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A loucura e o feminino na obra de Florbela Espanca
por
Eliana Beatriz Moreno
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Rio de Janeiro
2007
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A loucura e o feminino na obra de Florbela Espanca
por
Eliana Beatriz Moreno
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Letras da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro/UERJ para obtenção
do título de Mestre em Literatura
Portuguesa.
Linha de pesquisa: Literatura
Portuguesa e outros campos do
saber.
Orientadora: Profª Drª Nadiá Paulo
Ferreira
Rio de Janeiro
1º semestre de 2007
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MORENO, Eliana Beatriz. A loucura e o
feminino na obra de Florbela Espanca.
Dissertação de Mestrado em Literatura
Portuguesa apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da UERJ.
Orientadora: Profª Nadiá Paulo Ferreira.
Rio de Janeiro: 1º semestre de 2007. 74 p.
MORENO, Eliana Beatriz. A loucura e o
feminino na obra de Florbela Espanca.
Dissertação de Mestrado em Literatura
Portuguesa apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da UERJ.
Dissertação aprovada em 29 de março de 2007.
Profª Drª Nadiá Paulo Ferreira (UERJ Orientadora)
Prof. Dr. Mário Bruno (UERJ
Titular)
Profª Drª Márcia Pereira da Veiga (UNESA
Titular)
Às minhas filhas Flávia e Luísa,
razão da minha caminhada.
AGRADECIMENTOS
Aos professores Nadiá Paulo Ferreira, Mário Bruno, Gustavo Bernardo, Gisele de
Carvalho e Márcia Veiga, pelo apoio.
Aos amigos Carla Motta, Cláudia Soares, Albertino Peres e Juarez Moraes Ramos
Júnior, pela confiança.
Ao meu marido Flávio Nogueira, pela paciência e compreensão nos momentos de
tensão.
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida
Florbela Espanca
RESUMO
O presente trabalho teve como objetivo estabelecer a relação entre a loucura e a
submissão feminina, tendo como causa o poder masculino, retratada de forma ampla
nas obras e cartas de Florbela Espanca, poetisa portuguesa do início do século XX.
Um olhar no regime econômico vigente na época, o Capitalismo, é de grande
importância para contextualização da mulher na sociedade, que transforma
gradualmente, o papel social feminino. Com uma nova posição no mundo surgem
mulheres com questionamentos e reavaliações bastante peculiares para a época. Em
Portugal, na Literatura o processo começa a ser registrado primeiramente, de forma
amadora nos salões de chá e depois, muito lentamente, em publicações literárias.
Considerando a importância da interdisciplinariedade foi utilizado para o presente
estudo conhecimentos na área de psicanálise como respaldo científico para, análise
das cartas e dos sonetos compostos por Florbela Espanca relacionando-os com os
desequilíbrios emocionais também denominados neurastenia.
Palavras-chave: Loucura. Opressão masculina. Submissão feminina. Registros
literários e epistolográfico. Florbela Espanca.
ABSTRACT
The of aim of the present work is to establish a relationship between madness and
female submission as a result of male power, widely portrayed in the works by
Florbela Espanca, a portuguese poet from the beginning of the 20
th
century. The
economic regime of Capitalism current at that time has a great importance for the
women’s changing place in society, which also changed, little by little, social female
roles. With a new position, a different kind of woman begins to question and re-
evaluate various issues in a very unusual way for the time. In Portugal, it is in
Literature, at first, that this process starts to be recorded, in an amateur way in tea
rooms and then, slowly, in literary publications. Considering the importance of
interdisciplinarity in the literary field, the present work draws on Psychoanalysis as
the basis for the analysis of the letters and sonnets written by Florbela Espanca,
linking these to the emotional condition named neurasthenia.
Key-words: Florbela Espanca; madness; female submission; male oppression; literary
discourse.
SUMÁRIO
1- Introdução ................................................................................................. 11
2- O papel designado à mulher na sociedade do século XX ............................ 15
2.1 - Portugal e seu lugar no contexto europeu .............................................. 16
2.2 - A mulher desempenhando novos papéis sociais ..................................... 19
3 - Os parâmetros masculinos e as normas de conduta feminina ............... 24
3.1 - A influência da Igreja católica ............................................................... 25
3.2 - Freud e as neuroses ................................................................................ 29
3.3 - Freud e o processo criativo .................................................................... 34
4 - Florbela: vida e obra relacionadas às pressões sociais ........................ 37
4.1 - Livro de Mágoas: o primeiro livro publicado ............................................. 38
4.2 - Florbela e a construção de seu estilo literário ............................................. 44
4.3 - Reflexões sobre a mulher em versos .......................................................... 48
4.4 - Ponto de tensão: a loucura .......................................................................... 51
4.5 - Submissão feminina: o suicídio .................................................................. 54
5 - As cartas .................................................................................................... 59
5.1 - Poesia e epistolografia ................................................................................ 64
6 - Conclusão .................................................................................................. 68
7 - Referências bibliográficas ....................................................................... 72
INTRODUÇÃO
O trabalho visa abordar a relação entre a loucura e o feminino na Literatura
através dos sonetos e cartas escritos pela poetisa portuguesa Florbela Espanca. No
início do século XIX, começa a se delinear uma posição feminina diferente da
conhecida até então, numa sociedade que toma outro rumo, devido ao novo sistema
econômico que se consolida no mundo. No final do século XIX, o capitalismo firma-
se como modo de produção, modificando profundamente as relações sociais em todos
os âmbitos. O aspecto econômico altera a organização do trabalho, que passa a fazer
uso da mão-de-obra feminina e infantil. Segundo Rosa Maria B. de Araújo (1993,
p.132), uma nova fase em que a mulher pode atuar, da mesma forma que o homem,
no setor de produção de bens e serviços altera significativamente as condições de
vida familiar. Anteriormente cabia “a cada um seu perímetro e, correlativamente, suas
tarefas e atributos. Para a mulher, o lar, para o homem, o mundo; para a mulher, o
filho, para o homem, a carreira. Para a primeira, a abnegação do amor, para o
segundo, o exercício do poder, e assim por diante” (SOLLER 2005, p.132). Neste
momento, mesmo que o ingresso da mulher no setor não-doméstico de trabalho não
melhorasse sua condição social, e apenas retratasse mais uma modalidade de
servidão, ao sair de casa para trabalhar, torna-se figura humana mais respeitável.
(ARAÚJO, 1993, p. 73).
A partir do momento em que a mulher é reconhecida como mão-de-
obra, ela passa a assumir um novo papel no contexto social, que vai além do limite
demarcado pelo homem
o lar
onde ele continua desempenhando o papel de
“senhor” (aquele que manda e determina). Existe sempre a necessidade masculina de
mantê-la sob o seu jugo. Desta forma, por exemplo, o salário pago a uma operária é
bem menor do que o que se paga ao operário, pois dentro desta visão conservadora o
salário dela é uma complementação do salário do marido: subentende-se assim, que
ela tem um marido. Eis aí uma determinação: a “necessidade de casar”.
12
Pretende-se aqui ressaltar ao surgimento da possibilidade de
começar a freqüentar um mundo até então proibido: o mundo constituído pelas
“coisas dos homens”. Tudo isto a atinge de forma marcante, em todas as camadas
sociais: a operária das fábricas quer ver o seu trabalho reconhecido; aquela que os
filhos, ainda crianças, sendo explorados, briga pelos direitos deles; a mais
intelectualizada começa a sentir necessidade de tornar público os seus pensamentos,
que antes eram escritos e guardados a sete chaves nos seus diários, sem
constrangimento e não, “sem-vergonha” no sentido pejorativo conferido pelo homem.
Como já aconteceu em outras ocasiões da História, a repressão que a mulher sofre
acaba contribuindo para mudar a sua atitude em diversas áreas.
A mulher então passa a sentir um certo desequilíbrio de ordem
emocional, mas não se dá conta de que é resultado de um movimento de fora para
dentro e não de dentro para fora: a força externa de opressão masculina ainda é maior
do que a força interna de libertação feminina. A grande maioria acaba sendo levada a
crer que esta insatisfação pessoal e esta vontade de externar seus sentimentos para
compartilhá-los com outras mulheres, encontrando assim companheiras que possam
entendê-las, são conseqüências de seus “nervos debilitados”. Infelizmente, essa
maioria, deixa-se convencer e então, efetivamente, acaba debilitada. Cabe destacar
que sendo a mulher um ser dependente em todas as instâncias de sua vida, era fácil
para aqueles que se intitulavam seus responsáveis, impedi-la de qualquer tipo de
reação fora das normas de condutas vigentes, utilizando-se de seus conhecimentos
quer sejam médicos, religiosos, jurídicos ou simplesmente com a autoridade de pai,
marido ou filho.
No fim do século XIX, em Portugal, as poetisas expunham seus
textos nos salões de chá e nas revistas femininas. No entanto, com freqüência, eram
criticadas e tratadas quase como crianças, de maneira condescendente, e raramente
séria, pelos críticos literários. Algumas delas inclusive utilizavam-se de pseudônimos
em suas produções literárias como forma de manter o anonimato.
No meio deste estribilho de vozes femininas que em geral
permitem-se apenas falar de amores perdidos, corações tristes e saudades, algumas
13
mulheres começam a transgredir o paradigma vigente à época e abrem espaço para
falar de erotismo, desejo, pecado, loucura. Escritoras de diferentes continentes, que
nem ao menos se conhecem, exploram estes novos temas para extravasarem suas
emoções, retratando o contexto social que envolvia e inquietava a todas. Isto vai
contra os padrões burgueses vigentes. Mais ainda: opõe-se ao modelo de mulher pura,
virginal, intocável do Romantismo. Algumas mulheres utilizam-se, dos sonetos, tão
em voga na época, tornando o eu lírico emissário de suas inquietações.
Neste contexto encontramos Florbela Espanca: mulher
extremamente sensível, cheia de inquietações e dúvidas, criada num ambiente de
liberdade, tendo como pai um anarquista que introduziu em Portugal o
cinematógrafo, porém vivendo numa sociedade masculina e opressora. Buscando
soluções para este infindável estado de insatisfação com a vida, ela quis acreditar que
um príncipe, modelo de homem ideal, a libertaria de toda essa opressão e angústia.
Contudo, tal modelo por ser ideal, está longe da realidade e, assim, ela nunca o
encontra. Na sua vida pessoal, três casamentos retratam esta eterna procura. Sua
paixão pela natureza, sua identificação com animais e os modelos masculinos que
servem como parâmetros da forma ideal de comportamento deixam bem claro que era
fora de si que ela imaginava encontrar a felicidade, que considerava seus conflitos
internos como frutos de uma anomalia, no sentido de não ser como as outras
mulheres de sua época.
Analisando algumas das suas cartas e estabelecendo um paralelo
com sua obra, composta de contos e sonetos, é possível vislumbrar a situação da
mulher dentro desta sociedade tão machista, mas que se obrigada a lhe abrir
espaço, mesmo que por força das circunstâncias.
Num primeiro momento, tem-se a impressão de que suas obras são
temperadas com uma forte dose de narcisismo, mas, à medida que se toma contato
com suas poesias e, principalmente com suas cartas, percebe-se, claramente, que falar
de si mesma é, na verdade, uma enorme tentativa de encontrar no seu interior ou
mesmo através de um outro alguém, respostas para suas angústias e aflições.
14
Interessante notar que convivem lado a lado na vida desta
escritora, não os inúmeros questionamentos e os arroubos de insatisfação, mas
também, um certo ar de desinteresse não pelas pessoas, mas pela vida em geral. É
possível perceber em suas cartas as fortes alternâncias de humor, e nos seus poemas,
forte exposição dos seus sentimentos. Nos seus retratos, entretanto, existe sempre um
certo ar blasé, como se tudo e todos ao seu redor fossem extremamente enfadonhos.
Quem era esta escritora com uma vida emocionalmente tão
instável? Seria possível rotulá-la de “neurastênica”, termo tão popular na época, ou de
“doente dos nervos”, simplesmente porque nela, como em tantas outras mulheres,
começava a brotar uma nova maneira de ver a vida, diferente do modelo doce,
cordato e submisso de até então?
15
2- O PAPEL DESIGNADO À MULHER NA SOCIEDADE DO SÉCULO XX
Um dia, o destino trôpego e velho de cabelos
cor de neve, deu-me uns sapatos e disse-me:
Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e
caminha! Caminha sempre, sem descanso nem
fadiga, vai sempre avante e não te detenhas,
não pares nunca!
Florbela Espanca
A disparidade existente entre Portugal e a Inglaterra ou a França, no que tange
ao desenvolvimento sócio-econômico, é notória no final do século XIX. Na segunda
metade do século, encontrar-se-á um país atrasado em praticamente todas as áreas,
com sua economia baseada na agricultura, cerca de 80% de sua população constituída
por analfabetos e com a Igreja católica exercendo seu poder de forma ampla. Tais
fatos acabarão contribuindo para aumentar o atraso do seu desenvolvimento
econômico.
A mudança do regime de monárquico para republicano trouxe consigo a
esperança dos portugueses de classes menos abastadas em conseguirem uma
modificação em termos de qualidade de vida. No entanto, tal fato não ocorre em
função, principalmente, da luta que se trava entre as correntes em que se dividiu o
Partido Republicano.
Tendo como origem o advento do capitalismo e o crescimento dos centros
urbanos, começa a acontecer a participação efetiva da mulher como mão-de-obra na
sociedade portuguesa já que a maioria, pertencente às classes menos favorecidas, vê-
se em situação de sérias dificuldades financeiras, que comprometem a manutenção
financeira básica de sua famílias. Nem mesmo a Igreja pode socorrê-las, pois neste
momento, se encontra sem prestígio em relação ao Estado.
No campo literário, a mulher com maior grau de instrução vai conquistando
gradualmente seu lugar. Tal fenômeno ocorre em Portugal, primeiro em caráter
16
doméstico, nas reuniões para o chá e posteriormente, nas revistas femininas que
publicam não só seus artigos, mas também, suas poesias.
Neste contexto surge Florbela Espanca, poetisa que consegue, ao contrário da
maioria, uma atenção favorável da crítica masculina portuguesa, tendo seu trabalho
reconhecido pela classe literata.
2.1- Portugal e seu lugar no contexto europeu
De 1820 a 1890, Portugal vive um período de desenvolvimento, tanto no setor
agrícola quanto comercial, que não supera o período da Idade Média. A partir de
1891, em Portugal, começa um período de estagnação econômica e política que se
estende pelo século seguinte. “A evolução da economia portuguesa no século XIX é
tão acidentada como a evolução política” (SARAIVA, 1993, p. 308). Muito
lentamente, a situação começa a se modificar, apesar de problemas como a debilidade
de recursos materiais, a escassez e a pobreza da população, sua fraca capacidade
produtiva e a fragilidade de meios para enfrentar as ameaças externas. Portugal ficava
efetivamente para trás em relação à Europa e à América, que avançavam
impulsionadas pelo progresso industrial, trazendo junto a riqueza e os meios de
produzi-la. Os séculos XIX e XX foram excepcionais em termos de progresso,
capazes de produzirem um conforto e um consumo nunca antes imaginado para EUA,
Inglaterra, França e Alemanha. Este desenvolvimento resultou em significativas
diferenças na formação de cada sociedade. Portugal permanece num lugar de
retaguarda nos últimos 150 anos. A Inglaterra dá um verdadeiro salto, graças à
Revolução Industrial. França e Alemanha também não ficam para trás.
Durante as primeiras décadas do século XIX, ocorrem em Portugal uma
revolução liberal e um desenvolvimento capitalista incompletos que terão como
conseqüências uma estrutura agrária assentada no dualismo minifúndio/latifúndio que
não encorajava nem a eficiência produtiva, nem uma distribuição de renda mais justa.
O atraso no desenvolvimento econômico português teve como causas, além da
herança sócio-cultural, resultado de uma sociedade avessa às novidades empresariais
17
e ao novo espírito científico que imperava no mundo, a escassez de recursos naturais,
a falta de escolaridade do povo e a falta de competitividade industrial diante do
mercado mundial. Saraiva destaca que:
Em 1836 mantinha-se o esquema pombalino: rudimentos de leitura
e escrita para o povo, universidade para a elite alto-burguesa. Não
existia ensino secundário (a não ser como preparatório para o
superior) porque o modelo de sociedade a que o Estado se destinava
não incluía um estrato secundário, isto é, não incluía a pequena
burguesia. (SARAIVA, 1993, p. 326).
Em 1900, segundo Saraiva (1993, p. 329), o percentual de analfabetos era de
cerca de 80%, sendo a outra parte constituída pela classe média dos proprietários e
por uma pequena parcela urbana. “Na aldeia, os jovens pobres com muita sorte ou
com muito talento conseguiam vencer a barreira. E poucos continuavam no campo:
emigravam logo para a cidade ou para o Brasil, porque o salário de Lisboa
quintuplicava o das zonas rurais”.
A sociedade do Antigo Regime ainda monopolizava suas forças no sentido de
apoiar a aristocracia e o clero, o que agravou sua falta de desenvolvimento. Portugal
mantinha posição a favor das proteções alfandegárias, sendo o seu maior defensor no
mercado europeu. Dessa maneira, mesmo a tentativa de penetrar no mundo
competitivo industrial através da comercialização das conservas de peixe e da cortiça
não obteve sucesso, por esbarrar com obstáculos internos que impediam uma
condição competitiva internacional. Em Portugal a especialização agrícola possível,
devido às suas características, limitou-se aos cereais, ao vinho e ao azeite, que
careciam de procura pelo mercado consumidor internacional. A falta de escolaridade
dificultava a implantação de novas técnicas. Por volta de 1911 o índice de
analfabetismo do povo era de setenta e cinco por cento. “Em 1834 havia mil escolas;
só trinta anos depois houve duas mil. Em 1910 não eram mais de quatro mil e
quinhentas” (SARAIVA, 1993, p. 327). A classe operária vivia quase na miséria. A
população majoritariamente de baixa renda tinha como conseqüência um mercado
consumidor muito restrito.
18
A transição política do regime de Monarquia para a República também não foi
menos desastrosa para a população portuguesa. Esse novo regime que se estabelecia
trazia consigo toda a esperança do povo português, principalmente das classes
populares e da média e pequena burguesia em conseguirem uma significativa
mudança na sua qualidade de vida. Não se deve esquecer de uma propaganda
demagógica dos políticos da época, interessados em cativar a população, para
conseguirem apoio. Era uma nova tentativa de instalação de uma sociedade burguesa
de fato. O Estado ainda sofria as conseqüências do arcaico modelo do Antigo
Regime, que permanecera apesar do encerramento das ordens religiosas, da laicização
do ensino e de tantas outras tentativas anteriores de mudanças de ordem jurídica,
fiscal e administrativa. Este fato pode ser constatado em Cartas Políticas, trabalho
escrito pelo lúcido crítico João Chagas:
É o Portugal dos séculos XVII e XVIII, o Portugal absolutista,
educado pelos frades e pelos jesuítas, com o mesmo fundo étnico e
a mesma mentalidade. É um Portugal de torvos inquisidores, de
grotescos chechés, de capitães-mores, de beatas, de peraltas, de
sécias, de vates de eirado e de ratos de sacristia, trescalando ao
fartum dos tempos ominosos. Esse Portugal reviveu com a crise
final da dinastia. Era um sedimento social, um depósito como o que
existe no fundo das garrafas. A sociedade agitou-se. Ele veio acima
e turvou-a. O que restou de extinto, de morto na alma portuguesa
adquiriu movimento, entrou em atividade (MAGALHÃES, 2000,
p. 66)
Saraiva (1993, p. 294) destaca o processo de extinção das ordens religiosas e a
venda dos bens do clero, através do decreto de 1834, “devido a Joaquim António de
Aguiar (a quem, por isso, se chamou depois de Mata-Frades), que pôs termo à
maioria das ordens religiosas e lhes nacionalizou os bens”.
19
2.2 - A mulher desempenhando novos papéis sociais
A mulher exercia como papel principal na sociedade a de reprodutora, de
acordo com sua estrutura biológica. É justamente a maternidade que une e amarra os
laços familiares, dando maior estabilidade à família enquanto célula mater da
sociedade.
O capitalismo e o crescente processo de urbanização dos grandes centros
começavam a pontuar uma nova sociedade na qual a mulher saía de casa mais vezes
do que mencionava um antigo ditado, a saber, três vezes: para o seu batizado, para o
seu casamento e para o seu enterro. Ela começava a participar de forma efetiva na
sociedade como o-de-obra. No entanto, nas classes consideradas mais abastadas,
apesar do acesso à educação ser menos dificultoso, o mercado de trabalho era visto de
forma desprestigiada, pois deveria restringir-se às mulheres que dele necessitavam.
se compreendia a atitude de buscar um lugar no mercado de trabalho àquelas que
passassem por dificuldades financeiras, por falta dos maridos. A própria mulher
envergonhava-se de ter de declarar que dividia as despesas com os maridos, quer
trabalhando fora, quer desenvolvendo atividades em casa como costura, lavagem de
roupas ou fazendo quitutes. Não se deve esquecer que em Portugal, sempre levando
em consideração o contexto sócio-cultural, a elite social portuguesa era formada por
ex-escravocratas para quem o trabalho diminuía o prestígio do homem perante a
sociedade. As mulheres mais abastadas engrossavam o coral masculino no sentido de
que era real a incompatibilidade entre as atividades domésticas e o trabalho fora de
casa.
O distanciamento que ocorria entre a Igreja e o Estado facilitava a saída da
mulher em busca do trabalho fora do lar: a própria Igreja não possuía mais condições
financeiras de arcar com as consideradas “desvalidas”. As operárias, em sua grande
maioria, preocupavam-se mais com melhores condições de trabalho do que com
direitos de cidadania. O comércio também as recebe como trabalhadoras. Mas é no
âmbito doméstico, como não poderia deixar de ser, e na educação que a mulher
descobre uma maior oportunidade de estabelecer-se. No primeiro caso, não
20
necessidade de qualificação, apenas o conhecimento de prendas domésticas. no
segundo, a capacitação necessária é pequena. As aulas particulares adequavam-se
tanto às necessidades delas quanto ao pensamento masculino da época: as mulheres
trabalhavam mantendo-se no âmbito doméstico, quer nos seus lares, quer nos lares
dos alunos. As menos qualificadas especializaram-se no mercado da moda como
modistas ou esteticistas de salões de beleza.
Como cita Rosa Maria Barboza de Araújo em A Vocação do Prazer, “Apesar
dos avanços, era notória a resistência masculina ao trabalho da mulher. Ela tem
origem não só na esfera econômica da competição no mercado, mas também na
quebra dos valores tradicionais de seu papel social, ameaçando a ordem de
dominação masculina”. (1995, p. 22)
No final do século XIX e início do século XX, as oportunidades de ingresso
no mundo acadêmico para a mulher eram extremamente reduzidas. Escolas estatais
secundárias permitiam, na prática, o acesso feminino após 1906. Até então,
algumas moças, muito determinadas, cursavam os liceus masculinos. Não se deve
esquecer que era um número insignificante, estatisticamente falando. Para a
sociedade da época, o aprendizado feminino não deveria ir além das prendas
domésticas, considerando-se o ensino escolar até como nocivo.
No que tange à Literatura, um novo fato começava a acontecer: as mulheres
com maior grau de instrução começavam a ganhar espaço nas revistas femininas
portuguesas, escrevendo artigos que discutiam a questão da educação da mulher tanto
na Europa como nos Estados Unidos. Em Portugal, Maria Amália Vaz de Carvalho
publica Cartas a Luísa para defender a tese de que a educação escolar feminina devia
ser um direito conquistado. Como já era de se esperar, a reação masculina, contrária à
escritora, veio de forma marcante e contundente para criticar a obra. Oliveira Martins,
intelectual da Geração de 70, escreve que sendo a mulher doente, o que ela necessita
é de médico:
21
(Antes) Deus era o médico da mulher: hoje o seu médico e o tutor
dessa pupila eterna é o homem: o pai, o marido, o filho. Ai da
mulher que não se submeter, dócil e amoravelmente, a cada um
destes médicos nos períodos sucessivos da sua existência!
(ALONSO, 1997, p. 22)
Apesar da luta desigual, as mulheres foram conseguindo seu espaço dentro da
Literatura, inicialmente de forma muito tímida. Foi no início do século XX que esse
movimento ganhou mais intensidade. As mulheres usaram a poesia como bandeira
para representar a sua luta pelo direito de conquistar espaço igual no mundo. Em
Portugal, as revistas femininas publicam artigos que relatam o que pensavam as
mulheres de outros lugares do mundo e também publicam suas poesias, mesmo
sabendo da inevitável repercussão negativa. Em 1916, Florbela escreve para sua
amiga Júlia Alves: “Mas a propósito de versos: visto que seu jornal com cem
páginas por semana poderia conter a porção de coisas boas e más que metade das
mulheres de Portugal para envia numa febre de escritoras, literatas, poetisas e
cozinheiras (...) (ALONSO, 1997, p. 209)
Em 1905, o manifesto feminista Às Mulheres Portuguesas de Ana de Castro
Osório (ALONSO, 1997, p. 25) marcou o início da luta das mulheres portuguesas
pelos seus direitos na vida pública. Em 1914 a criação do “Conselho Nacional das
Mulheres Portuguesas” veio reforçar os esforços das mulheres em sua luta; no
entanto, foi com o advento da Primeira Guerra Mundial que o papel da mulher
ganhou efetiva importância, devido à necessidade da utilização de seus serviços. Daí
em diante, cresceu o interesse no que dizia respeito a esse novo universo: o mundo
das mulheres.
As poetisas receberam especial atenção no mundo literário. Em 1917, Nuno
Catarino Cardoso publica Poetisas Portuguesas, uma antologia contendo vida e obras
de 106 poetisas portuguesas. Pode-se imaginar o quanto este número é significativo
para a época. São mulheres de classe dia e alta que tinham acesso à educação
formal.
22
Duas novidades tomam conta da sociedade: os salões literários e as poetisas.
As reuniões para o chá, reunindo entretenimento e cultura, abrem espaço literário
para as mulheres: é ainda no lar (espaço privado), seu lugar natural, que ela se revela
como artista das letras, abrindo as portas dos salões para os saraus.
Na década de 20, cresce a popularidade das poetisas, que ganham espaço na
imprensa tanto para publicações de suas produções quanto para entrevistas. No
entanto, os críticos não as poupam,como por exemplo, Câmara Lima no Correio da
Manhã:
Mas meu Deus, todas fazem sonetos. O soneto e a saia curta estão
na moda. O pior é que todas ferem a mesma tecla, dizem a mesma
coisa. O teu amor não me serve. Vai-te embora. Vem depressa.
Não posso passar sem ti. tens as tuas cartas. Porque não me
escreves? Nunca mais. Até amanhã. Que tortura. Que delícia. Dá cá
um beijo. Some-te daqui para fora. (ALONSO, 1997, p. 30.)
Florbela Espanca não fugiu à regra: sua primeira publicação Livro de Mágoas
recebeu apenas uma crítica; o Livro de Sóror Saudade, que foi publicado no auge
do sucesso feminino 1923 recebeu da imprensa uma atenção especial. É
importante salientar que as críticas foram, em sua maioria, favoráveis a ela, que teve
seu trabalho reconhecido pela classe literata, como demonstram as críticas publicadas
no Correio da Manhã, novamente, por Câmara da Lima (ALONSO, 1997,p.29):
“Outra poetisa. O contingente das senhoras cresce dia a dia. Sejam sempre bem-
vindas quando, como esta, saibam versejar”.
Não podia ser outro o assunto tratado pelas mulheres que não o amor, afinal,
era com ele e para ele que elas viviam. Quanto à escolha da forma de soneto dado às
suas poesias, é como escolher uma identidade, um rosto. Florbela destaca-se no
sentido de apresentar sua poesia de maneira diferenciada das demais, o que não
significa que haja aceitação imediata da crítica.
23
Em “Horas rubras”, falar de amor sob uma nova ótica conferiu-lhe conotação
negativa, quase imoral. No Livro de Sóror Saudade o erotismo é um traço marcante e
não usual em relação às demais poetisas portuguesas:
E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente, palpitando... (ESPANCA, 2003, p.73)
24
3- OS PARÂMETROS MASCULINOS E AS NORMAS DE CONDUTA
FEMININA
Pena é o haver um manicômio
para corações, que para cabeças há muitos.
Florbela Espanca
No capítulo anterior a contextualização de Portugal na Europa do século XX e
as modificações acarretadas pelo modelo capitalista são pontos importantes para que
se efetue uma análise nos novos papéis desempenhados pela mulher, destacando-se
sua participação na Literatura.
No início do século XX, a Igreja católica exerce um papel preponderante no
que tange à educação das mulheres, embora sua relação com o Estado não tivesse
a mesma importância que antes. Seus dogmas deveriam ser respeitados determinando
assim a conduta de cada uma. Tal fato era muito conveniente para o homem que
utilizava-se de conceitos cruéis, como o pecado, por exemplo, para promover seu
poder de mando.
Para o catolicismo ela era ao mesmo tempo ré, pois estava ligada ao desejo
carnal e vítima, em função de não poder gerir a própria vida, necessitando assim da
orientação masculina. Tanta repressão acaba acarretando a chamada “doença dos
nervos”.
No final do século XIX, Freud traz à discussão o conceito de neurose,
estabelecendo sua relação com a moral social. Para ele o conceito de felicidade não
levava em consideração as diferenças sociais entre os sujeitos, acarretando assim, o
sofrimento.
Tendo a mulher seu modelo de comportamento determinado pelo homem, as
conseqüências desastrosas. Seguir parâmetros tão diferenciados de sua essência e
ditados apenas pela conveniência social acaba acarretando o seu desequilíbrio
emocional.
25
Na tentativa de distanciar-se do sofrimento e, com isso manter sua saúde
mental, algumas recorrem ao que Freud denominou sublimação do instinto, através
das satisfações substitutivas encontradas na arte: a produção literária é uma saída. O
imaginário é o espaço ideal. Florbela faz dele uso constante, mesmo sabendo que
viver a realidade é imprescindível e que acordar do sonho, dolorido.
3.1- A influência da Igreja católica
Na tradição judaico-cristã a ordem estabelecida é de caráter patriarcal, cuja
característica principal é a de dominação: o homem subjuga a mulher. Ele é o ser
dominante na relação. Diz Maria Emília de S. Almeida:
No Cristianismo, Eva foi submetida ao parto com dor, numa
retaliação ao ato sexual sujo e proibido. Ainda no Cristianismo,
Maria permite a redenção de Eva, ao ser imaculada/assexuada,
sendo a sexualidade o divisor de águas entre o feminino sacralizado
e o profano (ARAÚJO, 1994, p.14).
Para a Igreja Católica, a mulher estava ligada à figura do pecado, mostrando-
se veículo capaz de despertar no homem, alma nobre e justa, o desejo sexual e,
conseqüentemente, a cobiça. Interessante observar que as orientações pregadas por
Jesus Cristo são contrárias a esta idéia, pois para Ele a igualdade entre os seres
humanos era fundamental.
Embora, no início do século XX, a influência da Igreja Católica não fosse
tão forte no universo dos homens, ainda era por eles utilizada para demarcar limites
ao comportamento das mulheres. Elas deveriam seguir fielmente os dogmas
religiosos, ameaçadores e cruéis em especial com as mais jovens, ainda tão imaturas,
na tentativa de influenciar suas atitudes.
Em função dos sonetos publicados no Livro de Sóror Saudade, J. Fernando
de Souza, sob o pseudônimo de Nemo, escreve, no jornal A Época, 1923, que
26
Florbela deveria purificar “os lábios com carvão ardente” (DAL FARRA, 2002, p.
13). Em 7 de fevereiro de 1931, no Correio de Coimbra, Herculano de Carvalho
critica seu comportamento de pouca fé: “O pensamento é, por vezes, para certas
almas vibráteis, abandonadas em si mesmas, sem o esteio da Fé, que guarda e salva,
um subtil veneno, que mata o corpo, depois de apagar ou de fazer esmorecer a razão
e, conseqüentemente, a vontade” (DAL FARRA, 2002, p. 14). Dal Farra comenta tais
críticas em Afinado desconcerto de forma peremptória:
Se leio claramente a implicitação aí contida, concluo que a tal alma
vibrátil é prerrogativa feminina; que estar abandonada a si mesma
se traduz por ausência de tutor, terreno ou divino. Logo se vê como
fica claro o preconceito subliminar a tais assertivas: se é proibido à
mulher pensar, quanto mais poetar...Pensando e versejando, ela
pode descobrir no amor (pobre indefesa!) uma corrosão que a
destina à morte (ao suicídio) (2002, p.14).
Em Freud e a religião, Nazar aborda o tema apontando para as três funções
que a religião visa preencher: “a de satisfazer a sede de conhecimento do homem; a
de garantir conforto na desventura; a de estabelecer preceitos, proibições e
restrições”(2003, p. 39). Farta bibliografia religiosa era indicada para as moças, no
sentido de orientá-las para que dessa forma sua vida em sociedade fosse
irrepreensível, modelo baseado, muitas vezes, nas vidas das santas.
Seguem algumas citações de um livro católico, escrito por um abade italiano,
de título bastante sugestivo: Maria falando ao coração das donzelas, no início do
século XX. Tal livro servia como guia para o comportamento das jovens da época.
Percebe-se, nitidamente, a intenção de moldar o comportamento feminino:
Tu, minha filha, acaricias o corpo, nutrel-o, saisfazel-o, em tudo, e não
reflectes que, tratando-o d’essa sorte, o tornas mais apto de ser presa dos
fogos do inferno. Oh! Se conhecesses o que no outro mundo está
preparado ás almas sensuaes, e que atrozes tormentos n’elle sofrem,
repellirias n’um momento tudo o que póde pôr em perigo tua salvação
eterna,.não olharias mais o teu corpo senão como um servo inimigo a
quem é preciso vigiar sempre severamente ( BAYLE,1912, p. 61).
27
O corpo da mulher é visto como uma prisão degradante que guarda uma alma
pura, alma esta constantemente ameaçada pelos pensamentos impuros. Esta jovem a
quem a mensagem se dirigia, certamente, estava impotente diante de si mesma,
incapaz de conter estes ataques constantes e se considera e vítima, ao mesmo
tempo: se a alma que lhe foi dada por Deus é pura, os pensamentos que são seus são
absolutamente impuros. Somente o que vem de Dele é bom; tudo o que provém de si
mesma, não serve.
Quem poderia proteger esta vítima indefesa que não o homem, ser
equilibrado, perfeito representante divino na Terra?
Esta espécie de submissão a que a mulher estava condenada parecia, na
época, não ter fim, já que dentro de sua visão limitada de mundo, ela nunca se
poderia modificar. Qualquer alteração nunca seria vista como evolução e sim, como
um passo em direção à perdição, ao pecado, ao fogo do Inferno. Importante notar que
a sociedade patriarcal reforçava sua condição de incapaz, de facilmente influenciável,
o que contribuía para o aumento considerável do poder de mando do homem. A
mulher tinha que seguir o modelo concebido pelos homens da época: ela deveria ser
pura, intocável, isenta de qualquer pensamento ruim:
Ora aquelles que armam laços á tua pureza são inumeráveis. Os
sentidos, as paixões, os desejos desregrados, a belleza do rosto, a
elegancia do corpo, o vicio, os adornos, expõem-te cada dia, bem o
sabes, ao perigo de a perder...as modas, os espectaculos, as
conversações, os costumes d’um modo corrupto, as fallas pouco
reprimidas, as palavras pouco decentes das tuas companheiras, os
seus maus exemplos, as maneiras affectadas, as vaidades, as
amizades, os jogos, as adulações, as fingidas promessas de falsos
amigos e suas frequentes visitas. (BAYLE, 1912, p. 73)
Mais uma vez, pode-se perceber que a “coitadinha”, por não ter condições de
decisão e de escolha podia a qualquer momento ser vítima das tentações do mundo.
Qual a melhor atitude a ser tomada, neste caso? Recolher-se ao seu lar, lugar santo,
onde o olhar e a proteção masculina seriam as garantias da manutenção da sua pureza.
O mundo era lugar para o homem e não para a mulher.
28
De mais, minha filha, é falso que as caricias mundanas sejam
necessarias a quem é chamado a achar um esposo. Elas são um
meio para que o não aches nunca ou para encontrar algum malevolo
que te arrastaria para a desgraça em logar de fazer-te feliz... Como
póde ser que um ajuste que teve principios criminosos tenha um
bom resultado? (BAYLE, 1912, p. 89)
Para assegurar a felicidade era necessário que a sobriedade nos gestos,
discrição no comportamento e comedimento nos impulsos constituíssem fatores
essenciais nas atitudes de uma moça. Qualquer atitude que demonstrasse afeto, de
forma mais explícita, era fadada à desgraça e condenada ao Inferno pelo poder
conferido à Igreja.
Lentamente, algumas mulheres, pagando altos preços, começaram a modificar
suas atitudes diante da vida, mesmo que ainda de forma muito tímida. É na passagem
do século XVIII para o século XIX que as mulheres da classe média começam a
escrever na Inglaterra. Em Portugal, este movimento ainda é insignificante, até
porque somente uma minoria privilegiada tinha acesso à educação, mesmo assim de
forma precária.
Portugal em relação à Inglaterra, à França, à Alemanha e aos Estados Unidos,
em vários aspectos, encontra-se em franca desvantagem no século XIX, o que não
significa que não tenha havido produção literária feminina portuguesa.
Esta mulher que desperta para as letras e que sempre teve no homem seu dono e
senhor, modelo de perfeição, não poderia começar a produzir de outra forma que não
fosse espelhando-se nele como modelo.
Vendo-se ele, de repente, lidando com outro tipo de mulher
que começa a
questionar os modelos comportamentais ditados pela Igreja e pelo poder patriarcal
ocorre-lhe uma nova alternativa que pode ser explorada para que o controle não se
rompa: limitá-la no que respeita à saúde mental.
Álvaro Madureira em 1943, 13 anos após o suicídio de Florbela, no seu livro
intitulado A dor conclui que:
29
Florbela foi sozinha, porque talvez lhe não surgiu alguém que a
conhecesse e amparasse, porque, especialmente, os seus nervos, o
seu orgulho, a sua volubilidade, a louca esperança de encontrar,
neste mundo, a pátria da felicidade, a iam fazendo, tristemente,
cada vez mais, intolerável aos outros e a si mesma (DAL FARRA,
2002, p.16).
3.2- Freud e as neuroses
Freud, no final do século XIX, lança um novo olhar e traz à tona questões
delicadas e, por isso mesmo, suscita polêmicas, tais como religião e sexualidade. Em
Sexualidade Feminina a menina é vista como aquela que se sente deficiente ao
perceber a falta do órgão sexual masculino (pênis). O pensamento feminista objetou
que Freud atribuía um sinal de menos, uma negatividade à condição da mulher,
implicitamente atribuindo ao homem, portanto a si mesmo, um sinal de mais, uma
positividade. Críticas à parte, não como se negar a enorme contribuição que ele
legou à Humanidade. Críticas contundentes são constantemente feitas a ele,
principalmente pelas feministas, mas, como sempre deve acontecer, há que se
contextualizar o pensamento científico à época em que ele aconteceu. Sua nova
concepção em relação à sexualidade contribuiu de forma irrefutável no sentido de
melhorar o papel feminino na sociedade, mesmo que o seu objetivo não fosse este e
sim, tratar das neuroses de um ser doente – a mulher.
Segundo Freud, em O mal-estar da civilização, o surgimento das neuroses
deve-se principalmente à moral social que é imposta ao homem através da dicotomia
instinto humano x restrições sociais. Em sua concepção, os dogmas religiosos, as
imposições sociais e o determinismo contribuíram de forma inegável para a
ocorrência do desequilíbrio mental humano. As doenças que afetavam os nervos
femininos” explicavam e justificavam qualquer tipo de comportamento que fugisse
aos padrões então vigentes. Por volta do início do século XX, período em que
Florbela Espanca escreve seus poemas, o termo neurastenia era muito difundido; a
poetisa chegou a referir-se a ele, utilizando-o como título de um soneto. No
30
dicionário Houaiss (2001, p. 2012), a definição do termo encontrada é: “perda geral
do interesse, estado de inatividade ou fadiga extrema que atinge tanto a área física
quanto a mental”. E é neste estado que encontraremos com freqüência Florbela
Espanca que, certa feita, escreve o seguinte comentário para Júlia Alves:
Olhe, sabe?, estou hoje num dos meus dias cinzentos, como diz um
nosso escritor; dia em que tudo é baço e pesado como cinza, dia em
que tudo tem a cor uniforme e nevoenta dela, dessa cinza em que
eu, às vezes, sinto afundar o meu destino. Estou triste e vagamente
parva hoje (...)
(DAL FARRA,2002, p. 209)
Para Freud, os preceitos impostos pela sociedade como norma de
comportamento para um bom convívio social são baseados em padrões que não
levam em consideração as diferenças entre os indivíduos. Assim sendo, o conceito de
felicidade por ela determinada só será alcançado por poucas pessoas e em alguns
momentos. O sofrimento é presença constante no cotidiano do homem e pode partir
do seu próprio corpo, como conseqüência de sua vulnerabilidade e de fatores externos
que compõem o seu ambiente, atingindo-o de forma impiedosa, e, finalmente, das
relações interpessoais. É destas últimas que surgirá o norte para a linha de raciocínio
aqui explorada.
A mulher teve o seu padrão comportamental determinado pelo homem
enquanto este exerceu o seu poder. A ele cabia determinar o que deveria ser
considerado “normal” ou não. Talvez por isso Florbela teça o seguinte comentário em
uma carta para Julinha, a respeito do casamento:
as mulheres, as tais mais animais que espirituais, é que o
casamento não é a desilusão de sempre mas então, nós? Se
ganhamos um grande amigo, o que sofremos muitas vezes! A
revolta de tudo quanto de afinal uma grande lei da Natureza! E
não homem, por superior que seja, que compreenda esta revolta
e que a desculpe! (Dal Farra, 2002, p. 210)
31
Por motivos escusos e duvidosos, o homem sempre utilizou diversos artifícios,
tentando cercear aquela que, na verdade, causava-lhe apreensão. Quem era esse ser
capaz de gerar vidas, cujo corpo sofria modificações periódicas, quando grávida, e
que, como se fosse magia, logo depois tornava ao seu estágio anterior? Quem era esse
ser, sempre tão dócil, mas que em nome de sua cria era capaz de tornar-se uma fera?
Em um dos seus sonetos, é assim que Florbela define a mulher:
Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas, coração, sequer! (DAL FARRA, 1995, p. 57)
Talvez toda essa complexidade, que provocava tantas perguntas sem
respostas, acabasse por acarretar certa mitificação da mulher devido à pura ignorância
e, por conseguinte, ao medo que ela despertava. Assim, o homem, que tem maior
força física, torna-se mais poderoso, coagindo-a a agir de maneira a satisfazê-lo. Ele é
capaz de comprovar a incapacidade feminina em sobreviver sem a sua tutela,
tornando-se assim seu “senhor”. Em “Trocando olhares” Florbela descreve a mulher
nos sonetos Mulher I” e “Mulher II”. No primeiro, a mulher é descrita da seguinte
forma:
Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimentos cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer! (DAL FARRA, 1995, p. 57)
No segundo, há a seguinte descrição, na primeira quadra:
Ó Mulher! Como és fraca! Como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada (DAL FARRA, 1995, p. 58)
32
Mulheres que causavam algum tipo de contrariedade, pondo em risco o poder
masculino, algumas vezes, eram diagnosticadas pelos maridos e médicos como
loucas. Este grau de loucura variava com o tipo de insubordinação que elas
apresentavam.
Poucas ou praticamente nenhuma eram as chances de reverter esse quadro,
que o próprio marido as entregava à Justiça ou ao médico para que as devidas
providências fossem tomadas. Necessário ressaltar que todas as avaliações a que eram
submetidas eram feitas por homens: “No entanto, o casamento é brutal, como a posse
é sempre brutal, sempre!” (DAL FARRA, 2002, p. 210)
Naturalmente, eles podiam comprovar que, por sua natureza inferior, a elas
cabia unicamente gerar e educar os filhos, sempre sob a orientação masculina: ou do
marido ou de um religioso. Qualquer tipo de atividade que as desviasse destes
propósitos resultaria em grave perda das funções fisiológicas a que Deus as destinara.
Assim, Clouston (SHOWALTER, 1985, p.126) declara que “toda a energia cerebral
seria usada na formação de um conhecimento das ciências, e não haveria nenhuma
remanescente para propósitos reprodutivos”, colocando em risco a perpetuação da
espécie humana. Desta forma, mulheres ignorantes seriam as únicas capazes de
permanecerem num padrão dito normal, com capacidade de reprodução.
Em outro texto seu, Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna
(1976), Freud demonstra que são as exigências artificiais criadas pela sociedade que
acabam acarretando uma série de doenças nervosas ao indivíduo moderno, o que
vem comprovar o mal que o homem causava à mulher, em nome da manutenção dos
bons costumes em suas relações interpessoais: Deve-se amar sempre o homem que
Deus escolher para ser nosso companheiro na vida.” (GUEDES, 1986, p. 73)
Temas constantes nos textos de Florbela: sua produção literária e o amor,
responsáveis pela sua eterna inconstância emocional.
Freud escreve que o amor parece remover as fronteiras existentes entre o ego
e o objeto amado: o “eu” e o “tu” passam a existir como um único ser, segundo o
sujeito que se declara enamorado. Em “Escrava” fazendo-lhe eco de alguma maneira,
Florbela escreve:
33
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor
Eu te saúdo, olhar do meu olhar
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor! (ESPANCA, 1931, p.159)
Embora algumas vezes possa até parecer, não se trata de um estado
patológico, apesar de o ego perder temporariamente a sua autonomia e
individualidade. Tal estado foi o responsável pela instituição do núcleo familiar com
a função de agregar os homens ao redor de um objetivo comum, juntamente com o
trabalho, fortalecendo assim, os laços desta união. Contraditoriamente, é no exato
momento em que se ama que fica nítida a vulnerabilidade humana: o ser que passa a
ser o objeto responsável pelo desejo é exterior ao seu mundo e sobre ele não
nenhum tipo de controle – logo, se fica à mercê do sofrimento:
Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é tortura infinda, que é demência!
Que é vontade doida de gritar! (ESPANCA, 1919, p. 36)
Tentar evitar o sofrimento é tarefa humana constante. No que tange aos
relacionamentos interpessoais, a fuga do contato com o mundo real pode ser uma
saída tanto concreta os monges, por exemplo, optam pelo isolamento do convívio
mundano de forma voluntária
como mental, quando o homem afasta-se da realidade
e passa a viver na ilusão, como ocorre com os doentes mentais. Nesse caso, se este
isolamento possibilita a criação de um mundo próprio e ilusório, torna-se possível
caracterizar esse estado mental, na psicanálise, como paranóia.
Outra opção de distanciamento do sofrimento mais sadia é o que o psicanalista
denomina sublimação do instinto, quando as atividades científicas e artísticas, por
exemplo, acabam ganhando certo grau de desenvolvimento como conseqüência deste
processo. As satisfações substitutivas que podem ser oferecidas por intermédio da
arte, por exemplo, têm enorme importância, já que se faz necessário um paliativo para
as decepções da vida. Redirecionar os objetivos dos instintos para a arte é uma forma
de minimizar os efeitos impactantes do mundo exterior. Desta forma, o sofrimento se
34
mantém, por algum tempo, distanciado. Este tipo de prazer acontece tanto com quem
produz o escritor, por exemplo como por quem desfruta o leitor. Por ser uma
forma refinada de prazer, não está ao alcance de qualquer um, como ocorre com a
satisfação dos instintos impulsivos mais grosseiros.
A fruição da arte não afasta o indivíduo de seus problemas do cotidiano, mas
ameniza a sua intensidade, mesmo que temporariamente. É a intensificação do prazer
através do trabalho, cujas fontes podem ser psíquicas e ou intelectuais: “O trabalho
para mim é um supremo e doce remédio. Tenho todas as horas ocupadas, não tendo
um instante de meu para pensar que a vida é e estúpida” (DAL FARRA, 2002, p.
227).
3.3 -Freud e o processo criativo:
Em seu trabalho intitulado Escritores Criativos e Devaneios (1976), Freud
expressa a sua curiosidade em relação ao processo criativo literário e a fantasia. A
busca desta origem poderia nos dar a possibilidade de sermos todos poetas?
Em seus estudos, ele elabora a idéia de que, para o escritor, criar é estabelecer
uma conexão com o ato de fantasiar. Nesse mundo inventado por ele é permitido que,
algumas vezes, situações na vida real vivenciadas com muito sofrimento passem a ser
até prazerosas, como nas histórias de suspense. Em outras ocasiões, a identificação
com o que é relatado pelo artista causa tamanha impressão ao leitor que passa a servir
como instrumento catártico: “É diferente a impressão que nos produzem os livros
tristes; a ti entristecem-te e a mim alegram-me. Para os verdadeiros desgraçados, é
sempre motivo de felicidade a desgraça dos outros
(DAL FARRA, 2002, p. 165).
À criança a liberdade de fantasiar não é permitida como até estimulada;
para o adulto essa liberdade é impedida causando-lhe até, eventualmente, um certo
pudor em relação às suas próprias fantasias. A transição da fase infantil para a
adolescência e, posteriormente, para a vida adulta, é um processo difícil, em que o
indivíduo vê-se, de repente, premido a deixar de fantasiar para poder ser aceito num
novo universo como maduro e realista. Neste momento então ocorre a troca da
35
fantasia pelo devaneio. Apesar da diferença entre os termos ser muito sutil, é ela que
torna o processo menos sofrido.
Devanear é tentar realizar desejos num espaço em que passado, presente e
futuro unem-se em um só tempo: no presente há o desejo, no passado o seu embrião e
no futuro a possibilidade de torná-lo realidade. A capacidade de impor limites aos
devaneios é o que distingue um sujeito são do neurótico ou paranóico. Segundo Freud
(1976, p.156): “Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo
uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se
origina então, um desejo que encontra realização na obra criativa”.
Nos livros de Florbela, em especial Livro de Mágoas, o sonho é marca
recorrente, quase sempre seguido pelo despertar, que vem representando a auto-
censura, trazendo-a sempre para uma realidade dolorida, limitando tais fugas. Em
“Vaidade” , lê-se:
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!... (ESPANCA, 1919, p.10.)
Qualquer um que simplesmente contasse uma história com certeza conseguiria
manter o interesse de uma platéia por algum tempo. Mas, de forma ainda
inexplicável, o escritor criativo provoca um grande interesse e um imenso prazer
naquele que o ouve ou lê. As mesmas fantasias que o homem comum esconde dos
demais, com medo de ser censurado, o autor poético as desenvolve, com muita
propriedade. A estética é a responsável, em parte, por esse sucesso: ela suaviza as
cores fortes, ameniza os detalhes mais impressionantes, ressaltando o prazer sempre
tão procurado pelo homem que, de acordo com Barthes (1988, p.76), a obra “sem a
inscrição do Pai”. O leitor é aquele que participa do jogo entre significante e
significado, garantindo um sentido lúdico e no sentido representativo.
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Em tal questão, deve-se levar em consideração a pluralidade do texto e sua
natureza simbólica, que permitem ao leitor um papel participativo:
O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos,
mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e
não apenas aceitável). O Texto não é coexistência de sentidos, mas
passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma interpretação,
ainda que liberal, mas de explosão, de disseminação. O plural do
Texto prende-se, efetivamente, não à ambigüidade de seus
conteúdos, mas ao que se poderia chamar de pluralidade
estereográfica dos significantes que o tecem (etimologicamente, o
texto é um tecido (...)” (BARTHES, 1988, p. 74)
Com certeza, em “Minha tragédia” , tal “explosão” é elemento que impacta o
leitor:
Tenho ódio à luz e raiva à claridade
De sol, alegre, quente na subida.
Parece que a minh’alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade! (ESPANCA, 1919, p.35)
37
4- FLORBELA: VIDA E OBRA RELACIONADAS ÀS PRESSÕES SOCIAIS
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e
perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Florbela Espanca
No capítulo anterior a influência exercida pela Igreja católica no sentido de
estabelecer normas de conduta a serem seguidas pelas mulheres destaca-se como fator
importante para no desequilíbrio mental feminino, permitindo ao homem um domínio
total sob seu comportamento. A mulher é ao mesmo tempo pecadora e vítima
necessitando assim, de total assistência por parte de seu responsável”: pai, marido,
filho ou, na falta deles, do padre. É Freud que vem abalar os alicerces de tal
convicção, denominando as “doenças dos nervos” de neuroses e relacionando suas
causas à moral social imposta ao indivíduo, desconsiderando suas diferenças
comportamentais. Para tentar manter sua saúde mental a mulher recorrerá à
sublimação, substituindo seu sofrimento pela arte. No caso em questão, a arte
literária.
O Livro de Mágoas marca de forma inequívoca o rompimento de Florbela
Espanca com o modelo romântico feminino da época, utilizando para isso o soneto. A
voz de eu rico marcadamente feminino tenta seu reconhecimento como artista. No
entanto, a dor, sempre presente como uma forma de autopunição, surge tentando
impedi-la de encontrar o tão sonhado equilíbrio, de acordo com os moldes sociais
vigentes. A alegria não pode fazer parte da vida de quem precisa esconder os
próprios sentimentos. O uso de figuras como princesas, torres e castelos criam uma
atmosfera muito própria para retratar sua solidão propiciando a exploração do seu
inconsciente. Todos estes elementos reunidos terão como ponto de tensão a loucura,
quando a razão parece perder-se dentro de si mesma. Na tentativa de encontrar uma
38
outra saída, pensar em suicídio acaba por conferir-lhe um certo alívio, quando a
angústia torna-se quase insuportável. Render-se à morte é quase inevitável.
4.1- Livro de Mágoas: o primeiro livro publicado.
Um rompimento com a tradicional visão feminina romântica do amor marca,
de forma inequívoca, a obra de Florbela. Livro de Mágoas, seu primeiro livro,
publicado no ano de 1919, tem entre as suas características principais a dor e a
inadequação da mulher como poetisa, numa época em que este exercício era
criticado. Em mais de um soneto o eu lírico, notadamente feminino, tenta o seu
reconhecimento como artista, na época conferido apenas ao homem. Uma mescla de
masculino/feminino dá um toque especial ao livro.
Em “Torre de Névoa”, ocorre o registro de um diálogo entre uma figura
feminina, que pretende a qualidade de poetisa, e poetas mortos: em comum entre
eles uma certa frustração pela não realização de seus sonhos; eles se diferenciam
em relação ao tempo, visto que para a primeira a sensação é de sonho, de futuro, e
para os outros, de desilusão, de passado. È muito bela a confiança quase infantil que
ela deposita nos poetas mais velhos: tudo envolto em muita fantasia, como cenário
uma torre de névoa, o caminho para o céu que a conduz aos poetas mortos. A
possibilidade de estar no céu só seria alcançada se seus sonhos fossem realizados, o
que, no entanto, não ocorre. O ambiente é noturno, propício para devaneios, envolto
em fumos, névoas e luar, portanto ideal para o encontro entre os opostos:
homem/mulher; vivo/morto; juventude/velhice; sonho/realidade.
Em “A Maior Tortura”, novamente a dicotomia feminino e masculino torna a
se encontrar e faz da poesia uma tênue linha divisória entre a possibilidade de ser ou
não ser poeta. O que torna a sua dor mais profunda é exatamente a impossibilidade de
exibi-la, já que na mulher esta manifestação não era bem vista.
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Mas a minha tortura ‘inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para gritar num verso a minha Dor !...(ESPANCA, 1919, p.21)
Sua postura é contraditória: ao mesmo tempo em que escreve um soneto, não
se considera uma poetisa e demonstra a sua necessidade de ser reconhecida pelo outro
que, neste caso, é masculino.
O poema intitulado “Vaidade” retrata o sonho de ser reconhecida como
poetisa. Entretanto, não basta simplesmente ser reconhecida, é preciso que ela seja
eleita, ou seja, escolhida pela maioria.
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
(ESPANCA, 1919, p. 10)
Possuir toda essa sapiência, capaz de preencher o vazio existente nas almas
dos infelizes para iluminar a escuridão interior, é o seu sonho maior que, no entanto,
desperta abruptamente para uma realidade que nega a importância da mulher e sua
capacidade.
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo de um sonho...
E não sou nada!... (ESPANCA, 1919, p. 10)
O sonho e a realidade fundem-se e confundem-se por momentos, alçando-a
em sonhos para o céu e trazendo-a, subitamente, para a desagradável sensação de
realidade, tornando-a consciente de nada ser. Sonhar tem a marca abstrata do que não
pertence ao mundo concreto, tornando possível a realização do desejo de
reconhecimento.
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Reforçando o seu desejo de reconhecimento vem o título do poema, tão
próprio das mulheres: “Vaidade”, considerada pela Igreja um dos setes pecados
capitais:
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
(ESPANCA, 1919, p. 10)
Muito interessante notar a escolha de elementos que podem ancorar aquele
que sonha portanto, pode voar a lugares mais profundos internamente (na alma) e
externamente (no saber). Parece uma tentativa de não perder o contato com os valores
mundanos.
Estar suspensa no espaço, voando, com a terra passando sob os seus pés,
confere-lhe um estado de santidade acentuado pela capacidade de perfeição, pureza e
infinitude. Somente às mulheres santificadas, livres do pecado original, seria dada
tamanha importância; as demais acabariam caindo na dura realidade da vida e
percebendo sua própria falta de valor. Retornar à realidade, ao contrário do que era
esperado, só a traz de volta ao nada.
“Eu” descreve, de forma contundente, o desespero de quem busca encontrar-
se e que tanta dificuldade em fazê-lo em virtude de seu estado diáfano e obscuro
que vai para fora de si mesma, dando-lhe uma forma externa idêntica à interna a qual,
além de ser frágil, ainda agravada sua situação, sendo castigada pelo destino e
enviada para a morte:
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada...a dolorida...
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Sombra de névoa tênue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida (ESPANCA, 1919, p. 11)
Nesta eterna procura de uma identidade, o que ela acaba encontrando é a
incompreensão daqueles que a cercam e que percebem nela características que não
lhe pertencem, o que acaba por acarretar um choro que, aparentemente, só tem como
explicação o fato de ser provocado pelo outro.
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê ... (ESPANCA, 1919, p. 11)
A impossibilidade de ser encontrada ou encontrar quem a compreenda e aceite
desestabiliza-a, fragilizando o limite entre o sonho e a realidade. Pode-se associar a
este soneto a idéia de desinteresse total dos prazeres materiais, que transmite uma
idéia puramente idealista, não manifesta em atos. Para as mulheres da época,
liberdade só em pensamentos e, assim mesmo, com muita culpa. Ações seriam provas
concretas de transgressão.
Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo p’ra me ver
E que nunca na vida me encontrou! (ESPANCA, 1919, p. 11)
“Castelã da Tristeza” (1919, p. 12) confina a figura feminina em sua própria
dor, que serve como autopunição por cometer o pecado de desejar o outro. Numa
tentativa de mostrar indiferença, sua atitude é de desdém e altivez, mas a
impermeabilidade à luz do amor e a constante solidão ecoam neste claustro escuro e
vazio, onde até mesmo o silêncio dela se condói, chegando a chorar, talvez como
alento, para produzir algum som diferente das suas próprias lágrimas e, assim, fazer-
lhe companhia:
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Altiva e encouraçada de desdém,
Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!
Passa por ele a luz de todo amor...
E nunca em meu castelo entrou ninguém
Castelã da Tristeza, vês?...A quem?...
E o meu olhar é interrogador
Perscruto ao longe, as sombras do pôr-do-sol...
Chora o silêncio... nada... ninguém vem...
Castelã da Tristeza, porque choras
Lendo, toda de branco, um livro de oras,
À sombra rendilhada dos vitrais?...
À noite, debruçada p’las ameias,
Porque rezas baixinho?...Porque anseias?...
Que sonho afagam tuas mãos reais.
(ESPANCA, 1919, p. 11)
Mesmo mantendo-se imaculada e pura, às voltas com livros de oração, ao cair
da noite a angústia retorna e se manifesta afagando suas mãos, talvez nervosas,
demonstrando seus anseios, de forma a interligar o abstrato e o concreto,
respectivamente sonhos/mãos. Essa nova mulher que começa a surgir num contexto
literário diferente mostra-se inquieta, indecisa, insatisfeita. Seus desejos afloram de
forma abrupta, assustando-a. Recorrer à religiosidade, de forma simbólica, é uma
tentativa de refreá-los.
Todo o Livro de Mágoas tem como característica uma imensa vontade de
encontrar um equilíbrio que mantivesse a sua estrutura emocional adequada ao
modelo social vigente, mas a vontade de ser ela mesma acaba sempre sendo mais
forte. O soneto “Tortura” tenta, mais do que tirar, exorcizar de dentro do seu peito
tudo aquilo que lhe sentido como ser humano: os sentimentos verdadeiros! Tirar
do coração os sentimentos e transformá-los em um punhado de cinzas que, atiradas ao
vento, espalham-se e passam a ser nada ou fazer com que a pureza de seus versos,
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que são louvores como preces, transfigurem-se gradativamente primeiro em pó e
depois em nada... Assim, nada mais restando de real, a ilusão pode ser passada aos
outros e até a si mesma.
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
- E ser, depois de vir do coração
Um punhado de cinza esparsa ao vento!...
Sonhar um verso d’alto pensamento,
E puro como um ritmo d’oração!
E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento...
São assim ocos, rudes os meus versos;
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto
(ESPANCA, 1919, p. 13)
No último verso a descrição de uma figura masculina é suavizada pelas
lágrimas, sempre tão relacionadas à mulher. É a ferida na sua alma provocada pela
atitude violenta masculina representada pelos adjetivos – alto e forte.
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto! (ESPANCA, 1919, p. 13)
A alegria está tão distante de sua vida que parece pertencer a outra vida. Ser
querida por alguém não faz mais parte de sua história; sendo assim, lhe resta
reprimir os sentimentos, esconder as próprias lágrimas, fazendo-as correr dentro de si
para transformar seu rosto, antes alegre, em scara mortuária, inexpressiva, com a
frieza e a brancura do marfim como descrito em “Lágrimas Ocultas” no qual a
mulher mantêm-se com a fisionomia impassível. Sua expressão não pode transparecer
o que vai dentro do seu coração, pois é o que se esperava de uma mulher, na época...
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Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era qu’rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de mona de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim !
(ESPANCA, 1919, p. 14)
4.2 -Florbela e a construção de seu estilo literário
Embora o uso de metáforas como castelos, torres, princesas e rendas criem
uma atmosfera de contos de fadas nos seus sonetos e, à primeira vista, causem a
impressão de tratar-se de uma obra romântica, é com o Simbolismo que se pode
entrever uma maior identidade. A escolha desses vocábulos marca, nitidamente, a
alma-menina que luta na tentativa de preservar-se em um mundo adulto tão sofrido.
Classificar o estilo literário pode não ser tarefa fácil, por tratar-se exatamente de um
momento histórico carregado de dúvidas, insatisfações e frustrações sociais.
Características tais como: interesse pelo mistério e pela morte; antimaterialismo e
anti-racionalismo: a razão é incapaz de explicar o espírito; subjetivismo; interesse
pela exploração das zonas desconhecidas da mente humana (emoção e espírito) e pela
loucura; todos esses elementos fazem de Florbela uma representante bastante
significativa da escola simbolista. É no soneto À Morte”, em Reliquae, que tais
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traços ratificam uma forte dose de subjetivismo sem, no entanto, demonstrarem
propriamente o sentimentalismo romântico.
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, em teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moraima, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera...quebra-me o encanto.
(ESPANCA, 1931 p. 172)
Da mesma forma que os artistas românticos, os simbolistas também se
encontravam insatisfeitos com a realidade em que viviam, ou melhor, com a maneira
pela qual ela era interpretada. O Naturalismo e o Parnasianismo estavam então
ultrapassados. Havia uma enorme necessidade de exprimir tudo o que ia dentro do
carrossel de emoções contidas no peito do poeta, sem moldes e regras que limitassem
a sua criação. Se o homem sentia-se assim, o que dizer a respeito da mulher letrada
que tinha que conviver com dois tipos de insatisfações: a interior e a exterior? Em
“Impossível”, tal insatisfação é por Florbela retratada de forma muito clara. Tomada
pelas dúvidas, nem ao menos sua dor é compreendida. Não tem sentido para o outro
uma moça ser tão triste. Sem forças para reagir por meio de atitudes, apenas ao
pensamento caberá a tarefa de tentar erradicar a dor. No entanto, tudo é em vão.
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Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:
- Parece Sexta-feira de Paixão,
Sempre a cismar, cismar, d’olhos no chão,
Sempre a pensar na dor que não existe...
O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!
Faça por estar contente! Pois então?!...
Quando se sofre o que se diz é vão...
Meu coração, tudo, calado ouviste...
Os meus males, ninguém mos adivinha...
A minha Dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...
Os males dAnto toda gente os sabe!
Os meus... ninguém... a minha Dor não cabe
Nos cem milhões de versos que eu fizera!...
(ESPANCA, 1919, p. 40)
O poeta simbolista demonstrava interesse pelo ambiente noturno que
representava as trevas da vida material. Florbela, em seu soneto “Mais triste”, faz
uma analogia entre mar/noite/mágoa. Um jogo de palavras envolvendo mágoa/água
demonstra trazê-las dentro de si, sendo que a água, que normalmente envolve o
corpo, desta feita é envolvida por ele e transformada em mágoa, dando-lhe a sensação
do afogado que passa então a perceber a água como uma noite escura. É a
incorporação do sentimento de solidão, que a grandeza do mar ao ser observada,
transmite ao sujeito.
E a vastidão do Mar, toda essa água,
Trago-a dentro de mim, num Mar de Mágoa!
E a Noite sou eu própria! A Noite escura!
(ESPANCA, 1919, p. 37)
O uso de elementos simbólicos propiciava ao poeta um vasto campo no qual o
inconsciente podia ser amplamente explorado, fazendo-se conhecer através da
utilização do objeto de forma simbólica de modo a ir muito além do seu significado
47
primeiro e a retomar sua importância como símbolo, conceito originariamente
importante no contexto religioso. Resgatam-se assim valores transcendentais
pertencentes à estética artística, tais como a beleza e o sagrado.
Conforme citação de Mallarmé, em texto de Sergius Gonzaga:
Os parnasianos tomam os objetos em sua integridade e mostram-
nos. Por isso carecem de mistério. Descrever um objeto é suprimir
três quartas partes do prazer de um poema, que é feito da felicidade
de adivinhar-se pouco a pouco. Sugerir, eis o sonho. E o uso
perfeito deste mistério é o que constitui o símbolo: evocar o objeto
para expressar um estado de alma através de uma série de
decifrações(http://educaterra.terra.com.br/literatura/simbolismo/sim
bolismo_4.htm)
.
Florbela utiliza-se desse recurso em toda a sua obra. A busca de um objeto
para representar seus sentimentos, suas angústias, suas aflições, é marca certa na sua
poesia. O leitor é transportado pela visão onírica para seu mundo interior de ilusões,
no qual as asas, símbolos do poder de voar, conferem-lhe a liberdade. Mas não
termina aí, pois não limite no mundo dos sonhos: Deus conferiu-lhe a identidade
de Princesa, escrita com a inicial maiúscula, conferindo-lhe assim mais que um
estado, uma identidade e, que como tal, não lhe poderá ser tomada. Se, em
contrapartida, ela nasceu num mundo de gente comum, para proteger-se do mundano
sua morada é uma torre, metaforicamente alta e altiva o suficiente para resguardá-la
da convivência com os mortais:
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera!...
(ESPANCA, 1919, p. 47)
Para o artista simbolista, é preciso um pouco de desequilíbrio de todos os
sentidos para se transportar à loucura e à falta de lógica. Talvez este desequilíbrio se
faça necessário para que os sentimentos guardados no inconsciente venham à tona,
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sem censura, de forma livre e real. A falta de preocupação com o apuro da técnica,
com o rebuscamento literário, no entender dos adeptos dessa escola literária, conduz
as obras pela emoção e não pela razão, os que as deixa mais livres tanto para quem
escreve como para quem lê. É o mistério que permite que os véus sejam colocados
pelo poeta de uma determinada forma, mas que ao mesmo tempo possam ser retirados
por cada um à sua maneira sem, contudo perder a beleza e o mistério.
4.3- Reflexões sobre a mulher em versos
Florbela escolhe para abrir o seu livro de sonetos
Livro de Mágoas
o
soneto “Este Livro”. O soneto se assemelha a um enorme grito que pretende
congraçar ao redor de si os seus pares, companheiros na dor. O convite feito a eles,
no sentido de irmanarem-se nas lágrimas, retrata a tentativa de minorar a tortura
interior que os aflige. Somente eles poderão compreender sua mensagem, mas isto
não os torna melhores do que os outros, ao contrário: não entendê-lo, não perceber
nenhuma beleza em suas estrofes, faz deste outro tipo de leitor um privilegiado.
Bíblia de tristes...Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
(ESPANCA, 1919, p. 9)
A única maneira de consolar a dor é descobrir que existe outra maior que a
sua. E é assim que ela convida o leitor a debruçar-se sobre as páginas do Livro de
Mágoas, para contemplar a sua dor que, com certeza, é muito maior. Desta forma, ela
espera um alívio natural no seu sofrimento, pois ao expor seus sentimentos e
encontrar com quem se identificar parece que seu sofrimento é minorado. É no
terceiro verso que esse sentimento é relatado, descrevendo a intensidade do
sofrimento: “... Mágoas...Dores...Ansiedade!
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Logo depois, ressurge a inicial volatilidade do sentimento que se transfigurará
em algo abstrato, porém com a sensação quase de concretude, que deixa de ser
externo e fugaz para ser interno e permanente: “...sombras...Névoas...e Saudades!”
necessidade de que a saudade se esvaia do peito que, até então, lhe servia
de invólucro, fazendo o caminho contrário da gradação primeira. Ao final,
novamente um convite para se unirem em torno do motivo maior: a mágoa que os
aflige. A indefinição do motivo para tanta dor, a curiosidade que é instigada pelo
sentido da palavra ansiedade que pressupõe algo que está por acontecer, coloca o
leitor na mesma sintonia do eu lírico que, de antemão, já se percebe como alguém que
se sente solitário mas em busca de companhia, mesmo que para compartilhar a
tristeza.
Em “Versos de Orgulho” , do livro Charneca em Flor, percebe-se o prenúncio
de uma tentativa de rebeldia feminina baseada numa imensa autoconfiança. Essa
autoconfiança passa ao leitor força, imensidão, certeza de conquista e posse de si
mesma, mas de quem, gradualmente, se submeterá à vontade do outro, o que acaba
por limitar sua amplitude dentro do espaço limitado do abraço entre os dois amantes,
representado pela Via Láctea que delimita o Infinito.
A gradação das palavras “êxtases”, “sonhos”, “cansaços”, retrata perda de
ânimo, quando ela encontra, finalmente, o seu amado:
Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...
São os teus braços, dentro dos meus braços
Via-láctea fechando o Infinito.
(ESPANCA, 1931, p. 46)
O “Que Tu És”
Livro de Sóror Saudade
descreve uma mulher que não se
enquadra nos moldes sociais da época e, por isso, vive na inconstância e na amargura.
És aquela que tudo te entristece,
Irrita e amargura, tudo humilha;
Aquela a quem a Mágoa chamou filha:
A que os homens e a Deus nada merece!
(ESPANCA, 1923, p. 47)
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No segundo verso, “tudo humilha” é uma expressão com muita plasticidade
que, em conseqüência de sua construção, permite duas leituras: a mulher exaltada no
soneto tanto pode tudo humilhar, quanto ser humilhada por tudo.
O que é interessante notar é o tom de desprezo e escárnio usado ao
descrevê-la nas três primeiras estrofes para, no último terceto, mudar
o tom, numa demonstração que deixa escapar a admiração: a diferença
que antes a tornava inferior às outras transforma-se, quase que
imperceptivelmente, em pequena exortação, ao nomear a mulher
amada de Princesa Encantada da Quimera, mesmo que seu reinado
seja a Ilusão:
És ano que não teve primavera...
Ah! Não seres como as outras raparigas
Ó Princesa Encantada da Quimera !...
(ESPANCA, 1919, p. 10)
Cantar a mulher amada nas canções de Amor, exaltando suas qualidades, sua
perfeição, a impossibilidade de possuí-la ou tocá-la devido à sua pureza, é um traço
literário da Idade Média nas composições feitas pela elite. Assumindo este papel nos
seus poemas, Florbela canta o homem amado como ser perfeito, sendo a voz feminina
na canção de Amor, o que até então, não existia. Em Fanatismo”, a imagem
masculina é descrita como alguém dotado de tal poder que passa a ser o responsável
pela vida da mulher que o ama, sendo, além de tudo, a sua origem e o seu fim...
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lidas!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
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E, olhos postos em ti, digo de-rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim !...
(ESPANCA, 1923, p. 48)
4.4 -Ponto de tensão: a loucura
“Loucura” marca um ponto de tensão de enorme relevância na obra de
Florbela:
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes,
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
(ESPANCA, 1931, p. 170)
A fragilidade e a fugacidade da vida, a impotência diante da necessidade de
encontrar um porto seguro trazem consigo uma inconstância de tal ordem que chegam
à loucura! Vida sem origem e sem destino. Vida sem esperança, construída sobre
escombros, ocasionados pela volúpia dos sentimentos que a arrastam à instabilidade,
deixando-a no limiar entre a sanidade e a loucura.
A razão perde-se dentro de si mesma, não havendo mais distinção entre o real
e a ilusão e sim, somente, a certeza do desespero, claramente retratado na forte
expressão ‘pesadelos de insônia’. Manter a sanidade onde o caos está instaurado,
tanto no mundo externo como no interno, é desafio atroz!
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O poema culmina com uma súplica, na qual a voz poética demonstra seu
desespero em manter-se entre a solidão e a companhia da loucura, loucura que toma a
forma de risos dentro de si representando, talvez, a impossibilidade de livrar-se do
escárnio e da censura que, sob a forma dos risos, passa a manifestar-se no seu íntimo,
já fazendo parte de sua identidade.
“Impossível” mostra um lirismo triste, quase doentio, no qual a sujeito lírico
toma a forma da própria dor que sente, tamanha é a identificação entre ambos. Numa
imensa luta interna, não como externar o seu sofrimento, visto que nem a dor se
comunica com o mundo externo e nem é possível, para adquirir, quem sabe, um
pouco de alívio, relatar na forma de versos o que vai dentro de si, pois não existem
palavras suficientes, palavras capazes de retratá-la.
Os meus males ninguém mos adivinha...
A minha dor não fala, anda sozinha...
Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!
(ESPANCA, 1919, p. 40)
A busca da própria identidade no soneto “Eu” tem no início o reconhecimento
do engano em conhecer-se a si mesmo e não passa de ledo engano, tanto para ela
quanto para o leitor; para ela, a alegria de reconhecer sua ignorância em relação a si
mesma é desviada para o encontro de si no outro confunde-se com o outro. Para o
leitor, aquela busca causa uma enorme decepção, à medida que, gradativamente,
surge um primeiro movimento feminino no sentido de encontrar-se, mas que é logo
depois desfeito, quando ela acaba por encontrar-se apenas como complemento do ser
amado.
Andava a procurar-me – pobre louca!-
E achei o meu olhar no teu olhar,
E a minha boca sobre a tua boca!
(ESPANCA, 1919, p. 11)
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As restrições sociais impostas às mulheres e fundamentadas em padrões
hipócritas, desconsiderando a individualidade existente em cada um e em cada uma,
colocam em conflito o instinto humano e as convenções e acarretam comportamentos
inaceitáveis, tratados como doenças dos nervos ou neurastenia. Várias mulheres eram
levadas a acreditar na sua fragilidade, o que trazia como conseqüência a debilidade
nervosa. No soneto Neurastenia”, a alma feminina é pintada com cores escuras, os
sons que a embalam são lúgubres, o frio é tanto interno como externo, não se
permitindo assim nenhum tipo de alento, em nenhum momento sequer.
Sinto hoje a alma cheia de tristeza!
Um sino dobra em mim, Ave-Marias!
Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,
Faz na vidraça rendas de Veneza...
O vento desgrenhado, chora e reza,
Por alma dos que estão nas agonias!
E flocos de neve, aves brancas, frias,
Batem as asas pela Natureza...
Chuva...tenho tristeza! Mas porquê?
Vento...tenho saudades! Mas porquê?
Ó neve que destino triste o nosso!
Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!
Gritem ao mundo inteiro esta amargura,
Digam isto que sinto que eu não posso!!...
(ESPANCA, 1919, p. 19)
Em que se assemelham os destinos da neve e da mulher do soneto? Nesse
momento, a neve serve como elemento de comparação: ambas são frias e possuem
uma curta duração, desfazendo-se, quase que de maneira imperceptível, para
retornarem ao nada.
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4.5 -Submissão feminina: o suicídio
A palavra suicídio, de origem latina, pode ser analisada como: sui significa de
si e caedere de matar – logo, se tem como significado “matar a si mesmo”.
No dicionário Houaiss (2001, p. 2635) constam como definições para
suicidar-se:
pôr termo à própria vida; matar-se.
“fig.”: causar a própria ruína.
Geralmente é difícil determinar quais os motivos precisos do suicídio. Para
Durkhein, em Suicídio: estudos de Sociologia, o suicida pode ser classificado em três
categorias:
egoísta: a vida perde a razão de ser para o indivíduo
altruísta: coação social exterior ao indivíduo;
anômico: quando as regras sociais encontram-se em dissonância com o
indivíduo.
Historicamente o suicídio é tido como uma saída encontrada por alguém que
desiste de lutar contra as dificuldades ou foge da vida. Na Literatura encontra-se, com
freqüência, escritoras que, diante da pressão sofrida pelo mundo, optam pela morte.
Suas produções são como rascunhos de suas vidas, e a citação da morte aparece como
solução diante da vida.
Exercitar o suicídio em pensamento tantas vezes quantas forem as
dificuldades encontradas, sentindo sempre a sensação de alívio como se a idéia fosse
uma comporta que, aberta, permitisse o escoamento do sofrimento, acaba sendo a
saída encontrada por elas no momento em que a angústia maior e insuportável as
atinge: a morte oferece o alívio perene. O rígido padrão moral da época, diretamente
relacionado à castidade feminina, levou muitas mulheres ao suicídio.
Segundo Pennebaker (Folha Online de 24/07/01) os poetas suicidas usaram
os termos da 1ª pessoa do singular muito mais vezes do que a 1ª pessoa do plural.
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Questões de identidade, isolamento e conexão com os outros se
revelam no uso do pronome. Uma das palavras mais reveladoras é eu.
Os suicidas ou deprimidos tendem a usar eu muitíssimo mais do que as
outras e também se verifica uma queda correspondente na referência a
outras pessoas.
(http://www.universidadefm.ufma.br/vernoticia.php?idNoticia=263).
No início do século XX, quando o descontentamento feminino começa a
consolidar-se, mas ainda sem força suficiente para reagir contra a opressão masculina,
para algumas a morte é a solução. A idéia de morte provocada surge como uma
explosão capaz de aliviar a enorme pressão que invade o peito das poetisas e que não
mais se contentam em extravasá-la apenas através das palavras. Sendo assim, pode-se
associar a pressão sofrida pelas mulheres por uma sociedade patriarcal com a idéia de
suicídio.
Pennebaker relata que pesquisas anteriores constataram: o índice de
suicídios é muito maior entre poetas do que entre outros escritores ou do que o
público geral, e, também, que os poetas apresentam maior tendência a sofrer de
depressão e desordem bipolar, ou doença maníaco-depressiva. Na carta escrita a Júlia
Alves, Florbela expõe sem subterfúgios sua concepção sobre suicídio:
A propósito do suicídio lembra uma parábola indiana que é
simplesmente um mimo... É uma resposta aos que chamam ao
suicídio um fim de covardes e fracos, quando o unicamente os
fortes que se matam! Sabem esses pseudo-fortes o que é preciso
de coragem para friamente, simplesmente, dizer um adeus à vida
que é um instinto de todos nós, à vida tão amada e desejada a
despeito de tudo, embora essa vida seja apenas um pântano infecto
e imundo (DAL FARRA, 2002, p. 213).
Em toda a obra de Florbela Espanca nota-se todas as características citadas,
marcadas pela enorme insatisfação diante da vida. Interessante relacionar a forma por
ela escolhida para suicidar-se (com uma dose excessiva de Veronal) com os termos
usados repetitivamente, em sua poesia, com um eu lírico lânguido, exteriormente
apático, mas interiormente conflituoso e insatisfeito, retratando o suicida em
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potencial que não deixa transparecer a idéia de aniquilar-se mas, ao contrário, muitas
vezes, utiliza-se da dissimulação e demonstra um total descaso em relação aos
transtornos do dia-a-dia, para melhor ocultar sua idéia de matar-se.
No livro Reliquae, a morte é reverenciada mo soneto
À Morte” (ESPANCA,
1931,p.172). Descrevê-la como uma figura que de modo sereno e confortável cessa
todas as dores e aflições, terminando com a vida, deixa entrever que é a saída para os
aflitos. Assim sendo, a ausência de medo diante do mistério quanto ao futuro, para
eles, não existe, que não futuro. A morte traz aflição para os que são felizes,
que têm perspectivas de um amanhã melhor: ...há em mim uma grande fadiga para
tudo, e em frente de tudo, eu digo sempre; para quê?” (DAL FARRA, 2002, p. 221)
No verso Morte, minha Senhora Dona Morte’, percebe-se a sua entrega a
uma figura feminina, dona do seu destino, capaz de trazer consigo a liberdade e
oferecê-la a quem dela não pode desfrutar. É o cansaço diante das agruras da vida que
vai tornar a morte um porto seguro para o término da viagem da vida.
“Deixai entrar a Morte”
(ESPANCA, 1931, p. 171)
registra a angústia que se
fazia presente, antes mesmo do seu nascimento, em sua mãe, constatando desta forma
a hereditariedade da dor. A partir do momento em que a possibilidade da origem
como genética, a morte tem que acontecer, evitando assim que outras descendentes
sejam por ela molestadas. Ao dizer “Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?”,
percebe-se a responsabilidade assumida por quem descobre a causa da infelicidade
em exterminá-la, como deveria ter sido feito antes ao se matar afinal, um “fruto
amargo” que não deve brotar.
A Morte é uma personagem que precisa da permissão alheia, não bastando o
consentimento em função do seu desejo. Talvez assim sua culpa torne-se menor:
“Deixai entrar a Morte, a iluminada”. É a Morte, ser iluminado que trará luz, através
da extinção da vida, num extravagante e lindo paradoxo: morte/luz; vida/trevas.
Apesar de, à primeira vista, parecer lúgubre e insana, a justificativa para a
morte está na segunda quadra do soneto:
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Que sou eu neste mundo? A deserdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las, não encontrou nada!
(ESPANCA, 1931, p. 171)
O que resta para ela, que por tanto tempo foi guardiã apenas de ilusões, senão
a morte? Seu destino está escrito, de forma inalterável, que a definição de si
mesma é “fruto amargo das entranhas / Dum lírio que em má hora foi nascido!...”
Num enfoque geral, sua última obra Reliquae (1931)– parece anunciar seu
adeus à vida, através dos títulos dos sonetos. Por um incrível acaso, ela tem sua
publicação póstuma. Em “Évora” (p. 145) e “À Janela de Garcia Rezende” (p. 146),
vê-se o olhar concreto voltado ao contexto real despedir-se da vida exterior para
mergulhar, definitivamente e sem retorno, na busca interior. O “Meu Impossível” (p.
147) marca o início desta viagem, cujas estações são os seguintes sonetos: “Em Vão”
(p. 148),“Voz que se Cala” (p. 149),“Para Quê?” (p. 150).
De repente, surge uma tênue esperança em “Sonho Vago (p. 151) que se
torna real em “Primavera” (p.152), “Blasfêmia“ (p.153), “O Teu Olhar” (p.154),
“Noite de Chuva” (p.155), “Tarde de Música” (p.156), “Chopin” (p.157): é o amor
que chega! Os primeiros laivos de decepção com o ser amado surgem em O “Meu
Desejo (p.158) e, numa tentativa de sobrevivência, entrega-se a Deus em “Escrava”
(p.159), o que de nada adianta, voltando a encontrar a morte, comparando-a com um
beijo.
O abandono pelo amante está descrito em “Silêncio!... (p. 161), “O Maior
Bem” (p. 162), seguido pelo desespero total em “Os Meus Versos” (p.163), “O Amor
que Morre” (p.164) e a constatação que nada mais vale a pena em Sobre a Neve”
(p.165), “Eu Não Sou Ninguém” (p. 166), “Vão Orgulho” (p.167).
Inicia-se a dualidade entre entrega e desespero em “Último Sonho de Sóror
Saudade” (p.169) e a súplica pela “Morte: Deixai entrar a Morte” (p.171), “À Morte”
(p.172).
O consolo fica por conta da idéia de tima, retratado em “Pobrezinha”
(p.173). No entanto, a saudade do amado permanece em “Roseira Brava” (p.174),
58
apesar da morte. Os fantasmas fazem-lhe companhia num outro mundo, pós-morte
em “Navios Fantasmas” (p.175), e no céu, acaba por encontrar no escárnio a sua
vingança em “O Meu Soneto” (p.176).
“Nihil Novum” (p.177) é a lápide que encerra esta viagem tão célere e, ao
mesmo tempo tão profunda!
59
5- AS CARTAS
Viver o é parar: é continuamente renascer.
As cinzas não aquecem: as águas estagnadas
cheiram mal. Bela! Bela! Não vale recordar o
passado! O que tu foste, só tu o sabes: uma
corajosa rapariga, sempre sincera consigo
mesma.
Florbela Espanca.
No final do século XIX e início do século XX, as oportunidades de ingresso
no mundo acadêmico para a mulher eram extremamente reduzidas. Escolas estatais
secundárias só permitiram o acesso das mulheres, após 1906. Até então, apenas
algumas moças muito determinadas cursavam os liceus masculinos. Não se deve
esquecer que era um número insignificante, estatisticamente falando. Para a
sociedade da época, o aprendizado feminino não deveria ir além das prendas
domésticas, o ensino escolar considerado até como nocivo. Mais uma vez, a escrita
no âmbito familiar é a única permitida às mulheres. Assim, as cartas e diários, que
sempre foram de vital importância para a sociedade, têm papel fundamental no
universo das mulheres, primeiro como simples veículos de comunicação e,
posteriormente, como instrumentos para desaguar suas alegrias e tristezas de forma
menos censurada, já que em tempo algum se podia garantir privacidade total.
Segundo Andrée Rocha, na Introdução de A Epistolografia em Portugal:
A carta é um meio de comunicar por escrito com o semelhante.
Compartilhado por todos os homens, quer sejam ou não escritores,
corresponde a uma necessidade profunda do ser humano.
Communicare não implica apenas uma intenção noticiosa: significa
ainda “pôr em comum”, “comungar”. Escreve-se, pois, ou para não
estar só, ou para não deixar só. (ROCHA,1985, p.4)
Interessante observar-se que, apesar de a escrita garantir uma certa
autocensura, podendo-se reeditar aquilo que se quer dizer ou melhor, o que deve e
pode ser dito, quando a confiança é recíproca, o emissor acaba por despir-se da
repreensão.
60
Nas cartas é fácil notar-se aquele que escreve; principalmente, quando se trata
de escritor literário, ele deixa sempre muito claro a sua marca. Mas não cabe, no
momento, nenhum tipo de abordagem da qualidade literária em tais documentos e,
sim, os traços pessoais marcantes que neles se possam encontrar.
Nos diários, aspectos como a sexualidade, por exemplo, eram tratados sem
pejo. nas cartas, o decoro, dependendo de quem escreve e para quem escreve, é
mais respeitado. O diário representaria claramente um monólogo, já as cartas, o
diálogo. Vergílio Ferreira escreve em Carta ao Futuro que a epistolografia “é a forma
mais concreta de diálogo que não anula inteiramente o monólogo”.
Segundo Maria Lúcia Dal Farra, em Afinado Desconcerto (2002), as cartas
que analisa pertencem a um acervo de apenas 26 peças conhecidas escritas no período
de 16 de junho de 1916 a 05 de abril de 1917, entre Florbela e Júlia Alves.
Inicialmente, a troca de correspondência tem caráter profissional: Júlia participa da
edição de suplementos femininos tão em voga, na época. Apesar de pertencerem ao
capítulo intitulado Correspondência Intelectual”, é impressionante a transformação
rápida de enfoque. Inicialmente, as missivas dirigidas à Júlia têm um cunho
profissional, mas no decorrer de breve espaço de tempo Florbela vai modificando sua
postura à medida que deposita em Julinha uma confiança sem fim, dando lugar assim
a uma correspondência de cunho íntimo, muito embora as duas não se conheçam
pessoalmente. A razão dessa súbita confiança talvez deva ser atribuída à definição
que Foucault atribui à escrita, em especial à carta em sua obra O que é o autor? :
Escrever é pois “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto
próprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta é
simultaneamente um olhar que se volve para o destinatário (por
meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de
o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz.
De certo modo, a carta proporciona um face-a-face (FOUCAULT,
1992, p.150).
61
À face-a-face se acresce a forte identificação entre duas mulheres, que têm em
comum a sensibilidade aguçada, o amor pelas letras e um forte sentimento de
incompreensão diante do universo que as cerca: “prometo-lhe conversar muito,
tagarelar muito consigo de todas as coisas onde nós, mulheres, possamos bordar a flor
azul do sonho.”(DAL FARRA, 2002, p. 207). As cartas tornam-se um espaço onde,
rapidamente, some o medo da censura. As cartas hoje representam as vozes que
emergem de um tempo, concomitantemente passado e presente, tornando possível a
observação da dialética particular ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva
(carregada da vontade de significar o desejo)” (BARTHES, 2003, p.45).
Na primeira carta, apresenta-se uma mulher cerimoniosa, que se refere à
destinatária como “Exma. Senhora” (DAL FARRA, 2002, p. 206). A forma da escrita
pretende que se estabeleça um diálogo: “Mandar-lhe-ei um retrato. Quer?” (DAL
FARRA, 2002, p. 207). Porém, ao mesmo tempo, deixa claro que ela está pronta para
que o diálogo não prossiga: ”Estou a vê-la, num gestozinho de enfado, amarrotar,
irritada, a minha carta...” (DAL FARRA, 2002, p. 207). O aparente esforço que ela
faz para parecer menor aos olhos da outra, ... que de elogios que eu não mereço!”
(DAL FARRA, 2002, p. 206), “Eu não sou nada o que V. Ex.ª pensa” (DAL FARRA,
2002, p. 207), parece mascarar um grande medo de rejeição: “Sou indigna como vê,
do seu interesse, das suas boas palavras e da sua alta e enternecida bondade.” (DAL
FARRA, 2002, p. 207).
As cartas são notadamente pontuadas por sentimentos de solidão “Mãe a
não tenho muito... irmãs nunca as tive... Amigas... conhecidas... tenho muitas,
principalmente nesse meio de luxo e opulência em que a principal felicidade consiste
num chapéu ou num vestido da moda.” (DAL FARRA, 2002, p. 207)
incompreensão: “Eu não as entendo, nem elas a mim me entendem...” (DAL FARRA,
2002, p. 207) − e, às vezes, um desespero intenso: “Horas em que o único e constante
desejo seria despedaçar a cabeça de encontro a uma parede!” (DAL FARRA, 2002, p.
212). Esses sentimentos se deslocam, quase que imediatamente, para o pólo oposto da
indiferença: “Perdoe-me, minha santa, a forma como lhe escrevo. Papel sujo e
62
milhares de asneiras!!!! Mas é domingo; as lojas fecharam e papel era o único que
tinha” (DAL FARRA, 2002, p. 213).
A carta de 5, provavelmente de 26 de julho, é bastante longa e tem um tom
de revolta permeado de forte agressividade. O que há de interessante a ser destacado é
a narrativa de uma parábola indiana, que permite várias possibilidades de leitura.
Trata-se da história de um homem que carrega um enorme fardo às costas, imposto
por desconhecidos com a determinação de que ele prosseguisse. No meio do
caminho, ele encontra um sábio que, depois de um breve e simplório diálogo, o faz
chegar à conclusão de que não necessidade alguma de se sobrecarregar com um
peso que não lhe pertence e cujo destino ele ignora. O homem larga o fardo e evade-
se correndo.
Para Florbela a vida é um fardo que lhe impuseram às costas; no entanto, ela
está esperando alguém sábio que com muita segurança possa afiançar-lhe que a carga
pode ser deixada ao chão. É a crise do indivíduo moderno em que o eu e o outro têm
pouca distinção. Mesmo assim, na dúvida em relação às conseqüências dos seus atos,
o melhor seria, logo em seguida, sair correndo!
Como é possível amar e desejar algo comparado a um pântano infecto e
imundo? Simplesmente, porque a visão de quem não pode mergulhar de cabeça na
vida, desfrutando-a intensamente, correndo todos os riscos, é de que ela é um lugar
que não pode ser penetrado. No entanto, há uma deturpação de interpretação à medida
que o sentimento primeiro seja o de amor que, de forma medrosa, ela caracteriza
como instinto. Não rito nenhum em deixar-se para trás alguma coisa que é
tratada de maneira indiferente, fria. Para isso não é preciso coragem! É como a fábula
da raposa e das uvas: elas estão verdes mesmo...
Suas opiniões parecem variar repentinamente, de acordo com o seu estado
d’alma. Em 28 de julho de 1916, escreve: “Pois não vês que é um sonho, uma mentira
atroz a liberdade do coração?... É bem melhor tê-lo como eu digo: “Na paz da tua cela
a soluçar...”.” (DAL FARRA, 2002, p. 217). Contudo, em 30 de junho de 1916, sobre
o amor encontra-se: “... uma das coisas melhores da nossa vida de tão prosaico
63
século, é o amor, o grande e discutido amor, o nosso encanto e o nosso mistério”
(DAL FARRA, 2002, p. 210).
A dualidade também é outra característica da remetente que, se por um lado
começa uma carta com sinais de claro bom humor, como por exemplo, na do dia 30
de junho de 1916: “... lhe escrevo principalmente para lhe ralhar um pouco e chamar-
lhe... dissimulada! (Que arrojo!...)” (DAL FARRA, 2002, p.210), acaba por tornar-se
mais que uma lamentação: .. sua adorável bondade atura todo este fel que eu por
aqui tenho espalhado nas páginas da minha carta.”, e é concluída da seguinte forma:
“Termino desejando-lhe paciência para ler o testamento de spleen que lhe envio com
a minha enorme carta, impertinente e rabugenta como um dia de chuva.”.
As cartas de caráter confessional passam a tomar outro rumo, com caráter
narrativo e depois como um diário, relatando fatos do dia-a-dia, numa tentativa de
transformar a narração do cotidiano prosaico em um guia para fazer-se entender
melhor pela amiga que não a conhece pessoalmente. É como escreve Foucault (1992,
p. 155): “...atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de
um modo de ser”. Assim, em 20 de dezembro de 1916: ”Às 10 horas da manhã, fui ao
liceu ouvir uma aula de História pois, como sabes, estou tirando o 7° ano de letras. Às
11h, dei, no meu colégio onde estou, uma aula de Inglês....” (DAL FARRA, 2002, p.
227). Em 5 de abril de 1917, escreve Florbela: “Da cama onde me encontro doente te
escrevo a carta prometida uma eternidade, carta que para ti é uma espécie de D.
Sebastião chegando numa manhã de nevoeiro” (DAL FARRA, 2002, p. 228). Seria
uma alusão a um Príncipe Encantado, como em “Sonho vago”?
Onde está ele o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O eleito? O Amante?
(ESPANCA, 1931, p.151)
Sua forte amizade com uma pessoa estranha, que nem ao menos chega a
conhecer pessoalmente, revela seus sentimentos de solidão e incompreensão. É
sempre muito mais fácil relacionar-se com quem não se tem nenhum
64
comprometimento. Além do mais, a maneira escolhida para tal relação é perfeita, em
se tratando de escritoras: as cartas.
O cuidado com a escrita, o tom confessional, as narrativas com um toque
literário, o interesse tamanho pelos livros, capazes de servir-lhes como alento em seus
momentos de total desesperança, só torna mais apertado o laço que as uniu.
Mais uma vez, são as letras que servem como instrumento para registrar
não os acontecimentos do mundo exterior, mas principalmente, o que vai de tão
caro, intrigante e misterioso dentro de cada ser humano, e aqui, em especial, dentro
desse ser tão complexo: a mulher!
sempre coisas e mais coisas que impedem coisas, não é assim?
Não se esquecem pessoas que como tu nos deram um dia o
inolvidável prazer, um pouco vaidoso, confesso, de me sentir
compreendida e estimada ao menos intelectualmente. Depois de ti,
muita coisa assim lisonjeira me têm dito. Até um jornal me chamou
ilustre poetisa, calcula tu. Já não seria mau merecer o poetisa
quanto mais o ilustre. E nem sequer adivinham que eu lhes chamo
parvos...
Adeus, minha Júlia, um beijo cheio de saudades da tua
Bela
(DAL FARRA, 2002, p. 229)
5.1- Poesia e epistolografia
Separar a produção literária da biografia de Florbela Espanca é tarefa árdua,
que a escrita é o espaço em que sempre se manifesta de forma brilhante. Para Derrida
(apud Miranda, 1992), estabelecer o limite com precisão entre um texto e o dado
empírico de um texto é impossível, pois a divisão entre a vida de um autor e sua obra
é muito incerta. Num primeiro momento, tem-se a impressão de que suas obras são
temperadas com uma forte dose de narcisismo, mas, à medida que se toma contato
com suas poesias e principalmente com suas cartas, percebe-se claramente que falar
de si mesma é, na verdade, a tentativa de encontrar no seu interior, ou mesmo através
de um outro alguém, respostas para suas angústias e aflições. No entanto, a angústia
65
não é um sentimento vago por vir de fora do indivíduo, e sim porque vem do
inconsciente. Ela chega a ser um prazer que, por determinados motivos, não se
concretiza: “eu sou insaciável; mal um desejo surge, outro desponta...” e por assim se
apresentar, faz com que o sujeito, erroneamente, busque o objeto que, segundo Lacan,
pode ser qualquer um, pois “qualquer objeto pode vir a ser tomado como objeto de
uma pulsão, desde que torne possível a realização da satisfação” (FERREIRA, 2002,
p. 54), o que parece nunca acontecer com Florbela: “Falta-me o meu castelo cheio de
sol entrelaçado de madressilvas em flor; falta-me tudo que eu tinha dantes e que eu
nem sei dizer-te o que era... É esta a história da minha tristeza.” (DAL FARRA, 2002,
p. 222)
Durante a leitura das cartas, aquele que conhece seus sonetos é
constantemente remetido à sua poesia. É uma linguagem muito semelhante, quase
repetitiva, mudando apenas o estilo de prosa para verso. Na carta datada,
provavelmente de 26 de julho de 1916 (p. 213), Florbela, na tentativa de melhorar o
ânimo de sua “adorável Julinha”, fala-lhe a respeito de um livro que ela classifica
como “bíblia dum grande e ilustre desgraçado” que, no entanto a consolou. E,
acrescenta: “Como eu o compreendi e como tão da alma o sinto!” E, mais: A única
coisa que consola os tristes é a tristeza.”. Em seu primeiro livro
Livro de Mágoas
publicado em 1919, o soneto
Este Livro” (ESPANCA, 1919, p. 9) se assemelha a
um enorme grito que pretende congraçar ao redor de si os seus pares, companheiros
da dor. O convite feito a eles no sentido de irmanarem-se nas lágrimas retrata a
tentativa de minorar a tortura interior que os aflige. Somente eles poderão
compreender sua mensagem:
Bíblia de tristes...Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
É exatamente esse posicionamento que ela toma diante de Julinha, para que
juntas com o “desgraçado Silva Pinto possam compartilhar de algum tipo de
66
consolo: “Resisto à tentação de escrever o livro todo e dar-to a beber em pequeninos
golos, este santo remédio para te curar.” (DAL FARRA, 2002, p. 213)
Na epístola de 30 de junho de 1916 (DAL FARRA, 2002, p. 210), escreve
Florbela para sua amiga: O melhor de todos os homens não vale um fanatismo...
Abdicando um grau da nossa realeza, teremos de descer sempre, sempre, até o fim.”.
Em “Fanatismo” (ESPANCA, 1923, p. 48) o soneto termina com a seguinte estrofe:
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundo, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”
É aquela que ama a ponto de rastejar como um animal aos pés daquele que
não merece tal prova de amor: “... embora a nossa alma, com essa ânsia de amor, de
ternura que canta sempre em nós, se lhes dedique completamente, que eles o não
saibam nunca, que não suspeitem sequer!” (DAL FARRA, 2002, p. 211)
É possível perceber em suas cartas as fortes alternâncias de humor, e nos seus
poemas, arroubos de sentimentos. No entanto, nos seus retratos existe sempre um
certo ar blasé: pois passo os dias num dolce farniente sem me mexer e quase sem
dar palavra. Aborreço-me o mais que é possível: até o infinito!...” (DAL FARRA,
2002, p.220), como se tudo e todos ao seu redor fossem extremamente enfadonhos,
característica presente na sua geração angustiada.
A morte é cortejada quase que todo o tempo por Florbela, tanto em prosa, nas
missivas, como em versos, em seus livros: “Vou terminá-la pedindo-te que a guardes,
como a todas as minhas cartas, para serem publicadas depois da minha morte como
produções ilustres do maior talento dos tempos modernos.
Para Freud a existência humana é permeada por paradoxos: amor e ódio. Esta
oposição é regida pela pulsão de morte que, no entanto, permanece de forma
imperceptível, subjacente às pulsões de vida. São as pequenas experiências de morte
que são vivenciadas no dia-a-dia do ser humano, mas que nem sempre ocorrem de
forma sadia.
67
Silviano Santiago (2006,p. 64) afirma que: “O texto da carta é semelhante ao
alter ego do escritor em busca do diálogo consigo e com o outro. Exercício de
introspecção? Sim. Desde que se defina introspecção como o aconselha Michel
Foucault antes de ser uma decifração do sujeito por ele próprio, a introspecção é
uma “abertura” que o sujeito oferece ao outro sobre si mesmo. Essa abertura tem
procedência e nome: amizade.”
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6- CONCLUSÃO
A proposta deste trabalho foi a leitura de alguns sonetos de Florbela Espanca e
das cartas trocadas entre ela e Júlia Alves, a partir das dificuldades que eram impostas
às mulheres. Sem dúvida, no início do século XX, as mulheres, que pensavam
diferente das demais, eram, de uma forma ou de outra, excluídas. Justamente por isto,
aquelas que transgrediram os cânones pagaram um preço, como, por exemplo, a
própria saúde mental.
Neste período, um novo modelo social começa a ser delineado, em função da
necessidade de mão-de-obra feminina no mercado de trabalho: as mulheres passam a
assumir outro papel social, saindo da esfera doméstica e passando a freqüentar o
mundo dos homens. Como aconteceu em outras ocasiões da História, a repressão
que a mulher sofre acaba contribuindo para mudar suas atitudes em diversas áreas. As
mais intelectualizadas, por exemplo, sentem necessidade de expor suas idéias e seus
sentimentos ao mundo, servindo-se das letras como instrumento.
No fim do século XIX, em Portugal, as mulheres começam a produzir, de
forma bastante tímida, textos para as revistas femininas e poesias para reuniões mais
íntimas. Algumas delas, inclusive, utilizavam-se de pseudônimos em suas produções
literárias, como forma de manter o anonimato.
Apesar das duras críticas, as mulheres foram gradativamente conseguindo seu
espaço dentro da Literatura. No início do século XX esse movimento ganhou mais
intensidade. As intelectualizadas fazem da poesia a arma na sua luta pela igualdade
de espaço no mundo.
É também nesta época que Freud registra o surgimento das neuroses que se
devem, principalmente, à moral social, imposta ao sujeito através da dicotomia
instinto humano x restrições sociais, acarretando o desequilíbrio mental humano. As
doenças que “afetavam os nervos femininos” eram a explicação para justificar
qualquer tipo de comportamento que fugisse aos padrões então vigentes.
Neste contexto encontramos Florbela Espanca: mulher extremamente sensível,
com a alma cheia de inquietações e vidas, criada num ambiente de liberdade, fora
69
dos padrões tradicionais da época, tendo na figura do pai um anarquista, mas que, no
entanto, sente na própria pele a impossibilidade de ser reconhecida como filha
legítima, produto de uma relação extraconjugal.
Buscando soluções para este infindável estado de insatisfação com a vida,
quis acreditar que um príncipe, modelo de homem ideal, a libertaria de toda essa
opressão e angústia. Naturalmente, isto não acontece.
É através dos sonetos que Florbela vai demonstrar as suas dificuldades diante
do mundo. Analisar sua obra, em qualquer âmbito, sem levar em consideração sua
história pessoal é não difícil, mas também prejudicial: Florbela é o retrato da
mulher insatisfeita, inquieta, à procura de respostas, em busca da própria identidade.
No seu caso, um sentimento de impotência é sempre um traço marcante. Sua maneira
de demonstrar alguma reação se expressa através de uma espécie de teimosia infantil,
em que as queixas e reclamações estão sempre presentes, mas não passam de
intenção, pois não resultam em nenhuma atitude real.
Em suas cartas pessoais, em especial às escritas para Júlia Alves, que têm um
caráter confessional, muitas vezes são encontrados em prosa alguns dos versos que
compõem seus sonetos.
Sua figura é a de uma mulher que mantém uma atitude desdenhosa diante do
mundo, uma irreverência em relação à vida e, principalmente, um olhar de
superioridade para o universo masculino. No entanto, o que se pode perceber nos seus
sonetos é o inverso: uma dedicação quase sempre submissa a um amor arrogante.
Buscou, incessantemente, o seu complemento no outro, aquele que sendo capaz de
entendê-la, respondesse suas dúvidas, retratando assim a crise do indivíduo moderno
na qual o eu e o outro quase não se distinguem mais. Na sua vida pessoal, três
casamentos retratam esta eterna procura.
O erotismo, outro traço importante, ganhou corpo em sua produção literária,
transgredindo os modelos poéticos femininos: a vontade da alma em se libertar é
canalizada para o corpo e representada pelo desejo carnal, como em “Horas rubras” :
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Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas
(ESPANCA, 1923, p. 73)
Em “Divino instante” comungam, no silêncio das noites, a volúpia e a
liberdade de expressão: é na privacidade que há possibilidade de mostrar-se em
essência, homem e mulher em igualdade, ou quem sabe até, ele em desvantagem?
Ah, fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro
(ESPANCA, 1931, p. 160)
É a vulnerabilidade tomando conta lentamente da figura masculina, tornando-
o frágil. Difícil viver na ambigüidade, fazendo da inconstância uma característica
marcante. É deste gancho que o homem se utiliza para marcá-la como desequilibrada,
doente emocional e/ou mentalmente.
As cartas por ela trocadas com Júlia Alves no período de 16 de junho de 1916
a 05 de abril de 1917 vêm reforçar como é marcante sua necessidade de encontrar
alguém que a compreenda.
Há, tanto em sua obra como nas cartas, uma fresta por onde passa um pequeno
feixe de luz da consciência de si mesma, ainda muito incipiente. É preciso deixar o
papel de protegida para encarar o mundo masculino com coragem e resistência.
Como lutar contra aquele que ela deseja ao seu lado? Seria possível amar o inimigo?
A certeza da impossibilidade de posicionar-se diante de uma sociedade
patriarcal torna-se tão real e tão doída que, para ela, somente na morte é possível
vislumbrar o fim da angústia e do tormento aliados ao sentimento de deslocamento do
tempo e do espaço. Esperar pelo príncipe, que apenas rondará o seu castelo
(estranhamente, feminino), pois não tem coragem de entrar, a tornará desacreditada
do amor. Ela descobre que preço a ser pago para ser amada é alto demais, quase
71
impossível de ser pago. O amor é como fumaça que ora se adensa, ora se esvai,
reforçando dessa forma, a sua insegurança.
Florbela teve consciência da sua inquietação, da sua insatisfação e do
desinteresse total e absoluto daquele que deveria ser o seu par. Neste momento a dor,
sua companheira constante, que a deixaria com a chegada da morte, foi por ela
cortejada. No entanto, sua entrega definitiva demora acontecer, alimentada pela
esperança de encontrar na vida alguém que valesse a pena. Finalmente fica claro que
nada poderia ser mais doce e seguro que o abraço da morte: é a idéia do suicídio. Seu
olhar foca-se em si mesma e o uso e abuso do pronome eu ressalta tal preocupação
Quando este processo ocorre perdem todos: fica-se sem saber se é a solução
encontrada pelas oprimidas para alívio de suas dores ou se há, no fundo, uma certa
vingança, com a qual os homens (maridos, pais, companheiros), causadores de todo
este tormento, terão que conviver com um sentimento pior que a insegurança que eles
lhes causaram: o remorso!
72
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