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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Eduardo Nunes da Silva
MEDICINAS ALTERNATIVAS E COMPLEMENTARES E
AGRICULTURA ECOLÓGICA: AFINIDADES E POTENCIAIS
PARA A SAÚDE COLETIVA
FLORIANÓPOLIS
2010
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Eduardo Nunes da Silva
MEDICINAS ALTERNATIVAS E COMPLEMENTARES E
AGRICULTURA ECOLÓGICA: AFINIDADES E POTENCIAIS
PARA A SAÚDE COLETIVA
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduão em Saúde Coletiva
da Universidade Federal de Santa
Catarina como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Orientador: Prof. Dr. Charles
Dalcanale Tesser
FLORIANÓPOLIS
2010
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AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos aos amigos, professores e funcionários do
mestrado que tornaram esta jornada possível, instrutiva e muito
agradável.
Ao meu orientador, Charles Tesser, pela paciência, a acolhida e as
muitas palavras.
Aos amigos que contribuíram para a realização desta dissertação,
especialmente à Thai, ao Lucas e à Carol.
À CAPES, pelo importante auxílio financeiro.
Aos membros da banca de qualificação, professor Marcão Da Ros e
professora Elaine Azevedo, pelas valiosas sugestões.
Aos colegas trabalhadores em saúde, em especial à dona Sônia e suas
histórias.
Ao Fran e à Nina, por existirem.
Aos muitos familiares, em especial ao pai e à mãe, manas e sobrinhos,
mas tamm à família d'Arine, em especial aos compadres Vanessa
(grande generosidade bibliográfica) e Sangaclanderson, por quebrar
alguns galhos.
Aos compadres Cereni e João, pelo carinho e amizade.
E, principalmente, aos que participaram desta pesquisa, em especial
àqueles que se dispuseram, com muita boa vontade, a serem
entrevistados.
A quem está lendo essas linhas.
A todos, minha gratidão.
Arine, quase tudo que tem de bom aqui é seu.
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...
Poderoso para mim não é aquele que
descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre
as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de
imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
Manoel de Barros
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RESUMO
A presente dissertação objetiva entrelaçar as Medicinas Alternativas e
Complementares (MAC) e a Agricultura Ecológica (AE) no âmbito da
Saúde Coletiva (SC). Parte-se do princípio que a SC deve socorrer-se de
outros setores com vistas a enfrentar os desafios que lhe são colocados
pelas crises na atenção à saúde e no meio ambiente. A metodologia se
dividiu em dois momentos. No primeiro, realizou-se uma reflexão
teórica sobre características da ciência moderna e suas influências na
sociedade, nas áreas da saúde e da agricultura, além do contexto que
ensejou o surgimento da Saúde Coletiva, das MAC e da AE. Ademais,
se construiu um esboço das afinidades e disparidades entre as duas áreas
que são de interesse à SC e um esquema teórico baseado em algumas
ideias de Bruno Latour e Boaventura de Sousa Santos. Essas ideias
ressaltam a importância epistemológica e os significados políticos das
redes. No segundo momento, em uma aproximão empírica das
possíveis redes que envolvessem as duas áreas, foram entrevistadas 12
pessoas, divididas em três grupos de quatro: praticantes de MAC no
Sistema Único de Saúde, praticantes de AE que vendem seus produtos
de forma direta e usuários/consumidores das duas áreas. A pesquisa
demonstrou que muitas afinidades e potencialidades entre as MAC e
a AE que são de interesse para a SC, apesar destas estarem um tanto
dispersas e não articuladas. Enseja-se, dessa forma, uma ampliação
desse diálogo, buscando uma atenção à saúde mais integral e que
assuma a autonomia e o empoderamento das comunidades como valores
sociais relevantes para a Saúde Coletiva, coerentes com as propostas das
MAC e da AE.
Palavras-chave: Medicinas Alternativas e Complementares; Agricultura
Ecológica; Saúde Coletiva.
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8
ABSTRACT
This master dissertation aims embrace the Complementary and
Alternative Medicines (CAM) and Ecologic Agriculture in the
Collective Health (CH) field. It begins on the principle that the CH must
look for support in other social sectors to face the challenges represented
by the health attention and environmental crisis. The methodology
consisted by two parts. At the first moment, it was did a theoretic
reflection about the modern science characteristics and their influences
on the society, in the both areas of health and agriculture, beyond the
context that enlighted CH, CAM and EA borns. Therefore, it was built a
scheme about the affinities and disparities between the both areas that
interests to CH and a theoretic scheme based on some Bruno Latour and
Boaventura Souza Santos ideas. These ideas bring the net’s
epistemological importance and their political meanings. At the second
moment, in a empiric approach to the possible nets that involved the
both areas, it was performed 12 interviews, divided in three groups of
four persons: CAM practitioners in the Public Health System (SUS), EA
practitioners that sell their products directly and both areas users-
consumers. The field research demonstrated that there are a lot of
affinities and potentialities between CAM and EA that interests to CH,
despite these are so dispersed and not articulated. Is desired, in this way,
improvement of this dialog, searching build a whole health attention that
assume the autonomy and community empowerment as relevant social
values to the Collective Health, coherent whit the CAM and EA general
purposes.
Key words: Complementary and Alternative Medicine; Ecologic
Agriculture; Collective Health.
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9
LISTA DE QUADROS
Quadro 1.1 – Estrutura das doenças 38
Quadro 1.2 – Características afins e díspares entre as MAC e a AE
Quadro 3.1 – Locais onde foram realizadas as entrevistas 100
Quadro 4.1 – Características dos terapeutas que praticam as MAC
entrevistados 103
Quadro 4.2 – Características dos agricultores ecologistas
entrevistados 104
Quadro 4.3 – Características dos usuários/consumidores de MAC/AE
entrevistados 104
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10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 CONTEXTUALIZAÇÃO TEMÁTICA E REFERÊNCIAS
CONCEITUAIS 21
1.1 SOBRE A CIÊNCIA, A SOCIEDADE E SUAS
RELAÇÕES 22
1.2 A CONSTRUÇÃO DOS CAMPOS 32
1.2.1 A biomedicina 33
1.2.2 Procurando alternativas: a Saúde Coletiva 45
1.2.3 A agricultura moderna 53
1.3 O CENÁRIO PRÉ-ALTERNATIVOS 61
1.4 AS MEDICINAS ALTERNATIVAS E
COMPLEMENTARES 65
1.5 A AGRICULTURA ECOLÓGICA 72
1.6 AFINIDADES E DISPARIDADES ENTRE
AS MAC E A AE 77
2.6.1 Afinidades entre as MAC e a AE 77
2.6.2 Disparidades entre as MAC e a AE 84
1.7 VISLUMBRANDO E TECENDO UMA REDE
(BASE TEÓRICA) 88
2 OBJETIVOS 96
3 METODOLOGIA 97
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO 103
4.1 CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS 103
4.2 IMPRESSÕES GERAIS 105
4.3 OS TERAPEUTAS 106
4.4 OS AGRICULTORES 133
4.5 OS USUÁRIOS/CONSUMIDORES 165
CONSIDERAÇÕES FINAIS 190
REFERÊNCIAS 193
ANEXO 1 – ROTEIROS PARA ENTREVISTAS 208
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11
INTRODUÇÃO
Este estudo visa entrelaçar, no âmbito da Saúde Coletiva, áreas
tão próximas quanto distantes: as práticas integrativas e complementares
de cuidado em saúde e as práticas ecológicas na agricultura
1
. Chamare-
mos as duas áreas em questão de Medicinas Alternativas e Complemen-
tares
2
(MAC) e Agricultura Ecogica
3
(AE), respectivamente. Partimos
do princípio que, dada a crise em vários níveis (ambiental, alimentar,
humanitária, da atenção em saúde) que vivenciamos neste como de
século, a Saúde Coletiva (SC), que tem entre as características fundado-
ras a interdisciplinaridade e o conteúdo político, está chamada a respon-
der a desafios que transcendem o próprio campo
4
. Fora disso, as respos-
tas correm o risco de serem não resolutivas, mas paliativas, ilusórias ou,
pior ainda, respostas que contribuam para o agravamento das questões.
Cremos que as MAC e a AE apresentam particularidades episte-
mológicas, históricas, políticas e sociais que são bastante coerentes entre
si e tamm com várias das propostas da Saúde Coletiva, relativamente
materializadas no contexto brasileiro por meio do Sistema Único de
Saúde (SUS). Esse processo de efetivação das propostas da Saúde Cole-
tiva está em construção, e este trabalho quer ser uma contribuição à
pluralização terapêutica, epistemológica e social do SUS, partindo das
premissas de que as MAC são bastante compatíveis com os princípios
desse sistema (TESSER; BARROS, 2008) e de que a AE e os sujeitos
nela envolvidos podem ser aliados estratégicos importantes para a trans-
1
Nessa primeira menção à agricultura, esclarecemos que estamos tratando da produção agrícola
e da pecuária, o que extrapola o conceito estrito de agricultura, que não inclui a criação de
animais.
2
A Organização Mundial da Saúde (OMS), no documento “Estratégias da OMS sobre medicina
tradicional 2002-2005” (OMS, 2002), apresenta duas formas de designar as práticas não
biomédicas de cuidado em saúde: Medicina Tradicional (mais vinculada a países em
desenvolvimento) e Medicinas Alternativas e Complementares (presentes nos países
industrializados). Neste trabalho, usaremos a segunda designação, por sua abrangência e
concisão.
3
Neste trabalho, fizemos a opção de chamar os vários ramos de práticas agrícolas com
preocupações ambientais de Agricultura Ecológica. Tal opção será mais bem explicada na
seção correspondente.
4
Na acepção de Bourdieu: “O campo é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial [...].
O que está em jogo é o monopólio da autoridade definida como capacidade técnica e poder
social; ou da competência, enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de
maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado”
(BOURDIEU, 1983, p.122).
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12
formação social que subjaz à implantação efetiva do SUS e de seus prin-
cípios (SILVA, 2008).
Aqui é pertinente que façamos um parêntese importante. Como
será explorado mais adiante, esses dois objetos do nosso estudo estão
longe de serem homogêneos. Quer por estarem sendo construídos em
um processo histórico multifacetado, quer por apresentarem múltiplos
significados sociais, aproximam-se da noção de polissemia. Com tanta
diversidade (especialmente dentro da área das terapias alternativas e
complementares) seria possível argumentar, por exemplo, que alguma
prática terapêutica ou que alguma escola de agricultura ecológica não se
encaixa neste ou naquele quesito de afinidade ou semelhança
5
. Frisemos
eno que buscaremos tratar os fenômenos de uma maneira a ressaltar as
potencialidades, mesmo que estas estejam, por vezes, atenuadas, distor-
cidas ou mesmo ausentes em alguns ramos das práticas. Esse olhar é
motivado pela crença de que não conhecimento neutro de valores e
intenções, concordando com Lacey (2004), e assumindo que nossa in-
tenção é promover esse diálogo a fim de ressaltar valores e potenciali-
dades emancipatórios que circulam nessas propostas (SANTOS, 2004).
O percurso parte de assuntos gerais, como o papel da ciência no
mundo contemporâneo, na gênese das luzes, das crises, da hegemonia na
área da saúde e da agricultura, para, sobre as muitas brechas, nos apro-
ximarmos das áreas em questão, ajudando a construir respostas alterna-
tivas que, no dizer de Santos, devem procurar a prudência e a sabedoria.
Longe de serem expressões de prudência e sabedoria, os fenôme-
nos recentes do aquecimento global, da pressão imigratória sobre os
países centrais, da iminente crise energética e alimentar ajudam a com-
por um cenário de paradoxos, no qual crescem desigualdades no acesso
a condições dignas de vida e de saúde, especialmente nos países do
chamado Terceiro Mundo. Em paralelo, e tendo o dúbio papel de causa e
consequência, buscam-se fontes alternativas de energia, como o biodie-
sel e o álcool, o que pode agravar a crise alimentar e a escassez de recur-
sos hídricos.
Na área da saúde, vivemos um dilema. Temos dificuldades em
pensar e produzir saúde, tão assoberbados estamos por sua falta. Mesmo
5
Um exemplo é a homeopatia. Apesar de contra-hegemônica dentro do contexto da
biomedicina, é uma prática bastante medicalizada e elitizada, o que atenua algumas
possibilidades sociais, mas não as inviabiliza.
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13
que a compreensão sobre os processos de saúde e doença no ocidente
tenha se transformado bastante a partir do século XVII até chegar à
noção atual de conceito ampliado de saúde, não conseguimos efetiva-
mente promovê-la, como foi proposto em Ottawa. Ao ampliar o concei-
to, aumentamos nosso escopo de atuação e mais quiméricos nos torna-
mos. Tudo parece ter uma interface com a saúde, e a interdisciplinarida-
de, mais que uma condição de acesso ao conhecimento, é uma necessi-
dade.
O surgimento da Saúde Coletiva como uma espécie de renovação
da Saúde Pública no contexto latino-americano, com grande vinculação
às Ciências Sociais, em certo sentido é uma explicitação dessa interdis-
ciplinaridade (GRANDA, 2009). Am disso, o próprio contexto cultural
que a ensejou (a luta pela redemocratização no continente) transformou-
a em uma área de conhecimento eminentemente política, no sentido
militante.
No presente, com a ampliação do processo de globalização, cresce
a percepção de que os fenômenos sociais carregam, entre outras, duas
dimensões, uma local e uma global. Além dessa deslocalização, parece
haver tamm uma tendência à homogenização, e as diferenças culturais
perdem seu conteúdo de renovação, sendo desacreditadas como alterna-
tivas ao padrão cultural dominante (SANTOS, 2004). Proliferam os
híbridos do império do meio”, como os chama Bruno Latour (1994),
produto direto, mas escamoteado, da separação entre natureza e socie-
dade promovida pela modernidade.
Como pontos centrais no trabalho desses autores, e que serão mais
desenvolvidos adiante, temos, no caso de Boaventura Santos, a busca
pela emancipação social através da visibilidade conferida (e consequente
relevância social/política/cognitiva) aos fenômenos alternativos, dos
mais variados matizes, que existem nas bordas dos grandes modelos
hegemônicos (SANTOS, 2000; 2004). Latour mostra a engenhosida-
de da Grande Separação moderna, que ao parecer separar teoria e práti-
ca, por um lado, e natureza e sociedade, por outro, propiciou um enorme
avanço tecnogico, misturando como nunca humanos e o humanos
(LATOUR, 1994).
Tanto nas MAC e na AE como na própria Saúde Coletiva, pode-
mos encontrar bons exemplos dessa mistura. uma mescla de elemen-
tos eminentemente de laboratório (e que só fazem sentido nesse ambien-
te) com outros intrinsecamente sociais, de acordo com a divisão moder-
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14
na. Agrupam-se, por exemplo, uma cepa de vírus de uma nova gripe,
que põe em alerta autoridades sanitárias, produzida em laboratório com
os modos de se criarem porcos no México, afetando relações comerciais
e diplomáticas internacionais. Misturam-se os genes resistentes a algum
agroquímico presentes em uma variedade de soja transgênica e patente-
ados por alguma transnacional, suas promessas de mitigação da fome, os
excessos de resíduos desses mesmos agroquímicos nos alimentos e no
ambiente, as massas camponesas migrando para as cidades em busca de
trabalho e o vegetarianismo como opção diferenciada de alimentação,
além de outras coisas, como o complicado jogo político que envolve a
liberação de cultivo de novas variedades, o financiamento das chamadas
pesquisas de ponta, etc. Essas complexas relações, dadas em redes,
transformam a interdisciplinaridade em uma condição necessária, cria-
dora, mas tamm problematizadora e, ao mesmo tempo, essencial para
o encaminhamento de soluções.
Especificamente na área da saúde, a ciência, com sua tradição de
divisão em disciplinas, teve um papel crucial no estabelecimento da
hegemonia da biomedicina, que valoriza o saber doutoral, tecnicista e
químico-cirúrgico. Ainda vinculado a um conceito de ausência de doen-
ça, esse saber, paradoxalmente, torna a saúde um bem inacessível, pois
patologiza todos os desvios dos padrões estatísticos de normalidade e
coloca os portadores desses desvios como necessitados de atenção e
tratamento biomédico, que usualmente se o químico-cirúrgico.
Muito contribuíram para o sucesso da revolução científica no i-
maginário da humanidade as conquistas materiais, os avanços em co-
municação e transportes, mas também os feitos da biomedicina (ou, pelo
menos, a ela creditados), como a vitória relativa contra as doenças in-
fecciosas e o aumento da longevidade. Pom, parece haver outros can-
didatos a receber parte dos louros por esses méritos. McKeown (1979),
por exemplo, credita a melhora nos níveis de saúde no ocidente, em
primeiro lugar, à maior disponibilidade de alimentos. Aqui surge com
força essa outra grande personagem, que tamm tem muito de suas
bases, como a biomedicina, na racionalidade científica: a agricultura
moderna. O modelo moderno de produção agrícola se encaixa em uma
lógica industrial que acentua os riscos ambientais em nome de uma vi-
são de produtividade. Esse modelo se caracteriza também por um uso
intensivo dos recursos naturais e de insumos externos (mormente quími-
cos), mecanização, monoculturas e perfil exportador. A essas transfor-
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15
mações no modelo de produção se atribui, apesar de algumas controvér-
sias, o grande aumento na produção de alimentos ocorrido no período
após a Segunda Guerra Mundial, recebendo o processo de sua implanta-
ção em muitos países, em especial os do Terceiro Mundo, o nome de
Revolução Verde”.
Mesmo aceitando que a implantação desse modelo seja parcial-
mente responsável pela melhora do padrão de saúde em alguns dos luga-
res onde ocorreu (pelo aumento na quantidade de alimentos), o se
pode ignorar suas repercussões negativas. A agricultura moderna tam-
bém pode ser encarada como destruidora de paisagens e ecossistemas,
causadora de erosão nos solos, de erosão genética, de diminuição das
reservas hídricas e assoreamento dos rios, poluidora das águas de super-
fície e subterrâneas, comprometedora da saúde dos que nela trabalham e
dos consumidores de seus produtos, destruidora da diversidade agrícola
(o que empobrece a dieta alimentar), ameaçadora da segurança alimentar
no médio e longo prazo, causa de migrações e expulsão da terra, etc.
(LEROY, 2002).
Na década de 1960, sinais de crises começaram a dar azo ao sur-
gimento de ideias que consideravam essas repercussões negativas. Mui-
tos eram os sinais de insustentabilidade social, econômica e ecológica
que, na seara epistemológica, representavam sinais de crise dos para-
digmas dominantes (KUHN, 1975) ou de desarmonia de ilusões
(FLECK, 1986). O movimento da contracultura foi uma das formas de
expressão de contestações ao sistema vigente e se refletiu, em alguma
medida, nas vertentes críticas que vêm se constituindo, inclusive na
academia, em resposta ao reducionismo característico de muitas práticas
científicas.
Essas propostas (que epistemologicamente se aproximam das no-
ções de paradigma ou estilo de pensamento) receberam ou se encaixam
em várias denominações distintas: holísticas, pós-modernas, não moder-
nas, para citar algumas. Em certo sentido, poderíamos chamá-las de
“alternativas” e, nesse ponto, é importante que façamos uma distinção.
Entendendo-as como paradigma
6
ou estilo de pensamento, essas propos-
6
Para estendermos a noção de paradigma (termo com definição algo imprecisa, mesmo no
trabalho de KUHN, 1975) para a análise de fenômenos sociais em sentido mais amplo, que não
só epistemológico, é necessário aproximar-se do sentido que o termo tem no seu uso mais
corrente (“modelo, padrão, estalão” – FERREIRA, 1980, p. 1255). O tema de fundo que
permeia a questão é o caráter do alternativo. Se complementar ou substitutivo.
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16
tas se encaixariam nessa definição do Dicionário Aurélio: sucessão de
duas coisas reciprocamente exclusivas” (FERREIRA, 1980, p. 92). Ou
seja, essas novas propostas viriam, como ensinam Kuhn (1975) e Fleck
(1986), para tomar o lugar do paradigma ou estilo de pensamento hege-
mônico.
No caso específico da saúde, contudo, há sinais de que as propos-
tas emergentes não pretendem erradicar ou ignorar o acúmulo de saberes
da medicina científica ocidental
7
(defesa explícita nesse sentido é feita
por JONAS; LEVIN, 2001), traduzindo-se melhor em outra definição de
alternativo: diz-se das coisas de que se pode escolher a que mais con-
venha” (FERREIRA, 1980, p. 92). Lembrando que no cuidado à saúde é
comum o apelo simultâneo a recursos variados, nem sempre coerentes e,
às vezes, antagônicos. Como diz o nome “medicinas alternativas e com-
plementares” (OMS, 2002), além de alternativas, estas são complemen-
tares, e não substitutivas. Para finalizar esse esclarecimento sobre o
caráter do alternativo, cremos que ao associar a agricultura ecogica à
ideia de alternativo”, tamm podemos pensar no sentido mais para-
digmático, ou seja, é possível pensar em trocar totalmente o modo de
produção (KATHOUNIAN, 2001). Volta o sentido mais revolucionário
8
do termo.
Resumidamente, em qualquer vertente que analisemos, nas novas
propostas uma postura crítica à suposta objetividade e neutralidade
do conhecimento científico, ao seu caráter reduzido e etnocêntrico. Há a
percepção de que o todo é mais que a soma das partes
9
e que as culturas
que ficaram em um plano secundário na modernidade tambémm o que
dizer, levando a uma abertura a outras influências, como as oriundas das
culturas orientais e indígenas. Na seara político-econômica há a introdu-
7
Apesar de a biomedicina estar presente em todo o mundo, e por isso perder em parte sua
característica ocidental, essa caracterização é importante, pois situa sua origem histórica e
geográfica e também onde estão as sedes dos maiores beneficiários econômicos da expansão
do modelo biomédico, os laboratórios farmacêuticos, além de acentuar que os valores
epistêmicos e sociais dos quais a biomedicina é expressão têm seu berço na Europa Ocidental e
na América do Norte.
8
No sentido das “revoluções científicas”, como abordadas por Kuhn (1975). Isso está explicito
em algumas formulações de conceitos da Agroecologia, por exemplo, que se propõe a ser, em
certo sentido, o paradigma científico oficial dos vários ramos de agricultura sustentável ou
ecológica (CAPORAL; COSTABEBER, 2004).
9
Santos (2004) defende justamente o contrário quando critica a razão metonímica (que expressa
esse raciocínio). O autor sustenta que as partes representam mais que o todo.
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17
ção de variáveis ecológicas. Percebe-se que os recursos econômicos não
são infinitos (conclusão que ainda não teve reflexos práticos relevantes).
A eclosão de propostas alternativas ajudaria a explicar por que
chegamos à passagem para o século XXI, na área da saúde, com uma
procura crescente por práticas médicas alternativas ou complementares
(EISEMBERG, 1993; JONAS e LEVIN, 2001) e com o reconhecimento
oficial da importância destas (OMS, 2002). Essas práticas representam
uma resistência à erosão cultural que está no bojo do paradigma técnico-
químico-cirúrgico na medida em que remetem a outras formas de com-
preensão dos processos de saúde-doença, valorizando o autocuidado, o
olhar integralista, as terapias mais brandas, menos invasivas, e apontam
para uma perspectiva interacionista entre os sujeitos, consigo mesmos e
com o meio ambiente, considerando o entorno social e natural.
O mesmo se aplica à área da agricultura. O crescimento da agri-
cultura ecológica pode representar, entre outros significados, uma tenta-
tiva de resgate de sabedorias ancestrais, de reconexão com os ciclos
naturais, de valorização da diversidade e de convivência com os eventu-
ais ruídos ao sistema agrícola (as plantas chamadas de daninhas” no
modelo moderno de produção passam a ser chamadas de companhei-
ras” na AE, por exemplo), o que é paralelo a uma noção de saúde como
uma capacidade de adaptação, mais simples e vvel que o idealizado
completo bem estar”, usado pela OMS na definição de 1948.
Além do referido, alguns ramos das MAC
10
e a AE apresentam
outra intersecção bastante evidente. Essas práticas de MAC, por seu
olhar mais integral, preocupam-se com a alimentação, e essa preocupa-
ção pode levar a pensar a questão sob o ponto de vista das outras quali-
dades dos alimentos, como a ausência de resíduos de produtos químicos,
questão basilar na AE.
Essas características comuns terminam por nos levar ao conteúdo
político dessas propostas, aparentemente incompatíveis com uma socie-
dade que cultua, através de um processo cultural expresso em práticas de
consumo insustentáveis, a industrialização e o progresso material como
os únicos caminhos para a redenção do homem.
Façamos aqui, contudo, a ressalva de que também, por trás do
10
Isso é particularmente evidente no caso das medicinas de origem oriental, como a medicina
ayurvédica e a medicina tradicional chinesa, nas quais a alimentação ocupa um capítulo
importante.
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18
aumento da visibilidade desses movimentos, o apelo mercadológico que
eles representam em um sistema que vive de crises, como é o capitalis-
mo. Somam-se, portanto, aos valores epistemológicos, políticos e soci-
ais das MAC e da AE, os valores comerciais. Esses últimos, contudo,
são coerentes com o modelo de sociedade em que vivemos e m servi-
do de mote para a apropriação e o consequente atenuamento das possibi-
lidades políticas contra-hegemônicas.
A teorização, a formulação de conceitos e o enlace entre as MAC
e a AE são necessários para ampliar a compreeno sobre esses movi-
mentos, potencializando-os mutuamente como propostas contra-
hegemônicas, na direção de uma promoção de saúde que transcenda os
aspectos biomédicos usuais, que envolva a construção de relações soci-
ais mais justas e transparentes, enfim, que seja transformadora e abran-
gente.
Na produção intelectual da Saúde Coletiva, a agricultura é tema
periférico, apesar das evidentes relações entre as duas áreas e do recente
interesse pelos temas ambientais. Esse interesse, contudo, tem redunda-
do em uma produção científica mais centrada nos efeitos daninhos da
modernização agrícola (especialmente os efeitos biológicos) e pouco
dirige seu olhar para as possibilidades políticas da AE como movimento
social. Se no discurso acadêmico na área de saúde a Agricultura Ecoló-
gica é um assunto que ainda não despertou o devido interesse
11
, si-
nais de que o contrário aconteça entre alguns agricultores ecologistas,
pois a preocupação com saúde (apesar de ser, às vezes, subliminar) é
motivação e impulso para muitas transformações nas vidas e discursos
desses sujeitos, segundo podemos verificar em estudos recentes
(AZEVEDO, 2004; RIGON, 2005; NAVOLAR, 2007; SILVA, 2008).
Tendo em vista tamm essa lacuna, este trabalho se divide em
dois momentos. No primeiro, buscaremos na literatura e na reflexão
convergências e discrepâncias entre as MAC e a AE no contexto da SC.
No segundo, realizaremos uma investigão empírica para buscar nas
falas de alguns agentes desses movimentos pontos em comum e diver-
gências.
11
Em uma busca no Scielo, no dia 16.06.2009, na área de Saúde Pública, encontramos apenas
dois trabalhos através das palavras-chave “agricultura sustentável”. Usando os termos
“agricultura ecológica”, “agricultura orgânica” e “agroecologia”, não encontramos nenhum
trabalho.
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19
O primeiro momento começa por uma reflexão sobre as relações
entre as práticas/teorias científicas e os fenômenos sociais mais amplos
ensejados pela modernidade. Vamos nos servir do trabalho de denúncia
do precário e, ao mesmo tempo, bem sucedido arranjo moderno, que
está nas origens da racionalidade científica (LATOUR, 1994), e da defe-
sa da inserção explícita de valores além dos cognitivos nas investigações
(LACEY, 2004; SANTOS, 2004).
Na sequência, delineando algumas características fundadoras da
biomedicina, da SC e da agricultura moderna, o diálogo é com obras de
vários autores, mas especialmente com Luz, Camargo Jr., Foucault,
Paim e Kathounian, respectivamente. Ao buscarmos esboçar a história
dessas ideias e práticas, nossa intenção é que transpareçam algumas
afinidades e potencialidades entre as propostas emergentes que lhes são,
pelo menos em parte, antagônicas.
Na transição para as propostas emergentes das MAC e da AE, as
refencias principais são os trabalhos de Andrade, Barros, Queiroz e
Tesser (para as MAC), e Caporal, Costabeber, Altieri e Gliessman (para
a AE). O viés dessas seções tamm é o de ir esboçando afinidades entre
as duas áreas, mas a partir de suas próprias características. Na seção
seguinte, contudo, é que expressamos de forma mais direta as afinidades
e potencialidades comuns e também algumas dificuldades para que o-
corra essa conversa dentro do ambiente da SC.
Na última seção desse primeiro momento procuramos estabelecer
uma base teórica que consiste, de forma resumida, na junção de algumas
reflexões de Latour e de Santos. As redes e seus múltiplos significados
sociais, simbólicos, políticos, cognitivos são importantes para os dois
autores. Buscamos aproximar as reflexões epistemológicas de Latour
sobre as redes com as reflexões político-militantes de Santos que, ao
introduzir as ferramentas das sociologias das ausências e das emergên-
cias e o trabalho de tradução a elas associado, um sentido e intenção
ao trabalho empírico que constitui o segundo momento.
No segundo momento do trabalho, buscamos nas falas de alguns
agentes que atuam nas MAC e na AE, como praticantes e como usuá-
rios/consumidores
12
, sinais de existência do diálogo (e também das pos-
12
São quatro praticantes de MAC (médicos) nos SUS, quatro agricultores que praticam AE e
que vendem seus produtos de forma direta ao consumidor e quatro usuários/consumidores das
práticas de MAC e dos produtos da AE. Todos situados em Florianópolis.
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20
sibilidades para que ele ocorra) entre os fenômenos em questão. Nos
parece que um rico mundo de relações possíveis e existentes entre
humanos e não humanos que transitam nas duas áreas. Este trabalho
espera ajudar a trazer os temas para o seio da Saúde Coletiva, delinear
conversas possíveis e, também, dar uma modesta contribuição para a
reflexão sobre a necessidade/viabilidade dessa conversa.
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21
1 CONTEXTUALIZAÇÃO TEMÁTICA E REFERÊNCIAS
CONCEITUAIS
Nossa intenção nesta seção é, a partir de uma breve visita à histó-
ria da construção de algumas nuances do pensamento científico moder-
no, esboçar as bases sobre as quais se assenta a racionalidade hegemôni-
ca na saúde, incluindo a Saúde Pública e a Saúde Coletiva (seguindo as
pistas de LUZ, 1988 e de TESSER, 2003), e na agricultura (ALMEIDA,
1998). Pretendemos vislumbrar alguns dos paradoxos engendrados no
decurso dessa história e preparar o terreno para as contribuições que as
ideias alternativas em ambas as áreas podem trazer, ressaltando, contu-
do, que a ciência também está por trás de vários argumentos ecogicos
que embasam parte das propostas da AE, e que as MAC, em algumas de
suas manifestações, são perfeitamente possíveis de se enquadrar na ci-
ência
13
. Além disso, a própria SC também é filha, em algum grau, da
tradição científica
14
.
Concordamos com a ideia de que as verdades também m histó-
ria, e quebrar o silêncio sobre suas origens é um exercício filosófico.
Como diz Foucault: saber em que medida o trabalho de pensar sua
própria história pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silen-
ciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente” (1984, p. 13).
Depreende-se daí que nossa intenção final é permitir a nós mes-
mos pensar diferentemente. Este exercício intelectual, no entanto, espera
ultrapassar o pensamento e desaguar na prática, ponto de partida e de
chegada e espelho vivo das reflexões acadêmicas, assumindo um caráter
político e solidificando uma nova posição, alinhada com o conheci-
mento prudente para uma vida decente” proposto por Santos (2004).
Mesmo porque, concordando com Luz (1988), cremos que tentar
esquecer as raízes sociais da razão moderna não é ingenuidade episte-
mológica. É característica fundadora dessa racionalidade e instrumento
simbólico importante, que tenta transformar o método científico em algo
sem história, que paira acima da humanidade, que estava encoberto até
ser desvendado por sábios cientistas que não tinham interesses políticos.
13
Um exemplo é a acupuntura, prática oriunda da Medicina Tradicional Chinesa que, ao ser
incorporada à biomedicina, recebe uma explicação neuroimunoendócrina para sua eficácia.
14
Além da influência direta do pensamento científico através da biomedicina, também o
pensamento social na SC tem matriz científica, o que é evidente, por exemplo, no marxismo.
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22
1.1 SOBRE A CIÊNCIA, A SOCIEDADE E SUAS RELAÇÕES
Existem muitas possibilidades de conceituar a ciência, mas uma
forma simples e que nos parece adequada é a que busca na realidade
social seus pressupostos, ou seja, ciência é o que os cientistas fazem.
Essa definição, evidentemente, não encerra a discussão e pode até acir-
rá-la, pom traz a atividade científica para o meio dos homens, que
afinal são seus criadores, executores e quem goza e sofre (junto a muitos
outros seres) suas consequências (KUHN, 1975).
Em síntese, o projeto antropocêntrico renascentista que ensejou o
entendimento da ciência como forma privilegiada de acesso ao conhe-
cimento sobre o mundo prometia ao homem a emancipação do jugo dos
caprichos da natureza e a ordenação do caos
15
. Nas palavras de Luz
(1988), era um projeto prático, conquistador e colonizador que se encai-
xava no processo de secularização da sociedade, no interesse por poder
da burguesia emergente e na expansão de mercados desejada pelos Esta-
dos Nacionais europeus que começavam a se afirmar.
Essa promessa de controle parece ter assumido um papel central
no desenvolvimento das ciências. A biomedicina e a agricultura moder-
na, como afiliadas a essa tradição, manifestam tamm essa intenção.
Paradoxalmente, no entanto, a expansão tanto de uma como de outra
levou a um descontrole sobre suas consequencias. A imensa procura por
atenção biomédica faz com que exista uma demanda insolúvel e que não
cessa de crescer. Na agricultura, o aprofundamento do modelo moderno
aumenta o risco de contaminões e desastres ambientais.
Para tentarmos entender melhor algumas características da ciência
e como se geraram esses paradoxos, nos serviremos de reflexões de
alguns autores, como Bruno Latour, Hugh Lacey e Boaventura de Sousa
Santos que tentam, entre outras coisas, através de seus trabalhos de de-
núncia (da fragilidade do acordo moderno), defesa de inserção de valo-
res sociais (na ciência) e mobilização política, respectivamente, dar
sentido à atividade intelectual e embebê-la de significados políti-
cos/sociais/culturais. Lacey e Santos, especialmente, se aproximam da
15
Bacon, ao formular a promessa de transformar o homem em senhor e possuidor da natureza
fez, contudo, uma ressalva: só podemos vencer a natureza se lhe obedecermos (BACON,
1933).
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23
questão proposta por Rousseau e citada por Santos (1987), de quais o
as relações entre a ciência e a virtude.
Latour, em Jamais fomos modernos” (1994), situa e exemplifica
a gênese das divisões que caracterizam a modernidade e as ciências na
querela entre Hobbes e Boyle, na Inglaterra do século XVII.
No início, Hobbes e Boyle concordam sobre quase tudo”
(LATOUR, 1994; p. 22). Ambos querem o fim das guerras civis, dese-
jam um rei, um parlamento, uma Igreja dócil e unificada, são adeptos da
filosofia mecanicista e tratam de política e de ciência de forma mistura-
da. Hobbes cria o Leviatã, uma figura do Estado onipotente e onisciente,
que fala pelos ditos e que tem, entre suas bases, a noção de que co-
nhecimento é poder. Boyle, ao pretender dar voz a não humanos (a
bomba de vácuo, por exemplo) em um ambiente novo (o laboratório,
chamado por Latour de cozinha”) com formas de funcionamento sui
generis, como o apelo a testemunhas fiáveis para legitimar seu discurso,
coloca o poder-conhecimento que emanaria da fonte única do Leviatã de
Hobbes em risco.
No esquema que Latour traça para definir o arranjo moderno (que
ele chama de constituição”, com seu múltiplo sentido) que está sendo
delineado no momento dessa querela, configura-se uma divisão que
reconhece (e essa é a grande novidade) o testemunho dos não humanos
no espo privilegiado do laboratório. Ao mesmo tempo e simetrica-
mente, surgem os recursos conceituais para falar sobre o poder (“repre-
sentação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos” – p. 30). Em outras
palavras, é inventado tamm um humano capaz de ser representado
(p. 31).
A constituição moderna inventa dessa forma o poder científico
encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado de
representar os sujeitos” (p. 35). Nas palavras do autor:
Este é todo o paradoxo moderno: se levamos em
consideração os híbridos, estamos apenas diante
de mistos de natureza e cultura; se consideramos o
trabalho de purificação, estamos diante de uma se-
paração total entre natureza e cultura. (LATOUR,
1994; p. 35)
Imaginemos um terreno que fosse dividido, no primeiro momen-
to, em “A” e “B”. A parte “A” é o mundo das práticas e no qual prolife-
ram as redes. Talvez pudéssemos acrescentar, dando uma pitada fleckia-
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24
na (FLECK, 1986), que estariam os círculos exotéricos, bem como
seria o locus do chamado senso comum (SANTOS, 2000). Aí se realiza
também o trabalho de tradução/mediação, no sentido de Latour e de
Santos, restando um rastro de híbridos emaranhados.
Esses híbridos são negados na parte “B”, a da teoria, que é subdi-
vidida em dois polos. Segundo Latour, os modernos fazem um trabalho
de purificão” que ocorre em um dos polos (social/humano ou exa-
to/não humano/natural), tentando ignorar os híbridos. A purificação
consiste, simplificadamente, em tentar expurgar os aspectos naturais
(objetivos/exatos/não humanos) dos fenômenos classificados como so-
ciais e os aspectos sociais (subjetivos/humanos) dos fenômenos entendi-
dos como naturais. A purificação também pode ser considerada como
um tipo de mediação, tamm ocorrendo em redes, porém negadas e
escamoteadas (TESSER, 2003).
Assim purificados, os assuntos eminentemente humanos, o poder,
as relações sociais, a sociedade, serão assuntos políticos, vinculados a
princípio às vontades e à ação do homem. Os homens falam por si. Já os
assuntos da natureza (não humanos), por sua vez, serão acessados e
traduzidos através da ciência de laboratório. Os fenômenos naturais são
regidos por leis que não o escritas pelos homens. A estes é permitido
tentar decifrá-las, mas o redigi-las. Estão além das vontades e desejos
humanos.
Latour fala tamm dos paradoxos no trato ético com os proble-
mas sociais e naturais, dependendo de como são classificados pela cons-
tituição moderna. De acordo com a conveniência, para tentar escapar de
dilemas éticos, os fenômenos são imanentes ou transcendentes. De um
lado da linha, a natureza e seus mistérios, a princípio transcendentes. No
outro lado, a imanência dos fatos sociais, feitos pelos homens. Essas
interpretações podem se inverter e a sociedade se transformar em um
construto transcendente, além da ão humana, e a natureza, ao contrá-
rio, servir de meio para realização de vontades humanas e se comportar
como se fosse construída pela ação humana.
Configuram-se, dessa forma, as garantias constitucionais” dos
modernos
16
, às quais se acresce a garantia de um Deus suprimido, au-
16
Para uma compreensão mais profunda das garantias constitucionais e das artimanhas a elas
relacionadas, além de um diálogo das ideias de Latour com outros epistemólogos e
historiadores da ciência, ver Tesser (2003).
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25
sente da natureza e da sociedade e presente na intimidade do coração.
Nas palavras de Latour, desse modo:
Estes [os modernos] poderão fazer com que a na-
tureza intervenha em todos os pontos na constru-
ção de suas sociedades sem deixar, com isso, de
sustentar sua sociedade através da mobilização da
natureza. De um lado, a transcendência da nature-
za não irá impedir sua imanência social; do outro,
a imanência do social não irá impedir o Leviatã de
continuar a ser transcendente. É preciso confessar
que é uma bela construção, que permite fazer tudo
sem estar limitado por nada. Não é de se estranhar
que esta Constituição tenha permitido, como se
dizia outrora, “liberar algumas forças produtivas”.
(LATOUR, 1994; p. 38)
Chegamos assim ao ponto chave que nos interessa na denúncia de
Latour. A falta de limites para nossas práticas e teorias está por trás de
boa parte dos avanços tecnocientíficos e tamm ajuda a explicar uma
parcela significativa da barbárie que nos rodeia, em maior ou menor
grau.
Como descreve o autor, a imensa proliferação de híbridos produ-
zida pela grande separação e suas múltiplas consequências trouxeram a
revelação inevitável do segredo”: tudo sempre esteve misturado, e o
arranjo moderno, apesar de relativamente eficiente, é precário
(LATOUR, 1994). É impossível fazer ciência e tecnologia fora da ordem
social e é impossível fazer política fora da natureza
17
. Para Latour, hu-
manos e não humanos estão entrelaçados em coletivos em permanente
construção, num processo político de controvérsias e acordos que sedi-
mentam e modificam esse mundo comum
18
.
17
Esse ponto de vista de “mão dupla” proposto por Latour, que busca de fato romper as
barreiras entre o domínio da natureza e o da política nos dois sentidos, tem provocado reações
muitas vezes perplexas no meio acadêmico (STENGERS, 2004), tanto de cientistas naturais e
epistemólogos quanto de sociólogos. Enquanto uns não aceitam qualquer ingerência humana
no reino transcendente da natureza, outros consideram absurda a ideia de que não humanos,
como florestas tropicais, torres de celular, sementes transgênicas ou medicinas alternativas
possam ser considerados atores políticos ao lado dos humanos, ou afirmam que nada há de
“não humano” nessas “construções sociais”.
18
O que também não agrada aos críticos da ciência em Latour é que este parece garantir aos
cientistas um papel político muito importante no coletivo: o de porta-vozes privilegiados dos
não humanos. De fato, Latour e seus seguidores, bem como outros pensadores (inclusive
Lacey, como veremos a seguir), reconhecem a especificidade da ciência e a importância desta:
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26
Embora continue a ser sustentada na academia e no senso comum,
a ideia de que a ciência é neutra, livre de valores, passou a ser questio-
nada no final do século XX, exatamente pela evidência dos efeitos mui-
tas vezes catastróficos da tecnologia em termos ambientais, sociais e
culturais. Alguns críticos afirmam que o diferença entre ciência e
ideologia, que a ciência é determinada pelos valores sociais dominantes,
ocidentalizada, patriarcal, dominada pelo homem branco, capitalista,
racista e imperialista” (LACEY, 1998, p.15). Para os defensores da ciên-
cia livre de valores, tal crítica representa uma volta à irracionalidade.
Entre a irracionalidade e a ideologia, Lacey propõe uma mudança de
perspectiva que nos interessa, pois abre a possibilidade de que o conhe-
cimento científico seja utilizado sob a ótica da transformação da ordem
social e do bem estar da população, ideais próximos da saúde coletiva
como veremos na seção 1.2.2, Procurando alternativas: a Saúde Coleti-
va”. A análise dos valores na ciência desenvolvida por Lacey tamm
nos ajuda a compreender os vínculos que a biomedicina e a agricultura
convencional possuem com a ordem social dominante.
De acordo com Lacey (2004), a atividade científica pode ser divi-
dida em três momentos, numa sequência lógica, mas não necessariamen-
te temporal: a fase de determinação das prioridades e orientação da pes-
quisa, a fase de avaliação das teorias ou hipóteses e a fase de aplicação
do conhecimento científico. Segundo o autor, enquanto a primeira e a
terceira fases são guiadas por valores sociais, na segunda prevalecem o
que ele chama de valores cognitivos”, que seriam valores específicos
da atividade científica
19
.
A ideia de ciência neutra é produto da grande divisão descrita por
Latour. Foi construída por uma filosofia do materialismo científico (de-
senvolvida desde Galileu e Descartes) que diz que o objetivo da teoria
científica é, em primeiro lugar, representar o mundo tal como ele real-
mente é e, em segundo, o modo como o mundo é independente da per-
“Quando se trata de um ‘fenómeno experimental’, o procedimento daquele que o produziu em
laboratório não tem rival. Nenhum saber diferente poderá, por exemplo, rivalizar com a
biologia no que diz respeito ao papel da molécula de ADN na síntese das proteínas”
(STENGERS, 2004, p.131).
19
Alguns desses valores, historicamente localizados, seriam “adequação empírica, poder
explicativo, consiliência, redução ao mínimo de resposta ad hoc, poder de encapsular
possibilidades dos fenômenos e posse de recursos interpretativos que permitam a explicação
dos êxitos e fracassos das teorias anteriores” (LACEY, 2003, p. 130). Para uma distinção entre
valores cognitivos e sociais, ver Lacey (2003).
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27
cepção, dos interesses e dos valores humanos (LACEY, 1998, p. 19). O
mundo seria então constituído simplesmente por objetos interagindo
com outros objetos de acordo com leis. Essas interações geram os fenô-
menos. A ciência assim pensada seria neutra porque representa o mundo
como ele é.
Para Lacey, a grande dificuldade filosófica dessa concepção de
ciência é a grande distância que separa o “mundo tal como ele é” de sua
“representação” científica. Enquanto esse mundo seria livre da influên-
cia humana, a representação é um produto linguístico ou simbólico,
totalmente humano. Ou seja, a experiência científica é uma interação
homem/mundo. Como fugir dessa mistura? O materialismo científico é
incapaz de responder a essa questão.
Entretanto, essa filosofia da ciência neutra carrega um trunfo: o
grande sucesso da ciência moderna. O conhecimento científico produz
tecnologias que funcionam, e os críticos da ciência, segundo Lacey, o
conseguem explicar esse sucesso. Para o autor, o conhecimento adquiri-
do com a ciência seria idêntico, em geral, ao conhecimento necessário
para controlar o objeto (LACEY, 1998, p. 29). O sucesso da ciência viria
da capacidade de replicar observações e resultados em certos espaços
reduzidos e preparados para isso, os laboratórios, onde as teorias elabo-
radas possuem alto valor cognitivo. A ciência produziria, portanto, o
um entendimento do mundo como ele é, mas um entendimento do mun-
do sob a perspectiva do valor social de controle da natureza, defendido
por Bacon. Haveria, então, um valor social fundamental subjacente à
prática científica que Lacey chama de materialista e que está relacionado
às necessidades de produção do sistema capitalista.
Esse valor do controle da natureza orientaria a fase inicial da ati-
vidade científica, restringindo as estratégias e os problemas de pesquisa
àqueles que permitissem ampliar esse controle
20
. No entanto, na fase
seguinte, a de validação das hipóteses/teorias, tal valor não cumpriria
qualquer papel relevante, pois cientificamente uma teoria é conside-
rada válida se possuir alto valor cognitivo, independente de seu valor
social
21
.
20
Lacey afirma que nem toda a pesquisa científica materialista estaria diretamente relacionada
a estratégias de controle, como as em astronomia, por exemplo. Mas essas pesquisas só se
tornam possíveis com os produtos tecnológicos que resultam de estratégias de controle.
21
Isso corresponderia à ‘imparcialidade’ da atividade científica: “juízos científicos bem
fundamentados acerca da ‘aceitação’ de uma teoria com relação a um dado domínio sustentam-
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28
O que Lacey sustenta é que uma teoria científica assim construí-
da, mesmo com alto valor cognitivo, tamm não é isenta de valores
sociais na terceira fase, a da aplicão. Para o autor, essa fase está su-
bordinada aos valores sociais que orientaram a pesquisa, e ele exempli-
fica com o caso das sementes transgênicas: é impossível que sementes
elaboradas para serem mercadorias se tornem instrumentos de promoção
da autonomia e da sustentabilidade de comunidades de pequenos agri-
cultores tradicionais. Há um argumento de defesa da agricultura conven-
cional que diz que sem esse conjunto de tecnologias é impossível ali-
mentar toda a população mundial. Entretanto, a fome persiste. É claro:
tais tecnologias o estão vinculadas ao valor do bem estar da popula-
ção, mas ao valor do controle sobre os processos agrícolas que permite
ampliar o lucro. Esse é o valor que orienta sua aplicão. Poderíamos
pensar o mesmo, por exemplo, dos medicamentos desenvolvidos e legi-
timados cientificamente pelos laboratórios farmacêuticos. À parte seu
valor cognitivo (que tamm pode ser questionado, ver ANGELL,
2007), sua relativa capacidade de controle das enfermidades, até que
ponto essas mercadorias são estratégicas quando se pensa em valores
mais amplos de promoção geral da saúde e do bem estar da população?
Portanto, segundo Lacey, tamm as aplicações da ciência mo-
derna m servido especialmente às perspectivas de valor e aos projetos
morais que m em alta estima o controle sobre a natureza, que está nas
mãos do neoliberalismo:
Servem ao individualismo em vez de à solidarie-
dade; à propriedade particular e ao lucro em vez
de aos bens sociais; ao mercado em vez de ao
bem estar de todas as pessoas; à utilidade em vez
de ao fortalecimento da pluralidade de valores; à
liberdade individual e à eficácia econômica em
vez de à liberação humana; aos interesses dos ri-
cos em vez de aos direitos dos pobres; à demo-
cracia formal em vez de à democracia participa-
tiva; aos direitos civis e políticos sem qualquer
relação dialética com os direitos sociais, econô-
micos e culturais. A primeira é uma lista de valo-
se unicamente em considerações sobre o grau em que a teoria manifesta os valores cognitivos
[...], independentemente de como a teoria pode estar de acordo ou a serviço dos interesses de
quaisquer perspectivas de valor” (LACEY, 1998, p. 76).
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29
res neoliberais; a segunda, de valores do movi-
mento popular. (LACEY, 1998, p. 32)
A questão seria então: é possível produzir conhecimento científi-
co, com alto valor cognitivo, a partir de valores sociais alternativos? O
modelo proposto por Lacey permite uma resposta positiva ao resguardar
o momento da avaliação das teorias e hipóteses disponíveis como um
instante onde devem prevalecer os valores cognitivos, específicos da
atividade científica
22
. Uma maneira de identificar se um critério é ouo
um valor cognitivo é verificar se ele corresponde ou não ao objetivo da
ciência. O objetivo da ciência sob o ponto de vista materialista poderia
ser assim enunciado, segundo Lacey: representar (em teorias racional-
mente aceitáveis) as estruturas, processos e leis subjacentes aos fenôme-
nos e, a partir disso, descobrir novos fenômenos” (1998, p. 69).
De acordo com esse objetivo, a teoria científica
representa objetos (coisas, eventos, domínios,
etc.) simplesmente em termos de suas estruturas
e de seus componentes que interagem entre si se-
gundo leis formuláveis matematicamente. Eles
não o representados como portadores de valo-
res ou algo que tem um lugar nas práticas huma-
nas. Assim, o poder explicativo e preditivo mos-
tra-se nos espaços, e diz respeito aos processos,
em que a interferência intencional humana não é
pertinente. Não qualquer implicação direta
disso para a relevância da teoria e dos fenômenos
descobertos pelas práticas científicas para as prá-
ticas humanas em geral e para os objetos da ex-
periência ordinária. (p.70)
22
Essa posição de Lacey produz controvérsias apontadas pelo próprio autor (LACEY, 2003).
Um dos questionamentos se refere às vinculações entre valores sociais e valores cognitivos.
Até que ponto os primeiros não determinam também os segundos? Utilizando as contribuições
da sociologia crítica, poderíamos tentar responder essa questão em termos da constituição
mesma de um “campo” científico. Embora guardando relações com o conjunto do espaço
social, o campo possui uma identidade própria, um conjunto de regras internas que organizam
um jogo específico, ou seja, uma doxa (BOURDIEU, 1983). Os valores cognitivos estariam
vinculados a essas regras específicas, que podem ser também, por sua vez, objeto de disputas
internas. Tais valores pouco representam fora do contexto científico. O que precisamos
destacar aqui é que a proposta de Lacey dá inteligibilidade e plausibilidade à luta contra-
hegemônica no campo científico, entendendo que aí essa luta tem que levar em conta os
valores que caracterizam e distinguem a prática científica.
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30
Para Lacey, esse objetivo, que diz respeito aos valores cognitivos,
é distinto do interesse no controle da natureza, que diz respeito aos valo-
res sociais, mas ambos se complementam e refoam: possuem uma
“afinidade eletiva” (LACEY, 1998, p. 74). Ao abstrair os objetos de seus
contextos humanos, sociais e ecológicos, o objetivo materialista não
permite a abordagem científica de questões como: Quais são as possi-
bilidades para melhorar o bem estar de todos numa região?” (1998, p.
33), questão que deveria ser fundamental para a saúde coletiva. A pro-
posta, então, é de ampliação dos objetivos da ciência para que os valores
cognitivos possam alcançar outras estratégias além das materialistas.
Um objetivo geral que permitiria uma série de abordagens alternativas
mais restritivas, inclusive a materialista, seria: “sintetizar (confiavel-
mente, em teorias racionalmente aceitáveis) as possibilidades de um
domínio de objetos e descobrir meios para a realização de algumas das
possibilidades ainda não realizadas” (1998, p. 71). Esse objetivo permi-
tiria romper na pesquisa científica com as delimitações construídas pela
grande divisão entre natureza e sociedade e promover uma ciência com-
prometida com os valores do bem estar e da sustentabilidade dos coleti-
vos
23
.
A noção de que o desenvolvimento da ciência não foi pacífico,
cumulativo, consensual, a imagem do triunfo da verdade sobre as trevas
da ignorância, foi tema de muitos estudiosos (KUHN, 1975; FLECK,
1986) e serve como mais uma demonstração de que outros valores além
dos cognitivos foram cruciais para o sucesso da ciência e do projeto
antropocêntrico renascentista. Porém, ainda que o conhecimento, e entre
as formas de conhecimento, especialmente o científico, tenha adquirido
status de valor quase indiscutível e assuma auras de possível redentor da
humanidade, a ciência, no mundo da vida, está atrelada à acumulação de
poder por pequenos grupos (via produção de bens, tecnologias, serviços,
etc.) que usufruem dos privilégios extracognitivos (sociais, políticos,
econômicos) adquiridos por aqueles que controlam e dem formas
privilegiadas do conhecimento” (SANTOS, 2004).
Acompanhando Lacey e Santos, concordamos que é necessário
23
Segundo Lacey, a neutralidade na aplicação deve ser mantida como um ideal da ciência, do
qual esta se aproxima quando amplia as estratégias de pesquisa de acordo com a diversidade
dos valores sociais disponíveis. Portanto, um objetivo amplo, capaz de permitir a elaboração de
variados objetivos mais específicos, possibilitaria uma aproximação do ideal da neutralidade
(LACEY, 2004).
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31
assumir valores alternativos aos cognitivos para fomentar uma espécie
de emancipação do homem do jugo dessa racionalidade (científica he-
gemônica materialista) que, em muitas de suas manifestações é, parado-
xalmente, irracional.
Santos sublinha que desde o século XVII, os debates sobre o co-
nhecimento m se dado em torno da validade privilegiada do conheci-
mento científico, sendo essa forma de conhecer o parâmetro de compa-
ração com outras formas de conhecimento. Por isso, diz o autor, o pri-
vilégio epistemológico da ciência moderna é produto de um epistemicí-
dio (SANTOS, 2000; p. 242). O caráter cida” do desenvolvimento
tecnocientífico e econômico se manifesta ainda de outras formas: é bio-
cida
24
e, na visão de muitos, suicida, na medida em que coloca em risco
a sobrevivência do homem como espécie habitante deste mundo.
A ciência e seus praticantes assumem assim, segundo Santos
(2004), um caráter de suprarrealidade”. Para o mesmo autor, “a ciência
opera autonomamente segundo as próprias regras e lógicas para produzir
um conhecimento verdadeiro ou tão próximo da verdade quanto é hu-
manamente possível” (p. 50). A “suprarrealidadee a “autonomia” da
ciência se traduzem na posição de neutralidade e ausência de valores
que alguns defendem ser uma característica científica, indo novamente
ao encontro do sustentado por Lacey (2004).
As reflexões de Lacey e de Santos nos ajudam a perceber que va-
lores sempre ocuparam uma posição fundamental na formação das ciên-
cias e ocupam ainda hoje. Porém, no mundo contemporâneo,
acostumados a habitar o espaço aberto e consoli-
dado pela ciência moderna, cujas raízes remontam
a Francis Bacon, René Descartes e Galileu Galilei,
os particulares valores de ordem metafísica e soci-
al que modelaram aquele espaço ‘naturalizaram-
se’ a tal ponto que ‘esquecemos’ estarem as estra-
tégias de pesquisa nele desenvolvidas necessaria-
mente vinculadas àqueles valores. (REGNER,
2004, p. 295)
24
Como ilustração, dados da Organização não governamental UICN (União Internacional para
a Conservação da Natureza) dão conta de que estão ameaçados, graças ao crescimento
desordenado, 12% das espécies das aves; 23% das de mamíferos; 52% das de insetos; 32% das
de anfíbios; 51% das de répteis; 25% das de coníferas e 20% das de tubarões e arraias
(Disponível em: www.faunabrasil.org.br. Acesso em: 10 maio 2009).
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32
Outro risco decorrente desta naturalização é que os valores envol-
vidos na prática científica, se escamoteados, terminam por não ser ques-
tionados ou discutidos, pois aparentemente não existem (BURTT, 1983
p. 181).
Em síntese, Latour chama a atenção para as redes, denuncia um
esgotamento da crítica, mas não chega a propor uma ética. Lacey e San-
tos m para acrescentar e defender valores além dos cognitivos, que
transparecem no “conhecimento prudente para uma vida decente”.
É certo que há muitas leituras diferentes, com diferentes tensio-
namentos e críticas, abordando as limitações da prática científica. o é
simples sair” da lógica cienfica (e talvez não seja o caso) tão im-
pregnados estamos dela e nos parece mais sensato ao invés de negá-la
totalmente, melhorá-la e relativizá-la. Em outros termos, torná-la apenas
mais um sistema de suporte de compreensão de realidades”
(MARTINS, 1999) e não o único válido. São contribuições que, para-
doxalmente, podem vir de outras formas de entendimento da “realidade”
(relevando aqui os profundos debates que suscitam estes conceitos).
Por ora, passemos a alguns dos efeitos da revolução científica
moderna nos pensamentos e práticas em saúde (a biomedicina), e na
agricultura (a agricultura moderna), seus pontos em comum e suas espe-
cificidades, criando o espaço para a compreeno das crises recentes e as
possibilidades de superação das mesmas.
1.2 A CONSTRUÇÃO DOS CAMPOS
Ao acreditarmos que as MAC e a AE possam ser parte das respos-
tas às crises da saúde e do meio ambiente, que representem novas pro-
postas ou, em outras palavras, respostas às anomalias que explodem no
interior dos paradigmas ou estilos de pensamento convencionais, como
sugerem Gomes (1999) e Santos (2000), se faz interessante que revisi-
temos a história da medicina e da agricultura, a construção desses cam-
pos como áreas acadêmicas de conhecimento, suas práticas sociais cor-
relatas e as dissidências e contextos históricos que ensejaram o atual
status das MAC e da AE.
Revisitarmos brevemente a trajetória das ideias, dos caminhos e
descaminhos das pticas em saúde e doença desde os primórdios fun-
dadores da nossa cultura ocidental até os nossos dias, nos quais a mo-
dernidade quer se superar por uma pós-modernidade sem nunca ter con-
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33
cretizado os ideais modernos
25
, é jogar um pouco de luz na prática dos
serviços de saúde e também nos ajudará a compreender o quanto de
comum, especialmente mais recentemente, no campo dos “alternati-
vos/complementares”, além de possibilitar uma definição do que exata-
mente significa “convencional” e “alternativo/complementar”.
1.2.1 A biomedicina
Os trabalhos do grupo de Madel Luz no Projeto Racionalidades
Médicas m produzido um vasto material, fruto de reflexões sobre as
diferentes medicinas no mundo contemporâneo. Um dos conceitos cen-
trais é justamente o de “racionalidade médica” (LUZ, 1993): um sistema
lógica e teoricamente estruturado, composto de cinco características
fundamentais, quais sejam: a) uma morfologia ou anatomia humanas; b)
uma fisiologia ou dinâmica vital humana; c) um sistema de diagnósti-
cos; d) um sistema de intervenções terapêuticas; e e) uma doutrina mé-
dica. Além desses elementos constitutivos, é importante tamm consi-
derar que os fundamentos das racionalidades assim descritas residem
numa cosmologia (LUZ, 1993). Note–se que o termo "cosmologia" aqui
não se refere à moderna disciplina, ramo da física, mas a uma perspecti-
va de ordenação geral daquilo que existe e das formas de apreender o
"real", sendo a cosmologia disciplina uma decorrência da cosmologia
em sentido amplo do Ocidente moderno (CAMARGO JR., 2005).
Façamos aqui a consideração de que, quando falamos em medici-
na, estamos nos referindo a cuidado e terapêutica em saúde em um sen-
tido bastante amplo, incluindo áreas que, no mundo profissional, se
relacionam a ocupações do campo biomédico que gravitam em torno da
medicina no senso estrito e, no mundo além do profissional, se estendem
aos cuidados que temos uns pelos outros e por nós mesmos. O uso do
termo 'biomedicina' se explica por sua concisão e por evidenciar a filia-
ção da racionalidade médica ocidental aos conhecimentos produzidos
pelas disciplinas científicas do ramo da biologia (HAHN; KLEINMAN,
1983, p. 306).
25
Entendendo esses ideais como os da Revolução Francesa (1789): liberdade, igualdade e
fraternidade. Não se pretende que as MAC e a AE possam realizar esses ideais. A menção a
eles aqui tem a intenção de lembrar quão malograda foi a promessa da modernidade, se a
associarmos ao lema da Revolução Francesa.
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34
A biomedicina é descendente direta do imaginário científico sur-
gido a partir da concepção mecânica clássica do mundo como um autô-
mato, que busca conhecer o todo de um mecanismo a partir do isola-
mento de seus componentes discretos. As eventuais inconsistências se
devem ao desconhecimento de uma ou mais peças. Camargo Jr. (2005)
resume em três características o esse delineamento: a biomedicina é
generalizante, mecanicista e analítica. Portanto, herdeira direta da tradi-
ção científica mais dura ou ortodoxa.
Coerente com essa visão e decorrente dela, a medicina aí gerada é
uma medicina do corpo, das lesões e das doenças. É claro que a transi-
ção da medicina medieval, baseada no humoralismo
26
e em uma tera-
pêutica própria (sangrias, purgantes, vesicatórios), para essa medicina
baseada na anatomoclínica, não foi tão automática. Apesar do surgimen-
to e crescimento dessa nova objetividade, a medicina medieval sobrevi-
veu, graças à dominação teórica do galenismo e ao conservadorismo dos
médicos e de suas corporações.
A objetividade, ou a busca por ela, é que está no germe dessa
transição, tema tratado por Foucault em O nascimento da clínica
(FOUCAULT, 1980). A necessidade de dados mais concretos e palpá-
veis onde assentar a prática médica é que deslocará o olhar do profissio-
nal, antes centrado no paciente, para lesões ou sinais observáveis. Nes-
sas lesões empiricamente manipuláveis e passíveis de estudo é que esta-
focado o olhar dessa medicina, transformada em ciência das doen-
ças”, em contraposição, por exemplo, à arte de curar”, proposta central
de Hahnemann (1755-1843) com o vitalismo homeopático (LUZ, 1988).
A arte de curar” na biomedicina então nascente fica relegada a um
plano secundário, o da terapêutica, esta ainda bastante associada à capa-
cidade profissional de cada médico. É o espaço que resta à subjetividade
dentro da profissão biomédica (GUEDES et al., 2006).
A objetivação permitida pela anatomoclínica é que irá potenciali-
zar a cientificidade da biomedicina e paralelamente, toda a subjetividade
inerente à atividade do curador biomédico será escamoteada. o se
coaduna com a necessidade de legitimação social que se assuma a cen-
tralidade da relação médico-paciente nos processos de cura. Ao contrá-
rio, é interessante que os diagnósticos sejam mais precisos, que as técni-
cas sejam cirúrgicas e os fármacos, de última geração, assumindo esse
26
Influenciado por princípios da medicina hipocrática e galênica.
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35
avanço tecnológico o mérito pelas vitórias contra o sofrimento humano.
Para constituir o caráter hegemônico que irá caracterizá-la, natu-
ralmente, essa nova medicina anatomoclínica precisava de um contexto
social que a favorecesse, e este é criado, na França, pela Revolução e
suas ambiciosas ideias de transformão social (FOUCAULT, 1980).
Como que aproveitando a refundão do Estado francês, o ensino e a
prática médica se transformam, concentrando-se nos hospitais, como
locais privilegiados para esse olhar focalizado nas doenças
27
.
Vemos então que vai nascendo uma tradição médica centrada nas
doenças, e, por esse motivo, centrada nos hospitais, que tenta se caracte-
rizar como científica e, portanto, objetiva. Desde então, a noção de do-
ença” será central no campo biomédico e, em que pesem alguns esforços
em contrário, o conceito de saúde vigente desde é o de ausência de
doenças”, como explicitamente defendeu Boorse (ALMEIDA FILHO;
JUCÁ, 2002). As doenças, muitas vezes manifestas com alguma materi-
alidade, são de definição mais simples, e, apelando a ferramentas mate-
máticas como o desvio da curva normal, se alcança mais objetividade. A
incorporação dessa distinção entre normal/desviante (logo entendido
como patológico”) tamm é central na biomedicina, mesmo que o
seja conceitual, mas prática (CANGUILHEM, 1982). Outra característi-
ca, talvez mais peculiar, seja a de tratar essas definições implicitamente.
Outras racionalidades
28
m códices bastante explícitos no que tange aos
seus princípios gerais, porém na medicina ocidental eles podem apenas
ser inferidos a partir do exame do seu discurso e de sua ptica
(CAMARGO JR., 1990).
Percebe-se um traço em comum da biomedicina com a tradição
científica mais clássica, a de tentar dissimular sua metafísica, como nos
diz Burtt:
Por esta razão, um perigo extremamente sutil e
insidioso no positivismo. Se não se pode evitar a
metafísica, que tipo de metafísica provavelmente
cultivará a pessoa que se sinta suficientemente li-
vre da abominação? É claro que, não é necessário
27
Em “O nascimento do hospital”, Foucault trata de como os hospitais, no fim do século
XVIII, se transformaram, de “lugares para morrer” (além de serem pontos privilegiados para a
caridade, o contrabando e o tráfico) em “instrumentos terapêuticos” (FOUCAULT, 1979: p. 99-
111).
28
Medicina tradicional chinesa, medicina ayurvédica e homeopatia.
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36
dizer, neste caso sua metafísica será mantida acri-
ticamente, porque é inconsciente; além disso, será
passada adiante a outros bem mais rapidamente do
que as suas outras noções, uma vez que será pro-
pagada por insinuação, em vez do argumento dire-
to. (BURTT, 1983, p. 181)
Essa característica objetivista permaneceaté os dias atuais. Ou-
tra herança direta do modelo mecanicista é a divisão do corpo humano
em sistemas de funções bem definidas. Tal divisão tem fundamentos
morfológicos e, principalmente, fisiológicos. Camargo Jr. (2005) chama
a atenção, porém, para a arbitrariedade dessas divisões, visto que todos
os sistemas são interligados e só fazem sentido dentro de uma totalidade
orgânica. A essa divisão e suas subdivisões corresponderá a miríade de
especialidades médicas, fazendo-se a ressalva de que existem especiali-
dades que se cruzam nos mesmos territórios corporais. Tais cruzamentos
e sobreposições de lógicas também se evidenciam no grande catálogo de
doenças, usado por médicos do mundo todo, a Classificação Internacio-
nal de Doenças (CID):
O critério de agrupamento de sua primeira divisão
é etiológico (I doenças infecciosas e parasitá-
rias); o da segunda é anatomoclínico (II neo-
plasmas); os das seguintes o morfofuncionais
(III transtornos das glândulas endócrinas, da nu-
trição e do metabolismo e transtornos imunitários;
e IV doenças do sangue e dos órgãos hemato-
poiéticos); o da próxima é filofico (V trans-
tornos mentais) e assim por diante, numa classifi-
cação que lembra muito o bestiário criado por
Borges, citado por Foucault no início de “As Pa-
lavras e as Coisas”. (CAMARGO JR., 1993, p.
33)
O mesmo autor cita tamm outras noções genéricas fundamen-
tais para o desenho dessa racionalidade, derivadas de algumas das cha-
madas disciplinas básicas (fisiologia, fisiopatologia e bioquímica): a
noção de meio interno” (microambiente corporal isolado do resto do
universo por barreiras epiteliais – pele e mucosas), a “homeostase(ma-
nutenção das condições de funcionamento desse microambiente dentro
de limites estreitos de tolerância) e outras duas ideias daí decorrentes,
vida vegetativa” e vida de relação”, sendo as duas vidas, respectiva-
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37
mente, os processos diretamente relacionados com a manutenção da
constância interna”, comuns a todos os seres vivos e processos de inte-
ração voluntária com o resto do ambiente” (CAMARGO JR., 2005, p.
180). Podemos perceber aqui o esvaziamento de qualquer sentido onto-
lógico da palavra vida. Esta passa, mecânica e burocraticamente, a re-
presentar tão somente um modo de o organismo funcionar.
A doutrina biomédica é vaga e basicamente implícita. Camargo
Jr. (2005) chama de “arremedo de doutrina” o que se encontra em alguns
aforismos que, usualmente, se prestarão apenas para dar um lustro de
erudição a quem os profere
29
. Porém, o mesmo autor uma espécie de
doutrina da não-doutrina”, um grupo de representações que exerce a
função de uma doutrina geral e que não é enunciado. Essas representa-
ções são coerentes com a visão mecanicista e objetivam as doenças,
situando-as no organismo do doente e tornando-as passíveis (carentes)
de intervenção médica concreta
30
. Ao não enunciar a doutrina, esta se
caracterizará da mesma forma que a metafísica do positivismo, antes
descrita por Burtt. Implícita e permeando toda atividade biomédica, ela
permanece alheia a críticas, não tendo sequer a sua existência reconhe-
cida e, paradoxalmente, se realizando na prática do olhar, do saber e do
fazer médicos.
Central nessa racionalidade médica, a noção de doença tem sofri-
do transformões ao longo do tempo, vindo de um polo mais artesanal
e subjetivista, representado pelo eixo semiológico”, em direção a uma
perspectiva mais dura, baseada no experimentalismo, no biologicismo,
na busca pela causa das doenças
31
: o “eixo explicativo”, atualmente
hegemônico na biomedicina.
O quadro a seguir apresenta uma síntese dos diferentes eixos de
entendimento dos processos mórbidos que vigoram na biomedicina. Em
certo sentido, todos eles coexistem na atualidade e, justamente por sua
não explicitação teórica, tornam a prática médica bastante maleável,
recorrendo ao recurso explicativo, ou diagnóstico, ou terapêutico, mais
conveniente a cada situação particular. Essa maleabilidade é o que per-
29
“Não há doenças, e sim doentes” ou “primum non nocere”....
30
“As doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de
pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas, que são
manifestações de lesões, que devem ser buscadas por sua vez no âmago do organismo e
corrigidas por algum tipo de intervenção concreta” (CAMARGO JR. 2005).
31
E consequente importância da Epidemiologia.
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38
mite que na prática médica predomine o eixo menos valorizado para a
legitimão social da biomedicina (por ser menos científico), o eixo
semiológico”, residindo aí os resquícios da arte de curar.
Quadro 1.1 – Estrutura das doenças
Eixo explicativo Eixo morfológico Eixo semiológico
Disciplina-
tipo
Fisiopatologia Anatomia patológica
Clínica
Categoria
central
Causa Lesão Caso
Definição de
doença
Processo Expressão de lesão
(lesões)
Gestalt semiológica
Método
característico
Experimental Descritivo Indiciário
Período
histórico
2ª metade séc.
XIX
Fim séc. XIX/ séc.
XX
Século XVIII
Fonte: CAMARGO JR., 2005
Portanto, a biomedicina persegue um ideal de cientificismo, ten-
tando aproximar-se de uma objetividade neutra, mas na prática continua
dependente da arte do médico. Este, premido a embasar cientificamente
suas hipóteses e com uma sobrecarga de trabalho, irá recorrer muito
frequentemente a exames complementares (quanto mais sofisticados e
supostamente precisos, melhor) e a técnicas terapêuticas novas.
Pom, como foi a construção dessa racionalidade?
A história atribui normalmente a Hipócrates o papel de pai da
Medicina”
32
, e ainda hoje, nas cerimônias de formatura dos médicos,
estes prestam o solene juramento de Hipócrates, que representa o idea-
lismo de quem abraça a profissão. A persistência de Hipócrates e seu
juramento significa que, muito mais que um formalismo burocrático,
um culto ao idealismo no seio da profissão médica, à imagem do “sacer-
dote branco”, alguém que se devota a cuidar do próximo em primeiro
lugar, abrindo mão muitas vezes de seus interesses pessoais mais imedi-
32
De fato, a medicina pode se gabar de ter muitos “pais”: Asclépio, Aristóteles, Galeno, além
do próprio Hipócrates (ACHTERBERG, 1985).
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39
atos. Embora esse idealismo, no mais das vezes, se expresse na di-
mensão do imaginário.
Lanthenas, um contemporâneo da Revolução Francesa citado por
Foucault em O nascimento da clínica”, descreve outra imagem ideali-
zada da profissão biomédica que irá, em certo sentido, reverberar em
algumas ideias de Ivan Illich (1975), um acerbo crítico da biomedicina.
Diz Foucault acerca da medicina idealizada por Lanthenas: Se souber
ser politicamente eficaz, a medicina não será mais medicamente indis-
pensável” (FOUCAULT, 1980: p. 37). O bom exercício da medicina iria
levá-la à autoextinção ou, senão a tanto, a uma relativização de impor-
tância social, e consequentemente, a uma atenuação do seu prestígio.
A história demonstra, contudo, que outro foi o rumo tomado pela
biomedicina, por seus construtores e pela própria Revolução
33
. No mun-
do em intensa transformação do período após a Revolução Francesa e
nos prolegômenos da Revolução Industrial, se as ciências naturais, gra-
ças à formulação das Leis de Newton, pareciam ter encontrado seu ful-
cro para mudar a natureza e estabelecer gradativamente um novo para-
digma
34
, a biomedicina ainda não havia galgado ao posto de prática
curativa hegemônica. Ainda perseguindo uma legitimação científica, a
medicina do princípio do século XIX se embasa na teoria dos miasmas
(como busca da etiologia) e, no esquema antes proposto, ainda está na
fase “anatomopatológica”, sendo seu foco a descrição das lesões. Na
teoria dos miasmas, acredita-se que os maus ares”
35
sejam os veículos
para a disseminação das enfermidades, e por conta disso se processam
intensas mudanças urbanas, suscitadas tamm pela afluência de massas
camponesas em busca de serviço nas nascentes e florescentes indús-
trias
36
. As condições sanitárias dos centros urbanos, por demais precá-
rias, se manifestam em altos índices de mortalidade e baixa expectativa
de vida. Os trabalhadores, antes servos rurais, passam a viver nas mes-
33
Lanthenas chegou a ser proscrito e qualificado de “pobre de espírito” (FOUCAULT, 1980),
mas a demonstração mais eloquente de que suas ideias não vingaram é a grande sofisticação
técnica e o prestígio social dos profissionais biomédicos.
34
Na acepção de Kuhn (1975). A partir daí, o paradigma newtoniano passa a ditar as regras da
“ciência normal”.
35
Daí a origem filológica da “malária”.
36
Foucault cita três eixos dessas reformas urbanas: a análise das “regiões de amontoamento”
(cemitérios, matadouros – removidos para a periferia), o controle dos fluxos de ar e água e a
“organização das distribuições e sequencias” (onde colocar os serviços essenciais à cidade)
(FOUCAULT, 1979 p. 89-91).
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40
mas cidades que os burgueses, agora na condição de operários, e
vários motivos, desde a caridade até o mais puro utilitarismo, para que
se dê alguma atenção às condições precárias de salubridade de quem
serve de peça fundamental para que a máquina industrial funcione
(CAPONI, 2000).
Dessa forma, estão dadas as condições para que surja um pensa-
mento ambiental em relação aos processos de saúde-doença. Foucault
(1979) nos diz que esse pensamento de Estado sobre as questões sanitá-
rias é que foi a ponte por onde a medicina transitou para passar a um
estágio científico.
A inserção da medicina no funcionamento geral
do discurso e do saber científico se fez através da
socialização da medicina, devido ao estabeleci-
mento de uma medicina coletiva, social, urbana.
(FOUCAULT, 1979, p. 92)
De modo geral, podemos dizer, acompanhando Foucault, que ha-
via três vertentes dessa medicina de Estado no começo do século XIX: a
francesa, a alemã e a inglesa. Cada uma com suas peculiaridades nacio-
nais e relativas tamm aos respectivos estágios de desenvolvimento
industrial e acadêmico. Em ntese, nessas três vertentes, coexistiam
duas perspectivas, uma higiênica (com raízes no século XVII uma
medicina das coisas”, nas palavras de Foucault) e outra social (com
influência marcadamente inglesa, fruto dos efeitos deletérios da Revolu-
ção Industrial)
37
. As contribuições da escola alemã foram a normaliza-
ção da profissão e a ideia depolícia médica”.
As condições sociais da população levaram, de acordo com Rosen
(1994), à percepção de outra dimensão da doença, não como entidade
autônoma, mas sofrendo as influências das atividades sociais e do ambi-
ente cultural A medicina social surge como realidade em 1848
38
, tendo
37
Veja-se, por exemplo, os clássicos Inquiry into the Sanitary Condition of the Labouring
Population of Great Britain, de Chadwick (1842), A Situação da Classe Operária na
Inglaterra, de Engels (1845), o trabalho de John Snow (1854) sobre o cólera em Londres, etc.
38
1848 é um dos “anos bomba”, quando houve várias revoltas pela Europa (com reflexos no
Brasil: a Revolução Praieira, em Pernambuco). Os principais núcleos revolucionários foram
Paris, Berlim, Budapeste, Viena e Nápoles. A Primavera dos Povos – como ficou conhecida
essa onda revolucionária – marcou o despertar das nacionalidades na Europa. Segundo
Hobsbawm, a Primavera dos Povos foi a primeira revolução potencialmente global, tornando-
se um modelo de revolução mundial que alimentou rebeldes de várias gerações
(HOBSBAWM, 1977).
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41
como figura chave, na Inglaterra, um político que se interessava por
saúde, Chadwick. Na Alemanha, o nome de destaque é Virchow, um
médico que se interessava por política. Ela nasce voltada às populações
(e com outros focos de interesse, que não a estrita natureza das doenças)
e estabelece como princípio básico a atribuição da responsabilidade da
saúde da população ao Estado, relacionando as condições econômicas e
sociais como fatores significantes do estado de saúde humana.
Foucault (1979) mostra que o modelo inglês de medicina social
foi o que prevaleceu, por permitir a coexistência de três sistemas médi-
cos: uma medicina destinada aos pobres, uma medicina administrativa
(associada à vacinões, epidemias, etc.) e outra medicina privada para
quem pudesse pagá-la. Essa medicina privada gradativamente se tornará
o espaço considerado de excelência. Para ela serão desenvolvidas as
tecnologias de ponta, que representarão o sonho de consumo, em termos
de saúde, dos indivíduos e coletividades.
Nesse contexto regido por dualidades (capitalismo versus socia-
lismo, capital versus trabalho, etc.) e disputas por hegemonia, como é o
mundo da modernidade, surgiu um ingrediente decisivo que fez pender a
luta pela hegemonia dentro da biomedicina para o polo biologicista,
privatista e em consonância com o industrialismo nascente: a revolução
bacteriana, que teve como marcos fundamentais os trabalhos de Pasteur
(1822-1895) e Koch (1843-1910), entre muitos outros (ROSEN, 1994).
Com a descoberta, ou melhor, com a evidência científica do papel dos
micro-organismos na gênese das doenças, ganha força a ideia da unicau-
salidade (sendo as bactérias os entes causadores de todos os males), e os
esfoos de pesquisa para compreensão e tratamento das doenças devem
passar pela lente dos microscópios.
De acordo com Barata (1985), ao desviar a atenção do olhar mé-
dico das diferenças de classes e das consequentes contradições para
tentar entender os processos de saúde e doença, essa visão microscópica
foi coerente com os interesses do capital, além de permitir uma atuação
limitada em relação aos problemas de saúde. Aqui se percebe, de forma
clara, a artimanha moderna descrita por Latour (1994). Ao resumir a
questão da saúde a uma questão laboratorial, técnica, o que se deseja é
afastá-la da política; no caso, liberar a medicina da complexidade social
(AZEVEDO, 2004).
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42
Isso não significa que a discussão, a reflexão e o pensamento so-
ciais tenham desaparecido da biomedicina
39
, porém ficaram em um
plano subalterno, engaiolados numa disciplina específica, a medicina
social” ou “saúde pública” e, mesmo dentro dessa gaiola, a influência da
revolução pasteuriana e de suas decorrências foi crucial
40
. O médico na
Revolução Francesa, de ão política em primeiro lugar, idealizado por
Lanthenas e descrito por Foucault, ou o médico com ão social defen-
dido por Virchow paulatinamente sairão de cena (ou pelo menos do
centro do palco). Depois de Pasteur, a medicina séria” tinha um cami-
nho claro para trilhar, e esse caminho passava pelos laboratórios. As
ruas, os espaços públicos, os processos sociais, eram o trajeto dos políti-
cos e das humanidades. A biomedicina começava a se depurar e a tomar
corpo de ciência.
Estão criados os alicerces para o grande desenvolvimento da bio-
medicina no século XX. Avança o olhar redutor, perfeitamente integrado
à lógica capitalista, multiplicando a compartimentação e as especialida-
des médicas. Para a consolidação e difusão da biomedicina, papel chave
será representado pela educão médica. E, em que pesem possíveis
controvérsias sobre a importância efetiva do Relatório Flexner
41
(publi-
cado em 1910) nas mudanças da educação em biomedicina, este foi
considerado um marco na mudança dos currículos, na elitização da pro-
fissão e no banimento de outras possibilidades de racionalidades médi-
cas (PAGLIOSA; DA ROS, 2008).
Depois do relatório, flexnerizar” a educão tornou-se sinônimo
de modernizá-la, e é difícil imaginar como seriam as profissões biomé-
39
Camargo Jr. cita uma noção muito enunciada no meio biomédico para tentar abarcar as
dimensões psicológicas e sociais, além da onipresente referência à biologia, no pensamento
sobre saúde-doença: “biopsicossocial”. Ele mesmo refere, entretanto, que é uma noção
esvaziada de sentido prático, vaga e imprecisa (CAMARGO JR. 2005).
40
Em certo sentido, porém, mesmo a medicina social funcionou a reboque dos avanços
tecnológicos, como a ênfase dada, por muito tempo (e ainda hoje) às campanhas de vacinação,
fluoretação de águas, etc.
41
Uma das críticas que se faz ao relatório é que ele foi feito a partir de um “passeio com as
mãos nos bolsos”, ou seja, superficialmente e sem rigor metodológico algum. Esse é um fato
curioso, pois esse documento defenderá, afinal, o rigor científico (PAGLIOSA; DA ROS,
2008). Outra crítica é de cunho ético, pois o relatório foi financiado por fundações que tinham
interesses nas mudanças que vieram a acontecer (GARRAFA, 1995). Além disso, há autores
que sustentam que as mudanças ensejadas por Flexner iriam acontecer de qualquer forma. Ele,
com seu relatório, teria capitalizado um “rito” oportunisticamente (PAGLIOSA ; DA ROS,
2008).
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43
dicas sem as mudanças que ocorreram no século XX, a partir dos Esta-
dos Unidos e a partir da formação em medicina, mas chegando a todas
as profissões biomédicas. A menção aos Estados Unidos não é à toa.
Com as duas grandes guerras mundiais e a Guerra Fria, que as sucedeu,
a influência estadunidense espalhou-se pelo mundo e ainda mais vigoro-
samente nos países periféricos, carentes do abundante “auxílio” que
vinha do norte do planeta.
Essa influência se cristalizou em estilos de vida cada vez mais si-
milares aos da metrópole. A partir dos anos 60 do século XX, houve
uma verdadeira explosão tecnológica, com grande oferta de novos medi-
camentos e técnicas de diagnóstico. Paralelamente, ocorreram (notada-
mente nos países centrais) os fenômenos da transição demogfica e da
consequente transição epidemiológica, com aumento de prevalência de
doenças crônicas, degenerativas e associadas ao envelhecimento. A po-
pulação passou a demandar por serviços e produtos relacionados à saú-
de, de forma a tornar o setor médico-industrial um dos mais lucrativos
da economia (VIANNA, 2002). Porém, o aumento explosivo da deman-
da gerou um impasse de financiamento, pois os gastos no setor cresce-
ram de forma exponencial, entrando em uma espiral que acabou levando
a uma necessidade de regulação que, em um contexto de esvaziamento
das funções de Estado (a onda neoliberal dos anos 1990), foi entregue a
grupos financeiros, através principalmente da securitização do risco de
adoecimento (o seguro saúde). Chegou-se assim ao impasse atual: o
complexo médico-industrial viu sua rentabilidade crescer a partir do
aumento da demanda, enquanto para o complexo médico-financeiro é
interessante que essa demanda esteja sob controle. A entrada em cena
dos financistas trouxe até uma redução no ritmo de inovação tecnológica
(VIANNA, 2002). No meio dessa luta por hegemonia, o certo é que a
saúde (ou a procura por ela) se tornou um dos melhores negócios para as
corporações globais que atuam no cenário atual.
Chegamos assim, nas últimas décadas do século passado (e per-
sistindo até o momento), a um contexto onde a biomedicina representa
um setor econômico importante, sendo dirigido pela lógica do mercado,
via complexo médico-industrial e complexo médico-financeiro
(VIANNA, 2002).
Além do mais, os fenômenos das transições demográfica e epi-
demiológica evidenciaram muitas limitações da biomedicina, que havia
conquistado enorme prestígio graças ao controle, bastante relativo, das
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enfermidades agudas. Configura-se um quadro de crise. Ademais das
contradições inerentes ao sistema capitalista e, talvez, em decorrência
destas, a biomedicina tem que lidar com a “medicalização social”, fe-
nômeno contraproducente descrito por Illich (1975), no qual a popula-
ção perde sua autonomia para lidar com fatos inerentes à vida. Essa
população, ávida por biomedicina, buscará os profissionais e os encon-
trará despidos de qualquer idealismo real, cientificizados ao extremo e,
por isso, esvaziados de responsabilidade ética frente a pacientes reduzi-
dos às suas doenças (TESSER, 2007).
Illich, quase quarenta anos, descrevia um sistema médico mais
danoso que terapêutico. Suas críticas parecem mais atuais que nunca. O
conceito de prevenção quaternária”
42,43
é uma demonstração de uma
medicina que perdeu o sentido ético, que cresce apoiada na demanda
acrítica de uma sociedade heteronomizada que busca sentido para a
aventura da vida no consumo (SANTOS, 2000) ou no culto ao corpo”
(GÉRVAS; PEREZ-FERNANDEZ, 2006).
Uma ilustração de como esse conceito é atual são os dados apre-
sentados por Barbara Starfield (2000) que dão conta de que causas ia-
trogênicas (cirurgias desnecessárias, erros de medicação, infecções e
outros erros hospitalares e efeitos adversos de medicação) representam a
terceira causa de morte, em incidência, nos Estados Unidos.
Tamm ilustrando esse conceito, Gérvas e Perez-Fernandez co-
locam que a biomedicina substituiu a religião, os médicos tomaram o
lugar dos sacerdotes, os pecados se transfiguraram em doenças e os
conselhos médicos” tornaram-se dogmas. Graças ao pecado original,
somos todos, atavicamente, pecadores. Silogisticamente, devemos todos
ter alguma enfermidade. Diante dessa insana lógica vigente, dizem eles
(que, por sinal, são médicos): “para manter-se são, o melhor é não ver ao
médico, ou vê-lo em caso de extrema necessidade” (GÉRVAS;
42
A prevenção quaternária consiste em evitar ou atenuar o excesso de intervencionismo médico
associado a atos médicos desnecessários ou injustificados; por outro lado, pretende-se capacitar
os pacientes, ao fornecer-lhes a informação necessária e suficiente para poderem tomar
decisões autônomas, sem falsas expectativas, conhecendo as vantagens e os inconvenientes dos
métodos diagnósticos ou terapêuticos propostos (GÉRVAS; PEREZ-FERNANDEZ, 2003).
43
A prevenção quaternária representa um acréscimo no clássico esquema dos três veis. A
prevenção primária é a realizada no período de pré-patogênese. Um segundo nível, a prevenção
secundária, apresenta-se em dois níveis: o primeiro, diagnóstico e tratamento precoce; o
segundo, limitação da invalidez. Por fim, a prevenção terciária diz respeito a ações de
reabilitação (LEAVELL; CLARCK, 1976).
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45
PEREZ-FERNANDEZ, 2006, p. 111).
Não é surpresa esse estado de coisas, se levarmos em conta que
vivemos em uma sociedade produtivista onde existe um estímulo explí-
cito ao consumo. O setor saúde, inserido nessa lógica, é instado a produ-
zir, e os excessos fazem parte do jogo comercial
44
.
Contudo, encerremos essa seção sobre biomedicina com uma vi-
são mais otimista. As brechas criadas pelas muitas falhas do paradigma
biomecanicista para dar conta das complexidades das dores e alegrias
inerentes à vida e as crises do modelo de funcionamento da sociedade
podem criar espaço para as transformações que, mais que necessárias,
são urgentes. Essas transformações, nos parece, estão em curso. Inte-
grando outros olhares, diversificando e relativizando as interpretações,
certamente estaremos melhorando a medicina. E melhorar a biomedicina
e o mundo é a única possibilidade de seguir.
1.2.2 Procurando alternativas: a Saúde Coletiva
Esta seção tem por finalidade aprofundar algumas reflexões no
sentido de entendermos melhor porque acreditamos que a Saúde Coleti-
va é um ambiente propício para que se realizem os procedimentos de
tradução entre as MAC e a AE, inspirados na sociologia das ausências e
das emergências de Santos (2004). Além disso, buscaremos mais e me-
lhores razões para afirmar a necessidade desse diálogo dentro da SC.
Assim, é interessante que sublinhemos o que a SC tem de peculiar
e o que a diferencia da Saúde Pública. Acompanhando as reflexões de
alguns autores (NUNES, 1994; PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998;
GRANDA, 2009) sobre a formação e características da SC, podemos
resumi-la como corrente de pensamento, movimento social, prática teó-
rica, campo científico e âmbito de práticas. Ou seja, uma discussão
sociológica sobre uma melhor definição do que seja a SC dentro dela
mesmo, o que é explicável em parte pela sua pouca idade e tamm por
seu característico caráter problematizador.
Percorrendo sua história e seus antecedentes, iremos concluir que
44
Na atualidade, em uma sociedade regida pelo interesse econômico, a produtividade costuma
ser medida somente com números. Por exemplo, se muitos exames forem feitos, isso será lido
pela lógica dominante como um grande número de exames, desconsiderando-se a sua real
necessidade.
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46
a SC representa, em algum grau, a retomada de um discurso que tem
suas raízes no século XVIII e que tomou forma mais consistente com a
emergência da medicina social, no século XIX (mais precisamente
entre 1830 e 1880). Virchow, um dos expoentes do período, representa
uma ntese da associação entre militância política e atuação médica,
tendo se envolvido politicamente em agitações revolucionárias nas bar-
ricadas em Berlim em 1848 e com estudos em laboratórios de patologia
celular (ROSEN, 1979).
No intervalo entre a metade do século XIX e a metade do século
XX, contudo, o pensamento social em saúde parece ter estagnado, no
sentido de propor uma atuação política transformadora como vital nas
práticas em saúde. Nesse ínterim, o biologicismo, por conta da imensa
influência da Revolução Microbiana, de alguma forma ditou as diretri-
zes pelas quais o pensamento social deveria se balizar, constituindo as
bases para as grandes intervenções em saúde, seja através de campanhas
ou de saneamento ambiental, por exemplo. Esse movimento ideológico
levou o setor da saúde pública a ocupar-se mais detidamente da preven-
ção de agravos e doenças. Ao agregar e valorizar essencialmente a pre-
venção, a saúde pública parece ter diminuído a sua pretensão, limitando
a atuação a um olhar biogico (PAIM; ALMEIDA FILHO, 1998).
A redefinição do discurso sobre a prevenção, que teve seu sentido
aumentado ao ser adjetivada como primária, secundária e terciária, in-
corporando assim todas as práticas em saúde, levou essa concepção de
saúde pública, contida na denominação de medicina preventiva e soci-
al”, a ficar restrita ao que Arouca (2003) chamou de dilema preventi-
vista”. Paim e Almeida Filho chamam a atenção para o fato de que a
manobra de ampliação do sentido da prevenção ficou apenas no campo
semântico e retórico, evidenciando uma menor ambição transformadora
da realidade dessa vertente da saúde pública.
Por outro lado, o contexto político e acadêmico da América Latina
no peodo após a Segunda Guerra Mundial revelou-se propício (para-
doxalmente, muitas vezes, por suas adversas condições) a uma série de
articulações entre movimentos sociais e acadêmicos que ajudaram a
construir a SC, a Reforma Sanitária e o SUS.
Nunes (1994), em sua recuperação da história do movimento de
constituição da SC, divide-o em três fases, ressalvando que estas se
misturam e perduram, por vezes se confundindo: a pré-saúde coletiva”,
marcada pela instauração do projeto preventivista; uma fase intermediá-
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47
ria, na qual as ideias preventivistas são acrescidas de uma perspectiva
social, e a última, dos anos de 1980 em diante, caracterizada pela consti-
tuição da SC propriamente dita.
Se fizermos um paralelo da história político-ideogica do conti-
nente com as ideias do parágrafo anterior, poderemos associar, de forma
simplificada e resumida, a primeira fase ao pós-guerra, de imensa influ-
ência estadunidense. Essa fase termina mais ou menos com a implanta-
ção de ditaduras civil-militares em quase todos os países sul-
americanos. À segunda corresponde o movimento de luta por redemo-
cratização no continente, o aprofundamento do fosso social, a conse-
quente multiplicação de causas urgentes e, no contexto de repressão
política, a necessidade de uma espécie de catalisador para que a militân-
cia social pudesse se expressar. Nesse sentido, a bandeira da reforma
sanitária mostrou-se convergente com os projetos políticos de oposição
(predominantemente de esquerda) aos regimes militares. Vários militan-
tes sociais se albergaram
45
, o que sem dúvida deu muito mais vitali-
dade e diversidade ao movimento. Por fim, a terceira fase é a contempo-
rânea, quando alguns dos militantes históricos da Reforma Sanitária
chegam ao poder efetivamente; quando se implanta, com imensas difi-
culdades operacionais, um sistema de saúde universal e de acesso gratui-
to (o SUS) e que, como dito, representa a tentativa de materialização
do ideário da SC e da APS no contexto brasileiro.
Assim, não é difícil perceber que a fase mais desafiadora é justa-
mente a que estamos vivendo. Nesse sentido, não apenas porque o tem-
po presente é o que interessa de fato, pois é nele que as coisas aconte-
cem, mas tamm porque é o momento de fazermos as coisas como
achamos que devam ser feitas. Em outras palavras, até a elaboração e a
efetivação do SUS, estávamos, os que acreditamos em uma proposta
como é a susiana, de um lado do balcão
46
. A partir da construção do
SUS, estamos, como sociedade e especialmente como trabalhadores em
45
Em um processo similar ao que ocorreu no campo político-partidário, com a proscrição de
várias legendas e apenas um partido de oposição legalizado (o Movimento Democrático
Brasileiro – MDB), que acabou funcionando como um guarda-chuva de várias correntes
político-partidárias.
46
Inscrevo-me aqui como um militante da Reforma Sanitária, apesar de que quando esta teve os
seus grandes marcos de relativa assunção à realidade (a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em
1986 e a Constituição de 1988), eu era apenas um jovem estudante (em 1986, secundarista, e
em 1988, acadêmico de odontologia) simpático à causa.
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48
saúde, chamados a dar nossa contribuição prática para a efetivação do
sistema de saúde. Assim, à parte todo arcabouço jurídico institucional do
SUS, ao qual subjaz uma visão contra-hegemônica do processo social de
inspiração nitidamente marxista, o trabalhador em saúde tem a função
de prestar assistência aos que se sentem doentes e o procuram.
Portanto, no percurso histórico sintetizado por Nunes (1994) hou-
ve uma inflexão ideológica que aproximou o setor de pensamento reuni-
do na saúde pública de grandes movimentos de luta por direitos civis e
políticos (eminentemente de esquerda), resultando no viés de militância
característico da nascente saúde coletiva. De uma forma resumida, o
ideário da saúde pública (em sua vertente preventivista) poderia ser
associado a uma perspectiva reformista, de atuação estrita dentro do
setor saúde, enquanto a saúde coletiva primaria por uma transformação
mais radical da sociedade na qual o trabalho em saúde seria mais um
instrumento que um fim.
De qualquer forma, com qualquer significado que se ao traba-
lho em saúde, é fundamental que se pense na qualidade da assistência.
Nesse sentido, Paim e Almeida Filho (1998), ao sublinharem a ideia de
que a SC é um campo aberto a novos paradigmas, chamam para a arena
de discussões os limites da prática biomédica convencional, o primado
do pensamento biológico sobre o social na atenção em saúde e a interse-
torialidade, entre outros assuntos.
Esses temas nos tocam mais diretamente, pois as MAC e a AE,
em nossa leitura, podem contribuir para melhorar a qualidade da atenção
prestada aos que procuram os serviços do SUS (TESSER; BARROS,
2008; TESSER; LUZ, 2008). Evidentemente, as MAC têm uma contri-
buição mais direta a oferecer, mas a AE, por trabalhar vários assuntos de
fundamental importância para o nível de saúde de uma coletividade,
como a qualidade da alimentação, a contaminação de recursos naturais,
a disponibilidade de trabalho, entre outros temas, também é um setor
que muito tem a contribuir. É interessante notar que a AE tem uma evi-
dente e pouco explorada intersecção com alguns ditames da promoção
de saúde, movimento de renovação da saúde pública mundial, que tem
como marco inaugural a Conferência de Ottawa, Canadá, realizada no
mesmo ano da célebre Conferência Nacional de Saúde no Brasil, em
1986
47
(NAVOLAR, 2007; NAVOLAR et al., 2010).
47
A Carta de Ottawa preconiza cinco linhas de ação para a Promoção de Saúde: elaboração e
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49
A promoção de saúde, apesar dos defeitos que se lhe possam a-
pontar, representa, pelo menos, uma tentativa de promover algumas
transformões no campo discursivoideológico do setor, buscando dia-
logar mais com o assunto saúde e se afastar da usual noção de ausência
de doença como sinônimo daquela. Seus críticos, contudo, consideram a
promoção de saúde inadequada para os contextos terceiromundistas, por
não trabalhar com questões mais fundamentais de organização do Esta-
do e da economia, entre outras que se refletem na saúde de um coletivo.
Outro risco apontado na proposta de promoção de saúde é individualizar
e culpabilizar os indivíduos, isentando outros fatores mais abrangentes
de influências nos processos de saúde-doença.
Outro conceito importante e próximo é o de atenção primária em
saúde. A APS defende outra forma de organização do cuidado em saú-
de, diametralmente oposta ao chamado modelo liberal-privatista
48
, base-
ada em sistemas nacionais, de acesso universal e democratizado, com
custos menores, maior efetividade e menor iatrogenia. Apesar de ser
pensada especialmente para ser implantada em países mais pobres, a
APS, implantada em países com sistemas de saúde bem estabelecidos
(Grã-Bretanha, Canadá e França, por exemplo), levou estes a atingirem
bons níveis de saúde para suas populações (STARFIELD, 2002).
Tamm vinculada a certa concepção de saúde pública reformista,
está a noção de que o cuidado em saúde para grandes coletivos, especi-
almente os de piores condições econômicas, pode (ou deve) ser simplifi-
cada
49
. O estabelecimento do pensamento social em saúde pôs em relevo
a existência de uma medicina não-social”, que poderíamos chamar de
individual” e “privada”, na qual a interação terapeuta-paciente se dá em
um espo privado (no duplo sentido, de privacidade e de propriedade
particular) e que, ao final, é a percebida socialmente como o pado de
implementação de políticas públicas saudáveis, criação de ambientes favoráveis à saúde,
reforço da ação comunitária, desenvolvimento de habilidades pessoais e reorientação do
sistema de saúde (BRASIL, 2006b).
48
No Brasil, a implantação do Programa de Saúde da Família, apesar das muitas dificuldades de
várias ordens para seu real funcionamento e consolidação, traduz um esforço do Sistema Único
de Saúde em implantar as diretrizes da APS no nosso meio.
49
Ressaltemos, contudo, que defendemos outra noção de complexidade, não necessariamente
associada à sofisticação tecnológica. Nesse sentido, o trabalho em uma consulta de
homeopatia, por exemplo, apesar de requerer relativamente pouca quantidade de tecnologia
dura, é altamente exigente em termos de tecnologias leves (MERHY, 2002). A boa atenção em
saúde é simples e complexa ao mesmo tempo.
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50
excelência de atenção médica, sendo confundida com a própria biome-
dicina
50
.
Ademais, o debate sobre as relações da saúde com o desenvolvi-
mento econômico, ampliado nos anos 1970, chega à discussão sobre a
extensão de cobertura dos serviços. A luta pelo reconhecimento do direi-
to à saúde e a responsabilização da sociedade pelos cuidados em saúde
ensejam a formulação do célebre lema Saúde para todos” (PAIM;
ALMEIDA FILHO, 1998). Nesse contexto, o papel do Estado tem sido
assunto para vários debates. Um sanitarista equatoriano, Edmundo
Granda (2009), em sua análise crítica da saúde pública latino-americana,
da qual sempre foi militante, a chama de “enfermología pública”, carac-
terizada por três aspectos: a doença e a morte como pontos de partida
filosófico-teóricos para explicar a saúde
51
; o método positivista para
explicar o risco de adoecimento e o estrutural-funcionalismo para com-
preender a realidade social; e, por último, o reconhecimento do Estado
como força privilegiada para assegurar a prevenção à população.
Granda faz uma comparação interessante. Para ele, no positivismo
biomédico, o médico é o mago que irá exorcizar os males do paciente.
Em paralelo, no positivismo da saúde (enfermología) pública, o mago
que atua sobre o risco e a enfermidade públicos passa a ser o Estado.
Em contrapartida, na tentativa de formular novos parâmetros para
o pensamento social em saúde, ao qual chama de Saúde Pública alter-
nativa” (e nós de SC), Granda tece três pilares distintos, assim resumi-
dos: a saúde e a vida como ponto de partida filosófico-teórico, sem des-
cuidar da prevenção; metodologia de investigão variada, incluíndo a
científica, capaz de dar conta da complexidade social e acionar práticas
que integrem outros atores e poderes a mais do que os estatais.
Entendemos, dessa forma, que a crítica de Granda no que tange ao
papel do Estado na saúde pública não tenta diminuir a responsabilidade
estatal sobre a garantia do direito a cuidados em saúde, apenas reconhe-
ce que há uma produção social de conhecimento em saúde e doença, que
outros níveis de poder interagindo com essa produção e que os mili-
tantes de SC devem trabalhar criativamente com esses níveis também.
50
A atenção biomédica em saúde prestada nos serviços públicos também privilegia a atenção
individual.
51
Isso é bastante evidente na epidemiologia. Apesar de tentativas de incorporar boa parte do
discurso crítico, os “indicadores de saúde” correntes na epidemiologia são índices de
incidência e de prevalência de enfermidades e coeficientes de mortalidade.
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51
Além disso, é uma espécie de autocrítica, visto que boa parte do ideário
construído no percurso ideológico da Saúde Pública latino-americana
tinha como ponto chave a tomada do poder concentrado no Estado, fruto
de uma forma de interpretar o marxismo que coloca esse ponto como
chave.
Importante pontuar aqui que o movimento da Reforma Sanitária
cresceu, tomou forma e vida em uma época na qual o horizonte vislum-
brado pelos setores de oposição que nela militavam era a construção de
uma sociedade socialista. Com a queda do muro de Berlim, com o fim
da experiência soviética, boa parte dessa militância perdeu a utopia e
teve que enfrentar uma realidade dura sem uma perspectiva emancipa-
dora (ou, pelo menos, com essa perspectiva bastante esmaecida).
O enfraquecimento da perspectiva upica mais grandiosa, de uma
revolução global, remete a SC a outra esfera ideológica, ainda de matriz
marxista. No caso, parece haver uma tendência de valorizar a participa-
ção na luta por várias, pequenas, parciais e relativas tomadas de poder.
Nesse sentido, o militante de SC tende a se tornar um intelectual orgâni-
co, como defendido por Gramsci (1979), misturando-se às várias peque-
nas lutas por hegemonia nos vários espaços sociais, nos quais, afinal, o
poder de Estado também se manifesta (PAIM, 2008). Impossível para
nós, no contexto deste trabalho, deixar passar a afinidade semântica
entre o intelectual orgânico e a agricultura ecológica (orgânica).
As ideias de Latour (1994), por outro lado, vêm nos dizer que as
opções individuais, grupais, de governos e de corporações, nesses tem-
pos de pseudomodernidade, estão carregadas de política e de conheci-
mento cienfico. Em outras palavras, para um cuidado em saúde que
privilegie a coletividade, temos que estar atentos aos sujeitos que com-
põem esse coletivo. Nessa direção, é fundamental encontrar um equilí-
brio entre a determinação social da doença e a atenção centrada na pes-
soa. É preciso buscar compreender o alcance político de uma boa prática
clínica e os significados em termos de atenção à saúde na atuação políti-
ca dos trabalhadores do setor. Sempre estamos atuando socialmente com
algum sentido, mesmo que inconscientemente, reforçando o modelo
vigente ou sendo contra-hegemônicos. O intelectual orgânico de Grams-
ci trabalha no sentido da emancipação, contra-hegemonicamente.
Outras noções de matriz gramsciana, como a de revolução passiva
(uma espécie de revolução sem revolução) ou de transformismo (os
militantes se incorporam à estrutura e ao discurso hegemônico ou de
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52
governo) representam desafios às propostas da Reforma Sanitária Brasi-
leira, pois enfraquecem, em certo sentido, as propostas de reforma geral
que estão nas origens do movimento da SC (PAIM, 2008).
Em paralelo, as movimentações sociais causadas pelo reordena-
mento das relações na implantação de um sistema de saúde que se pre-
tende igualitário, equânime e universal podem ser grandes, além de
bastante contraditórias aos rumos das políticas econômicas que vêm
sendo implantadas ao mesmo tempo que o SUS. Ou seja, estamos diante
do desafio de implantar um sistema de saúde de inspiração socialista em
um país (mundo) mais e mais dominado pela globalização financista,
que preconiza e é sustentada por valores diametralmente opostos aos que
motivaram a elaboração do SUS.
Ademais, entendemos que além dos imensos desafios políticos,
institucionais e sociais que a implantação do SUS representa, é mister
enfrentar o desafio de prestar uma boa assistência e cuidado em saúde.
Até mesmo porque os desafios se confundem se entendermos os atos
terapêuticos tamm como atos políticos, carregados de significados
culturais e simbólicos. Nesse sentido, o aporte das MAC pode ser de
grande valia na direção de pluralizar epistêmica e terapeuticamente o
sistema com vistas à desmedicalização. Implantar um sistema grandioso
como pretende ser o SUS sem a crítica desmedicalizante tem significado
ampliar o acesso a exames desnecessários, a sobremedicação e várias
outras iatrogenias, com grande custo humano, social e financeiro e, ain-
da pior, repassando dinheiro público a setores privados, como o farma-
cêutico e o de exames complementares, em um contexto de crônica
escassez de recursos (BAHIA, 2008; 2009).
Os desafios que ensejaram o nascimento da Saúde Coletiva conti-
nuam colocados e talvez sejam maiores do que nunca
52
. O mundo conti-
nua injusto, as pessoas padecem de males evitáveis e nós podemos aju-
dar a melhorar esse quadro como cidadãos trabalhadores em saúde. O
mundo continua precisando mudar para melhor. As teorias e práticas em
saúde tamm. As MAC e a AE estão aí, como movimentos com poten-
cialidades para colaborar na construção das utopias que, afinal, sempre
52
Certamente o aumento da diferença entre os que têm mais e os que têm menos é explicado,
em boa parte, pela pobre presença de discussão de valores nas ciências (LACEY, 2004;
SANTOS, 2004). Em outras palavras, é um divórcio entre ética e prática científica. Um bom
retrato da história do século XX e da barbárie que ele representou é o livro “A era dos
extremos”, de Eric Hobsbawm.
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53
foram o mote para os pensadores sociais e que são, como diz Eduardo
Galeano, o que nos faz caminhar.
Como frisam Paim e Almeida Filho (1998), é desejável que o mi-
litante da SC desenvolva a capacidade do que eles chamam de advo-
cacy
53
. Apesar do sentido um pouco diverso, essa habilidade traduz-se
também por defender causas justas no âmbito de sua atuação profissio-
nal e cidadã. Estamos convencidos que tanto as MAC como a AE são
boas causas para nos engajarmos (SILVA, 2008).
1.2.3 A agricultura moderna
Vimos, na seção anterior, as profundas transformações que o pen-
samento e a ação sobre saúde e doença sofreram por conta da assunção
da ciência ao monopolizado posto de formulador de verdades sobre a
natureza e sobre o homem, associada às mudanças sociais, políticas e
culturais decorrentes da progressiva hegemonia da modernidade euro-
peia, apoiada na expansão capitalista e no poderio militar. Nesta seção, o
objetivo será descrever as influências da revolução científica e das mu-
danças coetâneas sobre o fazer e o pensar em outra área do conhecimen-
to cara à humanidade: a agricultura. A promessa baconiana de controle
racional da natureza vai ao encontro, de certa forma, dos fundamentos
ontogicos da agricultura, o simples controle da natureza. Esta ativida-
de se caracteriza, desde seu surgimento, na chamada revolução agrícola
neolítica cerca de 12 mil anos, pela intervenção humana no curso
natural dos ciclos geológicos, vegetais e animais, com o fim preciso de
produzir alimentos e outros produtos úteis e fundamentais.
Após essa origem, a agricultura experimentou profundas trans-
formações e várias trajetórias de evolução e diferenciação, que se confi-
guram em duas séries evolutivas picas básicas: a série evolutiva da
agricultura da Europa Ocidental e a linha dos Sistemas Hidroagrícolas
da África (Egito), da América (Peru e México) e da Ásia (Mesopotâmia,
Índia e China) (LIMA; CARMO, 2006).
À primeira vista, a agricultura poderia ser um dos terrenos ideais
53
A prática da advocacy consistiria em utilizar o conhecimento “como instrumento de denúncia
promovendo a mobilização crescente da sociedade em demanda de realização do seu potencial
de saúde e exercício do direito de cidadania” (RODRIGUEZ apud PAIM; ALMEIDA FILHO,
1998; p. 307).
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54
para as sementes científicas germinarem, quando estas começaram a ser
lançadas, na Europa do fim da Idade Média. Aplicar o método científico
a uma atividade que é, per si, controladora da natureza e experimental
seria apenas acrescentar mais um ingrediente (fundamental) à receita.
Pom, se no panteão dos deuses gregos espaço no Olimpo para uma
divindade dedicada à atividade agrícola, enquanto a medicina, por e-
xemplo, ocupava uma espécie de terceiro escalão
54
, aqui, aos do chão,
desde muito tempo, os afazeres de curadores e agricultores foram
mais e mais se distanciando e se especializando. Socialmente, a diferen-
ciação foi máxima. Na cultura moderna, a profissão de curador foi pau-
latinamente se elitizando, e é notório o prestígio social que a classe mé-
dica obteve, enquanto os agricultores
55
, como muitas outras profissões
braçais, são considerados pelo senso comum como os realizadores de
um ofício bruto, que o requer muita inteligência nem preparo intelec-
tual.
Sendo assim, a preocupão pela sistematização do conhecimento
em agricultura não ocupou um lugar central, aparentemente, na produ-
ção literária da tradição greco-romana e nas tradições que as sucede-
ram
56
, ficando esse conhecimento vinculado à transmissão oral, interge-
racional e por meio do contato entre diferentes povos. Dessa forma,
sementes, saberes e sabores motivaram grandes expedições, transitaram
pelo mundo e ajudaram a construir um diversificado mosaico de culturas
agrícolas, mas quase sempre se difundindo como conhecimento empíri-
co
57
.
Michel Serres, ao procurar uma espécie de essência humana na
busca que a nossa espécie faz de sobrepujar a morte, compara a inven-
ção da agricultura a uma espécie de invenção de uma imortalidade”,
54
Deméter, deusa das colheitas, é uma das doze divindades do Olimpo, enquanto Asclépio, da
medicina, é um deus menor.
55
Lembremos aqui que neste estudo estamos tratando dos trabalhadores na agricultura como
agentes fundamentais da agricultura ecológica. Como a noção de agricultor está vinculada à
imagem de uma pessoa “trabalhadora”, não é incomum ouvirmos empresários rurais se
apresentarem como “agricultores”. Não é desses agricultores que falamos neste trabalho.
56
Como quase sempre, exceções. As mais conhecidas são os tratados romanos sobre
agricultura, sendo talvez o mais célebre De agri cultura, de Marco Catão, (234-149 a.C.),
militar e de uma família de suinocultores. Consta que seu tratado era mais centrado na
administração de uma “propriedade rural”.
57
As sementes, mudas e animais espalhados pelo mundo certamente representam actantes no
sentido dado a esse termo por Latour (2001), sendo que através deles transitaram formas de
lidar com a natureza, de alimentar-se, de plantar, com reflexos sociais, culturais e políticos.
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55
pois a domesticão de animais e plantas revelou-se um projeto dura-
douro e irreversível. Ele chama os primeiros agricultores de gênios
sublimes” que, ao dominar a seleção fenotípica das espécies de interesse
agrícola “contribuíram para a originalidade histórica do tempo humano”
(SERRES, 2003, p. 17).
Assim, mesmo que o conhecimento agrícola não tenha sido siste-
matizado, ele em certo sentido ficou registrado nas espécies vegetais e
animais selecionadas que o conhecimento milenar produziu. Como Ser-
res diz, em companhia de Pitágoras, galinhas d'angola e trigo acompa-
nham nosso tempo com sua fiel invariância feita de variões ou sele-
ções” (p. 16).
Se olharmos com atenção, o modo de se trabalhar em agricultura
guarda algumas semelhanças com o método científico. O agricultor é,
via de regra, um experimentador. A partir do controle de alguns fatores
(que podem ser desde variáveis bem objetivas e agronômicas, como
profundidade do plantio, por exemplo, até outras subjetivas, como “o dia
em que meu avô semeava o feijão”), o agricultor testa constantemente
técnicas, sementes e manejos. Isso ajuda a explicar o surgimento de
técnicas sofisticadas e altamente eficientes entre povos antigos.
Platão, contudo, na República”, falava sobre uma relativa inca-
pacidade dos trabalhadores braçais (notadamente os agricultores) de
filosofarem, de governarem e, em certo sentido, de terem ideias próprias
(PLATÃO, 1970). De fato, a agricultura permanece com grande parte de
seu saber depositado junto aos círculos mais exotéricos (na acepção de
FLECK, 1986). Poderíamos dizer, contudo, que o surgimento da Ciência
Agronômica, no século XIX, representa a inserção da agricultura no
panteão das Ciências (e consequente instituição de um círculo esotéri-
co), para a solução de problemas eminentemente empíricos, como a
queda da fertilidade dos solos, da produtividade e a grande carga de
trabalho necessária para sua recuperação.
No entanto, essa visão pragmática e materialista que enxerga a a-
gricultura apenas como produção de alimentos” merece reparos e, es-
pecialmente no século passado, com a agudização da crise ecológica,
toma forma uma percepção que amplia as tarefas da agricultura. Schu-
macher, por exemplo, lista três: manter o homem em contato com a
natureza viva, de que ele é e continua sendo uma parte muito vulnerável;
humanizar e enobrecer o habitat mais vasto do homem e proporcionar os
alimentos e outros materiais necessários a uma vida condigna
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56
(SCHUMACHER, 1977).
Rudolf Steiner, um dos fundadores da antroposofia
58
, chega ao
ponto de dizer que “os interesses da agricultura estão intimamente entre-
laçados, em todas as direções, com a esfera mais ampla da vida humana,
e dificilmente existe um campo da vida que não pertença propriamente à
agricultura” (STEINER, 1993, p. 28).
Visões como a de Steiner
59
, contudo, nunca foram as dominantes.
De fato, até o advento da química de Justus von Liebig (1803-1873), a
agricultura era um assunto predominantemente econômico e comercial.
Essa relativa distância da agricultura dos círculos intelectuais não signi-
fica que não tenha havido desenvolvimento tecnológico e acúmulo de
saberes sofisticados
60
, que estes não interessavam a esses círculos,
em geral dominados pela aristocracia diletante, muito distante de colocar
as mãos na terra.
Pode-se dizer que entre os fundamentos do acúmulo cultural que
permitiu à espécie humana a transição da vida nômade e errante para o
estabelecimento de sociedades complexas, estados-nação e tudo que daí
decorre, está o domínio das técnicas agrícolas. Costumamos utilizar uma
lente positiva ao lermos a história da humanidade e percebemos uma
constanteevolução” no progresso tecnológico, esquecendo, ou pelo
menos não dando muita atenção, aos fracassos de alguns povos que
desapareceram pelo mau uso dos recursos naturais dos quais dependi-
am
61
.
A partir do relativo controle de variáveis que antes escapavam de
qualquer intervenção humana, o homo sapiens parece ter se iludido com
suas próprias possibilidades. Se, como frisa Kathounian, através da his-
tória a espécie humana manteve a atitude de temor-domínio como parâ-
58
A antroposofia é uma filosofia complexa, criada por Rudolf Steiner no começo do século XX
na Alemanha, e tem como ramos a agricultura biodinâmica, a pedagogia Waldorf e a medicina
antroposófica. É autodefinida como uma ciência espiritual (STEINER, 1993).
59
Há outros precursores de outras visões sobre a agricultura e que difundiram diferentes
escolas, em geral com mais preocupação técnica e sem elocubrações filosófico-espirituais. Há
exceções. Além de Steiner, por exemplo, no Japão, Mokiti Okada fundou um movimento, a
Igreja Messiânica, que está associado à chamada agricultura natural (KATHOUNIAN, 2001).
60
Kathounian (2001) cita o exemplo das “civilizações do arroz” do sudeste da Ásia que, há
pelo menos 40 séculos ocupam os mesmos terrenos e mantêm, apenas com recursos locais,
rendimentos de duas a quatro toneladas de arroz por hectare.
61
Jared Diamond, em seu livro “Colapso”, nos conta das várias lições que podemos aprender
com essas culturas desaparecidas (DIAMOND, 2003).
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57
metro de ões, a partir do advento da síntese química de elementos”
na segunda metade do século XIX, alguma coisa mudou. O homem
parece ter se sentido senhor dos processos químico-físicos mais elemen-
tares, o que redundou no entendimento de fenômenos biológicos sob um
prisma quantitativo químico e no surgimento, por exemplo, da agrono-
mia (e da agricultura química) e da nutrição. As terras cultiváveis, que
quando se exauriam exigiam anos de descanso para recuperar a fertili-
dade (o chamado pousio”) ou grande mão de obra para serem fertiliza-
das com esterco, passaram a ser recuperadas” como num passe de má-
gica, com alguns quilos de adubos solúveis
62
. A confiança no poder da
química era tanta que Liebig, por exemplo, teria dito que logo se sinteti-
zaria algo mais eficaz e nutritivo para os bebês que o leite materno
(KATHOUNIAN, 2001).
No entanto, logo se percebeu o outro lado da moeda: o preço des-
sa comodidade foi a queda abrupta de produtividade após alguns anos de
cultivo e o aparecimento de pragas e doenças nas plantações numa esca-
la nunca antes vista. As soluções para esses novos problemas vieram
também da indústria química, com o surgimento, no primeiro momento,
dos fungicidas.
Ressalte-se, então, o casamento entre a necessidade de escoamen-
to das sobras de guerra e os interesses pela modernização da agricultura:
os adubos nitrogenados provieram da indústria do salitre para pólvora,
os inseticidas vieram como resultado dos esforços para a produção de
armas químicas (que posteriormente seriam banidas via acordo interna-
cional), as chamadas plantas daninhas seriam controladas com os herbi-
cidas que tiveram grande desenvolvimento na Guerra do Vietnã, e até os
tratores usados no campo o filhotes dos tanques de guerra
(KATHOUNIAN, 2001).
A transformão dos modos de produção que o uso de adubos
químicos proporcionava avançou na esteira dos grandes interesses co-
merciais da indústria química, nos resultados imediatos obtidos em ter-
mos de produtividade e na possibilidade de cultivo de espécies fora de
62
No âmbito da antes referida série evolutiva europeia da agricultura, as formas de plantio e
criação de animais itinerantes, baseadas nos sistemas de derrubada e queimada (predominante
na agricultura indígena do Brasil, por exemplo), se transformaram nos sistemas permanentes de
alqueive com pecuária associada, ao longo da Antiguidade e da Idade Média, com relativa
perda maior de fertilidade em relação aos sistemas itinerantes, com o passar do tempo
(KATHOUNIAN, 2001; LIMA; CARMO, 2006).
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58
locais e condições climáticas adequadas. Estabeleceu-se, então, uma
mudança paulatina que acabou por determinar que esse modo de produ-
ção recebesse a alcunha de convencional”, como se esse tivesse sido
sempre o pado, deixando para o que destoasse dele o ápodo pejorativo
de “alternativo”, associando-o a uma técnica experimental, aparente-
mente esquecendo que existe um saber milenar que se busca resgatar
com a agricultura alternativa ou associando-lhe a ideia de uma coisa
atrasada.
Constituiu-se assim um capítulo importante na lógica que predo-
mina até os dias atuais. Os novos modos de produção desequilibravam a
química e a biologia dos agroecossistemas. A solução apresentada pelo
modelo foi e segue sendo mais química, com aplicações de novos pro-
dutos e maiores dosagens, sempre travestindo o aprofundamento do
modelo com o eufemismo tecnologia”, sendo o ato mais recente desse
drama a chamada biotecnologia”, com lugar de destaque para os culti-
vos manipulados geneticamente e a nanotecnologia.
Se até os anos 60 do século passado tais tecnologias se expandi-
ram principalmente nos países industrializados, a partir dhouve uma
busca por novos mercados no terceiro mundo. No Brasil, nos anos da
ditadura militar, criou-se uma política oficial de incentivo ao uso de
agroquímicos, que vinculava (e ainda vincula!) a concessão de crédito
ao uso de tecnologia (PERES; MOREIRA, 2003). É a ideia do pacote
tecnogicoque até hoje é hegemônica. O agricultor passa a depender
do sistema financeiro para custear a produção, entrando numa espiral de
endividamento que acaba inviabilizando as pequenas e médias proprie-
dades, e o pado louvado pelo deus mercado vem a ser o grande ou
enorme latifúndio, que irá produzir para exportar e levará o chamado
desenvolvimento para o interior do país. É a face atual da mesmagica
que exportou pau-brasil e úcar à custa da devastação da mata atlânti-
ca; café, pelas matas de São Paulo e Minas; e agora cana, bois, soja e
outros gos em troca de cerrado e floresta amazônica. Enquanto os
números da balança comercial forem favoráveis, os danos ambientais
são jogados para baixo do tapete e justificados como o “preço do desen-
volvimento”. Recentemente, temos assistido a um embate entre ambien-
talistas e defensores do abrandamento das leis ambientais
63
.
63
A aprovação, pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em 31.03.2009, do Código
Ambiental Estadual, que abranda a proteção aos recursos naturais previstas no Código
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59
Se analisarmos com atenção, podemos perceber que esse caso é
um exemplo do uso das artimanhas modernas, como denunciado por
Latour (1994). Os que defendem a modernização usarão, dependendo do
momento, argumentos sociais, políticos e naturais para tentar justificar,
em termos econômicos, políticos, sociais, científicos, o avanço da fron-
teira agrícola, o desenvolvimento dos OGMs
64
, o protecionismo como
política comercial, o combate à fome, a criação de empregos, a qualida-
de dos alimentos, etc.
Os efeitos do modelo moderno de produção agrícola na saúde, es-
pecialmente dos agricultores, é crescente e evidente (AZEVEDO, 2004;
NAVOLAR, 2007). Intoxicões por agrotóxicos são frequentes
65,66
, e
suas consequências mais notadas são a queda das defesas imunogicas,
impotência sexual masculina, anemia, cefaleia, innia, alterações de
humor e distúrbios do comportamento (ANA, 2006). Os efeitos da ex-
posição ocupacional aos defensivos” estão muito relacionados ao sis-
tema nervoso e, segundo Dams (2006), uma estreita relação entre
depressão e uso de agrotóxicos.
Vários trabalhos demonstram o quanto os agrotóxicos chegam ao
consumidor final dos produtos agrícolas. Em um estudo realizado em
Cuiabá, no ano de 1998, 100% de 32 amostras de leite materno conti-
nham resíduos de agrotóxicos (DDE e lindane) e em 65,6% delas foi
encontrado DDT, proibido no Brasil desde 1995 (OLIVEIRA; DORES,
1998). As crianças são mais sensíveis aos efeitos dos produtos
(SARCINELLI, 2003) e, de acordo com relatório do Environmental
Group, quando fazem o primeiro aniversário, os bebês estadunidenses,
por conta dos resíduos presentes na alimentação, receberam a dosa-
Ambiental Brasileiro, ilustra bem esse embate.
64
Organismos geneticamente modificados. Conhecidos também como “transgênicos”.
65
O Centro de Assistência Toxicológica do Instituto de biociências da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), de Botucatu – SP, em pesquisa no ano de 2000, revelou que 81% dos
pacientes que buscaram o Centro eram pessoas intoxicadas por agrotóxicos (GODINHO,
2002). O Brasil era o quarto país do mundo em consumo de agrotóxicos há seis anos (FAO,
2003) e, segundo Coury (2004), o terceiro em mortes relacionadas ao uso desses produtos.
Dados recentes indicam que o Brasil, hoje, é o maior consumidor de agrotóxicos do planeta
(Dados disponíveis em:
<http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090807/not_imp414820,0.php>. Acesso em 24
julho 2010).
66
Segundo a OMS, estima-se que ocorram cerca de três milhões de intoxicações agudas por
agrotóxicos anualmente no mundo, provocando um total aproximado de 220 mil mortes
(ANVISA, 2005).
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60
gem máxima calculada para uma vida inteira de oito pesticidas altamen-
te carcinogênicos (BUGLIONE, 2007).
Estima-se que 35% dos casos de câncer na população norte-
americana m origem na dieta, sendo os pesticidas presentes nos ali-
mentos os maiores responsáveis (STOPELLI; MAGALHÃES, 2005). O
Programa de Análises de Resíduos de Agrotóxicos (PARA) da ANVISA
realizou análises de resíduos de agrotóxicos em amostras de frutas e
verduras, entre 2001 e 2004, em treze estados brasileiros. Das 4.001
amostras analisadas, 83,4% continham resíduos de agrotóxicos não au-
torizados para as respectivas culturas, 16,6% estavam acima do limite
máximo recomendado (ANVISA, 2005). Esse mesmo programa, em
2004, observou um aumento no índice de contaminação em amostras de
mamão e morango: de 19,50% para 37,66% no mamão e de 46% para
54,44% no morango.
Portanto, muito distante da bonita visão de Steiner (1993) e afas-
tando-se das missões descritas por Schumacher (1977), a agricultura
moderna, apoiada em uma noção de produtividade desconectada de
valores outros que não os financeiros, preocupa-se em maximizar a pro-
dução imediata, estando totalmente escravizada por uma lógica quantita-
tivista e comercial, que privatiza os lucros e socializa os prejuízos, se-
jam eles à saúde dos trabalhadores e consumidores, sejam ao ambiente
natural, sejam às populações tradicionais e suas culturas (o caso da A-
mazônia é flagrante).
Seus defensores argúem que sem a agricultura da Revolução Ver-
de não haveria alimentos suficientes para a crescente população do pla-
neta e que as agriculturas tradicionais não conseguiriam suprir as neces-
sidades alimentares do globo. Duas reflees se impõem.
A primeira é que o grande problema de alimentação no mundo
parece ser a distribuição, e não a quantidade, do que é produzido. Se-
gundo cálculos apresentados por Frederico Peres em um artigo de 2005,
com os dados da FAO (2003), 5% da produção bruta de grãos do ano de
2001 (descontando os 95% que representariam a soma das perdas por
processamento e estocagem, da parcela utilizada na alimentação animal
e da destinada a alguma forma de beneficiamento) seriam suficientes
para alimentar uma população dez vezes maior que a existente à época
(PERES, 2005a). Esses números são eloquentes por si (5% da produção
chega para dez populações!).
A segunda é que uma transformação que redundasse em uma re-
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61
fundação da agricultura traria consigo profundas transformações sociais,
inclusive em hábitos alimentares. Grandes parcelas de terra e da produ-
ção de grãos são mobilizadas para sustentar hábitos alimentares bastante
desequilibrados. O consumo de carne parece ter se tornado um fetiche
alimentar, e o excesso na sua ingesta tem, aliás, reflexos daninhos na
saúde. Um equilíbrio no consumo de produtos de origem animal e uma
reorientação das dietas, no sentido de regionalizá-las (paradoxalmente,
diversificando-as), reduziriam, certamente, a demanda por campos para
pastagem e grãos para alimentar animais confinados. Ademais, nessas
transformões sociais presumíveis no caso de uma mudança do modo
de fazer agricultura estão incluídas uma redistribuição da posse da terra,
um desinchar das metrópoles e o estímulo a autonomia e autogestão.
1.3 O CENÁRIO PRÉ-ALTERNATIVO
Retomando o fio da história, vamos buscar alguns elementos que
ajudam a compor o contexto no qual as propostas alternativas começa-
ram a tomar corpo e ganhar visibilidade. O contexto cultural surgido
durante os anos de contestação 1960/1970 é assumido como importante
influência no crescimento do interesse por MAC por vários autores
(LUZ, 1996; BARROS, 1997, 2000; QUEIRÓZ, 2003; SOUZA, 2004;
ANDRADE, 2006; NOGUEIRA ; CAMARGO JR, 2007). Tal consenso
parece não existir quando se fala no crescente interesse contemporâneo
pela AE. a percepção, contudo, de que a sensibilidade ao tema da
ecologia surgida durante essas contestações ao sistema vigente também
as aproxima da AE (ALMEIDA, 1998; ALPHANDERY; BITOUN;
DUPON, 1992).
Voltando à contextualização, após a Segunda Guerra Mundial,
grande parte do mundo que hoje chamamos de desenvolvido tinha que
ser reconstruído. Os momentos de crise são especiais pela proliferação
de oportunidades e, nesse sentido, os anos que se seguiram ao conflito
foram férteis e propícios aos avanços, tanto da biomedicina como da
agricultura modernizada. Havia um clima e um esforço de reconstrução
no ar, e a tecnologia que havia ajudado os países aliados a vencer o nazi-
fascismo no conflito bélico poderia ajudar em outras frentes de batalha,
contra as doenças, contra a fome e, é claro, contra o comunismo (este,
apesar de aliado de ocasião durante a guerra, agora estava do outro lado
da trincheira). São os anos da Guerra Fria, nos quais a tecnologia fun-
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62
cionou como uma espécie de troféu da excelência do modelo que a pro-
porcionava. São os anos que assistem ao começo da corrida espacial, à
disseminação dos antimicrobianos e, paralelamente, à Revolução Verde
e aos chamados milagres econômicos. Uma era, enfim, na qual grandes
e crônicos males que abalam a humanidade, como a citada fome e até
mesmo a morte pareciam prestes a ser vencidos, em grande parte devido
ao virtualmente infinito avanço da ciência.
Essa crença nas infinitas possibilidades do futuro configura o que
Santos (2004) chama de contração do presente e expansão do futuro”
ou de monocultura do tempo linear”. Nelas, o presente contraído é
esvaziado de sentido e se vive uma esperança eterna de que o futuro será
o tempo das emancipações. Santos diz que, apesar do descrédito dessas
esperanças e até de uma possível inversão das mesmas (o futuro sendo
pior que o presente)
67
, estas ainda são hegemônicas socialmente. Parece
haver a crença de que, diante dos dados que indicam problemas ecológi-
cos (para usar um termo brando), os cientistas estão pensando sobre
isso e vão achar a solução”. Essa aparentemente é partilhada por vas-
tos setores da sociedade, que naturalmente não atribuem à ciência o
papel de corresponsável por esse estado de coisas. Ou, se atribuem,
parecem crer que agora os cientistas estão trabalhando de forma diferen-
te e farão alguma coisa.
Pom, 50 anos, alguns sistemas peritos”
68
começavam a
dar sinais de que iriam falhar. Um dos primeiros documentos que regis-
tram esses sinais talvez seja o livro de Rachel Carson, Primavera Si-
lenciosa, de 1962
69
. Nele, a autora descreve o efeito desastroso do ex-
cesso de venenos agrícolas, que havia deixado os lagos que ela conhecia
desde a infância, em uma região dos EUA, sem os cantos dos passari-
nhos, no começo da década de 1960.
67
Esses avanços e esperanças foram e ainda são acompanhados por sombras e medos. As
explosões nucleares no Japão, as muitas catástrofes ecológicas que se seguem, os desastres
naturais colocaram a própria existência da espécie em jogo.
68
O “sistema perito” é uma noção usada por Anthony Giddens que tenta explicar o complexo
emaranhado de especialistas envolvidos na construção dos objetos modernos. Assim, quando,
por exemplo, viajamos de avião, estamos confiando nos “sistemas peritos” envolvidos na
construção do avião, na formação de pilotos, no controle de voo, etc. (GIDDENS, 1991).
Exemplo tão ou mais claro é quando nos submetemos sem maiores questionamentos aos
diagnósticos e tratamentos médicos, especialmente cirúrgicos.
69
No Brasil, esse livro deixou de ser editado desde 1968. No entanto, pode ser encontrado na
internet.
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63
Muitas outras obras podem ser citadas como inspiração teórica do
movimento que deu à luz a proposta alternativa, entre os quais gostarí-
amos de destacar O negócio é ser pequeno (publicado em inglês em
1973 e no Brasil em 1977), de Ernest Schumacher, um economista in-
glês que preconizava que a vida nas sociedades industriais modernas
está sendo desvirtuada pelo culto obsessivo do crescimento econômico
ilimitado. Schumacher sustenta que o gigantismo industrial” deveria
ser substituído pelo princípio da sociedade em escala humana”, que se
utiliza de tecnologias intermediárias.
Outro autor, Fritjof Capra, descreve o fim do século XX como um
peodo de transição histórica (aqui percebemos um ranço determinista)
e, fazendo uma analogia à filosofia oriental, diz estarmos passando pelo
fim de um ciclo cultural de predomínio de valores e atitudes que recom-
pensam sistematicamente os elementos yang, masculinos ou auto-
afirmativos da natureza humana, em detrimento dos aspectos yin, femi-
ninos ou intuitivos (CAPRA, 1983).
Uma das características marcantes que eclodem durante o movi-
mento da contracultura
70
é o surgimento da sensibilidade ecológica”,
sob a forma de uma tomada de consciência sobre a destruição do capital
genético do planeta e da alteração dos equilíbrios próprios aos ecossis-
temas existentes (ALPHANDERY; BITOUN; DUPON, 1992;
ALMEIDA, 1998). Essa sensibilidade enseja críticas a todo modo de
funcionamento da sociedade, atingindo naturalmente as formas de pen-
sar e fazer a ciência, a saúde e a alimentação.
Tamm fazem parte do contexto contracultural seus antecedentes
mais imediatos, como o movimento beatnik
71
e suas derivões mais
individualistas, como o consumo de drogas psicoativas como forma de
liberação ou simplesmente viajar, “sem destino” como os protagonistas
de um filme-símbolo desta época, Easy rider, de Dennis Hopper, de
1969.
Percebe-se, portanto, que a contestação que começa a tomar for-
ma tem traços de várias inquietações. Am de atingir o comportamento
sexual e a organização da vida familiar, tem um componente espiritual.
70
Denominação criada pelo historiador cultural Theodore Roszak (CAPRA, 1982).
71
Movimento de cunho literário e de “atitude”, surgido nos anos de 1950 nos EUA. Seu maior
expoente talvez seja Jack Kerouac e sua the rucksack revolution, a revolução das mochilas e
mochileiros, do “pé na estrada” (MAGNANI, 2000).
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64
Essa vertente de comportamento se volta às influências do Oriente e cria
um contexto receptivo aos gurus e suas filosofias e práticas que, na mis-
tura com o Ocidente, muitas vezes se transformam, mas seguem inspira-
das nos seus milenares e tradicionais sistemas simbólicos de origem
(MAGNANI, 2000).
Esse mesmo autor cita uma experiência comunitária situada na
Escócia (a Comunidade Findhorn), espécie de precursora de várias expe-
riências de comunidades rurais alternativas que, de certa forma, fundem
as preocupações com saúde e estilo de vida, incluindo a alimentação, a
espiritualidade e que, na sua idealização, são perfeitamente integradas à
natureza. No Brasil, existe um movimento que congrega essas comuni-
dades e realiza encontros periódicos desde 1978
72
. A ideia de viver em
comunidade ainda hoje está presente no imaginário de grande parte da
classe média urbana como um sonho de convivência, no mais das vezes
empurrado para o nível do irrealizável.
No âmbito do pensamento social, a contracultura foi tema para
muitos estudos, mas também inluenciou intelectuais que absorveram
algumas ideias “alternativas”. Isso não é surpreendente na medida em
que o movimento estudantil foi uma das cunhas da contracultura, fican-
do notáveis as mobilizações contra a Guerra do Vietnã, nos EUA, e o
célebre “maio de 68”, na França e na capital da então Tchecoslováquia,
Praga. Exemplos desses gurus intelectuais são Marcuse, AndGorz e
Dumont. Podemos relembrar tamm Ivan Illich.
Portanto, resumindo as características da proposta alternativa que
foi semeada nos anos da contracultura e que está ligada ao aumento da
visibilidade das MAC (BARROS, 2000; ANDRADE, 2006) e da AE
(ALMEIDA, 1998; EHLERS, 1996; KATHOUNIAN, 2001), podería-
mos dizer que ela é política, na medida em que faz uma crítica ao de-
senvolvimento tecnocientífico capitalista (ILLICH, 1975;
SCHUMACHER, 1977); é culturalmente pluralista, com sua abertura às
influências de outras culturas, como as orientais e indígenas, além de
espiritualista (MAGNANI, 2000; CAPRA, 1983) e é social e compor-
tamental, porque sugere novas formas de organização familiar e de
comportamento sexual
73
(MAGNANI, 2000; CAPRA, 1983). Algumas
72
O Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (ENCA), realizado no meio de cada ano
em algum lugar do Brasil e que em 2009 teve a sua 33ª edição.
73
Aqui tem papel decisivo o desenvolvimento da pílula anticoncepcional e podemos observar
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65
dessas características, especialmente as políticas e as de pluralidade
cultural, e possivelmente com outros matizes, estarão presentes na apre-
sentação das medicinas alternativas e complementares e da agricultura
ecogica, que virão a seguir, como fenômenos múltiplos e em constru-
ção: abertos, ecléticos, sincréticos e polissêmicos.
1.4 AS MEDICINAS ALTERNATIVAS E COMPLEMENTARES
Como vimos na seção sobre a biomedicina, esta foi gestada dentro
de um processo cultural que procurou eliminar o polo da imaginação”,
valendo-se das mais variadas, e nem sempre meritórias, estratégias. A
fundação da modernidade” que engendrou a biomedicina representa o
que Luz (1988, p. IX) chamou de aquela encruzilhada ou aquele ca-
minho trágico para a humanidade em que verdade e paixão, razão e
emoção, sentimentos e vontade, beleza e sentidos, se deram adeus.”
Pom, mesmo que o racionalismo moderno tenha adquirido a
primazia nas explicões sobre o mundo, o fascínio do imponderável
persiste e o homem, a cada passo que em direção ao conhecimento,
mais deveria se identificar à sabedoria socrática (“só sei que nada sei”).
Esse lado mágico, que Achterberg chama de imaginação”
74
,
sempre foi uma parte essencial do processo de cura, apesar do disfarce
cultural” (1996, p. 13). A história nos mostra, e Lévi-Strauss (1967)
também, que há um tensionamento dentro da atividade dos curadores
entre esses dois polos (magia–técnica). Paralela a essa dicotomia, vis-
lumbramos várias outras divisões tamm dicotômicas, todas tendo
alguma similitude e sendo, de alguma forma, expressões de outras dua-
lidades, como a existente entre verdade (ciência) e beleza (arte).
Sempre houve substrato humano para o desenvolvimento de inú-
meras pticas curativas e a assunção da biomedicina não conseguiu
fazer submergir séculos e milênios de conhecimento e prática sobre
cuidado em saúde nas mais diversas culturas, nos mais diversos espos.
As medicinas alternativas e complementares representam, como o
nome diz, formas plurais de cuidado e cura. É uma definição recente,
pequenas contradições. A liberação no comportamento sexual, que estamos tratando como uma
manifestação contra-hegemônica, em certo sentido, deveu-se em boa medida a um avanço
tecnológico da indústria farmacêutica. Além disso, o uso da pílula libera o comportamento
sexual, mas obriga o consumo diário das doses de hormônio em forma de comprimidos.
74
Reparar na semelhança filológica.
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66
concebida na tentativa de superar os problemas de interpretação da pala-
vra “alternativo”, agregando a noção de complementar” para explicitar
que a intenção o é desprezar a biomedicina, mas eventualmente com-
pletá-la, ajudá-la e potencializá-la (JONAS; LEVIN, 2001).
A primeira tentação é tentar definir as MAC a partir do que elas
não o, ou seja, por exclusão. Seguindo essa linha, poderíamos defini-
las como medicinas e práticas associadas que não se enquadram na bio-
medicina. Porém, essa definição, apesar de ressaltar uma característica
marcante das MAC, pouco as descreve e qualifica e, como estamos di-
ante de um fenômeno complexo, cremos ser importante uma definição
mais construtiva, a partir do que as MAC apresentam de peculiar, o que
as faz não se enquadrarem na biomedicina e que representa, enfim, mui-
to de suas potencialidades.
O interesse oficial pelas práticas alternativas, que podemos exem-
plificar com os recentes documentos da OMS (2002) e do Ministério da
Saúde (BRASIL, 2006), pode ser ponto de partida para essa definição
construtiva. A OMS, no documento referido, estabeleceu duas defini-
ções. A primeira, de medicina tradicional, que descreve como sendo a:
Soma total de conhecimento, habilidades e práti-
cas baseadas em teorias, crenças e experiências
indígenas em diferentes culturas, explicáveis ou
não, utilizadas na manutenção da saúde como
também na prevenção, diagnóstico ou tratamento
de enfermidades físicas e mentais. (OMS, 2002)
A outra definição é das MAC:
Os termos medicina complementar ou medicina
alternativa o usados de modo intercambiável
com a medicina tradicional em alguns países. Eles
se referem a um amplo conjunto de práticas e cui-
dados de saúde os quais não fazem parte da tradi-
ção própria de certos países e não estão integrados
ao sistema dominante de cuidados médicos.
(OMS, 2002)
A existência dessas duas noções se baseia, como se vê, no contex-
to de origem para definir se uma prática é tradicional ou alternativa.
Assim, uma prática tradicional em um lugar (a medicina ayurvédica na
Índia, por exemplo) pode ser alternativa em outro (a medicina ayurvédi-
ca no Brasil, por exemplo).
O documento preparado pelo Ministério da Saúde e que institu-
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67
cionaliza a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
(PN-PIC), adota as definições contidas no documento da OMS e destaca
algumas das características dessas pticas que são convergentes com a
organização do SUS e com a promoção de saúde:
Tais sistemas e recursos envolvem abordagens que
buscam estimular os mecanismos naturais de pre-
venção de agravos e recuperação da saúde por
meio de tecnologias eficazes e seguras, com ênfa-
se na escuta acolhedora, no desenvolvimento do
vínculo terapêutico e na integração do ser humano
com o meio ambiente e a sociedade. Outros pon-
tos compartilhados pelas diversas abordagens a-
brangidas nesse campo são a visão ampliada do
processo saúde-doença e a promoção global do
cuidado humano, especialmente do autocuidado.
(BRASIL, 2006)
Importante ressaltar, contudo, que existem outras possibilidades
de recorte para nos ajudar na tarefa de classificar as práticas de cuidado
e cura, sendo muito utilizada (como no caso da Política Nacional criada
pelo Ministério da Saúde), por exemplo, a noção de Práticas Integrativas
e Complementares (PIC), muitas vezes associada ao termo Medicinas
Alternativas e Complementares.
As PIC se confundem com as MAC e podem ou não estar inte-
gradas ou constituindo sistemas médicos complexos”, que por sua vez
se caracterizam como as “abordagens do campo das PIC que possuem
teorias próprias sobre o processo saúde/doença, diagnóstico e terapêuti-
ca” (LUZ, 2005).
Outra possibilidade classificatória das MAC encontramos na ideia
de racionalidade médica”, conceito tamm formulado por Madel Luz
(1993) e já apresentado neste trabalho e que coloca em certo patamar de
igualdade (ou não superioridade a priori) a biomedicina e as medicinas
alternativas (pelo menos analítica e epistemologicamente).
Por sua vez, a divisão do Instituto Nacional de Saúde dos Estados
Unidos dedicada às práticas médicas alternativas e alternativas (National
Center for Complementary and Alternative MedicineNCCAM), em sua
página na internet
75
, apresenta, além dos sistemas médicos alternati-
vos” (homeopatia, medicina ayurvédica, por exemplo), outras possibili-
75
O endereço eletrônico é <nccam.nih.gov>.
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68
dades de enquadramento das práticas não biomédicas: intervenções
mente-corpo (meditações, orações); terapias biológicas (baseados em
produtos naturais não reconhecidos cientificamente); métodos de mani-
pulação corporal e baseados no corpo (massagens, exercícios); e terapias
energéticas (reiki, ch'i gong, dentre outras).
Afora o comentado caráter substitutivo (quando é alternativa)
ou complementar, o NCCAM agrega a noção de integrativa”, quando
as práticas não biomédicas são usadas conjuntamente, baseadas em
avaliações científicas de segurança e eficácia de boa qualidade”
(TESSER; BARROS, 2008).
As práticas o convencionais de cuidado à saúde também foram
tema de estudo de muitos antropólogos. Na escola francesa, além dos
estudos de vi-Strauss (1967), é bastante conhecido o trabalho de La-
plantine e Rabeyron (1989), onde os autores propõem quatro eixos bipo-
lares como distinções caracterizadoras das MAC: legitimidade social,
dimensão tradicional, constituição em corpus teórico (populares ou eru-
ditas) e funcionalidade medicinal (diagnósticas e/ou terapêuticas).
a abordagem da escola culturalista da antropologia norte-
americana, notadamente através de Kleinman (1980), produziu outra
forma de entender a organização social das práticas de cuidado e cura.
No esquema proposto por Kleinman, esse cuidado está distribuído em
setores, quais sejam, o setor profissional”, o setor informal” e o setor
familiar”. À primeira vista, as MAC se acomodariam em todos os seto-
res, sendo praticadas como profissão (por exemplo, homeopatia e acu-
puntura), como ofício especializado por curadores informais (sendo
um saber/prática especializado, mas mais próximo da população e de
acesso democratizado) e tamm usadas no nível familiar (como sa-
ber/ptica culturalmente disseminado e popular). Já a biomedicina,
neste esquema, estaria restrita ao setor profissional”
76
. Por outro lado,
76
Já que esta concebe como saber especificamente médico apenas os saberes científicos
esotéricos (no linguajar de FLECK, 1986), estando todo e qualquer saber e prática informal,
autônomo ou familiar de referência científico-biomédica pensado apenas como prática popular
separada, como corretamente orientado ou não, em função desse saber esotérico científico. Ou
seja, não se reconhece nem se estuda ou se busca construir o que seria um saber biomédico
popular cientificamente ou medicamente defensável (como queria ILLICH, 1975), sustentável
e equilibrado. A postura moderna ambígua aqui é máxima, nos termos de Latour (1994) e
Santos (2000): todo saber não científico e regulado é tido como ilusório e falso, e deve ser
combatido. Toda e qualquer aplicação pertence ao âmbito da prática social, que está sempre
clivada da purificação dos saberes científicos, isentando-os e aos seus produtores de qualquer
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69
Tesser e Barros (2008), trazem uma adaptação deste modelo à realidade
brasileira, baseado em Metcalf et al, (2004) no qual a biomedicina seria
o setor oficial” (similar ao profissional), as MAC e os especialistas
populares” ocupariam o setor correspondente ao informal” e o cuidado
por familiares, vizinhos, igreja, etc. se alocaria em um setor chamado de
medicina popular ou familiar”. Neste esquema, o caráter transversal da
MAC se perde em parte, bem como sua incorporação parcial pelas pro-
fissões oficializadas, mas seu mérito é ressaltar as diferenças episte-
mológicas das MAC enquanto saberes sofisticados e concentrados em
tradições ou praticantes especializados, mais ou menos organizados em
sistemas complexos ou racionalidades médicas.
Fazendo um paralelo à epistemologia de Fleck (1986), as MAC
podem ser analisadas por meio de seus estilos de pensamento”. Esta
noção, similar a de paradigma”, de Kuhn (1975) unifica concepções,
valores, saberes e práticas dos coletivos de pensamento”, outra noção
fleckiana. Esses coletivos são organizados em círculos”, portadores de
conhecimentos e hierarquizados, a saber: círculos centrais esotéricos,
constituídos pelos produtores do saber especializado (na biomedicina, os
cientistas); círculos intermediários, reprodutores e praticantes deste
saber (curadores, médicos clínicos); e círculos mais periféricos, exotéri-
cos, compostos por leigos, que utilizam técnicas e saberes dos anteriores
(os doentes). Assim, fazendo uma aproximão dessas noções epistemo-
lógicas fleckianas com as categorias de “racionalidades médicas“ de
Luz, poderíamos dizer que nas racionalidades entendidas como tal
77
(similares tamm à noção de “sistemas médicos complexos”), se verifi-
ca a presença de círculos esotéricos bem estruturados, distintos de práti-
cas em saúde o sistematizadas, onde o haverá o preenchimento”
dos critérios indicativos de racionalidade médica”
78
, como em práticas
responsabilidade. A biomedicina nunca se sente vinculada ou responsabilizada de alguma
forma por qualquer saber popular ou leigo, somente pelo seu saber esotérico. A simplificação e
transformação dos saberes e práticas biomédicos pelas populações é natural e inevitável,
conforme a dinâmica descrita por Fleck (1986), tendendo intrinsecamente para a medicalização
desordenada e perigosa (TESSER, 2006). Um dos mais poderosos mecanismos de liberação
irresponsável de proliferação e socialização de tecnologias (biomédicas) característicos da
modernidade, segundo Latour (1994) é essa cisão ética entre purificação teórica e aplicação
prática.
77
A biomedicina, a homeopatia, a medicina tradicional chinesa e a medicina ayurvédica (LUZ,
1993).
78
São seis dimensões: cosmologia, doutrina médica, morfologia, fisiologia, sistema diagnóstico
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70
de oração e iridologia, por exemplo.
Em ntese, ao falarmos em Medicinas Alternativas e Comple-
mentares, estamos tratando de um fenômeno complexo, com uma miría-
de de fatores estruturantes, condicionantes e possibilidades de expansão.
Barros (2008) caracteriza as MAC como movimento” e essa noção é
interessante pois nos remete, de novo, à história e seu caráter dinâmico.
Faz-nos pensar nas lições que podemos aprender ao tentar ouvir as his-
tórias das coisas. No caso das MAC e de sua irrupção no cenário atual
como uma demanda importante, como uma resposta às crises da biome-
dicina, podemos interpretar que são os andamentos atuais de uma histó-
ria muito antiga, que começa muito antes de Hipócrates, muito antes da
própria História. No entanto, não é nosso interesse fazer uma arqueolo-
gia das MAC. Contentemo-nos em prospectar os últimos atos dessa
história, a partir da Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje.
Ecoando e ampliando algumas reflexões de Barros (2008), que u-
tiliza algumas das noções da sociologia de Bourdieu para analisar o
movimento dos alternativos dentro do campo da saúde (na seção O
instituído e o instituinte: saúde coletiva X medicina complementar”, p.
60-66), podemos dizer que os primeiros passos (nesse recorte histórico)
dos movimentos marginais dentro do campo da saúde se deram a partir
de um ponto de vista crítico ao preventivismo e à visão biologicista a ele
associada (ainda centrada nas doenças). No entanto, de acordo com
Barros, a introdução das variáveis biopsicosociais para auxiliar no en-
tendimento dos processos de adoecimento e cura se deu através de um
uso etnocêntrico e utilitarista das ferramentas antropológicas (que o
autor compara à época colonial), que se reflete na predominância, mes-
mo na saúde pública, da biomedicina e da profissão médica
79
.
Contudo, devido às mudanças contextuais (a ebulição da contra-
cultura e, no Brasil, a mobilização pela restauração da democracia),
criou-se um clima de crítica à crítica, ou seja, era necessário, por exem-
plo, ir alémna denúncia dos limites da biomedicina como modelo de
atenção à desassistida população do terceiro mundo. Aqui (estamos nos
anos de 1970), segundo o autor, o momento histórico foi decisivo para
e sistema terapêutico (LUZ, 1993).
79
Sob provável influência de uma leitura enviesada do marxismo, nãomuito
questionamento do progresso técnico associado à biomedicina. As medicinas populares seriam
“atrasadas”. Barros ressalta o surgimento da “medicina comunitária”.
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71
avanços definitivos dos novos paradigmas” (p. 65), o que significa, na
saúde pública, o reconhecimento da necessidade de intersetorialidade
80
,
a formulação do conceito de Atenção Primária à Saúde, entre outras
conquistas. Em relação às MAC, Barros pontua que as políticas institu-
intes que começaram a germinar na década de 1980 foram semeadas, de
fato, nos anos de 1970, mas que a principal modificão foi a proposi-
ção dos alternativos” em relação ao modelo biomédico, que passou de
“substitutiva” para “complementar”.
Por outro lado, nos apoiando em Bourdieu (1983), é importante
que não esqueçamos que, por atuar dentro do campo da Saúde (onde a
biomedicina é hegemônica), os portadores das propostas alternativas de
atenção à saúde vinculadas às MAC partem de uma posição marginal.
Ademais, se acrescentarmos à equação o ingrediente Saúde Coletiva, a
posição passa a ser periférica e marginal. Como lembra Bourdieu, os
desajustados que, em suas lutas por hegemonia dentro do campo, se
socorrem de ferramentas de outros campos (o que é evidente na interse-
torialidade da saúde coletiva e também no apelo a medicinas exóticas),
são completamente desqualificados e tendem a ser ignorados pelos seto-
res hegemônicos. Isso nos leva a pensar que a arena onde as MAC pode-
riam expressar seus valores com mais facilidade seria talvez o mundo
real das pessoas com seus sofrimentos e alegrias, não se consumindo em
lutas intestinas e improdutivas por hegemonia em um campo que, apesar
do nome, nunca chegou a ser da saúde, gravitando quase sempre em
torno da doença.
Finalizando essa seção e precisando adotar uma definição para as
MAC, iremos sucumbir à tentação e defini-las mais pelo que elas não
são, ou seja, neste trabalho, MAC significa medicinas (e práticas corre-
latas) não biomédicas. Por outro lado, listando os inúmeros sinônimos
totais ou parciais ao conceito, ilustramos algumas de suas qualidades e
virtudes. Nessa lista figuram várias características que o se aplicam a
todas as MAC e algumas são, entre si, incoerentes
81
. Isso ajuda a de-
monstrar quão múltiplo e multifacetado é o assunto de que estamos tra-
tando. As MAC podem ser tradicionais, indígenas, populares, não oci-
80
1979 marca a fundação da ABRASCO (Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva), o que talvez seja um dos primeiros marcos da eclosão da ideia de “Saúde Coletiva”,
em contraposição à “Saúde Pública”.
81
Como ser tradicional e alternativa ao mesmo tempo.
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72
dentais, não convencionais, não ortodoxas, naturais, alternativas, inte-
grativas, complementares, holísticas, paralelas e brandas (todas elenca-
das por ANDRADE, 2006). Barros (2000) acrescenta outra denomina-
ção quase poética e que associa a prática terapêutica a algo quase que
intrinsecamente bom, agradável e atraente: medicina doce. O mesmo
autor ainda lista outras possibilidades nominativas: naturista, energética,
vibracional, oriental, espiritual e interativa. Essas denominações, frise-
mos mais uma vez, iluminam apenas alguns ramos das MAC.
Afora essas características, as MAC m sido entendidas como
uma espécie de catalisador do potencial autocurativo dos indivíduos,
atuando em níveis que estão além do alcance da medicina alopática
(JONAS; LEVIN, 2001).
Podemos acrescentar outra denominação que, de certa forma, re-
sume algumas das qualidades presentes nas outras formas de chamar
essas medicinas: vitalista. Chamar as MAC de vitalistas tamm remete
ao mesmo potencial pró-ativo de algumas de suas práticas, no mesmo
sentido da ideia do parágrafo anterior, no qual as MAC, em contraposi-
ção à biomedicina (notabilizada por sua eficiência no trato de problemas
agudos e no uso do sufixo anti” vejam-se os anti-inflamatórios, anti-
bióticos, antialérgicos, etc.), atuam de forma a reforçar o potencial vita-
lista, o princípio de que a vida sempre procura manter-se viva.
As MAC representam, portanto, um variado espectro de práticas
terapêuticas, um mosaico de influências e, em um contexto multicultural
como o brasileiro, tendem a se pluralizar ainda mais. Na nossa perspec-
tiva, as MAC carregam consigo grande potencial político, coerentes com
os princípios fundadores do SUS e podem contribuir para a efetivação
destes, principalmente se seu ecletismo, seu olhar mais holístico, seu
fazer mais artesanal, conseguirem influenciar o modo de pensar e agir
no SUS, ou seja, se o sistema pensar mais pluralmente, tentando escapar
do significado simbólico pouco democtico contido na palavra “único”.
1.5 A AGRICULTURA ECOLÓGICA
A agricultura ecológica é, a exemplo da noção de MAC que dis-
cutimos na seção anterior, um conceito guarda-chuva. uma série de
noções paralelas, algumas mais abrangentes, outras menos, que tentam
abarcar as pticas não convencionais de agricultura. Assim, temos as
noções de agroecologia, agricultura sustentável, agricultura orgânica,
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73
agricultura alternativa, entre outras. Apesar das muitas aproximões
que essas diferentes denominações possam apresentar entre si, de forma
geral, todas têm alguma especificidade, seja conceitual ou histórica, que
as distingue das outras. Nossa intenção é, contudo, tentar diluir essas
especificidades em uma ideia que abarque todas as vertentes de agricul-
tura não convencionais.
Em um primeiro momento, nossa intenção era usar a noção de a-
groecologia. No entanto, após o exame de qualificação e especialmente
após o trabalho de campo, dúvidas surgiram se estávamos tratando com
agroecologistas, em um sentido mais estrito. E, principalmente, se usan-
do uma noção mais definida como é a de agroecologia não estaríamos
usando mal a mesma.
Os agroecologistas, quando defendem que a agroecologia forne-
ce as bases científicas e metodológicas para as estratégias de transição a
um novo paradigma de desenvolvimento” (CONGRESSO
BRASILEIRO DE AGROECOLOGIA, 2009, p. 2), têm um discurso um
tanto “purificador”, no sentido de Latour (1994). No mesmo documento,
por outro lado, há uma aproximão à “agricultura familiar camponesa”,
que seria onde está “a base cultural, social e produtiva desse novo para-
digma […] fonte fundamental de saber agrícola tradicional, de agrobio-
diversidade e de estratégias de segurança e soberania alimentar” (p. 2).
Como nossa intenção é nos aproximarmos das redes e do trabalho
de mediação e, na medida do possível, esvanecer as fronteiras entre o
social e o natural, entre o senso douto e o senso comum, adotamos uma
noção mais aberta e menos definida, a de agricultura ecológica.
Poderíamos esboçar, a partir do exposto na Carta de Curitiba”, a
definição de agricultura ecológica como a junção entre a base epistemo-
lógica (agroecologia) e a “cultural, social e produtiva” (agricultura fami-
liar camponesa), até mesmo porque acreditamos, com Latour (1994),
que essa divisão é um tanto foada e merece ser diluída.
Importante para a compreensão da irrupção dessas ideias é enten-
der que ela se deu, em parte, em uma área que se confunde com a enge-
nharia, portanto bastante matematizada” e com o corpo de discussões
sociais ocupando uma posição secundária dentro do campo. Por outro
lado, ao adotarmos os termos “agricultura ecológica”, estamos nos re-
metendo à lida agrícola e ao trabalho com a terra, e um pouco desse
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74
universo foi o que buscamos no trabalho de campo, ao conversar com
agricultores
82
.
Por outro lado, a agroecologia é uma noção que nos interessa,
pois é um conceito que tem aglutinado boa parte do pensamento crítico
à modernização da agricultura que vem sendo produzido desde os anos
70 do século passado. Dessa forma, é interessante que vejamos algumas
das reflexões sobre a agroecologia e as incorporemos à noção que va-
mos usar: AE.
A agroecologia, por exemplo, tem sido objeto de tentativas de de-
finição por variados autores. Essas definições abrem, em maior ou me-
nor grau, espaço para discussões sobre o alcance social, simbólico e
político de que as propostas de agricultura ecológica, por semelhança e
afinidade, são portadoras.
A abrangente definição de Sevilla Guzmán e González de Molina
(1996), por exemplo, é um desses casos. Para eles, à agroecologia cor-
responde um campo de estudos que pretende o manejo ecológico dos
recursos naturais para, através de uma ão social coletiva de caráter
participativo, de um enfoque holístico e de uma estratégia sistêmica,
reconduzir o curso alterado da coevolução social e ecológica, mediante
um controle das forças produtivas que estanque seletivamente as formas
degradantes e espoliadoras da natureza e da sociedade. A amplitude
dessa definição aproxima a agroecologia da agricultura camponesa e da
transformão social.
para Gliessman, a agroecologia se caracterizaria como uma a-
gricultura desenhada” e manejada levando em conta os princípios da
ecologia. Ele salienta, contudo, que a “agenda” da agroecologia é mais
ampla, indo além da unidade de produção individual, das variáveis eco-
nômicas e das soluções tecnológicas, buscando a sustentabilidade dos
sistemas alimentares, incluindo fatores sociais chave nessa busca, como
a equidade, o controle do crescimento populacional, a autossuficiência e
o biorregionalismo (GLIESSMAN, 2000, p. 593-612).
Miguel Altieri fala em uma ciência ou disciplina que busca uma
agricultura sustentável, mas não explicita, na definição, os condicionan-
tes sociais envolvidos nessa busca, apesar de deixar bastante claro o
alcance social da proposta agroecogica (ALTIERI, 2004).
82
Para uma aproximação ao mundo rural por meio do discurso de agricultores, ver AZEVEDO,
2004; RIGON, 2005; NAVOLAR, 2007; SILVA, 2008.
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75
Caporal e Costabeber (2007), por seu turno, sustentam que para
conceituarmos a agroecologia é necessário vincular seus interesses e
suas pretensões nos campos da agricultura e da sociedade. Eles distin-
guem essas duas vertentes, acrescentando um caráter prescritivo ou
normativo à perspectiva social da agroecologia e um grande potencial
científico à perspectiva estritamente agrícola. Ademais, apresentam as
características chaves que auxiliaram a construir um modelo alternativo
de desenvolvimento rural, tais como a importância dada à especificidade
cultural, a noção de economia moral camponesa e a ideia de desenvol-
vimento desde baixo, assim como o reconhecimento de certo potencial
anticapitalista” determinado pela particular racionalidade econômica dos
camponeses (CAPORAL; COSTABEBER, 2007).
Esse potencial anticapitalista é um dos cimentos que pode ligar as
diferentes vertentes e leituras de AE e as MAC, no âmbito da SC. A
noção de crítica ecológica”, apresentada por Martinez Alier, tamm
nos remete à necessidade de propostas com esse potencial, ao apontar as
limitações do mercado capitalista no tentar medir a produtividade:
Hoje nos damos conta dos efeitos ambientais da
agricultura moderna (contaminação dos alimentos,
da água, destruição ou abandono dos recursos ge-
néticos, uso de energias esgotáveis dos combustí-
veis fósseis). Estes efeitos não o medidos pelo
mercado, e por isso os economistas lhes dão o
nome de externalidade, ou seja, efeitos externos
ao mercado. Então, devemos duvidar de que a a-
gricultura moderna seja realmente mais produtiva,
pois os aumentos consideráveis de produtividade
(por hectare ou ainda mais por hora de trabalho)
se medem diminuindo o valor dos insumos do va-
lor da produção, e dividindo o resultado pela
quantidade do insumo cuja produtividade medi-
mos. Assim, a produtividade da agricultura mo-
derna é por hectare e, ainda mais, por hora de tra-
balho, maior que a da agricultura tradicional, po-
rém, claro está, os valores da produção e dos in-
sumos estão mal medidos por não incluir as exter-
nalidades e por não contar a destruição das pró-
prias condições da produção agrária. Esta é, em
resumo, a crítica ecológica (MARTINEZ ALIER,
1994).
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76
A incorporação dessas noções aproxima a economia da ecologia e
a agronomia das ciências sociais. A crítica ecológica apresentada nos
leva tamm à necessidade de inserção de valores sociais como defendi-
do por Lacey (2004) na definição de programas de pesquisa e tamm
nas diretrizes econômicas e políticas.
De outra mão, nos círculos exotéricos da agricultura, similar ao
ocorrido no campo da saúde, grandes contingentes de camponeses fica-
ram à margem da modernidade e isso propiciou que eles perdurassem
como depositários de um saber próprio, tradicional, que no mais das
vezes é interpretado como sinônimo de atraso. Esse saber tradicional
enseja um paradoxo, o dilema entre tradicional/conservador/atrasado e o
inovador/revolucionário/adiantado. A tendência geral das propostas de
AE é valorizar o saber tradicional, mas revestindo-o de uma roupagem
nova. Talvez isso seja um sinal da concessão que se faz, quase sempre,
às noções de desenvolvimento e progresso.
Contudo, seguindo os padrões hegemônicos, a inovação, a revolu-
ção e a modernização estão vinculados à tecnologia
83
e, nesse ponto, a
agricultura convencional se apropriou dessas noções. Talvez falte aos
proponentes da AE a ousadia de defender ideias de redução, regresso,
retorno e renúncia à tecnologia, reconhecendo outras racionalidades não
modernas como alternativas por vezes sofisticadas e eficientes
84
.
Uma da ideias centrais das propostas de AE é a sustentabilidade.
O conhecimento do próprio agricultor sobre os ecossistemas onde atua
torna-se de grande valor, podendo resultar em estratégias produtivas de
uso da terra que buscam, apesar das dificuldades, a autossuficiência, seja
dentro das propriedades (a agricultura com baixo uso de insumos) ou
como segurança alimentar para a comunidade (ALTIERI, 2004). Há uma
associação direta da AE com o aumento da produção de alimentos para o
autoconsumo, o aumento da variedade e o resgate de alimentos da cultu-
ra alimentar local (RIGON, 2005).
Essas ideias nos trazem a importância da dimensão local como
portadora de um potencial endógeno que, por meio da articulação local
com o conhecimento científico (e isso nos remete ao conhecimento pru-
83
Um sinal evidente é o nome “revolução verde” para o processo de modernização da
agricultura.
84
O exemplo que nos ocorre são os sistemas altamente sofisticados, complexos e, ao mesmo
tempo, de muita simplicidade tecnológica como a agricultura praticada pelos caiapó, os
plantadores de florestas, no cerrado brasileiro há séculos.
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77
dente de Boaventura de Sousa Santos), permite a implementação de
sistemas de agricultura ecológica potencializadores da biodiversidade e
da diversidade sociocultural.
Os conceitos e aportes aqui apresentados trazem consigo a per-
cepção de que a AE não se trata apenas de um modo de produção, e sim
de uma busca pela reconstrução da relação do homem com a natureza e
consigo mesmo. Nesse âmbito, o cuidado em saúde (pessoal e ambien-
tal), é valorizado
85
. Am disso, muito presentes estão as questões da
autonomia e do protagonismo dos agricultores, pois as agriculturas al-
ternativas tamm buscam resgatar a autoestima dos trabalhadores em
agricultura, valorizando o seu papel social, simbólico, político e episte-
mológico.
1.6 AFINIDADES E DISPARIDADES ENTRE AS MAC E A AE
Até aqui, esperamos ter jogado luz sobre as muitas semelhanças e
diferenças entre os fenômenos que nos propomos a estudar. É importan-
te, contudo, sistematizá-las para que nos sejam úteis no trabalho de
campo. Nossa intenção nessa seção, portanto, será a de elencar as carac-
terísticas teóricas e práticas que propiciam ou dificultam as conexões
interessantes para a saúde coletiva e que envolvam as MAC e a AE.
Primeiro, trataremos das semelhanças; em seguida, das diferenças.
1.6.1. Afinidades entre as MAC e a AE
A primeira afinidade que poderíamos citar é justamente a ampli-
tude dos termos. Neste trabalho adotamos como termos definidores
medicinas alternativas ou complementares e agricultura ecológica. Po-
rém, muitas definições e diferentes nomes surgem
86
. Ambas as áreas
são ecléticas, pluralistas e têm limites pouco precisos. Talvez o principal
85
Como exemplo do entrelaçamento do tema saúde com o pensamento da AE, transcrevemos a
primeira frase do livro de Miguel Altieri, na qual são citadas as razões pelas quais a AE se faz
necessária. Todos os motivos elencados também são caros à SC: “Em que pese os inúmeros
projetos de desenvolvimento internacionais e patrocinados pelo Estado, a miséria, a escassez de
alimentos, a desnutrição, o declínio nas condições de saúde e a degradação ambiental
continuam sendo problemas no mundo em desenvolvimento” (ALTIERI, 2004, p. 19).
86
Só para recordar, as MAC se “confundem” com PIC, MT, etc. A AE tem diferentes escolas:
biodinâmica, orgânica, natural, biológica, alternativa, agroecológica, orgânica como coletivo,
sustentável, ecológica (KATHOUNIAN, 2001).
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78
traço definidor dessas alternativas seja o não enquadramento nos pa-
drões hegemônicos, a biomedicina e a agricultura moderna, respectiva-
mente. São mosaicos de influências e tensões que as caracterizam. Por-
tanto, é bastante plausível que ambas estejam abertas às influências de
outros campos. São áreas em construção, não são paradigmas (ou estilos
de pensamento) prontos, se pensarmos do ponto de vista epistemológico,
ou modelos de produção e trabalho em saúde e agricultura únicos, se as
analisarmos sob o ponto de vista empírico. Essas características ressal-
tam uma maleabilidade que facilita sua expansão em diferentes condi-
ções locais.
Outra semelhança é o posicionamento marginal na Academia. O
caso das MAC é ilustrativo. Somente após a relativa incorporação de
algumas práticas de MAC pela biomedicina (de fato, somente a homeo-
patia e a acupuntura é que usufruem desse status
87
) é que elas entraram
nos currículos de algumas escolas da área médica e, algumas vezes, ao
custo de descaracterização
88
. No caso da AE, os interesses econômicos
do agronegócio, que lhe são antagônicos, influenciam sobremaneira as
linhas de pesquisa acadêmicas, mas, com o crescimento da demanda por
produtos corretos do ponto de vista ecológico, os danos ambientais pro-
vocados pela modernização da agricultura e a mobilização de organiza-
ções não governamentais, a AE vem conquistando espaço nas Universi-
dades, Centros de Pesquisa e em outras instâncias governamentais, ainda
que muitas vezes seja considerada uma disciplina ou política secundá-
ria
89
(EHLERS, 1996).
Outra afinidade importante é a relativa filiação histórica que esses
87
Ambas estão em lento processo de reconhecimento social e acadêmico no ocidente, e no
Brasil já são especialidades médicas: uma (a homeopatia) desde o nascimento é coisa de
médico, a outra vem de uma medicina tradicional exótica rapidamente em processo de
cientificização (que inclusive começa a competir com sua antecedente tradicional, visando
excluí-la do campo social geral).
88
A acupuntura, por exemplo, tende a ser explicada através da lógica neuroendócrina,
desconsiderando os saberes da Medicina Tradicional Chinesa. Além disso, há uma tentativa de
normatizá-la, só permitindo seu exercício por médicos, de formação maciçamente biomédica.
Nessa incorporação, costuma haver um deslocamento da prática integrativa para o polo da
terapia, e o diagnóstico segue o roteiro biomédico.
89
Exemplo claro é a existência, no Brasil, de dois ministérios “agro”: o da Agricultura (um dos
carros-chefe dos governos dos últimos tempos, voltado ao mercado exportador e onde a AE só
tem voz como “o bom negócio dos orgânicos”) e o de Desenvolvimento Agrário (uma espécie
de “segunda divisão”: voltado para os movimentos sociais do campo e espaço para a difusão
das práticas de agricultura sustentável em sua vertente social).
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79
dois movimentos m em relação à contracultura e suas críticas à socie-
dade industrial moderna. Evidentemente, o surgimento do ecologismo,
ensejado em parte a partir das contestações contraculturais, influencia
muito mais diretamente a agricultura. Pom, suas influências podem
ser sentidas indiretamente na área da saúde (BARROS, 2000; SOUZA,
2004). Se preconizarmos uma desindustrialização da sociedade, o com-
plexo médico industrial surgido para dar conta e, ao mesmo tempo, au-
mentar a demanda biomédica, seria afetado, e a biomedicina, que tem
nos hospitais espaços com alguma gica aproximada à industrial (espe-
cialmente a questão da escala e da compartimentação do trabalho), tam-
bém teria que rever alguns de seus pressupostos. Aqui percebemos outra
semelhança. A escala em que se pode trabalhar com MAC ou AE apro-
xima estas duas áreas do artesanato e as distancia da lógica industrial. É
evidente que tanto uma quanto a outra também correm o risco de cair na
tentação bastante atual dos protocolos e da burocratização, que automa-
tiza, rotiniza e padroniza atendimentos ou plantações. Porém, em sua
versão forte, esses movimentos estão associados intensamente a uma
ideia de singularidade, seja dos seres humanos atendidos pelas MAC,
seja dos ecossistemas onde irá intervir a AE. As mesmas tendências de
menos invasividade, de mais suavidade tecnológica, de menor grau de
intervenção, de olhar mais abrangente e integrador estão presentes.
Além disso, tamm uma herança relativa dos anos de 1960-70,
percebemos outra semelhança: a abertura a influências de outras cultu-
ras, como as que ficaram em um plano secundário na modernidade. Isso
fica muito evidente, no caso de algumas práticas de MAC
90
, pelas influ-
ências orientais (a medicina tradicional chinesa, a medicina ayurvédica),
entre outras, e na AE, pelas releituras que se fazem dos métodos tradi-
cionais de plantio e de criação de animais.
Ademais, os antagonistas políticos são comuns, apesar de disper-
sos. A tentação é afirmar que ser “alternativo” está ligado a uma posição
de esquerda. É certo que após a derrocada da União Soviética e do fim
daquele projeto, que se dizia socialista (ou comunista), boa parte da
autodenominada esquerda vive uma crise de identidade, está órfã e são
muitos os que defendem que a luta de classes” é coisa do passado, que
a nova ordem prescinde desses maniqueísmos.
90
Ressaltemos, contudo, que há muitas práticas de MAC que têm sua matriz na Europa, como a
homeopatia, a medicina antroposófica, o termalismo, etc.
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80
Por outro lado, o quadro que ensejou a teoria crítica de base mar-
xista persiste e percebemos, tanto nas MAC como na AE, espos propí-
cios à crítica ao modelo capitalista. Os três construtos (SC, AE e MAC,
esta em menor grau) assumem um papel político coerente com transfor-
mações sociais de grande monta. Portanto, em linhas gerais e cedendo à
tentação, podemos esboçar uma proximidade ideológica entre os alterna-
tivos e a esquerda, apesar das exceções que se lhe possam apontar
91
.
Outra possibilidade, então, seria nomear os alternativos de con-
testatórios” e, nesse caso, poder-se-ia argumentar que a contestação
pode ser conservadora, como o movimento monarquista no Brasil, ou
ainda pior, o neonazismo, por exemplo. Independente dessas quizílias
políticas definitórias, é interessante que sublinhemos o conteúdo político
dessas práticas. Dessa forma, podemos dizer, de modo geral, que o
movimentos contra-hegemônicos e que contestam em algum grau a
crença de que o progresso (no sentido que a sociedade capitalista con-
temporânea dá a esse termo) seja sinônimo de solução dos graves pro-
blemas éticos, sociais, ambientais e econômicos da modernidade
(SCHUMACHER, 1977). Ousar defender que o pequeno é bonito”,
como faz Schumacher, e que a seta do desenvolvimento humano pode
apontar para trás ou para baixo, termina por tornar-se subversivo em
uma sociedade dominada pela heteronomia cultivada pela crença acrítica
no desenvolvimento econômico (uma “tara”, nas palavras de Schuma-
cher) e que movimenta a ciranda do consumo.
Assumamos aqui, como ilustração e como marco legal, desejável
e a perseguir dentro do campo da saúde coletiva brasileira, a perspectiva
política representada pela implantação do SUS, um sistema de saúde
baseado nos princípios de igualdade, equidade, integralidade e participa-
ção popular, e extrapolemos tais princípios para a sociedade como um
todo. Tanto as MAC como a AE são coerentes com esses valores “susia-
nos”, na medida em que (aqui chegamos a outra semelhança) os extratos
sociais mais populares são depositários de saberes valorizados, de um
modo geral, na proposta alternativa. Exemplos disso são os conhecimen-
tos sobre plantas medicinais, na área da saúde e o trabalho de preserva-
ção das variedades crioulas” de sementes, que envolvem agricultores
91
Poderíamos nos perguntar, como exemplo dessas exceções: há afinidade entre a medicina
antroposófica e o pensamento de “esquerda”?
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81
familiares na AE
92
.
Naturalmente, a percepção crescente da importância dos “alterna-
tivos” suscita pelo menos três movimentos de reação dos setores hege-
mônicos. O primeiro, parcialmente abordado, é o de cooptação e a-
propriação capitalística. Proliferam, na área das MAC e na AE, simula-
cros de alternativos que tentam aproveitar a boa perspectiva mercadoló-
gica trazida pela crescente demanda social por novas medicinas e novas
agriculturas. Evidentemente, além do desvirtuamento filosófico presente
na apropriação pelo mercado de ideias que lhe são originalmente, pelo
menos em parte, antagônicas, esse situação fornece munição aos críticos
dos alternativos que, vendo seu conteúdo atenuado, desqualificam a
ideia original como alternativa ao status quo.
Aqui passamos ao segundo movimento da reação hegemônica, o
de desqualificar os alternativos de qualquer matiz com os adjetivos de
pouco (ou nada) científicos, irracionais, místicos e mistificadores, pouco
objetivos, sonhadores, utópicos, desvinculados da realidade, entre ou-
tros. Essa linha de raciocínio simplesmente nega (ou despreza) quais-
quer virtudes dos alternativos. Quando tais virtudes são demonstradas
ou conquistam grande legitimidade social (como é o caso da acupuntura
no tratamento de dores ou a melhor qualidade dos alimentos orgânicos,
por exemplo), tentam lhes atribuir um caráter de elitismo, que inviabili-
zaria práticas alternativas (em ambas as áreas) para a sociedade como
um todo. Evidentemente, quando aparecem os maus praticantes (e sem-
pre os há), estes são realçados, procurando-se generalizar aos alternati-
vos o caráter de “charlatanismo” e de falta de profissionalismo.
Uma terceira forma de reação é através das estratégias corporati-
vas vinculadas ao grande capital internacional, que, usando mecanismos
definidos em fóruns internacionais, como a Organização Mundial do
Comércio, procuram proteger a chamada economia de mercado. De fato,
o que se busca é a defesa de interesses de corporações e do grande capi-
tal (na verdade, são a mesma coisa). Exemplo candente é representado
pelo caso da proteção à “propriedade intelectual”, leia-se patentes”.
Através desse mecanismo, tem havido um movimento de patentes de
técnicas e aparelhos para diagnóstico, de sementes, de técnicas ances-
trais locais, de princípios ativos de plantas, que dessa forma são merca-
92
Apesar disso, é visível que há uma elitização das MAC e dos produtos da AE, direcionados
prioritariamente, em suas inserções no mercado, a públicos diferenciados economicamente.
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82
dejados a partir dos interesses de grupos econômicos que, no mais das
vezes, têm suas sedes localizadas em países ricos. Abiopirataria” atenta
contra os direitos das populações de se autodeterminarem, e isso tem
uma interface direta com o movimento dos alternativos. Ou seja, a li-
berdade comercial” limita a autonomia dos sujeitos, além de questões
diretas envolvendo as plantas medicinais ou as sementes crioulas, no
caso do patenteamento de sementes e espécies vegetais.
As MAC e a AE são tamm contraponto a um fenômeno social
de enorme repercussão na biomedicina e na agricultura moderna: a “me-
dicalização social”. Evidentemente, esse fenômeno, descrito magistral-
mente por Illich (1975), gestado a partir de um extravasamento do ideá-
rio patologizante para além da medicina e de suas áreas correlatas, é de
maior repercussão no campo da saúde. Porém, não é difícil perceber
vários sinais de pensamento medicalizado nas disciplinas científicas
associadas à agricultura: a agronomia e a medicina veterinária. As plan-
tas, animais e, em certo sentido, até os solos, tamm têm doenças, le-
vando ao uso de um vocabulário e de um arsenal terapêutico muito simi-
lar ao biomédico
93
. Um exemplo de paralelismo interessante é a própria
noção de que quanto mais se utilize de tecnologia, mais complexo será o
processo. Na biomedicina, pacientes anestesiados, totalmente monitora-
dos, com ajuda de aparelhos, são o clímax da complexidade, nas conhe-
cidas Unidades de Terapia Intensiva, em cirurgias complexas. Na agri-
cultura, o paralelo é a chamada agricultura de precisão, que usa análise
de solos, adubação e plantação altamente tecnificadas (com auxílio de
computadores e de satélites). Tanto em um como em outro caso o que se
busca é a redução do paciente (ou do ecossistema) a uma série de variá-
veis monitoráveis e controláveis via tecnologia sofisticada.
A heteronomia que toma conta da sociedade a partir da medicali-
zação descrita por Illich também se manifesta na agricultura e nos agri-
cultores que dependem do sistema financeiro, da assistência técnica e
das novas tecnologias que são lançadas e controladas, praticamente, por
braços das mesmas corporações que atuam junto à biomedicina.
Chegamos ao fim dessa seção de convergências entre MAC e AE
trazendo, talvez, a mais importante das afinidades: a sua base social.
93
Um livro de Frederico Peres e Josino Moreira chama a atenção, no título, para a confusão
semântica que existe no meio agrícola, onde venenos são chamados, o por ingenuidade, de
remédios: “É veneno ou é remédio?” (PERES; MOREIRA, 2003).
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83
Com exceção dos poucos que lucram com a concentração de po-
der econômico e simbólico que está vinculada à hegemonia da biomedi-
cina e da agricultura moderna, nos parece que a sociedade como um
todo seria beneficiada se as mudanças preconizadas na proposta alterna-
tiva fossem levadas a cabo. A começar pelos profissionais da saúde e da
agricultura que, acreditamos, teriam reflexos diretos em sua saúde. A
sobrecarga de trabalho a que estão submetidos, o alto nível de frustração
(no caso da biomedicina) e a grande exposição à contaminação química
(no caso da agricultura), tudo em nome de critérios quantitativos de
produtividade, diretamente associados à lógica capitalista, transforma
esses profissionais em engrenagens de um sistema injusto, no qual o
sucesso econômico serve de isca (como sentido para a vida”) de imen-
sos potenciais humanos, reduzidos a variáveis mercadológicas.
Contudo, quem se beneficiaria mais das profundas transformões
sociais que seriam emuladas no caso de mudanças no modo de fazer e
pensar sobre saúde e agricultura seriam aqueles que mais sofrem os
efeitos da perversa ordem social vigente: na saúde, os sem-saúde”,
grandes fatias da população que são instadas a sentir necessidade de
inclusão em um sistema que o promove saúde e se alimenta com a
procura insana por esta; na área da agricultura, uma grande massa de
camponeses sem acesso à agricultura chamada de moderna (e muitas
vezes sem acesso sequer à terra) que, como nossa sociedade, majoritari-
amente ainda crê (ou pelo menos se comporta como se acreditasse) nas
promessas de progresso vinculadas ao capitalismo. Além disso, nossa
casa, o planeta, à semelhança de um ser vivo, também se beneficiaria de
forma importante.
Essa base social tamm é o ponto de partida para que vislum-
bremos essas transformações. Dessa base emergem as urgências de mu-
danças e nela estão depositados muitos dos saberes que podem ser res-
gatados pelas propostas alternativo/complementares. As MAC respon-
dem por uma grande parcela dos cuidados nos países de terceiro mundo
(OMS, 2002). Mesma fatia do mundo que está destinada a produzir o
alimento para a maior parte da humanidade e que concentra ainda gran-
de população rural. Grande parte dos usuários e praticantes das MAC
nos países pobres as usam por falta de opção, por serem estas mais aces-
síveis e baratas, apesar de contar também sua reconhecida eficácia ou o
fato de serem tradicionais, o que lhes garante adequação cultural. Na
agricultura, podemos dizer que o quadro é semelhante. Boa parcela dos
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84
agricultores que praticam uma agricultura de menor impacto e conside-
rada atrasada tecnologicamente, o fazem por o ter acesso fácil aos
supostos avanços do padrão de produção agrícola moderno. Naturalmen-
te, reside um grande potencial e outra das qualidades das MAC e da
AE. São complexas, sutilmente sofisticadas e, ao mesmo tempo, simples
e mais acessíveis que a biomedicina e a agricultura moderna.
Por outro lado, os países afluentes (o norte”, como gosta de lem-
brar Boaventura de Sousa Santos) tammm se interessado pelas
MAC e pela AE. Dados revelam um grande mercado para as MAC nos
Estados Unidos, por exemplo. Eisemberg e colaboradores detectaram
34% de usuários de terapias não convencionais, em uma amostra aleató-
ria de 1500 pessoas (EISEMBERG, 1993). As MAC ocupam, segundo a
OMS (2002), importantes fatias da atenção médica em diferentes países
do chamado primeiro mundo. As perspectivas do mercado de orgânicos
também são crescentes. estimativas de que, no Brasil, a fatia do mer-
cado desse tipo de produtos cresça uma média de 30% ao ano
94
. Há uma
espécie de boom comercial dos alternativos. Essas situações, tanto entre
os mais pobres como entre os mais ricos, apesar de seu conteúdo díspar
e condicionantes bastante diferentes, evidenciam de alguma forma que
cresce a percepção social de que é preciso mudar o modo de fazer e
pensar saúde e agricultura.
1.6.2 Disparidades entre as MAC e a AE
Introduzindo as diferenças entre MAC e AE que poderiam dificul-
tar o enlace das ideias e práticas no âmbito da Saúde Coletiva, a primei-
ra que surge é a diferença social entre os círculos esotéricos (FLECK,
1986) dos praticantes das MAC e da AE. A posição social dos curadores
(que gozem de reconhecimento social)
95
, de qualquer medicina, é, via de
regra, superior à de qualquer plantador.
Aqui um imbróglio político, social e epistemológico. Algumas
MAC estão institucionalizadas nas várias sociedades e outras nem tanto,
94
Segundo reportagem publicada no programa “Pequenas empresas, grandes negócios”, no dia
02.02.2010 e que pode ser assistida no link:
<http://www.chacaradeorganicos.com.br/2010/02/mercado-de-organicos-cresce-e-tem-
oportunidades/>.
95
Em “O feiticeiro e sua magia”, Lévi-Strauss demonstra o quão importante é a legitimação
social para que a “cura” operada por Quesalid seja eficaz (LÉVI-STRAUSS, 1967).
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85
mas independentemente disso, algumas delas são preservadas e se re-
produzem socialmente exigindo um alto grau de especialização com
iniciação, formação, estudo e prática específica de cura, em certa medi-
da diferentes e parcialmente separados dos conhecimentos gerais sociais
e culturais. Isso significa que circulam em ambientes especializados
socialmente (ambientes de curadores especializados), no sentido atribuí-
do ao termo por Berger e Luckman (1996). No dizer de Kleinman
(1980), são restritas aos setores profissionais ou folk (popular) de cuida-
do. Embora informem e produzam prática e saberes espalhados sincreti-
camente pela cultura geral e pela população (pelo setor familiar ou in-
formal de cuidado), pode-se dizer que parte das MAC é restrita a agen-
tes especializados e suas tradições (curadores, terapeutas), e isso está
atrelado a uma especialização e sofisticão epistemológica (como a
existente nos sistemas complexos de cura ou racionalidades médicas, no
dizer de Luz (1996), e por vezes tamm a uma valorização social (mais
ou menos reconhecida) diferenciada, inclusive por vezes com certo eli-
tismo cultural e social, no caso das MAC contemporaneamente assim
como, mutatis mutanti, isso ocorre no caso da biomedicina. Ou seja, os
praticantes das MAC muitas vezes são agentes diferenciados socialmen-
te e especializados epistemologicamente de forma reconhecida e valori-
zada. Isso implica uma diferença relevante em relação aos agricultores
ecogicos, que, se também portam saberes e práticas valiosos e especia-
lizados, não m isso valorizado na nossa sociedade contemporânea,
tanto como a valorização dos curadores – quando os agricultores não são
abertamente pouco valorizados ou mesmo desqualificados, sendo que
tais agentes tendem a ser considerados socialmente pobres”, ou classe
média baixa”, ouclasse média”, outrabalhadores braçais”.
Isso, em si, constituiria um possível obstáculo para o diálogo
em um patamar de igualdade. Contudo, por mais que os conteúdos cul-
turais e políticos das propostas alternativas peçam esse diálogo, não
como negar que os profissionais da área biomédica têm dificuldade de
escutar o outro, e é dessa área que saem muitos praticantes das MAC.
um degrau social que as próprias propostas contra-hegemônicas
buscam eliminar e tamm qualidades próprias que têm sido atribuí-
das às MAC, de valorizar a escuta, mas isso parece ser um desafio a ser
superado na prática.
A própria conformação da agricultura (e especialmente a de base
familiar e/ou ecológica) favorece que os seus praticantes se agrupem em
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86
redes, e muito se tem estudado a respeito (MIOR, 2005; FREITAS,
2007). Na área da saúde, em que a clínica e o cuidado individual são
pontos chave, as redes m uma conotação bastante diferente da que se
observa na agricultura. Fala-se em redes familiares (como um auxílio no
cuidado) e redes de apoio social (VALLA, 2003), mas o fato de fundo é
que o setor saúde tem dificuldades em exercitar a intersetorialidade,
podendo-se dizer que esse é um dos nós a desatar pelas propostas da
Saúde Coletiva.
Além disso, vislumbramos uma outra diferença entre as MAC e a
AE. Mesmo o mais radical defensor do agronegócio e da agricultura
modernizada reconheceria que as agriculturas de base ecológica têm
algumas virtudes biológicas. Seus argumentos certamente estarão na
esfera da economia (produtividade), mas argumentos científicos, especi-
almente do ponto de vista ambiental, ele não os terá
96
. Com a percepção
social crescente da crise ecológica, o padrão moderno de agricultura se
sustenta em uma espécie de inércia estrutural conservadora
97
(e suicida).
no caso da hegemonia em saúde, mesmo que, como bem demonstrou
McKeown (1979), a biomedicina não seja a principal responsável pela
melhora nos níveis de saúde e no aumento da longevidade, ela parece
gozar de boa parte dos méritos por isso (e em alguma medida os merece,
especialmente no que tange às enfermidades agudas e no socorro a aci-
dentados, por exemplo). E assim, mesmo em crise, ela é desejada por
parcelas crescentes da população. O acesso à biomedicina sempre é uma
boa promessa eleitoral, o aumento de cobertura dos serviços tamm é
bem-vindo. Em suma, apesar de tudo, sentimo-nos seguros sob o olhar
biomédico. As MAC tamm m espo crescente porque afinal existe
uma crise na biomedicina e uma demanda por humanização da mesma,
além da percepção de que cuidado nunca é demais”. Em uma cultura
adepta do sincretismo como a brasileira, isso é ainda mais fácil de expli-
car.
96
Os alimentos produzidos de forma ecológica não têm sido reconhecidos, de maneira geral,
como melhores do ponto de vista nutricional, sendo um ponto de controvérsias (AZEVEDO,
2006; NAVOLAR, 2007). Contudo, do ponto de vista ambiental, é difícil contestar as
vantagens da AE em relação à agricultura moderna.
97
Conhecimentos sobre outras formas de organização da produção, comercialização e consumo
de alimentos, por exemplo, estão desaparecendo e essas perdas culturais não são inocentes.
Fazem parte da supremacia que se pretende inconteste do paradigma biomecanicista dentro das
ciências e que se espraia na sociedade como um todo.
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87
Quadro 1.2 – Características afins e díspares entre as MAC e a AE.
Características afins MAC AE
Amplitude dos termos Forte Moderada
Contra-hegemônicas Forte Forte
Áreas em construção Forte Forte
Posição acadêmica marginal Forte Forte
Crítica à sociedade industrial Forte Forte
Escala artesanal Forte Forte
Abertura a outras culturas Forte Moderada
Inimigos em comum Forte Forte
Coerentes com o SUS Forte Moderada
Valoriza saber popular Moderada Forte
Contraponto à medicalização social Forte Moderada
Ampla base social Moderada Forte
Apropriadas pelo mercado Forte Forte
São políticas públicas Moderada Moderada
Características díspares
Círculos esotéricos elitizados Forte Fraca
Trabalho em rede viável Fraca Forte
Legitimidade científica Fraca Forte
Espiritualidade Forte Fraca
E por último, mas não menos importante, temos a questão da espi-
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88
ritualidade. Esse tema, que tem uma interface interessante com os cui-
dados em saúde (VASCONCELLOS, 2006) e os aproxima das MAC,
sendo inclusive uma dimensão, em certo sentido, estruturante das diver-
sas medicinas, não apresenta tanta visibilidade dentro das discussões no
âmbito da AE. Registre-se, contudo, algumas exceções, como a agricul-
tura biodinâmica e a agricultura natural, que m uma cosmologia subja-
cente relevante para suas práticas agrícolas
98
.
O Quadro 1.2 sumariza as afinidades e as disparidades acima des-
critas. Acrescentamos a cada ponto uma gradação correspondente à
intensidade de cada item em cada uma das áreas, com a intenção de
quantificá-las minimamente.
Uma leitura superficial deste quadro faz perceber que algumas ca-
racterísticas, dependendo do enfoque que se dê, podem ser compreendi-
das como afinidades ou disparidades. Portanto, que fique claro que a
intenção do quadro é ser um resumo simplificado desta seção. Algumas
características, por outro lado, são um pouco repetitivas ou, talvez, sub-
categorias que explicam uma afinidade maior. Por exemplo, por que
motivos MAC e AE são fortemente contra-hegemônicas? Certamente
suas posições acadêmicas marginais, suas criticas à sociedade industrial,
suas escalas artesanais são explicações mútuas e que se somam para
ajudar a explicar a característica mais geral.
Voltaremos a muitas dessas afinidades e disparidades ao tratar dos
discursos de nossos entrevistados, na seção de discussão dos resultados.
1.7 VISLUMBRANDO E TECENDO UMA REDE (BASE TEÓRICA)
Após a descrição desse quadro de crises – na saúde e na agricultu-
ra derivadas, em boa medida, das revoluções científica e industrial, do
gigantismo desses processos, do seu caráter aparentemente global, das
dificuldades presumíveis por essas características para que se achem
novos rumos para a caminhada humana (e até para que esta prossiga,
posto que isso está sob risco), se faz necessário que esbocemos cami-
nhos para superar tais dificuldades.
98
Outra interessante tentativa de integrar espiritualidade e trabalho agrícola é o livro “Manual
de agricultura natural”, de Hiroshi Seó. Nesse livro, em uma prosa poética, com várias alusões
espirituais, o tema abordado é, em linhas gerais, autossuficiência, tecnologias alternativas e a
chamada “agricultura zen” (SEÓ, 1987).
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89
Para que consigamos sair deste cipoal ao qual a modernidade nos
trouxe, vamos nos servir do auxílio de autores que, com pontos de vista
com alguma semelhança, nos oferecem alternativas críticas e metodoló-
gicas às amarras da modernidade: Boaventura de Sousa Santos e Bruno
Latour. Ressaltemos, contudo, algumas diferenças entre eles. Latour
(1994) se preocupa principalmente em analisar as condições de produ-
ção do conhecimento (que se em redes) e critica a modernidade por
sua insuficiência epistemológica. Santos (2000), por sua vez, se interes-
sa principalmente pelas possibilidades políticas emancipatórias que as
redes (em vários ambientes, que não só o da produção do conhecimento)
tornam viáveis, embasando-se também em uma postura crítica à ciência
moderna, inserindo a questão dos valores sociais (LACEY, 2004).
Debrucemo-nos um pouco mais, em primeiro lugar, sobre a pro-
posta de novo paradigma de Santos (2000): o conhecimento prudente
para uma vida decente”. Santos parte do princípio de que o paradigma
vigente está agonizante
99
. Por outro lado, Fleck (1986) fala que um
contínuo movimento sutil de intercâmbios de ideias entre coletivos es-
pecializados distintos e entre os círculos especializados de um coletivo e
os círculos periféricos, leigos ou exotéricos do mesmo e inclusive de
outros coletivos. O caminho proposto por Santos quer aproveitar as
“representações mais abertas, incompletas ou inacabadas do nosso tem-
po” (2000, p. 74), as que conseguiram resistir melhor à cooptação com-
pleta pela colonização instrumental da tecnocncia moderna: os princí-
pios da comunidade (no âmbito da regulação social”) e da racionali-
dade estético-expressiva”. A partir desses nichos, Santos vê espaços para
a consolidão de estratégias alternativas visando à expressão do conhe-
cimento, da participão, da solidariedade e do reencantamento pela
vida. Esse autor sustenta que necessidade de desequilibrar a balança
regulação-emancipação para o lado oposto ao que ela está pendendo
mais de duzentos anos e defende a cumplicidade epistemológica com
esses princípios como pedra angular da pós-modernidade de oposição
100
.
99
Santos cita outros autores que também identificam a crise paradigmática e apresentam suas
propostas: a “nova aliança” de Prigogine e Stengers (1979), o Taoísmo na física (CAPRA,
1984), entre outros. Podemos dizer que está agonizante do ponto de vista de sua contribuição
para o desenvolvimento ou a justiça eco e socialmente sustentáveis, o que não quer dizer que
está agonizante enquanto poder social e simbólico capilarmente disseminado na sociedade e na
ciência.
100
O nome “pós-modernidade de oposição” é uma sugestão de Santos (2000), buscando a
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90
De forma paralela, Santos propõe o que ele chama de dupla rup-
tura epistemológica”. A primeira ruptura é representada pelo trajeto e as
transformões que o conhecimento faz para passar do senso comum
para o senso douto, tornando-se científico (de exotérico para esotérico,
no jargão de FLECK, 1986) e que, na modernidade, representa a aura de
verdade que o conhecimento científico se outorga e o estabelecimento
de uma hierarquia, que rebaixa o saber do senso comum. Portanto, a
necessidade, dentro da perspectiva emancipatória, da segunda ruptura,
que representaria o caminho de retorno e novas transformações dos
saberes ao senso comum, renovando-lhe e ressaltando-lhe as qualidades
de solidariedade, participação e reencantamento pela vida.
Nesse renovar-se metodológico, está presente desde o princípio a
inserção de valores sociais (LACEY, 2004). Santos, por outro lado, re-
conhece o caráter conservador e mistificador do senso comum, mas crê
que o diálogo com o conhecimento pós-moderno lhe valorizará as di-
mensões utópicas e libertadoras que carrega e expressa em várias carac-
terísticas por ele enumeradas: a praticidade, a transparência, a simplici-
dade. E citando Dewey e Bentley, diz que o senso comum funde a utili-
zação com a fruição, o emocional com o intelectual e o prático
(DEWEY; BENTLEY, 1949 apud SANTOS, 2000). Assim, o conheci-
mento-emancipão, ao tornar-se senso comum, o despreza o conhe-
cimento que produz tecnologia, mas entende que tal como o conheci-
mento deve traduzir-se em autoconhecimento, o desenvolvimento tecno-
lógico deve traduzir-se em sabedoria de vida” (SANTOS, 2000, p. 109).
Aqui Santos introduz a ideia de que este novo senso comum se
viabiliza onde é mais necessário, ou seja, é “alimentado pela prática
emancipatória dos excluídos e marginalizados” (2000, p. 109). Portanto,
e essa é uma das premissas dessa investigão, devemos encontrar nes-
ses fenômenos alternativos (logo marginalizados
101
) as MAC e a AE,
lugares adequados à manifestação desse “novo senso comum”.
Outra noção fundamental neste trabalho é a de rede. Esta se esta-
belece quando diferentes atores ou mediadores
102
, em diferentes espa-
distinção ao “s-moderno celebratório”, quando ao diagnóstico de crise segue-se uma postura
de “celebrar o possível, já que não há saída”. Já Latour (1994) prefere o conceito “não
moderno”, posto que ele coloca em dúvida a própria existência da modernidade.
101
Amarginalização” aqui referida só é constante na seara epistemológica. Em outros espaços,
como no mercado, por exemplo, os alternativos, algumas vezes, estão elitizados.
102
Latour (1994) sustenta que os atores em rede não são, necessariamente, humanos.
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91
ços, se conectam, nem sempre conscientemente ou organizadamente,
através de ideias, práticas, interesses, mbolos ou interpretações. Ou
seja, uma conjunção díspar e singular de ingredientes em cada caso
que permite uma união, comunhão ou afinidades eletivas entre mediado-
res que constituem uma rede que terá mais efetividade e concretude,
mais extensão e socialização, quanto mais atores e práticas sociais co-
nectar, interligar, tanto operacionalmente como simbolicamente (no
nosso caso, principalmente, de saúde-doença, de agricultura, mas tam-
bém uma miríade de outras que com estas se conectam, fornecendo-lhes
insumos, conhecimentos ou trabalhos e utilizando-se dos que são por
elas produzidos).
Por exemplo, interesses econômicos de industriais, necessidades
de pessoas que se sentem doentes, crenças no poder da tecnologia, da
química e da ciência, teorias, tradições e práticas científicas e subcultura
médica imersa amarram uma rede sociotécnica poderosíssima que
foi chamada de complexo médico-industrial. Para Latour (1994), essa é
a configuração que sustenta a produção dos híbridos, que a ciência mo-
derna, ao tentar separar no processo de purificação, ignora. Já para San-
tos (2000), as redes configuram espos privilegiados para a reinvenção
do senso comum, por sua função desestratificante, apesar dissoo
garantir contra-hegemonia, pois seu caráter político depende da natu-
reza dos elementos heterogêneos que nelas convergem (ESCOBAR,
2004). Latour vai mais longe ao atribuir às redes as capacidades de
conectar e de separar, ou seja, de produzir o espaço e o tempo(1994, p.
76). Assim colocado, Latour deposita nas redes a função de redimensio-
nar o tempo moderno, onde a seta do progresso aponta apenas ao futuro,
esvazia o presente e despreza o passado como criação, noção tamm
defendida por Santos (2000), causando o que ele chama de desperdício
da experiência”. Segundo Latour, a história das coisas contada pelos
modernos é incompleta devido à separação forçada no processo de puri-
ficão.
Há, ademais, interferindo diretamente no fluxo das redes, uma
matização derivada das diferentes “matrizes das comunidades interpreta-
tivas principais existentes na sociedade” (SANTOS, 2000, p. 110): o
espaço doméstico, o espo da produção, o espo do mercado, o espaço
da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundial. Nosso traba-
lho será o de investigar algumas possíveis ligações entre actantes ou
mediadores (aqui assumindo a terminologia sugerida por Latour) que
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92
transitam nos espos criados (ao mesmo tempo em que os criam) por
esses fenômenos (as MAC e a AE), cruzando as diferentes matrizes
pouco citadas e os diferentes “círculos de pensamentode Fleck (1986),
desde aqueles mais esotéricos (no caso das MAC) até os mais exotéricos
(no caso da AE).
A partir das afinidades históricas, epistemológicas e políticas
delineadas entre as MAC e a AE, nosso trabalho procurará nos discursos
de praticantes e de usuários/consumidores os fios que amarram os nós
de nossa hipotética rede.
Para nos aproximarmos disso, uma valiosa ajuda vem através de
elementos da antropologia, na medida em que esta exige um comprome-
timento, por parte do investigador, maior que a mera avaliação intelec-
tual do outro” (QUEIROZ, 2003). Latour (1994) propõe o que ele
chama de antropologia simétrica, onde se busca desconsiderar a falsa
dicotomia sujeito-objeto (ou política-natureza) e superar (fundindo) a
“análise de conteúdo” e a análise de contexto”, como forma de acesso
às influências da natureza-cultura.
Em um trabalho de campo acompanhando cientistas (de diferentes
disciplinas) pesquisando o limite entre cerrado e floresta, no interior do
Brasil, Latour (2001) usa em sua análise a noção de inscrição”, um
código próprio que transitará, através dos atores, produzindo sentido,
informação, sendo assim definido pelo autor:
Termo geral referente a todos os tipos de trans-
formação que materializam uma entidade num
signo, num arquivo, num documento, num pedaço
de papel, num traço. Usualmente, mas nem sem-
pre, as inscrições o bidimensionais, sujeitas à
superposição e combinação. São sempre móveis,
isto é, permitem novas translações e articulações
ao mesmo tempo em que mantêm intactas algumas
formas de relação. [...] Quando as inscrições estão
perfeitamente alinhadas, produzem a referência
circulante. (LATOUR, 2001: 350)
A referência circulante, como resultante desse processo descrito
por Latour, guarda importantes conexões com os conceitos similares de
mediação e rede, aqui discutidos por outra autora: Os termos ‘rede e
mediação’ nos situam numa concepção relacional da sociedade e cultu-
ra, e têm sido elaborados para designar a co-ocorrência de elementos
plurais e heterogêneos: discursivos, tecnológicos, sociais, materiais e
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93
simbólicos” (GONZÁLES DE GÓMEZ, 2002: 42).
No nosso caso, hipoteticamente, o que se espera encontrar é a
compatibilidade entre as inscrições” que fluem através de diferentes
atores, posicionados nos seus diferentes espaços sociais e produzindo
essa “refencia circulante”, que guarda semelhança com a segunda
ruptura proposta por Santos, a saber, o acréscimo possível de valores e
conceitos originários de outras práticas, modificando (reforçando ou
relativizando) os valores e conceitos iniciais. Em outras palavras, a refe-
rência se torna circulante quando ela é apropriada por um coletivo dife-
rente do original, reinventando o senso comum”.
Um dos nossos pontos de partida serão as narrativas de alguns a-
tores envolvidos nessa hipotética rede. De forma resumida, a partir des-
sas narrativas e amalgamando-as com outros elementos que possamos
colher no nosso trabalho de campo, procuraremos identificar as inscri-
ções” que formam, ou o, a “referência circulante”, indício de existên-
cia da rede.
ainda o aporte teórico e ético fundamental da sociologia das
ausências e das emergências e do trabalho de tradução a elas associado,
como descrito por Santos (2004). Apresentaremos aqui um esboço des-
sas ideias que buscam dar visibilidade e consequência aos fenômenos
microssociais contra-hegemônicos que vicejam nas brechas do sistema.
O autor propõe três procedimentos sociológicos que se complementam e
se sobrepõem: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências
e o trabalho de tradução.
Os primeiros procedimentos, a sociologia das ausências e a socio-
logia das emergências, visam enfrentar algumas manifestações da “razão
indolente” (a razão metonímica e a razão proléptica)
103
e, em resumo,
103
A “razão metonímica” toma as partes pelo todo e é “obcecada pela ideia da totalidade sob a
forma de ordem” (SANTOS, 2004; p. 782). No caso, isso termina por significar que os
fenômenos alternativos só sejam compreendidos a partir de sua relação (hierarquizada) com os
processos hegemônicos. A transformação do mundo baseada na razão metonímica não pode ser
acompanhada por uma compreensão adequada do mundo, resultando em “violência, destruição
e silenciamento” e perda da experiência social. A forma de superar a razão metonímica é
procurar o que há de singelo nos fenômenos alternativos à totalidade que escapem da
comparação com ela. Por exemplo, o que a medicina tradicional chinesa (MTC) tem de
peculiar e único que escape à dicotomia biomedicina/MTC? Santos, além disso, lista cinco
lógicas que produzem não existências: a monocultura do saber, a monocultura do tempo linear,
a classificação social, a escala dominante e a lógica produtivista. A essas cinco lógicas
correspondem cinco “ecologias”: dos saberes, das temporalidades, dos reconhecimentos, das
transescalas e de produtividade. a “razão proléptica” é a face da razão indolente quando
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94
respectivamente, pretendem expandir o domínio das experiências soci-
ais disponíveis” e o domínio das experiências sociais possíveis” (p.
798-799).
Em síntese, esses procedimentos sociológicos se propõem a in-
vestigação das alternativas que cabem no horizonte das possibilidades
concretas” (p. 796) e operam uma “amplificão simbólica dos saberes,
práticas e agentes”.
o trabalho de tradução proposto pelo autor visa criar inteligi-
bilidade recíproca entre formas de organização e entre objectivos de
acção” (p. 805) de diferentes práticas. Em outras palavras, o objetivo
seria fazer diferentes práticas conversarem. O trabalho de tradução é a
alternativa à insuficiência de uma teoria geral crítica (que por ser geral e
pretender-se totalizante, carrega os vícios da rao metonímica), real-
çando os valores locais e de singularidade. No trabalho de Santos, as
propostas de tradução são direcionadas a diálogos interculturais. Pode-
mos fazer uma exteno das práticas de tradução para o nosso diálogo
entre MAC e AE no ambiente da SC, entendendo que, em certo sentido,
todos esses fenômenos têm significados culturais que lhes são próprios.
Por último, conheçamos a noção de zona de contacto” trazida
por Santos: a zona de contacto pode envolver diferenças culturais se-
leccionadas e parciais, as diferenças que, num espaço-tempo determina-
do, se encontram em concorrência para dar sentido a uma determinada
linha de acção” (SANTOS, 2004; p. 808). As formas pelas quais o traba-
lho de tradução irá operar e quais aspectos próprios de cada fenômeno
irão interagir vão depender das peculiaridades dos fenômenos em ques-
tão.
Em resumo, Santos defende que a justiça social global será
possível com uma justiça cognitiva global, e, para alcançá-la, necessita-
mos de imaginação epistemológica e democrática com o objetivo de
construir novas e plurais concepções de emancipação social. Ao expan-
concebe o futuro a partir da monocultura do tempo linear, dilatando o futuro, que “só existe
para se tornar passado” e deixando de pensá-lo. A sociologia das ausências visa dilatar o
presente e a sociologia das emergências quer contrair o futuro, pensando-o como o espaço para
o “possível”. Diferente da razão indolente que evita essa reflexão, considerando o futuro
infinito e, dessa forma, espaço do “impossível”. A sociologia das emergências se concentra,
então, “sobre as possibilidades (potencialidade) e sobre as capacidades (potência)” (p. 796).
Em síntese, os procedimentos da sociologia das ausências se movem no campo da experiência
social e os da sociologia das emergências atuam no campo das expectativas sociais.
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95
dir as experiências sociais presentes, a intenção é tornar visíveis as vá-
rias potencialidades que, ao modelo hegemônico, interessa anular
104
.
O trabalho de campo será a oportunidade de auscultar a realidade,
munidos de um olhar que tente diluir as fronteiras entre as várias dico-
tomias que caracterizam a modernidade e de vontade de servir de medi-
ador nessas conversas, possíveis, viáveis e necessárias, entre MAC e
AE, no âmbito da saúde coletiva, fazendo o trabalho de tradução, na
concepção de Santos (2004) e, ao cruzar este mosaico de categorias
analíticas, compor no final uma rede de capturar corações e mentes ou
apenas fios dispersos que necessitam de um liame para serem, talvez,
mais consequentes.
104
Como ilustração dos conceitos da sociologia das ausências, nos permitimos dar um exemplo
a partir de uma experiência pessoal que vivemos. A partir de nosso interesse por agricultura,
passamos a conhecer e identificar várias espécies vegetais, de variedades de capim até árvores.
Depois dessa “descoberta”, ao olharmos uma paisagem, não vemos mais um mato inespecífico.
Cada planta identificada adquire uma visibilidade e um significado especial. De forma
aproximada, a visibilidade conferida aos fenômenos periféricos e alternativos à hegemonia
usualmente “invisíveis”, pode lhes evidenciar muitos significados e potencialidades, dos mais
variados matizes.
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96
2 OBJETIVOS
A) Principal (geral):
Investigar as convergências teóricas e práticas entre as medicinas
alternativas e complementares e a agricultura ecológica.
B) Secundários (específicos):
a) Investigar como é a receptividade das MAC entre agricultores
que praticam a AE;
b) Investigar como é a receptividade da AE entre profissionais de
saúde praticantes das MAC;
c) Analisar as afinidades e disparidades históricas, epistemológi-
cas e políticas entre as MAC e a AE, com vistas à discussão do signifi-
cado dessas afinidades para a saúde coletiva, ampliando o escopo da
mesma e vinculando-a, em rede, ao movimento da AE.
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97
3 METODOLOGIA
Diante dos objetivos desta pesquisa, o trabalho de campo propos-
to tinha uma meta clara: perscrutar empiricamente a existência de cone-
xões entre as MAC e a AE. Nosso foco se volta então sobre os profis-
sionais de saúde praticantes das MAC e sobre os agricultores ecologis-
tas. Como forma de atingir esse objetivo, supomos que averiguar as
concepções e práticas sobre saúde e alimentação desses dois grupos
seria um caminho. Assim, elegemos a pesquisa qualitativa e a entrevista
em profundidade como as melhores alternativas, já que a profundidade e
a singularidade são atributos mais facilmente encontráveis através dessa
abordagem e desse instrumento (DUARTE; BARROS, 2006). Os rotei-
ros propostos para as entrevistas em profundidade encontram-se em
anexo.
Contudo, faltavam elos para auxiliar a tessitura da suposta rede, e
um desses elos estaria representado por aqueles que consomem os servi-
ços das MAC e da AE, aqueles que representam, na epistemologia de
Fleck (1986), os círculos mais exotéricos. Assim, incluímos tamm um
grupo de consumidores/usuários na pesquisa.
Para a escolha adequada dos sujeitos a serem entrevistados, im-
punha-se uma fase exploratória, especialmente para o grupo dos agroe-
cologistas e dos usuários. No caso dos profissionais de saúde, a opção
de recorte foi trabalhar com a esfera pública, por concordarmos com
Tesser (2009) quando diz que o SUS deveria ser um espaço privilegiado
para a implantação das MAC.
A fase exploratória da pesquisa contou com três acréscimos im-
portantes. O primeiro, e que contribuiu significativamente para a com-
preensão da dinâmica das pticas alternativas e complementares na
atenção básica em Florianópolis, foi o trabalho de Mestrado em Saúde
Pública de S. Thiago (2009), que mapeou os praticantes das MAC na
atenção primária do município de Florianópolis, SC. Esse foi um dos
pontos de partida para o contato e conhecimento dos profissionais prati-
cantes das MAC.
Tamm podemos considerar de grande relevância para essa pes-
quisa nossa participação, como pesquisador, em um projeto intitulado
Pticas integrativas e complementares no Programa de Saúde da Famí-
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98
lia voltadas para atenção à saúde mental: estudos de caso no Nordeste,
Sul e Sudeste”
105
. Durante a execução desse projeto (fevereiro de 2009 a
fevereiro de 2010), tivemos a oportunidade de um contato mais aproxi-
mado com o contexto que o trabalho de S. Thiago (2009) descrevia,
além do conhecimento de duas outras realidades distintas (Recife e
Campinas), com implicações importantes na formão do nosso olhar.
No transcurso desse trabalho, participamos de um grupo focal com tera-
peutas que praticam as MAC na atenção básica em Florianópolis e de
dois outros grupos focais com usuários dessas práticas na rede munici-
pal. Foram oportunidades privilegiadas para conhecer pessoalmente
vários praticantes e usuários. Além disso, participamos de entrevistas em
profundidade com alguns desses profissionais (quatro) e com três gesto-
res do SUS de Florianópolis.
Ademais, consideramos importante, tamm, nossa condição pes-
soal de usuário e consumidor das duas áreas em questão. Fizemos essa
opção mais de dez anos e, dessa forma, assim que nos estabelecemos
em Florianópolis, procuramos conhecer e frequentar os pontos de venda
de produtos ecológicos. Ao considerar necessário o cuidado profissional
em saúde, a opção mais próxima foi o Centro de Saúde do nosso bairro,
lugar que está se tornando uma referência de práticas de MAC no muni-
cípio
106
. O contato semanal com os agricultores e consumidores nas
feiras e em outros pontos de venda de produtos orgânicos possibilitou
uma aproximação difícil de ser mensurada, mas certamente relevante.
No caso das práticas de MAC no SUS, o contato foi mais pontual, mas
mesmo assim marcante. Ouvir as conversas da sala de espera, ler os
panfletos e mensagens afixadas nas paredes do centro de saúde também
deixaram marcas na nossa visão de pesquisador.
E, por último e tamm importante, a nossa própria condição
de terapeuta (cirurgião dentista) que atua mais de dez anos no SUS.
Especial importância tem o peodo recente, de março de 2010 até agora,
no qual assumimos a função de odontólogo junto à Estratégia de Saúde
da Família em Florianópolis. Na unidade em que trabalhamos, também
105
Projeto desenvolvido por pesquisadores da Fiocruz, Unicamp e UFSC.
106
Os três médicos que atendem diariamente na unidade têm identificação com as MAC, sendo
que praticam fitoterapia, acupuntura, homeopatia e medicina ayurvédica, entre outras práticas.
Além disso, há um horto nos fundos da unidade e outros profissionais envolvidos, como os
técnicos de enfermagem. Ademais, há um projeto de extensão da UFSC que desenvolve
práticas corporais da Medicina Tradicional Chinesa.
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99
há práticas de MAC e uma história rica, para quem está disposto a ouvi-
la, de movimentos fora do pado de um centro de saúde exclusivamente
biomédico. Viver intensamente a realidade do cotidiano de um centro de
saúde, com todos os desafios, dificuldades, paradoxos e prazeres que
isso pode proporcionar, certamente tamm influenciou a nossa visão de
pesquisador.
Essas experiências acabaram se somando ao que estava proposto
no projeto de pesquisa que havia sido qualificado. A partir delas, de
conversas com o orientador e de tentativas frustradas de seguir à risca o
que estava no projeto, fizemos algumas pequenas modificações no pro-
jeto original, especialmente em relação ao grupo de agricultores e de
usuários/consumidores, que detalharemos a seguir.
Assim, em relação ao grupo de profissionais de MAC, seguimos o
que estava previsto: a partir dos dados colhidos por S. Thiago (2009),
elencamos quatro profissionais, privilegiando a presença institucional,
em outras palavras, o tempo de trabalho no SUS e com práticas alterna-
tivas combinados.
Para os outros dois grupos seriam realizadas entrevistas explora-
tórias (roteiros em anexo) que serviriam de baliza para escolhermos
quatro sujeitos de cada grupo. Contudo, em relação ao grupo de agricul-
tores/feirantes, consideramos que o contato semanal, mesmo que assis-
temático, de mais de um ano, nos dava elementos para responder aos
critérios estabelecidos (tempo na atividade e características de liderança)
e, assim, as entrevistas exploratórias foram substituídas por vários con-
tatos preliminares, que nos aproximaram de nossos interesses de pesqui-
sa.
Por sua vez, para a escolha dos usuários das MAC no SUS, foram
realizadas cinco entrevistas exploratórias nos postos de saúde, em dias
de atendimento dos dois profissionais das MAC com maior experiência
(total de dez entrevistas exploratórias com usuários das MAC). Os resul-
tados dessas entrevistas exploratórias, contudo, nos indicaram que não
havia consistente grau de intersecção, ou seja, as pessoas abordadas
aparentavam ter pouca afinidade com a AE. Essas dificuldades serão
abordadas mais adiante na seção de resultados e discussão, visto que
elas por si podem carregar um significado relevante para nossa pes-
quisa.
Em relação aos consumidores de produtos ecológicos, realizamos
as dez entrevistas exploratórias, com dez consumidores das feiras maio-
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100
res (na Lagoa da Conceição e na UFSC). Escolhemos então, pelos crité-
rios de tempo de uso” (há quanto tempo usa MAC/ consome produtos
ecogicos), grau de adesão” (o quanto e como usa as MAC/ o quanto
se alimenta com produtos ecológicos) e grau de intersecção” (o quanto
conhece/usa o outro movimento” alternativo), dois sujeitos a serem
entrevistados.
Para agregarmos outros elementos que pudessem ser de alguma
valia para a compreensão do meio onde agem os nossos entrevistados e
para atender a alguns dos pressupostos preconizados por Duarte e Bar-
ros (2006), seria importante que as entrevistas fossem realizadas, tanto
quanto possível, nos ambientes de trabalho, no caso dos dois primeiros
grupos, e em ambientes familiares (seus domicílios ou local de trabalho,
por exemplo) aos membros do grupo usuários/consumidores, atendendo
assim a um dos pressupostos desse autor, que defende que o ambiente
onde as conversas se realizam deve permitir que o entrevistado fique à
vontade. Portanto, os locais de entrevistas foram determinados pelos
sujeitos pesquisados, assim distribuídos:
Quadro 3.1 – Locais onde foram realizadas as entrevistas
Local de trabalho UFSC Outro
Terapeutas
1 (uls) 2 1(casa)
Agricultores
1 (feira), 2 (sítio) 1(praça)
Usuários
1 (atelier) 1 1(academia),
2(casa)
Em relação aos procedimentos éticos, este projeto foi analisado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC, rece-
bendo a folha de rosto nº 283521. As entrevistas de ambas as fases do
estudo foram gravadas e realizadas com consentimento prévio assinado
e garantia de sigilo, conforme a resolução CNS 196/96.
Os dados (entrevistas decupadas, transcritas e outras anotações)
foram submetidos a uma análise de narrativas inspirada em técnicas de
interpretação que se aproximem da proposta da hermenêutica de autores
como Ricoeur e Gadamer (CUNHA, 1997; DUTRA, 2002; MINAYO,
2002; CAMPOS et al., 2008; FAVORETO et al., 2009).
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101
O que procuramos, através da análise hermenêutica é interpretar
os discursos, uma vez transcritos, por meio de sucessivas leituras bus-
cando compreender os significados, aprofundando essa compreeno
para permitir a análise do texto em unidades de significado que corres-
pondam aos pressupostos que surgem do cotejamento entre as condições
objetivas e subjetivas encontradas no campo e as indagações pvias,
embasadas na teoria. Considera-se tamm importante a ideia de que as
narrativas provocam mudanças na forma como as pessoas compreendem
a si próprias e aos outros e, por esse motivo, o tamm importantes
estratégias formadoras de consciência numa perspectiva emancipadora
(CUNHA, 1997).
Ademais, as narrativas representam a tradução em palavras da
construção das realidades e identidades dos agentes em dado contexto,
isto é, ao contar suas histórias, as pessoas constroem a si mesmas como
parte do mundo e materializam a “vida semiótica interior(FAVORETO
et al. 2009, p. 8). No nosso caso particular, por estarmos lidando com
fenômenos um tanto marginais, plurais e em construção, a oportunidade
de elaborar sua própria história, inserida em um contexto de relativa
invisibilidade social (como estratégia articulada pelos grupos dominan-
tes para reduzir o significado social dos fenômenos contra-hegemônicos
– SANTOS, 2004), pode representar um momento de reflexão dos agen-
tes sobre o sentido e inseão das suas próprias escolhas individuais e
dos significados que transcendem às atividades em si (as MAC ou a
AE).
Como explicita Favoreto (2009), a narrativa e sua análise repre-
sentam uma ferramenta conceitual e operativa, que permite evidenciar as
ligões entre a identidade dos actantes e suas experiências, no nosso
caso, como participantes desses fenômenos marginais e o ambiente cul-
tural que os envolve. Ao incorporar e ordenar os eventos, subjetiva e
cronologicamente, a narrativas pessoais produzem um enredo que inte-
gra causa e efeito com as variáveis do caráter humano e da motivação
pessoal (FAVORETO et al., 2009).
Assim sendo, encontramos na análise de narrativas uma técnica
metodológica coerente com vários de nossos aportes teóricos. Ao valori-
zar a experiência pessoal dos agentes e assumir o papel formador (de
identidades e construindo a realidade) do contar histórias” (CUNHA,
1997; DUTRA, 2002), percebemos ecos da abordagem culturalista de
Kleinman (1980) e tamm do papel estrutural-estruturante do habitus
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de Bourdieu (1987). Além disso, essa abordagem valoriza a intenciona-
lidade como atribuição de um sentido ou significado à ação, podendo
dar à experiência vivida uma aura de sabedoria, concordando com San-
tos (1987, p. 52), quando diz quetodo conhecimento é autobiogfico”.
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103
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após esboçarmos essa conexão através da reflexão e da busca na
literatura sobre o que existe nesse sentido, é momento de nos debru-
çarmos sobre o material colhido no trabalho de campo e, a partir dele,
identificar os nós porventura existentes, sua força e também os pontos
divergentes. Longe de querermos esgotar o assunto, nossa ideia é mais
trazer à luz, no contexto da Saúde Coletiva, algumas possibilidades de
diálogo pouco conversadas.
O trabalho de campo previsto no projeto consistia de entrevistas
em profundidade com os atores selecionados nos três diferentes grupos,
segundo a metodologia já descrita. Essas entrevistas foram realizadas de
novembro de 2009 a fevereiro de 2010.
4.1 CARACTERIZAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
Através da metodologia que apresentamos, realizamos doze en-
trevistas em profundidade. Os doze entrevistados estão distribuídos em
três grupos. Todos os entrevistados serão identificados por códigos,
sendo que a letra corresponde ao grupo que pertencem (T – terapeutas, A
agricultores e U usuários/consumidores), e o número foi dado pela
ordem em que foram entrevistados. Assim, por exemplo, T2 significa o
segundo entrevistado do grupo dos terapeutas; U3, o terceiro do grupo
dos usuários/consumidores, e assim por diante.
Quadro 4.1 – Características dos terapeutas que praticam as MAC entrevistados
Idade
Tempo formado
(anos)
Tempo SUS
(anos)
Tempo MAC
(anos)
Terapeuta 1
57 29 26 22
Terapeuta 2
39 13 13 10
Terapeuta 3
56 24 24 18
Terapeuta 4
57 26 25 20
O primeiro grupo, escolhido entre os terapeutas que praticam as
MAC na atenção básica do SUS em Florianópolis e constituído de qua-
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104
tro médicos, três do sexo masculino e uma mulher, está descrito sumari-
amente no Quadro 4.1 acima.
O Quadro 4.2 sumariza a caracterização dos entrevistados do se-
gundo grupo, os agricultores ecologistas:
Quadro 4.2 – Características dos agricultores ecologistas entrevistados
Idade Instrução
Tempo agricultura
(anos)
Tempo AE
(anos)
Agricultor 1
46 Fundamental 14 12
Agricultor 2
25 Fundamental 05 03
Agricultor 3
48 Médio 16 14
Agricultor 4
40 Médio 12 04
Em tempo agricultura”, foi considerado o tempo de dedicação
contínua a atividades agrícolas. A1 e A3 relataram que sempre mantive-
ram algum grau de atividade agrícola, mesmo quando havia o exercício
de outra profissão.
E, por último, o grupo talvez mais heterogêneo, o de usuá-
rios/consumidores, resumida sua caracterização no seguinte quadro:
Quadro 4.3 – Características dos usuários/consumidores de MAC/AE entrevistados
Idade Ocupação Usa/consome
Usuário 1
44 Designer Os dois
Usuária 2
41 Aux. enfermagem MAC
Usuário 3
34 Autônomo Os dois
Usuária 4
62 Aposentada MAC
Tivemos algumas dificuldades para fazer todas as entrevistas, es-
pecialmente em relação a alguns integrantes dos dois primeiros grupos.
Todos, sem exceção, foram bastante receptivos à ideia e se mostraram
socitos e interessados em participar. No entanto, a vida muito corrida
de alguns limitava as possibilidades de encontro e estes foram protela-
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105
dos muitas vezes.
A duração das entrevistas variou de 22 a 88 minutos, tendo como
duração média 47 minutos e 23 segundos.
Para a discussão dos resultados, iremos recorrer às características
afins e díspares da seção 1.6 “Afinidades e disparidades entre as MAC e
a AE”. Essas características foram subdivididas em quatro grupos: três
de afinidades (epistemofilosóficas, políticas e práticas) e um de dispari-
dades. Essa divisão é evidentemente artificial e forçada, pois todas as
características têm significados em todas essas dimensões. A intenção é
mais didática e para facilitar a análise.
A partir do surgimento dessas características nas falas de nossos
entrevistados, procuraremos identificar o grau de viabilidade ou de força
ou de necessidade de cada uma delas para a consecução do imbricamen-
to entre as MAC e a AE no âmbito da saúde coletiva. É certo que nem
todas as afinidades e disparidades aparecerão nas falas dos entrevista-
dos. Isso, contudo, não significa que elas não existam, apenas não foram
citadas por esses atores.
A estratégia adotada nas entrevistas para fazer aflorar os pensa-
mentos dos sujeitos foi que, a partir de suas histórias pessoais, surgissem
os conceitos, as ideias, as dificuldades e as potencialidades que estão por
trás dessa possibilidade de união. Alguns momentos chave são a conver-
são (como, quando e por que os entrevistados adotaram as MAC/AE
como modo de trabalho ou opção de consumo), o presente (como se dão
essas pticas e quais seus significados sociais e políticos), as relações
entre MAC e AE e as expectativas advindas de suas participações nesses
movimentos.
4.2 IMPRESSÕES GERAIS
Como primeira aproximação ao material das entrevistas, e em cer-
to sentido tamm como um resumo das mesmas, apresentaremos al-
guns picos que o as impressões gerais que surgem após o término
dessa fase da pesquisa.
A primeira é que afinidade entre os temas e essa afinidade é
percebida como importante. Na prática, os temas se articulam, mas de
forma incipiente. dificuldades em manter uma prática coerente com
o discurso.
A segunda é que as motivões para a conversão, momento chave
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106
em que o sujeito assume uma posição, no nosso caso, marginal (em que
pese a vontade de distinção), revelam sempre trajetórias peculiares,
singulares, de histórias pessoais que embasam a decisão. Em suma, os
sujeitos individuais e suas escolhas é que são a base dos movimentos, se
é que eles podem ser chamados assim. Se há alguma força coletiva, essa
ainda está dispersa e fracamente articulada.
A terceira é de que um dos fios condutores que pode auxiliar a
conectar as MAC e a AE seria a prudência nas escolhas. O uso da razão
conforme preconizada por Santos (2004), matizada de outras, sem o
predomínio da razão indolente, levaria ao uso conforme a necessidade.
Essa questão, que surge aqui e ali durante as entrevistas, parece ser o
grande mote para redirecionar o uso da rao, dotá-la de certa pluralida-
de e torná-la mais racional, se isso fosse possível.
Essas impressões são, como esclarecido, gerais. Isso significa
que na análise das distintas falas se percebem nuances que matizam
essas impressões e que, por vezes, podem lhes ser antagônicas. Para essa
análise pormenorizada, dividiremos as falas em três grupos, como
delineado anteriormente.
4.3 OS TERAPEUTAS
Como dito em várias partes deste trabalho, estamos lidando
com fenômenos periféricos. Sejam as MAC, seja a AE, esses temas
estão perpassados por uma ideia de marginalidade, não ocupando uma
posição central, hegemônica, em seus âmbitos de existência teórica e
prática. Entender as motivões que levam pessoas a escolherem se
aproximar deles, enfrentando quase sempre, em algum grau, uma espé-
cie de desconforto social de estar remando contra a maré, pode jogar luz
sobre as possibilidades de encantamento das quais essas propostas o
portadoras. Esse processo tem sido chamado de conversão, o que nos
remete a uma espécie de força mística, de acreditar em significados que
transcendam a causa em si, em um processo formador de identidades, de
uma busca pelo seu lugar no mundo.
Dessa forma, estudar as razões pelas quais profissionais formados
no paradigma da biomedicina procuram outra racionalidade médica
como especialidade ou formação em práticas terapêuticas não aceitas
integralmente pela proposta hegemônica vigente no campo da saúde tem
sido motivo de pesquisas diversas (QUEIROZ, 2000; BARROS, 1997;
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107
2008; LUZ, 1996; 2007; DAVIS-FLOYD, 2004; IORIO, 2007;
NOGUEIRA; CAMARGO, 2007). As explicações apontam para o des-
contentamento com a prática médica usual, caracterizada como cara e
excessivamente dependente de fármacos industrializados e exames
complementares, a relação médico-paciente esvaziada, automatizada e
distanciada, a iatrogenia crescente e característica desse tipo de prática,
além das limitações terapêuticas próprias do modelo.
Talvez uma noção que resuma bem esse empobrecimento da cul-
tura em saúde no qual a biomedicina é causa, explicação e resultado e
também onde seus agentes (os trabalhadores em saúde) terminam por ser
agentes privilegiados de manutenção e reforço, seja a contraprodução
característica do fenômeno da medicalização e da iatrogênese cultural
(ILLICH, 1975; TESSER, 2010). É plausível imaginar que os trabalha-
dores em saúde (e aqui nos referimos especialmente àqueles que traba-
lham na saúde pública) que refletem minimamente sobre sua prática
cotidiana, sobre os resultados dela a médio e longo prazo, sintam uma
angústia comparável a de um maquinista que é responsável por uma
locomotiva dentro de um túnel onde não se vislumbra o fim.
Assim, alguns autores já tentaram entender as angústias e motiva-
ções desses “maquinistas” que querem mudar os rumos do trem, mesmo
diante das dificuldades esperadas. Barros (1997, 2000), por exemplo, se
dedica a delinear a medicina complementar, uma ptica que integre as
diferentes racionalidades e práticas, diminuindo o caráter alternativo, de
substituição (associado aos contestatórios anos 60 e 70 do século passa-
do) e passando a um viés de soma e de valorização mútua do que de
bom nas diferentes medicinas. Para tanto, aproximou-se, a partir de uma
abordagem sociológica inspirada em Bourdieu (1983) e da noção de
habitus, do perfil do profissional médico que faz a opção de trabalhar
com práticas alternativas e complementares. Ele descreve três perfis que
indicariam três diferentes graus de adesão às práticas diferenciadas de
MAC. O profissional puro” seria o que não faz ptica alguma de
MAC, estando totalmente vinculado à biomedicina. No meio do cami-
nho, estaria o profissional com o perfil híbrido”, praticante que usa
tanto a biomedicina como as outras racionalidades e correlatos. No outro
extremo, oposto ao perfil puro”, situa-se o convertido”. Neste, a ten-
dência seria de abandono da biomedicina e uma tentativa de mergulho
profundo em outras formas de pensar e praticar o cuidado em saúde.
Outro esquema interpretativo do caminho que leva um profissio-
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108
nal a transformar o seu modo de atuão é proposto pela antropóloga
estadunidense Davis-Floyd (2004). Em paralelo ao modelo proposto por
Barros, existiriam três modelos de formão profissional, os quais ela
chama de paradigma tecnocrático(corresponderia à biomedicina e ao
perfil puro”), o paradigma humanista” (o biomédico que dialoga com
outras medicinas, o perfil “híbrido”) e, por último, o “paradigma holísti-
co(aquele onde se situa o convertido”, que mudou mais radicalmen-
te).
Aqui cabe comentar que o profissional convertido” nos parece
ser, no caso dos terapeutas com uma formação inicial impregnada de
biomedicina, uma excepcionalidade. Em outras palavras, e baseado
também na experiência pessoal, é difícil acreditar que vários anos (no
mínimo seis, no caso dos médicos) de uma educação maciçamente bio-
médica não deixarão marcas indeléveis no pensamento do profissional.
Além disso, um entorno cultural altamente medicalizado, bastante
evidente na saúde pública, que praticamente obriga os trabalhadores em
saúde a dialogarem com e através da biomedicina. Assim, mesmo que o
profissional conseguisse reeducar suas rotinas de diagnóstico e de trata-
mento e transformasse radicalmente a sua própria cabeça, burlando o
roteiro padrão da biomedicina que passa por uma entidade chamada
doença que deve ser tratada”, o empobrecimento cultural resultante da
medicalização, processo social com raízes históricas profundas no tem-
po e de grande alcance cultural, rodearia esse profissional de manhã à
noite, em quase todos os espaços de diálogo com pacientes e colegas.
Mesmo assim, os esquemas de Barros e de Davis-Floyd são inte-
ressantes, pois matizam os processos, que sempre m uma base indivi-
dual e microssociológica, necessários para transcender a formação he-
gemônica. Mesmo porque, como ressalta S. Thiago (2009), ela mesma
uma praticante de MAC, as próprias crises pessoais de profissionais
imersos em uma cultura tamm em crise é que levam ao questionamen-
to de valores e concepções sobre saúde/doença/cuidado, ser humano/ser
espiritual, vida/morte, natureza/ecologia/homem e outros conhecimen-
tos, tradições e preconceitos, estando na raiz da procura por outras res-
postas que não aquelas propostas pela tradição positivista, matriz do
pensamento biomédico.
Usando os esquemas citados, estamos, no nosso caso, diante de
quatro profissionais que se encaixam no perfil intermediário. O primeiro
entrevistado resiste ao ser qualificado de “médico diferente”. Ao matizar
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109
a diferença, explica que sua opção por ela se deu para facilitar a comu-
nicação com a comunidade, evidenciando a dificuldade que a medicina
oficial tem de lidar com as formas autônomas de cuidado dos pacientes:
Não é ser um médico diferente. É ser um médico
com opções terapêuticas diferentes, melhor colo-
cando... Quando eu comecei a trabalhar, uma das
coisas que eu percebi é que as pessoas usavam
muitas outras maneiras de se tratar, e uma delas
eram plantas medicinais. E por isso eu comecei a
ler sobre o assunto, e tal, e comecei a perceber que
ela tem uma possibilidade bem grande de ser utili-
zada como remédios, ou medicamentos, em mui-
tas situações que a gente vivencia. Ela possibilita-
va muito a tua interação com a comunidade, faci-
litava você conversar com as pessoas e entrar na
vida delas. Tendo plantas como motivo era bem
mais fácil, porque era um assunto dominado pelas
pessoas. Começava a perceber que elas também
tinham conhecimento, né, saberes, tal. E foi a par-
tir daí que eu comecei a estudar. (T1)
No segundo caso, o encontro entre o terapeuta e as MAC se deu
principalmente pelas limitações da biomedicina:
Uma coisa que me marcava muito era a falta de
opções terapêuticas pra oferecer. Por exemplo, um
cara gripado, com febre, de cama, torto. Que que
eu tenho pra oferecer na medicina convencional?
Um antitérmico, um atestado pro trabalho, se não
puder trabalhar, e uma gotinha de água pra assoar
o nariz, e ponto. Tem vários problemas que tu não
tem nada pra oferecer pra pessoa, e foi principal-
mente uma busca de outras opções terapêuticas.
(T2)
Por que procurar outra forma de pensar o cuidado? O mais corren-
te e óbvio, e talvez mais fácil, diante de uma limitação como a apontada,
é procurar superar as limitações dentro da própria biomedicina, seja pela
prevenção, usando vacinas, por exemplo, ou através de sintomáticos
melhores”, mais eficientes e muitas vezes, em casos de diagnósticos
imprecisos, perseguir a precisão através de um calvário de exames mais
e mais especializados e sofisticados. Se uma guinada em outra dire-
ção, deve haver outras motivações, e elas surgem:
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110
Antes de entrar na faculdade de medicina, eu fiz
um curso de massagem bioenergética, entre o se-
gundo grau e a faculdade. Eu entrei na faculdade
de medicina totalmente bicho-grilo. Eu me lembro
que nas aulas de anatomia eu procurava os cha-
cras. Na primeira fase eu tava participando de
grupos de estudo de homeopatia e saí da faculdade
de medicina completamente careta e conservador
e quadrado. Eu decidi estudar primeiro a medicina
convencional, e quando eu soubesse ela bem , ia
pros outros campos. (T2)
Apesar de se dizer completamente careta, conservador e quadra-
do” no momento da formatura em medicina, certamente o bicho-
grilo
107
adormeceu mas não desapareceu. Nas primeiras oportunidades,
ou às primeiras desculpas, ele se manifestou, como pode ser lido no
interesse de T2 por medicina ayurvédica. Ora, essa racionalidade é ori-
ginária da Índia, lugar de onde vieram muitas das influências do movi-
mento hippie, ficando especialmente notáveis várias músicas dos Bea-
tles, além da indumentária característica. Aliás, essa menções de T2 o
os únicos sinais, entre os terapeutas entrevistados, nos quais percebemos
ecos da influência do movimento da contracultura, ressaltado como
importante por Barros (2000) e Souza (2004).
Portanto, nesse caso e no próximo tamm, a guinada em direção
a uma mudança na prática se dá, em certo sentido, e pelo menos em
algum grau, como um resgate da história pessoal. No caso de T3, nesse
resgate vamos encontrar fatos bastante marcantes, além da descoberta da
vida rural ao procurar familiares no interior de Minas, da situação políti-
ca da época
108
e do estágio durante a residência junto a um acampamen-
to de colonos sem terra, nos primórdios do MST:
Sou nascida e criada no Rio, urbaníssima. Fui ver
vaca pela primeira vez, chegar perto de vaca pela
107
Em uma busca no Google em 25 de maio de 2020 para “bicho-grilo”, encontra-se
sinteticamente a associação do nome com o movimento hippie.
108
A entrevistada conta que mudou seus planos de pós-graduação, indo parar em Porto Alegre,
porque a repressão política havia capturado seu namorado, líder estudantil: “eu fui parar no Rio
Grande do Sul porque, na época, meu namorado foi preso lá pelo DOI-CODI e me disseram ‘te
manda daqui que eles pegaram, eles vão atrás’. Bateram no Pepeu, quebraram os dentes tudo e
eu me mandei pra Porto Alegre porque uma amiga que morava lá, fui visitar ela. Fiquei
quietinha lá na casa dela uns dois meses e conheci o Murialdo (T3).”
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111
primeira vez, com 17 anos. Quando eu fui pra Mi-
nas, morei um tempo num sítio, eu vi: é isso
que eu quero. Meu pai é mineiro, saiu de Minas
ainda jovem e meio que perdeu o contato. Tinha
um trem que saía de Barra Mansa até Lavras, e
eu fui começar a sair pra conhecer. Eu sei que eu
terminei em Belo Horizonte, passei dois meses e
eu vi que era uma coisa importante, a coisa da
terra. […] Quando eu fiz residência, eu fui no Mu-
rialdo fazer residência, e quando eu fui fazer o
segundo ano de residência, você podia escolher.
Na época tinha os colonos sem terra, você podia
fazer o estágio no acampamento. Fazenda Maca-
rina Brilhante, Ronda Alta. eu fui, me ofereci
pra ir como médica, ninguém queria ir. Era pra fi-
car dois meses, fiquei oito. Fiquei, acampei, traba-
lhei, vivi com os colonos. Fiz desde parto até en-
terro, tudo. (T3)
T3 conta ainda que sua inserção na ptica (plantas medicinais)
aconteceu pelo fato dela encontrar, assim como T1, esse recurso terapêu-
tico sendo usado pela comunidade e deste representar um elo com a vida
rural pela qual ela diz ter se encantado em sua descoberta tardia e que,
de certa forma, experimentou quando se mudou para Florianópolis:
Quando eu comecei a conhecer Minas, que eu
comecei “bah, os chás, os chás...” e o Murialdo
me deu isso também. Vi que as pessoas primeiro
se tratavam com chá, benzedura, que depois vi-
nham pro posto. Até fizemos uma pesquisa nisso:
“que que tu procura primeiro quando com al-
guma coisa?”. “Tomo chá, fico bebendo, depois
eu vou no médico”. E foi na medicina de família
que eu comecei a ver essas outras coisas. Eu gos-
tei mais da fitoterapia porque eu vi, teve a experi-
ência de plantar, com os colonos lá, eles tinham
horta, tinham bichos. Quando eu cheguei aqui (em
Florianópolis), minha casa tinha uma plantação,
criei galinha, criei pato, tinha uma horta maravi-
lhosa, plantei milho, toda essa coisa.(T3)
No último caso, a inserção do médico nas práticas de MAC (acu-
puntura), ocorreu pela necessidade de uma prática menos invasiva e com
menos potencial iatrogênico, mas tamm de forma complementar:
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112
Fui me tornando um acupunturista quando come-
cei a fazer parto em casa, porque no parto tu o
pode usar algo que possa oferecer uma resposta
que tu precise de uma equipe. Tu não pode amea-
çar. Na maternidade, tu pode ameaçar, induzir o
parto, o nenê entra em sofrimento, tu chama o pe-
diatra, abre a barriga, tira a criança. Então, que
que eu posso usar? Uma medicina, uma técnica
que facilita a vida do neném e da mãe, que não te-
nha efeito colateral nenhum, que não interferir
com nada, que não piorar a situação de jeito
nenhum. (T4)
Tamm aqui, há motivações para a conversão que estão na expe-
riência pessoal. O fato de conhecer a biomedicina por dentro” causou
uma repulsa à mesma, quando ele imaginou precisar dela em uma situa-
ção específica (o nascimento do seu filho). O percurso de conversão
passou então, primeiro, pelo desencantamento com a biomedicina. Em
seguida, sentindo a necessidade de uma terapêutica, encontrou a acupun-
tura como opção, primeiro restrita àquela especialidade médica para daí
transformar toda sua atuão como médico.
Quando a minha mulher engravidou, eu imagi-
nava parto em casa. tinha feito assistência na
maternidade. Aquilo não é humano. É o lugar pra
se ir porque não tem outros lugares pra se ir. Mas
não é saudável. […] Mudou muito, mas ainda o-
correm barbaridades no parto. Ele obedece ao seu
próprio ritmo, que é da mãe e do neném, não tem
nada a ver com estrutura, com nenhuma coisa pré-
concebida. O parto ideal é em casa com parteira.
Com a parteira é show. Essa técnica, de parto, tem
cinco milhões de anos. Com médico, não sei o
quê, faz uns 200. E aqui, não faz 50. Antes nascia
todo mundo em casa. A condição de deixar o ne-
ném vivo é legal, mas o trauma contra a humani-
dade pelo parto mal assistido, químico e desres-
peitoso, isso causa uma lesão pra humanidade. A
gente vai ter uma noção disso daqui hmm,
bom, acho que tendo, que ninguém pes-
quisa “porque tu és perturbado desse jeito?” e o
sabe que isso nasceu no parto. É óbvio. (T4)
O que de comum nos quatro casos? Percebe-se uma inquieta-
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113
ção ética com as limitações práticas da profissão que esses terapeutas
abraçaram, com seu alcance social por vezes diminuído. Há a necessida-
de de melhorar a comunicação, de valorizar os saberes existentes nas
comunidades. Essa inquietação ética talvez ajude a explicar porque to-
dos eles trabalhem no SUS e, indo um pouco além, delineia uma afini-
dade entre saúde coletiva e essas outras medicinas.
A situão de perfil híbrido significa que, no caso dos nossos en-
trevistados, as práticas de MAC assumem principalmente o papel com-
plementar. Usando as compreensões da sociologia das ausências de
Santos, ao colocá-las em seus arsenais terapêuticos ocupando as brechas
que a biomedicina deixa, seja pela falta de opções terapêuticas (no e-
xemplo dado, no caso de uma simples gripe), seja pelo custo excessivo
(e consequente distanciamento das camadas mais populares), seja por
seu potencial iatrogênico (aqui, o exemplo foi a obstetrícia), a inseão
das MAC não se dá em pé de igualdade epistemológica. Os terapeutas as
assumem como alternativas credíveis, porém de forma incompleta, ainda
submissos à razão metonímica. Na razão metonímica, as práticas alter-
nativas o inteligíveis em comparão com as práticas hegemônicas
(SANTOS, 2004, p. 783). Ou seja, a opção por elas só faz sentido quan-
do comparadas às limitações da biomedicina, sendo que esta ainda re-
presenta a totalidade, o espelho onde as outras práticas se refletem. Isso
está longe de ser surpreendente, uma vez que todos eles tiveram uma
formação em biomedicina.
Ademais, seguindo as pistas que um diálogo (já realizado por
TESSER, 2010) da epistemologia de Fleck (1986) com o trabalho de
Kleinman (1980) poderia render, talvez pudéssemos dizer, especialmen-
te entre os terapeutas que trabalham com plantas medicinais, que um
respeito maior ao conhecimento em saúde cristalizado nos círculos exo-
téricos (ou pelo menos os assim compreendidos quando se trata de bio-
medicina) e nos setores de cuidado informal e popular, depositários
maiores do conhecimento sobre plantas medicinais e com muito mais
experiência no seu uso.
No entanto, não apareceram nas entrevistas menções a outras vir-
tudes ou qualidades das MAC que poderiam servir de atrativo a terapeu-
tas inquietos. A mais abrangente dessas características talvez seja o ho-
lismo. Esse atributo, de definição relativamente simples
109
, foi anali-
109
Holismo pode ser entendido como uma ideia que valoriza a totalidade, podendo resumir-se
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114
sado como contraponto ao individualismo característico da modernida-
de
110
(DUMONT, 1985) e, por vezes, é entendido como uma caracterís-
tica das MAC de uma forma geral (QUEIROZ, 2000; SOUZA, 2004).
Apesar de entendermos que o holismo é bastante mais compatível com
as MAC do que com a biomedicina, nem sempre ele esta presente,
como quando existe apenas uma lógica de substituição, o que é fácil de
ocorrer na fitoterapia
111
, por exemplo.
Essa ausência do holismo, ou de uma visão mais integral, nas en-
trevistas, não significa que este não esteja presente nas práticas dos nos-
sos entrevistados, ainda mais por se confundir, em certo sentido, com
um dos pilares do SUS, a integralidade no cuidado, e de todos os entre-
vistados assumirem-se como defensores desse sistema. Todavia, assim
como os outros princípios do SUS, a integralidade é um desafio imenso
de ser posto em prática. Entendemos, contudo, que a prática das MAC
seria uma ponte mais viável para nos aproximarmos de um cuidado mais
integral, que transcenda o usual olhar focalizado das especialidades
médicas e paramédicas.
Outrossim, o holismo, em uma versão holista, levaria os cuidado-
res em saúde a se preocuparem com a saúde do mundo, ligação bastante
evidente para uma ão mais consequente social e ecologicamente e
aproximando, também, os cuidadores holistas da AE.
Seguindo as entrevistas, chegamos a um possível ponto de con-
vergência, já abordado, entre os fenômenos em questão: a sua base soci-
al difusa na sociedade, especialmente entre os extratos mais exotéricos.
Isso é particularmente evidente e importante no caso das plantas medici-
nais, mas também o é no caso das benzedeiras, rezadeiras e outras pti-
cas de cura espiritual. O saber sobre as plantas, seus usos e potenciali-
dades, normalmente está depositado, através de um dinâmico processo
de experimentação e transmissão de saberes totalmente autônomo e
desvinculado de qualquer sistematização, de forma parelha na sociedade
na frase: o todo é mais que a soma das partes.
110
As noções de direitos e deveres das pessoas são relativamente recentes e de matriz europeia
e norte-americana. Os marcos fundadores do surgimento da noção de indivíduo são a
Revolução Francesa (1789) e a Independência dos Estados Unidos (1779).
111
A fitoterapia muitas vezes apenas substitui um fármaco processado industrialmente por um
princípio ativo presente em uma planta, não resultando propriamente de uma mudança de olhar,
de mais reducionista para mais holístico, restando compatível com o mesmo roteiro de
diagnose e tratamento da biomedicina.
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115
e tem raízes históricas bastante antigas, talvez anteriores à própria histó-
ria.
Assim, por exemplo, será difícil encontrar um médico que não as-
socie o chá de maracujá a uma ação calmante”, mesmo que não o indi-
que ou que o acredite em sua eficácia. No entanto, a maioria dos mé-
dicos não fará essa associação porque é um terapeuta, um cuidador e
tem alguma formão em fitoterapia, e sim porque tamm faz parte da
população em geral. A medicina oficial, dominada pela indústria quími-
ca farmacêutica, perdeu o contato com esse uso direto das plantas na
atenção à saúde, apesar do reconhecimento da importância da fitoterapia
nas comunidades por parte dos cuidadores e da presença recente do
assunto nos currículos de escolas da área da saúde (CAVALAZZI,
2003). Esse fato sugere que, para usos mais específicos ou sofisticados
de plantas medicinais, os círculos esotéricos não o os doutores em
medicina, e sim os raizeiros, os curandeiros e
a população. Dentro da população em geral, tem
pessoas que têm mais conhecimento e que acabam
sendo, dentro da comunidade, o curador. Mas
sempre tem uma pessoa que sabe sobre plantas a-
lém daquelas que ela utiliza, então esse acaba ori-
entando os outros. Isso não se perdeu, apesar do
ataque direto da medicina oficial. Se tu for estudar
o tecido social, ...tu vai ver que tem pessoas po-
tentes pra determinadas situações, o cara que or-
ganiza, o cara que trabalha com saúde, o cara que
entende mais de tempo, da terra, entende? Então,
não é todo mundo potente igual. (T1)
A definição e as atribuições de curador que faz T1
112
nos remetem
à ideia de especialista social, no sentido dado a essa expressão por Ber-
ger e Luckmann (1996): alguém que entende mais de um assunto qual-
quer que um leigo ou não iniciado. Em práticas de cura e cuidado, as
sociedades sempre contaram com seus especialistas sociais: os pajés,
xamãs, sacerdotes dos mais variados, curandeiros, raizeiros, benzedei-
ras, etc. As profissões da área da saúde ocupam esse espaço, com a dife-
rença de que, no caso, há um reconhecimento formal oficial instituciona-
112
É interessante notar o “ato falho” de T1, ao chamar as pessoas das comunidades que
entendem mais de cuidado de “curadores”, denominação que o próprio recusou para si mesmo,
dizendo que “a cura é meta da medicina oficial”.
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116
lizado. E dentro do rol de profissionais reconhecidos, os médicos ocu-
pam a posição principal.
Afora essa característica epistemológica, de conhecimento mais
democratizado, outras razões que empurram as pessoas para as práti-
cas de MAC.
Tem havido um aumento na procura por práticas
terapêuticas não convencionais. Eles [a popula-
ção] não é um grupo de pessoas que não tenham
uma sabedoria, um conhecimento. Então, eles
começam a abandonar coisas que prometem e o
resolvem. Eles tão avaliando que muitas coisas
que a medicina oficial oferece não modifica o pa-
norama da, digamos, morbidade que eles, as pes-
soas têm. E, ao mesmo tempo, a população nunca
deixou de utilizar as outras práticas, porque a prá-
tica alopática era muito, entre aspas, elitista, eco-
nomicamente falando. As pessoas nunca abando-
naram as plantas, as outras práticas, as benzedu-
ras, porque conseguem resolver as mazelas que as
pessoas têm, e era muito mais prático, mais aces-
sível, mais barata. (T1)
Por outro lado,
Uma das coisas que eles falam é que planta é pra
pobre, mas não é verdade isso. Também pode ser
caro se tratar com planta. Procuro dissociar isso
“uso planta porque trabalho com a população po-
bre”. Não é isso não. Quando eu comecei a usar
planta foi porque eu percebi que elas têm uma a-
ção terapêutica, uma ação benéfica. Por isso. Não
é pensando em pobreza e riqueza. (T1)
Dessa forma, essas práticas não convencionais são retratadas, em
um momento, como uma alternativa ao “elitismoda prática alopática e,
em outro, “tamm podem ser caras”. Entendemos que a mensagem que
quer ser transmitida é que, independente da questão econômica (que a
princípio favorece o uso de plantas e de outras formas de cuidado popu-
lares, como benzeduras, por exemplo), a opção que esse terapeuta fez
por trabalhar com esses recursos leva em conta, principalmente, seus
efeitos terapêuticos benéficos.
A mesma contradição talvez exista quando se diz que um au-
mento na procura pelas MAC e que a população sempre se tratou, majo-
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117
ritariamente, com elas. Para explicar essa questão, temos de recorrer a
matizes, ou seja, há práticas (como as plantas medicinais, as benzeduras,
as práticas espirituais) que sempre foram um recurso muito utilizado por
grandes parcelas da população (notadamente, no Brasil, as com acesso
mais difícil à biomedicina). Recentemente, contudo, houve dois movi-
mentos contraditórios, uma expansão do acesso à biomedicina (vincula-
do ao SUS e à ESF) e o aumento na oferta de outras formas de cuidado
não biomédicas. Um pouco de luz sobre essa questão pode vir das refle-
xões realizadas por Bates (2000) acerca do surgimento de uma nova
medicina, que representaria, apesar de apresentar-se como nova”, um
resgate do que ele chama de paradigma clássico”. Ou seja, esse cresci-
mento das MAC estaria associado a uma releitura de formas de cuidado
pré-modernas, p-biomedicas.
Contudo, a despeito das muitas facetas sociais, históricas e co-
merciais envolvidas, há um indiscutível aumento na procura pelas MAC
de forma geral, amplamente documentado e estudado (EISEMBERG,
1993; JONAS; LEVIN, 2001). Esse movimento no mercado e da ciência
oficial de interesse pelas práticas não convencionais é assim expresso
por um dos entrevistados:
E a medicina oficial seguia seu rumo, impávida,
até eles começarem a perceber, via seguradoras,
que a grana que eles tavam perdendo pras com-
plementares era demais, até para um sistema tão
bom como o alopata, que as cifras ascendiam a bi-
lhões. A mesma coisa aconteceu com a acupuntu-
ra. Acupuntura, até uns 15 anos atrás, era uma coi-
sa sem sentido, uma coisa que o se explicava,
uma coisa de charlatão. Depois que eles viram que
funcionava, que tinha uma explicação lógica que
eles ainda não tinham alcançado e que dava
muuuito dinheiro, eles tentaram se apropriar, as
autoridades médicas. E pra médico. Houve
muita discussão, mas várias outras profissões
conquistaram o direito de serem potentes terapeu-
ticamente na área da acupuntura. E isso uma
ideia que essa área não é uma área em que as pes-
soas conversem baseados em fatos claros, muitas
vezes eles escondem as coisas, inventam. Por e-
xemplo, a fitoterapia. Eles não conseguem enten-
der como age uma substância, que dirá o conjunto.
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118
E também porque eles não fazem força pra enten-
der, a orientação principal que os laboratórios que-
rem é descobrir uma substância que eles possam
enfrascar e exercer direitos de propriedade e ven-
der. Tudo isso colaborava para que as práticas
complementares fossem empurradas pro gueto,
assim, do “não pode”. E isso mudou por causa da
população, porque ela consome, ela tava saindo
fora, então a ciência teve que se apropriar. Na Eu-
ropa, tem uma comissão que foi criada pra validar
muitos remédios vegetais, de origem vegetal, que
a população usava e o sistema médico oficial não
conhecia mais. Ele não tinha mais capacidade de
discutir o assunto, porque tinha relegado. (T1)
Nesta outra fala tamm surgem críticas à postura oficial da me-
dicina e ao consequente distanciamento desta das expectativas dos paci-
entes que a procuram. A biomedicina é descrita como uma prática super-
especializada e que não responde às perguntas e à ansiedade atuais. O
médico convencional é delineado como alguém que busca entender mais
de coisas muito específicas e é um ignorante em saberes mais gerais e
importantes, não conseguindo estabelecer trocas com a população e nem
dar atenção, que seria a grande demanda das pessoas:
Eu acho que a sociedade tem mais afeição pela
medicina integrativa, vamos dizer assim, que as
universidades e faculdades de medicina, porque o
cara se aprofundou muito. Antigamente, tu era
médico, bom, resolvido, tu é médico. Agora,
tu é médico de ouvido, de unha, de pelo, de bun-
da, de boca, então o cara ficou muito na dele. O
presidente da associação médica brasileira, que é
aqui de Floripa, disse que não acredita em acu-
puntura, como quem diz “não acredito em budis-
mo”. Isso é uma ciência, pô! Isso é uma declara-
ção gigantesca de ignorância. Tu pode dizer as-
sim: “pô, não conheço, cara, nunca estudei isso aí.
li muita coisa...” Porque hoje sai na Veja, na
Planeta, na Istoé, em tudo que é troço. Agora, mé-
dico não lê nada, ele os boletins de sua espe-
cialidade e vai nos congressos. Ele não abre a ca-
beça pra outras coisas. Agora, essa medicina atual,
ela não responde à ansiedade atual. As pessoas
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119
querem atenção, e quem atenção? O massagis-
ta, o curandeiro, o ervateiro, a parteira. Essas pes-
soas não estão tão enfronhadas na técnica, assim,
em geral. Não têm a cabeça tão fechada, têm a ca-
beça mais aberta. “... eu tive ontem no centro
espírita e a moça disse que eu mesmo possuí-
da”. Não digo “tá maluca! Tem que tomar um...”,
não digo. Vai que ela possuída mesmo (risos).
Então, a pessoa quer outras respostas. Não adianta
vir com explicação que não responde a minha
pergunta. Então, essas medicinas integrativas,
como tão dizendo hoje, tanto faz fitoterapia, acu-
puntura, homeopatia, medicina antroposófica, qui-
ropraxia, elas têm mais eco junto à população. As
pessoas... A população tem a cabeça mais aberta
que a academia, com certeza. (T4)
Nas duas últimas falas, os dois entrevistados dão a entender que
as práticas de MAC são, a princípio, bem aceitas pela população e que
essa afeição” se pelo fato de as pessoas em geral terem a cabeça
mais aberta”. Essa “cabeça mais aberta” é que representa a grande espe-
rança de resistência à monocracia científica moderna. Ora, se as pessoas,
mesmo imersas em uma cultura altamente medicalizada, buscam ou
aceitam de bom grado (muitas vezes, como ressaltado, pela pobre pers-
pectiva oferecida pela biomedicina) outros olhares para as questões que
lhes afligem, é um sinal evidente de falência na pretensão totalizante das
piores versões do pensamento cientificista (bastante presente, como na
fala referida do presidente de uma associação profissional médica).
Em outras palavras, a grande força motriz para transformações
sociais, seja nas pticas em saúde, seja no modo como nos alimenta-
mos, pulsa na sociedade. A partir das necessidades, anseios, aspirações e
vontades das pessoas é que brotam, crescem e se estabelecem as alterna-
tivas de transformação. Teremos oportunidade de voltar ao tema nas
seções sobre agricultores e usuários.
Retornando à ideia dos modelos de formão em medicina de Da-
vis-Floyd (2004), fica clara aqui a crítica ao paradigma tecnocrático que
predomina na educão biomédica. Adaptando as ideias de Merhy
(2002) sobre tecnologias duras, leves-duras e leves
113
, poderíamos a-
113
Merhy (2000) descreve as tecnologias duras como associadas a objetos que concentram
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120
crescentar que, na visão de T4, os cuidadores populares ou não especia-
lizados (“o massagista, o curandeiro, o ervateiro, a parteira”) dominam
melhor as tecnologias leves que os superespecialistas formados pela
biomedicina, além de serem essas mesmas tecnologias a principal de-
manda das pessoas (“as pessoas querem atenção...”).
Mesclados e imbricados a esses significados epistemológicos e
econômicos, como componentes de um mesmo quadro, temos implica-
ções políticas, assim reconhecidas:
Do meu ponto de vista, sim. Por que? Primeiro,
porque nós somos uma sociedade que acumula e
ela é um contrassenso dentro da natureza, porque
são poucos os acumuladores que nem nós. Digo,
assim, que nem o urso, que come pra acumular
gordura. Nós sobrepassamos o racional. O racio-
nal. Porque essa é uma coisa irracional. E aí, tu
vê, a maior parte das pessoas que tem um cérebro
endoutourado funciona a dinheiro. Qual é a ra-
zão que existe por trás disso? Uma vez disseram
pra mim: “tu tem que cobrar pelo teu curso de
plantas, porque senão as pessoas não vão dar va-
lor...” Olha que louco, né? O valor intrínseco da
história, tu nem mais... Agora, se eu cobrar cem
reais... Essa é a maneira que as pessoas m de
pensar. O significado desse tipo de resistência,
primeiro que as pessoas veem que aquilo que é
ofertado, oferecido e propagandeado. Eu acho que
politicamente, é um foco de resistência do co-
mum, do igual pra todos, eu vejo isso um pouqui-
nho dessa maneira. (T1)
Há, portanto, uma visão que defende uma pluralidade. É a defesa
de uma conformão social, e nela estão incluídas tanto formas de cui-
dado como formas de cultivo (de plantas, de ideias, de formas de convi-
vência), onde não haja uma supremacia acrítica e irracional de uns sobre
os outros. Sobre o risco de haver uma radicalização para o outro extre-
mo e o risco de se ficar dogmático, o que se defende é uma pulverização
do poder, à moda do “o pequeno é bonito”, de Schumacher (1977) ou do
saberes prévios (ex. uma caneta de alta rotação). As tecnologias leves-duras são também
sustentadas por saberes prévios, mas são virtuais (ex. o saber epidemiológico). Por fim, as
tecnologias leves só se expressam nas relações pessoais, no trabalho vivo.
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121
swadeshi de Gandhi
114
, citado por Santos (2004):
Então, mesmo que se exerça [algum dogmatismo],
são pequenos feudos, não é um grande império
como a gente tem hoje. E na história da medicina
também. O que é importante é a gente entender
que isso acontece como coisas da natureza, algu-
mas pessoas se apropriarem das coisas, mas não
pode permitir que isso seja um poder absoluto... É
como uma religião monoteísta. Por exemplo, se os
caras chegarem à conclusão que dentista barbudo
tem que morrer, tu [o entrevistador] tá ralado...
Esse mono, monopensamento, essas coisas é que
são perigosas, na verdade. Pequenos títeres, pe-
quenos ditadores, isso acaba não influindo na
totalidade das coisas. Mais o grande poder, como
a gente hoje, do que pequenos poderes. Eu não
quero homogêneo, eu quero menos poder absolu-
to. Mesmo que tenha o acupuntor que seja só acu-
puntor, não interessa. Desde que ele não tenha po-
der de dizer: “quem não é acupuntor, morte”. Ele
vai ter o grupo que vai procurar, como existe
hoje. Ninguém é unanimidade, entende? Senão,
tem alguma coisa burra no meio, como dizia o a-
migo Nélson, lá. Nós temos que ter uma sabedoria
tal de evitar o aparecimento de poderes absolutos
e enormes, que abarquem grande numero de pes-
soas e de área, comose encaminhando. Tu pega
uma indústria farmacêutica, por exemplo, que ho-
je tem oito empresas que são, detêm o oligopólio e
tu pega uma coisa distribuída, pequenas farmaci-
nhas, aqui e ali e ia ser diferente pra população em
geral. Eu acho que passa pela questão do po-
der.(T1)
A crítica ao monopensamento na fala acima é uma expressão clara
da mesma crítica que Santos (2000, 2004) faz à monocultura do tempo
114
Swadeshi é aquele espírito em nós que nos restringe ao uso e serviço do que nos cerca
directamente, com exclusão do que está mais distante[...] No domínio da política, eu devo fazer
uso das instituições indígenas e servi-las resgatando-as dos seus defeitos patentes. No da
economia, devo usar apenas coisas produzidas pelos meus vizinhos directos e servir essas
indústrias tornando-as mais eficientes e completas naquilo em que possam revelar-se em falta”
(GHANDI, 1941 apud SANTOS, 2004;p.803).
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122
linear e a outras monoculturas, como a monocultura do saber. Volta à
cena a pluralidade epistemológica e prática como forma de emancipação
à homogenização, que exclui as diferenças ou desacredita-as. Essa plu-
ralidade aproxima os praticantes de MAC da Agricultura Ecológica, uma
vez que essa tamm se caracteriza pela multiplicidade de direções prá-
ticas e campos de atuação, preocupando-se e atuando de variadas formas
sobre os patrimônios culturais envolvidos na produção e distribuição dos
alimentos. Uma escala diferenciada (“uma coisa distribuída, pequenas
farmacinhas”) tamm é um dos motes da AE, que uma contradição,
grosso modo, do gigantismo pprio do capitalismo e sustentabilidade
ética, social e ecológica, tema também abordado por Schumacher
(1977).
Abordar a questão da alimentação dentro da prática profissional
do cuidado em saúde e também na vida pessoal dos nossos entrevistados
terapeutas foi outra das formas pela qual tentamos chegar, com muitas
limitações, à vida real”, ou seja, como os nossos sujeitos vivem, além
do discurso, a questão da alimentação. De um ponto de vista antropoló-
gico, a melhor forma de observar, não somente essa, mas tamm outras
questões abordadas nas entrevistas, não seria através de perguntas, e sim
acompanhando o cotidiano
115
. Feita essa ressalva, podemos considerar,
entretanto, que mesmo que algumas coisas ditas não sejam exatamente
as vividas, o fato de enunciá-las na situação de pesquisa representa
algo. Em alguns momentos, contudo, o entrevistado faz uma autocrítica
ou diz uma brincadeira que deixa transparecer o que ele inicialmente
não queria dizer, nos deixando pistas mais autênticas.
Feitas essas considerações, poderíamos subdividir o tema em três.
Como eles se alimentam, como eles pensam que deveria ser e como eles
abordam essa questão na prática de cuidado.
Em primeiro lugar, como dizem que se alimentam esses pratican-
tes de MAC? Ao questionar sobre o tema, a intenção era sabermos se os
nossos praticantes de MAC poderiam ser enquadrados como consumi-
dores de AE e, tamm, se eles usavam o mote da alimentação saudável
para chegar ao tema (AE) no trato com seus pacientes.
115
Minayo cita Goffman, que chama assim ao jogo de cena onde o informante tenta manter em
sigilo sua “região interior”, lugar onde qualquer grupo guarda seus segredos (MINAYO, 2000,
p. 116-117).
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123
Um deles se expressa assim:
Meu prato é arroz, feijão e muita fruta, verdura.
Eu compro orgânico, mas é caro. A gente mistura
os dois. Por exemplo, eu não encontro cebola. Faz
três meses que eu vou na feira orgânica e não en-
contro cebola. Então, como eu gosto muito de ce-
bola acabo comendo cebola que é uma das mais,
vamos dizer assim, intoxicadas por agrotóxicos.
(T1)
Já o próximo entrevistado (T2) nos contou que, muitas vezes,
termina por se alimentar em restaurantes. No caso, o cuidado consiste
em buscar locais onde se faça uma comidinha boa”. Outro cuidado
citado por ele é o de fazer ocasionalmente jejuns, mais como um trei-
namento de mente pra enfrentar a voracidade”.
T3 foi enfática em colocar-se como uma consumidora de alimen-
tos saudáveis e especialmente de alimentos “orgânicos”, se dizendo
preocupada com a questão dos agrotóxicos:
Sim, a gente frequenta as feiras. A M [filha] vai na
feirinha da universidade. Quando falta, a gente vai
no [diz o nome de um supermercado], vai direto
nos orgânicos. Procura comer mais alimentos in-
tegrais, que não tenham, que não vá muito agrotó-
xico. Eu já plantei. (T3)
T4 se empolga ao falar em alimentação, certamente porque,
como ele mesmo diz, é uma fonte de prazer”. Ele também nos contou
da necessidade, vontade e dificuldade em perder uns quilos que ele julga
ter a mais:
Eu procuro balancear, mas [como] excesso de car-
boidrato. Eu como muito carboidrato, também por
ser uma fonte de prazer. Eu como muito pão inte-
gral, como muitoo do Márcio. Mas como muito
pão. Pão de monte. Se dissesse assim... eu como
muita verdura, bastante fruta. Se tiver orgânica, eu
prefiro orgânica. Mas como não tenho mais comi-
do em casa, faz anos que eu não como em casa, eu
não vou mais na feirinha. Eu vou na feirinha de
sábado, orgânica, pra comprar flores, que os
buquês deles são mais bonitos que os industriali-
zados [risos]. Mas não adianta comprar alface,
tomate, ali, não. Mas eu compro tomate, iogurte,
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124
pra fazer uma macarronada mais orgânica, assim,
né. É isso. Mas eu com certeza não me encho
de veneno. No restaurante, eu como uma tonelada
de verdura. Eu como carne. fui vegetariano,
quer dizer, me abstive de comer carne durante
uns cinco anos e foi uma época maravilhosa. Nes-
sa época eu remava intensamente e nesses cinco
anos, nunca perdi pra ninguém. Não sei se foi isso
ou se parar a carne me motivou muito. Mas eu sei
que quando eu como carne, eu tô contribuindo pra
acabar com tudo. Se eu tivesse vergonha mesmo,
eu não comeria mais carne de boi. eu prefiro,
se alguém matou um boi por aqui... Eu sei que
tem açougue com carne mais fresquinha e tem ou-
tros, como o [diz o nome de um supermercado],
que trazem do Mato Grosso, aqueles bois confina-
dos. Mas eu como, não interessa a origem. Acaba
que eu como. Não sou bem carnívoro, assim. Não
me incomodo se não vai ter mais carne, mas eu
adoro uma carnezinha. Se me disserem: “vamo
no churrasco”, eu vou. (T4)
Nessa fala de T4 surge um tema interessante e que também está
bastante em voga quando se fala na relação alimentação e saúde, o vege-
tarianismo. A questão não foi aprofundada, mas se percebe uma crítica
ao consumo de carne no nível individual, que fez com que ele ficasse
cinco anos sem comer carne, apesar de adorar uma carnezinha”, e tam-
bém no nível ecológico, quando ele diz que quem come carne está “con-
tribuindo para acabar com tudo”. O prazer momentâneo termina por
falar mais alto. Talvez, como ele mesmo diz, porque:
as pessoas buscam fonte de prazer, e as comidas
refinadas e industrializadas são fonte de prazer.
São drogas bem elaboradas. [...] no início, parece
que os índios ficaram viciados em açúcar. Então,
deve fazer bem pra mente. Instantaneamente. Es-
sas fontes de prazer, não adianta tu chegar dizendo
“não pode fazer isso aí”. não chega o governo
que quer que eu pague IPTU, não sei o quê, e vem
o médico ainda diz,...pô! (T4)
Portanto, até aqui, nas falas se percebe que há certo embate en-
tre o idealizado e o vivido. Tentando abordar a questão de maneira mais
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realista, tanto na vida pessoal com na atuação profissional, surge a ques-
tão: como deveria ser e como acaba sendo de fato?
A maior parte dos sistemas antigos dizia o quê?
Que você tem que ter atividade física e alimenta-
ção adequada, repouso e bons pensamentos. Diz a
história que a primeira coisa que o terapeuta chi-
nês dizia pra quem o procurava era: “coma dife-
rente e faça atividade física”. É gico que a ali-
mentação é uma coisa muito importante, mas é a
mais difícil da gente trabalhar. Agregado ao fato
de que nós não comemos o que é adequado. O ín-
dice de consumo de frutas, vegetais, verduras, é
baixo, e ainda a gente agrega o fato de que aquilo
que a gente come é contaminado por pesticidas e
agrotóxicos, o que leva a gente a ter doenças que a
gente nem imagina. A alimentação orgânica deve-
ria ser mais incentivada do que hoje ela é, porque
hoje é um alimento caro, por ter poucos produto-
res. Consigo abordar isso, mas depende da pessoa.
Na frente do posto (de saúde), tem uma feira que
não é orgânica duas vezes por semana, que é mui-
to frequentada. Então, vamos por partes. O pri-
meiro passo é fazer o cara consumir fruta e verdu-
ra. Essa é a parte mais difícil. A gente acaba con-
sumindo comidas não saudáveis, hipercalóricas,
sem micronutrientes. Onde estão os oligoelemen-
tos? Tão na tua comida. Teu prato tem que ser
multicolorido. (T1)
Portanto, existe uma percepção de que a alimentação é um tema
central em se tratando de saúde, como já estava claro na medicina chine-
sa antiga e, em certo sentido, tamm no senso comum. Porém, é um
tema dos “mais difíceis pra gente trabalhar” (T1).
Por que é um tema tão difícil de ser trabalhado? algumas li-
nhas de raciocínio que podem ajudar a responder essa pergunta. No
mundo das superespecializações, temos pelo menos duas categorias
profissionais formadas apenas para tratar do tema alimentação de forma
terapêutica, os nutricionistas e os médicos nutrólogos, além de outras
profissões correlatas, como os engenheiros ou tecnólogos de alimentos,
com outro viés. Uma primeira linha de explicação poderia ser a de que
faltasse capacitação ao terapeuta não especialista para tratar do assunto.
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126
Apesar de a alimentação saudável figurar entre os motes da promoção
de estilos de vida saudável, dentro da badalada promoção de saúde, o
nível de informação não se aprofunda, restando esta um tanto superficial
e automática. Ademais, a maioria das pessoas que procuram atendimen-
to, segundo os próprios entrevistados, busca uma solução rápida (“uma
baga”, T3) para suas mazelas. Juntam-se, portanto, a expectativa do
paciente por uma solução pida com a ptica usual do médico-
terapeuta, que é prescrever algum fármaco. A questão da alimentação
acaba sendo compreendida, na relação médico-paciente, como secundá-
ria, subsidiária, complementar, indo parar no receituário não farmaco-
lógico” (T3). Sendo que tal receituário, no imaginário coletivo predomi-
nante dos pacientes, e possivelmente de muitos profissionais
(CAMARGO JR., 2005), está em um segundo plano.
Outra resposta possível do porquê da dificuldade de abordar o te-
ma alimentação é a própria vida moderna e suas demandas de manejo do
tempo e das relações sociais que “exigemsoluções práticas e rápidas, o
que pode ser resumido na ideia de coerção social. Parece ser uma das
formas por onde opera o fenômeno da medicalização social descrito por
Illich (1975). A solução medicalizada para os problemas situa essa solu-
ção fora da capacidade autônoma das pessoas. A resposta medicalizante
é sempre no sentido de mais medicalização. Assim, se concluímos que o
fast food não é saudável, por exemplo, que criemos o fast food saudável,
com menos gordura, etc. A mesma lógica que acaba prevalecendo nas
condutas de nossos entrevistados.
Eu compro tomate sem agrotóxico. Nesse eu
sou radical. Cenoura, alface, tomate, esses eu
compro sem agrotóxico. A não ser que venha em
formato de uma pizza. E depende da comida. Tem
umas que têm mais problema do agrotóxico ou
menos. (T2, grifo nosso)
Quase não como tomate, quase não como batati-
nha. Muito raro. Batata frita mesmo, uma vez na
vida outra na morte. Mesmo em churrasco. Nada
que batata, nada que tomate. Morango tam-
bém, se não for orgânico, não como. Mas isso eu
não como de jeito nenhum porque eu sei que fora
isso e maçã, que eu sei que vai muito veneno, mas
maçã eu como, tiro a casca, mas tem muito vene-
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127
no dentro. Vai quarenta e poucas aplicações numa
época. Isso é impossível. (T4, grifo nosso)
Ou seja, diante da percepção de que contaminação dos alimen-
tos, esses sujeitos escolhem alguns alimentos, que julgam ser mais con-
taminados e os excluem (ou quase) de suas dietas. Às vezes, mesmo
sabendo da contaminação, não conseguem abster-se (como as cebolas
para T1, as pizzas para T2 e as maçãs para T4). Como propor mudanças
nas vidas das pessoas que, além de lhes custar a abstenção de prazeres
momenneos, exijam delas mais tempo? Que lhes peça mais atenção e
cuidado com aspectos quase que totalmente em segundo plano, como a
qualidade em sentido amplo do que se come? São as demandas urbanas,
como cita T4: “Mas como tu vive urbanizado assim, tu tem uma deman-
da de urbanização. Por exemplo, eu gostaria de andar mais de bicicleta.
Dá? Não!Além da falta de tempo, outras dificuldades. No caso do
andar de bicicleta, a falta de vias preparadas para o ciclismo nas cidades,
de lugar adequado para guardá-la ou pAra se tomar um banho. O mesmo
terapeuta fala, dentro desse mesmo contexto, das dificuldades relaciona-
das a outras pticas saudáveis:
Pra ter uma base, no nosso grupo de hipertenso,
diabético, obeso, neurótico e outros psicóticos que
se reúnem por causa de problema de saúde, che-
gamos à conclusão de que precisaria ter atividade
física, né. Então, vamos caminhar, vamos cami-
nhar! Três dos participantes morreram atropelados
na Lagoa porque não tem calçada. (T4)
Talvez a estratégia que os profissionais de saúde adotassem para
fazer frente a esses prazeres instanneos, como os oferecidos pela co-
mida industrializada, e mesmo às dificuldades aparentemente impostas
pela urbanização, fosse acenar com a possibilidade de outros prazeres,
bastante particulares e singulares, como saborear alimentos plantados
por nós mesmos ou ir pedalando para o trabalho. Para ser consequente
nessa estratégia, contudo, os próprios profissionais deveriam vivê-las e
sentir, verdadeiramente, a dor e a delícia de ser o que é”, como canta
Caetano.
ainda outra nuance a dificultar uma prática razoável de pro-
moção de saúde, incluindo a alimentação, que não resvale para o que
Nogueira (2003) chamou de higiomania moderna, uma obsessão por um
estilo de vida saudável (um dos cinco pilares da promoção de saúde
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128
como proposta em Ottawa). A noção apresentada por Nogueira seria a
versão medicalizada e medicalizante de uma ideia nobre, ou seja, trans-
formar a alimentação não tão saudável em um risco iminente de patolo-
gias que devem ser prevenidas, com alguma dose de autoritarismo e sem
apelar para a autonomia. Apelando frequentemente a complementos
alimentares e outros congêneres, mais ou menos farmacológicos. Nessa
versão, quem sabe qual é o estilo de vida saudável de alguém é o seu
terapeuta, jamais o próprio sujeito.
A medicalização e seus agentes, por sua vez, não desperdiçam
uma oportunidade de transformar um comportamento desviante em
patologia. Assim, surge a ortorexia, em outras palavras, a doença do
higmano. Fecha-se o ciclo. Se a pessoa se preocupar em demasia com
o estilo de vida saudável, será enquadrada. Será enquadrada igualmente
se não se preocupar muito.
Por último e não menos importante, a questão econômica. O
que se convenciona chamar de alimentação saudável
116
, ainda mais se
for acrescida da qualidade de não conter resíduos de produtos químicos,
e ainda mais se for certificada, é percebida como um alimento caro. Essa
também é a opinião que transparece nas falas de alguns dos nossos en-
trevistados. Às vezes, o alimento orgânico parece ser caro para o próprio
consumo e, em outras, é caro para indicar para os pacientes, mas nem
tanto para si próprio.
Uma coisa que eu não abordo, e que às vezes me
deixa de consciência pesada, é a questão dos ve-
nenos na agricultura, os agrotóxicos. Isso deve es-
tar relacionado a algum tipo de problema. Como
ainda não passamos da fase 1, que é melhorar a
qualidade da alimentação, e como os alimentos
sem agrotóxicos são caros, é uma coisa que eu
normalmente não entro no mérito (T2).
Em resumo, dificuldades teóricas e práticas, que muito estão
relacionadas ao próprio contexto do que é viver em um centro urbano no
começo do século XXI. Na prática dia-a-dia no SUS, com uma demanda
116
Como exemplo de uma das muitas formas de defini-la, trazemos esta, da Wikipédia: A
alimentação saudável é a alimentação ou nutrição de comer bem e de forma equilibrada para
que os adultos mantenham o peso ideal e as crianças se desenvolvam bem e intelectualmente,
dependendo do hábito alimentar (Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Alimentação
saudável>. Acesso em: 23 janeiro 2010).
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129
constante e muitas vezes excessiva, fica mais difícil uma abordagem
mais profunda, abrangente e holística por parte dos profissionais de
saúde, além dessa não ser, muitas vezes, a expectativa das pessoas aten-
didas. Afora tudo isso, as mudanças que seriam as defendidas dentro da
alimentação saudável (que é a ponte mais visível entre os assuntos saúde
e agricultura) e que incluíssem o consumo de produtos ditos orgânicos
nem sempre são adotadas nas vidas dos terapeutas. Ou seja, apesar da
consciência e do nível de informação expressados em algumas falas, o
cotidiano e suas demandas os captura e fica difícil pregar uma mudança
que não se assumiu.
Por outro lado, é interessante escutar algumas dessas experiên-
cias, pois revelam essa inquietação que é o germe das transformações
pessoais que, em sinergia relativamente coletiva, podem redundar, quiçá,
em modificações sociais. A prática de consumo de produtos ecogicos,
que seria um medidor de adesão dos terapeutas à AE, foi sentida pelo
pesquisador tamm nas visitas que realizamos às feiras. Nelas, ou en-
contramos os entrevistados (notadamente T1, na feira da Lagoa) ou
ouvimos falar de outro (T2, na Armação). Contudo, outro fato indi-
cador interessante de adesão dos nossos entrevistados às práticas agroe-
cológicas. Suas experiências agrícolas. Mesmo vivendo na cidade, todos
m, em alguma medida, algum contato com a terra, com plantas e ani-
mais. T1 e T2 trabalham em um posto de saúde que tem uma pequena
horta nos fundos, que serve como mostruário de plantas medicinais,
além de fornecer mudas aos interessados. Além disso, a unidade de saú-
de serve como um elo em uma rede de informões, sementes, mudas e
receitas de chás e alimentos com fins terapêuticos. T2, além disso, nos
mostrou o pequeno jardim de plantas medicinais que cultiva no exíguo
espaço que dispõe em sua casa e nos falou do quanto gostaria de ter
mais espaço para poder voltar a semear uma horta e uma roça, como fez
quando morou em terrenos maiores. Já T3 teve, pelos seus relatos, hor-
tas e roças bem produtivas. Hoje, seu contato com a terra se dá mais pela
vizinha e comadre que lhe ovos e verduras. T4, por sua vez, conta
que ovos o lhe faltam, pois cria galinhas no pátio de casa, o que invi-
abiliza uma horta, coisa que, segundo ele, sempre lhe acompanhou nas
casas onde morou. Além disso, T4 ainda relata suas experiências com
economia solidária, quando tentaram organizar uma cooperativa de con-
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130
sumo, e sua participação junto a um projeto de uma associação de pro-
dutores de agricultura ecogica no interior de Santa Catarina
117
, no qual
ele foi o responsável pela elaboração de uma proposta para a área de
saúde.
Esses pequenos fatos podem representar sinais dessa afinidade en-
tre MAC e AE? Parece-nos que sim. Como nos diz T2 em relação à
possibilidade da pessoa mudar o uso que faz do pátio de sua casa:
É difícil porque é uma mudança de paradigma.
Pessoas que têm um gramado ou um pátio cheio
de brita, às vezes gerações, plantar um de
mamão pode ser uma mudança radical de para-
digma. (T2)
É possível ler as ervas no pequeno pátio de T2, os ovos e as ver-
duras da comadre de T3, as galinhas ciscando no jardim de T4, entre
outros pequenos fatos, como peças compondo um processo de mudança
de paradigma. São sinais, um tanto simbólicos, de uma insatisfação
contra-hegemônica, de uma busca, um tanto dispersa e não articulada,
de novas formas de convivência, assim como o são o engajamento em
práticas de comércio justo e solidário, a colaboração com práticas coo-
perativas (elencadas por T4) e a expectativa de criar comunidades al-
ternativas”, citadas por T2 e T3:
Eu pensava em comunidades alternativas como
uma forma de mudar o mundo, de mudar a socie-
dade, uma mudança de migrar pra uma coisa meio
comunista, sem grandes revoluções, sem sangue...
(T2)
...mais uns 4, 5 anos eu me aposento, vou pra lá,
pro interior. A gente tem um projeto, eu, E. e mais
alguns amigos, de fazer um local assim de boas
condições de vida, pra maturidade. Ter um local
que cada um tenha sua individualidade, mas que
tenha uma coisa em comum, uma cozinha comum,
que tenha biblioteca, fisioterapia, que tenha pisci-
na, que tenha planta. Uma comunidade madura,
com essa ideia. Ir pra um lugar que tenha água,
que é importante, que tenha terra pra plantar. É a
117
Trata-se da Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral
(AGRECO), sediada em Santa Rosa de Lima (SC) e que abrange vários municípios da região.
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131
ideia da maturidade saudável (T3).
São sinais de que os nossos entrevistados atuam como agentes de
refencias circulantes, no sentido que Latour (2001) dá a essa noção
118
,
que fazem transitar algumas das ideias caras à agricultura ecológica
dentro do contexto da saúde coletiva. Isso é particularmente claro em
iniciativas ligadas a ideias de autoconsumo, de sustentabilidade:
Tem vários momentos pra isso. Um plano de tra-
tamento que não conseguimos fazer ainda, ten-
tamos fazer algumas coisas, mas não achamos o
jeito ainda, é estimular as hortas caseiras. Tem
bastante gente com terreno completamente “lati-
fúndios improdutivos”. teve campanhas de va-
cinação de idosos que a gente dava pacotes de
sementinhas, salsinha, [...] pra eles plantarem. Po-
de ser que eles peguem o gosto e plantem mais.
As pessoas têm um de mamão, umas couvi-
nhas, umas salsinhas. Vai dar um upgrade alimen-
tar e uma economia. Mas não achamos a mão. É
uma ideia que está engatinhando. (T2)
A suavidade de ideias que engatinhamcontrasta com as ideias
que atropelam, sufocam e monopolizam, como o as ideias que subja-
zem ao processo cultural da modernidade tardia, marcada pela noção do
progresso associado ao aumento de velocidade e de produtividade, pelo
gigantismo dos processos e a impressão de que não possibilidades de
ser diferente. Nesse sentido, usando a sociologia das ausências e das
emergências de Boaventura Santos, ao estarmos dando visibilidade,
legitimidade e consequencia política e social às “ideias que engati-
nham”, como médicos do SUS distribuírem sementes para fomentar
hortas caseiras, estamos a afirmar não somente que outro mundo é
possível”
119
. Estamos dizendo que outro mundo existe, vicejando nas
brechas deixadas pelas muitas insuficncias da modernidade capitalista.
Resta a tarefa de multiplicar as sementes e as ideias que engatinham,
118
A referência circulante é produzida quando uma inscrição circula entre coletivos distintos,
como quando a noção de sustentabilidade, oriunda da ecologia, circula na AE e na Saúde
Coletiva, via praticantes de MAC.
119
“Outro mundo é possível” é o lema chave do Fórum Social Mundial, movimento que prega
uma globalização da ética e de valores humanistas, que suplantem a globalização econômica
monocrática, porque regida exclusivamente pelo mercado, como é o capitalismo do século
XXI.
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que as brechas são muitas e não param de surgir.
A afinidade tamm é abordada em outros trechos, inclusive
quando é citada a noção de rede, importante para autores como Santos e
Latour. Nesse momento, para nós interessa o caráter mais democrático
que a ideia de rede traz associada. Se estivermos abertos a enxergá-la, a
avistaremos em muitas partes. A ideia de rede é citada em uma das falas,
quando a entrevistada é perguntada sobre como é a dinâmica da afinida-
de entre MAC e AE:
Eu acho que é uma rede. Funciona como uma re-
de. Então, uma pessoa que tem, eu acho, de filoso-
fia de vida isso, vai estar junto com outras pessoas
parecidas, e isso vai se entrelaçando, vão fazendo
rede de informações e estão juntas. Acho que é
uma coisa inata, interna, de filosofia, de tudo (T3).
T3 fala em uma filosofia de vida”, noção que é entendida como
uma espécie de ideia geradora que serve de norte, de guia, no cotidiano
das pessoas
120
. Outro terapeuta também percebe que os pacientes que
procuram as MAC têm uma conduta alimentar diferente: “O que eu
vejo é que as pessoas que eu atendo, né, do meu universo, que procura
essas pticas, geralmente elas têm uma alimentação diferenciada (T4).”
Contudo, apesar dessas citações algo superficiais, a impressão que
restou mais forte é que a dificuldade” antes referida de trabalhar com
alimentação faz com que esses profissionais não saibam como e o que
os seus pacientes comem, ou, em outras palavras, se eles são próximos
ou distantes da AE.
Além de ser difícil, a sensação é de que o tema alimentação”
também é fonte de frustração, pelo não seguimento dos conselhos:
É muito difícil essa prática nos dias de hoje por-
que... é muito mais fácil tomar uma baga do que
se alimentar direito. É muito mais fácil apertar um
botão e ficar embabacado com uma coisa que tu
vê que entra na casa do que caminhar e ver a natu-
reza. E às vezes a gente fala, fala, fala e que a
recepção não é grande (T3).
120
A “filosofia de vida” tem sido associada a uma espécie de código de conduta que, muitas
vezes, transparece na aparência e que nem sempre são assumidos conscientemente, além de
não terem uma demarcação clara e exclusiva, podendo se sobrepor umas a outras. Assim, há
“tribos“ que são, às vezes, facilmente identificáveis: os naturalistas, os evangélicos, os jovens
executivos.
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Pelo menos, as pessoas, se não fazem, elas têm
conhecimento e acham que deveriam estar fazen-
do [uma boa alimentação]. Mais por si, entende?
Eu sempre oriento, eu sempre oriento, mas com
muita frustração. Fora um homem, que chama M.
V. C. só, eu até lembro o nome dele! O resto,
umas 50 mil pessoas, se juntar todo mundo que eu
atendi, não mudaram o padrão alimentar porque
eu disse alguma coisa. Tu fala, fala, fala e a pes-
soa continua, continua, continua, continua (T4).
De resto, a rede que poderia se configurar entre as MAC e AE é
mais palpável em alguns pontos dos outros dos seus ramos (agricultores
e usuários) e isso é facilmente verificável ao se visitar os espos de
comercialização de produtos ecológicos, por exemplo. Os murais afixa-
dos nos armazéns que m alguma afinidade com AE do sul da ilha de
Florianópolis (para citar apenas os que conhecemos melhor) são fartos
em anúncios das mais variadas terapias naturais, cursos e práticas, cons-
tituindo, também, refencias circulantes no sentido já citado dado a
essas palavras nos trabalhos de Latour (2001).
Passemos a esses agentes.
4.4 OS AGRICULTORES
Consideramos pertinente, ao iniciar a seção onde abordaremos as
entrevistas dos agricultores, ressaltar algumas particularidades metodo-
lógicas de grande importância e com reflexos diretos na qualidade das
falas.
Como dito anteriormente, somos consumidores e frequentado-
res das feiras de Florianópolis onde os nossos entrevistados vendem
seus produtos. Se isso nos favoreceu o acesso e permitiu alguma famili-
aridade, propiciando outra qualidade às conversas que tivemos com eles,
por outro lado, nossa situação de cliente acrescida da condição de pes-
quisador, ou seja, um cliente que faz perguntas e grava as respostas e
que tenta aprofundar questões, não foi inocente. Ou seja, as entrevistas
foram perpassadas, em maior ou menor grau, por relações de mercado.
O ditado que diz o freguês tem sempre razão” veio à nossa mente em
algumas situações de conversa, quando sentíamos uma vontade explícita
do entrevistado de tentar nos agradar, dizendo o que imaginava que
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134
gostaríamos de ouvir
121
.
Ademais, outra experiência pessoal que serviu para que nos a-
proximássemos com mais familiaridade do universo do trabalho agríco-
la, de onde vêm os nossos sujeitos desse grupo. Vivemos a experiência
de morar em um sítio a 70 quilômetros de Porto Alegre por mais de oito
anos. tivemos contato cotidiano com pequenos agricultores e com a
lida rural. Criamos animais, plantamos roças e hortas, árvores e flores.
Aprendemos a fazer queijos, farinhas e a processar alguns produtos
agrícolas, além de conhecermos algumas tecnologias alternativas. Em
suma, tentamos viver a autossuficiência. Muito aprendemos e muito
mais nhamos a aprender. Nessa pesquisa, a experiência neorrural
122
que tivemos foi uma espécie de quebra-gelo, para facilitar a conversa e
diminuir o estranhamento, apesar de que esse, às vezes, possa ser uma
espécie de estratégia antropológica a fim de que o pesquisador não se
confunda com o pesquisado (SOUZA, 2004).
As primeiras partes das entrevistas, a exemplo do que ocorreu no
grupo dos terapeutas, também giravam ao redor da conversão, tema
especialmente caro aos pesquisadores da área das ciências agrárias que
trabalham com os vários ramos de AE (EHLERS, 1996; ALTIERI, 2004;
CAPORAL; COSTABEBER, 2007; KATHOUNIAN, 2001;
SCHENKEL et al., 2007).
Diferente do grupo anterior (terapeutas), aqui estamos falando de
trabalhadores autônomos que, nos quatro casos, aparentemente seguiram
um caminho que lhes parecia estar traçado desde o berço. Todos são
filhos e netos de agricultores, todos nasceram na zona rural de municí-
pios com vocação agrícola. Por outro lado, todos eles experimentaram
outras formas de ganhar a vida que não o trabalho direto na terra.
121
Não estamos a dizer que isso não seja comum em pesquisas qualitativas nas quais existe
alguma forma de vínculo entre pesquisador e pesquisado, ou mesmo em qualquer pesquisa,
onde uma espécie de falseamento é esperável. Estamos a frisar, contudo, que nesse caso
uma situação particular pelo fato de a credibilidade do produtor ser fundamental no mercado de
produtos ecológicos, havendo autores que qualificam esses produtos “como bens de crença,
pois apresentam atributos de qualidade altamente específicos, resultantes do modo como foram
produzidos, não identificáveis mediante simples observação” (SOUZA, 2000). Fica evidente
dessa forma como a confiança é importante para se criar uma boa relação entre cliente e
produtor no mercado de produtos orgânicos.
122
“Categoria constituída por pessoas do meio urbano que se instalam como produtores rurais, e
que, em geral, possuem outra fonte de renda ou dispõem de um estoque de capital que permite
a sobrevivência na atividade por algum tempo” (LIMA; CARMO, 2006, p. 67).
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135
Um trabalhou muito tempo fazendo transporte de cargas em um
caminhão da família (A1), dois deles foram trabalhar em fábricas de
laticínios (A2 e A4) e o outro trabalhou como classificador de produtos
agrícolas e fabricou doces, que vendia direto ao consumidor (A3).
Outra diferença bastante saliente é a questão dos anos de estudo
formal. Enquanto no primeiro grupo todos tinham graduação superior e,
inclusive, pós-graduação, nesse segundo grupo dois não chegaram a
concluir o ensino fundamental (A1 e A2), enquanto os outros dois fize-
ram o ensino médio (A3 e A4). o por acaso, A1 e A2 sempre mora-
ram na zona rural e A3 e A4 viveram alguns anos em cidades (A3 em
Porto Velho, capital de Rondônia, e na grande Florianópolis e A4 na
grande Florianópolis e emo Paulo).
Em resumo, a origem social e geogfica dos nossos entrevistados
é importante, pois nos parece evidente que as opções de escolha que a
vida lhes ofereceu foram menos diversas que as que os terapeutas en-
contraram nos seus percursos. Isso tamm é importante auxílio à com-
preensão do processo de conversão. O risco, no caso dos agricultores, de
se fazer uma escolha contra a corrente hegemônica nos parece maior,
demanda mais coragem
123
.
No caso dos terapeutas, todos estavam com a vida em certo
sentido assegurada, tinham o esteio de um título universitário em uma
profissão com grande reconhecimento social. Se porventura as escolhas
profissionais de um médico falham, ele ainda terá uma excelente base
para se recuperar e muitas novas opções para reencontrar o prumo pro-
fissional.
para os agricultores, o risco é parte costumeira de sua ativida-
de, e eles têm uma relação dúbia com essa situação
124
. Em certo sentido,
123
Um exemplo dessa coragem encontramos em um título de livro editado na Espanha, de
autoria de Gastón Remmers: Con cojones y maestria: un estudio sociológico-agromico
acerca del desarrollo rural endógeno y procesos de localización en la Sierra de la Contraviesa
(España). Também as palavras de A2, quando seus vizinhos desdenhavam da opção da família
pela produção ecológica: “Meu vizinho mais próximo planta só milho e feijão, só pro consumo
deles. E gado. Até eu tive falando esses tempo, nós tamos na universidade faz dois anos, lá é
um senhor de idade e o filho dele queria trabalhar com nós só que o pai dele é cabeça dura e
não deixou. Daí começou a chamar nós de louco, que nós não ia pra frente, que nós ia morrer
na fome”(A2).
124
A agricultura depende sobremaneira de questões que estão além do seu alcance, como, por
exemplo, de variações climáticas. Além disso, o produtor rural sofre grandes influências de
movimentos de mercado para tomar suas decisões. Um exemplo simplificado seria que,
comumente, quando a safra de algum produto é boa, os preços caem, levando a um menor
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136
a opção por uma agricultura diferenciada, como o as práticas de AE,
por definição mais sujeita aos riscos (por ser menos controladora), pode
representar a tentativa de viver a situação de produzir um alimento sob
risco e que, consequentemente, é mais valorizado.
Nessa linha de entendimento, o que faria os agricultores optarem
pela AE seriam, principalmente, vantagens econômicas. Essas possíveis
vantagens têm sido ressaltadas como importantes por vários autores
(KATHOUNIAN, 2001; SCHENKEL et al., 2007; LIMA; CARMO,
2006), mas certamente as motivações não se esgotam por aí.
Nos processos de conversão estão presentes outras dimensões, de
ordem social, política, ecológica, ética e cultural, que dialogam entre si e
que provocam tensões e soluções, constituindo um processo dinâmico.
Uma das dimensões que tem sido ressaltada é a busca pela ampliação de
oportunidades de reprodução social e de melhor qualidade de vida das
famílias envolvidas, bem como de preservação dos recursos naturais
presentes nas respectivas propriedades rurais (SCHENKEL et al., 2007).
Esses autores salientam ainda que uma constante busca pela
formação social, política e técnica por parte dos agricultores
(SCHENKEL et al., 2007). Essa busca enseja o que é chamado de assis-
tência técnica ou extensão rural, atividade de grande importância e que é
uma das razões de ser da Agronomia, usualmente assumida por um ór-
gão estadual
125
. Especialmente no caso das agriculturas de base ecológi-
ca, a extensão rural tem sido campo de atuação para muitas organizações
não governamentais (ONGs)
126
.
A assistência técnica oficial historicamente tem reproduzido, em
linhas gerais, os ditames da agricultura moderna e, apesar de o tema
plantio na safra seguinte, provocando uma tendência de subida nos preços e aumento de
investimento na produção daquele produto, ocorrendo a situação inversa quando de uma má
colheita. A situação ideal para o agricultor, do ponto de vista comercial, parece ser quando ele
consegue uma boa safra de um produto fora de época usual de colheita ou quando houve
quebra na produção, situação, por definição, excepcional. Como veremos, o mercado dos
produtos agrícolas ecológicos é quase uma simulação dessa situação ideal, no sentido que o
produto orgânico, ainda mais o certificado, é considerado um produto superior, excepcional, e
que justificaria um sobrepreço.
125
No Brasil, a extensão rural estatal está a cargo do sistema Emater, que em Santa Catarina é
representado pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina
(Epagri).
126
Centro de apoio ao pequeno agricultor (CAPA), Centro Ipê, Fundação Gaia, Centro de
Estudos e Promoção de Agricultura de Grupo (Cepagro), Assessoria e Serviços a Projetos em
Agricultura Alternativa (AS-PTA), entre outras.
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137
estar em disputa no campo da agronomia, muitas vezes ainda prevalece
o modelo da revolução verde. Tal percepção aparece claramente na fala
de um dos nossos entrevistados:
Santa Catarina teve um período que era referência
nacional em assistência técnica, a antiga Acaresc
[Associação de Crédito e Assistência Rural de
Santa Catarina]. Apesar dela ter tentado sempre
induzir o agricultor pra revolução verde, era um
modelo interessante. Seria de outra forma um es-
tado com um potencial imenso. que caminhou
pra esse lado, de profunda dependência, de tudo,
de semente, de adubo, de veneno, de tudo, de ma-
quinário. Então, complicou a vida desse povo. E
como a renda não foi suficiente pra despertar o in-
teresse dos filhos, os filhos foram saindo fora.
(A3)
Por outro lado, dois outros entrevistados elogiam a atuação do an-
tigo agrônomo da Epagri do município (São Bonifácio), tendo ele, in-
clusive, desempenhado papel decisivo em um dos casos, sendo o res-
ponsável pela introdução de A4 à AE. Portanto, nas vezes que o órgão
estatal de extensão rural do estado (Epagri) foi mencionado positiva-
mente, isso se deveu mais à atuação de um profissional específico que
tinha afinidade com a AE. Denota-se, dessa forma, que o fomento à AE
não parece estar inserido em uma política de Estado, estando mais a
cargo, dentro das instituições estatais, de profissionais que tenham perfil
e boa vontade para assistir aos agricultores que se interessam por práti-
cas agrícolas ecológicas e ficando sujeito, tamm, às políticas de go-
vernos que trocam de titulares de tempos em tempos.
A assistência técnica oficial recebeu uma crítica interessante por
parte de A4. O que ele nos conta revela como opera na prática esse culto
ao gigantismo e ao modelo do agronegócio. Nas palavras dele:
Toda vez que a gente saía pra conhecer algum lu-
gar, alguma propriedade, as pessoas daqui, se le-
vava pra propriedades grandes. Pra grandes produ-
tores, pra gente que tinha tudo mecanizado, or-
denha mecanizada, vários funcionários, áreas
grandes de produção, terras mais planas. Isso é ru-
im, porque a pessoa volta pra casa mais desanima-
da que quando foi, porque ele percebe que a pro-
priedade dele não é feita pra esse tipo de trabalho.
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138
Ele não teve uma ideia certa do “que que eu posso
fazer com a minha propriedade?” Então, ele sabe
como funciona, na teoria, pra aquela pessoa lá,
numa outra região, com uma realidade totalmente
diferente. Por isso não andou a coisa com o gado
de leite (na região) porque a pessoa e se a pes-
soa vai reclamar, vai dizer “não, acho que aqui não
certo”, tem sempre um agrônomo que sabe
mais e fala “não sei o quê, isso e aquilo” e a pes-
soa acaba se calando e não dá certo mesmo. (A4)
Ele acresce que falta “ousadia de pensar pequeno”. Falta valorizar
as pequenas conquistas, os pequenos ganhos, como uma possibilidade
real de transformação
127
. Aqui também nos lembramos do pequeno é
bonitode Schumacher (1977) e da sociologia das ausências e das e-
mergências de Santos (2004). Tratar a grande fazenda mecanizada como
modelo a ser mostrado e seguido é um exemplo prático da razão meto-
nímica, de tomar o modelo como imagem-objetivo, ignorando as reali-
dades diferenciadas, as pequenas experiências, e as desperdiçando. Dar à
luz a produção praticamente artesanal de alimentos de grotões da serra
catarinense em singelas feiras armadas em barracas de lona pode signifi-
car a existência real, viável e necessária, de outras formas de produzir
alimentos, outras formas de viver a agricultura e a comercialização dos
produtos.
As ONGs, por sua vez, m seu papel reconhecido. Em um caso
específico (A3) elas são citadas como fundamentais. O agricultor com-
para o seu processo de conversão a um nascimento, e neste, essas orga-
nizações seriam a mãe:
E aí tu começa a conversar com um, com outro, tu
vai indo e surgiram as ONGs, que pra mim foi
fundamental, que começaram a lutar pela questão
da agroecologia. Eu nasci fruto de discussão de
ONG, não foi de órgão público oficial... Tem o
Cepagro, o Cepagri... A doutora Maria José Gua-
zelli deu um curso sobre a teoria da trofobiose,
127
A4 participa da feira da UFSC levando produtos próprios e de alguns vizinhos. Ele conta
que, algumas vezes, por diferentes razões, a produção é pequena. No entanto, juntando as
pequenas produções, é possível comercializar e dar algum retorno a quem plantou. Esse
retorno, mesmo pequeno, sempre funciona como um estímulo para que o vizinho produza mais
na próxima vez.
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139
veio o pessoal da permacultura, veio o pessoal
da biodinâmica. eu comecei a associar, ver o
que cada uma dessas técnicas pregava e ver o que
cada uma delas tinha de importante pra mim apli-
car na prática. Já fui criticado em função da gente
não seguir uma linha reta, adepto de uma só delas.
Alguém me disse que eu parecia um daqueles que
vai em tudo que é igreja, e eu não me incomodo.
O que eu não consigo entender por uma, eu consi-
go entender pela outra e o resultado é fabuloso.
(A3)
No âmbito da AE, é comum que as assessorias envolvam reuniões
de agricultores, visitas a propriedades e cursos (MOREIRA, 2007). To-
dos nossos entrevistados comentam com agrado essas reuniões e visitas.
Essa forma de trabalho termina por configurar redes, e esse nome é mui-
to utilizado na área da agroecologia para ilustrar a articulação entre agri-
cultores e assistência técnica.
128
Percebemos que o convívio proporcio-
nado por essas capacitações é motivo de satisfação, sendo que, além de
mercadorias, são trocadas “ideias e sabedorias” (A4).
Contudo, a assistência técnica tem vieses que podem se confundir
com uma espécie de assistência médica, e aqui percebemos tamm
ecos da medicalização social. Como sugere a esposa de A1 ao falar da
assistência prestada pela ONG que lhe certificou como produtor orgâni-
co e que nos remete ao percurso terapêutico do doente que procura um
médico:
Eu quero ver é o acompanhamento, porque o pes-
soal do Cepagro acompanha, faz análise da terra.
Se a minha cenoura desse tamanho, não desen-
volve, eu corro pro Cepagro, alguma coisa a-
contecendo com a minha terra. Eles vêm aqui, pe-
ga a terra e faz análise. Tem alguma coisa faltando
na terra...(A1, esposa).
A extensão rural parece desempenhar, portanto, papel significati-
vo nos processos de conversão dos nossos entrevistados e ajuda a com-
por o mosaico de influências sociais que motivaram esses sujeitos a
modificar ou aprimorar os seus modos de fazer agrícola. Além disso,
essas organizações, muitas vezes, m setores específicos para trabalhar
128
Rede Ecovida, Agroecologia em Rede, etc.
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em saúde e, nesse campo, é muito comum que haja uma simpatia maior
pelas práticas alternativas, notadamente o uso de plantas medicinais,
sendo comuns cursos de capacitão
129
.
Ademais, outro fator relatado que funciona como atração nas prá-
ticas ecológicas de cultivo é que parece haver conscncia dos proble-
mas de poluição e de intoxicação com o uso de agroquímicos por parte
dos agricultores que estão em processo de conversão (SCHENKEL et
al., 2007). Essa consciência, no caso de nossos entrevistados, parece ter
surgido, em maior ou menor grau, a partir das experiências que eles
tiveram com os agroquímicos. Esse é um dos temas onde a condição de
cliente cria especialmente dificuldades, pois uma percepção que as-
socia os alimentos produzidos ecologicamente a uma espécie de pureza.
Assim, é plausível pensar que eles gostariam de dizer aos consumidores
de seus produtos que nunca usaram, especialmente nas suas terras, agro-
químicos. Como isso não parece ter sido o que aconteceu, uma zona
de sombras nas entrevistas, um assunto que é quase um tabu.
Mesmo assim, podemos dizer, colhendo evidências nas falas e
também em algumas conversas não gravadas, que todos os entrevistados
e/ou suas famílias tiveram contato com os produtos agroquímicos da
agricultura convencional, em maior ou menor profundidade. Em três
casos há menção a problemas de saúde que algum membro da família ou
o próprio entrevistado sofreram que teriam uma relação com os venenos
usados em agricultura.
Em dois desses casos, o tema surgiu nas entrevistas. No primeiro
deles o entrevistado cita a química de passagem em um relato sobre um
problema que o incomoda no presente:
Na época, o problema, eu trabalhei com química,
né, usei alguma 20 anos atrás e nós tinha cria-
ção de gado e uma vaca braba, ela criou e os em-
pregado foram pegar ela e ela botou gente no ma-
to, e eu sou daqueles: se é pra pegar, é pra pegar.
E eu peguei ela, e ela me pegou. Ela me prensou
num pau. Noventa dias estourou um câncer. Às
vez foi um mal que serviu pra bem, né? E é onde
eu perdi o estômago, perdi um pulmão e um baço,
129
Exemplo ilustrativo desse fato pode se constatar no sítio do Capa (<www.capa.org.br>). E
também no fato contado por T4, no qual ele, um acupunturista, organizou um planejamento de
ações em saúde para a Agreco.
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onde afetou tudo. Oito anos atrás. O médico me
deu um ano pra não fazer nada, quando eu fiz essa
cirurgia. Em 60 dias, tava carregando 50 kilo
nas costa, bom. foi onde aconteceu isso
(mostra as hérnias na barriga). Mas nesse ano me
incomodou um pouquinho, tomei uns medicamen-
to, marquei uma cirurgia, no dia a camionete que-
brou... Eu não sei parado. Eu sou malandro,
mas não sei tá parado...(A1)
Por que ele falou na “química”? Parece-nos que há a percepção de
que, por trás do adoecimento, na base dele, está o trabalho com a quí-
mica” de 20 anos atrás. Não conseguimos nos aprofundar mais. Em
outros momentos, ele deixa transparecer que a família plantava fumo,
cultura notória por receber grandes doses de adubação química e de
agrotóxicos, apesar de dizer que nos plantios de alimentos não era usado
veneno, apenas adubo.
No caso seguinte, em que a agricultura química é citada na histó-
ria do agricultor, a relação é mais direta. Ao perguntarmos o porquê da
opção da família pela AE, a principal razão apontada é uma espécie de
alergia da mãe, personagem de crucial importância para as opções agrí-
colas da família:
Minha mãe, ela tem problema de saúde, ela não
pode ter veneno, nada, nem um pingo. Se tu me
dizer, aqui, que tu não passaste veneno e passar e
ela andou aqui, em poucos instante, começa a dar
alergia. E começamo, começamo a tirar os vene-
nos tudo fora, comecemo. Ela começou a fazer
curso de orgânico, até teve pro Paraná, praque-
les lugar, pra ver como se faz produção orgânica, e
assim fomo indo, fomo indo e hoje, nós, tem gente
que vem em casa aprender como se faz orgâni-
co. (A2)
Aqui também se percebe que o veneno era usado, pois se come-
çou a tirar os venenos tudo fora”, sinal de que eles estavam presentes.
Além disso, ele conta que o pai de seu pai teria morrido de câncer por
causa do veneno”:
Meu pai é tão cabeça dura que até hoje ele ainda
fala em passar veneno. Nós não deixemo. Hoje ele
tá vendo os benefício, porque o pai dele morreu de
câncer por causa do veneno. (A2)
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142
O agricultor seguinte (A3) nos pareceu o que tem a questão do
uso de agrotóxicos mais resolvida. Admite seu uso no passado por des-
conhecimento de técnicas alternativas e compreende que praticava, por
contingências de história pessoal e contexto, o que se esperava dele,
como técnico agrícola e com acesso às tecnologias modernas. Ainda
assim, diz sempre ter sido crítico ao uso de insumos químicos na agri-
cultura, baseado na agricultura antiga que aprendeu com os avós. Ele
acrescenta que as ONGs, que foram a sua “mãe”, lhe deram informões
e meios de abandonar totalmente os agroquímicos.
A4 vive em uma região (a mesma de A3) onde há intenso uso
de herbicidas (pudemos verificar isso pessoalmente). A esposa dele refe-
riu rapidamente um episódio em que o filho deles, então bebê (hoje com
15 anos), teria quase morrido” e que provoca uma reação do tipo não
posso nem falar nisso”. A conversão à AE se deu mais ou menos
cinco anos e transparece evidente que antes disso a agricultura praticada
por eles envolvia os agroquímicos.
Em apenas um caso (A3), portanto, não surgiu uma história de
presumível contaminação, aguda ou crônica, pelo uso de venenos agrí-
colas. Certamente tais episódios são importante combustível para buscas
de um novo proceder no trabalho. Observamos, dessa forma, uma preo-
cupão com a saúde como motivão para as mudanças na vida dos
nossos entrevistados, concordando com Azevedo (2004), Navolar (2007)
e Silva (2008), apesar dessa preocupão não ser explicitada dessa for-
ma nas falas.
Schenkel et al. (2007) citam também como possível impulso para
a mudança na forma de agricultura um eventual aumento na autonomia
do agricultor, pelo fato de o próprio trabalhador controlar o ritmo e in-
tensidade do trabalho, diminuindo a dependência de insumos externos às
propriedades. Confundindo-se com essa ideia, os autores tamm falam
em uma suposta sensação de liberdade, no sentido usado por Sen (1999),
que associa a cidadania ao conhecimento, sendo que os agricultores que
aderissem a AE estariam fortalecendo suas condições para melhor bus-
car o conhecimento.
Nesse sentido, podemos perceber em algumas falas de nossos en-
trevistados essa sensação de satisfação, de cidadania e, por vezes, de
liberdade:
Eu tô satisfeito, tô contente com o que fazendo.
Um orgulho que eu tenho é que quem consu-
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mindo, consumindo um produto de ótima quali-
dade. Eu nasci pra viver, não pra ficar milionário.
Quero viver a vida de cada dia, ter o pão de cada
dia, não dever a ninguém, a vida equilibrada, des-
cansada. Amanhã eu vou morrer e não vou levar
nada. Eu vou levar o que eu vivi aqui. (A1)
Eu, hoje, pra te dizer, eles podem me oferecer 30,
40 mil pra voltar a trabalhar [no laticínio], não
troco. Tu, parece que tu muda. Tu pensa só: eu ti-
nha 21 ano, eu tinha 76 kilo. Logo depois de eu
sair de lá, um ano e meio, eu engordei quase dez
quilo. comendo... Normal, né? Não preciso
mais me esforçar tanto, o alimento é bem me-
lhor. (A2)
Pô, caramba, eu gosto do que eu faço. Me sinto
bem em tá lá. Você imagina quanta coisa eu tô ob-
servando no dia-a-dia. Agora, o trabalhador co-
mum não atento a essas coisas. Ele faz o que é
mandado fazer. Se aparecer uma planta diferente,
pra ele aquilo não tem significado, raramente tem
significado. E você sempre olhando alguma
coisa nova que surgindo, a maneira que foi a-
dubado, irrigado e tal. E tem condições de avan-
çar. Imagina se um médico contrata alguém pra
operar pra ele, ele dando as coordenadas, não ia
dar certo, né? (A3)
E quando você trabalha a favor da natureza, que é
sempre o que você deve ter em mente: “vou traba-
lhar a favor da natureza”, as coisas são muito fá-
ceis. Contra a natureza é muito complicado, por-
que ela é muito forte. Quando você faz um com-
posto, quando você faz uma cobertura verde, va-
mo usar o que nós temos, não precisa trazer na-
da de fora. Como na agricultura convencional, às
vezes tem que trazer toneladas de milho de fora.
Tudo é muito pesado, tudo é muito penoso, tudo é
muito caro. Se você trabalhar a favor da natureza,
isso se torna um pouco mais leve. Olha, eu tô me-
lhor hoje do que eu tava há, me sinto melhor, mui-
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144
to melhor, do que uns dois ou três anos atrás.
Muito melhor! (A4)
Como curiosidade, observamos que A2 associa uma melhora no
estado de saúde ao fato de ter engordado quase 10 quilos”, comendo
normal”. É interessante, pois é uma concepção de saúde diferente da
que vigora hegemonicamente nos dias de hoje, que associa saúde à boa
forma física e ao baixo peso. A associação entre engordar e ter saúde
ainda perdura entre as pessoas mais antigas ou no meio rural.
Tamm podemos perceber na fala de A4 uma noção que é simi-
lar à perspectiva vitalista que caracteriza algumas das práticas de MAC.
Trabalhar a favor da natureza” ou estimular a vitalidade são a antítese
da postura controladora típica da visão mais ortodoxa da ciência e de
suas disciplinas, como a biomedicina e a agronomia convencional, e dos
produtos fabricados por essas lógicas: as referidas substâncias que
recebem o sufixo “anti”.
Por outro lado, percebemos em algumas falas, nessas mesmas en-
trevistas ou fora delas, momentos de queixa. Todos afirmam que
muito serviço e que esse é pesado. Em dias de feira, os agriculto-
res/feirantes acordam bem antes do sol, chegando a dormir, às vezes,
menos de três horas. Fazer isso até três vezes por semana naturalmente
traz um desgaste, podendo chegar a um paroxismo, como neste relato:
[...] hortaliça é uma escravidão. Todo santo dia tu
tem que estar plantando, semeando, adubando,
limpando, é uma loucura. Eu quero cair fora, não
aguento mais. Quero pegar uma ou duas lavoura
e deu. No inverno, chega a ter 50 itens, mais os
bichos. É demais! (A3)
Ressaltemos que o desencanto de A3 não é com a agricultura co-
mo um todo, e sim com a horticultura, atividade notória por exigir inten-
sa mão de obra.
Como um pano de fundo, em contraste ao grupo dos terapeutas,
no qual a motivação econômica para a conversão não apareceu em ne-
nhum momento, acreditamos que entre os agricultores entrevistados essa
razão está sempre presente em maior ou menor grau, e, dado o já expos-
to, não poderia ser diferente. Mesmo quando percebíamos, através de
situações e conversas vividas fora das entrevistas, que as motivações
econômicas pareciam ter sido as principais para levar a uma mudança no
modo de pensar e fazer agricultura, isso quase o transpareceu nas
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145
falas. Esses foram alguns dos momentos em que sentimos que o entre-
vistado tentava nos agradar com suas respostas.
Por outro lado, é muito difícil estabelecer uma hierarquia de mo-
tivões. As tomadas de decisões, no caso dos agricultores, parecem ser
bem mais complexas que no caso dos terapeutas de MAC. Nenhum
agricultor consegue trabalhar a terra sozinho (talvez haja raríssimas
exceções), constituindo assim uma teia de interdependência que envol-
ve, no caso da AE de base familiar, quase sempre, em primeiro lugar, o
núcleo pai, mãe e filhos. Mesmo que em maior ou menor intensidade as
decisões de um terapeuta tenham que ser negociadas com o paciente e
com o entorno social que envolve essa relação, o caráter das decisões
tomadas pelos profissionais de saúde termina por ser de foro íntimo
130
.
Assim, no caso da AE, a base microssociológica de tomada de
decisões se amplia. Em primeiro lugar, a família é envolvida no proces-
so, direta ou indiretamente. Os vizinhos tambémo importantes, forne-
cendo muitas vezes mão de obra ou servindo de estímulo positivo e
negativo.
Feito esse aparte, podemos compreender que os nossos quatro en-
trevistados agricultores falam tamm por outros agentes. Em primeiro
lugar, pelas suas famílias (como ilustração, em três das entrevistas, as
mulheres dos entrevistados estavam presentes e se manifestaram em
momentos pontuais). Além disso, os vizinhos também participaram,
sendo citados em muitas ocasiões. Às vezes como eventual mão de obra,
às vezes como estimuladores ou céticos, às vezes como parceiros.
Ademais, além de serem muitas cabeças a pensar e a participar
das decisões, no caso dos agricultores, a própria complexidade própria
do trabalho agrícola também é importante. Se ele mesmo comercializa
sua produção, ainda mais. Muito diferente da situação de um profissio-
nal reconhecido, de nível superior, com um emprego público e um salá-
rio que, se não é o ideal (isso suscita muitas discussões) certamente lhe
garante o sustento.
130
Levi-Strauss (1967) ressalta a importância do contexto que envolve a relação médico-
paciente para que essa seja eficaz terapeuticamente, resumido na noção de “eficácia
simbólica”. Ou seja, se o médico adotar uma prática muito exótica à cultura em saúde do
paciente, corre risco de perder em eficácia. Por exemplo, há 20 anos, um médico que
propusesse aplicar agulhas para aplacar uma dor corria mais risco de ser mal compreendido do
que hoje, especialmente no meio urbano, quando a acupuntura começa a ter mais circulação
simbólica na cultura em saúde de mais e mais pessoas.
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146
Assim, mesmo entendendo a relevância das motivações econômi-
cas, que se ressaltar os outros fatores envolvidos nessas decisões.
Alguns autores ligados ao campo da agroecologia, como Costabeber
(1998), defendem que a transição agroecológica” tem um caráter mul-
tidisciplinar e chamam a atenção para a necessidade de buscar políticas
públicas, de pesquisa e de extensão que sirvam de suporte a essa transi-
ção.
Esse processo, apesar de ser entendido como difícil e lento
(SCHENKEL et al., 2007), às vezes representa um retorno a uma agri-
cultura antiga, o que, dependendo do caso, pode facilitar. Os nossos
entrevistados assim se manifestaram em relação aos tempos idos e tam-
bém ao seu conhecimento genuíno, de berço:
Só que toda vida plantava verdura pra nós. Nós de
tudo produzia [...]. Tudo o que eles [a ONG que
lhe presta assistência] passaram, eu sabia como
é feito. Só o que teve foi o mal explicado ou o mal
entendido. (A1)
Eu sempre digo que eu tive uma grande sorte na
vida de ter nascido no meio rural. Desde os seis
anos de idade eu convivia, fui morar com meus
avós pra poder estudar, com a lida de juntar ester-
co, tratar os bichos. Tinha as minhas tarefas. Aqui-
lo, puxar carro de boi, arado. Se hoje eu sei fazer
alguma coisa, é graças àquele tempo que eu tive a
oportunidade de aprender. Isso não se aprende na
escola, é a prática que faz a pessoa aprender. [...]
Eles tiveram a sorte de morar em um lugar que a
agricultura química demorou pra chegar. Era tudo
adubação orgânica, não usavam pesticidas, não
conheciam sementes híbridas, graças a Deus não
conheciam essa droga dos transgênicos. Agora
aparecendo os nanotecnológicos. Nós é que vamos
ter que viver isso aí. Eles tinham sementes pró-
prias, que multiplicavam, eles tinham diversidade
de produção violenta. Era inhame, cará, batatinha
armazenada pro ano todo, fubá pro ano todo... En-
tão se comprava muito pouca coisa fora. Eu lem-
bro, era um sal de cozinha, um café, um quilo de
açúcar, que aquilo era pra ter reserva porque
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não usavam açúcar. Tudo eles produziam. Carne,
ovos, leite, queijo, mel... Meu Deus! Era uma far-
tura violenta! Eles não tinham naquela época, se
consideravam pobres, porque não tinham dinheiro,
mas hoje eu vejo assim, eles eram tão rico! Podi-
am não ter roupa boa, trabalhavam com roupa re-
mendada, mas eles tinham uma diversidade, uma
riqueza de alimentação, uma tranquilidade. Não
tinham conta pra pagar, telefone, internet, esses
raio de conta que tem hoje. Não pagavam trans-
porte urbano, não pagavam nada. Tinha riqueza
maior que essa? que botavam na cabeça que
era gente pobre. (A3)
Percebemos, portanto, nos relatos que os nossos entrevistados ti-
nham inscrito em suas memórias uma forma de fazer agricultura que foi
sendo erodida pelo contexto social e que, paulatinamente, foi sendo
substituída por uma forma moderna de fazê-la e pensá-la. Estar à mar-
gem da modernização da agricultura traz as vantagens de uma relativa
não contaminação ambiental nas suas propriedades (GÖTSCH, 1995;
MORIN, 2000) e um não desvirtuamento cultural (BIANCHINI, 2000).
Outra cisão que se percebe na fala de A3, além do antigo/moderno, é
entre o espaço rural antigo (sem bens considerados como conforto -
telefone, internet, transporte) e o espaço urbano e o rural de hoje (com
esses bens e suas respectivas contas), a exemplo do descrito por Bran-
dão (1981), sendo que no caso estudado por este autor, os lavradores
associavam o meio urbano à escassez e o meio rural à maior disponibili-
dade demantimentos”.
A erosão cultural associada à modernização é referida como uma
acomodação na fala de A2:
O orgânico começou muito tarde. Deveria ter co-
meçado, ó, anos e anos atrás. Quando meu vô,
meu com 76, ele não lembra quando ele era
pequeno, o pai dele o usava veneno, não existia
veneno naquela época. Porque que o pessoal co-
meçou a se acomodar, se acomodar? Antigamente,
meu vô virava a terra à pá, hoje eles vão lá de tra-
tor, eles vão lá com veneno. Por que eles não con-
tinuaram naquele estilo? Não vamo dizer virando
com a pá, à mão, a coisa, mas com trator e sem
usar aquele veneno? (A2)
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Essa erosão do conhecimento antigo em agricultura tem similari-
dades com o processo de epistemicídio que ocorre na cultura em saúde
devido à supremacia do paradigma biomecanicista, que solapa a capaci-
dade de autocuidado e de solução dos problemas inerentes à vida, como,
por exemplo, os nascimentos e o manejo dos recém-nascidos. No caso
da agricultura, no entanto, o próprio relato de A2 dá pistas do porquê de
mudar o estilo”. Virar a terra à é penoso (bem o sabemos) e o é
inerente à vida como nascer e crescer, sendo bastante compreenvel
aceitar mudanças que aparentemente deixam a vida mais leve.
Percebemos, finalizando nossas reflexões acerca do processo de
conversão, que se trata de um processo de alta complexidade, que en-
volve uma grande gama de fatores, alguns contraditórios, alguns para-
doxais, e que representam um desafio a esses sujeitos, em boa parte pelo
pioneirismo destes. Apesar do recente crescimento na produção e na
demanda por produtos oriundos da AE, não é difícil perceber que a i-
mensa maioria dos alimentos comercializados é produzida de forma
convencional.
Entendendo a AE e sua relação com a agricultura moderna de
modo similar à relação das MAC com a biomedicina, podemos fazer um
paralelo ao esquema que Barros (2000) elaborou para matizar as práticas
de MAC
131
. Assim, correspondendo ao polo da biomedicina, estaria a
agricultura moderna e no polo oposto, similar à prática exclusiva de
MAC, estaria a AE. No meio estariam os médicos/agricultores em pro-
cesso de conversão. Em certo sentido, essa matização é discutida dentro
do campo da agronomia, quando se debate inclusive a melhor denomi-
nação para a nova agricultura. Como vimos na seção 1.5, nesses debates
parece ser consenso que a denominão “agroecologia” sugere mudan-
ças que vão além do modelo produtivo e que, quando estamos diante de
um agroecologista, estamos diante de alguém que pode ser chamado de
militante, carregado de sentidos éticos, políticos, sociais e epistemológi-
cos, o sendo apenas” um plantador que usa técnicas mais ecológicas
de cultivo (o agricultor orgânico, para usar um nome mais corrente).
Seguindo essa linha, o convertido” seria aquele agricultor que
fosse um agroecologista, ou seja, que houvesse transformado não apenas
131
Para relembrar, no esquema de Barros (2000) existem três perfis para os praticantes do
cuidado: os puros (totalmente biodicos); os convertidos (totalmente não biomédicos) e, no
meio do caminho, os híbridos (que usam a biomedicina e outras racionalidades).
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149
seu modelo produtivo (o agricultor orgânico), mas também sua visão de
mundo e sua vida em todos os âmbitos. Seria, em síntese, um militante
ecogico.
Fazendo o percurso analítico inverso, ou seja, aplicando esse es-
quema de Barros adaptado à conversão agrícola de novo aos terapeutas
de MAC, tamm poderíamos enriquecê-lo pensando em outras dimen-
sões da vida. Ou seja, seria coerente com o perfil convertido” do prati-
cante de MAC uma aproximação maior com um estilo de vida mais
ecogico, mais equilibrado, e que incluísse cuidados com a alimenta-
ção.
Uma diferença relevante ao adaptar o esquema puro-híbrido-
convertido das práticas integrativas para as práticas de AE é que cri-
térios bem definidos, inclusive em lei, para classificar as práticas agríco-
las como orgânicas”, distinto do que ocorre nas MAC. Na agricultura,
da passagem do puro (agricultor convencional) para híbrido (agricultor
ecogico) tem de haver, obrigatoriamente, um abandono da agricultura
química, no mínimo paulatino, mas total. O que é distinto do perfil hí-
brido do praticante de MAC, caracterizado por transitar livremente entre
a biomedicina e a(s) prática(s) alternativa(s).
Multifacetando o perfil híbrido do agricultor que não está em ne-
nhum dos dois polos (a agroecologia e a agricultura moderna conven-
cional), ainda pelo menos duas possibilidades. A primeira seria da-
quele agricultor que pratica uma agricultura antiga, não tecnificada, nem
sempre por escolha, às vezes por falta de acesso. É muito comum a con-
fuo entre produtos chamados de coloniais, produzidos de forma mais
rústica, e os produtos rotulados como orgânicos
132
, o que termina por
aproximar as noções.
Outra forma de uma agricultura híbrida é a agricultura como a que
refere A4:
A gente tem mais facilidade, tem mais aptidão,
pra ser agroecológico aqui por causa das peque-
nas propriedades, por causa da dificuldade de co-
locar máquinas. Então, tem um monte de fatores
que faz com que a gente tenha uma produção a-
groecológica, ou pelo menos orgânica. E outra
132
São várias as confusões que envolvem a noção de alimento ecológico, facilmente
verificáveis em qualquer supermercado maior. Assim, muitas vezes eles são confundidos com
alimentos coloniais, naturais, integrais, dietéticos, hidropônicos, etc.
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150
assim. Não vai ser aquela produção agroecológi-
ca de pessoa extremista, agroecologista extremis-
ta assim, “tem que preservar isso ou fazer assim
ou fazer assado”, aquelas coisas muito extremista
de agroecologia, como biodinâmica, uma coisa
assim, bem extremista. Não! Não vai ser assim.
Vai ser uma agricultura eu vejo mais saudável e
com os pés no chão. Sem tanto herbicida, sem
tanto adubo químico, sem tanta agressão. Mais
racional, mais sóbria. Não vai ser nada extremis-
ta, mas esse vai ser o caminho. (A4, grifo nosso)
É importante frisar, entretanto, que essa percepção “não extremis-
ta”, como refere A4, não é corrente entre os pensadores na agricultura
ecogica. O uso de aditivos químicos só é admitido de forma passageira
e durante o processo de conversão (KATHOUNIAN, 2001).
Existem ainda outras formas de prática agrícola que levam em
conta variáveis ecológicas. Não entendemos, contudo, que a agricultura
tecnificada com alguma preocupão ambiental, como o plantio direto,
por exemplo, possa ser compreendida como uma agricultura híbrida. No
nosso ponto de vista, trata-se de uma apropriação de uma preocupação
nobre (ecológica) com finalidades estritamente comerciais
133
.
Concluindo e estendendo o entendimento sobre a conversão agro-
ecogica, esta se completaria quando, além de sua ptica estritamente
agrícola, o agricultor vivesse outras estratégias ecológicas, inclusive na
alimentação e no autocuidado.
Dessa forma, ao tentar desvendar como se alimentam e como se
cuidam os nossos agricultores, estaríamos verificando tanto o seu grau
de conversão à AE (ou o quanto eles se aproximam da agroecologia
como proposta que transcenda a agricultura), como suas afinidades pes-
soais com as MAC.
Como se alimentam e como se cuidam os plantadores de alimen-
tos orgânicos? De novo, para melhor responder a essas perguntas, o
133
O plantio direto na palha (PD) é uma técnica de plantio onde não há revolvimento de solo
ou este é mínimo, reduzindo drasticamente a erosão. Contudo, utilizam-se grandes doses de
herbicida, sendo o PD plenamente compatível com monoculturas e todo seu entorno
empobrecedor de solos, paisagens, populações e culturas. Aos organismos geneticamente
modificados também vêm se tentando atribuir vantagens ecológicas, como redução do uso de
herbicidas (no caso da soja resistente ao herbicida). No entanto, trabalhos demonstram que o
uso de herbicidas tem aumentado com o plantio da variedade.
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151
ideal seria se tivéssemos nos alimentado e convivido com eles. Em duas
situações, nas visitas que fizemos às propriedades, tivemos oportunida-
des de fazer refeições com eles e isso nos forneceu indícios de que a
prática difere do discurso. Em relação ao cuidado, a via para tentarmos
chegar a uma resposta à pergunta foi a conversa, não somente na situa-
ção da entrevista, mas também nas muitas visitas às feiras que fizemos
durante o tempo da pesquisa. Essas questões certamente merecem maior
aprofundamento, pois representam um elo entre o que é dito e o que é
feito
134
.
Ao perguntarmos sobre o tema alimentação, as respostam tendiam
a valorizar a produção para o próprio consumo, e, à primeira vista, todos
gostariam de dizer que comem o que produzem. Contudo, esmiuçan-
do a questão através de mais perguntas ou mesmo observando, podemos
concluir que, na ptica, falta bastante para que eles consumam apenas
do que produzem. Boa parte dessa dificuldade se dá pelos próprios hábi-
tos alimentares arraigados na maior parte da sociedade da qual fazemos
parte e que, usualmente, estão apoiados no consumo maciço de uma
pequena variedade de alimentos e, em alguns casos, de difícil produção
em pequena escala
135
. Assim, pelas impressões que colhemos, a alimen-
tação nas famílias de nossos entrevistados parece ser a típica do brasilei-
ro. A carne ocupa o lugar principal, o arroz e o feijão estão sempre pre-
sentes, normalmente ainda uma outra fonte de amido (batatinha, ai-
pim, macarrão) e as verduras estão no fim da fila. O pão, os laticínios,
os ovos e o açúcar tamm figuram como itens importantes na alimenta-
ção, mas o carro-chefe da produção deles, o que eles vendem na feira,
muitas vezes, não está na mesa desses agricultores.
É interessante, contudo, escutarmos o discurso, pois ele nos traz
ecos de uma imagem ideal, ou idealizada, que provavelmente, é a difun-
dida nos encontros entre agricultores e assistência, fato a que A4 faz
uma alusão. Senão vejamos:
O ser humano nasceu pra viver do quê? De folhas,
raíz, não carne. Era carne branca, o peixe e a caça
do mato, não carne vermelha. (A1)
134
Para ilustrar, alguns dos ditos populares que resumem a dificuldade de manter coerência
entre prática e discurso: “na prática, a teoria é outra”; “casa de ferreiro, espeto de pau”, “faça o
que eu digo, não faça o que eu faço”, etc.
135
Uma interessante visão panorâmica sobre o tema das mudanças nos hábitos alimentares e
suas influências na agricultura se encontra no capítulo I da obra de Kathounian (2001).
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152
Nós não somos exemplos de dizer que fazemos as
coisas certas. Uma que a gente já teve um período
viciado na base dessa vida cotidiana. Mas a gente
tenta fazer, procurar o usar aquilo que a gente
sabe que não é corretamente. Claro que a gente
não é radical. Toma refrigerante? Tomo, não é to-
do dia, é de vez em quando, pra quebrar a roti-
na, você acaba, ou comendo alguma coisa que não
seria o normal se você quisesse fazer uma coisa
correta. que tudo que é radicalismo, a coisa
também não anda muito bem. […] Nos alimenta-
mos bastante com a nossa própria produção e
também daqueles que a gente pega pra vender, a
gente acaba fazendo uso bastante desse. Tem dias
em casa que é quase tudo. O arroz vem do Rio
Grande do Sul, o abacaxi vem de outro, vinha
manga de São Paulo. Mas quando não tem, você
acaba fazendo uso da convencional. (A3)
Primeiro, porque quando você aprende, ou fre-
quenta alguns cursos, ou conversa com pessoas
desse meio, são pessoas mais ligadas à área da
saúde. Votem mais informações, que você não
tem antes. Então, nós temos acesso a informações
hoje que o agricultor convencional jamais terá.
Porque hoje a gente sabe que o excesso de açúcar
faz mal, excesso de açúcar no sangue faz mal, sal
faz mal, açúcar faz mal, excesso de carne é ruim.
Tudo isso a gente vai aprendendo, exercitando e
vai praticando e, devagarzinho, vai criando uma
cultura. Então vai ser uma coisa diferenciada,
mais saudável. Que um negócio sem adubo, sem
ureia, sem ração com hormônios, é muito mais
saudável. Não talvez pra gente, que tem 40 a-
nos, mas pros nossos filhos que têm dez ou 15 a-
nos, que tão em formação, eu não tenho mais co-
ragem de dar um frango de granja, de integrador,
pro R. e pra P., que tão na fase decisiva na vida
deles. Então, eu prefiro que eles nem comam car-
ne ou que comam o franguinho que a gente cria
aqui ou o porquinho que a gente cria aqui. (A4)
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153
O mesmo A1 que faz o bonito discurso de uma alimentação mais
essencial do ser humano, sem carne vermelha, mais adiante na conversa
é “entregue” pela esposa:
O B. (A1) é assim: carne de manhã, almoço com
carne. À tarde, café com carne, e à noite, café com
carne... (A1, esposa)
A esse comentário, A1 reagiu dando de ombros e sorrindo: eu,
infelizmente, me criei nisso”.
Parece haver tamm uma percepção de que os antepassados se
alimentavam melhor. A3 diz que nos tempos de fartura e simplicidade
em que viviam seus avós, a comida era mais “forte”, dava mais sustento,
e que com a modernização e as mudanças de hábitos dietéticos, essa
força se diluiu, prevalecendo a praticidade dos alimentos processados,
refinados e comprados. Similar ao relatado por Brandão entre lavradores
no interior de Goiás (BRANDÃO, 1981).
Muita gente, dos mais antigos, comia banha de
porco. Hoje os médico proíbe que dá câncer, isso e
aquilo lá. Na minha opinião, banha de porco já,
vamo dizer, que não dá. Se tu criar os porco, vamo
dizer, solto. Deixe eles se criar solto. Tem as gali-
nha. Hoje ainda tem a discussão do ovo. Ovo faz
mal ou não faz? Antigamente eles comiam isso tu-
do que se come hoje que nunca prejudicava a
saúde deles. Hoje eles come um negocinho e
faz mal. Na minha opinião, a coisa química
tão presente, que tu come alguma coisa, vamo di-
zer, uma carne, é muito mais química que carne. A
saúde, uns tempo atrás, ganhava de 100 a zero. E
se hoje fosse voltar no tempo, ia ser muito mais
melhor. Pelo menos eu acho assim. (A2)
.Na fala de A2 sentimos (e isso é particularmente claro para quem
viveu a entrevista) que a ele faltou pouco para defender a banha de por-
co na dieta. Como estava diante de um profissional de saúde, parece ter
hesitado e enveredou por um caminho seguro, de criticar a “química”
presente na alimentação.
Similar ao grupo de terapeutas, os nossos agricultores também pa-
recem ter algumas dificuldades de viver coerentemente seus discursos e
práticas de alimentação. Isso não surpreende, pois estamos tratando de
trabalhadores autônomos, que desenvolvem um trabalho complexo e
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154
isso lhes toma muito tempo, verdadeiro tesouro que parece escassear a
todos os que vivem a modernidade. Acrescente a dificuldade de locomo-
ção que significa ter que se deslocar por dezenas de quilômetros, várias
vezes por semana, para os pontos de venda, o que também é fonte de
stress:
[...] o trânsito hoje pra mim, eu acho que eu
com um revólver engatilhado no ouvido todo ins-
tante... (A1)
Amarrada a essa questão está o cuidado em saúde. Qual recurso é
procurado quando necessário? Ou qual recurso é o relatado como procu-
rado?
O cuidado em saúde é prática cotidiana na vida de todos nós, es-
tando submerso nas atividades mais corriqueiras, como abrigar-se sob
um cobertor em uma noite fria, beber um copo de água ou na nossa pos-
tura ao sentarmos em um sofá. Nesse sentido, se queremos saber como
se cuidam os nossos sujeitos, a melhor forma é estar atento a essa ques-
tão nas situações em que podemos conviver com eles. Nas conversas,
abordando o tema de forma direta, muitas vezes o assunto rende. Em
outras situações, os silêncios e as negações falam mais.
Assim, seguindo a ordem cronológica das entrevistas, vamos ana-
lisar caso a caso.
A1 é um caso a parte. Enquanto realizamos este trabalho, A1 pa-
deceu de vários problemas de saúde, que não vem ao caso descrever. No
momento em que escrevemos, faz alguns meses que o entrevistado
não participa mais das feiras. Pelas notícias que tivemos, sua horta está
parada porque ele não está trabalhando, tendo inclusive ficado um tem-
po internado em um hospital.
Na entrevista que realizamos, otimista, A1 dizia estar com seus
problemas mais recentes sob controle, mas admitia que 2009 havia sido
um ano meio péssimoem termos de saúde. Adiantava, contudo, que
eram problemas que vêm atrasado”, problemas que se arrastavam há
anos. Acompanhamos, como seus fregueses e conhecidos, um problema
sério durante o ano de 2009 que o levou a fazer muitas consultas médi-
cas e exames em clínicas particulares da grande Florianópolis.
Na entrevista, contudo, em vários momentos ele valorizou as prá-
ticas alternativas e também fez relações curiosamente precisas sobre os
efeitos da agricultura moderna na saúde:
Porque tu pode ver. 100 anos atrás tinha 10%
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155
de câncer, hoje eu calculo que 60%. Eu vi
uma entrevista que tão dizendo que é 60 %. E
porque100 anos atrás eles não tinha? Química!
É só química que faz crescer. E quando existe
química demais, o que que acontece? Problema
saúde vem. Nossas células não aguentam, aquilo
estoura pro lado... Aí a gente, com a própria mão,
vai buscando a morte pra gente aos poucos. Co-
nheço gente de 90, 80 anos, que nunca foram no
médico. Hoje nasce e no hospital, vem o
problema junto. Por quê? É comida que a gente tá
comendo. (A1)
A1 nasceu em casa e faz a consideração que associa nascimento
no hospital a problemas de saúde. No trecho seguinte, ele parece que se
conta no meio da frase do contexto da conversa e muda de itinerário
terapêutico:
que graças a Deus, um problema, eu vou lá
no médico, faço um exame, ai eles passam o me-
dicamento, eu até compro. Às vez tomo um dia,
dois, já pego um remédio caseiro, erva medicinais.
(A1)
Nesta outra fala, A1 conta de um diálogo seu com um médico on-
de ele se mostra um defensor da fitoterapia e crítico relativo da indústria
farmacêutica:
Os médico disseram que era remédio o resto da
vida. Ao contrário, o ser humano não é pra ficar
tomando remédio de laboratório. ele diz: “que
que vai tomar?” “Ervas! Ora, se o índio não toma
de laboratório e morre com 100, cento e poucos
anos...”, e ele começou a rir. Porque hoje a medi-
cina, eles mandam que tome isso e isso e isso,
porque eles têm uma porcentagem dos laborató-
rios. Eles vive é disso. Acho até que eles tão certo
porque eles estudaram pra isso, pra ganhar dinhei-
ro. (A1)
Durante o período do fim de 2008 até o fim de 2009 (momento da
entrevista), acompanhamos, semanalmente e de forma superficial, os
andamentos dos problemas de saúde de A1. Em alguns momentos, ele se
queixava dos preços de medicamentos e de exames, indicando que os
estava consumindo, mas quase sempre demonstrava confiança nos tra-
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156
tamentos biomédicos a que estava se submetendo. Na conversa gravada,
como era de se esperar, valorizou outros recursos terapêuticos e de novo
usou da precisão, agora para elogiar o diagnóstico de sua mãe.
E outra coisa. Eu gosto de benzedura. A minha
mãe e a minha irmã benzem. E tem outras fora,
porque santo de casa não faz milagre. E olha, 88%
é acertado o remédio certinho. A minha mãe, foi
esse ano ainda, ela disse. O médico internou pela
doença do rato, leptospirose. E ela dizia que era
meningite. E dito e feito, era meningite. (A1)
No caso de A2, já mostramos seu relato de que boa parte da moti-
vação para mudança no modo de fazer agrícola significa um cuidado em
saúde, especialmente da mãe, que desenvolveu uma espécie de alergia
aos venenos agrícolas:
Minha mãe, se tu disser que vai botar um pouqui-
nho de adubo naquele pezinho, ela quase te es-
panca, ela não quer. Ela mudou muito de saúde,
ela andava com dor nas costas, dor nas perna. Ela
tem umas perna, pra falar a verdade, é desse ta-
manho (grande). Depois que nós comecemo, ela
começou a desinchar, porque ela não tem mais
circulação de sangue, ela começando a ter cir-
culação de sangue. A artéria dela tão delatada,
a ponto de estourar. Sem o veneno, ela melho-
rou, vamos dizer, uns 90%. (A2)
No trecho a seguir, percebe-se como tamm para ele, pessoal-
mente, sair de um emprego repercutiu em sua sensação de saúde. A2
ainda uma receita de chá para gripe e uma pista de que o cuidado na
alimentação pode trazer reflexos na saúde, como quando seu sobrinho,
ao invés de úcar, tomou mel na mamadeira parte da discussão que
poderia haver sobre o desmame precoce que parece ter havido e mesmo
sobre o adoçamento do leite):
Eu, faz quatro ano, fui uma vez no médico. Tinha
tanta dor de cabeça, que eu ganhava no laticínio
tanta dor, no fim fui descobrir era enxaqueca, tan-
to que eu me estressava. Eu trabalhava à noite,
aquilo me atormentava. Depois disso, nunca mais.
Pra gripe eu faço um chá, mel, limão, água quente
e folha de laranja. Isso é meu remédio. Tomo de
noite, vou pra cama, no outro dia igual nada.
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157
Meu irmão nunca teve nada, homem de ferro. [...]
Meu sobrinho não tem nada. Ele, desde que nas-
ceu, ela (a cunhada) não dava leite, então ele sem-
pre foi criado na mamadeira. Foi começado, mel
no leite ao invés de açúcar. Hoje ele não ganha
gripe, não ganha isso, não ganha aquilo. (A2)
No entanto, a grande cuidadora da família parece ser mesmo a
mãe. Am de estar por trás do processo que é reconhecido como grande
impulso à melhora das condições de saúde da família como um todo, ela
também se capacitou no cuidado, sendo chamada por seu filho de mé-
dica”:
Minha mãe fez um curso: “Onde não médico”.
Ela tem um livro grosso, marca todos os sintomas
daquilo, daquilo, daquilo. Ela vai lá, olha: esse
sintoma pode ser isso. Ela olha os ingrediente do
chá ou pra isso, ou pra isso. A gente sempre pro-
cura isso. Foi indo, foi indo, foi indo, a gente qua-
se não vai mais no médico. A mãe, vamo dizer, ela
é uma médica, porque sempre quando tem algum
curso, alguma coisa nova, ela faz. Ela foi presi-
dente da pastoral de São Bonifácio, muitos e mui-
tos anos. Vamo dizer as plantas, essas coisas, ela
sabe que é medicinal. Esses tempo, eu experimen-
tei um xarope que ela fez. Vai alho, sei que vai um
monte de ingrediente. Amargo, amargo. Mas, ói, é
igual tu tomar um fortificante! (A2)
Essa situação não chega a ser surpresa. As mães o reconheci-
damente as primeiras fontes de cuidado em praticamente todos os con-
textos culturais (HELMAN, 2003). Ademais, parece que estamos diante
de uma especialista social, no sentido de Berger e Luckman (1996), e de
alguém com perfil de liderança, como a presidência da pastoral, muitos
e muitos anos” deixa transparecer. E, coerente com os ditames de auto-
nomia da AE, alguém que se interessa por plantas medicinais, um recur-
so mais próximo. A ão da mãe de A2, levando a família a mudar de
agricultura também pode ser considerada uma ação terapêutica, digna da
médica” reconhecida por seu filho.
Entre nossos entrevistados, A3 é o que pratica e tem contato com
AE há mais tempo. Seu caso se singulariza mais pelo fato dele estar
buscando uma formação específica em homeopatia e de estar servindo
como difusor dessa racionalidade no seu meio, entre colegas agricultores
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158
e junto à família. Essa fala começa com uma crítica à medicina conven-
cional e continua com alguns casos, que no jargão médico seriam cha-
mados de casos clínicos”, com os quais ele ilustra o êxito da homeopa-
tia na sua prática agrícola:
Eu, particularmente, me recuso a usar. Muito ra-
ramente uso alopata. Eu fazendo um curso de
homeopatia, esse ano meio difícil, tem poucos
alunos, com o pessoal da Universidade Federal de
Viçosa, de Minas Gerais. Eu tenho um kit de
homeopatia, não pra mim, mas pra solo e pra
planta e outros animais. Ontem mesmo um agri-
cultor veio e perguntou pra mim se eu não ti-
nha. Ele foi passar um carrapaticida nos animais
dele e dobrou a dosagem, e os animais tavam per-
to de... Se contorcendo de dor, se intoxicaram
mesmo. Aí, indiquei uma homeopatia. Não falei
com ele hoje ainda, mas te falando, assim, co-
mo a gente tá. Outro dia, eu tava com um pro-
blema sério de piolho de galinha. Apliquei Staphi-
sagra CH5 nas instalações, nas aves. No outro di-
a, não tinha mais nada. Tava anos com esse
problema, e não conseguia resolver... Tu imagina,
cinco gotas de um produto desse, ainda potencia-
lizada, você aplica num galpão de mais o menos
oito por 20 e umas 200 e poucas galinhas, com 5
gotas desse produto você podia resolver todo esse
problema de infestação de piolho. não podia
nem passar perto do galinheiro que você pegava
piolho! Outro dia tava com um cachorrinho com
uma peste que pra sangrar pela orelha. Tinha
um que era justamente pra cortes e pra sangra-
mentos. Apliquei no animal. Na manhã seguinte
não tinha mais um sangramento. Três, quatro dias
tomando água com o produto. Uso nas pessoas,
nos bichos, nas plantas, direto. Por exemplo,
lavando as verduras com Carbo Vegetabilis, pra
questão de durabilidade, depois da colheita. Às
vezes, se é tempo nublado ou sol demais, quando
tenho tempo de aplicar (nem sempre tenho tempo
de aplicar), eu aplico uma homeopatia justamente
pra tentar dar uma condição pra planta de fortale-
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159
cer. (A3)
A3 também demonstra algum conhecimento de agricultura biodi-
nâmica, mas ressalta que esta não é viável praticamente, dentro de sua
atividade de horticultor
136
:
Semelhante aos preparados biodinâmicos, que eu
já usei. Só que como eu vou estar toda hora prepa-
rando chifre esterco, chifre sílica? A não ser que
eu mudasse de atividade, fosse plantar só uma
coisa, batatinha, aí ia ter uns meses pra me de-
dicar. (A3)
Por que A3 não consegue tempo para fazer algumas coisas que ele
mesmo sugere que são interessantes, como os preparados biodinâmicos?
Parece-nos que ele está capturado pelo ritmo moderno de trabalho
excessivo, que oferece muitas dificuldades de manejo do tempo, sendo
que esse está sempre em falta, tendo dificultado inclusive a realização de
nossa conversa.
Ao tentarmos esmiuçar o porquê da recusa à medicina convencio-
nal, ele faz referência a algumas das limitações da biomedicina:
O motivo principal é que a alopatia não vai nas
causas do problema. Ela sempre tenta mascarar,
esconder as verdadeiras causas do problema. Por
que aquilo te atacando? Você precisa ir na ori-
gem, e a alopatia não consegue fazer isso. (A3)
Apesar de questionar o raciocínio alopático por não enfrentar as
causas dos eventuais problemas, nos relatos antes referidos do uso da
homeopatia percebemos uma espécie de uso sintomático. Sinais, a nosso
ver, de medicalização social. Mesmo criticando, há um contexto social
que funciona de modo medicalizado. Mesmo que a sua prescrição ho-
meopática para os animais do vizinho seja bastante significativa, fun-
cionando tamm como referência circulante (LATOUR, 2001), que
opere uma amplificação simbólica e social importante, não uma efe-
tiva busca pela solução das causas do problema. Por que o vizinho usa
carrapaticida? Por que ele dobrou a dose? Há muitas perguntas para
136
Os preparados biodinâmicos têm alguma semelhança com remédios homeopáticos, pois são
usadas a dinamização e a diluição de plantas medicinais (algumas não disponíveis no Brasil),
de esterco e de substâncias minerais, como pó de sílica e quartzo. Nos preparados a que A3 se
refere, são necessários chifres de vaca parida, que são cheios com os pós ou com esterco fresco
e têm que ficar enterrados em posição específica, funcionando como antenas de influências
astrais (STEINER, 1993).
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160
fazer se quisermos ir às raízes da questão.
Essa observão, contudo, não diminui a singularidade a ser res-
saltada. É um sinal inequívoco de afinidade entre MAC e AE. É mais
uma peça desse mosaico de aproximões práticas entre atividades o
diversas e mesmo assim convergentes. Parece-nos também que A3 faz o
trabalho de tradução, no sentido dado por Santos (2004). Ao se instru-
mentalizar homeopaticamente para atuar em agricultura, ele faz as duas
áreas contra-hegemônicas conversarem, de forma prática e aplicada,
constituindo um fenômeno novo, de grande valor sociológico e carrega-
do de valor político emancipador, de construção de autonomia, congru-
ente com o “conhecimento prudente para uma vida decente”.
A formação em agricultura ecológica fez A3 conhecer um médico
que o impressionou e que ele cita como um marco:
Faz uns seis, sete anos, eu conheci o Dr. Luis Mei-
ra, um médico iridólogo. Me impressionou muito
saber que dava pra identificar qualquer doença a-
través da íris. Ele me ensinou muita coisa. Ele en-
tende muito da química física do corpo humano.
Ele segue um conceito bíblico que tem dois mil
anos e recusa os conceitos médicos que mudam a
cada dez anos. Ele é um autodidata, ele aplica nele
as coisas pra depois aplicar nos outros. Ele é mé-
dico, mas, louco! Sabe o que é uma pessoa ex-
tirpar um tumor de próstata de 700 g sem usar
medicamento alopático? É uma pessoa que eu res-
peito muito. (A3)
Percebemos mais um sinal de conexão entre as MAC e a AE.
Como esse agricultor do interior de Santa Catarina conheceu esse médi-
co de prática diferenciada? A oportunidade foi propiciada pela circula-
ção de ideias, pessoas e conceitos característica da AE. A3 conclui con-
tando um caso de um cliente seu, senhor de idade, que estava sobrevi-
vendo 30 anos, mesmo desenganadopelos médicos. Sua observação
deixa transparecer a opinião de que a biomedicina não erra por má in-
tenção:
A medicina se engana e engana as pessoas...(A3)
E, por último, A4 e sua família. Qual é a conduta em caso de um
problema de saúde?
Normalmente, a gente precisa procurar é quando
a gente tem uma gripe muito forte, começa a pas-
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sar mais de três dias e o quadro não muda. a
gente procura ajuda. Mas, normalmente, com fe-
bres e vômitos, que às vezes pode acontecer por
mudanças de clima e temperatura, que normal-
mente as crianças pegam, se vão pra escola. Nor-
malmente em dois dias, 48 horas, isso passan-
do. Então, não precisa levar no médico, estar pe-
dindo receita, indo na farmácia. A gente deixa
quietinho, descansa, um chá, não manda pra
escola, um, dois dias. (A4)
A primeira conduta em caso de alguma necessidade, portanto, se
aproxima da espera assistida” (KLOETZEL, 1999), tão desejável em
muitos casos que se veem cotidianamente nos serviços de saúde e que
seria de grande valia para uma prática clínica desmedicalizante. E se não
funciona?
Quando é coisinha menor, a gente toma um chá,
toma um remedinho pra dor que tenha em casa, se
é uma dorzinha de cabeça, às vezes, se pegou
muito sol. descansa um pouquinho, melhora.
(A4)
A esposa de A4 ressalta, entretanto, que eles estão bem de saúde,
especialmente as crianças, e atribui esse estado à alimentação:
Olha, eu vou dizer, eu vou me basear nas crianças
[a filha de nove e o filho de 15 anos]. As crianças
não têm resfriado, não têm dor de garganta. No
máximo, um resfriadinho, mas se recuperam rápi-
do. E o interessante é que eles foram criados sem-
pre comendo verdura. Quando falta, eles dizem:
“poxa, cadê?” A alimentação com verduras pode
ser o melhor remédio natural que se tem. (A4, es-
posa)
Pode parecer curioso ela ter falado em falta de verduras, pois es-
tamos na casa de um plantador de verduras, mas provavelmente o co-
mentário estava servindo um pouco como justificativa de que no almoço
recém compartilhado com o entrevistador não houvesse praticamente
verduras. Ela explicou que, por estar cuidando do sogro que estava com
problemas de saúde, o tinha tido tempo para prepará-las. De novo
surge a questão da falta de tempo. Na casa de uma pessoa que dispõe de
relativa abundância e dispõe de informação, o que faltou foi o tempo
para dedicar-se como gostaria à tarefa de preparar o almoço.
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162
Sentimos até aqui que a relação MAC-AE está esboçada, de for-
ma um tanto sutil, em pequenos fragmentos dos relatos. E colocando a
questão nesses termos, objetivamente, o que dizem os nossos agriculto-
res?
Se tem alguma coisa a ver? Eu acho que tem mui-
ta coisa a ver. Sem o produto químico, a saúde da
pessoa vai em cima. Com, a saúde vai em-
baixo. Muita gente, principalmente de cidade, tem
câncer, tem aids, tem isso, tem aquilo. Muito por
quê? “Hoje eu não vou fazer almoço. Vou lá com-
prar salgadinho”. Eles já pensaram no que tem na-
quele salgadinho? Se tu for fazer uma análise, o
que tem naquele salgadinho, no fim tu vai ver que
tem tanta porcaria lá que vai te fazer mal em mui-
ta coisa. Não vai ter só problema de estômago, vai
ter problema de fígado, vai ter problema de esôfa-
go, vai ter tudo. Vamo dizer, se o pessoal evitar,
fazer um almocinho bom... Como diz o I: “Essas
coisa tudo pra comprar com confiança, porque
é feito tudo com amor”. Hoje em dia se tu não ti-
ver amor pra fazer as coisa, pensar “isso não é pra
mim comer, isso pode ter qualquer coisa den-
tro”. Tem que pensar primeiro na outra pessoa, e
não na gente. (A2)
A fala de A2 nos remete não necessariamente às práticas de MAC,
mas sim à relação entre saúde e química na agricultura e tamm ao
amor que se deve ter ao fazer as coisas. Amor que falta na agricultura e
nos alimentos que abusam da química. Podemos estender o raciocínio às
práticas de cuidado que envolvem a alimentação (“um almocinho bom”)
e que terminam por ser alternativas tamm. Fica como pano de fundo a
falta de tempo que as pessoas usam como desculpa para comer o “salga-
dinho” ao invés do “almocinho bom”.
A3, ao abordar a afinidade entre MAC e AE, refere que percebe
entre seus clientes a opção por outras medicinas e também menciona um
tema que atravessa ambos os campos, o vegetarianismo. Esse assunto e
outros, como a discussão sobre alimentos geneticamente modificados, a
nanotecnologia, são abordados em publicões que o disponibilizadas
na banca de feira de A3, funcionando tamm como inscrições, no sen-
tido de Latour (2001).
Tem tudo a ver. Na maioria das medicinas alterna-
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tivas que eu conheço, caminha paralela a questão
do uso dos alimentos orgânicos. Com certeza. A
maioria deles vão a médicos homeopatas, usam
medicina ayurvédica, antroposofia, acupuntura, sei
lá, mil coisas. Vegetarianismo, a maioria das coi-
sas tá ligado. (A3)
No entanto, quem melhor descreveu, entre os agricultores, algu-
mas das facetas das relações que se constroem socialmente e que envol-
vem as formas de cuidado e as práticas agrícolas foi A4. Seu relato é
particularmente claro:
Tem tudo a ver. Tudo a ver. Olha, vou te dizer o
seguinte. O cara que é altamente convencional, ele
compra glifosato [herbicida] pra limpar a terra,
adubo pra adubar o milho, ele compra ureia pra
fazer crescer mais rápido, ele compra inseticida
pra proteger, e quando ele fica doente, ele compra
remédio pra dor de cabeça, remédio pra dor de
barriga, remédio pra indigestão, ele compra tudo.
Tudo tem que vir de fora. Por que isso é uma cul-
tura, que tudo que tu precisa tu tem que comprar
de fora. E eles não têm nenhuma informação sobre
as plantas, sobre o que tu pode aproveitar, sobre o
que a terra te oferece, o que o teu sítio te oferece.
Nada. Por que não fazem nenhum curso, não se
informam. As pessoas do comércio que lidam com
essas pessoas da agricultura convencional são do-
nos de agropecuária, não tão interessadas “ah, essa
plantinha é boa pra isso, essa plantinha é boa pra
aquilo”. Não, eles querem vender o herbicida pra
matar essa planta. Então, não tem essa cultura no
meio deles. O cara que compra adubo, que compra
herbicida, ele compra inseticida, ele compra tam-
bém o remédio. Isso é lei. É assim. O cara que
produz o seu adubo, que produz o seu inseticida,
que produz o seu herbicida, e não precisa ser um
cida, pode ser um controle biológico, ele também
produz o seu remédio, porque ele tem consciência
do que ele tem na propriedade, as plantinhas, o
papel delas, até mesmo na horta ou no ecossistema
como um todo. (A4)
Em síntese, na AE há um estímulo à autonomia que termina por se
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estender a outras esferas da vida, como o autocuidado. A4 resume isso
na noção de que uma culturana qual tudo tem que vir de fora”,
oposta à busca do agricultor ecologista. Em resumo, a cultura a que se
refere A4 é a cultura da medicalização social, da heteronomia (ILLICH,
1975).
Passemos agora ao último segmento que nos interessou nesse tra-
balho, os usuários consumidores. Já entre os terapeutas, eles foram cita-
dos como fundamentais por serem os maiores depositários de conheci-
mento no caso do uso de plantas medicinais constituindo o verdadeiro
círculo esotérico na acepção de Fleck (1986); por terem a cabeça mais
aberta” e consequentemente serem mais receptivos a outras formas de
cuidado; por serem, em última análise, quem determina em boa parte os
movimentos de mercado, pelas opções de escolha que, em maior ou
menor grau, terminam por exercer com relativa liberdade. Entre os agri-
cultores, tamm se percebe quão fundamentais são os consumidores.
Alguns deles reclamam uma espécie de educação dos consumidores,
para que estes valorizem mais o produto ecológico:
Não tem saída, o produto orgânico. […] devia ter
uma coisa mais de divulgar. Tu chega na escola,
aqui, no primário, e pergunta: “crianças, o que é
produto orgânico?Não tem um que saiba. (A1,
esposa)
Óia, em começar, vamo dizer, um pouquinho
devagar. Podia tar mais acelerado. 90% da popu-
lação viu o que acontecendo com o planeta e
mudando. É igual com sacola, com papel, essas
coisa que joga no lixo. Se joga no lixo, se não joga
no chão [...] Vamo dizer que o orgânico, a agroe-
cologia, que num ponto mais avançado, se nos-
so governo ajudasse um pouquinho mais, porque o
pessoal que trabalha nesse ramo não tem muito
apoio. (A2)
A agroecologia não tá ocupando ainda, ela deveria
ocupar todos os espaços possíveis de interesse do
consumidor, da mídia, dos órgãos governamentais.
Então, o alguns setores do governo que defen-
dem, são algumas ONGs que defendem, entidades
ambientalistas que defendem, consumidores que
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165
têm a consciência do que tá acontecendo e que de-
fendem, graças a Deus. Sem consumidor não serí-
amos nada. (A3)
Olha, não tivemos produto suficiente ainda pra a-
tender todo o mercado que nós temos. Tem épocas
do ano que não. A gente joga muita coisa fora. Em
outras falta muito. Tem que ter organização de
produção. (A4)
As posições oscilam. um público, que podia ser maior, al-
gum apoio oficial, que podia ser maior. É um quadro dinâmico, em
construção e de embate entre posições antagônicas. Como ocorre na área
do cuidado em saúde, a cisão entre uma atenção mais integral, pro-
funda, demorada, longitudinal, e outra atenção rasa, pida e sintomáti-
ca, de urgência. Vejamos o que nos dizem os usuários e/ou consumido-
res, os que, afinal, determinam a extensão social dos fenômenos em
questão.
4.5 OS USUÁRIOS E/OU CONSUMIDORES
Esse grupo, esperávamos, seria o menos homogêneo. Porém, com
um recorte de seleção tão pequeno e aplicado sobre um universo tam-
bém reduzido, a diversidade o apareceu plenamente. Os quatro entre-
vistados nesse grupo m, na média, mais instrução que a população em
geral e provavelmente (não investigamos isso) uma situação econômica
relativamente tranquila (apenas um dos entrevistados deu sinais de o
estar confortável financeiramente). Em suma, e considerando que entre-
vistamos apenas quatro pessoas dentro desse perfil, não temos a preten-
são de que esse grupo reflita o mosaico de intensa diversidade social e
cultural que vivemos no Brasil.
Olhando com atenção, acreditamos que praticamente todas as pes-
soas (evidentemente incluindo os terapeutas e os agricultores) poderiam
estar presentes nos universos dos usuários de práticas de MAC e dos
consumidores de produtos ecológicos. Naturalmente, estamos falando
em termos idealizados. Se todos estivéssemos nos dois universos, o
mundo seria outro e as MAC e a AE estariam tão imbricadas que não
ocupariam espaços sociais tão distintos.
Contudo, cremos que deveríamos caminhar nessa direção. Em re-
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166
lação ao cuidado em saúde, como dito em outra parte deste trabalho,
todos participamos pelo menos de um setor de cuidado (usando a termi-
nologia de KLEINMAN, 1980), o familiar ou autônomo. A princípio,
todos nos cuidamos e nos esforçamos de alguma forma para prolongar
nossa (e a das pessoas próximas) permanência nesse mundo e, de prefe-
rência, sem padecimentos. E nesse rol de cuidados cotidianos e perma-
nentes, certamente nem todos m embasamento biomédico (apesar de
que boa parte dos cuidados tidos como rotineiros se originem de uma
matriz biomédica ou recebam uma explicação científica, mesmo quando
m outras raízes). Assim compreendendo, todos seríamos usuários, em
alguma escala, de alguma forma de cuidado não biomédica, portanto
enquadrável como MAC no contexto desse trabalho.
Pom, o recorte escolhido para chegarmos aos nossos entrevista-
dos entre os usuários de MAC foi selecionar entre aqueles que buscam
essas pticas na rede municipal do SUS de Florianópolis, especialmente
nos centros de saúde onde trabalham os terapeutas de maior presença
institucional (T1 e T4). Esses centros de saúde se situam em áreas de
ocupão predominantemente de classe média. Mesmo assim, na fase
exploratória tivemos dificuldades de encontrar pessoas que tivessem um
mínimo de interesse prático pela AE. As razões apresentadas para tal
distância prática foram, invariavelmente, de ordem econômica. Fizemos
aqui uma pequena mudança em relação à metodologia que havia sido
qualificada. Conhecemos a entrevistada que recebeu o código U2, de
fato, através da nossa participação na pesquisa Práticas integrativas e
complementares no Programa de Saúde da Família voltadas para aten-
ção à saúde mental: estudos de caso no Nordeste, Sul e Sudeste”,
citada na seção de metodologia. Ao participarmos de um grupo focal
previsto no referido projeto e ouvirmos U2, fomos conversar com ela e a
convidamos a participar deste trabalho tamm.
Em outras palavras, a fase exploratória sugere que o público que
frequenta os centros de saúde não é o mesmo que frequenta as feiras de
AE de Florianópolis, ou mesmo as raras gôndolas dos grandes super-
mercados dedicadas aos produtos orgânicos. Prevalece a impressão que
foi externada em alguns momentos das entrevistas dos terapeutas, de
que os alimentos oriundos da AE são caros”, nem sempre fáceis de
encontrar e que, em paralelo, os usuários dos serviços de assistência do
SUS são, em sua maioria, pessoas que o estão procurando por não terem
condições econômicas de estar pagando por uma atenção em saúde par-
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ticular. As duas usuárias de MAC no SUS entrevistadas em profundida-
de manifestam sua afinidade pela AE muito mais como simpatizantes do
que como consumidoras efetivas de produtos produzidos ecologicamen-
te.
Ressaltamos, contudo, que isso é apenas uma impressão. Não
constitui um dado de pesquisa, apesar de refletir uma peculiaridade me-
todogica. Essa limitação poderia ser superada com uma pesquisa espe-
cífica para delinear o perfil do usuário dos serviços de assistência do
SUS em Florianópolis e, mais especialmente, das MAC no SUS do mu-
nicípio.
Em relação aos consumidores de produtos das feiras de AE de
Florianópolis, a nossa condição de frequentador contumaz desses espa-
ços propiciou que identificássemos alguns frequentadores assíduos co-
mo nós e, dessa forma, os contatos na fase exploratória nesse subgrupo
foram mais fáceis e, em certo sentido, mais produtivos. Além de fre-
quentadores das feiras, os dois sujeitos que entrevistamos, como vere-
mos adiante, podem ser chamados de militantes ecológicos” e tamm
são usuários/simpatizantes de MAC (fora do SUS), configurando-se em
exemplos singulares e particulares das afinidades entre MAC e AE,
expressando algumas noções antes apenas esboçadas (como a alimenta-
ção vegetariana e práticas de economia solidária), mas não assumidas
nas entrevistas
137
por nenhum dos sujeitos analisados até aqui.
O percurso das conversas começou mais ou menos da mesma
forma que para os outros grupos. Por que essas opções de uso/consumo?
Eu acho que é uma coisa que vem num crescendo
assim. A L. [filha] nasceu, a [alimentação da] gen-
te tava tudo integral, possivelmente orgânico,
mas eu acho que, mais forte assim... Bom, a ali-
mentação viva, ela traz isso e quatro anos
fazendo. Tu não tem como pensar alimentação vi-
va sem pensar orgânico, não tem como. Então ho-
je, por exemplo, se alguém me convida pra algu-
ma coisa, se eu tiver que comer em algum restau-
rante (porque eu não vou, né?), se eu tiver de estar
com as pessoas em algum local, por mim, eu não
vou, a não ser que, aquela história... Aí eu procuro
137
T4 nos revelou ter ficado cinco anos sem comer carne e ter tentado se envolver em
cooperativas de consumo. Porém, isso foi há tempos.
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168
um restaurante que tenha as saladas orgânicas,
mesmo que não seja vegetariano. Pra mim é mais
importante que a verdura seja orgânica, que é o
que eu mais como, do que um restaurante vegeta-
riano que não tenha as verduras orgânicas. (U1)
U1, ao ser questionado desde quando se alimentava com produtos
de AE, reportou-se à infância e juventude no interior do Rio Grande do
Sul, situação que, segundo seu relato, lhe disponibilizava acesso a ali-
mentos orgânicos, apesar da inexistência desse conceito. Percebemos, ao
esmiuçar a questão, certa ingenuidade sobre o tema. Há muito tempo
(aproximadamente 50 anos, no caso do estado gaúcho) a agricultura
se modernizava, e é provável que boa parte da alimentação de U1
tenha sido produzida por meio de agricultura química, como o próprio
U1 cogita:
Lá, 30 anos atrás, era tudo [orgânico]... Se bem
que eu acho que já existia o NPK
138
nas hortinhas,
até porque tem muita gente alemã nesses locais
do interior, e eles gostam de tudo bonitinho, sem
capim, né? (U1)
A opção de U1 se radicaliza, no entanto, ao chegar na “alimenta-
ção viva”. Nessa linha de alimentação, a procura é alimentar-se o máxi-
mo possível de alimentos crus, in natura. Segundo ele, “não tem como”
pensar em crudivorismo sem pensar em alimentos sem contaminão
química
139
.
O caminho de U2 para chegar às MAC no SUS é interessante,
pois ela as descobriu em um dos espaços para participação popular que o
SUS enseja, o conselho local. Essa descoberta veio ao encontro de uma
demanda pessoal e de uma percepção crítica do caminho terapêutico que
ela imaginava que iria trilhar dentro da biomedicina, terminando a fala
com um bordão usado em campanhas antidrogas” ilícitas, no caso diri-
gido aos fármacos de prescrição controlada, os “faixa-preta”:
Bom, eu fiquei sabendo dessa coisa aqui no posto
através da minha participação no conselho local
138
NPK é a sigla do adubo químico mais difundido na agricultura convencional e que é formada
pelos símbolos dos elementos químicos principais: nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K).
139
A alimentação viva é caracterizada como uma corrente alimentar cujo princípio básico é a
vitalidade dos alimentos. Tal princípio se refere à energia vital presente em todos os seres. A
“comida viva” é uma forma de alimentação baseada em alimentos crus, frutos frescos e secos
(hidratados), vegetais, sementes, grãos germinados e algas (NAVOLAR, 2010a).
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169
de saúde. Tinha horas que eu quase surtava, pare-
cia que não ia aguentar. Aí comecei a ir, comecei a
ir, fui me acalmando, fui gostando, fui me encon-
trando. Agora faço uns exercícios em casa mesmo,
de respiração, bem mais controlada. Mas tem
que continuar vindo, senão... Tenho vizinha, cole-
ga de trabalho que tão na boleta, e não queria
isso prá mim. Por nada, por bobagem, hoje tão
tomando faixa preta. Tô fora! (U2)
U3, ao ser questionado sobre como havia sido o processo que o
levava a procurar alimentos ecológicos, fez uma longa retrospectiva de
sua vida, desde sua infância. Filho de um pastor luterano e com a mãe
com alguma preocupação ecológica, ele desde pequeno foi instado a
adotar uma postura mais reflexiva. U3 conta que teve contato com yoga
na adolescência, estudou engenharia, sentiu falta de reflexão ética e
ecogica”, teve um filho e que, após algumas experiências profissionais
e contatos com filosofia oriental, conheceu a atual esposa,
Aí um dia ela me levou num retiro e esse retiro foi
bem marcante, foi um divisor de águas, assim. Aí
eu entrei mais fundo nessa filosofia de vida que
chama ananda marga. Que tem a ver com tantra
yoga, uma yoga bem antiga, tipo a raiz do yoga.
Então, eu me voltei pro yoga, mas não físico,
como o hatha yoga, mas também meditação, prá-
tica espiritual e a filosofia de tudo isso, uma coisa
que eu não tinha noção, mas foi um grande acha-
do. Tô até hoje nessa filosofia de vida, desde
2005. (U3)
No próprio relato de U3, do qual trazemos apenas um pequeno
excerto, se percebe uma tentativa de contar os seus porquês de uma
maneira mais integral, holista. A própria motivão se configura como a
adesão ao que ele mesmo chama de uma filosofia de vida” (que abran-
ge bem mais aspectos que alimentação, mote para a entrevista) que tem,
talvez, como aspecto central nos dias de hoje, a prática de yoga. As raí-
zes estão resumidas no hábito de refletir e questionar, estimulado pelo
pai, e na preocupação ética ecológica herdada da mãe.
No caso de U4, sua fala dá sinais de uma simpatia que se trans-
forma em adesão no momento em que a prática se mostra eficaz. Contu-
do, analisando criticamente, tamm poderíamos notar que U4 focaliza
a eficácia do tratamento a que se submeteu nas “agulhinhas”. Tal im-
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pressão, que sugere uma renúncia à autonomia, é desfeita logo a seguir,
quando ela relata uma busca por informações que a levaram a mudanças
importantes no autocuidado.
Eu sempre procurei me tratar de um jeito mais na-
tural, mais simples. Nunca gostei de tomar remé-
dio. Tive um problema rio de saúde depois do
nascimento da minha segunda filha, fiz uma ci-
rurgia grande [de coluna], e o que me fez me-
lhorar de novo, me erguer, foram as agulhinhas de
acupuntura. Virei delas. Isso faz mais de 10
anos. Fiz até curso de cromoterapia, fui estudar,
fui ler, e comecei a achar coisas diferentes. Jeito
diferente de se olhar, de se cuidar. Faz anos que
eu não tomo remédio, assim, alopático (U4).
no relato de U4 uma menção a outra prática não convencional
que não configura uma racionalidade, mas que também gravita no espa-
ço das terapias alternativas: a cromoterapia
140
.
Tentamos averiguar tamm se os nossos entrevistados tinham a
percepção de que ao optarem por tratar-se com MAC ou consumir pro-
dutos da AE eles estavam fazendo opções que podiam ter significados
que transcendiam as suas opções em si. Em outras palavras, qual a per-
cepção deles sobre a possível configuração de um movimento social,
político, cultural associado a essas práticas terapêuticas/agrícolas?
Eu acho até que os agricultores, eles deviam ser
mais unidos, né? Eu acho que a agricultura [eco-
lógica], ela não tem que repetir um sistema capita-
lista, que tá exposto e, digamos assim, acolhido
pela sociedade. Acho assim. Essa [feira] da uni-
versidade é uma estrutura interessante. No come-
ço teve uma quebra, um racha. Teve alguns que
não ficaram. Nunca entrei em detalhes, mas sei
que aconteceu alguma coisa, e a gente vê, às ve-
zes, na feira, questões egóicas, do produtor e
tal. Mas eu acho que poderia, e que não muito
unido. Não troca. A E. é uma agricultora orgâ-
nica que começou esse trabalho em São Bonifá-
cio. A maioria deles são de origem alemã, né, e
140
A cromoterapia é o uso das cores com finalidades terapêuticas. É uma prática sem
comprovação científica, que usa uma lâmpada e filtros de diferentes cores aplicados em
sequências, tempos e locais diferentes para as distintas enfermidades.
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171
essa colonização buscou muito repetir o padrão
europeu. É, desvirtuado um pouco, porque os eu-
ropeus o bem avançados, principalmente os
alemães. Vieram pra e acabaram aderindo, o
que usaram na guerra, vamos usar na terra. Eu a-
cho que, fora o que eu vejo aqui, nessa feira da al-
fândega mesmo, uma não sabe da outra “ah, não
sei bem o que que é”. no sacolão tem o X.,
ele. (U1)
Os comentários de U1 o especialmente interessantes, pois ele,
como consumidor ávido por produtos orgânicos, conhece todos os pro-
dutores e parece estar acompanhando a história deles em Florianópolis
desde o começo. Então, nesse olhar de fora, ele percebe que não co-
municação entre os agricultores, fato tamm percebido por nós
141
. Uma
das formas efetivas desses agricultores estarem se conectando, portanto,
é através de seus clientes, já que a eventual proximidade geogfica e de
atividade não parece estar sendo suficiente. Nesse sentido, parece que os
consumidores fazem o trabalho prático de tradução, no sentido de San-
tos (2004), ao fazerem conversar de alguma forma os diferentes atores
dessa atividade periférica.
U1 acrescenta, contudo, talvez motivado pela palavra movimen-
to”, uma articulação da qual ele participa e que busca efetivamente fazer
conversar diferentes sujeitos com diferentes habilidades com a finalida-
de de buscar uma espécie de autossustentabilidade:
Mas tem o movimento da “ensolta”
142
, né? Não sei
se tu conhece. Tem a A., que é uma iluminada, ir-
do P. [...] Esse movimento todo até se reuniu
no restaurante Central, que quer se tornar um res-
taurante orgânico por excelência, talvez o de
Santa Catarina. Então, tava a M. W., da SVB
143
,
tava uma amiga minha que é arquiteta que é toda
voltada pra essa história da bioconstrução, então,
pegando várias pessoas, terapeutas, enfermeiros,
pessoal da saúde. O P. trabalha na Caixa, mas é
141
Ao perguntarmos aos agricultores qual o conhecimento que eles tinham dos outros feirantes
de Florianópolis, a percepção foi de que eles realmente não têm contato frequente, mesmo
quando são do mesmo município e até quando participam da mesma feira. Paradoxalmente, os
amigos agricultores citados são de outras cidades e até de outros estados.
142
“Ensolta” (lê-se “ensôlta”, com o “o” fechado) seria o contrário de “empresa”.
143
Sociedade Vegetariana Brasileira.
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172
músico. O R. tava na lista, mas não foi. Várias
pessoas... O que que é a “ensolta”? Aquilo que tu
não pode fazer, uma outra pessoa faz, e tu faz o
que outros não podem fazer. Trabalhar com a tro-
ca. Enquanto o sistema capitalista trabalha com
dinheiro e tu pode ser inimigo do teu parceiro, a
“ensolta” trabalha o dinheiro como meio, e não
como fim. Esse é um movimento interessante. A
agricultura, nesse caso aí, ela é um ponto decisivo,
na “ensolta”, pra se criar isso. (U1)
A ensolta” tamm foi citada por U2 nesse momento, sobre a
percepção do movimento que envolve, no caso, a prática terapêutica que
ela utiliza:
Parece que é um trabalho de equipe. Às vezes vem
um residente, às vezes vem o doutor R. Mas não
sei se tem isso em outros postos. Seria bem bom,
porque eu vejo como o pessoal daqui gosta. Agora
que a psicóloga pra sair, nós vamo ter que bri-
gar pra continuar, e eu acho que continua, nem
que seja com nós mesmo. Mas aqui tem um
pessoal muito bom que trabalha com plantas me-
dicinais. Eu acho bem legal, porque diminui o
uso de remédio de farmácia, o pessoal começa a
aprender a se virar sozinho, sem tar precisando de
doutor, de doutor, pra tudo. É claro que tem caso
que precisa. […] Agora me lembrando da “en-
solta”. Tu já ouviu falar? Eu até já fui numa reuni-
ão, da A., que é muito legal. Ela diz que é “en-
solta” porque é o contrário de empresa, que é do
capitalismo. Então, no nome já é pra mostrar que a
ideia é diferente […] A ideia é juntar pessoas pra
se ajudarem umas às outras, trocando serviço ou
coisas. Tinha gente, enfermeira, acho que tinha
médico, e era tudo um pessoal assim, alternativo,
cabeludo, meio hippie, mas bem legal. (U2)
O relato de U2 traz de novo à tona a questão da relativa incipiên-
cia das experiências, o que é de múltipla interpretação. O grupo do qual
participa, segundo ela, corre o risco de terminar (pelo fim do contrato
temporário da psicóloga). Se assim for, revela que a experiência está
atrelada a uma pessoa em particular, não tendo sido incorporada pelo
serviço. Contudo, talvez isso leve o grupo a uma espécie de autogestão,
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173
e, nesse caso, o episódio pode funcionar como um gerador de autonomi-
a, como um potencializador de várias capacidades das pessoas envolvi-
das. Ao falar do movimento da ensolta”, U2 faz referências que nos
remetem a distantes influências da contracultura, também presentes no
nome da idealizadora, aqui representado apenas pela letra A”, que é um
nome indiano, provavelmente recebido em alguma iniciação à filosofia
oriental.
U3 vive algumas experiências que se assemelham à de A., citada
por U1 e U2 como uma das idealizadoras da ensolta”. Ele tamm é
conhecido por um nome em sânscrito, de origem indiana, por conta de
sua iniciação em yoga (outra influência contracultural). Ademais, como
é o caso de A segundo os relatos, U3 tamm representa um caso singu-
lar no que tange à percepção da significação social e política da AE e de
algumas conexões desta com o cuidado em saúde, pois ele já teve inclu-
sive uma banca na feira da UFSC, onde divulgava a alimentação sutil, o
PROUT
144
e as práticas de yoga. Essa participação na feira sugere que
U3 vive na prática a tentativa de fomentar práticas alternativas de ali-
mentação, de autocuidado e de consumo. Para entendermos as motiva-
ções de U3, é necessário que conheçamos um pouco mais dessa “filoso-
fia de vida” à qual ele aderiu e que trouxe mudanças à sua vida, inclusi-
ve seu novo nome. Ele a resume assim:
Uma frase bem simples: autorrealização e serviço
a favor da criação. Significa internamente que a
pessoa tem que buscar se desenvolver. Externa-
mente, ela vai fazer o quê? Vai ajudar os outros
também a se desenvolver, que é a melhor atitude
que a gente pode ter de estar ajudando os outros.
Ajudar a si mesmo e ajudar os outros. Esse é o re-
sumo da filosofia. Tem uma parte interna, da gente
com a gente mesmo, de buscar o autoconhecimen-
to, a autorrealização e a parte externa, dentro
dessa parte externa entra o PROUT, mas na verda-
de o PROUT fala desse equilíbrio entre o desen-
144
PROUT ou Teoria de Utilização Progressiva é uma teoria socioeconômica desenvolvida em
1959 pelo filósofo indiano Prabhat Rainjan Sarkar (1921-1990), uma filosofia que sintetiza as
dimensões físicas, mentais e espirituais da natureza humana e descreve uma alternativa aos
paradigmas socioeconômicos do capitalismo e comunismo (Disponível em:
<http://proutsp.blogspot.com/2008/04/sobre-o-fundador.html> . Acesso em: 13 julho 2010). A
alimentação sutil e as práticas de yoga são paralelas ao PROUT.
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174
volvimento de todas as potencialidades, internas e
externas. (U3)
O PROUT seria, em resumo, um capítulo dessa filosofia para
compreender e emular as relações econômicas e de consumo. Para U3,
as opções de consumo individuais estão ligadas ao grau de consciência
ética que, segundo suas crenças, pode significar uma conexão com uma
instância superior, divina, que nos levaria a uma autorrealização e, ao
mesmo tempo, com a realização de um plano superior para a própria
experiência das vidas e não vidas. U3 cita o guru dessa filosofia, Sarkar:
E ele [Sarkar] fala numa espécie de irmandade,
então, entre os diferentes, formando uma hu-
manidade, e forma uma fraternidade entre todos os
seres, os animados e os inanimados. Tudo tem
uma origem comum. Que origem comum é essa?
Aí entra a questão da espiritualidade. (U3)
Ao ser questionado se essa filosofia não seria muito exótica, mui-
to distante de nossa cultura, por ter suas raízes situadas em um contexto
cultural bastante diverso do nosso, U3 defende um ponto de vista con-
trário. Para ele, nessa filosofia algo muito essencial e que está no
âmago de todas as experiências humanas. Essa origem comum a que ele
se refere na fala anterior é o que faz com que todos estejamos no mesmo
barco, mesmo que diversificados pelos diferentes contextos culturais.
Ele fala adiante de uma outra noção que serviria para ajudar a explicar
porque parecemos estar tão distantes desses ideais de autorrealização.
A ideia é que não [seja exótica]. É uma cultura,
uma filosofia universalista. Então, por exemplo,
eles falam sobre a natureza humana, e o ser hu-
mano tem isso, essa busca pela autorrealização em
qualquer lugar do mundo, em qualquer cultura, e
também essa coisa de quando tem uma coisa mí-
nima garantida, razoável, ele quer fazer algo de
bom pros outros. Isso é parte do desenvolvimento
humano. Em qualquer lugar. Ele procurou muito
claramente colocar o que os seres humanos têm
em comum. Claro que aqui vousa uma lingua-
gem estranha, usa o nscrito, usa ideias novas,
conceitos novos. Isso, sim. Mas eu prefiro ver isso
de um ponto filosófico científico, assim. Não co-
mo uma coisa restrita de uma cultura. Pessoas do
mundo todo praticam isso […] O Sarkar propôs
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também uma coisa que se chama a filosofia do
neo-humanismo que não é parte disso aqui, mas
tem muito a ver com o PROUT. É como se fosse
uma explicação filosófica mais geral do PROUT.
[...] Aí ele fala, ele define o que é cultura, o que é
civilização, e fala do que é pseudocultura, como
existe, nessa teoria de ciclo social, de dinâmica
social, sempre tem um tipo de mentalidade domi-
nante na sociedade, em certa época, lugar, povo.
São quatro mentalidades. Na maior parte do mun-
do hoje, predomina a mentalidade aquisidora (ca-
pitalista, a gente poderia falar), e eles criam essa
pseudocultura. Como essa mentalidade é voltada
pra exploração, para pegar mais e mais, tentando
erradicar as culturas dos povos aqui, e aqui, e a-
qui, dizendo: “não, a tua cultura é inferior, a tua
língua é não sei o quê, coca-cola é melhor, assim
e assim”. Vão criando complexo de inferioridade
nas pessoas em relação à cultura delas e vão colo-
cando a propaganda do que é a vida certa, isso é
melhor, isso é melhor. Mas é uma coisa que não
está enraizado no desenvolvimento humano, é
uma cultura de exploração, uma pseudocultura.
Tem essa coisa de desprezar a diversidade huma-
na, essa coisa de desprezar o que tem de bom, de
avaliar racionalmente o que tem de bom em cada
experiência. (U3)
A pseudocultura poderia ser entendida, de forma resumida, como
as distrações que nos desviam do caminho da autorrealização. Nesse
sentido, estamos embebidos em um contexto altamente pseudocultu-
ral”. U3, no entanto, é otimista e vê várias iniciativas acontecendo,
mesmo que não estejam recebendo os mesmos nomes. U3 nos faz lem-
brar, de novo, da sociologia das ausências de Santos (2004). Ao evocar a
existência de várias pequenas experiências desconectadas, mas que ca-
minham no mesmo sentido, nos remete à importância do trabalho de
tradução que faz conversar diferentes expressões emancipatórias fora do
contexto hegemônico. É o que percebemos neste trecho:
Tá feia a situação. Tá feia! Mas, ao mesmo tempo,
a gente tem muitas ferramentas agora […] Têm
muitas coisas boas. Muitas coisas. Tem uma filo-
sofia neo-humanista e tem sentimento neo-
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humanista. Esse sentimento neo-humanista, ele
existiu na humanidade, de forma pontual, aqui,
aqui. Como culturas indígenas que entendiam cla-
ramente, nós somos parte da natureza. Não somos
donos desse pedaço aqui, desse aqui, desse aqui,
“a gente faz o que quer”. Não, nós somos frutos
da natureza, filhos da terra, da água. Então, já tem
uma irmandade com tudo. Isso já é uma expressão
desse neo-humanismo. [...] Têm muitas coisas que
as pessoas fazem que é PROUT. não é o
PROUT completo, isso não, porque nós estamos
no capitalismo. Mas tem elementos. Só que as
pessoas não têm uma visão sistemática. Tem a e-
conomia solidária, por exemplo. Algumas coisas
têm a ver com PROUT. Outras, não. A questão da
liderança é fundamental, é fundamental. É a cha-
ve. Se o tem uma pessoa com uma visão que
consiga ser boa pra todos, como é que vai imple-
mentar? Alguma pessoa pode conhecer teorica-
mente, mas se ela não pegar e não fizer a prática
também, quem vai fazer? Então, as lideranças são
fundamentais. E têm pessoas que tão fazendo esse
trabalho, mesmo sem conhecerem a teoria, mas
que dentro do seu foco, tão fazendo aquilo. E a
teoria serve pra isso, que que dando a favor,
que que dando contra, tentar talvez coordenar
isso, não sei. Não sei muito bem qual esse papel.
(U3)
U3 atribui importância ao papel de líderes. Uma hipótese, à luz da
sociologia de Santos (2004) é que esses líderes devam ter a capacidade e
a intenção de fazer, na prática, o trabalho de tradução referido por esse
autor. Há a menção à ideia de “bom para todos”, nos remetendo a Lacey.
U4, por sua vez, ressalta um aspecto interessante, a questão da a-
tenção. Ela percebe que a atenção dos profissionais praticantes de MAC
é diferente da dos profissionais estritamente biomédicos e reflete sobre
alguns dos possíveis significados disso.
Olha, pra mim, eu percebo que esse tipo de pro-
fissional [que trabalha com MAC] é mais atencio-
so, assim, no trato com a gente. Eu consultei
com homeopata, que foi no particular, e a con-
sulta demorou um monte. É difícil de explicar,
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mas parece que tem mais vontade de conversar,
apesar de que no posto é sempre uma correria,
mas parece mais simpático, mais humano. É co-
mo se ele se interessasse mais pelo teu caso, que
ele quisesse, sei lá. Pra descobrir o que tem no
fundo. Isso é interessante porque a gente vive
num mundo de fachada, o que importa é a apa-
rência, é tudo muito zás, trás, deu. Esses médicos
tentam quebrar o ritmo, eu acho. Só que é bem di-
fícil, né? E até por causa disso, eles são bem pro-
curados e acabam não conseguindo. É muita gen-
te. A sala de espera tá sempre cheia, e todo mundo
querendo. É difícil, é contra a corrente. Devia ter
mais atendimento desse tipo (U4).
Entre nossos entrevistados, ficou claro, especialmente no caso de
U1, que a opção pelos alimentos de produção ecológica se dava por
razões de uma busca por saúde e que ele, ao consumir esses produtos,
estava praticando uma forma de autocuidado. No caso de U3, outro
membro do subgrupo de consumidores da AE, ele acrescia outra dimen-
são ao cuidado: com o meio ambiente, cultivando uma outra ética, mais
ecogica. Ainda que U1 reflita tamm sobre a importância social e
ecogica de hábitos diferenciados de consumo, essa dimeno parece
mais importante no caso de U3. o se trata aqui de tentar quantificar
quem é mais ecológico, mas de tentar perceber as conees possíveis de
serem feitas. U3 fala em irmandade espiritual, inclusive com seres ina-
nimados, e é essa irmandade que está por trás de suas opções de consu-
mo e de cuidado. Nenhum deles associou, no entanto, práticas específi-
cas de MAC com cuidados especiais de alimentação. Entretanto, se
considerarmos o tantra yoga de U3 como uma prática de MAC, pode-
mos associar a alimentação sutil a essa prática, como um facilitador.
No caso de U2 e de U4, do subgrupo de usuárias de MAC no
SUS, ambas revelaram alguma preocupação com a alimentação, mas
ressaltaram as dificuldades de praticarem o que julgam mais adequado.
Ademais, tamm o relataram alguma associação entre a prática das
quais são usuárias (grupo de relaxamento e acupuntura) e algum cuidado
alimentar.
Mesmo que essa associação não tenha surgido de forma direta,
podemos, todavia, vislumbrá-la em alguns atributos identificados gene-
ricamente com as MAC. A própria eficiência terapêutica de uma medi-
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cina exótica pode ser a ponte para uma postura reflexiva. Ao ser identi-
ficada a um estilo de vida mais natural, as práticas de MAC tamm
podem levar a um cuidado com a qualidade da alimentação, como nos
diz U4:
Bem, deixa eu ver... Quando a gente começa a
perceber que a resposta veio de uma coisa nova,
pelo menos pra nós, que não tem uma explicação,
a gente vai questionando. Então, vai vendo as tuas
relações, com teus filhos, com o marido, contigo
mesma. E acho que pode chegar a questionar “mas
o que que eu comendo?” Mas não que as agu-
lhinhas faz pensar isso, mas é um processo. Tem
toda uma coisa de tomar menos remédio, de ser
mais natural, né? Mas tu tem que ter tempo. Eu
me aposentei, então pude pensar mais, parar um
pouco, rever umas coisas. Ainda não mudei o que
eu podia, nem sei se vai dar tempo, né? [risos] A
gente vai sempre adiando. A gente sempre vai fa-
zendo o automático. (U4)
Quais são as formas de cuidado que os nossos entrevistados con-
sumidores de produtos ecológicos e suas famílias buscam em caso de
necessidade? A resposta a essa pergunta nos pistas, na prática, do
quanto eles se aproximam das MAC. Essas pistas estavam delineadas
pelo que eles nos disseram até aqui. Os cuidados com a alimentação
representam, em suas vidas, uma importante forma de cuidado. Porém,
situações em que são necessários recursos outros que não são supri-
dos pela alimentação, por melhor que ela seja. Assim, U1 relata os seus
contatos com a medicina, especialmente para tratar da filha:
L. [filha] nunca tomou remédio, nunca. Agente
nunca deu remédio pra ela, só homeopatia. Ela
nunca tomou vacina. Até teve uma criança que te-
ve meningite na escolinha, e a gente ficou naquele
negócio “dou, não dou, dou, não dou”, porque a
gente levava ela na homeopata, também, em
último caso. Tinha febre, um monte de coisa,
homeopatia, homeopatia. Ela tem uma superssaú-
de. Nem nessa época da meningite, a gente deu
uma dose única e... Claro, a gente ficou receo-
so, porque tu fazendo uma coisa que ninguém
faz e tu tratando com uma vida, né? Ainda mais
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179
tua filha. Eu não busco nada, desde que a médica
se mudou pra Coqueiros, não sei quanto tempo
faz, acho que uns seis anos, eu não vou. É a mes-
ma médica da L., a S. [médica]. Eu tratei com ela
algumas coisas antes da alimentação viva e mes-
mo depois, mas eu comecei a não ir mais. Eu tinha
muito problema de dor de cabeça e eu tomava ne-
osaldina, que é aquela coisa horrível. Um dia pen-
sei: não vou mais tomar. A partir do momento que
parei de tomar, não tive mais dor de cabeça (acho
que ela me fazia ter dor) e hoje, praticamente,
nunca fico doente. Nada. A minha mulher tem gri-
pe. Ela teve problema nos bronquíolos, teve
pneumonia duas vezes também. Talvez porque ela
trabalhe em um ambiente que tem ar condiciona-
do, na Caixa Econômica. tem estresse, banco,
aquela história toda. Trabalhou muito tempo em
lugar que se fumava ainda, no banco. Talvez tenha
prejudicado atrás, e agora sofrendo a conse-
quência. Ela tenta, suco verde todo dia. A L tam-
bém, a gente meio que obriga ela a tomar. Cada
vez ela diminui mais o prato de salada, então “to-
ma o suco verde, vai ter que tomar”. Então, ela
melhorou bastante, ela tava com o hematócrito
baixo, tomou suco verde, melhorou um monte.
Então, a partir do momento em que a gente botou
o suco verde como uma coisa escura, mesmo, tem
acontecido muito pouco, com a L., com a G. [es-
posa] muito pouco, porque a G. ainda come coisas
que acidificam. Então, eu, no fundo, não acredito
em médico, não acredito que ele me dizer al-
guma coisa que eu não saiba. Mas tudo bem, se eu
achar que é uma coisa muito grave, eu posso até ir
buscar. (U1)
Percebe-se na fala de U1 uma forte crítica à biomedicina. Isso
significou enfrentar heterodoxamente e com alguma dose de coragem
todo o percurso previsto, inclusive de forma obrigatória (desnecessário
dizer o quanto há de autoritário nisso), de cuidados biomédicos para sua
filha: recusar todas as vacinas e os antitérmicos para atenuar as inevitá-
veis febres da infância. E, mesmo em relação a outras medicinas, como
a homeopatia (que ele não qualifica como “remédio”), termina por haver
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180
um distanciamento. O médico é descrito como alguém que tem um co-
nhecimento que até pode ser útil, mas é complementar ao conhecimento
que U1 tem dele mesmo e ao qual recorre em primeiro lugar.
Primeiro [em caso de problema], eu ia procurar
fechar a boca, fazer jejum. Eu sei, na verdade,
quando tu sutiliza tua alimentação, tu te conhece
mais. “Ah, eu já sei, foi aquilo que eu comi. Ah, já
sei, foi uma coisa que eu pensei, alguém falou um
negócio, eu engoli aquilo”. Tu fica bem esperto
com as possíveis causas. Por isso, um médico que
não convive contigo, é muito difícil ele saber o
que que é, a não ser aquele negócio físico, do cor-
po, que pode sacar mais, da alquimia e tal. Eu
pesquiso um monte, mas como é que funciona
mesmo? Na cientificidade mesmo, nunca entrei a
fundo. (U1)
U1 ainda refere ter usado acupuntura, além da homeopatia, e
não sabe precisar quando começou a recusar a biomedicina, mas salienta
que seus pais e irmão não são sua inspiração, que são bastante medi-
calizados, segundo ele.
U3, ao começar a conversa, nos contou de um episódio no qual
teve que ficar internado por uns dias, em virtude de um acidente domés-
tico e de uma infecção daí decorrente. A seguir, contudo, frisou que evita
tomar remédios em geral, até mesmo chás. Sua conduta cotidiana parece
se aproximar também da espera assistida, e o recurso terapêutico a que
ele recorre é tomar água e meditar. Percebemos, portanto, uma tentativa
de vivenciar outra forma de autocuidado.
No subgrupo das usuárias de MAC no SUS, a via de investigação
foi inversa. Como se alimentam?
Na correria do dia-a-dia, a gente nem sempre co-
me o que gostaria, ou o que devia. Resulta que a
gente come o que é mais fácil, mais prático. Devia
dar mais atenção pra isso, mas é uma correria, e
ainda tem os turnos
145
, que bagunça tudo. Faço um
panelão de arroz e outro de feijão e todo mundo
vai comendo, com uma mistura um dia, outra mis-
tura noutro. Pra mim não precisa ter carne sempre
e adoro verdura. Minha filha, a maior, me ajuda.
145
U2 trabalha no sistema de turnos: 12 horas de trabalho e 36 de descanso.
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Ela tem 15 anos e, no fim, ela é que cozinha mais.
Agora, a gente acaba comendo o que é mais bara-
to, o que em promoção no supermercado, e vai
se levando. A gente vai muito no sacolão também.
Se você me pergunta se eu acho que é assim que
tem que ser, te digo que não. Preferia ter uma hor-
ta do lado de casa, um galinheiro no quintal, umas
bananeira. Mas não dá, a gente mora numa casa
sem pátio. Tem dois ou três vasinho do lado da
porta, e só. E se tivesse tudo isso que eu falei, a
gente não ia dar conta de cuidar. Sei que traba-
lho, morava no interior. Então, o que conta no fim
é o que é prático e o que é barato. (U2)
A fala de U2 é interessante, pois nos parece um retrato de uma
família de trabalhadores, com várias das limitações impostas por uma
realidade distante da desejada. Em outros momentos da conversa, U2 se
queixa da pouca convivência com o marido, que também trabalha por
turnos vigilante), o que dificulta toda a dinâmica da família. A vivên-
cia na zona rural (o casal veio do interior do Paraná) lhe traz a lembran-
ça de como era bom o quintal, mas também do trabalho que dava e da
inviabilidade de manter um espaço similar agora, no contexto urbano
(moram em casa alugada).
U4 revela que tem preocupações com a qualidade da alimenta-
ção, mas não chegou ao ponto de mudar de opções de consumo em fun-
ção da presença ou não de agroquímicos:
Olha, eu acho que é uma coisa que é importante,
mas que acaba ficando pra trás. A gente acaba se
acomodando num esquema, né. Me preocupo em
comer menos comida gordurosa, menos coisa do-
ce, menos refinado. Então, a gente tá comendo
granola, e tal. que meu marido o passa sem
comer algum tipo de carne. Então, todo fim de
semana ele faz um churrasco. [...] Eu acho que a
gente devia comer mais verdura, mais fruta. Mas
quem cozinha sabe como é chato ter que fazer
sempre uma coisa diferente, então acaba variando
mais ou menos do mesmo jeito. Já acho um avan-
ço ter umas cebolinhas e uns pés de salsa em casa.
Tem um de laranja, um de maracujá. Se tu
for ver, a gente até come alguma coisa assim, na-
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182
tural. Mas produto, assim, ecológico, eu, nas pou-
cas vezes que dei uma olhada, achei muito caro.
No mercado, chega custar três, quatro vezes o
preço do comum, né? […] Isso onde tem, né? Tem
a feira ali da Lagoa, mas no sábado. E bado é
complicado de sair porque a casa fica cheia de fi-
lho e neto e tal. Mas também ouvi falar que é
caro. Se fosse o mesmo preço, é claro que eu ia
preferir. (U4)
Percebemos uma lógica que poderia ser chamada de reformista
(de erro menor), antes referida nas falas dos praticantes de MAC ao
falarem sobre alimentação. As mudanças vão se dando gradualmente e,
no caso de U4, ainda não chegaram ao ponto de priorizar alimentos
produzidos ecologicamente. Razões econômicas prevalecem sobre ra-
zões ecológicas, invertendo a lógica que diz que a economia é um capí-
tulo da ecologia, e o o contrário. U4 parece confirmar a afirmação de
Kathounian (2001), de que haveria preferência dos consumidores pelos
alimentos ecológicos se estes estivessem no mesmo patamar de preço
que os convencionais.
Se as relações entre as MAC e a AE estão delineadas, ainda não
estão definidas. Ao levantar a questão, podemos perceber a cisão entre
os dois subgrupos. Os dois integrantes do subgrupo de consumidores de
produtos agroecológicos, declaradamente críticos à biomedicina e usuá-
rios de práticas de cuidado alternativas, m essas relações bem mais
vívidas e vividas. Isso aparece em suas falas, ao tentarem resumir, obje-
tivamente, o que há de comum entre as MAC e a AE:
Tudo que é alternativo, isso virou um padrão, tem
uma discriminação prévia pelo que estabeleci-
do. Orgânico, terapeuta, tudo é uma coisa só. Pra
mim, é muito difícil dissociar. Eu por exemplo, e-
vito plástico. Eu vou na feira, as pessoas põem tu-
do em saquinho plástico, tenho uma amiga que
tem um restaurante vegetariano, põe tudo em sa-
quinho plástico. Então, eu não consigo fazer isso.
Levo minhas sacolas, saquinhos plásticos que eu
reciclo do supermercado. Se eu tenho uma remes-
sa de docinho, uso embalagem de papel. Então,
não deixo a luz acesa. Não tem como separar o
que as pessoas tão tentando melhorar nas suas vi-
das e melhorar pros outros, no caso dos agriculto-
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183
res e terapeutas, com o fato de tu comer, tomar
banho, se vestir, se limpar. É, pra mim, bem difí-
cil. Tem tudo a ver. A frase seria essa: tudo a ver.
(U1)
A primeira ponte que U1 faz entre MAC e AE é pela discrimina-
ção de que os alternativos, em geral, são alvo, em sua opinião. A seguir,
U1 fala da dificuldade de dissociar um cuidado ecológico de outro e,
nesse sentido, as pticas de MAC seriam mais compatíveis com uma
ética ecológica que perpassaria o comer, tomar banho, se vestir, se
limpar”. Se alongando nessa refleo, ele chega às dificuldades que o
meio urbano impõe a um estilo de vida ecológico e que, por extensão do
raciocínio tamm empurram as pessoas para as práticas convencionais
de atenção à saúde:
Acho que o viver ecologicamente correto, ele vai
abranger tudo. Às vezes, existe até aquela coisa do
julgamento: “pô, ele tem um trabalho interessante
na odontologia alternativa, mas percorre não sei
quantos quilômetros gastando combustível num
carro que não economiza, sei lá”. Não tem como
tu ficar julgando. O cara fazendo alguma coisa,
né? Não pra querer que ele faça tudo. Eu mes-
mo, aqui, conversando contigo, tenho um espa-
ço aqui, endossando aqui um entorno, libe-
rando alguma energia pra poluir mais a cidade, de
uma certa maneira. Não tem como abraçar, é difí-
cil. Hoje, eu, por exemplo, viveria fora. Não vive-
ria na cidade. A cidade é uma invenção cara, pra
ficar. que é um processo de transição. Até o
que eu tava te falando, o o solar. Não é inevitá-
vel, tu não precisa comer pão. Tu não precisa co-
mer docinho, fruta passa. Come a fruta que tiver,
se não tiver, o come. Não precisa secar, comer
quando não tiver. que a população aumentou,
precisa guardar comida, é uma maneira, vem
dos ancestrais. que antigamente era do sol. A-
gora a indústria já... A coisa ficou um pouco fora
do controle. Acho que a gente devia tentar viver o
máximo possível comprometido, consciente com
o planeta. Pra mim, fica cada vez mais claro que a
minha mãe, a tua mãe, não é a minha mãe, a tua
mãe, é a terra. Nós somos filhos da terra. Não tem
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como. A gente usou veículos pra chegar, mas so-
mos filhos da terra, temos que cuidar. (U1)
Percebemos na fala de U1 alguns dilemas. Como viver na cidade
de forma sustentável? O caminho que ele sugere, mas que reconhece ser
difícil é limitar-se às suas necessidades. Como precisar o que é necessá-
rio e o que é supérfluo? Se fizermos o mesmo questionamento em rela-
ção aos cuidados em saúde, até que ponto a biomedicina e seu imenso
aparato tecnológico são necessários e o quanto dessa necessidade é fruto
dessas distorções modernas, de sobrepassar outras necessidades?
U3, ao ser instado a resumir as conexões entre MAC e AE, recor-
reu a um autor, também citado nesse trabalho (Hugh Lacey) que, coeren-
te com a perspectiva otimista, construtiva e complementar que transpa-
rece nas falas de U3, sugere um enriquecimento da prática científica
pela pluralização dos valores envolvidos em sua prática. Ou seja, além
de reconhecer os valores cognitivos, há que salientar os valores sociais:
Quando você falou isso aqui, eu não tenho muito
conhecimento, mas eu lembrei uma coisa mais fi-
losófica, que foi um filósofo da ciência que eu co-
nheci, gostei muito do trabalho dele. Ele é físico,
mas depois ele entrou na filosofia, né, então ele
tem os dois conhecimentos, da ciência também, e
é um filósofo tipo engajado, assim, com questões
sociais. Gostei muito da filosofia dele, filosofia da
ciência que ele trabalha. Chama Hugh Lacey. Ele
é australiano. Tu conheceu já? Ele fala da ciência,
como ela funciona internamente, tem valores cog-
nitivos, tal, tal. Ele fala de uma coisa que ele cha-
ma estratégias de investigação científica. Por e-
xemplo, na questão dos transgênicos, da agricultu-
ra, ele fala que tem essa linha dos transgênicos,
que segue uma estratégia, que ele chama de mate-
rialista, que foca a produtividade, e tem uma li-
nha, que ele chama de agroecologia, que aborda
outras questões que você também pode investigar
de forma científica. São questões científicas tam-
bém, como você plantar mais com justiça, com
equilíbrio social, com equilíbrio ecológico, coisas
que a outra linha ignora. Ele diz assim, você não
precisa ignorar a outra linha, a outra estratégia, ela
tem seu valor também, ela pode ser útil também.
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Mas o mais importante é que você tenha multipli-
cidade, que você tenha essa multiplicidade. Não
que fique uma visão única, essa é a melhor e o
resto fique escanteado. Acho que em relação à
medicina, à agricultura, essa visão é ótima. Pra
você não perder nada, fazendo o PROUT, você
conseguir desenvolver todas as potencialidades.
Você tem medicina alopática, medicina baseada
em ervas, medicina baseada em trabalho na psico-
logia da pessoa, trabalho físico, tudo que você
consiga integrar, conhecer bem, desenvolver e sa-
ber como articular, quando um se aplica, quando
um é melhor. (U3)
Essa postura conciliatória da qual U3 fala, em tentar descobrir o
espaço para cada tipo de prática, é, sem dúvida, menos drástico e radical
do que alguma proposta mais revolucionária. É a síntese da ideia da
medicina complementar (BARROS, 2000) e também é coerente com
uma lógica de erro menor”, presente nas falas sobre alimentação e em
outros momentos das entrevistas.
U3 ainda tece comentários sobre as conexões práticas que ele per-
cebe em sua vida e, em alguns casos, nas vidas dos outros, entre os dois
assuntos. Buscar um desenvolvimento integral” irá ajudar a mente a
fluir nessa direção”:
Essa questão são muito das pessoas que vo
falando, das circunstâncias que elas vivem. É difí-
cil de generalizar, mas acho que tem uma afinida-
de sim. As pessoas que tão buscando um tipo de
desenvolvimento integral pras suas vidas, também
tenderiam a se aproximar a um cuidado maior
com a alimentação, consumo consciente, essas
coisas. Tem essa afinidade, mas às vezes as coisas
não fluem muito. Tem gente que vai no shopping
e faz yoga. […] Na ananda marga mesmo tem um
monte de pessoas que não se preocupam com a a-
limentação orgânica. [...] Mas as pessoas não fa-
zem a conexão. Os hare krishna, a gente tem ami-
gos, tem um casal que se preocupa com isso, até
participam das compras coletivas, mas tem um
pessoal que não se liga. As frutas, as verduras,
podem ser do supermercado, do sacolão, com a-
grotóxico mesmo, o tão preocupados com isso.
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186
Não juntaram ainda essas duas coisas. Mas tem
uma tendência sim, eu acho. Quando a mente vai
conseguindo fluir, ela vai nessa direção. Acho que
tem uma afinidade natural entre as duas coisas.
(U3)
Nos casos do subgrupo das usuárias de MAC no SUS, essa supos-
ta afinidade não transpareceu intensamente. Ao serem questionadas
objetivamente sobre o assunto, as opiniões foram, em certo sentido,
semelhantes. Tanto U2 como U4 parecem relutar em identificar uma
afinidade, mas terminam por perceber que alguma coisa, não muito
clara, que associa MAC a AE.
Não sei, mas a gente, quando começa a se conhe-
cer melhor, não sei, começa a se cuidar melhor,
pode acabar melhorando a qualidade de outras
coisas. No trabalho, a relação das pessoas, eu
aguento a intensidade que é o meu servo, porque
tem esse apoio no posto de saúde. Sempre que eu
venho aqui, não sei se por sorte, se por acaso,
mas, graças a Deus, sempre encontro alguém pra
me ouvir, e isso é uma benção. Mas assim, a tua
pergunta, se for uma coisa como é a “ensolta”,
se juntar as pessoas que têm alguma coisa pra ofe-
recer, se juntar esse pessoal que é alternativo, a-
cho que tem a ver sim, que come coisa mais inte-
gral, mais natural. Mas é que tudo é muito corri-
do, e a gente pouco conversa. A gente sempre
atrasado, tem que achar é tempo pra conhecer me-
lhor a gente mesmo, as pessoas da comunidade,
quem pode ajudar no quê. A gente vê pelo pessoal
que trabalha com planta medicinal, tão sempre
conversando, chamando pra reunião, acho que as-
sim a gente constrói alguma coisa. (U2)
Agora, essa é uma boa pergunta. O doutor [diz o
nome do médico] fala às vezes de mudar os hábi-
tos, de frequentar mais a feira, de variar a dieta,
mas eu sinto falta de uma informação mais preci-
sa, mais clara. Mas é o que eu disse pra você, co-
mo sempre tem fila, é difícil pra eles darem conta
de tudo. Não vejo por que o. Mas vofala em
agricultura ecológica. Aí, não conheço bem, mas
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se for um pessoal assim mais ligado em meio am-
biente, isso tem bastante a ver com saúde, né?
Volta e meia tem uns acidentes feios, têm conta-
minações. Pode ser por aí. Se juntar quem tem
uma preocupação mais integral com a saúde das
pessoas, acaba chegando no meio ambiente, né?
(U4)
As afinidades estão presentes nestas falas, mas que buscá-las
nas entrelinhas. Uma perspectiva dialógica, de construção comum, como
aponta U2, juntando as pessoas com “preocupações mais integrais”,
delineia uma das possibilidades de união. As ervas medicinais o cita-
das tamm como uma das pontes mais evidentes, apesar de que não tão
óbvia, entre as práticas de MAC e a AE. As falas de U4 tamm vão ao
encontro de algumas falas dos praticantes de MAC, pois denotam algu-
mas das dificuldades de se trabalhar com alimentação (os hábitos” e as
“rotinas” nos cardápios e no cotidiano).
Em resumo, nossa exploração do assunto entre esses sujeitos nos
leva a pensar que, se há de fato algumas afinidades entre as MAC e a AE
como supomos, elas estão mais identificadas entre os consumidores de
produtos ecológicos do que entre os usuários de MAC no SUS. Desne-
cessário frisar que não nos arrogamos fazer afirmações generalizantes,
apenas perceber e refletir sobre os indícios que nossas entrevistas indi-
cam.
Trazendo tamm para o âmbito dos usuários/consumidores o
mesmo esquema interpretativo proposto por Barros (2000) para os prati-
cantes de MAC e que adaptamos para os agricultores ecologistas, pode-
ríamos dizer que os nossos consumidores de produtos da agricultura
ecogica se aproximam mais do perfilconvertido”. Tanto U1 como U3
parecem ter transformado várias dimensões de suas vidas e parecem
adotar uma postura reflexiva e atuante diante dos dilemas que identifi-
cam (e que não são poucos). Ambos, conforme afirmamos, parecem
ser portadores de variadas inscrições que fazem circular em diferentes
meios (a referência circular de LATOUR, 2001) e fazem o trabalho prá-
tico de tradução entre as diferentes práticas de MAC e AE, dando visibi-
lidade social e consequencia política a pequenas iniciativas, bastante
marginais e desacreditadas pelo sistema hegemônico (SANTOS, 2004).
Pelo mesmo esquema, nosso subgrupo de usuárias de MAC nos
leva a um perfil intermediário. Desenvolveram alguma sensibilidade
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para a AE, mas mesmo seu uso de MAC ainda é um pouco sintomáti-
coe ainda lhes falta espaço para transformões mais radicais em suas
vidas. Tais mudanças são apenas esboçadas, e o espaço para que ocor-
ram está na dependência de várias variáveis, especialmente da família.
E, talvez, de efetiva vontade por parte de U2 e U4 para que aconteçam.
Mesmo assim, há uma influência difusa, de valores de atenção e integra-
lidade associados às práticas de MAC das quais são usuárias, para que
exista um processo, ainda que embrionário, de reflexões sobre várias
práticas cotidianas.
Chamemos a atenção, porém, para outras coisas que parecem pre-
dispor a AE a uma procura por diálogo. Os espaços físicos onde se o
as práticas de AE são, invariavelmente abertos e relacionais. Em geral,
são múltiplos. Nas hortas e plantações, trabalham famílias e muitas ve-
zes ajudantes, que devem atuar em sinergia. Os pontos de venda, especi-
almente os de onde saíram nossos entrevistados (feiras), se caracterizam
por serem a céu aberto e extremamente receptivos, mesmo que, em par-
te, por razões comerciais. A AE tamm se aproxima muito mais de se
caracterizar como um movimento social, com intensa participação de
organizações de variados matizes que a levantam como uma bandeira,
uma causa justa a ser defendida
146
. Ademais, mesmo que existam vários
ramos de AE, eles parecem ser mais homogêneos e afins.
No caso das MAC, apesar do imenso alcance social que alguns de
seus ramos têm, dos seus reconhecidos valores terapêuticos, entre vários
outros, como valores políticos, de valorização da diversidade epistemo-
lógica e cultural, da potencialidade desmedicalizante, elas nos parecem
longe de constituir um movimento social e dependem muito de iniciati-
vas individuais, no caso, dos terapeutas.
Os ingredientes que podem se agregar às MAC para lhes acres-
centar potencialidades sociais, nos parece, estão contidos nos motes da
Saúde Coletiva. Aí estão presentes a necessidade de diálogo intersetorial
e interdisciplinar, de pluralização terapêutica e epistemológica, de cons-
trução de novas relações sociais baseadas na ética e na solidariedade.
Enseja-se, portanto, esse triplo casamento.
Finalizando nossa análise, trazemos um excerto da fala de U1 em
que ele toca em um ponto crucial, que repetidas vezes foi referido por
vários dos entrevistados e que também, pessoalmente, reconhecemos
146
Nesses casos, o termo mais usado é agroecologia.
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como uma questão de difícil equação. O tempo. Manejar o tempo de
forma sábia, sem ser tiranizado pelo relógio, é um desafio aparentemen-
te difuso em toda nossa sociedade. A aparente escassez de tempo extin-
gue ou ameaça várias possibilidades de diálogo, de reflexão e de ão
construtiva e tamm de ócio. Isso vai ao encontro da monocultura do
tempo linear, discutida por Santos (2004) e, em outro sentido, tamm
por François Jullien
147
. o vivemos o presente, o progresso ou o des-
canso sempre estão situados no futuro. O passado existiu para ser supe-
rado. O tempo linear aponta apenas para o futuro, apenas para o progres-
so, e este é, no mais das vezes, material.
Palavras que eu evito. Sonho, esperança futuro.
até uma canseira: “Brasil esperança”, “criança
esperança”, meu Deus do céu! Tudo “esperança”!
O celeiro do mundo é o Brasil. Não tem que ter
esperança, nem criar nenhuma expectativa, apesar
de que a gente cria igual. Pra mim, a palavra espe-
rança, sonho, é ilusória. Assim como futuro, né? A
questão é descobrir a felicidade nesse último dia
possível [...]. Isso é muito difícil, porque a gente
foi muito achatado [...]. Eu pensando em viver
em um espaço em que eu possa ter árvores, ter
frutas. Tu não precisa muito pra viver. É ter a
natureza perto de ti. A cidade não é a única alter-
nativa. (U1)
147
Em Do ‘tempo’: elementos para uma filosofia do viver (JULLIEN, 2004), o autor filosofa
sobre a diferente noção de tempo chinesa e alguns de seus significados culturais. O tempo
chinês é um tempo que não passa, que se cumpre em ciclos inspirados na natureza e no qual
não existe tempo presente, existem momentos propícios para diferentes atividades.
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190
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegando ao termo deste trabalho, devemos afirmar coisas, pro-
duzir conhecimento. Para isso, penso eu, que o Estado, via CAPES,
tenha financiado a minha família, através de uma bolsa de estudos, por
vários meses. Nossa contribuição, no entanto, quer buscar outros senti-
dos. O mais interessante, na nossa perspectiva, é procurar possibilidades
para as pessoas, suas ideias e práticas se conhecerem, entre si e consigo
mesmas.
Dispusemo-nos a estudar as conexões simbólicas e concretas, re-
ais e virtuais, políticas e filoficas, entre as teorias/práticas das MAC e
da AE em suas interfaces (tamm simbólicas e concretas, reais e virtu-
ais, políticas e filosóficas) com a Saúde Coletiva. No âmbito das ideias,
valores, histórias, posturas, críticas, discursos, podemos intuir que exis-
tem muitas afinidades, possibilidades e ensaios desse dlogo construti-
vo. Existem, contudo, dificuldades para que esse diálogo de fato aconte-
ça. Além da cultura setorial, que tende a diluir o olhar e encaixá-lo sob o
viés de uma disciplina que é uma das manifestações do pensamento
moderno, de separação e construção de fronteiras absolutamente artifici-
ais, um movimento importante de apropriação das alternativas pelo
mercado.
Essas considerações e reflexões, afinidades, diferenças e peculia-
ridades nos fazem considerar que parcerias e aproximações poderiam
reforçar e conectar redes em sinergia mútua em vários aspectos, que
tornam tais conexões desejáveis, saudáveis, sustentáveis, embora ainda
apenas embrionárias, potenciais ou apenas possíveis.
No âmbito das práticas sociais pudemos apenas perscrutar muito
grosseiramente alguns indícios dessas conexões (potenciais, saudáveis e
desejadas), quando conversamos e registramos narrativas de alguns
personagens intencionalmente selecionados. Da análise dessas conversas
pudemos concluir que são de fundamental importância as iniciativas
individuais para a construção de alternativas. Os movimentos sociais se
movem a partir de “baixo”, dos círculos exotéricos, como diria Fleck. O
SUS (que nesse caso representa a Saúde Coletiva), por sua capilaridade
e alcance social seria um local privilegiado para ocorrerem esses diálo-
gos entre as várias iniciativas. Para que isso aconteça, no entanto, é ne-
cessária uma crítica desmedicalizante. É necessária uma guinada retóri-
ca e prática nas bases e na realização da atenção em saúde.
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Não queremos muito, sob certo ponto de vista. Queremos demais,
por outro. De qualquer jeito, continuará sendo óbvio e simples. O me-
lhor resumo da ideia da qual queremos nos aproximar são as frases de
um dos entrevistados, que estão neste trabalho:
Uma frase bem simples: autorrealização e serviço
a favor da criação. Significa internamente que a
pessoa tem que buscar se desenvolver. Externa-
mente, ela vai fazer o que? Vai ajudar os outros
também a se desenvolver, que é a melhor atitude
que a gente pode ter de estar ajudando os outros.
Ajudar a si mesmo e ajudar os outros: esse é o
resumo da filosofia. (U3)
Filosofia, política, natureza. Tudo cruzando com tudo. Um bom
resumo nessa área é uma ideia que sempre ouvi atribuída a Marx: “De
cada um de acordo com suas possibilidades, para cada um de acordo
com suas necessidades”.
O quanto passamos do ponto de nossas necessidades? pra
voltar? Independente das respostas, pensamos que dá pra dizer que, além
dos vários argumentos racionais que podemos encontrar para justificar a
necessidade de mudar o mundo, necessidade de poesia. O jeito como
estamos vivendo podia ser bem mais bonito. Além de ético, estético.
É claro que isso enseja mais conversa e isso não é ruim. É melhor
que conversemos do que façamos muitas outras coisas. que continu-
amos tendo que nos cuidar e comer, até para continuarmos conversando.
Por que não tentar misturar ética ecológica e estética no cotidiano?
Além da redução de danos, aumento dos prazeres. Diversos, diferentes.
Colher frutas no pé, verduras na horta, dar comida pras galinhas, ir ver a
vaca. Andar de bicicleta. Ouvir música. Ler poesia. Conversar. Namorar.
Brincar com os filhos. Alguns poderiam dizer: se quer beleza, para
as artes”.
As artes são um bom lugar. Seria porque redimensionam o tempo,
ou pelo menos tentam? Introduzir arte na vida cotidiana não é muito
mais que estar com outro olhar. Tentar explicar o que seria esse olhar
enriquecido é que são elas.
Sugestão: um centro de saúde que ficasse embaixo de árvores,
com flores, verduras e frutas ao redor. Passarinhos. Bancos de madeira
ou de pedra pras pessoas sentarem. Logo ali uma horta, mais adiante um
galinheiro e um lugar pra se fazer compostagem. Uma espécie de oca,
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coberta de palha e sem paredes, fica perto. Ali pessoas se reúnem, pra
conversar, meditar, ler, ouvir música, orar. Um lugar onde se possa fazer
comida, chá, café, sucos, pães, pizzas e onde se conversa sobre comidas,
sabores, chás e amores. Nesse espaço tamm tem roda de capoeira,
massagem, yoga, pintura, costura, violão e nem sei o que mais. E tam-
bém tem roda de chorinho e de samba. O postoé bioconstruído, com
aproveitamento racional da água, incluindo a da chuva, reciclando o que
é possível, e tem uma forma de lidar com os dejetos que é decente e
inteligente. As pessoas costumam vir a pé ou de bicicleta. Tem uma casa
na árvore pras crianças brincarem, um espaço pra jogo de bola. Ao che-
garmos nesse lugar, temos vontade de respirar fundo, e sempre se encon-
tra alguém pra conversar. As pessoas que frequentam o centro de saúde,
como pacientes ou trabalhadores, acabam ficando amigas, tão boa é a
energia. o se cultiva o preconceito e toda ajuda sincera é bem-vinda.
Assim, várias terapias são praticadas e oferecidas. O clima é de conver-
sa. Os saberes da comunidade são valorizados e as pessoas mais velhas
são ouvidas com respeito. A comunidade participou e participa da eterna
construção, que acabou sendo um bom momento pra difundir várias
tecnologias alternativas em vários âmbitos, querendo usar menos e me-
lhor os recursos naturais. É frequente o lugar receber visitas de agricul-
tores familiares que levam sementes, produtos, mudas, músicas e histó-
rias da roça. O lugar é cheio de redes, naturalmente.
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208
ANEXO 1 - ROTEIROS PARA ENTREVISTAS
1.1 ROTEIRO PARA A FASE EXPLORATÓRIA
Grupo: Agricultores
1. Há quanto tempo trabalha com agricultura ecológica?
2. Participa de alguma associação comunitária, de produtores,
etc.? Como?
3. Quem você reconhece como liderança do movimento
ecogico?
4. Quando tem algum problema de saúde, a que ou a quem
recorre?
5. Costuma utilizar algum tipo de terapia ou de medicamento?
Qual?
Grupo: Usuários de MAC no SUS
1. Há quanto tempo usa terapias alternativas? Quais são?
2. Qual a influência das terapias alternativas no seu estado de
saúde?
3. Como é a sua alimentação? Que tipo de alimentos costuma
consumir?
Grupo: Consumidores de produtos ecológicos
1. Há quanto tempo consome produtos ecológicos?
2. Qual a importância destes produtos na sua alimentação?
3. Quando tem algum problema de saúde, a que ou a quem
recorre?
4. Costuma utilizar algum tipo de terapia ou de medicamento?
Qual?
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1.2 ROTEIRO PARA ENTREVISTAS COM TERAPEUTAS
Identificação
Nome Idade: Situação conjugal: Filhos: idades:
Escolaridade:
1. Como, quando e porque virou um praticante de MAC.
2. O que pensa sobre o papel/significado das MAC na atualidade.
3. Percepção da relação entre MAC e alimentação.
4. Percepção sobre a qualidade da alimentação.
5. Práticas e cuidados adotados quanto à alimentação.
6. Relação com e pensamento sobre AE.
7. Relação entre MAC e AE.
1.3 ROTEIRO PARA ENTREVISTAS COM AGRICULTORES
ECOLOGISTAS
Identificação
Nome Idade: Situão conjugal: Filhos: idades:
Escolaridade:
1. Como, quando e porque virou um agricultor ecologista.
2. O que pensa sobre o papel / significado da AE no mundo de
hoje.
3. Relação vê entre a AE e a saúde.
4. Percepção da saúde própria e da família.
5. Práticas e cuidados adotados quanto à saúde. Tratamentos em
vigor.
6. Relação com e pensamento sobre terapias
alternativas/complementares.
7. Atividades de liderança.
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1.4 ROTEIRO PARA ENTREVISTAS COM
USUÁRIOS/CONSUMIDORES
Identificação:
Nome: Idade:
Situação conjugal: Filhos: idades:
Escolaridade: Profissão:
1. Como, quando e porque virou um usuário (MAC/AE).
2. O que pensa sobre o papel/significado das MAC/AE no mundo
de hoje.
3. Percepção da relação entre as MAC e a alimentação (ou vice-
versa).
4. Percepção sobre qualidade da alimentação/saúde.
5. Práticas e cuidados adotados quanto à alimentação e saúde.
6. Relação com e pensamento sobre a AE
7. Relação entre MAC e AE
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