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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
O DIABO ENTROU NA IGREJA: CARNAVALIZAÇÃO DO SAGRADO
EM “CHARIVARI”, DE LOURDES RAMALHO
MARIA DO SOCORRO ARAÚJO DE ARRUDA
CAMPINA GRANDE - PB
2009
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1
MARIA DO SOCORRO ARAÚJO DE ARRUDA
O DIABO ENTROU NA IGREJA: CARNAVALIZAÇÃO DO SAGRADO
EM “CHARIVARI”, DE LOURDES RAMALHO
Dissertação de Mestrado apresentada ao
programa de Pós-Graduação em Literatura e
Interculturalidade da Universidade Estadual da
Paraíba, em cumprimento à exigência para
obtenção do título de MESTRE EM LITERATURA
E INTERCULTURALIDADE
Orientadora:
Profª Drª Maria Goretti Ribeiro
CAMPINA GRANDE - PB
2009
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2
É expressamente proibida a comercialização deste documento, tanto na sua forma impressa
como eletrônica. Sua reprodução total ou parcial é permitida exclusivamente para fins
acadêmicos e científicos, desde que na reprodução figure a identificação do autor, título,
instituição e ano da dissertação.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL – UEPB
A778d Arruda, Maria do Socorro Araújo de.
O diabo entrou na igreja [manuscrito]: carnalização do
sagrado em “Charivari”, de Lourdes Ramalho / Maria do Socorro
Araújo de Arruda. – 2009.
109 f.: il.
Digitado.
Dissertação (Mestrado em Literatura e Interculturalidade) –
Universidade Estadual da Paraíba, Pró-Reitoria de Pós-Graduação,
2009.
“Orientação: Profa. Dra. Maria Goretti Ribeiro,
Departamento de Letras e Artes”.
1. Literatura Brasileira - Lourdes Ramalho.
2. Carnavalização. 3. Ressignificação. 3. Erotismo. I. Título.
21. ed. CDD B869.9
3
MARIA DO SOCORRO ARAÚJO DE ARRUDA
O DIABO ENTROU NA IGREJA: CARNAVALIZAÇÃO DO SAGRADO EM
“CHARIVARI”, DE LOURDES RAMALHO
Aprovada em _____/_____/ _____
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof.Drª.
Maria Goretti Ribeiro - UEPB
____________________________________________________
Prof.Drª. Ana Cristina Marinho Lúcio - UFPB
____________________________________________________
Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel - UEPB
4
Dedico
Às minhas eternas meninas Fernanda e Ana Flávia que compreenderam meu
momento de ausência e solidão.
5
AGRADECIMENTOS
À força maior que encaminha todos os acontecimentos da minha existência.
Ao carinho e expectativas dos meus pais. Acredito que “papai” e “mamãe“,
verdadeiramente vibram com as minhas conquistas. O momento comprova a
confiança e sabedoria que deles herdei.
Aos irmãos e às irmãs que estão sempre torcendo para meu sucesso. Com
vocês, divido o sabor da conquista e recheio de sorrisos as brechas que a distância
do dia-a-dia nos promove.
A convivência com Nivaldo sempre oportuniza amplas e prazerosas leituras.
“Fio”, agradeço enormemente as suas “não ajudas” e a constante certeza do sucesso
das minhas descobertas e crescimento.
Aos amigos e amigas que incentivam, estimulam e compreendem o valioso
mundo da educação, da literatura e da pesquisa. Todos têm valiosa participação
neste trabalho.
Através do mundo literário montado por Lourdes Ramalho, percorri no espaço
e tempo da cultura nordestina a incansável e alegre descoberta do conhecimento e
reconhecimento sobre a seriedade com que esta escritora trata homens e mulheres
de nossa região, dando-lhes a dimensão universal e transformadora da realidade.
A Goretti Ribeiro, agradeço o profissionalismo. Com certeza, foram dos
nossos valiosos encontros regados a pontuais “exigências” que firmamos a seriedade
do nosso estudo.
Ao professor Diógenes Maciel, que continuamente ajudou na realização deste
trabalho. Sua experiência na dramaturgia, sua ligação à Lourdes Ramalho, sua paixão
pela pesquisa, aliado à amizade e “cobranças” em sala de aula e fora dela, sem
6
dúvida, abriram caminhos para esta pesquisa. Admiro sua capacidade de ser crítico,
amigo e acolhedor sempre.
À professora Ana Cristina, suas leituras e pontuais observações acrescidas de
meigas palavras encaminharam melhoras neste trabalho.
À professora Valéria Andrade, suas leituras e escritas acerca do fazer teatral
de Lourdes Ramalho sempre foram alvo das minhas pesquisas. Poder contar com seu
olhar crítico neste trabalho representa extremada contribuição.
Aos professores do Mestrado de Literatura e Interculturalidade que, em
etapas distintas e relevantes, contribuíram para a realização desta pesquisa. Com
agradecimento especial a Geralda Medeiros e Marinalva Freire. Com seriedade e
sutileza suas orientações serviram de base para a realização deste trabalho.
Ao secretário Roberto Santos. Sua responsabilidade, afeto e disposição em
sempre ajudar, marcam a maravilha do homem, profissional, simpático e amigo que o
Mestrado de Literatura e Interculturalidade encontra sempre.
7
RESUMO
Este trabalho versa sobre a ressignificação do charivari na obra homônima de
Lourdes Ramalho (1997), com a finalidade de demonstrar a carnavalização dos
valores morais e dos princípios éticos instituídos pela Igreja medieval e as
transformações sofridas através da construção literária da referida autora. Embasados
nos aportes teóricos sobre cultura e literatura popular por Burke (1989), na
perspectiva da carnavalização por Bakhtin (1999) e da sátira menipéia por
Vasconcelos (1996), dos estudos teóricos sobre o charivari medieval por Minois
(2003) Berthold (2001) e Trompson (1998), das noções do sexo como desvio e
danação por Barros (2001) Richards (1993) e Sucuteri (1985), e pela concepção do
imaginário simbólico estudado por Durand (2002), demonstramos a dessacralização e
a valorização do Eros exacerbado condizente com as ações dos personagens com
ênfase no sentido simbólico, metafórico e alegórico da atuação do Diabo como agente
transformador desse processo. Utilizando um método comparativo, demonstramos
através da análise das ações dos personagens, tanto o conteúdo da obra ramalhiana,
quanto ás semelhanças e diferenças entre esta obra e o charivari medieval, para
concluir que, apesar das semelhanças estruturais, formais e conteudísticas
entendemos que a diferença está na função do charivari de Lourdes Ramalho, que ao
contrário do medieval que tinha como finalidade execrar defeitos, vícios e limitações
humanas no que concerne à infidelidade conjugal e aos comportamentos sexuais
reprováveis pela Igreja, tanto libera quanto exalta o prazer erótico absoluto.
Palavras-chave: Literatura. Carnavalização. Ressignificação. Erotismo
8
ABSTRACT
This work consist on the study of the meaning of charivari at Lourdes Ramalho’s
(1997), homonymous book. The gool of the research is to demonstrate the
carnavalization of moral volues and the ethic principles established by medieval
Doutrine Cotholic Church and reveal the main transformations introduced by the
literry work of the mentioned authoress. Based on the theoretical ideas on culture and
popular literature written by Burke (1989), on the perpective of the carnivalization
created by Bakhtin (1999), and on the menipéia satire constituted by Vasconcelos
(1996), besides on the theoretical studyies about medieval cahrivari researched by
Minois (2003), Berthold (2001) and Trompson (1998), on the sex nations as a
deviation and Devil’s creation instituted by Barros ( 2001), Richards (1993) and
sucuteri (1985), and finally on the symbolic and imaginary conception studied by
Durand(2002), this work showed the unholy process and the valorization of
exacerbate Eros suitable with the characters actions emphasing the simbolic, alegoric
and methaphoric meanings of the Devil’s acts as the responsible transformer of this
process. The comparative method was used at this work, showing that, through the
analysis of the characters actions, both: the Lourdes Ramalho ideas and the similarity
with the differences between these ideas and the medieval charivari in order to
conclude that even tough there are structural, formal and contentness resemblances,
it should be understandable that the main difference is reported to charivari’s function
at Lourdes Ramalho book, because, in his opposition, the medieval charivari had the
objectives to eliminate defects, bad habits and human limitations related to the
conjugal infidelity and the sexual behaviours condemned by the church, and the
Ramalho’s charivari discharges and exalts the absolute etotic pleasure.
Key-words: Literature. Carnivalization. Re-meaning. Eroticism
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................
10
CAPÍTULO I
LOURDES RAMALHO: ESTILO E OBRA .......................................................
13
CAPÍTULO II
SENTIDO DE CARNAVALIZAÇÃO NA CRIAÇÃO LITERÁRIA .....................
33
2.1 – Carnaval: sentidos e manifestações ........................................................
33
2.2 – Sátira Menipéia .........................................................................................
42
2.3 – Charivari ....................................................................................................
44
CAPÍTULO III
“CHARIVARI”: CARNAVALIZAÇÃO E DIABOLIZAÇÃO DO EROTISMO ....
48
3.1 – O Diabo entra na Igreja .............................................................................
53
3.2 – O Morcego – comparsa do Diabo .............................................................
59
3.3 – A Beata .....................................................................................................
62
3.4 – As queixas da Viúva .................................................................................
72
3.5 – O Sacristão entra no Charivari ..................................................................
79
3.6 – O Defunto: enganador revelado ................................................................
83
3.7 – O Padre da freguesia: entre o sexo e as unções ......................................
88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................
95
REFERÊNCIAS .................................................................................................
97
ANEXOS ............................................................................................................
104
10
INTRODUÇÃO
O reconhecimento do talento literário e dramatúrgico de Lourdes Ramalho foi
iniciado publicamente na década de 1970, a partir da premiação da peça “Fogo
Fátuo”, em 1974 e da primeira montagem da peça “As Velhas”, em 1975. Desde
então, a dramaturgia ramalhiana vem sendo continuamente valorizada graças às
constantes encenações de suas peças e realizações de relevantes estudos
acadêmicos. Com este trabalho, pretendendo colaborar no trilho da compreensão e
valorização da dramaturgia dessa autora, observando como acontece a
ressignificação do charivari medieval na obra Charivari (1997).
A peça Charivari” , corpus de análise deste trabalho, recebeu o primeiro lugar
no Concurso de textos do Ministério da Cultura Oficina do Autor em Brasília, edição
1999. A referida peça tem uma escrita ligada à literatura oral, ao cancioneiro
nordestino e à dimensão da memória intrínseca a esta. Nesse entendimento, Charivari
caracteriza-se por apresentar elementos da repetição, rimas e musicalidades,
estruturadas em décimas e sextilhas típicas da literatura oral e, particularmente, do
cordel. Definimos o cordel ramalhiano, com a ajuda da própria autora, como uma
ópera bufa com traços que comprovam também seu engajamento na farsa, cuja
composição escritural baseia-se na linguagem medieval cômica.
Na oportunidade da leitura que realizamos da obra Charivari, de Lourdes
Ramalho fomos invadida por risos acompanhados de sérias interrogações. Impossível
negar os impactos das discussões levantadas no espaço do sagrado. Enquanto
leitora, buscávamos entender como a autora conseguia representar vivamente na
peça, a questão da sexualidade, especialmente no tocante ao sexo feminino. Na
condição de mulher e conhecedora dos limites e das imagens estabelecidas na
cultura quanto ao sexo, ficávamos ainda mais curiosa por entender o conhecimento e
a coragem dessa autora em abordar tal questão.
Como a autora traz à mostra o inverso do estabelecido pela Igreja quanto ao
sexo? Pensando nesta inversão não poderíamos deixar de percorrer os pressupostos
teóricos de Bakhtin (1999) sobre carnavalização. No sentido de aprofundar a pesquisa
sobre esta inversão e, portanto, entender os festejos e reflexões advindos no charivari
ramalhiano, realizamos leituras sobre carnaval, festas, riso, sátira menipéia, entre
outros pontos relacionados, embasados em Burke (1989) e Vasconcelos (1996). Na
11
tentativa de compreender os anseios de desejo e de prazer que os personagens
expressavam em suas ações, foi imprescindível trazermos à tona reflexões sobre a
sexualidade e o percurso histórico da construção do sexo como demoníaco nas
teorias de Barros (2001), Richards (1993) e Sucuteri (1985), como também da
concepção do imaginário simbólico estudado por Durand (2002).
Ao longo deste trabalho, questionávamos: mas o que é um charivari? As
definições apontadas pela autora de “confusão”, “Balburdia” traziam a justificativa de
que este ocorria com fins de soltura. Procuramos apoio, então, nas leituras de Minois
(2003), Berthold (2001) e Trompson (1998), sobre o charivari medieval e constatamos
que este funcionava em praça pública objetivando, principalmente, chacotear com os
indivíduos que desobedecessem às regras de fidelidade e de violência, quanto à
conduta conjugal. Relacionando os propósitos do charivari ramalhiano à luz dos
referenciais teóricos citados, nos foi possível perceber o contrário e as distâncias que
se interligam entre o charivari ramalhiano e o charivari medieval. Desse modo,
abrimos um caminho analítico para a obra ramalhiana.
Norteada pelo estudo da cultura e da literatura popular, e com base no
método analítico descritivo, buscamos compreender a partir da análise das ações dos
personagens, como Lourdes Ramalho faz acontecer a ressignificação do charivari
medieval recriando na contemporaneidade um charivari que tematiza a degradação
sexual e dessacraliza os valores humanos carnavalizados. Com este intento,
estruturamos o trabalho em três capítulos.
O primeiro destina-se a construir uma rápida revisão da literatura sobre a obra
de Lourdes Ramalho e tece considerações críticas em torno de todo conjunto de sua
produção que a define como escritora da tradição e do regionalismo, com raízes no
estilo ibérico medieval numa perspectiva universal e híbrida que a transcende do
espaço local, com vistas a representar a realidade de homens e mulheres no viés dos
acontecimentos de suas vidas, de suas necessidades, de suas paixões e, nos
obstáculos para, a partir desses, elevar-se com garantia de esclarecer e transformar
sua realidade sob a ótica da razão. Neste, iniciamos o enfoque da carnavalização na
escrita ramalhiana baseado na obra Charivari.
O segundo capítulo encontra-se baseado nos estudos da carnavalização, e
das imagens do grotesco e da sátira menipéia. Prosseguimos na tentativa de
confirmar os elementos que constituem a carnavalização, acreditando que estes
transitam entre a contradição e a lógica das experiências de vida, assim como
12
instauram transformações. Em seguida, apresentamos um olhar histórico sobre o
termo charivari medieval e, por fim, traçamos os constituintes sobre a ressignificação
operada no charivari ramalhiano, que é norteado pela intenção simbólica de anunciar
mudanças de comportamento no plano social, religioso e cultural.
No terceiro capítulo foi desenvolvida a interpretação da obra Charivari, com a
intenção de confirmar que o charivar, de fato, acontece mediante o efetivo
comando do Diabo sob a ação dramática de cada personagem. Personagens que são
convidadas a expressarem suas indagações ante a vida e que, na soltura
oportunizada no momento festivo do charivari, adotam novos comportamentos,
dessacralizando os valores humanos estabelecidos na cultura e instaurando,
portanto, a real transgressão da ordem oficial na deflagração do erotismo em sua
plenitude.
Por fim, registramos que o charivari ramalhiano é vivido num tempo e espaço
transitório e efêmero do sagrado, instaurando a festa e a mudança de forma
momentânea, que aponta para a investida no desejo e na vivência do erotismo com
vistas ao prazer carnal, libidinoso e libertário. Compreendido com fins de soltura, o
charivari ramalhiano aproxima-se à definição dada ao carnaval exposta por Bakhtin,
uma vez que, é criado um mundo de valores atrelados à alegria, à esperança e ao
futuro, como um carnaval que introduz novos valores à vida, que idealiza a
probabilidade de dias melhores, ou seja, dias de deleites cabais autorizados.
13
CAPÍTULO I
____________________________________________________________________
LOURDES RAMALHO: ESTILO E OBRA
Lourdes Ramalho nasceu na região do Seridó - Rio Grande do Norte, em 23
de agosto de 1923. Veio de uma família de onze filhos, carregando consigo dons
artísticos que herdou ao longo da convivência familiar com os avós, pais e tios. Apesar
de todos os filhos da professora Ana Brito praticarem a arte do cordel, da poesia e do
teatro, apenas Lourdes Ramalho seguiu a área artística, tornando-se a “dama da
dramaturgia nordestina”. Com a escolha da carreira artística, tão bem estimulada e
alicerçada pelos seus familiares, Lourdes Ramalho diz estar cumprindo uma promessa
feita à avó de transmitir as antigas histórias de sua infância que desde pequena ouvia
atentamente e as recontava sempre que podia.
Lourdes Ramalho adentra a cultura campinense em 1958, acompanhando de
perto as iniciativas culturais que se realizavam na cidade, como a Fundação Escola de
Artes e a Implantação do Rádio Teatro da Rádio Borborema; criação do PRO-ARTE,
escola de dança, música e teatro popular; a construção do Teatro Municipal Severino
Cabral (1963); a criação do Festival de Inverno, dentre outras conquistas nesta área
entre as décadas de 1960 a 1980. Na década de 1970, dá-se a consolidação de sua
experiência e reconhecimento a partir da premiação da peça “Fogo tuo”, em 1974,
na oportunidade do Festival de Inverno de Campina Grande e o sucesso nacional com
a primeira montagem da peça “As Velhas”, em 1975.
Ao se lançar publicamente como autora de teatro na cada de 70, Lourdes
Ramalho passou a receber diversos prêmios na Espanha, em Portugal e no Brasil,
participando de festivais de teatro e concursos de dramaturgia. Até então, são
conhecidos prêmios pelas peças: Fogo Fátuo (1974), As Velhas (1975), A Feira
(1976), Os mal amados (1976), A Eleição (1977), Romance do Conquistador (1999),
Guiomar, filha da mãe... (2003), Charivari (1997). Esta última peça recebeu o primeiro
lugar no Concurso de Textos do Ministério da Cultura Oficina do Autor - Brasília,
1999. Portanto, sua fortuna crítica vem sendo definida com o reconhecimento artístico,
através de suas encenações e estudos que trazem a marca de uma escrita crítica,
atualizada, cômica e fantasiosa, de representação de homens e mulheres ávidos de
14
mudanças na condição de vida, desde a ascensão das suas condições sociais e
econômicas à libertação dos seus desejos sexuais.
Na atualidade, a escritora ocupa lugar de destaque em diversas instituições
na cidade de Campina Grande e João Pessoa, sendo
fundadora e presidente vitalícia
do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno Campina Grande, Paraíba. É co-
fundadora do CACE (Centro Assistencial da Criança Excepcional) e do ICAE (Instituto
Campinense de Assistência ao Excepcional), onde presta serviço. É conselheira na
Fundação de Cultura e Esportes do Município de Campina Grande e no Conselho de
Cultura do Estado da Paraíba (João Pessoa). É membro da Academia de Letras de
Campina Grande
1
.
A obra de Lourdes Ramalho é composta, atualmente, por mais de 50 peças
escritas para o público adulto, além de produções destinadas ao público infantil.
Através do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, duas obras de Lourdes Ramalho
foram apresentadas em vasto circuito artístico da Europa (Espanha e Portugal): As
Velhas (1989), um clássico da literatura teatral nordestina, considerado o melhor
espetáculo do Mambembão de 1989, e O Romance do Conquistador (1991), uma
arrebatadora revelação sobre nossa identidade cultural. Essas duas oportunidades
foram suficientes para que o Brasil e a Europa registrassem todo um ar de admiração
ante a grandiosidade de estética e de pensamento da dramaturgia de Lourdes
Ramalho.
A dramaturgia de Lourdes Ramalho apresenta-se enraizada na cultura
popular do Nordeste com íntima relação com o estilo poético do teatro de Gil Vicente
2
,
Lopes de Vega, Calderón De La Barca dentre outros dramaturgos quinhentistas.
Como premissa dessa produção, surge um possível “ponto de encontro” das formas
dramáticas de raízes populares ibéricas com as poesias populares, onde se guardam
antigas formas de expressões da fala, da música, da pintura, dos rituais religiosos, da
escrita em décimas
3
e sextilhas
4
.
1
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. O novo Prometeu e Presépio Mambembe: dois textos teatrais.
Campina Grande: RG, 2001, p.5.
2
Em sua obra, Gil Vicente revela muito nitidamente o perfil típico do homem que viveu no período de transição da
Idade Média crepuscular para o Renascimento nascente. Assim, não obstante a sua vinculação à herança
medieval, em alguns autos e farsas, o teatro vicentino apresenta traços clássicos e renascentistas, principalmente
pela intencionalidade moralizante da sátira irreverente, pela crítica audaciosa, que põe em xeque a questão das
indulgências, pela teimosa ousadia de satirizar a escolástica, a conduta do clero e, finalmente, pela introdução de
elementos da mitologia em algumas dessas peças (MOREIRA, 2005, p.18).
3
Estrofe de dez versos organizados com dez ou sete sílabas seguindo o esquema de rima ABBAACCDDC,
usualmente empregado nas glosa das motes,nas pelejas e com menos freqüência no corpo dos romances.
4
Sextilhas se refere a estrofes básicas do folheto de cordel nordestino. A presença da sextilha caracteriza-se
como um grande avanço do folheto em relação ao romance ibérico. Nessa estrutura a estrofe é composta por seis
15
Márcio Muniz
5
(2007, p. 3), confirma a intensa inspiração do teatro vicentino
na obra da autora Paraibana, quando em seu artigo “Como falava Gil Vicente. falares
vicentinos na dramaturgia brasileira” comenta
O dramaturgo português é textualmente nomeado e citado pela autora, seja
em suas peças seja nas diversas entrevistas concedidas [...] Além disso,
enquanto simples leitor ou espectador é possível sentir, ver e ouvir
reverberações das personagens, da linguagem, das estruturas de
representação, de temas e, em alguns casos, de posicionamentos ideológicos
da obra vicentina em muitas peças de Lourdes Ramalho.
O diálogo intercultural entre as matrizes culturais de Portugal e Espanha e o
Nordeste é, portanto, a essência do teatro de Lourdes Ramalho que retoma as formas
do drama, da farsa e dos autos vicentinos com temas populares e cotidianos
nordestinos, misturando elementos histórico-culturais ideológicos, políticos e,
sobretudo, religiosos, por onde se assenta o caráter tipicamente nordestino, marca
intercultural intimamente subordinada a uma visão histórica e ideológica do Nordeste
como prolongamento da cultura ibérico-judaica.
A adequada elevação dada a Lourdes Ramalho provém da sua postura de
escritora comprometida com o seu tempo, o que é comprovado quando instiga o seu
leitor a viajar num mundo alegórico e satírico. Em sua adequação escritural faz
sempre acontecer, no lugar exato de suas obras, questionamentos a dogmas e
arquétipos estudados em autores europeus e brasileiros. Desta feita, é pertinente
assegurar que a produção ramalhiana apresenta um espaço antenado com o mundo
da produção literária e dramatúrgica, da ciência, da informação e da possibilidade de
mudanças de paradigmas.
Essa malha de raízes interculturais que reveste a dramaturgia de Lourdes
Ramalho parece alojá-la para fora daquilo que Albuquerque (1999) chamou de
discursos estéticos de “rarefeitividade forçada”, mediante os quais o espetáculo
nordestino se constrói através de uma espécie de estética do degradado, do exótico,
versos formados de sete sílabas apresentando rimas entre o segundo, o quarto e o sexto verso. Os demais versos
podem ficar sem rima. O emprego da sextilha é amplamente aplicado ao cordel cantado, sendo as toadas às
melodias usadas para cantar o folheto de cordel.
5
Márcio Muniz é professor Doutor de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS. Acesso
disponível no site da escritora – http: //www.lourdesramalho.com.br/.
16
um Nordeste empobrecido, desgastado à mercê das intempéries climáticas,
geográficas e políticas.
Longe desta paisagem discursiva inventada, a dramaturgia de Lourdes
Ramalho coloca-se como um projeto poético-político que busca furar com criticidade o
pano de fundo histórico-cultural do Nordeste, estabelecendo o diálogo intercultural,
sem fronteiras e recíproco na porção ibérica no continente europeu com tangência sul
no continente americano.
Além disto, é uma obra que conversa com o povo, sem nenhum
rebuscamento discursivo, que conta estórias, metáforas, tragédias, traz de volta
violeiros, cantadores, repentistas, emboladores, cordelistas de verso e prosa, comuns
no dia-a-dia das cidades, das feiras, das praças e dos caminhos do Sertão nordestino.
A representação destes tipos humanos é modelada em inspirações de imagens e
símbolos que buscam tratar um ser humano universal, construído com base no
diálogo com nossas raízes e com o passado que explica a condição do homem de
hoje. O sentido dos seus textos considera, como afirma Canclini (2003, p. 239), que
“Nem a modernidade exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos
tradicionais é ficar de fora da modernidade”. Portanto, lança-se em busca do novo,
alicerçado no desejo de sempre representar a sabedoria do povo, cuja cultura deve
ser considerada. Deste modo, a compreensão da produção simbólica popular
ramalhiana deve, pois, ser plasmada, a partir não de uma conceituação estanque de
um popular que se cinscuscreve exclusivamente da tradição, mas pelo dinamismo que
a tradição possui, sendo trampolim cultural para outros códigos que se lhe pulsam
naturalmente ou que são desenvolvidos, isto é, instituídos pelo movimento da
indústria cultural.
No caso da produção de Lourdes Ramalho, cujo fim maior não é a estante,
mas sim a cena, fica evidenciado que o traço popular inicia a jornada de possibilidade
dentro da cultura, uma vez que tanto seu reconhecimento e posterior estudo, quanto
sua realização propriamente dita, prescindem de um leque de realizações dentro
daquilo que Canclini (2003) observa como a tríade necessária a qualquer produção:
que é a produção, circulação e consumo.
A busca por uma argamassa estético-conceitual da dramaturgia conjugada
com traços comuns que buscam uma marca identitária cultural sob o rótulo de
nordestino e, consequentemente, de popular, vem há muito se desenhando na
produção de Lourdes Ramalho. Afirmando este fazer teatral, como relata Maciel
17
(2005, p. 9) sobre a obra da autora: “Suas primeiras experiências no sentido de
registrar no papel, de forma dramatizada, hábitos, falares e visões de mundo de
mulheres e homens comuns da sua região foram feitas ainda na adolescência”.
Andrade (2005, p. 320) informa esta presença desde muito cedo, quando da “sua
primeira peça, escrita aos dezesseis anos como um manifesto contra a atmosfera
repressiva do colégio interno onde estudava, em Recife”, peça intitulada “Uma Escola
Maluca”. A iniciação dramatúrgica vem comprovar seu estilo irreverente e de soltura,
constituído de uma imaginação aguçada, ladeada de um senso crítico apurado para a
época, para sua condição de menina e moça que se mostrava “rebelde” diante da
exposição de sua consciência de julgamento e negação às regras e à falsa moral com
as quais convivia. A este estilo “irreverente”, Ramalho antecipou a visita de seus pais
ao colégio e fez deste acontecimento, motivo de sua saída apressada e tumultuada
da referida instituição. O fato que lhe promoveu a expulsão do colégio e contribuiu
para comprovar o início do incômodo dos seus escritos à ordem vigente.
Lourdes Ramalho apresenta-se como escritora que retrata, sempre de
maneira polêmica, os falares do povo, a realidade brasileira que se mistura com suas
crenças populares. Rever antigos traços culturais com uma prática revivificadora, que
moderniza sem prejuízo de sua nobreza os segredos do Nordeste. Lourdes Ramalho
apresenta, pois, um teatro colorido, variado, divertido e crítico. Detentora de extrema
liberdade de criação, acaba por contemplar em seus textos enfoque próximo ao
chiste, à anedota e ao gracejo para falar da nossa realidade cultural, seguindo sua
origem ligada às artes, à cultura e à educação.
Em seu artigo “Teatro infantil na sala de aula: diálogos com a cultura popular”,
Ana Cristina Lúcio (2004, p. 11) analisa a peça Maria Roupa de Palha, de Lourdes
Ramalho, assim como externa suas reflexões acerca de “como a escritora mergulha
nas fontes populares: literatura de cordel, contos de fadas, personagens e tipos
oriundos de diferentes manifestações da cultura popular etc”. O referido artigo propõe
um conhecimento sobre as influências da escrita ramalhiana para este público, além
de um excelente momento de reflexões sobre o trabalho com teatro na sala de aula,
do conhecimento oportunizado a partir dele sobre a cultura popular, da carência de
trabalhos na academia no que diz respeito ao texto teatral e, por fim, dos entraves
ainda existentes nos enfoques metodológicos que o trabalho com este gênero exige
diante de suas especificidades, ainda não suficientemente estudadas na sua
relevância. Os pontos lançados neste artigo vêm corroborar com as pesquisas em
18
torno das produções desta dramaturga e sua intrínseca importância para o
conhecimento da cultura popular, lançando um convite para uma repensar sobre a
compreensão e uso do texto literário, a começar aqui pelo texto dramático.
Esta escritora sempre direciona seus escritos para nossa região, para os
nossos interesses nacionais e numa dimensão maior do espaço, para o Velho Mundo,
referindo-se ao Brasil colonizado e às terras da América colonizada, ao modo do
Brasil ou de forma diferenciada pelos ingleses, formando os americanizados
massificados e exploradores, tão bem comentado no texto de “Guiomar sem rir, sem
chorar”(1982)
6
, o que confirma serem os dilemas do povo brasileiro, os dilemas de
todos os povos. Estes dilemas são apresentados pela professora Guiomar
supersticiosa, perspicaz, desaforada que apresenta de maneira simples e direta a
riqueza poético-política da dramaturgia ramalhiana. De certo modo, pelo seu tema
político e irônico, é um encontro intra-cultural ligado à geração que viveu os retidos
anos de ditadura militar no país, como os docentes atuais, forçando uma postura que
responda aos anseios dos professores e da cultura em geral:
Foi-se o tempo da lição decorada de à vante e de vante à ré naquela
sabatina de “Paulina mastigou-pimenta”, sem metodologias nem didáticas
especiais mas que deixava o cabra mais letrado que as pós-graduações de
hoje. Também pudera Comparar a alimentação antiga com essas lavagens-
de-espingarda de agora. – Que se pode esperar de uma geração que já nasce
com as estruturas mentais amolecidas? Criaturas massificadas, amassadas,
trituradas, liquidificadas e quimicamente envenenadas. [...] Todas essas
macaquices que o brasileiro imita do americano e tome no talo, - provocam
não só obesidades, mas hipocondrias, inapetências...e até impotência
(RAMALHO,1984, p. 42).
Em seu texto regionalismo e universalismo, Möller-Zeidler (1993, p. 197)
expressa que a dramaturga Lourdes Ramalho encontra-se inserida numa
classificação regionalista, pois em geral, suas “tramas são ambientadas no Sertão
nordestino, pautadas na mesma linguagem singela e, por vezes, maliciosa recheada
de expressões peculiares ao povo”. No entanto, esta autora acrescenta que a marca
escritural ramalhiana não se limita apenas a retratar o perfil da realidade nordestina, o
que a faz criar uma literatura que vai além de uma qualificação regionalista, uma vez
que seus escritos, sucessivamente, veiculam conteúdos que expressam vivências que
ultrapassam as particularidades nordestinas e trazem à tona fatos do passado e do
presente que interferem na memória coletiva. Surge de seus escritos, dentre outros
6
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes.Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem rir, sem chorar,
Frei Molambo, ora pro nobis). Campina Grande, RG, 1984.
19
contentos, um viés de críticas ao colonialismo e aos exóticos grupos de estrangeiros
que penetraram na nossa nação, críticas às estratégias corruptas dos políticos;
ressaltando com avidez, a intensa presença do misticismo em nossa cultura, ligada
diretamente ao medieval. No contínuo desta compreensão, apontamos, pois, para a
dimensão espacial retratada por Lourdes Ramalho que descreve com perfeição a
sabedoria e consternação dos sertanejos; o Nordeste constituído de forte presença
Ibérica e dos brasileiros e suas crenças populares. Assim sendo, esta transita na
mistura do espaço local e global, no real e no sobre-humano e constrói uma visão de
mundo instituída de “uma mensagem universal, onde a tragédia nordestina serve de
exemplo para evidenciar a condição humana em geral” (Möller-Zeidler,1993, p. 198).
Considerando a marca da ressignificação proposta na escrita ramalhiana,
Lima (2007, p. 240) no livro Dramaturgia fora da estante, traz explicação em seu
artigo intitulado “A feira: reflexões em torno de algumas linhas, entrelinhas e
dinâmicas” sobre a composição desta autora que produz o novo com fração do antigo,
considerando que:
Em seus textos estão os grandes temas da dramaturgia ocidental que, se por
um lado, são apresentados sob a perspectiva do nordestino simples, por outro
lado, aproxima-se das grandes discussões trazidas à ribalta ao longo da
história, ao tratar este ser particular dentro daquilo que ele tem de mais
universal: sua condição humana. Utilizando-se de uma estrutura formal que
assimila a tradição familiar dos cordelistas e dos cantadores populares, aliada
às formas de representação do teatro popular dos circos e das feiras de nossa
região [...] São mesclados outros aspectos do cotidiano e de seu próprio
tempo, o que termina por provocar uma permanente atualização e
ressignificação dos temas e dos personagens representados em suas peças.
Acrescentando de forma relevante a teia de estudos sobre a produção
escritural de Lourdes Ramalho, numa perspectiva universal e sempre possível de seu
ressignificados, Vlader Nobre Leite (2007, p.266) diz:
Não queremos aqui reduzir ou ignorar o conceito de uma temática regional. É
sim regional, pois tem a ver com realidades bem próprias do povo nordestino;
mas, à medida que Lourdes Ramalho concatena as ões, envolve-nos numa
trama tão repleta de significados que torna-se (SIC) inevitável não enxergar
universalidade humana.
20
A autora procura, ainda, registrar dilemas em seus textos para, a partir destes,
refletir sobre a realidade com vistas a enfatizar novos e bons sentidos, a vida e a
negação da maldade. Defensora em suas obras dos pobres, mulheres, retirantes da
seca, judeus
7
, conquistadores e desbravadores de sentimentos, de terra e de
sobrevivência de vida, com vistas muitas vezes moralizante, em que a ironia está a
serviço da desconstrução de modelos e verdades, vistas e assumidas por muitos
como definitivas.
No contexto destas intenções escriturais, temos O Trovador Encantado (1999)
que consiste em um texto teatral que conta a dor e a angústia dos judeus que fogem
de Portugal para os Sertões nordestinos em puro mecanismo de defesa contra a
Inquisição. Conforme explana na rubrica final do livro “O Trovador Encantado”,
Ramalho Júnior (1999), o texto “envolve personagens e falas na” bufonaria “festiva da
Idade Média, permitindo, assim, o riso, as brincadeiras licenciosas, usadas na época,
até mesmo no interior dos conventos”. As falas e ações dos personagens são usadas
para denunciar, de forma crítica e libertadora, os valores, muitas vezes,
negligenciados no lado afetivo e totalizante da dimensão humana.
A fortuna crítica de Lourdes Ramalho continua a ganhar vigor com o trabalho
de pesquisa de João Dantas Filho (2007, p. 35), quando trata da análise de
personagens masculinas na nossa sociedade, partindo de um estudo da peça As
Velhas”. Na ocasião, ressalta que as personagens femininas na dramaturgia
ramalhiana são as mais discutidas, sendo, portanto, quase sempre as protagonistas
da ação na maioria dos seus textos. Afirma também que “as personagens masculinas,
na maioria, passam a ser meros coadjuvantes, ou figuras secundárias”.
Em seu trabalho, Dantas Filho realiza um estudo baseado no texto dramático
com enfoque sobre as relações/tensões de gênero, envolvendo homens e mulheres
do Nordeste e seus mecanismos para driblar as adversidades da vida e se manterem
ávidos de esperanças e sonhos a realizar. Partindo do que se observa de real, de
dificuldades e de sofrimentos na vida dos nordestinos, percebemos o vigor na busca
por superá-los. Entre as possibilidades de superação de tais aflições e amarguras,
7
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa: EdUFPB,
2002. Obra lançada pela autora que vem confirmar sua veemência e afinco em pesquisar as raízes histórico-
cultural do Nordeste.
21
espaços para emergências de novos perfis de atuação para homens e mulheres,
permitindo à mulher, na figura da matriarca, uma posição de detentora da ordem de
toda estrutura familiar. A presença da força constante da mulher aponta para a
solidificação de um novo perfil para o masculino, o que causa conflitos no ambiente
social mantido pela tradição patriarcal.
As Velhasaborda o tema da mulher marcada pelo destino, pela vingança,
pelo sofrimento e pela amargura. O universo ficcional relata os comportamentos,
atitudes e os posicionamentos das personagens femininas, seja o desejo de acionar a
sexualidade como uma reivindicação da própria condição existencial ante o mundo
que se lhe apresenta, ou mesmo de negá-la em nome da família, num mundo social
marcado pelo patriarcado. Portanto, nas mulheres-rivais Mariana e Ludovina, e na
“mulher-destino” Branca, temos em última instância, ações de mulheres que buscam a
promoção e o direito ao prazer do corpo, mulheres que sentem conscientemente seus
desejos e que ora buscam vivê-los, ora tentam negá-los.
Mariana, ainda jovem, é abandonada pelo marido, que foi levado pelo encanto
de uma cigana, sua inimiga, passando de esposa à mãe dedicada aos filhos, voltada
para a terra, sem homem, sem laços afetivos, perseguindo a honra e a sobrevivência
da família. Vejamos o trecho:
Mariana Que vida tenho levado! Isso é baião pra doido. Queria ver se
com Tonho a gente tinha desandado a esse ponto. Tinha nada! Tonho era
aquela moleza, aquela queda pelas feme, mas era homem e homem de
todo jeito é respeitado. Se num fosse aquela cadela prenha ter se atravessado
na vida da gente... Tirou o pai de meus filhos, o sossego da família... Foi que
nem a outra disse – ah, praga do seiscentos diabos -, fiquei sem meu Tonho e
quem quiser que pense o que é uma mulher nova, forte, viçosa, caçar nos
quatro canto da casa o seu homem e achar a saudade dele... vontade
da gente desabar no meio do mundo e fazer tudo o que num presta...isso eu
num fiz, sei mesmo que num fiz pela obrigação dos filhos, mas ele merecia.
Tem nada não, tudo vem a seu tempo (RAMALHO, 1980, p.58).
As duas ações dramáticas em paralelo, cujas engrenagens fazem de um lado
as duas rivais se superarem (ao encontro dos filhos), e de outro, incidir uma violenta
realidade à Branca, a qual segue buscando mudanças. Esta, vendo a ligação e
dedicação da mãe com os entes familiares e percebendo a sua negação de ser
mulher, não deseja para si este fadário. Em suas falas, a personagem deixa clara a
aspiração de viver o corpo, o prazer, a feminilidade em sua plena existência, mas
entendendo que a concretude de tal prazer só lhe é dada a partir do convívio com um
homem. Com isto, a peça mostra uma marca forte de Lourdes Ramalho em que, ora
22
suas mulheres abafam a sexualidade e assumem a honra da família como um
primeiro motivo de existência e, em outros momentos, assumem paixões e desejos e
gritam pelo direito à vida. Neste enredo, Branca busca o prazer, através da presença
concreta de um homem como condição existencial de ser mulher
.
A temática do feminino aparece em todas as peças ramalhianas, sempre em
busca de assegurar para as mulheres um lugar merecido na sociedade. Assim, segue
uma relação desta presença em algumas peças da autora, conforme Hermano José
8
“Maria Augusta’ de Fogo-Fátuo “, que aparecendo apenas na narrativa,
impõe-se como uma mulher forte, ou a” Dona Santa”, solteirona, batalhadora
e independente, na mesma peça [...] A “Vó de “Festa do Rosário”, dura e
lúcida [...] Paulina” de Os Mal- Amados”, uma submissa parente, cuja
rebelião provoca o clímax emocional do enredo, ou a “Perpedigna” de “A
Eleição” , de língua ácida e atitudes destemidas.
Desde a universalização dos termos que emprega em sua escrita até o lugar
que demarca no cenário do teatro nacional e em especifico no teatro nordestino, a
dramaturgia de Lourdes Ramalho é motivo de estudos críticos. Com a intenção
primeira de promover o reconhecimento da riqueza da poeta e escritora na Região
Nordeste, e numa extensão maior aos leitores e críticos no país, a professora Valéria
Andrade coordenou um projeto na UFPB, com intuito de promover o reconhecimento
da cultura nordestina e de seus representantes autênticos e, para tanto, dedicou-se a
estudar e facilitar o acesso às obras de Lourdes Ramalho. Sobre esta tarefa de
encaminhar estudos e edições sobre a obra ramalhiana, o pesquisador Diógenes
Maciel (2002, p.114) fala que “é óbvio que a recepção/reflexão da/sobre a obra dessa
autora, em outros espaços que não a Paraíba, é complicada pela relativa distância
entre o lugar em que ela faz barulho e os grandes centros, como São Paulo e Rio de
Janeiro, nos quais outros autores e obras faziam muito barulho, entre as décadas de
1960-70, afinal nunca é fácil ser periferia da periferia...”
A peça Fogo Fátuo”, escrita em 1957, é representada pela primeira vez no
Festival de Inverno de Campina Grande, em 1974, fazendo turnê em todo Nordeste
no ano de 1979, sob a direção de Hermano José Bezerra. Essa peça relata a
descoberta de minas de xelita no interior do Nordeste, cobiçadas e exploradas por
empresas internacionais. Nesse enredo, verificamos a condição dos homens do
8
O comentário do jornalista e professor de teatro encontra-se no memorial de Lourdes Ramalho (material contido
em CD) que se constitui de conteúdo sobre a sua vida, obras, publicações, artigos, prêmios, entre outras
informações que faz referência a sua produção artística, acompanhada por críticos, estudiosos e pesquisadores
das produções ramalhianas com suas influências e contribuições para cultura nordestina.
23
Sertão nordestino em busca da riqueza, ávidos por conseguirem uma melhor
condição de vida, mergulhando num tipo de trabalho que traz, a princípio, ganhos
fáceis, mas que logo somem como um “fogo fátuo”. A obra visa retratar uma situação
local, regional e universal com sentido moralizante, através de uma análise sobre a
realidade brasileira.
Em Fogo Fátuo, os objetivos político-sociais são bem evidentes. Seu enredo
apresenta a preocupação com as relações do colonialismo cultural e tem no
personagem João Campina, um anti-herói comparado a um João Grilo ou a Pedro
Malazartes, a denúncia da própria cultura nordestina ameaçada. Esse personagem
funciona como um pícaro, amável e risonho, espontâneo nos atos, adaptando-se aos
fatos do cotidiano. Enganador, malicioso para conseguir com facilidade encontrar os
minérios e os dólares, mistura seu português ao inglês em contato com os
estrangeiros, vai movendo o mundo com base na experiência, de forma que, por sua
esperteza, permanece beneficiado e sempre sai ileso das artimanhas que promove.
João Campina aparece como um herói que é acreditado pelos seus dizeres e fazeres.
Este é convidado a trabalhar na mina, pois sabia os segredos para encontrar a pedra
xelita. Assim, todos seguem implorando sua participação nos trabalhos,
(RAMALHO,1980, p. 184). Vejamos:
JOÃO Eu? Trabalhar praquele povo? Vou ajudar rico a pisar mais os
pobres? Se fosse a senhora... Bote uma banqueta para ver se não caio
dentro. Agora praquele bando de incréu, dá a pichanana e eu num vou.
CASUSA (Entra) João, a gente andava lhe caçando pra resolver o causo
da galeria. Faz três dias que a gente anda farejando por lá, mas os
garimpeiro só acredita em você.
SANTA – E fazem muito bem. João pode ter os defeitos dele, mas só é quem
conhece quando uma mina tem ou num tem minério. E preste ou o preste,
se num fosse ele, não tinha sido descoberta nem umas dessas porqueira que
estão endoidicendo os cristãos por aí afora.
CASUSAisso é. Ou parte com Deus ou parte com o diabo, quem cai
em cima da riqueza é compadre João. É por isso que a turma chamando
ele lá.
Assim, o traço picaresco nessa personagem acaba por revelar um aspecto do
estilo de Lourdes Ramalho, qual seja, a utilização do riso, da astúcia como emprego
de sobrevivência diante das contradições apresentadas no ambiente cultural e que
constituem, via de regra, obstáculos dificilmente transponíveis sem o emprego de tais
argúcias.
24
Silva (2005) destaca que a escrita de Lourdes Ramalho aparece com um
caráter masculinizante, impactada pelos valores de sua cultura, pois escreve
apresentando as mulheres nordestinas e sua virilidade na busca por manter a ordem
e honra da família. A valentia e a coragem são características das mulheres
matriarcas e das suas filhas. Atribui entre as matriarcas e os filhos homens o poder do
esposo/pai (ausente). O contexto de suas peças é motivado por ações de algumas
personagens femininas, dos medos, sonhos, desassossegos da ausência do seu
homem (presos, mortos, doentes ou encantados), como também retratam mulheres
“viçosas”, “semvergonhas”, “rabo quente”, “santinhas enfuloradas”, “cabritas andejas”.
São textos que destacam o feminino, tornando arma contra o masculino, com revolta
contra o casamento, apresentando a secura da sua sexualidade: a mulher é
esquecida e a função de e é valorizada. Silva (2005, p. 120), aborda que “essa
luta, pela criação de um lugar para o feminino em Lourdes Ramalho, destaca-se ainda
mais na vida que dá às mulheres no seu teatro, motivo de polêmica, de comentários e
admiração até onde sua obra chega”.
Estudiosa da literatura de cordel, Lourdes Ramalho tem o seu trabalho
marcado pela produção e utilização desse instrumento que emprega para manter viva
as raízes ibéricas, mouras e judaicas que estão arraigadas no Nordeste. Seus cordéis
falam do Sertão, dos peregrinos da seca, histórias religiosas e também profanas que
o nordestino constrói e com as quais convive, que buscam ver e ouvir, e assim,
manter sua tradição. Sobre a maneira de Lourdes Ramalho conviver com os cordéis,
ressalta Silva (2005, p. 69) que:
Pesquisadora de cordéis, a autora localiza a origem deste no que considera
“cultura popular medieval”. Uma literatura de base oral que mistura
religiosidade e messianismo, transmitida por cantadores e posteriormente por
folhetos impressos, a cavalo e/ou em barracas da feira. No Brasil, acrescenta
que à religiosidade e ao messianismo foram somados os temas da seca, do
cangaceirismo, das tragédias locais e outros.
Partindo do que observa no povo, das tradições nas feiras livres e, sobretudo,
com um olhar de preocupação em passar para os mais jovens as tradições da região,
esta autora coloca à disposição, em sua fortuna artística, uma oportunidade de
verificar e armazenar imagens para, a partir delas, escrever no intuito de manter viva a
história na memória. Assim, desafia em suas obras o registro de uma escrita com fins
consideráveis, a exemplo do que argumenta Bráulio Tavares (2005, p. 177):
25
“folheto de cordel
9
e uma peça de teatro são obras de literatura oral que se
transformam em livro por questões de ordem prática: preservação e transporte do
recitado em voz alta e uma peça é feita para ser encenada...”
Para Silva, Lourdes Ramalho produz uma escrita com base no catolicismo
popular, apresentando seus personagens, refletindo sobre o plano social, político e
religioso, muitas vezes, a partir das inversões e, portanto, da carnavalização dos
valores e sentimentos. Silva, com suporte nos estudos de Bakhtin (1999) ilustra esta
marca de inversão na escrita desta autora, que traz em suas peças, como é o caso de
“Charivari(1997), um cenário do desejo, o lugar em que a carne, as palavras , os
pensamentos e os gestos são rebaixados para então elevar-se, transcender, subir,
ascender, em que também, o discurso da torna-se ausente da Igreja, lugar do
divino. uma preocupação em conhecer e refletir sobre a situação local dos
indivíduos, assim como sobre seus desejos de mudança. Para tanto, brinca com o
cotidiano cheio de injustiças, dogmas políticos e religiosos. Lourdes Ramalho
vivencia, produz, cria e recria um discurso da cultura de seu povo, na perspectiva de
rever esse espaço/tempo da tradição dentro de um contexto ressignificado na
atualidade.
Ramalho representa em seus textos, a exemplo da A Eleição”, muitas das
questões sociais do Brasil com inegável posicionamento que traz os risos que
anunciam mudanças, estimula alterações dos fatos da vida, a fim de impedir a
estagnação dos acontecimentos e ideias que impediriam a própria existência humana.
9
O cordel surge no seio da cultura popular como forma de produzir um relato escrito de fonte oral. Em seus
primórdios, aponta para a rusticidade de técnica de sua fabricação, associando uma cultura folclórica. Garante no
espaço cultural que circula uma história oralizada e transcrita que retrata a mitologia, a religião, a política e as
visões de mundo do homem. A vida nordestina parece ser o palco dos cordéis. Mesmo não havendo restrições
temáticas, essa produção sempre esteve fortemente alicerçada na realidade social dos poetas e seu blico,
desde as primeiras produções que continham como foco central o cangaceirismo, os impostos, os fiscais, o custo
de vida, os baixos salários, as secas, a exploração dos trabalhadores. Sendo, portanto, o cordel representante de
uma literatura que tematiza as coisas do povo, do homem honrado, dos seus percursos na vida e da reflexão dos
que se passa na sociedade. Neste entendimento, apontamos o cordel como um instrumento de significados que
resguarda e abastece o homem em sua necessidade de ouvir sobre a sua história. Acerca da estética subjacente à
produção dos cordéis, sua unidade narrativa, sentidos e compreensão destaca Abreu (1999, p.115/116) que, “Sua
estrutura deve centrar-se no desenrolar de uma ação, desenvolvida em termos de causas e conseqüências [...]
Buscando compor uma “história desembaraçada”, os poetas evitarão o acúmulo de personagens, acompanhando
apenas as atitudes dos protagonistas das tramas. [...] O “roteiro” oferece ao poeta a ao público um caminho
relativamente padronizado segundo o qual a narrativa será desenvolvida, facilitando a composição e a recepção”.
26
Emprega, deste modo, um riso
10
que, partindo da função social que exerce,
promove formas contrárias de poder, uma quebra de hierarquias que presenteia a
vida a quem ri, sinalizando, um escapar da opressão ditado pelo poder oficial da
sociedade. Riso que, segundo Minois (2003), faz parte das respostas fundamentais do
homem confrontado com sua existência ao passo que faz abalar o sério. Um riso que
tem aspecto individual e coletivo, que busca romper com o curso ordinário das coisas,
sinalizando para uma outra realidade, ou talvez, para uma utopia em que o homem
não estaria mais confiando nos quadros sociais determinados. Riso que para Bérgson
(2001) sinaliza para algo vivo, modelando-se em de um conhecimento prévio e íntimo
do qual só existe dentro do que é propriamente humano e essencialmente social.
Em seus textos, a dramaturgia não encontra demarcações, nem tão pouco
sua poética pode ser definida. O que se tem de exato em suas produções é a firmeza
e seriedade desta autora em representar os que estão à margem do sistema e que
tomam forma e voz à luz da sua escrita. Homens e mulheres constituídos de medos e
anseios, de bravuras e reconhecimentos por meio da maneira séria e cômica, trágica
e ardilosa, avessa em muitas vezes à ordem vigente com tom de carnavalização.
Diante das inúmeras descrições dos traços que definem a marca escritural desta
autora, é possível apontar o cerne que carrega suas produções como alicerçada
numa concepção de mundo liderada pelas emoções e riquezas que definem a cultura
popular, os tipos que a compõem e a vida que palpita nesta autora, que encontramos
expressos em seus textos e vividos em inúmeras encenações, desde a cidade
interiorana que reside no Nordeste brasileiro, até a extensão de países europeus:
Neste mundo de encantamento recriado por Lourdes Ramalho a partir do
imaginário popular nordestino percebe-se, claramente, o olhar crítico de
quem, embora estranhamente ligada à tradição, seja a vivida, seja a
simbólica, nela não se cristaliza e, em seu ofício de poietés, a reinventa com
fragmentos do velho agregando-lhe o novo suscitado pelas dinâmicas do seu
tempo e da sua cultura (ANDRADE, 2007, p.,221).
10
O riso é uma fonte de benefícios para o corpo e para o espírito e faz surgir um mundo festivo ligado a inversão. O
riso é um jogo, uma utopia que consiste num ato que cria uma situação inesperada, desestruturante, chocante,
procede da mesma idéia, é sempre a perda da individualidade que esta em causa. È o homem dionisíaco que
procura assimilar e conferir sobre o que não conhece e deseja.”Rir é participar da recriação do mundo, nas festas
dionisíacas, nas saturnais, acompanhadas de ritos de inversão, simulando um retorno periódico ao caos primitivo,
necessário à confirmação e á estabilidade das normas sociais, políticas e culturais [...] Essa vida representativa do
riso corresponde aos fins superiores da existência: um renascer na universalidade, a liberdade, a igualdade, a
abundancia. É uma franquia provisória, mas anunciador da libertação definitiva em relação a regras, valores, tabus
e hierarquias” ( MINOIS, 2003, p.630 e 157).
27
Considerando que a literatura ramalhiana se apresenta comprometida com o
mundo real, com a cultura popular, estetizada na carnavalização, na sátira menipéia,
no humor e na forma de denúncias, verificamos algumas semelhanças entre a obra
ramalhiana e a do escritor pernambucano Hermilo Borba Filho, que no dizer de
Nóbrega (1996, p. 80), produz uma escrita que corresponde ao estilo inovador em
todos os seus aspectos “exercendo uma função transformadora, pois trabalha a
memória, o imaginário, o simbólico, os valores e as relações no quadro do mundo
real”. Há, portanto, em ambos, manifestações do riso, emprego do vocabulário familiar
e grosseiro, degradações, dentre outras categorias da carnavalização bakhtiniana.
Nóbrega ressalta que a premissa maior de Hermilo se efetiva na cultura
popular que passa necessariamente pela intensa presença de elementos do povo, o
que lhes garantem a própria identidade cultural e artística, com proeminência dos
folguedos populares, com base nos movimentos, nas cores e na literatura popular que
compõem a estética nordestina. Com perspectiva popular, este pernambucano afirma
que a arte deve ser constituída em termos de aceitação e de temas que surgem do
povo. Borba Filho (2005, p. 30) afirma esta necessidade quando diz:
O nosso dever é despertar o povo, fazê-lo sentir que é a origem e que é o fim,
que a arte dramática brasileira nele o seu filão [...] É preciso que se teatralize
as histórias dos ABC dos cegos de feira, o drama do amor sangrento de
Lampião com Maria Bonita, o sacrifício de Zumbi dos Palmares e, assim far-
se-á arte teatral para o povo.
A literatura de Lourdes Ramalho é baseada numa linguagem simples e,
muitas vezes, provocante, com destaque para os dramas que o povo vive em seu
cotidiano. Dessa forma, partindo do imaginário ou do real, elabora um espaço para
quebrar e destruir o velho com vistas a permitir que o tempo e o espaço promovam
um novo mundo. Em algumas de suas peças, a mensagem universal de sentimentos
desejosos de alegria e liberdade se desenrolam como afronta à ordem e à hierarquia
social. Circunscrevendo nessas, pois, a carnavalização com emprego do riso, com
liberação das leis, das hierarquias, das desigualdades, enfim, uma segunda vida que
se apresenta como um mundo ao contrário, prevalecendo a aproximação das pessoas
num clima festivo, abolindo por um tempo indeterminado as restrições rotineiras da
vida formal. Para Bakhtin (1999), tais liberações do povo são, portanto, uma visão de
mundo que funciona contrariamente à Igreja e ao Estado numa percepção que liberta
do medo dos preceitos sociais.
28
Esta visão carnavalesca do mundo é apresentada pela autora em várias obras
a exemplo de Charivari
11
, em que a postura dos personagens expressa em palavras,
gestos e símbolos, a possível e permitida transgressão da ordem e da almejada
mudança de vida rotineira que limita, que nega o que é lícito, bom e verdadeiro para
homens e mulheres dignos de possuírem liberdade ladeada de prazer.
Charivari conta a história de um "Diabo" que, cansado de seu habitat natural
resolveu vir à terra e, certa madrugada, deu com os costados justamente numa capela
medieval. Pensando divertir-se, resolveu esperar que alguém aparecesse. Daí a
pouco surge um Morcego, depois, uma Beata para fazer faxina no recinto, momento
em que começa a se queixar da vida que levava. O Diabo resolve então, passando-se
por Monge, fazer-lhe pedidos, oferecendo-lhe certas compensações eróticas. Chega
depois o Sacristão, o Defunto, a Viúva e por fim, o Padre da freguesia que, como os
demais, cai nas garras prazerosas do Enganador, armado o Charivari, em que os
cristãos se envolvem na confusão (termo usado pela autora), brincadeira que só
termina com o raiar do novo dia.
Lourdes Ramalho (2002, p. 07) informa que “charivari é uma palavra que veio
para o Nordeste brasileiro na bagagem dos colonizadores. É usada significando
confusão, balburdia”. O desenrolar desta peça mostra cenas que comprovam o
sentido da confusão que a palavra proporciona, como também mostra os pontos de
crítica e necessidades de subversão dos valores oficiais do povo que possui uma vida
cotidiana presa a regras e tabus e que, por isso, fecha seus mundos, impedindo-o de
viver em liberdade e alegria. A autora atreveu-se a brincar com o sagrado quando pôs
em cena personagens que transitam no meio religioso a chacotear, com as diabruras
e descobrir, que a vida pode ser mais do que medo do além e desejos não vividos.
Sua escrita mostra que é possível usar da “confusão” no sentido de realizar quebras
necessárias nas condutas humanas.
11
O texto charivari, teve sua primeira montagem em forma de Co-produção com o Centro Cultural Paschoal Carlos
Magno e Companhia Sinhô-Sinhá, Teatro Municipal Severino Cabral e Associação Solidarte, dentro do projeto:
cena aberta, que objetiva discutir o teatro ramalhiano e seus potenciais de significação para a região. A montagem
constou de três espetáculos abertos, onde o publico pode acompanhar o processo de construção do mesmo,
sempre com debates dos elementos estéticos disposto na cena. Em seguida, a peça foi apresentada na residência
da autora seguida de debate entre diretor, atores e a dramaturga Lourdes Ramalho. Após este período de
montagem e dialogação, o espetáculo teve sua estréia no Teatro Municipal Severino Cabral no dia 03 de abril de
2004. Os jornais da época destacam a presença didática da montagem, que trazia em seu elenco atores iniciantes,
e a inaugural visão teatral que possuía uma intima ligação com o Teatro Vicentino. A direção do espetáculo foi de
Nivaldo Rodrigues, Trilha sonora e musicalização de Rangel Júnior e na Coordenação de Produção Hipólito
Lucena (anexo 4).
29
A obra Charivari, composta como um libretto da Ópera Bufa,6
12
traz em sua
abertura um Martelo
13
. A referida obra está estruturada “em cordel” confirmando que a
noção do cômico, grotesco, burlador e carnavalizado é uma evidência da atuação de
Lourdes Ramalho com temáticas que mergulham num mundo imaginário cristão com
intenção de observar como homens e mulheres da nossa sociedade possuem um
passado mítico referenciado, acreditado e possível de oportunizar mudanças. Com
esta intenção, percebemos que Lourdes Ramalho produz um cordel onde seus
personagens têm fala, vida e ação.
Berthold (2001, p.248)) esclarece que “A charivari era uma espécie de parada
carnavalesca de bufões; seus participantes assustavam os homens burgueses com
empurrões e com o bater de panelas de cobre, chocalhos de madeira, sinos e sinetas
de vaca”. Evidenciava-se pois, uma ruidosa e desenfreada festa com gestos
animados, episódios humorísticos e grotescos, um contraste retratando uma
comicidade da vida social em que o riso possui significado e alcance sociais, de que
a comicidade exprime certo jogo particular de elementos morais, simbolizando, por
sua vez, um jogo material. Uma festa que assegura por meio da comicidade uma
particular inadaptação da pessoa à sociedade numa galhofa ofensiva.
O charivari faz rir muito e causa vergonha. Funciona controlando os costumes
conjugais e desvios domésticos. Nessas práticas medievais um riso odioso da
chocarrice de toda espécie com o intuito de preservar o equilíbrio tradicional, através
do riso que visa expulsar vícios e pecados que ameaçam a comunidade. Um riso
intolerante contra a liberdade individual que Minois (2003, p. 172) define como
“instrumento de opressão que não tolera a diferença. É obrigatório e vexatório. Não há
como escapar dele: é preciso rir com os que riem como se uiva com os lobos, e os
recalcitrantes são vítimas de todo tipo de chacota”.
Na Idade Média, o riso coletivo desempenha papel conservador e regulador
nas manifestações de rua e no próprio charivari. Por meio da paródia bufa e da
zombaria agressiva, da sica barulhenta e de insultos, ele reforça a ordem
estabelecida representando seu oposto grotesco; exclui o estranho, o estrangeiro, o
12
Ópera Bufa Compreendida como pequena encenação acompanhada de canto e dança. Em suas
características o devido apreço à linguagem regional e local que, por sua vez, aparece estruturada na forma
burlesca.
13
O Martelo ou Martelo Agalopado, criado pelo diplomata francês Jaime de Martelo, é uma estrofe de dez versos,
em decassílabos, obedecendo a mesma ordem dos versos da décima, usada hoje pelos repentistas, em canto
semi-recitado, acompanhado pelo narrador, como abertura da função, no caso interpretado pelo Diabo
(RAMALHO, 2002, p. 8).
30
anormal e o nefasto, escarnecendo do bode expiatório e humilhando o
desencaminhado. Neste entendimento, o riso é, nessa época, uma arma opressiva a
serviço do grupo, uma arma de autodisciplina. Assim, o charivari acompanhado do
riso e do barulho existe para manutenção da ordem pública e dos bons costumes e
portanto, dos mecanismos reguladores da sociedade. Em sua essência, portanto, os
charivaris acionam uma certa moralidade.
A festa reparadora e turbulenta dos charivaris medievais é recuperada por
Lourdes Ramalho como mecanismo de regulamentar uma nova ordem imbuída de
improvisos e possessões delirantes em ação que, ferozmente, abre uma fenda na
ordem, no ritual sagrado que promove uma vida de felicidade desejada aos homens e
mulheres. Dessas forma, o festivo cunho moralizante do charivari medieval encontra
uma nova constatação na modernidade em que o riso acontece deflagrando um ritual
de inversão. O tempo está também invertido e é na noite que se tem a música, a
dança, comida, a bebida e a embriaguez. também a inversão social: todos
assumem a mesma condição de desejosos e declarados mortais em busca do sexo, a
loucura permitida regada ao riso alegre e vitorioso.
Em estudo sobre a criação teatral ramalhiana, a partir da análise da peça
Charivari, Muniz confirma a inspiração desta autora no teatro de Gil Vicente e na
ocasião define a referida peça a uma farsa
14
. Muniz (2007, p. 9), comenta que o
charivari criado por Lourdes Ramalho abandona o caráter moralizante e reparador do
charivari medieval e de sua simbologia reparadora e esclarece que ”o charivari resulta
em festa, pois a condição humana de todos os iguala, sem distinção”.
Nesta trama, o charivari é entendido como uma confusão montada para
instaurar uma festa com fins de soltura. Momento de glorificar os instintos, sendo
instaurada a “liturgia dos sentidos” que denuncia os desejos no espaço e no tempo
declarado no ápice do charivari. Assim sendo, esta festa vem somar, racionalizar e
expor as queixas da tradição que se exalta contra a temida sedução, contra o medo
da sexualidade que alcança atrativos falaciosos e demoníacos na nossa cultura.
14
Embora de difícil e imprecisa definição, a farsa é um gênero teatral tipicamente medieval, originário da França e
da Itália. Entendida e praticada, inicialmente, como uma pequena representação cômica feita para intercalar e
distender momentos sérios de uma peça teatral, como uma espécie de entremez, a farsa ganhou independência e
alcançou longa tradição nos últimos séculos da Idade Média, chegando até os dias de hoje. A farsa, via de regra,
está associada a um teatro de cunho popular, feito para entreter, marcado pela brevidade e pela comicidade. Sua
estrutura é narrativa e feita para representação (MUNIZ, 2007, p. 3).
31
Em texto produzido para apresentação do livro com a peça Charivari, Luis
Arthur Nunes (2002, p. 05) escreve:
A leitura de sua peça é uma experiência prazerosa: prazer intelectual que se
soma à fruição “infantil” (no bom sentido) do lúdico e do cômico e ao deleite
sadiamente “perverso”, diante do desregramento e da transgressão ao bom
gosto, ao bom tom e aos interditos de toda ordem.
A obra Charivari vem confirmar que a noção do cômico, grotesco, burlador e,
portanto, carnavalizado é uma evidência da atuação de Lourdes Ramalho à frente do
seu tempo com temáticas que mergulham num mundo imaginário cristão com
intenção de observar como homens e mulheres da nossa sociedade possuem um
passado mítico referenciado, acreditado e possível de oportunizar mudanças. Com
esta intenção, assegura Lourdes Ramalho que produz um cordel em que seus
personagens oferecem um ressignificado da manifestação moralizante do charivari
medieval. Propõe por via do estabelecimento do charivari, baseado em gestos soltos
e animados que retratam nos mais esmerados detalhes da verdade cotidiana, um
contraste óbvio numa marca forte e burlesca de assegurar críticas ao que causa
amarra e dogmas políticos e religiosos na coletividade.
É provável que a autora escreveu a obra Charivari, partindo de estudos sobre
o riso, as festas e carnavais na antiguidade, os quais serão tratados no capítulo a
seguir. O referido capítulo abordará também algumas definições teóricas sobre o
termo charivari no contexto medieval e continuará uma apresentação/explicação da
ressignificação do charivari proposto por Lourdes Ramalho. Na oportunidade,
salientamos a nossa crença de que ao ressignificar o charivari a autora teve a
intenção primeira de brincar de forma forte com o catolicismo, o que parece não ter a
mínima simpatia. Prova disso é que esta traz na referida obra verdades que poucos
têm coragem de declarar. Retrata um cotidiano de vida de medo, de barreiras, de
isolamento e privações do sexo, do corpo em nome de reverência a um sagrado
distorcido, sisudo, abafado e absoluto ao modelo da Idade Antiga de que o homem de
hoje busca superar. Deste modo, o charivari proposto por Ramalho pode ser visto
como ocasião de grande liberdade em que os envolvidos podem brincar na Igreja com
os ofícios, com largo consumo de vinho numa festa que avança numa derrisão
divertida ladeada na inversão da ordem que tem no riso um instrumento de
conhecimento, de denúncia e degradação.
32
No charivari ramalhiano, encontramos a exuberância de um mundo em que as
inibições dão curso aos excessivos instintos, da livre curso à expressão, abolindo a
dicotomia corpo-espírito e confirma o corpo como um instrumento do Diabo em meio à
alegria exuberante do riso e, conseqüentemente, da inversão dos valores humanos e
portanto da carnavalização, o que gera uma ressignificação a charivari como sendo
um demolir da ordem e instauração da liberdade e do prazer como vislumbre de uma
transformação. Com este entendimento, pretendemos realizar uma análise-
interpretação da referida obra com a finalidade de entender como se formaliza o
processo de carnavalização proposto por Bahktin (1999), através das ações de seus
personagens, que fazem operar na escrita ramalhiana mecanismo de evocarem para
distante o medo e a prisão, estando o charivari a ser uma festa contemporânea
composta por um jogo que abre as possibilidades para as dessacralizações possíveis.
33
CAPÍTULO II
2 – SENTIDOS DE CARNAVALIZAÇÃO NA CRIAÇÃO LITERÁRIA
2. 1 – Carnaval: sentidos e manifestações
Bakhtin (1999), na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
identifica fontes de imagens que caracterizam a literatura como uma espécie de
caráter não oficial, sem perfeições, formalidades e dogmatismos, imagens que falam
dos acontecimentos de sua época, da mentira oficial, a seriedade limitada, ditada
pelos interesses das classes dominantes. Estas imagens falam, portanto, da literatura
séria, cotidiana, solene que, por conseguinte, abre caminhos para a morte do antigo
por algo novo e melhor, que possibilite uma nova seriedade e um novo impulso
histórico. Desta forma, entender a função dessas linguagens é compreender o riso e a
visão carnavalesca como base de liberação da consciência do homem e sua possível
transformação de mundo.
O carnaval é uma festa que o povo a si mesmo, num estado de paz e
liberdade total. Assim sendo, o povo não precisa venerar, respeitar e passar por
surpresas de suas instâncias superiores. O povo nesta ocasião encontra permissão
para mostrar, de forma extravagante, suas loucuras aceitas e permitidas, porque se
trata de um local de supressão de todas as barreiras hierárquicas e de vivência de
espírito carnavalesco em sua plenitude, de liberdade e de bom humor reinante entre
todas as camadas sociais e faixa etária. Diz Bakhtin (1999, p.189) que:
O carnaval revela-nos o elemento mais antigo da festa popular, e pode-se
afirmar sem risco de erro que é o fragmento mais bem conservado desse
mundo tão imenso quanto rico. Isso autoriza-nos a utilizar o adjetivo
“carnavalesco” numa acepção ampliada, designando não apenas as formas
do carnaval no sentido estrito e preciso do termo, mas ainda toda a vida rica e
variada da festa popular.
No carnaval medieval reinava um tipo particular de comunicação entre os
indivíduos denominada de “linguagem carnavalesca”, entendida por Bahktin, que se
apresenta munida de gestos francos liberados das normas e etiquetas vigentes. Foi
essa linguagem que empregou a lógica das coisas ao avesso para assim oportunizar
a vivência de uma segunda vida. O tipo especial dessa linguagem era impossível de
34
se estabelecer na vida ordinária e, portanto, antagônica à “comunicação oficial”. Era,
pois, durante o carnaval que essa comunicação era usada em clima de festa, com
consciência do seu caráter universal utópico e de uma concepção profunda de mundo
que contribuía para a criação de um ambiente tido como secundário o que, muitas
vezes, como se pensava, poderia ser expresso com relativa impunidade.
Na praça pública da cidade, ao campo da feira, a praça do carnaval do fim da
Idade Média e do Renascimento tratava de uma alegria coletiva em que o vocabulário
utilizado tinha sentido universal e muito distante da pornografia moderna.
Os discursos que ressoavam na praça pública aprestavam uma linguagem
familiar especial, nitidamente diferenciada da usada pela Igreja, pela corte, pelas
instituições públicas e classe dominante. Na base desse expressões verbais
encontrava-se um aproximação do baixo corporal, da zona dos órgãos genitais. Os
rebaixamentos grotescos sempre fizeram alusão ao excremento de urina , de fezes e
do salpicar de lama. Estas imagens e gestos são ao mesmo tempo bentas e
humilhantes e estão ligadas ao riso por serem apresentadas sob o seu lado jocundo e
cômico. A praça pública formava um mundo único e coeso onde todas as palavras
possuíam em comum a liberdade, franqueza e familiaridade. Esses discursos eram
utilizados para criar uma atmosfera como jogo alegre inspirado em coro na ronda
verbal em que o sagrado e o profano adquiriam direitos iguais.
No sentido alocado do termo, o carnaval está longe de ser um fenômeno
simples com sentido único, uma vez que sempre unia diversos ritos, atributos,
máscaras e concentrações em folguedos públicos e populares. Sendo um fenômeno
que se desenvolveu em diversos países a exemplo de Itália, Roma, França, Rússia,
dentre outros, onde prevaleciam as marcas de suas características específicas de um
tempo alegre de festa popular. Isto permitia lançar um olhar novo, perfeitamente
decisivo, imune de medo e dúvidas, cujos espetáculos populares permitiam atacar o
domínio oficial, preparar o terreno para mudança com o triunfo eterno do novo, na
possibilidade da mudança do sério por meio da participação do povo na almejada
liberação da verdade, do senso crítico e opositor aos ditames oficiais da sociedade.
Conforme afirma Burke (1989), havia três temas principais do carnaval:
comida, sexo e violência. Destes, a comida, associada à carnalidade, ajudou a
compor a palavra carnaval, tempo que preconizava em excesso os verbos cozer,
grelhar, torrar, tostar, cortar e devorar, como premissa de um tempo de fartura e
liberdade de instintos primários, satisfação da gula permitida. O sexo apresentava
35
uma maciça presença nestas ocasiões e oportunizava variadas maneiras de
representá-los, daí a maneira habitual de brincar com simulações eróticas: letras de
duplo sentido, figuras de falo extravagante e provocativo, narizes longos e salsichas.
A agressão e profanação faziam parte das cenas de violência, através de palavras,
expressões que denunciavam as autoridades sem preocupações com local das
hierarquias. O carnaval era, em suma, uma época em que os interditos do dia-a-dia
eram abolidos em favor da exposição de impulsos sexuais e agressivos que,
presentes na sociedade, faziam suspender as regras da cultura oficial e, por
conseguinte, transmitiam mensagens críticas aos rituais consagrados da religião e da
política, pois:
O carnaval tem um tempo determinado para acontecer e necessita também
de espaço, para que os seus participantes possam liberar emoções,
sentimentos, desejos, fantasias etc. E o homem, inserido no desejo utópico,
de tornar concreto o que abriga no corpo e na alma, no carnaval, como
motivação, a possibilidade de atingir os seus objetivos (NÓBREGA, 1992, p.
45).
Os festejos do carnaval na Idade Média, com todas as suas especificidades,
ofereciam uma visão do mundo e do homem totalmente diferente da oficial, ditada
pela Igreja e Estado. Neste sentido, podemos afirmar que o princípio cômico residente
no carnaval liberta-nos por completo do dogmatismo religioso e adentra a esfera da
vida cotidiana, oportunizando a existência de uma segunda vida, dotada de um
espetáculo teatral onde as pessoas, de forma real, exercem o papel de atores e
espectadores ao mesmo tempo, sem palcos e adereços fabricados, vivendo sem
fronteiras espacial e temporal, mesmo que de forma provisória. É o que Bakhtin
(1999) chama de “o lugar existente entre a arte e a vida”, ou seja, entre a
representação da vida com características fiéis ao povo, suas leis e liberdades
almejadas no plano ideal e vividas no plano real com possibilidades de participação
como também de renovação do indivíduo. Ao contrário do que acontece nas festas
oficiais da Igreja ou do Estado em que o povo deve sempre venerar, cultuar, adorar,
respeitar e prestar reconhecimento a alguma coisa ou a alguém como forma de
definitivamente consagrar a ordem social presente que continuamente insiste em
manter um olhar para o passado, assim como cobrar a manutenção de tom rio e
oficial por parte de todos.
36
Assim, o carnaval pode ser visto como uma imensa peça, encenada nas ruas
e praças que se convertiam em palcos sem paredes onde se interpretava
acontecimentos que se repetiam, fazendo valer a estrutura da festa. Dentre estes
acontecimentos, as bebidas, comidas e danças, eram empregadas como se nunca
mais tivessem chances de usufruir destes recursos. Nessas festas, era permitido o
uso de máscaras para simular personagens populares. As pessoas se personificavam
em trajes de padre, diabo, cortesão, magistrado, bobo, e animais; os homens se
vestiam de mulher, as mulheres de homens e todos participavam através das suas
fantasias, como também nas representações de papéis em meio a uma multidão
lasciva. “O carnaval era um feriado, uma brincadeira, um fim em si mesmo,
dispensando qualquer explicação ou justificativa. Era uma ocasião de êxtase e
liberação” (Burke, 1989, p. 210).
O carnaval, assim como todas as festas populares, empregam o riso festivo
que funcionava como troféu para o povo sobre o medo, que atormentava e assustava
o homem. O riso festivo era, pois, uma oportunidade de todos poderem rir de tudo e
de todos, de forma alegre ou sarcástica, com alvoroço ou ironia, dando oportunidade
de experimentar no riso a sua característica marcante, que é a ambivalência e a
possibilidade de sempre burlar as divindades e toda esfera tida como superior
estando o riso carnavalesco, neste sentido, a contribuir com o povo, oportunizando
acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo, como a liberdade da
consciência do homem e certa vitória sobre o medo moral do sagrado, do poder divino
e humano, das proibições e castigos dos quais eram pregados aqui na terra. Portanto,
nestas ocasiões festivas era permitido o relaxamento dos padrões habituais de
comportamento e uma entrega ao riso e ao humor
15
irreverentes do qual Minois (2003,
p. 168) comenta
O riso carnavalesco é antes um fator de coesão social que se revolta.
Derrisão ritualizada. O Carnaval é a necessária expressão cômica de uma
15
Embora o humor deva provocar o riso, nem todo riso é fruto do humor. O riso pode ser ameaçador e, realmente,
os etologistas afirmam que o riso começa numa exibição agressiva dos dentes. Por outro lado, o humor e o riso
correspondente também podem ser muito libertadores [...] os antigos anglo-saxões achavam normal rolar no chão
de tanto rir, mas o homem moderno exprime o reconhecimento do humor com um civilizado risinho entre os dentes.
BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman(Orgs) Uma história cultural do humor. Rio de Janeiro: Record, 2000,
p.15/16.
37
alternativa improvável, literalmente louca, o inverso burlesco que só faz
confirmar a importância de valores e hierarquias estabelecidas.
Num contexto mais amplo, o carnaval e as festividades análogas faziam
corromper temporariamente as regras sociais a que todos nós obedecemos, embora o
triunfo do riso, que domina o medo, só durasse o período consagrado, logo substituído
por momentos de ordem seguidos das regras da vida cotidiana, do medo e da
opressão, em que “O riso da festa é uma espécie de grito de zombaria da tribo; é a
marca da coesão social” (MINOIS, 2003, p. 184).
O riso entendido como fenômeno cultural, social e distintivo do próprio homem
promove a expressão da natureza humana e, portanto, a codificação do corpo. A
condenação deste procedimento comunga que “o riso é o jeito mais horrível e mais
obsceno de quebrar o silêncio” (Le Goff, 2000, p. 65), além de revelar a forma
particular da interação humana. Os grandes festivais religiosos, em especial, no
período do carnaval, permitiam o desregramento e o riso. Comenta Jacques Le Goff
(2000, p. 65) que:
O riso é um fenômeno cultural. De acordo com a sociedade e a época, as
atitudes em relação ao riso, a maneira como é praticado, seus alvos e suas
formas não são constantes, mas mutáveis. O riso é um fenômeno social. Ele
exige pelo menos duas ou três pessoas, reais ou imaginárias: uma que
provoca o riso, uma que ri e outra de quem se ri, e também, muitas vezes, da
pessoa ou das pessoas com quem se ri. É uma prática social com seus
próprios códigos, seus rituais, seus atores e seu palco.
O riso apresenta-se como um princípio cultural e universal de concepção de
mundo que proporciona a cura, o renascimento, faz aprender a bem viver e a bem
morrer, permite burlar o sério da vida terrível. Isso permite entender o significado
positivo do riso como força regeneradora e criadora, sendo sua prática possível
através da tradição da cultura cômica popular. Afirmando a não fixação e isolamento
do sério no cotidiano, Bakhtin (1999, p.105) assegura que o riso pode “resplandecer
essa integridade ambivalente. Essas são as funções gerais do riso na evolução
histórica da cultura e da literatura”.
O riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas
capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a
história, sobre o homem, na possibilidade de vitórias dos horrores do sagrado, dos
poderes terrestres e de tudo que explora e limita. A vivência desse riso estava
associada às festas que destronavam o poder dirigente, a verdade oficial, além de
38
possuir relação direta com o tempo, com a transformação e o devir, o retorno, o
nascimento e a abundância universal de dias melhores através das imagens que
reproduziam o ar de liberdade acompanhada de mudança. No dizer de Minois (2003),
as festas prescindiam de alegria acompanhada da espontaneidade e do
desaparecimento momentâneo das diferenças sociais e de convívio acolhedor. É o
simples prazer de divertir-se e rir juntos.
Nas festas carnavalescas populares medievais era preciso se desgarrar das
ideologias e regras do mundo oficial e o espaço festivo dava chance para esta
reflexão através da ridicularização da falsa moral e do poder do sistema e seus
mascaramentos por meio do destronamento e rebaixamentos que colocavam o
mundo às avessas. Bakhtin (1999) cita as festas: “festas dos loucos” e “festa do
asno”. A primeira tinha seus ritos voltados a degradações dos símbolos religiosos
através do emprego de obscenidades e gestos, desnudamentos e embriaguez, tendo
o espaço do altar para a veiculação e execução de tais atos, que a princípio tinham
suas realizações permitidas no interior das Igrejas, passando nos fins da Idade Média
à ilegalidade às ruas, nos dias de Santo Estevão, Ano Novo, no dia dos Inocentes, da
Trindade e de São João.
A festa do asno lembra a fuga de Maria e do menino Jesus tendo no centro a
preocupação com o símbolo do asno como elemento do baixo material e corporal.
Esta festa consistia na celebração de uma missa, onde ao final não era empregada a
convencional palavra amém e sim da palavra cômica “HIn Ham! que representava o
zurrar do asno.
Acerca dessa festa, informa Minois (2003, p.179), que:
Trata-se de uma autêntica liturgia cuja precisão nada deixa a desejar em
relação à dos “verdadeiros” ofícios. Vestido com uma rica capa, o asno faz
sua entrada, às vezes puxado pela cauda, enquanto a assistência entoa o
verdadeiro hino à alegria, em latim: Este dia é um dia de alegria! Acreditem-
me: afastem dessas solenidades qualquer um que esteja triste! Que
dispensem todos os assuntos de raiva e melancolia! Aqueles que celebram a
festa do asno só querem alegria.
As referidas festas estavam, portanto, ligadas às formas do riso festivo de
dessacralização da Igreja que autorizava a todos afastar-se das trilhas oficiais do
mundo através das transposições de fronteiras por meio do riso.
nestas festas, uma brincadeira autorizada que envolve o sagrado e o
elevado, em que é criado um clima especial e livre. O superior e o inferior adquirem
igualdade de sentido e incorporam as linguagens usadas nas praças públicas, passam
39
a compor o vocabulário grotesco. Estas linguagens são empregadas para metaforizar
a passagem da morte ao nascimento, a passagem do antigo ao novo, do coroamento
e destronamento, onde o superior e o inferior se misturam. no emprego desta
linguagem a liberdade de zombar do outro, usar apelidos, empregar palavras sem
tabus e expressões tidas como inconvenientes. As grosserias são, portanto,
entendidas e justificadas. a crença de que esta linguagem livre e ousada tenha
dado por sua vez, o conteúdo positivo mais rico às novas concepções do mundo.
Burke (1989) aborda que na cultura popular européia tradicional, o tipo de
panorama mais importante era a festa que estabelecia neste período o uso da comida
e da bebida isentos de limites, assim como permitia a folga ao trabalho. O lugar
destas festas oportunizava a forma intensa de vida em oposição ao cotidiano de
gestos formais, economia necessária e regras definidas, estando o desperdício, o riso
solto, a espontaneidade nas palavras e vestimentas, funcionando como marcas da
passagem destas ocasiões especiais. Os conteúdos de tais manifestações estavam
ligados á subversão ou marginalização de padrões sociais, morais e ideológicos em
favor de conteúdos ligados aos instintos, aos sentimentos, ao riso, ao corpo, à
sensualidade, o contentamento e a consagração da liberdade.
Por mais hierarquizado e sagrado que fosse declarado o mundo, o jogo
carnavalesco permitia através da experiência de liberdade e utopia analisar e ajustar a
realidade com vistas a permitir o emprego das ações do tudo sabe, pode e deve ser
vivido pelo homem por meio de seus pensamento e palavras. O que ressalta Bakhtin
(1999) que o pensamento e a palavra procuravam a realidade nova, para além do
horizonte aparente da concepção dominante.
O gesto familiar carnavalesco abolia todas as distâncias criadas pelo medo e
a piedade, reaproximava o mundo do homem, do seu corpo como também preparava
o terreno em vista de uma nova seriedade lúcida e humana que interpretava a
tradicional cultura oficial a partir de uma nova compreensão e apreciação de mundo.
Para a visão de um mundo às avessas, a multidão gozava de uma alegria coletiva na
praça pública e os rebaixamentos grotescos eram permitidos.
O espaço do carnaval aparece uma vez que destituía o quadro oficial através
do riso popular na praça pública, e encarnava a própria essência da festa popular
com o tipo particular de imagens cômicas, que é conhecido como realismo grotesco.
No realismo grotesco, o princípio material e corporal são universais, festivos, irreais,
além de possuir ligação indivisídivel do cósmico, do social e do corporal.
40
O rio e o temível na imagem grotesca eram vencidos e transformados em
alegria. A brincadeira de transformar o oficial em não oficial era permitido nesse jogo
de imagens e era dessa modificação, dessa dualidade, que resulta um aspecto de
ambivalência permanente nas suas imagens e gestos que sempre buscavam a
inversão das coisas e acontecimentos, provocando a inversão do superior em inferior,
o antigo em novo, o perfeito em inacabado e a aceitação da morte como possibilidade
de uma vida nova.
As imagens grotescas do corpo foram especialmente desenvolvidas nas
diversas formas dos espetáculos e festas populares da Idade Média, que conheciam
uma concepção de corpo, que superava seus próprios limites ou mesmo os limites
canônicos modernos, nos quais seu próprio limite abre-se para o mundo em estado de
exageros, de fecundidade e excrescência. Nestas imagens da-se ênfase às
protuberâncias e orifícios como seios, boca, falo, barriga, nariz e ânus. Podemos
então afirmar que as imagens no realismo grotesco são ambivalentes e contraditórias,
opostas em seu grau de beleza e estética do presente na vida cotidiana. Por
conseguinte, suas imagens são apresentadas de forma sempre incompleta e
exageradas, representando quase continuamente figuras monstruosas e horrendas
que se distanciavam de regras convencionais da estética em curso. Este sistema de
imagens é consequentemente qualificado pelo exagero material e corporal corrente e
se fundamenta no princípio do riso, da deformidade, da liberdade, da leveza e da
alegria. O grotesco é desprovido do temor e de tons sombrios e abre espaço para um
novo mundo, sempre de luz. Podemos perceber a confirmação das especificidades
das imagens do grotesco através de Bakhtin (1999, p. 42/43
),
quando diz:
O mundo do grotesco oferece a possibilidade de um mundo totalmente
diferente, de uma ordem mundial distinta, de uma outra estrutura de vida.
Fraqueia os limites da unidade, da indiscutibilidade, da imobilidade fictícias
(enganosas) do mundo existente [...] O riso e a visão carnavalesca do mundo,
que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as
pretensões de significação incondicional e intemporal e libertam a
consciência, o pensamento e a imaginação humana, que ficam assim
disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades.
O grotesco satiriza a morte, a transformação, o rejuvenescimento, critica a
vida exata do cotidiano estabelecida de lugares, espaços acompanhados de ordens
determinadas para os indivíduos. O grotesco carnavalizado sinaliza para a
41
possibilidade de transformação da existência de uma vida às avessas, de cabeça para
baixo, que deseja a morte como forma de vida contrária, de vida nova. Tal movimento
vital confirma que nenhum sistema de imagens é estático e que prega em seu sentido
o devir, o novo, o germinar de uma vida e o inacabamento pleno da existência. Para
Durand (2002), a morte possui significado semelhante ao aplicado no grotesco,
quando é vista como uma forma agradável de despertar de um sonho mal que seria a
vida aqui na terra. A morte neste sentido é igualmente à paz, o refúgio do mundo de
risco temível é a volta ao ventre materno que protege e revigora o filho. Enfim, a
valorização da morte se pela possibilidade de retorno, de vida nova e de
transformação.
O grotesco carnavalizado veio em consequência da expressão popular para
oportunizar um mundo alegre, de mudanças e transformações, baseado em alguns
princípios específicos, como igualdade, liberdade, vitória e abundância e na
associação entre vida e morte, percebendo o lado efêmero da vida em seu tempo
elementar de juventude e velhice, não considerando o homem fechado e consumido,
mas aberto e inacabado para devorar e procriar algo melhor. Nesta perspectiva, não
no grotesco a predominância de uma visão essencialista entre a oposição morte e
vida. A aceitação da morte aqui é significado de um novo retorno à vida,
rejuvenescimento e mudança, a ligação cíclica do nascimento e morte como afirma
Bahktin (1999, p. 43.) “A morte está sempre relacionada ao nascimento, o sepulcro ao
seio terreno que à luz”. Estando pois, o realismo grotesco estritamente ligado ao
baixo material e corporal, ele representa sempre o começo, o seio corporal, o que
destrona e degrada, mas ao mesmo tempo regenera, dá vida nova. Em Durand
(2002), uma eufemização do sentido da morte, quando esta permite uma volta à
terra ,simbolizada pelo retorno ao colo da Mãe. A terra, neste sentido, representa o
berço desejado e mágico que promove o repouso merecido e a possibilidade do devir.
Em oposição à cultura oficial, ao tom cordato, sério e religioso da época, a
cultura cômica popular era revestida do riso, da alegria, do grotesco e expandia estes
sentimentos e gestos de liberdade nas ruas, nas festas populares, nos espetáculos.
Todos estes momentos descontraídos e festivos tinham ligação direta com o carnaval
que em sua natureza oportunizavam a representação da vida real. Daí porque o
carnaval era um tempo de um reino imaginário, fantástico e ilusório de igualdade,
abundância, universalidade e livre-arbítrio em meio à ausência de uma hierarquia
estabelecida, um tempo mesmo de uma segunda vida constituída de renovações.
42
2. 2 – Sátira Menipéia
A literatura carnavalizada é aquela que se constitui no cômico - rio. Para
compreensão deste cômico-sério, é imprescindível um entendimento sobre a sátira
menipéia que, a exemplo do carnaval, e o mundo de cabeça para baixo.
Transitando entre o fantástico e o desconhecido, invocam o cotidiano, a vida, o
pensamento, a lógica do real e a descoberta do homem interior através da expressão
livre de palavras, gestos e desejos. A sátira menipéia consiste em um gênero que
influenciou a literatura cristã antiga e que se expandiu na Idade Média, no
Renascimento e na Idade Moderna, estando presente na contemporaneidade com
objetivo de satirizar os vícios do mundo pois
[...] Desempenha um papel essencial na liberação do espírito humano e no
conseqüente progresso, o riso acompanhado da ironia conduz o homem para
mais próximo da liberdade e da razão distante da servidão, do excessivo
respeito a rotina do fanatismo político e da adoração de mim mesmo levando
a aceitar que o riso existe por e para os cidadões (MINOIS, 2003, p. 482).
Dentre as particularidades da sátira, esta consiste em elementos cômicos com
extravagante liberdade inventiva, ajustados ao simbolismo ligado ao grosseiro e ao
fantasioso. Através da sátira, podemos abordar os aspectos carnavalizados da
literatura, uma vez que este gênero “apresenta as últimas palavras decisivas, os atos
do homem revelando-o em cada um deles, bem como a vida humana na sua
totalidade” (VASCONCELOS,1996, p. 14).
De forma cômica e crítica, a sátira consiste na transição entre o fantástico e o
mundo concreto interpretando com ousadia, sendo a combinação entre o realismo e
imaginário, expressa até mesmo na compreensão de loucura e devaneio que as
representações psicológico-morais dos sujeitos vêm á tona. “Realmente, o povo
quando não consegue encontrar no mundo real explicações para expressar a sua
concepção de mundo, vale-se, exatamente, do elemento fantástico ou mesmo da
sátira” (NÓBREGA, 1996, p. 95). Para tanto, este gênero adota o riso, o ridículo e a
comicidade para abordar temas importantes como política, relações sexuais, injustiça,
repreensão e tudo que é próprio e imperativo de expressão de liberdade. Minois
(2003, p. 211) esclarece que esta exprime sob forma de inquietude “Um protesto
contra a degradação moral [...] Dos poderes político-religiosos cada vez mais eficazes
e da evolução que determina frustrações”.
43
Assinalado o elemento fantasia como a forma verdadeira da sátira, Matthew
Hodgat (1996) assegura que esta ataca sempre de forma agressiva a realidade
através de uma visão fantasiosa com fins de atingir um mundo transformado. Sendo
portanto, um gênero que revela os problemas do mundo onde vivemos através do
entretenimento, do riso e da fantasia como mecanismo de inverter o mundo real.
Prosseguindo a discussão acerca deste gênero, Hodgart (1969) diz que o
sentido dessa está ligado ao sarcasmo, à ironia e ao ridículo para denunciar e expor o
vício, a tonteira e as injustiças de toda espécie e contemplar o mundo com uma
mescla de riso e indagação. Em seu estilo, adota um riso muitas vezes grosseiro,
agressivo e até mesmo cruel contido com deboche e indignação. Podendo também
ser menos tensa, semelhante à fábula, usando histórias pequenas, engraçadas com
fins de aplicar crítica necessária ao exercício do riso que denuncia os vícios e os
defeitos moral-social-político.
No melhor de suas definições, a sátira diz da verdade humana através da
alegoria, da fábula, do grotesco e da fantasia. Ilustrando seu emprego, Minois (2003,
p. 91) comenta que “a sátira tem a finalidade de estabelecer a ordem através de
cantos e versos de ironia dirigidos aos magistrados e generais vencedores, para
lembrá-los de que, apesar de sua grandeza, eles continuam homens”. Em sua forma,
a sátira é agressiva, ataca e ridiculariza o homem reduzindo-o à igualdade diante do
poder, da riqueza e do prestígio e, assim, compromete-se com os problemas do
mundo.
A sátira se manifesta alicerçada sobre o obsceno e falta de seriedade. Tudo
se reveste de um conteúdo degradante e descompromissado, inclusive o ato sexual,
através do rebaixamento humano, estando, pois, as marcas características da sátira
com plena ênfase na carnavalização, em que, no dizer de Nóbrega (1992, p.38), ”o
estranhamento, o grotesco, o obsceno, o erótico, o fantástico, aliam-se à linguagem,
resultando de diversos elos mediadores, que se inserem num contexto de literatura
carnavalizada”.
Abordando a relação da carnavalização literária com enfoques da sátira e do
fantástico, esclarece Nóbrega (1996, p.71) que estes não podem ser desvinculados,
pois ambos “Liberam a forma de expressão, de pensamento e de criação, fazendo da
escrita elemento de instigação que capta vivências do mundo real e as transfigura, no
universo literário”.
44
Como foi dito anteriormente, tanto a carnavalização quanto a sátira menipéia
estão ancoradas na literatura antiga cristã, visto que realizavam por meio dos
destronamentos, de rupturas e de hierarquias. Essa afeição é possível uma vez que
soberanos ou mendigos, bandidos ou ricos se encontravam no mesmo plano de
utopia social, permeados por sonhos e viagens com predominância dos elementos
cômico-carnavalescos.
Continuando a explanação acerca das particularidades deste gênero, é
pertinente ressaltar que uma das características mais forte da sátira menipéia é o jogo
simbólico de passagem que retrata casamentos desiguais e mudanças bruscas do
tipo alto e baixo, ascensões e decadências, além do que causa inoportuno
desmascaramento do profanador/sagrado, seguida do arrebatado e infração da
formalidade do comportamento, como também de discursos com linguagens
obscenas e degradantes. Confirmando estas inversões, diz Vasconcelos (1996, p. 47)
“A carnavalização, desde os tempos remotos, propiciou um campo de visão ampliado
para a compreensão da vida e de suas relações com a morte, em toda a existência do
sagrado e do profano do homem”.
Todos esses rituais do carnaval são transpostos para literatura em forma de
temas. A esta transposição, chamamos de carnavalização da literatura. Nestas
literaturas, o mundo real é de fato representado, vivenciado e experenciado no plano
de uma realidade que não acontece concretamente.
2. 3 – Charivari
Charivari consiste numa temporada de festa, agitação e críticas às injustiças
sociais e políticas que se processavam em ambientes blicos sendo, pois, uma
manifestação específica no espaço do carnaval que oportunizava toda expressão do
povo ao discutir acaloradamente sobre o poder e suas imposições. Essas
manifestações corriam as ruas em passeatas e desfiles de pessoas e objetos com a
permissão de uso de linguagens, insultos e adereços que faziam valer a vivência real
na forma cômica e descontraída.
Encontramos no charivari as características das grandes gargalhadas
tumultuosas que refletem um contexto cultural e esclarecem certas significações do
riso. Minois (2003, p. 169) aponta que uma incerteza e variação em relação à
etimologia da palavra que:
45
Varia ou do grego chalibarion (ruído obtido ao bater em vaso de bronze ou de
ferro) ou do italiano Chiavramarito ou capramarito [...] rough music ou
skimmington, na Inglaterra, katzenmusik, na Alemanha, cencerrada, e
Andaluzia, Espanha, e assim por diante.
Para Burke (1989), o charivari funcionava como uma espécie de ritual de
justiça popular que ocorria na Europa, desde Portugal à Hungria, com motivos e
vítimas variados que abordavam determinados assuntos relacionados a casamento e
figuras impopulares. Esse ritual era vivido em forma de “serenata de gozação” que
parecia servir de controle social, uma vez que expressava sua negação a
determinados comportamentos de indivíduos que, por desventura, estavam desviados
das ordens vigentes, assim como, funcionava como alerta para possíveis motivos de
transgressões da ordem.
No charivari era permitido empregar insultos e exposição das vítimas pelas
ruas e praças públicas para mostrar as rupturas das convenções matrimoniais e a
indignação dos que exploravam o próximo. As canções usadas nesses momentos
festivos eram geradas a partir das batidas de panelas e caçarolas como forma de
produzir uma música grosseira e de ponta a cabeça. Para a vivência de um charivari
era necessário encontrar elementos de controle social que permitissem a sua
representação:
[...] O velho casado com a moça (ou vice-versa) que podiam ser objetos de
um charivari, qualquer um que estivesse se casando pela segunda vez, uma
moça que se casava fora da aldeia, um marido que era cornudo ou apanhava
da mulher [...] contra pregadores ou senhores rurais; na França no século
XVII, os coletores de impostos eram expulsos das cidades que visitavam
numa espécie de charivari (BURKE, 1989, p. 222).
outras causas frequentes para os charivari que Minois ( 2003) referencia,
sendo os casos em que as mulheres mandam no marido e até batem neles, desvios
sexuais e maridos violentos, avarentos e que eventualmente freqüentam prostíbulos ,
bêbados inveterados e escandalosas moças loucas por seus corpos; mulheres
adúlteras e por todos que de alguma forma excitam contra a opinião pública da
comunidade local e que para tanto sofrem as sansões do riso, da zombaria, do
barulho agressivo da música impiedosa e das mímicas obscenas.
Bakhtin (1999) comenta que o charivari enquanto momentos das festas
populares assegurava um meio da comunidade expressar suas hostilidades e
indagações acerca da ordem vigente. Nessas festas, ocorria o desfile de personagens
46
e ações que autorizavam a desordem e sempre apareciam com sentido de reclames
do povo ante a vida cotidiana. Em meio a essa sublevação dos valores éticos
acontecem as diabruras, a projeção de excrementos, o uso dos utensílios de cozinha,
os sinos nos pescoços das vacas, e até o beijo no traseiro como local invertido do
beijo no rosto.
O charivari consiste num agrupamento ruidoso dos membros da comunidade
dos vilarejos com emprego do riso qualificado, às vezes como diabólico por causar
insulto e vingança, uma manifestação de desprezo, de orgulho, de agressividade, de
regozijo. Berthold (2001) informa que nenhuma regra de moralidade e decência
assentava limites às algazarras noturnas promovidas nas solenidade chamadas
charivari, nas quais o povo usa máscaras de demônios e coisas terríveis são
perpetradas. Nessas solenidades festivas, o Diabo e os arlequins aparecem em
semelhança nos disfarces e aparência em que os arlequins transformam-se em
demônios barulhentos tirando a tranquilidade e provocando maldades pelas ruas.
Eles eram filhos de Satã, dizia, imagem do gênero humano presa da vaidosa
mundanidade; seu líder, o arquidemônio, não tinha outro objetivo senão o de
acometer a Igreja e todas as suas obras e levar à tentação e ao pecado até o
mais virtuoso e sábio dos homens [...] Possivelmente também usava um
manto vermelho com capuz, que, como vestimenta comum ao diabo e ao
alerquim, serve para identificar a ambos (BERTHOLD, 2001, p. 247).
Thompson (1998, p. 353) analisa o rough music empregado na Inglaterra desde
o fim do século XVII, resistindo ainda no começo do século XX, como um “ritual mais
elaborado, empregado em geral para dirigir zombarias ou hostilidades contra indivíduos
que desrespeitam certas normas da comunidade”. Segundo este autor, tal ritual parece
corresponder mesmo a um charivari que, na tradição francesa, ocorria com ênfase na
problemática em torno do segundo casamento. Em ambos os rituais havia também a
sátira sobre um novo par formado, a infidelidade conjugal, o domínio da mulher sobre o
marido e até mesmo sobre a reputação sexual antes do casamento, enfim, a tudo que
era considerado adequado ou não a um casal. Não é fácil decifrar o significado do rough
music e dos charivaris mediante a variedade simbólica de sua ocorrência, no entanto, é
aceitável, aqui, um comentário sobre algumas de suas especificidades e semelhanças,
partindo de um entendimento desses rituais com o propósito de comunicar ao público
penalidades e humilhações às quais as vítimas deveriam ser expostas e ganharem com
isto o estigma de culpados diante do julgamento da comunidade.
47
O charivari pode ainda adquirir outras formas: nos riding the stang, na
Inglaterra, a vítima, levada sobre um pranchão, é salpicada de imundícies; a
mulher infiel, jogada na lama, pode ainda ser colocada sobre o cucking stool,
cadeira infamante; a vítima pode também ser “passeada” sobre um asno,
sentada ao contrário ( MINOIS, 2003, p. 171).
O ritual do Rough music encontrava no barulho a expressão ritualizada em
hostilidade à ordem, assim como num charivari era a música barulhenta, seguida de
muita algazarra, com emprego de muitos risos e gestos licenciosos, a forma de
expressar repúdio à quebra de condutas. As especificidades dadas ao Rough music e
ao charivari são empregados com a intenção de, simbolicamente, anunciar sentenças
através da comunicação e moral conduzida na sociedade e imprescindíveis para fiel
conduta dos indivíduos. Estas sentenças eram anunciadas em uma espécie de teatro
nas ruas que exibia para o público castigos necessários, ao passo que ridicularizava
os envolvidos num ritual de improvisação que ia além mesmo do grotesco, atingindo,
na verdade, a um grau máximo de excomunhão aos vitimados.
Das conservadoras tradições que denunciam o julgamento das comunidades
acerca da ordem vigente posto no charivari medieval, Lourdes Ramalho cria um
charivari como momento festivo que na ambiência da obra em foco instaura a “festa”,
“o entrudo” e o “saturnal’. São das festas, dos prazeres e de louvores aos instintos
fazendo prevalecer a liberação da sexualidade e das fantasias regada ao vinho e seus
efeitos inebriantes , estimulados pelo comando e sabor do diabólico. Assim sendo, o
charivari aqui passa do caráter denunciador da ordem aos moldes de uma festa
medieval para assegurar a liberação e a concretude de desejos sexuais num tempo e
espaço autorizado.
A obra Charivari, que se analisada-interpretada no capítulo seguinte,
dialóga com um descomedimento, um ritualizar na comunhão coletiva de negação
institucional em que se livre curso às fantasias, ao encanto e à soltura do corpo.
Recriando um mundo ligado ao carnaval em que o princípio do prazer é revigorado e
ligado à necessidade de transgressões das normas, numa simbólica realização dos
desejos e dos instintos não controlados. Assim, demonstra ausência de qualquer
prova decisiva de continuidade do charivari medieval, uma festa marcada pela ruptura
normal das coisas com a entrada da alegria e da possibilidade de renovação.
48
CAPÍTULO III
CHARIVARI”: CARNAVALIZAÇÃO E DIABOLIZAÇÃO DO EROTISMO
O charivari medieval vivencia em praça pública sentenças de julgamento
acerca do comportamento dos indivíduos que por ventura desrespeitassem o poder e
suas instituições, causando à comunidade e suas vítimas humilhações e penalidades,
sobretudo, em torno das questões conjugais. Das declaradas hostilidades dessa festa
medieval, temos o charivari ramalhiano que na contemporaneidade faz da Igreja seu
teatro com possibilidades simbólicas de autorizar a liberação da sexualidade e
estabelecer, nesse ambiente sagrado, a desordem. De forma descontraída, a festa
ramalhiana convida os fiés à soltura do corpo e expõe seus envolvidos à alegria e ao
prazer. Estabelece, portanto, a utopia dos desejos revelados e assumidos. Partindo
da autorizada soltura proposta no charivari ramalhiano e, por conseguinte, da sua
ressignificação ao molde medieval nos propomos a analisar as ações dramáticas dos
personagens com o objetivo de entender como se processa no ambiente sagrado a
carnavalização proposta por Bahktin (1999).
A obra Charivari está relacionada ao estilo artístico medieval comum às
narrativas quinhentistas com tema sacro-profano bem à moda Vicentina, à
carnavalização com a inversão dos valores no ambiente sagrado, à sátira menipéia
promovendo o descortinar das verdades humanas, através da alegoria e da fantasia,
comprovando ser uma obra híbrida escrita na contemporaneidade, propondo em seu
bojo a ressignificação do Charivari medieval.
A referida obra apresenta o Diabo grotesco, disforme e fingidor em toda trama
da peça em associação com os demais personagens que são convidados a descer de
um nível do plano sagrado, mítico e maravilhoso para o nível mais baixo da matéria,
para a vida cotidiana. Os personagens trazem a marca de desvios nos planos da
linguagem, de gestos, de diálogos muitas vezes puxados ao tom de desabafo e
confiança, num local de mundo ambíguo, ao avesso, promovedor de contrários e
possibilidades de transformações de vida.
Nessa esteira de pensamento, percebemos que a linguagem do charivari está
repleta de palavras licenciosas e extravagantes expressões. Trata-se de uma escrita
que rompe com as regras estabelecidas formalmente, apresentando a intimidade e a
49
soltura própria do cordel. Vemos, então, nas cenas 1, 2 e 3 respectivamente, o
emprego desta linguagem popular como uma configuração de burlar a ordem no
sentido da carnavalização:
Diabo -
Beba mais vinho se não
você trepa mais não goza!
[...]
Sacristão - Que cu-de-boi da molesta!
Credo em cruz! Ave Maria!
Essa barata de Igreja
pura e santa se dizia
e agora está dando à toa
ao padre da freguesia?
[...]
Defunto - Quem faz de macaco gente,
fica com o rabo na mão!
(RAMALHO, 2002, p. 20, 21-31)
16
.
Charivari está estruturada em seis cenas que começam a ser desenvolvidas
no início da noite, quando a Beata queixa-se de sua rotina ao preparar o ambiente
para os fiéis. O Diabo, ao entrar na capela (anexo 02), rápido passa a cumprimentar a
noite e declara bem vinda a madrugada para a desordem revelar. E o charivari
percorre a noite, festejando os seus aspectos positivos, que surgem com sentido de
viver um mundo de permissões, suspenso das valorações da rotina costumeira, que
rasgam a escuridão e abraçam um novo dia emergido do baixo e, portanto, elevado
em transformações e conquistas. Vejamos um trecho na cena 1, que ilustra o início do
charvari:
Diabo - Inda é noite, mas aguardo
a madrugada chegar
na esperança que um cristão
contrito, venha rezar...
- que trapalhadas então
não poderei aprontrar?!
(p.11).
16
Partindo deste ponto, utilizarei somente as páginas da obra de Lourdes Ramalho, que serve de análise neste
trabalho. Charivari: texto teatral em cordel. Campina Grande: RG, 2002.
50
Vista pela ótica do simbólico, a noite, em Charivari, incita o desejo e faz os
personagens exporem seus sentimentos. Acrescidos de coragem, estes transgridem
os rituais sagrados, e se declaram sensuais, ávidos de prazer que não mais desejam
esconder. Das solturas e conquistas humanas possíveis na noite, marcamos sua
eufemização, como sendo, um tempo valorizado positivamente o que propicia,
portanto, o encontro íntimo e secreto do homem com seus sentimentos profundos,
com seu âmago. Diante do grau de intimidade e bem-estar que a noite propicia ao
homem, este vem a revelar suas intimidades. Estas revelações aproximam-se ao
regime da noturnidade proposto por Durand (2002). Neste regime, há uma
revalorização da noite que se apresenta como tempo de tranquilidade, com a
presença viva de Eros a lhes governar. Na noite, o tempo e o espaço são
administrados, desconhecendo as faces de Cronos e seu ar constante de inefável e
misteriosa é por todo durável. A noite, pois, expressa-se como libertadora e
encaminha uma vida que celebra o redimensionamento, a modificação e, por
conseguinte, a volúpia dos fiéis que vivem o Charivari. Por fim, à noite aqui, reveste-
se no sentido carnavalizante dos prazeres da carne.
Charivari é constituído de musicalidade que funciona como engrenagem
dominante no enredo do texto e de modo particular do fluxo da ação dramática da
peça. É ponto pacifico a atuação das rimas no estabelecimento rítmico das ações dos
personagens e nas situações significantes criadas por essas, notadamente pelo Diabo
e seu ajudante, o Morcego.
O traço de continuidade e ritmo que a musicalidade impõe às personagens
pode ser vista, em seu vigor maior, nas situações em que o Diabo enlaça aos demais
personagens a entrarem no bacanal orgástico regado ao vinho. Desse modo, cada
conquista do Diabo/Morgeco é precedida de um empurrão musical; é também neste
ponto que a ação dramática da peça e de cada personagem adquire um reforçado
ponto de ebulição de contra-ação, pois à medida que as personagens entram no
circuito do prazer desregrado, o ritmo a essa entrada é conduzido com ênfase
instantânea, operando desse modo o pulo para o outro lado, o lado dos devaneios e
do prazer.
Assim, no jogo de forças entre o Diabo, provocador e persuasivo e as demais
personagens, desejosas e encantadas, a musicalização que inrrope na ação
precipitada reforça o argumento-encanto do Diabo. Seguindo essa idéia, vejamos a
entrada da Beata ao charivari proposto em que a musicalidade é como afirmamos
51
um reforço argumentativo emocional que faz com que a personagem não resista e
realize a adesão ao mundo do proibido. A rubrica instituída informa bem a situação
em que a ação dramática é reforçada e o Diabo consegue executar o planejado:
(todos cantam e dançam, enquanto tiram os santos).
- Dá voltas, Beata, gira,
gira, Maria Faceira,
Marialva, Mariola,
Maria namoradeira,
Maria vai-com-as-outras,
Maria pé-de-poeira!-
Diabo - Aí Maria Pomba Lesa,
Mari, Marinha Farinha,
Morcego - Mari, Maria Fumaça,
Mari, Mariazinha,
Todos - Aí, Maria Maripousa
A queimar suas asinhas! [...]
Morcego - Dança que dança, burrinha!
Diabo - E eu te meto o esporão!
Morcego - Dança com o bode preto,
olho de brasa, tição.
Diabo - Pisa de jeito, rebola,
aí vem a arretação!
Morcego - Aí sapateia, carola,
rebola com o folgazão!
(p. 19 - 20 -21)
Não é muito ressaltar que a instância rítmica que a musicalidade desenvolve
como força coesiva às vontades naturais da Beata, cuja intenção é permanecer firme
em sua conduta de devota, tem um desdobramento nas imagens resultantes em
forma de dança, movimentos, especialidade e dinâmica da própria ação interna dos
personagens envolvidos.
E assim, como a Beata, os outros personagens que entram em confronto com
o Diabo/Morcego recebem da situação criada pela musicalidade que se incide uma
carga explosiva e irresistível à soltura e à vivência do charivari construído música a
música, passo a passo, no envolvente progressivo. Vejamos respectivamente trechos
em que o Sacristão, a Viúva, o Defunto e o Padre dão força à musicalidade na ação
dramática do texto:
Sacristão:
52
(Todos cantam e dançam)
- E a dança no pé começa,
Pé de ouvido, pé de mato,
Pé de meia, pé de mesa,
Pé de moleque, mulato,
Pé de burro, pé de cabra,
Pé de chumbo, pé de pato!
Pé de gente, pé de galo,
Pé de boi, pé de dinheiro,
Pé direito, pé de vento,
Pé rapado, pé coiceiro,
Pé na tábua e acelera,
Quero o batuque ligeiro!
[...]
Viúva:
-E mexe ,mexe, sapeca,
sua santa de pau oco,
Santeiro , santinho sonso,
São Soubera, São Cotoco,
sassarica no sarilho,
Cara de arroto choco!
[...]
Defunto:
- E bate a bota, defunto,
bate o peito, bate o dente,
bate mato, bate boca,
bate pino o penitente,
bateu a linda plumagem,
bateu papo no batente!
[...]
Padre:
Pau de santo e de pereiro,
papa hóstia, paparia,
paspalhão, passarinheiro
o padre de freguesia
estréia no picadeiro
e comanda a diabraria!
(p. 24-27-34- 42).
O Charivari apresenta o desfile dos personagens, que à moda de passeata,
são conduzidos numa espécie de marcha coletiva a revelar seus pensamentos
através da exposição dos seus sentimentos. A cena 6 ilustra bem as falas e ações dos
personagens promovendo importantes reflexões acerca do comportamento humano,
quando autoriza a desordem como estratégia de atingir no plano simbólico o
desmoronamento de suas máscaras sociais e a aceitação do prazer carnal como
luxúria coletiva :
(Todos cantam)
53
Mas a festa continua!
É entrudo, é saturnal!
É a força que explode
do baixo material
desta condição humana
do pecado original!
[...]
Diabo - E a bebedeira é tão grande,
o charivari cresceu,
que com pouco todo mundo
fica nu como nasceu!
e no meio dessa esbórnia
juízo só tenho eu!
(p.44-45).
Os personagens são literalmente encaminhados para liberação das restrições
da religião que o homem disciplina, que ensejam a ação do Diabo, que lhes oferece o
fervor da sexualidade a começar pelo Morcego, seguido pela Beata, e na seqüência
pela Viúva, Sacristão, Defunto e por fim, pelo Padre. É importante ressaltar que os
personagens aqui retratados não são dotados de nomes que os individualizem, ao
contrário, são personagens que representam seu tipo social
17
. Para o entendimento de
tal inversão e, portanto, da carnavalização neste trabalho referenciada por Bahktin
(1999) faremos uma análise com base nas falas dos personagens no decorrer da
trama que veremos a seguir:
3. 1 - O Diabo entra na Igreja
No Charivari a presença física do Diabo impõe-se de uma vez, aliado a uma
percepção carnavalesca satírica e apresentando o traço picaresco instaurado das
relações humanas, que sinaliza para uma inversão dos valores da manutenção das
regras religiosas, ou seja, o Diabo promove a carnavalização no espaço sagrado.
Para Bakhtin (1999), o carnaval é um espetáculo sem palco e sem separação entre
atores e espectadores, que derruba todas as possíveis barreiras sociais, de idade,
17
Em Charivari, Lourdes Ramalho usando da comicidade traz à tona na sátira os costumes da sociedade, sem
atingir pessoas, pois não traz a cena personagens individualizadas, mas tipos sociais representados. Esta
emprega, pois, o personagem-tipo ao definir representações de figuras coletivas que abarcam qualidades e
defeitos específicos de uma classe, um grupo social ou profissional. O gênero que retrata personagens
representando os tipos de classe sociais a que pertencem é denominado farsa. Dentre as atribuições deste
gênero, encontramos o emprego solto do riso e das críticas sobre a vida rotineira destas classes, que são
satirizadas de forma grotesca e com uso livre da obscenidade e de linguagem de baixo calão. Ressaltando que em
Charivari, todas as personagens são ridicularizadas por meio do Diabo com ajuda direta do Morcego. Embora
Charivari apresente os personagens-tipo, vale salientar que estes se aproximam do teatro vicentino formalizado
pela constituição alegórica dos personagens, como: a morte, o pecado, o bem, o mal, a virtude, Deus e o Diabo.
54
sexo e cor, é um acontecimento em que o oficial é posto às avessas prevalecendo um
mundo livre, de aproximações dos contrários, sem repressão e espaço para vivência
de hierarquias sociais. Esta inversão é bem posta na obra, quando este é construído,
toma corpo e, paulatinamente, nas negociações dos prazeres dos fiéis num jogo de
trocas e aceitações, no crescente constante invadido com as investidas do Diabo.
Assim é que o espaço religioso oficial vê-se “invadido” pelo Diabo, que conduz
a descontração dos valores religiosos como a observância da castidade dentro da
Igreja. Para começar ele se disfarça com os parâmetros sacerdotais com a finalidade
de ser acreditado e volta a um tempo medieval, empregando os recursos de
linguagem próprios deste período. Em primeiro plano, o Diabo é apresentado como
um ente desocupado que perambula em busca de divertimento. Seu perfil o aproxima
de Dionísio
18
, aquele que convida para os prazeres da carne partindo do efeito
inebriante do vinho. Ainda na cena 1 verificamos alguns trechos que ilustram seus
intentos:
Diabo - Achando a vida sem graça
do inferno desertei.
Já percorri Seca e Meca
diversões – não encontrei...
Vim parar nesta capela
medieval... – Que farei?
[...]
Diabo - Primeiro, pensar eu tenho
em que vou me disfarçar
- Que é isto? – Uma batina?
Nela vou me enfiar!
Pronto! Mudei de figura!
Posso a todos enganar!
(p. 11-12).
18
Dionísio, na mitologia grega é considerado deus nômade que organiza suas ações no espaço de movimento e
surpresas. Este deus que vem de fora conhece intimamente as afinidades presentes e ausentes. Marca sua
epifanica por ter o rosto sempre a mostrar, apresenta-se com máscara que se esconde e se revela. Dionísio é o
deus que convida ao exótico e ao enlouquecimento das mulheres se revela como bom administrador, permitindo as
mulheres a dedicar-se em favor de apaziguar seu deus através de rituais e cerimônias sagradas com o cuidado
especial de descobrir o poder do vinho e do deus que o habita. Detienne.(, 1988, p.44), comenta que, Dionísio
reúne no paradigma de sua história divina os elementos essenciais da experiência religiosa que ele introduz no
mundo dos homens sob o signo da condição de estrangeiro/Estranheza: loucura-infâmia e a purificação, tendo, em
seu prolongamento, a máscara-disfarce e a visão da facialidade brutal.
55
A imagem do Diabo foi constituída desde a Antiguidade pelo cristianismo que
determinou e autorizou suas ações. Desde sua composição, este assumiu a esfera da
desobediência e colocou os enigmas do mundo de maneira universal sempre
apontando para o homem dois caminhos contrários, o Bem e o Mal. Nestes termos, o
universo passou a ser dividido entre o reino de Cristo, o qual resplandece de luz, e um
outro reino destinado ao Diabo, onde predominam as forças das trevas.
Paulatinamente, o espírito do Mal passa a integrar o dogma centrado no cristianismo
que explica a queda do homem pelo pecado, sendo:
O Diabo, incorporado aos dogmas do Cristianismo, representa as
‘dificuldades do mundo material e espiritual, válvula de escape de uma nova
fé, que busca conquistar o seu espaço no meio de crenças mais antigas e
arraigadas no seio da população e que necessita da uniformidade da
consciência para triunfar ( NOGUEIRA, 1986, p. 23).
O Diabo pode conhecer o futuro e penetrar nos pensamentos, pode dirigir as
vontades de homens e mulheres. Adentrando nos seus corpos, o Diabo projeta o que
deseja. Este pode dominar com toda pompa e esplendor um espaço montado,
fazendo desse um teatro no qual este ser sustenta o fascínio e imaginação atuando
eficazmente. Nogueira (1986, p. 21) relata que, “pelo fato de possuírem corpos
etéreos, têm faculdades, extraordinárias de percepção e são capazes de se
transportar através do ar com uma velocidade incomparável”. Diante dessa faculdade
de admirável e temível do Diabo lembra Delumeau (1989) sua enorme ligação à
apostasia e, consequentemente, à mulher, comentando que esta é um verdadeiro
Diabo, uma inimiga da paz, uma fonte de impaciência em que Satã estava sempre por
trás a utilizando como chamariz para atrair o outro sexo ao inferno. Esta era o “diabo
doméstico” de ofensiva demoníaca disposta a sempre enfraquecer o herói e
corromper seu coração. A mulher é então “a arma do diabo” que acende o desejo,
arrasta os homens para o abismo da sexualidade, torna-o iníquo e os faz cometer
pecados, e os promove para o inferno.
À medida que o Diabo se apresenta como criatura espiritual capaz de se
manifestar de maneira corpórea sobre a terra e sobre os inimigos, os homens
lentamente tornam-se mais ligados nas crenças desses demônios que, ao menor
deslize, poderiam manter a moral dos cristãos em decaída, absorvida pelo mal, pelo
pecado, pela arte mágica do tentador, aterrorizante e com poder de desviar a
católica em troca de delícias mundanas, assim temos:
56
As diversas formas de apresentação da figura do Maligno seguem uma
tradição mais ou menos consciente; tanto o tentador como o instrumento de
sua tentação e o cortejo de entidades inferiores que participam da esfera do
Mal aparecem com caracteres burlescos, objetos de uma ridicularização, que
mostrem a sua inferioridade implícita frente a figuras revestidas de santidade.
O Diabo faz medo e faz rir, treme-se ao ver o Inimigo, mas também se
deus, que será mais forte, e as consciências se tranqüilizam (NOGUEIRA,
1986, p. 38).
Na Idade Média, nos períodos de carnaval e nos charivaris, era permitido que
as pessoas se fantasiassem de Diabo e corressem soltas pelas ruas numa atmosfera
de liberdade carnavalesca. As pessoas que representavam esse papel geralmente
pertenciam à classe pobre. Daí a expressão “pobres diabos”, tão usada na nossa
linguagem diária. Esses personagens aproveitavam o momento festivo para violar leis
e propriedades, empregar gestos obscenos, burlar o sagrado, pregar a confusão e
algazarra, além de se apropriar do alheio momentaneamente, sendo possível
confirmar as ações desse personagem a partir dos sinônimos dados à palavra Diabo
de: separar, caluniar, semear discórdia, provocar confusão, desordem e fazer gerar
uma nova ordem pensada e refletida. Nesta perspectiva, este deixa o aspecto de
“criaturas maléficas” provocadoras de calamidades e epidemia; “eles são chamados a
representar os desejos que cada cristão alimenta no fundo do seu coração sem se
atrever a reconhecê-los como seus” (NOGUEIRA,1986, p. 42).
Em praça pública, o Diabo liberava temas censurados, como também,
representava a imagem da verdade, do que, de fato, os cidadãos gostariam de
viver/ser. Seu papel funcionava como o sobrenatural que protegia o povo das
omissões do dever do estado e dos medos provocados pelo além. Essas imagens
estavam sempre associadas à alegria com possibilidades de reflexões das questões
culturais, psíquicas e econômicas, da ordem vigente, com espaço garantido para,
através da ligação com os velhos paradigmas, efetivar a base de novos modelos
determinantes na sociedade. Nesse sentido, Mello (1999, p. 265) comenta que o
Diabo apresenta-se “investido com credenciais próprias para acelerar os processos da
busca do desejo [...] O seu papel é fornecer, encaminhar e justificar uma denúncia
pública, às avessas – é um agitador social”.
Ribeiro (2004, p. 58
),
em seu ensaio sobre o mito feminino, explica:
57
O diabo, figura arquetípica que remota a mais alta antiguidade, descreve o
lado grotesco e sinistro do inconsciente que permanece em seu lado
selvagem e original. Significa a intensa energia vital, sensualidade,
criatividade e individualidade necessárias para se vencer qualquer batalha na
vida, mas também significa o desejo e a dominação pelos instintos. O diabo
significa a heroína submersa na matéria, presa à carne, recebendo
emanações sombrias e sofrendo depois as repercussões das experiências
vividas,da ilusões efêmeras que remontam depois de exauridas as buscas de
novas emoções.
O Diabo emerge das desordens e incertezas, provoca e articula outra ordem
por meio dos questionamentos e da vivência de um mundo desejado no plano real.
Com sua astúcia, propicia um mundo de cabeça para baixo (esclarecimento de
Bakhtin), uma carnavalização que, por sua vez, promove desestruturação e
re/modelagem de um novo mundo. Neste sentido, a presença do Diabo torna-se um
mal necessário para driblar o caos e neutralizar as angústias da vida diária. Neste
entendimento, o Diabo usa das transgressões das leis e do distanciamento das
convenções sociais e, por consequência, da noção de mundo real provocando o
destronamento do contexto do presente, com vistas a um futuro diferente, que, nas
palavras de Mello (1999), pode significar a representação da possibilidade remota de
uma mudança da ordem e de uma nova marca:
Considerando-se, pois, o diabo como principio da complementaridade, ele
pode ser convertido em “generalização racional”, de tal modo que, como o
caos, ele o é apenas o condutor da marca negativa, mas pela própria
natureza dinâmica, interfere e dinamiza a seguinte cadeia contínua de
desorganização > organização >interação>reestruturação > novo paradigma
(MELLO, 1999, p. 274).
A personagem do Diabo lembra diretamente os que estão à margem da
sociedade, aqueles tidos como viciados e subversivos e que fazem da transgressão
da ordem seu “status” de vida. O Diabo deve ser lembrado ainda como aquele que
tem a função de buscar a libertação, a restauração e a circulação das fantasias e
desejos. Na efetivação de tais funções, compete ao Diabo assegurar os devaneios
essenciais ao equilíbrio social, fornecer justificativas para as denúncias públicas e
questionamentos morais, como também, buscar perguntas e alcançar respostas da
vida real.
Mediante tais papéis e funções do Diabo, entendemos que ele sugere outra
realidade, aparentemente imaginária, mas que aponta para um espaço de equilíbrio
invertido. Esta nova realidade é promovida pelas brincadeiras e maneira lúdica onde o
irreal passa a fazer parte do real. Neste imaginário permitido, o Diabo comprova sua
58
capacidade de fazer emergir transformações do poder diante da sua competência de
se metamorfosear e representar ora o caos, ora os prazeres. Em sua dualidade,
portanto, o Diabo se insurge, no dizer de Mello (1999) como uma “imagem-factual,
auto-organizadora e responsável pela metamorfose, também, do outro, pelo diálogo
das relações entre o sujeito e o objeto, o real e o imaginário”.
Em sua competência de formatar novos paradigmas atrelados às tramas que
promovem desordem e renovação, o Diabo é assumido como a personificação do
próprio desejo. Motta (1999, p. 17) esclarece que [...] “os desejos recalcados eram
chamados de demônios, o que se mantém atualmente, tal como demonstra a seguinte
expressão: Ele está como o diabo no corpo. Assim, o diabo é, simultaneamente, o
tentador e tentação”.
O Diabo, sujeito arteiro, causador de todo festim, elabora, desse modo, no
local sagrado, um jogo de dessacralização, promovendo riso festivo e de consagração
da vida libertária dos personagens que foram por ele fustigadas. O Diabo promove em
Charivari uma inversão do mundo, no sentido em que degrada os valores cristãos
sacralizados numa reviravolta positiva necessária ao mundo social a que se refere
DaMatta (1986). Assim, o Diabo, sob o disfarce de monge, aposta na orgia, no sexo, e
na bebedeira a fim de consolidar a perdição, “a danação” e aguarda o momento de
fazer sua entrada que pode ser vista na cena 1 ao se deparar na Igreja com sua
primeira “vítima”:
Diabo - Eis que um vulto se aproxima...
Será alma? Que será?
Pelo visto, uma Beata,
feia, encruada, a esperar
ir ao céu com tripa e tudo
ou então homem arranjar!
[...]
Morgego - Você acertou na mosca!
Essa beata é pirada,
com a carinha de anja
é uma gata assanhada!
[...]
Diabo - Vou aguardar o meu momento
e fazer a minha entrada!
(p.12-13).
O Diabo entra em cena com o pensamento voltado para um futuro indeciso,
mas repleto de tentativas de acertos e vitórias, de libertação e desejos possíveis
59
porque sabe que o homem é vulnerável. Ele representa a vontade, o desejo e o medo
da punição, mas sobretudo, a explícita vontade humana reprimida, a busca de viver a
sexualidade na sua forma mais fantasiosa. O Diabo expressa por seu próprio código,
vivendo ao sabor da sorte, constrói sua aprendizagem que amadurece como atributo
adequado nas ocasiões que vivencia suas espertezas. Usa desse modo, portanto,
máscaras (dissimulações) para acomodar-se de acordo com as eventualidades.
Charivari apresenta o Diabo que se caracteriza por sua singularidade de
alegre porta-voz que nada tem de aterrorizante, pesado e sombrio, mas sim de
grotesco e, portanto, dotado de inteligência, perspicácia, é sagaz, extrovertido e
revelador de um extraordinário senso de humor. Este declara um tempo de magia e
sonho propício para brotar os instintos e florescer o bacanal
19
numa desordem e
tumulto com vistas a liberação dos desejos carnais. O Diabo (anexo 03), mistura de
libertador, coringa e pícaro, condensa em si a potencialidade da mudança e a oferece
sob o véu do disfarce, da carnavalização aos demais personagens. Com suas
investidas, a festa avança e ocupa território confirmando a derrisão e dessacralização
do sagrado proposto no charivari ramalhiano.
3. 2 - O Morcego – um comparsa do Diabo
Na sequência do enredo, aparece o Morcego, que com sua competência de
sugar, aqui simbolizado em energia, segue absorvendo a paciência e as energias de
todos e, em especial, a energia sexual abundante nas personagens da trama. Afirma
Ribeiro (2006, p. 82) que “O imaginário coletivo sempre o considerou um ente
libidinoso que sorve a vida e alma das pessoas, uma representação ideal do demônio
porque possui poderes sobrenaturais [...]”.
Becker (1999) estabelece a ligação do morcego com o diabólico afirmando
que este animal está sempre em contato direto com a imortalidade e com o além. Isto
é assegurado quando sua morada dá-se nas entradas das cavernas. O morcego
19
Os bacanais romanos acabam por consagrar o culto ao deus Baco. Os ruidosos bacanais romanos apresentam
seus vestígios hodiernamente nas festas carnavalescas em que a vida se torna um grande palco onde as pessoas
se permitem liberar suas fantasias nas fantasias, desejos e necessidades sem passarem pelo crivo da censura
oficial, moral, social ou religiosa. Baco, deus da uva, do vinho, do lazer, da orgia e da folia, representava na alegria
da festa o seu poder embriagador, suas influências benéficas e sociais. Estando Dionísio a ser o seu equivalente
grego.
60
refere-se à escuridão, ao mal e às trevas. Animal noturno que sinaliza para uma
ligação com o Diabo quando mantém relações com as mulheres à noite. Ao se
manter de cabeça para baixo este animal simbolicamente indica a desordem, o
avesso e a impureza. Único mamífero que voa e sua ambivalência de ave e mamífero
(pássaro e rato) o faz um animal híbrido. Ronecker ( 1961, p.167 a 169) informa
algumas particularidades desse animal :
No Extremo Oriente, onde é símbolo da felicidade, porque o caráter louco que
designa compõe homofonia com o caráter que significa felicidade [...] Na
China simboliza a sorte e principalmente a malícia [...] É também símbolo da
longevidade e sua imagem acompanhava, às vezes, o caráter longevidade na
expressão de votos. Teria adquirido essa longevidade por causa de viver nas
cavernas passagem para o domínio dos Imortais e por alimentar-se nelas
de concreções representação do inimigo da luz, do extravagante que faz tudo
no sentido contrário e tudo ao avesso [...] Na iconografia da Renascença
que ilustra lendas antigas, o morcego, única criatura que voa e tem mamas,
simboliza a mulher fecunda [...] Muito presente na iconografia hermética, o
morcego, por sua natureza ambígua de rato-pássaro, representa o andrógino,
dragão alado e os demônios (sua asas seriam as dos habitantes do Inferno
[...] Em magia, o morcego significa o crepúsculo, o mistério e o androgismo.
Dizia-se que muitas vezes participava do sabá. Em muitas regiões da França,
tinha má fama. Lembramos a título de exemplo, que no Meio-Dia ele era
chamado Mosca do Inferno, e que os Camponeses o pregavam à porta do
celeiro para impedi-lo de realizar [...] O vampiro ao qual o morcego é
associado, especialmente nos filmes de terror (RONECKER, 1961, p.167 a
169). Em muitas regiões da França, tinha fama. Lembramos a título de
exemplo, que no Meio-Dia ele era chamado Mosca do Inferno, e que os
Camponeses o pregavam à porta do celeiro para impedi-lo de realizar [...]O
vampiro ao qual o morcego é associado, especialmente nos filmes de terror
(RONECKER, 1961, p.167 a 169).
Em Charivari, o Morcego vive de cima, a observar a vida e as ações dos vivos
e dos mortos que por ali passam. Reúne em seu repertório de memória e de falas, o
que registra das falhas humanas dos fiéis. Roga por uma oportunidade para verificar
tudo sendo revelado ou resolvido, como forma de vingar tudo aquilo que conduz a
falsidades, a mentiras e a falsa moral dos cristãos da redondeza. Está sempre
enfatizando nas suas revelações, a presença marcante da desonestidade e da
negação à sexualidade e suas conseqüências na vida das pessoas. Este passa a
comunicar-se mentalmente com o Diabo e confirmar o poder de ambos em conhecer
e ver o que se passa com os humanos sem fazer uso dos sentidos. Assim como
mostra os trechos na cena 1, temos o Morcego utilizando-se da ironia, concordando
com todas as artimanhas do Diabo se tornando aliado dele, e vibrando por
conseguinte, com os resultados de cada situação. Mostra-se admirado com o
envolvimento pleno de todos (Beata, Viúva, Sacristão, Defunto e Padre) e anuncia a
61
carapuça dos ”bonzinhos”, “santinhos”, e “dedicados” ao serviço do Senhor, visto que
se confirma que são justamente “viçosos”, “desejosos”,“fogosos” e “ardentes”
Morcego - O que fará este tipo
eu tenho de aguardar.
Há mais de mil gerações
que nós vivemos por cá
e não é um diabo à toa
que tome o nosso lugar!
[...]
Morcego - Trapalhadas? – Ah, veremos
o que vai acontecer...
Se a coisa for engraçada
ajudarei – só pra ver!
De padres, fiéis, beatas
tenho queixas, podem crer!
( 11-12).
O Morcego almeja promover trapalhadas e enganos aos fiéis. Para impetrar
tais façanhas, adentra na empresa do Diabo e contribui fortemente para instaurar a
inversão dos valores no ambiente sagrado. De acordo com os trechos da cena 2,
percebemos suas intenções que, com o expediente de causar alterações e mudanças,
instaura um tempo de carnavalização, como proposta por Bahktin (1999) e por meio
do jogo fantástico liderado pelo Diabo abre as possibilidades dos contrários e das
dessacralizações almejadas:
Diabo - Sou um monge peregrino,
sei do ofício tratar,
religioso ambulante
vivo no mundo a pregar...
Morcego - Peça pros bestas – aí está!
e se este é o seu intento,
comigo pode contar!
Diabo - Encontrei um aliado?
Morcego - A união faz a força,
podemos, juntos, brincar!
(p.16).
Diante das artimanhas que o Morcego promove na vida pessoal dos cristãos
daquela capela, acaba por se aproximar, a exemplo do Diabo, das características de
um pícaro. Deste modo, o Morcego segue os personagens nas suas trajetórias,
aproveitando os recursos dados pelo momento presente em prol de transformar
situações de desvantagens em vantagens conforme verificamos nos trechos abaixo:
62
Morcego - Engana, engana, meu velho,
isto é gente airada,
de tanto enganar os outros
é facilmente enganada...
Vou me divertir a bessa
com as situações criadas!
(p.12).
O Diabo e o Morcego representam a consciência dos personagens humanos.
Eles convidam todos para descerem do plano sagrado oficial e moralista e entrar no
sagrado profano, carnavalizado e na zombaria. Usando de insultos, revelam um
mundo deslocado do normal e aberto à vida cotidiana, real e necessária. A promoção
deste contrário aproxima-se, assim, da carnavalização e da sátira menipéia quando
entendidas como teorias que pregam o destronamento. Ambas presentes no charivari
ramalhiano promovem um tempo admissível de realizações das utopias e literalmente
estabelece a desejada alegria e exuberante soltura do copo-mente.
3. 3 – A Beata
A Beata é a primeira mulher que aparece na Igreja para cuidar daquele
espaço. Esta vive a lamentar as conseqüências presentes em sua vida advindas da
sua dedicação aos serviços sagrados. Sua dedicação, promove-lhe a ausência de um
homem e os encantamentos que a soltura e o prazer com o corpo podem promover. A
carência de um homem em sua vida a faz procurar no espaço sagrado uma
“resignação condicionada”, isto é, uma ressignação que espera e se processa pela
recompensa aos serviços que presta, os quais na cena 2, são comentados:
Beata - Não tenho dia nem hora,
Vivo só a trabalhar,
lavar ceroula do padre,
batina pra escovar,
enquanto eu peno – ele dorme,
depois de um lauto jantar!
Morcego - Já começou...
Diabo - Está queixosa...
[...]
Beata - E eu que esfregue, que arrume,
63
tira daqui, bota lá,
varrer chão, passar enxerga,
cadeira e banco espanar,
limpar castiçais de prata,
deixando brilhando o altar...(p.14 e 15).
O comportamento da Beata comprova que a visão cristã do desejo e do
prazer está sempre ligado à corrupção, ao tormento e, por conseguinte, ao pacto
absoluto com o pecado original, ao pecado da carne e, portanto, de toda cópula
diabólica que deve a todo custo ser evitado.
Duby (2001) argumenta que os homens da Igreja valiam-se dessa justificativa
para condenar, para transferir o peso do pecado ao feminino a fim de retirar a sua
responsabilidade. No final das contas, as mulheres deveriam cuidar bem da casa, do
seu senhor, dos seus filhos e dedicar-se à Igreja. Na cena 2, a Beata continua
insatisfeita e expondo suas queixas:
Diabo - Está na mal, a idiota,
Morcego - Bem se pode imaginar...
Beata - E entra ano e sai ano
e eu – pra lá e pra cá!
Boto flores, tiro flores,
hóstia e vinho no altar,
acendo e apago velas
e a diversão – é rezar! (p.15).
Nos trechos acima, podemos verificar as lamúrias da Beata, como também
que o Diabo é convidado a resolver no plano simbólico a situação de liberdade e
soltura que muitos fiéis almejam, como é o caso da Beata. A referida devota, com este
estilo de vida, acaba permitindo que seus dias sejam carregados de obrigações e
regras as quais tolhem a alegria e encantamento da vida com prazer. A Beata, vendo
aquele tipo na Igreja acredita na possibilidade de tudo melhorar, assim, logo entra da
promessa do Diabo em um homem lhe arranjar. Embarcando nas propostas do Diabo,
esta comunga com o que diz Nogueira (1986, p. 43) que, “começa a ser elaborada
nas consciências cristã a idéia de sacerdotes secretas de adoradores do Diabo”. Na
cena 2, temos uma confirmação da parceria entre o Diabo e a Beata:
Diabo - Está chegando onde eu quero...
Morcego - E onde eu quero também...
[...]
64
Beata - Quero um homem que me agarre,
que me aperte no pagode,
me arranhe com sua barba,
me cosque com seu bigode!
[...]
Beata - Aí, belisca que me acabo,
morde que estou fogosa,
no puxa-encolhe vou indo
numa ânsia extertorosa!
Diabo - Beba mais vinho se não
você trepa mais não goza!
(p. 14-20).
A atitude masculina em relação ao “segundo sexo” definido também como
antifeminismo por Delumeau (1989, p. 311) identifica a mulher como agente de satã.
Dessa identificação construída por leigos e homens da Igreja está o cerne do medo da
mulher e a super valorização do macho em que “o homem definiu-se como opolíneo e
racional por oposição à mulher dionisíaca e instintiva, mais invadida que ele pela
obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho”. A origem de tais prerrogativas
estabelece na mulher um caráter perigoso constituído de uma força misteriosa que a
define como “o santuário do estranho”.
A Beata, ao aderir às sábias mediações do Diabo, entra em transe e incorpora
as semelhanças das mênades. Para Detienne (1988), estas são mulheres que na
mitologia de Dionísio lhe presta culto de forma louca, feliz e alegre. Seus desejos são
acompanhados pela vinha, a bebida inebriante que consagrada a verdadeira epifânia,
a face do teatro desse deus e, do seu ritual da liberação. Os trechos da cena 2 traz a
parceria de ambos:
Beata - É um monge peregrino
e veio aqui se hospedar?
Diabo - Estou com fome, sede, frio,
morto de tanto viajar...
Me sirva um copo de vinho
para o meu sangue esquentar!
[...]
Diabo - Pegue uma das garrafas
que escondidas devem estar
e nem sabe que presente
precioso vai ganhar!
65
[...]
Beata - Senhor monge, não me tente,
tirar –seria roubar!
Também, nem sei que presente
iria o senhor me dar...
(p.16-17).
Nesses termos entendemos que a cultura dominante no seu estranho
paradoxo de venerar à mulher angelical e irreal conduzida aos cuidados da
virgindade, da castidade e do casamento sempre prevaleceu em contrapartida a
hostilidade dada à mulher real, considerada diabólica. Desejosa de sexo, a mulher é
vencida pelos encantos do Diabo, afinal, suas promessas eram tentadoras.
Explicando as relações associativas entre mulher e o Diabo e a sua força ordenadora,
temos (MELLO, 1999 p. 399)
O diabo com quem as mulheres fazem pactos não carrega a sisudez do
satanás babilônico: tem os traços dos pícaros, dos mitológicos e, por isso,
atua como mediador, assumindo o papel do demiurgo, realizando a mediação
entre o principio masculino e feminino, entre o tempo mítico e tempo
referencial.O diabo, como pícaro, trafega desde o imaginário da Ibéria,
desembarcando no Nordeste com o seu lado cômico, astucioso, fazendo as
trapaças e astúcias, um dos traços principais da organização social.
O homem medieval sempre esteve em conflito diante o Diabo e suas crenças
e desde a antiguidade amplia tal conflito na crença de que:
O diabo preside a vida da comunidade cristã. Em toda parte se vê o diabólico,
o mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é, por excelência, a mulher.
Porque a mulher está mais predestinada ao Mal que o homem ( NOGUEIRA,
1986, p. 35).
Desta crença, surge na fantasia popular o tipo principal caracterizado por
decadência, pecado e desequilíbrio atribuídos a Maria Madalena. Desse tipo de
mulher munida de fraqueza e iniquidade, o homem deve combater a aproximação e
por sua vez, a tentação da carne. A esta imagem de mulher vítima da fraqueza da
carne e contaminadora dos homens, os textos bíblicos trazem em (Eclesiástico 25:26)
“toda malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher, que a sorte dos
pecadores caia sobre ela”. Esta imagem é reforçada por Delumeau (1989, p. 340)
quando comenta sobre as mulheres como “briguenta, curiosa, desobediente,
invejosa, ávida, luxuriosa, cúpida, hipócrita, supersticiosa, indiscreta e cruel”. Definida
como ilusória, erótica e instrumento de perdição da qual Satã é o “o príncipe e o
66
deus”. Delumeau explica ainda que a insistência em sublinhar os defeitos da mulher
traz a advertência de que estas são “anjos da Igreja”, “diabos em casa” e “macacos na
cama”, mostrando a atitude antifeminista de marcar a mulher por uma hostilidade vista
de um “segundo sexo” provedora de ardores desordenados e imprudência.
Sabemos que o sexo é dentre os pecados carnais o assaz abominável, aquele
que traz à tona a rebeldia de um cristão, sendo este provedor de medos, castigos, e
atos considerados horrificantes para humanidade, devendo então, ser evitado como
garantia de salvar o espírito e a moral da concupiscência carnal. A mulher,
historicamente tida como provedora da tentação, do desejo e do pecado, era, pois,
obrigada a renunciar ao sexo, seguindo obrigatoriamente o caminho da virgindade ou
quando necessário do casamento com fins, apenas, à procriação. A mulher neste
intento carregava consigo o peso da condição de imperadora do desejo, o que lhe
rendia direta associação ao mal e, por conseguinte, à danação, devendo em vida,
condenar o prazer da carne, consistindo apenas ao feminino, autorizada dedicação ao
sagrado oficial.
Schott (1996) confirma que Platão concebia a sexualidade das mulheres como
um obstáculo para os homens não conseguirem o progresso espiritual e a obtenção
do conhecimento. Para este filósofo, o que caracterizava as mulheres eram as
sensações, sentimentos e apetites, portanto, autorizava que se denegrisse do corpo e
da mulher, aconselhando aos homens manter-se distante destes seres
inescapavelmente eróticos e, por sua vez, condenados à insignificância. Aliás, esse
foi o pensamento que permeou toda a religião e filosofia grega acerca da poluição
causada pela mulher, o qual em última análise poderia conduzir o homem por
intermédio do sexo, à perda da alma.
Assim sendo, a Beata vivia nos moldes tradicionais quanto ao sexo,
mostrando-se insatisfeita, mas o Charivari, através das ações do Diabo, vem lhe
propor justamente um mundo de contrários, por meio da sua aproximação com uma
festa da permissão, da manifestação descontraída e libertária que para Bakhtin (1999,
p.236) é “a liberdade exterior das formas da festa popular [...] Elas davam um novo
aspecto positivo do mundo e ao mesmo tempo o direito de exprimi-lo impunemente”
Sociedades diferentes m códigos diferentes de conduta sexual, mas em
todas as sociedades os indivíduos cometem transgressões. A idéia de que
uma linha sexual que não deve ser ultrapassada, mas que o é na prática, é
muito mais antiga do que a história da tentação de Eva pela serpente […]
Nosso comportamento e nossas conquistas são tão ligadas à cultura e
67
expectativas sociais quanto as formas inatas dos nossos corpos; além disso,
nossa tecnologia inovadora altera continuamente a natureza do mundo em
que vivemos e produzimos ( TAYLOR, 1997 p.9 e 8).
Os caminhos dos mitos que herdamos da tradição judaica oportunizam a
compreensão da mulher desde sua dimensão sagrada e cultuada pelos valores
femininos da Grande Deusa Mãe, até os mitos da criação de influência patriarcal, que
associaram a mulher às forças inferiores da terra e o homem às forças superiores do
céu. Tal representação, estreita-se com a ordem triunfante do patriarcado, estando
subjacente à organização da sociedade e aos horrores em torno do feminino (anexo
04). Nesta caminhada, temos também o diálogo entre o Diabo e a mulher que possui
uma longa história no percurso da adjetivação do feminino demoníaco que, começa
com o mito de Lilith
20
, o qual retomamos agora para explicar esta relação arquétipa.
Lilith é símbolo do feminino e habita o imaginário coletivo de acordo com o
mito da criação do homem e da mulher. Considerada primeira mulher de Adão, esta é
dotada de poder de sedução e constituída de puro ideal de liberdade. A esse respeito
Sicuteri (1985, p.30) assinala que “Lilith entra no mito como demônio, uma figura
de saliva e sangue, um verdadeiro espírito deixado em estado informe por Deus, é
uma companheira que apresenta fortes traços de fatalidade.
Desde sua criação, é
motivo de repúdio do masculino diante da sua incondicional força sexual, sendo o
arquétipo da mulher indomada e detentora de energia ígnea, violenta e demoníaca,
com suas características voltadas ao destemor e ao individualismo. É a representação
pronta da mulher para viver a sua sexualidade de forma plena e prazerosa, sem
medos nem vergonha. Na obra “Santo Graal” de Laurence Gardner (2004, p. 32), Lilith
é apontada como a filha do submundo e “por toda a história até os dias atuais, ela tem
representado a ética fundamental da oportunidade da mulher”.
20
No Zohar - obra cabalista do século XIII, também denominada o Livro de esplendor fornece informações sobre as
origens do mito de Lilith. Vista como sedutora e diaba, a maligna, a negra sucedida por uma profunda raiva e
vingança, apresenta-se como sedutora dos homens e assassina de crianças, atuando a noite e semeando o mal e
discórdia. Conhecida como “a coruja da noite” que surge da diminuição de sua luz. Quando a Lua estava em
conexão com o Sol, ela era luminosa, mas assim que se separou dele, foi-lhe atribuída menor brilho. Neste caso,
vemos que Lilith deriva do ressentimento e da diminuição da Lua, apresentando-se como sombria e noturna,
devendo admitir que seu campo de inferior luminosidade destinada à noite e à luz maior do sol, deveria cobrir o dia.
Sendo assim, o domínio do dia pertence ao macho e o domínio da noite, à fêmea. O Zohar indica, pois, minuciosas
instruções para o aprofundamento da consciência e da individuação mediante o conhecimento de Lilith e sua
natureza. Sendo, portanto, o mito de Lilith uma excelente metáfora para a situação de submissão que as mulheres
passam a ter na sociedade patriarcal, e para a forma com a sexualidade feminina passa a ser vista: perigosa e
transgressora, síntese do mal e do pecado.
68
No momento do primeiro ato sexual entre o casal, Lilith logo recusa-se a
deitar sobre a terra e abaixo de Adão, solicitando ficar por cima na relação sexual.
Este pedido acaba fundamentando sua reivindicação de igualdade pelo fato de ambos
haverem sido criados da terra. Em sua recusa de ser mera terra para Adão, ela
almejava a liberdade, espaço para movimento e ação, queria emergir sem aceitar a
condição de matéria passiva. Percebendo que seu pedido não havia sido ouvido por
seu companheiro, pronunciou o inefável nome de Deus e pôs-se a voar pelo mundo.
Afirmando este ato de Lilith, Koltuv (1986. p.38), comenta que esta “Passou a viver
numa caverna no deserto, às margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-se numa
desenfreada promiscuidade, unindo-se com demônios numa lasciva e gerando,
diariamente, centenas de Lilim ou bebês demoníacos”. Tal atitude expressa a
negação de ser subjugada por Adão, o sentimento de inferioridade, além do grito de
dor e raiva do feminino ferido que se revela.
Com a saída de Lilith do jardim do Éden, Adão ficou e com medo da
escuridão. Reclamando a Deus seu estado de solidão, foi atendido seu pedido
quando o criador providenciou uma outra mulher proveniente de uma de suas
costelas. Surge então Eva, uma mulher moldada exatamente às exigências da
sociedade patriarcal. Mulher submissa, destinada à inferioridade, cil e incapaz de
questionar sua condição de mulher, voltada ao lar e construtiva de função de servir à
maternidade e ao homem, enquanto que Lilith é um aspecto instintivo e terreno do
feminino, a personificação dos desejos sexuais de Adão.
A partir dos referidos mitos, Eva carregará a culpa pela desobediência e a
perda do paraíso, através da transgressão da árvore em obediência à serpente e Lilith
desobedecerá a supremacia de Adão, que é iniciada pelo pedido da inversão das
posições sexuais e, por conseguinte, a inversões dos papéis entre homem e mulher.
Destas ações decorrem as qualidades terríveis que são atribuídas a ambas
entendidas como mulheres demoníacas que possuem sua imperfeição inerente à sua
origem. Tais imperfeições são incorporadas na psique feminina fazendo com que
todas as mulheres se tornem estigmatizadas com essa identidade negativa de um
feminino incapaz e submisso, imposto culturalmente para estabelecer a supremacia
da sociedade patriarcal na qual a brutalidade dos homens as transformou num
santuário ignorado. A esse respeito, afirmamos que o advento do patriarcado
poderá ser revisto a partir de um olhar distanciado e constituído de verdade por meio
de um aguçado espírito científico. Acerca desta verdade comenta Araújo (1989, p. 41)
69
que, “Verdade é uma visão desconcertante, dado que exige que se constitua um novo
juízo sobre esses preconceitos estabelecidos desde a pré-história”.
A imposição dos valores patriarcais com referência exclusiva ao masculino e
consequente desmoronamento do feminino implicam, sem dúvidas, nas causas dos
conflitos atuais que exigem da mulher uma transformação no âmago da sua
consciência, especificamente, no tocante às atitudes e maneiras da nossa cultura
encarar sua sexualidade. Neste sentido, entendemos que um dos caminhos a serem
seguidos com vistas a compreender melhor a construção deste feminino é a partir do
conhecimento do mito de Lilithi que pode ser um início para que as mulheres reflitam
acerca da força do feminino que vive no seu interior e, conseqüentemente, busquem
alternativas que apontem para um despertar profundo no ser mulher, na sua
sexualidade e nas riquezas que emanam deste ser provido de dom da vida, da
proteção e do prazer.
A exposição dos desejos da Beata declara o lado da sexualidade feminina
como sendo a entrada do Diabo no corpo feminino. Nessa representação de mulher,
temos o afastamento das conexões do feminino com o sagrado, com a Grande Mãe,
instaurando o caráter de mulher, bruxa e prostituta em figura diabolizada. A liberação
sexual aqui conota mulheres ligadas ao sexo como bruxaria, como abominável,
momentos ilícitos que promove a ligação com o mito de Lilith e suas representações
de imundície, degradação e copulação com o Diabo. Desta ligação temos na cena 2,
sua ilustração:
Morcego - A Beata e o diabo juntos,
quem iria acreditar?
Diabo - E o tempo corre, bebamos,
demos início ao pifão!
Beba um gole, beba outro
e eu faço a esconjuração!
Vai girar mais que o mundo!
Vai rodar mais que pião!
(p.18-19).
Com as revelações acerca de seus desejos de viver sua sexualidade a partir
da abertura dada pela ação do Diabo, e com todos os encaminhamentos que vão de
encontro a esta possibilidade, a mulher, em Charivari, aqui representada pela Beata,
confirma o erotismo feminino com aspecto pervertido e amoral aos moldes
tradicionais, estando a vivenciar momento libertino e passageiro com ar de viração,
70
comungando com a imagem demoníaca de mulher. Esta imagem vem ilustrada na
cena 2, através do comportamento da Beata:
Morcego - Já que está manifestada,
no apelo da danação,
tire os santos dos altares
pra não verem a piração!
Beata - Então carreguem as imagens
pra detrás da sacristia!
respeito é bom e eu gosto,
mas, melhor é a alegria
tira tudo que essa farra
vai até nascer o dia!
( p. 19).
Os inconvenientes dados à mulher através das qualidades de inferioridade e
danação, construídos ao longo da história e da religião, por homens e em favor
destes, felizmente ainda precisam ser refletidos com vistas a uma desconstrução. E
Lilith, o arquétipo da mulher indomada, diabolizada, e, por conseguinte, centrada nos
seus ideais de sonhos e de desejos, permite que emanem na conscientização da
força do feminino as suas possibilidades de renovação e prazer. O conhecimento
deste mito permite, consequentemente, a presença de um modelo de mulher que não
admite ser subjugada ao masculino e que também não almeja a superioridade em
detrimento ao homem. Esta igualdade é bem retratada no momento da criação,
quando Deus criou Adão, ao passo que também lhe deu a vida. Lilith acredita e
reivindica a igualdade de direitos e de liberdades à sua sexualidade.
A Beata aparece em Charivari, com a consciência voltada à Lilith em que cede
ao convite à vivência da sexualidade. Surge sob um enfoque de sodomania, de
libertinagem, da devassidão, acompanhada pelo filtro inebriante do vinho sob
inspiração do Diabo. Confirmando que a liberdade sexual para as mulheres em
Charivari vem conotado a um bacanal à luz das dionisíacas gregas que liberavam
seus instintos carnais através do vinho. A cena 2, vem concordar que a Beata
seduzida a autorizar seu erotismo, logo comunga com este propósito declarando o
que anseia:
Beata - Uma coisa ...viva... e quente?
Aí parei de respirar!
Sendo o que me vai na mente
71
por ele vou me acabar!
Roubo, peco, mato gente
- quando é que posso....agarrar?
Morcego - P. que pariu, olha lá
logo aqui, no pé do altar!
(p. 17-18).
Assim é que, desde o início da trama, a Beata declara seus desejos e
depressa resolve ceder às promessas do Diabo, envolve-se no Charivari e aproveita
para apresentar seu contentamento na possibilidade de ser mulher, amada e liberta.
Neste contexto, verificamos na cena 2, a busca dessa mulher com vistas a viver sua
sexualidade sem medo e vergonha:
Beata - Ai, amassa que me acabo!
Morcego - Bate, pisa rudemente!
Beata - Ui, ui, ui, que coisa boa,
Morcego - Depressa, vai logo em frente!
Diabo - No passo dessa danada
não há diabo que agüente!
(p. 21).
O charivari ramalhiano traz esta mulher solta, disposta a viver o sexo e o
prazer no espaço sagrado, agora dessacralizado e num tempo passageiro, de
safadeza, de perversão que se aproxima das imagens negativas da mulher criada e
estabelecida ao longo da história e da religião. Imagens estas, tão difundidas deste a
antiguidade e acentuadamente presentes na cultura dos dias atuais.
O regime da noturnidade é visto como modelo perfeito e natural da
sexualidade, em que Durand (2002) aponta a imagem da mulher valorizada
positivamente. Este regime está diretamente ligado ao retorno, e logo, ao terrestre, ao
corpo, ao solo, à Grande Mãe, ao seio da terra, à morte, à vida nova. Deste modo, a
representação do “baixo”, do “terrestre” e do “corporal” neste regime, pode ser
comparado aos mesmos propósitos de Rabelais, ou seja, baixar para erguer, retornar
para elevar-se em vida nova, em vida transformada.
72
De acordo com Bakhtin (1999), na Quarela de mulheres da tradição gurlesa, a
mulher era definida em sua ambivalência. De um lado, na cultura cômica popular esta
apresenta-se isenta de críticas que, sendo ligada ao baixo e ao tempo regenerador,
possui, portanto, um sentido positivo ligado ao que afirma Durand (2002), no regime
noturno da imagem. De outro modo, na tendência ascética da mulher, esta é definida
como a tentação da carne e devaneios do homem, com uma imagem negativa, sendo
assim, comparada ao regime diurno da imagem. Estes autores trazem à tona teorias
que discutem e esclarecem a ambigüidade das mulheres, seus contrários de positivo
e negativo e a possibilidade de compreensão das imagens que as fazem ser
representadas pela Grande Mãe, possuidora da vida e da morte, que determina os
caminhos da humanidade. Mulher constituída por uma libido lícita de ser aceita e
vivida, como também, a representação de uma mulher licenciosa, demoníaca e,
portanto, detentora de pecado, quando se lança na soltura do corpo em busca do
prazer.
Em Charivari, a Beata se apresenta com uma imagem de mulher
culturalmente construída pela negação à sexualidade. Esta canaliza suas energias
dedicando-se aos serviços da Igreja e apresenta-se como uma mulher que deseja
ascender seu potencial viril. Esta imagem de mulher traz a amostra por meio da
antítese do alto-baixo, do qual carnavalizados são suas ações na busca de burlar a
ordem e afirmar a imagem demoníaca da sexualidade feminina. É isto que o ato
transformador e libertador do Diabo faz emergir no plano da sexualidade na Beata.
3.4 As queixas da Viúva
A Viúva é uma mulher casada que, em sua existência, sofre por não ter seus
desejos realizados no casamento. Seu marido, em vida, não foi capaz de lhe
proporcionar felicidades. Esta faz do espaço da Igreja, no momento do Charivari, local
para desabafar o que viveu de negativo na vida conjugal. Assim, logo após a morte do
marido, rompe com o silêncio e renuncia sua vida de mulher pacata aos moldes
tradicionais. Evidencia sua condição de mulher que receberá do destino a
oportunidade de encontrar agora momentos rápidos de prazer, momentos breves de
alegria e possível ocasião de viver seus desejos carnais acompanhada do exótico
73
enlouquecimento inebriante do vinho
21
, verificamos que na cena 4 a Viúva entra nas
propostas do Diabo e se envolve no Charivari:
Viúva - Acode, ó gente, acode,
meu marido defuntou,
estava bom de saúde
e zástrás – se aglomerou!
Taí – duro que faz gosto
que em vida nunca ficou!
Diabo - Pois eu sou irmã das almas
e vou atender ligeiro,
entre nesse fecha-fecha
e remexa o farinheiro!
(p. 25).
Na trama, as ações da Viúva anunciam sua busca pela destruição e
renovação do mundo real. Esta destruição simbólica, segundo Bakthin (1999)
encontra-se presente também no carnaval, provando que este é um tempo invadido
pelas avessas, invadido à vida oficial e a transformando em ações de descoroações e
mudanças. Decepcionada e desacreditada da vida conjugal, a Viúva encontra espaço
propício para evadir seus desejos reprimidos e insatisfeitos. Na cena 4 verificamos
seu envolvimento:
Beata - Se está triste e penosa,
seu padre lhe dá a dica!
Diabo - Beba um pouco deste vinho,
ele é doce, amargo e pica!
Beata - Depressa lhe sobe um fogo,
não mata, mas intoxica!
Morcego - Quanto mais desanda a roda
tanto mais se prevarica! ( p. 27).
Com a intenção de trazer a Viúva para dentro da farra do Charivari, o Diabo
lhe anuncia que o Defunto seria assado na “brasa com Ferrabraz”, como condição de
pagar tudo e muito mais, que em vida deixou de realizar. A Viúva Contente pelas
promessas do Diabo que faz agora o marido-Defunto pagar pelos seus ditos. Na
21
O Vinho puro desse dia jorra ao mesmo tempo que a dança agitada das Mênades, o coro das mulheres casadas
que são suas iniciadas [...] Sangue da terra, sangue do céu, o vinho tem a cor do sangue dos homens. Também a
mesma alquimia, pois tão logo incorporado, ele se transforma no organismo em um sangue novo. E quando o
vinho puro se mistura ao sangue de uma vítima animal ou humana, vem selar os juramentos mais temíveis...
(DETIENNE, 1988, p. 65 e 73).
74
cena 5, vemos que a Viúva enche de insulto o maldito e declara assim, todo seu
desprezo:
Viúva - Ai, que esta alma quer missa,
Mas eu lhe dou uma ova!
Camumbembe, cafageste,
Nossa briga se renova!
Eu cuspo na sua cara
E cago na sua cova
[...]
Viúva - Pra cidade de pé juntos
vai-se o defunto levar!
Seiscentos milhões de diabos
vão empurrando pra lá!
Inhaca, fedor de morto
já está boiando no ar!
[...]
Defunto - Eu não vou pro cemitério!
Eu não vou me enterrar!
Viúva - Vai! Defunto não tem gosto!
Vai pra onde se levar!
( p. 32 e 33).
Arriscando substituir seu riso abstrato e privado por alegrias verdadeiras que
expressem o que de fato sente e deseja, esta mulher atraída pelo Diabo, vê–se
satisfeita ao sentir seu lado instintivo provocado e alimentado diante das recompensas
postas pelo enganador. A Viúva descobrindo as traições do companheiro, sofre
porque sai do mundo das ilusões, revela-se, nega seu abandono, tornando-se
também sodomista e aceita as acusações declaradas sobre o marido, bem ilustrada
na cena 4, vejamos:
Sacristão - Teu marido é galo cego
não sobe mais em poleiro!
Morcego - Galo nunca foi na vida
mas amava um galinheiro!
Beata - Sobe, desce, sobe, desce,
vai à frente, vai atrás,
Sacristão - galo cego no poleiro
não sobe nem desce mais.
[...]
75
Sacristão - Mas ainda se gabava
de ser um macho arretado,
Diabo - Pois em vida só vivia
A cheirar cu-de-veado!
(p. 25 e 26).
Da autorizada união homem mulher surge, então, o casamento, o que se
tornou responsável pela reprodução biológica da família, lhes garantindo papel de
relevo na estabilidade da ordem social, dos interesses políticos e, sobretudo, em
afirmar a existência de um espaço onde não havia lugar para a paixão, a fantasia ou o
prazer, sendo, pois, por intermédio do casamento que, os religiosos tentaram
controlar e disciplinar a sexualidade. Segundo Richard (1993, p. 39), a Igreja
conseguia regulamentar a prática do sexo no leito conjugal estabelecendo proibições,
tais como: “proibindo em dias de festas religiosas e jejum (havia 273 no século VII,
embora estivesse impura) durante a menstruação, durante a gravidez, durante o
aleitamento e por quarenta dias após o parto”. Por intermédio do casamento,
esperava-se controlar a sexualidade e lutar contra a fornicação e estabelecer o
controle do comportamento da sociedade.
Lutero e Calvino como representantes da Reforma Protestante expressam
uma enorme preocupação com o corpo e o desejo sexual e para tanto, recomenda o
casamento em vez do celibato. Estes acreditavam que o homem não era dotado da
capacidade de se manter imune aos desejos da carne e por extensão ao contato com
as mulheres. Sobre a recomendação desses religiosos ao casamento, Schott (1996, p
103) escreve; “Lutero descreve o casamento como um ‘remédio’, um “hospital para os
doentes”. Calvino declara que Deus ordenou o casamento como “remédio necessário
para impedir que mergulhemos na lascívia irrefreada”.
Na visão de Tomás de Aquino, outro religioso da época, a mulher era
detentora da função gerativa por ser criada apenas com a finalidade da reprodução.
Na condição de ter sido criada da costela do homem deveria ser, portanto, inferior e
atribuída das condições de luxúria, subordinação e passividade. Tomás atribuía ao
homem a função nobre do pensamento, das operações da razão e do princípio de
existência humana por ter sido criado primeiro a imagem e semelhança do criador.
Associava ao masculino as qualidades de ativo e dominante.
76
O desejo destrói o homem e o liberta da salvação e à mulher, como
imperadora de desejo por excelência, era associada ao mal, a danação eterna, sendo
o ser em que residia o pecado. Ao construir esta imagem de mulher, os moralistas
estabeleciam a inferioridade feminina como também estabelecia a superioridade
natural dos homens. A utilização da imagem arquétipa de Eva, em conseqüência da
sedução de satã, teve profunda ressonância e forte efeito moral para confirmar a
inferioridade do sexo feminino. Na autorização da mulher como mãe, e por outro lado,
como a promotora de obstáculos à retidão masculina, considera que esta aparece,
portanto, como o sentido feminino ligado ao sagrado quando destinada à procriação e
quanto ao prazer da carne, apresenta-se como um lado profano e condenado pela
Igreja.
Educadas para guardar a castidade como forma de honrar a família e a
salvação da alma, as mulheres eram a todo tempo incentivadas para se afastarem
dos possíveis vícios da carne. A partir da instituição do casamento pela Igreja, a
maternidade e o papel de boa esposa passaram a ser exaltados assim como, a
criação da imagem tríade da mulher em Eva-Maria-Madalena passou a ser
determinante de salvação para as mulheres. Os três modelos femininos de pecadora-
santa-arrependida, estariam, pois, salvo com o matrimônio, pois, através desse, a
mulher gozaria de uma vida casta sob o comando do marido que deveria orientar e
cobrar desta, a vivência da tríade do feminino.
As condições de ser mulher, segundo Schott (1996), implicavam ser dona de
casa, governada pelo pai, pelo marido e pelo sogro. Excluídas das funções públicas,
políticas e administrativas, além de não poder exercer os ofícios religiosos. Nos
termos destas classificações, uma determinante das razões do estado em
detrimento dos desejos individuais do sexo feminino, que além da obrigação de provar
a sua virgindade teria também que conviver sem afeto. Nestas classificações, é
interessante lembrar da forma dual como Santo Agostinho concebia a mulher que ora
era vista como ser espiritual, ora como ser físico detentora, pois, de qualidades
conflitantes. Agostinho aconselhava os homens a amar a sua mulher na sua
qualidade de criatura de Deus renovada, mas odiar nesta, a natureza sexual.
Neste entendimento, os moldes tradicionais do casamento determinava a
sexualidade para homens alicerçada em privilégios e liberdade e para as mulheres
era destinado à disciplinada, obrigação, medo e desamor. Assegurando estas
determinações Aires (1985 p.135/139):
77
No próprio ato sexual ele era supostamente ativo, portanto superior à mulher,
que, supunha-se, devia se submeter aos seus assaltos com passividade [...] A
união sexual era legítima, dentro do próprio casamento, se fosse realizada
para uma boa finalidade, isto é, para gerar filhos, ou para dar ao njuge o
que lhe havíamos prometido no contrato do casamento
.
A mulher simbolicamente representada pela Viúva tenta mudar sua trajetória
de vida, expressando esta mudança no âmbito da sua sexualidade no momento
festivo do Charivari. Nessa temporada, externa seu potencial feminino na busca de
compreender que “Urge que cai por terra ideias retrógradas de superioridade
masculina, como é urgente o reconhecimento e aceitação da mulher como ser
humano com igual possibilidade de atuação no mundo...” (TAVARES, 2008, p. 9).
A representação desta personagem lembra o quanto é presente nos nossos
dias a abominação desta imagem de mulher que vive um casamento com sinônimo de
prisão, de cativeiro. A viúva agora libertada revela a real face das mulheres que
almejam nas suas relações uma vida de igualdade, de respeito e de aceitação das
diferenças, para então, usufruir uma vida sexual equilibrada, ou seja, uma vida sexual
de prazer também para as mulheres com sentido, com qualidade, pois, como bem diz
(FLANDRIN, 1988, p.13):
Todo mundo tem uma vida sexual. O problema é saber de que ela consiste,
isto é, que formas toma a libido sob a dupla influência da repressão e do
erótico, que mais ou menos abertamente existem em todas as culturas; como,
então, o desejo sexual é estruturado, em que medida ele atinge seus fins, e o
que resulta para o sujeito e para os objetos de seu desejo.
A Viúva quando descobre a traição, sente-se ferida e deixa eclodir seus
sentimentos de cólera e de ira. Sua vingança revela uma indignação quanto à vida
marital e ao marido. Ela rompe com o silêncio e com a passividade e se sobrepõe ao
poder masculino, que se revela em Charivari, inábil, impotente e prepotente, conforme
verificamos na cena 4 que segue:
Sacristão - Pois não é que a viúva
entrou na maracutáia?
Beata - O defunto ainda fresco
e ela já na gandaia?
Sacristão - Que fogo danado é esse?
crie vergonha, abaixe a saia!
78
Morcego - Já chegou manifestada
essa horrorosa catraia!
(p.27).
Muraro (2000) confirma que o masculino busca perpetuar na cultura, o
convencimento de inferioridade da mulher em relação ao homem. Desta ideologia,
surge a necessidade de que é preciso precaver-se de todas as maneiras contra a
mulher e, com isso, impedi-la de participar do lado prazeroso da vida sem ônus e
rotulações.
Não contrapondo aos legados culturais dados à sexualidade feminina, as
mulheres de Lourdes Ramalho, nessa obra, permanecem na condição de frágil a
guerreira, de submissa a audaciosa, de pacata a assumida. A autora retrata as
ambiguidades de suas mulheres com o intuito de afirmá-las como possível de
superação de algo melhor. Aqui, suas mulheres são instigadas ao sexo orgiástico e ao
bacanal. Seu erotismo confirma a imagem demoníaca de mulher que na ocasião do
charivari ramalhiano possue o livre-arbítrio, o respeito e a igualdade de direitos a viver
a sua sexualidade sem prejuízos e limitações ditados ao longo da história da Igreja e
da religião. Suas mulheres procuram ser revestida do espírito benéfico de liberdade
lilithiana e buscam num espaço-tempo temporário do Charivari incorporar o aspecto
positivo de sexualidade definido por Durand (2002), no regime noturno da imagem.
No momento do charivari ramalhiano as duas mulheres não cedem as normas
moralistas da sociedade, empregada de costumes desenvolvidos ao longo da cultura
do patriarcado. Deste modo, podemos verificar no momento festivo construído nesse
enredo que as mulheres representadas pela Beata e pela Viúva abraçam
verdadeiramente a causa da liberdade no estado de erotismo feminino acentuado do
que lhe é positivo. Acreditando que é possível contornar a história de vida quando
confiamos em nosso potencial e deixamos de lado as amarras da sociedade
preconceituosa em que todo direito emana do masculino. Portanto, as tentativas de
subversões da ordem estabelecida pelos homens para o “segundo sexo” são
festejadas em Charivari num ritmo de soltura extraordinário e traz à mostra as
possibilidades de sempre procurarmos vivenciar nossos desejos e prazeres como
determinantes da alegria e da vida do nosso corpo/mente, na crença de que tudo é
possível quando nos lançamos a transpor nossos receios e prisões em nome da
nossa almejada e tão temida sexualidade. De ganho temos que, na obra em foco, a
situação ganha um novo rumo e as mulheres ramalhianas encontraram a
79
possibilidade de rever sua condição de direito a viver o prazer embora
momentaneamente.
3. 5 – O Sacristão entra no Charivari
O Sacristão apresenta-se como um jovem abnegado aos serviços litúrgicos,
ao passo que faz do espaço da Igreja um ambiente para viver às escondidas sua
opção homossexual. De moço bom e exemplo de cristão dedicado não tem nada, pois
vive um mundo de scaras e falsidades. O início da sua exposição no Charivari é
comentada na cena 3:
Morcego - Chega o desmancha prazeres,
turrão e mau camarada,
quando me vê só me trata
no tapa, na vassourada!
[...]
Diabo - Venha cá, entre na dança,
seu projeto de macaco,
na dança do coça-coça,
com mil pulgas no sovaco,
Beata - mil lacrais no trazeiro,
Morcego - mil sangue-sugas no saco
Sacristão - E merda vira boné
porque dessa eu não escapo!
(p. 21-22).
A condição de assumir sua preferência sexual está distante de acontecer
livremente. Mas, diante dos fatos reveladores, acaba por aceitar que todos saibam e
discutam suas escolhas de “vira folha homem e mulher!”. Este aproveita o momento
do Charivari para cair na curtição, empregando de forma íntima palavras ordinárias,
permitindo assim, a destruição da hierarquia de tudo que é pensado e dito. Neste
momento, percebemos uma relação na linguagem que segundo Bakhtin (1999, p.
368) “Reorganiza num tom novo, francamente familiar; as palavras afetuosas parecem
convencionais e falsas, apagadas, unilaterais e, sobretudo incompletas [...] as
palavras começam a orientar-se para essa plenitude ambivalente”. As revelações
sobre o Sacristão continuam na cena 3, a ser reveladas:
80
Sacristão - Me ajude, S. Ligeirinho,
deste mal eu não escapo
[...]
Diabo - Coça, esquenta a fogueira,
frescalhão, frouxo, fruteiro,
Beata - Folgozão, fogo, fogacho,
formigão, fuá, fuleiro,
Morcego - Fuão, fusué, frutico,
friorento, frioleiro!
Beata - Cara de mula-de-padre
na amanhecença do dia,
Morcego - santidade pelo avesso
sofrendo de tresvalia,
Diabo - Que vai dando o às de copas
dizendo que é liturgia!
(p. 23).
A atuação deste personagem é exemplo de que o homem vive duas vidas:
uma oficial, séria e sombria, subordinada a hierarquias, dogmatismo devoções e
dissimulação e outra carnavalesca, solta, risonha, com profanações ao sagrado,
descidas e indecências com livre contato entre pessoas e objetos, em que tudo passa
a ser familiar e permitido. Entendendo este contrário é mister citar que:
A cultura popular do passado esforçou-se sempre, em todas as fases da sua
longa evolução, em vencer pelo riso, em desmistificar, traduzir na língua do
“baixo” material e corporal (na sua acepção ambivalente) os pensamentos, a
imagem e símbolos cruciais das culturas oficiais [...] Que têm por efeito liberar
do medo, aproximar o mundo do homem, facilitar o tempo e seu curso,
transformando-o em tempo alegre de alternância e renovações (BAKHTIN,
1999, p. 345 e 346).
Usando do critério da dissimulação, o Sacristão mesmo transgredindo a
ordem oficialmente imposta pela cultura sexual, vive numa troca de papéis,
adaptando-se a situação e ao jogo que é proposto que dificilmente seria pronunciado
espontaneamente. Sua atuação assemelha-se a uma das características da sátira
menipéia que diz sobre “cenas de escândalos, de comportamento excêntrico, de
discurso e declarações inoportunas [...] As violações da marcha universalmente aceita
e comum dos acontecimentos” (VASCONCELOS, 1996, p. 25). Na cena 3, continua a
revelação desse perfil ao Sacristão:
81
Morcego - Sacristão velho, amarelo,
que nem preso de cadeia,
cara de monge donzelo,
deixa de coceira feia,
[...]
Defunto - Em pastoril e lapinha
da festança, no vai-vem,
vestido de Mariquinha
esse sacrista também
fazia sua fezinha
oferecendo o vintém!
(p.22- 0).
Para a sociedade antiga e medieval, o sujeito ideal é aquele que consegue
dominar seus impulsos eróticos na relação com o outro, transformando-se na figura
de um sujeito às voltas com suspeitas e temores quanto aos ardis da libido. Loyola
(1998, p. 134) comenta que, para Foucault, “a libido não constitui um obstáculo
externo à vontade. Ela é uma parte da vontade, um componente interno e não algo
que lhe é exterior”. Neste contexto, podemos então afirmar que o desejo sexual do
sujeito contemporâneo deriva, em alguma medida, da interpretação cristã da libido e
de seu papel na formação da subjetividade. Importa, portanto, rever as vontades
internas, controlar sem repouso os sentimentos e sensações libidinais responsáveis
pela degradação da vontade.
O sentido da sexualidade em nossa cultura cristã passa, portanto, pelo crivo
da Igreja, das histórias dos santos e, por conseguinte, pelo pensamento de Santo
Agostinho que serviu de exemplo da virada sexual ocorrida entre a Antiguidade e a
Idade Média. Este fez uma descrição horrificante do ato sexual, uma espécie de
êxtase, em que o homem perde todo o controle de si mesmo, entregando-se aos
desejos, misturados às paixões e aos apetites carnais, chegando então à volúpia. Em
consonância com a descrição de Santo Agostinho, Loyola (1998, p. 144) comenta
que, “o cristão com vontade sexual dominada pela libido, apresenta-se assim: como
um homem “doente”, “rebelde”, “fraco” e “mau”, por natureza, necessitando não
somente de orientação dos ministros da Igreja, mas também do poder secular”.
Este personagem vive num mundo onde tudo se agrega num fazer de
contrastes, de comportamentos moralistas reprimidos. Com estas prerrogativas, deve
o sexo ser exercido com censuras, conforme os ditames da cultura. Confirmando que
a cultura sexual nos presenteia com estes contrastes, temos:
82
A verdadeira sexualidade da pessoa, ou orientação sexual, pode ser vivida e
celebrada ou reprimida e escondida; pode ser buscada através da
introspecção, através de encontros com diferente parceiros sexuais e através
de sessões de psicanálise (TAYLOR, 1997, p.13).
Nesta esteira de pensamento, somos obrigados a aplicar padrões éticos e
morais da nossa sociedade sob nossos desejos, mesmo que o preço para nossa
resignação seja a repressão e suas conseqüências. Precisamos, pois, da
conscientização do espaço relevante que o sexo e suas imposições têm ocupado na
história e na religião e, por conseguinte, no domínio da cultura. Cultura esta que
define o que é lícito para o cidadão. Para o entendimento desta construção ética e
moral, temos o estudo do sexo na pré-história que traz sabiamente este percurso:
Tomando como ponto de partida 5.000 anos atrás, é possível documentar
uma grande diversidade na sexualidade humana na Eurásia: bestialidade,
homossexualidade, prostituição (enfaticamente, o é a profissão mais
antiga), travestismo (masculino e feminino), transexualidade, hormonais,
sadomasoquismo...[...] Essa variação foi encoberta quando os valores
cristãos foram adotados publicamente, depois que o ideal cavalheiresco de
amor romântico e de preferência não consumado deu origem a uma visão de
sexo físico como essencialmente pecaminoso e proibido, da qual o legado
perdura (TAYLOR, 1997, p. 17).
A questão da homossexualidade, aqui abordada pelo Sacristão, traz à tona,
reflexões pertinentes acerca da opressão social em que estes sujeitos estão expostos,
como também oportuniza observar a expansão deste grupo, no tocante a firmar sua
identidade em detrimento ao que a sociedade e todos os seus aspectos culturais
tentam incessantemente promover e oficializar. Philippe Áries, em Sexualidades
Ocidentais, ilustra estas reflexões quando fala que:
Os homossexuais formam hoje um grupo coerente, por certo ainda marginal,
mas que tomou consciência de uma espécie de identidade: ele reivindica
diretos contra uma sociedade dominante que ainda não o aceita [...] Mas que
não está mais segura, e que esta até abalada em suas certezas.[...] Em
resumo, os homossexuais estão se fazendo reconhecer, e não faltam
moralistas conservadores para se indignarem com sua audácia e com a falta
de energia das resistências (ARIÈS, 1985, p. 77 e 78).
O Sacristão que “puro e santo se dizia” definitivamente entra na festa do
Charivari assumindo sua homossexualidade. Sua atitude vem contrapor-se a
degradação sexual tão difundida pelos legados oficiais que fazem dos impulsos
eróticos um mal horrível e abominável e o charivari ramalhiano vem propor uma
soltura permitida, aceita e festejada.
83
3. 6 - O Defunto: o enganador revelado
Este personagem representa o traço metafísico, a ligação entre
carnavalizado-real, um espiritual símbolo da prática da indulgência católica. Como
sabemos, este tratamento do plano sobrenatural é bastante comum nos
funcionamentos dos autos, presente nos teatros medievais, no qual Charivari se
espelha ao representar tal personagem. Na cena 5 temos um diálogo que informa a
ligação desse personagem morto, mas ainda ligado ao mundo dos viventes:
Diabo - Como salvar João Matreiro
se a alma ao diabo vendeu?
[...]
Defunto - Pensam que estando morto
não posso me defender?
Eu conto os podres de todos,
descubro, dê no que der!
Começo pelo Sacristão
vira folha – homem e mulher!
(p.28-29).
O Defunto, homem que em vida não conseguiu comportamento adequado,
sendo desonesto, vendia sua em troca da salvação, além de sempre conseguir um
jeito de se dar bem com o sacristão e as beatas da freguesia na busca de viver suas
fantasias sexuais. Na cena 5, verificamos algumas de suas ações do espaço sagrado:
Defunto - Padre amigo, meus pecados
é preciso perdoar!
Comprei dez milhões de missas,
dei vinte santos pro altar,
paguei bilhões de indulgências,
mil hinos mandei cantar...
[...]
Defunto - Trilhões de jaculatórias
paguei caro pra rezar!
Rebilhões de novenários!
Fogos saltei a fartar!
E eis que é chegada a hora
de me remir e salvar!
[...]
Sacristão - Roubou a caixa das almas,
milhões de frangos comeu!
Viúva - Vai pagar com juro e mora
os crimes que cometeu!
(p. 28).
84
Este segue no Charivari descobrindo que todas as suas intenções
continuamente em busca de recompensas foram conhecidas no plano terreno e
sobrenatural. Prova disso, é a permanente exposição, comentários, críticas e piadas
sobre seus comportamentos. Na cena 5, temos a continuidade das declarações
acerca do seu comportamento:
Sacristão - Pois no meio da novena
João Enrolão, bicho mau,
pras mulheres assustadas
balançava o berimbau,
dizendo – “dou cacetada!
Mato a cobra e mostro o pau!”
Diabo - Tudo aqui é semvergonha,
oportunista e lalau!
Viúva - Como tirador de esprito
João Pachola se arrumou,
Beata - Fez-se de pai de terceiro,
e muita gente enganou,
Sacristão - tremelicando o trazeiro,
cantando hino e louvor!
(p.30).
De acordo com os seus feitos em vida, verificamos que este atua como se
não estivesse arraigado ao erro, não apresenta receios e medos do que pode advir
das conseqüências dos seus inventos. O que faz seguir é o êxito que promove suas
ações de desonesto. O tempo em Charivari marcava concessão de liberdade ao
Defunto com as declarações que em vida jamais deveriam ser publicadas e
encaradas, ou seja, a festa oportunizada com o Charivari, criava um mundo de
valores atrelado a declarações, liberdades e verdades. Assim, o Defunto
desvencilhava-se de uma vida de encarceramento, de enganos, deste modo,
amarrada a valores rotineiros da vida oficial. Portanto, era criado para este
personagem, um mundo carnavalizado, invertido, onde os valores mudam e as
possibilidades de vida melhor são possíveis. Neste festim, a vida passa a ser
entendida como, “ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa
disso, um momento extraordinário é inventado. Ou seja, como toda festa, o carnaval
cria uma situação em que certas coisas são possíveis” (DAMATTA, 1986, p. 71).
85
Nesta trama, suas investidas acabam por merecer repúdios e ameaças. Como pode
ser comprovado ainda na cena 5:
Viúva - E agora, de banda podre
Vai comer este safado!
Comer mosca, comer brasa,
Comer amargo bocado!
Beata - Comer cinza, comer terra!
Sacristão - Comer formiga, o danado!
(p.34).
Entre os desejos carnais, o sexo era o mais rebelde e o mais persistente,
sendo a melhor prova da discórdia interna ao homem e do destino de sofrimento
reservado à espécie humana. Diante do sexo residia a rebeldia universal da qual o
bom cristão buscava dobrar suas vontades na direção de boas ações evitando
cometer pecados por orgulho, ignorância e, sobretudo, pela fraqueza da carne, que
muito frequentemente era praticado em meio a lamentos e gemidos. Toda essa
vigilância buscava a perfeição moral e a distância dos castigos e ameaças do fogo do
inferno para qual a vivência da vontade carnal poderia conduzir o indivíduo.
Sobre o eterno receio do homem ao sexo e seus mistérios, comenta Ribeiro
(2006, p. 82)
(...) ainda que o sexo seja a sensação natural mais agradável e mais antiga
que o homem descobriu seus mitos e seus daimons nunca foram vencidos,
nem seus tabus totalmente violados, muito pelo contrário, o sexo, como a
morte, é uma terra de mistérios cheia de fantasmas e monstros, fantasias e
proibições, que desafia a alma humana.
Santo Agostinho distingue o desejo da relação sexual como uma associação
com total destituição de desejo, propondo que o sexo deve ser despersonalizado, sem
sentimento e por este entendimento completamente instrumental, usado com fins
único da procriação. Ele atribuía os perigos da sexualidade à mulher que por não
possuir domínio sobre a carne, deveria tornar-se subordinada aos homens de forma
natural e louvável. Com esta percepção de mulher, o homem alivia seus ombros da
86
tentação e do pecado e se purifica, ao passo que acalenta o conflito existente na
sexualidade masculina ao exigir controle das mulheres.
A Igreja associava o sexo ilícito ao Diabo e sua legião de demônio, que
assolavam o mundo tentando os homens, causando danos aos cristãos. Diante da
abominação ao sexo, cabia ao homem ser casto e a mulher virgem. A negação do
prazer, para ambos os sexos, deveria acontecer de forma voluntária. Tratando do
extremo entendimento medieval acerca do sexo, Richards (1993) afirma que O
marido excessivamente desejoso da esposa, adúltero aos olhos da igreja era aos
olhos dos outros homens um fraco, um imaturo, estabelecendo por fim uma aguda
desconfiança em relação ao prazer no centro da moral cristã”.
Nas conhecidas expressões de: “sexo como mal necessário” e do “sexo como
uso necessário à procriação” percebemos de imediato, suas diferentes funções e
acesso para homens e mulheres desde a antiguidade. Os contratos de convivência no
tocante à sexualidade, para os indivíduos, sempre apresentaram mecanismos de
convivência no sentido de manter a ordem e a imagem de pureza em que o corpo é
desprezado e o espírito elevado. Neste sentido, a união de corpo e espírito inexiste na
constituição do ser, por ser o corpo fonte de pecado e o espírito única fonte de
salvação e semelhança ao divino. Sabemos que este discurso foi redigido por homens
na busca de forçosamente autorizar o sexo como abominável e atribuição pecaminosa
especificamente à mulher favorecendo-lhe o eterno sentimento de culpa pelo pecado.
As relações conjugais nos termos apontados nesta obra acabam por subjugar a
mulher a viver de forma reprimida, sem doçuras e encantamentos. Cabendo a esta,
apenas o espaço de dona do lar e mãe dedicada, excluída do prazer ao lado do
cônjuge.
Diante dessas regras, libera-se para o homem a prática do sexo como meio
de aliviar seus instintos eróticos, enquanto que para a mulher cabe a recusa e vigília
de tais instintos. À frente deste modelo, o homem sempre foi beneficiado com uma
prática ativa dentro e fora do casamento, o que lhe possibilita de lucro, a
superioridade no âmbito do prazer em detrimento do feminino. A cena 5 vem
confirmar que o Defunto sempre se serviu dessas prerrogativas quanto ao sexo e
assanhado era continuamente:
87
Morcego - Todo mundo aqui não passa
de cavalo batizado!
Beata - Mas na andanças da vida
Só sonha com esfregado!
Defunto - Pois mesmo depois de morto
É bom estar agarrado!
(p.32).
O Defunto aqui representa o grande sedutor que justifica a virilidade
masculina que é tão estimulada e autorizada na nossa cultura. Como resultado desta
autorização, a infidelidade para o homem acaba por lhe trazer felicidade e deleite,
além de comprovar seu poder de masculino. No caso do Defunto, este procurava
satisfazer-se com as beatas e com o sacristão, infringindo, desta forma, a moral cristã
por praticar sexo com pessoas das quais são cobradas castidade e virgindade.
A trajetória de vida deste personagem era marcada por vontades e
necessidades de sempre usar de estratégias sórdidas para driblar os obstáculos e
conseguir sair-se bem das situações. Seus desembaraços e destrezas que em vida
empreendeu, eram agora exibidos, chacoteados e invalidados com a sua morte. A
cena 5 ilustra bem seus feitos:
Viúva - Foi muito dinheiro à toa
de nada valeu gastar
[...]
Morcego - o pode entrar na glória,
S. Pedro não vai deixar!
[...]
Morcego - E ganhou muito dinheiro
mas esse o Fute levou!
(p. 28-31).
Nos dias atuais, vemos que a cultura se encarregou de oficializar e permitir a
presença do que foi construído na antiguidade, no tocante ao sexo. O que é expresso
no comportamento do homem, aqui representado pelo Defunto, é prova cabível de tal
presença na nossa sociedade. Sobre as prerrogativas dada à atividade sexual para
homens e mulheres comenta Áries (1985, p. 126) “A esfera da mulher a encerra nos
limites de seu espaço interior, enquanto o sexo conquistador do homem o coloca
desde o início em um mais vasto e mais agressivo palco de atividade”. Assegurando
as diferenças nas atividades para ambos os sexos, Taylor (1997, p.7) explica que
88
“certas condutas masculinas o justificadas pelo fato do homem ser um caçador
natural, uma criatura potencialmente promíscua e inventiva que as mulheres tentam
mas não conseguem controlar”. O personagem descrito assegura, portanto, uma
relação pervertida e justificada por visões tradicionais de relação que não prioriza a
igualdade dos sexos, nem considera as sublimes funções que a instituição casamento
deve e pode promover para homens e mulheres, além da autorizada, procriação. E
o Charivari ramalhiano, montado nos termos de liberdade e alegria promove uma
revisão nesse modelo “perfeito” e natural de sexualidade.
3. 7 – O Padre da freguesia – entre o sexo e as unções
Na sequência do enredo, o Padre encontra na Igreja fiéis abusados vivendo
em plena vadiação seguida do riso diabólico numa manifestação de insulto ao divino.
Todos acompanhados do vinho, da dança, da sica e da orgia com exposição
liberada dos pecados em tom de alívio. O Padre a princípio fica na tentativa de manter
a aparência de homem fiel ao evangelho, relutando com a exposição que seu espaço
sagrado é vitimado. O início da cena 6, traz sua perplexidade:
Padre - Mas que estrupiço é este
que tanta esbodegação?
Roubaram a minha batina
me deixaram em ceroulão?
Diabo - São os vendilhões do templo
em renegociação!
[...]
Padre - Mas logo aqui na capela?
É uma violação!
Diabo - É o jeito mais moderno
de se fazer oração!
[...]
Padre - Pois chamem os santo, - exijo
que dêem uma explicação!
por fazerem da capela
palco de vadiação
(p.35-37).
Na ocasião, o Padre se sem limites e condições de abafar o que se passa
ali. Então, ele aceita e até aproveita a festa que se realizava na Igreja, assim como,
verificava sua vida sendo posta à mostra no momento do Charivari. As suas atitudes
89
anulavam seu juramento de homem religioso, casto e honesto, ante as regras oficiais
da Igreja Católica. Com isso, o Padre se liberta do compromisso celibatário e revela
aspectos naturais da conduta humana o que o aproxima com o que reza a
cosmovisão carnavalesca, numa inversão de papeis típica da sátira menipéia. O
Padre ao ser conduzido pelo Diabo, evidencia a característica carnavalesca do
destronamento e se mostra envolvido na festa. Seu pleno envolvimento na festa vem
declarado na cena 6, que segue:
Padre - Ai, que estou maquiavélico,
Não sei se vivo ou se morro,
entrei na parafuseta,
pulo, danço, grito corro
Diabo - Contente que só msoquito
chupando cu de cachorro!
[...]
Padre - Estou paranóicozinho!
[...]
Padre - A minha parte viril
está fazendo carreira
em busca da feminil !
(p. 43).
A Igreja condenava todo amor profano como contrário ao amor sagrado.
Sendo todo contato físico que levasse ao sexo motivo de abominação. O celibato era
superior a tudo, inclusive ao próprio casamento. O sexo conjugal era considerado uma
aventura constrangedora. O celibato, por sua vez, não favorecia ligações mundanas,
ao passo que o casamento provocava prejuízo à devoção ao Senhor. Perante a
abominação ao sexo, exigia-se que o homem fosse casto e a mulher virgem.
Sabemos que a moralidade cristã sempre revestiu de incorruptibilidade
religiosa e social os seus representantes que, por serem humanos também, eram
corruptíveis. Prova disso é que, mesmo empenhados nos serviços da Igreja e
orientados a manter a castidade plena, muitos clérigos não conseguiam cumprir seus
votos de continência, expressando seus desejos carnais.
Tannahill (1983, p. 156) comunga com este fato, quando afirma que “a tarefa
de impor castidade a homens que não eram ascéticos por natureza, finalmente
revelou-se além do poder da Igreja”. A cena 6 confirma que a conduta rotineira desse
personagem representa o poder inoperante da Igreja e, portanto, a sua degradação.
90
Diabo - Seu padreco presepeiro,
seu comilão de primeira,
tire logo esse disfarce
e caia na gafieira!
Sacristão - De dia come petisco
e de noite a cozinheira!
Morcego - É a reima do bicho homem
a cair na bandalheira!
Beata - E dança santo com santo,
Cada qual mais agarrado!
Os anjos de cara suja
Com o padre transviado!
(p.40).
Confirmando este fato, o Padre expressa seus desejos soltando-se das
amarras da religião e permitindo uma desforra com o Charivari através do uso do
vinho e, por conseguinte, de toda alegria dionisíaca. Deste deus dionisíaco, Ribeiro
(2006, p.88) revela “Dionísio, o deus da morte; é um vândalo que licencia os excessos
carnais, a convulsão erótica”. Este personagem permite para si e para todos a
realização simbólica dos desejos e dos instintos agora não controlados. Ainda na
cena 6, percebemos que, invadido pela embriaguez, este traz a alegria de viver risos
sem entraves com tom de alívio e comemorações:
Sacristão - Beba um gole deste vinho
Pra fazer o eu sermão!
[...]
Padre - Meu vinho? – Que desaforo!
É uma profanação!
Sacristão - Beba um golito, outro gole!
Beata - E agora mais um golão!
Diabo - E tome a bênção a macaca!
Chame o diabo de patrão!
[...]
Morcego - No vinho está a verdade
e a esculhambação!
(p.35, 36 e 37).
A ação do Padre confirma o propósito do Charivari em pôr o mundo de cabeça
para baixo, degradar, dessacralizar, inventar a ordem do mundo através do riso e do
deboche, uma revelação de convenções, um tempo festivo de emprego das faces à
sátira menipéia e, portanto, da carnavalização, já que:
91
A carnavalização e a sátira menipéia se assentam em bases da literatura
cristã antiga, que corresponde o evangelho, os feitos dos apóstolos, o
apocalipse e a hagiografia dos santos e mártires. Estes gêneros estão
relacionados à aretologia antiga que, nos séculos primos, se desenvolveu na
órbita da sátira menipéia, das síncrises, dialógicas cristãs clássicas e das
oposições da cistantade: tentado/tentador, crente/ateu, sacro/profano,
justo/pecador, puro/impuro, mendigo/rico, imaculado/maculado cristão/fariseu,
apóstolo/pagão etc (VASCONCELOS 1996, p 45).
O Diabo conduz todos a desordem, põe o ambiente de cabeça para baixo,
inspira a orgia. As figuras pacatas, melancólicas, virgem, castas, submissas,
simuladas e religiosas o degradadas ao baixo, ao desconhecido, para então,
mergulhar no seu espaço real. A igreja não é o ambiente autêntico e verdadeiro para
esta ação porque, segundo Vasconcelos (1996, p. 26), “as aventuras verdadeiras na
Terra o passadas e vividas nos bordéis, covis de ladrões, nas estradas, tabernas,
feiras, prisões, orgias eróticas dos cultos secretos e até nas celebrações de missa e
orgia negras”.
A cena 6 revela que Charivari carnavaliza todos os valores sagrados dentro
daquele ambiente de imagens, danças, músicas, santos, homilia, vinho etc. Neste
clima festivo, os instintos são partilhados e a sexualidade sem freios é liberada
atrelada ao riso, ao obsceno e ao permitido, numa derrisão generalizada diante de um
mundo invertido:
Padre - Vamos rezar um rosário
com seus mistérios gozozos!
Sacristão - E rezar um novenário
com os mistérios gloriosos!
Beata - Usar um escapulário
com os mistérios amorosos!
Morcego - E de mistérios em mistério
o ficando mais fogosos!
[...]
Beata - Opressores e oprimidos
sem muitas condenações!
Sacristão - Liturgia dos sentidos
no delírio das paixões!
(p. 38, 39 e 45).
No charivari de Lourdes Ramalho, presenciamos uma festa adversa aos
ditames do charivari medieval em que a possibilidade de momentaneamente ser
92
onipotente é certa. Quem faz valer a norma é o individuo que se promove como liberto
e dono de si, destituído de limitações, o que faz os pensamentos serem expostos no
tempo passageiro do saturnal montado no charivari ramalhiano. Este surge
anunciando uma festa contemporânea generalizada de derrisão diante de um mundo
de amarguras e pessimismo. Nesta manifestação, os delírios e as pretensões
verdadeiras são publicadas no entoar da música acompanhada por corpos libertos
que bailam ao sabor de livre-arbítrio. A imagem do corpo passa a ser um movimento
representando um lado grotesco e procriador entendido por Bakhtin (1999, p. 277),
que “está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro
corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele”: Desta feita, a
autora se propõe a ressignificar o contexto do charivari medieval trazendo neste
enredo a justificativa da vida alicerçada na alegria e no prazer. Trata-se de
metamorfosear o homem retirando-o de um cotidiano alienante e sisudo para um
mundo lúdico contemporâneo. O que acontece na cena 6 revela a intenção autentica
do Charivari:
Diabo - Ora isto é penitência
pra remissão dos pecados,
é a ressurreição da carne
dos mistérios afogados
dos que estavam enrustidos
com os instintos amarrados!
[...]
Diabo - Evoéh! E viva a vida!
Padre - E o charivari também!
(p. 37-45).
Charivari fala da participação do Diabo e de suas peripécias junto ao
Morcego, as mulheres representadas pela Beata e a Viúva, o Defunto que traz o
mundo masculino à tona e os religiosos abordados aqui, pelo sacristão e em especial
pelo Padre. As representações destes personagens marcam uma exposição de
desejos carnais, de dessacralização dos valores humanos. Entendendo que o ser
humano é portador de desejos e coragem, ávidos por se desvencilhar das amarras da
vida rotineira e elevar-se, conseguido de tal modo, uma emancipação que causa
realização. Este enredo quer antes de tudo uma reflexão nos meandros da liberdade,
da sexualidade e do prazer de maneira a denunciar a necessária degradação de um
sagrado que causa imprecaução e condena o homem a um sorriso sempre cauteloso.
93
A carnavalização é expressa nas personagens que em Charivari, não
encontram fronteiras no tempo descontraído do carnaval. Estas aderem à festa em
forma de libertinagem para anunciar seus desejos carnais reprimidos e enfim, negam
a prisão do corpo e se fazem entender no tempo festivo de muita desordem e tumulto
no tempo mimético representativo da Idade Média. O enredo traz um
descomedimento, um ritualizar e uma comunhão coletiva, encontrada no carnaval.
Segundo Bakhtin (1999), a carnavalização propõe sempre um movimento, um
ir e vir, um mundo situado ao caos, onde se estabelece a confusão numa relação
familiar entre os valores e as idéias por eles permitidos, aceitos e vividos, sempre de
forma a atingir o novo e positivo. É um rebaixar para elevar-se, um plano do baixo que
enaltece uma subida para mostrar que a inversão provoca o almejado. O charivari
ramalhiano propõe uma festa em sentido carnavalizado que rebaixa e expõe as
precariedades humanas, convida, pois, ao bacanal, ao descabido, ao orgástico, o que
o distancia das definições do charivari moralizante medieval.
No charivari ramalhiano o mundo se alegoriza e todos entram na dança,
tomam vinho e festejam o desejo carnal que promove transgressões às normas
oficiais. Os personagens na alegoria festiva realizam inversões de mistérios gloriosos
para mistérios amorosos; de entrada em lugar santo, adentram na perdição, nas
paixões e nos desejos; de encontro com pessoas religiosas e abnegadas,
encontramos fiéis desabusados, sujeitos com ar de viração em estado de descuido e
muita algazarra; de simulações vemos a denúncia emergir com furor; de vida pacata
agora tudo se faz conhecer; de santos abnegados, no presente estão desnudos; da
morte surge à vida renovada. O elevado e nobre dá espaço ao grotesco e ao cômico
à medida que os personagens são dessacralizados. Em sua simbologia, pois, o
Charivari propicia um período efêmero em que a vida vem à tona em forma de folia,
de grito e de “patifaria”. Nessa ocasião, o sagrado se removido de suas
prerrogativas e os corpos buscam a virilidade desejada. Na efetiva alternância entre a
vida real e idealizada, a festa é vivenciada num espaço de vida nova. Estabelecido o
contrário da vida cotidiana, o florescimento do Charivari acontece instaurado num
tempo e espaço carnavalizado.
A referida obra demonstra ausência de qualquer prova decisiva de
continuidade com o charivari medieval, sendo uma festa marcada pela ruptura da
ordem normal das coisas com a entrada abundante da alegria, da prosperidade e da
renovação. Confirmando que o charivari de Lourdes Ramalho mostra em sua
94
estrutura dramática, sob a égide das ações das personagens, o descortinamento
integral dos desejos e da moral típicos dos fiéis atentados: a fraqueza do espírito
terá a piedade cristã se submetida aos auspícios da Igreja: inúmeras audiências à
missa e penitências eclesiásticas. Porém, não haverá ponto de fuga dos fiéis, uma
vez que, os pecados foram desejados, aceitos e festivamente consumidos na e pela
própria Igreja.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer das reflexões que desenvolvemos nos três capítulos precedentes,
procuramos uma aproximação das formulações sobre a carnavalização, incluindo
também, o grotesco e a tira menipéia, visando destacar como a obra Charivari, de
Lourdes Ramalho, realiza a ressignificação do charivari medieval. Neste movimento
de ressignificação que a obra suscitou, nos propomos a declarar a intenção maior do
enredo que é a ida incontida ao prazer e esquecimento das obrigações e normas
quanto à sexualidade e à religião.
Apontamos neste estudo os traços da carnavalização presentes na escrita
ramalhiana que contesta os problemas reais de negação ao prazer e ao corpo, como
também a fé, que mascara as dimensões individuais pelas espirituais, permitindo
acontecer, no plano literário a contestação do mundo real, com o intuito de apontar
possibilidades de mudanças sendo, pois, uma perspectiva utópica do mundo. No
intercurso da pesquisa, seguimos com a análise das ações dos personagens, com
ênfase no sentido simbólico, metafórico e alegórico da atuação do Diabo como agente
transformador do processo de dessacralização dos valores humanos e a valorização
da vivência do prazer posta no charivari que este personagem constrói.
Vimos na peça que esta fabricação da soltura e do prazer sexual começa
quando o Diabo se apresenta de maneira corpórea sobre a terra, entra numa capela e
junto ao Morcego assume o comando daquele espaço e tempo com a finalidade de
adentrar na vida cotidiana dos fiéis, visando revelar-lhes os pecados, expor seus
sentimentos e propor o festejo dos prazeres de maneira catártica. O protagonista da
ação sustenta o imaginário dos fiéis atuando eficazmente acompanhado da música,
da dança e do vinho, em associação a gestos e linguagens soltas, atreladas ao riso e
à liberação do corpo e, por conseguinte, do desejo. Ao celebrar o redimensionamento
dos comportamentos e atitudes neste espaço e tempo sagrado, promove o sentido
carnavalizante dos prazeres da carne, uma vez que instaura a inversão dos valores
religiosos, trocando os valores cristalizados da católica sentenciadora, por desejos,
delírios e mudanças, ou seja, remodela ressignifica - um mundo novo com vistas a
driblar as angústias da vida diária fazendo brotar os instintos e florescer o bacanal.
96
Deste modo, os personagens abrem as possibilidades dos contrários,
evidenciando o destronamento e a dessacralização do que é sagrado com a quebra
de dogmatismos e hierarquias. A partir dos pontos abordados e refletidos na obra,
através das ações dos personagens, Lourdes Ramalho ressignifica o charivari
medieval, propondo a soltura permitida de uma vida de prazer contribuindo com o que
reza a carnavalização.
Podemos afirmar ainda que a obra Charivari chama ao palco da
representação social, tanto o vasto universo nordestino imaginário que vem confirmar
a escrita ramalhiana, alicerçada no cômico sadiamente permeado de desregramento
da ordem, quanto à comprovação do comprometimento e coragem dessa autora que
demonstra conhecimento sobre os ritos medievais e sobre as práticas populares do
Nordeste. Provocando com sua poética de base popular o estímulo às práticas
sexuais reprimidas pela convenção social e religiosa, convida seus personagens a
viverem a festa da liberdade, contrariando os propósitos do charivari medieval de
sansões contra as transgressões, especialmente de ordem conjugal.
Desenhamos uma conclusão na afirmação de que os traços de
ressignificação operados na obra ramalhiana acabam por valorizá-la como proposta
vigorada à reflexão e redimensionamento daquilo que a cultura e as instituições,
sobretudo a Igreja, estabelecem como autorizado para a existência do erotismo.
Por fim, afirmamos que as questões aqui abordadas, estão longe de ser um
consenso aos inúmeros campos de significações que a obra verseja e pede diálogo;
ao contrário, são tão somente, um abraço terno e momentâneo, como o charivari
realizado, brincado e vivido no espaço do sagrado. E cuja abordagem e posterior
análise tentaram demonstrar a construção e o estabelecimento na cultura da imagem
do sexo como demoníaco e merecedor de negação, especialmente para o gênero
feminino.
E, nesse percurso, enxergá-la como uma obra, de um lado, nascida por uma
poética renovada ao tema charivari, que se torna, em seu interior, uma estrada de
ressignificação de seu impulso primal, em meio ao interdiálogo com as culturas das
quais falam/representam. E, de outro lado, uma necessária atitude, repleta de humor,
trazendo imagens, personagens e situações num inequívoco e sarcástico acerto de
contas contra a ordem estabelecida e castradora do riso, da alegria e da vivência
sexual.
97
REFERÊNCIAS
OBRAS DA AUTORA:
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Charivari: texto teatral em cordel. Campina
Grande: RG editora, 2002.
______. O trovador encantado. Campina Grande: RG, 2002.
______.O novo prometeu e presépio mambembe: dois textos teatrais. Campina
Grande: RG, 2001.
______.O novo prometeu e presépio mambembe: dois textos teatrais. Campina
Grande: RG, 2001.
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Frei Molambo, ora pro nobis). Campina Grande, RG, 1984.
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feira, As velhas, Festa do Rosário, O psicanalista, Fogo-fátuo). Campina Grande,
RG, 1980.
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1999.
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Sites
www.lourdesramalho.com.br/.
104
ANEXOS
105
ANEXO - 01
Registros da primeira montagem da peça “Charivari”, de Lourdes Ramalho.
- Realise do Carderno Cultura. Jornal A União, de 02 de Abril de 2004.
- Ensaio Aberto da Peça Charivari no Centro de Educação – UEPB.
106
ANEXO - 02
O DIABO NA IGREJA
Figura retirada do livro Charivari: texto teatral em cordel de Lourdes Ramalho, já
citado nesse trabalho.
107
ANEXO - 03
O DIABO
Figura retirada do livro Charivari: texto teatral em cordel de Lourdes Ramalho, já
citado nesse trabalho.
108
ANEXO - 04
A MULHER E O DIABO
Figura retirada do livro O diabo no imaginário cristão de Carlos Roberto F. Nogueira,
já citado nesse trabalho.
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