Download PDF
ads:
A ENUNCIAÇÃO DOS PROVÉRBIOS COMO ESTRATÉGIA DE
PERSUASÃO E SEUS EFEITOS DE SENTIDO NA ATIVIDADE
ARGUMENTATIVA
por
FELIPE PEREIRA LOPES
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
2006/1
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
FELIPE PEREIRA LOPES
A ENUNCIAÇÃO DOS PROVÉRBIOS COMO ESTRATÉGIA DE PERSUASÃO E SEUS
EFEITOS DE SENTIDO NA ATIVIDADE ARGUMENTATIVA
Dissertação elaborada sob a orientação do
Professor Doutor Gustavo Adolfo Pinheiro da
Silva, do Departamento de Pós-Graduação em
Letras, como exigência parcial para a obtenção
do título de Mestre em Língua Portuguesa pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
RIO DE JANEIRO, 2006/1
ads:
3
AGRADECIMENTOS
A Deus, primeiramente, por tudo que tem feito em minha vida, proporcionando-me a
oportunidade e a condição de concluir esta dissertação.
Ao professor Gustavo Adolfo, pela paciência, orientação e dedicação prestada durante
toda a pesquisa.
À CAPES, pela bolsa de estudos oferecida.
Ao Departamento de Pós-Graduação em Letras da UERJ.
Aos professores do curso de Mestrado.
A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração deste trabalho.
4
“As pessoas usam os provérbios para dizer a
outras o que fazer ou que atitude tomar em
relação a uma determinada situação. Assim, os
provérbios são “estratégias para situações”, mas
estratégias com autoridade, que formulam uma
parte do bom senso de uma sociedade, seus
valores e a maneira de fazer as coisas.”
JAMES OBELKEVICH
5
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo analisar os provérbios como estratégia de persuasão,
observando seus efeitos de sentido na atividade argumentativa. Para isso, primeiramente
examinam-se as concepções enunciativas e discursivas pertinentes à enunciação proverbial. Esta
parte é iniciada por um traçado pelas lingüísticas não enunciativas, abordando, logo em seguida,
as teorias dialógicas de Bakhtin e o aparelho formal da enunciação de Benveniste. Destacam-se
ainda, nesta fase do trabalho, as contribuições da Análise do Discurso (AD), de onde provém os
conceitos discursivos com os quais os provérbios serão tratados. As questões envolvidas na
heterogeneidade enunciativa, bem como nas modalidades, também apresentam-se como alvos de
enfoque, haja vista a sua grande importância para o desenvolvimento do processo argumentativo
na enunciação dos provérbios. No capítulo destinado à coesão dos provérbios, detalham-se
minuciosamente os elementos lingüísticos estruturais do enunciado proverbial, reparando como
eles aferem-lhe o seu caráter mnemônico e expressivo, que os tornam tão práticos e sedutores.
Em seguida, tem-se uma exposição dos aspectos da argumentação e das estratégias de persuasão,
fundamentados, principalmente, sob os conceitos da retórica moderna, sobretudo a partir das
teorias de Perelman. Através da análise do corpus constituído de letras de música, anúncios e
matérias recolhidas da televisão, rádio, revistas e jornais de grande circulação nacional, mostra-se
como e por que os provérbios são utilizados no discurso a fim de obter a adesão do outro, além de
observar os efeitos de sentido provocados e o seu funcionamento em cada uma das ocorrências.
Palavras- chave: Enunciação – Provérbios – Argumentação
6
ABSTRACT
This dissertation has as objective to analyse the proverbs as persuasion strategy, observing
their sense effects in the argumentative activity. To get it, first of all are examined the enunciative
and discursive conceptions relative to proverbial enunciation. This part is initiated by a tracing
for the non-enunciative linguistics, treating, soon after, the Bakhtin’s dialogic theories and the
Benveniste’s formal system of the enunciation. Are still detached, in this phase of the work, the
Analysis of the Discourse (AD) contribution, from where derive the discursive concepts with that
the proverbs will be treated. The questions involved in the enunciative heterogeneity and also in
the modalities are presented as targets of focus too, as shown by their huge importance to the
development of the argumentative process in the proverbs’ enunciation. On chapter destined to
the proverbs’ cohesion, are detailed meticulously the structural linguistic elements of the
proverbial enunciation, paying attention how they provide it the mnemonic and expressive
character, that turn to them so practical and seductive. After it, is done an exposition of the
argumentation aspects and of the persuasion strategies, based, mainly, under the modern rhetoric
concepts, especially from Perelman’s theories. Through the corpus analysis constituted by music
lyrics, announcements and matters extracted from television, radio, magazines and newspapers of
extensive national circulation, is shown how and why the proverbs are utilized in discourse in
order to get the adhesion of the receiver, besides to observe the sense effects created and their
work on each occurrence.
Key-words: Enunciation – Proverbs – Argumentation
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
09
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: AS CONCEPÇÕES ENUNCIATIVAS E
DISCURSIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
20
1.1- LINGÜÍSTICAS NÃO ENUNCIATIVAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
1.1.1- Saussure e o Estruturalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
20
1.1.2- Chomsky e a Teoria Gerativo-Transformacional . . . . . . . . . . . . . . . . .
24
1.2- O DIALOGISMO DE BAKHTIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1.3- BENVENISTE E O APARELHO FORMAL DA ENUNCIAÇÃO . . . . . . . . . . 28
1.4- AS CONCEPÇÕES DISCURSIVAS: A ANÁLISE DO DISCURSO . . . . . . . . 36
1.4.1- Enunciação, Interdiscurso, Historicidade e Esquecimento . . . . . . . . .
37
1.4.2- Formação Discursiva, Formação Ideológica e Sujeito . . . . . . . . . . . . .
41
1.4.3- Silêncio e Sentido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
44
1.5- A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA E A POLIFONIA PROVERBIAL 45
1.5.1- O Provérbio: A Voz do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
49
1.5.2- A Polifonia Proverbial como Estratégia de Polidez . . . . . . . . . . . . . . .
51
1.5.3- A Negação Polêmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
54
1.6- A PRAGMÁTICA ILOCUCIONAL: AUSTIN E OS ATOS DE FALA . . . . . . 55
1.7- AS MODALIDADES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58
2. A COESÃO NOS PROVÉRBIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
67
2.1- A COESÃO REFERENCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67
2.1.1- Formas Referenciais Gramaticais Presas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
68
2.1.2- Formas Referenciais Gramaticais Livres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
70
2.1.3- Formas Referenciais Lexicais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
73
2.2- A COESÃO RECORRENCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
2.2.1- Recorrência de Termos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
74
2.2.2.- Paralelismo Sintático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
75
2.2.3- Recorrência de Traços Semânticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
76
8
2.2.4- Recorrência de Aspectos Fonológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
81
2.2.5- Recorrência de Tempo Verbal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
87
2.3- A COESÃO SEQÜENCIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
2.3.1- Seqüenciação Temporal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
89
2.3.2- Seqüenciação por Conexão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
90
3. A ARTE RETÓRICA: ARGUMENTAÇÃO E AS ESTRATÉGIAS DE
PERSUASÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
99
3.1- A TRADIÇÃO RETÓRICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
3.2- A RETÓRICA MODERNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
3.2.1- O Auditório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
107
3.2.2- As Técnicas Argumentativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
111
3.2.3- Os Lugares da Argumentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
123
3.3- AS FIGURAS DE RETÓRICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
3.3.1- A Metáfora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
128
3.3.2- Outras Figuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
136
3.4- O TEMPO VERBAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141
4. ANÁLISE DO CORPUS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
143
4.1- O Provérbio nas Letras de Música . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
4.2- O Provérbio no Discurso Publicitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
4.2.1- Os Provérbios em sua Forma Consagrada nos Slogans . . . . . . . . . . . .
162
4.2.2- Os Provérbios nos Slogans Através de Captações . . . . . . . . . . . . . . . .
167
4.3- Os Provérbios no Discurso Jornalístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
5. CONCLUSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
193
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
200
9
INTRODUÇÃO
Objetivamos neste trabalho fazer uma abordagem pormenorizada dos provérbios
populares, sobretudo os mais corriqueiros, a fim de esclarecer os seus mecanismos
argumentativos que atuam como ferramentas de persuasão, assim como os modos de organização
discursiva que aferem ao enunciado proverbial os seus diversos efeitos de sentido.
Segundo Fiorin, no processo persuasivo “o enunciador utiliza-se de certos procedimentos
argumentativos visando a levar o enunciatário a admitir como certo, como válido o sentido
produzido. A argumentação consiste no conjunto de procedimentos lingüísticos e lógicos usados
pelo enunciador para o enunciatário” (2002: 52-53). O intuito último de todo ato comunicativo
não é informar, mas persuadir o receptor a admitir o que é comunicado. Existe todo um esquema
“manipulador” que objetiva fazer o enunciatário receber aquilo que se transmite como verdade. A
linguagem é sempre comunicação e persuasão, desde que haja produção de sentido.
Forma cristalizada bastante difundida por uma comunidade, os provérbios assumem uma
condição de verdade imemorial, evidenciando-se, assim, como chama Maingueneau (1997: 100),
uma “citação de autoridade”; e a respeito disso ele diz: “tratam-se de enunciados já conhecidos
por uma coletividade, que gozam o privilégio da intangibilidade: por essência, não podem ser
resumidos nem reformulados, constituem a própria palavra em sua fonte” (ibidem: 100). Para
melhor esclarecimento, poder-nos-íamos remeter à pessoa de Jesus Cristo, poderosa e ilibada voz
de autoridade, sobretudo na sociedade cristã-ocidental, quando Ele diz Quem nunca pecou que
10
atire a primeira pedra ou Não julgueis para não serdes julgados. Semelhantemente, encontramos
alguns provérbios contendo mensagens similares como em Pimenta nos olhos dos outros é
refresco ou Se o seu telhado é de vidro, não atire pedras. No caso dos provérbios, a autoridade
está na voz do povo, nos valores assumidos como verdade num dado contexto histórico e
sociocultural. Nota-se que os provérbios trazem a “sabedoria popular”, que atravessa gerações,
explicitando os valores e costumes de um determinado meio social.
Antes de prosseguirmos, faz-se necessária uma definição de provérbio. Do latim
proverbiu, encontramos usualmente as seguintes definições nos dicionários: sentença moral;
ditado popular; máxima expressa em poucas palavras; anexim; rifão. Observamos que estas
definições possuem termos particulares que nos conduzem a certas veredas: moral (diz respeito
aos bons costumes – os provérbios normalmente moralizam.); ditado popular (aquilo que o povo
diz, que diz respeito ao povo, a voz do povo.); máxima (regras).
Entretanto, tais definições não satisfazem uma perspectiva discursiva. Embora sejam
reconhecidos com facilidade, curiosamente os provérbios apresentam dificuldades quanto à sua
definição. Mas com relação a certos aspectos, existe um certo consenso geral, como em
considerá-los ditos populares tradicionais que oferecem sabedoria e conselhos de forma rápida e
incisiva. Apesar de muito utilizados na variedade escrita da língua, eles são tipicamente um
gênero oral, empregando uma multiplicidade de recursos retóricos e poéticos nos limites de sua
pequena extensão. Entre outros, vemos com muita incidência metáforas, rimas, repetições de
termos, similicadência, similaridade sintática e métrica nos provérbios estruturados binariamente,
etc. Devido a esses recursos, além de sua compacta estrutura, os provérbios tornam-se muito
fáceis de serem memorizados, e não são apenas um veículo do conhecimento moral, mas também
do prático, como informações sobre o clima, a economia e o trabalho no campo.
Concordamos com James Obelkevich quando ele diz que
11
O que define, porém, o provérbio não é sua forma interna, mas sua função externa, e
esta, comumente, é moral e didática: as pessoas usam os provérbios para dizer a outras
o que fazer ou que atitude tomar em relação a uma determinada situação. Assim, os
provérbios são “estratégias para situações”, mas estratégias com autoridade, que
formulam uma parte do bom senso de uma sociedade, seus valores e a maneira de fazer
as coisas (1997: 45).
O caráter de autoridade do enunciado proverbial é sensivelmente intensificado por uma
característica que lhe é bastante peculiar: a sua impessoalidade. Ao prestar conselhos
estereotipados para problemas corriqueiros, os provérbios não observam o que indivíduos podem
sentir como algo específico ou estritamente pessoal em uma dada situação. Sejam metafóricos ou
abstratos, a mensagem contida neles é veiculada de forma indireta, deixando a cargo do receptor
fazer a devida referência ao contexto discursivo apropriado, tirando suas próprias conclusões.
“Anônimos, tradicionais, autoritário, têm uma existência própria, independentes de autores,
falantes e ouvintes. (...) De fato, a autoridade dos provérbios está arraigada na própria língua”
(idem, ibidem: 45).
De acordo com Bakhtin (2004: 123-124), todo enunciado é fruto de um fenômeno
histórico-social. O que o enunciador imagina ser as suas próprias palavras, são, na verdade, as
vozes de seus antepassados, de sua historicidade, ecoando em meio a seus valores, costumes e
ideologias através dos tempos. No discurso cotidiano, essa realidade é um tanto escamoteada,
passando freqüentemente despercebida pelos interlocutores. Entretanto, nos provérbios, esta
dissonância entre a voz do enunciador e a voz do outro mostra-se mais evidente. Haja vista que,
ao ser citado, além de destoar do fluxo natural do discurso por uma mudança na entonação,
muitas vezes, observamos construções que os antecedem do tipo: Como diz o ditado popular...;
Como diz o povo...; Como costuma se dizer por aí...; Como minha avó/avô dizia...; etc. Mesmo
que tais construções não sejam proferidas, elas, ainda que diluídas no discurso, sempre estarão
12
presentes. Dentro dessas concepções e constatações, verifica-se o caráter atemporal dos
provérbios. “Sem dúvida, o encanto e apelo dos “velhos ditos” deve muito à sua aura de
atemporalidade, de verdade imutável a respeito da natureza estática humana” (Obelkevich, 1997:
45).
A partir do que expusemos até aqui, definiremos os provérbios como sendo enunciados de
autoria anônima, cristalizados e lexicalizados, constituídos sócio-historicamente, que exprimem,
normalmente de forma metafórica, verdades, experiências e regras gerais de uma determinada
comunidade, encerrando em sua mensagem um conselho ou admoestação, com autonomia
semântica e sintática. Porém, ressalta-se que tal definição de provérbio não se reduz a uma
fórmula única ou pré-determinada. Assim o especificamos tendo em vista simplesmente a nossa
perspectiva de trabalho.
Têm-se os provérbios como a voz do povo, a voz da verdade. Podemos nos valer de um
próprio provérbio para fazer tal afirmação: A voz do povo é a voz de Deus. Além do fato dos
provérbios serem reconhecidos, dentro de um dado grupo social que compartilha toda uma
herança histórico-cultural, como algo inquestionável, podendo ser utilizado nas mais variadas
situações, verificamos que não é apenas a voz dessa autoridade expressa nas máximas que lhes
fornece o seu caráter persuasivo. Eles apresentam mecanismos importantes, normalmente não
percebidos pelos interlocutores, que criam neles um encantamento extremamente sedutor e
expressivo, realçando o poder argumentativo do seu enunciado. Por isso, os provérbios mostram-
se importante objeto de estudo no que tange à persuasão do outro. E tais constatações, que
observamos até o presente momento, foram as principais razões que motivaram a elaboração
desta dissertação.
É importante ressaltar as inferências semântico-pragmáticas feitas pelos coenunciadores,
recorrendo a pressupostos e implícitos culturais, o reconhecimento de elementos alegóricos,
13
simbólicos e dos possíveis efeitos de sentido em determinados provérbios dentro da cultura em
questão, além das estruturas lingüísticas e de suas próprias memórias. Como cita Maingueneau
(2001:170): “(...) uma vez que o provérbio pertence a um estoque de enunciados conhecidos
como tal pelo conjunto dos falantes de uma língua: supõe-se que eles o conheçam da mesma
forma que conhecem o léxico da língua (...)”.
Freqüentemente, os provérbios também são chamados de adágio, rifão, anexim, dito ou
ditado e parêmia, que se distinguem um dos outros apenas por alguns aspectos. Normalmente, o
rifão e o anexim veiculam mensagens vulgares e grosseiras com propósitos maliciosos ou
irônicos: Da cintura para baixo, tanto faz a galinha como a sardinha; Amor de rameira e
convite de hoteleiro, sempre custam dinheiro; Mais vale um cachorro amigo, do que um amigo
cachorro. Ditado é a denominação genérica do provérbio ou adágio, do rifão e do anexim.
Parêmia é designação de origem grega (paroimía) equivalente da forma latina do termo
provérbio. Daí provém o termo paremiologia: estudo dos provérbios. Apesar de ser sinônimo
preciso destes, tal expressão é muito pouco utilizada no Brasil.
Também é muito comum os provérbios serem confundidos com máximas, frases-feitas,
superstições, aforismos, clichês, slogans, etc. Embora, como os provérbios, possam expressar
verdades universais de forma concisa, fáceis de memorizar e com formas sedutoras e expressivas,
eles divergem das parêmias em função de alguns aspectos fundamentais.
As máximas são proposições gerais que, de maneira nobre, contém uma advertência moral
uma regra de conduta fundamentadas no raciocínio e na experiência. Como se pode observar, elas
têm grande semelhança com os provérbios, sendo tratados, muitas vezes, indistintamente,
podendo ou não possuir autoria específica. Entretanto, o que nos parece ser mais distintivo entre
ambos é que os provérbios são normalmente metafóricos e as máximas são apenas interpretadas
literalmente. Porém, nem todos os provérbios são metafóricos (Tal pai, tal filho; Faça o bem sem
14
olhar a quem). Nesses casos, consideramos a denominação provérbio ou máxima com
indiferentes.
As frases-feitas ou expressões idiomáticas são enunciados comuns aos usuários de uma
língua. Ao contrário dos provérbios, muitas vezes não podem ser interpretados isoladamente e,
normalmente, não encerram qualquer tipo de admoestação ou conselho, características peculiares
aos provérbios. Corriqueiramente, vemos frases-feitas do tipo: Amigo da onça; agora Inês é
morta.; Boa sorte; O gato comeu a sua língua?; É um Deus-nos-acuda; Acordar com as
galinhas; Engolir sapos; etc.
Existem alguns tipos de frases-feitas que também exprimem superstições ou crendices.
Tal qual os provérbios, apresentam-se concisamente, todavia, trabalham com valores e
experiências distintas das que os provérbios costumam exprimir, podendo encontrar muitas
variações em sua estrutura lingüística. De forma geral, elas lidam com o sobrenatural e o extra-
sensorial: O gato tem sete vidas; Chuva e sol, casamento de espanhol; Sol e chuva, casamento de
viúva; Casa de esquina, ou morte ou ruína; Espelho quebrado traz sete anos de azar; Quem
cochicha, o rabo espicha; Mentira faz o nariz crescer; Passar embaixo de escada dá azar; Sinal
no céu, castigo na terra; etc.
Os aforismos são citações e pensamentos de um autor conhecido e determinado, que
normalmente procedem dos campos das artes ou ciências. Nota-se aí um ponto de divergência em
relação aos provérbios: a questão da autoria. Enquanto estes possuem autoria anônima, aqueles
remetem a um produtor específico. Dentre alguns dos aforismos mais conhecidos, podemos
destacar: O caminho batido é o mais seguro (Hipócrates); A beleza está nos olhos de quem a vê
(Carl Gustav Jung, psicanalista suíço); O homem de bem exige tudo de si próprio, o homem
medíocre espera tudo dos outros (Confúcio); Imaginação é mais importante do que
conhecimento (Albert Einstein); etc.
15
Os clichês são enunciados estereotipados, constantemente repetidos, e, como os
provérbios, circulam entre diversas camadas sociais, atravessam gerações, sedimentando um
dizer coletivo através da voz do senso comum. Apesar das várias semelhanças entre ambos, há
claras diferenças em suas estruturas e no modo de funcionamento. Normalmente, não se
observam nos clichês certas preocupações poéticas e expressivas, como o uso de figuras sonoras:
rimas, aliteração, assonância, paronomásia, similicadência; simetria sintática e métrica nas
estruturas binárias; relações semânticas como as antíteses; a presença freqüente de metáforas,
sobretudo das chamadas naturais; etc. Além disso, os clichês não costumam encerrar alguma
sentença moral ou aconselhadora, orientando os membros da comunidade a exercerem valores e
atitudes vistas, sob o ponto de vista social, como prudentes, adequados, éticos e produtivos.
Também, há de ressaltar que os clichês, muitas vezes, têm uma origem e autoria
determinável. Um bom exemplo desse fato está no clichê Todo brasileiro gosta de levar
vantagem em tudo, que surgiu durante uma campanha publicitária em agosto de 1978 para
divulgar uma marca de cigarro. Gérson, ex-jogador da seleção brasileira tricampeã do mundo,
que era fumante e tinha fama de econômico, foi o escolhido para ser o “garoto propaganda” do
comercial. Tal clichê é até hoje conhecido como “Lei de Gérson”. Já os provérbios, como já
abordamos, são de origem anônima e não datável.
Outro ponto a se mencionar é que, comumente, os provérbios veiculam uma mensagem de
caráter mais universal. Enquanto muitos provérbios possuem equivalentes em várias partes do
mundo, como por exemplo: Gato escaldado tem medo de água fria / Once bitten, twice shy /
Chat échaudé craint l’eau froide / Gato escaldado del agua fría huye / Gebrantes Kind scheut fas
Feuer; a maioria dos clichês se restringem a certos limites regionais. É o que vemos quando se
fala em “jeitinho brasileiro”.
16
Os slogans são frases concisas que permeiam a linguagem através dos veículos de
comunicação. De forma geral, eles são criados com objetivos publicitários, sejam para fins
comerciais, educativos ou promover uma simples idéia: Quem ama, se cuida (campanha do
Ministério da Saúde para a prevenção da AIDS); Se dirigir não beba, se beber não dirija
(campanha do Departamento Nacional de Trânsito); Quem tem fome, tem pressa (campanha do
Governo Federal no combate à fome); Seu potencial, nosso compromisso (slogan da Microsoft).
Como gênero discursivo que são, os provérbios possuem certas propriedades lingüísticas
que possibilitam que eles sejam reconhecidos como tais, visto que se submetem a certas coerções
que lhe aferem estabilidade e facilitam a sua memorização. O provérbio é curto e, em grande
parte, estruturado binariamente (Quem brinca com fogo/ acaba se queimando, Quem planta
vento,/ colhe tempestade); grande presença do Quem no início dos períodos, como se observa nos
exemplos acima; freqüência de rimas e figuras de linguagem (Em briga de marido e mulher,
ninguém mete a colher); simetria semântica ou sintática entre as partes (Onde há fumaça, há
fogo); entre outras, que veremos mais a fundo ao longo do nosso trabalho.
Para os provérbios serem interpretados, os interlocutores precisam compartilhar
determinados conhecimentos enciclopédicos a respeito dos seus elementos lingüísticos e sobre o
universo discursivo no qual figura o enunciado proverbial. Eles exigem e traduzem diversas
inferências por parte do destinatário, que precisa recuperar vários elementos implícitos para a
produção do sentido, preenchendo as lacunas do discurso. Observe o que retrata Maingueneau
(2001:171): “O provérbio é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas, sobre como
funciona o mundo, dizendo o que é verdadeiro. O enunciador apóia-se nele para introduzir uma
situação particular em um quadro geral preestabelecido (...)”.
Normalmente, através dos provérbios o enunciador exprime com mais evidência as
seguintes intenções: comicidade (Pato novo não mergulha fundo), acusação (Pau que nasce
17
torto, morre torto), ameaça (Olho por olho, dente por dente), desprezo ou negação (Santo de
casa não faz milagre), afetividade (Quem ama o feio, bonito lhe parece), saudosismo (Recordar é
viver), praticidade (Uma imagem vale mais do que mil palavras); Além de diversos tipos de
conselhos sapienciais. Os mais freqüentes indicam: conformação (Águas passadas não movem o
moinho), persistência (Água mole em pedra dura tanto bate até que fura), precaução (Em boca
fechada, não entra mosca), moralidade (Quem tudo quer, tudo perde), autocontrole (Não faça
tempestade em copo d’água), consolo (O sol nasce para todos), compromisso (Ajoelhou, tem que
rezar) ou simples asserção (Dinheiro não traz felicidade). Nota-se, porém, que o mesmo
provérbio pode exprimir várias intenções, que dependerão de todo um contexto discursivo.
Para o estudo da enunciação dos provérbios como estratégia de persuasão e seus efeitos de
sentido na atividade argumentativa, esta dissertação organizou-se em quatro capítulos. No
primeiro, Analisar-se-ão os fundamentos teóricos que serão utilizados para orientar todo o nosso
trabalho em relação às concepções enunciativas e discursivas. Inicialmente, expor-se-á um breve
traçado pelas lingüísticas não enunciativas, destacando as contribuições de Saussure para o
estabelecimento da lingüística como ciência, bem como da teoria gerativo-transformacional da
escola chomskyana. Em seguida, veremos a importância dos conceitos dialógicos de Bakhtin para
a instituição de uma concepção sócio-histórica do enunciado. Na seqüência, far-se-á um exame
do aparelho formal da enunciação de Benveniste, ressaltando a questão da instauração das
categorias de pessoa, tempo e espaço no enunciado e a relevância da debreagem e embreagem no
processo argumentativo da enunciação proverbial, observando os efeitos de sentido no discurso.
Logo após, introduziremos as noções discursivas pela perspectiva da AD. Nesta etapa do
trabalho, apontar-se-ão os conceitos com os quais se considerará o funcionamento dos provérbios
no discurso, detendo-se em pontos essenciais para o desenvolvimento deste trabalho como
interdiscurso, historicidade, esquecimento, formação ideológica e formação discursiva. Já na
18
parte destinada à análise da heterogeneidade enunciativa, pretende-se mostrar a questão das
diversas vozes que permeiam os provérbios, denunciando-os, assim, como discurso de outrem.
Procurar-se-á, também, descrever como a polifonia proverbial atua como ferramenta de polidez a
fim de criar uma maior receptividade por parte do enunciatário e, conseqüentemente, obter a sua
adesão em relação aos argumentos propostos pelo enunciador. Depois, ainda nos caberá uma
rápida passagem pelas teorias dos atos de fala de Austin. Por último, o nosso foco voltar-se-á
para a pertinência das modalidades no que tange à argumentação e autoridade da enunciação dos
provérbios.
No segundo capítulo, deter-nos-emos na descrição dos elementos coesivos da estrutura
proverbial. Nesta fase, destacar-se-á como tais mecanismos são essenciais para que os utentes
memorizem e rememorem com mais facilidade os provérbios, tornando-os, assim, bastante
práticos. Além disso, há de se notar os efeitos expressivos que as formas de coesão produzem,
que provocam tanto encantamento e os deixam tão sedutores.
No capítulo seguinte, debruçar-nos-emos sobre os estudos da argumentação e estratégias
de persuasão da arte retórica. Para isso, iniciaremos com uma abordagem sobre a antiga tradição
da retórica grega, observando o seu processo histórico e o seu desenvolvimento até desembocar
na retórica moderna, sobretudo nos trabalhos de Perelman. Neste sentido, proceder-se-á uma
incursão sobre o problema do auditório, das técnicas argumentativas e dos lugares da
argumentação. Em seguida, tratar-se-á das figuras de retórica, dando especial ênfase às
metáforas. Por fim, ao verificar o tempo verbal dos provérbios, ver-se-á o porquê e a relevância
deles se apresentarem preferencialmente no presente do indicativo.
No quarto e último capítulo desta dissertação, far-se-á a análise do corpus, que se
constitui de letras de música, anúncios publicitários e slogans recolhidos da televisão, rádio e
revistas; além de matérias de jornais de grande circulação nacional. Neste processo, mostra-se
19
como e por que os provérbios são utilizados no discurso a fim de obter a adesão do outro, além de
observar os efeitos de sentido provocados e o seu funcionamento em cada uma das ocorrências.
20
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: AS CONCEPÇÕES ENUNCIATIVAS E
DISCURSIVAS
Os estudos concernentes à enunciação apresentam grandes variedades teóricas e
conceptivas derivadas das diferentes posições de seus autores. Porém, a nossa preocupação
voltar-se-á para os conceitos enunciativos e discursivos que apresentam maior relevância para a
nossa proposta, isto é, a enunciação dos provérbios.
Concordamos com Jean Cervoni quando ele diz que “uma boa maneira de situar a
lingüística da enunciação é relembrar rapidamente as lingüísticas não enunciativas” (1989: 9). É
o que faremos a seguir.
1.1- LINGÜÍSTICAS NÃO ENUNCIATIVAS
1.1.1- Saussure e o Estruturalismo
Através de Saussure, os estudos sobre a linguagem desenvolveram conceitos
fundamentais para o estabelecimento da lingüística como ciência autônoma, tais como a oposição
entre língua e fala, isto é, langue e parole. Como cita o próprio lingüista: “Essa é a primeira
bifurcação que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem” (1969: 38).
Precipuamente, é esse o princípio que institui o objeto da lingüística saussureana, separando-o,
21
como diz o autor, do “aglomerado confuso de coisas heteróclitas, sem liame entre si” (ibidem:
24).
Nesta separação entre língua e fala, Saussure determina simultaneamente um objeto
estritamente lingüístico e um outro científico: um objeto estritamente lingüístico, dividindo-se,
concomitantemente, “o essencial do acessório”, como aborda o próprio lingüista; e um objeto
científico, ao se distinguir o que é universal e social do que é essencialmente individual. Saussure
atribui à fala tudo aquilo que considerava somente variantes individuais e, dessa forma, não
sujeitas a um exame analítico e sistemático, assim como todas as informações que não poderiam
se converter em um objeto de análise, que de alguma forma pudessem ser estudadas por outras
ciências que trabalham com a linguagem, como a filosofia, a psicologia, a filologia, a
antropologia, etc.
Daí, a posição tomada por Saussure, para viabilizar a autonomia da lingüística como
ciência, colocando-a como uma espécie de “piloto” das outras ciências humanas, foi, como
declara Cervoni ,
limitar-se ao estudo da língua em si mesma e por si mesma, uma vez que a língua devia
ser definida como um sistema de signos e de regras, tesouro coletivo depositado em
cada cérebro, conjunto de convenções próprias de todos os locutores de um mesmo
idioma, código único e homogêneo que lhes permite comunicarem-se (1989: 9-10).
Assim, a língua para Saussure era um objeto artificial cuja captação era feita através da
observação do lingüista sobre a matéria apreendida, reconstruída por meio de um processo
abstrato. Por conseguinte, o trabalho do pesquisador verificava-se em adquirir o maior volume
possível de mensagens produzidas pelos utentes da língua em análise, criando um consistente e
considerável corpus, para em seguida detectar de que unidades ele é composto, classificando-as e
22
compreendendo as suas leis e processos combinatórios. Sobre isso, vale destacar uma pequena
menção de Benveniste a respeito da lingüística estruturalista:
Tratava-se, antes de tudo, de mostrar nos elementos materiais da língua e, numa certa
medida, acima, nos elementos significantes, duas coisas, os dois dados fundamentais
em toda consideração estrutural da língua. Primeiro, as peças do jogo e em seguida as
relações entre estas peças (1989: 16).
Basicamente, essa foi a ocupação a que se aplicou o estruturalismo.
De fato, grande foi o avanço da escola estruturalista no que concerne ao estudo da língua,
estabelecendo-se como uma fase muito produtiva para o progresso da lingüística. Dentre seus
métodos de análise mais eficientes, cabe destacar o da comutação, cujo rigoroso processo
possibilitou a segmentação do material analisado, discriminando as suas unidades significantes
das unidades fônicas mínimas não significantes. Dessa forma, viabilizou-se reconhecer os seus
traços distintivos, onde, por exemplo, um fonema e um morfema se opõem a todos outros.
Foi sobretudo na fonologia, o seu maior êxito. Neste campo de estudo, os seus resultados
foram fantásticos e inquestionáveis. Destacam-se também as suas contribuições na sintaxe,
principalmente no que tange à relação entre os sintagmas dentro do enunciado e a dos elementos
mórficos no interior destes. Na semântica, ressaltam-se as análises sêmicas ou componenciais,
cujos traços distintivos foram denominados de semas. Tais análises proporcionaram uma melhor
descrição de alguns fenômenos, como a sinonímia, a polissemia e a homonímia , a metáfora e a
metonímia.
Apesar de todos os sucessos obtidos pela lingüística estrutural, houve um momento em
que as suas deficiências se sobressaiam mais do que as suas virtudes, sobretudo em relação à
questão da análise sentido, vista como excessivamente redutora.
23
Devido ao corte epistemológico dicotômico das teorias saussureanas, a fala foi relegada
ao esquecimento, determinando, assim, os limites da língua. Tal posicionamento gerou um
grande isolamento entre o sistêmico e os fatores pragmáticos e discursivos que existem nesta.
Outra conseqüência dessa dicotomia (língua/fala) foi a exclusão do sujeito, por conseguinte a de
seu interlocutor, e de suas marcas espaciais e temporais, além de suas variantes individuais, bem
como todo processo de significação e os deslizamentos de sentido produzidos em sua
discursividade, tidos como acessórios. Dessa forma, descarta-se o dialogismo da linguagem, fator
eminentemente produtor de sentidos. Destarte, eliminar-se-iam todos os fatores pelos quais, como
cita Benveniste, a linguagem se faz mediadora entre “o homem e o homem, entre o homem e o
mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência,
impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo; em resumo, organizando
toda a vida do homem” (1989: 229).
Todos esses fatores pertencem a um funcionamento semântico da língua, que na
concepção de Benveniste (ibidem: 229) surge como a função lingüística de comunicar. Daí, o
corte saussureano privilegia o funcionamento sistemático e semiótico da língua em detrimento do
semântico. A exposição de Benveniste a seguir deixa bem clara a limitação da teoria semiótica
estruturalista no que diz respeito à análise do sentido:
Coloco que de fato há dois domínios ou duas modalidades de sentido, que distingo
como semiótico e semântico. O signo sausurreano é na verdade a unidade semiótica,
quer dizer, a unidade dotada de sentido. (...) Mas importa pouco que se saiba qual é
este sentido e não se está preocupado com isso. O nível semiótico é isto: ser
reconhecido como tendo ou não um sentido. Isto se define por sim, não.
A semântica é o “sentido” resultante do encadeamento, da apropriação pela
circunstância e da adaptação dos diferentes signos entre eles. Isto é absolutamente
imprevisível. É a abertura para o mundo. Enquanto que o semiótico é o sentido fechado
sobre si mesmo e contido de algum modo em si mesmo (1989: 21).
24
1.1.2- Chomsky e a Teoria Gerativo-Transformacional
O lingüista americano Noam Chomsky reagiu energicamente aos conceitos e teorias
estruturalistas, essencialmente por estes não considerarem um fator da linguagem, segundo suas
convicções, fundamental: a criatividade. De acordo com as teorias de Chomsky, através de um
número limitado de categorias e normas (estruturas profundas) que compreendem a sua
competência, o locutor/alocutário de uma língua consiga criar e interpretar uma quantidade
ilimitada de frases (estruturas de superfície) dessa língua.
Apesar das divergências entre estruturalistas e gerativistas, pode-se afirmar que a noção
de competência e de performance, um dos conceitos basilares da gramática gerativa, originam-se
das teorias saussureanas de langue e parole. Chomsky empregou o conceito de competência
como sendo o conhecimento da língua, e o de performance como o uso desta. Na realidade, uma
concepção mais adequada seria a seguinte: onde Chomsky diz competência, entenda-se como
gramática; por performance, realização psicológica; e em criatividade, leia-se produtividade
sintática.
Tal teoria lingüística reporta-se, inicialmente, a um falante-ouvinte ideal, pertencente a
uma comunidade de locutores completamente homogênea, que conhece sua língua perfeitamente
e não está afetada por fatores extralingüísticos ao utilizar seu conhecimento da língua numa
performance atualizada (1971: 3). Porém, essas teorias apresentam certas deficiências. A noção
de competência era entendida como um modelo estritamente lingüístico-psicológico. Daí, quando
teve que tratar do nível semântico, enfrentou inúmeros problemas. Haja vista que em sua
interação, os falantes da língua se valem de diversas outras competências, e não somente uma,
essencialmente psicolingüística, sucumbindo, assim, às limitações do modelo, cuja análise
25
fixava-se apenas no plano sintático. Dessa maneira, excluíam-se várias características das
comunidades lingüísticas e da realidade cotidiana de seus membros.
Além disso, o falante-ouvinte ideal não é, de forma alguma, o sujeito da enunciação. Ele é
um elemento totalmente abstrato. Como diz Cervoni, é “uma espécie de máquina verificadora da
gramaticalidade das frases. Ele é desprovido de qualquer inserção num contexto situacional,
social, psicológico, cognitivo ou psicanalítico” (1989: 12).
Entretanto, nos estudos dos gerativistas, observaram-se alguns avanços em relação ao
estruturalismo, principalmente por estender a visão de uma lingüística imanente para uma
discussão que envolve o comportamento humano e a psicologia cognitivista em relação aos
estudos da linguagem.
Em suma, os estudiosos das concepções sobre a enunciação estão de acordo em julgar as
teorias estruturalistas e gerativistas como conceitos lingüísticos extremamente limitados,
sobretudo em decorrência das deficiências concernentes à análise do sentido.
1.2- O DIALOGISMO DE BAKHTIN
Foi através de Mikhail Bakhtin, filósofo da linguagem russo, que as teorias sobre a
enunciação tiveram seu início, sendo este um dos primeiros a perceber as insuficiências e perdas
em decorrência das dicotomias saussureanas, uma vez que ele concebe a língua como um produto
sócio-histórico, forma de interação social efetuada através de enunciações. Tais conceitos
contribuíram de forma fundamental para o desenvolvimento dos estudos sobre a interação verbal
e as questões relativas à análise do sentido em áreas como a Pragmática e a Análise do Discurso
(AD), cujos princípios tomam a linguagem como ação, não como um simples veículo de
comunicação.
26
Bakhtin destaca que a noção de que “a verdadeira substância da língua não é constituída
por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem
pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social de interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações” (2004: 123) . Daí, como ele diz em suas
próprias palavras, “a língua não é um reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das
relações sociais estáveis dos falantes” (ibidem: 147).
Assim, o interlocutor institui-se como elemento imanente da enunciação. O discurso
nunca é unilateral, haja vista que quando enunciamos, sempre objetivamos atingir um interlocutor
(ou vários). Através da palavra, os interlocutores se definem um em relação ao outro. O receptor
de um enunciado é co-responsável pela sua produção e pela constituição de seu sentido, não um
simples decodificador de mensagens. Na formulação de um enunciado, sempre considera-se a sua
orientação para o outro. Em suma, como diz Bakhtin, “a enunciação como tal só se torna efetiva
entre falantes” (ibidem:127).
Bakhtin instaura, então, o dialogismo como princípio constitutivo da linguagem e
processo fundamental para a constituição do sentido do discurso. Princípio este que estrutura toda
sua produção teórica, de onde originaram-se outras noções como: heterogeneidade enunciativa,
polifonia, fala de outrem, discurso do outro, descentralização de consciências, ressonâncias
dialógicas, multiplicidade de vozes, etc.
De acordo com o lingüista russo, o enunciado é uma unidade de análise discursiva onde é
possível ouvir diversas vozes que se relacionam entre si dialogicamente. Então, ele cita que “o
enunciado está repleto de ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado (...).
O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores:
refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles (...)” (1992: 316). Isto é, o diálogo entre os
enunciados é um fato constante e ininterrupto. E ele continua, dizendo que “ o enunciado não está
27
ligado apenas aos elos que o precedem, mas também aos que lhe sucedem (...), pois ele elabora-se
em função de uma eventual resposta. Por conseguinte, o papel dos outros para os quais o
enunciado se elabora é muito importante” (ibidem: 320).
Nestas condições, o enunciado não pode ser estudado a partir de um ponto de vista
estritamente lingüístico do sistema da língua ou analisado de forma isolada, uma vez que ele “é
inteiramente perpassado por elementos extralingüísticos, vale dizer, dialógicos” (ibidem: 335).
Porém, Bakhtin estabelece que para haver uma relação dialógica entre dois ou mais
enunciados, eles precisam materializar-se em discursos através da língua, mediante à existência
de relações lógicas e concreto-semânticas entre ambos, sendo proferidos por dois sujeitos
diferentes (2002: 183-184).
O autor exemplifica tal idéia através de duas frases, que ele estabelece como juízos de
valores : “A vida é boa” e “A vida não é boa”. Então, ele complementa com a seguinte exposição:
Esses dois juízos devem materializar-se para que possa surgir relação dialógica entre
eles ou tratamento dialógico deles. Assim, esses dois juízos, como uma tese e uma
antítese, podem unir-se num enunciado de um sujeito, que expresse a posição dialética
una deste em relação a um dado problema. Neste caso não surgem relações dialógicas.
Mas se esses dois juízos forem divididos entre dois diferentes enunciados de dois
sujeitos diferentes, então surgirão entre eles relações dialógicas (2002: 183).
Os conceitos bakhtinianos sobre a língua numa visão dialógica reintroduzem a noção de
sujeito nos estudos da linguagem, colocando-o numa posição fundamental para os estudos
discursivos, especificando-o como fator imanente da enunciação e sobre as questões relativas à
análise do sentido. Põe-se de lado as teorias de língua como um sistema abstrato e a estabelece
como um lugar privilegiado de manifestações enunciativas.
28
Entretanto, foi Benveniste que se deteve com mais interesse aos fenômenos enunciativos
concernentes ao sujeito. É o que veremos no próximo tópico.
1.3- BENVENISTE E O APARELHO FORMAL DA ENUNCIAÇÃO
Para Benveniste, o sujeito possui um papel central em suas concepções enunciativas, pois
a única forma de converter a língua em discurso é através de sua intervenção, já que “a
enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (1989:
82). Esse ato “introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da
enunciação” (ibidem: 83). Este processo evidencia que é “na e pela linguagem que o homem se
constitui como sujeito, uma vez que, na verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a
do ser, o conceito de ego” (1966: 259).
Na perspectiva benvenisteana, a enunciação é vista, em relação à língua, como um
processo de apropriação, onde o locutor enuncia sua posição como tal através de certos índices e
procedimentos acessórios ao se apropriar do aparelho formal da língua.
No entanto, o sujeito, no ato enunciativo, ao se instituir como sujeito locutor, ele constitui,
simultaneamente, o sujeito alocutário. Ou seja, ele coloca-se na posição do eu ao mesmo tempo
que estabelece o tu. Quanto a isso declara o autor: “desde que ele se declara locutor e assume a
língua, ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a
este outro. Toda enunciação é, explícita ou implicitamente, uma alocução, ela postula um
alocutário” (ibidem: 84). Daí, o eu e o tu mostram-se como sendo complementares e essa
complementaridade resulta da condição de diálogo, que é constitutiva da pessoa: apenas utilizo o
eu reportando-me a um tu.
29
A linguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo a si
mesmo como eu em seu discurso. Dessa forma, eu estabelece uma outra pessoa, aquela
que, completamente exterior a mim, torna-se meu eco ao qual eu digo tu e que me diz
tu (Benveniste, 1966: 261-262).
Ao se apropriar da língua, aquele que enuncia se introduz na sua própria fala, isto é, “é
ego quem diz ego” (ibidem: 260), constituindo-se, assim, como centro de referência interna da
instância enunciativa. Este é o fundamento da subjetividade, cuja determinação é estabelecida
pelo estatuto lingüístico da pessoa.
Observamos, então, que a categoria de pessoa é parte fundamental no processo de
transformação da linguagem em discurso. Dessa forma, o eu não se refere a qualquer indivíduo
específico, mas a uma entidade puramente lingüística.
Ao enunciar, o sujeito o faz num determinado tempo e espaço. Daí, as categorias espaço-
temporais instauram-se a partir de um ponto de referência: a pessoa. Como diz Fiorin:
Espaço e tempo estão na dependência do eu, que neles se enuncia. O aqui é o espaço
do eu e o presente é o tempo em que coincidem o momento do evento descrito e o ato
de enunciação que o descreve. A partir desses dois elementos, organizam-se todas as
relações espaciais e temporais.
Porque a enunciação é o lugar de instauração do sujeito e este é o ponto de
referência das relações espaço-temporais, ela é o lugar do ego, hic et nunc (2002: 42).
No momento em que o sujeito da enunciação faz funcionar a língua e se apropria dela,
designando-se como eu, ele “constrói o mundo enquanto objeto ao mesmo tempo que se constrói
a si mesmo” (Greimas e Courtès, 1979: 127).
Vale destacar que os actantes da comunicação, o eu e o tu, não são figurativizados
somente por seres humanos, mas podem sê-los por quaisquer seres, sejam eles concretos ou
30
abstratos, existentes ou inexistentes. Um bom exemplo desse fenômeno são as fábulas, onde, num
processo de personificação, delegam-se vozes a animais, árvores, plantas e objetos.
A instauração das categorias de pessoa, espaço e tempo é efetuada através de dois
mecanismos: a debreagem e a embreagem. Debreagem é o processo em que a instância da
enunciação desprende e projeta para fora de si, no ato da discursivização, determinados
elementos ligados a sua estrutura de base, objetivando a instauração dos componentes fundadores
do enunciado, ou seja, as categorias de pessoa, espaço e tempo. Destarte, a discursivização é o
processo fundador de tais categorias e, ao mesmo tempo, de suas representações no enunciado
(Greimas e Courtès, 1979: 79).
Existem dois tipos de debreagem: a enunciativa e a enunciva. Ocorre uma debreagem
enunciativa quando se instalam no enunciado os actantes (eu/tu), o espaço (aqui) e o tempo
(agora) da enunciação, isto é, o não-eu, o não-aqui e o não-agora que são enunciados como eu,
aqui e agora (ibidem: 80). Vejamos num simples exemplo:
Chega! Eu não te agüento mais. Não fico mais aqui. Amanhã vou lá para casa da
mamãe.
Neste exemplo, ocorre a instalação do eu enunciador no enunciado, bem como a do tu
enunciatário. Temos, assim, uma debreagem actancial enunciativa.
Nota-se ainda que o enunciador ordena o seu tempo em relação ao agora. “Considerando-
se o momento da enunciação um tempo zero e aplicando-se a ele a categoria topológica
concomitância/ não-concomitância (anterioridade/ posterioridade), obtém-se o conjunto dos
tempos enunciativos” (Fiorin, 2002: 44). Observamos, então, no caso acima que agüento e fico
são concomitantes ao agora, e amanhã é posterior a ele. Verificamos desta vez um debreagem
enunciativa temporal.
31
Detectamos, também, uma debreagem enunciativa espacial, onde o espaço do enunciado é
todo ordenado em função do aqui. Daí, o que se contrapõe ao aqui é enunciativo.
A debreagem enunciva, por sua vez, instala no enunciado os actantes (ele), o espaço
(algures) e o tempo (então) do enunciado. Vejamos o exemplo:
Todas as manhãs, Pedro sentava-se no banco em frente à igreja, e ficava ali durante
horas.
Temos uma debreagem actancial enunciva, ao instalar-se o actante do enunciado, Pedro.
Como o tempo ordena-se a partir de uma demarcação constituída no texto, a debreagem temporal
é enunciva, haja vista que sentava, ficava e durante horas não são instaurados em relação ao
agora, mas a um naquele momento, ou seja, a Todas as manhãs. A debreagem espacial também é
enunciva, pois o espaço do enunciado não é o aqui da enunciação, mas um ponto marcado no
texto, em frente à igreja. Observem que ali possui função anafórica, retomando um espaço
inscrito no enunciado, o que confirma a enuncividade.
A esta altura, já pudemos perceber que, do ponto de vista morfossintático, o espaço
lingüístico é expresso basicamente por demonstrativos e advérbio de lugar. A seu turno, a
categoria de pessoa é expressa por pronomes pessoais, possessivos e pelas desinências número-
pessoais dos verbos; enquanto que o tempo lingüístico é evidenciado por advérbios de tempo e
locuções e pelas desinências modo-temporais dos verbos.
A debreagem enunciativa e a enunciva provocam no discurso dois consideráveis efeitos
de sentido: o de subjetividade e o de objetividade. Quanto a isso, diz Fiorin:
Com efeito, a instalação dos simulacros do ego-hic-nunc enunciativos, com suas
apreciações dos fatos, constrói um efeito de subjetividade. Já a eliminação das marcas
de enunciação do texto, ou seja, da enunciação enunciada, fazendo que o discurso se
construa apenas com enunciado enunciado, produz efeitos de sentido de objetividade
(2002: 45).
32
Ao aplicar esses conceitos em relação aos provérbios, nosso objeto de estudo, podemos
fazer as seguintes constatações: verdadeiro “acervo cultural”, os provérbios não podem ser
atribuídos a indivíduos ou eventos únicos (Maingueneau, 2001: 170). Por isso, a priori, não
apresentam marcas de debreagem enunciativa, e, portanto, não remetem diretamente aos actantes,
tempo e espaço da enunciação. Vê-se no exemplo Faça o que eu digo, mas não faça o que eu
faço. Este eu não é necessariamente o enunciador, mas o eu histórico-social (Bakhtin, 2004: 110-
127), representando a voz do povo e do senso comum no provérbio; assim como o tu (faça você)
não é o co-enunciador.
Da mesma forma, ocorre com as categorias espacial e temporal. Observe que no provérbio
Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje, o amanhã não se refere precisamente ao dia
seguinte ao momento da enunciação, da mesma forma que hoje não remete ao mesmo dia do ato
enunciativo; destarte, podem ser atribuídos a qualquer instante e época. Percebe-se que a
ATEMPORALIDADE é fator sine qua non para que o enunciado proverbial permaneça
atualizado e utilizável através dos tempos. Igualmente, vemos em Aqui se faz, aqui se paga. O
aqui também não é necessariamente o espaço da enunciação do eu, mas sim um espaço
generalizante, podendo ser referido a qualquer lugar.
Tudo isso que acabamos de expor, nos leva a afirmar que as marcas de pessoa, tempo e
espaço dos provérbios são resultados de uma debreagem enunciva, portanto o que se instaura em
seu enunciado são os actantes, tempo e espaço do próprio enunciado, não da enunciação.
Tal concepção corrobora para que o provérbio possua um caráter mais objetivo em
detrimento da subjetividade do enunciador, afastando a enunciação do discurso. Essa estratégia
argumentativa permite evidenciar a voz do senso comum e da sabedoria popular, instaurando no
enunciado proverbial o atributo de citação de autoridade. Dessa forma, cria-se a ilusão de que não
33
são as idéias e posição do enunciador, mas do sujeito histórico-social; a instância invisível,
diluída em cada membro da comunidade, que pertence à formação ideológica do que se considera
socialmente como moral, bom, ético, prudente e adequado.
Greimas e Courtès (1979: 80) abordam, ainda, a questão da debreagem interna, tão
comum no discurso literário e na conversação cotidiana. Observa-se esse processo quando “um
actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torna instância enunciativa, que
opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva” (Fiorin, 2002:
45).
O eu que fala, por exemplo, em discurso direto está subordinado a um eu narrador que, a
seu turno, fica na dependência de um eu pressuposto pelo enunciado. Por isso, podemos afirmar
que no discurso direto ocorre uma debreagem de segundo grau.
a) Pedro disse ao patrão: “Eu me demito.”
b) Pedro disse ao amigo: “João foi demitido.”
No primeiro exemplo, o actante do enunciado (Pedro) faz uma debreagem enunciativa,
instaurando um eu no discurso; já no segundo, ele realiza uma debreagem enunciva, ancorando
um ele (João) no enunciado.
Muitas vezes vemos os provérbios como resultado de uma debreagem interna, pois
freqüentemente observamos construções do tipo Como minha avó/avô dizia ou Como diz o
ditado/sabedoria popular: Quem tudo quer, tudo perde. Daí, o actante do enunciado, avó/avô ou
o sujeito representante da sabedoria popular, executa uma debreagem interna enunciva,
instalando um ele (Quem) no enunciado proverbial.
Como diz Fiorin, “a debreagem interna serve, em geral, para criar um efeito de sentido de
realidade, pois parece que a própria personagem é quem toma a palavra e, assim, o que ouvimos é
34
exatamente o que ela disse” (ibidem: 46). Nesse sentido, o enunciador explicita a fonte
responsável pelo enunciados proverbiais, como se estivesse presentificando-a, para apoiá-los na
autoridade da sabedoria popular e na respeitável experiência e conhecimento dos mais velhos,
que de certa forma personifica as vozes de outras gerações.
A embreagem, ao contrário da debreagem, é o mecanismo de retorno à enunciação em que
ocorre uma neutralização das oposições das categorias de pessoa, tempo e espaço. Assim como a
debreagem, e embreagem pode ser enunciativa e enunciva, ocorrendo nas três categorias da
enunciação. Ressalta-se que toda embreagem pressupõe uma debreagem anterior. Observemos
um exemplo:
Uma mãe se dirigindo ao seu filho, mandando ele estudar para uma prova, diz o seguinte:
Vamos estudar que amanhã você tem prova!
Nesta situação descrita acima, temos um embreagem actancial. Suspende-se a oposição
entre nós e tu, empregando-se a primeira pessoa do plural (nós vamos) no lugar da segunda do
singular. Vemos um nós que, na realidade, significa tu.
Como já abordamos, os provérbios não apresentam marcas de embreagem enunciativa. O
eu-tu, aqui e agora deles não apontam para a instância da enunciação. Entretanto, dependendo do
contexto enunciativo, o enunciador pode remeter para sua enunciação as categorias de pessoa,
tempo e espaço, instalando-se como o eu do enunciado. Fato que é possível devido à embreagem.
Retomando o provérbio Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, como já vimos,
o eu aqui destacado não representa o eu enunciador, mas o sujeito histórico-social, representante
da sabedoria popular e da voz do senso comum, uma instância invisível diluída em cada membro
da comunidade. Porém, através de uma embreagem actancial, ele é capaz de neutralizar a
oposição entre o eu enuncivo do provérbio e o eu enunciativo. Basta ele remeter para si mesmo a
referência do enunciado, apresentando-se como eu do discurso. Daí, veremos o eu do enunciado
35
transformar-se no eu da enunciação. O mesmo pode se suceder com as categorias espaço-
temporais.
Já que nos provérbios não verificamos marcas de debreagem enunciativa, mas apenas as
enuncivas, o eu-tu, aqui e agora da enunciação ficam à disposição do enunciador para que ele,
através de uma embreagem enunciativa, possa instaurá-los no enunciado. Esse fenômeno
possibilita que qualquer indivíduo possa instaurar-se como eu-tu do provérbio, instituindo, assim,
o seu aqui e agora. Da mesma forma, ao executar um embreagem enunciva, pode-se instituir
qualquer ser como ele do enunciado e, por conseguinte, se ancorar o algures e o então.
Tal fato funciona como uma importante ferramenta para as estratégias argumentativas do
enunciador, que, dependendo de seus objetivos ilocutórios, pode produzir um maior engajamento
ou distanciamento em relação ao seu enunciado. Pois, como já expusemos, a enunciatividade
produz um efeito de sentido de subjetividade, uma vez que o enunciador coloca-se no interior do
discurso, transmitindo, assim, maior adesão a ele. Enquanto a enuncividade cria um efeito de
objetividade, visto que o enunciador afasta-se do seu discurso, provocando um distanciamento
em relação a este.
Os elementos lingüísticos utilizados como indicadores das categorias de pessoa, tempo e
espaço, só podem ser interpretados quando remetidos ao ato único da enunciação que produziu o
enunciado onde eles são veiculados, ou seja, esses signos só são interpretáveis se forem
empregados. Portanto, como cita Benveniste, “tais signos são “vazios”, não-referenciais em
relação à realidade, sempre disponíveis, e que se tornam “cheios” desde que um locutor os
assume em cada instância de seu discurso” (1966: 254). E ele ainda diz que esta espécie de signo
referente à situação de enunciação “não constitui uma classe de referência, pois não há “objeto”
definível a que possa remeter identicamente. Cada eu tem sua referência própria e corresponde
cada vez a um ser único estabelecido como tal” (ibidem: 252).
36
Quanto a estes elementos lingüísticos referentes a pessoa, espaço e tempo, podemos
dividi-los em dois grupos: os dêiticos e os anafóricos. Aqueles interpretam-se em relação à
situação de enunciação, pressuposta ou explicitada no enunciado pelo enunciador. Enquanto estes
são elementos do enunciado enunciado e, conseqüentemente, compreendidos devido às
demarcações actanciais, temporais e espaciais instaladas no enunciado que foram anteriormente
mencionadas.
1.4- AS CONCEPÇÕES DISCURSIVAS: A ANÁLISE DO DISCURSO
A concepção dialógica de Bakhtin, em relação ao discurso, aproxima-se da posição que
Pêcheux assumiu no decorrer da elaboração de sua Teoria do Discurso, assim como todos os
estudos sobre o discurso que lhe sucederam. Nessas produções teóricas, porém, o sujeito,
diferentemente das concepções benvenisteanas, não é considerado centro do discurso. Ele é
descentrado por ser interpelado ideologicamente e dotar-se de inconsciente, ou seja, é um sujeito
afetado pela ideologia, mas ignora tal fato, criando, assim, a ilusão de ser senhor de seu discurso
e a origem de seu dizer.
Embora Bakhtin reconheça que o signo seja ideológico (2004: 31) e a consciência
individual um fato sócio-ideológico (ibidem: 35), o seu sujeito não é interpelado ideologicamente
e é tido como consciente do seu dizer. Essa é a distinção entre o sujeito Bakhtiniano e o sujeito
tal como concebe a Análise do Discurso (AD).
Na AD concebida pela teoria de Pêcheux, o sujeito não está no centro do discurso. Ele
descentra-se, dividindo-se em diferentes posições-sujeito que permitem ecoar em seu dizer um já-
dito, originário do interdiscurso, possibilitando a entrada de outros discursos em suas palavras
(1975: 99).
37
Observamos que tal concepção de discurso provoca mudanças consideráveis na
concepção de língua como era vista anteriormente. Essa nova dimensão discursiva de língua põe
em evidência o sujeito e sua inscrição sócio-histórica, introduzindo o interdiscurso no sistema da
língua. Assim, o discurso de um sujeito é fundamentalmente permeado por discursos de outros
sujeitos. Portanto, dentro dessa visão de discurso, “as relações de linguagem são relações de
sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí, a definição de discurso: o
discurso é efeito de sentidos entre outros” (Orlandi, 2003: 21).
O discurso possui sua regularidade e seu funcionamento, que pode ser apreendido quando
não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo e o objetivo, o processo e
o produto. Assim, nesta dimensão da AD, privilegia-se o sentido como o elemento fundamental
da prática discursiva, que atenta para a possibilidade de que ele sempre pode ser outro, através de
um processo de deslizamento que se instaura pelo fato do sujeito do discurso historicizar-se.
A exposição de determinados conceitos pertinentes a este campo da Análise do Discurso
como interdiscurso, formação discursiva, esquecimento, ideologia, sujeito, historicidade e
silêncio são de suma importância para obtermos uma melhor compreensão de como os provérbios
funcionam e significam na atividade discursiva.
Ao passo que formos expondo tais conceitos, veremos como eles atuam na produção dos
enunciados proverbiais, pois os trataremos dentro desta concepção discursiva, cuja abrangência
da visão sobre a linguagem nos proporciona uma maior amplitude no procedimento analítico.
1.4.1- Enunciação, Interdiscurso, Historicidade e Esquecimento
Nesta perspectiva da A.D., a enunciação é um processo de significação que, no
funcionamento da linguagem, estabelece relações entre sujeitos e sentidos que são afetados pela
38
língua e pela história. Desta forma, a enunciação é histórica, é acontecimento de linguagem; não
se reduzindo a um único evento em uma determinada situação ou a um ato individual de pôr a
língua em funcionamento, tal como estabelece Benveniste (1989:82).
Ao que propomos neste estudo, a relação de funcionamento da língua não diz respeito à
situação, mas sim ao interdiscurso, que é a relação de um discurso com outros discursos. Ou seja,
aquilo que fala antes, de um outro lugar. Isto é, um já-dito que está na base de todo dizer,
sustentando-o, que influenciam a maneira como o sujeito significa em uma situação discursiva
específica. É nesta relação entre discursos que os discursos se particularizam. E é a relação do
interdiscurso com o funcionamento da língua que produz a historicidade do sentido.
Vale ressaltar que o funcionamento da língua não ocorre pelo fato de um indivíduo se
apropriar dela, e sim por ele ocupar uma posição de sujeito no discurso, afetando a língua pelo
interdiscurso, colocando-a em funcionamento e, assim, produzindo efeitos de sentido. Através
deste acontecimento, que aqui consideramos sócio-histórico, é que se produzem os enunciados.
Quanto ao conceito de enunciado, utilizaremos a definição de Eduardo Guimarães:
Assim consideraremos o enunciado como uma unidade discursiva. Nesta medida o
enunciado se caracteriza como elemento de uma prática social e que inclui, na sua
definição, uma relação com o sujeito, mais especificamente com posições do
sujeito, e seu sentido se configura como um conjunto de formações imaginárias
do sujeito e seu interlocutor e do assunto de que se fala (1989:73).
A partir do que vimos acima, observamos que não é possível a existência de um único
enunciado. Um enunciado só existirá se houver outros enunciados. Destarte, é mister que ele seja
sempre relacional. Isto é, só há linguagem e sentido dentro de uma relação. Para que nossas
palavras adquiram sentido é necessário que elas já tenham sentido. Daí, a concepção histórica do
enunciado.
39
Como já citamos anteriormente, nenhum dizer é um ato individual. As palavras que
proferimos não são apenas nossas, mas de outrem, introduzido e significado pela história e pela
língua. Tudo isto que é dito em outro lugar, ressoa e significa em nosso dizer. Por isso, dizemos
que o sujeito não tem acesso ou controle sobre o que diz, mesmo tendo a ilusão de que o faz, pois
já existem sentidos que o precedem que ele desconhece. Portanto, o que o sujeito sabe não é o
bastante para compreendermos os efeitos de sentidos que são constituídos nele.
A questão do já-dito, tendo em vista a análise e compreensão do discurso, é
imprescindível. É o interdiscurso que nos permite remeter o dizer a uma rede de outros dizeres, a
uma memória, à sua historicidade, à sua relação com a ideologia e com os sujeitos.
Obviamente, já pudemos verificar a relação entre o já-dito e o que está se dizendo.
Courtine (1984) estabelece essa diferença entre dois eixos: a constituição do sentido, isto é, o
interdiscurso, seria o eixo vertical, onde encontramos todos os já-ditos (e esquecidos). A
formulação, que é o intradiscurso, aquilo que dizemos em um determinado momento, em certas
condições, seria o eixo horizontal. Portanto, como diz Orlandi (2003: 33), “todo dizer, na
realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da
atualidade (formulação). E é desse jogo que tiram seus sentidos”.
Destaca-se ainda que para que o interdiscurso faça sentido em nossas palavras, ele precisa
ser afetado pelo “esquecimento”. Tal esquecimento é estruturante do interdiscurso. É necessário
que o dizer de um certo sujeito, em um determinado momento, se apague na memória. No
interdiscurso ouve-se um dizer anônimo. Devido a esse esquecimento, temos a ilusão de estarmos
na origem do que dizemos. Apenas retomamos sentidos anteriores. Na verdade, os sentidos não
originam-se em nós, apenas realizam-se em nós. O modo como nos inserimos na língua e na
historia é que determinam os sentidos. As ilusões que citamos acima são necessárias para que a
linguagem funcione nos sujeitos e na construção dos sentidos. Os sujeitos precisam esquecer o
40
que já foi dito para se constituírem em sujeitos. Daí, o esquecimento ser estruturante. É assim que
nossos dizeres significam e nos significamos.
A partir dos conceitos que expusemos até aqui, consideramos, então, o enunciado
proverbial como um acontecimento sócio-histórico. Uma prática social que percorre através dos
tempos, de geração em geração, que é repetida pela sociedade e aceita por ela com caráter de
verdade. A autoridade investida na sabedoria popular é tão grande que se chega a considerá-los
como algo que transcende o próprio homem. Podemos constatar esse fato num discurso
proverbial bastante corriqueiro: “A voz do povo é a voz de Deus”. Neste sentido, a autoridade do
povo e, conseqüentemente aquilo que ele diz, equipara-se à autoridade divina. A sabedoria
popular é a sabedoria de Deus. Ele “aprova” o que o povo diz.
O provérbio é afetado pelo interdiscurso, sendo estruturado por um já-dito que é falado
em outro lugar, por outros sujeitos. É comum, ao se pronunciar um provérbio, antecedê-los, e
sempre podemos fazê-lo, com construções do tipo “como diz o ditado popular, como diz o povo,
como minha avó dizia, ou como se diz por aí”. Assim, percebemos com bastante clareza o caráter
heterogêneo do provérbio. Não há um único sujeito produtor do discurso proverbial. Existem
diversas vozes e, portanto, diversos discursos na produção de um provérbio.
Tal como Authier-Revuz (1982: 91-151) discute a questão da heterogeneidade
enunciativa, evidencia-se nos provérbios uma heterogeneidade mostrada. Como colocamos
anteriormente, ele pode apresentar-se de forma marcada (como o povo diz / como minha avó
dizia: Onde há fumaça, há fogo), entretanto, nota-se mais corriqueira a forma não-marcada, com
a diluição do outro no discurso (a voz da cultura e valores do povo).
Para que os provérbios tenham sentido, é preciso que signifiquem em outro lugar. Há
neles sentidos e discursos que os precedem, que os sujeitos, ao utilizá-los, desconhecem. É pelo
41
interdiscurso que se pode remeter um provérbio a uma rede de filiações de outros dizeres, assim
como à sua historicidade.
É através do esquecimento que o enunciador proverbial tem a sensação de ser dono e
origem absoluta do seu dizer, não percebendo que ele retoma palavras já-ditas, que seus dizeres
estão entranhados de várias gerações, de seus antepassados, de várias formações ideológicas que
determinam todo um conjunto complexo de procedimentos e representações da sociedade a que
ele pertence.
1.4.2 – Formação Discursiva, Formação Ideológica e Sujeito
Segundo E. Orlandi (1992: 20), “as formações discursivas são diferentes regiões que
recortam o interdiscurso e que refletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos
sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos diferentes”.
Como sabemos, o sentido não se estabelece em si mesmo, mas sim através das posições
ideológicas relacionadas ao processo sócio-histórico da produção dos dizeres. Daí, a formação
discursiva define-se pela sua relação com a formação ideológica, ou seja, todos os enunciados
que compreendem uma mesma formação discursiva, apontam para um mesma formação
ideológica.
A formação discursiva determina o que pode e deve ser dito a partir de um lugar sócio-
historicamente determinado. Um mesmo enunciado pode surgir com diferentes formações
discursivas, provocando, assim, mudanças de sentido. O provérbio A justiça tarda, mas não
falha, por exemplo, não teria o mesmo significado para uma classe dominante e para uma classe
dominada, para um norte-americano e para um árabe, para um sujeito na idade média e para um
42
sujeito moderno; haja vista que o conceito de justiça circula entre eles sob diversas formas. Em
cada caso, o provérbio citado se daria em condições de produção diferentes.
Cita ainda E. Orlandi (2003: 43): “Tudo o que dizemos tem, pois, um traço ideológico em
relação a outros traços ideológicos. E isto não está na essência das palavras, mas na
discursividade, isto é, na maneira, como, no discurso, a ideologia produz seus efeitos,
materializando-se nele”.
No que concerne aos provérbios, a formação ideológica que determina o que é moral,
bom e prudente, por exemplo, instaura-se neles inextricavelmente na relação com outra formação
ideológica que age no sentido contrário àquela, ou pelo menos numa outra direção, dizendo, do
ponto de vista social, o que é imoral, mal e imprudente.
Devido à necessidade de interpretar; o indivíduo percebe o sentido como se já estivesse
presente e pronto. E tal interpretação já certifica a existência da ideologia, pois não há sentido
sem interpretação.
Na perspectiva da AD, a ideologia é vista em relação ao poder. Assim, podemos definir
uma formação ideológica (FI) como um “conjunto complexo de atitudes e representações que não
são nem individuais, nem universais, mas se reportam mais ou menos às posições de classe em
conflito umas com as outras” (Haroche, Henry & Pêcheux, 1971: 102). É nesse conflito, na sua
relação com a sua realidade social é que o homem tem a necessidade de significar, por isso existe
uma injunção à interpretação; e como diz Orlandi (1990: 36): “ essa interpretação não é qualquer
uma, pois é sempre regida por condições de produção de sentidos específicos e determinados na
história da sociedade. O processo ideológico, no discursivo, está justamente nessa injunção a uma
interpretação que se apresenta como a interpretação”. Ressalta-se que tal interpretação se apaga
ao passo que, considerando as condições de produção, os sentidos são uns e não outros.
43
Para a AD, o discurso é o lugar da materialização da ideologia. E o efeito ideológico
elementar é a constituição do sujeito (Orlandi, 2003: 48). Como já pudemos perceber, não há
discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. Para que se produza o dizer e se instaure a
discursividade, é necessário que o indivíduo seja interpelado pela ideologia em sujeito. E para ser
constituído como tal, ele precisa submeter-se à língua e à história, sendo afetado por elas.
O sujeito na AD “é pensado como “posição” entre outras. Não é uma forma de
subjetividade mas um “lugar” que ocupa para ser sujeito do que diz” (Orlandi, 2003: 49). Ele
subjetiva na medida em que se desloca de sua condição no mundo (situação social/ empírica) para
a do discurso (posição-sujeito).
Quanto ao que nos interessa, o sujeito na posição de brasileiro moderno, isto é, situado
num Estado de direito capitalista, é livre, submisso e responsável. Como sujeito jurídico, com
direitos e deveres, deve responder, frente à sociedade, pelo que faz e pelo que diz. Ele determina
o que diz e concomitantemente é determinado pela exterioridade. Nota-se, entretanto, que o
sujeito jurídico não é o indivíduo. O sujeito-de-direito é efeito de uma estrutura social específica,
que é a sociedade capitalista. Mais detidamente, tal sujeito jurídico, assumindo também a posição
de sujeito moralizante, que requerem os provérbios moralizantes, defende o discurso da moral do
senso comum e dos bons costumes.
Assim, é através da formação discursiva que se determina o que pode e deve ser dito nos
provérbios, em um lugar sócio-historicamente definido, que recortado pelo interdiscurso, refletem
as diferenças ideológicas. No que tange a essas diferenças, interessa-nos aqui destacar certas
formações ideológicas que atuam nos provérbios, no sentido de estabelecer confrontos entre o
que é moral e imoral, ético e antiético, prudente e imprudente, ou adequado e inadequado. Daí,
teremos a FI1 e a FI2. Onde na FI1 têm-se os discursos sobre o que se diz ser moral, ético,
prudente e adequado. Já Na FI2, ouvimos aqueles que dizem o que é imoral, antiético,
44
imprudente e inadequado. Por essas interpelações ideológicas, instauram-se sujeitos moralizantes
que, ao usar um provérbio, assumem a posição de defensores do discurso da moral do senso
comum e dos bons costumes sócio-historicamente definidos. Ao mesmo tempo, instituem-se
sujeitos responsáveis por discursos que agem no sentido contrário àqueles, evidenciando, então,
uma série de comportamentos e procedimentos que vão de encontro ao que é dito nos provérbios.
1.4.3- Silêncio e Sentido
Finalmente, chegamos à questão do silêncio que, obviamente, não se trata do silêncio
como fenômeno físico, mas como produção de sentidos. Assim como a palavra, o silêncio tem
suas condições de produção. Por isso, podemos afirmar que os sentidos do silêncio variam e,
igualmente às palavras, ele não é transparente. O silêncio tem a sua materialidade.
Diversas são as finalidades e estratégias para silenciar o dizer. Interessa-nos aqui aquelas
em que para silenciar o que está nos provérbios, se diz o contrário ou pelo menos algo que segue
uma outra direção.
Eni Orlandi (1992: 75) estabelece duas formas de silenciamento: o silêncio constitutivo e
o silêncio local. Este último seria aquilo que se proíbe de dizer, o que não se pode falar por causa
de alguma interdição, como, por exemplo, a censura. O silêncio constitutivo, quanto ao nosso
trabalho, é o que apresenta uma importante relevância. Com relação a este, cita E. Guimarães
(2005: 68): “O silêncio constitutivo produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz.
Produz um não-dito necessariamente excluído. Este silêncio estabelece o que fica fora para se
poder significar. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando
conseqüentemente os limites do dizer.”
45
A partir do que expusemos acima, para a nossa análise e compreensão de um discurso
proverbial é essencial questionar o que não se diz ao dizer algo. Devido a esse não-dito excluído
é que os provérbios podem significar, produzindo diversos sentidos. É através do que é
silenciado, estabelecendo assim um contato com o interdiscurso, que podemos apreender outros
discursos. E que são esses discursos que sustentam e estabilizam os provérbios para que eles
continuem existindo através dos tempos.
1.5- A HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA E A POLIFONIA PROVERBIAL
Entende-se por polifonia o fenômeno pelo qual no discurso de um mesmo enunciador é
possível identificar várias “vozes”. Esta noção foi introduzida por Mikhail Bakhtin (2002), para
análise da literatura romanesca. Ao se debruçar sobre a obra de Dostoiévski, ele percebe que o
autor investe suas personagens de uma série de máscaras diferentes. Tais máscaras representam
uma multiplicidade de vozes e consciências, que falam e participam do diálogo simultaneamente,
de modo que nenhuma delas predomine sobre as outras. Por isso, Bakhtin qualifica os romances
de Dostoiévski como polifônicos.
A partir destas concepções bakhtinianas a respeito da presença do outro no discurso,
Authier-Revuz (1982: 91-151) trata da questão da heterogeneidade enunciativa. De acordo com a
autora, o discurso não é homogêneo, ou seja, ele não é produzido por um único sujeito. Na
verdade, existem diversas vozes dentro dele, evidenciando, assim, o caráter heterogêneo da
linguagem. Para ela,
Só um Adão mítico, abordando com sua primeira fala um mundo ainda não
questionado, teria sido capaz de produzir um discurso livre do já dito da fala de
outrem. Nenhuma palavra é neutra, mas inevitavelmente carregada, ocupada, habitada,
46
atravessada por discursos nos quais viveu sua existência socialmente fundamentada
(1982: 100).
Existem dois tipos de heterogeneidade: a constitutiva e a mostrada. A primeira é a que
remete ao discurso, estando marcada em um nível mais profundo. Ela é articulada num processo
interdiscursivo, isto é, “toda unidade de sentido, de qualquer tipo que seja, inscreve-se numa
relação essencial com uma outra, a do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que
ela depende define sua identidade” ( Maingueneau, 1997: 120). Já a heterogeneidade mostrada é
um fenômeno mais superficial, e pode ser classificada como marcada e não-marcada. Aquela
revela as marcas da presença do outro no texto de forma explícita, como as citações, discurso
direto, discurso indireto, etc. Enquanto na forma não-marcada, a presença do outro está diluída no
discurso, como é o caso dos provérbios.
Diana Luz de Barros (1990) relaciona a heterogeneidade constitutiva ao dialogismo
bakhtiniano, distinguindo-o da polifonia, que ela associa à heterogeneidade mostrada do discurso.
A noção de polifonia foi desenvolvida mais sistematicamente por Oswald Ducrot (1987:
161-219), que, para ele, consiste em distinguir em uma enunciação duas espécies de personagens:
os enunciadores e os locutores.
Ele inicia a sua teoria discriminado “sujeito falante” do “locutor” do enunciado. O
primeiro seria o produtor físico do enunciado, cujo processo físico-mental possibilitou criar o
enunciado. O segundo, o responsável pelo ato ilocutório, ou seja, a quem se deve imputar a
responsabilidade das intenções contidas no enunciado. “(...) é a ele que se refere o pronome eu e
as outras marcas da primeira pessoa” (ibidem: 182). Normalmente, um mesmo indivíduo assume
essas duas condições, por exemplo: “Eu estou estudando para a prova de amanhã”. O produtor
físico é também o responsável pelo enunciado. Mas há vários casos, como no discurso direto
47
(DD) e indireto (DI), em que se nota, com bastante nitidez, que o sujeito falante não é o locutor
do discurso. Observe os exemplos:
a) Pedro disse: vou estudar para a prova de amanhã. (DD)
b) Pedro disse que vai estudar para a prova de amanhã. (DI)
Percebe-se que o sujeito falante não é o responsável pelo enunciado destacado, mas sim
Pedro, o locutor do discurso.
Ducrot ainda distingue dois tipos de locutores: o locutor propriamente dito (L) e locutor
enquanto pessoa do mundo (Lp). L é visto como o responsável pela enunciação, considerado
como tendo somente esta propriedade. Lp, a seu turno, representa uma pessoa que pode possuir
outras propriedades, entre outras, a de ser a fonte do enunciado (ibidem: 188).
Ilustraremos a distinção entre esses locutores através da noção de ethos, que foi
introduzida por Aristóteles no tempo da retórica clássica. Já dizia ele que “se convence pelo
caráter moral [ ethos, em grego], quando o discurso procede de maneira a tornar o orador digno
de confiança. As pessoas de bem inspiram confiança mais eficazmente e mais rapidamente em
todos os assuntos, de um modo geral” (apud Maingueneau, 2001: 92). O caráter do orador não é
seu caráter real, mais o que ele transmite através do seu discurso. Então, o ethos é a imagem
construída pelo orador por meio do seu discurso, aquilo que ele “apresenta” de si e não do que
“representa”. Para garantir maior credibilidade, a fim de persuadir o auditório, o orador projeta
através do seu discurso uma personagem com qualidades e virtudes, obtendo assim, a confiança
do público. Portanto, o ethos é associado ao locutor L, o ser do discurso, e não ao locutor Lp.
Desta mesma forma, o enunciador recorre ao discurso proverbial, procurando estabelecer
um ethos de um “orador” moralizante e conselheiro, valendo-se, assim, da credibilidade contida
nas verdades incontestáveis dos provérbios para criar tal imagem a fim de garantir a adesão do
destinatário. O sujeito proverbial não diz explicitamente “Sou um moralizador, um conselheiro
48
sábio e prudente”, mas incorpora tal postura através do discurso do provérbio, que o senso
comum atribui como moralizante e bom aconselhador. Quanto a isso, vale ainda destacar o que
diz Maingueneau, pois, para ele, o provérbio
é proferido com um ethos específico, um tom “sentencioso” que contrasta com o fluxo
habitual da interação oral. Esse ethos contribui para marcar a defasagem existente entre
o enunciador e o responsável pela asserção, que poderíamos chamar de seu
asseverador, instância invisível responsável pela asserção (2001: 170).
Além da distinção entre sujeito falante e locutor, Ducrot ainda destaca outra figura
discursiva: os enunciadores. Estes “são seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que
se lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas; efetivamente, eles não falam, mas a
enunciação permite expressar seu ponto de vista. Ou seja, o “locutor” pode pôr em cena, em seu
próprio enunciado, posições diversas da sua” (Maingueneau, 1997: 77). Em relação ao locutor, o
enunciador representa, de certa maneira, o que a personagem significa para o autor em uma
ficção.
O fenômeno da ironia ilustra bem a presença do enunciador ducrotiano no enunciado. Na
enunciação irônica, ouve-se uma outra voz além da do locutor, a voz de um enunciador que
expressa um ponto de vista insustentável. O locutor responsabiliza-se pelas palavras, porém ele
rejeita o ponto de vista que elas indicam. É necessário, entretanto, que se evidencie um
distanciamento para que o ponto de vista do enunciador não seja atribuído ao locutor. No
discurso oral, tal distanciamento é percebido por meio de entonação específica. Já no escrito,
alguns índices desempenham este papel, como as reticências, expressões enfáticas, etc.
Exemplificaremos tal situação através de uma enunciação proverbial irônica. Nesse caso,
Maingueneau (2001:175) afirma que poderíamos distinguir três vozes:
A voz anônima representada pelo “nós” da sabedoria popular;
49
A voz do enunciador, personagem ridículo que diria seriamente o provérbio;
A voz do locutor, que encena, em sua própria fala, a voz precedente, a qual ele rejeita.
Cabe ainda fazer uma observação para efeito do nosso trabalho. Não tomaremos o termo
enunciador como na concepção ducrotiana. Para nós, o enunciador é o que ele denomina como
sujeito falante, o destinador da enunciação. Ele pode estar implícito no enunciado (Água mole em
pedra dura tanto bata até que fura) ou explícito em seu interior (Eu penso que Água mole em
pedra dura tanto bate até que fura).
1.5.1- O Provérbio: a Voz do Povo
Examinaremos agora como o fenômeno polifônico é essencial para a argumentação do
enunciado proverbial no que tange à persuasão do destinatário e seus efeitos no discurso.
Maingueneau tem-se mostrado grande interessado pela enunciação proverbial, sobretudo
no que diz respeito ao seu caráter polifônico. E com relação a isso, ele diz o seguinte:
A enunciação proverbial é fundamentalmente polifônica; o enunciador apresenta sua
enunciação como uma retomada de inumeráveis enunciações anteriores, as de todos os
locutores que já proferiram aquele provérbio. (...) O enunciador não explicita a fonte
desse enunciado: cabe ao co-enunciador identificar o provérbio como tal, apoiando-se,
ao mesmo tempo, nas propriedades lingüísticas do enunciado e em sua própria
memória (2001: 170).
Já vimos que os provérbios não possuem marcas de embreagem enunciativa, portanto, não
há marcas de um enunciador específico. Sobre este tipo de enunciado, vejamos o que diz Ducrot
(1987: 183) : “Não somente o locutor pode ser diferente do sujeito falante efetivo, mas pode ser
que certas enunciações, tal como são descritas no sentido do enunciado, não apareçam como o
produto de uma subjetividade individual”. Enquanto Benveniste chama tais enunciados de
50
“históricos”, caracterizados por não serem dotados de qualquer marca explícita ou implícita de
primeira pessoa, não sendo atribuída a nenhum locutor a responsabilidade de sua enunciação
(apud Ducrot, ibidem: 183-184). Nos provérbios, estas teorias são bem aplicáveis.
De certa forma, o enunciador do provérbio é co-responsável pela mensagem veiculada no
provérbio, uma vez que a “sabedoria popular” é, na verdade, a própria comunidade dos locutores
da língua, sendo eles, de modo indireto, pertencentes a essa instância. Essa relação dos
provérbios com os membros da comunidade só pode ser indireta, haja vista que a sabedoria
popular origina-se dos mais remotos tempos, de muitas gerações anteriores, de uma experiência
imemorial. Por isso, não é viável questionar quem e quando um provérbio teria sido criado e em
que circunstâncias.
Sabe-se que os provérbios são frases cristalizadas, pertencentes a uma certa comunidade,
assumidas como verdades dentro deste grupo. Então, quanto ao enunciado proverbial, pode-se
dizer que existe um “enunciador genérico”. É bastante claro que o sujeito falante não é o
responsável pela citação proverbial, mas “o locutor histórico-social”. A voz do povo ressoa por
trás da voz do sujeito falante.
Como já foi descrito, os provérbios são rotulados como autênticas “citações de
autoridade”. Então, o enunciador faz-se valer disso para reforçar o poder argumentativo da sua
ilocução, a fim de persuadir o enunciatário e obter o efeito esperado; visto que o conteúdo da
mensagem veiculada no provérbio é dotado de alta credibilidade no meio social em questão.
Para Maingueneau (2001: 169-170), “proferir um provérbio significa fazer com que seja
ouvida, por intermédio de sua própria voz, uma outra voz, a da ‘sabedoria popular’, à qual se
atribui a responsabilidade pelo enunciado”. Percebe-se, então, que nos provérbios o enunciador
tem o respaldo desta “sabedoria popular”, da voz do povo, para garantir o poder argumentativo
do seu enunciado.
51
Embora não haja marcas explícitas de embreantes nos provérbios, o enunciador, no seu
ato ilocutório, pode relacionar certos elementos lingüísticos às pessoas do discurso, fazendo
claras referências na situação enunciativa.
Fato corriqueiro nos provérbios é a presença do Quem, que devido ao seu valor impessoal
pode ser qualquer pessoa. Analisemos o provérbio Quem não arrisca, não petisca: se o Quem for
atribuído ao enunciador, com o valor de eu, sendo ele o próprio enunciatário, o discurso poderá
ter uma intenção de adverti-lo e até moralizá-lo. Agora, se o Quem representar um tu, além de
adverti-lo e moralizá-lo, pode ameaçá-lo se for utilizada uma entonação mais ríspida. É possível
perceber três vozes distintas no mesmo provérbio: uma personagem adverte, outra moraliza e
uma terceira ameaça. É claro que tais vozes dificilmente atuariam de forma simultânea no
discurso, e que também, dependendo do contexto discursivo no qual o provérbio se insere,
podem-se produzir outras ilocuções.
1.5.2- A Polifonia Proverbial como Estratégia de Polidez
Tal como vimos em Bakhtin (2004: 123), a interação verbal é considerada como uma
relação social. Assim, tal interação é regida por certas normas que se denominam de regras de
polidez. Daí, violar uma lei do discurso (não ser pertinente ao assunto tratado, interromper o
turno do interlocutor, não fornecer as devidas informações) é correr o risco de ser considerado
inconveniente, mal-educado, prepotente, etc.
Dado o exposto acima, faz-se necessária uma breve abordagem aos postulados
conversacionais do filósofo americano Paul Grice. De acordo com suas teorias (1975: 41-58),
existem certos princípios gerais que direcionam a maneira com que os interlocutores, em sua
conversação, negociam para que a sua interlocução se suceda de forma adequada. Assim, para
52
ele, a comunicação humana é regida pelo princípio da cooperação, que compreende quatro
“máximas” (ibidem: 45-46):
1. Máxima da Qualidade: Não diga o que acredita ser falso. Só diga aquilo que você
pode fornecer evidência adequada.
2. Máxima da Quantidade: Não diga nem mais nem menos do que é preciso.
3. Máxima da Relação: Seja relevante. Só diga o que é pertinente.
4. Máxima do Modo: Seja claro. Evite obscuridade, prolixidade, ambigüidade, etc.
Como diz Maingueneau (2001: 38), “o simples fato de dirigir a palavra a alguém , de
monopolizar sua atenção já é uma intrusão no seu espaço, um ato potencialmente agressivo”. Tais
fenômenos de polidez estão introduzidos na chamada “teoria das faces”.
Com relação à questão das faces, teoria desenvolvida principalmente por P. Brown e S.
Levinson (1987), baseados nos trabalhos de E. Goffman (1980), os interlocutores estão
continuamente preocupados em “preservar” a sua face e não “arranhar” a do outro. Eles possuem
uma face positiva – o modo como quer ser visto pelos outros – e uma face negativa – seu
território íntimo que não deseja que alguém o invada.
Uma vez que toda interação verbal necessita de no mínimo dois interlocutores, há, pelo
menos, quatro faces em jogo na comunicação: as faces positiva e negativa de ambos os
interlocutores.
Qualquer manifestação verbal é uma potencial ameaça para uma ou mais faces
envolvidas na interação. Daí, Maingueneau (2001: 38) destaca que podem-se distinguir as falas
ameaçadoras para:
a face positiva do locutor: admitir um erro, desculpar-se etc., que representam atos
humilhantes;
53
a face negativa do locutor: a promessa, por exemplo, compromete o sujeito a realizar atos que
demandarão tempo e energia etc.;
a face positiva do destinatário: a crítica, o insulto etc.
a face negativa do destinatário: perguntas indiscretas, conselhos não solicitados, ordens etc.
Façamos agora a seguinte comparação: se um enunciador se dirigir ao seu enunciatário,
presumindo-se que os interlocutores possuam uma relação simétrica no contexto social a que
pertencem, como uma proposição do tipo: “Se alguém se propõe a fazer alguma coisa, esse
alguém tem que fazê-la!”, e para isso ele cita o seguinte enunciado: “Já que você se comprometeu
a fazer isso, você tem que fazer!”. Nota-se que esta frase tem um tom um tanto autoritário,
podendo arranhar a face negativa do interlocutor, e assim, comprometer a receptividade de suas
palavras. Em contrapartida, no lugar deste enunciado, ele citasse o provérbio: “Ajoelhou, tem que
rezar”. Por ser um enunciado estereotipado, um conceito admitido amplamente no seu meio
social, facilita a aceitação do argumento por parte do receptor. A respeito disso, aborda Citelli
(2004: 60) : “A grande característica do estereótipo é dificultar questionamentos acerca do que
está sendo enunciado, visto ser algo de domínio público, uma “verdade” consagrada”.
Normalmente, os provérbios atenuam o caráter imperioso do enunciado, eufemizando as
suas reais intenções e agindo como instrumento de polidez. Daí, observa-se que devido ao seu
caráter popular, verifica-se um enunciador genérico; como se ele dissesse: “O povo é quem diz
que ...”. Desta forma, facilita com que ele se distancie da responsabilidade do discurso, dando
mais espaço ao personagem, que assumiria a condição de locutor do discurso. Assim, o
enunciador protege-se das críticas e reações do enunciatário. Observemos um exemplo:
Ao utilizar o provérbio Quem tudo quer, tudo perde, o enunciador não diz explicitamente:
“Não seja ambicioso demais!”. Ele deixa uma personagem assumir essa condição, pondo em cena
54
um locutor que anuncia algo deslocado, do qual ele se distancia, foge da responsabilidade. O
enunciador não quer assumir a condição de “acusador” ou de um “aconselhador inconveniente”,
preservando a face de ambos os interlocutores.
1.5.3- A Negação Polêmica
Ducrot examina a questão dos enunciados negativos sob uma análise polifônica. Para ele,
“a maior parte dos enunciados negativos faz aparecer sua enunciação como o choque de duas
atitudes antagônicas, uma, positiva, imputada a um enunciador E1, a outra, que é uma recusa da
primeira, imputada a E2” (1987:202).
Elemento marcante nos provérbios é a presença do NÃO. Vejamos os exemplos:
No provérbio A justiça tarda, mas não falha, a mensagem convencionalizada (MC)
veiculada é que cedo ou tarde, a justiça acaba acontecendo. Nota-se, então, o E1, responsável
pela afirmação de que A justiça falha. Em contrapartida, ouve-se a voz do E2, que rejeita o ponto
de vista de E1. E2 é o responsável pelo provérbio, a voz do povo.
Em Dinheiro não traz felicidade, percebe-se o E1 que diz que Dinheiro traz felicidade.
No provérbio Nem tudo que reluz é ouro (MC: Nem tudo o que aparenta ser bom, realmente o é.),
E1, neste caso, acredita naquilo que realmente parece ser como verdadeiro ou bom.
Verificam-se, nestes tipos de provérbios, três vozes distintas: a voz do indivíduo falante; a
do responsável pelo provérbio, o locutor (E2); a voz contrária a E2, vista como E1.
Na negação dos provérbios, sempre se ouve uma voz contrária à mensagem veiculada
neles e às intenções do enunciador. Tal negação, tão corriqueira nos provérbios, seria uma
espécie de contestação a um ato que vai de encontro ao caráter moralizante do enunciado
proverbial. Uma voz que diz, sob o ponto de vista social, o que é imoral, antiético, imprudente ou
55
inadequado. É esta voz a responsável, em grande parte, pela escolha do provérbio por parte do
destinador, e, também, ponto de partida para a argumentação. Argumentação esta que é
respaldada e fortalecida pela voz da autoridade que, ao confrontar a opinião de E1, é vista com
maior credibilidade diante dos interlocutores; e assim, facilita com que ele obtenha o ato
perlocutório, persuadindo o destinatário.
1.6- A PRAGMÁTICA ILOCUCIONAL: AUSTIN E OS ATOS DE FALA
A pragmática examina o uso concreto da linguagem considerando os seus usuários em
suas práticas lingüísticas. Assim, pode-se defini-la como a ciência do uso lingüístico.
Contrariamente às concepções saussureanas, a pragmática procura tratar dos fenômenos
pertinentes à linguagem em detrimento da investigação da língua isolada de sua atividade social,
ou seja, ela introduz em seus estudos a “fala" e, por conseguinte, todas as questões relativas a ela,
que tinham sido relegadas ao esquecimento pela lingüística estruturalista. Fato que implica a
inserção dos interlocutores nas análises discursivas.
Devido à amplitude e diversidade de temas pesquisados pela pragmática, existem
diferentes correntes e perspectivas analíticas. Direcionada na mesma linha de pensamento da
pragmática da interlocução, temos a pragmática ilocucional. Nesta vertente, dada a sua
importância, destaca-se a teoria dos Atos de Fala elaborada por Austin, uma vez que ela se
posiciona na origem da questão da pragmática. Mais tarde, Searle, seu discípulo, executou uma
releitura de sua obra, que deixara inacabada em função de sua morte.
Austin concebia que a linguagem deveria ser vista como forma de ação e não de
representação da realidade, como descrição do mundo. Dessa forma, o sentido de um enunciado
determina-se de acordo com as condições de uso, e não somente mediante à análise de seus
56
elementos constituintes. A partir dessas idéias, ele distinguiu dois tipos de enunciados: os
constativos e os performativos. Os primeiros são aqueles tomados como “declarações” pelo fato
de se submeterem ao critério de verdadeiro ou falso. Já os segundos não podem ser analisados de
acordo com esse critério e são produzidos com verbos na primeira pessoa do singular do presente
do indicativo. A sua função precípua não é informar, mas realizar diversos tipos de ação. É o que
vemos, por exemplo, em sentenças como: Declaro aberta a sessão; Eu aposto na vitória do meu
time; Eu peço-lhe desculpas; Eu prometo chegar cedo amanhã; etc. Como já expusemos, os
enunciados performativos não são avaliados pela condição de serem verdadeiros ou falsos, e sim
como sendo felizes ou infelizes. Se um juiz, por exemplo, diz: Eu condeno o réu a dez anos de
prisão, o ato é considerado feliz, pois o autor encontra-se em condições de efetuá-lo. Em
contrapartida, se um médico profere tal enunciado, tem-se o ato como infeliz, uma vez que ele
não o pode tornar válido.
Posteriormente, devido à inconsistência que a distinção entre os dois tipos de atos de fala
apresentava, Austin abandonou tais teorias. Ele constatou que é possível transformar qualquer
enunciado constativo em performativo. Para isso, bastava apenas pôr verbos ditos performativos
antes daquele como declaro, prometo, nomeio, condeno, batizo, afirmo etc. Por exemplo: A Terra
é redonda (constativo), Eu afirmo que a Terra é redonda (performativo).
Ao considerar que todas as sentenças são performativas, já que todo ato de linguagem
manifesta uma ação, Austin discrimina três tipos de ato em cada enunciado: o locucionário, o
ilocucionário e o perlocucionário.
Ato locucionário: compreende a articulação dos elementos lingüísticos necessários
(fonético, gramatical, sintático, morfológico);
57
Ato ilocucionário: consiste em atribuir uma força intencional a esses elementos
(pergunta, promessa, ordem, ameaça, etc.);
Ato perlocucionário: é o ato resultante do ilocucionário e se destina a provocar certos
efeitos no enunciatário (convencê-lo, confortá-lo, assustá-lo, etc.), que podem ou não
se realizar. Um ato de advertência pode surtir nenhum efeito ou um outro qualquer,
como de ameaça, por exemplo.
Cabe, assim, ressaltar que todo ato de fala mostra-se concomitantemente locucionário,
ilocucionário e perlocucionário, na medida que toda vez que se profere um enunciado, ele
materializa-se através de alguns elementos lingüísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos) e é
dotado de determinada força intencional. Tal enunciado ainda provoca certos efeitos no
enunciatário, mesmo que não sejam os que o enunciador pretendia obter. Daí, num enunciado
proverbial, nosso foco de estudo, sempre haverá uma intenção, como, por exemplo, a de
persuadir o outro a aderir a um ponto de vista do enunciador, produzindo, assim, algum efeito
naquele.
Outro ponto importante concernente à teoria dos atos de fala verifica-se no exame dos
atos de fala diretos e indiretos. Aqueles realizam-se por meio de determinadas formas
lingüísticas como certos tempos e modos verbais, expressões e entonações específicas. Vemos
atos diretos, por exemplo, através de um obrigado ou grato para fazer um agradecimento. Já o ato
indireto é aquele em que a posição do locutor em relação ao que ele diz é evidenciada de forma
indireta, através de um outro ato (Searle, 1981). Para melhor entendermos, vejamos uma breve
análise: Ao dirigir-se a sua empregada, o patrão diz: O chão está sujo. Em princípio, temos
formalmente uma simples afirmação. Porém, indiretamente, observamos outro ato, que é uma
ordem para que ela limpe o chão. Nesse caso, percebemos que o ato de fala indireto funciona
58
como estratégia de polidez, atenuando o caráter autoritário do enunciador e, assim, preservar a
face negativa da receptora. Reparem como o grau de ameaça a essa face aumentaria se, para
atender aos seus objetivos ilocutórios, ele utilizasse um ato direto do tipo: Limpe o chão porque
ele está sujo. Normalmente, os provérbios transportam um ato de fala indireto em seus
enunciados. Em Quem avisa amigo é e em Quem brinca com fogo acaba se queimando,
aparentemente tem-se uma asserção. Entretanto, a força que eles comumente produzem fica
diluída entre uma advertência e uma ameaça, dependendo, é claro, do contexto discursivo no qual
eles se inscrevem.
A pragmática ilocucional, como vimos, estabelece a linguagem como uma ação produzida
pelos interlocutores, isto é, na relação entre o enunciador e o enunciatário. Dessa forma, não é
possível tratar da linguagem sem conceber o ato com que ela se inscreve, o ato da fala e as suas
realizações.
1.7- AS MODALIDADES
A apresentação mais geral e freqüente sobre a definição de modalidade é concebida a
partir de que se observa, num enunciado, a distinção entre um dictum (conteúdo proposicional) e
um modus (“operação psíquica” ou a atitude do sujeito falante sobre esse conteúdo). Dessa
forma, Ingedore Koch considera as modalidades parte do processo ilocucionário,
já que revelam a atitude do falante perante o enunciado que produz: elas constituem,
segundo Parret (1976), atos ilocucionários constitutivos da significação dos
enunciados, sendo motivadas pelo jogo da produção e do reconhecimento das
intenções do falante e, como os demais atos de linguagem, classificáveis e
convencionalizadas (2004: 73).
59
Porém, os estudos sobre as modalidades ainda estão longe de uma delimitação definitiva,
uma vez que todas as perspectivas estão sujeitas a críticas. Assim, esse campo da lingüística
mostra-se como um dos mais instáveis sobre as concepções enunciativas, haja vista que a maioria
dos lingüistas que examinam a questão das modalidades ressaltam que se trata de uma área
particularmente difícil de apreender.
Entretanto, J. Cervoni (1989) sugere que o conceito de modalidade seja restringido para
que adquira alguma pertinência lingüística. Como o próprio autor diz,
apesar das razões que se podem alegar para ampliá-lo e para integrar nele, aos poucos,
tudo o que, de um ou de outro modo, merece ser considerado como manifestando uma
escolha, consciente ou não, do sujeito falante. Para conseguir essa restrição, o único
meio é efetuar exclusões, isto é, delimitar, no vasto campo da expressividade, um
campo mais restrito, ao qual reservaríamos a denominação “modalidades” (ibidem:
58).
Dentro dessa perspectiva, Cervoni propõe que uma possibilidade de análise é
inspirar-se inicialmente na concepção lógica, pois “esta comporta conceitos incontestavelmente,
tipicamente modais: os da lógica alética. Fundamentalmente, a modalidade é uma determinação
que concerne à verdade da proposição que ela afeta” (ibidem: 61).
Segundo os lógicos, as modalidades fundamentais são as que se referem ao eixo da
existência, isto é, determinam o valor de verdade do conteúdo das proposições. Tais modalidades
são chamadas de aléticas ou aristotélicas. Daí, dentro do registro da verdade, veiculam os dois
modos principais que podem afetar uma proposição: o necessário e o possível. E a partir desses
dois modos se estabelecem o impossível e o contingente.
As relações entre esses quatro modos são mostradas no clássico quadrado lógico:
60
necessário a impossível
d c
possível b contingente
O eixo a representa a relação de contrariedade; o b, de subcontrariedade; enquanto os c e
d são denominados eixos dos contraditórios.
Entretanto, os lógicos perceberam que avaliar a atitude do enunciador perante o seu
enunciado, verificando apenas o grau de verdade ou falsidade do conteúdo proposicional através
das noções de necessidade, possibilidade, contingência e impossibilidade; não era satisfatório o
bastante para atender às suas propostas analíticas, haja vista que a expressão de uma possibilidade
possui grande dependência dos conhecimentos do locutor e da forma que o alocutário a percebe
com tal. Além disso, a expressão de uma necessidade confunde-se freqüentemente com a noção
daquilo que é necessário fazer ou ser para atingir um certo objetivo ou para respeitar determinada
norma. Por conseguinte, os lógicos viram-se na necessidade de “ampliar o conceito de
modalidade para aplicá-lo também às determinações que pertencem ao registro do saber e ao
registro do dever, isto é, acrescentar às modalidades aléticas as modalidades epistêmicas (do
grego “conhecimento”) e as modalidades deônticas (do grego “o que é preciso”)” (Cervoni:
ibidem: 60).
Tal como no quadrado alético, esses dois novos campos possuem representações
semelhantes, verificando-se, também, um jogo de noções contrárias, subcontrárias e
contraditórias:
61
modalidades epistêmicas modalidades deônticas
certo excluído obrigatório proibido
provável contestável permitido facultativo
No entanto, o quadrado lógico tem sido alvo de determinadas críticas, entre as quais
destacaremos as de Blanché (1969), cujas teorias aplicaremos em relação à nossa proposta de
trabalho sobre os enunciados proverbiais.
Blanché diz que o sistema lógico, embora seja coerente,
ele se apresenta pouco satisfatório: em primeiro lugar, desde que não se queira
violentar os usos da língua, é preciso admitir que o termo possível é usado, muitas
vezes, para exprimir o que pode ser ou não ser, isto é, nem necessário nem impossível,
o mesmo acontecendo com relação ao termo contingente. Assim sendo, as quatro
modalidades aristotélicas seriam, na verdade, três, tendo uma delas um duplo nome
(apud Koch, 2004: 74).
A partir do quadrado lógico, relativo às modalidades aléticas, Blanché introduz uma
figura mais acabada e complexa, cujos pontos (A, E, I, O) se reencontram, porém com funções
distintas das do quadrado alético. Desta forma, ele postula como fundamental uma estrutura
ternária A-E-Y, isto é, a tríade dos contrários, onde A é o necessário, E o impossível e Y o termo
neutro, que se opõe aos primeiros, pois ele se refere a uma noção parcialmente afirmativa e
negativa, rejeitando de forma equivalente a totalidade e a nulidade. Assim, Y deve situar-se entre
a afirmação total e a negação total.
Com base nessa tríade, estabelece-se outra, a dos subcontrários I-O-U, formando-se,
então, o hexágono lógico. Ressalta-se, ainda, que ao se formar o hexágono, cria-se, no eixo
vertical U-Y, uma nova relação de contraditoriedade:
62
U
(necessário) A E (impossível)
(possível) I O (contingente)
Y
O esquema de Blanché tem a vantagem de possibilitar a transferência das modalidades
aléticas para outras semelhantes, as epistêmicas e as deônticas, permitindo, também, instaurar
uma relação com o sistema dos valores (axiológicos) morais e técnicos. Daí, podemos dispor as
suas noções, representadas em cada aresta do hexágono, da seguinte forma:
As modalidades epistêmicas referem-se ao eixo da crença, remetendo ao
conhecimento que o locutor possui sobre um estado de coisas. Nestas, temos a
seguinte distribuição:
A: certo, estabelecido (verificado)
E: excluído (desmentido)
U: decidido
I: plausível
O: contestável
Y: indeciso, não decidido (nem estabelecido, nem excluído)
As modalidades deônticas referem-se ao eixo das normas, ou seja, à conduta, ao que
se deve fazer. A sua distribuição no hexágono é:
63
A: obrigatório
E: proibido
U: ordenado (imperativo)
I: permitido
O: facultativo
Y: indiferente (nem obrigatório, nem proibido)
Quanto à distribuição deôntica, Koch (2004: 76) relata que “o ponto U (=A e E) é o
domínio do imperativo, das leis. O ponto Y (= nem A, nem E; I e O) é o domínio da indiferença
e, portanto, do livre arbítrio”.
Em seguida, transfere-se para as noções de valor, isto é, para o conhecimento do bom ou
do bem. Entre estas, destacaremos a distribuição dos valores morais e técnicos:
Valores morais
A: moral
E: imoral
U: Moral (que admite qualificação moral)
Y: amoral
Com relação a I e O, não existem palavras na língua que os represente. “De maneira
bastante imperfeita, poderiam ser representados pelos termos “preferível” e “evitável” dos
estóicos (Koch, ibidem: 76).
Valores técnicos
A: útil, benéfico
E: nocivo
U: ativo
64
I: inofensivo
O: ineficaz
Y: inativo
O recurso às modalidades possibilita ao locutor, com relação ao enunciado que produz,
estabelecer um maior ou menor grau de engajamento ao seu dizer, determinando, assim, que tipo
de tensão se instala entre os interlocutores.
Como sabemos, os provérbios são enunciados genéricos que exprimem uma verdade ou
resumem uma experiência, demonstrando, de forma bem clara, valores morais, normas, conselhos
e procedimento que devem ser seguidos pelos membros da comunidade. Segundo Maingueneau,
“o provérbio é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas, sobre como funciona o
mundo, dizendo o que é verdadeiro” (2001: 171).
O conteúdo das mensagens dos provérbios traduzem os conceitos, sob o ponto de vista
social, do que é bom e mau, moral e imoral, ético e antiético, prudente e imprudente, benéfico e
nocivo, etc. Através da incontestável sabedoria popular, que procede dos mais remotos tempos,
os provérbios orientam o que deve ou não ser feito, a fim de que as atitudes de cada indivíduo da
sociedade tenham como resultado algo relativo ao primeiro elemento dos pares destacados acima.
Dessa forma, podemos observar que a instauração dos provérbios como argumento de
autoridade deve-se, em grande parte, às modalidades presentes em seus enunciados, cujas noções
predominam nos pontos A, E e U do hexágono de Blanché. Ingedore Koch explica de forma
precisa a nossa constatação:
Quando um locutor, ao produzir seus enunciados, recorre predominantemente às
modalidades que se situam nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U),
seja qual for o eixo (alético, epistêmico, deôntico, axiológico), o discurso apresenta-se
como autoritário: é o campo da necessidade, da certeza, do imperativo, das normas. O
65
locutor procura manifestar um saber (explícito ou implícito) e obrigar o interlocutor a
aderir ao seu discurso, aceitando-o como verdadeiro. Tem-se, aqui, o grau máximo de
engajamento do locutor e a intenção de impor ao alocutário os seus argumentos,
apresentando-os como incontestáveis (2004: 85-86).
Entretanto, o locutor, recorrendo ao recurso da autoridade, pode tornar os seus
argumentos mais convincentes, valendo-se de certas lexicalizações das noções modais A, E, U,
como: é necessário..., é impossível..., é certo..., é preciso..., é proibido..., todos sabem..., todos
devem fazer..., é obrigação de todos..., é bom para..., é melhor..., vale mais..., etc. Como se pode
observar, não se costuma ver nos provérbios tais construções, com exceção de é melhor... e mais
vale/vale mais... que surgem com certa freqüência:
É melhor prevenir do que remediar
É melhor um pássaro na mão do que dois voando.
É melhor dar do que receber
Mais vale astúcia que força
Uma imagem vale mais do que mil palavras
Mais vale tico-tico no prato que jacu no mato
Uma vez que os provérbios sempre atuam sobre o receptor com o objetivo de aconselhá-lo
a proceder de determinada forma perante certas situações, há neles sempre, portanto, uma
injunção. Daí, podemos afirmar que os provérbios possuem uma natureza predominantemente
deôntica.
Tais injunções são, normalmente, feitas de forma indireta, haja vista que poucos são os
provérbios no imperativo (cerca de 4% do total aproximado de 1000 do nosso material
analisado), destacando-se, de modo quase absoluto, os verbos do indicativo. Esse fato mostra a
66
pouca tendência que os provérbios têm de efetuar um conflito direto com o receptor, pois as
injunções diretas podem ameaçar a face negativa deste.
Se, como dissemos, os provérbios podem se reduzir à modalidade deôntica, o modo verbal
apropriado deles seria o imperativo. Entretanto, formalmente verificamos uma grande
predominância do indicativo, atenuando, assim, o seu caráter imperioso. Logo, o enunciado
torna-se mais “suave”, menos “agressivo”, reduzindo consideravelmente a ameaça a ambas as
faces dos interlocutores, uma vez que, aparentemente, tratam-se de simples “asserções”. Nota-se,
portanto, uma interessante ambigüidade entre asserção e injunção nos provérbios.
Percebe-se, então, na ocultação modal dos provérbios uma finalidade argumentativa.
Como diz Koch,
a ocultação modal é acompanhada de uma “retórica do neutro” em que o locutor oculta
sua enunciação para melhor convencer por meio de seu enunciado. Além disso, há os
casos em que a retórica faz deslizar o enunciado de uma modalidade a outra, do
discurso tolerante ou polêmico (ao qual o enunciado deveria pertencer por suas
verdades contestáveis) ao discurso autoritário (em que o enunciado não pode mais ser
contestado) (ibidem: 82).
Dependendo das suas relações com o enunciatário, o enunciador aplica ao seu enunciado
uma ou outra modalidade. Porém, como acontece no uso dos provérbios, há situações em que lhe
convém escamotear sua escolha a fim de tornar seu enunciado mais receptivo para, assim, obter a
adesão do seu destinatário.
67
2. A COESÃO NOS PROVÉRBIOS
Neste capítulo, objetivamos analisar os principais mecanismos de coesão presentes nos
provérbios populares, a fim de identificar os recursos mais corriqueiros, destacando a importância
de cada um deles e quais os efeitos expressivos que provocam nas estruturas proverbiais; haja
vista que elas são dotadas de formações um tanto particulares.
Tomaremos como principal arcabouço teórico os trabalhos de Leonor Fávero (2001) e
Ingedore Koch (2003b). A partir desses fundamentos, extrair-se-ão os aspectos mais relevantes
no que tange aos provérbios, pois as ferramentas coesivas são variadas, e nem tudo contém uma
pertinência direta ao nosso propósito.
Dividiremos este capítulo em três partes, a saber: a coesão referencial, a coesão
recorrencial e a coesão seqüencial.
2.1- A COESÃO REFERENCIAL
Denominaremos aqui como coesão referencial, aquela em que um elemento do texto
remete a outro já presente ou inferível no universo textual. Chamamos aquele de “forma
referencial ou remissiva” e este “elemento de referência ou referente textual”.
As formas referenciais ou remissivas podem ser de natureza gramatical ou lexical. Com
relação as gramaticais, vejamos o que diz Ingedore Koch (2003b: 34): “As formas gramaticais
68
não fornecem ao leitor/ouvinte quaisquer instruções de sentido, mas apenas instruções de
conexão (por ex.: concordância de gênero e número) e podem ser presas ou livres.”
2.1.1- Formas Referenciais Gramaticais Presas
São as formas que acompanham um nome, antecedendo-o, com o qual concordam em
gênero e/ou número. Destas, os que valem destacar nos provérbios, são os artigos.
Via de regra, o artigo indefinido é catafórico, introduzindo um elemento novo no universo
textual; e o artigo definido funciona como anafórico, remetendo a um termo já existente no texto.
Vejamos os exemplos nos provérbios:
A vingança é um prato que deve ser servido frio
Um dia é da caça, o outro do caçador
Entretanto, o artigo definido pode não se referir a formas pré-existentes no texto. Ele pode
anteceder um elemento inferível pelo contexto, que se tem denominado, também, anáfora
semântica ou anáfora associativa. Observamos isso no segundo provérbio citado acima, quando o
sintagma “o outro”, remete à forma “dia”, que estaria elíptica após o pronome. Reparem:
Um dia é da caça, o outro (dia) do caçador
Examinemos outros exemplos de anáfora associativa:
Cavalo dado não se olha os dentes
Não se julga o livro pela capa
Associamos o termo “dentes” ao “cavalo”, assim como “capa” ao “livro”.
69
Também é possível que o artigo definido remeta a um acontecimento compartilhado
culturalmente. No caso dos provérbios, é a ocorrência mais abundante, exatamente por se tratar
de frases que fazem parte do conhecimento coletivo de uma dada sociedade, que assumem uma
condição de verdade, evidenciando-se nelas diversos tipos de valores. Daí, presume-se que aquilo
que está sendo dito já seja conhecido por todos. Quanto a isso, cita Maingueneau (2001: 171): “O
provérbio é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas, sobre como funciona o
mundo, dizendo o que é verdadeiro.” Talvez isso justifique por que pouquíssimos provérbios
possuem artigos indefinidos. Por causa desse conhecimento partilhado pelo emissor/receptor,
vemos exemplos do tipo:
O sol nasce para todos
A curiosidade matou o gato
De grão em grão a galinha enche o papo
As aparências enganam
A esperança é a última que morre
De boas intenções, o inferno está cheio
A união faz a força
Ainda quanto às formas presas, poderíamos destacar os pronomes adjetivos e numerais.
Porém, são raríssimas as vezes em que verificamos a ocorrência deles, como em Cada macaco no
seu galho e em Quem canta seus males espanta. A razão principal desse fenômeno pode ser
explicada pelo fato dos provérbios serem muito curtos, pois, normalmente, tais referências, assim
como as outras, se verificam em formações textuais mais extensas, sobretudo a nível
transfrástico.
70
2.1.2- Formas Referenciais Gramaticais Livres
São as que não acompanham um nome dentro de um grupo nominal, referindo-se a algum
elemento do universo textual, anafórica ou cataforicamente. Vejamos quais destas se verificam
nos provérbios:
Pronomes Pessoais de 3ª Pessoa
Depois da noiva casada, não lhe faltam pretendentes [ noiva = lhe ]
Quem o alheio veste, na praça o despe [ alheio = o ]
quem pisas na subida, porque podes encontrá-lo na descida [ quem = lo ]
Quem o feio ama, bonito lhe parece [ Quem = lhe ]
Se não pode vencê-los, junte-se a eles [ los = eles ]
Pronomes Substantivos
Quanto a estes, verificam-se os demonstrativos “o” e “a”, pois os demais pronomes
substantivos aparecem, na sua maioria quase absoluta, transfrasticamente:
A pior roda do carro é a que faz mais barulho [ roda = a ]
O pior cego não é o que não enxerga, mas o que não quer enxergar [ cego = o ]
Tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta [ ladrão = o ]
A primeira impressão é a que fica [ impressão = a ]
71
Elipse
A elipse é um recurso muito freqüente nos provérbios, devido à necessidade de serem os
mais breves possíveis para facilitar a memorização dos utentes, tornando-os mais práticos. Por
isso, normalmente, os elementos que possam ser identificáveis elipticamente, são excluídos.
Encontramos, com certa freqüência, o indefinido “outro”, como pronome adjetivo,
antecedendo algum elemento claramente elíptico:
Um dia é da caça, o outro (dia) do caçador
Nada como um dia após o outro (dia)
Quando um burro fala, o outro (burro) baixa as orelhas
Outro fenômeno bastante interessante ocorre com o pronome “Quem”, muito corriqueiro
no início dos provérbios. Observem que estes são formados por um único período e que na
grande maioria constituem-se de duas orações, tendo como sujeitos o “Quem”. Porém, na
segunda oração podemos admitir uma forma referencial de “Quem” elíptica, mas não o próprio.
Façamos a seguinte comparação:
No período “João dança e canta.”, sendo “João” sujeito dos dois verbos, poderíamos
dizer: “João dança e João canta.”, mas não é o que se vê, por exemplo, em Quem tudo quer, tudo
perde, dizendo Quem tudo quer, quem tudo perde. Seria mais viável e coerente a colocação de
uma possível forma referencial. Reparem no exemplo:
Quem (aquele que) tudo quer, (esse/ tal pessoa) tudo perde
São inúmeros os provérbios desse tipo. Vejamos alguns:
Quem (aquele que) não deve, (esse/ tal pessoa) não teme
72
Quem (aquele que) desdenha, (esse/ tal pessoa) quer comprar
Quem (aquele que) casa, (esse/ tal pessoa) quer casa
Quem (aquele que) não chora, (esse/ tal pessoa) não mama
Quem (aquele que) os meus filhos beija, (esse/ tal pessoa) minha boca adoça
Nota-se, também, que raramente verificamos pronomes pessoais retos, ficando a pessoa
evidente através da desinência do verbo.
Relativos
A remissão anafórica pelos pronomes relativos também é muito abundante. Vale ressaltar
que os provérbios são frases muito curtas, necessitando de referências próximas. Então, os
pronomes relativos atendem bem a essa exigência, pois, normalmente, remetem a um elemento
imediatamente anterior a eles:
Nem tudo que reluz é ouro
Cão que ladra, não morde
O que não mata, fortalece
Não deixes para amanha o que se pode fazer hoje
Candeia que vai à frente, alumia duas vezes
Numerais
São poucas, mas pode haver remissões através de numerais cardinais:
73
Quando pobre come vitela, um dos dois está doente [ pobre, vitela = dois ]
Duas cabeças pensam melhor do que uma [ cabeças = uma (cabeça) ]
2.1.3- Formas Referenciais Lexicais
São aquelas que contêm um significado extensional, representadas, na maioria dos casos,
por alguma expressão substantiva. O que verificamos nos provérbios, nesse sentido, é a repetição
do mesmo item lexical:
Deus dá nozes a quem não tem dentes e dá dentes a quem não tem nozes
A voz do povo é a voz de Deus
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
Quem tudo quer, tudo perde
Rei morto, rei posto
2.2- A COESÃO RECORRENCIAL
A coesão recorrencial evidencia-se quando se observa, na progressão do fluxo
informacional, retomadas de estruturas ou itens. Esse é o tipo de coesão mais característico dos
provérbios. Muitas vezes se confundem recorrência e reiteração. Vejamos o que Leonor Fávero
(2001: 26) diz a respeito disso:
A recorrência tem por função, repito, assinalar que a informação “progride”; e a
“reiteração” tem por função assinalar que a informação já é “conhecida” (dada) e
mantida. Reconheço que as coisas não são assim tão simples, pois na recorrência há
também uma referência. Porém, se deve falar em termos de dominância.
74
Dentre os casos de coesão recorrencial estão:
2.2.1- Recorrência de Termos
Na recorrência de termos verificam-se algumas funções que aferem ao texto certos
aspectos como ênfase, intensidade, fluidez etc.
Nos provérbios, além dos citados anteriormente, o que se pode perceber é que os
elementos se repetem visando a uma melhor memorização, fixando na mente do povo, além de
facilitar a sua rememoração.
Grande é a lista de provérbios em que há recorrência de termos. Dentre outros temos:
Olho por olho, dente por dente
Quem ri por último, ri melhor
Tal pai, tal filho
Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece
Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão
Não tenho tudo que amo, mas amo tudo que tenho
Quem cara, não coração
Longe dos olhos, longe do coração
Pau que nasce torto, morre torto
Dize-me com quem andas, que te direi quem és
De grão em grão, a galinha enche o papo
Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço
Quem não chora, não mama
Aqui se faz, aqui se paga
75
Grande nau, grande tormenta
Amor com amor se paga
Pau que em Chico, em Francisco
O seu a seu dono
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
2.2.2- Paralelismo Sintático
Há paralelismo quando são reutilizadas estruturas sintáticas semelhantes, mas com
conteúdos diferenciados. Lembremos que a maioria dos provérbios contém duas orações ou
estruturas binárias, e freqüentemente elas se justapõem com estruturas muito similares, o que já
percebemos nos exemplos citados no tópico anterior. Vejamos outros:
Nem sempre galinha,/ nem sempre sardinha
Onde há fumaça,/ há fogo
Quem não arrisca,/ não petisca
A palavra é de prata,/ o silencio é de ouro
Quem fala o que quer,/ ouve o que não quer
Quem casa,/ quer casa
Quem não deve,/ não teme
O que vem fácil,/ vai fácil
Quem tudo quer/ tudo perde
Tal pai,/ tal filho
Gaivotas em terra,/ tempestade no mar
Sua alma,/ sua palma
76
Papagaio come o milho,/ periquito leva a fama
Falar é fácil,/ difícil é fazer
Rei morto,/ rei posto
A respeito das frases bimembres, Bechara faz uma breve menção sobre a sua
expressividade, que vale ser destacada:
Embora frases assertivas bimembres possam ser facilmente parafraseadas a orações
de estrutura regular e com estas, muitas vezes, se alternar no discurso, não devem ser
“reconstituídas” e “emendadas” com auxílio de elipses e outros recursos, para depois
serem descritas como orações. A expressividade decorre da leveza e espontaneidade
com que se caracterizam. (...) A vivacidade e leveza que tais frases emprestam ao
discurso explicam o seu largo emprego nas máximas e provérbios (1999: 542).
2.2.3- Recorrência de Traços Semânticos
Observamos que muitas vezes, dentro das estruturas binárias dos provérbios, pode-se
estabelecer alguma relação semântica entre os termos, estabelecendo um vínculo maior entre elas.
Dentre as relações mais corriqueiras, notam-se as antíteses, que aproximam termos
semanticamente opostos:
Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe
Este provérbio é muito interessante, pois podemos identificar nele três relações antitéticas:
bem/mal, sempre/nunca e dure/acabe. Destaquemos mais alguns:
Quem ama o feio, bonito lhe parece
É melhor dar do que receber
77
Antes do que mal acompanhado
Pau que nasce torto, morre torto
Tudo que sobe, desce
Quem muito fala, pouco acerta
Gaivotas em terra, tempestade no mar
Mais vale um mau acordo, do que uma boa demanda
Mãos frias, amor ardente
Após a tempestade, vem a bonança
Ao rico não faltes, ao pobre não prometas
Hoje rico e festejado, amanhã pobre e desprezado
Ninguém se levanta, sem primeiro cair
Falar é fácil, difícil é fazer
Pai avaro, filho pródigo
Vejamos também outras relações:
Relações que remetem a partes do corpo humano:
Longe dos olhos, longe do coração
Olho por olho, dente por dente
A boca fala, do que o coração está cheio
Quem cara, não vê coração
Relação de parentes consangüíneos (pai/filho):
78
Tal pai, tal filho
Pai avaro, filho pródigo
Filho extremoso, pai venturoso
Pai impertinente, filho desobediente
Pai rico, filho nobre, neto pobre
Relação de funções fisiológicas do ser humano:
Quem fala o que quer, ouve o que não quer
Relação parte/todo:
As rosas caem, os espinhos ficam
Quando a cabeça não pensa, o corpo padece
Depois da casa roubada, trancas na porta
Relação pertence/ pertencente ou atributo/ atribuidor:
Onde há fumaça, há fogo
Saiu na chuva, é pra se molhar
Quem brinca com fogo, acaba se queimando
Quando a esmola é muita, o cego desconfia
Desculpa de cego é bengala
Nem tudo que reluz é ouro
Relação entre gênero, espécie ou tipo:
79
Neste sentido, o que vemos com mais incidência é a presença de:
a) Animais
Quem não tem cão, caça com gato
Em rio de piranha, jacaré nada de costas
Nem sempre galinha, nem sempre sardinha
Papagaio come o milho, periquito leva a fama
Quando o gato não está em casa, os ratos fazem a festa
Cobra que não anda não engole sapo
Impossível é rato fazer ninho em orelha de gato
b) Metais preciosos
A palavra é de prata, o silêncio é de ouro
Laranja: de manhã é ouro, à tarde é prata, de noite mata
c) Fenômenos ou elementos da natureza
Quem planta vento, colhe tempestade
Manhã de nevoeiro, tarde de sol soalheiro
Gaivotas em terra, tempestade no mar
d) Produtos alimentícios
80
Quando se ganha o pão, não se come a carne
Pegam-se mais moscas com mel do que com vinagre
Enquanto você vem com o milho, eu já estou voltando com o fubá
Em terra onde a gente não vai, banana dá na rama e feijão dá na raiz
Farinha pouca, meu pirão primeiro
Vale mais pão duro que figo maduro
Relação entre elementos que remetem ao mesmo cenário, lugar ou situação:
Grande nau, grande tormenta (mar)
Quem não chora, não mama (ações próprias de bebês)
Caiu na rede, é peixe (pescaria)
Não ponha a carroça na frente dos bois (campo)
Em pasto alheio, boi berra como vaca (campo)
Agulha sem fundo não arrasta linha (costura)
Relação de aspectos temporais:
Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje
Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe
Antes tarde do que nunca
Laranja: de manhã é ouro, à tarde é prata, de noite mata
Manhã de nevoeiro, tarde de sol soalheiro
81
2.2.4- Recorrência de Aspectos Fonológicos.
Rimas
O aspecto fonológico mais corrente nos provérbios é, sem dúvida alguma, a rima, sendo,
talvez, a característica mais marcante da estrutura lingüística deles. Ela consiste na identidade ou
semelhança de sons na terminação de duas ou mais palavras. Eis uma pequena amostra:
Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher
Sua alma, sua palma
O que é do homem, o bicho não come
Quem não arrisca, não petisca
De gênio e louco, todos nós temos um pouco
Tudo é como antes no quartel de Abrantes
A palavras loucas, orelhas moucas
Do pasto à boca, se perde a sopa
Pratica o bem, sem olhar a quem
Vale mais pão duro que figo maduro
Vê-se pela aragem quem vai na carruagem
Sinal na perna, mulher de taberna
A ocasião faz o ladrão
A paixão cega a razão
Quem vai ao vento, perde o assento
Cada qual com seu igual
Sinal no peito, mulher de respeito
82
É de pequenino que se torce o pepino
Pau que dá em Chico, dá em Francisco
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura
Como se vê, a lista é enorme e não pára por aí. Poderíamos mencionar dezenas de outros.
Recorrência de Aspectos Métricos
Além da rima, ainda vale ressaltar a recorrência de aspectos métricos entre as estruturas
binárias dos provérbios que também surgem com grande incidência, realçando o seu caráter
melódico e aferindo-lhe, assim, um agradável teor poético. Destes destacam-se os dissílabos,
trissílabos, tetrassílabos, pentassílabos (ou redondilhas menores), hexassílabos e heptassílabos
(ou redondilhas maiores). Vejamos alguns:
Quem cala,/ consente (dissílabos)
1 2 1 2
Tal pai,/ tal filho (dissílabos)
1 2 1 2
Quem casa,/ quer casa (dissílabos)
1 2 1 2
Muito riso,/ pouco siso (trissílabos)
1 2 3 1 2 3
Quem desdenha,/ quer comprar (trissílabos)
1 2 3 1 2 3
Quem espera,/ sempre alcança (trissílabos)
1 2 3 1 2 3
83
Pai avaro,/ filho pródigo (trissílabos)
1 2 3 1 2 3
Sua alma,/ sua palma (trissílabos)
12 3 1 2 3
Rio passado,/ santo esquecido (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Cavalo manco,/ pedra na estrada (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Antes que cases,/ olha o que fazes (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Olho por olho,/ dente por dente (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Filho de peixe,/ peixinho é (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Quem não tem cão,/ caça com gato (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Aqui se faz,/ aqui se paga (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Quem dá aos pobres,/ empresta a Deus (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Do pasto à boca,/ se perde a sopa (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Enquanto há vida,/ há esperança (tetrassílabos)
1 2 3 4 1 2 3 4
Casa de ferreiro,/ espeto de pau (pentassílabos)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
Nem sempre galinha,/ nem sempre sardinha (pentassílabos)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
Ovelha que berra,/ bocado que perde (pentassílabos)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
84
Quem meus filhos beija,/ minha boca adoça (pentassílabos)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
Cobra que não anda,/ não engole sapo (pentassílabos)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A palavra é de prata,/ o silêncio é de ouro (hexassílabos)
1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
Gaivotas em terra,/ tempestade no mar (hexassílabos)
1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
Beleza sem bondade,/ não vale nem metade (hexassílabos)
1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
Água mole em pedra dura/ tanto bate até que fura (heptassílabos)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Não há bem que sempre dure/ nem mal que nunca se acabe (heptassílabos)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Não tenho tudo que amo,/ mas amo tudo que tenho (heptassílabos)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Na França como os franceses,/ em Roma como os romanos (heptassílabos)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Papagaio come o milho,/ periquito leva a fama (heptassílabos)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Pudemos observar que os tetrassílabos, pentassílabos e heptassílabos, sobretudo os
primeiros, mostram-se os mais abundantes.
Similicadência
Notem que em alguns provérbios existe uma cadência rítmica bastante expressiva, sendo
estas abaixo as mais corriqueiras:
85
Quem cala,/ consente (acento nas 2ª sílabas)
1 2 1 2
Muito riso,/ pouco siso (acento nas 3ª sílabas)
1 2 3 1 2 3
Do pasto à boca,/ se perde a sopa (acento nas 2ª e 4ª sílabas)
1 2 3 4 1 2 3 4
Ovelha que berra,/ bocado que perde (acento nas 2ª e 5ª sílabas)
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5
A palavra é de prata,/ o silêncio é de ouro (acento nas 3ª e 6ª sílabas)
1 2 3 4 5 6 1 2 3 4 5 6
Água mole em pedra dura/ tanto bate até que fura (acento nas 3ª e 7ª sílabas)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Papagaio come o milho,/ periquito leva a fama (acento nas 3ª e 7ª sílabas)
1 2 3 4 5 6 7 1 2 3 4 5 6 7
Cabe ainda uma pequena observação de Othon Garcia a respeito da similicadência:
“Repetições intencionais e antitéticas tornam-se mais enfáticas, quando observam o paralelismo
rítmico” (1992: 35). É o que vemos em:
Muito riso,/ pouco siso (acento nas 3ª sílabas e antítese)
1 2 3 1 2 3
Olho por olho,/ dente por dente (acento nas 1ª e 4ª sílabas e repetição)
1 2 3 4 1 2 3 4
Aliterações, Assonâncias, Ecos e Paronomásias
Embora apareçam com menos freqüência, também observamos aliterações, assonâncias,
ecos e paronomásias:
a) Aliteração
Quem com ferro fere, com ferro será ferido (repetição do fonema /f/)
86
Quem cala, consente (repetição do fonema /k/)
Onde há fumaça, há fogo (repetição do fonema /f/)
Quem vê cara, não vê coração (repetição do fonema /k/)
Ovelha que berra, bocado que perde (repetição do fonema /b/)
Farinha pouca, meu pirão primeiro (repetição do fonema /p/)
Quem conta um conto aumenta um ponto (repetição do fonema /t/)
b) Assonância
Deus ajuda quem cedo madruga (repetição do /u/ tônico)
Quem não deve, não teme (repetição do /e/ tônico)
Aqui se faz, aqui se paga (repetição do /a/ tônico)
c) Eco
Ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão (repetição do ditongo /ãw/)
Escreveu, não leu, o pau comeu (repetição do ditongo /ew/)
Quem conta um conto, aumenta um ponto (repetição do dígrafo on)
d) Paronomásia
Quem conta um conto, aumenta um ponto
De médico e louco, todos nós temos um pouco
Tudo é como antes no quartel de Abrantes
Muito riso, pouco siso
A palavras loucas, orelhas moucas
Sua alma, sua palma
87
Em alguns casos de aliterações e assonâncias, não se pode afirmar se o fenômeno é
aleatório ou intencional, uma vez que não se sabe como, quando e em que circunstâncias os
provérbios, pelo menos a maioria deles, foram criados. Porém, o efeito expressivo provocado
pelas consoantes e vogais destacadas é inegável, além de auxiliar na fixação deles na memória
dos utentes.
2.2.5- Recorrência de Tempo Verbal
Segundo Weinrich (apud Koch, 2003a: 54-58), existem dois tipos de atitude
comunicativa: o mundo comentado (ou comentário) e o mundo narrado (ou relato). E quanto à
perspectiva existem três: os tempos-zero (sem perspectiva) e os tempos retrospectivo e
prospectivo.
Já pudemos perceber que quase todos os provérbios apresentam os verbos, quando os têm,
no presente do indicativo, pertencendo ao mundo comentado e sem perspectiva. A partir disso,
Ingedore cita o seguinte (2003b: 57): “Os tempos do comentário conduzem o ouvinte a uma
atitude receptiva tensa, engajada, atenta.” Conclui-se que o uso do presente atua auxiliando o
poder argumentativo dos provérbios, aferindo-lhe força para que permaneça estável através dos
tempos. Além disso, o tempo presente os mantém sempre atualizados.
É verdade que o fator de coesão na recorrência de verbos, “indicando ao leitor/ ouvinte
que se trata de uma seqüência de comentário ou de relato, de perspectiva retrospectiva,
prospectiva ou zero” (ibidem: 58); destaca-se numa seqüência textual mais extensa. Porém, ainda
que os provérbios não tenham mais que três verbos, o que já é raro, notamos que a recorrência do
presente torna a ligação entre as orações mais densa. Observem na seguinte comparação:
88
Quem cara, não vê coração
Quem via cara, não vê coração
Aqui se faz, aqui se paga
Aqui se fez, aqui se paga
Não bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe
Não haverá bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe
É nítido o “afrouxamento” da relação semântica entre as orações. Além disso, vejam
como a presentificação dos fatos torna a informação mais incisiva e os argumentos mais fortes.
Atentem para o que cita Ingedore (2003a: 58): “O uso dos tempos do mundo comentado torna um
texto explicitamente opinativo, crítico, argumentativo.” Reparem que no segundo e terceiro
exemplos, os verbos modificados pertencem ao mundo comentado, só que numa perspectiva
retrospectiva e prospectiva, respectivamente. Assim, evidencia-se que a recorrência da
perspectiva verbal também tem função coesiva.
2.3
- A COESÃO SEQÜENCIAL
É a que tem por função fazer progredir o texto, dando seqüência ao fluxo informacional.
Assemelha-se à recorrencial, diferenciando-se desta, por não executar retomada de qualquer
elemento ou estrutura.
Ela pode ser feita de duas formas: por seqüenciação temporal e por conexão.
89
2.3.1- Seqüenciação Temporal
Nos provérbios, pode ser obtida por:
Ordenação linear dos fatos
Para se obter determinado sentido, uma ação deve anteceder a outra, obedecendo a
uma ordem cronológica:
Madruga e verás, trabalha e terás
Veja que não é possível: “Verás e madruga, terás e trabalha”; ficando totalmente
incoerente. Observe em:
O que vem fácil, vai fácil
em O que vai fácil, vem fácil, o sentido da frase seria outro.
Percebemos isso também em outras comparações:
Quem não deve, não teme
Quem não teme, não deve
Aqui se faz, aqui se paga
Aqui se paga, aqui se faz
Quem não arrisca, não petisca
Quem não petisca, não arrisca
90
Ajoelhou, tem que rezar
Tem que rezar, ajoelhou
Quem não chora, não mama
Quem não mama, não chora
Quem planta vento, colhe tempestade
Quem colhe tempestade, planta vento
Expressões que assinalam a ordenação ou continuação das seqüências temporais
Laranja: de manhã é ouro, à tarde é prata, de noite mata
Depois da casa roubada, trancas na porta
Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje
Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer
Manhã de nevoeiro, tarde de sol soalheiro
Depois da tempestade, vem a bonança
Nada como um dia após o outro
Antes tarde do que nunca
2.3.2- Seqüenciação por Conexão
A seqüenciação por conexão é obtida por conectores que relacionam os enunciados,
orações e outras partes do texto, estabelecendo diversas relações semânticas e/ou pragmáticas.
Denominaremos aqui esses conectores de “operadores do tipo lógico, operadores discursivos e
91
pausas”. A seqüenciação por conexão é muito abundante nos provérbios, exercendo papel
fundamental para a construção do seu sentido.
Operadores do tipo lógico
Os operadores do tipo lógico são capazes de estabelecer diversas formas de relação. Entre
estas, verificam-se nos provérbios as seguintes:
a) Condicionalidade
Se não pode vencê-los, (então) junte-se a eles
Se tens telhado de vidro, (então) não atires pedras
Expressa-se através da conexão de duas orações, a primeira iniciada pela conjunção “se”,
ou similares, e a segunda pelo conector “então”, que normalmente fica implícito.
b) Proporcionalidade
Há uma relação proporcional, quando entre duas proposições, verifica-se que um fato
contido em uma delas progride à medida que também progride o fato da outra:
Quanto mais eu rezo, mais assombração aparece
Quanto maior é a arvore, maior é o tombo
c) Causalidade
92
Existe relação de causalidade quando se verifica entre duas proposições uma relação de
causa e conseqüência.
Água mole em pedra dura tanto bate (causa) / até que fura (conseqüência)
Quem não tem padrinho (causa) /, morre pagão (conseqüência)
Por falta de um grito (causa) / se perde uma boiada (conseqüência)
Quem planta vento (causa) /, colhe tempestade (conseqüência)
Quem brinca com fogo (causa) /, acaba se queimando (conseqüência)
Observa-se que a relação de causalidade é muito comum nos provérbios, haja vista que
normalmente eles são moralizantes, advertindo o receptor/ouvinte que uma determinada atitude
ou situação (causa) pode acarretar conseqüências quase sempre desagradáveis.
d) Restrição ou Delimitação
Ocorre quando entre duas ou mais proposições, uma restringe ou limita a significação de
um termo da outra. Normalmente, nos provérbios, essa restrição é feita por uma oração adjetiva.
Ladrão [
que rouba ladrão] tem cem anos de perdão
Cão [que ladra] não morde
Candeia [
que vai à frente] alumia duas vezes
Nem tudo [
que reluz] é ouro
Pau [que nasce torto], morre torto
Cavalo [que voa], não quer espora
93
Poderíamos estender esse fenômeno aos provérbios em que se verificam o Quem,
elemento bastante característico dos provérbios, principalmente no início do período, equivalendo
a Aquele que. Esse desdobramento nos permitiria afirmar que o Quem seria um pronome relativo
sem antecedente explícito textualmente (Perini, 2004: 153), remetendo a um referente exofórico,
que seria o Aquele. Destarte, é viável considerar o Quem uma forma sintética de Aquele que.
Percebam como se evidencia a restrição, utilizando a aqui considerada forma analítica de
Quem:
Quem procura, acha
Aquele [que procura], acha
Quem planta vento, colhe tempestade
Aquele [que planta vento], colhe tempestade
Deus ajuda quem cedo madruga
Deus ajuda aquele [que cedo madruga]
Quem não cola, não sai da escola
Aquele [que não cola], não sai da escola
Porém, não é só com orações adjetivas que as restrições podem ser feitas, mas também
com epítetos.
Pato novo não mergulha fundo
Águas passadas não movem o moinho
Um homem prevenido vale por dois
94
Vejam que ao retirar o epíteto, o sentido do provérbio será totalmente comprometido:
Pato não mergulha fundo
Águas não movem o moinho
Um homem vale por dois
Fávero (2001: 38) ressalta que existem muitas correspondências entre as relações de
restrição com outras, como as de referencialidade, causalidade e condicionalidade, que são as
mais freqüentes nos provérbios:
Tudo que sobe, desce (referência)
Quem com porcos se mistura [causa] /, farelo come [conseqüência] (causalidade)
Quem não chora, não mama (condicionalidade) [Se não chora, então não mama]
Operadores do discurso
Diferentemente das relações do tipo lógico, o que se estabelece não é uma relação entre o
conteúdo de duas orações, mas um encadeamento de um enunciado sobre outro, entre os quais
um é tomado como tema. Na estrutura proverbial, destacam-se os seguintes tipos de operadores:
a) Conjunção
Ligam enunciados que constituem argumentos para uma mesma tese. Destes operadores,
o que costuma surgir nos provérbios é o “nem”.
Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe
95
Nem sempre galinha, nem sempre sardinha
De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento
b) Contrajunção
Contrapõem enunciados de orientação argumentativa diferente, prevalecendo aquele
introduzido pelo operador mas, que é o mais corriqueiro do tipo nos provérbios.
A justiça tarda, mas não falha
Não tenho tudo que amo, mas amo tudo que tenho
Faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço
O pior cego não é o que não enxerga, mas o que não quer enxergar
c) Comparação
É outro recurso coesivo com forte poder argumentativo muito comum nos provérbios.
Dentre os operadores do discurso, é seguramente o mais abundante.
A comparação se estabelece quando entre um termo comparante e um termo comparado,
existe uma relação de inferioridade, superioridade ou igualdade.
Observam-se nos provérbios, construções do tipo: é melhor ... do que ..., mais vale/ vale
mais ... (do) que , tão ... como, antes ( = é melhor / é preferível) ... do que.
É melhor prevenir do que remediar.
É melhor um pássaro na mão do que dois voando.
É melhor dar do que receber.
Uma imagem vale mais do que mil palavras.
96
Vale mais pão duro que figo maduro.
Mais vale um mau acordo que uma boa demanda.
Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo.
Tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta.
Antesdo que mal acompanhado.
Antes tarde do que nunca.
d) Pausas
Indicadas na escrita pelos sinais de pontuação, substituem os conectores, assinalando
diferentes relações que se evidenciam claramente.
A pausa feita através das virgulas é muito utilizada nos provérbios, ficando inferível
certas relações entre as proposições:
Farinha pouca, meu pirão primeiro (conclusão)
(A farinha é pouca, portanto meu pirão primeiro)
Ajoelhou, tem que rezar (causalidade)
(Porque ajoelhou, tem que rezar)
Escreveu, não leu, o pau comeu (contrajunção e causalidade)
( Escreveu, mas não leu, por isso o pau comeu)
Gaivotas em terra, tempestade no mar (conclusão)
(Gaivotas em terra, portanto tempestade no mar)
97
Manda quem pode, obedece quem tem juízo (conjunção)
(Manda quem pode e obedece quem tem juízo)
Casa de ferreiro, espeto de pau (conclusão)
(Casa de ferreiro, portanto espeto é de pau)
Ainda como forma de coesão seqüencial, vale destacar o processo de correlação, cuja
ocorrência é muito comum nos provérbios, aferindo-lhes grande teor expressivo. Diz-se haver
correlação quando “uma construção sintática de duas partes relacionadas entre si de tal sorte, que
a enunciação de uma, dita prótase, prepara a enunciação da outra, dita apódose” (Mattoso
Câmara apud Othon Garcia, 1992: 49). A primeira é a condicionante e a segunda, condicionada.
A condicionante típica é a descrita pela oração subordinada condicional. Entretanto, esse
processo implica uma correlação num sentido mais abrangente, aplicando-se também às outras
subordinadas adverbiais. Essa forma de correlação também pode ocorrer com os elementos da
oração, colocando, por exemplo, um adjunto adverbial antes do sujeito e do verbo. Tal fenômeno
é visto com grande incidência nos provérbios: Em briga de marido e mulher (prótase ou
condicionante), ninguém mete a colher (apódose ou condicionada); De grão em grão (prótase), a
galinha enche o papo (apódose). Vejam um pequena lista de outras ocorrências desse tipo de
correlação nos provérbios:
À noite, todos os gatos são pardos
De boas intenções, o inferno está cheio
De hora em hora, Deus melhora
Em casa de ferreiro, espeto é de pau
98
De médico e louco, todos nós temos um pouco
Em rio de piranha, jacaré nada de costas
Em boca fechada, não entra mosca
Por falta de um grito, se perde uma boiada
Quando a esmola é muita, o cego desconfia
Em terra de cego, quem tem um olho é rei
Do pasto à boca, se perde a sopa
De Espanha, nem bom vento nem casamento
Depois da tempestade, vem a bonança
A cão fraco, acodem as moscas
Em casa de enforcado, não se fala em corda
Em pasto alheio, boi berra como vaca
Com relação a esse fenômeno, Othon Garcia diz o seguinte:
A ênfase, mesmo nesse tipo de frases curtas – ou principalmente nelas - , decorre do
“suspense” que as caracteriza: enunciada a primeira parte, o leitor ou ouvinte fica em
expectativa até o desfecho, quando só então se completa o pensamento. Desse
processo é que resulta, em grande parte, sem dúvida, a eficácia expressiva dos
provérbios. Experimente-se inverter a ordem das suas partes: Deus melhora de hora
em hora, todos os gatos são pardos à noite. Não é só a mudança do ritmo da frase que
lhe retira o, por assim dizer, encantamento; é principalmente a ausência daquele
resquício de expectativa que a desfigura e empalidece (1992: 49).
99
3. A ARTE RETÓRICA: A ARGUMENTAÇÃO E AS ESTRATÉGIAS DE PERSUASÃO
Ao interagirmos com outrem, não somente administramos informação, mas também nos
relacionamos com ele. Fazer um cumprimento, um agradecimento, um pedido de desculpas, por
exemplo, são partes do processo relacional entre os coenunciadores. Onde quer que estejamos,
seja qual for o ambiente em que vivemos (familiar, no trabalho, no círculo de amizades, etc.),
argumentar é, antes de tudo, gerenciar nossas relações com aqueles que nos cercam, integrar-se
em seu universo, observando as suas necessidades e vontades. Porém, também é, cooperativa e
construtivamente, instaurar nossa verdade dentro da verdade do outro, obtendo, assim, aquilo que
pretendemos.
Desta forma, “argumentar é a arte de convencer e persuadir” (Abreu, 2004: 25), ou, na
acepção de Perelman, é todo ato capaz de “provocar ou aumentar a adesão de um auditório às
teses que se apresentam ao seu assentimento” (1993: 29).
De acordo com Perelman, é através da análise dos diferentes tipos de auditório possíveis
que se estabelece a distinção clássica entre convencimento e persuasão: o primeiro trabalha no
campo da razão do receptor, gerenciando informação, portanto, dirigidos ao entendimento. Já o
segundo atua diretamente sobre a vontade do outro, gerenciando relação, logo, falam à sua
emoção. Daí, a persuasão consistiria no resultado natural de uma ação sobre a vontade
(irracional), enquanto o convencimento, o efeito do ato de convencer (racional). Porém, ao
analisarmos a questão pela forma de como se obtém a adesão das mentes, como aponta Perelman,
100
é difícil admitir que o convencimento se adquira “por uma diversidade de procedimentos de
prova que não podem reduzir-se nem aos meios utilizados em lógica formal nem à simples
sugestão” (1997: 63). É o que observamos, por exemplo, na educação, nos juízos de valor, nas
normas e em muitas outras áreas do saber, cujos desdobramentos e esferas de ação não permitem
recorrer apenas aos meios de prova inteiramente racionais. Além disso, verifica-se a dificuldade
de determinar quais os meios de prova convincentes e aqueles que não o são, conforme remetam
ao entendimento ou à vontade, haja vista que, obviamente, o homem não é formado por
faculdades inteiramente divididas. Ainda diz Perelman que “aquele que argumenta não se dirige
ao que consideramos como faculdades, como a razão, as emoções, a vontade. O orador dirige-se
ao homem todo (...)” (1993: 31).
Assim, a discriminação entre persuasão e convencimento na concepção perelmaniana nos
parece um tanto contraditória e imprecisa, uma vez que, em muitas situações, mostra-se muito
difícil ter a noção exata de quando eles atuam de forma independente ou de onde um começa e o
outro termina. Por isso, doravante trataremos os dois termos indistintamente, dando preferência à
expressão persuasão, que definiremos como a tentativa de levar o outro a aceitar determinada
tese, conceito, valor, entendimento, etc. Que aceite certas idéias como verdade.
Para o estudo da persuasão, exige-se uma incursão pelas concepções teóricas que a
sustentam: a retórica, a argumentação e a sedução. A retórica, em função de que ela,
originariamente, define-se como “a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser
capaz de gerar a persuasão” (Aristóteles apud Jean Voilquin & Jean Capelle, s. d.: 34); a
argumentação, ao passo que almeja “provocar ou aumentar a adesão de um auditório às teses que
se apresentam ao seu assentimento” (Perelman, 1993: 29) e a sedução, pois a propensa
receptividade do auditório pode também “nascer dos efeitos de estilo, que produzem sentimentos
de prazer ou de adesão” (Aristóteles, 1998: 52).
101
Uma análise comparativa entre os diversos pontos de vista da retórica, de Aristóteles até
Perelman, possibilitar-nos-á traçar uma perspectiva que servirá de orientação para o nosso
enfoque. Primeiramente, destaca-se que a retórica busca a persuasão através de um discurso. Não
se pretende consegui-la por meio da força ou da violência, mas pela adesão intelectual do
auditório somente com o uso da argumentação. Em segundo lugar, a retórica possui uma maior
preocupação com a adesão do que com a verdade, obtendo o assentimento do auditório à tese que
se apresenta. A verdade ou falsidade desta é um problema de ordem secundária.
A retórica se vale da linguagem cotidiana e não daquela de origem técnica ou
especializada, pois ela remete a todos os homens, não apenas a um setor específico da sociedade.
Por último, vale ressaltar que a retórica não se restringe a transmitir idéias neutras, mas tem
sempre em vista um determinado comportamento concreto resultante da persuasão por ela
exercida, uma vez que ela objetiva a modificar não só as convicções, mas também as atitudes do
auditório.
Para melhor entender o que é a retórica é preciso fazer uma rápida incursão pelo processo
histórico de sua formação e evolução no mundo grego, destacando algumas observações sobre
sua natureza e propósito.
3.1- A TRADIÇÃO RETÓRICA
Tratar da questão da persuasão implica nos remetermos à tradição do discurso clássico
grego, onde ele era tratado em seus mínimos detalhes; pois, tendo os antigos oradores que expor
publicamente suas idéias, era necessário manusear com extrema habilidade as estratégias
argumentativas a fim de persuadir o público ouvinte.
102
Assim como a filosofia, também a retórica teve origem na Grécia antiga. Tal como aquela,
esta teve seu aparecimento relacionado às novas realidades sociais provenientes do aparecimento
da primeira experiência de democracia que a História conta. Os fundamentos da retórica
instituem-se na persuasão através da argumentação. Daí, não se pode concebê-la sem democracia
e liberdade de debate, características da organização política dos helênicos.
O surgimento histórico da retórica é datado por volta do século V antes de Cristo, em
Siracusa, na Magna Grécia, atual Itália. Depois da destituição do tirano Trasíbulo, ocorreram
diversas causas jurídicas para a devolução das terras que ele havia tomado aos verdadeiros
proprietários. O primeiro tratado de retórica foi escrito em 465 a.C. por Tísias e Córax, oradores
que se destacaram por defender as vítimas das arbitrariedades de Trasíbulo.
Entretanto, a retórica só ganhou força após a consolidação da democracia ateniense.
Todos os cidadãos participavam diretamente das assembléias populares, que possuíam funções
legislativas, executivas e judiciárias. Assim, todos os assuntos eram submetidos ao voto popular:
a organização do estado, a cobrança de impostos, a declaração de guerra e até a morte de um
cidadão. Ninguém podia fugir à sua parcela de responsabilidade, que freqüentemente incluía a
justificativa de sua opinião diante de uma grande quantidade de pessoas. Por conseguinte, o
exercício da função política dependia da capacidade que o indivíduo tinha de raciocinar, falar e
argumentar corretamente. A partir disso, era necessário que houvesse uma quantidade suficiente
de instrutores que proporcionassem a devida “educação política”.
Tais instrutores se autodenominavam “sofistas”, isto é, aqueles que professam a
sabedoria. Entre eles, os que mais se destacaram foram Protágoras e Górgias. Pelo fato de
fazerem muitas viagens pelo mundo, eles conheciam variadíssimos costumes e culturas, o que
lhes proporcionava uma concepção de mundo muito mais ampla daquela que os cidadãos gregos
103
possuíam. Assim, muitos pensadores se reuniam para expor suas experiências, mostrando aos
seus discípulos que uma mesma questão poderia ser abordada sob diversas perspectivas.
Embora não constituíssem uma escola no sentido técnico do termo, eles mantiveram entre
si certa afinidade de métodos e propósitos. Dessa forma, dispuseram-se a ensinar a arte da
política e as qualidades indispensáveis para a formação dos cidadãos. Nesse processo formativo e
educacional, introduzia-se a retórica, ou a arte de convencer e persuadir exercida nos tribunais e
nas outras assembléias a propósito dos fatos que estariam em julgamento. Portanto, os sofistas
instituem-se como os primeiros protagonistas importantes da história da retórica. Mestres na arte
da oratória, adquiriram extraordinária reputação e seus ensinamentos eram procurados com
grande interesse pelos jovens atenienses, sobretudo os mais privilegiados financeiramente.
O conflito entre os sofistas e os filósofos da época, principalmente Sócrates e Platão, foi
inevitável; uma vez que a retórica se debruçava sobre as teorias dos pontos-de-vista ou
paradigmas, enquanto a filosofia somente examinava certas dicotomias, tais como
verdadeiro/falso.
No entanto, foi Aristóteles o maior responsável pelo desenvolvimento do estudo da
Retórica. Para ele,
a Retórica é a faculdade de ver teoricamente o que, em cada caso, pode ser capaz de
gerar a persuasão. Nenhuma outra arte possui esta função, porque as demais artes têm,
sobre o objeto que lhes é próprio, a possibilidade de instruir e de persuadir; (...). Mas a
Retórica parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questão,
descobrir o que é próprio para persuadir. Por isso, dizemos que ela não aplica suas
regras a um gênero próprio e determinado (apud Jean Voilquin & Jean Capelle, s. d.:
34).
A criação de tratados sobre a arte retórica era uma prática comum na antiga Grécia. Todos
os sofistas e oradores de maior prestígio escreveram em algum momento textos que servissem de
104
orientação para seus pupilos. Porém, a retórica só se fundamentaria de forma consistente
mediante a influência de Aristóteles, considerado um dos filósofos mais brilhantes de todos os
tempos.
Discípulo de Platão na Academia, criador de sua própria escola, o Liceu, e tutor de
Alexandre, o Grande, Aristóteles foi o primeiro pensador a interessar-se pelo estudo sistemático
das diversas artes e ciências que se apresentavam como distintas pela primeira vez no século IV
a.C. Dotado de um verdadeiro espírito enciclopédico, elaborou muitas obras sobre os mais
variados campos do saber. Da mesma forma que seus trabalhos serviram aos seus alunos no
Liceu, eles ainda são fontes valiosas de conhecimento, embora já se passem muitos séculos de
seu advento. Isto mostra todo o avanço e brilhantismo das obras desse magnífico pensador.
Entre suas centenas de produções, destacamos a Arte Retórica. Nessa obra clássica,
Aristóteles constrói uma concepção da retórica, dividindo-a em categorias e dando nomes às
diversas técnicas utilizadas, a exemplo do que fez em diversos outros campos do conhecimento.
Destarte, os conceitos ali estudados são de fundamental importância, pois muitas das
classificações criadas por Aristóteles são aceitas até hoje. Executaremos, então, uma rápida
abordagem dos conceitos elaborados na Arte Retórica.
Não é muito evidente a classificação da retórica entre as práticas intelectuais na obra de
Aristóteles. Em certos momentos, a retórica é vista como uma ferramenta, uma disciplina
simplesmente formal, utilizável em diferentes áreas do conhecimento. Enquanto tal concepção
circulava entre os estudiosos antigos e medievais, os modernos, por sua vez, preferem considerar
a retórica uma arte produtora, a exemplo da poética e das belas artes.
Segundo Aristóteles, o discurso compreende fundamentalmente, pelo menos, quatro
componentes: exórdio, narração, provas e peroração.
105
Exórdio: tem por função tornar o auditório mais receptivo à proposta do orador e construir
uma introdução geral ao discurso, evidenciando os seus objetivos.
Narração: é o assunto propriamente dito. Nesta fase do discurso, expõem-se os fatos e os
eventos em questão. Como diz Aristóteles: “O que fica bem aqui não é nem a rapidez, nem a
concisão, mas a justa medida. Ora, a justa medida consiste em dizer tudo quanto ilustra o
assunto, ou prove que o fato se deu, que ele teve a importância que lhe atribuímos” (apud
Jean Voilquin & Jean Capelle, s. d.: 257).
Provas: as provas são elementos muito importantes no processo persuasivo, pois a
credibilidade daquilo que se diz depende da capacidade de comprovação, sobretudo no
discurso judiciário. Os meios de prova utilizados classificam-se em artísticos e não-artísticos.
Os primeiros são os argumentos elaborados pelo orador, e podem ser três: os provenientes do
caráter do próprio orador, que cede sua credibilidade à causa (ethos); aqueles em que o orador
busca atingir as emoções do auditório (pathos); e os derivados da razão (logos). Os não-
artísticos, a seu turno, são as provas em sentido estrito, as evidências concretas como
testemunhas ou documentos.
Peroração: é o epílogo, isto é, a conclusão. Ela objetiva marcar no auditório uma boa
impressão do orador e, se possível, descredibilizar o seu potencial adversário, recapitulando
de forma concisa os principais tópicos. Tem-se aqui a última oportunidade de conquistar a
adesão do receptor.
Além do que expusemos acima, cabe destacar mais dois aspectos da obra aristotélica: a
importância dada ao conhecimento do auditório, pois considerável parte de sua obra é voltada a
análises de psicologia diferencial, examinando as diversas emoções e convicções próprias a
variados tipos de auditórios. Em segundo lugar, é preciso admitir seu pioneirismo na
106
sistematização da teoria do discurso, expondo de forma evidente que a retórica em si mesma é
moralmente neutra, podendo ser utilizada tanto para o bem como para o mal.
No entanto, com o passar do tempo, a retórica modificou-se. A noção que se tinha de uma
arte voltada para as técnicas argumentativas e mecanismos de persuasão foi denegrida
(principalmente no final do século XIX, sobretudo com o advento do parnasianismo) pela
concepção de uma retórica como recurso de “embelezamento” textual. Daí, ela transformou-se
num simples veículo de fornecimento de “adornos” que tornam o texto mais atraente
esteticamente. Tais concepções ainda perduram nos dias de hoje, atrelando à retórica uma
denotação pejorativa, como sinônimo de enfeite estilístico e de algo vazio de idéias.
3.2- A RETÓRICA MODERNA
Desde a idade média até o século XX, os conceitos em torno da retórica têm oscilado
periodicamente. Entretanto, não se restaurou o seu status e a sua dignidade intelectual. Foi apenas
no século XX que nasceu uma forte corrente filosófica e acadêmica que idealizava recuperar a
credibilidade desta arte tão antiga e consideravelmente relacionada à história da humanidade.
Com o avanço das ciências ligadas à filosofia da linguagem e à filosofia dos valores, vários
filósofos e estudiosos começaram a considerar a retórica como um objeto digno de estudo, seja
sob a sua perspectiva formal ou através de uma posição que privilegia sua condição de ferramenta
de persuasão. Já que a proposta do nosso trabalho relaciona-se a esse segundo aspecto, deter-nos-
emos principalmente à obra daquele que de forma mais abrangente e brilhante contribuiu para o
rompimento da tradição cartesiano-positivista que tanto ultrajou a retórica: o filósofo Chaïm
Perelman.
107
Foi a partir dos estudos de pesquisadores como Chaïm Perelman e Jean Debois, que os
estudos sobre a retórica tiveram uma importante renovação nas últimas décadas. Nesta fase, que
se denominou “Nova Retórica”, faz-se uma reflexão mais ampla e atualizada dos conceitos
formulados por Aristóteles. Assim, a retórica moderna possui diferentes perspectivas de trabalho,
principalmente no que tange aos conceitos de auditório, às técnicas de argumentação e às figuras
de linguagem.
3.2.1- O Auditório
Conceito fundamental para a teoria da argumentação perelmaniana é o de auditório. No
discurso demonstrativo-analítico, que se utiliza da lógica formal, as provas empregadas são
impessoais, sendo aceitas universalmente. Em contrapartida, no discurso retórico, é essencial a
relação entre o orador e o auditório a que ele se reporta. A verdade transmitida pela lógica formal
é sempre universal e incontestável, enquanto a adesão obtida pela argumentação é sempre a de
um auditório determinado, já que pode ser de intensidade variável (Perelman, 1988: 140-141).
Daí, segundo Perelman, auditório é “o conjunto de todos aqueles que o orador quer influenciar
mediante o seu discurso” (1987: 237).
Ao tratar da argumentação, de persuadir por meio do discurso, também é necessário
considerar as condições psíquicas e sociais do auditório, a fim de que este possa aderir à tese do
enunciador, haja vista que toda argumentação visa à adesão dos espíritos. Dessa forma, é mister
considerar a abrangência daquilo que se pretende comunicar, a natureza social, além da cultura
dos receptores. Assim , nota-se que o contato entre o orador e seu auditório é fundamental para o
desenvolvimento da argumentação. Ela é, portanto, integralmente relativa ao auditório que
objetiva atingir, na medida em que busca obter a adesão daqueles a quem se dirige.
108
O auditório pode ser composto de um único interlocutor, como pode ser um país inteiro,
ou seja, um auditório heterogêneo. O auditório ideal é aquele formado por um grupo social
homogêneo, como médicos, advogados, professores, empresários, políticos, religiosos, etc. É a
adaptação do orador ao auditório que vai fazer com que, no final do discurso, este já não seja o
mesmo do princípio, isto é, que tenha adquirido uma “nova noção da realidade”.
Ao auditório, pertence o atributo de determinar a qualidade da argumentação e o
comportamento dos oradores. Destarte, no desenvolvimento desta, não importa se o orador tenha
suas palavras como verdadeiras, mas qual é a posição daqueles a quem ela se dirige quanto a
estas. O orador vê-se na necessidade de adaptar-se ao seu auditório e a possibilidade de lidar com
um tema técnico, não deve distanciá-lo da retórica e da dialética. Logo, existe somente uma regra
para o orador: a adequação do seu discurso ao auditório.
Portanto, é a espécie de auditório que especifica o aspecto, o caráter e o alcance da
argumentação. Os auditórios classificam-se em três tipos:
o auditório universal: constituído pela humanidade inteira, pessoas sobre as quais o orador
não tem controle das variáveis, portanto de características heterogêneas.
o auditório particular: composto pelo interlocutor a quem o orador se dirige, cujas variáveis
ele controla.
o próprio sujeito (monólogo): quando ele delibera ou figura a razão de seus próprios atos.
Quando se tratar do auditório universal, dificilmente o orador convencerá a todos, devido
à questão da heterogeneidade. O conhecimento do auditório é indispensável para o êxito da
argumentação, já que o orador sempre fundamentará seu discurso sobre determinados acordos
preestabelecidos com auditório. Quanto melhor se conhece o auditório, maior é o número de
109
acordos prévios que se tem à disposição, e conseqüentemente melhor fundamentada será a
argumentação.
Uma das falhas mais freqüentes numa argumentação ineficaz é a que se denomina de uma
“petição de princípio”. A petição de princípio consiste em “supor admitida uma tese que se
desejaria fazer admitir pelo auditório” (Perelman, 1987: 240). Então, por exemplo, se para tentar
converter uma tribo africana à sua fé, um missionário cristão introduz seus argumentos a partir do
princípio que as tradições e rituais dela são demoníacos e que se continuarem a praticá-los todos
elas irão sofrer eternamente no inferno, provavelmente ele não será bem sucedido em sua
proposta, uma vez que o que lhe parece claro, correto e prudente, poderá não ser para o seu
auditório.
Para fugir da possibilidade de uma petição de princípio, é necessário que o orador conheça
as teses admitidas pelo seu auditório. Se o auditório é pequeno, o orador pode proceder mediante
algumas perguntas simples. Se o auditório for grande, contudo, o orador deverá se contentar com
suposições (ibidem: 240). No contato do orador com o auditório, o meio de comunicação
utilizado será uma língua natural, tal como o português, o inglês ou o italiano. Não existe
necessidade, no discurso retórico, de que a linguagem utilizada seja absolutamente precisa e livre
de ambigüidades, como no discurso analítico, que se utiliza de uma linguagem artificial,
inequívoca, “uma vez que a verdade ou falsidade de uma proposição devem resultar unicamente
da sua forma, a qual não pode admitir, por isso, interpretações diferentes” (ibidem: 236). Em
contrapartida, o discurso retórico se utiliza sempre da linguagem comum, ou da linguagem
comum adaptada conforme as circunstâncias, e é um discurso não especializado por excelência.
Pode então se deduzir que, de algum modo, o orador vê-se na necessidade de voltar-se
para uma importante função: a de avaliar antecipadamente o que os destinatários da sua
argumentação devem (ou deveriam) pensar e concluir quanto às teses que ele próprio lhes
110
apresentará. Entretanto, cabe questionar se, dentro desse panorama, estaremos ainda diante de
uma situação retórica. Como diz Perelman, “toda a argumentação que visa somente a um
auditório particular oferece um inconveniente, o de que o orador, precisamente na medida em que
se adapta ao modo de ver dos seus ouvintes, arrisca-se a apoiar-se em teses que são estranhas, ou
mesmo francamente opostas, ao que admitem outras pessoas que não aquelas a que, naquele
momento, ele se dirige” (1999: 34).
Em suma, o auditório universal pode não corresponder ao modo mais adequado de
satisfazer a exigência de sinceridade e lucidez que se impõe a todo o orador. Porém, sem dúvida
alguma, é uma afirmação do ideal ético que deve orientá-lo. O que não parece admissível é ver
nele o (único) critério para se classificar um discurso como persuasivo, conforme a intenção do
orador seja a de obter a adesão de todo o ser de razão ou só de alguns (1993: 37).
Nesse sentido, o discurso proverbial pode ser remetido a qualquer auditório, seja
particular ou universal, por mais heterogêneo que o seja, visto que os seus conceitos e valores
podem, sem problema algum, permear toda e qualquer camada da sociedade sem que venha
denegrir alguma outra parte desta, corroborando para preservação das faces em jogo no discurso.
Soma-se a isto o fato de que os provérbios são instituídos a partir do senso comum, que é o mais
significativo entre todos os discursos que nos governam, cujas mensagens são veiculadas com
valor de verdade imemorial irrefutável. Para apoiar nossa afirmação, vale destacar o que Antônio
Abreu diz a respeito do discurso do senso comum:
Trata-se de um discurso que permeia todas as classes sociais, formando a chamada
opinião pública. Tanto uma pessoa humilde e iletrada quanto um executivo de alto
nível, com curso universitário completo, costumam dizer que os políticos são, em
geral, corruptos ou que o brasileiro é relaxado e preguiçoso. Na verdade, o discurso do
senso comum não é um discurso articulado; é formado por fragmentos de discursos
articulados. Uma fonte desse discurso são os ditos populares, (...). Esse discurso tem o
111
poder enorme de dar sentido à vida cotidiana e manter o status quo vigente (...) (2004:
30-31).
3.2.2- As Técnicas Argumentativas
Na medida que a argumentação objetiva a adesão do auditório a determinadas teses, as
técnicas argumentativas apresentar-se-ão sob dois distintos aspectos: “o aspecto positivo
consistirá no estabelecimento de uma solidariedade entre teses que se procuram promover e as
teses já admitidas pelo auditório: trata-se de argumentos de ligação. O aspecto negativo visará
abalar ou romper a solidariedade constatada ou presumida entre as teses admitidas e as que se
opõem às teses do orador: tratar-se-á da ruptura das ligações e dos argumentos de dissociação”
(Perelman, 1987: 246). Os argumentos de ligação compreendem três grupos: os argumentos
quase lógicos, os argumentos fundados na estrutura do real, e aqueles que fundam a
estrutura do real.
No pormenorizado exame sobre o qual o autor se debruça em relação a cada uma dessas
três classes de técnicas argumentativas, interessa-nos, no entanto, apreender apenas aqueles
aspectos que se mostram, em nossa concepção, mais ilustrativos da força persuasiva que certas
figuras ou procedimentos discursivos podem imprimir ao processo argumentativo do enunciado
proverbial. Destaca-se ainda que, obviamente, sempre consideraremos que a compreensão última
do sentido e alcance de um argumento isolado é possível apenas na sua relação com a totalidade
do respectivo discurso, com o contexto e a situação em que se inscreve.
3.2.2.1- Argumentos Quase Lógicos
112
São aqueles cuja estrutura lógica aponta para os argumentos da lógica formal, mas que
não possuem o mesmo rigor, isto é, não têm valor conclusivo, visto que é impossível excluir da
linguagem comum toda a ambigüidade nem destituir do argumento a possibilidade de outras
interpretações (1988: 166). Assim, não se estabelecem no conceito de certo ou errado, falso ou
verdadeiro, mas numa correspondência de argumentos relativamente fortes e plausíveis, que
intentam estabelecer um acordo, uma adesão. São “quase lógicos” precisamente pela aparência
demonstrativa que provém do fato de recorrerem a estruturas lógicas tais como a contradição ou a
conceitos matemáticos como a noção da parte com o todo, do menor com o maior e a relação de
freqüência. Entretanto, enquanto num sistema formal o aparecimento de uma contradição é fatal
para o argumento, tornando-o incoerente e inútil, o mesmo já não acontece na linguagem
corrente, onde a contradição desempenha uma função completamente diferente. Na lógica formal,
por exemplo, quando um discurso apresenta-se como contraditório, ele será considerado absurdo.
Já no campo da argumentação, como não há univocidade na linguagem, não se pode falar em
contradição, mas em incompatibilidade. Daí, não se pode considerar o discurso como algo
absurdo, no máximo ridículo, caso o orador não consiga um viés mediante a reinterpretação de
termos (1987: 247).
Perelman cita a célebre frase de Heráclito “entramos e não entramos duas vezes no
mesmo rio” para mostrar que há somente uma contradição aparente, que rapidamente se desfará
ao interpretarmos de duas formas distintas a expressão “o mesmo rio”, isto é, como podendo
significar as duas margens (sempre as mesmas) e as águas que nele correm (sempre diferentes). A
contradição só leva ao absurdo quando a univocidade dos signos não deixa em aberto qualquer
hipótese de lhe escapar, o que não ocorre com as expressões criadas numa língua natural, pois,
como já abordamos, um enunciado só existe na relação com outros enunciados. Por isso,
Perelman sustenta que na argumentação nunca nos encontramos diante de uma contradição
113
propriamente dita, mas sim, perante uma incompatibilidade, quando uma tese sustentada em
determinado caso, entra em conflito com uma outra, já afirmada anteriormente ou geralmente
admitida pelo auditório. Ao contrário da contradição, que nos levaria ao absurdo, a
incompatibilidade apenas nos obriga a escolher uma das teses em conflito e a abandonar a outra
ou limitar o seu alcance.
Também a regra de justiça e a reciprocidade que lhe é pertinente, fundadas no princípio
de igualdade de tratamento perante a lei, são a expressão de uma regra de justiça de natureza
formal, segundo a qual, como diz Perelman, “os seres de uma mesma categoria essencial devem
ser tratados da mesma forma” (1993:80). O recurso ao precedente e o costume não são mais do
que aplicações dessa regra e correspondem à crença de que é razoável reagir da mesma forma que
anteriormente, em situações análogas, se não tivermos razões suficientes para o lamentar. Uma
atitude será considerada injusta caso se traduza por um comportamento diferente diante de duas
situações semelhantes.
Sabendo-se que em lógica formal, os termos a e b, antecedente e conseqüente de uma
relação R, podem ser invertidos desde que essa relação seja simétrica, tudo o que é necessário
fazer no campo argumentativo é demonstrar que entre esses dois seres ou duas situações, há uma
simetria essencial. Logo, torna-se possível aplicar o princípio da igualdade de tratamento. Alguns
provérbios são excelentes exemplos de aplicação da regra de justiça a situações que se pretendem
simétricas:
Não faças aos outros o que não queres que te façam
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
O sol nasce para todos
Olho por olho, dente por dente
114
Como já abordamos, o caráter quase lógico de que alguns tipos de argumentos se
revestem, evidenciam-se como um recurso à configuração representacional de operações
tradicionalmente consideradas lógicas por essência, mas sem que delas se possa necessariamente
extrair o mesmo tipo de conseqüências que ocorrem no seio da lógica formal, como, por
exemplo, as definições expressivas. Estas não possuem nenhum compromisso com a lógica,
dependendo exclusivamente de um ponto de vista. No que tange aos provérbios, o ponto de vista
considerado é o da sabedoria popular. Abreu destaca que as definições expressivas estão entre as
técnicas argumentativas mais utilizadas, “uma vez que permitem a fixação de pontos de vista
como teses de adesão inicial” (2004: 57-58). A presença das definições expressivas em alguns
provérbios ocorre em função do predominante caráter metafórico em seus enunciados:
Vingança é um prato que deve ser servido frio
Homem pequenino, ou velhaco ou bom dançarino
Mente vazia é oficina do diabo.
Beleza sem virtude é rosa sem cheiro
A ociosidade é mãe de todos os vícios
A economia é a base da prosperidade
Entre os argumentos quase lógicos, o que vemos com maior destaque em relação aos
provérbios é a comparação. A comparação se instaura quando entre um termo comparante e um
termo comparado, existe uma relação de inferioridade, superioridade ou igualdade. Nos
provérbios, as comparações são verificadas em algumas construções bem recorrentes, do tipo: é
melhor ... do que ..., mais vale/ vale mais ... (do) que , tão ... como, antes ( = é melhor / é
preferível) ... do que.
É melhor prevenir do que remediar
115
É melhor um pássaro na mão do que dois voando
É melhor dar do que receber
Uma imagem vale mais do que mil palavras
Mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo
Tão ladrão é o que vai à horta como o que fica à porta
Vale mais pão duro que figo maduro
Mais vale um mau acordo que uma boa demanda
Antes do que mal acompanhado
Antes tarde do que nunca
Também há argumentos quase lógicos que aparentemente se estruturam com base em
propriedades lógico-formais como a divisão, quando se procura mostrar uma alternativa, entre
outras, como constituindo um mal menor, isto é, quando a questão pose ser apresentada sob a
forma de um dilema. Nesse sentido, observamos que os quatro últimos exemplos acima, como
outros provérbios, possuem um caráter dilemático, apontando para uma solução tida, sob o ponto
de vista do senso comum, como a mais adequada e prudente.
O efeito persuasivo da comparação só se realiza, contudo, por haver a certeza de que se
pode validá-la por uma operação de controle. Esse efeito persuasivo é de natureza variável, em
função do termo de comparação que for escolhido. Assim, dizer que os Estados Unidos é mais
desenvolvido que o Brasil, é, de acordo com Perelman, “exprimir, em qualquer dos casos, um
juízo defensável, mas cujo alcance é bem diferente” (ibidem: 93). Numa pesagem ou medição
real, a escala de medida é neutra e invariável, mas na argumentação quase lógica é muito raro que
o termo de comparação seja determinado de forma rígida. Aqui o objetivo, como vimos nos
provérbios, é mais impressionar do que informar.
116
3.2.2.2- Argumentos Fundados na Estrutura do Real
Argumentos fundamentados na realidade são aqueles cujo sustentáculo encontra-se na
ligação existente entre os vários elementos da realidade. Uma vez que se admite que os elementos
do real estão associados entre si, em uma dada relação, é possível fundar sobre tal
correspondência uma argumentação que permita passar de um destes elementos ao outro
(Perelman, 1987: 251). Eles podem ser de dois tipos, que são de inegável importância persuasiva:
sucessão e coexistência.
Os argumentos fundados na estrutura do real por sucessão são aqueles que dizem respeito
à relação de causa e conseqüência. Em relação aos provérbios, destaca-se o argumento
pragmático, que se fundamenta na relação de dois fatos sucessivos por meio de um vínculo
causal. Tal concepção permite à argumentação dirigir-se em três direções: para a procura das
causas (e dos motivos, no caso dos atos intencionais), para a determinação dos efeitos e para a
apreciação das conseqüências.
A relação de causa e conseqüência é uma grande constante nos provérbios estruturados
binariamente, haja vista que eles são dotados de um caráter aconselhador e moralizante e, muitas
vezes, alertam para as conseqüências que um determinado ato ou situação (causa) pode acarretar.
Há certos elementos que servem para introduzir ou relacionar uma razão ou um fato A
legítimo, para uma conseqüência B. Segundo Maingueneau (1997: 175): “Esta consecução
pressupõe a existência de uma norma implícita do tipo ‘se temos A, devemos ter B’. Não se trata
de um implícito argumentativo que introduziria uma nova proposição sobre a qual incidirá a
enunciação, mas de uma relação que fundamenta a demonstração”. Encontramos nos provérbios,
neste sentido, estruturas do tipo:
117
... tanto A até que B; Quem A, não B; Quem não A, B; Quem não A, não B; Quem A, B
A, B; A, não B.
Vejamos agora como eles funcionam nos provérbios:
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura
Quem vê cara, não vê coração
Quem não chora, não mama
Quem planta vento, colhe tempestade
Quem brinca com fogo, acaba se queimando
Quem tudo quer, tudo perde
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
Quem cala, consente
Quem fala o que quer, ouve o que não quer
Quem não tem padrinho, morre pagão
Quem com porcos se mistura, farelo come
Quem muito fala, acaba dando bom-dia a cavalo
Pau que nasce torto, morre torto
Quem não deve, não teme
Quem muito fala, pouco acerta
Pedra que rola, não cria limo
Quem não arrisca, não petisca
De tanto pensar, morreu um burro
Frisa-se ainda que “para que o argumento pragmático funcione é preciso que o auditório
118
concorde com o valor da conseqüência” (Abreu, 2004: 60). Portanto, os provérbios têm a
vantagem de serem universalmente aceitos como verdades imemoriais irrefutáveis, tendo, por
conseguinte, as conseqüências veiculadas em suas mensagens uma fácil aceitação por parte do
enunciatário.
Ao contrário das ligações de sucessão que unem elementos da mesma natureza, com base
num vínculo de causalidade, as ligações de coexistência estabelecem um vínculo entre realidades
de nível desigual, em que uma é apresentada como expressão ou manifestação da outra. Estão
neste caso as relações entre a pessoa e os seus atos, os seus juízos ou as suas obras. Então, tudo
o que se afirma a respeito de uma pessoa, faz-se em função das suas manifestações e tem por base
a unidade e a estabilidade observáveis no conjunto dos seus atos. Supomos essa estabilidade
quando interpretamos o ato em função da pessoa.
O prestígio de uma pessoa exerce uma determinada influência na maneira como os seus
atos são interpretados e recebidos pelo auditório. Daí, o importante papel que o argumento de
autoridade pode assumir na argumentação. É que, como diz Perelman (1987: 254), se nenhuma
autoridade pode prevalecer sobre uma verdade demonstrável, o mesmo já não se passa quando se
trata de opiniões ou juízos de valor. Na dinâmica argumentativa, freqüentemente, não é o
argumento de autoridade que se põe em questão, mas a autoridade que concretamente foi
invocada.
É nesse sentido que muitas vezes o enunciador recorre ao enunciado proverbial, uma vez
que ele pode afastar-se da responsabilidade daquilo que diz, colocando em cena uma outra
personagem, o sujeito moralizante e conselheiro da sabedoria popular, isto é, a voz da autoridade
do senso comum. Ele pode utilizar tal voz de autoridade com o objetivo de tentar esconder o
sujeito responsável pelos atos vistos socialmente como condenáveis, realçando o apreciável
sujeito da moral e dos bons costumes que fala através dos provérbios. Todavia, um orador pode
119
ser dotado de uma incrível competência argumentativa, pode mesmo aliar à técnica de raciocínio
e expressão um natural encanto e sedução pessoal, mas dificilmente conquistará a adesão do
auditório se este o relacionar a um passado de atos tão reprováveis. A vida do orador é o
preâmbulo do seu discurso.
3.2.2.3- Argumentos que Fundam a Estrutura do Real
Argumentos que fundam a estrutura do real são aqueles que “generalizam aquilo que é
aceito a propósito de um caso particular (ser, acontecimento, relação) ou transpõem para um
outro domínio o que é admitido num domínio determinado” (ibidem: 258). Assim, esses tipos de
argumentos se fundamentam pelo caso particular e os raciocínios de analogia. Entre os primeiros,
destacam-se o exemplo, a ilustração e o modelo/antimodelo.
O exemplo é um caso particular, ou seqüência de casos, que aparece sob certa lógica,
levando o auditório a concluir um caso geral considerando o caso particular.
A ilustração é o uso de um exemplo para fundamentar uma regra como elemento de uma
indução. Sua função é reforçar a regra conhecida e aceita, fornecendo casos particulares
esclarecedores. Nos provérbios, verifica-se um traço marcante muito freqüente: a presença de
animais (peixe, gato, cão, jacaré, macaco etc.), objetos (livro, espeto, panela, bengala, colher
etc.), elementos e fenômenos da natureza (chuva, sol, água, fogo, tempestade, vento etc.). Estas
marcas representam argumentos que intentam levar o destinatário a analisar uma dada mensagem,
tendo como base argumentativa uma ilustração.
Sabe-se que os provérbios referem-se a valores, costumes, qualidades e atribuições de
uma determinada comunidade. Representam como as coisas funcionam, expondo uma série de
comportamentos de seus integrantes. Portanto, há essa referência a certos elementos em função
120
de que eles possuem características ou qualidades estereotipadas, universalmente reconhecidas e
aceitas como tais, servindo de fundamento para ilustrar determinado fato. Vejamos os exemplos:
A curiosidade matou o gato
MC: A curiosidade pode trazer problemas.
Raciocínio implícito: Às vezes os gatos morrem por causa de sua curiosidade. Portanto,
quem for curioso pode ter más conseqüências.
Não julgue o livro pela capa
MC: Não se deve julgar pelas aparências.
Raciocínio implícito: Assim como bons livros podem ter uma capa velha ou simples,
possuindo um aspecto desagradável; também verificamos este fato em diversas situações e
pessoas. Portanto, não se deve tirar conclusões precipitadas a respeito do que se vê.
Saiu na chuva, é para se molhar
MC: Quem se dispõe a fazer algo deve estar consciente das responsabilidades e
conseqüências do ato.
Raciocínio implícito: Tal qual aquele que sai na chuva sabe que vai se molhar, quem se
prontifica a fazer alguma coisa, deve estar consciente do que vai encontrar pela frente e de suas
conseqüências.
Percebe-se que dificilmente teríamos uma contra-ilustração para se opor às ilustrações
dadas, de modo que colocasse o argumento em “xeque”. Provavelmente, ninguém diria que tem
um gato que não é curioso, ou alguém que possua ou trabalhe em alguma biblioteca ou livraria
diga que todos os livros com capas novas e bonitas são bons, e que os de capas gastas e
esfarrapadas são todos ruins. Mais absurdo ainda seria alguém afirmar que a chuva não molha.
121
Othon M. Garcia (1992: 372-373) distingue duas espécies de ilustração: a real e a
hipotética. A primeira descreve ou narra um fato verdadeiro. Ela vale por si mesma como prova,
sustentando ou justificando, assim, determinada declaração. Porém, é a hipotética que apresenta
uma pertinência com os provérbios. Quanto a esta, o autor diz que ela “é invenção, é hipótese:
narra o que poderia acontecer ou provavelmente acontecerá em determinadas circunstâncias.
Mas, nem por ser imaginária, prescinde da condição de verossimilhança e de consistência, para
não falar da educação à idéia que se defende” (ibidem: 372).
Por falar em verossimilhança, vale frisar que apesar dos provérbios veicularem por uma
determinada comunidade com valor de verdade, obviamente, eles não o são de forma absoluta,
haja vista que há provérbios que contrariam outros (Rei morto, rei posto/ Quem já foi rei nunca
perde a majestade; Depois da tempestade, vem a bonança/ Uma desgraça nunca vem sozinha;
Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje/ Amanhã é outro dia; Tal pai, tal filho/ Pai
avaro, filho pródigo; etc.). Tais antagonismos corroboram para afirmarmos que os provérbios são
meras estratégias argumentativas para persuadir o outro. Portanto, eles se sustentam naquilo que é
verossímil, ou seja, naquilo que se assemelha ao verdadeiro, num processo que se fundamenta
através de uma lógica que os faz se confundirem com uma verdade. E nisso, a ilustração
desempenha um papel muito importante, já que “o propósito principal da ilustração hipotética é
tornar mais viva e mais impressiva uma argumentação sobre temas abstratos. É, ademais, um
recurso de valor didático incontestável, capaz de, por si só, tornar mais clara, mais convincente,
uma tese ou opinião” (ibidem: 372).
O modelo/antimodelo é usado dada nossa tendência à imitação e a processos de
identificação. O modelo indica ou apóia uma conduta, enquanto o antimodelo funciona às
avessas. Porém, há o inconveniente se nosso modelo possui pontos críticos ou se nosso
antimodelo apresenta virtudes. A saída é a criação de arquétipos ou mitos, postulando-se seres
122
perfeitos. É possível perceber nos provérbios certos tipos de modelos e antimodelos de
qualidades humanas que devem ou não ser seguidas. De modelos, podemos destacar, por
exemplo, homem prevenido, aquele que avisa, aquele que espera, aquele que procura, aquele
que dá aos pobres, aquele que não deve, aquele que canta, etc. Daí, nos provérbios, vêem-se:
Um homem prevenido vale por dois
Quem avisa, amigo é
Quem espera, sempre alcança
Quem procura, acha
Quem dá aos pobres, empresta a Deus
Quem não deve, não teme
Quem canta, seus males espanta
Quanto aos antimodelos, verificamos, por exemplo: apressado, aquele que tudo quer,
aquele que fala o que quer, aquele que muito fala, aquele que não poupa, aquele que não
arrisca, aquele que não quer enxergar, aquele que não tem competência, etc. Então, temos nos
provérbios:
Apressado come cru
Quem tudo quer, tudo perde
Quem fala o que quer, ouve o que não quer
Quem muito fala, pouco acerta
Quem muito fala, acaba dando bom-dia a cavalo
Quem não poupa reais, não junta cabedais
Quem não arrisca, não petisca
O pior cego é aquele que não quer enxergar
123
Quem não tem competência, não se estabelece
A analogia implica uma semelhança de estruturas, onde “A” está para “B” assim como
“C” está para “D”, tal que se “A” e “B” são o tema “C” e “D” são o foro. Em vez de ser uma
relação de semelhança é uma semelhança de relação. Uma analogia possui quatro termos
complexos, mas pode haver três, “B” está para “A” assim como “C” está para “B” ou “A” para
“B” como está para “C”. O estatuto da analogia é instável, visto que ela pode sofrer duas espécies
de objeção. Para os adversários, pode não existir e para os partidários, ser maior do que se afirma.
Toda metáfora implica uma mudança bem sucedida de significação e trabalha num
processo de analogia condensada. Quando enfraquece a relação significante/significado,
expressão/sentido, há um desgaste da metáfora. Ela só ganhará força se fizermos uma nova
analogia. Vista a importância da metáfora no discurso persuasivo, trataremos dela mais
detidamente adiante no tópico sobre as figuras de retórica.
3.2.3- Os Lugares da Argumentação
Como sabemos, cada indivíduo determina um grau de importância a seus valores,
priorizando uns e denegando outros. A partir desse fato, tem-se a expressão hierarquia de
valores. Quanto a esta, Abreu afirma que “num processo persuasivo, a maneira como o auditório
hierarquiza os seus valores chega a ser, às vezes, até mais importante do que os próprios valores
em si. Na verdade, o que caracteriza um auditório não são os valores que ele admite, mas como
ele os hierarquiza” (2004: 77).
A hierarquia de valores muda de pessoa para pessoa, pois há de se considerar que em
cada comunidade, existem heterogeneidades culturais e ideológicas de diversas ordens. Daí,
124
poderíamos nos valer de um próprio provérbio para apoiar nossa afirmativa: Em casa de
enforcado, não se fala em corda. Por isso, na argumentação, é essencial descobrir a hierarquia de
valores do outro. E para isto, basta, como aponta Abreu, atentar para “a intensidade de adesão a
valores diferentes” (ibidem: 79), logo, teremos uma hierarquia estabelecida pelo auditório. E
quando o enunciador emprega uma tese que vai de encontro aos valores do outro, é preciso
analisar tais valores e “subordiná-los a outros do próprio auditório, ou seja, re-hierarquizá-los
(ibidem: 78).
A fim de re-hierarquizar os valores do auditório, o enunciador pode utilizar algumas
técnicas argumentativas denominadas lugares da argumentação. Os lugares, ou topoi,
designam as rubricas nas quais se podem classificar os argumentos. Sua principal função é
instaurar as hierarquias e os valores. Os lugares da argumentação são os seguintes: lugar da
quantidade, lugar da qualidade, lugar da ordem, lugar da essência, lugar da pessoa, lugar do
existente. Destes, os que valem destacar nos provérbios são os da quantidade e da qualidade.
3.2.3.1- Lugar da Quantidade
Os lugares da quantidade afirmam que alguma coisa é melhor do que outra por razões
quantitativas ou quando se demonstra uma situação apoiando-se em números. Neste lugar,
encontramos alguns dos fundamentos da democracia, como na eleição, cuja vitória do candidato
concretiza-se quando este recebe uma quantidade de votos superior a de seus concorrentes. Outro
argumento fundado no lugar da quantidade de forte poder persuasivo são as estatísticas. Nos
provérbios, também observamos a relação quantitativa como forma de argumentação:
Uma andorinha só não faz verão
Duas cabeças pensam melhor do uma
125
Dia de muito, véspera de nada
Roma não se fez em um dia
Candeia que vai à frente alumia duas vezes
Dor de barriga não dá só uma vez
Quem corre atrás de dois, um vai embora
Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar
Perelman ainda destaca que
O mais das vezes, aliás, o lugar da quantidade constitui uma premissa maior
subentendida, mas sem a qual a conclusão não ficaria fundamentada. Aristóteles
assinala alguns desses lugares: um maior número de bens é preferível a um menor
número, o bem que serve a um maior número de fins é preferível ao que só é útil ao
mesmo grau, o que é mais duradouro e mais estável é preferível ao que o é menos
(1999: 97).
Devido ao fato dos provérbios serem enunciados estereotipados, com grande estabilidade
na comunidade pela qual eles circulam, e que remontam aos mais antigos tempos, deduzimos,
portanto, que em todos os provérbios há imanentemente o lugar da quantidade. Além disso, cita
Perelman, “o lugar quantitativo do duradouro permite valorizar a verdade como o que é eterno,
em comparação com as opiniões instáveis e passageiras” (ibidem: 98).
3.2.3.2- Lugar da Qualidade
O lugar da qualidade trabalha de forma inversa, valorizando o raro, único, uma vez que
este não é o vulgar, o comum, mas o original. Ele se contrapõe à força do número em favor de
um elemento singular tido como superior. O próprio Abreu (ibidem: 85) exemplifica este tipo de
126
lugar com um interessante provérbio de Confúcio: Mais vale acender uma vela do que maldizer a
escuridão. Nos provérbios, existem alguns dignos de nota que se fundamentam no lugar da
qualidade.
É melhor um pássaro na mão do que dois voando
Um homem prevenido vale por dois
Uma imagem vale mais do que mil palavras
Mais vale um mau acordo do que uma boa demanda
Não tenho tudo que amo, mas amo tudo que tenho
Embora mais raros, também podemos encontrar nos provérbios algumas ocorrências dos
lugares da ordem e do existente. O lugar da ordem ressalta a superioridade do anterior sobre o
posterior ou vice-versa, dependendo da situação a que se atribui o argumento:
A primeira impressão é a que fica
Quem ri por último, ri melhor
Primeiro aos meus, depois aos alheios
Já o lugar do existente realça aquilo que já existe, ou que já se tem, em detrimento do que
não existe ou não se possui:
Mais vale tico-tico no prato que jacu no mato
É melhor um pássaro na mão do que dois voando
Mais vale um mal acordo do que uma boa demanda
Notem que no provérbio É melhor um pássaro na mão do que dois voando vemos dois
lugares argumentativos: o da qualidade e o do existente.
127
3.3- AS FIGURAS DE RETÓRICA
Pode-se perceber que na maioria dos provérbios, as palavras e frases não possuem o seu
sentido literal, denotativo. Várias figuras de retórica, também chamadas figuras de linguagem,
permeiam as suas estruturas. Estas figuras são recursos lingüísticos utilizados especialmente a
serviço da persuasão, mostrando-se como importantes recursos para agarrar a atenção do
destinatário nos argumentos discursivos. Como cita Abreu, “as figuras retóricas possuem um
poder persuasivo subliminar, ativando nosso sistema límbico, região do cérebro responsável pelas
emoções. Elas funcionam como cenas de um filme, criando atmosferas de suspense, humor,
encantamento, a serviço dos nossos argumentos” (2004: 105). Portanto, desempenham a função
de recriar um certo campo de informação, estabelecendo novos efeitos que despertam maior
interesse do receptor. Tal recurso causa um impacto maior por intermédio de mecanismos de
“estranhamento”, levando o receptor a refletir sobre a mensagem veiculada. Segundo Fiorin,
no seu fazer persuasivo, o enunciador procura criar efeitos de estranhamento com a
finalidade de chamar a atenção do enunciatário para sua mensagem. Para isso, utiliza-
se de recursos retóricos. Assim, o enunciatário, por meio de uma percepção inédita e
inesperada, pode atentar melhor para certos elementos que estão sendo comunicados e
aceitar mais facilmente o enunciado (2002: 62).
Entre as figuras* mais articuladas nos provérbios, a metáfora é a que apresenta maior
destaque, uma vez que a maioria quase absoluta deles possuem valor metafórico.
____________________
* Para a análise das figuras de som, ver capítulo sobre a coesão nos provérbios (2.2.4- recorrência de
aspectos fonológicos).
128
3.3.1- A Metáfora
Há metáfora (do grego metaphorá = transporte) quando a significação imediata
(sentido denotativo) de um termo é trocada por outro (sentido conotativo). Existe uma relação de
semelhança entre eles em algum matiz; como uma comparação implícita. Daí a noção de
transporte.
Exemplo: Vingança é um prato que deve ser servido frio
MC: A vingança deve ser executada com calma. Deve ser planejada pacientemente.
Então, verifica-se que a relação entre vingança e um prato que deve ser servido frio está
na paciência, na espera.
As metáforas desempenham um importante papel na atividade argumentativa dos
enunciados proverbiais, uma vez que eles normalmente funcionam no discurso de forma
metafórica. Destarte, destacaremos a análise pormenorizada de Antônio Abreu (2004: 112-124)
sobre o funcionamento delas como argumento, observando como tais fenômenos atuam nos
provérbios.
O autor classifica as metáforas em cinco grupos distintos: metáforas de restauração, de
percurso, de unificação, as criativas e as naturais. No entanto, em relação aos provérbios, as que
valem destacar são as criativas e as naturais:
3.3.1.1- Metáforas criativas
Destas, as que surgem com grande incidência nos provérbios são as de construção e as de
lavrador ou campestres:
129
a) Metáforas de construção
Elas relacionam situações, experiências e ações humanas a construções como casas,
moinhos, telhado, veículos, etc. Nos provérbios vemos:
Águas passadas não movem o moinho
Se tens telhado de vidro, não atires pedras
Grande nau, grande tormenta
Vê-se pela aragem quem vai na carruagem
Depois da casa roubada, trancas nas portas
Quando o gato não está em casa, os ratos fazem a festa
Casa onde falta pão, todos gritam, ninguém tem razão
Em casa de enforcado, não se fala em corda
Notem que o termo casa é o mais corriqueiro nas metáforas de construção, remetendo o
provérbio a um contexto mais familiar.
b) Metáforas de lavrador ou campestre
Estas utilizam elementos e ações ligados ao campo, como o plantio, a colheita, terra,
animais tipicamente rurais, etc. Podemos destacar nos provérbios:
Quem planta vento, colhe tempestade
Por falta de um grito se perde uma boiada
Não ponha a carroça na frente dos bois
130
Nós colhemos o que plantamos
Do pasto à boca, se perde a sopa
Em terra aonde a gente não vai, banana dá na rama e feijão dá na raiz
Em pasto alheio, boi berra como vaca
Abreu ainda cita entre as metáforas de construção, as de tecelagem e as musicais.
Entretanto, nos provérbios, elas são muito raras. Podemos exemplificá-las em:
Dança-se conforme a música (metáfora musical)
Cada um sabe as linhas com que cose (metáfora de tecelagem)
3.3.1.2- Metáforas naturais
Sem dúvida alguma, elas são as mais abundantes nos provérbios. No que tange a estes,
ressaltam-se as metáforas de fenômenos e elementos naturais e a biológica:
a) Metáforas de fenômenos e elementos naturais
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura
Quem com ferro fere com ferro será ferido
Onde há fumaça, há fogo
Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar
Não faça tempestade em copo d’água
Em rio de piranha, jacaré nada de costas
O sol nasce para todos
Saiu na chuva, é para se molhar
131
Quem planta vento, colhe tempestade
A palavra é de prata, o silêncio é de ouro
Gaivotas em terra, tempestade no mar
De Espanha, nem bom vento nem casamento
Manhã de nevoeiro, tarde de sol soalheiro
Depois da tempestade, vem a bonança
Rio passado, santo esquecido
A água silenciosa é a mais perigosa
b) Metáforas biológicas
A metáfora biológica relaciona as ações, experiências ou os próprios seres humanos com
animais. Talvez este tipo de metáfora seja a mais abundante nos provérbios. Tal fato evidencia
uma certa semelhança com as fábulas, cujos personagens normalmente são animais, que na
verdade representam seres humanos. E como os provérbios, elas encerram uma sentença moral,
haja vista que em várias delas, a conclusão da história é um provérbio.
Vejamos algumas ocorrências dessas metáforas:
Cavalo dado não se olham os dentes
Quando um burro fala, o outro baixa as orelhas
Cão que ladra não morde
Pato novo não mergulha fundo
O peixe morre pela boca
Uma andorinha só não faz verão
Filho de peixe, peixinho é
132
Macaco velho não mete a mão em cumbuca
Cada macaco no seu galho
Quem não tem cão, caça com gato
Em rio de piranha, jacaré nada de costas
Quem com porcos se mistura, farelo come
Quem muito fala, acaba dando bom-dia a cavalo
De grão em grão, a galinha enche o papo
À noite, todos os gatos são pardos
Nem sempre galinha, nem sempre sardinha
Burro morto, cevada ao rabo
Gato escaldado tem medo de água fria
Gaivotas em terra, tempestade no mar
Ovelha que berra, bocado que perde
Cobra que não anda, não engole sapo
Papagaio come o milho, periquito leva a fama
Queixada fora do bando é comida de onça
Othon Garcia (1992: 90-91) examina a questão das metáforas naturais, denominando-as
como metáforas naturais da língua corrente. Com relação a estas, o autor diz: “Comuns e
numerosas em todas as línguas, elas têm como fontes geradoras o próprio homem, seu ambiente e
seu cotidiano” (ibidem: 90).
Como sabemos, os provérbios são afirmações concisas de verdades gerais, originárias da
experiência popular, do senso comum. Neles estão descritos os interesses e necessidades
primárias do homem, tais como a saúde e a doença, as relações familiares, o amor e as discórdias,
133
a juventude e a velhice, a fome e o alimento, o trabalho e o divertimento. Daí, podemos observar
a semelhança entre os valores freqüentemente embutidos nos provérbios e a definição das
metáforas naturais da concepção othoniana. Dessa forma, é fácil entender a razão da enorme
predominância desse tipo de metáfora nos provérbios. Além disso, elas são um atrativo a mais
para o enunciatário, no sentido de que, muitas vezes, trazem elementos “familiares” ao seu
universo, à sua vida cotidiana. Assim, dependendo de suas experiências pessoais, a recepção do
outro pode ser mais favorável, abrindo, por conseguinte, um caminho para a sua adesão ao
enunciado proverbial.
Além das metáforas naturais já mencionadas, Othon Garcia (ibidem: 90) acrescenta outros
três tipos, que se formam a partir de nomes de partes do corpo humano; de coisas, objetos e
utensílios da vida cotidiana e de vegetais. Nos provérbios, temos os exemplos:
a) Metáforas de partes do corpo humano
Olho por olho, dente por dente
Cavalo dado não se olha os dentes
Quando um burro fala, o outro baixa as orelhas
Mentira tem pernas curtas
Macaco velho não mete a mão em cumbuca
Quem tem boca vai a Roma
Quem vê cara, não vê coração
É melhor um pássaro na mão do que dois voando
Longe dos olhos, longe do coração
Pimenta nos olhos dos outros é refresco
134
A palavras loucas, orelhas moucas
Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas
Quem meus filhos beija, minha boca adoça
b) Metáforas de coisas, objetos e utensílios da vida cotidiana
Panela velha é que faz comida boa
Em casa de ferreiro, espeto é de pau
Não cuspa no prato em que comeu
Caiu na rede é peixe
Não julgue o livro pela capa
Macaco velho não mete a mão em cumbuca
Não faça tempestade em copo d’água
A pior roda do carro é a que faz mais barulho
Desculpa de cego é bengala
Depois da casa arrombada, trancas na porta
Candeia que vai à frente alumia duas vezes
A corda sempre arrebenta do lado mais fraco
Vão-se os dedos, ficam os anéis
Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher
Quando o gato não está em casa, os ratos passeiam por cima da mesa
c) Metáforas de vegetais
135
A grama do vizinho sempre é mais verde
Do pasto à boca, se perde a sopa
As rosas caem, os espinhos ficam
Quanto maior é a árvore, maior é o tombo
Laranja: de manhã é ouro, à tarde é prata, de noite mata
É de pequenino que se torce o pepino
Enquanto você vem com o milho, eu já estou voltando com o fubá
Papagaio come o milho, periquito leva a fama
Em terra aonde a gente não vai, banana dá na rama e feijão dá na raiz
Beleza sem virtude é rosa sem cheiro
Mais vale tico-tico no prato que jacu no mato
É pelo fruto que se conhece a árvore
Não compres nabos em sacos
Ainda seríamos capazes de introduzir, entre as metáforas naturais de Othon Garcia, uma
outra espécie muito corriqueira nos provérbios, que poderíamos denominar de metáforas de
alimento:
Farinha pouca, meu pirão primeiro
De grão em grão, a galinha enche o papo
Pimenta nos olhos dos outros é refresco
Do pasto à boca, se perde a sopa
Galinha velha faz bom caldo
Vale mais pão duro que figo maduro
Quando se ganha o pão, não se come a carne
136
Pegam-se mais moscas com mel do que com vinagre
Enquanto você vem com o milho, eu já estou voltando com o fubá
Quem azeite mede, as mãos unta
O tonel nunca perde o cheiro do vinho
A cuba cheira ao vinho que tem em si
Cabaça que leva leite nunca mais perde a catinga
Cuia que leva azeite nunca perde o almíscar
Canudo que teve pimenta guarda o ardume
A verdade é como o azeite, sempre vem à tona
Não se fazem omeletes sem quebrar os ovos
Não adianta chorar pelo leite derramado
3.3.2- Outras Figuras
Metonímia
A metonímia (do grego metonymía = emprego de um nome por outro) ocorre quando há
uma relação de contigüidade entre os termos, designando uma coisa com o nome de outra.
Duas cabeças pensam melhor do que uma
Em casa onde falta pão, todos gritam, ninguém tem razão
Nota-se no primeiro exemplo o emprego da parte (cabeças) no lugar do todo (pessoas).
Enquanto no segundo, vê-se o uso da espécie (pão) na posição do gênero (alimento).
137
Hipérbole
Consiste em exprimir uma idéia pelo exagero de certos elementos.
Uma imagem vale mais do que mil palavras
Não faça tempestade em copo d’água
Prosopopéia
É utilizada para atribuir qualidades peculiares aos seres humanos a outros, não-humanos.
Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha
O seguro morreu de velho
A esperança é a última que morre
A palavras loucas, orelhas moucas
Pleonasmo
Ocorre pleonasmo (do grego pleonasmós = excesso) quando se empregam termos
redundantes, desnecessários para a compreensão do enunciado. Quando o locutor recorre a ele
intencionalmente, é para reforçar a idéia ou argumento de sua mensagem.
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura
Antítese
138
Ao confrontar termos ou idéias com sentidos contrários a fim de obter um efeito
expressivo, tem-se uma antítese (do grego antíthesis, anti + tese = oposição) . Como já vimos no
capítulo sobre coesão, este é um fenômeno que surge com grande abundância nos provérbios.
Othon Garcia faz uma importante observação a respeito dessa figura:
O apelo à antítese e às suas variantes (oxímoro e paradoxo) parece reflexo da própria
realidade, que, por ser múltipla, é em si mesma contrastante. Se fosse homogênea, não
poderia o homem captá-la, compreendê-la e senti-la em todas as suas dimensões. Só
fazemos idéia do que é preto porque sabemos o que é branco. À imagem de anão opõe-
se a de gigante. A idéia de rapidez da lebre contrasta com a de lentidão da tartaruga.
Tudo, afinal, se resume num jogo de contrastes: “Sem os contrastes que a Natureza
apresenta, os homens não poderiam conhecer nem avaliar as coisas e sucessos deste
mundo” (Marquês de Maricá). (...) A antítese é tanto mais expressiva quanto mais
concisa, isto é, quanto menor o número de palavras em que se traduz, como se pode
observar na maioria das máximas e provérbios (1992: 78-79).
Como também cita o próprio autor, “se além da oposição de sentido, há identidade de
sons, maior ainda é o efeito da antítese” (ibidem: 79):
A riqueza envilece os homens, a pobreza os enobrece
Os afortunados não sabem desculpar os desgraçados
A maldade supõe deficiência, a bondade, suficiência
Othon ainda diz que o paralelismo métrico, isto é, “mais ou menos a mesma extensão ou
número de sílabas nos dois termos antitéticos”, também contribui de forma marcante para a
expressividade (ibidem: 80). Além dos exemplos já citados acima, podemos verificar tal fato em:
Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe
Pau que nasce torto, morre torto
Tudo que sobe, desce
139
Quem muito fala, pouco acerta
Ao rico não faltes, ao pobre não prometas
Pai avaro, filho pródigo
Eufemismo
Na sua estrutura, significa (do grego euphemismós) “expressão boa, bem dizer”. É
empregado para atenuar alguma idéia ou coisa vista como desagradável, indecente ou vulgar.
Troca-se o termo ou expressão por algum sinônimo de sentido aproximado. Nos provérbios,
normalmente, a eufemização se realiza com mais força e freqüência na enunciação do que no
enunciado, onde é mais comum.
Os provérbios moralizantes muitas vezes eufemizam as intenções do enunciador,
veiculando escamoteadamente a sua mensagem através da MC dos provérbios.
Exemplo: Quem planta vento, colhe tempestade
MC: Aquele que produz coisas ruins, terá como conseqüência coisas ainda piores.
Ao utilizar este provérbio, o enunciador não diz diretamente algo como: “Se você
continuar no caminho errado, as conseqüências serão terríveis!”.
Para não assumir a condição explícita de acusador, ele projeta as suas intenções nos
provérbios, valendo-se da voz da autoridade embutida neles. Afasta-se, assim, da
responsabilidade do seu discurso, compartilhando-o com o outro, devido ao caráter odioso de
suas palavras. Quanto a isso, James Obelkevich faz uma pertinente observação: “Em situações de
conflito, os provérbios são usados menos por sua verdade ou sabedoria, do que para que se tire
vantagens de sua impessoalidade; ao expressar desaprovação de forma indireta, eles atenuam a
crítica e fazem que uma reação mal-humorada seja menos provável” (1997: 48).
140
Repetição
A repetição é vista em larga escala nos provérbios, sendo um dos fenômenos mais recorrentes
em suas estruturas. A reutilização de um mesmo termo ou expressão num enunciado, serve para
reforçar e fixar a mensagem. Pretende-se “martelar” determinada idéia a fim de massificar a
mensagem na mente do receptor para persuadi-lo. Como declara Othon Garcia, “a repetição
intencional representa um dos recursos mais férteis de que dispõe a linguagem para realçar as
idéias” (1992: 271). É um recurso muito utilizado em anúncios e slogans publicitários, que
procuram o tempo todo persuadir o consumidor.
Olho por olho, dente por dente
Quem tudo quer, tudo perde
Quem com ferro fere, com ferro será ferido
Quem fala o que quer, ouve o que não quer
Pau que nasce torto, morre torto
Quem ri por último, ri melhor
Quem não chora, não mama
Tal pai, tal filho
Observa-se que em alguns provérbios há mais de uma figura. Fato que acentua ainda mais
a sua expressividade:
Quem com ferro fere, com ferro será ferido (metáfora, repetição e aliteração)
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura (metáfora, pleonasmo e rima)
Pau que nasce torto, morre torto (metáfora, repetição e antítese)
141
Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher (rima e aliteração do /m/)
3.4- O TEMPO VERBAL
Elemento característico nos provérbios e a presença do verbo na terceira pessoa do
singular do presente do indicativo; fato que se observa em quase todos que utilizamos até aqui.
Harald Weinrich, lingüista alemão, analisa os tempos verbais como base para a distinção
entre dois tipos de atitude comunicativa: o “Mundo Comentado” (ou comentário) e o “ Mundo
Narrado” (ou relato) (1973 apud Koch, 2003a: 54-58). No Mundo Comentado, o locutor
responsabiliza-se pelo que enuncia, há um comprometimento total do emissor com o seu
enunciado. Cria-se um envolvimento maior entre os coenunciadores. Já no Mundo Narrado, o
locutor não se compromete com o que diz, visto que ele só relata fatos, sem fazer qualquer
interferência.
São tempos do Mundo Comentado o Presente, o Futuro do Presente, o Pretérito Perfeito
Simples (retrospectivo) e o Pretérito Perfeito Composto e as locuções formadas por esses tempos.
E ao Mundo Narrado, pertencem os Pretéritos Perfeito (tempo-base), Imperfeito e Mais-que-
Perfeito, o Futuro do Pretérito e todas as locuções pertinentes a esses tempos.
Vê-se, então, que é por pertencer ao Mundo Comentado que os provérbios possuem verbo
no Presente. Mesmo que o fato ao qual o provérbio se refere já tenha acontecido ou ainda deva
ocorrer, a mensagem e o sentido contidos nele permanece estável e o provérbio perfeitamente
utilizável. Isso só vem confirmar o caráter atemporal dos provérbios.
Vimos que no Mundo Comentado, o locutor tem um comprometimento com aquilo que
diz, representando maior engajamento, atenção e relevância. Por assumir o caráter de verdade
inquestionável, o verbo nos provérbios precisa ter um caráter imperativo, tornando indiscutível o
142
enunciado. Assim, o locutor histórico-social, responsável pela verdade imposta, ganha mais força
no seu discurso, reforçando consideravelmente os seus argumentos. Para Koch, “o uso dos
tempos do mundo comentado torna um texto explicitamente opinativo, crítico e argumentativo”
(ibidem: 58). Esta força ficará mais evidente ao compararmos os provérbios, utilizando-se neles
os tempos do Mundo Narrado:
Provérbio: O sol nasce para todos
O sol nasceu para todos
O sol nascia para todos (não nasce mais?)
O sol nascera para todos (não é mais para todos?)
O sol nasceria para todos (por que não nasceu? ou por que não foi para todos?)
Sob o ponto de vista retórico, nota-se que o uso dos tempos do Mundo Narrado deixa
brechas para especulações. Porém, vê-se que no Pretérito Perfeito mantém-se a mensagem mais
fiel ao sentido da original, exatamente por, também, fazer parte do Mundo Comentado. Já na sua
forma conhecida (O sol nasce para todos), não há lacunas para outras interpretações ou qualquer
dúvida. O argumento segue uma direção inequívoca. Assim, o raciocínio apresenta-se mais
fechado em si mesmo. Desta forma, possibilita-se que o valor de “verdade absoluta” dos
provérbios permaneça mais estável e menos questionável.
143
4. ANÁLISE DO CORPUS
A partir de todos os conceitos teóricos estabelecidos e dos aspectos argumentativos
presentes na enunciação e estruturas proverbiais que expusemos até aqui, faremos uma análise de
suas ocorrências nos textos jornalísticos, publicitários e letras de música, observando as
estratégias articuladas pelos locutores a fim de persuadir os alocutários, bem como os efeitos de
sentido obtidos no discurso.
4.1- O PROVÉRBIO NAS LETRAS DE MÚSICA
Muitas vezes um provérbio serve como base e referência para certas alusões e imitações,
que, entre os fenômenos de heterogeneidade enunciativa, apresentam-se como uma das suas
manifestações mais notórias, detendo um importante espaço na atividade argumentativa.
Há autores que fazem separação entre alusão e imitação. Entretanto, trataremos aqui os
dois termos indistintamente, pois, muitas vezes, os limites entre eles mostram-se muito tênues.
Vale destacar o que Maingueneau (1997: 102) diz a respeito da imitação:
(...) a imitação de um gênero pode assumir dois valores opostos: a captação e a
subversão. Realmente, quando um falante se apaga por trás do “locutor” de um gênero
determinado de discurso, e mostra que o faz, poderá pretender beneficiar-se da
autoridade ligada a este tipo de enunciação ou arruiná-la. No primeiro caso, quando há
“captação”, a imitação incide sobre a estrutura explorada e, no segundo caso, quando
144
há “subversão”, a desqualificação desta estrutura ocorre no próprio movimento de sua
imitação.
Por se tratarem de enunciados com caráter de verdade, sócio-historicamente determinados
e consagrados, sendo praticamente irrefutáveis, se aplicado de modo pertinente, os provérbios
configuram-se como “alavancas” ideais para impulsionar os propósitos ilocutórios do emissor,
mesmo que não os utilize na sua forma popularmente conhecida, sendo aludidos.
A captação de um provérbio é um processo muito corriqueiro, principalmente em textos
publicitários, sobretudo nos slogans, já que estes “aspiram a ter a autoridade de um provérbio, a
ser universalmente conhecido e aceito pelo conjunto dos falantes de uma língua, de maneira a ser
utilizado em qualquer circunstância” (Maingueneau, 2001: 173). Neste sentido, o slogan segue a
mesma direção do provérbio, utilizando como estratégia argumentativa a apropriação do valor
pragmático deste e, essencialmente, de sua irrefutabilidade.
Uma curiosa ocorrência deste fenômeno tiramos de uma propaganda da Sylk Blue,
empresa que trabalha na confecção e impressão de estampas de camisa. Num interessante jogo de
ambigüidade, capta-se o provérbio, utilizando o slogan “A primeira impressão é a que fica”.
No que tange à subversão, ainda que a mensagem veiculada pelo utente seja o contrário
ou, de alguma forma, negada pelo provérbio em questão, o poder argumentativo do texto não será
comprometido ou pode, em alguns casos, até ser intensificado. Haja vista que a exceção ou a
negação, de certa maneira, reafirma, mesmo que seja no que é silenciado, a autoridade do
provérbio; já que tal ocorrência leva o receptor, através de um processo comparativo, a refletir
sobre o posto contrário ou negado e o provérbio aludido. Quanto a isso declara Maingueneau
(2001:173):
Nesses tipos de enunciados alusivos não existe relação de sentido relevante entre os
enunciados evocados e os que se constroem a partir dos primeiros; (...) trata-se, antes
145
de tudo, de atrair a atenção do leitor, levando-o a identificar dois enunciados em um só,
enfatizando um ethos lúdico.
É muito difícil encontrarmos subversões feitas a partir de um provérbio, pois, refutar a
autoridade de um dito popular consagrado, tido como verdade universal, não é tarefa das mais
fáceis. Entretanto, em algumas músicas podemos observar tal ocorrência. Um excelente exemplo
deste fato é a canção “Bom Conselho” (1972) de Chico Buarque, onde encontramos nas
imitações diversas subversões. Notem, porém, que mesmo subvertidos, os provérbios funcionam
como argumentos essenciais para a obtenção dos objetivos ilocutórios do enunciador.
BOM CONSELHO
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
146
Eu semeio vento na minha cidade
Vou para rua e bebo a tempestade
Vejam que a maior parte da letra da música alude a provérbios, contrariando-os. Da
mesma maneira que se pode aproveitar a voz de autoridade no provérbio, ao negá-lo, tal
autoridade ainda ressoa, trazendo a voz da afirmação, conforme a teoria de Ducrot (1987:192) a
respeito da negação, vista polifonicamente, estabelecendo, assim, um confronto ideológico entre
ambas as vozes (E1 e E2). Quando Chico Buarque diz Quem espera nunca alcança,
imediatamente o receptor, considerando que ele reconheça o provérbio como tal, traz o ditado
Quem espera sempre alcança, incorporando naquele, num contexto oportuno, todo poder
argumentativo deste.
Ao contrariar o provérbio em questão, o autor assume, segundo Ducrot (supra), o papel de
E2, que contradiz E1, isto é, a voz da sabedoria popular, que no caso é o ditado Quem espera
sempre alcança. Daí, E2 representaria o sujeito da FI2, que, sob o ponto de vista histórico-social,
faz e/ou diz o que é imprudente, antiético e inadequado. Em contrapartida, E1 seria o
representante da FI1, dizendo o que é bom, ético e adequado, ou seja, o provérbio. Ao enunciar
Quem espera sempre alcança, observando a sua MC, exalta-se a virtude da “paciência”, cuja
prática, de acordo com o ditado, traz grandes benefícios. Assim, em Quem espera nunca alcança,
o compositor rejeita tal virtude, o que podemos notar em outros versos, sugerindo uma tomada
de atitude inversa, como dissesse ao enunciatário: “seja ousado, destemido e/ou audacioso”.
Vale destacar que essa música foi composta (1972) em meio a um governo ditatorial que
muito perseguiu o cantor, o que nos permitiria dizer que, talvez, a canção seja um protesto ou um
manifesto contra tal sistema. Portanto, a rejeição, a atitude sugerida pelo autor, não seria contra a
sabedoria popular em si, mas contra a forma de governo, que se apresentava como a única e
147
verdadeira voz de autoridade, impondo todo tipo de censura e repressão a quem se apresentasse
como uma possível ameaça ou oposição. Por isso, nesse caso, o provérbio se torna uma
ferramenta sob medida para o “falar sem dizer”. Pois, devido ao seu caráter genérico e universal,
não há uma referência direta e particular, ainda que Chico Buarque tenha em mente um alvo
específico, ela se estabelece escamoteadamente. Além disso, sua voz se dilui com outras, ou seja,
as vozes da sabedoria popular, “instância invisível co-responsável pela asserção” (Maingueneau,
2001:170), haja vista que o enunciador do provérbio pertence à comunidade dos locutores de uma
língua, membros dessa instância, compartilhando, assim, a responsabilidade do enunciado.
Destaca-se que tal imitação se constrói a partir de um enunciado já polifônico. Temos, então, uma
polifonia sobre outra polifonia. Quanto mais heterogêneo se mostrar o enunciado, mais diluído e
distanciado pode-se encontrar o seu responsável. Daí, o compositor teria uma posição mais
segura quanto a uma possível crítica ou repreensão. Ainda mais que, por se tratar de um
enunciado dotado de autoridade polifônica, o provérbio não pode ser julgado em termos de
verdade ou falsidade.
O provérbio, como já expusemos anteriormente, dita normas, procedimentos e maneiras
de se portar socialmente, vistas como corretas e benéficas. Lembrando o que cita Maingueneau
(2001:171), “o provérbio é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas, sobre como
funciona o mundo, dizendo o que é verdadeiro.” Podemos perceber, numa breve comparação, que
o provérbio e o antigo sistema ditatorial apresentam-se como a voz da verdade, “dizendo o que é
verdadeiro”, como regra geral que deve ser seguida, cuja desobediência implicará danos a quem
não a cumprir. Então, no caso da letra da música, romper com o provérbio, é romper com o
sistema, com a regra, com o “continuismo”. Contrariar o provérbio é quebrar o estereótipo, isto é,
mudança de pensamento e de atitude. É ser ousado, destemido e/ou arrojado.
148
Mesmo em situações em que a afirmação de Chico Buarque surja como verdade, ela não
invalida o provérbio negado. Pois, a sua afirmação, dentro de um contexto histórico-social cujo
dito popular se apresenta como verdade irrefutável, seria uma exceção, confirmando a regra, isto
é, o provérbio.
Além disso, ressaltam-se os seus aspectos prosódicos e rítmicos, que lhe afere uma
interessante força melódica e expressiva. Repare que na sua estrutura bimembre (causa/
conseqüência) observamos a recorrência métrica e acentual:
Quem espera/ nunca alcança (dois trissílabos e acento nas terceiras sílabas)
1 2 3 1 2 3
Igualmente, temos em Devagar é que não se vai ao longe, que remete à afirmação
Devagar é que se vai ao longe. Aqui verificamos as mesmas ocorrências do provérbio anterior, só
que sem a presença dos aspectos sonoros, na medida que este último não apresenta estrutura
bimembre, que, comumente, é pré-requisito para que tais fenômenos estilísticos ocorram.
Já em Faça como eu digo/ Faça como eu faço, o compositor contraria o provérbio com a
afirmação, pois o provérbio aludido é Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço,
apresentando a negação na segunda parte. Diferentemente dos dois anteriores, que Buarque partia
de um provérbio afirmativo para uma imitação negativa, neste vai-se da negação para a
afirmação. Entretanto, o efeito rerico é o mesmo dos anteriores, com exceção da sua disposição
no texto e de sua estruturação léxico-sintática.
Observem que os versos que se referem ao provérbio estão, aparentemente (já que não há
qualquer pontuação no texto da música), em períodos distintos. E para se obter a contrariedade
pretendida, retirou-se, obviamente, os elementos que proporcionavam a oposição entre as duas
proposições do provérbio: o mas e o não. Assim, os dois períodos seguem uma direção unívoca,
servindo aos propósitos do locutor.
149
Os provérbios apresentam uma particularidade muito interessante. Eles não possuem
marcas de embreagem enunciativa (Maingueneau, 2001: 170). A partir desta observação,
veremos uma ocorrência bastante pertinente ao que propomos, atestando o que vimos afirmando,
já que muitas vezes os provérbios falam sobre si mesmos. Em Faça o que eu digo, mas não faça
o que eu faço, confirma a nossa tese de que os provérbios dizem e orientam que se faça o que se
considera bom, moral e ético (faça o que eu digo); repudiando um conjunto de atitudes e
representações silenciadas que vão de encontro ao que é dito neles (não faça o que eu faço),
vistas como nocivas ao convívio social.
Como vimos, por não serem embreados, os “EUs” presentes no provérbio acima e nos
versos de Chico Buarque, não são, necessariamente, o indivíduo falante, mas um locutor
asseverador, instância invisível responsável asserção (Maingueneau, 2001: 170). Daí, os “EUs”
destacados seriam um enunciador genérico (ibidem: 147), histórico-social, diluído nas vozes de
cada membro da comunidade.
No citado provérbio, verificamos dois “EUs”, que possuem representações diferentes,
sendo sujeitos de duas formações ideológicas distintas. O primeiro (Faça o que EU digo) seria o
representante da FI1, o sujeito moralizante e aconselhador. As vozes que defendem os valores
éticos e dos bons costumes. O segundo (não faça o que EU faço) assumiria a posição de sujeito
da FI2, que diz e faz o que é socialmente imoral, imprudente e antiético; expondo, assim, o que
os membros da comunidade fazem, normalmente silenciado nos provérbios, que é repudiado pelo
primeiro EU.
Já na versão do autor, os “EUs” se fundem e assumem a mesma posição ideológica,
argumentando em uníssono. Ao dividir o provérbio em dois períodos, ele faz uma captação da
parêmia na sua primeira parte (Faça o que eu digo/ Faça como eu digo), tomando a mesma
150
direção que ele. Na segunda, há uma subversão (mas não faça o que eu faço/ Faça o que eu
faço), direcionando para um sentido inverso.
Nas teorias de Ducrot sobre a questão da negação, encontramos outro ponto de apoio para
o que afirmamos. Para ele (1987:192), a maior parte dos enunciados negativos pode ser vista sob
uma perspectiva polifônica. Há um choque entre duas atitudes antagônicas, referidas a dois
enunciadores distintos: E1, responsável pelo enunciado afirmativo, e E2, que o contradiz.
Destarte, em Não faça o que EU faço, entra em cena uma outra personagem, E1, enunciador da
afirmação que nos permite dizer que no Brasil “FAZEM O QUE EU (sujeito que diz e faz o que é
imoral, inadequado, imprudente e antiético) FAÇO”.
A questão da negação talvez explique, em boa parte, o porquê de tanto NÃO nos
provérbios, corroborando para a comprovação de nossa tese. O que Ducrot chama de “choque
entre duas atitudes antagônicas”, poderíamos atribuir ao choque ideológico entre FI1 e FI2. E2,
responsável pelas negações (o dito nos provérbios), representaria o sujeito moralizante e
conselheiro. Concomitantemente, ele traz a voz de E1, que rejeita o seu ponto de vista, indo ao
sentido contrário (o não-dito) do que E2 defende. Quando E2 diz Uma andorinha só não faz
verão, ouve-se E1 dizendo Uma andorinha só faz verão. As vozes responsáveis pelas negações
nos provérbios, muitas vezes, são uma forma de contestação ao que é dito ou feito como
socialmente imoral , imprudente ou inadequado. Como se dissesse a E1: “Não diga/faça isso!”.
Vejamos na seguinte comparação:
E2: Tamanho não é documento.
E1: Tamanho é documento.
Contestação de E2 sobre o que E1 diz: Não diga que tamanho é documento.
151
Assim, em Faça como eu digo/ Faça como eu faço, derruba-se os limites entre o que se
diz ser ético e antiético, prudente e imprudente, adequado e inadequado. Os sujeitos da FI1 e da
FI2 agem em uníssono, colocando por terra uma série de oposições, instituindo uma nova ordem
dos fatos. O que era considerado como mau, incorreto e prejudicial, pode ser visto como bom,
correto e benéfico e vice-versa.
Nota-se, novamente, uma espécie de ruptura em que o “dizer e o “fazer” atuam no mesmo
plano. Podemos efetuar uma nova comparação com o antigo sistema ditatorial em que muitos
foram exilados, presos e até mortos por dizer e/ou fazer o que “não deviam”.
Como uma das grandes vozes opositoras desse período do governo, Chico Buarque expõe
o seu manifesto, como já abordamos acima, utilizando um provérbio muito corriqueiro como base
para intensificar a autoridade dos seus versos, de forma a obter uma maior adesão por parte do
enunciatário. Assim, ele incita com que este tome uma nova atitude e “faça o que ele diz” e, indo
além do provérbio, também “faça o que ele faz”, aderindo ao seu protesto contra o sistema
governante e a norma vigente. Subvertendo o provérbio, subverte-se a regra.
Vale lembrar que ao subverter a parte do provérbio que diz mas não faça o que eu faço
para Faça o que eu faço, o compositor vai ao encontro do que o sujeito da FI2 defende, isto é,
aquilo que é visto como socialmente nocivo, que não deve ser feito. Nesse processo lúdico, ele
cria uma oposição “fazendo” o que “não se deve fazer”, numa possível referência à ditadura e a
toda censura e opressão feita por ela.
Reparem que, dificilmente, se conseguiria um efeito semelhante no discurso se não fosse
aplicado algum tipo de enunciado de autoridade polifônica, utilizado em larga escala e sócio-
historicamente consagrado com caráter de verdade irrefutável. E nesse caso, o provérbio coube
perfeitamente, atendendo, como poucos enunciados fariam, aos propósitos ilocutórios do
enunciador.
152
Observa-se, também, o efeito estilístico provocado pela disposição em dois versos
distintos do ditado aludido, aparentemente, como dois períodos específicos. Desta forma, o autor
pôde construir um paralelismo sintático com estruturas muito semelhantes, apenas distinguindo-
se em um elemento (digo/faço). Além disso, há uma simetria no seu aspecto métrico (são duas
redondilhas menores). A soma desses fatores criam um teor expressivo e melódico todo especial,
fazendo com que o enunciatário atente melhor para os enunciados.
No imitado verso Aja duas vezes antes de pensar, temos a subversão do provérbio Pense
duas vezes antes de agir. Diferentemente dos outros provérbios analisados até aqui, a subversão
não é feita através da negação ou afirmação do enunciado, mas pela inversão de termos na sua
estrutura sintática, que no caso são os verbos agir e pensar.
Essa subversão reforça a nossa tese de que o compositor convida e incentiva uma
mudança de atitude por parte do enunciatário, induzindo-o à “ação”. Como no primeiro e
segundo provérbio destacado, a MC do ditado aludido exalta a virtude e benefício da “paciência”
e da “cautela”, que são repudiadas pelo enunciador como uma espécie de “passividade”.
Portanto, podemos perceber que a subversão desses provérbios, dentro de tal contexto,
articula uma evidente isotopia, amarrando um nos outros os argumentos, que de forma
escamoteada, inculca no receptor a sua proposta ilocutória através da reiteração de idéias, sem
falar das remissões à autoridade irrefutável dos provérbios. Vejam na comparação:
a) Quem espera nunca alcança
b) Devagar é que não se vai longe
c) Aja duas vezes antes de pensar
Daí, temos a seguinte isotopia na proposta ilocucionária: agilidade, ousadia, audácia,
coragem, destemor, arrojo e outros termos afins.
153
As duas próximas subversões são as que mais se afastam da forma dos provérbios
imitados. Nestes casos, a associação só é imediata devido à presença dos outros versos, que
facilmente podemos fazer remissão aos provérbios aludidos, já que a alteração feita na sua
estrutura é mínima.
Em Brinque com meu fogo/ Venha se queimar, aponta-se para o provérbio Quem brinca
com fogo acaba se queimando. Enquanto que em Eu semeio vento na minha cidade/ Vou para
rua e bebo a tempestade, temos Quem planta vento, colhe tempestade. A MC nesses ditados é
semelhante: “Quem pratica coisas ruins ou lida com algo perigoso, terá conseqüências ruins”.
Veja que a subversão incide sobre a conseqüência, haja vista que o enunciador pratica ou induz o
enunciatário a praticar tais ações. Como vimos em todos os casos anteriormente, também há uma
ruptura e a articulação da mesma isotopia.
Se um provérbio já possui uma relevante força persuasiva, aqui temos um texto formado
basicamente na imitação de vários, que mesmo subvertidos, despertam no receptor o mesmo
interesse e, talvez, a mesma adesão que a sua forma consagrada. Pois, nesse descontraído
processo lúdico e metafórico, ele identifica os dois enunciados em um só.
Vale ressaltar a grande habilidade do compositor, que, através da subversão de diferentes
provérbios, consegue seguir uma direção unívoca, fazendo com que as suas ilocuções ajam em
uníssono. Forma-se, assim, um conjunto coeso de representações e atitudes, que se sobrepõem
umas as outras dentro de um mesmo processo argumentativo. Observa-se, ainda, que em todas as
imitações, articula-se a mesma isotopia. Soma-se tudo isso e temos uma considerável ferramenta
no que concerne à apreensão da atenção do outro dentro desse complexo jogo persuasivo,
despertando nele, no mínimo, uma grande curiosidade.
Outro exemplo interessante temos na música “Zé Ninguém” (1991), do grupo Biquíni
Cavadão:
154
ZÉ NINGUÉM
Quem foi que disse que amar é sofrer?
Quem foi que disse que Deus é brasileiro,
Que existe ordem e progresso,
Enquanto a zona corre solta no congresso?
Quem foi que disse que a justiça
Tarda mas não falha?
Que se eu não for um bom menino, Deus vai me castigar!
Os dias passam lentos
Aos meses seguem os aumentos
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo, as leis são diferentes.
Quem foi que disse que os homens nascem iguais?
Quem foi que disse que dinheiro não traz felicidade
Se tudo aqui acaba em samba?
(no país da corda bamba, querem me derrubar!!)
Quem foi que disse que os homens não podem chorar?
Quem foi que disse que a vida começa aos quarenta?
A minha acabou faz tempo,
Agora entendo por quê...
Cada dia eu levo um tiro
Que sai pela culatra
Eu não sou ministro, eu não sou magnata
Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém
Aqui embaixo as leis são diferentes.
155
Nesta canção, podemos observar um verdadeiro “festival” polifônico. Só as diversas
recorrências de “Quem foi que disse que...” nos remetem a vários discursos relatados que
apontam para clichês, jargões consagrados, frases-feitas e, é claro, provérbios. E é através desses
discursos polifônicos que o enunciador constrói a sua crítica acerca de vários assuntos, valendo-
se da autoridade desses enunciados para apoiar os seus argumentos.
Detendo-se especificamente sobre os provérbios, observamos um muito conhecido e
utilizado: A justiça tarda, mas não falha.
Quando o enunciador questiona o provérbio com a interrogativa direta Quem foi que disse
que a justiça tarda mas não falha?, declarando a sua crítica sobre a justiça no Brasil, ele
desqualifica o provérbio de forma velada. Pois, analisando esta frase pragmaticamente, vemos
que não se trata de uma pergunta, mas de uma afirmação: A justiça falha!, portanto, há injustiça.
Vale ressaltar que mesmo tendo o caráter de verdade imemorial reconhecida na
comunidade, funcionando como regra geral, não quer dizer, obviamente, que o conteúdo da
mensagem dos provérbios seja infalível. Prova disso é que, como já abordamos, há provérbios
que contrariam outros, como por exemplo: Tal pai, tal filho (Determinam ou julgam o filho,
levando em consideração, apenas, quem é o pai.) e Não julgue o livro pela capa (Não se deve
julgar nada nem ninguém previamente, considerando somente o que aparentam ser). Além deste,
também observamos antagonismos entre: Rei morto, rei posto/ Quem foi rei nunca perde a
majestade; Depois da tempestade vem a bonança/ Uma desgraça nunca vem sozinha; Nunca
deixe para amanhã o que se pode fazer hoje/ Amanhã é outro dia; Nunca é tarde para aprender/
Cachorro velho não aprende novos truques, etc. Portanto, a partir do que acabamos de expor,
podemos afirmar que os provérbios são meras estratégias pelas quais o sujeito procura persuadir
o outro em direção a um certo argumento.
156
Retornando ao provérbio em análise, é notório que o conceito de justiça no Brasil é
bastante polêmico e discutível. Onde, normalmente, só o pobre é punido e os ricos e poderosos
saem ilesos das mais terríveis falcatruas. Daí, seria um tanto incoerente aplicar a expressão
justiça, como algo que não falha. Dizer A justiça tarda, mas não falha como fato absoluto seria,
no mínimo, um ato cômico, ainda mais em se tratando de Brasil, considerado um dos países mais
corruptos do mundo. Porém, notem que o provérbio proporciona uma abertura no interior do
discurso, apontando para mais de uma conclusão possível: A justiça tarda/ A justiça não falha. O
locutor introduz um argumento possível para uma conclusão R (A justiça tarda); em seguida,
opõe-lhe um argumento mais forte, decisivo, para uma conclusão contrária não-R (A justiça não
falha). Destarte, percebemos que a polêmica e o conflito já se formam dentro do próprio
provérbio, como se estivesse preparando e advertindo o alocutário sobre uma iminente questão
problemática, atenuando, assim, as possíveis críticas deste através de um pedido de espera.
Entretanto, os discursos que remetem à FI2, que no caso deste provérbio são aqueles que
falam sobre injustiça e suas falhas, mostram-se essenciais para a sua existência e sobrevivência.
De acordo com a teoria da negação polêmica apontada por Ducrot (1987:202),
percebemos que quando E2 diz “mas não falha”, E1 afirma que “falha”. Daí, se ouvimos E1 dizer
que “a justiça falha”, podemos concluir que para este A justiça não apenas tarda, mas também
falha. Portanto, há injustiça. Todavia, a palavra injustiça é silenciada. Não se fala em injustiça. A
justiça pode demorar (tardar) mil anos, mas há justiça. Para o sujeito da FI1 “A injustiça não
existe”, pois, de alguma forma, vê-se como benéfico, talvez como algo consolatório, sustentar a
esperança de que sempre haverá justiça, seja qual for ela. Em contrapartida, o sujeito da FI2,
contrariamente, descrê da sua eficiência ou de que ela exista. E é exatamente através desse
embate que tal provérbio ganha força para continuar sobrevivendo. Pois, no momento em que a
157
questão da justiça tomar uma direção unívoca, não se falando mais em injustiça ou em suas
falhas, ele correrá o risco de desaparecer.
De acordo com o que acabamos de expor, podemos concluir, num interessante efeito de
ricochete, que o provérbio se reafirma e ganha força a cada vez que é negado. Portanto, mesmo
que o enunciador o contrarie ou questione, como é o caso da música, a ratificação do provérbio
retorna sobre o seu enunciado. Ao assumir, através da negação do provérbio, a posição de sujeito
da FI2, concomitantemente evoca-se o sujeito da FI1, isto é, o locutor proverbial, a instância
invisível moralizante e conselheira, responsável pelo que se diz ser socialmente bom, prudente,
adequado e ético.
Nesse processo lúdico que o compositor cria por meio de várias interrogativas diretas, vai-
se construindo a teia argumentativa a fim de apreender a atenção do enunciatário, já que este se
vê “intimado” a responder tais perguntas, atentando melhor para as críticas e questionamentos do
enunciador. Ao se deparar com essas questões, aquele se vê diante de vários discursos de
autoridade polifônica, que em confronto com a posição do enunciador, se encontra “obrigado” a
refletir sobre a verdade de tais enunciados estereotipados, trabalhando com a memória destes,
conduzindo-o a assumir uma determinada postura num processo comparativo. Daí, o enunciatário
percebe os questionamentos e críticas do enunciador como se estivessem no mesmo nível de
autoridade dos provérbios e clichês. Processo este que se dá, principalmente, por meio da
“contaminação” destes no enunciado, já que o enunciador constrói a sua ilocução através do não-
dito deles, assumindo a posição do sujeito da formação ideológica que segue uma direção oposta
ao dos estereótipos (FI2).
Dessa forma, seja qual for o posicionamento do enunciatário, a sua adesão ao conteúdo
proposicional dos versos da música é devido, em grande parte, à presença dos enunciados de
autoridade polifônica. Notem que se em sua proposição o enunciador utilizasse enunciados que
158
não fossem estereotipados, “já-prontos”, dotados de tal autoridade, sócio-historicamente
constituída, o efeito de adesão sobre o enunciatário seria completamente diferente. Podemos
perceber isso numa simples comparação:
Se no lugar do corriqueiro clichê Deus é brasileiro o enunciador utilizasse o enunciado
Deus é do Brasil, que existe organização e desenvolvimento em vez do lema da bandeira nacional
Ordem e Progresso, ou que Não há injustiça no lugar do referido provérbio, descaracterizando o
estereótipo. Assim, desconstrói-se uma série de memórias, trabalhando com outras formações
discursivas, excluindo as vozes de diversas gerações que, através dos tempos, “cristalizaram” tais
enunciados com caráter de verdade imemorial.
4.2- O PROVÉRBIO NO DISCURSO PUBLICITÁRIO
O discurso publicitário, sem dúvida alguma, é o que mais se aproveita de sua autoridade e
dos elementos de “sedução” presentes em sua estrutura a fim persuadir o destinatário. Tal
processo é feito, normalmente, através de captações ou do próprio provérbio, na sua forma
consagrada, por meio de ambigüidades e outros fenômenos lingüísticos.
Entre outros fatores, é a semelhança entre o provérbio e o slogan publicitário que favorece
a recorrência a provérbios por parte dos publicitários. Quanto a isso, diz Maingueneau
(2001:171):
Fórmula curta, destinada a ser repetida por um número ilimitado de locutores, que joga
também com rimas, simetrias silábicas, sintáticas ou lexicais, o slogan, como o
provérbio, constitui uma espécie de citação: aquele que diz “Não há futuro sem
conexões” (slogan da marca Connexion) ou “Coca-Cola é isso aí!” não toma para si a
responsabilidade por esses enunciados, apresentando-os como citações sem explicar a
fonte, que supõe ser do conhecimento do co-enunciador.
159
Entretanto, existem diferenças marcantes entre o slogan e o provérbio, sobretudo no que
se refere ao processo de ancoragem enunciativa.
Devido ao seu caráter generalizante e atributivo, os provérbios não são referidos a seres
específicos pertencentes a uma determinada situação de enunciação, podendo ser interpretável
fora de qualquer contexto singular. Por isso, eles não apresentam marcas de debreagem (ou
“embreagem”, na terminologia de Maingueneau, 2001:108) enunciativa que somando ao aspecto
metafórico característico dos provérbios, ficam muito mais propensos a serem embreados. Daí, as
neutralizações categóricas, e até mesmo heterocategóricas, ocorrem com maior facilidade,
possibilitando ao enunciador com que os provérbios, dentro de um contexto pertinente, sejam
utilizados numa gama de situações. Dessa forma, o uso ou a imitação de um provérbio no
discurso publicitário torna-se uma ferramenta ideal, já que o ideal de um slogan é ser utilizado
corriqueiramente num maior número de situações possíveis, de modo a fixar-se na memória dos
consumidores.
Contrariamente aos provérbios, os slogans muitas vezes são ancorados numa situação de
enunciação específica e, portanto, como diz Maingueneau (2001:171), “podem conter embreantes
e nomes próprios, que, por razões diversas, são inseparáveis de contextos particulares.”
Observem os seguintes slogans que circulam nos comerciais televisivos:
Saia da rotina. Ligue 23. (Intelig)
Nescau. Energia que dá gosto.
Tam. Você nasceu para voar.
O nosso maior segredo é você. (Perdigão)
Seu potencial. Nosso compromisso. (Microsoft)
Amo muito tudo isso. (Mc Donald’s)
160
O número 23 e os nomes Nescau e Tam estão ligados a um conhecimento enciclopédico
introduzido em um contexto histórico-social particular; quanto aos dêiticos, no caso os “TUs”
(Saia, Você nasceu..., ...é você, Seu potencial) e os “EUs” ( O nosso maior segredo..., Nosso
compromisso, amo), precisam de uma situação de enunciação específica para que o referente seja
identificado.
Os “TUs”, muito freqüentes nos slogans na forma de “você”, não remetem a um
indivíduo único, mas representam um co-enunciador genérico, porém, uma classe determinada, a
de todos os possíveis consumidores da marca. Já as marcas de primeira pessoa possuem
representações diferentes. Nos enunciados das propagandas da Perdigão e da Microsoft, quando
no uso dentro do comercial, o pronome nosso se refere claramente ao EU institucional, a voz da
empresa. Entretanto, não é o que acontece no slogan do Mc Donald’s. Em Amo muito tudo isso, o
EU é imputado ao consumidor pelo próprio empreendedor, que numa habilidosa estratégia
retórica já se coloca como “amado” pelo enunciatário. Apesar do conteúdo proposicional do
slogan ser de responsabilidade da empresa, ele não se apresenta como tal, transferindo essa
condição para o TU, o consumidor. Observamos, então, uma embreagem actancial, a
neutralização do TU em favor do EU. Dessa forma, cria-se um efeito de aproximação,
familiaridade e cumplicidade com o enunciatário. O EU empreendedor e o TU consumidor se
confundem, como se dissesse “Todos nós amamos muito tudo isso”. Notem que se não houvesse
tal embreagem, teríamos o enunciado “Ame muito tudo isso”, criando um desagradável tom
impositivo e um notável distanciamento entre os interlocutores.
No que tange ao conteúdo pragmático do slogan e do provérbio, há uma grande
dissonância entre eles. Sobre esta questão, declara Maingueneau (2001:171):
161
O provérbio é uma asserção sobre a maneira como funcionam as coisas, sobre como
funciona o mundo, dizendo o que é verdadeiro. O enunciador apóia-se nele para
introduzir uma situação particular em um quadro geral preestabelecido, delegando ao
co-enunciador a tarefa de determinar a relação existente entre os dois. (...) Já o slogan
está associado sobretudo à sugestão e se destina, acima de tudo, a fixar na memória dos
consumidores potenciais a associação entre uma marca e um argumento persuasivo
para a compra.
Em suma, os provérbios intentam aconselhar, moralizar, corrigir e educar o enunciatário a
fim de que este tome atitudes vistas socialmente como benéficas e prudentes. O slogan, por sua
vez, visa apenas a busca da adesão do receptor , procurando atingir a sua vontade, incidindo sobre
a sua subjetividade e sentimentos, com o intuito último de que ele compre o produto divulgado,
no caso de propagandas que promovam o consumo, ou aceite determinada idéia, como, por
exemplo, em campanhas educativas.
Nesse sentido, ao captar ou empregar o provérbio, o slogan recebe de forma indireta os
seus valores pragmáticos, utilizando-os em benefício próprio. Vale lembrar que a recorrência ao
processo alusivo pretende atrair a atenção do receptor, induzindo-o a identificar dois enunciados
em um só. Assim, o enunciador constrói um ethos amistoso, conselheiro e prudente, criando uma
maior aproximação com o enunciatário, haja vista que este faz parte da comunidade pela qual o
provérbio circula, sendo, em certo sentido, co-autor e co-responsável pela assertiva.
É notório que os publicitários e empresas desejam que o seu slogan seja universalmente
conhecido e bem recebido pela comunidade dos falantes de uma língua, dotado de certa
autoridade, de modo que seja utilizado com facilidade em qualquer circunstância, de rápida
memorização e rememoração. Dentro desses parâmetros, “para o slogan o provérbio representa
uma espécie de ideal. Todo slogan aspira a ter a autoridade de um provérbio” (Maingueneau,
2001:173).
162
Ressalta-se que a grande característica do estereótipo é impedir questionamentos sobre o
que se diz, já que se trata de enunciados que são veiculados com valor de verdade consagrada. E
devido ao privilégio que possui em termos de autoridade, o provérbio apresenta-se como um
modelo de grande interesse para os criadores de slogans, que buscam o tempo todo estabelecer a
autoridade de seus enunciados na sua tarefa de persuadir o outro.
Não é por acaso que freqüentemente observamos provérbios e suas imitações nos slogans
publicitários, sejam com fins comerciais ou em campanhas educativas e sociais promovidas pelo
governo, e em outros produtos veiculados pela mídia, como em títulos de filmes e seriados de
TV. Ainda que não haja nenhuma remissão direta a algum provérbio, é bastante comum a
recorrência aos aspectos sintáticos, semânticos e lexicais presentes nas estruturas proverbiais,
produzindo no slogan um teor de estereótipo, de ditado popular, de verdade consagrada.
4.2.1- Os Provérbios em sua Forma Consagrada nos Slogans
Destes recursos possíveis de que se pode valer o publicitário, o que vemos com menos
incidência é a utilização do provérbio na sua forma fixa e consagrada. Vejamos algumas de suas
ocorrências e seus efeitos no discurso:
a) Sylk Blue. A primeira impressão é a que fica (Comercial veiculado em televisão,
agosto/ 2005).
Como já destacamos anteriormente, este enunciado trata-se de um slogan de uma empresa
que trabalha na confecção e impressão de estampas de camisa. O enunciador aproveita-se da
autoridade do provérbio para reforçar o poder argumentativo de sua mensagem, que através de
uma inteligente e habilidosa ambigüidade, causa um impacto no receptor, provocando nele uma
163
sensação de “estranhamento”. Dessa forma, o enunciatário é conduzido a indagar sobre o termo
impressão, que está sendo empregado com um sentido diferente ao do que costuma surgir no
provérbio, garantindo, assim, a adesão do consumidor sobre o enunciado.
b) Está certo quem diz que o tempo não pára. Aqui ele até anda para trás (Revista
Claudia, fevereiro/ 2005).
Este slogan pertence à clínica de antienvelhecimento Anna Aslan. Aqui o próprio
enunciador ratifica a verdade do provérbio O tempo não pára, afirmando “que está certo quem o
diz”. É claro que se trata de uma estratégia retórica. Ao confirmar a verdade do dito, ele realça a
sua premissa, já que o seu raciocínio forma-se através de um silogismo:
Premissa maior: De acordo com a sabedoria popular, O tempo não pára.
Premissa menor: Aqui o tempo anda para trás.
Conclusão: Todo mundo envelhece. Porém, se você quer rejuvenescer ou permanecer
jovem, venha para a clínica Anna Aslan.
Dessa forma, o slogan se volta para certas realidades de grande tensão psicossocial como
a exclusão e o preconceito. Visto que, ao considerar nosso contexto histórico-social, vivemos
num mundo extremamente imagético e materialista, onde o que é considerado belo ou
esteticamente agradável possui um lugar privilegiado na sociedade, principalmente se você tem
uma aparência jovem e vigorosa. Em contrapartida, o que é visto como feio ou esteticamente
desagradável está sujeito a certos preconceitos e exclusões, e uma pessoa de aspecto envelhecido
e sem energia incluir-se-á nesse grupo. Assim, ninguém pretende ser socialmente excluído ou
sofrer qualquer tipo de preconceito pela sua aparência. Daí, o convite à beleza surge como uma
164
necessidade. Portanto, a mensagem implícita pregada pelo enunciador com base nas exigências
sociais é: “Quem deseja estar socialmente incluído e gozar dos privilégios que a sociedade
oferece para aqueles considerados jovens e belos, deve ser cliente da clínica Anna Aslan. Aqui
você conseguirá manter ou adquirir o seu aspecto jovem e bonito.”
Ao usar O tempo não pára, associando-o ao tema beleza e estética, o locutor condensa
tudo o que acabamos de expor dentro do provérbio, expondo tais exigências e necessidades de
forma breve (como exige o slogan) e muito polida, protegendo ambas as faces dos interlocutores,
já que ele fala através da sabedoria popular, compartilhando, assim, a proposição do seu discurso
com a instância invisível, constituída sócio-historicamente, responsável pela asserção.
Em suma, o objetivo do produtor do slogan é que o receptor pense o seguinte: “É verdade
que o tempo não pára. Portanto, eu vou envelhecer. Entretanto, preciso manter uma aparência
jovem e bonita. Então, tenho que ir à clínica Anna Aslan”. Destarte, o enunciador leva o
enunciatário a refletir sobre essas questões tendo como argumento de partida um enunciado de
autoridade, veiculado e aceito como verdade imemorial pela mesma comunidade que estipula os
conceitos de beleza, fazendo com que o alocutário aceite a proposta do locutor com mais
facilidade. Haja vista que, devido ao provérbio, ela efetiva-se com certo grau de irrefutabilidade.
c) Rio Pax. Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje (Comercial veiculado
nas rádios, agosto/ 2005).
Aqui temos um slogan de uma agência de assistência funerária, Rio Pax. Nessa situação, o
“falar sem-dizer” do provérbio assume uma importante função argumentativa, considerando que
o enunciado envolve um tema bastante delicado, a morte. Então, nesse jogo persuasivo, o
enunciador, para atingir os seus objetivos ilocutórios, precisa percorrer um caminho bem “suave”
165
e cuidadoso, de modo a não provocar algum constrangimento ou indignação no potencial cliente,
arranhando a face de ambos os interlocutores. Haja vista que o simples fato de requerer a atenção
do destinatário para a leitura de sua mensagem, já constitui uma ameaça para a face positiva do
responsável pela enunciação, uma vez que, no caso em questão, ele corre o risco de ser
“inconveniente” ou “insensível”, já que se trata de um assunto (a morte) pelo qual a maioria das
pessoas não simpatiza. O enunciatário, por sua vez, tem tanto a face positiva como a negativa
ameaçada. A positiva pode ser arranhada pelo fato do receptor se sentir “tratado como alguém
sem importância, a quem se pode pedir que dedique uma parte de seu tempo à leitura do
enunciado publicitário” (Maingueneau, 2001:40). A negativa, a seu turno, é posta em perigo
devido à questão de que todo slogan comercial visa pedir dinheiro ao leitor. Nesse caso
específico, a situação é ainda mais complexa, já que o enunciador solicita que o consumidor lhe
pague para que este, ou algum de seus entes queridos, seja “enterrado”.
Para fugir dessa complicada posição, o destinador se vale do provérbio para falar através
do Outro, diluindo-se neste. Assim, o enunciador cria um afastamento necessário, dividindo a
responsabilidade do enunciado com o Locutor proverbial, a instância invisível responsável pela
asserção. Já que, na verdade, a proposição veiculada no slogan é “Faça o nosso plano hoje
mesmo, pois amanhã você poderá estar morto”, possuindo um tom “assustador” e nada polido.
Daí, com o uso do provérbio, o enunciador produz tal proposição de forma velada e mais
descontraída, além de usufruir da autoridade e do status de verdade consagrada do dito popular,
deixando a cargo do enunciatário fazer a devida inferência relativa ao contexto apresentado.
c) Use Nivea Body. Porque o amor é cego, mas o tato não (Revista Manequim, março/
2005).
166
O que vemos é um slogan de uma marca de cosméticos muito famosa: Nivea. A fim de
promover a sua linha de cremes e loções hidratantes para pele, o enunciador introduz um
provérbio que trabalha com a questão dos sentidos fisiológicos do ser humano (O amor é cego),
para em seguida apresentar um argumento mais forte, que também remete a um dos sentidos do
homem, o tato. Dessa forma, ele consegue estabelecer uma ligação direta entre o provérbio e a
sua proposta para o consumo dos produtos Nivea para a pele, que é feita por meio de uma
isotopia no campo dos sentidos através dos lexemas “cego” (visão) e “tato”. Assim, o publicitário
coloca a verdade de sua proposição (o tato não é cego) num nível igual ou superior ao do
provérbio, assumindo também um certo grau de autoridade. Nota-se, ainda, que o fato de se ter
uma pele “macia e suave” envolve a questão não só dos sentidos, mas também dos sentimentos,
através da expressão “amor”, relacionando os termos numa “contaminação” semântica: amor >
tato > pele macia. Daí, a receptora (haja vista que são produtos voltados para o público feminino)
pode formar o seguinte raciocínio: “Se eu usar Nivea Body, terei uma pele macia e suave. Assim,
é mais fácil ser amada.”
Observamos também que muitos provérbios são utilizados pelos publicitários em títulos
de filmes. Entre outros, temos:
Antes só do que mal acompanhado.
Quem ri por último, ri melhor.
Ladrão que rouba ladrão.
Quem não cola, não sai da escola.
Quem vê cara, não vê coração.
O amor é cego.
A inveja mata.
167
Tal pai, tal filho.
Destaca-se que este último da lista também foi título de uma seriado de TV na década de
90. Atualmente, existe um outro seriado americano que foi originalmente intitulado Gilmore
girls, cuja versão em português foi captada do provérbio Tal pai, tal filho. Daí, pôs-se o nome Tal
mãe, tal filha.
Notem que todos os filmes e seriados intitulados com provérbios são comédias. Assim,
podemos verificar a facilidade de atribuir-lhes um caráter humorístico e de descontração. Dessa
forma, a natureza cômica de alguns provérbios evidencia-se como um instrumento de sedução
muito importante no que tange ao objetivo do locutor de obter a adesão do alocutário.
4.2.2- Os Provérbios nos Slogans através de Captações
É na captação que o provérbio se apresenta mais corriqueiro nos slogans publicitários,
criando os mais interessantes efeitos de sentido. Nesse processo lúdico, o enunciador elabora os
seus argumentos tendo por base a irrefutabilidade e autoridade dos provérbios, transmitindo-as
para o seu enunciado e, conseqüentemente, para a sua idéia ou produto. E quanto a captação do
gênero proverbial por parte do slogan, vale destacar o que diz Maingueneau e Grésillon:
Ao captar o gênero proverbial, uma enunciação coloca-se como o eco de um número
ilimitado de enunciações anteriores, de modo a fazer esquecer seu (dela) caráter
contingente e relativo. Em caso de sucesso, esse simulacro se transforma em verdade
que, repetida por “todo mundo”, irá instalar-se entre as evidências coletivas. Ser
provérbio, como vemos, é bem o ideal do “slogan”. De fato, o objetivo de todo
“slogan” é passar do estatuto de “EU-verdade” (a de uma firma, um partido...) ao de
“SE-verdade” (ON-vérité) estável, universalmente conhecida, garantida por um
168
enunciador de autoridade incontestável, que coincide com a própria comunidade
lingüística (1984: 117).
Tratemos agora da análise de alguns provérbios captados nos discursos publicitários,
observando como o enunciador instaura os seus argumentos sobre a alusão daqueles, motivando a
adesão do enunciatário.
a) O sol nasceu pra todas. Nova linha Dove verão. Trata bem todas as mulheres (Revista
Claudia, fevereiro/ 2005).
Nesse slogan, a captação do provérbio O sol nasce para todos é bastante clara, levando o
receptor rapidamente à sua remissão.
De imediato, o que chama mais atenção na alusão é a troca do pronome todos (masculino)
pelo todas (feminino), pois trata-se de uma campanha de uma linha de produtos para o verão da
Dove, é claro, voltada para o público feminino. Ressalta-se que o enunciador também trabalha
com o aspecto imagético para apoiar o seu propósito persuasivo. Na primeira página da
propaganda, aparecem modelos lindas com corpos esculturais, aliás, é o que freqüentemente
vemos em quase todas as campanhas publicitárias, sobretudo nas que divulgam produtos de
beleza em geral. Na página seguinte, observamos, o que não é muito comum nesse tipo de
comercial, três mulheres que não costumam ser referência de beleza em nosso contexto social:
uma bastante pálida, outra com enormes tatuagens e uma terceira um tanto “gordinha”. Nesse
sentido, o enunciador inclui todo o tipo de mulher em sua campanha, dizendo: “Seja você
considerada bonita ou não, a nova linha Dove verão trata-la-á muito bem.”
Assim, o locutor se aproveita da mensagem do provérbio que prega que todas as pessoas
têm os mesmos direitos e oportunidades, aplicando tal verdade consagrada ao seu enunciado.
169
Dessa forma, ele afirma, com a autoridade dada pelo provérbio, que toda mulher, seja ela como
for, tem o direito e a oportunidade de ficar bonita e de ser bem tratada. Basta, apenas, utilizar a
nova linha de verão Dove. Além disso, o enunciador se vale do lexema sol para associar o seu
enunciado à sua linha de verão, afirmando que o sol agride e maltrata a pele da mulher, sobretudo
no verão, e que a nova linha Dove verão tratará bem a consumidora contra os efeitos nocivos do
sol.
Observem que devido ao caráter atributivo do provérbio, ou seja, por não se referir a
nenhum elemento ou situação enunciativa particular, possuindo uma natureza generalizante, o
enunciador pôde, ludicamente, produzir uma dupla proposição no mesmo enunciado, ampliando
a sua atividade argumentativa para mais de uma direção concomitantemente, numa inteligente
ambigüidade. Ele utiliza o conteúdo metafórico do provérbio para atender a uma das proposições
e o seu sentido denotativo para produzir a outra. Vejamos na comparação:
Proposição 1 (baseada na mensagem convencionalizada do provérbio): “Todas as mulheres, não
importa como sejam, devem ter os mesmos direitos e oportunidades de serem bem tratadas. A
nova linha Dove verão trata bem todas as mulheres.”
Proposição 2 (baseada no sentido denotativo do enunciado): “O sol agride e maltrata a pele de
todas as mulheres, principalmente no verão. A nova linha Dove verão protege e cuida da pele da
mulher contra os efeitos nocivos do sol.”
Os mecanismos retóricos utilizados pelo produtor do slogan através do provérbio, sem
dúvida alguma, criaram no enunciado um efeito persuasivo singular. Além do que, o enunciador
busca a adesão da consumidora “dizendo sem ter dito”, simulando um distanciamento através da
voz da sabedoria popular, que, indiretamente, introduz o próprio receptor como co-responsável
170
pela asserção, já que ele faz parte da comunidade lingüística pela qual veicula o provérbio. Dessa
forma, o locutor finge moderação para afirmar de maneira enfática: “Compre a nova linha Dove
verão”. Assim, ele mascara o tom impositivo do imperativo, assumindo o ethos sábio e
conselheiro do provérbio, tomando uma posição mais amistosa frente às suas potenciais
consumidoras.
b) Não deixe para amanhã o que você pode comprar hoje nas Casas Bahia (Propaganda
de televisão, maio/ 2003).
A captação do provérbio Não deixe para amanhã o que se pode fazer hoje é bastante
evidente, visto que a única mudança em relação à estrutura proverbial é a permuta do verbo fazer
pelo comprar.
Nesse slogan, o enunciador é bem direto e enfático em sua proposta: “Venha comprar nas
Casas Bahia hoje mesmo”. Entretanto, ele divide a responsabilidade da sua proposição com o
Outro da sabedoria popular. Dessa forma, o produtor do slogan provoca no enunciatário a
sensação de que a sugestão ou o pedido não são feitos apenas por ele, mas também pela voz do
senso comum. Isto é, através da “contaminação” da autoridade do provérbio, o enunciador sugere
aos seus consumidores que o fato de “ir hoje às Casas Bahia fazer compras”, seja considerado,
tal como o provérbio, uma idéia com valor de verdade consagrada aceita pela sociedade.
Vale destacar que os provérbios levantam uma série de questões que induzem os membros
da comunidade lingüística, pela qual tais enunciados circulam, a adotarem certos procedimentos e
atitudes, direcionando-os a um fazer saber, fazer ser, fazer crer e fazer fazer. E é uma dessas
injunções que apresenta grande relevância para o processo argumentativo do locutor. Lembrem
que a única diferença entre o provérbio em questão e a captação no slogan é alteração do verbo
171
fazer pelo comprar. Daí, substitui-se o fazer fazer pelo fazer comprar, apontando o fazer, antes
genérico, para um ato específico, o de comprar, atendendo aos propósitos comerciais do
enunciador.
c) Uma boa imagem vale mais que mil palavras (Revista Veja, abril/ 1989).
Este slogan pertence a uma campanha de muito sucesso sobre um televisor Panasonic. Tal
como o analisado anteriormente, o presente slogan é muito semelhante ao provérbio captado Uma
imagem vale mais que mil palavras. O enunciador apenas acrescenta o adjetivo boa. Assim, ele
tira o lexema imagem do plano universal, trazendo-o para um particular. Agora não é mais
qualquer imagem, mas uma boa imagem, a imagem do televisor Panasonic.
É claro que o principal argumento articulado pelo locutor é a apreensão do valor de
verdade do provérbio em benefício do seu enunciado. Além do mais, ele se vale de um enunciado
já bastante conhecido pela comunidade, iniciando, então, a sua campanha com um slogan,
digamos assim, “pré-conhecido e consagrado”. Ressalta-se, também, que a mínima diferença
entre o ditado captado e o slogan, provocada pelo discreto e pequeno lexema boa, pode levar um
receptor desatento, ou não tão conhecedor da forma consagrada do provérbio, a vê-los como se
fossem o mesmo enunciado. Daí, ao considerar o primeiro como verdade, o potencial consumidor
fará o mesmo com o segundo. Portanto, a adesão do enunciatário ao provérbio será a mesma com
relação ao discurso publicitário.
Notamos, ainda, a importância do caráter hiperbólico do enunciado sobre o receptor,
criando efeitos de estranhamento com a finalidade de chamar a atenção deste para a sua
mensagem, “assim, o enunciatário, por meio de uma percepção inédita e inesperada, pode atentar
172
melhor para certos elementos que estão sendo comunicados e aceitar mais facilmente o
enunciado” (Fiorin, 2002: 62).
d) Onde há Coca-Cola, há hospitalidade. (Campanha publicitária da Coca-Cola de
1948).
Em nossas pesquisas, encontramos uma raridade de slogan veiculado há mais de
cinqüenta anos pela Coca-Cola, cuja construção assemelha-se bastante a um provérbio muito
conhecido: Onde há fumaça, há fogo.
Nesse caso, o que nos chama mais a atenção como fator persuasivo, além da autoridade
obtida pela remissão ao citado provérbio, é a possibilidade da comparação entre os elementos
permutados do provérbio com os permutadores do slogan. Nesse processo, temos o par
fumaça/fogo substituído por Coca-Cola/hospitalidade. Daí, da mesma forma que existe a relação
produto/produtor nos elementos do provérbio, expondo uma estreita ligação entre os termos
destacados, o receptor, através da identificação do enunciado proverbial, poderá estabelecer a
mesma relação com o par do slogan. Isto é, Coca-Cola gera hospitalidade, Coca-Cola e
hospitalidade caminham sempre lado a lado. Tal proposta de equivalência semântica entre Coca-
Cola e hospitalidade é também acentuada pela similaridade sintática das orações a que os
correspondentes vocábulos pertencem: há Coca-Cola/ há hospitalidade.
De acordo com Citelli (2004: 61), a asserção e a repetição são dois importantes
mecanismos utilizados no discurso persuasivo. “No primeiro caso, a certeza, o imperativo: a
dúvida e a vacilação são inimigas da persuasão.” Este slogan se vale da modalidade alética, muito
presente nos provérbios, para apresentá-lo como autoritário. “O locutor intenta expor um certo
saber na intenção de induzir o interlocutor a aderir ao seu discurso, aceitando-o como verdadeiro.
173
Tem-se, aqui, o grau máximo de engajamento do locutor e o seu propósito de impor ao alocutário
os seus argumentos, apresentando-os como incontestáveis” (Koch, 2004: 85-86).
No caso da repetição, reiterar significa a possibilidade de adesão pela constância
recorrencial, “martelando” determinada idéia na mente do receptor. Observamos no enunciado
em análise, a reiteração de estrutura sintática e do verbo (há Coca-Cola/ há hospitalidade),
motivando no enunciatário uma sensação de sinonímia entre os lexemas Coca-Cola e
hospitalidade, uma vez que tudo mais no ambiente do slogan é similar. Na tentativa de pôr tais
termos no mesmo plano semântico, o locutor se vale de outras semelhanças (que aqui são criadas
através de reiterações) para que através destas “contaminem-se” os elementos destacados,
colocando-os como análogos.
A partir do que analisamos até aqui nos slogans, vimos como os provérbios são
articulados no discurso publicitário comercial a fim de apoiar os argumentos do enunciador,
intensificando o poder persuasivo de seu enunciado para obter a adesão do enunciatário. É
importante destacar que as estratégias argumentativas e os mecanismos persuasivos abordados
em cada um dos slogans, podem, se compatíveis com o contexto discursivo, ser estendidos aos
outros enunciados em análise. Porém, decidimos mostrar tais ocorrências separadamente com o
objetivo de proporcionar-lhes maior ênfase, uma vez que certos aspectos presentes no discurso
mostravam-se mais relevantes que outros.
Ainda que não se observe no slogan uma remissão direta a algum provérbio específico,
seja na sua forma consagrada ou através de captações, percebemos no discurso publicitário a
freqüente recorrência às suas estruturas sintáticas, sobretudo à sua formação bimembre e à
repetição de termos, além da utilização dos seus elementos lexicais mais corriqueiros. Dessa
forma, o locutor pretende que o seu slogan, através de sua forma, seja visto pelo seu possível
174
cliente como um provérbio, assumindo toda a sua credibilidade e autoridade junto à sua
comunidade lingüística. Vejamos os exemplos:
1) Quem é do Rio, sabe o que o Rio quer (O Globo, 21/08/05. Propaganda da Tele-Rio).
Em relação aos provérbios, verificamos as seguintes semelhanças *:
a) estrutura binária (Observamos que 50% dos provérbios são assim estruturados);
b) introdução do enunciado pelo pronome Quem (O número dos provérbios iniciados
pelo Quem é algo em torno dos 15%);
c) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
d) verbos no presente do indicativo (Cerca de 75% estão no presente do indicativo);
e) ausência de marcas enunciativas de actantes (Aproximadamente 95% não apresentam
marcas de 1ª e 2ª pessoas);
f) presença do verbo ser e querer (O verbo ser mostrou-se como o mais abundante,
representando aproximadamente 22% do total. Enquanto o verbo querer aparece
como o sétimo mais corriqueiro);
g) repetição do termo Rio (Perto de 21% dos provérbios apresentam repetição de termos,
ou seja, cerca de um a cada cinco).
Pudemos perceber as diversas semelhanças entre o slogan apresentado e os provérbios,
facilitando, assim, a associação destes com aquele por parte do receptor. Destaquemos outras
ocorrências:
_________________________
* Os dados estatísticos são baseados nos cerca de 1000 provérbios que analisamos. Acreditamos que nesse volume,
as informações obtidas são bastante consistentes para se estabelecer um quadro totalitário em relação a eles.
175
2) Quem ama, toma Catuama (Slogan veiculado nas rádios, agosto/05. Trata-se de um
produto à base de catuaba, utilizado como revigorante e estimulante sexual).
a) estrutura binária;
b) relação causa/conseqüência (Tal relação verifica-se em cerca de 26% dos provérbios);
c) introdução do enunciado pelo pronome Quem;
d) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
e) verbos no presente do indicativo;
f) ausência de marcas enunciativas de actantes;
g) presença de rima (Assim como as repetições, as rimas surgem em torno de 21% dos
provérbios).
3) Parati você conhece. Parati você confia (Revista Fluir, junho/1997. Slogan sobre o
automóvel Parati).
a) estrutura binária;
b) similaridade sintática (Cerca de 20% dos provérbios possuem estruturas bimembres
com construções sintáticas similares);
c) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
d) verbos no presente do indicativo;
e) repetição de termos (Parati você...);
f) aliteração do fonema /k/ (O número de provérbios em que notamos aliteração é algo
em torno de 7%);
g) simetria métrica: há uma redondilha maior em cada período do slogan
(Aproximadamente 12% dos provérbios bimembres são simétricos metricamente).
176
4) Casa com vida. Casa com você (Revista Veja, setembro/2005. Slogan da Dellanno,
empresa especializada em materiais de construção, acabamentos e decoração).
a) estrutura binária;
b) similaridade sintática;
c) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
d) repetição de termos (Casa com...);
e) aliteração (fonema /v/);
f) simetria métrica (tetrassílabos);
g) ausência de verbo (Cerca de 13% dos provérbios não possuem verbo).
5) Quem faz com Tigre, faz para sempre (Revista Casa Claudia, setembro/2002. Slogan
da Tigre, empresa especializada em materiais hidráulicos e de construção à base de
PVC).
a) estrutura binária;
b) introdução do enunciado pelo pronome Quem;
c) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
d) verbos no presente do indicativo;
e) relação causa/conseqüência;
f) repetição de termos (faz);
g) simetria métrica (tetrassílabos);
h) ausência de marcas enunciativas de actantes;
i) presença do verbo fazer (O verbo fazer é o terceiro mais abundante nos provérbios).
177
6) Quem compara, compra Fit (O Globo, 7 de setembro de 2005. Slogan veiculado pela
concessionária Narita sobre o automóvel Honda Fit).
a) estrutura binária;
b) verbos no presente do indicativo;
c) introdução do enunciado pelo pronome Quem;
d) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
e) relação causa/conseqüência;
f) ausência de marcas enunciativas de actantes;
g) simetria métrica (trissílabos);
h) aliteração (fonema /k/).
i) Paronomásia em compara/compra (cerca de 6% dos provérbios apresentaram
paronomásias).
7) A gente conversa, a gente se entende (Revista Saúde & Beleza, agosto/2003. Slogan
da empresa de cosméticos Avon).
a) estrutura binária;
b) similaridade sintática;
c) verbos no presente do indicativo;
d) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
e) repetição de termos (A gente);
f) simetria métrica (redondilhas menores).
8) Se é Bayer, é bom (Propaganda veiculada pela televisão, setembro de 2005. Slogan
utilizado por muitos anos pela empresa farmacêutica Bayer).
178
a) estrutura binária;
b) similaridade sintática;
c) relação causa/conseqüência;
d) verbos no presente do indicativo;
e) modalidade situada nos vértices superiores do hexágono de Blanché (A, E, U);
f) repetição de termos (é);
g) aliteração (fonema /b/);
h) ausência de marcas enunciativas de actantes;
i) presença do verbo ser.
Expusemos uma pequena amostra de quantas semelhanças há entre os slogans e os
provérbios, e quais os recursos mais corriqueiros de que o publicitário se vale para obter tal
similaridade. Muitos outros circulam pelos canais midiáticos, sobretudo na televisão, com
características muito próximas das que acabamos de analisar, entre outras vistas nos provérbios,
como por exemplo:
Pensou guaraná, pensou Kwat.
Quando você Credicard, o melhor da vida acontece.
Isso é Gradiente.
É impossível chegar lá sozinho (Bank Boston).
Seu potencial, nosso compromisso (Microsoft).
O melhor plano de saúde é viver, o segundo melhor é Unimed.
Quem tá aqui, tá em casa (Supermercados Novo Mundo).
Quanto mais você usa, melhor fica o seu carro (Óleo Shell).
O que você quer, aqui você pode (Casas Bahia).
179
É Batavo. É de casa.
Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal.
Quem pesquisa, economiza no Ponto Frio.
Quem bebe Grapette, repete.
Não é só o discurso publicitário comercial que visa formar estruturas que fazem o receptor
remeter aos provérbios, mas também observamos tais recorrências nos slogans de campanhas
educativas e sociais criadas pelo governo, principalmente pelo Departamento de Trânsito
(DENATRAN/DETRAN) e o Ministério da Saúde. É o que vemos em:
Se dirigir não beba, se beber não dirija.
Perca um minuto em sua vida, mas não perca a sua vida num minuto.
Quem bebe aqui, fica aqui.
Não beba, não corra; não mate, não morra.
Beber redondo é beber com responsabilidade.
Quem corre mais, vive menos.
Quem tem fome, tem pressa.
Povo desenvolvido é povo limpo (Slogan produzido pelo governo ditatorial – 1972).
Minas. Aqui tem desenvolvimento, aqui tem governo federal.
Quem tem arma, tem medo.
Quem ama, cuida (Sobre a preservação da Amazônia).
Quem doa sangue faz um gesto de amor.
Doe vida. Doe órgãos.
Tuberculose tem remédio.
Não deixe a dengue estragar o seu verão.
180
Muitos tentam, poucos conseguem (Festival da publicidade 2005)
As campanhas publicitárias sobre a prevenção da AIDS, em particular, produziram
diversos slogans com estruturas idênticas às dos provérbios. Observemos alguns exemplos:
Tratar bem é lutar pela vida.
Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar.
Quem se ama, se cuida.
Solidariedade faz bem à saúde.
Previna-se do vírus. Não das pessoas.
Viva com prazer. Viva o sexo seguro.
Prevenir é tão fácil quanto pegar.
4.3- OS PROVÉRBIOS NO DISCURSO JORNALÍSTICO
Muitas são as ocorrências de provérbios e suas captações nos discursos jornalísticos.
Notam-se nestes, diversas intenções por parte do enunciador, criando, assim, variados efeitos de
sentido no discurso.
A vantagem da análise em tais textos é que se pode observar de forma mais profícua em
que condições discursivas o locutor utilizou o provérbio e quais os objetivos ilocutórios
veiculados em seu enunciado, a fim de persuadir o outro. Vejamos os textos:
1) Pensamento do dia (isto é, do Globo)
“Quando um Lula fala,
o outro baixa as orelhas.” (O Globo, 15/05/2005)
181
A comicidade do enunciado é consideravelmente intensificada pela captação do provérbio
Quando um burro fala, o outro baixa as orelhas, onde o nome Lula é imediatamente associado
pelo receptor ao termo burro. Novamente observamos o potencial humorístico contido nos
provérbios. Assim, mostra-se como eles trabalham de forma considerável no campo emocional,
surgindo como um atrativo adicional para que o enunciatário crie uma maior adesão ao enunciado
proposto.
O locutor deixa a cargo do alocutário fazer a devida inferência, exercendo a sua crítica ou
deboche de forma indireta. Dessa forma, atenua-se o tom agressivo e odioso de suas palavras, já
que sua afirmativa está, em parte, respaldada pela autoridade e sabedoria da voz do povo,
compartilhando com este a responsabilidade do seu enunciado. Mais uma vez verificamos o
“falar sem dizer” proporcionado pelo enunciado proverbial, agindo na atividade argumentativa do
enunciador para estabelecer os seus propósitos ilocutórios.
2) Alencar pede decisão política sobre juros horas antes do Copom
O vice-presidente José Alencar reafirmou hoje que as taxas de juros
no Brasil são um “despropósito” se comparadas ao mercado internacional
e que baixá-las deveria ser uma decisão política.
“Isso é uma decisão eminentemente política, razão pela qual
precisamos convencer politicamente as pessoas que estão obviamente
cuidando desta área, porque do contrário vamos pagar tanto juro que a
nossa dívida vai crescendo”, avaliou ele, acrescentando que as taxas atuais
fazem com que o superávit, mesmo alto, somente cubra 50% dos juros da
dívida pública.
Para Alencar, a compatibilidade com o mercado internacional seria
uma taxa real (Selic menos inflação) de 3%, ao ano, para “começar”.
182
Mesmo assim, observou, esse percentual seria, no mínimo, três vezes
superior às taxas praticadas por 20 países.
“Então, por que pagar uma taxa despropositada? Essa é a minha
briga”, observou. Alencar lembrou que, com taxas de juros incompatíveis
com a atividade produtiva é difícil conseguir o crescimento nos patamares
que o Brasil precisa.
Alencar disse que não discute as decisões do Comitê de Política
Monetária (Copom). “Isso (a queda de juros) não é uma decisão do
Copom”, afirmou, reiterando que “é uma decisão eminentemente política”.
Questionando se está difícil convencer a equipe econômica a reduzir
as taxas de juros, o vice-presidente citou o ditado popular que diz que
água mole em pedra dura tanto bate até que fura” (grifos nossos). “Nós
esperamos que essa água bata e não fure, limpe”, brincou. (Folha de São
Paulo, 19/11/2003)
O vice-presidente José Alencar discute aqui a questão da exorbitante taxa de juros no
Brasil. E para afirmar sobre a sua insistência em convencer a equipe econômica a reduzi-las, ele
valeu-se do provérbio Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Daí, Alencar, de
maneira rápida, concisa e bem humorada, expõe o seu raciocínio através de uma mensagem
convencionalizada com caráter de verdade, respaldando a sua posição na sabedoria popular, que
exalta a virtude da persistência.
Baseado na autoridade do provérbio, ele introduz um outro enunciado, fazendo uma
pequena subversão do dito. Em vez de “bater e furar”, a “água precisa bater e limpar”, mostrando
que existe algo “encardido” na política econômica brasileira, que no caso é a elevada taxa de
juros. Além disso, em meio aos sisudos e cansativos discursos políticos e econômicos, o
provérbio surge como um elemento amenizador e descontraído, tornando o texto mais suave e
183
agradável. Destaca-se, também, que por evidenciar-se como um elemento “estranho”, destoando
dos temas do assunto em questão, o receptor pode atentar melhor para o enunciado proverbial,
criando a adesão pretendida pelo enunciador.
3) Relatório acusa EUA de violação de tratados internacionais
Os Estados Unidos estão deixando o estado de direito para impor-se
pela força, violando um número cada vez maior de tratados e convenções
internacionais, segundo um relatório divulgado hoje.
O relatório acusa outros quatro países (França, Alemanha, Reino
Unido e Japão) de violarem de alguma maneira o tratado que proíbe testes
com armas nucleares – texto que não foi ratificado pelos EUA.
O estudo também critica os EUA por restringirem sua participação
no tratado contra armas químicas e recusarem os acordos internacionais
sobre armas biológicas, emissão de poluentes (protocolo de Kyoto),
criação do Tribunal Penal internacional e proibição de minas terrestres.
Deller considera que essas políticas são “um exemplo perigoso” para
o mundo. “Regimes ameaçadores são muito mais propensos a alcançar
seus objetivos, com um Estado hegemônico impondo o “faça o que eu
digo, não o que eu faço”, diz o relatório. (Folha de São Paulo,
04/04/2002)
Evidentemente que o eu no provérbio é atribuído, levando-se em conta o contexto
enunciativo, aos EUA. Para enfatizar o desrespeito e autoritarismo destes sobre diversos tratados
e convenções internacionais, o enunciador utiliza um provérbio bastante conhecido e muito
corriqueiro. Desta maneira, o locutor do relatório, na sua crítica para evidenciar os abusos norte-
americanos, ganha o apoio do senso comum para reforçar a sua asserção, visto que aquele que
184
procede de acordo com o que este provérbio prega é visto como antiético e nocivo para o
convívio social. Assim, o relatório se estabelece, em parte, como verdade irrefutável,
fundamentada na sabedoria popular.
4) Chávez nega renúncia, apesar da pressão dos grevistas
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, reafirmou no domingo
sua posição de não renunciar nem antecipar as eleições apesar da forte
pressão externa que sofre e da greve geral que já dura 14 dias.
O dirigente também diminuiu a importância da pressão econômica
que o quinto maior exportador de petróleo do mundo sofre pela paralisação
quase total de sua indústria petrolífera. Os líderes de oposição afirmam que
a greve só termina se Chávez renunciar.
“Chávez somente se irá daqui, primeiramente, quando Deus quiser,
porque estou nas mãos de Cristo, o Senhor da Venezuela. Ele é o
comandante, quando ele mandar, eu obedecerei, certo? E, em segundo
lugar, quando o povo quiser, porque presumo que a voz do povo é a voz de
Deus”, ele disse em seu programa de rádio “Alô, presidente!”. (Folha de
São Paulo, 15/12/2002)
No texto acima, o enunciador, Hugo Chávez, instaura sua argumentação utilizando o
nome de Deus junto ao provérbio. Ao declarar a respeito da pressão feita pela oposição sobre sua
possível renúncia, o presidente venezuelano procura convencer os ouvintes trabalhando
fortemente o lado emocional destes, sobretudo no campo da fé, recorrendo às expressões “quando
Deus quiser”; “estou nas mãos de Cristo, o Senhor da Venezuela”; “Ele é o comandante” e
“quando ele mandar, eu obedecerei”. Ele explora a fé cristã do povo para afirmar que está na
presidência porque é a vontade de Deus, insinuando que é um simples instrumento Dele, pois, na
185
verdade, quem governa o país é Cristo. Em seguida, Chávez também delega autoridade ao povo,
colocando este num plano imediatamente inferior ao plano divino, como se fosse representante de
Deus aqui na Terra, atribuindo-lhe, assim, o mesmo grau de autoridade. Tal fato é ratificado com
a introdução imediata do provérbio A voz do povo é a voz de Deus, como argumento final e
definitivo. Daí, o presidente consegue reunir através do dito popular dois discursos de
considerável força persuasiva: o discurso religioso e o do senso comum.
Como já destacamos, os provérbios costumam falar sobre si próprios. Em A voz do povo é
a voz de Deus, confirma-se a autoridade investida neles. Pois, aqui são comparados ao poder e
domínio divino. Os provérbios são as vozes do povo diluídas em cada um deles. Portanto, os
provérbios são a “voz de Deus”. Assim, ele sustenta e atesta as suas palavras, tendo como base
um enunciado considerado como verdade imemorial sócio-historicamente determinada, aferindo,
dessa forma, um teor de irrefutabilidade bastante elevado às suas afirmações, tornando-as muito
persuasivas.
5) Questão foi abordada por Paulo Freire
“Sendo o exemplo e a experiência os fatores mais preponderantes na
educação, nós, pais e mestres, educamos mesmo quando não temos
nenhuma intenção de educar? Os pais que adotam o “faça o que eu digo e
não faça o que eu faço” terão êxito em suas tentativas para educar?”
Essas perguntas, formuladas pelo educador Paulo Freire em 1955,
mostram que a incoerência entre a prática e o discurso é uma questão que
sempre intrigou quem trabalha com educação.
Elas foram tiradas de um dos primeiros artigos de Paulo Freire sobre
organização e participação de pais na escola.
186
De acordo com o diretor-geral do Instituto Paulo Freire, Moacir
Gadotti, esses questionamentos mostram que a escola também comete,
ainda hoje, os mesmos erros dos pais: ensinar na teoria o que não faz na
prática.
Ele cita um exemplo: “A gestão democrática é muito propalada e
pouco praticada. A escola até ensina valores democráticos, mas não os
executa”, diz Gadotti.
Ele afirma que o aluno ainda é muito pouco ouvido. Além disso,
nem sempre há a participação dos pais, condição fundamental para uma
escola democrática. (Folha de São Paulo, 18/02/2001)
O grande educador Paulo Freire levanta algumas questões sobre os fatores, segundo ele,
mais preponderantes da educação: o exemplo e a experiência. Ele destaca, principalmente, a
importância do papel dos pais no processo educacional de seus filhos, denunciando o erro
daqueles ao ensinar na teoria o que não fazem na prática. E para endossar as suas indagações, ele
se vale do provérbio Faça o que eu digo e não faça o que eu faço, aproveitando-se dos valores
veiculados na mensagem deste, tidas consensualmente com válidas na comunidade em questão.
Analisando tal indagação pragmaticamente, vemos que não se trata de uma simples
pergunta, mas de uma crítica, feita através de um ato ilocutório indireto. Haja vista que o próprio
educador estabelece o exemplo como um dos fatores fundamentais da educação. Daí, ao utilizar
o provérbio, a sua crítica já está sócio-historicamente validada, funcionando como uma
ferramenta persuasiva bastante eficaz, uma vez que, como citamos no texto 3, aquele que assume
a posição do eu deste provérbio é visto como antiético, imprudente e, portanto, inadequado ao
convívio social.
187
6) Menino reclama da falta de concerto do computador
Você já ouviu aquele ditado: “Em casa de ferreiro, o espeto é de
pau”? As pessoas dizem isso quando têm em casa alguém que saiba fazer
um serviço útil. Exemplo: sua mãe é professora, seu avô, encanador, seu
pai sabe consertar computadores. Mas, quando mais precisamos deles,
cadê? Assim acontece com Gabriel Steckelberg, 12. O pai dele sabe tudo
sobre computadores, mas o menino reclama: “O meu parece uma carroça”.
Ele tinha sete anos quando começou a observar o pai mexendo em
computadores. “Hoje eu sei o que fazer quando a máquina tem algum
problema. A maioria deles acontece por erros do usuário e é simples de
consertar”, explica o jovem aprendiz. (Folha de São Paulo, 12/07/2003)
Aqui o jornalista introduz a sua matéria com um provérbio como argumento inicial,
explicando de imediato o conteúdo de sua mensagem, a fim de sustentar e confirmar a situação
que ele descreverá logo a seguir, evidenciando, assim, a verdade do dito. De antemão, o
provérbio fala com autoridade, derivando sua força da comunidade. Entretanto, o seu poder
persuasivo é intensificado pela comprovação de um fato: o pai de Gabriel é especialista em
computadores, porém a máquina do menino é uma “carroça”. Assim, num interessante efeito de
ricochete, o provérbio valida o fato, mostrando este como uma realidade comum na sociedade,
que, concomitantemente, valida o provérbio.
7) São Paulo bate Vasco em jogo de seis gols
São Paulo. O São Paulo mostrou sua força dentro do Morumbi e
venceu o Vasco por 4 a 2 neste domingo, pelo Campeonato Brasileiro. No
duelo entre o artilheiro Alex Dias e o goleiro-artilheiro Rogério Ceni deu
empate. Cada um marcou um gol em cobrança de pênalti. O dono da
188
camisa um tricolor ainda desperdiçou uma penalidade, mandando a bola
no travessão, mas riu por último. (www.globoesporte.com/, 18/09/2005)
Neste texto, temos uma captação do provérbio Quem ri por último, ri melhor. Ao ativar
sua competência enciclopédica, o leitor reconhecerá que a expressão riu por último trata-se de
uma alusão ao referido ditado. Portanto, o receptor inferirá que se Rogério Ceni riu por último,
ele riu melhor, isto é, o goleiro foi mais feliz na partida do que o artilheiro Alex Dias do Vasco,
que saiu derrotado de campo.
Pudemos observar, então, a capacidade de condensação informacional do provérbio, que
através da captação de uma de suas partes, viabilizou-se a leitura completa de sua mensagem.
Dessa forma, o enunciador desejando não se estender em suas idéias, deixa a cargo do
enunciatário fazer a devida complementação e inferência. Destarte, o provérbio apresenta-se
como um importante veículo de “economia”, tornando-se uma ferramenta de grande praticidade
na atividade argumentativa do locutor.
Tal fenômeno só é possível de se realizar com enunciados estereotipados e amplamente
conhecidos pela comunidade, como os provérbios, de cuja parte pode-se apreender o todo. Daí, a
adesão do enunciatário à mensagem fica mais propensa, já que a sua atenção sobre o enunciado
será intensificada devido ao processo que ele executará, na busca do todo através da parte,
deparando-se, então, com uma citação de autoridade que ele não pode refutar.
8) Lula cobra do PFL e PSDB “nível elevado” em campanha
O pré-candidato do PT à Presidência da República, Luís Inácio Lula
da Silva, fez um alerta ao PFL e ao PSDB relacionado às recentes
189
acusações envolvendo o ex-diretor do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio, e
ao fato de ter sido encontrado R$ 1.4 milhão na sede da empresa Lunus –
que resultou na retirada da pré-candidata a presidente Roseana Sarney
(PFL).
Parafraseando o presidente Fernando Henrique Cardoso, Lula disse
que os dois partidos deveriam parar de “nhem-nhem-nhem” e deveriam
debater os problemas do país. “Quem planta vento, colhe tempestade. A
ponderação que eu faço para o PFL e o PSDB é que eles deveriam elevar o
nível da campanha e debater os problemas do Brasil”, afirmou. (Folha de
São Paulo, 09/05/2002)
O presidente Lula recorre freqüentemente à autoridade dos provérbios para apoiar os seus
argumentos, talvez como estratégia, numa tentativa de criar um ethos popular através do seu
discurso. Fato que observamos em diversas entrevistas e declarações através da mídia.
Neste texto em particular, Lula, ainda candidato à presidência da república, novamente
busca o apoio da sabedoria popular para expressar a sua ponderação ao PFL e PSDB, relativa ao
nível das campanhas eleitorais. Para isso, ele usa o provérbio Quem planta vento, colhe
tempestade para alertar os dois partidos sobre as conseqüências desagradáveis de suas atitudes.
Dessa forma, o petista pretende atrair a atenção dos seus concorrentes e do leitor para a
sabedoria inegável de tal conhecimento, na medida em que a própria estrutura e forma poética do
provérbio destoa do discurso político predominante no texto, conduzindo o receptor a atentar
melhor para o enunciado proverbial e, conseqüentemente, para a verdade contida nele.
9) Fim da punição interrompe tratamento
190
O processo de ressocialização de um detento que cometeu crimes
sexuais é feito por meio de terapias cujo objetivo é fazer com que ele
entenda o crime que cometeu e por que o fez.
Apesar de os presidiários “colaborarem” com o processo, como
destaca a coordenadora de saúde do sistema penitenciário do Estado,
Maria Eli Colloca Bruno, os resultados nem sempre são animadores. Além
disso, não há um acompanhamento psicológico depois que o detento é
solto.
O psiquiatra Charles Louis Kiraly, 44, que há nove trabalha nos
presídios paulistas, estima que, de cada dez estupradores que deixam a
prisão, pelo menos quatro voltarão a cometer o crime. “É um número
elevado”, afirma.
Não há dados na Secretaria de Administração Penitenciária sobre a
reincidência desse delito. A observação de Kiraly é baseada em sua
experiência diária.
Para Kiraly, há dois tipos de estupradores: o ocasional e o
reincidente. O primeiro é considerado uma pessoa comum que, num
determinado momento de sua vida, não resiste a um impulso e acaba
cometendo o crime.
O psiquiatra usa um ditado popular para exemplificar os motivos que
levam alguém a cometer esse delito: “A ocasião faz o ladrão”.
O segundo tipo de estuprador geralmente sofre de distúrbio
patológico. São os chamados sexopatas, ou seja, têm compulsão em
manter relações sexuais com o maior número de pessoas possível e se
utilizam da força para obter prazer. Esses estupradores são condenados a
cumprir pena em casas de custódia (há três no Estado de São Paulo) e não
em presídios comuns, pois necessitam de tratamento mais intenso.
191
Kiraly diz que muitos estupradores têm problemas cujas raízes estão
no passado. É comum, por exemplo, terem sido violentados na infância.
(Folha de São Paulo, 15/04/2002)
Para exemplificar os motivos que levam o estuprador ocasional a cometer tal delito, o
psiquiatra Charles Kiraly utiliza um provérbio muito conhecido: A ocasião faz o ladrão.
Apesar de possuir um valor metafórico, o dito analisado denotativamente apresenta-se
muito apropriado para a situação em questão, trabalhando no mesmo campo semântico do tema
abordado: a criminalidade. Basta trocar o tipo de criminoso para a relação ficar completa: A
ocasião faz o estuprador. È claro que o enunciatário facilmente fará a devida identificação do
referente através de um processo que, como diz Kerbrat-Orecchioni, “passa por uma defasagem
entre o sentido primitivo (próprio, ou literal, e secundário) e o sentido adequado referencialmente
(valor derivado e principal)” (1986: 111).
O provérbio surge, então, como já abordamos anteriormente, como fator de economia.
Assim, ele apresenta-se como uma ferramenta muito prática para que, num contexto apropriado,
o enunciador exponha as suas idéias com concisão, dispensando, nesse caso, outra explicação
mais extensa sobre as razões que levam alguém a cometer um estupro. Toda informação
necessária fica por conta da sua mensagem convencionalizada presente na memória de cada
membro da comunidade, cujas vozes ecoam através de várias gerações que se deixam ouvir pelo
código lingüístico materializado no provérbio.
Embora tenha previamente usado uma explicação técnica, o psiquiatra alia o argumento
científico ao argumento do senso comum para endossar a sua explanação sobre o fato,
192
reforçando a sua tese, uma vez que, como diz Antônio Abreu (2004: 30), “entre todos os
discursos que nos governam, o mais significativo deles é o DISCURSO DO SENSO COMUM”.
Vale novamente destacar que as estratégias argumentativas e os mecanismos persuasivos
abordados em cada uma das matérias jornalísticas, podem, se compatíveis com o contexto
discursivo, ser estendidos aos outros textos em análise. Entretanto, expusemos tais ocorrências
separadamente com o objetivo de proporcionar-lhes maior ênfase, uma vez que certos aspectos
presentes no discurso mostravam-se mais relevantes que outros.
193
5. CONCLUSÃO
Vimos, nesta dissertação, a multiplicidade de fenômenos que atuam na enunciação dos
provérbios no sentido de persuadir o outro a aderir aos argumentos propostos pelo enunciador,
observando, também, os efeitos de sentido obtidos no discurso. Para tanto, partimos da
fundamentação teórica relativa às concepções enunciativas e discursivas. Com base nestas,
pudemos conceber o enunciado dos provérbios como fruto de um processo histórico-social, ou
seja, constituído por outros discursos. Dessa forma, coloca-se por terra a noção benvenisteana do
sujeito como o único responsável e criador de seu discurso, evidenciando, assim, a presença do
outro nos enunciados proverbiais e a sua participação na constituição do sentido destes.
Entretanto, há de se destacar a importância do seu Aparelho formal da enunciação, sobretudo
com relação aos mecanismos de instauração das categorias de pessoa, tempo e espaço. Daí,
percebemos que, como qualquer enunciado, os provérbios só existem porque eles foram
actorializados, temporalizados e espacializados. E nesta condição, constatamos algo interessante:
os provérbios não apresentam marcas de debreagem enunciativa, e, portanto, não se ancoram
numa situação de enunciação específica. Como diz Maingueneau, “verdadeiro “acervo cultural”,
os provérbios não podem ser atribuídos a indivíduos ou eventos únicos” (2001: 170). Destarte,
concluímos que no provérbio Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço, por exemplo, o eu
destacado não representa o eu enunciador, mas o sujeito histórico-social, representante da
sabedoria popular e da voz do senso comum, uma instância invisível diluída em cada membro da
194
comunidade. Observou-se, então, que este fato funciona como uma importante ferramenta para as
estratégias argumentativas do enunciador, que, dependendo de seus objetivos ilocutórios, pode
produzir um maior engajamento ou distanciamento em relação ao seu enunciado. Pois, como
expusemos, a enunciatividade produz um efeito de sentido de subjetividade, uma vez que o
enunciador coloca-se no interior do discurso, transmitindo, assim, maior adesão a ele. Enquanto a
enuncividade cria um efeito de objetividade, visto que o enunciador afasta-se do seu discurso,
provocando um distanciamento em relação a este.
Através do estudo polifônico, descobrimos que várias vozes atuam como base para o
processo argumentativo dos provérbios, explicitando que ambos os interlocutores são
responsáveis pela sua escolha e utilização. Captando um provérbio, poderíamos dizer que Duas
vozes dizem mais do que uma. Por meio da voz do senso comum, o enunciador estabelece um
ethos de um “orador” moralizante e conselheiro, aproveitando-se, dessa forma, da credibilidade e
autoridade da sabedoria popular. Outro ponto que se mostrou bastante relevante em relação à
polifonia, é que os provérbios possuem uma grande capacidade de atenuar o caráter imperioso ou
polêmico de um discurso que se apresenta como autoritário ou delicado, eufemizando ou
escamoteando as suas reais intenções e agindo como instrumento de polidez. Daí, observa-se que
devido ao seu caráter popular, instaura-se um enunciador genérico; como se ele dissesse: O povo
é quem diz que (...). Logo, facilita com que ele se distancie da responsabilidade do discurso,
dando mais espaço ao personagem, que assumiria a condição de locutor do discurso, protegendo-
se, assim, das possíveis críticas e reações do enunciatário. Vimos, portanto, que o provérbio é um
enunciado sob medida para o “falar sem dizer”.
No exame das modalidades, viu-se que a instauração dos provérbios como argumento de
autoridade também se deve à presença delas em seus enunciados, cujas noções predominam nos
pontos A, E e U do hexágono de Blanché. Além disso, constatou-se que, apesar dos provérbios
195
possuírem um natureza fundamentalmente deôntica, ele o é de forma indireta. Portanto,
evidencia-se a pouca tendência que eles têm de efetuar um embate direto com o receptor,
reduzindo o risco de arranhar a face negativa deste. Se os provérbios podem se reduzir à
modalidade deôntica, o modo verbal que deveria predominar neles seria o imperativo. Porém,
formalmente, tem-se a presença quase absoluta do indicativo. Assim, o enunciado torna-se mais
“suave”, menos “agressivo”, já que, aparentemente, tratam-se de simples “asserções”. Fomos
capazes, então, de perceber uma importante ambigüidade entre asserção e injunção nos
provérbios. Conseqüentemente, descobrimos que a ocultação modal nestes, possui uma finalidade
argumentativa, pois dependendo do contexto discursivo e de seus objetivos, o enunciador pode
aplicar uma ou outra modalidade.
Posto tudo isso, permite-se afirmar que a autoridade dos provérbios não está refletida
apenas no fato de que eles são frases feitas que passam de boca em boca, a todo instante e através
dos tempos, assumindo o status de acervo cultural e patrimônio do povo. Mas também, como
discursos que são, eles contêm características peculiares na sua estrutura enunciativa que lhes dão
o suporte necessário para que possam assumir o caráter de verdade.
No capítulo reservado ao estudo da coesão dos provérbios, pudemos observar os
fenômenos coesivos presentes em suas estruturas, identificando quais são os recursos mais
correntes e o porquê de suas utilizações. Neste sentido, expuseram-se os mecanismos que os
tornam tão práticos e fáceis de memorizar e rememorar, além de denunciar os aspectos que lhes
aferem a sua expressividade, sedução e “leveza”. A coesão recorrencial evidenciou-se a mais
produtiva dentre os três tipos analisados, enquadrando-se nos traços mais característicos do
enunciado proverbial. Destarte, devido a certas coerções, o estabelece como um gênero
específico, fazendo com que seja reconhecido como tal. Vale ressaltar, também, as relações
abordadas na coesão seqüencial. Percebemos que entre estas se destacam a causalidade, a
196
condicionalidade, a conclusão e os processos de correlação. Como já citamos, normalmente os
provérbios moralizam, direcionando comportamentos, atitudes e decisões a serem tomadas.
Assim, eles alertam os indivíduos de uma determinada comunidade para certas conseqüências
que seus atos podem acarretar, ou que para se obter algo é necessário fazer alguma coisa
específica. Então, o que vemos, freqüentemente, mesmo que inferível, são relações do tipo:
“Quem faz (ou não) aquilo, acontece isso. / Por causa daquilo, aconteceu isso. / Aconteceu
aquilo, portanto acontecerá isso.” Percebemos, assim, certos padrões que nos permitiram atingir
tais resultados, possibilitando que fizéssemos as devidas afirmações. Seguramente, conseguimos
estabelecer um ponto de vista bem alicerçado no que tange à coesão proverbial, que poderá servir
como base para um estudo mais detalhado sobre tal assunto.
Na parte do trabalho relativa à arte retórica, foi possível notar como as estratégias e
técnicas argumentativas fundamentadas na retórica moderna, sobretudo nas teorias de Perelman,
encontram lugar na enunciação dos provérbios. No que concerne à questão do auditório, vimos
que o discurso proverbial tem a vantagem de poder ser remetido a qualquer público, seja
particular ou universal, por mais heterogêneo que o seja, visto que os seus conceitos e valores
podem permear toda e qualquer camada da sociedade sem que venham denegrir alguma outra
parte desta, uma vez que os provérbios são instituídos a partir do senso comum, o mais
significativo entre todos os discursos que nos governam (Abreu, 2004: 30), cujas mensagens
veiculam-se com valor de verdade imemorial irrefutável. Entre as técnicas argumentativas,
destacamos os argumentos quase lógicos, os fundados na estrutura do real e os que fundam a
estrutura do real. Nos primeiros, as que se mostraram dignas de nota foram as comparações a as
definições expressivas. Nos segundos, evidenciou-se a grande importância dos argumentos
fundados por sucessão, sobretudo do argumento pragmático, enaltecendo a relação de causa e
conseqüência, tão freqüentes nos provérbios, como fator persuasivo, na medida que possuem um
197
caráter aconselhador e, muitas vezes, alertam para as conseqüências que um certo ato ou situação
podem provocar. Lembrando Abreu (2004: 60), “para que o argumento pragmático funcione é
preciso que o auditório concorde com o valor da conseqüência”. Dessa forma, os provérbios
possuem a vantagem de serem universalmente aceitos, haja vista que se formam a partir do senso
comum, logo, as conseqüências descritas em suas mensagens adquirem uma fácil aceitação por
parte do enunciatário. Nos argumentos que fundam a estrutura do real, notou-se a relevante
atuação das ilustrações hipotéticas nos provérbios como argumentos, bem como dos modelos e
antimodelos. A seu turno, os lugares da argumentação também têm a sua participação no
processo persuasivo das parêmias, principalmente os lugares da quantidade e da qualidade. No
exame das figuras de retórica, observamos a decisiva presença das metáforas como recurso a
serviço da persuasão. Certamente, é através delas que os provérbios obtêm seu maior teor
expressivo e encantamento. As metáforas recriam um certo campo de informação, estabelecendo,
assim, novos efeitos que despertam maior interesse do receptor, por intermédio de mecanismos
de “estranhamento”. No estudo delas, constatamos a grande predominância das ditas metáforas
“naturais”, “que tomam como fontes geradoras o próprio homem, seu ambiente e seu cotidiano”
(Othon Garcia, 1992: 90-91). Tal fato comprova o quanto os provérbios estão arraigados na vida
e natureza do ser humano, o que explica, em parte, a enorme simpatia e identificação das pessoas
com relação a eles, mostrando-se, de certa forma, como extensão destas.
No capítulo onde procedeu-se a análise do corpus, detalharam-se algumas ocorrências dos
provérbios nas letras de música e nos textos publicitários e jornalísticos, atentando para o modo
que o enunciador os utiliza de forma a persuadir o outro, assim como para os possíveis efeitos de
sentido na atividade argumentativa. Nesse processo, notaram-se a multiplicidade de recursos de
que o locutor se dispõe, por intermédio da enunciação dos provérbios, para apreender a atenção
do alocutário e, conseqüentemente, obter a sua desejada adesão em relação ao discurso daquele.
198
Percebemos também que além de serem utilizados em sua forma consagrada, é muito freqüente o
uso dos provérbios através de captações e até mesmo de subversões, como vimos na canção de
Chico Buarque.
Observamos em nossa pesquisa que, sem dúvida alguma, o discurso publicitário é o que
mais se aproveita dos provérbios com o intuito de convencer o outro. A autoridade de que o
provérbio é dotado, bem como os componentes que lhe aferem o seu encantamento, o
transformam numa corriqueira e importante ferramenta no processo persuasivo desse tipo de
discurso, que a todo custo tenta atrair a atenção do receptor para as suas propostas.
Apesar de ser um estereótipo, tendo uma mensagem preestabelecida pelo grupo social em
questão (MC), o discurso proverbial não fica estagnado. Ele atualiza-se a cada vez que é
enunciado a fim de atender aos objetivos ilocutórios do enunciador. Além do mais, embora
apresentem na sua materialidade uma estrutura sintática curta, eles não precisam de mais espaço,
pois, tais enunciados falam o que precisam “não-dizendo”, em seu silêncio, em sua memória.
Verificamos outro ponto interessante em nosso estudo, quando vimos que, muitas vezes,
os provérbios falam sobre si mesmos, revelando um pouco do seu propósito e funcionamento. Por
conseguinte, ratificam em si mesmo o que dizem, acentuando o seu poder argumentativo. Como
diz James Obelkevich:
O provérbio que diz que As aparências enganam pode ser aplicado aos próprios
provérbios. À primeira vista parecem seguros e sensatos, constantes não problemáticas
da condição humana; quando analisados mais de perto, eles se transformam em
variáveis históricas e sociais, uma fonte de divisão e de disputas (1997: 73).
Por fim, cabe destacar que os provérbios estabelecem uma certa hierarquia quanto ao seu
modo de funcionar: institui o coletivo acima do individual, o habitual acima do incomum, as
normas externas acima da autodeterminação, o senso comum acima do ponto de vista pessoal.
199
Não pretendemos aqui esgotar tal tema, haja vista que, como vimos, a enunciação
proverbial proporciona uma gama de possibilidades de análise no que tange ao seu
funcionamento na atividade argumentativa a fim de persuadir o outro. Acreditamos, assim, ter
alcançado os objetivos propostos, deixando uma porta aberta ou um estímulo para outras
pesquisas relativas a este assunto ou outros de natureza semelhante.
200
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Antônio Suárez. A Arte de Argumentar: Gerenciando Razão e Emoção. 7 ed. Cotia,
Ateliê Editorial, 2004.
AMARAL, A. Paremiologia. In: Tradições Populares. São Paulo, Hucitec, 1976.
ANSCOMBRE, Jean Claude & DUCROT, Oswald. L’argumentation dans la Langue. In:
Languages. Paris, 42:5-27, 1976.
ARISTÓTELES. Poétique. Paris, Les Belles Lettres, 1952.
_______. Physique. Paris, Les Belles Lettres, 1926.
_______. Retórica. Madrid, Alianza Editorial, 1998.
AUSTIN, J.L. How to Do Things with Words. New York, Oxford University Press, 1965.
AUTHIER-REVUZ, J. “Hétérogénéité Montrée et Hétérogénéité Constitutive: Éléments
pour une Approche de L’autre dans le Discours”. In: DRLAV, 26: 91-151, 1982.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11ed. São Paulo, Hucitec, 2004.
_______. Problemas da Poética de Dostoiévski. 3ed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002.
_______. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes,1992.
BARROS, Diana Luz de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. Cópia Xerog., 1990.
BEAUGRANDE, Robert de & DRESSLER, Wolfgang U. Introduction to
Textlinguistics. Londres, Longman, 1981.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 1999.
BENVENISTE, Émile. Problèmes de Linguistique Générale. Paris, Gallimard, 1966.
_______. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas, Pontes, 1989.
201
BERRENDONNER, A. Éléments de Pragmatique Linguistique. Paris, Gallimard, 1981.
BROWN, J. A. C. Técnicas de Persuasão. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
BROWN, P. & LEVINSON, S. Politeness. Cambridge, Cambridge University Press, 1987.
BROWN, R. B. The Wisdom of Many: Proverbs and Proverbial Expressions. In: American
Folklore. Voice of America Foreign Séries, 1977.
CERVONI, J. A Enunciação. São Paulo, Ática, 1989.
CHAROLLES, Michel. “Introduction aux Problèmes de la Cohérence des Textes”. Langue
Française, n° 38. Paris: Larousse, 1978, p.7-41.
CHAVES, P. Rifoneiro Português. Porto, Domingos Barreira, 1945.
CHOMSKY, N. Aspectos de la Teoría de la Sintaxis. Madrid, Aguilar, 1971.
CITELLI, Adilson. Linguagem e Persuasão. São Paulo, Ática, 2004.
COURTINE, J. J. “Définition d’Orientations Théoriques et Méthodologiques en Analyse
de Discours”. In: Philosophiques, vol.IX, n.2, Paris, 1984.
DUBOIS, Jean et alii. Retórica Geral. São Paulo, Cultrix, 1974.
DUCROT, Oswald. Princípios da Semântica Lingüística. São Paulo, Cultrix, 1976.
_______. O Dizer é o Dito. Campinas, Pontes, 1987.
ECO, Umberto. A estrutura Ausente. São Paulo, Perspectiva, 1971.
FÁVERO, Leonor L. Coesão e Coerência Textuais. 9. ed. São Paulo: Ática, 2001.
_______ & Koch, Ingedore G. V. Lingüística Textual: Introdução. São Paulo: Cortez, 1983.
FIORIN, Jose Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto, 2002.
_______. As Astúcias da Enunciação. São Paulo, Ática, 2002.
GARCIA, Othon M. Comunicação em Prosa Moderna. 15 ed. Rio de Janeiro, Editora da
Fundação Getúlio Vargas, 1992.
GOFFMAN, Erving. A Elaboração da Face. Uma Análise dos Elementos Rituais na
Interação Social. In: Figueira, Sérvulo Augusto (org.). Psicanálise e Ciências Sociais.
Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980.
GREIMAS, A. J. Les proverbes et les Dictions. In: Du Sens. Paris, Seuil, 1970, p. 309-314.
202
_______ & COURTÈS, Joseph. Sémiotique: Dictionnaire Raisonné de la Théorie du Langage.
Paris, Hachette, 1979.
GRÉSILLON, A. & MAINGUENEAU, D. Polyphonie, Proverbe et Détournement. In
Langages, n° 73. Paris, Larousse, 1984, p. 112-125.
GRICE, H. P. Logic and Conversation. In: Cole, P. & Morgan, J. L. (eds.) Syntax and Semantics.
New York: Academic Press, 1975, v.8, p.41-58.
GUIMARÃES, E. Texto e Argumentação. Campinas, Pontes, 1987.
_______. “Enunciação e História”. História e Sentido na Linguagem. Campinas, Pontes, 1989.
_______. “Texto e Enunciação”. Organon. Porto Alegre, UFGRS, no prelo, 1994.
_______. Os Limites do Sentido: um Estudo Histórico e Enunciativo da Linguagem. 3 ed.
Campinas, Pontes, 2005.
HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Cohesion in English. London, Longman, 1976.
HAROCHE, Claudine, HENRY, Paul & PÊCHEUX, Michel. “La Semantique et la Coupure
Saussurienne: Langue, Langage, discours. In: Langages, 24: 93-106, 1971.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969.
KERBRAT- ORECCHIONI, C. L’Implicite. Paris, Armand Colin, 1986.
KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. 9 ed. São Paulo, Cortez, 2004.
_______. A Inter - Ação pela Linguagem. São Paulo, Contexto, 2003a.
_______. A Coesão Textual. 18. ed. São Paulo: Contexto, 2003b.
_______ & TRAVAGLIA, Luis Carlos. A Coerência Textual. 15. ed. São Paulo: Contexto,
2003c.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas, Pontes,
1987.
_______. Ethos, Scénographie, Incorporation”. In Amossy, Ruth. Images de Soi Dans Le
Discours. Lausanne, Delachaux et Niestlé, 1999.
_______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo, Cortez, 2001.
_______. Elementos de Lingüística para o Texto Literário. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
203
_______. Initiation aux Méthodes de L’analyse du Discours. Paris, Hachette, 1976.
MARCUSCHI, Luiz A. Lingüística do Texto: O que é e Como se Faz. Recife: UFPE, Série
Debates 1.
MARTINS, Nilce Sant’anna. Introdução à Estilística. 3 ed. São Paulo, T. A. Queiroz, 2000.
MUSSALIM, Fernanda e Bentes, Anna Christina (orgs). Introdução à Lingüística: Domínios e
Fronteiras, vol. 2. São Paulo, Cortez, 2003.
OBELKEVICH, James. “Provérbios e História Social”. In: História Social da Linguagem. São
Paulo, Fundação Editora da Unesp, 1997.
ORLANDI, E. A Linguagem e seu Funcionamento: as Formas do Discurso. São Paulo,
Brasiliense, 1987.
_______. Discurso e Leitura. São Paulo, Cortez/Editora da Unicamp, 1988.
_______. Terra à Vista. São Paulo, Cortez/Editora da Unicamp, 1990.
_______. As Formas do Silêncio. Campinas, Editora da Unicamp, 1992.
_______. Discurso Fundador. Campinas, Cortez/Editora da Unicamp, 1993.
_______. Interpretação. Rio de Janeiro, Vozes, 1996.
_______. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. 5 ed. Campinas, Pontes, 2003.
PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino e Gavazzi, Sigrid (orgs). Texto e Discurso: Mídia,
Literatura e Ensino. Rio de Janeiro, Lucerna, 2003.
PÊCHEUX, M. La Langue Introuvable. Paris, François Maspero, 1981.
_______. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas, Editora da
Unicamp, 1988.
_______. O Discurso: Estrutura ou Acontecimento. Campinas, Pontes, 1990.
_______. “Delimitações, Inversões, Deslocamentos”. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos.
IEL, 1991.
PERELMAN, Chaïm. Le Champ de l’Argumentation. Bruxelas, PUB, 1970.
_______. Argumentação. In: Enciclopédia Einaudi. vol. 11. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1987.
_______. La Lógica Jurídica y la Nueva Retórica. Madrid, Editorial Civitas, 1988.
204
_______. O Império Retórico. Porto, Edições ASA, 1993.
_______. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
_______ & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação. A Nova Retórica. São
Paulo, Martins Fontes, 1999.
PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. 4 ed. São Paulo, Ática, 2004.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. São Paulo, Cultrix/Edusp, 1969.
SCHAFF, Adam. Introdução à Semântica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
SEARLE, J. R. Os Atos de Fala. Coimbra, Almedina, 1981.
SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro da. Pragmática: a Ordem Dêitica do Discurso: as
Representações do EU e seus Efeitos de Sentido. Rio de Janeiro, ENELIVROS, 2005.
SOUZA, Josué Rodrigues de (org.). Provérbios e Máximas – em 7 Idiomas. Rio de Janeiro,
Lucerna, 2003.
STEINBERG, Martha. 1001 Provérbios em contraste. São Paulo, Ática, 1985.
VOGT, Carlos. Linguagem, Pragmática e Ideologia. Campinas, Hucitec/FUNCAMP, 1980.
VOILQUIN, Jean e Capelle, J. (orgs.). Aristóteles. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro,
Ouro, s.d.
WEINRICH, Harald. Le Temps. Paris, Seuil, 1973.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. São Paulo, Abril, 1975.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo