“Ana C.” nos permite referir essa tensão que perpassa toda a produção de Ana em
diferentes modulações, pois estaria num “entre” a pessoa e o texto, pois “Ana C.” não seria
apenas o índice que remete a uma biografia ou a uma psicologia individual, mas à rede
conceitual, formada pelo acervo Moreira Salles, pelos textos assinados por Ana que não estão
ali, mas também por todo texto que a ela se referir, pelas fofocas e boatos que a tem no centro,
pelos retalhos de vivências que se tecem nas memórias de quem viveu com ela, pelos retalhos
de interpretações de seus leitores, e pelo punctum dessas representações que estaria apontando
para a pessoa Ana Cristina Cesar, que morreu no ano 1983 e é citada com afeto.
Avancemos mais um pouco na questão do autor, e a possibilidade de entender a sua
localização num entre a pessoa e o(s) texto(s), entre para o que escolhemos o significante
“Ana C.”.
Giorgio Agamben, em “O autor como gesto”, do seu livro Profanações, retoma a
discussão sobre o autor que se inicia com as respostas ao texto de Michel Foucault. Ali
Agamben vai tentar resolver o já assinalado paradoxo, a presença-ausência do autor no texto:
“o mesmo gesto que nega qualquer relevância à identidade do autor afirma, no entanto, a sua
irredutível necessidade” (2007, p.55). Conforme Agamben, a resposta se encontraria em uma
única afirmação de Foucault no livro A vida dos homens infames de 1982, sendo,
originalmente, texto introdutório a uma série de documentos de internação, pelos quais
tornou-se evidente que essas ‘vidas’ percorridas no livro se fazem visíveis, se realizam, ao
mesmo tempo que são capturadas pelo discurso do poder, que as declara infames; ou seja, não
existem umas sem o outro, vidas e discurso. Foucault esclarece que os textos com os quais ele
vai trabalhar não são biografias nem retratos que falam dessas vidas infames, mas textos que
revelam como essas vidas foram “postas em jogo” pelos agentes das diferentes escritas.
Citemos Agamben e, com ele, Foucault, que se perguntam sobre a referência dos nomes de
homens e mulheres infames:
Onde está Mathurin Milan? Onde está Jean-Antoine Touzard? Não nas
lacônicas observações que registram a sua presença no arquivo da infâmia, nem
sequer fora do arquivo, numa realidade biográfica de que literalmente nada sabemos.
Eles estão no umbral do texto em que foram postos em jogo (...) “Vidas reais foram
‘postas em jogo’ (jouées)” é, nesse contexto, uma expressão ambígua, que as aspas
procuram sublinhar. (...) Quem pôs em jogo as vidas? Os próprios homens infames,
abandonando-se sem reservas (...)? Ou então, como parece mais provável, a
conspiração de familiares, funcionários anônimos, de chanceleres e policiais, que
levou à internação dos mesmos? A vida infame não parece pertencer integralmente
nem a uns nem a outros, nem aos registros dos nomes que no final deverão responder
por isso, nem aos funcionários do poder que, em todo caso, e no final das contas,
decidirão a respeito dela. Ela é apenas jogada, nunca possuída, nunca representada,
nunca dita – por isso ela é o lugar possível, mas vazio, de uma ética, de uma forma de
vida. (AGAMBEN, 2007, p.60.)
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