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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
MESTRADO EM TEATRO
DAIANE DORDETE STECKERT JACOBS
SMOKED LOVE:
Estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo
FLORIANÓPOLIS – SC
2010
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2
DAIANE DORDETE STECKERT JACOBS
SMOKED LOVE:
Estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo
Dissertação apresentada como requisito para o
exame de Defesa de Mestre em Teatro, Curso
de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa:
Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade.
Orientador: Prof. Milton de Andrade Leal Jr. Dr.
FLORIANÓPOLIS - SC
2010
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3
J17s Jacobs, Daiane Dordete Steckert
Smoked Love: estudos sobre performance e dramaturgia do
ator contemporâneo / Daiane Dordete Steckert Jacobs –
Florianópolis, 2010.
129 p.: il.; 30 cm
Orientador: Milton de Andrade Leal Jr.
Bibliografia: p. 97-106
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa
Catarina, Centro de Artes, Mestrado em Teatro, Florianópolis,
2010.
1. Representação teatral. – 2. Dramaturgia do ator – 3.
Performance - 3. Teatro pós-dramático – 4. Pós-modernidade – 5.
Smoked Love – I. Leal, Milton de Andrade – II. Universidade do
Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro.
CDD: 791.092
22 ed.
4
DAIANE DORDETE STECKERT JACOBS
SMOKED LOVE
Estudos sobre performance e dramaturgia do ator contemporâneo
Esta dissertação foi julgada aprovada com distinção para a obtenção do Título de
Mestre em Teatro, na linha de pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e
Subjetividade, em sua forma final, pelo Curso de Mestrado em Teatro, da
Universidade do Estado de Santa Catarina, em 13 de setembro de 2010.
Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra
Coordenadora do PPGT
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:
Prof. Milton de Andrade Leal Jr., Dr.
Orientador
UDESC
Profa. Maria Brígida de Miranda, Dra.
Membro
UDESC
Prof. Alexandre Luiz Mate, Dr.
Membro
UNESP
5
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos aqueles que não subestimam nem a si nem ao
próximo. E que se importam.
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela oportunidade maior;
À Universidade do Estado de Santa Catarina, especialmente ao Programa de
Pós Graduação Mestrado e Doutorado em Teatro e seus funcionários, pela terna
acolhida e possibilidade de concluir mais uma etapa de amadurecimento em meus
estudos;
À CAPES, pela bolsa de estudos concedida para a pesquisa;
Ao Sistema de Desenvolvimento pela Cultura e Fundação Cultural de
Joinville, pelo patrocínio concedido à montagem do espetáculo Smoked Love,
através do Mecenato Municipal de Cultura;
Ao meu generoso e iluminado orientador Milton, que tantas vezes me salvou
das “trevas” da pesquisa, ajudando a organizar e articular meu pensamento;
A todos os queridos professores do PPGT da UDESC com os quais tive o
prazer de conviver e aprender, e que sempre se mostraram disponíveis a ensinar,
em especial ao Faleiro, Brígida e Nini;
Ao professor Stephan, que mesmo quando ainda não fazia parte do PPGT se
mostrou acessível e pronto a colaborar com minha pesquisa, fornecendo materiais e
conceitos importantíssimos para o desenvolvimento da mesma;
À professora Rosemari Brack, da Faculdade de Artes do Paraná, que no
período de minha graduação abraçou como dela o meu sonho de ser Mestre em
Teatro, e não mediu esforços para me ajudar;
Ao meu maravilhoso marido Cleiton, companheiro e amigo de todas as horas:
um anjo em minha vida que eu tanto amo e que é um verdadeiro “poço” de
compreensão e paciência;
Aos meus pais Valnídia e Dário, minhas portas no mundo;
Aos meus colegas de mestrado, em especial à Andréia por toda ajuda
incondicional, e ao Fábio e ao Samuel pelas conversas nas idas e vindas entre
Joinville e Florianópolis;
E a todos os que participaram do processo de montagem e das temporadas
de Smoked Love, ajudando a concretizar este sonho: Cleiton, Flávio, Fi, Alex,
Daniele, Rafael, Sandra, Marcelo e Nei.
MUITO OBRIGADA!
7
Uma série de tendências históricas
contribuiu para que esta estética do teatro
dramático mudasse: a abertura em direção a
outras formas de arte, exigida por volta de
1900; a concepção radicalmente nova do
corpo em cena; a crescente importância das
mídias tecnológicas, e a transformação geral
da vida social em direção ao espetáculo, ao
festival, ao evento. Nesse contexto, as
disputas em torno da questão de até que
ponto determinadas formas de encenação
eram ainda “fiéis a obra dramática”,
escondiam o fato de que ela que fixa a
ação através de personagens-caracteres – já
não constitui mais a finalidade e o objeto
principal do teatro. Além dos trabalhos
críticos com os mais variados tipos de
textos, desenvolveram-se formas muito
distintas de processos teatrais cuja temática
é, em primeiro lugar, a apresentação do
corpo. Para tanto, tais processos fazem uso
de elementos da dança, da performance, do
happening, do circo e do esporte. [...] Mas
deve-se partir da suposição de que tornou-
se impossível deter o processo de abertura
do teatro em direção a outras artes e mídias
tecnológicas, bem como o questionamento
de seus alicerces estruturais e institucionais.
Essa abertura está produzindo os impulsos
(de fato necessários) para a transformação
dos pressupostos do teatro.
PATRICK PRIMAVESI
8
RESUMO: Esta presente pesquisa elabora uma reflexão sobre dramaturgia do ator
contemporâneo e performance, contextualizando a produção teatral atual nos
pressupostos do teatro pós-dramático, - conceituado por Hans-Thies Lehmann -, e
tendo como experimento prático o espetáculo Smoked Love. Analisam-se as
alterações essenciais do teatro dramático para o teatro pós-dramático, levando em
consideração algumas transformações proporcionadas pela pós-modernidade na
sociedade e nas artes. Neste contexto, são indicados ainda alguns princípios de
atuação contemporânea percebidos no processo investigativo deste estudo. Smoked
Love apresenta um triângulo amoroso irressoluto, liquefeito, virtualizado em suas
relações, analisado aqui principalmete a partir dos estudos do filósófo e sociólogo
Zygmunt Bauman, além de outros estudiosos da área da comunicação. O processo
de criação do experimento nico Smoked Love, que possibilitou a reflexão dialética
entre teoria e prática neste estudo, também é registrado e analisado, tendo como
foco a atuação da solista e suas relações com as diversas mídias do espetáculo.
Palavras-chave: Dramaturgia do ator; performance; teatro pós-dramático; pós-
modernidade; Smoked Love.
9
ABSTRACT: This present research elaborates a reflection on contemporary actor’s
dramaturgy and performance, contextualizing the current treatrical production in the
assumptions of the postdramatic theatre, - conceptualized by Hans-Thies Lehmann -,
and taking as a pratical experiment the play Smoked Love. It examines the key
changes from the dramatic theatre to the postdramatic theatre, taking into
consideration some changes offered by the postmodernity in the society and arts. In
this context, they are still listed some principles of contemporary acting perceived in
the investigative process of this study. Smoked Love presents a love triangle
irresolute, liquified, and virtualized in their relations, reviewed here principally from
studies of the philosopher and sociologist Zygmunt Bauman, and others researchers
in the field of communication. The process of creating the experiment Smoked Love,
which allowed the reflection dialetic between theory and pratice, in this study, is also
recorded and analyzed, focusing on the performance of the soloist and her relations
with various media presents in the spectacle.
Keywords: Actor’s dramaturgy; performance; postdramatic theatre; postmodernity;
Smoked Love.
10
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01
Smoked Love - prólogo
p. 79
Imagem 02
Smoked Love – quadro 01 – A americana
p. 80
Imagem 03
Smoked Love – quadro 02 – Tristeza não tem fim,
p. 81
Imagem 04
Smoked Love – quadro 03 – Vídeo-chamada
p. 82
Imagem 05
Smoked Love – quadro 04 – At the supermarket
p. 83
Imagem 06
Smoked Love – quadro 05 – As cartas
p. 84
Imagem 07
Smoked Love quadro 06 Vingança contra a
psicanálise
p. 85
Imagem 08
Smoked Love – quadro 07 – O cineminha
p. 87
Imagem 09
Smoked Love – quadro 08 – O menino
p. 88
Imagem 10
Smoked Love – quadro 09 – O encontro
p. 89
Imagem 11
Smoked Love – quadro 10 – O casamento
p. 91
Imagem 12
Cleiton Jacobs, Marcelo F. de Souza e Daiane Dordete
– gravação dos vídeos de Smoked Love
p. 121
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................13
1 CAPÍTULO I: ATOR E CONTEMPORANEIDADE.................................17
1.1 Teatro pós-dramático: um caminho possível.......................................17
1.2 Um ator pós-dramático na pós-modernidade: um pós-ator ? ............24
1.3 A escritura de si mesmo a partir de 1970 – alguns indícios................30
1.4 Il faut training ?................... .....................................................................39
2 CAPÍTULO II : SMOKED LOVE, UM EXPERIMENTO..............................45
2.1 Sobre Smoked Love ................................................................................45
2.2 Um amor líquido para um ator líquido: a fragilidade dos
relacionamentos afetivos em Smoked Love..........................................49
2.3 Memorial do treinamento para Smoked Love........................................57
2.4 Matrizes de composição para os quadros do espetáculo....................61
2.5 A atriz e as mídias em Smoked Love: um processo de polifonia e
virtualização das relações.......................................................................70
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................93
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................97
VIDEOGRAFIA.........................................................................................107
APÊDICES...............................................................................................108
APÊNDICE A – Espetáculo solo, construção coletiva.............................109
APÊNDICE B – Dramaturgia de Smoked Love........................................114
APÊNDICE C – Roteiros e vídeos de Smoked Love................................120
APÊNDICE D – DVD com filmagem de Smoked Love.............................123
APÊNDICE E – CD com fotos de Smoked Love......................................124
12
APÊNDICE F – Ficha técnica de Smoked Love.......................................125
APÊNDICE G – Materiais gráficos de Smoked Love...............................126
13
INTRODUÇÃO
O trabalho do ator sobre si mesmo é um tema frequentemente pesquisado e
discutido por teóricos e práticos do teatro, principalmente a partir do início do século
XX, tendo no Ocidente expoentes como Constantin Stanislavski, Jacques Copeau,
Etienne Decroux, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski, Eugenio Barba, entre outros.
Na presente pesquisa este tema reaparece tendo como foco a investigação
de princípios recorrentes de atuação e composição da dramaturgia do ator ocidental
contemporâneo a partir de 1970, ponto da ruptura estética teatral mais significativa
para o teatro contemporâneo, segundo Hans-Thies Lehmann, que desenvolve seus
estudos fundamentais a partir deste período, estabelecendo o polêmico conceito de
teatro pós-dramático.
Deste modo, fixamos o objeto de pesquisa na performance e dramaturgia do
ator contemporâneo, procurando através de revisão bibliográfica e videográfica
subsídios para a construção de um experimento cênico, que visa oferecer um campo
de análise fenomenológica para o objeto de pesquisa.
Percebemos que no século XX, a descentralização do texto dramático no
processo de montagem de espetáculos proporcionou o desenvolvimento da
dramaturgia complementar através de signos não textuais. Iluminação, sonoplastia,
cenário, maquiagem, figurino, deo e ator deixam de apenas figurar o texto em cena
e passam a escrevê-lo, com ou sem palavras.
Ao mesmo tempo em que as pesquisas sobre a escritura corporal do ator se
desenvolviam na segunda metade do século XX, com pesquisadores como
Grotowski e Barba, as artes performativas tais como o happening e a performace art
tomavam conta de parte do cenário artístico ocidental. O artista tornava-se nessas
artes um criador de escrituras espetaculares, escrituras presenciais e não apenas
representacionais. O corpo, a voz, os virtuosismos e as infindáveis capacidades
físicas que a criatividade e o treinamento lhe proporcionavam tornavam-no centro de
sua arte.
A contaminação do drama/teatro pelos elementos performáticos das novas
ramificações artísticas foi inevitável. Encenação, dramaturgia e ator passam a
reformular sua espetacularidade em um teatro que vai além do drama em seu
pressuposto central de representação de fábulas e personagens, e, que poderíamos
14
dizer, revisita expedientes já utilizados por artistas de rua e atores populares em
outras épocas.
Neste novo teatro, o ator entra em contato com novos suportes e
procedimentos de atuação. Sem fábula tradicional ou psicologismos, o ator pode ser
apenas parte do cenário móvel ou imóvel do espetáculo, por exemplo. Sua atuação
nem sempre é primordial à realização espetacular, que pode se compor
dramaturgicamente apenas com imagens estáticas, sons e projeções.
Os hibridismos estéticos ampliam a gama de referenciais para o trabalho do
ator sobre si mesmo. O ator contemporâneo trabalha com diversas referências
(pessoais, sociais, artísticas) na construção das personas e da vocalidade e
corporeidade cênica, buscando uma dramaturgia corporal escritora da cena, como
pressupõe Barba.
As auto-referencialidades, como mitologias pessoais e universais ligadas a
elementos amesmo arquetípicos, povoam as composições dramatúrgicas do ator,
transitando entre a apresentação e a presentificação do self (si mesmo), compondo
seus estados psicofísicos e evidenciando suas contaminações.
Segundo Cristine Greiner (2005: 81):
Para pensar na dramaturgia de um corpo, de se perceber um corpo a
partir de suas mudanças de estado nas contaminações incessantes entre o
dentro e o fora (o corpo e o mundo), o real e o imaginado, o que se
naquele momento e em estados anteriores (sempre imediatamente
transformados), assim como durante as predições, o fluxo inestancável de
imagens, oscilações e recategorizações.
Essa dramaturgia não se relaciona parcialmente com o mundo, mas sim
totalmente. Não se congelam as imagens e os pensamentos, ou o corpo. Eles se
organizam e se reorganizam em incessantes metáforas de pensamento, entendendo
o pensamento como corpo cinestésico. Greiner (2005: 72) confirma: “Imagem não é,
portanto, visual, mas também sonora e até muscular [...]. Pensamento, segundo
Damásio, seria uma palavra aceitável para denotar este fluxo de imagens.”
O dualismo cartesiano que separa corpo e mente e nega suas relações de
contaminação e construção latente, tende cada vez mais a perder seu espaço no
pensamento híbrido da pós-modernidade. E relacionamos aqui o conceito de
pensamento de Antônio Damásio “fluxo de imagens”, que não dissocia os aspectos
mentais dos corporais. Sendo assim, como se configuram os sentimentos nas
15
contaminações com o ambiente e consigo mesmo no processo criativo do ator?
Greiner (2005: 73) diz que “Os sentimentos também constituem imagens, são as
imagens somatossensórias que sinalizam aspectos do estado do corpo.” As relações
psicofísicas estão assim cada vez mais indissociáveis.
As contaminações das instâncias de atuação renovam o pensamento sobre
os tênues limites das categorizações estéticas. Praticamente, o trabalho do ator é
atuar, seja representando um personagem ou apresentando-se em seus
virtuosismos ou vicissitudes. E, em ambos os casos, são o corpo e a voz que
escrevem o espetáculo.
Alguns elementos que contaminam a dramaturgia do ator contemporâneo são
abordados no primeiro capítulo desta pesquisa, que ainda contextualiza o cenário
teatral da atualidade, bem como suas influências estéticas.
No primeiro capítulo investigamos e indicamos também quatro possíveis
modalidades de atuação utilizadas na cena contemporânea, procurando entender os
caminhos trilhados pelo ator para a construção de sua própria dramaturgia corporal,
e refletindo sobre o treinamento atoral e sua aplicabilidade na cena atual.
Buscando experienciar ainda mais as contaminações entre teoria e prática, no
segundo capítulo discorremos sobre o experimento cênico realizado nesta pesquisa,
intitulado Smoked Love, no qual procuramos aplicar alguns dos princípios
compositivos recorrentes observados na dramaturgia do ator contemporâneo,
indicados no primeiro capítulo desta dissertação.
As matrizes para a construção dos quadros deste “solo performático
multimídia” sobre um triângulo amoroso frustrado surgiram das mitologias pessoais e
coletivas registradas pela memória da atriz-dramaturga, e são descritos neste
capítulo, assim como o memorial do treinamento para o espetáculo.
Utilizando conceitos desenvolvidos por Zygmunt Bauman em Modernidade
Líquida (2001) e Amor Líquido (2004), além de outras obras do autor, procuramos
ainda no segundo capítulo oferecer uma reflexão psicossocial sobre a temática
principal de Smoked Love: um triângulo amoroso eternamente irresoluto, fraturado
pela falta de vínculos afetivos. Discorremos também sobre a influência das mídias
na sociedade e no teatro contemporâneos, relacionando-as com a prática
experimental da pesquisa.
No apêncide encontramos ainda uma breve reflexão sobre o processo de
criação de Smoked Love, investigado no âmbito das relações estabelecidas entre a
16
atriz-criadora-pesquisadora-dramaturga e os demais artistas envolvidos no processo
de montagem do espetáculo, além de materiais como texto, roteiros, vídeos,
materiais gráficos, etc., de Smoked Love.
Esta pesquisa teórico-prática procura espaço no campo da pesquisa
qualitativa, sob a égide do método fenomenológico de pesquisa, tendo sido o
experimento cênico Smoked Love gerado através do mapeamento de princípios de
construção da dramaturgia do ator no teatro contemporâneo em fontes primárias e
secundárias, tais como referenciais bibliográficos e videográficos sobre o tema
(livros, periódicos, vídeos, etc.).
17
1. ATOR E CONTEMPORANEIDADE
1.1 Teatro pós-dramático: um caminho possível
O livro Teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehmann, professor de Estudos
Teatrais da Universidade de Frankfurt, foi publicado pela primeira vez em 1999 na
Alemanha, tendo posteriormente diversas traduções e publicações em outros
países, inclusive sua publicação em língua portuguesa em 2007, no Brasil. Nele,
Lehmann analisa rupturas estéticas em produções teatrais ocidentais a partir da
década de 1970, incluindo as influências do happening, da performance art e das
mídias tecnológicas nas mesmas.
Baseado na hipótese de ruptura paradigmática no fazer teatral
contemporâneo da pós-modernidade, no qual o modelo dramático o sustentaria
mais as necessidades semiológicas e estéticas das novas produções teatrais e seus
hibridismos, o autor utiliza o termo “pós-dramático“ para fazer referência a tais
produções. Deste modo o teatro pós-dramático não pressupõe um “modelo’’, mas
sim uma diversidade de características que surgem desta ruptura.
Lehmann (2007: 27) justifica o recorte histórico, dizendo que apesar dos
revolucionários do teatro do século XX terem rompido com várias correntes
estilísticas anteriores, mantiveram em cena a mimese de uma ação, característica
que se dilui a partir da cada de 1970, com a cada vez mais constante presença
das mídias na vida cotidiana e decorrentes reformulações do discurso teatral.
Edélcio Mostaço (2007-2008: s/p) justifica a escolha do termo por Lehmann:
Como se depreende ao longo da leitura, pós-dramático é um termo
ambíguo, porém justificado, uma tentativa de síntese entre a situação
epocal do fenômeno (o período da pós-modernidade) e suas constituintes
estruturais (a pulverização do modelo dramático), simultaneamente
sugerindo não apenas os avanços formais dessa produção como,
especialmente, seus aspectos de ruptura em relação aos cânones.
Renato Cohen havia publicado anteriormente a Lehmann, em 1989, seu
livro Performance como Linguagem, resultado de sua dissertação de mestrado pela
ECA-USP, e anos mais tarde Work in Progress na cena Contemporânea, sua tese
de doutoramento pela mesma universidade.
18
Na primeira obra, o autor analisa os movimentos artísticos que influenciaram
a arte da performance, como as vanguardas modernistas do início do século XX, a
action painting, a body art, o happening e todas as formas de live art das décadas de
1950 a 1970. Cohen apresenta também as influências destes movimentos artísticos
na cena teatral contemporânea (até 1989), indicando novas estratégias de
articulação dos signos do espetáculo, tanto em montagens estrangeiras quanto
nacionais.
Em seu segundo livro, Cohen conceitua o work in progress como um novo
paradigma da cena teatral contemporânea, inaugurada, segundo o autor, por Robert
Wilson. Cohen apresenta estratégias de criação e formalização da cena, trazendo
elementos similares em muitos aspectos com os analisados por Lehmann em sua
tese, inclusive o recorte cronológico de tais criações (últimas 03 décadas do culo
XX).
Porém, nesta presente dissertação, nossa escolha pela conceituação firmada
por Lehmann se justifica na medida em que ela diz respeito a uma ruptura estética
que tem como foco principal o modelo dramático e suas implicações.
O teatro dramático, segundo Lehmann (2007: 25-27), apresenta algumas
características essenciais : a primazia do texto sobre os demais signos da
encenação, a mimese ou imitação, a catarse do espectador, a construção de uma
ilusão cênica, o desenvolvimento de uma fábula ou história.
Sobre o modelo dramático, Stephan Baumgärtel (2009: 131-132) afirma que
[...] a partir do século XV, começou a reinar paulatinamente no teatro
ocidental o padrão representacional realista, ou seja, uma estética que
visava criar uma ilusão de realidade empírica no palco. O teatro, na
compreensão ocidental, é profundamente comprometido com essa estética
representacional, o que implica também num padrão figurativo que organiza
a psicologia das personagens, bem como a dominância da narrativa sobre
os meios (retóricos e visuais) da sua apresentação, ou seja, a dominância
daquilo que costumamos chamar de drama sobre o teatro e sua
teatralidade. Alguns aspectos dessa estética remontam até a poética de
Aristóteles (a dominância da narrativa em forma dialogada sobre a
teatralidade, por exemplo), outros se devem às mudanças efetuadas pelo
drama burguês (submeter a cena ao critério da verossimilhança empírica,
instalando a dominância do signo referencial sobre o signo performativo). O
impacto da cena se deve, nesta última concepção, a ilusão do realismo. Por
isso, a estética representacional cria necessariamente uma teatralidade e
um modo performativo de apresentar a ficção em cena que procura
esconder sua artificialidade. A suposta autenticidade da cena surge a partir
da ilusão de sua autonomia, e essa deve, segundo a conseqüente lógica
dessa representação, resultar na autenticidade da ilusão.
19
o teatro pós-dramático transgride tais características, destituindo os signos
de uma hierarquia cênica e ativando a participação do espectador no evento teatral.
Fabio Kinas (2005: 28-30), em sua dissertação de mestrado pela
Universidade Paris 8, elabora um quadro comparativo
1
, que relaciona as
divergências de características do drama e do pós-drama, a partir das indicações de
Lehmann:
DRAME/DRAMA APRÈS LE DRAME/PÓS-DRAMA
Déroulement de l’action dans le temps
Encadeamento da ação no tempo
Scène de l’instant
Cena do instante
Collision dramatique
Colisão dramática
Situation
Situação
Fiction de l’histoire
Ficção da história
Réalité de la scène
Realidade da cena
Narration – action
Narração-ação
Corps exposé
Corpos expostos
Espace qui renvoie à un autre
Espaço que remete a outro
Espace de la scène
Espaço da cena
Se livrer émotionnellement
Entregar-se emocionalmente
Contemplation scénique
Contemplação cênica
Dialogue interpersonnel
Diálogo interpessoal
Discours dindividus, dialogue entre
objets, son – espace – lumière
Discurso do indivíduo, diálogo entre
objetos, som-espaço-luz
Séquentiel, contiguïté
Sequencial, contíguo
Fragments que le public doit relier
Fragmentos que o público deve ligar
Espace du théâtre avec scénographie
Espaço do teatro com cenografia
Espace comme co-auteur, non
fictionnel
Espaço como co-autor, não-ficcional
Moral – souffrance
Moral-sofrimento
Ironie – cynisme
Ironia-cinismo
Intrigue
Intriga
Situation/événement
Situação/evento
Fable
Fábula
Irruption du réel
Irrupção do real
Drame mis en scène
Drama posto em cena
Événement théâtral
Acontecimento teatral
Transmission de signification
Transmissão de significação
L’attraction/répulsion du jeu
Atração/repulsão do jogo
_____________________________
1
Devido a extensão da tabela comparativa, optamos por apresentar a versão original no corpo do
texto, juntamente com a tradução. Trad. Nossa.
20
Convergence aux conflits
Convergência aos conflitos
Diversité des voix
Diversidade de vozes
Une réalité
Uma realiadade
Des réalités hétérogènes
Realidades heterogêneas
Action à partir de la volonté du
personnage, intentionnelle
Ação a partir da vontade do
personagem, intencional
Action à partir d’une contrainte
esthétique, mouvements
Ação a partir de uma
limitação/definição estética,
movimentos
Action par des motivations et but défini
Ação por motivações e fim definido
Action sans but et sans logique
apparente
Ação sem fim e sem lógica aparente
Continuité
Continuidade
Discontinuité
Descontinuidade
Imagination structurée par l’artiste
Imaginação estruturada pelo artista
Imagination structurée par le
spectateur
Imaginação estruturada pelo
espectador
Synthèse d’espace, de signes
Síntese do espaço, dos signos
Espaces imbriqués ou juxtaposés,
indépendants
Espaços imbricados ou justapostos,
independentes
Interprétations
Interpretações
Plateforme de vie, sensation
Ponto de vista, sensação
Uniformisante, organisateur, globalisante
Uniformizante, organizador, globalizante
Ouvert, éclaté, fragmenté
Aberta, explodida, fragmentada
Apparition causale des signes
Aparição causal dos signos
Simultanéité de signes
Simultaneidade dos signos
Macrostructure, source de cohérence
Macroestrutura, fonte de coerência
Micros-événements, sans cohérence
interne
Micro-eventos, sem coerência interna
Totalité d’action et signification
Totalidade de ação e significação
Pluralité de signifiés
Pluralidade de significações
Unitaire et directif
Unitário e diretivo
Polyvalence
Polivalência
Déroulement dévénements logiquement
structuré
Desenrolamento de acontecimentos
logicamente estruturados
Collage, montage, fragment
Colagem, montagem, fragmento
Concision organique
Consição orgânica
Distorsion, instabilité, paradoxe
Distorção, instabilidade, paradoxo
Représentation
Representação
Présence, présentation
Presença, apresentação
Expérience transmise
Experiência transmitida
Expérience partagée
Experiência partilhada
Résultat
Resultado
Processus
Processo
Signification
Significação
Manifestation
Manifestação
21
Information
Informação
Impulsion d’énergie, connaissance
sensorielle
Impulso de energia, conhecimento
sensorial
Unité
Unidade
Multiplicité
Multiplicidade
Auto-identité
Auto-identificação
Poly-présence identitaire
Polipresença identitária
Structuration symétrique
Estruturação simétrica
Dissymétrie, démesure
Dissemetria, desmedida
Logique formelle
Lógica formal
Logique médiatrice, dynamique
Lógica mediadora, dinâmica
Lisibilité de l’ensemble
Legibilidade do conjunto
Complexité des parties
Complexidade das partes
Liaison logique entre signes
Ligação lógica entre signos
Parataxe
Parataxe
A heterogeniedade estética dos espetáculos teatrais da contemporaneidade
não exclui toda a gama de características e elementos inerentes ao modelo
dramático, mas reorganiza os significantes da encenação e suas relações.
Lehmann julga o termo pós-moderno insuficiente para definir a amplitude de
características do teatro contemporâneo, que, por romper com a estética dramática,
seria melhor entendido como um teatro com possibilidades para além do drama, e
não necessariamente para além da modernidade, que não é seu foco de ruptura.
Outros teóricos do teatro pós-moderno, apesar de não oferecerem ênfase à
diluição do modelo dramático no teatro contemporâneo tal qual Lehmann, também
fazem referência a várias características apontadas pelo autor em sua tese, assim
como Mostaço (2008: 561), que diz que o teatro pós-moderno
(...) incorpora e promove largamente a performance, a não-textualidade, o
happening, o teatro antropológico, o ritual, as práticas místicas, em que o
ator assume ser seu tema e principal personagem, sendo o texto solapado
em suas certezas hegemônicas. Abrindo-se as demais artes cênicas,
conhecerá cruzamentos intersemióticos com a dança, o circo, a ópera,
tomados não mais como gêneros ou expressões artísticas independentes,
bem como com as diversas mídias eletrônicas, amalgamando-se com elas.
Podemos perceber, deste modo, que as teorias do teatro pós-dramático e do
teatro pós-moderno compartilham de inúmeras semelhanças na indicação e
descrição das características pertencentes ao teatro contemporâneo.
Todavia, Lehmann consegue definir uma ruptura estrutural específica da
linguagem teatral, no caso, a diluição do modelo dramático, conferindo assim ao
22
conceito de teatro s-dramático um espaço de identificação entre as diversas
tendências e estilos teatrais experimentais da contemporaneidade.
O teatro pós-dramático opera a evidenciação dos elementos constitutivos do
espetáculo, excluindo a ilusão de autonomia “realista“ da cena para promover o
processo de construção espetacular frente ao espectador.
Baumgärtel (2009: 133) confirma esta premissa ao dizer:
Podemos complementar que, por causa da sua afirmada autonomia, o
modo representacional do drama não pode incorporar na cena uma reflexão
sobre o seu modo de construção (as estratégias de teatralidade e
performatividade da cena) ou o modo de percepção (as estratégias de
recepção e interpelação do olhar dos espectadores). São exatamente estes
impulsos que vão formar o centro dos processos de significação nas
práticas teatrais da peça didática brechtiana, do teatro do absurdo e do
chamado teatro s-moderno. Nestas práticas, assume-se a
performatividade da cena para fins não representacionais, ou seja, fins que
colocam no centro do interesse a semiose cênica e a percepção humana.
Lehmann identifica o teatro pós-dramático como pós-brechtiano, na medida
em que sucita a reflexão sobre o processo semiótico: o “desapassivamento“ do
espectador em relação a obra. E esta é uma influência direta trazida pela
performance, que relativiza a idéia de público ao extremo, como aponta Coelho
(2009: 09), transformando-o muitas vezes em co-criador do espetáculo.
Podemos dizer, concordando com Ramos (2009), que ocorre na cena teatral
contemporânea a supervalorização do opsis (materialidade do espetáculo) em
detrimento do mythos (estrutura narrativa), como propunham Craig, Artaud,
Brecht, Beckett e Kantor, afirmando a autonomia do espetáculo em relação ao
drama.
Segundo Luís Fernando Ramos (2009: 77),
A alternativa radical e desafio continuam sendo pensar o espetáculo como
puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura. Nesta hipótese, criar
uma cena, menos do que tecer um novelo de ações, como sugere a
metáfora tradicional da criação ficcional e dramática, é constituir uma
semântica de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de
objetos o previamente identificados. A cena se articula na organização
sintática das diversas texturas, que se alternem em transparência,
opacidade, rugosidade, relevo ou outras quaisquer categorias de
superficialidade e forma dos corpos concretos que possam existir.
Porém não só a teatralidade do espetáculo posto em cena aos olhos do
espectador compõe o opsis, sua materialidade. A performatividade dos elementos
23
da encenação também constitui um elemento importante na construção da estética
teatral contemporânea.
Partindo do pensamento dos estudos performáticos protagonizados por
Richard Schechner (2002), podemos afirmar que qualquer manifestação teatral é
performance. Mas, o teatro contemporâneo assume também a postura crítica da
performance art ao destacar não apenas a performance artística, mas também sua
performatividade, assim como do teatro, prioriza a teatralidade.
A esse respeito, Josette Féral (2009: 73), citando a colocação de Derrida de
que “todos os códigos humanos e expressões culturais são escritos”, diz que “A
partir disso é fácil afirmar que a performatividade acompanha necessariamente o
surgimento de significados ltiplos e que ela oscila entre o reconhecimento e a
ambigüidade dos significados”. (FÉRAL, 2009: 73-74).
Sendo assim, podemos dizer que o fluxo contínuo entre a materialização do
espetáculo (opsis) e a criação de múltiplas leituras/narrativas pelo espectador gera
uma comunicação espetacular, performativa por sua dinâmica e teatral por sua
linguagem, já que Mostaço (2009: 39) afirma que
É preciso ficar claro que a teatralidade não es“na coisa”, mas no olhar do
espectador; ela é um produto mental propiciado pelas percepções e, para
emergir, não depende de um palco, atores ou cenografia, mas tão somente
de uma operação de linguagem intermediando um sujeito e um objeto, para
ficarmos na distinção clássica e que, não fortuitamente, remete também a
metáfora objetual do próprio espetáculo minimal: algo a ser visto, alguém
para ver.
Ramos (2009: 79), entretanto, elege a performatividade para conceito
operante na análise dos espetáculos contemporâneos, percebendo a emergente
dissolução das fronteiras entre as linguagens artísticas:
O espetacular, ou aquilo que se dá a ver e afeta, tornou-se moeda comum a
todas as artes contemporâneas, e, mais do que a teatralidade, que aponta
para um campo específico, a performatividade passou a ser um conceito
operador que conta dessa realidade abrangente, em que literatura e
música, artes visuais e plásticas, teatro e performance convivem, privados
de fronteiras, em fluxos de influências e contra-influências.
Reconhecendo no experimento cênico Smoked Love, prática desta pesquisa,
muitos elementos recorrentes tanto na tese de Lehmann quanto nos estudos sobre o
teatro pós-moderno, optamos por eleger nesta dissertação o conceito de teatro pós-
dramático, por reconhecer nas considerações apresentadas por Lehmann a
24
importância da crescente dissolução do modelo dramático, que se reflete em
diferentes formas de criação e articulação de todos os signos do espetáculo,
inclusive no trabalho do ator, foco desta pesquisa.
A performatividade que se percebe operante na construção e recepção do
espetáculo contemporâneo, muito além do desenvolvimento de uma fábula, credita o
teatro pós-dramático como um dos caminhos possíveis para a análise dos
espetáculos da atualidade.
1.2 Um ator pós-dramático na pós-modernidade... Um pós-ator?
O recorte temporal de análise de espetáculos proposto por Lehmann (1970
1999)
2
situa-se no período histórico da Pós-Modernidade, um período controverso,
porque é o período no qual estamos inseridos, ou seja: não total distanciamento
histórico para analisá-lo.
Sem definições cronológicas unânimes que delimitem o início desse novo
período histórico, muitos historiadores apontam para um marco severo da história da
humanidade: o fim da Segunda Guerra Mundial.
Luiz Nazario (2008: 25) relaciona o conceito de “pós-moderno” com a
superação da brutalidade do período “moderno”, revelada pela tecnocracia
(desenvolvimento da burocracia e da tecnologia) presente nos campos de
concentração e no holocausto proporcionados pela Segunda Guerra Mundial.
Jacó Guinsburg e Sílvia Fernandes (2008:11) apontam os reflexos da Pós-
Modernidade na sociedade e seus desdobramentos, configurados sob o conceito de
pós-modernismo:
O pós-modernismo, correntemente, tende a ser encarado como um
fenômeno que marca diferentes manifestações, em todos os níveis,
ocorridas em fins do século XX, sobretudo a partir da década de 1950. Após
os rescaldos da Segunda Guerra Mundial, cujos efeitos imediatos estavam
inseridos no bojo daquilo que se convencionou chamar de Guerra Fria –
______________________
2
É necessário levar em consideração que este recorte histórico finaliza-se com a 1ª. publicação da
tese do autor, em 1999, na Alemanha, e que esta data limite de análise não indicaria o fim do teatro
pós-dramático, mas sim o alcance real da pesquisa do autor até sua publicação, em relação aos
espetáculos teatrais analisados na obra.
25
rótulo sob o qual se desenvolveu o jogo bipolar de interferências e
manipulações na disputa internacional de poder entre as duas grandes
potências da época, os Estados Unidos e a União Soviética -, o fato é que o
mundo retomou um ciclo de reformas e rearranjos, tanto na área político-
econômica, quanto, e mais ainda, no plano das conseqüências geopolíticas
oriundas das profundas crises que levaram a Primeira Guerra Mundial.
O pós-modernismo surge, deste modo, carregado de influências da
sociedade norte-americana, que se consagra no século XX como a maior potência
econômica mundial, difundindo também sua hegemonia cultural com os produtos do
consumo capitalismo.
Outra característica da transição entre a Modernidade e a Pós-modernidade é
a transformação das sociedades desenvolvidas de industriais para pós-industriais,
sociedades da informação, conforme Jair Ferreira dos Santos (1986), que ainda
concorda com Nazário (2008) ao identificar que a arte pós-moderna traz em seu
espírito a desconstrução: destruir para selecionar, ou para reconstruir.
Destruir padrões. Surpreender com a banalização, a massificação, a
produção em rie, a ironia, o descaso, o acontecimento. Sem esperança e sem
interesse numa realidade desacreditada do homem s-moderno, destruidor, o
simulacro se torna muito mais interessante. O falso. O hiper-real. Os meios de
comunicação de massa e as tecnologias de informação constroem realidades
paralelas, mundos de imagem; e nós queremos habitá-los.
A criação de novas realidades (poderíamos chamar de artificialidades, porque
de artifícios) deixa em dúvida a identidade. Somos liquefeitos pelo mercado
competitivo, tempo de menos, tarefas de mais, ansiedade. E apesar de parecer
contraditório, a alienação aumenta. Lembramo-nos de pobreza, guerra, violência
somente quando nos é conveniente: são os espetáculos da pós-modernidade, basta
mudar o canal da televisão para assisti-los. o indícios de uma necessidade de
espetacularização do cotidiano, mediante tantas informações e possibilidades.
A pluralidade de informações e realidades/virtualidades reflete-se na
pluralidade de tendências e estilos:
Entendamos ainda que o pós-modernismo é um ecletismo, isto é, mistura
várias tendências e estilos sob o mesmo nome. Ele não tem unidade; é
aberto, plural e muda de aspecto se passamos da tecnociência para as
artes plásticas, da sociedade para a filosofia. (DOS SANTOS, 1986:18-19).
26
O simulacro pós-moderno derruba as barreiras entre o que é real e o que é
imaginado, entre ser e parecer. A necessidade de projeção e catarse é suprida pelos
meios de comunicação de massa, como a televisão e o cinema, que tomam o drama
para si de modo muito mais eficiente do que aquele tentado pelo teatro, que não
consegue ligar-se e desligar-se do espectador numa rápida passagem de canal. O
teatro, que é espaço, cor, luz, corpo, profundidade real, perde sua eficácia na
tentativa de construir a ilusão de realidade de uma história: o drama. Sendo assim, o
teatro contemporâneo procura algo para além do drama e da representação de
personagens.
Na apresentação do livro de Lehmann, Sérgio de Carvalho afirma:
O melhor teatro pós-dramático é, portanto, aquele que realiza algo que se
poderia chamar de poética da morte, importante linha do teatro moderno
nomeada por Kantor, e que amplia seu sentido diante da banalização da
vida e da serialização anódina das tragédias na imagem eletrônica. Uma
poética da morte se configura menos pela atuação espectral à maneira do
teatro (tão comum na cena contemporânea) e mais pela tentativa de
criar um “espaço-tempo comum de mortalidade” (p.372) em que o corpo é
visto em seu presente de dissolução, que gera implicações éticas, afetivas
e históricas. (in LEHMANN, 2007: 13).
O teatro pós-dramático supõe a desalienação do espectador, a fuga do
drama, a experiência cerimonial, o compartilhamento reflexivo e crítico sobre o
simulacro da sociedade, da vida cotidiana e artificial. E tudo isto, justamente,
deixando a obra em aberto, rompendo com o pensamento fabular dramático,
irrompendo corpos, volumes, cores para compartilhar memórias entre os corpos e,
por fim, despertar sua propriocepção, sua consciência: “O processo dramático se
entre os corpos; o processo pós-dramático no corpo [do artista e do público].
(LEHMANN, 2007: 336).
Neste novo modo de pensar o teatro surgem inúmeras tendências e estilos
com características às vezes recorrentes e às vezes divergentes. O solo é instável,
líquido, e talvez seja essa a inovação mais interessante do pós-drama. Ele não nega
o teatro dramático, apenas vai além dele.
Neste campo experimental o texto verbal tem tanta importância quanto
qualquer um dos outros signos da encenação. A polissemia (pluralidade de
significados) e a polifonia (pluralidade de vozes) ganham vez: o público finaliza (lê,
modifica, cria) o espetáculo. O público pode atuar, como em algumas experiências
de teatro participativo. A atuação pode ser feita por não-atores ou atores amadores
27
ou ainda virtuoses da cena. O espetáculo é, enfim, uma cerimônia: o jogo está
estabelecido, independente das instâncias do mesmo.
Neste espaço explodido do teatro pós-moderno e pós-dramático, o ator
trabalha além do conceito tradicional de atuação como representação de um
personagem em uma história. O happening, a performance art e o teatro pós-
dramático trazem à cena a performatização do eu no instante presente. A
representação é substituída pela apresentação do sujeito-ator. Dilatado ou dinâmico,
numa relação de participação direta com o público ou tendo-o como voyeur, o tempo
é real, não ficcional, e o ator performa seus duplos, seus desdobramentos da
construção genética e cultural de seu sujeito. Personagens, com unidade e
verossimilhança, caem por terra. Mas personas, figuras, seres ficionais, espectros
aparecem. Voláteis, formados por mitologias pessoais e universais do ator. Que
surgem, desaparecem e revelam o jogo. O ator age.
No teatro dos anos 90 aparecem procedimentos que foram atribuídos, nas
décadas anteriores, a uma forma de arte, que podia ser definida pelo fato
de não ser teatro: a performance. Se a concepção ortodoxa de
performance proclamou a irrelevância de categorias teatrais centrais, como
ação, personagem e conflito, e chegou a proibi-las, o desdobramento atual
pouco respeita este julgamento. A posição ortodoxa o é negada, mas
levada a sério, pois se as referidas convenções são irrelevantes, não
motivo de não brincar com elas. Nos anos 90, teatro e performance entram
numa relação de interferência irônica. Na medida em que o teatro (re)-
descobre suas possibilidades performativas, a performance se torna jogo
.
(ROSELT in FISCHER-LICHTE et al, 1999: 111-112, trad. Stephan
Baumgärtel).
O teatro se aproxima finalmente, também, da liberdade há muito outorgada
pela dança: pode mover-se sem uma lógica dramaticamente aristotélica. Lehmann
(2007: 339-340), relacionando o teatro a dança contemporânea, afirma que ele
“partiu do campo semântico para o sintático e então para o pragmático, isto é, o
compartilhamento emocional de impulsos com os espectadores nas situações de
comunicação do teatro.”
Ainda a respeito da relação do teatro contemporâneo com a dança, no espaço
similar conquistado pelo corpo, Dénis Guénoun (2004: 133) indica a valorização da
precisão da movimentação apresentativa em recusa do mimetismo de ações.
Deste modo, poderíamos dizer que a marionetização do corpo do ator-
bailarino busca novamente uma outra natureza que o a artificialidade do corpo
cotidiano, aculturado. Uma outra cultura, diria Barba. Destruir o corpo cotidiano e
28
reconstruí-lo com energia, presença, bios, características que seduzem o olhar do
público para um corpo dilatado e expressivo: um corpo-artista.
Matteo Bonfitto apresenta uma visão mais categórica do ator pós-dramático:
sendo um artista polivalente. Ele argumenta:
Poderíamos dizer, por exemplo, que os processos de atuação colocados
em prática pelo ator pós-dramático envolvem um horizonte técnico e
expressivo mais alargado, se comparado ao ator dramático. De fato,
idealmente falando, o ator pós-dramático deve possuir competências que
transitam entre o teatro dramático, o circo, o cabaré, o teatro de
variedades, o teatro-musical, o teatro-dança e a performance. (2006: 48).
O autor admite, porém, que este seja um ideal. Mesmo porque a diversidade
de propostas e produções é muito grande no campo do teatro contemporâneo.
De qualquer modo, virtuose ou não, o ator pós-dramático relaciona seu corpo
com o público num processo de contaminação. Sendo o corpo sua própria
mensagem, ele deixa de ser recipiente de uma informação que precisa ser
codificada. Para usar a terminologia aplicada por Greiner
(2005), o corpo transforma-
se em mídia de si mesmo: um corpo-mídia, que opera num processo de
contaminação entre o dentro e o fora de seu próprio ambiente, performando as suas
próprias vivências e experiências e contaminando-se com as dos outros. O ator cria-
se a partir das contaminações com o mundo e troca-as novamente com o público.
Ainda neste aspecto, Lehmann (2007: 338) divide da mesma opinião em
relação ao público:
No teatro pós-dramático, o corpo ‘afeta’ o espectador menos como
informação do que como comunicação. Essa comunicação corresponde,
sobretudo, ao modelo de um ‘contágio’ pelo teatro, à maneira da metáfora
de Artaud em ‘O teatro e a peste’.
Para que a peste aconteça, o ator precisa encontrar sua outra natureza, que
está além das máscaras e simulacros do cotidiano: além da artificialidade.
Todavia, nas plurais estéticas desenvolvidas sobre a égide do pós-drama e do
teatro contemporâneo a figura do ator aparece em situações contraditórias. Ou
desaparece. É o caso de espetáculos que trazem o-atores à cena, em busca de
uma possível autenticidade extirpada do ator tradicional pelos longos anos de ofício.
Não-atores aparecem neste jogo como uma caminho para imprimir
autenticidade a performance: Será que tudo que se opõe à construção do
29
acontecimento teatral, e portanto ao seu caráter encenado, produz um efeito de
autenticidade?” (MATZKE, 2006: 39-47).
Cremos que a autenticidade que se busca trazer à cena, ingênua,
desavisada, espontaneísta, esteja presente na entrega do ator ao jogo teatral,
entendido como a criação de sentidos a partir da materialidade da cena, - da qual a
exposição do corpo do ator faz parte. Deste modo, não reduzimos a amplitude de
significados do conceito de jogo teatral apenas ao entendimento do mesmo como
ação dramática de personagens.
Para entregar-se ao jogo, que transita entre a apresentação e a
representação, é necessário revelar o seu mecanismo, assumir as falhas do sistema,
os acting-outs. Como o drama não tem mais espaço enquanto atrativo principal do
teatro, visto que a televisão e o cinema o esgotaram, a vontade de jogar e de ver
jogar permanece. Fica a adrenalina causada pela articulação dos elementos, das
regras do jogo.
A prática teatral com não-atores encontra-se em espaços semiológicos
parecidos com os da prática dos atores contemporâneos. Annemarie Matzke, diz, a
esse respeito:
Comparando as encenações que surgem neste contexto, chama a atenção
que os ‘atores’ apresentam a sua história, a sua situação empírica, e por
tanto, apresentam eles mesmos. Na maioria das vezes, eles não
representam mais personagens literários ou figuras dramáticas e caso
que o fazem, é para refletir sobre a própria situação de vida. (MATZKE,
2006: 39-47, trad. Stephan Baumgärtel).
A auto-encenação (exposição espetacular de acontecimentos, experiências
ou habilidades individuais) se transforma em jogo. O objetivo pode ser o alcance da
melhor performance; porém, são os erros, as vicissitudes, que oferecem a
experiência de autenticidade, de humanidade; um momento de fuga do simulacro
pós-moderno.
Guénoun (2004: 139) trata o jogo teatral como a exposição da própria
teatralidade e das possibilidades de performatividade, afirmando que o blico
anseia por ver “as práticas da cena enquanto práticas. Ver como fazem aqueles que
ali se apresentam
.”
Em um primeiro momento, autenticidade e teatralização podem parecer
conceitos que nunca se encontrariam em uma mesma estética teatral. Mas
30
lembremo-nos, contudo, do jogo. A revelação do jogo, ou seja, a pronta afirmação
de que ele tem um propósito (que pode ser o jogo em si, mas sempre pautado por
regras), um espaço (que não distingue necessariamente jogadores e público),
jogadores (todos podem ser jogadores, ou apenas alguns) e um início e um fim
serve para imprimir autenticidade a ele. A autenticidade perseguida pelo teatro pós-
dramático, e pelo ator pós-dramático, é a fuga do simulacro através de um novo
simulacro: um espaço onde, contraditoriamente, as verdades mais íntimas podem
aparecer. Pois estas são as regras deste jogo.
1.3 A escritura de si mesmo a partir de 1970 – alguns indícios
Entender o ator como um “escritor de si mesmo”, de sua própria dramaturgia
corporal, supõe que ele seja o detentor da totalidade dos materiais que serão
utilizados para a composição de sua partitura/atuação.
Como define Bonfitto (2003: XIX),
O ator que compõe, o ator-compositor, necessita de materiais para
executar seu trabalho, os quais são classificados em três categorias –
material primário: o corpo; secundário: as ações sicas; e terciário: os
elementos constitutivos das ações físicas.
O autor segue dizendo ainda que: “Portanto, por material pode-se entender
qualquer elemento que adquire uma função no processo de construção da
identidade do próprio objeto.” (BONFITTO, 2003: 17).
Porém, em algumas expressões teatrais da contemporaneidade percebemos
que o ator pode se encontrar em construções cênicas que ofereçam não
estímulos exteriores para a criação de sua dramaturgia, mas também materiais
formais que gerem suas partituras corporais.
O trabalho do ator no teatro de Robert Wilson pode ser um claro exemplo
desta questão. O encenador americano oferece um desenho de cena completo para
o ator, mas este precisa preencher dramaturgicamente esta forma, podendo-se
estabelecer um processo de co-criação da escritura do trabalho do ator em cena,
onde lhe é oferecida a partitura e ele se responsabiliza pela criação da sub-partitura.
31
A respeito da sub-partitura, Patrice Pavis (1996: 83) diz que
[...] seria a sólida massa branca imersa sobre a qual se apóia o ator para
mostrar e reger em cena tudo aquilo sobre o que se constrói a sua
representação. Em nossa prospectiva de uma semiologia da enunciação
teatral do ator, nós definiremos a sub-partitura (...) como ‘o conjunto de
fatores situacionais (situação de enunciação) e de savoir-faire cnico e
artístico sobre os quais o ator/atriz se apóia na execução de sua partitura.
4
Percebemos então que a dramaturgia do ator contemporâneo não se
restringe a um trabalho obrigatoriamente solitário, mas configura-se em uma troca
entre ator e diretor, de elementos estimulativos e compositivos, podendo se
transformar em uma co-criação com o encenador do espetáculo, para utilizar o
exemplo de Robert Wilson. Contudo, o ator não deixa nunca de se responsabilizar
por questões fundamentais da criação atoral, como, por exemplo, o preenchimento
da forma das ações físicas e vocais, em busca de uma energia própria à
representação.
Em algumas expressões teatrais da contemporaneidade a que tivemos
acesso, seja por bibliografia documental, vídeos ou por contato direto, percebemos
procedimentos reincidentes de atuação não-dramática.
Perante a diversidade estilística, tentaremos indicar quatro modalidades de
atuação que percebemos recorrentes em espetáculos de encenadores que
analisaremos a seguir. São elas: a) a codificação investigativa e criativa do ator; b) a
codificação do diretor/marionetização do ator; c) a performatização da atuação e, e)
o teatro participativo.
As três primeiras modalidades de atuação que identificamos têm o
ator/atuador como figura indispensável a sua própria escritura em cena. o teatro
participativo não constitui uma modalidade de construção dramatúrgica para o ator já
que se desenvolve, sobretudo, a partir da participação do espectador na criação e
desenvolvimento do evento cênico, mas será também abordado aqui visto que se
configura em uma estratégia de atuação não-dramática.
_________________________
4
[...] sarebbe la sólida massa bianca immersa sulla quale si appoggia l’attore per apparire e reggere
in scena tutto cio su cui fonda la sua recitazione. Nella nostra prospettiva di uma semiologia
dell’enunciazione teatrale dell’atore, noi definiremo la sotto-partitura (...) come l’insieme dei fattori
situazionali (situazioni di enunciazione) e dei savoir-faire tecnici e artistici sui quali l’attore/ice si
appoggia nell’eseguire la sua partitura.” Tradução Nossa.
32
Não tentaremos ingenuamente esgotar as proposições estéticas para o
trabalho do ator na contemporaneidade, pois o objetivo principal dessa investigação
é poder analisar mais cuidadosamente a diversidade de procedimentos e materiais
utilizados para a composição da dramaturgia atoral, procurando perceber alguns
caminhos para a organização semiológica do trabalho do ator na atualidade.
Sabemos que no decorrer dos séculos XX, o trabalho do ator se desenvolveu
em muitas correntes estéticas e linguagens em busca da desvinculação da
atuação à representação realista. Desencadeou-se uma busca intensa e constante
pela expressividade do corpo como fuga ao modelo da clássica Comédie-Française,
com seus gestos, expressões e declamações pré-fabricados. Muitos fazedores do
teatro ocidental certamente tiveram um papel fundamental no desenvolvimento do
trabalho do ator no século XX
5
, e conseqüentemente, na dramaturgia do ator
contemporâneo.
Procuraremos, a seguir, discorrer mais detalhadamente sobre cada uma das
quatro modalidades de atuação contemporânea observadas, investigando as
possíveis influências estéticas na escolha dos materiais e procedimentos de atuação
das mesmas, pois como define Bonfitto (2009: 96-97):
Na medida em que os seus materiais de atuação não se fazem
prevalentemente referenciais, nem constitutivos de uma personagem
(entendida como representação de um indivíduo ou tipo) e não são
estruturados a partir de uma rede semântica produzida por uma história, o
ator pós-dramático deverá apoiar-se sobre as qualidades expressivas que
podem ser produzidas a partir de sua relação pragmática com os materiais
de atuação, ou seja, a partir de seu modus operandi. Portanto,
determinados processos subjetivos serão necessariamente evocados e,
conseqüentemente, podemos falar de um grau mais perceptível de criação,
digamos, autoral.
a) Codificação investigativa e criativa do ator
A antropologia teatral de Eugenio Barba, cujas investigações interculturais
têm como centro de apoio e pesquisa a ISTA (Internacional School of Theatre
Antrhopology), fundada em 1979 em Holtebro, Dinamarca, é um dos grandes
_______________________
5
Podemos citar renovadores do trabalho do ator tais como Stanislavski (na transição do século XIX
para o século XX), Craig, Meyerhold, Brecht e Grotowski (no século XX). Apesar de serem propostas
estéticas com características distintas, todas apresentam uma grande preocupação com a
investigação de “novos caminhos” para o trabalho do ator.
33
representantes desta tendência dramatúrgica de atuação.
As pesquisas de Barba giram em torno do que o próprio autor classificou de
“Terceiro Teatro”, um teatro muitas vezes marginalizado porque não institucional,
que foge ao teatro comercialmente estabelecido e também as experimentações e
“revoluções” estéticas e políticas da avant-garde. Ian Watson (1995:19) define:
O terceiro teatro é um conceito ao qual se chega através da negação. Um
tipo particular de teatro existe, ele não é parte do teatro institucional, ele não
é parte da vanguarda. Se ele não é o primeiro ou o segundo teatro, o que
ele é? Ele é o terceiro teatro. Para alguns, essa linha de argumentação
enfatiza o perfil negativo de um teatro que vive uma existência precária,
desprovido do senso de sua própria identidade, e dificilmente vivendo nas
sombras do primeiro e do segundo teatros, dos quais ele secretamente
deseja fazer parte.
6
O Terceiro Teatro de Barba traz heranças diretas de sua convivência com
Grotowski, principalmente quando insere o ator na prática grupal, enfatizando o
papel essencial da troca múltipla entre indivíduos e culturas diferentes para a
alimentação do processo não apenas formativo, mas também criativo do ator. Deste
modo, o ator encontra na troca interpessoal e intercultural materiais para a
construção de sua dramaturgia corporal.
Para Barba, esta troca acontece principalmente através de sistemas
codificados de representação, tais como ele e Nicola Saravese descrevem em A
Arte Secreta do Ator, no qual os autores ainda indicam e categorizam princípios
recorrentes na organização de corpos em tradições representacionais diversas do
oriente e do ocidente, oferecendo assim postulados para o ator forjar um corpo
extra-cotidiano para sua representação.
O ator-dançarino de Barba distancia-se da representação dramática, pois não
leva em consideração a verossimilhança em relação às ações corporais/vocais nem
mesmo a psicologização da personagem, mas sim procura reorganizar o corpo
cotidiano em um corpo expressivo para a representação, deslocando princípios de
atuação observados em técnicas tradicionais, produzindo um possível “alfabeto” de
___________________________
6 “
The thrird theatre is a concept arrived at through negation. A particular type of theatre exists, it is not
part of the institucional theatre, it is not part of the avant-garde. If it is not the first or the second
theatre, what is it? It is the third theatre. For some, this line of argument highlights the negative profile
of a theatre living a hand-to-mouth existence, lacking a sense of its own identity, and barely surviving
in the shadows of the first and the second theatres which it secretly wishes to be part of.” Tradução
Nossa.
34
Atuação.
Bonfitto (2002: 77) define e enumera os princípios recorrentes estruturados
por Barba:
Os princípios-que-retornam, que definem o campo da pré-expressividade,
se aplicados ao corpo do ator, produzem tensões físicas pré-expressivas
que geram a presença e um corpo-em-vida. De acordo com Barba, os
princípios-que-retornam são: equilíbrio precário, ou equilíbrio dinâmico ou
equilíbrio de luxo (Barba utiliza as três possibilidades); a dança das
oposições; a incoerência coerente e a virtude da omissão; o princípio da
equivalência.
Na mesma linha de investigação atoral, instituindo ainda outros processos de
construção dramatúrgica para o ator, os quais não relatamos aqui, podemos incluir,
dentre tantos diretores e companhias, o diretor inglês radicado na França Peter
Brook, o japonês Yoshi Oida e ainda o brasileiro Luís O. Burnier e seus “discípulos”
do Lume – Núcleo Interdisciplinar de pesquisas teatrais, de Campinas/SP.
b) Codificação do diretor: presença da co-criação na dramaturgia do ator
O encenador americano Robert Wilson, indicado por Lehmann como o mais
representativo encenador do teatro pós-dramático, apresenta em suas produções
(que acontecem desde a década de 1960) um ator completamente
“despersonalizado”, na medida em que sua dramaturgia corporal foge da mimesis
não só em relação à ação, mas também ao espaço e ao tempo dilatados na
atuação.
Seus procedimentos de atuação apresentam ligação direta com preceitos de
renovadores da linguagem teatral da primeira metade do século XX, como Antonin
Artaud, Gordan Craig e Tadeuzs Kantor. Sobre Craig, Roubine (1998: 187) discorre:
A supermarionete, segundo Craig, “não rivalizará com a vida, mas irá além;
ela o encarnará o corpo de carne e osso, mas o corpo em estado de
êxtase, e enquanto estiver nascendo dela um espírito vivo, ela se revestirá
de uma beleza mortal”. É que se trata de despersonalizar o ator,
arrancando-o das delícias exibicionistas da representação imitativa
(convencional ou naturalista) da vida.
Através da “marionetização” do ator, ou seja, de processos de codificação dos
gestos e movimentos, Craig procurava um caminho para a redução das
ambigüidades do corpo. Roubine continua sua análise aproximando as premissas de
35
Craig sobre o trabalho do ator aos preceitos artaudianos do ator no teatro da
crueldade:
Como Craig, Artaud baseia a sua teoria do ator no princípio da
despersonalização. Não só o personagem, no sentido tradicional da palavra,
é expulso desse teatro, mas também a personalidade do ator é ocultada
pelo tipo de intervenção (não se ousa mais falar em desempenho) que ele
exige. Em última instância, o ator artaudiano não é mais um indivíduo de
carne e emoções, mas suporte e veículo de um complexo sistema semiótico
articulado em torno de uma convenção hieróglifica a expressão é
freqüentemente repetida nos escritos de Artaud do figurino, do gesto, da
voz etc. (ROUBINE, 1998: 189)
Quando indagado, em entrevista recente a um jornalista, sobre o papel do
ator em suas criações, Wilson (2008) é pontual:
Meu trabalho é formal, conseqüentemente a aprendizagem de um gesto se
da mesma maneira que se decora um texto, ou aprende a cantar uma
canção ou treina uma coreografia de balé clássico. Eu ofereço uma forma.
Formas podem ser aborrecidas, mas podem se tornar interessantes
dependendo de como a pessoa sente e a preenche.
Fica claro que a prática do ator em Wilson não é apenas uma prática
virtuosística, no sentido de conseguir executar a criação do diretor, mas sim uma
prática criadora, em cuja realização o papel do diretor é de formalizar a plasticidade
da atuação com a criação da partitura, enquanto o ator se responsabiliza por criar
subsídios, situações, sub-partituras que preencham a forma e a tornem interessante,
enfim, uma co-criação da escritura do ator em cena.
É verdade que as práticas de Wilson em quase quatro décadas
modificaram-se em muitos sentidos, como por exemplo na relação de trabalho que
estabelecia no início da carreira com não-atores e agora, com atores profissionais.
Contudo, o caráter performático da atuação em Wilson continua presente,
estruturando uma atuação não relacionada a psicologismos e representação, mas
sim a apresentação de ações e movimentos, embora este caráter performático não
ofereça tanta liberdade de criação ao ator como na próxima modalidade que
analisaremos, a performatização da atuação.
Luiz Roberto Galizia relaciona o trabalho do ator em Wilson na década de
1960 com outras investigações contemporâneas, tais como as de Jerzy Grotowski,
Peter Brook e do grupo americano Living Theatre:
36
O teatro de Wilson, que evoluiu exatamente no mesmo período, preocupa-
se igualmente com o “eu interior” do ator. Baseia-se também em métodos e
técnicas destinadas a auxiliar os atores e espectadores a desenvolver
novos veis de percepção. Rejeita, do mesmo modo, o psicologismo
freudiano linear [de Stanislavski], em favor de uma abordagem mais
globalizante da compreensão dos mistérios da existência humana. [...]
A principal diferença entre o teatro originado por esses grupos e o
teatro desenvolvido por Wilson está no fato de o primeiro estruturar-se em
torno de ideologias que solicitam um engajamento unilateral de seus
membros e uma reação até certo ponto uniforme de sua platéia. O teatro de
Wilson abrange, de maneira consistente com sua qualidade de
Gesamtkunstwerk, todo tipo de contribuição vinda dos performers e é capaz
de estimular e absorver as múltiplas reações de sua platéia. (2005: 45-46)
Sobre o aspecto performático da atuação, Galizia (2005: 146-147), a respeito
de A vida e a época de Joseph Stalin, indica:
Os gestos e atitudes descritos pelos performers em Stalin são simples
destilações dos modelos de movimento da existência humana, dos tipos de
gestos que realizamos em nossas vidas, temporariamente privados de
propósito, tal como abrir a porta de um armário, esperando encontrar um
livro e dando-se conta de repente de nossa distração, isto é, atos para os
quais nossos corpos o programados e que existem por si. Essa
programação seqüencial opera, em nossos cérebros, como as instruções
para um ritual, a exemplo de todo um conjunto de atividades repetidas por
nosso corpo, quando ele desperta pela manhã. Esse ritual mundano é parte
de nosso “inconsciente coletivo”, pois tende a acontecer automaticamente
com todos nós.
A arte do teatro, observada desse ponto de vista, é também uma
coleção de atividades. Isso é especialmente enfatizado no teatro de Wilson,
pois nele as ações ocorrem dentro de um contexto psicológico totalmente
diverso. Os performers acostumam-se com essas atividades, tendo em vista
aquilo que eles são, isto é, fenômenos: séries de entradas, saídas, paradas,
gestos e daí por diante.
Podemos observar, deste modo, que estratégias como deslocamento e
dilatação espaço-temporal de ações coletadas das “atividades humanas” citadas por
Galizia, se transformam em constantes materiais para a co-composição entre diretor
e ator da dramaturgia atoral para o espetáculo, e que procedimentos como a
repetição e a lentidão se tornam, no teatro de Wilson, estratagemas para ativar a
percepção tanto do ator quanto do espectador em relação ao que acontece em
cena, sem se utilizar de artifícios como a psicologia, o expurgo ou a agressividade.
c) Performatização da atuação
A terceira modalidade de atuação que identificamos em manifestações
teatrais contemporâneas diz respeito, talvez, a uma maior aproximação conceitual
37
da performance art, além de se relacionar diretamente com as definições de ator
pós-dramático trazidas por Bonfitto (2009: 92-93):
De fato, idealmente falando, e em sintonia com a abordagem de Lehmann,
o ator pós-dramático deve possuir competências que transitam entre o
teatro dramático, o circo, o cabaret, o teatro de variedades, o teatro-musical,
o teatro-dança, e a performance, dentre outras manifestações que
compõem o continuum das artes cênicas ou performáticas.
Esta oscilação entre diversos estilos e técnicas de atuação se apresenta
recorrente em algumas encenações, e pode reunir por aproximação conceitual
nomes diversos como Jan Lauwers, Richard Schechner, Pina Bausch, Teatro da
Vertigem, Companhia dos Atores, entre outros.
A dramaturgia do ator, deste modo, constrói-se no trânsito entre a
performatização do próprio eu, entendido como material, a performance no sentido
de desempenho virtuosístico e ainda a codificação de partituras, não relacionadas à
representação mimética de personagens (realismo), mas quase sempre a
movimentos de dança.
Segundo Pavis (2005: 55), “O performer, diferentemente do ator, não
representa um papel, age em seu próprio nome”.
Contudo,
‘agir em seu próprio nome’ não significa para o performer ‘fazer a si mesmo’,
pois apesar de haver ruptura com a representação tradicional, ele
representa algo (simboliza) em cima de si mesmo, numa auto-
representação - ou self as context - que não é o seu estado cotidiano.
Nesse estado de auto-representação o performer busca em seu repertório
pessoal os arquétipos universais que lhe oferecerão as bases para a
criação da persona (...). De acordo com Cohen (2002: 107) enquanto a
persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico, a personagem, com
seu psicologismo, torna-se mais referencial. (STECKERT, 2007: 02).
A auto-referencialidade presente na performatização da atuação leva a uma
valorização do instante presente, e obriga o performer a aprender a conviver tanto
com o tempo/espaço real quanto ficcional. Do mesmo modo, o performer assume e
abandona as personagens, as quais não possuem aprofundamento psicológico. A
performance tem também a característica de show, tendo uma relação com o
público que se assemelha ao circo, ao cabaret e ao music-hall.
38
Todavia, a característica mais acentuadamente performática desta
modalidade de atuação não se apóia na improvisação, em detrimento do
treinamento e da codificação. Como explica Schechner (2003: 27),
Performances artísticas, rituais ou cotidianas são todas feitas de
comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam
para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar.
E ainda: “[...] o comportamento restaurado é eu me comportando como se
fosse outra pessoa, ou eu me comportando como me mandaram ou eu me
comportando como aprendi” (SCHECHNER, 2003: 34).
A pluralidade da atuação performatizada em Jan Lauwers e da sensação de
espontaneidade criada pela atuação de seus atores é descrita por Lehmann (2007:
185):
Apesar da encenação calculada e ensaiada, a (aparente) descontração dos
atores, a ausência de um direcionamento rígido das ações, a interrupção do
diálogo pela inserção de pequenas danças levam de modo recorrente a um
isolamento do procedimento cênico.
Quando o teatro se mostra como esboço e não como pintura acabada,
propicia ao espectador a oportunidade de sentir a presença, de refletir, de
contribuir ele mesmo para algo incompleto. O preço disso é o conseqüente
rebaixamento da tensão, já que o espectador tanto mais se concentra nas
ações físicas e na presença dos atores.
d) Teatro Participativo
Discorreremos brevemente sobre algumas características do teatro
participativo, a via de informação, já que esta também é uma tendência muito
representativa do paradigma pós-dramático.
Como comentado anteriormente, o teatro participativo não supõe uma
dramaturgia do ator, mas sim do encenador e do público. A figura do ator é, na
verdade, diluída nessas criações, que geralmente se constroem centralizadas na
figura de um criador, e nas quais o público assume o desenvolvimento da ação e
dos acontecimentos.
O teatro participativo pode se estabelecer em encenações que utilizam a
participação espontânea de não-atores, que assumem o centro da auto-
apresentação, como cita Matzke (2006), talvez em busca de uma autenticidade da
atuação, ou ainda pode se organizar a partir dos elementos pré-dispostos pela
39
criação do encenador, que visa construir um “evento coletivamente, e onde em
algumas situações as videoinstalações interativas que acontecem no limiar entre
artes plásticas e cênicas muitas vezes também se encontram.
De acordo com Kinas (2005: 37),
Trabalhando uma obra aberta em via de se organizar e onde o autor é
infinito pois coletivo, o teatro inaugura um processo de eventização onde o
público participa como um colaborador que abre as portas, que encontra as
soluções. Essa sede exploratória cria as atmosferas no interior dos
ambientes. Ele aprende a se instalar no espaço imaginário no qual ele se
encontra, ao mesmo tempo em que ele vive uma experiência dinâmica;
organizando o espaço pela participação. Ele é o mplice dessa realidade
coletiva.
7
Ao público é delegada a criação de sentidos, a partir de suas próprias
interferências e observações. Gary Hill, Bill Viola e Clyde Chabot (vide videografia)
dão exemplos de criação de espetáculos de teatro participativo.
1.4 Il Fault trainning?
Segundo Féral (2000: 07), treinamento “[...] é o trabalho que o ator efetua
para aperfeiçoar sua arte antes de entrar em cena”
8
.
Na diversidade de tendências e estilos que o teatro pós-dramático apresenta,
ainda há necessidade para o treinamento do ator?
Tentaremos, a priori, compreender melhor o quê é, em si, esse trabalho que o
ator realiza antes de entrar em cena, para depois refletir sobre sua
imprescindibilidade para a atuação contemporânea.
Em Vous avez dit “training”? Féral faz um apanhado histórico do
desenvolvimento do uso do termo inglês training aplicado ao trabalho dos atores,
___________________
7
“En travaillant une œuvre en train de s’organiser et dont l’auteur est infini car collectif, le théâtre
inaugure un processus d’événementialisation le public participe comme un collaborateur qui ouvre
des portes, qui trouve des solutions. Sa soif exploratoire crée des ambiances à l’intérieur des
environnements. Il apprend à s’installer dans l’espace imaginaire dans lequel il se trouve, en même
temps qu’il vit une expérience dynamique; en aménageant l’espace par la participation. Il est le
complice de cette réalité collective.” Tradução Nossa.
8
“[…] celle du travail qu’effectue l’acteur pour perfectioner sont art avant d’entrer en scène.” Tradução
Nossa.
40
principalmente na França, discorrendo sobre a influência do vocábulo (e sua carga
cultural intrínseca) no fazer teatral europeu.
Segundo Féral, as mudanças lexicais (na França) revelam as profundas
transformações que afetaram o campo de treinamento de ator. Anteriormente a
palavra inglesa training não se relacionava com o sentido de submeter a uma
aprendizagem, mas sim com o arcaico termo francês trâiner ou tirer (tirar, arrancar,
arrastar). Posteriormente, explica Féral (2000: 07-08), o termo passou a designar
“uma aprendizagem e exercício sistemático em alguma arte, profissão ou ocupação
com uma finalidade de adquirir competência no mesmo.”
9
Feral (2000: 08) prossegue dizendo que, sendo o termo e seu conceito
aplicados indiferentemente no domínio artístico, esportivo ou militar, ou ainda no
treinamento de animais, ele evoca: “o processo de desenvolvimento do vigor
corporal e resistência por exercícios sistemáticos, com a finalidade de preparar para
algum feito atlético”
10
, definido como “um treinamento por exercícios repetidos”.
A autora segue relatando as influências do termo nos esportes, na psicanálise
e psicologia, mas afirma que os dicionários não revelavam o emprego do termo no
meio teatral, apenas insistiam nas noções de exercício de repetição metódica. Ela
segue com outros relatos de utilizações do termo, relacionados sempre à atividade
física.
Segundo Féral (2000: 09), o termo se espalhou de tal modo na França que,
em 1976, uma portaria do governo recomendou o uso do termo entrâinement ao
invés de training no sentido de “ação de aperfeiçoamento e manutenção de uma
dada área”
11
, mas que, apesar da medida, o termo não saiu de uso e vale até hoje
como sinônimo da palavra entrâinement.
Já no mundo anglofônico, a autora prossegue, desde que é aplicado ao
teatro, o termo training é utilizado para designar todos os aspectos da formação do
ator, seja em escolas, cursos, palcos ou ainda o com finalidade de aperfeiçoamento
do trabalho do ator, e não de uma produção específica (ou seja, pode designar três
atividades diferentes: formação, produção e desenvolvimento da arte do ator).
______________________
9
“a systematic instruction and exercise in some art, profession, or occupation with a view to
proficiency in it.” Tradução Nossa.
10
“The process of developing the bodily vigour and endurance by systematic exercise, so as to fit for
some atletic feat.” Tradução Nossa.
11
“d’action de perfectionnement et de maintien em condition dans um domaine donné.” Tradução
Nossa.
41
Na França, o uso do termo training aplicado ao teatro é recente, segundo a
autora, apenas a partir da década de 1980, mas continuou a designar o mesmo
trabalho de ator. Uma hipótese levantada por ela é que o termo inglês o traga
associações com referências militares e esportivas, como é o caso do termo em
francês, entrâinement, e por isso o seu uso tenha se tornado tão recorrente.
Segundo Féral ainda, a noção de treinamento de ator aparece na Europa e na
América do Norte no início do século XX, juntamente com as reformas do teatro e do
trabalho do ator, movidas pela insatisfação com a cena e com o ator da época dos
star-sistem, e inspiradas muitas vezes nas manifestações de arte representativa
codificada do oriente.
Os teatros-escolas o criados. Na França, Jacques Copeau, Charles Dullin e
Louis Jouvet são os precursores da reforma. Jerzy Grotowski, Eugenio Barba,
Ariane Mnouchkine e Peter Brook são citados no texto como seus herdeiros diretos.
Desse modo, a noção de treinamento se dissocia da noção de educação, lançada
pelas escolas do culo XIX e início do século XX, as quais, seguindo a tendência
“textocêntrica”, focavam na formação declamatória do ator.
As referências do modus operandi oriental no treinamento e preparação do
ator influenciam o pensamento dos homens e mulheres de teatro do ocidente até
hoje. Porém, é importante percebermos a reconstrução dessas referências, que
nunca conseguiriam migrar de cultura sem alterações.
A professora da Universidade de Bologna, Eugenia Casini Ropa, em
seminário
12
proferido em Florianópolis em 2008, ressaltou a construção de um
imaginário ocidental de um oriente idealizado (porque ignorantemente desconhecido
e descontextualizado), presente em nossa cultura eurocêntrica como um locus
mental, e não geográfico.
Desde o século XIII, as viagens pelo Oriente colocaram os europeus em
contato com um mundo novo, desconhecido, mitificado e mistificado. No culo XIX
então o choque com a chegada de grupos de verdadeiros artistas orientais para
se apresentarem na Europa (e outros nem tão verdadeiros assim). A admiração pela
cultura oriental aumenta, o orientalismo vira moda, as pessoas querem conhecer,
__________________________
12
Seminário Internacional “Intercultura e Poéticas Teatrais: oriente, ocidente, transfigurações”,
organizado pelo Grupo de Pesquisa Poéticas Teatrais e pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro
(Mestrado e Doutorado) do Centro de Artes da UDESC, ocorrido entre 18 e 22 de Novembro de 2008
no Centro de Artes da UDESC; Eugenia Casini Ropa proferiu seminário em 19 e 20/11/2008.
42
fazer, ser, viver essa cultura tão encantadoramente “selvagem” e espiritualizada.
E entre idas e vindas, o oriente continua como uma Pasárgada para os
modernos do século XX. Os costumes, as tradições, as técnicas. A arte. Os sistemas
codificados. As relações entre mestre e discípulo. Tanto as suposições do século
passado quanto as observações deste novo século modificam a maneira de se
pensar e se fazer teatro. O trabalho do ator nas tradições do Teatro Balinês, do
Kathakali, do , do Kabuki, da dança indiana Bharatanatyam geram ideais; as artes
marcias, a precisão de movimentos, a energia, o corpo além da voz. O teatro
ocidental, revisto, repensado, precisa de novos atores.
Diversos treinamentos de ator passaram a utilizar cnicas, conhecidas ou
inventadas, inspiradas na arte da representação oriental, desde o século XX.
O modelo de relação mestre-discípulo presente nas clássicas tradições
orientais é defendido por Barba, e era praticado pelos renovadores do início do
século XX como Stanislavski, fugindo dos professores de especialidades das
tradicionais escolas e conservatórios. O aprendizado com o mestre suporia não
apenas técnicas eficazes, mas sim um treinamento corporal, ético e espiritual.
O treinamento de ator, do ponto de vista destes reformadores, não teria como
pretensão apenas transformá-lo (o ator) em virtuose da cena, mas sim leva-lo a um
conhecimento profundo de seu corpo e superação de limites e bloqueios para a
criação, ou até mesmo, como em Grotowski, servir como veículo de transcendência.
Segundo Féral, o treinamento, nesta linha de pensamento, seria preparatório,
processual, não tendo a cena como fim, entendendo o corpo como instrumento do
ator, que deve ser mantido em estado operacional para a criação, que aconteceria
em um outro momento.
Farid Paya pensa o contrário, e comenta, a respeito do trabalho em seu
grupo, o Théâtre du Lierre:
[...] o treinamento o é uma condição prévia separada da produção. Os
exercícios praticados no treinamento são usados para ensaiar o espetáculo.
Nunca temos em vista um espetáculo sem um treinamento. O treinamento
deve estar de acordo com o propósito e a estética do espetáculo. (PAYA in
Müller, 2000: 151-159, Tradução de José Ronaldo Faleiro).
Podemos observar que linhas de treinamento de ator que diferem entre si,
não em relação aos meios (exercícios), mas também em relação aos fins
43
(processo ou produção), podendo ainda apresentar o treinamento como uma ação
coletiva ou individual, numa abordagem mais militar ou monasterial.
O fato é que muito se fala em treinamento de ator, e ele é uma prática
comum no meio teatral globalizado, seja como simples condicionamento físico, como
treinamento psicofísico ou ainda como treinamento compositivo do ator, gerador de
materiais para a utilização em espetáculos.
Tanto experiências com atores profissionais quanto com não-atores ou atores
amadores procuram a criação de novos modos de operação e sistematização da
cena, e novas maneiras de se pensar o trabalho do ator, ou seja, nas vastas e
diversas experiências contemporâneas de encenação, a figura do ator - jogador
(profissional ou não) ainda perdura.
Deste modo, num período de estéticas tão divergentes entre si e de relações
tão instáveis entre o ser e fazer no teatro, o treinamento apresenta cada vez mais a
necessidade de se tornar pessoal, singular, identitário. Uma técnica pessoal, como
preconiza Barba, que busca ao mesmo tempo igualar a outros atores enquanto
potencial energético e destacar destes enquanto identidade. Uma identidade
mutante, que se alimenta com as contaminações do meio (mundo globalizado) em
que vive, enche-se de referências e experiências de outrem para poder regurgitar
uma nova arte.
Um eu antropofágico, para voltar aos conceitos trazidos pela professora
Eugenia Casini Ropa e por nossos modernistas. E a antropofagia não permite mais
a disciplina tradicional imposta ao ator moderno. Não aprendizagem de uma
técnica, mas sim uma mixagem de cnicas que se transformam em outra coisa que
não elas mesmas.
Um artista unívoro: é este o artista pós-moderno, é este o ator pós-dramático.
Casini Ropa indica também uma nova localização desta arte: ela é “glocal”,
global e local ao mesmo tempo. Global porque digere um pouco de tudo que está
posto no mundo (cultural, social, economicamente...) entre cursos, oficinas,
workshops, experiências e referências, e local porque ainda assim preserva alguma
particularidade que revela a origem do artista, seja ela real ou inventada.
O ator pós-dramático precisa então aprender a aprender para se reconstruir e
então aprender novamente. Um aprendizado do corpo em jogo com o externo e o
interno de si. A esse respeito, Piccon-Valin (2000: 56) discorre:
44
De fato, o exercício deveria ser considerado como um jogo lembremo-
nos das declarações antistanislaviskianas de Meyerhold e depois de
Vakhtangov: no teatro o único estado possível é o jogo, a cena exclui todo
estado de alma. Um jogo que permite avançar no domínio do exercício.
Uma vez que ele está dominado, tratar-se-á para o ator de colocá-lo à
prova, de se colocar à prova através deste exercício, de colocar suas
próprias energias à prova no exercício, de modelá-las, contê-las, ou deixá-
las escorrer. Tratar-se-á em seguida de inventar outras energias no
exercício. Aprender a aprender é sem dúvida a finalidade de um
treinamento bem pensado, combinando no mesmo o princípio coletivo e o
princípio individual que emerge de uma interação lúdica, com seus ritmos
próprios mecânicos, químicos, espirituais. E isso não é a simples
execução, mesmo perfeita, de um bom exercício, considerado como uma
receita, mas uma compreensão concreta de seus princípios profundos, uma
adaptação pessoal disso que ele contém de universal, então sua
reinvenção, que deixa um corpo vivo, presente, sobre um palco.
13
______________________
13
“En fait, l’exercice devrait être consideré comme un jeu rappelons-nous les déclarations
antistanislaviskiennes de Meyerhold puis de Vakhtangov: au théâtre le seul état possible est la joie, la
scène exclut tôut état d’âme. Un jeu qui permettrait d’avancer dans la mâitrise de cet exercice. Une
fois qu’il est mâitrisé, il s’agirait pour le comedién de le mettre à l’épreuve, de se mettre à l’épreuve sur
cet exercice, d’y mettre à l’épreuve ses propes énergies, de les modeler, les contenir, ou les laisser
couler. Il s’agirait ensuite d’en inventer d’autres. Apprendre à apprendre est sens doute la finalité d’un
training bien pensé, combinant par même le principe collectif et le principe individuel qui émerge
dans une interaction ludique, avec ses rythmes propes mécaniques, chimiques, spirituels. Et ce
n’est pas la simple exécution, même parfaite, d’un bon exercice, considéré comme une recette, mais
une compréhension concrète des ses principes profonds, une adaptation personelle de ce qu’il
contient d’universel, donc sa réinvention, que rend un corps vivant, présent, sur um plateau.”
Tradução Nossa.
45
2. SMOKED LOVE – UM EXPERIMENTO
2.1 Sobre Smoked Love
Why don’t you listen to me?
É pedir demais?
E quando eu te encontro e voilà, nous sommes toujours ensemble, no mesmo lugar, ao mesmo
tempo, e videos e telefones mediam os nossos beijos...
Você poderia até achar isso demais, mas estamos entrando, baby, num amor fumado, defumado, in a
smoked love forever...
14
Smoked Love nasceu como prática desta pesquisa de mestrado. O
experimento cênico tem como base de composição as relações possíveis entre
dramaturgia do ator e elementos performáticos e tecnológicos. Por ser híbrido
enquanto linguagem e gênero, tomamos a liberdade de classificá-lo como um solo
performático multimídia, por não ter encontrado outro gênero compatível com sua
estruturação.
Tanto a construção dramatúrgica quanto a composição cênica são
fragmentadas, dividindo o espetáculo em 10 quadros permeados por personas que
povoam a cena da solista. Conforme o crítico Alexandre Mate indica, Smoked Love é
um
Espetáculo absolutamente épico e teatralista. O texto insere-se naquilo que
o filólogo russo Mikhail Bakhtin define como dialogismo: múltiplas vozes
dissonantes, consonantes a falar, juntas e separadas. Fratura da fala e do
pensamento. Caos no existir. Choques no estar! A trilha sonora assombra,
tinge-se de surpresas. Fratura no conceito de música como “sustentatório
da emoção”, dos climas psicológicos.
15
A performatividade do espetáculo insinua-se nas relações dissonantes e
interpoladas construídas ao longo da peça, entre solista, projeções, banda (de rock,
que toca ao vivo) e público, transitando estados situacionais num jogo entre
identidade e alteridade, e construindo junto ao público os seres ficcionais do
espetáculo.
Esta prática da pesquisa sobre o tema da dramaturgia do ator contemporâneo
traz um histórico de inquietações e perguntas sobre as práticas teatrais atuais.
__________________________
14
Texto integrante do programa do espetáculo Smoked Love.
15
MATE, Alexandre. Análise dos espetáculos do CENA 6 Joinville 2009. São Paulo: não publicado,
2009, p. 02. (acervo da autora)
46
Durante os anos de 2004 a 2007, cursamos a graduação em Bacharelado em
Artes Cênicas Habilitação em Interpretação Teatral, na Faculdade de Artes do
Paraná (FAP), em Curitiba - PR. Dentre as diversas linhas estéticas da história do
teatro com as quais tivemos contato, tanto na teoria quanto na prática,
especialmente duas nos chamaram a atenção: a performance art e as pesquisas
sobre dramaturgia do ator, principalmente as que diziam respeito ao “Terceiro
Teatro” conceituado por Eugenio Barba.
Por um lado, essas duas escolhas poderiam parecer, no mínimo,
contraditórias, uma vez que o Terceiro Teatro de Barba se caracterizaria
primordialmente por não estar inserido no “segundo teatro”, o teatro experimental, e
consequentemente esse fator anularia qualquer possibilidade de aproximação com a
performance.
Todavia, mesmo tendo realizado no período da graduação experimentações
que procuravam investigar as duas linhas isoladamente, ainda nos sentíamos
extremamente instigados a tentar descobrir em nossa própria prática uma possível
sintaxe de princípios desses diferentes gêneros.
Percebíamos, pelo contato pouco e parco com as produções teatrais de
Curitiba, Joinville, Florianópolis e do resto do mundo que se atreviam a aparecer por
ali, que novas “perguntas” tentavam subir aos palcos, procurando respostas a nossa
cultura social e artística.
Nossos contatos com materiais audiovisuais de trabalhos de outros artistas,
disponibilizados principalmente por livros e internet, além de algumas dramaturgias
contemporâneas, também nos provocavam em nosso o-lugar indefinido de
inquietações estéticas.
Foi em 2007 que, depois de anos nos arriscando na poesia, escrevemos
nossa primeira dramaturgia, Smoked Love. Dramaturgia porque desde o início
pensamos em realizar uma montagem teatral com o texto. Pode ser que ele se
enquadre em outro gênero literário, como a prosa-poética ou a crônica, mas ainda
preferimos aproximá-lo de uma dramaturgia polifônica, intimista e fragmentada.
Resolvemos então escrever um projeto de montagem de espetáculo,
motivados pelo texto e pelas pesquisas que desenvolvíamos no grupo de iniciação
científica experimental da FAP, pesquisas essas relacionadas a nossas inquietações
estéticas supra-citadas.
47
Foi em parceria com nossa companhia de teatro que conseguimos, através do
Edital de Apoio à Cultura de Joinville, subvenção através de dedução fiscal para a
montagem da peça. Demoramos um ano para conseguir captar os recursos junto a
empresas de Joinville, com o apoio logístico da Fundação Cultural de Joinville, e
durante esse período de tempo termináramos a graduação e iniciáramos o curso
de pós-graduação - Mestrado em Teatro da UDESC (Universidade do Estado de
Santa Catarina), tendo aprovado um projeto de pesquisa que visava a continuação
dos estudos da iniciação científica.
Percebíamos a necessidade de amadurecer nossas idéias e estruturarmos
mais claramente nossa pesquisa, que a princípio procurava identificar elementos
congruentes e divergentes na atuação do performer e do ator-narrador - a partir das
linguagens da performance art e do teatro épico - com o intuito de verificar um
possível sincretismo de atuação relacionado a essas duas vertentes.
Foi em 2008, durante o primeiro ano de mestrado, que tivemos contato com o
livro Teatro s-dramático, de Hans-Thies Lehmann. Logo na sequência,
começamos a investigar mais profundamente a literatura (pouca) sobre esse tema, e
encontramos também alguns escritos brasileiros e estrangeiros sobre as produções
teatrais contemporâneas, analisadas a partir do paradigma de Lehmann.
Achamos muito interessante o apanhado feito pelo autor alemão de tantas
produções contemporâneas (poucas brasileiras, é verdade) de profunda importância
e investigação estética. Apesar das controvérsias acadêmicas e da polêmica sobre a
categorização da produção teatral contemporânea em teatro pós-dramático ou teatro
pós-moderno, entendemos esse paradigma como um caminho possível para nossas
inquietações acerca do trabalho do ator no teatro contemporâneo.
Foi no ano de 2009 então que, tendo reformulado nosso projeto de pesquisa
original, iniciamos as experimentações práticas para a realização da montagem de
Smoked Love, tendo acordado com nosso generoso orientador que esta seria a
experimentação prática de nossa pesquisa.
Quase dois anos após a aprovação do projeto de montagem pela lei de
incentivo cultural de Joinville, muitas idéias haviam amadurecido, paralelamente
ao projeto de pesquisa para a dissertação de mestrado.
Iniciamos nossa proposta de treinamento para a montagem em um período
anterior ao processo de encenação e produção da mesma, o que nos ofereceu
espaço para pensarmos primeiramente na preparação do corpo criativo para a cena.
48
Em um segundo momento, iniciamos com nossa companhia de teatro e
outros artistas convidados para participar do espetáculo, o processo de encenação e
produção, que teve como experiência marcante a participação em uma oficina
ministrada por Matteo Bonfitto no Centro de Artes da UDESC, no primeiro semestre
de 2009, sobre os seres ficcionais e as relações de identidade e alteridade que o
ator estabelece com os mesmos.
Como Smoked Love traz uma complexa e diversa estrutura cênica (mídias,
banda ao vivo, cenário de difícil montagem, atriz com múltiplas funções), muitos
momentos do processo de criação foram isolados, apesar de terem constante
supervisão, para que construíssem, juntos, a sintaxe estética proposta. Nestes
momentos isolados se encontravam também nossas experimentações
performáticas, nas investigações e composições que nos guiavam para a atuação e
criação das cenas.
Na fase final de produção do espetáculo, foram realizados ensaios gerais com
a presença de todos os artistas e todos os signos e materiais a serem utilizados nas
apresentações: apesar de ser, conceitualmente, um solo, o espetáculo envolve em
sua realização o trabalho de muitas pessoas.
Smoked Love estreou, em 18 de junho de 2009, no CENA 6 - Mostra da
Associação Joinvilense de Teatro (AJOTE), e seguiu com temporada para
escolas, instituições e blico aberto no Galpão de Teatro da AJOTE de 22 a 28 de
junho, num total de 12 apresentações gratuitas como contrapartidas sociais do
projeto, seguidas de conversas/debates com o público sobre o espetáculo.
Instigados pelo sucesso de público em junho, seguimos com uma nova
temporada do espetáculo, de 15 a 30 de agosto, no mesmo local, tendo por
infelicidade coincidido com o período mais crítico da pandemia de Gripe H1N1 que
atingiu Joinville e o país inteiro, afastando o público, receoso, do teatro.
A peça seguiu com duas apresentações contratadas – uma pelo SESC -
Joinville em Setembro, na Mostra Aldeia Palco Giratório, e outra pela Fundação
Cultural de Joinville em Outubro, para a Semana da Juventude. De 12 a 15 de
novembro o espetáculo, a convite do SESC - Joinville, realizou sua última temporada
do ano, encerrando 2009 com 29 apresentações ao todo.
Neste percurso, descobrimos na atuação instâncias voláteis na relação com
espectadores diferentes, seja pela faixa etária ou pela classe social.
49
Algumas opções estéticas também foram amadurecendo no caminho, e
pequenas modificações necessárias às nossas próprias necessidades artísticas
foram feitas.
Procuramos, sobretudo, durante o processo de criação, construir um espaço
de partilha com o espectador, de experiência coletivamente construída, tanto no
sentido artístico quanto humano.
Para além da crítica ética, estética e social, pairava no ar a necessidade de
“envolver” o público nessa odisséia repetitiva e dilacerada de amor.
Procuramos, em cada detalhe, instigar o espectador a repensar seu lugar-
comum no cotidiano e na arte.
Talvez tenhamos conseguido. Talvez não.
Perdura-se, etérea, a experiência construída no compartilhamento do tempo-
espaço proporcionado aos artistas e espectadores desse trabalho, que buscam,
cada qual em sua instância, respostas a suas inquietações, e espaços para suas
tentativas de ser.
2.2 Um amor líquido para um ator líquido: a fragilidade dos relacionamentos
afetivos em Smoked Love
Smoked Love é uma experiência de amor, de poesia, dos sentidos que emergem de olhares
para si e para os outros nas relações amorosas contemporâneas. Algumas perspectivas críticas
procuram espaço em nossa atualidade social, econômica e política, percorrendo caminhos de
identidade e alteridade nos seres ficcionais do espetáculo. Smoked Love é um momento de troca de
memórias e sensações, quer experienciais ou inventadas, mas sempre memórias dos seres
amorosos que somos às vezes.
16
Neste sub-capítulo, propomos algumas reflexões acerca de conceitos trazidos
por Zygmunt Bauman em suas obras sobre a sociedade pós-moderna, e suas
relações com a temática de Smoked Love: a fragilidade dos relacionamentos
interpessoais na contemporaneidade, onde a insegurança inspira desejos
conflitantes.
Analisaremos também, apoiados em outras bibliografias, o enfraquecimento
_____________________
16
Texto integrante do programa do espetáculo Smoked Love.
50
dos vínculos comunicacionais causado pelo excesso de imagens em nossa
sociedade midiática, que muitas vezes dilui conceitos como ausência e presença.
As diversas bibliografias de Bauman, dentre as quais o livro Amor Líquido
(2004), oferecem uma leitura dialética à estrutura dramatúrgica de Smoked Love: um
triângulo amoroso eternamente irresoluto, revelador das fragilidades individuais, que
dilui o amor em incertezas e projeções do alter ego da narradora multifacetada em
diversos seres ficcionais e situações.
Segundo Bauman (1998: 117),
Ser um alter ego significa servir como um depósito de entulho dentro do
qual todas as premonições inefáveis, os medos inexpressos, as culpas e
autocensuras secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados,
se despejam : ser um alter ego significa servir como pública exposição do
mais íntimo privado, como um demônio interior a ser publicamente
exorcizado, uma efígie em que tudo o que não pode ser suprimido pode ser
queimado. O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu
purificado pode brilhar.
Em O mal-estar da pós-modernidade (1998) Bauman estabelece reflexões
sobre a sociedade contemporânea, relacionando-as diretamente ao livro de Sigmund
Freud intitulado O mal-estar na civilização, publicado pela primeira vez em 1930, em
Viena.
Freud (apud BAUMAN, 1998: 08) aponta que a cultura e a civilização (tidos
como sinônimos de “modernidade”, segundo Bauman), imprimiram na sociedade os
conceitos de “beleza”, “limpeza” e “ordem” como ideais de um mundo seguro.
Todavia, segundo Freud, a escasssez de liberdade e o excesso de ordem
criaram nos indivíduos mal-estares como a compulsão, a regulação e a supressão
ou renúncia forçada, para utilizar os termos citados pelo autor.
Acerca destas características da modernidade, Bauman (1998: 09) diz :
“Dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da
segurança, mais ordem significa mais mal-estar. ”
Porém, a pós-modernidade ofereceu uma revisão de tais valores. “Nossa
hora, contudo, é a da desregulamentação“, diz Bauman (1998: 09), que continua sua
reflexão :
Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e
publicado, a liberdade individual reina soberana : é o valor pelo qual todos
os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a
sabedoria acerca de todas as normas e resoluções supra-individuais devem
ser medidas. (BAUMAN, 1998: 09).
51
A disseminação da liberdade individual, outrora perseguida pela
“modernidade ordeira”, criou novos mal-estares nos indivíduos:
Você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa : a antiga
norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. que os
ganhos e as perdas mudaram de lugar : os homens e as mulheres pós-
modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por
um quinhão de felicidade. Os mal-estares da pós-modernidade provinham
de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais
na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade
provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma
segurança individual pequena demais. (BAUMAN, 1998: 10).
Ao que parece, os mal-estares criados nos diferentes períodos históricos
revelam uma incessante insatisfação com o estabelecido, uma busca constante por
algo novo, que ofereça uma nova possibilidade de satisfação, de felicidade
episódica, pois “a reavaliação de todos os valores é um momento feliz, mas os
valores reavaliados não garantem necessariamente um estado de satisfação.”
(BAUMAN, 1998: 10).
A instabilidade da satisfação, a sua não perenidade num mundo em constante
transformação e criação de novidades, pode ser entendida como um dos fatores
responsáveis pela criação de identidades voláteis.
A fragmentação da noção de sujeito também é explicada por Stuart Hall
(2006: 12-13), que diz :
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada, esse
tornando fragmentado ; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.
Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens
sociais “lá fora“ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
“necessidades“ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como
resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como
não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade
torna-se uma “celebração móvel“ : formada e transformada continuamente
em relação as formas pelas quais somos representados ou interpretados
nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987).
Esse “sujeito pós-moderno”, sem um referente cultural fixo, surge, segundo
Feix (2007: 182), numa sociedade que perdeu seu mitos coletivos, coletivizantes:
[...] a Modernidade seria a época de crença nos grande mitos coletivos que
iriam levar a Humanidade para um bem-estar mais elevado. Entre esses
52
mitos promissores, costuma-se tradicionalmente colocar o Capitalismo, o
Comunismo, o progresso científico e tecnológico, a religião ou mesmo a
psicanálise. Com a realização desses Grandes Mitos“ (Lyotard), a
Humanidade iria conquistar um futuro promissor. A derrota progressiva
desses Mitos conduziu a uma visão desencantada em relação ao futuro.
Deste modo, “O valor que resta é o indivíduo, desencantado pelas ideologias
coletivas.” (FEIX, 2007: 182). O individualismo que se opera na sociedade pós-
moderna identifica-se imediatamente com a possível “essência” do capitalismo
preponderante: o consumo. De acordo com Bauman (2001: 189), “Ao contrário da
produção, o consumo é uma atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo
nos momentos em que se realiza na companhia de outros.”
A busca pelo prazer, se constitui, assim, como uma constante busca pela
saciação de desejos autogeradores.
Consequentemente, o indivíduo pós-moderno encara seus relacionamentos
interpessoais como mais um material de consumo, apto a saciar os seus desejos
voláteis.
Tal modo de encarar o outro constrói relacionamentos tão voláteis quanto os
desejos, criando “relacionamentos líquidos”, para utilizar o adjetivo empregado por
Baumann para caracterizar a situação da vida contemporânea em sua amplitude.
Assim, na vida líquida, a transformação das relações interpessoais em
mercadorias gera um estado de constante insegurança, que se extende a todos os
âmbitos da vida afetiva e social; um receio de perda da “liberdade” individual, ou
melhor, poderíamos dizer que seria um receio de não querer assumir um
compromisso com a idéia de coletividade, de bem comum, frustrada na
Modernidade.
Se a capacidade de amar é escassa, ela influencia diretamente nas
possibilidades de comunicação, que o encontro dos corpos seria a primeira
instância da comunicação primária. O corpo gera ambientes comunicacionais:
Um corpo não se reduz a um único vetor ou a uma única direção de
vinculação, tampouco se reduz a unidimensionalidade de processos
lineares ou lógico-formais, muito menos a pura mediação. o é, dessa
maneira, mero “meio de comunicação ou mídia“. Muito antes, ele é um
catalisador de ambientes, e talvez seja sempre o catalizador inicial de um
ambiente comunicacional. Podemos nomear essa implicação de “princípio
da ambiência“. Sua simples presença gera a disposição de interação,
desencadeia processos de vinculação com o meio, com os outros seres do
entorno e com seus iguais. (BAITELLO jr., 2008: 99).
53
Norval Baitello Jr. prossegue sua análise dizendo que “Não é a informação,
em seu sentido funcional, o elemento constitutivo de um processo de comunicação.
É o nculo, com sua complexidade, sua amplitude de potencialidades.” (BAITELLO,
2008: 101). O vínculo que se estabelece entre os corpos:
Podemos dizer que o alimento dos vínculos pode ser genericamente
denominado “afeto”, mas poeticamente deve ser chamado de “amor” (até
mesmo os biólogos lançam mão do rico conceito de amor para explicar
como operam os vínculos). Graças a reconsideração e a nova inserção da
corporeidade como ponto de partida e chegada de toda comunicação,
podemos dizer que a matéria-prima dos processos comunicacionais não é a
informação, mas sim o amor. (BAITELLO, 2008: 102).
Considerando o afeto/amor como elemento essencial para o estabelecimento
do vínculo no processo comunicacional, e tendo em vista o individualismo e a
descrença na coletividade instaurados neste período de pós-modernidade, podemos
concluir que o ser humano se encontra numa era que, paradoxalmente a seus
sempre eminentes novos avanços tecnológicos, oferece problemáticas
comunicacionais, que se refletem, em parte, na crescente virtualização dos
relacionamentos interpessoais.
Porém, Bauman pondera que esta situação não se deve apenas as novas
mídias oferecidas pela tecnologia, mas se estabelece como resultado da
insegurança, que poderíamos dizer gerada pela falta de mitos coletivizadores na
pós-modernidade.
Apesar das “engenhocas” tecnológicas que interpolam relações interpessoais
serem relacionadas diretamente ao conceito de mídia, este tem um desdobramento
ontológico muito mais amplo: vem do latim medium, que significa meio, e diz respeito
a tudo aquilo que se coloca entre os interlocutores de um processo comunicacional.
(BAITELLO, 2005: 31).
Baitello (2005: 32-34) conceitua 03 tipos de mídias: a primária, presencial e
imediata, que é o próprio corpo em contato com outro(s) corpo(s); a secundária,
formada pelas imagens exteriores que se registram sobre materiais externos ao
corpo, exigindo transportabiliadade no tempo-espaço; e a terciária, que possui
aparatos técnicos para emissão e recepção, não necessitando de presença ou
transportabilidade no processo comunicacional, e que abrange desde o telégrafo até
as redes de computadores.
54
Enquanto o tempo da mídia primária, que é presencial, é o tempo do aqui e
agora ; enquanto o tempo e espaço criam a presença e o presente,
condições indispensáveis para a comunicação primária, e enquanto na
mídia secundária o tempo se torna mais lento, na mídia terciária esse tempo
se acelera vertiginozamente. (BAITELLO, 2005: 34).
Deste modo, a velocidade da comunicação interpolada pela tecnologia cria
uma nova condição para o ser humano, a iconofagia:
Quando não temos tempo – na mídia terciária não temos o tempo da
decifração ocorre uma inversão. Ao invés de as imagens nos alimentarem
o mundo interior, é nosso mundo interior que vai servir de alimento para
elas, girar em torno delas, servir de escravo para elas. Transformando-nos
em sombras das imagens, ou objetos de sua devoração. No momento em
que não as deciframos, não nos apropriamos delas e elas nos devoram.
Nossos índios praticavam a antropofagia ritual. Os nossos artistas
dos anos 20 falaram da antropofagia cultural contra todos os colonialismos.
Nossa era contemporânea pratica a iconofagia : ou nós devoramos as
imagens, ou são as imagens que nos devoram. (BAITELLO jr
.
, 2005: 35).
A proliferação das “imagens” e virtualizações dos corpos, nos remete a
investigação da essência do corpo, o que define sua presença, sua corporeidade: “A
propriocepção é o sentido do próprio corpo. Descoberta por Sherrington na década
de 1890, constitui o outro sentido, além da visão, olfato, tato, paladar e audição. [...].”
(BAITELLO, 2005: 42-43).
Baitello ainda sugere que o sentido do próprio corpo, a consciência de sua
própria existência, pode, numa projeção a longo prazo, ser afetada pelo excesso de
projeção imagética do mesmo criada na comunicação virtualizada.
A presença é relacionada ao corpo e sua consciência de existência espaço-
temporal, ou seja, a consciência de sua mortalidade. Pela necessidade de ampliar
seu alcance comunicacional no desenvolvimento da história da humanidade, devido
a “limitação” presencial do corpo, o homem criou as imagens, para imortalizar seu
discurso:
O defrontar-se com a morte trouxe ao homem a invenção da cultura, o
desenvolvimento de mundos e formas paralelos, ficcionais, conduziu-o as
regras de jogos imaginativos e aos espaços e tempos do lúdico, nos quais,
com os quais e para os quais este mesmo homem passou a viver,
reinventando-se a si mesmo. E os seres que ele cria nessa realidade
paralela recebem tal investimento de crença que passam a determinar
mesmo a vida do homem. Assim, o mundo da cultura possui esta
característica : criar seres que atuam sobre os criadores. (BAITELLO, 2005:
47-48).
55
As imagens estão gerando uma grande problemática comunicacional:
esvaziando as relações entre corpos na comunicação, e, consequentemente, seus
vínculos afetivos. Os relacionamentos permeiam, assim, as ausências de corpos.
Portanto, trata-se de tentarmos não ser dominados por nossas próprias
criações imagéticas, que perpetuam o presente “sem futuro”, e que acabam por
configurar uma segunda realidade no processo entre os corpos:
O que a língua latina chamava de imago referia-se ao retrato de um morto.
Porque as imagens são indeléveis e porque conferem uma segunda
existência, elas possuem um status semiótico de segunda realidade (cf.
Ivan Bystrina, 1989), em seu caso particular, a presença de uma ausência e
seu oposto, a ausência de uma presença. Por isso, elas são
fantasmagóricas, em sua origem mais remota. (BAITELLO, 2005: 4).
Os indivíduos passam a figurar “corpos sem memórias”, pois sem
experiências presenciais profundas entre corpos; apenas vagas lembranças na
sociedade de exacerbada reprodução de imagens.
A iconofagia evolui para uma problemática maior ainda quando, além de
virtualizar os corpos, passamos a priorizar o consumo da imagem dos mesmos, e de
todas as coisas.
Baitello explica a que ponto chega o consumo de imagens:
Consumimos imagens em todas as suas formas : marcas, modas, grifes,
tendências, atributos, adjetivos, figuras, ídolos, símbolos, ícones,
logomarcas. Até mesmo a comida está sendo desmaterializada por meio
das imagens, cada vez mais eco, cada vez menos “oikos“, cada vez menos
se comem alimentos, cada vez mais se comem imagens de alimentos
(embalagens, cores, formatos, tamanhos, padrões de alimentos).
(BAITELLO, 2005: 54).
Neste terreno líquido de consumo de imagens e relacionamentos voláteis e
mediados, procuramos em Smoked Love, através do confrontamento entre a
presença do corpo da atriz em cena e o corpo virtualizado em imagem - editado nos
vídeos do espetáculo, um questionamento sobre as relações de presença e
ausência, suscitadas pela virtualização do corpo como possível fuga da insegurança
e falta de fé no outro.
No espetáculo, buscamos refletir questões pertinentes a nossa sociedade
atual, questões “culturais”, ou seja, elementos produzidos pelos indivíduos ao londo
da história, e que juntos podem caracterizar o que conhecemos por cultura.
56
O que se pode chamar de cultura, com o interacionismo, é um autêntico
‘processo’, uma elaboração contínua, feita por seus atores, as pessoas que,
antes, conformam algo que hoje se pode chamar de ‘o cultural’ muito mais
do que produzem ‘a cultura’. A obra é ou pode ser um detonador a obra é
um interruptor, como diz Nestor Canclini mas ela fica muito aquém do
resultado final a que dá causa. Como prefiro dizer, a obra é a sobra – aquilo
que costumeiramente se identifica como ‘obra’ (uma certa tela, uma
encenação, um livro) nada mais é que o vestígio de alguma coisa muito
maior que quase literalmente não deixa rastro. (COELHO, 2009: 08).
Deste modo, a cultura é o ambiente que “carrega” as diversas elaborações dos
indivíduos fragmentados da sociedade pós-moderna.
A superficialidade das relações que não constituem mais memórias, por não
disporem de tempo para tal, reflete-se também na proposição estética dos quadros
constituintes de Smoked Love, que por não designarem em sua sucessão o
desenvolvimento de uma fábula ou história, característica do teatro s-dramático,
podem ser entendidos como episódios, assim como Bauman os relaciona aos
relacionamentos atuais:
Um evento que, em princípio, o tem quaisquer consequências que
sobrevivam a sua própria duração é chamado um episódio. [...] O episódio é
um evento fechado em torno de si. [...]
Nunca se saberia se o episódio está realmente acabado e
consumado. Não obstante todo o esforço de preveni-los, os eventos
passados podem voltar a perseguir os presentes do futuro. Entre os
parceiros das relações do passado, os melhores para serem esquecidos
podem de novo aparecer, dentro de episódios inteiramente diversos,
sacudindo as feridas deixadas pelos encontros de outrora. (BAUMAN, 1998:
116).
No triângulo amoroso narrado pela solista de Smoked Love, as memórias dos
“outros”, dos co-autores dos relacionamentos, são aleatórias; não definindo
identidades singulares, chegam a se confundir.
no palco, a relação presencial que se estabelece entre atriz e público, -
entre os corpos que dividem no teatro o mesmo espaço e o mesmo tempo presente,
pode deflagrar a reflexão sobre as relações que se automatizam na virtualidade.
Em Smoked Love, vários elementos procuram estabecer a comunicação entre
os corpos: a disposição do espaço cênico, que aproxima o corpo da atriz dos corpos
dos espectadores, num ambiente intimista que comporta no máximo 100 pessoas
por sessão; o caráter narrativo da dramaturgia, que embora suponha a descrição,
relato ou confissão de episódios torna imprescindível a presença do público para o
contato corporal que estabelece o compartilhamento das situações e sensações
57
trazidas a cena ; o já citado confrontamento entre imagem projetada e imagem
“real”, presencial; entre outros.
“Uma experiência de amor”, de acordo com o texto do programa do
espetáculo, de “troca de memórias e sensações, quer experienciais ou inventadas”,
mas trazidas a tona na construção de situações passíveis de “experiência” na
relação entre atriz e público, pois, segundo Heidegger (apud BONDÍA, 2002: 25),
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos
alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando
falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que
nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui : sofrer, padecer, tomar o
que nos alcança receptivamente, aceitar, a medida que nos submetemos a
algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixarmos abordar em
nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso.
Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o
outro, ou no transcurso do tempo.
2.3 Memorial do treinamento para Smoked Love
Em Smoked Love, experimento prático desta pesquisa, o treinamento se deu
tanto como continuidade do trabalho desenvolvido pela atriz-dramaturga, para a
manutenção de um “corpo criativo”, quanto para a criação de materiais utilizados
posteriormente nos quadros do espetáculo, como veremos a seguir.
Descreveremos aqui as fases e exercícios utilizados no treinamento para o
espetáculo Smoked Love, refletindo também sobre mais algumas considerações
acerca do treinamento de ator.
Segundo David Le Breton (2000: 202),
Os exercícios visam a suscitar uma distância em relação aos códigos que
geralmente regem o corpo no decorrer dos rituais do quotidiano.
Descondicionamento metódico, desnudamento do simbólico que impregna
cada gesto, cada mímica, cada movimento, cada palavra, e autoriza a
representação de si na cena social. A partir desse desapego de si, da
ruptura lúcida das evidências de comportamento, o ator é devolvido a todos
os possíveis da cena. O training bem pensado é um exercício de sociologia
(ou de antropologia) prática, um desvio para pensar em si mesmo como
outro, a fim de deslizar, a seguir, para uma alteridade desejada, que é a
própria essência do trabalho do ator. Experimentar os vínculos ou as
distâncias entre a palavra e a simbólica corporal, as maneiras de subverter
a palavra pelo corpo ou o contrário, a fim de dar ao jogo uma envergadura
suplementar, aprender a brincar com códigos para os restituir com sutileza
ou inventar outros.
58
Nessa reinvenção de si, podemos dizer que, de acordo com os Estudos
Performáticos que tem em Richard Schechner um valioso referencial, o treinamento
criativo do ator oferece “comportamentos restaurados” para a cena.
Féral (2009: 64) explica:
Performances, nos diz Schechner, (...) são feitas de comportamentos
reapresentados (twice behaved), de comportamentos restaurados (restored
behaved), por ações (performed actions) que as pessoas treinam executar,
que praticam, que repetem.
Féral explica que os quatro grandes tipos de ação da performance, em todas
as suas instâncias (ritual, social, artística, etc.), são:
1. ser (being), ou seja comportar-se (to behave). Ser, diz Schechner, é a
própria existência;
2. fazer (doing), é a atividade de tudo que existe, desde os quarks até os
seres humanos;
3. mostrar fazendo (showing doing), ligado a natureza dos
comportamentos humanos. “Mostrar o que se faz” consiste em performar”
(to perform), em dar-se em espetáculo, a exibir (ou a exibir-se), em
sublinhar a ação;
4. explicar essa “exposição” do fazer (explaining showing doing). Tal ação
(explaining showing doing) é o campo dos pesquisadores e dos críticos e
consiste em refletir sobre o mundo da performance e do mundo como
performance (performatividade). Ela define o trabalho, o campo de ação dos
Performance Studies. (FÉRAL, 2009: 62-63)
Como somos (seres humanos) e fazemos (ações, pensamentos,
sentimentos...) a todo o momento, na atuação espetacular para o outro mostramos o
que fazemos, o que sabemos fazer, e treinamos para ativar nossa propriocepção,
enquanto consciência do corpo e, consequentemente, suas possibilidades
performáticas - inclusive na comunicação -, para além do condicionamento do
cotidiano:
Na arte a idéia de repetição e, portanto, de preparação (consciente) para
a performance é clara. Na vida cotidiana, o treinamento ou a preparação
para desempenhá-la se estabelece, a longo prazo, de maneira às vezes
imposta, às vezes não consciente através da educação, pelo peso das
convenções sociais e tradições. O conceito de repetição também salienta
que a forma como o ser humano se comporta não é jamais inato, mas
sempre aprendido, construído, instruído (naturalmente de modos diferentes
em cada cultura). (FÉRAL, 2009: 75-76)
Porém, diferentemente da reprobutibilidade que assombra a criação e
proliferação das coisas e imagens das coisas em nossa atualidade, as ações
59
humanas, mesmo na previsão da repetição do comportamento restaurado, nunca
são iguais, devido aos diversos fatores que produzem a complexidade constituinte
do universo humano.
Féral (2009: 76-77) diz que
(...) mesmo repetida, uma ação se inscreve necessariamente nos contextos
sócio-históricos de produções diferentes (recepção da performance;
nuances presentes no estado (psicológico, físico, etc.) do performer). Isso
faz com que a repetição ou a citação sejam, ao mesmo tempo, cópia e
original (simulação), a contextualização na qual ela emerge: contextos
sempre diferentes, jamais saturados que fazem com que o significado
nunca seja único, mas sempre variável e plural. Todas essas variações
garantirão que cada performance seja única a cada vez.
Em outras palavras, se o ato performado é repetição, ele não é, ainda
assim, nem clone nem imitação. Ele surge, a cada vez, como reprodução de
si mesmo assim como de outro. A performance, em sua relação ao mesmo,
gera o outro (...).
No processo de reconhecimento e conscientização do corpo do ator, que
envolve todo e qualquer treinamento - pensado para produção espetacular ou como
um fim em si mesmo - as investigações das relações criativas entre corpo, tempo e
espaço assumem uma postura dialética.
Deste modo, o treinamento psico-físico realizado pela solista de Smoked Love
previa não apenas um fim em si, como mantenedor de um corpo criativo, mas
também a criação espetacular como construção de conhecimento (a partir de
identidades e alteridades) para a criação artística.
O treinamento, realizado a partir de exercícios do repertório pessoal de
formação artística da atriz, tanto no ensino superior (Bacharelado em Artes Cênicas
habilitação em Interpretação Teatral Faculdade de Artes do Paraná, Ctba-PR)
quanto em cursos e grupos de investigação extra-curriculares (vide currículo online
na plataforma lattes CNPQ), foi dividido em 03 momentos, anteriores à escolha
dos materias finais para a composição da cena, que foram assim nomeados e
distribuídos :
1. Treinamento corporal preparatório
2. Treinamento corporal criativo
3. Improvisações a partir de matrizes corporais
1. Treinamento corporal preparatório: composto por exercícios de preparação do
corpo e da voz para a prática corporal e vocal (entendida também em sua nuance
60
criativa), que visam, através do desenvolvimento de habilidades relacionadas ao
relaxamento, alongamento e aquecimento muscular, aumentar a resistência, a
flexibilidade e a força física, além de treinamento respiratório para o
desenvolvimento do potencial respiratório para a cena (voz falada, voz cantada,
movimentos) e de exercícios de aquecimento, articulação e projeção vocal.
Dentre os exercícios utilizados nesta fase de treinamento, que fez parte de
todo o processo criativo e desenvolveu-se como continuidade das práticas
efetuadas pela atriz, destacamos:
- a saudação ao sol, exercício conhecido através da prática de yoga, que trabalha no
corpo simultaneamente flexibilidade e tônus através de uma sequência definida de
movimentos e posições corporais;
- paradas de mão, cabeça e ombro, práticas comuns na ginástica olímpica, na yoga
e nas acrobacias circenses de solo, para o desenvolvimento de força e precisão dos
movimentos;
- caminhadas frontais, lateriais e retrocedentes, com e sem golpes, com ritmos
diferentes, com e sem modos alternativos de caminhar, procurando reagrupar as
articulações e a musculatura corporal em novos centros de equilíbrio, inspiradas em
práticas orientais (marciais e artísticas), como o Karatê e o , para o
desenvolvimento, do nus muscular, precisão do movimento e percepção das
relações estabelecidas entre corpo, espaço e tempo;
- corridas, saltos e movimentos circulares das articulações (contínuos ou
segmentados), visando o aquecimento corporal e a precisão dos movimentos;
- lançamentos no espaço, iniciando movimentos sempre a partir de algum ponto
específico do corpo (mão, cabeça, joelho, nariz, quadril...), que se desenvolvem
continuamente;
- inspiração e expiração com variações na contagem de tempo, buscando sempre a
dilatação do tempo na realização do ato respiratório.
2. Treinamento corporal criativo: composto por exercícios de exploração da
vocalidade e corporeidade do ator, visando à percepção e criação de organizações
para um corpo expressivo. Utilizamos exercícios que possibilitassem um processo
de investigação criativa do corpo, relacionados com qualidades constitutivas do
movimento, tais como tempo, direção no espaço e peso.
Dentre os exercícios utilizados nesta fase de treinamento, destacamos:
61
- exploração de qualidades do movimento: espacialidade, velocidade e intensidade;
- exploração de qualidades da produção vocal: volume, articulação dos fonemas,
velocidade e intensidade;
- criação de relações disjuntivas entre corpo e voz: contradição, oposição,
divergências entre as qualidades do movimento do corpo e da produção vocal;
- criação de micro-performances a partir da definição das situações (estado,
imagem, objetivo e percurso) de cada quadro da peça;
3. Improvisações a partir de matrizes corporais: A partir da definição das
situações dos quadros da peça, levando em consideração o estado, a imagem, o
objetivo e o percurso definidos para cada quadro (cf. sub-capítulo 2.4 desta
dissertação), criamos as matrizes de atuação para Smoked Love. Partindo dessas
matrizes, experimentamos micro-performances, explorando possibilidades de
relações entre as matrizes, o espaço cênico e os materiais de cena, e as qualidades
dos movimentos e da produção vocal. As possibilidades de contracena com público,
objetos e projeções de imagens da atriz dos vídeos também foram investigadas,
procurando estabelecer contracenas não habituais (com atores), pela limitação
imposta na configuração de espetáculo solo. Assim, a partir das micro-performances
e improvisações, foram selecionados os materiais e definidas as partituras de
atuação para os quadros do espetáculo, os “comportamentos restaurados“ para a
situação espetacular.
Dentre os exercícios utilizados nesta fase de treinamento, destacamos:
- criação de micro-performances a partir das matrizes corporais de cada quadro;
- improvisações a partir dos materiais selecionados das micro-performances,
explorando também possibilidades de contracena com objetos do cenário, público
(presente nos ensaios) e projeções de imagens da atriz dos vídeos do espetáculo.
2.4 Matrizes de composição para os quadros do espetáculo
O processo de criação de Smoked Love foi caracterizado pela busca da
disjunção entre os quadros que compõem a peça. Os recortes situacionais
apresentados não são pautados pela continuidade ou interdependência, que não
62
se trata de uma dramaturgia tradicional. Os fragmentos dos diferentes estados
apresentados durante o espetáculo sugerem ao espectador a articulação da
narrativa, transformando-o em co-criador de múltiplas narrativas e leituras possíveis.
Para tanto, as matrizes de composição criadas para os quadros do espetáculo
não partiram de nenhuma fábula ou personagem com aprofundamento psicológico,
mas de propostas de performatização de situações.
A esse respeito, Bonfitto (2009: 95) discorre:
É importante notar ainda, que, na medida em que o ator não dispõe de uma
história que poderia funcionar como eixo de seu trabalho, necessariamente
o foco de sua atenção deverá ser deslocado da esfera do quê’ para a
esfera do ‘como’, e aqui emerge uma outra característica que pode definir,
em certa medida, a identidade do ator pós-dramático, e que representa mais
uma hipótese construída neste ensaio.
O “como fazer” guiou a criação dos quadros do espetáculo, pautados em
situações e estados diversos. Lehmann (2007: 113) diz que, “de fato, a categoria
adequada para o novo teatro não é a de ação, mas a de estado ou situação”, por
não necessitar de intriga nem desenvolvimento da intriga, para chegar a um
desfecho.
O autor segue dizendo ainda que:
O estado é uma figuração estética do teatro que mostra mais uma
composição do que uma história, embora haja atores vivos representando.
(...) O teatro pós-dramático é um teatro de estados e de composições
cênicas dinâmicas. (LEHMANN, 2007: 114).
Tais composições cênicas dinâmicas criam diferentes ambientes, e esta
semiose performática que se desenvolve durante o espetáculo apresenta, segundo
Lehmann, aspectos cerimoniais, na relação que se estabelece entre obra e
espectador:
O teatro pós-dramático é a substituição da ão dramática pela cerimônia,
com a qual a ação dramático-cultual estava intrinsicamente ligada em seus
primórdios. Assim, o que se entende por cerimônia como fator do teatro
pós-dramático é toda a diversidade dos procedimentos de representação
sem referencial, conduzidos porém com crescente precisão: as
manifestações de uma comunidade particularmente formalizada;
construções de processos rítmico-musicais ou visual-arquitetônicos; formas
para-rituais como a celebração (não raro profundamente negra) do corpo,
da presença; a ostentação enfática ou monumental. (LEHMANN, 2007: 115)
63
No processo de criação das matrizes de atuação de Smoked Love levamos
em consideração a definição de estado, imagem, objetivo e percurso para cada
quadro do espetáculo, investigando, sobretudo, o estabelecimento da relação
cerimonial de compartilhamento desses estados com o público. Memórias,
sensações e impressões surgem das composições colocadas em cena, a partir dos
seres ficionais que emergem na atuação.
Analisando as três categorias de seres ficcionais indicadas em O ator-
compositor (BONFITTO, 2002), actante ou ‘atuante-máscara’ indivíduo e tipo -,
‘actante-estado’ e ‘actante-texto’, Bonfitto (2009: 98) diz:
Creio que tais categorias privilegiem os procedimentos e práticas realizadas
pelo ator pós-dramático, tais como montagem, musicalidade das ações
(polirritmia, polifonia, modulações), repetições, risco, presente contínuo,
ritualização das ações, corporeidade como matriz de ocorrências
expressivas, etc. De fato, em muitos casos o ator pós-dramático deverá
compor ou incorporar seres ficcionais que não podem ser remetidos a
indivíduos ou tipos humanos; eles serão muitas vezes canais transmissores
de qualidades, de sensações, de processos abstratos, de fenômenos
naturais, de combinações de fragmentos de experiências vividas, de resto
de memórias... Dessa forma, as matrizes geradoras dos materiais de
atuação, utilizados pelo ator pós-dramático, estão relacionadas mais
diretamente com a exploração de processos perceptivos, constitutivos do
que podemos chamar de experiência em diferentes níveis, do que com a
ilustração de histórias ou teses de qualquer gênero.
Lehmann não vincula a desreferencialização do sujeito “dramático”, ou do
personagem dramático, ao não-humano. Ele afirma que tais procedimentos de
atuação apenas fogem da homogeneidade e cisão do sujeito, assim como fazem
a teoria filosófica, percebendo-o de modo fragmentado, polifônico, em uma outra
apresentação do mesmo:
Pois no teatro pós-dramático, quando o texto no sentido de uma clássica
fala figurativa desaparece, o convém afastar-se da representação
humana, como muitos presumem de modo errôneo. O que interessa é uma
outra apresentação do ser humano, a possibilidade do discurso polifônico
teatral, para através do ritmo espaço-temporal do texto, suas rupturas,
cesuras e vira-voltas, articular algo daquela não homogeneidade e cisão do
sujeito, que se tornou um lugar comum na teoria filosófica, mas encontra
ainda muita resistência no teatro, pois se quer ficar, obstinadamente, fixado
em concepções desmontadas muito tempo, tais como: eu, ação, conflito
trágico, etc. (LEHMANN, 2009: 98)
A experiência de amor, ódio e demais emoções, estados e sensações
suscitados pelos relacionamentos amorosos frágeis, descrentes e liquefeitos de
Smoked Love, para utilizar a expressão de Bauman (2001, 2004, 2009), traz à cena
64
a valorização da diegesis (narração) em oposição à mimesis (representação), na
descrição de memórias e lembranças vividas ou inventadas, surgidas na construção
da dramaturgia da atriz.
De acordo com Lehmann (2007: 185), “Um traço essencial do teatro pós-
dramático é o princípio da narração: o teatro se torna o lugar de um ato de contar
[...]”.
Para relatar as experiências e estados escolhidos como material compositivo
do espetáculo e transformá-los em uma cerimônia de compartilhamento de
sensações com o público, podemos dizer que Smoked Love seguiu um caminho
muito parecido com o que Cohen definiu como work in progress (trabalho em
progresso):
A criação pelo work in progress opera-se através de redes de leitmotive, da
superposição de estruturas, de procedimentos gerativos, da hibridização de
conteúdos, em que o processo, o risco, a permeação, o entremeio criador-
obra, a iteratividade de construção e a possibilidade de incorporação de
acontecimentos de percurso são as ontologias da linguagem. O uso de
linhas de força (leitmotive criativos, narrativas) de irracionalidade”, a
incorporação do acaso/sincronicidade, são operações do work in progress,
no qual o paralelismo entre o processo e o produto são matrizes
constitutivas da linguagem. (COHEN, 2004: 01)
A teoria e a prática se desenvolveram neste processo numa dialética
semiótica, criando um território no qual “a prática é concebida como ponto de partida
e de chegada da construção do conhecimento“, conforme nos coloca Mate (2009:
18).
Descreveremos, a seguir, as matrizes de composição da atuação para os
quadros de Smoked Love.
Definimos como matrizes os materiais criados a partir de estados,
relacionados a emoções e sensações; imagens, definidas por livre associação com
situações cotidianas ou referentes artísticos; objetivos, como indicadores principais
da relação atriz-situação-público na construção das partituras de atuação e
percursos, como indicadores do desencadeamento de energia e ritmo da cena.
As matrizes de atuação visaram definir e organizar os estímulos utilizados
para a composição das partituras de atuação, levando em conta a criação de
situações cênicas e seres ficcionais diversos durante o espetáculo. Tais partituras
configuram “comportamentos restaurados”, segundo o conceito que Schechner
(2009) aplicou aos estudos performáticos, entendendo-o como as ações treinadas
65
para serem executadas, em instâncias diversas (rituais, teatro, dança, psicodrama,
exorcismo, etc.). A este respeito, Mostaço (2009: 19) conclui:
Nesse âmbito, o comportamento restaurado remete aos inúmeros ‘eus’ que
cada um alberga dentro de si, com distintas funções, como age em
diferentes situações ou diante de momentos qualificados, dando respostas
às motivações provenientes da vida; seja nas condições íntimas,
domésticas ou coletivas. Ou seja, a preocupação de captar os modos
como cada um se representa a si mesmo diante da multiplicidade de
ocasiões que enfrenta, enfeixando não apenas traços da personalidade,
como também da identidade e da conduta, a lhe fornecer algum tipo de
coerência ou continuidade existencial (psíquica, imaginária, existencial,
simbólica, cósmica, etc.).
Faremos também um breve apanhado dos principais referenciais e diretrizes
utilizados para a concepção e criação do experimento cênico.
SMOKED LOVE
Leitmotiv principal: amor descrente, blasé, ciumento, negativo, destrutivo, fumado
no sentido de sugado. O poema Chama e Fumo de Manuel Bandeira (2001: 16-17)
foi um material muito importante na definição do tema principal da peça; fez parte do
processo criativo, mas foi suprimido do espetáculo.
CHAMA E FUMO – MANUEL BANDEIRA
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...
Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...
Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...
66
Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...
A chama queima, o fumo embaça.
Tão triste que é! Mas... tem de ser...
Amor?... – chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...
Diretrizes para a encenação: Antropofagia
17
cultural e aporia
18
cênica. A
antropofagia cultural, enquanto conceito de recriação de experiências e referências
culturais diversas, foi explorada na composição do espetáculo através da utilização
de idiomas diversificados (português, inglês, francês); referentes de práticas
culturais específicas, mas disseminadas globalmente (mangá, Kung Fu, showbiz,
nouvelle vague); e referentes do mercado capitalista também globalizado, mas ainda
hegemonicamente americano, abordados com ironia (coca-cola, barbies, Lucky
strike); além de referentes da cultura pop (cores vibrantes na iluminação, adereços
de cena e caracterização, contrastando com o branco que envolve os cenários e os
figurinos; músicas transpostas para o gênero pop; figurinos compostos por coleções
da moda; banalização do nu; desenhos de iluminação pensados através dos planos
cinematográficos de gravação, celulares, vídeos a tecnologia capitalizada pelo
mercado). a aporia cênica, utilizada no sentido de contradição e indeterminação
sintática da cena, foi explorada a partir da sobreposição de signos (música ao vivo,
vídeo, atuação) nos três espaços definidos para a cena: no corredor formado pelas
arquibancadas da platéia, o espaço central e as laterais restantes foram definidos
como espaços cênicos, sendo utilizados, respectivamente, pela solista, pela banda e
pelas projeções. No decorrer das 29 apresentações realizadas no ano de 2009,
________________________________________
17
Termo cunhado por Oswald de Andrade em seu “Manifeso Antropofágio”, de 1928, partindo dos
radicais latinos que significam respectivamente “homem” e “devoração”. O autor relaciona os
processos de colonização cultural com a criação da identidade de um povo, através da assimilação,
transformação e recriação. Posteriormente, o termo antropofagia se torna recorrente nos estudos
culturais e sociais sobre as relações interculturais.
18
Termo grego utilizado por Matteo Bonfitto (2009) para indicar os processos criativos do ator pós-
dramático (“catalisador de aporias”), e que diz respeito a algo paradoxal, inexpugnável, difícil,
contraditório, indeterminado.
67
investigações acerca da transversalidade dos espaços cênicos foram iniciadas,
sendo que em alguns momentos a solista passou a “invadir” o espaço dos
vídeos/projeções e os músicos e a atriz dos vídeos, o espaço da solista.
QUADRO 01 – A americana
Estado: angústia
Imagem: mulher em uma confissão
Objetivo: libertar-se, ser ouvida
Percurso: crescente, de energia, ritmo e volume da voz
QUADRO 02 – Tristeza não tem fim, felicidade sim
Estado: euforia
Imagem: prostituta decadente
Objetivo: ser admirada
Percurso: decrescente de ritmo, constante de energia
QUADRO 03 – Vídeo-chamada
BLOCO 1: assistindo a vídeo-chamada
Estado: apreciação reflexiva
Imagem: espectadora jocosa em uma sessão de cinema
Objetivo: avaliar memórias
Percurso: crescente
BLOCO 2: convencimento
Estado: auto-afirmação
Imagem: mulher se defendendo de acusações em um julgamento
Objetivo: enfrentar seus próprios princípios
Percurso: constante
BLOCO 3: desacreditando-se
Estado: revolta, histeria
Imagem: A Noiva se vinga (referência a protagonista do filme Kill Bill, de Quentin
Tarantino, 2003-2004)
Objetivo: culpar o outro
Percurso: crescente
QUADRO 04 – At the supermarket
68
Quadro de transição de cena para a solista, que apenas troca os materiais de
cenário e o figurino, enquanto o quadro se desenvolve com o vídeo e a banda.
QUADRO 05 – As cartas
BLOCO 1: preparando-se para
Estado: ansiedade
Imagem: clown augusta
Objetivo: ser aceita socialmente
Percurso: inconstante
BLOCO 2: desabafando
Estado: derrota, depressão
Imagem: Pierrot chorando
Objetivo: desabafar
Percurso: clímax no meio do bloco
BLOCO 3: descartando as cartas
Estado: “expurgo”, “exorcismo”, libertação e alívio
Imagem: ex-noiva jogando fora os pertences do ex-noivo
Objetivo: jogar fora as lembranças
Percurso: crescente
QUADRO 06 – Vingança contra a psicanálise
Estado: ironia, malícia
Imagem: destino – poder de manipulação
Objetivo: demonstrar a fragilidade humana
Percurso: crescente
QUADRO 07 – O cineminha
BLOCO 1: transformando a câmera em um espelho
Estado: inquietação
Imagem: pessoa percebendo seus traços no espelho
Objetivo: perceber-se
Percurso: constante
BLOCO 2: transformando-se em Audrey Hepburn
Estado: soberba
69
Imagem: Bonequinha de Luxo (referência a personagem principal do filme
Bonequinha de Luxo, de Blake Edwards, 1961)
Objetivo: dissimular a necessidade que tem do outro
Percurso: constante
QUADRO 08 – O menino
BLOCO 1: lutando Kung Fu com bolinhas de sabão
Estado: cinismo
Imagem: personagem de mangá
Objetivo: contar uma história
Percurso: crescente
BLOCO 2: cantando no show biss
Estado: sensualidade
Imagem: cantora de cabaret japonesa
Objetivo: envolver o outro
Percurso: constante
QUADRO 09 – O encontro
BLOCO 1: competindo pela atenção do outro
Estado: competição
Imagem: atleta em olimpíada
Objetivo: vencer, mostrar que é a melhor
Percurso: clímax no meio do bloco
BLOCO 2: distribuindo lembranças coletivas
Estado: compaixão
Imagem: Julieta lembrando de Romeu (referência aos personagens protagonistas
do texto Romeu e Julieta, de William Shakespeare).
Objetivo: dividir recordações com o público
Percurso: constante
QUADRO 10 – O casamento
BLOCO 1: preparando-se para o casamento
Estado: paixão, histeria crescente
Imagem: mulher em “dia da noiva”
70
Objetivo: embelezar-se para o casamento, passar a vida com a pessoa amada
Percurso: crescente
BLOCO 2: preparando-se para partir
Estado: insegurança
Imagem: mulher arruma malas para ir embora
Objetivo: impor racionalidade aos impulsos afetivos
Percurso: crescente
2.5 A atriz e as mídias em Smoked Love: um processo de polifonia e
virtualização das relações
Dentre as estratégias utilizadas pelo teatro s-dramático, Lehmann atribui
primordial importância para as mídias e as novas tecnologias, embora seja sabido
que desde os primórdios do teatro ocidental, tendo os palcos gregos como matriz
de
nossa arte teatral, as maquinarias têm registrado constante presença nas
encenações.
Contudo, na contemporaneidade os aparatos técnicos e tecnológicos deixam
de ser apenas um mecanismo auxiliar para manutenção de uma realidade ficcional e
passam, por vezes, a contestar ambas as “realidades”, tanto a forjada quanto a que
diz respeito às experiências do mundo em que vivemos, no confronto entre a cena
imediata do corpo inesgotável de sentidos no espaço e o simulacro da imagem
projetada enquanto fuga das incertezas da realidade, pois completa e finda em si
mesma.
A impossibilidade de efetivar o ato comunicacional enquanto diálogo entre
pessoas presentes seres que se relacionam afetivamente é o mote principal da
encenação em Smoked Love. O espetáculo, definido como solo performático
multimídia, tem como tema principal um triângulo amoroso frustrado, e é dividido em
dez quadros permeados por mídias diversas (vídeos, projeções em tempo real, uma
banda de rock que executa a trilha sonora ao vivo, voz microfonada, voz em off,
etc.), muitas vezes justapostas, além de várias personas/actantes forjados à vista do
público e performados por uma única atriz. O espaço cênico é distribuído em formato
de uma “passarela”, em quais laterais se encontra o público acomodado em
71
arquibancadas. Na extrema direita do espaço está a banda (atrás de um telão de voil
branco) e na extrema esquerda outro voil branco, que durante a peça recebe
diversas projeções de vídeos e câmera, além de uma cena que acontece por detrás
dele. No meio da cena, sobre um imenso linóleo branco, a atriz performa os seres
ficcionais que habitam o espaço. O público entra enquanto o primeiro quadro se
desenrola: a atriz, no escuro, balbucia palavras e frases por vezes ininteligíveis,
ampliando crescentemente o volume e intensidade da voz. Antes de entrar no teatro,
o blico havia assistido ao prólogo da peça: no foyer, uma televisão com uma
tela de 29 polegadas apresenta o vídeo de um homem que se arruma para sair de
casa. Quando ele cumpre seu trajeto até o teatro a imagem cede lugar a um texto de
advertência sobre a ficcionalidade do espaço e dos acontecimentos que ali se
desenrolarão, ao vivo, sem edição. A auto-referencialidade dos signos procura um
espaço crítico frente ao espectador.
No decorrer dos quadros do espetáculo, desenvolve-se um circuito repetitivo
de depoimentos episódicos, memórias (do passado e de futuros possíveis) e
sensações das situações relatadas pelas personas que a atriz performa, que são o
múltiplo de uma mesma história e se repetem nas situações de desencontro,
ausência e incomunicabilidade, que todo o texto é direcionado para uma segunda
pessoa, que por estar ausente, tem seu espaço simbólico ocupado pelo público, que
contracena sem réplicas com a atriz, enquanto ouve a sempre presente referência a
uma terceira pessoa, que também não está.
As múltiplas vozes femininas detentoras desse triângulo amoroso irrealizável
refletem a dilaceração do sujeito nas relações na era da cultura midiática e digital. A
esse respeito, Lúcia Santaella diz:
A emergência da cultura digital e seus sistemas de comunicação mediados
eletronicamente transformam o modo como pensamos o sujeito,
prometendo também alterar a forma da sociedade. Essa cultura promove o
indivíduo como uma identidade instável, como um processo contínuo de
formação de múltiplas identidades, instaurando formações sociais que o
podem mais ser chamadas de modernas, mas pós-modernas. (2004: 126-
127)
Podemos entender as ltiplas personas de Smoked Love como fragmentos
de um mesmo sujeito, identidades móveis, estilhaços do self enquanto material
dramatúrgico da performer. E o “eu” dividido em identidades flutuantes e alteridades
simuladas experiência também no espetáculo os elementos midiáticos, precursores
72
desta dilaceração, quando efetiva a virtualização das relações nos momentos de
contracena com vídeos no espetáculo:
Os termos ‘realidade virtual’ e ‘tempo real’ atestam a força das novas mídias
na constituição de uma cultura de simulação. As mediações se tornaram tão
intensas que tudo que é mediado não pode fingir não estar afetado. A
cultura é crescentemente simulacional no sentido de que a mídia sempre
transforma aquilo de que ela trata, embaralhando identidades e
referencialidades. Na nova idade da mídia, a realidade se tornou múltipla. O
efeito das mídias, tais como internet e realidade virtual entre outras, é
potencializar as comunicações descentralizadas e multiplicar os tipos de
realidade que encontramos na sociedade. Toda a variedade de práticas
inclusas na comunicação via redes correio eletrônico, serviços de
mensagens, videoconferência etc. – constituem um sujeito múltiplo, instável,
mutável, difuso e fragmentado, enfim, uma constituição inacabada, sempre
em projeto (...). (SANTAELLA, 2004: 128)
Smoked Love procura relacionar em sua estrutura dramatúrgica mudanças e
impactos identificáveis na sociedade pós-moderna, que se refletiram tão logo nas
artes e nos processos criativos da segunda metade do século XX, como uma
possível resposta (às vezes provocativa) aos estímulos das novas relações sociais:
De acordo com os teóricos da pós-modernidade (...), na década de 60, a
arte moderna, crepuscular, cedia terreno para outros tipos de criação,
dentro de novos princípios que são chamados de pós-modernos. Ora, se há
uma face proeminente nesses princípios, essa é a face das misturas,
passagens, hibridações entre artes e entre imagens (...). (SANTAELLA,
2004: 137)
No teatro, segundo a hipótese de Lehmann, a influência das mídias teria sido
ainda mais drástica, promovendo uma evidente alteração estrutural quando desloca
para si e realiza mais eficientemente a reprodução da ‘realidade’ na simulação
ficcional. Por isso o autor renomeia a produção teatral construída sob esses novos
parâmetros semiológicos de pós-dramática:
Não é por acaso que, simultaneamente à aparição e à ampliação de uma
civilização midiática – simulação de realidade, interação tecnológica -, o
teatro até então essencialmente ‘dramático’ se submete à mudança
estrutural descrita neste estudo. O predomínio do drama e da ilusão migra
para as mídias, enquanto a atualidade da representação se torna o novo
traço dominante do teatro. Evidencia-se que a chance do teatro pós-
dramático não é a imitação da estética das mídias nem a simulação, mas o
real e a reflexão. Como ‘maquina de imagem’, sua possibilidade especifica
de reprodução da realidade, apesar de todas as ampliações possíveis,
permanece radicalmente limitada. Como discurso, em contrapartida, ele
realiza um procedimento insubstituível, que também lhe permite ignorar e
superar os limites que o cinema e as mídias revelam. (2007: 371)
73
Essa “usurpação sintica”, todavia, acabou por estimular na produção teatral
a valorização de uma característica essencial ao teatro: a ocupação de um mesmo
tempo-espaço pelos corpos do ator e do espectador, um tempo-espaço de
“mortalidade”, pois irreproduzível porque já findo a cada instante:
Se o cinema tomou muito do teatro a ficção dos acontecimentos, pode
ser certo também que favoreceu mais do que nunca a possibilidade para a
cena, não a da ficção dos sentimentos, senão da contínua celebração da
verdade e isto entre outras razões pela característica que constitui a
essência do teatral, isto é, sua simultaneidade com o tempo real da
existência no momento em que se a extravagante situação do
representado.
19
(MOLINA, 1995:14).
A simultaneidade da vida que transcorre e a vida que se tenta forjar autêntica
de sentidos no palco evidencia a indelebilidade das informações apresentadas
(imagens, texto verbal, etc.) em face da efemeridade dos acontecimentos suscitados
pelo corpo.
Por isso, em Smoked Love, buscamos evidenciar o tempo-espaço de
compartilhamento - sobretudo de sensações - com o público, nas diversas
atmosferas que se apresentam como referências de uma mesma história, que se
repete, assim como as informações já sabidas pelo público também se repetem, em
outros “corpos”.
A esse respeito, Lehmann discorre:
Ocorre porém que a estrutura de comunicação do teatro não tem seu centro
no fluxo de informações, mas em um outro tipo de significação, que inclui a
morte. A informação está fora da morte, para além da experiência do tempo.
o teatro, na medida em que nele o emissor e o receptor envelhecem
juntos, é uma espécie de ‘insinuação da mortalidade’ no sentido da
observação de Heiner Müller de que o ‘moribundo em potencial’ constitui a
especificidade do teatro. [...] Em contrapartida, na medida em que o teatro é
um tempo-espaço comum de mortalidade, ele formula como arte
performativa a necessidade de lidar com a morte, portanto com a vitalidade
da vida. (LEHMANN, 2007: 371-372)
Óscar Bernal também reitera essa característica inexorável do teatro, que o
_______________________
19
“Si el cine se arrebató hace ya mucho al teatro la ficción de los hechos, puede que sea también
cierto que favoreció más que nunca la possibilidad para la escena, no ya de la ficción de los
sentimientos, sino de la continua celebración de la verdad y esto entre otras razones por la
característica que constituye la esencia de lo teatral, esto es, su simultaneidad com el tiempo real de
la existencia em el momento em que se da la extravagante situación de lo representado.” Tradução
Nossa.
74
diferencia enquanto linguagem e reforça seu impacto perante o público
contemporâneo e midiatizado, destacando a relação de ausência que
estabelecemos com as imagens:
Este eixo (presença-ausência) não somente delimita um traço essencial da
relação da cena com a imagem midiatizada, senão que ao mesmo tempo
aponta a diferença que faz com que o teatro siga sendo teatro: a relação
ator-espectador em um espaço e um tempo compartilhados por ambos.
(BERNAL, 2008: 181)
As contracenas com projeções de gravações em vídeo em Smoked Love, em
dois momentos - com e sem réplicas da performer da cena para a persona da tela
(outra atriz) -, criam uma instância mnemônica que reforçam a presença da atriz em
cena, que na possibilidade da eterna repetição da imagem, finda em si mesma,
apenas o corpo presente poderia responder de maneira renovada, pois indecifrável e
inesgotável em toda a profundeza do ser:
Os objetos materiais da cena e sobretudo o corpo do ator despertam no
público emoções menos ilusórias, pois se trata de realidades em um tempo
presente compartilhado com o espectador, mais intransitivas em seu poder
de evocação, por isso também menos tranqüilizadoras, e talvez em alguns
casos mais monótonas ao ter menos capacidade de engano. (BERNAL,
2008: 182)
André Bázin (2006: 24) preconizara já na década de 1960 o espaço de
ausência do corpo, trazido pela fotografia, e consequentemente pelo cinema: “Todas
as artes estão fundadas na presença do homem; somente na fotografia gozamos de
sua ausência”
20
.
A ausência do corpo que age pode se configurar como a possibilidade de
evitar a aflição das emoções e dos sentidos, de poder escolher ou manipular a
“realidade” que se fabrica na relação entre a obra e o espectador.
A presença, então, de um corpo vivo, atuante, e de imagens gravadas em um
mesmo tempo-espaço de representação cria um jogo de tensões que se refletem no
espectador, na medida em que este divide seu olhar entre o ator que performa no
instante presente e a imagem que reproduz um momento do passado, que agora
está ausente, ou seja, não está.
__________________________
20“
Todas las artes están fundadas en la presencia del hombre; tan sólo en la fotografía gozamos de su
ausencia”. Tradução Nossa.
75
Entretanto, Bernal (2008: 182) chama a atenção para um aspecto importante
da atuação:
O signo cênico remete também a uma ausência (o ator faz como se fosse
Hamlet, que na verdade não está ali), mas conta com uma importante
presença: o significante sim está ali, de forma física, na atitude performativa,
e não apenas como projeção de luzes.
O ator se configura, deste modo, no significante de seu discurso, que pode
ser, como no exemplo citado por Bernal, uma personagem/persona estruturada fora
do ator, ou um fragmento do seu próprio self performado no palco, como em
Smoked Love, onde a atriz expõe fraturas de sua própria identidade na construção
dramatúrgica e atoral.
De acordo com Lehmann, a realidade da vida nunca estaria presente em
cena, pois seria irreproduzível, e representável apenas através de uma interpolação,
que o teatro em si encerraria apenas a possibilidade de executar sua
representabilidade, como elemento inerente a si mesmo na arte performativa. Uma
arte dos indícios:
Percebemos então que as mídias, além de terem gerado mudanças
estruturais acentuadas nas experimentações teatrais da contemporaneidade,
impulsionaram a re-descoberta dos signos da encenação, e dentre eles o ator,
enquanto elementos iminentemente significantes, e a tensão dialógica criada pelo
confrontamento entre corpo-presente (de significante, mas ausente de significado
em si) e imagem-ausente contaminam, por vezes, as relações dos demais signos do
espetáculo, e podem criar um sistema comunicacional por vezes dissonante e
polifônico, como um hipertexto midiático, como veremos a seguir na descrição
detalhada das experimentações multimídia em Smoked Love.
O hibridismo pode ser entendido como uma das características mais
marcantes da arte pós-moderna, presente nas investigações que abandonam as
fronteiras da conceituação tradicional das linguagens artísticas, e que se encontram,
assim, em limiares dissolutos de categorização. Santaella (2004: 135), porém,
credita o aspecto híbrido à própria natureza de algumas artes:
muitas artes que são híbridas pela própria natureza: teatro, ópera,
performance são as mais evidentes. Híbridas, neste contexto, significa
linguagens e meios que se misturam, compondo um todo mesclado e
76
interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma
sintaxe integrada.
Essa “sintaxe integrada” é duplamente dialógica - para utilizar o conceito de
Bakhtin – pois se refere, em primeiro plano, aos discursos de cada linguagem
artística e, em segundo plano, ao novo discurso formado pelo agrupamento dessas
linguagens.
Em Smoked Love percebemos a presença de várias linguagens artísticas,
algumas, segundo Santaella, mais evidentes e inerentes ao teatro, e outras,
suponho, mais pertencedoras a um limiar fronteiriço de categorização artística.
Nesse limiar, poderíamos indicar no espetáculo três elementos exponenciais:
a banda, que se apresenta nos moldes de um verdadeiro show de rock onírico
(efeito esse gerado pelo telão de voil transparente que se encontra a frente do seu
palco, pela luz e por sua performance), as mídias (vídeo gravado e projeção
simultânea, microfone, áudio com off e trilha ao vivo) e, por fim, o aspecto
performático da atuação.
Tanto a cenografia, a iluminação, os figurinos, os adereços de cena e o texto
quanto a atuação, a banda e as mídias dividem a cena, por vezes simultaneamente,
nos 10 quadros do espetáculo. Esses elementos são muitas vezes justapostos,
apresentando em si discursos divergentes, dissonantes, polifônicos, no conceito de
Bakhtin.
A polifonia dos signos sobrepostos provoca um questionamento dos sentidos
criados por cada signo individualmente, como preconizava Heiner Müller, apesar do
dramaturgo fazer alusão a apenas dois elementos constituintes do espetáculo
dramaturgia e corpo, em suas possibilidades de oposição:
Penso que o teatro se faz mais vivo quando um elemento questiona sempre
o outro. O movimento põe em questionamento a imobilidade, e a
imobilidade o movimento. O texto questiona o silêncio, e o silêncio o texto;
esta é certamente a importante função política do teatro.
Independentemente deposições ideológicas ou algo parecido.
21
(MÜLLER,
1999: 93)
__________________________
21
“Pienso que el teatro se hace más vivo cuando um elemento cuestiona siempre al outro. El
movimiento pone em cuestionamiento la inmovilidad, y la inmovilidad al movimiento. El texto
cuestiona el silencio, y el silencio al texto; esta es ciertamente la importante función política del teatro.
Independientemente de posiciones ideológicas o algo parecido.” Tradução Nossa.
77
Ampliando o discurso de Müller para a relação sintática dos signos do
espetáculo, podemos dizer que essa relação polifônica estabelecida em Smoked
Love impulsiona o espectador a uma postura crítica perante o que vê:
Hoje, devido à emancipação progressiva de seus diferentes componentes,
ele [o teatro] se abre para uma ativação do espectador e renova assim, com
isso que é talvez a vocação mesma do teatro: não de figurar um texto ou de
organizar um espetáculo, mas de ser uma crítica em ato da significação. O
jogo reencontra ai todo o seu poder. Tanto quanto construção, a
teatralidade é a interrogação do sentido.
22
(DORT, 1988).
As relações polifônicas que se estabelecem entre os signos que se contestam
no espetáculo criam um jogo hipertextual que revela a teatralidade em Smoked
Love: tensões que estabelecem a interrogação do sentido, como postula Dort.
Na dramaturgia e na atuação, esse questionamento se apresenta também
constante. A dramaturgia, fragmentada, se desenvolve a partir de um tema que se
repete em todos os quadros, por vezes contradizendo-se. E a atuação se desenrola
através dos desdobramentos do self da atriz: dramaturgia e atuação tiveram como
materiais para sua construção experiências pessoais, vividas, vistas ou inventadas
em seus desfechos, mas, sobretudo, experienciadas, internalizadas.
Esta estrutura compositiva pode se apresentar em formato de auto-
representação, conforme indica Lehmann (2007: 380) a cerca de Totalmente de
perto [Ganz nah dran], performance de Stefan Pucher realizada em Frankfurt junto
com o grupo inglês Gob Squad, em 1996: “Grande parte da performance consistia
em auto-representação dos atores, em que a parcela dos elementos biográficos
‘reais’ era difícil de descobrir”. Seria este recurso um fator de criação de
autenticidade para a representação?
De qualquer modo, Smoked Love procura um espaço de experiências
comuns, interpessoais, tentando transformar a representação em um momento de
experiência coletiva, do ato performático e das sensações ativadas:
[...] a recepção de dados e informações disponíveis coletivamente não
constitui uma experiência coletiva. Esta não acontece somente por meio de
_________________________
22
“Aujourd’hui, par l’émancipation progressive de ses différentes composantes, elle [le théâtre]
s’ouvre sur une activation du spectateur et renoue ainsi, avec ce qui est peut’être la vocation même
du théâtre: non de figurer um texte ou d’organiser um spetacle, mais d’être une critique en acte de la
signification. Le jeu y retrouve tout son pouvoir. Autant que construction, la théâtralité est interrogation
du sens.” Tradução Nossa.
78
um repertorio comum de fatos que podem ser citados coletivamente, de
gestos conhecidos pela coletividade, mas apenas na conjunção de histórias
coletivas e individuais, a qual, por sua vez, está ligada a algum engajamento
que diga respeito ao sujeito da experiência em sua realidade de vida.
(LEHMANN, 2007: 367)
Em Smoked Love a música pop, a tele-chamada, o recorte cinematográfico da
luz na cena, as mídias diversas, as situações e elementos do cotidiano pós-moderno
(Barbies, cartas, desencontros, casamentos, cultura pop, Mc Donald’s, Lucky Strike,
Audrey Hepburn, Coca-cola) dividem com o espectador um espaço de experiências,
a partir de um tema e de referências presentes no cotidiano individualizante e
subjetivo de cada um, tateando um espaço de intersubjetividade para a
concretização de uma experiência coletivizante, contraditoriamente à temática das
relações virtualizadas.
Tentaremos, a seguir, fazer uma breve descrição e análise dos quadros do
espetáculo, procurando perceber mais detalhadamente as relações semiológicas
nesse espaço de mortalidade e criticidade que a representação forja.
O PRÓLOGO: No foyer do teatro, o público assiste numa TV 29 polegadas a um
vídeo com edição rápida. Ele apresenta um homem que, despertado pelo celular, se
arruma para sair de casa: levanta da rede, onde estava deitado, toma banho, escova
os dentes, veste as roupas, procura as chaves do carro. Ações corriqueiras que na
edição podem parecer até sem sentido. O rosto nunca é revelado, apenas close ups
em partes do corpo, ou de costas. Ele dirige pela cidade, fumando um Lucky Strike,
e quando pára o carro, encontra várias pessoas, das quais se vêem os pés e os
folders do espetáculo que elas seguram na mão: Smoked Love. Durante todo o
tempo, a trilha que se ouve é a mesma que iniciou no celular-despertador: Ça
m’enerve, do francês Helmut Fritz.
A imagem cede então lugar a um texto
provocativo: “Vocês entrarão agora num espaço ficcional. Algumas situações
presentes neste espetáculo poderão lhes causar imediata identificação, pois
trabalharemos com material humano. Ou não. Sugerimos que desliguem seus
celulares e não comam durante a peça, porque aqui não tem edição, as coisas
acontecem ao vivo, como na vida real. Desejamos a todos um ótimo espetáculo. E
que se amem uns aos outros assim como alguém já lhes amou. Talvez eu”.
A auto-referencialidade e metalinguagem do vídeo e a relação contraditória
que se estabelece entre realidade X artificialidade e ausência X presença, no
79
embate entre imagens e texto, funciona como um esquadrinhamento dos elementos
contraditórios, fora da lógica cotidiana, que o espectador encontrará a seguir, no
espetáculo. Que se poderia dizer já ter começado.
Imagem 01 - Smoked Love - Prólogo
QUADRO 01 A AMERICANA: Ao entrar no teatro e preparar-se para se
acomodar, o espectador encontra um espaço disposto em passarela, com
arquibancadas muito próximas à cena, e de onde durante todo o período de
representação se defrontará com o olhar de outros espectadores, sentados na
arquibancada situada ao lado oposto da sua. Logo se percebe o som da voz da atriz,
em uma das extremidades do palco, que sussurra ao microfone um texto ininteligível
a princípio, ganhando aos poucos volume e intensidade, até explodir pelo espaço,
antes de sua saída de cena. A luz recorta o corpo da atriz, editando os ângulos de
visão do espectador, como num filme (close ups, plano aberto, plano americano,
etc.). Na saída da atriz, a banda explode sua performance, e preenche o espaço
com o refrão de Doesn’t remind me, da banda americana Audioslave.
A presença de outras linguagens artísticas e também referências a outras
linguagens que não unicamente a teatral, como a banda de rock, a luz editando os
ângulos de uma visão cinematográfica do espectador e o microfone, que ao mesmo
tempo reforça a presença da atriz e revela a mediação de seu discurso textual,
provocam um hibridismo semiológico que desconstrói a lógica da representação
tradicional. Em relação ao contato solúvel entre as artes, Bernal (2008:180)
discorre:
80
Tal contato cada vez mais fluído permitiu a cada arte entender seus
recursos específicos desde as outras e desenvolvê-las graças ao diálogo
com outras formas de expressão; o teatro sonhando com ser cinema, o
cinema com ser teatro, a televisão cada vez mais teatral ou a cena cada vez
mais televisiva são fenômenos que enriquecem cada um destes meios
desde um olhar externo, ou em outras palavras: entender o teatro desde o
que não é teatro, desde o cinema, a televisão, o vídeo ou Internet, se
reverteu em um enriquecimento da maneira de fazer e conceber o processo
cênico, sendo em muitos casos esse tipo de prática limiares, abertas a seu
questionamento desde um olhar não especificamente cênico, mas que têm
dado lugar às peças de maior interesse.
Imagem 02 - Smoked Love - quadro 01 – A americana
QUADRO 02: TRISTEZA NÃO TEM FIM, FELICIDADE SIM: Após a apoteose
sonora do quadro anterior, surge um texto em off, como um pensamento da persona
que habita, imóvel, o palco. Na sequência, a banda inicia a música triste, dos
florianopolitanos Emílio Pagotto e Sílvio Mansani, composta para crianças, mas
agora numa versão pop rock dançante. A atriz, com um grande copo de coca-cola,
dança, se insinua, senta no colo do público. A euforia, aos poucos, cede lugar para a
imobilidade anterior, enquanto a curta música se repete ciclicamente.
Neste quadro, a sica, dissonante da ação media o discurso da performer,
em uma atitude contraditória, tanto quanto as reações diversas que surgem da
platéia ao perceber rompido o limiar que divide espaço cênico e espaço teatral (no
caso, o espaço do público).
81
Imagem 03 - Smoked Love - quadro 02 – Tristeza não tem fim, felicidade sim
QUADRO 03 - VÍDEO-CHAMADA: A atriz supera a imobilidade para atender ao
telefone celular - guardado no vestido (entre os seios) -, que toca insistentemente
uma melodia deslocada dos modismos musicais atuais. Ao atender, é simulada a
projeção de uma suposta vídeo-chamada no telão, em baixa resolução de som e
imagem. Uma mulher aparece, relatando fragmentos do triângulo amoroso tema da
peça. A atriz reage ao vídeo, sem réplicas e sem encarar mais o público, mas como
se estas fossem possíveis memórias (reais ou inventadas) dela mesma. Ao fim da
projeção, inquisidor dos sentidos, resta o público, com quem ela arrisca
contracenar, até desviar a atenção novamente para o celular, e contracenar com
este.
Neste quadro, põe-se em xeque a imediaticidade e a veracidade da projeção
da suposta vídeo-chamada, que simula uma autenticidade de uso de tecnologia
comunicacional com transmissão em tempo real. O deslocamento entre contracena
com imagem, público e objeto (telefone) é rápido, mudando quase que
instantaneamente, com uma pretensiosa naturalidade, até que a atriz sai de cena
novamente.
82
Imagem 04 - Smoked Love - quadro 03 – Vídeo-chamada
QUADRO 04AT THE SUPERMARKET: A atriz volta à cena com um novo figurino
em mãos, além de elementos de cenário dos quais desde antes faz a troca
constante entre quadros e enquanto realiza a mudança de roupa em cena, a
banda toca um tema instrumental, inspirado na introdução da música Aerials, da
banda americana System of a Down. Simultaneamente, é projetado no telão um
vídeo-documentário sem áudio, legendado em português. As imagens revelam, por
partes, o corpo nu de uma mulher (a mesma atriz da vídeo-chamada), que faz
compras em um supermercado. Durante todo o vídeo não reações
extraordinárias das pessoas que ela encontra no percurso. O nu é revelado
totalmente apenas no último take: a mulher desce as escadas rolantes, e vai
embora, enquanto cenas corriqueiras se desenrolam em segundo plano: um casal
que sobe as escadas brigando, pessoas que passam com compras, uma pessoa
que se dirige ao banheiro, etc. O texto projetado no vídeo, ocupando o lugar das
legendas, discursa sobre as controvérsias do consumismo capitalista, relacionando
metaforicamente mercadorias, sucesso comercial e sexualidade.
Neste quadro, as imagens projetadas instauram um possível território de fuga
da realidade, de desconstrução de padrões sociais - éticos e morais. Um espaço de
83
escape das convenções que se simulam habituais, mas que vistas criticamente se
revelam castradoras:
O teatro midiático coloca a seguinte questão para o espectador: diante da
opção de ‘absorver’ algo real ou algo imaginário, porque a imagem é o que
mais lhe fascina? O que afinal constitui a atração mágica que conduz o
olhar para a imagem? Uma resposta possível é que a imagem é extraviada
da vida real, que à aparência da imagem se prende algo de libertação que
prazer ao olhar. A imagem liberta o desejo das penosas ‘outras
circunstancias’ dos corpos reais, elevando-os a sonhos. (LEHMANN, 2007:
397)
Imagem 05 - Smoked Love - quadro 04 – At the supermarket
QUADRO 05 AS CARTAS: A atriz posiciona-se no centro do palco, sentada em
uma banqueta, numa luz a pino. Parte gradativamente da imobilidade para ações
quase frenéticas relacionadas ao ato de se embelezar: arruma os cabelos, passa
compacto e batom. O ritmo das ações diminui e ela passa então a esperar,
procurando por todos os pontos de trânsito entre cena e bastidores algo/ alguém
ignorado pelo público. Aos poucos sua atenção volta-se para a bolsa que está em
seu colo. Encontra nela cartas (papéis virgens levemente amassados) e resolve “lê-
las” contra a pouca luz. Após um relato mnemônico, ela joga as cartas no chão, e ao
som de Umbrella, regravada pela banda italiana Vanilla Sky e tocada ao vivo pela
banda do espetáculo, transforma o palco em uma sessão de quase psicodrama,
onde instiga o público também a amassar as cartas, transformá-las em bolas de
papel e jogá-las em uma lixeira, posicionada no centro do palco. Cada arremesso
acertado parece provocar na atriz a felicidade de uma cesta de três pontos na final
84
de um campeonato de basquete; e aos poucos o público se sente entusiasmado
com o jogo também. A cena acaba quando a atriz e o blico transformaram
todas as cartas em bolas de papel jogadas no lixo.
A música, em contradição semântica com o texto, faz parte do ritual de
expurgo afetivo realizado pela persona. A cena, que a princípio busca um apelo
emocional, termina por transformar-se em uma arena de “purificação” afetiva:
renúncia do papel de mártir sofredora por um amor não correspondido e superação
da subjugação interpessoal.
Imagem 06 - Smoked Love - quadro 05 – As cartas
QUADRO 06 VINGANÇA CONTRA A PSICANÁLISE: A atriz posiciona-se em
cena, tendo nas mãos dois bonecos ícones do ideal de beleza e felicidade da cultura
pós-moderna: o casal Barbie e Ken. Ambos estão apoiados sobre um armário de
altura média. Neste armário, a atriz manipula-os, cantarolando o refrão de Don’t
Worry, Be Happy, de Bobby McFerrin. Os bonecos realizam três tentativas de
aproximação denotativamente sexuais, sempre frustradas pelas atitudes
descordenadas/ desajeitadas da boneca, que cai repetidamente sobre o boneco. Na
terceira tentativa de aproximação mal sucedida, o boneco extravasa e “grita”: “Puta
que o pariu, hein?!”. A boneca fica triste, chora irritantemente, enquanto o boneco
tenta acalmá-la. Por fim, ela surta e se joga do armário em direção ao chão. O
boneco expressa sua confusão com um lugar-comum das interjeições americanas:
Ow-ow. Algo errado aconteceu. A cena termina com a atriz pronunciando a frase: “A
85
psicanálise destrói a confiança mútua que existe em um relacionamento”. A cena
entra em blackout enquanto a banda, que assovia a mesma canção, toma a cena,
destacada pela luz.
A cena apresenta de forma irônica a instantaneidade das relações amorosas
atuais: o ritmo acelerado que tomou conta da sociedade da informação torna
descartáveis as relações que não se mostram eficientes em curto prazo, no sentido
de satisfazer as necessidades narcisistas e egoístas do sujeito. Qualquer
possibilidade de ver além da “imagem”, da aparência socialmente construída do
outro, pode se apresentar como um fator de risco, pois o sujeito se depararia
novamente com os conflitos inexoráveis ao ser humano. E dentre eles, o quase
aposentado livre-arbítrio.
l
Imagem 07 - Smoked Love - quadro 06 – Vingança contra a psicanálise
QUADRO 07 O CINEMINHA: A atriz posiciona-se em um dos cantos de saída de
cena do espaço, com a câmera filmadora sobre um balcão. Senta-se em frente dela,
e logo a imagem de seu rosto aparece projetada no telão ao seu lado. No decorrer
do quadro, a maioria do público vê em cena apenas as costas da atriz, relacionando-
se com a câmera como se fosse um espelho, enquanto o telão projeta a imagem de
86
seu rosto agigantado na tela. A cena encerra-se com a entrada da atriz dos dois
vídeos anteriores (vídeo-chamada e mercado), transversalizando os espaços de
representação: ela corta a cena que está sendo projetada em tempo real, e um
pequeno desentendimento se instaura entre as duas. De repente, os músicos saem
de seu breve espaço de esquecimento para atravessarem a cena: negam a situação
estabelecida, tomam a cena e se retiram do espaço cênico, pelo mesmo recuo de
cena de onde o público entrou.
A técnica midiática utilizada neste quadro está declaradamente revelada ao
público: a imagem do rosto da atriz não sofre edição antes de ser projetado, nem se
pretende ocultar o artifício tecnológico da mera filmadora, que captura as
imagens. Mais uma vez o espetáculo se mostra metalingüístico e auto-referencial,
levando em consideração uma possível aproximação estética do que Lehmann
(2007: 383) descreve a respeito do Wooster Group em The hairy Ape, de Eugene
O’Neill:
É lógico, por isso, que a técnica de vídeo revela a tendência de ser usada
para a co-presença de imagem de vídeo e de ator vivo, funcionando de
maneira bem geral como auto-referencialidade do teatro tecnicamente
transmitida.
A projeção do rosto da atriz na tela compreende uma ação paradoxalmente
irreproduzível, porque acontece em tempo real, simultaneamente à ação ao vivo:
Por um lado, o teatro ‘vivo’ é posto em suspensão e passa a ser uma ilusão,
um efeito de uma máquina de efeitos. Por outro lado, experimenta-se na
atmosfera intensa e vital do trabalho uma tendência inversa: a tecnologia
das mídias é teatralizada. O mecânico, a reprodução e a reprodutibilidade
se tornam material de representação e devem servir da melhor maneira
possível à atualidade do teatro, à representação, à vida. (LEHMANN, 2007:
384)
Aqui as imagens evidenciam paradoxalmente o espaço de mortalidade do
teatro, citado por Lehmann e Müller, dividido agora entre performer ao vivo,
performer-imagem e espectador, subtraindo ainda mais a possibilidade de uma
unidade semântica dos signos, que se revelam cada vez mais fraturados no decorrer
dos quadros, abruptamente encerrados, sem continuidade.
87
Imagem 08 - Smoked Love - quadro 07 – O cineminha
QUADRO 08 O MENINO: Três corredores de luz desenham o espaço quase-
retângulo que será percorrido pela atriz. Como personificação de uma personagem
feminina do mangá japonês, a atriz narra a breve história do assassinato de um
peixe de estimação, com movimentos que remetem a golpes das artes marciais
nipônicas. O quadro finaliza com a atriz assumindo em seu espaço cênico o vocal da
banda, que executa Tokyo Mon Amour, numa nova roupagem da versão
regravada da música pela franco-germânica Stereo Total.
Essa nova tentativa de transversalidade no espetáculo procura apresentar
uma nova sintaxe polifônica dos signos. A banda em nova formação, dividida agora
em dois palcos, insinua uma fratura que se quer corrigir, mas não consegue. A atriz
canta em cena como num sonho, onde a melodia poderia surgir de outros espaços
que não o que se está, ou se conhece. A relação entre cena-texto e cena-canto se
estabelece de maneira alegórica e irônica.
88
Imagem 09 - Smoked Love - quadro 08 – O menino
QUADRO 09 O ENCONTRO: A atriz se posiciona no centro de seu espaço de
atuação. Despe-se, ficando apenas com um singelo pijama que estava por debaixo
de sua roupa. Abre o armário baixo à sua frente e traz à cena, um a um, os
equipamentos que utilizará na próxima ação: um copo com água, uma toalha de
rosto, uma escova e um creme dental. Mecanicamente, em um ritmo frenético e
autômato, inicia a escovação da dentição. Enxágua a boca e cospe no copo.
Simultaneamente a suas ações, na tela de voil estava sendo projetada a imagem
da outra atriz, a dos vídeos anteriores, sentada em um bar ou lanchonete,
esperando. A performer aumenta o ritmo das ações no momento em que percebe a
presença da imagem projetada, e estabelece uma espécie de competição com ela. A
performer profere uma primeira fala do texto, que aos poucos é dividido com a
imagem em vídeo, criando um possível diálogo ou ainda, um desdobramento do
sujeito do discurso. A cena finaliza com a entrada da banda em seu palco lateral, em
atitude performática, e a atriz entregando para o público alguns pirulitos em formato
de coração, que estavam guardados em uma caixa do armário, além de terem
aparecido na gravação do vídeo também. A música tocada é Inspiração, de Cleiton
89
Jacobs e Ronaldo Santiago, da banda joinvilense Fairans. A atriz deixa a cena
juntamente com a imagem vazia de corpos do bar.
A contracena que se desenvolve entre atriz e imagem de vídeo acentua a
virtualização das relações relatadas, e agora performadas, na divisão do tempo-
espaço real dos corpos e do tempo-espaço forjado pelo vídeo. Uma reflexão
iminente é a infinidade de possibilidades do corpo real em relação à imagem
gravada, eterna, reproduzível e imutável, por isso completa em si, enquanto o corpo
se comprova cada vez mais ilimitado de possibilidades de significância e sentidos,
mas inacessível àquela “realidade” completa da imagem, porque transforma sua
limitada significância em plena satisfação.
Imagem 10 - Smoked Love - quadro 09 – O encontro
QUADRO 10 O CASAMENTO: A cena começa primeiramente atrás do telão de
projeções, onde a luz constrói uma imagem onírica: a atriz usa um secador de
cabelos, em movimentos inicialmente sensuais posteriormente repetitivos e
frenéticos, em seu tema nupcial. A segunda parte da cena acontece no palco
central, onde a atriz entra com um velho vestido de noiva e um par de rollers. Aos
poucos ela veste o vestido e calça os patins, finalizando a cena numa demonstração
eternamente fracassada de sua performance, pois cai repetidas vezes, proferindo
repetidamente trechos selecionados do texto dito anteriormente, alternando
intensidade e velocidade nas ações (corporais: patinar e cair; e vocais), que
90
transcorrem ao som da sica Eu te escolhi, uma verdadeira paródia da música
Serenade da banda gaúcha Reação em Cadeia, na versão criada pela banda
Fairans, cuja única letra, que se repete inúmeras vezes é: “Eu te escolhi, mas você
não me escolheu”. A atriz sai de cena e a banda finaliza seu sarcástico show.
Neste quadro, as ações, o texto e a letra da música se repetem
constantemente, numa versão alegórica do fracasso afetivo, com alusão ao mito de
Sísifo e seu eterno retorno nietzschiniano ao início de tudo: em Smoked Love é
impossível se relacionar. A performance enérgica da banda assume ares do
Showbiz (ou Show Busness) da cultura pop: o conteúdo semântico muitas vezes não
interessa tanto quanto a performance do artista. A dor e o sofrimento alheio viram
matéria comercial e entretenimento de fácil digestão. O show precisa continuar?
Finalmente, o que se está levando à cena não é uma imagem midiatizada,
mas sim o olhar do espectador que corresponde a dito suporte midiático, o
olhar cinematográfico, televisivo, fragmentado ou interativo construído por
cada meio. (...). Tudo que ocupa um lugar na cena se reveste com seu
manto de ilusão e engano, jogo e encenação, mas também assume a carga
de realidade e ação imediatas, devolvendo ao sujeito sua responsabilidade
política ao situar novamente a imagem no tempo e no espaço de sua
produção, o que es oculto atrás de sua aparência acabada e perfeita.
Deste modo, essas imagens, que fora da cena resultam verossímeis, agora,
em contraste com a realidade imediata do corpo do ator, se revelam como
resultado de um processo químico ou eletrônico, recebido por um olhar
treinado para percebê-lo como realidade, resultado de uma montagem
movida por interesses econômicos e políticos. (BERNAL, 2008: 187-188)
91
Imagem 11 - Smoked Love - quadro 10 – O casamento
Analisando o termo mídia enquanto plural do termo latino medium (aquilo que
está no meio, aquilo que media), podemos ampliar a interpretação do termo mídias
em relação à encenação para tudo o que se encontra entre a cena e o público,
mediando a comunicação: a imagem de vídeo e seus desdobramentos técnicos, o
som microfonado ou em playback, os textos e hipertextos criados pela justaposição
de diversos signos na cena, a própria dramaturgia, etc.
Partindo deste pressuposto, amplio o alcance do discurso de Bernal de
imagens para mídias, na tentativa de reiterar o papel fundamental que estas
exercem enquanto ativadoras da criticidade no espectador, ao mesmo tempo em
que procuram dividir um tempo-espaço polifônico e multissensorial em Smoked
Love.
Os meios que interpolam o discurso, muitas vezes justapostos em
dissonância, procuram um espaço para além do comodismo intelectual e da
subjugação social aos padrões estabelecidos em nossa cultura midiática, num
âmbito tanto comportamental quanto estrutural.
Procuramos, com Smoked Love, dividir um tempo-espaço comum de
experiências com o espectador: temas do cotidiano, cultural, social e interpessoal,
92
repetidos na semiodiversidade da encenação, numa antinomia por vezes irreal, que
busca perceber no “absurdo” da cena o absurdo da vida automatizada.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As manifestações teatrais da contemporaneidade se desenvolvem com ampla
diversidade de estilos e tendências, como pudemos ver em exemplos citados no
decorrer desta dissertação. Do mesmo modo, o trabalho do ator contemporâneo se
apresenta diverso: são muitas as investigações e pesquisas práticas empreendidas
sobre as possibilidades de atuação na cena atual.
Em algumas propostas de encenação que não restringem o trabalho do ator à
representação mimética de ação e personagem, percebemos procedimentos
reincidentes para a atuação, que buscamos identificar e investigar. Sem o pretenso
objetivo de esgotar as proposições estéticas existentes, identificamos quatro
possíveis modalidades de atuação utilizadas por atores e grupos teatrais
contemporâneos, observando de que modo se constrói a dramaturgia do ator em
tais circunstâncias.
Deste modo, pudemos apontar características pertinentes a algumas
encenações que investigam em seus procedimentos de teatralidade e
performatividade a opsis da cena: processos semióticos que se estabelecem nas
relações entre os signos da encenação e o público, para além da mimesis de uma
ação.
Para tal, nos apoiamos significativamente em investigações de Hans-Thies
Lehmann acerca do teatro contemporâneo, nas quais o autor apresenta o conceito
de pós-drama para identificar manifestações teatrais com tais preocupações de
renovação estética.
Assim, atingimos amplamente nosso objetivo principal nesta pesquisa ao
possibilitar a reflexão dialética entre teoria e prática com a criação do espetáculo
Smoked Love, a partir de elementos considerados significativos para a investigação
de uma semiologia da encenação não-mimética e da atuação contemporânea.
Esta investigação dialética possibilitou ainda uma reflexão crítica a partir da
temática situacional do espetáculo, o amor líquido, percebido em suas diluições de
vínculos afetivos e comunicacionais na sociedade pós-moderna, que se estabelece
em uma era de profusão exacerbada das mídias.
Percebemos como principais contribuições desta pesquisa as reflexões
geradas acerca do trabalho do ator no teatro contemporâneo, bem como a
94
identificação de possíveis processos contemporâneos de construção da dramaturgia
atoral.
Também consideramos importantes as reflexões geradas sobre a cultura
midiática e a sociedade líquida, impulsionadas a partir da proposição prática desta
pesquisa, e que estabelece um diálogo direto com um elemento preponderante em
encenações contemporâneas: as mídias.
Identificamos, no decorrer desta pesquisa, muitas contradições e opiniões
divergentes a respeito da conceituação do teatro contemporâneo. A tese de
Lehmann, neste caso, pode ser entendida como mais uma tentativa de compreender
algumas transformações estéticas e semióticas em produções teatrais das últimas
décadas, que refletem, em suas construções, inquietações de sujeitos-artistas de
sociedades contemporâneas, e não necessariamente como um novo paradigma na
história do teatro.
Todavia, em seu estudo formal Lehmann restringe suas análises a produções
basicamente européias e norte-americanas, citando apenas brevemente alguns
artistas de outros continentes, o que poderia descontextualizar o confrontamento de
elementos identificados em sua análise com a produção teatral brasileira
contemporânea, por exemplo.
Porém, apesar das possibilidades de aproximação e comparação, se faz
necessário não generalizar a análise das produções teatrais da contemporaneidade
apenas pela proposta conceitual de Lehmann. Além das correntes estéticas não
serem substituídas umas pelas outras, mas sim se contaminarem e se
metamorfosearem no decorrer do tempo, as produções, mesmo imersas no
interculturalismo, ainda são glocais, para retomar o termo trazido por Ropa
21
:
globais, pelas referências interculturais, e locais, pelas raízes culturais de sua
região.
Em nossa atualidade globalizada, a antropofagia cultural (quer espontânea
por vontade de conhecer, de aprender; ou direcionada pelo mercado, pelas
mídias) nos permite reavaliar nossas próprias práticas artísticas e suas relações com
a sociedade na qual estamos inseridos. O que se experiencia se torna significativo.
Por isso, compreendemos nossa pesquisa como um diálogo entre os
impulsos criativos e a necessidade de expressão do que também nos é significativo.
______________________
23
Cf. nota de rodapé n° 11.
95
Podemos afirmar que o artista, inserido em uma sociedade específica,
imprime em suas criações pensamentos, reflexões, convicções e críticas às suas
próprias experiências sociais e individuais, e busca diferentes espaços e estratégias
para se comunicar através da arte.
Smoked Love apresenta algumas inquietações que refletem a necessidade da
atriz-pesquisadora de dialogar com o público/leitor a respeito de transformações na
sociedade e na arte contemporâneas, por vezes antropofágicas, que requerem certa
criticidade para que possamos realizar escolhas e não aceitar imposições
passivamente.
Podemos considerar tal posicionamento como uma tentativa de desalienar o
espectador/leitor das relações virtualizadas, líquidas, instantâneas da
contemporaneidade, bem como das problemáticas culturais latentes como o
consumismo exacerbado, que o espetáculo procura tanto romper com a
tradicional distância entre palco e platéia - estabelecendo uma comunicação
primária, contaminada de sensações - quanto trazer à cena ícones de nossa era
consumista através de provocações críticas.
Perante toda a mediatização que paulatinamente perpassa nossa sociedade
pós-moderna, tecnológica, nos colocando como observadores da realidade social e
não como agentes, Lehmann (2007: 426) discorre:
A luz dessa observação do declínio progressivo da reação afetiva imediata,
ganha importância crescente uma cultura dos afetos, o “treinamento“ de
uma emocionalidade não atrelada a considerações racionais prévias. o
basta apenas o Esclarecimento (aliás, mesmo no século XVIII ele foi
acompanhado pela poderosa torrente dos sentimentos). Cada vez mais,
será uma tarefa das práticas “teatrais“, no sentido mais abrangente, produzir
situações lúdicas em que a afetividade seja liberada.
Em Smoked Love procuramos viabilizar uma política dos afetos, tanto pela
constante preocupação de proximidade entre os corpos dos espectadores e da atriz,
quanto pela relação direta com o público que se estabelece na atuação.
Podemos dizer então que esse posicionamento afetivo não acontece apenas
em decorrência da temática do espetáculo, mas também pela forma como ele se
apresenta: um compartilhamento de situações e sensações com a platéia.
A política do teatro é uma política da percepção. Sua definição começa com
a advertência de que o modo da percepção não deve ser separado da
96
existência do teatro em um mundo da vida dominado pelas mídias, que
modelam maciçamente todas as percepções. (LEHMANN, 2007: 424).
Norval Baitello Jr. dialoga com este pensamento em A era da iconofagia
(2005), e enfatiza a crescente perda do vínculo entre indivíduos, que se em um
primeiro momento no processo de comunicação primária, entre os corpos, e que
cada vez é mais escassa, pois as interpolações midiáticas se proliferam nos
processos comunicacionais da atualidade.
Percebemos também, no decorrer de mais de dois anos de pesquisa teórico-
prática, que resultou nesta dissertação, que as estratégias, as linguagens, os
conceitos, enfim, os caminhos trilhados pela arte em sua constante resignificação
serão sempre múltiplos, por serem múltiplos os sujeitos-artistas das experiências
vividas na sociedade e reinventadas através da arte.
Deste modo, sem um distanciamento histórico e espacial de nosso objeto de
pesquisa, tivemos a necessidade de entendê-lo processualmente, em construção,
como uma obra aberta a leituras diversas.
Verificamos ainda com nossa pesquisa certa carência na produção de
dissertações e teses investigativas da prática do próprio pesquisador, capazes de
gerar campos de experimentação e interlocução dialética entre teoria e prática, que
julgamos de suma importância para o amadurecimento do pesquisador-artista.
E agora podemos voltar um pouco mais seguros a questão colocada por
Dénis Guénoun em seu provocativo título O Teatro é necessário?, que também nos
instigou a pesquisar as relações entre teatro e sociedade na atualidade, e,
concordando com a descrição de Lehmann (2007: 427) sobre o papel do teatro na
sociedade atual, podemos concluir que:
Na época da racionalização, do ideal de cálculo [...] cabe ao teatro o papel
de, por meio de uma estética do risco, lidar com afetos extremos, que
sempre incluem a possibilidade da dolorosa quebra do tabu. Essa quebra
ocorre quando os espectadores são expostos ao problema de reagir aquilo
que se passa diante deles de modo que não mais exista a distância segura
que pareça garantir a diferença estética entre a sala e o palco.
[...] faz parte da concepção do teatro engendrar um terror, uma violação de
sentimentos, uma desorientação que, por meio de procedimentos
supostamente amorais“, “antissociais“, “cínicos“, faça o espectador se
deparar com sua própria presença sem tirar dele o humor, o choque do
reconhecimento, a dor, a diversão, que são os motivos pelos quais nos
encontramos no teatro.
97
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ANDICE A – Espetáculo solo, construção coletiva
ANDICE B – Dramaturgia de Smoked Love
ANDICE C – Roteiros e vídeos de Smoked Love
ANDICE D – DVD com filmagem de Smoked Love
ANDICE E – CD com fotos de Smoked Love
ANDICE F – Ficha técnica de Smoked Love
ANDICE G – Materiais gráficos de Smoked Love
109
ANDICE A - Espetáculo solo, construção coletiva
O processo de criação de Smoked Love foi um processo coletivo, por ter se
tratado de uma equipe de trabalho, que foi responsável pela criação e produção de
todos os signos do espetáculo.
A montagem da peça teve duração total de 04 meses (março a junho de
2009), sendo que em período anterior, houve a elaboração de um sistema de
treinamento psicofísico da solista do espetáculo, focado no estímulo criativo e
compositivo do ator.
Inicialmente foram realizados estudos da dramaturgia escrita pela presente
pesquisadora em 2007 - ano em que o projeto começou a ser pensado -, para
definição da encenação. Tal etapa inicial contou com a participação das integrantes
da Faunos Cia Teatral, Daiane Dordete e Daniele Pamplona.
A partir do momento em que as opções estéticas e escolhas de linguagem
para a encenação estavam mais claras, novos artistas foram incluídos no processo
criativo: os músicos Cleiton Jacobs e Rafael Oliveira da banda Fairans, o sico
Roberto Fi da banda Radar 13 (ambas de Joinville), o iluminador teatral paulista
radicado em Joinville Flávio Andrade, o ilustrador e artista gráfico Nei Ramos e o
ator, diretor e videomaker Marcelo F. de Souza.
O material gráfico (Nei Ramos) e a produção dos vídeos usados no
espetáculo (Marcelo F. de Souza) foram as duas únicas criações que não tiveram
em seu processo troca direta com a criação das cenas. Nei Ramos criou toda a arte
gráfica a partir das idéias repassadas sobre a encenação e Marcelo F. de Souza
capturou e editou as imagens a partir de nossos roteiros e direção de cenas.
Fora esses dois elementos do espetáculo - vídeos e material gráfico todos
os outros signos foram sendo criados a partir das experimentações e trocas com a
cena. Em um primeiro momento, durante 03 meses (Março, Abril e Maio de 2009),
os ensaios foram sendo feitos separadamente entre atriz e banda; porém, no último
mês de montagem (Junho), os ensaios passaram a ser conjuntos e constantes para
experimentação e articulação dos signos.
Figurinos, cenários, adereços, maquiagem e caracterização foram criados por
Daiane e por Daniele, que também assumiu a direção de cena. Os ensaios
começaram a servir de espaço de troca e experimentação. Aos poucos, as precisas
110
transições de cena, incluindo pontuais entradas e saídas de luz, banda, vídeos,
cenários, trocas de figurinos e atuação foram sendo refinadas, criando uma bela e
dependente orquestração de elementos no espetáculo.
A montagem de Smoked Love foi necessariamente um processo coletivo de
criação, estruturado a partir de idéias definidas de linguagem e encenação. Coletivo
enquanto equipe de trabalho (na criação e produção da obra) e espaço de troca e
partilha de sensações e experiências no momento de contato com o público.
Todavia, apesar do grupo de trabalho envolvido nesta montagem não ser ao
todo formado por membros estáveis da companhia (apenas Daiane e Daniele são
membros estáveis), o processo criativo do espetáculo se aproxima em muito dos
processos de teatro de grupo, visto a definição trazida por Dip (2005:61):
Segundo Carreira e Oliveira, hoje o teatro de grupo é reconhecido como
aquelas práticas caracterizadas ‘pelo uso do treinamento do ator, pela
busca da estabilidade do elenco, por um projeto de longo prazo, e pela
organização de práticas pedagógicas.
A Faunos Cia. Teatral mantêm algum tempo parceria sólida com alguns
artistas da cidade de Joinville na criação de seus espetáculos, tendo como
pretensão a longo prazo torná-los parte do grupo estável da companhia. O artista
gráfico Nei Ramos e o iluminador Flávio Andrade são dois deles. Nos últimos dois
anos, certas características de linguagem foram sendo construídas na criação de
espetáculos em parceria com estes artistas, fazendo com que eles sejam também
responsáveis pela linha estética que a companhia apresenta hoje, um indício de
projeto de grupo.
As integrantes da Faunos Cia Teatral, Daiane e Daniele, são também, por
enquanto, as duas únicas atrizes da companhia, e mantém treinamento psicofísico
baseado em cnicas absorvidas e recriadas para a mesma, sendo esta mais uma
característica que aproxima as práticas da companhia às práticas do teatro de
grupo, pois se trata de um elenco que trabalha em estabilidade há sete anos.
É sabido que, pelo viés da psicologia social e seus estudos sobre o pequeno
grupo (apoiados na estruturação familiar), o teatro de grupo se qualifica enquanto tal
apenas se a manutenção das características já citadas (treinamento de elenco,
projetos a longo prazo, prática pedagógica) acontecer num grupo com três pessoas
ou mais. Deste modo, a Faunos Cia Teatral não poderia ter nenhum de seus
111
processos criativos, incluindo o do espetáculo Smoked Love, entendido como um
processo de teatro de grupo, visto que apenas duas pessoas envolvidas na criação
fazem parte da estrutura estável da companhia.
Porém, cada vez mais a companhia tende a absorver suas parcerias para um
grupo estável de trabalho, e aponta certas tendências criativas e inter-relacionais
que pretendem um dia se configurar numa prática grupal constante e estável.
Portanto, a companhia continua caracterizando-se por apresentar processos
criativos coletivos, com papéis diferenciados na criação e produção da obra, porém
não nos moldes estruturacionais do teatro de grupo.
Em sua dissertação, Nerina Dip apresenta diversas características implícitas
ao espetáculo solo, diferenciando-o, inclusive, das outras modalidades monológicas
de cena. Dentre as características principais que a autora aponta estão a presença
de um único ator em cena, que às vezes assume também a função de dramaturgo
ou diretor, a necessidade de ruptura com a quarta parede, criando às vezes um
espaço de cumplicidade com o espectador, “(...) o conceito de personagem
fragmentado, a relação do ator com o espaço, o despojo inerente da cenografia, a
função do narrador e a dramaturgia que foi criada como resposta à ausência de
textos específicos para essa modalidade.” (DIP, 2005: 21).
Todas as características do espetáculo solo citadas pela autora estão
presentes em Smoked Love, que apresenta uma estrutura fragmentada tanto em
sua dramaturgia quanto nas relações que se criam entre os elementos do
espetáculo. A peça é dividida em quadros e a atriz-dramaturga performatiza
situações e sensações aos olhos do blico, que está colocado muito próximo à
cena, nos corredores laterais do espaço cênico, testemunhando os relatos de um
triângulo amoroso diluído.
Contudo, a cena é invadida muitas vezes pela música tocada ao vivo pela
banda que está posicionada atrás de um grande voil, numa das extremidades da
cena, e pelas projeções de diversos vídeos que invadem a extremidade oposta à da
banda, no outro lado do espaço cênico. Formam-se deste modo três espaços de
cena, que ora se complementam e dialogam e ora entram em dissonância. O fluxo
de pensamentos e sensações do público é constantemente quebrado pelo ir e vir
dos espaços que se invadem, neste “solo que não cabe na mala”.
112
Desvirtualizo, no parágrafo acima, a tradicional expressão argentina usada
para fazer referência ao espetáculo solo, trazida por Dip em sua dissertação. Ela
coloca:
O espetáculo solo é também conhecido, na Argentina, como “teatro de
mala”, pelo fato de empregar, usualmente, apenas uma mala para o
transporte da cenografia. A denominação carrega a idéia de um ator
solitário, de uma cenografia facilmente transportável e de um espetáculo
que pode acontecer em diversos espaços cênicos. (DIP, 2005: 40).
Permito-me esta desvirtuação da tradicional expressão argentina por ela não
condizer com o espetáculo solo objeto de estudo deste texto. Conforme citado, o
espetáculo Smoked Love é um solo que teve o envolvimento de 08 artistas em seu
processo de criação e que depende de uma equipe de 06 pessoas para ser
apresentado ao público. Por se tratar de um espetáculo com alto teor de
experimentalismo e que traz à cena diversas mídias, a estrutura de equipamentos
(de luz, de som e de cena cenários, figurinos, adereços) é muito grande,
despendendo-se grande tempo e equipe para transportar o material, montar o
espaço cênico e a configuração de platéia e apresentar o espetáculo.
Tendo em vista essas especificidades cnicas e estéticas, podemos dizer
que Smoked Love é um solo que não cabe na mala, mas articula artistas e signos
estruturalmente fragmentados para desenvolver uma coesão de discurso na cena.
Em busca de novos horizontes de articulação e expressividade artística em
nossa sociedade contemporânea, a experiência do processo de criação e montagem
do solo performático multimídia Smoked Love nos traz cada vez mais indicativos de
que os modelos de classificação da produção artística são temporais. As
necessidades de criação e comunicação do artista são construídas simultaneamente
às necessidades do público - espectador, participador ou consumidor da
obra/produto artístico, em consonância com as experiências culturais de sua época.
Nessa experiência de criação coletiva de uma obra artística, as necessidades
que impulsionaram a criação do espetáculo contaminaram seu processo e seu
resultado, apontando um hibridismo que caminha da metodologia à produção da
obra em si, mas que procura, sobretudo, um espaço de compartilhamento de
experiências, e não apenas de informações.
Smoked Love é uma tentativa de criar um espaço de experiências, entre
artistas e artistas e entre artistas e público; experiências vividas ou inventadas, mas
113
sobretudo sentidas, pois como diz Jorge L. Bondía (2002: 21) : “A experiência é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece ou o que toca“. Somos seres que sabem muito e experienciam pouco;
seres de informação da sociedade tecnológica em que vivemos.
Mas a arte, essa eterna intransigente, sempre nos instiga a romper com
institucionalismos, e segue fervilhando criações atemporalmente.
114
ANDICE B - Dramaturgia de Smoked Love
1
Smoked Love
Daiane Dordete
QUADRO 01 – A AMERICANA
Não precisava ter sido assim. Não, nunca. Não deveria ter sido assim porque não foi
bom pra ninguém. Nem pra mim, nem pra você, nem pra ele. Você nem o conhece e
o odeia. Não deveria ser assim. Nós dois não deveríamos ter nos separado. Nós
três. Nem eu e você, nem eu e ele. Ficaria bem melhor. Por que você tem que ser
tão possessivo? As coisas têm que ser assim, complicadas sempre. Tão
complicadas. Tão... sórdidas. Eu fui sórdida com você. Quando eu quis te beijar de
novo depois que eu te deixei. E não satisfeita quis fazer amor com você. Eu fui tão
sádica, tão egoísta. Eu te amei por tanto tempo sem saber que eu era tão cruel.
Porque você sofreu. Eu sei, eu sei, eu sei. Eu sou uma má pessoa. Não, eu não sou.
Eu estava. O amor é um estado também. Porque eu o amo. Quando eu te deixei, eu
não amava ninguém. Nem mesmo você. Você tinha matado o meu amor.
Degenerado. Decrépto amor. Eu resisti até onde eu pude. Eu chorei no dia que
eu te encontrei de novo. Muito tempo depois, eu chorei depois de ter te beijado.
Você dizia que me amava e eu chorava. Você perguntava dele e eu chorava. E
então eu disse como você estava tão bonito, como nunca tinha estado antes. E outra
pessoa te ligava e você desligou o celular. E eu disse: ela te ama. E você disse: eu
te amo. E eu pensei: ela te ama, você me ama, eu amo ele e ele é um idiota. Um
quarteto amoroso saído de um roteiro hollywoodiano. Eu acho que a nossa vida é
mesmo americana. Existe o quarteto, existe o Mcdonalds e existe o Lucky Strike. O
problema é que eu parei de fumar, não como mais fast food eo tenho saco pr’um
quarteto amoroso. Eu não sou americana!
QUADRO 02: TRISTEZA NÃO TEM FIM, FELICIDADE SIM
Quando eu estou tristinha
Tristinha de dar dó
_____________________________________
1
Alguns trechos do texto foram utilizados para os diálogos e legendas dos vídeos dos quadros 03, 04
e 09.
115
Eu bebo uma coca-cola
Eu como batata frita
E assisto televisão.
Eu durmo o dia inteiro
Eu nem saio de casa.
Eu faço tudo isso
Pr’essa tristeza perceber
Que eu não ligo pra ela.
Eu curto a vida.
QUADRO 03 - VÍDEO-CHAMADA
E ele desapareceu. Foi nessa época que eu te procurei. Você ligou no dia do nosso
aniversário de namoro. Com o número restrito. Ah! Pára com isso! Como se eu não
te conhecesse. O problema é que eu te conheço demais. E eu sei que se a gente
voltasse ia ser tudo igual. Mil promessas e mil esquecimentos. Olha, eu sei que você
é mais novo que eu, que eu vivi muito. Mas eu ainda sou jovem. Eu ainda sou
bonita. E um pouco inteligente também. Por que você quis me apagar? Como depois
de fazer o rascunho a lápis, você passa a caneta por cima das palavras e depois
apaga. Pra tirar os resquícios do lápis. Eu me senti tão apagada que resolvi te
deixar. Você tinha sido uma borracha na minha vida. E eu sempre defendi suas
qualidades, e te defendi dos retaliamentos também. Mas você achou que me amar
muito era o suficiente. Suficiente pra mim. Ele pode nem me amar tanto assim. Se
um dia ele voltar, eu vou perguntar o quanto ele me ama. Ele me respeita. Mas ele
tem medo porque eu disse que as pessoas não podem passar a vida toda juntas,
porque se a vida não separa, a morte dá um jeito. E eu disse que eu vou viajar e que
eu detesto a rotina do casamento. E que eu quero viver, e prefiro usar a massa
encefálica pra isso. Não minha pouca massa corporal. Acho que ele ficou chocado.
Mesmo sem eu dizer palavrões, malcriações e essas coisas que não fazem o meu
gênero. E ele tem esse mesmo problema de leitura, não quase nada. Por que os
pais não ensinam os filhos a lerem bula de remédio, rótulo de refrigerante e tabelas
nutricionais? Assim se começa. No início você pode não entender nada, mas ganha
o hábito. E isso é importante. Pesquisas recentes mostram que sete entre cada dez
candidatos a uma vaga de emprego são dispensados por falta de leitura, que implica
em falta de conhecimento, falta de um discurso elaborado e falta de emprego. Eu sei
116
que você se esforçou. leu vinte páginas do livro que te dei. dois anos. Vo
não tem jeito. E foi por isso que eu te deixei. Não pelo português, mas pela falta de
jeito. E eu estou te deixando agora de novo. Eu estou te deixando por alguém que
eu não sei se vai voltar.
QUADRO 04 – AT THE SUPERMARKET
Num supermercado existe de tudo. Comida, pneus de carro, eletrodomésticos,
móveis para a casa e para a piscina. o que realmente importa nesses tempos
pós-modernos é que não tem: bonecas infláveis e vibradores. Se os donos de
supermercados não revisarem seus conceitos de cotidiano para entender que
camisinha não basta, eles irão à falência, e os donos de sexy shops serão os novos
líderes da economia mundial.
QUADRO 05 – AS CARTAS
Ele partiu duas vezes. Duas vezes ele partiu o meu coração. Ele tem medo de
mim. Porque você sabe que eu sou leal e fiel e você me disse isso depois que eu fui
embora. Você disse: eu nunca deveria ter duvidado de você. E eu disse: eu sei. Mas
agora não adianta mais. Porque você sabe que eu irradio amor. E eu amo as
pessoas que me rodeiam. Com exceção de algumas. E ele que é tão contagiante,
ele ficou com medo. Porque ele deve pensar no meu lado ruim, porque eu sou ruim
às vezes. Ele deve pensar que na primeira decepção eu lhe deixaria. Você devia
ligar pra ele. Dizer que eu não sou assim, afinal, eu agüentei muitas decepções suas
não é?! Por favor, diz isso pra ele. E diz também que eu ainda o amo e que se ele
quiser voltar eu aceito. Você podia fazer isso por mim, pra me provar o seu amor?
Quando eu olho no telefone, eu não sei o que eu mais anseio: se uma mensagem
dele, inesperada e imprevisível, ou uma mensagem sua, dizendo que explicou tudo
pra ele, e que agora ele vai voltar. E você se despedindo com um “eu te amo ainda”.
E eu dizendo “eu te amo ainda, mas só amor não basta”.
QUADRO 06 – VINGANÇA CONTRA A PSICANÁLISE
A psicanálise destrói a confiança mútua que existe em um relacionamento.
QUADRO 07 – O CINEMINHA
Você me disse que ele é muito bonito, que é inteligente, que tem um carrão e que
117
ganha bem. E que por isso meus pais querem que eu me case com ele. Não é por
isso, nem por ele. É que meus pais querem me enquadrar no modelo padrão de
casamento da classe média, um casamento médio. Uma vida previsível. E eles
sabem que com você não seria assim. Com você seria alto ou baixo, nunca médio.
Tudo ou nada. É que você vai comigo nas minhas loucuras, nas minhas psicoses.
Nós dois somos perturbados. No dia que ele me puxou pelo braço e pegou minha
mão eu quis bater nele. Porque você ainda tomava conta de cada respiração minha,
de cada molécula, embora eu não quisesse. Mas ele foi me puxando pra vida dele e
eu fui indo. Até ele desaparecer. Na primeira vez eu estava apaixonada, mas
pensava que estava apenas vivendo um cineminha. Ele era o meu filme, o nosso
filme que eu queria reviver. E quando ele voltou. Ele tomou conta do meu tempo,
das minhas coisas, da minha vida inteira. E quando eu disse que estava amando ele
se foi. Outra vez. E eu não chorei. Apesar de ser um costume meu chorar no
cinema. E agora que ele não voltou mais, eu te encontro de novo. E eu estou
confusa porque estou me apaixonando de novo por você. E agora eu estou
pensando se isso tudo não é mais um cineminha na minha vida. Cheio de projeções.
Uma sessão da tarde. A diferença é que você nunca vai me abandonar. Um milhão
de vezes eu vou embora e um milhão de vezes você me encontra. E me ama
novamente como sempre. E você me ama tanto que eu fico plena. E agora você
disse que até está lendo mais. Lendo. Lendo os livros que eu te dei. Um outro que
você comprou. E quer ir embora também. Pra outros lugares. E eu fico feliz porque
você aprendeu a sonhar.
QUADRO 08 – O MENINO
Ele era um menino bonzinho. Todo mundo achava isso. Tão bonzinho, o
incomoda nada. Se a mãe precisasse sair e deixar ele sozinho em casa, ele ficava.
Afinal já tinha sete anos, já era um homenzinho. E tão bonzinho. Muitas vezes a mãe
dele saiu e deixou ele sozinho. E ele ficava lá. Brincava, comia, jogava vídeo game.
Até que um dia, enquanto ele comia um sanduíche na frente da tv, sozinho em casa,
ele teve uma idéia: ele poderia salvar vidas, como os dicos do E.R., que passava
na Warner Channel. Deixou o sanduíche de lado, pegou uma faca na cozinha e
correu ao peixinho do aquário. Quando a mãe chegou, o peixe estava morto no
carpet. Esfaqueado e decapitado. Todo mundo ficou sabendo do assassinato. Mas a
mãe disse que foi um acidente.
118
QUADRO 09 – O ENCONTRO
A gente devia se encontrar de novo qualquer dia desses. É o que você me diz
sempre. Mas pra que eu vou te encontrar de novo? Nós vamos chegar. Eu antes,
você atrasado. Não, sou eu quem se atrasa agora. Vamos nos lançar um olhar
teenager e sentar no botequim combinado. Vamos pedir cerveja para mim e água
para você. Eu vou encher a cara e contar proezas. Você vai perguntar se não temos
outra chance. E eu vou beber mais cerveja. E você vai perguntar de novo se eu
ainda amo ele e eu vou rir da sua cara. É que eu rio quando eu fico nervosa, você
sabe. Daí a gente pode trocar ofensas baratas talvez. E você pode ir embora
dizendo que nunca mais vai voltar. Mas você me ligaria novamente na manhã
seguinte. E eu vou ficar olhando o nada. Fingindo ser uma atriz de cinema talvez.
Audrey Hepburn. E eu vou ser feliz. Depois, eu vou comprar uma carteira de Lucky
Strike, fumar um cigarro e jogar o resto fora. É que eu não posso voltar a fumar, o
meu coração dispara. Lembra como o meu coração disparava quando eu te beijava,
quando eu te via inesperadamente, quando eu fazia amor com você? Lembra? É
desse jeito que o meu coração dispara agora quando eu fumo, como se eu estivesse
transando com o cigarro. Ele odeia cigarro. Parece você. Você pra me beijar fumava
também. Mas nem sabia tragar. Parecia uma chaleira fervendo e soltando aquela
fumaça pela boca. Enfim, ridículo. Vojogava minhas carteiras fora. Jogou até eu
parar. Eu nunca fumei na frente dele. Eu fumei quando ele me deixou. Ah eu
fumei. Parecia que eu estava transando o tempo todo porque o meu coração queria
sair pela boca. Então eu tive um enfarte e joguei os cigarros fora. Eu tive nojo das
minhas mãos. Ele beijava as minhas mãos quando me encontrava e eu tive nojo das
minhas mãos. Mas agora está tudo bem. Eu vim até aqui. Eu fiz o que eu deveria
fazer. Eu subi nesse palco. Eu contei nossa história pra todo mundo e todo mundo
sabe de tudo agora. E você fica ai, no fundo do teatro, me olhando no escuro e
secando uma lágrima sorrateira. E eu fico aqui no palco. Eu conto nossa historia pra
todo mundo, a história que se repete, enquanto procuro ele por ai. Porque essa
história é dele também. Porque se ele ouvisse, talvez quisesse voltar. Talvez
levantasse agora da platéia e gritasse. E eu até esqueceria o resto do texto se
acontecesse isso. Mas como isso nunca acontece, eu não esqueço. E acreditem no
que eu digo, porque aqui não tem edição. Isso aqui é teatro, não cinema nem vídeo.
Isso aqui é como o dia-a-dia, a gente faz uma coisa e pensa outra, sem editar. E a
119
única coisa que me importa agora é saber se a Audrey Hepburn fumava Lucky
Strike.
QUADRO 10 – O CASAMENTO
Agora você pode ficar comigo pra sempre. Se você quiser eu fico. Eu posso até
casar com você. Eu posso até concordar em dar uma festa. É que você me disse
que festa de casamento é ótima pra mobiliar a casa. A gente mora junto e trabalha e
passeia e se ama. E pode até ter filhos. Eu posso fazer tudo isso por você. E isso
não seria difícil pra mim. Eu fico com você a vida inteira se você quiser. E eu sei que
daria certo porque você me atura. E o amor é isso, aturar um ao outro. Você me ama
realmente. Mas se um dia você me aborrecer, se um dia você me comparar com
outra mulher ou disser que eu sou uma péssima mãe, eu vou embora. Porque ele
nunca faria isso. E eu vou ligar pra ele e ele então me levaria embora. Ele não teria
mais medo porque ele teria passado pela mesma situação. Eu sei disso porque
nós somos parecidos. E eu vou viver o resto da minha vida com ele, pensando em
você. Pensando porque nós fomos tão infelizes. Por que nós fomos tão ruins. Até
chegar aqui hoje e descobrir que tudo isso que eu contei é mentira. Porque a única
coisa que realmente me importa era te ver de novo. E toda essa história que eu
inventei nesses cinemas e nesse teatro e nesse show valeram à pena. Porque você
veio até aqui pra saber do meu amor fumado. Do meu amor de Lucky Strike e de
Audrey Hepburn. Você veio até aqui pra me ver. E agora que você me viu, agora
que todo mundo sabe de tudo, eu vou pro camarim. Eu vou tirar essa roupa suada.
Eu vou lavar o meu rosto borrado e vou te esperar sentada. dentro, fumando o
meu Lucky Strike, e esperando que você jogue fora mais essa carteira de cigarros
também.
120
ANDICE C - Roteiros e vídeos de Smoked Love
Vídeo 01 – prólogo
- no Galpão de Teatro da AJOTE;
-Música eletrônica de fundo (“Ça m’enerve”, de Helmut Fritz). Este prólogo é uma
seqüência de takes de um homem desde o momento que começa a se arrumar até o
momento que chega no teatro para assistir um espetáculo; nunca aprece ele por
inteiro apenas partes do corpo;
- mão abrindo chuveiro e água caindo; barulho de água; passando a mão no
sabonete e saindo espuma; barbeando; perfumando;
- calçando meia; colocando cinto; pegando chaves;
- entrando no carro; ligando; trânsito; fumando lucky strike; semáforo; paisagem;
terminando de estacionar e desligando o carro; fechando a porta; alarme;
- os pés caminhando; entrando no galpão de teatro; passando por pessoas; se
posicionando frente à tv; fim.
-inicia texto estilo Star Wars:
“Vocês entrarão agora num espaço ficcional. Algumas situações presentes neste
espetáculo poderão lhes causar imediata identificação, pois trabalharemos com
material humano. Ou não. Sugerimos que desliguem seus celulares e não comam
durante a peça, porque aqui não tem edição, as coisas acontecem ao vivo, como na
vida real. Desejamos a todos um ótimo espetáculo, e que se amem uns aos outros,
assim como alguém já lhes amou. Talvez eu”.
2
Vídeo 02 – vídeo-chamada quadro 03
- na rua;
- Mulher em estilo casual fazendo vídeo-chamada com telefone celular; está
caminhando na rua, passam carros, pessoas, ela olha para atravessar a rua, chega
num ponto de táxi, espera um pouco, entra no táxi; fim.
_____________________
2
Texto integrante do vídeo do prólogo.
121
Vídeo 03 – documentário supermarket – quadro 04
- em um supermercado;
- mulher fazendo compras nua; pessoas comprando no mercado normalmente;
primeiros takes revelam apenas o carrinho, detalhes da roda, mãos empurrando,
etc.; depois aos poucos revelam-se partes do corpo dela, apenas silhueta, nunca
exposição vulgar do corpo; revelar corpo inteiro apenas no final, na saída do
mercado; takes entrando, empurrando o carrinho, parando e pegando algo, no
açougue, nas frutas, passando por pessoas e pessoas passando por ela quando ela
está parada, passando no caixa, saindo do mercado.
- legenda em português com texto original.
Vídeo 04 – contracena “o encontro” – quadro 09
- em uma lanchonete/bar;
- mesa e 2 bancos; na mesa apenas 1 pirulito de coração; ela chega, senta; fala o
texto sentada, olha ao redor, continua texto até esgotar as falas, levanta e sai,
sempre para a câmera;
- quando abre o plano de filmagem, aparecem cadeiras sobre mesas, vazias: o
estabelecimento está fechado.
Imagem 12 - Cleiton Jacobs, Marcelo F. de Souza e Daiane Dordete – gravação dos
vídeos de Smoked Love
122
DVD com vídeos
123
ANDICE D - DVD com filmagem de Smoked Love
124
ANDICE E - CD com fotos de Smoked Love
125
ANDICE F - Ficha Técnica de Smoked Love
Encenação, cenários, figurinos, iluminação, adereços de cena, caracterização
e produção: Daiane Dordete e Daniele Pamplona
Pesquisa, dramaturgia e atuação no espetáculo; roteiro, direção e texto dos
vídeos: Daiane Dordete
Direção de cena e atuação nos vídeos: Daniele Pamplona
Atuação no prólogo: Cleiton Jacobs
Captura de imagens e edição dos vídeos: Marcelo F. de Souza
Pesquisa e concepção da trilha sonora: Daiane Dordete e Cleiton Jacobs
Execução da trilha sonora ao vivo: Cleiton Jacobs (bateria), Roberto Fi
(contrabaixo e guitarra), Rafael Oliveira/Alex Maciel (vocal, contrabaixo e guitarra) e
Daiane Dordete (vocal)
Trilha sonora: Ça m’enerve, de Helmut Fritz (vídeo do prólogo); Doesn’t remind me,
da banda Audioslave; triste, versão a partir da música original de Emílio Pagotto
e Sílvio Mansani; Aerials, da banda System of a Down; Umbrella, regravação da
banda Vanilla Sky; Dont Worry, Be Happy, de Bobby McFerrin (assovio); Tokyo Mon
Amour, versão a partir da regravação da banda Stereo Total; Inspiração, da banda
Fairans; Eu te escolhi da banda Fairans, a partir de Serenade, da banda Reação em
Cadeia
Iluminação: Flávio Andrade
Arte Gráfica: Nei Ramos
Fotografia: Évelyn P. Hansen/Peninha Machado
Patrocínio: Simdec (Sistema de desenvolvimento pela cultura), Fundação Cultural
de Joinville e Prefeitura Municipal de Joinville.
126
ANDICE G - Materiais Gráficos de Smoked Love
Cartaz/ Flyer
127
Programa - parte externa
128
Programa - parte interna
129
Outdoor
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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