culturas popular e erudita se influenciam mutuamente, de acordo com valores
próprios de cada classe social.
Aproximando-se do conceito de circularidade cultural, Peter Burke (1989,
p. 56) cunhou o termo ―biculturalidade‖, para expressar o quanto os membros das
elites conheciam e participavam da cultura popular, ao mesmo tempo em que
preservavam sua cultura; ou seja, práticas culturais eram compartilhadas entre
membros do povo e das elites. Todavia, a expressão cultura popular e erudita/elite é
criticada dada a extensão e a impressão homogeneizante que passa. Roger Chartier
(1991, p. 138-178), um de seus críticos, defende a ideia de que os sujeitos se
apropriam e representam as práticas culturais de formas diversas. imbricações
entre elas e diferentes maneiras de apropriação dos objetos, não sendo, por vezes,
possível estabelecer a fronteira entre popular e erudito, encontrando formas originais
de cultura do povo como queria alguns historiadores.
Thompson (1987), em outra perspectiva e mais ligado à História Social,
foi um dos pioneiros no que tange aos estudos de História Cultural, aproximando os
dois campos, ao afirmar que ―a classe social se constitui numa formação econômica
25
e tamm cultural‖ (THOMPSON, 1987, p. 10). Nos seus estudos culturais sobre a
classe camponesa e urbana, assim como as transformações operadas na Inglaterra
do culo XVIII, observou que a cultura popular pode ser inserida nos movimentos
das classes trabalhadoras em defesa de seus costumes ante as mudanças do
mundo industrial moderno, o que ele chamou de economia moral da multidão‖
(THOMPSON, 1998, p. 152), assumindo um nítido viés de luta de classes na defesa
de seus costumes que incluíam tanto condições de trabalho como festas, feiras, vida
em tabernas e ritos sociais.
Os diferentes pontos de vista demonstram que, ainda hoje, é arriscado
assumir conceitos cristalizados sobre cultura. Os teóricos mencionados e outros
tantos revelavam que a cultura não pode ser reduzida a meros esquemas, limitada
em um conjunto de crenças e costumes. A cultura é permeada de representações,
apropriações, simbologias, variando de acordo com experiências e vivências dos
diferentes sujeitos históricos, lugares, espaços, relações econômicas, políticas e
sociais. Cabendo àqueles que se dedicam ao estudo dessa temática avaliar quais os
melhores conceitos ou procedimentos a serem adotados diante da vasta gama de
significações do termo.
Em maior ou menor grau, esses autores contribuíram para essa pesquisa,
embora em suas obras as discussões a respeito da cultura se debatam com
realidades diversas e conceitos ímpares. Trabalha-se, aqui, então, com a ideia de
cultura como uma ação tecida no dia-a-dia das relações sociais, permeando as
práticas cotidianas dos indivíduos, conforme as contribuições conceituais e teóricas
dos autores mencionados.
Como foi abordada anteriormente, a narrativa oral constitui a principal
fonte usada no trabalho e, embora não necessite que os documentos escritos ou
imagens a sustentem, ela, por si só, é uma evidência. Às vezes, para certas
realidades, espaços e lugares pesquisados, a fonte oral se torna essencial, uma vez
que é capaz de ampliar a compreensão do contexto, produzir outras informações
disponíveis apenas na memória das pessoas.
Os defensores do status da História Oral como disciplina, apesar de
inúmeras divergências entre eles sobre determinados pontos teóricos, partem de
uma ideia fundamental: ―a história oral inaugurou técnicas específicas de pesquisa,
procedimentos metodológicos singulares e um conjunto de procedimentos próprios‖
(AMADO & FERREIRA, 1998, p. 13). Ainda na concepção de Janaina Amado e
26
Marieta de M. Ferreira, como disciplina, a História Oral dispõe de um corpus teórico,
que seus críticos consideram impreciso e inconsistente. Aqueles que a tomam como
uma metodologia fazem uso das suas técnicas de recolhimentos das fontes orais e
procedimentos de interpretação da História Oral, mas não a dispõem como uma
dimensão histórica capaz de se sustentar como uma disciplina.
Muitas críticas à História Oral se ancoram em uma suposta não
confiabilidade‖, inconsistência das memórias, imprecisões de seus objetos de
estudos. está o plus da História Oral, justamente por tratar da subjetividade, da
memória, das narrativas, depara-se com esse complexo mundo dos desejos, das
fantasias, dos sonhos que fazem parte de cada indivíduo. Ao historiador cabe
analisar como se o essas subjetividades, como se constroem nas relações
sociais; nesse sentido Thomson (1998) lembra que, no trabalho com as narrativas
orais,
(...) procuramos explorar as relações individuais e coletivas, entre
memória e identidade, ou entre entrevistador e entrevistado. De fato,
frequentemente estamos tão interessados na natureza e nos
processos da rememoração quanto no conteúdo das memórias que
registramos (THOMSON, 1998, p. 69).
Thomson (1998) chama a atenção para a importância de como se dão os
processos de rememoração, o que é uma questão delicada na História Oral. Para
evitar o uso indiscriminado da memória, a sua manipulação requer um procedimento
ético do historiador na utilização das narrativas, para que não produza uma farsa
histórica, colocando o valor da História Oral em xeque. Segundo Portelli (1997, p.
13), os historiadores orais m a ―responsabilidade não de obedecer a normas
confiáveis, quando coligem informações, como tamm de respei-las, quando
chegam a conclusões e fazem interpretações.
Aliás, o objeto de estudo do historiador oral são as histórias de vida dos
indivíduos. O ato de narrar traz à tona memórias de um tempo passado que vive no
presente e novas experiências ―ampliam constantemente as imagens antigas e no
final exigem e geram novas formas de compreensão‖ (THOMSON, 1997, p. 57). Ou
seja, as memórias estão em um constante processo de ressignificação. Desse
modo, o que é rememorado, de que forma são reconstruídas essas memórias e
27
como elas dão sentido à vida dos sujeitos constituem aspectos a serem investigados
pelos historiadores.
As narrativas orais, então, remetem às memórias, que as expressam
com toda força. Nas entrevistas, notou-se que os indivíduos pensam e sentem de
formas diversas, e essa profusão de reminiscências distintas requer ajuda teórica de
autores que se dedicam à problemática das memórias (para não incorrer no risco de
interpretações precipitadas), bem como abordagens interdisciplinares que auxiliem
no entendimento de seus mecanismos de funcionamento.
Fala-se muito em memória coletiva, memória individual, memória social,
enfim, vários tipos e formas de rememorar e de construir memórias. Dentre os
diversos conceitos, algumas considerações se tornam necessárias. Burke (2000, p.
74-75) traz duas abordagens sobre memória: primeiro, ele a considera uma
construção social, que se vale de esquemas de identificação que levam ao
aparecimento de outras memórias; e segundo, como a memória social é influenciada
por organizações sociais e meios de comunicação de massa. O autor elenca,
também, cinco elementos de propagação e formação das memórias sociais: as
tradições orais, os relatos escritos, as imagens, ações que transmitem memórias
como ritos de comemorações e os espaços, lugares de memória. Esses elementos
de construção não são ingenuamente usados, muitas vezes são tentativas de
convencer, formar a memória de outrem ou tentativas de impor interpretações do
passado e construir representações sociais, formadoras de identidades sociais.
O que Burke (2000, p.83) busca enfatizar é como os grupos sociais
utilizam a memória de formas diferentes. Uma guerra, por exemplo, pode ser sentida
de formas distintas, os vencedores ―podem dar-se ao luxo de esquecer, enquanto os
perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são condenados a rem-lo,
revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente‖. Isso expõe as
multiplicidades de identidades sociais, de memórias, que podem se valer de
esquemas rios de conformação e identificação. Muitas vezes até o esquecimento
é um ato proposital de apagamento de uma memória inconveniente, uma amnésia
social, na definição do autor.
A memória tamm é feita de esquecimentos, de silêncios, de seleções e
inclusões, tão múltiplas em seus aspectos constituintes que propõe vários desafios
aos historiadores. Porém, pensar nas razões pelas quais ocorrem o esquecimento e
o silêncio, diz muito à história. Segundo Pollak (1989, p. 3), o silêncio pode surgir
28
como uma forma de resistência de uma memória reprimida e que, por muito tempo,
não encontrou vazão, mas foi conservada e transmitida pelas gerações posteriores.
O mesmo autor argumenta, ainda, que o silêncio sobre o passado está ligado a uma
necessidade de encontrar um modus vivendi, cujo esquecimento acomoda e ajuda a
superar experiências traumáticas.
As variadas considerações acerca da memória e suas imbricações com a
História Oral e aos estudos culturais e regionais remetem a Raphael Samuel
(1989/1990, p. 232) ao chamar atenção para o fato de que ―o historiador pode fazer
com que a pedra de toque se torne a experiência real da vida das pessoas‖,
presentes no cotidiano, na vida cultural, nas memórias, nas vivências que guardam
um mundo de possibilidades de investigação histórica.
Na perspectiva de pesquisar a vida cotidiana do povoado do Tabuleiro,
partindo da questão inicial de observar como as vendas da localidade influíam na
vida social, cultural e econômica da população do local, foram selecionadas algumas
referências bibliográficas a fim de dar suporte teórico-metodológico à pesquisa. Na
ausência de títulos que tenham o povoado do Tabuleiro como objeto de estudo foi
necessário recorrer à pesquisa de obras que tivessem algum registro histórico da
cidade de Mutuípe, da qual o Tabuleiro é parte. Nesta busca foi selecionado o livro
―Mutuípe, Pioneiros e descendentes‖, de Helena Rebouças (1992). O livro traz, de
forma geral e, por vezes, descritiva, a história da cidade, abordando desde sua
formação a aspectos de cunho político, econômico, social e cultural do município;
porém, não deixa de construir uma referência bibliográfica de grande valor diante da
escassez de trabalhos historiográficos a respeito do município.
Para tratar do mundo rural (um dos objetos de estudo deste trabalho),
foram selecionados alguns trabalhos de pesquisa histórica que têm em comum a
reflexão sobre cotidiano do trabalhador rural, suas vivências e experiências, bem
como suas práticas de sobrevivências, expressões culturais, costumes e tradições.
Dentre eles, ―Fartura e Ventura Camponesas‖ de Charles D‘ Almeida Santana
(1998), que se propõe a discutir sobre as migrações de trabalhadores rurais das
cidades de Santo Antônio de Jesus e Conceição do Almeida, entre os anos de 1950
a 1980, e a forma como homens e mulheres conseguiram sobreviver à perda da
possibilidade de trabalho em suas cidades, assim como preservaram na memória
percepções e recordações da vida no campo, utilizadas pelo historiador, a fim de
apreender mudanças / permanências / incorporações em seus costumes, bitos,
29
valores e tradições no processo de rompimento com os laços que os prendiam à
região, na medida em que, pressionadas pelas transformações em seus modos de
vida e trabalho, foram levados a assumir, em seus horizontes, a migração para a
capital baiana.
Tamm foi de grande contribuição o trabalho de Edinélia Maria Oliveira
Souza (1999), Memórias e tradições: viveres de trabalhadores rurais do município
de Dom Macedo Costa Bahia (1930-1960)‖. Trata-se de um estudo sobre a vida
cotidiana e experiências de descendentes de escravos e mestiços pobres, marcados
por um passado de lutas contra a pobreza e por lembranças da escravidão
traduzidas em comportamentos, atitudes, valores, tradições e costumes que
caracterizam a forma de viver dos trabalhadores do campo.
Por sua vez, Sylvia Maria dos Reis Maia (1985), em Dependency and
survival of Sapeaçu small farmers, contribui para o estudo do cotidiano no campo
da cidade de Sapeaçu, localizada no Recôncavo da Bahia. Nesse trabalho, a autora
discute as estratégias de sobrevivências, sobretudo, das trabalhadoras rurais, suas
vivências nas casas de farinha, a lida com os animais, enfim, o dia-a-dia nas roças.
Aspectos fundamentais para entender como homens e mulheres do campo
desenvolvem táticas de sobrevivências na vida cotidiana.
No que tange à bibliografia sobre as vendas poucos foram os títulos com
essa referência, e quando o fazem é sempre de forma rápida e sucinta, restando a
busca por obras com temáticas próximas, compartilhadoras de certos pontos em
comum com esses estabelecimentos comerciais. Abaixo seguem algumas obras
com as quais tive contato e considero próximas do assunto em investigação:
Os trabalhos de Fernand Braudel (1997/1998), primeiro e segundo
volumes da trilogia ―Civilização Material, Economia e capitalismo Séculos XV - XVIII‖.
Obras que analisam o conjunto das trocas, desde o escambo até o mais sofisticado
capitalismo, e cuja relevância justifica-se por tratar do pequeno comércio e seus
mecanismos de funcionamento, aspecto indispensável para compreender como as
vendas influenciavam na vida econômica e social do povoado;
O estudo de Sidney Chaulhoub (1986), ―Trabalho, Lar e Botequim,
embora trate do dia-a-dia da classe trabalhadora no Rio de Janeiro da Belle Époque,
traz uma importante discussão sobre o botequim como ―observatório popular‖. Palco
de relações sociais reveladoras de comportamentos, atitudes e valores culturais
30
desses sujeitos históricos, constituindo um estudo imprescindível na compreensão
das vendas não só como espaço de trocas econômicas como de sociabilização;
O estudo de Maria Izilda Santos de Matos (2001), ―Meu Lar é o
Botequim‖, que é outro importante referencial bibliográfico. O livro tem como eixo
central o alcoolismo e a construção da masculinidade nos discursos musical e
médico entre 1889 a 1940, através de campanhas sanitárias e publicitárias que
veiculavam padrões de sensibilidade, construindo novos hábitos, valores e costumes
para homens e mulheres. O que contribui para entender questões de identidade,
aspectos psicológicos e outras peculiaridades inerentes aos frequentadores das
vendas;
As obras relacionadas constituem apenas a seleção de algumas
referências utilizadas nessa pesquisa, mas é com a junção dos pressupostos
teórico-metodológicos que o trabalho assume uma identidade, mesmo que múltipla
em seus aspectos constituintes.
Este texto está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado ―O
cotidiano das vendas‖, discute-se o espaço das vendas na sua estruturação
organizacional, e o modo como essa espacialidade é revestida de significados
diversos para os sujeitos que a praticam. Tamm são analisadas as múltiplas
funções das vendas e papéis assumidos pelos vendeiros, com destaque para sua
função sociabilizadora, além de discutir como elas influíam na dinâmica
socioeconômica do Tabuleiro.
No segundo capítulo, é abordada a vida cotidiana da população do lugar,
desde as atividades diárias, como o trabalho no campo, até os laços de
solidariedade estabelecidos em atividades como os adjutórios, e as formas de lidar
com as adversidades diárias através de jogos de astúcias. Assim como foram
discutidas as mudanças operadas no povoado com a introdução de elementos da
modernização tais como, a luz elétrica, a TV, os eletrodomésticos, a utilização de
máquinas nas atividades laborais, a construção de uma estrada ligando o povoado à
sede do município de Mutuípe e seus impactos. Vale salientar que essas mudanças,
a partir da segunda metade do século XX, foram apontadas pelos entrevistados
como responsáveis pela introdução de novos costumes e tradições, provocando
rupturas e permanências na tessitura sociocultural e física do lugar.
Ainda no segundo capítulo, em uma outra seção, trata-se das formas de
sociabilidade presentes no povoado, dentre elas destacam-se o folguedo da burrinha
31
e o brinquedo de roda. Tais aspectos são observados em uma abordagem cultural, a
fim de perceber como algumas dessas práticas sociais e muitas dessas festas e
espaços de socialização foram deixando de existir ou ganharam novas
configurações, num processo de ressignificação de suas práticas, a partir de
mudanças operadas não só no povoado como na sociedade brasileira.
No terceiro e último capítulo, discutem-se os fatores que levaram à
decadência das vendas e a forma como isso afetou o povoado. Dentre esses
aspectos, destacam-se o crescimento da pecuária e da lavoura cacaueira, atividades
concentradoras de terras, que motivaram migrações da população para outros
estados brasileiros, na busca de melhores condições de vida. Sem falar, no maior
acesso da população local a outras localidades e aos bens de consumo ofertados
pela introdução de elementos da modernização no lugarejo ou o aumento da
violência, como identificado nas narrativas ao longo da pesquisa.
O trabalho apresentado tentou seguir os passos dos moradores do
Tabuleiro ao analisar e discutir suas ações e atitudes, possibilitando apreender
aspectos históricos o de um lugar, como vivências de pessoas que imprimiram
no espaço sua própria história. Uma vez que esses sujeitos, ao darem voz a suas
experiências, deixando emergir as memórias de um tempo passado que ressoam no
presente, possibilitaram o estudo de uma memória social criada e forjada na vida
campestre.
32
CAPÍTULO I
O COTIDIANO DAS VENDAS
Tinha uma vendinha no canto da rua,
onde o mangaieiro ia se animar.
Tomar uma bicada com lambú
assado, e olhar pra Maria do Joá.
Sivuca
1.1 AS LOJAS DAS ROÇAS
―Lugares de memória‖, assim refere-se Pierre Nora (1993) aos lugares
onde a memória se cristaliza e se refugia; são vestígios do passado presentes no
espaço, no gesto, na imagem, nos objetos. Seguindo esses rastros de memória,
encontram-se evidências de um passado que o historiador, com seu olhar
perscrutor, mesmo carregado de signos do presente, pode usar para buscar, em
recordações de um tempo passado, aspectos constituintes da história de um lugar.
No caso do povoado do Tabuleiro, os lugares de memória se apresentam
nos caminhos abertos pelos trabalhadores rurais que diariamente se dirigem para
suas roças ou de seus patrões para trabalhar, em uma casa velha, no balcão das
vendas, onde muitos indivíduos se recostam para conversar, beber, jogar, comprar
ou vender produtos, nas fotografias antigas que congelaram no papel momentos de
alegrias e tristezas, enfim, lugares de memória que trazem marcas concretas de um
passado construído socialmente por aqueles que lá conviveram ou convivem.
Para os antigos moradores, esses lugares são relembrados ou vistos com
um misto de alegria, tristeza e saudade; muitos existem em suas lembranças.
Mas, graças à capacidade dos indivíduos de guardarem em suas memórias os
acontecimentos significativos de sua vida, foi possível aos sujeitos que vivenciaram
as transformações cotidianas do local narrarem as suas memórias sobre as festas, o
dia-a-dia nas vendas, a chegada de elementos da modernização e seus efeitos
33
sobre as pessoas e o lugar, entre outros tantos aspectos da vida social de uma
comunidade rural.
Dentre os lugares de memória, as vendas, certamente, marcam a história
do Tabuleiro e as lembranças daqueles que convivem. Ao se dirigirem a esses
estabelecimentos comerciais, os indivíduos criam laços de familiaridade por meio de
práticas cotidianas imperceptíveis, que ajudam a compor lembranças e, mais que
isso, de alguma forma, fossem quais fossem os caminhos escolhidos para
percorrerem, no Tabuleiro, quase todos os caminhos levavam às vendas,
atravessando vidas, compondo destinos.
As marcas que os passos dos indivíduos deixam no chão de terra batida
do vilarejo, e que o tempo e o vento tratam de apagar, embora não tenham permitido
deixar registros materiais de sua passagem, criaram nas lembranças dos moradores
um cabedal de memórias que marcam definitivamente suas vivências. Ao falar do
Tabuleiro, remete-se, inevitavelmente, às vendas. Durante as entrevistas com os
moradores locais fica evidente como esses estabelecimentos comerciais permeiam
suas memórias. As vendas, no passado, eram como a seiva que revigorava a vida
do povoado, o coração de um corpo social cuja alma do lugar alimentava. Tanto que
as crises econômicas sentidas pelas vendas, a partir dos anos de 1990, abalaram de
forma direta a dinâmica social do Tabuleiro.
A venda se constitui múltipla em seus diversos aspectos, ultrapassa o
estereótipo de lugar de trocas econômicas. Os frequentadores mais do que comprar
e vender buscam as vendas para se divertirem, elas promovem o encontro, a festa,
o lazer. Mas as vendas podem ser também palco de desentendimentos, de brigas e
conflitos. Aspectos discutidos por Sidney Chalhoub (1986, p.231) ao se referir às
vendas e botequins do Rio de Janeiro na virada do século XX. Para o autor, a venda
é um
Centro aglutinador e difusor de informações entre populares. E mais
do que isto, a referência a venda como um ―observatório popular‖,
sugere que este é um ponto privilegiado uma espécie de janela
aberta para o estudo de padrões de comportamento dos homens
pobres (...). E, com efeito, a venda ou o botequim é cenário para o
surgimento e desenrolar de rixas e conflitos pelos mais variados
motivos, desde os problemas ligados ao trabalho e habitação,
passando pelas questões de amor e relações entre vizinhos, e
chegando a as contendas por motivos mais especificamente
ligados ao lazer, como os jogos (...) ou a bebida.
34
Muitos entrevistados trazem em suas narrativas os vários aspectos que
envolvem a vida cotidiana nas vendas, explícitos por Chalhoub, ao relembrarem das
brigas e assassinatos, das conversas animadas, dos dias que ficavam até altas
horas da noite cantando, tocando, jogando e bebendo; demonstrando, assim, que as
vendas não são apenas lugares de atividades comerciais e de ―bebedeira‖, mas
importantes espaços de sociabilidade e conflitos.
Aqueles que entravam por uma das diversas portas da venda, pelo menos
a partir da segunda metade do século XX, viam naquele ambiente imagens que lhes
eram e continuam, em parte, sendo próprias. As vendas, em sua estrutura física, têm
um balcão separando o espaço do vendedor e do freguês, sobre o qual eram
colocados fardos de carne do sol e do sertão (conhecida em outras reges do Brasil
como carne seca ou charque), peixes salgados, toucinhos de porco, rolos de fumo
dos quais os fregueses costumavam tirar algumas lascas, picar e fazer cigarros sem
pagar nada. Até mesmo costumavam provar as carnes salgadas e cruas como ―tira-
gosto‖ acompanhado quase sempre por um copo de ―pinga‖ ou um punhado de
farinha de mandioca que tamm estava à venda.
Nas paredes, podia-se ver uma profusão de mercadorias expostas nas
prateleiras ou penduradas em ganchos, outras se espalhavam em cima de tábuas
pelo chão. Havia, também, uma mesa ou escrivaninha onde o vendeiro colocava o
dinheiro ganho, seus cadernos de anotações e outros instrumentos de trabalho. Do
lado do freguês, na parte externa do balcão, havia alguns bancos, cadeiras ou toras
de madeira colocadas em posição vertical servindo como assentos. Em algumas
vendas de maior tamanho haviam sinucas e mesas utilizadas para o jogo de cartas
ou simplesmente para servir os clientes. Pelo chão se espalhavam mercadorias,
sacos de farinha de mandioca, caixas, rolos de corda de sisal, etc.
As vendas eram vistas, tamm, por alguns como lugares de sujeira e
desorganização; ali os fregueses cuspiam no chão, as moscas zanzavam sobre as
carnes e os vendeiros, na sua maioria, não mantinham hábitos higiênicos na
manipulação dos alimentos. Aliás, aqueles que buscam nas vendas um ambiente
asséptico, provavelmente, não o encontrará. até um dito popular na região que
diz: ―quem não quer casa cuspida, não ponha venda‖. Ou seja, o chão das vendas
quase sempre estava sujo, mas que se entender que isso faz parte de práticas
comuns aos frequentadores desse espaço. A cachaça jogada no chão, por exemplo,
tem origem no ritual dos bebedores de ofertar uma parte aos santos; outros porque
35
mascavam fumo e cuspiam a ―borra‖ no chão. Enfim, era um lugar onde muita gente
circulava, com costumes e hábitos diversos, logo lhe dava esse aspecto
aparentemente de desorganização, mas que é parte de sua essência diversa de
sentidos simbólico e funcional.
Foto 01: Venda Santa Ana. Povoado do Tabuleiro, Mutuípe.
Fonte: Fotografia - Josiane Thethê Andrade, setembro de 2003.
Esse cenário pode ser observado em algumas representações imagéticas
das vendas. A fotografia usada como elemento de abordagem do passado pode
conter, em sua ―superfície sensível, a marca indefectível do passado que a produziu
e consumiu‖ (MAUAD, 1996, p 10). E, talvez, seja nas memórias que a fotografia
carrega ou nas que ela pode revelar que a história surge, como um lampejo do
passado, despertando lembranças adormecidas que retornam velozes (BENJAMIN,
1993, p. 225), e que devem ser apresadas pelo historiador antes que se evanesçam
como uma luz que se extingue.
A fotografia é do estabelecimento comercial do falecido Sr. Juvenal
Santos Andrade (1948 2002). Com a morte do proprietário, a venda passou a ser
administrada por seu sócio e irmão Sízinio Santos Andrade. No que diz respeito à
produção da própria imagem fotográfica, é preciso destacar que a intenção era
captar um ângulo capaz de contemplar o máximo possível o espaço da venda, para
mostrar e ampliar o leque de elementos a serem analisados no documento. Ao
36
observar a imagem, nota-se que a venda conserva sua estrutura sica e
organizacional, mas, na fotografia, outras espacialidades se revelam. Segundo
Mauad (1996, p.10),
A própria fotografia é um recorte espacial que contém outros espaços
que a determinam e estruturam, como, por exemplo, o espaço
geográfico, o espaço dos objetos (interiores, exteriores e pessoais), o
espaço da figuração e o espaço das vivências, importamentos e
representações sociais.
Quanto à organização das mercadorias nota-se que elas estão
espalhadas e misturadas sem nenhum critério quanto à forma e tipo. Por exemplo,
nas prateleiras superiores observam-se garrafas de bebidas alcoólicas lado a lado
com vasilhames de óleo lubrificante para motores automotivos, produtos que por
serem inflamáveis, não deveriam estar nesse lugar. Embora a disposição dos artigos
à venda seja feita com a intenção de mostrá-los e incentivar o consumo, esses
estabelecimentos possuem uma organização própria, a preocupação maior era com
o sortimento dos produtos, pois o espírito dessas lojas das roças é fornecer ―de tudo
um pouco‖.
Na imagem aparece com clareza o balcão que separa duas
espacialidades bem distintas, o lado do freguês e o lado vendeiro. Simbolicamente,
uma separação entre o blico e o privado. O balcão assume uma configuração
limítrofe e constitui um elemento carregado de representações significativas para
entender as atitudes dos sujeitos e as intenções na concepção cênica dos espaços
da venda.
Goffman (2009, p. 120) discute como espaços públicos e privados podem,
por sua natureza, estabelecer atitudes comportamentais diferenciadas. A partir de
uma análise dramatúrgica da sociedade, o autor enfatiza que os indivíduos
assumem diversos papéis sociais, agindo como atores em um jogo de simulação,
que varia conforme o palco e os interesses, dos papéis que eles querem assumir ou
dos que são obrigados a representar. Na concepção do autor, a forma como as
pessoas se comportam nesses espaços é uma questão a ser problematizada, visto
que revelam muitas ações por trás das atuações dos atores sociais.
Pode-se, distinguir, dentre outras, quatro regiões simlicas no espaço da
venda: a fachada da venda; a parte externa e interna ao balcão e os fundos da
37
venda. Cada espacialidade é vivenciada e significada de forma diversa pelos
indivíduos que ali circulam. Na fachada, os batentes das portas são divisas entre
três ―mundos‖ complementares: a rua, a venda e por trás do balcão. O que acontece
na rua, embora seja exterior à venda, não é aberta a qualquer ação por parte dos
sujeitos que aí passam. A rua funciona como uma extensão da venda, embora fosse
pública e livre à circulação de todos. Para ali se estendiam as mesmas regras de
comportamento respeitadas no interior das vendas, o público e privado se fundem.
Da Matta (1997, p. 47) discute esses aspectos ao afirmar que a casa e a rua
constituem
Esferas de significação social - casa, rua e outro mundo - que fazem
mais do que separar contextos e configurar atitudes. É que eles
contêm visões de mundo ou éticas particulares (...), esferas de
sentido que constituem a própria realidade e que permitem
normalizar e moralizar o comportamento por meio de perspectivas
próprias.
Numa passagem de sua entrevista, Dona Aurineide ressaltou que os
comícios políticos e festejos tradicionais ―nas portas da venda‖, (em outras palavras,
na frente da casa comercial) para se realizarem era pedida, geralmente, autorização,
no caso, ao seu marido, o vendeiro Juvenal:
Eles chegava aqui na venda, chamava a gente avisando do que ia
acontecer e pregava os cartaz. Se fosse na frente da venda o
pessoal pedia autorização a Juvenal, se fosse na frente da escola
pedia ao prefeito (Aurineide Thethê, 50 anos, entrevista em
14/04/2007).
Nessa fala, dois aspectos destacam-se: a parte da rua frontal à venda é
tratada como propriedade‖ do vendeiro; e a área em frente à escola como um
espaço público, controlado pelo governo. No primeiro caso, a dicotomia casa e rua
quebra sua barreira, o público é tratado como privado, talvez isso ocorra porque nas
comunidades rurais o ―terreiro da frente‖, como é chamado esse espaço, é uma
extensão da casa, como os passeios e calçadas nas casas urbanas.
No momento em que os pés dos transeuntes ultrapassam as portas das
vendas e adentram em seu espaço interior, outros comportamentos e atitudes
morais são esperados dos praticantes desse espaço. Como a rua ficou para trás,
38
comportamentos arruados‖ são malvistos, ―não se pode misturar o espaço da rua
com o da casa sem criar alguma forma de grave confusão ou até mesmo conflito‖
(DA MATTA, 1997, p.50), uma vez que a venda possui também um caráter de casa.
Segundo Bachelard (2008, p.25), ―todo espaço, realmente habitado traz
consigo a essência da noção de casa‖, ou seja, nele os praticantes sentem-se
acolhidos, protegidos; sem falar, que a casa é o lar primeiro, espaço que
Na vida do homem, (...) afasta contingências, multiplica seus
conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso.
Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das
tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser
humano. Antes de ser "jogado no mundo", como o professam as
metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. E
sempre, em nossos devaneios, ela é um grande berço. Uma
metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples
fato, na medida em que ele é um valor, um grande valor ao qual
voltamos nos nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A
vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no regaço
da casa (BACHELARD, 2008, p. 26).
Ao pisar no chão da venda, penetra-se simbolicamente no espaço da
casa, portanto, os indivíduos sentem-se em um lugar que acolhe e protege; invadir
esse espaço ou desrespeitá-lo é pertubar a paz, pois o espaço destas lojas rurais é
sentido de forma sentimental pela maioria dos fregueses, visto que compõe as
memórias afetivas de muitos que cresceram frequentando a venda, conhecendo o
vendeiro e suas famílias.
Para Bachelard (2008, p.64), ―a casa é um espaço que deve condensar e
defender a intimidade‖. A ideia de privacidade remete a um estado no qual o
indivíduo pode exercer sua intimidade sem se preocupar que outros estejam
observando ou censurando, é sentir-se à vontade. Dessa forma, comportamentos
ofensivos, que agridam a intimidade e o sossego dos fregueses são reprováveis; e
agir, no espaço da venda, como se estivesse na rua é um comportamento
inaceitável.
Tanto a parte externa quanto a interna do balcão não propiciam plena
privacidade. Mesmo representando um limite entre o público e privado, divisar tais
instâncias é uma tarefa inexata. O balcão constitui uma meia barreira, ele permite
visualizar as ações do vendeiro, seus procedimentos, quem entra e sai daquele
ambiente, da mesma forma que o comerciante também o faz em relação à parte
39
externa. Por outro lado, se alguém, sem permissão, pular o balcão será visto como
um invasor quebrando a regra de convivência que permeia a conduta moral daquele
ambiente. Mais que isso, é invasão à propriedade privada, assim como à intimidade
do vendeiro; a parte interna é o seu lugar de atuação, onde ele e sua família
circulam. Até porque muitas vendas são conectadas à própria casa do vendeiro,
quase sempre por uma porta que dá acesso aos dois espaços, o que chamo aqui de
fundos da venda, o lugar, realmente, de privacidade dos proprietários dessas casas
comercias.
As diversas espacialidades, funções e representações das vendas que
existiam no Tabuleiro faziam delas um difusor de sensações aos sentidos com
cheiros típicos, vindos das carnes salgadas espalhadas no balcão, das cachaças,
das especiarias espalhadas em sacos pelo chão, um cheiro misto de cravo e cacau,
além das cores diversas configuradas pelas mercadorias dispostas nas prateleiras,
pelos doces expostos em frasqueiras giratórias cujo movimento encantava as
crianças, fazendo-as sonhar e salivar com as guloseimas. Sem contar as sensações
tácteis dos objetos dispostos no ambiente, enfim, a venda funcionava como um
espaço sinestésico, e como uma porta de entrada das novidades, fossem
tecnológicas ou dos noticiários referentes aos últimos acontecimentos no Brasil ou
no mundo.
Em consonância com a ideia de espaço da novidade, voltando à análise
da fotografia (Foto 01), é perceptível a introdução de elementos da modernização no
espaço da venda como frízeres, televisão e balança digital, entre outros,
evidenciando melhoramentos cnicos dos instrumentos de trabalho do vendeiro,
possibilitados, em parte, pela chegada da luz elétrica no povoado em 1979
3
.
Aliás, o fato da venda do Sr. Juvenal ter conseguido se modernizar e, ao
mesmo tempo, ter aliado sua prática comercial ao antigo sistema de socialização do
homem do campo podem ter sido fatores que fizeram com que sua venda tenha se
mantido por mais de trinta anos em funcionamento, com uma freguesia ―fiel‖,
enquanto esteve em atividade. Como afirma Certeau (1996, p.120), ao se referir às
pequenas mercearias tradicionais dos bairros franceses, ―a modernização suscita
sempre alguma desconfiança quanto à qualidade dos produtos; a padronização, a
3
A luz elétrica chegou ao Tabuleiro em 1979, devido à iniciativa de alguns moradores que recorreram
aos serviços da Companhia Baiana de Eletrificação Rural. Informações retiradas do contrato do
proprietário da Venda Santa Ana. Cf: COBER, Contrato n º 1623/79.
40
mercadoria previamente embalada, todos esses processos na apresentação dos
alimentos que inquietam o freguês ante as mudanças. Portanto, foi justamente o
equilíbrio entre o novo e o antigo que evitou uma ruptura simbólica entre aquilo que
as vendas representam com toda sua tradição e as inovações trazidas pela
introdução gradativa de elementos modernizantes.
A chegada da televisão, no entanto, foi sentida pela população local de
uma forma bastante significativa. Abriu-se um mundo de possibilidades. A venda
passou a oferecer não só mais um meio de distração e lazer, mas um portal para um
mundo da cultura de massa. As novelas, o telejornalismo, os filmes e desenhos
animados passaram a adentrar naquele ―universo rural‖, mudando costumes,
interferindo nas práticas sociais. Assim a senhora Aurineide Thethê descreve a
novidade da TV:
, ia os meninos assistir televisão, outros eu vou assistir o jornal.
vinha pra venda ver televisão, assistir novela. Tinha uma novela
chamada Marrom Glacê que o povo já gostava de assistir essa
novela, foi logo quando botou televisão aqui (Aurineide Thethê, 50
anos, entrevista em 14/04/2007).
Hobsbawn (1994, p.300) comenta como o fenômeno da televisão chegava
às populações de países mais pobres, a partir da segunda metade século XX, por
meio de espaços públicos, que aglutinavam as pessoas diante da ―caixa mágica‖, já
que os primeiros aparelhos de televisão eram caros e, por conseguinte, não
acessíveis a todos. Ir a lugares públicos como bares, clubes, praças para ver TV
tornou-se um costume de muitos, no início atraídos pela novidade da tecnológica,
depois pelo hábito ou, quem sabe, ver TV só era mais um pretexto para sair,
encontrar gente nos lugares públicos.
A chegada da TV é um exemplo dos impactos causados pela introdução
de elementos modernizantes no espaço da venda, que funcionava como uma
espécie de catalisador das transformações sociais do povoado, na medida em que
havia uma interação entre os sujeitos e o lugar, através de formas de apropriação,
utilização e ocupação do ambiente físico da venda. Se fosse definir o espaço das
vendas, diria que sua geografia é emocional desde quando ele é ressignificado
sentimentalmente pelos indivíduos enquanto construção social.
41
1.2 A VENDA E SUAS MÚLTIPLAS FUNÇÕES
As lojas das roças, como Guimarães Rosa (1969) trata as vendas no
conto ―A estória do homem do pinguelo‖, caracteriza-se pela diversidade de funções.
No Tabuleiro, elas deveriam atender às necessidades de consumo dos moradores e
absorver a produção agrícola da região, por isso o ambiente da venda teve que se
adaptar a tais necessidades. As vendas, comumente, agregavam no mesmo espaço
as funções de armazém, açougue e, até mesmo, casa de jogos e, por conseguinte, o
próprio vendeiro acabava assumindo diversos papéis.
O Sr. Carmerino Thethê (1925 - 2008), que viveu toda sua vida no campo,
sempre de chapéu na cabeça e vestido com camisa de manga e calça de linho,
gostava de andar sempre alinhado e, por anos, participou da vida cotidiana do
Tabuleiro, assim descreveu como se davam as relações comerciais nas vendas:
O povo leva mercadoria pra vender, levava coisa pra vender na
venda e trazer mercadoria da venda. Vendia e comprava, que tinha
armazém. A mesma venda servia de armazém, comprava a farinha,
comprava o café, comprava o cacau, comprava fumo, nesse tempo
tinha fumo! Comprava fumo e comprava mercadoria na venda. Isto
tudo eu arcancei; às vezes ia e não. Levava o dinheiro, levava as
mercadoria nos animá. Vendia e comprava mercadoria (
Carmerino
Thethê (1925 2008), entrevista em 16/03/2003).
Com essas palavras, o Sr. Carmerino Thethê traduz o papel da venda
como instrumento elementar da troca‖, termo usado por Fernand Braudel (1998)
para se referir às trocas comerciais que escapam ao grande mercado, que as
estatísticas não controlam, uma espécie de ―civilização material‖, que compõe ―esta
infraeconomia, esta outra metade informal da atividade, a da autossuficiência, da
troca dos produtos e dos serviços num raio muito curto‖
(BRAUDEL,1997, p.51).
Isto é perceptível numa pesquisa encomendada pelo SEBRAE-BA
(Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Bahia) em 1995, na qual a
microrregião do Vale do Jiquiriçá, onde o município de Mutuípe se localiza, é
apontada como uma região de produção predominantemente agrícola, em que os
sistemas de comercialização adotados diferem em se tratando de pequenos ou
médios/grandes produtores.
42
Os maiores produtores realizam a comercialização da sua produção
com intermediários tradicionais ou, em condições adversas de
preços, levam o produto diretamente ao mercado. os pequenos,
por falta de maior poder e barganha, entregam o resultado da sua
atividade aos ―bodegueiros‖
4
ou ―caminhoneiros‖ sempre presentes
às feiras municipais. (SEBRAE, 1995, p.51)
Os vendeiros exerciam a função de intermediários das trocas
5
, limitando-
se a comprar e vender sem fabricar com as mãos a maior parte daquilo que
ofereciam. Os trabalhadores rurais (maioria de seus clientes), pelo contrário,
vendiam seus gêneros agrícolas e compravam imediatamente as mercadorias que
necessitavam nos próprios estabelecimentos ou em outros locais, como já foi
relatado pelo Sr. Carmerino que ―levava as mercadoria no animá, vendia e comprava
mercadoria‖, ou seja, era uma relação direta. Os lavradores com pouco poder
aquisitivo não tinham como segurar os produtos e esperar a elevação dos preços.
Não obstante, pelo menos até a década de 1960, era difícil o acesso à cidade de
Mutuípe, devido às dificuldades de locomoção e dada à precariedade das estradas,
as vendas acabavam surgindo como opções mais ―confortáveis‖ para comerciarem;
porém, é preciso salientar que isso não era regra geral, muitos encontravam outras
formas de negociar seus produtos.
A diversidade de produtos pode ter contribuído para que os moradores e
trabalhadores rurais procurassem com mais frequência as vendas do Tabuleiro e
não o comércio da cidade. Durante as entrevistas com vendeiros ou ex-vendeiros do
povoado, quase todos demonstraram a preocupação em fornecer ―de tudo um
pouco‖ para a população local, atendendo às necessidades dos consumidores,
vendendo desde alimentos, ferramentas usadas no campo a remédios, pra citar
alguns exemplos.
Para o Sr. José Gonçalves, tocador de violão‖, vendeiro no Tabuleiro,
entre as décadas de 1960 a 1990, a venda deveria estar sempre sortida:
Era carne, era sabão, era açúcar, era feijão, era arroz e mais alguns
cereais. De tudo a gente botava: manteiga, cachaça, fumo de corda,
cigarro. Isso é as coisas da venda. Comprimido, ali, para febre, dor
de cabeça, essas coisa, gripe. Tudo a gente botava, retalho. Sabe?
4
Bodegueiros é outra denominação dada aos donos de vendas da região.
5
Conferir referência feita por Braudel aos lojistas europeus do século XVIII, como intermediários das
trocas, insinuando-se entre os produtores e compradores, sem quase nunca fabricarem com suas
mãos o que vendiam. Atividade semelhante a do vendeiro, como pequeno comerciante que é. Cf:
Civilização Material, Economia e Capitalismo séculos XV XVIII: Os jogos das trocas. v.2, p. 48.
43
(José Gonçalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em
19/01/2003).
O princípio de fornecer ―de tudo um pouco‖ nas vendas foi apreendido no,
já citado, conto do escritor Guimarães Rosa (1969), ―A estória do homem do
pinguelo‖. Rosa relata o cotidiano de um vendeiro chamado Cesarino, que havia
herdado a venda do pai e vivia em um arraial, nas palavras do autor, em um
―princípio de mundo‖ cercado de campos e tabuleiros. No conto, Cesarino é descrito
como um homem querido de todos, influente no lugar, mas que tamm sofria com
as dívidas e concorrência de outras casas comerciais. Ao descrever o cotidiano das
vendas, as prosas ―ao do balcão‖, o ritual dos bebedores, Rosa (1969, p.107)
destacou como as vendas em sua essência deveriam ser sortidas de produtos ao se
referir aos ―estoques de uma loja da roça, onde de tudo armarinho, fazendas,
ferragens, armas, secos e molhados gêneros, toucinho, artigos fúnebres, tinta,
cadernos, panelas e velas‖.
Na fala do Sr. Pedro Andrade, ex-vendeiro do Tabuleiro e agricultor
famoso por ser um exímio contador de ―causos‖, ele descortina uma realidade que
se aproxima daquela que se configura na ficção de Rosa (1969): ―eu vendia secos e
molhados e comprava cereais. Matava boi, matava porco. Tinha casa de jogo, tudo
que participava da diversão eu tamm tinha e supria o povo‖ (Pedro Andrade, 75
anos, entrevista em 06/07/2003).
A variedade de funções e de produtos comercializados por essas lojas
das roças traz à tona alguns questionamentos. Como as mercadorias eram
adquiridas? De que formam chegavam ao povoado? A resposta para tais
questionamentos remete a uma reflexão sobre o acesso que os vendeiros tinham
aos meios de transporte, à dificuldade de localização do povoado e sobre a própria
rota percorrida pelos produtos até chegarem ao Tabuleiro e, consequentemente, a
sua população. Além do que, é preciso observar as mudanças de infraestrutura
ocorridas no povoado a partir da segunda metade do século XX, reflexo de
transformações em nível nacional que interferiram no acesso às mercadorias e em
antigos costumes e tradições.
Até a década de 1960 as mercadorias chegavam ao Tabuleiro, quase
sempre, transportadas por mulas, cavalos ou jumentos que os vendeiros possuíam.
Eles mesmos iam até à cidade montados nos animais, carregando-os de
44
mercadorias nos armazéns, que, por sua vez, adquiriam os produtos chegados
através da já decadente Estrada de Ferro de Nazaré, que cortava o município de
Mutuípe, ou nas mãos dos tropeiros que trabalhavam para os donos dos armazéns,
trazendo os produtos de regiões vizinhas; e como relembra Sr. José Gonçalves,
―tropeiro era nós mesmo‖, e ele continua:
[As mercadorias] vinha daqui de Mutuípe, nesse tempo não tinha
nem estrada diretamente, a gente andava era no lombo dos animá,
tanto eu quanto Maninho. A gente muntava no meio da cangalha,
botava panacum
6
e tudo, ia buscar as coisas (José Gonçalves de
Oliveira, 87 anos de idade, entrevista em 19/01/2003).
O Sr. Carmerino Thethê, em outro trecho de sua entrevista, narra com
riqueza de detalhes a maneira como os vendeiros adquiriam as mercadorias:
A mercadoria da venda vinha de Laje, vinha de Mutuípe, vinha de
Valença, vinha de todo o canto, em lombo de animá, ia buscar de
lombo de animá! A estrada de ferro trazia, botava em Laje, o trem de
ferro botava em Mutuípe, era carregado pelo trem de ferro. Agora, de
Mutuípe pra cá, vinha em lombo de animá, porque não tinha estrada
de carro, nesse tempo não havia carro, burro mesmo (Carmerino
Thethê (1925-2008), entrevista em 16/03/2003).
A Estrada de Ferro de Nazaré foi, durante o período que esteve em
atividade (1875-1971), uma das grandes responsáveis pelo transporte de
mercadorias e passageiros na região do Recôncavo Sul, território historicamente
caracterizado pela policultura de subsistência, durante o século XIX, integrando o
chamado Recôncavo da Subsistência‖, como aponta Ana Maria Oliveira (2000, p.
57-58). A Estrada de Ferro servia para escoar a produção de fumo, mandioca, cana-
de-açúcar, entre outros, produzidos por trabalhadores rurais e por pequenos e
médios proprietários de terras.
Na segunda metade do século XX, a região do Recôncavo Sul
permanecia predominantemente agropastoril com destaque para os cultivos
permanentes do café e do cacau e para a pecuária bovina; mas, o cultivo do café
vinha sofrendo um processo de decadência das suas atividades produtivas desde os
anos de 1930 quando foi proibida por portaria governamental a exportação do café
6
Panacum é um grande cesto feito de cipó.
45
de terreiro (SEBRAE, 1995, p. 60-70). Somado a isso, a decadente Estrada de Ferro
Nazaré estava em processo de desativação, deflagrando uma crise econômica na
região, que os principais fatores de progresso alcançado por seus municípios no
início do século XX estavam em crise, dando lugar a outras formas de produção e
transporte.
Os anos 60 do século XX se configuravam como um período de transição,
estavam surgindo novos lugares de memória. A Estrada de Ferro de Nazaré, cujos
trilhos chegaram a Mutuípe em janeiro de 1905
7
, interrompeu suas atividades na
década de 1960, na cidade, devido, sobretudo, à ―concorrência sempre crescente do
transporte rodoviário, absorvendo parcelas cada vez maiores do transporte que até
então vinha sendo realizado pela Estrada [de ferro]‖ (CARLLETO, 1997, p.79). A
ferrovia perdia sua importância como elemento dinamizador da economia, cedendo
seu espaço para as rodovias no escoamento da produção. Os trilhos foram
arrancados para dar lugar ao asfalto da BA-420, que veio a ser denominada
posteriormente aGrande Avenida do Vale do Jiquiriçá‖, expressando o pensamento
progressista da época (SEBRAE, 1995, p. 60-70).
No Tabuleiro, os melhoramentos nos meios de transporte chegaram com
a abertura de uma estrada de rodagem a braço‖
8
, ligando o povoado à sede do
município, substituindo o antigo caminho ―cheio de degrau, dos burros andar‖, como
rememorou Sr. Carmerino Thethê. Essa estrada facilitou o acesso de automóveis ao
Tabuleiro e a própria ida dos moradores à cidade, resultando em duas mudanças
relevantes: a gradativa diminuição do tropismo
9
na região, dada à facilidade de
transporte das mercadorias, ocasionada pela maior circulação de automóveis de
1970 a 1980; e as transformações de antigas tradições dos homens do campo,
como o simples costume de caminhar descalço nas trilhas para não sujar os sapatos
nem as roupas que foi escasseando à medida que carros de passageiros facilitaram
a locomoção dos moradores das zonas rurais.
7
Segundo Helena Rebouças, a Estrada de Ferro de Nazaré chegou a município de Mutuípe em
Janeiro de 1905. Cf: Mutuípe, pioneiros e descendentes. Salvador: Editora Universitária Americana,
1992, p. 14.
8
Segundo o Sr. José Gonçalves, a abertura dessa estrada se deu no final dos anos 60, e a
expressão ―estrada de rodagem a braço enfatiza que a estrada ligando o Tabuleiro à sede do
município de Mutuípe foi construída com a força de trabalho humano sem a utilização de maquinário
pesado.
9
Para melhor entender o processo de decadência do tropismo na região do Vale do Jiquiriçá Cf:
SANTANA, Maria Lúcia. Tropismo no Vale do Jiquiriçá: trabalho, memória e cultua 1950-1960.
(Monografia de Graduação). Local: UNEB, 2002, p. 5-48.
46
Raymond Willians (1979, p.387) argumenta que ―o campo e a cidade são
realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-
relações‖. Portanto, os processos de transformação desencadeados tanto nos
espaços rurais quanto nos urbanos refletiram sobre a vida da população do
Tabuleiro.
As mudanças em valores e práticas inventadas e reinventadas pelo
homem ativo do campo vislumbravam um momento histórico de modificações no
povoado, em que a cidade e o campo estabeleciam intensas trocas sociais, culturais
e econômicas.
1.3 VENDEIROS E FREGUESES: UMA RELAÇÃO MARCADA PELA ÉTICA
RURAL
As relações econômicas estabelecidas entre o vendeiro e seus clientes
(na maioria trabalhadores rurais) eram permeadas por costumes e valores que,
muitas vezes, dispensavam a assinatura de documentos comprovante das dívidas,
ou da compra e venda de qualquer produto. Bastava a ―palavra‖, a confiança selada
num aperto de mão, num olhar ou numa simples promessa de quitação da dívida,
constituindo uma espécie de ―ética rural‖, sustentada numa longa tradição rural.
Muitos vendeiros registravam em cadernetas as compras ―a fiado‖ dos
fregueses. No caso do Tabuleiro, a maioria dos comerciantes sinalizou não usar
cadernetas, mas cadernos de anotações ou papéis soltos que registravam as
dívidas e eram pendurados em pregos, daí o a famosa frase dita por aqueles que
queriam comprar a crédito: ―pendura a conta‖. Alguns improvisavam formas de
guardá-los, como usar pregadores de roupa ou elásticos para unir os vales de
compra e venda.
Sobre os cadernos de anotações das dívidas, todos os ex-vendeiros do
Tabuleiro afirmaram não mais os possuírem, depois que acabaram com os
negócios, os bitos foram quitados ou esquecidos, os cadernos e os vales perdiam
seu valor e eram queimados ou rasgados. Dos registros das formas de negociar nas
47
vendas do Tabuleiro, apenas alguns recibos cedidos pela Sra. Aurineide foram
conservados, observe:
O vale mostra como os negócios eram feitos dentro de um clima de
confiança e informalismo. está registrado que um senhor de nome Mangueira
deixou 87 kg de cacau na venda do Sr. Juvenal. O recibo ficava nas mãos do
freguês, comprovando que o vendeiro devia a quantia em dinheiro correspondente
às arroubas ou quilos de cacau. Nesse recibo consta que Sr. Mangueira recebeu em
dinheiro o valor correspondente a 30 kg de cacau, restando 57 kg dos 87 kg que
deixou e, por fim, toda a quantia foi paga, ficando o vale retido na venda, como
controle do vendeiro dos negócios quitados.
No vale, nota-se que apenas a assinatura do vendeiro, muitas vezes
as pessoas pegavam empréstimos nas vendas e não eram cobrados juros, nem os
assinavam. Constar uma assinatura ou não no papel era apenas uma formalidade,
que não garantia o pagamento nem o recebimento do valor devido. O próprio papel
não apresenta timbres, nem o nome do estabelecimento comercial, tampouco
números de registros legais frente aos órgãos de fiscalização do governo. Os
negócios aconteciam mais num clima de confiança, as próprias vendas raramente
Figura 01 - Vale do peso de cacau assinado pelo vendeiro
Juvenal Santos Andrade da Venda Santa Ana.
Fonte: Acervo pessoal de Aurineide Thethê Andrade,
10/05/2001.
48
funcionavam legalmente, até mesmo cobrar dívidas não era uma tarefa cil dado os
costumes que permeavam as relações comercias.
O vendeiro é um ―comerciante, numa situação de pequeno capitalista,
vive entre os que lhe devem dinheiro e aqueles a quem ele deve. É um equilíbrio
precário, sempre à beira da derrocada‖ (BRAUDEL, 1998, p.57). Cobrar as dívidas
era ao mesmo tempo uma obrigação e uma tarefa difícil, devido os costumes que
envolviam as relações entre ele e seus fregueses. Muitos comerciantes ficavam
constrangidos em cobrar, outros temiam que os fregueses ficassem ofendidos e
abandonassem seus estabelecimentos comerciais, até mesmo, sem pagar a conta,
como explicitaram os vendeiros, ao se referirem as cobranças como ―uma tarefa
muito difícil‖, conforme relata Dona Aurineide; tamm o Sr. José diz que ―tinha
gente que queria até bater na gente‖, e o Sr. Pedro afirma: ―eu tinha vergonha de
cobrar‖. Tão delicada era a situação da cobrança de dívidas que a experiência
marcou Sr. José:
Cobrava, uns dava pra valente, queria até bater na gente, mas a
gente ia atravessando. Teve um dia que aquele Paulo Correia me
escorou na porta da venda porque eu fui cobrar uma conta, ele
escorou com uma espingarda veia, que se eu saísse fora, tinha ele
me atirado (José Gonçalves de Oliveira, 87 anos de idade, entrevista
em 19/01/2003).
As palavras difícil‖ e ―vergonha‖, na fala dos vendeiros, expressam como
eles se sentiam constrangidos em cobrar as dívidas, já que poderia significar uma
quebra de tradição; o que ajuda a entender a reação violenta do cliente na fala do
Sr. José Gonçalves, ao se sentir ofendido com a cobrança.
Os próprios vendeiros esperavam do cliente uma atitude honesta
saldando as dívidas. Portanto, não se pode entender suas atitudes fora do processo
histórico, pois tamm faziam parte daquele grupo e compartilhavam seus costumes
e práticas sociais. Muitos vendeiros nem chegavam a cobrar as contas que
envelheciam junto com o papel onde tinham sido registradas, talvez esperando o
pagamento, o cumprimento da palavra dada ou por temerem perder o cliente, que
poderia se ofender com a cobrança e suposto questionamento da sua honestidade.
Paradoxalmente, o vendeiro poderia optar por práticas desonestas,
recorrendo à malandragem e à esperteza para enganar os clientes no peso, na
medida ou no preço dos produtos. Para Franco (1997, p. 80-81), que pesquisou o
49
trabalho dos homens livres e escravos nas regiões de São Paulo e Rio de Janeiro no
auge da produção cafeeira no século XIX, o vendeiro recorria a tais expedientes,
porque sua atividade era vista como marginal e quase dispensável‖, procurando ao
máximo ―equilibrar por vias menos lícitas a falta de regularidade de seu negócio‖.
Em contrapartida, no povoado do Tabuleiro, os vendeiros, longe de
configurarem uma função marginal como naquela sociedade apontada por Franco
(1997), exerciam um papel preponderante na vida econômica e social do povoado,
dando-lhe ânimo e pulsação com suas vendas. O vendeiro poderia apelar ou não
para meios desonestos, mas isso dependeria tanto de suas necessidades
econômicas quanto de valores religiosos, morais e culturais que se manifestariam
em suas atitudes.
As dívidas foram apontadas pelos vendeiros como uma das principais
causas de prejuízos e, até mesmo, do fechamento de algumas vendas. Eles
precisavam pagar seus fornecedores e renovar o estoque de mercadorias. Todavia,
não podiam deixar de abrir crédito aos fregueses que não tinham dinheiro para
pagar à vista, principalmente os trabalhadores rurais que recebiam o pagamento por
dia de serviço prestado, como os que recebiam os salários semanalmente ou
mensalmente e havia os que dependiam das colheitas.
Alguns vendeiros alegaram que vendiam fiado porque se sensibilizavam
com a condição de miséria de algumas pessoas, como expressou o Sr. Pedro,
atribuindo às contas não pagas um dos fatores que o levaram a fechar sua venda:
Fiado era comum! Às pessoas que pensava a gente vendia e
recebia, e os velhaco a gente vendia, então, não recebia. A gente se
compadecia, porque estava passando miséria, vendia e perdia,
né?Aí, eu não guentei mais, desisti do negócio e vim trabalhar
novamente [no campo]. tomei conta daqui, fui comprando coisa,
juntando terra, fiz a fazendinha, hoje estou despreocupado (Pedro
Andrade, 75 anos, entrevista em 06/07/2003).
O vendeiro es intimamente ligado aos fregueses no que tange às
relações pessoais, compartilhando do mesmo espaço, experiências e valores
próprios daquele grupo social, evidenciando, muitas vezes, laços de solidariedade.
Sr. Pedro considera um dos causadores do fracasso de sua venda o fato de ter se
solidarizado com a miséria de certos clientes, cedendo-lhes crédito e não recebendo
de volta o dinheiro. Porém, isso não se pode estender a todos, muitos cobravam
50
suas dívidas sem qualquer constrangimento e não levavam em consideração
questões pessoais, embora a maior parte dos vendeiros tenha demonstrado essas
preocupações.
1.4 LUGARES DE PROSA
As vendas exerciam uma importante influência na vida da população do
Tabuleiro. Esses espaços de circulação de pessoas, abertos da manhã à noite,
todos os dias da semana, sem fechar para o almoço, significavam para os seus
frequentadores um momento de lazer e diversão. contavam os ―causos‖, bebiam
cachaça e discutiam os mais diversos temas possíveis do universo cultural das roças
e fora delas, tais como: ouviam notícias no rádio ou viam televisão, falavam de
acontecimentos políticos, nacionais e regionais, debatiam futebol, contavam piadas,
faziam adivinhações, falavam sobre a vida pessoal e alheia, criando significados,
valores e práticas para suas vidas, como lembra a Sra. Aurineide:
Aí, de tarde, como não tinha a violência que tem hoje, de tarde o
povo vinha tudo pra porta da venda, que chovesse ou que fizesse
sol. À boca da noite, a venda era cheia de gente, uns vinha comprar,
outros fazer a feira. Trabalhava o dia inteiro, aí quando era de noite,
às vezes, tinha alguma coisa pra vender ou farinha ou cacau, trazia
pra vender, outros vinha, fazia a feira, outros vinha comprar alguma
coisa que tava faltando em casa, outros vinha mesmo beber, tomar
uma cachacinha e contar piada. Outros vinha bestando mesmo, pra
o povo, pra ver todo mundo que tava e conversar à boca da noite.
E, às vezes, de dia, quando chegava assim... Antigamente vinha os
cavaiadeiros pra aqui. Na época de 60, 70 e 80 ainda vinha
cavaiadeiros aqui. o povo passava aqui, chegava por aqui pra
vender animal, barganhar, trocava, fazia barganha, um animal pelo
outro, por burro, por cavalo, por boi. Outra hora vendia por dinheiro,
fazia esse tipo de negócio, barganha. E, aí, de noite, os meninos
mais novo ia jogar sinuca, outros vinha jogar (Aurineide Thethê, 50
anos, entrevista em 14/04/2007).
As lembranças da Sra. Aurineide trazem à tona aspectos inerentes ao
cotidiano das vendas com destaque para a sua função social como ponto de
encontro privilegiado. Muitos se dirigiam para lá para fechar um contrato de meação,
51
recrutar trabalhadores para capinar um terreno, podar uma roça de cacau, consertar
uma cerca ou procurar o trabalho de um pedreiro. Outros iam permutar animais e
objetos, tratar de compra e venda de terras ou deixar um recado. As vendas
tornavam-se um ponto de referência em qualquer vilarejo, não só no Tabuleiro.
A Sra. Aurineide relembra, também, como a venda era ponto de chegada
de viajantes. No Tabuleiro os ―cavaiadeiros‖, negociantes de gado bovino, equino e
asinino, que vinham do sertão da Bahia, conduzindo tropas animais para revender
ou permutar, é um exemplo daqueles que procuravam as vendas para se
abastecerem de mantimentos e se divertirem, assim como negociar os animais,
fosse através da barganha ou compra e venda de objetos, produtos e outros
animais.
As vendas sempre foram lugares de pousada e descanso de viajantes.
Numa expedição que empreendeu pela América do Sul, passando pelo Brasil, em
1832, Charles Darwin teve que inevitavelmente recorrer a uma pequena venda da
cidade de Mangaratiba no Rio de Janeiro. Faminto e carente de descanso, Darwin
escreveu no seu diário, cujo trecho foi transcrito por Cascudo (2003, p. 103-104),
suas impressões e experiência com a venda:
Em Mangaratiba há uma venda; quero demonstrar o meu
agradecimento pela excelente comida que ali me deram (comida que
constitui uma exceção, aí! Bem rara), descrevendo esta venda como
tipo de todas as hospedarias do país. Estas casas, comumente
grandes, estão construídas todas elas da mesma forma: cravam
postes no solo e entretecem ramos de árvores entre eles e cobrem
tudo de uma camada de barro. Raro é encontrar-se em bom estado.
A fachada, que se deixa aberta, forma uma espécie de átrio onde se
colocam bancos e mesas. Todos os dormitórios comunicam uns com
os outros, e o viajante dorme como pode sobre uma tarimba de
madeira coberta com um mau enxergão. A venda está sempre no
meio de um grande cercado ou pátio onde prendem os cavalos.
Nosso primeiro cuidado ao chegar consiste em desincilhar nossos
cavalos e dar-lhes ração. Feito isto, aproximamo-nos do hospedeiro,
saudamo-lo profundamente, pedimos que tivesse a bondade de dar-
nos alguma cousa para comer. ―Tudo quanto os senhores
desejarem!‖, respondeu. Apressei-me a dar graças infinitas à
Providencia por nos haver conduzido a um homem tão amável.-
Podia o senhor dar-nos peixe? Oh! Não temos! E sopa?
Também não! E pão? Oh! Não senhor, não há! E carne? Oh
senhor, o há! Ficamos muito satisfeitos porque ao cabo de duas
horas de espera conseguimos aves do galinheiro, arroz e farinha. E
até necessitamos de matar a pedrada as galinhas que nos foram
servidas.
52
Observa-se que a venda descrita por Darwin, foge, naquele momento, a
sua essência de fornecer ―de tudo um pouco‖, obrigando-o a matar a pedradas a
galinha que foi o prato principal de sua refeição. O naturalista detalhou ricamente a
constituição física do espaço da venda e trouxe um aspecto importante, que difere o
estabelecimento comercial por ele descrito aos do Tabuleiro, a função de
hospedaria. Muitas vendas serviam como estalagens aos viajantes em uma época
que o Brasil era um grande país rural e nos vilarejos e cidades do interior as vendas
tornavam-se um oasis àqueles cujo corpo reclamava descanso e alimento.
Consoante à ideia de espaço de sociabilidade, notava-se a presença do
jogo nas vendas, fosse do bicho ou de cartas. A maior parte delas oferecia esse tipo
de divertimento, mesmo que proibido o jogo de azar. No decreto lei nº 9. 215, de 30
de abril de 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra proibiu a prática e a exploração
de jogos de azar em todo o território nacional reafirmando o que previa a lei de
Contraversões Penais de 1941, que já proibia os jogos de azar
10
. O fato é que essas
leis nunca foram plenamente respeitadas, os jogos de bicho e de cartas eram
constantes no Brasil. Vários entrevistados narraram episódios envolvendo as
tentativas da polícia de coibir o jogo, quase sempre sem sucesso, que muitos
fugiam às batidas policiais ou jogavam escondido para evitar possíveis multas e
prisões.
Rememora Sr. Pedro: ―eu mesmo botei jogo no meio da estrada. Botava
baralho com uma bua no meio da estrada, visando se a polícia vim, corre todo
mundo, deixa a tábua e o baralho. Não tem casa, não tem dono‖ (Pedro Andrade, 75
anos, entrevista em 06/07/2003). A fala do senhor Pedro traz consigo um aspecto
comum ao que Certeau (1994. p.94) nomeia de ―jogos de astúcias‖, ―artes de fazer‖,
práticas silenciosas que operam microrresistências cotidianas, muitas vezes sem
objetivos políticos determinados. Inúmeras eram essas ações burlescas. O Senhor
Manuel Amado, ex-vendeiro no Tabuleiro e ―tocador de sanfona, lembra com risos
as noites em que
O povo jogava por dentro da vagem, cendendo vela, enfrentando o
diabo, mas jogava. No Tabuleiro a gente jogava por baixo das
bananeira, mas jogava! Enquanto tiver um baralho não tem jeito, a
fábrica não fecha (Manuel Amado, 75 anos, entrevista em
16/07/2003).
10
Senado Federal: http://www.senado.gov.br. Consulta: julho de 2009.
53
A resistência às medidas coercitivas da justiça, usando de esperteza para
continuar praticando os jogos, torna esses homens jogadores que brincam e
ganham com uma jogada de mestre o jogo proposto pelo próprio sistema dominante.
A teimosia em manter os jogos vai muito além de um aparente vício. A presença
dos jogos nas vendas reitera não sua função como espaço de lazer, assim como
proporciona uma evasão da vida real, pois, como observa Huizinga (2001, p. 12), o
jogo é um momento de intervalo na rotina cotidiana, mesmo que sua frequência se
torne um complemento, em última análise uma parte integrante da vida em geral,
assumindo uma função cultural. Seria um momento no qual a existência real seria
suspensa, uma fuga permeada pela liberdade, qualidade intrínseca aos jogos. Como
lembra Huizinga (2001, p. 11),
É possível em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo. Jamais
é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral, e nunca
constitui uma tarefa, sendo sempre praticado nas ‗horas de ócio(...)
à primeira das características fundamentais do jogo: é que o jogo não
é vida ‗corrente‘ nem ‗real‘. Pelo contrario trata-se de uma evasão da
vida ‗real‘ para uma esfera temporária de atividades com orientação
própria.
O jogo do bicho nas vendas significava um desses momentos onde a vida
real e o mundo dos sonhos interagiam. Durante todo o dia os fregueses chegavam
narrando os sonhos que tiveram na noite anterior ou fazendo associações com
formas de bichos reveladas nos formatos das nuvens ou nas manchas de cuspe
pelo chão. Aos apostadores, todos os sinais poderiam significar a certa‖ e o
consequente acerto do bicho. Segundo Sr. Carmerino Thethê, ―fazer a fé‖ era
―quando eu tinha um sonho, ou via arguma coisa que me lembrava algum bicho, eu
corria pra fazer uma fezinha, sempre em sempre eu ganhava um dinheirinho‖
(
Carmerino Thethê (1925 2008), entrevista em 16/03/2003).
Normalmente, entre os apostadores de jogos de azar, costuma se dizer
―jogar a sorte‖ quando se faz uma aposta, no caso dos jogadores do bicho a
expressão mais usada é ―fazer uma fé‖. O termo remete a uma crença na
intervenção divina na escolha certa do bicho. Segundo Magalhães (2005, p.126),
que desenvolveu um estudo sobre o jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro na
virada do século XX e suas primeiras décadas, os apostadores recorriam às rezas,
magias e amuletos na caça aos bichos‖. Buscava-se, tamm, no sincretismo
54
religioso a arma que mataria o bicho‖ certo, ―assim a Virgem Maria, Jesus Cristo,
Jurema, os Caboclos e os Exús se combinariam para ajudar o apostador na sua
fezinha‖.
Os jogos nas vendas do Tabuleiro com apostas em dinheiro podiam
resultar em brigas. Havia jogadores que não suportavam perder, surgiam acusações
de trapaças e isso podia incorrer no ajuste violento da rixa. Segundo Chalhoub
(1986, p. 214), a ação violenta de muitos sujeitos nos jogos que ocorrem em bares
ou em outros locais públicos podiam ter antecedentes em conflitos passados. O
momento de interação, promovido por espaços dados a atividades de lazer e
diversão, acabava propiciando o contato entre as pessoas, surgindo a ocasião
oportuna para despertar ou ajustar intencionalmente ódios e rivalidades que vinham
de antes.
O desfecho violento dos jogos descortina outro aspecto apontado por
Huizinga (2001 p.14-15): a quebra da magia do jogo. Todo jogo possui suas regras,
são essas que determinam aquilo que ―vale‖ dentro do jogo. E o jogador que
desrespeita a regra é um ―desmancha-prazeres‖; ao quebrar as normas ele quebra a
magia do jogo, o mundo encantado que o faz fascinante. O ―desmancha-prazeres‖,
portanto, é um covarde e precisa ser expulso. Os trapaceiros, segundo o autor, têm
mais sorte que os ―desmancha-prazeres‖, porque pior que burlar o jogo é cometer o
ato imperdoável de quebrar a magia.
O Sr. Pedro Andrade, como bom narrador, trazendo em suas falas
sempre um ensinamento moral, como salienta Benjamin (1993, p.200), expõe suas
impressões a respeito das brigas nas vendas:
Naquele tempo existia muita confusão! Mas no lugar que eu lutava
parece que o povo tinha amor a mim ou me respeitava, porque nunca
registrou uma briga numa venda que eu botava... Botava bebida,
cachaça, era jogo, coisas que não prestava. Mas nunca registrou
uma briga, pois quando começava uma briga, uma confusão, eu
falava: ―Isso aqui nem começa nem termina. Aqui não começa briga
nem termina, porque quem tiver sua rixa é onde começou, não é na
minha casa, por isso aqui é um ponto de prosa não de briga (Pedro
Andrade, 75 anos, entrevista em 06/07/2003).
As lembranças sobre as brigas nas vendas mostraram-se conflitantes, as
impressões eram diversas. Alguns apontaram que havia muitas brigas, como
enfatiza Sr. Domingos de Andrade (63 anos, entrevista em 19/08/2009): ―venda é o
55
que tem: briga e cachaça‖. Mas reitera, era briga de porta de venda‖, como sendo
parte do cotidiano das vendas. Sr. Pedro observa, segundo sua experiência de
vendeiro, a não existência de brigas nos lugares onde ―lutava‖ (trabalhava) e atribuía
isso às relações de afeto e compadecimento que os fregueses mantinham com ele
e, até mesmo, a sua postura impositiva naquele espaço evitando o desfecho violento
de conflitos.
As impressões desses sujeitos são uma amostragem das diversas
observações a respeito das brigas no espaço das vendas. Porém, é necessário
salientar que são impressões individuais que, mesmo carregadas de uma memória
social, foram tecidas pelos sujeitos a partir de suas experiências particulares. A
memória não é fixa, ela varia constantemente conforme a atuação dos indivíduos na
vida cotidiana. Heller (1992, p. 17) destaca que: ―o homem participa da vida
cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade.‖ Daí
decorre tantas impressões sobre um mesmo aspecto, pois suas rememorações
projetam suas paixões, seus desejos e sonhos, como no momento que Sr. Pedro, na
narrativa, se projeta como alguém que conseguia impedir as brigas na sua venda
com a simples imposição de sua presença, talvez, conduzindo sua fala no sentido de
enfatizar seu papel de destaque.
Na mesma entrevista, o Sr. Pedro Andrade define as vendas como ―ponto
de prosa‖, aspecto que foi apreendido na fotografia abaixo da venda do Sr. Jo
Gonçalves (no centro da fotografia tocando violão), no início dos anos 80 do século
XX. Ela retrata a visita de Pedro Alves (atima pessoa da direita para a esquerda),
então prefeito da cidade Mutuípe ao povoado, recebido por alguns moradores com
uma ―cantoria‖, prática frequente nas vendas do Tabuleiro.
56
Foto 02 Cantoria na venda do Sr. José Gonçalves.
Fonte: Acervo pessoal do Sr. José Gonçalves.
Na fotografia tirada em primeiro plano, o fotógrafo usou uma distância
capaz de capturar a imagem daqueles que tocavam, assim como o ambiente da
venda. No entanto, a ação do tempo estragou algumas partes da imagem, sobretudo
as que revelam detalhes do balcão e das prateleiras. Além do que, foi preciso retirar
as bordas danificadas da fotografia para possibilitar salvar o máximo possível da
parte legível, o centro; assim, a manipulação comprometeu o sentido da foto, que
ocultou elementos importantes da imagem. De qualquer forma, ela conseguiu
capturar um momento em que a venda congregava moradores e fregueses no
povoado do Tabuleiro, reafirmando sua função sociabilizadora.
Da imagem, percebem-se como as ―cantorias‖ que aconteciam na venda
não seguiam um ritual e muito menos eram solenes. Os indivíduos não mudaram
sua forma de ser; agiram naturalmente diante do então prefeito da cidade de
Mutuípe, com as práticas que lhe eram comuns, sem preocupação com trajes ou
comportamentos ditos apropriados. Essa atitude também foi mútua por parte do
prefeito ao integrar-se aquele grupo de pessoas. No momento da conversa, da
cantoria, o universo cultural e mental de cada um se encontrava. O prefeito, por
exemplo, poderia trazer experiências citadinas àquele espaço rural, ao mesmo
tempo em que compartilhava com os homens do campo valores culturais próprios.
57
A venda, tamm, era um espaço que congregava a diversidade étnico
racial. Na imagem nota-se a pluralidade racial dos moradores do lugar. A população
de trabalhadores rurais e fazendeiros era formada por negros, brancos e mestiços,
convivendo nos mesmos espaços. Revelam-se aspectos da formação histórica do
lugar, principalmente, do Recôncavo Sul da Bahia, que, segundo Oliveira (2000,
p.57-71), absorveu ex-escravos que passaram a se dedicar à policultura de
alimentos, assim como foi um lugar que privilegiou a lavoura familiar, com
propriedades em sua maioria de pequeno e médio porte, com pessoas das mais
diferentes etnias.
Ainda em relação à imagem, é perceptível a diversidade social dos
fregueses revelada nos trajes, nos calçados, chinelos de couro ou sandálias de
borracha, nos chapéus de feltro, palha ou boina usados por alguns. Segundo
Stallybrass (2008, p.10), as roupas ―literalmente nos habitam através dos hábitos
que nos legam‖. Elas são carregadas de simbologias que corporificam relações
sociais. Na imagem, os trajes dos indivíduos trazem consigo suas histórias de vida.
Uma camisa gasta, com rasgos, ou botão que falta, carrega memórias de
acontecimentos significativos. Os chinelos de couro que ganham o formato dos s
de quem os calça, trazem consigo as formas de andar, a postura dos corpos que
sustentam.
Dentre essas formas de vestir-se, o costume de usar chapéus entre os
homens poderia ser a afirmação da chegada à fase adulta, assim como uma moda
da época. Nos pés, as sandálias de couro, muito usadas pelo homem do campo,
evidenciavam costumes tradicionais e, até mesmo, a condição social de muitos. O
uso de chinelos por alguns poderia ser devido à falta de dinheiro para comprar
calçados mais caros ou significaria, simplesmente, a opção por um calçado mais
confortável. Desse modo, tais aspectos demonstram a multiplicidade social e
identitária do lugar reunidas no espaço da venda.
Na imagem são notados aspectos inerentes à organização espacial da
venda. Observam-se no mobiliário um banco de madeira e tora de árvore que
serviam de assento. Atrás do tocador de atabaque, havia dois tonéis com óleo
diesel, muitas vezes usado pra mover o motor não dos carros de alguns
moradores do povoado, como de tratores ou maquinários das casas de farinhas.
Isso evidencia, mais uma vez, o papel relevante das vendas que tentavam suprir as
58
necessidades de consumo dos fregueses, assim como absorviam muitas novidades
da modernização atuante na época.
Assim, o olhar do fotógrafo captou em um momento de diversão na
venda, aspectos da vida social de uma comunidade rural ao evidenciar hábitos e
costumes de forma espontânea, que na organização cênica da imagem alguns
sujeitos não param diretamente para compor imagem a ser congelada. O homem
que bate palmas, com um dos pés apoiado no banco e cabeça baixa, acompanhado
o ritmo da música, não parece intimidado com a presença do fotógrafo ou da
autoridade política, representada pelo prefeito. Sua atitude e dos outros demonstram
como um simples entretenimento, um momento propício podia ser o convite ideal
para a trova e diversão nas vendas, pois é na fluidez natural, quase silenciosa, sem
formalidades que se ―inscreve a essência da vida cotidiana: a espontaneidade‖
(HELLER, 1992, p. 29).
1.5 VENDA: UM ESPAÇO PRATICADO E RESSIGNIFICADO
A venda como um espaço de sociabilidade é praticado por todos,
homens, mulheres, crianças, moços e velhos. E, como não poderia ser diferente, as
relações entre os indivíduos é orientada por uma série de limites que a conveniência
de viver em sociedade lhes impõe. No caso das mulheres, o fato das vendas serem
um espaço de predominância masculina não as impedia de frequentá-lo e, como
observa Perrot (1992, p.167), ―a fronteira entre o masculino e privado é variável,
sinuosa‖, nem todo espaço público é político e masculino e, por outro lado, nem todo
privado é feminino.
Os diversos comportamentos de homens e mulheres nas vendas, embora
envolvam diferentes razões, podem ser entendidos como atuações dentro da
sociedade, refletindo concepções de gênero internalizadas por eles. Nesse sentido
Saffioti (1992) alerta:
Eis porque o machismo não constitui privilégio de homens, sendo a
maioria das mulheres também suas portadoras. Não basta que um
59
dos gêneros conheça e pratique atribuições que lhes são conferidas
pela sociedade, é imprescindível que cada gênero conheça as
responsabilidades do outro gênero (SAFFIOTI, 1992, p. 10).
Saffioti (1992) ao refletir sobre as relações de gênero afirma que tanto
homens quanto mulheres têm em si atitudes machistas. Entender como isso se é
fundamental para perceber como os sexos interagem. Atribuir papéis próprios a
cada um, talvez, seja a intenção daqueles que exercem sobre a sociedade poderes
coercitivos, mas, mesmo sob forte controle social os indivíduos lidam,
cotidianamente, com diferentes situações que lhes faz mudar constantemente de
posicionamento face às exigências e necessidades de cada um.
O fato é que existem nos embates de nero, relações de poder agindo,
seja de forma explicita ou não. Os comportamentos são vigiados e sujeitos às
críticas e censuras da sociedade. Disciplinar as atitudes das pessoas é um
mecanismo usado tanto pelas instituições quanto pelos próprios indivíduos nas
relações cotidianas. Conforme Foucault (2005, p.148) o poder disciplinar é,
Absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta,
pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla
continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e
absolutamente ‗discreto‘, pois funciona permanentemente em grande
parte em silêncio.
O modo como homens e mulheres vivenciam essas relações
disciplinadoras, apontadas por Foucault (2005), influía na imagem que as vendas
tinham e no comportamento dos sujeitos. As diferentes experiências com o espaço
das vendas evidenciavam comportamentos que lidavam constantemente com jogos
de poder.
As mulheres do Tabuleiro praticavam e ainda experienciam o espaço da
venda de maneiras diferenciadas, apresentando consigo uma forte ligação entre a
necessidade de consumo, as relações afetivas e morais que mantinham com elas.
Embora a maioria das narrativas remonte a épocas variadas, na atualidade, muitos
dos aspectos apontados pelos entrevistados permanecem, as relações pouco
mudaram. Assim Dona Aurineide argumenta:
A frequência das mulheres na venda era comum sim. Elas iam,
assim, quando ia fazer a feira, que um dos marido adoecia, que não
podia ir à feira. elas iam na venda fazer a feira. Aquelas que não
60
tinham marido, que elas tomavam conta da suas próprias vida e elas
mesma era quem ia fazer a feira, vender os produtos da roça.
Vendiam cacau, vendia farinha. Às vezes adoecia alguém e elas
precisava ir para a cidade, ai passava na venda, comprava o que
precisava. Se precisava de algum dinheiro prá depois pagar, elas ia
tomava o dinheiro... Mas as mulher não participava, assim, tanto da
venda não. Quem ia mais pra venda era os homens. As mulher ia,
mais, ia assim, quando tinha grandes precisão. Que os homens ia
por precisão e, também ia assim nos dias de domingo de tarde pra
conversar, pro bate-papo, ia passeando, mas as mulheres não ia
passear ia por necessidade, por precisão mesmo (Aurineide Thethê,
50 anos, entrevista em 14/04/2007).
Noutra perspectiva a Sra. Laura de Jesus, agricultura, que, por anos,
frequentou as vendas do Tabuleiro, expressa vivências diversas às da Sra.
Aurineide Thethê:
Às vezes na dos outro, mas na casa de Zé Gajilo eu não tinha
vergonha, na casa de Jovená não tinha vergonha, na casa de Arthur
não tinha vergonha. Eu chegava bebia, fumava, prosava, pilheriava,
tirava meus caminho e ia embora... Lá era tudo conhecido, era
mesmo de ser meus irmão. Ochê! Ia ter vergonha de quê?! (Laura
de Jesus Andrade (1944-2006), entrevista em 24/10/2006).
No primeiro relato nota-se que a Sra. Aurineide vivencia o espaço da
venda como um lugar de trocas comerciais para as mulheres, no qual elas não
devem demorar mais do que o tempo necessário para fazer as compras e pagá-las,
assim o lazer nestas lojas rurais seria uma exclusividade masculina. para a Sra.
Laura, ir às vendas era um momento de fazer compras e de lazer, ocasião em que
ela conversava com os frequentadores e vendeiros sem a preocupação de ser uma
mulher num espaço majoritariamente masculino. Porém, ela justifica sua desinibição
pelo fato de estar entre amigos. A Sra. Laura trata as vendas como ―casa‖, refere-se
aos vendeiros como irmãos, demonstrando que mantinha uma relação próxima não
com os moradores do lugar, mas, também, com os comerciantes. Era mais que
uma simples freguesa, assim ela se considerava.
Os laços de familiaridade que marcam as relações entre os vendeiros e
fregueses caracterizam um costume proporcionado por práticas anteriores de
convívio naquele espaço. Ou seja, os frequentadores das vendas em sua interação
com o lugar criaram práticas que identificaram o espaço da venda como um
ambiente propício às relações de solidariedade entre os indivíduos que o
61
frequentam. Segundo Certeau (1994, p.202), ―o espaço é um lugar praticado‖ e são
essas práticas cotidianas que dão a um lugar, destinado às relações comerciais, o
calor da convivência humana.
O vendeiro conhece os gostos de cada um, chama os fregueses pelo
primeiro nome ou por apelidos, conhece as famílias e as crianças do lugar. A ele se
recorre num momento de emergência, quando é necessário um remédio para dor de
cabeça ou febre a qualquer hora do dia ou da noite. Na iminência de um problema
de saúde ou financeiro apelava-se a um empréstimo de urgência como apontou Sra.
Aurineide. O vendeiro tamm é o confidente, aquele a quem se pede um conselho
ou um favor. Muitos o chamavam num canto para pedir dinheiro emprestado ou
comprar algo fiado para evitar constrangimentos. Algumas mulheres pediam para
serem atendidas nos fundos da venda quando queriam comprar uma meota‖
11
de
cachaça ou algum artigo de higiene pessoal, por exemplo, que o se sentiam à
vontade para fazê-lo no mesmo ambiente dos homens.
A Sra. Aurineide observou que as mulheres, geralmente, ―faziam a feira‖
quando os maridos estavam impossibilitados, ou aquelas que eram ―donas de sua
própria vida‖ o faziam sem impedimentos. No caso do Tabuleiro e, muito
provavelmente de outras localidades rurais do Recôncavo Sul da Bahia, o costume
de fazer a feira semanal da família, na maioria das vezes, nos dias de sábado, era
uma atividade basicamente masculina. Os homens acordavam cedo e se dirigiam
para o povoado, lá iam primeiramente ao açougue ou a uma das vendas e
compravam as carnes para garanti-las frescas e de boa qualidade. Depois, nas
vendas, compravam os gêneros alimentícios de que necessitavam, aproveitando o
momento para dar ―um dedo de prosa‖ e tomar uma ―branquinha‖ (cachaça), muitos
se empolgavam e acabavam demorando, para preocupação das mulheres que os
esperavam com a feira em casa.
Contudo, havia mulheres casadas cujos maridos não as impediam ou
talvez elas não se submetessem às imposições do limite de ir às vendas fazer as
compras. Mas, a grande presença masculina pode ser justificada por preceitos
morais arraigados numa cultura tradicional, tecida num passado paternalista da
sociedade brasileira, no qual os papéis femininos e masculinos deveriam ser pré-
definidos (embora isso o signifique que todos os assumissem). O homem exercia
11
O termo meota é usado pelos frequentadores das vendas para designar uma garrafa reaproveitada
que serve para conter cachaça comprada a granel.
62
a função de chefe de família - provedor, trabalhador - as mulheres as funções de
mãe - donas do lar. Daí consagrou-se, socialmente, o espaço da venda como um
lugar de predomínio masculino.
O homem, provedor, ia à venda cuidar daquilo que era necessário ao
sustento da família e as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos e dos
afazeres domésticos. Talvez, por isso elas não tivessem tempo de ir à venda, sem
contar com a imagem da venda de um lugar que não deveria ser frequentado,
sobretudo à noite, ―por mulheres de respeito‖. Visto que lá também era um lugar de
jogos de azar, bebidas e comportamentos masculinos impróprios que ―moças de
família‖ não deveriam presenciar para não desvirtuá-las do caminho da moral e dos
bons costumes, como lhes ensinavam seus pais.
A maior presença masculina nas vendas pode ser atribuída ao próprio
ritmo de vida do homem do campo, que tem maior flexibilidade em relação aos seus
horários de trabalho, podendo, até mesmo, escolher os dias e horários, caso a terra
seja de sua propriedade ou variando conforme a época de produção e colheita, ao
contrário dos trabalhadores urbanos que têm horários pré-definidos e, muitas vezes,
trabalham aos dias de sábado e domingo, impossibilitando-os de frequentar as feiras
ou mercados para fazer as compras, por isso as mulheres se encarregavam dessa
atividade. Todavia, é preciso ressaltar que essa observação não se estende a todos
os grupos de trabalhadores urbanos e muitos encontram formas alternativas de
fazerem suas compras semanais, como escolhendo outros dias da semana para
fazê-lo ou em horários alternativos.
Embora esses fossem os comportamentos esperados de homens e
mulheres, nota-se, pelas narrativas, a participação constante das mulheres nas
vendas. Fossem pra comprar, beber, conversar, proibido ou não para algumas, elas
lá estavam circulando por aquele espaço.
Dona Madalena relembra como sua relação com as vendas foi sendo
ressignificada ao longo do tempo. Na infância a venda era proibida às mulheres, sua
mãe não lhe permitia frequentar esse espaço. Quando seu marido tornou-se
vendeiro, aquele ambiente ganhou outro significado e depois da sua viuvez ir às
vendas do Tabuleiro tornou-se, além de uma opção de comerciar, uma forma de
lazer:
63
Eu não saia pra canto nenhum, não. Falar logo a verdade: quando eu
era pequena, eu não ia em venda não; quando precisava, quem ia
era Pedro, Toinho. Hoje em dia qualquer uma menininha vai na
venda. Inté agora não, quem ia era os meninos, as meninas ficavam
em casa. Mãe o deixa ir não. Ninguém nem falava isso de ir em
venda, menino era criado dentro de casa, preso. Eu peguei ir em
venda quando eu era mãe de Cele, que eu peguei ir em venda, e
quando casei meu marido botou uma vendinha, a gente trabalhava
na venda. E, quando eu fiquei viúva, mãe morava no Tabuleiro.
Pronto! A gente não saía de venda, pilheriava, tudo a gente ia
(Madalena Pereira, 73 anos, entrevista em 15/11/2009).
Tais variações de relação com a venda demonstram que embora
houvesse proibições e comportamentos esperados, até cobrados por parte da
sociedade, sobre a ida das mulheres à venda, muitas pareciam não se impor esses
limites, se é que eles existiam para muitas. Isso implica compreender as relações
cotidianas como um arranjo complexo, atravessado por impressões,
constrangimentos, censuras, repreensões, valorizações, diagnósticos, intimidações,
etc, advindas não apenas dos discursos institucionais, mas, tamm, das práticas
que são construídas em razão de diferentes posicionamentos dos próprios sujeitos
sociais.
As mulheres do campo tinham, ainda, uma relação econômica com as
vendas que supera o simples consumo de mercadorias. No Tabuleiro, entre as
décadas de 60 a 90, muitas comerciavam ali os frutos do trabalho nas rocinhas‖
para suprir suas necessidades pessoais e de seus filhos, sem ter que recorrer ao
marido. Segundo Maia (1985, p.92-94), as rocinhas o subdivisões da propriedade
familiar distribuídas entre os membros da própria família de maneira informal.
Nela o menino ou a menina aprenderia a ter responsabilidade e passava
a ganhar algum dinheiro. Em média com oito anos de idade a criança recebia a
rocinha e no momento de cultivar e preparar o terreno sempre contava com a ajuda
dos adultos (MAIA, 1985, p.92). Para as esposas, as ―rocinhas‖ representavam uma
fonte independente de renda, que lhes davam certa autonomia financeira em relação
aos maridos e os ajudava nas despesas do lar. A maior parte do dinheiro era gasto
com roupas, sapatos, material escolar para os filhos, dentre outros. Sra. Aurineide
reconhece a importância das rocinhas:
Tinha pais que o filho e a mulher trabalhava todo mundo junto com
ele. E o que a família precisasse ele dava o dinheiro pra comprar o
que precisassem. Mas tinha pai também que era os dono da terra e
64
que dava um pedacinho da terra pra mulher plantar. Pra ela ter uma
rocinha, pra ela ter, assim, o dinheirinho dela. Pra ela comprar as
coisas que ela precisava: calcinha, sutiã, perfume, xampu, creme pra
pele... Essas coisa. E também dava pros filho, também, que era uma
maneira... Muitos pensava assim, que dá aos filhos pros filhos
aprender a trabalhar pra também ter seu dinheirinho, quando fosse
numa festa, comprar os perfumes deles... [os produtos] vendia nas
venda ou nos armazéns. (Aurineide Thethê, 50 anos, entrevista em
14/04/2007).
Outro aspecto que merece destaque era o fato do dinheiro ganho com as
rocinhas ser gerenciado pelas próprias mulheres e crianças. Havia mulheres que
mantinham contas separadas dos maridos nas vendas para que elas pudessem
gerenciar seus ganhos da forma que achassem mais adequados. Supõe-se que,
para os homens, era uma forma de livrar-se de algumas despesas extras, visto que
muitos consideravam desnecessários gastos com vestuário, produtos de beleza,
entre outros, deixando ao encargo das mulheres o cuidado com esses detalhes da
economia doméstica.
Além do mais, esse espaço conquistado pelas mulheres demonstra que
elas o ficavam confinadas ao universo privado de casa, esperando que os
maridos ou pais provessem o sustento do lar. O trabalho das mulheres na roça era
fundamental para manter economicamente a família. Nos núcleos familiares mais
pobres não havia recursos financeiros suficientes para contratar empregados para
cultivar a terra, era preciso que a família trabalhasse junto para garantir o sustento.
E, mesmo que o homem administrasse o dinheiro ganho no trabalho familiar, a
mulher tinha formas alternativas de sobrevivência e conseguia manter sua
identidade sem ter que se anular por viver numa sociedade conservadora ao
distinguir papéis sociais para homens e mulheres.
Em relação aos frequentadores da venda, pode-se citar a participação
efetiva das crianças. Para elas, ir às vendas era entrar em contato com um mundo
mágico. A magia estava nas cores e sabores proporcionados pelos doces,
embalados em papéis coloridos ou plásticos brilhantes, girando em bombonieres
com suas diversas tampas que davam acesso a guloseimas de paladares múltiplos.
os sabores, que as faziam salivar, estavam no doce dos bombons que derretiam
―ao céu da boca‖, no gelado dos refrigerantes e picolés ou no salgado dos
65
amendoins e chebeus
12
, entre outros. Mas, para as crianças, os refrigerantes eram
bebidas especiais, pois no campo eram encontrados nas vendas, e tomar uma
tubaína, cajuína ou laranji, refrigerantes populares, vendidos em garrafas de 1 litro,
tidos como os mais baratos e, nem por isso menos saborosos, poderia ser motivo
de festa para elas.
Dentre tantas funcionalidades, a venda era, tamm, um lugar de
conhecimento e de experiências lúdicas para as crianças. Alí poderiam brincar de
―ser gente grande‖, ao praticar um espaço que carrega vivências adultas, pois era
lugar de negócios, de jogos de azar e de bebidas alcoólicas, atividades tidas como
impróprias às crianças. Elas, entretanto, não deixavam de compartilhar do mundo
adulto ao jogarem sinuca, brincar com os dominós e circular pelo ambiente das
vendas, dividindo experiências com os mais velhos, mesmo que fossem nas
brincadeiras em que fingiam estar comprando e vendendo algo, bebendo
refrigerante, como aguardente ou fumando palitinhos de fósforos como se fossem
cigarros.
Na fotografia da Venda Santa Ana (foto 03), cedida pela senhora
Aurineide Thethê, a presença das crianças se faz notar. Algumas delas jogam
sinuca no interior da venda e uma, mais à frente, contempla com um olhar curioso o
que os adultos fazem. Aliás, esse garoto, embora fosse um menino ―de calças
curtas‖, parece incorporar o papel de adulto no momento que a imagem foi
capturada. De camisa de manga aberta e chapéu na cabeça, ele tenta assemelhar-
se aos mais velhos na sua forma de vestir, se diferenciando pelo short curto,
denunciando ainda ser uma criança.
12
Chebeu é o mesmo que torresmo. Nas vendas eram vendidos em porções, embaladas em papéis,
cujas dobras nas extremidades formam um franzido. Os pacotinhos com chebeus eram comprados
para acompanhar as bebidas como tira-gosto ou simplesmente serem degustados.
66
Foto 03: Crianças na Venda.
Fonte: Acervo particular de Aurineide Thethê, 1979.
A atitude do garoto revela aspectos comportamentais e valores sociais do
homem do campo. O costume de usar chapéu entre os mais velhos era comum,
significava incorporar valores de masculinidade, por isso muitos adultos usavam-no.
Na época, o chapéu representava um mbolo de amadurecimento, com eles não
estariam apenas mais elegantes, mas afirmando a presença em um espaço social,
como um homem que deseja ser independente, dono de sua vida. Para o garoto da
fotografia, poderia significar a busca por uma identificação com um universo
masculino que ele tinha como um modelo a seguir.
Para Maria das Graças Teixeira (2004, p.8-9), ao pesquisar sobre os
brinquedos da infância, a criança no seu universo lúdico e social busca um caminho
de participação no mundo do adulto e, consequentemente, inicia processos de
interação com a realidade, pois
Quando brinca se projeta para o mundo, numa relação dialética onde
ela fica dentro e fora ao mesmo tempo, ou seja, ela se integra ao
locus do adulto sem perder de vista o seu mundo interior da fantasia
da criação e recriação. Esta condição dupla de estar presente nestes
dois mundos é possibilitada pelo jogo lúdico que cria através da
linguagem um universo singular que infelizmente se perde ao longo
do crescimento etário do homem.
67
Assim, ao brincar, a criança busca incessantemente a compreensão do
mundo que a rodeia, como destaca Teixeira (2004). É nesse ínterim que ela toma
conhecimento de tudo aquilo que o adulto particulariza como seu. No caso das
vendas, os meninos, principalmente, com o contato com os jogos, com a bebida,
com o fumo, com os causos dos fregueses e, a partir das brincadeiras, que faziam
com esses valores e comportamentos desenvolvidos nas vendas, eles estavam de
alguma forma a experienciar o espaço, o outro e a si mesmo. Então, eles poderiam
projetar-se como indivíduos, usando a sua criatividade e liberdade para imaginar,
criar e recriar um mundo próprio.
A presença das crianças e mulheres nas vendas, portanto, simboliza não
o comportamento delas num espaço determinado, mas como suas práticas e
vivências expressam atitudes e valores que se estendem às relações sociais, ao
trabalho, à vida familiar e às relações de poder. Os espaços sociais podem ser
ressignificados quebrando tradições e ganhando novas formas de acordo com as
experiências e práticas dos indivíduos com o lugar. E nas relações de convivência
com os lugares de memória ―transparece um trabalho que, incessantemente,
transforma lugares em espaços ou espaços em lugares‖ (CERTEAU, 1994, p. 203).
68
CAPÍTULO II
VIVER NA ROÇA
O chão batido e alisado pelos pés humanos não
são planejados mas podem ser comoventes.
Yi-Fu-Tuan
2.1 O POVOADO DO TABULEIRO
No dicionário ―Geológico Geomorfológico‖ (Guerra, 1993, p. 404), a
palavra tabuleiro significa forma topográfica que se assemelha a planaltos,
terminando geralmente de forma abrupta, cujo aspecto físico característico é a forma
plana, sedimentar e de baixa altitude, muito comum na zona costeira nordestina.
No caso do povoado do Tabuleiro, o significado etimológico da palavra
‗tabuleiro‘ incorpora com propriedade a formação topográfica desse lugar, localizado
num elevado de terra de superfície plana, com uma paisagem formada por vestígios
da Mata Atlântica, salpicada de roças de cacau e pastagens. O olhar de quem a
observa vislumbra uma terra recortada, como uma colcha de retalhos, na qual cada
terra arada e cultivada forma um mosaico de tons variados de verde e ocre.
A paisagem é, ao longo dos anos, criada e recriada constantemente, fruto
da ação de homens e mulheres. A cada manhã os passos que dão nos caminhos
que cortam as roças, em cada árvore que derrubam ou plantam, terra que aram
deixam nesse solo sua assinatura, mesmo que efêmera. O ato de andar diariamente
pelas roças os leva a lugares que o tempo fixa em suas memórias e deixa marcas
indeléveis na tessitura da alma desses indivíduos, uma vez que os ―passos que
moldam espaços tecem lugares‖ (CERTEAU, 1994, p.176) e, cujo ato de ir e vir cria
trajetórias, ajudam a dar vida a um lugar sentido afetivamente pelos que lá habitam.
69
Um lugar tem significado para aqueles que o praticam; e é necessário
que o homem permaneça num determinado ambiente para que possa criar laços
identitários. A partir do momento que se fixa e passa a conhecer suas minúcias, sua
geografia, vivencia experiências íntimas e aconchegantes nesse espaço, bem como
conflitos e disputas, o homem contribui para a intensidade de seu sentimento de
pertencimento a um lugar.
O tempo de vivência em um ambiente e a consciência do passado são
elementos importantes no amor pelo lugar. A formação identitária de uma
comunidade parte de uma relação construída ao longo de um tempo histórico, no
qual os sujeitos, nas relações cotidianas, dividiram experiências que os aproximam
e, de certa forma, os unem por uma memória social comum.
Segundo Yi-Fu-Tuan (1980), os indivíduos estabelecem uma relação
topofílica com o meio ambiente, ou seja, criam pelo contato constante relações
afetivas com os lugares. Para o homem do campo,
Os músculos e cicatrizes testemunham a intimidade física do contato.
A topofilia do agricultor está formada desta intimidade física, da
dependência material e do fato de que a terra é um repertório de
lembranças e mantém a esperança (TUAN, 1980, p. 52).
Sentir o lugar é registrado pelos nossos músculos e ossos (TUAN, 1983,
p.203). A postura, o andar, remetem às atividades, às vivências, aos fazeres dos
indivíduos
13
. As marcas de cortes, os calos nas mãos dizem muito a respeito da
história de um indivíduo, expressões mudas que falam muito mais que qualquer
verbalização sonora de experiências de vida. Esses trabalhadores trazem consigo a
memória gravada na pele, aspectos observados nos entrevistados, grande parte
deles trabalhadores rurais.
Quanto ao perfil dos moradores do povoado, pelo menos até os fins da
década de 1980, era composto de pequenos proprietários de terra, rendeiros,
meeiros, comerciantes, trabalhadores rurais diaristas ou assalariados e suas
13
Na pintura ―O lavrador de café‖, de Portinari, por exemplo, o trabalhador das plantações de café do
início do século XX tem pés e mãos expressivos, observa-se que os pés são grandes e trazem
consigo rachaduras, e nas mãos a aspereza de membros que ceifam a terra. O pintor captou a
expreso corporal daqueles que trabalham na lavoura, ao enfatizar como pés e mãos são os
―instrumentosde trabalho primordiais ao lavrador. Cf: Projeto Portinari: <http://www.portinari.org.br/>.
Consulta em 20/12/2009.
70
famílias. Direta ou indiretamente a população do lugar tinha uma ligação com a terra.
O dia começava, para grande parcela dos moradores, em direção às roças, onde
iam passar a maior parte do dia trabalhando. Homens, mulheres e crianças
deixavam suas casas para trabalhar nas roças de sua propriedade ou de seus
patrões. As mulheres, quando não acompanhavam seus maridos, ficavam em casa
cuidando dos afazeres domésticos e dos filhos menores. as crianças que
estudavam se dirigiam para a escola primária do povoado, fundada em 1948, e no
turno oposto ajudavam os pais na lavoura ou nas atividades domésticas.
Para os moradores do povoado, o dia poderia ser gasto na poda dos
cacaueiros, na plantação de mandioca, na colheita do café, na manocação
14
do
fumo, na criação de animais como porcos, galinhas, caprinos, gado bovino, e na
derrubada de árvores para dar lugar às plantações. E, em certas ocasiões, um
pequeno agricultor ou meeiro poderia chamar a vizinhança ou um grupo de amigos
para fazer um adjutório
15
para raspar mandioca, limpar um terreno, colher café ou
manocar fumo.
O adjutório era uma prática comum entre a população rural do Recôncavo
Sul. Nessas ocasiões, amigos, vizinhos e parentes reuniam-se para auxiliar uma
família que precisava de ajuda para realizar algum trabalho pesado ou que requeria
pressa e assistência de rias pessoas. Durante os adjutórios era responsabilidade
dos beneficiados oferecerem comida e bebida aos ajudantes. O trabalho realizava-
se num clima de animação, os participantes cantavam cantigas, cocos, tiranas e
sambas acompanhados de palmas, constituindo um momento de entrelaçamento
entre trabalho e diversão como uma convivência entre dimensões variadas na vida
no campo‖ (SOUZA, 1998, p.180).
A ajuda mútua entre os moradores do povoado não necessitava de
planejamento como nos adjutórios, ela acontecia em pequenas ações cotidianas de
forma voluntária entre os indivíduos do lugar. A Sra. Maria Nunes, conhecida como
Dona Pomba, uma senhora que em minhas memórias de infância sempre teve um
cabelo alvo como algodão e um abraço acolhedor, narra como a criação de seus 12
filhos, (sendo que 4 deles faleceram, alguns ao nascer e outros na infância
14
Manocação é o processo de seleção das folhas secas do fumo, que são divididas em pequenos
molhos chamados de bonecas ou manocas.
15
Alguns autores fazem importantes referências aos adjutórios. Cf: SANTANA. Fartura e ventura
camponesas: Trabalho, cotidiano e migrações. Bahia, 1950 1960. São Paulo: Annablume, 1998. p.
54. SOUZA, Edinélia Maria Oliveira. Trabalhadores do campo: práticas de sobrevivências e relações
de poder no Recôncavo Sul da Bahia. In: Revista Contraponto, Salvador, 1998. p.180.
71
acometidos por algumas enfermidades) foi tarefa amenizada graças à ajuda dos
amigos e vizinhos:
Tirava corte de café aqui que dava 60 arrobas de café! Nunca deu
trabalho pra se panhar, quando eu chegava, tava em cima do balcão,
não precisava pagar. As mulher juntava somente pra comer torresmo
e carne de porco, não precisava pagar não, bastava ter de comer,
juntava dez, doze (...). A gente aqui não fazia dijitório não! Aqui era
assim, juntava aquelas mulé atrás de mim, ajuntava aquele lote
danado, quando eu saia entupia a casa, uma ia lavar roupa, varrer a
casa, outra ia varrer o terreiro, tomar conta de um menino, quatro,
cinco tava pelos café, panhando café, nunca precisava de anúncio
(Maria Nunes, 88 anos, entrevista em 16/08/2009).
Entre os moradores, a ajuda mútua tamm poderia acontecer como
forma de diversão. Era muito comum nas cidades do Recôncavo Baiano o roubo da
malhada
16
. Nos dias que a terra era preparada para o plantio, se não fossem
plantadas todas as mudas de fumo ou se a terra ainda não tivesse sido arada, o
dono da lavoura poderia ser surpreendido na calada da noite por um grupo de
pessoas, quase sempre vizinhos e amigos, que ―roubavama terra e começavam a
plantar as mudas de fumo, muitos se assustavam, achando que algo de errado
poderia estar acontecendo na propriedade. A Sra. Madalena, irmã do Sr. Pedro
Andrade, citado por ela como mestre em roubar malhada, assim narra as noites em
que teve sua terra roubada:
Quando foi boquinha da noite, eu em casa mais Zelita, Lita
moleca, disse: - Ôh Lena, eu vi uns caras passando baixado com
enxada no ombro, vão cavar a terra da gente! Eu digo: - É nada!
Oxe! Tava Pedro, todo mundo no meio. Fazia surpresa pra gente.
Quando a gente via era gritaria, cantava que queria comer galinha,
comer não sei que diabo, que tinha que matar, a gente ia pro gasalho
[poleiro] de noite pegar as galinhas (...). Quando eles terminasse de
cavar, a comida tava pronta, era chegar comer e iam comer
pular, sartar, até tarde a noite. Depois ia todo mundo embora. Pedro,
ali, era um mestre pra fazer isso. Não era coisa pra prejudicar a
gente não, era coisa pra ajudar, brincadeira de família (Madalena
Pereira, 73 anos, entrevista em 15/11/2009).
Dona Madalena define esse momento de trabalho e diversão como
―brincadeira de família‖, suscitando um aspecto característico de pequenas
comunidades rurais, as pessoas do lugar estão unidas, muitas vezes, por laços de
16
Malhada é o nome dado à plantação de fumo.
72
parentesco, que proporcionavam o estreitamento dos laços de solidariedade.
Todavia, ser da família ou não, não era pré-requisito para que as ajudas mútuas
acontecessem. Segundo Tuan (1983, p.156),
A intimidade entre as pessoas não requer o conhecimento de
detalhes da vida de cada um; brilha nos momentos de verdadeira
consciência e troca, cada troca íntima acontece em um local, o qual
participa da qualidade do encontro. Os lugares íntimos são tantos
quantos as ocasiões em que as pessoas verdadeiramente
estabelecem contato.
Os momentos como os adjutórios, as reuniões para pilar café, plantar
fumo ou raspar mandioca nas casas de farinha, mutirões, entre outros,
proporcionavam encontros humanos afetuosos, os sujeitos dividiam experiências
íntimas, ao dançar, cantar, contar ―causos‖ até altas horas da noite. Tais ambientes
detêm a ―qualidade do encontro‖ como aponta Tuan (1983), ao propiciar aos
sujeitos, na interação social, experiências pessoais e afetuosas significativas,
relembradas quase sempre pelos narradores com muita alegria, uma vez que dias
como esses, quando rememorados, provocam intensa satisfação. Porém, a forma
como as pessoas lembram momentos de lazer e diversão tem variações conforme
as experiências de vida de cada um.
Nas lembranças do Sr. Pedro Andrade, sobre o trabalho no campo, um
misto de alegria e sofrimento, de trabalho e diversão aparece com certa constância
nas suas reminiscências. O que revela não apenas os sofrimentos do trabalho ou as
formas como ele escapava à exploração da lida diária e das relações com seus
patrões durante o período que trabalhou como meeiro, mas revela como a memória
que escolhemos para recordar e relatar (portanto, relembrar) e como damos
sentidos a elas o coisas que mudam com o passar do tempo(THOMSON, 1997,
p. 57). Ou seja, as memórias do Sr. Pedro e de outros narradores mostram certas
variações, encarando acontecimentos dolorosos ora com alegria ora com tristeza,
demonstrando que as experiências ao longo da vida vão ressignificando as vivências
e lhes dando outros matizes e sentidos, como é perceptível na narrativa do Sr.
Pedro:
Quando a gente vinha da roça, cansado, nós ia manocar fumo até...
dormia na ruma de fumo. Banho ninguém tomava. A gente, quando
73
tinha um tempo, passava água nos pés. Tinha uma gamela, um vaso
de madeira parecendo uma bacia. Passava água nos pés, nos
braços e no rosto. Quando não tinha, dormia na ruma de fumo
mesmo, quando no outro dia clarear, tornava levantar para ir pra
malhada (...) O trabalho era tanto que não cuidava de si próprio. Era
somente pra trabalhar e era tudo difícil, por causa do transporte que
não existia. Então, trabalhava muito e apurava pouco. A grana era
pouco, a conta de comer mal, comer mal mesmo. Naquela época não
existia o que existe hoje (...). Quando era criança, quando casou uma
pessoa aqui, o pessoal falou o casamento deu bom teve até
macarrão. Naquele tempo parecia que o pessoal era mais alegre do
que hoje, era um pobre mais pobre, que era um pobre mesmo. Mas a
alegria era grande, naquela época a alegria eram muito grande. Eu
cansei de fazer um adjunto pra manocar fumo, vinha aquele grupo
todo de gente pra quando terminar a manocação de fumo cantar roda
até o dia amanhecer (Pedro Andrade, 75 anos, entrevista em
06/07/2003).
Em momentos como esse, observa-se que a vida no campo misturava
momentos de diversão e sofrimento. A lida diária na roça era marcada pelo trabalho
árduo, sob sol ou chuva quase todos os dias da semana. A baixa remuneração dos
assalariados, os meeiros que eram obrigados a ceder parte do fruto do seu trabalho,
a exploração dos proprietários das fazendas, contrastava com momentos de
solidariedade, em que os trabalhadores superavam as dificuldades, reafirmando a
prática efetiva de um tipo de identidade alicerçada nas agruras vividas(SANTANA,
1998, p. 54).
No entanto, a rotina de trabalho e a convivência no povoado foram sendo
alteradas, ou melhor, novos elementos da modernização passaram a fazer parte da
vida cotidiana da população, refletindo não só nas relações sociais, quanto em
costumes e tradições, visto que a chegada da luz elétrica, da televisão, o maior
acesso da população à sede do município e a outras cidades com o avanço das
estradas de rodagem alteraram antigos costumes e deram início a outros, que foram
sentidos e expressos pelos moradores em suas recordações da vida no campo.
O Brasil, da década de 1950 a 1980, viveu um intenso processo de
urbanização e industrialização, passando pelo Plano de Metas de Juscelino
Kubitschek, que objetivava ―50 anos em 5‖, implantando setores industriais mais
avançados, como a indústria elétrica pesada, a de máquinas e equipamentos, a do
petróleo e do aço; continuando nos anos 60 e início dos anos 70 com o milagre
econômico‖ com destaque para a indústria pesada, de bens e serviços (MELLO &
NOVAIS, 1998).
74
As inovações tecnológicas foram sentidas nas melhorias técnicas, como o
uso do trator na limpeza e abertura de terrenos, maquinários nas casas de farinha,
substituindo gradativamente o processo manual de trituração e torração da farinha,
carros e caminhões transportando produtos agrícolas e pessoas. A luz elétrica
proporcionou o conforto da água encanada, da geladeira, do ferro elétrico, da TV e
do rádio elétricos, enfim inovações que aos poucos foram absorvidas pelo homem
do campo, com expressou o Sr. Manoel Amado:
não tinha esse negócio de gelado, não tinha luz, não tinha nada.
Ali, hoje, que uma beleza, tem luz, tudo. Naquele tempo nada, era
candeeiro mesmo, fifó, na base do fifó
17
, também o tinha ladrão
né, ficava à vontade! Ficava à vontade, até meia noite a gente ficava.
Às vezes amanhecia o dia, os meninos brincando relanci [tipo de
jogo de cartas] (Manuel Amado, 75 anos, entrevista em 16/07/2003).
Tais transformações, porém, não podem ser vistas como simples
destruidoras das antigas tradições, o que se percebe é a apropriação e reinvenção
das tradições (HOBSBAWN, 1997, p. 13). Além do que, as mudanças não podem
ser enquadradas em processos de homogeneização, levando consigo tudo que faz
parte da cultura e dos conhecimentos anteriores da humanidade com sua marcha
avassaladora. Ela é sentida pelos indivíduos de diferentes formas e ao mesmo
tempo não está isolada de processos mais amplos de transformação cultural.
Thompson (1998, p.165) destacou que,
Nunca houve nenhum tipo isolado de transição. A ênfase da
transição recai sobre a toda a cultura: a resistência à mudança e sua
aceitação nascem de toda a cultura (...). Essa cultura expressa os
sistemas de poder, as relações de propriedade, as instituições
religiosas etc.
As ideias de Thompson (1998) ajudam a entender porque certos
costumes e tradições resistem, mesmo com a influência dos novos acontecimentos
históricos vivenciados pela população, pois, nem todas as tradições perduram,
algumas surgem, outras se renovam, expressando, no campo da cultura, os seus
reflexos de forma mais efusiva como enfatizou o autor.
17
Fifó é uma espécie de lamparina.
75
Nas conversas com os entrevistados nota-se que essas melhorias não se
sobrepõem, simplesmente, às antigas tradições. As máquinas na casa de farinha
não acabaram com ―as prosas e causos‖ que eles contavam no momento de raspar
a mandioca. A luz elétrica não suprimiu das vendas seu aspecto socializador; ao
contrário, ampliou as opções de diversão com a introdução da televisão, que rendia
muitos assuntos a serem debatidos nas conversas intermináveis entre os fregueses.
O que houve foi um processo gradativo de mudanças que operava no cotidiano do
campo, descortinando um novo mundo que causava aceitação ou estranhamento,
provocando permanências e mudanças em valores culturais, hábitos e costumes
tradicionais da vida nas roças.
2.2 QUANDO OS FACÕES E ENXADAS DÃO LUGAR À DIVERSÃO
À medida que o tempo avançava e a urbanização e industrialização eram
operadas na sociedade brasileira, entre os anos de 1950 a 1980, muitas tradições,
costumes e festas do Tabuleiro foram sendo ressignificadas, outras resistiram, mas
boa parte foi cedendo lugar a novos lugares de memória e novas práticas sociais.
As festas tradicionais e as manifestações culturais da região são um bom exemplo
de como as transformações vivenciadas na época refletiram na vida cotidiana e nas
práticas culturais da população. As reminiscências do Sr.Carmerino traduzem bem
as mudanças e transições entre ―novos‖ e ―antigos‖ valores ao falar das festas que
aconteciam no povoado:
No Tabuleiro tinha bumba-boi, tinha burrinha, tinha tourada, dava
muita festa. Agora as festas, inté agora, era diferente da de hoje, que
a festa inté agora tinha os tocador, tinha tudo isso. E hoje, hoje tudo
é fita gravada, é isso, é aquilo, é diferente (Carmerino Thethê (1925-
2008), entrevista em 16/03/2003).
―Hoje é tudo fita gravada‖. Esse enunciado evidencia um dos novos
elementos incorporados aos festejos, substituindo o ―tocador‖, a ―burrinha‖, o
―bumba-boi‖. As festas, portanto, ganharam novas formas, enquanto outras foram
76
desaparecendo, ou seja, as inovações técnicas e científicas influenciaram na vida da
população mudando certos hábitos e costumes. No entanto, não podemos atribuir o
desaparecimento de certas tradições unicamente às influências da modernidade, já
que a população tem capacidade de resistir às mudanças. Mesmo modificados em
certos aspectos muitos costumes e tradições permanecem.
Contudo, as manifestações culturais, as formas de diversão, ativas ou não
mantêm-se vivas nas memórias dos narradores, constituindo um elo vivo com o
presente. As lembranças das festas e diversões emergem nas falas dos
entrevistados quase sempre como um momento de grande alegria e, como enfatizou
Benjamin (1993, p. 222-223), a felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda
no ar que respiramos‖. Assim, as reminiscências são reelaboradas e revividas de
uma forma capaz de dar as suas vidas certo sentido, atenuando insatisfações,
conflitos e tristezas experimentados no passado.
Nas reminiscências sobre as festas e diversões, as mais lembradas
foram a burrinha, o brinquedo de roda, o bumba-meu-boi, as rezas, os sambas, as
―cantorias‖, o quebra-pote, o pau de sebo
18
, as reuniões nas vendas ou nas suas
portas, a festa junina, as festas da escola e os passeios dominicais, quando
percorriam os caminhos da roça para visitarem amigos ou parentes. Nesses
momentos a comunidade se reunia abrindo um espaço privilegiado de sociabilização
e afirmação de valores e práticas construídas socialmente por aquele grupo. Esses
aspectos foram lembrados por Sr. Pedro:
Tinha muita diversão naquele tempo. Cantava brinquedo de roda,
chamado brinquedo de roda, aquelas música contava pra dizer
verso, sabe? A pessoa desfiava os versos, pra maltratar, tanto pra
agradar como pra maltratar as pessoas, entendeu? Entrava o
desafio. O brinquedo de roda. Tinha sala de dança, entendeu. Existia
a cantoria de tirania, cantar coco, tirania, essa coisa toda. Tudo era
diversão do povo. Naquele tempo, parece que o pessoal era mais
alegre do que hoje. Era um pobre, mais pobre, que era um pobre
mesmo! Mas a alegria era grande, naquela época, a alegria era muito
grande. Eu cansei de fazer em adjunto pra manocar fumo, vinha
aquele grupo todo de gente pra quando terminar a manocação de
fumo cantar roda até o dia amanhecer. Cantando e dançando, sabe
na sala. Fazia reunião pra pilar café, pra depois fazer algum samba.
Já não era dança, era samba, entendeu. Sempre quando rezava uma
18
Segundo os entrevistados, o quebra-pote consiste em quebrar vasos de barro recheados de doces
ou dinheiro com um porrete, por algum participante que tem os olhos vendados. o pau de sebo é
tronco de árvore besuntado com sebo, que tem no cume uma premiação, aquele que conseguir subir
até o alto fica com o prêmio.
77
ladainha, fazia sala de dança. Nunca registrou briga. Tudo naquela
amizade grande. Naquele tempo existia devoção. O pessoal tinha um
tal preceito, esse pessoal mais velho, rezava a quaresma toda. O
pessoal daquela região, toda noite ia pra aquela casa. Ouvir aquela
reza, uma ladainha, um Santo Ofício. Quando era sábado de páscoa
tinha festa pra se dançar. No mês de junho começava as novena,
trezena, pro quando terminar aquela novena, trezena, ter sala de
dança pro povo dançar (Pedro Andrade, 75 anos, entrevista em
06/07/2003).
Pode-se perceber nas memórias do Sr. Pedro que havia ―uma forte
sincronia entre as festas, atividades produtivas e o meio ambiente (SANTANA,
1998, p.59). O trabalho árduo e pesado era atenuado em momentos de diversão
como nos adjutórios e reuniões para pilar café, manocar fumo ou raspar mandioca.
Até mesmo as manifestações religiosas, como as rezas de ladainha, incorporavam
elementos da cultura popular. Ao término das orações e das refeições (caruru,
bolachas, bolos, café, etc.) a sala da casa de quem estivesse oferecendo a reza era
tomada pelos participantes e dava-se início ao samba, às cantorias de coco e tirana,
até altas horas da noite, sempre acompanhadas de muita cachaça, vinhos e licores.
A tirana e o coco eram danças bastante praticadas no Tabuleiro, mas elas
se fundiam às músicas entoadas durantes os festejos. Tanto que muitos
entrevistados referiram-se a esses bailados como ―cantoria‖, por não diferenciarem a
dança da música. Segundo o dicionário online, ―Tesauro de Folclore e Cultura
Popular Brasileira‖, o coco,
é dança de conjunto e de umbigada conhecida em todo o Norte e
Nordeste do Brasil, em cuja coreografia básica os participantes
formam filas ou rodas e executam o sapateado característico,
respondem o coco, trocam umbigadas entre si e com os pares
vizinhos, e batem palmas, marcando o ritmo. É comum também a
presença do mestre, que puxa os cantos conhecidos dos
participantes ou de improviso. Sua ausência, entretanto, não impede
a formação da roda de coco, para o que bastam as palmas ritmadas
dos participantes. Com o aparecimento do baião, o coco sofreu
algumas alterações. Hoje os dançadores não trocam umbigadas,
dançam um sapateado forte, como se estivessem pisoteando o solo
ou em uma aposta de resistência. (TESAURO..., Consulta em
14/12/09).
a tirana, assim como o coco, também era classificada como ―cantoria‖,
porém se diferencia do coco por ser uma dança de pares com formação em fileiras
78
paralelas ou círculos sob comando de um mestre-sala. Com inúmeras variantes,
―dependendo da coreografia, verificam-se a tirana grande - com sapateado e em
roda grande; tirana de dois-bailada em grupo de pares; tirana-tremida -
caracterizada pelo trinado das cordas da viola‖
19
.
No Tabuleiro, essas danças apresentavam tais variações. Tanto a tirana
quanto o coco eram sempre bailados ou cantados durante as brincadeiras‖ de roda
ou nos festejos da burrinha, nas salas de quem tivesse sua sala ―roubada‖ por um
terno de reis.
O brinquedo de roda era uma manifestação cultural muito comum no
povoado do Tabuleiro, consiste num grupo de pessoas formando um círculo de
mãos dadas, como nas brincadeiras de ciranda. Os participantes entoam músicas
típicas e girando os membros da roda tiravam alguém para o centro, se fosse um
homem geralmente tirava uma mulher para dançar, mas podia-se ir para recitar
alguns versos, trovar
20
, como disseram alguns entrevistados.
A trova tem um caráter de desafio, os participantes do brinquedo
aproveitavam esse momento, como destacou Sr. Pedro, para entoar versos tanto
pra agradar, como pra maltratar‖, revelando outro aspecto importante de cultura
popular, o que Peter Burke (1989, p.217) chama de ―caráter carnavalesco‖ das
festas e formas de diversão das camadas populares, que enfatizavam os temas da
renovação, comilança, sexo, vioncia ou inversão.
Com relação aos brinquedos de roda, havia espaço para gozações,
inversões e ―desafios‖, como observou Sr. Pedro ao recitar alguns versos:
Eu me lembro uma certa feita eu tinha uma noiva, cabei o casamento
e passei a noivo de outra. eu fui pra uma brincadeira dessas e,
tava eu com minha noiva. E ela, tava com um noivo. Aê pegou a
cantar brinquedo de roda, aí eu cantei, eu falei uns versos:
Eu tinha um amor
O diabo carregou
Eu agora tenho outro
Entrego a nosso senhor.
19
Informações retiradas do dicionário online: ―Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira‖.
Disponível em: < http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00001662.htm >, consulta em 14/12/2009.
20
A trova é ―uma poesia popular ligeira que utiliza a quadra em sua composição poética em quatro
versos heptassílabos, com rima consoante ou assonante, entre o primeiro e o terceiro versos e entre
o segundo e o quarto‖. In: ―Tesauro de Folclore e Cultura Popular Brasileira‖. Disponível em:
<http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00002138.htm>, consulta em 14/12/2009.
79
O cara falou, o cara respondeu:
Quem tiver raiva de mim
Também pode falar
O diabo carregou
E adiante eu fui buscar.
Aí eu respondi:
Eu num entro no mato
Que não tenho medo de caipora
Não me importo que outro panhe
Aquilo que eu joguei fora.
A gente inventava e jogava, não é bonitinho? era desafio. E a
gente não disse nada (Pedro Andrade, 75 anos, entrevista em
06/07/2003).
O enunciado a gente não disse nada‖ revela bem como no momento do
brinquedo de roda a formalidade da vida social dava lugar à liberdade de falar o que
se pensava, sobretudo através de versos e desafios. A brincadeira e a gozação
eram permitidas, podia-se cortejar uma mulher, fazer piadas, agredir alguém
verbalmente com versos satíricos e, ao mesmo tempo, enaltecer e homenagear.
O brinquedo de roda incorpora tamm as chamadas ―táticas‖ cotidianas,
as operações clandestinas, as práticas comuns do homem ordinário, que é para
Certeau (1994, p.47) o herói do cotidiano, ―caminhante inumerável‖, que sobrevive
às dificuldades diárias fazendo das adversidades da vida os momentos para
desenvolverem ações de superação. Tais aspectos podem ser percebidos na fala de
Dona Maria Nunes ao narrar as ticas desenvolvidas pelos participantes do
brinquedo de roda para facilitar o namoro entre os participantes:
(...) qualquer uma flor que mostrasse a uma pessoa tava dizendo
alguma coisa, uma mão que botasse na cabeça, na testa, que
passasse a o na orelha, passasse na cabeça, qualquer coisa era
um aceno, uma palavra que tava dizendo. Passou a mão na testa,
tava com saudade, morder o beiço pedindo um abraço, passar a mão
na batata da perna tava chamando pra fugir (Maria Nunes, 88 anos,
entrevista em 16/08/2009).
Nota-se que os indivíduos desenvolviam jogos simbólicos de gesto e
atitudes. Os corpos dos que brincavam‖ assumiam a função de veículos
comunicativos; os gestos, como signos linguísticos, possuíam um sistema de
80
codificação compartilhado pelos participantes do folguedo. Naquele momento, o
corpo falava, com aporte de objetos ou não, ainda que fosse uma singela flor.
Roy Porter (1992), que desenvolve estudos sobre a história do corpo e
suas funções, simbólica e social, destaca como o corpo sempre foi objeto de
censura e disciplinamento, uma presença suprimida, frequentemente ignorada ou
esquecida. Para Porter (1992, p.325),
Chegamos nus ao mundo, mas logo somos adornados não apenas
com roupas, mas com roupagem metafórica dos códigos morais, dos
tabus, das proibições e dos sistemas de valores que unem a
disciplina aos desejos, a polidez ao policiamento.
No ambiente das salas de dança‖, onde os brinquedos de roda
aconteciam, o flerte entre os participantes era comum. Segundo Dona Maria Nunes,
―o pessoal namorava muito‖, certamente, por ser um ambiente que unia as pessoas
e o próprio clima festivo abria margem para a paquera. Todavia, os namoros, na
época de adolescência da Sra. Maria Nunes e de muitos dos entrevistados, não
permitiam a explicitação direta da paixão, com beijos e abraços em público, o que
não era geral, mas seria o que a moral da época estabelecia. Recorriam-se, assim,
às ticas burlescas e silenciosas para expor o interesse amoroso por outrem, pois
os enamorados tinham ―constantemente que jogar com os acontecimnetos para os
transformar em ocasiões‖ (CERTEAU, 1994, p.47). Se os corpos não pudessem
―gritar‖ seu interesse por outros, sussurravam, num balé teatral de gestos, olhares e
―acenos‖, o amor ou interesse por alguém.
Durante a entrevista com Dona Maria Nunes, no momento que
relembrava do brinquedo de roda e dos namoros, ela mostrou uma antiga carta
(figura 02) datada de 1938, que, com todo zelo, havia guardado por décadas. Ao
começar a narrar sobre o que tratava aquela velha carta, percebi que representava
um tesouro visto o significado afetivo que tinha para ela. A carta foi redigida por
Leordino dos Santos, endereçada ao Sr. Olímpio Nunes, pai de Dona Maria,
pedindo-a em casamento. Ao que parece, pelo menos até as primeiras décadas da
segunda metade do século XX, ainda havia o costume de mandar cartas aos pais da
pretendida pedindo-a em noivado ou casamento, como havia lembrado Sr. Pedro.
81
Figura 02 - Carta com pedido de noivado à Dona Maria Nunes.
Fonte: Acervo pessoal de Maria Nunes, 04/09/1938.
82
Veja a transcrição da carta abaixo:
24 de Maio de 1941, 11 horas da noite
nasceu a menina Leonora.
21 de Feveiro de 1943 às 6 horas do dia
nasceu Adebaldo.
5 de outubro de 1944 às 8 horas da
noite nasceu Eufrazio.
1 de abril de 1946 às 12 horas do dia
nasceu Lindaufa.
Faleceu em 21/06/1947.
14-12-1947 às 12 horas da noite nasceu
o menino Elio.
Capim, 4 de setembro de 1938.
Ilmº. Sr.
Olímpio Nunes dos Reis
Saudações
Faço lhe estás duas linhas, desejo que
elas lhe encontre gozando saúde e todos
que lhe pertence, são os meus votos ao
nosso bom Deus mando-lhe estás
duas linhas mal escrita mandando-lhe
pedir a sua Exmª. filha a casamento.
8 de julho de 1949 às 10 horas da noite
nasceu a menina Luiza.
1951 19 de Março 3 horas da tarde
nasceu o menino Elonio.
4 de Março de 1953 9 horas do dia
nasceu Ezio
13 de Setembro de 1954 às 12 horas do
dia nasceu Ezonio.
A senhorita Dona
Pomba
Peço resposta desta carta que vai lhe
encontrar em paz é o que desejo a
todos.
Do caro
Leordino dos Santos.
A leitura da carta revela que, além do pedido de casamento, ela contém
escritos feitos a lápis, com nomes e datas de nascimento dos filhos do casal. Dona
Maria foi lendo a carta e narrando a história de cada um dos filhos e como seu
marido tratava logo de registrar na correspondência, com hora, dia e ano, o
nascimento das crianças. Notei que durante o ato de narrar, a carta servia como um
―mecanismo de evocação da memória‖ (VIANA, 2006, p.09). O contato com a carta
aflorou as remiscências de Dona Maria Nunes, era como se um bde memórias
fosse aberto e começassem a fluir momentos significativos da vida dessa senhora.
As datas dos nascimentos dos filhos de Dona Maria Nunes registradas na
carta e os significados que elas têm para a proprietária chamaram à atenção de
como o processo de esquecimento ou evocação da memória está associado a
momentos marcantes e, no caso das datas, elas deixam de ser furtivas no momento
83
que ganharam significado na vida de alguém. Segundo Blondel (1960, p. 177 apud
VIANA, 2006, p.09),
Essas datas, que dependem da história, nos servem todas de
pontos-de-referência mais ou menos seguros para situar os
pormenores de nosso passado, mas algumas dentre elas, pela
profundidade da repercussão que tiveram sobre nossas vidas, fazem
um corte tão claro entre o que fomos antes e o que passamos a ser,
que, ao primeiro lance de vista, verificamos se um acontecimento de
nosso passado lhe foi ou não anterior: por exemplo, o 2 de outubro
de 1914 e o 11 de novembro de 1918. No que diz respeito aos
incidentes e acontecimentos de nossa própria vida, como sempre
sabemos em que dia estamos, datam-se eles maquinalmente à
medida que são vividos, mas a maior parte perde sua data logo em
seguida ou, ao menos, muito rapidamente: guardamos raramente por
mais de uma semana a lembrança da data precisa de nosso último
jantar na cidade. Somente, ou quase, escapa a esse esquecimento a
data dos acontecimentos que significação e valor sociais.
As considerações feitas por Blondel (1960) evidenciam a importância dos
acontecimentos históricos e políticos na ativação da memória. A forma como tais
acontecimentos marcam os indivíduos é que torna as datas significativas para
alguns e outros não. O fato é que ficam na memória apenas datas expressivas que
possibilitam associações outras. No caso de Dona Maria, as datas de nascimentos
de seus filhos exercem a função de ativadoras de lembranças, no processo de
rememoração.
A associação de ideias leva o indiduo a rememorar outros
acontecimentos, e, como enfatiza Ecléa Bosi (2004, p. 39), ―lembrança puxa
lembrança‖. O ato de narrar, em si, durante as entrevistas ajudava os narradores a
relembrar acontecimentos marcantes de suas vidas.
No que tange as memórias das festas, o folguedo da burrinha foi citado
por diversos moradores do Tabuleiro. Contudo, é preciso destacar que a burrinha
nunca estava só, ela geralmente vinha acompanhando outros festejos. Podia ser
―brincada‖ nas festas juninas ou nas festas natalinas, como no terno de reis ou
acompanhando o bumba-meu-boi, entre outras.
A burrinha é a representação de um burrico, feita, geralmente, pelo
próprio dono que a maneja. A cabeça é esculpida na madeira, o corpo é feito de
cipó, formando uma estrutura semelhante ao corpo do burro, que é forrada com
tecido colorido, servindo, tamm, para cobrir o corpo de quem a maneja; ela é
84
adornada com fitas e papéis luminosos e coloridos também usados no chapéu do
dono‖ da burrinha. As apresentações sempre eram acompanhadas por três outras
figuras: a catarina, o caboclo e os palhaços. Além disso, havia os tocadores de
pandeiro, violão, ganzá, etc, que davam tom à festa ao tocarem seus instrumentos
puxando as cantigas e versos recitados nas brincadeiras.
A catarina era um homem travestido de mulher, que ficava no meio da
roda formada pelos participantes da festa da burrinha, com os palhaços e o caboclo,
fazendo graça e mexendo com os espectadores, recolhendo dinheiro para entregar
na ―boca do cofre‖- uma pessoa - responsável pela arrecadação do dinheiro doado
pelos participantes da brincadeira.
o cavaleiro, o manipulador da burrinha, tinha nas suas apresentações
todo um gingado típico do corpo da burrinha. Como um vaqueiro que galopa seu
burrico, fazia-a ―saracotear e andar à banda, correr, deter-se de súbito, empinar-se,
trotar balanceado ao som da música, ou disparar a galope, perseguindo os
moleques (LIMA, 1970, p.184). Assim descreveu o bailado da burrinha, captando
sua essência, o folclorista Carlos de Lima (1970), referindo-se à tradicional festa do
bumba-meu-boi de São Luís do Maranhão na década de 1960, e como outros
folguedos se misturavam à festa, dentre eles a burrinha. A fotografia a seguir traz
consigo a representação desses aspectos inerentes à burrinha:
Foto 04 : O festejo da burrinha na cidade de Mutuípe-BA.
Fonte: Fotografia-Josiane Thethê Andrade, 12/10/ 2006.
85
Na fotografia, da esquerda para a direita, nota-se o caboclo, coberto de
folhas de bananeira, a catarina, o palhaço e a burrinha. A fotografia foi produzida
num desfile cívico de comemoração a emancipação da cidade de Mutuípe no dia 12
de outubro de 2006. Embora a burrinha não seja mais tão comum no Tabuleiro,
ainda restam alguns grupos que brincam no município. Esse desfile, que teve como
tema a ―valorização‖ das manifestações culturais do município, de certa forma,
tentou reviver um festejo que, nas memórias das novas gerações, quase não
aparece mais.
Em outras cidades do Recôncavo Baiano, a folia da burrinha acontecia
acompanhando outros festejos tradicionais como no caso da cidade de Irará onde a
burrinha seguia a festa de Nossa Senhora da Purificação, no dia 2 de fevereiro, junto
com cheganças de marujadas
21
e bumba-meu-boi. Segundo Araújo (1986, p.170-
171), os mestres das burrinhas, ou seja, aqueles que a manipulam, geralmente,
improvisam versos introdutórios que convidam a população à dança, à diversão, ao
consumo de bebidas alcoólicas como a cachaça, como uma forma de animar a
festa; versos como este, da burrinha praticada na cidade de Lauro de Freitas, nos
anos 60:
Xô xô brurrinha
Xô xô ladrona
Cadeado do meu peito
Chave do meu coração
Bota burrinha pra dentro
Para a chuva não molhar
Meus senhores e senhoras
Faça o favor de olhar
A burrinha bebe vinho
Também bebe aguardente
Desconjuro desta burra
Que tem vício feito gente
(ARAÚJO, 1986, p.239).
Na cidade de Lauro de Freitas, a burrinha saía acompanhada de um
cortejo de pessoas na véspera da Festa de Reis, indo cantar e dançar em casas da
cidade. A cada casa o cortejo se detinha e recitava versos, e a burrinha, a sapatear
21
A chegança tem características variadas em suas apresentações nas diferentes regiões do país.
Em geral, as personagens vestem farda de oficiais e marinheiros, cantam e dançam ao som de
instrumentos de corda, representando aventuras marítimas. Na maior parte das versões inclui-se o
embate dos cristãos com mouros que, vencidos, são convertidos e batizados. Disponível em: <
http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00002053.htm>, consulta em 22/07/2010.
86
com outras figuras típicas como o bumba-meu-boi, os caboclos e as ―negas‖
malucas,
22
fazia graça, expondo seu caráter burlador.
No verso, apreende-se que a burrinha é personificada pelas ações que
lhes são atribuídas. No momento da brincadeira o caráter lúdico e satírico, inerente
ao folguedo da burrinha, parecia integrá-la à comunidade, compartilhando dos
mesmos valores sociais e morais. Ela, simbolicamente, participa da festa se
misturando aos outros participantes, ao dançar e cantar, além de trazer consigo o
vício de beber aguardente e vinho para a surpresa dos que ali estavam reprovando o
mau bito da burrinha e, ao mesmo tempo, usufruindo de tais vícios, dentro do
mundo mágico da festa, onde a imaginação supera as barreiras da vida cotidiana e
alcança o mundo dos sonhos, da permissividade lúdica das festas.
A burrinha, assim como o brinquedo de roda, trazia aspectos
carnavalescos, tais como a inversão de papéis sexuais, o improviso dos versos, que
geralmente continham um tom burlador e satírico, e canções que acompanhavam o
folguedo. Na brincadeira, os participantes eram convidados a compartilhar
momentos de liberdade, alegria e ―vadiagem. A barreira da formalidade caía dentro
de um pacto silencioso de entendimento, dava-se margem a comportamentos tidos
como possíveis no espaço da brincadeira.
O termo ―vadiar‖, empregado geralmente num tom depreciativo,
associado à vagabundagem e, portanto, a atitudes tidas por muitos como impróprias,
aparece no vocabulário dos que participavam da festa, remetendo a um estado de
liberdade e permissividade típico das festas populares. Assim, a palavra vadiar é
empregada nas canções e versos no sentido de brincadeira, diversão. Note como
esse verso recitado por Sr. Antonio, e entoado por ele nas brincadeiras que dirigia,
chama os participantes à vadiagem:
A burrinha de ouro
Evem pra vadiar (3 vezes)
A burrinha de ouro
Evem pra vadiar (3 vezes)
Ô palhaço! Que é vaqueiro?
Ô cadê minha burrinha
Que eu mandei fazer?
Cadê minha burrinha
22
No Recôncavo Baiano, a negra maluca se personifica em um homem vestido com roupas de
mulher, com maquiagem ostensiva, peruca e corpo pintado de tinta preta ou carvão.
87
Que mandei fazer?
(Antonio Jesus, 84 anos, entrevista em 13/07/2003)
O Sr. Antonio Jesus Santos, conhecido como Coração, trabalhador rural,
foi por muito tempo mestre de burrinha. Apesar de não morar no Tabuleiro, todos os
dias de mansaía de sua casa no centro urbano de Mutuípe e caminhava cerca de
4 km em direção a uma pequena roça que tinha no povoado. Lembro-me dele
passar sem camisa, com pés descalços e enxada nas costas em frente da venda do
meu pai, Sr. Juvenal. Ele animou muitas festas com sua burrinha no Tabuleiro.
No momento que entoou esses versos, Sr. Antonio usou como recurso
para relembrá-los um instrumento musical chamado ganzá. O utensílio serviu como
um objeto social de rememoração das letras das músicas. Naquele instante, Sr.
Antonio fez uso de um esquema. O termo esquema é uso por Burke (2000, p. 77) no
sentindo de configurar os mecanismos, criados pelos indivíduos, de identificação
com um passado histórico, a alguém ou a algo. ―O esquema se associa à tendência
a representar e às vezes a lembrar- um determinado fato ou pessoa em termos de
outro‖.
Por anos Sr. Antonio levou seu ―brinquedo‖ para várias cidades da região
do Vale do Jiquiriçá, mas na época da entrevista Sr. Antonio já não mais promovia o
folguedo. Durante a narração, ele demonstrou tamanha saudade da burrinha e das
festas que animava que, em uma tentativa de reviver um passado de felicidade,
chegou a mencionar o desejo de construir uma burrinha para se mostrar, embora
não o tenha feito. O agricultor, naquele momento de rememoração, motivado pelas
memórias de experiências vivenciadas nas festas, remeteu-se à alegria de um
―passado que se fez presente‖ (SARLO, 2007, p.10).
O ato de narrar traz à tona memórias de um tempo passado que vive no
presente, e novas experiências ―ampliam constantemente as imagens antigas e no
final exigem e geram novas formas de compreensão‖ (THOMSON, 1997, p. 57). As
memórias estão num constante processo de ressignificação. E, durante as
entrevistas, o que é rememorado, de que forma são reconstruídas essas memórias e
como elas dão sentido à vida dos sujeitos constituem aspectos a serem investigados
pelos historiadores. Isso se mostrou evidente na entrevista com o Sr. Antonio, as
memórias afloravam e a forma como esse processo subjetivo acontecia dizia muito
88
sobre as experiências desse homem que narra com o ―gesto e a voz‖ (SARLO,
2007, p.26).
Del Priore (2000, p.10) destaca, através de importantes reflexões a
respeito das festas, como , por trás do aparente clima de diversão dos
participantes, o compartilhamento de valores socialmente constituídos pela
comunidade, reforçando o sentimento de coletividade. Nesses momentos de festejo,
os indivíduos exortariam os ódios, extravasando desejos e paixões, assim como,
criando laços de solidariedade ou marcando especificidades e territórios.
A festa não é mera diversão, é a expressão de um povo, de sua cultura e
de valores sociais, morais e religiosos. Ao observar as brincadeiras de roda e a
burrinha, nota-se como a comunidade integrava-se, participava interagindo com os
que festejavam ou participando do folguedo em si. Durante os períodos festivos, a
rotina rompe-se; pois, por mais corriqueiro que seja o festejo, envolve um ritual que
absorve os participantes. Segundo Amaral (1998, p.39), a festa é ritualizada nos
imperativos que permitem identificá-la, mas ultrapassa o rito por meio de invenções
nos elementos livres‖, ou seja, mesmo marcada por regras de organização, o
espaço da festa está aberto à inventividade, ao improviso. Aspectos esses que
podem ser percebidos na fala do Sr. Antonio ao relembrar sua participação na festa
da burrinha:
O povo tocava, eu dançava na festa. E quando terminava, que eu
tava cansado, eu digo: ―óia, vamos suspender, e vamos vadiar na
festa‖. E eu embalava minha burrinha, bem embaladinha (...). Dona
Fia, a mãe de cumade Noelha, começou brincar pela primeira vez.
Eu pedi uma roupa dela, ela me deu um vestido avolante, ê diabo!
Pegava brinquedo (Antonio Jesus, 84 anos, entrevista em
13/07/2003).
Sr. Antonio mostra como o ritual era importante, depois de ter brincado
com sua burrinha, como se estivesse se despindo de seu papel de cavaleiro, que
maneja sua montaria com maestria, dava-se aos prazeres da festa, entregando-se à
vadiagem. O ritual é parte inerente às festas; é ele que dá sentido ao festejo,
caracteriza-o e o diferencia de outros, e pelo que demonstra Sr. Antonio, a festa é
―coisa séria‖. Enquanto seu corpo fundia-se ao de sua burrinha faceira, que
embalava com tanto zelo, a festa para ele ainda não havia começado, o festejo era,
também, trabalho encarado com seriedade.
89
A burrinha, o brinquedo de roda, entre tantas outras manifestações
culturais ou festas populares da região, que não foram citadas, oportuniza, não
um momento de diversão que acaba quando termina a festa, mas permite
compreender, como as formas de diversão do homem do campo devem ser
incluídas nas suas representações culturais, uma vez que se entrelaçam elementos
da vida cotidiana, como o trabalho na roça, as manifestações religiosas e o meio
natural, constituindo um universo amplo de investigação histórica e de significados
da vida rural. Porém, é preciso observar que as festas estão sujeitas aos
movimentos históricos, que as modificam e reinventam constantemente.
A introdução de elementos da modernização nas formas de diversões
tradicionais do lugar, não podem ser vista apenas como destruidoras das festas
populares, desqualificando-as, por ameaçarem certa autenticidade e
espontaneidade, decorrentes de sua pretensa origem popular(ALMEIDA, 2003, p.
100). Deve-se ter cuidado em afirmar que as festas estão acabando unicamente por
causa das inovações técnicas. A impressão que fica, a partir da análise das
narrativas, é de que elas estão sempre se transformando, com sentido e
possibilidades diversos, envolvendo questões muito complexas que o além do
avanço técnico científico. No Brasil, como aponta Amaral (1998, p. 34-35),
Tudo indica que o capitalismo cooptou as festas populares e foi
cooptado por elas, mas também que o povo vem reinventando suas
festas nas novas condições de vida resultantes de novos contextos
econômicos e sociais. Pode-se observar, também, que as antigas
festas populares, compartilhadas por grande número de pessoas
(principalmente as festas religiosas) fragmentaram-se em formas
diferentes de festejar conforme foram se formando grupos em
decorrência do crescente processo de desenvolvimento capitalista, e
a conseqüente divisão social do trabalho, dos espaços, das classes
sociais e, principalmente, do crescimento de diferentes
denominações religiosas com maneiras variadas de festejar. No
entanto, surgiram ou mantiveram-se grandes festas em centros de
atração regionais.
As festas tradicionais têm assumido tons e sentidos diversos, a depender
da região onde ocorrem e dos sentidos que os indivíduos lhes dão. No caso de
festejos tradicionais do Tabuleiro, a permanência ou não de alguns naquela
comunidade parece evidenciar como as formas culturais e sociais de viver estão em
constante processo de transformação e ressignificação. Muitos não permanecem
90
frequentes no povoado, como a burrinha e os brinquedos de roda, outras formas de
festejar foram criadas ou modificadas e ressoam nessas novas formas de festejar
ecos dessas festas tradicionais, no passado, tão pungentes no Tabuleiro.
91
CAPÍTULO III
O TEMPO E O VENTO: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS NA VIDA COTIDIANA
DO TABULEIRO
O fiado mal cobrado, e não pago, é que avoa com o negócio.
Guimarães Rosa
3.1 RESSONÂNCIAS, REPERCUSSÕES SENTIMENTAIS E RECORDAÇÕES DO
PASSADO
O tempo que transcorre transformando vidas com sua marcha
ininterrupta, condenando ao lidas construções humanas, o consegue varrer
das memórias um passado que vive no presente graças à capacidade de rememorar
dos indivíduos. Segundo Pierre Nora (1993, p.9), a história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais, enquanto a memória é um elo
vivo que liga passado e presente. Portanto, o tempo, com tudo o que acarreta, traz
ao homem a possibilidade de mudanças com a quebra de paradigmas, como
também ocasiona a permanência de certos valores que têm na memória sua
guardiã.
Ao seguir as trilhas traçadas nos destinos pelo tempo, tendo as memórias
dos narradores como guias, é possível sinalizar alguns indícios que podem ter
contribuído para as mudanças operadas na vida cotidiana, econômica e cultural do
povoado, a partir da década de 1960. Embora tais evidências percorram caminhos
diversos, nota-se que as reminiscências dos moradores do povoado trazem novos
valores sociais, bem como conservam vivências que acumularam ao longo da vida.
O novo e moderno o acabaram, simplesmente, com as tradições culturais da
população local. Os processos históricos de transformações, que aconteceram e
continuam a operar no vilarejo, contribuíram para dar lugar a outras memórias,
92
outras tradições; enfim, continuidades de vidas, nas quais o passado que as compôs
vive no presente, orientando outros modos de vida.
Ante aos indícios das mudanças operadas no povoado, as lembranças
relatadas exprimiram sentimentos diversos, apontando a crise das vendas, a
introdução de elementos da modernização, as migrações, as reformas
infraestruturais, a ressignificação de antigas tradições, entre outras, como as
responsáveis por rupturas e permanências na dinâmica cotidiana do povoado.
Dentre esses fatores, a crise das vendas foi um aspecto preponderante
nas mudanças operadas no Tabuleiro. Atualmente, essas casas comerciais não têm
mais a mesma importância na vida socioeconômica do vilarejo (restando apenas
uma venda em funcionamento e sem a mesma representatividade que tinha no
passado), se comparado décadas atrás, quando havia uma média de três a
quatro vendas em atividade como rememoraram os entrevistados.
Os moradores do povoado e fregueses das vendas afirmam sentir a falta
das antigas vendas, dos vendeiros, das pessoas que por diversos motivos não
estão mais ali. A rotina de muitos foi quebrada. O costume de ir às vendas era
―sagrado‖ para alguns no fim da tarde, depois de um dia de trabalho na roça. A
venda que restou, para alguns pode ter o mesmo significado das outras que
existiram; já para outros, talvez, seja um alento, uma solução para a falta das
antigas vendas, sem o mesmo sabor, a mesma alegria, ou seja, outros significados
foram dados às vendas nas vivências e nas memórias dos moradores do Tabuleiro.
No fluxo da vida social que transcorre no Tabuleiro, observam-se que
entre as tradições culturais do lugarejo as festas o acontecem mais com tanta
frequência, algumas como o brinquedo de roda e o bumba-meu-boi são pouco
praticadas no povoado. Os adjutórios, com suas cantigas e animação próprias, são
cada vez mais raros. Outras como os festejos juninos e as rezas permanecem,
porém, trazem incorporações de novos valores culturais introduzidos com passar do
tempo.
O Sr. Carmerino afirmou: hoje tudo diferente‖ (entrevista em
16/03/2003). Essa era sua impressão e de outros entrevistados, diante das
mudanças nas formas tradicionais de diversão do povoado. Para esse senhor, a
passagem do tempo e as transformações vivenciadas pela população do Tabuleiro
resultaram em novos lugares de memórias que destoam do passado, configurando-
se, assim, o novo como destruidor do antigo. Contudo, é preciso, salientar que os
93
indivíduos m impressões diferentes sobre os acontecimentos operados no
povoado. A novidade é aceita ou rejeitada, conforme suas experiências de vida,
restando, aqui, descobrir os impactos que tiveram e m sobre a vida dos moradores
do lugar.
Em que pese as mudanças por que vem passando o Tabuleiro, a
migração da população local vem crescendo cada vez mais, seja para a sede do
município de Mutuípe ou para as grandes capitais do Brasil como São Paulo e
Salvador.
Outro aspecto sobre as mudanças no vilarejo é o aumento da violência
com uma constância maior de roubos, tanto nas vendas como nas residências,
constituindo uma realidade que contrasta com um passado no qual o povoado tinha
uma vida econômica, social e cultural com outra dinamicidade.
Diante dessas novas vivências vem à tona uma rie de
questionamentos. Como o povoado foi impactado pela crise das vendas? Por que
houve o aumento da migração? Como a população lidava com as inovações
tecnológicas e infraestruturais operadas no Tabuleiro? Por que algumas festas
tradicionais não o mais comuns? Enfim, seguem algumas considerações sobre os
indícios que podem levar à compreensão das razões que influíram em alterações na
vida sociocultural e econômica do lugar.
Primeiramente, é preciso observar o processo de urbanização e
industrialização vivenciado no Brasil nas décadas de 1950 a 1980 do século XX.
Nesse período, os melhoramentos técnico-científicos ocorridos nas grandes cidades
brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, atraíram um mero expressivo de
migrantes a procura de emprego e melhores condições de vida, sendo a maioria
deles originários da zona rural.
Novais e Mello (1998, p.581), num estudo sobre o impacto da
industrialização e urbanização da sociedade brasileira durante a segunda metade do
século XX, afirmaram:
Migraram para as cidades, nos anos 50, 8 milhões de pessoas (cerca
de 24% da população rural do Brasil em 1950); quase 14 milhões,
nos anos 60 (cerca de 36% da população rural de 1960); 17 milhões,
nos anos 70 (cerca de 40% da população rural de 1970). Em três
décadas, a espantosa cifra de 39 milhões de pessoas.
94
Além das indústrias que atraíam migrantes, outra saída para alguns foi
aventurar-se na fronteira agrícola em movimento. Nos anos de 1950 a 1980, regiões
do Brasil, até então com grande potencial econômico, mas pouco exploradas (Norte,
Centro-Oeste, principalmente), passaram a atrair migrantes graças às ações do
Estado na criação de estradas de rodagem e investimentos na infraestrutura
econômica e social, eletricidade, polícia e justiça, escolas, postos de saúde, etc. nas
cidades que foram nascendo ou revivendo na marcha para o interior do país
(MELLO & NOVAIS, 1998, p. 580).
As melhorias técnicas foram sentidas, no campo, de forma mais efusiva, a
partir dos anos 60, com a utilização crescente de tratores, implementos agrícolas
sofisticados, adubos e inseticidas, além da política do crédito rural, entre outros
fatores. Isso resultou na diminuição de postos de trabalho, conduzindo o homem do
campo às capitais brasileiras à procura de trabalho, sendo alguns absorvidos pela
indústria; mas, muitos, sem especialização que não a do trabalho no campo
incharam as periferias das grandes cidades, favorecendo a formação de favelas e
estabelecendo ocupações irregulares.
Ao que parece, no Vale do Jiquiriçá, as introduções de elementos da
modernização e incrementos na infraestrutura das cidades da região refletiram as
mudanças que ocorriam em âmbito nacional, resultando num acentuado êxodo rural,
que deve ser interpretado à luz da decadência/estagnação das bases produtivas
locais entre os anos de 1930 a 1970 (SEBRAE, 1995, p. 30-40).
Nesse período, a região do Vale do Jiquiriçá sofreu uma queda acentuada
na produção agrícola, a maior responsável pelo sustento econômico da região. A
crise foi fruto da decadência experimentada com as perdas na comercialização do
seu principal produto à época o café e a consequente desativação da Estrada de
Ferro de Nazaré na década de 1960, que foi implantada para o escoamento da
produção agrícola, sobretudo do café, até às portas da exportação, causando uma
séria crise econômica nos municípios do Vale, sentida pela população rural com a
diminuição dos postos de empregos e da rentabilidade da produção, tornando a
saída do campo uma das soluções para a crise.
Nos anos 80 e 90, a região ganhou um novo ânimo econômico com a
retomada da produção cafeeira regional, a expansão da pecuária e da lavoura
cacaueira. Por outro lado, o êxodo rural permaneceu devido às características
dessas atividades econômicas, concentradoras de terras e rotativa da mão-de-obra,
95
que ―recruta trabalhadores temporários nas sedes para as tarefas sazonais, sem a
necessidade e o custo de man-los de forma permanente nas propriedades
(SEBRAE, 1995, p. 37).
Para constatar o crescimento da agropecuária e da ocupação das terras
na região vejam as tabelas abaixo:
TABELA 01
Vale do Jiquiriçá
Evolução da utilização das terras na região 1970 - 1980
Discriminação
1970
1980
%
Acumulado
%
%
Acumulado
%
Área de Lavoura
12,03
12, 03
11,37
11,37
Área de Florestas
16,40
28,43
15,18
26,55
Área de Pastagens
46,09
74,52
48,30
74,85
Terras em descanso
25,48
100,00
25,15
100,00
TOTAL
100,00
-
100,00
-
Fonte: IBGE Sinopse Preliminar do Censo Agropecuário/1980
TABELA 02
Vale do Jiquiriçá
Participação das áreas de lavoura na área total dos estabelecimentos por municípios
1975 1980
Fonte: IBGE Sinopse Preliminar do Censo Agropecuário / 1980
Municípios
Área total dos
estabelecimentos (Ha)
Área ocupada com lavoura
Permanentes
Temporárias
1975
1980
1975
1980
1975
1980
Absoluto
%
Absoluto
%
Absoluto
%
Absoluto
%
Cravolândia
22.171
22.298
1.055
4,75
2.807
12,58
727
3,27
616
2,76
Jiquiriçá
25.160
26.451
1.963
7,80
3.760
14,21
1.017
4,04
730
2,75
Laje
49.130
32.712
1.864
3,79
4.297
13,13
3.213
6,53
2.986
9,12
Mutuípe
30.206
24.914
3.642
12,0
5
5.466
21,93
2.793
9,24
1.303
5,22
Santa Inês
32.114
31.232
997
3,10
1.067
3,41
457
1,42
372
1,19
Ubaíra
75.975
75.532
3.109
4,09
7.211
9,54
1.860
2,44
1.870
2,47
TOTAL
234.756
213.143
12.630
5,38
24.608
11,54
10.067
4,29
7.877
3,69
ESTADO
25.263.546
30.169.168
972.047
1,30
1.389.459
1,77
1.691.534
0,60
1.969.061
0,40
96
A partir da análise dos dados contidos na Tabela 01, observa-se que
ocorreu, por um lado, a expansão da fronteira agropecuária, que se efetua pela
ampliação das áreas de pastagens (46% para 48% no período de 70/80), e, de
outro, a ampliação das áreas ocupadas com lavouras permanentes (principalmente
café e cacau) como demonstram os dados da Tabela 02, que saltou de 5% para
mais de 10% entre os anos de 1975/1980, em detrimento daquelas de ocupação por
culturas temporárias e florestas (queda conjunta em torno de 2%). Embora o
crescimento não tenha sido proeminente, ele tem se mostrado constante, pois a
ocupação das terras é apenas um dos fatores que, somados a outros, causaram a
migração da população.
o crescimento das pastagens e da lavoura cacaueira acentuaram o
processo migratório da região representado numa diminuição da taxa de
crescimento da população rural de Mutuípe, se comparada com a urbana. Segundo
os estudos do IBGE, a população rural diminuiu de 74,6% em 1980 para 66,1% em
1991; enquanto a urbana cresceu de 25,4% em 1980 para 33,9% em 1991
23
.
Verifica-se, portanto, que o crescimento urbano, a expansão da pecuária
e da lavoura cacaueira, a concentração de terras impeliram a população rural a
migrar, dado o desgaste das condições de vida no campo; realidade que se
configurou no povoado do Tabuleiro. Esses fatores ajudam a entender porque parte
da população migrou, uma vez que ela vivia basicamente da produção agrícola.
Porém, é preciso salientar que o processo de migração foi lento e não significou o
―esvaziamento‖ da população rural, tanto que ela ainda hoje é maioria no município
de Mutuípe, mesmo perdendo cada vez mais espaço para a urbanização.
A Sra. Aurineide Thethê, ao explicar a diminuição da frequência de
fregueses nas vendas do Tabuleiro, indicativos das possíveis causas das
mudanças operadas no povoado:
Hoje em dia, o povo não vem mais pra porta da venda como vinha
antigamente. Hoje em dia, também eu penso, assim, que muita gente
novo, não vem pra porta da venda como vinha, porque o novo
vão estudar. Trabalhar de dia. Outros vão estudar de noite. Outros
saíram porque aqui não tem uma área de emprego. Então, o que foi
que aconteceu? Esse povo novo estudou um pouco, e depois foi todo
mundo pra cidade grande procurar trabalho. Os filho do morador da
região foi todo mundo embora, uns pra Salvador, outros pra São
Paulo. Cada um foi pra um lugar procurar trabalho. Então hoje, ficou
23
Dados retirados dos censos demográficos do IBGE de 1980 e 1991.
97
mais as pessoas mais velha, os moradores mais velho. Os mais
novo saiu todo mundo (Aurineide Thethê, 50 anos, entrevista em
14/04/2007).
Com o crescimento das cidades e popularização da educação, os filhos
dos trabalhadores rurais foram buscar nas cidades outras formas de sobrevivência.
As novas gerações já não encontravam como se estabelecer nos postos de trabalho
oferecidos no campo, faltava terra para trabalhar, as pequenas propriedades dos
lavradores já não absorviam toda mão-de-obra das famílias dos proprietários, a
alfabetização abria novas perspectivas de trabalho e a migração acontecia como
alternativa de sobrevivência à população rural.
As migrações levaram os moradores do povoado a entrar em contato com
novos modos de vida, proporcionados pela convivência em outros lugares,
principalmente, no meio urbano, incorporando experiências tipicamente citadinas
que, junto com a introdução de elementos da modernização no povoado como a luz
elétrica, o rádio, a televisão e a criação da estrada de rodagem, causaram rupturas
no cotidiano rural.
Segundo Santana (1998, p. 135), na pesquisa que desenvolveu sobre a
migração de moradores das zonas rurais dos municípios baianos de Conceição do
Almeida e Santo Antonio de Jesus para cidade de Salvador, os migrantes ao
retornarem para seus lugares de origem, definitivamente ou a passeio, traziam
consigo experiências e vivências das cidades por onde haviam passado. As práticas
e costumes adquiriram novas características, articularam-se a outras firmando
continuidades.
Essas impressões sobre a introdução de elementos da modernização no
Tabuleiro, assim foram sentidas por Sr. Pedro Andrade:
Mudou muito aqui. Isso aqui hoje uma coisa, de todo mundo no
céu. Todo mundo hoje tem sua água encanada, tem seu televisão,
como eu mesmo aqui, hoje, tenho telefone aqui dentro de casa, não
é isso mesmo? Aí, todas as aparelhagens doméstica a gente tem.
Eletro-eletrônico a gente tem dentro de casa, porque antes a gente
não podia tomar água gelada, porque não tinha geladeira. Não tinha
como. Hoje tá todo mundo dormindo no claro. Hoje uma beleza na
região (Pedro Andrade, 75 anos, entrevista em 06/07/2003).
98
Para o agricultor, o conforto proporcionado pela modernização foi
responsável pela melhoria da qualidade de vida das pessoas do lugar, ao
proporcionar a utilização de eletrodomésticos, usufruir das facilidades da água
encanada, do entretenimento proporcionados pela TV. Todavia, Sr. Pedro Andrade,
ao comentar sobre as formas de diversão e lazer do Tabuleiro, não mais as
novidades tecnológicas como beneficiárias, mas transformadoras da cultura local.
Ele observa que as formas de diversão tradicionais, tanto no Tabuleiro quanto na
zona urbana de Mutuípe, passaram a conviver com outros festejos tidos como
modernos:
No Tabuleiro existia bumba-boi, burrinha pro povo brincar, por
ocasião vinha algum circo pro Tabuleiro. Aí, depois em 48 [1948]
fizeram aquele prédio. Aí, começou na inauguração do prédio, foi
uma grande samba, uma grande festa. Daí pra ficou de sempre
em sempre, fazia uma festinha no Tabuleiro. Sempre em aniversário,
nas festas das crianças, tinha férias ? Tinha dança, tinha estas
festas. Daí pra cá ficou assim, o Tabuleiro que nem Mutuípe mesmo.
As festas em Mutuípe não existia, micareta, não existia banda, não
existia trio elétrico, não existia nada.
As festas na ocasião de Natal, mesmo, era bumba-boi, burrinha. A
gente, quando saía, sabia que era pra acompanhar um bumba-boi ou
uma burrinha e depois ir pra missa do galo. Saía todo mundo de a
, aquele grupo e, aí, depois da missa do galo, a gente voltava todo
mundo. Também tinha medo de cobra na estrada, somente né?
Não existia este negócio de marginalidade (Pedro Andrade, 75 anos,
entrevista em 06/07/2003).
Na narrativa, o Sr. Pedro expõe como o campo e a cidade não eram
espacialidades tão distintas. Na segunda metade do século XX, os moradores do
lugar se dirigiam ao centro urbano de Mutuípe para participar das comemorações
natalinas e, também, acompanhavam a burrinha e o bumba-meu-boi, manifestações
culturais tradicionais praticadas tanto no espaço urbano quanto rural. Essas duas
espacialidades são realidades integradas. Os indivíduos trazem consigo viveres que
provêm da convivência tanto no campo quanto na cidade. Por onde passam os
lugares os marcam e, se não vivem diretamente certas experiências, os sujeitos
adquirem valores provindos da cidade ou do campo, através das tradições, dos
valores sociais e familiares que são legados pelas gerações anteriores. Esses
aspectos são discutidos por Williams (1989, p. 270) nos seus estudos sobre o
campo e a cidade na história e na literatura:
99
A maioria das pessoas, antes de adquirir qualquer educação
literária, aprende a conhecer e dar valor à vida tradicional bem
como a sentir as tensões por ela impostas. Vemos e aprendemos
com base no modo como nossas famílias vivem e se sustentam; um
mundo de trabalho e costumes locais, e de crenças tão
profundamente dissolvidas nas ações cotidianas que de início nem
sequer sabemos que o de fato crenças, passíveis de mudança e
questionamento.
Para Williams (1989), a valorização do saber tradicional imbuído à vida
cotidiana é indicativo de que campo e cidade são representações sociais que
infundem o modo de vida dos trabalhadores, manifestando-se em suas práticas e
crenças. Logo, a passagem do tempo e as novas vivências se fundem a valores
anteriores ou os rejeitam, as tradições, estão de alguma forma, presentes nos
comportamentos dos indivíduos orientando muitas de suas ações na vida cotidiana.
As tradições, por outro lado, podem ser a reafirmação da cultura ante as
inovações e as forças coercitivas presentes nas relações de poder como destaca
Williams (1979, p.118-119). Na sua concepção, a tradição lida com as mudanças de
forma seletiva, ―certos significados e práticas são escolhidos para ênfase e outros
significados e práticas são postos de lado, ou negligenciados‖.
Desta forma, as manifestações culturais tradicionais do Tabuleiro, em
consonância as ideias de Williams (1979), passaram, ao longo do tempo, por
processos de inovações e rejeições de significados e práticas, por isso certas
tradições perduram e outras não são mais praticadas, quando não assumiram novas
feições.
O rompimento de tais valores, tradições e costumes devem ser vistos sob
a luz do processo histórico operante naquele momento, tanto no mundo quanto
naquele pequeno povoado rural. O Tabuleiro como uma localidade rural inserida, na
atualidade, em um mundo globalizado, tem sua vida cultural e cotidiana fortemente
influenciada pela sociedade pós-moderna, o que não significa a inexistência de
trocas, articulações e desvios com a maré da tecno-modernidade ocidentalizante.
Talvez, apontar fatores isolados ou tratar como mera decadência as mudanças
ocorridas no povoado seja simplificar um processo maior de transformações que
ultrapassava os limites físicos do Tabuleiro. Entender como se o processo de
interação entre os espaços macros e micros é o meio para compreender como
100
localidades com sua dinâmica cultural própria não são ―engolidas‖ pelo fluxo
avassalador da globalização. Ana Fani Carlos (1996, p. 28-29) observa:
Desse modo o lugar se apresentaria como o ponto de articulação
entre a mundialidade em constituição e o local enquanto
especificidade concreta, enquanto momento. É no lugar que se
manifestam os desequilíbrios, as situações de conflito e as
tendências da sociedade que se volta para o mundial.
O local, na concepção de Ana F. Carlos (1996), é o ambiente das tensões
sociais, pois cada sujeito mantém com o espaço uma relação identitária de usos e
sentidos compartilhados socialmente. O sujeito pertence ao lugar assim como é por
ele pertencido, e as mudanças no espaço reverberam na vida dos que habitam;
portanto, o lugar envolve uma complexa rede de fatores interligados, nos quais
acontecimentos mundiais e locais se influenciam.
No Tabuleiro, a interligação entre acontecimentos no âmbito local e
mundial resultaram em transformações ocorridas na vida cotidiana do povoado. O
que, longe de significar uma simples decadência, apontara para os novos caminhos
experimentados pela população do lugarejo que, na atualidade, configura-se em
uma realidade na qual as vendas perderam o vigor do passado e outras formas de
viver são urdidas, acompanhando as ligações e combinações cambiantes dos
localismos com o mundial.
O fato é que a relação entre as diferentes escalas de observação dos
espaços, em um trabalho de História Regional e Local, faz-se necessária, pois ao
estabelecer o elo entre acontecimentos locais e mundiais permite-se um mero
maior de relações e interpretações possíveis entre contextos sociais diversos, visto
que, com um leque maior de objetos de análise, o historiador consegue estabelecer
articulações, analogias, contrastes e justaposições, com outras espacialidades de
diferentes dimensões e localizações.
Essa tendência globalizante, como afirma Hall (2003, p.59), ―não pode
controlar ou saturar tudo dentro de sua órbita‖. Todos os sistemas globalizantes
convivem com o localismo, que não são deixados ―de lado pelo fluxo panorâmico da
globalização, mas retorna para perturbar e transformar seus estabelecimentos
culturais‖ afirma Bhabha (2005, p.161) reiterando a ideia de Hall (2003).
101
A observação de Bhabha (2005) suscita a discussão de como no campo
da cultura as inovações, transformações e rejeições vivenciadas pelas sociedades
ganham notoriedade. As discussões propostas sobre as tradições apontam nesse
sentido. Segundo os entrevistados, as formas de diversão, as manifestações
culturais foram absorvendo elementos da modernização nas suas práticas típicas,
ora incorporando, ora rejeitando-as. A população reconhecia tais mudanças ao
expressá-las em suas rememorações, reforçando a ideia de Thompson (1981, p.
189) de que as experiências e vivências dos sujeitos o o campo privilegiado da
cultura, uma vez que
As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como
idéias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos (...). Elas
também experimentam sua experiência como sentimentos e lidam
com esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações
familiares e de parentescos, e reciprocidades, como valores ou na
arte ou nas convicções religiosas.
Os aspectos apontados por Thompson (1981) expressaram-se nas
narrativas da população do Tabuleiro, ao exporem experiências vivenciadas no
cotidiano que contribuíram para descortinar o universo mental, de homens e
mulheres, repleto de sensibilidades, reveladoras de irracionalidades e desejos que
muitas vezes movem suas ações e não aparecem em objetos palpáveis se não nos
sonhos, nos anseios, nos medos. A cultura tem o poder de abarcar as mais variadas
impressões sobre a vida, incorporando-as a elementos materiais ou imateriais que
se manifestam nas mudanças de um mundo em movimento.
No âmago de todas essas transformações foi possível apreender
evidências que contribuíram para entender porque as mudanças que ocorreram no
Tabuleiro o complexas de sentidos. Longe de acabar com a cultura tradicional ou
por fim às memórias do passado, as inovações acompanharam o transcorrer da vida
e da história, firmando continuidades em destinos de pessoas que, ante as novas
experiências, não deixaram de se enraizar, mesmo que sentimentalmente, em seu
―canto do mundo.‖
102
3.2 A DECADÊNCIA DAS VENDAS
As memórias sobre o povoado do Tabuleiro estão quase sempre
associadas às vendas, no caso, às casas comerciais. Elas foram, por muito tempo,
as responsáveis pela dinamização da vida social e econômica do povoado, dando-
lhe uma identidade. A partir da década de 1990, as transformações operadas no
cotidiano do vilarejo e que levaram à crise das vendas foram sentidas de forma mais
intensa, chegando ao auge na primeira década do século XXI quando, em 2007, a
Venda Santa Ana, última grande casa comercial do povoado, fechou suas portas.
Dentre os fatores responsáveis pela crise das vendas podem-se destacar:
a retenção na economia causada pela migração; variações na produção agrícola; e
a administração dos vendeiros. A essas suposições somam-se outras, como a
possibilidade da decadência das vendas estarem atreladas à concorrência de
estabelecimentos comerciais de povoados vizinhos ou até mesmo à facilidade de
locomoção proporcionada pela estrada de rodagem que liga o povoado à zona
urbana do município de Mutuípe, configurando novas relações e trocas entre o
campo e a cidade.
No contíguo dessas mudanças operantes no povoado, a crise das vendas
resultou em novos modos de vida. Nota-se que os armazéns da cidade de Mutuípe
absorvem quase toda a produção agrícola do lugar, papel, no passado,
desempenhado pelas vendas. Os moradores, que tinham nelas um importante ponto
de lazer e diversão, têm que conviver, hoje, com a única venda restante, que pouco
abre aos domingos e não funciona até o tardar da noite com os jogos de cartas,
como anos atrás. Os fregueses têm buscado, nas vendas de povoados vizinhos
ou nos supermercados da zona urbana, lugares que atendam as suas necessidades
de consumo.
As transformações mencionadas tiveram nas estradas de acesso ao
povoado as vias de entrada desses novos valores. Dizer que estradas cortam vidas
não é apenas uma metáfora. No Tabuleiro, elas significavam a possibilidade de
conectar não o campo como a cidade de forma mais rápida e confortável. As
vendas do povoado também atraiam moradores de vilarejos vizinhos, graças às
facilidades de locomoção proporcionadas pelas estradas construídas a partir dos
anos de 1960 na região, interligando os povoados rurais do município. Segundo Sr.
103
Pedro Andrade, esse foi um fator que tornou o Tabuleiro um ponto estratégico de
comércio:
Porque é um lugar que ali é uma estrada viva. Tem saída daqui do
Beija-Flor, vem descendo daqui, e vem aí saída da Serra Grande,
Capela de Santana, esse mundo inteiro. Aí, passa tudo pelo
Tabuleiro. O Tabuleiro é um ponto para qualquer comércio, é melhor
do que na cidade (Pedro Andrade, 75 anos, entrevista em
06/07/2003).
As considerações do Sr. Pedro sugerem como estradas significam mais
que uma forma de ligar lugares. O Tabuleiro é dividido por uma estrada que
literalmente perpassa vidas. Em sua margem, as casas se elevam, a poeira do chão
de terra batida e o cascalho estão grudados nos s dos que ali pisam diariamente.
Na estrada, a vida cotidiana do povoado desfila como em uma passarela, os que
chegam ou se vão, a novidade, o sonho, as boas e más notícias viajam por elas.
Aqueles que à noite sentam nos passeios das casas veem as suas vidas e a de
outros se desdobrarem. É um momento em que cada um fala de si, dos
acontecimentos que testemunharam ou viveram, e, assim, a sociabilização
acontece.
Poeticamente, como sugere Bachelard (2008, p.31), ―cada pessoa então
deveria falar de suas estradas, de seus entroncamentos, de seus bancos. Cada
pessoa deveria preparar o cadastro de seus campos perdidos‖. Aliás, esse é o
trabalho essencial do historiador, ouvir as histórias que as pessoas têm a dizer,
buscar as vias sobre os quais os sujeitos constroem trajetórias carregadas de
marcas de suas passagens ao longo do tempo. Nesse sentido é que o Sr. Pedro
afirmou que o Tabuleiro ―é uma estrada viva‖, porque, tal como caminhos feitos de
encruzilhadas com obstáculos e percursos, elas nos contam sobre a vida dos
indivíduos, sobre os lugares que habitam.
A imagem (foto 05) da ―estrada de chão‖ que corta o povoado revela
esses aspectos. Porém a fotografia, não captou na sua totalidade a vida cotidiana do
povoado, mas, como destaca Mauad (p.10-12), a fotografia é uma testemunha
indireta do passado, que uma pista para se chegar ao que não está aparente ao
primeiro olhar, mas que concede sentido social à foto‖. Assim, a fotografia incita a
imaginação e com os indícios presentes na imagem é possível vislumbrar, mesmo
que em parte, aspectos sociais do Tabuleiro.
104
Foto 05 : Visão panorâmica do povoado do Tabuleiro. À esquerda, a Venda Santa Ana.
Fonte: Fotografia - Josiane Thethê Andrade, setembro de 2003.
Ainda analisando a fotografia, nota-se que a estrada tangencia as casas
dos moradores, cujas varandas para ela estão voltadas, fazendo imaginar como no
passado os moradores se recostavam para presenciar o desenrolar da vida
cotidiana. Delas era possível ver a Venda Santa Ana esquerda na imagem), com
suas várias portas que davam acesso ao interior da venda, bem como os bancos de
madeira feitos de toras de árvores, sobre os quais os fregueses se sentavam para
conversar e testemunhar os pedestres passarem. O barulho das crianças que saíam
da escola pública Miguel Couto, que a fotografia não captou, o orelhão, os postes, o
carro, representam as mudanças operadas no vilarejo com a introdução dos
elementos da modernização, ressignificando vivências. Enfim, na imagem nota-se
como a estrada era uma parte ―viva‖ do Tabuleiro, na qual se desenrolava a trama
cotidiana que envolve a arte de viver.
As estradas, que eram passagens para as tropas de mulas dos tropeiros,
percursos para os moradores que se dirigiam as suas roças e casas, podem ter sido
aquelas que conduziram a outros caminhos que acarretaram a decadência das
vendas do Tabuleiro. Muitos entrevistados apontaram a acessibilidade promovida
pelas estradas até os centros urbanos próximos como um dos fatores que
105
ampliaram as alternativas de consumo, maior circulação das pessoas e,
consequentemente, de ideias, favorecendo as trocas sociais e comerciais.
Para o Sr. Domingos, as estradas e o acesso aos meios de transporte
facilitaram a locomoção dos moradores do povoado, modificando costumes e
antigos hábitos, como o de amarrar as mulas, cavalos e jumentos em estacas das
cercas que se estendiam ao longo das estradas. Agora, os pedestres e os animais
dividem as estradas com automóveis e motocicletas. Dessa forma, ele descreve o
impacto das estradas:
Essa estrada tem uns 40 anos de feita. Naquele tempo não existia
carro, assim em Mutuípe não. tinha um caminhão velho, quem
comprou foi o finado Leordino Rocha, um Jeep véi na rua e uma
tali [tal de] de motocicreta [risos], que eu não sei de quem era, era o
que existia na rua. As estacas vivia cheia de animá. E Hoje não, tudo
que é bichim [pessoa] tem carro, às vezes sai daqui mais de 50, mais
de 100 carros. Naquele tempo não, nêgo arrumava um jegue botava
uma cangalha, dois panacuns e ia pra rua fazer feira e vender uma
codornazinha. Hoje, não, nêgo tem seus carro, eu que não tenho
nenhum! (Domingos Santos de Andrade, 63 anos. Entrevista
em19/08/2009)
A escolha por trilhar os novos caminhos não significava o abandono de
antigos lugares de memória. O Sr. Hélio Nunes, assíduo frequentador das vendas do
Tabuleiro, referindo-se aos anos posteriores a década de 60 após a criação da
estrada de rodagem que corta o Tabuleiro, afirmou: ―o povo ia pra rua comprar
alguma coisa, mas quando passava nas vendas do Tabuleiro tinha que parar para
fazer a feira‖ (Hélio Nunes dos Santos, 62 anos, entrevista em 05/07/2010). A partir
desse relato, afirmar que as vendas foram trocadas pelas casas comerciais do
centro urbano de Mutuípe, simplesmente, porque os indivíduos poderiam ter acesso
à cidade e a bens de consumos variados seria ignorar as relações de consumo que
eram praticadas nas vendas. As formas de negociar ainda continuavam baseadas
em antigos costumes, pautadas na confiança e nas relações solidárias picas das
vendas rurais.
O crescimento do capitalismo e seu avanço sobre o mundo rural fazia-se
sentir em valores ideológicos transmitidos pelas novelas, filmes, programas de TV ou
nas músicas e notícias difundidas pelo rádio. Como, também, os migrantes que
traziam em suas visitas ou retornos ao vilarejo as novidades tecnológicas, as
vivências das cidades; enfim, um mundo de informações que impactavam a vida dos
106
moradores do Tabuleiro. As próprias vendas funcionavam como catalisadoras das
novidades e dos valores sociais que se firmavam no mundo rural; porém, as novas
relações de consumo, características do mundo globalizado, encontraram nas
vendas uma forma própria de conviver com as formas tradicionais de comerciar.
Estudiosos das sociedades pós-modernas, dedicados a entender sua
dinamicidade, apontam como as relações de consumo dizem muito sobre as
sociedades capitalistas. Para Baudrillard (1991, p.80), a circulação, a compra, a
venda, a apropriação de bens e de objectos/signos diferenciados constituem hoje
nossa linguagem e o nosso código, por cujo intermédio toda a sociedade comunica e
fala.‖ O mundo capitalista, na visão do autor, que se mantém sobre a égide do
consumo, expressa nas relações de compra e venda uma linguagem, um sistema de
códigos e signos que, simbolicamente, se anunciam em comportamentos, na forma
como os homens compram, desejam e se deixam ou não seduzir pelas
mercadorias, expondo todo um modo de viver das sociedades.
Por sua vez, Bauman (1999, p.92-93) ratifica as ideias de Baudrillard
(1991) ao explicitar como tal linguagem da sociedade de consumo se corporifica nas
atitudes dos consumidores:
É essa combinação dos consumidores, sempre ávidos de novas
atrações e logo enfastiados com atrações já obtidas, e de um mundo
transformado em todas as suas dimensões econômicas, políticas
e pessoais segundo o padrão do mercado de consumo e, como o
mercado, pronto a agradar e mudar suas atrações com uma
velocidade cada vez maior; é essa combinação que varre toda
sinalização fixa de aço, de concreto ou apenas cercada de
autoridade dos mapas individuais do mundo e dos projetos e
itinerários de vida.
Bauman (1999, p.88-89) afirma que o homem contemporâneo, inserido na
sociedade de consumo, é impulsionado pelo desejo de comprar. O consumismo que
move suas atitudes lhe faz perder o sono, ante a necessidade de adquirir e ter
mercadorias, configurando um dilema, que para o autor está em se é necessário
consumir para viver ou se o homem vive para poder consumir. Isto é, se ainda
somos capazes e sentimos a necessidade de distinguir aquele que vive daquele que
consome‖. Diante desse quadro de mudanças, Bauman (1999) sinaliza que a avidez
dos consumidores tem causado alterações nas relações sociais; os valores
107
humanos de solidariedade, compaixão, amor e ódio assumem novas configurações
orientadas pelos caminhos indicados pelo mercado consumidor de produtos.
No Tabuleiro, as novas relações de consumo são incorporadas
lentamente aos antigos costumes, contudo os moradores, em suas entrevistas,
demonstraram o desejo de permanecer nas vendas onde sempre comercializaram.
O Sr. Hélio, assim como Dona Madalena e o Sr. Domingos, cada qual com suas
razões, afirmaram que eles preferiam negociar com a venda do Sr. Juvenal onde,
geralmente, faziam suas compras e só cessaram após a morte do vendeiro.
Dessa forma, o acesso à cidade, a outros bens de consumo, ao dito
moderno não pareceu afastar os fregueses das vendas, demonstrando que os
localismos têm o poder de resistir à marcha da globalização, numa negociação em
que nem sempre o ―menoré o derrotado. E quem sabe, a sociedade de consumo,
desenhada por Baudrillard (1991) e Bauman (1999) que varre dos mapas
individuais do mundo e dos projetos e itinerários de vida‖ formas tradicionais de
viver, tenha, em realidades locais, como o Tabuleiro, um campo fértil de resistência e
ressignificação desses valores à moda do homem do campo.
Em acréscimo às possíveis razões que conduziram as vendas à crise, o
crescimento da violência na região tem, de alguma forma, provocado a saída de
moradores para a sede do município e, consequentemente, afastado os fregueses
das vendas, pelo menos até altas horas da noite como acontecia no passado. Para a
Sra. Aurineide Thethê, que trabalhou na Venda Santa Ana até o ano de 2005, o
aumento de assaltos e furtos na região têm provocado o afastamento dos moradores
das vendas, visto que o estabelecimento comercial, onde trabalhou nos últimos nove
anos, antes de seu fechamento, foi assaltado três vezes. Segundo ela, isso acabou
reforçando a ideia de que o povoado tornou-se um lugar violento:
Nos tempos de hoje, acabou o movimento que tinha na venda à
noite, por causa da violência, que cresce dia após dia, tanto na
cidade como nas roças. Aqui mesmo já foi invadida a casa, por
três vezes a mão armada. Noventa e oito pra , aqui se tornou
muito perigoso, tanto de dia quanto de noite. Eu vivo muito assustada
porque além do que já aconteceu aqui, a gente es sempre ouvindo
falar de roubos e assaltos nas casas e nas vendas (Aurineide
Thethê, 50 anos, entrevista em 14/04/2007).
108
Os argumentos da Sra. Aurineide dão indicações de como a violência
parece ter afastado os fregueses das vendas. No entanto, não é possível
dimensionar até que ponto essa violência influiu na diminuição do movimento de
fregueses desses estabelecimentos comerciais, pois o crescimento da violência no
campo, no Brasil, envolve questões de natureza diversa e complexa. Assim é que,
diferente da opinião da Sra. Aurineide, Dona Madalena observa:
Em todo lugar tem violência, não é só o Tabuleiro. Em Lugar que o
povo bebe muito é que briga, tudo. Não é dizer que o povo
vem de fora pra brigar, nem nada não. O povo diz que a violência é
por causa disso. No tempo que Juvenal e Sizínio tinha de venda ali,
qual foi as brigas que teve? Não teve briga nenhuma (Madalena
Pereira, 73 anos, entrevista em 15/11/2009).
A divergência de pontos de vista das entrevistadas evidencia quão
amplas são as razões para decadência das vendas. A influência da violência, na
memória dos narradores, assume matizes diversas, certamente influenciadas pelas
vivências de cada uma. Como a Sra. Aurineide presenciou alguns assaltos na venda
de seu njuge Juvenal Santos, logo traz consigo lembranças traumáticas desses
episódios. Enquanto Dona Madalena teve, com as vendas, outras experiências, por
isso as duas manm opiniões distintas. Portanto, a violência é sentida de forma
diferente na crise das vendas, mas atinge os moradores do lugar, seja impelindo-os
à procura de segurança na zona urbana da cidade ou mudando hábitos.
A respeito das diferentes lembranças e impressões dos indivíduos sobre
acontecimentos compartilhados na vida social, Portelli (1997, p. 16) considera que
A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser
semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese
alguma, as lembranças de duas pessoas são assim como
impressões digitais, ou, a bem da verdade, como vozes
exatamente iguais.
As ponderações de Portelli (1997) corroboram no entendimento das
impressões dos moradores do Tabuleiro sobre a violência. Embora compartilhem
memórias coletivas, produto de uma conivência social, a memória também é
109
individual. Então, buscar uniformidade nas memórias o é o mais aconselhável,
visto que elas são frutos de experiências coletivas e individuais.
Durante as entrevistas outro aspecto citado foi o rompimento das relações
afetivas e de pertencimento que integravam a população local com o espaço das
vendas. Acontecimentos como a morte de algum vendeiro, o fechamento de
determinadas vendas fizeram com que a população local sofresse uma espécie de
quebra de laços sentimentais que mantinham com aquelas espacialidades, que
não significava apenas a perda de uma opção a mais de estabelecimento comercial
para negociar, mas referenciais de valores sociais e nculos culturais tradicionais
irrompiam-se na vida dos fregueses das vendas.
De repente, não havia mais aquele vendeiro de pernas cruzadas e mão
no queixo, sentado no balcão conversando com fregueses (Foto 06), no fim da tarde
não se podia ir à venda para conversar, ver TV, beber cerveja ou cachaça, porque
não está mais em funcionamento a venda que sempre fez parte do cotidiano do
povoado, era como se uma peça faltasse no tabuleiro, literalmente. Essas
lembranças construídas diariamente coligam lugares que consagraram memórias. E
a ausência referencial desses aportes impele a população à busca de novos lugares
de memória, outros referenciais em casas comerciais fora do Tabuleiro.
Há, também, um processo inverso, o de negação de antigas memórias
como fuga das lembranças doloridas. Talvez os fregueses, com o fim das vendas
que comerciavam, tenham procurado outros lugares como forma de adaptar suas
vidas às novas realidades. Para Pollak (1989, p.15), ―a memória é indissociável da
organização social da vida‖, acompanha seus movimentos e busca nas suas
adversidades formas de se acomodar, tornando as lembranças aceitáveis e
confortadas, ainda que fosse silenciando-as ou esquecendo-as.
110
Foto 06: O vendeiro Juvenal Santos e sua esposa Aurineide Thethê.
Fonte: Fotografa: Josiane Thethê Andrade, 1999.
Na fotografia 06 estão o vendeiro Juvenal Santos e sua esposa Aurineide
Thethê, que trabalharam juntos na Venda Santa Ana. Esse estabelecimento, após a
morte do Sr. Juvenal em 2002, funcionou até 2007. Nela -se uma imagem comum
àqueles que entravam na venda: esse vendeiro estava quase sempre sem camisa,
de calça jeans e chinelo nos pés, junto com o inseparável chapéu a cabeça. Assim,
sentado no balcão, o vendeiro ficava nos momentos de pouco movimento na venda
e dedicava-se a conversar com os fregueses. As mercadorias espalhadas pelas
prateleiras ou no chão, carnes, papéis, cordões, moscas sobre o balcão, chão sujo
de terra e cuspe eram imagens típicas dessas lojas das roças. Os fregueses
acostumaram-se com essas cenas, constituindo as referências para suas memórias
sobre as vendas.
Segundo Nora (1993, p.14), a memória é vivida do interior, mas ela tem
necessidade de suportes exteriores e de referenciais tangíveis de uma existência
que vive através delas‖. A ausência referencial de lugares de memória provocou
rupturas profundas em costumes e comportamentos que ajudam a entender a crise
das vendas no Tabuleiro. A Sra. Madalena, assim, expõe suas impressões sobre o
fechamento da venda na qual ela fazia compras:
111
Quando Sizínio mais Juvenal botou venda, o Tabuleiro ali ficou
quente, que dia de sábado era um movimento! E depois que Sizinio
cabou com a venda, o Tabuleiro morreu. Você que Vando botou
ali, a gente chega dia de sábado não tem ninguém, acabou o
movimento. Luís botou aqueles dias teve um esquentinzinho acabou.
Você sabe que dia sábado não tinha ninguém. O Tabuleiro acabou!
(...) Hoje eu faço minha feira na rua, tem 5 anos que faço minha feira
em Duda! Desde que Juvenal morreu (Madalena Pereira, 73 anos,
entrevista em 15/11/2009).
Para Dona Madalena, que fez suas compras por anos na venda Santa
Ana, o fim desse estabelecimento representou a busca por um novo lugar para
comercializar. Mas não bastou a substituição de uma venda que fechou por outras
que surgiram depois. Ela afirma ainda que as relações de confiança e cumplicidade
que, por anos, caracterizaram as suas vivências na venda do Sr. Juvenal não eram
mais as mesmas. O Tabuleiro ―morreu‖ para Dona Madalena. Diante disso, ela
buscou em um supermercado da zona urbana de Mutuípe um novo lugar para
negociar, buscando estabelecer novas relações já que as antigas haviam saturado e
as memórias construídas, em anos de convivência naquela espacialidade perderam
o brilho no presente, tornando-se amargas, desde quando as vendas do Tabuleiro
não eram mais lugares acolhedores, os espaços da intimidade do passado, nos
quais as memórias eram tão fortes e significativas, que talvez a convivência tenha se
tornado difícil ante a nova realidade.
O fato de Dona Madalena ter procurado os supermercados, na zona
urbana da cidade de Mutuípe, não foi um fato isolado, boa parte dos narradores
passaram a fazer o mesmo. A morte do vendeiro Juvenal provocou modificações
nas vivências que a população mantinha com as vendas do lugar, pois mesmo
havendo outras vendas no Tabuleiro, alguns preferiram negociar em outros lugares.
Sr. Domingos, assim como Dona Madalena, recorda suas lembranças a respeito da
venda do Sr. Juvenal:
As venda do Tabuleiro já foi venda quando tinha Jovená, quando era
vivo. Morreu, acabou! Até hoje não pude mais compreender esse
negócio ainda. No tempo de Jovená aquela venda ali andava
atopetada. Lembro que Jovená comprava quadro, cinco caminhão de
cacau no decorrer da semana, tinha época de sair três, quatro
caminhão truncado [cheio], hoje não sai um Jeep, pra você ver. Tinha
aquela confiança. O Tabuleiro, o que era acabou! Hoje faço minha
feira na rua (Domingos Santos de Andrade, 63 anos. Entrevista
em19/08/2009).
112
Na sua fala, Sr. Domingos traz outro aspecto que contribuiu para o
declínio do comércio das vendas. A população do Tabuleiro vive basicamente da
produção cacaueira, que junto com a pecuária constituem as bases produtivas do
município de Mutuípe. Entre os anos de 1960 a 1990, o comércio das amêndoas do
cacau fez os negócios das vendas crescerem de forma significativa. O cacau era
comprado pelos vendeiros e, depois, repassado aos armazéns da cidade. E, como
Sr. Domingos afirmou, da venda do Sr. Juvenal saíam ―quadro, cinco caminhão de
cacau no decorrer da semana‖, logo milhares de arroubas de cacau eram vendidas
nas vendas na época da safra. Porém, isso não mais acontece. A população vende
diretamente a produção aos armazéns da cidade, que buscam a produção na
fazenda do agricultor; no passado, entretanto, não havia essa comodidade, a
produção era levada ―no lombo‖ dos animais até às vendas ou aos armazéns.
Ainda no sentindo de entender as razões que causaram a decadência das
vendas, devem-se contemplar fatores como as tensões que permeiam o ofício dos
vendeiros e a corda bamba sobre a qual equilibram seus negócios sujeitos às
―intempéries‖ do mercado financeiro. As dívidas, as más administrações, somadas
aos outros fatores, influíram decisivamente na crise das vendas. Sr. Pedro, citado
anteriormente no segundo capítulo, afirmou que as dívidas foram umas das
principais responsáveis pelo fracasso das vendas. Segundo Sr. Hélio Nunes, o fim
da Venda Santa Ana, em 2007, foi a gota d‘água de uma crise que vinha sendo
sentida desde os fins dos anos 90 do século XX.
Nuca [Juvenal] morreu, depois ficou Dona Neide [Aurineide
Thethê], mas não foi a frente porque o povo não se acostumou sem
ele. E o sócio dele mesmo dizia que não dava pro negócio. Ficou
devendo dinheiro ao povo, muitos se zangaram e saíram de . Foi
uma quebradeira, falta de dinheiro, o povo se desequilibrou e o povo
procurou outros cantos. O Tabuleiro acabou mais por causa disso. E
na roça pegou a ter muita vagabundagem, e se botar um negócio
como tinha Nuca não vai a frente não, por causa dos ladrãos. Eu
arriei de ir ao Tabuleiro, uma vez por outra que passo lá, eu ia todo
dia lá, pra mim era o melhor negócio do mundo. Hoje eu vou ao
Tabuleiro comprar uma carne de porco na mão de Gil. Ali tem dia de
domingo que abre de manhã até meio dia, ou de meio dia ade
tarde que é fechado o dia todo. Semana passada fiquei aqui não
chegou ninguém aqui, eu sai, fui no Tabuleiro tava fechado, mas de
tardinha fui de novo, tinha Piau. Prosei com ele e fui me embora.
Não tinha mais ninguém, acabou! (Hélio Nunes dos Santos, 62 anos,
entrevista em 05/07/2010).
113
Os desequilíbrios se mostravam nos conflitos entre os vendeiros
endividados e os clientes. A confiança depositada nos negócios selados com um
aperto de mão, na certeza de que a honestidade bastaria para a quitação das
dívidas, rompia-se e, como consequência, surgiam as cobranças, as ameaças
verbais, o uso da violência para forçar os vendeiros a pagarem suas dívidas. Porém,
nota-se que a agressão física implode sentimentos de descontentamento pelo não
pagamento das dívidas. A população demonstrava sua insatisfação com todo um
conjunto de valores que vinha por terra; geralmente, as pessoas sentiam-se traídas,
usurpadas e desterradas, em um ambiente que sempre as acolheu, onde o crédito
estava disponível, e quando elas precisaram não encontraram mais amparo.
Como consequência imediata, parte da população afastou-se das vendas
do Tabuleiro e procurou fora do povoado outras casas comerciais, como já foi
mencionado. Para o Sr. Hélio, o fim da última grande venda do povoado soou como
uma sentença de morte: o ―Tabuleiro acabou‖. Enquanto funcionaram, as vendas
foram a artéria pulsante da vida social de um lugar marcado por intensa convivência
nessas espacialidades. O fim dos estabelecimentos, no período de 1960 a 2007,
marcou a memória de rias gerações, deixou marcas profundas não nas
lembranças de um povo, como em seu cotidiano.
Hoje, aqueles que têm a oportunidade de caminhar pela estrada que corta
o povoado não veem mais as vendas que no passado ficavam abertas até à noite.
Não se escuta mais com frequência as vozes dos fregueses conversando, as
cantorias, a TV ou o rádio ligado e as pessoas comentando as últimas notícias. Não
se veem mais os jogos de cartas, com suas discussões fervorosas e o
descontentamento dos perdedores; ou os apostadores do jogo do bicho que faziam
―sua fé‖ confiantes na interpretação dos sonhos que tiveram na noite anterior. Não
são mais tão comuns as cenas daqueles que de lá saíam cambaleantes após
beberem muitas ―pingas‖ ou terem tomado muitas cervejas, fossem comemorando,
lamentando ou simplesmente satisfazendo o prazer de beber. Tamm ficaram nas
memórias as brigas pelos mais diversos motivos, os carros que chegavam e saíam
carregados de fregueses que vinham da cidade de Mutuípe, mas que tinham que ali
―chegar‖, nem que fossem para conversar. Tudo isso vem dando lugar para outras
vozes, outros hábitos que revelam novos anseios, outros lugares de memória.
O Tabuleiro não vive mais uma realidade apontada pelas memórias dos
narradores da história desse lugar, ou seja, sua própria população que,
114
cotidianamente, testemunhou as transformações dessa espacialidade. Contudo,
apontar a ―morte‖ do povoado, pela crise das vendas, seria anunciar
apocalipticamente o futuro. A pesquisa aqui desenvolvida levantou indícios e
hipóteses sobre a decadência das vendas. Por isso, a impressão é a de um lugar
que viveu modificações profundas, com um passado marcado pela vitalidade das
vendas, mas o seu esvaecimento, na última cada, modificou a vida dos
moradores, uma vez que o Tabuleiro tinha nelas um referencial, um dinamizador da
vida econômica e social.
O arraial das vendas não mais se reconhece assim, porque esses
estabelecimentos comerciais estão desaparecendo desse cenário no qual foram as
vedetes por muito tempo. Nas reminiscências dos moradores, porém, as vendas são
memórias vivas, impregnadas de lugares e tempos. Os lamentos da inexistência das
antigas vendas, a saudade de pessoas, lugares, fazeres, costumes foram
constantemente mencionados nas narrativas, muitos narradores sugerindo, até o fim
da vida socioeconômica do Tabuleiro.
O fato é que novos modos de viver se instauram e as vendas, quem sabe,
podem revigorar-se como desejam muitos moradores. No presente, elas não mais
dão o tom da vida cotidiana do povoado, mas as gerações que viveram no contexto
das vendas, e tiveram suas vidas tangenciadas pela dinâmica imprimida naqueles
espaços, mantêm viva a memória daquilo que a decadência econômica não
conseguiu varrer de suas vidas.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Utilizar as narrativas de moradores do Tabuleiro para analisar aspectos
da vida cotidiana do povoado foi mais do que relatar a história de um lugar.
Significou debater a importância do mundo rural como objeto de estudo histórico,
contrastando com algumas ideias que associam o mundo rural a lugar de atraso e
ignorância, adjetivando preconceituosamente o homem do campo como ―jeca‖,
―mateiro‖, ―roceiro‖, etc. Esses sujeitos são agentes históricos, transformadores de
sua realidade com costumes e tradições, fruto, muitas vezes, de práticas e vivências
experimentadas nas relações socioculturais constituídas cotidianamente.
Para empreender um estudo histórico do povoado, foi preciso buscar nas
memórias sobre as vendas do Tabuleiro a explicação para muitos dos fatores que
dinamizavam a vida socioeconômica do lugar. Esses estabelecimentos comerciais
eram múltiplos em funções e significados; e, durante a pesquisa, observou-se que
as vendas não se limitavam apenas ao comércio de mercadorias para satisfazer as
necessidades de consumo da população local. Elas funcionavam também como
armazéns, açougues e casas de jogos, alimentando o espírito dos fregueses com o
lazer e a diversão e os seus corpos com os alimentos serem comercializados.
Em relação ao vendeiro, ele tornava-se um personagem singular do lugar
e o era visto pela população apenas como um comerciante. A convivência e o
estreitamento dos laços de intimidade juntavam-no aos fregueses, tornando-o,
muitas vezes, amigo ou inimigo de muitos. Assim, as vendas constituíam-se em
espaços que tanto aproximavam as pessoas e promoviam o nascimento de
prósperas amizades, como também possibilitava desentendimentos e brigas.
Dentre tantos papéis, o vendeiro ainda poderia, no momento de
necessidade de um freguês, ajudá-lo não cobrando uma dívida ou concedendo um
empréstimo com facilidades de pagamento. No entanto, é importante frisar que, em
muitos casos, a cobrança de dívidas poderia romper com a relação de confiança que
envolvia os negócios dessas lojas rurais. Historicamente, elas ajudaram a construir
significados dos espaços do povoado, assim como contribuíram na constituição de
memórias sobre as formas de comerciar e sociabilizar dos fregueses. As vendas
tornavam-se um ponto de referência e, no caso do Tabuleiro especificamente, a
diversidade e o dinamismo econômico intrínsecos a elas colaboravam para a criação
116
de uma imagem do lugar carregada de experiências e vivências nessas
espacialidades.
O trabalho oportunizou, tamm, apreender diferentes aspectos do
―universo‖ cultural do homem do campo, ao observar como indivíduos construíram,
em momentos de lazer e diversão, relações com a natureza, costumes e tradições.
No Tabuleiro, dentre as formas de socialibilização dos moradores, destacaram-se os
festejos da burrinha e do brinquedo de roda que, ao acompanharem outras
manifestações culturais do lugar como as rezas, os ternos de reis, entre outras,
expunham como se entremeavam formas de sociabilidade com aspectos religiosos e
culturais de pessoas que têm suas vidas tangenciadas pelas vivências nas roças.
Notou-se, ainda, que com o avançar dos anos operou-se uma série de
transformações na vida dos moradores do povoado. Uma das mudanças mais
marcantes, sentidas pelas pessoas daquela localidade, foi a crise das vendas a
partir dos anos 90 do século XX, modificando, consequentemente, a dinâmica social
e econômica do lugar. Dentre essas alterações, podem-se destacar: as dívidas e
más administrações das vendas; a retenção na economia causada pela migração e
as variações na produção agrícola; as transformações causadas pelo avanço da
sociedade de consumo e pela introdução de elementos da modernização, dentre
outras. Tudo isso gerou novas vivências, no dia-a-dia dos moradores do lugar,
expressas nas relações sociais, nas festas, nas formas de lazer e no trabalho.
Contudo, analisar tais aspectos históricos foi possível graças ao
trabalho com as narrativas orais que permitiram o contato direto com fontes ―vivas‖ e
o afloramento das memórias. O gesticular das mãos, os olhos lacrimosos dos
narradores, quando lembravam momentos alegres e tristes, enriqueceram o trabalho
árduo de pesquisa com toques de humanidade e sensibilidade, elementos esses
perceptíveis nas falas dos entrevistados.
Cruzar as narrativas proporcionou repensar o ofício de historiador e como
o conhecimento histórico se constitui. Ao longo de toda a pesquisa, percebi que o
trabalho com memórias nos permite ultrapassar as fronteiras da impessoalidade; o
contato com os entrevistados, com seus espaços de vivência, a possibilidade de
conhecer suas famílias, sua intimidade, sem vida, aproximaram-me do objeto de
pesquisa de uma forma que espero ter sido capaz de exprimir os sentimentos dos
narradores, uma vez que a história é feita do sangue e do suor de pessoas de carne
e osso.
117
Sem pretensão de colocar em xeque o papel do historiador, a pesquisa
também me possibilitou perceber que ele age, de certa forma, como um poeta ao
buscar entender o que é aparentemente, corriqueiro, comum, debruçando-se sobre
as questões do cotidiano. Visto que ser poeta é ter um olhar contemplativo sobre a
vida e, ao fazê-lo, o historiador inevitavelmente imprime na narrativa um olhar
sensível, escapando ao rigor que, em nome de uma ciência, muitos deixam perder o
que a história, feita a partir de experncias de vida, tem de mais rico: as
sensibilidades.
Segundo Bachelard (2008 p.26), quando se adiciona o valor de sonho às
lembranças, adentra-se no campo da poesia, ou seja, ao expor os sentimentos, a
imaginação dos indivíduos, o historiador revela para a história o mundo inteligível
das sensibilidades. Dessa forma, para esse autor, ―nunca somos verdadeiros
historiadores, somos sempre um pouco poetas e nossa emoção traduz apenas,
quem sabe, a poesia perdida".
Foi assim que, ao tentar esmiuçar os detalhes das roupas, os gestos, os
tons das vozes, o movimento dos corpos tive a oportunidade de descortinar um
mundo de sensações e sentimentos presentes em minúcias quase imperceptíveis
aos olhares desatentos, os aspectos históricos do Tabuleiro. Esse é, dentre muitos
outros, o mérito do historiador: oportunizar ao leitor o acesso às memórias que
contam histórias de indivíduos, de lugares, de vivências diversas.
Discutir a vida cotidiana do Tabuleiro, oportunizou-me, na condição de ex-
moradora do desse lugar, reviver um passado que compartilhei com os narradores
dessa história que exponho neste trabalho. A venda de meu pai, o vendeiro Juvenal,
foi meu espaço de vivência por décadas, lá presenciei as relações que os indivíduos
mantinham com essas casas comerciais. Assim como, brinquei com a burrinha,
vivenciei o cotidiano nas casas de farinha, andei pela estrada de cascalho do
povoado, senti a falta das vendas e dos vendeiros e presenciei novos viveres se
forjarem no lugarejo.
Enfim, a pesquisa me proporcionou reviver as memórias do passado que
criei em anos de convivência no Tabuleiro e, como historiadora, tive a chance de
abordar uma temática próxima a mim, como a muitos homens e mulheres das zonas
rurais de municípios do Recôncavo Baiano que, aqui, por meio das memórias,
tiveram analisadas suas visões sobre a vida e a forma de conduzi-la expostas nas
vendas, nas festas, no ir e vir de seus passos pelos campos.
118
Como toda pesquisa histórica, não se esgotaram as análises e as
interpretações referentes ao tema. Assim, é preciso reiterar que, tamanha a riqueza
de material analisado, só foi possível registrar fragmentos. Seria preciso, outros
tantos trabalhos como este para apreendê-las e, assim, novas investigações
poderiam ser empreendidas e outras histórias sobre as vendas do Tabuleiro
narradas. Os aspectos apresentados podem dar uma noção de como era a vida
cotidiana do lugar, a relação dos moradores com as vendas, seus costumes e
tradições. Por fim, sua dinâmica sociocultural demonstra que povoados como o
Tabuleiro constituem ricos objetos de estudos históricos e que os sujeitos que
convivem foram capazes de conduzir seus destinos, participando ativamente no
processo de construção de suas memórias, de suas histórias.
119
FONTES
ORAIS:
Antonio Jesus Santos, 84 anos de idade, trabalhador rural, ―brincou‖ de
burrinha grande parte de sua vida. Reside na sede do município de
Mutuípe. Primeira entrevista em 13/07/2003, 15 minutos, segunda
entrevista em 20/07/2003, 10 minutos.
Aurineide Thethê Andrade, 50 anos de idade, trabalhava na Venda Santa
Ana junto com seu marido, Juvenal Santos Andrade (in memoriam).
Reside na sede do município de Mutuípe. Entrevista em 14/04/2007, 30
minutos.
Carmerino de Souza Thethê (1925-2008), pequeno proprietário rural
aposentado. Residia na localidade do Beija-Flor, município de Mutuípe.
Entrevista em 16/03/2003, 35 minutos.
Domingos Santos de Andrade 63 anos. Pequeno proprietário rural. Reside
no povoado do Tabuleiro no município de Mutuípe. Entrevista em
19/08/2009, 40 minutos.
Hélio Nunes dos Santos, 62 anos. Pequeno proprietário rural. Reside no
povoado do Tabuleiro, município de Mutuípe. Entrevista em 19/08/2009,
42 minutos.
José Gonçalves de Oliveira, 87 anos de idade, exerceu a função de
vendeiro desde a segunda metade da década de 40 permanecendo até
os anos 80 no Tabuleiro, em 2007 retornou ao povoado. Reside no
Tabuleiro município de Mutuípe. Entrevista em 19/01/2003, 30 minutos.
Laura de Jesus Andrade (1944-2006), conhecida como Caboclinha,
faleceu poucos meses após a entrevista. Trabalhadora rural, residia na
sede do município de Mutuípe. Entrevista em 24/10/2006, 30 minutos.
Madalena Pereira de Andrade, 73 anos de idade. Agricultora e dona de
casa. Reside no povoado do Tabuleiro no município de Mutuípe.
Entrevista em 15/11/2009, 65 minutos.
Manoel Amado da Silva, 75 anos, exerceu a função de vendeiro no
Tabuleiro nas décadas de 50 e 60. Reside na sede do município de
Mutuípe. Entrevista em 16/07/2003, 15 minutos.
Maria Nunes dos Santos, 88 anos. Dona de casa. Reside no povoado do
Tabuleiro no município de Mutuípe. Entrevista em 16/08/2009, 51
minutos.
120
Pedro Andrade de Souza, 75 anos de idade, pequeno proprietário rural,
exerceu a atividade de vendeiro tanto no Tabuleiro, quanto em outros
povoados e cidades. Reside no povoado do Tabuleiro, município de
Mutuípe. Entrevista em 06/07/2003, 45 minutos.
MANUSCRITAS:
Comarca de Mutuípe. Escritura de terra do Sr. José Gonçalves, livro nº 24, fls.
112-114.
Carta acervo particular de Maria Nunes dos Santos.
Vales e recibos de compra e venda - acervo particular de Aurineide Thethê
Andrade.
IMPRESSAS:
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Projeto Portinari: <http://www.portinari.org.br/>. Consulta em 20/12/2009.
IMAGÉTICAS:
Fotografias de acervos particulares de: José Gonçalves de Oliveira e
Aurineide Thethê Andrade.
Fotografias de pesquisa de campo.
122
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