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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
“O bairro fala”: conflitos, moralidades e
justiça no conurbano bonaerense
Lucía Eilbaum
Orientador: Roberto Kant de Lima
Co-orientadora: Sofia Tiscornia
Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade
Federal Fluminense como
requisito parcial para obtenção do
título de doutor.
Niterói
2010
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Banca Examinadora
Professor Roberto Kant de Lima
Universidade Federal Fluminense (Orientador)
Professora Sofia Tiscornia
Universidade de Buenos Aires (Co-Orientadora)
Dr. Michel Misse
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dra. Maria Victoria Pita
Universidade de Buenos Aires
Dr. Daniel Schroeter Simião
Universidade de Brasília
Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Universidade Federal Fluminense
Suplentes:
Dra. Simoni Lahud Guedes
Universidade Federal Fluminense
Dra. Jacqueline Sinhoretto
Universidade Federal de São Carlos
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Resumo
Esta tese aborda as formas de administração de justiça no conurbano bonaerense, na
Argentina, em especial aquelas relativas ao processo de investigação e julgamento dos
crimes. Busca identificar, nos casos específicos aqui relatados, como os agentes
judiciais, a partir de suas histórias de vida, de suas ideologias profissionais e políticas,
de suas posições institucionais e sociais, interagem com as narrativas e histórias de vida
das pessoas envolvidas, com a natureza dos conflitos, com os outros agentes
profissionais e com as normas legais, a fim de orientar a investigação, construir e
interpretar as “provas” e tomar as decisões correspondentes. Dessa forma, busca-se dar
conta da relação entre a administração de justiça e as possíveis moralidades e interesses
que informam sua prática.
As questões tratadas nesta tese são abordadas através de diversas histórias e
personagens; dos relatos dos agentes judiciais, policiais e advogados e dos casos por
alguns deles tratados e por mim observados. Na sua narração se apresentam duas
questões centrais, elaboradas a partir da percepção ou identificação de duas categorias
nativas: o “bairro” e a “crença”. Ao longo da tese busco dar conta dos significados
atrelados a essas duas categorias e as implicações dos mesmos na administração de
justiça na região abordada.
Palavras chave: justiça – moralidades- conflitos – bairro – Argentina
*
Resumen
Esta tesis aborda las formas de administración de justicia en el conurbano bonaerense,
en Argentina, en especial aquellas referidas al proceso de investigación y juzgamiento
de delitos. Busca identificar, en los casos específicos aquí relatados, cómo los agentes
judiciales, a partir de sus historias de vida, de sus ideologías profesionales y políticas,
de sus posiciones institucionales y sociales, interactúan con las narrativas e historias de
vida de las personas involucradas, con la naturaleza de los conflictos, con los otros
agentes profesionales y con las normas legales, a fin de orientar la investigación,
construir e interpretar las “pruebas” y tomar las decisiones correspondientes. De esa
forma, busca dar cuenta de la relación entre administración de justicia y las posibles
moralidades que informan su práctica.
Las cuestiones tratadas en esta tesis son abordadas a través de diversas historias y
personajes; de los relatos de los agentes judiciales, policiales y abogados y de los casos
por algunos de ellos tratados y por observados. En su narración, se presentan dos
cuestiones centrales, elaboradas a partir de la percepción o identificación de dos
categorías nativas: el “barrio” y la “creencia”. A lo largo de la tesis, busco dar cuenta de
los significados ligados a estas dos categorías y a las implicaciones de los mismos en la
administración de justicia en la región abordada.
Palabras clave: justicia – moralidades – conflictos – barrio- Argentina
*
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Abstract
This dissertation studies the administration of justice in suburban Buenos Aires,
Argentina. The work focuses on how judicial officers carry out the process of
investigation and the criminal proceedings. The goal is to identify how the judicial
officers’ life-histories, social and institutional positions, and professional and political
ideologies influence their interaction with the people who are involved in the cases, the
nature of the conflicts, other professional officers and the law when guiding the
investigation, building and interpreting the “evidence,” and making the decisions
corresponding to each case. The dissertation highlights the relation between the
administration of justice and the moralities underlying its practice.
These questions are approached through the presentation of several cases that I had the
chance to witness, emphasizing the narratives of judicial officers, police officers, and
attorneys. The work draws from these narratives to identify two native categories:
“barrio” (neighborhood) and “creencia” (belief). Throughout the dissertation I seek to
account for both the meanings attached to these categories and their implications for the
administration of justice in suburban Buenos Aires.
Keywords: justice – moralities – conflict – neighborhood - Argentina
5
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ________________________________________________
INTRODUÇÃO _____________________________________________________
“É que aqui não passa nada”
Uma figura, várias visões
‘Forma’ e ‘fundo’
Jurídico e judicial
Moralidades, direito e conflitos
Sobre os capítulos
CAPÍTULO 1 ______________________________________________________
“Tudo vai estar bem...”
Do outro lado do juicio
“Eilbaum, Lucía”
O “incômodo” da antropóloga
O bairro e o “público”
Os policiais e o juicio
O bairro e o juicio
O “bairro” e a polícia
O desfecho
CAPÍTULO 2 ______________________________________________________
Da cidade ao conurbano
Geografias, política e divisões
“A melhor polícia do mundo”
A reforma na Justiça Criminal
O centro: La Plata
Os braços: os departamentos
“O primeiro de março muda tudo”: investigação e juicio
As etapas do processo
A etapa preliminar: célere e ágil
Os promotores e o juiz de garantias
Antigos e novos
Política e Justiça no conurbano
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CAPÍTULO 3 ______________________________________________________
Entre a “pobreza” e a “tecnologia”
Controle de impressões
De distâncias e proximidades
“Não, isso aqui não é C.S.I.”
Semelhantes, mas diferentes
Os “direitos humanos”
“Isso aí são posições”
Fazer x Observar
O caderno de campo
“Ser do conurbano”: ou não ser...
CAPÍTULO 4 ______________________________________________________
O “turno
“Aqui é tudo perto, no bairro”
As ligações
Distribuição de funções
“Pedir o preso”
“Mesma roupa, mesmos móveis”
“Para você, pode ser um ritual interessante”
O “308”
Os “308” na UFI
Falar não é depor
Depor ou não depor
Acordos implícitos
“Não são anjinhos, não”
“Defensor público é não-depor”
“Parte da mesma família”
“Isso é pelo convencimento”
“Vão meter o pé na jaca”
Inventar ou Calar?
CAPÍTULO 5 ______________________________________________________
“É bem de criminalística”
“Sabe por que está aqui?”
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“O senhor sabe que está sob juramento, não sabe?”
“(Não) acreditei”
“Acreditou nele?”
Dona Rosa
“É conhecido do bairro”
“Que no bairro se comenta...”
Em busca de testemunhas: a polícia e o bairro
Na procura de testemunhas: os familiares e o bairro
CAPÍTULO 6 ______________________________________________________
A intimidade invadida: o “allanamiento
A chegada: os olhares sobre a casa
As conversas: os olhares sobre a família
O processo
Marisa e o “308”
Carlos e o “308”
Em quem acreditar?: o “perfil psicológico”
“Soube pelos vizinhos...”
“O que faltava era organização familiar”
“Como qualquer de nós...”
Do “bairro”, os “vizinhos” e a “fofoca”
O desfecho
CAPÍTULO 7 ______________________________________________________
Os primeiros passos da investigação
“O que se escuta no bairro”: Jesus
A “identidade reservada”: o Topo
A terceira hipótese: Cacá
“Foi um golaço”
Cacá e o “308”
“Evacuar os ditos”
Os “amigos”
A “reconstituição dos fatos”: ver e conversar
A moto e o “allanamiento
A testemunha que não aparecia
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306
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As “atas” e o registro
O “álibi” e a “mentira”
A difícil arte de (se) convencer
A “prisão preventiva”
CAPÍTULO 8 ______________________________________________________
Reconhecendo o público
As primeiras testemunhas
“Era meu xodó”
“Como em um estádio de futebol”
As “outras’ testemunhas
As alegações finais
“Joga pedra na Geni”
“Alice no país das maravilhas”
“Quero ver a cara deles”
CONCLUSÕES _____________________________________________________
A ‘formação judicial’
A “crença” na “verdade”
“Acreditar no convencimento”
“Acreditar” nas “provas”
O “bairro”
A investigação e o juicio
Quando ouvir o “bairro”?
“Ser do bairro”
BIBLIOGRAFIA ____________________________________________________
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todas aquelas pessoas presentes nas histórias contadas nestas
páginas. A todos os promotores, juízes, defensores, advogados, secretários, funcionários
judiciais e policiais que conversaram comigo sobre sua atividade. A todos os integrantes
da “UFI” Unidad Fiscal de Instrucción- na qual realizei de forma intensiva meu
trabalho de campo por vários meses. A eles pela receptividade, pela boa disposição para
“ser observados”, explicar, conversar e interagir comigo. A todas as pessoas que
passaram pela “UFI” e pelas salas de audiência de juicioenquanto fazia trabalho de
campo, que me permitiram conhecer suas histórias, sempre íntimas e comovedoras, e
conversar sobre elas. Também agradeço a todas as pessoas que oficiaram de
“intermediárias” para agendar uma entrevista, iniciar o trabalho de campo e, assim,
acalmar minhas ansiedades.
A forma e as reflexões sobre o trabalho de campo produzido não teriam sido possíveis
sem o apoio e interlocução com muitas instituições e pessoas. Agradeço à CAPES, à
FAPERJ e à Secyt (Argentina), pelas bolsas, sucessivamente, recebidas ao longo do
doutorado (2006-2010). Também ao apoio do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos (INCT-InEAC), com sede no NUFEP/UFF.
A meu orientador, Roberto Kant de Lima, por ter feito (e continuar fazendo) de minha
decisão de vir à UFF para estudar com ele uma experiência profissional e pessoal
extremamente rica. Com ele tenho aprendido, de variadas formas e em momentos dos
mais diversos, inúmeras questões, não sobre antropologia e os assuntos pesquisados,
mas sobre o mundo acadêmico, suas formas, etiquetas e idiossincrasias.
A minha co-orientadora, Sofia Tiscornia, por ter me incentivado por estes mais de
quatorze anos a pesquisar e refletir sobre estes temas, a me inserir acadêmica e
profissionalmente, sempre com extrema generosidade e sensibilidade, se dispondo a
conversar, interagir, orientar, escrever e também me apoiar pessoal e emocionalmente.
Ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense,
pelo apoio no desenvolvimento do curso de Mestrado e de Doutorado. A meus colegas
de turma, em especial a Letícia Luna, com quem, principalmente nestes últimos meses,
temos partilhado experiências tão próximas. Aos professores do Programa, em especial
a Marco Antônio da Silva Mello, pela sua generosidade e boa disposição para interagir
comigo; a Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, pela sua interlocução, abrindo os
horizontes sobre lugares “exóticos”; a Simoni Lahud Guedes, pelo apoio acadêmico
durante ambos os cursos. A Ilma, por me ajudar sempre a resolver os problemas
burocráticos indispensáveis para “se dar bem” na vida acadêmica e universitária.
De outros programas e instituições, aos professores Luís Roberto Cardoso de Oliveira,
Michel Misse e Maria Stella Amorim, que sempre mostraram interesse pelo meu
trabalho, se dispondo a interagir com ele e abrindo possibilidades e pontes de
interlocução permanentes.
Ao Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas, coordenado por Roberto Kant de Lima,
por ter sido o âmbito de pesquisa e trabalho que me acolheu no Brasil e que, com suas
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dinâmicas e formas generosas e instigantes de atuar, me permitiu aprender,
experimentar e me desenvolver profissional e pessoalmente. Gostaria de agradecer a
Lúcio Pinho Duarte, pelo apoio e incentivo enfáticos, pelas inúmeras conversas e
abraços e pela sua sensibilidade e destreza profissional. A Virginia Taveira, por, já
mais de quatro anos, ter “levado” o NUFEP os projetos, as contas, os e-mails, o
telefone, as passagens, as diárias, as notas.... os pesquisadores- com extrema eficiência e
competência; pessoalmente, também pelo carinho e apoio sempre e em todo momento
recebidos por ela. A todos os pesquisadores do NUFEP, parceiros de reuniões de
segunda-feira, seminários, congressos, projetos e festas; a todos os que “passaram” e a
todos os que “estão” nessa empreitada. A Frederico Policarpo, Zé Colaço, Flávia
Medeiros, Sabrina Souza da Silva, Antonio Rafael, Edilson da Silva, Mário Miranda,
Ana Paula Mendes de Miranda, Kátia Sento Sé, Sonia Castro, Roberto Carlos Borghi,
entre muitos outros. Em especial, a Fábio Reis Mota, “Fabito”, por ter sido um amigo
atento e incondicional; a Gláucia Mouzinho, pelas nossas conversas talvez ocasionais,
mas sempre marcantes e a Marta Patallo, por ter se tornado, em pouco tempo, uma
amiga e parceira de conversas, troca de impressões e experiências. Tangencialmente ao
NUFEP, mas perto dele pelas interlocuções estabelecidas, a Brígida Renoldi, Barbara
Lupetti e, em especial, a Vivian Ferreira Paes, pela sua sensibilidade, dedicação e
entrega.
Ao Equipo de Antropologia Política y Jurídica /UBA, coordenado por Sofia Tiscornia, e
a todos seus membros, por ter sido na Argentina e continuar sendo ainda um espaço de
interlocução acadêmica e um âmbito de desenvolvimento profissional e pessoal. Em
especial, a Carla Villalta, pelo permanente e interrupto apoio emocional nesta trajetória
“antropológica”; a María Victoria Pita, por termos partilhado, em especial nos últimos
anos, experiências, conversas e percepções, inteiramente proveitosas para mim; a
Josefina Martínez, pelo apoio e pela sempre boa disposição para conversar, sorrir, me
alentar e partilhar “campos” e assuntos de pesquisa.
Aos amigos que, desde diferentes lugares e temporalidades, sempre estiveram e estão
presentes. Desde várias cidades, a Marina Grus, Pilar Vilas, Andrea Fuksman, Dahlia
Fischbein e Verónica Oelsner, por, tantos anos, serem parceiras íntimas e
comprometidas. Em Buenos Aires, a Natalia Federman, Alejandro Valerga e a pequena
Julia, por serem amigos e companheiros incondicionais. A María José Guembe, María
Laura Guembe e María Lousteau, pelo carinho, atenção e excelente disposição. A
Verónica Lichtman, pelo apego permanente. Mais recentemente, a Mariana Monti, uma
amiga sensível e incondicional. No Rio de Janeiro (?), a Roxi White por estar sempre.
A minha família em Buenos Aires, Dju, Lele, Diana, Luis, Juan e Germi, por estar
sempre e me “receber” permanentemente nos últimos anos. A Dandara, Gabriel e
Isabela; a Fidelis e a Goretti, Bruno e “as crianças”, pelo carinho e os momentos
domésticos e familiares partilhados.
A meus pais, Marily e Roberto... é difícil de agradecer. Por “tudo”, por estar sempre ao
meu lado, me apoiando e me incentivando; pela infinita generosidade que especialmente
os caracteriza, pela confiança, pelo aprendizado, pela entrega e pelo amor incondicional.
Aos dois pela leitura desta tese e os comentários proveitosos, mas também alentadores.
A meu irmão, Nicolás, pelo companheirismo, pela confiança e incondicionalidade; por
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estar ao “nosso modo” estando sempre. Por estes últimos meses em que temos
partilhado nossas “teses” em longas conversas.
A Lenin Pires... por “ser comigo”. Por ser meu parceiro, meu companheiro, meu
interlocutor, meu marido, meu amor. Por me acompanhar, estar e ser ao meu lado, em
inúmeras experiências; em infinitos, inacabados e permanentes projetos, sempre
conjuntos; em momentos, situações e lugares dos mais diversos até os mais familiares.
Pelas conversas, os olhares, os abraços. E, por isso tudo, pela leitura atenta de todas e
cada uma destas páginas.
A Olívia, por ter me acompanhado em cada segundo da escrita desta tese. Por tudo o
que nos espera por viver.
12
INTRODUÇÃO
“É que aqui não passa nada
No dia 26 de setembro de 2007 voltei pela segunda vez ao prédio de Tribunales
1
do departamento de Los Pantanos, no conurbano bonaerense. Era o combinado com
Valeria na minha primeira entrevista com ela, pouco mais de dez dias antes. Valeria
Mena era a promotora de uma Unidad Fiscal de Instrucción, chamada comumente de
UFI. Tratava-se de uma das vinte e uma unidades onde, naquele departamento, se
investigavam os crimes acontecidos na área por ele delimitada. Aquela data
correspondia ao início do turno”. O turnoé um período de tempo de três dias, no
qual cada UFI fica de plantão, durante 24 horas, para receber as denúncias de eventuais
“crimes” de sua competência. O convite da promotora Valeria Mena resultou em um
intenso trabalho de campo de mais de cinco meses, acompanhando os turnos” e os dias
posteriores a ele. Junto com o trabalho de campo naquela UFI, do departamento de Los
Pantanos, fiz entrevistas com pessoas vinculadas à administração de justiça na
província de Buenos Aires. Conversei com outros promotores, juízes, defensores
púbicos, secretários e advogados. Li processos em andamento e concluídos e observei
audiências de julgamento. As implicações de minha reflexão e interpretação sobre esse
material deram origem a esta tese, embora o relato de boa parte dela esteja articulado,
prioritariamente, a partir da minha etnografia ‘naquela’ UFI.
A proposta de acompanhar um turnona UFI foi a resposta de Valeria a meu
interesse em observar as atividades que desenvolviam naquele âmbito do sistema de
justiça criminal do conurbano boanerense. Na época eu tinha manifestado um interesse
específico nos casos de “homicídio”. Por isso, ela me disse que um turno seria a
melhor opção para dar conta desse meu interesse, porque, durante o turno”, eles, na
UFI, eram informados de todos os “homicídios” e outras mortes que acontecessem no
departamento. E eram, ademais, os únicos casos em que iam ao local dos fatos”.
Valeria também me disse que quando o “turno” abrangia o final de semana a quantidade
de homicídios aumentava. Embora “homicídios” passionais e em ocasião de roubo
houvesse o ano todo, Valeria também afirmava que outros “homicídios” aumentavam
no verão, porque “os grupos de rapazes se juntam na rua a beber cerveja, bebem muito e
1
Ao longo da tese, utilizo a fonte em formato itálico para os termos que mantenho no espanhol; as aspas
para as categorias e falas nativas ou citações literais de autores e as aspas simples para enfatizar um termo
ou categoria.
13
isso acaba em algum problema”. Na época considerei esta afirmação um tanto
determinista, mas, ao ler processos de “homicídios” em andamento, entendi o contexto
do qual ela falava. Muitos desses casos envolviam problemas no “bairro” e, em alguns
deles, grupos de rapazes em disputa, ou identificados como “problemáticos”.
Para me dar um panorama mais completo sobre este crime, Valeria pediu para
Sebastián trazer o “livro de autopsias”, chamado informalmente “livro dos mortos”.
Sebastián Vázquez era o promotor “titular” daquela UFI; Valeria era a promotora
“adjunta”. E o “livro dos mortos” era onde registravam a quantidade de “homicídios” e
mortes por turno”. No turnoanterior à minha vista (do mês de agosto), por exemplo,
estavam registrados sete “homicídios e catorze “mortes”. No turno de julho, um
“homicídio” e sete “mortes”. Ao trazer o livro, Sebastián Vázquez se incorporou à
conversa. Ele disse que havia uma média de dois homicídios cada três dias, ou seja, 25
por mês. Devo ter mostrado certa surpresa, pois ambos coincidiram em dizer: “sim, em
Los Pantanos se mata muito”.
Como “em Los Pantanos se mata muito”, o convite para observar o turno
seguinte estava baseado na expectativa de poder acompanhar in loco casos de
“homicídio”. Durante os três “turnos” sucessivos que acompanhei houve “mortes” e, em
outro tipo de casos, houve idas ao “local dos fatos”. Mas, em nenhum dos três
aconteceu sequer um homicídio que fizesse os promotores ir no “local dos fatos”! Esse
“azar sociológico” virou objeto de diversos comentários na UFI. Além das piadas de
que ‘eu’ não dava sorte para minha pesquisa, estavam aqueles que achavam que eu
trazia “sorte” para eles porque os turnoseram mais tranqüilos; mas também estavam
aqueles que, diferentemente, achavam que os turnos eram mais animados quando
saíam para ir ao “local dos fatos”. Eu não consegui me resignar a que não tivesse um
homicídio durante todo o período que fiquei lá. pensava naqueles sete que tinham
acontecido no “turno” anterior a minha chegada.
Lembrei então quando fiz trabalho de campo em uma delegacia do Rio de
Janeiro. Eu acompanhava os plantões de uma equipe de inspetores que trabalhava na
escala de 24h por 72 horas. Foram várias as vezes que, ao chegar, o comentário era
sempre referido a “tudo” o que tinha acontecido na delegacia na minha ausência. Pensei
então que, com ou sem “homicídios”, os comentários sobre a abundância deles na
minha ausência, sobre a ausência deles durante minha estada e sobre as valorações
14
positivas ou negativas desses fatos, evidenciavam representações sobre o que acontecia
na UFI e o que eu podia esperar disso.
“É que aqui não passa nada”, disse uma vez Valeria. O que é que não passava?
Ou melhor, o que é que passava que era considerado “nada”? A resposta descansava na
rotina. “Nada” parecia ser, naquela apreciação, “nada diferente”. Havia
aproximadamente vinte anos que Valeria e Sebastián iam todos os dias no horário da
manhã, ao mesmo prédio, e havia seis anos que trabalhavam juntos nas mesmas salas da
mesma UFI. Assistiam mudanças de pessoal e alterações em certos procedimentos, mas
as atividades desempenhadas, o raio de atuação –“aqui já vim a outro homicídio”,
“neste bairro foi o caso de extorsão”- não diferiam muito dia após dia. Mesmo o “turno
acabava tendo uma sistemática repetição de procedimentos. Isso não queria dizer que
não gostassem e até se apaixonassem pelo que faziam. Mas, de alguma forma, explicava
esse sabor diferencial de ir no “local dos fatos”, ou de ter casos que por suas
características representassem um desafio. Ao tempo que explicava, pelo menos em
parte, porque o que passava, embora rodeado de “mortes”, cadáveres e autopsias”,
“prisões”, “tiros e armas” e outras circunstâncias e imagens não necessariamente
comuns à vida fora de Tribunales, era considerado “nada”.
Um dia conversava estas questões com Valeria. Comentei com ela que minha
percepção era um pouco diferente, porque, se bem era verdade que o que faziam ou
como o faziam não variava muito, as histórias com as quais tratavam eram diferentes. A
“forma” (os passos, os procedimentos) podia ser a mesma, mas o “conteúdo” (os casos)
era diverso. Valeria pareceu passar a olhar as coisas de uma forma diferente e me disse:
“pois é, realmente do que eu gosto é do contato com as pessoas”.
Uma figura, várias visões
Um dia, durante uma conversa das tantas que mantive com uma mediadora, ela
me mostrou uma série de imagens que costumava usar nos cursos de mediação com
seus alunos, predominantemente advogados e psicólogos. As imagens eram desenhos
que continham duas figuras. Se o olhar recaísse sobre um fundo da imagem, poderia ser
visualizada uma figura uma jovem, um jovem olhando para trás, uma jovem lendo
uma carta. Se fosse priorizada outra forma, a figura enxergada seria outra uma velha,
um velho, um senhor com cavanhaque, respectivamente às outras figuras.
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Aquela mediadora se valia desse recurso para mostrar a seus
alunos a possibilidade de um mesmo cenário o conflito que
levava as pessoas a uma mediação- poder ser olhado,
visualizado, interpretado ou sentido de formas diferentes, até
opostas. Não posso negar que tal afirmação não fosse muito
familiar para minha formação em Antropologia. O reconhecimento da existência de
diferentes pontos de vista sobre a realidade social é um dos pilares da perspectiva
antropológica e da prática etnográfica. Mas, acontece que esta mediadora, antes de sê-lo
tinha atuado como advogada, primeiramente em um escritório jurídico especializado em
direito civil, e, posteriormente, por mais de vinte um anos, na Assessoria Legal de um
banco do estado argentino, passando por todos os níveis hierárquicos. Assim, sua
formação tinha tido um forte viés jurídico, onde a ‘forma’ sempre parecia prevalecer
sobre o ‘fundo’ e onde não havia muito espaço para interpretações diferentes serem
consideradas igualmente válidas.
Desde 1992, ou seja, havia dezoito anos que ela era mediadora. Confrontada
com conflitos de família (filiação, regime de visitas e alimentício, divórcios, conflitos
por heranças familiares), de relações trabalhistas, comerciais, problemas entre vizinhos
(a chamada “mediação comunitária”) e crimes considerados “menores” (ameaças, lesões
leves, usurpações, injúrias), ela dizia que a maior mudança de um trabalho a outro de
advogada a mediadora- tinha sido passar de trabalhar com processos escritos a “ter as
pessoas sentadas diante dela”, expondo seus conflitos. Agregava que, para ela, já
bastava que alguém percebesse a possibilidade do outro ver as coisas de forma diferente
“aceitar que a outra parte enxergasse uma figura que ele mesmo não conseguia ver”-,
mesmo sem concordar com ela. Entendia que seu papel como mediadora era,
justamente, facilitar essa ‘outra’ percepção. Assim, tinha aprendido a lidar com essas
diferenças. Nós duas, acostumadas, por motivos diferentes, a trabalhar com advogados e
pessoas formadas em direito ela por ambiente profissional e eu por meu trabalho de
campo- entendíamos que aquela ferramenta das figuras podia ser um recurso
interessante para uma sala de aula que reunisse esse público. Naqueles dias posteriores a
essa conversa, eu fiquei com essas imagens na cabeça: diferentes figuras, conforme se
priorizasse o ‘fundo’ ou a ‘forma’. O que levava a priorizar um ou outro? Por que
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quando olhava para a ‘forma’ não podia enxergar o ‘fundo’ e vice-versa? Por que
apenas prevalecia uma das figuras?
‘Forma’ e ‘fundo
O direito penal contém duas legislações que o regem. O Código Penal e o
Código de Processo Penal. O primeiro regula as condutas consideradas crimes e o tipo e
montante da pena, caso sejam cometidas. O segundo estabelece os procedimentos
(modos, tempos, espaços, funções, competências) necessários para investigar e julgar as
condutas definidas como “crimes”. Como chama a atenção Brigida Renoldi (2007), o
primeiro se conhece como “Código de Fundo” e o segundo como “Código de Forma”.
Seguindo essa distinção, Renoldi, na sua etnografia sobre a justiça federal na cidade de
Posadas (Misiones, Argentina), afirma: “Embora os dois códigos sejam fundamentais, a
forma se apresenta no drama com maior protagonismo do que o fundo. Por esta questão
(de forma) os acontecimentos viram eventos, criando o ‘fato jurídico’” (2007:4).
Meu próprio trabalho de campo no judiciário (até aquele momento, na justiça
federal e nacional na cidade de Buenos Aires), o contato profissional e familiar com
advogados e a experiência pessoal de certa formação jurídica, bem como as leituras e
discussões com colegas sobre assuntos vinculados ao funcionamento do judiciário,
tinham me levado à compreensão da administração de justiça ter um caráter
predominantemente formal. Isto é, observava e entendia que era a ‘forma’ que
prevalecia sobre o ‘fundo’; o funcionamento e as práticas dos agentes do Judiciário e
também da polícia. A ‘forma’ priorizava-se sobre o conteúdo. Respeitando a ‘forma’, os
variados conteúdos eram validados, embora pudessem ser percebidas –ou não-
contradições fáticas ou mesmo internas à própria argumentação jurídica. Em minha
própria dissertação de mestrado tinha priorizado esta perspectiva.
As coisas andavam com uma rotina que as tornava mecânicas, reproduzíveis
pela sua forma e não pelo seu conteúdo. Respeitando as formas, o sistema
funcionava. (...) Um papel sobre outro papelia se acumulando na burocracia
do Judiciário. A produção e recepção escrita das informações do processo
conduziam a uma forma de conhecimento própria do Judiciário que, ao contrário
de possibilitar uma análise e crítica do material (Goody, 1988:58-62), o
presumia verdadeiro. Como vimos ao longo do trabalho, foram várias as vezes
que os agentes ressaltaram que, na lógica do sistema, o que não estava no
expediente não existia’ e o que ali estava era verdade’. Neste sentido,
produzia-se um tipo de conhecimento formalizado, descontextualizado e
despersonalizado. (Eilbaum, 2008:136)
17
Esta perspectiva está inserida também em uma linha de trabalhos que têm
enfatizado a lógica e as rotinas próprias e particulares do “mundo judicial” enquanto
burocracia estatal (Sarrabayrouse, 1998; Martínez, 2001, 2005, 2007; Tiscornia, 2006;
Daich, 2010; Renoldi, 2008a; Bovino, 1998; Cárcova, 1998). Dessa perspectiva, tem se
destacado o caráter objetivante e despersonalizado dos mecanismos de administração de
justiça, dentre os quais predominam a expropriação do conflito por parte do Estado, a
lógica do sigilo, a predominância da escrita e de uma linguagem formalizada, esotérica
e especializada. Estas características enfatizam a distância do Judiciário da sociedade,
como um “mundo” com espaços, tempos, personagens, idioma e regras particulares de
uso específico dos atores especializados. Estas etnografias têm sido a base a partir da
qual tenho refletido sobre o funcionamento do judiciário na Argentina e sobre a qual
tenho começado o trabalho de campo para esta tese
2
.
Nessa linha, o início de meu trabalho de campo esteve marcado por uma atenção
específica para as possíveis dissonâncias entre o saber técnico dos agentes judiciais e as
demandas, linguagem e expectativas das pessoas envolvidas nos conflitos. Também
para aquelas práticas que privilegiassem a lógica escrita sobre a oralidade como forma
de produção e transmissão do conhecimento. Percebi estas questões em várias situações
etnográficas, em especial na observação de juicios orales. Contudo, nas reflexões
posteriores ao trabalho de campo, entendi que as pesquisas mencionadas
consolidavam um campo de análise sobre aqueles aspectos do Judiciário, de forma
consistente e ampla. Minha reflexão em tal caso poderia enfatizar alguns aspectos sobre
outros, mas comecei a sentir que minha tese não aportaria uma visão muito inovadora se
continuasse priorizando aqueles aspectos do funcionamento do Judiciário, sobre os
quais os trabalhos citados tanto aportaram. Ao mesmo tempo, as reflexões posteriores
sobre minha experiência no trabalho de campo trouxeram à tona outros aspectos, não
imaginados e não percebidos através de minhas preocupações iniciais com o
funcionamento de um direito, ou de uma justiça formalizada, esotérica e distante da
sociedade. Foi priorizando aqueles outros aspectos que percebi que ‘forma’ e ‘fundo’
podiam adotar diferentes posições e sentidos em situações etnográficas diversas.
A dinâmica de administração de justiça que observava na UFI, bem como nos
juicios orales, me fez relativizar o predomínio da ‘forma’ sobre o ‘fundo’ quanto
2
Boa parte das discussões e reflexões têm se dado no âmbito dos encontros do Equipo de Antropologia
Política e Jurídica da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, do qual eu e parte
das autoras citadas fazemos parte.
18
característica central, ou única, das práticas judiciárias. Comecei perceber que ‘forma’ e
‘fundo’ podiam se alternar, dependendo de certas variáveis. Uma delas era a
intervenção, no processo, de diversos atores advogados particulares ou defensores
públicos, assistentes da acusação, imprensa, intervenção de associações de direitos civis
e humanos. Outra, não independente da primeira, estava vinculada à “convicção” que os
agentes judiciais iam formando sobre o caso. Em algumas situações, o respeito à
‘forma’ ganhava tal importância que o ‘fundo’ - o conteúdo dos relatos e das decisões-
perdia consistência. Mas, em outros casos, a ‘forma’ era utilizada e moldada com o
único fim de que o (um) ‘fundo’ fosse aceito como válido. Ora se priorizava um, ora se
priorizava o outro, tal como podia ser feito pelo observador com aquelas figuras dos
desenhos em preto e branco.
É verdade que em todos os casos, o respeito à ‘forma’ era importante. Assim o
era porque o uso correto das ‘formas’ processuais garantia a validade jurídica de tudo
aquilo que se fizesse ou dissesse no âmbito de um processo judicial. O que quero
marcar é que ela nem sempre era priorizada independentemente do conteúdo dos relatos
e das informações levadas ao âmbito judicial. A ‘forma’ não se mostrava, assim, como
algo neutro, descontextualizado e despersonalizado. Não era apenas um molde onde
encaixar as informações judiciais, mas parte de disputas ideológicas e políticas sobre
como pensar e fazer funcionar o sistema judicial
3
. Por exemplo, o uso de uma categoria
e não de outra marcava posicionamentos e identidades no campo jurídico. Não tinha a
mesma ressonância falar em indagatóriado que em “declaração do imputado”. Tal
mudança de categorias tinha sido estabelecida com a reforma do Código de Processo
Penal da província de Buenos Aires (CPP-PBA) em 1998 e o uso de uma ou outra
categoria, entre outras, definia entre os funcionários uma maior ou menor adesão à
reforma.
Ao mesmo tempo, a ‘forma’ era uma ferramenta para validar juridicamente as
decisões tomadas nos casos concretos. Como enfatizarei ao longo da tese, a ‘forma’
podia estar ao serviço do ‘fundo’, sendo utilizadas diferentes estratégias de adaptação
das ‘formas’ para dar conta desse objetivo. O conhecimento sobre os usos possíveis da
3
Baudouin Dupret, cuja etnografia sobre os tribunais no Egito retomo mais adiante, assinala: “A
afirmação de que o procedimento é importante em direito pode parecer trivial (...). Mas os
constrangimentos procedimentais não se correspondem com um ensamble de regras abstratas extraídas de
um sistema jurídico exterior, mas com a performance rotineira e burocrática dos profissionais do direito”
(2006:164). Nesse sentido, propõe tratar os procedimentos, não como regras, mas como práticas.
19
‘forma’ era assim fundamental para desenvolver o trabalho de acordo com as tendências
ideológicas e morais que informavam a administração de justiça no conurbano
bonaerense. Essas tendências pareciam constituir o ‘fundo’ a partir do qual os processos
eram orientados e as decisões tomadas. Esta tese propõe uma aproximação à
compreensão desse ‘fundo’, buscando dar conta de como ele vai se construindo no
processo de investigação criminal e de tomada de decisões e nas relações sociais
envolvidas nesses processos.
Jurídico e judicial
A permanência na UFI, a partir da observação de como se desenvolvia e
produzia o processo judicial, me fez perceber um contraste entre as interações dadas na
dinâmica da investigação criminal e sua tradução nos termos jurídicos (vocabulário,
tempo e forma) do processo. Aquilo que chamava minha atenção não era, contudo, um
contraste entre leigos e profissionais ou especialistas, mas entre dois momentos,
caracterizados com formas de produção da informação diferenciadas. O primeiro
momento era produto das interações orais e presenciais entre agentes judiciais
(promotores, defensores, funcionários), advogados, policiais e as pessoas envolvidas
nos conflitos (vítimas, “imputados”, testemunhas). O segundo era resultado da tradução
– parcial- dessas interações no registro escrito do processo judicial.
O primeiro momento era uma produção conjunta de todos os envolvidos, na qual
intervinham vocabulários, formas de comunicação e interação e esferas de ação
diversas
4
. A forma oral e presencial das interações entre os funcionários e as partes dava
lugar a contatos fluidos, informais e dinâmicos. O idioma que regia as interações não
era técnico, mas próprio da fala cotidiana. Assim também era a forma das conversas,
produto de um diálogo mútuo e não de posições rígidas e unilaterais. Isso não quer dizer
que essas interações não se desenvolvessem em contextos de desequilíbrio e
desigualdade de posições. Porém, esse desequilíbrio não estava marcado pela
formalidade, o tecnicismo e a descontextualização, mas pelas posições particulares dos
atores no processo penal.
4
Como modelos ideais pode se pensar nos quatro tipos de ação distinguidos por Max Weber, os quais
combinam sentidos e valores distintos: 1) “ação racional com respeito a fins”, na qual o sentido racional
da ação se encontra na escolha dos meios mais adequados para a realização de um fim qualquer; 2) “ação
racional com respeito a valores”, na qual o fim perseguido é um valor ético, moral, religioso, político ou
estético; 3) “ação afetiva ou emocional”, inspirada por emoções imediatas sem avaliações racionais; e 4)
“ação tradicional”, orientada por hábitos e costumes arraigados (Weber, 1964).
20
O segundo momento era domínio dos agentes judiciais e nele predominava o
saber técnico, especializado e formal próprio do campo jurídico. Ele operava a partir das
informações geradas no primeiro. Entretanto, essa operação não era uma tradução
completa e literal do registro oral para o escrito. As informações eram parcialmente
inscritas no processo, atendendo os modos exigidos formalmente e a orientação que
estivesse tomando a investigação de um caso. Nesse processo, as interações daquele
primeiro momento eram reduzidas em seus diversos aspectos a uma forma única e
padronizada, própria do saber jurídico. Assim, a forma com que as interações ficavam
registradas no processo judicial não refletia a dinâmica dos encontros, nem as conversas
desenvolvidas no âmbito judicial. Em primeiro lugar, aspectos como gestualidades,
emoções, afetividades e laços sociais ficavam de fora. Em segundo lugar, as expressões
orais eram na maioria dos casos traduzidas a um vocabulário escrito, diferente daquele
utilizado pelas partes, ou pelos mesmos funcionários nas suas interações. Em terceiro
lugar, nem tudo aquilo que era falado virava registro escrito
5
.
Contudo, ambos os momentos faziam parte necessária do processo, pois as
informações transcritas ou não- produzidas no primeiro momento informavam
também, embora não fossem registradas formalmente, as decisões tomadas nos casos
particulares. Assim, o saber judicial parecia absorver o saber jurídico formal, técnico,
especializado, esotérico-, incluindo também outro leque de conhecimentos, técnicas e
formas de comunicação que não necessariamente distanciava os especialistas dos leigos,
mas os aproximavam. E, nesse ponto, ‘jurídico’ e ‘judicial’ pareciam-me ser saberes
diferenciados. Assim, nesta tese, em função das dinâmicas e dos casos observados,
decidi priorizar os elementos que compõem esse ‘saber judicial’ que, mais do que
distanciar, aproximavam os agentes judiciais com certos valores e ideologias também
presentes entre as pessoas envolvidas nos conflitos judicialmente tratados. Dessa
perspectiva, entendo que as ações dos agentes judiciais na administração de justiça e,
em particular, no processo de investigação criminal e nas decisões vinculadas a ele,
estavam orientadas por valores morais e por interesses diversos
6
, que não os
estritamente vinculados à lei.
5
Luís Roberto Cardoso de Oliveira analisa a prática judicial de “reduzir a termo” como um mecanismo de
exclusão do processo de certos aspectos das disputas levadas pelas partes, mediante o qual é priorizada a
lógica jurídica por sobre a dimensão moral do conflito (Cardoso de Oliveira, 2009:165).
6
Em certa medida, sigo aqui a sugestão de Max Weber de entender a ação humana, em suas diversas
esferas (política, burocrática, religiosa, científica, etc.) como orientada por valores e interesses que
expressam pontos de vista subjetivos e não objetivos. Assim, tanto valores como interesses não estão em
21
Moralidades, direito e conflitos
Lawrence Rosen inicia o prefácio de “The anthropology of justice. Law as
culture in Islamic society” (1989) chamando a atenção para o fato de, apesar dos pontos
de coincidência entre eles, antropologia e direito não terem contribuído um para outro
como poderiam tê-lo feito. De parte dos antropólogos, porque estes têm priorizado o
funcionamento dos tribunais como um domínio particular cuja linguagem, regras e
procedimentos atípicos, de certo modo, o distanciam do cenário da vida social, ou bem
como um campo arcano cuja rigidez institucional faz perder sua capacidade de resolver
disputas sem alienar amplos segmentos sociais. Diante dessas tendências, Rosen propõe
uma análise do direito como sendo “parte da cultura mais ampla, um sistema que, apesar
de sua própria história institucional e de suas formas distintivas, partilha de conceitos
que se estendem em rios outros domínios da vida social” (1989:5). Assim, afirma,
analisar o campo do direito como um fenômeno cultural não é mais atípico do que ver
aspectos de uma sociedade através do comportamento de seus membros no mercado
público, na moradia familiar ou nas casas de culto. Tal aproximação do direito supõe,
então, se aproximar a ele tal como os antropólogos têm conduzido, geralmente, suas
pesquisas: como uma busca dos conceitos através dos quais uma comunidade categoriza
e agrupa sua experiência em grupos de significado simbolicamente apreendido e
manipulado, ao tempo em que vai organizando suas relações cotidianas (1989:5)
7
.
Estas considerações iniciais de Lawrence Rosen anunciam sua etnografia sobre o
direito islâmico no Marrocos, em particular, sobre a figura do qadi (juiz islâmico) e
sobre os mecanismos através dos quais o qadi decide conforme “um leque de
pressupostos culturais que faz suas decisões compreensíveis para a sociedade em que
age” (1980-1:218). Antes de se adentrar nessa etnografia, Rosen descreve seu primeiro e
único dia na corte americana, como protagonista, junto com seus vizinhos, de uma ação
oposição (irracional / racional), mas ambos são expressão dos sentidos experimentados na ação humana.
Nesse sentido, valores e interesses como aqui entendidos revelam, como sugere Albert Hirschman, “um
elemento de reflexão e cálculo com respeito à maneira pela qual buscar atingir essas aspirações humanas”
(1979: 37).
7
No ensaio “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa”, Clifford Geertz ressalta o
trabalho de Lawrence Rose (também de Sally Folk Moore) e, em um sentido semelhante, explora os
encontros e desencontros entre a antropologia e o direito. Nesse ensaio, Geertz trata da relação entre fatos
e leis, propondo o conceito de “sensibilidades jurídicas” para dar conta de uma análise comparativa “das
bases culturais do direito”. “Essas sensibilidades afirma- variam, e não em graus de definição;
também no poder que exercem sobre os processos da vida social, frente a outras formas de pensar e sentir;
ou nos seus estilos e conteúdos específicos. Diferem profundamente nos meios que utilizam (...) para
apresentar eventos juridicamente” (2002:261-262).
22
legal contra uma empresa pública. Dessa forma aproxima sua vasta experiência nas
cortes islâmicas com sua ocasional vivência na americana. O ponto comum é o
questionamento sobre quais variáveis estão envolvidas na tomada de decisões judiciais
por parte de um juiz – muçulmano, ou americano. Seja qual for a resposta em cada caso,
é claro, no argumento de Rosen, que tais variáveis não estão descoladas da realidade
social e cultural dos atores envolvidos, de suas posições sociais e das regras sociais que
regem as relações e interações sociais.
Inserindo o direito no campo de outros domínios culturais, essa perspectiva
permite abordar aspectos da administração de justiça por vezes escondidos atrás do
esoterismo e do formalismo próprios do saber jurídico. Dessa forma, é possível
reconhecer no direito, assim como na religião, no parentesco ou na política, uma
dimensão moral. “Se direito e moral estão imbricados não é porque o direito trata de
questões morais, mas porque a prática do direito está impregnada de uma moralidade,
tal como a atividade ordinária” (2006:78), afirma Baudouin Dupret na sua etnografia do
“direito, a moral e a justiça” no Egito
8
. A linha de seu trabalho está dirigida a mostrar
que toda ação judicial é também uma ação moral. E isso em dois sentidos: porque a
atividade de julgar transforma questões morais em objetos de direito e porque o domínio
da moralidade informa constantemente o direito e serve de base ao estabelecimento de
um julgamento da normalidade (2006:438)
9
. A ação judicial, nessa perspectiva, ao se
manifestar sobre questões morais e ao estar informada por valores morais, tende a fixar
juridicamente uma moralidade cuja orientação não é interior aos agentes, mas orientada
e situada publicamente. Nesse processo, a ação judicial estabelece e dota de definição
jurídica categorias de “normalidade”, daquilo que é considerado “comum”, “usual”,
8
A relação entre moral e direito também tem sido foco no campo da chamada “filosofia do direito”, tanto
pela relação dos valores morais com a atividade do legislador, quanto com a administração de justiça.
Essas reflexões têm dado origem a diferentes teorias sobre a conexão necessária ou contingente entre
ordem moral e ordem jurídica e sobre o lugar das valorações morais, políticas ou religiosas dos juízes nas
suas decisões. De forma geral, estas teorias, inclusive aquelas que reconhecem o fato do direito fazer
parte de uma ordem moral, m distinguido as normas morais das jurídicas, caracterizando as primeiras
como individuais, interiores e livres e as segundas como sociais, exteriores e coativas (Borda, mimeo;
Cárcova, 2009, Nino, 1980; ver também Daich, 2010:112). Como assinala Dupret, a distinção entre
normas morais e normas jurídicas é um dos princípios fundamentais do direito moderno e, mesmo que
autores da corrente substancialista do direito, em oposição à corrente formalista ou positivista, tenham
reintroduzido a moral no campo do direito, em todas essas perspectivas resta a pergunta sobre ‘como’
essa dimensão moral atua, ou intervém, no fenômeno jurídico.
9
Afirma ser objetivo de sua etnografia observar e descrever: 1) a dimensão moral da atividade judiciária,
no sentido de profissionais e profanos estarem engajados social e culturalmente na ação de produção de
saber, e 2) o tratamento judicial de questões de moral, ao analisar, principalmente, casos judiciais
relativos a questões sexuais (2006:7).
23
“típico”. O direito atua, assim, fixando sentidos morais que podem se tornar coercitivos
e, por vezes, legítimos.
Contudo, legalidade e moralidade não se confundem: “um homicídio pode, por
exemplo, ser descrito juridicamente como uma morte e pode também ser qualificado
moralmente como um ato de resistência; igualmente podem se encontrar causas
jurídicas de justificação e não por causa disso aquele homicídio deixa de ser
moralmente condenável” (2006:444). Moralidade e legalidade podem convergir ou
divergir nas suas avaliações de um determinado caso. O que me interessa ressaltar aqui
é o fato da ação judicial estar informada por moralidades diversas, resultando em um
processo de consolidação jurídica de certos valores morais e exclusão de outros. Esse
processo é produto das interações entre profissionais e leigos, entre as regras e os relatos
vertidos no âmbito judicial. Desta perspectiva, ‘fundo’ e ‘forma’ interagem no processo
em uma dinâmica atravessada por moralidades diversas ora em tensão, ora em
confluência.
Assim, não se trata aqui de identificar ‘uma’ moral ou ‘uma’ ética específica,
mas de propor a presença, em um determinado contexto institucional judicial, de
‘moralidades situacionais’
10
. Por isso, acredito que os valores morais que informam as
ações e decisões judiciais não sejam nem únicos, nem homogêneos nem imutáveis,
derivados de uma estrutura social totalizante
11
; mas produto das interações pontuais e
contextuais entre os agentes, as regras, os conflitos particulares e as pessoas envolvidas
neles. Nesse sentido, também não se trata de concluir esta tese identificando ‘um’
conteúdo moral ou ético conforme o qual são orientadas as decisões dos agentes
judiciais. Apenas procuro identificar, nos casos específicos aqui relatados, como os
10
Em sua extensa e dedicada introdução à análise etnográfica do valor moral “lealdade” entre as pessoas
que se identificam, na Argentina, como “peronistas”, Fernando Balbi traça um percurso por numerosos
autores e perspectivas sobre os problemas teóricos e metodológicos envolvidos na análise antropológica
dos valores morais e o comportamento. Entre outros pontos, propõe a seguinte perspectiva: “Se os valores
morais são conceitos dotados de um conteúdo moral e de uma carga emotiva que as pessoas internalizam
no curso de sua experiência social, então, tanto os sentidos desses conceitos quanto suas associações
emocionais, e até seu próprio conteúdo moral, devem ser entendidos como produtos contingentes dos
processos sociais que enquadram à sucessão de ocasiões socialmente situadas, através das quais as
pessoas experimentam o mundo circundante. Segue-se disto que os valores podem ser entendidos por
referência a determinados contextos sociais historicamente dados” (2007:83).
11
Balbi distingue (e descarta para sua análise) duas correntes extremas na análise dos “valores”: aquelas
que tendem a vê-los como variáveis independentes do comportamento, seja como sistemas abstratos e
culturais que existem per se, seja como emanações mais ou menos mecânicas da sociedade, da estrutura
social ou do sistema social (2007:62); e, no extremo oposto, aquelas que despojam os valores e a moral de
seu peso específico, os tratando como “ideologia” (“falsa consciência”) (2007:65), “meras aparências,
epifenômenos de outras realidades, ou reflexos deformados de outros fatos” (2007:70).
24
agentes com os quais interagi no meu trabalho de campo, a partir de suas histórias de
vida, de suas ideologias profissionais e políticas, de suas posições institucionais e
sociais, interagiam com as narrativas e histórias de vida das pessoas envolvidas, com a
natureza dos conflitos, com os outros agentes profissionais, com as regras processuais e
com as normas legais, a fim de orientar a investigação, construir e interpretar as
“provas” e tomar as decisões correspondentes. Busco assim dar conta da relação entre a
administração de justiça e as possíveis moralidades e interesses que informam sua
prática.
Por isso, esta tese está povoada de personagens. Embora não sejam os nomes
reais, a maioria das pessoas aparece nela identificada com nome e através de uma breve
caracterização pessoal e/ou profissional. Procurei, desse modo, não apenas manter as
identidades de “carne e sangue” (Malinowski, 1984
12
) com as quais interagi durante o
trabalho de campo, mas também posicionar e situar, embora que brevemente em alguns
casos, as ações e discursos analisados. Por isso, tentei excluir, ou pelo menos evitar,
narrativas da forma “os promotores dizem”; “os agentes judiciais acham”; “os juízes
pensam”, e assim por diante. Priorizei os relatos singulares e as experiências
particulares, expressando aquilo que elas têm de específico e representativo ao mesmo
tempo. Nesse sentido, não é uma tese preocupada com a ‘média’ das formas de fazer
justiça no conurbano bonaerense. É uma perspectiva produto de um trabalho de campo
situado desde uma posição e ‘em’ um local empírico específico
13
. A eventual
singularidade de tal trabalho é contraposta com outras realidades e experiências de
campo, seja próprias (no conurbano ou na justiça nacional e federal), seja de outros
autores. Pretendo, assim, colocar em contraste e tensão certas visões dos atores sobre as
12
Tomo a expressão no sentido dado por Malinowski nas suas considerações metodológicas em “Os
Argonautas do Pacífico Ocidental”: “Em certos tipos de pesquisa científica especialmente no que se
costuma chamar de ‘levantamento de dados’, ou survey- é possível apresentar, por assim dizer, um
excelente esqueleto da constituição tribal, mas ao qual faltam carne e sangue. Aprendemos muito da
estrutura social nativa, mas não conseguimos perceber ou imaginar a realidade da vida humana, o fluxo
regular dos acontecimentos cotidianos, as ocasionais demonstrações de excitação em relação a uma festa,
cerimônia ou fato peculiar” (1984:28).
13
Nessa linha, Roberto Kant de Lima afirma que “embora estudando um lugar em que o método o leva a
trabalhar em ‘pequena escala’, não é esse o seu ‘objeto’ (...). Não está estudando um sistema de
parentesco’, ‘um sistema jurídico’, ‘uma comunidade’, sobre os quais enunciará um discurso limitado
pela sua ‘pouca’ capacidade de generalizar. A passagem da quantidade à qualidade não é empírica, mas
teórica. É porque está estudando ‘em um tribunal’, com experiências específicas e concretas,
estabelecendo relações que se podem exprimir em ‘casos’ e a partir deles, é que a experiência qualitativa
da Antropologia é geral e desvendadora da capacidade das generalizações ocas e das especificidades
rasteiras (2008:11).
25
formas diversas de administrar justiça, sem reduzir as possíveis diferenças ou
contradições.
Nessa linha, as questões aqui colocadas se valem de uma perspectiva
comparativa. Por um lado, como mencionado, em relação a meu próprio trabalho de
campo anterior na justiça federal e nacional na cidade de Buenos Aires. Por outro lado,
porque na concepção e elaboração das questões aqui tratadas interagi, em diversas
situações, com minhas experiências de pesquisa no Rio de Janeiro (Kant de Lima, Pires
e Eilbaum, 2007 e 2008), bem como com os trabalhos de colegas brasileiros sobre estes
assuntos. Em março de 2004, os trabalhos de Roberto Kant de Lima, através de Sofia
Tiscornia, me trouxeram ao Programa de Pós-graduação em Antropologia da
Universidade Federal Fluminense e às atividades de pesquisa no cleo Fluminense de
Estudos e Pesquisas (NUFEP), atualmente, sede do Instituto de Ciência e Tecnologia
Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-
InEAC). A partir dos estudos desenvolvidos no âmbito do mestrado e do doutorado
daquele programa e do trabalho em rede no NUFEP e no InEAC, outras leituras foram
de proveito para informar minhas reflexões.
Com os trabalhos do Kant de Lima (1983; 1995; 2008) e, posteriormente, de
Lana Lage (1999) e Maria Stella Amorim (2003; 2009), aprendi sobre as características
inquisitoriais do sistema de justiça criminal brasileiro; o predomínio de uma lógica
cartorial e contraditória, que impede a atualização de mecanismos que busquem o
consenso entre as partes, tendendo, pelo contrário, à oposição e hierarquização de teses
antagônicas. Nessa linha, as pesquisas empíricas na área do direito de Bárbara Lupetti
(2008), Regina Lúcia Teixeira Mendes (2008) e Marco Aurélio Gonçalves Ferreira
(2010), também têm sido úteis para enfatizar as dificuldades do sistema brasileiro de
justiça e seus agentes, em especial no Rio de Janeiro, em incorporar os princípios de
“inocência” e de “oralidade” do processo. Esses trabalhos demonstram o predomínio da
presunção de culpabilidade, da busca da “verdade real” e do “livre convencimento do
juiz” sem explicitação dos fundamentos para a tomada de decisões, bem como as
dificuldades por parte dos agentes judiciais para ouvir as partes envolvidas nos
processos. Também as etnografias de Luiz Figueira (2007) e Ângela Moreira Leite
(2006) sobre o Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, demonstrando a particularidade dessa
instância no “julgamento moral” dos casos julgados, bem como a performance
encenada pelos agentes nessas cerimônias de julgamento têm sido pontos de contraste
26
importantes para observar e pensar sobre as formas de julgamento no conurbano
bonaerense. Partindo de uma linha semelhante, mas desde um ponto de vista mais
centrado na percepção das pessoas envolvidas nos conflitos administrados pela justiça,
os trabalhos de Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002; 2005; 2010), Daniel Simião
(2009; 2010) e Jacqueline Sinhoretto (2007; 2010) têm aportado conteúdos às minhas
reflexões sobre a existência de sensibilidades legais diferenciadas, na maioria das vezes
excluídas dos processos judiciais, gerando situações de “insulto moral”, “humilhação” e
“falta de reconhecimento” por parte do estado.
Enfim, o ‘contraste’ como técnica de pesquisa e reflexão me ajudou a ressaltar
aspectos, que de outro modo não teriam chamado minha atenção. Ao longo da tese, o
leitor poderá encontrar referências explícitas à comparação entre aspectos do sistema de
justiça na província de Buenos Aires com a justiça argentina em nível federal e com o
sistema brasileiro. Outras comparações estão implícitas, apesar de terem acompanhando
minha reflexão e a perspectiva adotada.
Sobre os capítulos
As questões que esta tese trata são abordadas através de diversas histórias e
personagens; dos relatos dos agentes judiciais, policiais e advogados e dos casos por
alguns deles tratados e por mim observados. A organização destas histórias nos
capítulos que compõem a tese foi orientada a fim de ressaltar certos aspectos
particulares em cada um deles. Porém, em todos estão presentes duas questões centrais,
elaboradas a partir da percepção ou identificação de duas categorias nativas, presentes
durante o trabalho de campo: o “bairro” e a “crença”. Ao longo da tese procuro dar
conta dos significados atrelados a essas duas categorias e as implicações das mesmas no
processo de investigação, julgamento e decisão sobre os casos administrados
judicialmente no âmbito de minha pesquisa. No final da tese, nas conclusões, busco
condensar esses significados e implicações com uma reflexão mais ampla sobre o
processo de administração de justiça.
O primeiro capítulo introduz o leitor diretamente na etnografia. Trata da
descrição de uma audiência judicial, na capital da província de Buenos Aires, na qual se
julgou seis policiais pelo “homicídio” de um jovem em um bairro periférico daquela
cidade. O caso me permite introduzir algumas questões relativas à forma na qual se
desenvolvem os juicios orales no sistema judicial bonaerense, que, posteriormente,
27
servirão de contraste com as descrições sobre a etapa escrita da investigação criminal.
Da mesma forma, o caso narrado neste capítulo também me ajuda a introduzir alguns
dos significados vinculados à categoria nativa do “bairro” e como esta aparece neste
conflito em particular. O caso também mostra como o respeito e seguimento da ‘forma’
do processo torna-se fundamental para um certo ‘fundo’ ser considerado válido. Ao
ponto tal, como veremos, de serem forçados procedimentos e regras processuais por
parte dos agentes policiais.
O segundo capítulo muda de tom. Se no primeiro capítulo o leitor pode ter tido
dificuldades em entender alguns aspectos formais do funcionamento do sistema de
justiça criminal na província de Buenos Aires, neste segundo achará uma apresentação
de suas principais características. Busco com isso não só fornecer o “esqueleto” das
histórias relatadas na tese e do âmbito de ação das mesmas, mas também contextualizar
o âmbito social, político e institucional das mesmas. É neste capítulo que o contraste
com a cidade de Buenos Aires e com a justiça federal aparece de forma mais explícita,
pois trata-se também de marcar a passagem que eu mesma fiz de um âmbito de pesquisa
–o federal na cidade de Buenos Aires- a outro a justiça provincial no conurbano
bonaerense. Nessa contextualização, sem pretensão de exaustividade, ressalto algumas
características da região do conurbano bonaerense enquanto subúrbio metropolitano e
também do processo político e institucional que convergiu, em 1998, em uma reforma
dos sistemas de segurança pública e de justiça criminal da província.
O terceiro capítulo tem uma finalidade semelhante. Busca contextualizar o
âmbito mais específico de minha pesquisa e da narração desta tese: a UFI “K”
14
, onde
realizei a maior parte de minhas observações. Apresento o ambiente e os personagens
que nele trabalham, centrais para o entendimento das formas de tratamento dos casos
relatados ao longo dos outros capítulos. Nesta apresentação também busco entender
minha própria posição nesse campo, as identidades a mim atribuídas e o processo de
interação e aproximação com esses interlocutores.
A partir do quarto capítulo, a tese entra na etnografia dos casos e situações
observados na UFI. No quarto, a narração enfatiza a descrição de um período de tempo
específico do trabalho das promotorias criminais na província: o turno”. Busco dar um
panorama do tipo de conflitos que chegam à justiça e os primeiros encaminhamentos
adotados. Entre eles, abordo em especial as situações relativas ao momento do
14
As UFIs e defensorias são denominadas com números. Aqui utilizo letras para não identificá-las.
28
depoimento do “imputado”, nos casos em que este tinha sido identificado. Estes
supostos “autores” eram obrigados a se apresentar na UFI para serem informados sobre
aquilo que estavam sendo “imputados”. Como veremos, não eram obrigados a depor,
mas, independente disso, esses encontros me permitiram pensar em uma série de
questões, como a diferença entre depor e falar, as estratégias de defesa dos “imputados”
e as representações sobre as mesmas por parte de advogados, defensores públicos e
promotores. As representações sobre categorias como “verdade” e “mentira” fazem
parte dessas representações e, portanto, dos temas deste capítulo.
O quinto capítulo é uma continuidade do anterior. Descreve outro período de
tempo e trabalho conhecido com o pós-turno”, imediatamente posterior ao turno”,
descrito no quarto capítulo. Durante o mesmo, eram chamadas para depor na UFI as
eventuais vítimas e testemunhas dos casos em andamento, seja aqueles do turno”, seja
de outros anteriores. Os depoimentos testemunhais também resultaram em encontros
significativos para observar como são produzidas as versões sobre os casos específicos
e, consequentemente, como e quais dessas versões ganham status de “prova” no
processo judicial. Em um processo de investigação no qual o testemunho oral é o
principal “meio de prova”, a questão da credibilidade produzida pelos agentes
(profissionais e leigos) nas suas interações sobre as versões relatadas tornou-se
fundamental para entender algumas das variáveis que orientam a investigação e
informam a tomada de decisões.
Os últimos três capítulos estão dedicados à análise estendida de dois casos
acompanhados sistematicamente durante o trabalho de campo na UFI. Em ambos os
casos, se fez presente o “bairro” como um ator da investigação criminal. Em cada um
deles, o “bairro” aparece como uma categoria nativa dotada de significados distintos,
mas centrais para entender a trama de relações que deram forma e sustentaram os
processos de produção de “provas” e investigação dos mesmos. Ambos os casos
também evidenciam como o ‘fundo’ em especial, as representações sobre as pessoas
envolvidas, o tipo de conflito e as moralidades a eles atreladas- influencia no processo
de “convencimento” dos agentes judiciais. Busco mostrar que é esse ‘fundo’ que orienta
o processo de investigação e as decisões tomadas, de modo que a ‘formavira apenas
uma regra a ser moldada para garantir a validade jurídica daquele.
O primeiro caso, relatado no sexto capítulo, trata sobre a acusação dos pais de
um bebê morto em estado de desnutrição. Além da participação do “bairro”, a
29
investigação do caso trouxe à tona uma série de representações sobre as formas de
organização doméstica, dos cuidados devidos aos filhos, das relações de vizinhança e
familiares, enfim, sobre uma moralidade do parentesco presente durante todo o processo
judicial. Em palavras de Dupret, é um caso onde pode se apreciar a ação judicial sobre
questões morais. Nesse sentido, ele mostra como as moralidades envolvidas influenciam
na tomada de decisões e como elas entram em disputa por se fixar como juridicamente
válidas.
O segundo caso é relatado nos capítulos sétimo e oitavo. Trata da investigação e
julgamento de um jovem acusado de ter matado outro quando roubava a moto deste e do
primo dele, em um bairro do sul do conurbano bonaerense. A investigação do caso
mostra como o “bairro” pode ser, embora que implícita e anonimamente, uma
testemunha do processo de identificação de um possível autor. As informações
aportadas pelo “bairro” orientaram boa parte da investigação do caso. Sendo assim, esse
caso também mostra os mecanismos através dos quais os agentes dão ‘forma’ a essas
informações para que possam ser “provas” válidas no processo. No último capítulo,
descrevo o processo de julgamento do jovem identificado como autor do “homicídio”.
Retomo e aprofundo aqui questões traçadas no primeiro capítulo, em relação à
participação do “bairro” nas cerimônias de juicio oral y público”, enfatizando como
diferentes grupos podem se atribuir essa identidade, obtendo diferente grau de
legitimidade. Ao mesmo tempo, neste capítulo apresento algumas características
próprias do desenvolvimento dos ritos de julgamento no conurbano, em contraste com a
etapa de investigação e com outro tipo de cerimônias de julgamento, como o Tribunal
do Júri no Rio de Janeiro.
30
CAPÍTULO 1
Em abril de 2010 viajei, mais uma vez, do Rio de Janeiro para Buenos Aires.
Tinha dois “compromissos” com meu trabalho de campo. O primeiro deles correspondia
a uma situação completamente inédita para mim. Estava sendo proposta, por uma das
partes de um processo, para depor como antropóloga, em um juicio oralde um caso
de “violência policial”. O segundo referia à realização de um juicio oral por
“homicídio” cuja investigação tinha acompanhado de forma próxima durante meu
trabalho de campo na UFI em Los Pantanos. Ambas as situações tinham relevância para
minha pesquisa. Na primeira, porque seria a primeira vez que participaria de um
julgamento fora do lugar de observadora e teria uma intervenção como depoente. No
segundo, porque seria a primeira vez que observaria o julgamento de um processo do
qual tinha acompanhado pessoalmente a etapa de investigação. Anteriormente, ou tinha
observado a investigação de certos casos, sem posteriormente acompanhar o julgamento
(caso houvesse), ou bem tinha observado julgamentos sobre casos que desconhecia
como tinha sido a etapa de investigação.
Ambas as situações despertaram, por esses motivos, expectativas quanto à
possibilidade de aprofundar as diferenças que vinha observando entre as etapas de
investigação e de julgamento de um caso. A primeira, formalmente, baseada no registro
escrito das informações produzidas; a segunda, caracterizada por ser desenvolvida em
audiências orais e públicas, sem registro literal e total do que nelas acontecesse.
Contudo, uma vez vivenciadas ambas as experiências etnográficas, outras questões
suscitaram também meu interesse. Para esse momento, eu tinha começado a escrever
esta tese e uma questão se revelava significativa na minha análise. Como a figura do
“bairro” intervinha, ou não, na construção do processo de investigação, de julgamento e
de produção de uma verdade judicial. A observação dos dois juicios me permitiu
também aprofundar esta questão, contrastando dois casos nos quais a presença do
“bairro” me permitia um questionamento fundamental: quem era o “bairro”? Quem se
definia, como e quando como “bairro” e qual legitimidade tal definição alcançava no
âmbito judicial? Este capítulo trata sobre o primeiro juicio citado. Sobre o segundo trata
o último capítulo desta tese (Capítulo 8).
31
“Tudo vai estar bem...”
No dia 19 de abril, começava na localidade La Plata, capital da província de
Buenos Aires, o julgamento contra seis policiais da Polícia da província de Buenos
Aires. Um deles, Resapo, estava sendo acusado pelo crime de “homicídio agravado”. Os
outros cinco por “encobrimento agravado”. Em todos os casos, a figura penal
“agravado” fazia referência a um endurecimento da acusação em função de se tratar de
crimes supostamente cometidos por funcionários públicos –policiais- em exercício de
suas respectivas funções.
Eu tinha tomado conhecimento do caso, em abril de 2009, ao entrevistar um
advogado, através do contato de uma colega do Equipo de Antropologia Política e
Jurídica. Luis Real era um advogado de aparência juvenil e informal. Nosso primeiro
encontro foi em um bar na cidade de Buenos Aires, pois na época, ele estava
trabalhando em um organismo para idosos do governo nacional. Desde o início do
encontro, Real parecia preocupado por situar “desde onde estou falando”.
Eu me criei em um ambiente onde o sistema penal esteve sempre presente. Meu
pai era comisario e o marido de minha mãe também, daqueles de vocação. Não
era raro quando era criança passar longos períodos em uma comisaría
15
.
Trabalhei no Ministério Público da província, como instrutor, depois saí desse
trabalho e fui trabalhar no Centro de Assistência à Vítima em La Plata, mas com
a assunção do último governador desisti e vim trabalhar neste organismo
[nacional para idosos]. Como advogado, trabalho processo claros de violência
institucional, sobretudo policial. Atualmente, trabalho processos vinculados à
Associação Miguel Bru
16
. Não me considero um advogado criminal, nem
também um advogado de direitos humanos, e isto último supõe toda uma
tradição na qual não me inscrevo.
No decorrer da entrevista, minhas perguntas não estavam vinculadas
pontualmente a casos de “violência policial”, mas principalmente às formas de trabalho
do Ministério Público e às estratégias desenvolvidas como advogado. Luis foi
respondendo a elas de forma profícua e sempre recheadas com casos concretos nos
quais tinha intervindo, seja desde o Ministério blico, seja como advogado. Foi, nessa
15
Unidades descentralizadas de base para o policiamento ostensivo, recepção de denúncias, carceragem,
serviços administrativos e também tarefas de investigação.
16
A Associação Miguel Bru é uma associação civil fundada, formalmente, no dia 20 de agosto de 2002.
Funciona informalmente desde agosto de 1993. Inicialmente conformada por amigos e familiares de
Miguel Bru, um jovem estudante de jornalismo da cidade de La Plata, Miguel desapareceu no dia 17 de
agosto de 1993. Seu corpo ainda não foi encontrado. Dois policiais foram julgados e condenados por sua
morte. Desde 2002, a Associação, presidida pela mãe de Miguel, Rosa Bru, fornece apoio e
assessoramento jurídico a familiares envolvidos em casos de violência institucional. Para mais
informações, www.ambru.org.ar
32
conversa, que tomei conhecimento pela primeira vez do “caso de Dario”, como Luis o
identificava. Meus sucessivos encontros com ele estiveram marcados pela entrega
progressiva e sucessiva de cada um dos “corpos” do processo onde se investigava a
morte de Dario e que ele, como advogado da família, tinha em seu poder. Foi através da
leitura do mesmo que pude, com mais detalhe, reconstruir o caso para minha análise.
Dario era um jovem de 17 de anos quando foi morto por causa de um tiro
efetuado pelo policial Resapo. A história que resultou nessa morte, narrada no processo,
começou no bairro Los Hornos no dia 10 de janeiro de 2007, quando o jovem foi pego
pelo policial Talarico. Momentos antes, Dario e um amigo teriam ingressado na casa
deste último, no mesmo bairro onde eles moravam, e roubado do seu interior dois
eletrodomésticos. Dois vizinhos do policial viram os jovens e, quando Talarico
regressou a sua casa, avisaram-no sobre o acontecido. Sem duvidar, o policial saiu no
seu carro particular para procurar os jovens e, quem sabe, reaver seus pertences. Tendo
rodado poucas quadras, avistou dois jovens correndo com uma bolsa amarela. Dela
percebeu os relevos de um micro-onda e um reprodutor de DVD, que identificou,
momentos depois, como sendo seus. O policial, ainda vestindo seu uniforme de rotina,
os perseguiu e, ao perceber que podiam fugir, atirou à distância com sua arma.
Conseguiu deter Dario, enquanto o outro jovem corria em outra direção. Talarico
colocou Dario de costas, deitado no chão, e o algemou com as mãos para trás. No jargão
policial, lo redujo´[“o reduziu”]. Segundo o relato da dona de um comércio próximo,
ao detê-lo, Talarico deu vários chutes no corpo do Dario, dados, no entender da senhora,
“com alma e vida”.
Um policial, que passava pela rua no seu
carro particular, observou a situação.
Desceu do carro e, segundo seu relato, pelo
rádio policial, pediu reforço à comisaria da
região. Momentos mais tarde, outros dois
policiais, Resapo e Sanchez, chegaram em
uma camionete policial
17
. Talarico contou
17
No Rio de Janeiro, a polícia militar utiliza esse tipo de veículo para o chamado “patrulhamento táctico
móvel”, portanto, são comumente conhecidos como “Patamo”.
33
o acontecido, passando a custódia de Dario para eles, que estavam de serviço. Resapo
ingressou com Dario na parte traseira do carro, enquanto Sanchez dirigia. Estavam a
poucos minutos de um fato que mudaria a rotina que acreditavam estar reproduzindo.
Com Dario na viatura, percorreram algumas quadras. Como ficara demonstrado
posteriormente através da investigação judicial, o trajeto não foi feito em direção à
comisaria. Foi um percurso errático, à baixa velocidade. O objetivo era tentar prender o
amigo de Dario. Duas práticas policiais vieram em socorro de Resapo: el aprietee el
quiebre”. “Apertar” alguém é pressioná-lo física ou psiquicamente para extrair dele
certas informações. “Quebrá-lo” é ter sucesso nessa tentativa, quer dizer, conseguir que
o sujeito se dobre diante das pressões e ameaças e, assim, forneça a informação
procurada. É uma antiga técnica de investigação policial, dentro de uma tradição
investigativa que prioriza, antes que a produção de provas “técnicas” –perícias, testes de
DNA, inspeções oculares, busca de digitais-, a obtenção de provas através de
testemunhos orais e, dentro destas, sobretudo, a obtenção da confissão como garantia de
“verdade”. O predomínio dessa característica do sistema penal argentino, dentre outras
como a predominância da escrita sobre a oralidade (Eilbaum, 2008), inscreve suas
práticas policiais e judiciais na tradição inquisitorial de produção de verdade judicial
(Bovino; 1995; Tiscornia, 1998; Eilbaum; 2008; Renoldi, 2008a)
18
.
Na parte de trás do carro, Resapo buscava que Dario dissesse –confessasse- em
que direção teria fugido seu amigo e onde poderia estar. “Vai, vai, cante, cante onde
está o outro...”, ouvia dizer Sanchez, a partir de sua posição de motorista. Resapo dizia
isso enquanto posicionava a sua arma na têmpora de Dario. Dario afirmava que não
conhecia o outro menino e Resapo insistia... Foi quando Sánchez escutou um disparo.
“Eu escutava que Resapo lhe dizia [a Dario] ‘vai, vai, cante onde está o outro’,
porque diziam que havia outro. O sujeito respondia que ele não tinha nada a ver.
Nisso, escuto o disparo. Resapo vinha apertando o sujeito. Eu justo ia lhe tocar o
joelho para que desse um tempo e justo nesse momento escuto o disparo. Resapo
começou a gritar ‘matei-o, matei-o, vamos ao hospital’ e eu acelerei mais
forte” (Do depoimento de Sánchez no processo judicial).
Segundo consta no processo como resultado da investigação penal, eles não
foram diretamente ao hospital, mas à sede policial. Sánchez ligou para Gómez, um
oficial de polícia que era o terceiro em hierarquia na comisaría, mas a primeira
18
A busca da confissão como “rainha das provas” como parte de uma tradição inquisitorial de produção
de verdade tem sido assinalada, para o caso do Brasil, por Lima (1999; 2007) e Kant de Lima (1995;
1999). No caso da França, ver (Garapon, 1997). Ver também Berman, 1996.
34
referência para todas as questões chamadas “operacionais”
19
. Passada a meia-noite de
um dia de janeiro, nem o comisario nem o sub-comisario encontravam-se presentes na
sede policial, embora estivessem de serviço. Gómez indicou aos dois policiais que
passassem pela comisaría para irem juntos ao hospital. No trajeto, começou a se
configurar uma trama de produção de provas que, posteriormente, acabaria levando
Sánchez, Gómez, o comisario, o sub-comisario e um oficial de serviço ao banco dos
réus.
Aquela trama evidenciou formas de investigação e produção de provas
observáveis em outras intervenções policiais e, sobretudo, em rotinas e práticas próprias
da instituição policial. Cada uma delas identificável com categorias nativas específicas,
cuja análise evidencia a naturalização de tais práticas na socialização policial
20
. Expor
parte destas questões era o objetivo do advogado Luis Real, ao me propor depor como
“antropóloga especialista” durante o julgamento. “Temos que demonstrar –me dizia-
que Resapo não é um maluquinho que atirou, mas que está coberto e encoberto por
formas típicas de intervenção policial”.
O fato de Resapo ter sido o autor do disparo não foi questionado nem durante a
investigação policial (primeiros momentos após o evento) e judicial, nem durante o
julgamento. “Escapou um tiro”, disse ele próprio para Gómez, assim que se
encontraram. Fora esse consenso, as primeiras versões dadas por Sánchez, Resapo e
Gómez davam lugar a conclusões diferentes. O primeiro relato dos fatos era que, dentro
da viatura, Dario e Resapo estavam atracados; que Dario, estando armado, tentou tirar a
arma dentre suas roupas e aí Resapo puxou a arma e saiu o disparo. Essa versão
supunha não que Dario estava armado, mas também que não estava algemado. As
provas para ambas as condições teriam sido garantidas por Gómez desde que tomou
conhecimento da situação. No trajeto da comisaría ao hospital, teriam detido o carro e
retirado as algemas que Talarico havia colocado ao “reduzir” Dario, tal como indica o
procedimento. Nesse mesmo trajeto, diante do desespero de Resapo ele repetia sem
parar “matei-o, matei-o, vou ser preso, vou ser preso”-, Gómez teria dito que ficasse
19
Ao longo do juicio, ficou claro que os policiais da comisaría respondiam a Gómez e que este respondia
diretamente ao comisario. mez foi referido em mais de uma oportunidade como sendo “o capanga”,
“uma espécie de chefe”. Um alto chefe policial disse no seu depoimento: “Quando você tem mais de dez
anos de comisario não deposita a confiança em um subcomisario que está aí há pouco tempo e advindo de
Bombeiros, como era caso do subcomisario [da época]”. Aliás, o subcomisario foi um dos dois
absolvidos no juicio.
20
Para uma análise mais detalhada do caso em relação a estas práticas, ver Eilbaum, 2009 e Gubilei,
2009.
35
tranqüilo: “tudo vai estar bem... eu vou te dar uma mão, vou te dar uma mãozinha, meto
um perro [cachorro]” (Do processo judicial).
Colocar provas na cena do crime, posteriormente ao fato, é conhecido no jargão
policial e judicial como “plantar provas”. Quando as “provas plantadas” referem a uma
arma, a categoria policial para se referir a esta é perro e a ação de plantar” se
conhece como “meter um perro
21
. Ao retornar à comisaría, Gómez teria se ocupado de
colocar a tal arma no carro e pedido a outro policial para lavar o sangue das algemas e
entregá-las de volta para Talarico. Desde o momento da ligação de Sánchez, Gómez se
comunicou com o comisario, que estava jantando em outra localidade da província, e
com o subcomisario, que estava na sua casa. reunidos na sala do comisario, foi
combinada a versão segundo a qual Dario estaria armado e não algemado. Para tanto,
Talarico deveria depor que não tinha algemado nem revistado o aprendido. Assim, foi
assentado na ata escrita que o “oficial de serviço” tomou de Talarico.
Também chegou à comisaría a chefe de plantão correspondente a toda a cidade.
Ela depôs como testemunha na sede judicial. Parte de seu depoimento evidenciou a
naturalização de outra prática policial, também manifestada em outros depoimentos.
Que quando chegou o livro de novidades estava com registros de até as 21h. Que
percebendo que a ajudante de guardia
22
tinha anotações com novidades a
posteriori desse horário lhe indicou que o atualizara e que quando o tivesse no
horário mais ou menos próximo ao fato [investigado] consultara com o chefe
sobre as circunstâncias a serem consignadas. (Do depoimento judicial)
Enquanto burocracia pública, uma comisaría deve registrar por escrito todas
suas intervenções e atividades. Em cada comisaría bonaerense, tais atividades são
registradas em, pelo menos, dez “livros” diferentes
23
. Tais “livros” se correspondem
também com funções burocráticas que, por sua vez, se correspondem com repartições e
salas dentro de uma comisaría (repartição judiciária, repartição de processos, guardia,
depósito, operações). Todos os “livros” são documentos públicos e, como tais, devem
cumprir certas exigências. Entre elas, serem levados em “tempo e forma”, isto é, “as
anotações devem ser feitas em tempo real, seguindo a ordem dos acontecimentos na
dependência policial e, caso os fatos sejam consignados de forma errada, qualquer
21
Interessante que, no espanhol, a expressão também é usada popularmente para se referir ao ato de
mentir alguém, lhe contar uma história qualquer.
22
Função semelhante ao balcão de atendimento de uma delegacia de polícia no Rio de Janeiro.
23
Alguns dos livros são: de novidades, de presença do pessoal, de horas extra, de preventivos judiciais, de
reconhecimentos médicos, de notas várias, de registro de atuações ostensivas e de investigações penais,
de depósitos judiciais, registro de distribuição de quadrículas, novidades do oficial de serviço, de presos.
36
riscado ou emenda que seja realizado, deverá se salvar, como acontece com qualquer
registro público, acrescentando a assinatura do autor para assinalar sua
responsabilidade” (Villaruel e Rodriguez, 2008).
A indicação da chefe do plantão para “ainda” não registrar o acontecido com
Dario não chamou a atenção da “ajudante de guardia
24
. Vários depoimentos
manifestaram ser “normal ter o livro de guardia atrasado por volta de uma hora, que é
um mau costume, mas que se leva como rascunho” (Do processo judicial). A
uniformidade nas respostas dos policiais sobre esta questão, diante das perguntas dos
promotores durante a investigação e dos juízes durante o julgamento, bem como a
espontânea manifestação da chefe do plantão da cidade, evidenciavam uma prática
comum nas comisarías bonaerenses: “a parada de livros”; levar o livro de novidades
com atraso, em rascunho, até, eventualmente, alguém com maior autoridade indicar
aquilo a consignar.
A “parada de livros” explica a incrível arrumação dos dados nos livros de
novidades, a letra clara, a falta de rasuras. Essa arrumação, como mostrava o caso de
Dario, evidenciava também a possibilidade de dar “tempo e forma” às novidades e
movimentos da comisaría. A obrigação de registrar por escrito as suas intervenções, por
vezes apresentada por policiais como um obstáculo a sua atividade, também outorga à
polícia um domínio sobre o registro escrito, quer dizer, o poder de dar formato às
informações por ela produzidas, conforme os tempos, formas e espaços, próprios do
domínio policial.
O poder de registrar, de escrever, é, como assinala Jack Goody (1988:26)
25
, o
poder de fixar no papel. O que no sistema judiciário significa o poder de inscrever
‘verdades’. Se, como veremos em outros capítulos desta tese, esse poder é localizável
nos funcionários judiciais, quando, por exemplo, transcrevem nas atas por eles
confeccionadas os depoimentos orais de testemunhas e imputados, não deixa de estar
24
Policial de baixa hierarquia que integras, principalmente, as atividades do balcão de atendimento.
25
Segundo Jack Goody, uma das características da escrita, como técnica de comunicação, é a
permanência no tempo e no espaço, permitida pela fixação do discurso no papel. Para ele, isso permite,
por sua vez, uma maior análise e crítica, e uma avaliação, reflexão e posterior revisão do material, ao
permitir uma maior visibilidade das contradições (1988:26 e 47). No caso do registro escrito em
processos judiciais, no sistema penal argentino (tanto na província de Buenos Aires como em nível
federal), entendo que este processo se de forma diferenciada. A fixação do discurso oral no papel
despoja o discurso das contradições manifestadas pelas pessoas oralmente, e o transforma em uma versão
coerente dos “fatos” a serem avaliados juridicamente. Como tal versão escrita, na sua qualidade de
documento público, conta com presunção de verdade, as possibilidades de que seja revista, refletida e
criticada, são menores do que na dinâmica dos discursos orais.
37
também na produção policial das informações escritas. Chamou minha atenção, tanto na
leitura do processo judicial, quanto nos depoimentos orais durante o juicio oral, que os
policiais tenham se referido ao momento de assunção da investigação por parte da
Divisão de Investigações (e não mais do próprio pessoal da comisaría) com frases
semelhantes a esta expressa pelo sub-chefe: “quando chegou a DDI, eles se fizeram
responsáveis de tudo, lhe disseram a Gómez que parasse e eles começaram a escrever
(Do processo judicial). Igualmente, quando chegou a DDI, as atas anteriores –ou seja,
os registros escritos anteriores- foram rasgadas.
Foi a partir dessa mudança de comando na investigação do caso, já com a
presença de pessoal da promotoria, que outras versões sobre os fatos começaram a
circular. Talarico teria chamado à parte o chefe da DDI, segundo este último manifestou
no juicio, porque o conhecia pessoalmente da intervenção em outro “fato”. “Eu fiz o
procedimento como corresponde”, disse Talarico para o chefe. Isto queria dizer que ele
tinha algemado e revistado Dario, confirmando que o jovem não tinha arma nenhuma e
que tinha entrado na viatura com as mãos algemadas. Explicou que lhe tinha sido
solicitado dizer –depor- que isso não tinha sido assim e, “por medo”, “por se sentir
intimidado”, assim o fez.
“Estavam todos loucos. Ligavam pelo telefone uns aos outros. Era um calvário.
Eu fiquei deambulando de sala em sala e me diziam aquilo que devia dizer, que
o malandro estava sem algemas. (...) O panorama dentro [na comisaría] era
escuro, feio. Eu sentia que alguma coisa ruim estava acontecendo”, disse
Talarico durante o juicio.
Também contou, tal como tinha contado horas depois dos “fatos”, que decidiu
alterar seu depoimento e “contar a verdade”. Essa alteração da versão inicial deu uma
reviravolta na investigação: outros depoimentos foram também alterados –Sánchez e
Reasapo-; foi revistado o carro onde estava a arma perro- confirmando que não estava
nem sequer manchada com sangue; foi dada intervenção a Corregedoria (Asuntos
Internos); foram tomados os depoimentos na promotoria e, principalmente, Sánchez,
Gómez, o comisario, o subcomisario e o chefe de plantão passaram da condição de
testemunhas a “imputados”.
Segundo a argumentação de Luis Real durante o juicio, a cadeia de cumplicidade
e encobrimento era maior. “Podem ser mais dos que estão, mas destes que estão não
sobra nenhum”, afirmou várias vezes durante as audiências. Apriete”, quiebre”,
meter um perro”, fazer depor”, parada de livros”, eram as categorias policiais que
38
assinalavam práticas reconhecidas pelos policiais na sua socialização, envolvidas neste
caso. Dessa forma, o caso tinha a potencialidade de envolver não o julgamento dos
imputados individualmente, mas de certas práticas institucionais. Esse era meu papel,
segundo solicitado por Luis.
Cheguei a Buenos Aires um sábado e no domingo, um dia anterior ao início do
juicio, me reuni com Luis. Naquela reunião, ele ressaltou que não era para eu falar sobre
“os fatos” do processo, mas para contar minha experiência e trabalho na pesquisa sobre
práticas e rotinas policiais, em especial nos chamados casos de “violência policial” e
naqueles de “procedimentos armados”. Ele dizia que seu objetivo era justamente
ressaltar uma sistematicidade no acionar policial. A experiência de depor, no dia
seguinte, me depararia com outro tipo de expectativa por parte do Tribunal.
Do outro lado do juicio
A audiência estava marcada para começar nove horas, nos Tribunais penais, na
cidade de La Plata. Eu estava escalada para depor no último dia do juicio. No entanto,
Luis Real solicitou ao Tribunal que pudesse depor no primeiro dia. Como testemunha,
não poderia assistir à audiência antes de depor. Por isso, também fui acompanhada de
meu marido, também antropólogo, que se comprometeu a tomar notas sobre o
desenvolvimento do juicio enquanto eu esperava ‘do outro lado’. Em princípio, parecia
que não haveria problema com a mudança de dia, mas isso seria confirmado posterior e
formalmente na sala de audiência.
Apresentamo-nos na Mesa de Entradas do Tribunal Oral Criminal
correspondente. Eu apresentei minha carteira de identidade, esclarecendo que vinha
como testemunha. Meu marido entregou uma nota que o apresentava como
“observador” por parte da Universidad de Buenos Aires. Era uma estratégia elaborada
por Luis (um modelo de carta) para que ninguém tivesse obstáculos para ingressar na
sala, embora as audiências fossem públicas. Neste caso não era apreensão a um
impedimento de entrar, mas a expectativa de que o “público” superasse o tamanho da
sala.
39
Após esperar uma hora e meia, as
pessoas que aguardavam para ingressar
no térreo do prédio começaram a ser
chamadas pelos policiais de custódia.
Foi indicado para mim que fosse ao
Tribunal e me apresentasse novamente,
“não podia estar com o público”. Fiz
isso, mas me foi indicado para descer
novamente ao rreo, onde estava a sala de audiência. Um outro grupo de pessoas
esperava em uma anta-sala. Eram as outras testemunhas daquele dia. Um policial, com
uma lista na mão, chamava pelo nome e sobrenome a cada uma das pessoas que
aguardavam. Fui reconhecendo o nome de muitas delas por tê-lo visto escrito no
processo judicial. Eu fui a última a ser chamada. Fui revistada por uma policial, por
cima das roupas. Por um estreito e cumprido corredor, entrei em uma sala onde todas as
outras pessoas estavam sentadas em precários assentos. Era a sala onde as
testemunhas aguardavam ser chamadas.
Éramos dezessete pessoas. Com exceção de mim e de outras quatro pessoas,
todos eram policiais. Muitos deles conhecidos entre si. Cumprimentavam-se e
conversavam sobre os novos “destinos”, outros julgamentos nos quais tinham tido que
depor e também, em um tom baixo de voz, sobre o caso em questão. Na sala havia um
cartaz indicando a proibição do uso de celular, mas a maioria dos policiais falava ou
enviava mensagens desde seus aparelhos. Parecia-me sentir os olhares de alguns
policiais se perguntando quem eu era.
Eu era a única dos presentes naquela sala que não tinha deposto durante a etapa
de investigação, três anos atrás. Também por isso era a única pessoa daquela sala que
não podia ser encaixada em nenhum papel em torno dos fatos acontecidos; em uma
palavra, não tinha testemunhado nada. Como ninguém me perguntava nada, também
não disse nada. Até o final da espera, quando apenas restava eu e dois policiais, aquele
mais insistente no seu olhar, acabou me perguntando. Respondi que tinha sido solicitada
como “especialista” pelo advogado da família. “Ah”, disse.
Após alguns minutos de termos ingressado na sala, um funcionário do Tribunal
entrou com o Código Penal na mão. Explicou que seríamos chamados pelo sobrenome
40
para depor. Disse que achava que, a exceção de uma pessoa (eu), todos tinham
deposto na etapa prévia. Então, da mesma forma que daquela vez, devíamos fazê-lo sob
juramento de dizer a verdade. Por isso, leu para nós o artigo do código que castiga o
delito de “falso testemunho” com penas de até quatro anos. Posteriormente, na sala de
audiências, cada uma das testemunhas seria recebida com a pergunta do presidente do
Tribunal sobre se “jura ou promete dizer a verdade de tudo quanto lhe fora perguntado”
e a consulta sobre se previamente tinham lido para nós o artigo que penaliza o “falso
testemunho” e compreendido seu conteúdo.
Soube que a audiência iria começar quando dois homens e uma mulher, todos
formalmente vestidos os homens de terno e gravata a mulher com terninho
26
-, de
diversas idades, mas todas elas de mais de 50 anos, passaram através da sala de
testemunhas. Eram os três juízes que comporiam o Tribunal Oral. Um deles
cumprimentou amigavelmente um dos policiais que estava como testemunha e, logo em
seguida, continuou em direção à sala de audiências. Aquela sala parecia um lugar de
passagem para uma das entradas à sala do juicio. Por ela, passavam os guardas de
Resapo, único acusado preso, que se revezavam em sua posição, e vários funcionários
do Tribunal. Estes também entravam para conversar com alguns dos policiais
testemunhas, sobre o andamento do juicio, coisa que faziam em voz bem baixa, ou bem
sobre outros assuntos ocasionais. Um funcionário do Tribunal também perguntou se
queríamos água, mas todos dissemos que não. o sabíamos ainda a longa espera que
nos aguardava pela frente, sem novo oferecimento.
Uma hora depois de iniciado o julgamento, foi chamada a primeira testemunha,
o oficial Talarico. Por ter assistido muitos outros juicios orales, sabia que aquela
primeira hora teria correspondido à exposição de cada uma das partes das linhas de
acusação ou de defesa que manteriam ao longo do julgamento. Como além do promotor,
de parte da acusação também tinha o assistente da acusação, e como os acusados eram
seis, dois deles com o mesmo advogado, não me surpreendeu a demora no chamado da
primeira testemunha. Além das argumentações das partes, cada acusado passava por um
interrogatório de identificação, quando o presidente do Tribunal perguntava os dados
pessoais de cada um deles. A demora que me surpreendeu foram as duas horas e meia
que duraria o depoimento de Talarico.
26
Nenhum funcionário judicial de nenhuma das jurisdições da Argentina usa toga. Ver Capítulo 8.
41
Certo é que era uma das testemunhas mais relevantes, pois não havia
realizado o procedimento de apreensão de Dario, mas também havia estado na
comisaría nos primeiros momentos da investigação, havia dado uma versão em um
primeiro depoimento e, posteriormente, tinha se desdito dela, aportando outra. Foi
objeto de perguntas tanto pela acusação como pela defesa. No final do juicio, entendi
melhor, nem tanto a demora, mas as possíveis controvérsias em torno ao depoimento de
Talarico, pois três dos advogados defensores pediram que fosse investigado pelo delito
de “falso testemunho”, ressaltando a falta de correspondência do mesmo com os fatos.
Mas sobre o conteúdo do que Talarico relatava na audiência, das perguntas que lhe eram
formuladas e das respostas a tais questionamentos, eu viria saber mais tarde, por
conta do relato e das anotações de Lenin Pires.
Naquele momento em que ele estava depondo, eu assistia como o ambiente da
sala de testemunhas começava a se alterar em um tom de impaciência e perspectiva de
longa espera. A maioria dos presentes teve seu momento de cochilo, a exceção de um
que dormia provocando com seus fortes roncos comentários e risadas de todos nós. A
atitude dos quatros civis era diferente da dos policiais. Enquanto alguns dentre estes não
emitiam reclamação nem se movimentavam de suas cadeiras. Outros, com maior
hierarquia na instituição, conversavam entre eles, fumavam na janela e comentavam de
casos anteriores nos quais tinham esperado a as quatro da manhã para serem
chamados. Um comentário não muito alentador para aqueles que, como eu, estávamos
passando pela primeira experiência em testemunhar. De qualquer forma, à exceção do
policial de mais alta hierarquia presente, todos pareciam resignados, pois ao final de
contas em lugar de estar “no serviço”, naquele dia sua obrigação institucional era estar
naquela sala. O policial chefe, pelo contrário, parecia ter muitas outras obrigações e
conseguiu que fosse transposto, pelo Tribunal, do último ao segundo lugar na lista de
testemunhas, após Talarico.
As testemunhas civis eram duas duplas conhecidas entre si. Uma senhora de
aproximadamente 45 anos com um senhor de mais de 65 e um jovem de no máximo 30
anos com um senhor de aproximadamente 55. No âmbito da história do processo, estes
dois eram os vizinhos que avisaram Talarico sobre o “roubo” e a outra dupla o dono de
uma remisería e sua funcionária que tinham visto, desde a calçada em enfrente, a
apreensão de Dario por parte de Talarico e a chegada de Resapo e Sánchez na viatura.
No início da espera, estas pessoas permaneceram quietas, sem conversar entre elas, nem
42
se movimentar de suas cadeiras. Passado mais tempo, mudaram de cadeira e começaram
a se soltar mais, emitindo comentários sobre a situação. A fome, o calor, estar no
Tribunal desde as 8h da manhã, o longo caminho à casa que os esperava. O vizinho
mais velho de Talarico comentou com seu par, com um olhar estendido para a sala toda:
“isto não tem lógica, chamar primeiro a quem mais tem para dizer! Deveriam nos
chamar primeiro a nós que não temos muito para dizer, ‘a ver o que este Mané tem para
dizer...’ e nos liberar logo, mas não, demoram duas horas e meia com o primeiro! Este
país não tem gica”. Desde aquela pequena e circunscrita sala, era possível, como em
muitos contextos da sociedade argentina, partindo de uma situação pontual, ouvir
opiniões e comentários sobre o país, a política nacional e/ou a economia mundial. Esses
pulos não excluíam opiniões sobre a Justiça, seu funcionamento e suas “eventuais”
relações políticas.
O tempo foi passando, lentamente. A segunda testemunha –o chefe- foi chamada
para depor e começaram as especulações na sala sobre quem seria o próximo. O certo é
que houve um momento em que as coisas começaram a se acelerar... Uma funcionária
do Tribunal ingressou na sala e chamou a testemunha seguinte. Passados menos de dez
minutos, ela entrou de novo e chamou mais uma. Logo em seguida, voltou ingressar
com três carteiras de identidade na mão. Chamou as pessoas pelo nome e anunciou que
podiam se retirar: “Foram desistidos, muito obrigada, e tenham um bom dia”. Aos
poucos minutos, o procedimento se repetiu novamente: a funcionária entrava e com um
gesto de “simbora” [vamos embora] apressava a quem tinha que depor e anunciava as
novas “desistências”. A “desistência” de uma testemunha se dava quando, com o acordo
de todas as partes, resolvia-se prescindir daquele testemunho. Foram “desistidos” três
policiais e dois civis. O senhor que fez aquele comentário foi “desistido”. Fiquei
pensando se sentiria uma sensação de alivio por ir embora ou se a decisão do Tribunal
reforçaria a sensação de “falta de lógica” e de um dia perdido. Às quatro e meia da tarde
ficávamos apenas duas pessoas na sala, eu e um outro policial, que, finalmente também
lhe foi indicado para ir embora. A impaciência parecia não haver tomado conta das
testemunhas, mas também dos participantes da audiência, do outro lado da sala. De
qualquer forma, a percepção do tempo transcorrido “do outro lado” me fez pensar no
juiciocomo tendo um tempo próprio, que, para quem não estivesse assistindo o rito –
estivesse “do outro lado”- podia ser incompreendido, ou, pelo menos, percebido de
forma diferenciada. Quero dizer, aquilo que, de um lado, era percebido como uma longa
43
espera “sem lógica”, do outro poderia responder ao ritmo que o ritual judiciário impõe a
seu desenvolvimento
27
.
“Eilbaum, Lucía
Finalmente, fui chamada para depor. A tranqüilidade que as horas de espera
tinham me fornecido rapidamente se transformou em batidas aceleradas do coração. A
funcionária me entregou minha carteira de identidade e me indicou por onde ingressar à
sala de audiências. Ingressei à sala pela porta localizada no fundo da mesma, por onde
ingressava também o “público” (diferente da porta de ingresso do Tribunal e dos
imputados presos). A visão desde esse ponto de ingresso, pelo menos para mim, foi,
sucessivamente, uma fila em pé, contra a parede, de policiais com uniforme e um tapete
vermelho pelo qual tinha que andar até subir a um estrado onde me aguardava uma
cadeira com um microfone em frente. Diante do microfone, o balcão dos três juízes que
integravam o Tribunal, o presidente no meio –com um laptop-, a secretária do lado do
terceiro juiz com outro laptop. Sabia que à minha esquerda estava Luis, junto com a
outra advogada, e o promotor, mas olhei para eles quando, posteriormente, Luis se
dirigiu a mim. Também sabia que a minha direita, estavam os advogados defensores e
atrás deles, os seis acusados. Mas, pouco olhei para eles naquele momento. A sala era
muito mais formal do que outras que conhecia, como aquela na qual assisti o juicio
em Los Pantanos que descrevo no último capítulo. A presença do tapete vermelho, do
estrado, do escudo da Justiça e da província de Buenos Aires, de uma cortina, espécie de
telão, atrás do tribunal, eram diferenciais em relação a outras salas que tinha conhecido
na Justiça da província de Buenos Aires, mas não muito diferente em estilo àquelas
observadas durante minha pesquisa na Justiça Federal argentina na cidade de Buenos
Aires.
27
Antoine Garapon enfatiza que o tempo do processo não é um tempo ordinário, mas que está composto
por sinais, ritos e prescrições processuais que marcam separam e unem- a qualidade do tempo
(1997:53). Segundo ele, a ordem do ritual judiciário indica que “cada um em seu lugar e cada coisa a seu
tempo” (1997:62), impondo uma cronologia e ritmo próprios deles. Ele aponta também o fato desse
tempo ser “mais longo para o acusado do que para os profissionais do direito” (1997:62), pudendo
estender esta percepção talvez para o público e para as testemunhas. Em um sentido semelhante,
utilizando a conceitualização de Evans-Pritchard sobre a noção de tempo entre os Nuer, Sofia Tiscornia
analisa o “tempo judicial”, como um tempo não abstrato ou lineal, mas relativo ao espaço social e às
hierarquias sócias que organizam cada acontecimento em litígio (2006:134-143). Embora esta reflexão se
refira mais ao processo escrito (prazos, férias, rotinas burocrática), no caso do rito do juicio oral é
importante para entender o transcorrer relativo do tempo da audiência para seus distintos participantes,
enquanto a administração do “tempo judicial” aparece como um recurso distribuído (e percebido,
acrescentaria eu) de forma desigual (2006:139).
44
Foi indicado onde me sentar.
Quando o fiz, Luis Real
encontrava-se em meio de uma
conversa com o presidente do
Tribunal. Logo percebi que era
sobre mim, ou melhor, sobre meu
depoimento. Especificamente, o
presidente discutia aquilo que
chamou como “a pertinência do
depoimento” ou também “o
alcance testemunhal” do mesmo. Luis argumentava da sua importância para sustentar a
tese, colocada por eles no início do julgamento, no sentido de não se tratar de um “caso
excepcional”, “uma desgraça acidental”, mas afirmar a existência de práticas
institucionais que dão suporte a intervenções como aquelas julgadas. O presidente
respondia que meu depoimento “não aportaria em nada ao objeto do processo”, porque
justamente não falaria sobre “os fatos”. “Mas, enfim, está aqui, vamos ouvir o que tem
para dizer”, concluiu o presidente e por primeira vez se dirigiu a mim, que olhava a
situação sem saber se teria que ir embora da sala ou se efetivamente iria depor.
Presidente: boa tarde, seu nome completo, por favor.
Eu: Lucía Eilbaum.
Presidente: apenas como formalidade, porque no seu caso não seria nem
necessário, lhe pergunto: foi lido o artigo que penaliza o falso testemunho?
Eu: sim.
Presidente: como formalidade, vou lhe tomar o juramento: jura ou promete
dizer a verdade de tudo quanto saiba ou lhe fora perguntado?
Eu: sim, juro.
A ênfase na frase “apenas como formalidade” evidenciava a excepcionalidade
do Tribunal em me ouvir e, de forma mais geral, em ouvir testemunhos que não
falassem pontualmente sobre as circunstâncias dos fatos, “o objeto do processo”, mas
sobre os mesmos desde um ponto de vista mais contextual. Naquele juicio, voltei a
ouvir a frase “o objeto do processo”. Foi no dia seguinte quando o presidente perguntou
Luis Real se a mãe de Dario iria depor. Ela iria fazê-lo no primeiro dia, mas não passou
bem de saúde. Por isso, no segundo dia, com a presença dela, a questão se instalava
novamente. Luis disse que tinham decidido que não depusesse, pois o médico teria
indicado que tal exposição poderia ser prejudicial para a saúde dela. O presidente
45
aceitou rapidamente a “desistência” e agregou: “pois é, de qualquer forma não iria depor
nada em relação ao objeto do processo”. A mãe não tinha presenciado nenhum dos
“fatos” julgados; iria depor sobre a perda de seu filho e as dificuldades que isso trouxe
para ela e a família. Talvez também sobre a “problemática presença policial no bairro”,
para além do caso de Dario.
Após aquele breve interrogatório e o juramento, o presidente deu a palavra para
Luis Real, pois eu era uma testemunha solicitada por eles. Em todos os casos, o
presidente do Tribunal perguntava quem solicitou a testemunha ou “de quem é a
testemunha”. Se “é comum de todas as partes”, a ordem do interrogatório começa pelo
promotor, segue pelo assistente da acusação (caso haja) e finaliza com a defesa. Quando
é apenas uma das partes que a solicitou, é ela quem começa o interrogatório. Luis
apenas me deu para eu começar a falar, sem focalizar em uma pergunta específica.
Indicou para eu dizer minha profissão e onde me desempenhava e para comentar sobre
meu trabalho vinculado ao assunto em questão. Minutos antes, enquanto o presidente
conversava com Luis, rapidamente pensei que, caso aceitassem meu depoimento,
deveria ser breve e objetiva. Muitas testemunhas do “objeto do processo” tinham sido
“desistidas”, a audiência levava mais de sete horas, e ninguém parecia estar muito
disposto a ouvir longas argumentações antropológicas. Em frases curtas e diretas, tentei
repetir o argumento que, mentalmente, tinha repetido uma e outra vez, durante a espera,
na sala das testemunhas.
Referi-me às pesquisas desenvolvidas, desde o ano 1997, no âmbito do Equipo
de Antropologia Política e Jurídica da Universidade de Buenos Aires, sobre práticas e
rotinas policiais, e sobre casos de “violência institucional”. Também referi às pesquisas
de caráter comparativo desenvolvidas no âmbito do NUFEP/UFF, no Rio de Janeiro,
onde me encontrava realizando meus estudos de doutoramento. Achei pertinente referir
algumas características da perspectiva antropológica e de seu método etnográfico. Acho
que fazia essa referência para, eventualmente, justificar minhas afirmações. Por isso,
mencionei o caráter local, não generalizável, das pesquisas antropológicas, o interesse
pela dimensão social, e não pelos indivíduos identificados por seus nomes e a ênfase na
análise qualitativa dos dados empíricos. Estendi-me mais um pouco sobre o que chamei
de “resultados” da pesquisa, em função da identificação, em diversos casos de
“violência policial”, de padrões referidos a práticas e rotinas institucionais. Falei do
apriete e quiebre como técnicas de investigação, com predomínio sobre outros
46
métodos de obtenção de provas; sobre o “tempoque a polícia conta até dar aviso ao
poder judiciário de suas intervenções; sobre a “armação” de provas, como plantar uma
arma”; sobre o caráter burocrático da polícia e a prática da “parada de livros”; sobre as
relações hierárquicas e formas de socialização em uma ética própria que o antropólogo
brasileiro Roberto Kant de Lima tem chamado de “ética policial”
28
. Enfatizei com essa
categoria a existência de normas e códigos de conduta cujos valores têm uma referência
corporativa e não necessariamente legal. Respeitar aqueles valores, e não os referido à
lei, pode ser valorizado como “o correto”, “o natural”, aquilo que os policiais aprendem
e são socializados a fazer. Sabia que com essas palavras poderia dar lugar a perguntas
dos advogados, em especial, daqueles que defendiam os policiais de menor hierarquia.
Quando dei por terminada minha fala, o presidente consultou se alguma das
partes gostaria de fazer alguma pergunta. Os únicos dois advogados que formularam
perguntas eram os mesmos que tinham intervindo em relação ao meu depoimento no
início da audiência. Soube que, naquele começo de dia, tinha acontecido outro entrevero
sobre meu depoimento. Foi quando Luis solicitou que eu depusesse naquele primeiro
dia, antecipando minha intervenção. Argumentou, por um lado, que “tinha viajado
desde o Brasil” e, por outro, que pela natureza de meu trabalho de pesquisa era
necessário eu poder observar os outros dias do juicio. Ninguém pareceu se incomodar
em demasia. O advogado defensor de Sánchez até afirmou que “o depoimento da
antropóloga pode ser de interesse da causa”. o advogado de Gómez objetou “se a
antropóloga poderia ter posteriormente acesso assegurado na sala”. Mas, eventualmente,
essa questão ficaria para ser decidida outro dia.
No decorrer do meu depoimento, a pergunta do advogado de Sánchez, motorista
na viatura, não demorou em aparecer. Citou um conhecido livro no âmbito do ensino da
antropologia
29
, com número de capítulo e página, fazendo referência ao “estudo do
micro-clima” de um determinado ambiente, no caso de uma comisaría, ressaltando em
tal colocação se eu tinha estudado as relações hierárquicas dentro da instituição. O
advogado de Gómez também fez uma pergunta. Era aquele questionamento que eu
esperava que fosse feito: com quantos casos eu tinha trabalhado para afirmar o que
28
Na sua etnografia da Polícia Civil do estado do, Kant de Lima identifica como “ética policial” a um
conjunto especial de regras e práticas que serve como fundamento para o exercício de uma interpretação
autônoma da lei e que, como tal, imprime à aplicação da lei uma característica particular, própria das
práticas policiais (1995:65).
29
“El salvaje metropolitano” de Rosana Guber.
47
afirmava? Com minha resposta, deu-se por terminada minha intervenção. Fui retirada da
sala e acompanhada até a saída do prédio por um funcionário do Tribunal. Eu já o tinha
visto entrar e sair da sala de testemunhas, acompanhá-las na sala de audiência e
conversar com os policiais-testemunhas. Achei que fosse funcionário judicial.
Funcionário: muito bom seu trabalho, gostei muito, o problema é se confrontar
contra a instituição como um todo.
Eu: claro, eu apenas quis ressaltar alguns aspectos de meu trabalho vinculados
ao caso.
Funcionário: eu quero sair disto aqui, acho horrível, por isso estou em segundo
ano do curso de direito.
Eu: você trabalha no Tribunal?
Funcionário: sim, mas eu sou policial. E eu sei o que é a polícia, é como você
disse. Eu tive a enorme sorte da minha mãe ser loira de olhos claros e eu ter
puxado ela e não meu pai. Digo isso porque, quando jovem, morava do lado da
favela e eu sei que se fosse preto como meu pai a polícia me pararia o tempo
todo, como fazia com meus amigos. A discriminação é muito forte - disse
enquanto abria a porta já fechada com chave do prédio.
Eu: pois é. Bom, eu volto amanhã para assistir a audiência. Até amanhã.
Funcionário: tchau, um prazer conhecê-la.
Depor, sob juramento, diante do Tribunal, dos seis imputados, dos seus
advogados, após mais de sete horas de espera sem comer nem beber, me fez pensar em
como se sentiria uma testemunha cujo depoimento poderia ser questionado por alguma
das partes. Eu já tinha observado depoimentos onde uma testemunha era perguntada e
reperguntada, recalcada do fato de estar sob juramento, assinalada nas suas
contradições, e até advertida pelo tribunal. Sempre percebia nervosismo e inquietação
nelas. Mas nunca tinha pensado no que poderiam significar as longas horas de espera,
em condições incômodas e, eventualmente, em uma mesma sala com outras
testemunhas com posições contrárias a própria. Ao mesmo tempo, pensava naqueles
depoimentos nos quais, além do nervosismo na sala de audiência, ainda restavam as
possíveis conseqüências daquilo que fora falado, no retorno ao “bairro” onde tinham
acontecido os fatos testemunhados. Um depoimento podia ter conseqüências
importantes na vida cotidiana das pessoas. A experiência de depor, e de me expor, me
permitiu ter acesso a essas outras dimensões do ato de um depoimento, diante de um
Tribunal de justiça. No entanto, nos primeiros momentos, após minha intervenção, uma
forte sensação de incômodo predominou em mim.
48
O “incômodo” da antropóloga
A conversa com o funcionário policial do tribunal foi a primeira repercussão que
tive do depoimento, após uma sensação bem estranha de ter me exposto demais.
Explico-me: até o momento só tinha assistido juicios orales como observadora, na
qualidade de “público”. Como relato no caso do juicio em Los Pantanos no Capítulo 8,
nessas ocasiões era questionada sobre minha pertença ou interesse em estar pelos
familiares presentes, seja do acusado ou da vítima. Ao não me reconhecer como alguém
envolvida direta ou indiretamente no processo, percebia uma vontade de enquadrar
minha presença em alguma posição. Identificando meu interesse em estudar e pesquisar
sobre o Judiciário, sempre fui bem recebida por essas pessoas, inclusive, tendo a
possibilidade conversar mais amplamente com elas durante os longos intervalos. Passar
“do outro lado”, sair da posição de observadora, naquela ocasião tinha sido uma
mudança importante. Após a tensão e o cansaço, comecei a perceber as vantagens de
tais mudanças em relação a minha pesquisa. Mas, logo depois do depoimento, a
sensação de incômodo prevaleceu. O que era esse incômodo? Ou melhor, o que ele
podia significar?
Acredito que tal incômodo estivesse no encontro entre duas visões da realidade
próprias de saberes distintos: o antropológico e o jurídico. Na atitude dos juízes e nas
perguntas dos advogados, parecia se buscar um conhecimento que não aquele que a
antropologia, pelo menos do meu ponto de vista, poderia aportar. E o conhecimento que
ela poderia trazer não parecia “servir” para eles. As linguagens eram diferentes, mas,
mais do que isso, eram distintas as perspectivas. Quando uma testemunha depunha nos
tribunais, a linguagem dela não se correspondia, geralmente, com a linguagem jurídica.
Também não se esperava isso dela. Contudo, ela falava sobre uma perspectiva
semelhante, qual aportar dados concretos e individualizados sobre o “fato” julgado. O
que ela aportasse serviria, ou não, para determinar a responsabilidade individual da(s)
pessoa(s) julgada(s). Com seus próprios termos e desde seu ponto de vista, a testemunha
falava na perspectiva judicial. Eu, como antropóloga, não não falava a linguagem
jurídica, mas também não a judicial. Quer dizer, não falava da perspectiva que,
conforme o critério de investigação e julgamento comum a esse campo, seria “útil” para
aquilo que aquelas pessoas estavam fazendo naquele momento: disputar e definir a
culpabilidade individual dos “imputados”.
49
Quando o advogado de Sánchez apelou ao livro de metodologia em
antropologia, pensei que poderia haver um encontro –talvez inesperado- de interesses.
No entanto, a pergunta dele, tal como repetiu sem a citação antropológica, nas suas
alegações finais, ia dirigida a sustentar a defesa de Sánchez no princípio da “obediência
devida”. Quando eu falava do fato de certas práticas responderem a uma socialização
institucional referia-me a processos de longa duração nos quais os agentes,
reflexivamente e cada um desde sua posição, priorizam e respondem a valores próprios
de uma “ética policial”. Em tal caso, se ele assemelhava a instituição a um ‘exército’,
onde as regras formais são obedecidas hierarquicamente, eu queria enfatizar que regras
formais e informais são aplicadas de acordo a valores próprios que não as regras
escritas.
Quando o advogado de Gómez me perguntou pela quantidade de casos sobre os
quais sustentava minhas observações, embora essa fosse uma pergunta esperada, percebi
que pouco tinha a ver com os critérios de legitimação do conhecimento antropológico.
Comecei respondendo que a metodologia antropológica não sustenta suas pesquisas em
análises quantitativas, mas qualitativas de acordo às regras do método etnográfico.
Interrompeu-me: “ok, mas quantos casos?”. Tentei lembrar do número e dei uma cifra
aproximada, também baseada nas pesquisas de colegas. Por último, acrescentei que
havia organismos civis que levavam bases de dados quantitativos sobre casos de
“violência policial”, como o Centro de Estudios Legales y Sociales. “Ah, o CELS”,
disse com um tom desqualificador. Ao repetir “o CELS”, além de qualificar ou não o
trabalho do organismo, percebi que o advogado me enquadrava na perspectiva jurídica e
política que aquele organismo representava para ele. Essa era a perspectiva que ele
pareceu priorizar ao ouvir meu depoimento; a perspectiva de uma associação defensora
dos direitos humanos, dedicada ao trabalho com denúncias de casos de “violência
policial”, e não a perspectiva do saber antropológico. Pouco lhe importava também o
fato de efetivamente eu ter a ver ou não com aquela organização.
Com estas idéias, não quero dizer que um depoimento desde um ponto de vista
antropológico não pudesse ser utilizado desde o saber jurídico e/ou judicial. De fato
existem casos em que tal ponto de vista tem tido sucesso em se instalar como um
conhecimento válido. Em um caso de “abuso policial” de alta repercussão nacional, o
caso referido à morte do jovem Walter Bulacio, a antropóloga Sofia Tiscornia
participou como “perito antropóloga” na audiência realizada diante da Corte
50
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Sua intervenção foi solicitada pela parte
que representava a família de Walter Bulacio, em demanda contra o Estado argentino.
As características específicas do procedimento correspondente àquela corte
internacional diferenciam, a meu ver, o possível alcance de um depoimento de caráter
antropológico nesse âmbito e de um no âmbito de um juicio penal, tal como o aqui
relatado.
“Em primeiro lugar, são violações dos direitos humanos nas quais o Estado é o
responsável, o que deve ser argumentado diante da CIDH. Trata-se por isso de
um tipo particular de crime e, portanto, não pode ser tratado com as mesmas
regras que nos tribunais locais (...). Se a Comissão aceita o caso (...), inicia-se
um processo cuja lógica não é penal porque as partes não se enfrentam em um
jogo em que um perderá e o outro não. É esperável que, antes de se chegar ao
tribunal regional –a CIDH- tudo transcorra em torno de encontros e reuniões
pautadas entre as partes e a Comissão, nas quais se discute, se argumenta e se
valoram provas. O que os peticionários perseguem não é a condenação do
Estado em um caso particular, mas aspiram que seja construído, a partir do caso,
um precedente, e, além disso, que sejam estabelecidas políticas, que sejam
reformuladas práticas habituais, que seja legislado de acordo com os princípios
dos direitos humanos” (Tiscornia, 2005:59)
30
.
Se as aspirações dos peticionários se assemelham às expectativas de Luis Real
ao me convidar a participar como “especialista”, tal como foi argumentado no juicio, os
objetivos do tribunal e do julgamento penal na província de Buenos Aires não pareciam
dar lugar a tais pretensões. Não era o Estado quem estava sendo responsabilizado, nem
sequer uma agência do mesmo, mas indivíduos de carne e osso que, neste caso, eram
suspeitos de ter cometido um crime em exercício de suas funções públicas. A eventual
condenação não iria recair no Estado, mas nesses indivíduos. E a tal condenação não era
prevista para reformular práticas ou formular políticas, mas para estabelecer penas
individuais e quantificáveis em períodos de tempo. Aquilo que estava em jogo, para os
atores, em um juicio penal, como o aqui apresentado, era principalmente a
individualização das informações produzidas: quem, quando e como fez o que a quem.
Era um saber fundamentalmente instrumental, que buscava soluções a certas situações –
seja os “crimes”; seja a “defesa” de seus supostos autores. Em contraste, o saber
antropológico, e nesse contexto meu depoimento, não buscava solução alguma, mas
30
No Brasil, a antropologia também é requerida para a realização de laudos a serem apresentados em
litígios judiciais. No entanto, também não se trata de conflitos na área criminal. Eles têm sido solicitados
em questões como “delimitação e identificação de terras indígenas” e “terras quilombolas”, “impacto
socioambiental” e “patrimônio histórico paisagístico e etnográfico” (
www.abant.org.br) .
51
problematizar certas práticas. Não pudendo ser instrumentalizado, não parecia “útil”
para aqueles ouvintes
31
.
Assim, naquele julgamento, o que meu incômodo parecia-me indicar era um
choque de legitimidades disciplinares. Minha perspectiva não parecia encaixar onde o
saber jurídico e o saber judicial tinham prioridade sobre qualquer outro tipo de
linguagem, impondo seus objetivos, formas de construção dos “fatos” e técnicas de
relato dos mesmos. No mesmo sentido, os atores judiciários também não pareciam
sensíveis à incorporação de novas perspectivas. O incômodo parecia se basear, então, no
fato de eu submeter um saber, para mim familiar, em um ambiente ao qual lhe era
estranho.
Ao final do depoimento, esperei na escada exterior do prédio que saísse o resto
do “público”, pois, após meu testemunho, a audiência passaria para o dia seguinte. Saiu
meu marido junto com um senhor a quem eu não conhecia. Logo este último se
aproximou de mim e disse que tinha gostado muito do meu depoimento. Era morador do
bairro de Dario, vizinho da família. Disse ter gostado porque “no bairro as intervenções
da polícia são sempre complicadas, sempre sobre os mesmos rapazes, Dario não é o
único, recentemente houve outro menino morto. Nesse bairro é muito difícil a relação
com a polícia”.
31
Esta distinção entre os dois saberes poderia ser aprofundada a partir da disussão que propõe Marshal l
Sahlins sobre a opisição entre “razão prática” e “razão simbólica”. A primeira referida à idéia de que as
culturas humanas são formuladas a partir da atividade prática e, fundamentalmente, do interesse utilitário.
A segunda enfatizando o fato do homem viver de acordo com um esquema significativo e simbólico
definido – a cultura- que nunca é o único possível. Ele sugere que “o debate entre o prático e o
significativo é a questão fatídica do pensamento social moderno” e, nesse sentido, que “a disputa com o
pensamento prático é clássica não só na antropologia como em toda ciência soial” (2003:8).
52
O bairro e o “público”
Naquela primeira manhã do dia do
juicio, enquanto esperávamos no
térreo o início da audiência (e eu
ser chamada para a sala de
testemunhas) chegou a mãe de
Dario e duas de suas irmãs, junto
com outros familiares. Eles
portavam, pendurado no pescoço,
um cartaz com a foto de Dario,
pedindo “Justiça” por ele, com a data em que foi morto e a idade na época, dezessete
anos. Também chegaram três ou quatro advogados da associação civil do Luis e
membros da associação Miguel Bru, sua presidenta entre eles, e alguns jornalistas. Em
pouco tempo, o visual da frente do prédio mudou de aspecto. Foram colocadas três
bandeiras que, em ordem, formavam as cores da bandeira argentina, com as inscrições
Justicia x Dario”, Basta de Gatillo Fácil e Dario, a un año de tu asesinato te
recordamos tu família y amigos... Justicia”,
assinando o nome do bairro. O clima do juicio ia se
caracterizando com aspectos dos rituais analisados
por María Pita (2006), na sua etnografia sobre as
formas de demanda de justiça de familiares de
vítimas da violência policial. Os cartazes, as fotos, as
bandeiras, a presença de outros familiares, de militantes de associações civis, como
“tecnologias manifestantes” (2006:131)
32
, que expressam humilhação, repúdio e formas
de resistência ao poder policial. Funcionavam, assim, como “ações coletivas que
permitem os familiares marcar sua posição, reforçar sua figura e se expressar”, atuando
e experimentando um confronto com o poder policial, ativando um sentido de
resistência e, ao mesmo tempo, fortalecendo sua posição, autoridade e legitimidade
32
Considerando o conceito de tecnologia de Michel Foucault, Pita (2006:131) define as “tecnologias
manifestantes” como um conjunto de técnicas e práticas associadas que supõem um saber e um domínio
sobre suas formas e forças em termos de efeitos produtivos. São, para Pita, tecnologias difusas que não
aparecem formuladas em termos discursivos de maneira organizada, nem contam com regras sistemáticas,
mas são práticas, ações e rotinas que possibilitam, no caso dos “familiares”, “dramatizar o protesto e seus
conteúdos específicos” (2006:131).
53
(Pita, 2006:131). Ao mesmo tempo, em especial as fotos de Dario, pareciam-me
funcionar, não apenas como uma ação coletiva, mas como a personalização do conflito,
nos termos do “bairro”. Quero dizer: o rosto de Dario tirava do anonimato a vítima do
“homicídio” que todos davam por provado e condenado. Era uma forma de marcar que,
para o “bairro”, o que estava sendo julgado não era, ou não era apenas, o não
cumprimento de formas legais, procedimentos ou competências, mas a morte de um
jovem, com uma história, com uma família, com amigos, com um “bairro” que
lembrava dele e por ele pedia “justiça”. Um jovem com um rosto; oculto, na audiência,
nos depoimentos policiais, nos discursos dos advogados e nas formalidades do tribunal,
mas publicizado nas imagens do público. Com as fotos, com sua presença, com seus
cartazes, o “bairro” falava e impunha sua versão dos fatos.
A organização, por parte do pessoal policial e do Tribunal, para o ingresso do
“público” à sala de audiência teve passos específicos que não tinha observado em outros
juicios, inclusive nesse tipo de casos. Todos os dias do juicio, previamente ao início da
audiência –em nenhum dos dias começou no horário-, um policial solicitava todas as
carteiras de identidade das pessoas que iriam passar como “público”. Colhia as mesmas
e, no momento de ingressar, chamava, por nome e sobrenome, a cada uma delas.
Atravessávamos uma porta que permanecia fechada e depois outra onde aguardava um
policial homem e uma policial mulher para revistar homens e mulheres,
respectivamente, que fossem ingressando. Primeiro passavam um detector de metais por
cima das roupas e depois revistavam as bolsas ou mochilas. Uma vez garantido que não
portássemos elementos “de risco”, nos entregavam novamente a carteira de identidade e
outro policial ou funcionário do Tribunal nos acompanhava até a porta da sala, a mesma
pela qual eu tinha ingressado como testemunha. Dentro da sala nos era indicada
especificamente a cadeira que devíamos ocupar, dentre daquelas destinadas ao
“público”.
As cadeiras do “público” estavam divididas em dois blocos, separadas pelo
corredor por onde passavam as testemunhas. Do bloco mais próximo à porta, éramos
localizadas as pessoas identificadas com a família de Dario, embora ninguém
perguntasse nada sobre quem éramos ou pelo motivo de nossa presença. Do outro lado,
os familiares dos acusados. Ambos os lados coincidiam com as posições da acusação
(promotor e assistente da acusação) e da defesa (os seis acusados e os cinco defensores)
na distribuição da sala. Foi notória, durante todos os dias do juicio, a diferença na
54
quantidade de assistentes de um lado e do outro. Do lado dos acusados, apenas um
casal, alguns dias acompanhados de um jovem, assistiu o julgamento de seu filho, o
chefe do turno, o mais novo de todos os acusados. Do outro lado, a presença variou com
os dias, mas durante nenhum deles foi menor de dez pessoas.
Os extremos de ambos os lados, em
direção ao corredor, não eram
reservados para “público”. Do lado
dos acusados, o extremo de cada
fileira estava destinado a policiais
com uniforme, colete anti-balas e
enormes escudos de acrílico
transparentes com a inscrição
“Polícia”. Durante todas as
audiências de todos os dias, percebi
que não se mexiam daquela posição. No extremo do outro bloco, sentavam-se policiais
com uniforme, mas sem colete, nem escudos, nem armas. A fronteira entre ambos os
blocos estava bem delimitada.
Durante os dias em que assisti às audiências, chamou-me também a atenção as
limitações impostas ao “público”. Além de especificar o lugar individual para se sentar,
a circulação ficou restrita. Nos pequenos intervalos de dez ou quinze minutos
outorgados pelo Tribunal (com claras e explícitas intenções de ir ao banheiro), o
impedimento para que o “público” saísse era evidente. Quer dizer, quem saísse
dificilmente poderia voltar a ingressar na sala. Apenas foi permitido à irmã de Dario,
quando foi ajudar a mãe que não estava passando bem. Considerando que as audiências
eram prolongadas no tempo, assistir sem ir ao banheiro, sem beber água nem comer
nada, era um desafio. Enquanto isso os advogados e os cinco acusados que não estavam
presos saíam e entravam da sala, sem maiores obstáculos. Ao terminar a audiência,
também nos era indicado pelos policiais dos extremos que aguardássemos para sair.
Devíamos esperar que os advogados, acusados e familiares se retirassem da sala.
depois era permitida nossa saída.
Soube, uma vez finalizado o juicio, que, logo depois da morte de Dario,
vizinhos, familiares e também militantes de associações civis e de alguns partidos
políticos se apresentaram na comisaría do bairro. Somavam aproximadamente cem
55
pessoas, diante da operação de seiscentos policiais que custodiavam a repartição
policial. O protesto pela morte de Dario em mãos da polícia acabou com pedradas,
queima de pneus, lançamento de gases lacrimogêneos, disparos de balas de borracha,
feridos e militantes presos
33
. Não posso dizer que a presença policial durante a
audiência tivesse vinculação direta com este episódio. O certo é que a presença dos
familiares e vizinhos de Dario foi notoriamente diferente em relação ao público” dos
acusados. E, além disso, foi distinguida com um tratamento especial, que impunha, de
meu ponto de vista, restrições a essa mesma presença e participação. Sem faltas de
respeito, sem abuso, sem maus tratos aparentes, o bairro Los Hornos foi convidado,
durante o juicio, a diminuir sua visibilidade como “público”. Embora os resultados de
tal controle pudessem ser questionáveis.
Os policiais e o juicio
A maioria das perguntas dirigidas tanto pela acusação como pela defesa aos
policiais que depuseram como testemunhas foram direcionadas a desvendar o que o
promotor chamou, durante sua alegação final, da “lamentável trama na qual os
funcionários da comisaría e os chefes adulteraram o cenário dos fatos com o claro
propósito de encobrí-los, colocaram evidência claramente falsa e informaram
tardiamente e de forma não sincera as autoridades judiciais”.
Nos interrogatórios, não estava em discussão quem era o autor do disparo.
Várias eram as provas que envolviam Resapo, inclusive sua própria confissão. Os
questionamentos giravam em torno de como tinha sido a apreensão por parte de
Talarico, a partida à comisaría da viatura de Sánchez e Resapo, a comunicação com o
chefe de turno Gómez, deste com o comisario, deste com o subcomsiario e o superior
da Departamental (citado como testemunha), quem tinha ligado para dizer o quê à
promotoria, quem se fez responsável pela investigação, quem se reuniu na sala do
comisario, quem retornou as algemas a Talarico, o que disseram Resapo e Sánchez na
comisaría, o que foi “escrito” quando a investigação ficou sob responsabilidade da
mesma comisaría, quem revistou o carro, quem se aproximou do carro, quem falou com
33
Soube deste episódio por comentários de um membro da AMB que, finalizado o juicio, lembrou
daquele dia. Mas também porque, no dia seguinte, a leitura da sentença os jornais nacionais publicaram a
notícia e um deles, no site na internet, fazia o link com a matéria publicada em janeiro de 2007, sob o
título Marcha y violencia por el crimen de um detenido en un patrullero”,
(
http://www.clarin.com/diario/2007/01/12/policiales/g-04401.htm ). Sobre este episódio e sua cobertura
midiática, também ver Gubilei, 2009:50-53.
56
a ajudante de guardia em relação ao registro nos livros da comisaría. Nem todas as
testemunhas tinham resposta para estas perguntas e, claro, nem todas as perguntas eram
formuladas a todas elas. Cada uma, desde a posição que tinha ocupado naquele dia,
poderia –ou não- testemunhar o que tinha visto e/ou ouvido. Mas, mesmo assim, diante
de certas questões, os policiais respondiam “não se lembrar” da informação solicitada.
Em alguns casos a não lembrança por parte de uma testemunha provocava a suspeição
de quem interrogava, sempre sujeitando o eventual esquecimento a uma negativa de
falar. A solução para tal situação era ler o depoimento que a tal testemunha tinha dado
na etapa de investigação, momentos ou dias depois de ocorrido o “fato”. Falarei mais
desta questão na descrição do juicio em Los Pantanos, mas ressalto que não foram
poucas as vezes que, diante da leitura de tais depoimentos, ouvi as testemunhas
afirmarem “eu não lembro, mas se eu assinei aquela ata, deve ter sido assim” ou “não
me lembro, mas se depus daquele jeito é porque foi assim”. Conhecedores da dinâmica
das audiências, os policiais confirmavam assim o deposto na primeira etapa e registrado
por escrito em documento público, diante de qualquer possível acusação por “falso
testemunho”.
Dentre as perguntas sobre informações pontuais, também surgiram perguntas
que referiam a rotinas policiais. As práticas mencionadas no meu depoimento como
rotinas próprias de uma ética policial particular apareciam na boca, talvez muito mais
autorizada, de chefes e funcionários da instituição. O apriete”, a “parada de livros”, “o
perro foram mencionados, com mais ou menos naturalidade, nos depoimentos
daqueles policiais-testemunhas mais experientes na instituição. As relações hierárquicas
e as rotinas da comisaría também foram colocadas em questão, principalmente por
aqueles advogados que defendiam os acusados de menor hierarquia, em especial
Sánchez.
Que a “parada de livros” é uma prática “não legal, mas usual”, que é comum
que as comisarías guardem evidências e provas sobre certos fatos, não os derivando à
promotoria” (origem do perrocolocado na viatura), que “viu a viatura ir em direção a
rua 361, porque seguramente iam buscar o outro envolvido”, que “Resapo disse para ele
que tinha a bala na câmara porque tinha perseguido uns bandidos, então que acha que
Resapo apoiou a arma na cabeça do rapaz e em lugar de click!, pum!”, que “a polícia é
uma força verticalizada”, que “há hierarquia boa e hierarquia ruim”. Esses e outros
trechos de depoimentos pareciam mostrar que não os acusados estavam sendo
57
julgados, mas, pelos menos, que as testemunhas se moviam em um terreno em que seus
ditos podiam comprometer não sua ética, mas também a instituição policial.
Contudo, se o juicio fosse tomar um sentido ou outro seria decisão final dos três juízes
do Tribunal, que não pareciam muito dispostos a se sair do seu papel.
Em menos depoimentos apareceram também as possíveis relações sociais entre
os envolvidos, tanto entre os policiais como eventualmente com Dario. Talarico disse
conhecer o pessoal daquela comisaría, por ter trabalhado nela. “Não me sentia
respaldado a depor em função do caráter das pessoas com quem trabalhei nessa
comisaría”, disse quando lhe foi perguntado por que tinha dito que Dario estava sem
algemas quando depois confessou que ele mesmo o tinha algemado. O advogado de
Gómez tentou lhe fazer lembrar de uma discussão que teria tido com o motorista de
Gómez, quando trabalhava com ele, mas Talarico disse não se recordar de discussão
nenhuma. Talarico afirmou na audiência que “como funcionário policial e ser humano
fiquei com muito medo, havia muita incerteza no que ocorria na comisaria”.
Ao final do juicio, quando o advogado de Gómez fez suas alegações finais, não
poupou palavras para pedir uma investigação por “falso testemunho” para Talarico.
“Considero que Talarico tem mentido para nós com a clara intenção de se cobrir
para não estar vinculado neste processo. Como mínimo deveria estar imputado
por encobrimento e/ou maus tratos, por ter batido no apreendido. Quando
Gómez lhe perguntou o que tinha acontecido, ele não falou o que tinha que
dizer. Esteve na comisaría o tempo todo, viu as algemas com sangue e não disse
nada. Talarico tem mentido para nós. Seu depoimento não pode ser considerado
com objetividade. É quem mais tem interesse neste processo”.
O advogado de Sánchez se somou à solicitação de seu colega, pedindo também a
investigação por “falso testemunho” de Talarico. Se Resapo estava jogado a sua
própria sorte em relação a sua autoria, Talarico virou no julgamento um novo alvo para
desprestigiar a versão da acusação. Os policiais responsáveis pela investigação
depuseram na audiência como Talarico tinha “se quebrado” e revertido a versão inicial.
O desenvolvimento dessa versão também mostrava sua vinculação com relações de
confiança ou, pelo menos, de conhecimento mútuo, previamente estabelecidas.
Quando o chefe de investigações, na época do juicio, uma alta autoridade da
polícia da província de Buenos Aires, estava depondo, o presidente do tribunal
perguntou, talvez provocativamente, por que, se lhe parecia que “alguma coisa não
fechava, não teve interesse em esclarecer junto com os policiais que estavam na
comisaría [os acusados] o que era que tinha acontecido”.
58
“Cheguei a La Plata em um mau momento. Era como uma intervenção e não
conhecia ninguém. Cheguei a um lugar hostil, estava tudo pegando fogo.
estava intervindo em um julgamento contra policiais por um roubo de
automotor. Por esse caso fui ameaçado e tive denúncias contra mim”, respondeu
o chefe.
Não conhecer ninguém parecia não tê-lo deixado à vontade. E estar envolvido
em outro processo contra policiais também parecia complicar sua intervenção. De forma
diferente, mas complementar, o investigador principal da Divisão de Homicídios, em
seu depoimento, deixava transluzir como ‘conhecer alguém’ podia fazer que os “fatos”
se desenrolassem de outra forma.
Um policial [se refere a Jiménez, que auxiliou Talarico na apreensão de Dario], a
quem conheço porque me deu uma mão em outro fato, se aproxima e me diz ‘eu
sempre em confusões’ e me conta que Talarico estava furioso, que deu um par
de chutes ao apreendido, que ele o parou e que o entregaram com os ‘ganchos’
colocados.
Logo em seguida, Talarico mandou dizer por outro policial que queria falar com
ele, porque também o conhecia de antes. No banheiro, lhe disse que ele fez “o
procedimento como corresponde, com o sujeito enganchado [algemado]”. “Estou
cansado de investigar as cagadas que vocês fazem”, disse ter respondido a Talarico
enquanto lhe pedia para ficar esperando no banheiro sem conversar com ninguém.
Também contou que foi ver Resapo que estava isolado em uma sala. Apenas lhe disse
que tinha a bala na câmara por outro fato. “Disse-me isso porque nos conhecemos de
quando ele era cabo e eu inspetor, senão não me diria nada, estava como chocado”
34
. A
esse mesmo policial foi lhe perguntado como sabia” que era ele o responsável pela
investigação e como tinha sido o diálogo a respeito com os promotores de plantão.
Testemunha policial de investigações (Gabinete de Homicídios): quando
Jiménez e Talarico me contam o que houve, falo com meu chefe e ligamos para
a promotora, a Dra. Giorgio. Ela ordena suspender os depoimentos na comisaría
e ordena que levemos Jimenez à promotoria. paramos de escrever e começou
a escrever a promotoria.
Juiz: como sabe que o senhor era responsável pela instrução?
Testemunha: sim...por ordem e por costume, porque a doutora Giorgio sempre
trabalha conosco.
Advogado de Gómez: as diferentes promotorias enviam diretivas escritas quando
lhes delegam um caso?
Testemunha: promotorias que sim, aquela promotoria não, eram diretivas
verbais na medida em que aconteciam os fatos.
34
A atitude de Resapo foi também objeto de perguntas, em especial por parte de sua defensora. As
respostas indicavam ele estar “chorando”, “chocado”, “em desespero”.
59
Advogado: sempre que há um homicídio são vocês que intervém?
Testemunha: com essa promotoria sim, sempre que um cadáver os
promotores me dizem para dar uma olhada, são muitos anos de confiança.
(...)
Advogado de Sánchez: o promotor ou a promotora se apresentaram na
comisaría?
Testemunha: não, no local do fato não estiveram. O promotor disse para meu
chefe “eu não vou ir, nem a Dra. Giorgio, você sabe a confiança que a gente tem
em você, você fica responsável”.
A “confiança”, “ter dado uma mão” em outra ocasião, “conhecer” de outro
momento, bem como não se sentir “respaldado em função do caráter das pessoas com
que trabalhei”, ficar com medo”, “não conhecer ninguém”, chegar em um ambiente
hostil”, são sentimentos expressos nos depoimentos orais que, no meu ponto de vista, se
aprofundados, poderiam dar maior sustento à seqüência em que se desenvolveram os
fatos, a disputa entre versões e o curso da investigação. Estes sentimentos não
apareciam ao ter lido, anteriormente, o processo judicial. Neste constavam as atas dos
depoimentos das mesmas pessoas que depuseram no juicio. Como veremos ao longo
desta tese, tais atas são elaboradas pelo funcionário responsável por tomar o
depoimento. Essa atividade requer, ou é feita, através de um processo de edição da fala
da pessoa. Portanto, não ter lido no processo aspectos de um depoimento não quer dizer
que os mesmos não tinham sido ‘ditos’ pelas testemunhas e/ou imputados. Apenas que
eles não foram registrados por escrito pelo funcionário. A ausência nas atas e a presença
nos atos de depoimento destas considerações de índole pessoal por parte de testemunhas
e “imputados” serão também um ponto central nos capítulos desta tese.
No caso, a animosidade dos defensores contra Talarico não tinha ficado
registrada por escrito na etapa anterior. Talvez por isso eu ficasse surpresa quando lhe
foi solicitada uma investigação por “falso testemunho”. Ao ler o processo, a intervenção
de Talarico aparecia apenas revertendo uma versão por outra e, de alguma forma,
esclarecendo parte dos “fatos”. Para os promotores da etapa de instrução, este ponto era
muito mais importante do que questionar a objetividade de sua posição no processo. E,
assim, ficou registrado. Diante do acontecido no juicio, fiquei também me perguntando
por que o advogado carregaria tanto as tintas contra a “objetividade de Talarico no
caso.
60
O bairro e o juicio
Na audiência de juicio, no depoimento de Talarico, foi possível perceber como a
figura do “bairro” e as valorizações morais sobre o mesmo se manifestavam. Dessa
forma, também Dario aparecia, pela primeira vez e quase que exclusivamente, na
audiência de julgamento de sua morte. não como um ‘objeto’ ao qual se colocavam
ou deixavam de colocar as algemas, ou que portava, ou não, uma arma, ou que tinha
recebido um disparo e quase que como um peso morto tinha sido conduzido ao hospital.
Aparecia “em vida”, antes do “fato” que dera origem ao juicio
35
. E junto com Dario “em
vida” apareciam outras relações no “bairro”.
Além das perguntas sobre o procedimento e o acontecido uma vez na comisaría,
Talarico também foi alvo de interrogações sobre o bairro no qual morava e sua relação
com os vizinhos. Como disse, Talarico foi avisado por dois “vizinhos” que sua casa
tinha sido assaltada. Os vizinhos chegaram a descrever a roupa que vestiam os dois
jovens
36
. Deram também seus apelidos, os identificando como dois rapazes que “se
dedicavam a cometer delitos no bairro”.
Com as indicações dos seus vizinhos, Talarico saiu em perseguição dos
possíveis autores e para reaver os objetos roubados. Quando viu dois jovens correndo,
disse ter atirado em um monte de terra ao grito de “alto, polícia”. Conseguiu pegar
Dario, enquanto o outro fugia. Pelo relato de Jiménez, bem como da funcionária de uma
remisería da área, sabemos que Talarico chutou “com alma e vida” o torso de Dario.
Pelo próprio Talarico sabemos que, enquanto o chutava e tentava colocar as algemas,
lhe gritava Filho da puta, fica em pé, seu lixo”. “Mas o senhor conhecia a pessoa?”,
perguntou o promotor, talvez impressionado com a sanha do policial. “Era uma pessoa
de mal viver, como dizem os vizinhos, bastante conhecida no bairro”
37
. Sobre o mesmo
35
Na etnografia já citada, Forma de morir y formas vivir”, Maria Pita afirma “o ponto de partida
enquanto situação única que deu origem aos familiares das vítimas- é o fato das mortes violentas destes
jovens em mãos da polícia; são os mortos, como valor (...) quem são colocados em primeiro plano
(2006:12). Ao mesmo tempo, diz “as narrações sobre as mortes destes jovens são também as narrações de
suas vidas, assim como as das vidas de quem as narram [os familiares]. Os mortos, nos relatos dos
familiares, aparecem lhes dando vida. São narrações sobre formas de viver e também sobre uma práxis”
(2006:12).
36
Dario vestia uma bermuda e uma camiseta da seleção argentina com o número “10” e a inscrição do
jogador “Messi”. Por esta roupa não só foi reconhecido por Talarico, mas também por sua mãe quando foi
reconhecer o corpo.
37
Na primeira etapa da investigação, demonstrando certo conhecimento sobre os garotos do bairro, um
dos vizinhos, cujo depoimento foi “desistidono juicio, quando lhe foi perguntado se tinha visto se os
meninos estavam armados, respondeu: “pelo pouco que os conheço me a impressão que não andam
com armas de fogo, apenas se dedicam a roubar casas vazias”.
61
ponto perguntou Luis Real. Talarico afirmou que essas mesmas pessoas tinham lhe
roubado vinte e dois dias antes do “fato”, mas que na época não tinha se dado conta.
Talarico disse que uma das pessoas tem um parente a 150 metros da sua casa. Também
contou que ele morava no bairro dez anos, que é separado e ainda espagando o
financiamento da casa. Disse se relacionar com os vizinhos na base do “bom dia, boa
tarde”, ou seja, com certo distanciamento.
Esse ponto chamou minha atenção, pois as duas testemunhas que estavam na
sala de espera, os “vizinhos” que tinham alertado Talarico sobre o roubo, referiam a
Talarico pelo nome, com certa familiaridade. Também porque, segundo o relato de
Talarico, antes de ir para a comisaría, se deu ao trabalho de passar pela quadra da sua
casa e avisar os dois vizinhos que tinha recuperado as coisas. Ao longo do depoimento,
percebi que na afirmação de se relacionar na base do “bom dia, boa tarde” havia uma
distinção. Não todos os que moravam na área eram “vizinhos”. Estavam os “vizinhos” e
os “outros”, e a cada um desses grupos pareciam corresponder também categorias para
designar os lugares onde moravam. No “bairro” moravam os vizinhos”, na “zona”
moravam os “outros”
38
.
Talarico foi perguntado tanto por parte da acusação como por vários advogados
sobre as características da área e, em particular, do lugar onde fez a apreensão de Dario.
Em suas várias respostas, disse que era um “lugar semi-escuro”, que “essa zona é uma
rua de terra, a [rua] 368 é um monte de lixo, a [rua] 366 tem uma praça que foi feita por
um deputado. Da [rua] 366 até a [rua] 361 é bastante povoado”. A defensora de Resapo
quis saber mais:
38
A distinção nativa, na boca de Talarico, entre o “bairro” e a “zona”, fez me lembrar do trabalho “Os
Estabelecidos e os outsiders”, de Elias e Sctoson (2000). Nele, analisam as relações entre duas zonas da
comunidade de Winston Parva. A mais antiga, chamada de “aldeia” e a mais recente, denominada
“loteamento” ou “beco dos ratos”. O termo “aldeia” remitia “afetuosamente” (2000:62) aos primeiros
momentos de sua fundação em 1880, recriando uma imagem de comunidade pequena, onde todas as
pessoas “se conheciam e sabiam situar umas às outras” (2000:62). O termo “loteamento” referia, de forma
mais neutra, ao fato dos terrenos da zona 3 terem sido divididos em lotes e “beco dos ratos” já referia,
depreciativamente, à crença por parte dos “aldeões” quanto aos terrenos da zona 2 não terem sido criados
pelo fundador da “aldeia” por ser uma área pantanosa e infestada de ratos (2000:62). Elias e Scotson
chamam a atenção para os estereótipos e acusações, expressos em frases padronizadas, por parte dos
moradores da “aldeia” para os do “loteamento”. Tanto no caso de Winston Parva quanto no caso de Los
Hornos, interessa ressaltar o fato das características atribuídas aos espaços físicos serem estendidas a seus
moradores, através daquilo que Elias e Scotson denominam “sócio-dinâmica de estigmatização”
(2000:23). De forma tal que a socio-dinâmica da relação seja determinada pela forma de vinculação entre
os grupos e não por qualquer característica objetiva que os grupos venham a ter, independentemente dela
(2000:32). Ver também referência à etnografia de Simoni Guedes (1997) no município de São Gonçalo
(Rio de Janeiro), na nota de rodapé 41.
62
Defensora: a zona da praça é um “aguantadero
39
?
Talarico: sim, pois não há luz e aí as pessoas podem usar drogas.
Defensora: quem? Quem são essas “pessoas”?
Talarico: bom, há os bons vizinhos e os maus, há pessoas problemáticas.
Defensora: é uma zona tranqüila ou conflituosa?
Talarico: conflituosa, há 150 metros houve um homicídio.
Defensora: antes do episódio do roubo de sua casa sabia que o bairro era
conflituoso?
Talarico: sim, mas até aquele momento ninguém tinha mexido comigo [não fez
referência nesse momento ao roubo da casa 22 dias antes].
Defensora: os familiares de Dario moram na zona?
Talarico: sim, em 89 e 361.
O advogado de Sánchez quis saber sobre um outro episódio, posterior ao “fato”
julgado. Perguntou se tinham tentado queimar a casa dele. “Sim, disse Talarico, mas
não conseguiram porque chegou a polícia e os bombeiros”. E mais adiante disse “se
sentir ameaçado pelos familiares da vítima. Os menores me insultam e têm impunidade.
Entendo que são eles os culpados pela tentativa de incêndio. Tive que ficar sessenta dias
com custódia”. Durante todo seu depoimento, Talarico não mencionou o nome de
Dario. Referia-se a ele como o “sujeito”, o “ladrão”, o “malandro” ou, em algumas
ocasiões, como “esse lixo”. E assim transcorreu o primeiro dia do juicio sem que
nenhuma testemunha mencionasse seu nome. Quando soube do caso perguntava-me
como é que dois garotos que moram no mesmo bairro de quem vão assaltar, roubam um
policial, com o eventual risco que isso pode implicar. Não sabiam que era a casa
dele?!”. Pensava em certa inexperiência dos garotos. Contudo, nesses trechos do
depoimento de Talarico, evidenciava-se outra representação; um certo incômodo com a
presença do morador policial, que, de fato, tinha trabalhado na comisaría que
policiava a área. As representações manifestadas por Talarico, por sua vez, além de uma
relação hostil (“se sentir ameaçado”, “ser insultado”), também evidenciavam o desprezo
deste para com os “sujeitos” da “zona” (“pessoas de mal viver”, “esse lixo”). Desprezo
que se sentia tanto nas suas palavras, como naquelas que trazia à tona na boca de
opiniões e comentários de “seus vizinhos”. A “zona”, diferentemente do “bairro”, tinha
ruas de terras, era caracterizada como semi-escura, conflituosa, um “aguantadero”.
39
O termo refere a um espaço, geralmente abandonado, onde supostos “delinqüentes” se escondem da
polícia, ou onde se cometem infrações como uso ou venda de drogas. A categoria tem a ver com
“agüentar”, esperar, escondido até a polícia ir embora.
63
O “bairro” e a polícia
Durante o depoimento do policial da Divisão de Homicídios, o presidente do
tribunal quis saber como este julgava a situação da comisaría.
“Um caos, uma bagunça. Essa comisaría é continuamente um caos, é das piores
de La Plata. É uma jurisdição muito conflituosa, com um ingresso único para as
viaturas, desde onde não se vê o balcão. É uma comisaría muito problemática.
Ela tem uma jurisdição enorme, muito complicada”, respondeu o policial.
Los Hornos é uma localidade da periferia
da cidade de La Plata. A terceira mais
povoada da região. Para o ano 2009,
calculava-se 75.000 habitantes
40
. A
localidade possui um centro comercial
próprio, estabelecimentos educativos, de
saúde, e indústrias da construção e de
metalurgia. Na década de 50 recebeu
migração de província do norte da Argentina. Já na década de 90, a migração veio de
países limítrofes, especialmente do Paraguai (Gubilei, 2009:45).
O nome de Los Hornos foi acunhado popularmente pelo fato do mesmo ser criado em
função da indústria de produção de tijolos, criados em grandes fornos localizados na
cidade. A localidade também se desenvolveu, como tantas outras no país, em torno ao
estabelecimento e circulação do transporte ferroviário. Com o desmantelamento e
privatização deste transporte na década de ‘90, o emprego de muitos moradores se viu
precarizado, se dedicando muitos a atividades informais. A população também cresceu
em torno a assentamentos e ocupações
informais de terras. Como assinala
Gubilei, “a área que compreende a
maioria das instituições se localiza no
centro da cidade (...). Na medida em
que nos afastamos desta área, vai se
fazendo presente uma maior
heterogeneidade. Começam a aparecer
as ruas de terra, os bairros e casebres
40
Conforme o Censo Nacional de 2001, moravam nessa localidade 51.265 habitantes (INDEC).
64
sem calçadas nem esgoto, com moradias deterioradas” (2009:45). Junto com a parte
mais urbanizada e desenvolvida da localidade, existe uma área mais precária quanto à
moradia e nível sócio-econômico. Talvez estas distinções estivessem presentes nos
depoimentos distinguindo o “bairro” e a “zona”. Não fosse a proximidade geográfica
entre, por exemplo, a casa de Talarico e a da família de Dario. Como tentarei mostrar
em outros capítulos desta tese, o “bairro” era uma categoria que aparecia, nos casos
judiciais que acompanhei, para designar uma comunidade de pertencimento, para além
das distâncias ou proximidades geográficas, e para muito além das divisões
administrativas
41
.
O certo é que o “bairro” designado por Talarico e seus “vizinhos” e a “zona” por
eles representada marcava um território de sociabilidade, ora solidário (os “vizinhos”
que alertam sobre o assalto), ora hostil (insultos, ameaças, supostas tentativas de
incêndio), dependendo com quem se relacionasse. Mas Talarico não era mais um
“vizinho” qualquer. Ele era policial em atividade e ele tinha trabalhado na comisaría
que patrulhava a “zona”. Em tal caso, a hostilidade era mútua e o relacionamento
também não era anônimo (“essas mesmas pessoas assaltaram minha casa 22 dias
antes”). Pensando nestas questões, lembrei do vizinho de Dario que me abordou na
saída, após meu depoimento. Ele fez referência a Dario não ser o primeiro caso de
violência policial no bairro. Também um ano e meio depois da morte de Dario, um
outro jovem de 19 anos foi morto por um policial da mesma comisaría, a pouco mais de
dez quadras do local onde Dario foi detido por Talarico. Segundo a organização que
representou os familiares, “o policial tem várias denúncias formuladas por distintos
vizinhos do bairro e é conhecido entre eles por fotografar, amedrontar, prender e bater
nos jovens. Uma semana antes do assassinato, o policial o tinha ameaçado de morte”
42
.
41
Simoni Guedes refere a esta questão notando o fato de certos epítetos de lugar no caso por ela
analisado, “Coruja” ou “Buraco da Coruja” em São Gonçalo (RJ) fazerem parte de um “sistema de
classificação/ diferenciação”, pensando o urbano como um processo de transformação do espaço físico
em espaço simbólico (1997:94). Ela identifica a conotação negativa que, na maioria dos discursos dos
moradores, é atribuída àquele local, como violento, desorganizado, pobre, abrigo de bandidos, mas,
principalmente, identifica a mobilidade dos limites internos da “Coruja” (1997:96): “assim a ‘Coruja’
pode estar aqui ou acolá, não se situando portanto em lugar nenhum (...). Do mesmo modo, nenhuma das
pessoas que conhecemos (...) diz morar no ‘Buraco da Coruja’. Sempre situada mais adiante’ (no
terreno) ou ‘mais atrás’ (no passado), a ‘Coruja’ é, antes de tudo, a fronteira ameaçadoramente próxima,
cercada de ambigüidade” (1997:99). Nesse sentido, podemos pensar a ‘Coruja’, a ‘zona’ e seu par
contrário o ‘bairro’ como regiões morais, cujos limites territoriais são relativos às identidades dos
envolvidos.
42
Boletim da organização CORREPI, 9 de julho de 2008. Também a Associação Miguel Bru vinha
denunciando práticas abusivas por parte do pessoal policial da comisaría do bairro (Gubilei, 2009:48).
65
Também Dario tinha sido objeto de detenções por parte de policiais daquela
comisaría. O relacionamento conflituoso entre os jovens e a polícia foi, diante destes
casos, fruto de protestos e manifestações. Também de entrevistas com o comisario
responsável, o mesmo que depois, no caso de Dario, seria acusado –e condenado- por
“encobrimento”.
Por mais acidental que o disparo tenha sido, e em tal caso, não cabe a mim
definir essa questão, os acontecimentos que posteriormente seriam convertidos em
“fatos jurídicos” a serem investigados e julgados, não se davam em um vazio social. O
“bairro” parecia o lugar onde as relações que lhes davam forma se manifestavam ou,
pelo menos, podiam ser investigadas. O “bairro” aparecia recorrentemente como
categoria nativa com diferentes significados e funções. Neste caso, aparecia marcando
um limite social entre grupos (“vizinhos” / “malandros”). Mas, ao mesmo tempo,
aparecia como o “bairro” em defesa de Dario, em seu pedido de “Justiça”. Este “bairro”,
durante o juicio, embora pouco e nada tenha ‘falado’ formalmente nas audiências,
esteve presente, com seus cartazes e bandeiras, com seus corpos no “público”, com seus
comentários fora de tempo, e, paradoxalmente, através da presença policial para, talvez,
conter eventuais distúrbios.
Esse significado móvel do “bairro”, sustentando relações sociais diversas,
também fazia oscilar, durante o julgamento, os papéis de testemunha, imputado e
vítima. Embora na sala de audiência estes estivessem formalmente delimitados espacial
e funcionalmente, nos discursos de advogados e testemunhas, bem como na atitude de
controle do “público”, por vezes, pareciam ser intercambiáveis. O chefe de
investigações disse que “encontrou Talarico, a vítima, que estava muito nervosa”; no
final, foi solicitado que Talarico fosse investigado como “imputado”, policiais que não
se lembravam de certas circunstâncias eram interrogados com as suspeitas próprias do
interrogatório de um imputado” (com direito a mentir); os “imputados” tinham
prioridade para sair da sala antes que o “público” e circulavam por ela com maior
liberdade.
Nas audiências posteriores ao primeiro dia do juicio, o papel confortável da
observação etnográfica me permitiu relevar muitas informações úteis para posterior
análise. Sentia-me à vontade anotando no meu caderno o que via, ouvia e percebia.
Contudo, sem dúvidas, a experiência de depor e me investir do papel de “testemunha”
por um dia significou também um aprofundamento nas amplas possibilidades de
66
percepção do fazer etnográfico. O incômodo próprio desse momento transformou-se
depois em parte das reflexões aqui apresentadas, dando outra visão sobre minhas
observações de juicios passadas e futuras.
O desfecho
A sexta-feira daquela semana de abril, após quatro dias de audiências, foi
dedicada às alegações finais de cada uma das partes. A audiência durou
aproximadamente seis horas, com uma interrupção de uma hora solicitada pela
defensora de Resapo. O primeiro na ordem do uso da palavra foi o promotor, seguido
pelo assistente da acusação e, posteriormente, pelos cinco defensores.
O promotor relatou sua versão dos “fatos”, começando pelo roubo na casa de
Talarico, a “apreensão” de Dario, o auxílio de Resapo e Sánchez, o percurso errático da
viatura, a coação sobre Dario, o disparo, a passagem pela comisaría, o translado ao
hospital, e “a criação da trama lamentável pela qual se adulteraram provas”, como a
aparição de uma arma de um fato de 2006, a lavratura de atas não reais, a persuasão
sobre Talarico para que dissesse outra coisa diferente do acontecido e os depoimentos
dos próprios acusados que “foram se distribuindo funções e entre todos foram dando
uma versão dos fatos com o objetivo de encobrir e mascarar o acontecido diante da
Justiça”. Deu por provada a morte de Dario, a partir das pericias médicas, “incorporadas
por leitura” e do depoimento dos médicos no debate. Quanto à qualificação penal desses
fatos, solicitou o julgamento de Resapo pelo delito de “homicídio duplamente
qualificado por aleivosia” –por Dario estar indefenso- e abuso de funções de um
membro da instituição policial. Quanto aos outros cinco acusados, qualificou os “fatos”
com o delito de “encobrimento agravado” por se tratar de funcionários policiais em
atividade. Citou as provas testemunhais que creditavam a “autoria e participação” de
cada um dos acusados. Considerou como possível “atenuante” o fato dos acusados não
terem condenações anteriores e não considerou outros agravantes além dos já
mencionados. Solicitou as penas de “prisão perpétua” para Resapo, de cinco anos de
prisão efetiva para Gómez e de três anos de prisão efetiva para cada um dos outros
acusados
43
. Por último, considerou o prejuízo ocasionado à instituição policial.
43
Conforme o Código Penal, o crime de “encobrimento agravado” tem prevista uma pena de 1 a 6 anos
de prisão.
67
É com amargura que assistimos aqui altos chefes policiais dizer que pode se
alterar o livro de novidades para se manejar em prejuízo da justiça que juraram
defender. Tudo resulta uma ofensa para a sociedade e para seus subalternos, que
trabalham por horas com salários baixos e terminam sancionados, como disse
aqui Talarico, por não lustrar seus sapatos, quando aqui assistimos um alto
chefe, sem sequer ficar envergonhado, dizer que se pode alterar a documentação
pública. Será justiça.
A palavra foi dada a Luis Real, como representante da família de Dario. Afirmou
aderir em parte à alegação do promotor, sendo que apresentaria um “fato” com nuances
diversas. Uma primeira diferença foi a narração do “fato” não começar com o roubo a
casa de Talarico, mas diretamente a partir da chegada da viatura de Resapo e Sánchez,
às 23h48 no lugar onde Dario estava sendo “apreendido”. Luis também se deteve no
tempo em que foi prolongada a detenção de Dario na viatura, com o objetivo de
“infringir dor, física e psíquica, e de gerar não-lugares, nos quais não existe registro e a
legalidade é colocada entre parênteses”. Antes do relato dos “fatos”, começou
argumentar em torno do teor repressivo das políticas públicas de segurança da província
e das características das formas inquisitivas de investigações. No entanto, foi
rapidamente interrompido pelo presidente, avisando que seu tempo estava por se
esgotar. Passou, então, a qualificar penalmente a participação de cada acusado. Resapo e
Sánchez foram qualificados sob o crime de “tortura seguida de morte”, solicitando a
prisão perpétua para ambos, e o resto por “encobrimento agravado”, solicitando a pena
máxima prevista para mez (seis anos), cinco anos para o comisario e o subcomisario
e quatro anos para o oficial de serviço. Também afirmou não aderir ao “atenuante”
solicitado pelo promotor, que considerava que não ter condenações anteriores era
requisito formal para ser funcionário público.
Antes de passar a palavra para os defensores, o presidente disse “estimular,
como o tem feito durante todo o juicio, o princípio de adesão entre os defensores”.
Referia-se a possibilidade de aglutinar argumentos em um mesmo sentido e não se
repetir uns aos outros. Confirmava o presidente uma atitude presente desde o primeiro
dia de audiência de acelerar o processo e economizar palavras e argumentos. Seja
insistindo –“estimulando”- a “desistência” de testemunhas, seja solicitando a adesão de
argumentos dos defensores, o “tempo” do tribunal parecia se mostrar um bem escasso
44
.
44
Novamente, Garapon faz referência ao tempo do ritual judiciário como dotado de um valor superior,
cujo controle fica em poder do presidente (1997:62).
68
Os defensores, de fato, tinham se comportado de forma bastante homogênea
durante o juicio. Apesar do estilo bem diferente de cada um deles (mais verborrágicos,
mais sossegados), eles se apoiavam uns nos outros nas decisões e solicitações. Também
conversavam animadamente entre eles e com os acusados e saíam para almoçar juntos.
Contudo, na hora das alegações finais, as linhas de defesa de cada um, pelo menos em
parte das argumentações, traçaram distâncias que faziam do “princípio de adesão” uma
péssima estratégia de defesa.
A primeira em ter a palavra foi a defensora de Resapo, única defensora oficial.
Primeiramente colocou uma “questão prévia”, que devia ser discutida pelo tribunal
antes dela começar as alegações. Ela declarou-se surpresa pela mudança na qualificação
realizada pelo promotor e pelo assistente da acusação em relação ao crime pelo qual seu
defendido tinha sido imputado (“homicídio agravado”, e não “tortura seguida de
morte”). Disse se estar diante de duas hipóteses diferentes e não diante de “um fato com
nuances diversas”. Argumentou como isso vulnerava o direito de defesa e todos os
outros defensores “aderiram”. O juiz pediu para o promotor e o assistente da acusação
responderem. Luis Real argumentou sobre o lugar menor que a vítima tinha no processo
e a vinculação desse aspecto com a Idade Média, mas o juiz, mais uma vez, solicitou
síntese e objetividade na resposta. Luis retomou dizendo, brevemente, que durante a
etapa prévia da investigação eles tinham solicitado estas questões, mas que não tinham
sido ouvidos. “Nós botamos o morto, que mais temos que provar?”, concluiu, antes
do tribunal se retirar para decidir. De alguma forma, o discurso de Luis, por momentos,
também parecia esbarrar com um descompasso, senão de linguagem, pelo menos de
perspectiva, onde apenas pareciam ter lugar argumentações jurídicas.
Após quinze minutos de intervalo, o tribunal retornou à sala. Primeiramente o
presidente ressaltou que gostaria de dizer que ele mesmo apresentou um trabalho em um
congresso jurídico sobre os direitos da vítima, inclusive argumentando a necessidade da
mesma ter representação oficial. Após esse curioso esclarecimento, anunciou que a
decisão era se ater aos “fatos” enunciados na imputação dos acusados. De alguma
forma, dava-se a razão à defensora. Houve uma hora de intervalo solicitada por esta
última e aderida” pelos outros defensores
45
. Encontrei os advogados e acusados no bar
da esquina, aproveitando o intervalo para almoçar.
45
Na verdade, a defensora tinha solicitado que a audiência fosse retomada na segunda-feira, mas o
Tribunal não aceitou e deu apenas uma hora.
69
O argumento central da defensora de Resapo, na sua alegação, foi demonstrar
que, reconhecendo a autoria e a existência do “fato”, seu defendido não teve intenção de
matar e que a “clara finalidade de matar”, alegada pela acusação, não estava provada.
Deve se acreditar no meu defendido, pois sempre tem manifestado a mesma
coisa e ele ficou à margem de tudo o que acontecia na comisaría. Seu estado de
ânimo e o reconhecimento por parte dele do acontecido dão conta de sua
espontaneidade e honestidade. (...) Tem sido negligente e descuidado, mas não
sabia que a bala estava na câmara. Desde a lógica do senso comum, entendo que
é indiscutível que não teve a intenção de matar.
Finalizou sua alegação, solicitando a pena mínima do delito de “homicídio
agravado” (15 anos). A palavra foi dada ao advogado de Gómez, que também defendia
o oficial de serviço. Ele questionou a autoria e responsabilidade de seus dois defendidos
e pediu a absolvição de ambos. O principal argumentou foi a falta de provas. Foi
também a oportunidade de carregar as tintas contra Talarico solicitando sua
investigação por falso testemunho”. Finalmente, disse que se o tribunal não
compartilhasse o critério da absolvição, solicitava a pena mínima para ambos (um ano).
Seguiu o advogado de Sánchez. Começou seu discurso com argumentos sobre a
vida estigmatizada dos jovens nascidos em bairros populares, concluindo que “Dario
não foi uma vítima policial, mas vítima de uma sociedade que não se ocupou dele nem
de sua família. Essa é uma verdade que dói”. Prosseguiu argumentando sobre a estrutura
hierárquica e militarizada da polícia, para, finalmente, sustentar a tese de “obediência
devida” de seu defendido. Foi o momento que recebeu a reprimenda do juiz, para “se
limitar ao objeto de conhecimento deste processo e de seu defendido, pois não é este um
fórum adequado de índole doutrinária”. Passou aos “fatos”, solicitando também a
absolvição de Sánchez, e, eventualmente, sua condenação pelo mínimo da pena. De
igual maneira, mas em forma muito mais resumida e breve, o fizeram os advogados do
comisario e do subcomisario.
O presidente deu lugar às réplicas, solicitando que sejam “sintéticas, objetivas e
breves”. Tanto o promotor quanto Luis Real desmereceram parte dos argumentos dos
defensores e, assim o fizeram, novamente, os defensores com eles. O presidente disse
que era o momento de ouvir cada um dos acusados, se assim o considerassem
70
necessário. Nenhum deles solicitou falar
46
. O tribunal anunciou a sentença para quinta-
feira seguinte.
Naquela quinta-feira, o corredor de espera para a sala de audiência estava cheio.
Estava a família de Dario, membros da Associação Miguel Bru, familiares de outros
casos de “violência policial” e jornalistas. Pela distribuição na sala, o público todo
estava em apoio à família de Dario, pois ninguém ficou sentado do outro lado das
cadeiras. Os jornalistas circulavam pela sala, com câmeras de foto e de filmagem. Após
uma hora de espera, ingressou o Tribunal. O presidente anunciou que a secretária leria
“a parte resolutiva da sentença, porque os fundamentos têm mais de 100 páginas”. A
secretária leu, então, em poucos minutos, a resolução do Tribunal. Resapo foi
condenado à pena de prisão perpétua, Gómez a cinco anos de prisão efetiva
47
, o
comisario e Sánchez a três anos de prisão condicional, estabelecendo serviços
comunitários, e o oficial de serviço e o subcomisario foram absolvidos. Aos poucos,
fomos sendo retirados da sala. A audiência tinha acabado.
Na saída, os jornalistas entrevistaram a mãe de Dario, quem até o momento não
tinha falado na audiência.
Estamos conformes... ficou claro que meu filho estava indefenso, que o mataram
algemado depois de bater nele, que plantaram uma arma para simular que quis
atacar... mas sabemos que houve mais policiais no encobrimento. Ninguém vai
devolver Dario para a gente; se fez um pouco de justiça, mas meu filho não vai
voltar. Conheço mães e meninos que denunciam abusos e perseguições por parte
dos mesmos policiais. A comisaria de Los Hornos sempre esteve cheia de
assassinos (...).
Recalcavam-se novamente as relações conflituosas da polícia e do “bairro”. Los
Hornos, La Plata e outras localidades da província são circunscrição e domínio da
polícia da província de Buenos Aires. A elas corresponde também um sistema judiciário
específico. À sua apresentação me dedico no capítulo seguinte.
46
No caso deste juicio”, como foi descrito, o controle da palavra (e do tempo) por parte do presidente do
Tribunal e a decisão por não falar por parte de todos os acusados (contribuindo assim com a “celeridade”
sugerida enfaticamente pelo presidente) evidenciam um domínio da “oralidade” por parte do tribunal, a
partir do qual a mesma é, nesta instância, expropriada das “partes” (Lupetti, 2008). Neste caso, também
como identificou Barbra Lupetti para o processo cível no Rio de Janeiro, a “oralidade aparece como uma
pedra no caminho da celeridade”, mais do que como um objetivo do processo (2008:295).
47
Naquele dia, Gómez não se apresentou na audiência e até hoje está foragido.
71
CAPÍTULO 2
Da cidade ao conurbano
Em agosto de 2007, iniciei minha missão de doutorado sanduíche no âmbito de
um convênio de cooperação binacional
48
. Minha intenção era avançar no meu trabalho
de campo para a elaboração da tese. Os primeiros dias em Buenos Aires foram de busca
e expectativa; reavivei velhos contatos e procurei expressar meus interesses sobre o
campo teórico e empírico para desenvolver a pesquisa de forma ampla. Percorri os
corredores dos tribunais criminais atuantes na cidade de Buenos Aires, perguntando
pelas datas e horários das audiências de julgamento oral. Pesquisei nas pautas do
Judiciário sobre os nomes dos juízes e secretários de todos os juzgados de instrucción
criminal a fim de identificar as possibilidades de solicitar a realização da pesquisa em
algum deles. De alguma forma, o Judiciário na cidade de Buenos Aires era um lócus
conhecido por mim e por outros colegas, que fazia alguns anos desenvolvia pesquisa
me valendo dessa trama de relações. No entanto, as coisas não pareciam estar se
desenvolvendo da forma que eu esperava, ou pelo menos, conforme o ritmo que minha
ansiedade por começar a pesquisa representava.
Um dia em meados de agosto fui chamada a uma reunião no Centro de Estudos
Legais e Sociais, uma ong referida- que desenvolve trabalhos de pesquisa e de
litígio jurídico na área da segurança pública, do funcionamento das burocracias penais e
dos direitos humanos. O encontro tinha sido proposto por Sofia Tiscornia, minha co-
orientadora e também coordenadora de pesquisas do CELS. Naquele encontro recebi a
proposta de concentrar meu trabalho de campo não já na cidade de Buenos Aires, mas
na província de Buenos Aires, mais especificamente no chamado conurbano
bonaerense. Os dois advogados que faziam essa proposta para mim estavam
interessados em prosseguir uma pesquisa sobre homicídios em um departamento
judicial, Los Pantanos. Para isso, seria necessário contatar uma advogada do CELS,
Maria Quiroz, que já tinha iniciado essa pesquisa.
Sai da reunião satisfeita de poder ter orientado a realização do trabalho de
campo em espaços mais concretos, mas, ao mesmo tempo, com a incerteza sobre o fato
48
Convênio CAPES-Secyt, 110/06, entre o Equipo de Antropologia Política e Jurídica da Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal Fluminense.
72
de iniciar minha pesquisa de doutorado em um novo lócus. A cidade de Buenos Aires e
o conurbano apresentam diferenças significativas não só em termos sociais, econômicos
e políticos, mas também de organização judiciária e policial.
Geografias, política e divisões
O 13 de setembro de 2007 amanheceu chuvoso e frio em Buenos Aires. Um
clima não muito favorável para encarar o que seria a primeira de tantas outras visitas ao
prédio de Tribunales do departamento judicial de Los Pantanos. Duas semanas antes
tinha combinado uma entrevista com a promotora indicada pela advogada do CELS. O
encontro estava pautado para as 11h. Olhei a Guia T
49
para poder localizar o prédio.
Apenas consegui decifrar que deveria pegar o trem que sai do terminal Constitución
para o sul da província. A melhor estação para descer parecia estava a uma distância de
seis estações do terminal de saída. O prédio não parecia estar localizado perto da
estação, mas, pelo menos –pensei-, já estaria na área. Naquela manhã scom muitas
horas antes do horário combinado. Preocupava-me não saber me localizar nessa área do
conurbano, território desconhecido para mim.
No trem, fui acompanhando cada estação com temor de passar direto. Desci na
estação programada. Os arredores da estação mostravam um bairro sem muito
movimento, de casas baixas, bem estruturadas, algumas com quintais na frente, e alguns
comércios de comida e roupa. Andei
umas duas quadras até uma avenida
mais movimentada. encontrei uma
policial parada na esquina. Perguntei a
ela pelo prédio da Promotoria. “Qual
promotoria?”, “A criminal K”,
respondi sem saber muito bem se essa
seria uma indicação válida ou
suficiente. “Pode ir de remise
50
, ou
49
A “Guia T”, cuja pronuncia em espanhol fica como a frase guiate(guie-se), é um livrinho com todas
as ruas da Capital e do Grande Buenos Aires e os percursos de todos os ônibus, trens, e metrôs que unem
um ponto com outro. Ela é vendida a preços populares em bancas de jornal e por vendedores ambulantes
nos meios de transporte. É publicada em diferentes tamanhos, com diferentes preços.
50
Na província de Buenos Aires, diferentemente da Capital, não há táxis. O serviço de transporte
semelhante são os remises. A principal diferença é que os táxis circulam pela rua e você pega um deles
73
também pegar o [ônibus] 548 nesta esquina; pede para o motorista descer em
Tribunales’, mas –acrescentou- insiste para ele ficar atento, pois depois desse ponto o
ônibus pega o Caminho Negro!”.
Caminho Negro era uma localização familiar. Não precisamente por ter estado
aí. O conhecimento não era direto, mas mediado por certas representações. Como
portenha, tinha ouvido falar dele como um local da “província” perigoso e desolado.
Como era cedo (ao final, a viagem de trem não tinha demorado tanto quanto eu previa),
decidi entrar em um café. Quando a hora do encontro se aproximou, peguei o 548,
avisei o motorista para me alertar quando chegasse em Tribunales”, enquanto me
enrolava com as moedas, pois o valor da passagem era maior do que em Buenos Aires
51
.
Tribunaaalesssgritou o motorista, após 10, ou no máximo, 15 minutos de viagem.
Várias pessoas tinham se levantado dos assentos e aproximado da porta de trás para
descer. Rapidamente deu para visualizar um prédio grande, com a bandeira argentina: o
edifício de Tribunales”. Era cercado por uma grade. Para fora dela, não havia bares
nem lojas. Apenas vislumbrava-se a estrada de dupla mão por onde circulava o 548
junto a outros ônibus e veículos. A estrada terminava a poucos metros do prédio, onde
se continuava subindo a uma estrada maior, Caminho Negro. Em poucos minutos, o
relógio marcaria a hora do encontro. Apenas restava encontrar a sala da promotoria,
dentro do prédio. Contudo, a primeira etapa estava cumprida: apesar de minhas
incertezas, tinha conseguido chegar com êxito da Capital a meu destino no conurbano.
O chamado conurbano bonaerense pertence à província de Buenos Aires, da
qual depende política e administrativamente. Está integrado por 24 partidos
(municípios), contíguos geograficamente à cidade de Buenos Aires, mas sem
dependência formal com a mesma. Em 2003, o organismo oficial encarregado da
produção de estatísticas nacionais, o INDEC, produziu um documento intitulado “O que
é o Gran Buenos Aires?”. O objetivo era esclarecer o uso oficial das diversas categorias
que circulam para se referir a esta região. O documento estabelece uma série de
distinções entre tais categorias, cujo principal eixo é a inclusão, ou não, da cidade de
Buenos Aires:
em qualquer lugar, enquanto um remise deve ser chamado a um ponto específico ou pego na remisaría
onde ficam estacionados.
51
Tanto nos ônibus da cidade como da província de Buenos Aires a passagem é comprada com moedas
que os passageiros devem inserir em uma máquina. Sem as moedas suficientes, não é possível viajar.
74
A expressão Gran Buenos Aires tem múltiplas interpretações no seu uso
corriqueiro: os partidos [municípios] da província de Buenos Aires próximos à
cidade de Buenos Aires (“eu moro no Gran Buenos Aires...”, “eu trabalho na
Capital” etc.); ou bem o “aglomerado” que inclui a cidade de Buenos Aires e
todo o conjunto urbano unido a ela. Às vezes se fala do conurbano ou do
conurbano bonaerense”; e às vezes da “Área metropolitana”... e sempre fica
pouco claro se a cidade de Buenos Aires está ou não incluída no conjunto. Para
facilitar a interpretação da informação fornecida pelo INDEC, indicamos aqui a
terminologia que utilizará o Instituto a partir do 1 de agosto de 2003. (...) A
expressão Gran Buenos Aires incluirá a cidade de Buenos Aires e quando nos
refiramos apenas aos partidos será como partidos do Gran Buenos Aires. Não
utilizará, com esse sentido, a palavra conurbano”, apesar de ser essa a
denominação corriqueira na imprensa e em alguns analistas.
A eliminação por parte do INDEC da categoria conurbano mostrava a tentativa
por impor uma denominação oficial padronizada
52
. Contudo, o mesmo INDEC
reconhecia a força do uso social dessa categoria que ora incluía a cidade de Buenos
Aires, ora apenas os municípios da província, dependendo do aspecto que se quisesse
ressaltar. O principal diferencial era a distinção do conurbano da cidade de Buenos
Aires, tanto quanto do “resto da província de Buenos Aires”, cuja capital é a cidade de
La Plata
53
. Assim, a região dos “Partidos del Gran Buenos Aires”, segundo
denominação do INDEC, ou do conurbano bonaerense, segundo “definição corrente”,
tinha particularidades que era preciso considerar.
Uma das mais chamativas refere-se às suas características demográficas. É a
região mais densamente povoada da Argentina. Com um total de 8.684.437 habitantes,
sua densidade demográfica é de 2.394,4 habitantes por km
2
.
54
Concentra, assim, 21,85
% da população do país e 62,81% da população da província, em 3.627 km
2
. Isso
significa também que reúne em seu território mais de 25 % do eleitorado político do
país, sendo um dos focos históricos do desenvolvimento de políticas sociais e de
assistencialismo político (Auyero, 1997, 2001; Svampa e Pereyra, 2003; Frederic,
2004). Pela densidade e quantidade de sua população, o conurbano costuma ser
representado, em especial, a partir da Capital, mas também desde cidades do interior do
52
Segundo Bourdieu, é uma tentativa de impor uma ngua oficial, a partir da padronização e legitimação
de certas categorias sobre outras, atreladas às instituições do Estado (1996:32). O maior ou menor êxito
dessa tentativa poderá estar dado na medida em tais categorias sejam acolhidas no uso social da língua.
53
A cidade de La Plata não integra o Gran Buenos Aires. Ela dista 56 km da cidade de Buenos Aires, na
direção sudeste. Conta com 541.905 habitantes e uma densidade populacional de 585 habitantes por km
2
.
Nela, têm sua sede as autoridades executivas e legislativas da província de Buenos Aires, bem como as
unidades centrais do Poder Judiciário (Procuração Geral da província, Corte Suprema provincial, etc).
54
A população total da Argentina é de 39.745.614 habitantes.
75
país, como uma área um tanto caótica, anônima e tumultuada. No entanto, como
veremos, ao longo dos capítulos que seguem nesta tese, uma vez que se ‘adentra’ no
cornubano bonaerense, a imensidão do território e o anonimato da densidade
demográfica se fragmentam em “bairros”. Nos “bairros”, proposto nesta tese como
categoria nativa, prevaleciam as relações de proximidade, gerando cumplicidades e
conflitos que, em alguns casos, resultariam na matéria prima do trabalho das
promotorias criminais do conurbano.
A sua separação administrativa da cidade de Buenos Aires, não exclui a forte
vinculação entre uma região e outra
55
. As fronteiras administrativas que a separam da
Capital, são diariamente percorridas por mais de três milhões de pessoas que vão e vêm
de alguma localidade do conurbano para Buenos Aires, seja para trabalhar, estudar, se
divertir, visitar amigos ou parentes (Pires, 2010). E, assim como as fronteiras
geográficas e administrativas são cotidianamente transpostas, elas também podem ser
simbolicamente levantadas quando setores da sociedade portenha discutem suas
políticas públicas de educação, saúde ou segurança pública. Nesses contextos, os limites
entre aquelas fronteiras se erguem como um divisor de identidades e dos direitos que a
elas podem ser atribuídos. Parece ser durante esses momentos de conflitos que uma
identidade – a portenha- se ativa em oposição à outra a bonaerense. Porque, se
portenhos e bonaerenses circulavam e interagiam com notável fluidez em função de
valores culturais e socais comuns, era através de uma recorrente representação sobre a
“escassez de recursos” que a oposição entre uns e outros se mostrava com maior força
56
.
55
Na sua etnografia de dois subúrbios da cidade de Beirute, no Líbano, Fuad I. Khuri argumenta que o
“subúrbio” deve ser entendido como uma nova ordem social e não como uma parte orgânica da metrópole
(1975:212). Em contraste com outros estudos sobre subúrbios em Ocidente (em especial, no Canadá, nos
Estados Unidos e na Grã Bretanha), sugere que, no Oriente Médio, os subúrbios não são dependentes da
cidade; eles m autoridades eleitas próprias, recursos econômicos próprios, são multifuncionais
(moradia, trabalho, serviços, lazer, cultura, educação) e mantêm laços familiares e sociais com outras
comunidades que não Beirute (1975:214). Se bem que aqui argumento que o conurbano bonaerense tem
uma forte ligação com a cidade de Buenos Aires, me interessa destacar que, ao mesmo tempo, os
municípios que o integram contam com autonomia e identidades e dinâmicas próprias deles. Nessa linha,
nas conclusões da tese, retomo o trabalho de Khuri para pensar a categoria nativa de “bairro”, no
conurbano.
56
Fredrik Barth assinala, tratando de fronteiras étnicas, que as mesmas “permanecem apesar do fluxo de
pessoas que as atravessam. Em outras palavras, as distinções entre categorias étnicas não dependem da
ausência de mobilidade, contato e informações, mas implicam efetivamente processos de exclusão e de
incorporação, através dos quais, apesar das mudanças de pertencimentos ao longo das histórias de vida
individuais, estas distinções são mantidas” (2000:26). Acredito que, embora no caso de portenhos e
bonaerenses não possamos falar de fronteiras étnicas, essa dinâmica entre identidades distintas, analisada
por Barth, ajuda a pensar o fluxo de valores e de mecanismos de inclusão e exclusão de grupos sociais.
Também resulta útil lembrar da clássica descrição de Max Gluckman (1987) sobre a inauguração da ponte
na Zululandia, em função da qual analisa as relações entre brancos e africanos, como parte de um mesmo
76
A área da segurança blica tem sido uma arena onde as representações sobre
ambas as linhas do mapa têm se evidenciado com recorrente e esporádica força, ao se
discutirem os níveis de criminalidade e violência. Desde, pelo menos, o ano de 1998
57
,
diante de crimes de repercussão, tem se adotado como medida a implementação das
chamadas operações cerrojo nas entradas e saídas da Capital para o conurbano. O
objetivo: fechar a saída de possíveis criminosos para essas terras e prevenir seu possível
ingresso. Na área da segurança pública, entrar em terras bonaerenses era um outro
domínio.
“A melhor polícia do mundo
Transcorria o inverno de 1996. Com essas
palavras, o então governador da província de
Buenos Aires defendia a maior força policial do
país das críticas de setores sociais sobre casos de
corrupção, violência e ineficiência, de parte de
seus agentes. Um ano e meio depois, em
dezembro de 1997, o mesmo governador
decretava a intervenção civil da força e iniciava um processo de “reforma estrutural” na
instituição. Nesses anos, a reforma policial foi acompanhada de uma reforma maior do
sistema penal provincial. Como veremos, foi reformado o Código de Processo Penal
provincial e também foram sancionadas leis de reforma da organização do Ministério
Público.
sistema social. Como também chamou a atenção Evans-Pritchard na sua etnografia entre os Nuer
(2002:170), Gluckman ressalta que é na medida em que aumenta a freqüência e importância das
interações entre os grupos que as possíveis contradições ou diferenças podem se transformar em conflito
(1987:261).
57
Desde meados de 1997, na Argentina, a questão da segurança pública se estabeleceu como um dos
principais eixos do debate político e midiático, ocupando um lugar de debate importante nas campanhas
eleitorais, nas manchetes e matérias dos jornais, na apresentação de políticas públicas e nas pesquisas de
opinião (Eilbaum, 2002). Em novembro de 1998, os jornais dedicaram boa parte de suas matérias à
difusão de assaltos em residências e bancos, sobretudo, em bairros limítrofes da Capital com a província
de Buenos Aires. Um dos episódios mais difundidos foi a morte de um cabo da Polícia Federal durante o
assalto a um banco, no bairro portenho de Saavedra. Por causa da morte do cabo Ayala, cuja foto passou a
decorar as viaturas e dependências da Polícia Federal, o Secretário Nacional de Segurança lançou o
Operativo Cerrojo Ativo”: “Saavedra, ao igual que outros bairros da Capital que limitam com a Avenida
General Paz, é considerado zona crítica pela Polícia Federal. Acredita-se que muitos assaltantes chegam
desde a província de Buenos Aires e, depois de roubar na Capital, fogem outra vez para território
bonaerense” Jornal Clarín, 2 de janeiro de 1998.
77
Conhecida como La Bonaerense, em agosto de 1996, a polícia da província de
Buenos Aires tinha sido batizada como La Maldita Policía”. O nome foi acunhado
por dois jornalistas dedicados à investigação das redes de corrupção daquela instituição,
cujos resultados foram publicados no livro “La Bonaerense. Historia Criminal de la
Policía de la província de Buenos Aires” (1997)
58
. Denunciavam no livro que os agentes
da Bonaerense –desde os altos escalões até os níveis inferiores- estavam envolvidos em
variados tipos de negócios: venda de processos a advogados, gerenciamento do jogo, da
venda ambulante; da prostituição; das drogas; da compra e venda de auto-peças, entre
outras atividades. O certo é que a administração destas atividades havia anos fazia parte
da dinâmica da instituição policial e desta com o poder político da província. Uma
relação que Marcelo Saín (2008)
59
caracterizou como um “pacto de reciprocidade”:
Este pacto –afirma- se assentou sobre a base de dois compromissos
fundamentais. Do lado governamental, foi garantida à instituição policial uma
espécie de independência institucional baseada na não ingerência oficial no
relativo à organização e funcionamento policial, a proteção de certos chefes e
quadros funcionais ao pacto (...), bem como a indiferença –“vista grossa”- ou o
encobrimento governamental diante dos dispositivos e fatos de corrupção e os
abusos policiais, e até a proteção política diante de certas modalidades de
regulação de determinadas atividades delitivas de alta rentabilidade econômica.
Do lado policial, foi garantido às autoridades governamentais um grau
socialmente aceitável de eficiência no controle formal e informal do delito,
permitindo uma magnitude criminal que não gerasse reclamos ou protestos
cidadãos ou que não deixasse espaços para situações de crises políticas,
garantindo também serviços políticos informais, que foram desde espionagem e
tarefas de inteligência ou ameaças e pressões sobre opositores e adversários até o
financiamento de certas atividades políticas ou o enriquecimento de algumas
autoridades governamentais do setor (2008:126).
Nesse contexto, pode-se pensar que não foram em si os atos de corrupção os
motivos da intervenção civil. Uma série de crimes de altíssima repercussão e a derrota
do governo provincial nas eleições legislativas de 1997 atuaram como o motor de uma
decisão que, por muitos, era vista como imprescindível e, por muitos outros, como
58
Os autores são Carlos Dutil y Ricardo Ragendorfer. Um segundo volume sobre a mesma –e persistente-
temática foi publicado em 2006 por Ricardo Ragendorfer (Dutil morreu em 1997, pouco depois da
publicação do primeiro volume). O nome do novo livro foi “La Bonaerense 2. La Secta del Gatillo”.
59
Marcelo Saín é um cientista político que participou do desenho da reforma policial que prosseguiu à
intervenção civil e que, em julho 2002, assumiu o cargo de vice-ministro de Segurança da província. Em
janeiro de 2003, deixou esse cargo, entre outros motivos, após afirmar que a polícia se financiava
ilegalmente, com o apoio dos prefeitos e coronéis políticos da província. Publicou dois livros (2008,
2004) sobre sua experiência oficial na área de Segurança na província, “como analista e como ator da
trama abordada” (2008:20). Para as questões por ele colocadas, ver também o filme El Boanerense
dirigido por PabloTrapero.
78
perigosa. A investigação do assassinato de um fotógrafo e jornalista nas proximidades
do balneário onde descansava o governador, por um lado, e do atentado à Associação
Mutualista Israelense Argentina (AMIA), pelo outro, deixou em evidência a
participação de policiais de La Bonaerense, nas redes que permitiram ambos os
crimes
60
. As pretensões presidenciais do governador da província impulsionaram um
processo de reforma institucional que teve inúmeros vaivens. Chamados pela mídia e
também por analistas e pesquisadores como períodos de reforma e de contra-reforma,
eles dão conta do contexto de disputas políticas e policiais que geraram adeptos e
opositores contumazes ao processo (Eilbaum, 1998; Sain, 2004, 2008).
A intervenção civil da polícia foi seguida, em primeiro lugar, do afastamento de
300 chefes superiores da instituição, seguido de sucessivos períodos de “purgas” de
significativa quantidade de agentes
61
. Em segundo lugar, da implementação de uma
política de reforma estrutural da instituição. As medidas foram variadas. Buscou-se a
descentralização das unidades menores, ao tempo do fortalecimento e centralização do
poder político (civil) sobre a instituição. A polícia foi reorganizada, assim, de acordo a
critérios territoriais e funcionais. A província foi dividida, territorialmente, em 18
departamentos judiciais, e para cada um deles foi criada uma Polícia Departamental de
Segurança, para as funções de prevenção. Foi criada também uma Polícia de
Investigações, uma Polícia Cientifica, uma de Trânsito e um serviço de custódia e
translado de presos.
60
No dia 25 de janeiro de 1997, foi encontrado, sem vida, algemado e queimado, o corpo do fotógrafo e
jornalista JoLuis Cabezas. Pelo mesmo foram julgados e condenados a prisão perpétua integrantes de
uma banda criminosa conhecida como “Los Horneros” e policiais da Bonaerense que também fariam
parte do grupo. Após diferentes hipóteses e associações com disputas políticas tanto em vel nacional
como provincial, ficou definido que o motivo do assassinato teria sido o fato do jornalista ter fotografado
um empresário, cujo rosto era desconhecido publicamente. Este último –Alfredo Yabrán- não foi julgado,
devido a seu corpo ter sido achado sem vida, em um aparente caso de suicídio em maio de 1998,
momentos antes de ser preso. Diversos jornalistas escreveram livros sobre o caso. Entre outros, ver
Llorente e Blamaceda, 1997 e Bonasso, 1999.
No dia 18 de julho de 1994, explodiu uma bomba na AMIA. Morreram 85 pessoas. Os juízes que
investigaram o caso apoiavam, junto com os EUA e Isarael, a tese do atentado ter sido obra da
organização Hezbolah, com envolvimento do governo irani. Como parte dessa hipótese, investigou-se a
chamada “conexão local”. Entre setembro de 2001 e agosto de 2004, foi realizado o julgamento oral. A
decisão final do Tribunal foi pela declaração de nulidade da etapa de investigação, por considerarem que
houve graves irregularidades no proceder do juiz de instrução. Com essa decisão, os acusados -um
advogado e vendedor de veículos e quatro ex-policiais da Bonaerense- ficaram livres. Recentemente, em
dezembro de 2009, a Câmara de Casación Penal Nacional, revisou o processo e considerou que a atuação
do juiz de instrução foi imparcial até setembro de 1995, com o que poderia se reabrir o processo para
realizar um julgamento.
61
Na época da reforma, a Polícia da província de Buenos Aires tinha 48.000 policiais. Era a polícia com a
maior quantidade de agentes do país.
79
Para o segundo objetivo, foi criado o Ministério de Justiça e Segurança e o
Instituto de Política Criminal e Segurança Pública, como um órgão autônomo de caráter
técnico para acompanhar a reforma. Também foi reformado o sistema de formação e
educação policial, unificando em uma única carreira, o ingresso de oficiais e suboficiais.
Por último, com a finalidade de promover o controle e participação comunitária, foram
criados Fóruns de Segurança em diferentes níveis de integração (bairro, municipal e
departamental)
62
.
Reforma em andamento, em 1999, advieram as eleições para governador da
província. O candidato do mesmo partido do então governador impulsionou sua
campanha com forte ênfase no tema da segurança pública. Seu carro chefe impactou,
para o bem e para o mal, nos meios de comunicação e no eleitorado: “meter bala aos
delinqüentes”. Ganhou as eleições. A partir de sua assunção, iniciou-se o chamado
período de contra-reforma (1999-2003). Novos nomes para os altos comandos e para os
estratégicos cargos policiais. Novas reformas do Código de Processo Penal provincial,
ampliando as faculdades policiais (sobretudo, nos procedimentos de revista) e
restringindo as possibilidades de liberdade provisória
63
.
Antes de terminar o mandado oficial, o governador se retirou para o cenário
político nacional, para disputar a presidência da República. Seu vice-governador
assumiu a titularidade em meio à crise nacional econômica, política e social de 2001,
não sem custos para política de segurança. Em um “protesto social” organizado por
vários grupos de manifestantes, na ponte que separa a Capital do sul da província
(partido de Avellaneda), a repressão policial resultou em vários manifestantes feridos e
na morte de dois jovens: “Dario e Maxi”
64
. Nova remoção de autoridades; nova
alteração do Código de Processo Penal provincial, ampliando as faculdades do
62
A maioria das modificações foi estabelecida e pautada na Lei de Segurança Pública (12.154, 15/07/98)
e na Lei de Organização das Polícias (12.155, 15/07/98). Ver também: Palmieri, G., 1998 e Sain, M.,
1998.
63
Possibilidade do réu ficar em liberdade durante a duração do processo.
64
No dia 26 de junho de 2002, Maximiliano Kosteki e Dario Santillán morreram por causa dos disparos
de funcionários policiais, no interior da estação de trem de Avellaneda que, hoje, chama-se Dario y Maxi,
por imposição popular. Durante os primeiros momentos posteriores ao evento, a versão oficial afirmava
que tinham morto em confronto entre os próprios grupos de manifestantes. Em seguida, fotos e vídeos
publicados pela mídia mostravam o envolvimento de policiais na morte dos dois jovens. Estes fatos foram
julgados em maio de 2005. O Tribunal Oral condenou a prisão perpétua o comissário e seu motorista
como co-autores do homicídio dos dois jovens e também por outras sete tentativas de homicídio. Também
condenou outros seis ex-policiais bonaerenses por crimes de “encobrimento e usurpação de título”, por
sua intervenção naquele dia. Desde 2002, na data de 26 de junho, organizações sociais e políticas
realizam, na estação de trem, um ato de memória pelo acontecido, reclamando “Justiça contra os
responsáveis políticos da repressão”. Para mais detalhes, ver Perelman (2009) e Gómez (2005, 2006).
80
Ministério Público. Poucos meses depois, o novo chefe da Bonaerense foi denunciado,
em uma revista jornalística, pela posse de uma surpreendente poupança em uma conta
bancaria nas Bahamas. Junto com a de outros 19 chefes policiais denunciados pelo
próprio governo provincial por enriquecimento ilícito, a denúncia do então chefe foi
para investigação na Justiça, e o chefe para fora do seu cargo.
transcorria o ano de 2004. Em fevereiro, reassumiu como ministro de
Segurança um personagem que fora um dos principais idealizadores da reforma. Este
iniciou uma nova “purga” de mais de 2.500 policiais e nomeou um civil na chefia de
polícia. O passo seguinte foi um novo batizado: criava a Policía de Buenos Aires 2”,
que passou a ser conhecida como “la policía 2 ou a “pol2”. Estabelecia uma nova força
com aproximadamente 350 agentes. Formados durante seis meses em cursos de direito
penal, direito constitucional, direitos humanos, entre outros, ministrados na
Universidade Nacional de La Matanza (na zona oeste do conurbano) e com um certo
preparo físico, a partir de setembro de 2004 passaram a complementar o policiamento
ostensivo das ruas do conurbano boanerense, em apenas três municípios.
Para essa época eu já me encontrava no Brasil e não tinha acompanhado de perto
esse processo. Em 2007, fazendo trabalho de campo em Los Pantanos, em uma
conversa com policiais de investigações de La Bonaerense, ouvi falar desse novo
agrupamento. As críticas sobre a falta de experiência dos novos policiais eram fortes.
Também o era o repúdio a um discurso político que exacerbava que eles são uma
maravilha e nós uma porcaria, quando de fato não é assim”. Meses depois dessa
conversa a “Polícia 2” foi finalmente dissolvida pelo Ministério de Segurança da
província.
Finais de 2007. Novas eleições para governador provincial, junto com as
eleições presidenciais e legislativas. O vencedor na província designou um novo
ministro de Segurança e um novo chefe policial. Também voltou atrás com a unificação
da carreira policial, reinstituindo a divisão entre oficiais e suboficiais. Hoje, enquanto
escrevo este item da tese, em um cálido Rio de Janeiro, acompanho pelos jornais
argentinos que o vice-ministro de Segurança da província teve que afastar-se de seu
cargo
65
. Os jornais especulam sobre os possíveis motivos de sua renúncia; um deles, a
péssima relação do funcionário com La Bonaerense. Assumirá no seu lugar um novo
funcionário....
65
Jornal Clarín, 09/02/2010 e Jornal Pagina 12, 09/02/2010.
81
Processo infinito de designações, renúncias e reformas. Parece ser nesse
processo que as “reformas estruturais” vão ganhando forma, assentando determinados
aspectos e se desfazendo de outros. Os planos originais são permanentemente
flexibilizados em função dos indivíduos envolvidos, de suas identidades e ideologias,
dos interesses de certas conjunturas políticas e das possibilidades institucionais. Nem os
indivíduos, nem as instituições parecem, assim, poder ser separados –ou desencarnados-
nem da análise, nem do desenvolvimento de tais processos de reforma. Eles, assim
como a vida política, as disputas internas policiais e as trajetórias pessoais, têm
continuidade no tempo histórico. Desse modo, contrariamente ao que alguns
idealizadores da reforma esperavam, ela nunca “se consolida”. Porque, longe de se
cristalizar, sua dinâmica abre caminho a novos movimentos e sucessivas alterações.
Se esse movimento aconteceu com a reforma na polícia, a reforma encarada
conjuntamente no sistema de justiça criminal também não foi alheia a disputas políticas
e judiciárias.
A reforma na Justiça Criminal
Os códigos de processo penal, na Argentina, são descentralizados. Existe um
Código de Processo Penal “federal”, o qual regula o procedimento criminal para todos
os delitos de “índole federal” (transgressões da lei de drogas, administração pública,
entre outros) cometidos na cidade de Buenos Aires e em todas as províncias e para
‘todos os delitoscometidos na primeira
66
. Além desse código federal, cada uma das 22
províncias tem um Código de Processo Penal provincial próprio. Isto é, cada uma
delas estabeleceu um procedimento e uma organização judiciária e policial específicos
para dar tratamento criminal aos delitos –não federais- cometidos no seu território
67
.
Desta forma, todos os partidos da província de Buenos Aires, incluídos aqueles
do conurbano, respondem ao Código de Processo Penal da província de Buenos Aires
66
Em junho de 2004, o governo nacional e o governo da Cidade de Buenos Aires assinaram um Convênio
de transferência progressiva de competências da Justiça Nacional ao Poder Judiciário da cidade. A partir
do mesmo, alguns delitos considerados “menores”, como porte de arma, ameaça, lesões em acidentes de
trânsito, exercício ilegal da medicina, danos, entre outros, passaram a serem tramitados na Justiça
Contravencional da cidade Autônoma de Buenos Aires.
67
O Código de Processo Penal federal também regula a chamada justicia nacionalcom competência
nos crimes “comuns” (não federais) unicamente no âmbito territorial da Cidade de Buenos Aires, quanto
Capital da República. Assim, na cidade de Buenos Aires, convivem a justiça nacional e a justiça federal
reguladas pelo mesmo código de procedimento (o federal) e, nas províncias, convivem as respectivas
justiças provinciais, reguladas por códigos de procedimento próprios, e a justiça federal, regulada pelo
Código de Processo Penal federal, apenas com atuação nos crimes de tipo federais. O Código Penal é
único para todo o país.
82
(CPP-PBA). Sobre as bases desse código avançou a reforma do sistema processual
penal da província de Buenos Aires. A nova legislação começou a ser implementada,
em toda a província, em setembro de 1998. O código anterior datava de 1915 e era
conhecido, devido ao nome do seu autor, como “Código Jofré”.
Advogado: O código de Jofré teve uma vigência muito longa, de mais de 30
anos e terminou, morreu, com a reforma de ‘98. O código Jofré previa que a
instrução estivesse a cargo de um juiz de instrução com um caráter puramente
inquisitivo, porque a defesa e a atuação do promotor vinham atrás. Quer dizer, o
juiz conduzia o processo e depois de ter produzido os atos notificava o promotor,
teórico, abstrato, irreal titular da ação pública. Essa era a oportunidade do
promotor de oferecer prova, isto é, oferecia prova que tendia a demonstrar o que
estava demonstrado pelo juiz, a tal ponto que pedia pena. Todo o qual
marca uma incoerência no âmbito de uma ordem lógica.
Lucía: o promotor acusava diante do mesmo juiz que tinha enviado tudo para
ele?
Advogado: por escrito, tudo isto era um procedimento escrito, fazia a acusação e
a mandava ao juiz na etapa plenária, mas que era a mesma pessoa. (...) Havia um
juiz que marcou uma época, porque teve uma tendência que causou uma grande
comoção na década de 70. Ele ditava sentenças onde absolvia, mas fazia uma
crítica feroz ao juiz de instrução, o fustigava...
Lucía: ou seja, a ele mesmo.
Advogado: claro. A questão é que falava em terceira pessoa. Dizia: “como juiz
de sentença não posso menos que criticar o magistrado que fez a instrução e
pediu a prisão preventiva sem base...”. Batia forte para acabar absolvendo e
pedindo para que a Câmara investigasse a conduta do juiz de instrução, que
havia sido ele mesmo. Em ntese, um sistema perverso, porque era o mesmo
juiz esquizofrênico que autocontrolava a prova que ele mesmo coletava; o juiz
era juiz e parte. Mas, com tudo isso, ainda existia um mecanismo para finalizar o
processo. Era mais humano, porque passavam dois anos e o processo ficava
resolvido. Mas chega o [ano] 98, com ‘banda de música’, a grande reforma
judicial...
O antigo código, que permaneceu vigente por quase um século, dividia o
processo em duas etapas: a “instrução”, no comando de um juiz que delegava a
investigação para a polícia. Com as provas produzidas pela polícia, ele enviava o
processo ao promotor o qual, com essas mesmas provas, formulava a acusação e
solicitava uma pena. Com isso, o processo passava para a segunda etapa; a “etapa de
plenário”. Nela, o “juiz do plenário”, que era a mesma pessoa que havia sido o “juiz de
instrução”, resolvia o caso (ditava sentença), com base nas mesmas provas por ele
produzidas. Por estas características e por ser esse processo inteiramente escrito
68
, o
68
O julgamento oral mencionado na entrevista foi introduzido como possibilidade para os casos de
homicídio em 1985.
83
Código Jofré foi considerado por muitos juristas, e especialmente por aqueles que
protagonizaram a reforma processual penal, como claramente “inquisitorial”. Contudo,
alguns advogados que entrevistei –incluindo aquele citado acima- ressaltaram também
características positivas dessa legislação, principalmente quando colocada em contraste
com o novo Código. Ou, melhor dizendo, com a brecha entre o que foi proposto como
“novo” e aquilo que, como máximo, dez anos depois, quando eu realizava as
entrevistas, estava acontecendo no sistema judiciário provincial, segundo sua
perspectiva
69
.
Quando apresentada, a reforma foi visualizada por seus impulsores e defensores
como uma reforma de modernização do sistema, conforme o modelo penal acusatório e
a legislação mais atual de respeito dos direitos humanos e das garantias penais
(Martínez, 2005, 2007
70
). Ela propunha vários aspectos, entre os quais se destacava
terminar com o sistema do juiz de instrução e plenário, com a instrução policial das
causas
71
e promover uma maior celeridade e oralidade do processo. Para isso, também
as estruturas anteriores sofreram alterações e novas unidades foram criadas.
O centro: La Plata
O esquema do Poder Judicial da província de Buenos Aires, no âmbito penal,
tem forma piramidal. Seu topo é ocupado pela Suprema Corte de Justicia, como
máxima autoridade judicial da província. Ela é a última instância para recorrer às
decisões de órgãos inferiores, no âmbito provincial. Está composta por um presidente e
um vice-presidente e por cinco “ministros”. A instância seguinte é o “Tribunal de
Cassação Penal”. Foi criado com a reforma, como uma instância de apelação anterior à
Corte, de modo a agilizar as decisões sobre os casos em que é questionado, por algumas
69
O primeiro projeto de Código aprovado em 1997 foi reformado antes, inclusive, de ser implementado
(Lei 12.248).
70
O Centro de Estudios de Justicia de las Américas (CEJA) publicou uma coleção de três volumes sob o
título Reformas procesales penales en América Latina: Discusiones locales, apresentando os processos de
reforma judicial desenvolvidos nos diferentes países de América Latina.
71
Causa é a categoria utilizada para se referir a um processo. Seguindo o raciocínio de Baudouin Dupret,
a denominação faz sentido ao entender o processo penal como a imputação de uma conseqüência legal a
um ato, isto é, a tarefa de fazer corresponder uma instância factual a uma definição jurídica formal em
uma cadeia causal (2006:177). Essa definição relativa à atribuição causal específica contrasta com a
categoria “processo” utilizada no português para se referir aos casos judiciais.
84
das partes, o cumprimento do chamado “devido processo” e a “defesa em juízo”
72
. Está
integrado por um presidente e três “salas” com três juízes cada uma
73
.
Já no âmbito do Ministério Público o topo da pirâmide é ocupado por um
Procurador Geral, seguido de um sub-procurador. Com a missão de atuar “em defesa
dos interesses da sociedade e em resguardo da vigência equilibrada dos valores jurídicos
consagrados nas disposições constitucionais e legais” (art. 1 da Lei 12.061), reúne, sob
sua direção, os promotores, os defensores e os assessores de incapazes
74
. Essa
unificação de papéis foi criticada por alguns entrevistados. Na perspectiva deles, o fato
de acusação (promotores) e defesa (defensores) estarem sob “cabeça” de uma mesma
autoridade não é mais do que uma simples “uma incoerência lógica”.
Como é possível que aquele que tem que desenvolver políticas para o exercício
punitivo do estado, do Ministério Público Fiscal –o Procurador Geral-, esteja
por sua vez a cargo da defesa, que ela mesma se encarrega de perseguir, é um
despropósito, e em Nação
75
é diferente (Entrevista com advogado criminal, Dr.
Lopez Matze, 26/05/2009)
Lopez Matze tinha ampla experiência no estudo dos sistemas anterior e posterior
à reforma. Disse-me aquela ponderação ao conversar sobre o que tinha sido apresentado
como a introdução de um “sistema acusatório”. Em consonância com ele, outros
advogados particulares associavam essa opinião, como veremos mais adiante, com
aquilo que identificavam como “uma desigualdade de armas e falta de equilíbrio entre
promotor e defesa”
76
.
72
Lei 11.982 (31/07/1997).
73
Em dezembro de 2009, esta configuração foi modificada ampliando o número de salas para seis, com
dois juízes cada uma (Lei 14.065, 10/12/2009). Contudo, quando da escrita desta tese, a mudança ainda
não tinha sido implementada.
74
É o Código Civil nacional que define que é e quem são os “incapazes”. Enquanto a “capacidade de
fato” é definida como a aptidão de uma pessoa para exercer seus direitos por si mesma, a “incapacidade
de fato” é quando a lei não permite esse exercício a não ser por meio de um representante legal (neste
caso, os assessores de incapazes), “com o fim de proteger o incapaz”. O Código distingue entre
“incapazes absolutos” e “incapazes relativos”. Os primeiros são as pessoas por nascer, os menores
impúberes (de 14 anos), os dementes e os surdos-mudos que não possam se comunicar por escrito (art.
54). Os “relativos” são os menores adultos (entre 14 e 18 anos, até recentemente 21 anos) (art. 55).
Existem também outros supostos de inabilitações temporárias. No âmbito penal provincial, os assessores
de incapazes devem intervir “em todo assunto judicial ou extrajudicial que interesse a pessoa ou bens dos
incapazes” (art. 23, Lei do MP). Devem, por exemplo, assistí-los, representá-los e peticionar em nome
deles, nas audiências judiciais, e supervisionar as condições de detenção.
75
Refere-se à Justiça Federal onde existe um Procurador geral para o Ministério Público Fiscal e um
Defensor Geral para o Ministério Público da Defesa.
76
Enfatizo o fato de serem os advogados particulares quem reclamavam desse ponto e não os defensores
públicos, apesar de também exercer o papel defensivo. Voltarei sobre no capítulo 4.
85
Em correspondência com a pirâmide da Magistratura, ao Procurador e Sub-
procurador, lhe segue a Fiscalía del Tribunal de Casación Penale uma Defensoría
del Tribunal de Casación Penal”. São os organismos que atuam nos casos que chegam a
esse Tribunal. Também no controle disciplinar dos funcionários das hierarquias
inferiores. Por isso, quando algum dos promotores do departamento de Los Pantanos,
onde fiz meu trabalho de campo dizia “amanhã não venho porque tenho que ir a La
Plata”, era sinal que boa coisa não era.
Não estes últimos, mas todos os funcionários e unidades mencionadas até
aqui têm sua sede na cidade de La Plata. As hierarquias que seguem, na pirâmide,
correspondem aos 18 departamentos judiciais em que foi dividida a província, tendo
competência apenas nesses territórios.
Os braços: os departamentos
Cada departamento tem sua pequena pirâmide. O topo de cada uma delas
corresponde a uma Câmera de Apelações e Garantias no Penal. Essa é a primeira
instância para questionar –“recorrer”- as decisões dos tribunais inferiores. Os níveis que
seguem correspondem às etapas do processo e às competências por ele definidas. Por
isso, a estrutura no âmbito da magistratura e do Ministério Público (promotoria e
defensoria) se espelham novamente. Apresento estas unidades no apartado item, ao
introduzir as etapas do processo. Interessa-me mais mostrar como foi pensada e disposta
a organização no âmbito do Ministério Público, nos departamentos judiciais.
Para cada um dos 18 departamentos judiciais, nos quais foi dividido o território
da província, foi designado um Promotor Geral Fiscal de Câmara- e um Defensor
Geral. Ambos os cargos responsáveis por organizar, respectivamente, as promotorias e
defensorias de seu departamento. Cada um deles poderia ter critérios autônomos e
flexíveis para organizar o trabalho, dentro das prerrogativas e funções determinadas nas
legislações correspondentes. Esta proposta foi pensada como um critério inovador de
descentralização e maior dinamismo. As variações de organização e distribuição do
trabalho nos diferentes departamentos foram diversas. Alguns departamentos dividiram
as competências de seus funcionários pelas etapas do processo; outros por tipo de crime
e outros ainda territorialmente. Por exemplo, departamentos que dividiram as
funções de instrução, julgamento e execução –primeira, segunda e terceira etapa do
processo- para promotorias e defensorias diferentes, enquanto em outros cada etapa era
86
desenvolvida pelas mesmas unidades. departamentos que privilegiaram organizar as
promotorias de forma especializada por tipo de crime. Em uma delas (na zona norte do
conurbano), então unidades para crimes comuns” (homicídio, roubo, furto, ameaça,
extorsão, entre outros), unidades para “crimes culposos”, outras para crimes
considerados menores (lesões leves, porte de arma, ameaça) e crimes sexuais (estupro,
abuso desonesto), outras para “crimes complexos” e patrimoniais e uma última unidade
para casos com autor ignorado. Estes critérios podem também ser combinados.
No departamento de Los Pantanos, na época da minha pesquisa, a distinção era
bem combinada. Entre as promotorias, havia unidades diferenciadas para a etapa de
investigação (26) e a de julgamento (18) (como veremos a seguir, chamadas Unidades
Funcionales de Investigación –UFI- e Fiscalías de Juicio, respectivamente). Dentre as
primeiras, havia também duas unidades especializadas: uma para crimes por temas de
droga
77
e outra para casos com “autor ignorado”, conhecida como a “UFI de NN”. O
resto se dividia em UFIs de tipo “criminal” (quinze) e de tipo correccional(quatro).
Esta divisão dependia do tipo de crime. Por definição do CPP-PBA, os crimes de tipo
correccional são aqueles cuja pena máxima é menor que seis anos. Contudo, em Los
Pantanos, o Fiscal de Câmara flexibilizava essa distinção incluindo nas “UFIs
criminais” crimes que, conforme a lei, seriam correccionales”. Por isso, volta e meia,
durante o trabalho de campo, ouvia críticas dos promotores de “UFIs criminais” pelas
acomodações que fazia o Fiscal de Câmara do departamento. na primeira visita à
UFI criminal, onde desenvolveria o trabalho de campo, ouvi que:
O Fiscal General de Los Pantanos distribui os crimes entre criminais e
correccionales de modo próprio. Todos aqueles que lhe parecem mais
complexos os manda para criminais. O resultado é que as criminais estão cheias
de trabalho. As criminais têm desde homicídios, crimes sexuais, até furto,
resistência à autoridade (que é tudo, porque se o rapaz respondeu de mau jeito o
policial coloca resistência à autoridade) e também quando carros
abandonados na rua ou corpos mortos!
77
A Lei de Drogas é de competência da justiça federal, mas a província de Buenos Aires foi a primeira
em aderir à Lei Nacional de Desfederalização de Entorpecentes (26.052, julho de 2005). De acordo com a
mesma, as questões vinculadas à venda e distribuição de droga em casos de menor quantidade (sem
especificar a mesma) passaram a ser competência da Justiça provincial. Um juiz da província explicava
esta situação considerando que “o varejo, o cristão que vende droga é nosso. Na PBA onde mais
miséria e muita venda de paco [droga elaborada com a base da cocaína, e identificada como um dos
problemas atuais em termos de venda e consumo] e demais, fizeram um corte com certos crimes como o
porte de entorpecentes, o porte para uso pessoal, tudo o que é de menor quantidade o passaram para aqui
[justiça provincial]. Mas o informante continua sendo o mesmo porque é a polícia quem levanta o dado, a
polícia ia com o dado para a justiça federal que não dava nem bola, hoje vem aqui e há uma resposta”. A
resposta mais freqüente tem sido a detenção de pessoas que vendiam droga, em pequenos comércios do
conurbano, majoritariamente, os jovens que moram pela área.
87
As críticas podiam também ser tomadas como ambíguas, dependendo de quem
as formulasse, pois entupiam de trabalho, mas ao mesmo tempo outorgavam um
prestigio maior às “UFIs criminais” e aos seus responsáveis. Segundo um funcionário
próximo ao Fiscal de Câmara, nas “UFIs criminais” estão os “crimes transcendentes”;
então, o Fiscal priorizava estas unidades colocando os promotores que considerava
melhor capacitados, enquanto “para as correccionales manda os piores”. Na verdade,
não se tratava de qualificar ou de desqualificar funcionários específicos. O que se
colocava em disputa era a “importância” outorgada ao tipo de casos. Eram estes os que
marcavam a necessidade ou não de colocar em prática a capacidade dos agentes. E os
“casos dos correccionales”, envolvendo brigas de família, violência doméstica,
acidentes de trânsito, eram vistos como casos simples e pouco importantes, tanto que
“quando estavam todos juntos, eram a raspa do tacho”. Os “casos criminais” eram
definidos, ao contrário, por sua complexidade e transcendência. Simplicidade e
complexidade estavam dados, nesta perspectiva, pelo desafio que supunham para a
investigação dos mesmos. Por isso, os promotores de “UFIs criminais” não reclamavam
pelo fato de se ocuparem dos casos de homicídios ou extorsões com autor ignorado. Ao
inverso, teve alta repercussão negativa, nos corredores da UFI, quando, para finais de
outubro de 2007, durante o trabalho de campo, o Fiscal decidiu que a “UFI de NN” lhes
delegaria ‘todos’ os casos de NN de encontro e recuperação de veículos. Estas causas
eram consideradas como “mortas”, por ficarem paradas, sem movimento, nem muita
coisa a ser feita. A crítica, então, não surgia tanto pela quantidade de processos, mas
pelo incremento de casos “sem valor”. Uma coisa era um “morto de verdade”, uma
outra um “processo morto”.
No departamento de Los Pantanos, também havia algumas unidades
descentralizadas. Justamente nos dois extremos da circunscrição do departamento
judicial. No limite com o sul da província, havia duas UFIs e também oito defensorias
públicas. Na localidade que limitava com a fronteira de entrada e saída da Capital, havia
quatro UFIs e duas defensorias.
A organização estabelecida pelo Defensor Geral do departamento distinguia
defensorias para etapa de investigação daquelas dedicadas à fase de julgamento (10 no
total). Também havia uma defensoria de execução penal, a terceira etapa do processo.
Além das unidades de defesa descentralizadas, que mencionei. Essa era,
88
resumidamente, a estrutura conforme a qual desenvolvi meu trabalho de campo em
2007.
“O primeiro de março muda tudo”: investigação e juicio
Esse anúncio me foi feito, na UFI onde tinha realizado meu trabalho de campo,
durante uma visita que realizei em novembro de 2008. Referiam-se a um novo projeto
de reforma, aprovado pelo Legislativo provincial em abril daquele ano. O projeto
modificava vários pontos do Código de Processo Penal da província. Mas, na UFI,
enfatizavam um ponto que envolvia diretamente o trabalho deles. A nova lei indicava
em dois de seus artigos que “salvo decisão em contrário” do Fiscal General e do
Defensor General de cada departamento judicial, todas as promotorias e todas as
defensorias ficariam responsáveis pela investigação e pelo julgamento
78
. Ou seja,
eliminava-se a distinção entre unidades de instrução e de juicio. Quem realizasse a
investigação deveria também atuar no julgamento oral
79
.
Quando a reforma foi conhecida no âmbito dos departamentos judiciais, a
mesma gerou certas incertezas, pois, embora sugerisse enfaticamente a implementação
desses dois artigos, deixava a decisão sob opção das autoridades de cada departamento.
No âmbito do departamento de Los Pantanos, os comentários foram muitos. Nas
entrevistas realizadas no início do trabalho de campo e durante meus dias na UFI, em
2007, eu tinha conversado sobre a divisão da investigação e do julgamento com
funcionários diferentes. Geralmente, as opiniões de promotores, juízes, defensores e
secretários mostravam-se a favor da união de ambas as atividades em uma mesma
78
Artigos 58 e 92 da Lei 13.812 (21/04/08), referidos às promotorias e às defensorias, respectivamente.
Um princípio semelhante, identificado como a “responsabilização individual dos procedimentos”, foi
articulado na reforma da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em 1999, denominada “Programa Delegacia
Legal”. A proposta referia ao fato de um mesmo policial civil conduzir o caso desde a confecção do
registro de ocorrência até a elevação do inquérito policial ao Ministério Público, eliminando a separação
entre funções cartoriais e administrativas e as investigativas. Na prática, este princípio foi contestado por
muitos policiais que reivindicavam as particularidades de habilidades e tempos do trabalho de
investigação. Para mais detalhes, ver Kant de Lima, Eilbaum e Pires, 2007 e Paes, 2006.
79
Quanto à estrutura do Judiciário provincial também foram reorganizados os Tribunales Orales
Criminales. Anteriormente compostos por três juízes para todos os delitos de tipo criminal, passariam a
ser integrados apenas por um juiz para os crimes cuja pena máxima fosse maior a quinze anos de prisão,
sendo que poderão intervir os três juízes quando estiverem envolvidos funcionários públicos em exercício
de suas funções ou quando o imputado o requeresse dessa forma (artigo 22 da Lei 13.812). A reforma
também incluiu outros pontos que suscitaram uma veemente crítica de organismos de direitos humanos e
de agrupamentos de magistrados da própria província junto com outras associações civis. Para mais
detalhes, ver documento “Opinión del CELS sobre el proyecto de ley de reforma del CPP de la provincia
de Buenos Aires e “Sin rumbo y sin brújula. Declaración Pública del Foro Multisectorial para la
defensa de la Justicia, reunido en La Plata” (setembro de 2008).
89
pessoa. Parecia-lhes “mais coerente”, pois pressupunha-se unidade de critério na mesma
pessoa e, portanto, quem decidisse uma coisa na primeira etapa a manteria na segunda.
Esse critério de defesa única não é ruim, porque se eu te aconselhei para não
depor, depois no julgamento tenho que te manter calado e vice-versa. Tem
acontecido em julgamentos que eu fiz meu defendido depor e o tribunal disse: e,
diga-me, porque o senhor conta isso agora dois anos e meio depois! O defensor
que disse para falar vai ter que voltar e fazer ele falar e aquele que disse cala a
boca vai ter que manter o defendido calado e vai ter que se responsabilizar por
sua própria estratégia, que às vezes gera certas rispidezes entre os defensores:
Puta! Por que você não o fez depor! (Entrevista Defensora de Juicio, 29/05/09)
Quando esta defensora manifestou-se a favor de reunirem as duas funções, ela
estava começando a se ocupar de ambas as etapas. Apesar de que tal unificação
implicaria mais trabalho e complicaria a agenda de audiências, ela encontrava no novo
sistema a vantagem de se levar uma estratégia unificada. O ponto de vista de alguns
integrantes do Ministério Público já era diferente.
Uma vez que foi se aproximando a efetiva implementação da reforma os
promotores com os quais conversei fizeram suas ponderações. Enfatizavam a distinção
de habilidades entre investigar e “fazer juicio”, em referência à participação nas
audiências orais. Aqui não temos uma capacitação de investigadores, então o que a
gente sabe o sabe por ofício, intuição especial”, “você aprende a investigar na prática”.
Opiniões do tipo marcavam uma capacidade especial para investigar adquirida a partir
da experiência da própria atividade, de lidar caso após caso com situações das mais
“variadas e loucas”. Durante um almoço na UFI, discutindo sobre a utilidade, ou não,
dos cursos de capacitação para “instrutores”, ou seja, o conjunto de funcionários
judiciais que estaria destinado à investigação, Sebastián comentou:
O Fernando [o secretário anterior dessa UFI] não era nada cientifico, mas era
muito intuitivo. Em um caso de um homicídio com estupro, ele viu o do cara
e disse logo ‘esse cara foi estuprado’. Às vezes errava, mas quando acertava era
um golaço. Isso é o que tem a intuição.
Essas habilidades “especiais” identificadas com a instrução eram contrastadas
com a capacidade de atuar nas audiências orais. “Ficarei um pouco nervosa nas
primeiras, mas você vai e faz, não é nada tão diferente”, me disse Valeria, a promotora
da UFI K quando perguntei como se sentia em relação à reforma. De alguma forma, o
juiciopodia ser diferente na forma (do escrito para o oral), mas não no conteúdo e na
perspectiva de construção do caso e de interpretação das provas. Na forma de colocar
90
esta distinção, parecia-se mais a diferença entre uma prova escrita e uma oral, no âmbito
universitário. Assim, a incorporação dos juicios era visualizada como mais uma
atividade e responsabilidade, mas não como um novo conhecimento a ser incorporado.
Também era destacado o ritmo diferente que tinha a instrução em relação à etapa
de julgamento. Seria que aqueles funcionários “de juicioiam se acostumar com esse
ritmo “mais dinâmico, mais no calor dos acontecimentos”? Era uma visão de quem
conhecia a solicitação de colegas para passar a atuar “em juicio e sair de instrução”,
para diminuir a intensidade do trabalho, por motivos de saúde, familiares ou pessoais.
Essas preocupações não eram alheias ao Fiscal General de Los Pantanos.
Comentava-se que ele não era muito afim da unificação das funções de investigação e
julgamento. Assim como diziam que havia destinado os “melhores funcionários” para
as UFIs criminais (em oposição às correccionales), também era identificada tal
preferência em detrimento das Fiscalías de Juicio. Contudo, a reforma foi se impondo
na maioria dos departamentos judiciais e Los Pantanos não foi uma exceção. Os
processos que ingressassem a partir do primeiro de março de 2009 seriam investigados e
atuados em juicio pelos mesmos funcionários. De qualquer forma, enquanto escrevo
esta tese, embora o debate sobre esta medida estivesse presente nas salas de
Tribunales”, os promotores de instrução ainda não tinham participado em audiências
orais de julgamento. Era um desafio que estava por vir.
Na época de minha pesquisa, a distinção de habilidades entre investigar e “fazer
juicio coincidia com a estrutura formal de organização do processo: UFIs para
instrução e Fiscalías de Juicio para julgamento; defensorias para a primeira etapa e
Defensorias de Juicio para a segunda. Tal distinção formal também coincidia com um
outro ponto de vista relativo ao prestígio reconhecido para cada uma das etapas. Porque
se, desde o pessoal da instrução, a investigação requeria uma capacidade experiencial
especial, também era marcado tanto pela trajetória dos funcionários como pelos salários,
que a etapa de julgamento gozava de maior prestígio, em termos da hierarquia do
sistema. A estrutura formal parece então dar um marco de atuação, mas as percepções
sobre as diferentes funções e papéis desenvolvidos acabam tendo dinâmicas
diferenciadas. Os momentos de mudança das formas de organização podem evidenciar
essas percepções com maior visibilidade, pois removem os quadros de atuação
esperados.
91
Descrever a estrutura formal do campo no qual me movimentei não constituiu
apenas uma forma de contextualizar a etnografia que segue nos próximos capítulos. Ela
faz parte da etnografia. E faz parte dela não porque conhecê-la implica em pesquisas
empíricas sobre sua constituição, organização e regulamentação, mas sobretudo porque
é nessa pesquisa e nas conversas que ela suscita com aqueles que se movimentam nessa
estrutura que ela adquire seu(s) sentido(s) local(s). Por isso também a descrição
acompanhou as reformas, mudanças e as opiniões sobre elas. Mais do que expor o
“esqueleto”, quis mostrar o quanto o mesmo é móvel. O quanto ele encerra as
concepções e ideologias das pessoas que nela habitam, suas valorações sobre a natureza
dos casos que tratam, das atividades que desenvolvem e da importância atribuída a cada
uma dessas dimensões. Talvez assim seja mais fácil entender porque a “falta de
comunicação institucional” entre diferentes veis do sistema seja preenchida por
contatos informais e afinidades pessoais.
As etapas do processo
As mudanças sobre a estrutura formal acompanharam, então, a principal e mais
propalada motivação da reforma: a introdução de um sistema acusatório
80
. Ele
delimitaria e separaria as funções de acusar e de julgar. Para tanto, as etapas do processo
foram reestruturadas e novas figuras (cargos, repartições e funções) foram introduzidas
para dar conta dessa separação
81
. O processo penal estaria separado em três etapas:
preliminar, julgamento e execução.
A primeira etapa foi destinada à investigação das denúncias recebidas, seja pela
polícia ou pelo Ministério Público Fiscal, e ao posterior arquivamento ou
encaminhamento para a segunda etapa (julgamento)
82
. Durante esta última, procedia-se
80
Para mais informações sobre a reforma processual penal e o processo de implementação, ver Informe
sobre el Sistema de Justicia Penal en la Provincia de Buenos Aires, elaborado por el CELS, en el ámbito
del Proyecto “Seguimiento de los Procesos de Reforma Judicial en América Latina” del Centro de
Estudios de Justicia de las Américas (CEJA), 2003. www.cejamericas.org
81
Em função das mudanças introduzidas, a reforma foi acompanhada de um corpo de novas leis, além da
alteração substantiva do Código de Processo Penal provincial. Foram aprovadas a Lei do Ministério
Público (12.061, 08/01/98), Lei de Transformação dos Juizados (12.060; 08/01/98); Lei Execução Penal
(11.803, 02/07/96), Lei do Conselho da Magistratura (11.868 26/11/96); Lei de criação do Tribunal de
Casação Penal (11.982, 31/07/97); Lei de Mediação Penal (13.344, 19/01/2006); além das já mencionadas
referidas à Segurança Pública. Todas elas já tiveram aspectos alterados por outras novas leis.
82
Sobre essa primeira etapa vou me estender em seguida, neste capítulo. Características da segunda etapa
serão retomadas no Capítulo 8. Sobre a terceira etapa, me limito a apontar características básicas, pois não
foi foco do trabalho de campo, já que meu interesse estava no processo através do qual se chega a uma
decisão sobre os fatos julgados, e não na etapa posterior a essa decisão.
92
ao julgamento daquelas pessoas acusadas durante a primeira etapa de um certo crime.
Os julgamentos foram previstos para serem realizados em audiências orais e públicas.
Também foram criados mecanismos jurídicos –como o juicio abreviado- para “acelerar”
o processo, evitando a realização do julgamento, em virtude da negociação e acordo
prévio entre promotor e defesa (e através desta do “imputado”). Para dar conta desta
etapa, foram criadas novas unidades, que o sistema anterior não previa repartições
específicas para os poucos casos de julgamento oral
83
. No âmbito da magistratura,
criaram-se Tribunais Orais Criminais; e no âmbito do Ministério Público, Fiscalías e
Defensorías de Juicio”. Diferentemente do sistema anterior, onde a decisão pela
sentença dos casos recaia em um único juiz, o novo sistema previa uma decisão
colegiada, com tribunais compostos por três juízes
84
. Então, nesta etapa se ditava
sentença (absolutória e condenatória) que podia ter recurso, pelo promotor ou pelo
defensor, diante da Câmara de Apelações, do Tribunal de Casación Penal e da Corte
Suprema, sucessivamente em grau crescente de hierarquia.
A terceira etapa também previu a criação de novas unidades: juzgados”,
fiscalíase “defensorias de execução penal. Estas unidades se ocupariam de tratar e
resolver sobre aquelas questões que afetassem às pessoas com uma sentença
condenatória definitiva, seja em prisão ou com outro tipo de pena. O tipo de questões,
geralmente, envolvia solicitações de ex-carcelação, de translado dos presos para outras
unidades penitenciárias, de saídas para Natal ou outras datas festivas, se apresentar ou
informar eventuais avisos de mudança de domicílio quando se está em liberdade
condicional ou em regime aberto (em liberdade), entre outros
85
.
A etapa preliminar: célere e ágil
Nesta etapa, pretendeu-se outorgar maior protagonismo ao Ministério Público
Fiscal, como contraste da preeminente atuação do juiz no sistema anterior. Os agentes
83
Como mencionei, era apenas para crimes dolosos contra a vida, e eram julgados por uma Sala da
Câmara de Apelações (composta por três juízes), instância imediatamente superior aos juízes.
84
Nos crimes com pena máxima prevista menor que seis anos e em contravenções e faltas, intervêm
durante toda a etapa do processo, outras unidades, os “juzgados correccionales”, sob responsabilidade de
um juiz titular.
85
Observei estas solicitações durante um dia em uma defensoria de um departamento do norte do
conurbano. Essa defensoria se ocupava das três etapas, preliminar, julgamento e execução. Por isso, tinha
estabelecido um sistema de atendimento ao público, todos os dias, no horário da manhã. Dois
funcionários da defensoria faziam esse trabalho e davam conta das filas cumpridas de familiares e pessoas
condenadas que iam fazer suas solicitações, ou procurar informações.
93
fiscales –como foram chamados os fiscales ou promotores
86
- teriam o monopólio da
“ação penal pública”, isto é, receber as denúncias, praticar a chamada investigão
penal preparatória, intervir em juízo e dirigir a polícia em função judicial (art. 17, Lei do
MP). A “investigação penal preparatória” é a fase dedicada à investigação das
denúncias. Isto supõe, fundamentalmente, reunir “provas para estabelecer se a situação
denunciada pode ser classificada como um crime e, nesse caso, individualizar os autores
e partícipes do fato
87
. Em função do resultado destas tarefas, o agente fiscal responsável
pela investigação pode apresentar a “acusação” contra a pessoa “individualizada como
autor ou partícipe”, para que seja julgada, ou, caso contrário, proceder a seu
“arquivamento”.
O objetivo da reforma, ao introduzir a figura da “investigação penal
preparatória”, foi fazer prevalecer os princípios de celeridade e econômica processual.
Duas tendências presentes em muitas reformas, relativamente recentes, dos processos
penais, na Argentina e em outros países da América Latina
88
. De forma geral, o objetivo
é reduzir os tempos de duração do processo e, conjuntamente, os passos formais
necessários para sua conclusão. A finalidade então é dupla: redução de tempo
“morosidade” é a categoria utilizada de forma crítica para falar das longas durações dos
processos- e de recursos (materiais e humanos). Sob essa perspectiva, o alvo da reforma
era, fundamentalmente, a abundante produção escrita da etapa de “plenário” do sistema
anterior, na qual cada processo ganhava vários “corpos”, de muitas folhas, de crescente
volume. Isso porque todo passo era registrado por escrito –como garantia de validade e
veracidade dos atos realizados e/ou das decisões tomadas-, mas também porque toda a
“prova” possível era produzida pelo juiz nessa etapa e não na etapa de julgamento. Por
isso, dizia-se que o destino sobre o caso já estava decidido na primeira etapa.
A proposta da reforma, pelo contrário, era que esta primeira etapa não fosse a
fase central do processo, mas uma etapa apenas “preparatória” do julgamento. A
“oralidade” também foi concebida como uma ferramenta fundamental para alcançar
86
Não deixa de ser interessante esta nova denominação, que enfatiza o caráter de agentes, em um novo
sistema que busca priorizar a ação dos promotores, por sobre os outros funcionários.
87
Para mais detalhes, ver Art. 266 do Livro II “Investigação Penal Preparatória”, Titulo I “Disposições
gerais”, CPP/PBA.
88
No Brasil, com esse espírito foram criados os Juizados Especiais Criminais –JECRIM. Fundados nos
princípios da “oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando,
sempre que possível, a conciliação ou a transação” (art. 2, Lei 9099/95), os JECRIM foram criados para
desafogar os tribunais comuns. Entre outros, ver Kant de Lima, Amorim e Burgos (2003). Sobre os
tempos do processo e a “morosidade” no sistema penal brasileiro, ver também Ribeiro, Ludmila (2009).
94
esses objetivos. Descontraindo a necessidade de assentar por escrito cada passo, a
reforma tentou agilizar e desinformalizar” o processo. Então, o objetivo era que o
promotor, neste primeiro período que teria a duração máxima de quatro meses, reunisse
“provas” consideradas suficientes para pedir ao juiz a realização do julgamento,
reservando o resto das “provas” para o momento do julgamento. Por exemplo, se foram
reunidas 22 testemunhas, em lugar de chamar as 22 pessoas para depor na etapa
“preliminar”, chamar duas ou três nesse momento e o resto na audiência de
julgamento
89
. Em substituição dos (gordos) corpos dos expedientes, o promotor teria um
legajo” – uma espécie de caderneta de anotações- para cada “investigação penal
preparatória”, ou seja, para cada caso investigado. Nesse legajo”, o promotor reuniria
“as anotações relacionadas à produção de diligências, evitando tanto quanto possível a
confecção de atas”
90
. Pouco ouvi falar da categoria legajo durante o trabalho de
campo. Curiosamente, essa categoria parece ter sido substituída, na prática, pela de IPP,
quer dizer, pela “investigação penal preparatória”. Os processos eram assim
identificados como, por exemplo, “IPP número 23.485”. Ou seja, o que seria o processo
de investigação se transformou também no termo para designar o documento onde
registrar esse processo
91
.
Faltou aprender a informalizar, a gente vem muito estruturada, muita
insegurança também, ‘se fundamento tudo [por escrito], me sinto mais seguro’.
O promotor documenta tudo o que acontece. Na verdade, ele tem como
ferramenta o legajo fiscal, que é como a caderneta do comerciante, onde faz as
anotações. Se você encontrar um legajo fiscal, além do carro e a passagem ao
Rio lhe dou uma casa
92
. Não se usa. São anotações tipo rascunho. Está na lei do
Ministério Público. Mas isso custa muito... eu acho que é um exercício. Usa-se
89
“Isso é o que previa o Código: um sistema de coleta provatória mínimo, em um sistema
verdadeiramente acusatório, ou seja, que a prova seja controlada por todas as partes diante dos juízes, mas
o que é que aconteceu na realidade? Passou-se a tomar depoimento das 22 testemunhas em anos e anos de
etapa preparatória e o julgamento oral passou a ser a teatralização de um roteiro pré-escrito, como antes,
mas oral”, reclamava Lopez Matze.
90
Art. 56, Lei do Ministério Público da província de Buenos Aires.
91
Esta transposição de uma categoria de um ato do processo para um documento escrito me fez lembrar
do caso da chamada “VPI”, no caso da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A sigla V.P.I. provém do §3° do
artigo do Código de Processo Penal Brasileiro. Refere a que quando uma infração penal é comunicada
à polícia, esta deve, uma vez, verificada a procedência das informações, instaurar um inquérito policial.
A partir do ato de verificar as informações, a polícia passou a criar uma peça administrativa burocrática
própria, chamada VPI. A função das VPIs era permitir a realização de diligências investigativas antes da
instauração do inquérito policial, ou seja, também de forma mais “célere e econômica” (Kant de Lima,
1995; Kant de Lima, Eilbaum e Pires, 2007). Diferentemente do legajo”, a VPI não estava autorizada
legalmente, mas era uma criação da polícia para administrar tempo e trabalho.
92
Anteriormente, durante a entrevista, o juiz tinha me prometido que se encontrasse um promotor que
fosse no local dos fatos me premiava com um carro e uma passagem ao Rio. O pior é que, como veremos,
encontrei… mas não fui cobrar dele… Conformei-me com saber que a não ida ao local dos fatos por parte
dos promotores era uma visão generalizada em muitos funcionários.
95
todo papel, documentação. Cuidado, uma dose de papel é necessária porque
certas medidas têm que ser fundamentadas, a prisão preventiva, por exemplo.
Mas um plus de documentação, de sacramentação das coisas que pode ser
evitado. (Entrevista com juiz de garantias, 18/09/07).
O exercício então seria duplo: agilizar a investigação (deixar a prova para o
julgamento) e reduzir o registro escrito e documentado dos passos realizados. Assim, se
reduziria tempo e papel. Contudo, pouco também vi legajos de corpo magro, mas
grandes volumes de processos; alguns com um certo movimento da estante para a mesa
dos funcionários, outros empoeirando suas folhas até que alguma novidade (petição,
prova, prazo) as ajudasse a se sacudir. Como se um corpo robusto fosse garantia de que
as decisões tomadas não seriam contestadas. “Fundamentar”, “registrar”, “documentar”,
eram as vias para “se sentir seguro”, mesmo ao custo de tempo e recursos. Era como se,
e voltarei sobre este ponto, essas ações dessem existência aos atos realizados. Por
escrito e fundamentados, estes poderiam ser posteriormente avaliados, com uma base
objetiva –“sacramentada”- de informação
93
. A possível insegurança sobre tal avaliação
tinha um nome específico que, mais que a defesa –suposto contrário do promotor- era o
juiz de garantias.
Os promotores e o juiz de garantias
Para dar conta dos objetivos de celeridade, informalidade e flexibilidade da
etapa preliminar, novas estruturas foram criadas: no âmbito da Magistratura, os antigos
juzgadosforam transformados em juzgados de garantias” e, portanto, os “juízes de
plenário” em “juízes de garantias”
94
. No âmbito do Ministério Público, unidades
denominadas unidad funcional de investigación”, conforme a lei do Ministério
Público, “unidad funcional de instrucción”, conforme o novo Código de Processo Penal
provincial e “unidad fiscal de instrucción”, conforme as chamavam todos meus
interlocutores e entrevistados. As diferenças na denominação se compensavam na fala,
pois estas unidades eram diretamente conhecidas como “UFI/s”.
93
Aproveito aqui as idéias de Jack Goody (1988) sobre escrita e oralidade, mas em um sentido diferente.
Para Goody, a escrita age como um instrumento analítico que permite um exame crítico diferente à
oralidade. Na oralidade, diz Goody, o processo crítico é inibido e dificultado, através da retórica, da
loquacidade, dos truques (1988:59-61). Nesta representação nativa sobre escrita e oralidade, a primeira
parece inibir exames críticos posteriores, pois seu conteúdo encontra-se sacramentado para usar o termo
nativo- pelas formas jurídicas devidas. A oralidade, ao contrário, é objeto permanente da lógica da
suspeição e do contraditório.
94
Os “juízes de garantias” foram também denominados “juízes de transição”, pois continuaram
tramitando os processos em andamento anteriores à reforma.
96
A “investigação penal preparatória” estaria a cargo dos agentes fiscales das
UFIs, sob controle dos juízes de garantias”. Ou seja, os promotores teriam ampla
iniciativa e domínio –“agentes fiscales”, na condução da investigação, apenas
requerendo convalidação do juiz de garantias para as situações especificadas pela lei
95
.
“Eu sou juiz de atos processuais, não do caso, nem das partes”, me explicava um
juiz de garantias que afirmava não se importar com os “fatos” do processo, mas apenas
com sua correção “formal”. Isso, porque, o juiz de garantias foi pensado como uma
figura garantidora do processo –do chamado “devido processo”, isto é, de que todos os
atos realizados durante o andamento de um processo tenham validade formal (cumpram
as formas e os prazos estabelecidos na lei). Assim, a “ação” corresponde ao agente
fiscal”; ao defensor, em tal caso, pedir possíveis impugnações das ações do promotor e
ao “juiz de garantias” ser o árbitro das decisões do promotor e das solicitações da
defesa
96
. Então, diante de iniciativas pontuais, como decisões relativas à detenção e à
acusação do “imputado”, à realização de um mandado de busca e apreensão
(“allanamiento”), o promotor deve contar com a aprovação do “juiz de garantias”.
Como adiantei na nota anterior, a dinâmica adotada por alguns dos “juízes de garantias”
era criticada por defensores, pois achavam que lhes faltava iniciativa e que, por essa
inércia, acabavam confirmando as decisões dos promotores e, portanto, a imparcialidade
estava comprometida.
“Os pedidos de prisão preventiva ou de elevação a juízo não vão [da promotoria]
ao juiz de garantias somente no papel, eles também vão em disquete e o juiz corta e
cola. O juiz repete o que diz o promotor. Você que esteve em uma UFI… não vão
também em disquete?”, me provocava um advogado convencido de que o trabalho do
juiz era a convalidação automática do trabalho do promotor. Sem fugir da provocação, a
convivência na UFI onde fiz o trabalho de campo me mostrou que com disquete ou
95
Art. 59 do CPP/PBA. Em 2003, este artigo foi modificado ampliando a liberdade de atuação dos
promotores, já que foi autorizado que, nos casos em que o promotor acredite que existe perigo na demora
de autorização do juiz de garantias, poderá ordenar diretamente a realização de certos atos para os quais
antes precisava autorização escrita: a revista de locais e de pessoas, interceptação telefônica, entre outros.
Apenas deve, de forma imediata, colocar tal decisão em conhecimento do juiz (Lei 13.078, 27/07/03).
96
Existe um debate sobre se o juiz de garantias é juiz de ofício ou juiz do que as partes pedem para ele
resolver. Nesse debate, começam a se visualizar as críticas ao papel adquirido por alguns juízes de
garantias, especialmente por parte de advogados defensores. De fato, era um dos advogados que
entrevistei que me explicava a diferença que estabeleciam entre agir pelo processo ou agir pelas partes:
“Se atos nulos [inválidos conforme a forma devida do processo], eu, juiz de garantias, resolvo se a
defesa pede para eu resolver, ou resolvo se eu vejo a nulidade? A maioria hoje resolve se a defesa solicita.
‘Se ninguém me pediu não tenho obrigação de resolver isso’. Então, juiz de que? Das partes, as partes
solicitam e eu confirmo tudo”.
97
não- a relação entre os promotores e os “juízes de garantias” dependia de quem fossem
esses promotores e esses “juízes de garantias”. Quero dizer, nas solicitações realizadas
por parte dos promotores –muitas delas negadas pelos juízes-, ou bem na expectativa de
resposta a essas solicitações, estava sempre presente quem era o “juiz de garantias”
correspondente
97
. Naquele departamento havia dez “juízes de garantias”
98
. Na UFI,
identificavam cada um deles com certas tendências na forma e direção das decisões.
Preocupavam-se por saber quem era o juiz de plantão e, em função da reputação
construída sobre ele, não só davam uma certa forma e tom às solicitações, como,
sobretudo, criavam expectativas sobre o resultado de sua solicitação. Os comentários,
diante de casos pontuais, referiam a essas expectativas, construídas pelo acúmulo
coletivo –neste caso, dos promotores do departamento- de experiências e decisões em
casos anteriores.
O promotor me conta que a juíza [de garantias] não autorizou o allanamiento.
A juíza é Susana Roque, disse. “Eu sabia que não ia dar, a justificativa estava
difícil e ela é garantista demais. Agora eu tenho que pedir a prisão preventiva e
sei que vou ter que dar um papo bom”. Diante de outro caso, o promotor também
disse que essa é uma juíza que, por exemplo, pede que se você tem uma
informação através da polícia, os policiais que assinam têm que ser dois: “o que
é uma idiotice porque dois policiais, você consegue na hora, é como que assine
eu e meu secretário”. (Caderno de campo)
A promotora comenta que, em geral, os juízes são muito herméticos para
escrever, o juiz Sarquis que escreve muito bem... mas ele é muito agressivo,
agrega: “A e de um menino morto veio me ver porque o juiz tinha dado a
liberdade ao imputado e este estava perturbando na porta da casa dela. Eu
expliquei que foi o juiz que deu a liberdade e que ela podia pedir uma audiência.
E a ajudei a escrever uma carta para pedir a audiência, uma senhora muito
humilde. E o juiz Sarquis respondeu para ela por escrito ‘as resoluções judiciais
não são para serem explicadas; se acatam ou se recorrem’. É como sempre
falamos com Sebastián [o promotor titular] tem que escrever simples, ser
republicano, mas o poder judiciário é o poder menos republicano de todos”.
(Caderno de campo)
A promotora me conta que o juiz aceitou o pedido de prisão preventiva para
Lorenzo, um senhor de mais de 50 anos que estava imputado de ter entrado na
casa de sua namorada com uma escopeta e de ter atirado contra o irmão da
mulher. “Eu sabia que ia dar, além de que havia provas suficientes, Lorenzo dá o
perfil do Click [o juiz]”. Conta de um caso anterior de extorsão (um policial que
exigiu dinheiro a um menino preso para deixá-lo em liberdade). Ela tinha pedido
a prisão preventiva do policial, mas o juiz Click a negou: “e eu sabia, ele não
97
Como veremos mais adiante, promotorias, defensorias e juizados de garantias respondem a esquemas
de plantões específicos, chamados “turnos”.
98
Oito deles no prédio central de Tribunales e dois descentralizados em um município do departamento.
98
deu porque o imputado era policial e, ainda mais, loiro!”. Click havia sido
policial e, assim como outros, entrou com o novo sistema. “Click me deu a
liberdade de um policial que disparou oito tiros contra um ladrão, você já sabe, é
assim, só resta apelar”. (Caderno de campo)
As tendências atribuídas a determinados funcionários
99
podiam referir às formas
de trabalho ou bem a seus perfis pessoais. Se é que é possível traçar essa diferença, pois,
de fato, esses comentários enfatizavam a inter-relação entre como era percebida a
pessoalidade de alguém e as tomadas de decisão sobre os procedimentos e sobre a
interpretação dos fatos. Assim, a reputação dos outros, entendida não como “a qualidade
que um homem possui, mas como as opiniões que outras pessoas têm sobre ele”
(Bayley, 1971:4), permitia que os funcionários, neste caso os promotores, orientassem,
diante de situações e interlocutores precisos, a condução de seu trabalho (a forma e
conteúdo de suas demandas, por exemplo). De alguma forma, esse conhecimento
pessoal entre os funcionários e o reconhecimento de trajetórias profissionais,
ideológicas e funcionais, fazia da interação regulada pelo processo penal, um jogo de
relações muito mais dinâmico, diverso e específico do que aquele estabelecido no plano
formal.
O conhecimento deste último era fundamental para se conduzir com um mínimo
de sucesso: respeitar os prazos para apresentar solicitações ou apelar medidas, seguir as
formas de tratamento e de escrita formal, não esquecer que todo documento legal deve
ser devidamente assinado, carimbado e datado, pedir a cada um o que corresponde a sua
função, entre outras regras formais que vinculam legalmente os atores de um
processo
100
. Contudo, orientar-se com certa previsão de resultados, conhecer a trama de
reputações que percorria os corredores e salas dos prédios dos Tribunais era, sem
dúvida, imprescindível.
As possibilidades de construir a reputação de um funcionário dependiam do grau
de interação entre eles. Porque uma tal reputação se construía nas interações com os
outros, pois –insistindo- a mesma não estava na essência das pessoas. Essa interação, no
99
Neste caso, estou referindo especificamente aos juízes de garantias. Ao longo do texto, também
aparecerá como a reputação, no sentido de atribuição de certas qualidades e construção de expectativas
sobre possíveis ões e decisões, incide nas avaliações dos atores nas relações entre juízes de Tribunais
Orais, promotores, defensores e advogados.
100
Era frequente funcionários reclamarem de advogados particulares por fazer demandas fora do prazo ou
apresentá-las na UFI quando deveriam ir ao juzgado de garantias, ou vice-versa. Nestes comentários,
marcava-se também o fato de, diferentemente dos defensores públicos, os profissionais do direito não
fazerem parte do sistema formal.
99
âmbito de Tribunales, não era apenas direta ou cara a cara, mas também se dava a partir
das opiniões dos outros, dos comentários, e, nesta dinâmica particular das relações na
burocracia judicial, através do papel.
Assim, quando ouvia os comentários por parte de promotores, advogados,
defensores ou juízes, sobre outros funcionários, pensava que a reputação atribuída a um
outro falava também da trama de relações de quem a expressava. Por isso, os
comentários de um funcionário sobre outro podiam ser dos mais variados, infinitos e até
ocultar histórias secretas. Mas, não eram os comentários individuais e íntimos os que
construíam uma reputação. Eram apenas aqueles que, justamente por serem públicos e
reconhecidos coletivamente, se assentavam no mapa social de Tribunales e permitiam
fazer esse movimento de associação entre traços pessoais e estilos de trabalho. Fazer
parte da trama de construção de reputações como objeto e como sujeito- era sinal de
pertença a esse coletivo de Tribunales. Era, como eles diziam, “ser do sistema”.
Pelo contrário, não interagir, não conversar, não circular, era visto como uma
qualidade negativa, pois, em última instância, negava as possibilidades de trocar
informações que permitissem se orientar no trabalho. Assim, não entrar nessa trama de
interações, através da qual se construíam as reputações, podia ser sancionado com uma
falta de adequação às regras do campo. Era o caso de funcionários não muito dispostos a
conversar com colegas, que não costumavam freqüentar os espaços de sociabilidade,
nem vagar pelos corredores
101
e salas que não as necessárias para o desenvolvimento do
trabalho. Isso porque, ao restringir sua circulação e, portanto, suas interações, também
não trocavam informações sobre outros colegas e/ou sobre o papel desses colegas em
certos casos
102
. Esse hermetismo ao tempo que tornava essas figuras menos
101
O corredor, no prédio de Tribunales de Los Pantanos, pelo fato de sua estrutura reunir um conjunto de
unidades (promotorias, defensorias ou tribunais), de partilhar uma copa comum e a mesma Mesa de
Entradas”, tem uma identidade particular. Por exemplo, jogos de futebol ou contribuições de dinheiro
que se organizam “por corredor”. Pela forma de circulação e distribuição, também é o âmbito que
permite, quando um funcionário chega ao trabalho ou se dirige a outra unidade, passar obrigatoriamente
pela porta das salas de outras repartições, ver e ser visto, cumprimentar (ou não), conversar (ou não).
102
Bayley conta da complexidade das situações de uma mulher (dona de casa) se encontrar com outra
no povo de Villoire nos Alpes franceses. Aponta que, encontrando alguém, as boas maneiras requerem
parar e intercambiar, ao menos, algumas palavras. Porém, esta situação apresenta –diz Bayley- duas
desvantagens: a primeira é que, se duas mulheres fossem vistas conversando, elas despertariam suspeitas
de fofoca, malícia (mauvise langue) com o qual a reputação de cada uma delas sofreria prejuízos; a
segunda, é que, como a maioria das pessoas tem algum vínculo pessoal, os encontros consomem muito
tempo, e tentar encurtá-los, fazê-los mais breves, ou evitá-los, é rejeitado como sinal de que você
considera seu interlocutor como inferior (1971:1-2). No contexto aqui tratado, os encontros e a
consequente obrigação de interação podem ter um sinal inverso e apresentar outros desafios. Da mesma
forma que em Villoire encontrar alguém e não conversar é visto negativamente, mas trocar informações e
100
“interessantes” –justamente por não oferecerem informações, as colocava em um lugar
de outsiders não de um grupo específico, mas da representação de conjunto que
implicava, como disse, “ser do sistema”.
A reforma, como mencionei, criou novas estruturas e com isso novas vagas para
os cargos recém criados. A incorporação de novos funcionários foi mais um eixo de
classificação dos membros deste “sistema”. Ser “antigo” ou “novo” passou a distinguir
também estilos de trabalho.
Antigos e novos
No Poder Judiciário, a reforma do sistema derivou na incorporação e contratação
de novos agentes
103
. Assim, entre os integrantes do Poder Judiciário, além da mudança
de regras e rotinas, a reforma demarcou uma divisão classificatória entre o “velho
código ou sistema” e “o novo”. Durante meu trabalho de campo, frases como “com o
velho código as coisas eram diferentes...”, “Fulano é um típico representante do velho
sistema” ou “Sicrano é do novo sistema” marcavam identidades vinculadas, não a
afinidades políticas, mas também a estilos de trabalho e ideologias sobre o sistema.
Abriram-se concursos para os novos cargos. A eles se apresentaram funcionários
que atuavam no sistema anterior em outros cargos, mas, sobretudo, profissionais que
não faziam parte do Judiciário da província. A visão dos primeiros era, então, como se
um novo contingente arribasse nas suas terras. Um processo que pode ser associado
àquele descrito por Norbert Elias e John Scotson no clássico estudo sobre
“estabelecidos” e “outsiders” já citado.
“Aquilo que tem se perdido no poder judiciário é o ofício, como existia o ofício
de eletricista, de bombeiro, bom, existia também do judiciário. Perdeu-se a
cozinha, agora são todos grandes gourmets, perdeu-se a vovó dizendo a chave de
como colocar a gotinha de água e açúcar para fazer o caramelo. Antes você
passava por muitos cargos, como eu passei de meritório até juiz, por todos os
cargos... hoje você passa de auxiliar sexto a secretário, porque foram criados
muitos cargos”. (Entrevista com um juiz de garantias, com 20 anos no Judiciário
da província, 18/09/2007)
fofocar tem um sinal positivo de pertencimento a um grupo. Consumir tempo nessa atividade também não
aparece como um problema.
103
A lei 12.293 autorizou o aumento de até 1.199 de vagas no Poder Judiciário. A maioria foi destinada
ao Ministério Público Fiscal, devido ao protagonismo que este assumia na reforma. Foram criados 65
Tribunales Orales Criminales e 71 juzgados correccionales.
101
Entre os antigos” a concepção predominante era que os “novos” eram
funcionários “sem experiência” ou, o que é o mesmo com outras categorias, “sem
antiguidade” no sistema. Do outro ponto de vista, os “antigos” eram visualizados como
portadores dos “vícios do velho processo”. Eu não acompanhei os primeiros momentos
da reforma, quando foi coberta a maioria dos cargos. Mas, quase dez anos depois da
reforma, ainda ecoavam comentários identificando funcionários conforme esta
distinção
104
. Minha percepção era que a mesma recaía sobre o fato dos funcionários
novos não terem “carreira judiciária”, enquanto os antigos havia vários anos que se
desempenhavam no sistema de província.
A “carreira judiciária” não referia a uma capacitação ou educação formal. Era
associada, fundamentalmente, com a experiência prática de ser/estar/fazer parte do
sistema. O ingresso a essa “carreira” também não era formal. Iniciava-se com a inclusão
de candidatos na escala mais baixa do sistema. Esse nível não estava regulamentado
nem reconhecido legalmente. Tratava-se dos “meritórios”, geralmente jovens que
ingressavam no Judiciário como estagiários, sem remuneração formal
105
. O ingresso
costumava se dar através de relações pessoais, com funcionários de maior hierarquia
que indicavam jovens parentes, filhos de amigos, ou ainda estudantes de direito
destacados durante as aulas universitárias. A persistência na posição não formalizada de
“meritório” era recompensada quando uma vaga oficial ficava disponível em alguma
unidade do sistema e preferencialmente naquela onde se desempenhavam como
“meritórios”. “Saiu a designação!”, era a frase com a qual costumava-se comemorar a
passagem para a participação oficial “na Justiça”.
Foi o que aconteceu com especial alegria quando José foi designado. José se
desempenhava como meritório atendendo a “Mesa de Entradas” da UFI K. Era
reconhecido pelos promotores como um jovem dedicado, atencioso e safo. “Zé sabe se
virar bem”, dizia o promotor, ao lembrar da sua proveniência de uma família humilde e
104
O ponto não é se as características atribuídas a uns e outros eram verificáveis, mas como a distinção
em si mesma estava presente na construção da reputação e expectativas de ação dos agentes. A meu ver,
Elias e Scotson reforçam também este ponto: “a dinâmica da relação entre os grupos interligados na
condição de estabelecidos e outsiders é determinada por sua forma de vinculação e não por qualquer
característica que eles tenham” (2000:32).
105
Esta figura já foi destacada em outros trabalhos. Na Justiça Federal, por Sarrabayrouse, 2004 e
Eilbaum, 2008. Na Justiça da província de Buenos Aires, CELS, 2004.
102
reconhecê-lo como um “menino de bairro, com rua
106
”. A alegria que tal notícia
levantou na UFI também estava associada ao fato de, havia uns poucos meses, todas as
unidades terem recebido uma resolução da Procuração Geral anunciando que não seria
mais permitida a participação de “meritórios” nas repartições judiciais. Embora
tivesse continuado trabalhando, sua existência na UFI não podia ser pública
107
. Com a
designação no cargo oficial, tudo voltava à normalidade.
Como , não eram todos os “meritórios” (nem os funcionários) que estudavam
direito
108
. Mas, dentre aqueles meritórios que eram estudantes de direito e, com o passar
dos anos acabavam se formando, estava a expectativa de ingressarem oficialmente no
sistema judicial e continuarem uma carreira até ocupar cargos de maior hierarquia.
Como relatarei no próximo capítulo, era o caso do promotor titular e da promotora
adjunta da UFI K, Sebastián e Valeria. Ambos tinham ingressado no Poder Judiciário
sendo estudantes de direito, como “meritórios”, e, posteriormente, foram avançado na
estrutura judicial, até, após a reforma se apresentarem no concurso público para o cargo
de promotores. Sebastián no primeiro concurso aberto em 1998 e Valeria em 1999.
Como “meritórios” e funcionários de menor hierarquia tinham trabalhando ainda nos
juzgados previstos no Código anterior. Eram reconhecidos como do “velho sistema”. E
isso não pelos anos trabalhados conforme o processo antigo, mas por terem passado
por uma “carreira judicial”. E esse ponto era reivindicado como um valor em si mesmo,
pois, além da experiência, também evidenciava as possibilidades de um sistema que
permitia a circulação de seus funcionários entre diferentes níveis funcionais e, inclusive,
entre diversas posições estruturais (de defensorias a promotorias, de ambas a juzgados,
etc.). De alguma forma, tratava-se de uma estrutura que, mais que dividida em ordens
hierárquicas – intransponíveis entre si-, estava composta por um ranking funcional
através do qual podia se avançar e progredir a fim de ganhar experiência “judicial”
109
.
106
A expressão em espanhol é con calle”. Refere a saber se virar, ter experiência de vida, não formal,
mas dada pela vivência de situações práticas. Voltarei a esta expressão, pois era também usada, neste
âmbito, para referir a outras situações.
107
Esse tipo de decisões também encontra oscilações. Na pesquisa desenvolvida pela equipe do CELS
sobre o sistema de justiça penal na província de Buenos Aires, destaca-se que a figura do “meritório”
encontra-se tão naturalizada na estrutura judicial que “a própria Corte Suprema, através do acordo
3116, de 17 de dezembro de 2003, reconheceu a existência destes funcionários, ao estabelecer que quem
tenha permanecido nessa condição por mais de dois anos estão eximidos de realizar o curso de ingresso
ao sistema”. E ainda mais: relatam que na época de realização do trabalho de campo observaram um
grupo de meritórios se manifestando, em greve, nos corredores do prédio de Tribunales, em La Plata.
108
Ver mais adiante Capítulo 3.
109
Lembro que Valeria me disse que não tinha participado do primeiro concurso público para o cargo de
promotor porque considerava que primeiro tinha que passar pela experiência de ser “secretária”, cargo
103
A abertura de novas vagas com a reforma resultou em uma forma de ingresso ao
Judiciário que não necessariamente implicasse ter percorrido essa “carreira judicial”. Os
candidatos aos concursos para os cargos de promotores, defensores, juízes de Tribunal
Oral, e instrutores
110
, podiam provir de outras “carreiras”, ou bem de “carreiras
judiciais” de outras jurisdições. Em função disso, os comentários sobre “novos” e
“antigos” ainda perduravam durante meu trabalho de campo quando se fazia referência
a estilos de trabalho particulares.
“Vir da Justiça Nacional” ou “ser federal” eram pertencimentos que atribuíam a
um certo funcionário um estilo de trabalho jurídico mais vinculado aos meandros da
dogmática jurídica do que à experiência “de terreno”, mais acostumado a lidar com uma
polícia “mais certinha” –a Polícia Federal- do que com “a monstruosidade da
Boanerense”, com uma realidade menos “complexa e desigual”, tal como era
identificada a particularidade do “conurbano” em relação à Capital.
“É que as UFIs não são homogêneas; em Los Pantanos, por exemplo, cada uma
é meio que um mundo, porque cada promotor tem um critério e isso tem a ver
com o lugar de onde ele vem. Se vem do Judiciário historicamente é uma coisa,
se vem das forças de segurança é outra. Você sabe que Sebastián Vázquez [em
referência ao promotor da UFI K] vem de ser secretário de uma juíza que
respeita o devido processo de uma forma mais clara, ou seja, ele vem de uma
formação do Judiciário. Outros vêm da polícia. O assunto é que isso é muito
comum em província, porque houve como uma repartição de poder, na qual a
polícia intermediou e conseguiu posicionar. A reforma pretendia tirar da polícia
a instrução dos processos, porque era a polícia quem instruía os processos com o
qual tinha uma estreita relação com o Judiciário. Acho que nessa armação de
relações a polícia se fez de um poder que lhe permitiu a alguns discutir cargos”.
(Entrevista com o Dr. Fellini, advogado criminal, 07/05/09).
imediatamente inferior. Esta visão da estrutura judicial parece diferir daquela identificável no Rio de
Janeiro, na qual a hierarquia se assemelha mais a uma estrutura de status piramidal, com uma base e um
topo, através da qual a circulação entre eles é dificilmente ativada (Kant de Lima, 1995). Como assinala
Kant de Lima, nessa estrutura, o “saber” pertence ao topo e talvez, por isso, podemos pensar que mais do
que ser reivindicado o ‘saber judicial’ produto da experiência, é ressaltado o ‘saber jurídico’, produto do
conhecimento formal.
110
Os “instrutores” foi um novo cargo implementado com a reforma. Na verdade tinha sido criado em
1972, mas não funcionava. O objetivo inicial era formar um “Corpo de Instrutores” que atuasse como
auxiliar de investigação dos promotores e como enlace entre estes e a polícia, com o objetivo de reduzir a
autonomia policial na investigação. Foram organizados cursos de formação, de duração de um ano (três
vezes na semana) que incluíam direito penal e processual penal, criminalística, ética, bioética, lógica e
outras técnicas periciais. A partir das minhas observações, posso dizer que o papel do instrutor não diferia
muito do papel do secretário ou de outro funcionário judicial das promotorias, com titulação em direito.
Quer dizer, misturava as tarefas investigativas com forte predomínio das burocrático-administrativas.
Como também me disse um juiz: “Eu capacitei instrutores judiciais. E que faz hoje o instrutor judicial?
Trabalho de escritório, papel, carimbo. Não vão ao local dos fatos, não vão”.
104
A visão deste advogado, com ampla experiência de trabalho na justiça provincial
e, em especial, no departamento de Los Pantanos, resume as duas identidades mais
ressaltadas para marcar pertencimentos distintos entre funcionários. Introduz, assim, um
outro pertencimento “vir da polícia”- do qual, em várias ocasiões, ouvi falar, em boca
de funcionários ou de advogados, para marcar diferenças nos estilos de trabalho, ou para
explicar certas decisões de algum colega. O ingresso de ex-policiais ou também de
advogados vinculados à instituição policial era atribuído aos primeiros concursos
realizados a partir da reforma.
A “identidade policial” nem sempre era atribuída para mostrar a afinidade ou o
corporativismo das decisões destes novos funcionários quando policiais estavam
envolvidos nos processos –“até porque promotores que vêm do Poder Judiciário que
são mais policiais do que os policiais”, me disse o advogado Fellini. Implicava, porém,
a vinculação com uma política rígida e dura com os “imputados”, bem como bons
contatos com os policiais em atividade. A questão, como todo processo de atribuição de
identidade, estava na distinção com uma outra, no caso aqueles provenientes da
“carreira judicial”. E o ponto era que a reforma tinha, de alguma forma, aberto essa
carreira, em um processo de intensas disputas políticas por novos recursos e espaços de
poder.
Política e Justiça no conurbano
O procurador geral – na época de minha pesquisa, uma mulher- e o sub-
procurador geral eram designados pelo poder executivo –governador da província- com
acordo da maioria dos membros do senado provincial (art.7 Lei 12.061).
Diferentemente, o restante dos integrantes do Ministério Público era selecionado através
de um concurso público de “oposição e antecedentes”, sob coordenação do Conselho da
Magistratura da província
111
. Este conselho propunha, com acordo do Senado, uma
terna de três candidatos, cuja seleção final ficava a cargo do poder executivo.
Os atores costumavam identificar aos primeiros como ocupando um “cargo
político”, em contraste com o chamado “cargo concursado” dos segundos. Este último
111
Este organismo foi previsto na Constituição provincial de 1994. Está integrado por representantes dos
poderes executivo e legislativo provinciais, dos juízes das distintas instâncias e da instituição que regula a
matricula dos advogados na província. Sua função é proceder à seleção e remoção dos funcionários
judiciais, através de “procedimentos que garantam adequada publicidade e critérios objetivos pré-
estabelecidos, serão privilegiadas a solvência moral, a idoneidade e o respeito pelas instituições
democráticas e os direitos humanos” (art. 175, Constituição da PBA).
105
era visto como mais objetivo, especializado e profissional. Enquanto o primeiro
supunha-se produto de negociações políticas e acordos pessoais
112
. Isso não queria dizer
que os segundos fossem mais valorizados internamente que os primeiros
113
. Aliás, na
prática, as conversas sobre a ocupação e designação de uns e outros cargos estiveram
sempre atravessadas pelas relações personalizadas dos candidatos, ou, melhor dizendo,
pela rede de relações na qual certo candidato podia estar inserido. Esta dimensão mostra
uma visão política e politizada da “justiça da província”. Novamente na voz dos
advogados que atuam diante desse fórum, e que também têm certo engajamento
político, não foram poucas as vezes que ouvi afirmações sobre a “falta de
independência”, “a ingerência do poder político”, “as designações a dedo”.
A outra questão é que apesar de haver um conselho da magistratura, ele é meio
de mentirinha. A maioria dos promotores foi designada a dedo, não muito
diferente do âmbito [da Justiça] federal, mas eles têm um pouco mais de
controle. Essa questão também tem a ver com outro componente não
necessariamente jurídico, mas político, que é que a província de Buenos Aires
tem sido historicamente uma corporação de senhores feudais, encabeçada
fundamentalmente pelos prefeitos do conurbano, uma espécie de senhores
feudais da guerra, que decidem quem é o chefe da polícia e o promotor da área.
É muito difícil que um promotor ou um chefe de polícia de tal município não
tenha o ok do prefeito desse município. Então os promotores não são caras que
têm uma carreira do direito, que foi submetida à discussão por parte de distintos
organismos de direitos humanos como pode ser um juiz federal. Um juiz federal
precisa, ao menos, algum aval de um organismo de direitos humanos, um
promotor de província não. Eu não sei agora, mas muitos promotores, lembro
das primeiras épocas da reforma, tinham sido inclusive pessoal policial,
advogados da polícia que depois passaram para promotores. Eu vou ver esse cara
para fazer uma denúncia contra a polícia, casos de violência policial, que
terminam com condenações muito baixas ou com promotores pedindo
absolvições. (Entrevista Dr. Juarez, advogado criminal, 30/05/2009)
Na mesma linha, outro advogado se referia a uma política mais recente na
organização do Ministério Público, a inauguração de promotorias descentralizadas
dentro do território de certos departamentos judiciais.
Com as chamadas promotorias descentralizadas, que são um ato de corrupção.
Porque vai para qualquer uma e você vai ver que tem uma placa que diz “esta
112
Essa percepção se corresponde, de alguma maneira, com a separação dos funcionários públicos em
duas categorias, sugerida por Max Weber. Ele distingue entre os funcionários “administrativos”, de um
lado, e os funcionários “políticos”, de outro. Os segundos, diz Weber, podem ser reconhecidos
regularmente pelo fato de poderem ser transferidos a qualquer momento. Tal situação contrasta com a
independência dos primeiros, cujos cargos costumam ser vitalícios (1979:111-112).
113
Interessante que inclusive Weber, trabalhando com o tipo ideal da burocracia, também chama a
atenção para o fato da medida da “independência”, legalmente assegurada pela ocupação de um cargo,
nem sempre ser fonte de melhor status para o funcionário cuja posição tem essa garantia (1979:236).
106
promotoria bla bla bla sendo procurador geral Fulano, Sicrano o promotor geral
e tal o governador...”. Bom, porque essas promotorias surgiram com acordo dos
municípios. Os prédios, os computadores, tudo, é pago pelo município. Então,
vai você denunciar um integrante do poder executivo municipal. Com isso, o
poder político dos municípios conseguiu um controle em matéria de processos
penais porque o que acontece no âmbito de sua jurisdição vai cair em
promotorias onde ele paga tudo. (Entrevista Dr. Lopez Matze, advogado
criminal, 26/05/2009).
Na Argentina, de modo crescente, é possível identificar um senso comum
114
tendente a dissolver as barreiras formais entre os três poderes do estado. Essa dissolução
opera, conforme esse saber, através da associação dos respectivos funcionários em redes
de influências, favores, obrigações e, inclusive, corrupção. Estas ligações consolidadas
no senso comum também têm sido objeto de pesquisas jornalísticas, denunciando as
vinculações específicas de funcionários e políticos com funcionários judiciais, policiais,
legisladores, entre outros
115
. A província de Buenos Aires claramente não tem sido
excluída dessas representações. Contudo, não pretendo aqui, nem foi esse meu objetivo
durante o trabalho de campo, comprovar as ligações entre políticos e integrantes do
Judiciário provincial.
Pareceu-me interessante, diferentemente, pensar sobre a relação que tende a se
estabelecer entre ‘política’ e ‘justiça’. Assim, se um dos objetivos desta tese é mostrar
como o campo da justiça na província de Buenos Aires é também um campo de valores
morais vinculado estreitamente aos valores sociais onde atua, neste breve apartado
interessa-me também restituir ao campo judiciário sua inserção no campo político.
Na minha experiência de pesquisa, ambos os domínios apareceram
recorrentemente ligados. Sempre de forma sutil e não explícita, a não ser que a ligação
tomasse a forma de uma crítica ou denúncia, como no caso das falas dos advogados
citados acima. Nesses casos, a vinculação entre justiça e política aparecia como uma
114
Tomo aqui a noção de “senso comum” de Geertz, pois não me refiro a uma “mera apreensão da
realidade feita casualmente”, mas a “uma sabedoria coloquial com pés no chão, que julga ou avalia esta
realidade” (2002:115). Nesse sentido, não estou afirmando a condição de verdade dos postulados do
senso comum em relação a uma certa visão sobre a “independência” dos poderes do Estado (que, em
outras partes desta tese, poderia se aplicar também a representações da “corrupção na polícia”, “a
ineficiência e lentidão da Justiça”), mas apoiando a afirmação de que o conhecimento do senso comum
pode ser sujeito a padrões de juízo historicamente definidos, portanto, “pode ser questionado, discutido,
afirmado, desenvolvido, formalizado, observado, até ensinado, e pode também variar de uma pessoa para
outra” (2002:116).
115
Para a Justiça Federal, por exemplo, Abiad, P. e Thieberger, M., 2005; Gasparini, J., 2005; Verbitski,
1993. Para a polícia bonaerense, ver os citados Dutil, C. Dutil e Ragendorfer, R., 1997; Ragendorfer,
R., 2006; Bonasso, M. 1999.
107
contaminação da segunda sobre o campo da primeira. Como se um campo, onde os
valores e interesses reinam por excelência –a política-, invadisse um mundo racional,
burocrático e independente. Tal concepção remete a uma idéia instalada como modelo
de burocracia moderna, proposto por Max Weber. Conforme este tipo ideal, a esfera
política e a esfera burocrática responderiam a domínios independentes. Mas que,
justamente por ser um tipo ideal, não pode ser aplicada a qualquer realidade empírica.
Como dizia, era possível identificar na dinâmica diária de Tribunales e nas
conversas com seus funcionários uma dimensão política que também estruturava as
relações sociais desse campo e as representações sobre ela
116
. Vivenciei um aspecto
dessa inter-relação entre política e burocracia judicial de forma próxima.
Lembro bem como todos na UFI acompanhamos, quase que diariamente, as
expectativas de três de seus funcionários sobre as possíveis designações em novos
cargos. Bruno, um dos promotores adjuntos, para o cargo de juiz; Alicia, a instrutora,
para o cargo de promotora e Diego, o secretário, para o cargo de defensor de menores.
Os três tinham se apresentado em concursos públicos para tais cargos e tinham sido
aprovados e selecionados entre os candidatos possíveis. Um dia entrava Bruno na sala
de Valeria, onde eu me encontrava boa parte do tempo, e anunciava que tinha sabido
que um funcionário teria apresentado uma impugnação contra ele. Dias depois, a
preocupação virava um sorriso por ter recebido uma ligação avisando sobre o apoio que
teria da Procuradora e a iminente votação no Senado. Enquanto isso, Sebastián, o
promotor titular, próximo do Fiscal General de Los Pantanos, avisava Alicia que “as
coisas iam bem”; por sua parte, Valeria a recriminava por não se mobilizar o suficiente.
Enquanto isso, Diego comemorava timidamente sua aprovação na prova escrita para
defensor de menores. Eu o questionava sobre os motivos de tão tímida comemoração e
ele não hesitava em responder que “agora tudo depende de política”.
É que a partir da aprovação no concurso, a designação tomava um caminho
diferente. Dependia dos apoios políticos de cada candidato
117
. O capital político –
116
Acredito que é no plano das interações que é possível dar conta das relações entre política e justiça, e
não entendendo ambas esferas como parte da macropolítica. Cf. Bayley, 1971: 2-3.
117
Na distinção proposta por Weber entre cargos nomeados e cargos eleitos, é possível pensar um
paralelo entre os cargos aqui descritos como políticos e os concursados. Weber diz: “Decerto, a existência
formal de uma eleição [de um concurso] não significa, em si, que atrás dela não se esconde uma
nomeação. (...) Em geral, porém, uma eleição formalmente livre se transforma numa luta, conduzida
segundo regras definidas em busca de votos em favor de um dos candidatos designados” (1979:234). No
caso aqui descrito, embora a luta não seja explícita, fica claro para todos os atores que detrás do concurso,
108
entendido como o conjunto de relações que é possível mobilizar- de cada um dos
funcionários se tornava fundamental para dar efetividade final à aprovação formal. As
disputas internas podiam ser ferozes e consideradas mais ou menos “honestas”, mas
ficava claro que a pior estratégia era não mobilizar o capital disponível, se deixar ao
embalo –neutral- da burocracia.
Essa dimensão política não estava nas designações. Também o tratamento de
certos processos aparecia como mais politizado do que outros. Quando os advogados
falavam sobre as dificuldades de apresentar denúncias quando os processos envolviam
funcionários públicos, identificavam o que eles consideravam como uma “justiça
politizada”. Diziam: “vai você denunciar um integrante do poder executivo municipal
(...) onde ele paga tudo”. Também os promotores da UFI lembravam sempre com
particular incômodo os casos nos quais tiveram pressões ou influências de funcionários
políticos.
Essa vinculação entre prefeituras e pressões políticas recorrentemente na boca de
advogados e funcionários era uma caracterização comum do mundo político do
conurbano. “A província de Buenos Aires tem sido historicamente uma corporação de
senhores feudais, encabeçada fundamentalmente pelos prefeitos do conurbano (...) Um
juiz federal precisa, ao menos, algum aval de um organismo de direitos humanos, um
promotor de província não”, dizia o advogado Juarez. A comparação com a Justiça
Federal se impôs em varias dimensões, sempre marcando as particularidades da Justiça
do conurbano. No próximo capítulo, busco caracterizar a estrutura e representação
dessa justiça na minha experiência de trabalho de campo. Assim, enquanto neste
segundo capítulo, caracterizei o sistema de justiça criminal e a reforma por ele
experimentada a partir de 1998, buscando contextualizar sua atuação no âmbito do
conurbano bonaerense enquanto região metropolitana e no âmbito de sua atuação junto
com a polícia correspondente La Bonaerense-, no capítulo 3, procuro tal
caracterização a partir da minha vivência e interlocução no departamento de Los
Pantanos.
ou pelo menos em uma etapa dele, existe essa luta e que essa luta é essencialmente política e, como tal,
depende do jogo de relações pessoais mobilizado.
109
CAPÍTULO 3
Entre a “pobreza” e a “tecnologia”
Quando naquele 13 de setembro
chuvoso desci do 548, encarei as ruas
sem sinal que separavam uma pequena
calçada daquela onde está o prédio de
Tribunales. Na calçada menor, não
havia comércios, apenas casas baixas.
Algumas delas anunciavam serem
escritórios de advocacia.
havia notado a presença de escritórios jurídicos anunciados ao público,
atuantes em diversos ramos do direito e com atendimento “rápido”, “urgente”, “24
horas”, nas minhas visitas em outro departamento judicial do oeste do conurbano. Pois,
me chamava a atenção o contraste com o bairro de Tribunales em Capital Federal onde
a localização dos escritórios jurídicos não fica disponível ao pedestre, a não ser, em
poucos casos, por pequenas placas de bronze com o nome dos advogados do lado do
porteiro eletrônico de um prédio. Não seria o primeiro aspecto que, nos Tribunales do
conurbano, chamava minha atenção em contraste com o Judiciário na cidade de Buenos
Aires.
Atravessei as grades que separavam o
prédio de Tribunales da calçada. Antes de
chegar à escadaria de acesso ao prédio
(aliás, comuns a outros prédios que
conheci de repartições judiciais
118
). Havia
um caminho, com grama ao redor e com
alguns bancos para se sentar. Era comum
ver pessoas esperando, descansando ou
conversando com seus advogados. Após o caminho, uma pequena rua permitia a
passagem dos carros que circulavam por dentro da área e, eventualmente, a rápida
descida de passageiros. Havia, descobri depois, várias outras vias de ingresso e saída ao
prédio, seja para funcionários, seja para policiais e presos.
118
Pelo menos, na cidade de Buenos Aires, de La Plata, do Rio de Janeiro e de Luanda (Angola).
110
O prédio era grande e
simples; reto e linear, diria.
As paredes claras do exterior
contrastavam com a escuridão
do seu interior. Após subir a
escadaria, havia um pequeno
bar/quiosque que vendia
bebidas, café, sanduíches,
biscoitos, doces e cigarros.
Lugar de encontro de
advogados com seus clientes,
de espera para os intervalos
ou inícios de audiências e
também de provimento dos
funcionários, que rapidamente
retornavam daí às suas salas. Havia também uma banca de jornal e uma banca de “Pago
Fácil”, serviço disponível para pagar contas de todo tipo. dentro do prédio havia uma
xérox e caixas automáticos do Banco da Província, através do qual os funcionários
recebiam seus salários. Diferentemente dos prédios do poder judicial sediados na cidade
de Buenos Aires, nos quais tinha desenvolvido trabalho de campo, naquele, que visitava
naquele dia pela primeira vez, não havia nenhum restaurante ou bar exclusivo para
funcionários. As lojas que mencionei eram as únicas que pareciam destinadas a cobrir a
falta de movimento do bairro, não fosse a existência cada vez mais difundida dos
serviços de delivery.
Chegando à porta de ingresso, era possível atravessar um detector de metais;
mas também era possível não atravessá-lo e passar do lado dele. E também tenho
dúvidas de que passando por ele detectasse alguma coisa. Lembrei do ingresso ao prédio
de Justiça Federal na cidade de Buenos Aires, bem como daquele do Fórum do Rio de
Janeiro, onde cada porta de ingresso tem mais de um aparelho do tipo em
funcionamento, tanto para as pessoas como para os objetos que elas carregam.
Logo na entrada, me animei ao encontrar um balcão de informações. Perguntei
pela Unidad Fiscal de Instrucción K. “Segundo andar, à esquerda, no fundo”, indicou-
me rapidamente o jovem atendente. Busquei a escada e subi os dois andares.
111
Caminhando pelo prédio pensei novamente nos contrastes com o prédio da Justiça
Federal em Buenos Aires. Amplos halls antes das salas, mármore nas escadas, portas de
vidro, claridade, placas de bronze, que me vinham a mente, contrastavam com
corredores para circulação de numerosas pessoas, falta de iluminação, cartazes com
letras faltantes. Também a concentração exclusiva da justiça penal federal em um único
prédio, contrastava com a reunião neste das varas de família, de trabalho, penais e
comerciais, por cujas longas filas de pessoas fui passando até chegar ao lugar indicado.
Soube, neste meu primeiro encontro com o prédio, que havia também outro prédio para
as UFIs correccionales”. Foi-me advertido quase de forma uníssona pelos promotores
que se eu ousasse criticar a falta de espaço ou decadência do prédio [coisa que, claro,
não estava em meus planos metodológicos] devia antes conhecer Cromagnon, tal como
era chamado informalmente o prédio das correccionales”. O apelido era em referência
a uma boate que, por suas péssimas condições estruturais, pegou fogo durante um show
de rock, em dezembro de 2004. O Cromagnon de Los Pantanos –me disseram naquele
dia- “é muito pior do que esse prédio aqui, ele esdo lado da estrada e, como não tem
calçada, você tem que ingressar diretamente pela rua e, além disso, alaga muitíssimo”.
A baixa consideração que as UFIs correccionales tinham na representação das
autoridades do departamento e entre promotores das UFIs “criminais”, tal como
mencionei no capítulo anterior, pareciam explicar o fato do apelido Cromagnon não se
referir unicamente às más condições do prédio. Compreenderia também esta intima
relação entre espaço –ou, atribuição de espaço- e hierarquia social em outras situações
do trabalho de campo.
O certo é que, como assinalou Josefina Martinez (2005:172), a explosão
demográfica de funcionários judiciais e a criação de novas unidades a partir da reforma
obrigaram a realizar uma série de modificações na distribuição do espaço e, inclusive, a
procurar novos prédios. Embora no caso de Los Pantanos houvesse mais de um prédio e
fosse necessário, nos dias chuvosos, atravessar ruas alagadas, as diferentes unidades
encontravam-se relativamente concentradas. Pelo menos em comparação, por exemplo,
com o departamento judicial do oeste onde tive que buscar e me mobilizar de ônibus
entre vários prédios. A exceção de um deles que tinha uma extensão maior, todos os
outros eram de, no máximo, três andares com salas pequenas, mas bem acondicionados
e modernos. “Eu estou no melhor prédio desta cidade, mas fui eu que saí a procurar o
prédio. Não esperei que a Corte Suprema de La Plata me resolvesse o problema. Botei
112
as bermudas no verão, vi as pautas de aluguel e s procurar”, me disse o “juiz de
garantias” na entrevista.
A enormidade do prédio de Los Pantanos facilitava não se deslocar de um
prédio para outro. Todos seus andares repetiam a mesma estrutura e desenho, com o
qual era fácil se desorientar sobre a própria localização. Percebi que estava no local
certo, pois rapidamente encontrei um longo balcão com janelinhas separadas apenas por
seus marcos. Em cada uma delas, havia um papel com a inscrição à mão indicando o
número da “UFI”. Esse balcão correspondia a três UFIs, o balcão de frente a outras três
e assim por diante. Observei mais tarde que tal estrutura partilhada também
correspondia às defensorias públicas. Trata-se do setor chamado “Mesa de Entradas”.
Assim como partilhavam o balcão, os atendentes de cada UFI também dividiam um
computador para atender as consultas sobre os processos em andamento. A partir da
mesa do computador, aumentavam o tom de voz e falavam o resultado da pesquisa
sobre as consultas que recebiam do público (familiares e advogados): “foi para o juiz
assinar!”; “foi arquivado!”, está com o promotor!”. Também recepcionavam as
testemunhas, os policiais, advogados e outras pessoas que quisessem ou precisassem
“passar do outro lado” do balcão.
Naquele dia esse seria meu caso, mas ninguém estava atendendo na janelinha da
UFI K. Aguardando, percebi um escrito colado no vidro, reproduzido nas outras
janelinhas. Nele, a UFI como um todo pedia aos advogados e público em geral que
desculpassem as demoras, mas que eram devidas à falta de pessoal administrativo, que,
além de realizar as tarefas nos processos, deviam ocupar-se do correio –explicava-se
também que os policiais que cumpriam essa função foram afastados- e também deviam
atender o público. Esperei ainda com maior paciência. Um cartaz semelhante indicava
que o arquivo tinha sido mudado de prédio e, portanto, também pediam desculpas pelas
demoras na busca de processos.
Enquanto esperava, chegou uma mulher perguntando se não tinha ninguém na
UFI K. “Estou esperando”, respondi, quando ela me surpreendeu com um grito:
“UuuuuuFiiiiiiiii Kaaaaaaaaaaaaa!”. Enquanto ninguém aparecia, lembrei da campainha
dourada nas Mesas de Entrada da Justiça Federal, que sutilmente indicava a presença de
alguém. Ao terceiro “UuuuuuFiiiiiiiii Kaaaaaaaaaaaaa!”, apareceu uma menina, de não
mais de 22 anos. Perguntei pela Dra. Valeria Mena. “É por algum processo?”. “Não,
marquei uma entrevista com ela”, respondi. “Seu nome?”. “Lucía Eilbaum, ela não me
113
conhece, é de parte de Maria Quiroz”. Passados não mais de 5 minutos, a funcionária
pediu para eu entrar, pela porta do lado. Após passar por uma outra porta que dizia “Não
passar”, encontrei um longo corredor. “Está vendo atrás? Essa é a Dra. Valeria
Mena”. Não tive certeza se seria a pessoa que estava vendo. Ela vestia uma calça jeans,
tênis e um moletom com capuz vermelho. Definitivamente, não era o perfil de roupa ao
qual meu trabalho de campo no Judiciário federal portenho tinha me acostumado.
Avancei e a mulher do moletom vermelho me cumprimentou e me fez passar à sala
dela.
Controle de impressões
O primeiro encontro na UFI foi de apresentações. Embora ainda não soubesse,
eu estava me apresentando para aqueles que seriam os interlocutores mais próximos
desta pesquisa. Eles também se apresentavam para mim e, com isso, apresentavam suas
atividades, seus espaços, “essa UFI” com certas linhas de trabalho características e,
assim, marcavam também concepções sobre o desenvolvimento de suas funções, sobre
o Judiciário em geral e sobre o Judiciário em Los Pantanos. Fui aprofundando todos
estes aspectos ao longo dos meses passados na UFI. De qualquer forma, as impressões
deste primeiro encontro foram chaves para me preparar para o trabalho que me esperava
e para entender também qual e como seria meu papel na UFI.
Gerald Berreman dedica um artigo a este aspecto do trabalho de campo,
articulando suas reflexões sobre sua etnografia em uma aldeia do Baixo Himalaia, na
Índia Setentrional, com boa parte das afirmações de Erving Goffman em “A
apresentação do eu na vida cotidiana”. “Controle das impressões” é a categoria que usa
para denominar essa dimensão do trabalho de campo.
Ao chegar ao campo, todo etnógrafo se imediatamente confrontado com sua
própria apresentação diante do grupo, que pretende aprender a conhecer. (...)
[Essa tarefa], como toda interação social, envolve controle e interpretação de
impressões; nesse caso, impressões mutuamente manifestadas pelo etnógrafo e
seus sujeitos. As impressões decorrem de um complexo de observações e
inferências, construídas a partir do que os indivíduos fazem, assim como do que
dizem, tanto em público como privadamente, isto é, quando pensam que não
estão sendo observados (1980:125).
Eu sabia que aquele primeiro dia não bastaria, nem para ganhar a confiança de
meus interlocutores, nem para esgotar as impressões construídas por eles e por mim.
Esperava-me um longo processo, continuado dia após dia na UFI, bem como
114
posteriormente. Por isso, as impressões não podiam ser entendidas como atribuições
fixas de uma identidade. Elas resultaram móveis e flexíveis, dependendo de interações
que nem sempre controlava, nem sequer percebia. Um gesto, uma frase, uma presença
ou uma ausência em certos momentos podiam alterar uma primeira impressão, ou
segunda, ou terceira... Contudo, nesse processo de conhecimento mútuo aprendi a lidar
razoavelmente com as pessoas com as quais interagi. Aprendi, assim, não a saber
como me movimentar em um novo ambiente, mas também a compreender os sentidos
que minhas atitudes, dizeres e ações tinham para os outros.
De distâncias e proximidades
Berreman dedicou quase três meses a ganhar a confiança da aldeia. Talvez seja
por isso que afirme que “o controle das impressões na pesquisa etnográfica é,
frequentemente, um esforço extenuante e enervante para ambas as partes, especialmente
nas primeiras fases do contato” (1980:143). E agrega: “A tarefa é particularmente difícil
e traiçoeira quando a distância cultural entre participantes e platéia é grande. Nesse
caso, não se pode prever a impressão que dará uma ação determinada; é difícil
interpretar a reação da platéia e é difícil julgar o significado da representação”
(1980:144)
119
.
Uma compreensão “densa” sobre os significados das ações e visões de mundo
de grupos sociais distantes culturalmente do próprio requer um trabalho atento,
perspicaz e paciente. Estão os divertidos depoimentos de Nigley Barley (1989) sobre
sua vida entre os dowayos da montanha, em Camarões, na África. Em “The Innocent
Anthropologist. Notes from a ud Hut”, progressivamente, Barley vai mostrando ao
leitor os avanços alcançados, com suor e lágrimas, na interação com os dowayos de
forma a ser aceito entre eles, conseguir a construção de uma etnografia, e, inclusive,
querer voltar após seis meses de seu retorno à Inglaterra
120
.
Fiquei pensando retrospectivamente nesta perspectiva. Pois, perguntava-me
pelas situações de pesquisa em que essa distância cultural não é tão grande, ou é mesmo
119
Mantive as palavras de Berreman, pois se trata de uma citação textual, mas acredito que a divisão entre
participantes e platéia não faz jus a própria concepção do autor sobre a interatividade mútua entre
etnógrafo e os sujeitos que este venha pesquisar.
120
Entre outras fontes de “embaraço social” que ele representava para os dowayos, Barley inclui os
inúmeros problemas com o aprendizado da língua. Trata-se de uma língua com quatro tons, quando a
maioria das línguas africanas possui um tom alto e um baixo. Uma pequena alteração no tom de uma
palavra muda o sentido da frase. A frase “desculpe, devo ir guisar um pouco de carne”, com um erro no
tom virou em boca de Barley “desculpe, tenho que copular com o ferreiro” (1989:77).
115
quase imperceptível. Pensava na necessidade de deconstruir aquilo que pressupomos
como uma base comum de interação e que, muitas vezes, resulta não sê-lo. A
proximidade, tanto quanto a distância, podem resultar também uma “tarefa difícil e
traiçoeira”.
“Não, isso aqui não é C.S.I.
Quando entrei na sala de Valeria Mena, imediatamente fui apresentada a outra
funcionária, Alicia, com quem ela dividia a sala. A UFI K ocupava quatro salas do
corredor. Eram as quatro salas finais, antes do banheiro e da cozinha. Entrando pela
direção da “Mesa de Entradas”. Porque no outro extremo do corredor, havia uma outra
porta. Por ela ingressavam os funcionários quando entravam pela porta lateral do prédio.
Para ingressar por essa lateral era necessário um cartão eletrônico. Entrando por se
acessava a outro corredor, não apto para o público, que conectava por dentro os
corredores e andares das diferentes unidades. Era também a mesma via por onde os
presos, acompanhados dos policiais de custódia, subiam e ingressavam às promotorias e
defensorias. Supostamente, havia elevadores diferenciados para funcionários e presos,
mas, como volta e meia, algum deles quebrava podiam ser usados indistintamente.
Todas as salas da UFI eram compartilhadas por mais de um funcionário. De
modo geral, considerando as mesas com os computadores e, eventualmente,
impressoras
121
, os estantes com processos, o cofre, o armário com os objetos
aprendidos, as cadeiras e poltronas para advogados, réus e testemunhas sentarem, e os
próprios funcionários, posso dizer que o espaço era pequeno. Eu mesma era um
incômodo, porque as cadeiras que usava eram aquelas destinadas, em cada uma das
salas, aos depoentes. Então toda vez que presenciava um depoimento devia tirar os
processos que estavam para assinar da poltrona onde eram acumulados e aguardavam
melhor destino. Geralmente, os colocava no chão, o que considerando o tamanho e peso
dos mesmos era toda uma mobilização.
Naquele primeiro dia de visita, Valeria comentou que havia um tempo o
promotor titular tinha uma sala para ele. Tinha sido bom enquanto durou, porque em
121
Não todos os funcionários tinham impressora, mas estavam ligados em rede à impressora de outro.
Assim, quando imprimiam deviam sair da sala e procurar a impressão na sala contígua. Também não
todos tinham a mesma impressora. Valeria, por exemplo, utilizava uma para ela (não estava em rede),
mas, diferentemente das outras, era uma impressora matricial, que a obrigava a ir colocando folha por
folha.
116
pouco tempo teve que dividir novamente com outro funcionário. A vantagem de ter ao
menos uma sala individual era, para Valeria, o fato de ter um espaço disponível para
quando, qualquer deles, precisasse fazer uma entrevista ou tomar depoimentos mais
delicados, como nos casos de abuso sexual de crianças. Nesse sentido de maior
intimidade, o espaço não era considerado “ideal, porque a vítima ou a testemunha
podem se cruzar com os presos, que passam por aqui [pelo corredor] o tempo todo”.
“É que aqui não explode tudo porque a população que circula pela justiça penal
são os pobres; é uma justiça de pobres para pobres”, resumiu Sebastián, o promotor
titular, que já tinha se feito presente nesta primeira entrevista, por solicitação de Valeria.
Para ele, ninguém reclamava sobre as condições de atendimento, porque “ao lado de um
hospital público, isso aqui é um luxo”. A percepção do público atendido era para eles
uma forma de falar da falta de recursos para o trabalho.
Valeria: mas nas escolas e hospitais todo o mundo reclama.
Eu: mas eu acho que existe uma imagem de que o pessoal da Justiça tem
dinheiro, recursos (disse eu, talvez influenciada ainda pela “imagem” da Justiça
federal).
Valeria: é verdade, a mídia não ajuda, mas eu acho que quando as pessoas vêm
aqui tem uma impressão mais real da situação e entendem você melhor, porque
vêem que você está trabalhando, que você os atende, que não tem uma sala para
você sozinha.
Sebastián: sim, os pobres podem entender você melhor vendo as condições de
trabalho, mas o cara com grana que vem e que seu processo está abaixo da
pilha de outros, acha que está ferrado, que o processo dele nunca vai ser
resolvido.
A idéia do contato e das impressões do público atendido foram destacadas como
uma preocupação particular da UFI, pois “é uma prioridade dessa UFI que os
promotores atendam todo o mundo e priorizar o atendimento”. Começavam a marcar,
desse modo e desde o primeiro contato, umas das particularidades que ‘essa’ UFI tinha,
para eles, no quadro das ‘outras’ UFIs do departamento. Essas particularidades foram
reconhecidas, com diferente grau de relativização, por outros funcionários e advogados.
Por isso, o contraste permanente com o que “ela fazia” e “as outras não faziam” foi um
ponto importante para a construção dos meus dados e relativização dos mesmos.
Assim, nesse diálogo se entrecruzava a apresentação da especificidade ‘dessa’
UFI, com a apresentação das condições de trabalho no conurbano e no departamento de
Los Pantanos. Um critério estabelecido na UFI era que algum dos promotores,
acompanhado da instrutora ou do secretário, se apresentasse no local dos fatos. Faziam
117
isso, principalmente, quando se tratava de casos de “homicídio”. Era, para eles, uma
forma de “contextualizar melhor a situação”, mas também de marcar uma certa presença
em relação à polícia que sempre era a primeira em chegar ao local. Marcar essa
particularidade levou Valeria e Sebastián a lembrar uma sucessão de histórias, que
enfatizavam as condições de “fazer justiça” em Los Pantanos.
No 26 de dezembro do ano anterior (2006), após três dias de feriado por Natal,
foi comunicada à UFI a morte de um jovem, em um bairro do departamento de Los
Pantanos. Sebastián e o secretário na época se apresentaram no “local dos fatos”; no
caso, a casa do jovem. Sebastián lembrava que eram dias em que a temperatura não
baixava de 40 graus. Os moradores do bairro estavam na rua, alguns deles ainda de
ressaca do dia 24. O chimarrão e a cerveja quente se misturavam com pedaços de
panetone e leitão. Foi um grupo de vizinhos que tinha ligado para a polícia, por causa
do forte fedor que saía da casa. O motivo era um jovem, de 25 anos, que tinha se
matado com um tiro, supostamente por causa de uma mulher. que havia dessa triste
decisão três ou quatro dias, de forte calor. E o cenário escolhido tinha sido o terraço da
casa. Resultado, o corpo tinha enchido de tal forma que “era o mais parecido a uma bola
preta”. Foi necessário chamar os bombeiros, os quais, segundo Sebastián, “colaboram
com as tarefas mais nojentas”. Especificamente, guardaram o corpo dentro daqueles
sacos plásticos pretos com feche, “esses que aparecem nos filmes americanos”. que,
como lembrou Valeria, isto “estava acontecendo no conurbano bonaerense. O
bombeiro falou para o policial também presente “bom, descarga no morto na viatura
que me levo o saco”; “como vou tirar o rapaz do saco!!”; “não se faça de idiota e tire-
o”, insistiu o bombeiro, que, dirigindo-se ao promotor reconheceu: “o que acontece,
Doutor, é que esses policiais se fazem de idiotas e me roubam os sacos”. Valeria
interveio no relato esclarecendo –por vias das dúvidas- que, em teoria, esses sacos eram
descartáveis... “À exceção destas terras –concluiu Sebastián-, onde fiquei sabendo que
os policiais depois de usados vendem os sacos saber para quem e os bombeiros
estavam cansados de perderem seus sacos plásticos; assim tive que prometer que depois
da autopsia o saco seria devolvido”. “Não, isso aqui não é C.S.I.”, disse Valeria.
A falta de recursos nas histórias contadas combinava com a idiossincrasia do
local e das pessoas envolvidas. Embora afirmassem também que no contexto mais
amplo, Los Pantanos não estava tão mal, porque tinha um IML [Morgue] e peritos
próprios”. que não eram suficientes e sempre demoravam muito em chegar ao local.
118
Quando chegavam também não eram, na visão de Valeria, muito eficientes. Parte disso
era atribuída à falta de capacitação. Outra parte enfatizava, novamente, as
particularidades do conurbano.
Sebastián: A famosa ‘preservação do local dos
fatos’ se supõe que deveria ser sagrada. Mas em
Los Pantanos a maioria dos homicídios é em
favelas e antes de vo chegar já passou o
cachorro e lambeu a cara do corpo ou as crianças
passaram e chutaram as balas.
Valeria: não sei por que, mas os locais também
sempre estão perto de algum córrego de água e
estão cheios de lama.
S: sim, por isso eu não uso terno e gravata.
V: mentira, você não usa porque não gosta, mas é verdade que, como nós vamos ao
local dos fatos, é melhor vir com roupa comum. No outro dia, eu estava feliz porque me
tocou um homicídio no centro de Los Pantanos. É o melhor que pode te acontecer
porque não tem lama, mas nunca toca no centro!
A questão do gosto ou não pelo terno não era um dado menor. De fato, como
falei, eu tinha tido dificuldades em reconhecer a promotora naquela mulher de jeans,
tênis e moletom. A roupa que vinha observando entre os funcionários do Judiciário
bonaerense parecia-me, em alguns casos, menos formal, e, em outros, menos sóbria, em
relação ao vestuário da Justiça Federal. Mas, na UFI K, eles mesmos afirmavam não
serem típicos ‘também’ nesse aspecto. “Você vai ver que a gente não é muito
representativa”, me disse Valeria. E agregou:
No outro dia, encontrei uma juíza no elevador. Perguntou se eu era da vara
criminal porque precisava de um favor. Disse que era a promotora da UFI K. A
senhora me olhou de cima para baixo, sem acreditar que eu fosse promotora.
Ir ao local dos fatos, pisar na lama, não usar terno. Cada um desses aspectos
eram formas de se apresentarem para mim. Marcando territórios, definindo identidades
e, com isso -senti eu- testando também a(s) minha(s). Começava a perceber que uma
linha era sutilmente traçada. Se, como coloquei na introdução, pesquisas acadêmicas
têm se dedicado a enfatizar o caráter hermético da atividade e linguagem do poder
judiciário, muitos integrantes do mesmo, como Sebastián e Valeria, não eram alheios a
essas opiniões. De alguma forma, a ênfase, não na falta de recursos, mas na roupa que
usavam, nas ruas e bairros que visitavam, no contato pessoal com as pessoas que
atendiam, anunciava uma representação de eles estarem mais perto “das pessoas” do
que os acadêmicos pensavam, e, inclusive, do que os próprios acadêmicos. Não percebi
119
essa linha facilmente, talvez porque ela também fosse transpassada, com alguns dos
funcionários da UFI, através de conversas sobre perspectivas teóricas, autores, cursos
universitários, e outros tópicos menos ‘enlameados’ que as ruas do conurbano. A partir
daí, muitas vezes, eles se colocavam em um lugar intermediário, mais do que esotérico e
distante da sociedade. De qualquer modo, a tensão entre perspectivas e identidades
estava presente e era importante para meu papel como “antropóloga da UFI” como
diziam eles, ou, como diria Geertz, a “antropóloga na
UFI”.
Semelhantes, mas diferentes
Fazer parte da mesma sociedade, e ainda mais, do mesmo setor e/ou grupo social
que o/s interlocutor/es pode contribuir para conhecer melhor as possíveis variáveis que
uma interação pode implicar. Nesses contextos parecemos nos mover com um grau
relativamente bem sucedido de conhecimento sobre os possíveis efeitos e conseqüências
de nossos atos; o quê dizer, como falar, qual vestimenta usar, como olhar. Por isso em
alguns casos podemos prever (e prevenir) em alguma medida aquilo que estamos
interessados em transmitir. Contudo, essa pertença a um mesmo setor ou grupo social
pode ser apenas um suposto de seu portador. Isso não quer dizer que seja falsa (ou
verdadeira), mas que, do ponto de vista daquele com quem você interage tal
pertencimento comum não seja tal. Descobrir essa distância na proximidade foi, para
mim, uma lição reveladora.
Os “direitos humanos”
Quando na “Mesa de Entradas” da UFI 1, falei para a funcionária que eu ali
estava “de parte da advogada do CELS, Maria Quiroz”, me senti portadora de uma
identidade que não era minha. Como mencionei no capítulo 1, o “CELS” é o Centro de
Estúdios Legales y Sociales. É, na Argentina, um conhecido organismo não
governamental de defesa dos direitos humanos, criado durante a ditadura militar. Ele
tem uma forte representação associada a causas sobre violações de direitos nesse
período, mas também em casos de violência institucional em vigência do regime
democrático (“violência policial”, “tortura”, “condições inumanas de detenção”, etc.).
Na época, Maria Quiroz estava desenvolvendo um relatório sobre casos de autos de
resistência e as respostas judiciais a eles, no departamento de Los Pantanos entre os
anos 2001 e 2006 (CELS, 2008:119-145). Por conta desse levantamento de processos,
120
tinha conhecido a promotora Valeria Mena. O contato entre as duas tinha deixado em
Maria Quiroz a impressão da promotora ser uma funcionária acessível para estabelecer
futuros contatos. Foi naquela reunião de agosto no CELS, mencionada no capítulo
anterior, que essa possibilidade me foi apresentada. Naquela ocasião Maria Quiroz não
estava presente. Logo após a reunião, liguei para ela, que se limitou a me passar o
telefone da Dra. Valeria Mena. Eu nunca conheci pessoalmente a Maria Quiroz, minha
chave de apresentação. Talvez seja por isso que, no meu primeiro encontro, senti
imposta uma identidade que não podia assumir. Isso podia também criar dissonâncias
entre como eu me representava e a imagem com que eu era recebida pelos diferentes
funcionários da UFI.
Um episódio me fez sentir isso, tempos depois da minha primeira apresentação.
Naquele primeiro dia conheci Diego Ramos. Foi me apresentado como o secretário da
UFI. Era um homem jovem, na época com 29 anos. Era a única pessoa da UFI que
naquele dia vestia terno e gravata. Cumprimentei-o com formalidade, pois eu tinha
ainda presente a imagem dos secretários dos juzgados de instrucción da Justiça Federal
da cidade de Buenos Aires, figuras essenciais no funcionamento e tramitação dos
processos nesse fórum (Eilbaum, 2008). Valeria me apresentou como uma antropóloga
que vinha de parte de Maria Quiroz, “do CELS”. No segundo dia de começar minhas
idas mais sistemáticas à UFI, presenciei o depoimento que Diego tomou de um jovem
de 20 anos, vendedor ambulante, pelo crime de “roubo em bando”. Chamava-se Pedro
Paulo. Ele e outro amigo tinham entrado em uma casa e roubado um abajur. O corpo
magrinho do garoto tremia, talvez de medo, talvez também por causa do frio, pois ainda
era inverno e estava em camisa e sem tênis. Tinha os baços machucados, com pequenas
perebas. Enquanto não falava (a maior parte do tempo), comia suas unhas. “É tão
pequeno”, disse a defensora oficial que, de modo incomum na rotina do processo,
acompanhava o jovem. Sua presença respondia a um motivo específico: Pedro Paulo
tinha denunciado que, na secional policial onde tinha ficado preso na noite anterior,
tinham tirado o tênis, abusado dele e o obrigado a limpar o chão. Ela tinha se
comunicado com a autoridade policial correspondente, mas solicitava o apoio da UFI,
para reforçar o pedido de resguardo do jovem.
No dia seguinte àquele depoimento, eu estava lendo um processo na sala de
Valeria, quando entrou Diego. Valeria lhe perguntou se tinha tomado alguma medida
para resguardo do menino.
121
Diego: não. E o menino também não era tão moleque não, andava em droga, é
desses rapazes que saem a roubar em bando, conhecidos do bairro, que deve ter
conhecidos presos.
Valeria: mas se alguém transmite para você essa preocupação, você tem que
fazer alguma coisa.
Diego: a mim ele não me disse nada.
Valeria: ele disse através da defensora oficial. Você não tem que ter conceitos
pessoais, se não fizer por pena [do garoto], pelo menos faz para seu próprio
resguardo. Eu teria feito, porque não custa nada ligar e dizer que nesses cinco
dias que vai ficar preso não aconteça nada com ele.
Presenciei esse diálogo, enquanto lia o processo. Não dei maior atenção, além do
registro dos possíveis efeitos que as decisões dos funcionários acarretam. Tempos
depois este episódio viria adquirir um significado diferente para mim. Soube, por parte
do mesmo Diego, que na época ele tinha ficado incomodado com Valeria pelo fato de
ter tido essa conversa na minha frente. “Para mim, você vinha do CELS, dos direitos
humanos, justamente para controlar esse tipo de coisas [em relação à polícia]”, me
disse. Dei-me conta que a minha primeira apresentação tinha tido um efeito maior do
que eu imaginei. E também que não necessariamente podia encontrar uma unanimidade
de critérios ou supostos ideológicos, nem entre os funcionários da UFI, nem comigo.
Diego Ramos era formado em direito na Universidade Nacional de Los
Pantanos. Tinha ingressado ao Judiciário como “meritório” e na época, como
mencionei no capítulo 2, esperava sua designação –ou não- para defensor de menores.
Estava, junto com sua família, construindo uma casa em um terreno em uma localidade
da área. Desde antes de casado, tinha sempre vivido “no sul do conurbano”. O pai tinha
uma oficina para carros. Rapidamente fui estabelecendo com Diego uma boa relação e
ganhando confiança. Conversávamos sobre temas diversos e trocávamos opiniões sobre
assuntos polêmicos sobre o judiciário, o aborto, a pena de morte. Devo isso, sem
dúvida, à intensidade do trabalho de campo. Uma forma de relação que permite ambas
as partes sair de certos estereótipos que muitas vezes obscurecem pontos de vista
diversos. Por isso, não foi apenas “estar aí” o que permitiu ganhar maior confiança e
interatividade, mas estar disposta a trocar opiniões, responder perguntas, falar do que
fazia, sobre aspectos de minha vida pessoal, mostrar fotos
122
. Explicar o que fazia como
122
Funcionou um pouco como a submissão voluntária ao “controle local”, do qual fala Berreman
(1980:128). Conta que entre o grupo dos Paharis era considerado pelos outros moradores como inferior.
Como efeito, os Paharis suspeitavam que os estranhos tivessem motivos ocultos para se relacionar com
122
antropóloga também fez parte da conquista de confiança e de legitimidade de meu
espaço na UFI. A recepção destas explicações não foi homogênea entre os funcionários.
E isso colocava em evidência não as impressões de cada um deles sobre mim, mas
também me permitia ir conhecendo as diferenças e particularidades entre eles.
“Isso aí são posições
A situação da denúncia daquele menino tinha provocado na UFI, antes do
depoimento dele, uma rápida conversa entre Valeria e Bruno. Bruno Soares del Monte
era o terceiro promotor da UFI K. A discussão era sobre, se outorgar a liberdade nesse
momento, era um dever ou uma faculdade. Quer dizer, diante dos riscos que o menino
podia correr estando preso, se o promotor era obrigado a deixá-lo em liberdade ou podia
avaliar a situação e decidir deixá-lo preso. Quando saí da sala de Diego, Bruno me
encontrou no corredor e me perguntou o que tinha acontecido. Contei para ele que o
depoimento tinha sido pelo crime de “roubo em bando” e que, por isso, ficava preso.
“Não é assim –me disse Bruno-, isso são posições”. Não seria a primeira vez que
Bruno me respondia desse jeito, enfatizando, diante de minhas perguntas ou de
situações concretas, o fato das decisões jurídicas estarem baseadas em perspectivas
teóricas e ideológicas sobre o processo penal.
Não conheci Bruno no primeiro dia de minha visita. Ele estava de férias. Além
de mim e do promotor titular [Sebastián], também outro promotor, mas que está por
ir embora porque vai ser designado na UFI descentralizada”, me disse Valeria. Quando
cheguei no meu primeiro dia de trabalho de campo, Valeria me apresentou: “este é o
outro promotor”. “Como assim o ‘outro’ promotor?”, brincou Bruno, como reclamando
ser também ‘o’ promotor e não ‘o outro’. Ambos estavam conversando em uma das
salas da UFI. Valeria sentada em uma poltrona e Bruno em uma cadeira simples, diante
de uma pequena mesa, quase sem mais espaço daquele que ocupava o computador e não
mais de um processo (ou vários empilhados). A mesa estava em um cantinho da sala, do
lado da porta. A sala era ocupada por mais duas mesas, bem maiores em tamanho,
também acompanhadas de computadores e de cadeiras mais confortáveis.
Correspondiam a dois dos “meninos”, como eram denominados os funcionários de
menor hierarquia. A mesa do Bruno era a menor e mais simples de todas as mesas de
eles, mesmo que não estivessem ligados ao governo. A única maneira de garantir que os eventuais perigos
é saber quem ele era e, para sabê-lo ele devia se sujeitar aos controles locais efetivos.
123
todas as salas da UFI. Ele era o último funcionário em ter ingressado à UFI, mas, ao
mesmo tempo, era, junto com Valeria, o segundo em hierarquia
123
. Por que ocupava
esse espaço? Era uma questão que me intrigou muito tempo. Bruno tinha sido designado
promotor havia pouco tempo. Antes disso, se desempenhava como secretário em um
Tribunal Oral Criminal, também no departamento de Los Pantanos. Tinha trabalhado
com juízes considerados de tendência “garantista”, com quem mantinha ainda uma boa
relação. No transcurso dos meses que passei na UFI foi designado como juiz, a partir do
concurso que tinha aprovado e que mencionei anteriormente. Entre a perspectiva de ir à
UFI descentralizada e o tempo que esperou ser designado, a situação do Bruno na UFI
parecia ser sempre transitória. Ao mesmo tempo, Bruno dizia-se incomodado em sua
posição de promotor; e desenvolvia seu papel, muitas vezes, fazendo notar esse
incômodo.
Bruno era de uma província de centro da Argentina, mas tinha viajado à cidade
de Buenos Aires para se formar em Direito na Universidade de Buenos Aires. Era o
único da UFI formado nessa instituição, além de um dos “meninos” que, por sua vez,
era o único que estudava na Capital. O resto tinha se formado ou estava estudando na
Universidade Nacional de Los Pantanos. Bruno era considerado, por todos na UFI,
como uma “cabeça brilhante”. As consultas sobre assuntos de teoria processual ou
penal, estritamente jurídicas, sempre eram a ele realizadas. Também as de informática,
pois se desempenhava bem nessa área.
Conversar com Bruno sempre foi um desafio interessante para mim. Eu
costumava chegar com perguntas concretas sobre algum caso que ele estivesse
trabalhando, ou com dúvidas do procedimento. Ele costumava me responder de forma
indireta. Sem receitas prontas, enfatizando, como disse antes, que as decisões judiciais
ou a interpretação da lei depende de posições ideológicas. Lembro uma vez que cheguei
à UFI preocupada com uma tradução de um artigo para o português. Perguntei para
Bruno a partir de qual etapa do processo se usava a categoria “imputado”. “Bom,
existem diferentes teorias, algumas dizem que a partir do ‘308’, outras a partir do
‘60’
124
; essa última é a mais ‘progressista’ porque se supõe que, enquanto você o chama
123
Esta última classificação, de fato, também é discutível, porque uma resolução tinha equiparado em
salário e hierarquia as funções de promotor titular e promotor adjunto. Contudo, na prática, o responsável
geral pela UFI era o titular.
124
Com “308refere-se à primeira citação do imputado em sede judicial para comunicá-lo da imputação
e, eventualmente, depor, regulada no artigo 308 do CPP/PBA. Voltarei amplamente sobre este momento
124
de imputado, tem o dever de lhe oferecer a possibilidade de defesa”, me respondeu. Era
claro para Bruno que o uso de categorias jurídicas não era neutro.
Outras vezes se aproximava onde eu estivesse sentada e me entregava um
processo que ele estivesse trabalhando. Sem me dizer nada, queria saber o que eu
opinava. Também fazia isso quando eu presenciava situações de depoimento ou de
outro procedimento, com ele. Bruno conhecia também sociólogos e criminólogos que eu
tinha lido ou conhecia, o que nos levava a manter conversas sobre temas dessas áreas.
Nessas conversas surgia um estilo pessoal de fazer o trabalho na UFI, também
perceptível observando sua forma de trabalhar. Um dia no meio de um depoimento de
um “imputado”, o jovem mostrava-se inquieto por falar. Bruno leu a ata da defensoria
onde dizia que, por conselho da defesa, ele não iria depor e deixava-se “constância que
o imputado manifestou NÃO requerer a presença do pessoal letrado nesse ato”.
Bruno: aqui o defensor disse que você não quer a presença dele, isso é assim?
Jovem: como?!
Bruno explica todos os passos do processo para ele e pergunta: você leu o papel
que a defesa te deu na entrevista?
Jovem: não.
Bruno: e sobre a presença deles aqui?
Jovem: não me perguntaram nada, se não, óbvio que tivesse dito que estivessem.
Bruno ligou para a defensoria e solicitou que alguém descesse, pois “o imputado
desejava que alguém o acompanhasse”. Chegou uma funcionária da defensoria pública.
Bruno explicou a situação para ela e deixou eles dois na sua sala. A funcionária estava
visivelmente incomodada. Em um tom rígido, disse para o jovem que já tinha explicado
tudo para ele e não iria explicar tudo de novo, que se ele não ia depor, ela não tinha
obrigação de estar presente. O jovem, talvez empolgado pela atitude de Bruno, repetiu
para ela que achava óbvio que ele não iria querer estar sozinho em uma situação como
essa. Quando Bruno entrou novamente na sala, a funcionária, em uma leitura particular
da situação, brincou com ele: “está com medo de você”.
Perguntar o imputado se a resposta na ata foi o que ele realmente disse e quer,
bem como ligar para uma defensoria de plantão solicitando que alguém desça para
presenciar um depoimento no qual o imputado não vai depor era uma atitude
absolutamente pouco comum. Marcava um estilo que era tido por alguns na UFI como
do processo. Com “60” refere-se ao artigo do CPP/PBA que define as garantias mínimas que devem ser
lidas pela autoridade interveniente (geralmente, a polícia) quando uma pessoa é detida.
125
sendo “formal”, no sentido de certa rigorosidade no cumprimento das garantias do
processo.
Assim, o estilo pessoal do Bruno não era apenas por mim observado. Este
também era reconhecido entre os demais funcionários da UFI, e também de outras
unidades. Esse reconhecimento marcava uma identidade bem definida e, como tal,
gerava certas disputas. De fato, parte das caracterizações do estilo de trabalho do Bruno
surgia em conversas coletivas na UFI, nas quais era contrastado aquilo que, em teoria,
faria Bruno em oposição àquilo que faria Sebastián, diante de certas situações. Os dois
se reconheciam mutuamente tendo estilos diferentes. Um modo de ver essa
diferenciação era através dos processos que Sebastián distribuía, enquanto promotor
titular, para Bruno. Embora tivesse homicídios, abuso sexual ou roubos, os crimes
vinculados a estelionato e outros delitos financeiros, iam para ele. Nesse caso, o
contraste implícito estava na identificação de um estilo mais intelectual, contra um de
“ação”. De outra forma, eu mesma me vi envolvida nessa diferenciação entre
intelectualidade e ação.
Fazer x Observar
“O antropólogo tira fotos; os cientistas políticos buscamos soluções materiais”.
A frase me foi dita por Sebastián em uma conversa na UFI sobre as diferenças entre
disciplinas na área das ciências sociais, pois Diego, também presente, me perguntava
pelas minhas atividades na Universidade. Eu, que via por onde vinha a conversa,
explicava para ele os projetos que desenvolvíamos, os cursos para guardas municipais e
policiais, a formação de estudantes, a pesquisa, entre outras atividades. Enfatizei
também a importância que para mim tinha a pesquisa como forma de conhecer e
publicizar modos de vida, práticas e representações, de diferentes setores sociais. Foi
nesse contexto que Sebastián mandou aquela frase.
Sebastián Vázquez era formado na Universidade Nacional de Los Pantanos.
Também estava estudando ciência política, em outra universidade nacional da zona sul
do conurbano. A sua trajetória na “carreira judicial” não respondia, como pontuou o
advogado Fellini, na cita do catulo anterior, a ter ingressado desde jovem como
“meritório”. Também tinha origem familiar, pois seu pai até pouco tempo atrás tinha
sido juiz da Câmara de Casación Penal do departamento de Los Pantanos, o cargo mais
alto na magistratura de um departamento judicial. O sobrenome pesava. De fato,
126
Sebastián era um dos promotores mais próximos e confiáveis do então Fiscal General,
motivo pelo qual era citado a reuniões com “o chefão”, como às vezes, o chamava.
Sebastián tinha vivido toda sua vida na zona sul do conurbano. Até mais de
quinze anos atrás, em uma das localidades consideradas melhor acomodadas dessa área.
Depois, mudou-se para um sítio em um município mais afastado. Reivindicava com
freqüência o fato de morar “fora da cidade”. Toda sua formação tinha sido no seio de
uma família católica. Lembrava com freqüência de sua adolescência quando fazia
trabalho voluntário em favelas, em um grupo de jovens vinculado à linha
“terceiromundista” da Igreja Católica. Ingressar no Judiciário era, para ele, uma forma
de continuar ‘fazendo’ alguma coisa pelos outros e de estar em contato com as pessoas.
A visão de Sebastián e de Diego sobre a academia e a antropologia remetia,
nesse contexto, a uma oposição entre fazer e observar, que, aos poucos, foi cedendo
pelo interesse de ambos nas “impressões que você tem sobre nós”. Lembro que, na
primeira visita, quando finalmente combinei com Valeria e Sebastián que poderia
começar minhas idas mais sistemáticas à UFI, Sebastián lembrou: “nós estamos
acostumados, já fomos objetos de observação de um... psiquiatra!”. E concluiu:
Sebastián: Deve ter feito um relatório de que todos nós estávamos malucos.
Valeria: é que para aquele que vem de fora, a gente deve estar maluco mesmo.
S: no outro dia estava o marido de uma funcionária e eu atendi uma ligação pelo
suicídio de uma senhora que tinha se enforcado. E aí no meio da ligação grito: “e
a velha está pendurada ainda?!”.
Na rotina da UFI, a linguagem jurídica cedia amplamente o lugar a um linguajar
corriqueiro, mas carregado da naturalização de situações vinculadas a experiências não
comuns à média da população (estar preso, ver corpos mortos, saber de armas). Quando
viajava de carro com Valeria, por exemplo, mais de uma vez ela dizia “ah, aqui vim
com Alicia no homicídio de um cara morto com uma caneta na jugular”, ou bem
localizava um lugar no mapa no mesmo sentido: “lembra onde a gente foi naquele
homicídio, bem aí”. No caso de Sebastián, essa forma de falar também marcava a ênfase
em um estilo de quem conhece o terreno. Ou, como me disse um policial que em muitos
casos trabalhava com eles, “o Dr. Vázquez tem estrada” [tiene calle”]. Imprimir à sua
forma de desenvolver o trabalho esse tom informal, menos jurídico e mais executivo,
fazia parte de seu estilo e, portanto, de uma forma de diferenciação com outros.
“Popular, peronista e republicano”, gostava de se autorepresentar.
127
Como promotor titular, era quem distribuía os processos entre os funcionários.
Sobretudo, entre “os meninos”. “Os meninos” [los chicos] era como denominavam em
conjunto ao grupo dos funcionários de menor hierarquia na UFI. Eram quatro jovens,
homens, dentre 20 e 25 anos, um dos quais tinha ingressado durante minha pesquisa.
Também era incluído Zé, que, como mencionei, trabalhava com “meritório”, atendendo
a “Mesa de Entradas”. Os outros quatro tinham designações formais. Chico, Paco e Fred
estudavam direito; Pedro ciência política
125
. A organização do trabalho na UFI fazia
com que cada um deles “levasse” seus processos, isto é, fizesse todo o trabalho
correspondente. Geralmente, eram distribuídos os casos considerados menos
complexos, como roubo, furto. Em função disso, Sebastián recebia e atendia as
consultas que “os meninos” lhe faziam. Exercia, nesse aspecto, sua influência na
formação experiencial deles, que todos reivindicavam como mais importante que aquilo
que aprendiam na Universidade. Com isso, também Sebastián marcava uma prevalência
de seu estilo de trabalho sobre outros. Os processos que Chico e Paco trabalhavam eram
assinados, como promotor titular, por Sebastián; os de Fred, por Valeria e os de Pedro
indistintamente. Ou nem tanto...
Tinha acabado de presenciar o depoimento de uma mulher que denunciava que o
ex-marido, no corredor da vara de família, “tinha roubado” dela o processo do divórcio.
No depoimento, a mulher disse que o marido depois de um tempo tinha devolvido o
processo, sem que faltasse nada. Quando a mulher foi embora, Pedro me disse que na
verdade o processo não era dela, mas dos dois, portanto, não havia roubo nenhum. O
caso o fez lembrar de outro em que outra mulher denunciou seu ex-marido por ter lhe
roubado a moto, mas que depois se apresentou arrependida da denúncia. Pedro opinava
que, nesses casos, haveria que abrir outro processo por “falsa denúncia” e desestimar o
“roubo”. “Uma decisão dessas com Sebastián passa, com Valeria é mais difícil e com
Bruno nem se fala”, disse Pedro. O comentário me fez pensar em como eram
identificados estilos que podiam dar lugar a decisões diferenciadas diante dos mesmos
fatos.
Como “os meninos” tinham certa liberdade para fazer suas consultas e pedir para
assinar alguns escritos entre os três promotores, eles identificavam esses estilos e agiam
também de acordo suas próprias convicções. Com eles, eu tive uma relação fluida.
125
Pedro era filho de um alto funcionário do corpo de peritos do departamento. Chico e Fred se formaram
em 2008. Fred na Universidade de Buenos Aires; Chico na de Los Pantanos.
128
Acompanhava os depoimentos, conversava sobre diferentes temas, desde o trabalho,
música até as possíveis férias deles no Brasil. Um dos temas que frequentemente
ingressava em nossas conversas, quase que inadvertidamente, era saldar, ou tentar
saldar, as dúvidas deles sobre o que eu fazia na UFI. “Você vem nos feriados!” “hoje é
domingo, que é que está fazendo aqui?!”, me perguntavam surpresos diante da
obrigação deles de estarem de manhã cedo naqueles dias. No entanto, mais do que essa
minha presença em dias “não úteis”, aquilo que mais os intrigava era o que, “diabos”,
seria aquilo que eu escrevia no meu caderno.
O caderno de campo
Mais ou menos convencidos de que observar podia ser também uma forma de
‘fazer’ alguma coisa, os caminhos na UFI, como antropóloga, foram se abrindo. Houve
mais uma característica de meu trabalho como etnógrafa que tive que superar neste
processo de progressiva confiança. “Não sei o quê, mas ela anota e anota o tempo todo”,
disse Alicia ao me apresentar para uma colega de outra UFI, como a antropóloga que os
estava acompanhando. Meu caderno de campo era motivo de intriga não de Alicia e
dos “meninos”, mas também de outros integrantes da UFI. Pensei que a forma mais
fácil de superar essa intriga, para que não virasse suspeita, era conversar sobre minhas
anotações. “Anoto sobre os casos, anoto o que as pessoas depõem, anoto o que vocês
perguntam, anoto o que registram por escrito, quando leio processos anoto parte dos
depoimentos e da seqüência dos procedimentos, anoto os casos antigos que vocês me
contam, anoto as explicações que vocês me dão sobre questões jurídicas”.
Alicia Diaz era uma excelente explicadora para minhas dúvidas jurídicas.
Gostava muito da docência e era a única na UFI que dava aulas em uma Universidade.
Um policial de investigações que trabalhava rios processos com ela deu uma boa
definição de Alicia: “a Dra. Diaz é elétrica”, disse. Como mencionei, ocupava o cargo
de instrutora, mas também fazia inúmeras tarefas administrativas. Antes de fazer o curso
de instrutora, tinha trabalhado rios anos na justiça civil, onde, segundo ela, tinha
ganho experiência na burocracia judicial (redigir ofício para tudo, fazer solicitações,
etc). Alicia chegava bem cedo à UFI e era das últimas a ir embora. Enquanto
permanecia, ia e vinha pelo corredor inúmeras vezes. Tinha organizado os processos sob
sua responsabilidade em diferentes pilhas: os urgentes (com prazos e presos), os
atrasados e os novos (do plantão). Para Alicia eram enviados muitos casos de homicídio
129
e de abuso sexual, embora ela tivesse pedido, recentemente, para trabalhar menos com
esses casos, porque a afetavam pessoalmente (por isso, alguns começaram a ser
encaminhados para Diego).
Progressivamente, meu caderno de campo foi sendo incorporado na rotina da
UFI. Assim, passou, inclusive, de objeto de intriga a ganhar certa utilidade. Uma
espécie de memória sobre certos dados que eu poderia ter anotado. Algumas das vezes
em que isso me foi requerido, não consegui dar uma resposta. Como as consultas eram
por dados pontuais, apropriados à investigação criminal, minhas anotações podiam ser
vagas, ou melhor, anônimas demais. Por exemplo, nem em todos os casos eu costumava
anotar os nomes completos das pessoas envolvidas, mas apenas alguma identificação do
caso. Também não anotava endereços completos, apenas uma indicação da localidade.
Nem datas exatas, números de tribunal, promotoria ou defensoria, dos antecedentes
penais dos “imputados”. A percepção e a relevância do tipo de informação, era
claramente diferenciada. Ao mesmo tempo, às vezes alguém dizia, com ironia, não
entender para que anotava “aquilo”, se não tinha relevância alguma
126
.
Em outro tipo de consulta sobre minhas anotações, o caderno pareceu ser mais
útil. Valeria afirmava que eu era sua agenda perfeita, pois lembrava dos dias em que tal
pessoa de tal processo iria depor. A rotina dela na UFI era uma seqüência de
depoimentos, para mim o depoimento de alguém nos casos que acompanhei mais
sistematicamente era um evento significativo.
Em uma ocasião, Valeria me perguntou se podia ver em meu caderno as
anotações sobre o depoimento “308” de um “imputado”. Tratava-se do caso de Lorenzo.
Na época, Lorenzo era viúvo e tinha 58 anos. O caso teve certa ressonância na UFI
porque era vizinho de Sebastián. Além da acusação por “tentativa de homicídio e porte
de arma de guerra”, estava o fato dele ter entrado na casa de sua ex-namorada, chutado a
porta e atirado contra o irmão dela. O garoto estava no hospital e de sua vida ou morte
dependia que a acusação se agravasse para homicídio. Naquele dia, Lorenzo, por
sugestão do defensor público, tinha feito uso de seu direito a não depor. No entanto, ele
manteve uma conversa com Valeria
127
. Por isso, muitos dias depois, ela queria saber se,
entre minhas anotações, o homem tinha falado alguma coisa da escopeta com a qual
126
Como descrevo em outros capítulos, a discrepância entre anotar ou lembrar dados concretos e anotar
ou lembrar aspectos gerais, menos específicos, também era um diferencial perceptível entre as perguntas
dos funcionários e as respostas das testemunhas e “imputados”.
127
Ver Capítulo 4.
130
atirou. Porque o advogado particular que, posteriormente, assumiu a defesa, afirmava
que a arma estava na casa da ex-namorada e não tinha sido levada por ele. Um pouco
sem jeito, li parte de minhas anotações para Valeria.
(…) Lorenzo: é uma ex-namorada minha e eu não tive a intenção de matar
ninguém.
Valeria: mas se você anda com uma escopeta....
Lorenzo: isso da escopeta tem que ver. O importante é que o garoto se salve.
Valeria: sim, para ele e para você.
Lorenzo: eu sou um homem que trabalhou a vida toda.
Valeria: quando alguém trabalhou a vida toda, no dia em que se manda uma
cagada, tem que pagar. Quando não se está fresco, melhor não andar com uma
arma.
Lorenzo: mas vou ficar preso?
Valeria: isto que o senhor me diz de que não tinha intenções de matar o garoto
parece se confirmar. Mas se o senhor está louco por uma mulher, melhor não
andar armado.
Lorenzo: mas se misturam muitos sentimentos.
Valeria lhe explica as possibilidades da pena que poderia ter.
Lorenzo: então, não fiz as coisas bem porque eu não tenho condições de estar
preso. Eu tivesse preferido me matar a estar preso. Não teria me entregue.
Valeria: é melhor estar preso do que morto [Lorenzo se entregou à polícia
quando estava por se suicidar]. O senhor não é um lutador?
“Eu disse isso tudo para ele?! Que besta!”, se surpreendeu Valeria. Não foram
muitas as informações sobre a escopeta –“isso da escopeta tem que ver”, diria Lorenzo-,
mas minhas anotações tinham cumprido uma outra função. De alguma forma, teriam
explicitado para Valeria um modo naturalizado de intervir, perguntar, opinar. A leitura
excepcional do caderno de campo e as inúmeras conversas que mantive com Valeria
sempre mostravam a capacidade crítica que ela tinha sobre o que fazia e sobre o
sistema. O certo é que desde a primeira entrevista Valeria marcou o fato de não se sentir
representativa deste mundo judiciário –“a senhora me olhou de cima para baixo, sem
acreditar que eu fosse promotora”. Desde a roupa, a forma intempestiva de conversar, o
fato de não circular pelos corredores, até os questionamentos que fazia do
funcionamento do sistema e da média das pessoas que nele atuavam, eram reivindicados
por Valeria como variáveis para se apresentar como uma “outsider”.
O aspecto jovial de Valeria Mena não terminava de refletir seus 39 anos. Ela
também vinha de uma “carreira judicial”. Tinha se formado na Universidade Nacional
de Los Pantanos e começado trabalhar nos Tribunales” daquele departamento em
1989, como “meritória” de uma defensoria pública. Quatro anos depois, em 1993, foi
131
designada formalmente como funcionária
128
. Naquela defensoria e, por todos esses
anos, tinha trabalhado com uma, na época da minha pesquisa, juíza, a quem reconhecia
o conhecimento e a experiência adquiridos. Era uma juíza considerada, nesses
Tribunales, excepcional, muito capaz, dedicada e rigorosa do cuidado das garantias
penais. Essa linha que, também Sebastián e Bruno, reconheciam naquela juíza, estava
muito presente em Valeria, que frequentemente manifestava sua admiração por ela.
Talvez porque essa tendência também fosse compatível com sua formação familiar. O
pai de Valeria tinha sido um conhecido advogado criminal atuante no departamento de
Los Pantanos, onde sua família sempre tinha morado. Valeria lembrava sempre ter
convivido próxima dos relatos de defesa do pai. Ela dizia, diferentemente de Bruno, que
gostava de ser promotora porque “você tem muitas mais possibilidades de decidir e
fazer coisas pelo imputado do que sendo defensor, tudo depende de você”.
Do pai também tinha ouvido um discurso de desconfiança para com a polícia.
“Desde criança eu ouvia falar de meu pai que, com a polícia, tem que ter muito
cuidado”, me disse Valeria justificando sua atitude rigorosa e desconfiada quando se
tratava de policiais envolvidos em processos. Valeria era muito emotiva. De forma
imediata era possível perceber seu incômodo, tristeza, empatia, ou raiva, ao tomar os
depoimentos. Podia ser extremamente rigorosa ou doce. Eu passava muito tempo na
sala de Valeria, acompanhando o que ela e Alicia faziam. E conversando muito. Em
pouquíssimo tempo nos tornamos muito amigas. A sua sensibilidade e despojamento
inclusive, em momentos difíceis- sempre me demonstraram que esteve disposta a me
ajudar e mostrar o que fazia sem perguntar nem questionar nada.
Berreman ressalta: “os membros socialmente deslocados ou insatisfeitos de uma
sociedade têm maior propensão a serem inovadores do que os outros, pelo menos nos
contextos em que a inovação não é recompensada pela aprovação social (...) são
também os informantes mais abertos quanto às situações da região interior(1980:171).
Talvez a ênfase de Valeria em marcar sua posição lateral ao “sistema” e, de modo mais
extensivo, guardando seus estilos pessoais e profissionais, de Sebastián e Bruno em não
reconhecer aquela UFI como “representativa”, foi justamente o que me permitiu avançar
no trabalho de campo com liberdade. Conhecendo e reconhecendo as suas
particularidades, foi possível também dar conta de certas generalidades no trabalho em
128
Como referi no capítulo anterior, em 1998, em vigência do novo sistema reformado, foi aprovada
em concurso público para o cargo de secretária de um juzgado de garantiase, em dezembro de 1999
para concurso público como promotora.
132
outras UFIs e em outros departamentos. Também as diferenças e disputas entre as
visões do trabalho entre os próprios integrantes da UFI funcionaram como contrastes
entre posições diferenciadas. As avaliações feitas por uns sobre o que os outros podiam
chegar a me dizer ou ‘mostrar’ do sistema permitiu também um “controle de
impressões” mais agudo e heterogêneo.
Ir ganhando a confiança dos funcionários da UFI não foi uma experiência
homogênea com todos. Em alguns casos foi mais imediata, em outros teve custos,
pessoais e metodológicos, mais altos. Em todos os casos, foi um processo que me
ajudou a conhecer e pensar sobre possíveis formas de “fazer justiça”, vinculadas a
trajetórias e histórias pessoais, profissionais e ideológicas. Esse processo também me
ajudou a repensar clivagens próprias e entender, no contexto, minha própria identidade
no campo.
“Ser do conurbano”: ou não ser...
Muitas das minhas conversas com Bruno foram em algumas das oportunidades
em que, saindo da UFI, voltei no carro dele para Capital. Bruno era o único da UFI que
morava na cidade de Buenos Aires; todos os outros moravam na zona sul do conurbano,
dentro do raio do departamento de Los Pantanos. Era outra característica que distinguia
Bruno do resto. Ela também passou a me distinguir, em um aspecto que eu nunca tinha
pensado como distintivo em relação ao conurbano
129
. É verdade que para essa altura,
meu marido, também antropólogo, mas carioca, encontrava-se fazendo trabalho de
campo na Argentina. Começando pela cidade, a pesquisa o levou para dentro do
conurbano. Voltava a casa, falando do que parecia uma descoberta para ele, pois nas
suas viagens anteriores comigo apenas tinha conhecido a Capital. Percebia grandes
diferenças, tanto com a cidade, como com o Grande Rio (Pires, 2010). Esta interlocução
me permitiu entender melhor o por quê da distinção que meus interlocutores da UFI
faziam entre “ser de Capital” e “ser de província”.
129
“Ser portenha” –nascida na cidade de Buenos Aires- era uma identidade que se ativava sempre em
viagens por outras províncias do país ou, inclusive, outros países da América Latina, geralmente
percebida de forma negativa. A migração para o Brasil também reforçou essa identidade contrastiva,
talvez nem tanto entre os brasileiros que se referiam de forma geral (embora, também muitas vezes
negativa ou irônica) aos “argentinos”, mas, de forma mais clara, entre os argentinos residentes no Rio de
Janeiro. Pessoalmente, nunca tinha representado a identidade de “portenha” em contraste com uma
identidade “bonaerense” ou do conurbano.
133
“Capital” era um mundo distante para eles. Não que não conhecessem ou não
fossem, mas não formava parte de sua rotina. Ir para era quase que ‘um evento’
130
.
Mas não era por desconhecimento que essa distância era imposta. Ela respondia mais,
na minha percepção, a uma distinção de identidades, entre ser ou não “portenho”. E,
nesse caso, “ser portenho” era associado, por eles, a uma identidade cultural de classe
média, vinculada a uma certa intelectualidade liberal e progressista. Também a uma
visão e experiência de mundo mais ampla e diversificada. Neste último ponto, também
contribuiu minha identidade associada ao fato de morar/vir/estudar/viver no Rio de
Janeiro –“o que é que você faz no Rio?”, “fica lá para sempre?”, “não vai voltar?”, “por
que foi para lá?”. Ao tempo que despertava certo fascínio e curiosidade, me tornava
mais distante ainda do contexto deles. Por isso, parte do meu trabalho foi também de
aproximação destes mundos, tentando mostrar que não eram tão distantes assim.
Contudo, cada vez que revelava algum aspecto pessoal, mais me inscrevia na identidade
que eles me atribuíam
131
. O esforço, então, foi reconduzido a mostrar que, apesar ou por
causa das diferenças, o diálogo podia ficar bom para todos.
Mesmo assim, havia particularidades identificadas naturalmente por eles que me
fugiam completamente. Durante um almoço conjunto, na sala de Valeria e Alicia, se
desenvolveu uma conversa da qual senti que não tinha a menor chance de participar.
Estavam falando sobre outros funcionários de Tribunales”. Faziam distinções entre
eles em função das localidades da zona sul do conurbano onde moravam, ou melhor, de
onde ‘eram’. A conversa se ampliou para traçar estilos diferenciais de vida e de pessoas
entre as distintas cidades ou bairros da região. Eu tinha na cabeça uma clara distinção
entre a zona norte e o resto das zonas do conurbano, mas não teria imaginado que
dentre os municípios de uma parte de poucos quilômetros da zona sul fossem
demarcadas diferenças sociais e culturais tão fortes. Foi uma informação chave para
entender quando, diante de casos específicos, eles enfatizavam de onde eram as pessoas
envolvidas. “O cara é de Aquiles, sempre bem arrumado, não para acreditar”, Valeria
comentando um caso de estelionato.
130
Foi o que aconteceu a primeira vez que Valeria me visitou em casa. Houve uma conversa na UFI, com
Bruno, Guia T de por meio, sobre como chegar, qual seria o melhor caminho e horário para sair.
131
Por exemplo, quando Valeria soube que tinha ido a um colégio secundário público, dependente da
Universidade de Buenos Aires e muito reconhecido por sua formação crítica e intelectual. “Eu sabia, viu?
Ela foi al [Colegio Nacional de] Buenos Aires”, disse para Sebastián que concordou imediatamente com a
“obviedade da novidade”.
134
Hoje, à luz de uma sistematização e reflexão maior sobre o conjunto da
pesquisa, percebo que a distância traçada por eles no início e, posteriormente, suavizada
através de piadas e ironias, mostrava também outra coisa. Como mencionei
anteriormente, não era uma forma de marcar fronteiras comigo. Era também um
modo de se aproximarem eles mesmos do mundo e dos valores sobre os quais -ou com
os quais- trabalhavam. Nesse traçado, eles se inscreviam no mundo no qual atuavam.
Um mundo circunscrito em espaço e perspectivas. “Aqui não passa nadaera uma frase
que contrastava com uma identidade a mim atribuída sobre ser de Capital, morar no Rio
e ser antropóloga, tal como eles imaginavam tal atividade. Contudo, como apontei na
introdução, na UFI e pela UFI passavam muitas coisas. Elas eram enquadradas nas
rotinas de trabalho, pautadas por critérios legais de procedimento, mas também por
hábitos institucionais, por costumes próprios dessa UFI, por trajetórias e estilos pessoais
dos funcionários e também pela natureza dos casos tratados. No próximo capítulo,
descrevo parte dessas rotinas: aquelas relativas a um período de trabalho particular o
turno”. Nesse contexto, dedico-me também as formas e conteúdos que adquiria o
contato com o “imputado”.
135
CAPÍTULO 4
O “turno
Quando Valeria me informou que o próximo turno começava no dia 26 de
setembro, me disse para chegar por volta das dez horas da manhã. Segundo ela, no
primeiro dia, “os presos chegam nessa hora, porque antes vão à defensoria e tudo
demora”. Conhecendo a dinâmica do turno”, fui entendendo o significado dessa
indicação.
No departamento de Los Pantanos, o turno de
cada UFI era de três dias, começando um dia à
meia-noite e finalizando 72 horas depois no
mesmo horário. Em outros departamentos, havia
turnosde 24 horas, ou de 48 horas, ou mesmo
de 15 dias. Quanto mais prolongada era a duração
do turno”, maior era o período de intervalo entre um turno” e o outro. Em Los
Pantanos, cada UFI estava de turnoou “entrava em turno”, como eles diziam, cada
40 dias. Por sua vez, as defensorias cumpriam turnosde uma semana. Também o juiz
de garantias tinha um regime de turno”, de uma semana a cada seis meses,
aproximadamente. Essa organização fazia com que a UFI estivesse “de turno com
diferentes defensorias e juízes de garantias. Esquema que diferia das fiscalías e
defensorias de juicio que sempre intervinham com o mesmo Tribunal Oral. Nos
turnosda UFI, saber qual era a defensoria e o juiz de turnoera fundamental para
planejar o trabalho. Conhecendo essas informações, eles tinham uma noção de quanto
demoraria o defensor em enviar o “imputado” para a UFI e quais seriam as prováveis
estratégias de defesa. Também servia para prever o tom e o tipo de pedidos realizados
ao “juiz de garantias”, como expliquei no Capítulo 2.
Assim que cheguei, cumprimentei Valeria e esta me apresentou Bruno –“o outro
promotor”. Estavam conversando na sala deste último. Na verdade, Valeria reclamava
estar cheia de sono. “Muitas ligações?”, perguntou Bruno. “Não, é que meu filho estava
com febre”. Olhou para mim e disse: “isto aqui vem muito tranqüilo”. Dizia isso porque
era ela quem tinha ficado com o telefone celular da UFI durante a noite.
O telefone era um objeto essencial do turno”, especialmente os telefones
celulares dos promotores. Desde o início até o fim, ou seja, desde as zero horas do
primeiro dia até as zero horas do terceiro, esses telefones deviam estar disponíveis para
136
receberam as ligações dos policiais que faziam o policiamento ostensivo na área de
competência da UFI. Durante cada uma das noites de um turno”, Sebastián, Valeria e
Bruno dividiam o atendimento, transferindo a linha de cada um deles a quem ficasse
responsável. Durante o dia, cada um recebia as ligações no seu celular. Alicia e Diego
também atendiam o telefone fixo ou, eventualmente, os celulares dos promotores. Da
quantidade de ligações recebidas dependia a quantidade de trabalho durante o turno”.
Naquela noite, as ligações tinham sido escassas; o “turno” “vinha tranqüilo”.
“Aqui é tudo perto, no bairro
Dando continuidade à conversa, Valeria disse que três ligações tinham sido por
causa de três mortos; uma senhora, um idoso e um menino de um ano. Eram casos que
ingressavam como averiguación de causales de muerte”, uma figura semelhante no
Brasil a “encontro de cadáver”. Já na UFI os três promotores atenderam ligações
referentes a casos diversos. Naquele primeiro dia fiquei na sala de Valeria, me
acostumando ao espaço a ao ritmo do trabalho.
Um roubo simples. O policial informou sobre dois “apreendidos”
132
. Valeria
pediu que os policiais fizessem um “croqui” do local, extração de sangue dos
“apreendidos”, que tomassem os depoimentos das testemunhas e levassem os
apreendidos à UFI às oito horas do dia seguinte. Outra ligação informou Valeria de um
“apreendido” de 15 anos de idade por um roubo. Ela informou –ou lembrou- ao policial
que menores de 16 anos são “inimputáveis”
133
. De qualquer forma, perguntou o nome
do menino e anotou a idade.
Sebastián entrou na sala e comentou sobre outra situação: um policial tinha
ligado porque um rapaz deixou cair um projétil. “Isso não é crime; no código velho era,
posse de munição de guerra”. Outra ligação por um roubo e, logo depois, outra por
tentativa de roubo. Em seguida, um policial informou que acharam “um bebe morto no
lixo”. Valeria pediu que ligassem de novo quando chegassem os peritos. Horas depois
informaram que era um cachorro. “Devia ser um feto”, me explicou (!?) Valeria.
132
“Apreendido” era a categoria jurídica com a qual se referiam às pessoas presas pela polícia em
flagrante, antes de serem “imputados” judicialmente de qualquer crime (artigos 153 a 156 do CPP-PBA).
133
Na época do trabalho de campo, estava se constituindo ofuero penal de responsabilidad juvenil”, que
atenderia as pessoas entre 16 e 18 anos. Enquanto isso, as UFIs de maiores recebiam as ligações dos
flagrantes envolvendo menores e posteriormente as derivavam para a justiça de menores que ainda vigia.
137
Sebastián atendeu uma nova ligação. “Roubo de toca-fitas”, disse o policial.
“Tentativa de furto”, contra-respondeu o promotor. Um rapaz tinha entrado no carro
aberto de uma senhora. Os policiais pegaram o menino em torno do local. A senhora
conhecia o jovem porque morava na esquina dela. Em seguida, Sebastián atendeu outra
ligação. Outro rapaz tinha roubado um casal na casa deles. Outro telefonema, outro
roubo: “um bando que, desde a madrugada, está roubando as casas do bairro”, informou
o policial. Os garotos moravam a uma quadra da casa roubada. Um deles tinha fugido e
outro tinha sido pego na casa. Ao desligar, Sebastián comentou que “na província de
Buenos Aires os que mais sofrem a insegurança são os mais pobres; alguns filhos da
puta, mas a maioria tem a ver com a marginalidade; seria bom fazer um levantamento
comparando o local do fato com o endereço de moradia dos autores, aqui é tudo perto,
no bairro”.
Alicia atendeu uma ligação no telefone fixo. Era por uma briga com troca de
tiros de balas de borracha, entre “bandinhos”. O policial informou o local e o nome do
rapaz “apreendido”. Alicia conhecia esse nome. Ele tinha outros processos na UFI e
até um apelido entre eles, “Pico”, como abreviação do sobrenome. Como quem consulta
uma decisão tomada, Alicia disse para Valeria: “eu peço tentativa de homicídio, para
que, pelo menos, se acalmem por algumas horas, depois vai cair”. O caso deu o que
falar na UFI. Dias depois, uma das timas dos disparos depôs diante de Alicia. Disse
que “Picoletti tem raiva de mim, sempre está me chutando, sacaneando. No bairro
dizem que ele tem inveja de mim porque eu tenho tudo e ando de carro e ele não tem
nada e anda a pé”. Naquele mesmo dia, depôs a irmã desse garoto, também tima dos
tiros. Acrescentou que o irmão mais novo deles, de 14 anos, “anda de beijo na boca com
a namorada de Picoletti e, quando este soube, falou para meu irmão parar com isso”. Eu
saberia disso dias depois, pois, por enquanto, na UFI continuavam recebendo
ligações.
Enquanto Alicia decidia pela “tentativa de homicídio”, Valeria recebeu outra
ligação por uma pessoa que andava na rua com uma granada. Pediu para o policial
aguardar e consultou com Sebastián, pois ela achava que granada não era competência
deles, mas da justiça federal. “Deixá-lo preso e amanhã vemos”, sugeriu Sebastián.
Tratava-se de um rapaz que, fugindo da polícia, tinha caído de um teto de 30 metros de
altura. A piada foi unânime: “vai dizer que a polícia bateu nele e o jogou de 30
metros!”. No dia seguinte, acompanhei Valeria no hospital para tomar o depoimento
138
dele. Também estava a defensora oficial. Em um corredor, separado com biombos, de
um hospital público, estava algemado à cama. Por conselho da defensora se negou a
depor, mas conversou longamente com Valeria. Seu nome era Francisco Andrade.
Contou que tinha problemas com droga, mas que havia muito tempo que não usava.
Disse não saber por que tinha usado de novo naquele dia, mas justificou-se por ter
brigado com sua ex-mulher: “eu sou uma pessoa boa, minha filha é minha vida”. “Você
tem que entender que andar com uma granada e drogado é muito grave, você poderia ter
matado alguém. Aproveita esse tempo de ficar aqui para refletir sobre a droga”, indicou
Valeria. “Tenha piedade de mim”, pediu o rapaz a uma Valeria que insistia na
necessidade dele se recuperar e refletir. O rapaz ficou muito agradecido. Ao sair Valeria
comentou comigo que as pessoas às vezes a confundem com a defensora. Vinte dias
depois, Valeria me disse que o rapaz tinha ficado paralítico e que ela tinha pedido a
liberdade dele.
Após o almoço, passadas as 14 horas, uma senhora se apresentou na Mesa de
Entradas”. Disse que queria denunciar um “estelionato” de um fundo de comércio
inexistente. Acompanhei Valeria até o balcão. A senhora contou rapidamente para
Valeria do que se tratava. “Uma molecagem”, concluiu a promotora. “Não, no meu
idioma isso é descumprimento de contrato. Talvez também uma picardia, não sei”.
Pensei que pareciam ter trocado as linguagens; a senhora colocando uma categoria
jurídica e a promotora caracterizando a situação fora dos termos formais. Valeria pediu
para Fred tomar a denúncia: “é um problema porque está passada, empastillada
134
. Fala
tudo ao mesmo tempo, muitas palavras sem conteúdo. Tenta fazer com que organize o
relato”. Fred encarou a situação. A mulher falou, falou e falou:
Fred: até agora no que você me disse não há delito.
Senhora: é um delito, não estará no Código Penal, mas é um delito. O que é um
delito então? Que pegue uma arma e me mate?
Fred: não há danos e prejuízos no que você me conta.
Senhora: então me averigue se ele está habilitado [o comércio do denunciado por
ela].
Fred: entenda que você agora está me falando de uma outra coisa.
Senhora: eu estou falando do que aconteceu. Ele me fudeu e eu quero fuder com
ele, ele é um merda.
[Fred parou a conversa e disse que iria começar a redigir a denúncia].
Senhora: e será que vale a pena?
Fred: bom, eu já falei que para mim não há delito.
134
Refere-se a quem tomou pastilhas ou pílulas. No Brasil, é comum dizer, nestes casos, que a pessoa
“tomou balinha”.
139
Senhora: se não vão ficar antecedentes para ele, não serve, vou embora trabalhar.
Depois de 40 minutos de conversa, a mulher foi embora sem registrar nada.
Valeria perguntou pela situação e recriminou Fred por não ter tomado a denúncia. Para
ela, teria sido prudente, pois a senhora poderia reclamar deles: “tem que escrever todas
as loucuras que ela disse; ela quer vingança, não justiça”.
Minutos depois entrou Diego na sala de Valeria. Estava assombrado: o policial
tinha informado que um homem tinha entrado em uma casa para roubar e, quando a
polícia entrou, tinha deitado em uma cadeira de praia, como se estivesse descansado no
pátio!
Um comisario ligou para o celular de Sebastián. Informou sobre um roubo”
ele disse “ilícito”, mas Sebastián disse que sempre que os policiais dizem “ilícito” é
“roubo”- em uma loja de comestíveis. Aparentemente, a atendente tinha levado uma
facada no estômago. O policial contou que a menina, Patrícia Juarez, chegou a
identificar o autor, porque era conhecido dela; trabalhava em uma obra em construção
no bairro e sempre comprava na loja. Disse que o nome seria Esteban e que teria uma
mecha branca no cabelo. Por ordem do comisario, os policiais tinham ido até a obra e
falado com o responsável. Este senhor disse que Esteban era seu sobrinho e que tinha
contratado Esteban porque, havia dois meses, tinha saído da prisão e estava
desempregado. Da obra, os policiais foram para a casa da mãe de Esteban. Chegada essa
instância, o comisario ligava para o promotor de turnopara “saber o que fazer”, ou
melhor, como fazer o que estava decidido: como prender Esteban Garza, sendo que
este estava dentro da casa, e não no espaço público. Sebastián colocou o celular em
função viva voz para eu ouvir a conversa.
Sebastián: tem certeza que está dentro da casa da mãe?
Policial: a gente viu ele entrando, mas um mandado de busca vai demorar
muito
135
.
Sebastián: tente que o tio o enrole para que saia.
Policial: sim, mas não saiu. Doutor, e se, para que saia, ligamos oferecendo um
trabalho?
Sebastián: pode ser. Uma vez que sair, se voltar a entrar vocês podem prendê-lo.
Há alguma coisa documentada?
Policial: não.
Sebastián: bom, lógico, mas para o mandado de busca deveria estar. Portanto,
tentem fazer que o tio o convença de sair.
135
Um “mandado de busca” deve ser solicitado por escrito pelo promotor ao juiz de garantias de “turno
e este deve aprová-lo.
140
Na manhã seguinte, a primeira coisa que soube quando cheguei à UFI, foi que às
23h da noite, quando Esteban saiu da casa, foi preso pelo policial que, à paisana, tinha
ficado vigiando. “O cara se fudeu, porque estava em liberdade condicional [por um
processo anterior] e isso aqui é tentativa de homicídio; no mínimo, vão lhe dar cinco ou
seis anos [de pena]”, disse Sebastián. O caso ficou sob responsabilidade de Valeria.
Seria um dos casos que acompanhei com bastante atenção. O vínculo prévio entre
Patrícia Juarez, a vítima, e Esteban Garza, o “imputado”, me intrigou em um tipo de
crime como o narrado.
Naquele primeiro dia, saímos da UFI por volta de 8h da noite. Valeria ofereceu
me levar de carro até a estação. No trajeto, tocou o celular; nova ligação. O policial
informou “o roubo de um carro e disparos com uma arma sem carregador” (?!). Valeria
achou estranho e pediu que lessem a ata policial. Fiquei olhando para Valeria: “como
assim?! A ata é das 18h15 e o senhor me liga às 20h15, por que é que estão me ligando
duas horas depois?!”, “porque a ata demorou a ser feita...”, “sim, mas devem me ligar
quando acontece o fato”. Quando desligou, olhou para mim e disse: “viu, isso aqui é
armar”. Se referindo à categoria utilizada quando a polícia inventava ou tergiversava
versões no processo. No dia seguinte, Valeria me disse: “colocaram um foragido com
uma arma. Chegam a ser até engraçados”, em referência à atuação dos policiais.
As ligações
As ligações eram provocadas pelas intervenções que os policiais faziam na área
do departamento de Los Pantanos. Eram os casos que, posteriormente, viriam a ser
trabalhados na UFI. Diante de qualquer situação que representasse um crime (de tipo
“criminal”), o policial devia ligar, desde o local, para a UFI que estivesse de “turno”.
A enorme maioria dos casos que ingressavam durante o “turno” o faziam através
destas ligações. Uma minoria ingressava a partir das denúncias apresentadas na “Oficina
de Denuncias”. Esta ficava no térreo do prédio de Tribunales. Funcionava entre as sete
e as catorze horas. As pessoas que chegavam depois desse horário, como a senhora
atendida por Fred, eram encaminhadas à UFI de turno para que um funcionário
registrasse –ou não- a denúncia.
Geralmente, as ligações da polícia envolviam casos de “flagrantes”; mas também
outros casos nos quais a polícia tomava conhecimento de um eventual crime. Quando
141
ocorria um “roubo” ou um “homicídio”, ou alguém encontrava um cadáver, ligava para
a polícia comisaría ou ao serviço de emergência “101”) ou chamava os policiais que
estavam por perto. Eram os policiais os primeiros em acudir ao local. Uma vez que
tomassem conhecimento do fato, deviam ligar para a UFI.
Além de comunicar a situação ao promotor, a ligação tinha como objetivo
receber indicações por parte deste sobre os passos a seguir. Tratava-se de indicações
básicas, “quase mecânicas”, sobre o caso. Pediam para os policiais relatarem a situação
e informarem a quantidade de pessoas envolvidas, o nome, a idade, o local e hora do
fato. Também indicavam a realização de algumas medidas padrão: extração de sangue
para saber se a pessoa envolvida estava sob efeitos de droga ou álcool, certificação do
domicílio, tomada de depoimentos de eventuais testemunhas, realização de um
“croqui”, tomada de fotografias.
A decisão mais significativa que tomava o promotor que recebesse a ligação
dizia respeito a se a pessoa “apreendida” ficaria presa na sede policial até o momento de
ir à UFI (geralmente, no dia seguinte pela manhã), ou se, certificado o domicílio, ficaria
em liberdade, com citação para se apresentar na UFI no dia seguinte. A classificação da
situação relatada pelo policial em uma categoria do Código Penal era o primeiro critério
para tomar esta decisão, porque crimes que podem ser eximidos de prisão
(“excarcelables
136
) e outros que não. Um homicídio, por exemplo, não é eximido de
prisão, pois a pena é alta e o sistema pressupõe que a pessoa tentará fugir pela ameaça
de ser condenada por essa pena. Mas esse critério e a decisão se entrelaçavam. As
diferentes situações informadas podiam ser classificadas sob uma categoria penal ou
outra. E isso, às vezes, dependia da decisão prévia sobre se deixar a pessoa presa ou em
liberdade. Eu peço tentativa de homicídio, para que, pelo menos, se acalmem por
algumas horas”, decidiu Alicia. “Deixá-lo preso e amanhã vemos”, sugeriu Sebastián
para Valeria.
Nesta etapa inicial do processo, a pessoa ficaria presa no máximo 24 horas até
ser conduzida pelos policiais à UFI. Durante esse período a categoria para se referir a
ela era “apreendido”. Virava detenidouma vez em contato com a UFI, quando era
chamado para lhe informar da “imputação” que pesava sobre ele. Mais de uma vez,
Valeria fazia questão de corrigir os policiais quando eles diziam que tinham “um
136
Manterei a categoria em espanhol. Trata-se de crimes que, por lei, admitem “liberdade provisória”.
Aqueles que não admitem, denominam-se “no excarcelables”.
142
detenido”: “apreendido corrigia-, detenido é decisão judicial, não dos senhores”. Esta
primeira decisão sobre a “apreensão” da pessoa não era mecânica, ou melhor, não era
unânime. Quando Bruno ficava com o telefone à noite, na UFI todos prediziam que
haveria poucos presos no dia seguinte.
Lucia: como foi a noite? Muitos presos?
Bruno: dois.
Lucia: dormiu tranqüilo então.
Bruno: não, muitas ligações, mas poucos presos.
A quantidade de ligações que houvesse durante a noite refletiria o trabalho no
dia seguinte, pois tudo o que a polícia comunicava durante o turnoque representasse
um eventual crime, devia acabar posteriormente na UFI não o cachorro morto, não o
projétil que caiu de uma pessoa, mas sim todas as outras situações. Todas as ligações
eram registradas, por turno”, em uma planilha com o nome, hora, dia e classificação
penal. Posteriormente, acrescentava-se a decisão sobre “prisão preventiva” (“PP”) ou
não (“Liberdade”). No primeiro turnoque acompanhei, do mês de setembro de 2007,
foram registradas 36 pessoas, das quais 12 ficaram em liberdade e 24 com prisão
preventiva
137
. Em outros turnos”, nessa UFI, as pessoas registradas variavam entre 35
a 60, com uma média de 15 “prisões preventivas”.
Após o telefonema, os policiais deviam realizar as indicações ordenadas pelo
promotor e registrar tudo por escrito. Faziam isso no chamado sumário de
prevenção”
138
. Este documento era enviado à UFI através do chamado “correio
policial”. Acontecia que houvesse alguma ligação registrada cujo “sumário” não
chegasse à UFI. Essa situação, quando detectada, gerava uma ligação desde a UFI
cobrando pelo envio, com as conseqüentes desculpas por parte dos policiais. Essas
situações não deixavam de gerar bastante mal-estar entre os funcionários da UFI.
Sebastián tomava o depoimento de um policial, em um caso de encontro de
veículo e de homicídio culposo. Os policiais tinham enviado dois “sumários” separados,
quando, na visão de Sebastián, os casos estavam integramente relacionados. Perguntou
ao policial por que tinham enviado os “sumários” por separado e com 30 dias de
diferença um de outro. “Porque foi o que o senhor ordenou”, respondeu o policial.
137
As classificações penais foram por “roubo simples”, “roubo em bando”, “encobrimento agravado”,
“roubo com arma”, “tentativa de homicídio”, “abuso”.
138
O “sumário de prevenção” ou “sumário policial” não é semelhante ao “inquérito policial” da polícia
civil brasileira. No “sumário”, a polícia argentina não tem a atribuição de indiciar ninguém, nem de
tipificar o crime legalmente e deve enviá-lo à autoridade judicial correspondente no prazo de 24 horas.
Além disso, como referi, ele é construído, pelo menos em teoria, sob orientação da autoridade judicial.
143
Terminado o depoimento, Sebastián marcou que não ia discutir com o policial durante o
depoimento, porque não se tratava de uma “acareação”
139
, mas que ele até poderia ter
dito que fizessem dois “sumários”, mas nunca que não os relacionassem. “A cana faz a
truchada
140
por grana, faz isso para que aquele que atropelou uma pessoa possa dizer
que seu carro foi roubado. É impossível você se lembrar de todas as ligações, do que é
que você falou ou não e a cana se baseia nisso”.
Como lidar com os policiais era um assunto delicado. Com matizes marcados
pelos estilos distintos de trabalho, a imposição de autoridade e/ou esperteza –“não vão
passar a perna na gente”- ia também acompanhada da demonstração de certa empatia ou
afinidade. A oscilação era permanente e estava fundada na interdependência do trabalho
policial e judicial. Como relatei no caso de Dario no Capítulo1, o intervalo entre a
ligação e o envio do “sumário” era um tempo durante o qual a polícia tinha autonomia
para realizar seu trabalho. Como também o era o intervalo entre o conhecimento de um
fato e a ligação ou não ligação, como vivenciou Valeria com a ligação duas horas
depois “do tiroteio com arma sem carregador”
141
.
Quando o “sumário” era enviado à UFI, o “correio
policial” era recebido, na “Mesa de Entradas”, por Zé.
Colocava a documentação de cada “sumario” em uma
nova pasta com um número de IPP”, ressaltando se
havia alguma pessoa presa ou não “Com preso”, se
lia na capa do processo quando era o caso
142
. Assim, o
“sumário de prevenção policial” virava um processo judicial; no caso, uma IPP”.
139
A acareação é um procedimento desenvolvido para confrontar duas pessoas envolvidas em um
processo judicial que afirmam duas versões dos fatos contraditórias. Pode envolver o imputado, a vítima
ou uma testemunha. Na PBA, está pautado nos artigo 263, 264 e 265 do CPP-PBA.
140
Cana refere a polícia / policial. Truchada é uma categoria para se referir a uma coisa que quer se
passar por outra, através de algum tipo de esperteza.
141
No tempo em que a polícia prende uma pessoa e o judiciário, no caso as UFIs, tomam conhecimento
(ou não) dessa situação podem acontecer diversas coisas, sobre as quais advogados particulares me
contaram sua experiência. Basicamente, é um intervalo em que os policiais aproveitam essa autonomia
para negociar com o preso, podendo também fazê-lo através de seus familiares ou advogado. A
negociação pode envolver a troca de informações sobre outro crime ou de dinheiro sob a ameaça de
iniciar um processo por uma qualificação maior daquela que deu início à detenção (de averiguação de
identidade para roubo, de roubo a roubo com arma, etc.), ou bem, caso se aceite a troca, a imediata
liberação sem sequer o Judiciário ter notícia da detenção. Também pode negociar prender alguém por um
crime, geralmente envolvendo acidentes de trânsito, e coagi-lo a contratar um advogado vinculado a eles,
em troca de uma situação mais favorável. Como dizia Luis Real, “a polícia te cria o problema e te vende a
solução”.
142
Embora fosse uma prática judiciária comum, uma instrução do promotor titular da UFI assim o
lembrava a seus funcionários. “Lembrete em processos com preso e com 308 (com a data de
vencimento)”.
144
também colocava os dados no sistema informático da própria UFI para poder localizar o
andamento do processo quando alguém perguntasse alguma coisa na Mesa de
Entradas”; no sistema da Procuração e em um sistema, na época recente, chamado
Registro Único de Detenidos–“R.U.D.”
143
. Os casos com pessoas identificadas como
“autores” eram enviados à defensoria pública de “turno”. Após todo esse trabalho,
deixava as “IPPs” na mesa de Sebastián. Como promotor titular, ele era o encarregado
de distribuir os casos entre todos os integrantes da UFI.
Distribuição de funções
Na UFI K, era decisão que todos trabalhassem no andamento dos processos,
desde o promotor titular até o funcionário de menor hierarquia, com designação oficial
(excluídos, então, os atendentes de Mesa de Entradas”). Isto incluía, portanto, pessoas
formadas em direito, ou não e/ou estudantes de direito ou de algum outro curso
superior; ou não. A educação formal não era o critério de atribuição de casos. Este se
vinculava à experiência prática de trabalho adquirida por cada um. Também eram
consideradas habilidades e preferências de cada funcionário. Havia, de fato, alguns
critérios estabelecidos, não alheios a certos questionamentos e/ou mudanças.
Os casos considerados “mais complexos”, como estupro, homicídio,
defraudação, roubos “complicados”, eram distribuídos entre Diego, o secretário; Alicia,
a instrutora; Valeria; Bruno e, eventualmente, Sebastián. Por sua vez, entre eles, havia
outros critérios baseados em certas afinidades ou estilos de trabalho. Como disse no
capítulo anterior, Bruno trabalhava casos de crimes financeiros (defraudações,
estelionato). De fato, quando saiu da UFI para assumir como juiz, ninguém mostrou
muito entusiasmo em dar continuidade a esses processos. Eram considerados de um
conhecimento muito específico. Valeria trabalhava vários tipos de casos, mas também
era costume enviar para ela casos com policiais envolvidos como supostos autores.
Alicia também levava homicídios, e, como disse no capítulo anterior, casos de abusos
ou estupros que progressivamente estavam sendo distribuídos, junto com outros crimes
143
O R.U.D. era uma exigência recente “pelo tema das violações aos direitos humanos pelo tempo de
detenção, as condições de detenção das comisarías, e essas coisas”, explicou Sebastián. Em maio de
2006, a Corte Suprema da província deu lugar a uma petição do CELS, apresentada em nome de seu
presidente, e assim conhecida no ambiente como a sentença“Verbitsky”. Através da mesma se regulavam
e controlavam as condições de detenção dos presos em comisarías bonaerenses, a fim de cumprir com as
condições de detenção estabelecidas na lei nacional e nos pactos internacionais de direitos humanos
(CSJN, causa V856/02 “Verbitsky, Horacio - representante del Centro de Estudios Legales y Sociales-
s/hábeas corpus”).
145
contra crianças, entre Diego e Bruno. O pedido tinha partido da própria Alicia que,
dizia-se, “muito tocada e sensível a esses casos”.
Valeria e Sebastián manifestavam entender o espaço da UFI como um lugar de
formação; portanto, “não ninguém dedicado apenas a um tipo de crime, porque além
de muito chato imagina, a vida toda com um roubo simples-, rende pouco para a
experiência”. Nesse contexto, os “meninos” trabalhavam diversos casos dentre aqueles
representados como mais simples e rotineiros, como tentativa de roubo, roubo, roubo
com arma, roubo de automotor, alguma falsa denúncia. Na verdade, esta delegação não
dependia apenas da classificação penal do caso, pois havia tipos de roubo ou falsas
denúncias consideradas mais complexas que eram trabalhadas por outros funcionários,
inclusive por Valeria ou Sebastián. De qualquer forma, o critério era, aos poucos, ir
fortalecendo a experiência dos “meninos”.
As consultas com os promotores eram permanentes e estes podiam também
acompanhar alguma situação específica no andamento do trabalho. Na verdade, este
acompanhamento era domínio prioritário de Sebastián
144
. Ele sempre estava presente se
o caso envolvesse o procedimento de “reconhecimento do acusado em roda de pessoas”,
ou uma eventual ida ao “local do fato”. Também podia presenciar algum depoimento no
qual considerasse necessário estar presente. Assim, a participação dos promotores nos
processos trabalhados pelos “meninos” parecia se dar quando o processo precisava de
certa formalização para ‘fora’ da UFI ou com a presença de alguém “fora do sistema”.
Mas, nem sempre que houvesse um advogado particular Sebastián, Valeria ou Bruno
tomavam conta ou participavam dos atos de um processo dos “meninos”.
era outubro, quando Valeria me disse estar um pouco nervosa com um
depoimento em um processo de Fred. Chamou-me a atenção o comentário, pois não
tinha visto ela participar presencialmente dos processos do Fred, a não ser resolvendo
consultas, lendo e assinando. Perguntei o motivo do nervosismo: “é que vêm os
advogados, um deles foi vereador de Lurdes [um município da zona sul do
conurbano]”. Fred tomou o depoimento sozinho. Havia mais de nove meses, um jovem
tinha roubado a bicicleta do padre da igreja do mesmo bairro do jovem. A maior
144
Nas instruções escritas, que Sebastián, como promotor titular, fazia circular de tempos em tempos na
UFI havia uma incentivando a formulação de consultas, contra os perigos de uma prática tradicional da
burocracia pública. Dizia assim: “Se o processo não é entendido ou não se sabe o quê fazer, NUNCA
engavetá-lo, mas perguntar a um Promotor qual diligência pode ser feita”.
146
importância dada ao caso, dizia Fred, era porque o roubo tinha sido cometido exibindo
uma arma. Naquele dia iriam depor o caseiro da igreja e o padre, respectivamente
testemunha e vítima do “roubo”. Os advogados do jovem “imputado” presenciaram os
dois depoimentos. Assim que Fred começou tomar o depoimento do caseiro, este
manifestou estar “muito nervoso”, que “tudo isto tinha passado muito tempo”. Fred
iniciou lendo o depoimento do caseiro na sede policial, logo após acontecido o fato. E
fez alguma que outra pergunta, sem ainda registrar por escrito.
(…) Caseiro: eu falei para aquele que nos tomou o depoimento antes [o
policial] que eu fiquei de costas.
Advogado: eu acho que está para ir tomando nota, porque está dizendo coisas
importantes, como ser que estava de costas.
Fred, se dirigindo ao caseiro e ignorando o comentário do advogado: você está
de acordo com o depoimento que eu li?
Advogado, interrompendo: eu acho que não, que se contradiz com o que ele
disse, porque ele disse que era Paulo e agora diz que não viu ele. Eu quero que
você coloque isso.
Fred, ao advogado: espere, primeiro fazemos o depoimento e depois é sua vez de
perguntar.
Advogado: mas é só isso que eu peço para você colocar.
Fred: ok, coloco assim: “que por ditos do padre soube que era Paulo”.
Advogado: sim, está claríssimo.
(...)
Caseiro: aí escutei os cachorros e olhei pela janela.
Fred: o que é que você viu?
Caseiro, com tom impaciente: o que falei, um homem encapuzado... o padre
com sua bicicleta e alguém que tinha alguma coisa na mão, prateada.
Advogado: ficou [na ata] encapuzado, como ele disse?
Fred: não, vou acrescentar.
Enquanto o caseiro continuou respondendo as perguntas de Fred, os advogados
pediram ver o processo. Interromperam mais uma vez o depoimento e pediram para ver
o resultado da perícia da arma que ainda não estava incorporada ao processo. Fred
entregou o solicitado. E continuou perguntando:
Fred: você sabia a quem o padre estava se referindo?
Caseiro: sim, claro porque sabia o apelido, aí supus que era ele.
Advogado: supôs? Coloca “supôs que se tratava de ….”.
A forma de intervenção durante o depoimento do caseiro, bem como do padre
logo depois, pareceu-me, ao menos, intensa, se comparada com a participação de
advogados particulares em depoimentos tomados pelos promotores, ou mesmo por
Alicia ou Diego. Entre as solicitações dos advogados e as respostas de Fred, houve
momentos de tensão sobre o que seria correto decidir. Em duas oportunidades, Fred saiu
147
da sala para consultar Valeria sobre, por exemplo, se mostrar ou não a perícia da arma.
Os advogados questionavam a tal ponto a forma de registro do depoimento por parte de
Fred que achei que acabariam questionando a participação de Fred como responsável
pelo processo. Ao final, quem assinava tudo era Valeria e a delegação não estava
prevista legalmente.
Mas eu estava errada. Nenhum questionamento deste tipo apareceu, nem neste
caso nem em nenhum outro que não fosse trabalhado pelos promotores, “titulares da
ação pública”, conforme o Código. Porque a questão não era que os responsáveis não
fossem formados em direito, ou que nem fossem aqueles que assinavam formalmente as
decisões. O ponto parecia ser, em tal caso, fazer uso das diferenças de experiência entre
os agentes do sistema, dentro de uma organização e delegação de funções conhecida e
aceita previamente. As insistências, provocações e exigências dos advogados eram,
então, (mais) uma forma de construir a estratégia de defesa, aproveitando os modos
rotineiros de trabalho nas UFIs e, especialmente, de produção dos depoimentos. Não
era, de modo algum, o questionamento de uma delegação de funções aceita por todos.
Nem os advogados esperavam encontrar os “titulares da ação pública” em todos
os atos, nem também os funcionários das UFIs esperavam encontrar os titulares das
defensorias, em todos os momentos do processo. A maioria das vezes em que se fazia
necessária a “presença do defensor”, seja para um ato de reconhecimento de um
“imputado” por parte de testemunhas, seja para um depoimento, quem acudia não era o
defensor, mas um funcionário da defensoria. ‘Essa’ presença e não outra estava dentro
das expectativas dos funcionários
145
. Parecia, inclusive, uma interação padronizada.
E, curiosamente ou não, também não parecia ser um problema para testemunhas
ou réus. Eles sabiam que deviam falar para quem estivesse diante deles. Pouco
importava o cargo que ocupassem. Todos aqueles que os recebiam estavam diante de
um computador, separados por uma mesa e perguntando informações. Quando Valeria
tomava o depoimento de Lorenzo, o senhor que tinha disparado a escopeta contra o
irmão de sua ex-namorada, ele insistia que queria “falar com o juiz, porque eu moro
duas quadras da casa do juiz; sou vizinho dele”. “Não, Lorenzo, o senhor mora duas
145
Isto não quer dizer que os titulares –defensores ou promotores- não estivessem nunca presentes, mas
que apenas estavam nos casos que eles trabalhavam, conforme a distribuição de processos de cada
unidade. Este ponto difere da minha etnografia na Justiça Federal, na cidade de Buenos Aires, onde a
delegação nos funcionários de menor hierarquia por parte do “juiz de instrução”, responsável pela
investigação dos processos, era muito maior (Eilbaum, 2008).
148
quadras do promotor titular, mas quem ‘leva’ esse processo sou eu”. Em outros casos,
também o imputado ou uma testemunha chamaram o funcionário de “juiz”, como se
esse fosse o cargo de autoridade que englobasse todos os outros. O Dr. Felllini, um
advogado com uma visão crítica destas interações, me dizia que, para ele:
toda uma confusão também dos familiares, porque às vezes me dizem ‘falei
com a juíza’ e você diz ‘se é um juiz, como assim com a juíza?’, ‘a menina que
me atendeu’, ‘ah, a meritória da Mesa de Entradas’. O imaginário é que quem
atende é o juiz e o certo é que os funcionários nunca se ocupam de esclarecer
que são funcionários e não são juízes. (Entrevista com Dr. Fellini, 07/05/09)
Na minha percepção, não se tratava tanto de saber o cargo correto da pessoa com
a qual falavam, mas de outorgar autoridade ao interlocutor que os tinha recebido.
Apesar dos esclarecimentos de Valeria, Lorenzo continuou dizendo que morava do lado
do juiz. Inclusive, pessoas achegadas a ele, aproveitando a proximidade de vizinhança,
deixaram uma carta na mesmíssima casa “do juiz de Sebastián- reclamando pela
liberdade de Lorenzo. Ao final, embora fosse Valeria a responsável pelo processo, a
capa de todos os processos dessa UFI tinha o nome do promotor titular, Sebastián
Vázquez.
“Pedir o preso
No ritmo do turno”, na medida em que acompanhava as ligações da polícia me
movia também de sala em sala. Quando tocava a campainha da porta de trás, ficava
atenta para saber onde me dirigir. Eram os guardas que avisavam que “traziam um preso
de baixo”. “Baixo” sinalizava o subsolo do prédio. estava localizada a carceragem
onde os presos aguardavam a realização de qualquer ato judicial que requeresse sua
presença (julgamento, depoimento, reconhecimento). Quando citados, eram
transladados do local onde estivessem presos (comisaría ou prisão), para o prédio de
Tribunales”. O local tinha uma entrada específica para que ingressassem as viaturas da
polícia ou do serviço penitenciário.
O subsolo era, como previsível, um local lúgubre e escuro. Além disso, a
umidade impregnava as paredes e o piso. A área da carceragem era, fundamentalmente,
um corredor dividido em duas partes separadas por uma grade. De um lado era a ante-
sala. Ficava um policial registrando, em um “livro”, as entradas e saídas dos presos. Era
também quem atendia, pelo telefone, os funcionários judiciais que “pediam um preso”.
Do outro lado da grade, estavam as celas. Eram dois grupos de celas a cada lado de um
149
corredor. Havia quatro celas, uma delas exclusiva para mulheres. Em cada uma,
esperavam várias pessoas. Elas aguardavam ser chamadas. Ao final do corredor das
celas, uma parede com duas portas separava a sala de reconhecimento”. Por isso,
conheci a carceragem logo no primeiro turno”, quando acompanhei Fred para o
“reconhecimento em roda de pessoas” de Paulo, o jovem que teria roubado a bicicleta
do padre da igreja do bairro. No Capítulo 7, explicarei em que consiste este
procedimento. Foi também quando conheci Lucas Lufi, um jovem preso do qual tinha
ouvido falar desde meu primeiro dia na UFI. Lembro que, pela forma em que me foi
indicado quem era, parecia estar conhecendo Hannibal Lecter, o assassino serial do
filme “O silêncio dos inocentes”.
Era desde esse espaço que vinha quem tocava a campaninha do corredor da UFI.
Aquele som identificava que o preso “pedido” por alguém da UFI tinha chegado.
Principalmente durante oturno”, o objetivo do pedido era que o preso subisse para que
seja tomado o depoimento dele. Antes disso, ele teria subido à defensoria para se
entrevistar com o defensor ou algum funcionário dessa unidade. Após essa entrevista,
subia diretamente para a UFI, ou descia novamente para a carceragem para, mais tarde,
subir novamente à UFI. Esses movimentos não eram indiferentes.
“Pedir o preso” era objeto de freqüentes reclamações, em função do tempo que
os guardas levavam para “subí-lo”. “Não trazem meu preso”, “há mais de uma hora que
pedi o preso”, “Alicia, por favor, liga reclamando meu preso!”, foram frases que ouvi,
em várias ocasiões, por parte de todos os funcionários da UFI. Alicia, com seu
temperamento elétrico” como a caracterizara aquele policial, era o maior alvo das
solicitações de todos para que “pedisse e/ou reclamasse o preso” que aguardavam. Ela
também telefonava insistentemente para reclamar pelos seus próprios presos.
Basta eu me lembrar do humor de Alicia, em uma sexta-feira de inícios de
dezembro. Os “meninos” entravam na sala de Alicia para irem almoçar e dar por
terminada a semana de trabalho. Faz parte do senso comum de Tribunales que as
sextas-feiras o expediente encerra mais cedo. Particularmente, nessa UFI, sexta-feira era
dia de um rito especial: era “dia de parrillita”. Os funcionários do sexo masculino, e
poucas vezes também Alicia, saíam a almoçar para já não voltar ao prédio até a
segunda-feira seguinte. Os outros dias almoçavam na mesma UFI, interrompendo as
atividades e retomando-as até às 15h ou 16h, dependendo do dia e do funcionário. Mas,
nas sextas o expediente ia até o encerramento do horário formal de atendimento ao
150
público, 13h. Naquela sexta-feira eram às 14h quando finalmente “subiram o preso” de
Alicia. Tratava-se de um preso que queria apresentar uma denúncia de “maus tratos” na
Unidade prisional onde estava alojado.
Alicia: você está fora do horário para fazer a denúncia. Você tem que se
comunicar com o defensor. Por que você não se comunicou com o defensor?
Jovem: é que minha família falou com o defensor e lhe disseram que não era o
dia [algumas defensorias públicas tinham dias fixos de atendimento dos
familiares].
Alicia: eu não posso fazer nada porque hoje é sexta e trouxeram vo às 14
horas.
Alicia telefonou para a Oficina de Denúncias e explicou a situação: “em dez
minutos o mando para lá”. O horário da Oficina de Denúncias estava se esgotando.
Alicia tomou o depoimento do jovem, lhe fazendo várias perguntas sobre a situação
denunciada. O fato de ter sido uma denúncia por “maus tratos” na prisão não contribuía
com a paciência de Alicia que, finalmente, demonstrou ser maior do que seu humor. Os
casos de denúncias “por maus tratos” ou “torturaeram vistos na UFI como casos que
não conduziam para uma resolução concreta. Ou eram difíceis de provar (“porque os
próprios agentes se encobrem”, disse uma vez Diego), ou os próprios presos desistiam
da denúncia por ameaças ou temor dos policiais ou agentes penitenciários. Embora ela
mesma achasse que a denúncia fosse terminar em nada, fez tudo com detalhe. Quando
deu por terminado o depoimento, a Oficina de Denúncias estava fechada e os
“meninos” cheios de fome. Não acreditavam ter tido que esperar até “tão tarde”.
A outra fonte de reclamações em relação ao ‘tempo dos presos’ não recaía nos
guardas, mas nos defensores. Como disse, antes de irem à UFI, os “imputados”
tinham uma entrevista na defensoria pública de turno”. O tempo levado nas
defensorias para disponibilizar o “imputado” ou o processo, para que seja tomado o
depoimento na UFI, era motivo de reclamações caso demorasse “demais”
146
. Também
era um indicador para atribuir certos estilos de trabalho às defensorias.
“Mesma roupa, mesmos móveis
“Esta defensora começa te ligar às 13h30 para ir embora”, disse Valeria no
segundo dia do primeiro turnoque acompanhei. Essa frase marcava temporalidades
distintas entre as diversas defensorias. Aquela de turnonessa ocasião era considerada
146
Ver Capítulo 7.
151
dentre aquelas que “insistiam para sair cedo”. De modo geral, o turnodas defensorias
tinha um ritmo diferente das UFIs. Chegavam de manhã e saíam de tarde. Como não
tinham que atender os telefonemas e como as ligações que entrassem após certa hora
sempre eram passadas para a manhã do dia seguinte, não ficavam até nove ou dez horas
da noite, como nas UFIs. Por isso, Valeria tinha me falado para aquele primeiro dia não
chegar antes das 10h da manhã. Porque, antes dos presos chegarem à UFI, eles deviam
ser transladados e passar pela defensoria. E isso “sempre demora”.
Uma vez na defensoria, o tempo até liberar o preso para ir à UFI também
indicava diferentes estilos de trabalho. “Lento demais” podia ser identificado como falta
de experiência, ou bem como zelo profissional. Na UFI, não havia dúvidas. Sabendo
quem estava deturnosabiam se era inexperiência ou minuciosidade para entrevistar o
preso
147
. Para o advogado Fellini, com ampla experiência de litígio no departamento de
Los Pantanos, estava claro que “as promotorias qualificam as defensorias públicas; para
elas, está aquela que enche o saco, aquela que é de [ideologia de] esquerda, aquela que é
lenta”.
Na época do meu trabalho de campo, havia alguns defensores públicos que
tinham assumido recentemente. Para Valeria, quando estes demoravam muito, era
porque acreditavam que deviam ler o processo todo para aconselhar o preso; quando, na
opinião dela, podia ser feita uma leitura transversal
148
. De outra forma, a demora por
parte daquelas defensorias que eram consideradas mais detalhistas na forma de
entrevistar o preso era identificada com defensores reconhecidos como extremamente
cuidadosos na defesa, inclusive, com um certo viés “fundamentalista”.
Como sabe quem já teve alguma experiência de trabalho de campo, os contatos
que estabelecemos nos abrem algumas portas e, frequentemente, nos fecham outras.
Falar com uns pode nos impedir falar com outros e assim por diante. Durante minha
pesquisa, experimentei isso em diversas situações. Nos intervalos das audiências de
147
Para uma defensora pública desse departamento que entrevistei, o tempo tomado pelas promotorias
também era um classificador das formas de trabalho. Ela falava da diversidade entre as UFIs: “há
promotorias que são muito cuidadosas, que trabalham muito bem, que investigam. Há outras que são pura
confusão. Você isso nos turnos; promotorias que tem você esperando até qualquer hora, não dão
prioridade aos processos. Você não pode, nos processos pequeninhos, ter um cara esperando quatro, cinco
horas por uma tentativa de furto, para lhe tomar o depoimento. Mas essas são formas de trabalhar, é como
cada um é, somos humanos”.
148
As pessoas que trabalham juridicamente com processos lêem os mesmos de trás para frente, pulando
vários trechos ou documentos que não consideram importantes, ou que sabem’ de antemão do que se
trata porque responde a uma produção padrão. Na UFI, chamava bastante a atenção de todos o tempo que
eu demorava em ler os processos que me passavam. E muito mais que anotasse trechos inteiros e partes
de formulários.
152
juicio oral, estar com a vítima ou com seus familiares era uma opção diante de estar
com os familiares do acusado. Na UFI, conversar livremente com o imputado gerava
um mutuo constrangimento, pois, ao final de contas, eu estava sentada nas cadeiras da
UFI antes dele chegar e fazia parte daquele mobiliário. Eram constrangimentos próprios
de ocupar uma determinada posição social (e física) no cenário pesquisado. Também
houve constrangimentos
149
devidos a vínculos pessoais entre meus interlocutores mais
próximos e outros agentes.
Bruno tinha me comentado que seria interessante eu conhecer uma defensora
pública desse departamento que “trabalha muito bem”, Vanesa Tavares. Para mostrar
um perfil diferenciado, Bruno disse que tinha um cartaz na Mesa de Entradasonde
indicava os dias e horários específicos em que atendia os familiares, coisa que nem
todos faziam. “O problema é que há já um tempo ela pediu o juicio político de
Sebastián”
150
. Soube que defensora e promotor eram muito amigos até ela apresentar
uma denúncia contra ele. Denunciava que, durante um procedimento de “reconstrução
de um fato”, não assistido pela defensora, o promotor teria colocado uma arma na
têmpora do imputado. Segundo ela, não para reconstruir, mas para ameaçar. A denúncia
finalmente gerou um “sumário administrativo” que, posteriormente, não prosperou.
Mas, a situação resultou, claro, no rompimento das boas relações. “A defesa para ela
não tem limites e acredita tudo de todos os presos”, me explicava Valeria. Esta
defensora representava uma linha e forma de trabalho reconhecida, nesse departamento,
como diferenciada do comum das defensorias. Se “acreditavam”, ou não, no preso, se o
aconselhavam para depor, ou não, se “produziam”, ou não, “provas”, eram linhas
divisórias desses estilos.
Durante um dos turnos na UFI, passei um tempo na defensoria de turno
naquele dia. Eu tinha manifestado certo interesse e Valeria me disse que a defensora que
estava naquele dia era acessível. O pedido de Valeria para eu acompanhar o que faziam
foi concedido. Desci pelo corredor interno. As salas da defensoria eram iguais àquelas
da UFI. Mesma distribuição, mesmos objetos. Móveis idênticos.
Essa identidade de estrutura entre as UFIs e as defensorias era também percebida
por Valeria e Sebastián. Eles diziam que muitos “imputados” trocavam um lugar pelo
outro. “O mesmo prédio, a mesma roupa, todos se cumprimentam entre si”, disse
149
Digo constrangimentos e o impedimentos, porque em certa medida se tratou de escolhas pessoais
sobre o decorrer da pesquisa e sobre as relações que fui estabelecendo e consolidando.
150
Procedimento solicitado para destituir funcionários públicos de seus cargos.
153
Valeria. “Eu digo para os meninos que, pelo menos, tentem não cumprimentar os
meninos e meninas da defensoria diante dos imputados, porque estes devem pensar ‘tou
fudido mesmo’, porque todos se conhecem”, insistiu uma vez Sebastián após o
depoimento de um “imputado” que disse achar estar depondo na defensoria. A
explicação deles coincidia, inclusive, com a percepção de defensores públicos e
advogados que entrevistei.
Quando subi, a defensora e a secretária esperavam que “lhes subissem o preso”.
Enquanto não tocava a campainha da porta traseira, discutiam sobre o pedido de isenção
de prisão do “imputado” que estava “subindo”. Pediriam, ou não, essa medida antes de
se entrevistar com ele. O caso era de “tentativa de homicídio”. O preso foi atendido
posteriormente pela secretária, a qual explicou a decisão já tomada.
Minutos depois, a campainha tocou novamente. Apareceu, algemado, um garoto
de 18 anos de idade. Baixo e magro. Pareceu-me ter menos idade. Foi entrevistado por
uma funcionária jovem. Explicou que estava na defensoria número “x”, disse o nome
dela –Silvana- e da defensora. Perguntou os dados pessoais dele: solteiro, com um filho
de seis meses, morava com a mulher e trabalhava na loja do pai, tinha estudado até a
nona série, feito tratamento por drogas, fumava cigarro e bebia cerveja, tinha cumprido
uma condenação por “tentativa de homicídio”, quando era “menor”.
Silvana: aqui você tem que falar com sinceridade do que é que aconteceu. Você
sabe por que está preso?
Jovem: por roubo? Não sei.
Silvana: eu vou te esclarecer dos motivos pelos quais a polícia prendeu você. O
crime pelo qual você esta sendo investigado é violação de domicílio e furto em
grau de tentativa.
Jovem: o que é isso?
Silvana: vou ler a ata do procedimento para que você saiba o que é que lhe está
sendo imputado. Se não entender, me avisa. [lê de corrido]. Isto foi assim?
Jovem, em tom baixo: siiiimm.
Silvana: em principio este crime é exacercelable. Nós pedimos sua
excarcelación para a juíza porque os crimes são leves. Agora você vai para a
promotoria e vão lhe perguntar os dados pessoais, tudo o que eu perguntei para
você. Vão ler o fato e o lhe perguntar se você vai depor. Você vai dizer que,
por conselho de seu defensor, não, porque você tem o direito de não depor. Se
você quiser pode fazê-lo, mas eu não o aconselho. De qualquer forma, sua
liberdade não depende disso. Agora você tem que assinar esta ata. Alguma
dúvida?
Jovem: não.
Silvana: o que você vai dizer quando lhe perguntarem de depor?
Jovem: que não.
Silvana: e quando lhe perguntem se você tem antecedentes?
154
Jovem: que sim.
Silvana: não!! Como “maior”, tem que dizer que não.
Essa conversa entre algum funcionário da defensoria e o “imputado” chamava-se
“entrevista prévia”. Era um direito do “imputado”. Toda pessoa antes de ser levada
diante do promotor devia ter contato prévio com um defensor. Além de tomar os dados
pessoais, o objetivo principal da “entrevista prévia” era aconselhar o “imputado” sobre a
decisão de depor, ou não, na promotoria. A ata que Silvana pediu para o jovem assinar
devia constar sempre no processo, assinada pelo defensor titular. Era a comprovação
escrita de que a entrevista tinha acontecido, ou melhor, de que a exigência formal da
entrevista estava cumprida. Na ata, constava a pergunta sobre se o “imputado” desejava
ou não a presença do defensor durante o depoimento na UFI. De modo padronizado,
marcava-se “não” e acrescentava-se uma frase dizendo que “se, durante o ato do
depoimento, o imputado desejasse a presença de seu defensor, poderá solicitá-la”.
Naquele dia, assisti mais algumas entrevistas prévias”. Contudo, o expediente
na defensoria acabou cedo. era dezembro, dia vinte e sete, e aconteceria o brinde de
final de ano da Defensoria Geral. O preso devia descer. Quando a UFI o “pedisse”, seria
subido novamente.
“Para você, pode ser um ritual interessante
Embora temporal e processualmente anterior à ida do “imputado” à UFI, minha
curiosidade por conhecer como seriam as “entrevistas prévias” nasceu a partir da
observação dos depoimentos dos “imputados” na UFI. Na movimentação do turno”,
uma das atividades principais, entre telefonema e telefonema, era tomar o depoimento
das pessoas “apreendidas” ou citadas pelos policiais, por decisão dos promotores na
hora do telefonema. Esta era uma das atividades que eu esperava com certa expectativa
para o trabalho de campo.
No meu primeiro encontro na UFI, conversei com Valeria e Sebastián sobre a
possibilidade de assistir esse momento. “Em geral os depoimentos dos imputados não
são muito interessantes porque a maioria das vezes eles não depõem, mas, para você,
pode ser um ritual interessante”, disse Sebastián. “É mais para informarmos a pessoa do
que é que está sendo imputada”, explicou Valeria. Aparecia novamente a representação
de que certas práticas poderiam ser, eventualmente, curiosas para pessoas de fora,
enquanto para eles estavam associadas a um ato de rotina, sem maior interesse. “Vai
155
tomar um 308?”, acostumei-me a perguntar, especialmente, a Paco e Chico que estavam
em uma sala na qual eu não costumava permanecer. “Sim, mas vai ver que, por certo,
não vai depor”, me respondiam, sugerindo que não seria muito útil para mim.
O “308” era a denominação corriqueira para se referir a esse depoimento –“vou
tomar um 308”, “já tomei o 308 de Lorenzo”. Tratava-se do número de artigo do
Código de Processo Penal da província que regulava a “declaração do imputado”. A
reforma de 1998 tinha alterado o nome desse ato, antes chamado de “declaração
indagatória”. O objetivo tinha sido retirar a carga de indagação, “da gente estar
buscando o que ele tem para dizer”, e enfatizar o caráter informativo do ato, “informar
seus direitos e, se quiser falar, eventualmente, ouví-lo”. Abster-se de depor era um
direito do imputado”. Se ele decidisse depor, não devia fazê-lo sob juramento ou
promessa de dizer a verdade (artigo 310 do CPP-PBA).
No primeiro dia do primeiro turno”, Sebastián saiu da sua sala, indignado: “Eu
não sei por que lhes dizem para que digam tantas idiotices. Advogados particulares! São
horríveis!”. Acabava de tomar o depoimento de um “imputado”, representado por
advogado particular, que tinha decidido depor sobre sua situação na imputação. Ele
afirmava ser inocente. Se “a maioria das vezes os imputados não depõem”, naquela
hora, senti que perdia ‘a’ oportunidade da pesquisa de ouvir um “imputado” depondo.
Passado o tempo, não assisti depoimentos de “imputados”, mas também comecei a
perceber a “utilidade” de observar aquelas situações em que “os imputados se negam a
depor”.
Naquele primeiro dia, assisti o “308” de Pedro Paulo, o jovem de vinte anos que,
junto com a defensora pública, denunciou diante de Diego os abusos na comisaría.
Diego começou perguntando os dados pessoais. Todos os depoimentos começavam
assim; estava previsto no Código com o nome de “interrogatório de identificação”. As
perguntas eram repetidas de forma padrão, pois estavam definidas por lei
151
. As
respostas eram variadas. Falavam de histórias de vida daqueles que passavam pela
situação de “imputados”. Essa primeira parte veio constituir para mim um ponto do
interesse em assistir depoimentos “pouco interessantes” se o “imputado” não fosse
151
“Artigo 311.- Interrogatório de identificação.- (…) será solicitado ao imputado proporcionar seu nome,
sobrenome, apelido se tiver, idade, estado, profissão, nacionalidade, local de nascimento, domicílios
principais, locais de residência anteriores e condições de vida; se sabe ler e escrever; nome, estado e
profissão dos pais; se tem sido processado e, no caso, por que processo, qual Tribunal, qual sentença foi
dada e se ela foi cumprida” (CPP-PBA).
156
depor, pois dizia respeito às histórias de vida e perfis daqueles que passavam por essa
situação.
Diego: nome completo.
Pedro Paulo: Pedro Paulo.
Diego: quantos anos você tem?
Pedro Paulo: 20.
Diego: lembra do número de seu D.N.I.
152
?
Pedro Paulo: nunca tive
153
.
Diego: estado civil?
Pedro Paulo: solteiro, mas tenho minha mulher e minha filha.
Diego: você se dedica a que?
Pedro Paulo: vendo espigas em São Cayetano
154
.
Diego: vendedor ambulante. Qual é o nome de seu pai?
Pedro Paulo: Manuel Paulo, mas há sete anos que não o vejo.
Diego: sabe ler e escrever?
Pedro Paulo: sim.
Diego: esse aqui é seu endereço? [mostra o endereço da ata policial]
Pedro Paulo: é, moro aí desde que eu nasci. Agora moro na casa de minha
mulher, mas o domicílio está na casa da minha mãe. Moro com minha filha, ela
nasceu em julho, pesava 3 quilos... [a defensora fez um gesto para que parasse
de falar; silêncio]
Diego: tem processos anteriores?
Pedro Paulo: não.
Diego estava por ler o processo, mas a defensora avisou que o fato havia sido
lido na defensoria. Diego leu assim mesmo [estava sendo “imputado” do roubo de um
abajur dentro de uma casa próxima à casa dele]. O crime imputado –explicou Diego- é
“roubo qualificado por uso de arma com capacidade para o disparo”. Informou também
que esse depoimento correspondia “ao 308” e que podia se negar a depor. “Eu não
quero depor”, enfatizou Pedro Paulo. Enquanto Diego terminava a ata, conversava
animadamente com a defensora. Ela reclamava da falta de recursos, de papel, espaço
físico, sempre em comparação com as UFIs. Quando Diego imprimiu a ata, a defensora
interrompeu a conversa e perguntou ao jovem se queria ler o documento. “Posso?”,
“pode”. Enquanto Pedro Paulo lia, eles continuaram conversando. “Quer alterar alguma
coisa? Está tudo bem?”, perguntou a defensora dirigindo-se ao jovem. “Sim… é que eu
fiz errado em pegar o cabo [do abajur]…”. “O senhor vai depor?”, perguntou a
defensora calmamente. “Então não fale, querido”. Pedro Paulo permaneceu sentado e a
152
Documento Nacional de Identidad.
153
Não ter DNI ou não se lembrar do número eram respostas muito freqüentes.
154
Refere-se à igreja de São Cayetano, onde as pessoas se reúnem e fazem fias para pedir emprego para o
santo.
157
defensora continuou conversando com Diego sobre as provas para o concurso para
defensor de menores.
Dias depois, fora dos dias do turno”, Valeria me disse que iria tomar o
depoimento do policial imputado na causa que me levou até essa UFI, pela qual ela
tinha contato com a advogada do CELS, Maria Quiroz. Não se tratava de um “308”,
mas de um “317”, o artigo que regula que o “imputado” pode pedir para depor em
qualquer momento do processo (“declaração espontânea”). Sánchez, o policial, foi
acompanhado de seu advogado particular, um advogado conhecido na UFI,
especialmente por representar policiais. Sánchez era acusado de matar Fernando Rojas.
Ele alegava “legítima defesa”, pois, segundo sua versão, o jovem estava armado e tinha
tentado atirar contra ele. Entretanto, Valeria investigava o caso com outra hipótese: nem
o garoto teria tentado atirar, nem estaria armado. Sánchez teria simplesmente atirado
contra ele. Na primeira oportunidade, no “308”, aconselhado por defensor público
Sánchez tinha se negado a depor, mas desta vez, acompanhado de seu advogado
particular, ia decidido a depor. Relatou os fatos como teriam acontecido naquele dia,
segundo sua versão.
Sánchez: (…) eu vi umas pernas abaixo da ponte, desci do carro com a arma e
logo eles saíram correndo. Um deles atirou contra mim e os outros dois
fugiram. Quando atirou em minha direção, eu atirei, o rapaz continuou
andando, mas logo caiu. Liguei para a ambulância e para reforços. Depois
chegou a senhora [Valeria tinha ido ao “local dos fatos”], me perguntou como
foi o fato e apreendeu minha arma.
Valeria: sim, da parte que eu estava me lembro perfeito. Vou fazer perguntas da
parte do fato que o senhor está pulando. (…) O garoto ia correndo pela rua?
Sánchez: não, pela calçada. E eu gritei “alto, polícia”. Aquele que ia atrás
girou com a arma e eu atirei, ele andou um metro e caiu. E girou de novo
[mostrou com o próprio corpo].
Valeria: como se aproximou do corpo?
Sánchez riu diante da pergunta: não, Doutora, em momento nenhum me
aproximei do corpo sozinho.
Valeria: então, me conte como foi. E eu não disse isso, além do mais não sei o
que é que está achando engraçado.
Sánchez: a senhora disse que me aproximei sozinho.
Valeria: não, fique tranqüilo, não sei por que fica nervoso.
Valeria continuou fazendo perguntas específicas e pedindo Sánchez para
esclarecer uma e outra vez como foi “o fato”. Após isso, leu a ata da tela do
computador. O registro de Valeria refletia a controvérsia sobre se o garoto teria girado o
braço ou o corpo todo. O advogado, até o momento quieto e calado na poltrona do lado,
158
quis representar a situação. Valeria pediu para eles não se olharem entre si, “você sabe
que não é permitido”. Claro, Doutora, eu apenas queria colaborar”. “Sim, mas não
colabore”, replicou Valeria, enquanto ela e Sánchez faziam suas próprias representações
corporais. Chegou a oportunidade do advogado propor suas perguntas, mas nada disse.
Quando foram embora, Valeria disse que nem entendia o motivo dele ter deposto.
No depoimento anterior estava todo molinho, agora veio pedante demais. Para
mim, o depoimento não mudou nada, eu estou convencida. Os dois garotos
que Sánchez botou como testemunhas dizem que ele se aproximou sozinho ao
corpo, que não viram arma nenhuma e que conhecem o garoto do bairro e que
não era de roubar. E isso de dizer que a arma do garoto saiu com uma mola e
rebotou no chão é muito engraçado, por isso eu botei na ata.
Quando, naquele dia, Valeria chegou ao “local do fato”, tomou o depoimento
testemunhal de Sánchez. Em principio, era um ato não permitido, pois, como
testemunha, era obrigado a dizer a verdade e, pelas circunstâncias do caso, era bem
provável que acabasse como “imputado”. Ela me explicou que, por essas razões, não
poderia utilizar formalmente esse primeiro depoimento de Sánchez, que, aliás, se
contradizia, segundo ela, com aquele que acabava de fazer. “Por mais que a testemunha
lhe gere convicção, você não a poder usar”. Ao igual que nos ditos extra-oficiais de
Lorenzo, ‘ouvir’ não era o mesmo que ‘depor’. Contudo, o que era ‘ouvido’, embora
não ‘deposto’, “gerava convicção”.
Nesse mesmo dia, Valeria fez duas ligações: uma para outro promotor que
levava um processo quase idêntico contra Sánchez e outra para a mãe do garoto morto.
Ela esperava ansiosa ter novidades sobre o depoimento e Valeria tinha prometido ligar.
Dias depois soube que os dois jovens que intervieram como testemunhas conheciam
Sánchez previamente, porque fazia vigilância no bairro e porque tinha sido namorado da
mãe de um deles.
O depoimento do “308” parecia seguir um procedimento padrão. Parte estava
pautado pela lei, parte pela rotina incorporada na UFI. Tomavam-se os dados pessoais,
lia-se o fato imputado, explicava-se a situação futura do “imputado” (a pergunta mais
recorrente dos “imputados” era sobre se ficariam presos e quanto tempo), imprimia-se a
ata, a mesma era lida pelo “imputado” e, finalmente, procedia-se a sua assinatura.
Mesmo com essa padronização, era possível observar diferentes estilos de trabalho, que
influenciavam nas decisões tomadas. Circular por todas as salas da UFI para observar as
159
formas de tomar estes depoimentos por parte dos funcionários me permitiu desconstruir
aquela padronização da fórmula jurídica.
Sebastián entrou na sala para avisar Paco que ia vir um “308” de uma
“apreensão” feita no dia anterior. “É um cara que comeu a mulher de um traficante, que,
por sua vez, atirou no cara por outros negócios”, contextualizou Sebastián. Chegou uma
funcionária de defensoria, informando de antemão que o “imputado” não iria depor, mas
que ela presenciaria o depoimento, “porque está com a corda no pescoço”. Chamou-me
a atenção o fato da funcionária da defensoria “confessar” tal situação sobre seu
“defendido” diante dos funcionários da UFI. No entanto, ninguém se manifestou sobre
aquele comentário. Com o tempo, percebi que o fluxo de informações entre promotorias
e defensorias era bem mais flexível do que a posição institucional e funcional poderia
fazer supor (ver Capítulo 6).
Enquanto Paco tomava aquele depoimento, Bruno pedia, no meio de um “308”
de um jovem, que se apresentasse alguém da defensoria, por solicitação do “imputado”,
tal como o tinha feito no caso que contei no capítulo anterior. Bruno tinha perguntado o
jovem se tinha tido a “entrevista prévia” com o defensor. “Sim, mas não fiquei
satisfeito, me viu apenas dois minutos, disse que ia ligar para minha família e não
ligou”, respondeu o jovem. Bruno lhe informou o nome da defensora. O garoto replicou
que ela nem sequer tinha se apresentado. E começou falar dizendo que não estava
consciente e nem sabia se tinha roubado ou não... Bruno interrompeu: “só vou escrever
o que você disser com um advogado presente, sem ele nem presto atenção”.
Uma semana depois assisti outro “308” com Bruno. Também nesse caso ele
pediu que se apresentasse alguém da defensoria. Não era um caso comum na UFI.
Carlos Alonso era um senhor de 46 anos, divorciado, vendedor de diversos produtos,
morador de um bairro de classe média de Los Pantanos. Aparentava estar muito
nervoso. Mexia as pernas incessantemente. Bruno informou que estava sendo
“imputado”, por meio da denúncia de uma mulher, de estar com as chaves do carro dela.
Enquanto Bruno falava, o senhor parecia querer dizer alguma coisa. Apenas conseguiu
retirar do bolso as chaves de um carro.
Bruno: você vai me dizer que as chaves do carro são essas, não é?
Alonso: sim. E queria incorporar uma exposição de motivos
155
de minha ex-
mulher em uma comisaría.
155
Trata-se de um formulário e procedimento policial, através do qual se realiza uma espécie de denúncia.
160
Bruno: bom, espere. Eu sei que isto tem um fundo familiar, mas aqui um
processo penal. Então tudo o que disser pode ser usado contra o senhor. Isso
aqui é a promotoria. Essas coisas o senhor deve conversar com seu defensor.
Com qual defensor você se entrevistou?
Alonso: não sei o nome, é o número “y”. Disseram que não fazia sentido eles
virem aqui porque era óbvio que eu tinha razão, mas agora como é a primeira
vez que estou aqui quero que venham. O senhor acha necessário?
Bruno: não é que seja ou não necessário, é seu direito.
Alonso: eu penso que se eu errar, não de mentir, mas de me confundir, ela [da
defensoria] pode me ajudar.
Bruno: ela vai estar para controlar que eu não coloque coisas que o senhor não
disse e também pode fazer que o senhor não responda alguma coisa que eu lhe
perguntar.
Alonso: sim, eu quero que a chamem.
Bruno ligou para a defensoria, uma diferente da vez anterior. O senhor e eu
ouvíamos apenas a fala do Bruno ao telefone. Do outro lado, devem ter perguntado por
que tinham que subir se o senhor tinha tido a entrevista. “Sim, mas eu devo tê-lo
atemorizado e agora ele quer que venham”. Pausa. “Eu sei que é um problema familiar,
mas ele me disse que vai depor”. Finalmente, desceu uma funcionária da defensoria,
com o cargo de “oficial quinta”.
Bruno: você a conhece?
Alonso: não.
Oficial 5: sim! Da defensoria! Eu estava em outra sala.
Bruno: se você quiser tem direito de pedir que venha o defensor titular ou pode
se conformar com a presença da oficial.
Alonso: não, com ela está bem. É apenas por nervosismo... porque as coisas são
como diz aí (no fato que leu Bruno) só que de outra forma.
Com presença da funcionária da defensoria, Bruno passou a tomar o
depoimento. Bruno explicou que entendia o conflito familiar, mas que ele, como
promotor, devia estabelecer se havia existido um “furto” ou não. “Apesar de não
acreditar em tudo o que o senhor falou, eu vou arquivar o processo e não vou fichar o
senhor para não trazer mais problemas”.
Todos os “imputados” aos quais se tomava o “308” eram levados ao subsolo do
prédio à O.T.I.P. Oficina Técnica de Identificação Pessoal. um grupo de
funcionários tomava os dados deles, fotografava seus rostos, tomava suas digitais e,
finalmente, ingressava essas informações em um sistema único do departamento
judicial. O fato do Bruno decidir não “ficharAlonso dava conta da perspectiva com a
qual tinha tomado o caso, ouvindo a versão dele e decidindo arquivar o processo,
embora não “acreditasse” integralmente no que Alonso lhe contava. Para Bruno, não era
161
um caso que merecesse ter prosseguimento, nem um “imputado” que merecesse estar no
registro de “fichados”.
Na mesma sala, Chico tomava o depoimento de Mario Suárez, vendedor, de 30
anos de idade. Estava sendo “imputado” por “roubo”, junto com Rosendo Rodríguez,
um jovem magrelo e alto, de 27 anos, que trabalhava com serviço de delivery. Este
último, apesar do conselho do funcionário da defensoria, uma vez na UFI tinha
manifestado seu desejo de depor. Assim, o tinha feito minutos antes de Mario, quando o
funcionário da defensoria se viu obrigado a descer para acompanhar tal decisão
espontânea. Mario Suárez, diferentemente, acatou o conselho da defensoria de não
depor. Chico começou o “308” com as perguntas de praxe.
Chico leu o fato: Você não vai depor, não é?
Mario: não, foi isso. Eu estava fora, desci, o rapaz estava gritando [Rosendo
Rodríguez] e o policial me disse “você também vem”.
Chico: bom, mas você não vai depor.
Mario: e não... o que vou dizer?
Saí da sala de Chico, pensando em ‘tudo’ o que Mario tinha falado para Chico,
apesar de “não depor”. Valeria estava em uma ligação telefônica com um defensor
oficial, recentemente concursado, Martín Lavalle. Defendia um garoto e uma menina
em um processo onde estavam sendo “imputados” pelo roubo de uma moto. A polícia
tinha prendido ambos à saída de um motel. Quando entrei na sala, Valeria dizia para
Lavalle que a menina tinha falado extra-oficialmente” para ela que o garoto tinha
passado para pegar ela na moto, que tinham ido ao motel e que aí tinham sido presos.
Valeria: eu acho que eles não eram namorados, mas que era uma coisa casual. O
garoto tem antecedentes e é de Cangaso e ela é de Tobas [dois municípios
vizinhos]. Eu acho super crível o que ela diz, então, como está no prazo para ir a
juicio, eu não queria pedir o juicio para a menina, só para o garoto.
Lavalle: mas será que a menina quer depor contra o garoto?
Valeria: não sei!! Mas pergunte para ela!!!
Assim que desligou o telefone, uma Valeria indignada olhou para mim e disse:
“ainda eu faço o trabalho dele!”. Para ela, este era um típico caso onde a menina deveria
ter aceitado depor, porque não havia nenhuma testemunha que pudesse contradizer sua
versão. “Esse defensor é muito bobo, imagina: liga para você o promotor para dizer uma
coisa dessas e você fica duvidando!!”, concluiu Valeria, para poder passar a tomar o
próximo “308” do “turno”.
16
2
Tratava-se de Lorenzo, o vizinho de Sebastián que tinha atirado com uma
escopeta contra o irmão da ex-namorada. Minutos antes Valeria tinha sido informada
pela defensoria que Lorenzo não iria depor. No entanto, a conversa entre ambos, “extra-
oficialmente”, se estendeu por um bom tempo. Li parte dessa conversa para Valeria do
meu caderno de campo quando ela quis lembrar o que ele teria dito em relação à
escopeta, como contei no capítulo anterior. A conversa começou assim que Valeria leu,
como indica a formalidade legal, o “fato imputado”.
Valeria: no dia onze de novembro, às 7h50, no endereço Rua 16 número 20, do
bairro Don Fermin
156
, efetuou um disparo contra Juan Dominguez com a
intenção de matá-lo, não conseguindo seu objetivo porque saiu a irmã e o
imputado deu atenção a ela...
Lorenzo: isso não foi assim.
Valeria: é o que surge do processo.
Lorenzo: é o que eles dizem. É uma ex-namorada minha e eu não tive intenção
de matar ninguém... [aí entra a conversa sobre a escopeta contada páginas
antes] (...). Como tudo aconteceu no bairro dela isso a favorece, por causa das
testemunhas. Se tivesse acontecido na minha casa era melhor para mim.
pessoas que me conhecem, que sabem que eu não sou uma pessoa que anda na
rua.
Valeria: mas não está sendo acusado de roubo, Lorenzo, você atirou contra uma
pessoa. Embora isto aqui não seja um depoimento, mas uma conversa, eu sou a
promotora e, além de tomar seu depoimento, tomarei também o depoimento das
testemunhas.
Lorenzo: depois eu vou ter um advogado?
Valeria: você já tem um defensor.
Lorenzo: mas me serve de que?! Ele me leu o que a senhora tem por escrito.
Se eu pagar para um, vai ser melhor [poucos dias depois Lorenzo designou um
advogado particular]. Eu me meti em um problema, não sirvo para estar preso
porque trabalho na rua, tenho três filhos, um com deficiência mental, outro com
medicação. Eu lutei minha vida toda por minha família e, de repente, perdi.
Estou arrependido. Nem posso reclamar da Justiça porque desde que estou aqui
me trataram bem. A senhora acha que posso sair disto tudo? Vai ir a juicio?
Valeria: seguramente. Se o garoto não morrer, ficaria como lesões graves e o
senhor poderia ficar livre, mas não hoje. Eu tenho um mês para tomar os
depoimentos e ver como está a coisa. Se o garoto morrer tudo complica mais.
Lorenzo, com um tom notadamente mais agressivo: eu confiei no que você me
disse. Ou seja que nem uma excarcelación?!
Valeria: com sorte em um mês, mas não me mude as coisas porque você atirou
contra um garoto de 16 anos, Lorenzo.
Lorenzo: eu não quis matá-lo.
Valeria: se isso fica demonstrado em um mês o senhor sai.
Lorenzo: eu não mereço isto.
Valeria: ninguém merece sofrer.
156
Bairro constituído por blocos de conjuntos habitacionais.
163
Valeria imprimiu a ata que dizia apenas os dados pessoais de Lorenzo, descrevia
o “fato imputado” e consignava a negativa dele a depor. Nada do dito e conversado foi
registrado, por escrito. Enquanto assinava, Lorenzo reclamava de fome e Valeria lhe
deu o pacote de biscoitos que tinha encima de sua mesa. Quando “o preso foi retirado”,
Valeria me disse que Lorenzo não a comovia nem um pouco, “é um filho da puta”.
O “308”
São doze artigos do Código de Processo Penal da província dedicados a regular a
“declaração do imputado” (308 a 319). Eles estabelecem a forma, o tempo, o local, os
procedimentos exigidos e como o ato deve ser registrado. Os direitos do imputado ficam
consignados sob pena de anular o ato, caso não sejam cumpridos. O “direito ao silêncio,
sem presunção de culpabilidade”, à assistência e conselho prévios de um defensor,
interromper o ato “por fatiga ou falta de serenidade”, solicitar declarar em qualquer
momento do processo (“declaração espontânea”), não prestar juramento ou promessa de
dizer a verdade e não ser coagido ou ameaçado para depor contra sua vontade ou para
obter sua confissão, são, além de direitos, deveres dos funcionários.
Também o comportamento do defensor nessa situação é pautado na lei. Sendo o
único autorizado a presenciar o depoimento, o defensor apenas pode intervir para
“aconselhar a viva voz” se seu defendido deve se abster de depor, no momento mesmo
em que é informado de seu direito a não fazê-lo. Também pode intervir para pedir
correções na ata e, no final do depoimento, para formular perguntas que poderão ser
aceitas –ou não- pelo promotor. Fora esses momentos, ele não pode fazer indicação
nenhuma para orientar seu defendido. Na prática isso se traduzia na proibição de se
olharem entre si, fazer gestos e falar com ele, que, por sua vez, se traduzia na estratégia
de alguns advogados particulares que “damos um jeito de passar algum sinal de não
responder”.
A forma de registrar o ato é estabelecida através da elaboração de uma ata, onde
devem constar os dados pessoais, a descrição do fato, o depoimento, consignado
“fielmente, se possível com suas próprias palavras”, ou bem a negativa a depor.
Previamente a ser assinada pelos participantes, a ata deve ser lida para aprovação ou
eventuais alterações solicitadas pelo “imputado” ou pelo defensor.
Foi possível reconhecer essas exigências formais na observação dos “308”.
Porém, as formas legais estavam presentes de um modo sui generis. Não se tratava de
164
um desrespeito à lei. Ficava claro para mim que a dinâmica dos encontros imprimia uma
forma própria de fazer cumprir os procedimentos. À forma pautada pela lei sobrepunha-
se uma rotina estabelecida em Tribunalese também uma própria da UFI sobre como
proceder.
Os “308” na UFI
Dentro da UFI, havia critérios estabelecidos sobre como tomar estes
depoimentos. Alguns estavam inscritos em “instruções” que, de tempo em tempo, o
promotor titular fazia circular para unificar e definir formas de trabalho. Outras
derivavam da formação prática e das conversas informais na UFI. Essas formas podiam
variar de caso em caso, dependendo dos fatos imputados”, de quem fosse e que atitude
tivesse o “imputado”, e do defensor. Variavam também entre os próprios integrantes da
UFI. Tampouco eram desenvolvidas de igual modo pelo mesmo funcionário em todos
os casos. Valeria, por exemplo, mostrava-se bem mais rígida nos depoimentos tomados
a policiais, como percebi no caso de Sánchez e outros. A atitude corporal, a exigência
das formalidades legais e o tom de voz eram bem mais estritos do que em outros
depoimentos, nos quais ela adotava uma atitude informal enquanto às regras, bem como
contemplativa do que as pessoas tinham para expressar. Também Sebastián adotava
uma atitude diferenciada quando os depoentes eram policiais, impondo uma distância
formal diferente, por sua vez, da rigidez de Valeria-, do que quando eram “jovens de
bairro”, ou “malandros”, nas suas palavras.
As regras de procedimento eram agenciadas na prática conforme as modalidades
de trabalho, as ideologias sobre o sistema e os interesses que iam se conformando sobre
cada processo. O “308” era uma oportunidade de conhecer o “imputado” e,
eventualmente, se formar um convencimento sobre ele e sobre o fato – “não me
comoveu, é um filho da puta” foi, por exemplo, a avaliação de Valeria sobre Lorenzo.
Às vezes o convencimento era prévio ao depoimento, como também foi manifestado por
Valeria ao finalizar o depoimento do policial Sánchez: “o depoimento não mudou nada,
eu estou convencida”. Referia-se a outras provas do processo, quase exclusivamente
ao depoimento das duas testemunhas. O relato de ambas a tinha “convencido”,
diferentemente da versão do policial.
Nessa produção de convencimento, não era tanto a palavra do “imputado” o que
era avaliado. Para isso, contribuía a representação de que “a maioria o depõe” e o
165
direito a mentir. Era o momento e a forma do encontro com ele que falavam por si só.
Durante esse encontro, conhecia-se parte da história de vida dos “imputados” (pai
desconhecido, desempregado, vendedor ambulante, filha pequena, ex-viciado em droga,
usuário de maconha, analfabeto, primário completo, viúvo, concubinato...) e de seus
históricos criminais (“dei o mesmo depoimento, pela mesma coisa”, “por lei de drogas”,
“fui internado em um hospício”, “só por averiguação de identidade pela polícia”, “sim,
por roubo”, “eu não sirvo para estar preso”...). Era informação que, junto com a
experiência adquirida pelos funcionários, formava opiniões e convencimento.
Durante os almoços na UFI, as conversas eram das mais variadas. Serviam
também como um espaço para evacuar dúvidas de forma coletiva. No meu segundo
almoço na UFI, Fred perguntou por aqueles “imputados” que afirmam não ter
antecedentes, mas quando, depois, chegava o registro formal ficava comprovado que
tinham. “É um direito deles, talvez o defensor fale para que digam isso, caso os
antecedentes depois o cheguem”, respondeu Sebastián. Por minha vez, fiquei
pensando por que perguntariam para “imputado” pelos antecedentes, se depois obteriam
formalmente tal informação.
O encontro com o “imputado” parecia-me funcionar mais como uma avaliação
do que como uma fonte de informação. Avaliava-se sua atitude, sua história, sua fala,
em função da credibilidade que podia se construir sobre ele. “Acreditar” ou não no
“imputado” (e não no que o “imputado” falava) era um ponto central do “308”. Nos
depoimentos de testemunhas percebi uma situação análoga. A diferença era que a
testemunha não era obrigada a depor, mas também lhe era proibido mentir ou omitir
informações. Devia dizer a verdade. Situação que, como vimos, não era exigida ao
“imputado”. Se ele falasse era sua opção. A decisão de falar, ou não, parecia em si
mesma ser mais importante do que aquilo que ele tivesse para dizer.
Falar não é depor
“Vai ver que, por certo, não vai depor”, foi uma frase que ouvi repetidas vezes.
Fui me acostumando a essa situação, bem como a observar mesmo assim esses ‘não-
depoimentos’ como situações significativas do processo. Aquela frase mostrava que
não-depor era a decisão esperada pelos funcionários. Contudo, havia “imputados” que
eram aconselhados a depor por seus defensores, ou bem que decidiam depor por
iniciativa própria, como Rosendo Rodríguez perante Chico. Havia outros que
166
começavam a falar extra-oficialmente. Eles podiam ser interrompidos por Bruno para
formalizar esse ato e chamar alguém da defensoria. Aconteceu isso na situação de
Carlos Alonso. Também podiam falar e dialogar com Valeria ou outro funcionário da
UFI, como o fez fluidamente Lorenzo, sem nenhum funcionário da defensoria intervir
na situação. Lorenzo era consciente disso; “isto não é um depoimento, é uma conversa”,
advertiu Valeria. Outros podiam não ser tão conscientes, mas mesmo assim começavam
falar, como Pedro Paulo com Diego ou Mario Suárez com Chico. Embora a decisão
majoritária por parte dos defensores fosse por não ‘depor’, defensores e advogados com
os quais conversei afirmavam serem muitos os “imputados” que manifestavam seu
desejo por ‘falar’. Acontecia que, com a negativa formal de não-depor, os funcionários
não registravam aquilo que o “imputado” fosse falar. ‘Apenas’ ouviam e interagiam,
mas eram sempre falas “extra-oficiais”. Após o depoimento de Lorenzo, Valeria
lembrou da seguinte situação.
Os advogados dizem que não se pode ouvir os imputados quando falam; eu não
registro nada do que eles dizem, mas também não posso fazer com que calem a
boca. Lembro de um menino que veio a primeira vez e disse que não iria depor,
mas me contou tudo. Depois veio com o advogado e contou outra versão. O
advogado queria processar as testemunhas por falso testemunho. Acabei dizendo
que o cliente dele tinha incontinência verbal e que lamentava que não tenha tido
confiança nele como para lhe contar a verdade. Disse que não queria prejudicar
o menino, mas que também as testemunhas não mentiam.
Depor e falar, claramente, não eram coisas intercambiáveis. As falas geravam
convicções, que permitiam, inclusive, avaliar se as testemunhas mentiam ou não.
Contudo, elas não podiam ser registradas. A situação me fazia lembrar uma cena dos
filmes norte-americanos sobre julgamentos que sempre me chamou a atenção. “O júri
não considere a última resposta do réu”, dizia o juiz, após deferir a objeção da defesa ou
da acusação. Os jurados tinham ouvido, mas não podiam considerar a informação no
seu voto. Quando Valeria pediu para ler do meu caderno aquilo que Lorenzo teria dito
sobre a escopeta, foi evidente que a fala de Lorenzo tinha sido considerada por ela,
apenas não tinha sido registrada. A questão é que, diferentemente de qualquer decisão
dos jurados norte-americanos, as decisões do pessoal da UFI deviam ser fundadas por
escrito a partir das “provas” escritas no processo, o que não acontecia com as falas
“extra-oficiais”.
Meu caderno nada dizia sobre a escopeta”. E nem sempre a fala “extra-oficial”
aportava informação que fosse útil para a hipótese dos promotores. No entanto,
167
conversar com o “imputado” na situação do “308” permitia estabelecer um vínculo e
conhecer coisas sobre ele. Quando fui com Valeria para tomar o depoimento de
Francisco Andrade no Hospital da área, ela conversou com ele sobre sua situação de
saúde, familiar e até advertiu sobre os perigos de andar com uma granada sob efeito das
drogas. Era uma forma de aproximação ao “imputado” e sua história, não isenta de
avaliação moral e também “repúdio penal”. Como a maioria dos casos em que se
tomava “308” era “flagrante”, o depoimento e/ou a fala não tinha tanto o objetivo de
extrair informações do “imputado”, como de se formar uma percepção sobre ele e sua
versão.
Depor ou não depor
Essa percepção sobre o “imputado” também era informada por interpretações
prévias sobre a decisão de depor em si mesma. Essas interpretações não eram
particulares dos funcionários dessa UFI, ou de cada um deles. Fui observando que
faziam parte de um senso comum próprio de Tribunales”, partilhado entre UFIs e
reconhecível entre defensores públicos e advogados particulares.
“Eu não sei por que lhes dizem que digam tantas idiotices. Advogados
particulares! São horríveis!”, contei que tinha dito Sebastián, ao sair do 308” com
presença de advogado particular. É que havia uma interpretação diferenciada sobre a
decisão de depor, dependendo do fato do defensor ser público ou particular. Quando
tratava-se de advogado particular havia um forte pressuposto, não só de que o
“imputado” ia depor, mas também que o faria “abrir a boca para falar um monte de
mentiras”. Quando o defensor era público, a decisão por depor era entendida como
excepcional. Isso não necessariamente isentava a versão do “imputado” da valoração de
“inventar histórias”, mas colocava a iniciativa no próprio “imputado” e não diretamente
no defensor. defensores públicos que acreditam em tudo o que o imputado lhes
fala”, dizia Valeria, diante de situações e defensores específicos. Sempre falava isso
com um tom crítico, pois entendia que era uma falta de responsabilidade profissional.
Saber acreditar ou não era uma habilidade do ofício, seja do defensor público, seja do
promotor.
Quando a decisão informada era por depor, por sua vez, ‘sabia-se’ a linha do
depoimento: o “imputado” diria que “era inocente”. Acreditar ou não nessa alegação de
“inocência” podia depender das informações do processo, da percepção formada sobre o
168
“imputado”, do defensor e da versão que o “imputado” sustentasse, ou não, durante o
depoimento. Depor, pelo menos, abria essa possibilidade de argumentar tal inocência,
em uma versão crível e sustentável...ou não.
“O ruim da entrevista prévia é que se perde a espontaneidade do depoimento.
Então, quando o cara depõe presume-se que é uma história armada e pensada com o
defensor, ou seja, uma mentira”, me dizia Julio Sosa, defensor oficial partidário do
depoimento do “imputado”. Isso podia explicar parte da associação entre advogado
particular e “inventar histórias”, pois geralmente o defensor público pouco tempo
dedicava a se entrevistar com seu “defendido”, se comparado com o particular.
A decisão de não depor era percebida de forma diferente. Defensores públicos e
particulares podiam decidir em tal sentido, mas não desconheciam a percepção que a
negação em depor tinha nas promotorias e, inclusive, entre os juízes. A Dra. Marina
Giver, defensora pública de “menores”, no departamento de Los Pantanos, reclamava
do fato dos juízes ou promotores não terem incorporada a noção de ficar calado como
um direito constitucional.
Digo isso para voporque aconteceu comigo em uma audiência. Eu sustentava
a inocência com uma série de argumentos e o juiz de garantias, depois de
desqualificar alguns argumentos, me diz: “bom, mas, em tal caso, ele escolheu
não depor”, como dizendo “se fosse tão inocente assim teria deposto”, quando
eu estava esperando duas testemunhas antes de fazê-lo depor. (Entrevista Dra.
Giver, 13/05/09)
Se depor era equiparado com uma declaração de “inocência”
157
, ao inverso, não
depor era tido como presunção de culpabilidade. Ficar calado era assumir a falta de
condições para se defender. Contudo, nenhuma das duas decisões parecia ser uma total
surpresa na UFI. Em muitas ocasiões, os funcionários vaticinavam a decisão
previamente ao “imputado” descer, ou a alguém da defensoria pública avisar. E não
erravam. Essa intuição fundamentada me fez pensar que existiam critérios comuns pelos
quais aquela decisão era tomada pelos defensores. Esses critérios se baseavam em
algumas variáveis (o caso, o “imputado”, o defensor, o promotor). Eles formavam parte
de regras comuns a “Tribunales”.
157
É claro que tal declaração de qualquer forma não garantia em absoluto que o funcionário acreditasse
na “inocência”.
169
Acordos implícitos
Existiam acordos implícitos entre os funcionários de promotorias e defensorias.
Ninguém esperava que o defensor aconselhasse a viva voz”, na situação do “308” que
o “imputado” não depusesse, como dizia a lei. Até porque, como eu disse, nem sempre
estavam presentes. O conselho chegava anunciado pelo mesmo preso, que podia,
inclusive, reverter a decisão “eu vou depor”, disse Rosendo Rodríguez para Chico. A
decisão também era anunciada por uma ligação prévia da defensoria para o funcionário
da UFI que estivesse com o processo. “O senhor Lorenzo está descendo, ele não vai
depor”, soube Valeria antes mesmo de conhecer o próprio Lorenzo. Com esse
esclarecimento prévio, em alguns casos também circulavam outras informações - “não
vai depor, mas está com a corda no pescoço”, disse a funcionária da defensoria sobre o
jovem que “comia a mulher do traficante”.
Durante um dos primeiros almoços que participei na UFI, Valeria manifestou
estar em profundo desacordo com o fato da defensoria assinar os depoimentos, sem
presenciá-los. A questão para ela não era que ‘a’ defensora estivesse presente, mas que
‘alguém’ da defensoria o fizesse. A atitude do Bruno, na hora do depoimento, de
perguntar ao “imputado” sobre a entrevista e fazer descer alguém da defensoria era
vista, como disse, como a marca de uma forma muito particular e pouco freqüente de
trabalhar. Como se fugisse de um acordo básico e implícito
158
. Percebi essa inadequação
à rotina no evidente incômodo por parte dos funcionários da defensoria ao ser
convocados; não por ter que ir, mas por lhes ser chamada a atenção sobre a ausência. No
fundo, não se esperava que alguém fosse.
Ao mesmo tempo, com ou sem presença de ‘alguém’ da defensoria, durante os
depoimentos, eu percebia uma espécie de falta de comunicação entre defensoria e
“imputado”. Uma vez na UFI, os “imputados” pareciam dar maiores informações
daquilo que tinham falado na defensoria. O depoimento da UFI era o momento formal
em que se anunciava a imputação e faziam-se perguntas a fim de registrar suas respostas
no processo. Esse caráter mais coativo podia gerar nos “imputados” um
constrangimento para responder as perguntas. O certo é que os funcionários da
defensoria e da promotoria também coincidiam na percepção de uma atitude
diferenciada dos “imputados” quando tratavam com uns e outros.
158
Havia uma certa solidariedade ou espírito de pertença entre defensorias públicas e UFIs.
Diferentemente, da atitude com advogados particulares, fossem eles assistentes da acusação ou
defensores.
170
“Não são anjinhos, não
“Os presos aprontam mais com o defensor do que com o promotor, de tudo
reclamam para nós; eles não são anjinhos não, são muito espertos. Votem que ter
cuidado, saber lidar com eles”, me disse o defensor Julio Sosa que, na época, ocupava o
cargo de defensor de execução penal. Deu-me a impressão de saber do que falava. Ele
estava em contato direto com os presos e havia mais de quinze anos trabalhava como
defensor. Tinha um linguajar direto, sem o tom paternal que eu tinha percebido em
outros defensores. Conversando com Sebastián sobre certas tendências ideológicas
dentro do sistema, ele dizia que “muitos defensores não agüentam os imputados porque
estes lhes demandam coisas o tempo todo e lhes reclamam de tudo. Diante do promotor
eles são mais comportados, porque sabem que não é conveniente você não gostar
deles”. Gostar ou não do “imputado” parecia um aspecto importante. A fala de
Sebastián e a de Julio Sosa também pareciam mostrar uma atitude atenta, quando não
desconfiada, por parte do “imputado”. Ao menos, sua fala e atitude não eram
naturalizadas.
Quando Rosendo Rodríguez decidiu reverter o conselho do defensor no processo
por roubo iniciado junto com Mario Suarez, tinha claro aquilo que queria depor.
Rosendo falou da implicância que, havia cinco anos, o policial que o prendeu tinha com
ele. Devia-se a uma denúncia que Rosendo tinha iniciado contra o funcionário, quando
cumpria condenação por um processo anterior. Na denúncia, declarava ter testemunhado
os maus-tratos praticados pelo policial contra outros presos alojados com ele. Cinco
anos depois, na UFI, afirmava não ter nada a ver com o “roubo”, mas ter sido preso
apenas por vingança.
Rosendo: eu estava na esquina com a moto do delivery e o policial me bateu e
me fez entrar na viatura, onde estava o outro [Mario Sánchez], que eu nem
conheço.
Chico: e aí o que é que aconteceu? Levaram você para a comisaría?
Rosendo: sim, pedi para falar com o comisario porque eu estava nem que um
mar de lágrimas. Ele perguntou o que me acontecia e eu disse para ele “o que é
que vai me acontecer, chefe, estou tentando botar pilha em mim, me re-inserir na
sociedade e por sair de testemunha mais de cinco anos me acontece isto, o
que é que minha mãe vai pensar?!”.
Rosendo mostrou para Chico os papéis do processo anterior, no qual dizia ter
conseguido a liberdade. Estavam dobradinhos em um saco de plástico azul, que afirmou
171
levar sempre consigo. Lembrava do número da promotoria e do juzgado de garantias
intervenientes. Chamou-me a atenção o vocabulário utilizado por Rosendo –“me re-
inserir na sociedade”- e a precisão dos dados informados. Pensei, então, ‘a partir’ do
caso de Rosendo, bem como das reclamações de outros “imputados” sobre a entrevista
na defensoria, que também os “imputados” utilizavam sua iniciativa ou agência- para
fazer uso dos recursos do sistema; eventualmente, montar histórias, reclamar com uns e
outros no momento oportuno, adotar atitudes diferenciadas e, assim, tentar produzir o
convencimento sobre eles mesmos –“sabem que não é conveniente vo não gostar
deles”, disse Sebastián. Esse convencimento não estava exclusivamente dirigido ao
funcionário da promotoria, mas também àquele da defensoria. “Você pergunta pela
versão deles [dos imputados], mas eles não têm confiança em você como defensor
público, você está no mesmo prédio, você é igual aos outros funcionários, o promotor
vem e te cumprimenta”. Era, para Julio Sosa, uma diferença importante que os
distinguia de um advogado particular, que é “muitas vezes, quase um médico de
família”. Essas e outras distinções também diziam respeito das respectivas decisões
sobre o depoimento dos seus “defendidos”.
“Defensor público é não-depor
Surpresa com a naturalidade com que era recebida a decisão de não-depor,
comecei a perguntar a defensores e advogados como essa decisão era tomada. Obtive
um conjunto significativo de posições e avaliações sobre o assunto, do ponto de vista de
quem decidia. Com nuances particulares, as impressões e opiniões confluíam. Uma das
primeiras definições a respeito veio do defensor Julio Sosa. Foi das mais determinantes
e categóricas. Para ele, havia dois posicionamentos entre os defensores públicos:
aqueles que aconselhavam para depor e aqueles que orientavam não fazê-lo. “E assim se
dividem os defensores. Eu, por exemplo, aconselho depor; Vanesa Tavares não”. Para
Julio Sosa, a decisão correta era depor porque “há que meter contradição, para que o
promotor tenha que produzir a prova a partir daquilo que o imputado fala”. Vanesa
Tavares era inscrita por ele na “corrente por não-depor”. Mas, Sosa acrescentou: “não
depor, mas por uma questão de que ela prefere produzir prova desde a defesa”.
O esclarecimento não era à toa. Vanesa Tavares, como mencionei acima, era
reconhecida, nesse departamento, junto com outra defensora, como uma funcionária
extremamente dedicada e comprometida com seu papel de defensora. Ao fazer esse
172
acréscimo na sua fala, o defensor estava marcando uma distinção entre ‘essa’ decisão de
não-depor e outros motivos que levavam os defensores públicos à mesma opção.
“Defensor público é não-depor”, me respondeu um advogado particular diante
de minha pergunta geral sobre a decisão de um defensor em torno ao depoimento. Havia
um certo consenso nessa afirmação geral. Essa era a distinção que o defensor Julio Sosa
tinha em mente: “a maioria dos defensores quer ir embora mais cedo, porque, se
mandam depor, eles têm que estar presentes. Isso foi imposto por Valeria Tavares e por
mim, porque antes nem sequer estavam presentes se o imputado fosse depor”. Muito
trabalho, atender muitos processos, correr com os prazos, poucos recursos, eram as
explicações gerais alegadas para fundamentar porque “defensor público é não-depor”.
Nessa perspectiva, tal decisão tinha virado uma “coisa mecânica, administrativa”. Mas,
essa opinião generalizada não dava conta de tudo. Outros argumentos também
explicavam porque os defensores públicos aconselhavam não-depor.
“Parte da mesma família
Na maioria dos casos que acompanhei ou li, quem primeiro assumia a defesa do
caso era o defensor público. Isso, me explicaram, tinha a ver com os tempos do
processo a partir da reforma de 1998. Desde a detenção do “imputado” até o
depoimento na UFI transcorriam, como máximo, 24 horas. Dentro desse prazo, quando
a pessoa era presa, as possibilidades de se comunicar com a família e/ou com um
advogado eram reduzidas. Acontecia, eventualmente, que, após um tempo variável de
andamento do processo, assumisse um advogado particular; muitas vezes contatado e
contratado pelos familiares do “imputado”. Então a primeira decisão sobre o
depoimento era tomada na defensoria pública.
Esse era outro dos motivos pelos quais um defensor público podia aconselhar
não-depor. Deixar o terreno ‘neutro’ para o posterior advogado. “Se fosse depor, depois
há uma versão, então ‘deixam o prato feito’ para que ele faça o que quiser”,
argumentou, entre outros motivos, o mesmo advogado particular que igualava defensor
público a não-depor. Pressupunha-se que o advogado particular que assumisse poderia
tomar a decisão contrária; depor. Defensores públicos e particulares pareciam ter
motivos diferenciados para a tomada dessa decisão.
Lucía: algumas pessoas me falaram de uma diferença nessa decisão entre
defensores públicos e advogados particulares...
173
Dra. Giver, defensora blica: eu acho que é uma idéia que tem uma base fática.
O [defensor] particular tem menos amarras funcionais, responde perante a
família, e os públicos temos que conviver com o juiz de garantias e o promotor.
Sabemos que da liberdade de um depende a liberdade daqueles que vêm depois.
Nós optamos pelo menos ruim, porque sabemos que arriscar uma decisão
negativa da liberdade por parte da Câmera reverbera em todos os “imputados”.
O particular tem outra liberdade, é seu cliente específico. Não deveríamos, mas
estamos mais amarrados.
De parte de advogados particulares, esta amarra institucional era vista também
com outro matiz. A relação fluida entre UFIs e defensorias podia ser visualizada como
uma comunidade de interesses. “Para mim, Ministério Público e Defesa Pública fazem
parte da mesma família”, me disse em tom cético a advogada criminal Laura Torres, no
seu escritório da capital provincial. Essa “familiaridade” não queria dizer que os
defensores apoiassem as ações da promotoria, mas que havia um fluxo de informações
em ambas as direções. Como disse, os defensores públicos avisavam à UFI se o
“imputado” iria depor ou não. E, junto com esse aviso prévio podia ir algum comentário
sobre a situação do “imputado” –“está com a corda no pescoço”- ou mesmo a impressão
do defensor sobre seu “defendido”. Também ser notificados dos procedimentos das
promotorias sobre os processos que defendiam era uma prática facilitada para os
defensores públicos por estarem trabalhando no mesmo prédio.
A proximidade espacial permitia também uma circulação pelo “corredor” como
passo importante nesse intercâmbio de informações. Lembro minha sensação de
estranheza quando a defensora de Esteban Garza apareceu na UFI. Esteban Garza era o
jovem que foi pego pela polícia por ter esfaqueado Patrícia Juárez, a dona da loja de
comestíveis onde ele comprava seu almoço. A defensora “passou” pela sala de Valeria.
Defensora: que louco esse rapaz. Nem aí parece [que foi ele], não dá o perfil.
Valeria: sim, não dá, mas é.
Defensora: sim, claro, mas eu me pergunto o que é que lhe aconteceu. Não sei.
Valeria: é um psicótico, não no sentido jurídico, mas lhe deu um surto psicótico.
Ele sente prazer com o sofrimento do outro; é psicopata, mas sabe o que está
fazendo, não é inimputável.
Para os defensores também era possível ter um acesso fluido aos processos, seja
para lê-los ou copiá-los. Apenas deviam subir à UFI e solicitá-los. Era também uma
oportunidade para os “meninos” de ambas as unidades se cumprimentarem e
conversarem entre si. Enquanto os advogados particulares reclamavam ter que rogar
para pedir permissão para xerocar o processo. “Pedir, por favor, para que me em o
174
processo para xerocar, cumprir estritamente os prazos, tudo o que a gente tem que fazer,
porque estamos do outro lado”, era a forma de expressar esta diferença por parte da
advogada Laura Torres
159
. Ao prosseguir a conversa com ela, entendi melhor porque
estas questões surgiam quando eu perguntava pela decisão de depor ou não.
Lucía: em relação ao “imputado” depor ou não, quais seriam seus critérios para
decidir?
Dra. Torres: para mim, é super importante que o imputado deponha.
Lucía: na UFI eu vi que a grande maioria parece não depor...
Dra. Torres: eu acho que você tem uma coisa encoberta por parte das
defensorias públicas. A defesa pública, nunca, bom, em geral, não tem ofensiva
jurídica. Ou seja, em tal caso o que faz é se defender das acusações do promotor,
pode questionar, ou não, solicitando a nulidade de uma prova, impugnando uma
testemunha, fazendo sua interpretação ao final da investigação feita pela
promotoria, mas eles nunca têm atitude ofensiva. A primeira pergunta que você
faz a um cliente ou a um imputado é “bom, me conte o que é que aconteceu”. E,
em função do que ele está lhe contando, você pode armar a solicitação de
provas. Isso é o que fazem todos os defensores particulares e é o que não faz
nenhum defensor público. Não têm ofensiva jurídica, então acho que, em
realidade, não lhes interessa saber o que é que aconteceu porque com esse
material eles não constroem sua atuação profissional. Eles a constroem sobre a
base de responder ao promotor, não do que o seu defendido lhes coloca, ou seja,
seu material de trabalho não é o depoimento do imputado.
A “familiaridade” marcava também formas de trabalho que podiam ser
diferenciadas entre defensores públicos e particulares
160
. Eu não estenderia a falta de
uma “atitude ofensiva” a todos os defensores; Vanesa Tavares, por exemplo,
defendendo a “corrente de não-depor”, era identificada por seu forte trabalho de
produção de prova para poder se contrapor a versão da promotoria. É certo que essa
identidade era construída em oposição a uma maioria generalizada. Valeria se
indignava, por exemplo, com Martín Lavalle por não reagir quando ela ligou para ele
sugerindo que buscasse elementos para livrar do processo à menina, detida junto com
seu “namorado” na saída de um motel.
159
Luis Real, o advogado da família de Dario Barian, também me contava dos esforços em conseguir o
processo para copiar as partes necessárias. Além das insistências informais, tais esforços estavam
cristalizados nos sucessivos corpos do processo, em ofícios solicitando que seja possível acessar ao
processo e tirar pias do mesmo. O tom dos ofícios era deste tipo: “Que esta parte tem realizado
reiteradas apresentações solicitando cópias do processo ou, em seu defeito, que se conceda empréstimo do
mesmo (23/1/07, 2/2/07, 6/2/07); apesar do qual há um mês do fato que tirara a vida da criança Barian, o
particular danificado tem se visto impedido de contar com o material solicitado que lhe permita um
exaustivo estudo e análise da pesquisa, e peticionar em conseqüência” (Do Ofício “Urga – Trâmite, diante
do juiz de garantias do processo de Dario Barian).
160
Isto acontecia principalmente na etapa de instrução, onde também advogados particulares me disseram
optar pela não ofensiva e se guardar as ferramentas de defesa ativa para o julgamento oral.
175
“Nós somos defensores públicos, ou seja, os particulares podem utilizar outro
tipo de mecanismos que eu não posso utilizar; de fato, eu faço aquilo que faço muito
sutilmente e não deixo rastro nenhum”. Esta defensora pública se comparava com
advogados particulares, rindo de suas próprias estratégias. Pairava uma idéia de que ter
uma “atitude ofensiva”, como “sair a buscar testemunhas”, podia ser visto como pouco
ético em relação à posição como defensores públicos. Isso, pelo contrário, no caso de
advogados particulares, era esperável e não parecia gerar conflito ou controvérsia. Estes
estavam fora do sistema, ou melhor, da corporação e comunidade de interesses de
Tribunales”. Moviam-se com maior facilidade entre esse mundo e o de fora, em
especial, na relação com seus defendidos.
Defensora pública: quando você recebe a pessoa que acabou de ser presa você
tem a obrigação legal de manter uma entrevista prévia, de lhe aconselhar sobre a
conveniência de depor ou de não depor e de lhe avisar que não depor não pode
ser tomado contra ela porque o artigo 18 da constituição diz que, bla, bla, somos
todos inocentes, isso tudo. Mas, quando você fala com o preso, primeiro você
tem que estabelecer um grau de confiança imediata, porque você não é seu
advogado de confiança, você não é Magistir [o advogado particular que me fez o
nexo para a entrevista com ela], que ligam para você e dizem “Dr. Magistir,
estou preso outra vez!”. Então, o Dr. Magistir sai correndo lhe buscar,
conhece. Você se encontra com um senhor como você me encontrou agora, sem
conhecer quem é quem. Então, você tem que dizer “olhe, senhor, o senhor não
me conhece, mas eu sou seu advogado defensor e tem que confiar em mim,
gostando ou não, porque se o senhor mente para mim eu vou construir uma
estratégia de defesa sobre uma mentira e isso é como um castelo de cartas; o
vento vem e sopra”.
Na visão dos defensores, o estabelecimento desse vínculo de confiança era mais
vantajoso para um defensor particular do que para um público. Não todos os advogados
particulares, porém, se sentiam excetuados da dificuldade de estabelecer essa confiança
-“com o tempo [o defendido] vai relaxando, você vira até o confidente, mas nem
sempre se dá, ou não se de vez”. Para defensores públicos e particulares “ganhar a
confiança de seu defendido” era fundamental para construir uma estratégia de defesa,
que não fosse “um castelo de cartas”. Havia nessa construção a noção da necessidade de
uma confiança mútua. Se o “defendido” confiasse no defensor –“entendesse que
estamos para defendê-lo”-, falaria para ele a “verdade”. Se o defensor acreditasse no
seu “defendido”, poderia construir uma estratégia sólida de defesa, que não seria
derrubada pelo vento. Não era uma questão de verdade ou mentira. Tratava-se de
acreditar no relato de um e de outro, como ponto de partida para construir ‘um’ relato de
176
defesa. Assim, a decisão “correta” por depor, ou não, descansava na credibilidade
mútua. E a opção por depor estaria dada pela possibilidade de elaborar e sustentar
uma versão crível
161
.
“Isso é pelo convencimento
“Eu acredito nele [o “defendido”] e ao mesmo tempo me pergunto, se ele não foi
[o autor], como foram as coisas”, me disse a advogada Laura Torres, diante de sua mesa
de trabalho, onde, além dos casos particulares, levava, de forma gratuita, processos em
associação a uma organização de defesa de direitos humanos. A partir dessa crença e
das respostas as suas possíveis hipóteses, ela construía a “estratégia de defesa”. O Dr.
Pascolini, um advogado particular conhecido publicamente por ter participado na defesa
de “imputados” no “caso AMIA” e no “caso Cabezas”
162
, bem como de chefes da
polícia acusados de corrupção, dizia-me partir do ponto inverso:
Dr. Pascolini: para mim, em princípio são todos culpados, por alguma coisa
estão imputados, depois você por onde você pode entrar, justificar, suavizar,
etc. Eu parto de não acreditar neles.
Lucía: e eles como se apresentam?
Dr. Pascolini: alguns dizem que são inocentes, mas isso é pelo convencimento.
Depois com o tempo se justificam, mas no início querem convencer você de que
são inocentes. A mentalidade é “se o advogado acredita em mim, vai me
defender como a um inocente” e isso é um erro. Você percebe logo quando estão
mentindo, porque coisas que não fecham, ou falam uma coisa e o processo
reflete outra. Você se dá conta. Em todo tipo de imputados, desde o vigilante, até
o estelionatário e o ladrão.
Lucía: e aí, como você faz?
Dr. Pascolini: vou perguntando incisiva e exaustivamente, então lhes digo “bom,
você que me convença de ser inocente”. É muito difícil.
161
Na sua etnografia do Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, Luiz Figueira, dedica um item a desenvolver
o significado da “mentira” nesse campo jurídico (2007:65-71). Ele diz: “Ficou claro para mim que a
utilização da ‘mentira’ era uma parte fundamental da identidade social e do desempenho cênico de réus e
advogados. Há uma expectativa de que esses atores sociais utilizem essa técnica de defesa. (...) A mentira
ritual é um elemento importante do ritual judiciário(2007:65). E continua: “A ‘verdade’, enquanto uma
categoria nativa, pressupõe para ser considerada como tal que quando ela seja enunciada seja verossímil.
Afinal, as histórias que se contam no ritual judiciário, convencem e emocionam em função da
verossimilhança” (2007:68). Entendo estas considerações em um sentido semelhante aquele que tento
apresentar aqui. Por isso, considero que a “mentira” como técnica legítima de defesa e a “verdade”
associada à verossimilhança não podem ser entendidas exclusivamente como próprias de um processo,
como o Júri brasileiro, onde se destacam a “performatividade cênica” e a “manipulação da sensibilidade
moral dos jurados”, mas também de outros contextos judiciais “profissionalizados” como aquele da etapa
de instrução do processo penal bonaerense. Voltarei sobre este ponto e possíveis aspectos comparados, no
último capítulo da tese.
162
Ver Capítulo 2.
177
Para qualquer um dos dois pontos de partida, o defensor devia formar seu
“convencimento” sobre a inocência ou não do “imputado” e, sobretudo, sobre o que ele
lhe falava. Podia ter outros elementos; mas não muito além do que estava escrito no
processo. Contrastando essas informações com sua percepção sobre o “defendido”,
formava uma convicção necessária para tomar a decisão sobre o depoimento perante a
promotoria. A experiência profissional era chave para formar essa percepção sobre o
“defendido”. Ela fornecia os parâmetros de credibilidade, ou não, baseados em situações
vivenciadas. Por isso, além do pressuposto de início (acreditar, ou não, como ponto
de partida), era, no contato e na conversa iniciais, que se formava a convicção a partir
da qual construir uma “estratégia de defesa”. Marina Giver, a defensora de “menores”
recém designada para o cargo, me contava que na defensoria eles se faziam uma idéia
do que tinha acontecido a partir da leitura do “sumário policial” e, quando chamavam o
menino para a “entrevista prévia”, lhe pediam para contar o que é que tinha acontecido.
E... sim, eles mentem muito, são até fofos. Você está vendo na ata do
procedimento - que devo admitir que mil vezes está armada e algum olho clínico
deixa você ver alguns dados que com certeza são truchos-, mas um momento
que você diz “este rapazinho tem 16 anos e não sabe que eu muito tempo que
trabalho com processos criminais”, você é um adulto contra um adolescente e dá
vontade de dizer “não faça perder meu tempo, estamos aqui por você, conte
como foi, que vamos ajudar você, mas não me minta porque seus companheiros
nos contaram como foi e você está nos contando uma coisa que não fecha por
lugar nenhum”. E eles insistem em sustentar o que dizem, então você: “e tal
coisa por que é que aconteceu?”, “bom, isso eu não sei”. Mentem muito porque
tem a inocência de adolescentes. Um nos disse que o fato da polícia perseguir ele
lhe emoção. “Bom, eu peço para você não falar isso com o juiz!”. E outros
não, outros dizem para você que foram eles e pronto. (Entrevista com Dra.
Giver, 13/05/09)
As atitudes dos “imputados”, perante seu defensor, podiam ser variadas; dizer
logo que foram eles, dizer que eram inocentes, começar dizendo que eram inocentes e
depois reconhecer que alguma coisa eles tiveram a ver com o fato “imputado”: “está o
reticente e está aquele mais ou menos tratável que aceita, explica e conta”, me dizia uma
defensora pública. Ao conversar sobre este ponto com diferentes defensores, parecia-me
entender que eles ‘sabiam’ qual era a versão correta, mas que o ponto era chegar a um
acordo comum com o “defendido”. A avaliação sobre a versão do “defendido” não era
tanto para definir a participação dele “no fato”, mas para definir como ele ia se
comportar durante o processo. Por um lado, porque pressupunha-se que a maioria
178
“daquilo que chegava era culpada”; os inocentes eram exceções
163
. Por outro, porque a
questão era ter uma estratégia sustentável pelo próprio “imputado”. Da avaliação sobre
a pessoa do “imputado” surgia, então, boa parte das decisões sobre depor, ou não, além
das posições ideológicas ou funcionais ocupadas.
“Vão meter o pé na jaca
“Cada caso é particular. Muitas vezes você não pode fazê-los depor, porque vão
meter o pé na jaca. Primeiro, porque nesse momento você tem apenas alguns elementos.
E também porque muitos rapazes são absolutamente delirantes, saem com histórias que
você os escuta e não sabe como fazê-los calar. Eu vou avaliando quais são os elementos,
a histrionia do imputado quanto a como pode chegar a conduzir a situação e se,
realmente, tem um álibi certo, avanço com isso. E, se não tem um álibi certo, mas o
álibi que se inventa tem signos de credibilidade, bom, pode depor, se arrisca, sairá bem
ou não, depois você verá. Mas alguns casos em que estão tão exaltados quando
chegam que você tem que dizer para não depor porque o que você diz pode ser usado
contra você’. Acho que a decisão vai por aí”, me explicava o Dr. Magistir, em uma
conversa fluida no bar da esquina do seu escritório em uma localidade de um município
do departamento de Los Pantanos.
A “histrionia do imputado”, seu nível de “exaltação”, com esses ou outros
termos, apareceram recorrentemente como um argumento para optar pela decisão de não
depor. Tanto nas decisões de defensores particulares, quanto nas dos públicos.
Fortemente, entre os defensores públicos, vinha da mão da descrição do perfil dos ‘seus’
defendidos. Ao argumento clássico dos defensores públicos defenderem “pobres rapazes
detidos quando tentavam roubar”
164
, “caídos do sistema”, somava-se a dificuldade de
sustentar com estas pessoas um depoimento coerente. “Absolutamente delirantes” e
“exaltados”, “em alguns casos é melhor que o deponham porque os rapazes não
163
Perguntei para a defensora pública como agia nos processos em que o “imputado” era inocente, porque
“imagino que processos que não foram eles, né?”. Respondeu-me: “que não são não sei, que não se
pode demonstrar que são sim. Mas o que sempre me diz este advogado amigo [Dr. Magistir] é que a
polícia não se engana de ponta a ponta, se vão prender você por um homicídio é porque você passou por
perto, porque você se manchou com o sangue ou porque alguma coisa a ver você tinha. Daí a que possam
provar isso é outro caminho. Muitas vezes as pessoas saem absolvidas por erros da polícia, ou erros do
procedimento ou do promotor, mas pessoas absolutamente aléias a um fato que fiquem presas é raro”.
164
Em palavras de uma defensora pública: “nós temos a desvantagem de nossos defendidos serem
pessoas muito limitadas, porque aqui não vem, não sei, não chega um processo de defraudações múltiplas,
ou uma fraude bancária, não chegam. São pobres caras que os pescam porque tentaram roubar, para nós
chega o bobo”.
179
podem ou não sabem falar e dizem qualquer coisa” me disse o defensor Julio Sosa. O
perfil dos “defendidos” no departamento de Los Pantanos apontava as dificuldades de
construir aquilo que fosse essencial para decidir pela opção de depor: sustentar uma
versa crível.
Entre os advogados particulares, a possível diversidade de clientes podia
permitir uma avaliação das potencialidades de fala do “imputado”. A partir dessa
apreciação, avaliava-se, de outra forma, a decisão sobre o depoimento. O advogado
Magistir me contava sobre diferentes decisões, em função de um conjunto de possíveis
apreciações sobre o “imputado”.
Lucía: na entrevista com seu cliente treinam ou preparam o depoimento?
Magistir: a terceira parte da entrevista prévia eu lhes digo a meus clientes até
como se sentar, não perante o promotor, mas também do tribunal. Faz parte
de todas as ferramentas que temos para vencer essa maquinaria infernal [o
sistema penal]. Sim, isso é feito e eu faço. Primeiro, como está sentado, porque
quando está preso geralmente limpo não pode vir; há alguns que diretamente não
os deixo depor por causa de como falam; linguagem do xadrez [tumbera] melhor
que não; com atitude humilde, mas corajosa, frontal; olhar nos olhos; não
esquivar o olhar; com as mãos acima da mesa, sem mexê-las; quando têm tempo
e podem vir depor sem estar presos, que seja com terno e gravata. Também eu
lhes digo para perguntar coisas que sabem as respostas, por exemplo, quando
o promotor pergunta [no juicio oral], dizer para o juiz “posso olhar?” e lhe aviso
que vão lhe dizer que não, mas você “não, não, está bem, desculpe, é que é a
primeira vez”
165
. São bobagens, mas como tudo é uma representação. (...) Um
garoto que eu defendi, daqui, um vizinho, consome o que vobotar na frente
dele, com o qual comete todo tipo de tropelia estúpida, mas é loiro e de olhos
azuis, a família é gente boa. Então o discurso era “como errou!, vítima da droga,
bla, bla”. E na promotoria nem acreditavam que ele estivesse nessa! Então, eu
me aproveitava dessas circunstâncias; ele ia bem vestido, falava bem, tinha
errado [Magistir coloca voz suave], era uma vítima, mas.... [levanta a voz] era
um malandro, viu!!?? Ora, as mesmas circunstâncias com um pobre rapaz que
mora quinze quarteirões para lá, no meio de um bairro mau chamado marginal,
melhor você se entregar. Então, são os rapazes que é melhor que fiquem calados,
que não falem.
A construção de uma versão crível não estava sustentada apenas pela
potencialidade da fala, mas também pela atitude corporal e gestual do “imputado”.
Também dependia de quem fosse o interlocutor do “imputado”. Sabendo qual promotor
ou funcionário tomaria o depoimento, era traçada uma estratégia ou perfil determinado,
pois “você sabe a quem pode comover e a quem não pode comover”. Em função dessa
165
Na audiência de juicio oral, todas as perguntas e respostas devem ser dirigidas ao tribunal, sem olhar
para quem as formula.
180
determinação sobre as possibilidades positivas de depor “se eu vejo que você é vivaz
para depor, vai para frente”, dizia-me o advogado Pascolini-, o passo seguinte era
pensar sobre aquilo que a versão sustentável ia, propriamente, sustentar.
Inventar ou Calar?
O Dr. Magistir tinha trinta anos de experiência profissional na área criminal.
Conhecia bem o departamento judicial de Los Pantanos. Ao longo da entrevista
caracterizou a forma de trabalho de vários funcionários que eu conhecia pessoalmente
ou de nome. Também era conhecedor de outros departamentos, cujos perfis ele traçou
em poucos segundos. Magistir disse-me pegar todo tipo de casos; roubo, crimes contra a
propriedade, dos quais podia derivar um homicídio, com utilização de arma ou de
violência, crimes vinculados a drogas, eventualmente crimes sexuais
166
. Os casos
chegavam através dos familiares e amigos dos “imputados” e de ex-clientes. Também
através de familiares de pessoas presas junto com outro cliente.
Eu apresento uma excarcelación e devem dizer “esse é bom porque tirou da
prisão a este que estava fudido”. E na verdade talvez fosse um cara que tinha que
sair sozinho, mas que na prisão se vangloriava de ter 57 mil processos, mas sai
em liberdade e os outros presos dizem “deve ter um bom advogado!”.
(Entrevista com Dr. Magistir, 21/05/09).
Magistir tinha certo predicamento na área. Era considerado um bom profissional,
dentre daqueles dedicados, como ele me disse, a defender “pessoas que além de serem
pobres, estão envolvidas, são conscientes do que estão fazendo, são caras grandes que
trabalham do crime”. Diferenciava-se assim do perfil do advogado que tinha me
indicado seu nome e telefone para nosso encontro, o Dr. Fellini, que, segundo ele,
trabalhava “com um segmento de pessoas pobres, mas criminalizadas pela pobreza”.
Nesse sentido, também poderia diferenciá-lo de outros advogados entrevistados
vinculados a organismos de direitos humanos, envolvidos, na maioria das intervenções,
com a representação de famílias cujos filhos tinham sido mortos por policiais. Também
era diferente do Dr. Pascolini, atuante em casos de repercussão pública; ou bem
daqueles identificados no departamento como “advogados de policiais”.
166
Dentre as entrevistas que realizei com advogados particulares, dois me disseram trabalhar todos os
casos, à exceção da defesa de acusados por crimes contra a integridade sexual feminina. O Dr. Magistir
confirmou esta tendência de alguns colegas dele e também acrescentou ter colegas que não trabalham o
tema drogas; “porque têm filhos e acham que é um flagelo e que tem que ser perseguido”.
181
Contudo, o foco de minhas indagações sobre a construção da “estratégia de
defesa” não parecia diferir em grandes proporções entre estes profissionais. Conversar,
conversar e conversar com o defendido, “um luxo que os defensores públicos não
podem se dar”, ouví-lo, avaliar a situação e decidir se vai depor ou não, em função das
apreciações sobre a particularidade do caso, sobre a reputação do promotor ou
funcionário e sobre o próprio “imputado”. Em princípio, não depor podia aparecer como
uma decisão mais segura não se aportariam “provas” que, eventualmente, poderiam
ser usadas contra. Tal decisão descansava, inclusive, sobre a inversão de um “velho
adágio do direito civil, do trabalho e administrativo, que diz ‘fala, fala, fala, fala, que
alguma coisa fica’. Em direito criminal é justamente o contrário: ‘não diga nada, porque
qualquer coisa que você dizer pode virar contra você’”, lembrava Magistir durante
nossa conversa
167
. Mas também vimos que, para alguns defensores, havia casos e perfis
de “imputados” para os quais a decisão de depor era considerada pertinente.
O Dr. Pascolini tinha a “teoria” de que, quando defendia funcionários públicos,
seja policial ou político, eles deviam depor, porque “a sociedade espera mais deles,
devem dar algum tipo de explicação; depois eu vejo o que depõem e o que não”. A
advogada Laura Torres defendia, como princípio geral, a importância que, para ela,
tinha fazer depor o “imputado”. No caso dos defensores públicos, eles afirmavam fazer
depor o “imputado” quando este insistia não ter sido o autor com argumentos mais-ou-
menos “críveis”; ou bem quando podiam, através da versão do “imputado”, dar uma
justificativa ou explicação do acontecido que aliviasse sua responsabilidade (por
exemplo, alegar a chamada “legítima defesa”). Para estes últimos, como disse, a opção
por depor era excepcional; geralmente, optava-se por não depor. A defensora Giver
colocava como essa decisão implicava uma clara estratégia de ação.
Às vezes até parecemos cruéis, porque diante de um conto que é óbvio
que é um conto, um garoto me disse “não, eu quero depor porque eu não
tenho nada a ver”. E você vem com as perguntas de advogado: “mas olha
que aqui a polícia diz que [o autor] estava com uma bermuda e a
testemunha disse que estava com um boné. A ver, me mostra o que você
tem”. E é uma bermuda e um boné! Então, tentamos dar um jeito, claro
que se continua insistindo em que ele não foi, e se podemos bancar a
versão, depois poderá depor. O que nós não fazemos é inventar uma
história. Ou seja, se puxamos por verdade mentira que o garoto teve
alguma coisa a ver, ele não depõe, mas nós não podemos nos dar o luxo
167
Diversas frases populares foram usadas por advogados, defensores e outros funcionários, para
caracterizar a ‘opção segura’ do não-depoimento: “em boca fechada não entram moscas”, “cada um é
dono de suas palavras e escravo de seu silêncio”, ou em sentido inverso, “o peixe morre pela boca”.
182
de inventar uma história porque o garoto não a sustenta nem por dois
minutos. Não é que os promotores sejam muito sagazes para perguntar,
mas os promotores não duvidam daquilo que a polícia escreve. Eu não
invento uma história alternativa e não por prurido moral, mas porque eles
não conseguem sustentar. Nem por ruim, nem por bom para o garoto,
mas não me dá. Digo isto para você porque é assunto de discussão de sala
de aula. Eu fico com não depor. (Entrevista com Dra. Giver, 13/05/09)
Se o assunto era motivo de discussão em sala de aula, devia haver –pensei-
diferentes teorias sobre a possibilidade de “inventar, ou não, uma história”. Tal
estratégia voltou a aparecer, então, em boca de alguns advogados particulares. O
advogado Magistir dava sua própria versão e, curiosamente em um sentido diferente da
defensora, buscava uma justificativa moral para sua estratégia.
Dr. Magistir: eu parto de uma premissa pouco defensista que é que a polícia não
erra; depois faz as coisas mal, mas onde botou o olho é porque não está longe da
realidade. Depois, somado a um pouco de indolência da promotoria, isso nos
permite ir descolando pessoas. Então, advogados, aqueles que eu critico, que
“não deponha” e adotam a atitude do defensor público. outros, muitos deles
com maior fundamentação ideológica e teórica do que eu, que lemos,
analisamos, escutamos e, às vezes, fazemos coisas fora da lei, como ajudá-los a
buscar álibis, que não deveríamos fazer.
Lucía: bom, mas o imputado tem direito a não dizer a verdade...
Dr. Magistir: sim, mas não deveríamos, somos auxiliares da justiça, deveríamos
dizer “isto é bom para você, isto não é bom”. Mas, eu, pelo menos, o justifico
pela diferença social, de classe (...). Eu acho que do ponto de vista ético puro
não é correto, mas do ponto de vista real estas alternativas estão colocadas. Por
isso, muitos dos defensores particulares fazem depor a seus defendidos. Você
trata de armar um álibi que seja crível, e oferece testemunhas ou
documentação.
“Se podemos bancar a versão”, “tratar de armar um álibi crível”, “se não
sustenta a história nem por dois minutos”, “buscar algum álibi”, eram variáveis que
condicionavam a decisão de depor. Com essas garantias salvas, depor podia ser
verdadeiramente uma alternativa. Sem elas, pelo contrário, ficar calado era a melhor
opção, pois tudo aquilo que fosse dito podia ser usado contra. O direito do “imputado”
de não depor sob “juramento de dizer a verdade” abria a possibilidade de construir uma
versão verossímil, diante dos olhos e ouvidos dos promotores, que, sagazmente ou não,
comovedoramente ou não, iriam ouvir o “imputado”. É verdade que a não obrigação de
jurar pela “verdade” do depoimento outorgava ao mesmo uma forte suspeição de
“mentira”. Contudo, a avaliação dos promotores também não parecia buscar saber se o
183
“imputado” estava mentindo ou não. Não se tratava de indagar sobre isso, mas de
avaliar a credibilidade –e não a veracidade- da versão deposta.
era novembro, durante o segundo “turno” que acompanhava na UFI de Los
Pantanos. Um jovem de 27 anos se apresentou, junto com sua advogada particular, na
sala de Valeria. Antes de dar início à audiência, a advogada informou para Valeria que
seu cliente não iria depor. A audiência teve um certo caráter informal; por exemplo,
Valeria sequer leu os fatos. O jovem não tinha antecedentes. Tratava-se de um caso por
“falsa denúncia”. Um amigo deste jovem tinha estado anteriormente na UFI e admitido
que seu amigo tinha pedido para ele mentir diante da polícia, para poder receber o
seguro do carro “supostamente” roubado. Quando o jovem e sua advogada foram
embora, Valeria disse:
Odeio os maus advogados defensores. Era uma audiência informativa, a
advogada lhe deveria ter dito para inventar uma história e assim eu podia
arquivar o processo. Agora, o rapaz não disse nada, o amigo disse que era
mentira, e eu tenho que continuar trabalhando o processo e ver o que
acontece.
Pareceu-me claro na avaliação de Valeria sobre a “estratégia de defesa” da
advogada não estar em jogo se o “imputado” diria ou não a “verdade” para ela, nem
sequer se era “inocente” ou não. Mas, a construção de uma versão –“inventar uma
história”- que permitisse, legalmente, um caminho conveniente para todos. Para ela,
porque estava convencida a arquivar o processo, e, para o jovem, porque evitaria a
“imputação”. Assim, no mesmo sentido que vimos em outros casos, os promotores
estavam atentos ao seu próprio “convencimento”. Ou “acreditavam” ou não
“acreditavam” na história contada. Ao final de contas, era o próprio sistema que,
formalmente, não exigia o compromisso de verdade do “imputado”. Diferentemente, o
exigia das testemunhas. No próximo capítulo, em um período de tempo e de trabalho
chamado de “pós-turno”, descrevo como os funcionários da UFI se dedicavam a tomar
os depoimentos das eventuais testemunhas dos casos em andamento e como, nessa
atividade, construía-se a “credibilidade” das mesmas.
184
CAPÍTULO 5
“É bem de criminalística
No meu primeiro dia de trabalho de campo na UFI, Sebastián fez questão de me
entregar um DVD. Disse que podia levar para casa e trazer no dia seguinte. Fiquei um
tanto apreensiva, pois o “material” estava carimbado e assinado como documentação
pública. Era “prova” em um processo. O constrangimento, porém, foi facilmente
superado e levei o DVD para poder assistí-lo em casa. “É bem de criminalística esse
processo”, disse Sebastián ao me entregar o tal objeto. O processo dizia respeito ao
“homicídio” de uma senhora alemã, de 84 anos. Os autores –suspeitava-se que tinham
sido dois- tinham entrado na casa para roubar e esganaram a senhora. O DVD continha
a filmagem realizada por uma equipe do Ministério Público. Segundo Sebastián, ele,
enquanto promotor, tinha sido o primeiro em ingressar à casa junto com Cláudio,
fotógrafo do Ministério Público, que foi filmando o “local dos fatos” sem que nada
fosse mexido. As imagens mostravam os ambientes da casa, o cadáver da senhora,
detalhes de possíveis manchas de sangue e veis e objetos desarrumados. A chuva
que, naquela noite, caia copiosamente também era retratada no momento de chegada do
Ministério Público ao local. Nada a invejar a um filme de terror.
Em maio de 2007, um mês e poucos dias depois do “fato”, Sebastián tomava o
“308” do possível autor. “Um rapaz bem, bem marginal”, disse Sebastián. Foi a segunda
vez que ouvi falar de Lucas Lufi, aquele garoto que me foi apresentado na carceragem
do subsolo, qual Hannibal Lecter. Além da filmagem, a forma na qual Lucas Lufi tinha
sido identificado como “autor” foi o motivo do Sebastián estar me falando, com
orgulho, desse caso. “Caiu por cotejo de digitais”, disse. A filmagem mostrava os
peritos inspecionando o local e levantando, com uma “placa sintética”, sinais de digitais
achadas na parte superior do armário do quarto da senhora. Quando comparadas com o
sistema de “fichados” do departamento de Los Pantanos, elas coincidiram com as
digitais de Lucas Lufi. Estas constavam no sistema por três processos anteriores, um
deles por “tentativa de roubo” iniciado após cinco dias da morte da alemã. Ainda não se
sabia quem tinha sido seu companheiro. Para isso, restava fazer um exame de DNA,
com parte do sangue achado no “local”. Foi outra oportunidade em que ouvi falar de um
jovem apelidado como Cacá, protagonista dos Capítulos 7 e 8 desta tese.
185
Filmar e fotografar o “local do fato” era um projeto do Ministério Público desse
departamento. Satisfeito com essa iniciativa, Sebastián comentou que, no trabalho dos
promotores de “convencer” o juiz sobre a autoria do “imputado”, “o poder de
convencimento das imagens, para o juiz que apenas o processo, é muito maior”. O
fato de ser uma equipe pertencente ao Ministério Público era colocado em contraste
com tais funções serem responsabilidade da polícia. Era um lento caminho que o
Ministério Público vinha fazendo de substituir a equipe pericial da polícia pela judicial.
Na ocasião que Sebastián e Valeria tinham me falado da tal equipe judicial, eu
perguntei se a polícia não tirava fotos do “local”. Pela reação de ambos, percebi que
minha pergunta lhes pareceu um tanto ingênua. “O mais comum é que digam para você
que as fotos se velaram, mas dizem isso porque geralmente nem filme têm”, respondeu
Sebastián. Valeria também opinou que os critérios policiais para fotografar eram
diferentes dos judiciais. “Há casos irrisórios disse-, como aquele do estupro da Alicia
[que trabalhou Alicia]; o ex-namorado tinha estuprado e espancado a menina. O cara
estava bêbado e, quando os policiais foram pegar ele na casa, estava dormindo com o
sangue da menina no rosto e na camisa. Bom, a polícia tirou a foto com o casaco,
tampando as manchas da camisa! Ou, então, tira a foto até a cintura em um caso de
roubo de tênis!”. Nesses últimos relatos voltava a reconhecer a imagem transmitida na
minha primeira entrevista: “Isto aqui não é C.S.I.”.
O caso “bem de criminalística”, comumente identificado na UFI como “o caso
da velha”, aparecia marcando uma distinção com o comum das investigações. O
ingresso no “local” do promotor e do fotógrafo antes da polícia era excepcional. A
filmagem era uma tendência ainda muito incipiente. Encontrar digitais, colhê-las,
cotejá-las e, em função disso, achar o “autor” estava longe de ser a forma predominante
de chegar a estabelecer uma suspeita ou autoria. O DVD apareceu, para mim, no meio
dos relatos sobre “o cachorro que lambe o cadáver no local dos fatos”, ou “o perito
médico que jogou água sanitária por causa do fedor”. Ao mesmo tempo, o “cotejo de
digitais” ou o “teste de DNA” eram apreciadas como “provas” excepcionais daquele
processo. No comum dos casos, as “provas” eram os depoimentos orais de eventuais
testemunhas.
186
“Sabe por que está aqui?”
Logo no segundo dia do primeiro turnoque acompanhei na UFI, Valeria me
disse que ela achava que eu deveria ficar para o pós-turno”. Essa categoria referia aos
dias imediatamente posteriores ao turno”. Segundo me explicou Valeria, era quando
convocavam para depor as testemunhas dos casos ingressados durante o turno”. Foi a
partir dessa proposta–convite, que fiquei naquele pós-turno de setembro, nos dias
posteriores até o novo turno com seu correspondente pós-turno”, a fazer cinco
meses de assistência intensiva à UFI. Sempre circulando de sala em sala, fiquei atenta à
dinâmica dos depoimentos como um momento de interação que estranhei muito em
relação àquele observado nas audiências de juicios orales. Uma das primeiras coisas
que me chamou a atenção foi um papelzinho dobrado que algumas testemunhas
entregavam ao funcionário, assim que chegavam.
Por meio da presente se intera e notifica a/o Senhor/a que deverá comparecer no
dia 14 de janeiro às 9h00 diante da Unidad Fiscal de Instrucción K, a cargo do
Dr. Sebastián Vázquez do Departamento Judicial de Los Pantanos, sito na rua
CN, a fim de prestar depoimento testemunhal na presente Investigação Penal
Preparatória n. 20.006.07 caratulada
168
“Pablo Santana, Resistência à
Autoridade, Pessoal Policial”. O/a Senhor/a fica legalmente notificado.
Comisaría de Los Pantanos n.5. 02 de janeiro de 2008.
Era o texto da citação escrita que recebiam as testemunhas no seu domicílio. De
fato, a primeira pergunta formulada à testemunha era se sabia “o motivo de estar aí” ou
se sabia “por que tinha sido citada?”. No caso aqui tomado para exemplificar o texto da
citação, as pessoas citadas - os Santana- eram familiares do “imputado”, Pablo Santana,
e tinham estado envolvidas na situação que levou Pablo à condição de “imputado”.
Assim, diante da “apreensão” do Pablo, sabiam claramente o motivo pelo qual estavam
na UFI. Uma situação semelhante acontecia com testemunhas que não eram familiares,
mas que, de qualquer modo, associavam a citação com a situação que tinham visto,
ouvido ou vivenciado, dias antes. Dificilmente eram citadas para depor na UFI
testemunhas que não lembrassem sobre a situação, pois também não eram procuradas
testemunhas totalmente ocasionais
169
.
168
A carátula de um processo corresponde às informações constantes na capa: tipo de crime, nome do
imputado e da vítima.
169
O advogado Luis Real me chamou a atenção sobre isso em uma de nossas conversas. Dizia que o
Ministério Público se vale das testemunhas que leva a polícia e que são aquelas que presenciaram os fatos
e se aproximaram ao “local”. Mas, apontava, não são pensadas formas de convocar testemunhas a partir
da identificação de rotinas. Por exemplo, alguém que todo dia, no mesmo horário, espera o ônibus no
ponto em frente ao local do fato investigado.
187
As testemunhas mais incertas em relação ao motivo pelo qual tinham sido
citadas eram os policiais ou outros profissionais. Os primeiros porque participavam de
vários procedimentos e eram citados inúmeras vezes para depor. conseguiam se
localizar e distinguir o caso específico com alguma explicação contextual do
funcionário –“ah, sim, aquele em que tocaram fogo”, lembrou o policial em um
processo no qual os vizinhos da villa tinham tocado fogo em pneus para a polícia ir
embora. Outros profissionais também tinham esse tipo de dúvida, não porque fossem
citados frequentemente para depor, mas porque tratavam rotineiramente com situações
consideradas profissionalmente semelhantes umas das outras. De qualquer forma,
nenhuma das pessoas citadas – policiais, profissionais ou testemunhas- parecia estranhar
o fato de ter sido convocada. Além da vivência de uma situação incomum na vida das
pessoas –testemunhar um crime- ou do hábito profissional, algumas outras situações
contribuíam para fazer dessa convocação um fato esperável.
As testemunhas presenciais tinham deposto naquele mesmo dia, ou um dia
depois, na sede policial. Como descrevi no capítulo anterior, a tomada desses
depoimentos era uma das medidas indicadas desde a UFI ao policial que telefonasse,
durante oturno”, avisando sobre a intervenção em um “fato”. Esses depoimentos eram
registrados por escrito no “sumário de prevenção”, enviado posteriormente para a UFI, e
integravam o processo judicial.
O registro desses depoimentos apresentava, sem ser necessária muita perspicácia
na sua leitura, uma característica bastante particular. Na ata correspondente, o ‘relato’
de uma testemunha era idêntico como o ‘relato’ de outra testemunha. Apenas era
mudado o ponto de vista; quer dizer, se quando depunha o tenente Martinez dizia que
estava acompanhado do sargento García que dirigia a viatura, quando depunha García
dizia que estava acompanhado por Martínez no assento do carona.
Quando li o processo dos Santana, essa particularidade me chamou a atenção
imediatamente. Como detalho mais adiante, o caso referia a uma briga familiar, com
posterior intervenção da polícia. No depoimento policial do pai e da mãe, a
caracterização da personalidade de Pablo Santana era idêntica, apenas mudando o
gênero da pessoa, porém, mantendo os erros de digitação.
“Que é uma pessoa violenta, que tem batido na depoente em várias
oportunidades. Que quando bebe por causa da medicação fica violento com
muita força, que tem sido vítima de maus tratos”. Do depoimento de Dona
Santana, em sede policial.
188
Quando Valeria me convidou para observar o pós-turno”, ressaltou que ‘nessa’
UFI “era regra convocar todas as testemunhas que aparecem no sumário policial”.
Como ‘naquela’ UFI era uma prática comum, eu tinha me acostumado a essa circulação,
em sede judicial, de testemunhas que tinham deposto na polícia. De fato, para todos
aqueles que trabalhavam ‘nessa’ UFI, citar essas testemunhas era uma prática
incorporada e uma das primeiras medidas em um processo. A surpresa foi de Mauro,
um “menino” que tinha trabalhado na UFI K e que, posteriormente, tinha sido
transferido para outra. Nos seus primeiros dias na nova UFI, levou uma advertência da
promotora titular que dizia não entender por que e para que Mauro citava na UFI as
testemunhas que tinham deposto na polícia. Naquela nova UFI não era para fazer
isso. Quando em 2009, me entrevistei com advogados particulares, eles também
afirmaram que a maioria das UFIs “se conforma com os depoimentos policiais”.
Para Valeria, tomar o depoimento ‘na’ UFI era importante, nem tanto porque as
testemunhas pudessem aportar novos dados, mas porque era uma forma de controlar a
possibilidade da polícia arrumar testemunhas truchas [falsas] em um processo, seja
porque estava “armando um processo”, seja porque o processo “estava arreglado
170
.
Para Sebastián, também era importante porque a polícia perguntava de um modo
diferente; então o depoimento na UFI, conduzido pelas perguntas deles, permitia obter
“informação relevante” para o processo, o que nem sempre resultava dos depoimentos
tomados na sede policial. Lembro que me contava de um processo por “tentativa de
homicídio”, uma briga entre grupos em uma quadra de futebol de um bairro, em que ele
tinha ido ao “local dos fatos” e conduzido diretamente as testemunhas para a UFI, sem
passar pela polícia. Contava com orgulho que esse era um processo inteiramente
judicial”.
O certo é que o fato de ter deposto previamente na comisaría familiarizava a
testemunha com o motivo do depoimento. Embora também a fizesse estranhar o fato de
ter que repetir o que já tinha contado –“eu disse isso para o policial”; “a polícia me
perguntou isso”. A forma de encarar o depoimento destas testemunhas dependia do
estilo do funcionário da UFI, mas também do processo e da testemunha. Diego e os
“meninos” costumavam começar os depoimentos lendo a ata policial. Logo depois,
170
“Um processo arreglado refere a um processo no qual a polícia acertou com o advogado, ou o
“imputado”, ou sua família, ou a vítima, a troca de dinheiro por algum favor no processo.
189
perguntavam à testemunha: “Esses são seus ditos?” ou “está bem?”. Qualquer que fosse
a resposta, pediam para contar novamente o que tinha acontecido ou para brindar mais
informação sobre pontos específicos.
Sebastián já tinha uma forma diferente. A testemunha começava o depoimento e,
dependendo das informações relatadas, podia, no meio do relato, ler uma parte da ata
policial, ou bem fazer referência a ela. Ele tomava os depoimentos com o sumário
policial aberto na folha da ata. Portanto, as perguntas pareciam se orientar sobre o
deposto. Acontecia isso especialmente nos depoimentos de policiais, que não eram
muito verborrágicos nos seus relatos, além de nem sempre se lembrar bem das
especificidades do procedimento.
Sebastián: “que não se lembra a hora”... o senhor me disse que não lembra da
hora quando aquele homem foi lá, não é?
Policial: sim.
Sebastián: o senhor saiu [da viatura] para urinar?
Policial: foi meu companheiro.
Sebastián: “...que se apresenta um senhor de cabelo curto...”?
Policial: sim, curto.
Sebastián: “…que ia acompanhado de uma mulher”?
Policial: sim, uma mulher loira.
Sebastián: “que disse que tinha um problema”?
Policial: sim, que sua mulher tinha um problema com o vizinho.
Igualmente, também Valeria não lia a ata policial desde o início. Ela deixava a
pessoa fazer seu relato e, eventualmente, no final comentava que o mesmo era parecido
com aquela, mas que, mesmo assim, ela faria uma nova ata. De qualquer forma, em
todos os casos que a testemunha tivesse deposto na sede policial, a ata de depoimento
na UFI começava indicando: “Que ratifica o exposto no seu depoimento anterior, sem
prejuízo do qual expõe que...”. Seguindo, então, o depoimento judicial, mais ou menos
parecido com o policial. Também aconteceu que a testemunha não “ratificasse” a ata
policial e quisesse dizer outra coisa. Foi o caso de seu Santana, indignado com o
depoimento que o policial tinha registrado dele sobre a situação com seu filho. Na
conversa com Pedro, foi o próprio Santana que pediu para Pedro ler para ele o
depoimento policial porque, naquela ocasião, “estava sem óculos de ler e coisas que
eu não disse”.
Mesmo tendo lido a ata policial na hora de sua confecção, algumas testemunhas
manifestavam diferenças entre aquilo escrito e aquilo que tinham dito. Também
acontecia na sede da UFI com as atas judiciais, só que estas eram corrigidas na hora. Por
190
isso, as diferentes formas de trabalho dos funcionários podiam ter efeitos no
depoimento. Não era a mesma situação para a testemunha depor antes ou depois do
depoimento anterior ser lido, ou diretamente sem que fosse lido. Isso não quer dizer
que, quando era lido no início, as pessoas ratificassem seu conteúdo integralmente e o
repetissem diante do funcionário da UFI. Podiam fazer algumas correções e acrescentar
informações. Esses acréscimos eram resultado também da interação com as perguntas
mais incisivas e detalhistas dos funcionários judiciais. Diferentemente, eles, em todos os
casos, tinham lido previamente a ata policial e estavam familiarizados com certas
informações que desejavam perguntar ou reperguntar.
Ora, nem todas as testemunhas tinham deposto previamente na polícia. E nem
todas as pessoas recebiam a citação policial por escrito. E outras recebiam a citação
policial por escrito, mas posteriormente eram contatadas por outras vias para se fazerem
presentes. “Se as testemunhas não vêem duas vezes, você as manda buscar com a força
pública, porque se atrasam os prazos”, me disse Valeria. Contudo, era mais comum,
antes dessa instância, os próprios funcionários da UFI ligarem para a testemunha por
telefone, explicassem o motivo pelo qual deviam ir à UFI e a comprometessem a tal
fim. Também acontecia que alguma testemunha fosse citada por escrito mais de uma
vez, mas não se apresentasse na UFI.
Esta situação me chamou a atenção em um processo por “homicídio” que Alicia
guardava na sua estante havia quatro anos. O processo continuava em andamento,
porque, após quatro meses do fato, a mãe do jovem morto tinha solicitado, junto com
seu advogado, a citação de quatro vizinhos do bairro que teriam presenciado o fato. No
dia seguinte àquela petição, por via policial, Alicia mandou citar as três testemunhas
para o mês de março. Como não acudiram, foram citadas novamente para abril e,
posteriormente para maio. Passado um mês, enviou novamente um agente policial.
“Cumpro em informar a senhora que se comissionou o Sargento Diego
Fernández, o qual cumpre a função de citador neste elemento, aos fins de
realizar a notificação do cidadão Oscar López, que se domicilia na rua José
Suárez 228 deste meio. Constituído no local, constata que a numeração inexiste,
sendo que a mesma se encontra localizada em uma villa de emergencia [favela]
denominada Evita, onde não existe numeração cadastral municipal. São os
vizinhos da área que colocam os números das moradias. Não levando nenhum
tipo de ordem. É assim que foi percorrida a artéria José Suárez em toda sua
extensão (700 metros) inexistindo dita numeração. Em tal sentido, foi realizado
um levantamento entre os vizinhos da área aos fins de dar com o paradeiro do
envolvido, se negando a aportar dados e circunstâncias pessoais”.
191
Em setembro de 2004, um policial voltou ao bairro e foi atendido pelo pai de
Oscar Lopez. Este informou que havia um ano o filho tinha se retirado daquele endereço
por razões familiares. Também disse não saber o endereço atual. Naquele mesmo mês, a
polícia descobriu o novo endereço da testemunha. Foi citada sucessivamente, sem
sucesso, para fevereiro de 2005, novembro do mesmo ano e fevereiro, março e agosto
de 2006. O processo descansou na prateleira de Alicia até que em setembro de 2007,
quatro anos depois, Oscar López acatou a citação e foi depor na UFI. Disse que não
tinha visto nada: “nem me aproximei, queria sair daí”. Acrescentou que apenas tinha
sabido “dias depois, por comentários do bairro que o jovem morto era Tolo, amigo do
clube, mas que na hora, de longe, nem o reconheceu”.
O esforço do envio judicial de citações nem sempre era correspondido com uma
efetiva presença das testemunhas, ou do “imputado” se estivesse em liberdade, na UFI.
Isso podia se dever a vários fatores. Entre eles, que a testemunha simplesmente não
fosse, porque não podia ir no horário citado –“é que a citação era sempre de manhã e eu
trabalho”-; ou também porque não queria depor nesse processo. Também que a polícia
não encontrasse o endereço ou não encontrasse ninguém naquele endereço para entregar
a citação –“endereço inexistente” ou “não se encontrou ninguém no local” eram as
categorias administrativas para referir tal situação. Ou que registrasse que não
encontrava endereço, mas na verdade nem fosse
171
. Ou mesmo que mudasse a data
porque se demorou na entrega da citação. Essa foi a explicação que achei para por que
na citação que seu Santana mostrou para Pedro, ao dia 4 de janeiro, digitado em
computador, havia acrescentado um “1” à mão. A citação prevista por Pedro para o dia
4 estava acontecendo em 14 de janeiro.
Talvez porque esse esforço demandasse tempo, pessoal policial, recursos, e os
resultados não fossem muitos certeiros, além das ligações telefônicas da UFI às
testemunhas, as mesmas podiam ser diretamente contatadas no “local dos fatos”. Este
procedimento informal permitia agendar o depoimento, de acordo às possibilidades e
horários da testemunha. De forma semelhante, percebi que podia se propor
explicitamente evitar a citação policial, por considerá-la constrangedora. Foi o que
171
As manobras da polícia se davam também em uma situação de citação incorporado pelo novo Código
de Processo Penal da província. Este estabelecia a obrigação de notificar a “vítima” da resolução do
processo. Sebastián disse que isso acabou sendo um problema porque 90% das resoluções eram
arquivamentos. “Então, a polícia não quer ir dar a cara. Assim, diz que foi, mas truchan [falsificam] a
assinatura, ou vai às duas horas da manhã e diz que ninguém atendeu”.
192
Valeria propôs para um jovem “imputado” de 27 anos, acompanhado por sua advogada,
por um caso de “falsa denúncia”: “se quiser a próxima notificação a faço ao telefone,
assim não envio a polícia a sua casa”. Não era o mais comum no caso de “imputados”,
mas ouvi essa proposta outras vezes no caso de testemunhas. Talvez explicasse a
exceção com esse “imputado” o fato de se tratar de um caso considerado “pouco
relevante” e de um “imputado” sem antecedentes.
A forma de citar, nas suas variadas modalidades, me fez pensar que as pessoas
não iam descontextualizadas dos processos nos quais atuariam como testemunhas. Seja
porque a situação envolvia um familiar ou um vizinho; ou porque tinha sido uma
experiência, em certo ponto, marcante ou fora da rotina; ou porque um policial ou um
funcionário da UFI a tinha contatado previamente no bairro ou telefonicamente de
forma pessoal, ou porque tinham deposto na comisaría. O certo era que a maioria
excetuando, talvez, como disse, os próprios policiais- chegava à UFI com uma noção do
por que estava aí, na UFI. Como seria o depoimento, que deveriam dizer, o que lhes
seria perguntado, quais seriam as exigências, possivelmente, descobriam no decorrer da
situação.
“O senhor sabe que está sob juramento, não sabe?
A participação das testemunhas em um processo é uma obrigação de “toda
pessoa que conheça os fatos investigados”
172
. Também é um dever dos promotores
interrogá-la “quando seu depoimento possa ser útil para descobrir a verdade” (art. 232
CPP-PBA). Quando a pessoa é convocada para depor não é obrigada a comparecer.
Também deve “depor a verdade de quanto souber ou lhe for perguntado”. Assim,
diferentemente do “imputado”, as testemunhas são obrigadas a depor sob juramento ou
promessa de dizer a verdade (art. 100 CPP-PBA). Esse “juramento” ou “promessa” (a
decisão é uma opção do depoente) deve se tomar no início do depoimento, quando a
pessoa deve ser advertida das penas do crime de “falso testemunho”.
172
Existem exceções reguladas pelo CPP-PBA. São proibidos de depor contra o imputado seu njuge,
pais, filhos ou irmãos, salvo que o crime seja contra a testemunha ou parentes de igual grau (art.234).
Podem se abster de depor contra o imputado seus parentes colaterais até terceiro grau, tutores, curadores
ou pupilos, com a mesma condição do caso anterior (art.235). Também devem se abster de depor sobre
fatos secretos conhecidos em razão do estado, ofício ou profissão, os religiosos, advogados, oficiais de
cartório, médicos, farmacêuticos, parteiras, militares e funcionários públicos sobre secretos do estado.
Deverão depor, ao serem liberadas do dever de guardar segredo pelo interessado (art.236).
193
Antes de fazer trabalho de campo na UFI, eu estava acostumada aos
depoimentos de testemunhas durante os juicios orales. Como relatei no “juicio de
Dario” no Capítulo 1, quando uma testemunha entrava na sala de audiência para depor,
era informada formalmente do processo no qual ia depor e, seguidamente, fazia-se a
advertência sobre o “falso testemunho”. No caso daquele Tribunal de La Plata, o artigo
do Código Penal que castiga esse crime nos foi lido na sala de testemunhas de forma
coletiva. Em outros casos, observei que o secretario do Tribunal Oral o lia
publicamente, na sala:
“Artigo 275 do Código Penal Nacional lia o secretário em um tom de voz
médio e de forma acelerada-: Será reprimido com prisão de um mês a quatro
anos, a testemunha, perito ou intérprete que afirmar uma falsidade ou negar ou
calar a verdade, em tudo ou em parte, em seu depoimento, relatório ou tradução
ou interpretação, realizada diante da autoridade competente. Se o falso
testemunho for cometido em um processo criminal, em prejuízo do acusado, a
pena será de um a dez anos de reclusão ou prisão”.
Logo depois, o juiz presidente do Tribunal tomava a palavra. Pedia a testemunha
para ficar em e perguntava: “Jura ou promete dizer a verdade de tudo quanto souber
ou lhe for perguntado?”. Após a resposta, perguntava se ela tinha algum “interesse
particular” na resolução daquele processo. Essa era a formalidade e assim era ritualizada
nas audiências orais. Como relato no Capítulo 8, as respostas das testemunhas nem
sempre demonstravam entender bem as perguntas realizadas, mas considerava-se que
elas ficavam advertidas da obrigação de não mentir e da pena conseqüente, caso o
fizessem.
Quando comecei a observar depoimentos na UFI, não percebi imediatamente a
diferença com as audiências de juicios orales. Foi no decorrer de alguns depoimentos
que percebi o contraste. Na UFI, a informalidade primava sobre a ritualização do
juramento observada nos juicios. A declaração legal de prestar juramento ou promessa
de dizer a verdade não era formulada. Também não o era a pergunta sobre possível
vínculo de parentesco ou de interesse particular com alguma das partes. Ambos os
princípios davam-se por pressupostos ou, pelo menos, ficavam implícitos.
Sebastián uma vez me disse que ele acreditava que as pessoas sabiam que
tinham que dizer a verdade, está associado ao poder judiciário; por exemplo você, você
não sabe?”. Respondi que não era o melhor exemplo porque me dedicava a pesquisar
estes assuntos, então por dever profissional devia “saber” esse tipo de informação. A
conversa ficou por aí. O certo é que, seja pelo motivo que for, não Sebastián, mas
194
ninguém na UFI explicitava sistematicamente e desde o início do depoimento a
formulação do juramento ou promessa de dizer a verdade.
Era meados de dezembro. Além dos casos que acompanhava com maior
sistematicidade, continuava assistindo eventuais depoimentos de “imputados” ou
testemunhas de processos dos quais não conhecia a história. Foi assim que assisti, sem
ter noção do que se tratava, o depoimento em um processo pelo “furto” de uma arma em
uma agência de segurança privada. O processo era de um ano atrás. Quem tomava o
depoimento era Diego. Ele tomou os dados pessoais da testemunha; um senhor de 55
anos, funcionário da agência. Desde o início, Diego fez um esclarecimento que fui
entender no final: “desta vez, é sob juramento”. Após isso, começou a perguntar
pontualmente sobre questões do processo. As respostas eram monossilábicas e não
pareciam aportar a informação que Diego procurava.
Diego: olhe, Ramirez, isso aqui do juramento de dizer a verdade não é só dizer a
verdade, mas é não omitir o que sabe.
Ramirez: não, não, não, mas eu não estou mentindo. Vázquez foi demitido.
Diego: a única testemunha forte que eu tenho é o senhor e Vázquez.
Ramirez: Vázquez melhor porque eu não vi nada, ouvi alguma coisa, mas não vi
nada.
Quando o depoimento acabou, pedi para Diego me contar sobre o caso. Pareceu-
me haver mais alguma coisa além do “furto” da arma, pelo menos na forma em que
Diego se referia às pessoas envolvidas, fossem testemunhas, “vítimas” ou “imputados”.
Diego me explicou que havia outro processo que ele tinha elevado a juicio”, mas com
certas dúvidas. Naquele processo, o “imputado”, que tinha antecedentes, disse Diego,
dizia que este senhor Ramirez e outros dois da agência o “apertaram” para que roubasse
na feira
173
e lhes desse 50%. “Todos estes caras são inapresentáveis, todos marginais,
esse que veio aqui é o melhorzinho, mas você viu que o depoimento parecia mais uma
indagatória [depoimento do imputado], porque o pressionei muito, mas era uma
testemunhal”. Entendi que o esclarecimento do início “desta vez, é sob juramento” fazia
sentido. Mais do que esclarecer que “dessa vez” o senhor não estava sendo acusado de
nada, advertia que não podia mentir. E mais, como Diego lhe advertiu, durante aquele
depoimento que parecia não fluir, devia “não dizer a verdade, mas não omitir o que
sabe”.
173
Trata-se de uma feira/camelódromo muito grande onde se vendem todo tipo produtos. É na feira que a
agência faz os serviços de segurança.
195
Passados alguns dias, a UFI “entrou” no turno de dezembro. No dia 25, um
feriado caloroso após Natal, o caso dos Santana que também aconteceu naquele “turno”,
como outras tantas ligações, passaram despercebidas. Sebastián e Diego estavam atentos
à denúncia de um vizinho do bairro Quispe, acusando dois policiais de tê-lo extorquido.
Acompanhei o caso de forma próxima. Fomos ao bairro, à casa do vizinho e à comisaría
e ouvi na UFI os depoimentos dos policiais “imputados” e de seus colegas. Nessa
dinâmica, estava ouvindo o depoimento de um policial que, na noite do dia 24 de
dezembro, oficiava de motorista da viatura que deu apoio aos policiais que depois
seriam denunciados por extorsão.
(...) Sargento Díaz: sim, passou uma meia hora e eu digo para meu companheiro
para irmos para a casa desta pessoa [a qual depois fez a denúncia].
Sebastián: e para que vão para lá?
Sargento Díaz: porque sabemos que há problemas.
Sebastián: como?
Sargento Díaz: por rádio.
Sebastián: a ver, Díaz, evidente que por rádio; mas lhe digo que está sob
juramento porque a viatura não tem rádio, como escuta o rádio?
Sargento Díaz: sim, sim, mas por rádio 911, que é a base, o passam através da
comisaría.
Sebastián: dizendo o que?
Sargento Díaz: que havia um conflito. Desculpe, se este garoto [o denunciante]
não quis ir à comisaría, o que é que eu tenho a ver?
Sebastián: Díaz, o senhor tem 15 anos de polícia, eu não vou estar trabalhando
um 25 de dezembro por isso, o problema é outro. O problema é mais grave.
Sargento Díaz: sim, eu imaginei.
(…) Sebastián: o senhor entrou mais tarde hoje [a trabalhar]?
Sargento Díaz: sim.
Sebastián: por que?
Sargento Díaz: porque para dizer a verdade tinham me falado um monte de
barbaridades e me assustei.
Sebastián: achou que fosse com o senhor?
Sargento Díaz: claro.
O sargento Díaz “imaginou” que o problema não envolveria ele como
responsável de alguma infração, mas, pelas “barbaridades” ouvidas, estava temeroso.
Não para ir trabalhar, mas também durante o depoimento. Também neste caso, os
avisos de estar sob juramento não pareciam suficientes para “tranqüilizar” as incertezas
de Díaz, ao marcar sua posição de “testemunha” e não de “imputado”. O aviso era lido
como uma advertência, a advertência de “não mentir” e, portanto, de incorrer em outro
crime (“falso testemunho”). Assim que terminou o depoimento de Díaz, Sebastián foi
para a sala de Diego, que estava tomando o depoimento do companheiro de viatura de
196
Díaz. Disse que havia algumas contradições entre ambos. No final do dia, Diego
lembrou: “nunca tive que advertir tantas vezes durante um depoimento que se está sob
juramento, parecia tão inseguro que tive que lembrá-lo várias vezes”.
Em outros depoimentos, mas não em todos, observava que o dever de prestar
declaração sob juramento de dizer a verdade era formulado mais como um aviso do que
como uma promessa ritual. Não se buscava que a testemunha desenvolvesse o
juramento formal. Procurava-se, em determinado momento do depoimento, advertí-la
para não mentir, nem omitir informações. Quando a advertência era realizada no meio
do depoimento, era incentivada pela percepção do funcionário de que o depoente não
estava sendo totalmente explícito, seguro ou explicativo nas suas afirmações. Quando
era feita no início, parecia pressupor o envolvimento da testemunha com uma das
“partes”, de modo a deixar claro que não poderia favorecê-la. Devia dizer a “verdade”.
Encontrava-me ouvindo o depoimento de uma vizinha no âmbito de um processo
que descrevo mais adiante conhecido na UFI como “o caso dos catadores de papelão”.
Logo depois da senhora dizer que conhecia um dos “imputados” desde pequenino,
Alicia perguntou: a senhora sabe que está sob juramento, não sabe?”. Valeria fez a
mesma pergunta para um “perito de parte” levado como testemunha pela defesa do
policial Sánchez, imputado de matar o jovem Fernando Rojas. Ser “perito de parte”
pressupunha o testemunho a favor da parte (vítima ou acusado) que o tivesse
convocado.
Era a própria advertência que funcionava como um ritual, no qual o funcionário
explicitava a formulação, sem esperar acordo ou resposta do interlocutor. O “dever de
verdade” não estava, assim, baseado na reverência a um juramento ou promessa, mas
instituído por uma advertência conjuntural e circunstancial em um certo momento do
depoimento. Tal advertência não era gerada a partir de um princípio universal toda
testemunha deve dizer a verdade-, mas da avaliação pessoal do funcionário sobre o
depoente. Mais precisamente, sobre a percepção do primeiro sobre a credibilidade do
segundo. Quando esta, aos olhos do funcionário, parecia estar questionada, a lembrança
da obrigação de verdade vinha à tona. O objetivo não era tanto descobrir a verdade ou
mentira das afirmações da testemunha, mas estabelecer, ao longo do depoimento, uma
versão coerente com outras informações do processo
174
. Saber quem era a testemunha e
174
O “juramento” mencionado difere do “juramento decisório[deccisory oath], descrito por Lawrence
Rosen (1989:31-34), em relação ao direito islâmico em Marrocos. Contudo, em relação a este último,
197
que posição ocupava em relação às pessoas envolvidas no processo era um parâmetro
necessário na formação da percepção do funcionário
175
.
Bem cedo, na manhã do dia 27 de novembro, Zé avisou Alicia que a mãe de
Lucas Martín estava na Mesa de Entradase queria falar com ela. Alicia perguntou se
tinha anunciado o motivo. “Disse que ela veio depor, mas que depois falou com o
filho e este lhe disse que o que ela tinha dito não era o que tinha que dizer”. Alicia pediu
que passasse. Recebeu a mãe e começou a tomar um novo depoimento. Eu lembrava
que o caso envolvia uma briga entre dois grupos no bairro. A mãe tinha dito no
depoimento anterior que achava que a briga era porque o filho dela morava com a filha
de um rapaz do outro grupo.
Mãe de Lucas Martín: o menino que estava na briga não era o menino do
“problema de saias”, era o primo. O outro não tem nada a ver.
Alicia: e a senhora como soube disso?
Mãe de Lucas Martín: porque eu vim depor e depois tive visitas com meu filho
[na prisão] e contei para ele e ele me disse que não tinha nada a ver.
Alicia: e a senhora por que disse isso?
Mãe de Lucas Martín: porque eu pensei que era esse, confundi, porque meu filho
tinha me contado do problema. Meu filho disse que está com medo porque o
outro é meio louco, por isso eu vim.
Alicia registrou o depoimento e a mãe do jovem Lucas Martín foi embora. Não
houve aviso de dizer a verdade, nem de depor sob juramento. Também nenhuma
advertência por ter afirmado uma coisa da qual não estava segura, nem por ter dito o
que o filho tinha mandado dizer. A informação podia ser útil ao processo e Alicia não
pareceu muito preocupada na mudança do depoimento. Quando a mãe foi embora,
alguns aspectos sugeridos por Rosen me foram de utilidade para pensar a dinâmica que adquiria, nesta
instância do processo, o juramento de dizer a verdade. Segundo Rosen, o “juramento decisório” é
solicitado pelo qadi [juiz islâmico] a uma das partes quando aparecem no processo afirmações opostas ou
contraditórias. Assim, o juramento é posterior à afirmação e tem como função lhe dar status de verdade.
Em tal sentido, trazer o “juramento” após as afirmações de uma testemunha serem feitas, mais do que
comprovar a verdade das mesmas, tem o efeito de reconhecê-las juridicamente. Com a revalidação do
“juramento” a afirmação se estabelece como válida. Uma enorme diferença entre o juramento do direito
islâmico e o juramento do CPP-PBA é que no primeiro nem as partes, nem as testemunhas são obrigadas
a dizer a verdade, pois não existe o crime de perjúrio. Assim, o qadi oferece a realização do juramento à
parte que lhe parece estar mais próxima da verdade. Pelo contrário, a advertência de juramento de dizer a
verdade era ativada pelos funcionários na UFI quando a testemunha lhes parecia se afastar da verdade.
Era uma forma de trazê-la de volta ao dever que supostamente correspondia a todos por igual.
175
A vinculação entre a possibilidade do agente judicial inquirir sobre a posição social do depoente (quem
é, qual origem, qual relação social a une à outra parte) e a conseqüente avaliação sobre a credibilidade de
um depoimento é tratada por Lawrence Rosen na sua etnografia citada na nota anterior, em especial,
sobre a atuação do qadi (1989:52-53). Tal análise, à luz dos dados da minha etnografia, me ajudou a
desnaturalizar a interpretação de tal associação como necessariamente injusta, irracional, personalista,
comumente vista como uma tendência associada à vigência de um direito criminal baseado na pessoa e
não nos fatos.
198
revisei minhas anotações sobre o primeiro depoimento. Quem tinha tomado aquele
testemunho tinha sido Valeria.
Antes de iniciar o depoimento, a mãe tinha começado a falar que Lucas Martín
estava atualmente preso também por outro processo. Valeria a interrompeu: “não
me conte, porque a senhora é a mãe e vai me contar coisas que eu não vou
acreditar”. Caderno de campo, 20/11/07.
Como disse, um artigo do código proibia certos graus de parentesco,
considerados próximos, depor como testemunhas contra o “imputado”. Como
testemunhas, elas deveriam dizer a verdade e, considerado o vínculo de sangue e/ou
afetivo, estavam dispensadas, pelo legislador, da obrigação e responsabilidade de depor
como tais. Implicitamente, estava o suposto de uma eventual parcialidade nos seus
depoimentos, que, inclusive, os poderia levar a não cumprir o juramento de verdade. A
posição de mãe, no caso de Lucas Martin, não tinha impedido ela de depor (não poderia
ter respondido eventuais perguntas diretas que o incriminassem). Contudo, seu
depoimento, pelo menos, aos olhos de Valeria, era visualizado de forma parcial: Valeria
não iria “acreditar” nele.
“(Não) acreditei
Os dias na UFI, entre um turnoe outro, passavam entre conversas informais,
leitura de processos e observação de depoimentos. Se os processos que li eram sobre
homicídio, ou abuso desonesto, os casos que presenciava eram muito mais variados. Era
inícios de novembro, quando lia um processo de homicídio envolvendo dois amigos.
Alicia estava do meu lado, por tomar o depoimento de uma senhora, acompanhada pela
advogada. A senhora era a “denunciante” em um processo de “defraudação” contra
outra advogada. Na ocasião, a senhora tinha sido citada por Alicia para que realizasse
um “plano caligráfico”, mas a senhora insistia para Alicia que ela não sabia ler, nem
escrever. Alicia pediu para a advogada se sentar de costas para a senhora.
Alicia: eu já lhe expliquei dez vezes, a senhora não me entende? tem que
fazer a assinatura, não escrever tudo, porque a senhora me disse que tinha
assinado o nome
176
.
Senhora: porque me deram para copiar de outro papel, é isso que eu estava
dizendo para você.
Alicia: senhora, isso aqui é para o seu bem, não é contra a senhora. Isso aqui
[assinalando o convênio] é sua letra?
Senhora: não, já disse que não.
176
Há muitas pessoas que não sabem ler nem escrever, mas aprendem a assinar o nome.
199
Alicia pediu para copiar a assinatura. Finalmente, a senhora aceitou. A advogada
contou que era o segundo processo que ela tinha contra aquela outra advogada. Quando
a advogada e sua cliente saíram da sala, Alicia disse não ter “acreditado” nessa mulher.
“Para mim, ela combinou com a advogada e depois se arrependeu e veio fazer a
denúncia”.
Aos poucos minutos, Valeria estava tomando o depoimento de outro
denunciante. Era um jovem que denunciava que um amigo dele teria molestado sua
filha. O jovem contou que estavam na casa dele, bebendo cerveja, “na boa”. Em um
momento, foram para a lateral da casa, junto com a filha do jovem, e seu amigo teria
começado a se drogar.
Valeria: com que?
Jovem: cocaína, mas eu o deixei, enquanto não faltasse o respeito.
Valeria: você também usa?
Jovem: sim. E quando voltei do banheiro estava beijando o pescoço da menina e
tocando. E aí comecei bater nele e minha senhora chamou a polícia.
Valeria: e como se chama?
Jovem: a gente chama de Cacho, mas não sei o nome.
Valeria registrou os ditos do jovem, leu a ata e o jovem assinou. Quando foi
embora, Valeria disse que não “acreditava” nele. “Não sei bem por que, mas não
acreditei nele, deviam estar passadíssimos”. Valeria tinha pedido extração de sangue
dos dois –denunciante e denunciado- para saber sobre o eventual uso de cocaína naquela
noite. Não para formular acusação nenhuma por droga, mas para conhecer o “estado de
consciência” de ambos na hora dos “fatos”. Disse que mais alguma coisa faria com o
processo, mas ainda não sabia o quê.
Dias antes daquele mês de novembro de 2007, o imputado por um roubo”
acontecido em junho de 2006 tinha se apresentado para depor. O processo estava sob
responsabilidade de Sebastián. Era um caso considerado na UFI como “complexo”.
Tratava-se de um processo com sete “fatos” sucessivos, entre as 7h e as 10h da manhã.
Envolvia o “roubo” de dois carros e disparos que tinham ferido duas pessoas. A decisão
do jovem “imputado” por depor respondia à troca do defensor público por um advogado
particular contratado pela família, um movimento comum uma vez que os processos
estavam avançados e os “imputados” presos. “Foi o pior depoimento que ouvi na minha
vida”, lembrou Sebastián. Imediatamente eu associei o caso com meu primeiro dia na
UFI, quando Sebastián saiu da sala reclamando dos advogados particulares por dizerem
200
a seus clientes “que digam tantas idiotices”. “Advogados particulares! São horríveis!”,
tinha dito.
Naquele dia de setembro, segundo me contou Sebastián, o “imputado” disse que
tinha no dia do “fato” tinha jantado com o cunhado, o qual lhe deu uma pílula para
dormir e, por isso, teria dormido com “sua garota” até as 10h. Sebastián disse que, em
função desse depoimento, tinha chamado a garota e o cunhado para confirmarem –ou
não- a versão do jovem. Sebastián agregou que “a garota deveria ser muito sólida,
porque a prova contra o jovem era contundente”. Se não fosse, poderia processar ela por
“falso testemunho”.
Perguntei como saberia se estava sendo “sólida”. “Você se conta se mente,
depende do que ela disser que fizeram. Também pode acontecer que diga para o
advogado que vai dizer uma coisa, mas aqui se quebre e diga a verdade”, explicou.
Pensei que a garota deveria ser (ou parecer ser) realmente “sólida”, pois o que parecia
firme era a hipótese do promotor. A participação do advogado também dava uma
tendência particular à avaliação de Sebastián sobre o desempenho da garota. Ele parecia
dar por seguro que o advogado lhe diria o que tinha que dizer. Logo em seguida,
Sebastián introduziu outra variável para continuar me explicando sua possível
percepção do depoimento. “Também depende, porque se a garota, e talvez também o
cunhado, forem malandros, se cobrem entre eles. casos de ‘falso testemunho’ por
código de bandos, porque eles não depõem contra os companheiros. E, nesses casos, [a
pena pelo] o crime de ‘falso testemunho’ é muito menor aos antecedentes que eles têm”.
Naquele dia de novembro, Sebastián entrou na sala de Valeria e me disse que a
“garota do álibi” tinha ido depor. “Eu sabia que ela ia me mentir, mas ela foi segura e o
advogado muito hábil; se eu não indagasse mais um pouco passaria como que naquela
noite estiveram juntos até as 9h”. “E não estiveram?”, perguntei. “Primeiro parecia que
sim, mas depois disse que foi de sexta para sábado porque o filho sai e ela aproveita
para ficar, e o fato foi de quinta para sexta”.
Chegou o horário do almoço. Fomos todos para a sala de Diego e Pedro. Quando
entrei Diego estava reclamando sobre o depoimento de um policial em um processo de
“extorsão” de outros dois policiais a um vizinho do bairro onde estes faziam o
policiamento. “O cara arranca mentindo com babaquices e você já não acredita em mais
nada do que ele diz”, disse Diego indignado, como se o depoente achasse que ele não
fosse notar a “mentira”.
201
Havia várias semanas que eu acompanhava esse caso, junto a Valeria. Dois
jovens, Martín Lopez e Ramón Silva, tinham sido pegos pela polícia como “autores” do
“roubo” de partes de um carro. Teriam desmontado um carro que não lhes pertencia e
apropriado de partes dele. Martín e Ramón eram catadores de papelão, por isso eu e
Valeria nos referíamos ao processo como “o caso dos catadores”. Desde o início, pelo
relato do “sumário policial”, Valeria tinha dúvidas sobre a “autoria” dos jovens. Ambos,
por conselho do defensor oficial, tinham se negado a depor, mas mesmo assim Valeria
duvidava. Ao longo das semanas, citou diversas testemunhas para depor. A primeira em
ir foi uma senhora, idosa, dona de um quiosque onde a polícia tinha “apreendido”
Martín López. Como já disse, foi Alicia que tomou o depoimento de dona Clara.
(....) Alicia: conhece Martín López?
Dona Clara: Martín López? Sim, há muitos anos. Ele foi preso. Ele cata papelão,
é um garoto muito bonzinho.
Alicia: a senhora sabe que está sob juramento?
Dona Clara: sim, sim.
Alicia: a senhora estava no quiosque?
Dona Clara: sim, estava com meus cinco netos.
Alicia: há muito tempo que a senhora mora aí?
Dona Clara: sim, vinte anos, quando começou a se fazer o bairro. [Pensa] sim,
quando meu filho tinha nove anos e agora tem vinte e nove.
[Alicia começou escrever a ata do depoimento e voltou a perguntar sobre alguns
pontos].
Alicia: quantos policiais entraram?
Dona Clara: dois, um com uniforme, outro à paisana. Entram e lhe dizem que
fique quieto e Martín diz “o que é que eu fiz?e o pegam do pescoço. E eu
digo “por que levam o garoto se não está fazendo nada?!”.
Alicia: algum outro comentário?
Dona Clara: no bairro comentavam que um outro garoto tinha sido pego e saiu
correndo da viatura. Segundo dizem, fugiu ou lhe abriram a porta, não sei.
Os dois policiais, aquele com uniforme e aquele à paisana, e um terceiro que
tinha sido convocado para apoiar a intervenção foram depor. O depoimento deste
terceiro foi, na visão de Valeria, bastante confuso. Várias vezes ela pediu para ele
“organizar o que me relata porque eu não estive aí, tenho que poder imaginar como
foram as coisas”. Valeria insistiu com perguntas sobre a seqüência do acontecido.
Quando foi embora disse para mim: “esse aqui não viu nada”, descartando o valor do
depoimento. Logo depois, entrou o policial que tinha “apreendido” Martín no terreno do
quiosque.
Valeria: sabe por que processo está?
Policial: nem idéia, se me conta como foi...
202
[Valeria começou contar...]
Policial: ah, sim. Aquele em que tocaram fogo... Avisam que tem um de camisa
vermelha que vai correndo pela rua. Eu não conheço muito, imagine que toda
vez que passa uma viatura lhe jogam pedras, tiros. Então, não andamos muito
por aí. Desço correndo e pego o jovem no quiosque e cai toda a villa encima
de mim. Eu ando à paisana porque não posso andar com uniforme. E vamos
embora por causa das pedras que nos jogavam; primeiro xingavam, depois
ouvimos tiros na villa toda e depois começam a jogar as pedras e fomos
embora.
Valeria: pois é, há um ódio visceral à polícia.
Policial: sim, e testemunhas aí impossível
177
, eh.
Valeria: o senhor não viu a senhora do quiosque?
Policial: não, justamente consigo pegá-lo porque não tem ninguém, se o nem
descia porque me matam.
Valeria leu para ele o depoimento da senhora. Ele riu e disse: não, primeiro que
não ingressei na loja, segundo que desci sozinho e nem falei com a senhora.
Enquanto Valeria digitava, ele foi lendo da tela. Assinou a ata e saiu da UFI.
Valeria me disse: “acreditei neste, era mais seguro do que o anterior. O problema é que
o depoimento dele é oposto ao da senhora, que também parecia dizer a verdade”.
Decidiu esperar mais alguns dias para outorgar a liberdade de López e Silva. Ouviria
um novo depoimento de Silva e mais duas testemunhas mencionadas por ele. Silva tinha
escrito uma carta manuscrita na prisão, solicitando depor, mencionando o nome de duas
testemunhas que “podiam demonstrar minha inocência”. Valeria também incorporou
aos autos uma carta da Associação Civil “O amanhecer dos catadores de papelão” em
apoio a Martín López.
(...) Martín é um exemplo de trabalho e esforço para todos seus companheiros,
pelo que nos surpreende em demasia a desgraçada e injusta situação que está
vivendo (...). Finalmente, cabe destacar que vizinhos e porteiros do prédio
Almagro podem testemunhar sobre seu excelente comportamento no
desempenho de seu digno trabalho.
Antes de tomar sua decisão, Valeria também ouviu o outro policial, a quem
conhecia por um processo contra ele e outros policiais por “maus tratosna comisaría.
Ouviu Silva e as testemunhas indicadas por ele. Valeria comentou se sentir “pouco
compreendida” por seus colegas em relação ao fato de ter tantas dúvidas para outorgar a
liberdade ou pedir a prisão preventiva. Ao final, o “Manual do Bom Promotor”, como
ela brincava com Bruno, proclamava “diante da dúvida, prisão preventiva”. O certo é
que Valeria insistia em que não terminava de “acreditar” em Silva, mas também não
177
As intervenções policiais devem ter duas testemunhas cíveis que testemunhem sobre o procedimento,
não sobre os fatos.
203
terminava de “acreditar” nos policiais. Dona Clara também parecia dizer a verdade, mas
dizia o oposto ao policial no qual mais tinha “acreditado”. Finalmente, considerando
que não tinham antecedentes, lhes deu a liberdade, pensando em enviar o caso a
julgamento.
Janeiro foi um mês tranqüilo na UFI. Entretanto, o turno de dezembro,
incluindo 24 e 25 de dezembro, tinha rendido casos para os funcionários que não saíram
de férias naquele mês. Na primeira semana de janeiro, foram chamados para depor dois
policiais. Um preso tinha fugido da comisaría onde eles prestavam serviço. Um deles, o
“oficial de serviço”, contou que eram apenas quatro policiais de plantão e que, quando
chegou à cela, o preso já não estava. Destacava que a estrutura da comisaría era
precária. Quando saiu da sala da UFI, Valeria me disse que o que tinha falado era
“assim mesmo”. Ela conhecia essa comisaría e disse ser “um desastre, não colocam
imaginária
178
porque não tem nem pessoal”. Acostumada com a terminologia que vinha
ouvindo na UFI, pensei que tinha “acreditado” na testemunha. Valeria dizia que não se
podia responsabilizar aos policiais de plantão com essa estrutura tão precária.
Durante os primeiros dias janeiro, acompanhei o caso dos Santana trabalhado
por Pedro, o mais recente dos “meninos” na UFI, estudante de ciência política. Pedro
passou a identificar o caso como “o processo dos mentirosos”. No meu caderno de
campo, ficou registrado como “o processo do conflito familiar” e juridicamente foi
classificado como “resistência à autoridade e lesões”. Na noite do 25 de dezembro, a
mãe de Pablo Santana ligou para o serviço de emergências da polícia bonaerense
(“911”) porque seu filho estava agredindo física e verbalmente ela, o pai e a concubina.
Quando a viatura chegou à casa dos Santana, dois policiais tentaram detê-lo, mas
receberam chutes que, por sua vez, teriam provocado uma resposta policial mais
enfática. Na comisaría e, posteriormente na UFI, depuseram o pai, a mãe, a concubina e
a irmã, a qual apareceu no final da cena tentando defender e proteger o irmão dos
policiais. Todos reconhecerem em Pablo uma boa pessoa, mas que, quando bebia, ficava
alterado e agressivo. Também todos explicaram que, de fato, ele tinha sido proibido de
beber álcool, porque tomava medicação para os nervos. que na noite do dia 24 de
dezembro tinha se excedido com a sidra. A negativa da mãe de dar mais bebida, teria
sido o motivo do início das agressões.
Pedro: vou lhe pedir que me relate o que é que aconteceu.
178
Categoria usada para nomear o policial que fica custodiando os presos.
204
Dona Santana: meu filho quando bebe fica assim, ele bebeu sidra com um
vizinho e depois quando voltou me pediu a sidra da geladeira e eu lhe disse que
não, que fosse dormir… veio meu marido e Pablo atirou a bola contra ele e
chamamos a polícia. Ele saiu para o frente da casa e disse que os ia enfrentar.
Pedro: e seu marido estava fora?
Dona Santana: todos estávamos fora, os vizinhos, era um formigueiro, mas se o
senhor perguntar, ninguém viu nada.
Pedro: quando chegou a viatura, o que é que aconteceu?
Dona Santana: meu filho disse para o policial: “eu não sou seu amigo!”. E lhe
deu uma cabeçada e o policial lhe disse “aqui você se faz de machinho, mas
nós não somos sua família” e aí o policial caiu encima do meu filho.
Pedro: a senhora viu isso tudo?
Dona Santana: não, foi o policial que me disse, porque quando fico nervosa eu
não vejo nada e fui para dentro.
Pedro: a senhora tem que me contar o que a senhora viu e ouviu.
Dona Santana: ele é quem mais trabalho me dá. Os outros [filhos] se juntaram e
foram embora. Eu já estou tão cansada.
Depois de passados dois ou três dias desde que comecei a acompanhar o caso,
todos os depoimentos tinham sido tomados por Pedro. “Esses processos são os piores -
disse Pedro - porque parecem bobagem e depois é complicadíssimo. Aqui eu teria dois
fatos: maus tratos dos policiais ou falsa denúncia, porque alguém está mentindo. O certo
é que um conflito familiar grosso”
179
. Perguntei pelo depoimento da irmã que era o
único que o tinha conseguido acompanhar pessoalmente. Pedro me disse que ela
defendeu Pablo o tempo todo. Cada um diz uma coisa diferente, na única que eu
acreditei foi na mãe”. Perguntei por que: “não sei, é uma sensação, a mulher dele veio
com medo e o cara [Pablo] a estava esperando fora”. A “sensação” de Pedro podia se
relacionar com vários aspectos. Por minha parte, enquanto peguei o processo para lê-lo
completo, fiquei pensando que a e tinha sido a única em se manifestar cansada pelo
temperamento agressivo do filho e reconhecer as dificuldades para lidar com ele.
Contudo, era quem menos tinha visto e ouvido diretamente sobre os “fatos” [a
“resistência à autoridade”]. “Quando fico nervosa não vejo nada”, disse para Pedro. O
resto tinha presenciado a seqüência de fatos, desde diferentes pontos de vista. Como
disse Pedro, as falas de uns e outros diferiam em alguns pontos. Por isso, a interpretação
do próprio Pedro era que alguém estava mentindo. “O processo dos mentirosos” foi a
forma mais fácil, para ele, de identificar o caso.
179
Contou de um caso de quando trabalhava em outra UFI. Em todos os turnos”, um velhinho
denunciava os vizinhos por ameaças, dizia que jogavam merda contra ele e na casa. Um dia Pedro que
o velhinho aparece algemado. Tinha matado o vizinho.
205
“Acreditou nele?”
Ao longo da minha estada na UFI fui percebendo que a avaliação sobre se o
funcionário tinha “acreditado” ou “não acreditado” no depoente era recorrente. Podia
ser expressa na forma de uma afirmação –“neste acreditei”, “na única que acreditei foi
na mãe”, “não acreditei”- ou bem encaminhado a mim ou a outro funcionário que
tivesse assistido o depoimento na forma de pergunta –“você acreditou nele?”-, seguido
da própria opinião de quem tivesse tomado o depoimento. Foi um tipo de avaliação que
me chamou a atenção.
O primeiro efeito de tal apreciação foi me fazer desnaturalizar rapidamente o
pressuposto de que os funcionários acreditassem” que todas as testemunhas diziam a
verdade. Quer dizer, que cumprissem com a obrigação legal de não mentir. Quando
Sebastián me disse que geralmente não explicitavam o juramento “porque as pessoas
sabiam que deviam dizer a verdade”, parecia estar falando de um hábito incorporado,
tanto neles como “nas pessoas”: diante da Justiça se diz a verdade. No entanto, quando
observei a dinâmica dos depoimentos e o uso ocasional e circunstancial da advertência
de se estar sob juramento, percebi que essa era uma forma de conduzir o depoimento
para uma certa direção, mas não necessariamente de punir o perjúrio. A avaliação sobre
a credibilidade transmitida pelo depoente ao funcionário me fez pensar ainda mais sobre
esta questão.
Tal avaliação era realizada uma vez que a testemunha ia embora. Já tinha feito
seu depoimento, estava pronta a ata, assinada e incorporada ao processo. Não se
tratava com tal avaliação de reverter as afirmações da testemunha, aquele era “seu”
depoimento. Também não de iniciar uma denúncia por “falso testemunho”, caso se
confirmasse que tais afirmações não eram verdadeiras
180
. Tratava-se de uma forma de
pesar e valorar o depoimento como “prova”, como um elemento que viesse a sustentar,
ou não, uma linha de investigação. Por isso, em alguns casos, a avaliação sobre a
credibilidade do depoente se fazia contrastando suas afirmações com outros elementos
do conhecimento dos funcionários e, eventualmente, com outras “provas”. Valeria disse
“acreditar” no depoimento do policial de serviço na comisaría da qual um preso tinha
180
O advogado Magistir tinha uma opinião e atitude explícita no mesmo sentido. Como disse, ele dizia
que se as testemunhas eram da outra parte as fazia suar. Depois acrescentou: “Eu na minha vida
profissional acho que devo ter pedido apenas duas denúncias por falso testemunho. Ao final, é uma pobre
testemunha, um pobre rapaz, e você, sabendo que conhecia alguma realidade, o tergiversou para que
caísse em falso testemunho, fique nervoso”.
206
fugido. “Acreditou” porque ela mesma conhecia a comisaría e sabia de sua
precariedade. Não ter podido controlar que um preso fugisse era um relato, aos olhos de
Valeria, verossímil.
Geralmente, os elementos de contraste eram outros depoimentos orais. A tarefa
de valorar a credibilidade das testemunhas requeria da percepção dos funcionários um
permanente diálogo com a hipótese sobre o “fato” que eles mesmos sustentavam. Pedro
disse que só tinha acreditado na mãe de Pablo Santana. “Não sei por que, é uma
sensação”. Segundo ele, cada um dizia uma coisa diferente. Ergo, alguém estava
mentindo. A versão da mãe era a mais próxima àquela registrada pela polícia e tinha
sido a única que não manteve uma defesa incondicional de Pablo. Pedro avaliou a irmã
“ter defendido Pablo à morte” e a concubina ter mostrado medo, destacando o fato de
Pablo ter esperado ela fora da UFI. Aos olhos de Pedro, a posição da mãe, além de bater
com o registro da polícia, também parecia, justamente por admitir o cansaço e o caráter
difícil do filho, a versão menos influenciada. A mais sincera, no processo “dos
mentirosos”
181
.
Ao mesmo tempo, Valeria disse para a mãe de Lucas Martín que não falasse
sobre a detenção do filho, “porque era a mãe e vai me contar coisas que eu não vou
acreditar”. Nesse caso, a mãe de Lucas contava que o filho estava preso por outro
processo, mas que, na verdade, não devia estar preso por nenhum deles, porque “era um
bom garoto, apenas a droga tinha complicado a vida dele e de todos”, se referindo à
família. A defesa do filho, reação esperável na nossa sociedade, era um pressuposto
incorporado na avaliação dos funcionários como parâmetro de credibilidade da
testemunha. Era, pois, um depoimento próximo demais para ser considerado por si
mesmo valioso, ou crível. Isso não queria dizer que, quando parentes próximos se
apresentassem na UFI, seja como testemunhas ou mesmo para “conversar” com os
funcionários, não fossem ouvidos. Pelo contrário, Valeria, sobretudo, manteve longas
conversas com es de “imputados” ou “vítimas”. Além de receber as pessoas que
demandavam ser atendidas, era uma forma de criar proximidade. Ao tempo em que
181
Ao sistematizar meus dados de campo, fui percebendo pontos comuns na avaliação por parte dos
funcionários da credibilidade das testemunhas. Ajudou-me para pensar essas variáveis a etnografia já
mencionada de Lawrence Rosen. Ele destaca que, no direito islâmico, existe um conjunto de critérios de
valoração dos depoimentos que conduzem as decisões para uma direção ou outra. Os depoimentos
positivos (aqueles que afirmam que alguma coisa aconteceu) m maior valor que os negativos (que
negam que tenha acontecido) e também os depoimentos criticando o caráter de uma das partes têm maior
valor que aqueles que, ressaltando suas características positivas, dão apoio a ela (1989:43).
207
informações sobre o perfil do envolvido, sua família, seus hábitos e seus
relacionamentos, permitiam contextualizar o “fato” e os depoimentos sobre ele vertidos.
Sobre essas informações, não os familiares podiam depor. Também pessoas
próximas, sem vínculo de parentesco. Dona Clara foi depor no “caso dos catadores de
papelão”. Era alguém que conhecia Martin Silva desde pequeno, por morar no bairro
“desde que o mesmo tinha sido construído”. Seu depoimento, bem como a carta da
Associação “O amanhecer dos catadores de papelão”, eram opiniões próximas e
pessoais, mas não necessariamente vistas como “influenciáveis” aos olhos de Valeria,
pois mantinham uma certa distância pessoal. Da mesma forma, Valeria percebeu no
depoimento dos policiais que intervieram no procedimento certa insegurança e confusão
na seqüência do relato sobre o acontecido. Conhecia um deles de uma denúncia anterior
por maus tratos na comisaría onde se desempenhava, onde ela mesma tinha encontrado
em uma sala da dependência os paus que teriam deixado marcas nas costas do preso.
Não era um conhecimento que favorecesse a credibilidade da testemunha.
Diferentemente, o policial que prestou apoio aos outros dois lhe pareceu estar “mais
seguro” no seu depoimento e disse ter “acreditado nele”. Por isso, as dúvidas surgiram
na avaliação de Valeria, pois o testemunho dele e de Dona Clara, os únicos nos quais
Valeria disse “acreditar” nos outros “não terminava de acreditar”- eram contraditórios
entre si.
Ao serem os depoimentos contrastados com outros depoimentos a valoração de
um baseava-se na credibilidade de outro e na compatibilidade, ou não, de versões. Não
havia um mecanismo certo que permitisse desempatar as dúvidas. A acareação entre
testemunhas estava prevista pela lei, mas raramente soube que fosse usada (não o foi
durante meu trabalho em nenhum caso). Advertir a testemunha que estava sob
juramento –como foi advertida Dona Clara por Alicia- era uma estratégia para dar força
ao depoimento. Alicia comentou que estava trabalhando outro processo iniciado pela
denúncia de vizinhos que tinham ouvido um tiroteio. O “imputado” tinha se negado a
depor, mas tinha dito extra-oficialmente” para Alicia que a polícia tinha plantado
uma arma para ele. Diante da contradição entre os testemunhos, Alicia me disse: “Vou
chamar os vizinhos e ver quem disse a verdade”. Pareceu-me que não esperava que as
testemunhas ou o “imputado” dissessem a verdade, mas confiava em poder perceber
qual era a versão que, para ela, resultava na “verdade”. Outros elementos do processo; a
relação social do depoente com os envolvidos no processo; a forma de depor e de
208
apresentar o relato; a hipótese prévia do funcionário sobre o acontecido; os casos
anteriores; e a experiência na função, junto com as qualidades perceptivas do
funcionário, informavam e alimentavam estas avaliações.
Ser “uma sensação”, “um feeling”, “por experiência”, foram explicações às
minhas perguntas diante das afirmações sobre ter “acreditado”, ou não, na testemunha.
Elas marcavam um conhecimento específico que nada tinha a ver com o saber jurídico,
mas com uma expertise adquirida na dinâmica de trabalho. Ela indicava certos critérios
de credibilidade, como não estar seguro, se contradizer, a proximidade social, o
histórico profissional ou de vida.
Dona Rosa
Esses critérios de credibilidade, porém, não eram exclusivos dos agentes
judiciais. Conversando com o advogado Magistir, perguntei-lhe se entrevistava as
testemunhas da defesa previamente ao depoimento.
As testemunhas têm que ser divididas em de carga [acusação] e de descarga
[defesa]. Com aquelas de descarga me entrevisto, sim, e você algum tipo de
indicação para que saibam como se conduzir na situação para que sejam ainda
mais críveis. Eu trato de trazer mulheres e maiores de 50 anos, dona Rosa. Com
aquelas de carga, no momento do depoimento, você as faz suar. (Entrevista Dr.
Magistir, 21/05/09)
A estratégia de Magistir estava mais voltada à apresentação de testemunhas no
juicio oral, pois geralmente a defesa se reservava a solicitação de provas para essa
etapa. Contudo, também era válida para a etapa de investigação. Como ressaltou o Dr.
Pascolini, era válida “sempre que tenham que se confrontar com um terceiro”. De forma
geral, nas estratégias dos advogados que entrevistei, o objetivo da entrevista com as
testemunhas não era, na maioria dos casos, dizer o que elas tinham que dizer. Era muito
mais prepará-las na sua atitude e desempenho para a situação do depoimento. Evitar que
ficassem nervosas, prever o relato e também as perguntas para que as respostas não
parecessem confusas.
“Para mim, o objetivo da entrevista é ver em que condições está para depor e
que seja o mais natural possível. Acho que quando a testemunha está preparada demais
com os gestos, para notar, a teatralização pode jogar contra”, opinou o Dr. Fellini,
como disse, um advogado que, além de muitos outros casos, defendia “imputados”
vinculados a movimentos sociais e civis. O ponto crucial então era a preparação de uma
209
testemunha ‘crível’, independente dela estar dizendo a “verdade” ou não. O problema da
“mentira”, conforme colocado por estes advogados e defensores, era o fato dela,
provavelmente, desestabilizar o relato e a atitude da testemunha, não o fato de não
cumprir o juramento. “Na medida do possível tento que a testemunha venha dizer a
verdade, se não suam muito”, avaliou o Dr. Magistir em relação às testemunhas
solicitadas por ele para depor. O pressuposto não referia a que “a verdade” fosse mais
ética ou mais “verdadeira”. A presunção era que a “verdade” podia ser mais “crível”.
Essa credibilidade não estava colocada no relato (o que ela diria), mas no desempenho
da testemunha. Fazia frente à avaliação que, após o depoimento, os funcionários das
UFIs pudessem fazer sobre ela. Na minha percepção, estes últimos também não
esperavam que a testemunha dissesse a “verdade”. Esperavam que seu depoimento fosse
verossímil em relação aos parâmetros da hipótese que vinham se formando sobre o caso.
Dona Rosa, personagem citada por Magistir como testemunha ideal, é uma
figura do senso comum argentino. Ela foi criada pelo jornalista argentino Bernardo
Neustadt, na década de ’60. Ele tinha um programa político na televisão e no rádio, que
durou mais de 40 anos. Por ele, desfilou, senão toda, pelo menos enorme parte da classe
política e também militar argentina. Além das entrevistas, o jornalista costumava
introduzir e finalizar o programa com suas próprias reflexões. Utilizava para isso um
recurso comunicativo original: falar ‘para’ ou ‘por’ Dona Rosa. Dona Rosa encarnava o
estereotipo de uma dona de casa, portadora de um senso comum geralmente
conservador e com opiniões generalistas sobre os diversos temas abordados: inflação
(Dona Rosa no supermercado), corrupção (Dona Rosa paga seus impostos), eleições
(Dona Rosa tem seu candidato), segurança pública (Dona Rosa teme por sua família),
entre outros. O uso da figura de Dona Rosa passou a ser usado de forma generalizada,
como encarnação de um tipo ideal de opinião média do cidadão médio. Por ser dona de
casa, Dona Rosa ficava informada pelos jornais televisivos, ia ao mercado do bairro,
comentava as notícias, passava a vassoura na calçada, conversava com os vizinhos,
trocava informações e fofocas. Dona Rosa era crível, aos olhos do Dr. Magistir, porque,
mulher de idade média e dona de casa, não pareceria representar interesses particulares.
Ao tempo que conhecia o bairro e pelo bairro era conhecida.
210
“É conhecido do bairro”
No primeiro pós-turno, um dos primeiros depoimentos que acompanhei foi o
de Patrícia Juarez. Patrícia era a atendente da loja de comestíveis esfaqueada por
Esteban Garza e mais um jovem ainda não identificado. O caso estava nas mãos de
Valeria, a qual tomou todos os depoimentos e medidas relativas ao caso. Patrícia foi à
UFI acompanhada por sua mãe. Estava muito comovida, ainda sob o impacto da
situação vivida. No depoimento, Patrícia contou que conhecia Esteban, porque havia
aproximadamente um mês ia todos os meio-dias para comprar o almoço na loja. Ficava
conversando com ela por um bom tempo. Ele chamava a atenção para o fato do nome e
do dia do aniversário das respectivas filhas serem os mesmos. Patrícia contou,
chorando, que, naquele dia do roubo, Esteban a ameaçava com uma chave de fenda,
enfiando a mesma na sua orelha. Enquanto o outro jovem pegava o dinheiro do caixa,
Esteban teria enfiado no torso da Patrícia a faca com a qual ela estava cortando o queijo.
Foi quando ela desmaiou. Minutos mais tarde, a mãe a encontrou deitada no chão,
pois a loja de comestíveis estava localizada na frente da casa delas. Patrícia estava
totalmente atônita com a situação, dizia não poder entender como alguém com quem ela
conversava tinha feito “uma coisa assim”. Acrescentou que Esteban nem pedia nem
tocava o dinheiro, ficava “me machucando”. Ao contrário, o outro jovem queria
levar o dinheiro e pedia a Esteban para que fossem embora. Apesar de não se lembrar
bem do outro jovem, disse que tinha visto ele outras vezes junto com Esteban e que
também era da obra. Quando foram embora, Valeria mudou a tipificação do processo
para “tentativa de homicídio”, agravando assim a imputação inicial.
Patrícia e a mãe voltaram à UFI dias depois. A polícia tinha identificado o outro
jovem, pois na obra disseram que Esteban sempre andava com um tal Pedro “O
Escroto” e a descrição de Patrícia coincidia com ele. Foi fácil achá-lo porque, dias
antes, tinha sido preso em um processo por droga. Também porque, logo no primeiro
dia em que o policial ligou para Sebastián, aquele informou que uma senhora lhe teria
dito que “os vizinhos dizem que o outro estava em uma moto preta”. Elemento que
contribuiu na identificação. Naquele dia, a citação à Patrícia era para que realizasse um
“reconhecimento” de Pedro. Valeria decidiu que fosse por foto, porque quando se
entrevistou com Pedro, viu que ele estava muito diferente do dia em que foi preso.
Diante de quatro fotos muito semelhantes entre si, Patrícia não duvidou um
instante em indicar a foto número 4. Era o número que correspondia à imagem de Pedro
211
“O Escroto”. Valeria elogiou Patrícia por se lembrar tão bem, pois “geralmente ninguém
lembra e voé muito forte”. “A psicóloga está me ajudando e hoje eu fui para poder
vir aqui bem”. A mãe interveio na conversa, pedindo que “os juízes sejam iluminados
para que [Esteban e Pedro] não ficassem livres”.
Mais tarde, entrou na sala o advogado do policial Sánchez, imputado do
“homicídio” de Juan Ojeda, o caso que originalmente tinha me levado até a UFI. O
advogado acompanhava um vizinho do bairro onde aconteceu o fato. Desde sua posição
de defesa, ele tinha solicitado que depusesse como testemunha. Valeria tinha aceito. O
advogado iniciou o depoimento, colocando as perguntas através de Valeria. Chegado
um momento do depoimento, Valeria começou a fazer suas próprias perguntas.
Valeria: o senhor disse que conhecia o jovem morto do bairro.
Vizinho: sim, desde pequeno.
Valeria: e soube do ocorrido na hora?
Vizinho: não, às 20h30.
Valeria: e como soube?
Vizinho: pelos vizinhos.
Valeria: mora perto?
Vizinho: sim, há 5 quadras.
Valeria: e lhe chamou a atenção o falecimento?
Vizinho: sim.
Valeria: por que lhe surpreendeu a morte nessas circunstâncias?
Vizinho: porque é um menino que estudava e fazia alguns bicos no bairro, não
andava em nada.
Valeria: não tinha referências ruins dele e então lhe surpreendeu que morresse
em mãos de um policial? Não sei como escrever isso!
Vizinho: sim, isso, que estivesse envolvido em alguma coisa assim.
Valeria: em “alguma coisa assim”? Em um roubo ou em um fato policial?
Vizinho: em um fato policial, porque um roubo sei não....
O depoimento continuou. Quando o vizinho e o advogado foram embora,
Valeria me disse que qualquer resposta –roubo ou fato policial- estava bem para ela.
“Quando quero chegar à verdade é uma coisa, mas aqui eu estou convencida de que foi
morto [sem estar roubando] porque eu fui ao local, vi o corpo e sei como foi”. Logo
depois, perguntou para mim o que tinha achado da testemunha e, antes que eu
respondesse, expressou sua própria opinião: “eu não tenho porque acreditar nele”.
era o horário do almoço quando entrou Marconi, na sala de Valeria e Alicia.
Marconi era um policial lotado na Divisão de Homicídios, com base em Los
212
Pantanos
182
. Ele e seu chefe, o comisario Martínez, eram figuras recorrentes na UFI,
porque a investigação dos casos de homicídio era a eles derivada. Tanto Sebastián
quanto Valeria elogiavam o trabalho investigativo de ambos e, por isso, confiavam a
eles boa parte do andamento daqueles casos. Especialmente, Marconi era para Sebastián
um “investigador de verdade”; sabia andar na rua, manter contatos, conversar com as
pessoas. Valeria ainda destacava o compromisso e paixão de Marconi pela investigação.
Por sua vez, tanto Martinez quanto Marconi diziam gostar de trabalhar com essa UFI.
Reconheciam em Sebastián, Valeria e Alicia, “respeito pelo trabalho policial, receptivos
às solicitações de certas medidas, até quando eram em horários pouco convencionais
para os horários do poder judiciário”.
É que a polícia, inclusive nas suas funções de investigação, não tinha autonomia
para desenvolver suas atividades. Como “auxiliar do Ministério Público”, devia
responder às ordens dos promotores. Acontecia, porém, que a partir das UFIs fosse
costume derivar a investigação nas unidades policiais sem maiores indicações
específicas sobre o que fazer e sem maiores exigências de prestação de contas das
atividades investigativas realizadas. Na UFI K, no entanto, eles mantinham um vínculo
próximo com as tarefas desenvolvidas desde “a Base”, como denominavam a sede da
Divisão de Homicídios. Solicitavam relatórios e se comunicavam frequentemente pelo
telefone. Quando enviavam os “sumários”, sempre o acompanhavam de diligências
específicas a serem realizadas.
A questão era que o trabalho de uns e de outros – policiais e promotores- não era
intercambiável. Pelo que observei na UFI, a polícia produzia um tipo de conhecimento
vinculado a uma forma de fazer investigação mais empírica, de rua, de andar, conversar,
espiar, vigiar, suspeitar, enganar, manter uma rede de informantes, negociar.
Formalmente, as informações produzidas com essas atividades deviam ser registradas
por escrito e informadas à UFI. Todavia, acontecia em muitas ocasiões que os policiais
fossem à UFI, comentassem informalmente os resultados ou novidades e solicitassem
autorizações para prosseguir com as “tarefas de inteligência” ou para fazer um
allanamiento, ou escutas telefônicas. Como algumas destas medidas só podiam ser
182
Em uma sala de aproximadamente dois metros por quatro, trabalhavam quatro policiais sob as ordens
do chefe da Divisão. Essa sala era apenas a base do trabalho de investigação, porque a maior parte do
mesmo era desenvolvida na rua, nos bairros, conversando com as pessoas, executando mandados de busca
e apreensão, fazendo perseguições e vigilâncias e, como eles o chamavam em seus relatórios, outro tipo
de “tarefas de inteligência com fins investigativos”.
213
realizadas com expressa autorização do “juiz de garantias” e quem solicitava tais
medidas ao juiz era o promotor, e não a polícia, a presença de Marconi e Martínez na
UFI era recorrente.
Naquele dia, Marconi apareceu na UFI desalinhado e com a barba crescida de
vários dias. Diante dos olhos surpresos de Valeria e Alicia, disse que havia uma semana
que estava “fazendo vigilância em uma villa [favela]”. Precisava passar despercebido.
Naquela ocasião, tinha ido à UFI com o fim de solicitar um ofício para que todas as
polícias do país procurassem Diego Focucci nas suas respectivas áreas de competência.
Na hora, Alicia preparou o ofício e o fez assinar por Sebastián. Enquanto Alicia
preparava o documento, Marconi conversava com Valeria.
Marconi: eu acho que pode estar em Mendoza [uma província ao sudoeste
argentino], porque ele tem familiares lá. A gente achou que a voz que aparecia
nas escutas [telefônicas] era dele, mas não era.
Valeria: ontem saiu no jornal um novo protesto diante da comisaria.
Marconi: sim, doutora, esse tema dos protestos nos prejudica, porque é lógico
que, se Focucci ver tanta confusão, ele não vai voltar. O pai de David [a vítima
do homicídio] é uma bomba de tempo, eu converso sempre com ele, porque
passa todos os dias pela porta da casa dos Focucci.
Valeria: você que sabe como falar com ele, tem que dizer para o pai essa questão
dos protestos que está me dizendo.
Marconi: pois é, o que me vontade mesmo é de pegar o pai do Diego, levar
ele para a Base e lhe perguntar onde é que está o filho, mas não é possível.
Valeria: é, não é possível, o bom de você é que sabe o que é que pode e o que é
que não pode, né, Marconi? Até porque dessa forma cairia tudo o que você
fez.
Intrigada com a conversa, procurei saber do que tratava o caso. Como Marconi
tinha acabado de deixar o processo, pois levavam os processos até a Base, Alicia me
propôs lê-lo para entender melhor como era a situação. O caso era de agosto daquele
ano (2007). Era um dos sete homicídios do turnoanterior a minha chegada. Diego
Focucci e David Blomer estavam em uma festa de aniversário, com vários amigos em
comum, no bairro onde todos eles moravam. Os depoimentos registrados relatavam a
vivência daquela noite.
Depoimento de Mario, amigo de ambos e assistente à festa: “(...) Que estava em
uma festa de aniversário quando a música pára porque dizem que o Cabeça
estava zangado porque estavam zoando dele. Que diante do exposto o depoente
sai para se interar do que estava acontecendo e observa que uma quadra
encontrava-se o Cabeça bem zangado; razão pela qual o depoente tenta animá-lo
e lhe pergunta o que é que lhe acontece. Este lhe responde textualmente ‘estou
cansado de que esses babacas me sacaneem, eu não sacaneio ninguém’ (sic).
Que nesse instante apresenta-se a tima de autos, David Blomer, dizendo
214
textuais palavras ‘babaca o que? Não me falte o respeito que eu não te faço
nada’ (sic). E ambos começam a se insultar. Depois o Cabeça extrai, com a mão
direita, desde sua cintura, uma arma de fogo contra David Blomer, conseguindo
ferí-lo na altura da cabeça. Depois este sujeito se retira andando pela viela
Sarmiento. Que o Cabeça mora na rua Belgrano, perto daí. Teria mais de 20
anos. Que a vítima não portava arma. Que o Cabeça bebia álcool e
aparentemente estava em estado ébrio. Que o Cabeça é Diego Focucci”.
Depoimento da mãe de Diego Focucci: (...) Que uma viatura foi à casa buscando
Diego por uma briga entre garotos em um aniversário. Que a depoente nesse
momento começou a andar para a festa, quando observou que no endereço de
David Blomer (apelido Davidzinho) havia várias viaturas. Que uma vez
tomou conhecimento por um tio de Davidzinho que Diego tinha matado
Davidzinho, lhe referindo que ‘o tinha matado como a um cachorro’ e que lhe
devolveriam a Diego da mesma forma. Refere que Diego é um menino tranqüilo,
muito da casa, muito querido no bairro. Que perguntada se ele bebia, diz que
toda vez que ele ia a um aniversário sim. Que perguntada para que diga se ela
possui armas de fogo, refere que sim, um calibre 32 guardado no armário. Que
também deseja esclarecer que o mesmo se encontra a inteira disposição da
justiça. (...) Que a depoente sabe que quase sempre os amigos zoavam Diego, lhe
manifestando ser um filhote de cana
183
, já que Diego vem de uma família
policial. Que esse tipo de piada deprimia Diego (…)”.
Desde as primeiras ginas do processo, estava claro que a dedicação de
Marconi com o caso não era saber quem tinha sido o autor. Várias testemunhas tinham
presenciado o fato. Todas elas com uma relação próxima do “autor” e da “vítima”. Os
acontecimentos tinham se desenvolvido nas ruas do bairro e acabaram envolvendo duas
famílias conhecidas entre si em um conflito imprevisto. A questão que tirava o sono de
Marconi era encontrar Diego Focucci, foragido desde aquela noite. Essa era a razão do
pai de David, junto com vizinhos do bairro, organizar os protestos na porta da comisaria
da área. O resto do processo referia às ações realizadas por Marconi, solicitadas pela
UFI e aprovadas pelo “juiz de garantias”, para achar Diego. Escutas telefônicas na casa
de familiares e amigos de Diego, vigilância no bairro, envio de ofícios a outras polícias.
A primeira vez que eu vi Marconi solicitando autorização para alguma destas medidas
foi naquele dia de setembro. Foram várias as outras vezes que ouvi falar do caso.
Também conheci os pais de David que foram se “entrevistar com o promotor” e Alicia.
Em finais de dezembro, Marconi apareceu novamente na UFI por esse caso. Informou
que o pai de David tinha ligado para ele. Disse que teria lhe dito que “por ditos de um
183
A expressão utilizada em espanhol é pichón de gorra”. O termo pichón significa filhote de um
pássaro, se referindo também à idéia desenvolvimento do mesmo. Gorra é o quepe utilizado pelos
policiais.
215
amigo ele soube que Diego teria deambulado por uma casa abandonada na rua
Belgrano”. Marconi foi lá, mas nada nem ninguém tinham achado. Olhou para mim e
disse: “Doutora
184
, é muito difícil, eu estou dedicado a este processo quase
exclusivamente, mas o garoto que a gente busca também não é um criminoso, é um
garoto de bairro”.
era dezembro quando ouvi essa frase pela boca de Marconi. Imediatamente
me remeteu a muitos dos processos que li e dos depoimentos que assisti. Veio na minha
cabeça o depoimento da mãe de Esteban Garza, acompanhada de sua filha, uma menina
de quinze anos que aparentava bem menos, pois esperava anos um transplante de
rim. A senhora estava preocupada, no início, com que seu depoimento prejudicasse seu
filho. Valeria disse que ela apenas perguntaria sobre o outro jovem e que, como mãe,
nada do que ela dissesse poderia ser usado para prejudicar o filho.
Valeria: a senhora conhece o outro rapaz?
Mãe de Garza: sim, desde pequeno. O que eu não sei se não será o irmão, porque
são muitos eles. O sobrenome é Tavares, o pai é uruguaio.
Valeria: sim, eu pergunto se você conhece Pedro Tavares.
Mãe de Garza: sim, eu não vou ter problemas, ? Por minha filha, porque nós
duas ficamos mais no hospital do que em casa.
Valeria: não, aquilo do depoimento que prejudique seu filho eu tenho a
obrigação de extraí-lo. Ele é amigo do seu filho?
Mãe de Garza: sim, é ou era. Porque eu vou lhe falar a verdade, ele se criou com
o pai dele, ele se lembrou de mim agora há pouco.
Valeria: como a senhora sabe que estava com seu filho?
Mãe de Garza: porque ele saiu [da prisão] dois meses e eu disse para ele não
ir para o fundo porque ele mora na villa, e eu ouvia Pedro daqui, Pedro de lá. Eu
disse para ele que se re-inserisse na sociedade e ele começou a trabalhar por seus
filhos. Então, olhe, em qual momento ele fez isso ninguém no bairro pode
entendê-lo, porque ele acordava e ia trabalhar.
Valeria: a violência do fato foi desmedida.
Mãe de Garza: sim, eu não sei, eu não sei por que ele faz isso, os vizinhos não
podem acreditar. Eu e meu marido nem acreditávamos. Eu disse para o oficial
que, por favor, o levassem a um psiquiatra. Eu via ele brincar com a irmã e a
pegava do pescoço...
Valeria: igual fez com a garota. E a garota também não pode acreditar porque
disse que conversavam.
Mãe de Garza: sim, ele me disse que estava apaixonado, um amor de pessoa. Ele
disse que não sabe o que é que lhe aconteceu.
Valeria: sim, uma violência desnecessária, não é um simples roubo. O que lhe
falta é um limite.
184
Daquele modo me chamou durante toda a pesquisa, embora eu tivesse esclarecido desde a primeira vez
que não era doutora.
216
Mãe de Garza: sim, isso que queria que você soubesse, que se lhe gritam, ele
reage. Os vizinhos adoram ele, porque não entendemos o que é que aconteceu.
Os vizinhos nos ajudaram porque todos nos conhecem.
Ser um “garoto de bairro”, ser “conhecido do bairro”, ser “querido no bairro”.
Os vizinhos opinavam e comentavam sobre uma pessoa e sobre seu eventual
envolvimento em um crime. Muitos desses comentários eram trazidos ao âmbito
policial e judicial, em processos de investigação criminal. Podiam ser registrados por
escrito ou ‘apenas’ ouvidos pelos funcionários. Em qualquer caso, isso era decisão dos
funcionários e não dos depoentes. Nestes casos, para eles podiam ser argumentos de
defesa de um filho ou um amigo. Um apoio (e afeto) coletivo a uma apreciação (e afeto)
pessoal. Paralelamente a estes atos de defesa coletiva, deparei que o bairro e os vizinhos
também podiam dizer coisas horrorosas dos envolvidos. Os mesmos argumentos, em
um sentido contrário, entravam na roda.
“Que no bairro se comenta...
Na minha apresentação na UFI, mostrei particular
interesse por processos classificados como
“homicídios”. Isso me rendeu, nos momentos vagos,
que vários processos em andamento sobre esse
crime, me fossem passados para ler. Como nos casos
anteriores, também em outros, observava relações de
proximidade entre os envolvidos. Podia ser proximidade geográfica ou social; em
qualquer caso, “o bairro” era, não apenas o contexto em que aconteciam os fatos, mas o
suporte de possíveis linhas de informação e investigação. Conhecer alguém do bairro
era, como mínimo, ter maior facilidade para identificá-lo. E era também, como vimos,
uma forma de opinar sobre alguém. Ao ler processos de “homicídio” também passei a
entender por que, no primeiro encontro, Valeria teria dito que no verão as mortes
aumentam, porque “os grupos de rapazes se juntam na rua a beber cerveja, bebem muito
e acaba em algum problema”.
“Esse aqui é um típico caso entre bandos”, disse Alicia me entregando outro
processo de “homicídio”. Em 2004, um homem sem vida tinha sido encontrado com
quatro tiros, no interior de um carro. A “vítima” era apelidada como o Barata. A
217
atendente de um quiosque próximo disse ter ouvido disparos, mas não ter visto nada.
Depuseram familiares da vítima e vizinhos.
Depoimento de um vizinho: “Que alguém lhe comentou ‘mataram o Barata’.
Que sabe por comentários do bairro que há um ano o Barata tinha matado
alguém em um aniversário que comemorava a família Juarez. O morto era
conhecido no bairro como Pacho. Que no bairro se comenta que Barata era uma
pessoa agressiva e que sempre andava armado, era louco pelas armas”.
Depoimento da esposa da vítima: “Que o que aconteceu foi produto de uma festa
na casa de seu vizinho Juarez. Que a festa estava se desenvolvendo sadiamente e
de forma pacífica (...). Que os sujeitos são de mal viver. Que o que comenta todo
o bairro é que são “piratas do asfalto”, mas que, como em todas as coisas,
ninguém quer se meter por medo a terminar como seu esposo”.
Depoimento de uma testemunha, sem aportar o nome: “(...) Que três meses,
Barata foi ferido de morte. Que por comentários soube que os sujeitos que
mataram Barata foram Tokio e Japa, os quais se movimentavam em uma moto.
Que sabe que Japa chama-se Daniel rez e que esteve preso por ser “pirata do
asfalto”. Que sabe onde moram todos. Que todos são temidos no bairro já que
são delinqüentes e capazes de tirar a vida de qualquer pessoa. Que com o
relatado pela depoente a mesma tem medo pela sua integridade física e a de sua
família”.
Assim como nos corredores de Tribunales se construía uma reputação dos
funcionários, no “bairro comentava-se sobre a forma de vida, a pessoalidade e os
costumes de uma pessoa e de sua família. Nestes e outros vários casos de “homicídio”
ou “tentativa de homicídio” com os quais tive contato, as pessoas envolvidas moravam
no mesmo “bairro” e eram “conhecidas do bairro”, para o bem e para o mal...
Por isso, “o que se comenta no bairro” envolvia tanto “autor” como “vítima”.
Além de conhecer e comentar sobre a vida e caráter das pessoas, o “bairro” também
comentava e sabia sobre informações relativas aos “fatos” investigados judicialmente.
Todas essas informações tinham diferentes formas de ingressar nos processos, para que
pudessem ser consideradas juridicamente valiosas. “Soube por comentários do bairro...”
era uma forma de registro padronizada, que permitia incorporar, nos processos, os
rumores que circulavam no bairro, entre vizinhos.
Em inícios de outubro, enquanto lia o processo que envolvia Japa e Barata,
Valeria recebeu um telefonema. Era o pai de um menino que tinha sido morto. Era outro
dos sete homicídios deixados pelo turno do mês de agosto. O menino, de 15 anos,
estava com seu irmão consertando uma moto na frente da casa dele, quando dois garotos
tentaram roubar a moto e acabaram atirando no menino. A mãe chegou sair do interior
218
da casa e gritar “o que é que você fez a meu filho?!”, cuja cabeça estava toda
ensangüentada.
Ouvi que Valeria respondia: “então, o senhor sabe o que se diz no bairro. Eu vou
pedir para a juíza de menores que tome seu depoimento”. O pai disse para Valeria que
tinha informação de quem teria sido o “autor”; um tal Mauricio, o Capenga. O processo,
inicialmente recebido na UFI, tinha passado para a vara de “menores” porque o primeiro
“imputado” era menor de 18 anos. Ainda procuravam quem era o outro garoto que o
acompanhava. Um mês e meio depois, o senhor se apresentou na UFI para falar com
Valeria. Logo em seguida, o senhor se referiu às informações que tinha: “a polícia me
disse que foi um tal Capenga, eu a esse [rapaz] o vejo o tempo todo, sei onde mora,
aliás, no outro dia quase que caio encima dele, mas não fiz nada”.
Valeria: o senhor sabe a idade dele?
Pai: 17, 18, é um molequinho.
Valeria: eu vou lhe tomar o depoimento como se o tal Capenga tivesse 18 anos.
Pai: eu disse para a Dra. de menores que eu levo o garoto perante ela, eu vejo ele
o tempo todo, estão todos aí.
Valeria: e como o senhor sabe quem é?
Pai: eu sei por que a polícia me disse que foi um que se chama Capenga e
Mauricio. Mentir não vou lhe mentir, porque não serve de nada.
Valeria: o senhor poderia indicar a casa dele?
Pai: sim, a casa, a namorada, tudo.
Valeria: onde mora a namorada?
Pai: em frente.
Valeria: como anda vestido?
Pai: de camisa de futebol, São Lorenzo ou Barcelona, bermuda, às vezes com
boné, outras não.
Valeria: além da polícia, mais alguém disse para o senhor que ele [Maurício o
Capenga] andava com David [o primeiro “imputado”]?
Pai: sim, porque eu andava buscando ele e as pessoas me diziam “foi ele”,
embora não tivessem estado no fato.
Valeria: mas por comentários do bairro?
Pai: sim, por comentários do bairro.
Valeria: alguma testemunha do fato, porque eram várias, que possa dizer que
foi o Capenga?
Pai: não sei, mas o conhecem de antes, talvez Marquinhos e outro menino
possam reconhecê-lo. Todos falavam de David, mas não deste outro rapaz.
Valeria: o senhor sabe se este rapaz já esteve preso?
Pai: não sei, alguma coisa deve ter, porque andam fazendo maldades pelo bairro.
Faltam-lhe todos os dentes de cima.
Valeria: eu não vou lhe dizer uma coisa por outra, mas com este rapaz está
difícil, porque não muito que o relacione com o fato. Eu vou olhar o processo
porque lembro que a mãe de David veio e disse que sempre andava com este
Capenga.
2
19
Valeria terminou de escrever a ata do depoimento. Na ata ficou registrado: “(...)
que Mauricio, o Capenga, seria quem matou seu filho e pegou a moto (...)”. Uma vez
que o senhor tinha ido embora, Valeria me disse que essas situações eram
complicadas, porque a polícia começa a dizer que foi um e o bairro todo começa repetir
que foi esse, “para ter um culpado”.
Em busca de testemunhas: a polícia e o bairro
A obtenção de informações era um processo complexo. Envolvia mecanismos e
atores diferenciados. A polícia era a principal levantadora de informações. Por um lado,
porque tinha uma rede de informantes em diferentes “bairros” de sua competência. Em
uma das tantas visitas de Marconi à UFI, ele quis saber com Valeria sobre um
“homicídio” do qual tinha tomado conhecimento, mas não se encontrava trabalhando
diretamente. Chamou minha atenção a forma de perguntar. Marconi disse assim: “o que
é que a polícia fez até agora?”. “Pouco e nada”, respondeu Valeria. Ele não parecia se
considerar parte dessa “polícia”, mas um investigador diferenciado. “Eu tenho um
informante, um remisero, que são meus olhos no quarteirão 64, ele poderia depor com
identidade reservada”
185
. Valeria aceitou a proposta e combinaram de Marconi levar a
testemunha para depor na UFI. Os “olhos” de Marconi no quarteirão não só “viam” em
relação a esse homicídio, diziam também respeito a diversos crimes que pudessem
acontecer na área. O registro nos processos de uma testemunha I.R.”, como eram
identificadas as pessoas que depunham com “identidade reservada”, era um mecanismo
para incorporar dados aportados pelos informantes da polícia. Não porque elas não
estivessem dispostas a revelar seus nomes, mas também porque não eram testemunhas
‘legítimas’ dos “fatos”. Eram figuras liminares entre a legalidade e a ilegalidade.
Quando fui à “Base”, Marconi e Martinez me explicaram que “os informantes
são malandros de crimes não considerados graves, como roubo do rádio de um carro, e
são mais importantes fora [da prisão] porque sabem de tudo, são pessoas que conhecem
muito os bairros, a rua”
186
. Martinez disse que eles sempre verificavam a informação
185
Ver mais adiante Capítulo 7.
186
Quando Marconi disse isso lembrei de um projeto de pesquisa do qual participei no Rio de Janeiro
sobre a reforma da polícia civil “Programa Delegacia Legal”. Um dos aspectos era eliminar as
carceragens das delegacias. Nas entrevistas com policiais, tal medida foi criticada por tirar uma
importante fonte de informação dos policiais: o preso. Coloquei essa observação para Marconi e
Martinez. Eles disseram que, pelo menos na província, “o preso cose a boca, não fala nada”.
Diferentemente das delegacias de polícia civil do Rio, nas comisarias da província, não eram os policiais
220
fornecida por estas pessoas por outros meios: “mas se, por exemplo, o informante disser
que havia um carro Fiat cinza e depois outra pessoa fala sobre esse carro, então a
informação é verdadeira”. Como vi no caso de Cacá, descrito no Capítulo 7, nem
sempre a informação podia bater e isso podia ser um grave problema de credibilidade do
policial e do promotor, diante do “juiz de garantias”. Desse modo, a incorporação
jurídica de tais informações era avaliada com cuidado pelos promotores.
Na conversa que mantive na Divisão, Marconi e Martínez reclamavam do fato
do trabalho que eles faziam ter que ser posteriormente formalizado na UFI.
Vislumbravam isso como uma falta de credibilidade no trabalho da polícia –“ninguém
acredita na polícia”- e também como um obstáculo para a própria investigação.
Martínez contava o drama que eles viviam por não poder interrogar o “suspeito” de um
crime. Isso porque, entre outros motivos, acontecia que o mesmo “suspeito” falasse para
eles quem era o “autor”, ou bem aportasse elementos de prova, sem que em nenhum dos
dois casos eles pudessem registrar formalmente essa informação. Assim, deviam levar
esses elementos diante do promotor para ele citar o “suspeito” e fazer as perguntas que
considerasse pertinentes, que não seriam, na visão deste policial, as mesmas que faria a
polícia.
Por sua parte, a partir da promotoria, a visão era que eles atuavam como
“diretores da investigação”. Assim, o trabalho investigativo da UFI consistia na tomada
de depoimentos, seu registro, a solicitação de perícias, a indicação de quais tarefas
solicitar a polícia e, finalmente, a articulação e elaboração do material produzido em um
escrito jurídico, conforme as regras do direito. Percebia nessa linha uma espécie de
divisão de tarefas entre os funcionários das promotorias e a polícia
187
.
Mas, havia também outros mecanismos para registrar as informações produzidas
pela polícia. Nos processos tinha me acostumado a ler os relatórios dos policiais
dedicados à investigação dos casos. Eles registravam suas atividades sob uma fórmula
padronizada e genérica: “prosseguindo tarefas investigativas...”, realizando tarefas de
inteligência encobertas...”.
que podiam negociar a liberdade ou não do preso. Isso era competência dos promotores e juízes. Era na
rua que a polícia tinha maior manobra de troca.
187
Na dissertação de mestrado tinha apontado esta relação como uma demarcação de domínios
diferenciados: a rua era o espaço da polícia e as salas de Tribunales dos funcionários do judiciário, no
caso da Justiça Federal na cidade de Buenos Aires. Contudo, uma promotoria encarregada exclusivamente
da investigação penal não é um juzgado e uma promotoria criminal no conurbano não é um juzgado na
Capital. As representações sobre a polícia e sobre a divisão de tarefas entre uns e outros pareciam-me
diferir em alguns aspectos.
221
Relatório Martinez, DDI Homicídios. “Tenho o agrado de me dirigir ao senhor,
prosseguindo as tarefas investigativas encomendadas em torno da IPP n.608.06,
a fim de colocar para seu conhecimento que, como resultado de novas
averiguações e de tarefas de inteligência encobertas, surge que o imputado
Adrián Márquez teria retornado ao país”
188
.
Depoimento do policial comissionado: “Que realizando tarefas de inteligência de
forma encoberta e da análise da recompilação de dados adquiridos na rua o
comentário generalizado é que o entregador do endereço seria Nobre (...). Que
surge que era habitué das reuniões realizadas na esquina do local do fato, das
quais participava a maioria ou a totalidade das pessoas presas no presente
processo”
189
.
As frases “de tarefas investigativas” ou “de tarefas de inteligência encobertas”
ou “das averiguações realizadas” eram fórmulas conhecidas para os policiais relatarem,
sob um modo genérico e sem aportar detalhes, os mecanismos através dos quais
obtinham as informações. Estes envolviam diversas ações específicas: vigilância de
certos endereços, escutas telefônicas, seguimento de pessoas, fotografias de residências
ou do movimento de seus moradores, averiguação sobre o domínio de carros
estacionados nos arredores de um “ponto sob investigação”. Essas “tarefas” também
incluíam as conversas dos policiais com eventuais informantes, testemunhas ou pessoas
próximas aos envolvidos. Eram os policiais andando pelo bairro aqueles que colhiam
possíveis testemunhos que poderiam, posteriormente, se formalizar em depoimentos na
UFI. Aos policiais lhes era reconhecida também certa competência na atividade de
procura de testemunhas.
188
Tratava-se de um processo por “homicídio em ocasião de roubo”. Um senhor tinha sido encontrado
morto na sua casa, amarrado com fios e esganado. Na casa, faltavam eletrodomésticos. A filha do morto
depôs que no dia anterior tinham estado, na casa, com o pai, um senhor e uma mulher a quem não
conhecia, mas de quem descreveu o aspecto físico. De tal descrição e do depoimento de um remisero que
teria conduzido o casal aa casa da vítima, surgiram como suspeitos Adrián Márquez e sua mulher. O
primeiro era um mecânico da área, que “teria tido um problema com a vítima”, segundo declarou o
remisero.
189
Tratava-se de outro processo por “homicídio”. Em 2004, outro senhor, de 60 anos, tinha sido achado
morto na própria casa com uma faca no olho. A suspeita sobre Nobre nasceu com o depoimento da filha
da vítima, que encontrou o cadáver. Na ata de seu depoimento, disse que “lhe resultou suspeito o senhor
Nobre, quer dizer, seu vizinho de em frente, que estaria envolvido em um roubo a outro vizinho havia
dois meses atrás”. Outro vizinho depôs que “naquela manse cruzou com um sujeito que conhece como
Tolo, que levava um saco de pão e tinha um corte na mão e uma mancha vermelha na camisa. Que tal
situação lhe chamou a atenção já que o aludido Tolo havia três ou quatro dias que tinha saído da prisão e,
ao saber da morte de seu vizinho, o relacionou com o fato”. Em um primeiro momento, Valeria pediu a
detenção de Nobre e Tolo. Tempos depois outorgou a liberdade, enquanto a família de ambos continuava
com os telefones grampeados. Quando eu lia o processo, Valeria me disse que iria sobreseer, pois Tolo
não tinha nada a ver e Nobre podia ter a ver com a entrega da casa, mas não com o homicídio.
222
No caso do homicídio de Fernando Rojas por parte do policial Sánchez, Valeria
me disse, após o depoimento de Sánchez, que, por este processo, poderiam lhe iniciar
um sumário administrativo. Referia-se a uma resolução da Procuradora Geral, na época,
que dispunha que, em qualquer processo onde os “imputados” fossem policiais, a
investigação não fosse derivada a outros policiais. Naquele caso, Valeria tinha
procurado por um bom tempo dois jovens que teriam visto que o jovem Rojas não
estava armado. Meses depois do fato, quando o prazo para decidir sobre a situação de
Sánchez se aproximava, decidiu pedir para um policial que trabalhava no serviço
externo da comisaría da área, que se ocupasse de encontrar as testemunhas. Valeria
explicou que não teria delegado essa incumbência a qualquer outro policial, mas que
aquele era conhecido do instrutor de uma outra UFI, onde investigavam o mesmo
policial, Sánchez, pelo “homicídio” de outro jovem. Valeria me disse que ela mesma
teria ido ao bairro para procurar os dois jovens, mas que a mãe de Rojas, com a qual ela
mantinha um contato permanente, teria dito para ela: “por mais que a senhora fosse de
calça jeans e tênis é óbvio que o pessoal e até os policiais a identificariam como a
promotora”. O bairro, para a mãe, não era um lugar apropriado para Valeria ficar
andando e perguntando pelos jovens. O policial, diferentemente, parecia estar melhor
qualificado. De fato, os dois jovens apareceram rapidamente, inclusive sendo que um
deles tinha se mudado de bairro.
Entretanto, nem todos os “bairros” eram iguais e nem todos “os bairros falavam
para a polícia”. Em outros processos de homicídio, li relatórios de policiais nos quais
eles manifestavam as dificuldades em obter informações.
Relatório do policial, em tarefas de investigação: “manteve-se diálogo com os
vizinhos do lugar de quem não foi possível obter informação de interesse para o
esclarecimento do fato, notando reticência para fornecer informação por parte
dos mesmos em virtude de ser um assentamento, se tratando na sua maioria de
pessoas de nacionalidade paraguaia, ao igual que o falecido e seu grupo familiar.
Que, apesar disso e atento às inconveniências apresentadas pelo lugar, por se
tratar de um assentamento, como fora colocado, foram efetuadas tarefas de
vigilância encoberta sobre o endereço do falecido com o fim de certificar os
ditos de testemunhas que referiam a existência de um indivíduo masculino de
nome Zeus, arrojando essas tarefas resultado negativo. Que, no entanto, de
forma diária se efetuam tarefas de vigilância em diferentes horários, como
também se tenta dialogar com vizinhos, ainda que levando em conta as
inconveniências antes colocadas, com o fim de lograr o esclarecimento do fato”.
Havia “bairros” que mostravam resistências para falar com os policiais. O
relatório do policial manifestava a rejeição dos vizinhos “de um assentamento, se
223
tratando na sua maioria de pessoas de nacionalidade paraguaia” de falar com a polícia.
Lembrando também o “caso dos catadores de papelão”, os policiais manifestaram ter
tido que sair correndo da villa porque os vizinhos começaram a xingar, tocar fogo em
pneus e jogar pedras na viatura. Evidentemente, não todos os locais recebiam os
policiais de forma positiva. Um “bairro” não era uma villa e um “bairro” não era um
assentamento. Na mesma linha em que Talarico teria distinguido a “zona” do “bairro”
(Capítulo 1). Os moradores de uns e outros podiam ter diferentes concepções de vida e,
ainda mais, ter e, ao mesmo tempo, provocar representações distintas aos olhos da
polícia.
Quando Marconi foi à UFI para solicitar um ofício de busca e apreensão de
todas as polícias do país para deter Diego Focucci pela morte de David Blomer, Valeria
indicou Marconi para falar com o pai do jovem morto para que baixassem o tom dos
protestos na porta da comisaría. “Você sabe como falar com ele”, lhe disse. Os
policiais, especialmente Marconi e Martínez, tinham um relacionamento próximo com
os familiares das vítimas dos homicídios que investigavam. Conversavam com eles,
informavam sobre o andamento do processo e deles obtinham também possíveis linhas
de investigação. “Os familiares das vítimas são nossos maiores colaboradores, sobre o
que eles têm a nos dizer seguimos as linhas de investigação”, me disse Martinez quando
visitei a “Base”. Identificavam essa relação com um duplo sentido: “linha de
investigação e trabalho de contenção”.
As diferenças entre os “bairros” na sua recepção e disponibilidade para com a
polícia estavam também atravessadas pela distinção entre “autores” ou “suspeitos” e
“vítimas”. Estas não eram distinções fixas, mas influenciavam no modo dos vizinhos e
moradores de um bairro se relacionarem –e cooperarem, ou não- com a polícia. Fui
entender melhor essas diferenças ao acompanhar o caso de Cacá, que descrevo em
detalhe nos Capítulos 7 e 8. “Autor” e “vítima” moravam a poucas quadras de distância,
embora em “bairros” considerados distintos. A relação das testemunhas de uma e outra
parte, tanto com os policiais como com o promotor, apresentou diferenças que permitem
aprofundar as distinções aqui esboçadas.
A forma variada de “citar” as testemunhas para depor na UFI, descritas
anteriormente, também me fez pensar nos diversos modos de “chegar a uma
224
testemunha”. A citação escrita levada por um oficial de justiça
190
, ou por um policial, a
“força pública”, o contato dos policiais na rua, os telefonemas desde a UFI, ou o contato
pessoal dos promotores em atos judiciais ou no “local dos fatos”, eram mecanismos que
variavam dependendo do “local dos fatos”, do tipo de conflito envolvido no processo
judicial, das testemunhas e de sua vinculação com os envolvidos no processo.
Na procura de testemunhas: os familiares e o bairro
Conversando com advogados e defensores, também percebi que a tarefa de
busca de testemunhas implicava certas particularidades. Eles manifestavam receio de
serem eles quem procurassem diretamente por testemunhas.
Eu, ir buscar testemunhas fora não vou; eu não vou buscar testemunhas pelo
bairro para ver o que elas viram. Os familiares podem ir, podem ir ao lugar,
perguntar. Eu preciso da certeza de que vão declarar a favor do meu defendido,
mas deixo essa responsabilidade com eles. (Entrevista com Dr. Fellini,
07/05/09).
Qual era a “responsabilidade” que o Dr. Fellini deixava com os familiares que
contatassem uma testemunha? Entendi melhor isso após várias entrevistas com outros
advogados. Em especial com uma defensora pública atuante na etapa de juicio oral.
Lucía: como defensora, mantém entrevistas com as testemunhas?
Defensora: eu tento ter, mas às vezes você corre o risco de que no debate digam
“sim, porque eu estive com a defensora e ela me disse que...”. Aconteceu
comigo uma vez que o imputado dizia que ele tinha testemunhas de que ele não
tinha estado no lugar, então eu falei com a mãe do imputado e lhe disse “bom,
senhora, tem que me trazer a essas testemunhas, saia a procurá-las”. No juicio
oral, a promotora perguntou à testemunha: “o senhor como soube da data do
juicio?”, “ah, porque pelo bairro se dizia que a defensora estava procurando
testemunhas para salvar este garoto”. E eu querendo me meter embaixo da mesa!
Lucía: e a lei não permite fazer isso?
Defensora: sim, mas perde credibilidade, e também não fica bem que o defensor
público, não digo que saia a procurar, mas não fica bem quando uma indução
para que a testemunha diga ou não diga tal coisa...o testemunho é a prova mais
frágil do processo, porque você com as pessoas corre o risco de mudanças de
atitude na hora.
A responsabilidade referida pelo advogado Fellini tinha relação com o fato da
testemunha perder credibilidade. Se ela manifestasse que tinha se reunido com o
190
Existia uma resolução da Corte Suprema provincial (498/06, 9/05/2007) que resolve que as
notificações em processos nos quais se investigam torturas ou maus tratos serão realizadas por pessoal da
Oficina e Delegações de Mandamentos e Notificações dependente da Corte, evitando dessa forma a
participação de pessoal policial ou do Serviço Penitenciário.
225
advogado, a dedução dos juízes ou dos promotores seria que foi induzida a apresentar
uma versão “armada” e não o que “verdadeiramente” tinha visto ou ouvido. A suspeita
sobre o papel do defensor recaía na credibilidade da testemunha e os advogados não
pareciam dispostos a correr esse risco, procurando eles mesmos as testemunhas.
Deixavam isso com os familiares. No caso da defensora oficial, ela ainda opinava que
havia certos mecanismos, como induzir uma testemunha, que um advogado particular
“podia se dar o luxo de utilizar”, mas não um defensor público que intervinha sempre
com os mesmos juízes e promotores. Essas posições não querem dizer que advogados
ou defensores não induzissem o relato das testemunhas, mas que o faziam com aquelas
que seu cliente ou os familiares dele garantiam um grau de confiança e compromisso
suficientes para não colocar em risco a sua credibilidade.
Durante o mês de janeiro, um dos processos trabalhados por Valeria foi o caso
do posto de gasolina, no qual o segurança estava imputado de matar o jovem Angel Paz.
Uma manhã, Zé anunciou que a mãe de Angel estava naMesa de Entradas”. A
conversa entre Valeria e ela durou duas horas. Ela tinha lido o processo e queria saber
se o autor do disparo contra o filho dela ia depor. A preocupação da senhora era
desmentir que seu filho, ao ser morto, estava roubando e com uma arma.
(…) Valeria: a senhora me dizia que seu filho ia ao ponto de ônibus do posto
para buscar trabalho. Ele ia sozinho?
Mãe: sim, um garoto que o conhecia, que foi ao velório, e disse que não viu
nada estranho, apenas uma viatura, que meu filho foi algemado e que não estava
ferido.
Valeria: não, aí lhe estão mentindo porque isso está provado. Cuidado com o que
falam as pessoas. Que venha me dizer isso a mim. A senhora tem o nome?
Mãe: sim, eu trago para a senhora. Outra coisa que tenho que lhe dizer. Uma
pessoa conhecida que faz diálise disse que viu meu filho ferido. Ele é o filho de
minha comadre e disse que, se eu quisesse, ele vinha dizer isso aqui, porque o
viu ensangüentado. Eu pensava que deveria ter tirado uma foto dele no caixão.
Valeria: não precisa, mas sabe o que eu preciso é que essas pessoas que viram
alguma coisa venham aqui. Porque uma delas que me parece que não diz a
verdade, mas qualquer coisa que estejam dizendo eu gostaria de ouvir.
Mãe: sim, eu lhe trago. Meu outro filho não quer vir mais porque está muito mal,
mas eu falo com ele para que averigúe, vá ao local e pergunte.
Valeria: sim, se houver algum vizinho que o conheça e tenha visto alguma
coisa....
Mãe: tem um vizinho que viu, mas agora me evita porque deve pensar que eu
estou mal. Eu vou mandar meu filho que é remisero para que o busque. Mas se a
senhora o citar, ele vai vir.
Valeria: se o senhor tiver boa vontade eu evito mandá-lo buscar pela polícia.
Mãe: eu venho cedo com ele. Eu vou trazer uma foto de meu filho para que veja
o doce de pessoa que era. Eu lhe falo com o coração. Ele se drogava e tinha suas
226
coisas, mas não andava drogado todos os dias, era uma alegria de viver, era o
maluquinho da família, incapaz de uma maldade. Vou trazer uma foto dele
sorrindo.
Valeria: gostaria sim.
Mãe: a senhora vai aprender a olhar os olhos, quando a pessoa é boa, é franca, é
doce. Eu sei que a senhora é boa, sei que vai descobrir a verdade do que
aconteceu. Se a senhora soubesse tudo o que eu passei. Essa é minha vida, Dra.
Estou escrevendo um livro sobre minha vida para que leiam meus filhos.
A senhora contou boa parte dos problemas com os filhos e netos, seus diversos
empregos e trabalhos, o abandono do marido, sua chegada ao conurbano, proveniente
do Chaco, província do norte argentino, havia mais de 20 anos. Quando foi embora,
Valeria me disse que uma frase típica no Ministério Público era “a mim se me encrava
uma unha e morro de dor e estes negros lhes pegam cinco tiros e não morrem”. Para
Valeria, nesse âmbito, o era comum alguém parar sua rotina e ouvir o que as pessoas
tinham a dizer. Para ela, era uma parte fundamental do trabalho. Nas semanas seguintes,
a mãe de Angel ligou para Valeria para dar notícias das testemunhas. O filho dela estava
se ocupando disso no bairro. Para a família, era importante limpar a honra de Angel Paz.
“Era um anjo”, “o maluquinho da família”, “um doce de pessoa”, “incapaz de fazer uma
maldade”.
Como contei, não era a primeira vez que a mãe de Angel ia ver Valeria. Em
uma conversa mais breve, a mãe chorou e disse que queria “saber a verdade do
acontecido”. Estava disposta a mostrar como viviam e que o filho não saía a roubar.
Valeria tinha me dito que não sabia o motivo, mas que não acreditava nela, “não sei por
que, mas não me convenceu”. Dois meses depois, naquele dia de janeiro, a mãe estava
insistindo em mostrar quem era o filho. Ofereceu testemunhas do bairro que pudessem
aportar dados sobre o acontecido. Valeria, embora tivesse outros elementos de
convicção no processo –“aí lhe estão mentindo porque isso está acreditado”-, foi
receptiva. Pediu para a mãe levar as testemunhas para a UFI.
Ao mesmo tempo, Valeria advertiu a senhora que tivesse “cuidado com o que as
pessoas falam”. As informações aportadas por testemunhas do bairro, através da
mediação dos familiares, podiam ser suspeitas, pelo menos, enquanto não batessem com
outros elementos existentes no processo. Por isso, Valeria precisava ouví-las e formar
sua própria convicção. Podiam ser dados importantes, mas precisavam passar pelo crivo
da credibilidade profissional. O “bairro” e a “credibilidade” se associavam, neste e em
outros processos, na procura, escuta e produção das testemunhas. Como vimos, em
227
alguns casos, o “bairro” aportavam informação em defesa do “imputado”; em outro,
contra ele e /ou a favor da “vítima”. Essas informações podiam, eventualmente, ser
transformadas em “provas”, ou bem ficar como simples “comentários”. Dependia do
grau de sucesso em se apresentar como versões “críveis” aos olhos e ouvidos dos
funcionários.
No caso analisado no capítulo seguinte, o processo de atribuição de
“responsabilidade” pelo acontecido a morte de um bebê- aos supostos autores seus
pais- envolveu informações aportadas pelo “bairro”, não em relação ao acontecido,
mas, sobretudo, à avaliação moral dos “vizinhos” sobre a personalidade e vida familiar
dos “imputados”. Comentários do “bairro” e certas moralidades combinaram-se de
forma a sustentar uma versão jurídica sobre os “fatos”, assim como a legitimar uma
reputação específica sobre o bairro e seus moradores.
228
CAPÍTULO 6
A intimidade invadida: o “allanamiento
Em uma tarde de dezembro, Alicia me propôs acompanhar a ela e Valeria a um
allanamiento”, que seria realizado dentro de dois dias. Um “allanamiento”, como
referi, é um procedimento judicial, realizado por policiais, solicitado pelo promotor e
autorizado pelo “juiz de garantias”. Semelhante a um “mandado de busca” no sistema
judicial brasileiro, tem por objetivo revistar um local privado, dentro do qual se tem
“motivos suficientes” para suspeitar que possam ser encontrados elementos relativos ao
crime investigado. Na minha experiência, tal procedimento em muitas ocasiões ia
acompanhado de outro, denominado orden de detención”. Este, semelhante a um
“mandado de apreensão”, tinha por objetivo apreender a pessoa suspeita de ser a
“autora” do crime.
Em poucos casos os promotores participavam desses procedimentos. Na maioria,
eram os policiais quem se encarregavam deles. Fazia parte das tarefas que estes últimos
desenvolviam como “auxiliares da justiça” na investigação dos crimes. De fato, nos
casos que eu tinha visto, a iniciativa pelo procedimento partia dos policiais responsáveis
pela investigação de um caso. Eles solicitavam informalmente ao promotor ou
funcionário da UFI responsável pelo processo (quem, no caso, conversava sobre o
pedido com o promotor) que solicitasse a ordem de allanamientoou de detención
ao juiz. Esse era um dos motivos das freqüentes visitas de Marconi e Martínez à UFI.
Acontecia que, no andamento das “tarefas investigativas”, percebessem a conveniência
de fazer um procedimento desse tipo em um local específico; a casa do “imputado” ou
“suspeito”, a casa dos pais, de algum amigo e/ou vizinho.
Naquele dia de novembro, embora Alicia tivesse se referido simplesmente ao
allanamiento”, a solicitação enviada ao “juiz de garantias” e, por ele autorizada, era
também por uma “orden de detención”. A ordem emitida pelo juiz estabelecia:
“Efetuar inspeção ocular do local dos fatos, tomar placas fotográficas, efetuar
um relatório ambiental, constatar o estado de saúde dos menores e/ou maiores”.
As primeiras informações que tive do caso em questão referiam à morte de um
bebê e ao estado de desnutrição da irmã gêmea do mesmo. A orden de detenciónera
destinada ao pai e à mãe de ambos. Era um caso pouco comum na UFI; de fato,
considerado complexo” pelo fato de envolver “menores” e, ainda mais, “menores” em
229
estado grave de saúde. Naquele dia, Alicia tinha me pedido para chegar à UFI às nove
horas da manhã. Quando cheguei, ela estava conversando amenamente na sala com uma
mulher. Foi-me apresentada como a assistente social do Ministério Público, que nos
acompanharia no procedimento. Alicia completou a apresentação dizendo também que
era a esposa de Sebastián, o promotor titular. Aos poucos minutos, chegou Valeria.
Enquanto promotora da UFI, ela dirigiria o procedimento, pois todas aquelas ações fora
da UFI eram sempre acompanhadas por um dos promotores, fossem eles ou não que
trabalhassem diretamente aquele processo.
No carro particular de Valeria, saímos Alicia,
Beatriz -a assistente social- e eu. Valeria conduziu
até um posto de gasolina. Era o ponto de encontro
com o resto do pessoal que participaria do
procedimento. Em um carro, chegou o Dr. Alonso.
Era o diretor da Morgue Judicial[Instituto Médico Legal] do departamento de Los
Pantanos e atuava também como médico do Ministério Público. Minutos depois, em
outro carro, chegou Claudio, o fotógrafo do Ministério Público. Já se encontrava no
local uma viatura policial. Havia seis policiais, à paisana, com coletes indicando que
eram da Polícia Bonaerense. Pertenciam à Divisão Departamental de Investigações da
área.
Reunido todo o pessoal, Valeria e Alicia entregaram para os policiais as ordens
de “allanamiento” e de “detención” emitidas e assinadas pelo “juiz de garantias”.
Comentaram rapidamente de que tratava o caso. Para finalizar, Valeria opinou que “não
devia ser uma situação perigosa”. O policial responsável consultou, então, sobre o
procedimento para ingressar na casa e para a detenção do casal. “Conduzam isso como
vocês acharem pertinente”, respondeu Valeria. O procedimento era atípico...
Eu tinha representações diversas sobre um allanamiento”. Era, para mim, um
procedimento predominantemente policial. De fato, tinha ouvido opiniões de
funcionários judiciais críticos daqueles colegas que gostavam de participar dessas
“operações”. Era visualizado como uma “policialização” da atividade judicial. Junto
com essa imagem, eu associava uma outra representação, transmitida também por
funcionários judiciais, vinculando tais procedimentos –policiais- a uma situação de
perigo e risco. “Você se mija na calça”, disse Sebastián, durante um almoço. Contava
sobre um allanamientoem uma villa. Tinha ido junto com Paco e Zé, que tinham se
230
mostrado interessados em participar pela primeira vez de um procedimento do tipo.
na UFI, todos riam da situação, mas o relato transmitia a tensão vivida pelos três
naquela ocasião. Os policiais armados “até os dentes”, com coletes anti-bala, enquanto
eles esperavam do lado de fora da casa, “sem proteção alguma”. Parte do medo e da
sensação de perigo parecia derivar da incerteza do que iria acontecer, isto é, como os
sujeitos dentro da casa e a polícia, ingressando nela, iriam reagir ao procedimento.
Também Marconi e Martínez, na entrevista que fiz com eles na “Base”, referiam
ao allanamiento como uma situação perigosa. Apontavam que os promotores não
costumavam ir a esses procedimentos, talvez com exceção dos que envolviam droga.
Martínez dizia que não era fácil proceder, inclusive, porque a polícia precisava de uma
testemunha civil para controlar a execução do procedimento. “A gente busca a
testemunha e fala para ela esperar do lado de fora; quando a situação de perigo passa,
ela entra ao local”. Essa primeira entrada dos policiais, antes de mais ninguém, chama-
se “assegurar o local”. Embora Marconi e Martínez não referissem a essa características,
a espera da testemunha fora do local suscitava, em alguns casos, a possibilidade dos
policiais “plantarem” elementos incriminatórios ou negociarem a situação com os
habitantes do local.
Outra representação sobre um allanamiento provinha de tempo anterior ao
começo do meu trabalho de campo na província. Na época da minha pesquisa para o
mestrado, em uma entrevista com um ex-secretário de um juzgado federal, ele me
contava o incômodo que sentia toda vez que fazia um procedimento daqueles. “É você
entrando na intimidade da pessoa, você abre a gaveta e encontra fotos do cara pelado
com a namorada, abre o armário do banheiro e o cara tem o viagra e você mexendo
tudo na cara dele”. A sensação transmitida trocava a imagem de perigo pelo sentimento
de invasividade derivado do fato do poder público entrar na casa de uma pessoa, seu
âmbito privado. Valeria e Sebastián também associavam tal procedimento com essa
imagem. Mais de uma vez faziam, conjuntamente, referência a um filme argentino
chamado “Felicidades”
191
. Admiravam, por seu realismo, a cena do filme em que, na
noite de um 24 de dezembro, a polícia entra na casa de uma família para fazer um
allanamientoe, com desenvoltura, bebe a sidra e come o panetone servido na mesa.
Para eles, a cena retratava muito bem essa sensação de quebra da intimidade que
produzia o ingresso da polícia na moradia de uma família.
191
Felicidades foi dirigido por Lucho Bender (2000).
231
A chegada: os olhares sobre a casa
Do posto de gasolina, os quatro carros se dirigiram para o bairro do endereço
alvo do procedimento. Era um bairro de casas baixas, de alvenaria. Pareciam estar bem
equipadas, os quintais arrumados e muitas delas com carros estacionados nas garagens.
As ruas eram asfaltadas e arvoradas. A uma quadra do local onde estacionou Valeria, se
localizava uma avenida, com vários comércios de diferentes ramos.
Descemos, mas nos mantivemos olhando
desde a esquina da casa. Primeiro entraria a
polícia. Eles iriam assegurar o local”, me
disse Alicia. Assim que disse isso, senti duas
batidas fortes e altas em uma porta de chapa.
Seguidas de uma voz também alta e forte:
“polí-cia! polí-cia!”. Ninguém respondeu.
Novas batidas, nenhuma resposta. Os policiais forçaram a porta e ingressaram na casa.
Aproveitamos para nos aproximar da porta da casa. Aos poucos minutos, saiu um
policial com a arma na mão. Atrás dele, mais dois policiais se cobrindo o nariz com
uma das mãos. O primeiro em sair avisou Valeria e Alicia que nem os pais, nem as
crianças estavam em casa, “apenas a senhora”. A “senhora” era a avó materna das
crianças. Chamava-se Lar e, segundo contou posteriormente à assistente social, tinha
três irmãs: Vida, Prazer e Germinal. Lar tinha 87 anos e estava prostrada na cama,
afetada com câncer de vulva.
A casa ocupava uma esquina, sendo a entrada lateral. Era uma casa de dois
andares. Da esquina aparentava um comércio fechado. Todas as persianas estavam
baixas e todas as janelas fechadas. Os policiais disseram ter aberto a janela do quarto da
senhora para aerar o mau cheiro. Não a mão no nariz, mas também a cara dos
policiais ao saírem dava conta da percepção de um fedor muito forte. Seguindo Valeria,
Alicia e o resto da equipe do Ministério Público, ingressei na casa. Talvez porque a
janela do quarto da senhora estivesse aberta, talvez porque, quando alguém adverte
alguma coisa, eu costumo imaginá-la pior do que “realmente” é, a questão é que não
senti que o fedor fosse tão forte. A luz do interior, com as janelas fechadas, era tênue.
Minha descrição da casa, no meu caderno de campo, mencionaria que, ao
ingressar, a primeira porta lateral, correspondia a um banheiro pequeno. Seguindo o
232
corredor, sem porta divisória, passava-se à cozinha. Chamou minha atenção um dos
fogões estarem ligados. Pratos sem lavar na pia e mamadeiras com leite na bancada. Em
frente uma porta separava o quarto da senhora e, posteriormente, seguia-se a sala.
Correspondia ao antigo ambiente do comércio. Havia uma televisão ligada, mas
ninguém assistindo. A sala estava cheia de objetos e roupas. A maioria para crianças.
Havia garrafas vazias, um fogão sem uso, tabuas de uma antiga cama e móveis velhos
cobertos de bonecos de pelúcia e mantas de inverno, dentre eles duas cestas para bebês
cobertas de objetos. Saindo novamente ao corredor e subindo a escada, acessava-se a
um terraço e a mais um quarto. Era o quarto do casal e das crianças, pois havia uma
cama dupla, uma individual e um berço. Todas sem arrumar. O espaço do quarto se
completava com um armário. No terraço, havia roupa estendida, a maioria de homem.
Em todos os cantos, objetos velhos e sacos de lixo.
O olhar de Valeria, Alicia e Claudio, o fotógrafo, chamou minha atenção para
vários outros aspectos da casa não percebidos, nem procurados por mim. Eram os
primeiros sinais que mostravam o quanto categorias como cheiro”, “barulho”, ou
“sujeira” podiam ser relativas a modos de viver e morar
192
. Valeria e Alicia abriam
todas as portas dos armários, olhavam embaixo da cama, levantavam as mantas. Claudio
fotografou cada um desses momentos: baratas e formigas na bancada da cozinha;
baratas mortas na geladeira; um prato sujo e vazio dentro; medicamentos no freezer
junto a dois copos de cerveja gelando; fraldas sujas na cozinha; uma camisinha usada
embaixo da cama; a panela com macarrão e água; a roupa jogada; a roupa quase
exclusivamente masculina no armário; uma garrafa de uísque sem abrir; um tênis
masculino novo; a televisão ligada; a louça sem lavar; as garrafas de sidra vazias; os
bonecos; a senhora na cama coberta de mantas, apesar do calor de dezembro; latas de
atum abertas e vazias no terraço. Tais fotos seriam posteriormente incorporadas ao
192
Mary Douglas, no início de seu livro “Pureza e Perigo”, afirma a “sujeira” ser uma noção relativa:
“Não sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê” (1976:12). Por sua parte, Abdelmalek Sayad
(1997), através de entrevistas em um bairro de “casas sociais” na periferia de Paris, analisa os conflitos
surgidos entre residentes franceses e imigrantes. Na análise, mostra como o “barulho” e o “mau cheiro
eram categorizados conforme os costumes de cada grupo. O pai da família árabe entrevistada dizia: “o
barulho era na realidade as numerosas visitas que tínhamos” e a filha acrescenta: “é a mesma coisa com
os odores (...) O jornal disse que os franceses gostam de comer cuscuz e salsicha apimentada, mas quando
não é para eles, o odor da cozinha árabe é insuportável!” (1997:41). Tais afirmações sobre o “barulho” ou
o “mau cheiro” mostram, para Sayad, a incompatibilidade de “costumes em matéria de coabitação”
(1997:35) e parecem indicar também seu uso como categorias de acusação eficazes na deslegitimação de
modos de vida diferentes. Durante o processo que investigara a vida de Marisa e Carlos a utilização de
tais categorias de acusação se fez presente pela boca de vizinhos e outros profissionais que
testemunharam judicialmente.
233
processo. Era consenso entre os participantes do allanamientoo estado de “sujeira,
descuido e abandono” da casa.
As conversas: os olhares sobre a família
Assim que ingressamos na casa, Valeria entrou no quarto da senhora. Falou com
ela em um tom de voz bem alto, quase gritando, pois a senhora não conseguia ouvir
bem. Mais do que desconcertada pela situação, parecia perdida no seu estado de saúde.
Valeria explicou que estavam lá, na casa, por causa “da morte do bebê, Rodrigo, um dos
gêmeos”. Mas a senhora disse não saber que Rodrigo tivesse morrido; “ninguém me
contou nada”, reclamou. E falou de sua própria ida ao hospital, onde lhe disseram que
estava em estado de saúde terminal. Valeria continuou a visita pela casa e a assistente
social passou a conversar com a senhora. Ela também foi rapidamente revisada pelo
médico do Ministério Público. Foi decidido por ele, com consentimento de Valeria
enquanto promotora, que uma ambulância procuraria a senhora e a levaria a um hospital
para uma revisão mais profunda.
Alicia telefonou para uma vizinha, Silvia, que tinha ido depor na UFI. Silvia
costumava cuidar, nesses dias, da irmã gêmea de Rodrigo. Alicia queria saber se ela
tinha notícias dos pais e das crianças. Além dos gêmeos, Marisa e Carlos, os
“imputados”, tinham outros três filhos, todos menores de cinco anos. Silvia informou
que, de manhã cedo, Carlos tinha saído, como todos os dias, para trabalhar. Devia estar
na banca da Saladitade Constitución, uma feira de artigos diversos, onde ele vendia
roupa usada
193
. Marisa, segundo Silvia, tinha levado as crianças “ao controle da
Prefeitura”. Ela e seus filhos estavam sob supervisão do Programa de Promoção e
Proteção dos Direitos das Crianças, da prefeitura do local onde moravam. Tal
supervisão supunha se apresentar na sede para controle de saúde (pediatria e vacinação)
e psicológico das crianças e da mãe. Aquela era, no jargão judicial e das disciplinas
humanas auxiliares, uma “família institucionalizada” (Villalta, 2006; Villalta e Ciordia,
2009)
194
.
193
O nome da feira refere a outra, bem maior que fica no conurbano, chamada “La Salada”. “La
Saladita” é localizada no bairro de Constitución, na zona sul da Capital Federal.
194
No artigo citado, Villalta e Ciordia trabalham os modos através dos quais o âmbito judicial desenvolve
diferentes intervenções que, tendo como meta explícita, a proteção de crianças, podem supor a separação
delas de seu meio familiar e seu ingresso a institutos de menores. Argumentam que tais intervenções são
orientadas centralmente a administrar e normalizar as famílias envolvidas. Através dos processos
judiciais, são evidenciados “relatos que dão conta das complexas situações nas quais o desencadeante da
234
Com as notícias fornecidas pela vizinha, parte da equipe dos policiais foi para a
sede do Programa social da prefeitura. Deviam executar a orden de detención em
nome de Marisa. Soube que não foi fácil; que Marisa resistiu muito, gritando e se
mexendo contra os policiais. Uma imagem difícil de conciliar quando conheci sua
estrutura física, de estatura baixa e muito magra. Mas, fácil de imaginar ao perceber
nela um caráter enfático e forte. Outro grupo de policiais foi procurar Carlos, a fim de
proceder também a sua detenção.
Enquanto isso, a equipe do Ministério Público, mais dois policiais e eu ficamos
na casa. A viatura da polícia estacionada na frente da casa, os golpes na porta e a
chegada da ambulância provocaram que cinco ou seis vizinhos saíssem de suas casas ou
interrompessem seus percursos para ver o que estava acontecendo na casa do casal.
Entre eles, chegou ao lugar a nora da senhora Lar, cunhada de Marisa. Disse ter sido
avisada por uma outra vizinha, na loja de comestíveis do bairro, que a polícia tinha
entrado na casa. Ela morava três quadras de distância. Pediu-me que a acompanhasse
até a casa dela, para poder avisar o marido que a mãe dele estava sendo levada em
ambulância. Valeria e Alicia concordaram.
No trajeto de ida e volta, a nora de Lar não parou de falar. Contou-me que
Marisa, “a mãe das crianças”, tinha sido adotada por Lar, mas que não era “irmã de
sangue do marido”. Talvez de modo defensivo, disse que ela ia quase todos os dias para
limpar e arear o quarto de Lar. Também lhe levava comida pronta da casa dela, me disse
assinalando o saco plástico no qual levava o frango que acabava de comprar na loja de
comestíveis. “Já das crianças não posso cuidar porque nós temos muitos problemas,
meu marido está desempregado, tem hipertensão, e elas [as crianças] também têm seus
próprios pais”, acrescentou voltando sobre o assunto várias vezes. Falou sobre o estado
de saúde de Lar, a morte do bebê, a decisão de não contar esse fato para Lar, a
“desordem” da casa. “Ela limpa, mas a casa fica desordenada”, me disse se referindo a
Marisa. Eu não sei por que, pois tem vizinhas que a ajudam”. Uma vez na casa dela,
buscamos o marido. Apenas fiquei no jardim, cheio de flores e plantas bem cuidadas. O
senhor me perguntou se a polícia tinha um mandado judicial para entrar na casa e, logo
em seguida, manifestou sua preocupação pela mãe, sem mencionar o resto da família.
intervenção judicial costuma ser a denúncia por violência’, negligência’ ou ‘abandono’, e nas quais as
crianças, objeto da proteção, são institucionalizadas” (2009:162). Para o caso de políticas e práticas
judiciais em relação à infância, no caso argentino, ver também Daroqui e Guemureman, 2001.
235
Finalmente, chegamos novamente na outra casa, onde a ambulância tinha chegado e
Lar estava sendo conduzida em uma maca.
Dois policiais tinham montado uma mesinha na calçada, para confeccionar a ata
do procedimento. Digitada em uma máquina de escrever, a ata dava conta das pessoas
que tinham participado do procedimento e dos passos formais realizados. Como
combinado no posto de gasolina, eu assinaria como testemunha civil do procedimento.
Isso evitou ter procurado alguém no bairro, antes de ingressar na casa. Assinada a ata,
fomos com Valeria, Alicia, Beatriz e Claudio à sede do Programa de Proteção ao
Menor. tinha sido presa Marisa e era onde se encontravam, momentaneamente, três
das crianças. A bebê, irmã gêmea de Rodrigo, estava com uma vizinha. As outras três
seriam relocalizadas”, quer dizer, a partir do programa se buscaria um destino para
elas, seja com um familiar, seja em alguma instituição especializada. Elas ainda não
sabiam nada da situação dos pais.
As três estavam em uma sala do programa, aos cuidados de uma assistente
social que sempre as atendia. A mulher e Alicia fizeram algumas caras e bocas para que
Claudio pudesse tirar fotos das crianças. Elas pareciam bem cuidadas e o comentário
posterior era que estavam em bom estado nutricional (ao menos, pelo peso). Também
foi comentado que eram bonitas, loiras e sorridentes. Voltei a ouvir da importância das
fotografias no processo dias depois na UFI. Alicia comentou que iria pedir uma foto do
Rodrigo, o bebê morto, para que “impactasse mais” o juiz. Logo, Valeria quis saber
quem era o juiz correspondente. Alicia respondeu, mas indicou que esse processo seria
trabalhado por uma funcionária dele, a quem “este tipo de processos impacta
especialmente”. As imagens, opinou, seriam de especial relevância.
Voltando à UFI, no carro, Alicia foi informada que Carlos também tinha sido
preso na Saladita”, no seu posto de trabalho. Valeria concluiu que tinha sido “uma
intervenção feliz, eficiente e boa do Ministério Público, porque todos os mecanismos
foram ativados e as crianças estão bem”. Alicia e Beatriz concordaram. Esta última, nos
próximos dias, faria o relatório socioambiental da visita, para incorporar ao processo. A
Alicia e a Valeria também lhes esperava trabalho, pois o procedimento in loco tinha
rendido testemunhas que iriam depor na UFI, nos próximos dias. Inevitavelmente, eu
lembrei da entrevista da época de meu mestrado com aquele ex-secretário e da cena do
filme citado por Valeria e Sebastián. Ao menos, pela minha experiência neste
236
allanamiento”, mais do que uma imagem de perigo, o mesmo ficava associado à
quebra da intimidade.
O processo
Antes das testemunhas começarem a se apresentar na UFI, pedi o processo para
Alicia. Queria entender melhor como tinha se iniciado o caso, a intervenção da UFI e a
decisão da detenção.
Em agosto, tinha ingressado à UFI uma denúncia realizada, dias antes, na
comisaría de Alameda, um dos municípios que integrava o departamento judicial de Los
Pantanos. A denúncia tinha sido apresentada pela assistente social do Programa de
Proteção de Direitos da Prefeitura daquele município. Denunciava a “internação da
menor Sabrina, de oito meses, em avançado estado de desnutrição, e a morte de
Rodrigo, irmão gêmeo, na noite anterior”. Diante dessa situação, solicitava a
intervenção policial “de ofício”
195
, “devido a que, a seu critério, havia um abandono de
pessoa por parte dos progenitores dos mesmos”. Além da denúncia, o “sumário policial”
continha os depoimentos do cunhado de Marisa, a mãe dos bebês, e de Silvia, a vizinha
à qual Alicia telefonou no dia do “allanamiento” para ter notícias dos pais.
O depoimento do cunhado começava com o esclarecimento do policial
interveniente mencionando que a testemunha “comparece de forma espontânea para
colocar em conhecimento da Justiça os pormenores nos quais os filhos de sua cunhada
estão desnutridos e a falta de atenção sobre os mesmos por parte deste casal”.
(...) Que sabe que o pai da família, de nome Carlos, maltrata a mãe de seus
filhos, mas a mesma nunca o denunciou. Que sabe por vizinhos de sua cunhada
que quando o pai da família chega em casa come e não lhe dá de comer a seus
filhos, assim também que o interior da moradia se encontra em muito mal
estado, sujo e desordenado, que aos menores não os deixam sair, não deixa que
os vizinhos lhes dêem alimentos, que sabe que sua cunhada tem problemas
psiquiátricos, mas nunca os tratou. Que a esposa tem medo do pai de seus filhos,
só se preocupa com ele e todos os vizinhos estão incomodados por essa situação.
(Do depoimento na sede policial do cunhado de Marisa)
A vizinha também se apresentou “de forma espontânea” e disse diante do policial:
Que na esquina de seu domicílio mora uma família de condições extremamente
humildes, sendo um casal com cinco filhos. Que em reiteradas oportunidades
juntamente com outros vizinhos do bairro têm intervindo para salvaguardar a
integridade física dos filhos deste casal, dado que os mesmos se encontravam
195
Intervenção “de ofício” refere a uma intervenção estatal que não requer do acordo das partes.
237
faltosos de higiene, não comiam e as condições nas quais viviam na casa eram
muito ruins, convivendo com o lixo. Que se fez cargo dos bebês, que os levou ao
pediatra. Que a depoente assiste à menor internada, que tinha piolhos na bunda e
estava toda suja. Que quando estava no supermercado comprando fraldas se
apresentou o pai e lhe deu a entender que estava procedendo de mau jeito. Que
solicita à Justiça a pronta intervenção no assunto. (Do depoimento na sede
policial da vizinha, Silvia).
Ambos os depoimentos enfatizavam não as condições “ruins” da moradia,
mas também a falta de “higiene”, alimentos” e “cuidado” dos pais com os filhos.
Também marcavam a opinião dos depoentes sobre essas questões e o apoio que os
vizinhos teriam lhes oferecido e/ou brindado. Com essas informações, a polícia remeteu
o “sumário” para a UFI de plantão: a UFI K. O processo foi distribuído por Sebastián
para Alicia. Como disse, ela costumava receber, por iniciativa dele, processos onde
crianças estivessem envolvidas; até um momento em que Alicia pediu que essa decisão
fosse, se não revertida, pelo menos atenuada.
Dois dias depois de receber o processo, Alicia o enviou novamente para a
polícia. não para a comisaría do bairro, mas para uma Divisão Departamental de
Investigações (DDI). Alicia especificou as medidas a serem realizadas. Queria um
relatório ambiental de um assistente social e que a polícia colhesse depoimentos dos
vizinhos indicando o “conceito dos pais na vizinhança”. Ambas as medidas supunham ir
ao bairro, andar pelas casas, conversar com os vizinhos e também ir à casa de Marisa e
Carlos. Era a polícia quem fazia esse tipo de diligências que implicavam o
deslocamento para o “local dos fatos”.
Todos os relatórios sócio-ambientais que tinha lido em processos judiciais,
elaborados pela polícia, respondiam a um formulário padrão. Nem sempre eram
realizados por profissionais em serviço social, mas por policiais que preenchiam o tal
documento. Este continha, além de dados pessoais e familiares dos “imputados”,
características da moradia e eventualmente do entorno. Também costumavam incluir a
opinião –“conceito”- de algum vizinho sobre a personalidade ou relação com os
envolvidos.
“Que lhes merece um bom conceito na vizinhança, trata-se de uma pessoa de
costumes sadios, não lhe conhecem más companhias (malas juntas) nem vícios”.
“Que se trata de uma pessoa trabalhadora e de costumes sadios”.
238
Com essas e outras frases semelhantemente padronizadas na linguagem policial,
os relatórios elaborados pelos policiais traduziam aquilo que Alicia solicitava neste
caso: “o conceito da vizinhança”. Trata-se da busca de uma avaliação, por parte do
entorno social, sobre a conduta, hábitos e personalidade dos “imputados”. O valor do
mesmo complementa outras avaliações e “provas”, a favor ou contra os mesmos. De
fato, isso acontecia, como veremos, com os informes ambientais, sociais ou
psicológicos de forma geral. Mais do que aportar uma nova hipótese ou novas provas,
eles confirmavam –ou não- a linha de investigação já sustentada pelo funcionário
judicial. Em função do seu eventual apoio podiam, ou não, ser considerados
judicialmente. São testemunhos caracterizados por serem colhidos diretamente no
bairro, ou entorno do “imputado”.
O informe sócio-ambiental policial, neste caso, mencionava que Marisa tinha 33
anos e Carlos 47. Que este trabalhava na feira La Saladita do bairro de Constitución,
ganhando dois mil pesos por mês. Descrevia a moradia, mencionando apenas que era
propriedade da mãe de Marisa e possuía dois quartos, cozinha, banheiro e um galpão.
Também informava que nenhum dos dois recebia plano social algum. Por último,
aportava um “diagnóstico presuntivo”.
Família numerosa patriarcal, crianças com problemas da saúde e baixo nível de
alarma com respeito aos mesmos, encontra-se em processo de organização e
abertura da crise social que têm atravessado [a morte do bebê], manifestam
idéias de mudança favorável e consertos na casa com capacidade de prosperar.
(Do processo judicial)
O diagnóstico transluzia uma visão positiva, ou, pelo menos, otimista, sobre a
atitude dos pais diante da morte do bebê gêmeo, aquilo que chamava de “processo de
organização e abertura da crise social”. Identificava potenciais progressos em relação
aos cuidados da casa e, eventualmente, dos filhos. Contudo, a intervenção penal –no
caso, da UFI- não se dava pelo futuro da família, embora pudesse afetá-lo e prevenir, ou
não, novas “crises”. Ela estava direcionada a estabelecer as responsabilidades de Marisa
e de Carlos em torno à morte, já acontecida. Era, por isso, que a UFI intervinha e o fazia
“de ofício”, já que diante de qualquer morte era necessário esclarecer, judicialmente,
suas circunstâncias. A justiça criminal não estava para prevenir futuros crimes, mas para
reprimir aqueles eventualmente cometidos. Para tal missão, a investigação continuou
seu curso, independentemente do diagnóstico mencionado, do qual nunca mais ouvi
falar neste processo. As duas testemunhas que já tinham aportado sua opinião na
239
comisaría, o cunhado e a vizinha, foram novamente citadas para depor na UFI.
Aspectos semelhantes aos descritos naquela ata policial, foram reforçados e
aprofundados na ata judicial.
“Que sua mulher localizou a irmã dela em outubro do ano passado. Que, nas
ocasiões que visitou sua cunhada, a mesma se encontrava em muito mal estado,
desalinhada e desnutrida, ao igual que os menores, achando que ela tem
problemas psiquiátricos. (...) Sendo assim, pôde observar que a vizinha, mais
precisamente uma manzanera
196
, levava uma panela para ela e as crianças. Que
o marido dela é um sujeito que sempre é visto alinhado, gordinho,
diferentemente dela e das crianças. (...) Como sua cunhada não deixava que o
depoente visse as crianças, soube que o bebê estava internado porque uma
vizinha o comentou com ele. Sendo que sua cunhada os centavos que tinha os
usava para comprar cigarros, que nada lhe interessa além de endeusar o pai das
crianças. (...) Agora lhe comentaram que as crianças estão com sua cunhada;
sabe disso por comentários dos vizinhos, dado que não foram mais à casa de sua
cunhada, que ela acha que o depoente e sua senhora querem tirar as crianças
deles, coisa que não é assim porque o depoente tem filhos, apenas quer que as
crianças estejam bem, sem poder entender como uma pessoa com bom juízo
podia permitir que uma criança chegasse a tal situação”. (Da ata judicial do
depoimento do cunhado)
No registro do depoimento do cunhado, aparecia enfatizada, por parte de Alicia,
a falta de cuidado dedicado às crianças. Os trechos que assinalavam o estado de
desnutrição, ou de higiene, ou bem o fato de ocultá-los das pessoas de fora da casa,
foram por ela ressaltados em negrito quando transcreveu parte do depoimento na
solicitação de “prisão preventiva” para Marisa e Carlos. Nos ditos do cunhado, também
se vislumbrava uma imagem que apareceria em muitos outros depoimentos: a
representação de Carlos como alguém bem alimentado, cuidadoso nas suas roupas e
aspecto; e a representação de Marisa como alguém carente de uma boa alimentação, de
dinheiro e, inclusive, de condições mentais sadias. Assim também o reforçou o
depoimento da irmã de Marisa, diante de Alicia:
“Que sua irmã nunca tinha um peso [moeda argentina], que o sujeito saía de
manhã e voltava à noite e lhe dava o dinheiro justo para comprar dois bifes e um
vinho, sem lhe importar se as crianças comiam ou não, sendo que várias vezes
196
Manzaneras são denominadas, na província de Buenos Aires, as mulheres que participavam de um
programa de assistência social do governo provincial, organizado pela esposa do então governador,
presidente honorária da organização. A denominação surgiu nos inícios do peronismo, referida a mulheres
que apoiavam o movimento localmente. O termo vincula-se ao fato dessa organização atuar por blocos de
quarteirões, chamados em espanhol de manzanas. A política social, que retoma a denominação desde
1994, envolve a distribuição local de recursos, principalmente alimentos (leite e cereais), por parte de
mulheres dos bairros da província. O labor das manzaneras tem sido tanto elogiado pela sua possibilidade
de ação local nas comunidades, bem como criticado por ser associado a práticas clientelísticas, de
distribuição desigual e patrimonialista dos recursos públicos.
240
observou sua irmã machucada. Durante o dia, o único que tinha era água e erva
mate para o chimarrão e um maço de cigarros. Que quem primeiro comia era ele
[Carlos] e depois, se sobrasse, dava para as crianças. Quanto à sua irmã, para a
depoente não estava bem da cabeça (...)”. (Da ata judicial do depoimento da
irmã)
No depoimento do cunhado de Marisa, também chamou minha atenção o fato de
muitas informações por ele mencionadas virem de boca ou por conhecimento dos
“vizinhos”. O certo é que, fora da família, também os vizinhos se constituíram em
testemunhas do processo. Embora não tenham sido muitos aqueles que efetivamente
depuseram formalmente no mesmo, as vozes deles e do “bairro” como um todo
estiveram presentes ao longo da investigação. Seja por conversas com os policiais, seja
no momento do allanamientocom Alicia e Valeria, ou mesmo, de forma impessoal,
através de voz de outros vizinhos, familiares ou dos mesmos “imputados”. A primeira
vizinha em depor na UFI foi Silvia, aquela que já tinha se apresentado na comisaría.
Que a depoente conhece a mãe dos filhos 30 anos, sendo uma menina tímida,
introvertida, com certo grau de retraso [mental], tendo concluído o primeiro grau
adulta, sendo uma menina coitada com problemas. Antes de se juntar com
Carlos pelo menos tomava banho e se arrumava um pouco, mas uma vez que se
juntou com esse cara a coisa piorou, dado que começou a ter filhos, sem se
ocupar de nenhum deles, as crianças estavam sempre na rua, descuidadas, sujas e
sem comer. Não se podia passar pela porta da casa pelo mau cheiro que a casa
emanava, estando a mesma toda fechada, dado que as crianças comiam porque
as pessoas do bairro os ajudavam e lhes davam de comer. Deixando constância
que o pai das crianças, de nome Carlos, é um dandy sempre impecável,
gordinho, bem vestido, até com carro, enquanto ela [Marisa] está pele e osso,
desalinhada; igual às crianças. (...) Quanto ao dia em que internaram um dos
gêmeos, diz que distribuíram as crianças entre os vizinhos, ficando a depoente
com a menina de 9 meses, sendo que ela estava totalmente desnutrida, dando
banho nela várias vezes porque era evidente que nunca tinham lhe dado banho.
Mas à noite teve que devolver a menina, bem como o fez o resto dos vizinhos,
porque Marisa disse que senão apanharia do marido. (...) Elas estariam melhor
em um orfanato do que em mãos dos pais. (Da ata judicial do depoimento de
Silvia)
Os depoimentos enfatizavam outro aspecto que seria uma e outra vez repetido ao
longo do processo. Os vizinhos ‘oferecendo’ ajuda -comida, cuidado, roupa- e Marisa
‘rejeitando’ essa ajuda e, inclusive, ocultando as crianças do olhar externo. Assim,
embora Carlos aparecesse como um marido dominador, talvez até egoísta, também
Marisa aparecia, nas opiniões de familiares e vizinhos, como uma mãe que não dava
conta dos filhos; mais preocupada com o atendimento e o cuidado de Carlos do que das
crianças. Se essa situação podia ser compreendida por alguns sob o argumento do efeito
241
dominador que Carlos exercia sobre Marisa seja porque o “endeusava”, seja por ver
Marisa “machucada”-, rechaçar a ajuda alheia era, conforme veremos ao longo de todo
o processo, uma atitude muito mal vista no bairro.
“Que não foram mais à casa de sua cunhada dado que ela acha que o depoente e
sua senhora querem tirar as crianças deles”, disse o cunhado. Com esses e outros
argumentos, também Marisa e Carlos disputariam as imagens sobre eles construídas.
Contudo, eles ainda não tinham sido ouvidos no processo. Até o momento, diante dos
depoimentos ouvidos, Alicia e Valeria construíam diversas hipóteses sobre o tipo de
relacionamento entre Marisa e Carlos e sobre a personalidade de cada um deles. Lembro
das conversas, sempre informais, onde circulavam tipologias ou estereótipos sobre
formas de relacionamento conjugal, presentes na sociedade. Pares como o “homem
macho” e a “mulher submissa ou dominada”, o “homem trabalhador” e a “mulher
negligente ou ociosa” e os valores morais a esses tipos associados
197
informavam
possíveis hipóteses do desfecho que, ao final, tinha provocado a intervenção judicial: a
morte do bebê. Valeria e Alicia iriam aprimorando e/ou alterando suas hipóteses na
medida em que ouviam as diferentes versões no processo. Um passo importante nesse
sentido foi conhecer pessoalmente os “imputados”.
Marisa e o “308”
No dia 13 de dezembro, um dia depois do allanamiento e detención, foi a vez de
Marisa se apresentar na UFI para ouvir a “imputação” que lhe estava sendo feita.
Previamente, tinha mantido “entrevista” com a secretária de uma defensoria oficial, que
a acompanhou durante o depoimento. Tinham decidido que Marisa iria depor.
Marisa era uma jovem de cabelos louros pintados. Teria aproximadamente um
metro e cinqüenta e cinco, como muito. Mais do que a altura o que chamava a atenção
naquela jovem era sua magreza. Talvez por isso ressaltasse no seu corpo magro uma
pequena barriguinha que evidenciava sua recente e nova gravidez. Durante o
197
O estereótipo do “homem macho” e a “mulher submissa” foi identificado por alguns antropólogos
como próprio da cultura mediterrânea, na qual a preservação da boa reputação de um homem descansa no
controle da honra feminina; no caso, associado à pureza sexual (Pitt-Rivers, 1979; Peristiany, 1973;
Gilmore, 1987). Claudia Fonseca (2004:135-136) chama a atenção para as críticas realizadas a este
modelo, baseado na oposição –etnocêntrica- construída entre um modelo “moderno e igualitário”,
valorizado nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, e um modelo “tradicional e hierárquico”, que seria
próprio do “casal latino”. Na oposição entre o tipo de “homem trabalhador” e “mulher negligente e
ociosa”, também se colocam em questão valores culturais associados à divisão sexual do trabalho e às
obrigações derivadas da mesma no interior de um grupo familiar (entre outros autores, ver Sarti, 1996).
242
depoimento, tomava com as mãos a barriga, como se estivesse incomodada ou dolorida.
Quando Alicia lhe perguntou se iria depor, respondeu veementemente que tinha dito
que o faria: “não tenho nada a ocultar, quero terminar com isto, ademais está doendo”.
A frase podia ser um tanto desarticulada, mas, ao tempo que mostrava uma forma rígida
e decidida de responder, que se repetiria durante todo o depoimento, manifestava
também o incômodo de sua situação como “detenida”.
Através do depoimento da irmã de Marisa, sabíamos que elas tinham entrado
em contato apenas um ano atrás. Marisa tinha sido dada em adoção aos dois meses de
idade. A senhora Lar, que morava com ela e Carlos, era sua mãe adotiva, portanto, o
irmão presente no allanamiento, filho da senhora, era também irmão adotivo de Marisa.
Segundo contou Carlos no seu depoimento, o encontro de Marisa com sua família de
sangue foi um impacto; “teve um bloqueio, ficou pior, isso a deixou muito mal”. De
outro modo, também Marisa expressou o mal-estar do reencontro com a família
biológica, dizendo que não não ajudavam em nada, mas que desde que os gêmeos
tinham nascido até que Rodrigo morreu, “só vinham bisbilhotar”.
Quem tomaria o depoimento de Marisa era Alicia, mas também Valeria se
encontrava presente na sala e atenta ao desenvolvimento do mesmo. A secretária da
defensoria sentou-se na poltrona, de costas para Marisa. Esta se sentou na cadeira diante
da mesa de Alicia, a qual ficava de frente quando fazia as perguntas, ou de perfil quando
registrava por escrito os ditos de Marisa no computador. Em diagonal à Marisa,
estávamos Valeria e eu.
Alicia começou o depoimento tomando os dados pessoais de Marisa. com a
secretária da defensoria na sala, leu o “fato imputado”. Destacou o “abandono” que
causara o estado de desnutrição, ocasionando a morte de Rodrigo e lesões graves a
Sabrina, os dois bebês gêmeos. Mencionou também uma série de números de folhas do
processo. Achei que fossem as constâncias médicas onde se acreditava a morte e as
lesões, mas nada foi explicitado ao respeito.
Alicia tinha esse estilo mais jurídico e formal na sua forma de conduzir os
depoimentos. Mencionava termos técnicos, relatava os “fatos” tal como escritos no
processo, citando números de folhas e provas técnicas. Valeria e Sebastián já tinham um
estilo mais informal. Eles relatavam os fatos, não amarrados à leitura e quase nunca
mencionavam termos técnicos. Enfim, priorizavam o diálogo e a conversa com o
depoente, para, depois, fazer o registro escrito do depoimento. Alicia dizia que seu
243
próprio estilo formal provinha de sua época na justiça civil, onde tudo era formalizado.
O certo é que, no transcorrer dos depoimentos, Alicia acabava interagindo com o
depoente em uma linguagem comum. Bem era verdade que o tom daquela conversa
variava conforme a atitude que o depoente exercesse sobre Alicia. Marisa não parecia
ter se saído muito bem nesse sentido. Seu tom era arrogante e defensivo. Aos poucos de
ter começado o depoimento, Alicia chamou a atenção de Marisa: “você olha para mim,
não para o resto”. A secretária da defensoria respondeu que Marisa apenas tinha feito
uma panorâmica com a vista talvez, pensei eu, atenta ao fato de ter, além da Alicia, a
Valeria e a mim olhando para ela. “Não olhou para mim, Alicia”, concluiu a secretária,
reforçando aquela regra de que os “imputados” não podiam trocar olhares com seus
defensores.
No início, o depoimento girou em torno da saúde dos bebês gêmeos, do peso
com o qual tinham nascido e se desenvolvido, dos cuidados e indicações médicos. As
perguntas formuladas por Alicia se manifestavam sobre informações que constavam
no processo, através de outras fontes. Pareciam, assim, um teste sobre a veracidade de
Marisa, ou pelo menos, sobre seu “nível de consciência” sobre o acontecido, como diria
depois Valeria. Onde dormiam as crianças, o tipo de leite que dava, quando comiam, o
quê comiam foram todos pontos de indagação.
(...) Alicia: seu marido trabalha?
Marisa: sim, em uma feira de roupas em Constitución.
Alicia: quanto ganha por dia?
Marisa: nem idéia. Ele me trinta ou vinte pesos e eu sempre tenho guardado
por via das dúvidas e as manzaneras me dão o leite.
Alicia: você que faz a comida para as crianças?
Marisa: sim, sempre faço, porque pedem.
Alicia: no posto de saúde ninguém te disse sobre o baixo peso dos gêmeos?
Marisa: não, me disseram que só podia lhes dar de comer depois dos seis meses.
Alicia: nunca os pesaram?
Marisa: não, os mediam e isto e aquilo.
[A partir deste momento Valeria começa a intervir no depoimento.]
Valeria: o que é “isto e aquilo”?
Marisa: isso, os mediam.
Valeria: os mediam, mas não os pesavam?!
Marisa: não, é que não os queriam atender. E como eu não sabia como tratá-los...
Alicia: você não sabia, mas antes já tinha tido outras quatro crianças.
Marisa: sim, mas os outros foram de parto normal.
Valeria: nunca ninguém lhe chamou a atenção sobre o peso?
Marisa: não, minha cunhada, mas muitas pessoas não vinham em casa. Eu os
sacava um tempinho.
Valeria: seus outros filhos comiam em casa ou com os vizinhos?
244
Marisa: em casa. Isso que dizem é depois do que aconteceu com Rodrigo, Silvia
apareceu de novo agora porque queria tirar a menina [Sabrina] de mim.
Valeria: se não fosse por ela você teria outra filha morta! Então não fale
vingativamente!
Marisa: não, mas em tal caso não é por Silvia, mas por Mercedes. Todos os
vizinhos que depuseram aqui, que estão com isso dos vizinhos, eles são das
manzaneras, que lhes dão para assinar por uma caixa de comida e não são do
meu bairro.
A partir das últimas respostas, Valeria pareceu se indignar cada vez mais com
Marisa. Suas intervenções foram crescendo ao longo do depoimento, enquanto Alicia
tomava notas e intercalava perguntas concretas. Outros atores, além de Marisa, Carlos e
seus filhos, ‘intervinham’ no relato. “Isso que dizem” demonstrava o conhecimento de
Marisa sobre o que se comentava no bairro e também sobre aquilo que o “bairro”, ou os
“vizinhos”, falavam na Justiça. A disputa que Marisa refletia com Silvia e outros
“vizinhos” “não ajudavam”, “só apareceu agora”, “quer tirar a menina de mim”, “não
são do meu bairro”-, era vista por Valeria e Alicia como uma falta de reconhecimento
de Marisa com pessoas que tentaram ajudá-la nas suas dificuldades para lidar com seus
filhos. Rejeitar essa ajuda e desconhecê-la não contribuía para a criação de uma imagem
positiva de Marisa. Ao tempo que reforçava uma comunhão de valores morais com a
mesma indignação que tal rejeição da ajuda provocava no “bairro”. Para justificar essa
rejeição e os comentários “maliciosos”, Marisa marcava um distanciamento com
aqueles vizinhos que teriam deposto contra ela “não são do meu bairro”. Quem fosse
do bairro”, segundo ela, não falaria essas coisas, representando o “bairro” e o ser
“vizinho” como um lugar de apoio e solidariedade
198
.
Enquanto essa percepção negativa se afirmava, Marisa continuou, ao longo do
depoimento, marcando ainda mais um distanciamento e oposição com os “vizinhos”.
Parecia-me, similarmente a outros casos na UFI e no caso do julgamento de Dario, que
o “bairro” estava longe de ser definido por suas proximidades ou distâncias geográficas,
mas por fronteiras sociais que envolviam valores e pertencimentos comuns a um
universo e alheios e/ou opostos a outro.
198
Na etnografia de Sayad sobre o bairro da periferia de Paris, é interessante como aparece essa
associação entre a idéia de “ajuda” e a definição de um “bairro e dos “vizinhos”. Como venho
argumentando, no caso da senhora francesa entrevistada por Sayad, fica claro que tal definição não se
corresponde com distâncias geográficas, mas sociais e morais. A senhora diz: “Eu posso sair o dia inteiro,
passear pelos arredores ou passar horas e horas na praça diante de minha casa, ninguém me diz ‘bom dia’,
todavia não é falta de gente. Não mais ninguém, não resta nada do antigo..., dos antigos moradores
deste bairro. Não se conversa mais, não mais vizinhos, não se pode contar com ninguém, não se presta
mais ajuda. Tudo isso foi embora. Não há mais vida no bairro” (1997:46).
245
À medida que Valeria intervinha no depoimento, a credibilidade no testemunho
de Marisa ia perdendo peso. Após a resposta de Marisa sobre os “vizinhos”, Valeria
tomou a palavra. Em lugar de fazer uma pergunta, começou a descrever para ela o
estado da casa tal como ela a tinha visto no allanamiento”. Mencionou o “péssimo
estado de preservação”, “as baratas”, “a sujeira”.
Marisa: mas você viu que estávamos pintando, não viu?
Valeria: a única parte da casa arrumada era o armário de seu marido [a secretária
da defensoria assente com a cabeça]. Como você quer que eu acredite que você
fazia a comida das crianças, quando a casa estava nesse estado?!
Marisa: pergunte para as crianças.
Valeria: não, eu não vou submetê-las a isso. O único quarto limpo era o da sua
mãe porque o limpava sua cunhada.
Marisa: mentira! Eu limpava. É que a casa não é nossa, por isso não podemos
fazer coisas, porque sabemos que no dia que minha mãe fechar os olhos e ir para
a merda, não é nossa. Sempre quisemos fazer alguma coisa e minha mãe nunca
quis. Depois veio Marcela [do programa da prefeitura] e começou a dizer que
havia que mudar isso e aquilo outro, tudo, que havia que mudar a cozinha, que
tinha que haver limpeza.
Valeria: bom, a questão da limpeza você não cumpriu.
Marisa: sim! Pergunte para minha cunhada!
Valeria: eu vi, Marisa, eu vi!!
Marisa: sempre limpamos, minha casa sempre está limpa. Às cinco da tarde eu já
tenho tudo limpo. Pode vir quando quiser e vai ver como é que está.
Valeria: fui ontem.
Marisa: mas ontem você me pegou presa!
[Alicia retomou o depoimento com perguntas sobre a preparação da comida, os horários
do almoço e do jantar, quem comia o quê e outros pontos relativos ao assunto]
Alicia: você janta?
Marisa: eu janto com as crianças, mas para [jantar] duas vezes não estou com
fome [quando chega o marido para jantar], mas não porque falte comida, mas
porque não estou com fome.
Alicia: alguma vez lhe faltou comida?
Marisa: nunca.
Alicia: é fumante?
Marisa: sim.
Alicia: nunca lhe disseram que está com peso baixo?
Marisa: quando nasceram os gêmeos.
Alicia: você não come porque não quer?
Marisa: estou sem fome.
Valeria: a as crianças?
Marisa: sim, elas comem.
Valeria: e seu marido fazia o que?
Marisa: trabalhava.
Valeria: ontem foi um dia fatal: justo você não tinha limpado, justo seu marido
não estava...
Marisa: sim, acordei às seis, vesti as crianças e fomos embora.
246
A crescente intervenção de Valeria no depoimento, continuada com as perguntas
de Alicia, parecia-me também acompanhada por uma intervenção cada vez maior na
vida de Marisa e Carlos: se ela limpava, quando limpava, se trocava os lenços, se ela
comia, por que não comia, qual horário comia. Parecia-me estar assistindo a uma
passagem do julgamento do estado de saúde das crianças, ao julgamento do estado da
casa, da organização da vida doméstica, da limpeza e da sujeira, do cuidado e da
desatenção. Para Valeria e Alicia, os dois aspectos não estavam separados, nem eram
independentes. A conduta de Marisa e de Carlos sobre o cuidado geral da casa, das
outras crianças e dela mesma era um dado fundamental para a determinação das
responsabilidades sobre o acontecido: a morte de Rodrigo e as lesões em Sabrina. Por
isso, também era colocada em questão a disponibilidade de Marisa para aceitar, ou não,
ajuda. Como uma forma de avaliação sobre sua capacidade de “se dar conta” das
dificuldades nas quais se encontravam ela e seus filhos.
Alicia: você recebeu roupa para as crianças, não recebeu?
Marisa: sim, está do lado do armário, na loja [a sala que era uma loja].
Alicia: você brigou com os vizinhos?
Marisa: não, nunca tive nem um sim nem um o, por isso estranho que tenham
saído com tudo isto. Antes que morresse Rodrigo, a única que lhe dava alguma
coisa era Silvia, de frente de casa, porque ninguém me dava nada antes. Os
gêmeos tinham um berço que ganharam da Silvia. Ela diz que quer ser a
madrinha e eu lhe disse que não. Ela quer ser a madrinha e lhes compra coisas.
Mas o berço está aí, não o vendemos, como diz o bairro, já que o bairro fala.
Valeria: o bairro fala?
Marisa: sim.
Valeria: mas você disse que eles não eram do bairro...
Marisa: não, é assim: eles lhe dão uma coisa e andam dizendo besteiras por
todos os cantos, eu sei como é que é. Você me diz que eu tenho que agradecer
Silvia, mas ela esteve com a menina apenas uma semana e Marcela [da
prefeitura] a tirou dela.
Na perspectiva de Marisa, o “bairro” não falava. Também controlava o que
ela fazia ou deixava de fazer. Ela se defendia dessas falas, que entendia como
acusações, negando a existência de ajuda, diminuindo a mesma, ou bem atribuindo
ciúmes e inveja por seus filhos, ou pela sua maternidade. Mas o discurso de Marisa não
parecia colar nem com Alicia e Valeria, nem sequer com a secretária da defensoria. Em
várias ocasiões, ela levantava os olhos ou fazia com o dedo um sinal de “loucura”, em
um gesto que parecia expressar a incongruência percebida quando Marisa falava. O que
o “bairro falava”, “o que diziam”, “os vizinhos”, tinha ganho uma maior credibilidade
nos ouvidos da Justiça, que, inclusive, ainda tinha outros depoimentos a serem ouvidos.
247
O depoimento continuou com perguntas sobre o dia da morte de Rodrigo. Como
tinha sido a internação, os dias posteriores, as visitas no hospital, as conversas com o
médico. No final, Alicia perguntou a Marisa se queria dizer mais alguma coisa:
Eu quero que tudo se resolva, quero estar com meus filhos de novo, nunca quis
fazer nada que lhes fizesse mal. Eu não quero mais ficar na comisaría, por que
quando doe [a barriga] não me levam?
A secretária disse que tinha pedido um translado a outra unidade. Marisa
ainda não voltaria para a casa. Na UFI tinham quinze dias para decidir se pediriam, ou
não, a “prisão preventiva” dela. Quando Marisa foi embora, a secretária ficou
conversando com Valeria e Alicia.
Eu acho que é uma submetida, ela mesma acredita na sua própria mentira.
[Valeria concorda]. Uma coisa é que mintam para você porque a querem
convencer e outra coisa é quando eles mesmos nem se dão conta. Mas, nós
sabemos, nos damos conta. Ela aqui repetiu literal o que disse na defensoria. Eu
fiz as mesmas perguntas que Valeria.
Valeria disse que fariam um exame com a psicóloga para avaliar o estado mental
e o histórico dela. Também comentou que faltava ouvir o marido e ver o que ele tinha
para dizer. A personalidade de ambos estava em jogo, como forma de definir as
responsabilidades sobre o acontecido. A estrutura da família e da vida doméstica
aparecia como indicador dessas personalidades e de suas capacidades de cuidado
199
. O
julgamento ia muito além da morte de Rodrigo.
Carlos e o “308”
Um dia depois foi a vez de Carlos ser levado à UFI para depor. Desde o dia do
allanamiento”, estava preso na comisaría de Alameda. Carlos era um homem alto e
corpulento. Usava bigode. Tinha cabelo abundante, com mechas pintadas de uma cor
mais clara. Nasceu, havia 47 anos, no mesmo município onde morava e onde, naquele
momento, se encontrava preso. Estava casado com outra mulher, de quem tinha se
separado, mas não divorciado. Com ela tinha outros dois filhos. Mantinha com ela um
relacionamento amigável; de fato, essa mulher tinha cuidado dos filhos dele com Marisa
199
Utilizando diversos autores, na sua etnografia sobre a administração judicial de conflitos familiares na
justiça criminal na cidade de Buenos Aires, Deborah Daich sugere a associação, em termos morais, das
relações parentais com uma “ética do cuidado” (2010:126), bBaseada em duas noções reelaboradas por
Carol Smart, caring for (como o ato de cuidado propriamente dito) e caring about (como um ato de
preocupação). Interessa-me aqui ressaltar o fato das representações que associam o cuidado às obrigações
morais das relações de parentesco não estarem apenas presentes nos discursos dos pais, em disputa por
suas identidades no processo, mas também nos agentes judiciais, e nas eventuais testemunhas.
248
por um bom tempo. Carlos e Marisa, segundo contou a cunhada desta, tinham se
conhecido no bairro. A tia de Carlos morava em frente da casa de Marisa e “ele era
conhecido no bairro por todos os vizinhos”. Havia sete ou oito anos –“quando morreu o
cantor Rodrigo no acidente, não me lembro bem”, disse a cunhada
200
-, Carlos tinha ido
visitar sua tia e Marisa se encontrava passando a vassoura na calçada. Conversaram,
entrou na casa para beber chimarrão e “assim começou”. Segundo a cunhada, também
sabemos que, antes de ter o posto na feira, ele atendia a loja na casa e antes disso
distribuía sacos de nylon; “desde que eu o conheço sempre trabalhou”. Naquele dia,
Carlos vestia uma camisa de malha azul e uma calça jeans.
Antes da defensora chegar, Alicia perguntou a Carlos seus dados pessoais e se
iria depor. “Sim, eu quero contar tudo, se eu não tenho nada para ocultar”, respondeu
Carlos. E, respeitosamente, perguntou se podia fazer uma pergunta. Queria saber com
quem estavam os filhos desde a detenção dele e de Marisa. Alicia respondeu que “com
Minoridade da prefeitura”. Foi quando entrou a defensora na sala.
Era a titular da defensoria à qual pertencia a secretária que acompanhou Marisa.
Entendi que, pelo menos até aquele momento, na defensoria tinham resolvido que não
havia “interesses conflitantes”. Uma hipótese que tinha adiantado a secretária de
defensoria ao finalizar o depoimento de Marisa. Isso queria dizer que, nesse
entendimento, defender a um não implicava prejuízo na defesa do outro. Caso se
resolvesse de maneira contrária, um dos dois deveria ter sido encaminhado para outra
defensoria
201
. Já em presença da defensora, Alicia leu os “fatos imputados”. Disse que o
crime “imputado” envolvia o tipo legal de “abandono de pessoa”. Carlos disse que tudo
bem com o que ela tinha lido, mas que não entendia porque dizia “abandono de pessoa”
quando ele trabalhava o dia todo.
Alicia: e não os via? [o depoimento tinha começado...]
Carlos: sim, à noite. Eu os cuidava à noite toda porque Marisa estava exausta, a
mamadeira, as fraldas.
Alicia: não os levantava para ver o peso?
Carlos: sim.
Alicia: mas não lhe surpreendeu?
200
Rodrigo era um cantor muito popular que morreu em um acidente de carro. Pela surpresa do fato, bem
como pela popularidade do artista, a morte foi muito noticiada. Esta forma de transmitir informações
(temporais, espaciais ou de nomes) referidas a parâmetros pessoais (“moro no bairro vinte anos,
porque meu filho tinha nove anos e hoje tem 29”), como por eventos públicos não era comum, mas
contrastava com as exigências da informação judicial requerida, sempre pontual e objetiva.
201
A definição sobre a existência ou não de “interesses conflitantes” quando há mais de um “imputado” é,
na verdade, uma estratégia da defesa.
249
Carlos: não, porque nunca tive a experiência.
Alicia: mas o senhor tem mais filhos!!!
Carlos: sim, mas não gêmeos e não prematuros.
Logo desde o início do depoimento, também Valeria começou a intervir,
formulando perguntas. A forma de perguntar, ainda mais do que no caso de Marisa,
parecia ter respostas prontas, que as perguntas giravam em torno dos mesmos pontos
respondidos por Marisa e as testemunhas. O certo é que era a oportunidade de Carlos
colocar ‘sua versão sobre o acontecido. Aliás, disso, e não da “veracidade” de seus
ditos, tratava o depoimento do “imputado”. Como vimos no Capítulo 4, a credibilidade,
ou não, aos olhos dos funcionários do que ele dissesse dependia de diversas variáveis
das quais a comprovação de seus ditos era apenas um aspecto.
Valeria: o senhor lhe dava dinheiro [a Marisa]?
Carlos: sim, duas vezes por semana, mas Marisa sempre tinha um dinheiro
guardado.
Valeria: ah, sim? Porque do processo isso não surge.
Carlos: a senhora diz como se não acreditasse em mim...
Valeria: é que do processo surge outra coisa. O senhor também tinha um filho
desnutrido e não se deu conta.
Carlos: porque eu não tive a experiência, mas a senhora é como que não acredita
em mim.
Valeria: o senhor me diga o que quiser que eu o escuto, mas não me peça que
acredite no senhor.
Carlos: mas pergunte o que a senhora quiser...
Valeria: sim, depois lhe pergunto, agora a doutora [por Alicia] está escrevendo.
O tom de Valeria tinha sido rígido. Carlos manteve um tom calmo, ou melhor,
tímido e apagado. Diferente de Marisa, que respondia à defensiva, confrontando com as
perguntas de Alicia e Valeria, e também com os ditos de outras testemunhas. Carlos
estava preocupado com a impressão que causara em Valeria, queria que ela acreditasse
nele, e dizia-se seguro de não ter nada a ocultar. As perguntas, entre Alicia e Valeria,
pulavam de um tema a outro: do cuidado das crianças, ao dinheiro ganho e entregue, do
comportamento dos bebês e a atenção aos outros filhos à limpeza da casa. Este último
ponto foi se tornando chave na avaliação da responsabilidade dos “imputados”.
Alicia: de limpar a casa se encarrega...
Carlos: Marisa, sim, ela não passa bem a roupa, mas lava muito bem. Eu sei,
quando foram me buscar [os policiais], me disseram “você precisa de água e
sabonete”. Mas a avó também suja e é Marisa que vai atrás limpando. Foi
fumigado um monte de vezes, mas os bichos nem sei de onde é que eles saem.
Valeria: e o mau cheiro?
Carlos: é porque não fica aberto por causa da avó.
250
Valeria: e os preservativos usados?
Carlos: apenas um, era meu e esqueci-me de jogá-lo, com todo respeito.
Valeria: e os tecidos de aranha?
Carlos: quais? Estamos pintando acima, queremos fazer um banheiro, mas o
tempo não dá. Em cima está jóia. Embaixo ainda não.
O depoimento continuou sobre questões vinculadas a outros aspectos. Alicia leu
a ata com os trechos registrados até aquele momento. Perguntaram se ele queria dizer
mais alguma coisa. Mantendo seu estilo receptivo, pediu que perguntassem o que
achassem necessário. Valeria investiu rapidamente com novas perguntas. Desta vez, em
um tom muito mais amigável e receptivo às respostas. Perguntou sobre o período em
que os gêmeos ficaram internados e com quem tinham ficado os outros filhos. Poucas
perguntas depois, retomou o assunto da limpeza. Parecia querer perceber melhor a
avaliação que Carlos fazia de seu próprio lar.
Valeria: seguramente tenhamos conceitos de limpeza diferentes, mas tempo
que eu não vejo um lugar tão sujo.
Carlos: não, com certeza a senhora foi de manhã, mas eu lhe digo de coração
que, quando eu chegava estava tudo limpo, eu jantava e estava bem. Sempre vivi
bem; pobre, mas bem. Marisa é limpinha, tem sua água sanitária, tudo. Havia
cheiro de limpo, só não havia quando a avó passava mal.
Valeria: o único lugar que estava melhor era o quarto da avó que é limpo pela
sua cunhada.
Carlos: não, não, Marisa limpa... é que você limpa e não para perceber. A
senhora foi acima? Porque aí é limpo e dá para ver.
Valeria: por isso me surpreende que esteja tão sujo.
Carlos: juro pela virgem que eu limpei, e pintei no domingo.
Valeria: está, não quero mais o contradizer. O armário com sua roupa está
impecável.
Carlos: também está o armário das crianças. O quarto da avó fui eu que o deixei
assim, fiz o reboque, tudo.
Valeria: sim, está muito bem.
[Alicia abriu a possibilidade da defensora formular suas perguntas].
Defensora: por que lhe resulta surpreendente quando a promotora lhe manifesta
as condições da casa?
Carlos: porque quando eu chego... é pobre, mas linda. Concordo com a questão
do cheiro, porque permanece fechado.
Valeria: o que a doutora lhe pergunta é se lhe surpreende que a mim me pareça
sujo.
Carlos: é que, às vezes, eu mesmo fico limpando, nos domingos, porque para
mim está bem. Eu a ajudo [a Marisa], para que não seja tudo para ela sozinha.
Alicia: com que limpa?
Carlos: tudo para limpar.
Alicia: o que?
Carlos: água sanitária, Veja, detergente, tudo.
251
A mudança de tom em Valeria parecia coincidir com uma atitude de menor
confronto por parte dela. Admitir que podiam existir “conceitos de limpeza diferentes”
pareceu-me ir nesse sentido. Afinal, não era comum, na minha experiência, agentes do
Judiciário reconhecerem com facilidade, e além das posições defendidas por cada um
deles no processo, a existência de ‘sensibilidades’ diversas. A intervenção da defensora
parecia querer retomar, estrategicamente, essa diversidade de pontos de vista sobre “a
limpeza”, ou sobre a “sujeira”, iniciada por Valeria. Contudo, rapidamente as perguntas
voltaram a ser incisivas sobre os detalhes da forma de limpar –“com que limpa?”- e de
avaliar tal atividade –“por isso me surpreende que esteja tão sujo”.
O desenvolvimento da conversa, posterior àquela primeira consideração de
Valeria, marcava o fato da mesma se dar em um contexto assimétrico. Esse contexto
não fazia mais do que respeitar os papéis formais do processo penal: Valeria, como
promotora, acusava; Carlos, como “imputado”, se defendia. Para tanto, acionava, ao
longo do depoimento, uma série de figuras identitárias nas quais ele mesmo se
inscrevia. Defendia-se como “bom pai”, como “trabalhador”, como “laborioso”, como
“colaborador” no âmbito doméstico, em uma casa “pobre, mas linda”. A aceitabilidade
que tais figuras teriam aos olhos e ouvidos de Valeria e Alicia pareciam limitadas por
valores prévios, não derivados das informações que “surgem do processo”, tal como
disse Valeria, mas também de valores morais próprios. Esses valores, como disse, as
aproximavam mais às versões dos vizinhos e do bairro do que à possível defesa de
Carlos. Contudo, as figuras que Carlos trazia à tona nas suas descrições e avaliações
mostravam seu esforço por se apresentar dentro de um padrão de sociabilidade familiar
socialmente legitimado.
Carlos: (...) O trato com as crianças é muito bom. Pode perguntar para Ariel ou
Mauro [os outros filhos]. Se eles me pedem um asadito, fazemos, vamos ao
parque, uma vida pobre, mas linda.
Alicia: o senhor trabalha todos os dias? Qual horário?
Carlos: de segunda a sábado, saía às 6h45 porque a feira abre às 8h e voltava às
20h45.
Alicia: nos domingos passava em casa?
Carlos: sim, sim. Eu levava a factura
202
, ia fazer compra e depois comíamos
como outra família qualquer e íamos ao parque.
202
Trata-se de pães doces de diferentes sabores. Mantenho o termo em espanhol porque o significado de
“eu compro a facturaou “eu levo a facturavai além do tipo de comida, implicando uma relação social
de comensalidade em torno a essa ação, típica das manhãs ou tardes dos dias domingos e/ou sábados.
Nessa relação social, espera-se um momento de conversa, em torno das facturas, acompanhadas
idealmente por chimarrão [mate], onde se circulam e eventualmente compartilham valores e experiências
252
Alicia: sua senhora gosta de cozinhar, ela é de comer?
Carlos: sim, ela gosta de massa.
Alicia: o senhor comia sozinho?
Carlos: com ela [Marisa], com Sabrina e Paula. Eu lhes dava um pedacinho de
comida porque elas tinham jantado. Agora até Sabrina come de tudo, Paula
e Mauro também, quem é mais difícil é Ariel.
Carlos deu conta, nestes trechos, da cotidianidade que mantinha com sua mulher
e seus filhos. Levar facturas, fazer um asadito, ir ao parque, comer em família no
domingo, jantar em companhia da mulher e dos filhos, após uma jornada de trabalho,
são ritos que podem caracterizar uma família argentina tipo. Estava, pois, colocando sob
avaliação um padrão de vida familiar e doméstica ‘dominante’ na sociedade argentina.
Nele, a rotina de partilhar ‘em família’ a sociabilidade do lar, em especial, aquela
vinculada à alimentação, é um valor destacado como símbolo de uma ‘família unida e
harmônica’. Embora tal representação ideal não tenha nenhum valor universalizável
203
,
no contexto no qual os hábitos de Carlos e Marisa estavam sendo avaliados (e julgados),
a descrição e comprovação desses hábitos significavam muito mais do que sua inscrição
nos valores dominantes. Simbolizavam também o respeito às obrigações morais
próprias das relações de parentesco, especificamente, dos laços de filiação.
Uma vida “pobre, mas linda”, “como uma família qualquer”, dizia Carlos.
Contrapunham-se a essa imagem as interrogações de Valeria e Alicia, concordantes com
outras visões levadas ao processo. Nelas primava um pai preocupado com sua própria
imagem seu armário com roupas novas e arrumadas, “sempre de ponta em branco”-,
bem alimentado “gordinho”-, eventualmente agressivo, e, sobretudo, descuidado com
os filhos e com sua alimentação e saúde. Um modelo de família, enfim, que não
cotidianas. Então, quando Carlos diz que “levava facturasnão está só falando da alimentação da família,
mas de um rito de sociabilidade que todos partilhavam, no único dia em que ele estava em casa.
203
Como assinala Françoise Zonabend, os códigos de conduta que regulam as relações de parentesco, por
ser este um “fato social” e não biológico, diferem em sociedades distintas (1986:31). Embora, no
Ocidente, estejamos habituados a conceber a vida conjugal ocupando um espaço, no qual se desenvolve
sua vida íntima e no qual o casal reside com seus filhos, as sociedades têm resolvido de maneiras
sumamente diversas a coabitação, chegando, inclusive a excluí-la (1986:74). Zonabend exemplifica com
casos distintos: os “maridos furtivos” dos menangkabau, os “esposos visitadores” entre os ashanti, os
“cônjuges ausentes” dos nayar, como exemplos que ilustram a existência de “família” sem necessidade
vida em comum entre os pais. Também assinala que as atitudes que um parente deve adotar com respeito
a outro não são comuns em todos esses códigos. Daí, por exemplo, que entre os gourmanché do Alto
Volta um pai e um filho não devam compartilhar a mesma tenda, nem comer, nem sequer se sentar juntos
(1986:31). Os hábitos de sociabilidade conjuntos e partilhados como símbolo de existência de uma
“família” são apenas valores próprios de uma forma particular de conceber a vida doméstica e as relações
de parentesco.
253
respondia às obrigações morais das relações de parentesco por ele identificadas e
socialmente legitimadas.
Os depoimentos de Marisa e Carlos evidenciavam uma indagação pelo ocorrido
no dia da morte do bebê e também pelo cuidado prévio e posterior de ambos os pais
com todos os filhos. Mas, da mesma forma e intensidade, eram indagadas as condições
de vida e de limpeza, de hábitos e rotinas, do casal e do âmbito doméstico em geral.
Julgavam-se, assim, não as obrigações jurídicas dos pais, mas também a “sujeira”, o
“descaso”, ‘uma forma de vida familiar. Os “critérios de limpeza” eram,
evidentemente, diferentes. que o contexto judicial da conversa exigia definir um
deles como válido. E para isso restava tempo de investigação.
No final do depoimento, já lida a ata, com o acordo de todos, Alicia explicou
para Carlos que o crime pelo qual estava “imputado” não era excarcelable”, portanto,
tratava-se da possibilidade de ele ficar preso até que fosse realizado um julgamento.
Logo, Carlos perguntou pela situação de Marisa e das crianças.
Alicia: Marisa está igual que você e as crianças nas mãos de minoridade.
Carlos: e recuperando a liberdade podemos recuperar a família completa?
Alicia: isso não é administrado por nós. É decidido por um juiz de menores.
Nesse momento, Carlos começou a chorar intensamente. Colocou a cabeça entre
as mãos e esperou alguns longos minutos para falar. Ninguém dizia nada. Carlos disse
que queria estar com seus filhos, que sua família é tudo o que ele tem.... A defensora
explicou para ele que os filhos estavam bem e que estavam sendo cuidados pela ex-
mulher dele. Carlos agradeceu a informação, dizendo que isso o deixava mais tranqüilo.
“Eu parti de zero, aos 40 anos eu disse para Marisa que o único que tinha para lhe dar
era trabalho”.
Comentamos sobre essa situação assim que Carlos foi retirado da sala. Alicia
disse que não conseguia reter a emoção de vê-lo se quebrar desse jeito. Valeria disse
que não sentiu igual; que, ao pensar na imagem do bebê morto, não conseguia sentir
pena nenhuma por Carlos, nem por Marisa. Não era a primeira vez, na minha presença,
que alguém se emocionava e chorava na UFI. Muitas foram as vezes, naquelas
situações, que vi os olhos de Valeria encher de grimas e se emocionar ‘junto’ com os
depoentes. Desta vez, a não-emoção’ marcava uma distinção de valores morais com os
quais não se identificava. Pode ser argumentado que o ‘fazer justiça’ não precisa de uma
empatia com as pessoas julgadas. Aplicar a lei não supõe, na nossa sociedade, de
254
tradição ocidental, o uso dos sentimentos como ferramenta de decisão judicial. O certo é
que a atitude de todos os envolvidos o choro de Carlos, a emoção de Alicia, a não-
emoção de Valeria- transluziam-se nas avaliações posteriores por elas manifestadas, não
sobre o acontecido pontualmente, mas sobre a personalidade dos “imputados”.
Em quem acreditar?: o “perfil psicológico”
O depoimento de Carlos aconteceu em uma sexta-feira à tarde, um horário em
que poucas pessoas ficavam trabalhando em Tribunales. Quando Carlos foi embora, a
defensora ficou um bom tempo conversando com Valeria e Alicia. Ela comentou que
ainda não tinha visto Marisa (a entrevista tinha sido com a secretária). Manifestou
interesse em encontrá-la: “eu esperava que ela dissesse o que sempre se diz em outros
processos, mas não, ela vive no mundo da lua”. Parecia que, se, por um lado, a
defensora enquadrava o caso junto com outros processos semelhantes, nos quais ela
tinha uma experiência e expectativa sobre o que ouviria dos “defendidos”, por outro
lado, Marisa e a versão dada por ela fugiam desse padrão
204
. “Ela é uma mentirosa
compulsiva”, opinou Valeria. “Sim, mas ela acomoda as coisas, isso é que me
incomodou, eu não acreditei nela; nele sim, por isso fiquei mal”, disse Alicia. “A louca
é ela, deve lhe mentir [ao marido] que faz as coisas, quase perversa, no início achei que
ele fosse doente, mas ele não é não”, disse Valeria.
As avaliações sobre o perfil psicológico de Marisa e de Carlos estavam baseadas
nas impressões e percepções que Valeria e Alicia, e também a defensora, tinham
formado deles nos encontros mantidos no âmbito judicial. Em casos com este,
envolvendo relações familiares, ou também de proximidade, como no caso de Esteban
Garza e Patrícia Juárez, da facada na loja de comestíveis, ouvi este tipo de comentários
com freqüência. Eles se davam junto com a intervenção da psicóloga do Ministério
204
Volto aqui à idéia de Baudouin Dupret (2006) quando afirma que todo trabalho judicial está inserido
em um contexto burocrático e rotineiro, o que, de forma alguma, exclui a engenhosidade e criatividade. O
ponto que Dupret quer enfatizar é o fato das regras e decisões jurídicas estarem integradas em um quadro
mais amplo de outros casos e de um certo número de técnicas empíricas desenvolvidas para tratá-los
(2006:162). “As decisões para certos tipos penais –diz- são de um repertório limitado. São transmitidas a
partir do conhecimento dos mais antigos, da experiência de seus predecessores (...) elas nascem da
prática, fazendo frente a situações novas. (...) Existe uma acumulação de saber onde são remetidos os
casos particulares” (2006:160). Nas freqüentes conversas entre funcionários da UFI, deles comigo e deles
com outros funcionários, era muito comum, por exemplo, eles se remeterem a contar casos já trabalhados,
seja como modo de resolver consultas sobre casos pontuais, seja como forma de traçar particularidades
não dos casos, mas das decisões tomadas. Costume que, aliás, eu apreciava muito porque me dava
acesso a vários casos e, sobretudo, as histórias a eles associadas em Tribunales.
255
Público. Ela se entrevistava com os “imputados” e entregava um relatório informando o
resultado de sua perícia.
Uma semana após os depoimentos de Marisa e Carlos, a psicóloga passou pela
sala de Valeria para conversar sobre esse e outro caso que também investigava
Valeria
205
. Embora ainda não tivesse entregue o relatório da perícia, a psicóloga já tinha
se entrevistado com Marisa e com Carlos. Comentou com Valeria que, na opinião dela:
Carlos [referia-se a cada um deles apenas pelo sobrenome] “tem uma
personalidade complicada, é muito dominador, ele não podia não se dar conta do
que acontecia, ainda falava tudo em diminutivo e isso me deixava muito
nervosa. Marisa [também pelo sobrenome], ela tem uma história familiar
complicada, de abandono, desordem e, de fato, ela é muito desordenada. Minha
impressão é que ela não consegue, como ninguém na verdade conseguiria, com
cinco filhos. É demais para ela, então cria todo um discurso de que faz as coisas,
mas é evidente que não pode.
De alguma forma, as “impressões” da psicóloga iam de encontro com a opinião
de Valeria: que ela mentia para ele e ele, acreditando nela, fazia tudo o que podia.
Quando a psicóloga foi embora, Valeria comentou comigo que “de qualquer forma, o
relatório psicológico o é determinante e o fato dela ter uma história complicada,
penalmente não quer dizer nada”. Não era a primeira vez que os relatórios ou perícias
psicológicas eram questionados. Na UFI, já tinha conversado com Bruno e Valeria
sobre as dúvidas que, em alguns casos, lhes suscitavam as conclusões dos psicólogos.
“Tem casos de abuso de menores –dizia Valeria- em que os psicólogos acreditam
inevitavelmente nas crianças, em tudo o que elas dizem, e nem sempre as crianças
dizem a verdade”. Bruno questionava a forma padronizada em que os relatórios eram
elaborados, sem transluzir as particularidades de cada caso.
O advogado Fellini também tinha comentado comigo sobre os critérios, às vezes,
não claros das conclusões dos psicólogos nos seus relatórios. Contava de um caso em
que dois psicólogos tinham elaborado exatamente o mesmo diagnóstico, mas do qual
tiravam conclusões opostas. Contava-me também outro caso:
Eu tenho um caso de um senhor que reconheceu diante de mim que entrava no
quarto da filha da mulher e que a manuseava. Eu defendi o senhor, com a
condição que saísse da casa. Bom, perícia psicológica sobre a menina; 16 anos a
menina. Ela relata o fato e o psicólogo diz que não é crível, “não me convence,
205
Tratava-se de um “abuso sexual” do padrasto com a enteada. A psicóloga tinha se entrevistado com o
senhor e comentou que tinha lhe causado uma “impressão muito desagradável, com uma sexualidade
pobre, uso de pornografia, um perverso”, concluiu, enquanto entregava o relatório da perícia, para ser
anexado ao processo.
256
não tem elementos, não descreve seriamente”. No caso, não entendemos bem
por que não acreditou, mas não acreditou. Eu também acreditava, mas, neste
caso eu te digo por que meu defendido dizia que ele entrava. Então agora eu
não acredito mais nada nele, mas o psicólogo diz que não existem elementos.
Então, o que promotor faz é sair à pesca. Em alguns tipos de crimes o que
usam muito são as perícias e os relatórios cio-ambientais, para ver se o
imputado... quando os promotores não tem elementos, então bota relatório
psicológico, nem sequer o chamam perícia, chamam de entrevista psicológica
para que o psicólogo tire o que ele [o promotor] não pode tirar. Saem à pesca,
como não posso extrair do imputado, vejo se o imputado depõe que foi ele diante
do psicólogo. (Entrevista com advogado criminal, Dr. Fellini, 07/05/09)
No relato do advogado, o critério do psicólogo para elaborar seu relatório e
extrair suas conclusões está descolado dos possíveis parâmetros da disciplina utilizados
para tais diagnósticos. Contudo, não é isso –a legitimidade do saber psicológico- o que
me interessa colocar em questão. Mas, em tal caso, a ênfase outorgada pelo advogado
ao fato de acreditar ou não no entrevistado. Para ele, assim como para Valeria –
“acreditam em todos”-, as conclusões estão baseadas no convencimento pessoal e na
avaliação da credibilidade do relato e da pessoa. A mesma situação que ele coloca sobre
sua atitude para com seu defendido: “eu acreditava... agora eu não acredito”. Uma
avaliação semelhante àquela que temos visto por parte dos funcionários judiciais nos
Capítulos 4 e 5, sobre testemunhas e “imputados”. A questão da ‘crença’, então, parece
se remeter aqui a um conflito de ‘saberes’. Quem possui um saber mais apurado para
validar sua ‘crença’?
Ao mesmo tempo, na visão deste advogado, os relatórios aparecem usados
alternativamente com meios de “prova”. Ora servem para a defesa, ora para a
promotoria. Segundo ele, esta última os utiliza como opção a outros meios de “prova”,
mais para comprovar uma hipótese do que para elucidar um “fato”. Aparecem assim
como construtores de uma verdade possível. A Dra. Giver, defensora de menores do
departamento de Los Pantanos, relatava um conflito dos defensores desse fórum em
relação a relatórios enviados pelos psicólogos.
Quando os relatórios eram pedidos pelos defensores, nos enviavam relatórios
que falavam da responsabilidade que o menino tinha no fato. Nós paramos e
dissemos “olha só, se eu falo para meu defendido para não depor, você não pode
colocar que o menino roubou o MP3 porque não tinha dinheiro para comprar
droga!”. Então, em um momento, deixamos de apresentar os relatórios. Se os
apresentasse a promotoria, nossa obrigação seria impugná-los, mas, como,
geralmente, os pedimos os defensores para lutar por uma pena alternativa, o que
acontece é que temos um monte de relatórios na mesa que não são apresentáveis.
Ora, também não apresentá-los joga contra, porque o juiz, no caso dos menores,
257
gosta de ter o relatório, porque se supõe que o processo tem uma finalidade
educativa. Agora o que começou a acontecer é que a assessoria pericial está
enviando cópia da perícia ao promotor, mas a perícia é nossa!! “Ah, mas nós
somos do poder judicial e enviamos cópia a todos”, respondem. Então, o
promotor a perícia, entendeu? E pronto: “foi o garoto”. (Entrevista com
Dra. Marina Giver, defensora de menores, 13/05/09)
Tanto nos relatos do advogado e da defensora, como no comentário que Valeria
fazia da conversa com a psicóloga no caso de Marisa e Carlos, os relatórios das
entrevistas psicológicas funcionavam como “provas” na medida em que ajudassem a
elucidar uma hipótese de investigação. Caso a contrariassem, não eram considerados
como “penalmente” relevantes. Embora a solicitação dos mesmos fosse um
procedimento formalmente estabelecido e frequente, seu uso era aleatório, dependendo
das “impressões” prévias dos profissionais judiciais, derivadas de outro tipo de “provas”
e percepções. Parecia-me mais um caso em que o ‘fundo’ (hipótese de investigação)
impunha-se diante da ‘forma’ (procedimento). As “provas” consideradas “penalmente”
relevantes provinham de outras fontes. No caso de Marisa e Carlos, os depoimentos
orais das testemunhas foram fundamentais na construção de uma versão sobre os
“fatos”, ou melhor, sobre as responsabilidades pelo acontecido.
“Soube pelos vizinhos...”
No processo contra Marisa e Carlos, depuseram várias testemunhas: além do
cunhado, a irmã e a vizinha mencionados, também o fizeram, após o depoimento do
casal, a cunhada – aquela que estava no dia do allanamiento”-; uma amiga e vizinha de
Marisa; a manzanera, sua filha e os profissionais que, em um momento ou outro,
atenderam o caso a partir da prefeitura: a psicóloga, a assistente social e o médico do
hospital que tratou os gêmeos. Através de todas estas testemunhas também foi possível
‘ouvir’ a voz de uma figura que se repetia em todos os relatos: “os vizinhos”.
Nos depoimentos já ouvidos, os “vizinhos” apareciam oferecendo ajuda, levando
comida, dando roupas para as crianças. Também como fonte de informações sobre “o
que acontecia” na casa. “Soube pelos vizinhos que...” foi uma frase bastante recorrente
para dar conta de como os familiares souberam da internação dos gêmeos, da forma
como Carlos trataria Marisa, de como Marisa lidaria com as crianças. Da perspectiva de
Marisa, nesse sentido, os “vizinhos e familiares também apareciam “bisbilhotando”,
“se metendo”, opinando sobre sua vida e sobre “suas crianças”. Os depoimentos que se
258
seguiram reforçaram aquele papel dos “vizinhos” como fonte de ajuda e como fonte de
informações.
A cunhada de Marisa fez um longo depoimento, seguindo as perguntas de
Alicia e Valeria. Ela se apresentou dois dias depois do allanamiento”, tal como tinha
combinado de palavra com Alicia. Tanto ela como Valeria fizeram várias perguntas
sobre o cuidado que Marisa dedicava às crianças, à casa, à preparação da comida, bem
como sobre Carlos e seu relacionamento com Marisa. Em alguns trechos sobre estes
assuntos, apareciam os “vizinhos” como protagonistas dessa trama de relações.
(...) Alicia: ela [Marisa] cuida de seu aspecto pessoal?
Cunhada: não, nunca, desde os dezessete anos. Ela fica esperando por nós,
eram os vizinhos que lhe levavam comida, é assim.
Alicia: isso antes de se juntar com esse senhor?
Cunhada: antes, antes. Quando minha sogra [a senhora Lar] ficou sem emprego
ela não saiu a procurar trabalho. Todos os vizinhos a chamavam.
Alicia: que vizinhos?
Cunhada: todos os vizinhos.
Alicia: algum nome?
Cunhada: Ana, outros. Como são vizinhos dela, não sei os nomes.
A cunhada contou como se conheceram Marisa e Carlos e continuou contando
que ele era separado de outro casamento e que a separação foi porque a outra mulher
cuidava bem da casa e dos filhos, mas não dele. Também relatou que, em uma ocasião,
Carlos e Marisa ficaram separados por um mês:
Cunhada: uma vez ele foi embora e não voltou mais. Foi embora e não deixou
nem um peso.se revolucionou a vizinhança toda de novo, Silvia, todos, todos
lhe levavam comida de novo.
Alicia: ele lhe dava dinheiro?
Cunhada: ele que manejava o dinheiro, dava-lhe dez, quinze pesos. Os vizinhos
ficavam com raiva dela pedir porque viam que ele estava ótimo, com celular,
arrumado. Eles [os vizinhos] são gente boa, mas estão cansados. Quando está
com ele, ela fica calada. Eu estou pensando assim: a mãe verdadeira dela teve
treze filhos e deu todos [em adoção] e eu vejo que ela tem como um
ressentimento, alguma coisa que leva dentro dela. Para mim precisa de um
tratamento psicológico.
Valeria: e sim… é uma menina abandonada que abandona seus filhos.
Cunhada: eu vejo como que ela não gosta de ninguém, nunca a vejo agradecer
coisa nenhuma. Todos os vizinhos os ajudaram, eu não entendo por que ela não
é agradecida pelos vizinhos, porque tudo o mundo ajudou ela, os vizinhos
quiserem ajudar.
Chamou-me a atenção, nestes trechos do depoimento da cunhada, o fato dela se
referir aos “vizinhos” como os “vizinhos dela”, motivo para justificar o fato de não
259
saber os nomes deles. Eu tinha bem claro em minha memória as poucas quadras que
tinha andado com a cunhada da casa de Marisa até a casa dela. Novamente, a noção do
“vizinho” não coincidia com critérios de distância geográfica e, pelo menos neste caso,
parecia implicar uma proximidade ainda maior do que “morar no mesmo bairro”, ou “há
umas poucas quadras de distância”. Tal proximidade, na verdade, parecia poder ser
traduzida em termos de intimidade, por saber –ou não- os nomes, mas, sobretudo, por
saber o que “acontecia” ‘dentro’ da casa.
O relato da cunhada também manifestava claramente o papel que, na visão dela,
cumpriram os “vizinhos” nos episódios narrados. Diante da impossibilidade, ou
incapacidade [e o termo adequado seria objeto de múltiplas interpretações e ‘teorias’],
de Marisa dar conta das tarefas domésticas e do cuidado dos filhos, bem como de buscar
emprego quando poderia tê-lo precisado, os “vizinhos” –“todos os vizinhos”-
auxiliaram ela, “levando comida”, “a chamando”, se “revolucionando” diante de seus
problemas. A imediata mobilização deles em relação às necessidades de Marisa a
sogra sem emprego, a ida do marido-, evidenciava a atenção outorgada sobre aquilo que
acontecia na vida de Marisa. Ao mesmo tempo, a “raiva” e o “cansaço” deles, expressos
pela cunhada, pareciam evidenciar a reprovação diante do bem-estar de Carlos –“viam
que ele estava ótimo, com celular, arrumado”-, assim como o desconforto diante da falta
de agradecimento de Marisa – “nunca a vejo agradecer coisa nenhuma”.
Também a figura dos “vizinhos” se manifestava no depoimento da assistente
social que tinha atendido Marisa e as crianças desde o programa da prefeitura. Assim
como a cunhada deu um extenso depoimento, carregado, não de opiniões
profissionais, mas também de emoções pessoais, sobre as quais vou tratar mais adiante.
Aqui, quase como uma continuidade com o depoimento da cunhada, chamou-me
novamente a atenção o aporte da voz –longínqua e anônima- daquilo que “os vizinhos
dizem...”.
(...) Assistente social: os vizinhos dizem que Carlos os ameaçou e eu
perguntei se ele era violento e disseram que sim, mas eu nunca tinha visto ela
machucada.
Alicia: você conhecia Carlos?
Assistente social: cruzei com ele uma vez só, quando morreu o menininho. Mas,
antes, em agosto, eu fiquei sabendo de uma triste realidade que é que os vizinhos
dizem que esse senhor havia vendido um dos carrinhos de bebê que uma vizinha
tinha dado para Marisa, que ganha muito mais dinheiro do que ele mesmo dizia,
que quando a roupa estava com cocô não a lavava, mas a jogava fora.
260
(...) Ela tinha a manzanera que lhe dava a comida, o padeiro que lhe dava pão e
facturas e o verdureiro que lhe dava legumes, mais aquilo da prefeitura, duas
vizinhas jovens que iam ser madrinhas dos meos que estavam por pelo
entorno do bairro. Minha primeira impressão era que era uma mãe atolada, com
um marido abusivo, mas depois vi que tinham apoio. Eu, no primeiro relatório,
coloco “escassa rede social”, mas depois me dei conta que não, porque os
vizinhos até iam com a comida pronta. (...) Tempo depois tomo conhecimento da
internação do bebê e de que as outras crianças estavam todas distribuídas, então
digo para Marcela que faça a denúncia e os vizinhos dizem que ela apanhava
do marido. Igual eu falo de ouvido porque nunca a vi marcada e é um assunto
sobre o qual conversávamos.
Alicia: o peso do bebê não chamava sua atenção?
Assistente social: sim, mas primeiro eu achei que fosse porque era prematuro.
Alicia: mas com oito meses, três quilos?!
Assistente social: nem me fale porque me dá dor de estomago e volto às
lágrimas. É que eu me senti mal, porque somado à culpa pessoal, estava o que
diziam os vizinhos que eu não sabia e pensei “isso aqui me escapuliu”. Fizemos
muitas pequenas intervenções, medicamentos, leite, roupa, mas eu nunca achei
que tudo fosse acabar assim. Pelos comentários dos vizinhos o que diziam é
“com certeza que foi o gordo que comeu tudo”.
A “ajuda” recebida voltava a dar protagonismo aos “vizinhos”. A mesma parecia
jogar como uma faca de dois gumes. Se, por um lado, mostrava uma atitude solidária e
generosa dos “vizinhos”, por outro, o fato de não ter sabido aproveitar “toda” a ajuda
dos “vizinhos” era visto negativamente. Como ter desprezado um valor que nem todo
mundo tem a oportunidade de receber. Por isso, os rechaços de ajuda por parte de
Marisa, a falta de agradecimento, o descaso de Carlos com os presentes, as reclamações
de Marisa de “não receber” ou “não cumprir por parte dos outros, quebravam um
vínculo social –solidário- que poderia ter impedido, na visão da assistente social, que
“tudo fosse acabar assim”. Diante da ajuda de todos (vizinhos, padeiro, verdureiro,
manzanera, vizinhas jovens, prefeitura), diante da “rede social” e o “entorno do bairro”,
ter chegado à morte do bebê parecia imperdoável. Havia uma rede de reciprocidades
não correspondidas, que, em outros momentos do depoimento, a profissional
manifestaria ter sentido em carne própria.
No relato da assistente social, os “vizinhos diziam” que ela apanhava do marido,
que Carlos os ameaçava, que comia tudo, que era violento, que vendia as coisas que as
crianças ganhavam dos vizinhos, que jogava fora a roupa suja, que ganhava mais
dinheiro do que manifestava. Através da voz dos “vizinhos”, que a assistente social
tinha cruzado com Carlos uma vez, manifestava-se sua avaliação sobre a atitude e o
comportamento de Carlos, apesar dessas informações serem “de ouvido”. O papel de
261
“trabalhador” que Carlos enfatizara no seu depoimento - de segunda a sexta, das 6h às
23h-, era, nesta outra visão, questionado. O fato dele trabalhar, mas tal trabalho não
redundar na melhoria da qualidade de vida das crianças e de Marisa não parecia bastar,
como valor, para legitimar a ausência do lar, a falta de cuidado, ou pelo menos, de
conhecimento sobre o estado das crianças. Para se legitimar aos olhos dos vizinhos, e
também dos profissionais que intervieram na sua história familiar, incluindo aqueles do
campo judicial, era exigido que a identidade masculina de Carlos não se
correspondesse com uma “ética do trabalho”, mas também de cuidado, apoio e,
principalmente, sustento familiar
206
.
A assistente social disse que “soube [aprendi que esse verbo nessa conjugação
vaga envolvia os vizinhos, o bairro] que o pai opinava que a mãe é que tem que se
ocupar dos filhos e que por isso não queria que fossem na creche”. A distribuição de
tarefas no interior do grupo doméstico era assim colocada não para avaliar o
comprometimento de Carlos com a família, mas também de Marisa, no seu papel de
esposa e mãe. Nesse sentido, as avaliações sobre o cumprimento, ou não, dessas tarefas
e os motivos pelos quais eram, ou não, satisfeitas, transluziam também avaliações
morais sobre os papéis familiares esperáveis
207
. Através dos relatos das testemunhas, ia
se criando e consolidando ‘uma’ visão sobre a vida familiar de Marisa e Carlos; como
ela era organizada, como as atividades domésticas eram atribuídas e exercidas. Essa
visão não necessariamente coincidia com a visão transmitida por Marisa ou por Carlos;
nem sequer era totalmente consensuada entre todos os depoentes “é o que dizem, mas
eu nunca vi”. O certo é que todos, por opinião pessoal e/ou profissional, por ouvir
outros dizer, ou por manter um vínculo direto, aportavam dados e informações que
podiam, ou não, reforçar a hipótese com a qual Valeria e Alicia conduziam a
investigação. E esses encontros, ou desencontros, com tal hipótese se evidenciavam nas
perguntas direcionadas de Alicia e Valeria. Elas perguntavam com detalhe sobre a
206
Etnografias sobre cultura popular e relações familiares e/ou de nero, especialmente no contexto
brasileiro, associam a identidade masculina à relação de dois tipos de ética, que, dependendo dos autores,
se combinam ou se contrapõem: a “ética do trabalhador” e a “ética do provedor”. A primeira prioriza a
atividade do trabalho propriamente dita (e, como tal, pode se opor à identidade de “bandido”); a segunda
valoriza o trabalho na medida em que o mesmo deriva no fornecimento de recursos para o grupo
doméstico (Zaluar, 1985:120; Sarti, 1996:74; ver também Fonseca, 2004 e Guedes, 1997). Neste último
caso, o valor moral do trabalho está associado ao cumprimento das obrigações morais das relações
familiares.
207
Pitt Rivers (1979) entende que a divisão sexual do trabalho une uma família em um sentido comum de
honra. Portanto, sugere que essa divisão de tarefas é também uma “divisão moral do trabalho”, que
determina a forma em que são distribuídas as qualidades morais entre os sexos e os comportamentos
considerados adequados para cada um deles.
262
forma de alimentação, limpeza, responsabilidades, saúde e higiene, enfim, sobre os
hábitos familiares e domésticos. As testemunhas informavam e opinavam sobre os
mesmos, desde os parâmetros morais e culturais que tinham disponíveis.
“O que faltava era organização familiar
“Até esse momento [a morte do bebê] era uma família feliz e contente, o que
faltava era organização familiar”. Essa foi uma das considerações expressas pela
assistente social ao longo de seu depoimento. Não foi a única que emitiu sua opinião
sobre a forma com que o “núcleo familiar” de Marisa e Carlos organizava sua vida
doméstica. Essas opiniões se entrelaçavam também com aquelas outras emitidas sobre a
personalidade de cada um deles e o conseqüente laço matrimonial que mantinham. Em
todos os depoimentos, Alicia, com intervenções pontuais de Valeria, perguntava às
testemunhas sobre a organização familiar e o cumprimento das tarefas domésticas. A
primeira em responder com detalhe sobre essas informações foi a cunhada de Marisa,
que visitava a casa devido aos cuidados que fornecia à senhora Lar, sua sogra.
(...) Cunhada: nos domingos eu já vi ele cozinhando muitas vezes, mas durante a
semana não está. Eu te explico o que eu vejo, você tem filhos? Porque ela está
sempre com seus filhos, mas é como que quatro filhos é muito para ela. Ela, por
exemplo, limpa o dia todo, só faz isso.
Valeria [intervém pela primeira vez no depoimento]: coloquemos outro
exemplo, porque limpar não limpa.
Cunhada: sim, limpa, do jeito dela limpa. No outro dia, ela despejou. Ela
cozinhava ao meio dia. Ora, o que eu vejo, você viu ela, ela está assim, um palito
e ela fuma, fuma e não come.
Alicia: e os bebês? A senhora viu se eles tomavam o leite?
Cunhada: sim.
Valeria: eu lhe peço que não diga o que ela lhe diz, mas o que a senhora via,
porque ela tem uma realidade paralela.
Cunhada: não, eu não digo o que ela me diz, por que ela mente muito. Eu falava
para ela como tinha que se organizar com a limpeza, com as crianças.
Alicia: a senhora presenciou que ela desse banho nas crianças, que trocasse as
fraldas, a roupa? Quando os via, estavam limpos ou sujos?
Cunhada: às vezes limpos, outras sujos. De tarde quando o pai fosse chegar, ela
lhes dava banho. Eu falava para ela: “Marisa, ele fez xixi”.
Alicia: a senhora tinha que lhe dizer as coisas?
Cunhada: quando nós duas conversávamos eu lhe dizia, eu não sei se ela se
conta ou não, não sei o que dentro de sua cabeça ou de seu coração. Essa é a
questão.
Alicia: e as crianças pediam comida?
Cunhada: eu via que elas pediam pão, mas ela à noite cozinhava, eu via que
cozinhava, cozido, milanesa.
263
A preparação da comida, o cuidado da casa, a higiene e a alimentação das
crianças eram tópicos que voltavam de um depoimento a outro e guiavam as perguntas.
As testemunhas não pareciam estranhar, nem se surpreender com o fato de serem
questionadas sobre esses pontos. Em depoimentos de outros casos, tinha assistido certo
assombro ou desconcerto das testemunhas com perguntas que elas mesmas não
pareciam vincular ao processo. Neste caso, todos tinham respostas, e muitas vezes
respostas específicas, sobre todos esses assuntos. Pareciam ser temas observados,
sobre os quais tivessem conversado com os próprios protagonistas, ou bem
comentado com terceiros.
Contudo, se os tópicos eram pontos comuns entre as conversas informais (entre
vizinhos, familiares e com os próprios “imputados”) e os depoimentos na UFI, a forma
de formular as perguntas, no ambiente judicial, parecia colocar em jogo uma questão
extra: o contexto da investigação judicial exigia determinar se Marisa ‘verdadeiramente’
fazia o que dizia fazer. Por isso, a ênfase em não dizer o que ela ‘dizia’, mas o que a
testemunha ‘via’. Quando depôs uma vizinha, amiga de Marisa, que manifestou ajudar
muito Marisa com o cuidado das crianças, várias vezes foi enfatizado esse papel ocular
da testemunha
208
:
Alicia: além do que você acha, o que é que você via? Você viu ela os levando ao
posto de saúde?
Amiga: sim, ela levava um [filho] por vez.
Valeria: ela dizia para você que ia ao posto de saúde, mas você não viu que ela
fosse, né?
Amiga: não, mas de repente estava com a caderneta [de saúde].
Alicia: ela trocava a fralda dos bebês? Diz a verdade....
Amiga: sim, eu acho que ela não se dava conta, para mim ela tem um problema,
não sei o que é.
Neste esquema de interrogatório, o valor dado àquilo que a pessoa via se
destacava em relação a outros depoimentos, nos quais buscava-se o que ela opinava.
Neste caso, a construção da personalidade de Marisa como alguém que “tinha um
problema”, que “mente muito”, que “não se conta das coisas”, favorecia a falta de
legitimação de sua fala e exigia das testemunhas um saber baseado na presença física no
“local dos fatos” e no testemunho visual. O problema era que a maioria dos assuntos
tratados era igualmente matéria de avaliação subjetiva, não apenas avaliáveis pela visão.
208
Na sua análise do mito de Édipo, Michel Foucault menciona a passagem de uma “verdade” enunciada
pelos deuses, ao valor dos “olhares de pessoas que vêm e lembram ter visto com seus olhos humanos: é o
olhar do testemunho” (1995:47-48).
264
“Do jeito dela, ela limpava”, disse a cunhada para uma Valeria completamente incrédula
em função do que ela própria também tinha ‘visto’ na casa. Os critérios de limpeza, de
alimentação e de cuidado não podiam ser consensuados, nem eram universalizáveis.
Valeria tinha percebido isso com o depoimento de Carlos –“seguramente tenhamos
conceitos de limpeza diferentes”. Esses critérios e sua legitimação ficavam novamente
em questão com os relatos das testemunhas. Diante de tais diferenças, a validação dos
testemunhos corria outra vez da ênfase no que as testemunhas viam para aquilo que
opinavam sobre Marisa e seu comportamento. Assim, uma forma disponível para
estabelecer critérios era reforçar as opiniões, não sobre o que Marisa fazia ou deixava de
fazer, mas sobre uma avaliação da sua personalidade.
Ao dar por terminado o depoimento da cunhada, Alicia leu a ata para ela.
Havendo concordância, a imprimiu e pediu para a senhora assinar. Quando estava
saindo, a cunhada acrescentou:
Cunhada: o que eu acho é que para eles dois [Carlos e Marisa] é ele que está
primeiro e só depois a casa e as crianças. Eu não sei se é por medo, por
submissão, ou porque o idealizava...
Alicia: isso aí a gente não escreveu!
Cunhada: é que a senhora me dizia que eu respondesse o que me perguntava.
[Alicia reabriu o arquivo, acrescentou essa última frase e imprimiu a última
página que devia ser novamente assinada. Enquanto isso a cunhada continuou
falando com Valeria].
Cunhada: agora que eu vejo tantas fotos [durante vários momentos do
depoimento, eu percebi que a cunhada olhava para as fotos que Alicia tinha
abaixo do vidro da mesa de trabalho; eram fotos variadas, algumas delas com
crianças, em especial os sobrinhos de Alicia] me dou conta que eles não têm
fotos das crianças.
Valeria: essa menina é um pouco patológica...
Cunhada: tomara que saia tudo bem para as crianças; que possam estar com a
mãe.
Valeria: sim, não sei se com a mãe é o melhor.
Cunhada: eu digo que ela receba um tratamento.
Valeria: eu não sou psicóloga, sou promotora, então, não me une o afeto com ela
e vou fazer o que seja mais justo.
Reabrir a ata para incluir a frase sobre as prioridades familiares –“ele que está
primeiro e depois a casa e as crianças”- reforçava o interesse por entender qual era a
dinâmica familiar e, assim, estabelecer responsabilidades. Tais responsabilidades
deviam ser avaliadas em função de certos parâmetros. Na sua resposta à cunhada,
Valeria marcava uma distinção clara entre o “afeto” e a “justiça”. Ela, como promotora,
devia ser “justa”. As testemunhas e outros profissionais –“eu não sou psicóloga”-
265
podiam se mover pelo “afeto”. Cabia a ela e a Alicia estabelecer esse critério de justiça
em um processo, como tantos outros, atravessado por afetos e desafetos. Para isso,
ouviram também as opiniões dos profissionais que intervieram no atendimento da
família.
“Como qualquer de nós...
Talvez com uma linguagem diferente, as opiniões das profissionais envolvidas
no caso não diferiam em muito daquelas manifestadas por testemunhas amigas ou
familiares. Todas elas se moviam no terreno dos afetos e mostravam um envolvimento
pessoal com os “fatos”. Aliás, aqueles profissionais que tinham acompanhado Marisa e
as crianças com maior proximidade, mostravam-se, em seus depoimentos, mais
‘afetados’. Foi o caso da assistente social. Ela começou seu relato destacando aquele ter
sido um “caso” ao qual tinha se dedicado muito.
Eu passava quase duas vezes na semana, entrava na casa, tomava mate, segurava
as crianças, ficava conversando e eu dizia para ela “não gosto dessas baratas”,
“as crianças têm que ter um lugar para brincar”, “vou dar intervenção de outra
forma”. Eu via que ela estava pirada, não tinha um carrinho para as crianças, não
saía com elas. Eu dizia para ela que tinha que descansar e levá-los na creche,
mas ela dizia que não podia, que o marido lhe dizia que não.
Ao longo do depoimento, a assistente social insistiu no termo pirada” para
descrever o estado em que ela percebia Marisa. Não usava a palavra em um sentido
técnico, mas para descrever um estado que, no início de suas intervenções, não lhe
parecera fora do comum. Havia, nas suas palavras, a busca de alguma explicação dos
“fatos”.
Pirada eu digo não de loucura, mas como qualquer de nós com cinco filhos e
gêmeos, porque senão não entendo como essa mulher não deu de comer a seu
filho, que é uma coisa que me tem muito mal, porque falta de comida não é,
porque conheço casos piores, muito mais pobres. Então, pobreza não é. Imagina
a situação: estávamos com o mais velho brincando em volta, o do meio que
não controlava esfíncteres, a mãe prostrada. Não podia, estava, como mínimo,
estressada. Agora eu posso contar isso assim, mas no primeiro mês chorava o
tempo todo. Eu me colocava no lugar dela no sentido de pensar em cinco filhos!!
A referência a “qualquer de nós” e ao fato de ela mesma “se colocar no lugar” de
Marisa parecia excluir um diagnóstico “patológico”, tal como teria mencionado Valeria,
da situação. Diferentemente, havia, na visão da assistente social, a busca por inscrever a
situação vivida por Marisa dentro de um certo quadro de “normalidade”. Lidar com
266
cinco filhos, sem ajuda do marido, com a mãe doente ‘devia’ ser, na opinião dela, uma
explicação legítima diante dos acontecimentos posteriores: particularmente, a morte do
bebê. Pois, esse último fato parecia-lhe, sim, um evento extraordinário –“senão não
entendo como essa mulher não deu de comer a seu filho”. Extraordinário em relação a
outros casos que conhecera, inclusive “muito mais pobres”, e, sobretudo, em relação ao
papel esperado de uma mãe com seus filhos: a obrigação de alimentá-los. Não cumprir
com tal dever moral só parecia explicável diante de uma situação de “piração” e
“estresse”.
Em um momento do depoimento, a assistente social, uma mulher jovem de
aspecto informal, começou a chorar. Insistiu em que toda a situação tinha sido para ela
muito difícil, porque chegou a se envolver pessoalmente.
Depois, em março, não fui mais porque me aborreci pessoalmente com ela
[Marisa] porque eu me matei para conseguir vagas na escola para todas as
crianças e ela nunca as levou. Eu admito que isso me fez pessoalmente muito
mal porque eu não tinha conseguido vaga para minha filha e ela desprezou o que
tinha conseguido. pensei que tinha que começar a separar as coisas e não fui
mais. Junto com isso, também soube que tudo o que eu tinha dado para ela, ela
não usava.
O aborrecimento e a angústia pessoais levaram a assistente social a reavaliar sua
dedicação neste caso e, de alguma forma, se afastar dele. Para além dessa decisão,
pareceu-me que tais sentimentos tinham também outro significado. Quando comparados
com outros casos “mais pobres”, e, ainda mais, com a própria situação pessoal dela (a
filha que não conseguiu vaga na escola), o descaso de Marisa com o “cuidado” dos
filhos e com as coisas que a assistente social tinha conseguido para ela lhe produziam
aqueles sentimentos de indignação. De alguma forma, julgava-se Marisa e sua situação
a partir do que “qualquer mãe” aspiraria para seus filhos: educação e, diante de uma
situação difícil, alguém que a ajudasse. Um sentimento semelhante daquele suscitado
nos vizinhos pela ingratidão de Marisa diante da ajuda externa: o leite, a comida pronta,
o carrinho, a roupa.
Diante do descompasso entre o que os depoentes imaginavam como um valor
moral essencial e natural -o cuidado maternal- e as atitudes que avaliavam por parte de
Marisa, diversas explicações e hipóteses eram apresentadas. Como vimos, uma
personalidade “patológica”, uma “mulher submissa e dominada”, “a piração e o
estresse” eram algumas delas. Também a médica do posto de saúde chegou a supor a
possibilidade de Marisa vender o leite entregue para comprar droga, embora não
267
houvesse nenhum elemento que indicasse uma relação de Marisa com uso de
entorpecentes.
As avaliações sobre os motivos para a atitude maternal atribuída a Marisa
tinham, em todos os casos, como referência um parâmetro de “normalidade” para
avaliar a “organização familiar” de Marisa e Carlos. A estranheza da cunhada ao ver
fotos de crianças embaixo da mesa de Alicia inscrevia-se, ao meu ver, precisamente
neste tipo de avaliação, segundo a qual era esperável de “toda família” ter fotos de seus
filhos, como demonstração de interesse e carinho. Não era outra coisa a angústia da
assistente social quando se aborreceu com Marisa por desprezar a vaga escolar que ela
aspirava também para sua filha. Nesse contexto, a educação formal era outro valor
essencial na criação de um filho.
As relações familiares de Marisa e Carlos também eram contrastadas e julgadas
em relação com outras famílias do entorno ou de outros casos”. A médica no seu
depoimento disse estar profundamente impactada com a falta de percepção de Marisa
em relação ao peso dos gêmeos, porque, “inclusive crianças que vem do campo,
paraguaios, perguntam pelo peso e essa mulher não era nenhuma adolescente, eu não sei
o que é que deu na cabeça dela”. A comparação com outras situações, julgadas como
materialmente piores, foram também retomadas e enfatizadas pela assistente social.
O posto de saúde está localizado em um bairro de classe média [a três quadras da
casa de Marisa], onde recém agora se está fazendo uso dele, porque antes as
pessoas usavam o plano de saúde. Então a intervenção em saúde em uma área de
maior risco, como pode ser uma villa [favela] é muito diferente porque a
mobilização e a trama social nesses lugares é diferente; os vizinhos intervêm
mais, os médicos vão casa por casa para vacinação, outra estrutura, é mais
portas abertas, as crianças estão fora das casas. Em um bairro é diferente, a
intervenção da gente é voluntária, as casas são mais a porta fechada. (...) Em
uma villa, essas coisas não acontecem, as crianças estão fora da casa, todos
falam entre si, todos intervêm. Em um bairro de classe média, está o no te
metas
209
, é a casa do outro, as portas são fechadas na cara da assistente social.
Neste caso, havia alguma coisa do tipo, inclusive, da cunhada, tudo sai à luz
quando o menino já está morto... Eu acho que, se bem é possível que Saúde
tenha deixado escapulir alguma coisa, eu penso o que é que esta e fez para
que um filho morresse de fome, não havia sinal de alarme; um menino com
fome, chora.
209
A frase “no te metas é uma expressão típica na Argentina, comumente, embora não de forma
exclusiva, atribuída ao comportamento da chamada “classe média”. Alguns historiadores a vinculam
inicialmente ao posicionamento neutro adotado pela Argentina durante a primeira guerra mundial. Outros
à “atitude indiferente” da classe média no golpe de Estado de 1930, contra o presidente da época Hipólito
Yirigoyen.
268
A distinção entre a forma das intervenções em villas e em bairros de classe
média inscrevia o caso de Marisa e Carlos no registro de casos anteriores conhecidos.
Dava conta das dificuldades, segundo a assistente social, encontradas na forma de
intervenção, o que poderia justificar a falta de um “sinal de alarme” sobre a situação.
Essas justificativas aconteciam à par das perguntas cada vez mais incisivas de Alicia
sobre as intervenções dela e dos outros profissionais. A “falta de percepção” de todos
sobre “baixo peso” dos meos, em especial de Rodrigo, era um tópico de
questionamento por parte de Alicia e Valeria em todos os depoimentos.
Mas, além dessa possível justificação, nas palavras da profissional, manifestava-
se também uma caracterização dos comportamentos familiares e de vizinhança
esperáveis em contextos diferentes: na villa e no “bairro”. A participação do entorno
(familiares ou vizinhos) em uma villa e o fato das crianças estarem fora da casa era
colocado como uma diferença fundamental com o “bairro”
210
. Neste último, tudo
parecia acontecer no espaço privado, portas adentro. O espaço da casa e o espaço da rua
eram representados como domínios separados. Marisa era criticada pelos vizinhos por
“não sair com as crianças”, nem todos os vizinhos entravam à casa, suas portas e janelas
permaneciam fechadas e, para Marisa, as pessoas que visitavam a casa iam
“bisbilhotar”. Os limites de um e outro espaço marcavam regras de convivência
diferenciadas. A “rua” era representada, pelos vizinhos, como um local privilegiado de
interação e trocas; enquanto a “casa” virava, assim, o domínio das regras familiares, no
caso, aparentemente impostas por Carlos. Essa reclamação sobre o hábito de Marisa e
Carlos de “não mostrar as crianças para a rua” evidenciava a representação da “casa”
como lugar de isolamento e egoísmo, por oposição à “rua” como espaço de
sociabilidade, ajuda e solidariedade entre vizinhos. Ambos os lugares eram, assim,
transformados em espaços morais e não apenas físicos (Da Matta, 1997)
211
.
210
Na sua etnografia sobre dois bairros populares, na cidade de Porto Alegre, Claudia Fonseca descreve
como traço característico da vida local o “interconhecimento”. “É difícil, impossível até –diz-, manter um
espaço privado nesse amontoado de 700 a 800 pessoas em um terreno de pelo menos 100 por 200 metros.
(...) durante todo o dia, uma intensa vida social manifesta-se nas ruas: mulheres agrupadas em volta de
uma bica de água ou de um tanque lavando roupa, homens agachados diante de um bar passam a cuia de
chimarrão, crianças jogam pelada na grama” (2004:24).
211
Ainda que os sentidos para as implicações sociológicas (ou culturais) de ambas as categorias sejam
diferentes àquelas indicadas por Roberto Da Matta “para os brasileiros” (1997:15), baseio-me no
entendimento de “casa” e “rua” não designarem “simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas
comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de
positividade, domínios culturais institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções,
reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas (1997:15). Se para Da
Matta, por oposição à “casa”, a “rua” é “local de movimento” (2001:29) e o espaço da impessoalidade, do
269
A experiência profissional da assistente social lhe indicava hábitos e formas de
sociabilidade e cuidado distintos em áreas pobres e bairros de classe dia. Também
Valeria comentou que os únicos dois casos que tinha tido de morte de crianças “por
falta de cuidado eram de famílias de classe média”
212
. Na visão de ambas, o “bairro”
caracterizava-se pelo isolamento e privacidade dos núcleos familiares ou grupos
domésticos
213
. Contudo, a partir dos depoimentos de familiares e vizinhos de Marisa e
Carlos, ficava evidente o fato do “bairro” de Marisa e Carlos estar atento àquilo que
acontecia com aquela família. A forma dessa atenção evidenciava um papel diferente da
intervenção de terceiros na vida de uma família: se na villa o entorno social funcionava
como proteção e cuidado dos diversos grupos familiares, até, inclusive, debilitar essas
fronteiras público / privado; em famílias de classe média, o “bairro” destacava-se por
funções de vigilância e controle social. Quero dizer: todos sabiam, comentavam e
estavam atentos aos hábitos de Marisa e Carlos (horários, alimentação, limpeza, higiene,
trabalho, saúde), mas as possíveis intervenções encontravam a delimitação do espaço
privado próprio do núcleo familiar; “tudo saiu à luz quando o menino estava morto”. Ou
seja, quando um fato extraordinário tinha se manifestado. Foi a investigação judicial,
gerada pela morte do bebê, que conduziu à transformação das opiniões e comentários,
que antes circulavam em forma de “fofoca”, em depoimentos judiciais.
Do “bairro”, os “vizinhos” e a “fofoca”
No capítulo “Observações sobre a fofoca”, do livro “Os Estabelecidos e os
Outsiders” (2000), Norbert Elias e John Scotson afirmam a fofoca não ser um fenômeno
independente da estrutura e situação dos grupos que a circulam. Com isso, chamam a
atenção não para as diversas formas de fofoca, mas também para os conteúdos
isolamento, do desumano –do ‘indivíduo’- (1997:55), incorporo aqui a proposta de Marco A. da Silva
Mello e Arno Vogel em “Quando a rua vira casa”. Eles propõem um olhar da “rua” como um “universo
de eventos e relações” (1985:24). “As ruas que não são mais do que vias de passagem estão animadas por
um só tipo de vida e mortas para todo o resto” (1985:24).
212
Um dos casos era este e o outro era um casal que mantinham duas irmãs gêmeas encerradas na casa,
até o ponto de terem morrido por desnutrição.
213
O núcleo familiar geralmente encontra-se constituído por um casal de cônjuges e seus filhos jovens,
aos quais podem se acrescentar outros parentes ou não parentes que participam das atividades de
produção e consumo familiar. O conjunto de pessoas que moram sob um mesmo teto constitui o grupo
doméstico (Zonabend, 1986:64). No caso de Marisa e Carlos, embora a mãe de Marisa morasse com eles,
encontrava-se em uma situação liminar em relação ao núcleo familiar (ou família restringida), pois de sua
higiene e alimentação cuidava a nora da senhora Lar, a qual, morava com seu marido, em outra casa, sem
integrar o mesmo grupo doméstico que Marisa, Carlos e as crianças.
270
variados da mesma
214
. Suas formas vinculam-se, para eles, com o grau de coesão do
grupo e, nesse sentido, também com a intensidade da vida em comum. Já o conteúdo
estaria relacionado com as normas e crenças coletivas e as relações comunitárias. Em
qualquer caso, tais associações (ou interdependências) permitem pensar que as
informações que circulam por meio da fofoca, enquanto fenômeno social, adquirem
diversos conteúdos, modalidades e vias de transmissão conforme os modos de
sociabilidade de um grupo e os valores morais em comum.
Ao distinguirem sociabilidades e, indiretamente, modos de controle social, entre
uma villa e um “bairro”, a assistente social e também Valeria chamavam a atenção para
formas de intercâmbio e circulação da informação diferenciadas. Elas identificavam, na
villa, espaços de sociabilidade comuns, que favoreciam uma maior fluidez entre o
espaço privado e o público. De alguma forma, todos ficavam mais atentos a todos, e as
informações pareciam estar disponíveis e à vista, inclusive para os profissionais, como
médicos ou assistentes sociais que não faziam parte do grupo. No “bairro”, nessa visão,
os circuitos de informação deviam ser procurados, porque tudo se dava “a portas
fechadas”. Nesse caso, a fofoca, tal como ficou evidenciada nos depoimentos
retransmitidos no âmbito judicial, permitia a troca e socialização daquelas informações
que o espaço privado parecia proteger.
Ora, é importante assinalar que o fato de serem expressas no contexto de
depoimentos judiciais não implicava necessariamente sua legitimação como
informações verdadeiras. Ao se tratar de comentários, do que “os vizinhos dizem”, o
que “se comenta no bairro”, o que “se ouviu dizer”, tais informações podiam envolver
tanto fatos reais como imaginados sobre o comportamento alheio (Fonseca, 2004:41),
no caso, em torno de Marisa e Carlos. Outorgar, ou não, poder jurídico isto é, poder
de verdade- a tais comentários dependia da credibilidade que os mesmos tivessem na
avaliação de Alicia e Valeria, junto com outras “provas” do processo. A fofoca podia
cumprir, então, diversas funções.
Entre os estudos dedicados à fofoca, enquanto fenômeno social, existe um certo
grau de consenso no fato dela ser um gênero de comunicação informal, relacionado com
a transmissão e administração da informação (Gluckman, 1963; Paine,1967; Elias e
Scotson, 2000; Fonseca, 2004; Fasano, 2006). Para além dessa função comunicativa,
214
Propõem tomar por “fofoca as informações mais ou menos depreciativas sobre terceiros, transmitidas
por duas ou mais pessoas umas às outras” (2000:121).
271
são identificadas outras funções que a fofoca pode adotar na vida social de um grupo.
Na sua etnografia de bairros populares em Porto Alegre, Claudia Fonseca associa a
fofoca com uma função educativa, bem como com um meio para informar sobre a
reputação dos moradores de um local, “consolidando ou prejudicando sua imagem
pública” (2004:42). Pode ser, portanto, um instrumento de ataque quando se entre
iguais, bem como de proteção e manipulação, quando utilizado contra os mais fortes
(2004:48). Em um sentido semelhante, Elias e Scotson identificavam a fofoca, além de
sua função integradora, como um elemento de “rejeição de extrema eficácia”
(2000:125); podia ser “tanto uma arma de defesa quanto de ataque” (2000:132). Ao
mesmo tempo em que reforçava o carisma do próprio grupo, se afirmava sobre a
desonra do grupo alheio (2000:133). Nessa linha de argumentação, Elias e Scotson, ao
tempo que distinguem entre “fofocas de apoio e elogiosas” e “de rejeição e censura”,
afirmam as primeiras serem inseparáveis das segundas.
“As notícias sobre o desrespeito às normas aceitas, cometido por pessoas
conhecidas da comunidade, eram muito mais saborosas, forneciam maior
entretenimento e uma satisfação mais prazerosa do que os boatos sobre alguém
que fosse digno de elogios por defender os padrões aceitos, ou merecedor de
apoio em um momento de necessidade” (2000:124).
As fofocas que circulavam em torno à vida de Marisa e Carlos pareciam-me ter
este duplo papel. Se, através delas, eram criticados e rejeitados os modos de organização
doméstica e familiar de Marisa e Carlos, era porque também se enfatizava e defendia
um modelo de família distinto. Esse modelo era afirmado e elogiado através dos
comentários censuradores sobre o comportamento do casal e seu suposto desrespeito às
normas comuns. Aqueles que depreciassem esse comportamento ficavam
automaticamente inscritos nos padrões partilhados pelo grupo (a “vizinhança”) e
também pelos agentes judiciais e profissionais, ou em termos de Elias e Scotson, pela
“comunhão dos virtuosos” (2000:124).
Ora, aquela atribuição de identidade para Marisa e Carlos não era aceita por eles
de forma passiva. Nem Marisa se assumia como mãe desleixada, nem Carlos como um
pai auto-centrado. Conscientes das fofocas que sobre eles circulavam entre os vizinhos,
no bairro e no âmbito judicial, ambos contra-argumentavam as informações transmitidas
por terceiros. Marisa acusando os “vizinhos” de não ajudar, de mentir, de ter inveja de
sua maternidade, de querer ficar com seus filhos. Carlos, de modo diferente, defendia-se
272
enfatizando o fato de ele se inscrever naquele padrão familiar defendido pelos
“vizinhos”.
Também é verdade que as informações circulantes eram diferentes em relação a
Marisa e a Carlos. Ambas referiam a um âmbito central da vida de um bairro, qual a
vida doméstica e familiar. No caso de Marisa, ressaltava-se o não cumprimento de seu
papel de mãe (em relação ao cuidado, higiene e alimentação das crianças) e de dona de
casa (a limpeza da casa e o preparo da comida). No caso de Carlos, vinculavam-se à
atenção dada aos filhos e também a Marisa, enquanto esposa
215
. A fofoca dominante em
relação a estes assuntos parecia estar consolidada na opinião dos “vizinhos”, pois as
informações que circulavam giravam em relação aos mesmos tópicos (o carrinho
vendido, a falta de limpeza, o fedor da casa, a ajuda de todos, a roupa nova de Carlos, a
magreza de Marisa, os piolhos das crianças, a clausura dos filhos). Eram críticas que
talvez fossem repetidas insistentemente nas conversas informais, inclusive, sem
provocar grandes reações (Fonseca, 2004:47). O que a morte do bebê, como evento
crítico, parecia ter provocado era o fato dessas informações saírem do âmbito do
“bairro” e colocarem em risco a reputação do mesmo diante das autoridades públicas e
judiciais.
O desfecho
Após ouvir os depoimentos, as impressões que Valeria e Alicia teriam dos
“imputados” voltaram a ser formuladas nas conversas informais na UFI. Valeria insistia
em ter mudado um pouco sua opinião. Dizia que “conforme os depoimentos, era
estranho o pai [Carlos] não ter se apercebido da situação dos filhos”. Essa mudança de
perspectiva, para ela, transformava a hipótese de um crime “culposo” em um, como ela
o expressava, de “dolo eventual”. Isto é, de um crime no qual o pai teria atuado por
negligência a um em que ocorre quando ele assume o risco do eventual resultado. Por
sua parte, Alicia opinava que achava estranho a assistente social não ter “se tocado da
situação dos bebês, em ocasião das visitas que fazia”. Enquanto afirmava tal opinião,
também expressava suas dúvidas sobre o fato de Marisa realmente “mostrar os gêmeos”
para a assistente social. Assim, a responsabilidade voltava a recair sobre Marisa e a
215
Também Claudia Fonseca, na etnografia já citada, achou uma associação entre as acusações realizadas
contras as mulheres versarem sobre negligência quanto às obrigações domésticas e aquelas realizadas
contra os homens sobre a crítica deles não se ocuparem dos filhos ou não darem nada para eles (2004:47).
273
dúvida de Alicia novamente manifestava a falta de credibilidade que esta última tinha
provocado nela.
Alguns dias antes do último depoimento testemunhal, a defensora oficial de
Marisa e Carlos ligou para a UFI. Eu ouvia a voz de Alicia dizendo para ela: “eles têm
uma personalidade complicada; ele é egocêntrico e auto-centrado”. Passados alguns
segundos, Alicia respondeu: “não, não, ‘34’ não o”. Referia-se à possibilidade de
considerá-los “não puníveis” “por falta de consciência, alienação ou falta de
compreensão das ações imputadas, devido à insuficiência de faculdades” (inciso 1,
artigo 34 CPA). Com a resposta negativa à defensora oficial, Alicia afirmava o que
Valeria teria dito desde o início do processo: Marisa e Carlos podiam ter problemas
pessoais, de histórico familiar e até mentais, mas eram criminalmente responsáveis pelo
“fato imputado”: a morte de Rodrigo e as lesões de Sabrina.
A esta altura do processo, a psicóloga do Ministério Público já tinha sido
entregue e anexado seu relatório ao processo. Ao final, as palavras da psicóloga davam
conta de opiniões semelhantes às vertidas por Alicia e, finalmente, por Valeria, nas
conversas informais, após elas ouvirem as testemunhas e os próprios “imputados”.
Diante desse acordo, foram utilizadas como parte das “provas”. A solicitação de “prisão
preventiva” escrita por Alicia e assinada por Valeria transcrevia também boa parte dos
ditos das testemunhas registrados por escrito. Eles direcionavam-se a mostrar a
responsabilidade por falta de cuidado e de atenção com seus filhos por parte de Marisa e
Carlos. Essa era a principal acusação. A caracterização de seus perfis psicológicos, os
dizeres dos vizinhos, familiares e profissionais, conforme perspectiva de Alicia, e tudo
aquilo visto e registrado no “allanamiento” eram as “provas”.
É preciso notar que todos os depoimentos que antecedem são contestes
216
em
assinalar que nenhum dos pais, a saber, os imputados, se ocupava de seus filhos
menores, fato que é vislumbrado no estado de sujeira e abandono das crianças,
coisa que é notória em Ariel e Mauro, que, ao poderem se transladar por si
mesmos, andavam pela rua e eram os vizinhos que se ocupavam de lhes dar
216
Caracterizar os depoimentos das testemunhas com a expressão “contestes” era muito comum nas
solicitações dos promotores e nas decisões dos juízes. A frase fazia notar que os ditos confluíam e
acordavam sobre o ponto a ser ressaltado (ou provado). Na maioria das vezes, servia para evitar citar
trechos de todos os depoimentos, “por razões de economia processual”, citando apenas um e dizendo que
o resto era “conteste”. Em uma conversa com o advogado Luis Real, ele referiu-se ao uso dessa expressão
como uma forma de prova em si mesma. Ele me dizia assim: “As testemunhas em geral não depõem
diante de alguém que procura validar seus ditos, no máximo o fazem com outras testemunhas, e dizem
assim ‘as testemunhas são contestes’, então ‘está provado’, mas, por exemplo, se a testemunha diz que
ligou para Fulano a tal hora e a hora é importante, não se pergunta de onde ligou, de qual telefone, para
mandar um ofício e assim corroborar os ditos por fora dos ditos”.
274
banho e alimentá-los, enquanto que os gêmeos não tinham a mesma sorte, dado
que não eram vistos pelos vizinhos muitos meses; e se por acaso alguém os
visse, a resposta clássica de ambos os imputados era que os menores eram
“prematuros e por isso eram tão pequeninos”, resultando óbvio que os menores
foram colocados nessa situação tanto por seu pai como pela sua mãe, que eram
os encarregados de lhes prestar assistência, alimentação e cuidados, coisa que
eles omitiram e, ao ocultá-los, impedindo o contato com outras pessoas, também
não permitiram que a ajuda externa lhes fosse fornecida. (...) Consistindo sua
omissão não na falta de atendimento médico seja de notar que nem sequer
tinham caderneta de vacinação completa-, mas também na omissão de lhes
proporcionar a alimentação necessária, tendo a obrigação de fazê-lo na sua
qualidade de pais, sobretudo, tendo eles a possibilidade objetiva de evitar o risco
por meio da conduta devida. (Da solicitação de “prisão preventiva” de Marisa e
Carlos).
A solicitação enfatizava principalmente o não cumprimento das obrigações
atribuídas, na sociedade argentina, aos pais de uma criança. Elas eram, segundo esta
visão, “assistência, alimentação e cuidados” e “atendimento médico”. Esses eram os
papéis que, como mínimo, respondiam a uma representação jurídica legítima de
“família”.
Diversos antropólogos têm ressaltado o fato da “família” não ser um fenômeno
biológico, mas eminentemente social (Levi-Strauss, 1976 [1949]; Zonabend, 1986).
Apesar de estar intimamente vinculado aos condicionamentos biológicos da concepção
e procriação, o parentesco e, por extensão a família, “se apresenta em todo lugar como
um fato social, objeto de manipulações e escolhas de ordem simbólica” (Zonabend,
1986:24). Enquanto fenômeno social, interessa-me ressaltar aqui o fato da “família” ser
também um objeto jurídico. Isto é, alvo de regulamentações próprias do ordenamento
normativo de uma sociedade. Não por acaso os primeiros antropólogos dedicados ao
parentesco estavam também preocupados pela descrição das instituições (ou formas)
jurídicas das sociedades estudadas. Direito e parentesco juntavam-se na tarefa de
identificar modos de controle social nesses grupos (Maine, 1908 [1861]; Morgan, 1973
[1877]; Malinowski, 1991 [1926]; Radcliffe Brown, 1973 [1952]).
No direito argentino, tanto o código civil como o penal, regulam relações de
parentesco e familiares
217
. Interessa-me destacar aqui que, como objeto jurídico, a
217
O primeiro estabelece direitos e obrigações para o matrimonio, a filiação, o exercício da pátria
potestade, a adoção, o regime de sucessão e herança de bens e as obrigações da “sociedade conjugal”. O
código penal, desde sua sanção em 1921, agrava crimes contra a integridade física e a vida, caso sejam
cometidos contra “ascendente, descendente ou cônjuge”, elevando a pena prevista para os mesmos.
Também existem leis específicas para penalizar situações vinculadas à regulação da vida familiar. Em
1950 foi sancionada a Lei de “não cumprimento dos deveres de assistência familiar” (n. 13.944), em 1993
275
“família” não é só alvo de benefícios e/ou castigos, mas também produto de uma
construção ideal e ideológica específica
218
. Ela determina os direitos e obrigações
familiares desejadas como legítimas pelo ordenamento jurídico. Valeria e Alicia
especialmente esta última devido a sua experiência na justiça cível- eram conscientes de
tais expectativas normativas e as faziam valer nos seus julgamentos e decisões no caso
de Marisa e Carlos.
Esses modelos ideais do ordenamento jurídico se combinavam e interagiam com
as representações morais sobre as relações familiares dos próprios agentes judiciais e
dos envolvidos nos conflitos tratados por estes últimos. Dessa forma, nas suas decisões
Valeria e Alicia também colocavam em jogo uma “ética familiar”, construída a partir
dos valores morais presentes nos depoimentos do “bairro”, dos profissionais ligados a
ele e delas mesmas. Esses valores confluíam em torno das obrigações esperadas e não
satisfeitas, na visão dessa ética, por Marisa e Carlos. “Assistência, alimentação e
cuidados” eram, para essa ética, expectativas e valores básicos dos pais para com seus
filhos.
Como vimos, essas obrigações familiares eram atreladas a um critério particular
de “limpeza” que, durante o processo, foi insistentemente indagado, avaliado e julgado.
A “sujeira” percebida por todos os funcionários, desde o allanamiento e,
posteriormente, traduzida nos comentários e valorações dos vizinhos e profissionais da
prefeitura, foi um ponto central no julgamento sobre a responsabilidade de Marisa e
Carlos sobre a morte do bebê. Embora a causa oficial da morte tenha sido o “estado de
desnutrição”, a “sujeira” da casa era associada a este fato como sinal de “desordem e
desorganização familiar”. O julgamento sobre esse aspecto mostrava a necessidade de
restabelecer uma ordem doméstica transgredida aos olhos dos vizinhos e dos
profissionais. A “sujeira” e o “descaso” podiam, desta perspectiva, ser vistos como
ameaças sobre aqueles valores. Tanto do ponto de vista moral quanto jurídico, julgar
essas atitudes negativamente era uma forma de expressar valores sociais essenciais, bem
a Lei de “impedimento de contato” entre pais e filhos (n. 24.270) e em 1994 a Lei de “proteção contra a
violência familiar” (n. 24.417). Para uma análise detalhada, ver Daich, 2010, em especial Capítulo 1
Familias, Conflictos y Justicia”.
218
Collier, Rosaldo e Yanagisako (1997) assinalam as implicações de se entender a “família” não como
uma instituição concreta desenhada para satisfazer necessidades humanas universais, mas como uma
construção ideológica associado ao estado moderno.
276
como de afastar o perigo que seu possível contágio podia ocasionar na reputação e
organização do “bairro”
219
.
Durante o processo, também tinha sido enfatizada a falta de carinho e de
sentimentos de união fortes, bem como a ausência de hábitos domésticos e familiares
compartilhados. Esperava-se que uma “família legal” reunisse esses requisitos
220
. E, se
por ventura não os tivesse a seu alcance, abrisse as possibilidades de ajuda externa.
Como vimos várias vezes nos depoimentos e relatórios sobre Marisa, exercia-se uma
condenação pela não aceitação da ajuda e colaboração dos vizinhos. As “provas” aqui
não eram outras que os comentários do bairro sobre sua própria participação na vida de
Marisa e Carlos.
O “juiz de garantias” outorgou a prisão preventiva de ambos os pais. Meses
depois, escrevendo esta tese, perguntei pela situação de Marisa e Carlos. Valeria me
informou que o processo tinha sido elevado a juicio”. Os crimes tipificados eram
“abandono de pessoa seguido de morte em concurso com abandono de pessoa agravado
pelo vínculo e pelas lesões graves causadas”. Na segunda etapa do julgamento, antes de
chegar à instância de juicio oral, Carlos tinha “assinado” um juicio abreviado
221
por
oito anos de prisão e Marisa outro por sete anos. O defensor de Marisa teria querido que
ela fosse a “juicio”, mas, segundo averiguou Valeria, isso demoraria um tempo e Marisa
não estava bem de saúde. Admiti com Valeria que me impressionavam “tantos” anos de
prisão. Ela me disse, que se bem considerava o caso de um tipo muito complicado
“porque as feridas tinham sido abertas e a prisão não as fecharia”, achava que a
219
Em “Pureza e Perigo”, Mary Douglas aponta para vários aspectos que me ajudaram a pensar esta
questão e a significação outorgada à questão da “limpeza/ sujeira” neste processo. Ela afirma: “A sujeira
ofende a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo por organizar o
ambiente (...). O universo todo é arreado aos esforços dos homens no sentido de forçar o outro a uma boa
cidadania. Logo, achamos que certos valores morais são mantidos e certas regras sociais são definidas por
crenças em contágios perigosos, como quando se considera que o olhar ou contato com um adúltero
provocam doença em seus vizinhos ou filhos” (1976:12). A associação proposta por Douglas entre noções
como “sujeira”, “doença”, “contágio”, “ordem”, “pureza”, se revelou fundamental para entender os
aspectos abordados e julgados neste processo, tanto pelos agentes profissionais quanto pelos “vizinhos”,
superando uma impressão inicial de “morbidez” ou “invasão excessiva da intimidade”.
220
Segundo Collier, Rosaldo e Yanagisako, no trabalho citado (1997), a obra The familiy among the
Australian Aboriginies (1913) de Bronislaw Malinowski foi a primeira em convencer os cientistas sociais
da existência da “família” como uma instituição humana universal. Segundo as autoras, o modelo de
Malinowski segundo qual a família seria uma unidade para nutrição, cuidado e afeto das crianças não foi
desmontado, nem entre cientistas sociais, nem nas crenças coletivas.
221
O juicio abreviadoé um procedimento previsto no CPP-PBA para crimes com pena prevista menor
a seis anos. Ele trata de um acordo estabelecido entre promotor e defensor (como representante do
“imputado”), com aprovação do tribunal, através do qual o “imputado declara-se culpado, não é
realizado o juicio oral e é negociada uma pena menor daquela prevista se o juicio fosse acontecer. Este
procedimento é questionado por parte da doutrina como inconstitucional por não respeitar o princípio de
que a toda pessoa condenada lhe deve ser garantida a realização de um juicio prévio.
277
quantidade de anos era pouca. Disse-me também que das demais crianças não tinha
sabido mais nada. Talvez tivessem ficado com algum vizinho, com a ex-mulher de
Carlos ou “localizadas” em alguma instituição.
Pensei que com essa opinião final Valeria aproximava-se de muitas das opiniões
do “bairro” sobre o “bem” das crianças. As moralidades envolvidas neste caso
confluíam em questões donde uma moral dominante impunha-se como orientadora da
investigação daquele crime”. No caso analisado no capítulo seguinte, os comentários
do “bairro”, aquilo que “o bairro fala”, em aparência não referem a assuntos de índole
“moral”, mas à identificação do autor de um “homicídio”. Entretanto, como veremos,
esse esforço de identificação de ‘um’ autor envolveu moralidades que definiram grupos
e fronteiras morais em um “bairro”.
278
CAPÍTULO 7
Em uma manhã de setembro de 2007, Sebastián entrou intempestivamente na
sala de Valeria e exclamou: “foi um golaço!”. Referia-se a um “reconhecimento em
roda de pessoas” com resultado positivo. Isso queria dizer que um tal Cacá tinha sido
identificado como autor de um “homicídio”. Era um caso que Sebastián estava
trabalhando desde o último plantão do mês de junho daquele ano, mas sem “resultados
positivos” até aquele preciso momento. O processo contra Cacá foi um dos casos que
acompanhei de forma próxima e sistemática, observando diversas instâncias do
processo de investigação. Em 2010, também tive a oportunidade, como adiantei no
Capítulo 1, de acompanhar o juicio oralno qual derivou o processo de investigação
do caso (Capítulo 8).
O “fato” que deu origem ao processo teve início no dia 30 de junho de 2007.
Dois jovens, Santiago e Quique, conversavam em uma rua de um bairro da zona sul do
conurbano, jurisdição do departamento de Los Pantanos. O local ficava poucas
quadras da casa de Santiago e não muitas mais da casa do Quique. Na época,
Santiago tinha 26 anos e Quique 30. Santiago era bem conhecido na área, porque
trabalhava e atendia o açougue do bairro.
Naquele dia, Santiago já tinha fechado o açougue e
estava na sala de sua casa assistindo televisão, junto
com seu pai, seu Júlio. Como em muitos outros dias,
Quique passou com sua moto e, por solicitação de
Santiago, foram juntos comprar um refrigerante no
quiosque do bairro. Por alguns minutos, os dois ficaram
conversando na calçada do local. Quique sentado na moto e Santiago, diante dele, em
pé, com a garrafa de refrigerante na mão. Havia mais de duas horas que tinha
escurecido. Eram nove de uma noite de inverno no conurbano, em que os dias se
encurtam pelo frio e a ausência de sol. No entanto, ainda ficavam algumas pessoas na
rua, por conta do quiosque que permanecia aberto até mais adentrada a noite.
Conheci o bairro dos “fatos” acompanhando um procedimento de
“reconstituição do local do crime”, que descrevo mais adiante. Era um bairro de casas
baixas, nem grandes nem pequenas, todas bem cuidadas. Algumas com grades, outras
sem. Não era uma área comercial. Apenas dois quiosques naquela quadra. Similarmente
279
a muitas outras ruas do conurbano, eram lojas anexadas às casas de seus donos. Seus
clientes eram atendidos pelas janelas das suas moradias, quando tocavam uma
campainha ou batiam palmas anunciando sua chegada. As calçadas eram largas, com
uma parte de asfalto e outra de grama, mais próxima da rua. Durante o dia, o
movimento da rua era significativo. Algumas pessoas passavam andando, outras de
bicicleta ou de moto. No final da tarde, era freqüente ver grupos de adolescentes
reunidos nas esquinas. Muitas vezes bebendo cerveja, outras conversando encostados
nas suas bicicletas. Com o decorrer do processo de investigação, como assinalarei mais
adiante, esse hábito transformaria a “esquina” em um lugar de interesse investigativo e
também, a meu ver, de relevante significação sociológica.
Naquela noite de 30 de junho, enquanto Santiago e Quique conversavam, passou
uma moto com outros dois jovens. Poderiam ter sido dois de seus amigos do bairro, mas
não eram. Um deles desceu da moto, enquanto outro se afastava rapidamente. Aquele
que desceu disse para Quique que lhe entregasse a moto. Algumas fontes da
investigação disseram que Santiago lançou a garrafa de vidro na cabeça do jovem, mas
isso não foi finalmente confirmado. A seqüência de fatos reconstruída pelos
funcionários judiciais conta que o jovem se atracou com Santiago e os dois caíram no
chão. E aconteceria o inesperado: o jovem puxou uma arma e atirou um primeiro
disparo contra Santiago. Este, do jeito que pôde, chegou com seu corpo ferido até a
calçada. Quique, ferido nas nádegas por um segundo disparo, se aproximou para ajudá-
lo. Foi quando o outro jovem fugiu do lugar, com a moto de Quique. Uma mancha de
sangue ficou na rua e outra na calçada.
O barulho dos disparos chamou a atenção da dona do quiosque e de sua filha,
que permaneciam no interior da casa atentas ainda à chegada de possíveis clientes.
Ambas intervieram posteriormente como testemunhas do processo judicial. A dona do
quiosque correu até a casa de seu Júlio, que continuava assistindo televisão.
Desesperada, gritou “seu filho! seu filho! venha que atiraram nele! está aqui à volta!”.
Quando seu Júlio chegou à calçada, viu seu filho de bruços no chão. Imediatamente, no
carro de um vizinho, seu Júlio e o irmão de Santiago conduziram a ele e Quique para o
hospital mais próximo.
foram atendidos. Mas Santiago não resistiu aos disparos e morreu no
hospital. Quique que, como dissera tempos depois na UFI, tinha visto “como
disparavam contra meu primo na minha cara”, descontrolado e desesperado, fugiu do
280
hospital sem terminar de ser assistido pelos médicos. Embora isso nunca fosse a constar
por escrito no processo, essa atitude, ou simples reação, o transformaram, nas primeiras
horas após o “fato”, no primeiro suspeito na visão de seu Júlio e da polícia.
Aproximadamente duas horas depois, os policiais que intervieram no “fato”
deram aviso telefônico à UFI de plantão: a UFI K. Naquela noite, Sebastián tinha ficado
com o telefone e atendeu a ligação. O comunicado do policial apenas referia ao “roubo”
de uma moto, com realização de disparos. Os casos de “roubo” eram muito freqüentes e
muitos dos “homicídios” na região se produziam em ocasião desse crime.
No dia seguinte, a polícia apresentou na UFI o “sumário policial”. Os
acontecimentos daquela noite, naquele bairro, se convertiam assim em um processo
judicial a ser investigado. Naquele momento, não havia pessoas presas, nem maiores
indícios sobre quem poderiam ser aqueles dois jovens.
Os primeiros passos da investigação
Como disse, eu tomei conhecimento do “caso Cacá”, como eu o chamava,
quando este havia sido preso por causa do “reconhecimento positivo”. No entanto, a
investigação tinha tido outros percursos anteriores. Talvez por isso Sebastián, que
estava a cargo do caso, o identificava como o “caso de Quique”, a vítima que tinha
sobrevivido. Os resultados dos primeiros momentos da investigação estavam registrados
por escrito no processo judicial.
O “sumário policial” continha os depoimentos tomados na comisaría do bairro,
horas depois do “fato”. Lá tinham deposto, diante dos policiais, a dona do quiosque
diante do qual tinha acontecido o “fato” e a filha dela. No dia seguinte, foi a vez de seu
Júlio, o pai de Santiago. Ele foi citado para saber como haviam sido os momentos
anteriores e posteriores ao “fato”, quando foi socorrer seu filho. Também foi indagado
sobre qualquer outra informação que pudesse aportar sobre as relações de seu filho,
possíveis inimizades, ou problemas que pudessem ser vinculados ao caso. Era uma
estratégia comum de investigação nos casos de “homicídio” que pesquisava a vida e
relações da “vítima” como meio para obter informações sobre o “autor” do crime. As
perguntas a respeito feitas nos interrogatórios eram formais e respondiam a um padrão,
mas podiam suscitar comentários adicionais de utilidade.
Diante das perguntas da polícia, seu Júlio afirmou que Santiago não usava
entorpecentes, não costumava consumir bebidas alcoólicas, não possuía dívidas de jogo,
281
não tinha problemas com nenhum vizinho nem ex-amigo. Também informou que seu
filho não possuía armas de fogo e nunca teria utilizado uma. Acrescentou que tinha a
mesma namorada nove anos e finalizou seu depoimento com uma frase emotiva, que
repetiria anos depois durante o julgamento: “não é porque seja meu filho, mas era uma
pessoa de bem”.
Na comisaría, também depôs Quique, que, posteriormente, voltaria a fazê-lo por
mais três vezes na UFI. Descreveu a situação do “roubo” e também os dois jovens. Com
esses dados, foi confeccionado um identikit por um policial. Segundo Sebastián, os
identikits são realizados por desenhistas da polícia científica e opinava que geralmente
não servem para nada”. Aliás, disse existir, no jargão policial e judicial, a expressão
“tem cara de identikit”, utilizada quando se quer chamar a atenção para descrições
pouco úteis sobre “suspeitos”. Na opinião dele, aqueles desenhos podiam servir como
uma ajuda à memória para a própria testemunha que fazia a descrição, para ela se
lembrar do rosto descrito. Com certa resignação, Sebastián contou existirem algumas
técnicas que reconstroem o rosto com uma base de dados de pessoas reais, com o qual,
segundo ele, “a pessoa fica realmente idêntica”. “Mas, como é óbvio, s não temos
esse sistema”, concluiu Sebastián.
Quando o “sumário” foi enviado para a UFI, não foi muito o tempo que esperou
Sebastián para delegar a investigação na Unidade de Martínez e Marconi, a Divisão de
Homicídios da área. A investigação ficou fundamentalmente nas mãos de Marconi. Foi
ele que, circulando pelas ruas e casas do bairro e conversando com os vizinhos, “levou”
os primeiros “suspeitos” diante da UFI.
“O que se escuta no bairro”: Jesus
Com a intervenção de Marconi, apareceram no relatório policial os depoimentos
de alguns vizinhos do local. Marconi elaborou uma ata onde transmitia, indiretamente, o
depoimento da dona do quiosque que, naquela conversa com ele, teria mencionado, por
sua vez, uma terceira vizinha que “comentou que um dos autores do fato resultaria ser
um sujeito conhecido na área como Jesus, que mora nas imediações”. Esses ditos foram
posteriormente confirmados por Marconi com a vizinha autora dos mesmos, que
afirmava que isso era “o que se escuta no bairro” e “no bairro também se comentava que
Jesus é uma pessoa viciada em drogas e problemática”.
282
Marconi tentou indagar sobre circunstâncias mais específicas, além dos
“comentários do bairro”. A vizinha esclareceu que “duas pessoas da rua Belgrano
tinham ouvido outras duas pessoas falando sobre o fato”. Abundando nos “comentários
do bairro”, uma terceira testemunha depôs que “outras duas pessoas comentavam que se
[Santiago] não tivesse lançado a garrafa, não teria sido morto”.
Uma quarta vizinha, que naquele dia estava esperando ser atendida no quiosque,
depôs dizendo que teria visto o jovem que disparou. Descreveu-o como um garoto de
1,70 de altura, magro, vestindo calça jeans escura e um casaco com capuz.
Uma outra vizinha depôs ter “ouvido distintos comentários por parte de pessoas
que andam pelo bairro, poderia se dizer, de duvidosa moralidade e de mau viver, sobre
que um dos autores seria um sujeito de nome Jesus, que seria genro de um homem que
mora em Belgrano e San Juan”.
Alguns dias depois, um amigo de Santiago e Quique depôs, perante Marconi.
Disse ter visto, em um comércio de carros, dois sujeitos chegando com a moto de
Quique. Segundo sua lembrança, “o identikit feito por Quique na polícia resultou ser 80
% parecido com um daqueles jovens”.
A linha de investigação sobre o jovem Jesus era aprofundada assim com um
novo depoimento. Além de Jesus, esta última intervenção também apontava outro
jovem, de nome Gerardo, porque este último seria dono de uma moto amarela e preta,
como aquela na qual teriam chegado os dois jovens, para roubar a moto do Quique. Por
último, em outro depoimento, também informava-se que o tal Jesus namorava uma
pessoa que se domiciliava nas ruas Belgrano e San Juan.
Enfim, nesta altura da investigação eram vários os testemunhos que indicavam
um autor: Jesus, genro de outro sujeito, que morava nas ruas tal e tal, namorado de uma
jovem que moraria nas imediações do local do “fato”. Diante dessas informações, foi
“comissionado pessoal policial nas imediações do local onde aconteceram os fatos para
os efeitos de realizar tarefas de inteligência”. Durante esses dias, os policiais
confirmaram os dados dos depoimentos anteriores e somaram algumas informações
mais concretas. Dentre elas, a dona do quiosque voltou a depor e disse que o tal Jesus
seria sobrinho de um sujeito de apelido Sopa, domiciliado nas ruas Belgrano e San Juan.
Outras vizinhas confirmaram essa informação. A filha da dona do quiosque, testemunha
do “fato”, também aportou nova informação sobre o que teria ouvido de um familiar,
dizendo que tinha visto um tal Jesus discutindo com Sopa e que a vestimenta daquele
283
coincidiria com aquela do jovem que ela tinha visto disparando contra Santiago e
Quique.
Com estas informações, Marconi registrou formalmente por escrito ter
identificado “NN Jesus” como Jesus Moreira, de 20 a 25 anos de idade, com 1,70 de
altura. Também registrou ter estabelecido que Jesus seria parente de “NN Sopa”, chefe
da torcida organizada de um clube de futebol da área. Marconi acrescentou no seu
depoimento que “pessoas do local, que não querem se ver comprometidas no processo,
dizem que Jesus estaria ferido na cabeça”. Essa informação era associada com a
possível garrafada que Santiago teria dado no jovem. Por último, registrou que “as
tarefas de inteligência serão continuadas tendendo a estabelecer a identidade de um
segundo sujeito apelidado de NN Cacá”.
A origem da informação sobre esse tal Cacá foi esclarecida dias depois, com um
novo depoimento escrito de Marconi. Estes depoimentos eram relatórios realizados na
própria Divisão de Homicídios, onde deviam registrar por escrito e conforme o formato
e as regras de um depoimento testemunhal as informações obtidas durante as “tarefas
investigativas e de inteligência”. “A palavra aqui não existe, se não estiver por escrito,
não serve”, dizia Martínez, o chefe da Divisão. Naquele depoimento, Marconi afirmava
ter identificado e falado com o tal Sopa, o qual disse ter brigado com seu genro,
apelidado de Cacá, mas de nome José. Marconi o associou com um jovem chamado
José Miranda, que seria conhecido no bairro como “uma pessoa de mau viver que em
várias ocasiões esteve preso em comisarías e que, há duas semanas, não sai da casa”.
Quando Marconi levou esta informação à UFI, foi estabelecido, através do
sistema de registro de presos, que o tal José Miranda estava preso à disposição de outra
UFI e que Jesus Moreira tinha sido preso por “averiguação de identidade”. Estando
ambos à disposição das autoridades, Sebastián designou dois “reconhecimentos em
roda” para que ambos os jovens fossem apresentados às duas testemunhas do “fato”:
Quique e a filha da dona do quiosque. Ambos “reconhecimentos” tiveram resultado
“negativo”; nem Jesus nem José foram “reconhecidos”. Dessa forma, os ditos das
diversas testemunhas referidos aos “comentários do bairro” sobre a autoria de Jesus
Moreira e de José Miranda perderam peso diante da não identificação visual dos dois
jovens por parte das testemunhas presenciais. Como conseqüência, a investigação foi
reconduzida e os policiais da Divisão continuaram as “tarefas investigativas” no bairro.
284
A “identidade reservada”: o Topo
A segunda linha de investigação abriu-se poucos dias depois. Marconi depôs que
“uma pessoa que não quis aportar seus dados pessoais disse que o autor seria o Topo, de
sobrenome López, que estaria preso na comisaría”. Outra testemunha, que pediu depor
com “identidade reservada”, disse ter visto e ouvido o Topo dizer “aprontei uma, tirei
essa moto de um cara que a entregou na boa, mas aí outro me bateu com uma garrafa de
cerveja e tive que atirar e acertei na bunda do outro”.
Naquele momento, o depoimento parecia abrir um caminho certeiro sobre o
“autor”. A descrição daquela testemunha refletia uma seqüência de “fatos” aproximada
àquela identificada para a noite do dia 30 de junho: o roubo da moto, a garrafada, o tiro
nas nádegas, o dia e o horário coincidiam e, inclusive, a moto com a qual o Topo estava
naquele dia era muito parecida daquela do Quique. Além disso, naquela noite não havia
registro de outros roubos semelhantes na área, que pudessem implicar que o Topo
estivesse se referindo a eles e não ao episódio de Quique e Santiago. Como disse
Sebastián, “o testemunho da mulher com identidade reservada parecia fechar o caso,
porque o que ela ouviu era de uma precisão assombrosa”. Contudo, havia uma única
suspeita sobre aquele depoimento, impossível de detectar com a exclusiva leitura do
processo. Foi Sebastián que contou sobre o assunto:
A senhora tinha um filho com antecedentes. Justamente o Topo contou aquilo
tudo para o filho da senhora e ela ouviu atrás da porta. Então, a suspeita era que
a senhora quisesse desviar a investigação para que seu filho não ficasse
envolvido, porque uma hipótese era então que poderia ter sido seu filho e ela
queria tirá-lo do meio, mas, ao mesmo tempo, não havia nada que vinculasse o
filho à investigação.
Ou seja, o único que vinculava o filho da senhora aos “fatos” era aquela suspeita
da mãe estar tentando proteger o filho e, por sua vez, o fato do filho ter antecedentes.
Isto o transformava em um possível “suspeito” não só desse fato, mas também de outros
que pudessem acontecer na área. Segundo Sebastián, a polícia tinha a prática comum de
conduzir as investigações para os “suspeitos habituais”, ou seja, quem estava
“marcado” pela polícia. Isso podia conduzir a investigação para certas pessoas sobre as
quais o recaíssem outras “provas”, ao tempo que podia desviá-la de pessoas que
poderiam estar vinculadas aos “fatos”. A “suspeita” criada sobre o depoimento da
senhora mostrava, a meu ver, como essas relações entre “suspeitos” e policiais também
se teciam no âmbito do bairro: um garoto Topo- teria contado a um amigo sobre o
285
“fato”, a senhora teria ouvido tais informações atrás da porta, a polícia sabia que o filho
da senhora tinha antecedentes criminais; tais circunstâncias permitiam criar uma
“suspeita” sobre uma trama de relações de proteção e/ou acusação que indicariam um
possível “autor”.
Com a informação daquele depoimento, o Topo foi conduzido à sede de
Tribunales para um novo “reconhecimento em roda” no processo. O resultado também
foi “negativo”. No processo, constavam as fotos do Topo e dos outros dois presos que o
acompanharam na “roda”. Os dentes para fora, o rosto anguloso e magro e os olhos
grandes, redondos e abertos lhe davam uma especificidade que explicava seu apelido
222
.
Essa particularidade física, junto com o fato de não ser “reconhecido”, descartou o Topo
dentre os possíveis autores, a despeito da exatidão dos ditos da testemunha de
“identidade reservada”.
A terceira hipótese: Cacá
Alguns dias se passaram. Marconi continuava com as “atividades investigativas”
no bairro. Voltou a depor por escrito na Divisão. Informou que um vizinho do bairro
onde acontecera o “homicídio” disse ter sofrido um “roubo” e que o autor do mesmo
seria um jovem apelidado Cacá. A investigação era novamente reconduzida a partir dos
ditos de um vizinho do bairro, colhidos durante as “tarefas de inteligência” dos policiais
da Divisão.
Na sede da UFI, apresentou-se a dona do quiosque para depor oficialmente sobre
aquilo que teria comentado informalmente com os policiais. Esse movimento era
muito comum, de forma que o momento dos depoimentos escritos em sede judicial
fosse uma formalização de ditos e conversas informais prévios. Funcionavam como
momentos de registro escrito da informação no âmbito de um processo e, por isso, como
uma forma de outorgar valor judicial à informação colhida nas atividades de
investigação na rua. Naquela ocasião, a dona do quiosque manifestou:
“Há quinze dias se apresentou no quiosque um menino a quem eu conhecia
como sendo o genro de Sopa. E naquele momento tive como um flash, um
insight, pelo perfil me pareceu que era o sujeito que levou a moto no dia que
mataram Santiago. Fiquei tão sobressaltada que dei um grito e chamei meu
marido: ‘Maney!’ [o sobrenome]. O menino olhou para mim e me disse ‘como
vai, dona?’. Para mim percebeu que fiquei assustada (...) Quando foi o fato eu
222
Referido ao desenho da personagem do Topo Gigio, uma espécie de rato.
286
não o vinculei, mas me veio a imagem quando voltei a vê-lo neste domingo e
fiquei impressionada” (Da ata do depoimento da dona do quiosque na UFI).
No início da investigação, a dona do quiosque tinha deposto que não poderia
“reconhecer” ninguém. De fato, por isso, não participou nem participaria de nenhum
dos “reconhecimentos em roda” realizados. depois de se encontrar naquele domingo
com Cacá que ela afirmou, por conta do “flash”, ter “reconhecido” o possível “autor do
fato”. Essa mudança de percepção na sua posição de testemunha –primeiro, afirmar não
saber quem foi e depois dizer poder reconhecer a pessoa- podia fazer perder
credibilidade ao depoimento; ainda mais, se tratando de um “flash”, um “insight”, como
ressaltava Sebastián, “em um caso como este em que o bairro influenciava muito nas
testemunhas”. Mesmo assim, apesar de não ter sido considerada uma “prova” muito
sólida, o “flash”, ou “insight”, da dona do quiosque se transformou em mais um
elemento indicando Cacá, genro de Sopa, como possível “autor”.
Naquele mesmo dia, depôs na UFI uma testemunha com “identidade reservada”.
Outra diferente daquela que teria dado seu depoimento para Marconi, aportando dados
incriminando o Topo. Desta vez era uma criança de nove anos que tinha presenciado os
fatos a partir da calçada do quiosque, enquanto esperava ser atendida. Neste caso, a
decisão de proceder ao depoimento “reservando a identidade” estava baseada
principalmente na pouca idade da testemunha. Para Sebastián, esta decisão podia trazer
certas contradições. Por um lado, porque outras testemunhas afirmavam que, naquele
dia, no quiosque, estavam “uma mulher grávida e dois meninos que correram para os
canteiros de plantas do lado da calçada”. Assim, o fato de justificar a “reserva de
identidade” pela idade permitia identificar “em parte” de quem se tratava, pois eram
dois meninos conhecidos do bairro, que sempre estavam por perto. Na verdade, as
testemunhas presenciais do “fato” de forma geral eram conhecidas entre si e no bairro,
circunstância que facilitaria identificar ou reconhecer qualquer um que estivesse lá. Por
outro lado, opinava Sebastián, o fato de “reservar a identidade” de uma testemunha
tirava “valor de convencimento” à prova, pois “com uma T.I.R. [testemunha de
identidade reservada] você não sabe quem é, de onde ela olha a situação, se é velho, se é
instruído, se é míope; pelo contrário, se eu a regularizo [com identidade] é mais uma
testemunha, como qualquer outra”. Com esta opinião, Sebastián dava conta, neste
processo, de duas “provas” cujo “valor de convencimento” podia ser questionado: o
“flash” e a “T.I.R.”.
287
O menino foi depor em sede judicial em três ocasiões; em todas elas,
acompanhado por sua mãe. Na primeira oportunidade, o depoimento não se
desenvolveu na UFI, mas diante de um psicólogo do Ministério Público, sob um sistema
conhecido como câmera gessel”. Segundo essa técnica, a testemunha (ou vítima de um
crime) depõe sozinha em uma sala com um psicólogo. A sala é separada de outra por
um vidro que só permite a visualização em direção à sala do depoimento. Daquele outro
lado, a sessão do depoimento é filmada, podendo também ser assistida pelo promotor,
pelo funcionário que trabalhe o processo e/ou pelo defensor. Conforme essa dinâmica,
mais do que um depoimento judicial, o ato adquire a forma de uma entrevista
psicológica, criando em teoria- um ambiente mais íntimo e menos intimidante. Neste
processo, o relatório do psicólogo destacou que o relato do menino era “coerente e
verossímil”. Durante a entrevista, havia identificado Cacá como autor do “fato”,
dizendo que o conhecia bem do bairro.
Contudo, na segunda ocasião que o menino foi na UFI, ele disse que tinha se
confundido. Como havia outros indícios que reforçavam a hipótese que recaía em
Cacá, o garoto foi citado mais uma vez pelo promotor. Naquela terceira oportunidade,
mencionou que o jovem que viu “parecia-se muito com um do bairro que o pessoal
chama de Cacá, que é o genro de um vizinho, Sopa”. Também disse que “quem dirigia a
moto tinha um nariz bem grande... e que, após o roubo da moto, voltou a ver Cacá, mas
tinha o cabelo pintado de raios de sol [de loiro]”. O menino também lembrou com
precisão que Cacá tinha um “tênis com molas e um boné com uma caveira”.
O passo seguinte nesta linha de investigação, que se consolidava contra Cacá,
foi citar Sopa, o suposto genro de Cacá, mencionado já em vários depoimentos. Na UFI,
Sopa confirmou que Cacá era seu genro, ou seja, namorado de sua enteada Samanta.
Mencionou que Cacá era um jovem problemático, que já haviam tido problemas porque
em várias ocasiões tinha brigado e maltratado Samanta. Diante das perguntas de
Sebastián sobre o dia do “fato”, Sopa contou que ele estava chegando à sua casa,
quando viu que Cacá chamava Samanta, desde a calçada. Pareceu-lhe que tinham
discutido horas antes. A cena acabou com Sopa discutindo com Cacá e dando um soco
na cara dele. Durante o depoimento, Sopa aportou certa especificidade sobre a hora
desses eventos e outros detalhes, que permitiram Sebastián ajustar a seqüência dos
“fatos”. Confiava, assim, na versão aportada por Sopa, que fornecia horários certos de
trabalho, de chegada à casa, entre outras precisões. O depoimento de Sopa, ao confirmar
288
a briga com Cacá, também situava este último próximo à cena do “fato”, já que, como
tinha sido indicado por outras testemunhas, Sopa e Samanta moravam na esquina do
quiosque onde aconteceram os “fatos”. O que mostrava também que Cacá não era alheio
ao “bairro”. Por último, os “comentários do bairro” sobre o autor ser “o genro de Sopa
e sobre o fato deles terem brigado naquela noite eram confirmados pelo próprio Sopa,
situando Cacá nesse contexto.
Com este conjunto de informações, Sebastián solicitou à “juíza de garantias”
autorização para realizar um “allanamiento” na casa de Cacá. Foi realizado por Marconi
e outros dois policiais da Divisão. Na casa dele, encontraram um casaco marrom com
capuz, semelhante àquele descrito por algumas testemunhas. Apenas isso. Na hora que
os policiais entraram na casa, Cacá estava na esquina com seus amigos. Os policiais,
inclusive, o cumprimentaram antes de ingressar na casa. O casaco estava sendo usado
por outro jovem, apelidado Tony, namorado de uma das irmãs de Cacá. Por isso, no dia
4 de outubro, tanto Tony como Cacá foram citados para um “reconhecimento em roda
de pessoas”; o terceiro e quarto, respectivamente, deste processo. Nem Quique nem a
filha da dona do quiosque “reconheceram” Tony. Cacá, pelo contrário, foi
“reconhecido” por ambos.
“Foi um golaço
Naquele departamento judicial, como mencionei no Capítulo 4, os
“reconhecimentos em roda de pessoas” eram realizados em uma sala especial,
localizada no subsolo do prédio de Tribunales. A mesma tinha comunicação direta com
a carceragem, onde os presos aguardavam ser chamados para diferentes atos judiciais. A
sala constava de uma divisória, com três entradas. Em um dos ambientes, ingressavam
as pessoas que seriam submetidas ao “reconhecimento”. Elas eram localizadas contra
uma parede, cada uma abaixo de um número (do 1 ao 4). Nessa sala, também
permanecia um funcionário da promotoria registrando o ato e indicando as pessoas onde
deviam se localizar e, eventualmente, como deviam modificar sua posição. Esta sala se
comunicava diretamente com a carceragem. No outro ambiente, era possível acessar por
duas portas: uma que conduzia às celas e outra ao corredor, pelo qual ingressavam as
testemunhas, de forma a evitar a passagem delas pela carceragem. A divisória entre os
dois ambientes era um vidro que permitia o visual desde a sala das testemunhas para a
289
outra, mas impedia a visão contrária. Ou seja, as testemunhas não eram vistas pelas
pessoas que seriam submetidas ao procedimento.
Observei vários reconhecimentos em roda” durante o trabalho de campo. Os
mesmos eram realizados quando, em um depoimento, uma testemunha ou a vítima de
um crime, diante da pergunta do funcionário da UFI sobre se poderia, ou não,
reconhecer o “autor”, respondia que sim ou que “possivelmente sim”. No dia designado
para tal ato, o funcionário da UFI solicitava à pessoa que seria submetida ao
“reconhecimento” (que nem sempre estava presa) que selecionasse, entre os presos da
carceragem do subsolo, outras três pessoas para que participassem da “roda”. O objetivo
era que esta tivesse o direito de escolher pessoas de características semelhantes a ela
223
.
Cada participante era localizado abaixo de cada um dos quatro números. O
funcionário registrava em um ata a relação destes com os nomes. Uma vez configurado
o cenário, a testemunha ingressava na outra parte da sala. Ela devia observar cada uma
das quatro pessoas em e mencionar o número daquela que “reconhecia” como o
“autor do fato”, ou, simplesmente, dizer que não reconhecia ninguém. A resposta era
registrada em um ata, junto com o “resultado” do procedimento: “positivo” se a pessoa
suspeita era “reconhecida” e “negativo” quando outra pessoa ou ninguém tinha sido
indicado. Nos procedimentos deste tipo que assisti, a situação esteve carregada de certa
tensão e emoção. Diferentemente do processo envolvendo Cacá, os outros tinham sido
casos de “roubos” ou “furtos”. Parecia predominar um sentimento de responsabilidade
das testemunhas e vítimas pela resposta esperada pelos funcionários
224
. Segundo
comentou Sebastián, a sala no subsolo não ajudava nessa sensação, pois, para ele, “era
223
Na província, o procedimento do “reconhecimento em roda de pessoas” está regulado nos artigos 257
a 261 do CPP-PBA. No artigo 259, se estabelece que as pessoas que participem do mesmo devem ter
“condições exteriores semelhantes” à pessoa submetida ao reconhecimento. Ora, podia acontecer que, por
alguma particularidade física, não houvesse na carceragem pessoas com características semelhantes.
Observei um caso de uma mulher cigana, defendida por um advogado particular, que no dia do
“reconhecimento foi acompanhada de outras mulheres de sua comunidade para que participassem do
procedimento. Também me contaram de casos em que foram buscadas pessoas que trabalhavam no prédio
de Tribunales, acreditando encontrar entre estas um perfil diferente daquelas da carceragem. Em outro
“reconhecimento que observei, o homem que estava sendo “imputado” escolheu três pessoas
completamente diferentes dele fisicamente. Isso me foi assinalado pelo Diego como um sinal de
“segurança” de que não seria reconhecido.
224
Lembro no caso do padre cuja bicicleta tinha sido roubada por um jovem do mesmo bairro (Capítulo
4). Foi designado por Fred um “reconhecimento em roda”, sob a crença de que, como o padre conhecia
bem o jovem por ser do bairro, o reconheceria sem dúvidas. No entanto, no momento do procedimento, o
padre deu alguns passos para trás de sua posição e, tampando seus olhos, repetia: “não, não posso ver, não
posso ver”, sem conseguir fazer reconhecimento.
290
de por si intimidante, fria; e, pela proximidade com a carceragem, eram os presos que
“jogavam de locais” e as testemunhas acabavam perdendo confiança”.
Embora a “sala de reconhecimento” tivesse sido desenhada para que
testemunhas e/ou vítimas não se cruzassem com os possíveis autores e outros presos, no
dia designado para o “reconhecimento” de Cacá, nos corredores externos da UFI, no
segundo andar, esperavam pelo resultado alguns parentes e amigos dele. Não foi uma
situação fácil para Quique, nem para a filha da dona do quiosque, que deveram
acessaram à UFI passando pela frente deles. A jovem teria manifestado para
Sebastián sua preocupação sobre as possíveis conseqüências no “bairro” pelo seu
envolvimento como testemunha. Contudo, naquele dia, a presença daquele grupo
acabou por não intimidá-la.
Quando Quique e a jovem desceram ao subsolo, o cenário para o
“reconhecimento” estava preparado. Quando foi a vez de Quique, Cacá ocupava o
número 2 e quando foi a vez da jovem foi movido para o número 4
225
. Conforme ficou
registrado na ata, Quique manifestou: “é igual ao número 2, tinha o cabelo mais curto e
sem pintar”. Poderia ter terminado aí, mas, segundos depois acrescentou, “parece-me
que é o número 2, mas não tenho certeza, não sei se não o tenho de outro lugar”.
O reconhecimento da filha da dona do quiosque tinha uma particularidade, pois,
de fato, ela sabia que Cacá, a quem conhecia do bairro, estaria dentre as pessoas a
serem “reconhecidas”. Ela disse “reconhecer” o número 4 como “o genro de Sopa”,
acrescentando que “tem muito ar com o sujeito que efetuara os disparos”. Apesar de
que, como manifestara Sebastián posteriormente, nenhum dos dois tivesse sido
totalmente “convincente” nas suas palavras, na ata ficou registrado que Cacá tinha sido
“reconhecido” pelas duas testemunhas.
Como vimos, no contexto deste processo, tinham sido realizados dois
“reconhecimentos em roda” com resultado “negativo”. Embora Sebastián me explicasse
dias depois que um resultado “negativo” não necessariamente exclui a hipótese da
acusação, reverter esse resultado com outras “provas” não era uma tarefa fácil. Pelo
contrário, se o resultado fosse “positivo”, a hipótese podia ser considerada praticamente
confirmada. O problema era que, neste caso, o “positivo” não continha uma certeza
absoluta, mas era rodeado de frases duvidosas. O certo é que naquele dia de outubro
225
Quando há uma mudança da testemunha, também é modificada a posição das pessoas a serem
“reconhecidas”, porque as primeiras poderiam se cruzar entre si e falar as posições.
291
Sebastián subiu ao andar da UFI anunciando o “golaço” do “reconhecimento” de Cacá.
Acrescentando essa informação aos depoimentos anteriores, Cacá permaneceu preso e
foi citado para depor conforme o artigo 308 do CPP-PBA.
Contou Paco, que acompanhou o “reconhecimento” do lado da sala dos
números, que Cacá resistiu com ímpeto à detenção, exclamando não entender o que
acontecia e gritando não estar envolvido em homicídio nenhum. Diante disso, eu disse
para ele e Sebastián que lamentava não ter acompanhado o procedimento. Achei curiosa
a resposta risonha de Sebastián. Ele disse que até o momento os “reconhecimentos” que
eu tinha presenciado tinham dado “negativo” e ficou temeroso de eu “estar dando azar”.
Brincadeira ou não, chamou-me a atenção o componente de sorte envolvido no
procedimento, segundo esta perspectiva.
Cacá e o “308”
No dia seguinte, Sebastián ingressou à sala de Valeria. Era passado o meio dia
de uma sexta-feira e eu permanecia sentada lendo algum processo. Sebastián entrou
reclamando do fato de estar esperando desde a manhã que a defensoria pública
“subisse” um preso para lhe tomar o “308”. O preso era Cacá. A demora parecia estar
vinculada com a “entrevista prévia”. O processo tinha “subido” da UFI para a
defensoria às nove e meia da manhã. A essa altura era uma e meia da tarde e o defensor
não dava notícias. Seguindo o ritual de toda sexta-feira, o pessoal da UFI iria almoçar
junto fora do prédio; que naquele dia tinham combinado uma comida na casa de uma
funcionária e as massas a serem feitas esperavam na geladeira da copa do “corredor”.
Como Valeria não iria naquele almoço, ofereceu para Sebastián ficar responsável por
tomar o “308” de Cacá. Esta delegação acontecia algumas vezes em que, por
circunstâncias específicas, quem “levava o processo” solicitava para outro funcionário
que tomasse um depoimento. Como a expectativa era que “imputado” não iria depor,
nesses casos, apenas seria necessário tomar os dados pessoais e ler os “fatos” que
constavam no respectivo processo.
Naquela tarde de sexta-feira, na UFI, ficamos apenas Valeria e eu. Foram várias
as vezes que ela ligou para a defensoria reclamando pelo processo e pela realização do
depoimento. O processo tinha mais de três meses e bastante informação acumulada.
O defensor titular, Martín Lavalle, um jovem recentemente nomeado no cargo, tinha
passado o processo a uma funcionária para que ela desse uma lida. Talvez por isso
292
demorassem em devolvê-lo. Talvez fosse porque a entrevista com Cacá demorava mais
do que o costume. O certo era que eram as três da tarde e Cacá ainda não tinha se
apresentado. Quando finalmente ligaram da defensoria, avisando que estavam
“descendo” com o processo, também informaram que “Cacá iria depor”. Tal decisão
não parecia ter estado nos planos de Valeria e Sebastián quando ela tomou o lugar dele.
Em parte porque, como vimos, esperava-se que a maioria dos “imputados” defendidos
por defensor oficial optasse por “não depor”. Em parte, porque, como o fato de “não
depor” era associado com a proclamação de inocência, nem Valeria, nem Sebastián
esperavam que esse fosse ser o caso de Cacá, que, para eles, parecia implicado o
suficiente para permanecer calado.
Com a presença do defensor titular, Valeria começou o ato com o interrogatório
pessoal de Cacá.
Cacá tinha nascido no 5 de novembro de 1987. Na época, tinha 19 anos. Nasceu
na província de Buenos Aires, no mesmo bairro onde ainda morava com seus pais e
suas duas irmãs. Também morava junto com eles um irmão mais velho, mas, naquela
época, estava alojado em uma prisão da província. Cacá era um jovem alto,
aproximadamente, de 1,80 metro, magro, de cabelo curto. No dia do depoimento, tinha
as pontas de suas curtas mechas castanhas pintadas de loiro (“raios de sol”). Sua pele
era escura. Disse ser vendedor ambulante e ter ido à escola até a terceira série. Também
disse não saber ler nem escrever. Era solteiro e havia poucos meses “ficava com uma
garota”. Valeria perguntou se tinha processos anteriores, respondendo ele que “não,
de menor”.
Valeria leu os “fatos imputados”. E, embora soubesse da decisão, perguntou,
formalmente, para Cacá se iria depor. Com a resposta afirmativa, começou o
depoimento propriamente dito.
Valeria: estou ouvindo você.
Cacá: que sou inocente. O que quer que eu diga? Que estão me acusando de uma
coisa que eu não fui.
Valeria: bom, mas diga o que é que você quer dizer.
Cacá: eu não faço nem idéia do que é que aconteceu.
(…)
Valeria: você conhece um senhor chamado Sopa?
Cacá: seria meu sogro, o padrasto de minha garota.
Valeria: e como se chama “sua garota”?
Cacá: Samanta.
Valeria: lembra de ter tido uma discussão com esse senhor?
Cacá: sim.
293
Valeria: quando?
Cacá: no mesmo dia que mataram o garoto.
Valeria: como é que você se lembra disso?
Cacá: tivemos uma confusão e nesse dia [Sopa] desceu do carro e me deu um
soco. Eu fui embora e pouco tempo depois veio um amigo dizendo que tinham
me matado, mas eu estava na esquina com a galera! [Cacá ri, enquanto conta
isso].
Valeria: esse menino era parecido com você?
Cacá: tenho que repetir de novo para você?!
Ao manifestar aquela frase, a voz de Cacá adquiriu um tom impaciente, que
resultou em uma atitude mais severa de Valeria. Diante dessa situação, Cacá olhou para
seu defensor, sentado de perfil para ele.
Valeria: da próxima vez que você olhar para o defensor, digo-lhe para se sentar
[assinalando uma cadeira de costas a Cacá]. Você decidiu depor e eu vou lhe
perguntar tudo o que eu quiser. Quem é o menino que foi correndo [dizendo que
você estava morto]?
Cacá: Raúl Lucero.
Valeria: foram ver o que era que tinha acontecido?
Cacá: não, eu soube uma semana depois. Os policiais foram à casa de minha
garota dizendo que eu tinha matado um cara e que iam lhe contar tudo o que eu
fiz no bairro. Mas a mim não me disseram nada. Depois vieram os mesmos
policiais à minha casa porque buscavam um tal José Miranda [mesmo nome de
Cacá], vieram com essa desculpa.
Valeria: quando?
Cacá: eles vinham uma vez por semana, mais ou menos. Depois vieram fazer um
allanamiento”. Eu estava na esquina de minha casa, passaram, até me
cumprimentaram e depois vêm e me fazem isto.
Valeria: é como que você não entende porque não levaram você antes se eles
tinham provas.
Cacá: claro.
Valeria: mais alguma coisa que você queira dizer?
Cacá: que viram ontem para que eu participasse de um reconhecimento em roda
por um fato e que, se eu tivesse problemas com isso, eu...
[Cacá se trava, sem poder completar a frase].
Valeria: o que você quer me dizer é que se você tivesse sido o autor, não teria
vindo.
Cacá: claro, se eu fosse o autor não vou ser tão idiota de vir para cair preso...
porque eu tenho a consciência tranqüila de que não matei ninguém.
Valeria: bom, eu coloco assim como você me diz.
Cacá: o que eu queria saber é por que me trouxeram ontem aqui para me tirar
sangue.
Valeria: eu não sei, porque não conheço o processo, mas na segunda eu me
informo para você.
Eu sabia ao que Cacá estava se referindo com esta última consulta. Ele tinha
sido citado para realizar uma extração de sangue no processo do “homicídio” da anciã
294
alemã, também investigado por Sebastián e por Marconi. Como já contei, por esse caso
estava preso Lucas Lufi. Mas, na casa tinha sido achado sangue pertencente a um
terceiro (nem à tima, nem a Lufi). Como tinham chegado a Cacá? Em uma entrevista
“extra-oficial” com Sebastián, Lucas Lufi teria dito “fui com Tuki”.
Essa informação não era nada crível. Lufi é um marginal que mata e nem sabe
por que. Mora na rua ou em qualquer outro lugar, está judicializado desde os
oito anos de idade. Ainda mais, ele tinha dito que nem lembrava com quem tinha
matado a velha. E, além disso, quem diabos era Tuki?!, contava Sebastián.
Ora, Sebastián foi pesquisar nos processos contra Lufi quando “menor”. Foi
neles que, de forma indistinta, aparecia um tal Tuki ou Cacá, “que podiam, ou não, ser a
mesma pessoa, ou seja, nosso Cacá”. Diante dessa suspeita, tinha ordenado a extração
de sangue em Cacá, para confirmar tal hipótese. O resultado chegou tempos bem depois
do “308” de Cacá, com resultado negativo. Contudo, o envolvimento de Cacá em
processos “de menor”, junto com Lufi, o seria um aspecto positivo em relação à
“proclamação de inocência” por parte do primeiro.
Valeria deu a palavra para o defensor, para que realizasse as perguntas que
desejasse. Como expliquei no Capítulo 4, o interrogatório do defensor tem uma
particularidade que, para quem não a conhece, pode chamar a atenção, pois exige uma
forma de comunicação diferente da estabelecida em outro tipo de conversas. Como
advertiu Valeria durante o depoimento, o “imputado” não pode olhar nem conversar
com seu defensor. Da mesma forma, o defensor não pode dirigir suas perguntas
diretamente para seu defendido. Deve formulá-las através do promotor, o qual aprova,
ou não, a pergunta. Se for aprovada, o ‘imputado” deve responder se dirigindo também
ao promotor, e não ao defensor. Nos depoimentos que observei, nunca foi negada uma
pergunta, embora se chamasse a atenção quando a mesma ou alguma semelhante
tinham sido formuladas. Em muitos depoimentos, a triagem efetuada pelo promotor
também era omitida, sendo o defensor quem realizava diretamente a pergunta. Assim, o
modo indireto do interrogatório era evitado e as perguntas não eram retransmitidas, pois
o “imputado” estava aí sentado e as tinha ouvido diretamente. Também sucedia que, por
costume, o “imputado” olhasse seu defensor ao responder, e que o promotor ou
funcionário, não corrigissem tal atitude. Sem dúvida, a observação desta situações na
UFI me mostraram os depoimentos como atos muito mais informais do que aqueles que
tinha presenciado em audiências de juicio. Mas, ao mesmo tempo, como apontei na
295
introdução e no capítulo 5, observava que essa informalidade podia ser interrompida,
não pela exigência de uma ‘forma’ ou etiqueta, a ser respeitada. De outro modo, a
repentina exigência de uma certa ‘forma” podia ser utilizada como meio de impor
respeito e autoridade, ou de pressionar o depoente , ou bem de impor um controle sobre
a situação do depoimento.
No caso do Cacá, pareceu-me haver pelo menos dois motivos para que Valeria
insistisse no ritualismo da ‘forma’ do interrogatório. Um deles, a reação arrogante de
Cacá na sua resposta. Marcar as ‘devidas formas’ podia ser um modo de delimitar
autoridade. O outro não estava vinculado com Cacá, mas com o defensor, pois Valeria
estava visivelmente incomodada com a longa espera para iniciar o depoimento. Valeria
não ficou retransmitindo as perguntas do defensor e deixou que as formulasse de forma
direta. No entanto, pediu que ele se sentasse de costas a Cacá para evitar a troca de
olhares. As perguntas do defensor tentaram precisar os comentários manifestos por
Cacá.
Defensor: com quem estava quando apareceu Sopa?
Cacá: com Raúl Lucero.
Defensor: tem alguma idéia de que horas eram?
Cacá: 20h30, mais ou menos.
(...)
Defensor: o que você fez com Raúl Lucero?
Cacá: eu o deixei um par de quadras antes e fui para minha casa, deixei a
bicicleta na porta de casa com meu cunhado. Eu não queria que minha mãe me
visse assim machucado, porque ia dar confusão. Javier Peñalosa é meu
cunhado.
Valeria: foi aí que você foi para a esquina?
Cacá: sim, Belgrano e Pichincha.
Valeria: Belgrano e Pichincha? [perguntou Valeria, percebendo uma diferença
com a informação já registrada].
Cacá: não! O que é que estou dizendo? Disse Belgrano e Puentes.
Defensor: que horas você foi para esquina? Com quem você estava lá?
Cacá: 10h30, não, já estão me mareando. Não, sim, 10h30 foi quando chegou
este rapaz. Eu estava desde antes.
Valeria: com quem você estava?
Cacá: Walter, Eduardo, Maxi...
Valeria: você sabe os sobrenomes?
Cacá: sim [os menciona].
[O defensor disse para Valeria que na segunda-feira levaria uma lista com os
endereços de todas as pessoas nomeadas].
Defensor: você lembra que roupa você estava usando?
Cacá: sim, um casaquinho parecido com esse aqui, [cor] creme.
[Junto com Valeria avaliam como seria a cor do casaco: definem um chá com
leite].
296
Cacá: eu trago para você, se você quiser. [Valeria registra na ata que “fica à
disposição da UFI”].
Defensor: se sabe se, do endereço dele, apreenderam alguma vestimenta.
Cacá: o casaco, esse com pelúcia, com feche, marrom escuro, há um mês e meio.
Valeria: onde você conseguiu esse casaco?
Cacá: minha mãe comprou de uns vendedores ambulantes que passaram
vendendo panos de chão.
Defensor: conhece alguém de nome Jesus?
Cacá: sim, se chama assim: Jesus Moreira.
Defensor: sabe onde ele mora?
Cacá: sei como chegar
226
.
Defensor: se Sopa lhe produziu alguma lesão.
Cacá: sim, aqui [assinala a frente], vê que eu tenho machucado?
Defensor: até que horas você ficou na esquina?
Cacá: até que chegou meu pai, 12h00.
Defensor: contou para seu pai? [da briga com Sopa].
Cacá: sim, porque ele é mais passivo que minha mãe.
Valeria leu a ata da tela do computador. Assinada a ata
227
, Cacá foi conduzido de
volta à comisaría na qual estava preso. Enquanto saíamos com Valeria do prédio, ela se
comunicou com Sebastián para contar sobre o depoimento. Segundo ela, as informações
mais relevantes aportadas por Cacá referiam ao fato dele ter falado sobre a briga com
Sopa, sendo este seu sogro; sobre ter estado com um tal Raúl Lucero, que esse Raúl
teria aparecido dizendo que tinham matado Cacá e que ele tinha permanecido na
esquina da casa com seu grupo de amigos.
“Evacuar os ditos
Cacá tinha dito que era “inocente”, que ele “não tinha nem idéia do que é que
tinha acontecido”. Mas essa não era a hipótese de Sebastián. Embora afirmasse que
ainda não estava “convencido” de efetivamente ter sido Cacá quem matou Santiago,
entendia que as provas reunidas até o momento fundavam a “suspeita suficiente”
226
Esse tipo de diálogo, em que o funcionário judicial perguntava por um dado concreto e pontual (um
endereço, um sobrenome) e o depoente –imputado ou testemunha- respondia com frases do tipo “sei
como chegar” ou “apenas sei o apelido” era muito comum. Parecia evidenciar a exigência do saber
judicial em trabalhar com dados pontuais e o contraste com um saber cotidiano por vezes mais difuso ou
geral.
227
Como Cacá tinha dito que não sabia ler nem escrever, assinei a ata como testigo a ruego
[“testemunha a rogo”]. O objetivo é que essa testemunha presencie o depoimento e assine dando por
provado que aquilo que foi registrado por escrito não tergiversa o que foi exposto oralmente. Na UFI,
quem sempre cumpria esse papel era o “meritório”. Segundo Sebastián, porque era a única pessoa
disponível que não pertencia ao elenco estável e formal da UFI, o que permitiria certa objetividade
formal. Não que o “meritório” presenciasse o depoimento, mas era chamado posteriormente para assinar.
Nunca vi uma testemunha, “imputado” ou defensor reclamando de tal situação.
297
exigida pela lei para solicitar à “juíza de garantias” a prisão de Cacá e a citação para o
“308”. A “prova mais forte” contra ele era ter sido “reconhecido” por Quique e a filha
da dona do quiosque, como o “autor” dos disparos. As outras “provas” eram os
testemunhos da dona do quiosque –o flash- e do menino, como “testemunha de
identidade reservada”. Sebastián dizia, naqueles dias, que tinha “quatro provas de 0,25;
somando as quatro formam uma [prova]”
228
. Também contavam como argumentos os
“comentários do bairro”, que associavam o autor daquele fato com o genro de Sopa”,
com quem Cacá teria brigado naquele fim de tarde de finais de junho.
A partir das informações mencionadas por Cacá no seu depoimento, tinham se
aberto novas vertentes para indagar sobre sua possível participação. Diante de todo
depoimento de um “imputado”, o promotor é obrigado a “evacuar” a informação que
surgir do mesmo
229
. Por exemplo, quando o “imputado” menciona alguém indicando
sua relevância para a defesa do mesmo, essa pessoa deve ser citada para depor como
testemunha. Ainda que se espere que seja a defesa do “imputado” quem providencie os
dados para localizar as eventuais testemunhas, no caso de Cacá e do seu defensor
público isso não aconteceu. Foi através do trabalho de rua de Marconi e de outro
policial que aquelas testemunhas citadas por Cacá foram localizadas. Desfilaram pela
sede da UFI vários dos “amigos” mencionados por ele. Posteriormente, também o
fizeram “sua garota” Samanta, a irmã dela e a mãe de Cacá.
Dentre os “amigos”, dois eram cunhados de Cacá, isto é, namorados de suas
duas irmãs e um terceiro, amigo da infância. Também devia ser citado o tal Raúl
Lucero, quem, conforme o relato de Cacá, teria estado a tarde toda junto com ele. Na
linguagem judicial, estas eram testemunhas “de coartada [álibi], porque poderiam
testemunhar que Cacá tinha estado com elas no momento do “fato”. Seus depoimentos,
em especial aquele do Raúl Lucero, seriam fundamentais para estabelecer se, no seu
“308”, Cacá teria dito a “verdade” sobre ser “inocente e não ter nem idéia do que tinha
acontecido”, ou se essa versão não batia com o que as testemunhas pudessem informar.
228
A expressão de Sebastián para avaliar as “provas” reunidas até o momento me fez lembrar do sistema
vigente antes da reforma processual penal provincial de 1998. Segundo aquele, o sistema de avaliação de
“provas” era o chamado sistema de “prova tarifada”. Conforme esse sistema, diferentes tipos de “prova”
tinham um valor pré-definido, tendo o julgador que chegar a conformar “prova plena” para uma
condenação. Essa “prova plena” podia ser alcançada por uma única prova (“prova simples”) ou por várias
que, juntas, formassem uma “plena” (“provas compostas”). Ver mais nas conclusões.
229
Conforme o artigo 318, o promotor “deverá investigar todos e cada um dos fatos e circunstâncias
pertinentes e úteis referidas pelo imputado”.
298
Os “amigos”
Os primeiros a serem localizados pela polícia e citados por Sebastián para depor
foram os dois cunhados de Cacá e o amigo da infância. Não por acaso. Os três tinham
antecedentes criminais e foram rapidamente localizados nos registros judiciais. Quem
mais demorou em ser localizado foi Raúl Lucero, de quem ninguém, antes do
depoimento de Cacá, tinha ouvido falar. Isso gerou muitas inquietações. Pelos ditos de
Cacá, identificando-o como quem tinha estado junto naquele dia, Sebastián e Marconi
suspeitavam que fosse quem teria acompanhado Cacá no momento do roubo da moto.
Raúl Lucero, ao ser citado, deveria explicar por que, supostamente, teria voltado
correndo à esquina, gritando “mataram Cacá”. A hipótese de Sebastián era justamente
que Raúl Lucero teria dito isso porque estavam juntos roubando a moto e teria chegado
a ver a garrafada que Santiago teria lançado contra Cacá. Contudo, para confirmar
aquela hipótese Sebastián ainda teria que ouvir a versão de Raúl Lucero e este, até
aquele momento, não tinha aparecido.
Os cunhados de Cacá e o amigo da infância eram jovens, de aspecto físico
semelhante ao de Cacá. Os dois primeiros, na época, com 19 anos e o terceiro com 22.
Eram magros, vestiam-se informalmente com calça jeans, casacos com capuz, algum
também com as pontas dos cabelos pintadas de loiro. Os três disseram trabalhar. Um
deles com o tio e os outros dois como ajudantes na construção. Os dois cunhados não
moravam nem “andavam” pelo bairro. Ambos ressaltaram nos seus depoimentos, não
conhecer os amigos de Cacá e, de fato, apenas conhecer este último havia pouco tempo,
pelo fato de ser irmão de suas respectivas namoradas.
O primeiro em depor foi um dos cunhados, Javier. Era quem tinha emprestado a
bicicleta para Cacá ir buscar a namorada dele. Disse ter estado, da tarde até a
madrugada, na casa da irmã de Cacá, junto com a mãe, a outra irmã e o segundo
cunhado. Sobre o “fato da moto” disse ter ficado sabendo dois dias depois do ocorrido
“pelos amigos do bairro e porque minha ex-cunhada mora duas quadras do local”.
Sebastián perguntou, então, por que teria vinculado essa informação com o dia que
emprestou a bicicleta: qual era o laço?
Como naquele dia disseram que mataram Cacá e depois eu fico sabendo da
moto, pensei que a confusão fosse por isso. (...) Raúl passou e disse que
mataram Cacá, por isso a mãe dele saiu desesperada para a esquina a buscá-lo.
299
Sebastián aproveitou a ocasião para perguntar pelo tal Raúl Lucero. Mas Javier
disse que nunca tinha ouvido falar dele e que, no caso de vê-lo, nem o reconheceria.
Continuaram-se perguntas sobre a hora em que Cacá lhe pediu a bicicleta, a hora em
que retornou, a hora em que Raúl teria dito que mataram Cacá, a hora em que Cacá
entrou à casa por pedido da mãe, com que amigos estava Cacá na esquina, entre outras.
Enquanto Sebastián imprimia a ata, Javier disse:
“Eu estou depondo isto porque acredito que ele é inocente, é que ele é incapaz
de matar alguém. O que eu conheço dele é legal, terá suas coisas, mas é legal,
usa droga, tudo, mas é legal. O cara é incapaz de fazer uma coisa dessas”.
Sebastián olhou para ele e disse: “está bem, essa é sua opinião, mas eu digo para
você que caiu dezenove vezes preso quando era menor”.
Com certa surpresa aparente, Javier respondeu: “não sabia, nós as vezes nos
olhávamos mal, porque ele se metia muito na minha relação com a irmã dele”.
Embora, naquele momento, Sebastián não lhe prestasse muito atenção, Javier
parecia preocupado por manifestar sua opinião sobre Cacá e conseguir, de alguma
maneira, uma atitude favorável. Porém, ao tempo que mostrava uma relação próxima,
demarcava uma distância prudencial, que Sebastián acabou por perceber.
O segundo em depor na UFI foi Walter. Diferentemente dos cunhados, Walter
conhecia Cacá desde os seis anos de idade. Morava no bairro e costumava “parar” de
noite na esquina com Cacá e outros amigos, para beber cerveja. Disse que “alguma
coisa tinha ouvido” sobre Cacá estar preso por um homicídio, mas que “da morte da
moto soube dias antes da citação para depor chegar à minha casa”. “Como assim?”,
perguntou Sebastián. “A mãe [de Cacá] disse que da defensoria precisavam alguém
próximo que seja testemunha e me pediu que lhe desse uma mão e eu disse que tudo
bem”. A mobilização dos familiares de um “imputado”, ou eventualmente, de uma
“vítima”, na busca e localização de testemunhas era comum a vários processos. Como
muitos dos “fatos” aconteciam no bairro e na área do “imputado” ou da “vítima”, os
familiares tinham a possibilidade de buscar e conversar com possíveis testemunhas
230
.
Isto acontecia, em muitos casos sob orientação do defensor, mas ficava, como referi,
sempre sob responsabilidade do familiar. Segundo advogados particulares entrevistados,
também o fato sobre o que dizer quando forem depor ficava aos cuidados dos
familiares, pois, como mencionei no Capítulo 5, eles, como defensores, não podiam
230
Situação também identificada e descrita por Pita (2006) nos casos investigados por “violência
policial”.
300
correr o risco da testemunha acabar dizendo “o defensor me disse que diga tal cosa”.
Em especial, porque, segundo eles, a testemunha perdia credibilidade.
No dia de seu depoimento, embora Walter não lembrasse da data do “fato” com
precisão, afirmou que “naquele dia” estava com Cacá bebendo cerveja, “como sempre”.
Também que Cacá tinha tido uma discussão com “sua garota”, que tinha saído o pai
dela e tinha dado um soco em Cacá, que teria voltado onde “sempre nos juntamos,
quando nos contou isso tudo”. Sebastián solicitou algumas informações mais
específicas, mas Walter não lembrava com quais amigos estavam, apenas que “eram os
de sempre”. Também não lembrava que horas tinha chegado, nem que horas Cacá se
juntou a eles novamente, mas lembrava que às onze e meia da noite a mãe de Cacá o
tinha chamado para que entrasse na casa porque estava bêbado. Surpreendeu-se diante
da pergunta de Sebastián sobre se tinha ouvido Raúl Lucero gritar que tinham matado
Cacá e garantiu não ter ouvido nada disso: “não! se estava comigo!”. Também disse não
conhecer ninguém de nome Raúl Lucero. A única vez que ouviu mencionar aquele
nome tinha sido quando, segundo contou, “caiu a polícia na minha casa, toda a
brigada
231
, sendo eu uma testemunha, um amigo da família, caíram mesmo assim na
minha casa perguntando por esse Raúl, mas eu nem o conheço”. Quando o depoimento
foi concluído, e Walter estava de saída, acrescentou seu último comentário: “salve
meu companheiro, mestre”.
Alguns dias depois de Walter, foi depor o outro cunhado, Tony. Como vimos,
Tony era conhecido de Sebastián porque tinha participado do “reconhecimento”,
junto com Cacá. Como o resultado do “reconhecimento” tinha sido negativo, Tony tinha
sido desvinculado do processo como “imputado”. Naquele dia, estava na UFI como
testemunha. Por conta disso, Sebastián se preocupou em esclarecer: “agora você está
como testemunha, portanto você está sob juramento de dizer a verdade. É um pouco
complicado de entender, mas agora você tem que dizer a verdade”
232
.
Apesar da desvinculação do processo, toda a primeira série de perguntas foi em
torno do casaco: por que o estava usando, se sabia de onde vinha, se sabia que “tinha
231
A brigada era o grupo de policiais de investigação que agiam à paisana. Trata-se dos policiais que
mantêm um nculo mais próximo com o bairro, não por atividades de policiamento ostensivo, mas pelas
suas tarefas de investigação e averiguação de informações.
232
Como mencionei no capítulo 5, nos depoimentos de testemunhas na UFI não se procedia ao ato de
juramento formal de dizer a verdade. Ou, nem se fazia menção, dando a mesma por pressuposta, ou,
diante de circunstâncias específicas, como a aqui descrita, fazia-se alusão a ela.
301
ruído”
233
. As perguntas seguintes versaram sobre o dia do “fato”. Até o dia do
allanamiento”, Tony disse não saber de nada do que tinha acontecido, “porque eu não
estou no bairro, esses caras não são meus amigos”. Da mesma forma que Javier, naquele
dia ele estava na casa de Cacá com sua namorada. Também soube que Cacá tinha
brigado com Sopa e que a mãe o tinha mandado entrar na casa. Mas não tinha ouvido
que alguém dissesse que tinham matado Cacá e, ainda menos, disse conhecer um tal
Raúl Lucero. Sebastián o indagou sobre sua relação com Cacá. Tony disse que apenas o
conhecia por ser irmão de sua namorada, que sempre andava dizendo que “de menor
havia caído muitas vezes preso, mas eu não dava muita bola para ele”. Também contou
que havia um tempo que não se dava muito com ele, porque “quando roubamos da outra
vez Cacá estava, mas ele não foi pego e a partir daí como que fiquei com raiva”.
Com esse último comentário, Tony explicitava, não que tinha outro
processo informação que Sebastián, por sua vez, tinha apurado-, mas que naquele
processo, no qual constava a participação de um terceiro “foragido”, tinha estado junto
com Cacá. Além disso, Tony aproveitou para fazer algumas perguntas em relação à sua
situação naquele outro processo, de outra UFI. Sebastián consultou o sistema e anotou
os dados do defensor público que tinha sido designado para ele. Depois disso, Tony se
retirou, junto com sua mãe que o esperava no corredor da UFI.
As últimas dúvidas manifestadas por Tony sobre aquele outro processo não eram
infreqüentes. Mostravam, como descrevi no Capítulo 4, a confusão em relação aos
papéis, pessoas e espaços físicos, entre defensor e promotor. Funcionários que, aos
olhos destes jovens, vestiam parecido, tinham salas semelhantes em diferentes andares
do mesmo prédio, e que, ao final das contas, com um vocabulário semelhante, não lhes
diziam coisas tão distintas umas das outras.
Nos três depoimentos, Sebastián fez referência aos processos anteriores das
testemunhas. Por momentos, o papel de testemunha e de “imputado” se entrelaçava,
favorecido talvez pelo clima de informalidade gerado no âmbito dos depoimentos na
UFI. Não eram poucas as vezes que Sebastián distinguia alguma de suas intervenções
dizendo “isso aí, em um juicio oral, com a presença do defensor, não passa não”. Mas,
aquelas perguntas permitiam Sebastián construir um perfil da testemunha, do
“imputado” e do seu grupo de amigos.
Sebastián: Cacá teve processos de menor, você sabia?
233
Expressão que indica que estava envolvida em algum processo ou situação de investigação criminal.
302
Walter: ele teve suas confusões sim, com o irmão.
Sebastián: você não?
Walter: eu não, eu me dediquei à construção.
Sebastián: aqui você tem um assunto também.
Walter: aqui não, em Comodoro Py [sede dos tribunais federais da Capital
Federal].
Sebastián: não, aqui pegaram você com um bagulho.
Walter: sim, pode ser, porque fumo maconha, mas nunca me citaram.
Sebastián: sim, você esteve sete dias preso.
Walter: ah, sim, por um roubo...
Sebastián: um roubo onde?
Walter: em um terreno baldio, botaram furto.
Sebastián: e com Cacá, você caiu preso de menor?
Walter: não, nunca.
Nestes diálogos, Sebastián parecia perguntar por informação que, na verdade,
possuía, pois, como disse, previamente aos depoimentos tinha apurado o registro de
antecedentes dos três. Sendo assim, aquelas perguntas funcionavam também para
indagar sobre a credibilidade da testemunha. Por outro lado, aquela informação estava
vinculada com a tentativa por saber quem era a pessoa que teria acompanhado Cacá no
dia do “fato”. De tal forma, pretendia-se saber se alguma dessas testemunhas poderia ser
companheiro de rodadas de Cacá, passando, eventualmente, do papel de testemunha ao
de “co-imputado”. O certo é que aquela indagação de Sebastián era recebida sem
surpresa nem reação alguma por parte dos jovens.
Também nos três depoimentos a atenção de Sebastián sobre possíveis
contradições podia ser percebida nas suas perguntas. Essa preocupação concentrava-se
em alguns pontos específicos do relato. A hora de cada uma das seqüências aparecia
como um ponto importante para poder, não reconstruir os “fatos”, mas também
avaliar se o relato de Cacá podia ser corroborado pelas suas “testemunhas de álibi”.
Sebastián percebia que certas horas eram lembradas por estes jovens com
especial precisão, enquanto outras se diluíam na lembrança, inclusive, porque as horas
pareciam ‘passar’ nas casas de suas namoradas, ou na esquina do bairro, como uma
espécie de continuidade entre uma cerveja e outra, sem relógios, sem obrigações e sem
as precisões exigidas pelo saber jurídico para comprovar as versões defendidas. Dessa
perspectiva, esse ‘tempo que vai passandocontrastava com a precisão informada pelos
jovens apenas em relação ao horário em que Cacá teria saído e voltado da casa de Sopa,
a hora em que teria sido chamado para entrar à casa e a hora em que teria passado Raúl
Lucero. E esse contraste não passou desapercebido para Sebastián. Como também
303
estranhou o fato dos jovens se lembrarem especialmente daquele dia, se ‘sempre’
paravam na esquina, ‘sempre’ bebiam cerveja, se Cacá ‘sempre’ estava com a “galera”
de ‘sempre’. Considerando isso, não foram poucas as vezes que, durante os
depoimentos de Javier, Walter e Tony, Sebastián chamou a atenção para não
“misturarem o que lembravam com aquilo que tinham lhes dito para dizer”.
Sebastián: você sabe em que dia foi aquilo da moto?
Javier: não, eu lembro que naquele dia eu estava na casa de minha namorada
porque lhe emprestei a bicicleta [a Cacá].
Sebastián: e como você sabe que foi naquele dia se você não se lembra?
Javier: não sei que dia foi, mas me lembro que naquele dia Cacá veio rindo
porque alguém dizia que o tinham matado. A mãe saiu desesperada e ele estava
na esquina.
Sebastián: quem disse que tinham matado Cacá?
Javier: Raúl.
Sebastián: qual Raúl?
Javier: não sei, eu não o conheço. Eu estava dentro [da casa]. Ele não entrou.
Sebastián: diga-me o que você sabe, não o que ele [Cacá] disse, porque quem vai
preso por falso testemunho é você, não ele.
Este último chamado de atenção parecia se dever, neste caso, à percepção de que
estas testemunhas, por relação de proximidade –amizade e parentesco- tinham sido
convocadas e/ou instruídas pela mãe de Cacá e pela defensoria sobre aquilo que
deveriam dizer ou especificar nos seus depoimentos. Por isso, as precisões e
contradições diante das perguntas contínuas podiam ser vistas como indícios dessa
parcialidade, ou, em outras palavras, como mostras de amizade, lealdade ou
compromisso. Quer dizer, indícios das relações sociais subjacentes a um testemunho,
uma prova, uma versão.
De fato, estas três testemunhas estavam na UFI por terem sido apresentadas por
Cacá no seu depoimento e foram recebidas por Sebastián como portadoras de alguma
informação que permitiria “limpar o nome de Cacá”. “Salve meu companheiro, mestre”,
“ele tem suas coisas, mas é legal”, eram frases finais dos depoimentos destes jovens que
buscavam transmitir uma imagem da personalidade de Cacá, para além do “fato” e do
possível álibi. Uma personalidade que podia ser “problemática”, mas que estava contida
por um pai e umae que impunham limites, que estava rodeada de amigos que
podiam depor por ele e, por ele, “pedir Justiça” porque mostravam-se convencidos de
que “ele não é capaz de matar alguém”.
Esse perfil defendido pelo grupo de apoio de Cacá contrapunha-se com aquele
que Sebastián conhecera por outras vias e que também ele mesmo tinha construído a
304
partir dos seus anos de experiência como promotor. Para ele, não era estranho que
“aqueles jovens matassem alguém e ficassem bebendo cerveja na esquina”. Ele sabia
que Cacá tinha processos “de menor”; sabia também que era “suspeito” no homicídio da
anciã alemã que ele mesmo investigava; sabia que seu irmão estava preso; sabia que os
vizinhos do quiosque o consideravam um jovem problemático. Mas, para além do que
Sebastián “sabia”, os dois grupos estavam se mobilizando, defendendo e construindo
suas próprias versões dos “fatos” e dos perfis de um grupo, de um bairro, de uma
pessoa.
Enquanto estes depoimentos eram registrados e ingressavam no processo
judicial, Marconi e seu colega continuavam buscando Raúl Lucero. Mas Lucero não
aparecia… Os policiais tinham deixado uma citação na casa de um tal Raúl Lucero, mas
não tinham certeza de que fosse a mesma pessoa, pois no dia da convocação ninguém
tinha se apresentado na UFI. Por minha parte, começava a me intrigar quem seria aquela
pessoa que não aparecia, que os amigos de Cacá diziam não conhecer, nem poder
reconhecer, mas que Cacá afirmava que tinha estado junto com ele naquele dia.
Sebastián dizia que “as fichas estavam se acabando” e que “aquilo que restava era
aquele ‘mataram Cacá’ e com muita sorte que aparecesse a moto [roubada a Quique]”.
A “reconstituição dos fatos”: ver e conversar
No dia 10 de outubro, uma quarta-feira às seis da tarde, nas ruas onde tinha
acontecido o “fato”, acompanhei Sebastián e Diego a um procedimento denominado
“reconstituição do fato”. Também estiveram presentes Marconi e Martínez, mais outros
dois policiais da mesma Divisão, e Claudio, o fotógrafo do Ministério Público, a quem
voltaria a encontrar no allanamiento da casa de Marisa e Carlos. O procedimento
consistiu na reconstrução da seqüência dos “fatos” do processo, através da dramatização
dos policiais das posições de Quique, Santiago e os dois jovens autores do “roubo” da
moto. Cada passo foi fotografado por Claudio e, posteriormente, registrado em uma ata
escrita. A seqüência foi sendo “reconstituída” a partir do relato de Quique, presente
naquele dia, e de algumas orientações e perguntas de Sebastián. As ruas que limitavam a
quadra do quiosque foram fechadas com dois carros não caracterizados dos policiais da
Divisão.
De forma diferente aos depoimentos orais, este ato judicial parecia produzir uma
“prova” onde o visual e o espacial, mais do que o relato, adquiriam predomínio. Aquela
305
foi a oportunidade de Sebastián ‘ver’ o local onde tinham acontecido os “fatos”: o
bairro, as casas, o quiosque, a calçada, as distâncias e dimensões de um ponto a outro.
Foi também a oportunidade de ‘estar’ presencialmente com as testemunhas, vizinhos e
familiares que, de diferentes maneiras, estavam vinculados às vítimas. Quique, o pai e
irmão de Santiago, a dona do quiosque e sua filha, o menino que –soube- observava de
longe, e três ou quatro vizinhos mais que opinavam e conversavam sobre aquele dia,
sobre a investigação, sobre Quique e Santiago.
Atividades como a “reconstituição do local do fato”, algum allanamiento
específico ou os casos de “homicídio”, que implicassem “sair de Tribunalesnão eram
as mais freqüentes. Como descrevi nos Capítulos 4 e 5, as horas de trabalho passavam
majoritariamente tomando depoimentos, solicitando perícias, fazendo citações, ou
outros “escritos”, na sede da UFI. Contudo, esses momentos de “saída” eram
valorizados, naquela UFI, como extremamente positivos. Por um lado, os tirava do tédio
das horas de escritório e os contatava com “as pessoas, o bairro”. Por outro, adquiria um
valor investigativo relevante. Para eles, em especial para Sebastián e Valeria, era o que
permitia se representar o que aconteceu de uma forma mais contextual:
“Conhecer o local dos fatos, mas não por alguma coisa concreta, me dá contexto,
me como é que é o bairro, as pessoas, não é a mesma coisa ‘um quiosque’
que ‘aquele quiosque’”, dizia uma vez Sebastián.
Nesta observação, aparecia a percepção de um tipo de conhecimento diferente
que podia ser alcançado através da presença no local, da observação direta do contexto,
do conhecimento pessoal dos envolvidos. Esse tipo de conhecimento era apresentado
como diferente daquele que surgia da informação escrita e, neste caso, era representado
como um conhecimento que devia ser valorizado, porque aportava informação útil ao
processo investigativo.
Naquele dia, antes de começar o procedimento de “reconstituição” formalmente,
Sebastián conversou bastante com a dona do quiosque e sua filha; ambas testemunhas
do processo. Marconi também conversava e circulava, com muita desenvoltura, entre os
presentes, familiares e vizinhos, na tentativa de resgatar alguma informação. Muitos já o
conheciam porque era ela quem havia andando pelo “bairro” conversando com os
vizinhos, nas suas “tarefas de investigação” policial. De fato, era quem mais se
relacionava com os presentes e o primeiro convidado, pelos vizinhos, a tomar chimarrão
e comer biscoitos, que, posteriormente, circularam entre todos os presentes,
306
preenchendo espaços vazios de espera e de registro escrito da informação levantada no
‘terreno’.
Quando fomos embora, Diego comentou o importante que era “baixar ao local
dos fatos” uma expressão que tinha ouvido muitas vezes na boca de policiais. A
importância, para ele, estava no fato de, naquele momento, surgirem informações que,
de outro modo, não seriam conhecidas. Lembrei das diversas conversas entre as pessoas
presentes, dos intercâmbios ocasionais, dos vizinhos que apareceram por lá pelo fato de
estarem todos reunidos no bairro, enfim, do clima mais descontraído se comparado com
a situação de depoimento em sede judicial. Contudo, para que algum desses aportes
informais pudesse ser utilizado judicialmente no processo, deveria ‘passar’, de forma
escrita e formal, pela UFI.
De fato, umas das informações levantadas ‘no terreno’ foi relativa ao local onde
estaria a moto roubada. O irmão de Santiago disse que, havia alguns dias, estando na
casa de um vizinho, tinha visto, desde o jardim, a moto de Quique na casa do vizinho do
lado do seu amigo próxima, por sua vez, da casa do Topo. Ele tinha tirado fotos da
moto com seu celular. Naquele mesmo dia, comunicou essas informações para Marconi,
o qual tomou um depoimento escrito sobre aquilo que tinha sido visto, mas sem baixar
as imagens do telefone ao computador. Segundo Sebastián, “o correto teria sido fazer
logo um allanamiento na casa daquele [segundo] vizinho. Mas Marconi não comunicou
a situação para mim e nada foi feito”. Nessa altura, seria necessário incorporar sob
alguma ‘forma’ aquela informação ao processo.
Para isso, o escrevente da polícia tomou, na varanda do quiosque, um novo
depoimento de Quique para que dissesse se, sendo exibida a foto do celular
“reconhecia” aquela moto como a sua. Quique disse que sim por uma série de
particularidades das partes da moto. Sebastián e Diego, por sua vez, duvidavam se
aquelas particularidades identificadas por Quique como próprias não seriam defeitos de
fábrica, mas Quique parecia convencido de se tratar de ‘sua’ moto.
A moto e o “allanamiento
Com aquela informação, o plano era que, no dia seguinte, bem cedo de manhã,
Marconi e o seu colega de Divisão fizessem o allanamientona casa daquele vizinho,
para ver se a moto ainda estava lá. No dia da “reconstituição”, Sebastián comentou
sobre a informação da moto com Diego. Sua sensação era que, se a moto estivesse
307
efetivamente perto da casa do Topo, esse fato voltava a reforçar a hipótese do Topo
como “autor”. Isso, de alguma maneira, “podia inocentar Cacá” do processo e
reconduzir, novamente, a linha de investigação sobre a qual vinham avançando.
Anteriormente, Sebastián tinha solicitado para a “juíza de garantias”
autorização para aquele allanamiento”. No entanto, a juíza a tinha negado, justificando
que “o certo é que o endereço cujo ingresso forçoso é pretendido tem sido obtido pela
instrução através de averiguações praticadas no local, sem verter no seu relato a
identidade das pessoas que forneceram a informação afirmada”. A situação aludida e
impugnada pela juíza era a seguinte: o dono da casa onde a moto tinha sido vista em
momento nenhum tinha deposto no processo; a moto tinha sido translada para a casa de
outro jovem apelidado Rengo, cujo endereço era conhecido através de um “informante”
de Marconi, que teria lhe passado anonimamente essa informação.
Informações como essas requeriam um tipo especial de tratamento para poder
ser utilizadas judicialmente. Como mencionei no Capítulo 5, uma das técnicas de
investigação muito comum entre os policiais da Bonaerense era a construção,
manutenção e utilização de uma rede de “informantes”, também chamados buches
234
.
Segundo me explicaram os policiais da Divisão, os “informantes” deles eram “os
malandros de uma área, que são as pessoas que conhecem a rua, o bairro”. Mas, havia
diferentes tipos de “informantes”, dependendo da posição do policial e também do tipo
de negociação estabelecida com a polícia. Os policiais que trabalhavam em comisaría
tinham uma área de intervenção determinada; portanto, seus informantes eram,
geralmente, aqueles que “roubavam” no território por eles controlado. A negociação
com eles, geralmente, passava pela “liberação de zonas” para roubar, em troca de
informações sobre outros crimes considerados mais relevantes. Já o pessoal das divisões
de investigação, como Marconi, Martínez e seus colegas, não trabalhavam em um
território pré-definido. Então, o poder de troca destes policiais era menor; seus
“informantes” podiam ser apenas pessoas de um lugar que se jactassem de ser “amigos
da brigada”, ou ainda comerciantes que simplesmente passavam dados para estes
policiais. Nos comentários que ouvi em relação a esta “antiga instituição policial”, podia
se perceber uma relação ambígua por parte dos promotores em relação ao uso dos
234
O termo buche refere à parte da boca de um pássaro, onde armazena parte da comida que vai ingerir.
A expressão “desembuchá ou “larga el buche” refere a soltar informação retida.
308
buches”. Por um lado, reconhecia-se sua utilidade investigativa; pelo outro, sua
vinculação com atos de “corrupção”.
Aqueles que mais buches têm, são aqueles que melhor investigam, e são os mais
corruptos, é quase proporcional, têm mais informação, mais dinheiro e isso
retro-alimenta o circuito. E o circuito é mais ou menos assim: “deixo você
roubar e você me traz informação”; daí passa a “deixo você roubar e você me
parte do que você rouba e me também informação”; daí passa a “deixo você
roubar para você roubar para mim” e daí à eternidade. Até o buche querer se
abrir e, então, terminar mal; no mínimo preso, no máximo em um poço.
(Conversa com um promotor).
A questão para este e outros promotores era que, embora a utilização de
buches” fosse uma ferramenta fundamental para o esclarecimento dos crimes, a relação
do judiciário com essa instituição era complicada
235
. Ao não ser legal, não podiam
reconhecê-la explicitamente. Deviam, então, dentre as ‘formas’ permitidas pelo
processo, ser recriados mecanismos para outorgar validade judicial à informação
aportada. Um era transformar o “buche em “testemunha de identidade reservada”;
outro era o “anônimo”, mas, segundo dizia Sebastián, era uma técnica de baixa
credibilidade.
É usar a imaginação. O policial vem e diz que as coisas roubadas estão em tal
lugar e o assassino é Fulano; então, eu lhe digo “bom, pensemos a forma de
chegar a essa informação de forma mais arrumada”. Por exemplo, você sabe que
está na casa de Fulano e sabe que o vizinho dessa casa não sabe de nada, mas,
então, mando o policial interrogar o vizinho, que diz “eu não sei, mas olhe pela
parede”. Você olha e está o morto, ou as coisas roubadas. Não sei, imaginação.
Quando no dia da “reconstituição” o irmão de Santiago disse que ele tinha visto
a moto, através da casa de um vizinho, se abria uma brecha para solicitar, com nova
informação “mais arrumada”, a segunda autorização para o allanamiento”. Este foi
autorizado pela juíza e realizado por Marconi e seus colegas. Efetivamente acharam
‘uma’ moto no jardim daquele endereço, mas a mesma não era, nem tinha sido,
propriedade de Quique. Naquele dia, Sebastián comentou que o fato de ter encontrado a
moto teria sido muito importante porque “abria um canal para saber quem a teria dado
para aquele garoto [o dono da casa allanada”], sobretudo porque ainda não passou
muito tempo e porque é tudo no bairro”. Nesta perspectiva, a situação envolvia uma
proximidade não temporal e espacial, mas também social. Pelo fato das linhas de
235
“Há coisas das quais é melhor não saber”, prega uma máxima judicial de longa data. Essa máxima
aplicava-se, entre os promotores, no caso dos “buches”.
309
investigação estarem circulando por “endereços” e “vizinhos do bairro”, o objeto
“roubado” ainda poderia ser vinculado com uma certa rede de relações que permitiria
identificar o possível “autor”.
A testemunha que não aparecia
Passados alguns dias, assim que cheguei à UFI, Sebastián me disse: “ligou Raúl
Lucero”. Tive a sensação de que um fantasma finalmente aparecia. Minha surpresa foi
maior quando Sebastián acrescentou o que Lucero teria lhe adiantado ao telefone: “ele
viu a briga entre Sopa e Cacá, mas afirmou que não disse que mataram Cacá, que
apenas conhece Cacá de vista e, ainda mais, que detesta Cacá”. Raúl Lucero também
disse que no dia em que tinha sido citado à UFI não tinha conseguido ir porque era o
aniversário da filha dele. Acordou com Sebastián, ao telefone, se apresentar no dia de
folga do trabalho.
No dia combinado, Raúl Lucero, um jovem, na época, de trinta e um anos, foi à
UFI com uma calça azul e uma camisa social branca. Informou trabalhar na construção
do pai, ter namorada e ser pai de uma filha. Disse não saber por que o estavam
buscando… que também não entendia porque a mãe de Cacá tinha ido à casa dele...
“Então, você é ou não é amigo de Cacá?”, perguntou Sebastián, desorientado com a
informação da mãe de Cacá tê-lo visitado na casa. Lucero foi enfático na sua resposta:
“não, para nada”. “Para nada?”, replicou Sebastián. Lucero não duvidou na sua posição:
“esse aí é um bardero [apronta todas]
236
, ninguém gosta dele”.
que não eram amigos, Sebastián quis saber se Raúl Lucero alguma vez tinha
tido algum problema com Cacá. Ele contou que uma vez Cacá tinha provocado o
sobrinho dele, mas explicou que o problema não era nenhum em particular: “o problema
com ele é geral, você deixa sua bicicleta por dois segundos e o cara a rouba, é um ratero
[larapio]. Eu me cruzo com ele o tempo todo, mas não lhe dou nem bola”. Lucero não
sabia nem sequer onde Cacá morava, apenas tinha o telefone da casa dele, porque,
236
Bardo, fazer bardo ou ser um bardero, remetem a uma sociabilidade identificada como própria da
sociabilidade dos jovens, nos seus bairros, a partir da cada de 90. Gabriel Kessler a define como: “a
ruptura da ordem pública no nível micro-social, por meio da transgressão de regras básicas de convívio
(...). O bardo é uma maneira de estar presente no bairro, de ter protagonismo; marca uma presença nesse
lugar e, apesar de ser esporádico, sem dúvidas constrói um tipo de vínculo, que obriga a alguma reação
por parte dos outros, embora em muitos casos não faça mais do que reforçar estratégias de evitação e
distanciamento forçado” (2004:239-240). Quando Lucero afirma que Cacá é um bardero reforça o
distanciamento e a evitação por parte dele mesmo com Cacá e seus amigos. O que Cacá apronta no bairro
será matéria de crítica por parte de Lucero, bem como de diferenciação social.
310
naquela única visita, a mãe de Cao tinha deixado com ele “para eu ligar para ela”.
Também disse o conhecer os amigos de Cacá: “eu o dou bola para ninguém”.
“Você trabalha?”, perguntou Sebastián quase como uma continuidade e alternativa ao
fato de não “dar bola a ninguém” naquele bairro. “Sim, eu trabalho, não dou bola a
ninguém”, respondeu Lucero, confirmando a perspectiva do promotor. A diferenciação
estava colocada: trabalho x roubar, morar no bairro x vagar pelo bairro, andar pela rua x
estar na esquina. Entre Cacá e seus amigos, e Lucero, o bairro podia ficar no mesmo
raio e a idade, o aspecto físico e, inclusive, a classe social podiam ser as mesmas, mas
as representações transmitidas por eles e aquelas recepcionadas por Sebastián eram
distintas.
Sebastián perguntou pelo dia do “fato”: o que é que tinha acontecido, o que é
que ele tinha visto... “porque Cacá disse que vocês dois estavam juntos”, completou
Sebastián. Raúl Lucero mostrou-se desorientado. Disse não entender nada, que o único
que ele tinha visto era “a confusão, Cacá brigando com um senhor, mas depois fui
embora, olhei por alguns segundos por curioso, mais nada”. O relato judicial exigia
maiores precisões de dia e hora. A lembrança de Lucero era que aquilo tinha acontecido
em um dia útil, no final da tarde, porque lembrava estar voltando do trabalho e indo à
casa de sua namorada. Esclareceu que nos finais de semana não visitava sua namorada,
mas sua filha. Sebastián insistiu sobre esse ponto, porque aquele 30 de junho do dia do
“fato” tinha sido sábado.
Sebastián quis saber sobre a roupa que Cacá vestia naquele dia. Lucero lembrou
que estava com short, porque recordava também que fazia calor. Como junho em
Buenos Aires costuma ser um dos meses mais frios do ano, Sebastián pediu que, se não
lembrasse de alguma coisa, melhor não dissesse nada. Talvez seja por isso que ficou
registrado na ata escrita que “perguntado sobre como estava vestido, disse que não
lembrava porque não lhe deu importância”. Sobre o acontecido naquele dia, Raúl
Lucero também respondeu que só soube que tinham matado o açougueiro da área
“através do bairro”, mas que não sabia mais nada sobre aquilo.
Sebastián insistiu na versão de Cacá mencionando que Raúl Lucero teria
chegado à casa de Cacá dizendo “mataram Cacá”. “Alguma coisa assim me explicou a
mãe, mas nada a ver, se eu não lhe dou nem a hora... ainda mais, se [realmente] o
matassem estavam fazendo um favor à sociedade”. Este último comentário não ficou
registrado na ata escrita. Não por acaso. Era claro que um comentário do tipo
311
evidenciava o desgosto de Lucero por Cacá e, segundo Sebastián, poderia ser
interpretado como “animosidade da testemunha contra o imputado, o que tiraria
objetividade” ao relato da primeira. Decidindo excluir da ata “semelhante comentário”,
Sebastián tentava manter a “imparcialidade” da testemunha. Excluía, assim, a relação
social entre Lucero e Cacá e conservava a “objetividade” do relato.
As “atas” e o registro
Como já mencionei, todas as audiências de depoimentos requeriam da confecção
de um ata final que certificasse que o testemunho tinha acontecido, ao tempo que dava
ao mesmo a forma processual devida. Se bem predominavam algumas técnicas comuns
na forma de elaborar as atas, minhas observações me mostraram as particularidades dos
diferentes integrantes da UFI, que podiam ser vinculadas com os estilos distintos de
trabalho de cada um deles.
Após ouvir o relato do depoente e conversar com ele, a partir de perguntas e
esclarecimentos, em um dado momento do ato, Valeria sempre anunciava: “agora eu
vou fazer um resumo do que você me disse”. Escrevia assim parte da conversa mantida,
conforme o interesse investigativo do processo. Algumas vezes, após escrever, quando
Valeria lia a ata, as pessoas pediam para acrescentar ou modificar algum trecho ou
detalhe. Lembro de uma vez, quando estava depondo a mãe daquele garoto Lucas
Martín, envolvido em uma briga de vizinhos presenciada pela mãe, Valeria pediu para
ela que aguardasse em silêncio que iria escrever o que tinham conversado
237
. A
conversa tinha sido longa e tinha variado sobre diversos aspectos da vida do menino e
da família, pois a mãe falava fluentemente. “Uy, vai se lembrar de tudo?”, perguntou
com surpresa a senhora. “Sim, porque mais ou menos eu sei”, respondeu Valeria. A
resposta mostrava que a forma de registro envolvia não uma técnica de registro, mas
também de escuta (pré-definida) do relato da pessoa, selecionando os pontos de
interesse e excluindo outros que não seria necessário lembrar, nem registrar.
Sebastián também tinha a técnica de escrever a ata como um ato posterior ao
relato da pessoa. O depoente começava a falar e, enquanto isso, ele costumava
interrompê-lo com perguntas e pedidos de esclarecimento, que conduziam o relato.
Quando Sebastián considerava que a pessoa já tinha falado o suficiente, ou o mesmo
depoente dizia que não tinha mais nada para dizer, anunciava que escreveria o que a
237
Caso relatado no Capítulo 5.
312
pessoa tinha dito. Uma técnica semelhante à de Valeria. A particularidade desta técnica
era que, enquanto digitavam a ata olhando para a tela do computador (e não para o
depoente), passavam longos minutos de silêncio. A pessoa aguardava sentada, que
não devia assinar a ata, mas também manifestar seu acordo com a versão final do
registro. Observei que essa pausa no relato e no diálogo suscitava algum comentário
esquecido ou algum esclarecimento por parte do depoente; alguma coisa que não tinha
dito, mas que depois, com a espera, considerava importante de ser dita. Ao mesmo
tempo, provocava que o funcionário perguntasse por novas informações ou detalhes de
uma situação. No caso de Sebastián, ele aproveitava esses momentos para re-perguntar
sobre aspectos questionados, ora esperando uma confirmação, ora buscando possíveis
contradições:
Durante o depoimento:
Sebastián: mas você o conhecia há pouco [a Cacá], né?
Tony: sim.
Sebastián: 20 dias, né?
Tony: sim.
Minutos depois, quando Sebastián lê: “… há 20 dias que conhecia Cacá, o
imputado…”.
Sebastián: por que você dizia que há 20 dias que o conhecia?
Tony: eu não, o senhor disse.
Sebastián: não, você me disse.
Tony: é que eu o fui conhecendo.
Bruno tinha um estilo próprio e diferente. Ao tempo que a pessoa falava, sem
retirar o olhar da pessoa, Bruno digitava literalmente o que a pessoa dizia. Abria as
aspas no texto e transcrevia, inclusive, as idas e vindas da fala, os titubeios e as
correções. O efeito dele estar digitando e olhando para a pessoa era estranho. Algumas
pessoas falavam devagar como esperando que Bruno terminasse de escrever, mas ele
esclarecia que podiam falar normalmente. Sebastián criticava esse estilo, pois achava
que fugia do padrão judicial de registro e que era confuso. Bruno o defendia na linha de
registrar o que a pessoa “realmente” dizia, sem edições.
Apesar das formas mais ou menos literais de registrar os depoimentos, um
aspecto comum eram as mudanças produzidas do relato oral ao escrito. Não se tratava
de alterações que trocassem umas informações por outras, mas, como apontei na
introdução, mudanças de termos, de vocabulário que, além de refletir o habitus dos
funcionários no uso de certas categorias “rua” por “artéria”, “bêbado” por
“alcoolizado”- pareciam adaptar a linguagem dos leigos aos termos jurídicos. É possível
313
que essa transformação do vocabulário funcionasse também como uma padronização da
diversidade de linguagem expressa e utilizada por testemunhas jovens, velhas,
profissionais, operários, desempregados, mães, filhos, pais, vizinhos, pobres, classe
média, estudantes, catadores de papelão, vendedores ambulantes, argentinos,
paraguaios, bolivianos... Se isso fosse uma explicação válida, é possível também pensar
nisso como um mecanismo do direito para manter seu saber dentro do formato
consagrado.
No seu trabalho sobre o funcionamento dos tribunais no Egito, Baudouin Dupret
chama a atenção para as formas de registro dos interrogatórios realizados pela polícia e
pelos agentes judiciais. Na análise, chama a atenção para o fato do interrogatório ser
uma construção orientada pelo funcionário para a produção de uma correção
procedimental e uma pertinência jurídica (2006:139). Nas diversas formas de registro
escrito, por mim observadas durante o trabalho de campo na UFI, a busca dessa
“pertinência jurídica”, almejando manter um vocabulário padronizado e a correção das
formas de procedimento, claramente não era a única orientação que guiava, nem o
interrogatório, nem seu registro. Como mostrou a ponderação de Sebastián sobre a frase
de Raúl Lucero sobre a animosidade” contra Cacá, bem como a omissão das perguntas
dos funcionários que conduzem o relato, o conteúdo das interações orais que ficariam
registradas era também avaliado em função da conveniência investigativa, e não
meramente por motivos formais. Assim, o registro escrito, além de omitir sinais
próprios das interações orais (choro, risos, arrogância, hesitações), também omitia ou
formatava determinadas informações conforme as “provas” que estavam sendo
produzidas e o interesse investigativo em jogo.
O “álibi” e a “mentira”
O depoimento de Raúl Lucero foi um momento importante na investigação do
processo. A forma com que o mesmo seria registrado era de enorme valor investigativo.
Seu conteúdo podia criar sérios problemas e dúvidas sobre a versão apresentada por
Cacá. não se tratava apenas de ter estado em um lugar ou outro, ou daquilo ter sido
em um horário ou outro. Nem sequer tratava apenas do fato de dizer que era “inocente”.
Era mais do que isso: mostrava que Cacá tinha fornecido uma informação bem concreta
que não se verificava nos ditos de Lucero. O primeiro tinha dito que Raúl Lucero, um
amigo, teria estado com ele a tarde toda, teria o acompanhado quando brigou com Sopa
314
e, mais tarde, teria aparecido dizendo “mataram Cacá”. E, agora, Raúl Lucero aparecia
na UFI dizendo que não tinha acompanhado Cacá a lugar nenhum, que nunca teria dito
aquela frase, que o detesta”, que ele “não se mete nem com Cacá nem com seus
amigos, não lhes bola”, que ele “trabalha” e que não tem, nem teve “problemas com
a lei”.
“É verdade que o imputado pode mentir dizia Sebastián-, mas uma coisa é
dizer que é inocente e outra coisa é que, além disso, diga que estava em tal lugar
com tal pessoa e, ao investigar, essa informação caia, por que é que está
mentindo assim?”.
Estava presente na avaliação de Sebastián uma ponderação não pouco comum
sobre o direito de mentir do “imputado”. Em outros casos, tinha me chamado a
atenção, em solicitações da UFI, como em resoluções de “juízes de garantias”, ponderar
como uma variável negativa a “mendacidade do imputado”. Perguntava-me como isso
podia ser explicitado dessa forma sendo um direito do “imputado” não depor sob
juramento de dizer a verdade. A opinião de Sebastián mostrava que podia haver uma
avaliação diferenciada da “mentira” manifesta pelo “imputado”. Quando nas resoluções
tomava-se a “mendacidade” com sinal negativo não se referia tanto ao fato de “não
dizer a verdade”, mas a contradições claras e manifestas contra outras “provas”. Diante
delas, a palavra do “imputado” tinha sempre um valor menor. Eram contradições que
não aportavam argumentos defensivos, mas apenas “indícios que não permitiam
justificar a própria mentira”.
Embora os amigos de Cacá tivessem deposto confirmando a versão dele sobre a
briga com Sopa e sobre ele ter permanecido na “esquina”, eles não tinham aportado as
precisões esperadas, nem seus ditos pareciam estar livres de pequenas contradições.
Cacá poderia ter estado naquele dia com eles, como qualquer outro dia; naquele horário
como em qualquer outro. Convocados pela mãe de Cacá para apoiar o filho, seus
testemunhos não resultavam, na visão de Sebastián, fortes o suficiente para contrapor-se
à versão aportada por Raúl Lucero. E esse peso diferencial devia-se a vários motivos
que, mais uma vez eu percebia, não se vinculavam apenas, nem principalmente, ao
conteúdo do relato, mas a atribuições morais e sociais sobre quem o apresentava.
Desde antes do depoimento de Tony, a família de Cacá não tinha se
mobilizado no bairro, convocando os amigos como testemunhas de ‘umaversão sobre
aquele dia, bem como encontrado e conversado com Raúl Lucero. Também tinham
315
substituído o defensor oficial por um advogado particular. Através deste, foi solicitado
que fossem citadas outras “testemunhas da defesa”, especificamente, a mãe de Cacá, sua
namorada e a irmã dela, que tinha visto a briga com Sopa, e outras testemunhas,
segundo Sebastián, “os outros malandros do bairro”. O grupo de Cacá estava atuando
para construir e legitimar uma versão sobre os “fatos”. O grau de sucesso dependia,
como no caso de Marisa e Carlos, de quão verossímil seus argumentos e desempenho
fossem aos olhos de Sebastián, e em contraste com a versão do “bairro”.
A difícil arte de (se) convencer
Haviam passado exatamente quatro meses do “fato” e do início do processo.
Quatro dias mais tarde, venceria o prazo legal para Sebastián solicitar ou não-, diante
da “juíza de garantias”, a “prisão preventiva” de Cacá, único preso por este processo
238
.
Naquele dia, a advogada da família de Santiago foi visitar Sebastián. Conversaram
sobre as “provas” reunidas e os passos futuros. Sebastián informou sobre os
depoimentos tomados às “testemunhas de álibi”, nos quais mencionavam que Cacá
tinha estado em outro lugar. Também esclareceu que tratava-se de “um álibi fraco
porque as testemunhas eram de baixa credibilidade porque são os amigos dele”.
Respondeu que a moto não tinha aparecido e que, se bem era verdade que tinham o
casaco que Cacá teria usado no dia do “fato”, o mesmo era um casaco de uso muito
comum entre os jovens. Também mencionou que, no “reconhecimento”, a filha da dona
do quiosque e Quique não tinham sido muito convincentes em suas identificações. Por
isso, tinha citado ambos novamente para depor. Por último, disse para a advogada que
estava quase convencido de pedir a prisão preventiva [de Cacá]; a questão é como
pedí-la para convencer a juíza”.
Um dos passos para afinar esse “convencimento” foram os novos depoimentos
da filha da dona do quiosque e de Quique. Ambos sabiam o motivo da citação,
porque Sebastián tinha conversado com eles no dia do procedimento de “reconstituição
do fato”: tinham que “botar força [ponerle garra] no depoimento sobre por que
identificavam Cacomo o autor”. A primeira em se apresentar na UFI foi a filha da
dona do quiosque. Assim que se sentou diante de Sebastián, ela disse:
Jovem: eu gostaria de estar 100% segura, mas não estou.
238
Segundo o CPP-PBA, o prazo máximo para o Ministério Público solicitar a prisão preventiva é de 15
dias após a detenção (art. 158), pudendo ser prorrogado por outros 15 dias. Uma vez solicitada, o juiz de
garantias conta com um prazo de 5 dias para convalidar, ou não, o pedido.
316
Sebastián: eu também gostaria que você estivesse 100% segura, respondeu
Sebastián enquanto lhe mostrava as fotos dos participantes do “reconhecimento
em roda”.
Jovem: é que são todos iguais. Minha ficha caiu quando ele voltou a comprar
depois de um mês, porque lembrei que era bem bardero [problemático], assim,
provocador, e quando voltou a comprar ao quiosque estava super amável e eu
fiquei assustada porque foi muito chocante.
A sensação da jovem no dia que Cacá voltou a comprar, após um mês do “fato”,
assemelhava-se com o “flash” da sua e. Como se tivesse tido que passar tempo para
decantar as impressões sobre aquilo visto naquele dia. Ao mesmo tempo, aquela
afirmação confirmava que tais associações eram possíveis porque ambas –mãe e filha-
conheciam Cacá do bairro e, por isso, percebiam eventuais mudanças na sua atitude.
Percepções talvez mais vinculadas à reputação de Cacá no bairro, do que diretamente à
personalidade dele. Melhor dizendo, essa “personalidade”, como vimos no depoimento
de Raúl Lucero, era também o resultado da sua reputação no bairro.
Junto com Sebastián repassaram um a um os depoimentos que ela tinha dado na
comisaría, posteriormente na Divisão de Homicídios e, por último, na UFI. Ela
comentou que estava “quase segura” que era Cacá. Contudo disse que, no momento do
depoimento na comisaría, tinha afirmado que o garoto se chamava Jesus porque era o
que era falado no bairro, mas que, na verdade, o que “mais se comentava no bairro era
que era o genro de Sopa”. Sebastián escreveu esse depoimento, encerrando a ata com
uma frase que remetia às primeiras palavras da jovem quando entrou na sala da UFI,
embora não fossem em nada literais: “que não pode ser concludente porque quer ser
responsável no seu depoimento”.
Uma vez impressa e assinada a ata, a jovem lembrou que no dia anterior tinham
sido quatro meses da morte de Santiago. “Todos os dias 30 é horrível. Tudo na verdade
é para baixo, porque não é fácil ser testemunha, porque no bairro as pessoas comentam
muito... Não é que eu tenha medo, mas poderia me acontecer alguma coisa, não sei,
embora não me importe”. Sebastián tranqüilizou a jovem, dizendo que nada
aconteceria com ela, que sem sequer seria bom para “eles” –Cacá e família- porque, se
assim acontecesse, aquilo representaria, para ele como promotor, um indício contrário.
No mesmo sentido que a avaliação de Sebastián sobre os ditos de Cacá –“não é
mentir, mas que aquilo que diz caia”-, parecia-me que esta resposta refletia a
compreensão de certos atos por parte do “imputado” ou sua família, ou grupo- como
317
formadores de “culpa”. Mentir sem fundamentos, ocultar informação (como por
exemplo, não aportar o endereço de Raúl Lucero, ou, em outros casos, se negar a ser
submetido a alguma perícia), ameaçar ou atentar contra outra parte envolvida, eram, se
não provas, pelo menos fortes indícios contra o “imputado”. Alguém “inocente” deveria
estar livre de tais iniciativas
239
.
No dia seguinte, Quique se apresentou na UFI. Começou por conversar com
Sebastián sobre vários aspectos do processo. No meio da conversa, sem que nenhuma
pergunta direta fosse formulada, Quique disse:
Nesta semana eu fiquei pensando e eu tenho certeza que é ele, porque quando eu
estava com meu primo ele passou e olhou para nós e eu o vi, lembro da cara
dele, mas não se animaram e depois passaram de novo e eu tenho certeza que
é ele. [Sebastián mostrou a foto do “reconhecimento” e leu as palavras
duvidosas registradas naquele procedimento]. É que depois eu pensei mais e
tudo se passou por minha cabeça... eu andava pela rua e via todos iguais. Mas
depois, quando o vi, logo soube que era ele... Era meu primo, eu andava sempre
com ele. Agora vêm as férias e eu sempre saía com ele e… o matou diante de
mim, eu vi, se eu... [Quique começou chorar, mas continuou falando]... se eu
podia, o seguia e matava.
Sebastián finalizou o depoimento registrando que, quando foram exibidas as
fotos do “reconhecimento em roda”, novamente reconheceu” o número dois Cacá- e
que “não tinha dúvidas daquilo. Que quando o promotor lhe solicitou maiores detalhes
naquele momento, começou a duvidar, mas agora tinha certeza”. O depoimento foi
encerrado. Quique saiu da UFI, ainda emocionado pela situação. Sebastián se despediu
dele, pois a primeira etapa da investigação chegava a seu fim. A emotividade de Quique
mostrava seu compromisso emocional com a resolução do processo. Talvez, também,
fosse um sinal de alivio pelo fato dessa resolução estar sendo concluída, com a prisão de
um “autor”. Lembrei naquela situação um comentário de Sebastián sobre o dia da
“reconstituição do fato”:
Para mim naquele dia havia muito clima de equipe entre todos, não entre nós,
promotor, secretário, policiais, Claudio. Mas também com as pessoas do bairro.
Óbvio que os papéis estavam definidos, mas eu senti que todos trabalhávamos
239
Esta perspectiva se associava a outra que já tinha ouvido por parte de diversos funcionários sobre o
fato de quem “realmente” era inocente achar que não precisava sequer de defensor (Eilbaum, 2008). No
decorrer das audiências da UFI, Alicia tinha citado um jovem que estava preso por um homicídio
investigado em outra UFI. Alicia o citava para notificá-lo de uma perícia que seria feita sobre um projétil,
em outro processo de “homicídio” que ela investigava. Após um tempo de conversa, Alicia disse para
ele:
Alicia: você pode exercer seu direito de defesa, até já tem seu advogado do outro processo.
Jovem: não, mas eu não vou chamar meu advogado para isto, se eu não tenho nada a ver.
318
para a mesma coisa. Embora seja relativo... porque a família queria um preso e
nós queríamos o autor preso.
A diferença entre ‘um’ autor e ‘o’ autor era colocada, por Sebastián, como uma
distinção de objetivos entre eles, funcionários, e as pessoas do bairro, os familiares.
Essa distinção marcava, em teoria, uma diferença importante de papéis. Contudo, o
objetivo era comum; eles – funcionários- se sentiam trabalhando ‘para’ e ‘com’ o bairro.
Nesse contexto, as novas citações de Quique e da filha da dona do quiosque tiveram por
objetivo reforçar as provas reunidas. Ao fazer isso, Sebastián procurava poder gerar
um maior convencimento na visão da “juíza de garantias”. Quando, diante das dúvidas
da filha da dona do quiosque, Sebastián disse para ela “eu também gostaria que você
estivesse 100% segura”, na verdade, evidenciava que ele mesmo sabia que as “provas”
ainda não eram suficientemente sólidas. E, como disse Sebastián, “é difícil convencer
alguém daquilo que nem você mesmo está convencido; seu poder de convencimento
para com um terceiro imparcial fica enfraquecido”.
A “prisão preventiva”
No dia 2 de novembro, Sebastián solicitou, à juíza de garantias”, a “prisão
preventiva” de Cacá pelos delitos de “roubo qualificado por uso de arma, em concurso
real com homicídio qualificado em concurso ideal com tentativa de homicídio
qualificado”. As “provas” reunidas foram ordenadas em uma seqüência que permitisse
fundamentar “convincentemente” a solicitação. Em primeiro lugar, aparecia a sucessão
de depoimentos relativos ao “reconhecimento” de Cacá: do Quique, da filha da dona do
quiosque, da testemunha com “identidade reservada” e, finalmente, da dona do
quiosque. Todos eles foram ponderados, na solicitação, como:
“(...) quatro relatos contestes, cada um desde sua possibilidade de observação do
fato, sobre o sujeito que efetuou os disparos ser Cacá. Para além da falta de
segurança observada nas respectivas imputações a Cacá, o que, ao meu juízo,
não faz mais do que ressaltar a seriedade e responsabilidade cívica com que as
testemunhas desempenharam seu papel, existem circunstâncias concordantes que
fazem lhe dar crédito a seus relatos”. (Da solicitação de prisão preventiva de
Cacá)
Referia-se ao cabelo de Cacá, ao casaco com capuz “cor de chocolate” e ao fato
de ter sido Cacá, e não seu acompanhante, quem fora identificado por todos como autor
319
dos disparos. Essas e outras circunstâncias foram mencionadas como as “provas” que a
acusação alçava contra Cacá. Eram as chamadas “provas de carga”.
Frente a elas, apresentava-se o relato de Cacá no seu depoimento. A “prova
produzida pela defesa do “imputado” foi analisada à luz da acusação levantada. Em
primeiro lugar, foi ressaltado o fato da defesa oficial não ter fornecido os endereços das
testemunhas mencionadas por Cacá, sendo a mesma UFI quem, através dos registros
informatizados, teria conseguido localizá-las. Com esta menção, intencionalmente ou
não, Sebastián expunha para a juíza o fato daquelas testemunhas terem antecedentes
penais e, por isso, estarem registradas no sistema informático. Também foi destacado o
fato de um dos endereços não aportados ter sido o de Raúl Lucero, testemunha chave na
versão de Cacá. Especial dedicação mereceu, na solicitação, a valoração dos
depoimentos dos “amigos de Cacá”.
“(...) o álibi de Cacá, quanto a ter estado entre as 21 e as 22 horas daquele dia na
esquina de sua casa, não tem sustento nenhum. As testemunhas relatam uma
reunião quase habitual, quase diária, ocorrida quatro meses (...). Realmente a
memória seletiva surpreende, sendo que apenas lembram que estiveram com ele
entre as 21 e as 22 horas. Isso não obedece a uma mendacidade manifesta, mas
somente a forçar lembrar um dia, como tantos outros em que se reuniam sem um
horário muito concreto a beber cerveja”. (Da solicitação de prisão preventiva de
Cacá)
Não era esta uma valoração como qualquer outra, que pudesse apenas desmentir
a credibilidade de um “álibi” por uma contradição, falta de memória ou incapacidade de
identificar um dia em lugar do outro. Ela também reforçava um perfil do “imputado” e
“suas testemunhas”, ao definir um tipo de sociabilidade comum e freqüente entre eles:
as “reuniões na esquina”. Como vimos ao longo dos depoimentos de Cacá e de seus
amigos, essas reuniões, seus horários e as companhias freqüentes foram objeto de
perguntas, bem como do contraste marcado com aqueles que, como Lucero, não as
freqüentavam. Embora essas “reuniões” não tivessem uma associação direta com a
acusação de Cacá como “autor do fato”, elas construíam um perfil social condutor de tal
hipótese. Não porque não permitissem definir horários certeiros para um álibi, mas
porque, como vimos que dizia Sebastián, “não é estranho que aqueles jovens matem
alguém e fiquem bebendo cerveja na esquina”. A “esquina” representava, no universo
das investigações seguidas na UFI, e no conurbano de forma geral, um lugar de
significação sociológica e social relevante.
320
Sociológica, porque, como tem mostrado o trabalho pioneiro de William Foote
White (2005), uma “esquina” – a da rua Norton em Cornerville- pode permitir a análise
de um complexo de relações sociais que dão conta da identidade de um grupo social,
identificando regras definidas. “No início, a rua Norton não significava mais do que um
lugar para esperar até que pudesse ir a algum outro sítio”, disse White (1971) em um
trabalho onde reconstrói seu trabalho de campo em Cornerville. Durante o mesmo, foi
identificando padrões de sociabilidade próprios dos “rapazes da esquina”, em contraste
com outro grupo de jovens identificado como os “rapazes formados” (2005:22).
“Os rapazes da esquina são grupos de homens cujas atividades sociais giram em
torno de algumas esquinas em particular e suas adjacências (...). Constituem o
nível mais baixo da sociedade dentro de sua faixa etária e, ao mesmo tempo,
compõem a maioria dos jovens de sexo masculino de Cornerville (...) Estão
unidos por laços de obrigação mútua...” (2005:22 e 36).
Este trabalho clássico, construído a partir do trabalho de campo (“observação
participante”, como assinala Gilberto Velho no prefácio do livro) em torno a uma rua,
sua esquina e adjacências, transformou esses pontos em loci de relevância sociológica.
Esta perspectiva tem inspirado diversos trabalhos sobre as sociabilidades de jovens no
conurbano bonaerense. Eles demonstram como a “esquina” é também, nos bairros
dessa área da província argentina, um local de significação social (Kessler, 2004;
Míguez, 2002, 2006; Isla, 2002, Vázquez, 2000; Pita, 2006).
Estes trabalhos centram a atenção na sociabilidade de grupos de jovens, do sexo
masculino, de bairros do conurbano
240
. Neles, destaca-se uma sociabilidade delimitada
em termos territoriais; os jovens entrevistados descrevem suas atividades sociais
circunscritas “ao bairro”, ou ainda mais, “à rua ou quarteirão onde moram” (Kessler,
2004:225). Nessas descrições, a “esquina” aparece como o “lugar de excelência para o
encontro dos jovens com seus pares” (Kessler, 2004:225)
241
. María Pita destaca também
240
Boa parte destes trabalhos busca uma explicação sociológica para a participação, a partir da década de
90, de jovens em atividades criminosas e em práticas de violência (seja como vítimas, ou como
vitimários). Entende-se a existência de uma mudança nas características do mercado de trabalho e,
portanto, nos padrões de sociabilidade familiar, social e escolar, central para explicar as novas formas de
criminalidade juvenil. Não é objetivo desta tese a busca, nem a reconstrução de tais explicações. Apenas
me interessa ressaltar como a “esquina”, o “bairro” e os atores a eles associados constroem e são
construídos em seus perfis no âmbito de investigações judiciais específicas, que evidenciem as relações
sociais experimentadas nesses loci sociais e sociológicos. Para uma perspectiva também diferente
daqueles trabalhos, ver Pita, 2006:46-47.
241
Em outros trabalhos também são mencionados os locais videogames, as discos e a quadra de futebol
da área, como locais de encontro (Vázquez, 2000).
321
um significado diferente, pois não se centra na sociabilidade dos jovens, mas nas formas
de violência estatal:
“A esquina era uma espécie de fora (da casa) dentro (do bairro), o local de
encontro dos jovens desde o final da tarde até a noite, uma forma pouco custosa
de sair com os amigos, um espaço de sociabilidade juvenil”. (Pita, 2006:64)
Como ela narra nesse trabalho, em vários dos relatos dos casos de “violência
policial”, as situações de morte, intimidação ou detenção policial ocorreram com jovens
identificados como “rapazes de esquina” e/ou com jovens que, naquele momento,
encontravam-se na “esquina” de seus bairros, ou de suas próprias ruas. Em todos estes
relatos, a “esquina” conta de relações conflituosas com a polícia. Ao mesmo tempo
em que é fruto de disputas com outros moradores do bairro, com os “vizinhos”. Como
identifica Kessler, a sociabilidade da “esquina” está sujeita aos deslocamentos
produzidos pelas reclamações e pressões dos “vizinhos”, através de diversas
estratégias
242
.
A “esquina” como um local de conflito no “bairro”, entre jovens, policiais e
“vizinhos”, também podia ser percebida significativamente em outros casos de
“homicídio” que conheci na UFI. Lembrei também daquela afirmação de Valeria no
primeiro dia de minha vista. Ela associava o possível aumento de homicídios no verão
com o fato das pessoas se “juntarem na rua a beber cerveja, beberem muito e acabarem
em algum problema”. “Juntar-se com a galera na esquina”, “ser da galera da esquina”,
“parar na esquina”, eram frases que faziam parte de atribuições de identidade que
definiam perfis e demarcavam diferenças entre os moradores de um “bairro”. Cacá e
seus amigos, assim como Dario e seus amigos, no caso de La Plata narrado no primeiro
capítulo, bem como outros descritos no capítulo 5, “eram da esquina”. Quique,
Santiago, Lucero, os “vizinhos”, eram do “bairro” e conheciam a galera” porque ela
“sempre parava aí”. Novamente, embora as distâncias geográficas entre a casa de Cacá
e, sobretudo, a casa de sua namorada, fossem curtas em relação ao quiosque e às casas
de Santiago e Quique, Cacá era identificado como alguém que “não era do bairro”, mas
que “andava pelo bairro” e, por isso, era conhecido e, posteriormente, tinha podido ser
identificado. Veremos, no capítulo seguinte, como este ponto podia ser central nas
argumentações de defesa e de acusação de Cacá.
242
Menciona Kessler colocar arame farpado, vidros, cercas metálicas, onde eles sentam, ou, inclusive,
chamar a polícia (2004:226).
322
A solicitação da “prisão preventiva” concluiu considerando “indispensável a
privação da liberdade do imputado” dado que “é estimável que existem indícios
veementes para presumir fundadamente que tentará evitar a ação da justiça e porque
existe aparência de responsabilidade do acusado”.
A contra-argumentação do advogado defensor não demorou em chegar. Dois
dias depois, apresentou um escrito questionando a solicitação de prisão e pedindo, pelo
contrário, regime de “liberdade condicional”. Fundava o seu pedido em um relatório
ambiental sobre o bairro, mencionando seu desempenho como vendedor ambulante na
linha do trem Roca (que conecta a zona sul do conurbano com a Capital Federal) e
enfatizando o fato de Cacá não ter antecedentes criminais de furto, nem de roubo e
muito menos de homicídio. Reafirmou o valor dos depoimentos dos amigos
“demonstrando” que estava em outro lugar que não o local dos fatos. E, principalmente,
questionou o valor dos “reconhecimentos”, inclusive interpretando o realizado por
Quique como “negativo”.
Uma semana depois, a juíza notificou o promotor, o defensor e Cacá, de sua
decisão. Cacá permaneceria preso, durante o andamento do processo. Confirmava assim
a “prisão preventiva” solicitada por Sebastián. Informalmente, a juíza comentou com
este último que, no momento de ler a apresentação de “provas” por escrito, estava quase
convencida, mas que o depoimento final de Quique e ver e conhecer Cacá a terminaram
de “convencer”
243
.
Posteriormente a esta decisão, a defesa voltou a apresentar uma impugnação, por
considerar “os elementos de prova contraditórios, arbitrários e de modo algum
suficientes a efeitos de demonstrar a participação de meu defendido no fato imputado”.
Diante deste “recurso”, já não era a juíza, mas a instância judicial superior - a Câmara
de Garantias- que decidiria. Os juízes integrantes da mesma consideraram que o
questionamento não era pertinente. Para eles, naquela etapa do processo judicial, os
“indícios” eram elementos suficientes para pedir e outorgar a “prisão preventiva” de um
“imputado”. A instância seguinte de elevación a juicio requeria, a princípio,
elementos de prova mais fortes e, posteriormente, a fase de julgamento para uma
sentença final, “provas certeiras”.
243
Foi realizada uma audiência prevista no artigo 168 bis do CPP-PBA, com presença da juíza, Sebastián,
o promotor e o advogado. A juíza diria, depois, para Sebastián que Cacá tinha lhe parecido um “jovem
arrogante”.
323
Cacá permaneceu preso, sobre a base dos “indícios” levantados durante o
processo de investigação. Menos de cinco meses depois, Sebastián preparou o pedido de
elevación a juicio”. O texto não mudou significativamente daquele da solicitação de
“prisão preventiva”. As mesmas provas, os mesmos argumentos. A solicitação foi
também aceita pela juíza. Cacá seria julgado em audiência de juicio oral e pública.
Aquele juicio é o foco do próximo e último capítulo desta tese.
324
CAPÍTULO 8
Não sei se por intuição profissional ou por pura sorte, em um dia de fevereiro de
2010, estando na minha casa no Rio de Janeiro, decidi escrever para Valeria
perguntando se, com o número do processo de Cacá, ela teria como informar a data do
juicio oral, caso já estivesse marcada. Em poucos minutos, me respondeu que tinha sido
bem fácil: colocou o número no “sistema”, do seu computador, onde se informava que o
juicio estava previsto para acontecer entre os dias 26 e 27 de abril desse ano. Valeria
acrescentou na sua resposta que, com certeza, aconteceria naquela data porque, por se
tratar de um “homicídio”, era improvável um juicio abreviado. Indicava, assim, a
importância e gravidade outorgadas ao tipo de crime que seria julgado. Também
refletida no fato de Cacá ter permanecido preso desde a decisão de “prisão preventiva”
da “juíza de garantias”, em novembro de 2007, até aquela data do juicio.
Como contei no Capítulo 1, para aqueles dias viajei para Buenos Aires. Assisti o
juicio de Dario e, poucos dias depois, o de Cacá. Eram para mim dois compromissos
importantes da pesquisa. O juicio de Cacá intrigava-me pelo fato de nunca ter observado
um julgamento do qual tivesse, em seu momento, acompanhado presencialmente a etapa
de instrução. Isso devido, em grande medida, ao tempo transcorrido entre a chamada
elevación a juicio” e a realização da audiência de juicio.
(...) nunca na província de Buenos Aires acreditou-se na oralidade. Por que você
pode dizer isso com essa certeza? Porque quando você acredita em um sistema e
você acredita nas bases sobre as quais o sistema vai operar, você destina
recursos materiais e humanos para que funcione. Na província de Buenos Aires,
não salas de audiências, não há! Como pode se pensar que, se a um Estado
realmente lhe interessa a oralidade no sistema penal, não poderia ter construído o
âmbito natural das audiências orais? E isso tem sido uma limitação enorme.
Agora isso está sendo revisado por alguns tribunais superiores, mas no ano de
2008, em Los Pantanos, estavam marcando audiências de juicio oral para 2013,
e com um preso! A oralidade não tem sido levada à realidade como corresponde.
(Entrevista com Dr. Lopez Matze, advogado criminal, 26/05/09)
A média de tempo entre a elevación a juicioe a audiência de julgamento era,
tal como manifestada em entrevistas e a partir dos juicios observados, entre três e quatro
anos. Este intervalo de tempo foi muitas vezes criticado em detrimento ao direito de
defesa. O tempo transcorrido, por exemplo, podia atentar contra a presença de
testemunhas (morte, não localização), fazendo que os depoimentos realizados na etapa
325
de instrução fossem incorporados “por leitura”
244
. Quer dizer, fazendo do juicio oral
uma revisão e reprodução das “provas” reunidas e interpretadas na etapa que, em
todos esses casos, tinha concluído com a acusação do “imputado”.
A exclamação deste advogado - “com um preso!”- correspondia ao fato dos
processos com “imputados” presos terem prioridade na agenda do tribunal em relação
àqueles com “imputados” em liberdade. Esta distinção também supunha outra entre
processos mais graves (geralmente crimes nos quais se optava pela prisão preventiva do
“imputado”) e menos graves. Conversando sobre o juicio, uma defensora pública,
atuante na etapa de juicio em Los Pantanos, fazia a seguinte ponderação.
Defensora pública: o juicio para mim muitas vezes é uma espécie de ficção
jurídica porque, em definitivo, não faz mais do que recriar aquilo da instrução,
incorporar tudo por leitura.
Lucía: isso tem a ver com o tempo transcorrido até chegar ao juicio?
Defensora pública: tem a ver. Às vezes o tempo nos serve aos defensores como
ferramenta para brincar com a memória da testemunha, porque esta é muito
frágil, então pode nos servir. Serve-nos também para suavizar os rigores. Como
me aconteceu agora em um juicio pelo roubo de um Peugeot 504 há quatro anos.
Nesses casos eu sempre faço a mesma pergunta, porque você tem que ver o
perfil do senhor e tudo, eu digo: “senhor, o seguro pagou seu carro?”, “sim,
sim”, “e agora qual carro tem o senhor?”, “não, agora tenho um 307”. Então, o
dano atravessado de alguma forma já passou. Ora, se você vê a vítima que chega
destroçada porque aquele 504 era seu único carro, que com o dinheiro do seguro
teve que comprar os medicamentos para a mulher que teve um infarto no
momento do roubo, é claro que você tem que ver como vai perguntar.
Geralmente, sobretudo nos crimes contra a propriedade, o tempo mais que contra
joga a nosso favor, porque a vítima recuperou os bens, ou os trocou ou em
definitivo não lhe produziu tanto prejuízo no curso da sua vida. Porque, é como
tudo, de repente você tem alguma coisa, mas as coisas são coisas, então você
pode ter essa bonequinha que ganhou de sua avó, mas um dia ela quebra, você se
lamenta um dia, se lamenta dois e depois se esquece, você compra outra mais
bonita e esquece. Pelo contrário, naqueles processos em que se julgam fatos
como atentados contra a vida, a honra, a liberdade, o tempo às vezes joga contra
porque você submete a vítima ao esforço de relembrar tudo e volta o trauma,
porque, vamos combinar, para estas meninas [assinala um processo] que foram
estupradas em 2004 talvez hoje ter que voltar a lembrar isso é muito ruim e no
juicio isso vai ser percebido e isso joga contra nós.
Oralidade, ficção jurídica, recriação, memória, tempo transcorrido, dano sofrido,
trauma, expressão e percepção dos sentimentos, particularidades dos casos. No primeiro
dia do juicio de Cacá iria me confrontar com estas questões. Havia quase três anos que
244
Isto é, fossem incorporados como “prova” do julgamento tal qual foram inscritos nas atas da instrução,
sem possibilidade da defesa interrogar as testemunhas.
326
eu tinha conhecido e visto boa parte das pessoas que –esperava- circulariam pela sala de
audiências. Havia trinta e três meses da morte de Santiago, as feridas no Quique e roubo
da moto, estes dois últimos acontecimentos subsumidos no primeiro. Havia também
trinta meses da prisão de Cacá.
Reconhecendo o público
O primeiro dia do juicio estava marcado para as nove horas. Devo reconhecer
que fui com certa apreensão diante da possibilidade de ter algum impedimento para
observar o juicio. Seja pelo rigor dos dias anteriores no juicio de Dario, seja por
experiências anteriores nas quais tinha vivenciado o fato do caráter público das
audiências desta segunda etapa do processo não ser tão público assim. As mesmas
tinham se revelado como um espaço cujo acesso podia ser mediado pela necessidade de
autorizações, contatos prévios ou explicações formais sobre o objetivo de assistir
245
.
Contudo, a funcionária que me atendeu na “Mesa de Entradas” do tribunal não pareceu
se surpreender nem se importar com meus motivos para assistir o juicio. Apenas me
perguntou qual era o juicio que ia assistir e me indicou a sala. Seria no primeiro andar
do prédio dos Tribunales de Los Pantanos.
O corredor era amplo e a sala indicada estava localizada no fundo do mesmo. Na
medida em que me aproximava, tratei de ir reconhecendo, entre as pessoas que
pareciam esperar para a audiência, aquelas que eu tinha conhecido quase três anos antes.
Foi uma tentativa que me acompanhou durante todo o juicio. No caso das testemunhas
que iam sendo anunciadas pelo nome por parte do tribunal, foi uma tarefa fácil. De
qualquer forma, tratava de compor e compatibilizar minhas imagens e lembranças
passadas com as surgidas naquele presente. Nada muito diferente daquelas reuniões de
reencontro com colegas do passado.
245
Diferentemente dos tribunais no Rio de Janeiro, onde a pauta de audiências encontra-se
disponibilizada para cada mês no corredor do Tribunal, nos Tribunais Orais argentinos, para poder saber
“quando audiência marcada” é necessário se aproximar da Mesa de Entradas de cada Tribunal,
esperar ser atendido pelo funcionário e/ou estagiário, e apresentar o interesse em assistir às audiências.
Apenas uma vez consegui acessar ao calendário de audiências mensal ou semanal. Foi na sala da
secretária de um Tribunal Oral no qual fui, pessoal e dedicadamente, apresentada por Valeria. Nos outros
Tribunais, nos quais me aproximava direta e anonimamente da “Mesa”, as atitudes foram variadas:
apresentar uma carta formal da Universidade, esperar a aprovação do secretário do Tribunal, apenas obter
a informação sobre o horário da audiência desse dia (“acaba de começar uma audiência 15 minutos -
disse-me a estagiária- lá na sala do segundo andar”). Em alguns casos, fui descobrindo que o mais útil em
termos de aquisição de informações sobre a “agenda” dos Tribunais era conversar com os policiais que
cuidavam da ordem das salas e do transcorrer das audiências.
327
No corredor, apenas consegui identificar o irmão
de Santiago, a quem tinha conhecido no dia da
“reconstituição do fato”. O resto das pessoas que
eu conhecera tempos atrás seriam testemunhas e
encontravam-se esperando do “outro lado”. No
entanto, mesmo sem conhecer as pessoas, no
corredor, apareceu para mim uma imagem clara:
o “bairro” estava presente. Reconheci naquelas pessoas, embora não individualmente,
seu pertencimento àquele “bairro” que tinha assistido os procedimentos da instrução e
que tinha brigado por encontrar “um culpado”. Passadas algumas horas, soube que,
entre aquelas pessoas, estavam a mãe de Santiago, a namorada dele e a namorada do
irmão. Também estavam presentes três senhoras, quatro senhores, uma criança e outros
dois jovens.
O reconhecimento da parte deles para comigo foi diferente. Não se tratava de
encontrar na memória alguém a quem conheciam, mas de identificar quem eu era
nesse momento e, sobretudo, de que “lado” me encontrava. Uma vez na sala, um dos
jovens que eu não conhecia perguntou “você é de onde?”. Percebi que sua pergunta
incluía uma outra: “está fazendo o quê aqui?”. Respondi que estava fazendo uma
pesquisa sobre o funcionamento do judiciário em Los Pantanos e que tinha tido a
oportunidade de acompanhar, anos atrás, a investigação desse caso desde a promotoria.
“Ah”, expressou parcamente o jovem, parecendo, de qualquer modo, ficar bem mais
tranqüilo podendo enquadrar minha presença e, sobretudo, despejando qualquer dúvida
de se tratar de alguém “próximo” do outro lado: Cacá e seu grupo.
No final da audiência do primeiro dia, no corredor, assim que saímos, aquele
jovem aproximou-se novamente e me perguntou “como a vê?”, se referindo à situação
do juicio e às possibilidades de condenação de Cacá. Respondi que não podia dar uma
resposta certa, mas que parecia-me que os depoimentos daquele dia não favoreciam
Cacá. Também acrescentei que tinha assistido outros juicios com aquele tribunal. Em
todos, tinham decidido a condenação do réu e as penas tinham sido bem altas. Lembrei
também, mas não falei a respeito, dos comentários ouvidos sobre o juiz presidente do
tribunal. Dizia-se que andava sempre armado e que, de fato, tinha estado envolvido em
duas situações por ter se confrontado com pessoas que tentaram roubá-lo. No jargão e
classificação genérica de Tribunales, era um juiz “de direita”. Mesmo com minha breve
328
opinião, o jovem amigo de Santiago e Quique pareceu conforme, me agradeceu e nos
despedimos até o dia seguinte.
Naquela primeira manhã, após esperar aproximadamente uma hora, um policial
abriu a porta que conduzia à sala. Chamou as pessoas, solicitando que fizessem uma
fila. Rapidamente todos se organizaram e foram ingressando na sala de audiências. Sem
inscrição prévia e sem apresentação de identidade, apenas sendo revistados os bolsos e
as roupas. Era uma experiência semelhante a outros juicios que tinha assistido nesse e
em outros departamentos judiciais. Contrastava, porém, com a experiência vivida dias
antes no juicio de Dario. Como relatei no primeiro capítulo, naquele, a permissão, o
ingresso e a distribuição do “público” na sala tinham sido extremamente controlados.
Fui a última desse primeiro grupo em ingressar à sala. O grupo do “bairro” tinha
se localizado nas duas primeiras fileiras de assentos disponíveis. Sente-me na última
ocupada por eles, do lado de um casal e atrás do jovem com quem conversaria mais
tarde. conhecia a sala de outras audiências. Era uma sala menor e menos exultante se
comparada com aquela reservada para o juicio de Dario, em La Plata. Esta, do
departamento de Los Pantanos, tinha sete fileiras de cadeiras, sem separação umas de
outras. Com uma divisória de madeira, dividia-se o ambiente do “público” daquele onde
aconteceria o juicio propriamente dito. O promotor e o defensor não estavam a cada
lado da cadeira do eventual depoente, como em La Plata, mas atrás dela. Isso criava o
efeito da pessoa que depunha permanecer de costas a quem formulava perguntas e se
dirigia a ela.
Quando entrei na sala, Cacá já estava sentado na mesa da “defesa” junto com
seu advogado particular. Vestia um casaco de e uma calça jeans, bem arrumado. O
cabelo estava curto e sem pontas de mechas pintadas de loiro. Não sei se foi por esse
escurecimento do cabelo, ou por diferenças nas imagens por mim retidas, mas pareceu-
me diferente daquele jovem que tinha conhecido em setembro de 2007, na sala de
Valeria. Não sei se o tivesse “reconhecido” se não fosse aquela situação e posição
inteiramente previsível. Cacá conversava com seu advogado, tal como o faria durante a
audiência em várias oportunidades. Não parecia inquieto; apenas atento ao que
acontecia e era dito. Atrás dele, do lado do “público”, permanecia um agente do serviço
penitenciário. Como todos os “acusados”, Capermaneceria durante a audiência sem
algemas.
329
Na mesma divisória que Cacá e seu advogado, estava a mesa da secretária do
tribunal, em perpendicular à do promotor. Frente a todos e ao “público”, em um nível
mais alto, o balcão para os três juízes do tribunal. Tanto eles como as testemunhas
ingressavam à sala pela mesma porta, do lado do balcão. Não havia crucifixo, nem
bandeira. Apenas, na frente do balcão, o escudo da província de Buenos Aires. Ninguém
deste tribunal tinha levado consigo computador, mas a secretária gravou a audiência
para registro próprio da ata que devia elaborar. Apenas o promotor estava com seu lap-
top, lendo as perguntas e digitando algumas respostas. Soube depois que o promotor,
recentemente transferido da etapa de instrução à de julgamento, era muito próximo de
Sebastián. Pensei que, possivelmente, tivessem trocado impressões e “hipóteses” sobre
o caso e, especialmente, sobre a acusação contra Cacá. Também soube, depois, que o
advogado particular de Cacá não gozava de uma boa reputação profissional em
Tribunales. Era considerado um dos tantos “advogados pouco hábeis”, dos quais
Valeria reclamava em relação aos defensores públicos. Nesse quadro de situação, com a
presença do “bairro” na sala e de todos os atores legalmente exigidos (três juízes,
secretária, promotor, defensor e “acusado”), começou o juicio contra Cacá.
As primeiras testemunhas
O presidente do tribunal anunciou o processo que entraria em julgamento.
Mencionou o número e, mais elucidativamente, o tipo de crime, o nome completo de
Cacá e das vítimas, Santiago e Quique. Conferiu com a secretária e com o promotor e
defensor se as testemunhas citadas estavam presentes. Reconheci em cada um dos
nomes, menos em um, as pessoas que tinham deposto na UFI: o pai de Santiago,
Quique, a dona do quiosque, a filha da dona do quiosque e Marconi. O nome que não
reconheci me seria revelado no momento do respectivo depoimento.
Antes de começar com as testemunhas, o presidente pediu para Cacá se sentar na
cadeira dos depoimentos. Devia proceder ao interrogatório de identificação”. As
respostas de Cacá não aportaram, para mim, novas informações daquelas indagadas
por Valeria no “308”. O presidente informou a Cacá que devia estar atento a tudo aquilo
que fosse acontecer. Também disse que podia guardar silêncio, mas que se optasse por
depor, seria submetido às perguntas das partes, podendo não responder a alguma delas.
Cacá disse que não ia depor.
330
O próximo passo no rito era a “incorporação por leitura” de peças do processo.
O promotor mencionou aquelas que ele solicitava que fossem incorporadas; o defensor
concordou sem acrescentar, nem retirar nenhuma. Uma atitude que pareceu reproduzir-
se durante todo o julgamento: não se opor, nem reclamar das decisões e ações do
promotor. Como se estivesse esperando o momento oportuno para exercer “a defesa”,
talvez. Como em todos os casos, o presidente deu a palavra ao promotor e, depois, ao
defensor para que apresentassem as “linhas de acusação” e de “defesa”,
respectivamente.
O promotor leu o “fato” da acusação e a tipificação legal. A “linha da acusação”
seria, basicamente, provar que Cacá era o autor dos disparos contra Quique e Santiago e
que os tinha efetuado “com a clara intenção de matar”. Já o defensor disse que a “linha
de defesa” era demonstrar que se tratava de “um erro quanto à pessoa do imputado”.
“Subsidiariamente”, acrescentou, defenderia uma interpretação da tipificação legal
diferente. Como também vimos nas alegações finais dos advogados dos policiais
(menos de Resapo) no juicio pelo “homicídio” de Dario, defensores sustentavam uma
hipótese principal de defesa e, “subsidiariamente”, uma segunda, como prevendo um
‘mal menor’ diante de um resultado negativo da primeira hipótese. Dessa forma, se
defendia, principalmente, que o “imputado” devia ser absolvido (por um “erro quanto à
pessoa”, por “falta de provas”, “por ter chegado ao local dos fatos horas mais tarde”,
entre outros argumentos). E, “subsidiariamente”, defendia-se, não a absolvição, mas a
condenação por uma pena menor que aquela proposta pela promotoria (seja solicitando
o mínimo da escala do mesmo crime, seja alegando um tipo criminal diferente e mais
atenuado). Não deixava de ser esta uma cnica interessante. Ela evidenciava o quanto
as “estratégias de defesa” eram construções não vinculadas à essencialidade do “fato”
ou da “pessoa”, nem à “verdade” ou à “mentira”, mas destinadas a ocupar espaços de
deixados pela acusação. “O poder do Estado é tão grande que de alguma forma o
imputado tem que ser defendido”, lembro que me dizia o advogado Magistir, auto-
justificando suas variadas estratégias de defesa.
Para o advogado de Cacá, o “fato” julgado não se enquadraria, como indicado
pelo promotor, “no artigo 80 inciso sétimo do Código Penal, mas no artigo 165”. A
diferença não era apenas uma distinção técnica ou de números. O primeiro inciso estava
incluído na parte de “crimes contra a vida”, em particular no artigo que penaliza o
“homicídio”. Indicava se aplicar nos casos em que a morte de alguém fosse executada
331
para “preparar, facilitar, consumar ou ocultar outro crime ou para assegurar seus
resultados ou procurar a impunidade para si ou para outro ou por não ter conseguido o
fim proposto ao tentar outro crime”. O segundo artigo, proposto pelo defensor, estava
inserido na parte dos “crimes contra a propriedade”, em particular do “roubo”.
Penalizava o fato de ocasionar a morte de alguém por ocasião ou motivo do “roubo”. A
diferença fundamental entre ambos os artigos era que aquele defendido pelo promotor
permitia a prisão perpétua como pena; o proposto pelo defensor de dez a vinte e cinco
anos de prisão
246
.
Antes da primeira testemunha, o presidente advertiu o “público” que diante de
qualquer manifestação ou desordem o expulsaria da sala ou iniciaria um processo penal
contra o responsável. A primeira testemunha a depor foi o pai de Santiago, seu Júlio.
Um homem de aproximadamente 70 anos, alto, magro, com uma peruca de cabelos
escuros, sentou na cadeira dos depoentes, olhando para o tribunal. Além das perguntas
de identificação (nome completo, estado civil, idade, profissão e endereço), havia uma
fórmula de introdução ao depoimento que se repetiu em todos os casos da mesma
forma, sem demasiadas variantes em relação a outros juicios.
Presidente: o senhor tem sido citado no processo [menciona número, tipificação
e nomes]. Tomou conhecimento das penas do falso testemunho?
Seu Júlio: sim.
Presidente: jura ou promete dizer a verdade de tudo quanto souber ou lhe for
perguntado?
Seu Júlio: sim, juro.
Presidente: conhece alguma das partes, é parente, amigo, inimigo, devedor ou
credor de alguma delas?
Seu Júlio: filho [Santiago] e conhecido [Quique].
Presidente: tem algum interesse na resolução deste processo?
Seu Júlio: que se faça justiça.
Presidente: bom, mas isso não vai fazer que o senhor não diga a verdade.
Seu Júlio: não, não.
Se as perguntas e os modos de sua formulação eram sempre os mesmos, as
respostas podiam ser variadas. Nos juicios que observei, sempre achei interessante que a
maioria das pessoas, quando lhe era formulada a opção por “jurar” ou “prometer” dizer
a verdade, respondesse apenas com um “sim”. Não pareciam dar relevância ao fato de
246
É uma distinção semelhante àquela presente na legislação penal brasileira entre “homicídio
qualificado” (no caso, artigo 121, § 2º, V, Código Penal brasileiro) e “latrocínio” (art. 157, § 3º, CP
brasileiro). Neste caso, a distinção é tal que ambos respondem a âmbitos de julgamentos distintos: o
primeiro é julgado pelo Tribunal do Júri e o segundo por um juiz singular. Outra curiosidade é que,
inversamente ao caso argentino, no Brasil a pena por “latrocínio” (20 a 30 anos) é maior do que a de
“homicídio qualificado” (12 a 30 anos).
332
se tratar de uma opção, prevista pela lei diante da possibilidade de diferenças no credo
das pessoas. Como a formalidade indicava que devia optar por uma ou outra fórmula, o
presidente sempre repetia: “jura ou promete?e, muitas vezes a pessoa voltava a repetir
“sim”, até o juiz exigir explicitamente que fizesse sua escolha e assim a formulasse.
A pergunta sobre “o interesse na resolução do processo” suscitava interpretações
distintas. Do ponto de vista da formalidade desta parte ritual do interrogatório, esperava-
se que todas as respostas fossem simplesmente negativas. As mesmas garantiam,
formalmente, a “objetividade e veracidade” dos ditos da testemunha. Contudo, muitos
dos depoentes expressavam, naquela oportunidade, alguma opinião ou desejo em
relação ao resultado do processo. “Que se faça justiça” foi uma das respostas que mais
ouvi, não de testemunhas civis, mas também de peritos ou policiais. Mas também
ouvi outras:
Presidente: tem algum interesse nesta causa?
Testemunha, pai da menina vítima do “estupro” que estava sendo julgado: Bem.
Presidente: como?
Testemunha: como corresponde.
Presidente: e como corresponde?
Testemunha: bem…
Presidente: como a lei?
Testemunha: sim, é que eu não sei me expressar. Eu tive um acidente dez
anos.
Presidente: tem algum interesse no resultado deste processo?
Testemunha: que se resolva, não entendi.
Presidente: tem algum interesse em que se absolva ou se condene?
Testemunha: que se condene!
Presidente: isso pode fazê-lo mentir?
Testemunha: não, eu sempre digo a verdade.
A testemunha era a mãe da vítima, um jovem morto por um policial.
Presidente: independente desse vínculo, a senhora tem algum interesse na
resolução deste processo?
Testemunha: sim, que a verdade seja descoberta; que vão presos.
Presidente: isso pode levá-la a mentir?
Testemunha: não, eu vou dizer a verdade, tudo o que eu vi.
Presidente: tem algum interesse na resolução deste processo?
Testemunha: não sei, eu vim depor.
Presidente: mas tem algum interesse especial?
Testemunha: sim, que se resolva.
Presidente: a senhora tem algum vínculo com a vítima?
Testemunha: sim, é minha vizinha.
333
“A tranqüilidade como cidadão” ou “que o culpado preso” foram também
outras respostas. A réplica na pergunta por parte do presidente do tribunal tinha como
finalidade assegurar, de modo formal, que a diversidade de respostas pudesse ser
enquadrada de forma tal que não comprometesse o, igualmente formal, juramento de
dizer a verdade. As testemunhas, por sua parte, pareciam expressar sua vontade de se
posicionar de algum modo no processo. Se estavam para depor era porque, para elas,
“deviam” ter algum “interesse”. O significado dessa categoria era diferente para uns e
outros: para os juízes, ou melhor, para a formalidade do processo, podia comprometer o
depoimento; para as testemunhas parecia lhe outorgar sentido. Uma vez passada esta
etapa, o juiz dava a palavra ao promotor ou ao defensor, dependendo de quem tivesse
solicitado a presença daquela testemunha. Dessa forma, começava o depoimento
propriamente dito, no sentido delas contarem ou responderem sobre aquilo que tinham
visto, ouvido ou sabido.
No juicio contra Cacá, como disse, a primeira testemunha em depor foi seu
Júlio, pai de Santiago. Aliás, todas as testemunhas que depuseram no primeiro dia
foram as pessoas do “bairro” que tinham presenciado, de uma forma ou outra, o fato”.
Eram aqueles que na investigação tinham “reconhecido” ou indicado Cacá como autor
dos disparos. E eram, portanto, as testemunhas da “acusação”. O segundo dia do juicio,
por oposição, foi dedicado inteiramente às testemunhas da “defesa”; aqueles amigos,
parentes e familiares de Cacá que poderiam fornecer um álibi que negasse sua
participação no fato”. Lembrei do caso de Dario, em que à exceção de mim, também
todas as testemunhas tinham deposto na etapa de instrução. No caso de Cacá, seus
relatos seriam, portanto, não conhecidos por mim, que tinha acompanhado os
depoimentos na UFI presencialmente, mas também pelo promotor e eventualmente pelo
advogado que tinham lido as atas dos depoimentos. Naquele dia, poderiam dar versões
diferentes. Entretanto, como as atas tinham valor de documento público, as eventuais
diferenças poderiam, como veremos, acarretar conseqüências para as próprias
testemunhas.
Através dos relatos, foi reconstruída a seqüência de eventos conforme tinha sido
elaborada, no final da instrução, por Sebastián, no documento de elevación a juicio”. O
roubo, os disparos, a ida ao hospital, a “identificação” de Cacá, a nova ida de Cacá ao
quiosque. As perguntas do promotor foram, quase sem hesitação alguma, respondidas
pelas testemunhas do “bairro”, conformando e apresentando uma versão única e
334
coerente dos “fatos” e da “autoria” de Cacá. As perguntas do defensor –poucas para
cada testemunha- foram elucidadas com segurança.
Defensor: conhece alguém que seja chamado de Topo?
Dona do quiosque: quando Santiago foi morto, o bairro todo comentava que
quem o tinha matado era alguma coisa do Sopa, mas havia uma confusão porque
dizia-se que era o Topo, sobrinho do Sopa, por isso eu disse no primeiro
depoimento que era o Topo. Sabia-se que era alguma coisa do Sopa, mas não se
sabia que.
Defensor: no primeiro momento a senhora não pôde identificar Cacá?
Filha da dona do quiosque: no primeiro depoimento na comisaría não, porque o
fato foi muito violento e estava um pouco nervosa e não me manifestei. No
transcurso dos depoimentos fui tendo maior detalhe e me expandi mais.
Com o tempo, os eventos pareciam ter encontrado uma explicação, confluindo
em uma versão consolidada nas testemunhas daquele dia. Não havia outros suspeitos, a
menção ao Topo não apareceu como uma hipótese alternativa, não foi mencionado
Jesus, não houve dúvidas em Quique, nem na dona do quiosque, nem na sua filha, sobre
“reconhecer” Cacá como o autor. Aquela seqüência que, durante toda a instrução podia
aparecer como um filme, em uma sucessão de imagens com diferentes “suspeitos”, idas
e vindas na investigação, allanamientossem sucesso, na audiência daquele dia tinha
virado, aos meus olhos, uma foto instantânea e clara do que teria acontecido: Cacá era o
autor.
O momento aparentemente mais certeiro em relação a esse “reconhecimento” foi
quando soube quem era aquela única testemunha que não consegui reconhecer apenas
pelo nome. Tratava-se do “T.I.R.”, a criança que tinha deposto na UFI com “identidade
reservada”. Naquele dia, tinha sido citada para depor na audiência “oral e pública”
247
.
Acompanhado de sua mãe, ingressou pela porta lateral Ivan, um menino de doze anos
de idade. Talvez pela baixa estatura e o corpo franzino, pareceu-me ainda mais jovem
do que aquela idade. Mais uma cadeira foi colocada do lado daquela dos depoentes, para
a mãe sentar-se junto com ele. Seja pela idade, seja porque se revelava sua identidade, a
sala estava em silêncio e com uma certa tensão no ambiente. O juiz foi mais explicativo
e suave nas suas palavras, se comparado com as outras testemunhas. Pediu formalmente
o consentimento da mãe e informou que qualquer pergunta ou solicitação que ela
achasse que pudesse ocasionar um dano para o filho, poderia se manifestar e pedir para
247
Uma vez, comentando sobre as testemunhas com identidade reservada, Marconi tinha me dito que o
problema com elas era justamente o juicio oral, porque “todos se dão as caras com todos”.
335
parar o depoimento. dirigindo-se a Ivan, o juiz esclareceu que não tomaria o
juramento de dizer a verdade, porque era menor de dezoito anos: “mas é importante que
você saiba que não pode falar mentiras... nunca”. À pergunta do promotor, Ivan contou
o que lembrava do dia do “fato”, dizendo que, naquelas circunstâncias, era Cacá a quem
tinha visto tentando roubar a moto. A precisão nas respostas posou no ar da sala.
Promotor: o que estava fazendo Cacá?
Ivan: roubando.
Promotor: quem eram as vítimas?
Ivan: Santiago e Quique.
Promotor: de onde você os conhecia?
Ivan: de vista, de minha casa, do bairro.
Promotor: e a Cacá?
Ivan: dos fundos, pela casa do meu primo.
Promotor: onde é? É longe?
Ivan: nove quadras.
Promotor: o quiosque onde era?
Ivan: na casa de Marta [a dona do quiosque].
Promotor: você lembra como era a pessoa que você viu roubando?
Ivan: era escurinho, com casaco com capuz e o capuz era de pelúcia.
Promotor: conhece o Sopa?
Ivan: sim, da esquina de minha casa.
Promotor: sabe qual é a relação entre Cacá e o Sopa?
Ivan: sim, o genro.
Promotor: você sabe o que é ser o genro de alguém?
Ivan: sim, Cacá é namorada da filha do Sopa.
Promotor: quem é a filha do Sopa?
Ivan: Samanta.
As perguntas continuaram e a precisão nas respostas também. Depois, repetiu-se
um rito desenvolvido de igual forma, momentos antes, com Quique, a dona do quiosque
e sua filha. O promotor lhes perguntou a cada um deles se poderiam reconhecer Cacá,
caso o vissem atualmente. Todos responderam positivamente. Com consentimento do
defensor e, no caso de Ivan também da mãe, o presidente solicitou a cada testemunha
para ficar em e virar o olhar para o resto da sala, pois até aquele momento tinham
deposto de costas para essa direção. O objetivo era que olhassem para a sala e
manifestassem se a pessoa da qual estavam falando se encontrava na audiência. Podia
acontecer que, por decisão de um tribunal, essa medida não fosse autorizada, mas isso
não aconteceu nesta ocasião.
Quando contei para Valeria sobre o juicio e, em particular, sobre os
“reconhecimentos” efetuados ficou supressa de, nessa etapa, os funcionários
procederem daquele jeito. “Acham que estão em um filme norte-americano!”,
336
exclamou. O estranhamento tinha a ver com a diferença com a forma como o
procedimento era realizado por eles na fase de instrução, tal como relatei no capítulo
anterior.
Lá, na sala do tribunal, o “reconhecimento” tomava uma forma mais direta, mais
cara a cara. Quando a testemunha já estava de frente para a sala, o presidente pedia para
que “dentre as pessoas do sexo masculino de toda a sala, à exceção dos policiais [?!],
diga se reconhece a pessoa mencionada”, isto é, Cacá como autor dos disparos. No caso
de Ivan, o juiz pediu para ele subir no estrado do tribunal e olhar desde aí. Foi a
primeira vez que vi o rosto completo dele. O menino olhou para a sala e, sem hesitar,
disse: “é ele”, assinalando Cacá, sentado junto com seu advogado.
“Era meu xodó
Ivan foi a última testemunha a efetuar o reconhecimento” de Cacá na sala de
audiências. A primeira foi Quique, que depôs logo depois de seu Júlio. Quique ficou em
pé, virou para a direção do público, olhou para a cadeira de Cacá e disse “esse aí”,
assinalando Cacá com o braço e o indicador estendidos. Antes de indicá-lo, ou quase
concomitantemente, Quique começou a chorar. Também algumas pessoas do público se
puseram a soluçar. Desde meu lugar, senti que alguém falava “que fique podre na
cadeia”. Logo depois, o promotor perguntou como era Santiago. Quique não conteve as
lágrimas e apenas alcançou dizer “o melhor, sempre andávamos juntos”. Passaram
alguns minutos até o defensor iniciar o interrogatório dele.
Também a dona do quiosque e sua filha tinham passado pelo “reconhecimento”.
E também elas indicaram, sem titubeios, o lugar onde Cacá estava sentado. “É esse
menino”, disse a dona do quiosque.
Promotor: havia muito tempo que conhecia Santiago?
Dona do quiosque: ele se criou no bairro.
Promotor: qual conceito tinha dele?
Dona do quiosque, após segundos de silêncio: o melhor, gente boa, tinha
projetos, seu hábito era comprar a Coca-Cola, cigarros, eu perguntava “vai
dançar hoje?”, “não, vou ver um filme com minha namorada porque amanhã
trabalho”. De segunda a segunda trabalhava, tinha projetos. Se eu tivesse visto
alguma coisa, eu estava [interrompe a fala porque chora] .... dentro da casa, não
consegui fazer nada.
Da mesma forma, ao relatar os “fatos” por ela testemunhados, a filha da dona do
quiosque se emocionou. Pediu perdão por estar chorando e o presidente perguntou se
337
podia continuar o preferia interromper. Decidiu continuar, dizendo que “apenas ficava
mal ao se lembrar de tudo”. Não eram os primeiros em chorar ou se emocionar durante
o juicio. Naquele dia, desde a primeira testemunha, seu Júlio, as lágrimas tinham feito
parte daquele ambiente judicial. Em maior medida, inclusive, do que durante a
instrução, embora os eventos acontecidos estivessem naquela primeira etapa, mais
próximos no tempo
248
.
(...) Promotor: a que se dedicava seu filho?
Seu Julio: açougueiro, havia seis anos, em torno de casa, trabalhava de segunda
a segunda, todos os dias.
Promotor: e para além do trabalho?
Seu Julio: era um menino alegre, ocorrente, cordial, tinha amigos aos montes,
era brincalhão com os clientes, em casa...
[Escutam-se choros do público].
Promotor: estava namorando?
Seu Julio: havia oito anos, pensava em se casar, estava construindo acima [da
casa].
[Agora é seu Julio que começa a chorar, seu depoimento é quase inaudível.
Parece contar uma história com o filho de uma semana antes da morte].
Promotor: quer dizer mais alguma coisa?
Seu Julio: sim, que além de filho era meu amigo, me contava tudo, eu o ajudava.
Gostava da pesca, saía de férias à casa da família da namorada em Corrientes
249
.
É um dano terrível, temos que ir ao psicólogo... para a família da namorada
também; o queriam como a um filho. Santiago era meu xodó.
Promotor: agradecemos muito.
A mãe de Santiago acompanhou o depoimento de seu marido e o juicio todo
desde a primeira fileira do público, sentada do lado do seu outro filho e, posteriormente,
de seu Júlio do outro lado. Durante toda a audiência, segurava na sua mão, envolvida
com um terço, uma foto de Santiago. Na outra mão, boa parte do tempo tinha um lenço,
com o qual secava as lágrimas vertidas, em especial, toda vez que se falava diretamente
da “forma de ser” de Santiago.
Sem dúvida, como disse a defensora citada no início do capítulo, o juicio fazia
“relembrar o trauma”. Era também por isso um espaço de catarse coletiva e pública do
dano sofrido. Ele dava lugar a uma dramatização de sentimentos provocados pelo
conflito julgado: choro, tristeza, raiva. Esses sentimentos, ou melhor, a expressão desses
sentimentos, embora surgisse de forma natural, estava pautada pelas formas rituais do
juicio (o depoimento, o público, as perguntas). Assim, ao tempo em que apareciam
248
Como descrevi, durante a instrução, apenas Quique “se quebrou” em uma oportunidade, no momento
de lembrar das férias que costumava partilhar junto com Santiago.
249
Província do nordeste argentino, com rios com atividade de pesca.
338
como expressões naturais de dor, podiam ser vistas como formas obrigatórias de
construção dos depoimentos e de produção do convencimento necessário para a decisão
desejada. Isso não quer dizer que aqueles sentimentos fossem impostos ou artificiais.
Marcel Mauss [1921] assinala esse ponto na sua análise de rituais orais funerários:
Notamos que este convencionalismo e esta regularidade não excluem de modo
algum a sinceridade. Não menos do que em nossos próprios usos funerários.
Tudo é, ao mesmo tempo, social, obrigatório e, todavia, violento e natural;
rebuscamento e expressão da dor vão juntos (2005:330).
Naquele primeiro dia, as expressões de emoção, tristeza e angústia pareciam ter
predominado sobre sentimentos de outro tipo. Ao mesmo tempo, todas elas provinham
de uma mesma direção: do “bairro”, dos vizinhos e familiares das vítimas, presentes.
Pouco parecia ter aparecido o “grupo de Cacá”.
“Como em um estádio de futebol
No primeiro dia, uma vez iniciado o juicio, percebi que, quando estava depondo
a terceira testemunha, ingressaram na sala duas meninas. Jovens, de pouco mais de 20
anos. Vestiam jeans, tênis e casacos, tudo em uma tonalidade escura. Ambas de cabelo
preto, liso, com franja reta. O cabelo e a roupa permitiam inscrevê-las em um estilo
reconhecido em Buenos Aires como “roqueiro”, mais precisamente chamado de
“rollinga”, em relação à banda de rock Rolling Stones. Estavam sozinhas e apenas
cruzaram alguns olhares com Cacá. Quando entraram lhes foi indicado pelo policial
onde se sentar. Distantes das outras pessoas, no final da sala.
no segundo dia, além delas duas, havia, naquelas últimas fileiras, mais três
pessoas. Na medida em que as testemunhas daquele dia foram depondo, elas também
passaram a integrar o “público” nesse setor da sala
250
. No final do dia, compunham um
(segundo) grupo de onze pessoas. O aumento no número de pessoas pareceu requerer
certa organização por parte do tribunal. Quando cheguei de manhã ao corredor da sala
de audiências, dois grupos separados esperavam por ingressar. Reconheci em um deles
os familiares e vizinhos de Quique e Santiago; e em outro aqueles vinculados a Cacá.
Diferentemente do dia anterior, o primeiro em ingressar foi o segundo grupo. Uma
mulher policial lhes indicou onde se sentar: “de cá pra cá, porque se vierem as pessoas,
250
Relembro aqui da regra que proíbe uma testemunha observar a audiência antes de depor. Talvez isso
fosse um dos motivos da ausência do grupo de apoio de Cacá no primeiro dia, pois estavam citadas para o
segundo.
339
elas têm que se sentar na frente”. Não me chamou atenção que, novamente, ao grupo do
“bairro” lhes fossem reservadas as primeiras fileiras, porém surpreendeu-me a
expressão utilizada pela policial: “se vierem as pessoas”. Como se alguma linha
divisória, além da fileira onde eu me sentava, estivesse demarcando a identidade (de
pessoa) de um grupo e outro
251
. Poucos minutos depois entraram “as pessoas”. Tudo
ocorreu em um tenso silêncio.
A angústia e a tristeza manifestas entre o grupo do “bairro” no primeiro dia
pareceu ceder a expressões de raiva. Comentários, por baixo, eram emitidos quando
ouvidos os depoimentos do “outro” grupo. “Está mentindo”, “nem sabe o que dizer”,
“que filho da mãe”. Um dos jovens do “bairro” foi advertido pela policial que cuidava
da ordem da sala para não emitir mais comentários. Por vontade própria, saiu da sala,
por alguns momentos. Parecia não conter sua perturbação. Por sua parte, o grupo de
Cacá ficou quieto e calado. Quando a audiência acabou, as irmãs de Cacá falaram com a
policial para poder se entrevistar com ele. Antes de sair, desde sua cadeira, Cacá falou
em voz alta, mas sem gritar: “mamãe, eu te amo”.
Ao se retirar o tribunal, o presidente ordenou como devia ser feita a saída do
“público”: “como em um estádio de futebol, primeiro sai [a torcida de] um time e depois
[a torcida do] outro”. A divisão no “público” aparecia claramente. Dois grupos, com
interesses opostos, estavam presentes naquele cenário. O “bairro” e o “grupo de Cacá”
não só pareciam ter se distinguido por seu aspecto, roupas e lugares ocupados na sala de
audiência, mas também pelo tratamento diferenciado que as testemunhas receberam
durante seus depoimentos.
As “outras’ testemunhas
No segundo dia foram ouvidas as testemunhas da defesa. De forma integral.
Todas as pessoas que depuseram tinham sido propostas pelo advogado de Cacá e, de
fato, faziam parte do grupo de pessoas que tinham deposto na UFI a partir do
depoimento “308” de Cacá (a tal “evacuação de citas”). Naquele dia depuseram os dois
cunhados de Cacá, a namorada e a mãe. A irmã da namorada foi “desistida” por ambas
as partes e passou a se sentar entre o “público”. Primeiro formulou suas perguntas o
251
Retomando o trabalho citado de Elias e Scotson (2000) sobre a divisão entre “estabelecidos e
outsiders”, enquanto dois grupos em disputa de uma mesma comunidade, os autores ressaltam o fato do
processo de estigmatização por parte do primeiro grupo se dar atribuindo ao segundo um “valor humano
menor”, se considerando a si mesmo “humanamente superior” (2000:19).
340
advogado e, logo depois, o promotor; à exceção da mãe de Cacá e da namorada, porque
o promotor diretamente não fez pergunta nenhuma. Em todos os casos, os juízes
formularam suas questões. A intervenção deles foi maior com estas testemunhas do que
com aquelas do dia anterior.
O defensor foi quem formulou mais perguntas, buscando que as testemunhas
reconstruíssem quando, como e onde tinham encontrado Cacá naquele dia. A briga com
o Sopa, a chegada à casa, a atitude da mãe e, mais tarde do pai, o encontro na esquina,
fizeram parte dos relatos. Tratava-se de mostrar que, em todo momento, Cacá tinha
estado acompanhado. Não foram enfatizados seus hábitos, nem sua personalidade,
apenas aquilo que teria feito naquele dia.
As perguntas do promotor, sobretudo, aquelas dirigidas aos cunhados, foram
mais incisivas. Mais do que confirmar a versão das testemunhas quanto ao álibi de
Cacá, as mesmas apontavam a contradizer seus ditos. Percebi nestes depoimentos uma
tensão maior entre aquilo que estavam respondendo, ou depondo, na audiência e o que
se esperava que eles respondessem conforme as “provas” registradas no processo na
etapa anterior. Uma prática observada em outras audiências veio a ser utilizada como
recurso pelo promotor: ler trechos do depoimento registrado na etapa de instrução.
Quando a testemunha não se lembrava de alguma informação, ou, aos olhos do
funcionário, parecia se contradizer com o manifestado anos antes, era usada essa
técnica, como diziam alguns funcionários, “como ajuda da memória”.
Promotor: sabe a que horas Cacá voltou para a casa?
Javier (o cunhado): nem idéia.
Promotor: peço que se incorporem por leitura as folhas de depoimento em
instrução porque noto uma contradição e uma omissão. [a secretária mostrou a
ata do depoimento para que Javier reconhecesse sua assinatura]. Na UFI, o
senhor disse que chegou um tal Raúl Lucero dizendo que mataram Cacá, o
senhor se lembra?
Javier: sim, chegou Raúl Lucero e disse “mataram Cacá”.
Promotor: o senhor o viu naquele dia naquele lugar?
Javier: estava no bairro.
Promotor: na casa [de Cacá], o senhor o viu?
Javier: ele passou.
Promotor: o senhor o viu ou foi a mãe que lhe contou?
Javier: eu não o vi.
[O promotor leu outra parte do depoimento na UFI].
Javier: é que passou tanto tempo.
Promotor: pois é, mas é que coisas que o senhor lembra com precisão, por
isso estamos lhe perguntando. O senhor tinha relógio?
Javier: não, não uso.
341
Promotor: continua trabalhando todos os sábados?
Javier: não, na fábrica trabalho por temporada.
Promotor: e como se lembra daquele dia?
Javier: porque estava lá e lhe emprestei a bicicleta.
Promotor: lembra o que o senhor fez no sábado seguinte?
Javier: não.
Promotor: e como se lembra daquele sábado, então?
Javier: porque tenho que depor sobre um fato.
Lembrei do advogado Magistir quando me explicava que, quando se tratava da
testemunha da outra parte, ele a “fazia suar”. Era isso que queria o promotor? Que
Javier entrasse em contradição? Ou, além disso, desacreditar a versão dele? Ou mais do
que a versão, desacreditar o cunhado de Cacá como testemunha? Em tal caso, as
ferramentas que tinha para esse objetivo eram diferentes daquelas que Sebastián teve na
etapa de instrução. Isso aí, em um juicio oral, com a presença do defensor e dos juízes,
não passa não”, me disse Sebastián após ter tomado o depoimento dos dois cunhados e
do amigo de Cacá. Referia-se a suas perguntas sobre os processos anteriores de Cacá,
bem como ao envolvimento das próprias testemunhas em processos judiciais. Sebastián,
como vimos, também tinha a possibilidade de editar a ata do depoimento, enfatizando,
recortando ou alterando, senão o conteúdo, pelo menos a forma ou espontaneidade de
certas frases. Curiosamente, essa ata era aquela que, depois, estava sendo usada durante
o juicio para medir a veracidade da testemunha.
“Há uma contradição e uma omissão”, notou o promotor. Esperava-se que a
testemunha repetisse aquilo mesmo que tinha deposto anos atrás na instrução, a partir
das perguntas de quem tivesse tomado seu depoimento? A reposta podia ser afirmativa,
mas sempre dependendo de quem estivesse depondo. A formalidade era novamente
utilizada de acordo com os interesses da hipótese defendida. Na mesma linha,
pensava- ser testemunha não parecia uma tarefa fácil. Lembrar demais ou lembrar de
menos podiam ser interpretados alternativamente como sinais de contradição, omissão,
ou mentira. Por que motivo lembrar de um sábado e não do seguinte? As ferramentas do
promotor para destrinchar estas questões eram a indagação precisa, as perguntas
retóricas ou irônicas e, fundamentalmente, o apelo à ata documentada do depoimento
anterior. Fez o mesmo apelo quando depôs Tony, apontando outras “omissões” em
relação ao depoimento na instrução.
Naquela frase de Sebastián, a presença do defensor e do juiz como diferenciais
do juicio em relação ao trabalho na UFI, aparecia como uma forma de controle sobre as
342
possibilidades do promotor “lidar” com as testemunhas. Contudo, os juízes em
momento nenhum manifestaram oposição a nenhuma iniciativa do promotor. De fato,
na seqüência do depoimento de Javier, o presidente do tribunal e o outro juiz
intervieram no interrogatório, quase tanto como o promotor.
Presidente: o senhor disse que era vendedor ambulante e também disse que
trabalhava nas piscinas Nagual, como é isso?
Javier: por temporada.
Presidente: qual temporada?
Javier: três meses.
Presidente: no momento do fato? Em junho [inverno] trabalhava nas piscinas?
Javier: como pedreiro.
Juiz: jantou na casa de Cacá?
Javier: sim.
Juiz: que jantaram?
Javier: não me lembro.
Presidente: o senhor está em um tribunal de justiça, tem que dizer a verdade.
Quantos anos o senhor tem?
Javier: vinte.
Presidente: eu tenho 47 anos, quando o senhor nasceu, eu já trabalhava na
justiça. Não vou tolerar que mintam para mim nem que me faltem à inteligência.
[tudo expresso em um elevado e gido tom de voz, que manteve durante toda a
seqüência].
Javier: não, não, eu estava no quarto quando chegou Raúl Lucero.
Presidente: já tinham jantado?
Javier: não.
Presidente: se era meia noite! Se o senhor estava no quarto, como o senhor sabe
onde estava Cacá? Sejamos lógicos e sérios, o senhor tem vinte anos, pense bem
no que vai dizer. O depoimento aqui parece lógico [leu parte do depoimento da
instrução]. Então, é entre as 21 e as 24 horas que jantaram, é assim?
Javier: sim.
O presidente e o segundo juiz intervieram com perguntas em todos os outros
depoimentos daquele dia. A situação mais tensa se desenvolveu com Javier, mas em
todos os casos as perguntas apontavam a explorar e indagar precisões sobre os ditos das
testemunhas. Em teoria, a partir da reforma de 1998, os juízes apenas podiam intervir
para fazer perguntas “esclarecedoras” sobre o depoimento em andamento; algum ponto
que não ficasse claro, ou que entrasse em contradição com outra resposta (não com o
depoimento anterior). No entanto, era muito comum nos juicios que observei no
conurbano, que os juízes interviessem com perguntas de todo tipo, comentários
“pedagógicos” e advertências do tipo daquelas emitidas para Javier. Os tribunais que
não tinham essa prática eram destacados, em Tribunales, como exceções. ‘Naquele’ dia,
com ‘aquelas’ testemunhas, o tribunal fez gala de não ser uma exceção. Inclusive, no
343
caso da e de Cacá e da namorada, as quais nem sequer o promotor lhes formulou
perguntas.
Ao término dos depoimentos das testemunhas daquele dia, o promotor pediu que
se “incorporasse por leitura” o depoimento de instrução de Raúl Lucero. Ele não tinha
sido localizado. Novamente, aquela figura aparecia como um mistério no processo.
“Está desaparecido em ação”, comentaram o advogado e o promotor antes da audiência
começar. Como não havia mais testemunhas a serem ouvidas, o tribunal informou que
as alegações finais do promotor e do advogado seriam na semana seguinte. Marcou dia
e horário.
As alegações finais
252
No dia marcado, novamente dois grupos podiam ser localizados na sala de
audiências. Um, nas primeiras fileiras; o outro nas últimas. Como nos outros dias, Cacá
permanecia sentado junto com seu advogado. As alegações finais do promotor e do
advogado seguiriam as linhas de acusação e defesa, respectivamente, expostas no início
do juicio. Elas deviam acrescentar, entretanto, uma exposição e valoração das “provas”
surgidas no debate que apoiassem seus argumentos. O primeiro em apresentar sua
alegação foi o promotor, como era regra.
Sentado desde sua cadeira, com um terno azul escuro, lendo o texto da tela do
lap-top, que permaneceu com ele durante todo o juicio, o promotor relatou novamente o
“fato”. Comprovou sua existência (“materialidade”) através da enumeração das
“provas” incorporadas por leituras, mencionando as mesmas junto com o número de
folhas do processo. Tratava-se de “provas” produzidas por escrito, como a ata do
procedimento policial, ata da operação de autopsia, laudo anatômico, laudo
dermatológico e ata de falecimento. A linguagem utilizada era objetiva e técnica.
Ajudado pela leitura da tela, não dava lugar a equívocos. Posteriormente, o promotor,
com o mesmo tom de voz, e também lendo da tela, ponderou as outras “provas”: os
depoimentos das testemunhas. A linguagem mudou ligeiramente se permitindo
qualificações como “o desgarrado testemunho nesta audiência de Quique”; “o
testemunho de Ivan de apenas doze anos de idade, comprometido com a busca da
verdade a tão curta idade”.
252
Agradeço Maria Piancola o registro e gravação deste evento.
344
Permito-me afirmar que, em relação a estas testemunhas e apesar do momento
vivido, em particular pelos vizinhos da vítima, entendo que resultam por demais
críveis e contestes e, isso, sem prejuízo das características do fato, das condições
pessoais do imputado e das circunstâncias históricas relatadas. Todos eles
resultaram testemunhas corajosas e comprometidas com a busca da verdade, não
deixando transluzir em nada um ânimo vindicativo ou intenções de prejudicar o
acusado. Ainda mais, várias delas têm sofrido nesta audiência crises nervosas em
seus relatos por se ver comprometidas com esta investigação. (Da alegação do
promotor)
Seguidamente, valorou os ditos de Raúl Lucero, incorporados por leitura, devido
a sua não localização. Sem mencionar essa circunstância, baseou-se diretamente na ata
do depoimento de Lucero na UFI. Ressaltando as frases nela inscritas sobre o “mau
conceito” que a testemunha tinha de Cacá, “por ser um bardero, um larapio que rouba
qualquer um e apronta no bairro”, bem como o fato de ter sido a mãe de Cacá quem o
procurou para que fosse testemunha. Atrelado à menção deste depoimento, o promotor
valorizou os depoimentos, na audiência, das testemunhas da defesa.
Este depoimento [de Lucero] não joga por terra a tentativa de defesa do
acusado, mas também desvirtua os depoimentos que concorreram em seu apoio.
Aqui tanto Javier quanto Tony têm incorrido em infinidade de contradições que
merecem sua investigação pelo delito de falso testemunho, o que assim solicito.
Finalmente, em relação aos nomeados, bem como à mãe e à concubina, não pode
ser negada a familiaridade com o acusado e, ao meu juízo, estas circunstâncias
os têm trazido a afirmar e apoiar a veracidade dos ditos dele. (Da alegação do
promotor)
Desta forma, ao tempo que valorizava positivamente os depoimentos das
testemunhas da acusação, desvalorizava a credibilidade daquelas da defesa. Não seus
depoimentos, mas a pessoa delas como testemunhas. O vínculo de proximidade e de
parentesco, regulado por lei e manifesto durante a audiência para evitar o desrespeito de
garantias, era valorado pelo promotor com sinal negativo, provocando a falta de
credibilidade por “apoiar a veracidade” da versão do acusado.
A partir dos reconhecimentos” efetuados na etapa de instrução e daqueles
durante a audiência, bem como dos depoimentos mencionados, o promotor deu por
comprovada a “autoria” de Cacá no fato relatado. Considerou também que não
correspondiam “atenuantes”, porém havia, na opinião dele, “agravantes”.
Valoro a ssima impressão que me causou o imputado no transcurso desta
audiência de debate e o dano psíquico causado aos progenitores da vítima
falecida que tiveram que suportar a imagem de seu filho tendido no chão e
falecido, bem como o relato do senhor Quique nesta audiência quanto às
seqüelas que teve. (Da alegação do promotor)
345
Valorizar a “impressão” –“péssima” ou não- que o “imputado” causara no
promotor, ou em qualquer outro agente, esgrimia-se aqui como motivo possível para
agravar a pena solicitada. Não foram esclarecidos os motivos daquela “impressão”.
Também não tinha sido dada ainda a palavra final para ele, como era de praxe em todas
as audiências de alegação final. Lembrei-me daquela ponderação ouvida na UFI sobre
“acreditar” ou “não acreditar” no “imputado” ou nas “testemunhas”. Como disse, esses
comentários ou perguntas “você acreditou nele?”- eram realizadas por fora da ata
formal dos depoimentos, como valorações posteriores dos funcionários. Aqui, no ritual
do juicio, tais valorações pareciam estar incluídas na mesma etapa da argumentação.
Também a valoração do dano sofrido fazia parte da ponderação da pena, por
parte do promotor. Vinham à tona as expressões de angústia, tristeza, raiva,
manifestadas pelas testemunhas do “bairro”. Aquela expressão dos sentimentos
mostrava ter seus efeitos na administração de justiça, em comunicação direta com as
“impressões” criadas nos funcionários. Como veremos mais adiante, fazia parte de uma
“expressão obrigatória” de sentimentos, baseada em uma linguagem comum destinada e
compreendida por todos os presentes.
Finalmente, com o mesmo tom que começou sua fala, o promotor tipificou o fato
e solicitou que fosse outorgada para Cacá a pena máxima de “prisão perpétua”. Apenas
aí tinha se movido de sua cadeira e tirado os olhos da tela do computador.
Seguiu a vez do advogado. Sem computador, apenas com alguns papéis sobre a
mesa, com o casaco do terno cinza sem prender, o advogado expôs sua alegação final,
mantendo as duas linhas manifestadas no início do juicio: o “erro na pessoa” e,
“subsidiariamente”, uma tipificação alternativa do “fato” que permitisse uma pena
menor. O argumento para defender a primeira linha foi sustentado principalmente no
fato de Cacá “ser do bairro”.
Esta parte entende que pode haver uma confusão quanto à pessoa, pois por esta
defesa ficou demonstrado que o imputado era conhecido no bairro, não é uma
pessoa que ninguém conhecesse, até um menino de dez anos fala de Cacá, o
genro de Sopa. Também ficou demonstrado que a casa da namorada do defunto,
da vítima dos autos, está na esquina ou meia quadra da casa do genro do
imputado. Ou seja, não como alguém não conhecer o imputado, independente
do bom ou mau conceito. Também o oficial de polícia Marconi, que depôs
perante o excelentíssimo tribunal, quando perguntado por esta defesa se
conhecia o imputado de antes, manifestou que sim; quando perguntado por esta
defesa de qual caso, disse que de um homicídio de uma anciã alemã; quando
perguntado qual foi o resultado daquela investigação, disse “não, Cacá não foi”.
346
Então, mais um homicídio que Cacá não foi. Então, cuidado, o ilícito cometido é
aberrante, mas acho que tanto os familiares como a justiça têm que buscar a
vítima [trata-se de um erro ou lapsus, pois deveria dizer “imputado”] que
realmente foi (...) Pergunto-me, se no momento do fato, em um bairro onde
todos se conhecem, onde todos se vêm, onde todos sabem quem é quem, por
mais bloqueio, flash, insight, ou seja o que for, como não identificar no
momento “foi Fulano”... mas não [sic]. Começamos com Jesus, depois com
Topo que termina sendo autor e preso por outro homicídio, até chegar a Cacá.
(Da alegação do advogado de Cacá)
Seja porque andava pela área, seja porque sua namorada morava perto, ou
porque, afinal, ele mesmo não morava há tantas quadras de distância do “bairro”, o fato
de Cacá ser conhecido no “bairro” era o principal argumento do advogado para
justificar o “erro” ou “confusão” quanto a ter sido ele o autor do “homicídio”. Dessa
forma, inscrevia Cacá no “bairro” do local do fato, enquanto o “bairro”, os vizinhos e
familiares das vítimas Quique e Santiago-, distanciavam-se dele, como uma pessoa
que “não era do bairro”, embora andasse no bairro, aprontasse no bairro.
Promotor: a senhora conhecia Cacá?
Dona do quiosque: sim, por um familiar, por isso eu dizia que era o genro de
Sopa.
Promotor: onde mora Sopa?
Dona do quiosque: na esquina da minha casa.
Promotor: iam ao seu comércio?
Dona do quiosque: não, ocasionalmente. Era gente nova. Vinham de outro
bairro; diziam que era da torcida [em referência aos comentários sobre Sopa ser
da torcida organizada de um clube de futebol da área].
Em contraste, o argumento do advogado se baseava na proximidade geográfica -
tudo era em um raio de quinze quadras- como fundamentação de um conhecimento
pessoalizado e uma interação permanente. Se “todos se conhecem” e “todos se vêem”,
era possível supor que Cacá fora identificado pela polícia e pelas testemunhas, seja por
preconceito estava sendo investigado pela polícia em outro homicídio-, seja mesmo
por uma “confusão”. A fronteira social bem delimitada pelo “bairro” na sua comunidade
de pertencimento era transpassada pelo argumento do advogado. Não importava se Cacá
tinha “um bom ou mau conceito”, a questão era que ‘alguma’ reputação tinha e que a
mesma o transformava em possível “autor”, embora não fosse, segundo a alegação do
advogado, o autor “real”.
Lembrei da frase de Sebastián sobre o dia da “reconstituição do fato”: “a família
queria um preso; nós queríamos o autor preso”. A diferença era, neste momento,
essencial no argumento do advogado. O fato tinha sido “aberrante”. Era necessário, na
347
visão dele, reconhecê-lo. Fazia parte de uma expressão obrigatória de sentimentos,
diante das manifestações emocionais dos familiares e vizinhos nos seus depoimentos.
Entretanto, a ânsia, ou necessidade, de justiça, segundo ele, teriam indicado, entre as
pessoas possíveis (aliás, também do “bairro”: Topo, Jesus), o “autor errado”. A partir
desse ponto, questionou também os “reconhecimentos” realizados na sala de audiência.
Quanto ao reconhecimento realizado aqui na audiência, com o máximo de
respeito pelo excelentíssimo tribunal e estando previsto no código, eu acho que
até o menino de dez anos sabe que o imputado é aquele que está sentado do lado
do defensor. Então, não coisas muito claras, o que me leva a solicitar
formalmente a absolvição de meu cliente. (...) Considero pelas provas aportadas
em autos e considerando as contradições existentes, que, sim, existiram
contradições de ambas as partes, não acho que, nem de uma parte, nem da outra,
por malícia, mas possivelmente por serem coisas que têm acontecido muito
tempo, não ficam claro, mas que colocam o benefício da dúvida a favor de meu
cliente, o que o promotor assim não entende. O senhor promotor, em todo seu
direito, está solicitando a pena máxima. Estamos falando de prisão perpétua para
alguém que, no humilde entender desta defesa, não estou totalmente convencido
de que tenha a ver. (Da alegação do advogado de Cacá)
A forma de exposição do advogado era confusa e errática. Pequenos dados
estavam errados (nome de testemunhas, a idade do menino). As frases não se
terminavam nem articulavam completamente umas com outras. “Não estou totalmente
convencido”, disse. Parecia-lhe faltar um tom definitivo, enfático, que pudesse se
contrapor à certeza do promotor ao solicitar, sem hesitação, a pena máxima. O tribunal
deu a palavra a Cacá. Era o momento ritual final de toda audiência. No juicio de Dario,
os policiais não tinham utilizado esse direito a se manifestar. Cacá quis dizer umas
palavras finais.
Sim, nada, que sou inocente e me estão acusando de uma coisa que eu não fui,
me conhecem do bairro, tudo, eu não faço nem idéia de por que, até o dia de
hoje eu não consigo entender. Eu tenho a consciência tranqüila de que sou
inocente. Nunca matei ninguém, nem cometi lesão nenhuma. isso, senhor
presidente.
Com suas palavras finais, Cacá enfatizava os argumentos do advogado. Sua
inocência e seu pertencimento ao “bairro”. Caberia aos juízes decidirem sobre ambos os
argumentos. Eles marcaram a “leitura da sentença” para a semana seguinte. Anunciaram
sua retirada e pediram coordenação na saída do público: primeiro sai a última fileira e
depois aquelas da frente, para evitar qualquer tipo de conflito”.
Seis dias depois, o tribunal decidiu pela “prisão perpétua” de Cacá, tal como
solicitado pelo promotor. A sentença foi informada “por secretaria”. Quer dizer, não foi
348
realizada uma audiência, nem anunciada ou lida publicamente. Em uma das conversas
com Bruno, quem tinha trabalhado em um tribunal oral antes de ser promotor da UFI,
ele contava que, quando os juízes de seu tribunal decidiam pela “prisão perpétua”, da
mesma forma que em todos os outros casos, pediam que o secretário Bruno- lesse a
sentença. Ele criticava essa medida por achar que uma decisão desse tipo era uma
responsabilidade que os juízes mesmos deviam encarar, olhando para o imputado”.
Isso, no entanto, não costumava acontecer e não aconteceu também no caso de Cacá.
“Joga pedra na Geni
Em novembro de 2009, quatro meses antes de viajar novamente para Buenos
Aires para assistir os juicios de Dario e Cacá, observei audiências no Tribunal do Júri
do Rio de Janeiro. Lembro em particular de um caso que em muito me ajudou a pensar
as especificidades dos juicios orales no conurbano bonaerense. Tratava-se de um
processo por “homicídio”
253
. Uma mulher estava sendo acusada de ter matado seu
amante. Ré e vítima eram agentes da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. A
defesa argumentava que o disparo que matou o homem tinha sido acidental, pelo fato
de, naquela hora, ambos terem discutido e forcejado. A acusação negava tal
“acidentalidade” e defendia o fato do “homicídio” ter sido planejado, pois, sendo
policial, não cabia erro no uso da arma. Quando entrei na sala de audiência, o promotor
estava interrogando a ré. Logo depois, o juiz abriu os intervalos de tempo para que
promotor, primeiro, e defensor, seguidamente, argumentassem sobre suas respectivas
“teses”. Em pé, circulando o tempo todo pelo retângulo da sala delimitado pelo estrado
do juiz, da escrevente e do promotor, de um lado; pelo banco do réu e da defesa do
outro; dos sete jurados em frente e do público em perpendicular, o promotor em um tom
alto e forte de voz expôs seus argumentos.
Promotor: Eu vou demonstrar que ela [assinalando a ré] é uma artista. Vou
mostrar que a tese dela é um absurdo para alguém que é policial. Seu jeito de
atriz de novela da Globo envolve um jeito malandro, bandido e acabou presa.
Ela não é tão burra assim, sabe dissimular, é piroca da idéia, piroca de maluca
[esclareceu]. (...) É daquelas mulheres que grudam no cara e ficam atrás, é esse
estilo. Ela tenta colocar uma acidentalidade, “um puxão de mão”! Olha só! A
vítima também era policial, ele estava segurando o braço dela, não a arma.
Alguém que é capaz de tomar chumbinho e atirar no próprio peito, é capaz de
qualquer outra coisa [se referindo a duas tentativas de suicídio da ré]. (...)
[Relata que a vítima teria acabado o relacionamento porque a mulher dele estava
253
No Brasil, o Tribunal do Júri tem competência sobre os crimes dolosos contra a vida.
349
grávida, mas a teria pedido para se encontrarem novamente]. Foram no café
que sempre iam, foram no café que sempre iam, repito, os dois armados, ela com
a arma destravada na bolsa. Uma policial! Com a arma destravada na bolsa! Ela
disse que imaginava se matar...
Defensora, interrompendo: está conjeturando!
Promotor: estou afirmando!
Defensora: não pode, o senhor não é testemunha. Não conheço de arma, não sei
atirar, mas sei ler processo.
Promotor: compre uma revistinha sobre armas. Nós estamos aqui para fazer
justiça. Aqui não cabe a tese da acidentalidade.
O juiz indicou que o tempo de alegação do promotor estava esgotado. Ele
concluiu solicitando os jurados que votassem pela condenação por “homicídio
qualificado”. Era a vez da defensora. Ela tinha ficado em durante toda a alegação do
promotor; caminhava pela sala enquanto este falava. Ainda mais inquieta ficou no
momento de sua argüição. Aproximava-se e distanciava-se dos jurados, marcando e
acompanhando as mudanças no seu tom de voz.
Defensora: cabe ao Ministério Público o ônus da prova [provar a autoria]. Mas
aqui, em lugar de provas, joga-se pedra na Geni, “joga pedra na Geni, joga bosta
na Geni, ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir”
254
... se falou da Geni,
tudo é culpa dela! É necessário enfrentar a relação entre a vítima e a Thais,
senão Thais vai ser a Geni da história e Thais é a idiota, como todas nós
mulheres. Todos sabiam do relacionamento da Thais com a vítima. As mulheres
grávidas enjoam seus maridos que necessariamente saem buscar amantes e
investem nelas. E depois? Depois “Geni, eu queria sexo”. E a Geni é que não
presta. [A defensora cita e a letra completa da música de Rita Lee Amor e
Sexo”
255
] que a vítima investiu no amor, no romance, mandou flores, cartas,
apresentou Thais para a família. E Thais é a Geni? Ou é a idiota como todas nós?
Antes de julgar Geni é preciso dividir o mar. “Ah... porque ela é policial, sabia
atirar”, não!! Ela é uma mulher igual a qualquer de nós.
254
Referia-se à música de Chico Buarque “Geni e o Zepelim”: De tudo que é nego torto / Do mangue e do
cais do porto / Ela já foi namorada / O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem
não tem mais nada / Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato /
É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde
/ Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir / Ela é um poço de bondade / E é por isso que a
cidade / Vive sempre a repetir / Joga pedra na Geni / Joga pedra na Geni / Ela é feita pra apanhar / Ela
é boa de cuspir / Ela dá pra qualquer um / Maldita Geni (...), e continúa...
255
A composição dessa música é de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Arnaldo Jabor. A música completa
diz assim: Amor é um livro / Sexo é esporte / Sexo é escolha / Amor é sorte.../ Amor é pensamento /
Teorema/ Amor é novela / Sexo é cinema../ Sexo é imaginação / Fantasia/ Amor é prosa / Sexo é
poesia.../ O amor nos torna / Patéticos/ Sexo é uma selva / De epiléticos.../ Amor é cristão / Sexo é pagão
/ Amor é latifúndio / Sexo é invasão / Amor é divino / Sexo é animal / Amor é bossa nova / Sexo é
carnaval / Oh! Oh! Uh! / Amor é para sempre / Sexo também / Sexo é do bom / Amor é do bem.../ Amor
sem sexo / É amizade / Sexo sem amor / É vontade.../ Amor é um / Sexo é dois / Sexo antes / Amor
depois.../ Sexo vem dos outros / E vai embora / Amor vem de nós / E demora.../ Amor é cristão / Sexo é
pagão / Amor é latifúndio / Sexo é invasão / Amor é divino / Sexo é animal / Amor é bossa nova / Sexo é
carnaval / Oh! Oh! Oh! / Amor é isso / Sexo é aquilo / E coisa e tal! / E tal e coisa! / Uh! Uh! Uh! / Ai o
amor! / Hum! O sexo!
350
Promotor: deus nos livre e guarde!
Defensora: desde quando um sexo do bom rende um anel de diamantes?
Nenhuma mulher pode ouvir de um homem que é uma cachorra e ficar impune.
Não justifica a atitude, mas traz a realidade. Foi o erro do homem investir no
amor quando queria sexo. Foi um acidente. Ela tem problemas? Tem, fazer o
quê. Nem todos somos iguais, alguns são mais sensíveis do que outros. É essa a
vida que temos que avaliar, que nos reunimos para julgar. (...) Se desejarem
condenar porque é Geni, a cretina da história, é decisão de vocês. se joga
pedra na Geni, alguns até gostam. Ele sabia como ela reagia, ele sabia que ela
era doidinha. (...) Se o forem julgar Geni e julgarem a verdadeira Thais, a
prova do processo autoriza a absolvição da ré.
O promotor fez uso de seu direito a réplica. Enquanto ele falava, a defensora
gritava “joga pedra na Geni, joga bosta na Geni”. Em alguns momentos ele continuava
falando, em outros pedia para não ser interrompido. Os dois se gritavam mutuamente e
expressavam em alta voz seus argumentos. À exceção de trechos que consideravam
importantes serem ditos em um tom de voz baixo, mais íntimo. Quebravam esses
poucos momentos, alçando a voz, impostando vozes, batendo as palmas na mesa.
Gritavam-se um ao outro, negando a “razão” e a “coerência” dos argumentos
esgrimidos pelo outro. No final, saíram abraçados e rindo conjuntamente da sala.
O cenário dessas alegações exigia a todos os participantes, à exceção da e do
público, estarem vestidos com togas pretas. O promotor, a defensora e o juiz, cobrindo o
corpo inteiro. Diferenciavam-se entre si pela cor de uma faixa que prendia a toga na
cintura. Vermelha o promotor; verde a defensora e preta o juiz
256
. Os jurados e outros
serventuários vestiam, acima de suas roupas, pequenas becas que cobriam os ombros e
se amarravam no pescoço. Os jurados ouviam em silêncio, sem gesticular. Apesar do
promotor e da defensora se dirigirem a eles de forma próxima e direta, quase
interpelando-los. Ambos mostravam trechos do processo e até os estendiam a eles para
que os lessem. Caso quisessem, pois não se esperava dos jurados uma avaliação técnica
256
O uso da toga no Tribunal do Júri do Rio é analisado por Luiz Figueira para o caso do juiz, como
símbolo de imparcialidade (2007:78). No caso da França, o uso da toga também é analisado
dedicadamente por Antoine Garapon (1999 - Capítulo 3). Destaca, em primeiro lugar, o fato do uso de
toga ou de vestimentas semelhantes ter sido progressivamente abandonado por professores universitários,
médicos e religiosos, à exceção de “magistrados e restantes membros da profissão judiciária (...) que
continuam a usar quotidianamente a toga” (1999:73). Garapon propõe diversos significados para entender
o uso judicial dessa vestimenta, na França: ter uma missão purificadora e protetora e destacar a instituição
por sobre a pessoa (1999:86). Pensando no confronto encenado no júri entre promotor e defensora no caso
relatado e em outras audiências também considerei interessante a interpretação de Garapon relativa à toga
“autorizar a agressividade, evocando ao mesmo tempo a unidade para lá da discórdia (1999:88).
351
das “provas” (Figueira, 2007:227
257
). Talvez por isso o argumento da defensora
lançasse mão daquelas imagens que, nos jurados, poderiam provocar as músicas de
Chico Buarque e de Rita Lee e o promotor da figura de uma “atriz da Globo” e
expressões como “piroca das idéias”. O certo é que nas audiências do Tribunal do Júri
que tinha observado no Rio de Janeiro, tinha ouvido argumentos dos mais variados.
Além de citações de músicas populares, histórias pessoais e familiares dos próprios
agentes, ditados populares, notícias midiáticas, filmes, foram encenados por
promotores, defensores e advogados, com fins de produzir o convencimento do júri nas
respectivas argumentações.
Como disse, naquele dia, quando cheguei à audiência, ela estava iniciada. Em
outras audiências, sempre me chamava a atenção o início das falas do promotor e do
defensor ou advogado. Elas estavam, obrigatoriamente, precedidas por longas saudações
dedicadas ao juiz do tribunal e ao promotor ou defensor, dependendo de quem estivesse
fazendo uso da palavra. Exaltava-se a personalidade “uma pessoa humilde”,
“generosa”, “justa”, “versátil”-, a forma de trabalho “prende quando tem que prender
e solta quando tem que soltar”, “o melhor juiz do mundo”, “vossa excelência é um
adversário extremamente astuto, perspicaz”- e a trajetória “há mais de dez anos que
leva o dom da justiça com altivez”, “este tribunal do júri é uma grande família”. As
categorias para se dirigir uns aos outros eram ritualmente respeitadas: “nossa / vossa
excelência”, “meritíssimo”. Se em várias das audiências que observei, os juízes ficavam
boa parte da mesma assinando outros processos, nesta parte ficavam atentos às falas de
seus colegas, olhando para eles com gestos de agradecimento. Em um primeiro olhar,
acostumada a outras formas, parecia-me um ‘verdadeiro exagero’. Logo depois, entendi
se tratar de uma regra de etiqueta fundamental. Pois, tanto esses elogios e reverências
iniciais, como as veementes interrupções e confrontos durante as alegações, eram
dramatizações necessárias para marcar as respectivas posições e cada um defender,
posteriormente e com aguerrida ênfase, seus argumentos.
Um das primeiras etnografias que li sobre Tribunal do Júri no Rio de Janeiro,
assim que cheguei ao Brasil, foi o trabalho de Alessandra Rinaldi sobre “a oratória”
257
Aponta Figueira: “Como os jurados não acompanham a produção das provas exceto o interrogatório
e a inquirição de alguma testemunha em plenário o contato que eles m com os denominados ‘fatos’
(do acontecimento interpretado como crime) decorre das narrativas produzidas durante os debates orais
entre defesa e acusação. As provas são apresentadas aos jurados pelos debatedores que, obviamente,
possuem interesses estratégicos num contexto de disputas argumentativas” (2007:227).
352
nesse “ofício”, no qual “o importante é a forma em que os argumentos são expostos”
(1999:14). Ela analisou não apenas sessões de Júri, mas também manuais e cursos de
oratória (oferecidos pela Escola Superior de Advogados OAB-RJ). Identificou em
todos eles a produção e reprodução de um “modelo único de fala, característico do Júri”
(1999:16). Conforme este modelo, eram ensinadas e praticadas técnicas que treinassem
e tornassem seus oficiantes “bons oradores”; atributo essencial, segundo Rinaldi, para a
aquisição de prestígio no campo (1999:38). Como ficar de pé, como usar o microfone,
como falar, como olhar, como expressar um semblante, a alternância dos argumentos e
de tons de voz. O modo de desenvolver todas essas técnicas destacava um “bom
orador”. O júri, conforme Rinaldi, ao relegar o aspecto técnico a um segundo plano, era
“o ofício que dava maior destaque à oralidade” (1999:14). Nele, era necessário
persuadir os ouvintes leigos do argumento defendido. Para tal fim, a oratória aparecia
como o instrumento mais eficaz
258
. Ela não outorgava prestígio profissional, mas era
a técnica que favorecia o “convencimento” daqueles que deviam decidir pela
condenação ou absolvição. No caso do Júri, os sete jurados. “Convencer” quem decidia
era a arte fundamental não deste sistema, mas também do sistema de justiça na
província de Buenos Aires. A diferença parecia estar nas pessoas a serem convencidas
e, portanto, nas técnicas utilizadas para tal fim.
“Alice no país das maravilhas
A experiência de observar sessões no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro me fez
pensar nas formas expositivas e argumentativas das audiências de juicios orales, na
província de Buenos Aires
259
. Claramente por contraste. tinha experimentado um
contraste semelhante, mas em outro âmbito. Desde 1997, participava em congressos de
antropologia onde, além de meus colegas argentinos, também apresentavam seus
trabalhos pesquisadores brasileiros. Sempre me chamava a atenção, e, de fato,
comentávamos com as colegas mais próximas, as diferenças no estilo de apresentação
dos trabalhos por parte de pesquisadores brasileiros e argentinos. Os primeiros, de
258
Na sua etnografia sobre o Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, Luiz Figueira também ressalta: “O
desempenho cênico e a competência cênica são fatores fundamentais à decisão que sairá dos votos dos
jurados na sala secreta. A competência cênica caracteriza-se pela aptidão para utilizar e adequar as
múltiplas estratégias discursivas e não-discursivas ao contexto do embate contraditório objetivando
conquistar os jurados para a tese que está sendo defendida” (2007:227).
259
Também em relação aos juicios orales do sistema processual penal federal, na cidade de Buenos Aires
(Eilbaum, 2008; ver também Sarrabayrouse, 1998).
353
forma mais loquaz, excepcionalmente liam textualmente as comunicações, costumavam
apresentá-las em pé, às vezes fazendo uso do quadro, ou da exibição de fotos. A forma
de apresentação de nossas comunicações estava mais amarrada ao texto escrito; sempre
sentados, sem muita mobilidade corporal ou gestual, com o tom monocórdio que a
técnica de leitura favorece. A oralidade como forma de comunicação acadêmica
parecia-me, na época, estar melhor desenvolvida entre os colegas brasileiros do que
entre nós, argentinos
260
.
Quando me deparei com as formas de oralidade e comunicação observadas nas
sessões do Tribunal do Júri, este contraste com tais formas nas práticas judiciais
argentinas se aprofundou. Não era apenas a percepção de uma maior desenvoltura oral e
cênica. Eram também formas de expressão, regras de etiqueta e referenciais dos
discursos ensejados, que observava como diferentes. Em uma entrevista com uma
defensora oficial atuante no departamento de Los Pantanos na etapa de juicio oral,
talvez pela negativa, as diferenças começaram a aparecer para mim de forma explícita.
Ela me contava de um juicio por “roubo” em uma loja de comestíveis. Na fase de
instrução, a dona da loja teria dito que, embora estivesse atrás da geladeira, estava
convencida de reconhecer na voz do “autor” a voz de um “rapaz do bairro”, chamado de
Saul. No juicio, continuou me contando a defensora, a senhora teria dito que “a voz
tinha lhe parecido” ser a daquele jovem, ou seja, que não estava tão convencida assim.
Aí eu comecei com as perguntas, fui bastante insistente e comecei a apertar até a
senhora dizer “a verdade é que não o vi e não sei se a voz que ouvi era dele ou
de meus funcionários”. Bom, o promotor ficou muito chateado, reteve a
testemunha e, depois, os juízes a chamaram de novo, eu me opus, gritei, berrei e
nada. Quando foi minha vez de alegar, o promotor e o tribunal foram embora
muito chateados, se levantaram sem me cumprimentar, porque eu citei para eles
“Alice no país das maravilhas”; quando a rainha vai com Alice e lhe mostra o
preso: “esse que está está preso, mas o julgamento será recém na próxima
quarta-feira e o crime secometido no final”. E é o que acontece, mas ficaram
muito chateados. E eu terminei a alegação [ela ri, enquanto se lembra e me
conta] com a frase do bispo Romero, de El Salvador, “a justiça como a serpente
260
A etnografia de Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (1999) sobre as práticas acadêmicas em três cursos
superiores no estado do Rio de Janeiro destaca o predomínio das formas orais de transmissão de
conhecimento no ensino universitário (1999:55). Ele vincula a legitimidade da oralidade no âmbito
acadêmico com as técnicas de expressão e comunicação a ela associadas. “Esta consagração da oralidade
como um valor também aponta para os mecanismos que permitem sua operacionalidade em relações
carismáticas. Isso se expressa no desempenho dos professores, através da utilização de técnicas de
oratória, como a impostação da voz, a gestualidade, o repertório de teorias, casos e exemplos passíveis de
serem mobilizados de modo a manter a atenção da turma em constante estado de mobilização (...)”
(1999:86). A associação permite fortes vinculações com as conclusões que Alessandra Rinaldi (1999)
apresenta para sua etnografia da oralidade no Tribunal do Júri, já referida.
354
apenas morde os descalços”. E ficaram como loucos e saíram xingando. Eu disse
isso tudo por conta de um artigo de [Eduardo] Galeano que saiu no jornal que
fala de “Justo, a Justiça”. Claro, tiveram que absolver porque não havia nada,
mas absolveram zangados, muito zangados. (Entrevista com defensora oficial,
29/05/09)
O relato da defensora ressaltou para mim quão mau visto podia ser o fato de
trazer à tona, no juicio, citações de romances, matérias de jornais ou frases de famosos.
Também berrar e gritar não eram atitudes bem quistas no âmbito daquelas audiências.
Em outras, tinha percebido o incômodo dos juízes, quando algum dos funcionários
inclinava-se por comentários, ou referências por fora daquelas da jurisprudência ou da
doutrina jurídica. Basta lembrar aqui a ênfase do presidente do tribunal, no juicio de
Dario, com a “economia de tempo” do julgamento quando vislumbrava “digressões”
possíveis sobre o “objeto do processo”. Em um daqueles cortes, o presidente, como
narrado, chegou a informar que até ele mesmo tinha apresentado, em um congresso, um
trabalho sobre a temática discutida o lugar da “vítima” no processo. Não se tratava de
achar o assunto pouco relevante. A questão parecia ser o âmbito: ela podia ser discutida
e trabalhada em eventos acadêmicos, mas a audiência de juicio não era ambiente
adequado para discorrer sobre debates ou argumentos que fugissem dos “fatos”.
Na visão e na prática destes agentes, o juicio oral parecia requerer de uma
solenidade formal, técnica, que, inclusive, reproduzisse o quanto possível não aquilo
já escrito no processo, mas também a lógica da escrita judicial: sem gestos, sem
alterações do tom de voz, sem debates acalorados, sem “parênteses”. Tal atitude que,
interpreto eu, parecia ser exigida aos funcionários no seu desempenho oral contrastava,
por um lado, com o processo através do qual, na etapa de instrução, os agentes
chegavam àquilo que ficava registrado por escrito e, por outro lado, com o
comportamento permitido às testemunhas nas audiências.
Como descrevi nos outros capítulos, o desenvolvimento da investigação na
primeira etapa do processo tinha um caráter dinâmico e informal. Isto é, a descrição dos
“fatos” e os depoimentos e “provas” sobre eles iam se construindo na medida em que o
processo avançava, as informações se contradiziam ou confirmavam e o mesmo se
tornava verossímil ou convincente aos olhos dos funcionários da UFI. Nesse decorrer,
estes expunham sua intuição e sentidos, ironizavam ou se emocionavam junto com os
depoentes, trocavam histórias, olhavam fotos familiares. Os formalismos, no sentido da
repetição de rmulas jurídicas que dessem forma aos procedimentos como a
355
formulação do juramento de verdade das testemunhas, ou a enunciação dos “direitos”
do interrogatório do “308”- eram usados alternada e estrategicamente, a modo de
advertência ou imposição de autoridade, quando a ocasião, aos olhos do funcionário,
assim o requeresse. Posteriormente, no final desses atos, ou bem no final da fase de
instrução, as informações “convincentes”
261
eram plasmadas por escrito. Aquele
reproduzido no discurso dos funcionários nos juicios.
Desta perspectiva, não surpreende a percepção por parte de funcionários da
etapa de instrução em valorizar as destrezas necessárias para seu desempenho em
desmedro da etapa de juicio, vista como uma fase mais “tranqüila”, sem maiores
habilidades especiais (“intuição”, “ter estrada”). Como teria dito Valeria, comentando a
reforma que unia em um mesmo funcionário o desempenho nas duas etapas,
mencionada no Capítulo 2, “ficarei um pouco nervosa nas primeiras audiências, mas
você vai e faz, não é nada tão diferente”. O uso da oralidade como técnica de
comunicação e, sobretudo, de convencimento, previsto para as audiências de juicio, não
parecia requerer, na visão destes funcionários, a aquisição, nem o desenvolvimento de
um conhecimento específico. Diferentemente, por exemplo, do curso de oratória
etnografado por Alessandra Rinaldi (1999), onde cada gesto, postura e forma de fala
eram ensinados como portadores de uma mensagem particular
262
.
A solenidade presente nos agentes de juicio também contrastava com a
performance das testemunhas. Como vimos, nas audiências, elas expressavam seus
sentimentos, em forma ritualizada. Nas suas formas de comunicação não poupavam
gestos, onomatopéias, choros, xingamentos. Dificilmente, elas seriam interrompidas
pelos juízes. A ‘forma’ de um depoimento em juicio tinha requerimentos e
constrangimentos específicos, diferentes daqueles de uma conversa corriqueira e,
inclusive, diferente dos depoimentos em instrução e de outras instâncias formalizadas de
comunicação (acadêmicas, médicas, religiosas, etc.). Como vimos, ele era desenvolvido
sob juramento de dizer a verdade. Também exigia responder de costas a quem fizesse as
perguntas (promotor ou defensor), olhando para terceiros (os juízes) e sem virar a
cabeça. A linguagem e essas formas de comunicação implicavam um estranhamento nos
261
Não necessariamente em prol da acusação, mas também em prol de um pedido de liberação do
“imputado”.
262
Lembro-me que nos primeiros anos posteriores à reforma que introduziu a “oralidade”, quer dizer, os
juicios orales no sistema federal (1992), eu ainda me encontrava estudando no curso de direito da
Universidade de Buenos Aires, onde era possível ver, colados nas paredes, cartazes anunciando cursos de
oratória. Entretanto, não perduraram por muito tempo.
356
depoentes, muitas vezes resultando em explicações adicionais ou advertências: “atrás do
senhor estão o promotor e o defensor, mas o senhor não tem que olhar para eles; eles
vão lhe fazer perguntas e o senhor tem que olhar para o tribunal”, “não vire a cabeça”,
“responda para o tribunal”. Entretanto, parecia haver um consenso em deixar fluir as
falas e emoções. Talvez porque, mais do que os discursos e/ou encenações das “partes”,
fosse o desempenho das testemunhas e do “imputado” os que contribuíssem para formar
o convencimento do tribunal. Ou, talvez porque, como disse a rainha para Alice, no país
das maravilhas, tudo estivesse pré-determinado por aquilo construído na etapa de
instrução. “Se chegamos até aqui [o juicio], por alguma coisa será, porque alguma
coisa fez”, dizia aquela defensora.
“Quero ver a cara deles
O certo é que, contrastando com a formalidade dos discursos profissionais, a
expressão ritual dos sentimentos por parte das testemunhas encontrava seu lugar,
durante os depoimentos, entre o público ou, também, nos intervalos das audiências, nos
corredores. Lembro de um juicio no qual dois jovens estavam sendo acusados de roubar
e matar a dona de um quiosque em um bairro de Los Pantanos, no qual intervinha
aquela defensora oficial que entrevistaria quase dois anos depois. Quando entrei na sala
de audiência, estava depondo o marido da senhora morta. Contava sobre a noite do
“fato”, quando o choro e as grimas interromperam momentaneamente o depoimento.
No público, havia apenas dois homens. Eram os filhos da senhora. O mais novo chorava
junto com o pai; o mais velho, olhando o “imputado”, sussurrava “filho da puta”. Em
um dos intervalos, conversei com eles. O mais velho me contou que morava no exterior
e que, na época
263
, tinha viajado para o funeral da mãe.
Havia muitas pessoas presentes porque minha mãe era muito querida no bairro.
Eu falava para ela fechar o quiosque e não trabalhar mais, mas ela não queria por
isso, porque era a oportunidade para conversar com as pessoas do bairro. E
veio este filho da puta. Eu via quando ele ria enquanto meu pai estava depondo.
Eu quis vir para ver a cara deles [os “imputados” eram dois, um casal de jovens].
Viu que ele disse que estava esperando um filho? Como a mulher pode se deixar
engravidar por um cara assim?
Como os intervalos naquele juicio foram muitos e prolongados, conversei
bastante com a família. A todo momento o filho mais velho mostrava essa indignação
263
O “fato” tinha acontecido no dia 23 de novembro de 2005. Aquele era o primeiro dia do juicio e era
um onze de dezembro de 2007.
357
pessoal com os “imputados”, enquanto o pai expressava sua angústia pela perda da
mulher. Naquele mesmo dia, após a audiência, conversei com os três juízes do tribunal
que estavam reunidos na sala do presidente. Criticaram proficuamente a defensora por
“fazer perguntas que não tinham a ver com os fatos”. O presidente reconhecia ter se
impacientado com ela, porque opinava se tratar apenas de uma estratégia para
desacreditar a testemunha. O presidente também estava incomodado com a atitude que
“teve” que manter durante o juicio.
Hoje eu tive que estar com os olhos em todos os lados, porque, no público, eu
via que estavam os filhos chorando e vendo que moviam os lábios xingando e
dizendo que os iam matar; estava o imputado que virava a cara rindo e ainda em
um momento vejo que a imputada passa alguma coisa para o imputado por baixo
da mesa. parei a audiência para que os revistassem. Era um anel, mas poderia
ter sido qualquer outra coisa, droga, sei lá.
Desde sua posição, os juízes eram os únicos que podiam ter acesso a tudo o que
acontecesse na sala. No dia das alegações finais, os “imputados” expressaram suas
últimas palavras no juicio. Ambos disseram ser “inocentes”. O jovem acrescentou que
se colocava no lugar da família, porque “não gostaria que matassem minha mãe ou
minha avó”. A sentença do tribunal, o mesmo que julgara Cacá, foi condenatória para
ambos; vinte anos de prisão para a moça e vinte e um para o jovem.
Uma vez anunciada a sentença, o pai queria ir embora, mas o filho quis esperar
para se retirar da sala: “quero ver a cara deles”. Ao sair, o pai falou para a policial que
custodiava a porta: “eles mataram minha mulher” e chorou mais uma vez. Em outros
juicios, também tinha observado a leitura da sentença provocar reações fortes por parte
dos presentes, geralmente familiares da vítima
264
. Ao tempo que era uma instância
prevista, estava carregada de expectativas que podiam condensar os anos de espera por
“justiça” e o investimento realizado com esse fim. Assim, esses momentos de leitura das
sentenças pareceram-me interessantes justamente por marcarem o contraste entre a
solenidade e formalidade do tribunal e a manifestação de sentimentos por parte do
“público” testemunhas, vítimas, familiares, vizinhos- e, eventualmente, dos
264
Lembro de um juicio em outro departamento judicial do conurbano contra um jovem acusado de
estuprar uma menina. O “fatoera de outubro 2003 e o juicio estava acontecendo em agosto de 2007. No
dia da leitura da sentença, entre o “público”, estava apenas eu e a mãe da menina. O veredicto foi
condenatório, impondo doze anos de prisão para o imputado”. Imediatamente, a mãe pulou de seu
assento, gritando e xingando os juízes pelo que ela considerava uma pena baixa. A senhora, com o rosto
vermelho de raiva, movia-se com força e insultava alternadamente o “imputado” e o tribunal. Cinco
policiais presentes tiveram que contê-la com significativo esforço por parte deles. No dia seguinte,
comentando com um dos policiais presentes, ele me disse que a mãe tinha sido quem, durante oito meses,
tinha levado nas costas a investigação, procurando e encontrando o “imputado”.
358
“imputados”. Como dizia Bruno, na grande maioria das vezes a sentença era anunciada
pelo secretário do tribunal, ou seja, por uma terceira pessoa que não aquela que tinha
tomado a decisão. Era reproduzida através de sua leitura, citando dados formais como
data, horário, tribunal, nome do imputado, tipificação legal, pena. A forma de sua
formulação parecia tentar equilibrar as possíveis e esperáveis reações emocionais.
Como se, para juízes e funcionários, aquele ambiente do juicio, devesse guardar um
equilíbrio entre a possibilidade das pessoas expressarem seus sentidos de “justiça” e a
formalidade técnica e profissional, como símbolo de imparcialidade das decisões.
É um processo tragicômico. Por isso vezes que o tribunal tem que dar um
intervalo para todos sairmos para rir. Lembro de um juicio onde havia uma
testemunha mulher paraguaia, ou peruana, que dizia que tinham atirado com
uma metralhadora e fazia “trataratrata” e toda vez que ela fazia isso o juiz se
esquivava! É como rir de uma piada em um velório. (Entrevista Dr. Magistir,
21/05/09)
Na nossa sociedade, um velório exige um ambiente de respeito. Silêncio,
consternação, lágrimas, são algumas formas de expressão desse respeito. Por isso, “uma
piada em um velório” é uma frase comum que marca uma atitude descompassada do
clima dominante, mas, ao mesmo tempo, necessária coletivamente como sinal de
distensão ou alívio geral. O juicio, se comparado com tal ritual, também parecia
requerer aquele equilíbrio entre o respeito às formas e etiquetas e a expressão das
manifestações surgidas pela própria dinâmica de um processo que, com a presença de
todos, julgava situações dramáticas e dramatizadas em um único espaço temporal e
espacial.
Como chamou a atenção Marcel Mauss [1921], “o riso, as grimas e os gritos,
em certos rituais, não são somente expressões de sentimentos; são também, ao mesmo
tempo, rigorosamente ao mesmo tempo, signos e símbolos coletivos; e enfim, de outro
lado, são manifestações e distensões orgânicas tanto quanto sentimentos e idéias”
(2005:334). Por isso, afirma que “todas essas expressões coletivas, simultâneas, de valor
moral e de força obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo são mais do que
simples manifestações; são sinais, expressões compreendidas, em suma, uma
linguagem” (2005:332).
Como tal, a expressão coletiva dos sentimentos, em um contexto de ritual oral,
como podem ser os rituais funerários e também os juicios orales, não eram meros
desarranjos não esperados, ou inadequados por parte dos atores leigos. Essa expressão
359
fazia parte da atribuição de sentidos e identidades no desenvolvimento dos juicios
observados. Por isso, eram esperados como reações ou ações possíveis por parte de
vítimas, de familiares e do “imputado”. Entretanto, naquele contexto e diferentemente
do Tribunal Júri no Rio de Janeiro, não pareciam resultar adequadas como expressão
dos agentes profissionais. A eles lhes era exigida austeridade, formalidade e
objetividade jurídica nas suas expressões. Apesar dessa distribuição de papéis, segundo
minha percepção, todos - leigos e profissionais - partilhavam daquela linguagem
comum de expressão obrigatória dos sentimentos.
É preciso dizê-las porque todo o grupo as compreende. A pessoa, portanto, faz
mais do que manifestar seus sentimentos, ela os manifesta a outrem, visto que é
mister manifestá-los. Ela os manifesta a si mesma expressando-os a outros e por
conta de outros (Mauss: 2005:332).
No contexto do juicio oral, em Buenos Aires, tratava-se de expressões de dor
perante os presentes (a mãe de Quique com a foto entre as mãos), de perda e carinho
(“era o melhor”), de raiva diante do “imputado” (“esse filho da puta”), de reivindicação
(“queria lhes ver a cara”), de imploração diante do tribunal (“sou inocente”), de
arrependimento diante das vítimas (“coloco-me no lugar da família”) ou diante dos
juízes (“que me encontro arrependido de tudo o que aconteceu”). Assim, nesses
contextos rituais, esse “outrem” a quem expressar e comunicar os sentimentos não era
apenas o “público”, a memória de um familiar morto, ou o “imputado”. Também
perante o tribunal ficava expressa aquela linguagem comum de sentimentos públicos e
valores morais.
De fato, como disse, os três juízes eram os únicos que permaneciam de frente a
todos os participantes (“eu tive que estar com os olhos em todos os lados”). A eles eram
dirigidos os gestos, as expressões, as lágrimas, os risos, as raivas, os xingamentos. Eram
eles que observavam essas manifestações e eram eles, enfim, que decidiam sobre como
interpretar essa linguagem coletiva e pública e como traduzí-la em uma resolução
judicial do drama encenado. Se no Tribunal do Júri, essa tarefa estava destinada a
jurados leigos, destinatários dos argumentos morais expressados por promotores e
defensores em suas alegações; no juicio oral bonaerense, os leigos apareciam como
portadores dessa linguagem moral destinada a convencer os juízes de suas “verdades”.
Pensada dessa maneira, a expressão dos sentimentos, regida pelas formas rituais
(quem expressa o quê em que momento e desde qual posição), era parte constitutiva da
administração de justiça. Ela ensaiava um conjunto de valores morais contidos na
360
expressão de uma linguagem por todos compreendida. Era respeitando essas formas que
a expressão de emoções e sentimentos podia se tornar, no âmbito dos juicios, um “fato
social”, constitutivo do mundo social e capaz de promover variadas formas de
legitimidade (Pita, 2006:76).
No entanto, nem todos os atores leigos tinham a mesma legitimidade para
expressar seus sentimentos e ser eficazes nessa técnica. Eles eram ouvidos, por parte do
tribunal, de acordo com uma versão dominante dos “fatos” julgados. Como vimos no
juicio de Cacá, enquanto seus familiares e amigos eram indagados incisivamente e
advertidos pelo tribunal, as testemunhas do “bairro” eram consideradas nas suas reações
emocionais sem questionar, por isso, sua objetividade como testemunhas.
A distinção entre testemunhas ou parte do “público” como associados à figura da
“vítima” e aqueles vinculados ao “imputado” era, dependendo do juicio, um eixo de
classificação para atribuir legitimidade e, portanto, convencimento a essa expressão de
sentimentos. Foi ao longo do trabalho de campo, observando depoimentos na UFI,
lendo processos, assistindo juicios, que percebi também que, seja como “vítima” ou
“imputado”, o “bairro”, enquanto figura pública e coletiva, era uma fonte legitimadora
das versões (comentários, boatos, informações ou fofocas) através dele transmitidas
perante os funcionários judiciais. Ao mesmo tempo, percebi que ele mesmo, como
personagem da administração de justiça, não estava isento de disputas de sentido por
suas fronteiras geográficas, morais e sociais.
361
CONCLUSÕES
Valeria Mena, Sebastián Vázquez, Alicia, Bruno, Diego e os “meninos”; os
advogados Fellini, Luis Real, Pascolini, Lopez Matze, Magistir, Laura Torres e Juarez;
a defensora Marina Giver, Julio Sosa e Martín Lavalle; os policiais Martínez e Marconi;
os “imputados”, vítimas e testemunhas dos casos relatados (entre muitos outros,
Resapo, Sanchez, Gómez e Dario Barian; Lorenzo e seu cunhado; Esteban Garza e
Patrícia Juarez; os catadores de papelão Martín López e Ramón Silva; o policial
Sánchez e Juan Ojeda; Lucas Martin e sua mãe; os Santana; Marisa e Carlos; Cacá,
Quique e Santiago) têm fornecido a “carne e sangue” desta tese. Foi a observação e
atenção das histórias envolvendo estes diferentes personagens que me permitiram
formular as reflexões que a guiaram.
Essas histórias estão unidas por um contexto social o conurbano bonaerense-,
por um ambiente institucional a justiça da província de Buenos Aires- e por um
conjunto de regras de procedimento que orientam os passos a seguir em termos
institucionais e formais o Código de Processo Penal da província. Contudo, mais do
que ressaltar esses aspectos, interessou-me mostrar as relações sociais, as histórias de
vida, as perspectivas profissionais e as posições institucionais, que, em situações
específicas um “processo judicial”- juntaram diferentes personagens em uma trama
comum de encontros e interações.
Na introdução, propus o conceito de ‘moralidades situacionais’ para denominar
aquilo que tenho percebido como os valores e interesses ligados aos aspectos
mencionados acima que orientam e conduzem a investigação criminal, a interpretação
das “provas” e a tomada de decisões, em casos específicos. Essas ‘moralidades’ têm
demonstrado não ser esquemas rígidos e estáticos de valores, mas atuarem diante do
confronto com situações e pessoas singulares. Não me seria possível, então, enquadrar
os agentes judiciais em identidades estáticas que definam suas tendências profissionais,
mas analisar suas decisões em casos particulares, tendo em vista a natureza dos
conflitos, as pessoas envolvidas e os valores e interesses que suas histórias fazem ecoar
nos funcionários. Dessa forma, esta tese teve como objetivo mostrar como atua um
‘saber judicial’ possível, no conurbano bonaerense, em particular em uma UFI do
departamento de Los Pantanos. Sem ser necessariamente predominante, nem também
excepcional, ela é uma forma possível de “fazer justiça” naquele âmbito institucional.
362
Nele, como vimos, eram recebidos e tratados conflitos produto de relações cotidianas,
em âmbitos sociais cotidianos o “bairro”- e para cujo tratamento eram
disponibilizados procedimentos cotidianos para os agentes judiciais. Essa característica
talvez diferencie o “fazer justiça” aqui descrito das formas analisadas em outras
etnografias referidas às intervenções do poder judiciário na Argentina, como, por
exemplo, os trabalhos de Sofia Tiscornia (2006) sobre o caso “Bulacio”
265
; ou de María
José Sarrabayrouse (2009) sobre a atuação do poder judiciário (ou de grupos dentro
dele) durante a última ditadura militar na Argentina (1976-1983); ou, a partir de outra
abordagem, o trabalho de María Victoria Pita (2006) sobre as formas em que as mortes
resultado da violência policial têm sido “politizadas”, através da intervenção de
familiares das vítimas
266
. Ao analisarem casos nos quais a dimensão política aparece
mais explicitamente colocada como uma variável decisiva na construção da
investigação e da “verdade”, estas etnografias têm enfatizado dimensões da
administração de justiça, distintas daquelas ressaltadas por esta tese. Neles, o Estado
sob diversas formas (acusado, procurador, testemunha) - aparece como uma parte
fundamental do processo judicial. Esta característica faz com que os procedimentos
sejam utilizados, embora não exclusivamente, em função de posicionamentos e
ideologias políticas e também em relação com as pressões e o “ativisimo” de
movimentos sociais (de direitos humanos, de organizações civis, de familiares”). As
“partes” destes processos, assim, se constituem e apresentam diante dos agentes
judiciais de forma diferenciada em relação aos casos que eu pude observar e descrever
no meu trabalho de campo
267
. Neles, a “politização” dos casos (e dos procedimentos)
265
O caso “Bulacio” refere à morte em mãos da polícia do jovem Walter Bulacio, após ser preso em uma
razziapolicial em um show de rock, na cidade de Buenos Aires. Como mencionei no Capítulo 1, por
esse caso, o Estado argentina foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, diante da
intervenção fundamentalmente dois organismos de direitos humanos.
266
Como assinala Pita, os casos analisados por ela não referem a situações de notoriedade pública ou
midática, nem a mortes de militantes políticos, mas de jovens comuns, na sua maioria de bairros pobres.
No entanto, Pita marca que “afirmar que não se trata de fatos de violência política, isto é de crimes
políticos, não implica que não se trate de mortes políticas Pelo contrário, é possível defini-las como
mortes políticas já que é o poder de polícia, o rosto descoberto do poder do estado, que as têm produzido”
(2006:19). Nesse sentido, a tese baseia-se no processo de “politização” destas mortes “através do protesto,
a denúncia e a impugnação da violência de estado” (2006:7).
267
Embora de forma diferenciada com os trabalhos antes citados, também posso mencionar neste aspecto
a etnografia de Brigida Renoldi sobre a investigação e julgamento de casos de narcotráfico na fronteira
Argentina-Paraguai, considerando a relevância atribuída nesses casos a valores relativos à nação, à saúde
pública, à ordem social. Assim, Renoldi afirma, por exemplo, que “as categorias ordenadas nas formas
classificatórias que compõem a instituição judicial se tornam eficazes na trilogia de agentes do sistema
judicial, acusado e público. O público aqui alude à imaginada comunidade nacional, que cria por
acordo as regras de conduta humana em códigos que se lhe aplicam. Não remete, estritamente, à
363
não aparecia manifesta daquela forma. Além disso, como tenho tentado demonstrar, o
processo de investigação criminal, de produção e interpretação das “provas”, de tomada
de decisões e de construção de uma “verdade judicial” encontrava-se atrelado a valores
morais e interesses que aproximavam as pessoas envolvidas com os agentes judiciais.
A ‘formação judicial’
Ao observar as práticas de promotores, defensores, meritórios, policiais,
advogados e juízes, em processos judiciais específicos, tenho percebido,
predominantemente, a atuação de um tipo de conhecimento, que chamo aqui de ‘saber
judicial’. Percebia este em contraste com o ‘saber jurídico’. Este último poderia ser
caracterizado como produto do conhecimento especializado dos agentes jurídicos e
profissionais, resultado da aplicação de regras de procedimento, normas penais e
doutrinas jurídicas acerca dessas normas, aprendidas em processos de educação formal,
em particular nas Faculdades de Direito. Este saber jurídico pode ser caracterizado
como “dogmático, normativo, formal, codificado” (Kant de Lima, 1983:98).
O ‘saber judicial’, embora atrelado ao ‘saber jurídico’, toda vez que seu contexto
de atuação exigia o respeito a regras de procedimento e normas legais, não se esgotava
nele. Ainda mais, um bom domínio deste último não era nem uma exigência formal dos
agentes do ‘saber judicial’, nem necessariamente fonte de prestígio profissional. Como
demonstrado, embora os agentes judiciais responsáveis formalmente pelos processos
fossem obrigatoriamente formados em direito e tivessem, a partir da reforma processual
penal de 1998, que ter sido aprovados em provas públicas de conteúdo jurídico, nem
todos os agentes judiciais responsáveis na prática pelos passos de um processo tinham
aquela formação, nem tinham cumprido essa exigência formal para sua designação no
cargo.
Os “meninos”, designados em escalas hierárquicas inferiores, tomavam
depoimentos, se entrevistavam com advogados, elaboravam escritos judiciais de
solicitação de “provas”, “perícias, allanamientos”, “prisões preventivas”, e outros
procedimentos. No caso da UFI, para desenvolver essa tarefa resolviam suas dúvidas ou
dificuldades com Valeria e, em especial, com Sebastián. Chamava-me a atenção na UFI
que Bruno, que era reconhecido por todos como o mais capacitado e formado
população que assiste ao juicio (2008b:201). Ver também Renoldi, 2007 (em especial Capítulo 2) e
2008a (em especial Capítulo 1).
364
juridicamente, apenas recebesse consultas de questões muito específicas, mas não sobre
o andamento dos processos. Por sua vez, Valeria e Sebastián reconheciam em cada um
dos “meninos” uma habilidade diferenciada que pouco tinha a ver com os cursos de
graduação que seguiam (lembro que nem todos estudavam direito), com os anos de
estudo ou com o desempenho acadêmico. As diferenças estavam na experiência
adquirida em Tribunales”, bem como nos estilos pessoais para “lidar” com os casos e
com as pessoas envolvidas.
Os “meninos” não era uma categoria exclusiva da UFI. Toda a estrutura judicial
do conurbano (também da justiça federal) estava composta, em seus escalões inferiores,
por pessoas sem formação jurídica que trabalhavam processos com a delegação
informal de seus superiores. Juzgados de garantias, defensorias e promotorias
respondiam a este esquema, naturalizado e fora de qualquer questionamento formal
268
.
Assim, as habilidades reconhecidas nos funcionários não respondiam tanto ao
conhecimento jurídico, como a experiência de trabalhar e ter trabalhado “em
processos”.
E trabalhar ‘em’ processos era reconhecido como diferente de trabalhar ‘com’
processos. Este último, domínio do ‘saber jurídico’, priorizava a leitura e interpretação
mediada das “provas” e dos relatos contidos e formalizados nos autos, em relação
permanente com as normas legais, com a “doutrina jurídica” e com decisões escritas
para outros casos (“jurisprudência”)
269
. No primeiro, domínio do ‘saber judicial’, outras
268268
Recentemente, enquanto escrevia estas linhas, a Revista Tribuna do Advogado da Ordem de
Advogados do Estado do Rio de Janeiro (OAB/RJ) anunciava: Após denúncia da OAB/RJ, juíza que
delegava condução das audiências a servidoras é afastada”. A juíza em questão presidia em dois
municípios da Baixada Fluminense os juizados especiais cíveis e criminais. Descobriu-se que a juíza
marcava audiências para os mesmos dias e horários, sendo as mesmas realizadas por duas servidoras, sem
presença da juíza-titular. A “irregularidade” foi noticiada pela imprensa escrita (Jornal O Dia) em uma
série de reportagens e, posteriormente, denunciada pela OAB e investigada pela Corregedoria Geral da
Justiça. Além das sanções administrativas e disciplinares com as funcionárias, o Ministério Público
solicitou a anulação das decisões tomadas naquelas audiências e a OAB pediu a apuração dos crimes de
“falsidade ideológica” para a magistrada e “usurpação de função pública” para as servidoras. Revista
Tribuna do Advogado, Agosto / 2010, Ano XXXVIII, Número 494, pagina 10.
269
Esta distinção entre trabalhar ‘com’ processos e ‘em’ processo pode ser igualmente repensada nos
termos do trabalho de Letícia Barrera sobre “um dispositivo da burocracia judicial, o expediente,
[abordado] com o fim de estudar as formas de intervenções feitas pelos sujeitos que criam os
expedientes” (2009:222). O trabalho de Barrera se desenvolveu em um âmbito específico de autuação
judicial: a Corte Suprema de Justicia de la Nación (semelhante, no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal).
Nessa instância, a atividade judicial se desenvolve exclusivamente através de expedientes, sendo que
tratam sobre as decisões já tomadas por tribunais de instâncias inferiores, não tendo contato nenhum com
as partes envolvidas. Esta particularidade permite uma análise interessante sobre o trabalho ‘com’
processos, na qual ela destaca que, do ponto de vista dos agentes que “criam esses documentos”, é
possível perceber “uma forma paralela na qual os expedientes tornam visíveis os sujeitos dessas práticas
documentais, não como objetos ou coisas, mas como relações e pessoas” (2009:234). Dessa
365
habilidades vinham à tona; a maioria delas apreendidas na própria prática de
Tribunales”. No âmbito de uma UFI, trabalhar ‘em’ processos era uma experiência
adquirida na prática de trabalhar com casos específicos, tomando depoimentos,
conversando com as pessoas, registrando o que elas diziam, perguntando e re-
perguntando, construindo hipóteses, interagindo com os policiais, conhecendo os outros
agentes e as respectivas reputações, observando as pessoas e apreendendo, enfim, a
tarefa de interpretação de todas essas informações de forma a construir uma atuação
judicialmente adequada. Era aprender a investigar aqueles crimes que chegavam à UFI
de Los Pantanos, além das diversas teorias jurídicas que pudessem informá-los. Era,
então, um saber que reunia habilidades técnicas, pessoais, emotivas e intuitivas.
Nessa tarefa, o ‘saber judicial’ não era um conhecimento, nem uma prática que,
necessariamente, torna-se o “fazer justiça” uma atividade auto-centrada, formal e
esotérica. Fazer justiça” nos Tribunales de Los Pantanos, segundo minha
experiência, era também a possibilidade de estar próximo de valores e interesses de
grupos sociais, que não aqueles profissionais. Era partilhar alguns desses valores e
interesses com as pessoas envolvidas nos conflitos, ao tempo em que era se opor e
excluir outros. Essa exclusão não operava necessariamente pelo predomínio da ‘forma’
(vazia) sobre o ‘fundo’, qualquer que este fosse. Operava pela confluência, ou não, de
‘moralidades situacionais’ entre agentes profissionais e leigos em casos –histórias-
específicos. Na minha percepção, essa oportunidade de confluência – ou divergência- de
perspectiva, “os sujeitos das práticas judiciais são narrados, descritos e entendidos através de suas
intervenções no processo judicial (...), entendendo que as pessoas podem ser identificadas com os textos
que elas mesmas produzem” (2009:232). Desta forma, esta análise permite também outra perspectiva em
relação ao fato de entender os expedientes como coisas desencarnadas das pessoas que as produzem,
como meros reprodutores de instrumentos e mecanismos burocráticos. No entanto, gostaria de ressaltar
que, em instâncias diferenciadas da Corte, como aquelas onde eu realizei minha pesquisa, as afirmações
propostas por Barrera, no sentido destas relações se desenvolverem “dentro dos limites do expediente”,
entendendo estes como “dispositivos que fixam os limites do alcance da atividade judicial” podem ser
relativizadas. Barrera afirma que “a busca da verdade [legal, ou mais especificamente judicial] é
alcançada, questionada e negociada apenas dentro das fronteiras do expediente judicial” e que “de modo
semelhante, os procedimentos judiciais sobre provas de fatos por exemplo, exame de testemunhas-,
ditames, e demais procedimentos, são registrados meticulosamente no expediente, prática que de algum
modo se assemelha a um registro de operações contáveis de dupla entrada” (2009:224). Nesse sentido,
nesta tese tenho apontado para o fato das negociações, disputas e consensos sobre a investigação, a
interpretação das provas, a tomada de decisões e a verdade judicial, se desenvolveram além dos limites
dos textos judiais e seu registro, encontrando base nas interações pessoais entre os diferentes agentes
entre si (suas reputações e estilos de trabalho), e entre estes e as pessoas envolvidas nos conflitos (seus
valores morais e interesses), sejam ou não registradas. Isso não implica em entender como assinala
criticamente Barrera que “as práticas dos funcionários judiciais [sejam] totalmente subjetivas nem
discrecionais, nem absolutamente mecânicas ou descoladas emocionalmente” (2009:240). Pelo contrário,
implica em entender as mesmas dentro de sentidos morais que guiam suas orientações diante de casos
(histórias) específicos.
366
valores e interesses no “fazer justiça” se fazia possível através da articulação e operação
de duas categorias nativas: “crença” e “bairro”.
A “crença” na “verdade”
Em um livro já clássico, “A verdade e as formas jurídicas”, Michel Foucault sela
uma associação filosófica e histórica entre “verdade” e “práticas judiciais”. Ele
distingue entre uma “história interna da verdade” associada ao domínio da ciência e
uma “história externa da verdade” vinculada a “outros sítios da sociedade nos quais se
forma a verdade, onde se define um certo número de regras de jogo, a partir das quais
vemos nascer certas formas de subjetividade, domínios de objetos e tipos de saber”
(1995:17). As “práticas judiciais” constituem, para ele, um desses domínios onde são
produzidas, sob certas regras, formas de “verdade”. A história dos “regimes de verdade”
traçada por Foucault nesse livro constitui-se em uma referência fundamental sobre as
formas em que, no Ocidente, foram estabelecidos sistemas de “averiguação da verdade”.
De outro ponto de vista, seria possível traçar essa associação entre “verdade” e
“práticas judiciais”, entendendo a “verdade” como uma categoria nativa de sistemas de
justiça particulares. Como tal, a “verdade” teria significados diferentes dependendo do
sistema no qual esteja imersa. Ela pode ser, assim, uma categoria referida por parte de
agentes locais que participam desse sistema em situações diversas: na lei, na doutrina,
nas decisões e/ou solicitações escritas, nas alegações e discursos orais em audiências de
julgamento, bem como em variadas conversas e interações pela boca de profissionais
como das pessoas envolvidas nos conflitos tratados pelo sistema. Essa visão também
pode explicar que diferentes sistemas judiciais tenham diferentes formas de se referir e
conceber a “verdade” por eles produzida
270
. Durante meu trabalho de campo, percebi o
uso dessa categoria em diversos âmbitos e, mesmo neles, nem sempre adquiria o mesmo
sentido.
270
Roberto Kant de Lima (1996), por exemplo, tem enfatizado o contraste entre a noção de “verdade” no
sistema jurídico brasileiro e aquela presente no norte-americano. Neste último, a “verdade” é entendida
como sendo fruto de uma decisão consensual e negociada entre as partes. no sistema brasileiro ele
aponta para existência de um “mosaico de sistemas de verdade” (o inquérito policial, o judicial e
julgamento pelo tribunal do júri), mas todos eles guiados por um objetivo comum e último reconhecido
para o processo criminal brasileiro: “a descoberta da verdade real”, também expresso na frase “a apuração
da verdade dos fatos”. Segundo esta noção, a “verdade” que opera no sistema judicial brasileiro se opõe à
“verdade formal” do processo, nunca pode ser negociada e é sempre produto da decisão de uma
autoridade superior às partes. Ver também Figueira, 2007 e Teixeira Mendes, 2009.
367
O Código de Processo Penal da província de Buenos Aires afirma ser uma das
finalidades da investigação penal “comprovar, mediante diligências dirigidas à
descoberta da verdade”, se existiu um fato criminoso, as circunstâncias indicativas de
sua punibilidade, os autores ou partícipes, as características pessoais e sociais dos
mesmos
271
e o dano causado pelo eventual “crime” (artigo 266 CPP-PBA). A “verdade”
aparece aqui como um objetivo do processo de investigação criminal, para o qual devem
ser destinados os procedimentos e as atividades de “produção de provas”.
Em consonância com tal objetivo, promotores e defensores também faziam uso
dessa categoria para demonstrar e fundamentar suas ações e decisões. “Aportar”,
“colaborar”, “se comprometer” com “a verdade” eram expressões locais utilizadas
recorrentemente em escritos judiciais, tanto de agentes do sistema como de advogados
particulares. Assim o manifestou o advogado do policial Sanchez no processo pela
morte de Dario, na viatura que seu cliente dirigia:
Em conhecimento da verdade material, a qual vem sendo revelada através das
diversas diligências probatórias, meu assistido tem desempenhado e desempenha
um papel que nunca pode importar entorpecimento da investigação. Pelo
contrário, tem colaborado de maneira ativa, aportando dados e precisões que
muitos deles já corroborados têm resultado ser a verdade histórica sobre o
acontecido e outros também o serão, produzidas as provas que a instrução
entenda como necessárias. (Do processo de Dario)
A afirmação foi realizada em um escrito que solicitava a “liberdade provisória”
de Sanchez. Argumentava que, diante das diferentes “versões” existentes no processo,
seu cliente era o único que tinha contribuído de forma sistemática com a “verdade”.
Nessa linha, “verdade” e “versões” se contrapunham como categorias diferenciadas em
relação a seu grau de autenticidade e objetividade. Em outros termos, a “verdade”
parecia ter maior grau de “veracidade” que uma simples “versão”, dentre outras. Desta
perspectiva, as “versões” eram múltiplas; a “verdade” era única, “histórica”, “material”.
Também o promotor da etapa do juicio contra Cacá dizia, na sua alegação, que
as testemunhas do “bairro” tinham se mantido “comprometidas com a busca da verdade,
não deixando transluzir em nada um ânimo vindicativo ou intenções de prejudicar o
acusado”. “Colaborar” com a investigação era, conforme estes argumentos, aportar
271
Conforme o inciso 4, do artigo 266 do CPP-PBA, “verificar a idade, educação, costumes de vida,
meios de subsistência e antecedentes do imputado; o estado e desenvolvimento de suas faculdades
mentais, as condições nas de sua ação, os motivos que podem -lo determinado para delinqüir e as
demais circunstâncias que revelem sua maior ou menor periculosidade”.
368
informações tendentes “à descoberta da verdade”. Era, de fato, em ambos os casos, uma
forma de fundamentar, em consonância com a lei, a versão defendida.
O Dr. Juarez, advogado criminal, coincidia com o entendimento do “objetivo
principal do direito penal ser descobrir a verdade histórica; a verdade do que aconteceu
diante de um fato determinado”. que para ele esse objetivo manifesto era
incompatível com um sistema no qual o promotor “era o dono do processo” e decidia
qual prova aceitar e qual não. Ele e outros advogados coincidiam, em consonância com
o discurso da lei, em afirmar a crença na existência de uma “verdade histórica”, embora
pudessem ter críticas pontuais com as formas concretas como o sistema pretendia
chegar a esse objetivo. Na opinião dos advogados, a forma com que o sistema era
praticado nunca poderia “alcançar” aquela “verdade”. Pelo contrário, para eles, aquilo
que o sistema e seus agentes pareciam produzir eram versões parciais de tal eventual
“verdade”.
Nos seus depoimentos, as testemunhas também faziam uso da categoria
“verdade”. Nessas situações, a mesma era associada, de diversas formas, à finalidade do
processo penal. Como vimos, nas audiências de juicios orales, algumas testemunhas
respondiam ser seu “interesse” no processo, “que a verdade seja descoberta”, por vezes
acompanhada de ouras frases como “que vão presos”; “que se resolva”; “que se
condene”. Estas últimas frases marcavam também uma versão parcial da forma com que
deveria ser “descoberta a verdade”, ou melhor, do resultado que deveria ter aquela
“descoberta”. Também no âmbito da UFI a “verdade” aparecia como uma categoria
associada a uma finalidade da investigação. A mãe de Angel, o jovem morto por um
segurança quando supostamente iria roubar um posto de gasolina, foi visitar Valeria
para “saber a verdade do que aconteceu”. No final do encontro, ela apontou: “eu sei que
a senhora é boa pessoa, sei que a senhora vai descobrir a verdade do que aconteceu”. A
sua preocupação não era saber por quem, nem como, o filho tinha sido morto, mas
estabelecer que seu filho “não saía a roubar”. Para isso, disse estar “disposta a mostrar
como viviam” e que seu filho “era incapaz de uma maldade”. Ela queria saber “a
verdade” e sustentava para tal fim uma versão particular que estava dizia- em
condições de defender diante de Valeria. Esta última, no entanto, e como contei no
Capítulo 5, dizia que embora não soubesse por que, a senhora não a “convencia”.
Em relação a certos casos, também Valeria e Sebastián faziam referência à
“verdade” com significados por vezes diferenciados. Lembro que, no caso Cacá, quando
369
o prazo para solicitar a “prisão preventiva” estava finalizando, Sebastián expressou
algumas de suas incertezas em relação a tal solicitação dizendo: “não estou convencido
da verdade, quando estiver, verei quais provas reforçam essa hipótese”. Como também
constatamos no Capítulo 5, no processo contra o policial Sanchez pela morte do jovem
Ojeda, Valeria afirmou que, nesse caso, seu raciocínio seguia uma lógica específica. Ela
disse: “quando quero chegar à verdade é uma coisa, mas aqui eu estou convencida de
que o jovem foi morto de costas”. Em ambas as apreciações, a categoria “verdade”
estava associada ao “convencimento” que as “provas” poderiam produzir nos agentes.
“Convencimento” e “prova” apareciam, assim, como outras duas categorias nativas, que
informavam o significado local e particular atribuído à “verdade”. Nestes casos, elas
pareciam traçar o caminho a partir do qual os agentes acreditavam que chegariam ou
estabeleceriam uma “verdade”.
Parece-me que esse caminho, tanto na percepção dos agentes como das pessoas
envolvidas nos conflitos, referiam seu significado a uma noção de “fazer justiça”. Isto é,
a idéia de que chegar a uma “verdade”, ou “chegar à verdade”, supunha uma decisão ou
um resultado “justo” do processo. Por isso, esta percepção, às vezes, se afastava de
certas “provas”, “acreditando” em certas versões e “desacreditando” outras. Isso,
porque, mais do que estabelecer quais tinham sido “os fatos”, o processo que levava a
uma decisão estava atrelado às ‘moralidades situacionais’ que identificavam um
resultado como sendo “justo”
272
. Neste sentido, é possível identificar nestas percepções
uma dimensão que pode ser assemelhada com a “dimensão do reconhecimento”,
proposta por Luís Roberto Cardoso de Oliveira, como constitutiva de certos conflitos
judiciais. Entretanto, se Cardoso de Oliveira (2009:162) assinala que esta dimensão
estaria dada pela busca dos litigantes em ver seus direitos garantidos, com respeito e
consideração, por parte do Estado, aqui enfatizo a possibilidade dessa dimensão associar
moralidades e noções de justiça, comuns aos agentes judiciais e as pessoas envolvidas
nos conflitos. “Verdade” e “justiça” seriam assim categorias indissociáveis e estariam
ligadas ao “convencimento” dos agentes sobre a versão a ser defendida.
272
Em outros termos, seguindo Clifford Geertz, mais do que olhar o direito na sua atividade de enquadrar
fatos em normas estabelecidas, desde a etnografia, podemos atender às formas como “as instituições
legais traduzem a linguagem da imaginação para a linguagem da decisão, criando assim um sentido de
justiça determinado” (2002:260), que Geertz vai chamar de “sensibilidade jurídica”.
370
“Acreditar” no “convencimento”
Segundo a lei, “para a valoração da prova apenas é exigida a expressão da
convicção sincera sobre a verdade dos fatos julgados, com desenvolvimento escrito das
razões que conduzem àquela convicção” (artigo 210, CPP/PBA). Essa expressão
enquadra o sistema de valoração de “provas” da província de Buenos Aires no chamado
sistema de sana crítica”. Explicava-me o advogado Lopez Matze:
Neste sistema, os juízes decidem com um sistema de liberdade de provas, apenas
limitado pelo sistema da sana crítica. Basicamente três sistemas no processo
penal: o da prova tarifada, o das livres convicções razoadas e o das livres
convicções, esse último próprio de uma monarquia “para mim é culpado e
acabou-se, não tenho porque andar valorando nem fundamentando as razões da
minha decisão”, como sim corresponderia em uma república. O sistema que
adota o código de 1997 na província de Buenos Aires é o das livres convicções
razoadas, no qual o juiz ou o tribunal tem que fazer uma construção lógica da
prova. (Entrevista Dr. Lopez Matze, 26/05/2009)
O sistema anterior à reforma, como mencionei rapidamente no Capítulo 7, era o
chamado de “prova tarifada”. Nesse sistema, as provas eram valoradas por lei e não pelo
critério judicial. Cada tipo de prova possuía um valor e para compor uma “decisão
fundamentada” devia ser reunida uma certa quantidade e qualidade de provas
273
. Para
Lopez Matze, a vantagem deste sistema era que as decisões dos juízes estavam,
previamente, limitadas pela lei.
Em termos teóricos, a vantagem deste sistema é que era uma limitação do
arbítrio judicial. O legislador tinha ponderado de antemão o caminho para
chegar a uma sentença. Você via muitas sentenças nas quais os juízes diziam:
“tenho para mim, estou convencido, persuadido, de que Fulano é autor do
homicídio; no entanto, amarrado como estou às limitações da prova tarifada e
não tendo prevista no código a maneira de ter por acreditada a plena prova,
deixo assentada minha opinião pessoal e absolvo”. Então, o juiz, apesar do seu
convencimento, estava limitado pela prova. (Entrevista Lopez Matze,
26/05/2009).
Em 1894, o advogado italiano Emilio Framarino Dei Malatesta publicou pela
primeira vez seu livro “A lógica das provas em matéria criminal”. A obra foi publicada
em português em 1911, com uma recentíssima re-edição, sem modificações, em 2009.
273
Por exemplo, o depoimento de uma única pessoa não bastava; deviam ser duas mais um “indício
direto”, ou seja, uma prova não testemunhal (a arma; a camisa com sangue). Ou a confissão também não
era prova suficiente; devia ir acompanhada de mais um depoimento. Também a valoração das
testemunhas estava pautada por lei, sendo que existia um sistema de testemunhas que invalidavam
depoimentos de familiares ou interessados. Para uma análise de um ponto de vista antropológico, ver o
trabalho de Sofia Tiscornia na sua etnografia sobre o “caso Bulacio” (2006).
371
O livro é um tratado completo da lógica judiciária em matéria de provas penais”,
abordando diferentes “teorias da prova” e tipos distintos de “provas e suas naturezas”.
Em um dos trechos do livro, o autor analisa a passagem histórica do sistema de “livre
convencimento” ao de “provas legais”
274
. Sua opinião aparenta rias semelhanças com
a ponderação do advogado Lopez Matze, anos depois e em um contexto diferente.
Malatesta disse o seguinte:
Assim, se bem o sistema do livre convencimento seja historicamente mais
antigo, no entanto as provas legais, para o tempo em que floresceram, foram
realmente um progresso; e este progresso foi tanto mais benéfico quanto é certo
que elas foram substituídas ao processo inquisitorial, tornando-se assim um
corretivo ao arbítrio judicial, temível em tal forma de processo. (Malatesta,
1911:53)
Como Lopez Matze avaliava em relação ao sistema judicial bonaerense a partir
da reforma de 1998, o sistema de “provas legais ou tarifadas” é visto por Malatesta
como um limite à discricionariedade e arbítrio da decisão do juiz, por estabelecer
critérios de interpretação pré-definidos. No entanto, Malatesta foi além dessa opinião,
em uma linha de reflexão que me pareceu interessante em relação às formas de
construção da investigação criminal e de interpretação das provas observadas
empiricamente no meu trabalho de campo. Seu raciocínio encadeia uma série de
categorias para tratar da “lógica das provas em matéria criminal”.
Ele disse que o julgamento criminal inicia-se por “ter em conta motivos de crer e
motivos de não crer; isto é, principia-se pela probabilidade; depois, rejeitando os
motivos que levam a o crer, passa-se à certeza”. Segundo esta visão, a comprovação
em matéria criminal pode ser assemelhada a um caminho, ou percurso de graus cada vez
maiores de formas de convicção. Para ele, a “certeza” é o grau máximo que pode ser
alcançado no campo das provas penais. E, dependendo do sistema de “provas” adotado
existiriam diferentes tipos de “certeza”. Ao sistema de “provas tarifadas” corresponderia
a “certeza legal”, baseada na imposição ao juiz de certas condições predeterminadas na
lei. Ao sistema de “livre convencimento” corresponderia a “certeza moral”, buscada,
não em critérios legislativos, mas no “espírito do juiz”. Dessa contraposição, Malatesta
274
É importante mencionar que Maltesta denomina “prova legal” ao sistema que os juristas, no Brasil,
denominam “prova tarifada” e, na Argentina, de “prova tasada”. Entretanto, este sistema de provas é
diferente daquele denominado por Michel Foucault de “prova legal”, muito mais referido por sociólogos,
criminólogos e antropólogos. A “prova legal”, segundo Foucault, é “uma maneira singular de chegar â
verdade jurídica, [que] não passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio
lançado por um adversário a outro” (1995:40).
372
conclui que, de fato, pela própria natureza da condição de “certeza” por ele definida,
não pode existir “certeza legal”, mas apenas “moral”:
A certeza é um estado subjetivo e este estado subjetivo não pode ser considerado
como independente da realidade objetiva: é um estado psicológico produzido
pela ação das realidades percebidas e da consciência daquelas percepções. Ora,
como no julgamento criminal se trata sempre de realidades contingentes, e estas
podem variar indefinidamente de natureza e de relação, a certeza que a elas se
refere não pode ser predeterminada por critérios fixos. (...) Assim como varia a
relação entre o delito particular e a coisa ou pessoa que se faz servir de prova,
assim também varia o valor probatório que encontra naquela relação sua
eficácia. (1911:56)
Assim, nesse e em outros trechos, Malatesta chama a atenção sobre a “natureza
subjetiva”, “contingente” e “variabilíssima” do delito, da prova e do sujeito que a avalia.
Por isso, para ele:
A relação entre as provas e o fato criminal é sempre imperfeita, não é absoluta;
não se refere a verdades da razão evidentes, mas a verdades de fato sempre
contingentes. O convencimento judicial é a afirmação da certeza dessa relação.
(...) O convencimento é a afirmação necessária da posse da certeza, significando
que a certeza é legítima, e que o espírito não admite dúvidas sobre aquela
verdade. A certeza é a crença da verdade; o convencimento é a opinião da
certeza como legítima. (1911:59-60)
Não nesta visão da “prova penal” afirmação de uma verdade absoluta, mas,
pelo contrário, uma reflexão sobre a natureza subjetiva e contingente das decisões
judiciais
275
. Essa perspectiva não implica sugerir arbitrariedade ou irracionalidade no
exercício dessa atividade, mas a afirmação de formas de interpretar e decidir sobre
delitos que abrangem categorias e, em termos de Malatesta, “formas de espírito”, que
não a de verdade. Afirma-se, assim, a relevância do sujeito que decide e julga, no
sentido de atender a seus valores e critérios de decisão e as suas formas de aproximação
às realidades julgadas. Durante minhas observações, percebi que o “convencimento”, a
275
Entendo que diferentes sistemas podem fazer recair esta “subjetividade” em figuras distintas do
processo penal. O trabalho de Regina Lúcia Teixeira Mendes mostra como, no Judiciário brasileiro, em
especial do Rio de Janeiro, as decisões estão baseadas no princípio do livre convencimento do juiz e
como este princípio, na prática, mostra que aquela subjetividade” recai inteiramente na figura do juiz
(2008). No meu trabalho, em que aparece a referência ao “convencimento” como categoria nativa,
enfatizo a idéia de que tal “convencimento”, embora também seja uma construção subjetiva, está em
permanente comunicação nas interações entre os agentes judiciais (promotores, defensores, juízes) e entre
estes e as pessoas envolvidas nos conflitos. Esta diferença pode ser vinculada com a distinção feita
anteriormente entre ambos os sistemas: o brasileiro organizado em função de uma estrutura piramidal
fixa, cujo topo é representado pelo juiz, e o bonaerense baseado na “carreira judicial” que proa todos
seus membros de graus progressivos de experiência e, portanto, de conhecimento.
373
“livre convicção”, a “opinião pessoal”, as “limitações legais”, a “crença”, eram algumas
das categorias nativas com as quais os atores ponderavam os caminhos através dos quais
chegavam a suas decisões.
“Acreditar” nas “provas
Como mencionei no Capítulo 7, no caso de Cacá, Sebastián dizia que tinha
“quatro provas de 0,25”. Também valorizava, como foi feito posteriormente no juicio
oral, de forma diferenciada os depoimentos das testemunhas do “bairro” e aqueles do
“grupo de Cacá”. Valeria também dizia para a mãe de Lucas Martín que não lhe
contasse coisas “porque a senhora é a mãe e vai me contar coisas que eu não vou
acreditar”. Nestes e em outros casos, vimos que os depoimentos eram permanentemente
avaliados e valorizados de acordo com critérios “judiciais”, não definidos previamente.
Essas valorações eram produto da interação entre depoentes e funcionários; entre estes e
suas experiências anteriores e entre as avaliações sobre aqueles depoimentos com a
hipótese de investigação dominante no processo.
Lembro de um caso de “roubo” no qual Sebastián mostrava-se um tanto
desorientado. Ele dizia que estava assim porque geralmente me acontece que estou
convencido e procuro as provas, mas neste caso tenho as provas e não estou
convencido”. “Procurar as provas” não queria necessariamente dizer procurar novos
elementos, depoimentos ou perícias que ainda não estivessem no processo a fim de
apoiar a hipótese da qual estava “convencido”. Referia-se, muito mais, à forma de
valorar as “provas” existentes. Nestas formas de expressão e reflexão dos agentes,
evidenciava-se o fato da categoria nativa de “prova” ser uma categoria relacional. Dessa
forma, cada “prova” podia ser um elemento cujo valor significativo fosse outorgado
exclusivamente dentro de um dado sistema de relações
276
. Essas relações entrelaçavam
seu significado a outras “provas”, mas também a uma história condutora do processo
276
Poderia ser pensado, nos termos de Claude Lévi-Strauss, como um sistema no qual cada um dos
elementos pode ser definido pelas relações de equivalência ou de oposição com os demais elementos.
Brigida Renoldi utiliza esta noção de sistema de Lévi-Srtrauss para pensar os juicios orales”, da Justiça
Federal argentina, na cidade de Posadas (Misiones). Afirma que os mesmos se desenvolvem em função de
um conjunto de categorias que obtêm seu sentido da posição de umas em relação a outras. Segundo
ela, “no juicio oral, trata-se de classificar finalmente a pessoa dentro das categorias da culpa ou da
inocência. De maneira que o julgamento é o resultado desses processos de classificação, de ordenamento
e de conceituação” em um dado sistema de crenças (2008b:206). Também a análise de Luiz Figueira
(2007) sobre a categoria de “prova” enquanto uma categoria nativa cuja definição não é consensuada na
doutrina jurídica brasileira e cujo significado é relativo a cada caso mostra a relatividade desta categoria
jurídica.
374
alinhavada pelo “convencimento” formado pelo agente responsável pelo caso. Tratava-
se, neste sentido, de um sistema de crenças, conforme o qual os agentes outorgavam
valores diferenciados aos elementos que compunham um caso.
Assim, não todas as “falas” constituíam “depoimentos” (“falar não é depor”) e
nem todos os depoimentos constituíam “provas”. Aqueles eram valorizados
diferencialmente de acordo com quem falava, onde falava na UFI, na polícia, no
“bairro” -, desde qual posição falava, as possíveis contradições e informações aportadas,
a percepção presencial por parte dos agentes sobre a gestualidade, a corporalidade e a
expressão de sentimentos e emoções por parte do depoente. Esse conjunto de fatores
construía, na avaliação dos agentes, uma “credibilidade” sobre a testemunha e
outorgava ou não- um valor de “prova” a esse depoimento. Como sugeri, essas
avaliações eram informadas por ‘moralidades situacionais’. Isto é, por valores e
interesses que em situações específicas – cada “caso”- colocavam em interação histórias
de vida, posições e ideologias profissionais e experiências anteriores, com a natureza
dos conflitos e as relações sociais envolvidas neles. O produto dessa interação resultava
nas decisões tomadas e ia conformando um ‘saber judicial’, que, eventualmente,
orientaria também futuras decisões.
Como mostrei ao longo da tese, os casos investigados e julgados no conurbano
bonaerense tinham como principais “provas” os depoimentos orais de testemunhas
vinculadas aos casos. Nesses termos, “estar convencido” de uma hipótese supunha ter
“acreditado”, ou não, em certos depoimentos, ou, melhor dizendo, em certas
testemunhas
277
. Como tenho sugerido, a base dessa “crença” podia ser encontrada
naquele ‘saber judicial’, combinando os fatores mencionados. A observação do
processo através do qual se construía a investigação criminal e a tomada de decisões nos
casos específicos foi me mostrando que os depoimentos, testemunhas ou versões que
eram “acreditados” pelos agentes eram aqueles que, na visão deles isto é, a partir de
suas ‘moralidades situacionais’-, resultavam ‘verossímeis’ com as particularidades do
277
Seguindo as categorias de Malatesta, a idéia de crença e credibilidade também faz sentido na linha
aqui exposta: “a certeza consiste na crença da conformidade entre a própria noção ideológica e a verdade
ontológica; e portanto ou se crê nesta conformidade e se tem certeza nela, ou não se crê, e não se tem
certeza de modo algum” (1911:45). E segue: “a certeza inclui a credibilidade, o que é certo não pode
deixar de ser crível não pode haver conhecimento humano afirmativo sem a premissa tácita da
credibilidade” (1911:80). A “credibilidade” é para ele uma condição para alcançar a “certeza” necessária
para julgar.
375
caso e com o ‘saber judicial’
278
. Esse mecanismo atuava selecionando versões;
“acreditando” umas e “desacreditando” outras.
Em qualquer caso, o processo não abrigava espaço para outorgar legitimidade a
versões contrapostas. Como a “verdade” na qual se acreditava era considerada “única” –
a “verdade histórica”, “a verdade do que aconteceu”, “a verdade dos fatos”-, toda versão
que a contradissesse não podia ter valor judicial. A forma com que o ‘saber judicial’
disputava e estabelecia uma posição sobre outra era acreditando a primeira através da
categoria de “verdade” e desacreditando a segunda com a categoria de “mentira”
279
.
Quando, no caso da família Santana, Pedro ouviu os depoimentos dos diferentes
membros da família e dos policiais, começou a se referir ao processo como o “caso dos
mentirosos”, pois, na visão dele, como era necessário estabelecer uma versão única do
acontecido, se as versões eram diferentes, era porque “alguém estava mentindo”. De
forma talvez mais sofisticada, quando Valeria e Alicia desacreditavam os ditos de
Marisa e Carlos, relatado no Capítulo 6, era porque, diante dos comentários dos
vizinhos e daquilo que elas tinham visto na casa do casal, as versões por eles defendidas
eram avaliadas como produto de personalidades “patológicas”, com “problemas
psicológicos”, que não permitiam distinguir “bem” a realidade ou “ser consciente dela”.
Quer dizer, eram versões que, na visão delas, não se correspondiam com a “realidade”
por ela acreditada.
Como apontei nos Capítulos 4 e 5, esta disputa em termos de “verdade” e
“mentira” não queria dizer que os agentes pressupusessem necessariamente que as
pessoas efetiva e/ou propositadamente estivessem “mentindo” para eles. Por isso, como
vimos, nem o juramento legal de dizer a verdade era tomado sistemática e formalmente,
nem o crime de “falso testemunho” era acionado e punido. Por mais que a formalidade
do processo requeresse a “imparcialidade das testemunhas – “tem algum interesse
neste processo?”, perguntavam ritualisticamente os juízes no juicio oral-, era
278
Novamente Malatesta coloca em jogo categorias semelhantes a aqui utilizadas. Ele define a noção de
verossimilhança: “o verossímil não é o que pode ser uma verdade real, mas o que tem aparência disso. È
verossímil aquilo que nos inclinamos a julgar real” (1911:82).
279
Analisando a passagem da história oral para a escrita entre os beduínos na Jordânia, Andrew Shryock
chama a atenção para uma história baseada no desacordo, contada sempre de uma posição relativa na
estrutura social. Assim, nessa visão, cada história é sempre uma disputa entre versões relativas: “é uma
história contada contra os outros”, pois “a história dos outros é sempre mentira” (1997:134). Shryock
também assinala que, além de estar moldado por essa lógica segmentar da verdade e da mentira, o
discurso está informado por noções de poder e de autoridade (1997:145). Assim, no meu argumento, a
legitimidade das versões estará relacionada com as possibilidades de sustentá-las (a credibilidade
transmitida, outras “provas”, sua coerência, entre outros fatores) e pela posição autorizada e relativa do
enunciador –depoente- de tais versões, em contextos específicos.
376
reconhecido que as testemunhas participavam e depunham desde interesses, valores e
posições sociais e afetivas específicas.
Diferentemente, aquele confronto em termos de verdade” e “mentira” podia ser
entendido, na minha percepção, como a forma com que o ‘saber judicial’ permitia
desacreditar a versão do outro e estabelecer uma “verdade”. E era desse modo que se
construíam ‘consensos parciais’: ‘parciais’ porque estavam baseados sobre certos
aspectos do processo de investigação, descartando ou desvalorizando outros; e ‘parciais’
também porque eram construídos entre certos grupos (“partes”), desacreditando outros.
Poderíamos pensar, assim, que no “sistema” funcionava uma “verdade” que não era
mais do que a articulação de ‘versões verossímeis’
280
. A condição de verossimilhança
de tais versões não dependia exclusivamente dos agentes judiciais e de suas percepções,
mas era uma combinação da forma como essas percepções se articulavam com outros
atores do processo, com suas percepções, moralidades e crenças
281
. Esses outros atores
apareceram caracteristicamente representados no meu trabalho de campo com a
categoria nativa de “bairro”.
O “bairro”
Ao longo desta tese, o “bairro” apareceu, com sentidos diversos, como uma
categoria nativa na boca dos agentes e das pessoas envolvidas nos conflitos
judicialmente tratados. Minha percepção foi que esta categoria articulava sentidos e
identidades que orientavam as falas e a apresentação das pessoas no ambiente judicial,
280
Antoine Garapon, na sua análise contrastiva entre o sistema anglo-americano e o francês, distingue
entre as categorias de “verdade e de “verossimilhança” como regimes de produção de prova
diferenciados de cada sistema e das tradições das quais são tributários. A “busca da verdade” seria o
objetivo próprio do sistema francês, da civil law; enquanto a condição de “verossimilhança” estaria
associada ao sistema anglo-americano. Este forneceria as condições para que as partes expusessem suas
próprias versões e fosse garantido o acordo, consenso ou negociação sobre a mais verossímil (2008:106).
Nesse sentido, a condição de verossimilhança por ele identificada com o sistema da commom law parece-
me diferente da noção aqui apresentada, segundo a qual essa condição não é resultado da negociação ou
do consenso, mas do “convencimento” e da “crença” dos agentes.
281
Na sua análise do xamanismo como um sistema simbólico, Claude vi-Strauss, a partir da história do
o feiticeiro Quesalid, identifica três elementos que o compõem: a experiência do próprio xamã, a do
doente e a do público (1985:207). Embora afirme que os três elementos são indissociáveis, Lévi-Strauss
sugere que eles se organizam em dois pólos: a experiência íntima do xamã e o consenso coletivo. Essa
perspectiva fundamenta sua famosa frase sobre o fato de Quesalid não ter se tornado um grande feiticeiro
porque curava seus doentes, mas “ele curava seus doentes porque tinha se tornado um grande feiticeiro”
(1985:208), afirmando assim o pólo coletivo do sistema. Pensando nas proposições desta tese, sem
afirmar que o sistema judiciário como um todo goze de legitimidade social e consenso coletivo, pretendo
sugerir que, como mostra o material empírico aqui descrito, existe a possibilidade do ‘saber judicial’ estar
apoiado em valores e crenças coletivas que fazem parte da construção das decisões e, portanto, do
funcionamento e reprodução do “sistema”.
377
bem como que conduziam informações no processo de investigação criminal. Essa
percepção foi um dos aspectos que me orientou a pensar na administração de justiça
enfatizando aquilo que a aproximava de certos grupos sociais e valores morais, mais do
que focalizando aquilo que a distanciava como um saber esotérico e profissionalizado.
Como relatei no Capítulo1, o “bairro” se fez presente no juicio de Dario. Com
seus cartazes e suas fotos, um grupo de pessoas – familiares, vizinhos e pessoas
vinculadas à associação que representava legalmente a família de Dario-, ocuparam,
durante o juicio, um lugar restrito na sala de audiência. Esse lugar tinha sido pré-
estabelecido e foi, durante a audiência, permanentemente controlado por policiais e
funcionários do tribunal (o ingresso, a saída, os intervalos, as possíveis exclamações).
Esse controle enfatizou a identidade desse grupo em oposição aos policiais
“imputados”. Essa oposição também apareceu durante os depoimentos. Embora o
“bairro” presente no público não tivesse tido participação no desenvolvimento formal
do juicio, ele foi objeto dos depoimentos dos policiais. No discurso do policial Talarico,
vizinho do “bairro”, dono da casa roubada, uma distinção foi estabelecida: o “bairro” e a
“zona” marcavam, na visão dele, domínios sociais diferenciados, apesar de sua
proximidade geográfica.
no juicio contra Cacá, descrito no Capítulo 8, o “bairro” se fez presente de
uma outra forma. Não sob a representação de um grupo organizado por uma “demanda
de justiça” (Pita, 2006), que marcava uma oposição também em termos de ser ou não
“vítima de abusos policiais”´, mas como um conjunto definido de pessoas com limites
claros e com um objetivo explícito: “que se faça justiça” pela morte de Santiago. Esse
sentimento colocava os representantes desse grupo em oposição a Cacá, acusado como
único responsável daquela morte. Diferentemente do juicio de Dario, essa oposição
entre o “bairro” de Santiago e Quique com Cacá e o grupo de familiares e amigos que o
acompanharam se manifestou tanto no desenrolar formal da audiência como nos
espaços destinados ao público (os assentos e o corredor). Durante a audiência, cada
grupo teve reservado um dia para depor sobre as respectivas versões defendidas. O
tratamento distinto com umas e outras testemunhas, em especial, por parte do tribunal,
evidenciou claramente a maior credibilidade e legitimidade que o pessoal do “bairro”
tinha alcançado com sua versão aos olhos da “justiça”. Ao mesmo tempo em que aquele
tratamento desigual mostrava o descrédito outorgado às testemunhas vinculadas a Cacá
e sua defesa, que bem poderiam ocupar uma “zona” na perspectiva do “bairro”.
378
Tanto durante os depoimentos, como desde o lugar do público, o “bairro” teve
um espaço dominante na “expressão obrigatória e ritual de sentimentos”, sem o
controle, nem a supervisão exercida no juicio de Dario. Ao “bairro” de Santiago e
Quique foram destinadas as primeiras fileiras de assentos “para as pessoas”.
Familiares e vizinhos choraram, insultaram e “se quebraram” de emoção durante a
audiência, a partir do público ou da cadeira de depoimentos. Levaram à audiência,
diante do tribunal, do promotor e do advogado, suas lembranças sobre a vida de
Santiago e sobre sua personalidade alegre e trabalhadora. Também seu conhecimento do
“bairro” sobre a atitude “problemática” de Cacá. Este foi por eles assinalado como o
“autor” dos disparos. E, assim, consolidaram as “provas” que permitiriam ao promotor
acusá-lo pelos “fatos” julgados e ao tribunal condená-lo pela pena máxima de “prisão
perpétua”.
Esse processo, entretanto, não nasceu na audiência de juicio. Como demonstrei
no Capítulo 7, a investigação desenvolvida no âmbito do UFI envolveu a participação
do “bairro” na produção de informações e de “provas”. Os primeiros sinais na
investigação foram aportados por “vizinhos”. Conversando com Marconi nas ruas do
“bairro”, estes aportaram informações que indicaram, sucessivamente, diversos
“suspeitos”. Alguns desses “vizinhos” depuseram presencialmente na sede da polícia e,
posteriormente, na UFI. Outros o fizeram com “identidade reservada” e outros, também
de forma anônima, através do testemunho indireto de outros “vizinhos” (a dona do
quiosque, por exemplo). Estes últimos retransmitiram para a polícia e para a promotoria
aquilo que “outro vizinho disse” ou aquilo que “o bairro comenta”. Essas diferentes
estratégias possibilitaram que todos os testemunhos dos “vizinhos” fossem
incorporados, embora pudessem ter diferentes avaliações por parte dos agentes.
Como vimos, os depoimentos diretos de Quique, da dona do quiosque e de sua
filha foram considerados como “responsáveis” e “comprometidos com a investigação”.
As testemunhas de “identidade reservada” resultavam em um grau de incerteza maior
na sua força de prova (no caso da criança, revertida contundentemente na sala de
audiência quando depôs identificada, virando o depoimento mais certeiro de todos). As
informações aportadas por “vizinhos” cujos testemunhos eram repassados por outros
(“há um vizinho que sabia tudo, mas que não vem nem maluco”) tiveram que passar por
um processo de ‘formatação judicial’ para serem incorporadas como “provas”. Em
qualquer caso, a partir daquilo que “se comentava no bairro” ou daquilo que “o bairro
379
falava” foram se construindo as linhas de investigação que conduziram aos sucessivos
“suspeitos” até chegar a Cacá. Por esse caminho, este foi definido como o “único
acusado” e, finalmente, condenado como o “autor”.
Apesar de suas variadas formas de exposição e transmissão, os diversos
testemunhos mostraram que as informações aportadas pelo “bairro” estavam baseadas
nos laços sociais que uniam e/ou distanciavam as pessoas naqueles territórios limitados.
Um vínculo de parentesco (“o genro do Sopa”, “o namorado de Samanta”), um local de
moradia (“na rua Belgrano e San Juan”, “o conheço do fundo”), um hábito de
sociabilidade (“que param na esquina”, “é um bardero”), eram aspectos que resultavam
da vida partilhada no “bairro”. Sobre eles eram extraídos os dados aportados. Assim,
essas informações atuavam também como atribuidoras de identidade, pudendo incluir
uma pessoa dentro do “bairro”, ou bem a excluindo dele.
Foi também a partir do conhecimento da vida do “bairro” que se teceram as
informações na investigação sobre a responsabilidade de Marisa e Carlos na morte de
seu filho Rodrigo e no estado grave de saúde de Sabrina. Também nesse episódio o
“bairro” teve um papel significativo na investigação dos “fatos”. Diferentemente, este
caso não envolvia a identificação de “suspeitos” ou de “autores” dos “crimes”
investigados. Tratava-se de estabelecer, em tal caso, a responsabilidade judicial e
criminal de Marisa e Carlos como “responsáveis naturais” do cuidado, criação,
alimentação e educação de seus filhos. Identificar se ambos tinham ou não faltado a
suas obrigações parentais foi o eixo da investigação judicial. Para isso, foi necessário
reunir um conjunto de informações que permitissem considerar como eles tinham se
comportado a esse respeito. Como descrevi no Capítulo 6, os depoimentos de
familiares, vizinhos e profissionais que atenderam a família levaram ao âmbito judicial
percepções e opiniões sobre o que essas pessoas observavam sobre a rotina na casa de
Marisa e Carlos. Permanentemente, essas informações foram conduzidas através do
apelo à categoria do “bairro”. Este “por que o bairro fala”, disse Marisa para Valeria-
era personalizado como uma figura que, embora anônima e geral, “sabia” sobre aspectos
diversos da vida doméstica e familiar do casal.
Neste caso, a situação investigada e julgada envolveu, nos termos de Baudouin
Dupret, “o tratamento judicial de questões morais”. Esta característica evidenciou, de
forma explícita, não como as testemunhas operavam, falavam e informavam a partir
dos valores morais que tinham disponíveis, mas também como os agentes judiciais
380
interagiam situacionalmente com esses valores. Também no caso de Cacá, como em
outros descritos brevemente nos Capítulos 4 e 5, os processos de investigação no âmbito
da UFI mostraram a relevância outorgada a esses momentos de interação entre os
funcionários e as pessoas envolvidas nos conflitos tratados. Seja nas conversas – oficiais
ou extra-oficiais- na UFI, seja através de procedimentos que implicassem a “ida ao local
dos fatos” - como a “reconstituição dos fatos” no caso Cacá e como o “allanamiento” na
casa de Marisa e Carlos. Em ambos, os promotores destacaram essas situações como
oportunidades para “ver, ouvir e conversar” com o entorno do “caso”. Uma atitude
diferenciada do juiz presidente no juicio de Dario, preocupado com o fato da audiência
não se afastar do “objeto do processo”. Para Sebastián e Valeria, pelo contrário, o que o
“bairro” pudesse aportar para a investigação podia ser relevante e revelador dos casos
investigados.
Entendo que, pelo menos em parte, essa percepção vinculava-se com a natureza
dos conflitos aqui tratados, produto de relações de proximidade social e territorial. Neste
sentido, a investigação e o processamento judicial dos mesmos podem encontrar
diferenças com processos que envolvem outro tipo de atores, como o Estado ou
organismos da sociedade civil. A este respeito é interessante voltar a pensar sobre a
análise de Pita sobre os casos de “violência policial” por ela trabalhados. Ela descreve e
ressalta as formas de intervenção das relações de vizinhança na busca de informações
úteis para a demanda “por justiça”, assim como a influência dessas relações, muitas
vezes pré-existentes aos casos, nos fatos narrados. Ao mesmo tempo, Pita chama a
atenção para o fato do processo judicial não integrar estas relações e estar definido por
apenas duas versões, que denomina da “versão policial” e da “versão militante
282
.
Segundo ela, ambas, em estilos diferenciados, excluiriam do processo judicial “as
histórias das pessoas de carne e osso”, “a vida social do bairro, as relações entre seus
habitantes, que aparecem através dessas narrações, [e que] falam de laços de
familiaridade e vizinhança, de amizade e de inimizade, de proximidades e distâncias,
que fazem as formas de viver e que podem ser pensadas como um campo configurado
por redes de sociabilidade (...)” (2006:71).
282
Pita propõe que a “versão policial” comportaria uma “linguagem formulária, baseado em clichês” que
apresenta os acontecimentos em série, pudendo ser identificada como “a linguagem oficial e burocrática
própria de uma instituição estatal. “Contra ela – diz Pita- é construída a versão militante (…), que
apresenta um estilo retórico expressivo, icônico e fortemente figurativo. Propondo uma chave belicosa e
denunciante, distante da linguagem da burocracia estatal, mas que também apela a clichês, sentenças e
afirmações” (2006:47-48).
381
Entendo também que, nos casos analisados nesta tese, se aquilo que “o bairro
fala” era considerado como relevante para os agentes judiciais, era devido à natureza
particular dos conflitos tratados. Se bem da mesma forma que os casos de “violência
policial”, eles envolviam relações sociais e morais derivadas da vida “no bairro”, eles
não incluíam no seu tratamento versões alternativas, como a policial ou a militante.
Desta forma, na minha experiência, observando a cotidianidade dos tribunais e as
interações entre os agentes e as pessoas envolvidas, foi possível perceber a presença
dessas relações, não por fora do processo, mas integrando as formas de investigação e
de construção de decisões
283
.
A investigação e o juicio
Como expus nos Capítulos 1 e 8, através da descrição etnográfica dos juicios de
Dario e contra Cacá, as audiências de julgamento proviam um espaço de “expressão
obrigatória dos sentimentos”. Neles, sob certas regras e limites, as pessoas envolvidas
nos conflitos tinham a oportunidade de manifestar emoções vinculadas às situações que
as tinham levado a esse âmbito judicial. Essa expressão afirmava-se através de imagens,
lágrimas, insultos e lembranças; todas elas manifestações que personalizavam os
conflitos julgados
284
. Em contraste com essa expressão, os agentes judiciais presentes
no juicio guardavam uma etiqueta formal de tratamento e de manifestação oral de suas
afirmações, alegações e solicitações. A sobriedade predominava nas suas atitudes.
Esta distribuição de papéis e formas de expressão poderia se pensar em contraste
com outros sistemas de julgamento, por exemplo, como vimos no Capítulo 8, aquele do
Tribunal do Júri no Rio de Janeiro. Neste, eram os agentes aqueles que faziam uso de
uma expressividade e gestualidade carregada de termos e imagens “leigasque tinham
283
Seguindo a linha de Mariza Correa, Pita afirma que, no processo judicial, “os fatos são assemelhados a
uma coisa judiciável, a um fato desterritorializado e expropriado das relações reais das pessoas de carne e
osso” (2006:46). Aqui eu enfatizo que no tipo de conflitos por mim analisados o processo de investigação
judicial tende a incluir as relações sociais e morais, sem necessariamente desencarná-las do território
físico, moral e social- no qual acontecem.
284
Luís Roberto Cardoso de Oliveira, através de sua proposta de análise da noção de “insulto moral”,
sugere a importância da “expressão ou evocação dos sentimentos, e da mobilização das emoções dos
atores, na apreensão do significado social dos direitos cujo exercício demanda uma articulação entre as
identidades dos concernidos” (2009:161). E afirma: “trata-se de direitos acionados ou demandados em
interações que não podem chegar a bom termo por meio de procedimentos estritamente formais, e
requerem esforços de elaboração simbólica da parte dos interlocutores para viabilizar o estabelecimento
de uma conexão substantiva entre eles, e permitir o exercício dos respectivos direitos” (2009:161). Nesse
sentido, entendo que a expressão de sentimentos nos juicios evocava reivindicações de direitos que não
necessariamente encontravam-se contemplados formalmente no processo, mas que acabavam sendo
visibilizados nas audiências.
382
como fim provocar a sensibilidade, emoção e valores do conselho de sentença de
jurados não profissionalizados no saber jurídico. Estes, no entanto, não interagiam com
essas expressões mais do que através do seu voto anônimo, secreto e sem debate prévio.
Nos juicios orales no conurbano, as formas de expressão próprias dos agentes e
das pessoas envolvidas nos conflitos também contrastavam entre si. Em muitas
ocasiões, esse contraste aparecia como uma dissonância de vocabulários e formas de
classificação e de entendimento das situações em questão. No Capítulo 8, mostrei essa
percepção nas respostas que as testemunhas davam à pergunta do tribunal sobre o
“interesse” que tinham no processo; ou na indistinção que elas faziam da opção por
“jurar” ou “prometer” dizer a verdade, enquanto os juízes insistiam na necessidade de
escolher um ou outro. Outras situações observadas durante juicios também davam conta
de certo distanciamento de perspectivas. A formalidade da audiência contribuía com
essa percepção; por exemplo, não olhar para quem fazia as perguntas ou responder para
um terceiro.
Assim, em contraste com minhas observações com o desenvolvimento da etapa
de investigação na UFI, a etiqueta das audiências dos juicios orales parecia re-enfatizar
o lado formal e distante do processo judicial. Na UFI, como descrevi, a não presença de
todos os agentes judiciais (juízes e defensor), nem de todas as partes (“imputado”
simultaneamente com “testemunhas”), contribuía, na minha percepção, com o
desenvolvimento de interações mais informais e fluidas. Enquanto no juicio oral,
esperava-se a repetição daquela história inscrita nos autos; na primeira etapa, as
versões iam se construindo, embora que guiadas por uma hipótese dominante, na
interação entre agentes judiciais e os depoentes. Como procurei enfatizar no caso de
Marisa e Carlos e no caso de Cacá, diferentes versões podiam correr paralela ou
sucessivamente até alguma se consolidar como dominante. Os encontros na UFI
também permitiam que as formalidades fossem utilizadas de maneiras diferentes e
alternadas, não como repetições automáticas de uma etiqueta a ser cumprida. Como
descrevi no Capítulo 5, o juramento de dizer a verdade, na UFI, era apenas invocado em
situações em que o funcionário queria enfatizar ou contrapor algum ponto de vista.
Também as formas de registro escrito e não literal permitiam um jogo com aquilo que
era ‘dito’ e aquilo que era ‘deposto’, de forma a moldar judicialmente as informações
aportadas à investigação.
383
Por fim, a temporalidade de ambas as etapas em relação aos conflitos era
diferenciada. Enquanto a intervenção no conflito por parte da polícia e da UFI, na
primeira etapa, era (quase) imediata ao evento que tinha desencadeado o “crime” que
seria investigado
285
; o juicio oral acontecia depois de significativo tempo da própria
etapa de investigação. Durante esse tempo, evidentemente, (outras) coisas aconteciam
na vida das pessoas envolvidas, as quais podiam fazer que o “fato” ficasse, ou não,
como uma experiência longínqua. Tal como referia aquela defensora pública, em
relação ao grau de “trauma” que diferentes tipos de “crime” podiam deixar nas pessoas
envolvidas. Em muitos casos, em especial naqueles de “homicídio”, podemos pensar
que as sensações pessoais não só estavam bem presentes, mas também que eram
reavivadas com a convocação e realização do juicio. Contudo, também é certo que a
forma com que aquelas lembranças e percepções contribuíam à interpretação da prova e
a formação da culpa do “acusado” respondia a uma reconstrução tardia de uma
experiência passada anos atrás. Assim, para falar do que tinha acontecido, as pessoas
deviam recorrer a sua memória. O caráter subjetivo e seletivo destes depoimentos era,
por sua vez, condicionado por seu desenvolvimento na audiência, como um cenário não
cotidiano e formalizado. Em contraste, a imediatez dos encontros na UFI, tanto
temporal como de contato entre os interlocutores, aproximava essa distância,
permitindo, a meu ver, um intercâmbio e proximidade de valores entre os conteúdos e
emoções produzidos, muitas vezes, nas mesmas interações. Isso não quer dizer que não
houvesse nesta etapa também processos subjetivos e seletivos, tanto por parte dos
depoentes, como dos agentes. Pelo contrário, esses processos estavam presentes e se
manifestavam naqueles valores e versões que seriam, ou não, tomadas em conta na
formação do “convencimento” judicial.
Quando ouvir o “bairro”?
Era consenso nas minhas conversas com Valeria e Sebastián que aquilo que o
“bairro falava” não podia ser avaliado e incorporado acriticamente. Como contei no
285
Ressalvo o “quase” porque, dependendo dos casos, o conflito não nasce no evento que virá a ser
classificado como “crime”, mas ele se prolonga no tempo em uma longa duração. No caso de Cacá, tudo
parece ter começado com a situação do “roubo” e do “homicídio”, mas no caso de Marisa e Carlos a
morte de Rodrigo e o estado de saúde de Sabrina são remontados a meses e, inclusive, a anos antes em
relação aos hábitos e rotinas de vida da família. A ida de Lorenzo à casa da ex-namorada com uma
escopeta também se remete à história prévia do relacionamento entre eles, assim como os homicídios
entre amigos (Focucci e Muriel) ou entre bandos (Japa e Barata).
384
Capítulo 5, quando o pai de um menino morto na porta da casa foi ver Valeria para
indicar que o autor, segundo o que “se fala no bairro”, seria um tal Maurício, o
Capenga, Valeria me disse que essas situações eram complicadas, porque o “bairro”,
muitas vezes, repetia e difundia aquele “suspeito” indicado pela polícia, “apenas para ter
um culpado”. No mesmo sentido, para Sebastián, o caso de Cacá mostrava claramente
como o “bairro” tinha se mobilizado na busca de “um” autor do homicídio de Santiago.
Para ele, ao mesmo tempo em que as informações do “bairro” eram “úteis” em termos
de investigação, as mesmas podiam ser perigosas: “o bairro mesmo pode inventar
suspeitos; naquele bairro todo o mundo ouvia, pela rua, falar de suspeitos do crime!”,
dizia Sebastián. Por isso, ele opinava que devia haver um equilíbrio entre aquilo que o
“bairro dizia” e aquilo que “a justiça afirmava e decidia”:
Aquilo que o bairro diz não pode ser valorado porque o bairro diz muitas coisas
e o bairro diz uma coisa para um vizinho e diz outra para outro. Contudo, eu
acho que o saber popular não pode ser tão oposto do saber judicial. Se o bairro
diz” e o bairro diz muito, aliás, diz tudo, isso não poder ser alheio à justiça.
Devem ser criados canais para que o que o bairro diga seja prova.
vimos que os agentes policiais e os judiciais conheciam, criavam e se valiam
de mecanismos para realizar essa passagem dos “ditos” à “prova judicial”. Era essa uma
exigência formal do sistema jurídico que os agentes deviam administrar através das
ferramentas que o ‘saber judicial’ lhes fornecia. Testemunhas de identidade reservada,
allanamientos”, citação de testemunhas diretas e indiretas, registro escrito de
informações, eram algumas das ferramentas que permitiam fazer essa passagem. Uma
outra questão era a avaliação sobre ‘quando’ era pertinente fazê-la: quando os “dizeres”
do bairro deviam ser transformados em “provas”?
Como demonstrei ao longo da tese, a investigação judicial, durante a etapa de
instrução, resultava dos avanços e retrocessos, guiados por uma hipótese condutora. Tal
hipótese estava, em parte, orientada pelas informações inscritas no processo e por outras
surgidas durante a investigação, mas não necessariamente registradas: os ditos “extra-
oficiais” de Lorenzo diante de Valeria, como daqueles outros “imputados” que
“falavam, mas não depunham”; as emoções e gestualidades não transcritas no registro
escrito; as percepções dos agentes sobre ter “acreditado ou não” nas testemunhas, entre
outras. Ambos os tipos de informações registradas e não registradas- estavam também
informadas pela experiência anterior dos agentes em outros casos e pelas rotinas de
trabalho quer dizer, pelo domínio do ‘saber judicial’. E todas essas variáveis estavam,
385
por fim, informadas por valores morais e interesses que, diante dos casos específicos,
aproximavam ou distanciavam o “saber popular” do “saber judicial”.
Como vimos no caso de Marisa e Carlos, o “bairro falava muitas coisas”: ele
dizia que a casa estava “suja”, que “cheirava mal”; dizia que Marisa era uma “mãe
desleixada”; que não era “agradecida com a ajuda dos outros”; dizia também que estava
“dominada pelo marido”; que “o gordo comia a comida toda” e que “batia nela”. No
entanto, na investigação judicial, alguns aspectos desses dizeres foram ressaltados e
utilizados como “provas” na acusação contra o casal, enquanto outros não. A falta de
higiene da casa e a ausência de cuidados em torno à alimentação predominaram como
argumentos, por exemplo, diante de qualquer acusação de violência por parte de Carlos
sobre Marisa. É como se esse dizer do “bairro” não tivesse “colado” com a hipótese
com a qual Valeria e Alicia conduziam a investigação.
Assim, quando afirmo que aquilo que o “bairro fala” integrava o ‘saber judicial’
e que isso aproximava de alguma forma o judiciário da experiência e do saber das
pessoas envolvidas nos conflitos por ele administrados, não estou dizendo que tudo o
que “o bairro falasse” ganhasse ouvidos e fosse incorporado judicialmente. Pelo
contrário, nos casos que eu observei, percebi uma seleção daqueles dizeres, conforme as
variáveis mencionadas. Aqueles que resultassem selecionados e incorporados
estabeleciam uma proximidade de valores entre os agentes judiciais e aqueles grupos ou
pessoas identificados com esses dizeres assim legitimados. Por isso, como mostram
vários casos, era possível estabelecer e perceber distinções entre um “bairro” e uma
villa”, ou um “assentamento”, ou uma “zona”.
Tais distinções envolviam também as identidades daqueles que “diziam” e
“falavam” aquilo que os agentes ouviam. Como apontei em vários trechos da tese, não
todos os moradores de uma dada região eram considerados por outros como sendo “do
bairro”. Este não estava definido por limites territoriais fixos ou administrativos, nem
sequer diria que, em todos os casos, por critérios sociais. No uso que a categoria nativa
“bairro” tinha no âmbito dos conflitos judicialmente tratados, o mesmo aparecia ‘na
cabeça’ das pessoas como áreas territoriais delimitadas por fronteiras morais, que como
tais eram também fronteiras móveis e subjetivas
286
.
286
No trabalho já citado, Pita utiliza a categoria de “território social”. Entende o mesmo como “resultado
de redes de relações que configuram espaços sociais e morais, mais do que uma base territorial e física.
Assim, - disse- um território não supõe necessariamente localizações fixas, mas pode ser definido em
virtude dos deslocamentos, as redes de sociabilidade e as interações, nas quais são produzidas e afirmadas
386
“Ser do bairro
No seu estudo sobre as mudanças urbanas e o crescimento dos subúrbios em
Beirute, no Líbano, Fuad Khuri assinala que os estudos antropológicos sobre as
periferias têm se mantido confinados àquilo que é concebido como vilas autônomas e
isoladas, presumivelmente como estruturas sociais operando de forma independente.
Nessa linha, afirma criticamente que “os antropólogos tendem a seguir uma abordagem
territorial que assume, frequentemente de forma equivocada, que as fronteiras físicas da
comunidade se correspondem com seus limites socioculturais” (1975:8). Para Khuri,
pelo contrário, na periferia de Beirute é possível observar “um fenômeno pelo qual os
grupos sociais transcendem as fronteiras territoriais, um fenômeno mais característico
do subúrbio do que das tradições da vila ou da cidade” (1975:8). Para se contrapor a
aquela perspectiva, Khuri enfatiza, a partir de sua etnografia, a existência de laços
sociais para além dos limites dos subúrbios pesquisados, em especial a manutenção de
vínculos externos sobre a base das afiliações familiares, comunitárias e/ou religiosas
287
.
Como mencionei no Capítulo 2, o conurbano bonaerense é a área geográfica,
política e administrativa que circunda a Capital Federal argentina. É o território mais
densamente povoado do país e o maior curral eleitoral. Em termos de “segurança
pública”, possivelmente uma visão generalizada do mesmo o identificaria com “perigos
e ameaças” característicos do anonimato das grandes urbes. Contudo, minha observação
dos conflitos que chegavam ao âmbito do judiciário bonaerense me fez ver outra cara
daquela conflituosidade social, comumente identificada como “insegurança urbana”.
Embora não tenha abordado esta questão de um ponto de vista quantitativo, o trabalho
as identidades (individuais e coletivas). Assim, o fato de algumas das histórias aqui relatadas terem
acontecido em bairros não quer dizer que demos como assentado que o bairro é o território. Pelo
contrário, os territórios assim definidos são configurados pelas relações” (2006:45). Nesta tese, no
entanto, ao analisar o “bairro” como categoria nativa é possível perceber que os “territórios sociais”
identificados por Pita são definidos, por seus protagonistas, como sendo os limites do “bairro”,
outorgando assim a esta categorias sentidos e identidades diferenciados. Também o trabalho de Simoni
Guedes já citado enfatiza a referência à mobilidade das fronteiras internas de um lugar como produto das
relações sociais, identidades e representações de seus moradores (1997:99).
287
Aquela abordagem territorial criticada por Khuri tem pontos em comum com os “estudos de
comunidade” da tradição antropológica. Neles, a noção de “comunidade” era associada a uma unidade
homogênea, de limites territoriais definidos, auto-suficiente, consensual e personalizada (Tonnies, 1957;
Redfield, 1965; Williams, 1988; Gellner, 1997). Nessa perspectiva, a “comunidade” era contraposta, por
estes autores, à “sociedade”; urbana, conflituosa, heterogênea, anônima e moderna. Nessa contraposição,
ressaltavam dois pressupostos atribuídos à “comunidade”: a harmonia social, produto de valores sociais
partilhados, e a coincidência desses valores com fronteiras físicas pré-definidas.
387
de campo mostrou o predomínio de conflitos que envolviam relações de proximidade
288
.
Os chamados “roubos”, “homicídios”, “lesões”, “falsas denúncias”, “estelionatos”,
“abusos sexuais” envolviam conflitos acontecidos em áreas territoriais limitadas e entre
pessoas unidas por laços familiares (Marisa e Carlos e outros casos tipificados como
“abuso sexual”), afetivos (Lorenzo e a ex-namorada), de amizade (David Blumer e
Diego Focucci, foragido da justiça por ter matado o primeiro em uma festa de
aniversário; Marcelo Muriel e Fernando Marino, este último morto pelo primeiro na sua
casa), de inimizade (o Japa morto pelo Barata, que, por sua vez, um ano antes tinha
matado o Pacho em um aniversário da família Juarez), ou bem produto de uma
sociabilidade comum (Patrícia Juarez e Esteban Garza, que conversavam todos os meio
dias na loja de comestíveis desta última).
Era quando o conflito virava um “fato judicial” que muitas dessas relações saiam
à luz, que o processo de investigação vinha a explicitar aqueles laços pré-existentes.
“Saber” quem tinha sido o autor ou “identificar” um “suspeito” eram informações
baseadas em um conhecimento, produto das interações comuns em um raio de
circulação relativamente restrito e pessoalizado. Como vimos, “ser conhecido do bairro”
era uma frase frequentemente invocada em muitos processos, não para identificar
fisicamente um possível “autor”, mas também para construir a reputação das pessoas
envolvidas, seja positiva (“é um garoto de bairro”; “é querido no bairro”; “é um menino
que estudava e fazia alguns bicos no bairro”), ou negativamente (“são pessoas de mau
viver”; “não é do bairro”; “são temidos no bairro”; “capazes de tirar a vida de qualquer
pessoa”). A construção dessas reputações, por sua vez, não só definia o perfil dos
“imputados”, mas também as identidades daqueles que depunham na justiça. Nesse
movimento, eram, a meu ver, definidos os limites do “bairro”, não como um espaço
geográfico administrativo, mas como uma categoria moral inscrita em espaços
territoriais por ela determinados. Em outros termos, quando o “bairro falava” dos
outros, falava também dele mesmo.
Como observado no Capítulo 1, o policial Talarico marcava nos seus
depoimentos uma distância de Dario e sua família. Para ele, estavam “os bons vizinhos
288
Conforme dados estatísticos da Procuradoria da Corte Suprema da província de Buenos Aires, em todo
o território provincial, publicados pelo jornal Página 12, durante o primeiro semestre de 2010, “50 % das
denúncias por homicídio foram por fatos derivados da ‘conflictuosidade social’ (descrita como ‘violência
familiar, conflitos passionais, de vizinhança, de relações de trabalho ou brigas’)” (Jornal Página 12,
22/08/2010).
388
e os maus”. Estes últimos moravam na “zona” e os primeiros “no bairro”; embora a
distância que separasse umas casas de outras fosse reduzida. A dona do quiosque e sua
filha se distanciavam de Cacá, seus amigos e parentes. “Eram gente nova, vinham de
outro bairro”, disse diante do juiz a dona do quiosque em relação a Sopa, genro de Cacá,
que morava na esquina da casa dela. Ivan, a criança que depôs na audiência, disse que,
enquanto conhecia Santiago e Quique “do bairro”, conhecia Ca“dos fundos”. Nesta e
em outras identificações, Cacá “era conhecido do bairro” e isso, como vimos, podia
intervir contra ele, ou bem ser alegado na sua defesa. Também quando seus cunhados
tentavam se defender diante de Sebastián, o faziam se distanciando de Cacá e alegando
que “não ficavam no bairro”; “esses caras [os rapazes da esquina] não são meus
amigos”. Nestas definições, Cacá podia “ser conhecido do bairro” e “ficar no bairro”,
mas, em nenhum caso, ele era reconhecido como “sendo alguém do bairro”.
No caso de Marisa e Carlos, o “bairro também se mobilizou pelo conflito
envolvendo a família. Os vizinhos e parentes enfatizaram diante da justiça a “ajuda e
colaboração” que tinham brindado a Marisa - em especial, por consideração às criança,
que havia anos morava no “bairro”. Quando a morte do bebê colocou esses laços sob
avaliação do judiciário, todas as opiniões e percepções do “entorno” foram postas de
manifesto publicamente. Ao discordar delas, Marisa se defendia reconhecendo que “isso
que dizem” não era dito pelos “vizinhos dela”, “não são do meu bairro”. Contudo, a
investigação na UFI foi mostrando que as fofocas do “bairro” se consolidaram como
“provas” no processo apontando a responsabilidade do casal no “fato” investigado. Ao
ouvir e presenciar os depoimentos, eu percebia que aqueles rumores não tinham como
objetivo assinalar “responsáveis criminais”, mas se distanciar da reputação que envolvia
Marisa, Carlos e sua vida doméstica e familiar. As críticas enfatizadas sobre a forma de
organizar o cuidado dos filhos e da casa e de se ocupar das obrigações familiares
estavam destinadas a mostrar, diante das autoridades judiciais, que não todos no
“bairro” podiam ser inscritos nesse padrão de vida e, ainda mais, que o mesmo era
rejeitado e combatido.
Em todos estes casos, o “bairro” aparecia se opondo à imagem de um território
neutro onde aconteciam certos conflitos classificados posteriormente como “crimes”. As
relações no “bairro”, a forma de definir suas fronteiras e de delimitar suas identidades
construíam a investigação. Seja porque as pessoas envolvidas eram “conhecidas do
bairro”, seja porque alguns eram identificados como sendo do “bairro” e outros não, ou
389
ainda porque o próprio território era domínio de uns e não de outros. Essa era
justamente a percepção de Lorenzo, o homem que tinha atirado com uma escopeta
contra seu ex-cunhado. Ele se defendia diante de Valeria dizendo que:
Como tudo aconteceu no bairro dela [sua ex-namorada], isso a favorece, por
causa das testemunhas. Se tivesse acontecido na minha casa era melhor para
mim. pessoas que me conhecem, que sabem que eu não sou uma pessoa
que anda na rua.
Curiosamente, essa frase alegada por Lorenzo, a meu ver, condensava várias
questões apontadas por esta tese. Além do “bairro” não ser percebido de forma neutra,
também mostra a importância das testemunhas como “prova” dos processos judiciais e a
importância da credibilidade outorgada a elas. O predomínio dos testemunhos orais
como caminho para “provar” os crimes investigados no âmbito do conurbano evidencia
também a relevância da credibilidade outorgada a, ou ganha pelo, falante. Assim
também a importância da construção de relatos e histórias verossímeis diante dos olhos,
ouvidos e experiências dos agentes judiciais. As “provas” dos processos aqui
trabalhados mostram quanto a investigação e o julgamento dos “crimes” no âmbito
pesquisado estavam atrelados à construção da “certeza”, da “credibilidade” e da
“verossimilhança” e não a “busca ou descoberta da verdade”. E essa construção revela
um ‘saber judicial’, embora que ligado a questões formais e técnicas, também vinculado
à sociedade, ou melhor, a valores morais por ambos partilhados. Nesse sentido, o
‘fundo’ dos conflitos tratados, guiado pelas ‘moralidades situacionais’ que orientavam a
investigação, era uma construção sempre permanente do processo judicial. E a ‘forma’
era aquela estrutura que permitia lidar com esse ‘fundo’ para lhe outorgar validade
jurídica. Assim, esta tese teve por objetivo mostrar como, em “bairros” do conurbano
boanerense, tem lugar um ‘saber judicial’ que combina moralidades, conflitos e
procedimentos judiciais em uma forma específica de “fazer justiça”. Um “fazer justiça”
que, através da “crença” nele mesmo e das ‘moralidade situacionais’, confrontava
sentidos diversos de “verdade” e “justiça”.
De alguma forma, também tentei mostrar que a trajetória desses conflitos
envolvia relações sociais, territorial, social ou moralmente definidas, que excediam a
etapa judicial por mim observada. Esta era apenas uma fase dos conflitos, seja porque
eles tinham se originado tempos antes de sua classificação como “crimes”, seja porque
muitos aspectos deles ficavam de fora do seu tratamento judicial, seja porque, no final,
390
as decisões tomadas judicialmente definiam novos rumos e conflitos na vida das
pessoas envolvidas. A sentença de “prisão perpétua” para Resapo pela morte de Dario, a
mesma decisão para Cacá, ou o “acordo” por sete ou oito anos de prisão para Marisa e
Carlos e a conseqüente re-localização dos filhos, são apenas algumas das linhas que
podem fechar os eventos investigados e julgados, mas que não necessariamente podem
prever as trajetórias de vida das pessoas envolvidas.
391
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