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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU-SENSO/MESTRADO EM LETRAS
ANDRÉ LUIS DA SILVA SAMPAIO
A tradição oral revisitada:
Uma leitura de O outro pé da sereia de Mia Couto e Ponciá
Vicêncio de Conceição Evaristo
NITERÓI
2010
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2
ANDRÉ LUIS DA SILVA SAMPAIO
A tradição oral revisitada:
Uma leitura de O outro pé da sereia de Mia Couto e Ponciá
Vicêncio de Conceição Evaristo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense. Área de concentração:
Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª. Laura Cavalcante Padilha
NITERÓI
2010
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3
S192 Sampaio, André Luis da Silva.
A tradição oral revisitada: uma leitura de O outro pé da sereia
de Mia Couto e Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo /André
Luis da Silva Sampaio. – 2010.
134 f.
Orientador: Laura Cavalcante Padilha.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2010.
Bibliografia: f. 109-123.
1. Tradição oral. 2. Literatura brasileira. 3. Ficção
moçambicana (português). I. Padilha, Laura Cavalcante. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título.
CDD 809
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ANDRÉ LUIS DA SILVA SAMPAIO
A tradição oral revisitada:
Uma leitura de O outro pé da sereia de Mia Couto e Ponciá
Vicêncio de Conceição Evaristo
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense. Área de concentração:
Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Professora Doutora Laura Cavalcante Padilha - Orientadora
Universidade Federal Fluminense - UFF
___________________________________________________________________
Professor Doutor Silvio Renato Jorge
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFF
___________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Teresa Salgado
Universidade Federal Fluminense – UFRJ
___________________________________________________________________
Professora Doutora Maria Geralda de Miranda
Centro Universitário Augusto Motta – UNISUAM
___________________________________________________________________
Professora Doutora Íris Amâncio
Universidade Federal Fluminense – UFF
NITERÓI
2010
Dissertação examinada e aprovada em 08/03/2010.
5
A Patrícia Camargo, por fazer da minha vida,
através da literatura, uma passagem que conduz ao real significado
de uma infinita e verdadeira amizade.
E aos grandes mestres José Carlos Barcellos,
Dalva Calvão e Ida Ferreira Alves por me terem enxergado,
exatamente, da maneira que eu sou.
6
AGRADECIMENTOS
Ainda que eu falasse a língua dos homens.
E falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria.
Renato Russo
Agradeço primeiramente aos meus Orixás, que nunca me desamparam nos
momentos mais difíceis da minha vida.
A minha irmã Leandra Sampaio, fonte de força, inspiração, alicerce da minha
personalidade.
Ao meu pai, Gilson Sampaio, por ter dado a mim, condições de chegar até aqui. Por
estar sempre acreditando nos meus passos e me dando abrigo, depois de cada
queda.
A minha mãe, Alice das Graças Braga, pelos belos tempos da infância.
Aos meus irmãos Gleison Sampaio, Alessandra Sampaio e Leovani Sampaio, por
estarem sempre presentes na minha vida.
Aos meus sobrinhos, nascentes de águas frescas, do qual procuro beber sempre
para ultrapassar todas as tormentas que aparecem no meu caminho.
Ao mestre Anderson Martins Esteves, que despertou em mim o gosto e o amor pela
literatura.
A Patrícia Camargo, por estar do meu lado incondicionalmente.
Ao meu filho, Ângelo Sampaio, que chegou transformando tudo ao meu redor em
pura poesia.
Aos meus amigos, de ontem e de hoje.
7
À Professora Doutora e orientadora Laura Cavalcante Padilha, por toda dedicação,
por todo cuidado, por toda a paciência e por toda a sabedoria passada através das
palavras e ações, direcionadas afetuosamente, a essa dissertação de mestrado.
Aos meus amigos de cada curso concluído e do Grupo de pesquisas em Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa.
À Universidade Federal Fluminense, seu corpo docente e ao Programa de Pós-
graduação em Letras, por receber e fazer de mim um pesquisador mais crítico e
mais convicto das realidades existentes no mundo.
À CAPES pela bolsa concedida, do qual obtive condições para realizar meus
estudos.
À Secretária da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense e às
secretárias que estiveram sempre presentes nos momentos de aflição e dúvidas.
À minha banca, formada por grandes mestres, que tomarei como exemplo, durante
toda a minha caminhada.
Ao NEPA, espaço de grandes encontros.
À Professora Doutora Mariângela Rios de Oliveira, coordenadora do Programa de
Pós-graduação em Letras, constantemente atenciosa, a cada contato estabelecido.
A Conceição Evaristo e Mia Couto, por fazerem da minha vida um permanecer nas
águas oníricas da poesia.
8
Fui feito na Bahia
Num terreiro de Oxum
Os tambores sagrados
Bateram pra mim
Me banhei com guiné
Alfazema e dandá
Defumei com quaró, benjoim
E de pano da costa
Batizei no Bonfim
Um velho preto alaketu
Me disse que foi
Lá de Ketu que eu vim
Eu já vim predestinado
Pra cantar assim
Sou iluminado, eu sou,
Sou de Ketu sim
Sou confirmado, eu sou,
Sou de Ketu sim...
Roque Ferreira
9
Não sou mais que isso: um contador de estórias trabalhando na tentativa de recriar
essa magia.
Mia Couto
Trago a experiência, a convivência da oralidade. Minha experiência com as palavras
me acumulou de estórias.
Conceição Evaristo
10
RESUMO
A presente dissertação apresenta como seu tema, a revisitação da tradição oral, isto
é, a reinvenção da tradição oral nos romances Ponciá Vicêncio (2003), de
Conceição Evaristo, e O outro da sereia (2006), de Mia Couto. Apresentando-se
como escritas que se estruturam na revisitação da tradição ancestral, elas se fazem
uma nova forma de contar estórias. Os romances representam produções em que o
recurso à encenação da oralidade é forte e evidente e se faz um procedimento
literário que tem como uma de suas bases fixar, na escrita ficcional, principalmente
na de ordem narrativa, a forma de “contação” de estórias da tradição oral.
Palavras-chave: Tradição oral; Processos de reinvenção; Interlocuções; Literatura
brasileira; Literatura Moçambicana.
11
RÉSUMÉ
Ce travail a pour thème, le retour de la tradition orale, c'est la réinvention de la
tradition orale dans les romans de Ponciá Vicêncio (2003), Conceição Evaristo, et O
outro da sereia (2006), Mia Couto. Présentant comme des écrits qui sont
structurés de revisiter la tradition ancienne, ils font une nouvelle forme de narration.
Les romans représentent les productions qui font appel à la mise en scène de
l'oralité est forte et claire et constitue un procédé littéraire qui a comme une de leurs
bases mis en écriture de fiction, surtout dans un ordre narratif, la forme de raconter
les histoires de tradition orale.
Mots-clés: Tradition orale; Réinvention; Des dialogues; De la littérature brésilienne;
Mozambicain littérature.
12
ABSTRACT
This work has as its theme, the return of the oral tradition, that is the reinvention of
the oral tradition in novels Ponciá Vicêncio (2003), Conceição Evaristo, and O outro
da sereia (2006), Mia Couto. Presenting as writings that are structured in
revisiting the old tradition, they make a new form of storytelling. The novels represent
productions that appeal to the staging of orality is strong and clear and makes a
literary procedure that has as one of their bases set in fictional writing, especially in a
narrative order, the form of telling the stories of oral tradition.
Keywords: Oral tradition; Reinvention; Dialogues; Brazilian literature; Mozambican
Literature.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................13
1.
R
EVISITANDO TRÊS PERCURSOS
TEÓRICOS
.
1.1
O
RALIDADE POR
P
AUL
Z
UMTHOR
........................................................................................
20
1.2
TOM SOBRE TOM NA VOZ DO NARRADOR POR
W
ALTER
B
ENJAMIN
.....................................30
1.3
A
TRADUÇÃO CULTURAL POR
S
TUART
H
ALL E
H
OMI
B
HABHA
............................................35
2.
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO E
M
IA
C
OUTO
2.1
A
ESCRITA ROMANESCA COMO UM NOVO
CONTAR DE ESTÓRIAS
”................................42
2.2
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
:
UMA RENDEIRA DE PALAVRAS
..............................................46
2.3
M
IA
C
OUTO
:
O MÚSICO E ARRANJADOR DAS PALAVRAS
..............................................51
2.4
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO E
O
OUTRO PÉ DA SEREIA
:
C
ARAVELAS DE UM MESMO MAR
.............55
2.4.1
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO
................................................................................................56
2.4.2
O
OUTRO PÉ DA SEREIA
........................................................................................63
2.4.3
F
ICÇÕES PARALELAS EM DIÁLOGO
.........................................................................72
3.
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO E
M
WADIA
:
P
ÉTALAS DA FALA
.
3.1
E
STÓRIAS ENTRE TEXTOS E TEIAS
............................................................................79
3.2:
A
EXPERIÊNCIA TRANSMITIDA ATRAVÉS DO TEMPO
....................................................93
3.3
D
A VOZ A CORPOS TRADUZIDOS
...............................................................................98
CONSIDERAÇÕES
FINAIS.....................................................................................105
B
IBLIOGRAFIA
............................................................................................................109
A
NEXOS
.....................................................................................................................124
14
INTRODUÇÃO
O homem é como a casa: deve ser visto por dentro.
Mia Couto
Analisar a literatura de um país gera total dedicação ao estudo. Decerto,
buscar respostas, em uma literatura específica para compreender um processo
ocorrido em outra, também é trabalho para uma longa pesquisa. Porém, tratando-se
de escritas tão particulares, esse trabalho nos traz, além de ânimo, um desejo ainda
maior de realizá-lo, pela descoberta de novos matizes no campo literário
1
. As
literaturas africanas de língua portuguesa, assim como alguns segmentos da
literatura brasileira contemporânea, como, por exemplo, a escrita de autores afro-
brasileiros oferece aos seus leitores um campo fértil para o encontro com um mundo
ainda muito pouco explorado, até a década de 70. Por esse motivo merece, diante
de tamanha pluralidade, receber toda a atenção e interesse do pesquisador que a
elas se dedica. O universo da cultura moçambicana em África e o universo cultural
herdado dos antigos escravos africanos no Brasil são exemplos dessa pluralidade e,
por isso, o tema proposto para a presente dissertação é a revisitação da tradição
oral, isto é, a reinvenção da tradição, feita pela escrita nos romances Ponciá
Vicêncio (2003), de Conceição Evaristo e O outro pé da sereia (2006), de Mia Couto.
Apresentando-se como escritas que se estruturam na revisitação da tradição
ancestral como uma nova forma de contar estórias, os romances representam
produções em que o recurso à encenação da oralidade é forte e evidente e se faz
um procedimento literário que tem como uma de suas bases fixar, na escrita
1
“A investigação de um mesmo problema em diferentes contextos literários permite que se ampliem
os horizontes do conhecimento estético ao mesmo tempo que, pela análise contrastiva, favorece a
visão crítica das literaturas nacionais.” (CARVALHAL, 2004., p. 86.)
15
ficcional, principalmente na de ordem narrativa, a forma de “contação” de estórias da
tradição oral. O romance O outro da sereia apresenta-se com marcas da
oralidade, e a poesia da escrita de Mia Couto vem para atenuar as contradições
surgidas da tensão entre o passado e o presente e suas incontestáveis
conseqüências, pois, pela sua habilidade estética e discursiva Mia Couto navega
pelas águas do tempo sem dificuldade, voltando a um passado distante com a
mesma facilidade com que escreve sobre o presente, oferecendo ao leitor uma
viagem sem fronteiras pelo território moçambicano.
Ponciá Vicêncio apresenta-se como uma narrativa das experiências de uma
família brasileira descendente de escravos africanos do antigo regime escravocrata
do Brasil. Seguindo o molde de “contação” de estórias, Conceição Evaristo
aprofunda-se, também, nos caminhos da história, colocando frente a frente o
passado e o presente numa narrativa tradicional, com início, meio e fim bem
delimitados.
As obras foram selecionadas por sua inequívoca significação cultural e seu
labor estético, fato que oferece aos leitores e pesquisadores a oportunidade de
travarem contato com o mundo cultural em que são escritas e inscritas. Por esse
motivo, julga-se oportuno a análise das obras. Os enredos de cada romance ou a
própria diferença entre os autores, que vivem em condições e momentos literários
distintos, apresentam pontos de convergência: O outro da sereia, de Mia Couto,
oferece uma revisitação às tradições ancestrais moçambicanas e Ponciá Vicêncio,
de Conceição Evaristo, por outro lado, apresenta-se como uma reconstrução de um
imaginário a partir de elementos africanos transplantados para o Brasil, e que aqui
foram e ainda estão sendo revisitados. E ambos se apresentam como uma viagem
16
em busca da identidade dos sujeitos, ou seja, Mia pela condição do sujeito
moçambicano e Conceição pela condição do sujeito afro-brasileiro.
No caso especifico de Moçambique, vemos que revisitar a tradição ancestral
foi uma espécie de “arena” contra a hegemonia cultural do colonizador, quando
surge o desejo de libertação nacional. Logo depois da independência, essa forma de
confronto continua a produzir sentido, como comprovam as produções literárias e a
própria fala de Mia Couto:
Eu vivo num país onde os contadores de histórias têm uma grande
importância. Nessas zonas rurais eles são, de fato, os grandes defensores,
os grandes reprodutores dessa via antiga dos valores rurais. Os contadores
de histórias têm um sistema muito ritualizado de narrar, o que é uma
cerimônia muito complicada, com interdições: não se pode contar histórias
de dia porque senão fica careca, tem que se contar histórias de noite. E dos
rituais, uma das normas é que o contador de histórias nunca se intitule ele
próprio um criador, ele está reproduzindo a palavra divina dos
antepassados.
Então, no final, ele tem de fazer uma operação bem delicada que se chama
o fechamento da história, ele tem que fechar a história. E ele chega ao fim
da história, é como se falasse com a história, como se a história fosse uma
entidade, ele vira para ela e diz: “Voltem pra casa, Zavane e Guana (serão o
equivalente de Adão e Eva, o primeiro casal humano). É dentro dessa caixa
que estão as histórias”. Então ele diz: “Voltem pra casa, Zavane e Guana”.
Se ele não faz isso, a assistência fica doente e é chamada uma doença de
sonhar. E João Guimarães Rosa foi, para mim, um contador que não fechou
a história, que nos deixou, pelo menos em mim, essa incurável doença de
sonhar. (COUTO apud SEPULVEDA, SALGADO. 2006, p. 280.)
Enfatiza-se que, de outra parte, analisar as literaturas africanas de língua
portuguesa é também conhecer uma significativa parte da formação da nossa
cultura. Pois, como os africanos, escritores negros brasileiros, ao quererem reafirmar
sua afro-descendência, passam por uma trajetória semelhante, em momentos
distintos, mas com um pano de fundo parecido. Temos como um exemplo desse
processo, a escritora Conceição Evaristo, que busca um lugar de reconhecimento
primeiramente dentro do espaço literário brasileiro e, concomitantemente, dentro da
sociedade, pois ser mulher, escritora e negra numa sociedade patriarcal de herança
17
portuguesa, leva a um exercício diário de resistência social. Conceição Evaristo ao
ser intitulada, pela imprensa e pela crítica literária brasileira e internacional, como
contadora de estórias, também nos fala sobre sua trajetória literária:
Mineiro tem fama de contador de casos, imagine uma mineira afro-
brasileira... O que isso quer dizer? Além de mineira, trago a experiência, a
convivência da oralidade que é uma marca característica das culturas
africanas e seus desdobramentos no Brasil. Gosto de dizer e não tenho
dificuldade alguma em reconhecer esse aspecto, como algo que influenciou
e influencia a minha escrita. Eu não nasci cercada por livros, nasci cercada
por palavras. Entretanto, esse processo da escrita não nasce da
experiência de uma oralidade, a leitura me encantou também desde criança.
Fui criada sem a televisão. Várias revistas, almanaques, jornais por obra do
destino, chegavam em minhas mãos. Depois, por volta dos 13 anos, ganhei
uma biblioteca pública, quando uma de minhas tias foi trabalhar na portaria
da Biblioteca Pública de Belo Horizonte. Ali passou a ser a minha segunda
residência... E então, com todo esse arsenal de oralidade e com a leitura
que mais tarde fui descobrindo, tudo foi me provocando o desejo de escrita.
E ainda, em minha casa conversamos muito. Retomamos às vezes as
histórias de um passado remoto, guardadas na memória da família, as do
passado recente e as histórias do cotidiano. Os acontecimentos diários,
alegres ou tristes, ganharam e ganham uma magia, pela repetição, pela
comoção, pelos risos, enfim pelos sentimentos experimentados tanto por
quem narra e por quem escuta e, além disso, sofrem as interferências de
quem escuta, perguntando, modificando, insinuando outras histórias... Falar
vira uma brincadeira, uma catarse e, mais que isso, um trabalhar e
retrabalhar da memória. E ao apurar os ouvidos e os olhos para dentro de
casa, acabei apurando a audição e a visão para o mundo...
Quanto ao meu
processo criativo, ele pode ser desencadeado de várias maneiras. Uma
história que rememoro, um relato que me chega, uma cena a que assisto,
uma conversa que ouço, uma palavra solta no ar, a sonoridade de uma fala,
de uma voz e também a determinação de inventar, de criar um texto.
E
sempre repito: escrever é dar movimento à dança-canto que meu corpo não
executa. A poesia é a senha que invento para poder acessar o mundo.
(http://www.joaodorio.com/Arquivo/2005/06,07/entrevista.htm)
Diante da própria fala dos autores aqui citados, indica-se o cerne dessa
dissertação, que é tecer uma análise, através do que aproxima tais obras em seus
processos de criação. Sendo assim, a dissertação se dividida em capítulos
específicos, no intuito de poder alcançar não o todo de cada narrativa, mas sim, as
especificidades mais marcantes que estabelecem um diálogo, mesmo que
reconheçamos suas diferenças. E, para isso, empreenderemos nossa análise por
18
meio de quatro reflexões teóricas: a de Paul Zumthor, Walter Benjamin, Stuart Hall e
Homi Bhabha. A primeira reflexão será a de Zumthor. Por tratar diretamente da
tradição oral, ela sevista em uma amplitude maior e as duas últimas, isto é, as
reflexões acerca da “tradução cultural” de Stuart Hall e Homi Bhabha serão
apresentadas conjuntamente. Diante de tais reflexões, sinalizaremos que os
romances analisados apresentam as marcas orais tratadas por Paul Zumthor, isto é,
as marcas vocais que são deixadas no texto na passagem do oral para o escrito,
fortalecendo, desta maneira, a rede de troca de experiências através da tradição
oral, mecanismo do qual autores como Mia Couto e Conceição Evaristo, não abrem
mão ao comporem suas narrativas. Indicaremos, também, o perfil dos narradores,
que, mesmo ao lidarem com a complexidade de personagens “traduzidos” como
Mwadia e Ponciá Vicêncio
2
, não perdem o compromisso de contar e transmitir
estórias envolventes. Sobretudo porque, relembrando uma fala de Benjamin, não se
deve esquecer que “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.”
(Benjamin,1985 p. 205)
Embora disponhamos de qualificadas pesquisas e reflexões sobre a
oralidade nos estudos literários, ainda encontramos alguns percursos que poderão
ser feitos acerca do encontro entre a letra e a voz. Temos como maiores referências
a pesquisa de Paul Zumthor, no exterior, e, no Brasil, o estudo de Laura Cavalcante
Padilha. Paul Zumthor elabora e concretiza sua análise nos textos medievais,
desdobrando sua teoria aos demais textos produzidos posteriormente. Já Laura
Cavalcante Padilha, na obra Entre Voz e Letra. O lugar da ancestralidade na ficção
angolana do século XX (2007), se debruça sobre a literatura angolana e, de certa
2
Para alcançar o objetivo desse trabalho, pautado nas teorias da Literatura Comparada, elegemos
como maior objeto de comparação Mwadia e Ponciá Vicêncio, protagonistas das ficções que serão
analisadas.
19
forma, nos aponta para as literaturas africanas de língua portuguesa como um
território passível de uma pesquisa similar.
Começaremos nosso trabalho, apresentando as três teorias que serão
utilizadas no ato da comparação. O primeiro capítulo se responsabilizará por
esclarecer o uso da tradição oral na escrita contemporânea, através das obras de
Paul Zumthor A Letra e a Voz(2003) e Performance, Recepção e Leitura(2007).
Discutiremos os três tipos de oralidades trazidas por Zumthor; os “índices de
oralidade”; a passagem do oral para o escrito e as consequências desse processo
na literatura. Ainda no primeiro capítulo, cuidaremos de discutir a questão do perfil
do narrador na modernidade e, para isso, faremos uma leitura do texto O narrador
(1987), de Walter Benjamin, que detalha, com eficiência, a transformação através do
tempo desse narrador. Finalizando o primeiro capítulo, Stuart Hall e Hommi Bhabha
serão revisitados com o intuito de nos esclarecer sobre os aspectos da tradução
cultural.
Dando continuidade a nossa reflexão, o segundo capítulo tratará do romance
como gênero através do qual se pode revisitar as estórias tradicionais passadas,
anteriormente, somente através do oral e que hoje ganham uma releitura através da
literatura e de outras formas de manifestação cultural. Também no segundo capítulo,
faremos uma breve explanação sobre as obras que serão comparadas, delimitando
o percurso feito pelos autores, ao estabelecerem um diálogo constante com as
tradições ancestrais africanas, ora fortalecendo-as, como em Ponciá Vicêncio, ora
questionando-as, entre outras implicações, como em O outro pé da sereia. E, a partir
desse contato com a tradição oral, indicaremos alguns indícios de como se
estrutura, no plano escrito, essa nova fórmula de “contação” de estórias.
20
No terceiro capítulo, tomaremos como objeto de análise as protagonistas de
cada obra: Mwadia, de O outro da sereia, e Ponciá Vicêncio, da obra homônima,
personagens traduzidas que vivem “a negociar com as novas culturas em que
vivem
(HALL, 2004, p. 88). É evidente a diferença do contexto de cada protagonista,
porém a semelhança do trajeto percorrido por elas dentro das narrativas. Mwadia
vive entre a tradição dos costumes locais e a negociação dos novos costumes
implantados pelos colonizadores portugueses. Ponciá Vicêncio, pelo seu
sobrenome, é obrigada a enxergar sua identidade marcada com o nome do antigo
proprietário de sua família. Vicêncio era o nome do “senhor”, dono das fazendas
onde os antepassados de Ponciá eram escravizados. Ao contrário da tradição, tanto
Mwadia quanto Ponciá é que narram os acontecimentos aos mais velhos. Assim as
produções apresentam uma espécie de alargamento da tradição, pelo qual o mais
velho sempre transmitia sua experiência. Mwadia e Ponciá dissolvem esse costume,
tomando em suas mãos, de maneira clara, as rédeas da história de seus povos.
21
1.
R
EVISITANDO TRÊS PERCURSOS TEÓRICOS
1.1 O
RALIDADE POR
P
AUL ZUMTHOR
.
Enquanto falo, minha voz me faz habitar a minha linguagem.
Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele.
Paul Zumthor
Paul Zumthor é um dos autores mais consultados quando se estuda a
questão da oralidade, principalmente na Europa, como na Alemanha, por exemplo. A
partir da obra A Letra e a Voz(1993) e Performance, Recepção e Leitura(2007),
Zumthor traz à tona os estudos ligados à literatura de uma forma geral, mas sua
obra ganhou prestígio maior por tratar, com muita seriedade, os estudos do campo
da oralidade. Sendo assim, o autor, nas primeiras páginas de sua obra, indica as
circunstâncias que marcaram o surgimento do termo oralidade, que é fundamental
para o entendimento das questões propostas por esta dissertação:
O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma
terra de ninguém isolava aquilo que, sob o nome de folclore, se deixava às
outras disciplinas. No inicio do nosso século, a ”literatura” adotava assim,
em escala mundial, de maneira exclusiva, os fatos e os textos homólogos
aos que produzia a prática dominante da Europa ocidental: estes os únicos
concernentes à consciência crítica, tendo-se-lhes creditado caracteres que,
segundo a opinião unânime, provinham de sua competência. Em alguma
medida, o conjunto de pressupostos que administravam essa atitude de
espírito originava-se do centralismo político que, havia longo tempo, fora
instaurado pela maioria dos estados Europeus. Estava de acordo com as
tendências mistificadoras, até alegorizantes, que presidiam à elaboração
das “histórias nacionais”: exaltação do herói que personificasse o superego
coletivo; a confecção de um Livro de Imagens no qual fundar um sentido
que justificasse o fato presente: as palavras de Joana d’Arc, a cruzada de
Barba-roxa ou a fogueira de Jan Huss... A Segunda Guerra Mundial não
deixou de muitas dessas estátuas, nem abrigou essas garantias. No
espaço de bem poucos anos, um poderoso retorno do reprimido abalava,
com a história, as outras ciências humanas e, em sua trilha, os estudos
ditos literários. Foi então que, pela janela entreaberta, o termo oralidade
entrou como um ladrão no vocabulário dos medievalistas. (idem, p. 08)
22
Sendo medievalista, Zumthor desfaz primeiramente um grande equívoco
ligado à oralidade, pois diferencia o que muitos entendem como similar quando
tratam de tradição oral ou transmissão oral. Segundo Zumthor, a primeira se situa na
duração e a segunda no presente da performance
3
. E para definir melhor essas
diferenças ou simplesmente incitar uma discussão sobre o tema, Zumthor classifica
a oralidade em três tipos, que correspondem a três situações de cultura: A oralidade
primária e imediata, oralidade mista e a oralidade segunda. A primeira, oralidade
“primária e imediata, não comporta nenhum contato com a escritura. De fato, ela se
encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização
gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos”. (ZUMTHOR, p. 18) a
oralidade “mista”, se faz quando a influência do escrito permanece externa, parcial
e atrasada; e a oralidade “segunda” quando se recompõe com base na escritura
num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no
imaginário”.(idem) Em outras palavras, a oralidade mista procede da existência de
uma cultura “escrita” (no sentido de “possuidora de uma escritura”); e a oralidade
segunda, de uma cultura “letrada” (na qual toda expressão é marcada mais ou
menos pela presença da escrita), (ibidem).
Ao demonstrar singular capacidade para transitar entre questões inerentes à
oralidade, escrita e memória, Zumthor além de explicar os três tipos de oralidade, se
debruça sob diversos momentos históricos e cria alternativas de reflexão para os
leitores sobre os referidos temas, elaborando, como afirma, no “Posfácio”, Jerusa
Pires Ferreira, “conexões entre os campos de interferência da voz e da escritura; o
3
“No interior de uma sociedade que conhece a escritura, todo texto poético, na medida em que visa a
ser transmitido a um público, é forçosamente submetido à condição seguinte: cada uma das cinco
operações que constituem a sua história (a produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a
repetição) realiza-se seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por uma inscrição oferecida a
percepção visual, seja mais raramente- por esses dois procedimentos conjuntamente. O número
das combinações possíveis se eleva, e a problemática então se diversifica. Quando a comunicação e
a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos uma
situação de performance.” (ZUMTHOR, 1993, p. 19)
23
papel da voz em certas séries institucionais como a Igreja e a Escola e em séries
mais difusas: os costumes, o cotidiano, a vida cultural” (p. 287). Com Zumthor
queremos discutir o papel da escrita e da oralidade; da memória, do esquecimento e
da tradição e, finalmente, o papel do intérprete e do ouvinte dentro das narrativas.
Trabalharemos com o que o autor designa como “a tríplice relação estabelecida a
partir e a propósito do texto, - entre este e o seu autor, seu intérprete e aqueles que
o recebem” (p. 98), isto é, os ouvintes ou receptores.
Ao refletir sobre a função do intérprete e do ouvinte, ele estabelece como
conceito, o primeiro como sendo o indivíduo de que se percebe, na performance, a
voz e o gesto, pelo ouvido e pelo olhar e o segundo como aquele que possui dois
papéis: o de receptor e de co-autor. A relação entre ambos não é maleável, pois
intérprete se houver um ouvinte e vice-versa, mesmo numa relação unilateral
quando somos ouvintes de nós mesmos. Para o autor, o papel do intérprete, ou do
contador de histórias, é mais importante do que o do compositor, pois é a sua
performance, o seu desempenho que propiciarão reações auditivas, corporais,
emocionais do auditório, ou seja, do ouvinte. A performance do intérprete é a
responsável pela sua força como agente disseminador do texto oral, pois “a sua voz,
por si só, lhe confere autoridade” (p. 19). A intimidade do intérprete com o poema ou
do narrador com o conto vai ser avaliada pelo efeito que sua performance terá sobre
o público ou sobre o ouvinte: de convencimento, de emoção ou de desprezo. o
podemos ignorar, portanto, que nem sempre o que está sendo dito ou interpretado
está adequado ao ouvinte ou ao público ali presente. É necessária uma interação
entre intérprete e ouvinte para que haja um resultado satisfatório, ou seja, o público
alvo deve ter interesses compatíveis com os do intérprete, pois “o prestigio da
24
tradição, certamente, contribui para valorizá-lo; mas o que integra nessa tradição é a
ação da voz” (p. 19) sobre os ouvintes.
A qualidade da performance está vinculada à adequada interação entre
intérprete, texto e ouvinte. Richaudeau estabelece dois fatos relativos ao ato do leitor
que corresponde, neste caso, ao do ouvinte: “distinguir entre as várias espécies de
leitura aquelas que diferenciam ao mesmo tempo a natureza do texto-alvo, a função
que lhe atribui o leitor e a capacidade de memória” (RICHAUDEAU apud ZUMTHOR,
p. 104). O ouvinte e o texto falado sofrem adaptações à medida em que se
estabelece uma relação entre eles; logo, as alterações da performance vão alterar a
reação do ouvinte. O ouvinte é responsável não pela forma pela qual nós
percebemos a dimensão histórica da narrativa oral, pois a sua recepção interferirá
na nossa, como também criará perspectivas em relação à performance dentro de
regras por ele anteriormente conhecidas. A memorização e o prazer dos ouvintes
estão vinculados, assim como o contexto em que está inserido o ato de ouvir. Nossa
memória registra quando compreendemos o que está sendo dito de forma
espontânea e prazerosa.
Com o passar dos tempos, a interpretação, a performance e o próprio texto
oral vão assumindo um caráter comercial e essa transição inicia quando o autor
passa a exigir seus direitos. Podemos dizer que a comercialização das obras está
ligada ao emprego da escrita que, desde seu surgimento, é monopolizada pela
classe dominante enquanto a narrativa oral ocupava-se em retratar as angústias dos
oprimidos que, diante desse monopólio, sentiram a necessidade de passar para o
escrito o que antes pertencia à cultura tipicamente oral. Esta inversão de valores
norteou, por muitos séculos, os propósitos e os destinos de ambas. Zumthor se
preocupa em diagnosticar se contradição entre o uso da escritura e das práticas
25
vocais. E assim afirma que “a escritura é a intenção ou a pressuposição de uma
passagem para o impresso” (p. 99), e ainda alega que cada um tem “o seu ritmo
próprio de desenvolvimento” (p. 96). M. Clanchy, citado na obra de Paul Zumthor,
menciona que o surgimento da escritura é resultado da necessidade de fixar
mensagens inicialmente orais e M. Scholz, também citado, diz que o seu surgimento
está vinculado ao desenvolvimento do comércio, das comunicações e do direito (p.
96); é importante observar que tais definições se complementam. A linguagem que o
manuscrito vai fixar é a da comunicação direta, não importando, desta forma,
distinguir autor, intérprete ou escritor; neste caso, o intérprete ou contador de
histórias perde seu papel. Zumthor defende a possibilidade de que, em função do
momento histórico, o texto vai depender ou de uma oralidade que funcione na zona
da escritura ou de uma escritura que funcione na oralidade (1993, p. 98). Ele chama
para a discussão McLuhan, que também percebe essa diferença, definindo-a como
a de homem escrevente e a de homem tipográfico. O fato é que o manuscrito
mantém a característica til-oral e o escrito vai adquirir mais efeito a partir do
surgimento da imprensa. W. Ong diz que “o manuscrito é uma continuidade do oral”.
(ONG apud ZUMTHOR, p. 99)
A voz está presente na escrita e vice-versa: é “o verbo encarnado na
escritura” (p.113). A passagem do vocal para o escrito é repleta de “confrontações,
tensões, oposições conflitantes e muitas vezes contraditórias” (p. 114); é mais do
que transcrição, é transcriação. A escrita terá seu registro assegurado muito
provavelmente bem depois de sua criação, perdendo assim o rigor de sua
transcrição. O texto oral desfaz e recria permanentemente o seu sentido, o que não
ocorre tão rapidamente com a escritura. A impossibilidade da escrita concede ao
homem uma melhor performance por permiti-lo alcançar maior fidelidade ao que
26
está sendo interpretado, justamente porque vai livrá-lo da tensão resultante da
capacidade de executar os dois papéis.
Zumthor nos chama a atenção para o fato de que o domínio da escrita era
extremamente difícil e que ela não era estimulada entre todas as camadas sociais:
“escrever é um ofício árduo, cansativo, um artesanato organizado” (p. 100). Essas
dificuldades vão sendo minimizadas com o passar dos anos e o incentivo à escrita
vai ocorrer somente a partir do século XX. O trabalho da escrita era restrito a uma
elite: chancelaria, pontifícia, bispados, prefeituras. As oficinas dos copistas
adquiriam, inclusive, celebridade pelo exercício desse ofício, tamanho o seu grau de
dificuldade. Essas dificuldades inerentes à escrita, determinadas pelo período, vão
influenciar a sua decodificação, pois muitos sabiam escrever, mas não ler: eram dois
aprendizados distintos. A escrita como o poder de apoiar seu discurso é o próprio
atestado da verdade que vai acrescentar eficácia ao governo dos homens. A
palavra, afinal, é o meio pelo qual o homem se manifesta plenamente (p.114). Não
podemos ignorar, entretanto, que para os iletrados, a letra é inacessível, imaterial,
mágica.
Ao refletirmos sobre a duração e memória dessas obras, Zumthor nos diz que
elas nunca são as mesmas, pois qualquer forma de arquivamento compromete a
integridade semântica e estrutural dos textos. Se o texto for oral, recorre-se à
passagem do oral para o escrito como um meio de conservação mais seguro do que
foi dito, pois o que é falado fica mais propenso às intervenções e influências
externas, ainda que este recurso leve à perda do que o oral tem de mais precioso: o
movimento vital da performance. E, em contrapartida, porém, estimula novas
performances. A escrita não garante, portanto, a perpetuação ou imutabilidade da
obra, apenas a torna menos violável. Já a performance garante a “dimensão emotiva
27
da comunicação, o alcance dos princípios que garantem a plenos sentidos uma
presença corpórea, memória imperecível, toda vez que se presentifica” (1993, p.
289).
A memorização, única forma existente de arquivamento até o surgimento da
escrita, continua a cumprir seu ofício. A escrita vai ganhando, assim, o papel de
preencher duas funções: a transmissão e a conservação do texto. Vários textos vão
aparecer na escritura, isto é no texto escrito, sem acabamento, sobretudo os
provenientes da oralidade. Naturalmente, a difusão da escrita e de outras formas de
comunicação contribui para o enfraquecimento das memórias.
Todo grupo tem um saber acumulativo, originário da memória e que é
agregado na linguagem, pois a cultura de uma sociedade, de acordo com a teoria de
Zumthor, é determinada pelo uso que essa mesma sociedade faz da memória. As
tradições orais são fundamentais para a manutenção dos costumes e servirão de
alicerce para a constituição da história de uma sociedade, ainda que o destino
dessas tradições seja incerto. Culturas só se lembram, esquecendo, pois é feita uma
seleção do que se quer lembrar. Tal seleção nos permite desconectar com a história
no momento em que a vivemos. A memória coletiva vai recuperar ou manter o que
pode permanecer funcional. registramos o que nos interessa ou nos tem
utilidade. A teia de percepções de costumes e de idéias é a responsável pelo
desenvolvimento e duração das tradições orais e, assim, as narrativas orais
garantem, que a cada performance, se criem novos espaços narrativos em
detrimento das performances que surgirão, em outras palavras, de acordo com o
provérbio: quem conta um conto aumenta um ponto. A performance vai encontrar
sua plenitude na sua relação com obras anteriores e posteriores; é este movimento
que vai garantir a manutenção das tradições de uma sociedade.
28
A memória coletiva captura os fragmentos significativos de uma dada
sociedade e os transforma em elementos de tradição; é o resultado de uma seleção.
Captura-se o importante, o necessário e procura-se, por outro lado, esquecer aquilo
que perdeu sua legitimidade. A manutenção da narrativa oral, inclusive, dá-se pela
reminiscência, pelo costume e pelo esquecimento, permitindo ao passado
permanecer vivo. Isso ocorre mais fortemente nas pequenas comunidades, que
buscam a permanência de suas culturas e tradições. “Para Isidoro de Sevilha, no
livro III, 15, das Etymologiae a memória humana assegura a tradição dos sons, pois
eles não podem ser escritos” (1993, p. 114).
Sendo a tradição uma colaboração, uma ajuda que pedimos ao nosso
passado para resolver nossos problemas atuais, o esquecimento é necessário a
partir do momento em que nenhuma compreensão é total e toda interpretação é
fragmentária, os vazios tornam-se, pois, primordiais para a continuidade da história.
É um ritual aderir à tradição e submeter a ela o seu discurso, isto é, o próprio
discurso da história.
A oralidade, tratada por Zumthor, a partir da função do intérprete/narrador e
do ouvinte, é fonte primeira de toda forma de comunicação, dividindo posteriormente
sua tarefa com a escrita, que nasce com outro propósito e assume, como vimos,
papel diferenciado da linguagem oral, mas também de indiscutível importância para
a evolução da humanidade. Sendo as linguagens vistas “como o centro da
sociedade e da história” (1993, p. 288), tanto a oralidade como a escrita são
condições vitais para a existência da tradição.
Zumthor nos chama a atenção, também, para os índices de oralidade
4
. Para
ele, tais índices devem ser entendidos como tudo o que,
4
(Zumthor, 2007, p. 35 -54)
29
no interior de um texto, informando-nos sobre a intervenção da voz humana
em sua publicação - quer dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma
ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na
memória de certo número de indivíduos. (1993, p. 35).
Em outras palavras, os índices de oralidade são tudo aquilo que nos remete a uma
voz, isto é, a marca que a voz humana deixa no texto escrito. Entre eles estão a
musicalidade, o caráter histórico, o caráter anedótico, o caráter moralizante, a
estrutura textual e por fim o caráter interpretativo.
Quando Zumthor traz a musicalidade como um índice de oralidade ele usa
como exemplo os cantos de gesta e os cantos trovadorescos, pois, através desses
manuscritos, ou de outros, a musicalidade em sua estrutura é mais visível do que
até mesmo o seu corpus semântico. A compreensão se mais pelo tom musical,
isto é, pelo conjunto de harmonias perfeitas entre as palavras do que pelo
significado expresso pela mensagem. Zumthor acrescenta que para uma melhor
memorização, tanto do intérprete, como do ouvinte o texto ou a mensagem a ser
transmitida, deve possuir musicalidade e assim ser de fácil assimilação pelo público
ouvinte e também de fácil interpretação para o intérprete.
Outro índice de oralidade é o caráter histórico que os textos da tradição oral
possuem. Em todos os manuscritos estudados produzidos na mesma época,
mostra-se uma coesão histórica. Os fatos relatados nos manuscritos remetem
sempre a um acontecimento marcante vivido pela sociedade em questão e as vezes
usados até mesmo como exemplo. Acontecimentos de ordem governamental,
comportamentais da elite, como também os da plebe, são fonte de inspiração para
os poetas e contadores de uma mesma época, fato que marca e que fornece a data
aproximada dessas produções. O caráter anedótico também considerado um índice
de oralidade, também faz referência a fatos acontecidos, porém se baseia na
30
produção poética passada, isto é, através da intertextualidade se produz novos
textos. Zumthor ressalta:
Existem outros tantos apelos aos valores vocais, que emanam da própria
textura do discurso poético. Às vezes índices externos os confirmam,
extratos de documentos anedóticos, relacionando-se a um ou vários textos
e evocando-os em termos tais que o caráter vocal de sua ”publicação”
5
se
destaca. (1993, p. 41)
O caráter moralizante se estabelece, da mesma forma encontrado nas fábulas
6
,
que estas sempre trazem, nos seus desfechos uma mensagem moralizante, isto
é, possuem um caráter pedagógico. E, quando Zumthor traz a estrutura textual como
um índice de oralidade, ele nos remete à forma como esses textos foram escritos,
geralmente demarcados por pequenas estrofes harmônicas entre si e que se
comparadas umas com os outras torna-se visível um conjunto fechado de palavras
usadas na época, em que os mesmos foram compostos. A harmonia e o conjunto de
palavras que demarcam a época da composição eram encontrados primeiramente
na forma cantada e mais tarde foram transportadas para o papel, indicando a
presença da voz nestes textos.
O caráter interpretativo
7
dos textos que passaram pela tradição oral forma o
último índice de oralidade trabalhado por Zumthor em sua obra. O autor abre a
possibilidade, contudo, de encontrarmos outros índices que indiquem a marca da
voz dentro de um texto, marcas que poderão ser, também, nomeadas como índices
de oralidade. Sendo assim, tudo aquilo que sinaliza a intervenção da voz humana
em um texto, significa um índice de oralidade; quase todos os textos, tanto os
5
Entende-se publicação como edição. Do francês, edition: nf edição, publicação. (AVOLIO, 2002, p.
92)
6
“Narração alegórica cujas personagens são, em regra, animais, e que encerra lição moral”.
(FERREIRA, 2005, p. 393)
7
A multiplicidade de interpretações.
31
poéticos quanto os narrativos, passam, primeiro pelo crivo da voz e, depois, vão
para o escrito. Assim, as possibilidades de encontrarmos índices de oralidade se
multiplicam a cada texto que, como leitores, procuramos analisar. Sendo assim, por
terem sido escritas de uma perspectiva que privilegia a tradição oral, por se
encaixarem e dialogarem diretamente com as teorias relacionadas à oralidade
trazidas por Paul Zumthor, as obras O outro da sereia e Ponciá Vicêncio foram
eleitas para esta pesquisa.
1.2
T
OM SOBRE TOM NA VOZ DO NARRADOR POR
W
ALTER
B
ENJAMIN
.
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo.
Walter Benjamin
Em “O narrador”, Walter Benjamin fornece-nos uma análise bem elaborada
das diferenças que foram criadas pela modernidade ao ato de narrar. Não das
características, mas também das mudanças que tal modernidade causou no
individuo responsável por este ato: o narrador. Benjamin esclarece-nos que o
narrador perdeu o seu papel principal dentro das narrativas e discute todos os males
que essa perda causou e causa no âmbito cultural de uma sociedade. Nesse
sentido, ele afirma que:
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente
entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia
ainda mais. Descrever um Leskow como narrador não significa trazê-lo mais
perto de nós, e sim, pelo contrário, aumentar a distância que nos separa
dele. Vistos de uma certa distância, os traços grandes e simples que
caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços
aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num
rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num
ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência
dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a
arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que
32
alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e
inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1985, p.
197)
Benjamin ainda diz que a causa desse fenômeno foi o fato de a experiência
ter caído na cotação dos valores sociais e teme que continue numa queda
interminável. O fato, como observado por ele, não é um fenômeno recente, pois
desde, a Segunda Guerra Mundial quando a informação expressa era necessária
e quanto mais rápida e precisa fosse, mais eficácia ela garantiria tudo caminhou
para um enfraquecimento da experiência comunicável. Sendo assim, entramos na
modernidade com essa ânsia por informações prontas e imediatas e o narrador, que
carregava com ele experiências, que sabia ouvir e dar conselhos perdeu o seu lugar
para informações prontas, que dispensavam qualquer tipo de experiência. Em
contrapartida, esse enfraquecimento do papel do narrador deteve seus expectadores
num mundo cada vez mais individual. E assim, também se apresenta o leitor de
romance de tal modernidade; isolado e fragmentado, busca na leitura um sentido
para sua vida. Benjamin apresenta como uma das principais conseqüências do
rompimento do intercâmbio de experiências a supressão da memória do indivíduo e
a perda do sentido da história. A esse respeito ele nos diz:
Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o
ouvinte e o narrador é o interesse em conservar o que foi narrado. (...) A
memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória
abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um
lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, o
poder da morte. (p. 210)
Tais mudanças também ocorreram nas narrativas que, antes, carregavam
consigo uma utilidade. Esta, a narrativa, pode:
33
(...) consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja
num provérbio ou numa norma da vida de qualquer maneira, o narrador é
um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos” parece hoje
algo antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós
mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta
que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está
sendo narrada. (p. 200)
Benjamin completa seu raciocínio, dizendo que, para receber conselhos, seria
necessário, primeiro de tudo, saber narrá-los, pois devemos levar em conta que uma
pessoa se abre a um conselho, na medida em que verbaliza sua situação, que
“o conselho, tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria” (p.
210). A arte de narrar está, desse modo, chegando ao fim porque o lado épico, a
sabedoria, está agonizando. Contudo, este fenômeno de afastamento da sabedoria
não indica um processo moderno, e sim, um
processo que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e
ao mesmo tempo uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se
desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das
forças produtivas. (p. 201)
Benjamin também atribui o fim das narrativas de cunho oral ao surgimento do
romance no início da era Moderna e, mais do que isso, à invenção da imprensa. E
explica:
O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa contos de
fada, lendas, e mesmo novelas é que ele nem procede da tradição oral
nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente da narrativa. O narrador
retira da experiência o que ele conta; sua própria experiência ou a relatada
pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus
ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o individuo
isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações
mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever
um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o
incomensurável a seus últimos limites. (p. 201)
34
Dessa maneira, compreendemos a diferença entre a memória do narrador e a
do romancista. É possível ao narrador contar muitas histórias, pois as conhece
integralmente por vivenciá-las ou por ouvi-las de outros narradores; ao romancista
é vedada essa possibilidade devido à sua experiência segregada, que o impede de
conhecer histórias e, portanto, de conservar a memória delas. Com essa análise,
Benjamin parece denunciar à sociedade de seu tempo não a perda da
experiência que determinou o fim da narrativa e a crise do romance, mas algo muito
mais relevante socialmente, ou seja, o processo de fragmentação do indivíduo que,
em crise, transformou-se em mais uma peça da grande engrenagem, da qual ele
não conhece o produto acabado e nem mesmo todas as etapas da produção.
Interpretamos essa condição do indivíduo diante de tais acontecimentos como uma
atitude de conformismo à qual ele é submetido da qual não como fugir, mesmo
que isso se de forma inconsciente, pois parece-nos que os indivíduos são
envolvidos de tal maneira nesse processo de transformações sociais que perdem a
capacidade de compreendê-lo e, portanto, ofuscam o sentido de sua própria
existência. Outro elemento que contribui para a crise no romance
8
é o surgimento da
indústria cultural, da qual citamos aqui o exemplo da informação. O narrador, em
suas histórias, transmitia conhecimento, informação de lugares distantes ou de
tempos passados. Mas,
com a consolidação da burguesia - da qual a imprensa, no alto capitalismo,
é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de
comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia
influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência.
Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e,
de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa forma de
comunicação é a informação. (p.202)
8
(BENJAMIN, 1985, p.203)
35
A informação vem acompanhada de explicações, portanto dispensa ser
interpretada. Por isso se perde logo após se entregar, isto é, perde seu valor, cai no
esquecimento. Diz Benjamin:
Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”
(p.204). Ele já explicara antes que:
Metade da arte narrativa está em evitar explicações, o extraordinário e o
miraculoso são narrados com exatidão, mas o contexto psicológico da ação
não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e
com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
informação. (p.203)
Partindo das idéias de Benjamin, chegamos à conclusão de que a força da
informação rápida e concreta possui, hoje, mais valor do que as narrativas que, no
seu interior, não continham respostas imediatas para tudo, pois para entender uma
narrativa era preciso pensar, que nas entrelinhas sempre havia algo a ser
descoberto e aplicado à vida daquele que as ouvia. Hoje a audiência maior se
enquadra nas informações que são inteligíveis por si mesmas. E com isso a arte de
narrar rareou, pois a difusão da informação teve nesse acontecimento uma
participação decisiva, absoluta. Benjamin ainda diz que “quase nada do que
acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação”. (p.
203) Com efeito, repetindo suas palavras, “metade da arte narrativa está em evitar
explicações”.
(
p. 203) Por isso, não podemos deixar de observar e enfatizar, ainda
com as palavras de Benjamin, que
a narrativa, floresceu num meio de artesão no campo, no mar e na cidade
é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação.
Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como
uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador
para em seguida retirá-la dele. (p. 205)
36
Por mais que pareça que o narrador tenha encontrado seu fim, concluímos
diante de tal reflexão, que ainda encontramos indivíduos abertos aos conselhos e
dispostos a passá-los adiante, embora a modernidade tenha calado, por vezes,
algumas vozes. Ainda dispomos de ecos de sabedoria passados através da escrita
ou até mesmo da oralidade. A experiência, na verdade, sempre terá seu lugar
garantido, pois através do tom da voz de um narrador ou contador de estórias,
parecerá que estamos diante de vozes proferidas quase artesanalmente, isto é, elas
nos chegam como um “objeto feito à mão”, como conhecimento absorvido através
do tempo e devolvido, numa só voz, como o resultado de um longo aprendizado.
1.3
A
TRADUÇÃO CULTURAL POR
S
TUART
H
ALL E
H
OMI
B
HABHA
.
Atribuo uma importância básica ao fenômeno da linguagem.
Pois falar é existir absolutamente para o outro.
Frantz Fanon
Na obra, A identidade cultural na pós-modernidade (2004), Stuart Hall faz
uma análise sobre a crise identitária do sujeito pós-moderno. Segundo o autor, tal
sujeito passa por transformações acarretadas pelo declínio das velhas identidades,
que, até a modernidade, se viam estabilizadas e conservavam o mundo social em
que viviam em equilíbrio. Porém, na pós-modernidade, as estruturas das sociedades
foram abaladas, desencadeando uma crise em larga escala nos indivíduos a tais
sociedades pertencentes.
Anteriormente a Stuart Hall, pelo mesmo caminho, Hommi Bhabha, na obra O
local da cultura (2003), traz a discussão sobre o hibridismo cultural e tece seu
37
discurso sob os escritos de Conrad, Forster, Kliping, Rushdie, Naipaul, documentos
do governo britânico na Índia, e a obra de Fanon e Said. O autor elege um conjunto
teórico apurado que abrange, por exemplo, o s-estruturalismo, a semiótica e a
psicanálise, para, com isso, analisar e debater o discurso colonial. No capitulo XI, da
obra citada, “Como o novo entra no mundo. O espaço pós-moderno, os tempos pós-
coloniais e as provações da tradução cultural” (p. 292), define claramente o
significado de ser traduzido. Por outro lado, Stuart Hall no capitulo 5 da sua obra, “O
global, o local e o retorno da etnia” (p.77), tematiza, também, a mesma questão.
pelo título dos capítulos, vemos a semelhança do assunto proposto. Ambos
preocupam-se em fazer uma reflexão que leve o leitor a entender o complexo
mecanismo da tradução cultural.
Não obstante, os dois tocam na questão relacionada aos países da Europa
que tiveram contato colonial com o chamado terceiro mundo. Hommi Bhabha abre o
capítulo citando Conrad e O coração das trevas (1990), que trata justamente desta
questão. Vejamos:
É a perversidade radical, e não a sensata sabedoria política, que impulsiona
a intrigante vontade de saber do discurso pós-colonial. Por outro motivo
vocês acham que a longa sombra de O coração das trevas, de Conrad, se
projeta sobre tantos textos da pedagogia pós-colonial? Marlow tem em si
muito do anti-fundamentalista, do ironista metropolitano que crê que a
melhor maneira de preservar o universo neo-pragmático é mantendo-se
ativa a convivência da humanidade. E é o que ele faz, naquele intricado
lance final que é mais conhecido pelos leitores do romance como a
“mentira” à Pretendida. Embora a selva africana o tenha seguido até a
imponente sala de visitas da Europa, com sua brancura aspectral,
monumental, apesar da penumbra que ameaçadoramente sussurra “o
Horror, o Horror”, a narrativa de Marlow se mantém leal às convenções de
gênero de um discurso cortês onde as mulheres são cegadas porque vêem
realidade demais, e os romances acabam porque não conseguem suportar
tanta ficcionalidade. (Bhabha, p. 292)
38
Assim, mesmo capturando o “horror” a visão de Conrad se compromete com a do
lugar a partir do qual ele fala. Para Bhabha, faz-se necessário o deslocamento desse
olhar, por exemplo, é o que as literaturas africanas acabam por fazer.
Stuart Hall, no capítulo citado, abre suas reflexões trazendo uma indagação:
as identidades nacionais estão sendo realmente homogeneizadas? (p. 77) Não
obstante, o próprio autor responde a esta questão, dizendo:
A homogeneização cultural é o grito angustiado daqueles/as que estão
convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as identidades e a
“unidade” das culturas nacionais. Entretanto, como visão do futuro das
identidades num mundo pós-moderno, este quadro, da forma que é
colocado, é muito simplista, exagerado e unilateral. (idem)
Seja através de Bhabha ou de Stuart Hall, nos capítulos mencionados, a
discussão, que se dá, está relacionada ao poderio das potências sobre as
sociedades menos favorecidas, isto é, as dos países em desenvolvimento. O que os
autores retratam, além das incongruências desta relação, é o produto identitário que
se origina destas sociedades hifenadas, isto é, que são interligadas, em algum
momento, por acontecimentos históricos e culturais. Dessa relação, quase sempre
obscura, surgem indivíduos que o submetidos às diferenças que a partir dela se
estabelecem, e que se tornam, posteriormente, produtos da tradução cultural. Como
retrata Bhabha:
A diferença cultural não representa simplesmente a controvérsia entre
conteúdos oposicionais ou tradições antagônicas de valor cultural. A
diferença cultural introduz no processo de julgamento e interpretação
cultural aquele choque repentino do tempo sucessivo, não sincrônico, da
significação. A própria possibilidade de contestação cultural, a habilidade de
mudar a base de conhecimentos, ou de engajar-se na “guerra de posição”,
demarca o estabelecimento de novas formas de sentido e estratégias de
identificação. As designações da diferença cultural interpelam formas de
identidade que, devido à sua implicação continua em outros sistemas
simbólicos, são sempre “incompletas” ou abertas à tradução cultural.
(Bhabha, 2003, p. 228)
39
As sociedades que foram submetidas ao discurso e às práticas coloniais, de
acordo com Hommi Bhabha e Stuart Hall, passaram por trajetórias culturais
similares, mesmo que localizadas em espaços completamente diferentes. Esse
processo de distanciamento, ao invés de distanciar as experiências vividas por cada
nação, aproxima relativamente os percursos, levando-nos a pensar,
simultaneamente, na relação ambivalente entre as culturas, que são por um motivo
ou outro, convidadas a negociar, o tempo todo, seus alicerces e suas estruturas,
revisitando tradições, relendo a história oficial, interagindo com o passado,
reorganizando o presente para a construção de um futuro mais justo, etc.
Obviamente, planejar um projeto dessa ordem não é uma tarefa simples, que
estar dentro de uma linhagem híbrida de cultura fortifica o permanecer do paradigma
de fazer parte de várias culturas simultaneamente, isto é, ser um indivíduo formado,
na maioria das vezes, por produtos vindos de culturas diferentes. É nesse momento,
que os textos literários tornam-se tão importantes. Retomando as palavras de
Bhabha, “é a partir desse lugar híbrido do valor cultural - o transnacional como o
tradutório - que o intelectual pós-colonial tenta elaborar um projeto histórico e
literário”. (2003, p. 242). Stuart Hall define esse fazer parte de duas ou mais culturas,
como tradução cultural, dizendo:
Este conceito (de tradução) descreve aquelas formações de identidade que
atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas
que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas
retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas
sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com
as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por
elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias
particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e
nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas,
pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas(e não a uma “casa”
particular). (HALL, 2004, p. 88 e 89)
40
Diferentemente de um outro tipo de cosmopolitismo tradicional inspirado em
padrões universalistas as sociedades que foram colonizadas são quase obrigadas a
praticar a tradução cultural, como ato de sobrevivência. Nesse ato tradutório, suas
histórias específicas e locais, muitas vezes ameaçadas e reprimidas, são inseridas
nas ‘entrelinhas’ das práticas culturais dominantes, forçando a visibilidade do
hibridismo, tanto da cultura de cada país, quanto de suas culturas locais de origem.
Para essas minorias, em seu drama cotidiano pela sobrevivência, não lhes resta
outra opção a não ser participar desse ato tradutório. Stuart Hall completa seu
raciocínio anterior explicando:
As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a
renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza
cultural “perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente
traduzidas. A palavra tradução, observa Salman Rushdie, vem
etimologicamente, do latim, significando transferir”; transportar entre
fronteiras”. Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos
ao mesmo tempo, tendo sido transportados através do mundo..., são
homens traduzidos”. (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas
diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a
habitar, no mínimo, duas identidades, falar duas linguagens culturais, a
traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos
diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na
modernidade. (2004, p. 89)
Segundo Bhabha, a ressignificação, a partir das fronteiras entre línguas,
territórios e comunidades, leva ainda os sujeitos à construção de valores éticos e
estéticos que não pertencem a nenhuma cultura específica; são valores que surgem
a partir da experiência dessa travessia entre os espaços culturais hifenados,
experiência essa que se faz, exemplo da produtividade do hibridismo cultural e de
seus atos tradutórios. Definindo esse processo ressignificatório da tradução cultural,
O autor comenta:
41
A tradução cultural não é simplesmente uma apropriação ou adaptação;
trata-se de um processo pelo qual as culturas devem revisar seus próprios
sistemas de referência, suas normas e seus valores, a partir de e
abandonando suas regras habituais e naturalizadas de transformação. A
ambivalência e o antagonismo acompanham qualquer ato de tradução
cultural porque negociar com a ‘diferença do outro revela a insuficiência
radical de sistemas sedimentados e cristalizados de significação e sentidos;
demonstra também a inadequação das ‘estruturas de sentimento’ (como
diria Raymond Williams) pelas quais experimentamos as nossas
autenticidades e autoridades culturais como se fossem de certa forma
“naturais” para nós, parte de uma paisagem nacional. (2000(a), p. 141)
Fazendo um paralelo entre tradução cultural e tradição, Stuart Hall afirma que
a diferença entre os dois conceitos se baseia na relação entre a identidade e o
próprio sujeito, isto é, a tradição tende a “recuperar a sua pureza anterior e recobrir
as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas”
(2004, p. 87). Já
a tradução cultural aceita “que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da
política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam
outra vez unitárias ou puras”.
(HALL, 2004, p. 87) Homi Bhabha também, por sua
vez, define a tradução cultural, com estas palavras:
A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. È antes a
linguagem in actu (enunciação, posicionalidade) do que a linguagem in situ
(énoncé, ou proposicionalidade). E o signo da tradução conta, ou canta,
continuamente os diferentes tempos e espaços entre autoridade cultural e
suas práticas performativas. O tempo da tradução consiste naquele
movimento de significado, o princípio e a prática de uma comunicação que,
nas palavras de Paul de Man, “põe o original em funcionamento para
descanonizá-lo, dando-lhe o movimento de fragmentação, um perambular
de errância, uma espécie de exílio permanente”. (Bhabha, 2003, p.313) (...)
A tradução cultural dessacraliza as pressuposições transparentes da
supremacia cultural e, nesse próprio ato, exige uma especificidade
contextual, uma diferenciação histórica no interior das posições minoritárias.
(BHABHA, 2003, p. 314)
As práticas de conservação cultural, de acordo com Stuart Hall e Homi
Bhabha, estão intrinsecamente ligadas às pequenas comunidades
9
encontradas nas
9
A comunidade é o suplemento antagônico da modernidade; no espaço metropolitano ela é o
território da minoria, colocando em perigo as exigências da civilidade; no mundo transnacional ela se
42
periferias das grandes metrópoles e nos países colonizados, de modo geral. Bhabha
e Hall esclarecem que tal negociação entre comunidades não é nem cooperação
nem assimilação, mas uma possibilidade do surgimento de uma aliança que rejeita a
representação comum da incompatibilidade social. Nesse processo, os sujeitos
híbridos encontram suas vozes numa lógica que rejeita os valores da hegemonia
cultural, pois é comum às sociedades, quando são ameaçadas por alguma forma de
ruptura social ou cultural, criarem grupos em pequenas regiões, com o intuito de
fortalecerem seus laços com o seu povo e com a terra natal, reatualizando as
práticas tradicionais e, dessa forma, protegendo os valores que deverão ser
passados para as novas gerações, através do escrito ou simplesmente através da
experiência.
O que se conclui a partir de tais reflexões é que as identidades não estão
chegando ao seu fim e que mecanismos de adaptação e de negociação cultural
estão presentes nas relações entre sociedades. Stuart Hall e Hommi Bhabha
esclarecem que, mesmo pelo entrecruzamento cultural, a homogeneização social
nunca alcançará sua plenitude. Ao contrário, o máximo que se pode esperar desse
processo é uma tradução, uma ressignificação através de ‘hifenações’ entre culturas
distintas. Isto é, do encontro entre culturas se poderá surgir um produto novo, mas
nunca a extinção dos elementos desse encontro.
torna o problema de fronteira dos diaspóricos, dos migrantes, dos refugiados.” (BHABHA, 2003,
p.317)
43
2.
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO E
M
IA
C
OUTO
2.1
A
ESCRITA ROMANESCA COMO UM NOVO
CONTAR DE ESTÓRIAS
O
HOMEM ESQUECE PARA TER PASSADO E MENTE PARA TER FUTURO
.
M
IA
C
OUTO
Diante de tanta modernidade, hoje parece não haver muito tempo para a
leitura de grandes romances. A informação rápida e instantânea está ganhando
cada vez mais espaço. A escola, lugar que deveria privilegiar leituras de autores que
contribuíssem para um crescimento intelectual dos estudantes, investe cada dia
mais em um ensino que esteja mais próximo da realidade dos mesmos. Indicando
leituras mais breves, acessos à internet e a textos com uma extensão curta, como
contos e crônicas
10
. A realidade se faz mais assustadora quando se pensa que
material de qualidade, hoje disponibilizado a um custo relativamente acessível no
mundo editorial. Pensando a questão da literatura nacional, vemos que temos a
disposição obras clássicas e contemporâneas, disponíveis no mercado para acesso
de todos. Se pensarmos no passado, ter acesso à literatura estrangeira era, de fato,
algo complicado. Era uma busca incessante por títulos internacionais. Porém, hoje,
essa dificuldade foi vencida com a globalização e difusão do conhecimento. O
mercado editorial acompanhou essa transformação e, mesmo em meio às
informações instantâneas, abriu espaço para a publicação de autores, como, por
exemplo, Mia Couto de Moçambique e, entre nós, da brasileira Conceição Evaristo,
10
Isso ocorre não por serem as crônicas e os contos modelos de escritas menores diante do
romance. Tal fato se pela extensão e acessibilidade desses gêneros, que diferente do romance,
são mais aceitos, de modo geral, pelos estudantes.
44
cuja obra chegou ao exterior, como a do Mia também. Os autores citados
comprovam, com suas vendas, que, dentre outros fatores, o romance, mesmo tendo
passado por grandes transformações, continua sendo como diz Lukacs: “a forma da
virilidade amadurecida.” (LUKACS, sd, p.79)
A escrita romanesca está presente no mundo ocidental desde o início dos
século XVII, sendo o precursor deste gênero, Dom Quixote de La Mancha. Na
tentativa de parodiar a novela de cavalaria, Miguel de Cervantes não escreveu
um dos grandes clássicos da literatura, como ajudou a firmar os alicerces daquele
que viria substituir a epopéia, gênero que agonizava e desapareceria no culo
XVIII, com o advento da era industrial.
Quando chega a Modernidade, o romance ganha destaque com Balzac, e
atinge seu ápice com Proust, Joyce e Faulkner. Passado, presente e futuro são
diluídos depois desses autores. E, a partir do século XX, a discussão sobre o fim do
romance atinge maior dimensão. A morte do romance teria ocorrido por volta dos
anos 50, na França, quando vários autores passaram a recusar o conceito de
romance cuja função é contar uma história e delinear personagens, conforme as
convenções realistas do século XIX e passaram a transcender certos valores do
romance tradicional: como o tempo, o espaço, a ação, o repúdio à noção de
verossimilhança, entre outras características do romance clássico.
Os Estados Unidos, no ano de 1936, viveu a época clássica do cinema
falado. Antes de ser influenciado pelo cinema, o romance o influenciou, a ponto de,
nas décadas de 30 e 40, a indústria cinematográfica ter privilegiado os filmes
narrativos e grandes romancistas terem sido contratados pelos estúdios para
escreverem roteiros. Mesmo assim em 1936, Scott Fitzgerald escrevia: "vi que o
romance, que na minha maturidade era o meio mais forte e flexível de transmitir
45
pensamento e emoção de um ser humano para outro, estava ficando subordinado a
uma arte mecânica e assim tinha condições de refletir os pensamentos mais
batidos, as emoções mais óbvias. Era uma arte em que as palavras eram
subordinadas às imagens.” (http://www.sc.edu/fitzgerald/. Acessado em novembro
de 2009) Antes desse período, por volta de 1920, com a publicação do romance
Ulisses (1922), considerado o ápice do gênero, Joyce foi intitulado o criador da
paródia final do romance, isto é, compondo uma paródia do seu próprio tempo.
No campo literário nacional, a cada de 1950 foi bem produtiva, trazendo,
por exemplo, em 1956, grandes títulos literários como O encontro marcado, de
Fernando Sabino; Doramundo, de Geraldo Ferraz; Vila dos Confins, de rio
Palmério e Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Ainda desta década, em
1958, Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado e a trilogia de Érico Veríssimo: O
tempo e o vento, também em 1958, sucedendo O continente, de 1949 e O retrato de
1951.
Mesmo sendo uma suposta especulação, a morte do romance não escondeu
nomes como Zola, André Gide; ou, mais adiante, nomes como Proust, Joyce, Kafka,
Robert Musil e Machado de Assis. Na verdade o romance, nunca morreu, apenas
sofreu transformações. Adorno, Walter Benjamin, Lukacs, Auerbach discutiram
essa questão e o que vemos hoje é justamente a evolução da escrita romanesca.
Até porque, justamente quando se discutia se os recursos do gênero estariam
realmente esgotados e seus dias contados, surge o que ficou conhecido como “o
boom” da literatura latino-americana: revelando nomes como Julio Cortázar, Vargas
Llosa, Gabriel Garcia-Márquez, Carlos Fuentes, Cabrera Infante, Miguel Ángel
Asturias, Alejo Carpentier, entre outros. Era, para o ocidente, a encenação do que
passa a ser chamado de “realismo mágico”.
46
Na verdade, o romance sempre esteve em transformação. Sendo um dos
filhos da revolução industrial, viu-se igualmente diante da concorrência de outros
meios de comunicação: o desenvolvimento do jornalismo, do cinema, do rádio, da
televisão e, mais recentemente, da própria internet. Porém, o que podia parecer
ameaça vem para consolidar cada dia mais o gênero, intercambiando informações e,
em algumas ocasiões, servindo para divulgá-lo. O próprio cinema e a televisão vêm
contribuindo, de forma madura e consolidada, para essa difusão literária. Obras de
William Shakespeare, Saramago, Machado de Assis, Graciliano Ramos, entre
outros, foram vistas por centenas de expectadores nas telas do cinema ou da
própria televisão. Abre-se, dessa maneira, o caminho, em alguns casos, para
procura dos títulos impressos, por muitos que não tinham travado contato
anteriormente com essa produção, ora por dificuldade financeira, ora por alienação
cultural, ora, simplesmente, por desconhecer a força da literatura, nacional ou
mesmo internacional. Contudo, embora em meio a tantas transformações,
especulações e discussões críticas sobre a trajetória romanesca, o gênero continua
contribuindo para a formação e a expansão do conhecimento nas sociedades
modernas.
Conceição Evaristo e Mia Couto escrevem de uma perspectiva moderna, sem
deixar de olhar, no entanto, para os moldes tradicionais da escrita romanesca do
passado, revelando, de forma renovada e com uma nova roupagem, a tradição do
ofício da escritura. Por isso, é preciso compreender que o romancista é um tecelão
do presente, do passado e, quiçá, do futuro. Roland Barthes diz que o vocábulo
“texto quer dizer tecido(BARTHES, 2002, p. 74), portanto, escrever um texto é o
mesmo que tecer sentidos, que podem ou não servir como trajes dos seus possíveis
leitores, mas que, de alguma forma ou em ocasião serão utilizados, custe o tempo
47
que custar, para a formação dos indivíduos de qualquer sociedade, até porque como
diz Walter Benjamin, “escrever um romance significa descrever a existência humana,
levando o incomensurável ao paroxismo.” (BENJAMIN, 1985, p 54)
2.2
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
:
UMA RENDEIRA DE PALAVRAS
E
RA PRECISO VIVER
.
V
IVER DO VIVER
.
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
Conceição Evaristo (Maria da Conceição Evaristo de Brito), nasceu em Belo
Horizonte / MG, em 1946. É a segunda filha de uma família de nove irmãos. A mãe,
Joana Josefina Evaristo Vitorino; a tia, hoje falecida, Maria Filomena da Silva, assim
como os outros membros da família transmitiram à escritora o gosto pelo “contar e
ouvir histórias”. Dessa experiência, em que tudo, do maior ao menor acontecimento,
se transformava em uma narrativa, despertou em Conceição Evaristo, desde cedo, a
necessidade da escrita.
Em 1973, depois de ter concluído, em 1971, o antigo curso Normal de Minas
Gerais, parte para a cidade do Rio de Janeiro em busca de trabalho, prestando
concurso público e ingressando, assim, no magistério. Continua seus estudos,
graduando-se em Letras (Português- Literatura) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. É mestra em Literatura Brasileira pela PUC/RJ e Doutoranda em Literatura
Comparada na UFF. Esteve como palestrante, em 1996, nas cidades de Viena e de
Salzburgo/ Áustria e, em 2000, em Mayagüez, Porto Rico, falando sobre literatura
afro-brasileira.
48
Publicando sempre em antologias, seus primeiros trabalhos surgem, em 1990, na
coletânea Cadernos Negros, do Grupo Quilombhoje de São Paulo. A partir de então,
anualmente, a série Cadernos Negros tem sido o principal veículo de divulgação de
seus trabalhos.
Conceição Evaristo, com a sua escrita, em certo sentido, reverte a situação
complexa ainda vivida no país, em que a mulher negra precisa vencer a chamada
tripla discriminação: mulher, negra e pobre. Como se sabe, as mulheres negras
constituem um terço da população, segundo senso feito pelo IBGE, sendo, na sua
maioria, analfabetas e de baixa renda, com o encargo de chefiar a família na maioria
dos casos.
Em plena redemocratização do país, a autora participou da publicação do
primeiro volume da série Cadernos Negros, que buscou defender a literatura de
caráter afro-brasileiro e abriu caminho para uma grande produção literária desta
natureza.
Nessa época, não surgem movimentos literários de enfrentamento à
repressão política, mas também o conceito de negritude toma fôlego e reage contra
a falsa aceitação da condição subalterna pelo negro, o que gera movimentos de
oposição que marcavam o meio social, político e cultural brasileiro. Sendo assim, o
negro mostra a sua força não somente como um segmento racial que sabe trabalhar
pesado, mas como um grupo cultural capaz de atuar no mundo das artes, por
exemplo. Neste movimento de inclusão, o negro busca rasurar a idéia da pouca
importância de sua participação na formação da cultura brasileira e passa a divulgar
a sua grande e indiscutível contribuição neste complexo processo:
O Brasil é o país de maior população negra fora da África, após a Nigéria,
historicamente um pais escravocrata onde ainda perduram as idéias
racistas nas instituições governamentais e na sociedade em geral. Mesmo
49
quando a pessoa negra não adquiriu a consciência do racismo, ser negra
em nosso país significa viver em condição de extrema desigualdade social e
racial. (ANDRADE SALGUEIRO, 2004, P.109).
Maria Aparecida Andrade Salgueiro, docente e pesquisadora da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, com uma pesquisa sobre a escrita de mulheres negras
contemporâneas no Brasil e nos Estados Unidos, completa seu raciocínio dizendo
que:
O atual momento histórico brasileiro presencia fatos próximos aos vividos
nos Estados Unidos. Ações Governamentais, ação afirmativa, mídia própria
e artistas procuram a mudança, cada um com os seus meios. Grupos se
organizam por temas diversos relacionados à cultura-afro, eventos múltiplos
centrados em discussões relativas ás populações negras ocorrem nas
universidades e fora delas, a questão das opções na educação formal para
os negros é amplamente discutida, incluindo até a polêmica tramitação, ora
no Congresso Nacional, de cotas de vagas para negros nas Universidades
Públicas Brasileiras. Tudo isso lado a lado com manifestações culturais
diversas na musica, na produção fonográfica, nas artes, no teatro e na
imprensa. (idem, P.116).
Após um longo período com pouca visibilidade, a cultura negra vem-se
destacando no cenário artístico brasileiro -- revistas, publicações variadas, música,
produção fonográfica, arte dramática etc. criando, aos poucos, um ambiente mais
favorável para a sedimentação da cultura especificamente afro-brasileira.
Por volta de 1970, começam a ganhar visibilidade movimentos literários que
defendem o papel da cultura negra na formação da identidade brasileira. O negro se
volta para a defesa de suas características e passa a divulgá-las com orgulho. Em
outras palavras, acumplicia-se, cada vez mais, com as suas manifestações culturais
e passa a impor respeito quanto ao seu modo de ver a vida. Nesta mesma época,
surge, no cenário literário, mais precisamente em 1978, como dito, o primeiro
volume da série Cadernos Negros, composto por poesia e prosa. Após o sucesso do
seu primeiro volume, acontece, a cada ano, o lançamento de outros, alternando
50
poemas e contos de estilos diversos. Cabe lembrar que, embora com dificuldades
financeiras, a publicação ainda é a única antologia editada entre nós. Sua
participação na divulgação da cultura afro-brasileira tem sido elogiada por países
como os Estados Unidos, Áustria e México. Sendo organizados pelo grupo
paulistano de literatura Quilombhoje, os Cadernos Negros estão abrindo o caminho
para a divulgação da produção afro-brasileira, fato que se vem a somar com outras
manifestações artísticas como dança e teatro, reunindo dezenas de pessoas em
cada volume lançado. O sucesso da publicação é tão grande que se tornou objeto
de teses, ensaios e estudos diversos, e assim, tais trabalhos também contribuem
para a discussão sobre a questão racial brasileira.
Grande parte dos objetivos alcançados neste processo de resgate cultural se
deve à participação ativa e sólida das mulheres, que lutam por melhorias desde o
início dos anos 70. Escritoras, como Conceição Evaristo, Miriam Alves, Esmeralda
Ribeiro, Lia Vieira, Elisa Lucinda, Mãe Beata de Yemonjá, Cléo Martins, entre outras,
vêem ganhando espaço neste cenário, sendo reconhecidas e convidadas pelo
exterior para divulgarem a sua arte.
Como toda literatura, a brasileira possui um caráter político, social e cultural
que remete a conceitos e ideologias que precisam ser modificados. Escritores e
escritoras se manifestam, não só para divulgar a sua arte, mas, também para,
através dela, criar condições mais favoráveis e mais democráticas para o
desenvolvimento dos assuntos relacionados a questões raciais, fazendo do Brasil
um país realmente multiforme. Assim é o trabalho de Conceição Evaristo, uma
tecelagem de palavras que busca juntar o passado com o presente. Um trabalho
quase manual que, na costura das palavras e na trançagem das linhas da história,
apresenta uma contextura que sinaliza a luta por um espaço mais justo dentro da
51
sociedade e, paralelamente, a busca por méritos literários. Maria Aparecida
comenta:
Cabe lembrar que a trajetória de Conceição Evaristo vem sendo a de,
mantendo-se ligada ao Movimento Negro organizado, seguir caminho
também na Academia, com sua rica dissertação de Mestrado e atualmente
concluindo um curso de Doutorado. Desta forma, vem pensando a literatura
a partir de suas raízes, ligada aos grupos negros da sociedade e por dentro
da Universidade fornecendo subsídios, forçando e cobrando desta um
posicionamento crítico de seus pesquisadores, questionando e
multiplicando questões sempre. Em tempo de revisões, é importante tentar
forçar o dialogo, ou nas palavras da própria Evaristo, em entrevista conosco
em 1996 no centro cultural José Bonifácio: “é preciso não falar do outro,
mas, principalmente, abrir espaço para o outro falar”. (ibidem, p. 123)
Como se percebe, a romancista, rendeira de palavras, propõe aos seus
leitores uma investigação, uma reflexão mais coerente sobre os valores humanos,
que repercutem diretamente nos próprios conceitos intrinsecamente ligados aos
valores culturais nacionais. Conceição Evaristo promove uma escrita visceral,
virando ao avesso cada palavra, no intuito de levar às últimas consequências o valor
de cada vocábulo, cuidadosamente escolhido por ela. Entre poesias, poemas, prosa
e verso, a autora cobre seus leitores com um tecido humano. Suas palavras chegam
aos ouvidos como uma canção de ninar, mesmo quando se trata da realidade
dramática de algumas comunidades. Seu narrar alimenta a fantasia, colocando o
leitor diante de uma renda, na qual se percebe, a cada leitura, os fios condutores da
força da oralidade.
52
2.3
M
IA
C
OUTO
:
O MÚSICO E ARRANJADOR DAS PALAVRAS
N
EM SEQUER ACREDITO NA FRONTEIRA ENTRE POESIA E PROSA
.
M
IA
C
OUTO
Mia Couto (Moçambique, Beira, 1955) e cujo nome é António Emílio Leite
Couto foi apelidado Mia, devido a seu irmãozinho não conseguir dizer "Emílio".
Segundo o próprio autor, a utilização deste apelido tem a ver, também, com sua
paixão pelos gatos, pois dizia a seus familiares, desde sua infância, que queria ser
um deles. Ele disse, em certa ocasião, com relação ao nascimento na Beira,
segunda cidade de Moçambique, que não tinha uma "terra-mãe", mas uma "água-
mãe", referindo-se à tendência à inundação daquela cidade baixa, localizada à beira
do Oceano Índico. Iniciou o curso de Medicina, ao mesmo tempo em que se
começava a exercer o jornalismo, abandonando o primeiro curso para se dedicar,
em tempo integral, à segunda ocupação. Foi diretor da Agência de Informação de
Moçambique e mais tarde, tirou o curso de Biologia, profissão que exerce até os dias
de hoje. O escritor fala sobre sua vivência em sua terra natal, dizendo:
Primeiro, a Beira era uma cidade muito particular, porque existia esse
estigma da divisão racial, se calhar era o lugar de Moçambique onde essa
hierarquia espacial por raças era mais evidente. Segundo, a Beira era
também um pântano, essa arrumação espacial não foi plenamente
conseguida. A Beira acabou por ser até à Independência, uma cidade
misturada onde essas margens dos territórios negros, brancos e das outras
raças se entrecruzavam. E por circunstâncias da minha vida, vivi nessa
margem, os outros estavam do outro lado da rua : os indianos, os pretos, os
mulatos chineses - que existiam na Beira. Isso me ajudou a encontrar a
mestiçagem. Por outro lado, os meus pais tinham adotado um menino mais
velho, João Joãquinho. Vivia dentro da nossa casa: era um menino negro
cujos pais tinham-no entregue para ser educado pelos meus pais. Era
praticamente um irmão. A África estava ali dentro de casa por causa desse
menino, e também fora de casa, na rua, lugar de encontro com os outros.
Não diria que conheci um Moçambique profundo, mas vivi esses vários
Moçambiques e a maneira como se entrecruzam. Eu questiono essa noção
de profundo, porque se alcança esse Moçambique profundo a partir da
53
leitura desses cruzamentos possíveis, que o são apenas cruzamentos de
raças, mas entre culturas diferentes, de culturas africanas de diversas
etnias. A Beira era também uma cidade onde havia imigração de muitas
outras etnias o que favoreceu uma situação de mestiçagem plural.
(http://revistabrasil.org/revista/artigos/celina3.html, acesso em novembro de
2009)
Na escola básica, Mia Couto travou contato com escritores portugueses.
Por isso, num certo momento, ele e seus colegas de classe chegaram a odiar
Camões, Almeida Garrett e Herculano. Mas logo, com a maturidade, seu gosto foi
sendo transformado, revelando-se um apaixonado por Fernando Pessoa, Sophia de
Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, além dos brasileiros Manuel
Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros. Mia Couto define-se como
um contrabandista entre Europa e África, Ocidente e Oriente, posicionamento que
implica uma constante errância entre escrita e oralidade. Pois, de acordo com as
palavras do próprio autor, por ter nascido numa circunstância particular lhe permitiu,
sem esforço, como algo natural, entrar em contato com esses cruzamentos culturais.
Ele diz: “Sou um europeu que tenta fazer uma viagem adentrando em outro espaço.
Sou um ponto de chegada e de partida, um ser de fronteiras, situado entre vários
territórios”. (idem)
Sua relação com a palavra vem de uma frustração profissional. Mia Couto
afirma ser um músico frustrado. Por isso, procura a musicalidade nas palavras,
fazendo de seus poemas ou narrativas, uma espécie de arranjos musicais, tentando
trazer, para a escrita, a fluidez de uma canção bem executada. Sua escrita, de
acordo com o próprio autor, nunca deixa de ter, mesmo em sua prosa, contornos da
poesia:
Eu venho da poesia. O meu primeiro livro, Raiz de orvalho, era um conjunto
de poemas. Comecei, portanto, por escrever poesia e depois penso que
nunca deixei de ser poeta no sentido de traduzir o sentido mágico da
54
palavra e, ainda hoje, considero que estou escrevendo histórias de forma
poética. Também creio que a poesia pode ajudar no trabalho de
transgressão que eu quero fazer. Porque a realidade que eu quero revelar é
uma realidade que só pode ser contada através de certo sentido mágico e
de certa transgressão de fronteiras, entre o verso e a prosa, a escrita e a
oralidade. E a poesia ajuda a fazer essa desmontagem. (ibidem)
De acordo com Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco, professora doutora do
Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mia Couto é um
“tecelão de sonhos, memórias e linguagens” (SECCO apud SEPÚLVEDA,
SALGADO, 2000, p. 279), que faz da escrita um permanecer nas águas da poesia,
mesmo quando escreve em prosa: “Mia Couto sabe-se herdeiro de cruzamentos
culturais múltiplos e tem clareza de que sua produção se alimenta não de
estratégias orais do narrar africano, mas de jogos lúdicos universais que fazem de
sua prosa um tecido híbrido e poético.” (p.271) Segundo ainda a ensaísta, as
brincriações, logotetismo caracterizam o estilo do autor, cuja artesania se
torna uma constante em sua obra. Tal ludicidade, porém, é,
paradoxalmente, de uma seriedade imensa, pois, ao invés de se constituir
como simples passatempo, transforma-se em jogo de reflexão permanente.
Os freqüentes trocadilhos e inversões de letras, palavras e sentenças
utilizados pelo escritor subvertem a linguagem de seus textos em
miudádivas e pensatempos”, que levam o leitor, a cada passo, a esbarrar
no inusitado, sendo obrigado a parar e meditar no sentido das palavras. Por
esse constante procedimento transgressor, ou seja, pelas imaginografias
poéticas”, Mia Couto converte sua escritura uma arte de pensar não a
linguagem, mas também a história de seu país e do mundo, assim como os
sentimentos e as emoções universais do ser humano. (p. 271 e 272)
Publicada em Portugal e no Brasil, além de seu país natal, a obra de Mia
Couto se divide em poesia, crônica e romance, textos que foram traduzidos em
várias línguas e editados em países diferentes. Entre eles estão Alemanha, Bélgica,
Bulgária, Chile, Croácia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Finlândia, França, Grécia,
Israel, Itália, Holanda, Polônia, Noruega, Reino Unido, República Checa e Suécia.
Mesmo sendo uma escrita pautada na leveza, em grande parte da sua obra, o tom
55
político -- de resistência e de busca por uma identidade moçambicana -- aparece
com freqüência, indicando claramente uma preocupação já enraizada no autor,
como o exposto abaixo pela ensaísta Camen Tindó:
Em Palestra proferida na Faculdade de Letras da UFRJ, em 11/09/97, o
escritor demonstrou preocupação com os rumos tomados, na época, por
seu país. Segundo ele, Moçambique mostrava-se uma nação sem memória,
sem passado, onde quase ninguém mais falava das guerras. Era um país
em viagem, em construção, voltado, apenas para os investimentos
modernos, para o futuro, esquecido de que essa palavra não existia em
algumas das línguas faladas pelas etnias moçambicanas, para quem o
porvir se afigurava como um território sagrado, proibido de ser visitado. O
escritor apontou como perigosa essa atitude silenciosa do povo. Alertou
para o fato de que as feridas não cicatrizadas e os fantasmas da história
poderiam ressurgir inesperadamente. Para o autor, entretanto, formas de
resistência. A literatura é uma delas, pois, fazendo dialogarem o real, o
imaginário e o fictício, se institui como um espaço simbólico capaz de
possibilitar a catarse desses momentos problemáticos do passado. Embora
os textos de Mia Couto denunciem duramente a realidade de Moçambique,
com a lúcida visão política, fundam também uma nova cartografia que
ultrapassa os limites geográficos do país dilacerado, e traçam, pelo viés dos
sonhos e da recriação verbal, o mapa de uma nação reimaginada, à procura
de sua própria identidade. (p. 280 e 281)
Esta estudiosa, ainda no texto que aqui vai sendo citado “Mia Couto: ‘E a
incurável doença de sonhar’”, maestrinamente define o cunho militante da escrita de
Mia Couto, revelando a beleza e a autenticidade do seu discurso.
A ficção miacoutiana chama atenção para as contradições internas e
externas que afetam seu país. Denuncia a orientação consumista das elites
negras, o desemprego crônico, as fábricas desativadas, os deslocados de
guerra e da seca a incharem os bairros de caniço na periferia urbana, a
corrupção, os saques, a agressividade e o desencanto do pós-guerra.
Evidencia também os conflitos entre os espaços urbanos e rurais, entre a
língua portuguesa, idioma oficial, e as muitas línguas nativas existentes no
país. Mostra como o processo da independência foi ineficaz para resolver
os problemas étnicos; as pressões multinacionais, os ressentimentos entre
FRELINO (partido do Governo) e a RENAMO (partido da oposição).
Na linha de Joyce, Guimarães Rosa e Luandino Vieira, Mia Couto recria a
língua portuguesa com saberes e sabores africanos. Fratura o idioma luso
com construções marcadas pelo ritmo das línguas nativas de Moçambique
e, assim, inova seu discurso, tornando-o capaz de captar novas
sensibilidades e outras maneiras de olhar o mundo. (p. 281)
56
A obra de Mia Couto, mistura gêneros literários distintos, porém em todos os
seus trabalhos, passamos pelas malhas da poesia. Sua escrita nunca é seca, nunca
propõe a exatidão dos vocábulos. Pelo contrário, sua linguagem é simbólica.
Arranjos de palavras dão origem a uma nova interpretação sobre os vocábulos.
Além disso, o uso permanente das línguas nacionais de Moçambique, marca
conhecida na sua escrita, dá o tom local que sua literatura sugere. Porém, o fato não
impede que o autor siga outros rumos fora da cultura de Moçambique. Desse modo,
estabelecer contato com a obra de Mia Couto é desfrutar dos sonhos já exauridos no
homem moderno, seja africano, europeu, norte-americano ou brasileiro. Como diz
Carmen Lúcia Tindó: “Mia Couto não fecha suas histórias. Estas, labirinticamente,
enredam os leitores, contagiando-os com essa mesma ‘doença dos sonhos’”. (280),
e prendendo-os nas malhas de uma escrita que traz a arte de sonhar, mesmo com
os pés no chão; que traz a leveza de um vôo, através das asas da imaginação, sem,
contudo, se distanciar das características imprescindíveis numa obra literária, que,
sendo prosa é poesia. E, sendo escrita, se quer música, composta por esse exímio
arranjador de palavras.
2.4
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO E
O
OUTRO PÉ DA SEREIA
:
C
ARAVELAS DE UM MESMO MAR
E
U TURVO A ÁGUA PARA OLHAR A TRANSPARÊNCIA DA TERRA
.
M
IA
C
OUTO
Até o presente momento, esboçamos uma reflexão sobre os autores e, de
forma geral, de suas respectivas obras. Porém, a partir de agora, viajaremos rumo
57
ao interior das narrativas Ponciá Vicêncio e O outro pé da sereia, romances que se
apresentam como grandes caravelas, isto é, meio de transporte capaz de cruzar
mares e oceanos revoltos. No entanto, o mar cruzado aqui inclui momentos de paz,
angústia, solidão, amor, desilusão, abandono, descobertas, lucidez, embriaguez,
assolamento, redenção, purificação, estranhamento, dor e transcendência. As
caravelas, aqui presentes, Mwadia e Ponciá, não decidem seus percursos. Pois
quem delimita tais trajetórias é a fluidificação de cada palavra, cada gesto, cada
escolha. Isto é, ao contrário do que se espera, as águas com seus mistérios que
conduzem o roteiro dessas duas viagens.
2.4.1
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO
11
E
LA ACREDITAVA QUE PODERIA TRAÇAR OUTROS CAMINHOS
,
INVENTAR UMA VIDA NOVA
.
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
O romance Ponciá Vicêncio enfoca a trajetória de vida da protagonista de
mesmo nome, uma mulher negra, descendente de escravos, que cresce na roça
trabalhando com o barro, e depois, vai em busca de uma vida melhor na cidade
grande. Ponciá possui uma personalidade forte, rica em imaginação, vive
relembrando o passado, juntando momentos vividos na procura de sua própria
existência, sonhando em encontrar o seu lugar e acabando por se perder dentro de
si mesma. Conceição Evaristo propõe no seu romance uma espécie de mergulho ao
interior feminino de uma personagem que busca incansavelmente um lugar dentro
11
Por ser um texto escrito em terceira pessoa, quase seco e sem diálogos, apenas um, durante toda
a narrativa. Torna-se praticamente impossível não parafraseá-lo durante a sua apresentação.
58
da sociedade brasileira. A escrita da autora, desenhada com detalhes simples,
permite, no ato da leitura, sensações nunca antes experimentadas. Ponciá Vicêncio
sugere um experimento novo dos vocábulos nele contidos, isto é, permite olhar para
algumas palavras conhecidas de um outro lugar, de uma nova perspectiva,
levando ao extremo o sentido de cada palavra. Sendo assim, mergulhar nesse
universo nos permite além de, um exercício constante de conhecimento com a
linguagem, reconhecer a fundo os alicerces de uma sociedade que ainda se mantém
em construção. A estória de Ponciá representa a história de muitas mulheres que
estiveram em similar situação no passado brasileiro, porém se ficarmos atentos esse
tipo de encontro ainda se faz presente nos dia de hoje.
O romance inicia-se com Ponciá Vicêncio ainda criança nas redondezas de
sua casa na roça, brincando e apresentando-se aparentemente feliz. Mas logo,
quando Ponciá cresce e parte para a cidade, almejando uma vida mais justa para
ela e para a sua família, acaba por apresentar-se presa às recordações do tempo da
sua meninice, fase que, para ela, fora a mais feliz de sua vida, que não conhecia,
ainda, as dores de uma vida pautada nos alicerces da diferença racial tão
solidificada pelos regimes de escravidão. “No tempo em que Ponciá Vicêncio ficava
na beira do rio, se olhando nas águas, como se estivesse diante de um espelho, a
chamar por si própria, ela o guardava ainda muitas tristezas no peito”.
(EVARISTO, 2003, p.18)
12
Ponciá, como apontado, nasceu e foi criada na roça. Viveu parte da sua
vida junto com o seu pai Vicêncio, sua mãe Maria Vicêncio e seu irmão Luandi José
Vicêncio. Ainda na infância, conviveu com o avô “cotó”, palavra esta repelida no
texto. Vô Vicêncio morreu ainda quando Ponciá era criança. Sua ligação com ele era
12
A partir desse momento, traremos somente o número das páginas citadas, já que estamos
trabalhando com uma única obra.
59
significativa, a que a leva a moldar a sua imagem no barro. Vicêncio “era muito
velho.(...) Andava encurvadinho com o rosto quase no chão. Era miudinho como um
graveto”. Tinha o braço mutilado e vivia escondendo-o atrás das costas. “Ele
chorava e ria muito”. (p.12) Antes de morrer trabalhou nas terras do senhor que lhe
deu o sobrenome e tentou o suicídio para fugir da escravidão, “não queria ser mais
escravo”. (p. 72) Em um momento de fúria matou a esposa e com o tempo,
enlouqueceu. Mesmo com todas essas limitações existenciais, o avô deixou em
Ponciá fortes memórias, dporque ela lembrava mais dele do que do próprio pai,
Vicêncio. Quando ele morreu, deixou uma herança para a neta, mas ninguém sabia
ao certo em que consistia tal legado. Após a sua morte, a menina passou a andar
com o braço para trás, como se não o tivesse, fato que gerava a estranheza de
todos.
Por sua vez, o pai de Ponciá, quase não parava em casa, já que vivia
trabalhando na roça nas terras dos brancos, sendo sempre muito explorado, como
se pode intuir. Como se sabe, o fim da escravidão ocorreu, porém, o fim da
exploração da o de obra negra, não. Por isso, o pai de Ponciá não tinha tempo
para seus filhos e sua mulher, pois, quando o era hora de colher, era de plantar.
Quando criança e “pajem do sinhô moço” (p.14) passou pela humilhação de abrir a
boca e deixar que este urinasse dentro dela, tamanha era a sua subalternidade. Um
tempo depois, foi testado pelo menino branco que queria saber se o negro
conseguia aprender a ler. Ao ver que o pajem aprendia o sinhozinho, encerrou os
ensinamentos. Como Vicêncio, o filho Luandi também trabalhava na roça dos
brancos.
A mãe de Ponciá, Maria Vicêncio, vivia do barro e da espera de seu marido,
cuidando dos filhos e dos afazeres da casa. Deixava a vida passar, construindo
60
panelas, tigelas, moringas que enfeitavam a casa dos brancos. Ponciá a ajudava,
moldando o barro e vendendo as peças para o sustento da família. Quando a
personagem se viu adulta, após a morte do pai, resolveu partir para a cidade em
busca de novos caminhos que a levassem a ter uma vida melhor, com o sonho de
prosperar e, depois, buscar a sua mãe e seu irmão. Este, logo depois de sua partida,
seguiu o mesmo caminho, indo para a cidade. nasceu-lhe o sonho de ser um
soldado, para ter sucesso e, com isso buscar sua mãe na roça, além de, reencontrar
sua irmã na mesma cidade. Luandi sonhava em ser soldado para poder mandar,
bater e prender quem ele quisesse, isto é, seu desejo era ocupar um lugar que
pertencia ao homem branco. Fica claro que esse desejo parte do enfrentamento
contra a posição social destinada aos negros de tal sociedade pós-escravidão.
Luandi quer ser policial, para, com isso, ser respeitado. A questão aqui não é roubar
o lugar do branco, mas sim ser visto como este o era.
Ponciá, quando chega à cidade, consegue um emprego em casa de família,
continuando a servir os outros como todos os membros da sua família. Logo começa
a juntar dinheiro para comprar um barraco, também com o intuito de um dia, buscá-
los na roça. Quando consegue uma folga e volta para a sua terra, tempos depois,
não encontra ninguém no seu antigo lar e volta para a cidade no trem que passava
de tempos em tempos. Com o vazio no peito, passa a viver, vendo os dias se
sucederem e acaba por se casar, tentando por sete vezes ser mãe. Nenhuma
gravidez tem sucesso, pois, depois de nascidos, os bebês logo partiam. Esta é outra
grande frustração para a jovem, que não tem nem o direito de ser mãe. Fato trágico
tratando-se de uma mulher descendente da cultura africana, da qual, é de suma
importância o provimento de novos herdeiros.
61
Luandi conquista um emprego na delegacia da cidade e, com a ajuda de um
soldado, Nestor, aprende a escrever, sempre mantendo o sonho de se tornar um
soldado respeitado e, com isso, tornar-se um homem com poderes sobre os outros,
que crescera vendo o oposto em sua própria família. Luandi se torna um
funcionário exemplar e passa a ver o Soldado Nestor praticamente como um irmão.
Essa relação apresenta um dos primeiros pontos de solidariedade encontrado na
narrativa, pois o soldado Nestor, negro também, encoraja Luandi a buscar uma
posição melhor dentro da sociedade através do estudo, para que fosse um dia, um
soldado ou muito mais do que isso. Nestor também foi o responsável pelo encontro
de Luandi com o seu grande amor, pois, nos finais de semana, o levava sempre a
um bordel, onde trabalhava Bilisa, brutalmente assassinada pelo cafetão da casa,
Negro Climério, tempos depois, enquanto fazia seu enxoval para casar com o jovem.
Ponciá, após perder os sete filhos e com a saudade de sua família a tornar-se
cada vez maior, entra para o seu mundo interno e solitário, esquecendo de viver e
causando, dessa maneira, um terrível sentimento em seu marido, um homem de
pouco contorno, isto é, com pouca atuação sobre o mundo. Ao vê-la nesse estado, o
marido sente raiva e chega a espancá-la até tirar sangue. Porém, o esposo logo se
refaz e tenta, da melhor maneira possível, tirar Ponciá do seu grande abismo.
Luandi, após trabalhar duro na delegacia, consegue uma dispensa e viaja em
busca de notícias de sua irmã e de sua mãe. Vestido com uma farda velha que
conseguira emprestada, chega à roça e reencontra seu barraco vazio, sem
resquícios da presença materna. Então, desesperado, pega o caminho em direção
aos vizinhos até chegar a casa de um deles, a de Nêngua Kainda, senhora que na
região era muito respeitada, por ser uma espécie de vidente. Em sua percepção,
esta senhora teria, sem dúvidas, notícias de sua mãe. Chegando lá, ouve que o
62
sonho de ser soldado não preencheria a sua vida, mas que, por outro lado, sua mãe
permanecia viva. Luandi não aceita o presságio e segue a sua viagem de volta à
cidade, deixando com a senhora seu endereço escrito pelo soldado Nestor.
Maria Vicêncio reaparece na casa de ngua Kainda e resolve seguir viagem
atrás dos filhos, mas a vidente diz que ainda não era hora de reencontrá-los. A e
de Ponciá, como manda a tradição, aceita o conselho da senhora que, antes de
qualquer habilidade espiritual, carrega consigo a sabedoria dos mais velhos. Este se
explica por que, nas comunidades que mantêm a tradição herdada dos povos
africanos, a sabedoria tem muito valor. A vidente representa assim, parte de um
legado que permanece vivo. Que nem o período de escravidão, nem a tentativa de
aniquilamento de crenças e costumes pelo homem branco, conseguiram apagar.
Ponciá Vicêncio, após o seu mergulho interior, adquire uma coceira nas
mãos, que se alivia após o aparecimento do sangue, indicativo da hora de parar.
Cada vez mais triste, gasta “a vida em recordar a vida”. (p.93). Por mais que essa
vida não seja tão longa, a jovem se agarra àquilo que lhe é precioso, a infância. E, a
partir de suas memórias, gasta seu tempo, tentando reviver, mesmo que
internamente, os momentos felizes que um dia fizeram parte da sua existência.
Nêngua Kainda, antes de morrer, diz a Maria Vicêncio que chegara a hora de
reencontrar seus filhos. Esta, imediatamente, segue viagem -- trazendo o terceiro
deslocamento de um membro da família encontrado na narrativa -- isto é, Maria,
depois de Ponciá e Luandi, sai de sua terra natal rumo ao desconhecido mundo
regido pelos brancos, “sabia que, por mais que relutasse, um dia a cidade também
faria parte de sua travessia. o sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a
sua vida era a da terra, em que ela vivia, o que faria longe de lá?”. (p. 108) Quando
chega à estação, lugar de encontros e despedidas,
63
Maria Vicêncio esticou as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da
viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando suas orações. Sentiu a
bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não permitira
que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos
lugarejos em que a máquina parava. (idem)
Desembarcada, encontra o mesmo soldado, como Luandi fizera ao chegar,
ou seja, Nestor. Ao vê-lo, entrega-lhe o papel e, no mesmo momento, o amigo
reconhece a sua letra e pergunta o nome da senhora. Ao ouvi-lo, leva Maria até a
delegacia onde estava Luandi, ainda desencantado com a morte de Bilisa. O filho
chora nos braços da mãe, tanto pelo reencontro quanto pela dor da perda de sua
amada estrela. Neste mesmo dia, Luandi se torna um soldado de verdade e é
alocado para trabalhar na mesma estação em que desembarcara.
Ponciá Vicêncio, após um pressentimento, resolve partir para a roça. O
marido não a impede, pois qualquer tentativa seria em vão. Luandi, quando chega à
estação vê, surpreso, sua irmã, andando de um lado para o outro. Emocionado
chega perto e seus olhos encontram os da sua irmã que tira de dentro da mala o
boneco de barro que representava o seu Avô. Ponciá, após um longo momento,
reconhece o irmão e herda definitivamente os traços mais marcantes da figura que
tanto amava, seu eterno e presente Vicêncio, que toma conta pra sempre do que
restou de Ponciá. E a menina, que desde a infância mostrou-se parecida com ele, se
apresenta, no final da narrativa, como a escolhida para guardar, a sete chaves,
como se percebe na própria narrativa, a ancestralidade de toda a sua família:
Maria Vicêncio, agora de olhos abertos, contemplava a filha. A menina
continua bela; no rosto sofrente, feições de mulher. Por alguns momentos,
outras faces, não a de Vicêncio, visitaram o rosto de Ponciá. A mãe
reconheceu todas, mesmo aquelas que chegavam de um outro tempo-
espaço. Lá estava a sua menina única e múltipla. Maria Vicêncio se alegrou,
o tempo de reconduzir a filha à casa, à beira do rio estava acontecendo.
64
Ponciá voltaria ao lugar das águas e lá encontraria a sustância, o húmus
para o seu viver. (p. 129)
2.4.2
O
OUTRO PÉ DA SEREIA
E
M TODO MUNDO É ASSIM
:
MORREM AS PESSOAS
,
FICA A
H
ISTÓRIA
.
A
QUI
,
É O INVERSO
:
MORRE APENAS A
H
ISTÓRIA
,
OS MORTOS NÃO SE VÃO
.
M
IA
C
OUTO
O romance O outro da sereia foi lançado em 2006 e é considerado, pela
crítica, um dos melhores livros de Mia Couto. Ele narra uma história que se divide
em dois tempos, ou seja, o de Moçambique no ano de 2002, e a travessia de um
navio de Goa a este país ainda como colônia, em 1560.
Os dois enredos, que se revezam têm diversos pontos de convergência,
sendo o de maior importância o surgimento, no presente, de uma imagem de Nossa
Senhora no leito do rio Zambeze, à qual, indecifravelmente, falta um dos pés. Mia
Couto escreve seu romance em dezenove partes, alternando os anos de 1560 e
2002. Ora estamos no passado, ora, num piscar de olhos voltamos, para um
presente bem próximo da realidade cotidiana de Moçambique de nossos dias. O
romance tem início com o enterro de uma pequena estrela, em um lugar quase
desabitado chamado Antigamente: “– Acabei de enterrar uma estrela! Foi assim que
o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua esposa, Mwadia Malunga
(COUTO, 2003, p. 11).
O pastor Zero Madzero e sua mulher, Mwadia, visitam o advinho Lázaro Vivo
e solicitam uma permissão para entrar na floresta e enterrar a estrela. Na beira do
rio, encontram uma estátua de Nossa Senhora, um esqueleto e um b com
documentos antigos:
65
Mwadia procurava as roupas que o rio arrastara quando soltou um grito. O
pastor acorreu, esbaforido. Seus olhos se petrificaram. Entre verdes
sombrios, figurava a estátua de uma mulher branca. Era uma Nossa
Senhora, mãos postas em centenária prece. As cores sobre a madeira
tinham-se lavado, a madeira surgia, aqui e ali, espontânea e nua. O mais
estranho, porém, é que a Santa tinha apenas um pé. O outro havia sido
decepado.
- Já viu, Mwadia? Esta é a virgem coxa!
O pastor tocou a estatua. Eram aquelas as mãos que vira em sonhos, as
mãos da mulher branca que o visitara em Antigamente.
A mulher não comentou. Em vez disso, ela apontou para um arbusto e um
novo sobressalto sacudiu o pastor. Madzero tropeçou no passo que o
deu. Pois ali se exibiam as ossadas completas de pessoa humana. O pastor
recuou como se, ao ganhar distância, lhe viesse mais entendimento.
Desviou o rosto: ao contemplar os ossos ele via o seu próprio esqueleto.
Estava decidido a retirar-se, de imediato, daquela floresta quando o
gesticular desesperado da mulher lhe revelou uma nova descoberta,
brilhando entre o capim.
- Veja, marido: uma caixa! Vou abrir! (p.38)
A caixa, ao ser também encontrada, faz com que Mwadia e Madzero
procurem o adivinho Lázaro Vivo, que fala da origem dos objetos e incentiva a
mulher a encontrar uma igreja para a santa em Vila Longe. Do contrário, o marido
correria grande perigo. A santa traz consigo, o marco inicial para que comecem duas
ousadas travessias, marcadas pelo sincretismo e pelos contextos históricos, políticos
e sociais de Moçambique de 1560 e de neste caso, 2002, dez anos após o rmino
da guerra civil que sangrou a nação por dezesseis anos.
A imagem de Nossa Senhora
13
, com o pé cortado, liga os dois tempos do
romance, ou seja, o da histórica entrada do jesuíta português D. Gonçalo da Silveira
que trouxe a imagem benzida pelo papa para a sua introdução na corte do Império
de Monomotapa, em 1560, às margens do rio Zambeze, e, o de 2002, no retorno de
Mwadia a Vila Longe, com a missão de introduzir a imagem em um lugar sagrado.
Mwadia se depara, durante a viagem, com suas reminiscências e medos, distante
das consentidas impossibilidades de Antigamente. Por sua vez, a viagem de
13
“A estátua de Nossa Senhora, benzida pelo Papa, é o símbolo maior desta peregrinação.” (p.51)
66
Gonçalo destinava-se a encontrar o imperador do mítico reino de Monomotapa, a fim
de catequizar a região. Os acontecimentos dessa última viagem, que em certa
medida refletem problemas contemporâneos, envolvem, ainda, o conflito pessoal do
jovem sacerdote Manuel Antunes, que será seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e
a relação de um escravo, Nsundi, com a aia de origem indiana de uma dama
portuguesa.
Na sucessão dos relatos, fica clara a postura colonizadora da Igreja, as
matanças e imposições coercitivas dos portugueses e dos negros nativos da própria
terra. O padre Gonçalo, por exemplo, espanta-se com a declaração de um escravo
que conta ser o pai o chefe de uma aldeia, onde havia também escravos. Esta era
uma prática usual, ou seja, a do aprisionamento dos povos inimigos com o intuito de
comercializá-los. Veja-se a cena:
“O padre sorriu, incrédulo: escravos? Xilundo explicou-se: ele era escravo,
mas a sua família era proprietária de escravos. Viviam disso: da captura e
da venda de escravos. O pai enviara-o para Goa, na condição de servo,
como punição de graves desobediências. O projeto do pai era simples:
preparar o filho para herdar o negócio da venda de pessoas. No processo
de ser escravo ele aprenderia a escravizar os outros.” (p. 258)
Mwadia retorna a Vila Longe, sua cidade de origem, depois de ter vivido anos
no isolamento desértico de Antigamente. O livro está repleto de pontes que
interligam momentos do passado e do futuro e quase todas elas são torneadas pela
intensidade simbólica e fluídica das águas. A viagem da jovem de volta à casa
materna e as peripécias da imagem a deslocar-se entre a Índia e Moçambique
tomam as páginas do livro, de forma que, aos poucos, unem-se, encontrando-se em
pontos diversos. Para Mwadia, o regresso significa relembrar, junto à mãe,
momentos esquecidos da infância:
67
- Escreva aí!
- Escrever o quê?
- Qualquer coisa, um nome, o seu, o meu, qualquer...
A moça hesitou. Escrever no chão? A mãe, por fim, se explanou:
- É que eu só sei ler na areia.
Tinha sido ali, no pátio da velha casa, que ela havia recebido lições do
abecê. A terra tinha sido o seu quadro-negro, o quintal tinha sido a sua
escola. Mwadia sorriu, fingindo acreditar. A mãe insistiu.
- Escreve na terra, filha. A terra é a página onde Deus lê. (p.175)
No decorrer da trama, em Vila Longe, a chegada de um casal de
americanos que estão dispostos a fazer um levantamento sobre as suas origens,
fato este que muda a atmosfera do lugarejo. Benjamin Southman e sua esposa
brasileira, Rosie são submetidos às tramóias do alfaiate Jesustino Rodrigues,
padrasto de Mwadia; do barbeiro e ex-militante político Arcanjo Mistura; de Zeca
Macambira, que trabalha nos correios e já fora pugilista, e do espertalhão Casuarino
Mulunga. E assim, “Os preparativos para a chegada dos estrangeiros foram
concebidos como se um crime estivesse sendo congeminado.” (p.127) A recepção
dos americanos é armada de forma a tomar-lhes o máximo possível de dinheiro,
expondo uma face, que também no Brasil é escancarada, ou seja, o fato de que
herdamos dos exploradores a necessidade de sugar ao máximo o que se pode tirar
do outro, visto como uma mina de ouro. Os colonos buscavam, na África, a famosa
“árvore das patacas”.
no outro período, 1560, na nau que leva os padres, a imagem, e outras
figuras, o escravo Nimi Nsundi, devoto da Virgem, por reconhecer nela, uma
divindade dos rios -- mãe das águas -- e a indiana Dia Kumari amam-se envoltos
pelo alento do mar. A jovem é a dona de um corpo que se incandescia ao contato
sexual. Por esse ato, o casal é aprisionado no porão e ameaçado de morte. Após
um momento de transe, enquanto tocava a mbira, o escravo se atira ao mar. Quem
se conta do fato é Dia, tão subalterna e excluída quanto ele. Naqueles dias, a
68
jovem o havia acusado de ter se submetido não apenas à fé, mas ao modo de viver
dos cristãos. Após a morte do escravo, ela encontra uma mensagem que ele lhe
deixou. Nessa carta, dentre outras coisas, ele afirma: A verdadeira viagem é a que
fazemos dentro de nós” (p.207)
As histórias seguem seus rumos paralelos que na verdade, se fazem
afluentes ou vazantes que desaguarão no mesmo leito. A despedida dos dois se
apresenta como uma das partes mais emocionantes do romance. Em carta, Nimi
Nsundi diz:
Minha cara Dia
Escrevo na penumbra quase total do porão onde me aprisionaram. O
escuro até me ajuda: afinal esta carta é um adeus. Ou, quem sabe, um
agradecer aos Deuses? Navegamos entre perigos e incertezas. Salvámo-
nos de fogos e tempestades. Contudo, está viagem não se está fazendo
entre a índia e Moçambique. É sempre assim: a verdadeira viagem é a que
fazemos dentro de nós. ondas movidas por anjos, outras empurradas
por demónios. Quem conduz o barco, porém, não é o timoneiro. Quem guia
o leme é a Kianda, a deusa das águas. É ela que viaja no quarto do padre.
É ela que está dentro da escultura da Virgem. Eu notei logo à saída de Goa,
quando a estátua resvalou e tombou nas águas. Quando a olhei de frente
confirmei que era ela, a Kianda: os cabelos, a pele clara, a túnica azul. O
que sucedeu é que a nossa deusa ficou prisioneira na estátua de madeira
dos portugueses. Libertar a sereia divina: essa passou a ser a minha
constante obsessão.
Eu lhe mostrei na noite que fizemos amor: na popa da nossa nau está
esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo essa para os brancos. A minha
Kianda, essa é que não pode ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão
fora do seu mundo, tão longe de sua gente.
A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos a Moçambique,
os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho mais tempo.
Vão-me acusar dos mais terríveis crimes. Mas o que eu fiz foi apenas
libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua forma original. O meu pecado,
aquele que me fará morrer, foi retirar o que desfigurava a Kianda.
peço que alguém mais, com a mesma coragem que me animou, decida
decapitar o outro pé da sereia.
Agora já não tenho medo nem de morrer nem de ficar morto. Foi você que
me ensinou: a melhor maneira de não morrer queimado é viver dentro do
fogo. (p.208)
As águas, símbolo divino, em toda a obra, dão sua benção e tudo invadem,
batizando o amor de Nimi Nsundi e Dia. Em outras ocasiões, elas embebem de
lágrima os inúmeros corpos femininos, como o de dona Constança, mãe de Mwadia.
69
Mia Couto aborda várias perspectivas relevantes: a importância da maternidade, na
cultura patriarcal, ressaltando a necessidade de que a mulher gere herdeiros para o
marido; o preconceito racial e social; o depreciamento das coisas da terra; a
religiosidade; o sincretismo e o jeito exótico como é vista a África fora do continente
africano, entre outras coisas. Há, por exemplo, menção às guerras internas de
Moçambique e às muitas lutas de conquistas pretéritas. Faz-se, também, menção
ao poderio bélico norte-americano e à paranóia do terrorismo internacional. Mas,
sobretudo, o que mais significativamente se percebe pela leitura, de O outro da
sereia, é a sensibilidade melódica do texto, um exercício poético do autor. Como as
vagas e correntes que descem de oceanos e rios, ao longo da história do país, os
fatos são contados com um balançar tranqüilo; sente-se o vai-e-vem da prosa, que
arrebata e encanta, a ditar o ritmo, do início ao fim. A guiar-nos pelo seu universo
ficcional, há, também, epígrafes que se reportam aos temas significativos que são
desenvolvidos metaforicamente no romance, como, por exemplo: identidade,
memória, permanência, pertencimento e morte, além do posicionamento do
continente frente a um mundo globalizado.
Por outro lado, lê-se, em meio aos acontecimentos de Vila Longe, o repúdio
ao silenciamento provocado pelo colonizador: “Nascemos e choramos. A nossa
língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma.” (p.172) Durante
a viagem, diversas instâncias em que o choque cultural se manifesta. Boa parte
dessas instãncias gira em torno da imagem da santa que Nimi Nsundi, o escravo
encarregado de guardar a pólvora e gerir o fogo, associa de imediato à Kianda. Em
quimbundo, as sereias o chamadas de “ianda”, no singular “kianda”. Ao ver a
imagem da santa tombar no lodo, durante o carregamento da nau, o escravo se atira
às águas, evitando que ela fosse tragada. Mais tarde, ao ver D. Gonçalo da Silveira
70
limpando os pés da santa, diz que ela não havia escorregado; que ela queria ficar
ali, nas águas. A devoção do escravo à Santa comove o missionário, incapaz de
compreender quem Nsundi realmente cultuava.
Padre Antunes, forte presença também na nau de D. Gonçalo assim como
Nimi Nsundi, trava contato com a Santa, que, aos olhos da igreja este é um
contato pecaminoso, pois a mulher que aparece em seu sonho despe-se de suas
vestes e diz que é assim que gostaria de ficar em sua lembrança. Atormentado, o
sacerdote acorda e, ao cair no sono outra vez, a misteriosa mulher torna a aparecer,
pedindo que ele a tocasse, com o intuito de fazê-lo renascer. “– Toque- me, toque
em mim que eu o farei renascer” (p. 57). No sonho, ele afunda, para ser levado à
tona pela estranha mulher que, finalmente, se apresenta como Kianda, embora
ainda personificando Nossa Senhora. “- Sou Kianda, a deusa das águas.” (p. 58) O
sonho é o início de uma crise religiosa e identitária:
O padre Antunes de novo pulou da cama esbracejando a enxotar o sonho,
repelindo pecaminosos pensamentos. (...) O dia seguinte foi de bonança.
Horas e horas, o padre Antunes lutou para afastar o fantasma do sonho.
Ainda lhe ocorreu confessar-se a Silveira de tais malfadados delírios. (idem)
A condição de Antunes direciona a uma outra situação, a do escravo Nsundi,
aqui várias vezes enfocado. Ao perceber que a imagem da santa abrigava uma
Kianda, o escravo ficara obcecado pela idéia de libertá-la, serrando um dos pés da
imagem.
Percebe-se na narrativa, que, com a simplicidade dos laços afetivos e a
majestosa influência das águas, que dão a direção aos indivíduos de Moçambique, o
arranjador das palavras, Mia Couto, possivelmente alerte que o idioma padrão
71
herdado da colônia portuguesa
14
, não é o idioma último do solo moçambicano, pois,
nas entrelinhas da obra quase escutamos um canto de várias línguas, um canto
religioso, de santa ou de sereia. Este canto ludibria, desmancha as dores, evapora
as grimas, levando, para as profundezas oceânicas, as desigualdades, o
sofrimento visceral, as marcas do passado que tanto causaram dor devido à
linguagem e a postura cultural do colonizador.
Indiscutivelmente, O outro da sereia revela-se como uma viagem ao
passado que contribui para o entendimento do presente de Moçambique. Mia Couto
supera os limites da prosa tradicional e, mais uma vez, apresenta a poesia diluída
em cada capítulo. Mesmo nos trechos mais longos, percebemos o cuidado e a
escolha minuciosa dos vocábulos. Utilizando a escrita portuguesa padrão e trazendo
elementos das línguas moçambicanas de origem, o autor laça os seus leitores à
realidade moçambicana.
Além de uma narrativa que apresenta dois momentos históricos distintos, o
romance traz muito mais do que um relato dos fatos, verdadeiros ou não, que se
trata de uma obra ficcional. Contudo, o leitor de O outro da sereia imerge nas
águas do tempo, tirando dele uma indiscutível noção dos fatos realmente ocorridos
quanto à relação entre o colonizador e os colonizados. Através dos personagens,
principalmente de Mwadia, percorremos os meandros da história real
15
e, assim,
14
“Moçambique é um país que é de língua portuguesa! E não é ao mesmo tempo. Alguns
moçambicanos é que pertencem à esse universo, o de terem a língua portuguesa como o seu veículo
de identidade, de afirmação cultural, etc. São poucos os moçambicanos que falam, escrevem,
sonham, amam na língua portuguesa. E o são menos moçambicanos por isso nem os outros mais
moçambicanos pelas outras línguas que usam. Eu acho que aqui uma tentativa de procurar a
identidade mambicana sempre lá, nas raízes, culos, quando provavelmente tiveram a mesma
mobilidade, como o changana que existe hoje não é o mesmo de 50 anos ou antes da chegada
dos ngunis. Portanto, eu acho que essa comunidade, a de língua portuguesa, existe de facto. Penso
que a questão a colocar por volta dela é se ela é mesmo aquilo que nós queremos que seja.”
(Entrevista de Mia Couto:http://www.revistabula.com/posts/entrevistas/entrevista-mia-couto. Acessado
em 25 de novembro de 2009)
15
Entendemos história real aqui como um conjunto de acontecimentos que realmente aconteceram
no percurso da humanidade, datados e localizados. Porém, não deixamos de salientar que a mesma
pode ser ficcionalizada, ora tratando de fatos e acontecimentos reais, ora ficcionalizando-os.
72
esbarramos o tempo todo com dados que garantem um assento na grande canoa
que é o romance, no qual a viagem “termina quando encerramos as fronteiras
interiores. Regressamos a s, não a um lugar.” (p.329) E regressando ao nosso
interior, através da leitura, a viagem pela palavra nunca chega ao seu fim.
Mia Couto traz para o texto o indizível. Através da palavra sugere sempre
uma nova perspectiva, um olhar de quem está à margem das águas, apresentando,
através desse indizível, o que significa permanecer o tempo todo numa fronteira,
local de atravessamentos e onde, por isso mesmo, o discurso nunca pode ser
estático, imutável. E as águas representam esse papel em O outro da sereia, isto
é, do entrelugar, pois os rios e mares nunca param de rolar, confluindo num
movimento constante e de embate entre o permanecer junto à tradição ou, o se
deixar levar pelas rupturas advindas da modernidade. Como disse Stuart Hall, em
um de seus ensaios sobre a modernidade, quem se encontra no entrelugar deve
aprender “a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente ser
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades.” (HALL, 2004,
p. 88)
Mia Couto revisita sua origem, mostrando que a palavra é o espaço do
retorno e da construção de uma identidade, qualquer que ela seja, pois, através
daquilo que é dito, preservamos nossa memória e encontramos o caminho para um
futuro mais justo. Diante disso, podemos entender que as águas refletem
Moçambique de hoje e de ontem; refletem a consciência moçambicana, ou até
mesmo, um reflexo de uma “mãe África” reestruturada. Através das águas, de
cenários construídos por várias perspectivas pelo autor, conhecemos mitos, estórias,
realidades, culturas, confrontos ideológicos, em um processo que vai além do
território africano, dando-nos uma idéia de como se concretizam as relações sociais
73
forjadas no encontro de culturas, países e continentes diferentes. Por isso, o rio e o
mar estabelecem quase que um portal bidimensional através dos tempos de 2002 e
1560, que ora nos leva para dentro da narrativa e seus personagens, ora amplia a
nossa visão da realidade como uma forma de denúncia contra as instituições
tradicionais, ideológicas e sociais tão presentes nas sociedades tidas como pós-
modernas, tal como preceituam Stuart Hall e Hommi Bhabha. Tais instituições
carregam consigo marcas que nem o tempo, nem o contato com outras realidades
puderam dissolver. E, assim, O outro da sereia é sem dúvida: um livro de
viagens. Viagens intra e entrecruzadas, nas quais a questão da identidade não é
porto de chegada ou de partida, mas, sim, o percurso feito a cada travessia.
2.4.3
F
ICÇÕES PARALELAS EM DIÁLOGO
Escutar o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte.
Paul Zumthor
Ponciá Vicêncio é um romance composto por personagens complexos, no
qual a ternura lugar para a importância dos laços familiares. O sentimento de
solidariedade permeia toda a história e se mostra mais forte no reencontro entre os
familiares, o que arranca do leitor extremas emoções. Conceição Evaristo, através
de uma história trágica faz do seu romance, mesmo sendo em grande parte uma
estória triste, uma agradável leitura. Fato que convida o leitor para ser um co-
participante de toda a trajetória vivida pela protagonista, o que o leva a um claro
entendimento dos profundos conflitos vividos por ela. Ao analisarmos as imagens
mais recorrentes na obra, deparamos-nos com um cenário muito comum da
74
realidade brasileira, já que essa mesma obra, recuperando um tempo passado,
encena questões muito atuais e nos leva a pensar sobre o trabalho escravo; a
condição de ser negro num país construído aos olhos, primeiramente, da cultura
européia; o nível social dos descendestes de escravos; o nível de escolaridade dos
negros e toda a discriminação em relação à raça.
O romance é escrito em terceira pessoa, mas a narração convida a conhecer
os mais profundos sentimentos da protagonista. Além de apresentar uma trama
psicológica e emocional complexa, Ponciá Vicêncio retrata e despe questões sociais
e raciais, pois, até mesmo o sobrenome “Vicêncio”, era herança da escravidão
negra. O discurso como um todo não tem um tom inflamado, justamente por ter o
formato de uma “contação de estórias”, traço, aliás, muito presente na cultura afro-
brasileira.
O tempo se divide de acordo com o crescimento da protagonista. Ponciá, no
início do romance, aparece como uma criança e, no fim, já como uma mulher
cansada e vivida. Mas o tempo psicológico, recuperado por suas lembranças não é
trabalhado cronologicamente, que a voz narradora, através da técnica do flash-
back, recupera momentos diversos do passado da protagonista, sem uma ordem
pré-estabelecida temporalmente. Através da repetição de frases curtas, a voz que
narra os fatos, conecta o passado e presente e enfatiza certas facetas do mundo
interior dos personagens, criando, assim, um quebra-cabeça que se arma como um
jogo.
Aspectos como o misticismo, o mágico e o religioso são encontrados em todo
o romance. Exemplo disso é a protagonista Ponciá que chora ainda no ventre da
mãe ou até mesmo a questão do poder da ancestralidade representada pela
presença do Vicêncio, após a sua morte. Deuses africanos em forma de
75
elementos da natureza, como o arco-íris em formato de cobra, ou as previsões da
Nêngua Kainda fazem do romance uma mistura de mistério e realidade que prende
o leitor do início ao fim de cada episódio.
Ponciá Vicêncio é um romance escrito de dentro para fora. Ele causa no
leitor, através do impacto emocional e verbal das palavras, escritas e escolhidas a
dedo pela autora, uma séria reflexão sobre a questão racial em nosso país. Através
de uma longa viagem através do tempo, personagens ricos, interiormente, nos
levam a mergulhar nas suas complexas personalidades, mostrando o verdadeiro
caminho de uma escrita praticamente visceral, uma escrita que vem realmente do
interior, característica própria já reconhecida da escritora Conceição Evaristo.
em O outro da sereia, romance também escrito em terceira pessoa, do
mesmo modo, encontramos, também, uma viagem ao interior dos personagens
centrais e dos coadjuvantes. O percurso narrado, mesmo separado por dois enredos
datados, conflui, no final do romance, e o que parece ser duas histórias distintas, se
revela como uma linha de continuidade no tempo. Mia Couto propõe uma revisitação
ao passado, permitindo uma reflexão madura dos tempos atuais. Tal fato remete a
muitas outras reflexões, como, por exemplo, à própria relação entre indivíduos do
chamado primeiro e terceiro mundo, sobretudo porque, em algumas situações,
dela resta um grande silêncio. Na verdade, para Mia Couto, todo escritor:
É um tradutor de silêncios. Por via da poesia vou traduzindo aquilo que o
está dito, aquilo que não pode ser palavra. No meu caso, essa capacidade
não resulta de um mérito meu, mas nasce desta condição de eu ser um
cidadão de uma nação que se esinventando, de uma nação que ainda
procura a sua cidadania. Ganho muita vantagem nisso, desse tempo e lugar
onde estou, esse momento em que o país está à procura ainda de sua
própria norma lingüística, de seu próprio rosto. Esta condição histórica
proporciona a ausência de um retrato. É essa ausência que o escritor busca
traduzir.
(http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via08/Via%208%20cap13
.pdf. Acessado em de novembro de 2009)
76
Reflexões relacionadas ao religioso também são presença na narrativa. A
elas se vem juntar outras que levam o leitor a refletir sobre a realidade sócio-cultural
não de Moçambique mas da Índia, Brasil e Estados Unidos, que a narrativa
também traz personagens nascidos nesses países de semelhante formação cultural.
Com o pendular do tempo entre 1560 e 2002, adentramos o interior de
Mwadia, ora protagonista de sua própria vida, ora contadora e porta-voz da nação
moçambicana. Pelo seu discurso, que é alternado com o do próprio narrador, Mia
Couto mostra querer extrair o modo de contar estórias orais, fazendo de sua
personagem uma referência daquilo que havia no passado, isto é, a existência de
uma transmissora e mantenedora dos costumes locais. Porém, o deixamos de
perceber, também, em outros personagens, essa mesma característica.
O fantástico das linguagens e das culturas, como afirma Mia Couto, está
presente na cultura moçambicana, sendo um dos temperos que faz do povo uma
nação pluricultural. Diz o autor:
São esses materiais que uso, sim, mas naquilo que é os namoros que essa
tradição sugere os jogos de sedução entre diferentes linguagens e
culturas... O que me interessa é como se faz essa dança: aquilo que seria
tradição cultural, endógena de Moçambique, e depois essa coisa que seria
a influência “externa”. A questão para mim é testemunhar e participar ao
nível da língua essas trocas, esses encontros e desencontros entre os
valores culturais que para se expressarem têm que pedir licença a uma
outra língua. Para mim é um grande privilégio viver neste tempo, neste lugar
em que a língua portuguesa que é ainda uma segunda língua para a
grande maioria dos moçambicanos- se está casando com outros idiomas e
outras culturas. Como ela vai reagindo, de forma plástica, a esse jogo de
contatos. O que me fascina são as margens onde essas coisas se
convertem numa só coisa, onde essas identidades se misturam, convergem.
(http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via08/Via%208%20cap13
.pdf. Acessado em de novembro de 2009)
Por isso, a narrativa é tão repleta de símbolos que, aos olhos da grande
massa, passariam por mera ficção. Contudo, ainda seguindo o raciocínio de Mia
77
Couto, tocar na história moçambicana sem trazer à tona esses símbolos é o mesmo
que falar do mar sem tocar nos peixes. Ao longo do romance, percebe-se
claramente a sobreposição entre o real e o imaginário, entre o fantástico e a
realidade. O fantástico, segundo o próprio autor, é algo marcante na realidade
moçambicana, que é regida por uma outra ordem de racionalidade. Por isso, é tão
natural no cotidiano dos seus personagens viver essa outra ordem. Mia Couto, em
entrevista, fala sobre O outro pé da sereia e o sobre o velho vício de contar estórias:
O outro da sereia é o meu décimo nono livro. Comecei por publicar
poesia, sou filho de poeta e mantenho que, ainda hoje, a poesia é o meu
modo de narrar uma história. Estou traduzido e publicado em 21 países e
recebi, por duas vezes, o prémio nacional de literatura em Moçambique.
Vejo agora que tenho imensa dificuldade em falar do trajecto literário pois
não quero nunca olhar a minha vida como um percurso pensado ou com
uma intenção de fazer um currículo. Tudo o que eu fiz foi de forma não
pensada, sem administrar intenções ou guiar para objectivos definidos.
Aconteceu escrever, acontece-me estar escritor e, em qualquer momento,
poderei ser uma outra coisa qualquer, desde que isso me dê prazer.
(...)Existem, felizmente, várias literaturas e existem vozes de quem ainda
sente o prazer de contar histórias. Eu creio que os autores do chamado
Terceiro Mundo possuem uma frescura particular desse ponto de vista, eles
transportam relatos vivos, eles viveram mundos que só a ficção pode fazer
suportar.
(http://www.portaldaliteratura.com/entrevistas.php?id=6#ixzz0cWF2tjqE.
Acessado em novembro de 2009)
Em outro depoimento o romancista se refere ao terceiro mundo e explica a
relação entre a literatura brasileira e as literaturas africanas de língua portuguesa,
em especial a moçambicana. De acordo com ele, é inevitável não esbarrar nessa
influência, que tanto tempo se faz presente. Dada a importância desse texto para
o nosso trabalho, pedimos licença para dele fazer uma citação mais extensa:
Reconheço que a nossa literatura é uma espécie de continuidade mal
assumida de heranças que vêm do Brasil. Acho que o que provavelmente
acontece é que numa certa dimensão essa literatura tem uma
personalidade mais marcadamente nacional porque ela fala de uma alma,
fala de uma realidade fala de uma dinâmica que é tão diversa daquilo que
vem a ser o centro de origem, centro de influência, que essa marca
78
distintiva está bem definida. Sendo um fenômeno urbano, a literatura em
Moçambique nasceu a partir de uma elite que aqui é chamada de
“assimilados”. Os assimilados em Moçambique começam recriando uma
literatura com fundamento próximo na oralidade, centrada quase
exclusivamente na poesia. Os primeiros moçambicanos que nos anos 20,
30, como Rui Noronha, por exemplo, começam a escrever nos jornais com
uma reivindicação nem sequer nacionalista no princípio, mas igualitária no
sentido de combater o racismo, a discriminação, mas aceitando que
Moçambique era um espaço português. Não se reivindicava um outro
espaço: reivindicava-se uma maior justiça dentro desse mesmo espaço.
Sobretudo na área da poesia, na década de 50, eles começam com uma
consciência formal ligados a certa literatura portuguesa, das escolas
dominantes nessa altura em Portugal. Alguns tentam a prosa, muito ligados
ao neo-realismo. Depois um fenômeno interessante, no final dos anos
50, início dos anos 60. O Brasil chega a Moçambique e chega por vias que,
nós dizemos, são vias contornadas, quase marginais. Uma das vias pelas
quais chegou o Brasil foi uma revista chamada O cruzeiro. O Cruzeiro
chega com desenhos do Ziraldo... com a Raquel de Queiroz. De repente, os
nossos escritores descobrem o Brasil. E foi uma relação fascinante em
que escritores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Lins do Rego, toda
essa gente, mas também poetas como Manuel Bandeira, exercem uma
influência determinante em Moçambique. então, uma espécie de
redescoberta de nós próprios por via desse desafio às potencialidades do
idioma comum. Com a geração de José Craveirinha, se aprofunda esse
sentimento de familiaridade e estranheza que podia vir do Brasil, porque
no Brasil, no fundo, já havia uma cultura que se confrontava com uma
língua que vinha de um outro lado, não é? O Brasil já empreendera um
exercício de reflexão sobre a língua portuguesa e a cultura brasileira. E
também havia influências africanas no Brasil que se refletiam nisso que é
a apropriação de um idioma por elementos de uma outra cultura... Os
moçambicanos descobriram no falar brasileiro (e também na escrita
brasileira) uma familiaridade que não encontravam na fala e na escrita de
Portugal.
http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via08/Via%208%20cap13.
pdf Acessado em novembro de 2009.
Está citação, de certo modo, reforça nossa análise, pois por ela se mostra que
se torna cada dia mais relevante a leitura e a aproximação das literaturas brasileira e
moçambicana, pois, hoje, as literaturas africanas de língua portuguesa, fazem o
percurso inverso, influenciando, também, as escritas na terra do pau-brasil.
Conceição Evaristo, por exemplo, é uma leitora de Mia Couto, de Pepetela, de
Luandino Vieira, de Paulina Chiziane, entre outros. O fato é que estamos a cada dia
estabelecendo outros diálogos literários, feitos também a quatro mãos. O que se
escreve em Moçambique, Angola, entre outros países do continente africano, chega
ao Brasil, dando fôlego aos novos escritores e o que foi escrito aqui, e se tornou a
nossa literatura canônica, serve de impulso para alavancar, ainda mais, o diálogo
79
entre as culturas, originando histórias, percursos tão parecidos em algumas
ocasiões, como no caso de Ponciá Vicêncio e O outro da sereia, romances que
sugerem, antes de qualquer coisa, uma revisitação às tradições, em busca de uma
apropriada e autêntica identidade.
80
3.
P
ONCIÁ
V
ICÊNCIO E
M
WADIA
:
P
ÉTALAS DA FALA
.
Aconteceu-me cantar de memória a melodia.
Paul Zumthor
Como vimos, Ponciá Vicêncio e Mwadia são as protagonistas dos romances
que elegemos como objeto de estudo. Nossa análise privilegia, neste capítulo, o
percurso de cada uma dessas protagonistas, sobrepondo de modo mais direto as
teorias abordadas no primeiro, a fim de mostrar nos romances como tais reflexões
teóricas aparecem no plano ficcional. Ponciá Vicêncio e Mwadia representam, em
nossa leitura, pétalas retiradas de uma mesma flor, isto é, elementos de uma mesma
matriz epistemológica. Ou seja, fragmentos soltos da beleza africana.
Tomamos o percurso de Ponciá e Mwadia como objetos de pesquisa pelos
quais nos interessa abordar aspectos da tradição oral; a presença do narrador
tradicional e do contemporâneo e, por último, questões relacionadas à cultura e aos
fenômenos que são postos à prova quando se dá o encontro de culturas diferentes e
se abre a questão da tradição cultural.
Lembramos que, devido ao grande número de especificidades encontradas
nos romances, nos ateremos somente a alguns aspectos, com o intuito de indicar
exemplos que poderão ser utilizados como mote de observações e ou leituras
futuras. Isto é, indicaremos alguns caminhos que poderão ser seguidos
posteriormente, com outros personagens ou outros trechos não eleitos por esta
pesquisa.
81
3.1
E
STÓRIAS ENTRE TEXTOS E TEIAS
.
D
A LEITURA ERA PRECISO TIRAR OUTRA SABEDORIA
.
E
RA PRECISO AUTORIZAR O TEXTO DA PRÓPRIA VIDA
,
ASSIM COMO ERA PRECISO AJUDAR A CONSTRUIR A HISTÓRIA DOS SEUS
.
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
Como já visto no capítulo anterior, as estórias de Ponciá e Mwadia, apesar de
se produzirem em momentos históricos e lugares distintos, possuem certa
semelhança. Mwadia vive no ano de 2002 e Ponciá, num período não estipulado
pela autora, sabendo-se apenas, pelo decorrer da narrativa, que a estória se
desenvolve em um espaço de tempo pós-escravidão. Por esse motivo, intitulamos
nosso capítulo de “Estórias entre textos e teias”. Ou seja, através do percurso
bifurcado, nos deparamos com um ponto de partida comum: a luta pela
sobrevivência em um contexto social que, um dia, privilegiou o sistema de
colonização. Contudo, das teias que envolvem as estórias, retiramos as
experiências de cada protagonista e revertemos o percurso distinto por elas traçado,
buscando um elo entre semelhantes tradições.
Tomando aqui o conceito de tradição, não como algo imutável, daí Hobsbawn
e Ranger usarem o termo “tradição inventada” (1984, p.9), mas como afirma laura
Padilha, citando Gerd Bornheim, conclui-se por tradição todo ato, costume, história,
ideologia, provenientes da cultura de um povo, passados para as novas gerações
através do tempo, seja via oral ou escrita, revelando-se por uma ressignificação do
passado, uma reescrita do presente e uma projeção do futuro.
Isto é, a tradição aqui, é entendida portanto como todo conjunto de elementos
que caracterizam os contornos de um povo. Desse modo, práticas, valores, rituais,
82
símbolos, língua, comportamentos, normas, repetidos e reatualizados, acabam por
se traduzir numa experiência continua que estabelece uma coesão social, pois,
voltando a Hobsbawm e Ranger: “a força da adaptalidade das tradições genuínas
não deve ser confundida com a ”invenção de tradições”. Não é necessário recuperar
nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam, (idem. p. 16). “
Portanto, a tradição oral aqui revisitada pelos autores de matriz africana, nos
romances analisados, como diz ainda Laura, funciona como “um exercício de
sabedoria” (PADILHA, 2007, p. 35), pelo qual os valores se conservam, embora
sempre a tradição em constante movimento.
Voltando à teoria de Paul Zumthor e ao que afirma sobre a tradição oral,
lembramos ainda que a voz está presente na escrita e vice-versa: é “o verbo
encarnado na escritura” (Zumthor, 1993, p.113). A passagem do vocal para o
escrito, como dito, é repleta de “confrontações, tensões, oposições conflitantes e
muitas vezes contraditórias” (p. 114); O ensaísta diz que tudo que se entende, “no
interior de um texto, informando-nos sobre a intervenção da voz humana em sua
publicação - quer dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma ou mais vezes,
de um estado virtual à atualidade, existiu na atenção e na memória de certo número
de indivíduos” (1993, p. 35). Em outras palavras, como aqui já foi explicitado,
devemos sempre levar em conta os índices de oralidade, ou seja, tudo aquilo que
nos remete a uma voz pensada como uma marca que se cola ao texto escrito.
Nos romances aqui analisados percebemos tais índices de oralidade na voz
de Ponciá e de Mwadia; nas estórias contadas por elas e até mesmo na história que
constrói o perfil de cada protagonista. Isto é, neste caso, os índices de oralidade
funcionam como um caminhar em círculos. Enquanto a estória que é contada chega
ao seu fim, inicia-se uma outra história moldadora de quem as conta. Sai-se do
83
circulo para a espiral. Por isso, a palavra é tão importante. Zumthor chama a
atenção para essa questão do poder da palavra, dizendo:
A idéia do poder real da palavra, idéia profundamente ancorada nas
mentalidades de então, gera um quadro moral do universo. Todo discurso é
ação, física e psiquicamente efetiva. Donde as riquezas das tradições orais,
contrárias ao que quebra o ritmo da voz viva. O Verbo se expande no
mundo, que por seu meio foi criado e ao qual vida. Na palavra se origina
o poder do chefe e da política, do camponês e da semente. O artesão que
modela um objeto pronuncia as palavras que fecundam seu ato.
Verticalidade luminosa que jorra das trevas interiores, fundadas sobre os
paganismos arcaicos, ainda marcadas por esses traços profundos, a
palavra proferida pela Voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é
Palavra. a palavra ordinária, banal, superficialmente demonstradora,
e a palavra-força; uma palavra inconsistente, versátil, e uma palavra mais
fixada, enriquecida por seu próprio fundo, arquivo sonoro de massas que,
em sua imensa maioria, ignoram a escrita e são ainda mentalmente inaptas
a participar de outros modos de comunicação que não o verbal, inaptas
por isso mesmo portadores privilegiados: velhos, pregadores, chefes,
santos e, de maneira pouco diferente, os poetas; ela tem seus lugares
privilegiados: a corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a borda dos
poços, a encruzilhada da igreja. (Zumthor, 1993, p. 75)
A palavra, como se percebe, é a responsável pela ação dos acontecimentos;
ela constrói o discurso de um indivíduo, seja ele ficcional ou verdadeiro. E acaba por
instituir os próprios índices de oralidade, tal como expressamos. Mostraremos
agora, os índices de Paul Zumthor nas narrativas que elegemos.
A musicalidade é entendida como a capacidade que um autor possui de fazer
arranjos melódicos com as palavras, isto é, através da escolha minuciosa dos
vocábulos, gerar uma associação metafórica; uma sensação prazerosa em quem os
lê, através da repetição de frases, estrofes ou palavras simplesmente. Além disso,
tal índice não provoca somente uma situação de prazer, mas também uma
capacidade estabelecida, entre os sons no texto e os sentimentos e emoções que
ele pode trazer à tona, mesmo que não prazerosos. Em outras palavras, a
musicalidade se estabelece na poeticidade dos textos, sejam eles longos ou curtos.
A voz que está por traz de Ponciá e Mwadia, narrando a trajetória de cada uma, é
84
construída através desse índice. Vejamos um exemplo dessa espécie de melodia: “A
alma é um vento. Pode Cobrir mar e terra. Mas não é da terra nem do mar. A alma é
um vento. E nos somos um agitar de folha, nos braços da ventania.” (2006, p. 113)
Nesta passagem, de O outro da sereia, percebemos o índice de musicalidade
dentro da narrativa. O texto é poético, usa a repetição dos vocábulos “vento e mar” e
causa no leitor quase uma sensação de sentir o vento a bater em seu rosto.
Outra passagem em que ocorre o mesmo índice encontra-se nas páginas 173
e 174. O autor através da escolha dos vocábulos causa, no leitor, uma associação
imediata aos ritmos da dança, das águas do mar, do bater de corações durante uma
gestação humana. Vejamos:
Pela dança voltamos ao ventre materno. Foi nesse oculto abrigo, que
escutamos o primeiro tambor, executámos os primeiros movimentos de
embalo. Foi que fomos peixes, fomos água, adormecida onda, incessante
maré. (2006)
Tal índice, também, é percebido em Ponciá Vicêncio, seja pela repetição das
palavras, seja pela poeticidade dos fragmentos, ou pela melodia cadência das
frases. No fim da leitura, temos certeza que tudo ficou no passado, apenas pela
repetição quase gritada, em tom de socorro da forma verbal “gostava”. Vejamos:
Naquela época Ponciá Vicêncio gostava de ser menina. Gostava de ser ela
própria. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio, que corria entre
as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das
canas e do milharal. (2003, p. 9)
Na página 15 da mesma obra, também se percebe a presença da
musicalidade na repetição: “Pajem do sinhô-moço, escravo do sinhô-moço, tudo do
sinhô-moço, nada do sinhô-moço”.
85
Outro índice de oralidade comentado por Zumthor que diz respeito ao caráter
histórico dos textos contados ou cantados em que os fatos reais são usados pela
ficção. Os romances aqui analisados trazem momentos em que de fato, um
diálogo entre história e ficção. Por exemplo, em O outro pé da sereia:
A nau Nossa Senhora da Ajuda acaba de sair do porto de Goa, rumo a
Moçambique. Cinco semanas depois, em fevereiro de 1560, chegara à
costa africana.
Com a Nossa Senhora da Ajuda seguem mais duas naus: São Jerónimo e
São Marcos. Nos barcos viajam marinheiros, funcionários do reino,
deportados, escravos. Mais do que todos, porém, a nau conduz D. Gonçalo
da Silveira, o provincial dos jesuítas na Índia portuguesa. Homem santo,
dizem. O jesuíta faz-se acompanhar pelo Padre Manuel Antunes, um jovem
sacerdote que se estreava nas andanças marítimas.
O propósito da viagem é realizar a primeira incursão católica na corte do
Império do Monomotapa. Gonçali da Silveira prometeu a Lisboa que
batizaria esse imperador negro cujos domínios se estendiam ate o Reino de
Prestes João. Por fim, África inteira emergiria das trevas e os africanos
caminhariam iluminados pela luz cristã. (2006, p. 51)
Fica claro que, na narrativa em questão, fatos históricos são tomados como
mote para a construção ficcional. Nomes da história oficial interagem diretamente
com os de personagens somente encontrados no interior da narrativa. D. Gonçalo
da Silveira realmente partiu no século XVI rumo ao Reino de Monomopata, porém
Manuel Antunes é construído através das bases da ficção. De acordo com Alberto
M. Vara Branco, ensaísta da revista literária portuguesa Millenium:
Gonçalo da Silveira, filho de D. Luís da Silveira, 1º Conde de Sortelha, havia
partido para a Índia em 1556 como missionário jesuíta. Dali, por ordem do
Provincial partiu em 1560 para a África Oriental, chefiando uma missão que
viria a ser a primeira a pisar tais terras com a finalidade de converter ao
cristianismo os povos de Tonga e Monomotapa. Apesar de Ter obtido
sucessos iniciais na sua obra de cristianização, bem depressa se verificou a
fragilidade do êxito. Isto não abalou a fé de Gonçalo da Silveira que partiu
da cidade de Moçambique para o Império do Monomotapa em 18 de
Setembro de 1560. Por alturas do Natal chegou à capital do referido Império
Negro, onde foi bem recebido, tendo levado pouco tempo a converter o
imperador Africano e a baptizá-lo com o nome de D. Sebastião. Porém, a
influência muçulmana junto do imperador conseguiu convencê-lo de que o
padre Gonçalo da Silveira era um perigoso feiticeiro, agente do Governador
da Índia. A sua morte ocorreu em 15 de Março de 1561 tendo o seu corpo
86
sido lançado no rio Mussenguese. Contudo, a sua morte não fez parar a
acção missionária da Companhia de Jesus em terras africanas a partir da
Província religiosa situada na Índia Portuguesa.
http://www.ipv.pt/millenium/arq5_2.htm. Acessado em dezembro de 2009.
Por outro lado, em Ponciá Vicêncio o tempo narrativo é associado ao da
libertação dos escravos, como sabemos, um período de transição social bem
conhecido e analisado pelos historiadores e cientistas sociais do Brasil e de outros
países mundo a fora. Vejamos o fragmento que retoma esse período:
tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras,
pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em
muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras
tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de
libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levantar moradias e plantar seus
sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a
trabalhar nas terras do Coronel Vicêncio. O coração de muitos se
regozijava, iam ser livres, ter moradia fora da fazenda, ter as suas terras e
os seus plantios. Para alguns, Coronel Vicêncio parecia um pai, um senhor
Deus. O tempo passava e ali estavam os antigos escravos, agora libertos
pela “Lei áurea”, os seus filhos nascidos do “Ventre Livre” e os seus netos,
que nunca seriam escravos. Sonhando todos sob os efeitos de uma
liberdade assinada por uma princesa, fada-madrinha, que do antigo chicote
fez uma varinha de condão. (2003, p. 47- 48)
Na história oficial, constatamos através das palavras do historiador Mario
Scmidt, que em 13 de maio de 1888, através da Lei Áurea, a liberdade total foi
alcançada finalmente pelos negros no Brasil. Esta lei, assinada pela Princesa Isabel,
abolia de vez a escravidão no país (SHMIDT, 2002, p. 282). a lei do Ventre Livre,
também conhecida como “Lei Rio Branco” foi uma:
lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela
Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher
escravas nascidos a partir da data da lei. Como seus pais continuariam
escravos (a abolição total da escravidão ocorreu em 1888 com a Lei
Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades para as crianças que nasciam
livres. Poderiam ficar aos cuidados dos senhores até os vinte e um anos de
idade ou entregues ao governo. O primeiro caso foi o mais comum e
beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão-de-obra destes “livres”
até os vinte e um anos de idade. A Lei do Ventre Livre tinha por objetivo
87
principal possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de
escravidão para o de mão-de-obra livre. Vale lembrar que o Brasil, desde
meados do século XIX, vinha sofrendo fortes pressões da Inglaterra para
abolir a escravidão. (idem, p.283)
Seguindo para o próximo índice de oralidade, temos o caráter anedótico. Para
Zumthor, “a anedota, com mais freqüência, remete globalmente a um conjunto de
textos, dos quais só alguns são conhecidos”. (Zumthor, 2003, p. 42) Partindo desse
pressuposto, tocamos no que se refere, nas narrativas, ao religioso, que perpassa
toda a trajetória de Ponciá e Mwadia. Sem sombra de dúvidas, um dos pontos mais
altos dos textos analisados, e uma das características mais marcantes segundo
minha leitura, é o uso de elementos religiosos
16
. Tanto os de origem africana quanto
os herdados da colonização portuguesa. Isto é, tanto em Ponciá Vicêncio, como em
O outro da sereia, os símbolos religiosos permeiam a trajetória dos personagens.
Ponciá e Mwadia mantêm uma relação direta com os mitos de origem africana e com
a religião herdada dos colonos portugueses. Pela leitura das narrativas, abre-se a
oportunidade de que se trave contato com essas realidades múltiplas, que, para a
maioria dos leitores, se mantêm, ainda, um pouco distantes. Tanto em Ponciá
Vicêncio, como em O outro pé da sereia nota-se tal relação, textos e relatos que não
estão no domínio de todos e passam a ser conhecidos através de Ponciá e Mwadia,
seja pela via da religião, seja pela via do mito
17
. Exemplo disso é a desapropriação
sofrida por Maria e por Constança, antes mesmo, do nascimento de suas filhas.
Ambas as filhas são tomadas por seres divinos das águas. Vejamos, primeiramente,
o que se dá em Ponciá Vicêncio :
16
Ressalta-se que o uso da palavra “religioso”, não traz nenhuma reflexão pré-estabelicida sobre o
termo. O presente uso, aponta apenas para o desejo de mostrar no texto ficcional o aparecimento
desses elementos.
17
Quando usamos o termo “mito” nesta dissertação, não questionamos a veracidade dos mesmos.
Nosso comprometimento é apenas mostrar como estes aparecem dentro das narrativas.
88
A menina, nunca tinha sido dela. Voltava para o rio, para as águas-mãe. A
filha nunca lhe coube, nem no tempo em que estava prenhe dela. Maria
Vicêncio se lembrou do primeiro sinal recebido de que a menina não era de
sua pertença. Fez do acontecido um assunto calado, guardado para si.
Nem para o seu homem falou, para ngua Kainda, aquela que tudo
sabia, mesmo se não lhe dissessem nada. O aviso que a menina estava
apenas emprestada no seu ventre foi dado ali pelos sete meses. Uma
manhã, Maria Vicêncio acordou ouvindo choro de criança. Apurou os
ouvidos. E na atenção da escuta, o susto. O choro vinha de dentro dela. A
criança chorava no interior do seu ventre. Alisou a barriga acarinhando a
filha que ali cumpria o tempo de ser, sentiu movimentos e soluços. O que
fazer? O que fazer? Como aliviar o choro de um rebento ainda guardado,
mas tão suplicante, que parecia conhecer as dores infindas do mundo?
Caminhou intuitivamente para o rio e à medida que adentrava nas águas, a
dor experimentada pela filha se fazia ouvir de uma maneira mais calma.
(EVARISTO, 2003, p. 128)
Continuando nossa análise, vejamos agora, o acontecido em O outro da
sereia:
Nesses dias, logo após o parto, Constança era assaltada por um constante
pesadelo. Ela sonhava que tinha havido um engano nos cálculos. Afinal, o
Sarazi inundava e as águas, enlouquecidas, começavam a cobrir Vila
Longe. A recém-nascida Mwadia estava na igreja, no fundo do vale.
Transtornada, Constança acorria para saber da sua menina. No caminho, ia
cruzando com todos os habitantes que viajavam em sentido contrário,
tentando atingir a parte alta da Vila. ela progredia em direcção ao rio.
Quando chegava à igreja, o nível do rio quase atingira o telhado.
Contrariando a corrente, a mãe avançava pelos aposentos onde flutuavam
imagens e os panos que cobriam o altar. Gritava por Mwadia, gritava até
perder a voz. Depois, saía em prantos, na certeza de que perdera a filha.
Sentava-se na margem e ali se abandonava, observando as águas
serenarem.
Permanecia assim dias e dias, cada dia o rio regredindo um pouco mais,
como que arrependido dos recentes excessos. Edmundo, seu marido de
então, em vão a tentava demover. Ela que regressasse a casa e retornasse
a vida. Constança teimou: perdera o motivo para recomeçar. Semanas
tinham decorrido quando ela foi surpreendida pela inesperada visão:
Mwadia emergia, aflorando viva à superfície das águas. Quando a tomou
nos braços, Constança não nutria dúvida: a menina tinha sido tomada por
uma divindade das águas. Mwadia passara a ter duas mães, uma da terra,
outra das águas. (Couto, 2006, p. 85)
“- Aqui chamamos-lhes Nzuzu.
E o anfitrião discorreu sobre o mito: no leito do rio havia um lugar sem
fundo, onde a própria água se afundava, afogava nos abismos. Nessas
profundezas morava Nzuzu, a divindade do rio. De quando em vez uma
moça desaparecia nas águas. Não morria. Apenas permanecia residindo
nos fundos lodosos, aprendendo a arte de ser peixe e os sortilégios da
adivinhação. Ficava anos nessa submersa moradia até que, um dia,
89
reemergia e se apresentava às famílias para exercer, então, a profissão de
curandeira.” (Couto, 2006, p.141)
Podemos fazer referência a essa divindade das águas, aqui no Brasil, a
Oxum, mãe das águas doces, no caso de Ponciá Vicêncio. Em Moçambique é
Nzuzu que se apropria da protagonista de O outro pé da sereia. Tais representações
são relatadas em alguns documentos e outros escritos, e são conhecidas, por vezes,
como uma divindade feminina residente nas águas dos rios. Em anexo,
apresentamos algumas representações dessas divindades e de seus mitos.
Voltando a Zumthor, vemos que o mito pode ser visto como um conjunto de
informações que vão ser utilizadas na composição de outros textos, trazendo para
nós o terceiro índice de oralidade encontrado nas narrativas. Além de ser, para nós,
parte de um índice, segundo Detienne, os mitos sempre estiveram ligados à
construção das sociedades, dando limites e ao mesmo tempo, abrindo o caminho
para novas reflexões e, construções identitárias:
“A mitologia, insituável, pois é a forma movente de uma miragem sempre
vivaz, contudo, parece guardar um território inalienável: o mito que é, ao
mesmo tempo, o princípio unitário e a unidade elementar. Não existe
presença mais familiar, mais obsessiva, a partir do momento em que a
imagem do mito evoca uma história ou uma narrativa. Narrativa que fale a
linguagem da integração ou do confronto, pouco importa. Quer seja
normativa ou contestatória, coerente ou não, o fato é que o mito conta uma
história.” (Detienne, 1998, p. 227)
Com razão, os mitos carregam especificidades que vão além da própria
narrativa, pois se estruturam, primeiramente, no uso que uma sociedade faz da
memória. Em segundo lugar, por estarem ligados diretamente à linguagem, à
cultura, e às formas de se ver e se estabelecer no mundo. O uso do mítico e ou do
religioso não aparece nas obras gratuitamente. Conceição Evaristo e Mia Couto
90
revisitam a tradição e perpetuam, assim, todo um cabedal cultural que seguirá seu
rumo através das gerações, ora pelas suas próprias funções de disseminadores de
opinião, por serem escritores e estarem inseridos dentro de um contexto social
específico, ora por seus escritos serem lidos por inúmeros leitores.
O quarto índice de oralidade tematizado pelo ensaísta Paul Zumthor é o
caráter moralizante, também encontrado dentro das narrativas. Isto é, através da
experiência sempre a possibilidade de travar conhecimento com uma lição que
pode ser aprendida, assim como se nos provérbios. Voltemos às narrativas. Na
seqüência O outro pé da sereia:
O homem esquece para ter passado e mente para ter futuro. (2006, p.120)
A prisão é um lugar onde se dorme muito e o sonho substitui o viver. É a
única coisa que o sistema não pode encarcerar: os sonhos. (2006, p. 169)
As citações mostram que, pela ordem: o esquecimento fornece uma armadura
para enfrentar o passado e a mentira garante uma visão de um futuro distinto. na
segunda citação, aprende-se que a única coisa que não se pode tirar de um homem
é o seu direito de sonhar.
Também em Ponciá Vicêncio encontramos o caráter moralizante:
O tempo de espera, se feito quieto e mudo, é pior, pois se torna
demoradamente mais longo ainda. (2003, p. 85)
O humano não tem força para abreviar nada e, quando insiste, colhe fruto
verde, antes de amadurar. Tudo tem o seu tempo certo. (2003, p. 109)
Como se percebe, nas duas últimas citações, o tempo é que se apresenta
como um ensinamento: não se pode esperar parado pelos acontecimentos, pois
tudo acontece na hora certa. Vemos assim, que as quatro passagens trazem um
91
fundo moralizante, formador de uma opinião a partir de uma experiência vivida.
Logo, a própria estória de Ponciá e Mwadia proporciona uma lição que podemos
aprender, o grande ensinamento das narrativas é: somos frutos de uma
ancestralidade.
A estrutura textual, apresentada por Zumthor como quinto índice de oralidade,
se constrói a partir da permanência dos modelos assumidos por qualquer autor na
escrita de uma narrativa. Isto é, o uso repetido e contínuo de um formato verbal. Em
outras palavras, o estilo textual de cada escritor. Na leitura dos romances, temos,
como exemplo desse índice: narradores em terceira pessoa e a escolha minuciosa
do formato da própria estruturação gráfica, como, por exemplo, fragmentos em
itálico para marcar as diferenciações textuais inseridas nas narrativas; a construção
de vocábulos até então nunca vistos em outros textos literários ou até mesmo na
linguagem cotidiana dos países de cada autor. Em outras palavras, a criação de
neologismos. Além desses, temos também o uso freqüente de palavras de outros
registros lingüísticos, isto é, a presença de vocábulos de origem africana nos textos
que são escritos em português. Vejamos a estruturação gráfica em itálico para dar
destaque aos diálogos em O outro pé da sereia:
– Esta é a última fotografia de sua Tia...
Mão a mão, as duas mulheres percorreram as linhas do rosto da falecida
Luzmina,
como se lhe corrigissem o destino. Alinhavam a moldura na parede como
quem
ajeita flores sobre uma campa.
– Que idade ela tinha nesta foto?
– Tinha não. Tem.
– Não entendo.
Essa foto ela tirou-a com trinta e cinco anos. Mas a sua Tia continua a
envelhecer
na imagem.
– Ora, mãe...
– A última vez que peguei nessa foto ela nem tinha estes cabelos brancos...
(p.78).
92
Em Ponciá Vicêncio isso também ocorre:
“Menino morre afogado na fossa”
“Pedreiro mata mulher com quinze facadas”
“Mulher de deputado presa por atentado ao pudor
(p.92)
O uso de neologismos ou vocábulos de outras línguas também podem ser
vistos nos dois romances, vejamos:
Afastou-se o mais que podê, correndo sobre as copas dos matumis
18
.
(Couto, 2006, p. 304)
Levantou-se da cama e foi pelo corredor, em bicos de pés, um chamboco
19
preparado para intervir. (idem, p. 185)
Juntava, então, as saias entre as pernas tampando o sexo e, num pulo, com
o coração aos saltos, passava por debaixo do angorô
20
. (Evaristo, 2003, p.
9)
E mesmo assim, parecia que de dentro saía ora riso-lamentos, ora choro-
gargalhadas
21
. (idem, p. 18)
Como sexto e último índice de oralidade visto por nós, temos o caráter
interpretativo que abarca, por assim dizer, todos os outros citados anteriormente.
Porém, nesse índice, a grande importância se dá pelo uso da voz como responsável
por gerar, no leitor ou ouvinte neste caso, de uma narrativa, uma interpretação. Isto
é, a voz -- seja narrativa ou sonora, no caso de uma leitura em voz alta -- que é
18
Grifo nosso.
Matumi: árvore ribeirinha.
Vocábulo traduzido pelo próprio autor na obra numa nota de rodapé.
19
Grifo nosso.
Chamboco: matraca.
Vocábulo também traduzido pelo próprio autor na obra numa nota de rodapé.
20
Grifo nosso.
Angorô: do tronco lingüístico Bantu, traduz-se em arco-íris.
21
Grifo nosso.
Neologismos criados pela autora.
93
responsável por aquilo que será entendido pelo leitor ou pelo ouvinte. Nos romances
analisados, essa voz apresenta-se com o narrador que sugere o percurso que
devemos tomar no momento do nosso mergulho na narrativa. No caso de O outro pé
da sereia, essa voz aparece nitidamente no que se pode considerar uma folha de
rosto de apresentação de cada capitulo, introduzindo o leitor no tempo que será
percorrido nas páginas seguintes, tempo que oscila entre os anos de 1560 e 2002.
No primeiro caso, entre janeiro e março de 1560; no segundo, dezembro de 2002 e
um “tempo indeterminado na actualidade”. no caso de Ponciá Vicêncio, o
narrador, sem muito dizer, sugere entre, páginas alternadas, o desenvolvimento da
jovem Ponciá, passando pela infância, fase mais adulta e, posteriormente uma fase
mais madura da jovem protagonista.
Concluímos, desta forma, que Ponciá e Mwadia e suas trajetórias de vida
contadas nas narrativas aqui analisadas, oferecem de fato um encontro com os
índices de oralidade de Paul Zumthor. Contudo, como diz o próprio ensaísta,
podemos encontrar, em outros estudos, novos índices de oralidade, sobretudo
porque, não se exaure tão rapidamente uma reflexão, lidando com narrativas deste
porte. Ponc Vicêncio e O outro pé da sereia continuam a produzir novas
possibilidades.
Do encontro entre Ponciá e Mwadia e, suas estórias, que no nosso ponto de
vista se entrecruzam em vários momentos, percebemos que a oralidade não está
com seus dias contados. Pelo contrário, a oralidade é feita de palavras e “é pela
palavra, e somente por ela, que se manifesta plenamente o humano”. (Zumthor,
1993, p. 114)
94
3.2
A
EXPERIÊNCIA TRANSMITIDA ATRAVÉS DO TEMPO
.
T
UDO NESTE MUNDO É HUMANO
.
O
RIO TEM ANCAS DE MULHER
,
A ÁRVORE TEM DEDOS PARA ACARICIAR O VENTO
,
O CAPIM ONDEIA SOPRADO POR ANTIGAS VOZES
.
M
IA
C
OUTO
Os contadores de estórias, como sabemos, são indivíduos que, através de
relatos, de acontecimentos e de histórias, passam adiante aquilo que ouviram e
aprenderam com o tempo. E a experiência, neste caso, é um elemento fundamental
no desenvolvimento de tal mecanismo que elege o viver, o ouvir, o experimentar
para que haja, com sucesso, o transmitir do conhecimento. A experiência dos
narradores dos romances, está ligada diretamente à construção do conhecimento
adquirido através do tempo.
Para falar dos narradores de Ponciá Vicêncio e O outro da sereia, Walter
Benjamin, teórico aqui citado, será lembrado constantemente, que os
narradores das estórias vividas por nossas protagonistas atualizam um modelo
muito adotado no campo da literatura. Muito se discutiu sobre isso, porém o fato
mais importante dessa discussão é que, com a modernidade a atravessar as
sociedades, vem-se perdendo a experiência do ato de narrar uma boa estória.
Conceição Evaristo e Mia Couto, bebem dessa fonte do contar de estórias,
recuperando, como outros autores, a prática prazerosa desse rito. Como dito,
sagazmente, por Laura Cavalcante Padilha: “o rito de contar, sabêmo-lo, é mágico e
religioso.” (Padilha, 2007, p. 106)
Ponciá Vicêncio e Mwadia são também, nas obras, contadoras de estórias.
No caso da primeira, o narrador se insere na própria consciência da protagonista.
95
Como se sabe, Ponciá não reconhece seu nome. Alheando-se de si mesma. O
narrador ou seria uma narradora? é onisciente, conhecendo tudo de Ponciá e
dos seus.
Mwadia, que na tradução ao da letra, significa canoa, abre espaço no
seu convés, dando a mão para o leitor, convidando-o para seguir viagem rumo ao
encontro com a sua história e sua identidade, também narradas por alguém fora da
estória. Ela é a ponte responsável por ligar todos os acontecimentos. Além dela,
outros personagens assumem a voz narrativa, quando interagem, por seus diálogos
com outras figuras do contado. Um exemplo, Nimi Nsundi. No entanto, uma voz
onisciente que tudo sabe e tudo conta.
Essa voz de terceira pessoa se assemelha a um narrador tradicional, porém
esse narrador abre espaço para as lembranças de Ponciá e Mwadia, garantindo,
assim, a coerência dos fatos e dinamicamente favorecendo o prazer de se ouvir uma
boa estória narrada aos moldes do “era uma vez”. A seguir, como mera
exemplificação traremos alguns trechos das obras, em questão onde poderemos
constatar tal participação e ligação intrínseca entre quem conta e quem é por este
contado:
Ponciá Vicêncio correu vagarosamente os olhos pelo cômodo onde
moravam. O avolumava-se por cima do armário velho. Pelos caibros do
telhado acumulavam-se teias de aranhas e picumãs. As trouxas de roupas
sujas cresciam dias e dias pelos cantinhos do quarto. As folhas de jornal,
que forravam prateleiras do armário, estavam amareladas pelo tempo e
roídas nas pontas pelos ratos e baratas. Toda noite ela contemplava o
desleixo da casa, a falta de asseio que a incomodava tanto, mas faltava-lhe
coragem para mudar aquela ambiência (Evaristo, 2003, p. 22).
Nesse fragmento de Ponciá Vicêncio percebemos o narrador descrevendo
cada detalhe do cenário onde a protagonista se encontra: a poeira dos móveis, a
teia de aranha, o amarelar dos tecidos. Do mesmo modo acontece no fragmento
96
seguinte, quando percebemos, através da descrição do narrador, o desconforto de
Maria, que não estava satisfeita partindo para a cidade. Seu objetivo maior nessa
empreitada era, somente, encontrar seus filhos:
Quando o trem, depois de intermináveis dias e noites, parou na estação,
Maria Vicêncio esticou as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da
viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando suas orações. Sentiu a
bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não permitira
que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos
lugarejos em que a máquina parava (p. 118).
Como se percebe, a voz que ouvimos / lemos é a de um contador de estória
(narrador da letra) a relatar a estória de Ponciá e dos seus familiares. Esse narrador
é alguém que oniscientemente, como dito, está “dentro da protagonista,
expressando por ela todos os seus sofrimentos.
Contudo, este narrador também é responsável por situar o leitor no período
em que Ponciá se encontra, que entre uma página e outra, a idade da jovem se
modifica e obviamente, seu contexto também, em uma espécie de vai e vem entre a
infância e a fase adulta. Assim, compreendemos que a busca de Ponciá se dá
através do seu presente e de suas memórias passadas. Vejamos: “Ponciá gostava
de ficar sentada perto da janela olhando o nada. Às vezes, se distraía tanto que até
se esquecia da janta e, quando via, o seu homem estava chegando do trabalho”
(p.16). Ponciá encontra-se nesse fragmento ainda adulta e casada. o próximo
retrata uma fase mais de menina: "No tempo em que Ponciá Vicêncio ficava na beira
do rio, se olhando nas águas, como se tivesse diante de um espelho, a chamar por
si própria, ela não guardava ainda muitas tristezas no peito” (p.18). Nesse outro
trecho da página 21, Ponciá encontra-se em casa na cidade, depois de uma longa
trajetória, que trouxe a ela, marcas profundas:Ponciá Vicêncio interrompeu os
97
pensamentos e lembranças, levantou-se endireitando as costas que ardiam pelo
soco recebido do homem”.
O narrador contador da estória, de O outro da sereia também assume o
papel de situar o leitor, tanto no tempo, quanto nos acontecimentos da narrativa.
Com a sua intervenção quase absoluta, viajamos de fato rumo às memórias de
Mwadia em 2002, como também à nau de D.Gonçalo, em 1560. O narrador
conhece tão bem os personagens, que sua voz, em alguns momentos, se mistura
com a própria consciência desses indivíduos. Vejamos:
Esse desconhecimento era mais do que uma ignorância: era uma estratégia
de sobrevivência antiga, tão antiga que a memória não podia alcançar. Os
antepassados de Vila Longe, todos esses que viveram junto ao rio, tinham
sofrido da mesma doença. Também eles, perante a pergunta quem o
vocês”, responderiam: nós não somos quem vocês procuram.” Tinha sido
assim desde séculos: eles eram sempre outros, mas nunca exatamente
“aqueles” outros.” (p. 295)
No fragmento exposto, constatamos tal participação, pois a voz narrativa, de
fato, tem autoridade sobre o que narra. Esse narrador conhece a trajetória do povo
de Vila Longe e sua voz se mistura com a de Mwadia, pois o encontro entre os
personagens se dá, a partir do seu retorno rumo a Vila Longe. Aqui, percebe-se que
as palavras citadas acima são reflexos do olhar da protagonista de que o narrador
se apropria, para descrever os conterrâneos da mulher que acompanha e suas
experiências no solo moçambicano. no fragmento abaixo retomado, o narrador
nos traz uma conversa entre Mwadia e sua e, Constança, indicando o importante
papel do ouvir ou contar uma estória. Constança pede a Mwadia que leia para ela,
pois apesar da idade e de todos os tropeços vividos através do tempo, essa mãe
sabe que só por via do saber ouvir a experiência alheia é que se alcança a
sabedoria:
98
-Agora, leia pra mim. Eu também quero ir nessa viagem...(...)
-Ora mãe, se não fosse a senhora, eu seria como as outras de Vila Longe
que vivem de costas para os papeis.
-Como eu, afinal.
-A senhora não disse que lia na areia?
-É verdade, é verdade. (p. 238 e 239)
Por outro lado, nos fragmentos trazidos abaixo, percebemos que o narrado é
praticamente um diário de bordo de D. Gonçalo. Posteriormente se descobre que,
esse mesmo diário está sendo lido por Mwadia. Ou seja, o período de 1560 está
sendo descrito através de uma voz que pode ser confundida com a voz de Mwadia,
pois, na caixa encontrada junto com a imagem de Nossa Senhora com o cortado,
encontram-se, também, os relatos de D.Gonçalo, que são descritos e recuperados
pela voz narrativa.
A mais cruel das memórias de Manuel Antunes era de um escravo, que,
desesperado de fome, cortou a língua e a comeu. Mais do que uma
recordação era um símbolo da condição da gente negra: exilada do
passado, impedida de falar senão na língua dos outros, obrigada a escolher
entre a sobrevivência imediata e a morte anunciada. (p.260)
Até 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de
portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar
um pequeno incêndio em seu camarote, contemplou as suas mãos
obscurecendo. Mas agora era a pele inteira que lhe escurecia, os seus
cabelos se encrespavam. Não lhe restava vida: ele se convertia num
negro.
- Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou gostando mais
dessa travessia do que de toda a restante viagem. (p.164)
Acima, percebemos indícios de um diário. nos fragmentos abaixo, a voz
narrativa sobrepõe-se, descrevendo a nau e seus tripulantes, grupo de D. Gonçalo.
A visão de um porão abarrotado de cargas, a riqueza destinada aos
comerciantes, ocupando o espaço da água destinada aos escravos que ali
estavam confinados e a certeza de que estes, em sua maioria, não
99
chegariam ao destino, mortos de sede e fome, fazem com que Antunes
confronte D. Gonçalo, perguntando: “Como iremos governar de modo
cristão continentes inteiros se nem neste pequeno barco mandam as regras
de Cristo? (p.160).
Conclui-se, desta forma, que a experiência continuará construindo, através do
tempo, os alicerces que uma sociedade necessita para sobreviver. As narrativas
Ponciá Vicêncio e de O outro da sereia configuram-se pelo jogo dual do
ouvir/falar. Nesse sentido, a experiência tem força, apesar de muitos não
acreditarem nisso. A cultura africana mostra a importância que o contar tem na
modernidade. Por isso, o percurso feito por Mwadia e Ponciá assim como os outros
personagens que as cercam, é para nós, uma voz no silêncio. Ou seja, um mergulho
nas memórias do Brasil e de Moçambique, que faz do leitor que tais experiências,
sujeitos capazes de contar e passar, para as novas gerações, todo o saber adquirido
através delas.
3.3
D
A VOZ A CORPOS TRADUZIDOS
O
AMANHÃ DE PONCIÁ ERA FEITO DE ESQUECIMENTO
C
ONCEIÇÃO
E
VARISTO
Sabemos que o Brasil, por muito tempo, foi a favor do regime da escravidão.
Desde que ela se estabelece até os anos de 1888, nosso país concentrou sua base
social e econômica nas relações comerciais daí advindas. A cultura indígena
também não pode ser esquecida, assim como outras que chegaram durante o
período de colonização. O Brasil, como observado por vários cientistas sociais, é,
100
de fato, e sem chance de qualquer contestação, um espaço pluricultural e pluri-
racial.
Moçambique, país localizado na costa oriental da África Austral, limitado ao
norte pela Zâmbia, Malawi e Tanzânia, a leste pelo Canal de Moçambique e pelo
Oceano Índico, ao sul e oeste pela África do Sul e também a oeste pela Suazilândia
e pelo Zimbabwe, conquistou sua independência em 1975. Esta representou,
naturalmente, uma ruptura com o sistema colonial português, e o país assumiu-se
socialista, provocando, dessa maneira, uma transformação radical na sociedade.
Encontramos, em Moçambique, uma grande diversidade étnica e
consequentemente, lingüística. Como diz André Cristiano José, “no censo de 1980
foram registrados dezesseis grupos étnicos e vinte e quatro línguas, sendo que sete
destas línguas eram faladas por três quartos da população e apenas 24% da
população falava português”. (JOSÉ apud RIBEIRO, MENEZES, 2008, p. 149) A
língua oficial portuguesa, mesmo falada apenas por uma minoria da população, a
cumpriu um papel particular de integração.
Tanto o Brasil, como Moçambique, apesar de estarem em momentos
políticos, sociais e culturais diferentes, formam nações que são obrigadas a negociar
o tempo todo com a diversidade cultural advinda da relação entre colônias e
sociedades pré-existentes, ou na caso do Brasil transplantadas para cá. Mesmo
depois de tanto tempo a sociedades negociam e renegociam suas características
étnicas de origem, com os acréscimos vindos das colônias que se estabeleceram e
também, através do contato, no Brasil, com os povos que aqui foram escravizados
ou vieram como imigrantes. Relembramos as palavras de Stuart Hall:
Este conceito (de tradução) descreve aquelas formações de identidade que
atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas
que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas
101
retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas
sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com
as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por
elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os
traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias
particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e
nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas,
pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas(e não a uma “casa”
particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido
obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo
de pureza cultural perdida” ou de absolutismo étnico. Elas estão
irrevogavelmente traduzidas. A palavra tradução, observa Salman Rushdie,
vem etimologicamente, do latim, significando “transferir”; “transportar entre
fronteiras”. Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos
ao mesmo tempo, tendo sido transportados através do mundo..., são
homens traduzidos”. (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas
diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a
habitar, no mínimo, duas identidades, falar duas linguagens culturais, a
traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos
diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na
modernidade. (HALL, 2004, p. 88 e 89)
Nas narrativas, Ponciá e Mwadia apresentam-se, como vimos, como sujeitos
que atravessam fronteiras, que devem ser pensadas como lugares de passagens de
culturas distintas. Dito em outras palavras, trata-se do entrelugar. As jovens são, de
acordo com as teorias de Hommi Bhabha e Stuart Hall, seres traduzidos que vivem à
margem, que negociam o ir e vir de informações da terra natal e de outros territórios
envolvidos em suas trajetórias. Vejamos em Ponciá Vicêncio:
Ponciá Vicêncio tentava rezar a Ave-Maria. A claridade da igreja, a musica
bonita que cantavam em cima, a roupa limpinha do padre, a beleza dos
santos e as mulheres tão bem vestidas que estavam ao lado dela, tudo isso
a distraía. Começou a oração várias vezes, se perdendo sempre no meio
das palavras. (p. 37)
No fragmento visitado, percebemos que a católica não é tão conhecida por
Ponciá, que tenta, por inúmeras vezes, rezar a Ave-Maria, sem obter sucesso. A
jovem foi criada na roça e conhecia santos moldados no barro e rezas ditas
através da oralidade. Ponciá possui um terço “velhinho” ao qual se apega nos
102
momentos de aflição. Na verdade, a presença religiosa mais marcante em sua vida
é a de Nêngua Kainda, a velha vidente da comunidade, conforme mostra o
fragmento abaixo transcrito:
A velha pousou a mão sobre a cabeça de ponciá Vicêncio dizendo-lhe que
embora ela não tivesse encontrado a mãe e nem o irmão, ela não estava
sozinha. Que fizesse o que o coração pedisse. Ir ou ficar? ela mesma é
quem sabia, mas, para qualquer lugar que ela fosse, da herança deixada
por Vicêncio ela não fugiria. Mais cedo ou mais tarde, o fato se daria, a
lei se cumpria. Ponciá nada indagou. Nada respondeu. Pediu benção a
Nêngua Kainda e se dispôs a continuar a vida. (p. 60)
Por outro lado, as influências da cultura africana transplantadas para o Brasil
por seus antepassados se fazem também heranças de Ponciá, como por exemplo, a
presença de palavras do grupo lingüístico banto no seu vocabulário: angorô na
tradução significa arco-íris.
Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou
o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que
passasse por debaixo do arco-íris virava menino. Ela ia buscar o barro na
beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água. (p. 09)
Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô, multicolorido se diluía
lentamente, enquanto ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória
reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas
dos rios. (p. 132)
Em O outro da sereia se constata, também, a duplicidade de crenças e
costumes. Isto é, transita-se entre a trazida pelos portugueses e a tradição da
nos deuses de Moçambique. Zero conta com a proteção de um deus católico e dos
deuses da sua terra:
Na Igreja lhe ensinaram que Deus é se é único, mais que único. Ele que
apagasse a multidão de deuses familiares, essas divindades africanas que
teimavam em lhe povoar a cabeça. Madzero era um “postori”. (p.16)
103
- Me salve, Deus! E acrescentou, em célebre sussurro: E me acudam os
meus deuses, também... (p.17)
Contudo, o Zero vivencia tal tradição, Mwadia dialoga com a cultura
portuguesa e a moçambicana, ora se apegando aos costumes locais, ora aos
costumes herdados do período colonial. Vejamos o trecho abaixo:
As mãos da mãe fizeram escorrer a água pelo corpo nu de Mwadia. A moça
sorrir da situação: durante anos fora ela que dera banho. Mas propriamente,
dera banho a Zero Madzero. Agora era ela a lavada. Fechou os olhos,
embriagada, como se a lama estivesse sendo dissolvida.
-Fosse no meu tempo não era essas águas que você era banhada.
-Eu sei, mãe.
- Não sabe, não. Você era banhada com sangue de galinha. Para lavar do
sangue desse homem que se passeou pelo seu corpo.
- mas isso não é só água, mãe. O que é que deitou nesse balde?
- Nada filha, apenas uns cheiros.
A vida da golpes, costura pontes. Afinal quando Mwadia dava banho a Zero
ela estava apenas costurando os tempos, dando seguimento a uma tradição
antiga. (p.74)
Nesse diálogo entre Tia Luzmina e Mwadia também se destaca tal transição:
- Querem que você interrompa os estudos...
- Quem?
- Todos.
- Querem que eu seja curandeira, outra vez? ( p.84)
Tais recortes exemplificam parte do entrelugar onde se encontram Ponciá
e Mwadia. Ambas deixam o lugar onde suas vidas começaram. Ponciá sai da roça e
vai para cidade para tentar uma vida melhor, que nessa viagem, a jovem passa a
reviver, através de suas lembranças, os tempos vividos durante sua infância, como
dito. Da cidade tenta voltar para o seu território natal por uma vez, para ver a
família, até a volta definitiva, como mostra o fecho do romance, quando tudo se une
na figura do avô e ela caminha em direção ao rio:
104
E do tempo lembrado e esquecido de Ponciá Vicêncio, uma imagem se
presentificava pela força mesma do peso de seu vestígio: Vicêncio. Do
peitoril da pequena janela, a estatueta do homem-barro enviesada olhava
meio para fora, meio para dentro, também chorando, rindo e assistindo
tudo.
fora, no u cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía
lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória
reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas
do rio.
Mwadia parte rumo a Vila Longe com uma tarefa a ser cumprida: levar a
santa para um lugar seguro. Durante seu percurso, também encontra os seus
familiares e as estórias vividas por cada um. A santa, Nossa Senhora, ora vista
como Nzuzu, ora vista como Kianda, norteia todo o trajeto, servindo de bússola para
cada passo da jovem protagonista. Em sua andança, Mwadia volta para sua terra de
origem, solo onde nasceu e redescobriu, também, através desse contato, que o
que faltava na santa era o elo que lhe faltava na vida, isto é, era preciso voltar aos
seus para redescobrir, ressignificar sua verdadeira identidade. Em outras palavras,
era preciso travar contato, novamente, com toda a sua ancestralidade. E assim,
termina sua narrativa, começando pelo fim e finalizando com o começo:
- Acabei de enterrar uma estrela!
Foi assim que o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua
esposa, Mwadia Malunga. (p.11)
- Marido, acabei de enterrar uma estrela!
Pegou na sacola que já estava preparada e beijou de leve o rosto do
marido, tão de leve como se ele fosse apenas uma ausência adormecida.
Apoiou a porta para suavizar o ruído do trinco ao fechar-se. Ainda hesitou, à
saída do quintal, como se escolhesse entre que ausentes ela deveria viver.
Só depois tomou o caminho do rio. (p.331)
Retomando as idéias seminais de Hall e de Bhabha e, fazendo um paralelo
com o texto ficcional, chegamos à conclusão de que a tradução cultural é uma das
marcas em Ponciá e Mwadia que, através de suas estórias contadas -- basicamente
105
por meio da voz, não expressa pelo aparelho vocal, mas também pela linguagem
dita através do silêncio apresentam, antes de qualquer coisa, corpos
eminentemente construídos a partir do diálogo cultural, seja ele
moçambicano/português ou afro/ português. Isto é, através da tradição oral
encontrada nas narrativas, percebemos que a tradução inicia-se primeiramente pela
voz e, consequentemente, se espalha corpo a fora, transmitindo, dessa forma, um
conjunto sucinto que nos leva ao ainda complexo mundo do entrelugar.
106
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
F
OI LÁ
,
NESSE OCULTO ABRIGO
,
QUE ESCUTAMOS O PRIMEIRO TAMBOR
,
EXECUTAMOS OS PRIMEIROS MOVIMENTOS DE EMBALO
.
F
OI LÁ
,
FOI LÁ QUE FOMOS PEIXES
,
FOMOS ÁGUA
,
ADORMECIDA ONDA
,
INCESSANTE MARÉ
.
M
IA
C
OUTO
“A tradição oral revisitada: uma leitura de O outro pé da sereia de Mia Couto e
Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo”, foi o tema desse trabalho que propôs uma
análise, abordando os aspectos de cunho oral, perpassando pela cultura brasileira e
moçambicana. De fato, é um trabalho complexo, pois não se esgota apenas na
leitura de dois romances. A presente dissertação foi elaborada com o intuito de
refletir sobre duas obras que fazem parte de um universo bem particular, diferente
daquele encontrado na literatura canônica, e estudado, com mais freqüência nas
faculdades de Letras. Os textos que foram analisados fazem parte da produção de
um grupo de escritores, que procura resgatar a tradição oral, seja brasileira
africana, mais especificamente, debruçando-se sobre o cotidiano de um Brasil afro e
de Moçambique, lugares de origem de ambos.
Os dois romancistas não se preocupam em se distanciar daquilo em que
acreditam para escrever seus textos. Pelo contrário, os autores só escrevem porque,
todos os dias, vivem as experiências retratadas nas obras e trazem um pouco das
suas histórias, também, em cada texto escrito. A vida de Conceição Evaristo é
atribulada de afazeres ligados à educação e à luta por um lugar melhor dentro da
sociedade, dividindo seu tempo entre palestras, simpósios, congressos pelo mundo
á fora e a vida de uma mulher comum. Ponciá Vicêncio é um dos resultados desta
luta. Conceição Evaristo leva, para muitos leitores, o cotidiano de uma mulher
107
simples e seu percurso pela vida. Sua obra é composta por várias especificidades
do povo brasileiro e, por isso, carrega uma riqueza ímpar em cada aspecto nela
desenvolvido. Por outro lado, Mia Couto divide a tarefa de escritor com o ofício de
biólogo, tendo também, que fracionar seu tempo para dar conta dos inúmeros
convites recebidos do mundo inteiro para falar de sua obra, que por sua vez também
traz elementos do cotidiano do solo de Moçambique, nos tempos por ela enfocados.
Através da análise das obras, dos autores e dos seus espaços, contando com
o auxílio de Paul Zumthor, concluímos que além de serem poetas, Conceição
Evaristo e Mia Couto são experientes contadores de estórias, que, dentro dos
seus textos, encontramos, de fato, os índices de oralidade, aqueles que mostram a
voz humana em relevo dentro deles. Os romances apresentam um tom didático e a
voz do narrador prevalece nos dois, levando-nos para um encontro com o narrador
trabalhado por Walter Benjamin, ou seja, aquele que passa sua experiência através
daquilo que ele vivencia, isto é, um narrador que sabe ouvir e dar conselhos.
Conceição Evaristo e Mia Couto, são exemplos de como tal narrador é ainda eficaz
na modernidade.
Os romancistas, por fim, são sujeitos que transitam entre culturas
diversificadas e seus textos refletem esse percurso. Stuart Hall e Homi Bhabha
chamam esse fenômeno de tradução cultural. Diante das questões tratadas pelos
autores, podemos concluir que Ponciá Vicêncio e Mwadia ou amesmo Conceição
Evaristo e Mia Couto são indivíduos traduzidos, recuperando, através de um
percurso ou através do ofício de escritor, elementos culturais brasileiros e
moçambicanos, o que nos levou a pensar no hibridismo e toda a sua complexidade.
Cabe relembrar que dois romances foram analisados e que a partir de cada
análise, percebeu-se que eles vão além de uma simples escrita, que cada
108
narrativa aborda um elemento cultural distinto que, em certos momentos, converge
num percurso similar. Com o auxilio dos teóricos e pesquisadores aqui trazidos,
concluímos que os autores escrevem de lugares muito específicos, do Brasil e do
Moçambique contemporâneos. Sendo assim, podemos dizer que Ponciá Vicêncio e
O outro da sereia são produções elaboradas através da revisitação da tradição
oral, de que Conceição Evaristo e Mia Couto se utilizam, pois cresceram ouvindo
grandes estórias, que hoje são recontadas a um público maior através da sua
literatura.
Esse estudo continuará, podendo-se chegar a novas conclusões, pois as
obras de Conceição Evaristo e Mia Couto oferecem aos pesquisadores uma fonte
enorme de conhecimentos e inquietações, tanto no que se refere à cultura africana,
seja no Brasil ou em Moçambique, como também no que diz respeito à tão estudada
identidade nacional.
Para nós, a leitura dos romances trouxe o desejo de prosseguir, cada dia
mais, em nossos estudos literários, pois estabelecer contato com tais produções,
nos possibilitou uma reflexão mais profunda do espaço em que estamos inseridos.
Ou seja, percebemos o papel que temos dentro da sociedade e, por isso, torna-se
cada dia mais importante e pertinente nosso empenho. Cabe ressaltar que não se
trata de um desejo de ver o outro como alguém de fora. Pelo contrário, o intuito aqui
é enxergar a si próprio a partir da experiência do outro. Sendo assim, nossa leitura
se fez um exercício contínuo de auto-conhecimento e nos abre para outras
descobertas. Finalizando, trazemos algumas palavras, de Paul Zumthor, que
retratam as sensações experimentadas por nosso corpo, durante a confecção do
tecido do nosso estudo:
109
É ele que sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que
vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso
sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização
daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação
com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à de
meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior.
Conjunto de tecidos e de órgãos, suporte de vida psíquica, sofrendo
também as pressões do social, do institucional, do jurídico, os quais, sem
dúvida, pervertem nele seu impulso primeiro. Eu me esforço, menos para
aprendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto, da percepção cotidiana,
ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias: contração e
descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações
de vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o
sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança intima, abertura
ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena provindas de
uma difusa representação de si próprio.
(Zumthor, 2007, p. 23 e 24)
110
B
IBLIOGRAFIA
Obra dos autores:
Conceição Evaristo
Romances:
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio, Mazza Edições, Belo Horizonte, 2003 e
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—. Cadernos Negros poemas Vol: 30- 29- 25- 23- 21- 19- 15- 13. Quilombhoje-
Literatura, São Paulo, 1990.
—. Poemas da Recordação e outros movimentos. 1ª Edição, Nandyala, Belo
Horizonte, 2008.
—. Cadernos Negros - os melhores poemas. Cadernos Negros São Paulo, 1998.
Contos:
—. Cadernos Negros Contos. São Paulo, Quilombhoje Literatura. Volumes: 28 - 26
24- 22 - 20 – 18 – 16 - 14.
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—. Cadernos Negros - contos. Cadernos Negros, São Paulo. Volumes: 13 (1990),
14 (1991), 15 (1992), 16 (1993), 18 (1995), 19 (1996), 21 (1998), 22 (1999),
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—. ABDIAS, Nascimento, 90 Anos de Memória Viva. Rio de Janeiro, Arquivo
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<http://racabrasil.uol.com.br> Entrevista concedida a Carol Frederico.
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Concedida a Neide Diniz, p.36-38.
—. Boletim PPCOR Nº. 31/UERJ/ www.lpp.uerj.net/olped/açõesafirmativas.
Mia Couto
Poesia:
COUTO, Mia. Raiz de orvalho (Maputo: Cadernos Tempo, 1983)
—. Idades,cidades, divindades (1ª ed. da Caminho em 2007)
Contos:
—. Vozes anoitecidas (1ª ed. da Associação dos Escritores Moçambicanos, em
1986; 1ª ed. Caminho, em 1987; 8ª ed. em 2006).
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—. Cada homem é uma raça (1ª ed. da Caminho em 1990; 9ª ed., 2005).
—. Estórias abensonhadas (1ª ed. da Caminho, em 1994; 7ª ed. em 2003).
—. Contos do nascer da terra (1ª ed. da Caminho, em 1997; 5ª ed. em 2002).
—. Na berma de nenhuma estrada (1ª ed. da Caminho em 1999; 3ª ed. em 2003).
—. O fio das missangas (1ª ed. da Caminho em 2003; 4ª ed. em 2004).
Crônicas:
—. Cronicando (1ª ed. em 1988; ed. da Caminho em 1991; ed. em 2003;
Prémio Nacional de Jornalismo Areosa Pena, em 1989).
—. O país do queixa andar (2003).
—. Pensatempos. Textos de Opinião (1ª e 2ª ed. da Caminho em 2005).
—. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. (1ª ed. da Caminho em
2009).
Romances:
—. Terra sonâmbula (1ª ed. da Caminho em 1992; ed. em 2004; Prémio Nacional
de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos em 1995;
considerado por um juri na Feira Internacional do Zimbabwe um dos doze
melhores livros africanos do século XX).
—. A varanda do frangipani (1ª ed. da Caminho em 1996; 7ª ed. em 2003).
—. Mar me quer (1ª ed. Parque EXPO/NJIRA em 1998, como contribuição para o
pavilhão de Moçambique na Exposição Mundial EXPO '98 em Lisboa; ed.
da Caminho em 2000; 8ª ed. em 2004).
—. Vinte e zinco (1ª ed. da Caminho em 1999; 2ª ed. em 2004).
115
—. O último vôo do flamingo (1ª ed. da Caminho em 2000; ed. em 2004; Prémio
Mário António de Ficção em 2001).
—. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (1ª ed. da Caminho em 2002;
3ª ed. em 2004; rodado em filme pelo português José Carlos Oliveira).
—. O outro pé da sereia (1ª ed. da Caminho em 2006).
—. Venenos de Deus, remédios do diabo (1ª ed. da Caminho 2008).
—. Jususalém (1ª ed. da Caminho em 2009).
Novela infantil:
—. O gato e o escuro, com ilustrações de Danuta Wojciechowska (1ª ed. da
Caminho em 2001; 2ª ed. em 2003). (NOVELA INFANTIL)
—. A chuva casmada, com ilustrações de Danuta Wojciechowska (1ª ed. da Njira em
2004).
—. O beijo da palavrinha, com ilustrações de Malangatana (1ª ed. da Língua Geral
em 2006).
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Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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125
A
NEXOS
:
Anexo 1: Nzuzu
Fonte: http://www.flickr.com/photos/8879749@N06/1298461473/sizes/l/
126
Relato sobre Nzuzu:
Anita Jacobson-Widding , University of Uppsala, Sweden.
- Have you heard the story about nzuzu? I mean, the mermaid, that beautiful
woman who sometimes drags people into her pool?
The man who asked me this question was John Takawira, who was later to
become one of the most famous sculptors of Zimbabwe, especially after his
premature death in 1990. But when he asked me about the beautiful lady in
the pool, he was not yet famous. It was in 1984, and he was still working as
an apprentice in the workshop that his elder brother Bernhard Takawira had
set up in his courtyard, in the outskirts of Harare. Bernhard was already a
well established artist, and had exhibited his stone sculptures in London and
New York.
When my conversation with John took place, he was about to finish the
carving of a huge piece of stone in his brother's outdoor workshop. A few
more stone carvers were working there, among them his younger brother
Lazarus. The three brothers were close colleagues and competitors.
The sculpture that John was working on portrayed a beautiful woman with
long, undulating hair, which seemed to be floating away from her like waves
in a lake. Her head was joined with her torso by a long, narrow neck, that
was stretched so as to permit the face to turn sideways. She was looking
away - far away from any possible spectator who might be imagined
standing in front of her.
I asked John what he thought about this woman, who appeared to be so
inaccessible. It was then that he posed the question about nzuzu, the
mermaid: "Have you heard that story?"
I already had. It was one of the favorite narratives that people wished to tell,
when they were gathered in somebody's kitchen in the rural areas in
Zimbabwe. I had listened to it many times while doing my anthropological
fieldwork among the Manyika in the Eastern Highlands of Zimbabwe. While
we had been sitting around the fire in some grandmother's cooking hut, late
at night, I had often asked people to choose their favorite ngano (= fairy
tale). I knew that this time and place was the only possible setting for a
ngano. Nobody would tell a ngano outdoors, in the daylight. And nobody
would do it unless there was a relaxed, confidential atmosphere, and a small
group of listeners, who could join in the songs that went with almost all the
ngano. The song text would display the symbolism of the ngano in a less
disguised form than the prose. In narratives having sexual connotations, the
songs are indispensable, and everybody has to join in the singing, so as to
cover up the potential embarrassment of the narrator.
However, the narratives about nzuzu, the mermaid, were never told with
interruptions for songs. People would just tell the story, but they would often
embroider the standard theme with details that seemed to reflect their own
attitude to life. And they did not necessarily demand the appropriate setting
for story telling. It sometimes happened that some Manyika friend of mine
stopped at a certain distance from a pool, and told me that he would not like
to approach that pool, because of the dangerous nzuzu who lived there. And
so I was told the story of nzuzu even outdoors, in daylight. Nevertheless, the
narrative was always told in a low voice, as if the narrator were sharing a
secret with me.
When John Takawira asked me if I knew the story about the beautiful
woman in the pool, I pretended that I had never heard it before. I wanted to
listen to his version. John left his carving tools, and began to walk slowly
toward a little cabin in the court yard. I followed him. When we were out of
earshot of the other artists, he began to tell his story, in a low, confidential
tone of voice. As usual, it was like sharing a secret. This is how his narrative
127
went: In some pools there is a very, very beautiful woman. She is called
nzuzu. This woman can be very dangerous. If there is somebody whom she
likes, she will entice him to get close to her pool. And once you get there,
she will drag you down into the water. She will then keep you at the bottom
of the pool. At first, you believe that she will be nice to you, because she is
so beautiful. But once you get down there, she will become very harsh and
strict. She will force you to obey her orders, and to eat the kind of food she
offers. The food she gives you is black mud, worms, and raw fish. If you
refuse to eat that food, she will never let you get up from the pool again. But
if you accept her food politely, and if you obey her strict orders, she will
change once more. After you have endured her harsh treatment for a couple
of weeks, she will become kind. She will now offer you the most wonderful
delicacies, such as rice, and sweet things. Then she will give you a basket
with medicines (mushonga = magic "medicines"), and let you leave the pool.
You will find yourself lying on a reed mat on the surface of the water. From
there you will be able to reach the shore, and walk away with your basket.
Thanks to the gifts in that basket, you will now be able to start a new life, and
become successful and famous. You can become a n'anga (healer, diviner),
or some other kind of artist, and lead a good life. End of the story.
John Takawira's version of the nzuzu story was very close to the standard
version. The only alteration consisted in the passage about the artist.
Normally, people only mention that you can become a healer after having
received the basket with magic gifts. A healer who claims to have visited the
lady in the pool will henceforth have a special relationship to her. Her spirit
will possess him, or "come out" (kubuda) in him, as soon as he takes part in
a ritual for spirit possession.
However, there is also another kind of standard version of the nzuzu story, in
which a snake is introduced: In every tsime (= a pool or well with drinking
water), there is a nzuzu, who is assisted by a python. This snake is the
guardian of the well, and will punish anybody who pollutes the water. The
punishment results in the drying up of the well. The pollution consists in
contamination by a pot that has been in contact with the fire. Therefore,
every girl is warned not to use a clay pot with traces of ashes when she goes
to fetch water in a well. She must instead use the clean shell of a pumpkin.
Since both these versions are standard versions known by everybody in
Manicaland, or in any other part of the Shona-speaking areas of Zimbabwe,
it would make little sense to interpret the story against the background of any
particular individual's biography. Yet, some people seem to be more affected
than others by this story. Some choose it as their favorite fairy tale, while
others do not. And some will embroider the story with details that seem to fit
their own situation. John Takawira, for instance, chose to introduce the
success of an artist into the story. And, as he was telling it, he seemed to
take it very seriously. Not only did he believe in the existence of the beautiful
lady, but he was also emotionally involved in her.
http://www.njas.helsinki.fi/pdf-files/vol2num1/jacobson.pdf. Acessado em 15
de janeiro de 2010.
Tradução:
Anita-Widding Jacobson, da Universidade de Uppsala, na Suécia, diz:
- Você ouviu a história sobre Nzuzu? Quer dizer, a sereia, a bela mulher
que, por vezes arrasta as pessoas para a sua lagoa?
128
O homem que me fez esta pergunta foi John Takawira, que mais tarde se
tornaria um dos escultores mais famosos do Zimbabué, especialmente depois de
sua morte prematura em 1990. Mas quando ele me perguntou sobre a bela moça da
lagoa, ele ainda não era famoso. Foi em 1984, e ele ainda estava trabalhando como
aprendiz na oficina de seu irmão mais velho, Bernhard Takawira, montada em seu
pátio, nos arredores de Harare. Bernhard era um artista bem estabelecido, e
exibiu suas esculturas de pedra em Londres e Nova York.
Quando a minha conversa com John ocorreu, ele estava prestes a terminar a
escultura de um enorme pedaço de pedra ao ar livre na oficina do seu irmão. Alguns
escultores de pedra também estavam trabalhando lá, entre eles seu irmão zaro.
Os três irmãos estavam por perto, colegas e também concorrentes.
A escultura que João estava trabalhando retratava uma mulher bonita, de
longos cabelos ondulados, que parecia estar flutuando longe, como ondas em um
lago. Sua cabeça foi juntada com seu tronco por um pescoço longo, estreito, que foi
estendido de forma a permitir que o rosto virarasse de lado. Ela estava olhando para
longe - muito longe de qualquer espectador possível que possa ser imaginado em pé
na frente dela.
Perguntei a John o que ele pensava sobre essa mulher, que parecia ser tão
inacessível. Foi então que ele colocou a questão sobre Nzuzu, a sereia: "Você
ouviu essa história?"
Eu tinha escutado. Era uma das narrativas favoritas que as pessoas
queriam contar, quando elas estavam reunidas na cozinha de alguém, nas zonas
rurais do Zimbabué. Eu tinha escutado isso muitas vezes enquanto fazia meu
trabalho de campo antropológico entre os Manyika nas montanhas do leste do
Zimbábue. Enquanto estávamos sentados ao redor do fogo na cabana de algumas
avós cozinhando, tarde da noite, eu perguntava com freqüência as pessoas como
escolhiam seus ngano (conto de fadas) favoritos. Eu sabia que essa hora e local foi
o cenário é possível para um ngano. Ninguém diria um ngano ao ar livre, à luz do
dia. E ninguém faria isso se não houvesse uma atmosfera descontraída e
confidencial, e um pequeno grupo de ouvintes, que se divertiam com quase todas as
canções que estavam nos ngano. O texto da canção iria mostrar o simbolismo do
ngano de uma forma menos disfarçada do que a prosa. Em narrativas com
conotações sexuais, as músicas o indispensáveis, e todos têm de se juntar no
canto, de forma a encobrir o embaraço potencial do narrador.
129
No entanto, as narrativas sobre Nzuzu, a sereia, nunca sofreram interrupções
por causa das canções. As pessoas, apenas, contam a história, mas que muitas
vezes abordam um tema padrão com muitos detalhes, que parecem refletir sua
própria atitude de vida. E elas não são necessariamente o cenário apropriado para
contar histórias. Às vezes acontecia que alguns amigos Manyika, paravam com certa
distância perto das lagoas, e me diziam que não gostavam de se aproximar de
lagoas, por causa de perigosas Nzuzus, que lá viviam. E era assim que se contava a
história de Nzuzu mesmo ao ar livre, à luz do dia. No entanto, a narrativa sempre era
dito em voz baixa, como se o narrador estivesse compartilhando um segredo
comigo.
Quando John Takawira me perguntou se eu conhecia a história da bela
mulher na lagoa, eu fingi que eu nunca tinha ouvido antes. Eu queria ouvir a sua
versão. John deixou suas ferramentas de escultura, e começou a caminhar
lentamente em direção a uma pequena cabana no pátio. Eu o segui. Quando nós
estávamos fora do alcance da voz de outros artistas, ele começou a contar sua
história, em um tom baixo e confidencial de voz. Como de costume, era como a
partilha de um segredo. Esta é a forma de sua narrativa:
Em algumas lagoas há uma mulher muito, muito bonita. Ela é chamada
Nzuzu. Esta mulher pode ser muito perigosa. Se alguém a quem ela gosta, ela
vai atraí-la para chegar perto de sua lagoa. E quando você chegar lá, ela vai te
arrastar para baixo da água. Ela, então, vai mantê-lo no fundo da lagoa. Num
primeiro instante, você acreditará que ela se boa com você, porque ela é o
bonita. Mas quando você chegar , ela vai ficar muito dura e rigorosa. Ela irá forçá-
lo a obedecer a suas ordens, e comer o tipo de comida que ela oferece. O peixe,
alimento que oferece é de barro preto, amargo e crú. Se você se recusa a comer
essa comida, ela nunca vai deixar você sair da lagoa novamente. Mas se vo
aceitar educadamente o seu alimento, e se você obedecer a suas ordens estritas,
ela vai mudará mais uma vez. Depois de ter sofrido seu tratamento duro de um par
de semanas, ela vai se tornaoutra. Ela irá, agora, oferecer-lhe as delícias mais
maravilhosas, como o arroz, e coisas doces. Então ela lhe dauma cesta com os
medicamentos (Mushonga = magic "remédios"), e deixá-lo sair da lagoa. Vovai
encontrar-se deitado em uma esteira sobre a superfície da água. De lá, você será
capaz de atingir a costa, e vai embora com seu carro. Graças aos presentes dessa
cesta, você agora será capaz de iniciar uma nova vida, e se tornar bem sucedido e
130
famoso. Você pode se tornar um n'anga (curandeiro, adivinho), ou algum outro tipo
de artista, e levar uma vida boa. Fim da história.
A versão da história de Nzuzu de John Takawira estava muito próxima da
versão padrão. A única alteração consistiu na passagem sobre o artista.
Normalmente, as pessoas mencionam que vopode se tornar um curador, após
ter recebido a cesta com os presentes mágicos. Um curandeiro que afirma ter visto a
moça na lagoa passará a ter uma relação especial com ela. Seu espírito vai possuí-
lo, ou "sair" (kubuda) dele, assim que ele participar de um ritual de possessão.
No entanto, também um outro tipo de versão padrão da história Nzuzu, no
qual é introduzida uma serpente: Em cada tsime (uma lagoa ou poço com água
potável), uma Nzuzu, que é assistida por uma python. Esta serpente é a guard
do poço, e irá punir qualquer um que poluir a água. Os resultados da punição são
para o bem. A poluição consiste na contaminação por uma panela que tem estado
em contato com o fogo. Portanto, cada menina é advertida para não usar uma
panela de barro com vestígios de cinzas, quando ela vai buscar água num poço. Ela
deve usar a casca limpa de uma abóbora.
Uma vez que ambas as versões são versões padrões conhecidos por todos
em Manica, ou em qualquer outra parte das áreas de língua Shona do Zimbábue,
faria pouco sentido interpretar a história com o pano de fundo da biografia de
qualquer indivíduo em particular. No entanto, algumas pessoas parecem ser mais
afetados do que outros com esta história. Alguns escolhem como seu conto de fadas
favorito, enquanto outras não. E alguns abordam a história com detalhes que
parecem se encaixar a sua própria situação. John Takawira, por exemplo, optou por
introduzir o sucesso de um artista na história. E, como ele dizia, parecia levar muito
a sério. Ele não acredita na existência da moça bonita, mas também estava
emocionalmente envolvido por ela.
http://www.njas.helsinki.fi/pdf-files/vol2num1/jacobson.pdf. Acessado em 15 de
janeiro de 2010.
131
A
NEXO
2:
O
XUM
F
ONTE
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BR
.
GEOCITIES
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COM
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BUZIOSVIRTUAL
2/
OXUM
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HTM
132
Oxum por Pierre Fatumbi Verger:
Òsun na África
Oxum é a divindade do rio de mesmo nome que corre na Nigéria, em Ijexá e
Ijebu. Era, segundo dizem, a segundo mulher de Xangô, tendo vivido antes com
Ogum, Orunmilá e Oxossi.
As mulheres que desejam ter filhos dirigem-se a Oxum, pois ela controla a
fecundidade, graças aos laços mantidos com Ìyámi-Àjé (“Minha Mãe Feiticeira” ).
Sobre este assunto, uma lenda conta que:
“Quando todos os orixás chegaram a terra, organizaram reuniões onde as
mulheres não eram admitidas. Oxum ficou aborrecida por ser posta de lado e não
poder participar de todas as deliberações. Para se vingar, tornou as mulheres
estéreis e impediu que as atividades desenvolvidas pelos deuses chegassem a
resultados favoráveis. Desesperados, os orixás dirigiram-se a Olodumaré e
explicaram-lhe que as coisas iam mal sobre a terra, apesar das decisões que
tomavam em suas assembléias. Olodumaré perguntou se Oxum participava das
reuniões e os orixás responderam que não. Olodumaré explicou-lhes então que,
sem a presença de Oxum e do seu poder sobre a fecundidade, nenhum de seus
empreendimentos poderia dar certo. De volta a terra, os orixás convidaram Oxum
para participar de seus trabalhos, o que ela acabou por aceitar depois de muito lhe
rogarem. Em seguida, as mulheres tornaram-se fecundas e todos os projetos
obtiveram felizes resultados” .
Oxum é chamada de Ìyálóòde (Iaodê) título conferido à pessoa que ocupa o
lugar mais importante entre todas as mulheres da cidade. Além disso, ela é a rainha
de todos os rios e exerce seu poder sobre a água doce, sem a qual a vida na terra
seria impossível. Os seus axés são constituídos por pêras do fundo do rio Oxum, de
jóias de cobre e de um pente de tartaruga. O amor de Oxum pelo cobre, o metal
mais precioso do país iorubá nos tempos antigos, é mencionado nas saudações que
lhe são dirigidas:
“Mulher elegante que tem jóias de cobre maciço” .
Numerosos lugares profundos (ibù), entre Igèdè, onde nasce o rio, e Lke,
onde ele deságua na lagoa, são os laçais de residência de Oxum. Aí, ela é adorada
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sob nomes diferentes e suas características são distintas uma das outras.
Encontramos:
Yèyé Odò, perto da nascente do rio;
Òsun Ijùmú, rainha de todas as Oxuns e que , como a que vem a seguir, está
em estreita ligação com
as bruxas Ìyámi-Àjè;
Òsun Àyálá ou Ò un Ìyánlá, a Avó, que foi a mulher de Ogum;
Òsun Osogbo, cuja fama é grande por ajudar as mulheres a ter filhos;
Òsun Apara, a mais jovem de todas, de gênio guerreiro;
Òsun Abalu, a mais velha de todas;
Òsun Ajagira, muito guerreira;
Yèyé Oga, velha e brigona;
Yèyé Olóko, que vive na floresta;
Yèyé Ipetú;
Yèyé Morin ou Ib rin, feminina e elegante;
Yèyé Kare, muito guerreira;
Yèyé Oníra, guerreira;
Yèyé Oke, muito guerreira;
Òsun Pòpòlókun, cujo culto é realizado próximo à lagoa .
Laços muito estreitos existem entre Oxum e os reis de Oxogbô. Neste lugar, a
festa anual das oferendas a Oxum é uma comemoração pela chegada de Laro,
fundador da dinastia, às margens deste rio cujas águas correm permanentemente.
Laro, depois de muitas atribulações, achando o local favorável ao estabelecimento
de uma cidade, se fixou com a sua gente. Alguma dias depois de sua chegada,
uma de suas filhas foi banhar-se no rio e desapareceu sob as águas. Reapareceu no
dia seguinte, soberbamente vestida, declarando ter sido muito bem acolhida pela
divindade do rio. Laro, para demonstrar a sua gratidão, dedicou-lhe oferendas.
Numerosos peixes, mensageiros da divindade, vieram comer, em sinal de aceitação,
as comidas que Laro havia jogado nas águas. Um grande peixe, que nadava
próximo ao local onde este se encontrava, cuspiu-lhe água. Laro recolheu esta água
numa cabaça e bebeu, fazendo assim um pacto de aliança com o rio. Estendeu,
depois, as duas mãos para frente e o grande peixe saltou sobre elas. Laro recebeu o
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título de Atóója contração da frase ioruba A téwó gbáà ejá (Ele estende as mãos e
recebe o peixe) e declarou: Òsun gbo (Oxum está em estado de maturidade), suas
águas serão sempre abundantes. Essa foi à origem do nome da cidade de Oxogbô.
No dia da festa anual, Atáója vai solenemente até as margens do rio. Tem a cabeça
coberta por uma coroa monumental feita com pequenas miçangas reunidas e é
vestido com pesada roupa de veludo. Anda com calma e gravidade, rodeado por
suas mulheres e seus dignitários. Nessa procissão anual, uma de suas filhas leva a
cabaça contendo os objetos sagrados de Oxum. É a Arugbá Òsun (aquele que leva
a cabaça de Oxum). Ela representa a moça que outrora desapareceu no rio. Sua
pessoa é sagrada, e o próprio rei inclina-se à sua frente. Depois que atinge a idade
da puberdade, ela não pode mais preencher essa função. Mas, pela graça de Oxum,
a descendência de Atáója é sempre numerosa, não faltando, pois, a possibilidade de
se encontrar uma Arugbá Òsun disponível. Atáója senta-se numa clareira e acolhe
as pessoas que m assistir à cerimônia. Os reis e os chefes das cidades vizinhas
estão todos presentes ou enviam representantes. As delegações chegam, uma após
outra, acompanhadas de músicos. Trocas de saudações, prosternações e danças
sucedem-se como formas de cortesia recíprocas, com animação crescente. Ao final
da manhã, atáója, acompanhado do seu povo e dos seus hóspedes, aproxima-se do
rio e manda lançar oferendas e comidas, no mesmo lugar onde Laro o fizera
outrora. Os peixes as disputam sob o olhar atento das sacerdotisas de Oxum. A
seguir, Atáója dirige-se aas proximidades de um pequeno templo vizinho e senta-
se sobre a pedra
Òkúta Laro -, onde seu ancestral Laro havia repousado em outros tempos.
A adivinhação é feita para saber se Oxum está satisfeita e se ela tem vontades a
exprimir. Atáója volta em seguida para a clareira, onde recebe e trata seus
convidados com uma generosidade digna da reputação de Oxum, a rainha de todos
os rios.
Oxum no Novo Mundo
No Brasil e em Cuba, os adeptos de Oxum usam colares de contas de vidro
de cor amarelo-ouro e numerosos braceletes de latão. O dia da semana consagrado
a ela é o sábado e é saudada, como na África, pela expressão “Ore Yèyé o!!!”
(“Chamemos a benevolência da Mãe !!!” ). É recomendável fazer sacrifícios de
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cabras a Oxum e oferecer-lhe prato de mulukun (mistura de cebolas, feijão-fradinho,
sal e camarões) e de adum (farinha de milho misturada com mel de abelha e azeite
doce). A sua dança lembra o comportamento de uma mulher vaidosa e sedutora que
vai ao rio se banhar, enfeita-se com colares, agita os braços para fazer tilintar seus
braceletes, abana-se graciosamente e contempla-se com satisfação num espelho. O
ritmo que acompanha as suas danças denomina-se “ ijexá” , nome de uma região da
África, por onde corre o rio Oxum. No Brasil, ela é sincretizada com Nossa Senhora
das Candeias, na Bahia, e Nossa Senhora dos Prazeres, no Cuba ela o é com
Nuestra Señora de la Caridad Del Cobre. (VERGER, 1997, p. 174-176)