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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE LETRAS
JOSÉ NELSON MARQUES JÚNIOR
Encontrando o céu que um dia me prometeste
Um estudo sobre a formação da identidade masculina no romance Em Nome do
Desejo, de João Silvério Trevisan
Rio de Janeiro
2007
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1
JOSÉ NELSON MARQUES JÚNIOR
Encontrando o céu que um dia me prometeste
Um estudo sobre a formação da identidade masculina no romance Em Nome do
Desejo, de João Silvério Trevisan
Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira apresentada à Coordenação do
Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
sob a orientação do Prof. Dr. Victor Hugo
Adler Pereira.
Área de concentração: Literatura Brasileira.
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
T814 Marques Junior, José Nelson.
Encontrando o céu que um dia me prometeste : um estudo sobre a
formação da identidade masculina no romance Em Nome do Desejo,
de João Silvério Trevisan / José Nelson Marque Junior. – 2007.
86 f.
Orientador : Victor Hugo Adler Pereira.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Trevisan, João Silverio, 1944- – Crítica e interpretação. 2.
Trevisan, João Silverio, 1944-. Em nome do desejo. 3. Adolescentes
(Meninos) – Comportamento sexual – Teses. 4. Homossexualismo na
literatura – Teses. I. Pereira, Victor Hugo Adler. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-95
3
JOSÉ NELSON MARQUES JÚNIOR
Encontrando o céu que um dia me prometeste
Um estudo sobre a formação da identidade masculina no romance Em Nome do
Desejo, de João Silvério Trevisan
Dissertação de Mestrado em Literatura
Brasileira apresentada à Coordenação do
Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do grau
de Mestre em Literatura Brasileira.
Área de concentração: Literatura Brasileira
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Victor Hugo Adler Pereira (Orientador)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Barcellos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________________
Prof. Dra. Joana D´Arc Ferraz
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro
____________________________________________________
Prof. Dra. Fernanda Lemos de Lima
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________________
Prof. Dra. Ana Claudia Viegas
Universidade Estácio de Sá
4
A José Nelson Marques e Nilda Gonzalez Marques, pais queridos e decisivos na
minha formação pessoal.
A Luiz Mario Xavier, companheiro de vida que sempre soube a hora certa de dar um
sorriso.
A João Silvério Trevisan, pela luta por um mundo menos limitado.
À Fernanda Lemos Lima, sábia amiga, que antes de ser uma grande educadora, é
um ser humano íntegro e generoso.
À Dulci Nascimento, bela guerreira que sempre soube como ajudar.
Ao Mestre Victor Hugo Adler Pereira, Homem que teve a coragem e a ousadia de
mergulhar nesse “tal” universo masculino e ver no que dava.
À Luciana Barbosa, que com sua generosidade infinita e seu humor, ajudou, torceu
e “quebrou” 1001 galhos.
5
AGRADECIMENTOS
A Luiz Mario Xavier, pelo apoio e carinho incondicionais.
A Victor Hugo Adler Pereira, pela confiança e sabedoria.
À Luciana Barbosa, Jorge Luiz Santos e a todos os funcionários da secretaria da
Pós-Graduação Strictu-Senso em Letras da UERJ, sem eles teriam preenchido
todos os formulários de maneira errada.
Aos amigos de vida, André Leahun, Anderson de Oliveira, Vaneza Melo Dias, Cleo
Amorim, Francisco Alves Jr., Arnaldo Inocêncio, Ana Ligia Matos, Marcos Correa,
Martim Vicente, Tatiana Gandelman, Dulci, Fernanda, Dani, Thomaz... pelo suporte
emocional e prático em momentos tão delicados.
Ao Professor José Carlos Barcellos, que talvez nem saiba, mas foi quem me fez
querer escrever esse trabalho.
A Bruno Sousa Leal, pelo envio de parte de sua Tese de Doutorado, um importante
material para esta análise.
Às gentis e sempre simpáticas funcionárias da Biblioteca de Letras da UERJ:
Jacqueline dos Santos Rosa, Márcia Ferreira Sant´Anna e Cristina da Cruz de
Oliveira
À Leo (Escola Célia Helena SP), tão prestativa e generosa no envio de um rico
material de pesquisa, infelizmente não aproveitado na construção deste trabalho.
E é claro, ao super Tobias, porque sem ele tudo ficaria muito feio.
6
No me mueve, mi Dios, para quererte
el cielo que me tienes prometido,
ni me mueve el infierno tan temido
para dejar por eso de ofenderte.
Soneto a Cristo crucificado - Anónimo español - Siglo XVI
Now I shout it from the highest hills
Even told the golden daffodils
At last my heart's an open door
And my secret love's no secret anymore
(Secret Love - Sammy Fain and Paul / Francis Webster)
7
RESUMO
MARQUES JUNIOR, José Nelson. Encontrando o céu que um dia me prometeste : um estudo
sobre a formação da identidade masculina no romance Em Nome do Desejo, de João Silvério
Trevisan. 2007. 86 f., il. Dissertação (Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Partindo dos estudos sobre um tipo específico de instituição que podemos
enquadrar dentre aquelas que apresentam espaços “fechados”, como o internato,
tomaremos o romance Em nome do desejo (1982), de João Silvério Trevisan, como
base de uma análise investigativa acerca da representação do adolescente
masculino dentro de um Seminário. Faremos uma ponte com algumas narrativas
que também têm como cenário a ambientação rígida deste tipo de instituição
pedagógica. O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, e Internato (1951), de Paulo
Hecker Filho, por exemplo, irão nos ajudar a traçar um perfil do que significa o
masculino dentro da sociedade moderna ocidental. Por fim, com o apoio dos
recentes estudos sobre a homotextualidade na literatura, iremos tentar desvendar o
mundo de meninos que, mesmo afastados da presença feminina, reproduzem
retrógradas regras e interditos do universo que permeia as práticas eróticas entre
homens e mulheres do lado de fora do internato.
Palavras-chave: João Silvério Trevisan; Espaços fechados; Adolescente;
Masculinidade; Homotextualidade.
8
ABSTRACT
Following the studies of an specific tipe of institution in the grup of those wich
we can find closed spaces, as the boarding school, we intend to study João Silverio
Trevisan's novel Em nome do desejo, as an starting point of an
analitical investigation on the respresentation of the teenager boys in the context of
the catholic seminar. We intend to link several narratives wich also have as cenary
the severe ambience of this kind of educational institution. Raul Pompeia's O Ateneu
and Paulo Hacker Filho's Internato are exemples of literary texts that will help us to
trace an sketch of what does means the masculinity in the modern occidental society.
Finally with the critical apparatus of recent homotextuality studies on literature we
intend to show up the boyhood world that, although far away of the feminin presence,
reproducts traditional rules and tabus of the erotics pratices between men and
women outside de boarding school.
Keywords: João Silvério Trevisan; Closed spaces; Tennager boy; Masculinity;
Homotextuality.
9
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS...............................................................................10
1.1 A sexualidade como referência simbólica no mundo social............................... 10
1.2 A homossociabilidade erótica de João Silvério Trevisan................................... 14
2 JUVENTUDE MASCULINA..................................................................................17
2.1 Idade das tormentas, das tempestades e dos impulsos.....................................23
2.2 O corpo que se modifica e aflora........................................................................27
3 CÓDIGO DA FRATERNIDADE VIRIL..................................................................31
3.1 Os meninos fortes e os meninos fracos.............................................................35
4 O ESPAÇO FECHADO DO SEMINÁRIO.............................................................41
4.1 Tiquinho e Abel/Jorge e Eli................................................................................ 47
4.2 Erotismo no Seminário........................................................................................52
5 EXPERIÊNCIA MÍSTICA / EXPERIÊNCIASEXUAL........................................... 61
5.1 O discurso da mística cristã...............................................................................64
5.2 Um mergulho no êxtase delirante de Tiquinho...................................................68
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................78
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................82
8 ANEXO.................................................................................................................86
10
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
1.1. – A sexualidade como referência simbólica no mundo social
O tipo de masculinidade criado pela sociedade burguesa do século XIX foi algo
tão minuciosamente pensado e articulado que conseguiu superar a barreira do
tempo e, ainda hoje, influencia de modo controlador homens e mulheres. O mundo
burguês é o mundo do cotidiano; das questões do dia-a-dia. As mudanças sociais
trazidas por essa civilização secularizada, isto é, uma civilização que não apela mais
para a religião como fundamento para discernir o que é certo ou errado; o real do
irreal e o verdadeiro do falso, estabelecem aquilo que viria a ser conhecido como o
conjunto de valores de um ideal masculino: contenção de sentimentos, controle das
paixões e um corpo ativo, viril e másculo. O discurso científico sobre o sexo,
retomando as idéias de Michel Foucault, torna-se o pilar fundamental de uma
verdade mais profunda do eu interior de cada indivíduo e acaba firmando a idéia
dessa espécie de “jogo da verdade e do sexo” (FOUCAULT, 1980, p. 56). É
justamente nesse mundo que nasce o masculino como não problemático, isto é:
a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela
dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e
não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a
legitimá-la. (BOURDIEU, 2007 p.18)
Com o homem sendo visto como não problemático, não é de estranhar que o
homossexual fosse a partir daí sendo cada vez mais excluído e atentamente vigiado.
E como fazer isso? Enquanto até o século XVIII a homossexualidade era vista como
um pecado contra Deus, portanto uma falha moral; o século XIX tratou de responder
a essa pergunta com pesquisas e mais pesquisas em busca da causa daquilo que
era considerado uma “inadequação médica e psicológica” (SPENCER, 1999, p.
11
273). Nunca a figura do homossexual foi tão fortemente relacionada com o feminino
como naquele momento. E foi justamente este estereótipo do homem efeminado e
parasita o eleito pelos médicos para distinguir o “homem saudável do não-saudável”.
O famoso julgamento do escritor irlandês Oscar Wilde, em 1895, ajudou em muito a
cristalizar características como a efeminação, a preguiça, a imoralidade, a luxúria e a
decadência como sendo tipicamente homossexuais, características essas que ao
longo do século XX foram se tornando cada vez mais amalgamadas no imaginário
social.
Levantar essas questões serve, principalmente, para mostrar-nos como a
sociedade passou a criar seus filhos de modo específico a eliminar qualquer traço de
feminino neles, e não nos referimos aqui apenas aos aspectos físicos deste
efeminamento, para aqueles com um comportamento exclusivo do chamado “sexo
frágil”, isto é, são emotivos, preguiçosos, se entregam às paixões com facilidade etc,
os médicos eram taxativos: são homossexuais e “sentem a necessidade de
submissão passiva, ficam maravilhados com romances e roupas” (SPENCER, 1999,
p. 301). A questão fundamental deste interdito nos faz lembrar os grandes dilemas
das sociedades antigas sobre a passividade, ou seja, em uma sociedade
comandada por homens, aqueles que se “recusam” a tomar nas mãos o que é
considerado o direito “natural” ao masculino, não podem ser considerados
socialmente ou politicamente capazes, não merecendo assim qualquer tipo de
consideração e, portanto, nada mais natural que eles sejam excluídos. A
modalidade de ato sexual mais freqüente de um indivíduo serve como referência
para dividir os que realmente desempenham um papel masculino dos que se
recusam a fazê-lo – e estes são estigmatizados por essas marcas “potencialmente
femininas, ou seja, algo passivo, submisso” (BOURDIEU, 2007, p. 26)
12
A arte literária deste período não ficou imune a todas essas inquietações e a
literatura reflete isso de modo intenso e extremamente diversificado. Os versos de O
próprio ser eu canto, do poeta norte-americano Walt Whitman,
O próprio ser eu canto:
canto a pessoa em si, em separado
- embora use a palavra Democracia
e a expressão Massa.
(...)
A vida plena de paixão,
força e pulsão,
preparada para as ações mais livres
com suas leis divinas
- o Homem Moderno
eu canto.
1
por exemplo, clamam de modo requintado e estrategicamente cifrado uma espécie
de ode aos valores do homem moderno de seu próprio tempo, incluindo nesses
valores a questão homoerótica, como nestes outros versos:
Aqui sentado a sós
sinto que existem noutras terras outros
homens
ternos e pensativos,
sinto que posso dar uma espiada
por cima e avistá-los
na França, Espanha, Itália e Alemanha,
ou longe mais ainda
no Japão, China ou Rússia,
falando outros dialetos,
e sinto que se me fosse possível
conhecer esses homens
eu poderia bem ligar-me a eles
como acontece com homens de minha
terra,
ah e sei que poderíamos
ser irmãos ou amantes
e que com eles eu estaria feliz.
2
Em um outro extremo, temos o português Abel Botelho escrevendo um
romance em 1891 intitulado O Barão de Lavos, primeiro livro da série que o autor
1
Tradução do site NossaCasa – A sua casa na internet http://www.nossacasa.net/literatura/default.asp
2
“Neste momento terno e pensativo” foi retirado da fonte citada na referência anterior.
13
intitulou de Patologia Social
3
e que tinha como objetivo reiterar as questões médicas
da época e ao mesmo tempo criticar os “vícios da sociedade”, como o seu prólogo
explica:
Por três modos diferentes se pode manifestar e exercitar a
atividade humana, objetiva e física. Dentro de três fórmulas
fundamentais se encerra todo o campo de ação de nossa
individualidade, do nosso ipseismo, do nosso modo de ser
social e íntimo. De três sortes de faculdades , apenas,
depende a solução dos problemas de nossa vida: faculdades
de sentimento, de pensamento e de ação. (...) O predomínio
de qualquer d´essas faculdades, no doseamento de um
caráter, origina desequilíbrios, aberrações e anormalismos
patológicos, os quais fazem parte de objeto dos estudos d´esta
minha série de romances. (BOTELHO, 1898, p. 7)
Aqui no Brasil não foi diferente. Da ousadia de Adolfo Caminha em 1895 ao
escrever Bom crioulo, passando pela impressionante pintura feita por Lucio Cardoso
em Crônica da casa assasinada (1959) até chegarmos Aquele rapaz, de Jean-
Claude Bernadet neste início de século XXI, a literatura que retratou o homossexual
brasileiro passou por inúmeras transformações e posicionamentos. Apesar das
múltiplas faces apresentadas por uma série de autores, “a história da
homotextualidade na literatura brasileira ainda está por se fazer” (LOPES, 2002,
p.122). Não há como negar, porém, que essa história vem buscando ser feita de
maneira sincera e coerente por autores conscientes, estão aí Os Devassos no
Paraíso, As Crônicas de um Gay Assumido e O Homem que Amava Rapazes
4
, por
exemplo, que não só atualizam como estudam de modo sério e político esse “tal
amor” que a sociedade de modo geral insiste em não querer nomear.
3
Os outros romances que compõe a série são: O Livro de Alda (1898), Amanhã (1901), Fatal Dilema (1907), Próspero
Fortuna (1910)
4
Respectivamente João Silvério Trevisan (2000), Luiz Mott (2003) e Denílson Lopes (2002)
14
1.2 – A homossociabilidade erótica de João Silvério Trevisan
Tiquinho – Eu quero o céu, Abel Rebebel!
Abel faz um gesto grandioso simulando pegar o céu.
Abel – Pois o céu tu terás, meu pedacinho de gente!
(Trecho da peça teatral O céu que um dia me
prometeste, baseada no romance de J.S. Trevisan).
Partindo de um dos pontos passíveis de investigação desta homotextualidade
que são “os estudos de espaços, das instituições mais fechadas, como o internato”
(LOPES, 2002, p. 124), o romance Em nome do desejo, escrito em 1982, por João
Silvério Trevisan, se mostrou em perfeita conjunção com esse conceito de
masculinidade moderna. Conceito esse, que acabou por estabelecer-se como
principal fonte de poder da sociedade patriarcal. O internato, com suas regras e
interditos, está em sintonia com aquilo que Bourdieu chama de topologia sexual do
corpo, isto é, “gestos e movimentos corporais revestidos de significação social”.
(BOURDIEU, 2007, p.16) O que constatamos ao longo do século XX, é que essa
topologia vem restringindo cada vez mais as pessoas e as classificando de modo
(muitas vezes) arbitrário e desnecessário. Ou não é fato que ainda hoje, nos pátios
escolares meninos e meninas continuam interagindo de acordo com os códigos
estabelecidos por essa dominação masculina a que se refere Bourdieu?
Nossa escolha por um autor como João Silvério Trevisan, é nesse sentido
proposital e provocadora. Conhecido por seu constante engajamento político e
cultural no movimento gay brasileiro, JST é um transgressor de códigos e estatutos
sociais; um homem que pretende questionar os pilares desta estratificação social.
Mergulhar a fundo no universo dos meninos que um dia se apaixonaram dentro de
um seminário é mergulhar em um mundo que se percebe preso em amarras muito
mais fortes e resistentes do que se imagina. Um mundo, que por ser habitado
15
apenas por homens, obriga a alguns destes homens a serem menos masculinos e
outros mais femininos; em suma, os meninos que convivem no seminário imaginado
por Trevisan estão fatalmente impelidos a obedecerem a um “sistema de oposições
homólogas: na frente/atrás,em cima/embaixo,duro/mole” (BOURDIEU, 2007, p. 19),
a fim de perpetuarem um (aparentemente) indestrutível sistema de regras
patriarcais.
O romance em questão faz parte de uma tradição literária que tem como
cenário principal esta ambientação rígida das instituições pedagógicas. São desta
estirpe os romances O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, O jovem Törless (1906), do
alemão Robert Musil e Internato (1951), de Paulo Hecker Filho. Os três exemplos
têm como protagonistas jovens adolescentes enfrentando as regras iniciáticas do
que é ser homem de acordo com a cartilha da moderna civilização ocidental.
Um dos aspectos extremamente originais do romance de Trevisan é a sua
estrutura narrativa, que certamente em nada segue as convenções do chamado
romance tradicional. Ao narrar o seu livro praticamente todo em forma de um
sistema de perguntas e respostas – apenas um prólogo e um epílogo diminutos
fogem a essa estrutura – JST faz propositadamente uma confusão na cabeça do
leitor. Afinal de contas, o esquema de questionário acaba levando o receptor a uma
espécie de confessionário, “onde o protagonista se desdobra em uma voz que
interroga e outra que confessa” (LEAL, 2002, p. 128). Um dos aspectos mais
instigantes de Em nome do desejo, está no fato de seu autor deliberadamente
conciliar discursos do catecismo cristão aos diálogos de seus personagens, atitude
essa que certamente poderá ser interpretada como um fortalecimento ideológico e
político de sua literatura; colocando deste modo o amor daqueles dois meninos
16
como algo muito além de uma perversão patológica dos manuais herdados do
século XIX. Desta forma, como bem colocou Bruno Souza Leal, “o romance realiza
outro percurso, utilizando parte desse ideário (religioso) para autorizar e legitimar o
amor entre os do mesmo sexo” (idem, p.131).
Pode-se dizer que o tema desta nossa pesquisa teve seu embrião nascido
ainda nos anos 90 quando a encenação da Cia. Teatro de Seraphin e dirigida por
Antônio Cadengue, para o romance de Trevisan causou um expressivo alvoroço em
uma platéia lotada de jovens. Somem-se isso as incansáveis pesquisas para uma
nova adaptação cênica da referida obra e a percepção de que ainda faltam debates
sobre a questão da identidade masculina, especialmente entre os jovens, e
acabamos por desembocar neste trabalho, que pretende contribuir de alguma forma
nesta questão tão impressionantemente atual.
Começamos aqui a nossa investigação acerca de um homem em busca de
um céu prometido há tanto tempo... Um homem maduro em busca de um menino
soterrado; um menino soterrado tentando não morrer. Preparemo-nos para entrar
finalmente no Seminário, lugar “onde amar aos homens era uma tarefa, além de
difícil, perigosa” (TREVISAN, 1982, p. 24).
17
2 – JUVENTUDE MASCULINA
A preocupação com a formação do adolescente não é uma exclusividade do
século XIX, obviamente, em mais ou menos 1631, por exemplo, João Amós
Comênio, em sua Didática Magna, já fazia uma interessante divisão daquilo que ele
considerava como as principais fases de desenvolvimento do homem: infância,
puerícia, adolescência e juventude
5
. O que a educação burguesa trouxe de
fundamental e certamente ainda reflete na contemporaneidade foi a certeza de que
a escola deve ser um lugar de formação de indivíduos capazes de sua auto-
sustentação, em outras palavras, a escola se torna “a escada pela qual os filhos dos
membros mais modestos do estrato intermediário passavam para o alto”.
(HOBSBAWM, 2002, p. 253)
Essa possibilidade de uma vida mais burguesa e confortável que as
instituições de ensino apresentavam, era a oportunidade que muitas famílias
buscavam como esperança de um futuro melhor para os seus filhos. É deste período
ainda a elaboração de escolas separadas para meninos e meninas, evidenciando,
desta forma, o claro projeto de uma classe dominante e de uma classe dominada. A
historiadora francesa Anne Vincent-Buffault diz que:
conventos e colégios dedicam-se à construção de
uma identidade masculina e feminina diferenciada.
A educação das meninas é marcada pelo modelo
conventual e pela construção do personagem da
moça. A dos meninos, no colégio, já desde o
século XVII caracteriza-se pelo modelo militar da
disciplina e da fraternidade viril. (VINCENT-
BUFFAULT, 1996, p. 105)
5
Capítulo XXVII. Infância: regaço materno;Puerícia:Escola primária;Adolescência:escola de Latim ou
Ginásio;Juventude:Academia e as viagens.
18
Esses dois modelos de educação se aplicam perfeitamente ao estudo de
Michel Misse
6
acerca do conceito de passividade, que justamente tem como base a
evidenciação de características que seriam exclusivamente masculinas e femininas,
como no quadro elaborado por ele e que reproduzimos aqui:
FEMINILIDADE VIRILIDADE
Doce, suave Duro, rude
Sentimental Frio
Afetiva, intuitiva Intelectual, racional
Superficial Profundo
Frágil Forte
Liberal Autoritário
Dependente Independente
Protegida (covarde) Protetor (valente)
Tímida Agressivo
Recatada, prudente Audaz
Pode chorar, insegura Homem não chora, seguro
Masoquista Sádico
Passiva Ativo
Portanto, essa separação dos sexos dentro das escolas tinha, sem dúvida
nenhuma, um propósito real de construções identitárias bem particulares. Homens e
mulheres deveriam representar papéis específicos com aquilo que se caracterizava
como mais masculino ou mais feminino dentro dos desígnios vigentes da era
burguesa. O quadro de Misse ajuda-nos a entender tais características e auxilia-nos
6
MISSE, 2005, P.26
19
em uma análise dos tipos comportamentais que estavam em jogo. A diferenciação
dos sexos é feita de modo a não ter dúvidas de quem é quem dentro da sociedade.
Os colégios exclusivos para meninos e meninas tentavam, deste modo, limitar os
comportamentos de seus alunos e mais ainda, tinham como base fundamental o
fortalecimento desta divisão dos sexos como dominantes e dominados. Visto por
esse prisma, era como se dentro de um seminário para meninos, por exemplo, não
houvesse espaço para a fragilidade e a delicadeza, características “tipicamente
femininas”. Porém, o que uma leitura dos romances ambientados nesses espaços
nos mostra é exatamente o contrário, meninos que se dividem claramente entre
meninos e meninas e vice-versa, em um jogo ambiguamente fascinante e paradoxal,
pois ao mesmo tempo em que essas crianças subvertem a lógica criada por seus
educadores, elas acabam não criando um padrão novo e se contentam em
reproduzirem as heranças antigas sobre os comportamentos de gênero.
Vale lembrar também que surge com essa variedade de meninos e meninas
dentro das escolas e dos conventos uma diversidade de alunos aos bancos
escolares; crianças vindas das mais diversas classes acabavam se encontrando e,
desta maneira, precisavam aprender como se relacionar com particularidades tão
distintas. Não demorou muito para que essa mistura de classes sociais dentro dos
colégios se tornasse uma preocupação cuidadosamente articulada em relação às
regras de sociabilidade destes meninos e meninas. Se por um lado as instituições
pedagógicas pareciam dispostas a fiscalizar e monitorar toda e qualquer atividade
suspeita no comportamento de seus internos, por outro essa mesma vigilância
acaba por incitar a malícia, isto é, “inventa-se uma vida clandestina das amizades de
juventude, com seus ritos e seus segredos, suas escapadas e juras”. (VINCENT-
BUFFAULT, 1996, p. 104)
20
E foi neste ponto que a literatura retirou uma inesgotável fonte de inspirações.
Como explica o escritor britânico Colin Spencer, os romances que tinham como
cenário os internatos para alunos do mesmo sexo:
tratavam, inevitavelmente, da adoração de um aluno por seu
professor preferido ou por um colega mais velho. Essas escolas ou
faculdades eram a resposta à riqueza industrial e à ascensão de
uma opulenta burguesia. (SPENCER, 1999, p. 247)
A literatura deste período acaba assim, “oficializando” um modelo de escrita
que privilegiava o aprendizado e a formação de seus personagens. Os anos de
aprendizado de Wilhelm Meister, escrito em 1795-96, por Goethe, foi a obra utilizada
pelo século XIX como o modelo fundador do Bildungsroman alemão. Apesar de uma
certa amplitude no entendimento do que poderia ser classificado como o verdadeiro
romance de formação, com alguns autores, como o professor Marcus Vinicius
Mazzari, por exemplo, afirmando que o período escolar não seria característica
fundamental deste tipo de romance, preferimos aqui nos mantermos no pensamento
lato sensu de Mikhail Bakhtin sobre o referido conceito. Segundo Barbara Freitag,
Bakhtin defende a idéia de que “a especificidade do Bildungsroman consiste no fato
de o herói ser um sujeito em formação/transformação.” (FREITAG, 1994, p.165)
Sendo assim, nos parece acertadamente coerente pensarmos Tiquinho como um
personagem ligado a essa dualidade e classificarmos Em nome do desejo como um
legítimo representante deste tipo de romance.
O fato é que os espaços fechados como os internatos, prisões, seminários
etc, mostraram-se, neste sentido, como um rico filão para esta espécie de estrutura
narrativa, permitindo que autores dos mais variados estilos exponham de modo
intenso o processo de convivência entre jovens. A literatura que tem como cenário
21
as referidas “instituições totais”
7
passou a ser, desta forma, um peculiar manancial
de pesquisas para o entendimento sobre o comportamento identitário masculino.
Uma série de romances sobre seminários e outras instituições do gênero, veio a
auxiliar na percepção de como os códigos de formação deste novo homem, surgido
com a ascensão burguesa, acabou por trazer à tona uma espécie de “verdade
absoluta” do que é ser homem dentro de nossa sociedade. Um trecho retirado da
primeira parte de O Jovem Törless, de Robert Musil, é deveras significativo a
respeito desse novo modelo que estava começando a ganhar vulto naquele
momento:
Certo dia chegara ao internato o jovem Príncipe H., filho de uma das
mais influentes, tradicionais e conservadoras famílias nobres do
império. Todos os outros rapazes aborreceram-se com seus
afetados olhos meigos; ridicularizavam a sua maneira de esticar o
quadril ao parar, brincando lentamente com os dedos quando falava;
diziam que isso era coisa de mulheres. (MUSIL, 1981, p. 11-12)
É fácil para o leitor perceber neste pequeno parágrafo como o antigo modelo
de masculinidade representado pela aristocracia estava sendo desacreditado pelos
novos padrões; que logo a classificação médico-sexológica do século XIX trataria de
isolar como um tipo desviante e altamente perigoso.
Vale ressaltar que dentro da literatura brasileira os mais diversos autores
apoiaram algumas de suas ficções nos romances de formação. O pioneiro Raul
Pompéia escreveu o seu Ateneu sob os reflexos de todas essas mudanças trazidas
pelo novo pensamento burguês. Autran Dourado, Paulo Hecker Filho, Octávio de
Farias
8
também se aventuram com muita originalidade por esses caminhos e
escreveram obras marcantes sobre os jovens que através de ritos iniciáticos
7
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de
indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo,
levam uma vida fechada e formalmente administrada. (Goffman, 1974, p.11)
22
aprendiam (ou não) a serem “homens de verdade”. O próprio João Silvério Trevisan
ao escrever em 1976 o conto O Testamento de Jônatas deixado a David, já
demostrava interesse em explorar o mundo enclausurado dos seminários e fazia, de
certo modo, uma espécie de prenúncio do que posteriormente trataria com mais
acuidade e profundidade no romance Em Nome do Desejo
9
.
O que esses meninos ficcionais estão pondo em prática e, muitas vezes
acabam por subverter, são as lições aprendidas da sociedade como bom
comportamento do “verdadeiro homem”. Os internos do Seminário de Trevisan ou de
qualquer um dos internatos imaginados por tantos outros autores, sabem que
precisam provar que são homens o tempo todo, sabem que “a virilidade não é dada
de saída. Deve ser construída, digamos fabricada. O homem é, portanto, uma
espécie de artefato e, como tal, corre sempre o risco de apresentar defeito”
(BADINTER, 1993, p. 4). E quando um deles apresentar “defeito”, os outros já
sabem: não é um “homem de verdade”!
8
Três Histórias no Internato, Internato e Mundos Mortos, respectivamente.
23
2.1. Idade das tormentas, das tempestades e dos impulsos
O universo adolescente é vasto e intricadamente delicado. Fase em que você
não é nem isso, nem aquilo. O corpo já iniciou seu processo de transformações, os
hormônios parecem estar em estado de conturbada erupção. É na chamada
puberdade que muitas angústias têm início e o mundo parece que nunca mais será
o mesmo. E não será. Para o menino, o período da infância já começa com uma
série de interditos que deverão ser lembrados para o resto de sua vida. Segundo
Sócrates Nolasco, “o cotidiano dos garotos está permeado por observações como
‘isto é brinquedo de menina’, ‘menino não chora’, ‘menino não abraça nem beija
outro menino, só os maricas’.”
10
Com a chegada da adolescência entra na fase, de
acordo com Bourdieu, do trabalho de virilização (ou de desfeminização), isto é, o
rapaz passa a ser mais pressionado e tem a obrigação de estar apto a demonstrar
ter iniciado o seu papel de macho dominante, ou seja, o jovem menino deve ter
plena consciência do quão “poderoso” ele é por ter nascido com um pênis. Ter essa
certeza e saber relacioná-la com os mecanismos de poder que essa sua posição
varonil o “concede” é o primeiro passo para a construção de um possível ideal de
masculino moderno.
Segundo o fundador da escola francesa de sociologia, Émile Durkheim, os
indivíduos estão condicionados aos fatos sociais, isto é, são estes fatos que
moldarão o comportamento social destes indivíduos. Ainda segundo o pensamento
de Durkheim, quando há uma desilusão do indivíduo com relação ao meio social em
9
Trevisan volta no ano de 2007, a pensar sobre as questões da Mística cristã com o monólogo teatral Hoje é dia
do amor, que conta a história um michê de luxo adepto ao sadomasoquismo tentando alcançar o limite da dor em
plena Quinta-feira Santa.
24
que vive, pode haver uma desarmonia e uma ruptura com esse meio social. O
comportamento homoerótico estaria, desta forma, relacionado com essa
desarmonia, isto é, o indivíduo apresenta desejos que estão fora dos padrões já
existentes e criados por uma coletividade. Este indivíduo acaba violando toda uma
estrutura já aprovada e estabelecida pela “maioria” e, assim “criando” um novo tipo
de comportamento. Este “violar” de regras já pré-existentes será o ponto chave na
condenação deste indivíduo pela parte dita “normal e não-desviante” do coletivo
social. O “desviante” será então desacreditado e, portanto, “deixaremos de vê-lo
como uma pessoa normal para reduzi-lo a um ser diferente, estranho e
menosprezado.” (MISSE, 2005, p. 33)
O que temos dentro das instituições fechadas para jovens é justamente um
microcosmo desta sociedade coercitiva elaborada pelo pensador francês. Não
coincidentemente, Durkheim pertence ao século XIX. É interessante notarmos que
por detrás dos muros destas instituições totais, os meninos relacionam-se entre si de
modo a estabelecerem graus de hierarquia no grupo, onde os “mais fortes” irão
governar com superioridade e para os “mais fracos” sobrarão as funções pré-
definidas como femininas. Cada um desses meninos sabe que atrás dos muros do
internato:
a virilidade tem que ser validada pelos outros homens, em sua
verdade de violência real ou potencial, e atestada pelo
reconhecimento de fazer parte de um grupo de verdadeiros homens.
(BOURDIEU, 2007, p. 65)
O jogo do garrafão citado pelo narrador-entrevistado de Em Nome do Desejo,
servia como uma espécie de termômetro de resistência e força masculina dentro do
grupo. É o típico jogo “para formar homens rijos ou, como se dizia, homens de fibra.”
10
Jornal Convera Afiada do site ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) em jan-fev/2000
25
(TREVISAN, 1982, p.40) Voltaremos a falar desse episódio mais à frente quando
nos aprofundarmos na questão do código da fraternidade viril.
Um aspecto importante a ser ressaltado é como a presença feminina é
negligenciada de tal forma por JST, a ponto de ficar restrita a duas únicas
passagens:
E, no fundo da parte térrea da casa, o alojamento das seis freiras, a
cozinha e o refeitório comum. (TREVISAN, 1982, p. 16)
Às vezes, eram mesmo personagens de bastidores, como as
lavadeiras que vinham semanalmente entregar suas trouxas de
roupa limpa e apanhar a roupa suja dos padres e dos seminaristas,
sem nunca passar a sala de visitas. Também só eram vistas nos
bastidores as freiras que viviam nos fundos do Seminário e
cuidavam da cozinha. (idem, p. 39)
Como a própria narrativa frisa, são personagens dos bastidores e que
cumprem suas funções de modo a deixarem os seminaristas privados de qualquer
contato visual, contato esse que é responsável por aflorar fantasias e desejos típicos
desta fase juvenil. Sérgio, o protagonista de O Ateneu, ao contrário, tem logo no
início do romance a visão encantadora da mulher de Aristarco:
D. Ema, bela mulher em plena prosperidade de Balzac, formas
alongadas por graciosa magreza, erigindo porém, o tronco sobre os
quadris amplos, fortes como a maternidade; olhos negros, pupilas
retintas, de uma cor só, que pareciam encher o talho folgado das
pálpebras; de um moreno jambo, se jambo fosse rigorosamente o
fruto proibido. (...) Vestia cetim preto justo sobre as formas,
reluzente como pano molhado; e o cetim vivia com ousada
transparência a vida oculta da carne. Esta aparição maravilhou-me.
(POMPÉIA, 1989, p. 20)
E além de D. Ema, outras personagens femininas irão ter uma participação
importante no romance. A presença e o contato feminino com os meninos são dois
grandes diferenciais dos colégios internos para os seminários. Em um colégio de
formação de padres, todo e qualquer contato com a mulher deve ser rigidamente
controlado e fiscalizado, afinal de contas, os meninos precisam desde cedo se
26
prepararem e pensarem no voto de castidade que farão no futuro. Esse é
certamente um ponto fundamental para uma não classificação redutiva de literatura
gay para o romance, não que o rótulo possa parecer pejorativo, até porque, é de
suma importância que existam autores que explorem aspectos políticos, sociais,
literários e antropológicos no que diz respeito à sexualidade desta parte da
sociedade. No entanto, se esse “carimbo” está ali simplesmente como redutor moral,
aí a questão muda de figura, pois nada mais limitador e anti-literário do que um
julgamento desse tipo. Barthes, por exemplo, lembra que “não se trata, para o
escritor, de escolher o grupo social para o qual se escreve” (BARTHES, 2000, p.15).
Mas sigamos em frente, a “exclusão” da mulher no romance de JST não tem
nada a ver com uma possível misoginia do autor, pelo contrário, ao reforçar
determinados comportamentos ditos masculinos e femininos, Trevisan alerta para o
perigo de ficarmos eternamente aprisionados em uma hierarquia patriarcal,
necessitando, deste modo, “transformar” aquele ou aquela que não apresenta um
comportamento óbvio e pré-estabelecido em uma aberração ou em um ser
inferiorizado e estigmatizado. Como dissemos anteriormente, a clausura reforça um
fortalecimento de leis que regem homens e mulheres do lado de fora do Seminário;
isto é, a ausência da mulher no ambiente educacional poderia gerar uma série de
comportamentos atípicos e distantes dos padrões sociais estabelecidos por antigas
regras sociais e, no entanto, vemos uma espécie de renovação de características
que reforçam estigmas e pré-conceitos. Em outras palavras, com ou sem presença
feminina, os meninos do seminário buscam desesperadamente agir conforme os
ditames modelares e manipuladores de uma convenção padrão, que aparecem e
estabelecem a hierarquia patriarcal vigente fora dos muros da escola.
27
2.2. O corpo que se modifica e aflora
Todos os seminaristas do romance de JST iniciavam suas vidas como
internos de modo parecido. Ao entrar no Seminário, eles se viam logo rotulados
como “Novatos”, e assim, passavam a sofrer as dificuldades comuns a qualquer
iniciante: não dominar o sistema de regras do local, saudades de casa... Nesse
estágio, que durava um ano, o menino era também apelidado de “sapinho”, isto é,
“ainda não vivia dentro da água, mas já tinha saído da terra.” (TREVISAN, 1982, p.
38) Um “novato” era geralmente desprezado pelos outros por causa de seu
comportamento medroso e inseguro. Os primeiros passos dentro do colégio eram
sempre difíceis e confusos, e essa fase inicial acabará sendo como uma grande
prova a ser superada pelos futuros religiosos, em suma, “ser sapinho significava um
rito de iniciação, onde se sofria uma espécie de circuncisão interior”. (idem, p. 38)
O uso do termo circuncisão neste momento, certamente não é á toa, pelo
contrário, nas suas origens religiosas e culturais, a circuncisão está relacionada com
o aumento e o domínio da virilidade masculina
11
. Lembrando Bourdieu, a circuncisão
é o “rito por excelência de instituição da masculinidade, entre aqueles cuja virilidade
ele consagra ao prepará-los simbolicamente para exercê-la”. (BOURDIEU, 2007, p.
35) O entendimento dos ritos iniciáticos experimentados por esse grupo de meninos,
estaria assim ligado ao caráter duplo que a própria circuncisão apresenta, isto é, de
um lado a idéia de higiene herdada da medicina, e de outro, o forte apelo religioso
que a cirurgia carrega. O menino que passa por uma circuncisão interior, estaria
assim, primeiro fazendo uma espécie de limpeza no próprio corpo, retirando aquilo
que é excesso; em segundo ele voltaria ao aspecto primeiro do ato, ou seja, ele se
11
Para maiores informações Revista História Viva Edição nº 31/ maio de 2006.
28
tornará um homem marcado com o sinal da separação inicial dos indivíduos e será
definitivamente fixado no sexo ao qual pertence: o masculino.
O protagonista de JST, Tiquinho, é despertado para as transformações de
seu próprio corpo de modo ao mesmo tempo casual e abrupto:
Ainda conhecia pouco o regulamento, mesmo porque seu anjo não
era dos mais generosos em explicações. Apesar de ansioso, não
sabia quando deveria começar a usar as cuecas que a mãe fizera
para o seu enxoval, conforme solicitação dos padres. Foi se informar.
Depois de lhe dizer que já deveria estar usando cueca desde que
chegara, o escandalizado anjo despachou-o com um comentário
ameaçador: Andar sem cueca é contra o Regulamento, porque você
já não é mais nenhuma criança. (TREVISAN, 1982, p. 48)
Nesta passagem bastante significativa, Tiquinho se encontra justamente em
um momento de transição de uma fase para outra e descobre que o símbolo de sua
nova posição no grupo de meninos se dá pelo uso de uma simples, porém,
imprescindível cueca. A colocação de uma peça íntima passa a ter um caráter
ritualístico e indica o caminho para o seminarista que ainda não sabe direito onde se
encaixar. O uso da referida peça de roupa era, portanto, como espécie de divisor de
águas. Ao passar a ter direito de usá-la, o menino compreendia que a fase da
“inocência” havia ficado para trás, era chegada a hora de ser homem de verdade.
Ele já não poderia mais andar sem ela, com o “bicho solto”, como costuma se dizer
entre os homens. Como rapaz, ele precisava aprender a domar o seu “bicho”, afinal
de contas, “ele” já não podia mais ter liberdade; seu dono deveria mantê-lo sob uma
camada de pano sobressalente garantindo, assim, que “ele não escapasse” e
causasse uma desagradável surpresa. Entender esse processo nos ajuda a
delinearmos uma compreensão do bom desenvolvimento social do menino no grupo.
Tiquinho, por exemplo, passa a se relacionar consigo mesmo e com os outros, de
outra forma:
29
...tomou imediatamente o rumo da rouparia, apanhou exultante uma
das cuecas de algodão ainda duro e, trancado num sanitário, vestiu-a
lentamente, mirando-se através de um espelhinho portátil, para ver
como era um homem sem calças. Saiu dali orgulhoso de ter
finalmente, atingido a maioridade. (TREVISAN, 1982, p. 48)
O instigante aqui é a dubiedade proposta pela situação narcísica de Tiquinho
se admirando frente ao espelho. Trancado no sanitário ele vai lentamente se
vestindo de homem e se vendo como tal, a admiração exacerbada da própria
imagem o leva a uma coragem até então desconhecida e o deixa pronto para iniciar
uma nova fase. Ele havia conquistado o direito a uma segurança tal que se sentia
preparado para ter uma vida repleta de novidades, incluindo aí a coragem para
andar pelo Seminário sem se preocupar tanto com o Regulamento, uma segurança
limitada e com prazo de validade curto, como perceberemos ao longo do romance,
mesmo assim, uma segurança.
É interessante perceber os mecanismos de poder usados pelos responsáveis
educacionais para manter (ou pelo menos tentar) o controle dos corpos que haviam
chegado à fase de ebulição dos hormônios. Justamente porque os meninos desta
fase necessitam de maior atenção e zelo, é que o Seminário era dividido em dois
grupos bem distintos. De um lado estavam os meninos que podiam ficar sem
cuecas: de 10 a 13 anos; do outro, aqueles que já utilizavam o referido traje: acima
dos 13 anos. Esse controle era feito com cuidado de modo a esses dois grupos
ficarem separados:
30
Além de terem dormitório e salão de estudos separados, Maiores e
Menores ocupavam espaços diferentes tanto no recreio quanto no
refeitório; claro que era proibido um Menor entrar no dormitório dos
Maiores, ou vice-versa
12
. (TREVISAN, 1982, p. 32)
Com a inocência tendo sido deixada para trás, o menino entrava naquele
estágio:
das grandes paixões da carne e espírito, dessas que só ocorrem na
adolescência – uma idade em que os humanos dão seus mergulhos
mais radicais, porque entram em cena vestidos apenas com a frágil
armadura de desejos tão vorazes quantos ingênuos. (idem, p. 26)
Com o despertar dos hormônios e as regras do mundo externo entranhadas
em seus atos, os adolescentes seminaristas vão precisar definir e estabelecer quem
é quem ali dentro. Os desejos sexuais obrigarão os meninos a definirem seus papéis
dentro daquele universo enclausurado. Não será possível para todos eles serem
“homens de verdade”, e as regras que dividirão o grupo serão claras e precisas: de
um lado os fortes, os homens; do outro, os fracos, as mulheres.
12
A planta do Seminário está reproduzido no anexo da página 80.
31
3 - CÓDIGO DA FRATERNIDADE VIRIL
Dentro de um pequeno mundo onde a mistura dos sexos não é permitida,
regras e códigos são desenvolvidos tendo em vista uma divisão de poder entre os
indivíduos. Os seminários e colégios internos tornam-se lugares sexualmente
saturados e seus dirigentes acabam por inventar regras e mais regras em uma frágil
tentativa de controlar os perfis sociais de seus internos, afinal de contas:
o controle de muitas necessidades humanas pela organização
burocrática de grupos completos de pessoas – seja ou não uma
necessidade ou meio eficiente de organização social nas
circunstâncias – é o fato básico das instituições totais.
(Goffman,1974, p. 18)
Em ambientes austeros como esses, não há espaço para nenhum tipo de
indecisão, você é uma coisa ou outra, jamais as duas coisas. Ao “escolher” qual lado
de sua preferência, o interno estaria necessariamente se posicionando em um
determinado papel. Segundo Anne Vincent-Buffault:
durante muito tempo o que mais se temeu foi que um adolescente
ou um homem se efeminasse demais e infringisse o código da
fraternidade viril, excluindo-se da sociabilidade masculina.
(BUFFAULT, 1996, p. 114)
Por isso, a distinção entre meninos considerados efeminados e másculos se
torna uma referência central neste tipo de espaço, incluindo aqui os ambientes
religiosos dos colégios de padres.
No romance Em Nome do Desejo, Trevisan transporta seu leitor a um mundo
de clausuras, interditos e desejos sexuais. Neste cenário onde a religião está
intimamente ligada ao erotismo púbere dos seminaristas, o sexo, ora intensamente
místico, ora puramente carnal, apesar de proibido e “ignorado” pelos responsáveis
pedagógicos de tal instituição, acontece de maneira desenfreada e intensamente. As
32
amizades nascidas e cultivadas pelos seminaristas ajudam o autor a formular um
paradoxal conceito de subversão das regras sociais sobre relacionamentos, isto é,
mesmo reforçando tais comportamentos tipicamente “homem-mulher”, os meninos
adaptam esses padrões às suas próprias condições e acabam, de acordo com o
raciocínio de Francisco Ortega, possibilitando “um novo modo de pensar e repensar
as formas de relacionamento existentes em nossa sociedade, as quais, como
observa Foucault, são extremamente limitadas e simplificadas” (ORTEGA, 1999, p.
26). Tiquinho e Abel estariam, deste modo, ampliando suas possibilidades no
relacionamento e se aproximando do que Ortega denominou como “arte da
amizade”, isto é, o amor dos protagonistas imaginados por Trevisan poderia ser uma
“alternativa às tradicionais e desgastadas formas de relacionamentos com a família
e o matrimônio” (ORTEGA, 1999, p. 27)
Já dissemos aqui que dentro do ambiente de claustro do seminário os meninos
desenvolviam jogos e atividades para definirem os seu território particular naquele
ambiente. O jogo do garrafão é certamente um cruel fortalecimento da dicotomia
ativo/passivo para os internos e era realizado como uma forma de resistência do
menino dentro do grupo. O caráter iniciático do jogo, isto é, joga-se para se deixar
de ser fraco e tornar-se forte, acaba não se concretizando, pelo menos como rito de
passagem, pois a “brincadeira” acaba apenas sendo uma reiteração dos papéis pré-
definidos por aparência, tipo físico e comportamento. Em outras palavras, quem
demonstra sensibilidade, medo e receio, acaba não tendo como se livrar do estigma
do efeminado. No romance o jogo aparece descrito assim:
33
duas vezes por semana, após o jantar, desenhava-se um enorme
círculo no chão do campo de futebol e completava-se o círculo com
um gargalo estreito. Elegia-se um pegador. O resto dos jogadores
ficava dentro do círculo, só o pegador fora. Após a contagem,
começa o jogo propriamente: todos tinham que abandonar o
garrafão e procuravam fugir do pegador, que escolhia alguém para
pegar. Como os toques de mão eram proibidos, todos os jogadores
carregavam na mão um lenço com nó na ponta. Quando
encurralava alguém, o pegador dava-lhe uma lambada no lenço.
Esse era o grito de guerra de todos contra um. Então, os jogadores
em bloco caíam sobre a vítima, com lambadas de nó, e o jogo se
tornava duro de verdade. A ordem era tentar impedir que a vítima
entrasse no garrafão – o que só se permitia pelo estreito gargalo –
prolongando o mais possível a surra coletiva. ... uma Via Sacra em
estado de desespero... Quando finalmente conseguia entrar, a
vítima tomava uma surra de lambadas de variados quilates de
agressividade. Havia gritos em todos os tons, risos, chacotas e
xingos disfarçados... Como não se podia xingar de “fresco” e filho-
da-puta”, ecoava em coro a saudação ritmada: ma-ri-qui-nha, ma-ri-
qui-nha. (TREVISAN, 1982, p. 42)
O processo de fortalecimento de uns e o enfraquecimento de outros fica óbvio
ao final de cada partida como podemos observar na seguinte passagem:
os mais fortes riam satisfeitos, descontraídos, refeitos, sacudindo o
pó e o suor. Os mais fracos corriam para o lavatório, em suma, os
mais fracos continuavam mais fracos. Os mariquinhas, cada vez
mais maricas. Quanto aos mais fortes, tinham sua força redobrada.
(idem, p. 42-43)
Em nome do desejo faz questão de ressaltar essa violência juvenil e de como
aquele que se mostrava diferente físico e emocionalmente precisava aprender a ser
homem de verdade através da dor e da agressão. Para os mais fortes, o objetivo era
fazer com que pelo menos os mais fracos esboçassem um sinal de masculinidade
ao apanharem: não podiam reclamar, mesmo porque, “homem de verdade tem que
apanhar calado”. (idem, p. 40)
O seminário serve desta forma como uma espécie de arena de
agressividades, onde aqueles com pré-disposição para a tirania e a dominação
através da força física terão um amplo e irrestrito manancial de oportunidades para
34
exercitar seus mandos e desmandos. Os colégios internos, assim, tornam-se de
alguma forma, como observa Mazzari, uma espécie de “laboratório onde se devem
exercitar habilidades que se farão necessárias no futuro” (MAZZARI, 1997, p. 7).
Essa idéia de um lugar comandando pelas leis dos mais fortes e onde apenas eles
tornar-se-ão homens de verdade, “propicia, por um lado, o surgimento eventual de
déspotas implacáveis, e não prescinde, por outro, da figura do bode expiatório”
(idem, p. 8).
35
3.1. Os meninos fortes e os meninos fracos
Estar em um seminário não é para qualquer menino, apenas alguns eleitos
têm esse direito. Poderão entrar somente aqueles que são “amigos da oração,
puros, estudiosos e de boa saúde” (TREVISAN,1982, p. 24). Dessas características
listadas pelo narrador-entrevistado, a última certamente nos remete diretamente aos
padrões higienistas do século XIX aos quais já nos referimos, isto é, o corpo precisa
estar em bom funcionamento para alcançar o divino, ou ainda, a ênfase na
valorização corporal para se estar ao lado de Deus. Um pouco mais à frente, a
testemunha vai ser irônica ao dizer que as famílias tinham um interesse nem sempre
espiritual para ceder seus filhos à educação religiosa já que os estudos sairiam de
graça para aquele que conseguisse entrar para o seminário.
Já vimos anteriormente que os seminaristas estavam divididos em dois
grupos, havia um primeiro composto por meninos entre dez e treze anos – os
Menores; e os que tinham de treze anos para cima - os Maiores. Tiquinho e Abel, os
dois extremos do romance de Trevisan, possuem comportamentos opostos e ao
mesmo tempo complementares. Os meninos são descritos pelo narrador-
entrevistado de modo preciso:
Para não me adiantar demais, menciono que o primeiro
protagonista era um menino sensível e delicado, recém-incluído na
turma dos Maiores, pois acabava de completar treze anos. Seu
nome é, até hoje, João. Naquele tempo, chamavam-no às vezes de
Joãzinho. Mas era mais conhecido como Tico-Tico, por causa do
rosto cheio de sardas que lembravam o passarinho. De Tico-Tico, o
nome variava para Tiquinho, por ser ele pequeno – um tiquinho de
gente. Se não me falha a memória, tratava-se de um garoto tímido,
corroído por uma paixão que abrangia incessantes objetos de amor
e conduzido por uma honestidade em excesso que o tornava, muito
frequentemente, vítima de escrúpulos morais e espirituais quase
sem saída. (...) Quanto ao segundo protagonista, chamava-se Abel
– Abel Rebebel, nome certamente encantatório. (...) Abel Rebebel
36
fora feito para não ser jamais esquecido. Daí porque seu significado
extravasa os tijolos dos muros, vence a inflexibilidade do tempo e
perfura as pedras do coração” (TREVISAN, 1982, p. 25).
A longa passagem é rica e extremamente importante na compreensão das
representações acerca dos diferentes tipos de comportamentos encontrados no
seminário. Se voltarmos ao quadro proposto por Misse reproduzido por nós no
capítulo anterior, veremos que os termos usados para descrever um e outro
protagonista, são claros e não deixam dúvidas daquilo que pretendem passar.
Tiquinho apresenta diversos pontos em comum com o que Misse classifica como
gestos de feminilidade, inclusive no modo minuciosamente detalhado e mais
verborrágico utilizado pelo narrador, outros dois pontos comumente relacionados ao
feminino. Tiquinho é um menino introvertido, fisicamente pequeno e totalmente
entregue às próprias paixões, características que assim como os seus apelidos
estão intrinsecamente ligados a uma idéia depreciativa, como algo menor, sem
força, mínimo... O personagem estaria, deste modo, totalmente distante do modelo
ideal de masculinidade moderna, “como se a feminilidade se medisse pela arte de se
fazer pequena” (BOURDIEU, 2007, p. 39). Importante demonstrarmos que não só
seu apelido vem carregado de referências ditas femininas, como o próprio nome
João possui, segundo o dicionário
13
de significado de nomes, a impulsividade como
uma importante característica.
Abel, ao contrário, é descrito secamente em poucas, porém, consistentes
palavras. Palavras essas que estão diretamente relacionadas ao modelo de
virilidade proposto pelo quadro de Misse. Ele é fortemente marcado por imagens
duras, ásperas. Os verbos extravasar, vencer e perfurar não foram colocados ao
13
Dicionário de nomes: http://www.names.hpg.ig.com.br/
37
acaso e trazem três idéias essenciais na caracterização do personagem. São verbos
que marcam sintaticamente uma forte carga sexual, e não deixam dúvidas sobre a
virilidade de Abel. O nome Abel tem a idéia de: “vaidade e indica uma pessoa
aventureira e ousada, que precisa controlar seus impulsos para não tomar atitudes
agressivas, que lhe causariam sérios problemas a curto ou médio prazo”
14
.
Sem contar com a semelhante e propositada sonoridade de seu sobrenome
com as palavras rebeldia e rebelde. Ele está portanto, diametralmente oposto ao
primeiro protagonista. O que de certa forma nos leva a especular se o Seminário
provavelmente não estaria apenas dividido por idades, mas também em Tiquinhos e
Abeis, isto é, meninos fracos e meninos fortes.
Um segundo dado reforçará a idéia de um lugar dividido entre fortes e fracos.
Os meninos fortes se dedicavam ao esporte que representa o que há de mais
másculo na sociedade brasileira: o futebol. Já os outros meninos gostavam de tênis
ou vôlei, este último de acordo com o narrador era um esporte menor justamente por
ser o preferido dos mais fracos ou como ele prefere: os mariquinhas.
Corporalmente o homem ideal precisa ser rude, atacar antes de ser atacado e
o futebol é um esporte, que durante muito tempo foi uma exclusividade dos homens,
foi a atividade ideal para distinguir aqueles que têm a honra de serem considerados
verdadeiramente masculinos. No Seminário, Padre Augusto também comungava a
idéia de que os esportes servem como “um instrumento para forjar homens com H
maiúsculo”, porque afinal de contas, “para ele, o físico moldava o caráter”
(TREVISAN, 1982, p. 80). As palavras de Jurandir Freire Costa são mais do que
14
Dicionário de nomes: http://www.names.hpg.ig.com.br/
38
convenientes neste momento: “o homossexualismo, dizia-se, existe porque os
meninos não se exercitam fisicamente e tornam-se efeminados.” (COSTA, 1989,248)
Estabelece-se, desta forma, um corpo humano que não é um espaço em
branco, pelo contrário, o corpo é precisamente o locus em que a materialização e o
investimento de poder coexistem (SANTOS, 2001, p. 104). O corpo masculino
precisa se posicionar e se fortalecer durante sua trajetória, afinal de contas, “o corpo
é uma língua que fala sem falar” (idem, p. 105). Portanto, nascer homem não é o
suficiente, é necessário se fazer homem durante toda a sua existência, essa espécie
de perseguição infinita do que é ser homem é uma importante chave para o
entendimento da masculinidade moderna.
Uma das referências femininas de Tiquinho, a sensibilidade exacerbada, fará
com que ele tenha uma espécie de iluminação com Liszt e sua Rapsódia Húngara n°
2. Os acordes da referida música mostrarão a ele sua condição de solitário naquele
Seminário e ele entende que sua sobrevivência só acontecerá com algum tipo de
ajuda externa. O leitor é neste momento levado a conhecer a turma dos meninos
fracos. Uma gesticulação excessiva e esvoaçante somada a gritinhos de susto ou
surpresa fazem com que essa turma seja também conhecida como Passarada,
nome “maliciosamente reinterpretado, pelos mais afoitos, como a Bicharada”.
(TREVISAN, 1982, p. 51)
A Passarada era composta pelos mariquinhas, isto é, aqueles que não
jogavam futebol e tomavam banho todo dia.
Mariquinha era quem usava talco, porque homem de verdade
cheirava a suor; aliás, homem devia ter cheiro de porra –
entendendo-se, por essa atropelada conclusão, que o acúmulo de
sebo debaixo do prepúcio significava quantidade generosa de
esperma e, portanto, de virilidade. (idem, p. 50)
39
Através de tipificações tão evidentes: mulher-fraco; homem-forte, é fácil
compreender que dentro deste seminário de Em nome do desejo:
o normal (Abel) é associado ao ativo e o estigmatizado (Tiquinho) ao
de passivo, correspondendo o primeiro à função sexual do
heterossexual masculino e o segundo, à função sexual do
heterossexual feminino. (MISSE, 2005, p. 45 )
Além da higiene pessoal como símbolo dessa feminilidade (leia-se aqui
inferioridade), os participantes da Bicharada estavam associados a um gosto
requintado, um certo refinamento e um cuidado com as próprias roupas.
Perfumados, arrumadinhos e ouvindo música clássica... Se esses meninos
estivessem dentro de qualquer escola do Rio de Janeiro contemporâneo, com
certeza seriam ridicularizados por todos e ouviriam aquele velho ditado popular:
“esses aí foram criados pelas avós.” Determinados estereótipos parecem nunca
perderem os seus prazos de validade, infelizmente. A Passarada tinha consciência
de suas “diferenças”, a união entre eles era fundamental e uma vez seguros dentro
das chamadas “panelinhas”, estes meninos se permitiam atos mais ousados, como
inclusive paquerar um jovem do grupo dos mais fortes ou até mesmo a organização
de uma eleição para escolher o mais bonito dos meninos.
Tico-Tico, Tuim “(às vezes cognominado, por seus inimigos, como Bate-Cu,
dúbio sinônimo dessa espécie de periquito sul-americano)” (TREVISAN, 1982, p.
51), “Siriema, Pica-Pau (cujo sentido variava conforme a expressão do rosto e o tom
de voz de quem o chamava)” (idem, p. 51), são apelidos que ilustram a condição de
estigma que o grupo vivia, são todos leves, frágeis, sensíveis. Um outro
representante da Passarada, Canário, menino magrela e saltitante, é melhor
40
exemplo desse comportamento passivo dos meninos do grupo de Tiquinho. Canário
não hesita em masturbar-se pensando em seu ídolo Tora-Tora, que tem sua
virilidade exposta através da própria metáfora de seu apelido. JST não apresenta
esse comportamento através de um vocabulário hesitante e expõe de modo cru os
desejos deste personagem:
Quase em prantos, Canário vinha relatar a Tiquinho como acabara,
mais uma vez, de pecar por obra – e isso, em sua gíria particular,
significava que Canário tinha se masturbado com o dedo no cu e o
pensamento voltado para o seu predileto (TREVISAN, 1982, p. 53).
Canário vai às vias de fato e não só escolhe um outro menino como objeto de
suas paixões, como se recusa a ter prazer através de seu próprio instrumento de
poder, o falo, em suma: ao abdicar de sua masculinidade ele perderá seus direitos
naturais como macho; precisará enfrentar os que o cercam não mais como homem e
sim como mulher. Garotos como Canário desafiam o grande ABC machista da
sociedade e com isso passam a ser ridicularizados pelos outros, afinal de contas,
nenhum homem em sã consciência escolheria deliberadamente assumir as funções
do sexo oposto, pelo menos é isso que diz a moral burguesa vigente há tanto tempo
entre nós.
41
4 – O ESPAÇO FECHADO DO SEMINÁRIO
A vida de um interno é marcada principalmente pelo isolamento familiar. Em
um determinado momento de sua vida, a educação do jovem rapaz será entregue
aos cuidados de educadores especiais. Junto a essa transição de um núcleo seguro
e quase sempre carinhoso, que é a família, para um ambiente permeado por regras
e restrições representado pelos internatos, virá uma série de sofrimentos, dores,
prazeres e descobertas. No conto Inventário do Primeiro Dia, de Autran Dourado,
por exemplo, acompanhamos a sentida despedida de João a seu velho lar. Passo a
passo vamos vendo o menino acordando, tomando café pela última vez ao lado de
seus pais como uma criança, visto que certamente ele deverá voltar como um
homem do colégio. A partir daquele instante o seu processo de transformação
ganhava vulto e seus referenciais todos irão ser moldados de acordo com as novas
perspectivas que irá encontrar no desconhecido caminho. Já em Doidinho, de José
Lins do Rego, logo na primeira fala do romance é vaticinado o futuro do
personagem: “- Pode deixar o menino sem cuidados. Aqui eles endireitam, saem
feitos gente”. (REGO, 1996, p. 3)
Virar gente, homem de verdade... As agruras vividas em cada conflito surgido,
certamente trarão várias noites de insônia e farão cada um deles relembrar com
saudade de todos os detalhes desse último dia como menino, afinal de contas:
quando se é menino (...) tem-se o sono seguido, um só bloco do
adormecer ao acordar, nada havendo capaz de perturbar uma
existência que desconhece tudo o que há de realmente sério no
mundo. (FARIA, 1969, p. 21)
42
Para Goffman, ao dar o primeiro passo dentro de uma instituição fechada, “o
novato é imediatamente despido do apoio dado por algumas disposições sociais
estáveis de seu mundo doméstico”. (GOFFMAN, 1974, p. 24)
Segundo a catalogação feita pelo autor de Manicômios, Prisões e Conventos,
as instituições totais estariam espalhadas em cinco agrupamentos:
Em primeiro lugar, há instituições criadas para cuidar de pessoas
que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas; nesse caso
estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes. Em segundo
lugar, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas
incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à
comunidade, embora de maneira não-intencional; sanatórios para
tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários. Um
terceiro tipo de instituição total é organizado para proteger a
comunidade contra perigos intencionais, e o bem-estar das pessoas
assim isoladas não constitui o problema imediato: cadeias,
penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de
concentração. Em quarto lugar, há instituições estabelecidas com a
intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de
trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos
instrumentais: quartéis, navios, escolas. Finalmente, há os
estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora
muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os
religiosos; entre os exemplos de tais instituições, é possível citar
abadias, mosteiros, conventos e outros claustros. (idem, p. 16-17)
Para esta pesquisa nos interessa observar os dois últimos espaços
institucionais descritos por ele: escolas e mosteiros. As representações literárias do
ambiente das instituições pertencentes ao quarto grupo são várias: O Ateneu, Três
Histórias de Internato, Mundos Mortos, só para ficar em alguns poucos exemplos,
exploram com bastante propriedade alguns destes modelos de regime fechado. Na
sua obra Em nome do desejo, João Silvério Trevisan faz um mergulho em uma
instituição que se cerca do manto da religiosidade na formação de seus discípulos.
Vale a pena ressaltar que enquanto o Seminário age como uma espécie de
“faculdade” na vida do jovem (ele deverá ser um padre no futuro); o internato está
desobrigado de uma preocupação profissional. No entanto, mesmo com esta
43
particularidade entre estes dois modelos de instituição total, tanto no internato
quanto no seminário a didática adotada será semelhante no tratamento dos anseios
e mutações típicos da puberdade; didática esta que será decisiva na formação do
menino como indivíduo. Seminaristas e internos passarão por dilemas análogos e
quase sempre viverão as mesmas experiências. De acordo com Bakhtin, “este tipo
de romance de formação se caracteriza por uma representação que assimila o
mundo, a vida a uma experiência” (BAKHTIN, 1997, p. 238).
Essa experiência de vida proporcionada por uma íntima convivência entre
garotos de várias posições e educações, acaba por trazer preocupações aos pais e
educadores em relação a esse convívio tão próximo de tantos adolescentes: como
controlar a convivência desses meninos em um regime tão fechado e restrito?
Mesmo porque, “a amizade constitui muitas vezes um lugar de definição da
identidade sexual. Ela é também a relação em que a passagem ao ato sexual
geralmente não é admitida” (BUFFAULT, 1996, p. 15). O que vemos nesse ponto, é
um certo melindre dos autores ao abordarem os encontros afetivos entre meninos.
De Raul Pompéia a Roberto Drummond, é interessante percebermos como esse
dilema foi (ou não) solucionado por muitos deles. Em Mundos Mortos, por exemplo,
Octávio de Faria dedica a segunda parte de seu livro – A sombra de Deus – a uma
intrigante e obsessiva amizade, que é descrita assim por um dos personagens do
romance:
- Trata-se mesmo do que nos pareceu, sem sombra possível de
dúvida: um desses sentimentos monstruosos que, nessa idade,
desgraçadamente prendem por algum tempo determinadas
criaturas a outras do mesmo sexo. (FARIA, 1969, p. 211)
Destarte Octávio de Faria se mostra em total sintonia com O Barão de Lavos,
do português Abel Botelho; retomando com muita propriedade os preceitos médicos
44
sobre o comportamento homossexual. Porém, além dessa retomada de conceitos
comportamentais do século XIX, o trecho traz ainda algo de suma importância para
esse momento de nossa pesquisa: a idéia de uma associação explícita da idade
adolescente a um comportamento repleto de “desvarios” e monstruosidades.
Sabemos que viver em sociedade de modo tranqüilo e sem muitos tropeços,
significa quase sempre seguir um tipo de comportamento mais ou menos similar ao
da maioria. Muitas vezes o procedimento de um indivíduo dentro do grupo social a
qual pertence não corresponde àquilo que este mesmo indivíduo pensa ou acredita
de modo particular e isolado. Emile Durkheim chama de representações sociais esse
comportamento do indivíduo enquanto grupo, e representações individuais o modo
de pensar específico de alguém. O grande conflito do indivíduo, segundo Durkheim,
é quando ele de uma forma ou de outra se vê obrigado a abdicar de um
posicionamento, de uma crença porque elas não se “encaixam” naquilo que o resto
do grupo social acredita ser o mais correto. Com alguns escritores parece ocorrer o
mesmo, isto é, ainda que seja considerável o número de obras que têm o internato
como cenário, sentimos que concretizar ou falar dos desejos sexuais adolescentes
(desejos que são geralmente “apagados” na maturidade) é um desafio não
enfrentado por eles. Ao abordar o tema dos relacionamentos juvenis em uma
instituição fechada, muitos preferem deixar invisíveis determinadas ações
consideradas “de mau gosto” ou “contra naturam” pela maioria. Ao que nos parece,
no Brasil, apenas Paulo Hecker Filho e João Silvério Trevisan se aventuraram a
ultrapassar os ditames morais canonizados por essa “consciência coletiva”
percebida e esmiuçada pelo sociólogo francês. Queremos dizer com isso que o
comportamento sexual de João, Doidinho, Roberto, e Sergio, por exemplo, parece
seguir uma certa representatividade social estipulada como padrão, com seus
45
autores não encontrando espaço para explorarem os desejos sexuais ditos
“desviantes”.
Em uma novela publicada somente após a sua morte em 2002, Roberto
Drummond, faz uma bela tentativa de alcançar novos caminhos com as histórias de
internatos. Em Dia de São Nunca à Tarde, um casal de gêmeos – Gabriel e Gabriela
- idênticos na aparência e no comportamento, decide trocar de lugar em um colégio
interno em busca de novas experiências. Infelizmente, a novela fica apenas no
campo das tentativas, pois apesar do que essa troca poderia realmente
desencadear, Drummond não se aprofunda na confusão que a androginia dos
irmãos causa nos outros internos e fica tudo apenas parecendo uma redutora e
simplista variação de um tema já explorado com mais sutileza por seu conterrâneo
Guimarães Rosa no célebre Grande Sertão Veredas.
Com Trevisan e Hecker Filho as idéias ultrapassam o campo das sugestões e
insinuações e no que diz respeito às questões dos amores homoeróticos ganham,
deste modo, um caráter mais profundo e sincero. Os dois autores parecem ter se
despido de qualquer limitação e decidem (finalmente) explicitar os chamados
amores juvenis para extrair deles uma impressionante pintura da adolescência.
Tiquinho, Abel, Jorge e Eli são personagens que mergulham de cabeça em direção
aos seus desejos mais profundos. O notável resultado deste mergulho, criado com
ousadia por seus autores e vivido com angústia por seus personagens, demonstra
como as relações afetivas estão rigidamente fundamentadas em um eterno jogo de
poderes, resultando invariavelmente na submissão sexual do mais fraco ao mais
forte.
Os casais formados por Tiquinho e Abel – no romance Em nome do desejo, e
Jorge e Eli – na novela Internato, estão perfeitamente em sintonia com a divisão
46
ativo/passivo tão valorizada pela cultura ocidental moderna: dois meninos que se
deixam levar por seus desejos de forma incontrolada e desesperada; outros dois que
agem mais de acordo com a razão e que não demonstram em nenhum momento
fragilidade ao se entregarem aos seus desejos. Como iremos ver com mais detalhes
na próxima parte, Tiquinho, Jorge, Abel e Eli reproduzem com muita fidelidade os
comportamentos de um mundo (ainda) comandado por idéias de uma supremacia
masculina e máscula.
47
4.1. Tiquinho e Abel/Jorge e Eli
O gaúcho Paulo Hecker Filho, que em 1951 teve a coragem de escrever um
enredo que narrava os desejos e as realizações homoeróticas de dois jovens
estudantes foi um autor de muitas qualidades e um crítico sagaz tanto da arte
literária quanto da arte da vida. Incluída no livro intitulado Juventude (1998),
Internato foi uma novela originalmente escrita em 1951 e conta a história de Jorge e
Eli, alunos de um internato que vivem as suas primeiras experiências sexuais.
Narrado de forma ágil e com personagens habilmente trabalhados em seu caráter
psicológico, Internato pode ser considerado, sem sombra de dúvida, um marco
dentro da literatura homoerótica brasileira.
Neste capítulo faremos um paralelo entre os relacionamentos vividos pelos
protagonistas de João Silvério Trevisan e os de Paulo Hecker Filho. Tiquinho/Abel e
Jorge/Eli são duplas próximas em alguns aspectos, sendo o primeiro deles,
certamente, a divisão de um mais apaixonado (passivo) e outro mais racional (ativo).
Tiquinho e Jorge apresentam comportamentos mais extremados e impulsivos,
enquanto que Abel e Eli são mais controlados e racionais.
Cena 1:
“Imaginava-se pedido na floresta, rodeado por bichos e cobras enormes.
Então Abel aparecia pelado como Tarzã e o salvava”. (TREVISAN, 1982, p. 126)
Cena 2:
“Lá estava ele sorrindo. Como é bonito! O tronco poderoso se continua por
nádegas rijas e coxas grossas de atleta”. (HECKER, 1998, p.39)
48
Cena 3:
“Abel amava de maneira mais direta e cândida, sem demasiados
questionamentos e mais dentro dos padrões. (...) Abel era mais seco na
demonstração do seu amor”. (TREVISAN, 1982, p. 137,148)
Cena 4:
“Eli era o predileto dos desviados. Tinha iniciado vários, e amantes, de
qualquer sexo... Segundo ele, e era de crer... desvirginou meninos e meninas”.
(HECKER, 1998, p. 46)
Nas duas primeiras cenas Tiquinho e Jorge são atraídos pelos atributos ditos
masculinos de seus parceiros: corpos atléticos e atitudes dominadoras. Esse
desvario apaixonado pela virilidade do outro faz com que eles não se importem em
se colocarem como submissos perante seus parceiros. Abel e Eli, por sua vez, se
posicionam de maneira mais direta e parecem exibir com certo orgulho sua
agressividade. As quatro cenas são claras e determinam quais os papéis a serem
desempenhados pelas duplas, isto é, o jogo macho/fêmea está definido: ao
demonstrarem seus afetos e sentimentos, Tiquinho e Jorge desrespeitam a cartilha
do homem moderno e são por isso mesmo subjugados e dominados por Abel e Eli,
que por sua vez, comportam-se como machos típicos e não titubeiam na hora do
sexo; se posicionam claramente como ativos e exigem a total passividade de seus
parceiros:
Chupa, ordenava Abel. Não, balbuciava um Tiquinho inseguro. Se
você gosta de mim, então chupa – insistia Abel. (...) Então Abel
vencia, mas seu contendor não vertia sangue. Abel é que derramava
sinais de vitória por todo o rosto e boca do pequeno amante.
Tiquinho, cujo olfato e paladar aprenderam a deliciar-se com o
esperma de Abel, no fundo julgava-se um privilegiado. (TREVISAN,
1982, p. 164)
49
Jorge vai devagar, mas não desiste. Acordar o outro para o prazer já
é o prazer. Suga-lhes as mamas, o pênis de Eli levanta. Toma-a na
boca. Eli pede que assim, assim! Jorge o atende; ardem.
Sai um líquido e Eli diz que cuspa que pode ter ainda um restinho de
gonorréia. Cospe e continua. O orgasmo vem vindo, Eli avisa. Jorge
se masturba para acompanhar. (HECKER, 1998. p. 56-57)
É fundamental entender essas parcerias como legítimas representações do
modelo sistematizado dentro dos parâmetros de alguém que manda e um outro que
obedece, isto é:
se a relação sexual se mostra como uma relação social de
dominação, é porque ela está construída através do princípio
fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo.
(BOURDIEU, 2007, p. 31)
Abel e Eli, desta forma, cometem um “delito” menos grave, nenhum dos dois
deixou de ser homem, porque mesmo em uma relação com outro homem, eles se
portaram como ativos, sendo assim, os dois podem se considerar “salvos, pois como
bem coloca Michel Misse: “o normal é associado ao estereótipo de ativo e o
estigmatizado ao de passivo” (MISSE, 2005. p. 45). Para entendermos melhor como
esses mecanismos funcionam na prática, vejamos o final da novela de Hecker Filho
e percebamos como a punição do ato praticado por Jorge e Eli não é aplicada
igualmente aos rapazes:
Na mesma tarde, forçada pelo escândalo geral, a Direção do
Colégio toma providências. Depois de Eli, Jorge é chamado e lhe
confirma as declarações, como se tratasse de outra pessoa, não
dele.
O diretor começa a moralizar, mas a atitude pétrea do rapaz o
tolhe.
Decide-se: expulsão para os dois.
A punição a Eli, no entanto, é menos levada a sério, pelos alunos e
mesmo a Direção, já que, um mês depois, é readmitido a pedido da
família.
Jorge faz as malas e segue, na mesma noite, de trem para casa.
Mas já não vai voltar, sabe, a ser filho de seus pais, o irmão de
seus irmãos. (HECKER, 1998, p. 61)
50
Paulo Hecker Filho é bastante elucidativo e prova que os encontros
homoeróticos não podem, nem de longe, ser chamados de “amor entre iguais”. No
jogo de poder que é a nossa sociedade, onde ainda não há igualdade entre homens
e mulheres, é natural que no encontro sexual entre dois homens, seja imprescindível
rotular uma das partes como “fraca, desviante e feminina”. Ambos serão punidos,
mas para aquele que se colocou na posição de dominado, não há salvação e Jorge
naquele instante descobre que não pertence mais ao ideal de família burguesa, seu
lugar agora era dentro da grande família dos degenerados instintivos (COSTA, 1996,
p. 87).
Além desse retrato intenso dos amores juvenis masculinos, os dois autores,
fazem seus personagens “femininos” caminharem para um final trágico e solitário.
Para Tiquinho resta a solidão de uma vida incompleta: aos quarenta anos e muito
longe daqueles dias do Seminário, ele ainda continua tentando se encontrar nos
intricados caminhos que o desejo um dia o levou:
Se olho para trás, me vejo em perspectiva, mais ou menos assim:
cresci, estudei, arranjei minha especialidade, casei, fiz filhos, bebi
cerveja em inúmeros pontos da cidade mas batia o ponto, todas as
manhãs, num só lugar. (TREVISAN, 1982, p. 13)
Abel, o ativo, simplesmente deixa o Seminário. Não há mais notícias e ele
desaparece na paisagem. Ao passivo Tiquinho não é permitido viver em paz, por
mais que tente reconstruir e recomeçar, sempre e sempre o seu estigma o lembrará
de quem ele foi um dia.
Em Internato, Jorge também não terá um final mais feliz, Hecker Filho retoma
a velha tradição da idéia de uma severa punição para o homem detentor do estigma
da passividade. As últimas linhas de sua novela mostram a sexualidade de Jorge
sendo descoberta e atirada em sua face pelos outros internos através de muita
violência e humilhação:
51
As palavras enfim brotam espumando em Alfredo: - Nojento!
Tiveste coragem de namorar minha irmã! Nojento!(...) Jorge
relaciona tudo, caído sob os olhares de fresco, nojento, fresco,
nojento. Mete a cabeça nas pedras do chão, rompe sangue dos
lábios, do nariz. Descargas o vergastam. Quer entrar pela terra, não
ver aqueles olhos, e sente que lhe flagelam as costas como relhos.
Que fazer? Chora em silêncio. (HECKER, 1998, p. 60-61)
A Abel e Eli, os ativos, os “fodedores”
15
, isto é, aqueles que “penetraram com
seus pênis e feriram, desgraçaram e arruinaram”, a brandura e o esquecimento de
seus “desvios”; a Tiquinho e Jorge, os passivos, os “fodidos”, ou seja, aqueles que
foram “penetrados” e assim se tornaram “infelizes, feridos e desgraçados”, a
expulsão do grupo social e o eterno rótulo de pária. Ambos sabem que serão
obrigados a trilharem pelos caminhos errantes dos desviados; sabem que não há
mais como voltarem atrás. Enfim, para os ativos, o perdão e para os passivos,
somente a certeza de que nada mais será como antes.
15
As palavras grifadas são frutas de uma pesquisa de Michel Misse acerca de como alguns termos verbais
funcionam como caracterizações de prestigio e estigma para o indivíduo. MISSE, 2005, p. 66
52
4.2. EROTISMO NO SEMINÁRIO
Bésame con besos de tu boca!
Son tus amores más deliciosos que el vino;
son tus unguentos agradables al olfato.
Es tu nombre un perfume que se difunde.
Cantar de los cantares 1:2, 8:6
Um mundo onde todas as coisas estão voltadas a Deus e aos bons costumes,
à seriedade dos estudos e ao aperfeiçoamento da alma. Falando assim fica difícil de
relacionar aquele espaço do Seminário com um palco de conturbadas paixões, de
intensos desconfortos e intricados dilemas em relação ao próprio corpo. Mas como
bem nos lembra Georges Bataille: “não existe interdito que não possa ser
transgredido”. (BATTAILE, 1987, p. 59)
Apesar do mundo de Tiquinho e seus companheiros de aulas ser
severamente pautado pelo Regulamento, uma espécie de manual sobre os bons
hábitos a que todos os meninos estavam submetidos, sempre havia espaço para o
desvio. O Regulamento era usado pelos Padres na educação dos seminaristas e
através dele se media a verdadeira vocação de um eleito e controlava-se (ou ao
menos tentava-se) o comportamento dos meninos. Tudo na disposição do colégio
indicava uma busca pelo controle absoluto dos passos dados pelos jovens, desde a
separação física do Seminário, a fim de isolar os que eram considerados ainda
crianças daqueles que já haviam entrado na fase das tormentas da puberdade, até o
controle absoluto dos horários das atividades, tudo era pensado e articulado no
sentido de se eliminar toda e qualquer possibilidade de comportamento íntimo e
sexual entre os internos.
53
Porém, paralelo a esse ritual burocrático idealizado pela Igreja e pelos
educadores, havia uma espécie de submundo onde os meninos descobriam os
limites e os mistérios de seus corpos e almas através de outros meninos, o fato é
que como nos mostra a passagem abaixo, as tentações da carne estavam tão
presentes quanto todas as regras inventadas e impostas pelos superiores:
As grandes paixões da carne e do espírito, dessas que só ocorrem
na adolescência – uma idade em que os humanos dão seus
mergulhos mais radicais, porque entram em cena vestidos apenas
com a frágil armadura de desejos tão vorazes quanto ingênuos.
(TREVISAN, 1982, p. 26)
Havia medo em cada passo comandado por esses estranhos desejos;
sobretudo porque todos eles tinham consciência do que uma expulsão,
principalmente aquela causada por delitos relacionados às amizades suspeitas,
poderia significar em suas vidas:
O expulso do Paraíso ficava isolado e incomunicável, enquanto
seus pais não o viessem buscar. Comia depois da comunidade,
sentava-se à parte, na capela, e não mais participava dos recreios.
Desse momento em diante, ele passava a merecer o desonroso
epíteto de “ex-seminarista”. E era atirado ao “Mundo” (TREVISAN,
1982, p. 34)
Os interditos eram muitos e fortemente regulamentados, no entanto, seja
assistindo aos acasalamentos dos bichos do Seminário, seja procurando nos
banheiros parceiros para trocas de carinho e paixão, aqueles garotos em momento
algum se sentiam privados, pelo contrário, buscavam mais e mais maneiras de
viverem seus próprios rituais de modo intenso e visceral.
Privados da presença feminina e com os hormônios da adolescência
necessitando se manifestar era preciso encontrar um caminho de satisfação destes
desejos juvenis. Encontros furtivos, olhares buscando o prazer e o desabrochar de
amores sinceros (ou não)... de uma forma ou de outra, tudo acabava acontecendo.
Como muitos internos apenas obedeciam aos próprios instintos e por isso mesmo
54
“iam explicando como podiam essas coisas novas e complicadas que descobriam”,
(TREVISAN, 1982, p. 27) todas as questões relacionadas ao sexo e ao prazer
acabavam sendo tomadas por grandes Mistérios. E de acordo com o narrador-
entrevistado, naquele tempo os mistérios estavam em todos os lugares do
Seminário: Mistérios Gozozos
16
, Mistérios Dolorososos e Mistérios Gloriosos:
Mistérios gozozos era quando se conseguia ficar um pouco junto do
próximo muito amado sem que ninguém notasse nem criticasse o
teor da paixão; era um mistério gozozo, também, andar ao lado dele
no campo de futebol (...)
Os mistérios dolorosos eram chatos, ruins: quando se sentia
saudades demais e não havia consolo possível (...) mas, o mistério
mais doloroso de todos era amar o próximo com toda a alma e, por
causa disso, cometer o pecado contra a castidade – como pensar no
próximo pelado ou pegar na mão do próximo disfarçadamente ou, já
enlouquecido de amor, apalpar o pinto do próximo amadíssimo,
durante uma projeção de filme...;
Os mistérios gloriosos aconteciam muito pouco. Era quando um
menino amava o próximo como a si mesmo e o próximo também o
amava como a si mesmo, e podiam guardar o segredo entre si, com
toda confiança, e amar-se incansavelmente, sem medo. (idem p. 28)
Redefinida nos seus pormenores na passagem acima, a trindade do Santo
Rosário
17
é interpretada pelos seminaristas de modo todo próprio, afinal de contas,
“os mistérios eram coisas para além da imaginação dos eleitos” (idem, p.26). O jogo
ficcional criado por Trevisan leva a narrativa a se apropriar deste discurso religioso
de forma tão irreverente (ou seria melhor dizer sacrílega?) e serve para informar ao
leitor sobre toda a complexidade que movia estes meninos na busca de suas
satisfações (carnais ou não), e de como essa busca acaba sendo uma prática
rotineira e driblada com muita facilidade por eles. O sexo, deste modo, acaba por se
16
Estamos reproduzindo a palavra conforme está escrita no romance e em alguns documentos da Igreja Católica.
17
A oração do Santo Rosário surgiu mais ou menos no ano 800 à sombra dos mosteiros, como Saltério dos
leigos. Em 1365 fez-se uma combinação dos quatro saltérios, dividindo as 150 Ave Marias em 15 dezenas e
colocando um Pai nosso o início de cada uma delas. Em 1500 ficou estabelecido, para cada dezena a meditação
de um episódio da vida de Jesus ou Maria, e assim surgiu o Rosário de quinze mistérios. O Santo Rosário é
considerado a oração mais perfeita. Fonte:
http://www.acidigital.com/rosario/
55
tornar onipresente e polivalente, isto é, independente de todos os sermões e do
fantasma da ira de Deus, os meninos iam por debaixo dos panos ao encontro da
concretização de seus desejos.
O romance também se divide de modo extremamente equilibrado ora entre
cenas que beiram ao vulgar ao descreverem o comportamento sexual dos jovens de
modo tão cru e direto:
Abel entrou na enfermaria e ficou nu em pêlo. Deixou o pinto
exposto, sem se acanhar por estar ostentando desejo na rigidez
pulsante. Tico não pôde mais resistir e fez o que ansiava ousar
havia muito. Comungou Abel, até a última gota de sangue.
(TREVISAN, 1985, p. 172)
ora em passagens que narram histórias e imagens de alto teor erótico do imaginário
católico - que iremos explorar na última parte deste trabalho:
Tiquinho achava lindo sofrer por amor a Jesus. Como São Marcos e
Marcelino que, na perseguição do imperador Diocleciano, foram
presos e atados a um tronco e tiveram os pés atravessados com
pregos agudos... E mais Santa Corona que, para gáudio de
Tiquinho, foi dilacerada entre duas árvores, por amor a Cristo e por
distensão dos membros. (TREVISAN, 1982, p. 100)
Cenas como essas que acabamos de expor, acabam por fazer do romance de
JST uma original combinação “sobrecarregada de tons barroquizantes”. (LOPES,
2002, p.130) É claro que essa combinação milimetricamante aliada a uma
intertextualidade presente na apropriação de importantes passagens das obras de
Santa Teresa D´Ávila e São João da Cruz, traduzida pelos discursos do personagem
Tiquinho, está “prenhe de intenções, propostas ideológicas, políticas e literárias”.
(LEAL, 2002, p. 127) Porém, o recurso longe de querer parecer meramente
escandaloso ou indecente, se mostra muito mais interessantemente transgressor no
sentido de utilizar “parte desse ideário religioso para autorizar e legitimar o amor
56
entre os do mesmo sexo”, (idem, p. 131) em suma, a atitude transgressora se faz
com perfeição e muita sutileza justamente porque concretiza uma “paixão carnal,
homoerótica, que se legitima pela usurpação do lugar enunciativo do discurso que a
condena, mas que ratifica o Amor sobre todas as coisas”. (LEAL, 2002, p. 132)
Outro importante ponto a ser levantado por nós é a presença de um conflito
chave no romance que dialoga com outros dois expoentes dessa literatura que tem
como pano de fundo os regimes fechados dos colégios internos. Estamos nos
referindo aos episódios que demonstram de maneira velada (ou não) as violentas
condutas sexuais dos jovens rapazes. Em O Ateneu, O Jovem Törless e Em Nome
do Desejo, meninos dos chamados grupos dos mais fortes buscam satisfazer seus
prazeres através da dor alheia, isto é, através de um humilhante jogo de tortura
física e psicológica os ditos “mais fortes” subjugam os “mais fracos” em um ato de
dominação total, incluindo aí a satisfação sexual destes tais mais fortes através dos
mais fracos.
Na obra de Raul Pompéia, o que trata esta questão de modo menos explícito
entre os três romancistas, temos no capítulo VIII uma importante passagem que
demonstra essa dominação por entre reticências e silêncios. Esse jogo de silêncio,
já muito interpretado pela crítica literária
18
, deixa transparecer o procedimento sexual
dos meninos e que o mesmo estava ligado à dicotomia ativo/passivo. O Diretor do
Ateneu, Aristarco, no processo que acusava doze meninos de serem “acólitos da
vergonha e co-réus do silêncio”, (POMPÉIA, 1989, p. 107) mostra-se irritado
especialmente com um dos meninos, a passagem é bem clara ao explicar os
motivos o porquê de um dos meninos parecer estar mais errado do que os outros:
18
Para maiores esclarecimentos sobre esse assunto, ver a análise de Mario de Andrade sobre O Ateneu em
Aspectos da Literatura Brasileira e o artigo de Leyla Perrone-Moisés O Ateneu – Retórica e Paixão
57
Aristarco soprou duas vezes através do bigode, inundando o espaço
com um bafejo de todo-poderoso:
- Levanta-se, Sr. Cândido Lima! Apresento-lhes, meus senhores, a
Sra. D. Cândida, acrescentou com uma ironia desanimada.
- Para o meio da casa! E curve-se diante de seus colegas! (POMPÉIA,
1989, p. 107)
Aristarco é direto e denuncia a todo o colégio um tipo de comportamento
considerado desonroso, segundo sua moral, praticado pelo aluno Cândido. Apesar
de não explicitar esse jogo de dominação promovido pelos meninos, Pompéia situa
nas palavras de Aristarco o papel passivo representado por um deles. A acusação
feita a Cândido Lima, ou “Sra. Dona Cândida”, como prefere ironizar Aristarco, está a
serviço de algo muito além da mera reprodução de um comportamento puramente
preconceituoso e intolerante. A personagem de Pompéia está deste modo,
enaltecendo e fortalecendo uma divisão tão em voga à sua época (e que certamente
perdura até os nossos dias). Em síntese o que estamos querendo afirmar é que
mesmo Aristarco sabendo que todos os meninos cometeram um “ato vergonhoso” e
que atentaram contra os princípios morais do Ateneu, um deles certamente cometeu
algo muito mais intolerável e injustificável: a passividade. Ao designar apenas
Cândido com um nome feminino, ele separa e exclui a “laranja mais podre do saco”,
em suma, mesmo com todos tendo praticado os mesmos atos, alguns são “homens
de verdade” e outros apenas “simulacros de homens”.
Em O Jovem Törless, de Robert Musil, Reiting, Beineberg, Törless e Basini
retratam a crueldade dos jogos de dominação entre os mais fortes e o mais fracos de
modo mais explícito e com um requinte muito maior de desumanidade.
Reiting e Beineberg pertencem ao grupo dos fortes e mesmo com toda a
rivalidade e competição existente entre eles, há um pacto velado sobre suas posições
de poder dentro do Internato. Os dois personagens dividem o comando das ações e o
controle dos outros meninos em uma elaborada demonstração de virilidade juvenil. A
58
força deste domínio masculino e violento retratado com tanta veemência fez com que
o teórico Wilfried Berghahn considerasse a obra como o livro mais “premonitório
escrito antes da Primeira Guerra Mundial” (BERGHAHN, 1963, p. 33). No outro
extremo, encontramos Basini, jovem que se submete a todo tipo de sujeição e não
coincidentemente é apresentado da seguinte maneira:
Ele era um pouco mais alto do que Törless, mas de constituição
delicada, tinha gestos macios e indolentes, e rosto com traços
femininos. Sua capacidade de compreender era fraca, era um dos
últimos em esgrima e ginástica, mas possuía um agradável,
envolvente encanto. (MUSIL, 1981, p. 66-67)
Não é preciso dizer mais nada, em um relato que em muito se aproxima
daquele que descrevia o modelo aristocrata representado pelo Principe H
19
., o
comportamento do personagem em todos os aspectos o levam diretamente ao
modelo padrão do homossexual masculino da sociedade burguesa: efeminado, fraco
e submisso, e por isso mesmo precisará ser punido e agredido pelo resto do grupo.
Segundo o personagem Beineberg, “pessoas como Basini não significam nada – são
apenas uma forma vazia e casual”. (MUSIL, 1981, p. 79) Tendo estabelecido quem é
quem naquele pequeno mundo masculino, resta decretar quais os castigos serão
impostos aos mais fracos:
Nesse momento Reiting desferiu-lhe um soco no rosto, Basini
cambaleou para trás, tropeçou numa trave e caiu. Beineberg e
Reiting saltaram atrás dele.
O lampião tombara, a luz escorria perplexa e preguiçosa pelo solo na
direção dos pés de Törless.
Este percebeu, pelos ruídos, que arrancavam as roupas do corpo de
Basini e o açoitavam com algo fino e flexível. (MUSIL, 1981, p. 93-94)
O quadro acima não representa em nenhum momento uma relação sexual
entre os meninos, por outro lado, o forte apelo erótico estimulado pelo contato
19
Para maiores esclarecimentos retornar ao Capítulo 2, p. 18
59
corporal nos instiga a pensar sobre um possível prazer sádico retirado dessa
violência física pelos internos, incluindo aí, o voyerismo de Törless, que mesmo não
participando fisicamente, em nenhum momento se afasta. Em uma “instituição total” o
eterno jogo entre dominantes e dominados atinge na obra de Musil, um cruel e
pungente retrato das relações de poder que envolvem o que é ser masculino e
feminino dentro da sociedade; mesmo que não fosse aquele o objetivo inicial de
Basini, seus “traços femininos” o obrigam a ceder e a se submeter àqueles que se
posicionam mais “corretamente” de acordo com a cartilha do “homem moderno”.
Por fim, temos no romance de Trevisan, uma espécie de alusão ao episódio do
julgamento dos doze meninos do Ateneu. No entanto, enquanto em Pompéia havia
uma breve (porém, contundente) referência ao “crime” cometido pelo grupo dos doze,
aqui há um maior esclarecimento sobre a falta cometida por um grupo também de
doze meninos:
Ficou famoso e inesquecível, como ferro em brasa nas consciências
culpadas ou não, o acontecimento conhecido como “Inquisição dos
Doze”, ainda no segundo ano de Tiquinho. (...) Um Prefeito de
Disciplina dos Maiores, conhecido como Andreolli, organizou uma
equipe composta de amigos seus, para limpar os lavatórios; e aí,
incluiu um garoto dos Menores chamado Matias, cuja fama de
mariquinha era tal que até os alunos mais santinhos conheciam
certos detalhes escandalosos. (...) Inicialmente, correu o lacônico
boato de que os seis componentes da equipe de limpeza teriam sido
flagrados em atos contra a castidade. (...) O grupo teria feito troca-
troca. (...) Não, o grupo usara Matias para atos libidinosos. (...)
Quatro rapazes agarraram Matias e abaixaram seu calção, enquanto
o próprio Andreolli (ou seria Andreozzi) o encoxava. (...) Aos poucos,
novos personagens foram sendo envolvidos no escândalo... Parece
que Matias tornou-se o pivô de tudo. A partir dele, as histórias foram
sendo puxadas como de um carretel. Dizia-se que Matias fora
atacado também na bolaria e na rouparia, repetidas vezes, durante
todo o semestre anterior. Na bolaria os rapazes maiores faziam fila
para enrabar Matias. (...) Era aí, detrás das soturnas sotainas, que os
rapazes festejavam a nudez pródiga do pequeno Matias. (TREVISAN,
1982, p. 63-65)
60
Matias, assim como Basini e Cândido, também pagou um preço alto por seu
comportamento diferente dos outros meninos. Como dissemos anteriormente, parece
que Trevisan tentou desvendar o que havia acontecido no caso dos Doze Meninos
no Ateneu do século XIX. Porém, ao mesmo tempo em que relata o incidente de
maneira mais explícita, o autor, assim como Pompéia, também não define
exatamente o que aconteceu ao grupo. Em O Ateneu há um fato contado de maneira
extremamente discreta, e Em nome do desejo, há um excesso de informações e
nenhuma delas é confirmada, o narrador-entrevistado chega inclusive a pôr em
dúvida o nome do principal acusado. Nos dois romances o leitor sabe que algo de
erótico aconteceu entre os rapazes e mesmo assim não tem a confirmação exata
deste acontecido. O que os dois autores ressaltam e não deixam dúvidas, é a criação
de uma identidade feminina dentro dos grupos de garotos, ou seja, nos ambientes
enclausurados das “instituições totais” há a necessidade concreta desses grupos
estarem divididos a partir das compleições físicas e emocionais. E o mais fraco
fatalmente precisará ser “sacrificado” pelo resto do grupo.
As três obras em questão mostram que muito além das relações
homossexuais que ocorrem neste tipo de “instituição total”, mesmo porque, como
bem coloca Leyla Perrone-Moisés, “por ser um lugar de confinamento de indivíduos
do mesmo sexo, o homossexualismo é aí [no internato] quase uma fatalidade”
(PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 25), o que está em jogo nesse tipo de ambiente é o
processo de construção e a corroboração de uma construção identitária masculina
idealizada e privilegiada, em suma, tudo o que não estiver cooperando com a
formação de um “homem másculo e viril “ será severamente punido e excluído.
61
5 - EXPERIÊNCIA MÍSTICA / EXPERIÊNCIA SEXUAL
Mística: s.f., estudo das coisas divinas ou espirituais; vida
contemplativa; por extensão fanatismo doutrinário
20
.
Na quarta parte de Em nome do desejo, intitulada “Da Formosura de Deus”, o
romance irá aliar um discurso sobre a mística cristã à sexualidade dos adolescentes.
É neste momento que os desejos do protagonista começam a ganhar uma
expressão mais real e a encontrar ecos nas palavras de Santa Teresa D´Ávila e São
João da Cruz. É como se Tiquinho, ao se deixar levar pelas experiências altamente
corpóreas dos dois santos em questão, acabasse por descobrir uma forma legítima
de concretizar os seus desejos espirituais e carnais. É importante perceber que esta
parte da narrativa irá dar subsídios fundamentais para essa legitimação do
personagem. O diálogo entre entrevistador e entrevistado se inicia da seguinte
maneira:
- Com o passar do tempo, não houve mudanças no estilo de
formação que marcava, a ferro e fogo, o espírito dos eleitos?
- Sim, graças às novas orientações de “aggiornamento” resultantes
do Concílio Vaticano II. O certo é que, no começo do terceiro ano de
Tiquinho, o estilo antigo se transformou, com a substituição dos
velhos superiores por padres jovens, sobretudo o delicado Diretor
Espiritual que se mostrou escandalizado, protestou ante o bispo e
fez suprimir muitos rigorismos. (TREVISAN, 1982, p. 69)
Se lembrarmos da orientação feita por Paulo VI no Concílio Vaticano II:
“conhecer e amar a Igreja, para o católico, significa conhecer e amar a Cristo em
Seu Corpo místico”
21
, iremos rapidamente compreender que tipo de diálogo o
20
Dicionário on-line PRIBERAM - http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx
21
Fonte: Vaticano II – Introdução, de Mauro do Carmo. (http://www.acidigital.com/rosario/)
62
romance está propondo. Estamos diante, mais uma vez, de uma leitura muito
engajada no que diz respeito a esta vertente da Igreja que é o amor místico. Se
pensarmos em Santa Teresa D´Ávila e São João da Cruz como duas pessoas que
foram além de seu próprio tempo e se tornaram, aos olhos de muitos, como
transgressores do discurso religioso, veremos que a narrativa traça um polêmico
paralelo destas figuras cristãs com os meninos que decidem entender Deus de um
jeito muito particular. Essencial também, neste momento, percebermos que ao
mostrar o Seminário passando a trabalhar de maneira um pouco menos rigorosa e
ganhando o comando de jovens idealistas, a narrativa assume percorrer um
caminho desconhecido e impreciso, como a própria adolescência dos personagens.
Tiquinho e seus amigos de Seminário evoluem para “o campo das paixões
concentradas – sempre entre muros, é verdade, esmagadas dentro de corações
mudos e tentando em vão romper limites, as paixões cristãs” (TREVISAN, 1982, p.
69). A presença dos novos padres coincide com a idéia desse novo Deus que
continuava punindo e castigando, mas agora também sabia amar. A cada palavra
proferida por eles, os meninos acreditavam estar diante de um deus humanizado e
real, era como se Deus não estivesse presente apenas nas palavras daqueles dois
padres. “Deus tinha corpo. E era pelas carnes daquele Deus repartido em dois que
os seminaristas passaram a ansiar, enquanto adoradores do amor absoluto –
Absoluto o sentido de procurar as últimas conseqüências” (idem, p. 72).
Pela primeira vez dentro da história, vamos ver explicitada a relação dos
meninos e dos padres. A tensão erótica surgida deste encontro é grande e, de certa
maneira, conduzida com muita sutileza pelos mais velhos. Neste momento, as
“amizades particulares” perdem terreno para o Mistério da Apaixonante Autoridade,
63
como era conhecido o desejo dos meninos por seus Superiores. Enfim, os desejos
dos seminaristas eram agora dirigidos aos Diretores Espirituais, que são assim
descritos pelo narrador-entrevistado:
O Senhor moreno (ou, digamos, a representação morena do
Senhor) chamava-se Padre Augusto ou padre Reitor. O Senhor loiro
(imagem do lado mais delicado da divindade) cumpria as funções de
Diretor Espiritual e chamava-se Mário, mas preferia atender pelo
nome de Padre Marinho... (TREVISAN, 1982, p. 73)
O que parece mais interessante nesta parte é notar a transferência do
binarismo forte/fraco passando agora a ter a sua representação nas duas figuras
adultas e responsáveis pelo Seminário, e de como ela criará no imaginário dos
meninos a figura de um Deus duplo, isto é, um Deus que é ao mesmo feminino e
masculino. Deus havia sido repartido em dois e “coincidentemente” obedecia aos
padrões físicos exigidos pela masculinidade moderna. Não irá demorar, portanto,
para que o já dividido grupo dos meninos faça a escolha de seus líderes: O Senhor
moreno conduzirá os Maiores e o Senhor loiro ficará responsável pelos Menores,
assim como diz o nosso entrevistado “não seria exagero falar-se em mãe e pai”
(idem, p. 80)
É importante entender essas transformações iniciadas com a chegada destes
novos personagens e como a partir deste acontecimento as ações de Tiquinho irão
se encaminhar para a exploração de suas pulsões eróticas.
64
5.1. O discurso da mística cristã
Estasi di Santa Teresa d´Avila, Bernini, 1647-1652
A história nos conta que no século XVI a Reforma Protestante obrigou a
Igreja Católica a fazer uma espécie de remapeamento de suas doutrinas. O
episódio que ganhou o nome de Concílio de Trento acabou sendo imprescindível
para essa grande reforma sofrida pelo catolicismo na Renascença. A partir daquele
momento único e decisivo, muitos religiosos passariam a buscar respostas e
confortos espirituais aqui na terra, como se o céu naquele instante passasse a ser
visto como algo intimamente ligado ao humano. O paraíso precisava estar (e
estava) mais perto de nós. “Tudo o que a Idade Média havia reprimido a
Renascença acentuou, exaltou, louvou, como, por exemplo, a exuberância do corpo
65
humano” (BETTO, 1994, p. 61). E foi justamente essa abertura à visualização do
corpo como algo também divino, e não mais qualquer coisa frágil e mundana, que
fez surgir uma idéia perigosamente transgressora, isto é, ao sentir que poderia
comungar com Deus de modo direto e através do próprio corpo, o homem passou a
se sentir tão majestoso quanto o próprio Deus.
Santa Teresa D´Ávila e São João da Cruz estavam entre esses religiosos que
vivenciaram o divino através da experiência corpórea. Além de serem
contemporâneos, ambos trilharam caminhos muito parecidos e acreditavam nesse
ideal de comunicação divina através de seus próprios corpos. Os versos deixados
por ambos nos transmitem toda a força e impacto causado por essa mística que
fundia alma e corpo como parte de um mesmo projeto para alcançar o sagrado.
Ai! Como a existência é amarga
Sem o gozo do Senhor!
Se é doce o divino amor,
Não o é a espera tão larga:
Tire-me Deus esta carga
Tão pesada de sofrer,
Que morro de não morrer
22
.
(Glosa de Santa Teresa)
Minha alma se há voltado,
Com meu cabedal todo, a seu serviço;
Já não guardo mais gado,
Nem mais tenho outro ofício,
Que só amor já é o meu exercício.
(Cântico Espiritual – 1:28 São João da Cruz)
É perfeitamente compreensível que versos como esses não tenham sido
recebidos com unanimidade no meio cristão, além é claro de terem sido (e
continuam sendo) alvos de inúmeras interpretações. As atitudes nada óbvias dos
religiosos em questão, certamente ameaçaram e causaram muito desconforto ao
66
rígido sistema de regras da Igreja. Ambos passaram por uma série de desavenças e
mesmo sendo habilidosos e extremamente políticos, em vários momentos tiveram
suas vidas ameaçadas, como bem nos mostra Frei Betto em um interessante estudo
sobre a mística cristã:
João da Cruz esteve preso durante nove meses numa cela escura,
fétida, pelos próprios confrades e sofreu o diabo nas mãos da Igreja
enquanto viveu. Sobre Santa Teresa de Ávila, o núncio da Espanha
escreveu uma carta em que afirma: ‘Essa mulher é uma
desobediente contumaz, suspeita de bruxaria.’ Se ela não fosse
uma hábil política (...) teria ido parar na fogueira, sem dúvida
nenhuma.” (BETTO, 1994, p. 62)
A passagem deixa claro o quanto os dois foram extremamente perseguidos e
eram vistos por muitos religiosos como perigosos e desordeiros. Tanto um quanto
outro foram a fundo nas questões da Igreja e propuseram, entre outras coisas, uma
revolução religiosa através do corpo e do espírito. Curioso perceber de que forma
eles, que foram tão questionados e desacreditados em vida por suas experiências
radicais, conseguiram sobreviver a todos os ataques a ponto de se encontrarem hoje
em posição de destaque dentro das religiões católica e anglicana. Porém, mais
interessante ainda, é percebermos que o aspecto mais impactante no que diz
respeito às controvérsias nos discursos místicos destes santos e que vários
estudiosos (dentro e fora do cristianismo) já tentaram definir, ainda não achou uma
resposta, pelo contrário, continua a causar desavenças e contradições. Estamos
falando, naturalmente, do alto teor erótico encontrado nas poesias místicas e de
como esse erotismo é interpretado. Em seu tratado sobre o assunto, George Bataille
cita o trabalho do Padre Louis Beirnaert como um dos mais interessantes estudos
sobre essa “atitude da união sexual simbolizando uma união superior” (BATAILLE,
22
Usaremos aqui as tradução feitas por Durval de Morais e Manuel Bandeira para as edições modernas que se
baseiam na cópia realizada no século XVIII pelo Padre Andrés de la Encarnación.
67
1987, p. 209) A união sexual, segundo Padre Beirnaert, além de exprimir “a união do
Deus transcendente com a humanidade”, ‘é aquela que já na experiência humana’,
tinha o caráter intrínseco de significar um acontecimento sagrado” (BATAILLE, 1987,
p. 209).
Curioso percebermos que é justamente essa “união sexual” que volta a ser o
centro de debates acirrados com o lançamento de um filme
23
baseado na vida de
Santa Teresa. Ao que parece, a Igreja que já no século XVI tentava apagar o lado
humano de Teresa, renegando-o e classificando-o como “bruxaria”; continua em
pleno século XXI buscando mecanismos para anular a experiência corporal vivida
por ela; ignorando assim toda a busca desta a qual o diretor do filme chama de
“mulher, humana, sexual, revolucionária, feminista, inteligente e loquaz
24
.”
Claro, que é delicado tirar qualquer conclusão sobre os comportamentos
exacerbados de Teresa D´Ávila e João da Cruz ou de qualquer outro místico, pois
corremos o risco de parecermos parciais e até mesmo superficiais. Nosso objetivo
aqui é aproximarmos esse comportamento, considerado transgressor por muitos, da
mística cristã ao desejo igualmente subversivo dos protagonistas de Trevisan.
Teresa, João, Tiquinho e Abel, representam cada menino e menina mencionados na
dedicatória feita pelo autor, afinal de contas, cada qual a seu próprio modo,
descobriu-se amando contra a corrente e apesar da perplexidade, ousaram desafiar
a ordem e amaram.
23
O filme em questão se chama-se Teresa, el cuerpo de Cristo, dirigido pelo espanhol Ray Loriga e que tem
estréia mundial marcada para o dia 04/05/2007.
24
Declarações do cineasta publicadas no site http://www.acidigital.com/noticia.php?id=5375
68
5.2. Um mergulho no êxtase delirante de Tiquinho
Foto do espetáculo baseado no romance de João Silvério Trevisan, realizado pela
Cia. Teatro de Seraphin, em 1993.
A trajetória do menino Tico no Seminário sempre foi pautada por muita
solidão e angústia. Indagações são feitas não apenas por sua mente inquieta de
adolescente, como também por seu corpo sexuado e desejoso de experiências. Ao
sentir pela primeira vez um contato físico que lhe causa uma certa confusão nos
sentidos, sua alma descobre as “primitivas” inquietações da carne e ele experimenta
o gozo físico:
69
Não entendeu por que, certa manhã, acordou lambuzado,
ostentando uma enorme mancha na calça do pijama, (...) Mas só
ficou verdadeiramente alarmado quando, pouco depois, esfregando-
se com sabão durante o banho, teve uma inesperada ereção, logo
seguida de um friozinho no estômago e um esguicho pegajoso. (...)
Para não pecar, inventou um estratagema onde não usaria as mãos.
Ficava pulando debaixo do chuveiro, com o membro a bater-lhe na
barriga, até ejacular. (TREVISAN, 1982, p. 98-99)
Paralelo a essa descoberta do líquido prazeroso que parecia jorrar de dentro
de seu corpo veio o pavor de uma possível punição para os seus atos. Terror e
prazer passam a caminhar lado a lado e Tico, por fim, resolve se confessar e buscar
proteção nas palavras dos livros sagrados. Eram tantos os pontos de interrogação,
que o pequeno seminarista acabou se deixando levar pelas histórias dos santos a
ponto de partilhar cada um dos sofrimentos vividos por eles. A idéia de uma vida
consagrada ao sofrimento por amor irrompe de modo intenso e leva o menino aos
mais obscuros caminhos de seu espírito. Por duas páginas inteiras, o leitor irá
acompanhar junto com o protagonista, cada sofrimento e cada dor vivida pelos
santos do Martirológio:
No mesmo dia, Santo Eutério, que foi degolado depois de aturar
fogo e outros suplícios. E a paixão de São Félix, condenado à morte
depôs da tortura do cavalete, sob os imperadores Diocleciano e
Maximiano. E os santos Hipácio e André, que foram degolados mas
antes tiveram suas barbas untadas com pez e queimadas, e seu
couro cabeludo arrancado. (...) Tiquinho ouvia com os olhos
arregalados. E na capela, pedia a Deus que lhe permitisse a glória
do martírio mais doloroso, para assim provar como era imenso seu
amor por Jesus Cristo. (TREVISAN, 1982, p. 100)
Ao ouvir as histórias trágicas dos inúmeros santos da Igreja, Tiquinho
constata ser impossível viver feliz sem sentir dor. Há necessidade do sofrimento
para se atingir ao amor supremo de Deus. É imprescindível uma vida de
padecimentos, de dores e aflições para se alcançar o ideal de uma vida digna, isto é,
chegar até Cristo e assim comungar da felicidade eterna e do amor ao Senhor. E
70
será através de uma série de visões celestiais, que este ser desesperadamente
apaixonado e desequilibrado acabará por se perder dentro de um mundo de
sacrifícios e êxtases; de intensos e limítrofes desejos. Pois é justamente neste
mergulho nos mistérios causados pela tríade DorAmor Deus que o romance de
JST alcança um dos seus pontos mais originais: a entrega incondicional de um ser
que ama a outro que é amado.
Segundo o teólogo e ex-frade da Igreja Católica, Leonardo Boff
25
, é próprio da
experiência místico-amorosa a embriaguez do amor que faz do místico um ‘louco de
Deus’ como eram São Francisco de Assis, Santa Teresa D´Ávila e Santa Xênia da
Rússia, por exemplo. Sabemos que a mística religiosa vem atravessando os tempos
e desafiando pensamentos e pensadores; crédulos e incrédulos; razão e coração.
Mesmo que esteja freqüentemente ligada ao catolicismo, a prática “mística e mesmo
a vida contemplativa como instituição são muito anteriores ao cristianismo (...) os
vedas, os bramanistas, os hinduístas, três mil anos antes de Cristo, já conheciam a
ascese” (BETTO, 1994, p. 53). Logo, pensar em experiência mística é pensar em
algo que transcende ao “paraíso celestial” e ao nosso próprio tempo e cultura.
Querer entender a mística religiosa é também saber ler, por exemplo, os versos de
excessiva beleza do místico islâmico Jalal ud-Din Rumi que viveu no século XIII d.C.:
O teu amor veio até meu coração e partiu feliz. Depois retornou,
vestiu a veste do amor, mas mais uma vez foi embora. Timidamente
lhe supliquei que ficasse comigo ao menos por alguns dias. Ele se
sentou junto a mim e se esqueceu de partir.
26
Tiquinho certamente teria se apropriado da delicadeza e da força destes versos
em nome de seu grande amor. As palavras de Rumi servem também para nos dar a
25
Rumi, o místico do amor. Texto publicado pelo autor no site:
http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=26125
71
plena certeza de que o amor místico é um mergulho profundo nos mais recônditos
lugares da alma humana; lugares esses ainda intransponíveis ao senso-comum e a
banalidade do que entendemos por amor na contemporaneidade. Ele ultrapassa
certamente toda e qualquer explicação lógica e racional e tem como meta primordial
essa busca pelo amor intenso e fiel a Deus. Para o místico “a Trindade não está no
céu, na transcendência. Está na profundidade do nosso coração” (BOFF, 1994, p.
75). Com essa conexão entre o humano e o divino sendo feita diretamente de dentro
do coração do homem, é natural que haja por parte do místico uma alteração e uma
experimentação fora de qualquer limite com relação ao seu próprio ser. Sentir e
poder dialogar com Deus, inevitavelmente passa pelo corpo e pela alma. A
dicotomia que relaciona o corpo como algo inferior e necessariamente pecador em
relação à alma, perde o sentido para esse tipo de experiência e necessita de uma
nova contextualização: “Deus está aqui, temos é de nos abrir a Ele. Deixá-Lo entrar
no âmago do coração.” (BOFF, 1994, p. 61)
Como já constatamos anteriormente, Em nome do desejo, se utiliza do discurso
místico cristão para consumar um amor entre iguais. Não estamos querendo dizer
aqui que há um desejo de justificar a homossexualidade através do referido
discurso, pois como lembra Bruno Souza Leal:
“Não se pede a quem lê o julgamento da personagem nem o da sua
experiência homoerótica. Ao leitor não é pedido um julgamento de
uma personagem homossexual. O foco é outro. Pede-se a sua
adesão: é preciso que o leitor ratifique o protagonista, que
reconheça a validade de seu percurso confessional, de sua
experiência amorosa.” (LEAL, 2002, p. 131)
26
Tradução de Leonardo Boff
72
Se apropriar das experiências místicas de São João da Cruz e Santa Teresa
D´Ávila, além das palavras do Cântico dos Cânticos, “o mais místico dos textos
bíblicos”, segundo Frei Betto, obriga o leitor a questionar sobre este amor absoluto a
que qualquer ser humano está sujeito. Não há referência aqui a um personagem
que apenas repete de maneira mecânica palavras de um discurso religioso, quando
Leal pede que reconheçamos “a validade de seu percurso confessional”, ele está
pedindo para que percebamos que a busca de Tiquinho se ratifica no discurso
religioso justamente por estar imbuído de sinceridade e inocência, de paixão e
êxtase. A transgressão se faz legítima através dos hormônios da puberdade que
invadem sem pedir licença e transformam aquilo que era apenas relativo ao campo
do onírico em realidade, isto é, convertem a intensa experiência mística em uma
irrefreável paixão carnal consumada com a ajuda de Abel. Porém, mais do que falar
de algo sexual entre os dois rapazes, a experiência relatada pelo romance traz à
tona o amor espiritual de Tiquinho se transmudando em sexo, como se essa
concretização fosse além de inevitável, necessária. O romance pede que nos
coloquemos no centro do coração humano, distantes de todo e qualquer pré-
conceito e pensemos em um adolescente intenso, radical e perdido nas normas e
condutas do Seminário; buscando incessantemente o amor acima de qualquer coisa.
Para Tiquinho mais importante do que ser amado, é amar. Amar com o coração,
com a alma... Amar sobre todas as coisas.
E é claro que este intenso e excessivo amar acabará levando o personagem
por uma trilha de prazeres e contradições. Tal amor surge da admiração irrestrita
pelo “misticismo radical” do Padre Marinho e principalmente, quando seu raciocínio o
faz perceber a existência da frase “eu te amo” dentro do Evangelho:
73
Como após a Ressurreição, quando Jesus perguntou três vezes a
Pedro: “Tu me amas?” E Pedro por três vezes respondeu: “Senhor,
tu sabes que te amo.” Então, raciocinava o sagaz Tiquinho, no
Evangelho não era proibido dizer “eu te amo” para um outro homem.
Se isso acontecia entre Jesus e seus discípulos, por que depois
ficou proibido? (TREVISAN, 1982, p. 103)
A partir desta pergunta muita coisa irá mudar e o menino passará a querer
cada vez mais sentir o gosto deste amor que não enxerga nada além de... amor. É
assim que sua devoção a Cristo começa a ganhar contornos mais reais e irá
fatalmente desembocar no corpo de Abel Rebebel. O delírio experimentado por Tico
em relação a Abel o faz a pessoa mais feliz e corajosa do mundo. Ao compartilhar
suas descobertas com o Diretor Espiritual, que além de “ampará-lo” e “explicar-lhe
sobre a beleza das grandes amizades”, apresenta-lhe um significativo trecho do
Cântico dos Cânticos: “Filhas de Jerusalém, eu vos conjuro: se encontrardes o meu
amado que lhe direis?... Dizei que estou doente de amor!” (TREVISAN, 1982, p.
130) Vale a pena tentarmos entender o porquê de Padre Marinho estar interessado
em explorar este misticismo latente em Tiquinho. A primeira vista, seu gesto
encaminha o leitor para uma possível cumplicidade em relação aos desejos do
outro. Há, é certo, uma forte tentativa de apaziguamento das ansiedades febris do
jovem rapaz através dos mistérios da vida mística, como se através das experiências
extremas de alguns santos do cristianismo, Tico pudesse encontrar a paz que
precisava para poder continuar na vida religiosa. Não há, no entanto, nenhum
intuito de compreensão mais profunda acerca do que ocorre internamente com o
seminarista, Padre Marinho parece mais preocupado em satisfazer os seus próprios
desejos de modo perverso e milimetricamente controlado.
Joel Birman, em uma importante análise sobre a transgressão e a perversão,
nos dá uma explicação sobre estes dois conceitos que nos parece extremamente
74
pertinente no entendimento das atitudes dos dois personagens em questão.
Segundo o psicanalista, “transgredir é a maneira pela qual a individualidade pode
resistir ao imperativo da normalização da disciplina” (BIRMAN, 2002, p. 47). E “a
perversão, por sua vez, visa à reprodução do sistema de normas instituído, não
existindo nenhum risco em jogo” (idem, p. 49). O comportamento do Padre se faz
perverso justamente por ele não desejar romper com os modelos disciplinares
existentes ao mesmo tempo em que não deixa de buscar a satisfação de seus
anseios carnais de modo velado, como mostra a passagem abaixo:
Apertava a mão de um, afagava o rosto de outro e até, vez por
outra, chegava a toques que pareciam mais ousados. Nesses casos,
tranqüilizava-os imediatamente com explicações convincentes. (...)
Ou então colocava o menino recostado sobre seu joelho e lhe
explicava com o jeito mais doce: “Se existir verdadeira caridade
entre nós dois, Deus estará conosco” Quando durante a direção
espiritual, os garotos lhe contavam coisas escabrosas, colocava-os
de joelhos em cima da cadeira (“para que, elevando-se, melhor
peçam perdão a Deus”); e, enquanto rezavam, ele ia lhes tocando
os pés com os lábios, delicadamente. (...) Aos poucos, esses toques
labiais iam configurando beijos mais explícitos e jamais carentes de
ternura, com os quais banhava os pés dos pequenos penitentes.
(TREVISAN, 1982, p. 84)
O prazer buscado por Padre Marinho no “contato espiritual” com seus jovens
alunos é assim “justificado” através de uma explicação mística, isto é, seus beijos
não teriam assim nenhum caráter erótico, seriam como ele mesmo diz: “o gesto de
amor a Cristo, na Última Ceia” (idem, p. 84) Em suma, Padre Marinho é perverso
porque “submete-se à moral vigente, frequentemente de maneira servil” (BIRMAN,
2002, p.50) e utiliza sua batina como disfarce para consumar seus desejos mais
secretos. Tiquinho, por sua vez, não deixará que as regras e os interditos moldem
suas necessidades, pelo contrário, ele irá questionar essa normalidade até alcançar
aquilo que Birman chama de “ultrapassagem de limites e uma tentativa de traçar
novas fronteiras” (BIRMAN, 2002, p. 46). Em outras palavras, é como se existisse na
75
transgressão de Tico uma busca pela “invenção de um novo eu”, e na perversão de
Padre Marinho a falta de qualquer tipo de contestação, apenas a mera “reprodução
do instituído”.
Curioso notar que assim que o menino começar a ultrapassar os códigos
morais do Seminário, o padre irá compreender que a relação dos garotos está
fugindo de qualquer tipo de controle, e em uma atitude bastante dúbia, passará a
evitar Tiquinho. No entanto, o seminarista já havia conseguido as armas necessárias
para sua batalha particular e iniciava desta forma, a sua luta com aquele sentimento
avassalador que o corroia internamente. E é assim que todas as palavras sagradas
começam a ser deliberadamente ajustadas ao ideal de amor imaginado pelos
garotos.
Uma pequena ressalva se faz necessária, apesar de não termos mencionado
o Padre Augusto nesta breve análise sobre perversão, seu comportamento em tudo
se assemelha ao de Padre Marinho. O Reitor, assim como o Diretor Espiritual,
também se encaixa perfeitamente nesse modelo de perversão proposto pelo estudo
de Birman, como na passagem onde ele realiza uma espécie de exame de limpeza
nos órgãos genitais dos seminaristas:
Pouco antes do horário de dormir, Padre Augusto convocava os
meninos, individualmente, ao seu quarto... Aí, mandava que
tirassem a roupa e os examinava vigorosamente... E a partir daí,
esmerou-se em ensinar os meninos a baixar o prepúcio de seus
genitais e a lavá-los com sabonete, sem receio de perderem a
virilidade. (...) Cheirava-os como parte do exame, mas não
conseguia disfarçar o impulso de paixão que lhe entrava pelas
narinas adentro. (...) Dizem que os manuseava de maneira mais
descontraída e, em certos casos, cobria-os de beijos pequeninos,
apenas aparentemente desajeitados, porque era assim que gostava
de arrancar vagos gemidos, vagas e eloqüentes provas de sua
maestria. (...) Tudo o que os meninos sentiam era a presença de um
Senhor táctil, forte e protetor (...) Era então que, num movimento
incontrolável, seus pintos deixavam o aconchego dos recém-
nascidos, frescos pentelhos e levitavam de puro êxtase (...)
Interrompia o êxtase com alguma reprimenda indireta... Mas jamais
aludia ao fato em si – a rigidez membrosa – porque, mesmo não
76
aprovando os meios, agradava-lhe o resultado. (TREVISAN, 1982,
p. 81-84)
O trecho é bastante elucidativo, não há como negar. Porém, por não haver
um contato mais direto dele com as transformações e questionamentos vividos por
Tiquinho, não achamos necessário desenvolvermos uma discussão sobre o referido
personagem.
Ao se fortalecer com as palavras dos místicos católicos, Tiquinho entende que
não há mal em tornar o seu amor por Cristo um amor real, concreto. Tudo o que
tinha ouvido dentro do Seminário o levava a acreditar na possibilidade de seu amor.
Todas as perguntas serão respondidas com o apoio de palavras vindas da própria
vida cristã e, deste modo, será fácil tanto para ele quanto para o leitor, estabelecer
um paralelo com os enigmáticos versos de São João da Cruz, por exemplo, e o real
sentido daquele desejo infinito que lhe queimava a alma:
Como o amado no amante,
um no outro residia.
E tal amor que os une
no mesmo coincidia,
pois um igualava o outro
em intensidade e valia.
Três pessoas e um amado
entre todos os três havia,
um só amor nelas todas
E um só amante as unia,
em tão inefável nó
que dizê-lo não se sabia.
Era portanto infinito
o amor que as fundia
e de ser tão uno o amor,
tanto mais amor havia.
(TREVISAN, 1982, p.138-139)
Os versos acima o farão chegar a uma conclusão coerente: seu amor por
Abel era puro e tinha fundamento na Santíssima Trindade. O raciocínio do
77
personagem transcrito aqui por nós mostra o quanto ele tinha certeza de que seus
sentimentos eram assegurados por um poder superior e divino
Assim: a Santíssima Trindade é um só Deus unido por um só amor.
Esse único Deus habita em todas as partes. Em mim e em Abel
também. Como Jesus é Deus, Jesus está em nós. Somos dois mas
nos tornamos um por causa da presença de Jesus e seu amor. Eu
amo Abel como a mim mesmo e o amor de Jesus é o mesmo dentro
de nós. Então nosso amor é uma coisa só. Se eu e Abel não nos
amarmos, o amor de Jesus vai ficar incompleto. Mas se nos
amarmos, será um amor por toda eternidade. Unidos amorosamente
em Jesus, eu e Abel nunca vamos nos separar. (TREVISAN, 1982,
p. 139)
Não resta mais dúvida, a partir desta “iluminação” não há mais o que temer ou
retroceder. Tiquinho e Abel estão prontos para descobrirem o que há de mais
profundo em seus sentimentos e perceberão aos poucos o quão incontrolável
poderá se tornar esse amor físico.
78
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nome do desejo, em nome do amor, em nome da vida. Certamente que
qualquer um destes títulos se encaixaria perfeitamente com a história dos
seminaristas que um dia se apaixonaram ao se olharem. No entanto, a escolha feita
por João Silvério Trevisan parece acontecer exatamente devido a todas as
implicações causadas pelas contradições que o próprio termo desejo instiga, e de
como ele está intimamente ligado a fé cristã. Desejo, segundo a definição do
dicionário
27
quer dizer: “1 Ação de desejar. 2 O que se deseja. 3 Anseio, aspiração
veemente. 4 Cobiça. 5 Apetite, vontade de comer ou de beber. 6 Apetite carnal,
concupiscência”, ou seja, a história contada pelo homem que um dia volta ao seu
passado em busca de respostas, passa por uma série de desejos e aspirações em
busca do que é amar.
Seja como literatura marginal, literatura gay, literatura homoerótica... ou
qualquer outro rótulo usado, a literatura que tem como foco os relacionamentos de
pessoas do mesmo sexo é de extrema importância no que diz respeito a visibilidade
de uma parte da sociedade que ainda hoje, em pleno século XXI, precisa lutar com
coragem e muita disposição por seus direitos civis. Até porque, como reconhece
Pierre Bourdieu, o trato simbólico com as marcações de gênero repercute em toda a
estruturação social que distribui poderes na sociedade – a identificação com o
elemento passivo (originalmente identificado com o feminino) serve de justificativa
para variadas formas de dominação e exploração. O estudo dessa questão não
deveria interessar, portanto, somente a gays, lésbicas ou mulheres, mas a todos que
27
Michaelis on line
79
discutem as relações de poder marcadas pela desigualdade e militam por minorar
seus efeitos.
Enquanto a teledramaturgia brasileira continua apenas engatinhando ao
mostrar homens e mulheres que optaram por seguir um caminho contrário ao que o
senso comum costuma afirmar ser o “natural”, a literatura, o cinema e o teatro
forçam seus leitores e espectadores a questionarem valores e a refletirem sobre
uma possível revisão de regras e modelos pré-estabelecidos.
Em nome do desejo é uma obra decisiva na literatura brasileira, primeiro
porque toca em questões que muitos preferem manter discretamente dentro do
armário, em segundo porque seu autor é um homem seriamente articulado nas lutas
pelos direitos homossexuais e sabe como poucos transformar em arte as angústias
e conflitos que envolvem o que é ser homem no Brasil contemporâneo, ou seja,
Trevisan ousa mexer em uma espécie de vespeiro que Bourdieu chama de
“investimento primordial nos jogos sociais (illusio), que torna o homem
verdadeiramente homem” (BOURDIEU, 2007, p. 61).
A história dos meninos que se apaixonam dentro de um Seminário choca não
por colocar um assunto tabu em cena, e sim porque esta problemática é
apresentada de modo a realçar os efeitos mais cruéis dessas relações de poder,
colocando o texto a serviço de um pensamento consciente e politicamente engajado.
Assim como o editorial de lançamento do jornal Lampião
28
anunciava não
querer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizem, Trevisan também
não quer saber de ser somente um escritor gay, seu objetivo maior é um debate com
todos e não apenas com um setor da população. Muito além do mero rótulo, o autor
28
O “Lampião da Esquina” foi um dos primeiros jornais gays do Brasil. Circulou de 1978 a 1981. Tinha como
articuladores Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu, Gasparino da Matta e João Silvério Trevisan, entre outros.
Fonte: http://www.mgm.org.br/comunicando/noticias_do_meio/lampi%E3odaesquina.htm
80
almeja uma sociedade na qual haja uma convivência e um respeito pela cidadania
de cada indivíduo sem que para isso seja preciso se demarcar lugares específicos.
Nossa análise tentou demonstrar como os chamados romances de formação
contribuem para o entendimento de uma possível definição daquilo que poderia ser
considerado como “ideal de masculinidade moderna”; e de como determinados
padrões excludentes e heterofalocráticos se reproduzem de maneira espantosa em
ambientes fechados dos colégios internos e seminários. Longe de almejarem criar
um padrão novo, os meninos parecem estar eternamente buscando formas de
reiteração de um discurso sobre o “macho típico”. Possuir um determinado corpo
será fundamental na construção de uma identidade positiva ou negativa; forte ou
fraca; dominante ou dominada.
Falamos também de como a construção do “homem padrão” passa por uma
série de rituais iniciáticos e, de como os mesmos, têm como característica principal a
demonstração da violência como modo de anular ou rebaixar os sentimentos ditos
delicados e femininos do outro. Ser homem, dentro destes padrões herdados da
burguesia do século XIX, significa suportar todo tipo de dor e humilhação e
principalmente, sustentar a própria masculinidade muitas vezes significa pôr em
xeque a masculinidade do outro, em um cruel e constante jogo de poderes, alguém
só pode se afirmar como másculo e viril, com a anulação de um outro mais fraco e
submisso.
E por fim tentamos explorar a legitimação do amor carnal de Tiquinho através
de um discurso canônico da Igreja católica e de como o autor soube caminhar pelos
misteriosos caminhos do delírio místico cristão.
A construção de uma identidade masculina se dá de maneira rigorosa e
minuciosamente trabalhada. As instituições totais acabam se transformando em
81
verdadeiros criadouros onde a necessidade de se ter em quem mandar obriga
àqueles com maior disposição para o aperfeiçoamento corporal dominarem. O que
o romance de Trevisan tem de original é sua forma de não querer justificar o
homoerotismo presente nas relações de seus personagens. Fazendo Tiquinho se
apropriar do êxtase sagrado de místicos como Santa Teresa e São João da Cruz,
por exemplo, o autor avança e lança uma saída ao desafio imposto pelo grande ABC
machista implantado há tempos em nossa sociedade: Em nome do desejo vai
buscar novas formas de amar, novos conceitos sobre o amor. A busca desmesurada
por amor faz Tiquinho ultrapassar a sua própria medida e ser atirado sem piedade à
classe dos estigmatizados. A desmesura de JST é arriscar “criar” meninos mais
livres; mais aptos a lidarem com os desejos de seus próprios corpos e espíritos,
afinal de contas, como Bourdieu, nós também nos espantamos “que a ordem
estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e imunidades, seus
privilégios e suas injustiças, perpetue-se apesar de tudo tão facilmente”
(BOURDIEU, 2007, p. 7).
Por fim, deixemos no ar a pergunta que se faz mais significativa ao término da
leitura de Em nome do desejo: como tentar achar verdades quando se está
enclausurado em um mundo de mentiras?
82
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Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/igreja_ortodoxa/a_igreja_ortodoxa8.htm
86
8 – ANEXO
Planta do Seminário apresentada no início do livro:
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