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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE LETRAS
Luciana María di Leone
ANA C.: AS TRAMAS DA CONSAGRAÇÃO
Rio de Janeiro
2007
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Luciana María di Leone
ANA C.: AS TRAMAS DA CONSAGRAÇÃO
Dissertação apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Italo Moriconi
Rio de Janeiro
2007
1
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
L583 Leone, Luciana Maria di.
Ana C.: as tramas da consagração / Luciana María di Leone. –
2007.
134 f.
Orientador : Italo Moriconi.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. César, Ana Cristina, 1952-1983 – Crítica e interpretação. 2.
Escritoras brasileiras - Teses. I. Moriconi, Ítalo. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-95
Luciana María di Leone
ANA C.: AS TRAMAS DA CONSAGRAÇÃO
Dissertação apresentada, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Aprovada em ______ de __________ de 2007.
Banca Examinadora:
_____________________________________________________
Prof. Dr. Italo Moriconi (Orientador)
____________________________________________________
Profa. Dra. Ana Cristina de Rezende Chiara
Instituto de Letras UERJ
____________________________________________________
Profa. Dra. Célia de Moraes Rego Pedrosa
UFF
Rio de Janeiro
2007
3
Para Jesús, meu avô, desde sempre,
porque me ensinou a acreditar em nós,
em todos nós.
4
AGRADECIMENTOS
Muitos agradecimentos. Em primeiro lugar, quero agradecer com infinito carinho a
Florencia Garramuño e Gonzalo Aguilar, mestres e amigos, que me apresentaram a Literatura
Brasileira, a poesia de Ana C., e fizeram possível que eu esteja aqui. Com eles, aos meus
colegas e amigos do grupo de pesquisa de Literatura Brasileña na Argentina, Mario Cámara e
Carolina Puente. À Agencia de Ciencia y Tecnología da Argentina que financiou o projeto de
pesquisa e a bolsa que fizeram possível essa dissertação.
Também quero agradecer as pessoas que me receberam aqui. Principalmente a Italo
Moriconi, que não apenas aceitou ser meu orientador, mas também se arriscou a ser objeto da
minha leitura.
A Célia Pedrosa por me acolher, no sentido mais amplo e afetuoso da palavra.
A todas as pessoas que contribuíram com depoimentos, dados, materiais e discussões
na pesquisa: Manoela Oliveira, Waldo Cesar, Armando Freitas Filho, Heloisa Buarque de
Hollanda, Flora Süssekind, Viviana Bossi. Ao Instituto Moreira Salles por autorizar o
trabalho no arquivo pessoal de Ana Cristina Cesar.
A Laura Erber pela sua confiança no meu olhar, os diálogos e os aportes sem os quais
esta dissertação não seria o que é.
A Ana Chiara e Marcelo Dos Santos pelos diálogos e o carinho nas aulas.
Aos meus amigos queridos presentes na distância, Marina, Emilia e tantos outros. Aos
meus amigos presentes aqui. A Nicole, Ricardo e seus filhos, por compartilhar comigo a
felicidade de uma família aqui. E, claro, à minha família: meus pais, meus irmãos e meus
avôs.
5
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
Cacaso, “Ana Cristina”
Vamos então telefonar para Ana, antigo anjo, linda, azul. Mas no lugar da voz dela,
só vem algaravia de terceiros. Ou seus versos. Sua prosa. Nossa prosa, nosso pacto.
Italo Moriconi, “Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta”.
Cuando digo Roland Barthes es a él a quien nombro, más allá de su nombre. Pero
como a partir de este momento precisamente él es inaccesible al llamado, como la
nominación es incapaz de convertirse en invocación (…), es a él en mí a quien yo nombro,
atravieso su nombre para ir hacia él en mí, en ti, en nosotros. Lo que pase en relación con él
y se diga de él queda entre nosotros. (…)
Vivo, Roland Barthes no se reduce a lo que cada uno de nosotros imagina, a lo que
podemos pensar, creer o saber y recordar de él. ¿Pero una vez muerto lo hará? No, pero el
riesgo de la ilusión será más fuerte y más débil, otra en todo caso.
Jacques Derrida, “Las muertes de Roland Barthes”.
Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro
prateado. Leiam se foram capazes.
Ana Cristina Cesar.
6
RESUMO
Leone, Luciana Maria di. Ana C.: as tramas da consagração, 2007. 134 f. Dissertação (Mestrado
em Letras) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
O trabalho tem por objetivo percorrer as principais linhas de força discursivas que se
articularam no processo de consagração da poeta Ana Cristina Cesar, e que configuraram a
sua imagem mais conhecida na mídia cultural e na academia. Na Introdução, define-se o
conceito de autor que operou no desenvolvimento da pesquisa, e a sua relação com a
assinatura “Ana C.”. No primeiro capítulo, é analisada a colocação de Ana Cristina no campo
cultural e poético da década de 70; a sua posição dupla de convívio e diferenciação em
relação aos poetas da chamada geração marginal. Percorrem-se as leituras críticas que dessa
colocação se fizeram, analisando como crítica e objeto de estudo foram se conformando
simultaneamente. No segundo capítulo, são definidas as narrativas dominantes que se fizeram
dos textos de Ana C. depois da sua morte, contrapondo a imagem oficial que se desprende das
edições póstumas, que criam uma imagem mítica de Ana C., a leituras contrárias. No terceiro
capítulo, percorre-se a fortuna crítica, geralmente ligada à academia, e textos literários que
tomaram a figura de Ana C. como problemática ou tema da escrita, tentando fazer uma
avaliação em relação à reafirmação ou a mobilização da imagem consagrada que esses textos
propõem.
Palavras-chave: Consagração; Autor; Campo cultural; Ana Cristina César; Fortuna crítica
7
RESUMEN
El trabajo tiene por objetivo realizar un recorrido por las principales líneas de fuerza
discursivas que se articularon en el proceso de consagración de la poeta Ana Cristina Cesar, y
que configuraron su imagen más conocida en los medios culturales y el la academia. En la
Introducción, se define el concepto de autor que opero en el desarrollo de la investigación, y
la relación que establece con la firma “Ana C.”. En el primer capítulo, se analiza la colocación
de Ana Cristina en el campo cultural y poético de la década del 70; su posición doble de
convívio y diferenciación respecto a los poetas de la llamada generación marginal. Se
recorren las lecturas críticas que se realizaron sobre esa colocación, analizando de qué forma
crítica y objeto de estudio se fueron conformando simultáneamente. En el segundo capítulo,
se definen las narrativas dominantes que se realizaron de los textos de Ana C. después de su
muerte, contraponiendo la imagen oficial que se desprende de las ediciones póstumas, que
crea una imagen mítica de Ana C., a lecturas que fueron contradictorias. En el tercer capítulo,
se recorre la fortuna crítica, generalmente ligada a la academia, y textos literarios que
tomaron la figura de Ana C. como problemática o tema de escritura, intentando hacer una
apreciación de los mismos, en relación a un gesto de reafirmación o movilización, que los
textos proponen, de la imagen consagrada.
Palabras clave: Consagración; Autor; Campo cultural; Ana Cristina Cesar; Fortuna crítica.
8
ABREVIATURAS UTILIZADAS
ATP
A teus pés. São Paulo: Ática / IMS, 1998.
ID
Inéditos e dispersos. (Armando Freitas Filho org.) São Paulo: Brasiliense, 1985.
CT
Crítica e tradução. (Armando Freitas Filho org.). São Paulo: Ática / IMS, 1999.
CI
Correspondência incompleta. (Orgs. Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda).
São Paulo: Aeroplano / IMS, 1999.
9
SUMÁRIO
Introdução
Aproximações … p. 11
Capítulo I
Não ter posição marcada. Ana C. no campo literário da década de 70 … p. 27
Capítulo II
Leiam se foram capazes. As leituras oficiais e o arquivo indócil de Ana C. … p. 53
Capítulo III
Formas em formação. Leituras e escritas de Ana C. … p. 81
Considerações finais
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. Recapitulação
e escritas possíveis … p. 119
Bibliografia … p. 124
10
INTRODUÇÃO
Aproximações a “Ana C.”
11
Uma incomensurável rede de textos se tece em torno de Ana Cristina Cesar. A
pergunta que me guia no meu roteiro por suas ramificações não é “quem foi, realmente, Ana
Cristina Cesar?”, pergunta que de algum modo procuraria uma verdade ou dado revelador, até
agora ocultos, que esclarecessem a vida da escritora, a sua morte ou a importância da sua
poesia; verdades e dados que, conseqüentemente, haveriam de aludir à falibilidade das leituras
sobre a sua figura feitas até aqui. Também não tentarei uma biografia autorizada, nem uma
apócrifa, nem ainda uma biografia intelectual. Não traçarei uma narrativa ordenada
cronologicamente, nem compilarei os dados espalhados em textos, manuscritos e
testemunhos. Não, porque não me guia uma pergunta sobre o passado, mas, sim: “quem é,
hoje, para nós, Ana C.?”; e, para responder no presente, será necessário percorrer a formação
e as modificações das diferentes versões sobre sua figura e sua escrita, versões que a
atravessam, e que atravessaram historicamente o que chamaremos de processo de
consagração.
Este trabalho pretende, então, abordar a rede de discursos formada pelos textos
publicados, assinados por Ana Cristina como autora, pelos manuscritos por ela deixados, mas
também pelos textos que leram, releram e escreveram a sua obra e a sua figura. No entanto,
dada a grande proliferação desses escritos, seria quase impossível ou sisífico realizar tal
tarefa. Portanto, o objetivo específico deste trabalho será, através do cruzamento dos
diferentes textos – fazendo-os dialogar, tensionar-se, suplementar-se –, alcançar a definir
algumas das linhas de força discursivas mais significativas no processo de configuração da
figura de Ana C. como poeta consagrada. Ou seja, tentar desvendar os mecanismos desse
processo de consagração, para refletir sobre as armadilhas do congelamento de figuras do
passado, ou da criação de ilusão de verdade, que esses processos encerram.
A questão do autor e a questão da assinatura: o caso “Ana C.”
forma sem norma
defesa cotidiana
conteúdo tudo:
abranges uma ana
(ATP, p. 36)
“Uma ana”, não muitas anas. Ana C. é uma, embora heterogênea, que contém tudo.
Ana C., esse objeto (sujeito) que tentamos estudar, é um dispositivo, uma rede, um arquivo.
12
Como a maioria dos arquivos de escritores e artistas consagrados, o de Ana Cristina também é
diversificado, sendo uma assinatura, um nome próprio, aquele traço que faz com que esses
documentos possam ser agrupados, classificados juntos (FOUCAULT, 2001). Nome de poeta.
Nome de autor.
Não vamos percorrer em profundidade a discussão sobre a morte do autor e o seu
retorno.
1
No entanto, será preciso – dado que o título do presente trabalho é um nome –
definir o modo em que entendemos a relação desse nome, Ana C., com seus textos e as lutas
discursivas em torno deles.
“Sea lo que fuere que haya significado, la ampliamente pregonada ‘muerte del autor’
que hicieron famosa Foucault y Barthes no implicó el fin de la legitimación a través de la cita
de nombres carismáticos”, diz Martin Jay em “¿Citar los grandes nombres o prescindir de los
nombres?” (2003, p. 314). Uma rápida olhada na maioria dos textos acadêmicos que ainda se
escrevem nos faria concordar com a afirmação de Jay: sem dúvida, não podemos prescindir
dos nomes na hora de alicerçar os nossos raciocínios. Agora bem, se voltarmos para os textos
de Foucault e Barthes aos que Jay se refere – “O que é um autor?” (2001 [1969]) e “A morte
do autor” (2004 [1968]), respectivamente –, veremos que, embora a interpretação mais
conhecida os coloque como óbitos do autor, ambos os ensaios fazem questão de assinalar a
importância e o funcionamento do nome de autor.
O ensaio de Michel Foucault, de fato, começa colocando a sua preocupação com o
aparente paradoxo que se desprende de seu livro As palavras e as coisas (1966): se o autor já
não é uma instância legitimadora, por que a proliferação de nomes e citações? Foucault
responderá dedicando todo o texto a descrever o funcionamento da função-autor, dispositivo
que se cria no(s) discurso(s), que teria seu principal suporte no ‘nome de autor’, e que ocupa o
lugar deixado pelo autor – o morto – como instância legitimadora anterior e exterior ao texto.
A função-autor, portanto,
não se forma espontaneamente como a atribuição de um discurso a um
indivíduo. É o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser de
razão que se chama autor (...) o que faz de um indivíduo um autor é apenas a projeção,
em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos textos. (...)
Todas essas operações variam de acordo com as épocas e os tipos de discurso
(FOUCAULT, 2001, p. 276).
Por sua parte, no começo de “A morte do autor” (1966), Roland Barthes assinala que o
autor ainda funciona como parâmetro explicativo dos textos: “a cultura corrente es
1
Cf. Diana Klinger. Escritas de si, escritas do outro (2007), onde a autora faz um levantamento do percurso da
discussão.
13
tiranicamente centrada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos” (BARTHES, 2004, p.
58). No entanto, Barthes fala de uma nova tendência – por fora da ‘cultura corrente’ que hoje
poderíamos assimilar com o discurso midiático – em que, a partir de Mallarmé, os textos
seriam construídos numa concepção de escritura que implica a morte do autor como instância
legitimadora, e onde qualquer tentativa do sujeito que produz o texto de se exprimir na
escritura não passaria de um auto-engano.
Diz Barthes: “o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não é, de
forma alguma, dotado de um ser que excedesse ou precedesse a sua escritura”. (BARTHES,
2004, p. 61). O nascimento do escriptor implica, como o nascimento da função-autor, a morte
do ‘Autor’, concebido como prévio, pai do livro; assim, passa a ser o leitor o agente ativo da
significação, anulando as dicotomias escritura/ leitura, ativo/ passivo. Esta perspectiva, como
tentei demonstrar em “Cuando las obras ya no son intocables” (2007), foi muito cara a Ana
Cristina: em um mesmo movimento, escritora e leitora dos próprios textos e de textos de
outros autores que passam a formar parte do próprio corpo textual.
Mas a idéia da construção do escriptor ou do autor na linguagem mostrou rapidamente
algumas limitações. Com a aparição de noções como a de ‘práticas de si’, articulada pelo
próprio Foucault, se fez necessário perguntar: quem constrói a função-autor, quem é o sujeito
nas práticas de si? Ou, como colocaria Judith Butler ao falar da abrangência da idéia de
gênero como performático e construído (BUTLER, 2005): se tudo é construção, quem
constrói?
Com essas preliminares que nos levam a não dar soluções definitivas à questão,
tentemos clarificar o que entendemos aqui por autor e por nome de autor, dado que a projeção
da função no indivíduo varia de acordo com épocas e os tipos de discurso, como já assinalara
Foucault. Parece impossível separar a vida de Ana Cristina de seus textos, como se a vida
estivesse carregada da função autor, dado que a prática de si, a performance, não se daria
apenas nos escritos, mas numa forma de viver, nas escolhas do comportamento. Então, pode-
se ainda falar de uma pura textualidade? Pode-se falar de vida como alguma coisa por fora da
construção de si? Diz “Psicografia” (ID, p.79):
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto
14
* * *
Figura 1
Para continuar será necessário voltar ao nome que nos interessa. Por que “Ana C.”,
então? Por que a escolha desse nome/ pseudônimo como nome de autor? A não ser pela
edição póstuma da sua correspondência, em que, na capa, o primeiríssimo plano do rosto de
Ana Cristina vem acompanhado de um “Ana C.” símile-manuscrito, quase sussurrado pela
boca da intimista fotografia (BRIZUELA, 2007), “Ana C.” nunca foi seu nome autoral nos
textos publicados.
A primeira aparição do significante “Ana C.” pode ser datada, com certa
confiabilidade, em outubro de 1979, em uma carta enviada da Inglaterra para Heloisa Buarque
de Hollanda, e será a assinatura mais utilizada na correspondência privada enviada desde
então. Mas, a declaração de intenção na escolha do epíteto chega num post scriptum de uma
outra carta, também para Heloisa, de 14 de fevereiro de 1980. Diz Ana: “adotado de vez o
nome de Guerra” (CI, p. 40). Sim, a expressão coloquial cresce, “Guerra” com maiúscula.
Mas qual seria essa “Guerra”? Contra o quê? “Ana C.” parece ser o nome que nomeia a forma
sem norma, que contém tudo, necessário para a defesa cotidiana. Defesa numa luta, talvez,
contra o estabelecimento de um nome próprio único – que correspondesse ao nome civil Ana
Cristina Cruz Cesar
2
–, o qual enviaria sem mediações para um ‘eu’ puro, irrealizável, para
2
Ana Cristina Cesar seria o nome próprio que, tal como analisa Pierre Bourdieu em “Para una ciencia de las
obras”, “garantiza a los individuos designados, más allá de los cambios y de todas las fluctuaciones biológicas y
sociales, la constancia nominal, la identidad (...) que requiere el orden social”, seria o suporte do estado civil
(1997, p.78). Esse funcionamento básico não é contrário aos postulados de Derrida ao analisar o nome próprio e
a assinatura, mas da conta da primeira função do nome que em todo trabalho ou intervenção intencional sobre ele
– deformações, heterônimos, etc. – estaria sendo referida e discutida.
15
uma autora que funcionaria como núcleo explicativo. “Ana C.” contém o eu mutável, em
permanente deriva, que vai se delineando na poética e na escrita toda de Ana Cristina. “Ana
C.” contém todas as vozes.
No entanto, a escolha de “Ana C.” faz uma associação que provavelmente não
escapava à poeta. A cifra joga com a semelhança sonora e gráfica com “Anna O.”,
pseudônimo de Bertha Pappenheim utilizado por Freud nos seus escritos. Anna O. é
considerada a primeira histérica diagnosticada do discurso psicanalítico. Mas seria importante
levantar um outro dado: seus sintomas mostraram alivio depois de falar livremente, fato no
que Joseph Breuer, seu médico e colega de Freud, achou um método de cura nesse discurso
catártico, tratamento que seria a base de todo o método psicanalítico. A mesma idéia de fala
como cura, seria colocada e problematizada por Ana C. em seus textos de forma ostensiva,
fazendo a homofonia funcionar ainda mais significativamente: “Preciso começar de novo o
caderno terapêutico (...) Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós.” (ATP, p.83), ou
como diria em um depoimento: “Falar, falar, falar, falar, falar... (...) Se não, a gente angustia
muito” (CT, p.273).
Porém essa referência cifrada, como cognome, ressaltaria o sentido intencional da
escolha, não entendemos a assinatura “Ana C.” como um mero pseudônimo literário. Embora
devamos reconhecer que a mídia fez dele uma marca poética e seu nome público como
escritora, o fato de aparecer primeiro nas correspondências reconfigura não apenas a definição
mais corrente de pseudônimo – dada de forma bastante simplista por Philippe Lejeune em Le
pacte autobiographie (1975), como um nome que indica “un segundo nacimiento constituído
por los escritos publicados (...) um desdoblamiento del nombre, que no cambia en absoluto la
identidad” – mas também re-configura o caráter privado dessas cartas, que passam a ser parte
dos textos a publicar. Como Ana propusera para Ana Cândida: “Vamos fazer uma coisa? Eu
faço um livro com as tuas cartas e você faz um com as minhas, com faro e certo
distanciamento. Quando estiverem prontos, as autoras censuram os respectivos” (CI, p. 276).
Portanto, a “Guerra” se joga tanto no terreno público quanto no privado; ambos
terrenos onde será preciso levar em conta as forças da re-presentação, a figuração de si, as
tecnologias do eu, descritas por Foucault principalmente na sua História da sexualidade
(1976), como veremos no segundo capítulo.
O tempo e a fama fizeram com que essa abreviatura do nome fosse incorporada pela
mídia como nome literário. Assim, muitos dos sites ou mini-biografias começam com a frase:
“Ana Cristina Cesar, ou ‘Ana C.’ como era conhecida, nasceu em...” Essa forma de ser
16
conhecida, ser pública e publicitada, por não ser um pseudônimo literário em sentido estrito,
funciona como catalisadora dos diferentes autógrafos, as várias assinaturas possíveis que
formam o arquivo: desde o “Tina” com o que assinava os primeiros relatos ainda criança,
passando pelo clássico “Ana Cristina Cesar” da maioria dos poemas espalhados em cadernos,
ou “Ana Cristina Cruz Cesar”, “Ana Cristina”, “ACCC”, “A.C.Cesar”, “ana cristina c” na
capa de Luvas de pelica (1980), o mais declaradamente ficcional, “Júlia”, da carta de
Correspondência Completa, o límpido ‘Ana’, ou a pura dêixis de um assinado “eu”.
Como explicara Derrida, em “Assinatura acontecimento contexto” (2001 [1972]), toda
assinatura implica a condição de iteratividade, de repetição, como o signo condensador da
condição de toda escrita; no entanto, tem suas particularidades. Diz Derrida:
Por definição, uma assinatura escrita implica a não-presença atual ou empírica do
signatário. Mas, dir-se-ia, marca também e retém seu ter sido em um agora passado,
que permanecerá um agora futuro, logo, um agora em geral, na forma transcendental
da permanência (DERRIDA, 1991, p. 35).
Uma rubrica, por conservar uma singularidade de forma – sempre evidente como
garantia de funcionamento –, envia a um signatário particular e não a um outro; é original e,
portanto, susceptível de ser falsificada. A rubrica visa ser, então, a reprodução pura de um
acontecimento puro, de fato, impossível.
Nesse sentido, numa das cartas para Ana Cândida Perez, Ana Cristina manda dois
autógrafos: um deles, uma rubrica cujo referente os leitores da edição desconhecemos; e o
outro, uma foto 3x4 da própria Ana. Assim, um “autógrafo” pode ser tanto uma rubrica
quanto um retrato – ambos, repetíveis, constatam um momento “irrepetível”: o
acontecimento, diria Derrida. “Este é recentíssimo, deste mês. Os cabelos crescem” (CI, p.
200).
Figura 2
17
Mas, os dois autógrafos vêm acompanhados de uma linha que os delimita e um
esclarecimento: “recorte na linha e cole no álbum de família”; assim, autógrafos, assinaturas,
retratos, são plausíveis de entrarem numa coleção, de serem arquivados e lembrados, como
marcas que conservam a tensão da pureza e a repetição, entre a aura e a técnica, como marcas
que interessam por ser portadoras de punctum como as fotografias. As assinaturas, que já não
são apenas as rubricas, só têm valor porque alguém esteve ai, e elas são a pegada, a marca, da
desaparição (BARTHES, 1984).
Seguindo essa lógica, Derrida também vai definir a “assinatura freudiana” como
alguma coisa que se situa entre Freud, o nome próprio, e a teoria psicanalítica (DERRIDA,
2001, p.15); ou, como o nome “Nietzsche” (assim, entre aspas), que estaria assinalando aquilo
que da sentido ao pensamento nietzschiano e não ao homem.
3
De tal modo, ao escolher o
significante “Ana C.”, escolhemos manter essa tensão. Uma tensão frente à indecisão
colocada por todos os textos que têm um referente real mas que, ao mesmo tempo, assumem
seu caráter construído, como transparece no tão citado exemplo de Correspondência
Completa (1979):
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar
mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas,
segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios
sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências
diretas. (ATP, p.120).
Dois leitores equivocados para a proposta da Júlia que assina. Nesse mesmo sentido,
Peter Bürguer, analisando um fragmento da ‘autobiografia’, Roland Barthes por Roland
Barthes (1975), diz que tanto autor quanto leitor caem numa armadilha na que se designa,
erroneamente, para o ‘eu’ do texto um referente real. No fragmento extraído do texto de
Barthes, o ‘eu’ conta uma experiência de infância que o leitor rapidamente associa a infância
do próprio Roland Barthes; no entanto, o trecho continua com a declaração explícita de ser
um ‘eu’ inteiramente constituído na linguagem, rejeitando a referência biográfica. E diz
Bürguer:
El atractivo del fragmento consiste en que ninguna de las dos lecturas puede
considerarse acertada. Si el lector se decide por una de las variantes, lo hace sobre la
base de un saber previo (ya sea del concepto tradicional de sujeto, ya sea de la teoría
negativa del mismo) (BÜRGUER, 2001, p. 300)
.
3
Como diz Heidegger em seu livro Nietzsche: “Nunca vamos saber quem é Nietzsche por um relato
historiográfico da sua vida, nem pela exposição do conteúdo de seus escritos. Quem é Nietzsche não queremos
nem devemos sabê-lo enquanto nos refiramos apenas à personalidade e à figura histórica, ao objeto psicológico e
às suas produções”. (Martin Heidegger, Nietzsche - apud, Derrida, 1981 – tradução minha para o português).
18
“Ana C.” nos permite referir essa tensão que perpassa toda a produção de Ana em
diferentes modulações, pois estaria num “entre” a pessoa e o texto, pois “Ana C.” não seria
apenas o índice que remete a uma biografia ou a uma psicologia individual, mas à rede
conceitual, formada pelo acervo Moreira Salles, pelos textos assinados por Ana que não estão
ali, mas também por todo texto que a ela se referir, pelas fofocas e boatos que a tem no centro,
pelos retalhos de vivências que se tecem nas memórias de quem viveu com ela, pelos retalhos
de interpretações de seus leitores, e pelo punctum dessas representações que estaria apontando
para a pessoa Ana Cristina Cesar, que morreu no ano 1983 e é citada com afeto.
Avancemos mais um pouco na questão do autor, e a possibilidade de entender a sua
localização num entre a pessoa e o(s) texto(s), entre para o que escolhemos o significante
“Ana C.”.
Giorgio Agamben, em “O autor como gesto”, do seu livro Profanações, retoma a
discussão sobre o autor que se inicia com as respostas ao texto de Michel Foucault. Ali
Agamben vai tentar resolver o já assinalado paradoxo, a presença-ausência do autor no texto:
“o mesmo gesto que nega qualquer relevância à identidade do autor afirma, no entanto, a sua
irredutível necessidade” (2007, p.55). Conforme Agamben, a resposta se encontraria em uma
única afirmação de Foucault no livro A vida dos homens infames de 1982, sendo,
originalmente, texto introdutório a uma série de documentos de internação, pelos quais
tornou-se evidente que essas ‘vidas’ percorridas no livro se fazem visíveis, se realizam, ao
mesmo tempo que são capturadas pelo discurso do poder, que as declara infames; ou seja, não
existem umas sem o outro, vidas e discurso. Foucault esclarece que os textos com os quais ele
vai trabalhar não são biografias nem retratos que falam dessas vidas infames, mas textos que
revelam como essas vidas foram “postas em jogo” pelos agentes das diferentes escritas.
Citemos Agamben e, com ele, Foucault, que se perguntam sobre a referência dos nomes de
homens e mulheres infames:
Onde está Mathurin Milan? Onde está Jean-Antoine Touzard? Não nas
lacônicas observações que registram a sua presença no arquivo da infâmia, nem
sequer fora do arquivo, numa realidade biográfica de que literalmente nada sabemos.
Eles estão no umbral do texto em que foram postos em jogo (...) “Vidas reais foram
‘postas em jogo’ (jouées)” é, nesse contexto, uma expressão ambígua, que as aspas
procuram sublinhar. (...) Quem pôs em jogo as vidas? Os próprios homens infames,
abandonando-se sem reservas (...)? Ou então, como parece mais provável, a
conspiração de familiares, funcionários anônimos, de chanceleres e policiais, que
levou à internação dos mesmos? A vida infame não parece pertencer integralmente
nem a uns nem a outros, nem aos registros dos nomes que no final deverão responder
por isso, nem aos funcionários do poder que, em todo caso, e no final das contas,
decidirão a respeito dela. Ela é apenas jogada, nunca possuída, nunca representada,
nunca dita – por isso ela é o lugar possível, mas vazio, de uma ética, de uma forma de
vida. (AGAMBEN, 2007, p.60.)
19
Se perguntarmos onde está “Ana C.”, a resposta seria a mesma. Nem nos documentos,
nem numa biografia exterior a eles. “Ana C.” está no umbral, no entre, nas aspas. “Ana C.” é
o gesto, é o que fica da vida real posta em jogo nos textos. “Ana C.” não pertence
integralmente nem a Ana Cristina Cesar, nem aos herdeiros, nem aos críticos, nem aos
leitores. Ninguém a possui, forma sem norma; e, ao mesmo tempo, a única forma de vida
possível de ser lida.
Para Agamben, o autor seria esse gesto, insubstancial, através do qual uma pessoa
coloca a sua vida em jogo nos textos. “O autor marca o ponto em que uma vida foi jogada na
obra. Jogada, não expressa; jogada, não realizada. Por isso, o autor nada pode fazer além de
continuar, na obra, não realizado e não dito.” (AGAMBEN, 2007, p.61). Seria uma forma de
insistir em que o autor não tem lugar próprio, “mas acontece a um sujeito, e está nele como
um habitus ou modo de ser, assim como a imagem está no espelho” (AGAMBEN, 2007, p.
52). “Ana C.”, autora, está nas luvas de pelica que não são um lugar fixo, mas se
corresponderiam como a imagem sobre o espelho. As luvas tornam inseparáveis a pele e o
texto, peli-ca, sendo algo que acontece na mão que escreve, e que apenas faz sentido se
enluvada. Essa imagem, precária, incompleta, enganadora, do autor é a única forma que ele
tem de aparecer. “Antes de sair tiro as luvas, deixo aqui no espaldar desta cadeira” (ATP,
p.149).
Ao dizer “Ana C.” significamos esse ponto, esse gesto que a obra atesta, ao mesmo
tempo lugar de origem e desaparição. Ao dizer “Ana C.” dizemos o nome de uma autora em
tanto gesto; que coloca em jogo, na mesa dos textos, a vida. Ao dizer “Ana C.” nomeamos a
construção de uma subjetividade que não se basta na obra, nem nas leituras que se fizeram,
mas que também é irredutível à pessoa que produz esses textos, nesse caso Ana Cristina Cruz
Cesar.
Assim, paradoxalmente, “Ana C.” é o nome do arquivo que devemos transitar para
saber quem ou o que é “Ana C.”, quais jogadas a constituíram. Mas são horas de tirar as
aspas, pois diferenciar com clareza o textual do extra-textual, através delas, parece já não ser
necessário.
Ana C. e os cânones
20
No caso de Ana Cristina, os motivos para afirmar que ela é uma poeta canonizada ou
consagrada são vários. De um lado, dados objetivos e quantitativos que falam a respeito da
sua visibilidade no meio acadêmico e na mídia cultural; de outro, um complexo de discursos
dominantes e emergentes, próprios da historiografia, da teoria literária ou da teoria cultural,
que ficaram em pauta na hora de ler a produção particular – pela época, pelas estratégias de
escrita, pela biografia individual e geracional – de Ana Cristina, compondo a figura de Ana C.
em um processo que, enquanto aparecerem novos discursos em torno dela, não estará fechado.
Harold Bloom, no seu famoso livro O cânone ocidental (1994), define os textos
canônicos como aqueles ‘obrigatórios em nossa cultura’, obrigatoriedade dada por valores
como originalidade (p. 33), capacidade de gerar releituras (p. 37; p. 493), a ‘força’ estética
como uma capacidade autônoma e auto-suficiente do texto. Porem, a definição me parece
ineficiente, não apenas para falar de qualquer tipo de arte que não seja ‘ocidental’, termo que
no livro parece se limitar a uma visão euro-centrista, mas para qualquer expressão da arte
contemporânea que não resgate esses parâmetros modernos. Resgate ainda mais significativo
se pensamos que o livro de Bloom é de 1994, relativamente recente, ou seja, contextualizado
por um tipo de arte que muitas vezes se contrapõe de forma explícita a esses valores que ele
tenta reavaliar.
Muitos anos antes, na conferência “Da Leitura”, de 1975, Roland Barthes já assinalava
que “a derrocada dos valores humanistas pôs fim a esses deveres de leitura” universais
(BARTHES, 2004, p.34), dando lugar a ‘deveres particulares’, definidos por valores a serem
explicitados a cada vez, por quem faz as escolhas; cabe, agora, a afirmação de Bloom, para
quem o estabelecimento de um cânone ou a sua perpetuação “é um ato ideológico em si
(BLOOM, 1994, p. 30).
Portanto, se já não existe um único cânone, se todo cânone tem de ser adjetivado
(inclusive o ocidental de Bloom), deveríamos perguntar a que cânone pertenceria Ana C..
Poderíamos dizer, tentando responder, que a obra de Ana tem a particularidade de conseguir
‘pertencer’ a vários cânones, isto é, responde a parâmetros de valor muito diferentes, como o
provam os diferentes âmbitos de circulação e abrangência das suas publicações, o que
constitui um diferencial em relação aos textos da sua geração.
Os textos de Ana apresentam um campo fértil tanto para pesquisas voltadas para os
estudos culturais, estudos de gênero, estudos mais sociológicos do campo cultural ou sobre
vida literária, quanto para estudos interessados na complexidade estética, sendo os poemas de
alta sofisticação construtiva. Mas a circulação não se restringe aos diferentes campos da
21
academia, pois os textos de Ana C., embora suportem sofisticadas leituras acadêmicas,
também são acessíveis ao grande público, como o demonstram as edições para público
adolescente ou a grande quantidade de edições dos seus livros de poemas em um âmbito
sócio-cultural onde o consumo de literatura em geral – e ainda mais de poesia – tem
circulação e venda restritas a um pequeno número de interessados.
Essa capacidade de participação múltipla, que não deixa de ser surpreendente para um
escritor tão contemporâneo quanto Ana Cristina, é uma capacidade retrospectiva. Ela se faz
possível de forma mais abrangente depois das edições organizadas por Armando Freitas Filho
e da visibilidade dada pelo suicídio, mas já se podia distinguir no começo da década de 80
com a edição – e reedição – de A teus pés, e a profissionalização da atividade.
Passemos aos dados objetivos.
4
Ana Cristina Cesar nasceu no Rio de Janeiro,
Copacabana, no dia 22 de junho de 1952, e morreu em 29 de outubro de 1983. Em vida, Ana
Cristina editou apenas alguns poucos livros de poesia, artigos avulsos em publicações
periódicas e Literatura não é documento (1980) – um estudo sobre documentários brasileiros
que tem por objeto a figura de escritores consagrados – resultado do mestrado na área de
Comunicação que ela realizara na UFRJ, sob orientação de Heloisa Buarque de Hollanda, em
1978.
Os livros de poemas, se assim podem ser nomeados sem cair em reducionismos,
foram: Cenas de abril (1979), Correspondência Completa (1979) – aquela única carta, de
menos de dez páginas, de ‘Júlia’ para um indefinido ‘My dear’ –, Luvas de pelica (1981),
editado primeiro na Inglaterra, que ela própria define como poesia/prosa, e A teus pés (1982),
último livro onde reúne os três anteriores, agregando uma nova série de poemas, resultando
um volume de cerca de cem páginas.
No entanto, as publicações póstumas, em sua maioria organizadas por Armando
Freitas Filho, acrescentaram muitos textos e papéis à sua bibliografia. Tentemos ser
minuciosos: um livro de Inéditos e dispersos (1985), com poesias e pequenas prosas, e o
significativo agregado de fotografias de Ana e desenhos feitos por ela; outro, Escritos da
Inglaterra (1988), com ensaios sobre tradução e a dissertação do mestrado em tradução que
Ana realizou na Inglaterra, sobre o conto “Bliss” de Katherine Mansfield; Escritos no Rio
(1992) com alguns dos seus artigos na imprensa e ensaios avulsos; a reedição destes dois
4
Cf. em Bibliografia os dados completos de todas as publicações aqui mencionadas. Cf. também o livro de
Maria Lucia de Barros Camargo (2003), um levantamento da fortuna crítica mais significativa feita até o ano
1990, sob o título “Repercussão imediata”, pp.23-25.
22
últimos, junto a Literatura não é documento, apareceu em um único volume com o nome
Crítica e tradução (1999). Ainda, sob a sua autoria, foram editadas algumas das suas cartas
em Correspondência Incompleta (1999). Também foram publicados, postumamente, em
diferentes coletâneas, estudos acadêmicos e revistas especializadas, alguns poemas inéditos
que se acham entre os documentos. Também publicou-se um caderno de desenhos,
Portsmouth-Colchester (1989) em edição fac-similar.
Ainda mais: A teus pés foi reeditado e reimpresso muitas vezes, agregando ainda mais
fotografias do álbum familiar. Também, organizaram-se no Brasil outros dois livros com a sua
poesia com alvo juvenil, Novas seletas (2004), reunindo poemas de A teus pés e de Inéditos e
dispersos, junto a estudos de Armando Freitas Filho, Silviano Santiago e emotivos textos do
pai e do irmão de Ana Cristina; e Na onda dos versos (2003), que também inclui textos de
Arnaldo Antunes, José Paulo Paes, Mario de Andrade e Paulo Leminski.
Também podemos contar outras aparições da sua poesia na maioria das coletâneas ou
panoramas da poesia brasileira do século XX, como, para citar alguns, Os cem melhores
poemas brasileiros do século, organizado por Italo Moriconi, ou 100 anos de poesia (2001),
organizado por Claufe Rodrigues e Alexandra Maia.
A fortuna editorial se estendeu, também, fora do Brasil, tanto em idioma original
quanto em traduções. Para dar alguns exemplos: poemas de Ana Cristina aparecem em uma
coletânea sobre poetas ‘malditas’ latino-americanas, La maldad de escribir (2003),
organizada por Maria Negroni; em Pontes/ Puentes, uma antologia binacional Brasil-
Argentina, organizada por Jorge Monteleone e Heloisa Buarque de Hollanda (2004). Em
Portugal, apareceu em
Poesia Brasileira do Século XX - Dos Modernistas à Atualidade,
organizado por Jorge Henrique Bastos (2002). Regis Bonvicino a incluiu em Nothing the sun
could not explain: 20 contemporary Brazilian poets
(2003). Existem também traduções que se
dedicam exclusivamente à sua produção: no México, editou-se o livro Forma sin norma
(2006); na França, Gants de peau & autres poèmes Ana Cristina Cesar (2005), traduzido por
Michel Riaudel; na Inglaterra, Intimate Diary (1997), traduzido por David Trecee; na
Alemanha, Dir zu Füben (1997), com tradução de Mechthild Blumberg; na Argentina,
apareceram Guantes de Gamuza y otros poemas (1992) e, recentemente, Álbum de retazos
(2006), com textos críticos, a tradução de algumas cartas, além de poemas e imagens inéditas.
Mas não se trata apenas das edições de textos da sua autoria. Depois da sua morte
proliferaram textos de outros sobre ela. Comecemos mencionando uma biografia, mistura com
homenagem, estudo crítico e biografia geracional, escrita por Italo Moriconi, seu colega e
amigo: Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta (1996). O livro fazia parte de uma
23
coleção que incluía figuras midiáticas do Rio de Janeiro como Chico Buarque de Hollanda,
Zeca Pagodinho, Vinicius de Moraes, ou escritores consagrados como Ferreira Gullar ou
Rubem Fonseca, e essa companhia fala de certa forma de uma fama comparável incipiente.
A sua fortuna crítica se desenvolveu em inúmeros artigos e ensaios dos mais
importantes críticos do Brasil e outros países, e mais de vinte dissertações e teses de
doutorado – número que cresce, inclusive com esta dissertação. São cinco os livros publicados
que se dedicam a ela na íntegra: Flora Süssekind (1995), Maria Lucia de Barros Camargo
(2003), Ana Claudia Viegas (1998), Regina Helena Souza da Cunha Lima (1993), Annita
Costa Malufe (2006); quase todos eles produtos de pesquisas que começaram nos últimos
anos da década de oitenta.
Seus poemas e a sua figura inspiraram músicas, peças de teatro, um audiovisual – Ana C
(1986) de Claudia Maradei – e um belo curta metragem, Poesia é uma ou duas linhas e por
trás uma imensa paisagem, dirigido por João Moreira Salles em 1990. Ana também foi
personagem e musa de muitos poemas, alguns contos, uma novela, um romance e,
presumivelmente, alguns outros que não chegaram às nossas mãos.
Finalmente, alguns de seus documentos formaram parte de uma exposição no Museu de
Arte Moderna de São Paulo, junto com outros de Paulo Leminski e Cacaso, também poetas
falecidos da geração 70. Seu nome, inserido na pesquisa do Google, dá por resultado
milhares de entradas, configurando um grande arquivo virtual; enquanto o arquivo material
“Ana Cristina Cesar” tem domicílio, desde 1998, na sede do Instituto Moreira Salles, no Rio
de Janeiro.
5
Um novo escrito em Ana C.
Todos esses dados, no entanto, não explicam o fato de Ana C. ter chegado a ser uma
poeta canônica, embora confirmem essa condição, ao mesmo tempo que a alimentam e a
modificam, escrevendo e reescrevendo a sua figura. Como dizíamos, existe um processo,
historizável, dos passos que a levaram à consagração. Porém, esse processo não se da numa
linha reta, nem tem um único agente envolvido. Daí que o meu percurso tenha decidido
5
Recentemente o Instituo Moreira Salles colocou a disponibilidade na Internet, o catálogo da biblioteca do
acervo de Ana Cristina em: http://acervos.ims.uol.com.br/
24
abandonar uma evolução cronológica, que seria esperável sob a idéia de processo de
consagração, e tenha escolhido percorrer tramas em lugar de processos lineares.
Tal como fora assinalado no começo, dado que esta leitura não pretende abarcar a
totalidade dos textos que tiveram um papel no processo de consagração de Ana C., mas
apenas indicar as linhas de força mais significativas, dou-me a liberdade de misturar as
diferentes textualidades, tentando respeitar as suas especificidades genéricas – poesia,
correspondência, textos de homenagem, textos críticos, etc. – mas sem fazer desse respeito
uma camisa de força. Vontade de percorrer os materiais como se fossem um só texto: fotos,
cartas, poemas, artigos.
Os capítulos da dissertação correspondem a algumas dessas linhas, que, embora
mantenham uma certa ordenação cronológica, certamente se superpõem, principalmente
porque tentamos abordar escrituras e leituras como um contínuo.
No primeiro capítulo, tentarei definir o patamar inicial do processo de consagração de
Ana C.: a sua colocação no campo intelectual e artístico dos anos 70 e 80. Para isso, será
necessário determinar os parâmetros e valores que definiam o campo na época e o papel da
crítica literária e cultural que configurava o objeto à medida que o analisava,
simultaneamente. Para compreender a posição dada a Ana, será preciso visitar textos escritos
e aparecidos em sua vida que, mormente, colocam na sua figura características diferenciais
em comparação com outros poetas. No entanto, não apenas nos interessam essas leituras
críticas do campo contemporâneas ou posteriores a ele, mas também textos da própria Ana.
Ela construiu a sua própria visibilidade no campo, sua figura pública, de forma particular,
principalmente nos primeiros escritos para imprensa, aparecidos em um contexto de época de
luta estudantil e procura de novos rumos para um movimento de poesia marginal, que, nos
últimos anos da década de 70, mostrava sinais de cristalização e, portanto, esgotamento.
No segundo capítulo, analisarei a(s) figura(s) de Ana C. que se desprendem dos
diferentes trabalhos realizados com o arquivo, prestando principal atenção às edições
posteriores a sua morte que se fizeram da obra. Em primeiro lugar, uma imagem oficial – e
familiar – que continua o mito da menina prodígio, surgido na infância, e que a própria Ana,
em um movimento duplo, recusara e utilizara. Deste modo, veremos – principalmente através
do trabalho com as fotografias – que os mesmos documentos que alicerçam as leituras
tranqüilizadoras e mitológicas permitem o surgimento de leituras contrárias. O mito, tal como
analisara Barthes, mostra o seu potencial ambivalente, abrindo à problematização aquilo que
estaria instaurando. O próprio tratamento que Ana C. dava aos arquivos, além das modulações
às que submeteu a própria figura nos permitiram ver o potencial de leituras abertas, frente a
25
leituras que tratam a imagem e os documentos de Ana C. como uma relíquia intocável e
inatingível.
O último capítulo se destina a outra série de leituras e escrituras de Ana C.: a fortuna
crítica e a fortuna literária. Como dissemos, os estudos críticos sobre a poesia de Ana
proliferaram desde a sua morte e foram crescendo em número. O fato é que em tal quantidade
podemos ver diferentes posições. Simplificando, poderíamos dizer que, de um lado, textos
com leituras atentas e originais, mas também outros textos que repetiram as mesmas
estratégias críticas e não colocaram em questão – através de desafios ou perguntas – nem o
objeto de estudo nem a própria linguagem, reproduzindo uma imagem mítica que alimentava
sem censuras a figura canonizada, sem incomodar as expectativas do leitor. Colocações
similares, levando em conta as especificidades das linguagens, poderiam se ver nos textos
literários, seja narrativa ou poesia, que tem a Ana C. por tema, personagem ou musa: alguns
deles reproduzem a visão nostálgica, outros tentam fazer ‘balanços’ da sua influência,
enquanto outros, ousadamente, desfiguram a figura até, na sua total aparição, fazê-la
desaparecer. Profanar ou não: essa é a questão a percorrer no conjunto de textos que fazem
parte do último e interminável capítulo do processo de consagração de Ana C..
26
CAPÍTULO I
Não ter posição marcada.
Ana C. no campo literário da década de 70
27
No roteiro do que chamamos de processo de consagração de Ana Cristina Cesar, teve
grande importância a sua posição no campo cultural, artístico e literário da década de 70; não
apenas o lugar onde ela se colocou mas, também, aquele onde os leitores da sua obra a
colocaram. Vários críticos estudaram o papel de Ana no contexto artístico geracional,
atendendo principalmente às diferenças de dicção ou de filiação estética em comparação com
outros poetas. No entanto, podem ser revisitados e cotejados à luz do que diz Pierre Bourdieu,
em As regras da arte, numa frase que guiará nossa leitura:
Só se pode adotar o ponto de vista do autor (ou de qualquer outro agente) e
compreendê-lo – mas com uma compreensão muito diferente daquela que possui, na
prática, aquele que ocupa realmente o ponto considerado –, com a condição de
reapreender a situação do autor no espaço das posições constitutivas do campo
literário: é essa posição que (...) está no princípio das ‘escolhas’ que esse autor opera
num espaço de tomadas de posição artísticas (em matéria de conteúdo e de forma)
definidas, também elas, pelas diferenças que as unem e as separam (BOURDIEU,
1992, p.108).
Nesse sentido, tentaremos reconstruir o ponto de vista que Ana Cristina podia ter do
próprio contexto, ponto de vista este que configurou as suas escolhas estéticas e ideológicas,
em grande parte definidoras da primeira imagem pública que ela, como poeta e intelectual,
assumiu. Repensar a tomada de posição artística de Ana Cristina e repensar a configuração do
campo cultural dos 70 são condições necessárias para compreender o processo de
consagração e a figura Ana C. construída nesse processo. Compreender no sentido colocado
por Bourdieu, ou seja, sem explicações centralizadas na individualidade.
* * *
O campo cultural – como todo campo – não é estático, mas um sistema de relações “que
incluye a artistas, editores, marchantes, críticos, público, que determina las condiciones
específicas de producción y circulación de sus productos” (GARCÍA CANCLINI, 1990,
p.18), relações que podem ser definidas como lutas pela apropriação do capital simbólico
herdado ou produzido pelo próprio campo. Entre os anos 75 e 83, durante os quais Ana
desenvolve a sua vida profissional, publicando poemas, artigos, traduções e dando aulas, o
campo cultural brasileiro experimentou um intenso e particular processo de procura de
posições diante de um contexto político que mudava da dura ditadura do AI-5 para uma
gradual abertura. No entanto, as relações entre os participantes estavam sendo reconfiguradas
não apenas em relação a esse contexto político, mas também por uma série de recolocações
28
internas do grupo de jovens poetas cuja forma de expressão se opunha ao regime ditatorial
militar, principalmente, sob a perspectiva comportamental. A ‘poesia marginal’, que ainda
não tinha sido capturada pelo sistema artístico hegemônico, nem avaliada pela academia de
forma sistemática, nem ingressado no mercado editorial, achou-se, na metade da década, nas
portas da institucionalização e da absorção das práticas pelo mercado, passando a ser
hegemônicas. Como diz Chacal: “com a abertura, a indústria cultural começou a absorver a
nossa linguagem” (Nuvem Cigana, 2007, p.136); ao mesmo tempo que, conforme Chacal,
Heloisa Buarque de Hollanda dava o aval acadêmico – outro pólo da institucionalização
(Idem, p.117).
Percorrendo a historiografia literária das últimas décadas, sabemos que a geração de
poetas que começara a produzir nos primeiros anos da década de 70 tem sido abundantemente
estudada sob diferentes nomes: geração mimeógrafo, geração marginal, geração 70, etc. São
paradigmáticos dois estudos feitos de forma contemporânea ao desenvolvimento da produção:
os belíssimos livros de Heloisa Buarque de Hollanda, Impressões de Viagem (1978), e Carlos
Alberto Messeder Pereira, Retrato de época (1979). A eles somam-se os muitos artigos de
Cacaso, de Silviano Santiago, de Luiz Costa Lima, entre outros, em revistas e jornais. Essa
profusão de textos, a maioria deles feitos numa mistura de calor da hora e intento de
caracterização mais rigorosa – por pessoas que de uma forma ou outra eram partícipes dessa
produção e tinham um alto grau de envolvimento como colegas ou professores dos poetas –,
configurou a forma de olhar criticamente a produção daqueles anos.
As singulares movimentações do campo artístico – literário e poético para o interesse da
nossa pesquisa – fazem com que seja muito difícil uma reapreensão abrangente, e quase
impossível a construção de um ‘retrato de época’. Tentar definições unívocas apresentaria o
risco de congelar as estratégias de artistas que, na verdade, por sua heterogeneidade e seu
posicionamento, resistem claramente a uma classificação unilateral. Portanto, não tentaremos
aqui traçar um retrato, nem um ‘outro retrato’ da época, mas sim revisitar algumas dessas
leituras fundadoras, sem negá-las, buscando analisar o lugar que Ana Cristina ocupou nesse
campo, seja por auto-figuração, seja outorgado por leituras críticas.
Os estudos têm uma característica comum. Ana Cristina Cesar é historicamente lida na
sua excepcionalidade. Entendemos que essa diferença ‘essencial’, colocada pelos autores que
comentaram a vida e a obra de Ana Cristina, contribuiu à mitificação da figura de Ana C..
Sem negar algumas claras diferenças, tanto nos textos quanto na biografia de Ana
Cristina, em relação a seus amigos e colegas poetas, tentaremos lhe dar uma recolocação
29
simbólica dentro do campo. Para isso: percorrerei as características básicas da formação do
campo, em particular as relações interpessoais – o convívio – que circundavam as produções
poéticas; levantarei, também, as leituras críticas surgidas no momento e que formaram parte
de um sistema de legitimação simultâneo à produção artística, contribuindo para formar o
próprio objeto; e, por último, tentarei ver a posição que a própria Ana assumiu em relação ao
campo, através de alguns de seus textos públicos e privados.
A revisão desses textos e dos diferentes estudos, porém, mostraria uma posição
particular – e, sim, de alguma forma excepcional – de Ana Cristina, determinada contudo pela
sua colocação no tempo e o espaço daquele movediço chão do campo cultural. Pois ela
começara a publicar artigos no final de 1975 e poemas em 1976,
6
cinco anos após as
primeiras expressões da poesia dita marginal, mas simultaneamente às primeiras publicações
desses poetas por grandes editoras e a estudos de longo fôlego – não só artigos na mídia – que
já se referiam a eles como uma geração delimitada, construindo-a publicamente como tal.
Portanto, entendemos que Ana Cristina vai fazer as suas escolhas sob uma perspectiva
participante e distanciada, com consciência de certa institucionalização, e da entrada da
geração na história/ historiografia literária. Como diz com a sua ironia característica numa
bela carta de 14 de maio de 1976: “É engraçado estar participando ao vivo da ‘história
literária’ (pretensão?)” (CI, p. 98).
A configuração de um campo: surto poético, surto crítico e algum balanço.
Desde os primeiros anos da década de 70, o circuito cultural brasileiro, principalmente
carioca, assistiu ao surgimento do que se chamou de uma revitalização da poesia. “Hoje, o
artigo é poesia. Nos bares de moda, nas portas de teatro, nos lançamentos, livrinhos circulam
e se esgotam com rapidez”, descreve Heloisa Buarque de Hollanda algum tempo depois
(HOLLANDA, 2001, p.9). A quantidade de produtores e produções, edições e lançamentos
coletivos na livraria Muro ou no Parque Lage, vendas em livrarias e em mãos, matérias em
revistas e jornais, exposições, encontros em bares e programas de disciplinas universitárias
são testemunhos um fenômeno que – depois desse primeiro ‘surto de poesia’, que causou
6
O primeiro artigo que aparece publicado em um meio reconhecido foi “Os professores contra a parede”
(Opinião em 12 de dezembro de 1975): um balanço, seguido de entrevistas, dos debates sobre a pertinência e a
forma do ensino de teoria, principalmente o estruturalismo, nas universidades brasileiras.
30
surpresa em um panorama cultural que se tinha por calmo e homogeneizado – percorreu toda
a década.
Entre outros, formaram parte do ‘surto’ os paradigmáticos livros Me segura que eu vou
dar um troço (1971), de Wally Salomão; Preço da passagem (1972), de Chacal; Grupo
escolar (1973), de Cacaso. Eram livros que em geral participavam de maleáveis coleções
(PEREIRA, 1981, p.283),
7
ou eram editados por coletivos de autores, como – entre os mais
importantes do Rio de Janeiro – “Frenesi”, de 1973, formado por livros de Chico Alvim,
Cacaso, Roberto Schwarz, João Carlos Pádua; logo depois, o coletivo ‘multimídia’ “Nuvem
Cigana”, com Chacal, Charles, Guilherme Mandaro, entre outros; a coleção “Vida de artista”,
a partir de 1974; ou “Folha do rosto” da mesma época. Além dos livros artesanais, o surto
poético teve lugar na mídia – que viu florescer antologias em revistas, suplementos ou seções
dedicados a poesia –, em leituras e intervenções públicas, como as artimanhas da “Nuvem
Cigana”. Como explicara Carlos Alberto Messeder Pereira, o surto estava no ar e “se tornava
visível na sucessão de artigos que, por esta época, foram publicados em jornais como
Movimento, Opinião, GAM, Jornal do Brasil, e em revistas como Malasartes, Anima, José,
Escrita, Veja, Isto é e até mesmo Fatos e fotos” (PEREIRA, 1981, p.15).
Tal profusão nos permite observar que, além do surto na poesia, existia uma profusão na
crítica – embora ainda não de cunho acadêmico – que Cacaso e Heloisa Buarque de Hollanda
assinalaram de forma muito precoce. Ambos professores universitários – no caso de Cacaso,
poeta ele mesmo –, compartilhavam a vida cotidiana com os novos poetas, muitos deles seus
próprios alunos, e participavam dos empreendimentos.
Um pouco de história: em outubro de 1973 realizou-se na PUC do Rio de Janeiro um
encontro chamado “Expoesia I”, que foi resenhado por Heloisa Buarque de Hollanda e
Cacaso, alguns meses depois, para a revista Argumento. Segundo eles, o evento pretendia ser
uma mostra de toda a produção poética dos últimos tempos no Brasil: “levantar o que existe
hoje” (BRITO; HOLLANDA, 1997, p.55).
8
A exposição contava, entre os pilotis e o primeiro
andar do edifício da Gávea, com conferências, debates, mesas redondas e a exibição de
poemas-cartazes, poemas-evento, poemas mimeografados, poemas, poetas... de diferentes
linhagens: o concretismo, a geração 45, a poesia práxis, poesia processo, etc. e uma boa parte
desse ‘surto de poesia atual’, que aparecera com o começo da década.
7
A coleção Vida de Artista, por exemplo, era determinada simplesmente por um carimbo com essa legenda que
Cacaso colocava nos livros: “Não havia, assim, um limite nem do número de publicações, nem de tempo de
duração da coleção” (PEREIRA, 1981, p.283).
8
Publicado pela primeira vez na revista Argumento, n3, Rio de Janeiro, janeiro 1974.
31
Nosso interesse se volta mais para o artigo como acontecimento do que para o que ele
descreve, pois ali Heloisa e Cacaso assumem uma atitude sintomática e outra seminal. Por um
lado, o artigo é uma dentre as várias tentativas, feitas no calor da hora, de encontrar
características comuns e básicas para essa novíssima poesia que conseguissem fazer desse
surto uma geração ou, no mínimo, uma nova tendência, como se a crítica estivesse, embora
negando-o de forma explícita, procurando um programa comum; mas, por outro lado, os
autores assumem um olhar distanciado ao chamar a atenção sobre um outro ‘surto’ de que eles
mesmos estariam sendo parte:
Está acontecendo um ‘surto de poesia’ hoje no Brasil? Tal indagação tem
ocupado ultimamente, e com tal insistência, a reflexão de jornalistas, professores,
intelectuais, etc., que talvez já possamos até falar da existência de um novo surto, o
‘surto da indagação’. Tudo isso no momento é muito sintomático. (BRITO,
HOLLANDA, 1997, p.59).
O inconfundível tom Cacaso assinala a existência de tal poesia, mas sabe do sintomático
e da impossibilidade de fazer balanços e, por isso mesmo, não arrisca uma interpretação sobre
esse ‘surto da indagação’. A simultaneidade dos processos, o de revitalização da poesia e o de
reflexão sobre essa produção, revela que a instância crítica de legitimação, por acontecer no
mesmo momento, contribuiu de forma essencial à formação do objeto. Isto é, a emergência de
uma produção poética de forma, inicialmente, não sistemática nem programática – o surto –
recebia, porém, desde a primeira hora nomes aglutinadores, como ser ‘do mimeógrafo’ ou,
pouco tempo depois, o discutido ‘marginal’.
A legitimação simultânea pretendia dar uma resposta à idéia, surgida também nos
primeiros anos da década de 70, de que o Brasil estaria passando por um vazio cultural. A
idéia de vazio cultural – termo cunhado por Zuenir Ventura no título de um conhecido artigo
seu publicado na revista Visão, em julho de 1971
9
– tentava descrever certa crise da cultura
brasileira daqueles últimos anos, caracterizada não tanto pela ausência de produções mas pela
“quantidade suplantando a qualidade, o desaparecimento da temática polêmica e a
controvérsia (...) a hegemonia de uma cultura de massa buscando apenas o consumo fácil”
(VENTURA, 2000, p. 41), entre outros fatores.
Então, voltando para Cacaso e Heloisa Buarque, poderíamos ver que esse ‘surto da
indagação’ sobre a revitalização da poesia, que eles insistem em colocar – de certa forma
avaliando a escolha do objeto –, forma parte da procura de legitimação e de difusão de um
movimento que parecia poder se contrapor à teoria de “uma perspectiva sombria” (Idem.)
decorrente da idéia de vazio.
9
Reeditado em GASPARI et alii. 70/80. Cultura em transito, 2000, pp.40-51.
32
Certamente, não era a descrição da situação o que precisava ser contestado, mas a
avaliação de tal situação como um vazio. Para tal contraposição era preciso achar
características comuns que fizessem do ‘surto’ uma geração ou um movimento. A verdade,
porém, é que a chamada poesia marginal dos anos 70 nasce sem programa, sem projeto
aglomerador definido; inclusive, diz Heloisa Buarque, recusavam-se a “explicitar qualquer
projeto estético, comportamental, social” (1997, p. 345).
Assim, embora Heloisa e Cacaso chamem a atenção para o caráter espontâneo e
heterogêneo das manifestações, eles encontram alguns traços compartilhados: principalmente,
o ‘contra que’, dado que todas essas expressões sofrem a marginalização perante certo
bloqueio do circuito das grandes editoras. A estruturação do campo estaria dada, para eles,
naquela hora, por uma estratégia de produção alternativa, de resistência, mas também porque
as grandes editoras não davam lugar a esse tipo de produção. Portanto, as editoras e o
mercado estariam contribuindo a estruturar o campo literário “mais pelo que excluem que
pelo que aglutinam” (BOURDIEU, 1992, p.69).
Configuração e estabilização: uma casa no campo e um livro na cidade.
“O que os reúne, além da afinidade dos habitus, é a recusa anticonformista do
conservatismo oficial”, diz Bourdieu em As regras da arte (1992, p.110), ao descrever o
grupo dos primeiros realistas na França do século XIX. Invertendo a frase diremos que, sem
programa inicial, o que reúne a geração dita marginal, além da recusa a um sistema editorial,
seria principalmente a afinidade do habitus configurado, nesse caso, por práticas dos jovens
contrapostas àquelas condutas permitidas pelo Estado autoritário e ao convencionalismo da
classe média.
10
O grupo que produzia poesia em volta de Ana Cristina era, principalmente, um grupo de
pessoas com afinidades afetivas, que tinham relações de amizade ou namoro, compartilhavam
atividades culturais, lugares de lazer, aulas, redações de jornais, sendo esses os lugares
privilegiados de trocas entre escritores naqueles anos (MORICONI, 2006). Eram pessoas que
não apenas conviviam, mas que tinham muitas vezes biografias comuns em famílias de classe
média da zona sul carioca; muitos, inclusive, alunos ou professores da PUC ou da UFRJ;
10
“Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba”, diz um poema de Torquato
Neto publicado em 26 poetas hoje, trazendo a sensibilidade da época, – p. 68.
33
pessoas que compartilhavam, portanto, os “esquemas básicos de percepción, pensamiento y
acción” comuns, formas de ‘sentir’, que configuram o habitus (CANCLINI, p.34-35).
O exemplo sempre trazido para dar conta do convívio da geração são os encontros na
fazenda de Lui. Uma propriedade da família de Luis Olavo Fontes, naquela época namorado
de Ana Cristina, onde escritores, artistas plásticos, músicos e afins se reuniam.
11
Ali,
produção de poesia e prazer parecem ser associados por obra do convívio, como se lê em
depoimento de Cacaso: “Eu tinha um prazer enorme em fazer o poema, quer dizer, como tinha
o convívio, não sei o quê ... o bate papo”. Prazer propiciado especialmente por esses
encontros na fazenda onde “às vezes não era só poesia não, tinha uns caras que desenhavam,
uns caras que faziam música... todo mundo fazia essas coisas, não é? Então o convívio
incentivou esse tipo de coisas também” (apud PEREIRA, 1981, p.285).
Foi também na fazenda de Lui que, segundo Charles Peixoto, o grupo da Nuvem Cigana
– cujas produções se associavam de forma muito mais estreita ao consumo de drogas, a um
desbunde herdado dos 60, e a uma produção e consumo rápido do poema falado – entrou em
contato mais regular com as pessoas que se dedicavam de forma mais exclusiva a poesia: o
próprio Luis Olavo Fontes, Ana Cristina, Cacaso, Carlos Pádua, etc. Diz Chacal, num
depoimento sentimental que revaloriza um saber que eles mesmos rejeitavam de forma
programática naquela hora: “Me lembro que de noite a gente sentava numa mesa imensa que
tinha lá, e volta e meia líamos alguns poemas em voz alta. Mas, tirando o Cacaso, que era
professor universitário, o nosso poder de crítica era muito baixo, a gente ia mais pela
afetividade, e também pelo humor” (Nuvem cigana, 2007, p.41).
O sítio ganhou uma importância mitológica no livro de Carlos Alberto Pereira e
proliferou em diferentes textos, como no Ana Cristina Cesar, de Italo Moriconi, onde se lê:
O livro de Carlos Alberto colocou na história da vida literária carioca os ‘fins
de semana na fazenda do Lui’ onde, entre baseados e descobertas do corpo, discutia-
se literatura, metia-se o malho nos professores, trocavam-se textos e literalmente
produziam-se livrinhos de poesia, tendo a coleção Vida de artista saído de lá
(MORICONI, 1996, p.60).
Ana Cristina, que participava dos encontros, também descreve em depoimento para
Retrato de época: “as pessoas ficavam lá fazendo seus livrinhos e ficavam discutindo (...) e
tinha assim toda uma roda de meninas em volta” (apud PEREIRA, 1981, p. 285). O relato
com certa distância irônica deixa claro, nesse mesmo tom, que o convívio deu frutos
materiais: seus livrinhos, coleções, textos em parceria, antologias, etc. Fazendo com que esses
11
Diz Charles sobre a fazenda: “Era um maná, um pequeno Shangri-lá. Pequeno não, imenso. Na verdade era do
avô dele, um milionário rei do cimento. E era uma figura curiosíssima, que adorava animais. Então ele
transformou a fazenda num tipo de zoológico” (Nuvem Cigana, 2007, p.41).
34
encontros funcionassem, segundo Carlos Alberto, como instâncias de legitimação internas do
grupo (PEREIRA, 1981, p.286), reatualizando na prática aquilo que já estava configurado no
habitus (GARCÍA CANCLINI, 1990, p.35).
Os poemas do convívio achariam uma visibilidade maior no ano 1976. Pois, se existe
um texto que possa ser considerado o que define a geração, sem dúvida, é a antologia 26
poetas hoje, compilação solicitada pela editora Labor à Heloisa Buarque de Hollanda,
publicada naquele ano.
26 poetas hoje foi o acontecimento para a poesia dos 70. A publicação teve grande
importância tanto naquele 1976, quanto para uma analise retrospectiva. A antologia
representava, ao mesmo tempo, a consagração e o fracasso da estratégia marginal. O ‘surto’ se
detinha para passar a ser avaliado por linguagens institucionalizadas, embora elas mesmas
estivessem tentando reformar-se.
De fato, depois da aparição da antologia, rapidamente se levantaram intensos debates,
principalmente em revistas de cultura, em torno da plausibilidade de definir o grupo de poetas
que ali aparecia como uma geração, ou não; e a discussão sobre a existência ou não de
novidade na linguagem por eles colocada. A imprensa cultural fez-se eco com diferentes
posturas do ‘aparecimento momentoso’ – como o descrevera, não sem sarcasmo, Jorge
Wanderley na apresentação do debate aparecido no segundo número da revista José, do qual
participaram Heloisa Buarque, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto, Ana Cristina e os editores
da revista, o próprio Walderley, Luiz Costa Lima e Sebastião Uchoa Leite, representantes das
antípodas da poesia marginal em termos estéticos. “A publicação, que tem sido objeto de
resenhas favoráveis, resenhas neutras e resenhas desfavoráveis, é assunto para muito debate e
muita discussão, pelo que o éter anda cheio de argumentos e poetas e leitores se atropelam
com as sílabas dos versos desta talvez nova poesia Brasileira” (José, 1976, p.3).
Apesar dos debates e discussões acirradas, certamente com 26 poetas hoje e,
principalmente, com a introdução da organizadora Heloisa Buarque se dão por estabelecidas
as características básicas dessa poética que funcionariam como ponto de partida para os
estudos posteriores. Conforme o prólogo, a poesia que ali aparecia estava marcada pela
“desierarquização do espaço nobre da poesia”, “a subversão dos padrões literários
dominantes”, as referências ao momento político, a linguagem coloquial, e a tentativa de
unificar poesia e vida (HOLLANDA, 2001, p.10).
Em um olhar retrospectivo, a antologia parece funcionar como uma primeira versão da
historiografia literária. E Heloisa Buarque de Hollanda, pelo seu contato editorial e
35
acadêmico, mas também por sua relação pessoal com muitos daqueles poetas – com Ana
Cristina essa relação teria nuances particulares, como se lê nas cartas que Ana lhe enviara –
foi quem definiu os parâmetros de leitura da poesia do grupo. Assim, paradoxalmente, 26
poetas hoje deu visibilidade e lançou as bases da construção da geração, mas também foi
sintomática de um estágio de institucionalização daquilo que tinha na não institucionalização
sua característica mais preciosa. Trata-se de uma aparição possível dada a mudança do
contexto histórico: a gradual abertura política e a absorção, pelo mercado e pela academia,
dos comportamentos ‘desbundados’, combinadas com um esgotamento interno do projeto
marginal – cujos integrantes, no final da década de 70, começam a se dispersar,
principalmente o núcleo mais ativo da Nuvem Cigana, assim como os coletivos de edição. Ou
seja, a proposta da antologia chega para tornar visível uma cisão incipiente, e uma
necessidade de recolocação, como explica Charles: “Ficou aquela conversa, se participávamos
ou não, porque era uma coletânea oficial, com editora comercial e tudo. No fim, todo mundo
topou, menos o Ronaldo Santos” (Nuvem Cigana, 2007, p.101). Em 1976, os poetas
marginais da primeira hora, os que tinham começado a produzir no final da década anterior –
insistimos em que Ana Cristina começa a produzir poucos, mas significativos, anos depois –
achavam-se em um impasse. Necessidades pessoais e familiares – casamentos, filhos – eram
sinais muito claros do esgotamento de um modo de comportamento e de produção que já não
funcionava como oposição ao status quo.
12
Para continuar escrevendo era preciso re-signar,
mudar os signos da colocação no campo. O campo tinha mudado, já não havia viagens a
fazenda e os poetas tomariam naquele momento diferentes caminhos.
As regras e as exceções: Ana Cristina, como estar no campo?
Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte
teórico da década passada. Os militantes sensuais passam a bola: depressão legítima ou
charme diante das mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva
não digo nada e indiscretíssima descalço as luvas (no máximo), à direita de quem entra.
Ana Cristina Cesar, “Inverno Europeu” – fragmento
.
Se a antologia foi a ‘primeira versão’ da historia literária, a segunda, certamente, foi
Retrato de época de Carlos Alberto Messeder Pereira. De fato, no ano de 1978, quando a
12
Diz Charles, se referindo aos anos da virada da década: “Quando a gente caiu em si, já estávamos em outra
realidade, trabalhando em empregos convencionais” (Nuvem Cigana, 2007, p.139)
36
experiência da geração marginal ainda não era um capítulo fechado mas já não novidade,
Carlos Alberto Messeder Pereira, formado pelo Museu Nacional, decidiu dedicar sua pesquisa
de mestrado em antropologia a essa tribo urbana de poetas. Como assinala a própria Ana
Cristina, Pereira é “praticamente da mesma geração e do mesmo mundo que a ‘tribo’ sobre a
qual ele faz foco neste livro: certos poetas ‘marginais’ atuantes no Rio na década de 70”
(CESAR, 1981, p.5).
Publicado em 1981, Retrato de época foi o livro resultante dessa pesquisa. Desde o
começo, o autor destaca que, embora seu objeto de análise seja um fenômeno literário, para os
efeitos da pesquisa devia ser visto como um fenômeno cultural, que tinha “uma determinada
maneira de pensar a literatura, a arte e a produção intelectual em geral” (PEREIRA, 1981,
p.12). O trabalho de campo antropológico faz com que o livro ganhe em entrevistas e dados
factuais do cotidiano da vida literária, sem fazer uma análise textual ou tradicionalmente
literária da boa quantidade dos textos ali apresentados.
Assim, aparece uma outra chave, para ler a produção desses anos: não é suficiente fazer
uma análise só do ponto de vista estético. Como explica Gonzalo Aguilar, a produção “ya no
exige una valoración puramente estética, como sucedía con el modernismo, sino cultural”
(AGUILAR, 2006, p.311). O livro de Pereira seria a clara manifestação, dentro dos estudos
dedicados a literatura, da ascensão da cultura sobre a arte, e da aparição de “uma dominante
cultural e antropológica”, tal como analisa Silviano Santiago em “A democratização no Brasil
(1979-1981) Cultura versus arte” (2004, p.134). Nesse artigo, Santiago levanta o principal
problema do tipo de abordagem feito em Retrato de época: “O texto do poema passa a
funcionar como um depoimento informativo e a pesquisa de campo é analisada como texto”
(SANTIAGO, 2004, p.137), esvaziando o discurso poético naquilo que tem de específico.
Nesse sentido, o estudo formaria parte de tentativas de leitura dessa produção dos 70, como
diz Santiago, em que “a ousadia metodológica representa também uma ousadia geracional. O
poema se desnuda dos seus valores intrínsecos para se tornar um mediador cultural” (Idem,
p.138).
Ana Cristina, ainda em 1981, assinala, na resenha do livro no suplemento de Leia:
Para quem mexe com literatura, a abordagem etnográfica pode provocar
estranhamentos, mas uma coisa é certa: na leitura deste livro, lentamente vai se
desenhando uma outra imagem do fenômeno que nós chamamos de literário, onde o
que contam são os modos sociais de circulação do discurso e os comportamentos que
definem ou respondem a essa circulação. (CESAR, 1981, p.6)
Ou seja, os poemas apresentados em Retrato de época não podem ser lidos apenas desde
a especificidade da linguagem poética, porque perderiam sua principal fonte de interesse, mas
37
tampouco podem ser lidos apenas como ‘informantes’ do antropólogo. Deve-se levar em
conta tanto a especificidade poética quanto o valor comunicativo, para colocá-los em relação
à circulação que esse discurso terá. Não é a linguagem poética ‘o que conta’, mas os modos de
circulação do bem simbólico no campo, e as mediações entre os produtores e o horizonte de
público.
No entanto, a resenha de Ana, “Contatos imediatos do terceiro grau” (1981), faz questão
de chamar a atenção para um problema específico do olhar antropológico, quanto à forma de
ver o Outro, quanto a como esse Outro deve ser estudado. Como resenhadora, ela encena a
recuperação de um certo olhar distanciado, mas só para comprovar e explicar que esse modo
de olhar é impossível:
Por que será que a antropologia urbana ainda me dá um
desconforto esquisito? Será apenas porque o antropólogo não
vai para selva, e sem sair da sua cidade continua a olhar em
volta à procura do Outro irredutível? (Idem, p.5).
Carlos Alberto faz parte da tribo e, para analisá-la, diz Ana, ele tem que inventar
“metodologicamente uma inocência primordial” (Idem, p.5), um Outro diferente, a ser
descoberto. Mas o Outro não se esconde, nem é terminantemente diferente. O antropólogo
não vai à selva, e sim ao sofá da casa de um poeta amigo. Daí que uma inocência primária só
seja possível se inventada.
Mas, ainda falta um dado. Na resenha, Ana não revela nem faz menção da sua
participação no livro. Se a resenha participa do “interesse em estudar o seu próprio universo”,
que tinha essa geração auto-referenciada, como diz Heloisa Buarque numa outra resenha do
livro aparecida no Jornal do Brasil em agosto de 1981 (apud. SANTIAGO, 2004, p. 138), que
significado traz o ocultamento do próprio nome no texto de Ana? Talvez, seja mais uma
marca da tensão não resolvida entre ser ou não ser parte do grupo, entre o aparecer ou não.
Tensão que se encena no olhar crítico em relação a seus colegas e amigos, mas que, pelo
próprio fato de eles serem colegas e amigos, se faz sempre tingido de autocrítica, pela
inclusão – embora diferenciada – no grupo. A estratégia poética para conseguir esse duplo
signo será fazer da própria uma escritura quase coletiva, em vozes, como diz Flora Süssekind.
No exemplar de Retrato de época que pertencia a Ana – e que se encontra, rabiscado, no
acervo do IMS – pode-se ler uma outra modulação da postura da resenhadora em relação à
pesquisa de Carlos Alberto. O volume abre com uma nota manuscrita na folha de rosto, que
reenvia – também como marca geracional – ao antropo-pop de Rita Lee: “Baila, baila comigo,
como se baila na tribo”. No contexto da ascensão dos estudos culturais, Ana não se deixa
38
levar por nenhum tipo de exotismo. Como poderia, se esse Outro são seus amigos, e é ela
mesma? A frase rabiscada, pelo contrário, revela certa ironia frente ao fato de apagar a relação
tribal dos poetas, da qual o próprio antropólogo se exclui – sai da dança, na que estava –, para
tingir a pesquisa de objetividade, isto é, institucionalizá-la. Para estudar parecia preciso parar
de dançar, tirar um retrato, e pedir algumas identidades para tomar as impressões da viagem.
Voltemos a Retrato de época. Além da particularidade da visão antropológica e da
leitura de Ana nesse ponto, interessa ver, nessa segunda versão da história literária, qual o
lugar que Carlos Pereira dá a Ana C..
Ele realiza a sua pesquisa antes de Ana Cristina ter publicado algum livro, apenas uns
poemas avulsos em revistas e em 26 poetas hoje. No entanto, Ana já teria um lugar, ainda que
diferenciado, dentro do grupo de novos poetas.
Retrato de época vai focalizar diferentes grupos daquela geração, principalmente a partir
das suas iniciativas de ‘edição’, quais sejam, Folha do rosto, Nuvem Cigana, Frenesi, e Vida
de artista. Mas entre esses grupos aparecem três autores chamados de “‘independentes’. Tanto
por sua posição no campo intelectual, quanto por sua trajetória” (PEREIRA, 1981, p.182),
embora próximos, por afinidades e estética, dos integrantes de Frenesi. São eles Eudoro
Augusto, Afonso Henriques Neto e Ana Cristina Cesar.
Sobretudo desde a morte de Ana em 1983, a grande diferença comparativa assinalada
pela crítica centrou-se nos textos: os poemas de Ana teriam mais densidade e trabalho do
ponto de vista estético. Em Retrato de época, no entanto, a diferença de Ana não estaria
particularmente no trabalho com o poema que, de qualquer forma, Carlos Alberto analisa
superficialmente dividindo a produção em duas linhas, segundo ele, marcadas pela própria
autora. Por um lado, uma série de poemas mais ‘torturados’, de compreensão menos direta, e
de outro, uma série de textos construídos como “montagens de coisas reais, ‘brincadeiras’
com a correspondência, biografias, diários (...) textos profundamente marcados pelos fatos e
situações do dia-a-dia” (Idem, p. 222). Contudo, essa diferenciação também estaria, para o
autor, na poesia de Luis Olavo Fontes, por exemplo.
Portanto, não seria essa a particularidade que faz de Ana Cristina uma dos
‘independentes’, senão o fato de não pertencer oficialmente a nenhum dos coletivos
analisados – sendo, inclusive, que Folha de rosto a convidara a publicar –, por dois motivos:
“não querer se envolver com a questão da distribuição”, motivo que fica sem efeito assim que
Ana publica Cenas de abril, em 1979, em edição de autor, e “por discordar da ênfase do
grupo na discussão sistemática dos textos de cada autor que comporiam a antologia; isto, na
39
sua opinião, significava colocar-se na ‘postura de poeta’” (Idem, p.222). No entanto, pelo que
se pode desprender de alguns documentos e dos seus artigos, o motivo que subjaz parece ter
mais a ver com uma oscilação de Ana entre alcançar a figura pública e o seu recolhimento,
entre fazer parte do grupo ou se apresentar como uma individualidade. Uma tensão ou
oscilação que, em parte também uma marca de época, percorre toda a sua produção, como
veremos.
Apesar dessa negativa de participar oficialmente de um grupo Ana tinha contato
‘informal’, mas ‘bastante sistemático’, com todos os autores, sendo, aliás, tal convívio com os
novos poetas e a vivência desse surto poético, o meio onde ela começa a publicar: “Como a
própria autora salienta, é animada por toda a movimentação em torno da poesia que ela tomou
a iniciativa de publicar seus trabalhos” (Idem, p.222).
Todos os meus amigos e seus poemas
Lo que pienso y lo que imagino, no lo pensé ni lo imaginé solo. Escribo en una pequeña casa fría de
una aldea de pescadores, un perro acaba de ladrar en la noche. Mi habitación está cerca de la cocina donde
André Masson se mueve felizmente y canta.
Georges Bataille, em La conjuración sagrada.
Tentar repensar Ana Cristina no campo não significa negar as suas particularidades, e
sim, chamar a atenção para o fato de que, levantando as pesquisas e reedições realizadas nas
últimas décadas, se viu aparecer – não surgir, sendo que já estavam lá, mas não tinham
visibilidade – várias individualidades dentro da geração marginal: Cacaso, Chacal, Affonso
Henriques Neto, Sebastião Uchoa Leite, por exemplo, foram objeto de estudos acadêmicos ou
antologizados em grandes editoras. Ana C. seria mais uma dessas individualidades, com suas
diferenças e particularidades, e não tanto uma exceção a uma regra que se cumpriria em cada
um dos representantes da geração marginal. Dado que tentamos destacar porque para muitos
críticos foi necessário homogeneizar a geração de poetas, silenciar as mais belas
particularidades, para destacar por comparação características de Ana Cristina.
40
Florencia Garramuño, entre outros críticos, chama a atenção para a necessidade de uma
reavaliação – não negação – da colocação excepcional de Ana Cristina, analisando um
pequeno poema, “A Lei do grupo” (apud. SÜSSEKIND, 1995, p. 17):
todos os meus amigos
estão fazendo poemas-bobagens
ou poemas-minuto
Diz Garramuño:
Aunque es posible leer ese texto como una declaración de la diferencia de Ana
C. con respecto a una poesía marginal con una economía del verso menos elavorada,
el texto es, como toda la escritura de Ana C., engañoso. Por un lado, claro, está su
diferencia frente a aquello que todos sus amigos están haciendo. Pero esa distancia, en
todo caso –si es que es tal–, es relativa: quienes están haciendo poemas minuto son,
precisamente, ´todos os meus amigos’ (...) lo cierto es que este mismo poema es un
poema-minuto o poema-bobagem (GARRAMUÑO, 2003, p.66).
Meus amigos e os poemas-piada. A escritura na fazenda estava ligada à afetividade,
como dizia Cacaso, e continua Chacal: “A gente lia os poemas e ria muito, e aquilo meio foi
virando um estilo, poemas-piada, curtos oswaldianos, que se difundiu por quase toda a turma.
Eu, o Cacaso, o Lui, a gente escrevia muito nesse estilo” (apud. Nuvem Cigana, 2007, p.41).
Haveria que partir desse lugar de pertencimento afetivo e distância crítica que Ana podia ter,
pela sua formação e genealogia acadêmica, para ler a sua poesia “como un texto que
profundiza las opciones estéticas de su generación para separarlas definitivamente de todo
aquello que todavía podía ligarlas a una concepción modernista del arte y la literatura”, como
dirá Garramuño (2003, p. 66).
Além disso, o pequeno poema também pode funcionar como exemplo do procedimento
que Flora Süssekind definiu, em Até segunda ordem não me risque nada (1995), como
poesia-em-vozes. A construção em vozes foi assinalada fartamente pela crítica, também sob
os epítetos de ladroagem ou vampiragem, principalmente a respeito de autores consagrados –
dado que estimulou a construção da genealogia literária diferenciada de Ana –, autores que
foram ‘declarados’ no “Índice Onomástico” (ATP, p.84): Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Emily Dickinson, Walt Withman, e tantos, tantos outros. Mas a
ladroagem não se realiza apenas nesse sentido mais assinalado pela crítica; Ana ‘rouba’ de
entrevistas aparecidas em jornal (“O homem público n°1 (Antologia)”, ATP, p.67), de
fragmentos da Bíblia (“16 de junho”, p.102), da enciclopédia (“Primeira lição”, p.88;
“Enciclopédia”, p.95) cartas enviadas por amigos (Luvas de pelica, in ATP), só por dar
41
mínimos exemplos. E ainda mais, ela se apropria da poesia dos seus contemporâneos, assim
como da própria, nas profusas releituras e reescrituras, tal como mostra Flora Süssekind
(1995, pp.37-40).
Voltando à “A Lei do grupo”. Ela toma e revitaliza a fórmula do poema-piada, por sua
vez uma apropriação da tradição oswaldiana. De qualquer forma, a construção em-vozes, com
as vozes dos contemporâneos – muitas delas também figurando no “Índice...” – será mais
evidente no trabalho com algumas frases ou a reescritura via discussão de outros poemas,
como acontece com “Vigília II”, desentranhado de “Vigília” do poeta, e namorado de Ana,
Luis Olavo Fontes.
13
Ana pertencia, porém, distanciava-se. E o poema “Lei do grupo” traz a mesma carga de
carinhosa ironia que líamos nos depoimentos sobre as idas à fazenda. Mas essa posição dupla,
de pertencer e se distanciar, também será revisitada por seu amigo e colega de faculdade, Italo
Moriconi, que, no seu livro Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta (1996), faz a
recolocação: “Vamos ressituá-la como parte de uma geração. Geração intelectual, não apenas
poética. Pois Ana manteve sempre uma relação reflexiva com sua própria poesia”
(MORICONI, 1996, p.13). Mas também manteve relação reflexiva com a poesia alheia como
se fosse própria ou para, através da reflexão dialética, dela se apropriar.
Parecem ser dois os programas do livro de Moriconi em relação à figura da amiga. Por
um lado, reconduzir a figura de Ana a uma leitura das relações e da vida literária, fazendo
com que as suas opções comportamentais se encontrem dentro das opções da geração, no que
seria uma biografia geracional. Por outro lado, também fazer uma biografia estimulante do
mito, que separa Ana C. de seus contemporâneos marginais em matéria estética. Coloca, dessa
forma, certa distância de Ana Cristina a partir de um ponto também assinalado por Carlos
Alberto Messeder Pereira, “a presença de uma sólida e permanente educação literária [que]
introduz elemento diferencial entre a linguagem de Ana e a dicção mais espontaneísta
marginal”, no entanto, continua o autor “sua identidade com a geração 70 é completa no
sentido daquilo que essa geração, ao emergir, trouxe de próprio para o debate de idéias”
(Idem, p.13).
No entanto, com algum grau de diferença, não apenas Ana Cristina tinha uma sólida
formação literária; de fato, a maioria desses poetas freqüentava a universidade e pertencia a
13
O procedimento abrange toda a produção de Ana, tal como se vê no intenso livro de Flora Süssekind (1995),
aqui levantamos apenas os exemplos mais claros. Em “Rasurando paisagens ou sobre as formas de olhar em
algumas poesias dos setenta.” (Inédito), fiz uma análise do trabalho de Ana C. sobre a poesia de Luis Olavo
Fontes.
42
famílias de uma classe média carioca intelectualizada, como esclarece Messeder Pereira ao
levantar dados biográficos. Essa formação ia ser contestada com a procura de uma
despretensão literária, inclusive, do anti-literário, anti-intelectual, anti-estético em um sentido
clássico. Contudo, Ana Cristina também nesse sentido teria uma postura ambivalente: “Se a
vontade do literário era efetivamente muito forte em Ana Cristina, o fato é que se defrontava
com a necessidade histórica do anti-literário” (MORICONI, 1996, p.8).
A diferença que ela mantém a respeito dos outros poetas não é apenas no trabalho com o
poema. No entanto, o trabalho com o poema indica uma distância na perspectiva crítica e no
posicionamento conscientemente procurado dentro do campo, pois, como explica Bourdieu,
as relações entre os integrantes do campo estão determinadas pelo habitus, “un producto de
los condicionamientos, que tiende a reproducir la lógica objetiva de dichos
condicionamientos, pero sometiéndola a una transformación” (BOURDIEU, 1990, p.155). O
campo de produção cultural se apresenta como um espaço de possibilidades de produção,
determinadas por uma série de referências compartilhadas pelos integrantes do campo,
embora não necessariamente por todos eles aceitas ou perpetuadas. Por tal motivo, existe um
grau de relativa autonomia de cada agente na tomada de posição dentro do campo e em
relação aos outros integrantes, sendo que, em geral, essas posturas se dão em oposição, por
diferenciação, em relação ao que é visto pelo agente como uma hegemonia ou como uma
força, que tentaria subverter as regras do jogo na luta pelo capital simbólico. Como sintetiza o
próprio Bourdieu, cada autor “sólo existe y sólo subsiste bajo las coerciones estructuradas del
campo (...) pero también afirma la desviación diferencial que es constitutiva de su posición, su
punto de vista, entendido como perspectiva tomada a partir de un punto, tomando una de las
posiciones estéticas posibles, actual o virtualmente, en el campo de las posibilidades
(BOURDIEU, 1997, p. 64).
Vários textos do arquivo: as escolhas de Ana
Trazemos, então, uma rede com alguns documentos não canônicos do arquivo de Ana,
que nos permitirá ver a posição, sem ter posição marcada, que ela construía e queria para si,
nesse meio. Perguntemos, também, pela posição ideológica e política de Ana Cristina na
época, e sob que formas ela vai continuá-la, mas tentando traçar os contatos e as diferenças
dessa colocação com as diferentes posições dos integrantes do grupo.
43
Em julho de 1976, teve lugar o lançamento da antologia 26 poetas hoje, no Parque Lage,
“uma festa com microfone e palco”, comenta Ana Cristina em uma carta a sua amiga Ana
Cândida Perez:
Até subi no palco e li um trechinho de um ensaio do Mário que começa assim:
“Nós modernistas de 22 não devemos servir de exemplo a ninguém”. Me
impressionou muito esse ensaio em que ele faz uma autoconfissão (que bobagem
“autoconfissão” não é redundância?) [...] O Mário acaba por dizer que os modernistas
pecaram por omissão política, que toda a obra dele é de um individualismo atroz (CI,
p. 259).
Vamos nos deter nesta carta. Qual é o significado da leitura de Ana? Da eleição desse
texto de Mário para ser lido no próprio lançamento da antologia que os entroniza como “nova
geração de poetas”?
À primeira vista, poderíamos dizer que a poesia marginal tem vários pontos de contato
com a tradição do modernismo de ‘22: a utilização de temas do cotidiano, o humor, o poema-
piada/minuto/bobagem, como colocávamos, consumível de forma instantânea; sobretudo,
“merece atenção a retomada da contribuição mais rica do modernismo brasileiro, ou seja, a
incorporação poética do coloquial como fator de inovação e ruptura com o discurso
acadêmico”, diz Heloisa Buarque (HOLLANDA, 2001, p.11). A ruptura com o discurso
hegemônico, no caso do modernismo, tinha sido proposta como “a atualização da inteligência
artística brasileira” (ANDRADE, 1972, p. 250); no caso dos poetas marginais, essa ruptura se
exerceu principalmente, como já colocamos, através de uma nova forma de circulação da
poesia, por um circuito artesanal de produção e distribuição de seus livros.
Mas essa filiação nobre – que, nas palavras autocríticas de Heloisa, foi um desvio
teórico de avaliação com o que se perderam os melhores argumentos para valorizar a geração
(HOLLANDA, 1997, p.345) – não parece ser o motivo central da escolha de leitura de Ana.
Pois ela vai trazer justamente Mário, e não o Oswald de Andrade dos poemas piada e Serafim
Ponte Grande. Mário de Andrade definitivamente não fazia parte da pequena genealogia
literária dos marginais. Portanto, a escolha de Ana deriva numa forma de acentuar seu
distanciamento, de qualquer forma eloqüente, se observamos as fotos do evento publicadas no
livro Nuvem Cigana (2007) organizado por Sergio Conh.
44
Figura 3
Da série de oitos fotos, Ana Cristina é a única mulher – dado não menor, embora não
vamos nos aprofundar nesse ponto –, e, aliás, é a única que tem um livro ‘grande’ nas mãos.
Significativamente, Bernardo Vilhena e Guilherme Mandaro empunham pequenos livrinhos,
Cacaso lê do seu artesanal Grupo escolar, Charles, Ronaldo Santos e Roberto Piva apenas
seguram umas folhas, Chacal nem sequer lê e se acompanha de um violonista. Ana, por sua
vez, segura o grande tomo de Mário, sabemos pela carta, numa pose de leitura típica do
aprendizado nas escolas. Ana é diferente, lê diferente e, carregando essa tensão, faz parte do
grupo.
Mas voltemos à leitura de Mario. Ambos os movimentos, marginal e modernista, serão
objeto de uma crítica similar por alguns de seus representantes: a atitude literária de ruptura
implicou deixar de lado qualquer compromisso político. Essa é a autocrítica de Mário no
balanço que realiza vinte anos depois da Semana, e essa parece ser a diferenciação que Ana
Cristina lança através dele nessa apresentação do livro e da própria geração. Mas, se em
Mário a distância temporal e o tom desencantado marcam um fechamento e uma
impossibilidade de mudança, o fato de Ana Cristina fazer, nesse lugar, nesse evento, essa
45
mesma crítica outorga uma possibilidade de projeção. De fato, o trecho escolhido por Ana
continua umas linhas depois: “Se de algo pode valer meu desgosto, a insatisfação que me
causo, que seja para que os demais não se sentem como eu à beira do caminho, a ver passar a
multidão” (ANDRADE, 1972, p. 254). Seguir o conselho de Mário, isto é, a tentativa de
evitar cair no descompromisso e no individualismo determinará a procura de posição de Ana
C. no campo. Como diz Bourdieu, um autor “uma vez situado, no puede no situarse” (1997,
p.64), mas isso não nega a possibilidade da procura permanente de não se posicionar de forma
definitiva: nem na corrente hegemônica, nem na força emergente que se diz herege ou
marginal, seja desde um ponto de vista estético ou político, se ainda cabe essa separação.
Nesse sentido, a procura de uma posição não marcada, sem definições panfletárias nem
demasiado explícitas, dará aos textos de Ana formas em constante formação.
* * *
A política em pauta
Um mês antes da apresentação no Lage, em junho de 1976, Ana Cristina diz em outra
carta:
Estou descobrindo e amando o Benjamin. Devorei este fim de semana no sítio
o Essais sur Bertold Brecht, que tem um ensaio fundamental, que me virou a cabeça –
L’auteur comme producteur, conheces? (...) Fiquei também muito impressionada com
a firmeza, a clareza política do Benjamin. Entrevi que a lucidez e a militância dão um
sentido global às coisas que ele faz. (...) Eu nem me atrevo a encucar muito no assunto
porque sei que a minha cabeça não comporta militância nenhuma no momento. (CI, p.
114).
As cartas desse ano deixam aparecer certo conflito de Ana Cristina em relação a sua
posição como poeta, conflito alimentado por leituras de Adorno e Benjamin – vide o
encantamento frente a “O autor como produtor”–. Problemática que estava em pauta no
campo cultural em geral, e que se traduz em buscas de posição. Nesse sentido, a crítica feita
no Parque Lage via Mário de Andrade pode ser lida como parte dessa reflexão, No entanto, o
compromisso que ela estaria pedindo aos seus congêneres não é ingênuo, ela conhece bem as
armadilhas do engajamento político, desconfia do movimento estudantil e do choque frontal
contra as estruturas estabelecidas. Lucidamente, Ana Cristina sabe que o confronto é
enganador: “acho que existe uma certa ingenuidade de acreditar, por exemplo, que cuspir na
46
estátua é um gesto de contestação a um regime mais amplo...” (José, 1976, p. 12). E, mais
lucidamente ainda, começa a vislumbrar os próprios limites da dicção marginal.
Como dizíamos no começo, 1976 encontra um Brasil onde não terminou a ditadura, mas
a abertura já é real. As estruturas de poder, presentes sempre, adquirem novas formas, mais e
mais inapreensíveis. Como analisa Roberto Schwarz (1978), desde 1964 o governo militar de
direita tinha permitido às esquerdas exercerem certa hegemonia cultural, já que bastou num
primeiro momento o corte dos laços com a massa; em 1968 esse movimento cultural sofre um
duro golpe com o AI-5 e a entrada dos censores nas redações. Mas já em 1974, com o
governo do general Geisel, começa a chamada abertura democrática. Surge de certa forma
uma ‘nova’ possibilidade para uma hegemonia cultural de esquerda e/ou marginal, ainda que
muito modificada depois de quase dez anos sob censura. Surgem as perguntas: como ser
alternativo neste novo contexto? Quem ou o que seria a alternativa ao vazio?
Na correspondência de Ana C. aparecem as duas posições em disputa do campo cultural
intelectual carioca da época, e que sem dúvida marcam a biografia de Ana Cristina: a
necessidade de opor-se ao regime militar, de se comprometer com a luta estudantil, etc; e o
interesse por temas até então não considerados políticos, temas recusados, considerados
produto da alienação do artista e do intelectual. Temas que Ana Cristina já vislumbra como
política das relações, micro-políticas, que terão em seus escritos muito mais importância do
que qualquer militância tradicional. Tomemos um claro exemplo: em maio de 1977, no Rio de
Janeiro, realiza-se uma das manifestações de maior importância para a política nacional dos
estudantes, dado que representava um retorno depois de vários anos de não ter saído às ruas,
manifestação que, aliás, seria continuada em São Paulo alguns dias depois (GASPARI et alii,
2000, p.28). Ana Cristina participa da passeata, mas vai descrevê-la de forma tal que o
corrimento do foco de interesse resulta mais do que evidente:
Eu estava na manifestação lá na PUC, 5.000 pessoas gritando ‘o povo unido
etc’ e de repente me ocorria ao peito que nada daquilo me interessava, eu queria um
namorado para me enrolar (CI, p. 146).
Então, trata-se de duas posições que naqueles anos estão em tensão. Por um lado, o que
se entendia como compromisso político; e, por outro, as relações interpessoais, as
preocupações sobre a sexualidade, o gênero, etc. Tal como esclarece Caetano Veloso numa
entrevista concedida aos editores de Patrulhas ideológicas: “Sempre tive um pouco de grilo
com o desprezo que se votava a coisas como sexo, religião, raça, relação homem-mulher (...)
47
Não eram só menores não, elas eram inexistentes e às vezes até nocivas. Tudo era considerado
alienado, pequeno-burguês” (apud. HOLLANDA; PEREIRA, 1980, p. 108).
Tomada de posição: a circulação. Beijemos-nos.
Mas o interesse por questões até então consideradas alienadas decorre em paralelo à
tomada de consciência dos dogmatismos autoritários de determinado setor da esquerda, e da
limitação da justificação do valor de uma obra só por se colocar em oposição ideológica ao
regime, ou por ser caçada pela censura, como se fossem por si suficientes, para além do
trabalho estético ou com os próprios médios de produção. Nesse sentido, em dezembro de
1976, Ana Cristina comenta em uma carta para Cecília Fonseca, de forma muito clara:
Há como que uma briga se articulando, digamos, nas esquerdas — de um lado
a “frente ampla”, [...] união contra o inimigo real do momento, vale tudo contra a
ditadura, não vale falar mal nem criticar quem tá no mesmo saco. De outro lado (nem
é um lado, estou sendo grossa, me entende, please) alguns grupos ou pessoas que não
estão aceitando muito essa frente ampla e começam a criticar [...] Em princípio, acho
que não dá essa frente ampla dogmática (“a censura é o mal do teatro atualmente” é
uma das frases lapidares); porra, não é só a censura; a censura vira desculpa, vira
ponto de união de um saco de gatos onde entram inclusive os maiores filhos da puta.
(CI, p. 136-7).
E, na mesma carta, comenta que está sendo articulado um novo projeto de publicação
que tentaria se subtrair da camisa de força da frente ampla. De tal forma, a procura de posição
de Ana Cristina, em 1977, estenderá um novo fio: o Jornal Beijo, que teve sete números
publicados entre novembro de 1977 e junho de 1978. Inicialmente, o jornal contava com uns
quarenta editores, entre eles Cacaso, Silviano Santiago, Luiz Costa Lima, Julio Cesar
Montenegro, Italo Moriconi, e vários membros do extinto Opinião, que tinha sido um dos
principais veículos do debate cultural durante essa década, no entanto, o número diminuiu a
quatro no último exemplar. Ana Cristina Cesar só figura como diretora, junto a essas muitas
pessoas, nos três primeiros números, mas renuncia ao projeto antes de estar o primeiro
exemplar nas ruas.
No arquivo do Instituto Moreira Salles existe uma pasta com o nome “Dossiê Beijo”,
que contém 13 folhas, algumas datilografadas e sem marcas de circulação. Uma das folhas
apresenta um manuscrito datilografado do que depois será, com alguns acréscimos, o
“Manifesto do jornal”. Esse Manifesto, no entanto, não apareceu na publicação, embora
48
circulasse na folha de assinatura que os editores apresentaram antes do lançamento do
primeiro número com o fim de financiá-la (“Reconhecemos que o produtor é parte
comprometida e interessada com o que produz. Por isso a nossa proposta é autogestão”, diz
uma das folhas). Mas, de fato, o jornal propunha uma nova forma de circulação dos textos, do
conhecimento, e da imprensa cultural em geral. “A maioria queria fazer uma publicação que
partisse da análise crítica dos circuitos do jornalismo cultural, da categoria dos intelectuais e
de seu novo papel na relação com a sociedade.” (MORICONI, 1996, p.45).
No entanto, ao ler o jornal, não há um programa formulado. Deveremos ir até aquela
pasta do arquivo Ana Cristina para iluminar nossas impressões. Lê-se:
Estamos com desejo de abrir um espaço que seja menos comprometido. (...)
Fazer falar temas recalcados. A imprensa tem o monopólio velado de dizer que temas
valem ou não. Vamos fazer isso sem velar. Não textos / nomes / objetos / espetáculos
intocáveis. Os temas estabelecem compromissos. (“Dossiê Beijo”)
Paradoxalmente, o primeiro chamamento por compromisso – o do Parque Lage e Mario
de Andrade – encontra no projeto de Beijo uma resposta pelo “menos comprometido”: menos
comprometido com os temas avaliados pela imprensa de esquerda tradicional, mas também,
ao mesmo tempo, um re-compromisso com aqueles recusados pela dicção hegemônica dos
jornais alternativos.
A realidade é que são muitos, naquele momento, os jornais alternativos que circulam
com relativo sucesso, vários deles se articulando à frente ampla que Ana fortemente critica. E
ao mesmo público que os consome está dirigido o projeto do Jornal Beijo. Pergunta-se em um
dos manuscritos datilografados: “Por que mais um jornal? Pela necessidade de lutar contra a
política cultural oficial e suas articulações” (“Dossiê Beijo”). Beijo tenta, programaticamente,
repensar as relações do campo cultural carioca de final dos 70, tenta articular uma alternativa
nova, ainda que sem perder de vista o fato de que ele mesmo está disputando a forma de
utilizar, de circular os discursos, e não tanto o conteúdo desses discursos. O leitor que se
interpela seria aquele que compartilha as práticas alternativas de cultura, que está
condicionado pelo habitus, mas a prática proposta por Beijo estaria tentando exercer de dentro
uma transformação dessas próprias condutas. “Si bien el habitus tiende a reproducir las
condiciones objetivas que lo engendraron, un nuevo contexto, la apertura de posibilidades
históricas diferentes, permite reorganizar las disposiciones adquiridas y producir prácticas
transformadoras.” (GARCÍA CANCLINI, 1990, p.36). Isto é, Beijo não propõe abertamente
um fora; simplesmente propõe toda a radicalidade possível na inclusão de temas censurados
dentro do campo de circulação do jornalismo cultural.
49
Como tentamos esboçar, no Brasil de 1976 os discursos legitimados nesse tipo de
jornalismo eram os de oposição ao regime militar e à censura, os referentes à clandestinidade
e ao exílio. Assistia-se, também, ao auge – tanto nas publicações periódicas quanto na ficção e
na poesia – de discursos celebratórios de um posicionamento na margem.
14
Mas não devemos
nos deter na mera constatação dessas estruturas hegemônicas, e sim tentar ler nesses
diferentes documentos propostos por Ana e por Beijo a forma de resistência. Resistência
frente aos discursos que reagem aos discursos dominantes – mas que seriam tão autoritários
quanto aqueles –, frente às definidas posteriormente como ‘patrulhas ideológicas’, contra a
‘frente ampla’ e, também, frente a uma postura ‘maldita, marginal, herege’ ingênua. “Entre a
mão pesada que critico, a minha mão pesada, ironia grossa, didatismo, retórica de salário.(...)
Quem domina quem? quem controla quem?” (CI, p. 211).
Como já o formulara Foucault (2002, p. 21), a ordem do discurso, a função-autor, a
vontade de verdade, escondem as estruturas de poder dos discursos, seus procedimentos
internos de controle, classificação e ordenamento. Contra a idéia de uma realidade que deveria
ser revelada ao leitor, Beijo declara no manifesto: “Não somos professor de leitor. Nem porta-
voz do Bem Comum. E muito menos dos Interesses Nacionais”. Trata-se, então de
desarticular, de dar lugar à emergência de outras vozes, que não sejam aquelas que achavam
na imprensa um reflexo tranqüilizador:
Para o grupo que compra Movimento, Opinião ou Versus e lê colunas de bom
senso, lugares comuns a reiterar o próprio esquerdismo, praticantes enchendo a pança
e os ouvidos, exatamente o que eu esperava ouvir! (...) Demitificação da frente ampla;
da unidade das esquerdas (unidos desde que regrando o que seu mestre validar). Logo:
possibilidade de emergência de contradições (especialmente as que a esquerda vem
recalcando).// Essa emergência só se torna possível com estrutura de poder flexível,
questionável, renovável. Desconcentração. Descentralização (“Dossiê Beijo”).
A emergência de novas vozes, e o lugar dado a temas silenciados, também não se
propõe como uma posição ‘certa’ a atingir. Beijo propõe a circulação, a permanente travessia
dos discursos. Ou como escreve Ana num dos documentos ao tentar escolher o nome:
O nome: que não reflita nenhuma tendência liberal, nada abrindo nem se
expandindo nem crescendo. Que não reflita a imprensa de ver e de mostrar (isto é, eis
aqui, pois então, veja só). Nada de totalidades (povo, Brasil, nação) [...] Nada de
títulos acadêmicos, referências eruditas. Nem pretensões libertárias. Nem
panamericanismos (“Dossiê Beijo”).
A nossa pergunta: qual o novo tipo de circulação dos discursos proposta por Beijo?
Uma circulação menos compromissada com a Política de maiúscula, e ao mesmo tempo mais
14
No primeiro número de Beijo, Ana publica seu conhecido artigo: “Malditos, marginais, hereges”, onde faz
uma pungente crítica à pose marginal.
50
corporal, sentimental, menor. O discurso circulando como um beijo. Em “Beijo e
ambigüidade da sedução”, de Rodrigo Naves, artigo que parece funcionar como editorial no
primeiro número do jornal, ainda que nada o assinale, propõe:
Puxa vida! Só não se percebeu que a predisposição à sedução é uma das
poucas formas onde se torna possível romper, ainda que momentaneamente, com uma
existência alienada.[...] Seria interessante fazer um jornal que se deslocasse da posição
de onipotência; seriam interessantes os leitores que deslocassem os jornais da sua
posição de onipotência: o fim da polarização. [...] A tempo, a pergunta: beijemos-nos?
(NAVES, 1977, p.4).
O nome do jornal não apenas dá visibilidade mas coloca em um lugar de máximo
destaque temas banidos no jornalismo cultural, como a intimidade, a sedução e o erotismo,
referidos indiretamente na palavra Beijo. E nessa mesma palavra se catalisa uma nova
proposta de relação, nem autoritária, nem onipotente, nem maniqueísta. Um tipo de relação
táctil e dupla entre produtor e leitor, onde os limites quedariam diluídos na ambigüidade.
Afirma Ana Cristina num texto apresentado nas reuniões do grupo de editores:
8. Prática política e vida cotidiana: questionamento da distância ENTRE as
propostas que norteiam a prática política e as relações cotidianas.*
* Ou: entre o afeto e a estratégia
Ou: entre “subjetivo” e “objetivo”
Não é novidade para quem conhece a obra posterior de Ana C. Essa politização da
intimidade será trabalhada em sua poesia desde o começo, como em “Jornal íntimo”
publicado em 26 poetas hoje, onde se trabalha com o caráter público da escritura íntima, mas
sempre sob a frase que parece definir o discurso de Ana Cristina: “não ter posição marcada”.
Coda
Esse “Beijo” propõe, então, uma circulação lúbrica dos discursos, e do saber. Beijo não
quer comunicar, nem opinar, nem ilustrar. Quer ser uma contínua travessia, estabelecer
continuidades com o leitor. Apagar as barreiras da exclusão, anular toda proibição, tomar,
aceitar e atuar em conseqüência. Isto é, tentar escapar, com uma nova proposta, de toda
estrutura de poder, não aplicar nenhuma das formas de exclusão aplicadas pelo discurso: “Dos
três grandes sistemas de exclusão que atingem o discurso, a palavra proibida, da segregação,
da loucura e a vontade de verdade” (FOUCAULT, 2002, p.19).
51
Ana é conseqüente, como diz Italo Moriconi: “tais conteúdos [a micro-política e uma
forma não autoritária de circulação dos discursos estarão] de uma forma ou outra subjacentes
a toda a produção intelectual e especificamente poética de Ana nos anos subseqüentes”
(MORICONI, 1996, p.47), e ali atingirá sua mais delicada/acabada expressão (ID, p. 128):
discurso fluente como ato de amor
incompatível com a tirania
do segredo
(...)
mas acontece que este é também o meu sintoma, ‘não
[conseguir falar’=
não ter posição marcada, idéias, opiniões, fala
desvairada
Paradoxalmente, anos depois, a proposição se revelaria uma faca de dois gumes: pois –
como veremos no terceiro capítulo – naquela idéia de uma poética da circulação e da
mobilidade, a crítica acharia uma definição, a posição marcada, que Ana C.
programaticamente tentava evitar.
52
CAPITULO II
Leiam se forem capazes
As leituras oficiais e o arquivo indócil de Ana C.
53
O arquivo Ana Cristina Cesar
Rio de Janeiro, Gávea, Rua Marquês de São Vicente, jardins de Burle Marx, edifício
do Instituto Moreira Salles. Ali, no meio da modernidade carioca da década de 50, no meio de
tanta e tamanha companhia, se abriga o arquivo oficial de Ana Cristina Cesar. Esse é o
domicílio, desde 1998, de mais de mil documentos de – ou sobre – a poeta carioca, contando
manuscritos, fotografias, correspondências, livros, artigos de jornais, traduções e teses,
inéditos e publicados, bilhetes, cadernos da escola, rabiscos espalhados e etc., etc., etc. Eles
conformam o acervo e desenham uma rede com cujos fios o pesquisador/leitor tentará tramar
uma narrativa sobre Ana C..
Como sabemos, Ana Cristina Cesar era poeta, mas não apenas. Também foi tradutora,
editora, professora, pesquisadora, crítica de literatura, de cinema e de teatro, escritora
compulsiva de cartas, desenhista. Na visita ao arquivo, para quem ainda quiser procurar
delimitações genéricas claras nesse magma, pode ser problemático estabelecer a que tipo
pertence cada escrito ou, até mesmo, quem o escreveu, sendo necessário conhecer dados do
tipo técnico para determinar datas e procedências dos materiais. Inclusive, ali se misturam
documentos e livros que tanto pertenciam a Ana quanto a seu pai, Waldo Cesar. De tal forma,
no arquivo podemos encontrar revistas raras de cultura alternativa – como a de humor gráfico
Ovelha negra (n°1, maio, 1976) –, passando por números da revista Religião e sociedade – da
qual Waldo fora conselheiro editorial – que não têm nenhuma referência a Ana e são
posteriores à sua morte, ou edições de livros de amigos de Ana que presentearam a família
tempo depois. No entanto não estão ali alguns originais de poemas publicados postumamente,
nem alguns dos cadernos de Ana – por serem de índole muito pessoal, sem interesse literário,
nas palavras do pai, em entrevista.
15
Expliquemos mais um pouco. Em 1983, depois do suicídio de Ana Cristina, os
caderninhos foram todos para vitrine da exposição póstuma, relíquias. Mas essa vitrine, no
começo, não se domiciliava em instituição oficial nenhuma. Todos os papéis que se
encontravam no apartamento dos pais de Ana Cristina
16
ficaram sob a custódia dos próprios
pais – Waldo e Maria Luiza Cesar – e Armando Freitas Filho, a quem ela deixara,
explicitamente, seu legado poético. Eles, com a colaboração de diferentes pessoas, assumiram
15
A entrevista me foi concedida por Waldo Cesar em 16 de abril de 2005.
16
Como assinala Italo Moriconi (1996, pp.11-12), os escritos de Ana se espalham em várias cidades, em gavetas
de amigos e colegas. Aqui falamos, especialmente, dos documentos que originalmente estavam no apartamento
da Rua Toneleros e que depois foram entregues ao Instituto Moreira Salles.
54
a tarefa de organizar uma publicação póstuma de inéditos, que foi finalmente Inéditos e
dispersos (1985), apenas dois anos depois da morte de Ana. O trabalho com os papéis de Ana
realizado na primeira etapa, então, mexeu nesse acervo que, não ordenado sob normas
classificatórias senão com o caos próprio do escritório de escritor, perdeu ainda mais a sua
organização.
Por exemplo, datilografaram-se em várias vias, alguns manuscritos, mas também
textos já datilografados por Ana
17
, passados à máquina dessa vez por Armando ou por Maria
Luiza, às vezes na máquina do primeiro, outras na máquina da própria Ana, confundindo
ainda mais o trabalho arquivológico. Dos poemas editados em Inéditos e dispersos,
encontramos várias versões escritas a máquina – com marcas manuscritas da mãe – que têm
uma versão em prosa e outra em verso, deixando transparecer a indecisão de quem levou a
cabo a tarefa de datilografar.
Outro dado: existem folhas com frases soltas cujos originais não estão no arquivo.
Assim descontextualizadas, as frases tanto poderiam ter sido pensadas como fragmentos para
futuros textos, ou como micro-poemas prontos, talvez ladroagens ou evocações, ou simples
transcrição de frases alheias, de poesias ou músicas, sem intenção de se apropriar delas.
Soltas, as frases só desvendam sua genealogia por acaso. Por exemplo: “aqui meus crimes não
seriam de amor” (ID, p.125), editado como poema em 1985, ao certo corresponde a uma frase
de uma crônica de Clarice Lispector sobre a criação de Brasília (1992, p.314). Ana C. autora
de Clarice? Poderia ser, é verdade que Ana em seus poemas não poupou citações veladas,
mas não parece ser esse o caso.
Dessas edições póstumas, talvez o mais sério deslize seja a publicação em Escritos no
Rio (1993), sob o título “Literatura Marginal e o comportamento desviante”, um texto que
corresponde a um dos capítulos da tese de doutorado de Heloisa Buarque de Hollanda,
defendida em 1978 e que depois seria o livro Impressões de viagem (1992 [1981]). O texto,
diz a edição, foi apresentado por Ana como trabalho final em uma das disciplinas do mestrado
em comunicação pela UFRJ, em 1979.
18
As primeiras edições – além das estratégias de construção de uma imagem mítica de
Ana, como veremos neste capítulo – revelamrios problemas de organização e trabalho com
os documentos, como a publicação desse tipo de frases soltas – sendo que no arquivo ficaram
17
Só pessoas que conviviam com Ana Cristina de forma muito próxima ou, só agora, a cuidadora do acervo do
Moreira Salles, podem distinguir folhas datilografadas saídas da máquina de escrever de Ana.
18
Um artigo de Elio Gaspari assinalou a questão: “A aluna era brilhante, mas plagiou a professora” (1999).
Segundo o material a que tivemos acesso, não houve resposta pública perante a essa situação, nem por parte dos
editores nem de Heloisa Buarque, amiga de Ana Cristina.
55
muitas outras sem publicar – suscitando a pergunta pelo critério de seleção tanto desses
fragmentos quanto dos poemas de infância, dado que, da mesma forma, nem todos foram
editados. Quando se comparam os textos editados e os que não entraram nessa primeira leva,
não parece suficiente a lacônica explicação de Armando, na Introdução a Inéditos e dispersos,
sobre a sua tarefa de selecionar “aquilo que me pareceu, literariamente falando, mais
conseguido e acabado” (ID, p.7).
A construção do santuário consagrado ao deus moderno – os arquivos de literatura
contemporânea, como define Raúl Antelo (2005)–, no caso do arquivo de Ana Cristina, teve
essa particularidade: foi uma atividade em que, num primeiro momento, a família assumiu o
papel de arquivista e não apenas de herdeira. Os frutos desse trabalho – Inéditos e dispersos
(1985) e as coletâneas Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993) – refletem um
trabalho dirigido pelo amor e pela imagem póstuma que os pais e os amigos procuraram
construir, beirando a homenagem, mas somando-se às dificuldades do trabalho anárquico do
arquivista. Edições que, aliás, delinearam as primeiras versões póstumas de Ana C., versão
que, veremos, foi a dominante.
No entanto, segundo Waldo Cesar na entrevista, pelo fato de reconhecer as limitações
da própria capacidade como editor, e levando em conta o perigo de que os documentos
desaparecessem ou deteriorassem na sua casa, o acervo foi entregue para a custódia do
Instituto Moreira Salles.
No edifício da Gávea, os documentos são organizados em pastas amarelas ou
envelopes e se localizam numa pequena sala refrigerada. Ali, as pastas são ordenadas
alfabeticamente, segundo o sobrenome do autor. Na entrada “Cesar, Ana Cristina” encontram-
se tanto manuscritos quanto cópias. Dentro de cada grupo as folhas também são ordenadas
alfabeticamente, segundo a primeira frase escrita no documento. A classificação explicita a
arbitrariedade da ordem, e o pesquisador pode encontrar, juntas, folhas de papel de diferentes
épocas e temas. Em separado acham-se os livros da biblioteca de Ana, que se misturam com
alguns da família.
“Tudo vai parar no arquivo”, diz Antelo. Assim, no Instituto, acumulam-se todos os
documentos que o pai entregara, inclusive, os que não pertenciam à Ana. Os materiais
acumulam-se. Acumula-se a linguagem com a que se armam as ficções axiológicas, diz
Antelo. E, dessa acumulação, surge a transformação e a metamorfose do próprio arquivo, pois
entrega diferentes possibilidades de traçar as narrativas do arquivo. Pelo fato de os arquivistas
e os arquivos acolherem tudo, Antelo reflexiona: “É a partir dos seus paradoxos (e não de suas
56
coerências, meramente imaginárias) que a economia do arquivo deve ser analisada”
(ANTELO, 2005).
Portanto, as tramas que o pesquisador pode traçar no seu percurso por esse arquivo,
como em todo arquivo, são variadas. Isto é, então, que tanto as edições póstumas quanto os
estudos feitos sobre a figura de Ana podem ser consideradas narrativas possíveis desse
arquivo, e as imagens de Ana que dessas narrativas se desprendem serão diferentes segundo
as intenções que dirigem cada leitura em particular.
Antes de passar a percorrer as narrativas dominantes do arquivo de Ana C., cabe uma
clarificação: por que falar de ‘narrativas’ do arquivo? Segundo Jacques Derrida em Mal de
arquivo (2001), um arquivo não seria apenas o local onde são estocados documentos
susceptíveis de serem conservados como referentes de um passado que deve ser lembrado, e
que existe/existiu independentemente desses documentos. O arquivo, as formas de
arquivamento e de seleção, falam a respeito da construção desse passado, através de um
exercício da memória, sempre seletivo, e que comporta uma escritura, um novo relato
suplementar, uma narrativa – muitas vezes explicativa – desse conjunto.
O novo relato estrutura o conteúdo pressuposto e, ao mesmo tempo, cria um passado.
“A estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo
arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto
produz quanto registra o evento” (DERRIDA, 2001, pp.28-9). Nesse sentido, “o arquivo, diz
Reinaldo Marques, não é uma realidade pronta e acabada; ao contrário, em certa medida ele é
construído e desconstruído pelo olhar do sujeito que, ao cumprir nele um itinerário, deixa suas
pegadas, seus vestígios, instituindo um certo roteiro de viagem” (MARQUES, 2000, p.34).
Portanto, se toda narrativa referente ao passado – e qualquer narrativa em geral – está
definida por uma estratégia de leitura/escritura particular, assumimos a tarefa de tornar mais
transparentes os processos de arquivização, dado que a sua existência é indiscutível e
iniludível. Ou seja,
desnaturalizar o que se toma como natural, orgânico, desconstruindo a intenção que
totalizou um arquivo, e desvelando seu caráter de universo fragmentário, de artifício,
de construção social, numa atitude típica da pós-modernidade, que desconfia do que
se presume natural, da verdade absoluta (MARQUES, 2000, p.35).
Se perguntarmos, então, que intenções totalizaram o arquivo de Ana C. e, por tal
motivo, deveriam ser desconstruídas e desnaturalizadas, veremos que não podemos, neste
caso, falar de uma única narrativa totalizadora, mas sim de narrativas dominantes e oficiais, e
de outras narrativas que as contestaram. Entretanto, todas essas versões – muitas vezes
contrapostas –, em geral, não estarão marcadas por trazer novos dados ou materiais
57
reveladores, mas pela leitura que se faz dos materiais já existentes. Tanto o relato oficial
construído quanto os alternativos têm fissuras, se lidos a contrapelo: não são homogêneos,
deixam transparecer pontos de contato entre eles e revelam tensões internas. Pois, como
continua Derrida, a economia do arquivo faz com que nele esteja contido aquilo que vai
desconstruí-lo: o heterogêneo, as partículas não lidas que esperam um olhar que as acorde,
que as faça sujeito novamente (1998, p. 23).
Desnaturalizar, mobilizar a imagem de Ana C.. Superar os perigos do arquivista que
Raúl Antelo pontua seguindo Didi-Huberman: de um lado, a ilusão tautológica segundo a
qual “o texto conservado diz o que diz e que nele vemos o que se vê” (ANTELO, 2005). Nela
o objeto é um objeto passivo que não modifica a quem olha, dado que, como dizia Barthes,
“la tautología funda un mundo muerto, un mundo inmóvil” (BARTHES, 1999, p.135). De
outro lado, a ilusão na crença, outra forma de preencher o vazio, fazendo o documento
significar sempre além de si próprio. No entanto, existem outras formas de entrar no arquivo,
evitando esses ‘fantasmas do arquivista’, como propõe Antelo: tratar-se-ia de entender o
arquivo como um “canteiro de obras”, que mantêm a tensão, o medo de saber que o objeto é
sujeito, e que o que vemos, nos olha.
Inéditos e dispersos: a história oficial
Na introdução a Territórios dispersos, Annita Costa Malufe, analisando as notícias da
morte de Ana Cristina em jornais e periódicos, diz que Ana C. se tornou, principalmente para
a mídia e os circuitos literários não especializados, “uma espécie de mito romântico da poesia
brasileira contemporânea” (MALUFE, 2006, p.19). O fato é que, em 1983, o suicídio de Ana
Cristina Cesar abre a possibilidade do nascimento do mito Ana C. ou, no mínimo, provoca
uma poderosa re-significação da imagem literária construída até aquele momento.
Os artigos aparecidos nos dias seguintes falavam, entre a nostalgia e a surpresa, de
“por que saltou para morte uma autora tão bonita, refinada e talentosa?” (GONÇALVES,
1983). Essa é a imagem pública de Ana C. que, desde então, porém, dá continuidade à
construção da imagem já mítica de uma poeta prodígio da qual foi objeto desde sua infância.
Imagem que se alicerçara em poemas publicados em revistas desde os seus sete anos de idade,
no apadrinhamento de Manuel Bandeira, e no estímulo/mandato familiar: “minha mãe (meu
58
pai também) foram crianças/jovens extremamente brilhantes (...) pensaram (pensam?): ‘você
vai continuar e conseguir o que eu tive vontade, mas não capacidade’” (CI, p.19).
Esse mito foi tanto aproveitado quanto contestado por Ana. Assim, em 1978, numa
entrevista com o antropólogo Carlos Alberto Messeder Pereira, Ana Cristina fala criticamente
dessa construção de criança excepcional. E, por sua vez, assume a pose antiliterária ostentada
por seus amigos poetas da chamada geração marginal. Diz Ana:
Eu era assim tipo... eu fui uma ‘menina prodígio’. Esse gênero, assim, aos seis
anos de idade faz um poema e papai e mamãe acham ótimo (...) A literatura ficou
assim associada a tudo isso, quer dizer, a uma coisa excepcional, a uma coisa que te
dá prestígio, a um artifício para você conquistar pessoas (...) um dos desbundes,
também, é perder essa idéia de que eu era uma escritora (apud PEREIRA, 1981,
p.191).
Mas, a morte deixa essa referência da menina prodígio proliferar livremente, sem mais
contra-ordens. Como dissemos, do trabalho oficial com o arquivo, as marcas mais evidentes
são os volumes de escritos editados postumamente. Armando Freitas Filho, junto a Waldo e
Maria Luiza Cesar, e com a colaboração de diferentes pessoas, como Grazyna Drabik,
colocaram desde o primeiro livro de edições póstumas uma intenção de preencher o “vazio”
deixado. Como diz Armando na Introdução de Inéditos e dispersos: “A morte repentina de
AC fez com que tudo o que se relacionasse a ela ficasse em suspenso, indefinido (...) Este
volume pretende ser, contudo, um arremedo de resgate e consolo” (ID, p.7).
Horror vacui. Os documentos saíram à luz, muito cedo, para preencher o vazio, mas
também, com isso, controlar a recepção da obra. As estratégias para alcançar esse objetivo
vão se tornar evidentes no trabalho editorial propriamente dito, isto é, no projeto gráfico, na
seleção de material, na ordem dada aos textos, nas ilustrações, na inclusão de textos de
colaboração, etc.
Particularmente, teve muita importância nos livros póstumos a inclusão de fotografias,
podendo assinalar este fato como o alvo do projeto editorial póstumo. A imagem que se
desprende tanto de Inéditos e dispersos quanto das reedições de A teus pés feitas pela editora
Ática (1998) – livros esteticamente nas antípodas do design discretíssimo de Waltercio Caldas
para a edição original feita pela editora Brasiliense (1982) – constrói um relato biográfico e
iconográfico: uma menina cuja sina é ser escritora, sina que vai se concretizando no percurso
pelas instituições família, escola, igreja, finalizando a seqüência no lançamento do livro que a
consagra e marca a sua profissionalização como escritora. Nesse mesmo sentido, as
fotografias viriam acompanhadas por versos de alguns poemas que, por um lado, colam de
forma definitiva a enunciação dos textos a uma imagem, a um rosto, ilustrando-se
59
mutuamente; e, por outro, se constroem na forma de relato de vida, organizando os retratos e
poesias cronologicamente, permitindo, aliás, a ilusão de estar assistindo ao percurso de
aprendizagem e aperfeiçoamento de um talento que já estaria presente desde os primeiros
poemas. Assim, uma vez que já ninguém pode fazer a pequena Ana posar, e quando a poeta
Ana não pode estabelecer nenhum tipo de controle sobre os usos da sua imagem, a decisão
editorial arma a figura também através do tramado dos ensaios fotográficos.
Destaquemos, nesse sentido, que, na edição de A teus pés da editora Brasiliense, além de
não aparecer fotografia ou desenho nenhum, os poemas não estão organizados
cronologicamente, e Ana, inclusive, corta alguns poemas do primeiro livro, Cenas de abril e
realiza muitas modificações aos textos de Correspondência Completa e Luvas de pelica.
19
As
intervenções de Ana, portanto, iriam contra qualquer mitificação de uma pureza de origem: o
‘original’ pode ser revisitado e reformado, sem linearidade de formação. Como assinala
Natalia Brizuela em “‘Espelho, buraco na parede. Teu retrato, buraco na parede’, Ana Cristina
Cesar y la fotografía” (2007), “esta inscripción editorial de la poesía de Ana Cristina como
autobiográfica – y de allí que la fotografía funcione como soporte material – sorprende ya que
su trabajo poético constantemente minaría y socavaría toda referencialidad” (p.131). O
ordenamento cronológico, então, parece contrário à organização que Ana, em vida, pretendeu
dar aos seus trabalhos. Como continua Brizuela:
Que el álbum fotográfico incluido en Inéditos e dispersos trace, en su
organización, una vida absoluta y nítidamente progresiva, comenzando con la infancia
y de allí en línea recta y cronológica hasta llegar a 1983, fecha de la muerte de la
poeta, coarta la posibilidad de una lectura en la que la aparición fotográfica en las
ediciones póstumas fuera un refuerzo crítico del propio método poético de Ana
Cristina. (BRIZUELA, 2007, p.132).
19
No volume de textos de Ana Cristina, Álbum de retazos (2006) as notas filológicas apontam todas as
modificações introduzidas na edição de A teus pés (1982) – a maioria, cortes de trechos de uma dicção levemente
explicativa – em relação às primeiras edições de Cenas de abril (1979), Correspondência Completa (1979) e
Luvas de pelica (1980), assim como dos poemas aparecidos em 26 poetas hoje (1976) ou em publicações
periódicas.
60
Figura 4
No entanto, para efeito da análise da consagração o fato mais importante, entendemos,
seria outro. Não se trata simplesmente de ir contra a proposição que critica a possibilidade de
um sujeito acabado, à qual os poemas se dedicam de forma programática. Nem da construção
de uma idéia de progresso e aprendizado, frente a um anacronismo e cruzamento temporal que
os textos encenam, como assinalara Célia Pedrosa (2007). Trata-se, principalmente, de que
essa leitura cronológica e biográfica é uma leitura possível apenas retrospectivamente.
Inéditos e dispersos se abre, em verdade, não com o nascimento de Ana Cristina, mas com sua
“morte repentina” (FREITAS FILHO, in ID, p.7). Morte trágica, isca do interesse do leitor,
como no título do artigo de Gonçalves, se buscará explicar nesses textos por que a poeta
saltou para a morte, pois são os inéditos e dispersos de alguém que não conseguiu editar nem
ordenar a dispersão, que não teve tempo de ocultar os segredos nem apagar a intimidade
desses papéis avulsos. Textos que poderiam, para o imaginário do leitor que não entende a
morte, encerrar alguma chave.
O vazio do final é de tal forma o começo da cronologia para os organizadores de volume
que, exatamente antes da primeira foto do ensaio, aparece um poema manuscrito por Carlos
Drummond, “Ausência”, dedicado à memória de Ana. Ali a ausência é um vazio constitutivo
do discurso. Que se preencherá, sem fim, com novas escritas.
20
O final trágico que, como em uma novela, já conhecemos, faz ao leitor circular pelos
poemas procurando as pegadas premonitórias desse final. Que, de fato, vão-se fazendo mais
evidentes nos últimos textos – de cuja origem não temos certeza, sendo uma mistura entre
texto poético e diário –, minados de referências à idéia da fuga, da partida, da distância, de um
possível retorno, assim como à problemática de deixar um testemunho. Textos que passam a
20
Observemos, também, que a publicação deste segundo apadrinhamento – o primeiro, de Manuel Bandeira,
tinha sido para a menina de seis anos – poderia ser uma prova da continuação do programa familiar de
estabelecimento de uma genealogia de nobreza e fama poética para a filha prodígio.
61
liberar cargas significativas que, de uma forma ou de outra, seriam anúncios da morte trágica.
Ou seja, tudo parece surgir do fato que encerra as edições, o lugar onde as cronologias
fecham: o suicídio, segredo de polichinelo, final.
Pensemos que Al Alvarez, em “La agonía romántica” de El Dios Salvaje (2003), vai
analisar como, a partir do Romantismo, a vida – e principalmente a morte – dos poetas passa a
ser um dado que tem mais força e interesse para sua consagração do que os próprios versos.
Não se trata, destaquemos, de fazer uma analogia com os poetas românticos, mas ao falar de
‘mito romântico’ referimos todo um paradigma estereotipado de comportamento ‘poético’ que
começa a ter peso literário a partir daquela época. O estereótipo de poeta é, como toda
tipologia, falaz mas funcional. E, se tomou seus traços básicos do comportamento dos poetas
românticos – em verdade, de um dos personagens paradigmáticos do movimento, o jovem
Werther criado por Goethe –, de forma extremamente esquemática, podemos dizer que essas
premissas continuaram, também de forma estereotípica, na boemia parisiense, na vida e na
morte dos surrealistas, dos malditos, dos dadaístas, etc., enquanto poetas mulheres de
diferentes épocas também foram catalisadoras dessas características.
21
No entanto, é esse tipo de vida e comportamento estereotipado o que estaria
funcionando em muitas das leituras críticas que recaem mais sobre a biografia do que nos
textos de um poeta. Como assinalara Flora Süssekind, se faz evidente a dominância biográfica
na bibliografia sobre Ana – assim como nas de Leminski e Cacaso – que começara a circular
em textos de homenagem depois da sua morte e se multiplicara em diversos escritos
(SÜSSEKIND, 2007). Um suicídio, uma morte trágica ou inesperada, são mortes literárias,
porque suscitam a surpresa e o vazio significativo – embora se possa dizer que o suicídio foi
mais uma performance de vida de Ana C., uma forma de escrever, de tomar posse da morte. O
que nos interessa mais agora é que esse vazio abrupto cria a necessidade de ser preenchido
com uma narrativa de vida específica, que é, ao mesmo tempo, uma trama de leitura da
produção e uma chave crítica ou teórica. Como diz Süssekind, o salto final
parece prefigurar o sentido de boa parte das leituras estritamente biográficas
da obra de Ana Cristina Cesar, nas quais a morte prematura vira critério valorativo e
se projeta sobre seus mais ínfimos aspectos, quase pré-determinando uma linha
lutuosa de apreciação. (SÜSSEKIND, 2007, p.52).
21
Insisto, tomo o estereótipo de forma grossa e genérica. Mas porque esse é o funcionamento que tento destacar,
como por exemplo,
o faz Ricardo no romance Tanto Faz (1982), de Reinaldo Moraes. Ao chegar na casa de uma
amiga de madrugada, Ricardo se surpreende ao encontrar a poeta Lygia – carioca, de olhos azuis, que está
morando na Inglaterra... – dormindo: “Uma poeta não pode estar dormindo a uma hora dessas. Três da
madrugada, quase nada... E a vocação saturniana dos poetas malditos? O gosto pela solidão das ruas desertas da
madrugada, a volúpia dos vícios mal iluminados da alcova e do cabaré?” (p.37).
62
Do suicídio nasce o mito literário Ana C.. Ou melhor, dois movimentos: de um lado, a
partir dele se retoma a narrativa da menina prodígio; do outro, se reconfigura de forma radical
a imagem de poeta por ela construída, passando a ser outro o prisma de leitura. Ou seja,
algumas narrativas nascem, outras re-surgem, outras se transformam com o suicídio. Mas só
com esse acontecimento é possível o nascimento do mito que conhecemos. Um mito que,
como diz Al Álvarez ao se referir a Sylvia Plath:
Creo que a ella no le habría gustado mucho, ya que es un mito del poeta como
víctima propiciatoria que, arrastrado por las musas a través de todas las desdichas, se
ofrenda en el altar último por el bien del arte. En estos términos, el suicidio pasa a
ser el eje de la historia, el acto que convalida los poemas, les da interés y prueba la
seriedad de la autora. Así, la gente se ve atraída hacia la obra de Sylvia muy a la
manera en la que finalmente Time la presentó: no por la poesía sino por un ‘interés
humano’ extraliterario, anecdótico y chismoso (ALVAREZ, 2003, p.54).
* * *
Inéditos e dispersos, então, fazendo um tipo de leitura nostálgica, biográfica e sincera,
e despertando o interesse pelo extra-literário, molda a forma de ler a figura e os poemas de
Ana C.: molda a leitura e imagem oficial. A afirmação tem seu correlato nas resenhas do livro
– muitas – que de alguma forma reproduzem a sensação de vazio a ser preenchido, e a procura
de explicações entre os papéis de Ana.
22
A partir da coletânea, o interesse levantado pela figura de Ana teve resultados visíveis.
Segundo Maria Lucia de Barros Camargo na nota prévia a seu Atrás dos olhos pardos, desde
quando ela escrevera seu texto como tese de doutorado – a primeira sobre Ana C. – em 1990,
até a data da publicação, 2003, tanto as edições de A teus pés quanto os estudos críticos sobre
Ana Cristina se multiplicaram “inserindo definitivamente sua poesia entre as mais
significativas no quadro da literatura brasileira contemporânea” (2003, p.9). A afirmação de
Maria Lucia estaria referendada, aliás, pela aparição da biografia feita por Italo Moriconi em
1996,
23
pela publicação em 1995 de algumas cartas que Ana enviara para seu amigo Caio
22
Em diferentes graus, algumas das resenhas feitas por ocasião da aparição de Inéditos e Dispersos refletem essa
visão de sina poética essencial e aprendizado, em um avanço cronológico, além do contato com uma verdadeira
Ana C.: Caio Fernando Abreu. “Poesia a flor de pele. Inéditos e dispersos” em Isto É, e “Rastros de uma
passagem luminosa” em Leia livros (1985); Ana Maria Ciccacio, “Os passos de uma trajetória poética” em O
Estado de São Paulo, (1985); Mario Sérgio Conti. “Perigo de viver” em Veja (1985); Álvaro Alves de Faria,
“Ana Cristina Cesar nos poemas, profunda emoção e humanismo” em Jornal da tarde (1985).
23
A ‘biografia’ de Italo Moriconi é, de um lado, um texto homenagem a sua amiga Ana Cristina, mas também,
do outro, uma biografia da geração, da qual ele mesmo fora parte; já no começo declara as limitações de um
63
Fernando Abreu no Estado de São Paulo, pelas muitas teses e dissertações, e pelas traduções,
feitas na década de 90, além do reconhecimento institucional da importância da figura de Ana
C. com a criação do acervo no Moreira Salles.
Mas ainda cabe uma pergunta paradoxal: é a proliferação de edições e estudos que
define o ingresso de Ana no cânone, ou é essa consagração literária a que estimula o
aparecimento forte no mercado? Não seria possível uma resposta unívoca. Tendemos a pensar
que se trata de uma troca entre o mercado e a potência do texto, troca que se insere num
contexto cultural bem predisposto a receber um tipo de escrita na qual a primeira pessoa volta
a aparecer. Sem falar dos best-sellers de auto-ajuda, de histórias de vida, romance histórico e
biografia, podemos dizer que a mais valorada literatura dentro da academia também se volta
para textos que colocam como questão o retorno do sujeito, da primeira pessoa, dos relatos
íntimos, das chamadas narrativas do eu. As edições com fotografias fizeram com que os
poemas – que já questionavam os problemas do sujeito e da intimidade, estou cansada de
falar de mim, trabalhando poeticamente sobre gêneros íntimos como o diário e as cartas –
fossem associados a um rosto e a uma biografia, e se adequaram ainda mais à questão
imperante.
Ou seja, a figura de Ana C. chega clivada, então, em dois percursos da historiografia
literária, um de larga data, o estereótipo mítico de poeta, e um outro que revigora o primeiro e
que vai ganhando força a partir da década de 60, mas cuja proliferação atinge até nossos dias:
o retorno do sujeito.
24
No Brasil, e na poesia, essa reaparição do sujeito no centro da cena
teve certas modulações e especificidades na virada das décadas de 70 e 80, quando o eu da
narrativa testemunhal, que tivera um rápido sucesso com o retorno dos exilados, é colocado
em questão e ganha complexidade.
25
A obra de Ana Cristina e, depois, as edições aparecem
num contexto propício, tanto no mercado editorial quanto no mercado acadêmico, para
receber esse tipo de proposta, onde o sujeito, o gênero e os gêneros literários estão sendo
repensados à luz da virada no pensamento de importantes filósofos, como Barthes e Foucault,
do ingresso da teoria feminista renovada, e dos estudos culturais. Viradas que tentam,
também, recolocar e problematizar o(s) sujeito(s) no eixo temático.
26
projeto biográfico tradicional e se subtrai, para misturar à primeira pessoa do biógrafo uma primeira pessoa
plural geracional.
24
Na poesia, Al Alvarez, para referir uma mudança de dicção nos poemas de Sylvia Plath entende que uma
referência mais pessoal – uma linguagem mais clara, com menos simbologias, cujo sujeito não estaria separado
de forma clara do autor – estaria marcada pela influência de Robert Lowell, na década de 60.
25
Para um estudo do percurso das narrativas em primeira pessoa na virada das décadas de 70 e 80, cf. Flora
Süssekind, Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos (1985).
26
Nesse sentido Francine de Oliveira (2001) dirá que Ana Cristina escreve numa época de várias transições em
curso, entre elas a do sujeito do estruturalismo a partir das leituras de Lacan, Derrida e o último pensamento de
64
Correspondência Incompleta: a ambivalência do mito.
Não todas as imagens deixadas por Ana Cristina foram tão dóceis e, embora o utilizem,
não se deixam capturar tão facilmente por um relato linear de vida e morte. Vamos nos deter
na edição das cartas, para ver de que forma as fotografias e os textos que aí se apresentam
desestabilizam o mito que estariam, ao mesmo tempo, sustentando.
Organizado por Armando Freitas Filho e Heloisa Buarque de Hollanda,
Correspondência Incompleta (1999) seria o que podemos considerar o corolário do boom
editorial dos textos de Ana. Conforme diz o editor na justificativa à edição, ela não passaria
por um interesse ‘biográfico’ ou de revelação de segredos, mas pelo valor literário das cartas,
pela certeza de Armando de que esses textos mostram a matriz da criação literária de Ana:
“Se suprimíssemos o destinatário e o remetente, estaríamos lendo alguns dos seus poemas, se
não acabados, pelo menos ensaiados” (FREITAS FILHO, in CI, p. 9). No entanto, nunca
poderíamos suprimir o destinatário, e ainda menos o remetente, em cuja identidade insiste-se
desde a capa.
Já ali, faz-se evidente a relação que se estabelece entre as cartas e a ilusão de confissão;
entretanto, no interior do livro aparecem, inclusive, fotos de Ana Cristina sem roupas, como
se pudéssemos ficar mais próximos da sua intimidade. Mas, se o leitor procurar se aproximar
através da correspondência da ‘verdadeira’ Ana C., sairá do volume com uma idéia no
mínimo contraditória. Assim como o faziam os poemas e os ensaios, as cartas e as poses de
cada uma das fotos e a própria organização da edição, não deixam de minar essa ilusão de
verdade, mostrando o choque entre as diferentes versões sobre Ana: me cansei da fúria da
verdade.
O ponto de maior evidência ou violência desse choque está nas últimas páginas. Ali, se
publica uma cronologia feita por Waldo Cesar: uma narrativa do puro sucesso, dos
reconhecimentos escolares, de sua trajetória bem sucedida pelas instituições – família, escola,
igreja. Uma vida exemplar. A cronologia vira hagiografia. No entanto, deflagra sua não
objetividade na assinatura de quem a fez: o pai. O choque de ‘versões’, porém, se dá ao virar a
Foucault. No entanto, a autora coloca que Ana Cristina participa tanto quanto discorda do projeto estruturalista,
justamente por se localizar nessas transições. Achamos que o projeto de Ana Cristina implica uma visão
distanciada do sujeito estruturalista, que entra nos textos sempre mediado por um olhar desconstrutivo.
65
página: à moça socialmente bem comportada descrita por Waldo Cesar, segue uma foto de
Ana onde ela está nua.
Cecília Leal, amiga de Ana e destinatária de algumas das cartas editadas, é responsável
pelo projeto gráfico de Correspondência Incompleta, que se diferencia claramente do roteiro
feito em Inéditos e dispersos ou das reedições de A teus pés. Aqui, só uma fotografia de
infância: Ana com fantasia de anjinho – foto tirada pelo pai (CI, p.90) –; o resto, fotos todas
posadas, teatralizadas. A decisão não é ingênua: Ana fantasiada de anjinho,
retrospectivamente, também posa e engana.
Mas antes de continuar com os efeitos de leitura do roteiro iconográfico da edição das
cartas, assinalemos o seguinte: Ana Cristina posa diante de livros ou com caneta na mão,
arremedando a iconografia mais estereotipada de escritor, unicamente, nas fotos de infância,
em cenários armados pelo zelo paterno. Nenhum relato de aprendizagem nem institucional,
Ana procura uma outra pose.
Na iconografia mais tradicional, os escritores aparecem posando frente às suas
bibliotecas, sentados em seus escritórios, de pena ou caneta na mão, às vezes lendo. No
entanto, muitos são os exemplos na história da literatura da construção de cenários
alternativos, que tem tanta abragência quanto o estereótipo, mas essa opção sempre é tomada
como uma atitude expressa na construção da própria figura de escritor alternativa. No Brasil
da década de 70, toda a geração de poetas marginais opta por essa alternativa na construção da
própria imagem, como fica evidente nas fotos que restaram dos eventos e dos autores, ou no
curta “Assaltaram a gramática” (1984), de Ana Maria Magalhães, onde os poetas aparecem
caminhando, em permanente movimento, nas ruas e nas praias do Rio de Janeiro.
Também uma olhada nas fotos que dão rosto aos 26 poetas hoje deixa ver a alternativa
ao estereótipo: nenhuma biblioteca, caneta nenhuma, também nenhum experimentalismo
fotográfico nem jogos de ótica, nem sequer fotos de qualidade artística. As páginas com os
‘rostos’ dos 26 poetas apresentam várias fotos 3 x 4 de qualidade duvidosa, fotos de
referência múltipla: de um lado, são as fotos mais conectadas com a identidade onde a pose e
a construção estariam programaticamente fora da imagem; de outro, são fotos associadas à
identificação criminal – alusão não menor naqueles anos –; e, também, trata-se de fotografias
‘feias’, onde não haveria pretensão estética nenhuma. Aparece na série de fotos, aliás, muito
cabelo e barba, exemplificando a estética ‘alternativa’ de moda na época. Outras fotos
mostram os retratados em movimento: como a de Waly Salomão, com fundo de praia; a de
Afonso Henriques Neto, com uma criança no colo, balançando-se na rede. Charles ri para a
câmera. Torquato fuma. O rosto de Carlos Saldanha é um desenho animado. Bernardo
66
Vilhena, Vera Pedrosa, Geraldo Carneiro, Eudoro Augusto olham para um ponto distante,
jogando a pose de não posar, medida exata entre o acaso e a estrutura.
Todas poses de outro tipo de poeta. Nessa série de 26 poetas hoje, aparece a primeira
foto de Ana C. que dá rosto à sua escritura, acompanhando seus poemas. Na foto, que hoje é
icônica para falar em Ana, ela se mostra de óculos escuros, como acontecerá na maioria das
fotografias posteriores que se relacionaram ás suas aparições públicas. Ana está de cara à
câmera na atitude, mas esconde a direção do olhar que, no entanto, imaginamos
incomodamente na nossa direção.
Figura 5
Com o tempo e as edições ficaremos sabendo que a foto é a menos ‘teatral’ ou encenada
de uma série tomada por Cecília Leal, que aparece na edição de Correspondência Incompleta,
na qual Ana encara a câmera em poses de sensualismo exagerado e inclusive paródico.
Figuras 6 e 7
67
Aparece nelas uma tensão entre o corpo se expondo ante a câmera e o ocultamento,
tensão catalisada na pose escancarada, um artifício sensual para atrair os olhares, mas que
entrega só poses como mascaramentos da identidade. Essa possibilidade de encenar a tensão
não faz senão ir contra a procura de uma verdade ou correspondência entre a imagem e a
biografia, correspondência da qual é subsidiário o relato de vida – e de morte – sem vazios.
Posar é fazer uma performance. Construir um sujeito que assinala permanentemente para si
mesmo, mas na sua forma de se ocultar, é fazer uma performance. Onde a forma está em
permanente formação. E, se essa idéia se desprende das fotos, podemos ver que percorre
também toda a produção de Ana C.: apresenta-se de forma explícita nos textos críticos, e se
realiza, além de nas fotos, nos poemas.
27
Figuras 8, 9 e 10
27
Cf. meu texto, “Cuando las obras ya no son intocables, o sobre alguna reseña de Ana C.”, in Garramuño et alii
(2007).
68
A tensão entre a pose e a construção das fotos e seu afã de biografia é flagrada na
edição da correspondência. Pois a pose contradiz a idéia de uma Ana mais ‘íntima’,
‘verdadeira’, sem roupas nem óculos que pudessem estabelecer uma mediação entre o corpo
nu e o espectador. Idéia que estaria representada pelas fotos de Ana Cristina despida nas
páginas finais do livro. Se olharmos esses nus, três da mesma série, cujo autor não está
consignado na edição, e perguntarmos que tipo de performance, que pose, estaria sendo
realizada, deveremos reinstaurar as mesmas tensões que líamos com relativa facilidade nos
retratos de lentes ocultadores. Tensões que, neste caso, têm a particularidade de estar
atravessadas por um novo dado: a nudez.
Nesse sentido, abramos um breve parêntese para distinguir, tal como o faz Didi-
Huberman em La Venus rajada (2005), nu perante nudez. A nudez, diz Didi-Huberman, é
sempre heterogênea ela mantêm o desconforto – o embaraço que nos poderíamos sentir na
situação de encontrarmos-nos sem roupas – enquanto o nu é uma forma artística inventada
pelos gregos que tranqüiliza o desconforto em nome da estética. Essa diferença entre nu e
nudez teve na ordem do discurso da história da arte, diz Didi-Huberman, seu correlato através
nas formas de olhar as imagens de corpos sem roupas e, por extensão, qualquer obra de arte:
aceitar o incômodo que prende e punge, ou procurar significações e conceitos
tranqüilizadores. O nu, a imagem de um corpo sem roupas, pode, portanto, estar vestido por
roupagens ideológicas que controlam a sua recepção e a sua interpretação. Roupas conceituais
que anulam a nudez potencial que todo nu teria. “Se trataba, en suma, de interponer una
pantalla” para que o simbolismo do nu pudesse se impor sobre as forças não controladas da
nudez (DIDI-HUBERMAN, 2005, p.27).
O estabelecimento de uma cronologia junto a uma ilusão de verdade, confissão,
testemunho, que guiaria a leitura da correspondência, estaria tentando apaziguar o incômodo
do desnudo de Ana. Desde essa perspectiva, as fotos sem roupas mostrariam apenas o nu, pois
estariam vestidas com uma série de preconceitos de quem olha. No entanto, o mirabolante da
última imagem com seu jogo de insinuação, o conteúdo das cartas, a ordem não cronológica
das fotos em Correspondência Incompleta, e, principalmente, o choque de todos os materiais
ali editados, dão uma imagem prismática e irregular, que reinstala todas as tensões da nudez.
Assim, as três fotos de Ana C. reproduzem o incômodo dos seus textos: por que o jogo
de ocultamento e pose, a intermitência da exibição que está em cada uma das fotos? Como
não ver que, finalmente, a poeta está na frente de uma estante com livros, mas ainda
quebrando as iconografias tradicionais, pelo fato de estar nua? De que forma ler o
69
exibicionismo do corpo nu? Como colocar essas imagens na cronologia do anjinho familiar?
Como não ver mais uma performance na construção de si?
Antes da sua morte, na produção de Ana C. foi se construindo a própria Ana C.. Como
analisa Judith Butler, “la performatividad debe entenderse, no como un ‘acto’ singular y
deliberado, sino, antes bien, como la práctica reiterativa y referencial mediante la cual el
discurso produce los efectos que nombra” (2005, p.18). O que apareceria nos textos e imagens
feitas por Ana Cristina seria uma ‘construção de si’ ou a prática de uma ‘arte da existência’,
segundo os termos que Foucault define na sua Historia da sexualidade (1984). Trata-se não
apenas de produzir e posar textos e imagens de poeta, mas também seguir certas regras de
conduta que formariam parte das prescrições do grupo: procurar “se transformar, modificar-se
em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos
e responda a certos critérios de estilo”. Critérios que, por vezes, no entanto, contrariam o
comportamento tribal que regia a geração (FOUCAULT, 2005, p.13).
Como assinala Flora Süssekind, ao pensar no funcionamento das fotografias de
Correspondência Incompleta:
As fotos selecionadas apontam para um desejo de hiperfeminização física da
Ana Cristina por parte dos editores dos livros, o caráter posado, e tão armado, de
algumas dessas fotos parece acabar funcionando em sentido contrário, parece
desmontar isso tudo. (...) É como se as fotos a rigor devessem atenuar o efeito
transgressor do texto dela (...) O interessante é que a explicitação de tudo como pose
tira o tapete dessa infanto-feminização. (SÜSSEKIND, 2007, p.163)
A explicitação da pose tira o tapete da imagem construída; entretanto, ressalta outros
traços. Perante a hiperfeminização, certa androgenia da magreza, do ocultamento das partes
sexuadas do corpo. Perante a infantilização, a maturidade que implica o jogo com a nudez.
Perante a menina virginal fantasiada de anjinho, uma imagem profanatória imitando a pose
pensativa ou contemplativa, para dessacralizá-la com o simples ingresso a um contexto que
nada tem a ver com o celestial. Então, não se trata apenas de tirar o tapete da
hiperfeminização, da infantilização e da hagiografia, também se dá por terra toda ilusão de
verdade e de confissão. O nu, como a verdade, são poses.
O volume de cartas como um todo, no seu projeto gráfico, reatualiza uma
ambivalência presente nas fotografias e nos textos. De um lado, participa do processo de
canonização, dando ao leitor mais imagens e textos sob o signo da ilusão documental, e, do
outro, a encenação das tensões que – premonitoriamente, retrospectivamente – colocam o
próprio mito em questão. Como assinala numa resenha do livro o poeta Wilson Bueno:
Personagem de si mesma (...) Há, do começo ao fim desta "biografia"
epistolar, uma exasperação, uma linha de fundo quase extenuante a cada dia vencido
70
sob cansaço e melancolia, mesmo que perpassado pela minudência dos fortuitos
desfrutes e das miúdas delícias. Não importa, a sua é uma beleza trágica. Lunar e
saturnina, Ana C. nasceu com a vocação do mito e a ele e à sua construção se
entregou com volúpia. Mas nas 93 cartas de "Correspondência Incompleta",
(magnífico o projeto gráfico de Cecília Leal) o que temos, ainda que com o mito
entranhado na garganta, é o melhor de Ana C. (BUENO, 2007).
As fotos, como dissemos, desestabilizam a figura que alicerçam, mas cabe ainda uma
colocação: não seria esse um problema de todo mito? Segundo Barthes, o mito seria uma
mensagem, uma forma e não um conceito, definido por uma determinada necessidade social:
“un uso social que se agrega a la pura materia” (BARTHES, 1999, p.108). O que garante seu
funcionamento é uma reserva de história, uma riqueza significativa por todos identificável,
através de uma série de referências socialmente compartilhadas. Isto será esquematicamente
explicado por Barthes, na linha saussuriana, dizendo que o mito seria um sistema semiológico
segundo: um signo formado por um significado e um significante; porém, nessa segunda
cadeia, o significante do mito seria por sua vez o signo de uma cadeia anterior. El signo
mítico, que Barthes chama de significação “tiene efectivamente una doble función: designa y
notifica, hace comprender e impone” (BARTHES, 1999, p. 110). A repetição do conceito, sob
diferentes formas, é o que permite decifrar o mito: a insistência numa conduta é o que permite
decifrar a sua intenção. Por isso também a nossa própria insistência, em ressaltar as constantes
nas leituras oficiais sobre Ana C..
Essas referências compartilhadas garantem o funcionamento do mito, mas, ao mesmo
tempo, colocam em evidência a intencionalidade que o motiva, colocando-o em uso. A
própria imagem que se constrói começa a ser suspeita e duvidosa. Como diz Barthes, entre o
sentido e a forma do mito produz-se um interessante jogo de esconder. O mito se oferece
como uma “imagen rica, vívida, espontánea, inocente, indiscutible”, mas ao mesmo tempo
permite pela sua obviedade, pela sua escancarada transparência, revelar que é “cómplice de un
concepto que recibe ya armado” (BARTHES, 1999, p.115). Ou seja, o mito se instala
comodamente no lugar comum, mas só a partir do seu reconhecimento poderá ser discutido.
Daqui que Barthes chame a atenção para a ambivalência de todo mito – que nesse ponto
funciona também como os estereótipos:
O bien la intención del mito es demasiado oscura para ser eficaz, o bien es
demasiado clara para ser creída. (...) El mito encuentra una tercera salida. Amenazado
de desaparecer si cede a una u otra de las dos primeras formas de situarse, escapa
mediante un compromiso; el mito es ese compromiso: encargado de "hacer pasar" un
concepto intencional, el mito encuentra en el lenguaje sólo traición, pues el lenguaje
no puede hacer otra cosa que borrar el concepto, si lo oculta; o desenmascararlo, si lo
enuncia. (BARTHES, 1999, p.120)
71
Poemas, fotos e cartas reafirmam a imagem da filha, irmã, amiga e a imagem de uma
dedicação à poesia até a morte, até a morte poética. Mas são os mesmos poemas, fotos e
cartas que despertam a desconfiança nessa construção. Daqui que coloquemos que o arquivo
encerra as narrativas canônicas que parecem não discutir a imagem mítica de Ana, no entanto,
ao mesmo tempo tem a capacidade de fazer surgir e até acolher aquelas que vão contradizê-
las. Ana se mostra mais verdadeira enquanto desconstrói a idéia de verdade. E essa
ambivalência do mito percorre a imagem cristalizada de Ana, assim como percorria a imagem
viva.
Contudo, se as versões podem ser contraditórias, é porque elas encerram tensões no
seu seio. Não existe versão homogênea ou sem fissuras, inclusive a do próprio pai. Waldo
Cesar, em um eco com os ensaios fotográficos, faz a cronologia/hagiografia criando a imagem
angelical de Ana; no entanto, alguns anos depois, reinstala as tensões do próprio olhar e o
carrega de responsabilidades e suspeitas em um poema. O pai assinala, retrospectivamente e
não sem certa culpa, para sua necessidade de colocar desejos de redenção na figura da filha,
assinala para seu papel de hagiógrafo (CESAR [Waldo], 2004).
Jantar, Só
Na mesa ao lado
a menina desenha.
A cada rabisco
ri a família
às gargalhadas.
(...)
Um anjo.
Pode ser um anjo
- não sabem eles,
que a criança
- nem ela sabe -
redime as dores
do dia a dia.
* * *
Chego agora ao inefável centro do meu relato: se várias leituras são possíveis elas vão
depender, como entende Barthes, do uso social. “Los hombres no están, respecto del mito, en
una relación de verdad, sino de uso” (BARTHES, 1999, p.130). O uso desprende-se, então, da
intenção que se imprime à determinada imagem, texto, ou objeto. Intenção que, porém, pode
ser destorcida ou desviada, aproveitando uma ambigüidade constitutiva do mito.
72
Eis o mito, e também eis Ana C.. Reconhecê-la como mito ambivalente faz com que
seja necessário correr o foco dela e passar a colocá-lo no leitor. Leiam se forem capazes.
El propio lector de mitos es quien debe revelar su función esencial. ¿Cómo
recibe, hoy, el mito? Si lo recibe de una manera inocente ¿qué interés puede existir en
proponérselo? Y si lo lee de una manera reflexiva, como el mitólogo ¿qué importa la
coartada presentada? (BARTHES, 1999, p.120)
Quem olha, quem lê, quem transita o arquivo? Ou melhor, como se olha, como se lê, como se
transita o arquivo? Com que intenções, declaradas ou recalcadas? O que dizer de Ana C., para
quê falar dela? Essas são as perguntas que ficam depois da leitura da obra póstuma. Se as
primeiras edições queriam preencher o vazio deixado, a edição das cartas quer
declaradamente mostrar a matriz literária, mas consegue questionar a tranqüilidade fictícia do
mito.
Arquivo no ar: entre a relíquia e a desaparição.
Por que foi tão necessário disciplinar as imagens de Ana? Controlar a proliferação de
significações proposta pelos textos? Se, no caso da edição de Inéditos e dispersos,
evidenciava-se a necessidade de preencher a ausência, é porque essa ausência era correlato da
desaparição não apenas de Ana, mas também das identidades sólidas, dos textos
classificáveis, dos arquivos como obras que se queriam com significações acabadas e não
como canteiro de obras (ANTELO, 2005). Estabilizar a Ana e fazer de seus livrinhos
artesanais perduráveis edições, solidificar uma assinatura e um rosto, canonizar a sua imagem
transformando-a em relíquia, foram formas de conjurar a desaparição. E não por acaso outros
artistas dos 70 – os mortos jovens, aqueles que com suas obras e biografias mais tendiam à
desaparição – foram canonizados com estratégias similares, tal como assinalara Flora
Süssekind.
Caídas as paredes da casa do ser, também desmancham no ar as paredes de concreto e
as conceituais que circundavam os arquivos, as bibliotecas e o saber com maiúscula. E a arte
começa a se produzir no ar. A paradoxal construção de arquivos efêmeros parece ser uma
característica própria de grande parte da produção artística a partir, especialmente, dos anos
1960. Assim o mostrariam disciplinas emergentes como o body art e a arte da performance,
cuja importância não está dada pela obra como um produto final, mas no processo mesmo de
73
produção, ou também as produções de artistas paradigmáticos como, no Brasil, Hélio Oiticica
ou Ligia Clark. Inclusive, poderiam ser exemplo os poetas marginais com seus livros/não-
livros de um artesanato precário – mimeografados, folhas soltas em envelopes – pouquíssima
tiragem, e também uma linguagem datada, com referências a um momento histórico
específico. Arte feita de material inconsistente ou perecível. Características evidentes se
prestamos atenção à impossibilidade de museificar essas obras, segundo técnicas clássicas,
sem perder alguma coisa de essencial nelas. Obras concebidas para serem usadas, vividas. Ao
ingressar no museu, ao tentar ser arquivados, esses objetos experienciais – parafraseando
Lygia Clark – passam a ser uma relíquia, uma lembrança para carregar, de algo que já
aconteceu. A marca da geração, em matéria arquivística, seria o efêmero.
“Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma.
Relíquias” (ATP, p.126), contra essa possibilidade se colocam os artistas da experiência,
tentando se fazer inapreensíveis, viajando – mas deixando impressões de viagem –,
desaparecendo – mas deixando mitos suicidas. Como assinala Denílson Lopes, poderia se ler
na geração, uma ética da desaparição: “Ser invisível numa sociedade consumista pode ser
uma maneira de fazer uma diferença pela pausa e sutileza” (LOPES, 2007, p.176).
Percorramos algumas das tematizações explícitas que faz Ana C. sobre a problemática
da canonização literária, especificamente, no que tem a ver com o perigo que implica para
esses artistas o congelamento da museificação, o fato de virar ‘relíquia’ em exposição, tanto
do corpo quanto da produção.
Em primeiro lugar, assinalemos que essas tematizações na produção de Ana se dão
sempre com uma significação tensa. A possibilidade dos textos póstumos serem museificados
é indicada como uma condição tanto intrínseca e inevitável quanto indesejada e contrária ao
projeto de dissolução. Essa tensão, e não necessariamente uma contradição, vai percorrer a
poética de Ana, começando nos primeiros poemas de infância publicados em Inéditos e
Dispersos, como “Quando chegar” (ID, p. 27).
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
(...)
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe
74
Para que não ouça reboando eternos
Os ecos de teus soluços
Para que perca-se no éter
O lixo desta memória
Para que apaguem-se bruscos
As marcas do meu sofrer
Para que a morte só seja
Um descanso calmo e doce
Um calmo e doce descanso.
Tentemos nos safar de qualquer leitura premonitória do poema de uma Ana de quinze
anos, para determos no modo pelo qual a questão do póstumo se coloca no poema. De um
lado, palavras do paradigma da desaparição ou a dissolução: desaparecer, sumir, evaporar,
se perder, éter; do outro, palavras mais duras no som e nos significados, que remetem às
ciências duras e à museificação pelas ciências: exposto, necrotério, cortar o ventre, autopsia,
caixão. Mas, poderia se dizer que aqui não existe tensão nenhuma, dado que um dos pólos se
coloca como positivo e o outro negativo, e o sujeito poético tem uma clara preferência –
descanso calmo e doce, onde não se escutam as lamentações repetitivas dos enlutados; no
entanto, embora não esteja colocada para o sujeito poético, a tensão entre aparecer e
desaparecer existe para nós, leitores. Encontra-se, justamente, na convivência do pedido de
desaparição, de apagamento de marcas e memórias, e o gesto de escrever esse pedido,
constituí-lo em marca e testemunho, em poema. O sujeito não pára de aparecer no pedido de
desaparição.
28
Essa particular exposição da questão do póstumo ainda é explícita em textos
posteriores, e vá ganhando densidade. Por exemplo, “Três cartas a Navarro”
29
é um texto
que, como diz o título, consiste em três cartas de R. a Navarro; desconhece-se, no entanto, a
relação que os une. Diz a primeira das cartas:
Navarro,
Te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não permitas que digam que são
produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo menos esse obscurantismo
bibliográfico. Ratazanas esses psicólogos da literatura – roem o que encontram com o
fio e o ranço de suas analogias baratas. Já basta o que fizeram ao Pessoa. É preciso
mais uma vez uma nova geração que saiba escutar o palrar os signos.
R.
A crítica a certo tipo de leituras – o obscurantismo bibliográfico – se faz de forma, em
aparência tão clara, que o texto virou programa de alguns críticos que tentaram tirar da leitura
28
Cf., para completar a análise deste poema, o texto de Maria Lucia Camargo (2003, p.100-101), que levanta a
referência a “Consoada”, de Manuel Bandeira, que também traz o tópico do corpo depois da morte.
29
Em Viviana Bosi (2004) e, em livro, em Album de retazos (2006, p. 262-264). Segundo Armando Freitas Filho
o texto seria da época de Cenas de Abril, isto é, 1979.
75
da poesia de Ana qualquer traço de biografismo.
30
Contudo, quando R. utiliza o termo
bibliográfico, não se trata de biográfico – embora a associação entre um e outro esteja
estimulada não apenas pela semelhança sonora mas porque o resultado dessas leituras teria
uma conclusão de índole pessoal: considerá-los produtos de uma mente doentia. No pequeno
texto, não se faz ressalva sobre o biografismo de forma direta, mas sobre as leituras ‘baratas
dos textos. O palrar dos signos, então, não estaria se referindo a um fechamento do texto; o
palrar dos signos é, justamente, ir contra do fechamento dos significados, do psicologismo, ou
das analogias.
O tempo fez o jogo entre a produção de textos e a rejeição de leituras se sutilizar,
assim como a linguagem poética foi adquirindo matizes; sendo significativo o ingresso claro
de conflitos relacionados à visibilidade, ao relativo sucesso poético próprio. Ana C. se inclina
cada vez mais na colocação de dados que desestabilizam a fronteira com a própria biografia,
situação que o R., indefinido e masculino, apagava ou diluía no exemplo anterior. Como
podemos ler em “Fama e fortuna” (ID, p.167).
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói – linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
O texto, segundo Armando, datado entre 1982 e 1983, traz à tona vários elementos que
se relacionavam à vida de Ana Cristina, mas avancemos, primeiro, na questão do póstumo. O
congelamento e a possibilidade de autopsia já não estão associados ao necrotério, como em
“Quando chegar”, nem à instituição psicanalítica ou psiquiátrica que temia R.. Também não
são associados à crítica literária. A autopsia – “o corpo dói” – é possível quando o corpo e,
com ele, o nome são dessecados pela fama e a ‘manchete de jornal’, são abertos por um outro
tipo de exposição, não a da mesa dos críticos cirurgiãs.
O dado faz explícito que não se trata de uma preocupação apenas com o legado
poético. Começa a entrar em jogo a figura como um todo complexo. A questão da
museificação, não só continua a funcionar, mas também ficou abertamente junto à idéia de
assassinato, num complexo jogo de referências: o Madame Tussaud, embora museu londrino,
30
Annita Costa Malufe, especificamente, inicia seu livro, Territórios dispersos, com essa epígrafe. Voltaremos
sobre o tópico no próximo capítulo.
76
não domicilia grandes obras de arte, mas cópias em cera, de pessoas famosas, famosas pela
sua morte na guilhotina. O poema “Fama e fortuna” também ‘copia’ a biografia da própria
Ana. O dado tem uma referência direta para quem conviveu com Ana, e para quem teve aceso
a depoimentos de amigos: no ano 1982, Ana se muda para uma casa na Gávea, e o seu
relacionamento com uma mulher provocou a indignação da vizinhança, que começou a se
queixar e reclamar a sua saída da vila.
Resumamos, então, os pedidos quase explícitos de Ana C.: não fazer autopsia, não
permitir o obscurantismo bibliográfico, não interpretá-la apenas pela assinatura que virou
manchete de jornal, não lê-la como pura literatura, nem fazê-lo procurando verdades e
referências diretas. No entanto, devemos evidenciar um dado: nenhum desses textos foi
publicado por Ana Cristina. Esse tipo de textos, explícitos na questão do póstumo, não são
maioria, e poucos ficaram em A teus pés.
Poderíamos tentar dar uma explicação a esta vontade de Ana de deixar esse tipo de
textos de fora. De um lado, talvez, porque poderiam ser lidos como cartas de suicida, pedido
de ajuda ou anúncios de saída de cena, e não é esse o tom predominante na escrita de Ana;
como se esses poemas fossem o alvo mais fácil dos propósitos autopsianos.
Concentrar a leitura nestes poemas aparecidos em Inéditos e dispersos faz com que
seja possível dizer – tal como afirmam vários textos, como o de Camargo – que a morte foi
um tema caro a Ana Cristina e que tem peso na sua poética. Uma rápida olhada em A teus pés,
no mínimo, matizaria a afirmação, porque se a temática da dissolução, da morte ou, inclusive,
a questão do póstumo aparecem, o fazem de forma muito mais sutil e vitalizada, são
colocados a circular: “olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que não
seja corpo/ e sentir separado dentro os dentes/ um filete de sangue/ nas gengivas” (ATP, p.
89). Do lado contrário, o testemunho declarado, o discurso fechado vai para mesa de
dissecação, não pode ser vampirizado, não escorre nas gengivas.
À explicitação autopsiável opõe-se o que podemos chamar uma poética do fluido, da
circulação, do corpo morto e o resto corporal como rastro ou pegada. Captemos, como dizia
Agamben em “O autor como gesto”, a Ana C. no seu modo de desaparecer.
31
Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei
fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria deixar. É
outro. Outro agora. Acredite se puder. Rejane por perto, acompanhando meus
31
Agradeço a Laura Erber o chamado de atenção para a frase: “A lesma quando passa deixa um rastro prateado”,
como brilhante e sintético exemplo das idéias que tento articular.
77
progressos. Peço a ela encarecidamente que me faça o favor de lembrá-los. Eu mesma
me exercito, mas que péssima memória! Chega desse lero, Poesia virá quando puder.
(...) Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a má fama depois que
estamos mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero outro testemunho. Diário
não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é
fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa
um rastro prateado.
Leiam se forem capazes (ID, p.199).
Só babas brilhantes, las babas del diablo, blow up. Leiam se forem capazes. Ler o
rastro prateado da lesma, que com sua fulguração como resíduo viscoso e significante assinala
para o corpo vivo, informe, que passou. Inútil a tentativa de estabelecer algum tipo de
controle na escrita que, como analisara Derrida, trata-se de uma máquina produtora além da
morte de quem a produz. Ela queria que não a mal-interpretassem. Mas nem declarando a
necessidade de deixar um testemunho, a escrita de Ana C. consegue abandonar aquilo que
determinou sua poética: o poema em travessia, des-autorizado, só possível se conseguir
atravessar o destinatário, chegar até ele para partir de novo, que Ana exporá através da forma
do diário e da carta, principalmente. As formas perigosas de tocar e ser tocado, sem vitrines
protetoras.
Ana escreveu e viveu a/na tensão do desaparecimento e a construção de um legado.
Tensão entre escrever para o outro – é para você que escrevo, sim – e o medo das
interpretações do poema, da sua vida, da sua morte, medo do obscurantismo bibliográfico.
Ela, como diz Italo Moriconi, numa explicação apaixonadamente literária, morreu nessa
tensão, realizando no suicídio a última performance da construção da sua vida literária, última
tentativa de se fazer inapreensível e escrever no ar.
Sua escrita é o roteiro seguro capaz de evidenciar a desconstrução paulatina
desse destino edificante [ser modelo de linguagem] que, no caso dela, configuraria
uma mentira tão grande, mas tão grande, que era melhor morrer. Ana Cristina sabia
que sua consagração como poeta instauraria uma demanda do público por uma poesia
que trouxesse respostas e soluções para os impasses lingüísticos e comportamentais
que ela buscava encenar. [...] Ana Cristina se matou para não trair a audácia e a
verdade de sua linguagem não pedagogizável (MORICONI, 2000, p.307).
* * *
Voltemos, então, para a possibilidade de arquivar. No contexto clivado de uma
geração desaparecente, Ana Cristina decidiu desaparecer e fez uma escrita que tende à
desaparição, uma escrita errante – sobre experiências errantes, de procuras constantes – que
78
vai sendo permanentemente contradita: “autobiografia não, biografia”, como cada movimento
do parangolé deixa para traz, quase sem pegadas, o movimento anterior.
Se a obra se apresenta como um evento, em que o mais importante é o trânsito e não o
resultado, o que arquivar? Ou melhor, que estatuto terão os elementos arquivados? Que
relação com o evento passado a que se referem?
Walter Benjamim diz, analisando a poesia de Baudelaire:
A lembrança é a relíquia secularizada. A lembrança é o complemento da
‘vivência’, nela se sedimenta a crescente auto-alienação do ser humano que
inventariou seu passado como propriedade morta. (…) A relíquia provém do cadáver,
a lembrança da experiência morta, que, eufemisticamente, se intitula vivência
(BENJAMIN, 1989, p.172).
Se a colocação de Benjamin assinala para as formas modernas, alienadas, de
arquivamento, como formas de matar a experiência, seria interessante procurar uma
alternativa no exercício da memória que não fosse através da relíquia, ou que consiga torcer
esse conceito para fazê-lo produtivo e não alienado. É ainda possível a memória de alguma
coisa viva, ou apenas teremos aceso a relíquias congeladas, intocáveis, em vitrines? Como
analisar a experiência sem congelá-la? Como ser capaz de ler levantando a luva do desafio do
último escrito de Ana?
A geração 70, que colocou em pauta de forma radical com as suas performances,
instalações e obras experimentáveis a idéia de obra como alguma coisa apreensível e
museificável, parece não ter dado uma resposta vital àquelas perguntas sobre a possibilidade
de lembrar dessa experiência. A passagem para a década de 80, e o começo da análise
acadêmica, colocou esse tipo de obra e seus artistas numa encruzilhada, como transparece nos
percursos biográficos dos anos que se seguiram: vários mortos jovens, ou o ingresso –
captura? – desses artistas, e as suas produções pelo mercado e as capas duras.
No entanto, talvez não fossem os próprios protagonistas os que deveriam dar essas
respostas; talvez, seja trabalho do arquivista achá-las. Se José Gil (1997) entende que uma
relíquia, considerada em relação ao corpo do qual provém, retém uma série de energias
dominadas e concentradas; tratar-se-ia, então, de saber que esse resíduo é a marca de que
alguma coisa viva esteve ai, e não um cadáver ou uma experiência morta. A potência vital
pode ser reativada, pois essas relíquias provêm de um corpo vivo e retêm forças em
movimento, tal como descreve Gil (1997, p. 29). Quando esses restos, resíduos do passado
são olhados sem procurar significados fechados, surgem – tal como o descreve Benjamin e
como depois será continuado por Didi-Huberman – as imagens dialéticas: “as ressonâncias
79
infinitamente múltiplas de cada lembrança em contato com as outras” (BENJAMIN, 1989,
p.180) que recolocam os significados naturalizados em circulação.
Retornamos, então, à questão colocada por Barthes quanto aos leitores de mitos: a
relíquia ou lembrança – no caso de Ana C., os poemas que ficaram e seus documentos – só
podem deixar de ser uma mera referência a uma pessoa ou experiência morta através de um
olhar que as acorde, que as reintegre ao uso. Tirar os poemas da vitrine póstuma. Escutar o
palrar dos signos, as ressonâncias dos restos, fazer delas o nosso canteiro e não um altar. Que
a relíquia de lugar a uma outra vivência, e não seja o mero eufemismo de uma experiência
morta. Reviver. Dialetizar o passado, a partir dos restos. Partir, então, para os escritos que
tentaram percorrer esse caminho em obras, sob o signo de Ana C..
80
CAPÍTULO III
Formas em formação
Leituras e escritas de Ana C.
81
La crítica es la condición que combate sin cesar contra las condiciones dadas, es lo
posible que promete lo imposible, es el discurso que sostiene la verdad no discursiva de la
literatura. Georges Bataille diría que la crítica sería la teología frente a la experiencia mística
de la lectura. No un oscurecimiento de la lucidez, sino una aurora que destaca por contraste la
negra felicidad que tanta luz artificial nos niega. Cuanto más se sometan las obras literarias a
un encadenamiento con lo que hay, tanto más será la crítica la única escritura de la verdad, no
universal, sino para cada uno, prometida en la palabra y en el centelleo de una voz.
Silvio Mattoni, “Idea de la crítica”, em El cuenco de Plata.
O presente capítulo é dedicado à análise da fortuna crítica de Ana C., entendendo
‘crítica’ em um sentido amplo: “hacer crítica sería escribir la lectura” (MATTONI, 2003, p.
193). A idéia nos leva até qualquer tipo de escrita que fale de alguma leitura feita; assim,
dentro desse escrever a leitura, vamos encontrar tanto escritos críticos propriamente ditos,
quanto escritos literários. Critica vs. arte não pode mais ser uma classificação dada
previamente ao texto. Inclusive, poder-se-ia dizer que essa é uma dicotomia ultrapassada: toda
crítica pode ser literária, toda literatura, da mesma forma, pode ser uma proposição teórica;
elas podem ser construídas sobre os dois gumes. Às vezes, na mistura, não sabemos ao certo
qual predomina, qual a melhor realizada. Para cada leitor, determinados trechos de um mesmo
texto serão mais uma do que a outra; algumas passagens serão obscuramente literárias, outras
serão a aurora da compreensão.
No entanto, cada um desses tipos de discurso tem suas especificidades de linguagem,
de contexto histórico de produção, e de foco; se as levarmos em conta, podemos separar duas
vertentes nas escritas das leituras de Ana C.. De um lado, os estudos críticos, textos
produzidos em um contexto relacionado de alguma forma ao discurso acadêmico – dentre os
quais abordaremos, por uma questão de extensão, apenas os mais significativos, seja pela sua
influência sobre outras críticas, ou por serem estudos longos publicados em formato de livro
por editoras de razoável visibilidade no meio acadêmico do Brasil. Porém, faremos menção a
outros exemplos quando for necessária a ampliação do panorama. De outro lado, estão os
textos literários. Mencionaremos alguns poemas, um conto, e alguns outros textos mais
longos – embora existam, se pode imaginar, outros poemas e textos, que não são trabalhados
aqui.
32
Percorreremos textos às vezes dedicados na íntegra a refletir sobre Ana C. e a sua
leitura – como no caso dos poemas –, outras vezes chegando até a figura de Ana C. por
32
Estes textos são consignados por separado na Bibliografía sob o subtítulo: Corpus Literário de Capítulo III.
82
diferentes caminhos: pela referência direta à figura, ou pela repetição – ou deformação – do
nome.
No entanto, o desenvolvimento do tema também será pontuado por textos que não
entram em nenhuma dessas, por si frágeis, categorias: textos limiares, cuja determinação
genérica gerou equívocos em algumas leituras críticas e ainda são inclassificáveis nos
parâmetros tradicionais.
Como dizíamos com Bourdieu no primeiro capítulo, a posição de cada autor no campo
é dada pelas “‘escolhas’ que esse autor opera num espaço de tomadas de posição artísticas
(em matéria de conteúdo e de forma) definidas, também elas, pelas diferenças que as unem e
as separam” (BOURDIEU, 1992, p.108). Será essa tomada de posição desses novos textos o
que interessa particularmente à nossa pesquisa. Em todos os casos – crítica, literatura e afins –
os escritos estarão propondo, através do trabalho com Ana C. – e de outras muitas estratégias
–, um posicionamento específico frente a uma série de conceitos e tradições no trabalho com
os próprios materiais; conceitos e modos de conduta que serão – ou não – colocados em
questão.
Por este motivo, no caso dos estudos críticos, o foco da abordagem não estará centrado
na avaliação dos desenvolvimentos das problemáticas que cada um identifica e analisa nos
textos de Ana C., nem na articulação com a teoria que cada autor faz; mas em detectar o
posicionamento que cada estudo apresenta perante a obra e a figura de Ana C., a assunção de
uma atitude frente a uma imagem herdada e a leituras tipificadas. Também tentarei definir a
intervenção que esses textos propiciaram no percurso da consagração de Ana C., isto é, ver
que tipo de modificações cada texto fez nessa figura, ou que traços foram reproduzidos.
Portanto, não aprofundarei leituras extensivas dos estudos, mas darei especial atenção aos
começos, notas prévias, prefácios, prólogos, introduções, onde as posturas ficam mais
evidentes. Cabe destacar, no entanto, que existe uma alta qualidade nas leituras que
abordaram os escritos de Ana C. que, em geral, apontaram problemáticas centrais da obra;
leituras que mencionaremos quando for pertinente.
Em poucas palavras, a análise do posicionamento de cada obra – tanto para os estudos
críticos quanto para os textos literários – estará pautada principalmente pela relação que ela
estabelece com a figura de Ana C., enquanto esse tratamento está relacionado a uma forma de
encarar o trabalho com a própria linguagem.
Se a primeira intenção na organização dos textos pretendia manter a separação entre
crítica e literatura, com o desenvolver da escrita foi se fazendo evidente que o contato
83
enriquecia o olhar sobre cada um dos textos, da mesma forma que se revelou mais produtivo
não respeitar de forma estrita uma disposição cronológica da exposição.
Casos de amor: resenhas, homenagens e algumas poesias.
Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.
É a linguagem do coração, do amor. (...)
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta
Ana Cristina Cesar, “Primeira lição”.
Como apontamos no primeiro capítulo, a poesia de Ana foi assinalada primeiramente
por alguns artigos em revistas e pela pesquisa de Carlos Alberto Messeder Pereira em Retrato
de época. No entanto, nenhum desses artigos se aprofunda na leitura nem faz um recorte que
não seja com foco em toda a geração que analisam.
Uma ‘fortuna crítica’ de Ana C. focada nas particularidades de sua escrita parece
começar com um pequeno artigo de Heloisa Buarque de Hollanda, “A imaginação feminina
no poder”, aparecido em 15 de maio de 1981 no Jornal do Brasil. Heloisa fala de alguns
livros recentes, escritos por mulheres, mas se dedica principalmente a Luvas de pelica e sua
autora, que acabara de voltar da Inglaterra trazendo o livrinho. No artigo, inclusive, aparece
um pequeno depoimento onde Ana coloca que o livro fala da “biologia do segredo e a
maldade desse tom” (apud. HOLLANDA et alii, 2000, p.200). Embora algumas
características propriamente poéticas sejam colocadas em evidência por Heloisa – certa dicção
feminina a ser definida, o seu jogo com as formas do diário de viagem e a correspondência –
não podemos, ainda, dizer que se trate de um artigo de crítica. Ficamos sabendo pouco da
poesia, no entanto, já desde aqui se inaugura um lugar comum na maioria dos comentários
dirigidos a obra de Ana: os textos são lidos do lado à figura da sua autora. A relação obra/
autor se apresenta, na sua complexidade, desde o começo, como se pode ver na frase de
apresentação de Heloisa, que fala de Ana, da sua imagem, das roupas que leva e diz: “Trata-se
84
do que se convencionou em chamar de uma mulher moderna, independente, bem-sucedida.
No livro, um título que desconcerta essa imagem” (HOLLANDA et alii, 2000, p.200).
Um ano depois aparecia no Rio de Janeiro e São Paulo A teus pés, na coleção
Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense. “Agora sou profissional”, diz um verso do livro e
traduz, como em 1985 explicaria Flora Süssekind, a mudança na literatura brasileira daqueles
anos. O livro, compilação dos três anteriores – Cenas de abril e Correspondência Completa
(1979), e Luvas de Pelica (1981) –, mais uma nova série, certamente marcava o ingresso de
Ana Cristina Cesar nas problemáticas da profissionalização do poeta.
A teus pés ganhou uma grande quantidade de resenhas em diferentes jornais e
publicações de cultura, que se estenderam em um mesmo tom até depois da segunda edição
do livro em 1983, antes do suicídio.
33
São resenhas em geral celebratórias; embora muitas
delas tragam uma certa análise do conteúdo do livro, estão dedicadas a promovê-lo, e voltadas
para uma dicção própria do jornalismo cultural. Ana Cláudia Viegas realiza um exaustivo
levantamento desses textos no quinto capítulo do seu livro, e, aliás, assinala um ponto muito
significativo: são “amigos e admiradores os autores da maioria dos artigos e resenhas sobre
Ana” (VIEGAS, 1998, p.59). Um pouco por conhecer as referências diretas espalhadas no
texto – principalmente em Luvas de pelica –, outro pouco porque o texto puxa esse desejo do
leitor; esses resenhadores coincidiram em assinalar um vaivém entre a escrita e o dado
biográfico. Inclusive, até chegaram a confundir escrita e autora de uma forma total: “Escritura
ambígua referindo-se a vivências deslizantes. Fascinante. Tão Ana Cristina, tão aquele sorriso
claro e delicado dela sob olhos sarcásticos e ligeiramente devassos” (MORAES, 1982).
34
Maria Lúcia Camargo chamou de vozes cúmplices as dos artigos escritos por Armando
Freitas Filho e Heloisa – “Venho tentando ser objetiva (...) mas desisto. Trata-se de um velho
caso de amor” (HOLLANDA, 2000, p.205) –, mas poderíamos estender a afirmação a quase
todas as resenhas. No entanto, será cúmplice a palavra certa? O incômodo de Ana perante
esses leitores falaria mais de carinhosos leitores errados, com a visão parcial e interessada do
afeto. O sucesso de A teus pés foi imediato, mas o foco dos olhares – colocado mais na figura
da autora do que no livro, como fica evidente nas resenhas – incomodou profundamente Ana
33
Cf. Reinaldo Moraes. “Deslumbramento com a poesia de Ana Cristina” (1982). Sonia Regis. “A teus pés”
(1983). Heloisa Buarque de Hollanda. “A imaginação feminina no poder” e “A hora e a voz de ‘capricho’”
([1981] 2000).
34
Cf. Ana Cláudia Viegas (1998). O capítulo aprofunda a análise da relação autor/texto, e a interposição da
imagem da autora nas primeiras abordagens do texto de Ana C..
85
Cristina, como nos relata Moriconi e como afirmara Kátia Muricy em depoimento a Ana
Cláudia Viegas.
35
Depois do suicídio de Ana, os textos aprofundaram a tessitura afetiva e de
deslumbramento, e se concentraram, ainda mais, na autora do que na obra: ‘31 anos’, ‘loura’,
‘bonita’, são palavras que se repetem, sob diferentes modulações, nos textos da época.
36
O
livro, ainda, não lido.
Assinalemos que entre esses textos prenhes de saudades de Ana, não houve apenas
crônicas e resenhas de jornais. O suicídio da filha, amiga, colega, teve a capacidade de gerar
literatura. Com o passo do tempo e a aparição de escritores que não mantiveram uma relação
pessoal próxima de Ana, os textos mostrariam inflexões interessantes, devires de Ana C.; mas
no começo se tratou, principalmente, de poemas que a tinham por tema ou destinatária.
Parece impossível, então, não começar pelos poemas de Armando Freitas Filho, cuja
poética, como ele explicara em diferentes depoimentos e como se pode constatar nos escritos,
viu-se afetada tanto quanto a sua própria vida com a morte da amiga amada: “Um
acontecimento dessa ordem não afeta somente o que você escreve, mas a sua vida inteira;
ainda mais quando acontece com alguém de sua intimidade” (FREITAS FILHO, 2004). Em
1988, Armando publica De cor (1983-1987), um livro que faz referência constante a essa
morte. A primeira parte, densa, monotemática, tem por epígrafe um verso de Ana, e, virando a
página, o primeiro poema traz o título de “Depois de A.C.”. No entanto, os poemas não
parecem ser do depois. A temporalidade se instala num momento único: o suicídio de Ana
presentifica-se em cada repetição da imagem e passa a ser contemporâneo do poema e da
leitura. “Você não para de cair/ fugindo/ por entre os dedos de todos” (p.22), lê-se num
poema. Ana é flagrada na queda, como dirá Ana Cristina Chiara (2006), congelada em uma
imagem última e final, uma e outra vez.
Como diz Viviana Bosi, De Cor tem “muitos poemas entrançados com a memória do
suicídio de Ana Cristina” que encenam a permanente sensação de “queda ininterrupta e
vertigem” (BOSI, 2003, p.15 – itálico meu). Ana está morrendo ininterruptamente, detida,
congelada no seu estar indo: “o choque batendo na mesma tecla”, “cachoeira fixa” (p.23).
35
“Ana Cristina sentiu enorme náusea diante do sucesso do livro e de como todas as atenções se focalizavam
sobre a sua pessoa e sobre sua beleza carismática” (MORICONI, 1996, p.142). Segundo Viegas, Kátia Muricy
também refere um profundo incômodo de Ana ante o sucesso, “um sentimento de pânico” (VIEGAS, 1998, p.
63).
36
Cf. Armando Freitas Filho (1987). Caio Fernando Abreu (1985). Mario Sérgio Conti (1985). Mauro Gama
(1988). Marcos Augusto Gonçalves (1983). Francisco Foot Hardman (1983). Reinaldo Moraes (1983).
86
A repetição leva ao extremo a potência da imagem dos poemas de Armando,
construída através da exploração da sonoridade e do ritmo da vertigem da linguagem
acelerada. Poemas que ganham força, tingidos pelo espanto da imagem plurisensorial, no
choque semântico de palavras brandas e fluidas – ‘corpo’, ‘sangue’, ‘água’, ‘nua’ – contra
outras duras e concretas: ‘ladrilho’, ‘azulejo’, ‘chão’, ‘pedras’; choque que reatualiza o
encontro do corpo com o chão. Inevitavelmente, o ponto final do poema se associa ao ruído
surdo do golpe, que freia abruptamente o aceleramento do ritmo.
Os poemas trazem, também, a dor contida na elegia feita para o ser amado. Como diria
décadas atrás o espanhol Miguel Hernández, na “Elegía a Ramón Sijé”: “No hay extensión
más grande que mi herida,/ lloro mi desventura y sus conjuntos/ y siento más tu muerte que
mi vida.(…) No perdono a la muerte enamorada,/ no perdono a la vida desatenta,/no perdono
a la tierra ni a la nada”. No entanto, o Armando dos primeiros poemas ‘depois de A.C.’ não
perdoa o vazio, a saída de cena, tem a raiva e a dor do amor não correspondido. Não perdoa
Ana, que decidiu. Daí o tom trágico dos poemas. Dirigidos à Ana como única destinatária, o
leitor, agora sim, sente-se voyeur. Voyeur da dor alheia, exposta à flor da pele. São poemas de
‘olha o que você fez’ – pois é você, Ana, quem quis cair e não pára – mas com o tom de quem
se sabe sem direito a pronunciar tal acusação: “o que ficou/ foi pedra sobre pedra/
significando nada” (p. 19), “O que fazer” (p. 23), “Arrasou com tudo/ a natureza toda” (p. 25).
Os poemas parecem traduzir o mesmo sentimento que Italo Moriconi lembra ter tido
perante a primeira tentativa de suicídio da amiga: “Quando eu recebi a notícia de que ela tinha
tentado suicídio, eu fiquei com raiva, porque eu senti tudo aquilo como uma agressão. Como
uma pessoa se suicida? Uma pessoa que você gosta (...) Quando uma pessoa se suicida, você
se sente muito impotente” (apud. VIEGAS, 1998, p.121). Os poemas de De Cor são raivosos,
em carne viva, tristes e impotentes: “Armando escava e se fere sem cicatrizar, nesse período”
(BOSI, 2003, p.16). Aparecendo, também, certa culpa, a de quem acha que não soube ler os
sinais, por estar lendo outros. Por olhar o corpo da escrita, não viu o corpo caindo, até acordar
com o estrépito do choque no chão: “De costas é melhor/ para não perder de vista/ nem por
um segundo/ nenhum sentido/ do que estava escrito/ nem quando, no chão/ seu corpo/ a céu
aberto!” (p.22).
Como diz José Miguel Wisnik, De cor é um livro “quase insuportável”, pelo seu
mergulho na tentação ou na insistência “de existir, frente à qual o próprio suicídio é
insolvente” (WISNIK, in FREITAS FILHO, 1988, p.9). O suicídio ganha o jogo da existência
e da presença. A imagem única engole todo o livro; engole, inclusive, a voz de Armando. Ele
foi o poeta desse suicídio, fez as elegias possíveis na sua linguagem poética.
87
Os livros posteriores foram diluindo o peso da morte de Ana. Mas ainda muito tempo
depois ele explica que um acontecimento desse tipo “interfere, não só quando se dá a tragédia,
mas acompanha, consciente ou inconscientemente, cada dia seu. Essa interferência não é boa,
é má” (FREITAS FILHO, 2004). Duas décadas depois do salto, em Raro mar (2006, p.21) a
invasão se faz poema, e chega:
Emulação
Sua morte empurrou minha mão.
Sua mão pesa sobre a minha
e a faz escrever com ela
não como luva de outra pele
mas como enxerto de outra carne
emperrada, como a vida dela
que parou, e vai apodrecendo
dentro da minha, suando suor igual.
* * *
Não todos os poetas que escreveram poemas inspirados na morte de Ana C. foram tão
nocivamente influídos como Armando. Embora, durante a década de 80 e ainda depois,
tiveram certo tom elegíaco de lembrança do ser querido. Por exemplo, Sebastião Uchoa Leite,
num belo poema, incluído em Obra em dobras, que lembra dois encontros com Ana C. vai
encenar, em duas estrofes e com permanentes referências duplas, o jogo da memória, a
personalidade de Ana C., a relação escritura e morte (LEITE, 1988, p. 31).
Duas visitas
Fui visitá-la
com meu black book
(minha real Penélope era Drácula).
Mostrou-me o lay out do seu.
"Engraçado" eu disse "os seus
em cima e os meus embaixo:
é a simetria pela inversão".
Telefonou:
"Gostei muito
do seu lúgubre livrinho preto".
Cinco anos depois
foi a vez de ela me visitar.
Enquanto fiz um café
88
ficou de pé
olhando o canal e o mar
em silêncio.
Isso foi um ano antes do salto.
Poema construído na simetria pela inversão. Duas visitas simetricamente opostas: na
primeira, as palavras ditas do discurso direto; na segunda, o silêncio. Na primeira, os livros;
na segunda, o mar. Na primeira, o diálogo; na segunda, a separação de quem faz café e de
quem olha a paisagem. Só não parece haver total oposição nos versos finais de cada estrofe:
ao “lúgubre livrinho preto” se contraporia “o salto”. Que relação se estabelece na lembrança
dos encontros entre esses dois fatos? O salto, na verdade, resignifica o lúgubre livrinho, e
resignifica a frase da Penélope/Drácula, construindo uma premonição. Não se trata dos
poemas ‘doentios’ de Armando, o tom é diferente; porém, ‘o salto’ continua sendo a palavra
final e também primeira, que retrospectivamente lança um olhar incisivo sobre o poema.
No entanto, chama a atenção um automatismo de leitura. Por que a Penélope/Drácula é
identificada sem mediações com Ana C.? Falando de poesia brasileira contemporânea, dizer
salto é dizer Ana C. O poema torna evidente a maquinaria da homologia que começara, no
mesmo dia do salto, a funcionar. Momento motor da interpretação: somos induzidos a fazer as
contas para reconhecer datas. Sabemos o ano do salto: 1983; um ano antes, 1982, é o ano da
figura silenciosa e contemplativa da segunda visita; cinco anos antes, 1977, estaria a primeira
das duas.
O valor da arte em travessia
O poema de Sebastião Uchoa Leite traz, aliás, outro dado que recupera algumas das
discussões do primeiro capítulo: o convívio, as leituras mútuas; e se coloca no lugar da
lembrança de um encontro específico. Leite, no mesmo movimento, vampiriza o
procedimento de Ana C.: introduz e explora fragmentos da realidade, da vivência, no poema;
e, como ela, os tensiona, discutindo a intimidade que eles poderiam comunicar. O poema
construído como uma lembrança consegue estabelecer um jogo de presença/ausência,
oscilação que está em pauta também – embora fazendo explodir toda verossimilhança –, como
constataria Célia Pedrosa, em um poema de Cacaso (BRITO, 2002, p. 266):
89
Ana Cristina
Ana Cristina cadê seus seios?
Tomei-os e lancei-os
Ana Cristina cadê seu senso?
Meu senso ficou suspenso
Ana Cristina cadê seu estro?
Meu estro eu não empresto
Ana Cristina cadê sua alma?
Nos brancos de minha palma
Ana Cristina cadê você?
Estou aqui, você não vê?
“Esse convívio – entre amigos, entre vida e morte – é ratificado (...) construído como
diálogo em presença/ausência” (PEDROSA, 2007, p. 241). Uma convivência anacrônica e
espectral, como assinala Pedrosa, construída também era no poema de Sebastião. Cacaso
escancara a vontade dos poemas post-mortem de se dirigir a Ana C., encenando tanto essa
vontade quanto a sua armadilha, a sua impossibilidade. Ana Cristina só aparece na sua forma
de desaparecer, ela é inapreensível; enquanto, na voz construída pelo amigo/inimigo, ainda
quer ser: ‘Estou aqui’. O diálogo coloca a linguagem em circulação, e a voz ladroa de Ana é
processada. Cacaso – também com o estandarte do carinho, mas um carinho menos solene –
parodia a voz de Ana, reatualiza a sua morte, sim, já não se pode não fazê-lo, mas também
coloca em questão as formas que ela tem de participar da palavra poética.
Ana é convocada para dialogar, elipticamente, sobre a sua própria desaparição, quando
já não é possível dialogar com ela – ‘cadê você?’. A palavra de Ana C., – que diz: ‘estou aqui,
você não vê?’ –, devia começar a circular por circuitos que não fossem a repetição e
constatação da morte. Pois de fato, no final de 1984, os escritos “críticos” não passavam de
um punhado de resenhas que pouco falavam da poesia e focavam na figura da escritora; além
alguns textos nostálgicos sobre a notícia da sua morte, como dizíamos.
A fortuna crítica tem um patamar mais sólido em 1984, com o primeiro artigo crítico
de mais fôlego sobre a poesia de Ana, “Singular e anônimo”,
37
de quem tinha sido seu
professor, Silviano Santiago. Ele toma um dos traços mais particulares e significativos da
poesia de Ana C., a preocupação com o leitor e a (im)possibilidade de comunicar segredos,
intimidades ou verdades no poema. No entanto, a principal intenção de Santiago parece ser
outra que apenas fazer uma leitura dessa poesia.
37
O artigo apareceu pela primeira vez no Folhetim da Folha de São Paulo, no dia 4 de novembro de 1984, no N°
407, e foi reeditado em Nas malhas das letras, em 1989, onde aparece datado em 1985. Aqui utilizamos a edição
de 2002.
90
Santiago faz, no artigo, uma didática da leitura de poesia, que se posiciona contra as
leituras que procuram uma interpretação do poema plausível de se impor sobre outras por ser
mais ‘verdadeira’. Diz claramente: “a morte de todo e qualquer poema se encontra na
esclerose otimista (...) da sua compreensão” (SANTIAGO, 2002, p.64). Para alicerçar esta
idéia a poesia de Ana C. cai como uma luva, porque tanto propõe quanto encena essa mesma
posição de leitura e escritura.
Percorramos brevemente os caminhos do raciocínio de Santiago. Ele explora a
apresentação de dois leitores ‘equivocados’ que aparecem em Correspondência Completa.
Ali, Júlia, que assina a carta, queixa-se porque os modos de ler dos seus interlocutores, Gil e
Mary, dificultam a sua escrita. Repitamos a citação feita na Introdução:
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar
mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas,
segredos biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios
sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências
diretas (ATP, p.120).
Gil lê “para desvendar mistérios”, procurando os “segredos biográficos”. Ele seria,
segundo Santiago, o leitor detetive: “Fica esquadrinhando todo canto do poema (com a lente
na mão), à procura de uma pista que lhe revele o autor, quando o problema da leitura não é o
autor, mas ele próprio, leitor” (SANTIAGO, 2002, p.69). No outro extremo, está a leitora
Mary, que lê como se tudo fosse literatura pura e “não entende as referências diretas”; o
poema estará seguro e seco na sua autonomia literária. Proibido tocar: o poema vira
monumento.
Com Santiago, a didática da leitura de poesia vira lição de cidadania, e a coragem de
ser leitor é a coragem de ser cidadão. Porém o leitor sabe “que, tocando o monumento (ou
pisando na grama dos nossos jardins públicos), o cidadão é passível de multa” (SANTIAGO,
2002, p.71). Ser cidadão é, no artigo de Santiago, assumir o perigo de tocar e ser tocado – ou
multado –, tal como acontece no gênero da correspondência e qualquer discurso aberto a uma
resposta que possa atingi-lo nos seus preceitos. No caso da poesia, como analisa Silviano, o
leitor tem a capacidade de aceitar a travessia do poema e se deixar tocar, com a condição de
abandonar as idéias preconcebidas sobre a pureza da palavra poética, assim como sobre a
possibilidade de revelar intimidades.
A profanação da uma palavra poética que se quer pura, assim como a profanação da
palavra que se quer puramente comunicativa, estariam na exigência feita aos leitores de uma
Correspondência Completa, dirigida a eles, os singulares e anônimos ‘my dear’. Leitores que
91
deixariam de ser passivos, deixam de apenas consumir o poema, e passam a usá-lo. No
entanto, essa profanação não deve ser confundida com o gesto ingênuo de “cuspir na estátua”,
achando que “é um gesto de contestação a um regime mais amplo...” (José, 1976, p. 12), tal
como advertia Ana Cristina. Para Silviano, profanar é usar, tal como o entende Giorgio
Agambem, em “Elogio da profanação” (2007). Conforme Agamben, nas últimas décadas do
século XX se deu um auge da museificação do mundo. Diversas prescrições foram colocando
bens materiais e culturais, formas de comportamento e paisagens, fora da circulação: museus,
parques nacionais, patrimônios da humanidade, colocam as pessoas em situação de meros
espectadores ou consumidores. Se, explica Agamben, sacralizar – assim como museificar, ou
espectacularizar – é tirar da circulação, do uso dos homens, é fazer de alguma coisa algo
intocável; a profanação, pelo contrário, consistiria em tocar, em devolver ao uso e à circulação
aquilo que fora retirado. Tratar-se-ia de lhe restituir o valor de uso por sobre o valor de
consumo.
38
Assim como Agamben, tanto Santiago quanto Ana C. em sua poesia estão chamando a
atenção e tentando devolver a poesia ao seu uso, que o leitor não consuma, que não detenha a
travessia, que faça do poema, em termos de Barthes, um texto escrevível.
Mas, voltemos a Santiago e sua relação com as malhas da consagração de Ana C.
Como já dizíamos, o ensaio não se dedica tanto a estudar a poesia de Ana, nem a sua figura,
quanto a fazer advertências sobre modos de leitura inférteis ou até perigosos: “É leitor
autoritário o que enfrenta as exigências do poema com idéias preconcebidas e globalizantes”
(SANTIAGO, 2002, p.54). No entanto, cabe ainda perguntar pelo significado da advertência
naquele momento. Esbocemos uma resposta possível: as duas leituras que Santiago
exemplifica, via Correspondência Completa, são duas leituras autoritárias que, naquele final
de 1984, aparecia como oportuno assinalar por vários motivos. De um lado, a poesia dos anos
70 começava a se estabilizar como objeto de estudo e, evidentemente, tratava-se de um tipo de
poesia que facilmente poderia morrer no congelamento de leituras biográficas ou
sociológicas, ou ser assassinada numa única procura da qualidade estética textual. Outro
motivo plausível, e mais específico, a colocação de Santiago parece ser necessária porque a
poesia de Ana C., que joga nos limites do voyeurismo do leitor, ao ser re-significada pelas
circunstâncias da sua vida e morte, poderia ser um prato cheio para esse tipo de leitores
detetives ou autoritários.
38
“A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu”, diz Agamben no ensaio; seria interessante
relacionar essa afirmação com a impossibilidade de museificar algumas obras dos 70. Uma pergunta parece se
delinear: quais dessas obras se apresentam como uma forma de resistência à museificação, e quais outras foram
simplesmente consumidas pelos espectadores e o mercado?
92
Silviano Santiago, talvez, tentava salvar premonitoriamente Ana C. de uma
canonização que se prefigurava garantida, mas estéril, esclerosada desde seu começo; e, ao
mesmo tempo, com seu prestígio de escritor e crítico engrossava o caldo de um outro tipo de
mito de consagração, um mito mais caro à crítica, como veremos. Uma consagração
alicerçada no principio ético do pós-estruturalismo e da qual, de alguma forma, esta
dissertação também é subsidiária: “No aceptar nunca que algo sea definitivo, intocable, obvio,
inmóvil (...) La ética del desvincularse de las formas constituidas de experiencia”
(FOUCAULT apud. JAY, 2003, p.83). Assim, no alto valor dado à fuga, à dispersão, parece
nascer uma segunda imagem consagratória: Ana C., a poesia/poeta que não se deixa prender.
Leituras da poesia: achar a chave, enxergar a dissolução.
Tentemos avançar. Como analisa Maria Lúcia de Barros Camargo em Atrás dos olhos
pardos (2003), depois de consignar os escritos feitos sobre a poesia de Ana C. até 1990:
Esse breve levantamento da fortuna crítica da obra de Ana Cristina Cesar na
década de 80 evidencia dois aspectos relevantes e contraditórios: de um lado, o
consenso quanto ao valor dessa obra, especialmente pelo destaque, pela diferença,
comparativamente à obra produzida por sua geração; de outro lado, a ausência de um
trabalho crítico mais abrangente e aprofundado, que busque, pela análise da obra em
seu conjunto, entender o lugar, a especificidade e o sentido dessa poética. É nesta
lacuna que se insere este estudo (CAMARGO, 2003, p.25).
Sem dúvida, o excelente ensaio de Camargo consegue realizar a proposta de
constituir-se em um estudo abrangente da obra de Ana C. como um todo. O estudo tem uma
visão ao mesmo tempo panorâmica, coerente, e suficientemente aprofundada, dos aspectos
mais relevantes da escrita de Ana e dos diferentes tipos de texto que ela produzia.
Assinalemos alguns dos temas ali apresentados, muitos deles pioneiros, que passaram a
constituir o patamar básico para os estudos posteriores.
O ensaio começa localizando e diferenciando Ana C. do contexto da geração marginal,
para depois partir para a análise das diferentes publicações. Assim, começa um percurso por
Inéditos e dispersos, onde muitos dos poemas são analisados em profundidade, e delineia-se
uma “aprendizagem” de Ana do labor poético. Logo após, Camargo percorre o trabalho
intertextual que Ana C. estabelece com outros poetas, levantando e revelando de forma
rigorosa as mais importantes das alusões do castelo: Jorge de Lima, Baudelaire, Manuel
Bandeira, Mario de Andrade. O procedimento é descrito com o termo/conceito “vampiragem
93
– também assinalado como ‘ladroagem’, ou ‘gatografia’ –, muito caro à crítica posterior.
Outro dos textos do livro chama a atenção sobre outro traço central na poética de Ana: a
exploração e desconstrução dos gêneros íntimos, e da ilusão de confissão, em relação a
questão do feminino.
Destaquemos também que, em contraposição a ausência de leitura analítica das
poesias que se identificava até aquele momento, o ensaio de Maria Lúcia é minucioso na
análise, particularidade comum com outro imprescindível ensaio escrito contemporaneamente
ao de Camargo: Até segunda ordem não me risque nada. Os cadernos, rascunhos e a poesia-
em-vozes de Ana Cristina Cesar, de Flora Süssekind. O ensaio, publicado em 1995, foi escrito
em 1989, como diz a “Nota Prévia”, e serviria como introdução a um volume com traduções
feitas por Ana, alguns rascunhos mais o Caderno de Portmouth, que só fora finalmente
editado por Augusto Massi em 1989. O livro planejado não saiu, mas o trabalho com o acervo
“confirmaria a importância do trabalho de tradução na afirmação de uma dicção poética
própria, chamaria a atenção para o processo de composição de certos poemas”, núcleos
imprescindíveis na hora de entender em profundidade a poesia de Ana (SÜSSEKIND, 1995,
p.7).
Não se trata de um trabalho panorâmico como o de Camargo; no entanto, Süssekind
consegue enxergar e evidenciar um procedimento de leitura e escritura abrangente, um
procedimento composicional que parece funcionar em todos os níveis da escrita de Ana: a sua
poesia – mas também muitos dos ensaios e, claramente, as traduções – como uma ‘arte da
conversação’, que abarca e cruza as formas de ler, traduzir, escrever, desenhar.
Certamente o ensaio de Flora, de menos de setenta páginas, é o texto de análise da
obra de Ana Cristina mais influente. Os motivos parecem ser vários: o prestígio da autora na
crítica brasileira e internacional, a potência explicativa do conceito que guia as leituras, uma
perspectiva, ao mesmo tempo, específica e abrangente. Mas, além disso, de forma particular,
trata-se da primeira pesquisa que trabalha com o acervo – os cadernos e os rascunhos – de
forma minuciosa, e que chega até ele tentando traçar uma narrativa diferente à colocada por
Inéditos e dispersos e os texto imediatamente posteriores.
No entanto, não se trata de um contra-discurso, cabendo aqui um pequeno parêntesis:
no Instituto Moreira Salles existe um cartão postal dirigido por Flora Süssekind a Waldo e
Maria Luiza Cesar. Através dele agradece por ter tido acesso ao acervo e pergunta se algum
dos textos que ela citará e publicará deveria ser retirado. Ou seja, de um lado, vemos de que
forma – além de conceitualmente, no traçado de uma narrativa – o arquivista ou pesquisador
constrói o arquivo ao seu passo: Flora deixa novos documentos. De outro, podemos ver que
94
os herdeiros exercem uma autor-idade, embora não plena, nessa nova narrativa. De fato Flora
não incorrera em indiscrições, nem faz no seu livro nenhum tipo de crítica negativa à imagem
ou à poesia de Ana. Pelo contrário, Até segunda ordem... ilumina a potência e a sofisticação
poética dos textos, sem necessidade de desvendar dados biográficos que contradissessem a
memória que a família construiu.
Voltemos ao livro. No começo se definem as coordenadas:
Não, não se trata de quebrar lanças mais uma vez por um ‘biográfico,
demasiado biográfico’ ou por um ‘literário, apenas literário’, mas de lançar de cara os
dados – ‘Autobiografia. Não, biografia.’ – e fixar os pontos de partida desta tentativa
de aproximação crítica da escrita poética de Ana Cristina Cesar (SÜSSEKIND, 1995,
p.9).
A frase reduplica a advertência feita por Silviano Santiago: não ler os poemas como
demasiado biográficos, nem como apenas literários. Mas Flora dá um passo além, traçando
um fio entre a poesia e as duas leituras que, embora assinaladas como errôneas, são
perigosamente estimuladas pela própria poesia. A arte da conversação não faz senão encenar
uma “espécie de tensão constante entre (...) dicção aparentemente ‘muito pessoal’ e postura
quase sempre ‘em guarda’” entre, continua Flora, o ser fiel aos acontecimentos biográficos e a
literatura como clé (SÜSSEKIND, 1995, p.10).
Ou seja, Flora não precisa entrar nos acontecimentos biográficos nem em questoes
extra-literárias para que eles funcionem como um dois pólos que provocam a tensão na
poética. E, aliás, desde a poética, desde o conceito/dispositivo achado, se pode ler e re-
significar o dado biográfico final. O ensaio fecha com uma instigante frase: “A dissolução,
como se vê, pode ser uma arte” (SÜSSEKIND, 1995, p.66). A idéia de dissolução decorre da
imagem em abismo do sujeito poético, do sujeito permanentemente descentrado, aludido na
construção em-vozes, ou na ‘vampiragem’ trabalhada por Maria Lúcia Camargo. Mas, sem
dúvida, permite ler desde a estética, desde certa valoração do inacabado e fugidio uma nova
forma de consagrar tanto produções artísticas quanto vidas, tanto como princípio estético
quanto ético. Enxerga-se o valor da dissolução e da dispersão que adquirirá mais peso, muito
mais, na crítica posterior.
Informes para uma academia
95
Mas retornemos ao ensaio de Maria Lúcia Barros Camargo, para poder avançar sobre
os textos acadêmicos surgidos depois dele. Retornemos ao seu começo. Atrás dos olhos
pardos se abre, sob o título “As origens”, com a seguinte frase: “A notícia do suicídio da
poeta Ana Cristina Cesar tocou-me fundo naquele final de outubro de 1983”. Maria Lúcia
conta que naquele momento pensava dedicar a sua pesquisa a um estudo aprofundado da
poesia marginal. No entanto, o foco do trabalho mudou:
Atração por essa instigante palavra de mulher e alguma perplexidade com
essa poesia que eu ainda não sabia definir: esses eram os sentimentos e as reflexões
que me ocupavam quando li a trágica notícia. O mergulho em sua obra foi inadiável e
inevitável (CAMARGO, 2003, pp. 15-16).
Se o de Camargo é o primeiro estudo acadêmico sobre a poesia de Ana C., poderíamos
dizer, fazendo tautologia, que as leituras acadêmicas da obra de Ana C. se iniciam e são
movidas pelo seu suicídio. A afirmação, embora certa, parece exagerada, principalmente para
o rigoroso livro de Camargo, que apaga a importância inicial do suicídio com o se
desenvolver do ensaio, e que não faz uma leitura que procure chaves biográficas, ainda que
sem negar as relações do texto com o extra-literário.
Mas o fato é que o livro abre com um movimento discursivo que se repetirá em outras
teses e dissertações sobre Ana, mas também sobre outros autores. Primeiro, uma pulsão do
autor a dizer ‘eu’, a declarar no prefácio ou na introdução – como se o eu tivesse que ficar
fora do texto acadêmico – o seu gosto, a circunstância pessoal que o fez chegar a Ana C.
como objeto de estudo. No mesmo sentido, depois, se confessa uma primeira fascinação com
o texto – cuja atenção, às vezes foi acordada pelo interesse na biografia. Eu e o meu encanto
por Ana C. Depois tirar o eu, como corresponde à linguagem acadêmica mais tradicional. Por
último, a necessidade de explicar essa fascinação, achar explicação para o encantamento.
Como se esse encantamento congelasse, como se fosse obra de uma força mágica
encantatória, e o estudo raciocinado e explicativo fosse o antídoto contra ela. Ana C.,
encantadora. Mesmo encanto irracional do punctum, frente ao que se procura – e se acha – o
interesse sensato que passa a ser explicado pelo studium. O estudo final sobre a obra de Ana,
sensato e acadêmico, que “il n’est pás traversé, fouetté, zebre par um détail (punctum) qui
m’attire ou me blesse” (BARTHES, 1980, p.69). O punctum que punge e atravessa – que não
dá para entender – fica na porta de entrada do texto, quase do lado de fora; enquanto dentro
ficaram, fulgurantes, as pegadas do punctum que, assim, precariamente exposto acha a sua
única forma possível. Em tal caso, a crítica, como dizia Mattoni na epígrafe, tentará explicar,
dar luz, à obscuridade do momento inexplicável da experiência da leitura.
96
O mesmo movimento, entre puctum e studium, é colocado na apresentação ao livro de
Ana Cláudia Viegas.
Por que Ana Cristina Cesar? Seria essa a pergunta? A primeira leitura –
casual e descompromissada – de seu texto aos poucos dá lugar a uma instigante busca
de chaves. Eu, leitora, havia aceitado o pacto, atraída pelo brilho cego do cadeado
(VIEGAS, 1998, p.15).
O texto também fora apresentado originalmente como dissertação para PUC-RJ no ano
1991. Bliss & Blue. Segredos de Ana C. (1998) tem um título, no mínimo, enganoso, pois o
livro não revela nenhum segredo, como os textos de Ana C.. Viegas, pelo contrário, faz uma
pertinente pesquisa sobre os conceitos de autor, de autobiografia e do que hoje chamaríamos
de auto-ficção, fazendo a análise cruzar a porosa fronteira poesia/vida, sem deixar de ler o
texto e os diferentes cruzamentos de discursos que o envolveram. Como diz Marília Cardoso
sobre o estudo no prefácio: “não é mais um exercício analítico, nem mais uma tentativa
biográfica, empenhados na revelação de um poema enigmático” (in VIEGAS, 1998, p.14). Ir
além do texto; nesse sentido, Ana Cláudia anota no capítulo dedicado às conclusões:
A continuação ad infinitum da tentativa de decifração, certamente, só
aumentaria a perplexidade, constatando cada vez mais a fluidez da persona, que se
nega a ser aprisionada numa forma definitiva (...) Se tinha por hipótese o
questionamento das fronteiras rígidas entre real e ficção, vida e obra, o
desenvolvimento do projeto se valeu de seu próprio fracasso. A inexistência daqueles
limites impediu a delimitação precisa da autora Ana C., mas essa impossibilidade
mesma trouxe ainda mais argumentos para defesa dos meus pressupostos (...) À
medida que o quebra-cabeça ia sendo montado, no entanto, surgia entre as peças um
fio condutor bastante peculiar: o indecidido. (VIEGAS, 1998, p.104).
A citação é extensa porque nela se colocam tanto a hipótese quanto o resultado como
procuras e achados do poroso, o fluido, o indecidido, tudo aquilo que questiona as
delimitações claras. E deixa ver como essas características tornam-se, ao mesmo tempo,
problema e confirmação da crítica.
Relendo o exposto até aqui, por contraste, esboça-se o mais grave pecado que,
segundo a crítica, ela própria poderia cometer neste final de século: achar que o texto encerra
alguma verdade, um segredo.
39
Pecado porque remete ao autoritarismo do leitor assinalado
por Santiago, sendo o autoritarismo, de esquerda ou de direita, o grande inimigo dos artistas e
intelectuais a partir da década de sessenta. Principalmente para a crítica que analisa e gosta da
poesia de Ana C., a ética da leitura é “el imperativo de no decidir de manera definitiva cual es
la interpretación correcta, el mandato de ahogar el deseo epistemológico de ‘captar bien el
39
Por isso, não deixa de chamar a atenção o título escolhido por Viegas e, da mesma forma, o título escolhido
para o artigo de Florencia Garramuño, “Los secretos de la esfinge”, 2001.
97
texto’” (JAY, 2003, p. 88). Jay coloca de forma clara a armadilha: não decidir a leitura é um
imperativo, um mandato. Proibido proibir.
De qualquer forma, os preceitos de fluidez não são uma característica imposta pelo
olhar crítico. De forma semelhante, o texto de Ana C. resiste a ser ‘bem captado’. A
estética/ética da dispersão e da dissolução seria uma estratégia tanto encenada pelo texto
quanto procurada pela leitura num movimento duplo e cúmplice. Porque se o gesto pós-
estruturalista identifica a ética com a resistência à ordem social externa, essa ética basear-se-ia
em uma determinada visão do estético que prefere a obra que não oculta as tensões e as lutas
com os materiais e com os signos – que Jay identifica com a arte moderna –, arte aberta a
intrusões externas, mistura de representação e presença, arte alegórica em termos
benjaminianos (JAY, 2003, p.92) sobre obras acabadas, belas, concluídas.
40
Todo texto desejaria não ser texto.
Assim, predomina na crítica de Ana C. uma abordagem que se enquadraria no
paradigma pós-estruturalista ou desconstrucionista, mas também é o texto quem se propõe no
marco desses olhares.
Ana inicia a sua produção ao mesmo tempo que o pensamento de filósofos como
Barthes e Foucault atravessava uma reconfiguração de rumos, através de textos que
recolocavam a problemática do autor – agora dentro e fora do texto –, do trabalho com a
biografia, a autobiografia, as escritas íntimas, da pergunta pelo lugar do corpo, etc. A essa
clivada colocação se deveria, segundo alguns críticos, como Francine Gripp de Oliveira
(2001), a oscilação entre o acabamento estético da sua poesia e o mascaramento das
identidades nos textos, de um lado, e as referências diretas, os dados biográficos, do outro. No
entanto, Ana C. parece participar de forma total do olhar pós-estruturalista, que conserva, para
discuti-lo, o movimento anterior no seu seio. A bibliografia utilizada nas teses e dissertações
40
Diz Martin Jay sobre o tema: “En lugar de elogiar la obra de arte como un todo bello y orgánico, una
estructura que lleva en sí misma su propósito y proporciona una manifestación sensorial de una idea, un objeto
delimitado que se atiene a sus propias leyes inmanentes, los postestructuralistas adhieren en cambio a la obra
modernista (o en ciertos casos, posmodernista) ‘en crisis’. Es decir, ven el arte más como un ámbito abierto a las
intrusiones exteriores que como completamente autosuficiente, más como una mezcla complicada de
representación y presencia que como puramente una cosa o la otra, más como lo que Walter Benjamín habría
llamado alegórico antes que simbólico” (JAY, 2003, p. 92).
98
parece corroborar esta característica: os últimos livros de Foucault e Barthes são moeda
corrente na maioria dos textos críticos.
41
Talvez seja este intercâmbio, ou correspondência, de discursos entre a produção de
Ana e o pensamento pós-estruturalista, a razão pela qual o primeiro livro/tese publicado sobre
a obra de Ana C. quase não seja citado por escritos posteriores.
Redigido como dissertação de mestrado para a PUC-SP em 1991, dois anos mais
tarde, em 1993, publica-se O desejo na Poesia de Ana Cristina Cesar, de Regina Helena
Souza da Cunha Lima. O objetivo do estudo, segundo diz a Introdução da autora, seria:
“Como perceber a tessitura textual do desejo na escritura poética de Ana Cristina Cesar? Esta,
a questão a de(cifrar)”(LIMA, 1993, p.21 – itálico meu). O estudo, em um obscuro tom que
combina a linguagem poética e a cifra dos estudos semióticos, como dissemos, não teve muito
fôlego dentro da crítica posterior sobre a poesia de Ana. A autora escolhe fazer uma análise
textualista do desejo, mergulhando nas definições de Freud e Lacan, percorrendo com lupa os
significantes, entre os quais a letra t passa a ser a chave de leitura do ensaio. A proposta,
coerente em si mesma, aplicada rigorosamente à poesia de Ana C., deixa ver as suas
limitações, dado que não consegue dar conta das problemáticas mais interessantes e
inovadoras colocadas pelo texto.
De certa forma, o mesmo acontece no mais recente estudo publicado: Territórios
dispersos (2007), de Annita Costa Malufe. O livro é a edição com poucas modificações da
dissertação de Malufe para PUC-SP em 2003, cujo título era: “O texto louco de Ana C.: a
poesia que a mídia não leu”.
Na introdução, Malufe coloca várias interessantíssimas perguntas. Primeiro: “Como
escapar desta imagem da autora [jovem suicida] que se interpõe entre o leitor e o poema?
Cabe-nos escapar? E esta mesma pergunta, cabe-nos, ainda, fazê-la?” (2007, p.18). A questão
pode ficar apenas enunciada para manter o paradoxo, mas, em último caso, insta a responder:
esquecer que a figura de Ana C. existe e se interpõe na leitura da sua produção, seria uma
construção artificial do crítico. “Por más que parezca que construimos el pasado como un traje
a medida, siempre hay algo que se resiste a ese resultado” (JAY, 2003, p.306), porque Ana C.
traz com ela uma série de idéias prévias que não podem ser negadas, mas sim discutidas ou
revisadas; não podemos construir retrospectivamente o objeto Ana C. sem levar em conta os
textos que a uma figura inicial foram se somando, tal como assinalava Ana Cláudia Viegas.
Portanto, deveríamos especificar o pedido de Santiago por um leitor sem idéias
41
Cf. as referências bibliográficas dos textos de Ana Cláudia Viegas, Carlos Sá, Florencia Garramuño, Natalia
Brizuela, etc.
99
preconcebidas, para dizer que, no caso da poesia de Ana, esse objetivo só seria possível
fechando o texto a toda influência do exterior. Assumir para essas idéias a condição de
preconcebidas, revela-se como uma condição para, tal como queria Santiago, evitar leituras
autoritárias.
Mas voltemos a Malufe. Se a pergunta que ela coloca incita a um olhar complexo e
não preconceituoso sobre o objeto, a abordagem proposta parece ser contraditória. Diz
Annita: “como evitar as leituras simplificadas e inférteis que se apegam a uma pretensa
‘psicologia’ do autor? Como fugir de tal ‘obscurantismo bibliográfico’?” (2006, p.19). E
responde: “ler um poema enquanto poema”, o “texto enquanto um real em si” (2006, p. 36).
O gesto radical de fechar o texto de Ana sobre si próprio parece surgir de alguns
equívocos. Conforme diz Heloisa Buarque de Hollanda na quarta capa, o livro
veio, em boa hora, conferir a recorrente identificação romântica que vem sendo feita,
desde o suicídio de Ana Cristina Cesar em 1983, entre a obra da poeta e sua trágica
biografia. Ao se desvencilhar dessa já quase histórica vinculação, que tanto vem
marcando a fortuna crítica e a divulgação da obra da poeta, a autora nos oferece uma
leitura original (apud. MALUFE, 2007 – quarta capa).
Marcando a fortuna crítica e a divulgação da obra. Essa associação ao mito
romântico, embora seja estendida à crítica, parece ser mais pertinente ao falar da mídia e da
divulgação. Quando Malufe fala da mídia, está se referindo a essas resenhas/depoimentos para
os quais Ana Cláudia Viegas chamava a atenção: foram feitos por admiradores e amigos. Não
seria um equívoco procurar rigor crítico em textos afetivos e datados, como os de Marcos
Augusto Gonçalves ou Reinaldo Moraes? Nesse sentido, por exemplo, os artigos deste último,
se colocados juntos – e ainda mais se colocados juntos ao romance Tanto faz –, declaram
paixão e fascinação por Ana e, por isso, não pretendem atingir uma linguagem ‘objetiva’, nem
dar razões sensatas ao interesse pelo ‘objeto’.
Talvez essa insistência na constatação do ‘obscurantismo bibliográfico’ tenha levado
Malufe a radicalizar o procedimento diametralmente contrário: contrapor às leituras
biográficas o fechamento total do texto. Querendo tirar a Ana C. de leituras perigosas, Malufe
acaba por mergulhá-la numa outra. Pois a abertura do texto não seria apenas uma proposta
teórica compartilhada por críticos como Santiago, Camargo e Viegas – e com a qual concordo
–, seria uma proposta dada pelos próprios textos, e pelas decisões de Ana Cristina de trabalhar
com determinados materiais que colocam em questão e problematizam a relação com o extra-
textual e o interlocutor – aliás, caras preocupações para Ana em seus textos críticos, que
Malufe cita extensamente mas não consegue levar à sua proposta global.
100
Cabe, no entanto, um esclarecimento: dizer que a leitura de Ana C. deve levar em
conta aquilo que está por fora do texto não implica a negação do texto, nem sequer minimiza
a sua importância. Quando Silviano Santiago ou Ana Cláudia Viegas analisam a obra de Ana
e se posicionam em um tipo de leitura, realimentam a importância do seu texto. Martin Jay,
em “El enfoque textual de la historia intelectual” (2003), vai percorrer as modificações do
enfoque textualista para a análise de textos, principalmente através das discussões entre seus
defensores ou detratores, até chegar ao mais contemporâneo, o textualismo desintegral, que
ele identifica com a desconstrução. As últimas correntes do textualismo, então, têm mostrado
uma insistência “por disolver las fronteras o al menos por mostrar en qué medida son porosas,
y por textualizar así los contextos” (JAY, 2003, 301). O desintegral coloca em questão a
fronteira mesma, textualizando o extra-textual e, por extensão, o extra-literário. Os textos, diz
Jay seguindo Derrida, “se refieren interminablemente a algo diferente de si mismos; son un
sistema no totalizado de indicios que se oponen a que se los reduzca a una trama” (JAY, 2003,
p.303). Isso significa que uma abordagem textualista é problemática se o texto é fechado,
inclusive, à heterogeneidade textual que ele traz para dentro de si próprio ou, em palavras de
Walter Benjamin, à natureza alegórica do texto.
Es decir, la naturaleza alegórica del análisis cultural significa que siempre
estamos implicados en el proceso de exponer las huellas de lo no textual, aun cuando
expandamos la noción de texto hasta el punto de incluir en ella a la cultura como un
todo. La inmanencia pura es un modelo de cómo operan los textos tan utópico como
el de la trascendencia pura (JAY, 2003, p.305).
O texto de Ana estaria pedindo esse tipo de leitura, para não ser menosprezado. Pede
uma leitura das pegadas no texto do que não é texto; uma leitura do autor no texto, também
através das pegadas que, não totalizáveis, não cessam de assinalar a presença e, ao mesmo
tempo, a desaparição. Com seu apelo ao interlocutor, com a colocação da problemática do
autor jogando com a sua própria figura, com a introdução de dados referenciais, Ana C. na sua
poética não faz senão declarar a problemática e a porosidade das fronteiras, “a passagem
complexa entre escrita e vida” (BOSI, apud. MALUFE, 2006, p.13).
Autobiografia. Não, biografia. Não.
O texto que a priori poderia se associar mais facilmente às leituras biográficas, pelo
escancarado tom lúgubre do seu título – tom que adquire novos acordes na identificação da
101
referência ao filme de Jean Cocteau – que, aliás, traz o nome da poeta, e pelo levantamento de
dados biográficos é o que, paradoxalmente, vai trabalhar com a morte de Ana, e não apenas
narrá-la, repeti-la ou representá-la.
Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta, de Italo Moriconi, aparece em 1996. Um
livro raro. Faz parte da coleção “Perfis do Rio”, e se apresenta ao público como uma
biografia. Certamente, os dados levantados sobre a vida e a trajetória de Ana são muitos, no
entanto, nenhum que satisfaça desejos de voyeur do leitor. O sangue de uma poeta leva ao
limite a proposta da própria Ana: coloca a isca do biográfico, que fica relampejando em traços
leves, sempre misturada a outros discursos, agora inseparáveis deste. Em sucessivas apelações
a uma futura biografa, Moriconi leva ao limite o desejo do leitor, sussurrando
provocativamente que ainda tem segredos.
A forma da escrita também quebra as expectativas de uma biografia clássica. Moriconi
circula entre vários discursos: depoimento, testemunho, biografia, autobiografia, ensaio,
análise de poesias. Valeria aqui uma longa citação do programa:
O propósito do presente livro é ensaístico e não factual. No entanto, o
trabalho de releituras, pesquisas, conversas (não foram propriamente entrevistas) e
sobretudo evocação (conjuração de fantasmas) e reflexão que levaram ao texto a sua
forma final foram pautados pela presença de uma ansiedade biográfica (...) Vamos
então telefonar para Ana, antigo anjo, linda, azul. Mas no lugar da voz dela, só vem
algaravia de terceiros. Ou seus versos. Sua prosa. Nossa prosa, nosso pacto. Não sei se
eu teria disposição para ir além da ascese preparatória e escrever uma biografia de
Ana no estilo daqueles calhamaços americanos (...) A estrutura de depoimento subjaz
ao texto todo. Meu guia foi a memória pessoal (...) marcada talvez mais ainda pelo
incessante ouvir histórias e lembranças dela, urdidas pelo trabalho coletivo da
memória geracional. (MORICONI, 1996, pp.20-23).
Como sucedia no poema de Sebastião, onde lembrança e poema são um só, aqui,
lembrança e ensaio também são. Ambos indecidíveis entre a ficção e a fidelidade aos
acontecimentos biográficos. Tal como também se coloca no texto de José Castello, onde relata
um encontro marcante, para ele, com Ana. Visão que retrospectivamente constrói/lembra a
“deusa da zona sul”; no entanto, ele próprio desconfia e reafirma, ao mesmo tempo, a relação
dupla entre a (auto)biografia e a ficcionalização: “Guardei a minha lembrança de Ana, talvez
fantasiosa, quem sabe absolutamente falsa; no entanto, é a que me ficou” (CASTELLO, 1999,
p.205).
Contudo, talvez o traço mais interessante da citação de Moriconi seja traduzir o
conflito do crítico amigo ao convocar o objeto que, nesse caso e sem ser um dado desprezível,
trata-se de uma amiga e poeta. Cruzam-se novamente as apreciações éticas e as estéticas,
escancaradas no caso de Moriconi, que assume essa voz compromissada e parcial, mas que se
apresenta nas escolhas críticas. Ao fazer da sua parcialidade a coordenada dada ao leitor,
102
abandona e não permite pretensões de verdades objetivas, entregando, em troca, verdades
parciais e singulares. Na convocatória da amiga, bonita, azul, só vem fantasmas e retalhos de
vozes, algumas espectrais, outras que a evocam. A mesma convocatória tinha sido feita por
Jacques Derrida num depoimento em homenagem ao seu amigo e mestre, Roland Barthes:
Cuando digo Roland Barthes es a él a quien nombro, más allá de su nombre.
Pero como a partir de este momento precisamente él es inaccesible al llamado, como la
nominación es incapaz de convertirse en invocación (…), es a él en mí a quien yo
nombro, atravieso su nombre para ir hacia él en mí, en ti, en nosotros. Lo que pase en
relación con él y se diga de él queda entre nosotros. (DERRIDA, “Las muertes de
Barthes”, 1981).
Quando nomeamos Ana C. é a ela quem tentamos nomear, além do seu nome. Mas
Ana é inaccessível ao chamado, ao nosso, ao do Moriconi. Então, ele deve partir para ela nele,
ela nos amigos, ela em todos nós. As imagens que de Ana ficaram na comunidade sagrada, no
convívio. Moriconi, cruzando essas vozes e se salvaguardando na constatação da existência de
múltiples versões, se permite abrir e mexer, embora reafirmando, o mito de Ana.
De um lado, então, a partir de Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta vai se
mostrando uma possibilidade de falar, de tocar o corpo de Ana. E essa possibilidade se abre,
principalmente, para a crítica. Não porque a crítica precisasse falar os não ditos ou revelar os
segredos de família, mas sim colocar a sua poesia e figura em circulação, não como um objeto
morto – que não pára de morrer – e no que só se procura, como numa mesa de morgue, as
causas da morte. O crítico se permite ver alguma coisa que modifica o próprio sujeito que
escreve:
Muy a menudo el crítico no quiere ver eso: eso que definiría el lugar de una
abertura, de una brecha que se abre bajo sus pasos; eso que siempre lo obligaría a
dialectizar – por lo tanto a escindir, por lo tanto a inquietar – su propio discurso
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p.41).
Inquietar o próprio discurso: o gênero biografia é questionado e redefinido. No
entanto, não devemos esquecer que a (auto)biografia geracional de Moriconi também está
contextualizada pelo marcado ingresso do eu na escrita ensaística, dos últimos anos.
Sem precisar fazer uma biografia apócrifa, sem precisar desauratizar a imagem de
Ana, sem deixar de homenagear e acariciar a lembrança da amiga, Moriconi consegue
movimentar a imagem. A morte de Ana começa a trabalhar porque – como já aparecera num
depoimento do próprio Italo para Ana Claúdia Viegas – se dá uma interpretação da morte que
faz os textos e o gesto da desaparição da autora significarem literariamente, esteticamente e
culturalmente. Moriconi toma a potencialidade escriturária do suicídio, e a faz ser mais texto.
“El suicidio implica una voluntad de escribir la muerte, de extraerla de su lugar inefable, de su
103
perpetua inminencia, de su presentimiento indecible” (MATTONI, 2003, p.124). No
movimento, entrega ao ato um valor ainda maior: para a crítica literária, o suicídio pode ser
uma escrita da poeta, e não apenas o ato final de uma profunda depressão.
Hagiografia ou o amor pelo fugidio.
Flora Süssekind, em “Hagiografias” (2007), dez anos depois da aparição do livro do
Italo, vai chamar a atenção para a valoração do ato suicida que, com a biografia, ganhara
novos rumos, mas que, como dissemos, é quase onipresente interpretativamente desde que a
morte de Ana acontecera.
Na fortuna crítica de Ana C., em relação a essa valoração da morte, podemos chamar a
atenção junto com Flora para um poema de Cacaso, “Surdina”. Ali, listados em tom jocoso,
com rimas abertas e em sílabas tônicas, criando uma música fácil, aparecem os nomes de
Tenório Jr., Elis Regina, o velho Vina, Clara Nunes... e fecha (BRITO, 2002, p.251):
Lá vai a morte afinando
o coro que desafina...
Se desse tempo eu falava
do salto da Ana Cristina...
A morte de Ana é sublinhada, como diz Süssekind, pelo fato de não falar dela. Mas a
questão central do poema é o valor do póstumo: a morte cria um padrão de leitura para esses
escritores excepcionais: o coro que desafina, os raros, são homogeneizados, harmonizados no
coro da “melhor prata da casa/ o melhor oro da mina”. A morte possibilita a canonização e
cobre de ouro essas figuras, com a condição de lhes colocar uma surdina: filtra o timbre, e
abafa o som, igualando as vozes.
Uma tensão similar aparece, colocando as suas contradições, em um poema de Italo
Moriconi, do livro Léu (1988):
ana cristina cesar
ela quis a fascinação do vôo.
mas não há vôo, não há ovo, nem galinha.
era possível uma carta agora, assim,
levantaram-se os mortos? O salto
não há fascinação, nem mar
da tranqüilidade não era despedaçar
um anjo, para torná-lo antigo
à revelia é que se vive
104
pra melhor morte
Em primeiro lugar o poema já não tem a Ana por destinatária – “era possível uma
carta agora?” –, mas reconhece o desejo. É um poema das expectativas truncas: as de Ana,
não há fascinação, nem mar. As dos mitógrafos: não há tranqüilidade. As dos amigos
escritores: não é possível a carta se os mortos não levantam. Aqui a própria ilusão rota de
quem escreve o poema, que coloca a interrogação. Despedaçar um anjo, fazer a sua autopsia,
não traz tranqüilidade. O poema traz a necessidade de não congelar a Ana, de não deter a sua
travessia de anjo. Salvar a Ana C. de ser um anjo despedaçado, antigo como um poeta
canonizado. “à revelia é que se vive/ pra melhor morte”, ecoam os últimos versos do poema
de Italo Moriconi, quem, em outro livro, lembraria e reverenciaria os nomes de vários mortos
jovens da década de 70 (2002, p.119), cujas vidas, mortes e produções se desvinculavam
permanentemente de todas as formas já constituídas.
Avancemos na interessante colocação de Süssekind no seu artigo. Ela identifica que,
nas leituras feitas sobre a produção de alguns escritores brasileiros que tiveram uma vida
breve, mortes prematuras ou trágicas – como Torquato Neto, Ana Cristina Cesar, Cacaso,
Paulo Leminski ou Caio Fernando Abreu –, haveria uma “dominância biográfica”, um
interesse particular pelos fatos e as vivências dessas pessoas. De forma subsidiária, esse
interesse biográfico se expressou numa construção retrospectiva de narrativas dessas vida sob
o esquema das vidas de santos, as vidas exemplares, hagiografias. Diz Süssekind:
São vidas impregnadas, a posteriori, de intencionalidade, são destinos nos
quais se enxerga, nos mínimos detalhes, a marca da excepcionalidade (...) Nesse
sentido a perspectiva crítica parece se deixar contaminar quase sempre por esse dado
hagiolátrico inicial. O que é no mínimo desconfortável. E pode por vezes sugerir a
reação inversa –a desconfiança de que só pode haver algo errado aí. O quê é que
permite a eles serem vistos como tão exemplares? Ainda mais quando se percebe que
já há mais de uma geração de críticos ocupados na construção dessas hagiografias
(precocemente nostálgicas) do tempo presente ou do passado recente. Pois se o
processo de canonização foi iniciado pelos contemporâneos imediatos desses autores,
ele seria reforçado significativamente por uma parcela dos que vieram depois
(SÜSSEKIND, 2007, pp. 46-47).
A reação inversa, a desconfiança da crítica nas leituras hagiográficas de Ana, como as
que analisamos no segundo capítulo, parece ter se materializado na procura de um traço
diferente, que de qualquer modo continuava tornando a Ana uma ‘eleita’. Se, como
analisávamos na cronologia feita por Waldo Cesar e nos ensaios fotográficos de Inéditos e
dispersos, através deles se construiu uma hagiografia que seguiria retrospectivamente a marca
da excepcionalidade; na crítica, tal como assinala Süssekind, também se pode ver esse tipo de
105
construção, mas sob um outro signo. Se nos primeiros casos se filia a Ana a uma trajetória de
sucesso pelas instituições família/escola/ igreja/ profissão, linha sem desvios à sina poética;
no caso da crítica, a hagiografia seria marcada mais fortemente pela procura da dissolução do
sujeito do princípio ao fim, na sua vida e na sua poética. O elogio do inapreensível, do
inclassificável. Para a crítica Ana vira uma santa pós-estruturalista. Nenhuma vitrine poderia
contê-la.
Portanto, como sugere Süssekind, desconfiemos; e recuperemos uma provocação que
ela lança:
Talvez valesse a pena verificar, nesse sentido, quantos dos artigos e das teses
sobre a sua poesia contêm suicídio, salto, melancolia, paixão, morte ou expressões
semelhantes já no título, indicando inequívoca preferência por uma patologização
temática. (SÚSSEKIND, 2007, p.52).
Revisemos, levantando a luva do desafio, a maioria dos títulos das dissertações e teses:
“O texto louco de Ana C.: a poesia que a mídia não leu”, “Luvas na marginália”, “Tesão do
talvez”, “A tensão entre o dizer e o não dizer”, “Âncoras ao vento: ensaios da deconstrução
em Ana Cristina Cesar”, “A máscara como assinatura: figurações do sujeito na poesia de Ana
Cristina Cesar”, “Pé na estrada: uma poética da viagem em Ana Cristina Cesar”, “Guerrilha e
prazer; três transgressoras na ditadura militar: Leila Diniz, Rita Lee e Ana Cristina Cesar”,
“Sobre asas e abismos: uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar”, “Desvanecimento
poético: outra existência possível nos textos poéticos de Paulo Leminski e Ana Cristina
Cesar”, “Ana Cristina Cesar e o devir de um corpo”. Em verdade, poucos são os títulos que
remetem de forma direta a uma patologização ou ao suicídio, e as palavras assinaladas por
Flora só aparecem em “O eclipse do sentido - poesia, melancolia e suicídio em Ana Cristina
Cesar”, de Carla Nascimento. No entanto, podemos evidenciar outro paradigma semântico
recorrente nesses títulos: a dissolução, o desvanecimento, o devir, ou o paradigma da fuga, da
viagem, do vôo. A reflexão de Flora ainda é pertinente, só que a hagiografia feita pela crítica
não parece ter sido alicerçada no suicídio e no biográfico, mas no valor da fuga de Ana, da
dissolução, da dispersão, que são, sim, subsidiários da morte e percorrem os poemas e os
procedimentos de escrita.
Congelamento da fuga: Vou saltar e me pegam pelo pé.
106
A insistência na característica fugidia e em aberto da poética de Ana, e a sua pessoa,
também mostrou seu lado infértil na extrapolão, como uma outra cara da mesma moeda;
armadilha da crítica explicada por Jacques Rancière em Políticas da escrita (1995).
No artigo “As vozes e os corpos”, Jacques Rancière analisa de que forma a figura do
poeta francês Arthur Rimbaud se viu congelada na imagem mitificada da fuga.
Paradoxalmente, essa figura tão festejada por sua inadequação ao congelamento e ao dogma,
viu-se detida como uma definição; e Rimbaud passou a ser lido de uma vez e para sempre
como o menino fujão, ou o poeta excepcional, iluminado. Constata Rancière que a
bibliografia sobre o poeta está marcada, então, por duas formas de não pensar essa fuga: por
um lado, uma leitura biográfica, atada à imagem do menino fujão – que Rimbaud
efetivamente foi –; e a segunda forma de praticar “o congelamento da imagem: o fujão é
também o vidente (...) visionário ou poeta” (RANCIERE: 1995, p. 41). Rancière faz questão
de assinalar o perigo desse tipo de leitura e tenta, por meio de uma complexa releitura dos
poemas, ver como essa fuga, sem deixar de ser tal, pode e deve ser pensada e descongelada.
Rancière está falando de um problema das leituras, das leituras preconcebidas para
chegar até a obra. Mas principalmente, daquelas que não aceitam os lugares comuns sobre
essa figura, e de uma forma ou outra colocam a poesia e o poeta num além inatingível, e que,
tentando modificar leituras paralisantes, caem em outras. Embora não adiante tentar trasladar
sem mediações as leituras sobre Rimbaud ao caso de Ana C., poderíamos pensar se não
houve, também no caso dela, várias formas de não pensar a sua fuga do mundo, o seu
suicídio, que foi sempre repetido mas poucas vezes lido na sua significação.
De um lado, as leituras biográficas que percorriam uma evolução cronológica, leituras
que retrospectivamente procuraram a morte final nos poemas e, portanto, começam e
terminam no suicídio. Constatam uma e outra vez a condição de menina suicida que Ana
efetivamente foi. De outro lado, o mito que proliferou na academia e na crítica, o sujeito
inapreensível mascarado nos diferentes eus do texto, a significação aberta, a voz em
permanente devir, e a autora – genial – que consegue se escorregar de qualquer definição.
Neste segundo congelamento se repete, como nos primeiros poemas de Armando, o
momento da fuga, do salto. Mas, se em Armando se tratava de uma repetição que adquiria
força poética, em textos posteriores se torna apenas um clichê, uma forma de não pensar essa
fuga, esse suicídio. Trata-se de uma imagem seca, de uma beleza só apreensível sob a
condição de matá-la. Como reconhece Ana Cristina Chiara, para a crítica – inclusive não
querendo – Ana C. passou a ser uma “linda borboleta fixada” (CHIARA, 2006, p. 31), e a
107
crítica, caindo na própria armadilha, foi “devorada e fixada na imagem da jovem poeta
genial”, abdicando da própria condição crítica (idem, p.32).
Existem vários exemplos do congelamento pela fuga. No livro Vésperas (2002), de
Adriana Lunardi, formado por nove contos cujo tema central é a morte de nove escritoras,
aparece “Ana C.”. No conto, um escritor homossexual agoniza no hospital por causa da AIDS
– a referência a Caio Fernando Abreu é bastante óbvia –, nesse limiar no que se encontra o
protagonista, entre a vida e morte, o espectro de Ana Cristina Cesar aparece
intermitentemente, na lógica da alucinação, para acompanhá-lo no ingresso à morte. O relato
tem dois setores claramente delimitados, dos níveis ficcionais. Um que corresponderia ao
mundo real do conto, onde estão: doente, enfermeira, médicos e hospital; e o mundo da
alucinação, do delírio, ou da ficcionalização da morte: onde só está o espectro ‘frio’ de Ana.
Para maior claridade das diferenças, Lunardi descreve mudanças de cores na passagem entre
um e outro nível, anulando toda possível ambigüidade ou confusão: muda a luz sobre os
objetos – âmbar – e a percepção do protagonista. Lunardi embaralha os limites ficcionais, mas
não os fusiona, nem os confunde.
42
Ou seja, o conto não coloca em questão os limites do
fantástico, e, embora traga referentes reais como Ana C. e Caio Fernado Abreu, eles entram
como personagens, ficcionalizados, e não se trabalha com eles aproveitando a sua produção
literária, nem se modificam as imagens estereotipadas desses escritores.
Avancemos na indagação do lugar dado a Ana C., no conto: que imagem aqui se
traça? A descrição de Ana e a sua situação no relato não fazem senão duplicar os traços
característicos mais básicos. Se descreve “o olhar eternamente encoberto de Ana C.”, se
insiste na brancura, na magreza, nos dedos finos e frios de Ana (LUNARDI, 2002, p.49).
Inclusive, como personagem, Ana apenas articula uma frase, que repete ou tenta imitar as suas
últimas poesias: “Abandone o navio das palavras” (idem), remarcando a insistência na
condição de morta permanente de Ana C., de contínua fugidia. Se reatualiza não só a imagem
da poeta bonita, morta, mas da propiciadora das saídas deste mundo, da abertura do real
cotidiano para o além, para outros significados.
O conto, longe de apresentar uma nova proposição, seja da concepção de conto
fantástico, seja da idéia de releitura das figuras de escritoras mortas, repete todos os clichês e
42
O conto também faz referência a “El sur”, de Jorge Luis Borges. Ali os planos do real e a alucinação também
são embaralhados no momento limiar da morte, e do trânsito do protagonista pelo hospital, mas aqui sim é
impossível, depois de determinado ponto do relato, definir qual dos relatos seria o grau zero da realidade
ficcional.
108
estereótipos, reafirmando-os. “Ana C. está igual à primeira vez que não vimos” (idem) diz o
protagonista, como se fosse um comentário ao próprio texto.
O que fazer com Ana C.? Musa Útil.
Las obras del pasado se pueden considerar formas para nuevos contenidos o materias primas
para nuevas formaciones. Pueden revisarse, reelaborarse, reinterpretarse, rehacerse (...) Las
obras del pasado pueden quedarse dormidas, dejar de ser obras de arte; pueden despertar y
adoptar nueva vida de diversas maneras. Componen, así, un continuo de formas
metamórficas.
Jacques Rancière, “La revolución estética y sus resultados”.
Um belíssimo poema de Claudia Roquette-Pinto, “A lei da polis”, aparecido no livro
“Os dias gagos”, de 1991, é um balanço de ponta na análise da situação de Ana Cristina em
relação aos poetas que a sucederam. Se a década de 80, como diz Italo, marcou-se pelo culto à
poesia de Ana C. (MORICONI, 2002, p.127), parece interessante ver como esse culto foi, por
vezes, uma camisa de força:
a lei da pólis
ana cristina aflige: musa inútil
os suicidas cansam com seus exeunt
eu, vinte e um, as letras tão veredas
que precisava eleger fronteira
em outras frases, já despossuídas
o fato é que
ana c.
o tempo não coube você
e antes que o nosso desejo
aportasse nos teus telegramas
vieram os calhordas solenes
de sovaco-dicionário
e umas 3 divas míopes
com incenso e veleidades
namorar tua ausência:
“elegia para a – quase! – leila diniz da poesia nacional”.
estou farta do lirismo comedido
tão afeito à geografia umbilical!
alguém já disse: “o verso livre requer ouvido infalível”
mas não aqui:
à sombra dos coturnos floresceram uns cogumelos
e para ter a eternidade é só
cair sem deixar testamento
ou a chance de te maltratarem o verso
salve, e adeus, mana cristina Cesar:
você nos desistiu.
nós não te enterraremos.
109
O poema parece se dar como um divisor de águas na análise que vem sendo feita.
Roquete-Pinto faz uma colocação clara do peso da tradição e das aporias na construção das
figuras de escritores.
Ana Cristina, no primeiro verso, é rejeitada com o forte adjetivo: inútil. Mas trata-se
de um oximóron: musa inútil. Como poderia uma ser inútil se, por definição, só é musa quem
protege a arte e é fonte da inspiração? Ana C. se tornou inútil por ser estéril, musa, só inspirou
repetições; musa, sem querer ela, se tornou difícil escapar da sua influência nociva. A
consagração de Ana e o seu culto poético chegava a um ponto tal que a repetição das suas
qualidades, estimulada por acadêmicos e poetas – ‘os calhordas solenes’, ‘3 divas míopes’ –,
através de elegias que não falavam tanto da poesia nem de Ana quanto da sua ausência, que
foi esterilizada.
Roquette-Pinto também coloca o interesse mórbido pelos mortos jovens como fonte
dessa inutilidade; o nome catalisador do movimento sardônico é o de Leila Diniz, imagem
oposta à de uma Ana pura e recatada, mas ao mesmo tempo, morta tragicamente na plenitude
da sua carreira. Avançando, o poema identifica duas armadilhas da consagração relativas a
morte: cair sem deixar testamento, isto é, sem deixar um testemunho abre a porta das versões
canonizadores, em qualquer sentido que elas estejam dirigidas. Mas também, uma leitura
equívoca da poesia, o verso é mal interpretado e mal tratado, pois já não existe o guardião da
lei.
Voltemos até o título: “a lei da polis” é outra, outra agora. Como “a lei do grupo” de
Ana C.,
43
que ainda não tinha sido editado quando Roquette-Pinto escreve o seu, pelo que
duvidamos se trate de uma referência intertextual direta. Roquette-Pinto e Ana, então,
compartilham a preocupação pelas formas de consagração e de tratamento das figuras do
passado.
Camisa de força. Musa inútil. No entanto, não tão inútil porque aqui temos um poema
ainda sob o signo de Ana, que discute a tradição herdada, que tensiona a própria linguagem,
que introduz problemáticas novas. Ana é mana, ainda: estabelece-se certa cumplicidade
reconhecendo, “você nos desistiu/ nós não te enterraremos”. Em um movimento complexo de
participação e ironia, Roquette-Pinto se inclui entre os canonizadores e os reprodutores – os
influídos, possessos – de Ana C.; mas também, se faz irmã de Ana, aprovando a desistência
do futuro de Ana, não numa remissão ao momento do suicídio, mas interpretando essa saída
43
Ver Capítulo I desta dissertação, p. 45.
110
na relação que propõe com o campo literário, como um gesto de tomada de posição de Ana
em relação ao campo que viria, cruzado por olhares dirigidos aos eus, como se isso bastasse
para se posicionar, como se bastasse achar individualidades. Como diria Denílson Lopes, Ana
despediu-se “do futuro povoado por reality shows (...) testimonios, críticas íntimas,
autoetnografias, autoficções” (LOPES, 2007, p.178).
“a lei da polis” seria um divisor de águas, então, porque inaugura uma nova atitude
perante o mito Ana C.. Se Ana é uma musa congelada é inútil, o melhor é, com essa imagem,
fazer poemas: utilizar a inútil Ana. Diz Agambem que profanar o improfanável seria a tarefa
da geração que vem, e o Roquette-Pinto encena o conflito: “eu, vinte e um, as letras tão
veredas”. Roquette-Pinto faz de Ana C., das tramas da sua consagração e fama, uma musa
útil. A reintegra no uso. Como queria Silviano. Como diz Didi-Huberman, as obras já “no
tienen que representar, sino ser, trabajar” (2006 [2], p. 269). A noção de uso se trona, ao
mesmo tempo, conceito e programa. Como assinala Joseph Kosuth, em “Arte depois da
filosofia”, um conhecido ensaio sobre arte conceitual, depois de Duchamp a arte só existiria
conceitualmente, sendo que as obras partem de idéias que necessariamente são um comentário
lançado à própria arte, questionamento que seria a característica principal da arte
contemporânea:
Os artistas questionam a natureza da arte ao apresentar novas proposições
quanto à sua natureza. [...] Uma obra de arte é uma proposição, apresentada dentro do
contexto da arte como um comentário da própria arte (KOSUTH, 1976, p.11).
O valor da obra estaria dado, então, por sua capacidade de intervenção direta e de
desestabilização do campo artístico, do campo discursivo, provocando a redefinição do
circuito e a reflexão crítica. Recolocando, aliás, a dicotomia arte/crítica. Portanto, e segundo
continua Kosuth, o artista contemporâneo carregaria uma dupla preocupação: a possibilidade
do desenvolvimento conceitual da arte e a realização desse crescimento em proposições – isto
é, obras – que sejam conseqüentes com esse trabalho crítico. A necessidade crítica da obra
não responde a um afã de negação da arte anterior, não se enquadraria simplesmente na
tradição de ruptura, mas trataria da sua recuperação vital.
A arte ‘vive’ ao influenciar novos trabalhos e não por existir como resíduo
físico das idéias de um artista. A razão por que diferentes artistas do passado são
‘revividos’ é que algum aspecto de seu trabalho se torna ‘utilizável’ por artistas vivos
(KOSUTH, 1976, p.11).
Essa revitalização se encontra no ponto de fuga do congelamento da significação, e
das temidas idéias preconcebidas. A arte anterior não tanto influencia, quanto é utilizada na
111
articulação de uma nova produção. No entanto, o ingresso das outras vozes vivificadas não
produz formas acabadas, tal como acontece com a abertura dos significados na alegoria
benjaminiana. Didi-Huberman, em Lo que vemos, lo que nos mira, analisando as propostas de
Benjamin, diria que:
Existe de hecho una estructura en obra en las imágenes dialécticas, pero ella
no produce formas bien formadas, estables o regulares: produce formas en formación,
transformaciones, por lo tanto efectos de perpetuas deformaciones (DIDI-
HUBERMAN, 2006 [2], p.114).
Essas imagens são originariamente dialéticas, são as obras críticas de Kosuth, já que
não se fariam como uma simples transcrição, mas como uma permanente constituição daquele
elemento do passado trazido a uma nova obra. Já não é possível nem a novidade absoluta,
nem uma volta pura às fontes; só se reconvoca aquilo que foi visto, lido, aprendido, para
ultrapassá-lo. Reconvocado em sua potencialidade performática, para produzir formas em
formação.
A poesia de Ana participava da ética e da estética da forma aberta, da forma em
formação, das fronteiras porosas, e alguns dos que trabalharam com a sua obra dentro dessa
lógica, e não a repetiram, mas a acordaram, também formam parte desse ‘continuo’ em
permanente formação. Se o poema de Roquette-Pinto, pela forma escolhida por ser um poema
com uma tese mais definida, quase um meta-poema, ainda toma a Ana C. como tema, também
dá as bases programáticas sobre a necessidade de usar essa tradição, para torná-la útil.
Acordar Ana. Por exemplo, num poema de Insones (2002), “Seqüência”, a artista
carioca Laura Erber se lança a fazer dos de Ana Cristina textos escrevíveis.
seqüência
d’aprés Ana Cristina Cesar
nenhuma teoria obscura do desejo
nenhuma teoria
tudo tão simples como isto
tiros na noite
cochilo um pensamento e outro
atravesso pontes
o ônibus vermelho e o coração repete
a mesma velha estória te
persegue
perco o gran finale
passeio com dois olhos sobre teus ombros
recorto a cidade por todos os lados
desfaço o trato ou finjo que esqueço?
esmerilho o corpo
anoto a palavra que congela
esqueço o caderno no passeio público
tento acompanhar a seqüência sem perder o pique:
(...)
112
a trama é simples
tão simples que
adormeço
Em primeiro lugar, trata-se de uma seqüência, sem uma organização narrativa
concatenada logicamente, mas como um travelling fílmico: tal como aparece em alguns dos
poemas mais emblemáticos de Ana. Por exemplo, no primeiro poema de A teus pés (pp.35-
36):
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três
[barcos colados imóveis no meio.
(ATP, p.35-36)
“Seqüência”, colocado horizontalmente na página, estrutura os versos no ritmo de
imagens entrando pela janela do ônibus, também ritmadas pelo cochilar do sujeito, e uma
velha história/estória que também chega de forma intermitente, como se essa velha estória,
de gran finale, fosse o livro aberto durante a viagem, percebido por retalhos.
Além da temporalidade das imagens, o trabalho com Ana C. se dá em um diálogo
com a figura herdada na sua totalidade, não apenas com a poesia. O d´après não é
simplesmente uma citação de um verso de Ana, nem uma cópia do procedimento em vozes,
mas parece se dar em um cruzamento de todos eles: a referência é longínqua, porém, tinge o
poema todo. E nesse trabalho, embora com a citação expressa no d’après, encontramos a
posição que Erber toma a respeito de Ana C.
O poema abdica, logo no primeiro verso, de toda teoria, de toda procura de
significados ocultos ou obscuros, principalmente, teorias centradas na descoberta de desejos
obscuros ou ocultos. “a trama é simples/ tão simples que/ adormeço”, como adormeceríamos
no ônibus, rabiscando, o livro no nosso colo, enquanto fora as imagens se sucedem.
Como colocávamos com Ranciére, na epígrafe, as obras podem acordar ou deixar
dormir as obras do passado. Perante os poemas insones de Erber cabe perguntar: quem
adormece, quem tem insônia, quem acordou com essa nova escrita? A simplicidade da trama,
antes de adormecer, deixou que Erber desentranhasse um poema. “Seqüência” vai realizando
sem método uma performance sobre Ana C., como uma totalidade, como se funcionasse
realmente como musa propiciadora, cuja presença no texto é apenas uma sombra, uma
pegada. Erber escreveu a sua leitura de Ana C., enquanto os insones estão acordados e
colocam a trabalhar a poesia do passado.
113
Os fãs de Ana C.
Houve outras formas de colocar Ana C. a proliferar, inclusive, mantendo a identidade
e seus mitos, mas mostrando o seu ridículo via humor. O tom sardônico aparece em um texto
de Eduardo Haak (2005), que vai deconstruir ao mesmo tempo que reafirmar que existe o
mito Ana C., explicitando a construção do mito na extrapolação da ficcionalidade. Diz o
texto:
A escritora Ana Cristina Cesar e a Kátia, aquela cantora cega que fez
sucesso no fim dos anos 70 e que supostamente era afilhada de Roberto Carlos, eram
a mesma pessoa. A conclusão é do historiador e crítico literário Thomas J. Cuntprick,
que acaba de lançar o livro Como Ana C. se Tornou Kátia, a Cantora Cega, editado
pela Haak & Haak Press, 218 páginas, R$ 36,00.
44
Eduardo Haak, jovem autor, que tem a internet como suporte predileto, escreve a
resenha de um livro falso, que desvendaria dados ocultos do passado de Ana C. Para quem
topa com o texto num passeio virtual, é inevitável pular para procura do novo livro.
Rapidamente respiramos, sabendo que caímos numa piada. A brincadeira não vai longe, não
pretende ir longe, mas é efetiva, e demonstra um conhecimento claro, por parte do autor, das
44
Transcrevo o resto do pequeno texto de Haak: “Fruto de três anos de pesquisas, o livro se foca no período da
carreira da escritora que vai de 1978 e 1980, tempo em que Ana supostamente fez mestrado em tradução literária
na Essex University, Inglaterra, mas que na verdade, segundo o autor, foi ocupado de outra e insuspeitada forma.
‘Ana C., num dado momento de sua vida, sentiu-se fortemente tentada a escrever letras de canções românticas.
Ela sabia que não havia espaço para o romantismo desabrido em seu trabalho como Ana C., daí ela inventou a
personagem da Kátia, uma cantora cega, afilhada do Roberto Carlos, e pôde dar vazão a seu lado cafona’, diz o
autor. Ana C., nesse período, escreveu coisas como, Todo dia ao amanhecer/ quanto mais tento te esquecer/ mais
me lembro/ não tem jeito, e se apresentou cantando em programas como Globo de Ouro e Buzina do Chacrinha.
Nenhum de seus conhecidos atentou para a óbvia igualdade física entre Ana C. e Kátia. ‘Antes de qualquer coisa,
não pegava bem para o pessoal da PUC naquela época ver na TV programas de auditório. O fato é que ninguém
entre seus conhecidos reconheceu Ana C. naquela nova personificação’, explica o autor. Esse episódio até então
ignorado da biografia de Ana C. foi revelado a Thomas J. Cuntprick por uma fonte que quer se manter anônima.
‘Posso dizer apenas que ele era um professor de semiótica da PUC que, na época, participou incógnito do
concurso O cantor mascarado, no programa do Chacrinha.’ Foi numa dessas apresentações que o professor viu
'Kátia' nos bastidores do auditório e a reconheceu como Ana C., mas, por esprit du corps, resolveu guardar o
segredo por quase 30 anos.”
114
problemáticas centrais da obra de Ana C. e na construção do seu personagem por ela mesma e
pela crítica. Cada frase esconde um tema caro a Ana C., assim como o texto todo se dá em
torno da problemática do autor, e a construção de identidades paralelas para dar lugar a
diferentes personalidades de um mesmo sujeito.
Haak reafirma Ana C. como mito de grande poeta pelo fato de parodiar a sua figura,
de explorar as informações compartilhadas. A torção nos significados dados chega através do
fato de que as brincadeiras apontam, desde todos os flancos e tipos de discursos –
testemunhos de contemporâneos, escritura poética, exercício editorial e biográfico – à
falseabilidade de toda fama e construção identitária, tanto do mito de poeta quanto dos
possíveis contra-mitos.
Talvez o dado mais curioso seja que a anedota que motiva o texto, a descoberta de que
Ana C. e Kátia eram a mesma pessoa, leva a uma pergunta sobre a qualidade do texto de Ana.
Nem nas leituras feitas atendendo aos dados biográficos, nem as leituras críticas, apareceu a
possibilidade de ler a poética de Ana C. em relação à cultura popular. A colocação não fica
completamente fora de lugar se levarmos em conta alguns trechos de poemas, de cunho
propositalmente sentimentaloide, assim como a discussão pela poesia fácil – levantada, aliás,
por Silviano Santiago em “Singular e anônimo” –, ou os poemas ready-made, como “Atrás
dos olhos das meninas sérias”, cópia de um trecho de Manuel Bandeira ou “O homem Público
N°1”, fragmento de uma entrevista com Carlos Drummond que depois fora versificado. Todos
esses fatores, típicos da cultura e a arte pop, mostram a possibilidade de pensar a obra de Ana
C. sob essa luz e, inclusive, a sua figura e o seu sucesso como uma pop star das letras, com
admiradores que escrevem sobre ela.
Ana C. estrela pop; Ana C. de duas caras. Essas proposições assinaladas por Haak
também tinham sido trabalhadas, embora em um formato muito diferenciado, por Bernardo
Carvalho em Teatro (1998).
Lembremos, muito rapidamente, a trama do romance Teatro. O texto está dividido em
duas partes: na primeira, “Os sãos”, o protagonista e narrador, Daniel, relata seu envolvimento
numa trama de intrigas em torno a uma série de atentados, onde se oculta um complexo jogo
de identidades, e de cruzamentos da capacidade da escrita de criar realidades nas quais a
sociedade acredita. Daniel decide escapar da sociedade dos sãos, e retorna ao lugar da miséria
e a insanidade da qual os pais tinham fugido. Nesta primeira parte, a personagem “Ana C.” –
para quem usaremos as aspas – é uma atriz pornô retirada, e o grande amor de Daniel, quem
repete de forma insistente a ilusão truncada de ter formado com ela uma família, se não
115
tivesse que fugir. Já na segunda parte, “O meu nome”, trata-se de outro thriller em torno da
descoberta de outro crime. “Ana C.” é aqui um homossexual, estrela de filmes pornô, quase
mítica. Ele esteve obscuramente envolvido no assassinato sobre o qual o protagonista,
chamado também Daniel, deve procurar informação. Entretanto, a principal característica de
“Ana C.” é ser personagem e musa de estórias imaginadas por seus fãs, tratados por uma
psiquiatra à que Daniel consulta. Nessa trama, “Os sãos” – a primeira parte de Teatro
revela-se como um desses textos feitos por um dos fanáticos de “Ana C.”.
Algumas propostas de Teatro parecem essenciais para compreender a sua colocação
em relação ao processo de consagração de Ana C.
Primeiro, fica exposto o jogo com o nome “Ana C.”, como uma cifra que remete
conflituosamente a uma referência heterogênea. Nem “Ana C.”, nem nenhum outro nome,
servem para identificar sem equívocos uma identidade homogênea, mas ainda arrastam a idéia
de que alguma vez se acreditou nessa capacidade – daqui, também, que todas as resenhas do
romance chamem a atenção sobre o fato de o nome não identificar, como se houvesse uma
nostalgia na confiabilidade do nome faz muito tempo perdida.
No entanto, em Teatro, essa nostalgia vira virtude: os nomes protegem da
possibilidade de identificar, são nomes de guerra não para os personagens, mas para o próprio
romance, que, fazendo uso da falibilidade dos nomes, tem mais um elemento para não se
deixar prender em significados prévios, e deixa o fantástico proliferar à vontade.
Mas, para além do nome, no que tange a “Ana C.” e a sua relação com o processo de
consagração de Ana, poderíamos dizer que Teatro põe em evidência a importância da
“desaparição” no mito do “Ana C.” do romance. Para “Ana C.”, a estrela pornô pop, se
constata a “construção de uma identidade mítica em que a ameaça do desaparecimento era a
característica principal” (CARVALHO, 1998, p. 112). “Ana C.” encena de forma permanente
uma instabilidade, não apenas na sua personalidade, no seu gênero, mas na sua presença no
texto; ela/ele aparece e desaparece. Essa característica, entretanto, é também descrita como
um dos principais motivos de seu sucesso, e leva boa parte de seus fãs à loucura e à escritura.
Segundo explica a psiquiatra que trata os casos dos fãs, “Ana C.”, “era um caso típico de
dromomania [...] Impulsão para a fuga, impulsão mórbida para andar” (CARVALHO, 1998,
p.125). Os fanáticos escrevem histórias compensatórias, que tentam armar uma imagem
estável para compensar esta condição fugitiva, por um lado, e impalpável, por outro;
intocável, sempre.
Pelo que descrevem os relatos médicos sobre mais de um fã de Ana C., o que
os despertava para a loucura era justamente essa impessoalidade, essa condição
116
etérea do astro, como me disse a psiquiatra - ‘a construção de uma sedução
permanente, porém jamais realizável, virtual’ (CARVALHO, 1998, p.97).
As construções fanáticas, levadas ao extremo da paranóia, participam do mesmo jogo
de necessidade de estabilização que assinalávamos para crítica da poeta carioca.
Portanto, se Teatro desestabiliza todas as fronteiras, principalmente as que jogam entre
os diferentes níveis de realidade dentro do texto, não é essa desestabilização por si própria a
característica que poderia outorgar valor à nova narrativa. Mas, ao pensar nos materiais com
os quais essa desestabilização se faz possível, vemos que Teatro força o leitor a misturar dois
paradigmas literários que até então estavam separados no imaginário: os mitos
historiográficos, as figuras intocáveis, e o mundo ficcional: ficcionaliza as armadilhas que a
crítica monta para si própria. Resumindo, Bernardo Carvalho ficcionaliza o processo de
consagração de Ana C.
Assinalemos, por último, a mesma questão quase programática que levantamos a partir
do poema de Claudia Roquette-Pinto. “Se profanar significa restituir ao uso comum o que
havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está
voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável” (AGAMBEN, 2007, p.71). Cabe
a pergunta: como profanar, nessa era do espetáculo e do consumo extremos, o improfanável?
Como profanar Ana C. se, de um lado, toda a sua produção parece ser lançada desde as
editoras para ser consumida – e não usada – tal e como é enviada; enquanto do outro, essa
imagem não para de fugir e se faz inapreensível?
Teatro abre uma porta à profanação do nome Ana C. No entanto, o nome “Ana C.” em
Teatro, como diria Tâmara Kamenszain sobre a produção poética argentina contemporânea, já
não opera “como un guiño de complicidad literária”, e adquire “sobre la página, un valor de
uso” (KAMENSZAIN, 2007, p.122). É impossível pensar o ingresso desse “Ana C.” apenas
como uma homenagem ou uma evocação da pessoa de Ana, tal como acontecia nos poemas
de Armando, inclusive, nos de Sebastião Uchoa Leite, ou Italo, e claramente no conto de
Lunardi. “Es que el concepto de homenaje sigue suponiendo la separación de objeto. Aquí, en
cambio, parece haber una apropiación casi infantil” (KAMENSZAIN, 2007, p.124). Bernardo
Carvalho – do mesmo modo que Marcelo Mirisola em Acaju (2000), com sua oblíqua
referência a Ana g. – vai fazer de Ana C. – do mito, com todas as camadas de significação que
ele traz, pois “havia alguma verdade no mito” (CARVALHO, 1998, p.96) – um elemento
mais na escrita.
117
“Ana C.”, a personagem do romance, significativamente, tem dois tipos de tratamento:
na primeira parte é uma mulher, intocável, pelo narrador. Na segunda, é um ator de filmes
pornográficos homossexuais que não apenas é tocado, mas ‘enrabado’ em cenas com alta
carga erótica quase violenta. Em ambos os casos existe uma tensão entre a imagem
inalcançável, quase de ídolo pop, e o contraste com a violência e a carnalidade na qual
participa. Diz Denílson Lopes, deixando em suspenso também:
Talvez é para investir contra o mito que Bernardo Carvalho em Teatro (1998)
dá o nome de Ana C. a um ator de filmes pornográficos que declamava poemas que
ninguém ouvia enquanto era enrabado. Quem há de saber? Nem mito, nem anti-mito.
Fica uma outra imagem, um fantasma (LOPES, 2007, p.177).
“Ana C.” no romance só faz referência à poeta de óculos de forma indireta, mediada e
problemática; mas cabe assinalar que, sim, a/o “Ana C.” de Teatro remete a Ana C. entanto
complexo de discursos, ou seja, a alusão se faz ao tecido de escritos formado em torno da
poeta e que fora levantado até aqui. Como, diz José Castello:
inspirou-se não apenas nela, mas também na sucessão de imagens a ela superpostas,
para criar uma personagem igualmente sufocada em máscaras – a sua Ana C. O
romance de Bernardo é sarcástico e pega o mito de Ana C. para desmontá-lo.
(CASTELLO, 1999, p.196).
Se o nome e a figura de Ana C. são tomados e trabalhados, tirados das vitrines para
ser material do romance, e se o mito pode ser desmontado, com ele desmonta-se, como
dizíamos, o processo de consagração. Transparecem, embora sob a ficcionalização, os seus
jogos de força, as formas interessadas e parciais de ler e de escrever sobre Ana C.. Teatro
encena o tecido de palcos das identidades, os encantos e os desencantos com a capacidade de
desaparecer. Teatro encena, por meio de uma história estranha à poeta Ana C., a necessidade
dos leitores de criar narrativas compensatórias, para entender o caso de amor com Ana C.,
para que ela volte por entre as letras, e fique aqui.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos
Recapitulação e escritas possíveis
119
Até aqui o percurso por entre as linhas de força que atravessaram e configuraram a
figura consagrada de Ana C..
Dar uma conclusão a esse roteiro seria quase impossível e, de alguma forma, iria contra
uma visão do processo como uma trama de leituras que ainda está se desenvolvendo. Seria
difícil concluir, também, porque no transcurso do trabalho foi se evidenciando a
impossibilidade de homogeneizar ou colocar esses discursos numa linha progressiva.
No entanto, podemos repassar as leituras que estiveram mais presentes nas modulações
da imagem de Ana. Em primeiro lugar, as colocações da poeta, como produtora e responsável
dos seus textos, vão influir nas leituras posteriores; embora partamos do pressuposto de que as
leituras (re)configuram o próprio objeto, consideramos que esse objeto não é inerte em
relação às leituras e também faz propostas. Parafraseando a epígrafe de Derrida: viva, Ana C.
não se reduzia ao que os outros podiam pensar, crer saber, lembrar ou escrever dela; morta,
não devemos reduzi-la a esses discursos, porém sabendo que só a discursos poderemos aceder
para tentar vislumbrá-la.
Recapitulemos. A proposta de Ana foi apresentada – através dos seus diferentes textos –
em paralelo às outras narrativas feitas sobre sua obra e figura. Foram aqui identificadas
algumas linhas de força no processo de consagração. Assim, no primeiro capítulo, entre os
discursos sobre o campo literário em emergência dos anos 70, as primeiras leituras críticas
apontaram um dado que se tornaria lugar comum na crítica posterior sobre Ana C. que
tentasse fazer uma leitura levando em conta o contexto geracional: a diferença, a
excepcionalidade de Ana. A segunda grande linha, que levantamos no segundo capítulo, foi a
imagem construída através das edições póstumas, que tentaram controlar a recepção, traçando
uma biografia marcada pela poesia como sina desde o nascimento, e ligando essa biografia
aos textos. Essa imagem hagiográfica é o ponto nuclear do mito em relação ao qual se
posicionariam leituras posteriores. No último capítulo, descrevemos sinuosamente as linhas
traçadas pela crítica acadêmica e os textos literários que se apropriaram da figura e da
assinatura de Ana como problemática ou personagem.
As armadilhas da dispersão
Não podemos concluir, mas podemos indicar algumas questões que dão uma visão geral
das tramas da consagração de Ana. Se os anteriormente apontados foram os discursos mais
120
significativos no processo, entre eles parece haver um movimento recorrente e tenso entre a
dispersão e a captura: vou saltar e me pegam pelo pé. Movimento que se acha tanto no seio da
produção de Ana C. – onde se dá numa permanente tensão entre aparição e desaparição, entre
vontade de deixar um testemunho e tentativa de desarrumar as pistas –, quanto nas leituras da
sua obra – sejam aquelas feitas pela família, pela mídia, pelos editores ou pela crítica literária.
Como assinalara Martin Jay, o elogio da dispersão ou da dissolução é parte da estética
mais cara ao pós-estruturalismo. Estética que alicerça, por sua vez, uma ética. Tal como
descrevia Foucault: trata-se de uma moral de não permitir que as coisas se tomem como
naturais ou indiscutíveis, “no la ética de la transgresión, sino la ética del desvincularse de las
formas constituídas” (apud. JAY, 2003, p. 83). A dispersão é proposta pela obra de Ana, e
também por muitas das leituras que a escolheram como objeto – como tentamos mostrar no
último capítulo –, inclusive, este meu texto.
Seria pretensioso tentar ler a colocação do meu escrito no meio de todos os outros na
trama das tomadas de posição. Mas também seria um grande descuido não fazê-lo. O trabalho
rapidamente revelou as minhas filiações tanto na estética quanto na ética do desvincular-se.
Tentei, no decorrer do texto, realizar o programa que assinalávamos junto a Reinaldo
Marques: tornar mais transparentes os processos de canonização ou consagração literária, os
processos de arquivização e de escolha, “desnaturalizar o que se toma como natural, orgânico,
(...) desvelando seu caráter de universo fragmentário, de artifício, de construção social, numa
atitude típica da pós-modernidade, que desconfia do que se presume natural, da verdade
absoluta” (MARQUES, 2000, p.35). Assim, o objetivo, inclusive desde antes de começar a
escrita, foi percorrer as leituras de forma crítica, analisando – para movimentar – certos
lugares comuns na crítica. Traços de Ana C. que se deram por naturais mas que foram, muitas
vezes, armadilhas colocadas pelos interesses de cada um dos discursos e dos leitores, sem
com isso significar que haveria um interesse mais válido ou mais imparcial pairando sobre os
demais.
Nesse sentido – querendo ou não –, o presente trabalho encena a mesma pergunta
encenada pela obra de Ana Cristina: existe a possibilidade de evitar essa vinculação? Como
desvincular-se do desvinculado? Qual o limite da dispersão ou a desaparição? Como não
capturar essa fuga? O encanto do desvincular-se, opção estética e ética, parece ter sido um
preço alto que pagaram alguns artistas, como Ana. Que radicalizou a desaparição e a escrita
num único movimento suicida.
121
Eis a armadilha. O perigo da submissão à indecidibilidade infinita da linguagem e a
suspensão indefinida do sentido, e o perigo contrário e tanto maior de decidir, definir e fechar
os sentidos (JAY, 2003, p.89).
A biblioteca emocional: escritas em progresso
Martin Jay avança sobre a ética do pós-estructuralismo, e diz que se do ponto de vista do
indivíduo tal moral sugere um si próprio inestável “que se niega a quedar petrificado em um
personaje totalizador” (JAY, 2003, p.93); do ponto de vista comunitário, a sociedade possível
seria muito mais difícil de se delinear. Jay traz, então, propostas de comunidades como
aquelas imaginadas por Bataille – a conjuração sagrada, dispendiosa e extática -; ou Blanchot,
que falava da comunidade inconfessável; ou a ‘communauté desoeuvrée’ proposta por Jean-
Luc Nancy.
Em todo caso, outras expressões de comunidades possíveis apareceram no transcurso do
nosso analise: chame-se convívio, família, amizade, escolhas estéticas, citação, escrita-em-
vozes. Chegamos, assim, a outro traço que percorre os diferentes capítulos, as diferentes
narrativas sobre Ana e entendo que atravessa todo o meu texto. A trama afetiva: ela configura
a imparcialidade e a verdade –particular, verdade singular e anônima – de cada uma das
versões sobre Ana.
Quando pensamos numa comunidade em obras, marcada pelas escolhas afetivas, a
ausência de Ana C. cobra novos sentidos. Como diz Silvio Mattoni, no prólogo a La
conjuración sagrada, de George Bataille: “La amistad – que parece una relación social sin
peso específico, casi relegada a la esfera del entretenimiento o la banalidad – cuando roza el
objeto que la determina, y que es a la vez la muerte propia y la del otro, puede ser la promesa
de una fiesta común, celebración de un dios polícefalo” (MATTONI, 2003, p.8).
O deus policéfalo, que tem muitas cabeças com muitas bocas e vozes, transitoriamente,
adquire um corpo único em cada texto. Algaravia de vozes, dizia Italo Moriconi. Biblioteca
emocional era o nome escolhido por Ana: “Entendo quando Borges diz que imagina o paraíso
como uma biblioteca infinita, mas como uma biblioteca emocional, e não como um blefe de
erudito. Queria eliminar todo ranço de teoria.” (CI, p. 282).
Na escrita de Ana C., nas escritas que tramaram a sua consagração, figura-se esse deus
policéfalo. Como ela dizia, como eu gostaria de dizer agora:
122
I
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver
seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.
II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no
meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.
Escrita em progresso. Leitura em progresso. “Tenho arrumado os livros/ Tiro de uma
prateleira sem ordem e coloco em outra com ordem. Ficam espaços vazios” (ID, p. 193).
Biblioteca em progresso. Não para começar do zero ainda outra vez, mas para que quando o
concreto cair, quando a forma se deformar, possamos – partindo desses restos, relíquias,
pegadas, sangue de poetas – fazer uma nova, precária, construção. E assim, devir. Trabalhar,
num arquivo como canteiro de obras, uma biblioteca emocional em permanente construção.
As mãos enluvadas de Ana C. acercam-se de seus próprios escombros.
Quem é Ana C.?
Voltemos à nossa pergunta primeira: quem é, hoje, para nós, Ana C.? A resposta
possível seria: Ana C. é uma série de discursos e mais um pouco. Esse pouco foi descrito aqui
com diferentes nomes: as pegadas da sua desaparição nos textos, as relíquias a serem
vitalizadas, o rastro prateado da lesma... Mas, agora, quem é Ana C. não podemos nem
queremos saber. O centro da pergunta se trasladou: já não está em Ana C., mas no nós. Que
leitores podemos e queremos ser?
Como diz Derrida, o chamado trabalho do luto, cheio de armadilhas, fica como o
problema a resolver, ativamente. Escrever. Chamar Ana, despertá-la, trazê-la para entre as
letras e as páginas, mais uma vez, para compreendê-la, para retê-la. E quando Ana chegar,
misturada entre as vozes que a evocam, melhor brincar com ela, melhor tocá-la, para lutar
contra sua petrificação.
123
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Foto de Cecília Leal - Capa de Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano,
1999.
Figura 2, p. 17
Cópia digital de Reprodução de fragmento de carta de Ana Cristina Cesar – in
Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p.200.
Figura 3, p. 45
Fotos de Zeca Guimarães – in Nuvem cigana – Poesia e Delírio no Rio dos Anos 70 (org.
Sergio Cohn). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007, p.103.
Figura 4, p. 61
Foto Waldo Cesar (1954) – in Inéditos e dispersos. (Armando Freitas Filho org.) São Paulo:
Brasiliense, 1985, p. 146.
Figura 5, p. 67
Foto de Cecília Leal – in 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001, p. 267.
Figuras 6 e 7, p. 67
Fotos de Cecília Leal – in Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999,
p.107 e pp.108-9, respectivamente.
Figura 8, p. 68
Foto de álbum familiar – in Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999,
p.145.
Figura 9, p. 68
Foto – in Álbum de retazos. Buenos Aires: Corregidor, 2006, p.285.
133
Figura 10, p. 68
Foto – in Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p.313.
134
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