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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Faculdade de Letras
Cristina Monteiro de Castro Pereira
Estrelas Dantescas nas galáxias de Haroldo de Campos
Rio de Janeiro
2007
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Cristina Monteiro de Castro Pereira
Estrelas dantescas nas galáxias de Haroldo de Campos
Tese apresentada, como requisito para a
obtenção do título de Doutor, ao Programa
de Pós-Graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Literatura
Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Costa Lima
Rio de Janeiro
2007
1
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B
P436 Pereira, Cristina Monteiro de Castro.
Estrelas dantescas nas galáxias de Haroldo de Campos / Cristina
Monteiro de Castro Pereira. – 2007.
182 f.
Orientador : Prof. Dr. Luiz Costa Lima.
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Dante Alighieri, 1265-1321 Crítica e interpretação. 2
Campos, Haroldo de, 1929- - Crítica e interpretação. 3. Mimese na
literatura – Tese. 4. Tradução e interpretação – Tese. I. Lima, Luiz
Costa, 1937-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Letras. III. Título.
CDU 82.091
Cristina Monteiro de Castro Pereira
Estrelas dantescas nas galáxias de Haroldo de Campos
Tese apresentada, como requisito para a obtenção do
título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em
Letras, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração: Literatura
Comparada.
Aprovado em 20 de dezembro de 2007
Banca Examinadora:
____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Costa Lima (Orientador)
Faculdade de Letras da UERJ
____________________________________________________
Profa. Dra. Carlinda Fragale Pate Nuñez
Faculdade de Letras da UERJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Maria Antonieta Jordão de O. Borba
Faculdade de Letras da UERJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Vera Lúcia Lins
Faculdade de Letras da UFRJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Olgária Mattos
Faculdade de Filosofia da USP
Rio de Janeiro
2007
3
A meus pais, Geraldo e Sonia
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meus pais por tudo;
A meu orientador, Prof. Dr. Luiz Costa Lima por ter me guiado, com paciência e
amizade, do Inferno ao Paraíso;
A Profª Drª Carlinda Fragale Pate Nuñez por ter me acompanhado desde o início com
tanto carinho e boa vontade, por toda ajuda acadêmica e pessoal e pela amizade tão cara;
A Profª Drª Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba por ser uma amiga sempre
presente, pelos incentivos sinceros e pela enorme disposição em me ajudar sempre.
A Profª Drª Vera Lins pela paciência, pela generosidade, pela atenção e pela amizade;
Ao Prof. Dr. Piero Boitani, que me acolheu na Universidade de La Sapienza, em
Roma, e me orientou em meus estudos sobre Dante.
A Augusto de Campos pelo interesse por meu trabalho e por toda a gentil ajuda;
A Luiz Henrique pela grande ajuda, pelo apoio e pelos momentos felizes;
A CAPES, que me auxiliou com uma bolsa durante o período do doutorado.
A CAPES e à coordenação geral do PPG-Letras da UERJ, pela bolsa sanduíche, na
Sapienza/Roma, onde realizei pesquisas imprescindíveis para a confecção do segundo
capítulo da tese.
5
Este é o reino do rei que não tem reino
E que – se algo o tocar – desfaz-se em pedra.
Esta é a pedra feroz que se faz gente
– Por milagre? de mão e palma e pele.
Augusto de Campos
6
RESUMO
PEREIRA, Cristina Monteiro de Castro. Estrelas dantescas nas galáxias de Haroldo de
Campos. 2007. 182 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Faculdade de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2007.
Uma constante no trabalho plural de Haroldo de Campos é o apreço pela intertextualidade.
Em um percurso que toca as mais distantes e distintas galáxias, destacamos uma constelação:
quatro textos literários (“Finismundo: a última viagem”, Signância quase céu, Galáxias e A
máquina do mundo repensada) que entram em diálogo com a Commedia, de Dante
Alighieri, e uma tradução de Haroldo de seis cantos do paraíso. Desdobrando o interesse de
Haroldo de Campos pelo “concreto” da obra, partimos de algumas soluções formais dos
textos em questão para pensar a experiência estética e a diferença entre as visões de mundo
das obras comparadas.O estudo da Commedia permite perceber configurações formais que
aproximam o leitor da experiência mística da personagem ao apresentá-la como experiência
estética. O interesse de Haroldo de Campos está no potencial estético da obra de Dante.
Confrontando o texto do poeta italiano com a tradução e com os quatro poemas citados acima,
mostramos as semelhanças e diferenças dos processos de tradução e mimesis nas diversas
metamorfoses pelas quais a Commedia passa nas criações de Haroldo de Campos.
Palavras-chave: Literatura comparada; Dante Alighieri; Haroldo de Campos; Tradução;
Mimesis.
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RÉSUMÉ
Une caractéristique constante du travail pluriel de Haroldo de Campos est son goût
pour l’intertextualité. Dans un parcours qui touche les galaxies les plus lointaines et les plus
différentes, nous faisons ressortir une constellation: quatre textes littéraires (“Finismundo: a
última viagem”, Signância quase céu, Galáxias e A máquina do mundo repensada) qui
dialoguent avec la Commedia de Dante Aliguieri, et la traduction qu’a fait Haroldo de six
chants du Paradis. En développant l’íntérêt de Haroldo de Campos pour ce qui est “concret”
dans l’oeuvre, nous prenons dans ces textes quelques solutions formelles comme point de
départ pour penser l’expérience esthétique et la différence des visions du monde propres à
chacune des oeuvres comparées. L’étude de la Commedia nous fait apercevoir des
configurations formelles qui approchent le lecteur de l’expérience mystique du personnage, en
la présentant comme une expérience esthétique. L’intérêt de Haroldo concerne le potentiel
esthétique de l’oeuvre de Dante. Par des comparaisons du texte du poète italien avec la
traduction et les quatre poèmes de Haroldo, nous montrons les ressemblances et les
différences qui marquent les procès de traduction et de mimesis propres aux nombreuses
métamorphoses de la Commedia opérées par Haroldo de Campos.
Mots-clé: Literature comparée; Dante Alighieri; Haroldo de Campos; Traduction; Mimesis.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................10
1 A TRADIÇÃO COMO PRESENTE LITERÁRIO ..............................................14
1.1 Um critério “estético-criativo” para uma abordagem crítica ..............................20
1.1.1 Uma acupuntura sincrônica ........................................................................................26
1.1.2
O poeta-crítico ............................................................................................................30
1.2 Criação via tradução crítica ....................................................................................32
1.2.1
Tradução criativa ........................................................................................................32
1.2.2 Mimesis e tradução .....................................................................................................34
2 A COMMEDIA: METAMORFOSES ....................................................................37
2.1 Começando o caminho .............................................................................................37
2.2 Memória: a criação do reflexo ................................................................................48
2.3 Apresentando o paraíso ...........................................................................................67
2.3.1 Além da representação: a voz do silêncio ..................................................................68
2.3.2 A tradução do Além de Dante: o paraíso ...................................................................89
2.3.3
O inefável concreto ....................................................................................................102
3. RECRIANDO A COMMEDIA ..............................................................................107
3.1 A máquina do mundo repensada ............................................................................110
3.2 “Finismundo: a última viagem”..............................................................................122
3.3 Signantia quasi coelum - Signância quase céu ......................................................129
3.4 Galáxias .....................................................................................................................143
3.4.1
Uma viagem na escrita ...............................................................................................144
3.4.2 A hybris que move as Galáxias .................................................................................155
3.4.3 Epifanias estéticas ......................................................................................................162
CONCLUSÃO...........................................................................................................170
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................176
9
INTRODUÇÃO
A vasta obra do poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003) permite ao
pesquisador se enveredar por múltiplos caminhos. Podemos nos concentrar no estudo de sua
fase mais radical e vanguardista, a Poesia Concreta; refletir sobre sua teoria e prática da
tradução, que concretiza uma proposta de transgressão; seguir seu pensamento crítico,
entender a formação de seu paideuma
1
; pesquisar a diversificada relação com a tradição
literária em seus poemas, capaz de englobar poetas da Antiguidade até seus contemporâneos.
Nossa escolha foi um recorte ao mesmo tempo pontual e transversal. Pontual porque,
dentre seu “paideuma”, escolhemos um poeta. Mais especificamente, escolhemos a relação de
alguns textos de Haroldo de Campos com uma única obra de Dante Alighieri (1265-1321): A
Commedia (1472). Transversal porque faremos o estudo comparativo entre os dois poetas a
partir de várias das possibilidades de estudo da obra de Haroldo destacadas acima: a partir de
procedimentos relacionados à teoria da Poesia Concreta, à sua prática de tradução, à sua
proposta crítica e à escolha de seu paideuma.
Na primeira parte da tese, mostraremos a pertinência do interesse do poeta paulista
pelo florentino, ressaltando as conexões entre seus processos criativos, apesar da distância
temporal e das visões de mundo que os separam. Nossa proposta é analisar esse movimento
de aproximação e distanciamento, de semelhanças e diferenças, concretizado tanto na
tradução do poeta paulista de seis cantos da Commedia quanto em alguns de seus poemas,
com os quais trabalharemos. Pretendemos assim entender, na materialidade “concreta” das
obras, o processo de tradução e mimesis da Commedia empreendido por Haroldo de Campos.
Introduziremos agora os conceitos com que lidaremos no decorrer da comparação
entre as obras, e que nos ajudarão a entender melhor o processo de re-criação poética de
Haroldo e seus possíveis desdobramentos: experiência estética, tradução, mimesis e crítica.
Propomos que uma escolha crítica, baseada em uma opção estético-criativa, elege a
Commedia como interlocutora; o jogo entre as obras se concretiza via tradução e / ou
mimesis da “forma” da obra; esse tipo de processo estimula o pensamento crítico e
comparativo.
10
1
“Paideuma: a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente
possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos” (POUND: 1934, 161).
Fazendo um estudo comparativo entre a Commedia, e as diversas aproximações a ela,
pretendemos demonstrar como Haroldo, através da transformação dos recursos formais do
livro de Dante, promove possibilidades de reflexão crítica. Enfatizamos a relevância que a
materialidade da escrita no jogo entre os poemas tem para a experiência estética, e a que essa
experiência tem para o pensamento crítico. Pretendemos, desse modo, ressaltar a debilidade
de um pensamento dicotômico recorrente da crítica, que taxa Haroldo de Campos (e seus
companheiros da fase “concreta”) de formalista e, por isso, considera seus poemas distantes
do “mundo”.
O recorte para o estudo da obra de Dante será pautado pela aproximação que faremos
desta com os textos de Haroldo de Campos. Na segunda parte, situaremos a Commedia
dentro da visão de mundo da época, ao mesmo tempo em que trataremos de seu modo de
composição. Pretendemos mostrar como o poeta florentino, assim como Haroldo de Campos,
concretiza na materialidade de sua obra as suas questões políticas, religiosas, filosóficas e
poéticas. Ressaltaremos a presença e necessidade, para os propósitos de Dante, de uma
configuração potencializada esteticamente ao extremo.
Destacaremos o Paraíso, por ser a parte da qual Haroldo escolheu seis cantos para
traduzir para o português. Apontaremos para a coerência de um maior interesse do poeta
paulista, um admirador de desafios, por um trecho em que o concreto, a materialidade do
texto, é o corpo da matéria mais inefável e abstrata possível – Deus e sua morada.
Passaremos, em seguida, para o estudo da tradução de Haroldo de seis cantos do
Paraíso. Tradução, para o poeta, é transcriação: tradução de formas. Concordando com
Walter Benjamin, Haroldo procura transcriar o potencial “estético criativo” do poema. Para
deixar mais claros os procedimentos e o efeito da transcriação haroldiana, compararemos sua
tradução com outras duas: a de Cristiano Martins e a de Ítalo Eugenio Mauro. Mostraremos
como a transcriação de Haroldo, em que a tradução da forma é mais importante do que a do
“sentido” do texto, vai ao encontro de seus interesses. Através de procedimentos estéticos e de
um jogo tradutório entre literaridade e criação, a transcriação pretende promover uma “forma
de resgate cultural”, uma ativação do horizonte de expectativas dantesco para olhos
contemporâneos.
No capítulo terceiro, trataremos dos textos criativos de Haroldo que se relacionam à
Commedia. Nossa tese é que, através de um processo de mimesis, que se assemelha à
transcriação haroldiana, processo produtor de semelhanças e diferenças, o poeta promove em
seus textos não mais um resgate cultural, como na tradução entre línguas, mas uma “tradução
11
cultural”. Essa transformação do horizonte de expectativas em relação à Commedia incita no
leitor uma visão comparativa e crítica de todas essas obras.
Começaremos pelo poema A máquina do mundo repensada. Último livro de poemas
de Haroldo, publicado em 2000, será o primeiro a ser estudado por lidar com o ponto mais
abrangente da questão comparativa: a mudança da visão de mundo em relação à grande
máquina que move o mundo – para Dante, Deus. Em seu poema, Haroldo retoma não apenas
Dante, mas “Os Lusíadas”, de Camões, e “A máquina do mundo”, de Drummond, dialogando,
dessa forma, com as mudanças no modo de pensar o tema. Haroldo, mais do que comparar as
visões de mundo desde o marco primeiro, a de Dante, até a sua própria, apresenta-as de modo
“concreto” em seu poema, induzindo o próprio leitor a fazer a comparação.
Passaremos, em seguida, para o poema “Finismundo, a última viagem” (1997). Nesse
texto, Haroldo parte do canto XXVI do Inferno, onde Dante e Virgílio se encontram com o
herói Ulisses. O poeta contrasta a história da morte de Ulisses, provocada por sua hybris, com
um novo Ulisses, contemporâneo e sem hybris, e com uma não-odisséia. Aqui, apenas uma
cena da Commedia é retomada por Haroldo, mas poderemos, por seu estudo, aprofundar um
outro aspecto importante da transformação do horizonte de expectativas: a tragicidade às
avessas do homem contemporâneo.
Em seguida, Signantia quasi coelum – Signância quase céu, de 1979. Nesse livro,
Haroldo inverte os passos de Dante na Commedia: começa por um “quase céu” e acaba no
inferno. Os textos são espacializados na folha de papel. Apesar da divisão ternária do livro, o
modo de composição da obra se afasta muito da narrativa linear da Commedia e a épica se
transforma em fragmentos. Transcendência plena, o Deus dantesco se contrasta com a idéia de
transcendência vazia de Mallarmé. E o jogo entre as duas visões de mundo deixa entrever
uma terceira: aquela de Haroldo de Campos.
Por último, compararemos a Commedia com Galáxias (1984). Ao contrário dos dois
primeiros textos, que retomam alguma parte do poema de Dante, e também diferentemente de
Signância, cujo foco é um jogo de inversões, consideramos Galáxias uma possibilidade de
recriação da jornada de Dante que destaca e transforma, de maneira radical, estruturas
pontuais da Commedia. Um epos sem estória, uma epifânica, segundo o autor. Momentos
“paradisíacos” e “infernais” se misturam e se laicizam. Trata-se de leituras e vivências de
Haroldo, fragmentadas e recriadas, compondo uma viagem vazada e descontínua que se
materializa na escrita, permitindo ao leitor uma experiência – estética – de uma viagem na
leitura. A viagem, então, é a do leitor. Um peregrino cuja multiplicidade o afasta da pretensão
de “exemplo” que tem o poeta florentino e introduz o acaso na construção do caminho. À
12
primeira vista, Galáxias pode parecer distante do poema medieval dantesco, apesar de uma
quantidade significativa de referências a ele. Mas talvez seja o livro que transforma mais
pontual e amplamente seu universo.
A comparação que faremos enfoca a estrutura potencialmente estética das obras, seus
critérios “estético-criativos”. Pretendemos mostrar como esse jogo de re-criação de estruturas
formais é capaz de proporcionar, na recepção, um pensamento crítico que amplia a
possibilidade de pensar reflexivamente sobre o passado e suas relações com o presente. As
questões envolvidas nas comparações darão margem para se repensar a apresentação do
homem e das visões de mundo em textos, aparentemente muito diferentes e distantes no
tempo e no espaço. O caminho que empreendemos é aquele onde todos os textos se
encontram: o que explora a potencialidade estética da forma. É por meio da materialidade das
obras que pretendemos elaborar e ressaltar um pensamento crítico e reflexivo que permite
tramar relações, desenvolver e provar hipóteses.
13
1 A TRADIÇÃO COMO PRESENTE LITERÁRIO
Em 1952, Haroldo de Campos, seu irmão Augusto de Campos e Décio Pignatari
formaram o grupo Noigandres
2
, lançaram o primeiro número de uma revista literária
homônima e inauguraram um dos mais relevantes movimentos de vanguarda do Brasil, a
Poesia Concreta. Era um momento de esperança, expectativas, ações em grupo, manifestos.
No cenário político brasileiro, a construção de Brasília propiciava um clima de inovação
estética e otimismo.
Na revista Noigandres 4, publicada em 1958, o grupo concreto de São Paulo apresenta
seu “Plano-piloto para poesia concreta”, propondo uma mudança radical da poesia.
poesia concreta: produto de uma evolução critica de formas. dando por encerrado o ciclo
histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar
conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. espaço qualificado: estrutura
espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear. (CAMPOS, A.;
PIGNATARI, D.; CAMPOS, H., 1987, p. 156)
Trata-se de um movimento que pretende acabar com o verso tradicional e implantar
uma nova forma de poesia: uma poesia espácio-temporal, que rompe com o próprio gênero -
com aquilo que, por séculos, foi uma das bases de seu conceito, ou seja, sua estrutura
temporístico-linear. Encontramos, no trecho acima, um discurso característico da vanguarda,
que propõe o encerramento de uma tradição para se impor como poética do futuro.
O quinto e último número da revista Noigandres é lançado em 1962. Embora
mantendo um vínculo a partir de interesses e publicações em comum, o grupo concreto se
dissolve nos fins dos anos 60, e cada um dos seus membros segue seu caminho solo. A época
da vanguarda ficava para trás.
14
2
“Noigandres” é uma palavra destacada de um poema do poeta provençal Arnault Daniel. Em no Canto XX de seus Cantos,
Ezra Pound aponta para a dificuldade de tradução deste lexema, pela voz do provençalista alemão Emil Lévi: “Noigandres!
Noigandres! Faz seis meses já / Toda noite, quando vou dormir, digo pra mim mesmo: / Noigandres, eh, noigandres , / Mas
que DIABO querr dizer isto!”. O grupo concreto entitulou a revista que começaram a publicar de Noigandres, enfatizando, a
partir do enigmático do nome, uma propósta de invenção e experimentação poética. Algum tempo depois, o crítico Hugh
Kenner, reinterpretando o Canto de Pound, sugere a solução do problema, reconstituindo o verso do poeta provençal. A linha
e jois lo grans, e l’olors de noigandres” (o grão só de alegria e o olor de noigandres) tornou-se “ e jois lo grans, e l’olors
d’enoi gandres” (o grão só de alegria e o olor contra o tédio). “Gandres” seria, para Kenner, derivada do verbo gandir
(proteger) e enoi seria a forma antiga da palavra francesa ennui (tédio).
Definindo as vanguardas como movimentos em grupo que abafam o individual em
prol de uma proposta comum, pretendendo romper com o estabelecido e instaurar o novo,
Haroldo distingue claramente em seu percurso uma época vanguardista de uma outra
posterior, que denomina de “pós-utópica”. Em seu ensaio “Poesia e modernidade: da morte da
arte à constelação. O poema pós-utópico”, publicado em O arco-íris branco (1997), o poeta
deixa claro que rompe com o pensamento utópico, “voltado para o futuro”, característico das
vanguardas. Ressalta a dissonância da idéia de vanguarda em um tempo em que as utopias se
enfraqueceram. Aponta a crise das ideologias, advinda tanto de um capitalismo crescente e
imperial quanto da tendência de um Estado burocrático, repressivo e uniformizador
(CAMPOS, H., 1997, p. 268), como responsável pelo fim das utopias. Projetos totalizadores
não teriam mais lugar em um período que denomina de “pós-utópico”.
O poeta desdobra a questão: ao “princípio-esperança”, voltado para o futuro e ligado
às rupturas das vanguardas, prefere então o que denomina de “princípio-realidade”, situado no
presente. Haroldo evoca o termo de Walter Benjamin (1892-1940) “agoridade” (Jetztzeit) para
falar de uma “semiose infinita” que não se estanca em um “interpretante final”. Cunha o
termo “poesia pós-utópica” para designar uma arte que se apropria, partindo de um olhar
crítico, de uma “pluralidade de passados” como matéria para a sua poiesis.
Apesar da clara divisão que Haroldo de Campos propõe para a sua obra, podemos
notar que, mesmo no período de vanguarda, Haroldo de Campos já não descarta o passado de
uma forma radical. Apresenta, sim, no plano-piloto e demais textos sobre a Poesia Concreta,
uma ruptura com um modelo específico de tradição - mais precisamente, com o formalismo
da chamada Geração 45
3
; mas, por outro lado, aponta para um paideuma, um grupo de artistas
selecionados, cujas obras são por ele consideradas consonantes com sua proposta. No próprio
plano piloto, encontramos referências a escritores do passado que, de certa maneira, já fazem
parte de uma outra tradição - como Mallarmé, Apollinaire, James Joyce, Ezra Pound e os
brasileiros Oswald de Andrade e João Cabral de Mello Neto.
precursores: mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo: "subdivisions
prismatiques de l'idée"; espaço ("blancs") e recursos tipográficos como elementos
substantivos de composição. pound ( the Cantos); método ideogrâmico. joyce (ulisses e
finnegans wake): palavra-ideograma; interpenetração orgânica de tempo e espaço. cummings:
atomização de palavras, tipografia fisiognômica; valorização expressionista do espaço.
apollinaire (calligrarnmes): como visão, mais do que como praxis. futurismo, dadaísmo:
15
3
“Os porta-vozes de 45 alegavam que nossos modernistas não tinham noção de forma, eram indisciplinados, descuidados no
ofício da escritura; numa palavra, eram in-formes. Essa objeção deriva de uma idéia limitada do que é forma; de um conceito
de forma que, em português, se designa melhor pela palavra fôrma. Em português, fôrma tem o sentido de molde, de forma
feita e acabada, cujo paradigma é o soneto de perfeição parnasiana rematado com chave de ouro” (CAMPOS, H.: 2002, 16).
contribuições para a vida do problema. no brasil: oswald de andrade (1890-1954): "em
comprimidos, minutos de poesia." joão cabral de melo neto (n. 1920 – o engenheiro e a
psicologia da composição mais anti-ode): discurso directo, economia e arquitetura funcional
do verso
(Idem).
É aqui pertinente dialogar com o ensaio de Silviano Santiago “A Permanência do
Discurso da Tradição no Modernismo”, que se encontra em Nas Malhas da Letra (1989).
Silviano Santiago questiona o interesse dos concretos pelos precedentes, por acreditar que se
trata apenas de uma busca de confirmação, uma legitimação para suas propostas de ruptura
com o “verso tradicional”.
O passado só existiria [para os poetas concretos] para que déssemos exemplos que
autenticassem a nossa postura no presente. Se leio João Cabral de Melo Neto, é para mostrar
onde Cabral destrói o verso. Se eu leio Drummond, é para mostrar onde Drummond também
destrói a composição clássica do verso, e assim sucessivamente (SANTIAGO, S., 1989, p.
139).
Se nos mantivermos presos ao texto do plano piloto e aos “precursores” mais
evidentes da poesia concreta, poderíamos até considerar que os concretos se voltam para o
passado apenas por uma questão de autenticação de sua poesia. Mas a afirmação não se
sustenta. Ela supõe uma contradição primária que teria paralisado os primeiros passos do
movimento: uma atitude vanguardista de ruptura tão polêmica e radical não é condizente com
uma insegura necessidade de legitimação. Por isso propomos que se trata mais da
explicitação de um paideuma, de acordo com as propostas de Ezra Pound (1885-1972), do que
de uma busca de apoio no passado literário. Para Pound, uma das funções básicas da crítica
4
é
o estabelecimento de um paideuma por meio da escolha criteriosa de autores e textos a serem
considerados.
Pesquisando um pouco mais, verificamos que alguns poemas dos membros do grupo
Noigandres mantêm uma tensão com a proposta do plano-piloto, exatamente por se
configurarem de modo linear e temporal – algumas vezes, apresentando versos e rimas
tradicionais. Os primeiros livros lançados individualmente por Augusto de Campos, Haroldo
16
4
Pound admite como válidas cinco categorias de crítica, resumidas a seguir no prefácio de Augusto de Campos ao ABC da
Literatura, traduzido por ele e José Paulo Paes : “1 - crítica pela discussão (das formulações gerais às descrições de
procedimentos); 2 - crítica via tradução (a tradução entendida como recriação e não mera transposição literal); 3 – crítica pelo
exercício no estilo de uma época; 4 – crítica via música (Pound efetivamente testou as palavras de Cavalcati e Villon em
composições musicais); 5 – crítica via poesia.” (POUND, 1934, p. 11)
de Campos e Décio Pignatari estão incluídos nesse caso, bem como alguns de seus poemas
que se encontram nas revistas Noigandres, além de outros posteriores ao desmembramento do
grupo.
Em Depoimentos de Oficina (2002), Haroldo de Campos comenta a utilização
peculiar do verso tradicional no poema “Lamento sobre o Lago de Nemi”, incluído em seu
primeiro livro O Auto do Possesso (1950), anterior ao movimento concreto.
Se, de um lado, a forma fixa (três quadras dodecassilábicas, rimando no segundo e no quarto
verso de cada uma) e o refinamento léxico poderiam aparentar alguma afinidade com a
postura anticoloquialista e antiprosaica dos poetas de 45, de outro a sintaxe rítmico-
permutatória que favorece, deliberadamente, a articulação e a desarticulação das frases,
engendra o paradoxo e a dissonância, cria um espaço paralógico, desestabilizando de maneira
irônica o modelo formal e dando-lhe caráter móvel. (CAMPOS, H., 2002, p. 22).
Começamos a intuir que, apesar da frase, responsável por tantas polêmicas posteriores,
que dava por encerrado o ciclo histórico do verso, a letra do plano piloto era mais uma
apresentação explicitada das propostas da poesia de vanguarda lançada pelo grupo do que
uma restrição absoluta ao uso do verso tradicional na confecção de poemas. Ele, algumas
vezes, está presente – ainda que para ser desestabilizado.
Encontraremos no primeiro ensaio crítico de Haroldo de Campos, “Poesia e Paraíso
Perdido”
5
(1955), um curioso alargamento do paideuma proposto no manifesto acima citado.
A arte da poesia, embora não tenha uma vivência função-da-História, mas se apóie sobre um
“continuum” meta-histórico que contemporaniza Homero e Pound, Dante e Eliot, Góngora e
Mallarmé, implica a idéia de progresso, não no sentido de hierarquia de valor, mas no de
metamorfose vetoriada, de transformação qualitativa, de culturmorfologia: “make it new”.
(CAMPOS, H., 1979, p. 18).
Apesar de trazer explícita a idéia de “progresso” característica das vanguardas, o
ensaio de Haroldo de Campos de 1955 destoa da proposta do plano piloto, lançado anos após
o início do movimento concreto, que preconizava “o fim do cíclo histórico do verso”. Haroldo
cita, entre seus interesses, Homero e Dante – poetas cujas obras apresentam justamente “a
composição clássica do verso”.
17
5
Publicado originalmente no Diário de São Paulo, 05.06.1955.
Haroldo também destaca Góngora, presença barroca já consoante com alguns de seus
poemas anteriores, concomitantes à época “concreta”. Ao lado de um impulso “minimalista”
que se materializa nos poemas concretos, Haroldo demonstra uma forte atração por uma
escrita “barroca”. No primeiro número da revista Noigandres, publica seu poema “Thálassa
Thálassa”, de 1951, em que, ao “barroquismo”, acrescenta ainda um sopro épico (CAMPOS,
H., 2002, p. 23). No poema “Teoria e Prática do Poema”, de 1952, Padre Antônio Vieira é
retomado a partir de uma glosa da citação “Não fez Deus o céu como xadrez de estrelas”, do
“Sermão da Sexagésima” (1655). É no livro intitulado justamente Xadrez de Estrelas que
Haroldo de Campos reúne os poemas que escreveu entre 1957 e 1959, curiosamente
representativos do momento de maior rigor do movimento vanguardista, fase denominada
pelos poetas de “geométrica”.
Ressaltamos, a esse respeito, o paradoxo existente desde o início de sua carreira como
poeta, a convivência entre duas (ou mais) tendências tão díspares: o “minimalismo” concreto
e a “prolixidade” barroca. Augusto de Campos aponta para essa característica do trabalho do
irmão em seu ensaio “Poesia Concreta”
6
: “Haroldo de Campos é, por assim dizer, um
‘concreto’ barroco, o que o faz trabalhar de preferência com imagens e metáforas, que dispõe
em verdadeiros blocos sonoros” (CAMPOS, A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H., 1987, p.
41).
Como então se encaixaria, na leitura “legitimante” de Silviano, a presença, na obra e
em textos críticos de Haroldo de Campos, em plena vanguarda concreta, de versos clássicos e
de poetas tradicionais? Simplesmente não se encaixaria. Daí a necessidade de rever essa
leitura.
De acordo com o make it new de Ezra Pound, a proposta de Haroldo de Campos é a
transformação do passado em algo novo. Ecoa também a antropofagia oswaldiana: uma
poética capaz de absorver, rejeitar e transformar - simultaneamente.
T.S. Eliot (1888-1965) apresenta uma outra proposta de revalorização,
metamorfoseada, da tradição. Em “A tradição e o talento individual” (1919), Eliot questiona a
poesia de vanguarda, que isola o artista de seus predecessores pelo desejo de instaurar o novo
e romper radicalmente com o passado. Como crítico, acredita ser deficiente avaliar a arte de
um poeta sem considerar sua relação – por contraste e comparação - com o que já foi escrito,
ou seja, com a tradição. Eliot não se refere ao apego à “tradição”, no sentido do senso comum
– à preservação ou continuação daquilo que já vinha sendo feito. Não prega uma atitude
18
6
Publicado originalmente em Forum, órgão oficial do Centro Acadêmico “22 de Agosto”, da Faculdade Paulista de Direito,
ano I, n º III, outubro de 1955.
passadista. Ao contrário: para o poeta e crítico, a tradição tem um significado bem mais amplo
e produtivo, que envolve um “sentido histórico”.
O sentido histórico compele o homem a escrever não apenas com a sua própria geração no
sangue, mas também com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero, e
nela a totalidade da literatura de sua pátria, possui uma existência simultânea e compõe uma
ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é um sentido do intemporal assim como do
temporal, e do intemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor tradicional. E é, ao
mesmo tempo, o que torna um escritor mais agudamente consciente do seu lugar no tempo, da
sua própria contemporaneidade. (ELIOT, 1997, p. 22-23).
É fundamental notar que Haroldo de Campos, simultaneamente a uma atitude e uma
arte de vanguarda, também mantinha um interesse especial pelo passado literário, quebrando,
de certa forma, a dicotomia apresentada no ensaio de Eliot e mostrando uma possibilidade
paradoxal da convivência entre ruptura e tradição.
Silviano opõe corretamente o make it new poundiano às propostas de Eliot de
retomada do passado, por considerar o primeiro um movimento de ruptura, ligado às
vanguardas. Na proposta de Eliot está contida a idéia de continuidade, acúmulo de uma
tradição na poiesis do poeta do presente, opondo-se à noção poudiana de paideuma, que
implica a seleção do passado por cortes sincrônicos, rupturas. Apesar das diferenças, Pound e
Eliot se encontram na valorização do passado como matéria poética. É nesse sentido que,
mesmo dentro da visão “utópica” do período das vanguardas, Octavio Paz (1914-1998) já
registra o abalo do império de um tempo linear e diacrônico e, ao contrário de Silviano,
aponta para a confluência entre os pensamentos de Eliot e Pound.
À visão diacrônica da arte se superpõe uma visão sincrônica. O movimento começou quando
Apollinaire tentou a conjunção de vários espaços em um poema; Pound e Eliot fizeram o
mesmo com a história, ao incorporar em seus textos outros textos de outros tempos e de
outras línguas. Estes poetas acreditavam que assim eram modernos: seu tempo era a suma dos
tempos. Na realidade iniciavam a destruição da modernidade. (PAZ., 2003, p. 137).
É inegável a diferença da postura de Ezra Pound e Haroldo de Campos em relação à
das vanguardas iconoclastas, cujo desejo de “originalidade” e “modernidade” impõe uma
ruptura realmente radical com o passado, o que destoa da dicotomia sugerida por Eliot em seu
ensaio.
19
Retomando a tradição por meio de cortes sincrônicos e, desse modo, aproximando-se
de Pound e afastando-se de Eliot, ao trabalhar com obras do passado, Haroldo elege autores e
textos que acredita serem importantes para participar de seus projetos – de tradução, e / ou
crítica e / ou criação. Como dito acima, o interesse de Haroldo de Campos pela tradição
(como o de Augusto de Campos e Décio Pignatari) é condizente com a formação de um
paideuma, um conjunto de artistas e obras que admitam articulações produtivas entre si.
Qual seria, então, o ponto de interseção entre os poetas citados no plano piloto e
autores como Homero, Dante ou Góngora? Encontramos um caminho para tratar dessa
questão no ensaio “Minha relação com a tradição é musical”
7
, de Haroldo de Campos. O
poeta destaca um novo olhar em direção ao passado que a então novíssima poesia concreta
teria lhe proporcionado.
Para mim, ao invés de clausurar, a poesia concreta abriu. Permitiu-me passar de uma reflexão
regional (a etapa-limite do desenvolvimento possível de uma poética) a uma reflexão mais
geral: pensar o concreto na poesia. Para mim, hoje, toda poesia digna desse nome é concreta.
De Homero a Dante. De Goethe a Fernando Pessoa. Pois o poeta é um configurador da
materialidade da linguagem. (CAMPOS, H.: 1992, p. 264).
Interessa-nos, aqui, investigar como Haroldo de Campos se aproveita da Commedia
em suas obras poéticas. Para isso, comecemos por examinar o processo que o leva a escolher
a Commedia, o modo como a aborda e o mecanismo de sua transcriação.
1.1 Um critério “estético-criativo” para uma abordagem crítica
Haroldo de Campos afirma que, independentemente da época em que se inserem,
certas obras se encontram conectadas por meio de uma poiesis específica. Aqui chegamos à
sua proposta de uma “poética sincrônica” (Cf. CAMPOS, H., 1977), capaz de relacionar
textos distantes no tempo e no espaço por meio de um critério “estético-criativo”. A poiesis de
Haroldo, assim como aquela dos autores por ele selecionados para participarem de seu
paideuma, coloca em destaque os procedimentos sistematizados e classificados por Ezra
20
7
Publicado originalmente no Folhetim (Folha de S. Paulo), nº 344, 21.008.1983.
Pound como fanopéia (provocação de imagens sobre a imaginação), melopéia (impregnação
sonora nas palavras) e logopéia (“a dança do intelecto entre as palavras”).
Não se trata de ignorar as diferenças de visão de mundo nem de negar a relevância de
uma abordagem diacrônica da História. Em seu ensaio sobre a poética sincrônica, Haroldo de
Campos deixa clara a sua posição.
Não há dúvida, porém, de que a tarefa da poética diacrônica é importante, como trabalho de
levantamento e demarcação do terreno, e, ao enfatizar-lhe os defeitos e limites, meu desejo é
chamar a atenção para outro tipo de poética – a poética sincrônica -, muitíssimo menos
praticada, mas cuja função tem um caráter eminentemente crítico e retificador sôbre as coisas
julgadas da poética histórica. (CAMPOS, H., 1977, p. 207).
A poética sincrônica não se opõe à diacronia: pode manter com ela um diálogo. Anatol
Rosenfeld trata a questão em um depoimento para o “Suplemento Literário de O Estado de
São Paulo” do dia 17 de setembro de 1966.
Uma crítica, por mais radicalmente ‘sincrônica’ que seja, timbrando em focalizar textos do
passado a partir de concepções estéticas atuais e abordando-os como entidades fechadas, auto-
suficientes e ‘simultâneas’ no ‘reino eterno e atemporal’ da grande arte, ainda assim tem de
manter aberto um horizonte ‘diacrônico’ pondo em referência (ao menos em parênteses) a
visão inerente à época em que a obra surgiu. Ela não pode deixar de trabalhar, portanto, com
duas consciências – a atual e a da obra analisada, na medida em que tal empatia histórica é
possível. (ROSENFELD em CAMPOS, H., 1977, p. 215-216).
Haroldo de Campos, ainda sobre a falsa impressão de negação da perspectiva histórica
na prática da poética sincrônica, ressalta que “a perspectiva sincrônica é afetada pela resposta
do homem concreto, situado num momento definido da evolução literária (diacrônica) de seu
país e de sua língua.” (CAMPOS, 1977, p. 217). Ou seja, a abordagem sincrônica supõe a
presença de um homem historicamente inserido e determinado.
O interesse de Haroldo de Campos pela tradição não é – e nem era em pleno
movimento concreto – apenas uma questão de legitimação de suas propostas. Já apontamos
acima que é possível comprovar esse fato a partir da diversidade de seus interesses. O critério
que o move é, sim, condizente com sua proposta – mas não simplesmente para “autenticá-la”.
21
Haroldo de Campos se mostra interessado em obras que, por meio de um aproveitamento
especial de seus recursos poiéticos, consigam provocar um efeito estético relevante e potente.
Para compreender o que seria um tal efeito, podemos recorrer à concepção de juízo
estético exposta por Immanuel Kant (1724-1804), em sua Kritik der Urteilskraft (1790).
Rompendo com toda uma tradição que considerava a beleza como algo imanente ao objeto,
Kant afirma que a atribuição do belo remete, em última instância, a um estado mental
(Gemütszustand). O belo não é uma qualidade objetiva do objeto, mas uma que lhe convém
em virtude de uma relação particular que mantém com o sujeito. No entanto, ainda que
subjetivo, o juízo estético não deixa de ser universal
8
. O que é genuinamente belo para um
sujeito, deve ser genuinamente belo para todos.
Ele [o autor do juízo estético] falará pois, do belo como se a beleza fosse uma qualidade do
objeto e o juízo fosse lógico (constituindo através de conceitos do objeto um conhecimento do
mesmo), conquanto ele seja somente estético e contenha simplesmente uma referência da
representação do objeto ao sujeito; porque ele contudo possui semelhança com o lógico, pode-
se pressupor a sua validade para qualquer um. (KANT, 1790, p. 56).
Essa concepção de Kant abre caminho para se compreender em que sentido se pode
dizer que certas obras têm maior potencial estético do que outras e, por conseqüência, para se
compreender por quais critérios Haroldo de Campos escolhe seu paideuma.
Para Kant, toda experiência começa com intuições sensíveis de objetos. Em seguida, a
imaginação reúne a multiplicidade dada nessas intuições e a leva ao entendimento. Na
experiência cognitiva, o entendimento forma um conceito e sob ele subsume o objeto,
determinando-o objetivamente. Na experiência estética, a imaginação não se submete a uma
regra do entendimento, o conceito, mas opera livremente, tudo se resumindo à cooperação
formal dessas faculdades. No juízo estético, em que culmina essa experiência, exprime-se a
capacidade do objeto para produzir um sentimento particular de prazer e desprazer derivado
desse “livre jogo entre a imaginação e o entendimento”. A imaginação, na experiência
estética, não se contenta em meramente reunir uma multiplicidade: ela é produtiva.
Kant afirma que, no juízo estético, o sujeito não tem nenhum interesse que se constitua
em um fim visado por esse livre jogo das faculdades. No entanto, desse livre jogo não pode
estar ausente alguma espécie de finalidade, já que o que o juízo exprime é um sentimento de
22
8
Na exposição da concepção kantiana, utilizamos a expressão “juízo estético” em sua acepção atual, em que remete a
atribuições dos predicados “ belo”, “feio”, “sublime”, e não na acepção kantiana, em que remete a toda atribuição a objetos
de predicados que apenas lhes convêm em virtude de sua relação com a sensibilidade subjetiva.
prazer e desprazer. Uma sua característica seria, portanto, o que Kant chama de “finalidade
sem fim”. Como entender essa expressão aparentemente paradoxal? Vejamos duas passagens
da terceira Crítica de Kant.
Podemos pelo menos observar uma conformidade a fins segundo a forma – mesmo que não
lhe ponhamos como fundamento um fim – como matéria do nexus finalis – e notá-la em
objetos, embora de nenhum outro modo senão por reflexão. (Idem, p. 65-66).
Logo, nenhuma outra coisa senão a conformidade a fins subjetiva, na representação de um
objeto sem qualquer fim (objetivo ou subjetivo), conseqüentemente a simples forma da
conformidade a fins na representação pela qual um objeto nos é dado, pode, na medida em
que somos conscientes dela, constituir a complacência, que julgamos como comunicável
universalmente sem conceito, por conseguinte, o funtamento determinante do juízo de gosto.
(Id. , p. 67).
A finalidade, no juízo estético, diz respeito, pois, não à conformidade a fins presentes,
que determinariam conteúdos de processos teleológicos, mas à mera forma da conformidade a
fins na representação. Na medida em que essa forma da conformidade a fins está inscrita na
armação transcendental das faculdades, é essa finalidade sem fim que garante a universalidade
subjetiva do juízo.
Temos quatro dados importantes: (a) o belo não se enraíza no objeto, mas em sua
relação com a mente; (b) o juízo de gosto, embora não seja lógico, opera em parte como se o
fosse; (c) o juízo de gosto diz respeito a uma “conformidade a fins segundo a forma”, que
pode ser notada por reflexão; (d) porque os homens têm os mesmos meios de conceber essa
“conformidade a fins segundo a forma”, o mesmo “aparato trancendental”, a validade do belo
é universal.
Conjugando (a), (b), (c) e (d), podemos concluir que sentimos prazer estético diante de
um objeto quando sua apresentação (Darstellung) em nossa mente nos permite notar uma
“conformidade a fins segundo a forma”. Trata-se de uma espécie de “jogo formal” que,
embora originariamente presente na apresentação do objeto, culmina na determinação
subjetiva desse objeto enquanto objeto, de caráter estritamente formal: o objeto é tal que é
capaz de desencadear esse jogo formal. Por meio da reflexão, o juízo de gosto atua em parte
como se fosse lógico. Embora subjetivo, pode ter a pretensão de universalidade, uma vez que
vale para todos que possuam os mesmos aparatos de percepção e reflexão (para além do
pensamento kantiano poderíamos dizer: e que compartilhem uma mesma cultura).
23
Kant não se deteve com interesse nas obras de arte. A intenção do artista daria a elas
uma finalidade com fim e, por isso, só o belo na natureza seria realmente puro.
Não mais considerando que a obra de arte se esgote na intenção do artista, teóricos da
arte partem da terceira Crítica kantiana para refletir sobre a experiência estética do objeto
artístico. Partindo dos conceitos de Kant e valendo-nos das teorias da mimesis de Wolfgang
Iser e Costa Lima, podemos entender melhor os critérios estéticos que Haroldo de Campos
utiliza ao valorizar as obras de arte que consome e produz.
Para que um objeto artístico seja belo, a “intenção do artista” à qual Kant recorre para
justificar seu desinteresse filosófico pela arte, não pode estar completamente realizada no
objeto – caso contrário o fruidor, ao percebê-la com relativa facilidade, estancaria o processo
de “jogo livre” entre a imaginação e o entendimento. Ludwig Giesz, em Phänomenologie des
Kitsches – Ein Beitrag zür anthropologischen Ästhetik (1960), caracteriza o kitsch como
um objeto que responde plenamente ao interesse do receptor que, por isso, se esgota. Giesz
denomina essa experiência de “desfrute”. A experiência estética, ao contrário, se processa a
partir de um objeto não mais pleno de significação, mas poroso, entremeado de vazios. Se o
artista consegue transformar tanto sua intenção quanto ao objeto mimetizado em uma nova
forma, promovendo um jogo entre diferenças e semelhanças, o processo se altera: a
significação se metamorfoseia em concretude formal, torna-se mais porosa. O pensamento e a
intenção se reconfiguram em forma - eles não afirmam mais: transformam-se em “coisa”,
mostram-se, expõem-se. Em proporções diferenciadas, passa de determinante para
indeterminado. A indeterminação da obra abre virtualidades que fogem ao controle ou à
intenção primeira do autor. O interesse do receptor, nessa experiência, não se esgota na
presença do objeto, porque ela está aquém de seu “discurso” e além de sua expectativa. No
jogo entre imaginação e entendimento despertado pela relação entre a obra e seus vazios,
deixando em suspenso o próprio objeto, nosso interesse se torna “desinteressado” e nos
deixamos envolver pela configuração da obra. É a montagem da configuração da obra a
responsável por despertar no receptor o processo da experiência estética.
Segundo Luiz Costa Lima (cf. COSTA LIMA, 2002), o efeito estético, em seu
momento de incidência temporalmente curto, pode ser comparado a um momento da recepção
em que a semântica fica “em suspenso” e o leitor se deixa levar pela sintaxe da obra
(lembremo-nos do “jogo livre entre imaginação e entendimento” proposto por Kant). A
suspensão provisória da semântica, ou seja, da comunicabilidade do sentido, permite ao leitor
entrar em contato com a potencialidade de sua configuração, com a escolha, a disposição e as
articulações dos significantes na formação da estrutura da obra. O texto atua sobre o leitor a
24
partir de sua sintaxe, da montagem de um jogo entre a melopéia, a fanopéia e a logopéia
(considerando-se a possibilidade de maior ou menor aplicabilidade de cada um dos termos nas
obras específicas), capaz de provocar a erupção de um “vazio” no ato da recepção, a erupção
da ausência de uma idéia congelada pelo sentido das palavras. Essa suspensão da semântica
ativa a imaginação e pode ser acompanhada do que chama de “proto-idéias”, passíveis ou não
de desenvolvimento - mas não da imposição de um significado, o que estancaria o processo
iniciado pela experiência estética.
Se percebermos que, na experiência estética, a sintaxe nos arrebata a ponto de, por um
curto espaço de tempo, esquecermos a semântica, compreenderemos porque nela o
entendimento não consegue formular um conceito. Ora, a sintaxe corresponde a esse jogo
formal que detectamos no contato com o objeto. E é essa jogo o responsável pelo momento de
suspensão da semântica. A sintaxe seria, então, a configuração da obra, considerando a maior
importância não de seus elementos individualmente, mas da “lógica” de suas relações. Max
Bense aponta para a questão: “O modo do estético, do belo, é uma condição que se manifesta
menos nas coisas do que nas relações.” (BENSE, 1954, p.36).
Por conta da indeterminação produzida pela configuração da obra e das múltiplas
potencialidades interpretativas que dela advêm, durante o processo da experiência estética o
receptor não lê uma semântica do texto, mas, em contato com o “poroso” de sua configuração
“sintática”, produz “proto-idéias”, que seriam algo análogo ao que Kant chama de “conceitos
indeterminados”. As proto-idéias seriam, então, possibilidades lógico-perceptivas que aquele
jogo formal nos permite induzir e que, posteriormente, desenvolveremos ou não.
Em um segundo momento, aí sim, pode acontecer a reocupação semântica. Como a
experiência estética leva o receptor a ir aquém do discurso e como, no processo, a sintaxe da
obra incita a produção de proto-idéias, neste novo momento, a semântica é produzida pelo
receptor a partir de sua experiência com o texto. Não é uma “semântica do texto”, mas o que
se dá é o aparecimento de novas idéias provocadas pelo contato com a obra. Trata-se de uma
reflexão crítica posterior, em maior ou menor grau, sobre a experiência que se viveu.
Retomando o tema geral deste item – o interesse de Haroldo de Campos por obras de
uma certa natureza estética – podemos entender o motivo de a construção formal ser tão
importante na obra de arte. É ela que promove, através do uso de recursos como aqueles
relacionados por Pound e, mais ainda, por meio de uma organização lógica de suas relações, o
efeito estético. Esse efeito estético estimula um pensamento crítico que, conforme
desenvolveremos mais à frente, é um desdobramento produtivo tanto das obras de Haroldo de
Campos quanto daquelas que despertam seu interesse.
25
1.1.1 Uma acupuntura sincrônica
Pode não parecer mas cada palavra pratica uma acupunctura com agulhas de prata
especialmente afiladas e que penetram um preciso ponto nesse tecido conjuntivo quando se lê
não se tem a impressão dessa ordem regendo a subcutânea presença das agulhas mas ela
existe e estabelece um sistema simpático de linfas ninfas que se querem perpetuar por um
simples contágio de significantes essa torção de significados no instante esse deslizamento de
superfícies fônicas que por mínimos desvãos criam figuras (CAMPOS, H., 1984, fragmento
“tudo isso tem que ver”)
Destacado do livro Galáxias, de Haroldo de Campos, o trecho acima é metapoético:
apresenta a proposta de uma literatura que pretende fazer de sua própria configuração um
sistema potencialmente estético. Estético, mas não estetizante, como veremos a seguir, pois a
fruição não se consome em um eterno processo de retorno a si mesmo. Ao contrário: o que
percebemos nas obras tanto de Haroldo de Campos quanto de Dante Alighieri é uma grande
possibilidade de desdobramentos críticos, aberta a partir da configuração da obra.
Ossip Mandelstam (1891-1938), em seu ensaio Razgovor o Dante (1965), pretende
demonstrar que o poeta florentino vai muito além da representação e da doutrinação na
Commedia. Contrastando com a interpretação mais usual da Commedia, baseada em sua
arquitetura escultural, Mandelstam direciona seu olhar para a estrutura material (“concreta”)
da obra. Segundo ele, os versos de Dante “têm precisamente uma formação e uma coloração
geológicas” (MANDELSTAM, O., 1977, p. 23). Todos os elementos do discurso devem ser
considerados como uma “palavra única”, como um “germe de sentido” que não aponta para
uma só direção.
Metamorfoses de sons, de palavras e de imagens compõem, segundo o poeta russo, o
movimento da Commedia. Mandelstam aponta para uma transformação constante de ciclos
formalmente autônomos, numa alucinatória relação simultânea de rompimento e de ligação.
Consoante este pensamento, Ezra Pound destaca a importância da metamorfose na
Commedia, aludindo a uma presença marcante de Ovídio em sua obra.
26
Virgílio era a literatura oficial da Idade Média, mas “todo mundo” continuava lendo Ovídio.
Dante dirige todos os seus agradecimentos a Virgílio (soube apreciar o melhor dele), mas o
efeito direto e indireto de Ovídio na obra efetiva de Dante é talvez maior que o de Virgílio.
(POUND, 2001, p. 47).
Mandelstam afirma que a grande inovação de Dante foi romper com a sintaxe
tradicional, construir a Commedia a partir de explosões de fonemas, de léxico, de cenas e de
imagens. Detém-se no trabalho do poeta com a linguagem, em sua capacidade de tornar
potentes as partes – como pequenas grandes explosões, de conduzi-las, e de mantê-las unidas
como um maestro, dando vida a toda uma orquestra, através do movimento silencioso de sua
batuta. Como um sólido prismático de cristal, a Commedia, embora construída a partir de
fragmentos, não nos permite perder de vista seu “todo” arquitetônico.
Madelstam destaca os versos 25-30 do Canto XXXII do Inferno para demonstrar o
singular uso da linguagem pelo poeta florentino.
Non fece al corso suo sí grosso velo
Di verno la Danoia in Osterlicchi,
Né Tanaï là sotto ‘l fredo cielo,
Com’era quivi; che se Tambernicchi
Vi fosse sú caduto, o Pietrapana,
Non avria pur da l’orlo fatto cricchi
9
.
O Cocito, território mais fundo do Inferno, é gelado por ser o oposto simétrico do céu.
Dante se baseia na concepção teológica tomista-aristotélica para montar a estrutura de sua
Commedia: o Amor, “che move il sole e l’altre stelle”, é o fogo quente que contrasta com a
ausência de Amor do gélido Cocito, morada de Lúcifer. A repetição onomatopéica do fonema
“chi” nos permite ouvir – com um arrepio de pavor - o som provocado pelos passos de Dante
no gelo. Por meio de um processo que nos remete à melopéia poundiana, Dante permite que o
leitor sinta o gélido vazio das profundezas de seu Inferno. Deste modo, o receptor pode ir não
27
9
“Nunca no curso viu tão grosso véu / no inverno algum Danúbio na Áustria além, / nem o Don, lá por sob o álgido céu, /
como aqui vi; se o Tambernic vem / caído neste lago, ou o Pietrapan, / nem assim quebra, o gelo que ele tem.” Tradução de
Jorge Wanderley in ALIGHIERI: 2004.
apenas para onde o poeta o leva, mas, sem perder a referência da obra em questão, até onde
sua imaginação o permitir chegar (considerando-se também as variantes relacionadas à visão
de mundo em que o leitor está inserido).
No Canto XX do Inferno, encontramos a quarta vala do Malebolge, destinada aos
adivinhos. Estes, por terem passado a vida tentando prever o futuro, são condenados a ter suas
cabeças voltadas para as costas, o que os obriga a andar para trás. Destacamos os versos 37-
39.
Mira c’ha fatto petto de le spalle;
Perché volse veder troppo davente,
Di retro guarda e fa retroso calle.
10
Dante provoca uma imagem instantânea no primeiro verso. Sem se alongar em uma
descrição, diz: “fez peito das costas”. Temos aqui um exemplo da fanopéia, de uma imagem
que se impõe e “fala” tão ou mais alto que a própria semântica do texto. O deslocamento
evocado constrói a cena: a cabeça está virada para trás. O segundo verso explica o motivo do
castigo aplicado. E o terceiro aponta para sua pertinência. Os condenados olham para trás e
caminham para trás, para nunca mais verem o que está adiante. Essa imagem se reforça a
partir de uma montagem paralelística de significantes capaz de produzir também uma imagem
concreta do jogo de inversão entre “peito” e “costas”. Percebemos, então, em petto e spalle, a
existência de duas letras visualmente longas como uma figura humana, que se repetem (“t” e
“l”) e se desdobram, dando a impressão do movimento contido no verso. Ainda podemos
destacar a mudança de lugar da letra “e”, que se encontra no começo da primeira palavra e no
final da segunda. No próximo verso, temos uma situação semelhante, que aponta também para
a cinética da troca entre as partes de trás e da frente da personagem, através da proximidade
dos lexemas visualmente semelhantes volse e veder. No terceiro verso, a repetição da palavra
retro (parte de trás) em retroso, sugere que o caminho se volta para trás. Em um só terceto,
Dante condensa
11
e apresenta - através da melopéia, da fanopéia e da logopéia - a grotesca
10
“Com peito às costas se trocou as peças: / porque quisesse enxergar muito adiante, / vê para trás e caminha às avessas.”
Tradução de Jorge Wanderley in ALIGHIERI, 2004.
28
11
Ezra Pound aponta para a correspondência, na língua alemã, do verbo dichten (condensar) e do substantivo Dichtung
(poesia).
imagem dos pecadores, enquanto revela o motivo e o sentido de sua pena. Podemos, a partir
desse terceto, notar a pertinência do comentário de Mandelstam acerca de fragmentos
autônomos na Commedia. Embora parte integrante do Canto XX, do Inferno e de toda a
arquitetura da obra, o fragmento tem força própria e é capaz de sustentar-se sozinho, como
uma explosão poética – conforme reivindica Mandelstam.
Apresentamos agora um trecho retirado do livro de Haroldo de Campos Signância
quase céu.
o inferno
avesso de fagulhas
queda
plúmbeo
cair
(CAMPOS, H., 1979, p. 107)
As palavras, quase sem conectivos, instigam a imaginação do leitor, enquanto fazem
nosso olhar cair com elas, a partir de sua disposição na folha de papel, desabando com seu
peso-chumbo no inferno. O trecho do poema promove uma verdadeira dança do intelecto não
só entre as palavras, mas entre textos. Sem muitas explicações, basta-nos lembrar do inferno
gelado de Dante, sem nenhuma dúvida, avesso de fagulhas. Ressaltamos também o fato de
que, mesmo em um período já considerado por Haroldo de Campos como “pós-utópica”,
encontramos a presença de um espaçamento que remonta à fase concreta.
A linguagem não é utilizada apenas como um meio, como um instrumento para
transmitir idéias. É esculpida e concretamente configurada de modo a formar, ela mesma, o
objeto da literatura. Por isso conta Paul Valéry, em Degas, danse, dessin (1938), que o poeta
Stéphane Mallarmé, rebatendo o pintor Edgar Degas (1834-1917) que dizia não conseguir
fazer poesia apesar de ter muitas idéias, afirmou não ser com idéias que se fazem versos, mas
com palavras.
29
Os dois poetas, para além da representação (Vorstellung) de uma idéia ou de um
objeto, demonstram uma preocupação com o modo de apresentação (Darstellung) de suas
obras, com seu “como”.
Paul Valéry, em uma abordagem que valoriza a melopéia, compara, em “Poesia e
pensamento abstrato” (1944), a poesia à oscilação de um pêndulo entre som e sentido. Forma
e conteúdo devem se condensar no significante poético para que possam fazer perceber, por
exemplo, “o eco fechado na palavra beco” (CAMPOS, H., 1984, fragmento “eu sei que este
papel”). É através da elaboração material da obra que se consegue provocar os mais potentes
efeitos no receptor. Desta maneira, podemos ouvir o badalar dos signos-sinos que se dobram
na escrita “barroca” de Galáxias de Haroldo de Campos.
escribalbuciando você converte estes signos-sinos num dobre numa dobra de finados enfim
nada de papel estes signos você os ergue contra tuas ruínas ou tuas ruínas contra estes signos
balbucilente sololetreando a sóbrio neste eldorido feldorado latinoamrgo tua barrouca
mortopopéia ibericaña.
(CAMPOS, H., 1984, fragmento “mais uma vez”)
A estrutura e a montagem da obra se apresentam aquém e vão além de sua
(in)formação: constróem um novo mundo para e com o leitor - não apenas uma possibilidade
de leitura, mas também de (re)escritura.
Os vazios provocados pela experiência estética, a posteriori, podem ser fecundados
por um pensamento crítico. Se não existe uma suspensão de sentido, se a semântica do texto
se impõe ao leitor, o pensamento crítico terá menos “espaço” para se situar ou, visto por outro
ângulo, não será estimulado. Os textos que fazem parte do paideuma de Haroldo de Campos
são construídos de forma a provocar efeitos estéticos potentes, o que pode nos levar a deduzir
que, em seu desdobramento, tendem a estimular o pensamento crítico.
1.1.2 O poeta-crítico
30
A obra filosófica de Immanuel Kant permitiu o surgimento de um novo conceito de
crítica. Walter Benjamin chama atenção para o fato de que a arte, anteriormente tratada e
“julgada” como adequada ou não às normas vigentes por um Kunstrichter (juiz de arte), passa
a ser objeto de um procedimento reflexivo por parte de um Kritiker (crítico). Temos, então,
um movimento muito maior e mais produtivo do que a simples constatação de que a obra está
ou não de acordo com certas normas. O Kritiker é aquele que é capaz de desenvolver as
capacidades reflexivas potenciais da obra.
Benjamin, em sua tese de doutorado (escrita entre 1917 e 1919), que resultou no livro
Der Begriff der Kunstkritik in der Deutschen Romantik (1973), aponta para esse novo
tipo de crítica, amplamente desenvolvido pelos primeiros românticos alemães. Destaca o fato
de ser esta uma crítica “positiva”, na medida em que descarta as obras em que não se constata
uma possibilidade de desdobramento, e se atém àquelas que contêm um potencial reflexivo
relevante.
Haroldo de Campos, além de poeta, é também crítico, o que o insere em uma tradição
de poetas-críticos que se firma com Baudelaire, Eliot, Mallarmé, Valéry, Pound, Mandelstam,
Octavio Paz, entre outros. A presença de poetas-críticos no Brasil não é grande, embora
significativa por sua qualidade. Podemos destacar, além dos três poetas do antigo grupo
Noigandres, Mário Faustino, Paulo Leminski e Sebastião Uchoa Leite.
Em seus ensaios críticos, Haroldo de Campos demonstra concordar com a proposta de
Benjamin, escolhendo como objeto de trabalho obras de potencial estético-reflexivo. Quanto à
sua obra poética, apontamos acima que ele tende, assim como os outros importantes poetas-
críticos citados, a compô-la de modo a estimular o pensamento crítico do leitor.
O poeta cria uma partitura de sons e silêncios: “pensar o silêncio que trava por detrás
das palavras pensar este silêncio que cobre os poros das coisas como um ouro e nos mostra o
oco das coisas que sufoca desse ouro” (CAMPOS, H., 1984, fragmento “o que mais vejo
aqui”). O autor está consciente do efeito que visa provocar. Constrói um código na linguagem
que permite o diálogo entre o texto e o receptor. “Ecos” e “ocos” são cuidadosamente
configurados para criar e provocar novas possibilidades de sentidos. A partir da citação acima,
retirada do fragmento de Galáxias “o que mais vejo aqui”, vemos que a poiética de Haroldo
de Campos se afasta de duas noções de literatura presentes no senso comum: a) a idéia de que
a importância maior do texto está no conteúdo do que é dito, o que nos levaria a uma
concepção de literatura de pura diversão, dogmática ou engajada; b) a idéia de que a
preocupação formal na elaboração de um texto levaria a um silêncio estéril, à estetização da
literatura.
31
É apenas a partir do final do século XVIII que a obra de arte começa, de modo geral, a
ser tomada como um modo autônomo de expressão – não mais um instrumento para a
representação de conteúdos extrínsecos (religiosos, políticos, existênciais), mas como algo
que vale por sua própria construção e suas potencialidades estéticas intrínsecas. É certo que a
Commedia pode ser lida na chave “ideológica”, no que concerne à política e à
religião.Através da escalada de uma alma perdida em uma “selva oscura” que, passando pelo
inferno e pelo purgatório, alcança a visão suprema no paraíso, Dante instrui os leitores a
respeito da doutrina católica. Quanto à política italiana, somos induzidos pelas idéias que
Dante desenvolve no ensaio crítico De Monarchia e encena na Commedia, a acreditar que a
união entre a Igreja e o poder político é indesejável, por acarretar a corrupção mútua. O
Império Romano e a Igreja Romana só seriam soberanos se permanecessem, cada um, dentro
de seu próprio domínio.
No entanto, críticos como Ossip Mandelstam e Haroldo de Campos nos oferecem
também uma possibilidade de leitura da Commedia orientada em sua estrutura interna.
Através da construção da Commedia, o poeta – não mais o doutrinador – abre espaço para a
reflexão crítica do leitor. Percebemos, em um poema de cunho ideológico, ecos atemporais de
uma arte “autônoma”.
O grande valor do poema de Dante está, para Ossip Mandelstam, em seu “como”, em
seu modo de apresentação. Comparando a Commedia a uma grande orquestra, o poeta-crítico
russo desconsidera, em sua interpretação, o caminho linear percorrido por Dante em sua
viagem através do inferno, do purgatório e do paraíso e se concentra na micro-estrutura da
obra. Acredita ser tão possante o “mezzo del cammin”, que a leitura acabaria nos afastando da
preocupação ou necessidade de (chegar ao) fim. O telos doutrinador da obra ficaria, então,
relegado a um segundo plano, abaixo de sua construção estética e da reflexão crítica que
suscita.
Em relação à sua proposta de criação de uma obra literária a partir de outra, como a
Commedia, Haroldo de Campos faz uma escolha “estético-criativa” ao selecionar os textos
do passado com que trabalha. Demonstramos que essa escolha diz respeito a obras que
instigam desdobramentos críticos. Propomos, então, que a abordagem a partir da qual Haroldo
constrói os poemas que dialogam com a tradição leva em consideração tanto o critério
estético-criativo quanto o crítico-reflexivo.
32
1.2 Criação via tradução crítica
1.2.1 Tradução criativa
A tradução sempre foi uma atividade muito importante para Haroldo de Campos. Para
ele, traduzir é a melhor maneira de “ler”, entrar em contato com a poiesis do texto. Não
considera a tradução um processo de mera recuperação do texto original, mera transposição
de sentidos de uma língua para a outra. Ao contrário, traduzir, para o poeta, implica criar. Para
diferenciar-se da proposta de tradução conteudística, Haroldo cunha o termo transcriação
12
:
uma tradução criativa.
Quando lidamos com textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua mensagem
conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o leitor e a obra; quando os
significantes e a estrutura da obra deixam de ser meros instrumentos e se tornam por eles
mesmos significativos: nesses casos torna-se ainda mais difícil abarcar toda a riqueza de
significados presente no texto e transpô-la para outra língua. Devido a essa constatação, deve-
se admitir que a tradução é uma tarefa por princípio lacunar.
Diante do impasse e de sentenças taxativas sobre a impossibilidade da tradução de
textos literários, há uma saída possível: a tradução criativa. A idéia, que pode ser entendida
com Roman Jakobson (1896-1982), é a de que um tradutor que lida com textos em que
predomina a função poética da linguagem deve necessariamente se preocupar com os
processos estéticos e estruturais da obra. Ou seja, de acordo com Jakobson, a forma é parte
importante no processo de significação da obra literária, em que impera a função poética. Ora,
a forma, a estrutura, o trabalho com os significantes: isso tudo não faz parte do que é “verbal”
no texto - trata-se do “não-dito”.
33
12
Transcriação é um neologismo cunhado por Haroldo de Campos para nomear um tipo de tradução que
ultrapassa os limites do significado e se propõe a fazer funcionar, em uma outra língua, o próprio processo de
significação original.
Os textos literários, em especial a poesia, não têm como preocupação principal – ao
contrário de textos pragmáticos – a comunicação. Ou seja, a linguagem de uma obra estética
não é um simples veículo de significados, mas – alargando o conceito dos concretos a respeito
de seus poemas – apresenta-se como “um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de
objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas” (CAMPOS, A., PIGNATARI,
D., CAMPOS, H.: 1987, 156) . Por isso, seus elementos configuradores são de extrema
importância para sua existência como objeto artístico. É a forma – mais do que o sentido –
que interessa a Haroldo de Campos em uma tradução. Como traduzir em uma outra língua o
som, os efeitos visuais, os jogos de palavras? Recriando a forma, diz o Haroldo-tradutor. Por
isso, acredita que o melhor tradutor de poesia seja um outro poeta. Tradução, para Haroldo de
Campos, implica criação. A criação ultrapassaria, então, os próprios limites entre o original e
a tradução.
Tudo isso o tradutor tem que transcriar, excedendo os lindes de sua língua, estranhando-lhe o
léxico, recompensando a perda aqui com uma intromissão inventiva acolá, a infratradução
forçada com a hipertradução venturosa, até que o desatine e desapodere aquela última húbris
(culpa luciferina, transgressão semiológica?), que é transformar o original na tradução de sua
tradução (CAMPOS, H., 1998, p. 82).
Assumir a falta e transformá-la em trampolim para a criação é a solução apontada e
adotada por Haroldo de Campos. O "impossível de se dizer" do original se transforma em
espaço para a criação artística. Opondo-se à visão tradicionalista, que colocava o tradutor e
seu texto numa posição secundária e subserviente em relação ao autor e ao original, teóricos
como Walter Benjamin (“A tarefa do tradutor”) e Haroldo de Campos conquistam, para a
tradução, sua autonomia.
1.2.2 Mimesis e tradução
A tradução de uma língua para outra é encarada e praticada por Haroldo de Campos
como transgressão, como um ato decorrente da hybris da criação. E tanto o processo de
tradução entre línguas quanto o poema “pós-utópico” se desenvolvem por meio da mimesis.
34
Repensando a mimesis com Luiz Costa Lima, voltamos nossa atenção mais uma vez
para Kant. Segundo o filósofo alemão, no processo da fruição estética, a imaginação - apenas
passivamente associativa no processo de conhecimento empírico - age espontaneamente em
seu jogo com o entendimento, recriando formas de intuições. Trata-se da “imaginação
produtiva” - ligada à faculdade da apresentação (Darstellung), e não mais à da representação
(Vorstellung) – participando da criação do objeto estético.
Ora, se no juízo de gosto tiver que ser considerada a faculdade da imaginação em sua
liberdade, então ela será tomada primeiro não reprodutivamente, como ela é submetida às leis
de associação, mas como produtiva e espontânea (como autora de formas arbitrárias de
intuições possíveis) (KANT, 2002, p. 86)
O que Kant encontra no processo de recepção estética, Luiz Costa Lima encontra
também no momento da criação. Ao examinar a mimesis, depara-se com um processo que
denomina “representação-efeito”. O objeto a ser “representado” é afetado pelo “efeito” que
provoca no poeta. Na mimesis, a representação-efeito parte de um lançar-se do sujeito em
direção à realidade. O poeta “se lança” em direção a um objeto primeiro e lhe acrescenta
“diferenças”, advindas de sua imaginação produtiva. Aquilo que o poeta acrescenta à
representação está relacionado a um determinado “horizonte de expectativas”, pois se trata da
manifestação de um sujeito social e histórico no processo de criação.
Podemos dizer que a tradução se comporta como a própria mimesis, entendida como
representação-efeito, como um jogo entre semelhanças e diferenças. Haroldo de Campos
reforça essa idéia no ensaio “Transluciferação Mefistofáustica”: “(...) na tradução, mais do
que em nenhuma outra operação literária, se virtualiza a noção de mímese, não como teoria da
cópia ou do reflexo salivar, mas como produção da di-ferença no mesmo” (CAMPOS, H.,
2005, p. 183).
No caso da tradução, o artista já parte de um mimema. O processo de transformação se
inicia a partir de um constructo. O tradutor não lida com uma matéria prima, mas com um
artefato já entumecido pela visão de mundo de um artista de uma outra época.
Na tradução entre duas línguas diferentes, a proposta de Haroldo consiste em violentar
a própria língua do tradutor para que, através da criação da forma, esta consiga presentificar
para o leitor o universo poético e contextual do texto primeiro: “o que está no horizonte do
35
poeta é sempre um modo de trans-historicizar a linguagem da poesia, fazendo da tradução
uma forma elevada de resgate cultural” (BARBOSA, J. A. em CAMPOS, H., 1979, p. 20).
Ou seja, participam da formação do novo texto duas forças que – apesar de muitas
vezes serem consideradas antagônicas – acreditamos complementares: uma histórico-
sociológica e outra estética. Para identificar os recursos estéticos de construção do original,
para fazer escolhas conscientes em relação à tradução do texto, é preciso que o tradutor tenha
um grande conhecimento da visão de mundo da época da obra a ser traduzida. Esse processo
vai além do e volta para o universo do texto primeiro. Recriando a forma em sua língua, o
tradutor tem em mente um telos: proporcionar ao leitor uma experiência estética capaz de,
posteriormente, se desdobrar em sua aproximação com o universo do texto primeiro.
Já na construção de um poema “pós-utópico”, não existe nem uma mínima expectativa
de regresso ao universo contextual do texto de que se parte: a proposta é outra. O que ocorre
nesse processo é uma permanente e vertiginosa articulação entre distanciamento e
aproximação: a transformação da forma engendra também uma modificação do potencial
reflexivo da própria obra. No caso da tradução, a construção da diferença se concretiza no
mesmo; no poema pós-utópico, ela cria o “outro”.
A proposta de uma poesia “pós-utópica” traz consigo a presença da tradução e da
crítica. Haroldo de Campos, concordando com Ezra Pound, sugere que a retomada do passado
se dê por meio de uma tradução-crítica e/ou de uma poesia-crítica.
A poesia “pós-utópica” do presente tem, como poesia da agoridade, um dispositivo crítico
indispensável na operação tradutória. O tradutor, como diz Novalis, “é o poeta do poeta”, o
poeta da poesia. A tradução – vista como prática de leitura reflexiva da tradição – permite
recombinar a pluradildade dos passados possíveis e presentificá-la como diferença, na
unicidade hic et nunc do poema pós-utópico (CAMPOS, H., 1997, p. 269).
Traduzir uma obra do passado em um poema “pós-utópico” diz respeito a recriar o
primeiro poema – ou alguns de seus aspectos – de uma perspectiva que inclui a tematização
de uma nova cosmovisão por meio da transformação da forma, com a possibilidade de
desdobramentso críticos.
Uma escolha a partir de critérios estético-criativos e um impulso de criação
concretizado por meio de uma tradução-crítica. Para além da tradução de seis Cantos do
Paradiso dantesco, esse processo rendeu a Haroldo de Campos a produção de quatro obras
36
que dialogam com a Commedia, ao mesmo tempo que (re)apresentam-na metamorfoseada,
sob a forma de uma poesia-crítica muito articulada com a cosmovisão contemporânea. Nos
próximos capítulos, desenvolveremos as idéias levantadas acima, a fim de corroborá-las por
meio do cotejo entre a obra de Dante Alighieri e os textos criativos de Haroldo de Campos
que dela se alimentam.
2 A COMMEDIA: METAMORFOSES
Um grande clássico da literatura mundial, a Commedia já mereceu estudos dos
melhores e mais importantes críticos literários. Da teologia e filosofia que nela se encontram a
seus elementos históricos e pessoais, da grande arquitetura do projeto ao microcosmo dos
versos, sobre tudo isso muito já se falou em artigos, ensaios, livros e enciclopédias. O
objetivo aqui, particularmente nesse capítulo, é enfocar o modo de construção da Commedia
a partir de traços que, posteriormente, serão desenvolvidos em diálogo com as obras
pertinentes – para o nosso propósito – de Haroldo de Campos.
2.1 Começando o caminho
Uma grande viagem, provavelmente, a maior de todas: a peregrinação pelo mundo do
Além, com a esperança de salvação da alma. Essa é a via traçada por Dante para Dante na
Commedia.
Depois de perder-se “nel mezzo del cammin” de sua vida, sem conseguir, sozinho,
escapar da “selva oscura” em que se encontrava, Dante se depara com seu primeiro guia na
jornada que o levará à salvação. Temos aqui um dado importante que remete o leitor à visão
de mundo cristã medieval: a impossibilidade de alcançar a revelação por si só. Esse
pensamento se opõe à afirmação platônica e neoplatônica de que seria possível ter acesso ao
37
mundo das Idéias pelo intelecto e pela filosofia, auto-confiança celebrada por Plotino e
considerada por Agostinho um “orgulho filosófico”. Agostinho afirma ser imperativa a
necessidade da graça e da ajuda divina para que o homem tenha uma experiência mística.
A “selva oscura”, para muitos exegetas dantescos, significa o limite da filosofia. Estes
se baseiam, principalmente, em Il Convivio (1490), obra inacabada de Dante, em que faz da
Filosofia sua musa, a única capaz de substituir a Beatriz perdida. Podendo ser lida como a
Teologia, ou mesmo como análoga a Cristo na Commedia, Beatriz
13
foi também a paixão
juvenil de Dante, cantada em Vita Nuova (1576). A reprimenda de Beatriz a Dante, no
momento de seu encontro no Canto XXX do Purgatório, se remeteria ao fato do poeta e
amante da filosofia e tê-la trocado “per via non vera” (Purg. XXX, 132), desviando-se, deste
modo, do caminho da Graça.
Durante seu percurso pelo Além, a personagem Dante é sempre mediada por outra. A
necessidade de um guia para que o homem - ainda possuidor de um corpo, carregando nele a
marca da queda de Adão - ascenda a Deus é prenunciada por Agostinho, em suas Confissões
(VII, 10). Um homem ficaria perdido em uma “selva oscura” caso tentasse alcançar os
mistérios através da filosofia, por meio da razão. O poeta materializa a necessidade da ajuda
divina pela inserção de três guias em seu caminho: No Inferno e no Purgatório, conta com a
ajuda de Virgílio – por um lado, seu mestre na poesia; por outro, aquele que teria prenunciado
da vinda de Cristo
14
; no Paraíso, tem Beatriz como guia e, depois, São Bernardo. Os
mediadores o ajudam no caminho até que possa suportar a grande revelação.
Mas esse percurso não é simples. A doutrina cristã exige o caminho mais difícil: a
humildade de reconhecer e encarar os pecados (a descida ao inferno, que remete à katábasis
grega, rito de iniciação para os heróis) para depois purgá-los (a subida à montanha do
purgatório), até estar finalmente preparado para receber a graça da salvação (o acesso ao
paraíso). Dante-personagem passa por todos esses estágios, concretizando os passos da
doutrina nas divisões da Commedia, até ser capaz de, após o encontro com a Trindade, voltar
e escrever o poema.
13
A existência ou não de uma Beatriz real no poema é, como já dissemos, discutida até hoje. Alguns acreditam que a Beatriz
do poema deve ser lida como “a verdade”, “o Amor” ou “a sabedoria”. De qualquer forma, uma Beatriz realmente fez parte
da comunidade florentina na época de Dante. Filha de Folco Portinari, teria nascido em 1266, se casado em 1289 com o
banqueiro Simone de Bardi e morrido um ano depois. Ressaltamos que, segundo Vita Nuova, Dante teve seu primeiro
encontro com ela aos nove anos de idade e ficou profundamente abalado com sua visão. Nove anos depois, um reencontro e,
dessa vez, Beatriz o saúda. Dante se casou, provavelmente em 1285, com Gemma Donati, por meio de uma aliança entre as
famílias.
14
Em sua quarta Égloga, Virgílio anuncia o nascimento de um menino e a chegada de uma nova era. Esse trecho foi
entendido, durante a Idade Média, como uma previsão da vinda de Cristo.
38
O poeta dividiu sua obra em três grandes partes – Inferno, Purgatório e Paraíso – de
acordo com a crença cristã-medieval sobre o mundo pós-morte. Pode-se perceber a presença
da filosofia clássica e da mística medieval, além da teologia cristã, na construção do poema. A
estrutura da Commedia é baseada, principalmente, na filosofia tomista-aristotélica, uma
revisão cristã das idéias aristotélicas desenvolvidas na Ética a Nicômaco
15
.
Seguindo Tomás de Aquino, que declara que o mal não é per se, mas é a ausência de
Amor ou de Deus, Dante configura o Além. O inferno arde no fogo da danação até a sua parte
mais funda, o Cocito, morada de Lúcifer. Nesse local, as chamas se apagam – o Amor se
apaga, não encontramos a presença de Deus. Um frio terrível circunda o maior dos demônios,
incrustado no gelo, preso no centro da Terra, mastigando, com suas três horrendas
mandíbulas, os inimigos da Igreja e de Roma sentenciados por Dante: Judas Iscariote, Bruto e
Cássio. No purgatório, encontramos as chamas da purificação e, no paraíso, o fogo beato do
Amor.
Antes de chegar ao ápice gelado do inferno, toda a crença e a filosofia do poeta já
começam a ser eternizadas em situações e espaços calculados, pecado à pena correspondendo,
como notas perfeitas para a sua sinfonia.
Atravessando o Aqueronte, Dante chega ao limbo, primeiro círculo infernal. Morada
de Virgílio, o limbo é lugar aprazível que o poeta destina a todas as almas virtuosas que, por
não terem sido batizadas, não podem alcançar o paraíso nem participar da graça divina.
Em seguida, o inferno, dividido com base nos pecados, da seguinte maneira:
a) por incontinência: círculos II (luxuriosos), III (gulosos), IV (avaros e pródigos), V
(iracundos e rancorosos), VI (heréticos);
b) por violência e bestialidade: círculo VII: giro 1 (contra o próximo – tiranos e
assaltantes), giro 2 (contra si próprio – suicidas e gastadores), giro 3 (contra Deus –
blasfemos, sodomitas e usurários);
c) por fraude simples: círculo VIII: vala 1 (sedutores-rufiões), vala 2 (aduladores-
lisonjeadores), vala 3 (simoníacos), vala 4 (magos-adivinhos), vala 5 (traficantes), vala 6
(hipócritas), vala 7 (ladrões), vala 8 (maus conselheiros), vala 9 (cismáticos-intrigantes), vala
10 (falsários);
d) por traição: círculo IX: Caina (contra parentes), Antenora (contra pátria), Ptoloméia
(contra hóspedes) e Judeca (contra benfeitores).
39
15
A doutrina aristotélica sobre a ética louva a moderação. Por isso, de modo geral, o excesso e a falta se tornam condenáveis.
O purgatório é formado por um ante-purgatório e por cornijas em torno de uma
montanha – já ao ar livre, em um ambiente em que o poeta e seu guia voltam a “riveder le
stelle inversa à cratera do inferno
16
. Aqui as almas purgam os pecados capitais que
cometeram e dos quais se arrependeram. No ante-purgatório, os arrependidos tardios
aguardam o tempo necessário para que possam começar a purgar seus pecados; subindo a
montanha, encontramos o primeiro giro, dos orgulhosos; o segundo, dos invejosos; o terceiro,
dos iracundos; o quarto, dos preguiçosos; o quinto, dos avaros e pródigos; o sexto, dos
gulosos; o sétimo, dos luxuriosos. No topo, o paraíso terrestre.
Finalmente o paraíso, onde, já em companhia de Beatriz beatificada, Dante recebe os
ensinamentos e as graças que lhe permitirão, no final do poema, ter a visão da Trindade. O
paraíso de Dante é estruturado conforme a cosmologia ptolomaico-aristotélico: em torno da
Terra, imóvel e central, giram “oito céus de estrelas”, na seguinte ordem: Lua, Mercúrio,
Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas fixas. Em seguida, o Céu Cristalino,
responsável pelo movimento dos céus inferiores. Mais acima, vem o Empírio, onde
encontramos a Rosa Mística – ou dos beatos – e nove Círculos Angélicos, que giram em torno
de Deus. No paraíso, as almas são distribuídas segundo suas virtudes, não mais segundo os
pecados, uma vez que estes ou foram inexistentes ou já foram purgados. É esse o cenário da
epopéia dantesca.
Georg Lukács (1885-1971), retomando de Hegel alguns conceitos sobre a épica
homérica, a caracteriza por sua “totalidade fechada”. De acordo com Lukács, o gênero épico
só teria possibilidade de existir em uma sociedade em que a harmonia imperasse sobre as
ações e o pensamento do homem, onde o individuo e o grupo agissem como um só corpo, e
este correspondesse ao transcendente.
O mundo é vasto, e no entanto é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da
mesma essência que as estrelas; distinguem-se eles nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o
fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de toda
luz e de luz veste-se todo fogo (LUKÁCS, 1920, p. 25).
40
16
Segundo Dante, a montanha do purgatório se ergueu após a queda de Lúcifer, que teria aberto uma cratera no meio da
Terra e empurrado a massa de terra para fora. A montanha do purgatório seria, então, proporcionalmente oposta à cratera que
deu origem ao inferno.
A épica se desenvolvia, então, inserida em um mundo em que o transcendente era
imanente à vida, unindo a multiplicidade a uma essência única, tornando a diversidade
irrelevante frente à totalidade em que se inseria.
É através dos mitos que a totalidade da épica era formada. Os mitos promoviam as
soluções para os problemas básicos da vida, esvaziando-a da trivialidade e dando sentido às
questões em geral. Nesse quadro, os problemas não tinham real importância: o “espírito” da
época homérica já continha suas soluções – não como imposições, mas como respostas
previamente aceitas pelas regras interiorizadas nos membros daquela sociedade.
Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o
real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode
perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopéia. (Id., p. 26).
O modelo homogêneo da épica conheceu seu primeiro rompimento com a emergência
da filosofia. É a filosofia grega, com Platão, a responsável por uma significante cisão no
modelo de transcendência imanente da épica homérica. Nesta, deuses e homens ainda
comungavam num mesmo plano de entendimento. Platão afastou a essência da vida, elevando
a primeira ao mundo das idéias e relegando a última ao status de cópia imperfeita. As idéias
platônicas privilegiavam o transcendente em detrimento do sensível. A totalidade - que
imperava até então - apresenta um novo elemento que começa a dissolver a sua imanência,
anunciando sua quebra: o conceito.
A primeira significativa mudança na visão de mundo ocorre através da filosofia e da
separação entre o sensível e o conceitual. Este último afasta o homem das coisas da vida,
inserindo nesta a idéia de falta, de carência.
Contrapondo-se ao mundo homérico, onde a totalidade não permitia o surgimento de
qualquer anseio que não estivesse nela previsto, o homem moderno se depara com a
insatisfação de seus desejos: é impelido pela vida a adiar suas aspirações. Sua satisfação não é
plena no espaço / tempo em que se insere, mas se apresenta sempre como um “devir”. O
próprio homem, segundo Hegel, não se encontra “pronto”, mas ligado a esse “devir” que,
inserido em seu pensamento teleológico, diz respeito a uma ascensão progressiva ao “espírito
absoluto”.
41
Um mundo muito diverso do universo épico, nele o sujeito se individualiza, o Estado
garante a formação de cidadãos e a burguesia se estabelece como uma nova classe social
importante: esse é o palco para o surgimento do romance. O homem não mais ressoa as
aspirações e crenças de seus iguais. Está instaurada a noção de alteridade. O homem é agora
um ser problemático, cujos talentos ou carências se diferenciam em relação aos de sua
espécie.
Lukács classifica a Commedia como uma obra intermediária entre a epopéia e o
romance. A totalidade épica ainda é imanente na Commedia. Os homens ainda estão ligados
a um sentido maior que, além de lhes dar uma direção, os insere em um mundo fechado em
que tanto as glórias quanto as derrotas já estão previamente calculadas e estabilizadas dentro
de uma ordem pré-existente. O mundo das idéias a partir do qual Platão condena a vida à
inferioridade de um reflexo imperfeito, passa a configurar-se também a partir da vida: o Além
de Dante – o Além cristão – tem uma arquitetura em que os homens se inserem segundo sua
conduta terrena. Vemos aparecer uma ordem hierárquica que submete os atos e a conduta dos
homens ao julgamento de Deus. Essa nova ordem mantém unido - ainda que sem a
possibilidade de apagamento das marcas da divisão – o que a filosofia platônica começa a
cindir. Promove assim uma nova ligação entre os homens, capaz de garantir o universo épico.
O mundo permanece cindido, mas a condenação à separação é suplantada pela promessa de
redenção. Essa configuração cristã envolve os homens em uma única e mesma ordem,
sustentada e dirigida pelo “plano de cima”, por Deus.
Existe na Commedia, segundo Lukács, uma “substancialidade dos conceitos”, ou seja,
o conceitual, embora já destacado do sensível, materializa-se na estruturalização da obra, em
sua arquitetura, na ordem hierárquica do sistema montado por Dante. Por isso, ao contrário da
totalidade do romance, conquistada e mantida através de uma regra regulativa, que o insere
dentro de um sistema montado no intuito de construí-la à medida que a obra avança, o que se
apresenta na obra de Dante é uma totalidade constitutiva, próxima à da épica antiga. O que
disso decorre é que a viagem da personagem, assim como na épica homérica, é uma viagem
“sem perigos”, bem guiada. Já no romance, a peregrinação da personagem é “tateante” e sua
totalidade é um objetivo, a ser construído e mantido a cada passo do caminho. O fato de serem
as categorias estruturais da Commedia constitutivas - e não regulativas – possibilita, segundo
Lukács, a presença da epopéia em um mundo cujo momento histórico-filosófico já se
aproxima dos problemas modernos.
42
Por outro lado, já se pode notar na obra de Dante Alighieri uma caracterização
individualizada das personagens que as liga ao mundo sensível e à sua vida cotidiana. Dante
se afasta do “tipo” das epopéias e começa a introduzir o homem como indivíduo com
características próprias, específicas e bem demarcadas. Ao contrário do que acontece no
mundo homérico, percebemos o traço da individualidade nas ações e nos pensamentos dos
homens. Mas essa individualidade está condenada a uma mesma estrutura arquitetônica, a um
mesmo destino: render-se à ordem divina. A liberdade individual é enganadora: as ações dos
homens caminham para um telos.
Tal individualidade, sem dúvida, é encontrada mais nos personagens secundários do que no
herói, e a intensidade dessa tendência aumenta à medida em que se afasta do centro rumo à
periferia; cada unidade parcial conserva sua própria vida lírica, uma categoria que a antiga
epopéia não conheceu nem podia conhecer. Essa unificação dos pressupostos da épica e do
romance e sua síntese em epopéia repousam na estrutura dualista do mundo dantesco: a
disjunção terrena entre vida e sentido é suplantada e superada pela coincidência entre vida e
sentido na transcendência presente e vivida. (Id., p. 69).
Em relação à questão da individualidade das personagens, apontamos para os estudos
de Erich Auerbach (1892-1957) sobre a mimesis na Commedia. Segundo Auerbach,
encontramos nessa obra de Dante uma mimesis altamente realista em relação às personagens,
que se deve à retomada, na poiesis, do processo da “figura”, um tipo de alegoria praticada por
Padres da Igreja da Idade Média como técnica de interpretação. A alegoria hermenêutica, ou
alegoria dos teólogos, ou alegoria figural, considerava determinado signo como figura de
alguma verdade no sentido espiritual, com a ressalva de que, no processo da figura, os dois
pólos têm sempre seu lugar e características históricas determinadas. Lia-se, por exemplo, o
Velho Testamento como figura do Novo Testamento, onde o primeiro se realizaria no
segundo. Identificava-se, desse modo, a saída de Moíses do Egito como a pré-figuração da
ressurreição de Cristo, o sacrifício de Isacc como pré-figuração do sacrifício de Cristo etc.
Colocando sua atenção também na alegoria dos teólogos, muitos críticos e exegetas da
Commedia consideram que Dante teria escrito sua obra prima como uma “figura” do livro de
Deus, uma “outra” Bíblia. Um dado importante a ser frisado é que, nessa forma de
interpretação, os acontecimentos são históricos e têm uma força própria que não se dilui no
processo. Moisés continua sendo Moisés e sua história, relevante, mesmo que seja uma figura
43
da posterior ressurreição de Cristo. O inverso também é verdadeiro. Trata-se, então, de uma
alegoria com realidade histórica e caráter literal.
A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas,
em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o
segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados no tempo,
mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente
da vida histórica. Só a compreensão das duas pessoas ou acontecimentos é um ato espiritual,
mas este ato espiritual lida com acontecimentos concretos, sejam estes passados, presentes ou
futuros, e não com conceitos ou abstrações. (AUERBACH, 1938, p. 46).
As personagens mantêm suas principais características terrenas no mundo do Além e
essas são aí reforçadas. Como se a situação das almas no Outro Mundo fosse a confirmação,
exagerada em pontos relevantes à doutrina cristã, do que foram em vida. Os traços mais
marcantes, aqueles que foram o motivo de sua condenação ou absolvição, são extremados na
vida após a morte, o “preenchimento final” da “figura” humana.
Em seu livro mais famoso, Mimesis, Auerbach destaca uma cena que ilustra
perfeitamente o exposto acima. Trata-se do Canto X do Inferno, em que acontece o encontro
entre Dante, Farinata degli Uberti (um seu opositor político, chefe do partido gibelino) e
Cavalcante di Cavalcanti (pai de Guido Cavalcanti, poeta amigo de Dante). Farinata,
personagem austero, vigoroso e arrogante, convive lado a lado no Inferno com Cavalcanti, de
caráter totalmente diverso do primeiro. Enquanto Farinata pergunta a Dante sobre a política
florentina, seu único interesse, vemos o suplicante Cavalcanti inquirir o poeta sobre seu filho
e, ao desconfiar de sua morte, sucumbir. O primeiro tem o caráter acentuado em sua soberba;
o segundo, em sua fraqueza. Na passagem a seguir, podemos perceber a profunda diferença (o
caráter individual e distinto) entre as duas personagens.
“O Tosco che per la città del foco
vivo ten vai così parlando onesto,
piacciati di restare in questo loco.
La tua loquela ti fa manifesto
di quella nobil patria natio,
a la qual forse fui troppo molesto.”
44
Subitamente questo suono uscio
d’una de l’arche; però m’accostai,
temendo, um poco più al duca mio.
Ed el mi disse: “Volgiti! Che fai?
vedi là Farinata che s’è dritto:
da la cintola in sú tutto ‘l vedrai”.
Io avea già il mio viso nel suo fitto;
ed el s’ergea col petto e con la fronte
com’avesse l’inferno a gran dispitto.
E l’animose man del duca e pronte
mi pinser tra le sepulture a lui,
dicendo: “Le parole tue sien conte”.
Com’io al piè de la sua tomba fui,
guardommi un poco, e poi, quasi sdegnoso,
mi dimandò: “Chi fur li maggior tui?
Io ch’era d’ubidir disideroso,
non gliel celai, ma tutto gliel’ apersi;
ond’ei levò le ciglia un poco in suso;
Poi disse: “Fieramente furo avversi
a me e a miei primi e a mia parte,
si che per due fiate li dispersi.”
“S’ei fur cacciati, ei tornar d’ogni parte”
rispuosi lui, “l’una e l’altra fiata;
ma i vostri non appreser ben quell’arte.”
Allor surse a la vista scoperchiata
un’ombra lungo questa infino al mento:
credo che s’era in ginocchie levata.
Dintorno mi guardò, come talento
avesse di veder s’altri era meco;
e poi che il sospecciar fu tutto spento,
Piangendo disse: “Se per questo cieco
carcere vai per altezza d’ingegno,
45
mio figlio ov’è? Perchè non è ei teco?”
E io a lui: “Da me stesso non vegno:
colui ch’attende là, per qui mi mena,
forse cui Guido vestro ebbe a disdegno.”
Le sue parole e ‘l modo de la pena
m’avean di costui già letto il nome;
però fu la risposta così piena.
Di subito drizzato gridò: “Come
dicesti? elli ebbe? non viv’elli ancora?
non fiere li occhi suoi lo dolce lume?”
Quando s’accorse d’alcuna dimora
ch’io facea dinanzi a la risposta,
supin riccade e più non parve fora
Ma quell’altro magnanimo, a cui posta
restato m’era, non mutò aspetto,
nè mosse collo, nè piegò sua costa;
17
(Inf.: X, 22-75)
Auerbach chama atenção para o fato de que, apesar do evidente lirismo existente em
algumas cenas, da demonstração da subjetividade individual e distinta das personagens, que
permanecem com o mesmo caráter de quando estavam vivos, a arquitetura do poema de Dante
os insere dentro de uma mesma ordem hierárquica. À custa de seus pecados, as personagens
46
17
“Ó toscano que no país do fogo / vivente vais assim falando honesto, / que um pouco aqui detenhas-te eu te rogo. / A tua
fala me torna manifesto / o nobre berço que te concebeu, / ao qual, demais talvez, eu fui molesto.” / Foi esse o som que súbito
interrompeu / de uma tumba, e me fez virar para trás, / temeroso, buscando o Mestre meu. / E ele: “Volta-te! O que hesitar te
faz? / Vê Farinata que se ergueu, direito; / da cintura pra cima já o verás”. / Eu já cruzara o seu olhar: co’o peito / e com a
fronte, reto ele se erguia, / como tivesse o inferno em grão despeito. / Com solícita e presta mão, meu guia / levou-me a ele
entre as tumbas ferais, / sugerindo-me cauta garlhadia. / Quando à sua tumba aproximei-me mais, / olhou-me um pouco e,
quase desdenhoso, / “Quais foram”, perguntou, “teus ancestrais?” / E eu, já de contenta-lo desejoso / não lho escondi, mas
tudo revelei, / o que tornou-o ainda mais cenhoso. / “Tão duros na adversão à minha grei / foram”, disse ele, “ e a mim e aos
meus parentes, / que, por duas vezes, eu os expulsei.” / “Expulsos”, respondi, “mas renitentes / foram, voltando duma e
doutra prova, / e essa arte não tiveram vossas gentes.” / Surgiu da tumba então ua sombra nova / sobre a borda, mostrando-se
até ao mento; / talvez se ajoelhando na sua cova. / Olhou-me à volta, parecendo intento / a achar quem estivesse ali comigo /
e então, lhe sucedendo o desalento, / disse, em pranto: “Se neste desamigo / cárcere vais por primazia de engenho, / por que o
meu filho não está contigo?” / E eu respondi: “Não por mim mesmo eu venho: / aquele que lá está meu rumo ordena, / por
quem, quiçá, evadia o teu Guido empenho”. / Por seu falar, e a espécie de sua pena, sem inquiri-lo eu já o reconhecia, / e isso
minha resposta fez tão plena. / Súbito ereto gritou: “Evadia? / disseste? então não vive? então não mais / o doce lume os
olhos lhe embacia?” / Quando foi percebendo que demais / demorada ficava-lhe a resposta, / caiu supino e não mostrou-se
mais. / A outra grande alma, por cuja proposta / tinha eu ficado, não moveu o peito / e o colo, nem mudou a feição
composta;”. Trad. Ítalo Eugênio Mauro.
são “homogeneizadas” na totalidade épica da Commedia: nesse caso, pertencem ao sexto
círculo infernal, onde, independente de qualquer diferença, ardem os heréticos.
Podemos notar aqui a construção teleológica: cada manifestação individual, por mais
diferente que seja das outras, tem um sentido em relação a um todo, que se projeta para o
futuro. Por essa linha de pensamento, a teleologia contida na obra é o dado fundamental para
que compreendamos o limite da individualidade e da lírica, em uma arquitetura totalizante
como a presente na épica cristã de Dante Alighieri.
Há instantes líricos na Commedia, mas eles são reabsorvidos pela configuração épica.
Dessa forma, segundo Auerbach, não existe o risco da subjetividade, quando as personagens
falam de si, expondo a Dante e Virgílio sua história pessoal. Uma intervenção como a de
Cavalcanti, que explode em lirismo na fala de um pai preocupado com o destino do filho, não
o destaca fundamentalmente do altivo Farinata, pois a vida de todos é guiada e comandada
pelo divino – estão todos inseridos em uma mesma ordem. Interessa chamar atenção para o
fato de que a visão de mundo cristã de Dante é metamorfoseada na arquitetura do poema. O
espaço concreto construído pelo poeta e o modo de apresentação nele das personagens e suas
relações mantêm a união entre os planos do transcendente e do sensível. É a “forma” que se
apresenta como “conteúdo” cristão.
Enfocando um outro lado da questão, ressaltamos a opinião de Auerbach.
E, dentro desta participação imediata e admirada do ser humano, a indestrutibilidade do ser
humano total e histórico e individual, baseada na ordem divina, dirige-se contra a ordem
divina; põe a mesma a seu serviço e a obscurece; a figura do ser humano coloca-se à frente da
figura de Deus. A obra de Dante tornou realidade a essência cristã-figural do homem e a
destruiu na mesma realização; a poderosa moldura rompeu-se pela supremacia dos quadros
que envolvia. (AUERBACH, 1929, p. 175).
Auerbach aponta para uma contradição no processo, uma vez que, sim, o individual é
reabsorvido pela ordem divina, mas, ao mesmo tempo, dela se destaca pela força de sua
construção. Dante consegue transformar “a essência cristã-figural do homem” em
concretização literária, montando uma obra que une a vida terrena a seu destino futuro. Por
outro lado, a excelência de sua arte ressalta a si mesma, o que nos abre duas vias
contrastrantes com a primeira: a) os quadros individuais se tornam tão potentes que disputam
com seu a priori teleológico o interesse do leitor; e b) a “construção do mundo” do poeta, seu
47
poema, disputa com a “construção do mundo” de Deus. Um grande poeta transforma em
poesia uma doutrina e o faz de maneira tão impressionante que se sobressai como arte –
desestabilizando o sistema doutrinário por sua característica de indeterminação. É essa tensão
que desenvolveremos mais adiante.
Uma obra teleológica em que cada parte da micro e da macroestrutura é colocada de
acordo com seu propósito final: ressaltar a doutrina cristã.
O assunto e a doutrina da Commedia não são incidentais: são as próprias raízes da sua beleza
poética. São a força motora por trás do esplendor das metáforas poéticas e da musicalidade
mágica dos versos. São a “forma” da “matéria” do poema; são elas que animam e inflamam a
sublime fantasia do poeta. São elas que conferem à visão seu verdadeiro formato e, com ele, o
poder de nos emocionar e encher de encantamento. (Idem, p. 197).
A doutrina é, então, a causa e a finalidade do poema. Mas é também o poema, sua re-
criação formal. O poema, de tão preciso, bem elaborado e construído, acaba por ir além da
doutrina, impressionando leitores de épocas futuras e de crenças (ou não-crenças) diferentes.
Não se trata de tentar desvencilhar uma coisa da outra. O que torna a obra realmente
grandiosa é, acreditamos, por um lado, a metamorfose da “matéria” em “forma”; por outro, o
paradoxo de que sua construção artística ao mesmo tempo concretiza seu telos e com ele
disputa. Sobre isso, falaremos mais a seguir.
2.2 Memória: a criação do reflexo
Depois de dividir o Outro Mundo em inferno, purgatório e paraíso, Dante começa a
povoá-lo. Quem Dante Alighieri julgará, condenará ou beatificará? As personagens são as
mais diversas: vão desde políticos e religiosos de seu tempo, amigos e inimigos, até seres
mitológicos, filósofos da Antigüidade e heróis de tragédias e epopéias. Ressaltamos apenas
que essa diversidade não é aleatória. Ao contrário: Dante escolhe suas personagens para
colocá-las em cena e, a partir do local e da imagem que para elas destina, questionar e criticar
tanto os indivíduos quanto aquilo que seus atos possam significar dentro de sua visão de
mundo. O poeta concretiza, na construção das personagens e dos locais em que as insere, e
também na relação entre personagens e locais, a ordem escatológica cristã-medieval. Aqui o
48
questionamento do mundo – sob a visão cristã-medieval – se dá pela ação em cena, pela
poiesis, não pela escrita discursiva.
A respeito da disposição e da construção das personagens na Commedia, Harald
Weinrich, em seu livro Lethe, Kunst und Kritik des Vergessens (1997), propõe uma via
interessante. Partindo da ancestral importância cultural de práticas que promoviam a
rememoração dos mortos, o crítico assinala a pertinência de se pensar a obra de Dante a partir
da questão da memória.
Percebemos no poema a preocupação de diversos personagens em serem lembrados no
mundo dos vivos. O purgatório é o local em que essa lembrança apresenta um significado
mais pragmático: as orações feitas pelos vivos podem diminuir o tempo de penitência da
alma, apressando seu ingresso no paraíso. Aqui a memória do poeta é de extrema importância
para aqueles com quem encontra, pois ele pode ser um agente vivo para diminuir as penas. E
aqui a idéia de “agente” e de “vivo” ganha uma relevância específica: no purgatório, local em
que o destino das almas, embora já definido, ainda contém alguma possibilidade de mudança
(a saber, temporal), Dante se configura como o único ser capaz de nele influir. O purgatório é
onde a situação das almas ainda conserva traços de um processo humano, uma vez que a) as
almas não estão fixas para sempre, como no inferno ou no paraíso, em sua “última morada” –
trata-se de um lugar de passagem; e b) seu destino (ainda que somente no que diz respeito ao
tempo de permanência) ainda pode ser modificado. É justamente um homem, um “agente
vivo”, que vai poder ajudar as almas por meio de sua memória, ao pedir a seus parentes,
também vivos, para orarem e intercederem por eles, diminuindo assim a sua pena. O mundo
terreno tem influência no mundo dos mortos no purgatório, o lugar do provisório. E Dante
será aquele capaz de propiciar essa intervenção.
Mas encontramos desejos e pedidos para que Dante impeça o esquecimento das almas,
eternizando-as em seu poema, também no inferno, onde as preces de nada adiantariam em
relação à salvação. Ao contrário das almas do purgatório, o estado daquelas do inferno é
eterno e imutável. Se no purgatório o intuito das almas ao pedirem a Dante para delas se
lembrar, tem um propósito pragmático, voltado para o futuro, no inferno as súplicas não
trarão, de fato, nenhum benefício concreto – seu efeito se volta para o passado (o “passado”
dos mortos, a vida terrena, ainda que em um momento posterior). As almas condenadas não
podem modificar nem seu estado, nem o tempo eterno em que permanecerão no inferno. Têm
seu passado eternamente presente em suas penas, já que estas estão intimamente e, na maioria
das vezes, inversamente, relacionadas a seus pecados. O passado é seu presente, como a
49
lógica da “figura” – processo de construção mais presente no inferno. Um motivo para que o
mundo dos vivos receba dessas almas um interesse e uma importância capaz de provocar um
desejo (serem lembradas) que em nada as afeta concretamente.
Destacamos também a vaidade das almas, que se une ao pavor de um destino que vai
de encontro a toda uma tradição de valorização dos mortos por meio da memória. Em Roma,
os “inimigos públicos” recebiam por castigo e punição terem seus retratos destruídos e as
menções de seu nome apagadas. O medo de serem esquecidos, de se tornarem “não-pessoas”,
é o que movia os condenados ao inferno a pedirem a Dante que os fizesse ser lembrados no
mundo dos vivos.
Para Ciacco Fiorentino, Brunetto Latini e todos os outros infelizes do Inferno, não é
indiferente que sua condenação eterna seja duplicada por uma condenação da memória, que
acrescentará à desolação de seus destinos no Além o horror de serem completamente
esquecidos na Terra. (WEINRICH, 1997, p. 58).
Como Dante justifica, em sua construção poética, o fato de os mortos permanecerem
com a lembrança viva de seu passado, uma vez que no Além virgiliano – assim como em uma
vasta tradição clássica – as almas, já no inferno, bebem ou se banham nas águas do rio Letes e
passam a vagar no mundo do esquecimento? Weinhich destaca, então, a estratégica mudança
que o poeta produz em relação à localização desse rio do “esquecimento”: desloca-o do
inferno para o paraíso terrestre e acrescenta um outro, o Eunoé, capaz de reforçar a “boa
memória”. Desse modo, Dante soluciona um problema formal que adviria da presença do
Letes no inferno, o que impediria a construção de uma obra de conversão baseada na
memória. Assim, os habitantes do inferno, por não beberem das águas do Letes, conservam
intacta sua memória. O mesmo acontece no purgatório. É antes de chegar ao paraíso que as
almas passam pelo Letes. Introduzindo mais um rio, o Eunoé, Dante pôde dar a ambos a
funcionalidade necessária dentro da lógica de seu poema. Assim, a passagem da alma pelo
Letes promove o esquecimento dos pecados já purgados; a entrada no rio Eunoé revifica a
memória de suas boas ações. Após esse duplo movimento, a alma estará pronta para “salire
alle stelle”.
50
Weinrich aponta também para o fato de que, segundo a tradição agostiniana, Deus
representaria a memória; Cristo, a inteligência; e o Espírito Santo, a vontade. O paraíso seria
então o local da memória absoluta e real. Em contraposição, o inferno e o purgatório seriam a
expressão do esquecimento de Deus. Ainda que partes de Sua criação (e, por isso, partes da
memória), os dois locais não são lembrados por Deus. Essa afirmação paradoxal é sustentada
por Agostinho, defendendo ser possível saber que se esqueceu de algo sem, no entanto, se
lembrar o que se esqueceu. Esta é a lógica que constitui o paraíso como o lugar da memória, e
o inferno e o purgatório como os do esquecimento.
Mas existe um local que escapa dessa divisão e, ao mesmo tempo, promove uma outra.
Vemos, então, o pior dos destinos se configurar antes de entrar no inferno, onde, renegados
até por Lúcifer, se encontram aqueles que se mantiveram indecisos, incapazes de escolher o
caminho do Bem ou do Mal. Estes estão condenados a correr sem descanso, picados por
insetos, atrás de uma insígnia – de uma meta, que nunca em vida tiveram. Recusados pelo céu
e desprezados pelo inferno, sua sina é o esquecimento, morno como suas vidas. Ecoando a
punição de permanecerem condenados a não serem lembrados, os versos de Dante não os
nomeiam. Ainda que diga que vê passar um ou outro conhecido, o nome, marca através da
qual é criada a presença do “ser” ou que através de seu apagamento ele deixa de existir, nunca
é pronunciado. Para inserir sua crítica ao papa Celestino V, que, por ter abdicado de seu cargo
poucos meses depois de empossá-lo, deu lugar a seu sucessor e inimigo de Dante, Bonifácio
VIII, o poeta apenas alude ao fato, sem nomear o condenado.
Poscia ch’io v’ebbi alcun riconosciuto,
Vidi e conobbi l’ombra di colui
Che fece per viltade il gran rifiuto.
18
(Inf.: III, 61-63)
Apresentamos, então, o contraponto que reforça o argumento de Weinrich. Aqueles
que não “agiram”, que se negaram a escolher, não serão lembrados. O desprezo de Dante por
esses que não foram capazes de uma escolha na vida ecoa na fala de Virgílio a respeito da não
18
“Alguns reconheci nessa confusa / multidão, e eis que aquele apareceu / que fez por covardia a grã recusa.” Trad. Ítalo
Eugenio Mauro.
51
aceitação dos indecisos no inferno: “ch’alcuna gloria i rei avrebber d’elli
19
. Todos os outros
têm a possibilidade de, por louvação ou recriminação, terem seus nomes eternizados na obra
de Dante.
Em relação às personagens “não-lembradas” por Deus, excetuando-se o caso
apresentado acima, Dante faz então o papel de “homem da memória” (cf. WEINRICH, H.:
1997, 50), que perpetuará a lembrança dessas almas no reino secular. Aqueles que vivem à
parte da memória divina, através do poeta – duplo diferenciado de Deus – encontram seu
lugar na memória terrena. A memória artificial se contrapõe à memória real (Deus) e a
completa, a partir do processo de mnemotécnica utilizado por Dante para a construção de sua
obra.
Em seu ensaio, Weinrich propõe ser a Commedia “um reflexo literário exato da arte
antiga da memória” (WEINRICH, 1997, p. 50). No processo da mnemotécnica, os conteúdos
a serem rememorados são fixados como “imagens” que o orador dispõe em um certo “lugar”,
com o intuito de facilitar o seu propósito. Do mesmo modo, Dante, após construir os
“lugares” já como “imagens” da ordem cristã-medieval do mundo do Além, insere as
personagens nos locais apropriados segundo um critério que faz corresponder o pecado à
pena. Aliado a isso, para cada personagem, o poeta cria uma “imagem” possante, que
funciona como uma metonímia de sua bagagem terrena.
Dante coloca, por exemplo, Bertran de Born, poeta provençal que cantava a guerra, no
inferno. Destina ao trovador a nona vala do Malebolge, a dos fomentadores de discórdias
familiares. Responsável por ter separado pai e filho (Bertran de Born foi o semeador da
discórdia entre Henrique II, rei da Inglaterra, e seu filho, Henrique) tem seu corpo dividido:
“‘l capo tronco tenea per le chiome, pesol con mano a guisa di lanterna”
20
. Weinrich aponta
para o fato de que essa metáfora é, via Tito-Lívio, célebre como modo de referência à
rebelião. Separando o corpo da cabeça do condenado, Dante fixa à memória, através de uma
imagem pertinente e potente, a personagem, seu destino e também o motivo desse destino.
O lugar em que a personagem sente maior dificuldade de reter o que vê em sua
memória é no paraíso, onde a memória real atua plenamente. As duas memórias se
complementam no percurso de Dante: onde a “real” reina, a artificial tem menor potência.
Segundo a graduação inerente à diferença entre Deus e homem, tal como proposta pela
cosmovisão cristã-medieval, é a memória de um e de outro que mantém a ordem do mundo.
19
“que tê-los certa glória aos réus traria”. Trad. Ítalo Eugênio Mauro.
52
20
“Tronca, a cabeça que, pelo cabelo / agarrada, pendia como lanterna” (Inf.: XXVIII, 121-122). Trad. Ítalo Eugenio Mauro.
Ao escrever seu poema, Dante expõe os homens à memória, abrindo um caminho – sempre de
acordo com a visão de mundo cristã-medieval – para a conversão de cada um. Não apenas o
peregrino da memória se lembrará das personagens ao posteriormente escrever seu poema;
também seus leitores associarão as imagens aos locais por ele construídos e, por extensão, não
poderão se esquecer – ainda que não concordem ou se importem com ela – da doutrina que,
como matéria do poema, está em sua forma.
O poeta promove uma configuração de tal modo análoga ao processo da “memória
artificial” dos retóricos que permite ao peregrino, ao voltar para o mundo dos vivos, ser capaz
de se lembrar de todos aqueles com quem se relacionou no Outro Mundo e escrever o poema.
Monta-se assim um círculo que une, na própria forma da obra, o poeta e a personagem Dante
Alighieri. Considerando a afirmação agostiniana acima citada, podemos dizer que esse círculo
se desdobra: Deus, a memória, cria o mundo; Dante, o “homem da memória”, cria o poema.
Desse modo, o reino do Além se fecha mais uma vez como uma construção segura. O
mundo cindido não cria, na Commedia, nenhum problema. Deus é a memória real, que
engloba toda a sua criação – mesmo aquilo que esquece; Dante é a memória artificial, que
funciona como uma “miniatura” do mesmo processo
21
.
Não devemos esquecer de que se trata de uma peregrinação em busca da conversão.
Márcia Schuback ressalta, em seu livro Para ler os medievais, que a conversão, segundo
Agostinho, está intimamente ligada à memória.
O cristão significa aquele que se tornou outro e, assim, resguarda uma relação própria com o
seu já ter sido, com o seu passado. (...) A conversão jamais consiste num acontecimento do
nada, mas num acontecimento estruturado por uma memória. (SCHUBACK, 2000, p. 169).
Não se pode conhecer Deus como um objeto: conhecer Deus é reconhecer-se como
Deus. Ao ter a visão da Trindade, Dante vê seu rosto no Rosto. Da memória de que “é em
Deus”, aliada à memória de seu percurso, faz-se a conversão. A jornada de Dante se configura
como um exemplum da possibilidade de salvação da alma cristã.
Enfocamos a memória dentro da visão de mundo cristã-medieval. Nesse caso, nos
ativemos à ilusão que a obra visa provocar: em última instância, o peregrino aceita os pedidos
das personagens para que as imortalize em sua obra com o propósito de reconstruir, para si e
53
21
“Para Mestre Eckhart e a totalidade do pensamento medieval, a diferença fundamental entre o criador e as criaturas, entre
deus e as coisas é uma diferença de modalidade. deus e as criaturas estão sempre numa unidade radical, a unidade da
criação”. (SHUBACK, 2000, p. 57).
para seus leitores, a memória do reino do Além, com seus castigos, penitências, glorificações
e, mais ainda, sua visão da Trindade. A memória do poeta serve de “exemplo” do caminho da
conversão. E a conversão é a ativação da memória.
Trata-se (...) de descobrir-se como o que já sempre foi “em” deus. A conversão não significa o
encontro de algo estranho, fora de si, mas a descoberta de si mesmo como o já ter sido em
deus sem saber. (SCHUBACK, 2000, p. 170).
Mas a questão da memória se desdobra. Deixemos a ilusão de lado para pensar a
memória da vida e das leituras de Dante como semente para a construção da obra. Nesse caso,
a memória funciona como o ponto de partida para o processo da mimesis. O poeta não
rememora, em seu poema, uma viagem empreendida: ele constrói, partindo de sua memória
pessoal, o mundo do Além.
A Commedia nos permite seguir não apenas a via do peregrino em busca da
conversão, mas também a do poeta. Franco Ferrucci propõe esse último caminho. Por que a
escolha de Virgílio como guia? Uma das possibilidades recorrentes de leitura o aponta como
símbolo da Razão, mas uma Razão “doada” pela Graça. Mas também podemos adicionar um
forte motivo: Virgílio é um poeta épico, o “mestre” de Dante (Inf., I, 85). A “selva oscura
seria então, na leitura de Ferrucci, a dificuldade do poeta de representar o inefável. Mas com a
ajuda de Virgílio, ao mesmo tempo poeta e razão inspirado pela Graça, Dante começa o seu
caminho em direção ao Verbo. Contrapondo-se a toda uma tradição de teologia negativa, que
assume a impossibilidade de se falar sobre a experiência mística, Dante apresenta o mundo do
além a seus leitores. Isso porque realiza a tarefa não como teólogo ou místico, mas como
poeta.
Percebemos então duas vias da memória que se entrelaçam e se repelem na
Commedia: a primeira, de acordo com a lógica cristã da obra, aponta para a rememoração; a
segunda, transgredindo essa lógica, se apresenta como ponto de partida para a criação.
Luiz Costa Lima, em um ensaio ainda inédito, “A questão da memória: um breve
esboço”, desenvolve a reflexão aristotélica sobre memória presente emDe memoria et
reminiscentia”. Nesse texto, Aristóteles distingue memória (mneme) de evocação
(anamnesis), essa última um caminho para a restauração da primeira. O filósofo propõe que a
evocação procura, a partir de um “resto” de imagem guardada pela memória, reconstruir uma
cena passada.
54
Partindo dessa proposta, Costa Lima amplia e desdobra a possibilidade funcional da
evocação e, conseqüentemente, da memória. O teórico se concentra no papel da imaginação
na reflexão do filósofo. Destaca o fato de que a imaginação se mostra presente em seu texto
tanto no processo de evocação quanto naquele da memória, uma vez que ambos exigem a
presença da imagem. A imaginação tem um papel bastante diverso na filosofia de Aristóteles
e nas filosofias modernas.
Para Aristóteles, tanto o conhecimento teórico como a arte se medem pelo padrão da
correspondência com a realidade, concebida como independente dos processos por meio dos
quais é representada. Na teoria, o valor é a verdade como adequação ao que o ser é em si e por
si mesmo. Na arte, o valor principal é a verossimilhança. A imaginação deve operar segundo
esses valores.
Já na terceira crítica de Kant, em que ele desenvolve sua teoria estética, o papel da
imaginação é concebido não mais como meramente reprodutor. Assim como essa faculdade
desenpenha uma função constitutiva da realidade empírica no processo do conhecimento
teórico, no juizo de gosto o papel da imaginação ganha o status de produtor. O jogo livre entre
a imaginação e o entendimento, e a decorrente não formulação de um conceito do objeto,
incita a primeira a produzir alternativas à síntese que a segunda não mais opera. Apesar de
Aristóteles não considerar a imaginação produtiva, Costa Lima encontra, em seu tratado, uma
possibilidade futura de pensá-la como tal. Sem se ater ou deturpar o texto de Aristóteles, o
teórico desenvolve as possibilidades que nele encontra, mas que não poderiam ser concebidas
senão em épocas futuras. Então, a partir da letra do texto de Aristóteles, o teórico vai além
dela, tornando-o ainda mais fecundo para repensar as categorias, caras ao filósofo grego, de
história e de mimesis.
Costa Lima promove o que chama de “torção temporal”. Segundo o autor, a evocação
pode, a partir do “resto” que a memória guardou, se dirigir por dois caminhos temporais: ou
para uma tentativa hipotética de reconstruir o passado, mas a partir de um juízo futuro que se
baseia em “provas” futuras (que seria o caminho do historiador e também aquele privilegiado
por Aristóteles em suas reflexões sobre a memória); ou se lançar para o “futuro”, criando
uma alternativa ao passado memorizado, ou seja, construindo uma nova cena a partir da
memória (esse é o caminho da mimesis). Em ambos os casos, percebemos que a presença da
imaginação se impõe na impossibilidade de reconstituição absoluta de uma cena a partir dos
“restos” retidos na memória. Sem destorcer o texto, mas ousando contra sua própria base, o
teórico encontra possibilidades latentes de reflexão sobre a produtividade da imaginação.
55
A conclusão de Costa Lima é que Aristóteles não explorou todo o campo aberto por
sua análise da evocação. Tratou do papel da evocação na restauração da memória, que
aproximamos aqui do caminho temporal voltado para o passado. Não considera a
possibilidade da outra via, voltada para o futuro, que permite inserir a evocação no processo
de mimesis criativa do poeta. É para a latência dessa possibilidade no texto de Aristóteles que
o teórico chama atenção.
A dupla entrada proposta por Costa Lima nos permite entender com mais precisão a
importância da questão da memória tanto para a elaboração da Commedia quanto para nossa
aproximação à obra. A construção da obra aponta para uma lógica que desdobra o processo de
rememoração, em que consiste a conversão cristã, em reconstituição poética de uma viagem
“real” no passado de Dante. Dentro da “lógica” da obra, a evocação trabalha para a memória
em uma tentativa de reconstituição máxima possível de uma “cena passada”. Mas assim como
o texto de Aristóteles incita a pensar além do que está escrito, também na Commedia deixa
entrever a outra possibilidade da evocação. Pensando a obra a partir de um contexto diferente
e sob o enfoque estético, ressaltamos que o que realmente ocorre, apesar da própria letra do
texto, é a utilização da memória “terrestre” do poeta para construir uma outra cena, uma
“alternativa” ao passado. Por um lado, rememoração do que “foi em Deus”; por outro, hybris,
transgressão, criação.
Levantamos, aqui, um outro ponto em relação à memória e à construção do poema: o
homem histórico Dante Alighieri não se confunde – apesar de assim se configurar na obra –
com a personagem. Logo, mesmo tendo construído uma obra literária que ecoa a arte retórica
da memória e os pensamentos cristãos, o poeta não “relembra”, pois as cenas e personagens
só existem a partir de sua criação. Mas como se desenvolve o processo de criação das
personagens na Commedia? Sem dúvida, a partir da memória de Dante. Ele condena, absolve
e louva personagens da política italiana, da Igreja, poetas, filósofos, amigos e conhecidos. Já
apontamos, acima, como a arquitetura do poema parte de seus conhecimentos a respeito da
doutrina cristã e da filosofia. A escolha e alocação das personagens na obra têm uma estrita
ligação com sua própria vida, seus escritos e suas leituras – ou seja, com sua memória. É uma
evocação que não tenta “reconstituir” uma memória, mas, com a ajuda da imaginação, cria a
partir de seus “restos”. Tanto a memória da poesia de sua juventude, o dolce stil nuovo,
quanto a de sua paixão, de seus amigos e inimigos, políticos ou religiosos, da literatura,
filosofia e teologia se encontram encenadas, numa montagem que a imaginação realiza, pela
56
transformação de “restos”, no cenário do Outro Mundo. O pensamento – e a memória – de
Dante se reconfiguram em forma poética.
Dante Alighieri viveu de 1265 a 1321 em uma Itália não unificada. Nasceu em
Florença e lá viveu até ser impedido, por motivos políticos, de voltar à sua cidade.
Permaneceu no exílio até o dia de sua morte.
Foi ainda em sua juventude que Dante travou amizade com Guido Guinizelli, o
fundador do dolce stil nuovo, movimento literário do qual fez parte, ao lado de Guido
Cavalcanti e Cino da Pistoia. O dolce stil nuovo tem suas fontes na estilizada poesia
provençal, mas assumiu características próprias com a introdução das mudanças propostas por
Guinizelli. Não se cantava mais o amor aristocrático dos cavaleiros provençais, mas um amor
espiritual, místico e subjetivo. A pátria não era mais geográfica, mas era o cor gentile, um
espírito comum e religioso que unia os poetas. O amor e a donna passam a ser mediadores da
sabedoria e da graça divina: somente aqueles que amam detêm a fé e os conhecimentos
elevados. É nesse “espírito” que, entre 1283 e 1293, Dante escreve sua Vita Nuova (1576),
uma série de poemas e comentários em que notamos, pela primeira vez, a presença de Beatriz.
O soneto XV põe em versos o que dissemos acima:
Tanto gentile e tanto onesta pare
La donna mia quand’ella altrui saluta,
ch’ogne lingua deven tremando muta,
e li occhi no l’ardiscon di guardare.
Ella si va, sentendosi laudare,
benignamente d’umiltà vestuta;
e par che sia una cosa venuta
da cielo in terra a miracol mostrare.
Mostrasi si piacente a chi la mira,
che dà per li occhi uma dolcezza al core,
ch’ntender no la può chi no la prova;
e par che de la sua labbia si mova
um spirito soave pien d’amore,
che va dicendo a l’anima: Sospira.
22
(ALIGHIERI, 1576, p. 287).
57
22
“Tanto é gentil e tão honesto é o ar / da minha amada, no saudar contida, / que toda língua treme, emudecida, / e os olhares
não se ousam levantar. / Ela se vai, sentindo-se louvar, / mas da própria modéstia tão vestida / que parece milagre, concebida
/ no céu, para na terra se mostrar. / Tão suave se mostra a quem a admira / que do olho ao peito leva uma doçura / só
compreendida por quem dela prova. / E talvez no seu rosto já se mova / o espírito de amor e de brandura / que vai dizendo ao
coração: Suspira.” Trad. Jorge Wanderley.
E Beatriz volta, na Commedia, justamente como a mediadora que, pela Graça de
Deus, transforma a visão do poeta e lhe propicia o conhecimento mais grandioso: o acesso à
“máquina do mundo”. Dante promove, nessa obra, a concretização de toda a filosofia do cor
gentile, conforme aponta Erich Auerbach.
O homem a quem Beatriz conferiu o mágico dom da sua saudação tinha uma autoridade
interior, uma expansibilidade, que lhe permitia tecer os aspectos mais pessoais da sua vida
num contexto universal; e, com efeito, através do seu destino pessoal, dar nova forma à ordem
universal do mundo, ao grande e sereno drama do cosmos cristão. (...) Em Dante, o ethos do
cor gentile, originalmente uma forma de pensamento obscura, esotérica e irreal, extrapolou os
seus limites, tornando-se concreto e universal. (AUERBACH, 1929, p. 85).
Assim como Beatriz, alguns poetas e amigos de Dante também se encontram no Outro
Mundo, devidamente alocados, sempre segundo o critério de sua fé. No Ante-Purgatório, o
poeta florentino reconhece seu amigo músico Casella, recém desembarcado na praia. Pede-lhe
que cante alguma coisa. Casella, por sua vez, escolhe a canção “Amor che ne la mente mi
ragiona”, que inicia o terceiro tratado de Il Convívio (1490), obra de Dante. No purgatório, o
peregrino se encontra com alguns artistas de seu apreço. Guido Guinizelli (1240-1276),
apresenta-se a Dante no Canto XXVI, que versa sobre o círculo dos luxuriosos arrependidos a
tempo. O poeta florentino se encanta por conversar com aquele que denomina “il padre mio
e louva seus versos. Guinizelli, por sua vez, transfere a honra ao poeta provençal Arnaut
Daniel (1180-1210?), intitulando-o “il miglior fabbro del parlar materno
23
. O respeito e a
admiração de Dante por Arnaut Daniel são tão grandes que, apesar da preocupação de
escrever toda a sua Commedia em italiano, permite que o poeta provençal se expresse em sua
língua materna
24
.
Mesmo ressaltando poetas cuja influência lhe foi importante, e julgando-os
positivamente por suas obras, a palavra final sobre seus lugares na arquitetura da Commedia
se funda na doutrina cristã. Por esse motivo, nem sua imensa admiração por seu mestre
Brunetto Latino (1220-1294) o salva do inferno. O encontro acontece no terceiro giro do
sétimo círculo, onde, sob uma chuva de fogo, são obrigados a caminhar continuamente os
sodomitas.
Na época de Dante, Florença era disputada, no princípio, por dois partidos, derivados
de disputas entre poderosas famílias locais: os guelfos (vindos da baixa nobreza e do clero),
23
“o melhor artífice da língua materna” (Purgatório, XXVI, 140)
58
24
A língua provençal era um dos dialetos da langue d’oc, falada no sul da França e veículo da poesia dos troubadours.
posteriormente divididos em “brancos” (que respeitavam o poder do papa, mas se opunham à
sua interferência política) e “negros” (que defendiam a política papal contra a do imperador),
e os gibelinos (vindos da alta nobreza e do círculo do poder imperial, defendiam o poder
imperial contra a política do papa). Dante era um guelfo branco. Em 1300, participava
ativamente da política de Florença, preparando a resistência às investidas do papa Bonifácio
VIII contra a cidade. Participou, em 1301, de uma delegação enviada a Roma para descobrir
as verdadeiras intenções de Bonifácio. Nunca mais voltou a Florença: Carlos de Valois
invadiu a cidade, com o apoio do papa e dos guelfos negros, e destruiu uma grande parte da
facção branca. Dante, que não se encontrava na cidade, recebeu uma ordem de exílio por dois
anos e uma multa. Recusando-se a pagá-la, seu exílio se tornou vitalício, e a ele acrescentou-
se uma pena de morte, caso retornasse a Florença.
Em 1310, Henrique VII de Luxemburgo invadiu a Itália. Era, para Dante, a
possibilidade de conseguir livrar sua cidade dos guelfos negros e de ver seu país unificado.
É indispensável, portanto, que um único dê ordens, que um único dirija, e que esse chefe seja
chamado Monarca ou Imperador. É, pois, evidente que a boa organização do mundo exige a
existência da Monarquia ou do Império. (ALIGHIERI, 1559, p. 19).
Mas, logo após uma vitória, Henrique morreu, levando com ele as esperanças do
poeta.
A Commedia concentra, em seus alicerces e sua construção, todo o viés crítico e
teórico-filosófico que Dante vinha desenvolvendo em seus escritos. No que concerne à
política italiana, nela encontramos, estrategicamente situadas e encenadas, algumas das idéias
de seu tratado De Monarchia, escrito provavelmente em 1310 e publicado pela primeira vez
em 1559. Em De Monarchia, Dante apresenta sua firme convicção de que a unidade política
deveria ser garantida pelo poder imperial e o poder da Igreja deveria se limitar aos assuntos
espirituais.
Por isso, o homem tem necessidade de um duplo poder diretivo, em vista de seu duplo fim: o
Soberano Pontífice que, à luz da revelação, conduz o gênero humano à vida eterna, e o
Imperador que, à luz das doutrinas filosóficas, conduz o gênero humano à felicidade temporal.
(...) Assim, é evidente que a autoridade temporal do monarca desce sobre ele da fonte
universal da autoridade, sem nenhum intermediário. (Idem, p. 82-83).
59
Na Commedia, presenciamos suas queixas contra as perversões da Igreja,
explicitadas em De Monarchia (“...não pude descobrir para a Igreja a autorização de possuir
ouro ou prata” – Idem, 75), transformadas em situações concretas. Assim políticos e
religiosos de sua época se tornam personagens de seu poema: o papa Nicolau III, enquanto
aguarda seu sucessor Bonifácio VIII, pena no inferno com os simoníacos, atolado em um
buraco, só com as pernas para fora, com fogo ardendo em seus pés, e revela sua culpa por ter
enriquecido às custas de seu cargo. Ao mesmo tempo, no paraíso, Beatriz aponta para um
lugar já reservado, na Rosa Mística, para o imperador Henrique VII, esperança frustrada de
Dante. No purgatório, entre os políticos e religiosos destinados ao inferno e aqueles com lugar
no paraíso, a grande alegoria final: o carro que representa Cristo e a Igreja sendo corrompido
pela águia do Império Romano.
Dante sabia o que estava fazendo. Seu poema é uma construção medida, elaborada,
equacionada para ser capaz de provocar efeitos previamente calculados. Considerando a carta
que o poeta escreveu a Can Grande della Scalla como autêntica, o que é aceito por muitos
comentadores, podemos identificar algumas das expectativas do poeta quanto à recepção de
seu poema e verificar como tentava induzir, pela construção da obra, o efeito provocado.
Na epistola de número XIII, intitulada “Carta a Can Grande”, na qual dedica a Can
Grande della Scalla, seu amigo e protetor durante o exílio em Verona, a parte da Commedia
que denomina Paraíso, o poeta discorre sobre a elaboração da obra, explicitando alguns dos
processos de sua produção. Aponta para a divisão da obra em cantos e, como dedica o
Paraíso a seu protetor, é sobre essa parte que se concentra na carta. Divide o prólogo do
Paraíso em duas partes: a primeira, em que introduz o assunto; e a segunda, em que faz uma
invocação a Apolo para ajudar a personagem a falar sobre um tema “maravilhoso”. Dante
explicita, nessa parte, sua intenção acerca da recepção e ressalta, de acordo com Cícero, que
um bom prólogo é capaz de tornar o leitor bem intencionado, atento e maleável.
Na realidade, o poeta diz que se referirá ao que viu no primeiro céu e ao que pode se recordar.
Nesta frase estão contidas as três coisas: declarando a utilidade do que se dirá se conquista a
benevolência do leitor, declarando o “maravilhoso”, se conquista sua atenção, mostrando a
possibilidade se conquista sua amabilidade. O poeta indica a utilidade de sua obra quando diz
que narrará coisas que constituem o desejo mais forte do homem, isto é, a felicidade do
Paraíso; comprova o “maravilhoso” quando promete falar coisas difíceis e sublimes, isto é, as
condições do reino celeste; mostra a possibilidade quando diz que se referirá ao que pode
recordar.
60
No trecho acima, Dante destaca alguns dos procedimentos utilizados para alcançar
certos efeitos na recepção. Acredita que, demonstrando a “utilidade” do que vai ser dito (ao
apontar que vai falar sobre coisas que constituem o desejo mais forte do homem), conquista a
benevolência do leitor; falando sobre o maravilhoso (isto é, sobre o reino celeste), prende sua
atenção; e, mostrando a possibilidade do que vai fazer (quando diz que discorrerá apenas
sobre o que pode se recordar), conquista sua amabilidade.
A carta confirma algo tão claro na obra que, na verdade, não precisaria de reforço.
Trata-se de uma construção altamente elaborada a partir da consciência do poeta em relação
ao efeito que visa provocar.
O que queremos ressaltar, a princípio, é que Dante, assim como Haroldo de Campos,
pensa teoricamente sobre a composição de sua obra. E, também como o poeta paulista, vai
além: a partir de sua memória, assenta, perpassa e transforma o pensamento crítico, teórico,
político, filosófico e teológico em construção literária, em forma poética, pensando nos efeitos
que deseja provocar em seus leitores. As referências, em enorme teia, são, em sua maioria,
transformadas em personagens e situações de seu próprio texto. Trata-se de um poeta que,
apesar de medievo, trabalha de modo análogo aos poetas-críticos que se firmaram no final do
século XIX e no XX: poetas como Pound, Eliot e Haroldo, que, também por este motivo,
incluem Dante em seu paideuma e dialogam com sua obra. A materialização das referências e
idéias em construção poética sustenta a obra a ponto de, séculos depois, quando muitos dos
valores de sua época não mais vigoram, ser ela ainda capaz de provocar tamanho interesse.
O conteúdo é moldado em forma pelo poeta. O processo da figura, como vimos,
predomina na construção das almas no inferno, atando definitivamente a elas seu passado
terreno, único objeto de suas preocupações. Sem chance de salvação, o passado é seu único
horizonte, em meio a um presente de punições terríveis. Já no purgatório, encontramos uma
grande quantidade de alegorias didáticas em sonhos, visões e “aparições teatrais”. O
purgatório se volta para o futuro. A meta daquelas almas é purgar os erros do passado, apagá-
los nas águas do Letes e ascender ao paraíso. O ambiente é construído, então, a partir de
exemplos de pecados punidos e virtudes enaltecidas.
61
No primeiro círculo da montanha, onde os soberbos purgam seus pecados carregando
pesados blocos de pedra, Dante se depara com três exemplos de humildade esculpidos em
mármore: a cena da Anunciação; Davi dançando em homenagem a Deus em frente à Arca da
Aliança; e o imperador Trajano se prontificando a ajudar uma viúva. O contraste entre os
blocos de pedra em estado bruto, carregados pelos penitentes, e o mármore esculpido mostram
o caminho de trabalho e lapidação da alma que levará os pecadores a, um dia, ascenderem ao
paraíso. Na saída desse círculo, depois de ver os exemplos dos humildes e os soberbos em sua
penitência, Dante se depara com o fechamento da questão: no chão, obrigando o peregrino a
abaixar sua cabeça para “ver”, em uma posição de humildade, cenas de punição de grandes
soberbos estão gravadas.
Encontramos no Purgatório essas alegorias, que diferem da figura, de caráter real e
histórico, e se aproximam mais da técnica greco-latina com conteúdo cristão: uma alegoria
mais abstrata, onde o signo concreto não tem sentido fora do final para o qual remete
25
.
Assim, as cenas que Dante viu no círculo dos soberbos, embora representem situações reais,
não valem por si, mas pelo sentido que deflagram: a “Humildade” louvada ou a “Soberba”
penitenciada.
Ainda em relação a esse tipo de alegoria, só que, desta vez, protagonizada por figuras
simbólicas, podemos destacar, no paraíso terrestre, no Canto XXXII, a cena em que o carro
em que aparece Beatriz, previamente conduzido por um Grifo (a Igreja e Cristo), é
corrompido. Uma águia arremete contra ele e lá espalha suas plumas. Um dragão arranca uma
parte do carro e um gigante e uma prostituta dele tomam conta.
Poscia per indi on’ era pria venuta,
l’aguglia vidi scender giù ne l’arca
del carro e lasciar lei di sé pennuta;
26
(Pur.: XXXII, 124-126)
(...)
Transformato così ‘l dificio santo
mise fuor teste per le parti sue,
tre sovra ‘l temo e una in ciascun canto.
Le prime eran cornute come bue,
ma le quattro un sol corno avean per fronte:
simile mostro visto ancor non fue.
27
25
Auerbach, para desenvolver sua reflexão estética a partir da figura, se baseou na concepção de figura de Tertuliano e
Agostinho, em que o caráter real e histórico dos dois pólos da relação é ressaltado. Já essa forma de alegoria mais abstrata foi
um caminho trilhado por Orígenes.
26
“Depois, de onde chegara, vi surgir / a águia, de novo, agora para a arca / do carro de suas penas recobrir.” Trad. Ítalo
Eugenio Mauro.
62
27
“Surgiram do desfeito carro santo / sobre o timão, três cabeças, e mais / quatro correspondendo a cada canto. / Segura qual
rochedo, uma imodesta / rameira apareceu nele sentada, / seminua, co’a mirada à volta presta.” Idem.
(Idem, 142-149)
Na alegoria destacada acima, o carro é símbolo da Igreja, a águia do Império Romano.
As metáforas que vão compondo a alegoria criam, destróem e transformam os símbolos
presentes na cena. Então, a investida da águia contra o carro é o Império Romano
corrompendo a Igreja, e as plumas são a doação do Imperador Constantino à Igreja. Após o
ataque, o carro passa a simbolizar a besta do Apocalipse e a submissão da Igreja ao rei da
França.
Dante acreditava que a Igreja e o Império eram os grandes guias do povo, a primeira
na vida espiritual, o segundo na terrena. Quando os poderes se confundem, quando a Igreja
passa a ter poder político, nem uma e nem outra instituição cumpre bem o seu papel. Com
essa alegoria, o poeta coloca em um plano mais geral a dissipação que deve ser purgada no
local em que se encontra, o purgatório. Em um lugar transitório, feito para a purgação dos
pecados, nada mais pertinente do que a utilização de alegorias didáticas.
O isomorfismo forma-conteúdo, explicitado, em parte, acima, não se atém apenas à
estrutura arquitetônica da Commedia. Podemos também detectá-la na elaboração das
personagens, das cenas e das ligações entre elas. Também o encontramos – como o fez
brilhantemente Mandelstam em seu ensaio Razgovor o Dante (1965) – nas microestruturas,
conforme mostramos no primeiro capítulo e retomaremos agora na leitura do Canto V do
Inferno.
Conforme o poeta vai passando por um ou por outro local dessa imensa arquitetura,
como um foco de luz, destaca cenas e personagens que confirmam e colocam em movimento
a coerência das divisões de sua obra. E assim, entramos no Canto V.
Io venni in luogo d’ogni luce muto,
che mugghia come fa mar per tempesta
se da contrarii venti è combattuto.
28
(Inf.: V, 28-30)
28
“Vim a um lugar que a toda luz é mudo, / que muge como o mar sob a tormenta / quando o vento ao revés revolve tudo”.
Trad. Augusto de Campos (CAMPOS, A. 2003, p. 203).
63
Logo após o limbo, o segundo círculo infernal, onde a luz, divina, não se deixa
penetrar. Em um terceto, Dante condensa todo o ambiente em que se encontra. A escuridão
impera, tanto no local quanto nas almas que ali permanecem: o lugar é mudo a toda luz. A
escolha das metáforas inusitadas e contrastantes introduz a estranheza do lugar: assim, o local
é “mudo de luz” e, ao mesmo tempo, “muge” como o mar. O barulho constante da ventania e
seu rebuliço se fazem “ouver”
29
nos versos do poeta. O mugido do mar, comparado ao som
do vento, reverbera na aliteração em “m”. As revoluções das massas de ar são envolvidas e
revolvidas pelos “venti”: os lexemas “contrarii” e “combatutto”, de similaridade singular,
separados apenas pela palavra “venti”, de pequena extensão, confundem-se ao olhar mais
ligeiro, provocando um movimento visual no verso. As aliterações duras e ríspidas em “c”, “t”
e as assonâncias em “o” reiteram a força do vento.
Como afirma Mandelstam, as passagens do poema possuem uma potência própria,
construída a partir da configuração extremamente trabalhada de sua microestrutura. Assim,
podemos ler, por exemplo, no Canto V, onde habitam as almas dos luxuriosos – personagens
admiráveis como Semíramis, Cleópatra, Helena, Aquiles, Paris, Tristão e Dido – a
emocionante estória de Paolo e Francesca, amantes assassinados pelo marido traído e
condenados a serem arrastados por um turbilhão de vento. A paixão descontrolada se
transforma em vento eterno, rebuliço de alma a que se condenaram e a que foram condenados.
Vendo as duas personagens tão unidas em seu sofrimento, Dante pede-lhes que contem sua
estória, no que é atendido por Francesca. Destacamos os versos 103 a 105 e 139 a 142.
Amor, che a nullo amato amar perdona,
mi prese del costui piacer sì forte
che, como vedi, ancor non m’abbandona.
30
(Inf.: V, 103-105)
(...)
Mentre che l’uno spirto questo disse,
l’altro piangëa sì che di pietade
io venni me, così com’io morisse;
E caddi come corpo morto cade.
31
(Inf.: V, 139-142)
29
Expressão cunhada pelo poeta e crítico Décio Pignatari.
30
“Amor, que a amado algum amar perdoa, / me fez nele sentir prazer tão forte / que, como vês, ainda me afeiçoa.” (Idem,
209).
64
31
“Enquanto uma alma discorria assim, / a outra chorava tanto que num ai / senti como um morrer dentro de mim: / e caí
como corpo morto cai.” (Id., 211).
No primeiro terceto destacado, Francesca resume sua sina: o amor é a causa tanto de
seu prazer quanto de sua danação. E aqui percebemos mais uma vez a base aristotélica das
idéias desenvolvidas na Ética a Nicômaco: tanto o excesso quanto a falta são condenáveis. O
amor de Paolo e Francesca excedeu os limites do possível dentro da ótica de Deus (e aqui já
encontramos o viés cristão), pois era um amor ilegítimo, fora do contrato de casamento.
Tomemos o primeiro verso: “Amor, che a nullo amato amar perdona”. O excesso está
presente no próprio verso, na proliferação das formas “amor”, “amato” e “amar”. Sua
repetição, além de configurar aquilo que é demais, ainda se faz em três vezes, subordinando o
“amor”, à ordem da Trindade. O amor que condena – e é o princípio também do verso – tem
uma dupla entrada: podemos lê-lo como Deus, referido como o Amor por Dante em diversas
passagens, que não perdoa os amantes que se excedem; ou literalmente, o amor carnal, que,
diferente do amor a Deus, pode ser entendido como o instigador e o causador de tantas
desgraças, na vida ou na literatura. O verso é praticamente uma metonímia da história de
Paolo e Francesca: amor em excesso, sofrimento e punição.
Passemos para o outro terceto destacado. Temos aí a ligação profunda entre as duas
almas, que permanecem unidas em seu sofrimento eterno. Como em um dueto, uma voz
acompanha a outra: a primeira falando, a segunda chorando. A estrutura é musical. E a união
se transforma em versos.
Dante sucumbe. Um apaixonado, que tanto sofreu por sua Beatriz – se pensarmos,
literalmente, em Vita Nuova – e depois se “desvirtuou”, não resiste à história dos amantes,
que reverbera em sua alma. E em seu corpo. Aqui entra o último verso do Canto: “E caddi
come corpo morto cade”. Afetado pelo destino do casal, Dante desmaia. O amor e o
sofrimento dos amantes foram demais – um excesso – também para o poeta-peregrino. Se
compararmos esse último verso com aquele analisado acima, podemos notar que a repetição
do lexema “amor” nas formas “amado” e “amar” ecoa, invertido, na perda – ou falta, para
contraposta ao excesso – dos sentidos de Dante e na ressonância das palavras do verso que a
ela se refere: “caddi”, “come”, “corpo”, “cade”. Aquele que, por um certo tempo, desviou-se
de Beatriz (o amor puro de sua infância ou o Amor que o levaria a Deus) e viveu o pecado da
luxúria (ou se esqueceu da doutrina cristã) desmaia com a estória. E o verso que se apresenta,
nesse momento, contém, também, uma repetição sonora bem marcada: o tombo e o eco oco
da queda na aliteração em “c” e em “d” e na assonância em “a”, “o” e “e”.
65
Do micro ao macro, Dante revela uma coerência impressionante, que reafirma sua
enorme capacidade de dar forma poética às suas idéias. O que mais impressiona é uma
transformação de seus motivos em apresentação, em cenas, alegorias, figuras, sons, luzes,
movimento, cores e formas. É esse caminho que procuraremos seguir.
Em termos da construção arquitetônica da obra, notamos que Dante concebe, no Outro
Mundo, caminhos que se entrelaçam, teias que se cruzam e se multiplicam, como uma
reconfiguração da própria vida na terra, mas em seu grau – e (não)tempo – último. Essa
diversidade ressalta, ao mesmo tempo, as personagens e suas vidas singulares, fazendo ver
que são engrenagens do caminho que percorre. Tanto cada personagem quanto suas
possibilidades de conexão são explicitamente inseridas e constituídas nas, e a partir das,
divisões do cenário, onde o poeta sedimenta e torna esculturalmente visível a doutrina que,
segundo sua crença, unifica a multiplicidade das situações e determina as escolhas
individuais. A configuração da estrutura do poema é o modo de apresentação das idéias do
poeta.
Assim como Haroldo de Campos, Dante, além de usar como matéria seu próprio
tempo histórico, também trava um diálogo com a tradição e com seus próprios textos poéticos
ou de cunho filosófico. O que, na época de Haroldo, configura um contraste com os
movimentos de vanguardas anteriores pode ser também detectado na poesia de Dante. A
memória de uma tradição não é apenas incorporada, mas transcriada com os “olhos do
presente”. Com essa mesma proposta de apropriação da tradição, Homero já é retomado por
Virgílio na Eneida, a partir da tentativa de criação mítica e heróica do povo italiano;
incorporada a épica de Virgílio, Dante a transforma e aproveita o que lhe interessa dentro do
universo do cristianismo e da política italiana, bases éticas e morais da Commedia. Todo esse
caminho, como veremos no próximo capítulo, é retomado por Haroldo de Campos e
apresentado em muitas de suas obras, de diversas maneiras, também a partir da cosmovisão de
“seu” presente.
Com os olhos de quem já leu Eliot, Pound e Haroldo de Campos, vemos em Dante
traços do fazer poético contemporâneo. Embora o processo intertextual se configure de
maneira diversa na Commedia e nos poemas de Haroldo de Campos (assim como nos
poemas dos outros autores citados), sua presença imprescindível para a confecção das obras
de ambas as partes é uma prova da extrema atualidade do texto de Dante.
Com seu poema, Dante nos convida, por certo, ao caminho da conversão. Mas qual o
interesse atual – e, mais especificamentente, o de Haroldo de Campos na semântica da
conversão? A questão aponta novamente para as duas entradas entrecruzada da Commedia:
66
por um lado, um poema de seu tempo; por outro, em conexão com o futuro. O poema de
Dante, ao mesmo tempo em que se con/forma com sua ordem cristã-medieval, permite-se dela
escapar. Atribuímos isso ao enorme potencial de efeitos estéticos da Commedia, que abriu
possibilidades na época ainda insuspeitadas.
O interesse contemporâneo pela Commedia, mais especificamente o de Haroldo de
Campos, se refere ao seu potencial estético. Este, por ser provocado pela configuração
material e concreta do poema e por seu grau de indeterminação, permanece funcional mesmo
quando a “ideologia” do poema não encontra mais eco. É pensando por essa via que é
pertinente ressaltar uma possibilidade de leitura da Commedia que caminha, latente,
imbricada no grande tema da viagem ao mundo dos mortos. Esse percurso diz respeito a um
viés metalingüístico na Commedia, que pode ser lido na obra e, malgré l´oeuvre, transcriado
por Haroldo, para uma leitura que dela destoa, destacando a imaginação e a criação-hybris.
A memória não tenta reconstituir hipoteticamente o passado, a memória terrena de
Dante é a base que deflagra o processo da mimesis e dá lugar à criação. Em sua visão de
mundo, esse processo seria uma verdadeira hybris, uma vez que se trata não de rememorar a
criação de Deus segundo a “medida” do homem, mas de criar per se o pretenso mundo do
Além. Os restos da memória terrena são recriados a partir de uma evocação que trabalha com
a imaginação produtiva. A proposta não é tentar reconstituir a memória, mas criar o novo.
Aí se pode ver a hybris do poeta. Transformar o que seria uma epifania mística em
experiência estética significa também abrir caminhos para o desconhecido, incitar
possibilidades latentes, entregar-se na mão do “outro”, agora o leitor. Em um universo
estético, a doutrina, por mais que presente, não está segura. A Semântica em formas estéticas
trabalha paradoxalmente a favor e contra si mesma. É neste paradoxo que o texto se agiganta.
2.3 Apresentando o Paraíso
67
Embora a personagem esteja in loco, presenciando o absoluto no paraíso, ela preserva
seu corpo mortal, o que a limita em relação à experiência do divino e a relaciona às
possibilidades de seus leitores. A limitação de Dante, um homem encarnado no reino do
Além, corresponde, então, a uma graduação de apreensão que parte do menor para o maior
grau de dificuldade. As imagens do Inferno são bem concretas, assim como os pecados são
velhos conhecidos do homem; no Purgatório, as cenas da caminhada se intercalam com
sonhos e visões imaginativas de cunho didático, intermediando entre o Inferno e o Paraíso,
mas permanecendo ainda dentro dos limites humanos; o último estágio é aquele que mais se
afasta da possibilidade de compreensão. O lugar em que o poeta sente maior dificuldade de
reter o que vê em sua memória é no paraíso – onde a memória real atua plenamente.
2.3.1 Além da representação: a voz do silêncio
Dante pretende, depois de voltar de sua experiência, ser capaz de deixar para seus
futuros leitores una favilla da glória de Deus. Mas por que só uma “centelha”, apesar de ter
merecido – e de lhe ter sido ofertada – a possibilidade da revelação? John Freccero abre o
caminho que começaremos a trilhar.
The presence of a body on this journey of the mind marks Dante’s poetic originality, and is
the first intimation of an allegorical language different from that found in the innumerable
dream-visions of the Middle Ages. Further, it is a significant reminder of the fact that we are
moving with the poet in this life, and that any contemplative venture will be hampered by a
body which does not respond unhesitatingly to the prodding of a mind bent on the absolute.
32
(FRECCERO, 1986, p. 33-34).
A presença do corpo do peregrino o limita a seu modo humano de cognição. Dante
precisa se preparar para a “visão”. Todo um jogo com o “olhar” pode ser lido no percurso da
obra, transformando o peregrino-pecador em convertido.
Barrados na entrada da cidade de nome Dite, onde habitam os pecadores mais cruéis e
onde a escuridão e as punições são ainda maiores, Dante e Virgílio se deparam com a
32
“A presença de um corpo nessa jornada da mente marca a originalidade da poética de Dante, e é o primeiro traço de uma
linguagem alegórica diferente daquela encontrada nas inúmeras visões da Idade Média. Além disso, é uma lembrança
significativa do fato de que estamos andando com o poeta nesta vida e que qualquer visão contemplativa será enredada por
um corpo que não responde sem hesitação à incitação de uma mente inclinada ao absoluto.”
68
mitológica Medusa
33
. Imediatamente o guia protege os olhos do peregrino. A esses versos,
segue uma advertência do autor a seus leitores.
“Volgiti ‘n dietro e tien lo viso chiuso;
ché se ‘l Gorgón si mostra e tu ‘l vedessi,
nulla sarebbe di tornar mai suso.”
Così disse ‘l maestro; ed elli stessi
mi volse, e non si tenne a le mie mani,
che con le sue ancor non mi chiudessi.
O voi ch’avete li ‘ntelletti sani,
mirate la dottrina che s’asconde
sotto ‘l velame de li versi strani.
34
(Inf.: IX, 55-63)
A interferência do autor, induzindo o leitor a “olhar” (mirate) para a doutrina que se
esconde nos versos, se correlaciona, inversamente, à passagem anterior, quando Dante fecha
os olhos para Medusa. O olhar da personagem que recusa é o foco a que o poeta impele o
leitor a olhar. A pausa, a advertência à doutrina, ressoa na construção do poema. O olhar que
se fecha no livro “abre” aquele que está fora dele.
Em Dante, the Poetics of Conversion, John Freccero nos apresenta um belíssimo
ensaio sobre esse Canto. Partiremos dele para, depois, dar continuidade a nosso caminho. O
crítico norte-americano aponta para o fato de que o olhar do monstro só tem efeito nos
homens, sendo inofensivo às mulheres. Isso nos remete às acusações feitas por Beatriz a
Dante em seu primeiro encontro no paraíso terrestre.
Alcun tempo il sostenni col mio volto:
mostrando li occhi giovanetti a lui,
meco il menava in dritta parte vòlto.
Sì tosto come in su la soglia fui
di mia seconda etade e mutai vita,
questi si tolse a me, e diessi altrui.
Quando di carne a spirto era salita,
e belleza e virtù cresciuta m’era,
fui’io alui men cara e men gradita;
33
A mais famosa das Górgonas, Medusa (me-idousa, incapaz de ver) era um monstro com belas feições femininas, mas com
serpentes no lugar de cabelos. Aquele que olhasse para seus olhos era transformado em pedra.
34
“Volta-te!”, ele avisou, “e olho fechado! / se a Górgona colher o teu olhar / já estará o teu retorno cancelado.” /
E ele mesmo agarrou-me e fez virar, / e os meus olhos, pra amparos mais cuidosos, / com suas mãos sobre as
minhas fez tampar. / Ó intelectos sadios e judiciosos, / entendei a doutrina disfarçada / sob o velame dos versos curiosos!”.
Trad. Ítalo Eugenio Mauro.
69
E volse i passi suoi per via non vera,
imagini di ben seguendo false,
che nulla promession rendono intera.
35
(Pur.: XXX, 121-132)
Podemos então contrapor o olhar de Beatriz ao de Medusa. A primeira, paixão de
infância de Dante, foi, após sua morte, por ele esquecida. Em sua reprimenda, Beatriz explica
que, ao contrário, o amor inocente de Dante deveria ter aumentado, porque, em espírito, se
tornara ainda mais virtuosa e, consequentemente, mais próxima de Deus (que é Amor,
segundo a teologia católica e na Commedia). Aqui é cobrado o desvio a que Dante alude logo
no começo do poema, quando se vê perdido na selva oscura. E podemos ler esse desvio não
apenas como um afastamento de Beatriz, mas também como um afastamento da doutrina
cristã. Se, em algum momento, como diz Beatriz, Dante se desviou de seu olhar e se perdeu
do caminho, agora, como diz Virgílio diante de Medusa, Dante se perderia para sempre caso
se entregasse ao olhar “do desvio”, a que opomos o de Beatriz. Ele se transformaria em pedra.
E permaneceria no inferno eternamente.
Freccero relaciona o efeito que provoca o olhar de Medusa – transformar o homem em
pedra – à Donna Pietra, mulher
36
eternizada por Dante em suas Rime Petrose, ciclo de
quatro canções singulares escritas logo após Vita Nuova, onde exalta seu amor por Beatriz.
Os versos são ásperos e as imagens brutais.
Così nel mio parlar voglio esser aspro
Com’è ne li atti questa bella petra,
La quale ognora impetra
37
(Rime Petrose, XLVI, 1).
35
“Algum tempo o sustive com meu rosto, / quando, ao volver-lhe o jovem meu olhar, / comigo o tinha no bom rumo posto. /
Mas, logo que, chegando ao limiar / já da segunda idade, mudei vida, / de mim furtou-se pra a outrem se dar. / Quando de
carne pra espírito erguida, / e em beleza e virtude fui alçada, / menos lhe fui procurada e querida; / e os seus passos volveu
por via errada, / seguindo falsas imagens do bem/ que nunca cumprem a promessa dada.” Trad. Ítalo Eugenio Mauro.
36
Se era ou não uma mulher o objeto dessas canções, não é possível ter certeza. Haroldo de Campos, em seu ensaio
“Petrografia Dantesca” (CAMPOS, H., 1998, p. 19), assinala que existem também suposições de que seria uma alegoria da
Igreja corrompida, de Florença, da Sabedoria ou mesmo de Maria (chamada pietra por São Bernardo), embora, para ele e
para a crítica moderna, essa questão seja irrelevante perante a riqueza com que Dante promove a isomorfia da forma e do
conteúdo nas canções.
37
“Quisera meu Canto ser tão áspero / como é nos atos esta bela pedra, / que a toda hora impetra / maior dureza e essência
ainda mais crua” Trad. Haroldo de Campos (CAMPOS, H., 1998, p. 55).
70
Haroldo de Campos salienta o fato de Dante utilizar muitas das soluções formais
introduzidas pelas Rime Petrose na Commedia, principalmente no Inferno. E ressalta uma
fala de Beatriz no paraíso terrestre.
Ma perch’io veggio te nello ‘ntelletto
fatto di pietra, ed impetrato, tinto,
sì che t’abbaglia il lume del mio detto
38
(Pur., XXXIII, 73-75).
Recriminado o poeta por sua atitude de outrora, Beatriz recorre à mesma imagem que
encontramos nas canções do ciclo de pedra. O que Dante deveria ter evitado é o
empedramento de seu intelecto, o desvio da doutrina cristã, o olhar da Medusa , que retorna
no inferno como provação.
Nas Rime Petrose, o amor cortês de Vita Nuova dá lugar a um amor sensual e
agressivo, que às vezes arranha o sado-masoquismo.
e non sarei pietoso né cortese,
anzi farei com’orso quando scherza;
e se Amor me ne sferza,
io mi vendicherei di più di mille.
39
(R.P., XLVI, 70-73)
E a mulher-pedra transforma o poeta em pedra: “Saranne quello ch’è d’un uom di
marmo, / se in pargoletta fia per core un marmo (Idem, XLIII, 72-73)
40
. Este, por sua vez,
de acordo com a leitura de Haroldo de Campos, a transforma em poema-pedra, via
isomorfismo de forma e conteúdo.
No Canto da Medusa, o poeta precisa querer fechar os olhos. Quando a Górgona
aparece, o que nos remete à Donna Pietra, o poeta tem uma segunda chance de escolher não
sucumbir e, desse modo, salvar-se. E o guia o ajuda mais uma vez.
38
“Mas porque eu te observo, empedernido, / feito de pedra no intelecto, escuro, / tal que te ofusca a luz deste meu dito”
(Idem, p. 21)
39
“e não serei piedoso nem cortês / no meu brinquedo de urso; e que se afoite / Amor, e que me açoite, / mil
golpes lhe reservo eu afinal.” (Id., 59)
40
“O que mais pode ser? Homem de mármore, / que se fiou num coração de mármore” (Id., 35).
71
Mais além, quando repreendido por Beatriz, as ninfas do paraíso terrestre intercedem a
favor do poeta, pedindo à beata para tirar o véu (que podemos relacionar novamente ao
conselho que Dante poeta-personagem – aquele que já atravessou todo o caminho e escreve o
poema – dá para os leitores no Canto da Medusa).
Volgi, Beatrice, volgi li occhi santi”,
era la sua canzone, “al tuo fedele
che, per vederti, ha mossi passi tanti!
41
(Pur, XXXI, 133-135)
Aqui os olhos são santos opondo, mais uma vez, Beatriz à Medusa ou o Amor à
luxúria, ou ainda a doutrina cristã ao pecado. Temos o momento de inversão. Dante, em sua
chance de voltar à diritta via, concedida pela Graça, consegue desta vez resistir ao avesso de
Beatriz (a Donna Pietra, Medusa, desvio do Amor, da doutrina cristã), purga seus pecados no
purgatório e, no paraíso terrestre, entra em contato com o olhar santo de Beatriz. Daqui em
diante, seu “olhar” está novamente dirigido para o Amor, para Deus. No paraíso, o que vemos
já ultrapassa o possível jogo de contrastes simbolizado por duas mulheres. Esse caminho
termina no paraíso terrestre, em um percurso, de certa forma invertido, da estória de Adão e
Eva. Desta vez, uma mulher resgata o homem da queda, encenando o espírito do dolce stil
nuovo. No paraíso, Dante já está purificado. O que temos agora é uma gradual preparação do
olhar da personagem para, com sua condição de mortal, ser capaz de ver o que ultrapassa suas
possibilidades.
O olhar é, no paraíso, o principal acesso a Deus.
Lì si vedrà ciò che tenem per fede,
non dimostrato, ma fia per sé noto
a guisa del ver primo che l’uom crede.
42
(Par.: II, 43-45)
Quinci si può veder come si fonda
l’esser beato ne l’atto che vede,
non in quel ch’ama, che poscia seconda;
43
41
“Volve, Beatriz, volve teus olhos santos / a quem”, dizia a canção, “tanto te preza, / que, por te ver, moveu já
passos tantos”. Trad. Ítalo Eugenio Mauro.
42
“Veremos lá o que aqui temos, por fé, / não demonstrado, mas por si sabido, / como a simples verdade que se
crê”. Trad. Ítalo Eugenio Mauro.
72
(Par.: XXVIII, 109-111)
O olhar humano de Dante não comporta, conforme vai subindo as esferas do paraíso,
as visões que se apresentam. Por isso, passo a passo e por meio da Graça, seu olhar é apurado.
Aos poucos, a visão de Beatriz vai ficando mais encantadora e mais difícil de suportar, pois
resplende, cada vez mais à medida que ambos avançam, a visão do próprio Amor.
S’io ti fiammeggio nel caldo d’amore
Di là dal modo che ‘n terra si vede,
Sí che del viso tuoi vinco il valore,
Non ti maravigliar; che cio procede
Da perfetto veder che, come apprende,
Cosí nel bene appreso move il piede.
44
(Par.: V, 1-12)
Depois de entrar no Empíreo, a capacidade de visão de Dante terá de passar por uma
metamorfose radical. O olhar de Beatriz, que o sustentou e mediou gradualmente do amor
terreno ao divino, não é mais funcional no ponto em que estão. No Empíreo Dante entrará em
contato direto com a lógica divina – tão diferente da sua, humana. São Bernardo intercede
junto à Virgem para que o olhar do peregrino possa ver a Trindade.
Or questi, che da l’infima lacuna
de l’universo infin qui ha vedute
le vite spiritali ad una ad una,
supplica a te, per grazia, di virtute
tanto, che possa com li occhi levarsi
più alto verso l’ultima salute.
E io, che mai per mio veder no arsi
piú ch’i’ fo per lo suo, tutti miei prieghi
ti porgo, e priego che non sieno scarsi,
perché tu ogne nube li disleghi
di sua mortalità co’ prieghi tuoi,
43
“Daí verás que a ventura se funda / no ato de ver, isto é, na conhecença, / e não no amor, que só após a
secunda”. Idem.
44
“Se a ti eu flamejo, na força do amor, / além do modo que na terra vê-se, / tão que dos olhos teus venço o
valor, / não te surpreendas, pois isso acontece / da perfeita visão que, como apreende, / faz pro apreendido bem
que inda se apresse.”. Id.
73
sì che ‘l sommo piacer li si dispieghi .
45
(Par.: XXXIII, 22-33)
O último degrau da visão de Dante é, justamente, o contato com a Trindade. Enquanto
olha, sua visão vai se revigorando e, como prenunciou Beatriz nos versos destacados do Canto
V do Paraíso, a visão apreende e transforma o apreendido.
ma per la vista che s’avvalorava
in me guardando, una sola parvenza,
mutandom’io, a me si travagliava.
46
(Par.: XXXIII, 112-114)
Foi necessário um processo longo de transformação da “visão” de Dante para que os
limites do poeta se alargassem a ponto de poder presenciar Deus. É por meio da Graça que a
personagem consegue se aproximar da visão do paraíso. A visão da Trindade lhe foi possível
porque, enquanto experimentava a visão, sua capacidade de ver aumentava.
Se as almas do inferno são voltadas para o passado e as do purgatório para o futuro, no
paraíso reina o presente absoluto. No paraíso impera a simultaneidade. Um ser de corpo
encarnado apreende a partir das categorias de tempo e espaço, categorias inoperantes no
paraíso. Além do aumento gradual de sua capacidade de ver, de acordo com Beatriz, foi
preciso que Deus re-configurasse o paraíso, que ultrapassa a capacidade humana de
entendimento, para que a personagem portadora de seu corpo mortal fosse capaz de ver e
entender sua doutrina.
Qui si mostraro, non perché sortita
sia questa spera lor, ma per far segno
de la celestial c’ha men salita.
Così parlar conviensi al vostro ingegno,
45
“Este, que desde a ínfima laguna / do universo a subir tem contemplado / quantos de vida espíritos reúna, /
roga-te agora a graça de exaltado / na virtude dos olhos poder tanto, / que ao ver supremo aspire onde é sediado.
/ E eu, que nesse ver pus tudo quanto / tinha de ardor, de novo ardo e peço / a ti por ele igual e tanto quanto. / O
véu mortal que o obnubila, espesso, / dissipes com teu rogo, e assim disposto / ao júbilo supremo tenha acesso.”.
(CAMPOS, H., 1998, p. 151). Trad. Haroldo de Campos.
46
“mas era a vista que revigorava / no contemplar, e uma só aparência / mudando a mim, como se
transmudava.”. (Idem, p. 157).
74
però che solo da sensato apprende
ciò que fa poscia d’intelletto degno.
47
(Par.: IV, 37-42)
Para Dante, a experiência do divino é possível, mas, como ainda preserva seu corpo
encarnado, sua apreensão é limitada aos sentidos e à razão. Por esse motivo, encontramos na
fala de Beatriz a explicação de um absoluto dividido em partes configuradas de modo a
facilitar o entendimento humano. Trata-se de uma performance da presença do absoluto, o
qual, em todo o seu esplendor, não pode ser experimentado por um corpo encarnado. Por isso
foi necessária sua re-configuração pela Graça de Deus. Entremeando a doutrina, Deus é
apresentado pelo poeta como um artista onipotente, um metteur en scène
48
, que povoa o
paraíso de luzes, música e dança. Podemos dizer então que o contato entre Dante e Deus foi
possível e se realizou tanto pela Graça como pela arte. E assim como o que Dante vê se
apresenta adequado à sua condição humana pela Graça de Deus, ou do Artista, o poeta
também configura seus versos de modo que seus leitores possam, neles, ser capazes de ver o
paraíso.
Entramos agora na questão do poeta: como transmitir tal experiência a seus leitores?
O Além que Dante nos apresenta tem como fonte primeira para a sua construção os
pressupostos católicos e o pensamento dos teólogos, influenciado pelos pensadores antigos e
pelos árabes, a literatura e a filosofia da Antigüidade e da Idade Média, além da política
italiana de sua época e da própria vida do autor. É a partir do efeito que a memória dessa
conjunção de fatores provoca no poeta que a produção da Commedia é possível.
Nos dois primeiros mundos, o poeta lida com matérias primas conhecidas e a
construção do poema é mais concreta: os pecados, base do inferno e do purgatório, são mais
facilmente configuráveis do que as virtudes. Existem referências mais compreensíveis pelo
homem que deflagram o processo da mimesis. A partir delas, Dante cria seu poema. No
paraíso de Dante, a dificuldade de uma mimesis literária se agiganta. A questão é colocada
pela personagem-poeta.
47
“Mostram-se aqui não porque só admitida / seja-lhes esta esfera, mas pra acento / à beatitude sua menos erguida: / fala-se
assim ao vosso entendimento / que só através dos sentidos apreende / e após transfere ao intelecto atento.” Trad. Ítalo
Eugenio Mauro.
48
O termo metteur en scène aponta para uma estética própria do diretor, que o aproxima do autor ou o define como.
75
O somma luce che tanto ti levi
da’ concetti mortalli , a la mia mente
ripresta um poco di quel che parevi,
e f ala língua mia tanto possente,
ch’uma favilla sol della tua gloria
Possa lasciare a la futura gente;
che, per tornare alquanto a mia memoria
e per sonare um poco in questi versi
più si conceperà di tua vittoria
49
(Par.: XXXIII, 67-75)
O que se verifica, na própria concepção do paraíso, é a dificuldade de representação do
absoluto. Representá-lo e descrevê-lo em palavras, mesmo partindo de concepções católicas e
da mística medieval tão conhecidas pelo poeta, é uma tarefa que ultrapassa as possibilidades
humanas – ou que corre o risco de se tornar extremamente redutora em sua concretização.
Apesar de toda a preparação de seu “olhar”, o peregrino não consegue sustentar por
muito tempo a visão da Trindade:
ma non eran da ciò le proprie penne:
se non che la mia mente fu percossa
da um fulgore in che sua voglia venne.
50
(Par.: XXXIII, 139-141)
Chegamos, então, à dificuldade aludida pelo poeta: como transformar em versos
aquilo que escapa à sua capacidade humana de experienciar? Quando as faculdades falham,
“queimam”, se debilitam frente ao imenso, como representá-lo? Como escrever (sobre?)
aquilo que não se consegue abarcar? Entrando no jogo do poeta, destacamos que um homem
encarnado, que presencia a própria “máquina do mundo”, “l’amor che move il sole e l’altre
stelle”, seria, como diz a personagem, incapaz de representá-la por palavras: transumanar
significar per verba non si poria” (Canto I, 70-72). Por isso, Dante, logo no primeiro Canto
(22-27) do Paraíso, pede ao deus Apolo que o ajude na tarefa.
49
“Ó suma luz, que medir não se atreve / o conceito mortal, à minha mente / empresta do que vi, ainda que breve, / um nada;
a língua então me faz potente / que uma centelha ao menos de tua glória / há de deixar para a futura gente; / pois rediviva um
quanto na memória / e repassando o som deste meu verso / melhor divulgará tua vitória.” (CAMPOS, H, 1998, p. 153-155).
50
“ao vôo do querer faltava-me asa: / a mente então de súbito saciada / transluminou-se num fulgor de brasa.” Trad. Haroldo
de Campos. (CAMPOS, H., 1998, p. 159).
76
O divina virtù, se mi ti presti
tanto che l’ombra del beato regno
segnata nel mio capo io manifesti,
venir vedra’mi al tuo diletto legno,
e coronarmi allor di quelle foglie
che la matera e tu mi farai degno.
51
(Par.: I, 22-27).
Dante entra no paraíso e tenta, em seus Cantos, mostrar a seus leitores o que do divino
sua memória (humana e limitada) conseguiu reter. O poeta implora à “suma luz” que lhe
conceda o poder de transformar uma “centelha” do que presencia em versos, para que possa
aproximar a Sua Glória de seus leitores futuros. A grande questão é: como representar o
paraíso? Como representar a morada de Deus?
É pertinente aqui o ensaio de John Freccero a respeito da transformação de Dante-
peregrino, que começa a jornada, em Dante-poeta, capaz de produzir o poema. Freccero
encontra uma dupla entrada no caminho de Dante: trata-se da via do pecador e do peregrino,
dois sendo um – o primeiro alcança a conversão de sua alma, o segundo converte-se em poeta
e, sua jornada, em poesia: At the end of the poem, the dramatic convergence of pilgrim and poet is
matched by the conceptual convergence of humanity and the divine
52
(FRECCERO, 1986, p. 27).
É interessante pensar a questão pela dupla via que abre Freccero. O impulso de Dante
para escrever o poema não parte de uma hybris, se considerarmos a visão de mundo em que o
poema se inscreve. Mesmo que o poeta, para conseguir cumprir sua tarefa, aja como o próprio
Deus, re-configurando o que viu e o apresentando em uma outra forma a seus leitores, ele o
faz dentro de seus limites humanos – enquanto poeta-personagem. O outro lado da questão,
esse sim, aponta para uma hybris: o poeta-homem histórico Dante Alighieri, cria, per se e a
partir de sua memória (lembranças de suas leituras e de sua vida), um novo mundo.
É preciso, então, desdobrar o “poeta” de que fala Freccero. Trata-se de uma tensão não
entre o convertido e o poeta-personagem, pois eles se completam, mas sim entre o poeta-
personagem convertido e o poeta real, que, para escrever, precisa não ser uma “parte de Deus”
capaz também de rememorar, “representar” cenas, mas tomar o lugar de Criador. O risco da
51
“Ó divina virtude, em minha mente / o beato reino assinou seu desenho / qual sombra, e se me dás que o represente / verás
que chego a teu dileto lenho, / a coroar-me ali das folhas caras, / que o tema é nobre e me elevas o engenho.” (CAMPOS, H.,
1998,p. 87).
77
52
“No fim do poema, a convergência dramática do peregrino e do poeta se conforma com a convergência conceitual do
humano e do divino”.
heresia aí o cerca, pois a criação poética pode sempre ser vista como hybris, ainda mais
quando pretende se comportar como epifania.
Epifania e experiência estética podem ser relacionadas a partir de um quiasmo.
Enquanto a primeira provoca uma suspensão do real em prol de um preenchimento divino, a
segunda leva à suspensão do real para a criação de um “vazio semântico”. No primeiro caso,
temos um excesso de semântica, no segundo, uma escassez.
Mas o início do processo é o mesmo tanto em uma quanto em outra experiência. É um
movimento de “suspensão”. No texto, essa “suspensão” é provocada pela experiência estética,
quando chama a atenção para a sua configuração sintática. Esse deslocamento permite ao
leitor, a partir de uma configuração formal entumecida de “discurso”, entrar em contato com
uma “lógica” da obra. Como essa “lógica” é produto, no caso da Commedia, da re-criação
formal, artística e estética de uma “semântica” católico-medieval, a “visão” do leitor se
vincula à necessidade epifânica da obra.
Surge então a tentativa de transformar o paraíso em uma configuração estética com
uma finalidade específica: aproximá-lo de uma experiência epifânica. O que aponta
novamente para a dupla entrada da Commedia: por um lado, um poema “ideológico”; por
outro, um poema de grande potencial estético. O interesse contemporâneo, mais
especificamente de Haroldo de Campos, pela Commedia, como já apontamos, se refere a seu
potencial estético. Por isso podemos, por exemplo, colocar entre parêntesis a epifania mística
e pensar o paraíso como experiência estética, a partir de Kant.
Em termos kantianos, ou seja, partindo de uma visão anacrônica mais condizente com
nosso modo contemporâneo de pensar os processos de representação e do efeito estético, o
paraíso dantesco promove tanto a experiência do belo quanto a do sublime. Enquanto sua
visão é facilitada pela Graça, seja pela reconfiguração do paraíso, seja pelo aumento de sua
capacidade de experienciá-lo, o sublime cristão permanece dentro das possibilidades humanas
e aproxima-se do belo kantiano; por outro lado, algo sempre escapa à personagem,
aproximando sua experiência da idéia do sublime kantiano. É no “interditado” às nossas
capacidades que o sublime cristão se aproxima de seu viés contemporâneo.
Só para relembrar o que já vimos no primeiro capítulo, no juízo do belo, Kant encontra
o jogo livre entre o entendimento e a imaginação. Uma vez que se trata de um juízo de
reflexão e não determinante, as duas faculdades permaneceriam em cooperação. Sem que o
jogo se estanque pela formulação de um conceito determinado, ele gera “conceitos
indeterminados”. Vimos que Luiz Costa Lima compara esse processo da experiência estética a
uma momentânea suspensão da semântica, em que o fruidor se atém, por instantes, enquanto o
78
entendimento e a imaginação estão em jogo, gerando conceitos indeterminados, à sintaxe da
obra, ou seja, entra em um contato mais íntimo e sensível com a sua configuração.
Na Terceira Crítica, ao falar sobre o sublime, experiência estética que, assim como o
belo, está ligada ao juízo de gosto, Kant se refere a um colapso do entendimento, da razão e
da imaginação, decorrente de uma insuficiência dessa última faculdade diante do “imenso”
em tamanho ou quantidade. Enquanto o belo apraz pela qualidade, o sublime paralisa por seu
excesso.
Por isso, também é incompatível com atrativos, e enquanto o ânimo não é simplesmente
atraído pelo objeto, mas alternadamente também sempre de novo repelido por ele, a
complacência no sublime contém não tanto prazer positivo, quanto muito mais admiração ou
respeito, isto é, merece ser chamada de prazer negativo. (KANT, 1790, p. 90).
Encontramos aqui a idéia de negatividade. O prazer é negativo porque desestabiliza ao
extremo nossas faculdades. A reconfiguração do paraíso por Deus, a fim de que a
personagem, limitada por seu corpo vivo e suas faculdades humanas, consiga experimentar a
epifania, aponta mais para a experiência kantiana do belo do que para a do sublime. Porque
Deus reconfigurou o paraíso, Dante pode tanto ter a “visão” quanto apresentá-la em seus
versos. No caso do sublime cristão, sua apreensão é, a princípio, possível porque considera os
limites do homem e não comporta a idéia de plenitude. A apreensão do sublime cristão,
mesmo que possível, considera também os limites humanos. É um quase-lugar.
O quase-lugar, caracterizado como um advérbio, define-se, formalmente, como um lugar
junto a, um lugar perto de. Junto ou perto não é, contudo, uma posição espacial, mas um
modo. O quase-lugar, que é junto e perto de deus, define-se como o modo ou circunstância em
que se é. Não é tampouco qualquer modo, e sim o modo mais pleno possível, o modo mais
integral possível. Não é qualquer circunstância possível, mas aquela em que a alma realiza-se
o mais inteiramente possível. Quando se diz “o mais possível” não se diz a plenitude, pois
para o medieval essa só deus possui. Diz-se o máximo dentro do próprio limite. É uma quase
plenitude, uma quase inteireza porque é o tanto de plenitude que, em seu limite, a alma pode
alcançar. (SCHUBACK, 2000, p. 68).
A apreensão do sublime é concebível, mas somente do “modo mais pleno possível”.
Ou seja: a experiência do sublime cristão se afinaria mais com a experiência do belo do que
com a do sublime kantiano. Em seu limite, a experiência do sublime cristão é considerada
79
completa – o sublime efetivamente se realiza em uma quase-plenitude e permanece dentro do
limite do humano, o que o aproxima do belo kantiano. Não se concebe, em uma visão de
mundo cristã, a possibilidade de se alcançar mais do que aquilo que a Graça permite, por isso
não se pode pensar em um “colapso” das faculdades. Já no sublime kantiano, o colapso das
faculdades pressuporia uma hybris, uma tentativa de ir além das medidas humanas.
Se o fulgor do sentimento do sublime kantiano é apaziguado pelo do belo, em uma
configuração que se pretende apreensível por uma personagem que carrega os limites de seu
corpo humano, mesmo assim ele não deixa de se fazer presente em diversos momentos da
obra. Destacamos os desmaios de Dante, seus olhos ardendo perante a visão do sol ou do
brilho das almas, o fulgor que se apossa da personagem ao contemplar a Trindade, para
ressaltar uma tentativa de inserir também em sua obra uma “centelha” daquilo que ultrapassa
suas possibilidades humanas. A negatividade do sublime kantiano se insere na obra para
demarcar os limites da experiência do sublime cristão.
A estrutura montada incita a experiência estética – do belo ou do sublime – quando
conquista a atenção do leitor. O contato com o “epifânico” pode ser, então, induzido pela
momentânea suspensão de semântica provocada por uma experiência estética “dirigida” para
a epifania mistica. Colocamos a palavra “dirigida” entre aspas porque, em uma experiência
estética, está implícito, uma construção com ao menos alguns pontos de sombra, dúbios ou
“vazios” que poderão se definir somente no ato de recepção. Por isso, uma obra estética é
capaz de escapar da intenção do autor e de rebelar-se contra o Pai – hybris do poeta, hybris do
texto, hybris do leitor.
Virgílio e as musas, evocadas no inferno e no purgatório, já indicam que o caminho de
Dante para apresentar o mundo do Além é a poesia. No paraíso, Dante pede auxílio a Apolo,
deus das artes e da poesia, identificado também, na Idade Média, com Cristo. De um lado,
como já vimos, temos a Memória, ao mesmo tempo mãe das Musas e símbolo do Deus
cristão; de outro, Apolo, pai das musas, deus da poesia e símbolo de Cristo, a Encarnação do
Verbo. O reino da Memória, de Deus, é apresentado por Dante “na” poesia, com a ajuda de
Apolo – a possibilidade de encarnação / concretização de Deus em Cristo ou do inefável na
Poesia.
Acreditamos que, menos pelas palavras e mais pela configuração construída, o poeta
consegue o que os teólogos e místicos não conseguiam – exteriorizar a epifania, “encarnar o
Verbo”. Já nos referimos à rede de referências atribuída a Apolo: Cristo, a Encarnação, a
Poesia. Podemos notar que a idéia de Cristo como Deus encarnado se relaciona com a
80
tentativa do poeta de “encarnar” a experiência mística na poesia, ou seja, transformá-la em
sensível, em experiência estética. Da forma pura que é Deus para a forma estética. Dessa
maneira, a criação do poeta se insere na lógica interna do poema, esquivando-se da hybris, ao
mesmo tempo em que abre uma possibilidade além, referindo essa lógica a uma poética do
“futuro”. E aqui Dante encontra novamente Haroldo de Campos, quando faz de seu poema,
um “poema concreto” – uma encarnação da memória.
Apesar do sucesso em incitar o epifânico via experiência estética, é no paraíso, com
todo o seu conteúdo teológico, que Dante mais se aproxima de uma arte “moderna”, altamente
formal e, de modo geral, laica. Dois universos tão distantes e diferentes encontram um ponto
em que tangenciam: o efeito estético, o salto para o vazio que uma obra “concreta” pode
promover.
A necessidade de uma poesia com grande potencial estético se torna imperiosa no
Paraíso. Como “per verba” não consegue exprimir o que vê e sente, o poeta-personagem re-
configura, em uma linguagem extremamente potencializada, a sombra que sua memória
consegue reter – ou o poeta histórico, ciente de que sua personagem seria incapaz de abarcar a
totalidade do paraíso, constrói essa parte do poema de modo que a dificuldade de sua
personagem se metamorfoseie em forma, para que o leitor também possa experimentá-lo.
É por meio de recursos poíeticos que Dante vai aos poucos mostrando a seus leitores,
enquanto cumpre sua tarefa, a dificuldade de representar a terceira parte de sua viagem. É
também por eles que consegue realizar seu trabalho. Como representar um mundo cujas
imagens são “anti-imagens”? (Cf. FRECCERO, 1986, p. 212).
Uma das técnicas a que recorre Dante é a utilização de símbolos. O símbolo, nessa
época, não tinha sido ainda destacado da alegoria, o que só aconteceu no Romantismo. Por
que, apesar de serem empregados também nas outras duas partes da Commedia,
consideramos os símbolos especificamente mais importantes no Paraíso? Por sua
imediaticidade, que permite insights sobre aquilo que não comporta muito discurso.
O símbolo (...) é uma espécie de paradigma ou classe da qual ele é o único elemento. Por isso,
sua significação é sempre imediata: em sua particularidade, ele contém ou expressa o geral.
(HANSEN, 1986, p. 6).
81
Assim, os espíritos formam símbolos por todo o percurso de Dante pelo paraíso:
vemos a águia do Império, a cruz de Cristo, a imagem da Rosa formada pelos beatos. E, para
apresentar a Trindade, Dante elegeu o círculo triplo. Aqui o símbolo do círculo, já
interiorizado como forma perfeita, acentua o caráter mágico e epifânico do encontro.
Nella profonda e chiara sussistenza
dell’alto lume parvermi tre giri
di tre colori e d’una contenenza;
e l’un dall’altro com’iri da iri
parea reflesso, e ‘l terzo parea foco
che quinci e quindi igualmente si spiri.
53
(Par.: XXXIII, 115-118)
O símbolo se apresenta então como uma das soluções para a concretização de uma
imagem imediata de algo por demais abstrato. Nesse caso específico, a imediaticidade do
símbolo aproxima o leitor da experiência epifânica da personagem. Uma alegoria figural não
seria possível, uma vez que não existe uma referência real e histórica de Deus; uma alegoria
mais abstrata tiraria a força do encontro epifânico através dos jogos que impelem ao
pensamento. O símbolo funciona bem nesse caso.
Jogos de palavras, criações sonoras, visuais e cinéticas são mais alguns dos recursos
poiéticos utilizados por Dante para apresentar, em poesia, o que resiste à representação.
Nossa leitura do Canto V do Inferno é um exemplo de como o poeta é cuidadoso com a
montagem micro-estrutural de sua obra, promovendo uma isomorfia capaz de incitar a
experiência estética. Esse recurso é utilizado vastamente na Commedia, conforme veremos
quando nos debruçarmos sobre as traduções de Haroldo de Campos de seis Cantos do Paraíso
dantesco.
Chamando a atenção para o neologismo joyceano verbivocovisual, aproveitado pelos
poetas concretos, Haroldo de Campos deixa ver a sincronicidade da escrita de Dante com a
arte de vanguarda do séc. XX.
82
53
“Na clara, na profunda subsistência / da alta luz, três giros vi, três cores / conclusas numa só circunferência. /
Íris a íris, mútuos resplendores / de dois se refletiam, e o terceiro, / um fogo a espiralar dos dois fulgores.”. Trad.
Haroldo de Campos (CAMPOS, H., 1998, p. 157-159).
(...) trabalhando no nível do significante, é capaz, a cada momento, de “verbi-voco-visualizar”
de maneira inovadora o que seria, em princípio, “antivisual”, não “ preensível”. (...) Onde é
preciso um vocábulo para curto-circuitar a idéia ou em posição de rima, tudo pode acontecer:
nasce um verbo de um advérbio de tempo (imsemprarsi, de sempre, PAR. X, 148); de um
pronome pessoal ou possessivo (inluiarsi, intuarsi, inmiarsi, respectivamente de lui, te/tuo,
me/mio, PAR. IX, 73, 81); de um locativo (insusarsi, de suso –PAR. XVII, 13; indovarsi, de
dove, PAR. XXXIII, 138) (...) Aliterações e paronomásias estendem a orquestração da rima
(...); dispersões anagramáticas, finalmente, decompõem e recompõem certas palavras-chave:
p.ex.,Amor(e), no verso 145, é pré constituído por ROtA E MOssA em posições salientes no
verso 144. (CAMPOS, H., 1998, p. 81).
Entre o universo cristão de Dante e o distante horizonte de expectativas de Haroldo de
Campos, de que trataremos no próximo capítulo, percebemos o brilho de uma ponte
translúcida: uma poiesis que promove a irrupção do estético.
Quando a referência externa, por algum motivo, é diluída (no caso do paraíso, sua
matéria precisa ser diáfana e intangível para que se coloque acima de nosso poder de
compreensão), a representação também se reduz e, na apresentação do poema, uma outra
referência é criada. Se Dante aproximasse demais o paraíso do entendimento ou da razão
humana, não conseguiria, com ele, provocar o efeito da epifania. Se o paraíso foi
reconfigurado por Deus para que Dante o compreendesse, ele agora é construído pelo poeta de
modo que seus leitores possam também experienciá-lo. A construção do paraíso supõe uma
poiesis que modifique ao máximo a estrutura “do mundo”. As referências, os “restos” da
memória, não são apenas o ponto de partida da evocação para uma reconstituição aproximada
de uma cena nem se estancam na construção de uma alternativa “futura”. Apontamos para um
processo distinto, no caso do paraíso de Dante: a “alternativa futura” muitas vezes contém
uma configuração tal que a distancia de uma “lógica mundana” e a aproxima do que se
entende, no horizonte de expectativas dantesco, como uma “lógica transcendente”. Provoca,
assim, a “impressão” de contato com (alg)o Além. As referências primeiras são, desse modo,
re-criadas em outras formas e passam a funcionar como referências próprias à nova lógica do
poema, uma “lógica do transcendente”.
Não é só a partir do pensamento que Dante quer que entremos no paraíso, mas também
pelo sensível. O contato direto com a forma, ainda que sensível, é o duplo de Deus, a forma
pura. Só assim o leitor tem a possibilidade de se aproximar do paraíso de Dante e de ver, com
ele, seu rosto no Rosto.
As estruturas formais da Commedia são inúmeras. O poeta constrói uma nova
configuração do Paraíso no “não-dito” de seu texto. É na concretização do efeito (provocado
83
pelo “não-dito”) que, com a ajuda do leitor, o paraíso desabrocha. O poeta é impelido a uma
re-configuração extrema que se afasta cada vez mais da representação (Vorstellung) e se
aproxima ao máximo da apresentação (Darstellung) de um novo “mundo”, que se materializa
nas palavras e em suas relações. Dante promove o isomorfismo nas palavras e nas construções
dos versos. O poeta transforma o relato em sons, formas e movimento de palavras em seus
versos, proporcionando ao leitor uma experiência sensível do que está lendo. O processo de
construção da microestrutura da Commedia já foi, como dissemos, largamente estudado no
ensaio de Mandelstam. Falamos a respeito e discutimos exemplos tanto no primeiro capítulo
quanto no item anterior. A Darstellung, ou a apresentação na elaboração dos versos perpassa
toda a Commedia, não apenas o Paraíso. O que ressaltamos aqui é que esse processo obtém
um grau muito elevado de potencial estético, o que é extremamente pertinente para o
propósito de Dante de aproximar o leitor de uma espécie de epifania. No inferno, é suficiente
para o poeta evocar a ajuda das Musas. Chegando ao reino supremo, ele deve apelar para
Apolo, o deus da poesia, já que a dificuldade de conduzir o leitor a esse espaço etéreo por
meio da construção poética se torna incomparavelmente maior.
Dante alude, em seus versos, à dificuldade da representação do que viu no paraíso.
Desse mesmo problema, ainda que fora de um contexto místico, mas à luz de uma possível
leitura de Kant, advêm algumas teorias modernas e contemporâneas sobre a impossibilidade
da mimesis diante de uma obra abstrata, como podem ser classificadas várias partes do
Paraíso. É exatamente como um “poema abstrato” que Haroldo de Campos se refere ao
Paradiso dantesco.
Deste ângulo, para mim, o Paradiso pode ser visto como um verdadeiro poema abstrato. Um
poema em que aqueles “sujets d’immagination pure et complexe ou intelect”, que moveram
também o último Mallarmé, o do Coup de Dés, estavam de certo modo tematizados com
antecipação de vários séculos. (CAMPOS, 1998, p. 74)
“Objetos da pura imaginação”, diz Haroldo de Campos, citando Mallarmé. Será
mesmo? Luiz Costa Lima, contra a maioria dos pensadores contemporâneos, recusa a idéia da
inexistência, a priori, da mimesis na arte abstrata e na própria obra de Mallarmé (Cf. COSTA
LIMA, 1980 e 2000).
Considerando a teoria de Costa Lima da mimesis como representação-efeito, ou seja,
como representação que tendencialmente conduz à apresentação, entendemos, com o autor,
que muitas vezes o que é considerado amimético deveria ser repensado a partir de possíveis
84
graduações dentro da mimesis. Dante não viu o Paraíso, mas tem, a partir da doutrina cristã,
uma idéia de alguns possíveis efeitos que sua visão teria sobre o homem mortal. Além disso, o
ponto de partida de Dante são suas fontes: a organização do céu ptolomaico-aristotélico, os
ensinamentos da mística medieval e a doutrina católica. Mesmo que a apresentação e a
configuração do Paraíso de Dante se destaque, em sua concretização, de suas referências
externas (em seu limite, inalcançáveis), não concordamos com a idéia de que seja amimético.
O horizonte de expectativas do autor, o espaço geográfico, místico e cultural que impulsionou
o poeta à construção do Paraíso, é conhecido também por seus leitores, em maior ou menor
grau. A mimesis, nesse caso, se desloca do objeto, que não existe no sensível, mas atravessa o
horizonte de expectativa do poeta para se concretizar no poema. Se há comunicação, então
existe mimesis. Se fosse produto da pura imaginação do autor, sem nenhum traço de mimesis,
as leituras seriam desvinculadas da própria obra, o que acarretaria interpretações muito
díspares do Paraíso – o que não acontece, uma vez que existe, de certa forma, um relativo
consenso nas leituras propostas pelos críticos.
Obviamente, nesse caso, não se trata da mimesis clássica, onde a semelhança impera,
quase absoluta. Nem tampouco de um processo mais simples de representação-efeito, que
ainda se vincule, de uma maneira mais ou menos explícita, à sua referência externa. Estamos
falando do que Luiz Costa Lima classificou como “mimesis da produção”, um processo em
que o efeito produzido pela imaginação se agiganta e prepondera sobre a representação. Esta
não cessa de existir, mas existe em um grau muito menor, apenas como uma referência ao
ponto de partida, seu horizonte de expectativas, e metamorfoseada no próprio poema. Nesse
caso, o poema produz sua própria referência, transformando-a em linguagem e em “modo de
apresentação”: “o diferencial da mimesis da produção está na transformação das referências
com que a obra é recebida em referências que nela mesma se constituem, transformação
portanto efetuada pela própria linguagem, ajudada pela memória do leitor que a atualiza.”
(COSTA LIMA, 2000, p. 321).
Neste sentido, o jogo de luz, som, cor e movimento em que se transforma o paraíso é a
tentativa da produção da própria epifania, configurada em versos por meio de uma suspensão
semântica anterior, provocada pela experiência estética. Uma outra lógica é criada, em que a
intensidade e vibração da luz das almas refletem mais ou menos o Amor Divino; a música e o
silêncio modulam a experiência do peregrino e a dança produz o movimento das
apresentações das almas. A combinação dos elementos visuais, sonoros e cinéticos produz
uma nova configuração lógica que é explicitada, simultaneamente à sua construção, por
85
explicações doutrinais de Beatriz ou dos beatos. Cabe ao leitor detectá-la e experienciá-la
esteticamente para que haja a comunicação, para que haja mimesis (da produção).
A correspondência a uma cena primeira, que se cumpre na mimesis, não supõe os limites da
natureza ou a reprodução, ainda que estilizada, de uma figuratividade conhecida. Supõe, sim,
a possibilidade de sentido a constituir, a partir de um horizonte cultural de expectativas. É este
que funciona como cena primeira; o sentido que a partir dele se configura se comprova pelo
efeito que provoca, o qual não se há de confundir com o efeito induzido por um teste
projetivo. Sentido – efetivação de uma expectativa cultural – e efeito (do sentido) formam
pois o arco e a correspondência indispensáveis para a atualização da mimesis. (Idem, p. 223).
Desse modo, é o horizonte de expectativas cristão, explicado pelas próprias almas, a
referência que proporciona ao leitor a possibilidade de corresponder a uma configuração
“outra”, que apesar de confundida com o abstrato, comunica.
O estético sobressai no Paraíso a ponto de nos fazer, leitores “modernos”, por vezes
esquecer o contexto em que a obra se insere. Daí podermos ver o branco sobre branco de
Maliévitch
54
no Canto III, 15:
tornan d’i nostri visi le postille
debili sí, che perla in bianca fronte
non vien men forte a le nostre pupille;
55
(Par.: III, 13-15)
A pérola no branco, o branco sobre branco, não exprime o inimaginável, mas nos
coloca frente a ele, cegos de luz. Vivenciamos, na experiência estética, a falha dos sentidos,
da razão e da imaginação diante do intangível. Voltando à visão de mundo medieval-cristã,
Dante se vale do efeito estético para provocar – naqueles que a isso se predispõem – uma
epifania. É, então, produzindo sua própria referência em versos que o poeta nos faz ver as
almas etéreas que o circundam. Aqui nem a pérola e nem as almas são uma representação de
54
Em 1915 Maliévitch iniciou nas artes plásticas a corrente do suprematismo. O pintor ansiava pela apresentação
do abstrato em cores e formas puras, afastando-se do objeto e mirando a sensação e o sentimento puros. Pintou o
quadro “Quadrado branco sobre fundo branco”.
86
55
“Nos volta imagem tal que discerni-la, / quase qual pérola em pálida fronte, / ainda não poderia nossa pupila;”
Trad. Ítalo Eugênio Mauro.
suas referências externas. A construção do poeta criou uma nova referência que só existe em
seus versos. E o leitor, só neles ao mesmo tempo conhecerá e reconhecerá o que está escrito.
Dante rima Cristo com Cristo em algumas partes do paraíso, rompendo bruscamente
com o encadeamento normal de seus versos em terza rima, que funciona como passos em um
trajeto ascendente. Estamos na presença da atemporalidade de Cristo ou, para nos mantermos
mais próximos do pensamento cristão, de seu caráter eterno, sua temporalidade simultânea:
passado, presente e futuro inseridos em sua transcendência. Em relação ao efeito, Dante
consegue incitar outra vez a experiência estética do leitor, que, atordoado, presencia – por
alguns segundos alheio da semântica e de conceitos – a singularidade trina.
Qui vince la memoria mia lo ‘ngegno;
che ‘n quella croce lampeggiva Cristo,
si ch’io non so trovare essemplo degno;
ma chi prende sua croce e segue Cristo
ancor mi scuserà di quel ch’io lasso,
vedendo in qull’albór balenar Cristo.
56
(Par.: XIV, 103-108).
Trazendo para a configuração dos versos a Trindade pela repetição do nome “Cristo”,
Dante cria novamente a referência dentro do poema. Não é o Cristo que conhecemos e nem é
a Trindade explicitada – Pai, Filho e Espírito Santo. É, mais uma vez, uma possibilidade nova
com que o leitor só se depara nos versos. Exemplos do que Costa Lima denominou de
mimesis da produção”. Utilizando-se desse modo de construção, Dante consegue apresentar a
seus leitores uma outra lógica – a lógica do paraíso. E as “anti-imagens” ganham sentido e
funcionalidade no concreto de sua apresentação.
Quando Luiz Costa Lima propõe o conceito de mimesis da produção, em Mimesis e
Modernidade (1980), remete-o justamente à poética moderna, que se desenvolve
principalmente a partir de Mallarmé (1842-1898). O início da modernidade é acompanhado
pela autonomização da arte, ou seja, a arte deixa de servir de veículo seja para ideologias, seja
para a expressão do eu romântico. Quanto a seu modo de composição, esta mudança
“desobriga” a arte a ter como objetivo a representação de algo externo a ela. Dessa maneira,
87
56
“Aqui minha memória do narrável / vence o engenho; na cruz lampeja Cristo / e outro exemplo não diz quão memorável; /
mas o que toma a cruz e segue a Cristo / escusará quem ora desanima, / quando vir nesse alvor luzindo Cristo.” Trad. Haroldo
de Campos.
os poemas passam muitas vezes a produzir, pelo trabalho com a linguagem, suas próprias
referências e apresentar o que não é visível (por ser criação da linguagem, signo).
Como a mimesis da produção pôde funcionar perfeitamente para Dante apresentar o
seu mundo do Além, se o universo em que se insere não a estimula? Se converter-se é
rememorar, é a lógica da representação que impera no mundo dantesco. A mimesis da
produção, a princípio, não é um modo de construção comum no repertório de uma época em
que a memória é vista como um caminho para Deus. Lembrar e representar é aproximar-se de
Deus e louvá-lo. A necessidade poética falou mais alto na Commedia e se impôs, ao lado de
tropos conhecidos do cristianismo. Para ampliar o efeito do intangível, as palavras e as
construções tornam-se mais concretas: ao invés de se remeterem apenas a imagens já gastas
do imaginário cristão, criam uma nova experiência. Dante, apesar de construir a partir da
linguagem algo que é linguagem, o insere em uma estrutura “ideológica” que induz, na
construção do significante, um significado que se pretende fechado. Mesmo em um contexto
completamente diferente, e apesar da presença de uma “ideologia”, utilizando um recurso que
se detectaria séculos depois, o poeta torna visível o invisível, criando em linguagem signos e
estruturas sem uma referência externa objetiva
57
. A utilização de um recurso que se tornaria
comum a partir da modernidade foi também de extrema importância para a configuração da
obra medieval dantesca. Nesse caso, a criação de uma referência própria (não totalmente
desvinculada do real, mas uma transformação deste, conforme já explicitamos anteriormente)
deu ao poeta a possibilidade de não se ater apenas a tropos codificados do cristianismo para
montar sua obra e criar um paraíso com a linguagem. Dante, lançando mão de uma mimesis
da produção avant la lettre, cria referências, monta estruturas e constrói um léxico
entumecido de uma visão de mundo cristã – sua meta é o paraíso. Apesar de seu telos, ao
utilizar este processo, Dante se afasta da concepção tradicional de mimesis. O “poeta” se
afasta do “convertido”, malgré lui: seu texto vai além de sua “voz”.
Dante-poeta segue o caminho de Deus ao re-configurar para o leitor o paraíso: faz
menos uma representação, que uma “performance” ou “encenação” do absoluto, em um
grandioso jogo de palavras.
A encenação se origina da infra-estrutura da apresentação, ou seja, do jogo (...). Ela empresta
forma ao inacessível, preservando ao mesmo tempo seu estatuto, à medida que se evidencia
como simulacro. Daí resulta, de um lado, sua fascinação, à medida que mostra mundos
impenetráveis, e, de outro, sua potência, à medida que torna presentes estados de coisas não
88
57
Já indicamos que, na mimesis da produção, a relação com o mundo se dá através do horizonte de expectativas do autor e
não a partir de uma referência externa “concreta”.
passíveis de objetivação, de tal forma que parecem ser percepções para a consciência. O que
nunca pode se tornar presente, o que se furta ao conhecimento e à experiência, apenas pode
entrar na consciência através da apresentação. (ISER, 1991, p. 360-361).
Essa performance dos significantes também se afasta da noção tradicional da mimesis
clássica, e se aproxima das teorias mais contemporâneas da arte. Mas reiteramos que, mesmo
se tratando de uma performance, mesmo sendo um objeto artístico que se vale da
apresentação de sua configuração – e não da representação de um objeto externo à obra – para
existir, ele comunica. Ou seja, ainda existe mimesis no “poema abstrato” que é o Paraíso de
Dante. Caso contrário, não seria possível – como veremos a seguir que é – uma tradução que,
por uma re-configuração estética, se aproximasse do universo cultural do poema, pois esse
universo se perderia em meio a um jogo autista de pura imaginação.
2.3.2 A tradução do Além de Dante: o Paraíso
Temendo um novo dilúvio, os homens erguem uma torre desmedida: queriam alcançar
o céu. A hybris, ancestral impulso trágico de ultrapassar os limites, está presente na
construção da Torre de Babel do Antigo Testamento e provoca a ira não mais dos deuses
gregos, mas de um onipotente e único Deus. Indignado com a pretensão dos homens, o Todo-
Poderoso faz a torre desmoronar e os priva da língua universal: cria e dissemina entre eles
diferentes idiomas, dificultando o entendimento entre os povos.
É a partir dessa passagem do Antigo Testamento que Jacques Derrida, em Des Tours
de Babel (cf. DERRIDA, 1987), comenta o ensaio de Walter Benjamin sobre a tradução, “A
tarefa do tradutor”. Para estudar a relação entre obras de Haroldo de Campos e Dante
Alighieri, abrimos aqui um espaço para introduzir essa importante questão, peça fundamental
para o nosso modo de aproximação dos poetas.
A multiplicação dos idiomas, em decorrência da hybris, afasta os homens - assim
como a expulsão de Adão do Paraíso ou a queda de Lúcifer
58
- de sua origem divina (bem
como de uma “língua original”, de uma “língua pura”). Em Walter Benjamin: Tradução e
Melancolia, Susana Kampff Lages defende, com Benjamin, a idéia de que a melancolia na
89
58
“O magno pecado do Anjo rebelde ("il primo superbo", PAR. XIX, 46) foi a sua tentativa não auspiciada pela graça (e
portanto transgressora) de transpor os limites sígnicos: il trapassar del segno, culpa semiológica (paradigma, depois, do
‘pecado original’ dos pais edênicos, Adão e Eva (cf. PAR XXVI, 117)”. (CAMPOS, H., 1998, p. 79).
tradução poderia ser relacionada, arquetipicamente, ao sentimento da perda de uma língua
adâmica (cf. LAGES, 2002, p. 178-180). Seguindo essa linha de pensamento, a tradução, em
seus moldes mais tradicionais, estaria impregnada de uma enorme carga de melancolia,
advinda da impossibilidade de recuperação total do texto original em uma outra língua: a
negação do retorno à origem.
A impossibilidade de resgate da origem cria um impasse para o tradutor. Traduzir uma
obra para uma outra língua cria um problema que se detecta ainda com maior relevância em
textos literários: sua forma e seu valor estético quase sempre se diluem em prol do
significado. Benjamin ressalta essa questão em “A tarefa do tradutor”.
Aquela tradução que quisesse comunicar, nada comunicaria senão a comunicação – logo algo
de inessencial. Este é, pois, um indício das más traduções. Mas aquilo que em uma obra de
arte verbal excede a comunicação – e mesmo o mau tradutor o admite como essencial – não é
geralmente tido por inapreensível, misterioso, “poético”? Aquilo que o tradutor somente pode
reproduzir – também poetizando: Daí advém de fato um segundo traço característico da má
tradução, definível portanto como uma transmissão inexata de um conteúdo inessencial.
(BENJAMIN, 1992, p. 9)
É necessário, segundo o pensador, distinguir o significado (das Gemeinte) do modo-
de-significar (die Art des Meinens). Se, conforme Benjamin, o importante em uma obra de
arte verbal é traduzir “aquilo que excede a comunicação”, o “poético”, logo o tradutor
também precisa “poetizar”. Ou seja, sua função não é simplesmente transpor um conteúdo,
mas apresentá-lo (darstellen) a partir da forma, e por uma nova configuração. A tradução não
mais se ateria a uma tentativa sempre frustrada de “cópia” do original, de busca centrada nas
semelhanças e no “significado”, mas à metamorfose, à transformação, à recriação –
semelhança e diferença.
Susana Lages chama atenção também para um outro lado da questão: a tendência
entusiástica de alguns autores que defendem a tradução como criação de uma nova obra.
Ressalta, desse modo, o caráter duplo da tradução: “as visões tradicionais do tradutor e da
tradução tendem a oscilar da impotência mais resignada a um ideal de onipotência sobre-
humana”
(LAGES, 2002, p. 71).
A “onipotência sobre-humana” aponta para uma nova hybris, agora do tradutor. As
lacunas não têm mais, nesse caso, uma conotação negativa: a “falta”, que antes provocava a
melancolia, transforma-se agora em impulso criativo do tradutor. Haroldo de Campos utiliza
esses vazios - potencialidades em latência - para introduzir, na tradução, criações poéticas que
90
visam a uma nova obra (uma transcriação da primeira) a partir da informação estética do
original: Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação
paralela, autônoma porém recíproca.” (CAMPOS, H.., 1992, p. 35).
A partir dessa nova proposta, o tradutor não mais se coloca em uma posição aquém do
autor: assume a duplicidade da autoria na tradução criativa, valorizando o papel do tradutor. A
melancolia é superada, uma vez que a proposta não é mais a de recuperar o original, mas a de
recriar. A tradução perde, dessa maneira, sua tradicional debilidade e ganha a possibilidade de
se desdobrar – conforme mostraremos no próximo capítulo - para além de sua proposta
inicial.
Para uma visão mais ampla dessa teoria, discutiremos trechos das transcriações de
Haroldo de Campos de versos do Paraíso
59
de Dante Alighieri e os cotejaremos com outras
traduções.
Aproximando-se ou afastando-se do original, Haroldo de Campos não abre mão da
mobilidade do diálogo: é a partir dele que faz suas escolhas, pensando sempre em
potencializar ao máximo o efeito estético da obra e mantê-lo funcional para o presente,
através de uma recriação do passado. O método da transcriação de Haroldo de Campos não
se resume a uma postura pré-determinada de recuperar o texto de Dante. A ruptura com a
origem é bem-vinda. A queda é desejada. A tradução é luciferina.
O “tradutor-criador”, para muito além de proporcionar o texto traduzido, visa a
transformar o passado em algo novo, seguindo a pista de Ezra Pound (make it new). Haroldo
de Campos reivindica para suas transcriações o estatuto de um novo original, ao dissertar
sobre suas traduções de Dante: “Sua [da tradução] mira é produzir um texto isomórfico em
relação à matriz dantesca, um texto que, por seu turno, ambicione afirmar-se como um
original autônomo, par droit de conquête.” (CAMPOS, H., 1998, p. 67).
Não existe, nessa proposta, uma intenção didática, não se pretende uma tradução que
apenas dê a conhecer o conteúdo do texto original. Trata-se de uma verdadeira transformação
do texto traduzido em relação ao original, a partir de uma leitura crítica,
60
preocupada em
detectar e traduzir não apenas o conteúdo, mas a estrutura, a informação estética da obra -
aquilo que a caracteriza como arte. Manter ou mudar estruturas e significados são
59
CAMPOS, H., 1998.
60
“Se a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica, será através dela que se poderão conduzir outros poetas,
amadores de estudantes de literatura à penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens mais
íntimos.” (CAMPOS, H., 1992, p. 46).
91
contingências, deflagradas pelo propósito maior de recriar, numa outra língua, a força da
informação estética do original.
Estes seis Cantos do Paraíso de Dante
61
integram-se no meu projeto geral de tradução
criativa - transcriação - de poesia (exposto e desenvolvido num ensaio de 1962, "Da Tradução
como Criação e como Crítica"). Trata-se de um modo de traduzir que se preocupa
eminentemente com a reconstituição da informação estética do original em português, não lhe
sendo portanto pertinente o simples escopo didático de servir de auxiliar de leitura desse
original. (Idem).
Esse processo parte do texto e vai além. Ou seja, participam da formação do novo
texto duas forças que – apesar de muitas vezes serem consideradas antagônicas – são
complementares: a história e a estética. Para identificar os recursos de construção do original,
para fazer escolhas conscientes em relação à tradução da micro e da macroestrutura do texto,
é preciso que o tradutor tenha um grande conhecimento da visão de mundo da época: trata-se
de um “resgate cultural.”
62
Depois de mergulhar na Itália medieval e identificar as estruturas paradisíacas do
poema, o poeta-tradudor materializa aos nossos olhos brasileiros e contemporâneos uma visão
que acreditaríamos perdida. Ressalta, criando a partir do original, informações que, mais
imediatas para leitores de dantes, poderiam ter seu efeito estético enfraquecido em um outro
contexto espaço-temporal. Essa tarefa, por meio de uma tradução nos moldes tradicionais,
muito provavelmente só conseguiria proporcionar uma imagem desbotada. Haroldo de
Campos, através de sua transcriação, imparadisa nossos olhos: recria a partir da matriz
dantesca, acrescentando-lhe novas cores. O trabalho empreendido por Haroldo de Campos
confirma a possibilidade, levantada por Benjamin, de a tradução, ao invés de “servir” ao
original mantendo-se aquém dele, transformá-lo em algo novo e mais abrangente.
Traduções que são mais do que meras mediações nascem quando, em sua pervivência
(Fortleben), uma obra alcança a era de sua glória. É por isso que, em lugar de servi-la, como
os maus tradutores costuma pretender pelo seu trabalho, traduções devem à gloria sua
existência. Nelas a vida do original alcança seu desabrochar cada vez mais novo, tardio e
abrangente. (BENJAMIN, 1992, p. 13)
61
Os Cantos citados são os Cantos I, II, XIV, XXIII, XXXI e XXXIII.
62
BARBOSA, João Alexandre. “ Um Cosmonauta do Significante: Navegar é Preciso” in CAMPOS, H., 1979,
p. 20.
92
Para melhor entender todos os conceitos expostos acima, cotejaremos três traduções: a
de Haroldo de Campos, a de Cristiano Martins
63
e a de Ítalo Eugenio Mauro
64
. Começaremos
pelos versos 10 a 15, Canto I do Paraíso:
Veramente quant’io del regno santo
nella mia mente potei far tesoro,
sarà ora matera del mio Canto.
O buono Apollo, all’ultimo lavoro
fammi del tuo valor si fatto vaso,
comme dimandi a dar l’amato alloro.
Na tradução de Haroldo de Campos:
Na verdade quanto eu do reino santo
guardado em minha mente ainda entesouro,
será matéria agora do meu Canto.
Apolo, eis-me a lavrar o último ouro
por teu valor, repleto como um vaso,
dá que eu colha afinal o amado louro.
(CAMPOS, H., 1998, p. 85)
Na tradução de Cristiano Martins desse mesmo terceto:
Na verdade, quanto eu do reino santo
pude na mente conservar, revel,
matéria me dará ao novo Canto.
Faze-me, ó bom Apolo, o teu fiel
seguidor, nessa faina derradeira,
como os que escolhes para o grão laurel.
63
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, (trad.) Cristiano Martins. São Paulo-Belo Horizonte: Editora da
Universidade de São Paulo-Editora Itatiaia Limitada, 1979.
93
64
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, (trad.) Eugênio Mauro. São Paulo: Editora 34, 1998.
Podemos notar que, ao contrário de Haroldo de Campos, Cristiano Martins opta,
nesses versos, por afastar-se da letra do poema, em uma tentativa talvez de torná-lo mais
inteligível para o leitor moderno. Se, realmente, a proposta é essa, a questão que colocamos é:
consegue? Se não é, por que a transformação tão radical dos tercetos?
Vejamos a tradução de Ítalo Eugenio Mauro.
Porém, tudo do que, do reino santo,
pôde o intelecto seu fazer tesouro,
ora será matéria do meu Canto.
Ó grande Apolo, pra o labor vindouro,
de tua virtude faz de mim tal vaso
como exiges pra dar o amado louro.
A tradução do terceto feita por Eugenio Mauro é mais literal, mantendo as rimas
finais, em uma alusão à palavra “ouro”, que permite ressoar a imagem de uma tarefa por
demais importante, que se reforça com o lexema “tesouro” presente nos versos logo acima.
Como Eugenio Mauro, Haroldo de Campos não deixa o “ouro” escapar de seus versos
– mas vai além: escolheu uma tradução ao mesmo tempo criativa e literal. A tradução criativa
de Haroldo decompõe o lexema “lavoro” e ilumina suas potencialidades latentes: o verbo
“lavrar” e o substantivo “ouro”. Trabalhar o metal mais reluzente, esculpir a luz: (pa)lavrar
Deus. Tarefa para a qual Dante não se sente capaz sem a ajuda de um outro deus - antigo, mas
ainda presente em seu imaginário, Apolo, a quem recorre nos versos desse Canto. Haroldo de
Campos, através de sua brilhante in(ter)venção criativa, aproxima seus leitores do ouro que
Dante começa a lavrar na terceira parte da Commedia. Apresenta aos olhos desauratizados de
seus contemporâneos a magia e o esplendor do que Dante pretende relatar: a visão do
Paraíso.
Concentrando-se na palavra (lavoro), Haroldo mais uma vez nos lembra o texto de
Benjamin, onde a tarefa do tradutor seria “resgatar em sua própria língua a língua pura, ligada
à língua estrangeira, liberar, pela transcriação (Umdichtung), a língua pura, cativa na obra”
(BENJAMIN, 1992, p. 29). Considerando a “língua pura”, adâmica, incomunicável por
conceitos, uma presença latente nas diversas línguas pós-babélicas, o filósofo acredita que
seria nela – no não-dito - que estaria contida a grande potencialidade do texto. O “ultimo
lavoro” de Dante, escrever sobre o Paraíso, sobre o indizível, sobre aquele que teria privado
94
os homens da própria “língua pura”, é ressaltado por Haroldo de Campos na expressão “lavrar
o último ouro”.
O segundo verso do segundo terceto também se afasta muito da escrita de Dante na
tradução de Cristiano Martins, que despreza a palavra e a imagem do “vaso”, lexema este que
acompanha a imagem de (tes)ouro, abandonada pelo tradutor. Eugenio Mauro mantém a
tradução literal e Haroldo, mais uma vez, oscila entre o literal e a criação: conserva o “vaso”,
mas acrescenta-lhe uma qualidade: “repleto”. Um “vaso repleto” é, ao mesmo tempo, um
contraste com a idéia primeira de “vaso” – um recipiente, a princípio, vazio – e a realização
de sua função, o que aponta para o “entesouramento” do “reino santo” pelo poeta. Omitindo a
palavra “vaso”, Martins perde também uma referência muito importante ao texto: “vaso de
eleição” foi como Lucas definiu São Paulo nos Atos dos Apóstolos (cf. 9,15). Paulo foi
comparado a um vaso de ouro por sua sabedoria e amor. Por sua vez, São Paulo é uma
referência importante no texto. Dante, logo no segundo Canto do Inferno, diz a Virgílio: “io
non Enea, io non Paulo sono” (Inf. II, 32). Em uma pretensa fala humilde, o poeta diz que
não é Enéias (aquele que desceu aos infernos) e nem Paulo (aquele que, através da
experiência mística, subiu aos céus), em alusão à dificuldade da jornada proposta por seu
guia. O que a estória provará é que o poeta, não sendo Enéias nem Paulo, “encarna” os dois e
os ultrapassa, pois percorre um e outro percurso e vai além. Colocando-se, no paraíso, como
um “vaso”, o poeta novamente aponta para uma analogia entre sua experiência e a de São
Paulo.
Destacamos, ainda, uma curiosa relação entre o verso 11 da tradução de Haroldo
(“guardado em minha mente ainda entesouro”) e o verso 12 (“por teu valor, repleto como um
vaso,”). Ao invés de “fazer tesouro” do “reino santo” (“ne la mia mente potei far tesouro”),
Haroldo faz Dante “entesourá-lo”, em um movimento que remete à imagem da personagem
como um “vaso repleto” no próximo terceto. Como sabemos, a terza rima, inventada por
Dante, permite um alinhavo contínuo entre os versos, que caminham pelo Além como seus
próprios passos. Por sua inventividade, Haroldo reforça ainda mais a ligação entre esses dois
tercetos.
Vejamos outro trecho da Commedia e suas traduções – trata-se agora do Canto XXXI,
versos 7-9:
si come schiera d’ape che s’infiora
una fiata e una si ritorna
là dove suo laboro s’insapora
95
nel gran fior discendeva che s’adorna
di tante foglie, e quindi risaliva
là dove ‘l suo amor sempre soggiorna.
Eugenio Mauro:
tal como enxame de abelhas que às flores
voou primeiro, e que retorna agora,
de sua lida, ao esmero dos sabores,
na grande flor descia, que se colora
de pétalas sem fim, e após subia
lá onde o seu Amor pra sempre mora.
Cristiano Martins:
como o enxame de abelhas que demora
sobre as flores, por logo se guindar
onde seu mel dulcíssimo elabora,
vinha na imensa rosa, então pousar,
afagando-lhes as pétalas, somente,
antes de à aura suspensa retornar.
Haroldo de Campos:
como enxame de abelhas que se enflora,
e sai da flor, e unindo-se retorna
para a lavra do mel que doura e odora
descia à grande rosa que se adorna
de tanta pétala, e a seguir subia
ao pouso que o perpétuo Amor exorna.
Nos dois tercetos de Dante, detectamos uma intensa repetição das letras “o”, “a” e “r”,
que, além de fazer parte do lexema “amor” (fonte de tudo, Deus), constituem a rima em “ora”,
que, em latim (assim como em português), remetem à oração (orazione, em italiano). Todas
as traduções mantêm essa rima, sendo que, na tradução de Haroldo de Campos, ela
96
permanece, assim como nos versos de Dante, ressoando nas rimas seguintes, nos lexemas
“retorna” (ritorna), “adorna” (adorna) e “exorna” (soggiorna).
Também aqui as diferenças entre as traduções são muitas e relevantes. Já no primeiro
verso, percebemos que somente Haroldo conservou a expressão “se enflora” (s’infiora). Um
vocábulo altamente potente, que diz mais em sua forma – apontando para uma metamorfose -
do que na idéia de aproximação e afastamento de uma flor (da Beata Rosa). As outras
traduções se limitam ao movimento de ir e vir das abelhas / anjos da flor. “Enflorar-se”, para
além da proximidade com a flor, provoca a imagem de união com a mesma, de transformação
pelo contato dos anjos / abelhas no próprio Amor divino. Nesse caso, a tradução literal
permite a Haroldo preservar o modo de significar, i.e., o modo de apresentar (die Art des
Meinens) do poema, que, por continuar atuante como potência estética para leitores atuais,
aproxima-o da visão de mundo de Dante, de sua concepção de Deus e da configuração
fundamentalmente inter-relacionada do paraíso.
Haroldo continua perseguindo a literariedade e a conexão com a potência da forma do
texto de Dante, quando não se abstém de ressaltar a relação entre o diverso e o uno. Haroldo
mantém a idéia básica do paraíso e da cosmovisão cristã – que começa no trino / uno (Deus /
Cristo / Espírito Santo) e se desenrola até a relação entre homem / Cristo / Deus – quando, em
seus versos, mantém a idéia de “união” dos versos de Dante (“e unindo-se retorna”).
Uma especificidade interessante da tradução de Haroldo é, de acordo com os
primeiros tercetos aqui apresentados, a retomada da transformação da palavra “laboro” no
desdobramento de uma cena, a partir do verbo “lavrar”. Novamente o tradutor intensifica o
efeito do poema para seus contemporâneos, nesse caso, por uma solução não literal, mas
tangencial. “La dove suo laboro s’insapora” é traduzido por Haroldo em “para a lavra do mel
que doura e odora”. Haroldo desenvolve a possibilidade do verso. Novamente por meio da
forma, consegue expandir seus efeitos, aproximando o leitor do universo de Dante. O mel das
abelhas se conjuga com o dourado céu do paraíso e de seu “(tes)ouro” e provoca, ainda, a
sensação de doçura e sabor, aliada à cor e ao odor pela inclusão da palavra “mel” (explorada
também na tradução de Cristiano Martins).
A tentativa de potencializar ao máximo a forma do original está ligada não só à
coragem de transformação radical da língua do tradutor, para que esta se aproxime da língua
do poeta, quanto a uma extrema preocupação com a literalidade, que não se concentra no
sentido, mas no “como” se diz. Por isso, a frase, que explicita o sentido, torna-se menos
importante na tradução do que o trabalho com as palavras, que o concentra.
97
A verdadeira tradução é transparente, não oculta o original, não o ofusca, mas faz com que
caia tanto mais plenamente sobre o original, como se forçada por seu próprio meio, a língua
pura. Isso se obtém sobretudo pela literalidade na transposição (Übertragung) da sintaxe, e
justamente é a literalidade o que mostra a palavra, e não a frase, como o elemento originário
do tradutor. Pois a frase é o muro diante da língua do original; a literalidade, a arcada.
(BENJAMIN, 1992, p. 26-27).
Canto XXXI, 130-132, do Paraíso:
E a quel mezzo, con le penne sparte,
vid' io più di mille angeli festanti,
ciascun distinto di fulgore e d'arte.
Comecemos pela tradução de Ítalo Eugenio Mauro:
E esse meio era de anjos rodeado,
a adejar, mais de mil, e de outros tantos
vários fulgores e artes adornado
A seguir, a tradução de Cristiano Martins:
Na aura difusa, as asas transparentes,
anjos felizes voavam, tantos, tantos,
mas no brilho e aparência diferentes.
Haroldo de Campos:
E no centro, mil anjos no esplendor
das asas plumiabertas vi, dançantes,
cada um diverso em arte e no fulgor.
98
As imagens construídas pelo trabalho concreto com os significantes são de extrema
importância para a fruição estética dessa passagem do Paraíso. A festa dos anjos se
materializa no terceto pela da profusão da vogal “i”, capaz de trazer para o segundo verso, por
sua sonoridade e por seu aspecto visual (assemelham-se a riscos), a impressão de agitação e
de movimento: vid' io più di mille angeli festanti. Em português, o “i” não é uma marca do
plural, como o é em italiano. Eis o exemplo de um impasse na tradução: perdendo parte de sua
funcionalidade, o “i” não encontra mais sua relevância nem sua possibilidade de multiplicação
no verso. E a tradução perde a chance de proporcionar ao leitor o efeito estético decorrente de
sua profusão.
Haroldo constrói o verso a partir da repetição da vogal “o” : E no centro, mil anjos no
esplendor. A partir do “centro”, a materialidade visual da letra “o” se assemelha a ondas que
reverberam o sagrado e relacionam os versos à profusão do uso desta mesma assonância em
outros versos de Dante. Haroldo não deixa também de colocar em relevo a materialidade
sonora do “o”, vogal ligada ao espanto frente a uma cena divina. E mostra o movimento
circular dos anjos em torno de Deus. Destaca-se também a assonância em “a”, que,
contrastando com a solenidade do “o”, abre-se em festa de asas plumiabertas e dançantes. E
também a relevância da aliteração em “s”, aliada à vogal “a”, insinuando o barulho das asas
em movimento. Haroldo de Campos constrói, por meio de outros recursos, um efeito análogo,
inundando os versos em português, por uma outra via, do movimento angélico.
Podemos notar que também Cristiano Martins e Ítalo Eugenio Mauro procuram dar
aos versos uma sonoridade especial, através da repetição das vogais “o” e “a”. Cristiano
Martins, assim como Haroldo, faz um bom emprego do som do “s”, aproveitando a palavra
“asa” – que, em português, se associa ao barulho do próprio objeto “asa” – e disseminando
seu eco pelo verso. Já Ítalo Eugenio Mauro escolhe o verbo “adejar” (agitar as asas, voar)
para se referir ao movimento dos anjos, minimizando muito o efeito sonoro que poderia levar
o leitor a se aproximar, ainda mais, da festa alada.
Le penne sparte, literalmente “as asas abertas”, transformam-se, na transcriação de
Haroldo de Campos, em “asas plumiabertas”. A palavra-valise
65
, ou palavra-montagem,
aponta para a suavidade das asas abertas dos anjos em sua dança. Joga com a leveza e até com
a textura das asas. Com uma única palavra - duas superpostas - Haroldo forma uma imagem
concentrada, rica, que intensifica o efeito do terceto sobre o receptor. Coloca em relevo, para
99
65
Termo joyceano para designar uma palavra formada por uma combinação de outras, como “plumiabertas”.
seus leitores contemporâneos, as potentes e alegres imagens-dançantes apresentadas por
Dante em seu Paraíso.
Haroldo, também nesse exemplo, recria em virtude de sua preocupação em manter-se
o mais literal possível, em não desperdiçar a potência dos versos de Dante. A presença do
olhar da personagem (vid’io) só é aproveitada na tradução de Haroldo de Campos. Ora,
entramos em contato com o paraíso principalmente através da percepção de Dante
personagem, especialmente dos graus de sua visão, conforme vimos acima. Não se trata de
um detalhe que possa ser descartado sem prejuízos.
Canto XXXIII, 124-126:
O luce etterna che sola in te sidi,
sola t'intendi, e da te intelletta
e intendente te ami e arridi!
Haroldo de Campos comenta o terceto acima no ensaio que precede suas traduções dos
Cantos: “(a) parequese, a variante etimológica da paranomásia, permite a tautologia teologal
do mesmo que se ensimesma: veja-se a configuração verbal da luz eterna que a si, a sós, se
entende, intelecta e entendente”
66
. E o poeta-tradutor, encarando - como Dante, mas
semiologicamente - a perfeição, mantém o máximo possível do jogo "teo-tautológico" em sua
tradução:
Ó lume eterno, a sós em ti sediado,
só te entendendo e de ti intelecto,
e no entender-te amante deleitado!
Ressaltamos a permanência, na tradução, do jogo construído a partir da proliferação da
dupla “te / ti”, que nos apresenta, concretamente, o lume eterno imbricando-se em si mesmo,
apontando para si mesmo - ensimesmado.
Comparemos a tradução de Haroldo com a de Ítalo Eugenio Mauro:
Ó eterna Luz que repousas só em Ti;
a Ti só entendes e , por Ti entendida,
100
66
CAMPOS. Haroldo. "Branco no branco" in CAMPOS, 1998, p. 82.
respondes ao amor que te sorri!
Eugenio Mauro, embora não mantenha tamanha circularidade sonora dos versos de
Dante, por uma diminuição da fluência constante de “t”, “e” e “i”, forma o terceto com outra
disposição. Os versos se imbricam da seguinte maneira: “repousas”, no primeiro verso, se liga
a “respondes”, uma vez que quase todas as letras se repetem nas duas palavras; no segundo
verso, “entendes” e “entendida” apontam um para o outro. Perde-se parte da fluência, mas o
tradutor tenta manter a tautologia do verso.
O maior problema da tradução do terceto por Ítalo Eugenio Mauro é outro: ao utilizar
o pronome "ti" com letra maiúscula, como é usual em se tratando de uma referência a Deus, o
tradutor quebra o jogo instaurado por Dante e mantido por Haroldo. Em prol de reforçar a
força conteudística do pronome (referir-se a Deus), o uso da maiúscula corrompe o
movimento auto-referente alcançado pela disseminação da consoante “t”. O entrelaçamento
perde o sentido, uma vez interrompida sua eterna circularidade pelo uso da maiúscula, o que
provoca pausas e cortes no fluir do verso.
A tradução de Cristiano Martins desse mesmo terceto é a seguinte:
Ó luz que vives de teu próprio ardor,
que em ti te sentes, e és por ti sentida,
que em ti, e só por ti, és graça e amor!
Notamos que o primeiro verso praticamente não se relaciona com os outros dois por
sua configuração. A tentativa de imbricar os dois últimos versos, pela repetição de “que em
ti”, é frustrada. Se repararmos bem, existe uma relação ativa e passiva – de si para si – no
terceto de Dante, que colabora com a impressão de circularidade. A duplicação da expressão,
uma imediatamente acima da outra, produz uma pausa, uma quebra do movimento,
amplificada pela idéia de fixação nela presente.
É no último verso do terceto que Haroldo mais se afasta do original e cria uma nova
forma, que acaba por se revelar profundamente condizente com a circularidade intrínseca da
estrofe: “e no entender-te amante deleitado!” Além de manter o jogo aliterante do “t”,
Haroldo reforça o tautológico - de algo que, uno, é múltiplo - presente nesse terceto ao valer-
se das palavras “amante” e “deleitado”, pela conotação, nessa montagem, ao mesmo tempo
ativa (amante) e passiva (deleitado) da expressão.
101
Como podemos perceber, Haroldo de Campos aproveita e ressalta, em sua tradução,
tudo aquilo que Dante “apresenta” a seus leitores, sem dizê-lo explicitamente em seu discurso.
A idéia hermética de uma língua pura faz-se revelar com mais clareza, quando nos detemos
nos exemplos das traduções. Pela recriação da forma, Haroldo de Campos se destaca por
liberar grande quantidade de fagulhas dessa “língua” para o leitor. O que estava latente na
forma, o indizível, continua latente, porém mais próximo de um público já afastado da época
e dos valores da obra de Dante, na configuração dos versos de Haroldo. A língua pura,
inacessível, irresgatável, se deixa entrever pelo contato tangencial de duas outras línguas, por
obra da tradução.
Assim, a tradução, em última instância, tem por fim (zweckmässig) exprimir a relação mais
íntima entre as línguas. É impossível para a tradução, por si só, revelar e concretizar esta
relação oculta; pode, contudo, apresentá-la, realizando-a seminal ou intensivamente.
(BENJAMIN, 1992, p.13).
Segundo Walter Benjamin, no processo da tradução, o contato com a língua pura se
torna mais íntimo. Podemos agora perceber por quê. Ao trabalhar com o “não-dito” da
linguagem, o tradutor tem de “não-dizê-lo” em sua língua. Isso significa: o tradutor tem de re-
apresentá-lo na forma. É na produção do efeito estético da obra que tradutor e poeta se
encontram, na tentativa de captar e materializar, em potência, uma epifania que se assemelha
ao conceito de língua pura benjaminiano.
2.3.3 O inefável concreto
Como ressaltávamos anteriormente, a tentativa de Dante de mostrar a seus leitores por
meio da apresentação (Darstellung) a visão do paraíso passa pelo esforço de configuração
intensamente formal, que potencializa o estético para promover a epifania. A epifania seria
uma “visão” de Deus e sua morada, ou, poderíamos dizer, da própria língua pura. Entrando no
jogo da personagem, e encarando-o a partir de uma visão de mundo bem posterior, podemos
também insinuar que Dante foi o tradutor da configuração do paraíso que Deus lhe
102
apresentou. Aqui destacaríamos a hybris de um tradutor que apresenta em versos o mundo do
Além. Um tradutor criativo, assim como Haroldo de Campos.
A questão da epifania se transforma na leitura de Walter Benjamin. Para ele, a poesia e
a filosofia caminham juntas. A poesia, através do seu “não-dito”, seria um acesso à filosofia,
assim como uma forma de materializá-la. O que se alcançaria, via experiência estética, não
seria o sagrado, mas a filosofia: a possibilidade de captar o instante da vida.
De acordo com Benjamin, somente a poesia poderia tocar tão de perto as questões
mais profundas da filosofia. Para Dante, na Commedia, a poesia tocaria a possibilidade da
epifania mística. Por sua vez, Dante, além de poeta, era um estudioso de filosofia, além de, ele
mesmo, ter composto obras de cunho filosófico. A hybris se desdobra nas múltiplas
possibilidades de leitura da Commedia. Uma hybris que também se aproximaria do orgulho
dos filósofos do qual se queixa Agostinho e que pode ser lida como a responsável pelo
fracasso da tentativa de Dante de sair sozinho da selva oscura, galgando a montanha, logo no
primeiro capítulo. Assim, a dupla jornada de Dante, apontada por Freccero, em que o pecador
se transforma em convertido e o peregrino, em poeta, nos abre tamm a possibilidade de uma
leitura laico-estético-filosófica, ao lado da ideológico-cristã, leitura que aproxima Dante da
filosofia e do pensamento de Benjamin. O poeta transforma poeticamente a filosofia e a
teologia em “experiência mística”, conduzindo-nos a essa experiência pela via da poesia.
Somente como poeta, ou como poeta-tradutor da configuração do Além, Dante teria
acesso à língua pura, à “epifania” da linguagem. A esse respeito, veja-se um trecho de Il
Convivio (II, XI, 8-10), em que o próprio poeta, ao comentar uma de suas canções, disserta
sobre o poder da poesia.
Se per aventura incontra che tu vadi là dove persone sieno che dubitare ti paiano nella tua
ragione, non ti smarrire, ma dì loro: Poi che non vedete la mia bontade, ponete mente almeno
la mia bellezza. Che non voglio in ciò altro dire, secondo che è detto di sopra, se non: O
uomini, che vedere non potete la sentenza di questa canzone, non la rifiutate però; ma ponete
mente la sua bellezza, che è grande sì per [la] construzione, la quale si pertiene alli
gramatici, sì per l'ordine del sermone, che si pertiene alli rettorici, sì per lo numero delle sue
parti, che si pertiene alli musici. Le quali cose in essa si possono belle vedere, per chi ben
guarda.
67
67
“Se, por acaso, aconteça que encontre pessoas que duvidem de seu argumento, não desanime, mas diga a elas: Já que não
vêem a minha bondade, atinem ao menos para a minha beleza. Que não quero dizer outra coisa do que já disse acima: Ó
homens que não podem ver o sentido desse Canto, não o rejeite; mas atente para a sua beleza que é grande pela construção,
que pertence aos gramáticos, pela ordem do discurso, que pertence aos retóricos, pelo número de suas partes, que pertence
aos músicos. Nessas coisas se pode ver beleza, se bem se olha.”
103
Étienne Gilson, sublinha a transformação da filosofia e da teologia em poesia na
Commedia.
C’est d’avoir écrit un immense poème dont la matière est faite d’idées et qui pourtant n’est
aucunement un poème didatique, comme le De rerum natura, mais une épopée, comme
l’Énéide. Le beau n’y est pas la splendeur du vrai, comme dans la Summa theologiae, mais la
vérité y est la matière dont la transfiguration poetique obtient la beauté.
68
(GILSON, 1974,
p. 85).
Mas como e por que a poesia tem um poder tão grande, capaz de produzir um vínculo
com o sagrado – como queria Dante – ou com a filosofia – segundo Benjamin e, também,
Dante?
No ensaio “Dois poemas de Friedrich Hölderlin”, Benjamin, ao falar sobre a
configuração de poemas, introduz um conceito que, acreditamos, se relaciona com nossa linha
de reflexão. Trata-se do que chama das Gedichtete
69
, o elemento poético, uma “unidade
sintética da intuição sensível e do espiritual”, logicamente anterior e cronologicamente
posterior ao poema: “esta unidade alcança sua estrutura particular como forma interna da
criação particular.” (BENJAMIN, 1914-15, p.52). O elemento poético seria, então, a unidade
estética da forma e do conteúdo, mais precisamente, de sua relação.
O que distingue decisivamente o elemento poético como categoria de pesquisa estética do
esquema forma-matéria é que ele conserva em si a unidade estética fundamental entre forma e
matéria e que, em vez de separá-las, ele exprime a conexão necessária que lhes é imanente.
(BENJAMIN, 1914-15, p. 52, tradução nossa)
70
.
68
“É de ter escrito um imenso poema, cuja matéria é feita de idéias e que, apesar disso, não é de modo algum um poema
didático, como o De rerum natura, mas uma epopéia, como a Eneida. O belo não está no esplendor da verdade, como na
Summa theologiae, mas a verdade é a matéria de cuja transfiguração poética obtém sua beleza.”
69
Optamos por traduzir o termo das Gedichtete por “elemento poético”. Trata-se do particípio substantivado do verbo
dichten, que significa “compor um poema”, “poetizar”, verbo que dá origem ao substantivo das Gedicht, que significa
poema, poesia Uma tradução literal para das Gedichtete seria “o poetizado”. Benjamin dá ao termo um sentido técnico:
aquilo que, em um poema, exprime poeticamente o mundo, na acepção mais larga da palavra “mundo”.
70
O texto, na tradução francesa utilizada, é: “Ce qui distingue décisivement du schéma forme-matière le
dictamen [ das Gedichtete, o elemento poético ] comme catégorie de recherche esthétique est qu’il conserve em
lui la fondamentale unité esthétique de la forme et de la matière et qu’au lieu de les séparer il exprrime la liaison
nécessaire qui leur est immanente.”
104
O elemento poético seria uma estrutura da “verdade”
71
, que se apresenta em forma de
poesia. De acordo com o filósofo, uma poesia de valor, não um embuste –– contém o instante,
o imediato da vida metamorfoseado em forma, como uma expressão do inexprimível: aquilo
que de uma matéria abismal pode ser apresentado (transformado) em linguagem, a unidade
que aponta para essa relação, o elemento poético. Seguindo essa linha de pensamento,
filosofia e poesia estariam, então, profundamente interligadas, uma vez que a segunda seria a
expressão material de uma “verdade” abissal, uma concretização possível da “vida”.
Repensando a questão com Walter Benjamin, a língua pura seria o “não-dito” da
linguagem, que podemos relacionar com sua potência estética. O conceito de língua pura é
utilizado por Benjamin para indicar aquilo que, em uma tradução entre línguas, é comum a
todas, o traço que tangencia a multiplicidade das línguas e que deve ser resgatado – sempre
metamorficamente – não pela
, mas na linguagem, para que a obra “proviva” (fortlebt)
72
. O
contato com a língua pura, nesse caso, não visa a uma epifania mística, mas é o acesso à
filosofia na própria linguagem poética.
É a configuração do poema – objeto concreto que realiza o elemento poético – a
responsável pela deflagração do efeito estético. Pensando ou não em termos laicos,
poderíamos dizer que o elemento poético seria capaz de aproximar os leitores da “língua
pura”. Encontramos, então, uma relação entre a língua pura e o elemento poético. Este último
seria o caminho para se tocar a língua pura e, ao mesmo tempo, a realização concreta em
determinado objeto do indizível que é essa língua. Vimos que, na Commedia, a
transformação do tema em forma se apresenta de diversas maneiras. Isso porque, para cada
momento, Dante encontra o elemento poético adequado, ou seja, a relação pertinente, entre a
forma e o pensamento.
O jogo de tradução da Commedia se liga, pois, a uma manutenção e transformação
simultâneas de seu elemento poético. Trata-se de manter as relações que propiciam a unidade
estética entre forma e matéria em outra língua, por meio da metamorfose da forma.
Por ser a Commedia um poema de alta potência estética, cuja configuração material é
o elemento fundamental para sua apreciação, por ser o Paraíso a parte mais difícil, onde a
71
Benjamin coloca a palavra “verdade” entre aspas – uma verdade que depende e só se concretiza na materialidade da obra
estética.
72
Optamos por traduzir o verbo fortleben por “proviver” e não, como já se fez, por “perviver”. Julgamos que essa opção faz
justiça à conotação dinâmica e prospectiva do prefixo fort em alemão, que sublinha o que há de mutável, mais do que de
permanente, na continuidade de um processo.
105
produção contém a própria possibilidade da mimesis, sua tradução interessou a Haroldo de
Campos.
Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto
possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o
significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma
(propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles
Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele "que é de certa
maneira similar àquilo que ele denota"). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e
tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois, no avesso da
chamada tradução literal. (CAMPOS, H., 1992, p. 35).
Encontramos aqui uma analogia do isomorfismo presente no elemento poético
benjaminiano com a categoria de ícone, desenvolvida pelo filósofo americano Charles
Sanders Pierce (1839-1914) e retomada por Charles Morris (1901-1979).
A dificuldade que interessa Haroldo de Campos na poesia também pode ser
relacionada com a idéia de elemento poético benjaminiana. O que interessa ao poeta, tradutor
e crítico é a relação íntima entre os extratos do poema que, potencializados individualmente,
ao se combinarem no todo da obra recriam em linguagem algum “instante” não da “vida”,
mas da própria obra. No caso de Haroldo, o que provavelmente o instiga não é nem a
metafísica nem, em especial, a filosofia. A possibilidade da experiência estética que o
elemento poético proporciona é relevante, para Haroldo, em virtude do enorme potencial
crítico que dela pode advir. Desenvolveremos essa questão no próximo capítulo.
Podemos notar que o trabalho formal de Dante está ligado a sua proposta de provocar
a epifania no leitor. Do Inferno ao Paraíso, Dante compõe sua obra de modo a apresentar suas
idéias em forma poética. Usa para isso, como mostramos, recursos apropriados para cada
efeito que visa provocar. As teses de Haroldo de Campos sobre o aproveitamento estético se
afastam da concepção de mundo dantiana e se aproximam de uma visada crítica. Mas, na
tradução dos Cantos do Paraíso, não pode deixar de considerar a questão da epifania mística
– caso contrário se afastaria totalmente da proposta de Dante. Haroldo de Campos, em sua
tradução, se aproxima da língua pura benjaminiana ao transcriar a forma, tornando-a capaz de
provocar um efeito estético tal que aproxime os leitores contemporâneos da obra de Dante. A
idéia é transformar o efeito de seu elemento poético e expandi-lo para uma outra língua.
A noção de elemento poético de Benjamin condensa o que vínhamos desenvolvendo
neste capítulo. As diversas técnicas de construção empregadas por Dante na elaboração da
106
Commedia sempre atam forma e conteúdo, transformando um no outro, de acordo com o que
pretende apresentar a seus leitores. No caso de Dante, o processo, em todos os momentos,
aponta para sua meta teológica, uma vez que seu percurso é teleológico. No próximo capítulo,
veremos como Haroldo de Campos se aproxima da Commedia, não como tradutor, mas como
poeta. Apontaremos para as mudanças do jogo a partir de seus novos objetivos, bem como
para a manutenção de certos pressupostos.
3 RECRIANDO A COMMEDIA
O interesse de Haroldo de Campos pela Commedia resultou em livros e poemas nos
quais o poeta paulista recria alguns dos aspectos da obra de Dante. Destacamos, neste
capítulo, o poema “Finismundo: a última viagem” (1997) e os livros Signância quase céu
(1979), Galáxias (1984) e A máquina do mundo repensada (2000). Partindo de leituras de
trechos escolhidos, refletiremos sobre a relação entre o modo de composição dos textos de
Haroldo e o da Commedia, do ponto de vista de suas afinidades temáticas ou de
procedimentos. Nosso objetivo aqui é entender melhor como o poeta paulista constrói, a partir
da Commedia, um outro universo que, pela transformação da forma e da linguagem, nos abre
uma perspectiva crítica acerca das visões de mundo conflitantes.
A aplicação da figura em um texto literário encontra, na Commedia, sua mais perfeita
realização. Isso se deve ao fato de que a noção de figura carrega consigo – talvez porque
tenha sido derivada de uma interpretação cristã – uma atitude teleológica condizente com a
estrutura do cristianismo.
Assim como retomada por Auerbach em seu livro Mimesis, como possibilidade de
relação entre textos literários, a figura se encontra ainda plena de uma visão teleológica. No
uso que dela faz Auerbach como instrumento teórico para a literatura comparada, o telos
107
cristão cede lugar a um telos histórico – o que teria sido provavelmente determinado, segundo
Luiz Costa Lima, pela grande influência de Hegel sobre os teóricos alemães.
Não parece que seja arbitrário dizer-se que, por sua leitura da patrística, Auerbach nela
descobriria um veio hegeliano. Só o especialista poderá afirmar se é procedente este
Tertuliano hegelianizado. De nossa parte, devemos apenas anotar por que Auerbach seria
sensível a tal afinidade entre o Padre da Igreja e o filósofo: “Mimesis (...) não seria pensável
noutra tradição salvo na do romantismo alemão e de Hegel” (Auerbcah E.: 1953, 15). Não é
mesmo evidente a conformação hegeliana presente na modelagem cristã de figura, desde que
nela não queiramos ver a sinuosidade da dialética? Os dois acontecimentos implicados, o
propriamente figural e o que o completa ou realiza, se encaixam e harmonizam. (COSTA
LIMA, 1994, p. 221-222)
A utilidade dessa noção de figura para estudos comparativos que envolvam obras
literárias contemporâneas tem sido criticada por seu caráter teleológico. Obras que exibem um
grau de “abertura” considerável, uma grande carga de polissemia, e não se “completam” nem
em si mesmas, romperiam o esquema de figuração e preenchimento na comparação com
outros textos. O próprio Auerbach admite a dificuldade de aplicação da categoria de figura a
um romance como Ulysses. Levantada a questão crítica, partiu-se para uma discussão sobre se
seria essa categoria uma ferramenta teórica “datada”. Ou seria ainda possível, uma vez
reformulada, tirar proveito dela no estudo de obras contemporâneas?
A idéia de uma história que se projeta para o futuro, condizente com a visão de mundo
hegelizada de Auerbach, não encontra mais eco no pensamento contemporâneo. Nietzsche já
apontara para a falácia do “absoluto retorno”, mostrando que a história contém hiatos e
qualquer repetição pressupõe a diferença. Partindo dessas premissas, Luiz Costa Lima
apresenta uma alternativa para o aproveitamento, como instrumento teórico para a Literatura
Comparada, da nocão de figura de Auerbach
O teórico brasileiro introduz sua tese a partir do confronto entre “acontecimento” e
“evento”. Segundo Costa Lima, na figuração proposta por Auerbach, a relação entre a figura
e seu preenchimento se desenvolve como um “acontecimento”, um fato que ocorre uma só
vez. Fica clara a implicância de um telos, o “cumprimento” de uma “previsão” contida na
figura. Ao contrário do que ocorre com o “acontecimento”, no “evento” não encontramos a
idéia de “finalização” ou “cumprimento”. Um evento pode ocorrer mais de uma vez, não se
configura como um fato acabado, fechado em si mesmo. A proposta de Costa Lima seria
então tratar a relação figural como “evento” e não mais como “acontecimento”.
Desenvolvamos, com o teórico, sua proposta.
108
Tomemos como ponto de partida a diferença entre Vorstellung (representação) e
Darstellung (apresentação), na trilha aberta por Kant. Na Kritik der reinen Vernunft, ao
tratar do juízo determinante, por meio do qual um objeto empírico é objetivamente
determinado, o filósofo recorre à noção de Vorstellung para caracterizar o trabalho da
imaginação. No processo do conhecimento empírico, a imaginação reúne, reproduz e
esquematiza uma multiplicidade dada à sensibilidade, preparando assim as sínteses por
conceitos em que consiste o entendimento dos objetos de conhecimento. O trabalho da
imaginação é subordinado ao do entendimento, cumpre a ela representar (vorstellen) para o
entendimento.
Na Crítica do Juízo, Kant trata do juízo estético – do belo e do sublime. Esse juízo,
não é visto como determinante, mas como reflexionante – encarregado da caracterização do
objeto em sua relação com o jogo das faculdades envolvidas em sua apreensão. Como vimos
no capítulo anterior, esse é um jogo livre entre a imaginação e o entendimento, em que a
primeira não se limita a reunir, reproduzir e esquematizar sob a égide do entendimento, mas
produz autonomamente esquemas cuja adequação à forma do entendimento testemunha uma
finalidade sem fim. Para caracterizar esse trabalho da imaginação, Kant recorre ao termo
Darstellung”, contrastado a “Vorstellung”.
A Vorstellung supõe um telos, o conhecimento objetivo, que a vincula a seu objeto. Já
a Darstellung supõe um trabalho criativo da imaginação, por meio do qual o objeto é remetido
às suas novas apresentações. Se a Darstellung implica criação, seu produto não está em
nenhum momento “previsto”. Podemos, assim, fazer uma analogia entre a noção de “evento”
e a de Darstellung: o objeto se abre, via criação, a infinitas possibilidades de novas
apresentações – ou “eventos”. Por outro lado, o “acontecimento”, único e atado ao objeto
primeiro por uma relação teleológica, pode ser comparado ao processo da Vorstellung – em
que um elemento representa outro.
Luiz Costa Lima afirma que a noção de figura seria, sim, ainda pertinente nos dias de
hoje – não como “acontecimento”, mas como “evento”. Não como Vorstellung, mas como
Darstellung. Segundo o teórico, o instrumento se tornaria potente para nós se, ao invés de
pensarmos em termos de figura e cumprimento, a partir de uma representação (Vorstellung),
mesmo que modificada por momentos históricos diferentes, tentássemos entendê-lo por vias
negativas. É preciso então que seja “criada a expectativa de um cumprimento, que, entretanto,
não se realiza” (COSTA LIMA, 1995, p.233). A representação não se “cumpre”. Via
“criação” – ou, por meio da imaginação produtiva – temos um “evento”, a possibilidade de
uma nova apresentação (Darstellung) da figura.
109
O evento supõe a estrutura da figura; mas, paradoxalmente, a figura aqui só se atualiza ao não
se cumprir. Onde, ao contrário, duas ocorrências se encaixem, onde um fato seja explicável
por outro anterior, e, assim, “coincidam”e se mostrem “semelhantes”, não temos evento mas
sim acontecimento – mimesis passiva e não ativa. ‘Acontecimento’ é o que é previsível por
uma ordem explicativa preestabelecida; aquilo cuja pluralidade de sentidos pode então ser
domada; a ocorrência domesticada. Assim, portanto, a construção figural não é antagônica à
visualização do evento. Não o é, repitamos, na medida em que não se confunde com a
problemática da Vorstellung. (COSTA LIMA, 1995, p. 233)
Acreditamos que o processo figural, visto como “evento”, pode ser útil para se
entender o mecanismo de construção dos textos selecionados de Haroldo de Campos. Um
tema da Commedia, um Canto ou toda a obra funcionam como figuras que se concretizam –
ao não se cumprirem – em um “possível preenchimento” futuro.
A compatibilidade entre Haroldo e Dante está na utilização de procedimentos formais
análogos às suas respectivas possibilidades de significação. O horizonte de expectativas muito
se distinguem. O que tentaremos demonstrar é que é através da transcriação da forma que a
possibilidade de diálogo se instaura. Um diálogo que não é discurso: é na configuração dos
textos que os universos se aproximam e se distanciam. É em sua transformação “em
diferença” que encontraremos o deslocamento necessário para que o leitor se confronte com
as múltiplas possibilidades de leitura e seja instigado a fazer conexões críticas.
3.1 A máquina do mundo repensada
A máquina do mundo repensada (2000) foi o último livro de poesia publicado por
Haroldo de Campos. Deixaremos o critério cronológico de lado e começaremos por ele, uma
vez que trata de um tema central para introduzir as diferenças básicas entre as visões de
mundo que perpassam as obras dos dois autores.
O tema vem de Dante. Foi oferecida a Dante a graça de, ainda encarnado, contemplar
o mundo do Além a caminho da salvação de sua alma. O terceiro estágio desse processo foi
sua chegada ao paraíso. E Dante teve a visão.
110
Nel suo profondo vidi che s’interna,
legato con amore in um volume,
ciò che per l’universo squaderna;
73
(Par.: XXXIII, 85-87)
Utilizando a metáfora de um grande livro para tratar de Deus e do universo por ele
criado, Dante nos abre um caminho para pensarmos as diversas transformações que seu
poema motivou na literatura. Um grande clássico da literatura mundial, a Commedia também
se “escadernou” ou se expandiu em muitas outras obras. Trataremos, neste item, da retomada
de apenas um tema: a máquina do mundo. Ao trazer novamente essa alegoria para seu livro,
Haroldo de Campos resgata mais dois poemas com o mesmo tema e amplia ainda mais o
leque de diferenças na semelhança, provocando questões e desenvolvendo possibilidades de
reflexão.
A Commedia é moldada de acordo com a visão de mundo cristã-medieval de Dante.
Como já vimos, para ter acesso ao paraíso, o poeta foi antes um peregrino: o homem que, “nel
mezzo del cammin” de sua vida, se desviou do Amor de Deus, precisou descer aos infernos,
em uma heróica katábasis, e galgar a montanha do purgatório até merecer banhar-se nos rios
do paraíso terrestre e, desse modo, purificar-se para a grande escalada à divina morada. A
visão de Deus é, por um lado, fruto de um merecimento; por outro, de uma dádiva. O poema é
então montado a partir de três grandes estágios da peregrinação do poeta, correspondentes ao
inferno, ao purgatório e ao paraíso.
Desde essa divisão mais básica, a estrutura do poema de Haroldo remete à da
Commedia e a transforma. Também construído em três partes, não trata do inferno, do
purgatório e do paraíso. Já notamos aí a mão que ao mesmo tempo aponta e recria: é a busca
de um peregrino que não mais se enquadra no caminho de Dante. Os três mundos do Além
não mais fazem sentido no percurso do poeta que escreve seu livro no final do século XX e o
edita no início do terceiro milênio. A divisão é mais um traçado para um peregrino da
literatura do que para aquele que almeja sua purificação. Os passos de Haroldo são outros.
Embora a forma ressalte a Commedia, o critério para a divisão em três partes é bem
diferente. Esta é a primeira tensão que move o repensar da máquina do mundo – e da
literatura.
111
73
“E vi na profundeza que se interna / ligado com amor num só volume / o que pelo universo se escaderna.” Trad. Haroldo
de Campos. (CAMPOS, H.: 1998, 155).
É com o universo ptolomaico, onde a Terra é o centro e Deus é o primo motor da
grande máquina do mundo, que Haroldo de Campos dialoga na primeira das três divisões de
seu poema longo. Um universo em que o poeta paulista não se insere.
quisera como dante em via estreita
extraviar-me no meio da floresta
entre a gaia pantera e a loba à espreita
(antes onça pintada aquela e esta
de lupinas pupilas amarelas)
neste sertão – mais árduo que floresta
ao trato – de veredas como se elas
se entreverando em nós de labirinto
destinassem – feras sentinelas
barrando-me: hybris-leoa e o variopinto
animal de gaiato pêlo e a escura
loba – um era lascívia e a outra (tinto
de sangue o olho) cupidez impura:
dante com trinta e cinco eu com setenta –
o sacro magno poeta de paúra
(CAMPOS, 2000, p. 13-15).
Haroldo começa seu poema trilhando o caminho de Dante e dele se desviando: a letra
minúscula do primeiro verso (que acompanha todo o poema) já assinala o eterno movimento
possível de recomeço contínuo – continuidade esgarçada, “escadernada”, feita por cortes e
retomadas – da literatura. A nova vereda do poeta é o caminho em espiral que pretende fazer
no poema, “se entreverando” (ficcionalizando?) de “labirinto” pela literatura. E assim Haroldo
vai apresentando um novo contexto, em combate amistoso com o primeiro, onde entrevemos
um outro espaço – a floresta é mais um sertão (veredas de Guimarães Rosa) – e um outro
tempo – a diferença da idade em que Dante começa a sua jornada e a de Haroldo, no momento
em que inicia a sua, não deixa de nos lembrar dos séculos que os separam.
Ainda nessa primeira parte, Haroldo se contrapõe e almeja também a sina de Vasco da
Gama, o herói de Os Lusíadas:
– quisera tal ao gama no ar a ignota
(camões o narra) máquina do mundo
se abrira (e a mim quem dera!) por remota
mão comandada – um dom saído do fundo
e alto saber que aos seres todo rege:
112
a esfera a rodar no éter do ultramundo
(Idem, p. 18-19).
Também para Vasco da Gama a máquina do mundo é ofertada como recompensa –
não da purificação católico-medieval de um peregrino que purga seus pecados, como Dante,
mas daquela do herói português que cruza os mares por sua pátria e por sua crença.
Logo depois, Haroldo introduz a experiência dos versos de Carlos Drummond de
Andrade no poema “A máquina do mundo”, do livro Claro Enigma. Também ao poeta
mineiro, a visão se oferece:
– drummond também no clausurar do dia
por estrada de minas uma certa
vez a vagar a vira que se abria
circuspecta e sublime a convidá-lo
no âmago a contemplasse (e se morria
(Id.,p. 21-22).
Mas Drummond recusa o que lhe é concedido:
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro
caminho seco sob o céu escuro
de chumbo – cético entre lobo e cão –
a ver por dentro o enigma do futuro
incurioso furtou-se e o canto-chão
do seu trem-do-viver foi ruminando
pela estrada de minas sóbrio chão.
(Id., p. 29-30).
A sorte de Drummond já não encanta o poeta paulista. A máquina a ele também se
ofertou, mas sua recusa acarreta a supressão do desejo do eu lírico revelado na forma do
“quisera”, que precede a introdução dos dois outros poetas nos versos acima destacados e que
não aparece neste caso. A entrada de Drummond no poema é seca também de desejo. E as
113
palavras de Haroldo nos versos acima ressoam a sobriedade e a dureza da escolha do mineiro.
Outro modo de apresentação é escolhido para a experiência de Gama.
Claro-amostrando os orbes e o que excede
Na fábrica e no engenho a humana mente
(a cena se passando numa séde
Sidérea de esmeraldas e irrompente
Chuveiro de rubis que a poderosa
Mão divina ao redor – sumo-sapiente –
Fizera constelar: e qual a rosa
Toda se abre ao rocio que a toca e qual
Desfolhada alcachofra antes zelosa
O entrefólio desnuda tal-e-qual
Ao bravo gama a máquina se oferta
Do mundo – e expõe-se ao olho de um mortal
(Id., p. 19-21).
Aqui vemos um outro contraste provocado pelo poeta: nos versos em que fala sobre a
máquina do mundo acolhida pela visão de Gama, Haroldo não se furta de reavivar todo o
brilho e a riqueza com que Camões coroa o momento em seus versos.
Haroldo de Campos retoma os três poetas que versaram sobre a máquina do mundo e
termina o cíclo ptolomaico com uma síntese do diálogo que vinha desenvolvendo.
- e todos: camões dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso estampado
minto: menos drummond que ao desengano
de repintar a neutra face agora
com crenças dessepultas do imo arcano
desapeteceu: ciente estando embora
que dante no regiro do íris no íris
viu – alcançando o topo e soada a hora –
na suprema figura subsumir-se
a sua (e no estupor se translumina)
- e que camões um rosto a repetir-se
o mesmo em toda parte viu (consigna) –
drummond minas pesando não cedeu
e o ciclo ptolomaico assim termina...
(Id., p. 30-32).
114
Substituindo a personagem Vasco da Gama pelo poeta que o cantou, Haroldo inclui
Camões no jogo de desdobramento entre autor e personagem que começa com Dante. Não
navegou Camões, assim como Gama? Não parte dele a visão de mundo que impulsiona a
criação da máquina do mundo? Não é ele o autor, assim como Dante e Drummond, de sua
própria máquina do mundo e da reação das personagens perante ela? A troca dos nomes
desestabiliza a afirmação de que o “ROSTO” foi visto e deixa entrever o lugar de que Haroldo
fala. Ao inserir o nome do autor do único poema em que poeta e personagem não se
confundem, Haroldo de Campos aguça nossa atenção e destaca que a máquina do mundo é
construção de Camões, deixando entrever sua mirada crítica em relação ao universo
ptolomaico e a impossibilidade de nele se inserir. Em outro trecho, encontramos um
movimento que explicita o que desenvolvemos acima.
– camões ao bravo gama todo-audácia
a máquina do mundo fez abrir –
(Id., p. 81).
O poeta reconstrói o caminho por onde inicia a sua jornada, mas que trilhar se tornou
impossível. Haroldo de Campos não se enquadra no ciclo ptolomaico: não parte da pré-noção
de que Deus é a máquina do mundo. Chamamos a atenção para o fato de que a recusa de
Drummond ainda se enquadra neste ciclo, uma vez que a “máquina” a ele se oferece. O
mineiro cético duvida e desdenha, mas, para isso, inclui em seu poema o objeto de sua recusa.
Haroldo, agnóstico, não afirma o que não conhece. A máquina do mundo, tema de seu poema,
não se revela a ele, não é um ponto em seu percurso. O poeta percorre o caminho das
descobertas humanas sobre o tema e se debruça sobre o desconhecido carregando consigo
dúvidas, nunca certezas.
Na segunda parte do poema, Haroldo discorre sobre a física e sobre as mudanças na
visão de mundo em relação a Deus e ao motor do universo. E reafirma seu desvio em relação
ao caminho de Dante.
já eu quisera no límen do milênio
número três testar noutro sistema
minha agnose firmando no convênio
que a nova cosmofísica por tema
estatuiu: a explosão primeva o big-
115
- bang – quiçá desenigme-se o dilema!
(Id., p. 37).
De Galileu a Einstein, a Terra é “deposta de seu trono”, o “espaçotempo se encurva” e
a presença do acaso se torna uma ameaça à onipotência divina. Haroldo de Campos dá um
destaque especial à ciência, ocupando-se de seu trajeto por toda a segunda parte. Ora, se para
Dante e para aqueles inseridos no que Haroldo chamou de “universo ptolomaico” a base do
pensamento pressupunha a presença (ainda que recusada) de Deus, para o poeta paulista essa
base se desloca para a ciência. Esta não lhe permite mais valer-se de Deus como de um a
priori. Ao mesmo tempo, a ciência, apesar de todas as suas descobertas, não apresentou, ainda
(?), algo “estabilizante” para ser colocado no lugar de Deus. Para Haroldo, se Deus não é uma
recusa, tampouco é uma certeza. Sobra a dúvida.
O poeta segue, então, na terceira parte, lançando seu olhar e sua imaginação de
agnóstico curioso sobre a gesta do cosmos, para tentar enveredar per se pelo caminho do
poeta florentino e – sem a pretensão de ver descoberta a máquina que move o mundo –
repensá-la, agora “pós-tudo”, em um novo contexto.
Na segunda parte de seu poema, depois de tematizar as mudanças que as descobertas
da física proporcionaram sobre a origem do mundo e o funcionamento do universo, Haroldo
começa, então, a sua própria jornada em direção à “máquina do mundo”.
Com esse paradoxo encerro a glosa
Que entreteci à borda do caminho
Da física evoluindo: deixo a prosa
ou relação desse meu descaminho
para tentar erguer-me até o mirante
de onde a gesta do cosmos descortino:
no imaginar me finjo e na gigante
lente de um telescópio o olho colando
abismo – apto a observar o cosmorante
berçário do universo se gerando:
recorre aqui o big-bang – o começo (?)
de tudo – borborigma desse ur-canto
(Id., p. 61-62).
Para ele, nada é ofertado. Ao contrário: o poeta, curioso, se lança na busca. A
metafísica dá lugar à física e esta, agora, é acrescida pelas dúvidas de quem – poeta e não
116
cientista – se permite imaginar outras possibilidades. O incompreensível não é nem negado
nem apaziguado por uma crença ou por uma certeza: permanece em meio ao jogo entre
conhecimento, imaginação e elipse.
do sol incinerado a sombra e pulsa
– umbra e penumbra – em jogos de nanquim:
sigo o caminho? busco-me na busca?
finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim
para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo do outrossim
e do outronão discuto o anjo e o sexo?
O nexo o nexo o nexo o nexo o nex
(Idem, p. 96-97)
Sua busca pode ser lida em metonímia no último verso do poema: o “nexo”, escrito
muitas vezes, aponta para a multiplicidade de significados que já se apoderou desse
significante, tanto no imaginário quanto na ciência. A busca pelo nexo acaba em “nex” – além
de um “nexo” que não se fixa em sentido, “nex” significa “morte” em latim. A busca do poeta
só acaba (?) com a morte, o nexo final é (?) a morte. Por outro lado, o “nex”, no “espaço
curvo” do poema, remete de novo ao começo do verso, um “O” maiúsculo e em negrito, que
completaria o “nexo”. O fim e o começo se imbricam, abarcando todos os “nexos” aventados
e apontando para o círculo (o “o” do começo do verso), forma perfeita que, no imaginário
cristão de Dante, simboliza Deus. Ligando novamente o poema de Haroldo ao de Dante, mais
uma vez se afasta: o círculo aqui se aproxima de um zero e sugere um eterno retorno ao
começo, na impossibilidade de concepção de um “fim”.
É este movimento de recomeço que percebemos também na retomada por Camões e
Drummond do tema da máquina do mundo. O diálogo com a tradição dantesca é multiplicado
pela retomada, em A máquina do mundo repensada, dos textos de Camões e Drummond.
Enquanto, em Os Lusíadas, Camões se vale de uma visão de mundo antiga, povoada de
deuses pagãos, para ressaltar a sua, cristã e aristocrata, em que a ciência pode muito – mas
não tudo (“Veres o que não pode a vã ciência / Dos errados e míseros mortais”), Drummond,
louvando o poeta florentino, em “A máquina do mundo”, desdenha de sua meta, recusando a
graça que lhe é oferecida (“a máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se
117
esquivava / e só de o ter pensado se carpia”). Já Haroldo apresenta o contraste das retomadas
poéticas e insere a sua: uma busca contínua pelo nexo do universo, baseando-se na mirada
intelectual-especulativa e poética a partir de um diálogo polifônico entre o conhecimento da
física, a mística judaica e experiências de sua vida e da literatura. O poeta não tem como meta
chegar a conclusões: o prazer está na busca.
Quando Haroldo de Campos – e os poetas com quem dialoga em seu livro – retomam
um tema de uma obra como a Commedia, pertencente à grande tradição literária, o processo
tem como um aspecto central a mudança da perspectiva em relação à visão de mundo que no
texto se insere. Notamos, tanto no poema de Haroldo quanto naqueles de Camões e de
Drummond, uma transformação instigante do horizonte de expectativa em relação àquele da
obra a que se referem – uma via mais repleta de diferenças, onde as semelhanças são pontos
de partida. Como são poetas, e bons poetas, essa transformação não se limita ao contexto ou à
diferença de visão de mundo. Ao contrário: daí partem para uma verdadeira alquimia poética,
ou seja, metamorfoseiam a mudança do horizonte de expectativa em uma nova forma,
tornando-os uma única e potente expressão poética.
O poema de Haroldo, assim como o de Dante, é escrito em terza rima, um
encadeamento em que o primeiro verso rima com o terceiro e o segundo com o primeiro do
próximo terceto. Na Commedia, esse procedimento, além de remeter à Santa Trindade,
proporciona uma coerência com o caminhar do poema, unindo seus passos e seus versos em
uma impressão de continuidade. Já no poema de Haroldo, entre vírgulas e travessões, o
caminho é entrecortado sobre os passos de Dante, assim como a retomada deste se mescla
com as outras trilhas aqui assinaladas. Muitas vezes, a leitura se transforma em um labirinto
de idéias e de textos, em que o leitor se vê perdido e induzido a voltar nas páginas para tentar
encontrar o nexo.
Sobre sua experiência, discorre o poeta em Depoimentos de oficina (2002).
De minha parte, decidi-me pela construção rimada, complicando o esquema com rimas
deliberadamente imprevisíveis (quase-rimas, apoios assonânticos, ricochetes anagramáticos,
etc.). Por outro lado, através de hipérbatos e torções sintagmáticas, procurei perturbar a
fluência normal do decassílabo, conferindo-lhe uma “sintaxe em abismo”, que roça, às vezes,
pelo “indecidível”. (CAMPOS, 2002, p. 64).
A perturbação da fluência normal do decassílabo dantesco em um poema como o de
Haroldo de Campos, que intercala tempos e espaços na retomada da tradição, é muito
118
pertinente. A forma se harmoniza com a proposta de seu poema, dissonando tanto da via reta
quanto da crença embutida na Commedia de Dante. Enquanto a proposta de Dante é
teológica e teleológica, a de Haroldo “roça, às vezes, pelo indecidível”.
Drummond também escreve seu poema “A máquina do mundo” em tercetos em
decassílabos, mas sem a rima. Aqui também podemos notar a pertinência da forma em relação
à matéria: Drummond não aceita a graça oferecida, magia que não advém do esforço humano
do conhecimento. Ele procurara entender o nexo daquilo que é compreensível, mas a visão
ofertada não lhe interessa. Assim como não rima com Dante, seus versos são brancos como a
recusa.
Camões, embora não utilize a terza rima e nem escreva em tercetos, compõe Os
Lusíadas com cantos, em uma provável alusão à obra de Dante. No mais, os faz em número
de dez (símbolo da sabedoria), como uma jornada humana (empreendida por Vasco da Gama)
pode ser pensada em relação a uma outra divina, em que os cantos chegam a cem (símbolo da
máxima perfeição).
Em Os Lusíadas, Camões permite a Vasco da Gama conhecer a máquina do mundo –
via graça concedida pela ninfa Tétis. Mas o português, pertencente a uma época menos
espiritualista (embora muito ligada ao universo cristão), não ascende ao paraíso: do alto de um
monte lhe é dada a visão e esta, começando no primo motor, desce até a Terra e percorre,
como o navegador, seus diversos continentes.
Vês aqui a grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus ninguém o entende
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(...)
Aqui, só verdadeiros, gloriosos,
Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingindo de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nessas estrelas pôs o engenho vosso.
(CAMÕES, 1572, 540).
119
Tétis lhe proporciona o contato com a máquina do mundo. Pertencente ao rol das
divindades da Antigüidade que acompanham a viagem de Gama, ao abrir o universo cristão
para o português, simultaneamente rebaixa o poder da antiga crença da qual ela mesma faz
parte e da própria ciência, que permitiu a navegação e os grandes feitos de seu interlocutor.
Dessa forma, a visão de mundo cristã se explicita com mais força na última parte do canto XX
de Os Lusíadas – em oposição à presença constante dos deuses antigos e dos feitos heróicos
dos navegantes – e se impõe, numa época de transição, legitimando todo o poema por meio da
graça de Deus.
Drummond recusa. Em seu poema “A máquina do mundo”, quando os céus a ele se
abrem e a visão lhe é oferecida, o mineiro, cético e já cansado de esperar por uma
compreensão metafísica, desvia o olhar para as pedras de seu caminho.
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
(ANDRADE, 1951, 199).
A retomada da alegoria também aqui se metamorfoseia, entumecida da visão de
mundo do poeta, no (em) poema. Desiludido e / ou desinteressado da metafísica, Drummond
recusa o que não pode ser pensado, o que se afasta do conhecimento humano. A pedregosa
estrada de Minas, seu caminho solo, é reafirmada como escolha. O encanto por Dante e seu
poema foi tema e foi “modelo” transgredido. Nem mesmo um mediador, como tantos na
Commedia, como Tétis em Os Lusíadas, existe em seu poema. A humildade cristã, que se
encarna na necessidade de um guia nos poemas de Dante e de Camões, não existe em
Drummond. A máquina do mundo, como se desacreditada e sem popularidade, desce dos céus
e se oferece ao poeta. O contato é direto. Mas a recusa aponta para uma profunda
desconfiança – temporal e espacial, talvez até mineira – em relação a tudo aquilo que o
homem não pode compreender.
O que tentamos ressaltar aqui é que as transformações do tema de Dante se
concretizam na própria forma dos poemas de Haroldo, Drummond e Camões. Na Commedia,
percebemos também o isomorfismo entre forma e conteúdo. Não se trata de dois itens
120
separados, mas da apresentação da relação entre conteúdo e forma, ou seja, de um terceiro
termo que aglutina a dicotomia e se transforma em “outro”. Já no final do capítulo anterior,
apontávamos para o conceito de elemento poético de Walter Benjamin. Encontramos esse
isomorfismo em todos os quatro poemas. O que nos importa desenvolver é a questão de como
a relação entre as obras se concretiza, em termos de uma mudança do seu elemento poético. O
tema em comum é a máquina do mundo e a referência primeira é a Commedia. O processo,
então, é o de uma “tradução” do elemento poético primeiro para outros.
O processo de mimesis encontrado nos poemas de Haroldo de Campos, Drummond e
Camões se comporta como uma “tradução” do elemento poético da Commedia para a
“língua” de outros tempos, ou seja, para outros horizontes de expectativas e outros modos de
apresentar suas questões. Os poetas partem de um mesmo ponto, a “máquina do mundo” da
obra de Dante, e recriam para ela uma nova forma, uma forma poética entumecida da visão de
mundo de cada um deles. Esses novos elemento poéticos provocam, obviamente, diferentes
possibilidades de efeitos estéticos nos leitores. Sendo o leitor conhecedor da obra da qual se
partiu, o pensamento crítico atravessa e perspectiviza não apenas sua recepção do poema que
lê, mas uma outra, aquela da experiência já vivida em relação à obra primeira. O processo se
desenvolve, então, na e pela diferença entre uma e outra recepção. Ou seja, o pensamento
crítico se intensifica quando advém de um diálogo em tensão entre duas ou mais obras.
Mais especificamente, apontamos para o fato de que, ao unir forma e conteúdo, ao
formular um elemento poético que, ao mesmo tempo em que condensa e apresenta o “instante
de vida” presente, ou o horizonte de expectativas presente, mantém um contato com aquele da
Commedia, os poetas provocam uma tensão entre as obras. Assim, o efeito estético
produzido pela configuração do poema se alarga ao entrarmos em contato com a sintaxe da
obra e muito provavelmente nos virá à mente o lastro do que percebemos quando, em algum
momento, lemos a Commedia. Desse modo, a experiência crítica também se estende de um
poema a outro(s) e se enriquece com as conexões e desconexões provocadas pela tensão entre
semelhança e diferença. No caso do poema de Haroldo, o processo se desdobra, pois ele
trabalha não apenas com a Commedia, mas também com as modificações produzidas por
Camões e Drummond. Como vimos acima, o poeta paulista provoca essa tensão em seu
próprio texto, ao transcriar os elemento poéticos pertinentes para cada uma das obras
referidas. Assim, quando em seu próprio elemento poético insere outros – como quando, por
exemplo, usa a terza rima de um modo diferente e condizente com a sua própria visão de
mundo; ou como quando, com seu modo próprio de configurar o poema, escreve mais
secamente ao tratar da experiência de Drummond e com maiores floreios ao inserir aquela de
121
Vasco da Gama – Haroldo provoca uma tensão entre as obras dentro de e com a sua própria, e
impele, através da experiência estética assim deflagrada, a um pensamento crítico quase em
abismo, que salta de um horizonte de expectativas para outro.
Trabalhando com o tema da máquina do mundo em quatro tempos diferentes, Haroldo
nos apresenta as mudanças de visão de mundo em relação ao modo de conceber Deus.
Parâmetro primeiro das concepções de mundo, a presença ou ausência de Deus é a base da
transcriação estético-cultural” realizada por Haroldo de Campos em todos os textos
selecionados.
3.2 Finismundo: a última viagem
Não mais um Deus pleno a julgar os homens, mas uma dúvida. É assim que Haroldo
se coloca em relação à metafísica. Mas e os homens? O que a falta de uma certeza em um
poder maior provocou nos homens? No que abalou sua vontade e sua confiança? E o herói,
tão presente por toda a Commedia de Dante, como seria o herói contemporâneo em relação
àqueles apresentados pelo poeta florentino? Em “Finismundo, a última viagem” (1990),
Haroldo de Campos apresenta o confronto e, em Depoimentos de oficina (2002), discorre
sobre a teoria envolvida no poema.
Sátira do mundo onde as ideologias entraram em crise e, ao mesmo tempo, celebração da
aventura incessante, sempre renovada, do conhecimento e da criação, imaginei Finismundo
como um poema “pós-utópico”, expressão que prefiro ao conceito já gasto e equívoco de
“pós-moderno”. Nele, a operação criadora é também uma operação tradutora. Contudo, ao
contrário do ecletismo e da aceitação conformista do passado, como ornamento
nostalgicamente inócuo, é o espírito crítico (resíduo inalienável da utopia em crise) o fator
que preside à escolha dos topoi e dos estilemas da tradição. Leva-se em conta, a cada vez, o
lema poundiano: make it new (fazê-lo novo). Lema que, sob esse ângulo, coincide com a
razão antropofágica de Oswald de Andrade: devorar: remastigar a herança cultural universal,
para “nutrir o impulso”: renovar. Reimaginar os dados do passado (a tradição no que ela tem
de virtualmente ativo) e reoperá-los sob a espécie da diferença brasileira na instância vital e
problemática do presente. (CAMPOS, 2002, p. 57)
122
Comparando a operação criadora à tradutora, em um poema como “Finismundo”,
Haroldo de Campos reforça a relação entre tradução e mimesis no que chama de poemas “pós-
utópicos”. Ambas são processos de transformação do texto primeiro a partir de um impulso
crítico e transgressor, de uma aproximação não-pacífica que joga com semelhanças e
diferenças. Mas, se em uma tradução entre línguas o que se busca é um “resgate cultural”, no
processo da mimesis criativa dos quatro textos com que trabalhamos , o telos é a tradução de
elemento poético.
A morte de Ulisses, herói das epopéias homéricas, foi vaticinada no canto XI da
Odisséia pelo adivinho Tirésias. Mas a expressão grega utilizada para definir seu destino é
ambígua: pode se referir tanto a uma morte longe do mar salino quanto à morte por sua causa.
Dante Alighieri segue a segunda opção e a tematiza no canto XXVI de seu Inferno. O
poeta-personagem e seu mestre-companheiro de viagem, Virgílio, encontram Ulisses ardendo
em chamas na oitava vala do Malebolge. Idealizador do cavalo que destruiu Tróia, o herói
grego teria sido o grande responsável pela queda do povo troiano que, segundo Virgílio conta
em sua Eneida, deu origem aos italianos. Em uma vingança-homenagem, Dante condena
Ulisses a habitar o círculo infernal destinado aos conselheiros fraudulentos.
O poeta florentino superpõe o imaginário grego ao latino-cristão, ao mesmo tempo em
que recria o primeiro a partir deste último, em uma instigante apropriação metamórfica de
textos e de personagens do passado literário. É dessa perspectiva que se desenrola o relato da
causa da morte de Ulisses.
Conta o herói que, não conformado em passar seus últimos dias pacificamente em
Ítaca, convence alguns de seus companheiros a realizar uma perigosa viagem: ultrapassar as
colunas de Hércules, marco do limite das terras conhecidas pelos homens na Antigüidade.
Peter Szondi (1929-1971), em seu Versuch über das Tragische (1961), aponta para
as mudanças da concepção do trágico a partir do século XVIII. Afastando-se de uma tradição
normativa iniciada com a Poética de Aristóteles, que pensava o trágico dentro dos limites
formais da tragédia como um gênero bem definido, Szondi reapresenta o conceito sob uma
perspectiva filosófica. Das diversas tentativas dos grandes filósofos alemães de estabelecer
um conceito universal do trágico, Szondi destaca a estrutura dialética “entre o absoluto e o
individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o particular”
(SÜSSEKIND, P. in SZONDI, 2004, p. 17). Liberto da fôrma da tragédia, o trágico pôde,
então, ser encontrado e investigado em outras manifestações artísticas.
123
Detectamos o trágico neste episódio da epopéia cristã de Dante: o herói, acometido
pela hybris, desafia (os) Deus(es) ao tentar navegar para além dos limites do humano. É da
tensão entre a vontade do homem de ultrapassar a sua condição e a força intransponível de seu
destino humano que se configura o conflito trágico no canto acima mencionado. Romper os
mares além do mundo dos homens, ir além do conhecido – hybris de um herói grego a
desafiar Poséidon uma outra vez. Entrar na senda do desconhecido por querer conhecer além
do permitido pelos deuses – a grande hybris dos heróis gregos – é o ponto de partida que
permanece, ainda que modificado, quando Dante faz a sua reviravolta e insere a hybris de
Ulisses na geografia e no horizonte de expectativas medieval-cristão.
Para além das colunas, na parte meridional do globo terrestre, haveria um imenso
oceano, em cujo centro se ergueria a montanha do purgatório – acesso ao paraíso terrestre de
Adão e Eva. A tentativa de chegar, por meios humanos, aonde só se vai pelo desígnio de
Deus, é a razão da morte do herói, que, já próximo da terra, é engolido pelo mar. Vemos então
a grande hybris que deflagra o destino trágico destinado por Dante a Ulisses: o herói grego
não consegue ultrapassar o desconhecido universo cristão – os valores da Antigüidade
sucumbem frente ao novo Deus. É a vingança de Tróia.
Haroldo de Campos, assim como Dante, recria sobre a tradição literária. Numa
vertiginosa transformação do tema, retoma o canto XXVI da Commedia em seu
“Finismundo: a última viagem”.
Aceitando o jogo proposto pelo poeta florentino, que coloca o herói grego dentro de
uma estrutura de mundo cristã-medieval, dá a sua primeira cartada: dirige o foco da leitura
para a hybris do herói. A última viagem de Ulisses (“Odisseu”, seu nome grego, utilizado na
primeira fase do poema “Finismundo”) está fadada ao fracasso, porque o herói ousa
ultrapassar suas medidas e tenta alcançar aquilo que não lhe é permitido.
Último
Odisseu multi-
ardiloso - no extremo
Avernotenso limite - re-
propõe a viagem.
(CAMPOS, 1997, p. 39)
A palavra “último” permanece sozinha, insinuando, também na forma visual, o
extremo, a última possibilidade. O epíteto de Odisseu, multi-ardiloso, se separa na
124
configuração do poema. Temos então, no segundo verso, “Odisseu multi-”, uma
condensação poética para as várias e diversas peripécias do herói e para suas possíveis
transformações através da literatura. Mas o verso também reforça a presença impositiva do
lexema “Último” e aponta para sua estranheza. Por que último? Certamente porque, de
todas as suas aventuras, de todas as “personagens” que encarnou, multi e ardilosamente,
esta será a derradeira – ao menos no mundo dos vivos. Mas o poema aponta uma
alternativa em sua segunda parte.
O próximo verso fica, então, “ardiloso - no extremo”, o que remete a uma hybris.
O neologismo “avernotenso” condensa a palavra “averno”, referente ao lago que seria,
segundo a mitologia grega, uma das entradas para o inferno, com o advérbio “tenso”,
reforçando o perigo. O “limite” para o “último”, “o extremo”, não é mais a montanha do
purgatório, mas o próprio inferno onde Ulisses será condenado. A viagem é “re-”
“proposta”. A separação em dois versos do prefixo e do lexema explicita que se trata de
uma nova Odisséia - metamorfoseada.
Haroldo enfatiza a hybris do herói, em um trecho extremamente bem trabalhado.
a desmesura húbris-propensa ad-
verte: não
ao nauta - Odisseu (
branca erigindo a capitânea
cabeça ao alvo endereçada) pre
medita: trans-
passar o passo: o impasse-
-a-ser: enigma
resolto (se afinal) em
finas carenas
de ensafirado desdém -ousar.
Ousar o mais:
o além-retorno o após: im-
previsto filame na teia de Penélope.
Ousar
(Idem, p. 39-40).
125
A ousadia do herói é encenada no poema, os signos “transpassam o passo”, ousam.
Eis o elemento poético desse Canto da Commedia transcriado em um outro universo
cultural pela forma. Na primeira parte do poema, em que Haroldo trata de um Odisseu
tomado pela hybris dos heróis, o horizonte de expectativas grego e “dantesco” é ressaltado
a partir da criação de um outro elemento poético. Extremamente “moderno” e
absolutamente grego, o trecho se apropria do léxico de Homero, da estória de Odisseu e do
Canto da Commedia e os re-configura, produzindo a hybris do herói e o fatal castigo
divino.
Odisseu foi. Perdeu os companheiros.
À beira-vista
da ínsula ansiada - vendo já
o alcançável Éden ao quase
toque da mão: os deuses conspiraram.
(Id., p. 42).
Continuando o jogo de Dante, Haroldo mantém Odisseu no híbrido cenário do mundo
dantesco: tendo ultrapassado as colunas de Hércules, limites de ummundo” originalmente
grego, o herói está prestes a alcançar a ilha em que se encontra o Éden cristão. Mas os deuses
– saídos do politeísmo homérico – conspiram. Odisseu naufraga nas águas cristãs-medievais e
é resgatado pelas redes pós-utópicas haroldianas.
Só um sulco
cicatriza no peito de Poséidon.
Clasurou-se o ponto. O redondo
oceano ressoa taciturno.
Serena agora o canto convulsivo
o doceamargo pranto das sereias
(ultrassom incaptado a ouvido humano).
(Id., id.)
O redondo oceano dantesco é o ponto cicatrizado que acolhe e incorpora, na
Commedia, a partir de uma visão de mundo cristã, o distante universo grego de Odisseu. O
canto/pranto “doceamargo” das sereias serena não apenas porque Odisseu não atravessará
126
mais seus mares, mas também porque o que se apresenta “pós-heróis gregos” – o ouvido e a
voz do homem comum – não é capaz de perceber o que “ultrapassa o som”.
É no segundo bloco do poema “Finismundo: a ultima viagem” que Haroldo traz a
figura do herói para seu próprio horizonte de expectativas e trata de um “urbano Ulisses
sobrevivido ao mito” (Idem, p.43).
O poeta mostra a impossibilidade da aventura e a falta de coragem – ou de motivação -
para empreendê-la dentro do universo do homem urbano e “moderno”. Desta vez não há
périplo e não há hybris. O homem não quer e / ou não pode ultrapassar as suas medidas. Os
deuses, impotentes, não chegam a ser desafiados.
Périplo?
Não há. Vigiam-te os semáforos.
Teu fogo prometéico se resume
à cabeça de um fósforo - Lúcifer
portátil e/ou
ninharia flamífera.
Capitula
(cabeça fria)
tua húbris.
(Idem, p. 43-44)
São três os tempos que se conjugam no espaço do poema de Haroldo de Campos: o da
antigüidade, o medieval e o contemporâneo. A hybris prometéica
74
desdobra-se na hybris
luciferina
75
, para capitular na “modernidade”. O frágil fogo de um simples fósforo já não
acende mais a vontade do homem de ultrapassar suas medidas – talvez por não saber delimitá-
las frente à velocidade do progresso. O cotidiano corta o mal pela raiz, e nosso anti-herói se
contenta com “um postal do Éden” (CAMPOS, H., 1997, p. 44). Odisseu homérico,
desafiador dos mares e dos deuses, é transformado em uma outra versão do Ulisses
joyci(cotidi)ano. Odisseu, dessacralizado, sobrevive como um Ulisses urbano, imediatamente
relacionado ao leitor e ao próprio poeta.
Urbano Ulisses
74
O Titã Prometeu desafiou Zeus ao roubar-lhe uma fagulha do fogo divino para dar aos homens.
127
75
Lúcifer desafiou a onipotência de Deus, reclamando para si mais poder. O excesso é condenável também no
imaginário cristão (Lúcifer, Adão, o episódio de Babel...). A hybris antiga continua valendo, ainda que
configurada segundo outros padrões.
sobrevivido ao mito
( eu e Você meu hipo-
côndrico crítico
leitor) - civil
(CAMPOS, 1997, p. 43)
Não há hybris, mas não podemos ainda destacar a existência do trágico no Ulisses
cotidiano de Haroldo de Campos? Ao contrário do herói tradicional das tragédias, o anti-herói
de “Finismundo” não age. Não pratica a ação pela qual poderia ser “castigado” pelo destino.
Permanece robotizado, apático em meio a sua rotina, como uma de suas máquinas.
factótum (polúmetis?)
do acaso computadorizado. Teu
epitáfio? Margem de erro: traço
mínimo digitado
e à pressa cancelado
no líquido cristal verdefluente.
(Idem)
Sua impossibilidade de hybris, a anulação de sua vontade, é a configuração do trágico
em sua vida. Assim como o herói se transforma em um anti-herói, sua tragicidade se
configura a partir de um avesso de hybris, uma apatia. Um estado desta vez não além, mas
aquém do humano – um estado-máquina. O trágico do homem moderno se apresenta como
resignação, o que nos remete ao capítulo do livro de Szondi sobre as idéias de Schopenhauer a
respeito do trágico: “A apresentação da autodestruição da vontade fornece ao espectador o
conhecimento de que a vida, como objeto e objetidade dessa vontade, ‘não é digna de sua
afeição’, levando-o à resignação.” (SZONDI, 2004, p. 54).
Mas a resignação, no caso do Ulisses de “Finismundo”, tem um traço de melancolia. O
poema termina com os seguintes versos.
Açuladas sirenes
cortam teu coração cotidiano.
(Idem, p. 52)
128
Extremamente feliz na composição dos últimos versos, Haroldo consegue concentrar
(o dichten poundiano, “condensare”), nesse pequeno espaço, o passado e o presente.
Açuladas
76
sirenes – sons irritantes, estridentes relacionados a problemas metropolitanos
(ambulâncias, carros de bombeiro ou de polícia) – cortam, navalham o apático e cotidiano
Ulisses. Ao mesmo tempo, excitantes sirenes – as sereias (sirena
77
, em português, siren em
inglês; sirène, em francês; sirena em italiano e em espanhol; Sirene em alemão) que tentaram
seduzir Odisseu no poema homérico – cortam o coração cotidiano do Ulisses urbano, incapaz
de navegar a seu encontro. Nessa última leitura, percebemos que o canto das sereias, apesar
do material isolante de que é feito o cotidiano, ainda produz o efeito de despertar o eco de
uma hybris impraticável nos corações dos homens “robotizados”.
Os ecos das sereias do passado pesam em seu cotidiano, tornando-o mais duro de
suportar. Podemos fazer uma analogia entre essa melancolia e a tradução tradicional, em que
o passado se apresenta como um fantasma desejado, mas impossível de ser recuperado. Seu
oposto, a hybris do tradutor, se faz notar no poeta que, contemporâneo de “Ulisses”,
consegue, através da arte, ousar. O poeta desafia agora não mais os deuses, pois deuses não
há, mas seu próprio destino trágico: cria e concretiza o poema apesar do universo
automatizante e conformista em que insere sua personagem, vinculada na obra também a ele e
a seu leitor.
3.3 Signantia quasi coelum – Signância quase céu
Em Signância quase céu o caminho de Dante é invertido. Assim como A máquina
do mundo repensada, Signância é dividido em três partes, ao modo da Commedia. É
também neste momento que Haroldo começa a introduzir a diferença: o percurso se inicia, sob
o título “Signatia Quasi Coelum”, em um “quase céu”; segue por uma via intermediária,
Status Viatoris: Entrefiguras”; e evoca os infernos, em “Esboços para uma Nékuia”. Não
mais um poema de ascensão, mas de queda.
76
O Houaiss eletrônico apresenta quatro entradas para o adjetivo açulado: 1 provocado para o ataque, para morder (diz-se
esp. de cão); instigado. 2 que se enfureceu; irritado. 3 cuja vontade ou energia (para realizar algo) foi estimulada; excitado. 4
que surgiu ou se intensificou (diz-se ger. de sentimentos); despertado.
129
77
O Houaiss eletrônico apresenta duas entradas para o substantivo sirena: 1 Rubrica: literatura. m.q. sereia ('ser mitológico') .
2 m.q. sirene
A epígrafe de Novalis acena para o novo cenário: “Das Paradies ist gleichsam über
die ganze Erde verstreut – und daher so unkentlich geworden
78
. A queda é a do próprio
paraíso, fragmentado e destituído de seu peso, que tomba na Terra. São os próprios signos
que, libertos do Discurso, “soam o acorde do uni / verso”.
O título da primeira parte, que coincide com o do livro, nos abre dois caminhos: (1)
“quase” céu é o limite, em um poema em que, ao contrário daquele de Dante, não comporta a
plenitude. Palavras espaçadas na folha branca de papel apontam para uma ordem
fragmentária. (2) Quasi, em latim, significa “à maneira de”. Donaldo Schüler sugere uma
glosa do título: “Coisas fazem sinal à maneira do céu” (Cf.
http://www.schulers.com/donaldo/haroldo.htm). Coisas como céu: mot-chose. Nasce o
universo de Signância.
A Glande de cristal desoculta uma ramagem de signos – desoculta a si mesma. Palavra
que pode significar, dentre outras coisas, a cabeça do pênis e o clitóris, a Glande de cristal
toma, com direito à maiúscula, o lugar do Criador. Deus é substituído pelo Falo. Esse
primeiro movimento já anuncia a dessacralização do Deus católico dantesco, apontando para
uma hybris. Um segundo movimento radicaliza a nova mirada: apesar de sua carga semântica
e de sua posição inicial no poema, a Glande de cristal não é a fonte criadora. Ela não “cria”
uma ramagem de signos, mas a “desoculta”. A idéia de origem está presente apenas como
130
78
O Paraíso está igualmente espalhado por toda Terra – e por isso tornou-se tão desconhecido.
uma alusão à Commedia de Dante e a seu universo ontológico. Os signos já estão. A Glande
de cristal apenas os “desoculta”, “desocultando-se” e, portanto, mostrando sua inoperância
como fonte criadora. Seria então o símbolo do Nada, um avesso ontológico? Entre a Glande e
a ramagem de signos, a transparência do cristal que não esconde a auto-referencialidade do
signo. A Glande de cristal, desoculta, é ramagem de signos. É assim que “soa”, para além
(visualmente além), o verso, não o Verbo. O badalar de um “sim-sino” é o começo. A
estrutura de base é a do Gênesis. Mas não há forças ocultas, não há Deus: de acordo com o
próprio poema, estamos diante de uma “teofania de signos”.
Universo de palavras que se auto-engendram e remetem a si mesmas e a outros signos.
Palimpsesto de signos. “Pó de luz” e / mas “palavras”. Escrita, criação de mundo, experiência
estética e epifania são os caminhos entrecruzados que percorremos em Signância.
131
A palavra epifania vem do grego epiphanéia e significa “aparição”, “manifestação”.
Seu processo, por um lado, funciona analogamente ao de uma experiência estética: algo
dispara a atenção do receptor, que imediatamente a desloca da “realidade” para um outro tipo
de “configuração de mundo”. A partir desse momento, os dois conceitos se afastam. A
momentânea “suspensão da realidade”, no caso da experiência estética, é impulsionada por
uma atração do receptor à “sintaxe” da obra. Para que ocorra o conhecido jogo entre
imaginação e entendimento, anunciado por Kant em sua terceira Crítica, é preciso que aquela
não se subjugue a este, ou seja, que a “semântica” não impere. Após o breve momento da
experiência estética, o receptor, já novamente em seu “modo de operação” costumeiro, pode
pensar crítica e discursivamente sobre sua experiência. Já na experiência epifânica mística,
uma mudança muito significativa ocorre: o breve momento de “suspensão da realidade” é
imediatamente preenchido por uma semântica. Aqui não é a “sintaxe” que prende a atenção
do receptor, mas uma semântica específica, “transcendente”, “outra” em relação àquela de sua
realidade cotidiana. Uma “epifania estética” seria, então, um oxímoro, uma vez que a primeira
promove uma “aparição semântica” e a segunda, um “vazio semântico”. A primeira
experiência guia o receptor; a segunda, após seduzi-lo, abandona-o à construção de seus
próprios “sentidos”. É justamente com a lógica do paradoxo que Haroldo de Campos trabalha.
A criação não é mais ontológica: é recriação, reconfiguração, relação entre o homem e
o mundo. Em um contexto onde Deus não mais “atua”, a palavra poética cria. A ponta do
lápis é o deflagrador desse novo mundo. As palavras criam / são o mundo. A possibilidade de
percepção desse mundo no universo construído por Haroldo de Campos – uma “epifania” da
obra – se volta para o próprio signo que a engendra. A “visão” se preenche com seus próprios
índices, a palavra é a “coisa”, uma vez que o transcendente só entra em jogo como “pó”,
como algo que a ela aderiu como restos sem outra função do que lembrar sua ausência.
Podemos notar que, afastada a doutrina da Commedia, a epifania permanece aqui no plano do
sensível. O signo é, ao mesmo tempo, “pó de luz”, “restos de sagrado” e “grafo”. A epifania é
o retorno ao próprio signo sensível.
132
O ato de escrever é apresentado como provocador de epifanias. Como possibilitador
da apresentação do “in / visível” que escreve. Do horizonte cristão persiste a estrutura,
desativada de seu telos religioso, que age a partir de um “resto” de carga semântica do
“sagrado” potencialmente ativo no signo. São os “restos potencialmente ativos” que, distantes
de seu antigo alvo, presentificam sua ausência no movimento epifânico que retorna ao signo.
A memória do que não é mais sublinha seu avesso apresentado. “Faíscas do sagrado” é o que
se pode alcançar em um mundo no qual a idéia de totalidade não é mais funcional. Traços,
grafia, criações estéticas. Os versos “escrever no vidro sentenças de vidro” apontam para seu
procedimento – a epifania não provém do que revela a escrita, mas naquilo que, sem revelar,
torna visível: seu potencial estético.
As estruturas e as palavras indicam um universo (bíblico, religioso, cristão) que não é
o apresentado no texto, algo que já esteve (além do) no horizonte do homem e que agora é pó.
Os conceitos desse universo não funcionam em Signância, mas a potência de suas formas é
retomada e recriada. Aquilo a que remetem é uma ausência que confirma sua presença como
signo-coisa. Por isso, esse movimento não é uma representação de algo. É uma apresentação
de uma transformação. Da transformação de signos que representavam coisas em signos que
são coisas. O signo que é “grafo” não remete “à” luz: ele é o “pó de luz” e é “grafo”.
E o poeta? O poeta, que na Commedia se desdobra em personagem, se transforma
também em signos no livro de Haroldo de Campos. É o duplo da Glande de cristal desoculta:
é ramagem de signos. A identidade, tão marcada nas personagens de Dante a partir de pecados
e virtudes, não se afirma no texto. O poeta faz também parte da “ramagem de signos”, existe
porque é / está nos signos do poema.
133
Os “consopros / do respiro total” se concretizam numa ressonância do “sim-sino”, do
primeiro poema aqui apresentado, na assinatura do poeta: “asSIM me / asSINO”.
Ressonância de signos, eco de eco. O eu-lírico se afirma como dissolução e parte de uma teia
de signos, aproximando-se do papel do sujeito que Hugo Friedrich identifica na “lírica
moderna” em seu livro Die Struktur der Modernen Lyrik: “A lírica moderna exclui não só
a pessoa particular, mas também a humanidade normal” (FRIEDRICH, 1956, p. 110).
Podemos relacionar o eu impessoal que encontramos no trecho acima do poema de Haroldo
àquele que Friedrich ressalta em Mallarmé: “em lugar do eu empírico sucede um eu
impessoal, que é a sede onde o “universo” realiza sua identificação espiritual” (Idem, 126).
Não apenas a “presença” de um eu impessoal, não apenas a espacialização visível das
palavras no papel, mas também a aproximação a uma “transcendência vazia” nos remete à
Mallarmé. O Deus pleno de Dante se inverte em um absoluto Nada em Mallarmé, que se
concretiza no silêncio branco do papel e se expressa por seu negativo: o preto sonoro dos
signos que, esvaziados de seu sentido usual, ressoa-O. É esse processo que indica Hugo
Friedrich: “processo mediante o qual a linguagem confere à coisa aquela ausência que a
iguala, categoricamente, ao absoluto (ao Nada) e que possibilita sua mais pura presença (livre
de todo o concreto) na palavra (Id., id.)”.
Haroldo de Campos insere o processo da poética de Mallarmé dentro na própria
estrutura do Gênesis e da Commedia, fazendo do mundo (dos signos) a apresentação concreta
do inexprimível: o som do silêncio. Propõe, via Mallarmé, um outro tipo de sagrado em um
mundo em que o dantesco não mais cabe. Um sagrado que, contrastando com aquele da
Commedia, é puro signo: a linguagem poética. Um sagrado profano que se deixa vislumbrar
em “epifanias estéticas”. É o que o texto não diz, mas provoca no leitor, em virtude do contato
desse leitor com sua configuração: uma experiência estética que incita a epifania. Mas a
134
“visão” provocada não é preenchida por um telos místico ou espiritual, ainda que negativo,
embora a estrutura do poema jogue com sua aproximação. Afastando-se também de
Mallarmé, Haroldo profana sua “essência pura”ontológica. A visão é a própria configuração
da obra, seus signos produzindo a percepção do “instante”, não da “vida”, mas da obra
concreta.
A realização desse mundo de signos se concretiza pelo mesmo caminho que
destacamos como um dos modos importantes de composição do Paraíso, a mimesis da
produção. O “paraíso” de Signância é puro significante. Suas referências adquirem sentidos
pela dinâmica do jogo do texto, pois são construções do próprio texto. Atrás das explosões de
sons, cores e luzes, o Nada. Hugo Friedrich ressalta que o poeta francês ultrapassou a idéia da
transcendência vazia e pretendeu o Nada. Signância quase céu é um poema que acompanha
esse movimento mais radical de Mallarmé. Mantendo a estrutura da Commedia, e
aproximando-se de Mallarmé, Haroldo de Campos transforma o “Todo” (Deus pleno e
absoluto) de Dante em “Nada”. Mas o sistema do texto apenas finge uma ontologia negativa.
A Glande de cristal torna-se uma referência, no poema, a uma (falta de) origem, que
imediatamente se nega e se desfaz, perdendo-se em signos. Afastando-se de um sentido
ontológico e teológico, um “quase-paraíso” se estetiza.
135
Nem o paraíso dantesco, nem um simples vôo de avião: a construção da cena cria uma
nova referência, um encontro de formas produz um “quase céu” ou um “quase paraíso”. O céu
– o pôr-de-céu, um céu de paraíso em ocaso – contrasta e se conjuga com o ambiente dentro
de um prosaico avião, colocado entre parêntesis no poema. E o encontro se dá: “uma janela /
ogiva o / por-de-céu”. O “o” ao lado de “ogiva” concretiza o olho humano dentro do avião,
enquanto a forma oval do poema o engloba, como “íris no íris”. O poema aqui funciona
analogamente à divina circunferência dantesca. Do “íris no / íris se faria o / paradiso”. Mas o
paradiso não se faz: a experiência estética não se transforma em epifania mística e “o olho
fosfóreo de Dante / (se enubla em licorosa luz néon”. A estetização da epifania é
136
extremamente pertinente. A estetização, neste caso, faz parte do jogo interno do poema e o
reitera: ramagens de signos sem fim. Sua presença se impõe na própria lógica do poema. A
epifania, no horizonte de expectativas do livro, tem de ser estética.
A segunda parte do poema, “Status Viatoris: Entrefiguras”, é a mais curta. Compõe-se
de um poema intitulado “enigma para júlio bressane” e de três outros, “figura de palavras:
vida” (1), (2) e (3). A vida se transforma em uma “figura de palavra”. Aponta e se contrapõe
à expressão “figuras de linguagem”, concretizando-a na palavra. A vida é apenas uma dessas
figuras possíveis. A palavra do poeta cria mundos.
O primeiro poema introduz a lógica dessa segunda parte: “o monstro caraíba”, o
“homem branco” como construtor e vítima de um mundo em que o valor das coisas se desloca
para a lógica do mercado capitalista. Signos enfraquecem, coisas e pessoas se debilitam
quando se transformam em mero objeto de troca. A palavra poética se atrita com a palavra-
veículo cotidiana, ressoando a dicotomia destacada por Mallarmé em Quant au livre (1895).
Ao contrário do “quase céu”, e também do inferno, essa parte traz poemas mais longos e em
blocos mais compactos, como se pesassem chumbo. Sugere um purgatório laico, a vida na
Terra.
A falta de hybris se torna o fardo que pesa em um poema cujo título é “figura de
palavras: vida (1)”. O limite diário que não se transpõe é o próprio estado entre-viário de um
“purgatório” morno que se instaura como vida entre o quase-paraíso e o inferno – entre dois
extremos. Um lugar, como lemos em “figura de palavras: vida (2)”, “de gerentes de venda /
marketing onde time / is money e money / is money is”.
O chamado “pós-moderno” se relaciona a uma saturação dos processos inaugurados na
“modernidade” com o capitalismo avançado, resultando no estereótipo de uma sociedade
apática e escravizada pela lógica do mercado. É o cenário que vemos montado na segunda
137
parte do poema. Podemos imaginar o Ulisses de “Finismundo” nesse “Status Viatoris”, onde
os fogos são de palha e as tempestades, no copo. Uma ruína de Odisseu traz consigo, em
pedaços impotentes, o herói e seu périplo.
O “Inferno em Wall Street” de Sousândrade é deslocado para o “purgatório” de
Signância, com seus gerentes de venda e sua lógica capitalista. Já o próprio Sousândrade
intervém como evocação de seu nome, ícone de seu “Inferno” e também da hybris do poeta,
na terceira parte do livro. O modo de composição do “inferno” de Sousândrade se metonimiza
no nome do autor, como potência luciferina de sua poiesis, e é destinado ao “inferno” de
Signância, pelo poder de sua hybris. Mas a substância pesada de seu poema, os homens, a
usura – inferno também dos Cantos de Pound – é alocada aonde a matéria é mais chumbo no
poema de Haroldo: no entre-viário cotidiano. Em um horizonte de expectativas em que Deus
não é juiz e nem está presente, a idéia de purgatório perde o sentido. Haroldo então o
renomeia: “Status Viatoris” e o traz para a mortal vida terrena.
Em “Status-viatoris” percebemos uma luta para que o signo não sufoque com o peso
de sua substância cotidiana. Apesar da matéria, aqui os signos não se enfraquecem com a
gravidade – ao contrário, se utilizam dela, deixando às claras o conflito.
a palavra pode isso
tudo pede
isso tudo
perde isso tudo papilas
amônia precipitada harmonias
contactos
pupilas
a palavra
amor êxtases emulsões
sinuosidades constelantes
nus
sob lentes grossas
sob uma ducha de nitrato de
prata
Separando a palavra “prata” de sua cáustica expressão “nitrato de prata” e colocando-a
sob um duplo “sob”, Haroldo reitera o palimpsesto de signos que constrói e explicita na
terceira parte do poema, quando coloca, ao final de uma página em branco, “) palim/” e, em
seu verso, “/psesto)”. A palavra pode e pede tudo – uma potência que revela a sua carência é o
estado do signo. Pode tudo, mas, para concretizar-se, pede tudo. E perde, muitas vezes, no
138
contato – precipitado – com o olhar cotidiano e ambicioso do homem. Todo seu êxtase pode
ser corroído “sob lentes grossas / sob uma ducha de nitrato de / prata”.
Mas uma visão estranha está presente em “Status Viatoris”, quase imperceptível no
cotidiano, agitando os humores e provocando a melancolia: são os signos, que trazem consigo
uma “falta”. No lugar de Deus, o mercado. Ou, ao invés da palavra poética, criadora, a
repetição em pequenas diferenças do mantra da pós-modernidade: o dinheiro, a palavra-uso,
vendida a seu significado. A falta, originária ou não, é o caminho apontado pelo poeta em
meio à “selva selvaggia” do cotidiano como aquele capaz de impulsioná-lo. Iluminando a
falta (de Deus, de hybris, do poético), o poeta introduz bolsões de ar no ambiente sufocante do
discurso impositivo do cotidiano.
Em “figura de palavras: vida (3)”, contrastando como torpor do dia-a-dia, “celacantos
provocam maremotos”. Haroldo se vale de uma frase que, na década de 70, foi pichada pelos
muros da cidade para provocar um “estranhamento”, como a pichação na época provocara, no
mote cotidiano do poema. Então, a “sem furor sem glória / sem pranto” se segue a
adversativa “mas celacantos”, e assim a frase é espalhada pelo poema até repetir-se, inteira,
no final.
É justamente a falta do “mágico”, recalcado em seu imaginário, que constitui o
calvário cotidiano do homem. Não mais “faíscas do sagrado / sob um ponteiro de diamante”,
mas “esqueletos polidos / poliedros / ecos de diamante”. As faíscas do sagrado se
transformam aqui em um cemitério de fósforos riscados – puro eco do que um dia foi. O
movimento se desdobra: o sagrado de Dante se metamorfoseia, na primeira parte do poema,
em “faíscas do sagrado” – possibilidades de epifanias laicas, estéticas. Em meio à
automatização cotidiana, são as “faíscas do sagrado” que se transformam em fósforos
riscados. Impossibilidade de hybris, impossibilidade de criação na era da reprodução. É o
“desencantamento do mundo”, prenunciado por Weber (cf. WEBER, 1904) a propósito da era
do capitalismo, que se contrapõe ao sagrado “mágico” do “espírito” cristão. E se contrapõe na
obra às “epifanias estéticas”.
A frase destacada, “celacantos provocam maremotos”, pichada por toda a cidade ou
espalhada pelo poema, interrompe por segundos o “sentido” do mundo prático e cotidiano,
propiciando um contato com algo inesperado e, a princípio, incompreensível. A frase era um
mistério para a maioria dos habitantes. Celacanto é um peixe “encontrado no oceano Índico e
restrito ao Sul da África, com até 1,80 m de comprimento, de corpo robusto, cabeça curta, alta
e com muita cartilagem, nadadeira caudal dificerca dividida em três lobos” (Houaiss). A frase
é uma referência a um seriado antigo japonês, “Nacional Kid”, em que celacantos
139
provocavam maremotos. Mas essa referência é praticamente desconhecida e a frase se impõe
como “apenas signos”, o que no poema reitera a proposta de uma “epifania estética” no
cotidiano. Por outro lado, celacantos são peixes abissais. O maremoto, a agitação vem do
fundo, ainda imperceptível nas superfícies adormecidas. O poeta introduz a faísca da hybris,
da insatisfação, do incômodo ao inserir essa frase em meio ao cotidiano do “make money”.
Perceber e entrar em contato com o estético em meio ao cotidiano é a saída sugerida pelo
poeta para suspender a automatização do mundo.
É interessante ressaltar como, apesar do horizonte de expectativas de Mallarmé se
contrapor ao de Dante e se aproximar do de Haroldo, dele também o texto nos deixa entrever
as diferenças. Haroldo de Campos nos apresenta, em Signância quase céu, uma outra
configuração de mundo e de obra. Segundo Marjorie Perloff, Ezra Pound foi o marco, na
poesia, dessa nova configuração, do chamado “pós-modernismo”.
A presença do cotidiano, do
político, do social no poema, ainda que funcionando como pólo negativizado, se afasta da
proposta de Mallarmé.
Haroldo provoca uma “epifania estética” não com a linguagem poética, mas com uma
frase que, além de se relacionar a um seriado de TV, foi divulgada por pichadores de rua. A
dicotomia entre linguagem poética e linguagem cotidiana se desfaz. Não é a “essência” da
linguagem (pura ou não) que provoca a epifania, mas sua configuração na obra, a lógica de
sua sintaxe, suas relações entre si e com os leitores.
Em “Esboços para uma Nékuia”, a terceira parte do poema, descemos aos infernos.
Nékuia é um ritual mágico de evocação dos mortos. Relaciona-se ao Canto XI da Odisséia,
em que Ulisses executa o ritual para descobrir, com Tirésias, o caminho de volta para Ítaca.
As palavras são novamente espacializadas no papel e a leitura ganha em possibilidades
de combinações. Os signos, mais do que em qualquer outra parte do poema, parecem rebelar-
se. Mallarmé de “Un coup de dés” mostra-se ainda mais presente na forma e, ao lado de
nomes evocados, como os de Sousândrade, Oswald e Kilkerry, encarna a hybris luciferina.
Se as palavras são “faíscas do sagrado”, os poetas são aqueles capazes de escrevê-las,
“sentenças de vidro”, no vidro. A queda, o “lapso luciferário”, aponta para a criação-hybris
dos poetas malditos citados no inferno.
140
Esse trecho se apresenta em duas páginas, sendo que a segunda começa a partir de “o
COSMO”. O caos se desdobra em crisálida e deles deriva o cosmo / borboleta-dragão. O
“leque íris de alas”, que remete ao célebre poema de Mallarmé, “Leque de Madame
Mallarmé”, atua aqui também como um livro - imagem cara a Dante e ao poeta francês –
símbolo cristão do próprio universo. O “leque íris de alas” é “fremente ventarola” – antes da
queda, “por um minuto / pleniluz”. Depois do LAPSO (luciferino), torna-se “leque fechado /
pó de letras / no vento”. E, como em zoom, vemos a queda da borboleta-dragão.
141
Aqui vemos a borboleta, as duas asas – ou as duas páginas por onde o poema se
prolonga como escrita puída. A disposição das palavras lembra um vôo em queda. É
interessante ressaltar que borboleta é farfalla em italiano. Dante usa a imagem da
transformação do “verme” em borboleta para se referir à conversão
79
. Em Signância, a
borboleta está ligada à criação, à potência atualizada do signo que, depois da queda, “falha” a
“fala”. Haroldo é feliz na montagem de uma borboleta em vôo a partir da palavra em italiano.
Além da sonoridade de bater de asas, a decomposição do lexema produz um efeito perfeito: é
a própria “falha na fala” (pós-“lapso luciferino”) que é concretizada, a palavra farfalla está em
ruínas e se assemelha visualmente a um bater de asas. Haroldo destaca a potência da palavra
em italiano, quando ressalta, pela tradução, a presença de “falla” na composição de farfalla,
que seria a conjugação da terceira pessoa no presente do verbo fallare, ou seja, (ele/ela)
“falha”. A queda já estaria em potência na própria criação, mesmo quando ainda “pleniluz”.
Mas é na “falha” que a fala se diz.
Seguindo por esse caminho, voltamos a um verso-pergunta do quase-céu: “o índigo é
um caso do azul”? É o “SOL roxo / índigo” que encontramos no “inferno” de Signância.
142
79
“Non v’accorgete voi che noi siam vermi / nati a formar l’angelica farfalla, / che vola a la giustizia sanza
schermi?” (PUR., X, 124-126).
A hybris luciferina se apresenta como o “êxito ao revés” do Criador. Remetendo mais
uma vez a um poema de Mallarmé, “L’azur”, o azul é a marca da transcendência, nesse caso,
da “transcendência vazia” já mencionada acima. Assim como a falha é uma parte da borboleta
(farfalla), o índigo pode ser um caso do azul: o “êxito ao revés” é apresentado pelo poeta
como uma parte da palavra “azul” – a parte sem asas (az), sonoramente em queda (Ul).
Tudo é signo e o êxito é sua concretude – o poema. Não chegar a Deus, mas construir
a obra. O “entre-viário”, onde tudo se repete, é o pólo mais negativizado de Signância. A
hybris do poeta, evocada por seus nomes, é análoga à criação do mundo – é tudo uma questão
de signos – e o “inferno” toca o “paraíso” – o avesso da mesma moeda.
A sacralização da poesia em Mallarmé aponta para um telos, ainda que vazio: uma
trancendência vazia, o Nada. Os objetos precisam se anular para tocar sua essência pura. Esse
processo se alcançaria com a poesia. Em confronto com a linguagem poética, a linguagem
cotidiana ressaltaria o “impuro” dos objetos. O poema de Haroldo, seguindo a cartilha de
Mallarmé, aponta para o próprio poema, para sua concretude, para seu potencial estético, mas
não se propõe a alcançar a essência pura do objeto. Ao contrário, sua escrita se desnuda, se
“desoculta”: é “pó de luz” e / mas “palavras”, “grafo”.
A queda é a marca primeira do processo de inversão que se faz da Commedia. Outros
movimentos no mesmo caminho que destacamos foram a oposição entre o Deus pleno de
Dante e o Nada de Mallarmé; a diluição da figura de um poeta-personagem em signos; a
valoração do “inferno” e sua conexão com o “paraíso”, tanto em termos de “criação” quanto
na própria espacialização das palavras no papel; o deslocamento do purgatório para o mundo
cotidiano terreno e a negatividade a ele atribuída. Mas a re-configuração poética de Signância
não se esgota em si mesma. A virada traz consigo uma espécie de “re-codificação” da
modernidade, deixando entrever um horizonte de expectativas que conflita com o da
Commedia e com o do poeta-crítico francês. Haroldo de Campos, ao mesmo tempo em que
apresenta seu próprio horizonte cultural no modo de construção do poema, introduz a
143
possibilidade de uma mirada crítica sobre ele. O jogo entre as semelhanças e diferenças – o
jogo da mimesis – entre horizontes de expectativas transcriados em unidades estéticas, entre
elemento poéticos, deflagra o pensamento crítico.
O confronto que o poema propõe entre o Todo dantesco e o Nada de Mallarmé
constrói um sistema que se finge ontológico para apresentar o avesso daquele da Commedia.
A mimesis da produção recolhe fragmentos do mundo e da literatura e constrói uma lógica
própria. “Dante” e “Mallarmé” não são mais “Dante” e “Mallarmé” no poema de Haroldo –
são peças de um jogo que, estimulando o confronto, dispara o pensamento crítico e
comparativo. Ainda que, em Signância, o “Todo” dantesco seja análogo e contrário a “Nada”,
esse movimento é apenas uma parte do jogo. Ele se apresenta mais como um contraponto ao
Deus de Dante e uma afirmação de um terceiro horizonte de expectativas em jogo do que
como uma origem ou telos (apesar de “fingir-se” como). O aqui e agora é o telos – o próprio
poema. A questão da transcendência é deslocada de fim para meio – é por meio do jogo de
contrastes entre a transcendência em Dante e em Mallarmé que o poema se faz estético e
crítico, abrindo uma terceira via entre os absolutos “Tudo” e “Nada”. O jogo é estético, mas
não se estetiza em um vazio estéril. Ao contrário, abre vias críticas que partem do
desnudamento de seu próprio jogo: a Glande de cristal desoculta.
A Glande de cristal desoculta é a criação, o texto como ramagem de signos. É o que
fazem os poetas presentes no inferno de Signância. A origem da criação, em um mundo sem
Deus, não é fixa. Os poetas são quase-deuses, capazes de criar múltiplos mundos concretos.
Desestabilizando as idéias de origem e de telos, Haroldo de Campos deixa entrever o caminho
de seu jogo – nem o Todo dantesco nem o Nada de Mallarmé, mas uma terceira via, uma via
crítica por comparação estética. Uma interferência entre mundo e escrita.
3.4 Galáxias
Galáxias foi escrito entre 1963 e 1976 e publicado, pela primeira vez, em 1984. O
livro é composto de dois “formantes” (nomenclatura do autor), o inicial e o final, e de 48
“fragmentos” (idem), resultando em 50 páginas de “proesia”. Os formantes, reversíveis, pois
144
fim e começo se confundem na obra, funcionam como molduras para os fragmentos, cada um
concluso em si mesmo (“páginas-mônadas”, segundo o autor
80
).
Diferentemente dos outros textos de Haroldo aqui apresentados, Galáxias não remete
pontualmente à Commedia. O que encontramos de concreto são citações ou menções à obra
de Dante, assim como às de muitos outros autores. Uma obra extremamente “aberta”, em que
o significado é instável e metamórfico, suas várias possibilidades de realização se concretizam
em múltiplas entradas de leituras. É certamente pertinente compará-la com a épica homérica
ou com a escrita de Joyce ou Pound ou entendê-la pela via do chamado “neo-barroco”. Mas
acreditamos que a presença da Commedia em Galáxias seja mais intensa do que possa
parecer à primeira vista. Em nossa leitura, destacamos Galáxias como o texto que
potencializa ao máximo o processo que Haroldo desenvolve em relação à Commedia. Vemos
cintilar a Commedia, totalmente metamorfoseada e fragmentada, na própria estrutura de
Galáxias, como uma sua “outra” possibilidade de concretização a partir de uma cosmovisão
contemporânea.
3.4.1 Uma viagem na escrita
A epígrafe de Signância quase céu pode ser discutida também aqui. O cenário de
Galáxias não é o céu nem o inferno. Estamos na Terra – no “entre-viário” de Signância. O
cenário é o mundo terreno. Mas seu mote não é a apatia. Em “Finismundo: a última viagem”,
Haroldo nos apresenta um anti-herói desprovido de hybris, em um mundo que parece não
conter mais desafios. Também em Signância, os homens se automatizam no mundo
massificado das leis do mercado. Em Galáxias, olhamos o mundo pela reconfiguração que
dele faz o poeta. Haroldo repropõe a viagem ainda outra vez: contra a apatia e o
conformismo, a curiosidade e a hybris.
O tema da viagem se desdobra. Por um lado, os fragmentos se desenrolam em
localidades como Espanha, Itália, Alemanha, França, Suíça, Estados Unidos, México, Brasil;
por outro, a viagem segue a via dos interesses do poeta: re-visitamos com ele Homero, Dante,
Hölderlin, Bashô, Joyce, Pound. Essas duas entradas se entrelaçam no texto e se transformam
em uma terceira viagem, a viagem do leitor pela escrita. Relacionando, modificando e
145
80
Cf. CAMPOS, H., 2002, p. 42.
fundindo espaços, cenas e leituras, Haroldo de Campos nos incita a uma mirada estética e
crítica sobre o mundo, a partir de uma viagem na escrita.
A viagem não é linear. Não é ascendente, como a do poeta florentino, através da qual a
personagem se instrui no intuito de, ao retornar ao mundo dos vivos, divulgar aquilo que viu e
que aprendeu “para anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe é revelada
durante a sua caminhada” (AUERBACH, 1997, p. 59). Não é também descendente, como em
Signância quase céu. A narrativa, o percurso da viagem, o tempo, os momentos ápices, as
personagens: tudo isso é apresentado ao leitor em fragmentos em Galáxias. Na construção da
macro-estrutura de sua obra, o poeta ressoa, como Dante o fez na Commedia, seu próprio
horizonte de expectativas.
A Commedia, ao lado de sua aparência linear, também apresenta uma configuração
circular. O final é o início do começo - é a partir de quando Dante pode começar a escrever
seu poema. O começo, ainda que em meio a uma selva oscura, é a realização vitoriosa da
proposta do fim (a personagem cumpriu o percurso da conversão e voltou para escrever seu
livro). A circularidade da Commedia pode ser lida como análoga à forma com que Dante
apresenta a Trindade – o círculo, a forma perfeita, Deus, sua concretude, Cristo e obra. O
poeta constrói a visão para seus leitores. Galáxias é escrito em arabescos, mas sua
circularidade não comporta a Trindade. O começo se confunde com o fim em um eterno re-
começo, sempre em diferença, e as idéias de origem e de telos ficam esquecidas no passado.
A circularidade é a escrita que se re-escreve, é a prática da intertextualidade: “escrever sobre
escrever é o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites milumapáginas ou
uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas mesmam ensimesmam onde o fim
é o começo” (CAMPOS, H., 1984, “e começo aqui”).
Somos impulsionados pela forma a experimentar o eco que re-começa eternamente na
escrita de Haroldo. Eco de textos, de signos, de sons: “e me projeto eco do começo eco do eco
de um começo em eco no soco de um começo em eco no oco eco de um soco no osso”
(Id.,id.)
As assonâncias e aliterações do trecho destacado também ressoam a proposta da obra.
“Ouvemos” o “eco” do eterno recomeço – em diferença – na materialidade da escrita. Da
mesma forma, detectamos esse eco quando Haroldo distribui e repete, pelos fragmentos,
expressões e palavras. Temos então a utilização diferenciada desta ou daquela “palavra-
chave” ou “estrutura-chave”. “Eco”, “oco”, “soco”, dentre centenas de outros exemplos,
ressoam espalhados pelo livro, enquanto sublinham, metalingüisticamente, a proposta de
Galáxias. O livro é eco e é citação. Galáxias, assim como a Commedia, cita outros textos e a
146
si mesmo o tempo todo, concretizando a aspiração benjaminiana de presentificar o passado
como a diferença de si no outro.
Percebemos em Galáxias – em contraste com a viagem teleológica de Dante, cuja meta
é sua própria redenção – o ecoar do homem contemporâneo, fragmentado e sem um rumo
determinado para seguir. O telos perde sua importância, pois o poeta louva a viagem. A
viagem na linguagem amplia os caminhos, os torna curvos, maleáveis, dobráveis: “pli selon
pli”.
O caminho de Dante é, apesar de tudo (apesar de atravessar o inferno), um caminho
sem riscos. Sua graça já foi concedida desde que um guia foi escolhido, por Beatriz, para
levá-lo até o paraíso em segurança. Virgílio o conduz por seu percurso até o paraíso.
Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o
real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode
perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopéia (LUKÁCS, 1920, p.
26).
Ainda encontramos, na epopéia cristã, os pressupostos da épica homérica: um a priori
constitutivo, que configura A Commedia como uma totalidade fechada, em que “as respostas
são dadas antes mesmo de serem formuladas”. Desse modo, “a imanência do sentido à vida é,
para o mundo de Dante, atual e presente, mas no além: ela é a perfeita imanência no
transcendente” (LUKÁCS, 1920, p. 58-59).
No caso de Galáxias, podemos notar que as “respostas” não estão dadas. Haroldo de
Campos propõe ao leitor uma viagem por uma galáxia de signos e não promete segurança.
Dante é guiado por Virgílio até sua já certa redenção; o poeta paulista confia a seu leitor-
viajante seus próprios passos no caminho: “não peça que eu te guie não peça despeça que eu
te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me
desamargue” (CAMPOS, H., 1984, “circuladô de fulo”). E não acena com um destino. Se o
leitor quiser embarcar nessa viagem, será pelo prazer de caminhar, “porque no ir é volta
porque no ir revolta” (Idem, “fecho encerro”).
O leitor, peregrino em constelações de signos, tem de assumir papel ativo na viagem
contemporânea pela literatura, pois o poeta, seu companheiro de viagem, já não pode e já não
quer mais guiar: “se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá
ensinamento” (Idem, “circulado de fulo”). É finita a época dos tutores e dos guias: “não guio
porque não guio porque não posso guiá” (Id.,id.). Os tempos são outros. Dentro de uma nova
147
visão de mundo, inserido em um outro momento histórico, Haroldo muda o andamento do
jogo: o livro é a viagem, o caminho é o destino e o leitor nele já se encontra, quando apenas
começa. A viagem é a experiência do escritor e do leitor na própria linguagem.
O a priori do livro é a própria busca desejante. Um de seus fragmentos traz,
metonimizada, a curiosidade che move le galassie. Trata-se do fragmento “passatempos e
matatempos”, em que acompanhamos um “miniminino”, desejante como Eros, em busca de
uma estória: “belabela me diga uma estória de vida mas a bela endormida de silêncio
endormia e ninguém lhe contava essa estória se havia” (CAMPOS, H., 1984, “passatempos e
matatempos”). Depois de muitas aventuras por um caminho de perguntas sem respostas,
Haroldo expõe metadiscursivamente sua proposta de leitura e seu método de criação.
mas ninguém nemnunca umzinho pode saber de tal fada seu conto onde começa nem mesmo
onde acaba sua alma não tem palma sua palma é uma água encantada vai minino meuminino
desmaginar essa maga é um trabalho fatigoso uma pena celerada você cava milhas adentro e
sai no poço onde cava
(Idem).
A estória não é contada. A busca se torna a estória. Por isso a lenda “não-diz só da
voltas”. É o caminhar a meta do peregrino dessa viagem. Os signos não são a expressão de
algo “além” do texto, “sua alma não tem palma”. É no sensível que nos depararemos com o
encanto, um encanto fluido e metamórfico: “sua palma é uma água encantada”. Instigando a
busca, a voz do poeta sugere que “desmagine a maga”, assim como ele mesmo o faz, em seu
“epos sem estória”. O trabalho é árduo porque é incessante, como um uróboro, eterno circular.
Cada fragmento é uma “totalidade instável” que se forma e se reforma em si e em relação com
os outros no ato da leitura.
A viagem agora é como o livro “escadernado” dos versos XXXIII, 85-87 do Paraíso,
enxuto de suas bases católicas. Haroldo também se utiliza, em Galáxias, da metáfora do livro,
mas, ao contrário de em Dante, ela não se remete a um telos específico. O livro é a viagem, é
o movimento, é seu próprio “escadernamento” – “o ser do livro é a viagem (CAMPOS, H.,
1984, “e começo aqui”). Uma viagem em que a multiplicidade converte o absoluto de uma
origem e de um telos em instabilidade da escolha.
O Livro de Dante é um símbolo de Deus, pleno - o todo acontecendo eternamente. O
livro de Haroldo, suas Galáxias, lida com o todo como potência. O livro é constante mutação,
148
um palimpsesto de signos que são ativados e desativados, que soam, ecoam e se calam. Tudo
pode ser, quando se é constante transformação, porque nada se é.
Sem um conteúdo fixo, a busca só pode apontar para si mesma e desloca a escolha da
fixação (momentânea) do significado para seu leitor. O “escadernamento” é o que importa e o
que se concretiza na escrita, onde nos deparamos com citações de leituras e memórias de
viagens entrelaçadas, configuradas como um universo próprio e fragmentado.
Experimentamos, então, na forma, a mudança da cosmovisão de uma e de outra viagem.
Dante, em um percurso linear e ascendente, do inferno ao paraíso, nos conduz em uma
escalada, rumo à conversão católico-cristã. Haroldo não conduz: constrói um labirinto de
fragmentos e convida o leitor a perder-se. Louva-se a hybris, o ir além de si sem culpa e sem
penitência: sem Deus, sem telos, sem verticalidade – em arabescos – Galáxias apresenta um
mundo em que o homem (escritor e leitor) é o responsável pela criação.
A escrita descontínua, as recorrências e a ênfase em sua materialidade abolem o tempo
linear e rompem as fronteiras do espaço. Nesse espaço / tempo descontínuo,
cinematográfico
81
, personagens históricos e fictícios não estão, como na Commedia,
inseridos em uma ordem moral e hierárquica, mas convivem numa espécie de concerto
dodecafônico, que se harmoniza com a visão de mundo contemporânea. O caminho é
sincrônico, não-linear. Tempo e espaço se instauram em um presente que se refaz e se re-
molda a cada página, a cada leitura. Galáxias se aproxima da simultaneidade do paraíso
dantesco. Configura-se como na memória humana – um “eco” da simultaneidade da Memória.
A memória em Galáxias tem, como na Commedia, um papel de extrema importância.
A requisição à memória não visa à rememoração, mas à criação de um presente: “e não me
peça memento mas more no meu momento desmande meu mandamento” (CAMPOS, H.,
1984, “circulado de fulo”). Não se tem, em Galáxias, a preocupação em resgatar algo – ou
Algo – pela memória. Mas como também na Commedia, ela funciona aqui como
deflagradora da mimesis artística, ou seja, como um dos ingredientes para a criação. A
diferença é que Dante constrói sua obra de modo a criar uma “ilusão” de que sua trajetória é a
expressão de sua lembrança – tem a Memória como telos. Já em Galáxias, a memória é
propositalmente esgarçada, afirmando tanto sua impossibilidade de inteireza quanto o
benefício do esquecimento – sua possibilidade de criação. Restos e traços de memória são a
“poalha de fábula” que se entrevê no tecido da escrita: “um cisco no olho do silêncio é a
fábula” (Idem, “o que mais vejo aqui”).
149
81
“Para o Julinho (Bressane, que posteriormente filmaria e dirigiria, ao lado do poeta, dois vídeos inspirados no livro de
Haroldo de Campos) as Galáxias não têm mistério: são puro cinema.” (CAMPOS, H., 1992, p.277).
O poeta, que em A máquina do mundo repensada se apresentava “inteiro” como
Dante, autor-personagem demarcado pelo tempo (a idade dos poetas é mencionada em ambos
os casos e o Zeitgeist é delimitado) e pelo espaço (Dante, um florentino no mundo do Além;
Haroldo, um brasileiro no mundo terreno); que em “Finismundo” se introduz apenas por uma
fala que o conecta ao leitor e a seu anti-herói; que em Signância se dissipa, misturando-se aos
e concretizando nos “con-sopros” textuais; em Galáxias se deixa perceber personagem pelos
traços de sua memória. Fragmentos de memória apontam para um homem contemporâneo,
também fragmentado, com seu “eixo móvel”. Distante do mundo dantesco, em que o homem
é a “imagem e semelhança de Deus”, o poeta-personagem de Galáxias se apresenta em
fragmentos metamorfoseados – se apresenta também “escadernado”. Leitores de Haroldo de
Campos podem perceber os traços de lugares por onde o poeta viajou, pessoas com quem se
encontrou, além de seus interesses literários. Nas Galáxias de Haroldo, cintilam seu percurso
intelectual e sua vida. Encarnando novamente poeta e personagem, Haroldo se revela
companheiro de viagem à medida que compartilha com os leitores “restos” de suas memórias.
Mas o poeta não narra: “pretendi escrever um epos sem ‘estória’, ou cuja estória fosse nada e
tudo ao mesmo tempo: uma plurinarrativa e o ‘grau zero’ do narrar” (CAMPOS, H., 1992, p.
271). Não conta uma estória: “não conto porque não conto porque não quero contar”
(CAMPOS, H., 1984, “cadavrescrito”). Monta possibilidades de o leitor experienciar uma
viagem em sua escrita: “pois é bem isso que não se pode perder de vista: em Galáxias, não é o
relato que importa; não o que se diz com a ajuda da linguagem, mas o que nela se diz.”
(COSTA LIMA, 1989, p. 337).
Quando estamos, por exemplo, em Paris, na sala oval do Musée de l’Orangerie, frente
aos quadros imensos das ninféias de Monet, percebemos que é através da escrita que temos a
experiência de uma nova cena. A viagem do leitor é estética.
circulado de violeta dentro do âmbito pérola onde os sapatos rascam no soalho e ladrilham em
eco só no centro do oval pérola e súbito aquele violeta que envolve como um dentro de
aquário você está dentro é o peixe deste aquário parietal que te cerca de luz violeta e lilás de
luz azul e cinza hulha de luz negroturquesa esflorada de capilares róseos aqui monet deu o céu
lance de dados jogou tudo e pagou para ver e toda pintura coube num precinto violáceo
constelado de ninféias esgárceas
(CAMPOS, H., 1984, “circulado de violeta”).
O olhar do poeta nos convida a nos transformarmos em peixe para mergulharmos na
experiência da forma não apenas das telas de Monet, mas também do ambiente que cercam,
150
ampliando a experiência estética do quadro para todo o seu entorno e inserindo nossa
presença também na obra. Saindo do museu, até o metrô se estetiza: “entrar agora por este
fosso e sair pelo outro lombrigocego por estes intestinos de cimento iluminado ouvindo o
ruído de fundo dos trens” (Idem, id.).
Em um outro momento, em um outro fragmento, nos deparamos novamente com a
imagem do peixe. Este agora é o exemplo de Ezra Pound, em seu livro ABC of Reading, de
como pensar “modernamente”. Segundo ele, é o método dos biólogos contemporâneos, o
exame cuidadoso e direto da matéria e sua comparação com as outras, o melhor modo de se
estudar poesia e literatura. Conta, então, uma estória sobre Jean Louis Rodolphe Agassiz,
zoólogo suíço-americano, que insistiu com um estudante sobre a necessidade da observação
empírica e cuidadosa de um peixe para seu mais amplo entendimento. No fragmento de
Haroldo, a referência é transformada e apresentada também esteticamente: “agassiz em
cambridge aquele mesmo do apólogo do peixe the sunfish ichthus heliodiplodekus agassiz
and the post-graduate student contado por ezra pond olhe para o peixe olhe para o peixe olhe
paropeixe o jeito é olhar para o peixe” (Id., id.). Em um fragmento que trata de pesquisas e
experimentos, Haroldo nos aproxima de seu método próprio de escrita e de leitura. É na
materialidade da escrita que deve se concentrar seu leitor – sua experiência deve ser empírica.
Essa é a viagem proposta pelo texto. O olhar, que em Dante deve se afastar do mundano e se
preparar para ver o “absoluto” no processo da conversão, volta-se aqui para a matéria
sensível.
Em lugar de um significado pré-determinado ou pré-fabricado, instaura-se o jogo. A
estrutura “aberta” de Galáxias é um convite para o leitor participar ativamente e de forma
radical na construção de (múltiplos) significados. Lukács falava sobre o romance
(possibilidade moderna da épica, segundo ele) como um gênero “em processo”, que precisa
englobar o “devir” em sua constituição (para, segundo a proposta de Lukács, formar uma
totalidade). Galáxias é uma obra “em processo”, mas como no work in progress joyceano, o
“devir”, a meta teleológica, o adiamento de “algo” não está presente. Isto porque o “processo”
é o livro e o telos se dissolve na importância dada à própria busca, ao percurso, à viagem.
Ressaltamos um interessante ponto de convergência entre os dois poetas: ambos, de
um modo ou de outro, pretendemformar” seu leitor com sua escrita. No caso de Dante,
podemos perceber por toda a Commedia a preocupação do poeta em chamar a atenção do
leitor para o modo de construção de sua obra. O poeta florentino quer que seu leitor perceba
aquilo que está por trás dos véus, sua doutrina. Por isso chega, por exemplo, a descortinar
para seu leitor algumas alegorias.
151
Aguzza qui, lettor, bem li occhi al vero,
ché ‘l velo è ora bem tanto sottile,
certo che ‘l trapassar dentro è leggiero.
82
(Pur. VIII, 19-21)
Ao chamar atenção para a doutrina a partir do modo de construção de sua obra, Dante
guia não apenas o pretendente à conversão, mas também o leitor. Dante ensina como ler sua
obra.
Haroldo de Campos afirma que não quer guiar. Como então podemos afirmar que o
poeta paulista também propõe no texto a formação de seu leitor? Talvez a palavra “formação”
esteja demasiadamente carregada de significados para ser aplicada no caso de Galáxias.
Apelamos para as palavras do poeta.
um livro também constrói o leitor um livro de viagem em que o leitor seja a viagem um livro-
areia escorrendo entre os dedos e fazendo-se da figura desfeita onde há pouco era o rugitar da
areia constelada um livro perime o sujeito e propõe o leitor como um ponto de fuga
(CAMPOS, H., 1984, “nudez”)
“Um livro constrói o leitor”. É certo que esta frase pode ser aplicada aos livros em
geral, mas ela se torna extremamente clara na leitura de Galáxias. O leitor precisa aprender as
regras do jogo do texto para poder jogar. O leitor é construído pelo livro enquanto se vê por
ele incitado a construí-lo. Uma referência borgeana, um “livro-areia” em constantes
possibilidades metamórficas, não forma o sujeito, “perime o sujeito”. Na Commedia, a
formação do leitor se desenrola concomitantemente à formação do cristão convertido. Em
Galáxias, o que se constrói é unicamente o leitor. O leitor é construído pelo texto a partir do
momento em que começa a agir como parte deste, movendo-se de acordo com suas regras. A
construção do livro, como explicita Haroldo no fragmento acima, “propõe o leitor como um
ponto de fuga”, como a possibilidade de o texto ir além de si mesmo e modificar-se no
processo de cada leitura em particular. O leitor é uma parte integrante do texto – seu ponto de
fuga, a possibilidade de concretização de seu potencial de ser muitos “outros”.
152
82
“Aguça o olhar, leitor, ao verdadeiro, / porque é agora o véu já tão delgado / que atravessá-lo te seria ligeiro.” Trad. Ítalo
Eugênio Mauro.
O importante aqui é o processo de formar o texto, sua constante possibilidade de re-
criação. Essa proposta se materializa em um texto propositalmente lacunar.
e o vazio restaura o vazio que eu mais vejo aqui neste cós de livro onde a viagem faz-se nesse
nó do livro onde a viagem falha e falindo se fala onde a viagem é poalha de fábula sobre o
nada é poeira levantada é imã na limalha
(Idem, “o que mais vejo aqui”).
Aqui podemos detectar a função do vazio em Galáxias. Não se trata de um “Nada”
“ontológico”, que em Signância contrastava parodicamente com o “Todo” absoluto dantesco.
O nada (com minúscula) se correlaciona a um vazio, uma “falta” que é parte da própria
construção da obra. Assim como na tradução a “falta” é, para Haroldo, um impulso para a
(trans)criação, em seus textos poéticos ela também tem uma função determinante. Índice da
modernidade, o vazio pode ser relacionado à impossibilidade de um retorno à origem (assim
como na tradução), à ausência de um Deus e à transformação do que poderia levar à
melancolia em potência da escrita. Onde a “Semântica” “falha”, o homem tem a possibilidade
de criar. Percebemos aqui a positividade que também esse texto concede ao “lapso
luciferino”. Remetendo à metáfora dantesca do casulo e da borboleta (farfalla) como
conversão e à sua posterior transformação em Signância, que apresenta a “queda” e o
“inferno” como análogo e avesso de um “quase céu”, Haroldo retoma o tema e aponta para a
construção de Galáxias: onde a viagem “falha e falindo se fala”. Aqui tamm a “falha” é o
que permite que a viagem (o livro, a escrita, a leitura) “se fale”. Não mais uma Idéia soberana
em relação ao texto que guia. Nas lacunas da fala, o texto se potencializa ao máximo. É no
vazio da semântica que a sintaxe sobressai: o texto aponta para seu modo de construção, ele
“se fala”. Não mais o telos da Memória, mas um jogo entre memória e esquecimento.
dizer que essas palavras convivem no mesmo mar de sargaços da memória é dizer que a
linguagem é uma água de barrela uma borra de baixela e que a tela se entretela à tela e tudo se
entremela na mesma charada
(Idem, “mais uma vez”)
153
Como tradutor ou como poeta, Haroldo de Campos insere o movimento próprio do
jogo em suas obras. Um movimento que não permite que sua matéria se apresente estanque,
fixa, presa a um único tempo e espaço ou a um único significado. Em seu jogo de escrita, o
passado é recriado no presente e este contém latentes suas futuras possibilidades de recriação
– agora pelo leitor.
Podemos relacionar o fazer literário de Haroldo de Campos com a teoria de Wolfgang
Iser, sistematizada em Das Fiktive und das Imaginäre. Segundo o autor, o jogo do texto
seria montado a partir de regras constitutivas e regulatórias, que seriam aquelas que
estabeleceriam e regulariam seus códigos básicos, delimitadores do que poderia ser nele
desenvolvido. Essas regras serviriam, então, como um “impulso para o aleatório”. O teórico
introduz, a seguir, a noção de regra aleatória, a ser comandada pelo leitor (o ponto de fuga do
texto, como pretende Haroldo): “O elemento aleatório do jogo do texto permite que a
disposição do leitor se torne o código da regra aleatória” (ISER, 1991, p. 328).
Haroldo passa a responsabilidade do jogo para o leitor, colocando-se no papel não de
guia, não de quem possui algum conhecimento ou a lembrança do caminho, mas de um
companheiro de viagem pelo vasto mundo dos signos. Haroldo nos coloca na posição de
Dante, viajante de suas Galáxias, mas se nega a atuar no papel de Virgílio: “e não fie desafie
e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o não” (CAMPOS, 1984,
“circuladô de fulô”). Instigando o leitor a uma leitura ativa, Haroldo lhe propõe deixar a via
positiva, já preenchida, fácil de seguir, e abandonar-se na selva selvaggia para construir seu
próprio caminho, ainda não-traçado, a partir dos “vazios” do texto.
A negatividade está, portanto, longe do negativo em seus efeitos, pois metamorfoseia a
ausência em presença, mas, por continuamente subverter aquela presença, a converte em
condutora para a ausência de que, de outra maneira, nada saberíamos. Através dessas
mudanças constantes, o jogo do texto usa a negatividade de um modo que sintetiza a inter-
relação entre ausência e presença. E aqui está a unicidade do jogo – ele produz e, ao mesmo
tempo, possibilita que o processo de produção seja observado (ISER in COSTA LIMA, 1979,
p. 116).
Ao expor o processo de produção, o autor permite e estimula a participação do leitor.
O texto, ao invés de se portar como soberano, detentor de uma mágica ilusionista, apresenta-
se como um jogo: a exibição de seu modo de funcionamento permite que o receptor,
entendendo as regras, deixe a posição passiva de espectador e participe como jogador, co-
produzindo o ficcional. Segundo Iser, a comunicação entre texto e leitor se desenvolve a partir
154
de um movimento ao mesmo tempo digital e analógico, em que o primeiro faria as marcações
dos lugares vazios e o segundo os preencheria com idéias.
Como a comunicação se baseia em distinções digitais e em coerências analógicas, ela se
realiza por lugares vazios marcados e por sua ocupação ideacional. A marcação é clara,
enquanto a ideação não é precisa, embora exatamente por isso contenha a condição de sua
multiplicidade. Como a comunicação entre texto e leitor se realiza apenas por meio da
ideação, a partitura digital pode ser jogada de diferentes maneiras (ISER, 1991, p. 331).
Podemos perceber que a construção de Galáxias ecoa as teorias de Iser. Haroldo,
leitor de Dante, constrói Galáxias pelas vias da negatividade. A escrita vertiginosa e
fragmentária de Haroldo suspende o sentido, cria vácuos, buracos negros que capturam agora
seu próprio leitor, obrigando-o a jogar ou abandonar a leitura.
E se você quer o fácil eu requeiro o difícil e se o fácil te é grácil o difícil é arisco e se você
quer o visto eu prefiro o imprevisto e onde o fácil é teu álibi o difícil é meu risco pensar o
silêncio que cobre os poros das coisas como um ouro e nos mostra o oco das coisas que
sufoca desse ouro pensar de novo o silêncio corpo áureo onde tudo se exaure as sufocadas
solfataras as guelras paradas desse espaço sem palavras de que o livro faz-se
(CAMPOS, H., 1984, “o que mais vejo aqui”).
Ao se negar a guiar, ao construir um texto lacunar, Haroldo incentiva o leitor a se
desgarrar de seu próprio texto. A pretensão à conversão do leitor cai por terra, como a
possibilidade do paraíso. Agora é o leitor, em última instância, o responsável pela criação do
mundo. O movimento do tradutor criativo, que transforma a “perda”, o “vazio”, o “lacunar”
em mola propulsora para a criação, é desdobrado em Galáxias. O autor não incute
significados imperativos no texto. Em sua viagem, o leitor conta apenas com alguns pontos
luminosos, estrelas instigadoras, que funcionam como impulso para sua leitura criativa - co-
produtora de sentidos, de territórios, de galáxias.
155
3.4.2 A hybris que move as Galáxias
O texto de Galáxias insinua sua estrutura entre o mais “sagrado” dos poetas – o “Ur-
poeta” Homero - e James Joyce, autor da famosa paródia “dessacralizante” da viagem de
Ulisses.
Homero é o primeiro marco embutido nas Galáxias, com suas freqüentes alusões ao oceano
grego e ao texto do poeta. O segundo não é menos evidente: a paródia joyciana que terreniza e
encurta o périplo de Ulisses, o internaliza pelas ruas de Dublin e expõe o protagonista a algo
mais terrível que gigantes e emissários dos deuses: o mero cotidiano. (COSTA LIMA, 1989,
p. 337).
Ulisses homérico é o símbolo do viajante, do aventureiro, do astuto e da hybris. A
imagem é retomada na Commedia, como já vimos, e inserida em sua lógica funcional. A
viagem de Ulisses, símbolo da hybris punida, é situada em oposição àquela de Dante,
concedida pela Graça, de acordo com a vontade de Deus.
Em Ulisses de Joyce, o protagonista, inserido em um mundo “desencantado”, enfrenta
o peso paralisante do cotidiano. Podemos dizer que Galáxias ecoa esse movimento
dessacralizante em relação à Commedia. Trata-se de uma viagem epifânica, como a de
Dante, mas o percurso é terreno, sem deuses. E seu maior desafio é superar a estagnação. A
hybris é valorizada como a possibilidade de criação e construção do novo. A hybris não está
mais voltada contra a ordem dos deuses, mas contra a do estabelecido, do cotidiano
automatizado, daquilo que não se renova.
No fragmento “multitudinous seas”, Haroldo de Campos provoca uma viagem pelos
mares homéricos. E relaciona a imagem do livro ao mar e à viagem. Um é o outro no texto
metamórfico de Haroldo. O movimento do livro é o movimento do mar.
o mar como um livro rigoroso e gratuito como esse livro onde ele é absoluto de azul esse livro
que se folha e refolha que se dobra e se desdobra nele pele sob pele pli selon pli o mar
poliestentóreo
(CAMPOS, 1984, fragmento “multitudinous seas”).
156
Também na Commedia, as imagens do livro, do mar e da viagem se relacionam. No
universo dantesco, elas remetem a Deus e ao caminho para alcançá-lo. Os símbolos
continuam unidos em Galáxias, mas incluídos em outro campo semântico: as imagens do
livro, do mar e da viagem se contrapõem à repetição do velho. O livro é hybris, mudança,
metamorfose. É como transgressor que se apresenta aos seus leitores.
Pois não se trata aqui de um livro-rosa para almicândidas e demidonzelas ohfélias nem de um
best-seller fimfeliz para amadores d’amordorflor mas sim de um nigrolivro um pesteseller um
horrídeodigesto de leitura apfelstúrdia para vagamundos e gatopingados e sesquipedantes e
sestralunáticos abstractores enfim quintessentes do elixir caximônico em cartapáceos galáticos
na terceira posição ela é signo e sino por quem dobra
(Idem, “mais uma vez”)
O sistema de valor é outro. A hybris é valorizada como inconformismo e transgressão.
Como possibilidade de criação em um mundo sem Deus. O cotidiano e sua automatização
estão ligados ao velho, à estagnação e à repetição. O jogo é entre a criação do novo e a
repetição do velho. A proposta é condizente com a trajetória de Haroldo de Campos via
Pound: make it new. Transgredir e transformar.
Mallarmé desenvolve uma dicotomia entre o jornal e o livro em Quant au livre (1895).
O livro seria sagrado e provocaria o êxtase. Um livro que se compara a uma música perfeita.
O jornal seria a monotonia do dia-a-dia. Em “no jornalário”, Haroldo contrapõe ao livro a
mesmice do cotidiano, a automatização e o velho que não se renova.
no jornalário no horáriodiáriosemanáriomensárioanuário jornalário moscas pousam moscas
iguais e foscas feito moscas iguais e foscas feito foscas iguais e moscas no jornalário o
tododia entope como um esgoto e desentope como um exgoto e renova mas não é outro o
tododia tododiário ostra crescendo dentro da ostra crosta fechando dentro da crosta ovo
gorando dentro do ovo e assim reitero zero com zero o mero mero mênstruo mensário do
jornalário jângal de baratas nos canais competentes
(Id., “no jornalário).
mas o livro é poro mas o livro é puro mas o livro é diásporo brilhando no monturo e o coti
diano o coito diário o morto no armário o saldo e o salário o forniculário dédalodiário mas o
livro me salva me alegra me alaga pois o livro é viagem é mensagem de aragem é
plumapaisagem é viagemviragem o livro é visagem no infernalário onde suo o salário
(Id., id.).
157
Haroldo confirma a dicotomia apresentada por Mallarmé. Mas, como em Signância
quase céu, introduz diferenças. O cotidiano também faz parte do livro do poeta paulista.
Notamos aqui o movimento de Haroldo em relação ao texto de Dante, tendo como parceiro
novamente Mallarmé. A dicotomia tão bem delimitada pelo poeta francês deixa entrever o
tempo e o espaço em que se situa: um universo que ajuda a construir – um universo
“moderno”. As mudanças velozes da modernidade produzem um efeito de repulsa em alguns
artistas da época. Precursor do que posteriormente se tornou uma tendência, Mallarmé, desde
sua fase simbolista, separa a arte do cotidiano no intuito de torná-la “pura”. Em Galáxias,
apesar da dicotomia também existir, ela é porosa. A tarefa do poeta é desautomatizar o
cotidiano, por meio de um olhar estético, e de “outro lugar”, criar a possibilidade de pensá-lo
criticamente. Ecoando o que Pound fez em seus Cantos, o poeta mistura vida mundana e arte,
apresentando uma nova era em seu poema – a chamada “pós-moderna”. O político, o social,
o histórico estão presentes e podem ser pensados criticamente no poema de Haroldo de
Campos.
A hybris é o ponto de confluência do campo semântico positivado de Galáxias: aquele
em que está posto tudo que é imenso, contém risco, é incerto e se opõe ao estabelecido. O
velho, o avesso à mudança, é o ponto de confluência do campo semântico negativizado. A
crítica ao mesmo e ao acomodado se metonimiza em pessoas velhas que “repassam” como
tartarugas em meio ao universo cambiante e metamórfico de Galáxias.
assim você é assim você será vita brevis velhos corpos nos maiôs flácidos coxas varicosas
nódoas nós violáceos no branco ceroso e velhos cachos sem cor cor de rato cor de iodo
descorado em água cor-de-palha depois de usada e se estiram e se estendem e se estojam na
areia solta tricotando palavras também usadas para que o tempo passe um capilé de tempo um
xarope de tempo melissa água de rosas um jeito qualquer de aguar o tempo de amolecê-lo de
gomá-lo de machucá-lo para gengivas murchas para dentes malseguros de enrolá-lo numa
bola de saliva para a mansa ruminação dos queixos também usados chinelos velhos cheirando
a barata e a vontade de durar de se agarrar no tempo
(Idem, “cheiro velho”).
O velho é o contrário ao impulso de vida, aqui sinônimo de mudança e risco.
naquele talvez de minuto a pequena prostituta cruzasse os braços sob a nuca florindo
manselinha das axilas castanhas quarto de chita rala e convidando à vida a voz velha fechou-
se no seu estojo de feltro forrado de seda garrafa o chique do fecho ferruginoso caiu sobre a
medalha encravada em veludo gasto e era a voz que perdera o seu luzido
(Idem, id.).
158
Entre o “infernalário” cotidiano e a construção literária – “que é viagem é mensagem
de aragem é plumapaisagem
83
, Haroldo de Campos nos proporciona não uma descida ao
inferno e uma subida ao céu, como na experiência de Dante, mas diversas decolagens e
aterrissagens rápidas em um universo secular: “para baixo para cima katábasis anábasis o
ritmo das coisas do mundo numa cama” (CAMPOS, H., 1894, “como quem escreve”).
O dualismo paraíso / inferno, bem / mal, amor pecador / amor beato se desfaz nas
Galáxias sincrônicas do poeta. Ressaltamos, no capítulo II, a oposição radical que Dante
impõe às mulheres de sua obra. Nos extremos, apontamos para Francesca, que pena nos
vendavais da luxúria do Canto V do Inferno; e para Beatriz, símbolo da beatificação.
Em Galáxias, os signos assumem outras conotações. A mulher sensual se aproxima do
campo semântico do imenso e do transgressor, que é positivado no texto como agente de
mudança.
No fragmento “calças cor de abóbora”, Haroldo de Campos nos permite ver na mulher
seu ponto de vista, tão distante daquele de Dante: a valoração da hybris. O cenário é um bairro
negro. Aqui o negro, em todas as suas possibilidades semânticas, se liga ao transgressor
positivo, à potência da margem. Duas mulheres apresentam um show erótico.
todas as cores rodeiam o sol central furor negro que transverbera em pantera e as sintetiza de
novo em negro pague um dólar aqui e você verá as duas moças mecânicas minnie branca e
gorducha rubicona em calcinhas de filandras azuis olhibúfala era uma vaca mansa de peitos
pop gigantes gigânteos agita-los só isso que sabia batedeira elétrica carambolá-los num bilhar
de bólides molas e súbito tesa pará-los no freio de um joelho metido entresseios ou de quatro
quase no chão deixando-os despencar como úberes ordenháveis para o olhar urrante e
suarento das mesas próximas cara láctea de bebê loiro e franjas mas a outra jessie a negra
tinha malquebros de pantera na pele tabaco-escura e os dentes de sabre mordiam um guincho
sensual no rebolo da eletrola vê-la empinar agressiva seu número e riscar o hálito suspenso
dos machos onanizados com saltos de verniz agudo maquilada de luz a cútis fogo-fátua
incandescia carbúnculo-negra negríssima nigérrima e o biquíni topázio saltava em chose-up
êmbolo autônomo móbile tatalava a bengala pendurada pelo cabo no rego do soutien
bengalava titilante jato falo de prata negaceado por um pélvis topázio o grande nu americano
é uma salada de frutas com mamilos de borracha rosas frescas um tomate-maçã no ventre
ligas alfaces verdes e açúcar e a boca vagino-aberta baton cintilante nos grão-lábios
vegetarianos
(Idem, “calças cor de abóbora”)
159
83
CAMPOS, H., 2004, fragmento “no jornalário”: destacamos aqui o eco do paraíso dantesco na palavra-valise
“plumapaisagem”, que evoca as asas “plumiabertas” dos anjos na transcrição de Haroldo de Campos.
Aqui temos novamente, metamorfoseadamente, o embate de Galáxias: o mesmo
estabelecido versus a hybris. O início do trecho destacado aponta para a hybris: o “sol
central”, símbolo sagrado para Dante, é a dançarina, “furor negro que se transverbera em
pantera”. Pela “não-estória”, pela construção tanto das personagens quanto da cena e de sua
movimentação, Haroldo de Campos critica a pasteurização débil da sociedade padrão
americana. Ressalta o potencial da margem e sua força criativa na movimentação estética que
realiza, entrelaçando os contrastes de duas stripers e transformando-as em ícones sociais.
Outro modo importante de apresentação da figura da mulher é sua aproximação à
figura do livro. Um modo de “sacralizar profanamente” a mulher, uma vez que é também o
livro, o que e de que se fala. Ao contrário da Beatriz dantesca e de sua oposição à mulher que
leva ao pecado, as diversas mulheres de Galáxias se confundem: são dobras umas das outras
e são o livro (em) que se escreve. Essa segunda via de apresentação da mulher é um
desdobramento da primeira. O Livro sagrado de Dante se transforma em uma mulher sensual
– que também é o livro de Haroldo de Campos. O poeta paulista mistura aqui o que, no
horizonte de expectativas dantesco, não poderia deixar de se apresentar conflitante. Em “esta
mulher-livro”, Haroldo associa a sensualidade evitada por Dante à sagrada imagem do Livro.
Trata-se de uma metamorfose do sagrado: do divino para o humano, do etéreo para o sensível.
o sol fala solfatara sofalo solferino polifemo de corpos cavernosos monolhando a ninfa escrita
galatéia o sol pára sol roncolho cioso de sua gleba o escrito o lido a ninfa de palavras mulher-
livro marcada e coxiaberta vide também viagem viário breviário de lidas e vindas vidas isto
tudo nasceu de um quimono que drapeja dobras como páginas e a mão que o manuseia e que
descerra suas folhas e fileta de ouro cada folha por isso posso rasurá-lo agora e deixar no
branco vacante este risco iminente de outro escrito de outro branco de outro resto incesto
palim que é o nome de uma constelação psesto
(Idem, “esta mulher-livro”)
O trecho escolhido começa fazendo alusão a um verso da Commedia e o invertendo.
Dante se refere à selva oscura como o lugar onde o sol cala.
tal mi fece la bestia sanza pace,
che, venendomi ‘ncontro, a poco a poco
mi ripigneva là dove ‘l Sol tace.
84
(Inf. I, 58-60)
160
84
“assim a fera me deixou sem fala, / e, vindo ao meu encalço, a loba atroz / me encurralava, lá, onde o Sol
cala.” Trad. Augusto de Campos. (CAMPOS, A.: 2003, p. 197).
O Sol, símbolo de Cristo para Dante, se cala frente ao símbolo da perdição. Uma das
possíveis interpretações da selva selvaggia, onde ‘l Sol tace, é o pecado da luxúria que Dante
teria cometido ao se afastar de Beatriz. No texto de Haroldo, o símbolo solar cristão é
retomado e “provive” como ícone do sagrado, embora despido de sua carga semântica cristã.
O sol fala no fragmento de Haroldo, demarcando um universo positivo que se opõe ao verso
de Dante a que remete. E se vincula ao campo sexual no fragmento destacado. Os elementos
intertextuais se agigantam, pois é da escrita que Haroldo fala. O desejo de Polifemo por
Galatéia é também o desejo do escritor e do leitor pela obra: o desejo pela mulher-livro. O ato
sexual é o ato da escrita, da leitura da criação.
O cenário é laico, mas ressoa, surda da culpa católica e com uma conotação positiva, a
hybris das grandes “quedas”. Também aqui, como na tradução de Haroldo, a queda da torre
de Babel tem uma importância especial.
Enquanto Dante escreve sua Commedia em “língua vulgar”, contribuindo assim para
a unidade de seu país, pela consagração e fixação do dialeto florentino como a língua
nacional, Haroldo de Campos monta um concerto babélico em suas Galáxias. Dante sustenta,
em seu De Vulgari Eloquentia (1529), que as “línguas vulgares” estariam mais próximas da
adâmica do que o latim e o grego, por serem estas últimas gramaticais e artificiais e as
primeiras, naturais. Segundo ele, um volgare illustre estaria mais próximo do primeiro
idioma. Um grande escritor poderia, através dele, tocar uma centelha da língua pré-babélica. É
então em italiano que escreve sua Commedia.
Haroldo de Campos, desejante de hybris, ressalta a multiplicidade pós-babélica. Se a
tradução é, dentro da concepção de Benjamin, a melhor maneira de se alcançar a “língua
pura”, pois no contato entre as diferentes línguas sua potencialidade seria ressaltada, o jogo
poliglota do poeta poderia intensificar esse processo. Uma outra tentativa de alcançar a
“língua pura” pelo avesso, pela hybris.
Mas a “língua pura” se desloca de sua origem mística no mundo ex-cêntrico do poeta e
se concentra no potencial estético das palavras. Ao fazer uso de diversas línguas em
momentos apropriados, Haroldo consegue apresentar, do modo mais eficiente, a “situação” de
viagem. As línguas locais permeiam os textos que percorrem os diversos países. E,
entremeadas a elas, outras línguas, de viajantes estrangeiros. Estamos em plena
“globalização” e é assim que o texto se comporta. Vejamos um exemplo, um fragmento que
se concentra em Pompéia.
161
stupid cupid a eletrola estridula a passos da gare the american way of mas na casa degli
amorini dorati um sileno portando um cetroglande e na casa della venere uma vênus nadante
sobre valvas em salva coxas cenográficas escoltada por cupidos marinhos cupidos cupidos
(Id., id.)
O “stupid cupid”, que se refere a uma famosa música americana, convive no mesmo
espaço com cupidos pintados em um muro no longínquo tempo pompeiano. Esta é a época do
poeta, babélica e globalizada, que se deixa entrever na sua escrita. É a vida que se mistura à
cidade mumificada de Pompéia, metamorfoseando-a, tornando-a ativa no mundo
comtemporâneo.
O caminho do livro, do mar, da viagem é o risco em Galáxias. Poeta do risco, Haroldo
de Campos sempre desprezou a diritta via. Interessou-se pelos caminhos árduos da guerrilha
da invenção. Concretizando na forma a sua proposta, seu livro é hybris, é pura metamorfose e
transgressão. As situações são apresentadas como metamorfoses da própria forma do livro. Os
sons, as palavras, as personagens, os locais e as cenas sofrem uma constante transformação
nas Galáxias de Haroldo. Sem conteúdo fixo, o texto se apresenta como um transformista.
um texto que quer ser mais do que uma estória e menos do que uma estória que outra coisa
pode ser senão um travestimento de gêneros quando i carabinieri della radiomobile hanno
ragiunto la donna si sono trovati dinanzi ad um travestito la parruca era finita a terra in uma
pozzanghera um texto sem conteúdo fixo
(CAMPOS, H., 1984, “vista dall’interno”).
A grande hybris do texto é ser um “epos sem estória”. A matéria do livro está em sua
forma: metamorfoses. Livre de seu antigo telos cristão, o livro se apresenta como uma
epifania de sua forma. O que se lê é o que se vê e o que se ouve – ouver. Por isso seu livro
não é fácil. Para ser capaz de experienciá-lo, é preciso que o leitor corra riscos, assim como o
poeta. É preciso assumir para si a hybris dos heróis – descer aos infernos para experimentar as
fagulhas do paraíso, pois é de epifania que se trata.
162
3.4.3 Epifanias estéticas
Galáxias se diz um livro de momentos paradisíacos e infernais, um “baedeker de
epifanias” (Idem, “isto não é um livro de viagens”). Podemos perceber que a epifania aqui se
comporta como aquela de Signância: quase céu, ou seja, como uma epifania puramente
estética. Mais especificamente, as epifanias de Galáxias, distantes de uma proposta mística,
são possibilidades de “visões” de “instantes da obra”. Esses momentos desestabilizam o
acomodado e produzem mudança. Apresentadas no texto, criadas nele, essas faíscas
epifânicas suspendem tanto a escrita fácil quanto o olhar mumificado, incitando um “ponto de
fuga” reflexivo. O texto nos proporciona epifanias em um mundo sem Deus.
ma non dove noi che della vediamo essi l’indistinto stelle via ravvisano lattea queria dizer os
poetas ou palavras ou estrelas ou estrêlulas myriads of faint stars lampiros no empíreo
galáxias kiklos de palavras o texto entretecendo entretramando entrecorrendo pontos
pespontos dispontos texturas o estelário estepário de palavras costurando ávidas saturando
texturando urdilando ardilário vário laços de letras lábeis tela têxtil telame aranhol aranzol de
arames manhas de ramos ranhos de aranhas letras sestras lépidas letreiros selva de símbolos
também selvaggia
(CAMPOS, 1984, “ma non dove”).
É “entre safiras e fezes” (Idem, “nudez”) que o texto de Galáxias se forma. O jogo entre
os extremos move e é a escrita do poeta. A hybris, que ultrapassa a medida do mote cotidiano,
se conecta com a possibilidade de uma epifania laica, uma epifania na escrita. O ato da escrita
em Galáxias é capaz de ir “além” e “aquém” da estória e do cotidiano: “paradiso psicodélico
que confina com um inferno de moscas murchas” (CAMPOS, H., 1984, “eu sei que este
papel”).
Ao contrário da obra de Dante e dos outros textos de Haroldo aqui apresentados,
Galáxias é escrito em prosa, como se marcando o território próximo ao cotidiano – distante
do Além dantesco. A poesia é, para Mallarmé, uma possibilidade de alcançar a transcendência
vazia ou o Nada porque é auto-reflexiva. Já a linguagem da prosa do jornal seria vulgar e
incompatível com seus interesses. Em Galáxias percebemos uma “prosa minada”, como diz
Costa Lima (cf. COSTA LIMA, 1989, p. 343), em que a narrativa não se sustenta em meio a
vãos e desvãos da escrita e se apresenta como um “aquém da narração”. “Proesia”, diz
Caetano Veloso na abertura do livro. Uma prosa que não narra, que se configura com a lógica
163
da poesia, potencializando seus significantes e transformando a escrita em personagem
principal.
O epos, construído por meio de uma “prosa minada”, em que os sentidos se esvaem, em
que a narrativa não se sustenta, se transforma então em “epifânico”. A narração dá lugar à
apresentação: “Seduzia-me fazer uma experiência de abolição ou rarefação dos limites entre
poesia e prosa, no sentido não propriamente de uma épica (narração), mas de uma epifânica
(visão).”(CAMPOS, H., 2002, p. 42).
Apontemos nosso foco para um dos fragmentos, intitulado “cheiro de urina” para,
simultaneamente, aproximá-lo e contrapô-lo à experiência epifânica de Dante, deixando
entrever o jogo do texto. Nesse fragmento, encontramos um interessante jogo entre o
“profano” e o “sagrado”. Vemos a proposta de epifania laica do poeta: uma epifania estética.
O cenário é Salvador e o que cintila no texto são “fagulhas do sagrado” perpassando as
ruas da cidade, igrejas barrocas e uma festa de Orixá – festa de Iansã, senhora dos raios, dos
ventos e das tempestades.
O sagrado se divide, inicialmente, na relação entre duas diferentes entradas religiosas:
a católica e a do candomblé. O profano está nas ruas da cidade, em seu povo e em sua
sensualidade erótica. Esta seria uma primeira leitura, a base para seu desdobramento no texto.
O mundano, o popular e o sensual entram em cena como um turbilhão de cores,
cheiros, sons e imagens instigantes. É por esse caminho que seguimos até entrar nas igrejas da
cidade.
cheiro de urina de fécula de urina adocicada e casca de banana de manga rosa quando
esmagada no chão o calçamento desliza nos pés como se você estivesse entrando por uma
região viscosa um aberto de vagina em mucosa pedrenta tudo cheirando vida ou morte ou
vidamorte um cheiro podre de orgasmo rançoso e peixe e postas de carne ao sol
(CAMPOS, H., 1984, “cheiro de urina”).
O deslizamento provocado pela urina, pela banana, pela manga rosa esmagada no
chão é comparado à penetração e seu odor adocicado se associa ao cheiro de orgasmo. Este é
o começo do fragmento, que se reverte em algumas linhas, aproximando-se de seu contraste.
Passamos das ruas para dentro da igreja e imediatamente sentimos a diferença. O som, o
cheiro e o movimento contrastam com o silêncio, a riqueza e a austeridade do interior da
igreja.
164
agora é a mulata de olhos bistrados que reolha um espelho de lata e esmalte e correm para o
oval de reflexos fósforos faíscas um cio remontado de cachorros também cheiros gritos trilos
psius o fartum da rua em chaga exposta mas tudo reverte para um céu de ouro um céu de talha
dourada arcos e rearcos numa florada de florões com atalantes e cariátides e anjos-fêmea de
brinco e coifa de cortezã
(Id., id).
A entrada da mulata é o ponto de conexão entre o profano das ruas, introduzido no
começo do fragmento, e o sagrado. Todo o jogo de olhares, espelhos, reflexos e faíscas que
encontramos no paraíso de Dante está presente em uma cena extremamente mundana. O olhar
é, na Commedia, o principal acesso a Deus. O olhar humano de Dante não comporta,
conforme vai subindo as esferas do paraíso, as visões que se apresentam. Por isso, passo a
passo e por meio da Graça, seu olhar é apurado.
Mas os olhos, no fragmento, são de uma mulata, o espelho é de lata e esmalte e as
faíscas cheiram a sexo. Os símbolos cristãos sofrem uma metamorfose ao serem inseridos em
um contexto sensual: ao mesmo tempo em que introduzem uma espécie de “elevação” do
profano, esvaziam-se de sua conotação religiosa e funcionam como ícones daquilo que foram,
potencializando agora não uma doutrina, mas uma carga semântica que remete a um arquétipo
da idéia de sagrado presente na Commedia. As aliterações em “o” reforçam a importância
dada à forma do círculo, símbolo da Trindade dantesca. A flor, símbolo também muito
utilizado na Commedia de Dante, que culmina na imagem da Rosa mística dos beatos, é aqui
aproximada a anjos “com sexo” – o feminino – e mais: com brincos e coifa de cortezã. Por
alguns segundos, a mulata que reolha o espelho de lata é o anjo-fêmea-cortezã que anima a
Igreja. A metamorfose não se completa, o profano não se transforma em sagrado ou vice-
versa. A metamorfose está em movimento nesse fragmento, como se víssemos o instante em
que um e outro se tocam, como se percebêssemos suas possibilidades de tornar-se “outro”.
A igreja é provavelmente a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, local em que
uma missa dá início à festa de Santa Bárbara, Iansã no candomblé, no dia 4 de dezembro. A
igreja foi construída por pretos, escravos e libertos, no começo do século XVIII, para que,
tendo uma igreja própria, pudessem se aproximar mais da fé dos homens brancos. Hoje em
dia, suas missas beiram o sincretismo religioso. O texto não fala em igreja, muito menos
especifica de qual se trata. É na escrita que percebemos que saímos do registro das ruas e
entramos em um outro espaço. É a escrita que constrói os espaços, de um modo muito
especial: destacando e potencializando, na forma, suas possibilidades de incitação da
165
experiência “estético-epifânica”. Aqui troncos de uma “selva poliáurea se desrolam em
cachos de mechas de amarelo-ovo granança e grená” – estamos em uma igreja de Salvador e
percebemos isso por sua forma, apresentada esteticamente. E é também a partir da construção
estética que Haroldo de Campos introduz sua crítica tanto à desmedida riqueza da Igreja
quanto a seu ascetismo: “o livro recede diante do cumulado arrebol de torrões de ouro mas se
aplaca num claustro de azulejos legíveis e lavados gargareja a fontana por um fio de água
murmurina” (Id., id.).
O “livro”, com minúscula, uma outra referência dantesca esvaziada de sua semântica
cristã, não é aqui um símbolo do Amor, de Deus, como na Commedia. Trata-se do livro
objeto, este que é enquanto se escreve e se escreve enquanto se lê. Outra vez vemos o eco de
um símbolo transcendente ressoar surdo em sua materialidade. Esse livro – que também
coloca em jogo, “recalcado” por uma nova configuração de mundo e de escrita, o Livro de
Dante – “recede” diante do único elemento que grita, em sua opulência, dentro do recinto
silencioso: um “cumulado arrebol de torrões de ouro”. Ao mesmo tempo, o livro “se aplaca
num claustro de azulejos legíveis”, os azulejos portugueses encontrados em algumas das
Igrejas de Salvador, inclusive na citada acima, em que cenas religiosas são “relatadas”
pictoricamente. Tanto uma quanto outra situação (o excesso de riqueza e o silêncio austero)
distanciam a igreja do povo. E o livro reage: como um viajante das ruas, admira e estranha a
amplidão plácida e ao mesmo tempo imponente do eco surdo do Livro em seus índices
sensíveis.
Tudo reverte: dentro da igreja, transcendente não há. As palavras e os símbolos
apontam para si mesmos. O céu de ouro e os arcos, as flores, símbolos encontrados no paraíso
dantesco para provocar uma espécie de “epifania” no leitor, capaz de, nos versos de Dante
experienciar a “visão” da personagem, aqui são as próprias estruturas curvas e o metal
precioso de que é feita a Igreja. O ouro e as curvas barrocas se expressam como um símbolo
que superou em duração a seu telos, que apenas o ecoa. É o que acontece, nesse fragmento,
com a igreja, que, dourada de sua exacerbada riqueza, é apresentada esteticamente,
remetendo-se a algumas das formas do paraíso dantesco. A igreja se transforma então em uma
“selva poliáurea onde troncos se desrolam e se desnastram em cachos e mechas de amarelo-
ovo garança e grená põem chagas num cristo marfinizado de pele cinamomo e o cristo se
crucifica no resplendor de prata que emite raios e ferrões” (Idem, id.).
E o cristo de pele cinamomo se desdobra em cristos, no plural, os homens que, pela
distância entre si e a altivez da igreja, se voltam para o exterior – novamente estamos nas ruas
de Salvador: “e o silêncio de filtros e feltros expulsa os cristos gangrenados para o amarelo
166
hepatite do sol visguento e bexigoso feito um rosto” (Idem, id.). A referência ao rosto nos
remete novamente à Commedia. Enquanto Dante se “rememorava” em Deus, vendo seu rosto
no “Rosto” e completando o processo de conversão, aqui o sol, símbolo de Cristo, é
comparado a um rosto humano e adoentado. Se Dante, exemplo do convertido, vê seu rosto
em uma imagem da perfeição, aqui nos é mostrado como seria essa imagem com um telos
invertido. Não mais um processo, como na Commedia, em que o homem se purifica para se
aproximar de Deus, mas seu avesso: o sol, símbolo de Cristo, se impregna da humanidade
sofrida do povo e se volta para as ruas. O reluzir do ouro das igrejas se metamorfoseia no
amarelo hepatite de um sol que metonimiza o povo. Entre a positividade do rosto visto por
Dante e a negatividade do rosto visguento e bexigoso de um sol amarelo hepatite do texto de
Haroldo, o movimento é de queda abismal. No entanto, os opostos se tocam: tanto o sexual
quanto o horrível podem ser associados ao sublime, ambos distantes do sublime cristão.
Na Crítica do Juízo, ao falar sobre o sublime, experiência estética que, assim como o
belo, estaria ligada ao juízo de gosto, Kant se refere a um colapso do entendimento, da razão e
da imaginação, decorrente de uma insuficiência desta última diante do “imenso” em tamanho
ou quantidade. Deus é o mais conhecido exemplo de algo que ultrapassa as possibilidades de
nossas faculdades. Mas tanto o horror da miséria doente quanto o sexual, como símbolo do
gozo, também se estendem para além do registro da compreensão humana. Haroldo aproxima
conceitos aparentemente incompatíveis, destacando sua possibilidade similar de efeito
estético.
É de volta às ruas que o sagrado se liga ao profano. É na festa de Iansã que o sensível
(o povo, a música, a dança, as cores, as comidas...) toca o inefável.
do alto da alegria vem bárbara fernandes aliás baby babynha vem dançando de ubarana
amaralina alegria a dança de iansã que protege das trovoadas e se desnalga e desgarupa ou a
santa nela minha mãe coroada de um diadema de brilhos e a pequena espada no braço colado
ao corpo quase roçando por você
(Id., id).
O sagrado deixa os pedestais de ouro e cintila no dourado do dendê da comida da
santa, incorporada em uma mulher: “a santa comia arroz com frango acarajé caruru tudo
dourado de dendê” (Idem, id.). E o povo é convidado a participar também da festa, a dançar e
a comer a comida da santa: “vocês têm que comer pelo menos a comida da santa aqui não tem
167
cachaçada é ordem e respeito se saem antes até parece que não gostaram até parece
desfazimento” (Id, id.).
Mais próxima do povo, a religião dos Orixás fala sua língua. A pretensão ao
transcendente é tal qual a da mais rica igreja. O sagrado é a meta. Mas a “semântica” que, sem
dúvida, está presente em todas as religiões é abafada pelo “ritmo de couros e agogôs no
terreiro fechado de calor e suor onde tudo parece não caber mas cabe” (Id., id.). O sagrado se
aproxima do sensível e se torna sensual. A música das esferas, os salmos entoados no paraíso
dantesco se transformam em uma batida alucinada; o local do contato com o divino não é
calmo e sereno, mas um “terreiro fechado de calor e suor”. E é esse cenário que se associa a
um dos símbolos mais caros ao universo cristão, o ventre de Maria, que “parece não caber
(Deus) mas cabe”.
Aproximando-nos do final do fragmento, “bárbara”, a mulher que encarna Iansã e cujo
nome é o mesmo da santa católica correspondente ao Orixá, alcança a epifania: “bárbara
babynha olhos em alvo rodopia no espanto do sagrado” (Id., id.).
Destacamos dois tercetos do último Canto do Paraíso, traduzido por Haroldo de
Campos, em que o olhar, o círculo / alvo, o rodopio e o sagrado estão presentes – mas
conforme a visão católico-medieval de Dante.
Quella circulazion che sì concetta
pareva in te come lume reflesso,
dalli occhi miei alquanto circunspetta,
dentro da sé, del suo colore stesso,
mi parve pinta della nostra effige:
per che ‘l mio viso in lei tutto era messo
85
(PAR., XXXIII, 127-132).
Já nos deparamos, durante a leitura do fragmento, com as referências contidas nesses
tercetos que trazem a visão de Dante da Trindade. O círculo, o reflexo e o olhar cintilam nas
ruas profanas de Salvador. Agora tudo se resume na epifania de bárbara, que, em meio ao
calor, à música ritmada e à dança, entra na mesma sintonia do peregrino italiano. Duas visões
de mundo diferentes, dois caminhos que propõem a possibilidade epifânica mística se
encontram no texto de Haroldo e se tocam no contato com a forma perfeita: o círculo. É para a
168
85
“O círculo que vi no outro completo, / de ti lume reflexo concebido/ circungirando o olhar por seu aspecto, / o quanto vi,
dentro de si tingido / da mesma cor, mostrava nosso rosto; / pus-me a fita-lo todo embevecido.” Trad. de Haroldo de
Campos. (CAMPOS, H., 1998, p. 159)
forma que Haroldo de Campos aponta em seu texto. A mirada do texto não é mística, mas
estética, assim como sua configuração. A voz do poeta se faz ouvir nas últimas frases do
fragmento.
e agora só me resta uma frase que veio dar aqui por acaso e que eu repito como veio sem
pensar repito como o om da mandala refalo remôo repasso colorless green ideas sleep
furiously dormem incolores idéias verdes dormem furiosamente verdes dormem furiosamente
(CAMPOS, H., 1984, “cheiro de urina”)”.
O conhecido exemplo de “agramaticidade” e de “falta de sentido” do lingüista Noam
Chomsky é a frase com que o poeta apresenta sua “epifania”. Haroldo de Campos afasta o
transcendente e provoca uma “epifania estética”.
A frase de Chomsky, dita pela voz do poeta ao final do fragmento, age analogamente à
epifania de bárbara: como o som dos tambores do terreiro, um mantra redondo e recorrente
“como o om da mandala” incita o transe. O fragmento termina enxugando ao máximo os
significados (“Meu fabular vai-se encurtando agora”
86
) e se torna “forma pura”, apontando
para e, ao mesmo tempo, contrastando com o Deus do universo cristão dantesco. No contexto
do fragmento, essa frase funciona como o próprio “espanto do sagrado”, formas (puras) e
cores em movimento que nos remetem ao terceto de Dante.
Nella profunda e chiara sussistenza
dell’alto lume parvermi tre giri
di tre colore i d’una conteneza
87
(PAR., XXXIII, 115-117)
Ao contrário de Dante, o poeta paulista não visa transcender o sensível no fragmento de
Galáxias. Sua epifania é puramente estética: é a frase repetida que suspende a “realidade
lingüística” do poeta, são as palavras que, em uma configuração diferente, “agramatical”, não
produzem um sentido. Deslocando a frase de Chomsky de seu contexto e inserindo-a em meio
ao som de agogôs em um terreiro de candomblé, Haroldo transforma sua “agramaticalidade”
86
Ormai sarà più corta mia favella. Canto XXXIII do Paraíso. Tradução de Haroldo de Campos. (CAMPOS: 1998, 157).
169
87
“Na clara, na profunda subsistência / da alta luz, três giros vi, três cores / conclusas em uma só circunferência” Trad.
Haroldo de Campos (CAMPOS, H., 1998, p. 157).
em potencial estético. E a “visão epifânica” é o que retorna, recorridamente: é o próprio
objeto estético (a frase posta nesse contexto) que é auto-referente, não sugerindo uma
“semântica”. O retorno da experiência estética se transforma, então, em uma “visão”, ou em
uma “audição” – um “ouver”, segundo as propostas da fase concreta do poeta paulista. Um
“excesso de impossibilidade semântica” provoca um colapso da imaginação, do entendimento
e da razão, sugerindo a experiência do sublime kantiano e entrando na lógica do fragmento.
Metonimicamente, percebemos, retornando ao texto como a uma mandala, que é
esteticamente que o poeta e seus leitores percorreram tanto as ruas de Salvador quanto suas
igrejas e terreiros de candomblé. Assim como a epifania do poeta é estética, toda a sua
apresentação da festa de Iansã também o é. O caminho que percorremos, das ruas de
Salvador, entrando pela igreja e – de novo às ruas – chegando ao terreiro, e a epifania de
barbara ressaltam e re-configuram a cena como objeto sensível. Apesar de todo o fragmento
girar em torno de um sagrado transcendente, o transcendente não é seu telos. Os signos se
apropriam do sagrado, não mais remetem a ele. O sagrado se profana sem perder sua potência.
Voltando mais uma vez ao texto como a uma mandala, também podemos dizer que o
processo se assemelha ao ato de profanar um clássico, uma obra que se pode, de certa
maneira, considerar como algo “sagrado”. Rasgar, esquartejar, selecionar temas ou trechos da
Commedia, como muitos o fizeram: profanar.
Walter Benjamin, em seu ensaio “A tarefa do tradutor”, diz que a tradução deve fazer a
obra não “sobreviver”, mas “proviver” (fortleben). Na tradução entre línguas, Benjamin
aponta para a diferença entre traduzir o sentido do texto, o que acarreta uma tradução débil,
melancólica, sempre aquém do original, e traduzir a forma, em uma operação radical que
transgride os limites da língua de chegada, mesmo que isso signifique deixar o conteúdo em
segundo plano, fazendo da tradução um “outro”, com a força de um novo original. Guardando
as devidas proporções, poderíamos, por analogia, dizer que, embora uma obra clássica
sobreviva por séculos, na operação da recriação poética, ela “provive”. Ou seja, continua
ativa, como um “outro” que, ao mesmo tempo, a ilumina com luzes e por ângulos novos.
Desse modo, a experiência crítica também se estende de um poema a outro(s) e se enriquece
com as conexões e desconexões provocadas pela tensão entre semelhanças e diferenças. Os
leitores só têm a ganhar com esse diálogo. O clássico se apresenta então como um prisma,
disseminando oblíquos raios de luz que para ele se voltam, num processo de alimentação e
retro-alimentação. A obra clássica continua em seu pedestal, mas está para sempre profanada.
Como objeto de desejo e admiração que se respeita por profanação.
170
CONCLUSÃO
Dentre as veredas pelas quais Haroldo de Campos deixou seus passos marcados,
destacamos a nem tão diritta via de Dante.
Detectamos e ressaltamos, em trechos da Commedia, a pertinência do interesse de
Haroldo de Campos pela obra medieval. Um poeta que persegue o “concreto da linguagem”
não poderia ficar indiferente a um poema cuja forma, micro ou macro, materializa seu
conteúdo com tamanha destreza.
A Commedia é uma viagem epifânica pelo mundo do Além. E sua concretização em
um poema, a ser escrito pela personagem em seu retorno, é uma questão que perpassa toda a
obra. Somente como poeta o protagonista é capaz de apresentar ao leitor sua epifania. A
escrita poética é tema e possibilidade de concretização da Commedia. Dante provê em sua
obra, simultaneamente à narração e à ação, uma maneira de o leitor se aproximar de sua
experiência mística por meio da experiência estética.
Os dois tipos de experiência partem de um mesmo princípio: colocam “em suspenso”
algo que se impõe como o “habitual”, “estabelecido”. Na experiência mística, suspende-se o
“real”, o mundo e sua lógica conhecida; na estética, a “semântica”, uma “camada discursiva”
da obra. Este é o primeiro passo, em ambos os casos, para que uma lógica “outra” se
apresente ao receptor como uma “visão”.
Na Commedia, é o contato com a materialidade da obra e com a lógica “outra” de sua
construção que proporciona essa “suspensão”. A configuração material “concreta” da obra,
quando ativada pela leitura, incita a percepção de sua lógica formal. É o não dito, são os
estímulos visuais, sonoros, olfativos e cinéticos provocados por uma configuração
potencialmente estética que incitam uma “suspensão da semântica” e remetem o leitor à
lógica formal da obra.
Nesse momento, começa a diferença entre as duas experiências, a epifânica e a
estética. Na primeira, o vazio instaurado pela momentânea “suspensão do real” é
imediatamente preenchido por uma outra “semântica”, por uma “visão” encharcada de um
telos místico; na segunda, o vazio instaurado pela momentânea “suspensão da semântica” se
desdobra. A “visão” que retorna ao receptor neste caso é a da própria “sintaxe” da obra, sua
lógica formal, sua concretude.
Ora, no segundo capítulo, mostramos que, na Commedia, forma e conteúdo são
isomórficos, a obra materializa em suas formas e relações formais seu próprio conteúdo. O
que retorna, após a “suspensão da semântica”, aquilo que seria a epifania, é a lógica formal da
171
obra, da qual participa também seu conteúdo iconizado, absorvido e recriado. A epifania do
leitor é a “visão” da lógica formal da obra que se destaca no jogo entre a imaginação e o
entendimento na experiência estética. E essa lógica é / contém a obra.
No final da segunda parte, após tratarmos da tradução dos Cantos da Commedia por
Haroldo de Campos, chamamos atenção para o conceito benjaminiano de “elemento poético”,
que seria uma unidade estética da relação forma / conteúdo, sempre presente nos poemas de
seu interesse. Acreditamos que esse conceito seja pertinente para entender tanto o interesse de
Haroldo de Campos pela Commedia quanto seu modo de lidar com ela artisticamente.
Percebemos, na Commedia, que o isomorfismo é mais do que a junção de forma e
conteúdo. Ele envolve também suas relações. Trata-se da presença constante do elemento
poético, da micro à macro-estrutura da obra. Forma e conteúdo se ligam em uma relação e se
apresentam como uma unidade estética. Segundo Benjamin, essa unidade estética conteria o
“instante da vida” metamorfoseado em forma, seria um acesso à filosofia. Na Commedia,
parece conter instantes de epifania mística. Construindo elemento poéticos potencializados
com o horizonte de expectativas do texto, cuja lógica se confirma no texto, Dante promove
“visões” de “instantes da obra”. E esta é uma obra que se pretende “mística”.
Transformando o discurso católico, político, místico, filosófico, etc. em forma e
relações formais, o poeta incita uma “direção” na experiência estética, pois deixa entrever na
forma o lugar aonde se propõe chegar. E aproxima o leitor, se não da experiência mística, de
sua forma ou de seu arquétipo.
A partir dos dados acima, podemos sistematizar algumas conclusões. A momentânea
“suspensão do real”, que é o primeiro passo para uma epifania, é provocada pela experiência
estética do leitor, experiência que “suspende a semântica” e envolve o leitor na sintaxe da
obra, na lógica de suas relações formais. Essas formas e suas relações são séries de elemento
poéticos que se ligam e se interferem, se confirmam e (re)formam, em conjunto, formando
macro-elemento poéticos. O poeta florentino constrói essas “unidades estéticas” iconizando
seu discurso, transformando-o em forma. As unidades estéticas são então as relações forma /
conteúdo que apresentam concretamente seu discurso, que o encenam. E contêm não a
semântica, mas uma sua presença em metamorfose.
O texto é montado de modo a provocar uma epifania análoga à da personagem. Mas a
“visão” do leitor é estética e sensível: são os signos – que ressurgem e se dobram em / à
doutrina, confirmando-a – que provocam a experiência estética deflagradora da epifania. Uma
experiência estética provocada por um texto cuja configuração é cuidadosamente construída,
172
de modo que o contato do leitor com sua rede de elemento poético o induza a perceber um
“instante da obra” que se quer mística.
O interesse de Haroldo de Campos é claro: não pela doutrina, mas pelo modo como ela
é apresentada. A doutrina se dobra também em / aos signos: o artifício do poeta, o
elevadíssimo grau de potência de realização do texto sobressai à sua realização. O modo de
apresentação da doutrina é o que mais interessa ao poeta paulista, sua transformação em
forma.
Selecionamos e dividimos o material de Haroldo de Campos que nos interessava
comparar com a Commedia da seguinte maneira: de um lado, a tradução de seis Cantos do
Paraíso; de outro, quatro textos criativos. Percebemos que a questão da epifania é de extrema
importância para a delimitação dos caminhos que a tradução da Commedia para o português
e sua recriação em outros textos irão tomar.
Haroldo de Campos compara o tipo de tradução que pratica à mimesis. Segundo o
tradutor, tanto um processo quanto o outro trabalha com a produção da diferença no mesmo.
A tradução de Haroldo de Campos não visa à reprodução do conteúdo do texto, mas à
transcriação de suas formas. Escolhendo para traduzir textos de alto potencial estético,
Haroldo lida com estruturas formais previamente construídas como elemento poéticos.
Haroldo transcria a forma estética, montando novos elemento poéticos, cuja lógica interna de
relação entre forma e conteúdo é análoga à primeira. O tradutor, ao invés de simplesmente re-
contar uma estória em outra língua, torna ativa para o leitor contemporâneo a lógica interna da
criação poética, abrindo o acesso ao horizonte cultural do texto traduzido. Mais importante do
que a estória é seu modo de apresentação e é nisto que Haroldo de Campos se concentra ao
traduzir os Cantos da Commedia.
A transcriação seria então uma espécie de tradução de elemento poético. E o tradutor
desliza entre a literalidade e a criação para transformar, em outra língua e em outro elemento
poético, a lógica formal do texto.
A tradução se comporta como hybris: não se submete ao texto primeiro, tentando
torná-lo compreensível a seu leitor. Haroldo reivindica para sua tradução um status também
de original. O nível de mudança e de diferença preciso para transformar um elemento poético
de uma língua para outra acaba por construir um outro texto, que muitas vezes se afasta do
primeiro para melhor apresentá-lo.
A grande diferença entre o processo da transcriação entre línguas e o da mimesis na
criação dos quatro textos aqui apresentados está no telos de um e de outro. O primeiro visa
173
tornar acessível o universo cultural do texto de partida; o segundo, traduzi-lo em um novo
horizonte de expectativas.
Na terceira parte da tese, analisamos essa transformação do horizonte de expectativas
da Commedia nos textos de Haroldo de Campos. Chamamos atenção para o modo como o
poeta insere algumas das situações, personagens e formas do poema italiano na lógica de seu
próprio horizonte de expectativas. Isso se concretiza também por meio da tradução de seus
elemento poéticos e da mimesis.
Em A máquina do mundo repensada Haroldo seleciona o tema motor da Commedia
– a máquina que move o mundo, Deus – e o insere em seu universo. E o faz transcriando
seus elemento poéticos, não para ativá-los em uma outra língua e em um outro tempo como na
tradução dos Cantos, mas para transformar a sua lógica interna, referindo-a a um outro
horizonte de expectativas.
Aqui a mimesis criativa se comporta também como a tradução, uma vez que o objeto
de que se parte é um constructo e já contém em sua lógica interna todo um universo cultural
metamorfoseado. Também aqui o elemento poético tem de ser traduzido, pois é esperada uma
relação entre seu horizonte de expectativas e o do “outro”. Quando se lêem os textos criativos
de Haroldo, se pensa (n)a Commedia.
Na tradução entre línguas, Haroldo produz elemento poéticos cujas lógicas internas
são o mais análogas às da Commedia, mesmo que para isso tenha de transgredir os limites do
texto, do sentido e da língua, no intuito de fazer a obra “proviver” a partir da ativação de seu
horizonte de expectativas. A configuração da tradução precisa promover um potencial estético
análogo àquele da Commedia, ou seja, conectado à possibilidade de epifania mística.
Já nos textos criativos, como a proposta é outra, transformar o horizonte de
expectativas na criação da nova obra, o processo é diverso. A lógica dos elemento poéticos da
Commedia, vamos percebendo, se mantém ativa no novo elemento poético. Mas permanece
como um ícone de sua ausência, de sua impossibilidade. Como um arquétipo que não
funciona mais e se congela em forma. Não uma forma morta, mas uma forma que carrega a
potência ativa do que já foi. A epifania mística não é possível dentro do horizonte de
expectativas trazido por Haroldo de Campos, mas, por lidar com a Commedia, sua presença –
ainda que como ausência – é imprescindível.
O novo elemento poético seria então a relação entre o elemento poético da
Commedia, presente apenas como ausência em potência, e sua transcriação a partir de um
outro horizonte de expectativas. É importante notar como o processo de criação do novo
174
elemento poético não se estanca na transcriação mais simples do elemento poético. Este se
realiza em relação ao primeiro ausente. O processo não se estanca: é movimento de jogo.
É também este o caminho que encontramos no poema “Finismundo: a última viagem”.
Um confronto de elemento poéticos: o herói da antiguidade se transforma no transgressor da
idade média católica para se metamorfosear em um anti-herói da “pós-modernidade”.
Em Signância quase céu a intertextualidade também é o ponto de partida para a
construção do texto. O poeta paulista vincula e contrasta a visão de mundo e a obra de Dante
com a de Mallarmé, no jogo que promove entre elemento poéticos. Uma estrutura invertida da
Commedia sustenta o Gênesis que se apresenta na lógica dos signos de Mallarmé, apontando
para o Nada. E é este jogo a lógica do elemento poético do texto de Haroldo. O jogo entre o
ontológico Todo ou Nada se transforma em um palimpsesto de signos – um horizonte textual
que se descentraliza como a visão de mundo de seu tempo.
Galáxias fragmenta a estrutura da Commedia e propõe uma viagem na escrita. Em
Dante, esta é uma viagem possível, mas o é estando ligada à viagem do peregrino em busca da
conversão. Em Galáxias o signo se dobra em signo.
Aqui também os signos da Commedia são transformados, seus elemento poéticos são
transcriados a partir de um outro horizonte de expectativas. Um livro que se propõe um “epos
sem estória”, uma “epifânica”, claramente envereda pelo caminho de Dante. Assim como o
poeta florentino, Haroldo de Campos trabalha com a conexão entre epifania e experiência
estética. Mas este processo se altera: é transcriado para funcionar na lógica de seu texto, na
lógica de seu horizonte de expectativas.
Encontramos, em Galáxias, esse movimento por toda a obra. Destacamos no livro um
fragmento que metonimiza a transformação do epifânico místico no epifânico estético,
deixando entrever pontualmente a mudança de visões de mundo. A forma circular se liga à
epifania máxima de Dante no paraíso. É um elemento poético, uma unidade estética de
relação entre forma e conteúdo. O círculo trino é a Trindade, é o eterno. O poeta paulista
apresenta então sua epifania. Introduz sua voz e repete, circularmente “como o som da
mandala”, o exemplo de Chomsky de uma frase agramatical e sem sentido – pura forma. Da
forma pura para a forma estética.
Novamente apontamos para o processo de tradução e de mimesis que proporciona essa
transformação. O novo elemento poético é um resultado do jogo entre semelhanças e
diferenças em relação ao primeiro. A circularidade da forma (pois a frase é só forma) e de sua
repetição produz, como aquela dantesca, uma epifania. Mas a epifania é “outra” e se remete
ao horizonte do texto e do poeta: uma epifania laica e estética.
175
Já deixamos clara a diferença da mirada e do interesse benjaminianos com respeito ao
elemento poético. O filósofo procurava alcançar, na experiência estética da poesia, um
“instante de vida” ou a filosofia. Haroldo de Campos valoriza o estético como possibilidade
de estimular o pensamento crítico e comparativo. Preencher os vazios promovidos pelo
contato com uma lógica (formal) “outra”, que não impõe uma “semântica”, é refletir sobre a
obra e seu horizonte de expectativas, fazer e refazer conexões, manter o jogo. É no
movimento, na passagem, nas brechas desse contato que o pensamento crítico encontra um
solo fértil.
Os signos e suas configurações estéticas, mesmo no caso da Commedia, construídos
de modo a intensificar a iconicidade de uma doutrina para ressaltá-la, são mutações de
formas, conteúdos e relações. Não são “palavras transparentes”, que remetem direta e
objetivamente ao objeto. São ícones condensados, fragmentados e recriados. São densos, mas
porosos e contêm vazios. São passíveis de muitas metamorfoses na leitura. Eis o interesse de
Haroldo de Campos pela Commedia desdobrado: o estético contém em si a “falta” valorizada
pelo poeta-tradutor como impulso para a criação. E esse impulso se transforma em tradução-
crítica ou criação-crítica.
Vinculando sua “epifania” com a linguagem, Haroldo não apenas chama atenção para
sua proposta poética, mas também incita o leitor a pensar criticamente sobre o mundo em que
está inserida, ao contrastá-la com a da Commedia. Em um outro horizonte de expectativas, os
textos de Haroldo de Campos recusam um telos e uma origem. Afastam-se das doutrinas e se
voltam para o texto.
Acusados de formalistas por conta da fase concreta, os poetas que participaram do
grupo Noigandres retrucavam com Maiakóviski: “não há arte revolucionária sem forma
revolucionária”.
O mundo está presente nas obras de Haroldo de Campos: a literatura, a política, as
artes plásticas, as cidades, visões de mundo que se confrontam. O mundo é parte desse texto
que, voltando-se a si mesmo, chama a atenção do “outro”. Se um discurso revolucionário é
capaz de convencer, uma forma revolucionária é capaz de incitar. Nesse sentido, na epifania
estética, o retorno recorrente de uma possibilidade lógica “outra” de configuração do mundo
no texto incita o pensamento crítico sobre o próprio mundo. O retorno ao texto não é um beco
sem saída, mas um prisma que multiplica as possibilidades do próprio texto.
176
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