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Paola Rettore
A improvisação no processo de criação e composição da dança de
Dudude Herrmann
Escola de Belas Artes /UFMG
Mestrado em Artes
2010
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Paola Rettore
A IMPROVISAÇÃO NO PROCESSO DE CRIAÇÃO
E COMPOSIÇÃO DA DANÇA DE DUDUDE HERRMANN
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal de
Minas Gerais, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em
Artes.
Área de concentração: Arte e Tecnologia
da Imagem
Orientador: Fernando Antônio Mencarelli
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2010
ii
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Rettore, Paola, 1963-
A Improvisação no processo de criação e composição da dança
de Dudude Herrmann / Paola Rettore – 2010.
166 f.: il. + 1 CD-ROM + 1 DVD
Orientador: Fernando Antônio Mencarelli.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Belas Artes, 2010.
1. Herrmann, Dudude, 1958- – Teses. 2. Improvisação (Dança)
– Teses. 3. Coreografia – Teses. 4. Dança moderna – Teses. 5.
Criação (Literária, artística, etc.) – Teses. 6. Expressão corporal –
Teses. I. Mencarelli, Fernando Antônio. II. Universidade Federal de
Minas Gerais. Escola de Belas Artes. III. Título.
CDD: 793.3
iii
Dedico com amor e carinho a meus filhos
Bruno e Filipe e a doce Clara.
iv
Agradecimentos
Agradeço a meu orientador pela persistência e escuta, pelas ponderações e questões
lançadas a mim que nortearam meu modo de ver e de trilhar o caminho para este estudo
e para esta escrita. Pela tranquilidade e sabedoria: “pouco a pouco”.
A Dudude Herrmann por sua generosidade e gentileza em me nutrir de seu pensamento
de forma tão profunda e aberta viabilizando encontros intensos e de extrema alegria, nos
quais fomos traçando as prioridades e especificidades do modo de pensamento da
mesma sobre o tema. Agradeço à Dudude por sua incansável presença naquilo que ela
mesma constrói como a sua verdade.
Aos meus queridos pais, Betinho e Cirene, que me apoiam incondicionalmente, que
estão ao meu lado e ao lado de meus filhos. Aos ti@s de meus filhos, sobrinh@s, aos
meus tios Consuelo Dulce de Paula e Mauro Henrique de Paula, que me dão segurança
e companhia. A minha cunhada Adelaine La Guardia pelo entusiasmo, pelas traduções e
pelas indicações de leitura. Ao Marco Heleno Barreto pela leitura concentrada e
comentários feitos página a página.
Agradeço a gentileza de Marilene Martins, Nena, pelo encontro encantador e riquíssimo
e a todos entrevistados que me receberam para entrevistas e me passaram livros e
indicaram bibliografia em especial , Izabel Stewart, Lisa Nelson, Tica Lemos, Marta
Soares, Giovanne Aguiar. Ao Luiz Carlos Garrocho e Inês Bogéa, Helena Katz, Juliana
Carvalho, Mônica Ribeiro pelas conversas e leituras sugeridas. A todos os artistas da
imagem envolvidos na dissertação como: Guto Muniz, Adriana Moura, Juliana Saúde e
Joacélio Lopes Batista. A Sara Alves Braga, Carlos Magno Rodrigues e Frederico
Herrmann pela finalização do DVD. A Claudia Rossi pela amizade e apoio logístico e
prático. Ao Sergio Pena pelas traduções, a Cristiana Menezes pela tradução simultânea
na entrevista junto a Lisa Nelson. Aos professores Arnaldo Alvarenga e Cássia Navas
que compuseram minha banca de avaliação pelas pontuações críticas e indicação de
bibliografia.
Agradeço ao Olimpio Pimenta pelas conversas demasiadas humanas e ao João Henrique
Rettore Tótaro pelas referências etimológicas. À historiadora e amiga Maria da Glória
v
Reis pelo companheirismo de 30 anos e ao Marcelo Kraiser pela presença vibrante em
todo o processo.
A todos meus professores de dança, especialmente Bettina Belomo, às professoras
Maria Angélica Malendi e Santuza Abras, aos professores com quem já trabalhei.
Agradeço imensamente a toda equipe do CEFAR - Palácio das Artes, em nome de
Patrícia Avellar e de Lucia Ferreira, que me apoiaram nesta caminhada. E a todos
amig@s e colegas de mestrado que estiveram junto comigo e de certa forma
carinhosamente ao meu lado.
vi
“Porém, estes métodos nada mais são do que
manifestações de uma atitude de caráter experimental. São
comunicações de um que está caminhando, a outros que também
decidiram caminhar em uma direção análoga, comunicações
sobre a natureza e as condições do caminho que ele próprio, o
primeiro, tomou. Com outras palavras: estes métodos são apenas
indicadores de direção, roteiros e orientações que exigem
inevitavelmente, de cada um que deles se aproveita, vigilância
ativa, decisões conscientes e responsabilidade”.
1
Rolf Gelewski
1
GELEWSKI, Rolf. Ver Ouvir Movimentar-se – dois métodos e reflexões referentes à improvisação na
dança. Nós Editora. Ananda-Educação
, 1973, p.9.
vii
Resumo
Esta dissertação abordou o modo de composição através da improvisação na dança da
bailarina e coreógrafa brasileira Dudude Herrmann. O processo de criação
improvisacional foi estudado em três obras da artista, observando-se aspectos que
envolvem desde a preparação do improvisador, até a utilização da improvisação como
exercício de elaboração de material para um trabalho ou sua configuração como o
próprio trabalho criativo. Analisei como esse processo de composição ocorreu em seu
percurso criador e como ocorre hoje em seu processo criativo, abordando-o através de
três temas principais: a memória, o desaparecimento e a estrutura.
Palavras-chave: Improvisação na dança - Dudude Herrmann - Estrutura da
Improvisação - Preparação do Improvisador
viii
Sinopsis
Este estudio abarca el modo de composición a través de la improvisación en la danza de
la bailarina y coreógrafa brasilera Dudude Herrmann. El proceso de creación por medio
la improvisación fue estudiado por la artista en tres obras, contemplando aspectos que
envuelven desde la preparación del improvisador, hasta la utilización de la
improvisación como ejercicio en la elaboración de material para un trabajo, o su
configuración como el propio trabajo creativo. Se analiza como este proceso de
composición ocurre en su camino de creador y como se desarolla en su proceso creativo
actualmente, abordándolo a traves de tres temas principales: memoria, desaparecimiento
y estructura.
Palabras-clave: Improvisación en la danza - Dudude Herrmann - Estructura de la
Improvisación- Preparación del Improvisador
ix
x
Sumário
Introdução. 01
1- Pedaço de uma lembrança ou em busca do tempo perdido - Improvisação e memória.
Obra
2
: Pedaço de uma lembrança. 05
2- O movimento no estado (ou Estado) nu - Desaparição
Obra: Sem - Um Colóquio sobre a Falta. 43
3- E o Andarilho? Estrutura 102
Obra: A Poética de um Andarilho - A Escrita do Movimento no Espaço de Fora.
Considerações Finais 131
Referências 134
ANEXO I: Obras 141
ANEXO II: Prêmios 142
ANEXO III: Parceiros Atuais de Dudude Herrmann em Improvisação 143
ANEXO IV: Sinopse e ficha técnica da obra: Pedaço de uma lembrança 152
ANEXO V: Sinopse e ficha técnica da obra: Sem, Um Colóquio sobre a Falta 150
ANEXO VI: Sinopse e ficha técnica da obra: Poética de um Andarilho - A Escrita do
Movimento no Espaço de Fora 156
ANEXO VII: Declaração 158
ANEXO VIII: Panfletos do Estúdio Dudude Herrmann 159
ANEXO IX: Cadernos de aula, de anotações: alho nos olhos 162
ANEXO X: Improvisação (palavra gigante) – Texto de Dudude 163
Acompanha esta dissertação um DVD com audiovisuais: documentários, grafonópticos,
registros das três obras estudadas e um CD com fotos do Acervo de Dudude Herrmann,
de suas obras e como intérprete.
2
Obra: estou usando a palavra obra, pois é o resultado de uma ação e empreendimento, também usada
para obra de arte. Como as palavras espetáculo ou performance podem às vezes dizer de antemão
antecipando o imaginário, achei melhor usar o termo genérico para posteriormente definir se é um
espetáculo que se apresenta em espaços institucionais ou se é interferência urbana, e se tem caráter
definido. Por isso optei por OBRA: 1-Efeito do trabalho ou ação. 6 - Trabalho literário, científico ou
artístico. (Médio Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1985).
Introdução
Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve
estar mais gordo. Escutei um perfume de sol nas
águas.
Manoel de Barros
Pesquisar a improvisação na dança implica percorrer um grande leque de temas que se
imbricam em relações complexas. Dentre eles estão: a improvisação e a simultaneidade,
o improvisador e seu simulacro, a improvisação e a errância, o errante, o estrangeiro, o
desvio de formas e normas estabelecidas, o estranhamento provocado pela intrusão do
acaso, a técnica e formação do improvisador, questões de estrutura e sua maleabilidade.
Ainda que não avancemos em todos nos limites deste trabalho, eles se apresentam.
O processo de pesquisa sobre a improvisação em dança muitas vezes assemelha-se a um
carrossel de um parque de diversões, cheio de brinquedos rodando, barulhos e ruídos
que surgem, desaparecem e se sobrepõem. Ora o carrossel gira vagarosamente,
permitindo uma apreensão Gestáltica
3
do que acontece, ora sua velocidade nos arrasta
para outras percepções sobre as quais não há total controle. No dizer de Dudude
Herrmann, artista da dança e objeto desta pesquisa, na improvisação “está valendo tudo
o tempo todo”
4
.
Este trabalho trata do modo composicional da improvisação na dança, isto é, maneiras
de engendrar no espaço/tempo, e outras infinitas variáveis, movimentos e estados que
compõem e constroem uma obra, uma cena ou um espetáculo na contemporaneidade.
Mais especificamente, trata-se de abordar a maneira como esse processo de composição
ocorre na trajetória da coreógrafa, dançarina, atriz e professora Dudude Herrmann e
3
Cf. GARDNER, 2003, p.126 e p. 129. Cito a Gestalt para abordar uma organização perceptiva. A
psicologia da Gestalt foi formulada pelo psicólogo Marx Wertheimer, que em 1912 publicou um artigo
sobre a percepção visual do movimento e que propõe ver o mundo do ‘alto’.
4
Dudude Herrmann, frase repetida, como regra, em ensaios junto aos bailarinos da Benvinda Cia de
Dança e em ensaios para a obra: “Como Habitar uma Paisagem Sonora” e para Izabel Stewart em ensaio
do “SEM - um colóquio sobre a falta”. Comentada pela bailarina Izabel Stewart, que entende essa frase
como essência da dança de Dudude Herrmann.
desemboca nas questões atuais da artista. A escolha da artista não foi casual, pois,
completando quatro décadas de trabalho, sua atuação na área artística e educacional
percorreu todo o leque de temas acima citado, partindo da memória e também da escuta
presente, apontando, quando possível, perspectivas futuras. É por isso que essa
dissertação tem como referência principal o próprio discurso de Dudude Herrmann
5
,
extraindo de sua fala a memória de seus processos composicionais, de sua formação
como improvisadora e a tensão que reverbera de sua prática no presente.
Procurar entender o processo de improvisação na prática criativa de Dudude Herrmann
envolve entender como a improvisação persegue o tempo presente, a presença em si, um
estado que foge como uma personagem que tem pressa: inconstâncias de focos que
mudam a cada estímulo seja ele externo - sons, luzes, pessoas, objetos, temperaturas,
paisagens, ou interno - imaginação, imagens, vontades, pensamentos, fluxos de
consciência, movimentos involuntários, “digestão”. Tudo isso converge no ato presente
da improvisação, um ‘qualquer – tudo’ ou um ‘qualquer – nada’, cheio de vazio, pronto
para vivenciar a escuta das pistas que provocam o movimento e responder ou não a elas.
Pode-se tudo, não qualquer coisa
6
. Este paradoxo resume e condensa o que foi dito
anteriormente, pois aparentemente coloca-nos frente a frente com o próprio problema da
improvisação. Separar a improvisação de outros modos de composição e colocá-la como
um fim: “para isso foi necessário muito tempo para a experimentação e o
estabelecimento de regras.”
7
Quais são essas regras? E ao mesmo tempo quem define o
que é qualquer coisa?
A improvisação como modo de composição vivo.
8
Então, a improvisação, ligada à
própria vida errante, de que nos escapa o futuro, ou reduzida a salvar uma cena, ou
5
Dudude Herrmann em depoimento em internet.Eu costumo dizer que sou da geração dos anos 70.
Comecei com a Marilene Martins, por volta de 1969, no Grupo e Escola Transforma, onde, aos poucos,
fui me tornando bailarina, professora e coreógrafa. Por isso falo que sou uma Artista de Dança. O
Transforma foi a primeira escola de dança moderna.
6
Dudude Herrmann em palestra de Giovane Aguiar - 23/11/07 dentro da programação Visitas Benvinda,
produzidas pelo Estúdio Dudude Herrmann.
7
Ibidem.
8
Formulei esta ideia em conversa com o Doutor Olímpio Pimenta sobre a improvisação na dança como
processo de composição e de criação, tendo como tema o texto O Andarilho e sua Sombra, de Nietzsche,
em novembro de 2009.
2
funcionando como válvula de escape, ou como um desastre em potencial, é uma
composição do momento que se aproxima do incontrolável. Estabelecem-se para a
improvisação pontos de apoio engendrados para a manutenção de pelo menos uma
configuração: uma composição vazada.
A criação em tempo presente é uma eterna mudança de estados. Diferentes nuances dão
cor e criam espaços no presente, quando todos os sentidos estão abertos para o que o
provoca, para o que influencia externamente, aliada a um espaço interno que se cria de
seleção rápida de pensamentos e intuições, dando, assim, à criação vida, dentro da
própria vida
9
.
A improvisação tem o presente como um segmento de reta, finito segmento, que por
dentro também é infinito, estabelecido dentro de um infinito. A improvisação na dança
abre um intervalo de tempo, em espaço limitado e onde a criatividade e o uso do acaso e
da simultaneidade poderão nos salvar das “entediantes” e já estabelecidas ações. E em
seu lugar teremos uma viagem em um vir-a-ser. Fazendo então vida dentro de uma vida,
e assim errante.
O momento da improvisação ligado a um aqui e agora é a própria essência que não se
resolve de uma vez por todas. Simultaneamente o movimento aparece e desaparece e se
faz existir também nessa desaparição. Desaparecer para existir, existir no rastro. Não só
como imagem artística, mas como uma posição política, pois deixa em suspenso a
questão: o que fica de palpável na improvisação quando ela tem como material de
trabalho o corpo que desenha no espaço algo que desaparece?
O amparo teórico para esta pesquisa sobre improvisação na dança faz uso de diversas
referências, pois sua teoria está ainda em processo de elaboração. Ainda que existam
estudos sobre o tema, a improvisação em dança ainda não tem uma literatura
consolidada. Daí a necessidade de recorrer a textos sobre história da dança, teatro,
estudos sobre a performance, entrevistas retiradas de livros sobre dança, sites, textos de
artistas da dança, vídeos de apresentações, depoimentos de coreógrafos, assim como a
entrevistas por mim realizadas.
9
VIANNA, 1990, p.87. “A dança começa no conhecimento dos processos internos.”
3
Desenvolvo a dissertação através da escolha de três obras de Dudude Herrmann que a
meu ver são representativas das questões e dos problemas da improvisação em dança.
No primeiro capítulo, tomando como referência a obra Pedaço de uma lembrança,
10
refaço o caminho da preparação e da trajetória da improvisadora, de sua formação e
principais influências, e estudo a questão da memória. No segundo capítulo, tomando
como referência, a obra SEM, um colóquio sobre a falta,
11
abordo questões relativas ao
surgimento, desenvolvimento e características do movimento de improvisação em dança
nas últimas três décadas, da companhia de dança de Dudude Herrmann e a questão de
seu desaparecimento. E, finalmente, no terceiro capítulo, tomo como referência seu
trabalho Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora,
estudando a questão da estrutura do modo de improvisação do qual Dudude Herrmann
se apropria e como a desenvolve, e busco tratar das convergências com outros artistas
da atualidade no Brasil e no exterior.
Dudude Herrmann. Pedaço de Uma Lembrança, 2008, Galeria Olido. Foto: Paulo César Lima.
10
Acompanhei apresentações desse espetáculo em São Paulo, na Galeria Olido, de 24 a 27 julho de 2008,
na função de Assistente de Cena.
11
Espetáculo sob direção de Dudude Herrmann. Trabalhei como assistente acompanhando ensaios e as
apresentações.
4
1º Capítulo
“Pedaço de uma lembrança” ou em busca do tempo perdido -
Improvisação e memória.
Obra: Pedaço de uma Lembrança.
Tema: Aprendizado e tradição do estudo e da importância da improvisação na trajetória
de formação da improvisadora Dudude Herrmann.
“A gente não quer segurar nada na improvisação.”
12
“Algo se transforma em poesia.”
13
“Aqui em Belo Horizonte a gente trabalhou muito a
improvisação, mas apoiada na música, (...) com Rolf
Gelewski, a gente se divertiu muito! O Rolf lidava com a
improvisação só com esse embasamento musical, ele partia
das frases melódicas para construir a coisa.
14
Dudude Herrmann. Foto: Autor não identificado. 1ª apresentação no Trans-Forma, 1972. Acervo Dudude
Herrmann.
15
12
Citação de frase proferida por Dudude Herrmann, dia 17 de agosto de 2007, em mesa redonda, sobre
improvisação, coordenada por Mariana Muniz.
13
HERNANDEZ, Felisberto. Cavalo Perdido e Outras Histórias. São Paulo: COSAC & NAIFY ,
2006. Em entrevista com Dudude Hermann, ela cita este texto de Felisberto Hernandez, 05/06/2008 fita 3.
14
HERRMANN, 2008. E-mail de Dudude Hermann: quinta-feira, 4 de junho de 2009 22:31. Assunto:
Fotos de Pedaço de uma lembrança - perguntas específicas. “ROLF GELEWISKI também trabalhava
com improvisação como recurso, para as Estruturas Sonoras”.
15
Todas as fotos, programas, folhetos, cartões fazem parte do acervo Dudude Herrmann, gentilmente
cedidos para uso nesta dissertação. Trabalho Rithymetron – Coreografia de Marilene Martins, 1972,
5
A bailarina, coreógrafa e professora de dança Dudude Herrmann gosta de dizer que é
uma artista da dança. A artista se revela como uma das referências da dança
contemporânea em Minas Gerais e no Brasil e tem sua trajetória iniciada nos anos 70,
completando quatro décadas de envolvimento com a dança, atuando como diretora de
sua própria companhia, como coreógrafa de outras companhias de dança e de teatro e de
instituições de ensino, e também como professora: é um nome que faz parte da história
da maioria dos bailarinos formados e profissionais em dança moderna e pós-moderna de
Minas Gerais e do Brasil.
Autor não identificado. Dudude Herrmann. Acervo Dudude Herrmann.
16
Maria de Lourdes Arruda Tavares (nome de solteira), nascida na cidade de Muriaé,
Minas Gerais, em 01 de outubro de 1958, foi aluna da Escola de Dança Marilene
Martins
17
, posteriormente chamada de Escola de Dança Moderna Marilene Martins e
depois Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea
18
, onde teve como professores
Teatro Marília. Depois desta apresentação dos alunos da Escola de Dança Moderna Marilene Martins,
com esse grupo de alunos, forma-se o Trans-forma - Grupo Experimental de Dança. A palavra
experimental é fundamental para Nena que enfatiza que sempre foi seu objetivo o lugar primeiro da
experimentação.
16
Los 45, trabalho de Graciela Figueroa, dirigido por Marilene Martins, da esq. para a dir.: Claudia
Prates, Marilene Martins (atrás), Dudude Herrmann, Ema e Dorinha Baeta
17
Marilene Martins abre em 1969 sua Escola de Dança em sua própria casa com o intuito de formar
bailarinos. Logo depois Nena vai estudar na UFBA onde conhece Rolf Gelewski que a influenciará até
mesmo na estrutura do programa da Escola e que respalda o acréscimo da palavra Moderna ao nome de
sua Escola passando assim a ser chamada: Escola de Dança Moderna Marilene Martins, coincidindo com
a mudança da mesma para o prédio do Colégio Arnaldo em 1971.
18
E-mail de Dudude Hermann: quinta-feira, 4 de junho de 2009 22:31. Assunto: Fotos de Pedaço de uma
lembrança - perguntas específicas. No Transforma [Dudude escreve TransForma, sem hífen e com o F
maiúsculo] a formação em improvisação era ponto importante, mas focava a Composição, improvisar
para compor e assim coreografar.
6
Marilene Martins, Klauss Vianna
19
, Angel Vianna, Rolf Gelewski, Graciela Figueroa,
Ivaldo Bertazzo, Denilton Gomes
20
, Hugo Rodas, Freddy Romero, Bettina Bellomo,
Carmen Paternostro, entre outros. Dudude comenta que o trabalho com a improvisação
foi iniciado nesta escola, destacando a influência do Professor Klauss Vianna: “Posso
recorrer também a Klauss Vianna que foi para mim um mestre neste entendimento e
que antecede todas estas pessoas(com quem trabalhou e foi aluna)”
21
. Foi integrante do
Trans-Forma Grupo Experimental de Dança desde seus doze anos, onde trabalhou com
diretores de teatro como Eid Ribeiro, Paulo César Bicalho, e com coreógrafos como a
própria Marilene Martins, o então iniciante Rodrigo Pederneiras, Graciela Figueroa,
Angel Vianna, e José Adolfo Moura (convidado para desenvolver pesquisa que
envolvesse a sensibilização e a improvisação).
22
Nos trabalhos de Dudude Herrmann (...) percebe-se de
forma muito clara a marca dos estudos de teatralidade das
ações corporais que ela começou a desenvolver no Trans-
Forma. Sua linguagem coreográfica, centrada nas idéias
19
E-mail de Dudude Hermann: quinta-feira, 4 de junho de 2009, 22:31. Assunto: Fotos de Pedaço de uma
lembrança - perguntas específicas. Para Dudude KLAUSS VIANNA sempre trabalhava com
improvisação, mas a improvisação não tinha este reconhecimento como linguagem.
20
Professor de Técnica Laban, foi aluno de Maria Duschenes e Butoh com Takao Kusuno e Felícia
Ogawa. Para Dudude, foi um excelente professor que influenciou muito no trabalho de experimentação e
improvisação.
21
E-mail de Dudude Herrmann, dia 11 de setembro de 2008 15:54. Assunto: Entrevista programada 30 de
agosto de 2008.
22
Cf. REIS, Maria da Glória Ferreira. Cidade e palco: experimentação, transformação e permanências.
Belo Horizonte: Criativa, 2005.
7
de memória corporal e do corpo como depositário de
emoções e evoluções, é influenciada pelo Trans-Forma.”
23
Foto.
24
Sua carreira como coreógrafa também começa com o Grupo Trans-Forma:
“Escolha seu Sonho
25
, primeiro trabalho coreográfico de
Dudude Herrmann para o Trans-Forma, já trazia marcas
da coreógrafa: criação coletiva, teatralidade, irreverência
e ousadia”.
26
Ao longo de sua carreira teve e tem complementado seu saber com diversos
profissionais como Vera Orlock (BMC
27
), Josef Nadj (Fr), Pascal Queneau (Fr), Karim
Sebbar (Fr) , Katie Duck (EUA), Lisa Nelson (EUA), e as brasileiras Cristiane Quito,
Rose Akras, Sônia Mota, entre vários outros.
Dudude Herrmann. Foto Adriana Moura. Paris, 2001.
23
REIS, 2005, p.96.
24
Foto: Trabalho: Quanto tempo faz que não dançamos, de Dudude Herrmann. Trans-Forma. Acervo
Dudude Herrmann, 1979.
25
Cf. REIS, 2005, p.116. Escolha seu Sonho, espetáculo realizado inspirado na poesia de Cecília
Meireles, recebe o premio no Concurso Nacional de Ballet e Coreografia no Rio de Janeiro.
26
REIS, 2005, p. 116. Dudude Herrmann assume seu nome assim depois de assumir a direção artística do
Trans-Forma em 1980, sugerido por Lilian Fleury, então produtora do Grupo.
27
BMC: Body Mind Centering, é uma pesquisa inovadora de reeducação que explora a relação entre
movimento e mente.Trad. livre minha. HTTP://caraker.com/articles/BMCsoamtic.htr
8
Em 1985, depois de trabalhar como Assistente de Direção do coreógrafo e mestre
francês Jean Marie Dubrul
28
e da diretora baiana de dança-teatro Carmen Paternostro,
no Palácio das Artes - Cia de Dança, Dudude funda sua própria companhia, a princípio
denominada Dudude Herrmann Cia. de Dança e posteriormente Benvinda Cia. de
Dança, companhia ‘desaparecida’ em 2008. Uma trajetória artística bem sucedida
coloca Dudude e sua companhia como referência de uma dança experimental em âmbito
nacional, começando então sua carreira internacional, apresentando-se na França, na
Alemanha e no Equador. A Benvinda Cia. De Dança é contemplada com vários
prêmios
29
em Minas, como os de melhor coreógrafa, melhores intérpretes, melhor
espetáculo e prêmios Nacionais como Caravana Funarte/2006, e a artista Dudude
Herrmann foi contemplada com as Bolsas Vitae de Artes e Bolsa Virtuose - MINC. Em
1994 Dudude Herrmann recebe um prêmio da FUNARTE pelo conjunto de sua obra.
Pelas companhias de dança Dudude Herrmann e Benvinda passaram vários bailarinos
com formação no Trans-Forma, como Arnaldo Alvarenga
30
e Tarcísio Ramos, outros
também reconhecidos nacionalmente, como Luiz Abreu e Patricia Werneck, Ana
Gastelois e Mônica Ribeiro, Margô Assis, Ana Virgína Guimarães, Sérgio Marrara,
Silvana Lopes, entre outros e bailarinos de gerações seguintes como Izabel Stewart,
Luciana Gontijo, Paulo Azevedo, Joana Carneiro, Marise Dinis, Heloisa Domingues.
Vários artistas como, por exemplo, o artista plástico e performer Marco Paulo Rolla, a
artista plástica Niura Bellavina, o diretor de teatro Adyr Assunção, o figurinista
Ronaldo Fraga, o iluminador Leo Pavanello, o músico Renatho Motta. Na verdade, no
princípio Dudude tinha e não tinha vontade de ter uma companhia. Sua vontade morria
no encontro com as dificuldades burocráticas e de sobrevivência financeira da mesma:
28
Jean Marie Dubrul se instala em Belo Horizonte e dirige a Cia de Dança do Palácio das Artes em 1986
e 1987, é maitre e coreógrafo. Suas aulas de técnica clássica trazem novas maneiras de trabalhar o corpo e
em seu trabalho coreográfico faz uso de criação coletiva. Traz em seu programa do espetáculo Sintonia o
desenho de um triangulo em cujos vértices destacam-se as palavras: tempo, espaço e energia. Dudude era
assistente de Jean Marie e ganhou um solo no espetáculo, no qual improvisa um monólogo de frases sem
enredo em cima de uma cadeira virada para a platéia e como se estivesse vendo desse palco a Avenida
Afonso Pena. As bailarinas Jeanette Guenka e Lina Lapertosa também fazem solos e cada um desses três
solos aproximam-se de particularidades das três bailarinas solistas.
29
Cf.Anexo V.
30
Bailarino e coreógrafo, foi integrante do Trans-Forma e diretor, muitas vezes trabalhou com Dudude
Herrmann. Doutor em Educação pela UFMG e atualmente Professor da Escola de Belas Artes,
responsável pela implantação do Curso Superior em Dança da UFMG.
9
“Sofri um bom tempo com [por] todas estas pessoas que
se aproximaram da Benvinda e do estúdio, por não poder
abrigá-los como profissionais, acho que (...) vários
[bailarinos] fazem parte desta realidade: a Benvinda
existiu com muitas tentativas de continuação e pela minha
incapacidade de conseguir estrutura financeira para sua
existência.”
31
Na verdade essa incapacidade particular, destacada pela coreógrafa, de gerenciamento e
de administração financeira está presente em várias outras instâncias artísticas, e será
discutida no 2º capítulo sobre a Desaparição.
Dudude assina trabalhos como coreógrafa em diversas Companhias de Dança, podendo
citar o Grupo 1º Ato, a Cia. de Dança do Palácio das Artes, entre outras. Trabalhou com
companhias de teatro como o grupo Galpão, coreografou para bailarinos independentes
como Thembi Rosa, e para o cinema, sob direção de Helvecio Ratton, em O Menino
Maluquinho - A dança das horas. Atua como professora e coreógrafa de espetáculos de
escolas como Corpo – Escola de Dança, 1º ato Escola de Dança, Cefar – Centro de
Formação Artística do Palácio das Artes. Atualmente Dudude é convidada para
ministrar cursos de dança contemporânea no interior de Minas Gerais e em todo o
Brasil.
Formação e trajetória de Dudude Herrmann
Dudude Herrmann inicia seus estudos de Dança ainda criança, em 1969, e aprende
técnica de dança clássica na Escola de Dança Marilene Martins. Foi levada por sua mãe,
a cantora lírica Áurea Celeste Arruda Tavares, que conhecia Maria Amália da Fundação
de Educação Artística, e incentivada pelo seu pai, que também tinha afinidades artísticas
e tinha uma experiência como aluno de Ballet do professor Carlos Leite.
Marilene Martins
32
, merecedora de reconhecimento por sua trajetória como bailarina,
coreógrafa, pesquisadora e educadora, tem papel de destaque na formação de Dudude
Herrmann. Nena, como é chamada em Belo Horizonte, recebeu em sua casa Dudude e
eu, em uma terça-feira de 2009, enquanto Arnaldo Alvarenga defendia sua tese de
31
E-mail de Dudude Herrmann.
32
MARTINS, 2009. Entrevistei Marilene Martins no dia 01 de julho de 2009, Belo Horizonte , em sua
casa, com presença de Dudude Herrmann.
10
doutorado e recebíamos a notícia da inesperada morte de Pina Bausch. Impressionante a
maneira carinhosa e alegre com que foi contando como a improvisação era importante
como conteúdo das aulas de dança, e também como era experimentada juntamente com
os diretores de teatro que ela convidava para trabalhar em sua escola e depois em seu
grupo.
Além de uma força vital, que parece tê-la norteado e dado coragem, Nena foi generosa
em compartilhar o que aprendia com seus alunos. Não só empreendeu a construção de
uma escola livre de dança, com programa e currículo estruturado na vanguarda da dança
européia, mas também, através de muita pesquisa, queria ir introduzindo uma
brasileiridade no seu conteúdo, como dança primitiva, dança afro, capoeira, samba e
outras danças que necessitavam ser estudadas e catalogadas, o que provocava muitas
viagens e observações de rituais, dos povoados, pelo interior de Minas Gerais, por
exemplo:
“sempre fui muito curiosa para aprender muitas coisas,
quando encontrava com alguém novo já queria conhecer
seu trabalho e trocar e levar para a minha escola”
33
.
Começou dando aulas de técnica clássica em sua própria casa, depois de estudar com o
professor Carlos Leite
34
. Foi dançar no grupo de Klauss Vianna
35
, também ex-aluno de
Carlos Leite. Sua força e visão de mundo não permitiram que ela ficasse em Belo
Horizonte; então ela completa: “queria outras coisas, eu não me sentia tão à vontade
com a dança clássica”. Isso a levou a procurar uma formação mais ampla. Marilene
escreve para Rolf Gelewski, então o segundo diretor da Escola de Dança da UFBA
36
, e
33
MARTINS, 2009.
34
Professor Carlos Leite, gaúcho, ex-bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e cantor lírico vem
a Belo Horizonte com a difícil tarefa de fundar uma escola de dança. A partir dele temos as ramificações
e as tendências da dança na capital mineira. Foram alunos dele Ana Lúcia e Klauss Vianna.
35
Cf. http://www.klaussvianna.art.br
36
SCHAFFNER, 2008, p.40. “A dançarina e coreógrafa polonesa Yanka Rudzka (...) Após algumas
viagens à Bahia, ela aceitou em 1956 o convite de fundar e dirigir a Escola de Dança da Universidade
da Bahia. Rolf Gelewski, dançarino e coreógrafo alemão, que se formou com Gret Palucca, Mary
Wigman e Marianne Vogelsang, e que em 1953 foi contratado como solista no Teatro Metropol de
Berlim e em 1960 aceita o convite da Universidade Federal da Bahia para reestruturar e dirigir a Escola
de Dança, encerrando seus trabalhos em 1975.
11
muda-se em 1960 para Salvador, a fim de estudar no único curso superior então
existente no Brasil.
37
Nena se torna aluna e posteriormente assistente do professor e coreógrafo Rolf
Gelewski
38
. O professor, segundo ela, estava interessado em formar não só bailarinos
com um novo pensamento influenciado pelas vanguardas, mas também objetivava a
formação de professores.
Rolf Gelewski introduz dois métodos de improvisação: estruturada e livre em seu livro
Ver Ouvir Movimentar-se. Sua preocupação e foco maior é a de registrar e tentar fixar
sua metodologia para registrar e elaborar um material pedagógico para tal prática a de
improvisar e a de ensinar através de métodos o modo composicional improvisação e
preparar o dançarino para tal. Rolf concebe os métodos como processos didáticos e os
estrutura “na forma de um Exercício Modelo”. Com exercícios em fases que
representam estágios objetivo.
“Pouco se mudou, nestes quatro anos, com relação à real
necessidade de um material didático de base para o ensino
dança. Em todos os lugares experimenta-se bastante mas
pouco se formula. E os critérios que conduzem e devem
justificar estas experimentações nem sempre são
manifestações de uma consciência educacional, e até
parece que um critério central esteja faltando.
39
37
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia é a instituição de ensino superior de dança mais
antiga do Brasil
, fundada em 1956 a partir de um projeto visionário de Edgard Santos, o primeiro Reitor
da Universidade. http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/avant_danca.php
. Acesso: 02/07/09.
38
“Rolf Gelewski (1930-1988) veio para o Brasil em 1960 para lecionar na Escola de Dança da
Universidade Federal da Bahia, onde permaneceu até 1975 ocupando também os cargos de Diretor da
Escola e coreógrafo do Grupo de Dança Contemporânea. Desenvolveu muitas pesquisas na área de dança,
produzindo textos e reflexões sobre a dança e seus elementos (corpo, espaço e tempo), e na área
pedagógica estruturou o primeiro Curso de Dança de nível superior do país e criou métodos e apostilas
didáticas, abordando temas como improvisação, espaço, forma, rítmica, técnica corporal, entre outros.”
Rolf Gelewski: Reflexões e Material Didático-Pedagógico como base para uma composição
Coreográfica. Juliana Cunha Passos, Elisabeth Bauch Zimmermann. Acesso em 10/07/09.
http://www.prp.unicamp.br/pibic/congressos/xvcongresso/resumos/033660.pdf
. São dois grupos de Dança
da UFBA, todos dois dirigidos por Rolf Gelewsk e que recebem nomes distindos: Grupo de Dança
Contemporânea da UFBA- 1965 e anteriormente Grupo Juventude Dança com alunos da UFBA – 1962.
Nena participa dos dois grupos como bailarina e juntamente com Carmen Paternostro confirmam a
existência desses dois grupos.
39
GELEWSKI, Rolf. Ver Ouvir Movimentar-se – dois métodos e reflexões referentes à improvisação na
dança. Nós Editora. Ananda-Educação pg 9.
12
Rolf Gelewski nasceu em 1930 na Alemanha. Formado no movimento da dança
expressiva ou no período chamado Ausdruckstanz
40
, foi aluno exemplar de Mary
Wigman
41
. Nesse momento a dança alemã se encontra em grande desenvolvimento e
vai influenciar todo um movimento posterior, de várias gerações, tanto na Europa como
nas Américas. Em encontros e congressos realizados na Alemanha entre 1928 e 1950,
vários profissionais coreógrafos defendem suas idéias, criando e estabelecendo seus
métodos e seus estudos de forma mais estruturada. Podemos citar Mary Wigman, com
sua Dança Expressiva, Rudolf Laban, com Teatro Dança e seu método de
improvisação, Kurt Joss, aluno de Laban, com a Dança-Teatro
42
. Mary Wigman
também trabalhava com improvisação e procurava a estimulação dos sentidos: “Suas
aulas de improvisação continham estudos em diferentes texturas, expondo seus alunos a
experimentarem as superfícies da madeira, do metal ou da cera e sua fluidez.
43
Sua
técnica consolidou-se numa coordenação aperfeiçoada. Baseando-se no uso da
improvisação de Laban e a sua teoria básica dos três elementos - força, espaço, tempo -,
Wigman fundamentou o seu método de ensino de dança.
44
Tanto Laban quanto Wigman colocavam a improvisação como conteúdo dentro de seus
métodos e no trabalho pedagógico. Rolf Gelewski também dá ênfase à improvisação e,
em julho de 1971, realiza um programa de espetáculos improvisatórios que foi
apresentado no teatro Santo Antônio da Escola de Teatro da UFBA. Foi um dos
primeiros espetáculos em que a improvisação já era usada como fim, no Brasil:
40
SCHAFFNER. 2008, p.20: “Conforme Koegler (2004), muitos historiadores tendem a considerar o
período da Ausdruckstanz iniciando em 1910 e indo até 1933. Esta época inclui François Delsarte
(1811-
1871)
e Isadora Duncan como precursores, e Rudolf Von Laban e Mary Wigman como os legítimos
representantes. É muito questionada a utilização na cultura anglo-saxônica do termo expressionist dance
em relação à Ausdruckstanz, uma vez que a Dança Expressionista, propriamente dita, representa somente
uma tendência na arte de dança entre outras. De fato, o termo Ausdruckstanz surge somente nos fins da
década de 1920, designando cumulativamente todas as formas revolucionárias de dança desenvolvidas a
partir do início do século XX.” Pontuo que precursores, nesse caso, se refere a todo um movimento de
ruptura da dança com o modo pensar anterior, abrindo assim um novo campo de pensamento na dança
inaugurando princípios fundamentais da dança moderna.
41
SCHAFFNER, 2008, p.40. A presença da dança alemã, de suas idéias, nas Américas e na Europa, deve-
se muito pelas tournées de Mary Wigman. Posteriormente alguns coreógrafos e educadores da dança,
marginalizados na Alemanha, procuram outros lugares para viver fora da Europa. Entre eles podemos
destacar nos EUA sua aluna Hanya Holm. Nomes como o próprio Kurt Jooss, que se muda para o Chile,
Maria Duchenes, aluna de Jooss e de Leeder, que nos anos 40 se fixa em São Paulo, no Brasil. “A
francesa René Gumiel, de extensa carreira internacional foi aluna de Jooss, Leeder e Kreutzberg, e veio
para o Brasil em 1956.”
42
Cf. SCHAFFNER, 2008, p.40
43
SCHAFFNER. 2008, p.27.
44
SCHAFFNER. 2008, p.27.
13
A sua produção teórico-prática tem início em 1960, porém
é mais organizadamente vista numa série de artigos
publicados no Jornal da Bahia em 1964. Em um deles sobre
Trabalhos da Escola de Dança III – Improvisações
(GELEWSKI, 1964d), além de continuar destacando a
interminável questão da técnica corporal para a dança
moderna que não aprisionasse os dançarinos, Gelewski via
na Improvisação um lugar para a liberdade da dança e
para revelações do subconsciente. Citando Paul Klee, a
arte não reflete o visível, mas torna visível, ele
complementa a sua visão sobre o mundo interno do
dançarino.”
45
Rolf Gelewski traz para a Universidade da Bahia um pensamento crítico, proporciona
debates sistematizados em dança, tratando de enfocar a dança experimental e
pensamentos filosóficos sobre a dança. Enfim, estrutura pedagogicamente vários
conteúdos da dança e sua aplicação, além de formar grandes diretoras pedagogas como
a seguinte diretora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Dulce
Aquino
46
e Marilene Martins, em Belo Horizonte.
Para Gelewski a Improvisação seria a disciplina que levaria o aluno a descobrir o
invisível em si mesmo, cultivando as faculdades interiores como recursos aplicáveis no
processo de criação. Acreditando nas potencialidades individuais de cada ser humano, ele
escreve:
Sabemos naturalmente que não podemos produzir artistas,
por que pessoa alguma é capaz de criar vocação, conferir
45
SCHAFFNER. 2008, p.58.
46
SCHAFFNER, 2008, p.68. GELEWSKI, 1964d, apud “Desde que a Escola foi fundada, as disciplinas
eram formatadas isoladamente. Aquino, a pedido do então Reitor Roberto Santos, apresentou uma proposta
para o Conselho Federal do Ministério da Educação que regulamentou o Curso Superior da Escola de
Dança. Seu projeto competiu com outras propostas apresentadas, como a de Dalal Achar de transformar o
método de ensino do Royal Ballet Academy em curso superior no Brasil, ou mesmo a proposta de Helenita
Sá Earp de incluir a Dança no curso superior de Educação Física. A Regulamentação de Aquino venceu,
incluindo a exigência de o aluno fazer um vestibular para entrar no curso universitário de Dança. Através de
um levantamento realizado sobre o que existia de implantado na Escola, Aquino criou um currículo de
Ensino Superior de Dança que beneficiava outros estilos, com a inclusão da disciplina Técnicas Corporais
no lugar de Técnica de Dança Moderna. Essa idéia possibilitou que cada instituição de dança no Brasil
colocasse livremente a sua opção técnica, ou seja, técnica clássica, moderna ou folclore, em seus cursos. O
currículo criado por Aquino foi acrescido de novas terminologias como Composição Coreográfica que
passou a englobar: Espaço, Forma, Composição Solística e Coreografia em Grupo. As outras disciplinas
eram: Improvisação, Elementos da Música, Técnicas Corporais com opção para Balé Clássico e Dança
Moderna. Os alunos podiam optar para a formação de Dançarino Profissional ou Licenciatura em Dança.
Aquino comenta que esse currículo somente existia na Bahia, e somente a partir de 1980 foram criados os
cursos universitários de Dança na UNICAMP, emo Paulo, e em Curitiba, no Paraná (AQUINO, 1997,
apud ROBATTO e MACARENHAS, 2002, p. 131).”
14
talento e espírito. Mas acreditamos que todo homem possua
dentro de si a semente espiritual.”
47
No mesmo artigo, ele aponta que a dança se distingue da ginástica e da acrobacia
principalmente pela comunhão dos elementos emocionais e espirituais do dançarino. Para
efetivar tais concepções, Gelewski fundamentou os objetivos da Improvisação da seguinte
forma:
Desenvolver além do treino das capacidades de reação e
coordenação e de qualidades tão gerais como concentração,
intensidades e sensibilidade - desenvolver as qualidades
expressivas e imaginativas de criação. Fornecer uma
formação ampla musical e cultural.”
48
Acreditando no despertar dos seres humanos e no potencial da dança neste processo,
Gelewski elaborou a disciplina experimental Filosofia da Dança para aplicar em 1967 na
Escola de Dança. No item das Correspondências entre a Dança e o Tempo ele enfatiza
que a dança necessita do tempo como condição existencial, “como algo que urge do
tempo para poder realizar-se”, complementa. A Dança se efetua num tempo
comensurável, determinável e objetivo, como algo que tem início e fim; sendo assim, o
tempo é uma condição fundamental para a Dança. Ressalta que a dança é igual à vida, é
essencialmente movimento e gênese dinâmica. Diz ainda: “Não se distinguem um antes
um agora e um depois: um momento é equiparado ao outro, numa presença constante.
49
Gelewski cita a estadunidense Isadora Duncan como uma precursora dessa modernidade:
Em tempos comparativamente recentes o expoente
máximo daquilo que se tornou conhecido como culto de
dança livre foi a americana Isadora Duncan que
47
GELEWSKI, 1964d.
48
SCHAFFNER. 2008, p.60. Por ocasião do 77° aniversário de Mary Wigman (13 nov. 1964), Gelewski
traduziu para sua coluna Dança no Jornal da Bahia um trecho do livro de Wigman A Linguagem da Dança,
que trata da importância da interiorização e da entrega do dançarino no ato da criação, fator que ele
posteriormente ampliou. Na sua postura como ser humano e na sua visão como educador, Gelewski via na
conscientização dos estudantes um processo complementar e essencial para a formação técnico-artística
atingindo uma relação mais complexa do fazer a dança. Para Wigman a força criadora pertence tanto à
região das realidades quanto à zona da imaginação. Entendia que para compor em arte é preciso um
mergulho no nosso interior, uma disposição e um estado de embriaguez para se vivenciar um êxtase
objetivo para a percepção do momento abençoado.
49
GELEWSKI, 2007, p. 75, apud SCHAFFNER, 2008, p.61.
15
relegando técnica causou admiração na Europa com suas
exposições de dança inspiradas de seu interior.”
50
A metodologia de estruturação, a disciplina de construção e a aplicação na Escola de
Dança Moderna Marilene Martins se dão como um processo de experimentação e
contam com o impulso e respaldo direto do pedagogo Rolf Gelewski, que passa a
orientar Nena como também a visitar várias vezes a Escola em Belo Horizonte. A
improvisação como tradição da Escola Alemã vai também fazer parte da Escola como
um lugar de experimentação, mas também como uma forma de desenvolver um estudo
personalizado, dando a cada pessoa sua maneira particular de dançar. Segundo Carmen
Paternostro, as aulas de improvisação de Rolf eram embasadas em exercícios práticos
que poderiam, segundo ele, ter motivações diversas como música, poesia, temas
concretos e abstratos.
51
As alunas avançadas da Escola de Dança Moderna Marilene Martins faziam parte de um
grupo amador para realizar experimentações coreográficas como também para o
exercício de outros coreógrafos e diretores de teatro. Vários desses diretores
trabalhavam com improvisação como processo criativo. Logo depois, esse grupo, a
princípio amador, toma um caráter profissional, e sobre isso Nena diz: “eu nunca tive a
intenção de montar um grupo profissional, pensava em trabalhar somente
amadoramente ou didaticamente.
52
Nena logo depois se viu responsável não só pela
escola e suas questões pedagógicas, de mantê-la em uma filosofia de pesquisa e de
investigação, mas também estava com um grupo de bailarinos-alunos que tinha toda a
força e a vontade de dançar em uma tentativa profissional. Dudude estava entre eles,
apesar de seus 12 anos.
Dentre os profissionais que trabalhavam em sua escola e com o seu grupo, Nena destaca
o trabalho que Rolf desenvolvia com base em sua própria formação com Wigman e
teoricamente oriundo dos estudos do músico Dalcroze
53
. Rolf tinha um profundo
50
GELEWSKI, 1964b, apud SCHAFFNER, 2008, p.57.
51
SCHAFFNER, 2008, p.59.
52
MARTINS, 2009.
53
Èmile Jacques-Dalcroze, músico suíço, (1865-1950). Èmile influenciará a dança moderna no que
concerne modo de percepção sensorial, principalmente como o corpo responde aos estímulos sonoros.
Teve como seus maiores discípulos Rudolf Von Laban e Mary Wigman. Émile Jaques-Dalcroze (1865-
1950) foi professor de música, nascido na cidade de Viena na Áustria. Dalcroze desenvolveu um sistema
16
trabalho de conhecimento da música e da improvisação. Rolf sistematizou suas ideias
sobre improvisação e em uma publicação de 1973 podemos conferir dois métodos e
reflexões referentes à improvisação na dança
54
.
Marilene Martins foi uma aluna e bailarina inquieta. Ela tinha vontade e muita
curiosidade por conhecer conteúdos diferentes e outras danças e não ficou parada.
Viajou pela Europa e pelos EUA em busca de novos conhecimentos e principalmente de
conhecer outros profissionais e outras abordagens da dança.
Tanto Klauss Vianna quanto Rolf Gelewski tinham propostas e foram referências que
afinavam com as expectativas de sua aluna: “Marilene Martins sentia suas inquietações
crescerem junto com o desejo de encontrar uma linguagem própria. Sua proposta era
pesquisar e estudar a cultura popular brasileira e desenvolver uma dança que se
identificasse com o povo do Brasil em sua livre expressão.”
55
A importância da Moderna de Dança Marilene Martins está na ousadia, na persistência
e na genialidade de empreendedora da própria diretora, de fazer um sonho se tornar
realidade fundando uma escola aproximada de uma academia, onde o ensino da dança
teria uma seqüência sistematizada, onde os conteúdos seriam elaborados seguindo uma
ordem de dificuldade e todo o saber dessa disciplina iria convergir para outros saberes
das artes afins, principalmente o teatro, mas também a filosofia, preocupada não
somente em formar um dançarino, mas antes de tudo um ser. Todo esse movimento da
escola aliada ao trabalho desenvolvido no Trans-Forma Grupo Experimental de Dança,
também dirigido por Nena, faz de Belo Horizonte um pólo de dança moderna.
Paralelamente podemos citar a Escola de Dulce Beltrão, que também galgava os
mesmos interesses na dança moderna, dança-teatro e suas conexões com a modernidade
e com todo um saber.
A historiadora Gloria Reis aponta em seu livro Cidade e Palco Experimentação,
Transformação e Permanências que a Escola de Dança Moderna Marilene Martins
de treinamento de sensibilização musical, denominado eurritmia, no qual tinha a função de transformar o
ritmo em movimentos corporais, uma ginástica rítmica.
54
Cf. GELEWSKI, 1973.
55
REIS, 2005, p.86.
17
estava “sintonizada com a tendência a interações entre as manifestações artísticas e,
especialmente, empenhada em discutir as interseções entre dança e teatro.(...) para
trabalhar com sensibilização e improvisação.”
56
Dudude, como aluna de Marilene, participa ativamente da Escola, cursando além das
aulas do programa os cursos de aperfeiçoamento ministrados por seus convidados.
Depois passa a ser assistente de Nena, e durante dois anos, sempre anotando tudo, e
preparando material prático que seria aplicado nas aulas do curso básico de dança
moderna. Os exercícios eram montados com Dudude fazendo-os para Nena. Aos
quatorze anos Dudude começa a ministrar aulas, e suas aulas são, durante todo o ano,
assistidas pela própria Nena, que depois fazia suas observações e comentários. Dudude
foi treinada pacientemente por Nena para ser professora. Ela conta que tinha de estudar
muito e anotar tudo. Dudude me mostra seus cadernos com exercícios escritos com uma
descrição quase narrativa, mas “nada comparado aos cadernos de Dorinha Baeta que
eram exemplares”, comenta Dudude. Marilene treinou sua pupila como uma mestra
ensina ao seu discípulo seu ofício, transmitindo sua tradição, com disciplina e
perseverança. Dudude aprende a ser metódica e rigorosa com suas aulas, anotando-as e
preparando-as, aprende a diversidade e a troca de informações e conhecimentos com
outros profissionais e a generosidade de uma educadora.
56
REIS, 2005, p.95.
18
Caderno Aula de Dudude Herrmann, sequência de alongamento inicial da aula de Freddy Romero,
bailarino de Alvim Ailey, técnica de Martha Graham.
Em uma das ausências de Nena da Escola a diretora deixa suas alunas a cargo de
Verinha, Vera Andrade. Dudude conta que com Verinha ficaram só improvisando -
nós, alunos, implorávamos para improvisar!” - e que esse foi um ano de muito
trabalho.
Nesse perfil de formação que Nena instaura em Dudude, vê-se claramente que em
Dudude persevera a construção de um Estúdio de Dança também generoso, abrindo as
portas para uma dança experimental, convidando pessoas para mostrarem seus estudos e
trabalhos. Desde 1992, essa abertura para a diversidade se reflete no EDH - Estúdio
Dudude Herrmann. Dudude convida vários professores de dança de várias técnicas
contemporâneas. Professores que ministraram aulas no EDH enfocando linguagens
contemporâneas: Francis Sauvage, Marcia Monroe, Rose Akras, Rodrigo Campos, Tica
Lemos, Giovane Aguiar, Diogo Granato, Telma Bonativa, Tiago Granato, Tiago
Gambogi, Beth Bastos, Osman Kassen, Cristiane Paoli Quito, Magdalena Bernardes,
Cristiano Karnas, Adriana Grechi, Nigel (DV8), Luis Carlos Garrocho, Paola Rettore,
19
Marcelo Kraiser, Izabel Stewart, André Lage, Tuca Pinheiro, Mauricio Leonard, Zélia
Monterio , João de Bruço, Tarina Quelho, entre outros.
Em 2010, quando inaugura seu novo estúdio, denominado agora de atelier, em Casa
Branca, com a visita de Lisa Nelson e Daniel Lepkoff, duas personalidades referências
da dança improvisacional, que oferecem um workshop aberto à comunidade da dança e
uma palestra, com entrada franca para toda a comunidade artística, Dudude confirma
estar conectada ao mundo e generosamente compartilha com outras pessoas seus
interesses e viabiliza esses encontros tão ricos, movimentando a cidade de Belo
Horizonte e colocando-a no circuito da dança experimental e contemporânea.
Flyer Viviane Gandra
57
, 2010.
É importante notar que toda a formação recebida por Dudude Herrmann, monitorada
pela educadora e artista Marilene Martins, foi passada também com a potência que a
mesma tinha de disseminação do trabalho, de democratização, de divulgação da dança.
Hoje observamos a trajetória artística de Dudude e também podemos notar que a mesma
continua o trabalho de pouco a pouco alimentar outras pessoas. Com a abertura de seu
estúdio desde 1992 e nos anos seguintes, Dudude mantém um diálogo incessante da
57
Viviane Gandra assina como designer responsável pela arte gráfica de programas, E-flyer, cartazes, e
outros.
20
dança contemporânea com outros artistas, fazendo circular pessoas e conhecimentos,
experiências e modos de composição tanto de Belo Horizonte, como do estado, do
Brasil e do exterior. Continua não só seu trabalho, mas também sua missão de
pedagoga, herdada de Nena, herdada do próprio Rolf Gelewski, que preocupa-se não só
com a educação, mas com a sistematização da metodologia de trabalho. Dudude foi
alimentada pelo cordão de Nena e agora perpetua e alimenta através de seu atelier, em
Casa Branca, em Brumadinho, a reverberação de seus interesses, de seus
conhecimentos, comungando-os com outros artistas e bailarinos.
Folheto de divulgação do EDH. Acervo Dudude Herrmann.
A formação de Dudude como bailarina e depois seu trabalho junto ao Trans-Forma,
sempre sob a tutela da diretora Marilene Martins, nos apontam para uma busca de
trabalhar a dança inserida num contexto de formação do ser, com as características dos
anseios modernos de encontrar maneiras particulares de expressão. A ênfase dada era
alimentada por estudos de improvisação, sensibilização e relaxamento. Esse último
muito valorizado e comentado por Nena. Em meu encontro com ela, ela reforça a
necessidade e o valor para o processo ensino aprendizagem do espaço-tempo para o
relaxamento.
Sem dúvida, Nena traz para sua Escola a tradição da Dança Alemã, na qual a
improvisação era ferramenta para a construção desse ser que dança, tendo grande
referência e respaldo nos ensinamentos e nos escritos de Laban e Wigman, que
21
inauguram a dança moderna
58
, e depois através de seus alunos, estes mais próximos da
realidade americana através de Jooss, Holm
59
e Gelewski, que continuam formando e
sistematizando não só a dança mas o ensino da dança moderna, trazendo para o trabalho
pedagógico a importância de se trabalhar a improvisação, a relação com o teatro, a
preocupação com a formação de um ser humano apto a se relacionar com a vida,
sensibilizando-o e instrumentalizando-o para trabalhar dentro de suas próprias buscas de
seu ser.
Marilene Martins foi também coordenadora de dança dos Festivais de Inverno da
UFMG
60
, ocasião em que convida o professor Rolf para ministrar oficinas de
composição tanto em sua Escola quanto nos Festivais.
61
O Festival de Inverno, naquele
momento, teve um formato pequeno porte, mas com um mês de duração, o que
possibilitou estudos e pesquisa mais aprofundados e encontros de pessoas de forma
intensa. No Festival “podia-se experimentar com calma e ao mesmo tempo com a
urgência de fazer coisas para apresentar no dia seguinte”,
62
lembra Dudude. Pode ser
que, então, tenha começado a primeira fagulha norteadora de uma artista
improvisadora
63
, como um caminho para a artista de descoberta de sua própria
58
SCHAFFNER. 2008, p.23 e p.27. Percebe-se em vários dançarinos expressionistas uma influência do
tratado A Origem da Tragédia no Espírito da Música, do filosofo alemão Friedrich Nietzsche. Mary
Wigman se dizia apaixonada pelo livro de Nietzsche Assim falava Zarathustra. A Rudolf Laban foi
atribuída uma influência de filosofia de vida, também inspirada por Nietzsche, principalmente o conceito
de oposição apolíneo-dionisíaco. Uma das frases nietzscheanas mais citadas por representantes da dança
da época foi a seguinte: “Eu poderia acreditar somente num deus que soubesse dançar” (NIETZSCHE
apud KOEGLER, 2004, p. 10). (...) Para ambos a dança surgiu do ritual, de sua própria forma dionisíaca
não sectária, inspirados em Friedrich Nietzsche (PARTSCH-BERGSOHN, 1994).
59
SOARES, 2008. Marta Soares, coreógrafa brasileira lembra que a educadora Hanya Holm foi quem
introduziu o trabalho de Wigman nos EUA. Considerada, juntamente com Alvin Nikolais, uma das
precursoras da dança moderna nos EUA, foram personalidades responsáveis pelo movimento de
improvisação na dança estadunidense, que Marta chama de pré-Judson. “A própria Trisha Brown estudou
com Nikolais”. Acrescenta Marta: “a improvisação está desde a modernidade e foi sistematizada no
trabalho de Laban e Wigman, que estudavam a sistematização dos esforços espaciais, das qualidades de
movimento, pesquisado através da Improvisação”.
60
Marilene Martins foi coordenadora da área de dança do Festival de Inverno da UFMG tendo
participado informalmente da filosofia da área de dança, isso é, sem assinar a coordenação, desde o início
dos Festivais nos anos 70, sempre sugerindo nomes nacionais e internacionais para ministrarem os cursos.
Dentre os coreógrafos e professores sugeridos por Nena podemos destaca-se: Garciela Figueroa, Oscar
Araiz, e Rolf Gelewski. Em 1986 Dudude assume essa coordenação, que se estende até o ano de 1997,
excluindo o ano de 1989, totalizando 11 edições.
61
Cf. REIS, 2005.
62
HERRMANN, 2008.
63
E-mail de Dudude Herrmann. Assunto: Pedaço de uma Lembrança, dia: domingo, 1 de junho de 2008
17:53. Sobre a improvisação de Bola na Área: “(...) como o próprio nome diz é realmente um pedaço de
quando improvisei como produto final de um trabalho, (...), então eu dancei e foi aí que me apaixonei, é
claro que na época nem considerava a improvisação como linguagem e sim como apagadora de
incêndios e imprevistos de ultima hora.”
22
tendência. No Festival os alunos tinham oportunidade de mergulhar e de emergir,
proporcionando uma maleabilidade de entrar no universo da improvisação, da
investigação, e também de proporcionar uma instrumentalização, como método de
trabalho; era, sim, um objeto de muito estudo, ainda no lugar da dança moderna, mas
praticado dentro de sala de aula como exercício.
A improvisação para Dudude foi, desde sua formação, sempre mais do que um recurso,
um caminho, como técnica, praticada com disciplina e constância. Em Dudude podemos
ver inclusive que esses ensinamentos filosóficos de busca de uma dança livre e
particularizada, que fundamentam a Dança Moderna Alemã,
64
ainda estarão presentes
de forma visível em seu trabalho Poética de um Andarilho, a escrita do movimento no
espaço de fora, onde podemos ver ainda a influência dos precursores e dos
fundamentos, na prática Isadora Duncan
65
e no pensamento Friedrich Nietzsche. Toda a
questão do espaço, que a dança moderna e pós-moderna vem discutindo, é valorizada
em sua escolha física desse deslocamento, e que vai, como palavra, para o lugar-título
da obra.
Hoje, Dudude carrega o livro Cavalo Perdido, de Felisberto Hernandez, pontuando-o
com observações como: “acho isso uma aula de improvisação”
66
. Dudude lê o texto
Explicação falsa de meus contos
67
e comenta: “quando ele diz ‘Algo que se transforme
64
HASELBACH, 1988, p.7. Haselbach discrimina: “O improvisador deve ser estimulado a desenvolver
habilidades no âmbito pragmático: 1-sensibilização e conscientização do corpo: sentido cinesiológico,
sentido do equilíbrio, sentido tátil, sentido visual, sentido acústico. 2- Elaboração e corrreção da postura.
3- motricidade 4- Elaboração de um repertório de dança. A improvisação trabalhará através da
estimulação da percepção individual e em sua diferenciação, tornando uma experiência de sensibilidade.”
Para Laban e Haselberg deve-se estimular os sentidos de equilíbrio e cinesiológico, para nos informar as
posições das musculaturas e articulações. Até então, a técnica de improvisação era aplicada para aguçar e
refinar o movimento, a observação e a memória do dançarino para atuar em uma posterior coreografia. A
escola alemã desde Laban trabalha com a improvisação como uma etapa preparatória para a composição,
com o objetivo principal de experimentação, de um “happening, experiência individual.” Hoje,
entendemos, pelo estudo do Body Mind Centering, e também pelas pesquisas da neurociência, que o
sentido vestibular pode ser treinado, e não só o do tímpano, mas até nossas células têm equilíbrio que
podemos exercitar.
65
VIANNA, 1990, p.86. “A vida é a síntese do corpo e o corpo a síntese da vida. Não há qualquer
novidade nessa afirmação desde Isadora Duncan – que permanece mais moderna do que muita coisa que
se faz em dança – descobriu-se, pela sensibilidade, a relação da musculatura humana com os elementos
da natureza.(...)Se tenho consciência de que as folhas, quando se movem com o vento, têm uma relação
com minha musculatura e minha respiração, conduzo cada movimento para minha memória muscular
mais profunda, que , por sua vez, vai me ajudar a gerar gestos mais puros, nascidos da sua ligação com
minha emoção. Isadora ouvia os elementos, sentia-os e conseguia codificá-los e mantê-los presentes em
seu gestual e em seu corpo.”
66
HERRMANN, 2008
67
Idem.
23
em poesia’ é igual [a] uma pista, quando a gente está fazendo algum trabalho ou
improvisando ou tem que ficar investigador, escutando as pistas
68
.
“E o alimento está aqui, olhando ao nosso redor. A gente faz e é devorado! Preciso de
alguém que devore... unanimidade jamais”
69
, diz Dudude a respeito de onde o
improvisador deve se apoiar, e afirma que o que o artista precisa fazer é refinar os
sentidos e transportá-los para a linguagem da dança: “nossa instância, a dos artistas da
dança, é a expressão! Mas o improvisador necessita se instrumentalizar, ou então fica
um improvisador pobre”
70
.
Para Dudude, o improvisador deve ter uma experiência e é através de uma prática de
improvisação que ele vai se fazendo, vai elaborando um glossário, várias linhas de fuga,
desenvolvendo seu próprio conteúdo, seu motivo, no sentido de saber o que o move. O
improvisador vai arquivando um arsenal de códigos corporais para a improvisação, que
serão utilizados no encontro com o outro e com as emergências que aparecem, no
momento da improvisação. Tudo isso mesclado com a vivência e experiência de sua
vida vai fazendo o que Dudude chama de compêndio. A coreógrafa conclui: “o
improvisador deve ter assunto para esse corpo.
71
Deve estar pronto para uma busca e
uma troca incessantes, fazer-se presente e “estar inserido com seus conteúdos no
mundo.
72
Nesses momentos percebemos as sintonias entre Dudude e Lisa Nelson
73
,
que sintoniza pensamentos com o de Dudude: “Eu construo as coisas de acordo com
minha percepção.”
74
68
HERRMANN, 2008. “Meus contos não têm estrutura lógica. Apesar da vigilância constante. Nem dado
movimento. Penso que em um canto de mim nascerá uma planta. Começo a rondá-la, achando que nesse
canto se produziu uma coisa para, mas que poderia ter futuro artístico.” Cf. HERNANDEZ,
2006.
69
Ibidem.
70
HERRMANN, 2008.
71
Ibidem.
72
Ibidem.
73
Lisa Nelson (EUA) é coreógafa, performer de improvisação e videoplasta. Desde o início dos anos 70,
explora o papel dos sentidos na performance e na observação do movimento. Como resultado do seu
trabalho em vídeo e dança nessa década, desenvolveu uma aproximação com a composição espontânea e
a performance, a qual chama Tuning Scores.Lisa Nelson interpreta, ensina e cria peças em todo o mundo,
mantendo paralelamente colaborações de longo prazo com outros artistas, como Steve Paxton, Daniel
Lepkoff, Scoth Smith, a videoartista Cathy Weis, e o Image Lab, colectivo multidisciplinar de
pesquisa/performance. Recebeu o prêmio NY "Bessie" Dance and Performance em 1987 e o Alpert
Award in the Arts em 2002. Durante 30 anos, foi coeditora do Contact Quarterly, uma revista
internacional de Dança e Improvisação, e atualmente vive em Vermont nos Estados Unidos.
www.forumdanca.pt
.
74
NELSON, 2010.
24
Sobre sua relação com Lisa Nelson, Dudude conta:
“Minha relação com Lisa foi e é de afinidades de
trabalho/vida. Desde quando a Tica trouxe para um
intensivo no ‘Nova Dança’ travamos uma relação e fomos
ficando cada vez mais próxima. Seu trabalho se parece
com o meu trabalho. Pensamos coisas, como ela mesma
falou de maneira própria, mas a mesma coisa, e isso só
vem a somar naquilo que pouco a pouco vamos
fisicalizando.”
75
A partir daí é possível sair de um lugar estruturado e, então, extrapolar. Na verdade,
através da prática do improviso busca-se treinamento para manter-se em estado de
consciência, pois é isso que nos foge, e é esse estado que perseguimos durante uma
improvisação. O estado de consciência, como explica Lisa Nelson em suas
investigações de seu próprio estado, é definido como uma atenção. O foco da atenção é
perceber “como nossos corpos tomam decisões para nós”.
76
O improvisador deve
manter uma atenção no seu próprio interesse, com o que ele se sintoniza. A atenção
viabiliza essa escuta interna e externa, e possibilita a escolha, tomar decisões, agir. A
escolha pretende ser dominada pela consciência, mas “a consciência que a gente tem é
desconhecida da gente”,
77
como o próprio Felizberto Hernandez coloca em seu texto,
que Dudude lê e repete em voz alta.
78
Lisa Nelson enfatiza que a atenção exercitada
permite estabelecer uma direção para as coisas: improvisar “é não trabalhar
instintivamente. A atenção é um movimento que me motiva a fazer alguma coisa, é
minha atenção que me conecta com a ação.
79
Para ela a atenção viabiliza as
habilidades básicas inerentes ao improvisador: a memória e a observação.
Lisa Nelson afirma que o sol de nosso conhecimento seria um combinado de disciplina,
observação da própria arte e o exercício da memória. É assim que ela concebe as chaves
para a dança improvisacional. O pensamento de Lisa está sempre em elaboração. “Eu
estou procurando um sistema improvisacional que possa abranger as particularidades
da técnica de coreografia e ainda manter a espontaneidade e, então, idealizo os
75
HERRMANN, 2010
76
Ibidem.
77
HERRMANN, 2008. HERNANDEZ, 2006.
78
HERRMANN, 2008.
79
NELSON, 2010.
25
“tuning scores.”
80
Essa sistematização foi elaborada pela necessidade que o trabalho
em grupo revelou, é uma ferramenta para a comunicação. De maneira alguma Lisa
deseja que isso se torne uma técnica ou método: “eu não quero considerar isso como
um método, quero suscitá-lo sem falar em técnica. São partituras internas que só
quando eu vou improvisar eu me pergunto onde e como eu estou agora. Então, o
Tuning scores são exercícios de observar imaginar e desejar. É um organizador mais
rofundo.
81
o algumas partituras têm conseqüências, elas têm
onseqüências no espaço.
82
ontecendo
entro de mim. Eu construo as coisas de acordo com a minha percepção.”
83
s é instantâneo, é regra básica: o momento de
proviso é compromisso com a rapidez.
p
Para Lisa Nelson Tuning scores seria: uma partitura interna ou várias partituras internas,
e ela vai sendo construída de acordo com as escolhas. “Se algo pega minha atenção eu
percebo que algo em mim sintoniza com aquilo. A dança surge, pois às vezes, eu quero
compartilhar isso. Por iss
c
A observação, para Lisa Nelson, principalmente a observação interna, proporciona a
organização da escolha. Ela dever ser interna porque, pensa Lisa, “não existe nada do
lado de fora. É a minha escolha que faz existir o lado de fora, tudo está ac
d
O improvisar é visto como um lugar de composição e de-composição, lugar em que o
efêmero, característica das artes cênicas, mais aparece e arrisca. O exercício de
desapego de cristalizar os momentos proporciona o estar em movimento, o tempo todo,
de possibilidades e, então, fazer as escolha
im
Em Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino diz que “o cavalo como
emblema da velocidade também mental marca toda a história da literatura,
prenunciando toda a problemática própria de nosso horizonte tecnológico.
84
Na
urgência do improviso, o improvisador encontra-se em estado de alerta. Por isso surge a
metáfora da rapidez de um cavalo - não somente a velocidade física, mas também a
80
NELSON, Lisa. “Compositions, Communication, and the Sense of Imagination”, Apostila de curso
oferecida pela própria Lisa Nelson no Estúdio Nova Dança, São Paulo, 2006.
81
NELSON, 2010.
82
NELSON, 2010.
83
NELSON, 2010.
84
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: lições americanas. São Paulo, 1990, p. 53.
26
velocidade mental, como diz Ítalo Calvino. Na rapidez do estado de alerta que o estar
em cena do intérprete pede, a imagem de estar sempre correndo atrás de distrair a mente
para capturar a dança,
85
como brinca Dudude, exprime bem o exercício intenso de
seleção, de desapego e de pressa para escutar e decidir o caminho a tomar durante uma
provisação.
isação é a arte da memória, é a arte de manufaturar
raft) e de usar a memória.
86
ompondo seu
omentum: e assim se dará a composição de Pedaço de uma Lembrança.
a citadas e com a construção de
xpectativas e possibilidades do que poderá vir a ser.
im
A improvisação necessita de outra habilidade que, para Lisa Nelson, é a memória: “Sim,
a memória, eu acho que improv
(c
Por isso, Dudude diz que o improvisador necessita de um corpo específico
87
, não aquele
da perfeição apolínea ou robusto, mas aquele treinado para o improviso, repleto de
linhas de escape, de escutas e de transformação, de estímulos interiores e exteriores para
conseguir estar presente e atuante no momento da improvisação e pronto para acessar as
Memórias. Esse ocorre através das habilidades de manufatura da memória e de manter-
se em estado de atenção. Percebo que Dudude trabalha essas sintonias, de sua escuta
interna, com o jogo da memória e da observação dos elementos que vão c
m
O terceiro elemento importante na improvisação, ressaltado por Lisa Nelson, é a
imaginação. Para ela, a imaginação passa a ser uma prática do improvisador: “isso é um
padrão bem genético, a gente tem necessidade de prever o que (...) acontecerá a partir
dali. Em dança a gente está sempre curtindo e prevendo o que (...) acontecerá depois.”
88
Essa imaginação se desenvolve a partir da observação - atenção - e da memória
manufaturada do acervo ou compêndio do improvisador. A imagem vai se compondo
um pouco como escuta e sintonia das habilidades acim
e
A improvisação acontece no imaginário do artista e no imaginário do espectador, em
uma composição em constante aparecer e desaparecer. A “tarefa” (task) do
improvisador é ir descobrindo como ele compõe de dentro da obra, como ele atua, na
85
HERRMANN, 2008.
86
NELSON, 2010.
87
Cf. 3º Capítulo
88
NELSON, 2010.
27
recepção de elementos e na devolução ou “reação” própria. Com sua percepção, não só
visual, o improvisador vai refinando e aguçando seus sentidos, provocando um corpo
til, atuante e sensível, repleto de texturas e sensações, que compõem um corpo vivo.
as relações que
outrora se faziam com outros bailarinos em cena, na obra Bola na Área.
su
A procura de uma lembrança vem trazer para a improvisação vários elementos. Isso
pode ser percebido claramente em Pedaço de uma Lembrança. Além de dançar com seu
repertório e códigos da coreografia, Dudude faz o espetáculo surgir da memória
89
, junta
fragmentos guardados no corpo e no lugar da música, das sensações e d
Bola na Área (ao fundo, esq. para a dir.) Clermont; Dudude; Lydia Del Picchia (atrás da Dudude); Pedro
rates; Dorinha Baeta; Bony Maria de Figueiredo;Marilene Martins; Sidmar Estevão;Claudia Prates.
inásio Makenzie, BH, 1977. Autor da foto não identificado. Acervo Dudude Herrmann.
Experimental de Dança Trans-Forma (do qual Dudude fazia parte) os 3 movimentos do
P
G
Em 1976, Graciela Figueroa,
90
bailarina e coreógrafa uruguaia, coreografa para o Grupo
89
E-mail de Dudude, assunto: Re: Pedaço de uma lembrança do dia: domingo, 1 de junho de 2008 17:53:
“Pedaço, tento encontrar estes momentos repletos de fantasmas, para quem viu este trabalho na integra
{Bola na área], falam que conseguem lembrar da dança e ver o que não está mais, na verdade está
inscrito no corpo da memória todo o registro de um aprendizado.
90
A convite de Marilene Martins, diretora do Grupo Trans-Forma de Belo Horizonte, Graciela vem
ministrar aulas no Trans-Forma Centro de Dança. Naquele momento, a bailarina acabava de voltar de
Nova York, depois de uma bolsa concedida pela Fullbright, onde foi integrante da Twyla Tharp Cia. e
Lucas Howing. É notadamente visível a textura do corpo e dos movimentos do trabalho e a influência da
28
Concerto em Mi bemol Maior para Trompete e Orquestra, de Haydn. A coreografia -
Bola na Área - começa a ser composta pelo 3º movimento, com 14 bailarinos, e é
elaborada a partir de vários jogos de improvisação, com o intuito de brincar, jogando
dentro de algumas regras que os próprios jogos criam. O grupo não sabia em quê
exatamente isso iria resultar. Em contrapartida Dudude comenta em entrevista que os
ensaios eram completamente soltos e que “o grupo não sabia o que ia sair dali, dos
vários experimentos, acho que nem ela, Graciela, sabia.
91
Segundo Dudude, no processo de criação do trabalho a música era, às vezes, colocada
em disco em rotação mais lenta. Nesse trabalho o desenvolvimento da movimentação
trazia uma forte influência da coreógrafa Twyla Tharp
92
. Através de um jogo com a
bola o grupo tinha que improvisar com preocupação no jogo e não na dança. Graciela,
então, com o material recolhido dos ensaios coreografa os dois últimos movimentos do
concerto de Haydn, e fica faltando o primeiro. Ao final, a própria Graciela nos conta:
e, no entanto, mesmo novo, tudo ali tinha bases sólidas: o que, aos olhos do público,
parecia improvisação era fruto de horas diárias de ensaios e de rígidas marcações.
93
coreógrafa estadunidense Twyla Tharp, grande investigadora da dança pós-moderna Sobre ela, podemos
citar Nani Rubim: “Figueroa revolucionou a dança no Rio de Janeiro nos anos de 1970 com um vibrante
estilo pessoal e um pensamento coreográfico marcado pela liberdade e originalidade.
91
HERRMANN, 2008.
92
Podemos ver em seu trabalho, Push comes to Shove, com música de Haydn, no qual dança Mikhail
Baryshnikov. Uma similaridade na movimentação nessa coreografia, que mescla a técnica clássica e
alguns pequenos movimentos de desmanches para contrapor a linha normal de conduta dentro dessa
técnica, criando uma brincadeira gestual e provocações jocosas e lúdicas.
93
RUBIN, N. “Graciela Figueiroa: À Margem de Técnicas e Escolas”, in Gesto. Revista do Centro
Coreográfico, nº 3, dez./2003, p. 33. Graciela coreografou primeiramente para o Trans-Forma o Bola Na
Área, depois remontou esse trabalho com seu grupo Coringa.
29
Pedaço de uma Lembrança. Dudude Herrmann. São Paulo, 2008. Fotógrafo: Paulo César Lima
Para o primeiro movimento, em lugar de elaborar-se mais uma coreografia, sugeriu-se o
nome de Dudude para fazer um solo improvisado, como uma alternativa: “então no
primeiro movimento a Dudude dança!. A própria Nena (Marilene Martins), então
diretora e criadora do grupo Trans-Forma, costura vários lenços de seda fazendo um
enorme pano de retalhos, e sugere a Dudude que ela trabalhe com esse objeto.
94
94
Cf. HASELBACH, 1988. É muito recorrente trabalhar improvisação e composição na dança com
elementos. Os exercícios são elaborados através do uso de recursos não só auditivos e espaciais, mas
principalmente de adereços. É muito usual trabalhar composição através de um elemento de extensão do
corpo, assim como um lenço, um bastão, fitas, papéis, principalmente com o trabalho pedagógico com
crianças. Duas maneiras fortes para a composição artística usando a improvisação são: a criação de
imagens e através de metáforas criar recursos no campo da imaginação e o uso de objetos, o que faz com
que o improvisador por minutos esqueça-se do movimento em si de seu corpo e mude o foco para o
movimento e os percursos que objeto faz. Assim pode-se trabalhar logrando êxito com crianças e adultos
que não têm prática ou técnica de dança, que ainda não têm códigos de movimentação e nem repertório.
Então, o lenço passa a provocar o movimento e este sai independente da vontade do dançarino, ele faz
com que o improvisador componha movimentos. Para exercitar a improvisação e a criação, realizam-se
vários exercícios de composição. O uso de objetos como extensão do corpo viabiliza uma dança e é usado
muito como exercício para alunos iniciantes.
30
Pedaço de uma Lembrança. Dudude Herrmann. São Paulo, 2008. Fotógrafo: Paulo César Lima
Dudude acha que naquele momento ela dançava sua juventude. Ela não se lembra do
sentido do pano confeccionado por Nena. E assim passou vários dias, sozinha, em uma
sala do Trans-Forma, ouvindo a música e deitada no chão, e depois dançava livremente.
Ouviu repetidas vezes a música. Deitou-se e deixava seu corpo ressoar com a música.
Deixava também o imaginário, suas imagens surgirem. Desde então, Dudude começa a
trabalhar com o imaginário, resgatando “um sentido saudoso de Isadora Duncan”.
Dudude comenta que aquele exercício possibilitou-lhe trabalhar sempre com imagens:
todo o repertório mágico do imaginário, as transformações disso no corpo e no
movimento começam, então, a fazer parte do que hoje eu percebo como transposição
desses significantes.
95
95
idem
31
Dudude Herrmann. Foto Adriana Moura. Parque Municipal de Belo Horizonte, 1994.
Chega, então, o dia em que Nena e grupo de bailarinos pedem a ela para mostrar o que
havia elaborado e praticado durante aqueles dias. Todos se sentaram para ver o que
Dudude havia trabalhado e ela não tinha como fugir, e dançou!!! Conta que, na hora,
“apareceu uma coisa”... Ainda sem uma instrumentalização composicional, e
posteriormente preocupada com a sedimentação coreográfica, foi estabelecendo pontos:
aqui eu faço isso, ali eu faço aquilo
96
(novamente vê-se o lugar como lugar da
partitura de uma música estruturada e que na sua emissão garante o lugar de algo
repetível).
96
HERRMANN, 2008.
32
Analisando Pedaço de uma lembrança, podemos perceber como esses dois elementos -
objeto e música - servem, aqui, de elementos de estrutura para a composição
improvisacional. O pano
97
sugere essa extensão, traz uma textura e movimentos. Para
estruturar a improvisação original, Dudude se trancara na enorme sala do Colégio
Arnaldo, onde funcionava o Trans-Forma, e ficara durante alguns dias preparando seu
trabalho para depois mostrá-lo. Dudude conta que ficava deitada, ouvindo a música.
Hoje ela diz que conhecia todos os meandros da música e esta passa a ser o lugar: “a
vestimenta deste trabalho é a música.
98
Hoje a coreógrafa Dudude diz que faz questão
de pontuar e trazer a música para ser parceira: “antes eu a seguia, hoje eu [a] visto.
99
Pedaço de uma Lembrança. Dudude Herrmann. São Paulo, 2008. Fotógrafo: Paulo César Lima
97
Em vários de seus trabalhos, Loie Füller, que foi inclusive professora e parceira de Isadora Duncan,
trabalha com tecidos enormes, e ela mesma vai sugerir que com o tecido e o jogo de luzes ela poderia
esculpir o espaço. As danças folclóricas ou populares de mulheres usam o tecido como forma de sedução.
98
HERRMANN, 2008. Influenciados pelo trabalho de Rolf a Escola de Dança Moderna Marilene
Martins trabalha muito com improvisação dentro de sala de aula. Dudude tem aulas com o professor Rolf
Gelewski e estudou a improvisação que partia, na maioria das vezes, das frases melódicas construindo
assim recursos e espaços para a dança improvisacional.
99
Ibidem.
33
Dudude compreende que na dança moderna não entravam ainda questões que hoje
emergem como urgentes, como a colocação do artista no espaço, não só o da cena, mas
dentro de um contexto maior de estudo e entendimento do homem contemporâneo e
seus problemas no mundo, como o pensamento filosófico, com a ecologia, com a vida
no planeta. Então, lidava-se com a improvisação em um contexto de prática em um
trabalho de refinamento dos sentidos. Trabalhava-se com ela, mas sem nomeá-la. Era
tudo muito intuitivo, sem perceber todo o potencial, sem nomeá-la. É comum uma
imagem em que o improvisador é visto como aquele que está o tempo todo “salvando”,
como um bombeiro apagando fogo. Dudude acredita que hoje a improvisação foi
descobrindo “o seu poder (...) enquanto arte de imagens, (...) foi criando realmente um
código. Hoje [há] exercícios que são óbvios para a improvisação. Aquecimento
(enriquecimento) da percepção dos sentidos. A gente lida com a improvisação com os
sentidos.
100
.”
Recentemente, Dudude já havia dançado de novo o primeiro movimento da mesma
obra, que na coreografia de Graciela Figueroa era o lugar da improvisação solo. A esta
retomada Dudude dá o nome de Pedaço de uma Lembrança. Trabalhando com a
memória corporal de uma partitura e um tempo jovem instaurado no corpo, improvisa,
novamente, este primeiro movimento, em homenagem a Marilene Martins. No
Programa de “Pedaço de uma Lembrança” lê-se o seguinte texto:
“Releitura de um trabalho coreográfico de Graciela
Figueroa para o Grupo Trans-Forma, em 1976,“Pedaço
de uma Lembrança” homenageia Marilene Martins. Tem
sua estréia em outubro de 2004 no Festival 1,2 na dança
em Belo Horizonte. Apoiada na memória do Grupo Trans-
Forma nos idos anos 70, Dudude Herrmann revisita esse
lugar da lembrança com o corpo de hoje, admitindo o
registro guardado neste corpo impregnado e construído
através da memória. Uma aventura fascinante aos olhos
da artista – escutar os ecos da atemporalidade de um
determinado momento.”
Em uma de suas turnês, Dudude se vê forçada a uma substituição: com uma
apresentação de Maria de Lourdes em Tríade agendada (em 2006) para Goiânia, e
partindo de Montes Claros, cidade no interior de Minas Gerais, Dudude esquece o
100
Ibidem.
34
cenário e os adereços em Belo Horizonte. Como quem guarda cartas na manga, decide
então dançar Bola na Área em sua íntegra. Em Goiânia, faz uma improvisação livre
extraída de Bola na Área, trabalhando os fantasmas com memória de coreografia
101
nos
movimentos seguintes do concerto de Haydn (2º e 3º) com o apoio da memória. Dudude
executa estes dois últimos movimentos tentando colocar alguns pontos fortes que vão
dando linha para a construção de um todo, rememora lugares no espaço e contracena
com pessoas que não existem mais ao seu lado. Presentifica aquela obra, refazendo os
passos coreográficos, em um ambiente nostálgico, em que ela dança, sozinha, o que era
em grupo, e retoma seu momento de improvisação em seu solo. Nesse trabalho
podemos ver, não só seu momento atual de composição, como também o improvisador
vivo que busca novos lugares de improvisação. Entra aí de novo não só a memória que
usamos para dar cor e intensidade para a improvisação, mas uma memória do próprio
lugar coreográfico onde todo o grupo atuava.
Pedaço de Uma Lembrança – Dudude Herrmann. Brasília, 2008. Foto Célio Dutra.
101
Ibidem.
35
Assim, Pedaço de uma Lembrança ganha uma amplitude maior a partir da improvisação
realizada em Goiânia, e continua sendo apresentado, fazendo agora parte do repertório
de Dudude.
Quase 30 anos depois, a retomada de um fragmento de uma lembrança valoriza a
importância daquele processo letárgico, de ficar dias e dias deitada, ouvindo a música.
Processo que fez instalar na memória do corpo e da imagem, a sensação, mesmo depois
de um tempo adormecida, ou um corpo amortecido, como prefere dizer Dudude, da
importância do processo:
Então, eu fiquei 30 anos amortecida, mas a memória está
lá impressa nas células, nos líquidos, na água do corpo.
Olha só que coisa! Aí eu ficava lá, né, escutando a
música, e o tempo passava, e perguntavam como é que
estava indo a dança e eu respondia: está indo ótima!
102
Pedaço de Uma Lembrança – Dudude Herrmann. São Paulo, 2005. Foto Silvia Machado.
No encontro com Katie Duck
103
no Festival de Improvisação na Holanda, em 1996,
Dudude “começa a perceber que a improvisação pode ser tratada como linguagem de
arte, ela redescobre a improvisação como um lugar de expressão e estudo e ela
102
Ibidem.
103
Dudude conheceu Katie Duck, dançarina e professora de dança improvisacional, no Festival de
Improvisação na Holanda, em 1997. E-mail de Dudude, segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010 12:37:
“Com Katie Duck fiz Worsophs intensivos, e também a convidei para ministrar aulas de Improvisação em
2 Festivais de [Inverno da UFMG] 1996 e 1997. (...)Com Katie reconheço uma profissional para troca de
experiências. Estudei com ela profundamente improvisação e tivemos tanto eu, como Tica, um encontro
muito forte, tanto no Festival , como em Asmsterdã e compartilho das ideias que ela desenvolve, como
Lisa Nelson, Daniel Lepkoff , Pascal Queneau.”.
36
reconhece que teria sido sempre uma improvisadora.”
104
No encontro havia espetáculos
que começavam às 20:00 e acabavam à 1:00 da manhã, nos quais vários dançarinos
eram convidados e as regras eram combinações simples, como uma vestimenta. Mas
também discutia-se a política do corpo, do espaço, e várias questões eram colocadas.
São essas questões também que, impressas no corpo, são transportadas pelo dançarino
para a improvisação. Existe toda uma preparação do corpo e, pode-se dizer, do assunto.
Dudude esteve nesse Festival com o intuito de convidar Katie Duck para o Festival de
Inverno da UFMG. Em Julho de 1998 Katie Duck foi convidada por Giovane Aguiar
para dar aulas no Festival Internacional de Nova Dança em Brasília, outra oportunidade
para que Dudude pudesse adentrar cada vez mais no universo da improvisação.
Katie Duck trabalha desde os anos 60 basicamente com improvisação. Mudou-se dos
EUA para a Holanda e desde então nunca parou de estudar. Ela trabalha na elaboração
de uma estratégia que lida com entradas e saídas. É como uma pré-técnica que
predispõe o improvisador. Observar a tendência, o entorno, o processo e traçar
estratégias para começar fisicamente a preparação. Ficar “acordada”, em estado de
alerta e disponível para a dança. Preparar e instrumentalizar o corpo antes de fazer uma
técnica formal.
Dudude se aproximou do trabalho de Katie em Amsterdã na Holanda. Para a estrutura
de elaboração do espetáculo desse festival Dudude comenta: “combinávamos às vezes
somente o traje: traje de banho, por exemplo. Era muito interessante.
105
Posteriormente Dudude convidou Katie duas vezes para participar como professora na
área de dança do Festival de Inverno da UFMG
106
. Ela é uma forte referência com quem
Dudude pode dialogar e reforçar seu lugar de improvisadora.
Muito bom! Foi uma pessoa importante para mim para
dar, referenciar esta linguagem. Essa linguagem é
poderosa e é uma linguagem de dança. E aí eu fui neste
104
Parágrafo redigido a quatro mãos por e-mail entre Dudude e eu. 27 abril de 2010.
105
Ibidem.
106
Ibidem.
37
tempo me descobrindo, ah! que eu sou uma
improvisadora, sempre foi, e que eu não sabia, pois isso
quer um PEDAÇO DE UMA LEMBRANÇA, porque
naquela época eu estava em processo de entendimento na
improvisação, mas eu não tinha referências de que aquilo
já era improvisação. Depois da maturidade vivenciada e
adquirida, hoje eu posso brincar com esses lugares
óbvios. Hoje eu tenho a instrumentação. Nada como o
tempo, tempo de maturação.
107
Em suma, o encontro em Amsterdã traz para Dudude uma referência, ou dá nome ao
que ela já fazia e praticava. Foi como encontrar seu grupo, outras pessoas que
comungavam da mesma prática do corpo e de pensamento, dando-lhe referência e ponto
de apoio no âmbito internacional da arte contemporânea. Naquela época ela estava em
processo de entendimento da improvisação, mas não tinha referências para saber que
aquilo que fazia já era algo instituído. Por isso voltou ao Brasil tão fortalecida nessa
linguagem e se permitiu praticar sem receio, atribuindo-se, enfim, um nome:
improvisadora. Então, vários exercícios coreográficos nascem nesse momento: O Jantar
(uma tentativa de improvisação não compreendida), Armário, Na Planície, logo
montanha, aparece o mar..., Sem, Como habitar uma paisagem sonora, e
principalmente o trabalho a escrita do movimento no espaço de fora, que será abordado
no último capítulo.
Dudude conheceu Katie Duck
“através de Tica Lemos tanto eu como Tica estávamos
interessadas em trazermos seu trabalho para o Brasil,
aproveitamos a oportunidade do Festival de Inverno da
UFMG convidando por dois anos consecutivos para
ministrar oficina, o que foi maravilhoso, inúmeros
profissionais de BH tiveram contato com seu modo de
trabalho com a Improvisação [como] Sergio
Marrara[Pena], Ana Virginia [Guimarães], Margô Assis,
Luciana Gontijo, Arnaldo Alvarenga, entre vários outros,
tiveram contato com esta mestra da improvisação, eu me
sinto influenciada pelo seu trabalho profundamente. Ela
foi uma pessoa que abriu este lugar de reconhecer na
improvisação uma maneira viva de atuação [que] eu já
fazia, mas desconsiderava a possibilidade de trazer como
107
Ibidem.
38
produto final de um espetáculo esta linguagem. Katie
modificou minha maneira de pensar sobre e assim
fortaleceu em meu trabalho neste lugar.”
108
Ela se redescobre improvisadora no encontro com Katie Duck e encontra afinidades no
Brasil, vários outros pesquisadores que passam a ser parceiros de trabalho. Atualmente,
através de um resgate de sua própria memória, daquilo impresso em seu corpo, em sua
memória afetiva, e na imaginação, vemos uma retomada de caminho. Por isso Pedaço
de uma lembrança pontua muito bem esse resgate. Verdadeira recomposição de um
trabalho já realizado traz à tona as impressões e torna vivo o trabalho realizado anos
atrás.
A descoberta dessa linguagem, uma linguagem que para Dudude é poderosa, foi
importante, pois pode ser considerada como um fim, como espetáculo e não apenas
como um meio. Hoje, acredita a coreógrafa que “depois da maturidade vivenciada e
adquirida, posso brincar com esses lugares óbvios. Hoje tenho a
instrumentalização.
109
De que trata essa instrumentalização? Talvez seja a técnica de
improviso modo composicional, que vem sendo utilizado como espetáculo-fim. Usar da
memória, refinar a atenção, abrir as escutas e tomar decisões.
Olhando retrospectivamente, pode-se dizer que, com a estrutura e objetivo que propôs
aos seus alunos, a Escola de Marilene Martins, destacando-se no incentivo da
improvisação dos professores, a própria Nena, Klauss Vianna , Rolf Gelewski e José
Adolfo Moura, dos mesmos idos anos 60-70, foi de certa forma afinada e
contemporânea de todo o movimento da contracultura e lugar de resistência e herança
de Mary Wigman
110
, Laban e dos artistas da Ação nos EUA. Agora todo ensinamento
explode em uma compreensão na própria Dudude do que foi semeado em sua formação.
A improvisação, tal qual Dudude a trabalha, vem de um trabalho que tem uma estrutura,
um suporte. Ainda que se diga que é solto demais, ou que não tem estudo, são só as
aparências do modo despojado de se apresentar: quando nos aproximamos, entendemos
108
E-mail de Dudude Herrmann dia 11 de setembro de 2008 15:54, assunto: Entrevista programada 30 de
agosto de 2008
109
Ibidem.
110
SCHAFFNER, p.60
39
todo o suporte e a base da composição improvisacional. Atualmente tem como seus
parceiros nessa investigação alguns coreógrafos e improvisadores. Entre eles podemos
citar Giovane Aguiar, de Brasília, e Tica Lemos
111
, fundadora do Estúdio Nova Dança,
de São Paulo.
Dudude coordenou de 2007 a 2008 o Momentum, um projeto dedicado à dança
improvisacional dentro do programa Arte Expandida, da Prefeitura de Belo Horizonte,
sob coordenação de Luiz Carlos Garrocho, então diretor dos Teatros Municipais de Belo
Horizonte. Nesse projeto Dudude pode exercer a experimentação e trabalhar o modo
improvisacional como composição, convidando bailarinos e coreógrafos para participar.
Fez-se assim um lugar multiplicador, abrindo para esses profissionais um contato com
esse modo de fazer instantâneo, e de certa forma contaminando-os.
Para Garrocho, Diretor dos Teatros da Fundação Municipal de Cultura, o momentum faz
parte de um projeto maior que é o Arte Expandida, no qual “a composição no instante
(instant composition) (...) valoriza os próprios fazedores da área da dança, (...), em
total consonância com a linha de ação Arte Expandida, que investe na autonomia dos
artistas, sejam atores, bailarinos ou performances.”
112
Para Dudude, curadora do Momentum, Momentum de dança improvisacional,
composição no instante: a proposta “é um exercício pleno de desapego, em que
improvisação, dança e composição, estão o tempo todo se fazendo e desfazendo, em um
constante devir de mudanças.”
111
Tica Lemos estudou com Steve Paxton e trouxe na década de 90 o contato improvisação para o Brasil,
dando seu primeiro curso sobre o tema dentro da programação da Mostra de Dança do Corpo Escola de
Dança em 1990.
112
Programa Momentum, Momentum, De Dança Improvisacional, Composição no Instante. 2ª edição,
Setembro de 2007. Prefeitura de Belo Horizonte. Projeto Arte Expandida coordenado pelo Diretor dos
Teatros Luiz Carlos Garrocho da Fundação Municipal de Cultura de 2006 a 2008 e curadoria de Dudude
Herrmann.
40
Capa do programa Momentum da Fundação Municipal de Cultura.
Dudude explica, no programa, logo abaixo da palavra momentum que é “momentum de
dança improvisacional e já explica que é uma composição no instante. Na escrita desse
programa compreende-se que improvisação é um composição e sua característica é de
se estar em um tempo, em um instante. Lisa Nelson também prefere, atualmente, usar
mais a combinação de composição no instante do que usar a palavra improvisação,
tamanha a significação que esta palavra carrega.
É muito recente a consideração da improvisação como modo de composição final de um
espetáculo
113
. Trata-se certamente de uma linguagem de riscos, com surpresas
inusitadas, praticada no mundo da dança atual. Dudude em entrevista comenta: “É muito
novo tudo isso no Brasil.
114
Podemos considerar o momento político diverso daquele
da contracultura dos anos 60. Decorrente daquele movimento, o mais importante da
Nova Dança era o corpo em expansão, isto é a relação do corpo com as coisas, com o
espaço, seu contato com o outro corpo, com o imaginário fazendo então este movimento
“real” ou a busca do movimento nu. Hoje e aqui no Brasil, as questões são de outra
ordem, como comenta Dudude: “alguns artistas estão na carona da moda e do
comércio.
115
113
HERRMANN, 2008. O improvisador é aquele que pode se aventurar pelo Momento. É recente esse
lugar da improvisação.
114
HERRMANN, 2008
115
Ibidem.
41
Concluindo, podemos dizer, o improvisador tem, então, seu próprio repertório impresso
em um corpo trabalhado e detentor de um domínio de elementos de composição. Para
Dudude, enquanto compõe, o artista desloca imagens, retira as fronteiras, fica em estado
de escuta, faz da improvisação o lugar para se estar presente, em intensidades: só
sobrevive em um lugar fértil e elege uma estrutura, que por sua vezé a vida que
possibilita
116
. O treino do improvisador na esperteza das escolhas, em um momentum,
para “melhor utilização da energia volitiva/e afetiva para a realização de alguma coisa
no instante mais propício.
117
116
STEWART, 2009.
117
E-mail de João Henrique Rettore Tótaro, 2008.
42
2º Capítulo:
O movimento no estado (ou Estado) nu – A desaparição
Obra: Sem, um colóquio sobre a falta.
Tema: A desaparição como elemento da improvisação. A entrada da desaparição como
elemento de composição na cena, enfocando a efemeridade da dança, e como elemento
que traz o vazio que ocupa ou a ocupação do vazio. A desaparição como política do
desaparecimento.
... Mas tudo deixa rastro, nada é tão bem apagado que
alguma coisa da memória não possa subsistir...
118
O espetáculo Sem, um colóquio sobre a falta
119
marca a ponte, o ritual de passagem
entre o desaparecimento da Benvinda Cia. de Dança e o surgimento de uma nova forma
de trabalho com parceiros. Por isso nada melhor do que a improvisação ter sido
escolhida para o modo de composição dessa obra, uma vez que os criadores passam a
ter voz e individualidade. A desaparição como elemento de improvisação, elemento
essencial para o que se estrutura no efêmero, passa a atuar como característica política
de Dudude Herrmann de sua escolha de forma de trabalho e de atuar na obra e no
mercado. A não formação de grupo, companhia ou coletivo, e sim encontro com o
outro, todos se absorvendo e desaparecendo no propósito de estar ali, vem proporcionar
118
MALINA, Judith, 1926. Diário de Judith Malina – Texto: STARLING, 2008. O Living Theatre
em Minas Gerais/Heloisa Maria Mugel Starling, Adyr Assumpção. Belo Horizonte: Arquivo Público
Mineiro, 2008, p.6.
119
Obra com estréia em setembro de 2006 no Espaço Cultural CPFL,Campinas – SP. Fotos Guto Muniz.
43
importância maior ao que está se fazendo e desfazendo, nesse instante, e pede a não
hierarquização.
Neste capítulo abordaremos o modo de composição improvisacional, suas questões
históricas e políticas na dança, a influência da dança estadunidense, desde as idéias de
Isadora Duncan no início do Século XX, na trajetória da composição coreográfica de
Dudude Herrmann na Benvinda Cia de Dança, através da análise detalhada do trabalho
Sem, um colóquio sobre a falta.
Como o século XX foi marcado por guerras, rupturas e mudanças de comportamentos
sociais, multiplicaram-se, entre os ideais de uma vida modificada, projetos e
experimentos de organização em comunidades. Na arte, desde as ideias de amor livre
adotadas por Isadora, passando pelos futuristas e dadaístas nos anos 20 e pela geração
do idealismo antiestablishment dos anos 60, podemos ver a dança, inserida e atuante,
nessa procura pela mudança. Os dançarinos foram influenciados por todo o movimento
anterior à segunda metade do século XX. Recentemente, os dançarinos também foram
provocados pelas idéias oriundas da Escola Alemã e pelas interferências de Merce
Cunnigham
120
, que foi o responsável por preparar um solo fértil, um campo para a
ruptura, até mesmo para além de suas próprias propostas e ideias, criando condições
para a Nova Dança
121
, para a dança experimental
122
estadunidense. Seus princípios (dos
quais podemos destacar: ausência de narrativa; qualquer movimento pode ser material
para a dança; obras realizadas por “acidentes” ou ao acaso; observação do movimento
cotidiano) foram mantidos, sendo que a ausência de um coreógrafo, a conseqüente
busca de um consenso, e a ideia de que qualquer um pode dançar foram propostas
levadas ao extremo pela Nova Dança.
A Nova Dança (estadunidense
123
), proposta pela geração dos anos 60, preocupava-se
com a instauração de uma nova tradição, questionando o modelo sociopolítico e
120
BANES, 1980, p.208. p. 6
121
Escolhi a grafia sugerida por Giovane Aguiar:Se escreve Nova Dança, é a tradução de New Dance.”
E-mail: terça-feira, 15 de setembro de 2009 08:49.
122
ORNELLAS, 2006, p. 55.
123
SHAFFNER, p.28. A Escola de Dança Alemã também chamou a dança de Laban e de Wigman de
Nova Dança. “(...)Nos anos seguintes, em turnês na Alemanha e nos Estados Unidos, Wigman torna-se
por vinte anos a mais proeminente representante da nova dança.” E essa dança é estruturada. “Jooss
sistematizou a didática de uma nova dança dentro do seu trabalho coreográfico-pedagógico num esforço
44
trazendo propostas de mudanças estruturais para o convívio na sociedade, ao mesmo
tempo em que buscava um “corpo político”, na dança e na vida: “A ‘tradição do novo’
demanda que todo dançarino seja um coreógrafo em potencial”.
124
Sally Banes fala desse “corpo político” em seu livro Greenwich Village 1963
125
, de
uma democracia participativa, tentando valorizar o consenso; da criação de uma
comunidade alternativa; do conteúdo político das obras, que incluía o “espectador numa
poderosa sensação de envolvimento direto; de uma estrutura coletiva em que se
organizavam os artistas e na qual se produziam as obras nas quais a improvisação como
modo de composição expressava uma busca de “liberdade”.
Os artistas envolvidos optaram por decidir as coisas em coletividade. Diferentemente
do voto democrático, as decisões somente eram tomadas depois de haver um consenso
geral, isto é, todos deviam concordar com a decisão, e os argumentos eram
apresentados. Não havia somente votos contra ou a favor de uma medida. Isso tomava
muito tempo até que se chegasse a uma conclusão. A decisão era mais consensual e
coletiva, e garantia sua legitimidade pela aprovação de todos. Como conta a bailarina
Ruth Emerson
126
: “tinha a convicção de que um consenso era melhor do que um voto
democrático. (De outro modo), a maioria sempre acabaria com alguma minoria.
Torna-se claro um radicalismo político nessa noção de coletividade
127
, sabendo-se de
uma realidade utópica em que mora o consenso, e o esforço de passar que “a imagem é
de uma séria e até heróica coletividade igualitária.
128
Para ilustrar essa imagem, tentativa de coletividade e não hierarquia, o trabalho de
Ivonne Rainer “We Shall Run
129
seria um excelente exemplo de como colocar em
prática um discurso. Em sua descrição Sally Banes reforça a participação de bailarinos e
de chegar às claras formas de representação, como também a uma fundamentação duradoura da dança
moderna.”
124
BANES, 1980, p.5. “The ‘tradition of the new’ demands that every dancer be a potencial
choreographer.” Tradução Adelaine Laguardia Resende. O termo ‘tradition of the new’ foi usado pelo
crítico Harold Rosenberg para descrever as aspirações da vanguarda da arte moderna.
125
BANES, 1999, p.59.
126
In BANES, 1999, p. 97. Ruth Emerson, bailarina que estudou com Ann Halprin, Martha Graham,
Merce Cunnigham. Estudou também Matemática e trabalhava na organização antinuclear American
Friends Service Comitee e com a General Strike for Peace.
127
BANES, 1999, p.92. Havia efetivamente um gosto de leninismo nessa noção de coletividade.
128
Ibidem, p. 54.
129
Cf. ibidem, p. 53.
45
não-bailarinos que correm pelo cenário, com roupas cotidianas, e a cada momento uma
pessoa diferente está à frente do grupo, fazendo assim um revezamento de liderança. Na
própria obra pode-se ver o discurso político da estrutura coletiva.
A improvisação vem sendo usada como recurso de espetáculo e se confunde com a
história da performance no séc XX, como aponta RoseLee Goldberg
130
. A improvisação
lida com o risco e por isso em sua essência é anárquica, traz com ela o que os futuristas
denominam de simultaneidade, fator primordial para que eles construíssem suas cenas,
nas quais havia presença da intuição velocíssima, e das realidades que interferem e
sugerem novas cenas e transformam o próprio acontecimento em um momento
revelador.
Ann Halprin usava a improvisação, estudava também cinesiologia e anatomia e tinha
como professora Margaret H’Doubler
131
na University of Wisconsin, isso por volta dos
anos 1940. Para Ann Halprin, usar da improvisação como exercício contribui para
exercitar as descobertas das possibilidades de nossos corpos, do que eles podem fazer,
ao invés de estudar modelos de terceiros
132
. Além disso, comenta Raquel Ornellas
133
,
Halprin entendia que a linguagem da improvisação era como um recurso para se
expandir a área de movimentos e não codificá-los num vocabulário específico. Halprin
usava da improvisação, através de tarefas (tasks) ou exercícios motivando diferentes
ritmos, dinâmicas, texturas, como, por exemplo, movimentos lentos ou sequências de
repetições de movimentos.
A coreógrafa Halprin influenciou diretamente bailarinos como Simone Forti
134
, também
da nova dança, e podemos ver suas idéias até mesmo na estrutura do contato
130
GOLDBERG, 2006, prefácio, p.IX
131
ORNELLAS, 2006, p.57. Margaret H’Doubler: Pesquisadora e pedagoga: estudava a arte com a
ciência e estava interessada em como o corpo pode reagir a mudanças estruturais da posição do corpo e
como ele poderia gerar uma criatividade própria.
132
GOLDBERG, 2006, p.130
133
ORNELLAS, 2006, p.57
134
Cf. BANES, 1980, p.8. Para Dudude sua relação com Simone Forti é muito grande e ela tem um
diálogo de trabalho muito aproximado em pensamentos, mas nunca fez curso com ela: “Esta é uma
pessoa que não conheço, mas nutro um enorme desejo por seu trabalho, li coisas dela, a vi em trabalhos
de vídeo e logo me apaixonei pela maneira como ela aborda a questão do movimento e me senti uma
irmã sulamericana.” E-mail de quinta-feira, 11 de setembro de 2008 15:54. Assunto: Entrevista
programada. Entrevista guiada n°01/2008
46
improvisação
135
. As bailarinas Simone Forti e Yvonne Rainner foram suas alunas na
Califórnia.
Ann Halprin “implorava para que tudo fosse colocado em esquemas gráficos e fazendo
associações livres
136
. Ela trabalhava com a imagem, com trabalhos de alinhamento
do corpo, alterações de estados de consciência e com processos criativos, dando ênfase
à improvisação. Incorporava em suas aulas informações de aspectos terapêuticos
valorizando a percepção sinestésica
137
. Através da linguagem da improvisação ela
investigava a participação da platéia, em um desejo de incluir o público na performance.
Esclarecendo o processo de trabalho, tornando-o visível, ela aproximava o público da
possibilidade de uma participação ativa e efetiva.
Em Nova York, dois lugares que se destacaram para tantos encontros de artistas de
diversas áreas, como músicos, artistas plásticos, performers, pintores, poetas,
dançarinos, foram o espaço do Living Theatre e o estúdio de Cunnigham, onde se
faziam happenings, coreografias e performances
138
. Os dois ficavam no mesmo edifício,
na rua 14 com 6ª Avenida.
Na metade da década de 1950 o coreógrafo e designer James Waring também influencia
essa nova geração com o deslocamento e a descentralização do espaço. Seu método era
baseado na intuição, colagens, estruturas desconectadas. Ele abandonava a narrativa e a
estrutura dramática e criava atmosferas. James Waring
139
propõe seu método baseado
mais na intuição do que no acaso.
135
Cf. ORNELLAS, 2006, p.57.
136
GOLDBERG, 2006, p.130
137
Cf. ORNELLAS, 2006, p.57
138
Cf. BANES, 1980, p.209.
139
Cf. BANES, 1980. Waring, James (b Alameda, Calif., 1 Nov. 1922, d New York, 2 Dec. 1975). US
dancer, choreographer, and teacher. He studied in San Francisco, at the School of American Ballet, and
with Vilzak, Tudor, Cunningham, Halprin, and Horst. He created his first work in 1946 at the Halprin-
Lathrop Studio Theater, San Francisco, and in 1951 was co-founder of a choreographers' co-operative
called Dance Associates in New York. From 1954 to 1969 he presented annual concerts with his own
company. Considered one of dance's great eccentrics, his style was characterized by strikingly individual
qualities of wit, musicality, and fantasy. He created over 135 works both for his own and other
companies, including Netherlands Dance Theatre and Manhattan Festival Ballet. These include Dances
before the Wall (mus. Schubert, Cage, Satie, and many others, 1958), Variations on a Landscape (mus.
Schoenberg, 1971), and Sinfonia semplice (mus. Mozart, 1975). He was artistic director of New England
Dinosaur (1974-5).
47
O coreógrafo Merce Cunnigham, que muitas vezes trabalhou em parceria com o
compositor John Cage, por volta dos anos 1950, começava a introduzir elementos
aleatórios e indeterminantes no processo, como o pensamento e risco, com o objetivo de
se chegar a uma nova prática de dança. Nessa abertura para a escuta do entorno como
elemento agregador e modificador do processo de composição, a improvisação vai
tomando força, e os discípulos de Cunnigham, já então inquietos, trabalhavam no
sentido de tornar essa escuta totalmente sensorial, buscando não só abrir a escuta para
todo o entorno como também começando um contato maior com o outro, em todos os
sentidos sensoriais, priorizando a pele e o corpo, priorizando o movimento sem estar
submisso a qualquer outra coisa, e na relação entre os improvisadores, de forma não
hierarquizada.
James Waring, como John Cage e o próprio Merce Cunnigham, possibilitaram aos
pesquisadores da dança, bailarinos e coreógrafos várias rupturas com a dança formal
clássica e moderna. É importante lembrar que a estrutura da improvisação em dança de
que tratamos trabalha com a forma que não se prende à narrativa.
Nos EUA a improvisação começa a se estabelecer como técnica de composição desde
os anos 60. Em um constante exercício de improviso, com desejos de desenvolver um
vocabulário, que possa firmar a estrutura e de certa forma dar corpo à própria
improvisação, ela foi disseminada e exercitada por vários coreógrafos e bailarinos. Não
só como jogo
140
de experimentação, mas também como obra, e apresentada em praças e
ruas. A Nova Dança começa em Nova York com os trabalhos de Simone Forti e de
Yvonne Rainner, por exemplo.
140
“Jogo”, neste trabalho, é a tradução que adotei para o termo “play” em inglês. Porém, não quero
traduzir aqui a palavra derivada “players” por “jogadores”, pois daria a conotação de concorrência, de um
vencedor, passando assim, sem dúvida, a uma necessidade de disputa entre os dançarinos, o que
provavelmente nos levaria à narrativa. A improvisação difere da forma da narrativa na medida em que,
mesmo não acontecendo aleatoriamente, e sim dentro de uma estrutura, como veremos no capítulo 3, ela
não obedece a regras pré-determinadas, sendo por natureza aberta, estando mais próxima assim da
brincadeira. A brincadeira também tem uma estrutura, mas não tem juiz nem bandeirinha, nem pontos,
nem votação de público. Estão todos dentro da brincadeira e são conhecedores do modo de brincar,
expressando e lidando com os desejos individuais: os participantes cedem, permitem, doam, e assim a
brincadeira é uma comunhão (por isso a brincadeira se interrompe quando ocorre um conflito insolúvel
entre os desejos dos participantes). No jogo da improvisação, assim como na brincadeira, os participantes
têm inclusive a
capacidade de resolver, sem palavras, que a improvisação chegou ao fim. Neste trabalho,
portanto, devido às limitações da própria língua portuguesa, traduzi “play” por “jogo”, mas dando a essa
palavra expressamente a conotação mais próxima de “brincadeira”, e é somente nesse sentido bem
determinado que a aplico quando, por exemplo, me refiro ao “jogo da improvisação”.
48
Lisa Nelson e Daniell Lepkoff estiveram em Belo Horizonte em fevereiro de 2010 para
participar da inauguração do Atelier de Dudude Herrmann, em Casa Branca, onde Lisa
me recebeu para uma entrevista. Daniel Lepkoff ofereceu uma oficina aberta e eles
fizeram duas performances com outros bailarinos, Beth Bastos (Br), Tom Rezende (Br),
e Sakura (Japão) que carinhosamente Lisa nomeou de Small Group.
Lisa Nelson comenta:
muitas das improvisações, naquela época, eram vistas
como chatas, mas com momentos muito interessantes. E
era muito excitante quando algo aparecia depois de muita
coisa chata. Eu sabia que ali estava se criando alguma
coisa muito inovadora, naquele contexto de improvisação
o que importava era o processo. Mas eu sabia que aquilo
que estava nascendo ali poderia se tornar em alguma
coisa muito interessante. Cada um era responsável pelo
resultado, cada dançarino era um diretor.
141
Os exercícios com objetivo de exercitar a improvisação foram sendo criados. Um
objetivo maior é o de perseguir um estado de presença. Esse estado de presença
aguçando os sentidos e a observação, em um movimento, influenciado pela Gestalt,
organiza o que se vê, mas também por preparações espirituais com objetivos de
141
NELSON, 2010.
49
concentração e de meditação. Poder-se-ia dizer que a partir desse estado é que muitas
das técnicas das danças contemporâneas têm sua origem.
O estudo do “estado de presença” promove um silêncio do corpo, e promove o
entendimento do espaço externo e do espaço interno, isto é, cada um com seu próprio
corpo, descobrindo seus limites e suas possibilidades, em um estado “vivo”.
A presença para esse estado, então, desenvolve e se faz mais forte. A improvisação,
como técnica, traz o corpo em estado presente: na busca de realização de um tempo em
um corpo, em que este atravessa surpresas e linhas de tensão, jogo de planos e de
escuta, movimentos para o espaço e para o silêncio, que o dançarino persegue e com
que brinca durante a apresentação. Começa-se o que conhecemos hoje como Nova
Dança.
Os experimentos e aventuras do Judson Dance Theater e
suas ramificações estabeleceram as bases para a estética
pós-moderna na dança que se expandiu e frequentemente
desafiou a série de propósitos, materiais, motivações,
estruturas e estilos de dança. É uma estética que continua
a informar grande parte do trabalho interessante com a
dança hoje em dia.”
142
A improvisação traz o corpo em estado presente, pensamento e ação, tudo ao mesmo
tempo. A ocupação do espaço se faz com este momento, instante infinito, que o artista
da cena ou da ação conhece muito bem - “the fleeting moment”:
Você deve gostar da dança para aderir a ela. Ela não te
dará nada em troca, nenhum manuscrito para armazenar,
nenhuma pintura para mostrar em paredes e talvez pregar
em museus, nenhum poema para ser impresso e vendido,
nada além do simples momento infinito quando você se
sente vivo. Isso não é para almas instáveis.”
143
142
BANES, 1980, p.15. Tradução Adelaine La Guardia Resende: "The experiments and adventures of the
Judson Dance Theater and its off-shoots laid a groundwork for a post-modern aesthetic in dance that
expanded and often challenged the range of purpose, materials, motivations, structures, and styles in
dance. It is an aesthetic that continues to inform the most interesting work dance today.”
143
Página web de Merce Cunnigham: http://www.merce.org/. “You have to love dancing to stick to it.
It gives you nothing back, no manuscripts to store away, no paintings to show on walls and
maybe hang in museums, no poems to be printed and sold, nothing but that single fleeting
moment when you feel alive. It is not for unsteady souls.” Tradução livre da autora e Cristiana
Menezes.
50
Sobre a Nova Dança José Gil, em seu texto O que é uma dança atual?
144
, comenta:
A radicalidade dos jovens coreógrafos da Judson Church
ia muito mais longe que aquela que animara a revolução
cunnighamiana. Enquanto Cunnigham procurava libertar
a dança de certos espartilhos que encerravam os corpos,
Yvonne Rainner e Steve Paxton queriam libertar os corpos
quebrando todas as normas que governavam a dança
(incluindo Cunnigham).
145
O espetáculo é como um flash da rebeldia e da radicalização da Nova Dança, que em
seu manifesto Ivonne Rainer também negou, numa atitude que Sally Banes chamou de
“uma estética da recusa”.
Não ao espetáculo, não ao virtuosismo, não às
transformações e à magia e ao uso de truques, não ao
“glamour” e à transcendência da imagem da star, não ao
heroísmo, não ao anti-heroísmo, não às imaginárias de
pechisbeque
146
, não ao comprometimento do bailarino ou
do espectador, não ao estilo, não às maneiras afetadas,
não à sedução do espectador graças aos estratagemas do
bailarino, não à excentricidade, não ao fato de se mover
ou se fazer mover.
147
O que inaugura Ivonne Rainner com o seu discurso manifesto é uma era. Toda uma
repulsa ao estabelecido, inclusive à dramaticidade. Trazer o imaginário como algo que
podia se apoiar no não-verbal, trazendo para a dança uma importância e dando ao
público a possibilidade de participar. A força de Rainner e seus trabalhos
idiossincráticos influencia ainda hoje os coreógrafos contemporâneos, inclusive na
França, como nos fala RoseLee Goldberg em A Arte da performance:
seus procedimentos simples, voltados para a apreensão
da essência da dança, tinham um apelo especial para essa
geração de coreógrafos entre os quais estão Jerome Bel,
Xavier Le Roy e o grupo Quauor Knost que aplicava à
144
Cf. GIL, 2005.
145
GIL, 2005, p.148.
146
echisbeque: estilo pomposo que encobre a pobreza ou falta de idéias, ouro falso, ouropel. P
147
GIL, 2005, p.151
51
dança as teorias desconstrutivistas de Derrida, Foucault e
Deleuze.”
148
A Nova Dança reuniu bailarinos de Nova York, alguns deles trabalharam anteriormente
com Ann Halprin, mestra em improvisação. Foram influenciados por trabalhos dos
Happennings, incorporando sua liberdade de proposta, por Allan Kaprow, e pelo grupo
Fluxos. Com uma abordagem ou incorporação da liberdade, em vários sentidos, como
dos Happenings, o uso das idéias de acaso de John Cage e Merce Cunnnigham
149
,
realizavam eventos, ora música, ora apresentação, com característica não dramática e
não matizada de teatro, como explica Banes em Greenwich Village 1963
150
. Os
bailarinos que vinham de técnicas bem tradicionais foram instigados a experimentar em
suas próprias obras idéias de Cage e de Robert Dunn
151
.
O uso de associações livres e de “aspectos não figurativos da dança, sendo o primeiro
deles os movimentos não conduzidos pela música ou por idéias interpretativas,
desenvolvia-se segundo seus próprios princípios intrínsecos.”
152
Dos principais ex-discípulos de Cunnigham, entre outros, podem ser citados Deborah
Hay, Steve Paxton, Lucinda Childs, Alex Hay, David Gordan, que estudaram e
trabalharam com o artista plástico Rauschenberg
153
, e participaram do movimento
conhecido como Judson Church
154
. Como reforça RoseLee Goldberg, “em 1962, em
Nova York se formaria o núcleo vigoroso e criativo Judson Dance Church”
155
, de
caráter institucional coletivo, nas palavras de Sally Banes: “uma instituição coletiva
vital e altamente visível... trouxeram como fator diferenciado dos outros artistas da
mesma geração uma nova inserção do corpo no espaço e para dança uma nova
maneira de se organizar estruturalmente um grupo”
156
. Essa instituição coletiva de
coreógrafos livremente organizada passa a ser cooperativa
157
. Depois formaram um
148
GOLDBERG, 2006, p. 207.
149
Cf. GOLDBERG, 2006, p.122 e p. 128
150
BANES, 1980, p.75
151
Cf. GOLDBERG, 2006, p.130. John Cage e Robert Dunn eram músicos que trabalhavam com
procedimentos aleatórios.
152
BANES, 1999, p. 94.
153
Cf. GOLDBERG, 2006, p. 126
154
Cf. BANES, 1980, p.
155
In GOLDBERG, 2006, p. 130
156
BANES, 1999, p. 94.
157
Cf. ibidem, p. 96.
52
grupo: o The Grand Union, de 1973 até 1976. Foram eles: Trisha Brown, Barbara
Dilley, Douglas Dunn, David Gordan, Nancy Lewis e Steve Paxton.
158
Esse grupo de dançarinos, que, em sua maioria, começou sua trajetória na dança
tradicional, incorporou ao seu estilo de vida a busca pelo princípio de que a obra e a
vida não seriam mais separadas. Valorizavam movimentos do cotidiano, como andar,
trocar de roupa, enfim atividades do dia a dia. Elaboravam performances de caráter
improvisacional e tinham características políticas sintonizadas com novas ideologias.
Podemos citar entre eles: Simone Forti, Yvonne Rainner, Trisha Brown, Lucinda
Childs, Steve Paxton, David Gordon, Barbara Loyd, Deborah Hay
159
, entre outros. Têm
como pioneiros e referências artistas da própria dança como: Loie Fuller, Isadora
Duncan, Rudolf von Laban e Mary Wigman.
160
Tecnicamente a Nova Dança tem toda a
influência do século XX, com a premissa de utilizar não somente a simultaneidade dos
dadaístas e futuristas, mas também a importância dada à improvisação e ao acaso: a
efemeridade da ação, do estado presente e o tratamento dado à improvisação como fim e
não somente como processo. A estrutura
161
do lugar que recebe a improvisação também
traz características desde os dadaístas. Richard Huelsenbeck comenta a cena que traz as
percepções do externo e do interno e da simultaneidade como “um breve sentido da
vida.
162
A Nova Dança estimula a partir dos anos 1960 toda uma geração de performers e
bailarinos que desenvolveram técnicas e estruturas composicionais e que influencia,
meio século depois, o que hoje chamamos de dança contemporânea: seja na forte
relação entre a vida e a arte, na estrutura de composição, na relação com o espaço
158
Cf. ibidem, p. 94.
159
Cf. GOLDBERG, 2006, p. 128
160
Cf. ibidem, p. 129
161
Trataremos de “estrutura” no 3º capítulo desta dissertação.
162
In GOLDBERG, 2006, p.56. Sobre Richard Huelsenbeck, 1917, Dadaísta , a idéia da simultaneidade,
uma simultaneidade efêmera, que surge e desaparece, e a não valorização de uma coisa em detrimento
de outra. Na sobreposição de coisas passageiras, onde o improvisador também passa, e deve estar ligado
ao máximo de coisas possível, Huelsenbeck diz: “Enquanto eu, por exemplo, fico cada vez mais
consciente de que ontem dei um soco na orelha de uma velha senhora e de que lavei minhas mãos uma
hora atrás, o guinchar dos freios de um bonde e o barulho de um tijolo que caiam do telhado da casa ao
lado chegaram aos meus ouvidos simultaneamente, e meu olho (externo ou interno) sai de sua apatia
para apreender, na simultaneidade desses eventos, um breve sentido da vida.”
53
completamente diferente
163
, no uso ou não da música, e, influenciados por Cage, em
ouvir a música do silêncio.
Para os coreógrafos da Nova Dança, principalmente para Steve Paxton e Deborah Hay,
uma das importantes características seria a de usar dançarinos não treinados no
movimento tradicional, ou sem técnica corporal alguma, o que seria muito apropriado
para defender de antemão o não autoritarismo e a não hierarquia, impostos no contexto
da dança antes dos anos 70.
164
O Contato Improvisação foi criado nos anos 70 por Steve Paxton, em Nova York, em
experimentos que traziam para o centro do corpo um estudo do equilíbrio. Steve Paxton
faz parte dos pioneiros da Nova Dança e, segundo RoseLee Goldberg, aprimorou seus
movimentos em configurações precisas, desenvolvendo um vocabulário de movimentos
para o corpo no espaço.”
165
Paradoxalmente hoje contato improvisação requer uma
técnica corporal que aprimora um movimento específico, e um dançarino que se propõe
a dançar contato pratica muito em busca de conhecer seus limites e adquirir técnica de
contato, para poder possuir um vocabulário cada dia maior e poder dialogar com outro
parceiro de contato.
Steve Paxton fala que o mais importante para ele é o acontecimento e não o seu produto.
Surgem, então, as JAMs, encontros de praticantes de contato improvisação para
pesquisar, através da prática e do exercício do estudo do peso do corpo, o jogo da
improvisação. Para Giovane Aguiar, coreógrafo e improvisador de Brasília, diretor e
criador do Festival Nova Dança
166
, esse nome JAM vem de duas coisas: uma é o
próprio significado da palavra, tradução denotativa do inglês como “geléia”,
representando aquela mistura característica; e a outra é uma apropriação da prática de
improvisação que vem dos músicos de jazz. (Na JAM
167
, Jazz After Midnight, os
músicos dos anos 40 e 50 de New Orleans ficavam no bar em que haviam acabado de se
163
Cf. BANES, 1980. Sem dúvida, esses primeiros bailarinos experimentaram usos distintos do espaço,
exemplificando a performance nova-yorquina de Trisha Brown que “acrescentou à concepção do
espectador a noção de um corpo no espaço”.
164
Cf. BANES, 1980, p.15.
165
In GOLDBERG, 2006, p.143
166
Festival Nova Dança, espetáculos e mostra de vídeodança com XX edições. Dentro do Festival
também há o modulo de Encontro Internacional de Coreógrafos. Na edição de 2009, Pirinópolis foi a
cidade escolhida para abrigar durante 10 dias vários coreógrafos do Brasil e de outros países.
167
AGUIAR, 2008. BANES, 1999, p. 65 e 66.
54
apresentar ao público, tocando e experimentando e, claro, afinando as parcerias, e,
então, o improviso estava aberto. Depois que o público saía, continuavam a “brincar” e
a improvisar, dando a cada um a oportunidade de solar e também de entrar no som do
outro.)
São três as características importantes desenvolvidas no contato improvisação. A
primeira, o próprio Paxton explica: “no contato improvisação nós estamos focados na
coisa em si (no fenômeno) mais do que na apresentação.
168
A segunda característica:
na diferente relação entre público que se apresenta informalmente no espaço, o
espectador é livre em sua interpretação, e seleciona o que para ele é mais importante.
No Contato Improvisação de Steve Paxton e nas Danças
Circulares de Deborah Hay, o foco primário da dança é a
sensação física e atenção do dançarino, um foco que
ameaça remover o trabalho do lugar da arte, tornando o
espectador obsoleto.”
169
A terceira característica seria a da relação estabelecida entre os contacters: eles
procuram trabalhar com o movimento cotidiano como se estivessem realizando o
movimento e não o representando, isto é, andam como se estivessem andando pela rua,
literalmente, não como performers ou como representação do transeunte que anda pela
rua. Essa característica faz a diferença entre um espetáculo programado e ensaiado e
uma improvisação. Cunnigham se inspirava na ação humana, nos movimentos do
cotidiano; por isso, “sob esse princípio a coreografia se realiza mais por acidente do
que pelo resultado de uma intenção”.
170
Outra característica do Contato Improvisação - que analisaremos no espetáculo Sem, um
colóquio sobre a falta - é a maneira como o improvisador se prepara para uma “escuta
do outro”, pois a dança se faz na relação entre os participantes. Para Dudude o
improvisador, que vem da palavra player, pode estar no lugar de provocador, aquele
que age, o da ação, e de provocado, aquele que reage. Para Dudude o espaço é sedutor
e é provocante de possibilidades. Por isso a cena em Sem, um colóquio sobre a falta
168
Cf. BANES, 1980, p. 67.
169
Cf. BANES, 1980, p. 18. “And in Steve Paxton´s Contact Improvisation and Deborah Hay´s Circle
Dances, the primary focus in the dance is the dancer´s physical sensation and awareness, a focus that
threatens to remove the work from the realm of art altogether, by making the spectator obsolete”.
170
ORNELLAS, 2006, p.56.
55
acontece pela interação, no momento presente, entre as duas intérpretes. Como explica
Ornellas, “decorrem daí também a parceria intensa e cúmplice, a cooperação, a visão
periférica (...)”
171
Fazendo-se analogias de poder, a dança, ou melhor, o Ballet sempre pode ser utilizado
pelo Estado como símbolo de cultura das elites, seja em países monárquicos ou em
países de regimes comunistas. Nos últimos quatro séculos foi assim. Tomando como
exemplo o caso da Rússia, fica claro que, da época dos czares ao governo de Stálin, uma
coisa não se modificou: as apresentações de Bela Adormecida, Gisele, Lago dos Cisnes,
do Ballet Bolshoi e suas novas montagens grandiosas e riquíssimas. Tal o poder que o
Ballet Clássico exerce como arte de expressão de uma elite, imprimindo uma
“atmosfera de conto de fadas”, tão necessária para criar ilusão, para embaçar a
realidade. Sally Banes, em Greenwich Village 1963, afirma que “por complexas razões
históricas, os comunistas recuperaram todo o repertório aristocrático cultural”,
fazendo dessas artes “a propaganda do comunismo”.
172
Transformações substanciais artísticas, políticas e econômicas são notadas neste último
século, na estrutura das instituições de dança no mundo. Grandes companhias se
transformam em grupos de dança menores, com espetáculos despojados de grandes
cenários, figurinos e indumentárias, viabilizando o barateamento de turnês, começando,
por exemplo, com os Ballets Russos de Diaghilev
173
.
Nos EUA, o movimento rebelde dos discípulos do coreógrafo moderno Cunnigham,
contemporâneos do movimento hippie, rompe totalmente as amarras das danças
clássicas e modernas com a rebeldia do grupo da Judson Church. Participando de certa
forma do movimento da contracultura, o mais importante da Nova Dança é o corpo em
expansão, isto é, a relação do corpo com as coisas, com o espaço, seu contato com o
outro corpo, fazendo então esse movimento “real” ou a busca do “movimento no estado
nu”
174
. Talvez se trate de uma busca pelo movimento “natural” do homem. Para isso
171
Ibidem, p.64.
172
BANES, 1999, p. 215 e 219.
173
Serge Diaghilev, criador e produtor dos Baletts Russos.
174
Essa necessidade de falar de um movimento em estado nu talvez seja uma busca pelo "original", ou
“natural”, jogar fora tudo o que pudesse ser excessivo no movimento. Represento esse despojamento do
movimento com uma imagem de duas pessoas em pé e uma passando a mão no corpo da outra, sempre de
cima para baixo, em um movimento de limpeza, em um movimento de limpeza espiritual, em um
56
seria necessário jogar fora tudo o que pudesse ser codificado e excessivo no movimento,
como em todos os movimentos extracotidianos: trabalhar com um movimento
despojado, com o movimento do cotidiano do homem comum.
A isso se refere a estética do homem nu
175
de Ivonne Rainer. Politicamente os EUA,
durante a guerra fria, irão estabelecer como representante artístico de seu país
exatamente a arte abstrata e absorver todos os movimentos de nova arte, exatamente por
ter um discurso político de liberdade. A característica mais importante e diferencial que
os EUA tinham em relação ao comunismo é sem dúvida a “democracia”. Todas as
propostas de inclusão de qualquer indivíduo na criação artística, a liberdade da
improvisação, a não barreira entre público e performer, enfim as idéias de consenso,
tudo isso serviu para que o Estado legitimasse e absorvesse essa arte. O abstrato, a
liberdade, símbolos de refinamento como tolerância liberal
176
.
Enquanto isso no Brasil, mesmo em tempos de ditadura, muitos ventos trouxeram os
modos de pensar da juventude estadunidense e européia da contracultura. O Living
Theatre esteve no Festival de Inverno de Ouro Preto
177
em 1971. Nesse mesmo Festival
estavam presentes Marilene Martins
178
- Nena - como coordenadora da área de dança, e
Dona Áurea, mãe de Dudude Herrmann.
movimento de tirar as coisas que sobram em cima da pele, de despojar o corpo da indumentária das
técnicas de dança de movimentos codificados.
175
A estética do homem nu se refere a um ideal do que não só é despojado, mas que todo mundo tem,
mais do que todo mundo pode. Todo mundo tem um corpo e o corpo é nu. Não há uma busca de uma
estética de “puro” ou de “origem”, mas muito mais de uma condição sine qua non do ser humano de estar
em um corpo nu, pois todos os seres humanos, sem desigualdade, estão em um corpo nu. É uma ideologia
que vem buscar a não representação, como propõe a Nova Dança e Steve Paxton (andando pela rua
literalmente), pois não é necessário que o próprio corpo nu seja representativo, ele é em si, assim como a
dança não é o espetáculo lá, e sim, você faz parte da obra, a obra está em nós. O paradigma da ideologia,
de que tanto o comunismo como o capitalismo vão fazer bandeira, é: o homem comum, o homem corpo-
igualdade, o homem pode, o homem tem um corpo e é ele que proporciona a liberdade de, através de seus
movimentos cotidianos, fazer parte da dança ou da arte, excluindo-se a necessidade de uma técnica
específica corporal e extracotidiana.
176
Cf. BANES, 1990, p. 220.
177
MALINA, 2008, p. 15.
178
Como já vimos no primiero capítulo, Marilene Martins criou a Escola de Dança Moderna Marilene
Martins, que depois se chamou: Trans-Forma Centro de Dança Contemponea. Também foi a criadora e
diretora do Trans-Froma - Grupo Experimental de Dança (informação pessoal do prof. Dr. Arnaldo
Alvarenga).
57
Depoimento de Dudude Herrmann: Grupo Realejo. 1ª tentativa de grupo: Dudude Herrmann; Sonia
Camarão; Cecília Prates (Uruguai); Eduardo Bactéria; Lelena Lucas e Pedro Prates. Autor da foto não
identificado.
Heloísa Starling diz em seu texto “Coisas que ficaram muito tempo por dizer”: “os
primeiros ventos do movimento da contracultura começaram a soprar no Brasil por
volta de 1969, o ano que a figura hippie chega com sua utopia e se instala entre nós e é
divulgada pelos meios de comunicação.”
179
Os cenários eram bem diferentes, o Brasil
vivia a ditadura e a situação era de censura e de repressão política. Mesmo assim a
passagem do Living Theatre pelo Festival de Inverno em Ouro Preto foi marcante,
quando a Dança ainda representava uma das quatro grandes áreas artísticas juntamente
com o Teatro, as Artes Plásticas e a Música. Em 1971, na edição do 5º Festival de
Inverno da UFMG
180
, os integrantes do Living Theatre foram presos por decreto do
então Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici. Porém, como diz Heloísa
Starling, “tudo deixa rastro, nada é tão bem apagado que alguma coisa da memória
não possa subsistir...
181
179
In MALINA, 2008, p.29.
180
MALINA, 2008, p.33. “Em 1971, o Festival de Inverno era um sucesso. A proposta inicial havia sido
expandida e incorporada pela UFMG como o seu principal projeto de extensão.” (...) “O Primeiro Festival
de Inverno aconteceu em Ouro Preto, em 1967, por iniciativa de um grupo de professores da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Fundação de Educação Artística de
Música e da Escola de Farmácia de Ouro Preto.”
181
Ibidem, p.36
58
Nesta época surgem várias companhias de dança com o nome de seus coreógrafos ou
diretores. A mudança da nomeação de grupo para companhia para caracterizar o
ajuntamento de pessoas para a dança foi um processo vivido de libertação do
autoritarismo das danças clássica e moderna: “É incrível pensar assim, mas mesmo
Cunnigham era criticado por suas estruturas repressivas”, reforça José Gil, em
Movimento Total.
182
Embora os coreógrafos mais jovens certamente extraiam
sua inspiração das teorias e danças discutidas aqui, os
pós-modernistas rejeitam a posição hierárquica na
maioria das vezes. Sua ruptura com a tradição carrega
consigo a noção explícita de que não precisamos mais de
academias; de que as regras não são sacrossantas, mas
podem ser úteis ou desnecessárias.
183
Na organização de grupos na dança, vemos as questões políticas de convivência
também sendo adaptadas às ideologias. Passa-se de grupo de dança, ou corpo de baile,
para companhias de dança. No Brasil este movimento de nomenclatura ocorre duas
décadas depois de sua adoção nos EUA, coincidindo com o fim da ditadura nos anos 80.
A primeira instituição que realiza a troca de seu nome de Corpo de Baile para
companhia foi a Cia. do Palácio das Artes, no ano de 1985, durante a gestão de Mauro
Werkema e sob a direção de Jean Marie Dubrul. Pode parecer simbólico, mas nas
questões práticas isso rompe toda a estrutura hierárquica característica dentro do Corpo
de Baile, como bailarina solista, primeiros bailarinos etc. E também não vira Grupo, que
tem um forte caráter político. Forma-se, então, uma companhia com bailarinos que se
relacionam horizontalmente, apesar de manterem a hierarquia do diretor e do
coreógrafo.
182
GIL, 2005, p.148.
183
BANES, 1980, p. 19. “Although younger choreographers certainly draw inspiration from theories and
dances discussed here, the post-modernists reject a hierarchical position of authority for the most part.
Their break with tradition carries with it the explicit notion that there need be no more academies; that
rules are not sacrosanct but can be either useful or unnecessary.” Tradução de Adelaine Laguardia
Resende.
59
Espetáculo Sintonia, 1986, Direção de Jean Marie Dubrul. Cia de Dança do Palácio das Artes. Foto:
artista não identificado.
Posteriormente alguns grupos de Belo Horizonte tiveram seus nomes modificados
acrescendo à marca a denominação de companhia como Grupo Corpo – passa a ser
Grupo Corpo - Cia. de dança; Grupo 1º Ato - Companhia de Dança. Hoje encontramos a
predileção para denominar o grupo pela palavra “Coletivo”. A Benvinda – Cia. de
Dança usa, em sua ficha técnica, a denominação “coletivo”. Não deixa de ser uma nova
roupagem para o grupo, pois ainda que se tente exercitar essa nova relação, as mudanças
são lentas e retornam as mesmas estruturas hierárquicas. O nome “coletivo” aponta para
uma idealização de plena democracia, na idéia de resgatar o indivíduo em sua
potencialidade, como a própria Dudude no texto Dissertação sobre um nada diz:
habilidade de apropriação acarreta o invento de si mesmo, tomando posse de seus
segundos, minutos, hora, tendo suas idéias coexistindo no todo.”
184
Para Mauro
Werkema,
‘Companhia’ pressupunha uma organização mais
empresarial, mais força gerencial similar às organizações
empresariais que têm nome de Cia.; o coletivo é a
democracia plena, o bailarino sujeito de sua própria
história, o bailarino seu próprio coreógrafo.”
185
Mesmo assim, a dança continua mantendo seus padrões de autoritarismo, relações de
repressão, percebidos nas formas de direção. Companhias de dança contemporâneas
ainda se vêem presas às normas antigas de relacionamento com o corpo. Nas
184
Cf. HERRMANN, Dissertação sobre o nada.
185
WERKEMA, 2008.
60
Companhias, ainda se diz bailarino em vez de dançarino. Exige-se deste artista o
máximo de esforço físico, que às vezes compromete e prejudica sua saúde, a
manutenção de sua técnica com todo o rigor, interferência no peso do seu corpo,
incentivando a perda de quilos e valorizando a magreza e ainda, às vezes, interferindo,
até hoje, no corte de cabelo ou na vida privada, adiando muitas vezes seu desejo de ter
família e filhos.
Benvinda – Cia de Dança: Dudude Herrmann, Margo Assis, Luciana Gontijo, Ana Virginia Guimarães,
Sérgio Marrara, Patrícia Werneck, Ana Gastelois. Foto: Mariana Martins, 1996.
A ditadura do corpo que é imposta aos bailarinos vem desde a dança clássica e perdura
nos dias hoje, em prol de uma exigência técnica, de um modelo de bailarino,
desconsiderando todo o movimento desde Isadora Duncan, passando pelos movimentos
da dança pós-moderna, ou mesmo pela defesa de um corpo livre, livre em todos os
sentidos, de amarras sociais. Essa é sem dúvida uma violência ainda grande e
perceptível nos corpos dos bailarinos contemporâneos ou nas suas relações
composicionais. Para Paxton: “O uso de dançarinos não treinados por muitos
coreógrafos pós-modernos, apropriado em um contexto geral de antiautoritarismo,
retrocedeu conspicuamente no final da década de 70.”
186
186
Cf. BANES, 1980, p.15. “The use of nontrained dancers by many pos-modern choreographers,
appropriate in a general context of antiauthoritarianism, receded conspicuolsly in the late 1970s.
61
O uso da improvisação pode ser visto como uma ação política, pois envolve mudança de
organização da sociedade, dissolução de hierarquias, porosidade de fronteiras entre arte
e vida, democratização da concepção da obra através da participação de todos, abolição
do preconceito da necessidade de formação técnica formal para dançar. Se isso era
evidente nos anos 1960, a improvisação foi se transformando ao longo do tempo em
“espetáculo improvisacional”, o que é bem diferente usar para compor cenas através de
exercícios improvisacionais. A técnica explorada para o trabalho composicional passa a
ser usada em tempo real de compor e apresentar. Hoje podemos falar de maneiras de
trabalho de vários improvisadores da dança, ou seja, o uso de métodos particulares, o
destaque de elementos de improvisação, e inclusive codificação de técnicas de
improvisação. Hoje temos a dissolução do próprio improvisador, que não necessita nem
sequer ser nomeado, se ele pensa que é ele é um dos elementos da composição, se ele se
mistura e faz parte de um ambiente e finalmente está em um tempo ínfimo que
desaparece.
62
Dudude Herrmann Cia de Dança e a Benvinda Cia de Dança
Eu nunca tive a menor intenção de formar grupo,
companhia. Mas a intenção primeira era de
experimentação, de trabalhar junto. E uma urgência,
enorme, de fazer algo. Esses eram os pontos de afinidades
e aí se deu Arrotos e Desejos. A gente estava fazendo para
ficar junto, para se encontrar, para experimentar algo,
para fazer algo.”
187
Em 1988 Dudude cria Bing, Dias Felizes e Esperando Godot
188
, duas peças
apresentadas conjuntamente em um mesmo espetáculo.
189
Foi o seu primeiro trabalho
como “proponente e responsável pela criação.” Não se caracteriza como uma produção
de Dudude Herrmann, mas seria a fagulha necessária para iniciar uma potência na
coreógrafa para assumir a direção e a coreografia de um trabalho e até mesmo de ter
uma companhia de dança própria. “Penso (sobre a obra Bing) [como] fazendo parte de
minha criação enquanto coreógrafa e diretora de espetáculo
190
.
Seus trabalhos coreográficos são de temas variados, às vezes sobre a composição
musical, sobre comportamentos humanos, como Arrotos e Desejos
191
, que trata do
comportamento social diante do banquete, as relações que as pessoas estabelecem com a
comida. “Este foi sim o começo na configuração de uma pretensa companhia de dança,
187
HERRMANN, 2007.
188
Licença Poética de Dudude Herrmann sobre as obras de Beckett.
189
Esse trabalho foi desenvolvido no núcleo Dança, dirigido por Dudude Herrmann, dentro da Cia.
Absurda de Eid Ribeiro.Os textos são de Samuel Beckett. O figurino desenvolvido para Bing, idealizado
por Niura Bellavina, foi depois usado por Izabel Stewart emSem – Um Colóquio Sobre a Falta.”
190
HERRMANN, 2008. E-mail.
191
Foto de Eugênio Sávio. Segundo elenco de Arrotos e Desejos (da frente da dir. para esq.) Arnaldo
Alvarenga, Ana Virgínia Guimarães, Sérgio Marrara, Tarcísio Ramos, Luiz de Abreu, e Paola Rettore,
63
a qual se intitulava Companhia de Dança Dudude Herrmann.
192
Quase 20 anos depois
de iniciada sua carreira, Dudude inaugura em 1992 a companhia com seu próprio nome,
estreando o espetáculo Arrotos e Desejos. Ela colocou o nome na companhia como
resposta a uma pergunta: quem é que está dançando isso? Foi um nome surgido
provisoriamente (pro forma). Formado por dançarinos independentes e que faziam parte
de outros grupos em Belo Horizonte; eram eles: Ana Lana Gastelois, Arnaldo
Alvarenga, Eugênio Paccelli, Marco Paulo Rolla, Mônica Medeiros, Paola Rettore,
Tarcísio Ramos
193
.
Depois com o surgimento dos outros trabalhos e com
vários processos de formação de grupo começam a chegar
também as “notas fiscais”, a companhia começava a ter
que apresentar nota fiscal como exigência do mercado e
as coisas vão se complicando. Os bailarinos também
foram modificando o perfil do grupo e o compromisso dos
intérpretes, então surgiu a necessidade de formalizar
como companhia, retirando o nome personalizado,
característica de nomear a companhia com o próprio
nome do coreógrafo ou diretor que tem em sua proposta
um estilo claro e diferencial como por exemplo Tywla
Tharp, Merce Cunnigham, Martha Graham.”
194
A partir de 1999, com o espetáculo O Armário,
195
a companhia de Dudude Herrmann
passa a usar o nome “Benvinda”: passamos a chamar Benvinda Cia de Dança na
tentativa de trabalharmos como coletivo.
196
A mudança de nome dá-se devido à
necessidade manifestada pelo elenco na época, e pela expressão de sua aspiração em
trabalhar com Dudude. Com o tempo os integrantes foram diversificando e do grupo
original não ficou ninguém. Então, esses novos integrantes passaram a expressar a
necessidade de se desvincularem de uma companhia que tivesse uma direção forte ou
192
Ibidem.
193
Comentário de Dudude sobre a Academia, na inauguração do Atelier de Dudude em Casa Branca, em
dezembro de 2009: “parece que hoje a Academia, especificamente na Faculdade de Belas Artes da
UFMG, é que tem acolhido o profissional de dança [aqui em Belo Horizonte]”. Coincidentemente o
primeiro elenco de bailarinos de Arrotos e Desejos, da Dudude Herrmann Cia. de Dança encontra-se em
sua íntegra dentro da EBA/UFMG como professores ou como mestres e/ou doutores: Ana Lana Gastelois,
Arnaldo Alvarenga, Eugênio Paccelli, Mônica Medeiros (Ribeiro), Marco Paulo Rolla, Paola Rettore e
Tarcísio Ramos.
194
HERRMANN, 2007.
195
Essa obra fala da memória da mulher e sua condição: “É uma licença poética do estar feminino, dentro
de sua concepção, a música, os movimentos são tecidos por um olhar que de antemão apoiou numa
estrutura literária do universo de Clarice Lispector e Lya Luft, dando um fundamento da pesquisa sobre o
estar feminino, suas lembranças e registros.” (Sinopse de espetáculos – Arquivo Benvinda Cia. de Dança)
196
HERRMANN, 2007.
64
coreógrafo, para trabalharem em criação coletiva. Tinham, então, o anseio de que a
companhia tivesse um nome mais neutro também, isto é, não levasse o nome de uma
diretora ou coreógrafa, uma vez que eles se propunham uma parceria de criação. Mas
esta maneira de existir também não se sustentou. Dudude continuou exercendo várias
funções de produção, criação e manutenção da companhia.
É uma companhia que quer ser composta de pessoas autônomas e com interesses na
produção de algo em grupo, que tem desejos de trabalhar como coletivo, mas isso fica
somente na teoria e na vontade dos integrantes, inclusive de Dudude. A companhia
continua funcionando na prática no mesmo modus operandi. Os integrantes não
dividem tarefas, não assumem as responsabilidades nem artísticas, nem administrativas.
Enquanto isso a companhia, mesmo com todos os problemas, vai ganhando espaço no
cenário mineiro, e no Brasil.
Na trajetória da Benvinda Cia. de Dança podemos ver como a improvisação foi usada
para a composição das obras, contando com a colaboração dos bailarinos. Em Arrotos e
Desejos desenvolvem-se vários ensaios dedicados ao improviso, com objetivos de
levantar material coreográfico e também de estabelecer um jogo de aproximação entre
os bailarinos, que não se conheciam e não tinham trabalho nessa formação. O
espetáculo foi coreografado com marcações claras de Dudude e tinha a trilha sonora
como forte ponto de apoio. A música foi Cinderela, de Prokofiev. Na obra o primeiro
momento se passa na platéia, os bailarinos comem biscoitos de polvilho e brincam com
o público, de maneira um pouco clownesca e totalmente improvisada.
Já no trabalho Plus - intersecções barrocas em andamento latino (1993), Dudude
orienta o elenco
197
para os bailarinos trazerem idéias de composições para alguns
ensaios. Dudude trabalhava com o workshop e cada bailarino mostrava material. Mas
Dudude não se apropriava de muita coisa oferecida e criada pelos intérpretes e
terminava coreografando todo o trabalho. Ela ainda não trabalhava com espaços para a
improvisação no espetáculo. Mas os problemas continuavam os mesmos, apesar de ter
uma estrutura e um nome maior:
197
Elenco na montagem de Plus: Ana Virgínia Guimarães, Arnaldo Alvarenga, Dudude Hermann, Paola
Rettore e Tarcísio Ramos Homem de Melo.
65
Acho que a estrutura da Benvinda continua igual, é
impressionante, as questões estruturais, da falta de
dinheiro, todos os trabalhos que eu monto não têm
dinheiro, dinheiro para manutenção, tem pequenos
dinheiros que salvam alguns projetos, mas eles não são
regulares, e são reguladores do nosso funcionamento,
porque a cada final de ano você cai num grande
buraco.
198
Os problemas jurídicos e orçamentários continuam e também o árduo trabalho de
manter viva uma companhia, com cara própria e trabalhos profissionais, mas estrutura
semi-amadora, isto é, sem equipe fixa de técnicos, sem patrocínio, que garantisse a
tranqüilidade da criação e de circulação de espetáculos. Uma agenda feita ano a ano, às
vezes mês a mês. Com isso, o próprio integrante da companhia, às vezes por necessitar
ganhar dinheiro para seu sustento, só lhe restava abandonar o barco e correr atrás de
outras oportunidades. Em decorrência disso a companhia, sempre instável para montar o
repertório, construindo novos trabalhos com novos ajuntamentos e perfis distintos,
acabou tendo sua energia minada.
E esta tentativa de convencimento de arranjar algum
parceiro, nossa! Isso exaure. Isso exaure. Manter uma
Cia., um pensamento, quinze anos, tive parceiros
artísticos, cúmplices.”
199
Cria-se cada vez mais forte uma vontade de ter um “trabalho que fosse mais arejado,
que não estivesse amarrado às estruturas, comenta Dudude. O que ela não podia mais
era ficar fugindo, “fugindo da tal sociedade do espetáculo”. Por isso começa a
estruturar uma outra forma de trabalhar, ancorada na parceria. O desejo de
desaparecimento da Benvida Cia de Dança começa a surgir de questões oriundas de
uma angústia e de um cansaço: bater em ponta de faca, poderíamos dizer. Surge uma
outra necessidade de estar de alguma maneira no mundo, papéis e números de notas
fiscais, leis e editais de fomentos à cultura, projetos, infindáveis projetos culturais e
prêmios que exigem ficha de inscrição com o CNPJ.
Em desabafo pude ouvir e anotar um comentário a respeito desse desejo de
desaparecimento:
198
HERRMANN, 2007.
199
Ibidem.
66
E também dá muito trabalho você ficar fugindo o tempo
inteiro. Fugindo de quê? Da tal sociedade do espetáculo.
O mundo já está todo cercado, será que existe algum
lugar de plena liberdade e de anonimato e de você, é...
não existe, por que de qualquer forma, você precisa
produzir para a moeda circular, para você fazer proveito
da sua existência, por que você está fugindo da vida, do
mundo, do mundo dos homens, você quer virar macaco?
(Rá, rá, rá, rá).
200
A passagem de Benvinda Cia de Dança até seu desaparecimento
Falar de um espetáculo em sua contemporaneidade, do aqui e agora, do que ele tem de
potência composicional, como ele se utiliza das técnicas da dança de hoje e também dos
fluxos de ideias e compêndios do século XX, e estar inserida dentro do contexto de
criação, parece que é uma necessidade contemporânea do próprio artista. Coloco-me
não só como pesquisadora, mas também no lugar de artista fazendo deste tempo-espaço
uma vivência ‘presente’ no momento da escrita. Como nos lembra Renato Cohen, “a
principal característica da arte cênica é a situação do aqui e agora.
201
Essa
perspectiva revela questionamentos políticos, com denúncias ao individualismo pela
sobrevivência imediata e, em um círculo menor, a obra em si, questiona as relações da
arte, no caso, a dança, em suas formas hierárquicas e o autoritarismo presente, até então,
inclusive na organização e estrutura da dança moderna.
202
A obra Sem, um colóquio sobre a falta
203
é apresentada por duas
intérpretes/colaboradoras, assim nomeadas em suas funções no programa
204
da obra:
Dudude Herrmann - que também assina a concepção - e Izabel Stewart
205
. As duas
intérpretes vão construindo com adereços como sacos de lixo, copos descartáveis e
canudinhos, todos brancos, uma cenografia, que cria uma completa atmosfera de
200
HERRMANN, 2007.
201
COHEN, 2007, p.117.
202
Cf. BANES, 1990, p. 97.
203
SEM - um colóquio sobre a falta. Nome do espetáculo estreado em São Paulo em 2007.
204
Não há discriminação da função de coreógrafo ou de diretor do trabalho no programa.
205
Bailarina e coreógrafa, performer, poeta e mestre na área de Dança - DEA em "Arts de la Scene et du
Spectacle". Instituição: Université Paris 8.
67
abandono, ampliada nos dejetos dos lixos descartáveis, provocando uma atmosfera de
fim de mundo
206
, de apego ao material, característica desta nossa sociedade consumista.
No início do espetáculo temos um cenário aberto e pela platéia chega uma primeira
dançarina, Dudude Herrmann, que começa meticulosamente a organizar seu lixo de
descartáveis. Em seguida, a outra dançarina, Izabel Stewart, faz a mesma coisa. Aqui
não vemos atrito nem desentendimento entre a postura das duas personagens, somente
um vazio que nos causa a disposição dos adereços que lentamente vai formando o
cenário.
O colóquio que propõe Dudude é para “conversar” ou “denunciar” um comportamento
em que o indivíduo se coloca em um contexto não consciente de sua participação na
destruição do meio ambiente. Pode-se perceber o questionamento desse comportamento
e se refletir sobre sua conseqüência no futuro, através da denúncia do vazio humano e
paradoxalmente da abundância do nada, do lixo e do consumismo. Assim está escrito na
sinopse do espetáculo:
SEM, como o próprio nome sugere
207
, aborda a falta em
intensidades distintas, como as questões que permeiam
nossa existência, a relação com este organismo Terra, de
nossos corpos cegos e ao mesmo tempo ensimesmados, e a
confusão da abundância.”
208
O tempo real, que promove a colocação e distribuição dessa centena de objetos, nos
remete ao que Renato Cohen, em seu texto Performance como Linguagem,
209
diz sobre
o tempo lento, em relação às imagens. É o que faz a grande diferença entre a peça, a
performance, o cinema e o audiovisual. Esse contato do espectador com a imagem que
se forma é experimentado juntamente com os intérpretes. A improvisação começa de
uma forma sutil com a construção de um cenário. Sabe-se de um tempo, tempo-duração
da música, no qual as dançarinas vão armar o cenário. Aqui falo de cenário, não
somente como imagem e formação de um lugar, mas de toda uma atmosfera que se cria
a partir desses dejetos de plástico branco. No início do espetáculo temos um cenário
206
A expressão “Fim de mundo” é aqui empregada em referência ao nome da música: Quarteto para o
Fim dos Tempos, de Olivier Messiaen, usada na obra SEM - um colóquio sobre a falta.
207
HERRMANN, E-mail 2010. Desde que encenei Iphigenia em 1996 estava com o desejo de montar um
trabalho abordando a falta, o nome SEM habitava meu desejo.”
208
Extraído do programa do espetáculo SEM - um colóquio sobre a falta, texto que aborda o processo de
composição da obra.
209
COHEN, 2007, p.120
68
aberto e pela platéia chega uma primeira dançarina, Dudude Herrmann, que começa
meticulosamente a organizar seu lixo de descartáveis. Em seguida, a outra dançarina,
Izabel Stewart, faz a mesma coisa. Aqui não vemos atrito nem desentendimento entre a
postura das duas personagens, somente um vazio que nos causa a disposição dos
adereços que lentamente vai formando o cenário.
Cadernos de planejamentos sobre o Sem, um colóquio sobre a falta de Dudude
Herrmann
Sem, um colóquio sobre a falta
aborda questões de nossa existência e traz um paradoxo:
“o vazio pelo excesso, ou o transbordamento do nada”.
Muitas pessoas estariam de acordo com a afirmação:
‘vivemos uma época vazia, na qual crenças e idéias
perderam o valor, onde as utopias não fazem mais sentido
e a própria faculdade de imaginar entrou em falência’.
Mas não seria contraditório fazer a afirmação
aparentemente oposta: ‘vivemos uma época de
abundância, na qual os avanços das pesquisas científicas
e das tecnologias nos apontam a superação do homem
como tal e anunciam novas formas de fabricar vidas’. De
qualquer modo, vivemos uma época de incertezas.”
210
Neste momento da diretora há o desejo de que as pessoas com quem trabalha se tornem
independentes, fortes como pilares autocentrados, que sejam livres no caminhar e na
escolha de seus pares. Na vontade e na urgência de artistas que se encontram por uma
parceria, que voltem a estabelecer uma hierarquia pelo produto: a dança, a obra ou o que
se faz. Quando o processo de composição e a experiência de construção são valorizados,
210
Sinopse de espetáculos – arquivo Benvinda Cia de Dança.
69
esse processo na dança compreende relacionamentos pessoais e artísticos o tempo todo.
Mesmo que no programa constem intérpretes, são intérpretes que simbolizam um todo.
E aí é que existe o risco. A obra Sem, um colóquio sobre a falta
já é um corpo
completamente fragmentado não tem sujeito, não tem eu
211
, comenta Dudude em
entrevista, e Izabel Stewart completa:
Nunca, em momento algum eu pensei em personagem, é
tudo muito misturado. Nunca pensei na criação de um
personagem, mas são mundos, e um mundo que vive em
mim e que eu levo esse mundo para a cena, por que ele
enriquece a cena, faz o trabalho e revela alguma coisa
sobre esse mundo. É sempre a gente que está ali levando
esses mundos. Apresentando um deles, não é figurativo, é
como uma cor. E existem outros mundos que servem a
outros trabalhos.”
212
Este trabalho de Dudude Herrmann começa a esboçar o desejo de trabalhar em parceria.
Dudude conta que pergunta à Izabel : você topa fazer esse trabalho?
213
De qualquer
forma Dudude se aproxima de Izabel com toda a estrutura já pensada e chama Izabel
para entrar com parceira em responsabilidade e autonomia criativa em relação à sua
participação e inserção de sua pessoa/persona dentro de um mundo ou personagem que
já está idealizada na idéia da obra. Izabel trabalharia em parceria compondo entre,
preenchendo os buracos dessa estrutura maior, no que já está estruturado construir seu
mundo e interferir no todo. Para Dudude a criação da intérprete se dá “aonde o material
dela era estimulado, [isto é] a partir de uma estrutura”
214
, é uma autonomia dentro de
uma direção.
“Convidei então Izabel e falei com ela que não tínhamos
tempo para divagações, precisava que ela entrasse no
trabalho sem duvidar dele, seu processo foi veloz, mas sua
gestação ficou introjetada por um bom espaço de tempo,
elocubrações.”
215
211
HERRMANN, 2008.
212
STEWART, 2009.
213
Conversa informal com Dudude por telefone, 2010. Arquivo: izabel, você topa fazer esse trabalho?
214
Idem.
215
HERRMANN, E-mail, 2010.
70
Caderno de Dudude Herrmann sobre o planejamento do Sem, um colóquio sobre a falta.
É o último espetáculo com Dudude Herrmann como diretora da Benvida Cia. de Dança.
Funcionado assim como um ritual de passagem, marcando o fim ou, como foi nomeado,
o desaparecimento da instituição Benvinda Cia. de Dança. A estrutura criada para
celebrar então, permite que a dançarina componha trazendo seus elementos e colabore
com sua força e estabeleça suas linhas de tensão, que por sua vez provocarão na
personagem de Dudude uma reação.
Dudude me convida para participar dos ensaios e trabalhar como ensaiadora. Nesse
ponto eu também funciono como um termômetro externo, que pontua e dá direções e
muda focos, ou potencializa uma intenção, ou potencializa a manutenção desses mundos
criados pelas duas artistas e as intersecções dessas forças. Trabalhei muito numa
projeção da minha própria imagem que recebo e devolvo como um jogo de ressonâncias
e dos relatos de texturas percebidas e criadas em cena.
O espetáculo teve sua estréia em setembro de 2006
216
no Espaço Cultural CPFL
(Campinas – SP) como parte da programação em torno do tema “O fim de um mundo
não é o fim do mundo; como sobreviveremos no século XXI?”.
216
Este espetáculo teve também estréia no exterior, no Festival Alas de la Danza, no Equador,
apresentando-se em outubro de 2007 nas cidades de Guayaquil e em Quito.
71
É aí que abro janelas para a criação, faço e traço
conexões neste lugar da expressão, da impressão, mais
exatamente me deixo impressionar com as coisas, os seres,
as ações. SEM - um colóquio sobre a falta surgiu assim,
de um dia para o outro, de um momento para o outro…
mas já estava no ar há muito tempo, pois a falta de noção
que todos nós temos de nossos rastros, do instante passado
e do tempo por vir é impressionantemente escancarada.
SEM dança isso, questiona, interroga, chora, numa
construção do nada a fazer, terra desolada e
desamparada. Neste trabalho há um rigor inevitável;
estamos falando sobre memória de futuro!
217
Para Izabel, esse momento de abertura temesse tempo dilatado, numa paisagem que
demora e que se constrói vagarosamente - é um trabalho contemplativo do público.
218
As artistas dispõem de um repertório corporal apurado e técnicas, não só de movimento,
mas também de processo de improvisação, estabelecendo uma conversação intensa,
trabalhando com a surpresa, em um jogo de compor dançando. Como a própria Dudude
gosta de dizer
219
: os participantes são provocadores e provocados.
Em cena estão apenas duas bailarinas que constroem e
desconstroem paisagens se valendo de um lixo plástico,
porém ‘limpo e ácido’ (...) Dudude Herrmann e Izabel
Stewart dançam em meio a uma estrutura coreográfica
‘ventilada’, isto é, onde a improvisação é usada como
linguagem cênica, tecendo as ações no interior do
espetáculo.
220
Uma outra característica do espetáculo que procura o modo composicional de estrutura
improvisacional, ou que nele permite a inserção de momentos de improvisação, é a de
ser também uma arte que se presta mais à experimentação: o tempo do contato com a
imagem é mais longo, e sempre são múltiplas as possibilidades de se criarem variantes
217
HERRMANN, 2008. Trecho que comenta sobre o processo de criação da obra SEM - um colóquio
sobre a falta, extraído do programa do mesmo. Obs: Programa é um folheto entregue ao público sobre
espetáculo, que pode trazer, além de informações de autorias da obra e participações, fotos, sinopses,
textos, críticas, a data e local do espetáculo.
218
STEWART, 2009.
219
Conversa informal com Dudude Herrmann no 1º encontro de coreógrafos do Festival Internacional
Nova Dança, em Pirinópolis, fevereiro de 2009.
220
Trecho incluído em material informativo com sinopse do espetáculo para programas e Jornais,
Arquivo Benvinda Cia. de Dança.
72
de uma cena.
221
O que a torna mais do que efêmera, a torna mutante, de apresentação
para apresentação. Existe uma estrutura de composição da obra, mas que permite que as
experimentações e improvisações ganhem força e texturas, que obedecerão o
rompimento da quarta parede, fazendo a obra se relacionar com o ambiente, com o
público, com as interferências externas, sonoras e de movimento. Sobre o processo
Dudude escreve no programa do espetáculo:
O aparecimento deste trabalho foi uma questão de
urgência e de necessidade. Tenho para mim que a maneira
como me expresso está diretamente ligada à vida
ordinária a qual todos nós vivemos. Como a vivemos?
Para mim esta é uma pergunta importante.”
222
Caderno de Dudude Herrmann, esboços de personagem, entorno, para a construção da obra. Caderno com
anotações de aulas junto com pesquisas para trabalhos.
Dudude já tinha toda a obra Sem, um colóquio sobre a falta
em sua cabeça há muito
tempo. Sua vontade de realizá-lo e sua concretude estava por um fio, esperando talvez
uma provocação de fora. A Benvinda Cia de Dança é convidada para participar da
Programação do Espaço Cultural CPFL de setembro de 2006, em Campinas. O tema
proposta na progamação era “O fim de um mundo não é o fim do mundo. Como
sobreviveremos no século XXI?” A obra convidada e agendada para participar seria:
221
COHEN, 2007, p. 120.
222
Programa de SEM - um colóquio sobre a falta.
73
“Na Planície, logo montanha, aparece o mar...”
223
, com Silvana Lopes, Izabel Stewart
e Dudude Herrmann. Essa obra já vinha de uma carreira que incluía uma turnê por
várias capitais do Nordeste do Brasil, dentro da programação Caravana Funarte, 2007.
Essa obra era dançada também somente por Dudude e Silvana Lopes, o que facilitaria
sua apresentação e locomoção, mas necessitava essencialmente de um espaço enorme
para que os dançarinos em cena ficassem pequenos, pela projeção de uma imagem em
que o ser humano pudesse ficar pequeno...
“Silvana dançou a maioria de minhas obras enquanto
Benvinda, seu corpo possuia um entendimento nato de
como abordar o movimento, nossa parceria foi de entrega
e confiança, Izabel esteve na Benvinda primeiramente
convidada por mim para atuar como assistente de alguns
trabalhos, logo a seguir passou a ser interprete, Heloisa
Domingues atuou na Benvinda Cia de Dança, as três
estiveram por um tempo ao meu lado atuando no campo
da cena, como intérpretes.”
224
Então, acontece o imprevisto, o espaço do Espaço Cultural CPFL, era pequeno e sem
urdimento. A produtora da Benvinda Cia. de Dança, Jacqueline de Castro, sugere à
Dudude que leve outra obra e não percam a oportunidade de apresentar. Foi quando,
então, talvez, até provocada pelo tema da Programação do Evento, o Sem apareça em
sua urgência de alguma forma praticamente pronto. O que Dudude chama de estrutura.
Para Silvana Lopes, então bailarina que estava trabalhando com Dudude, seria, naquele
momento, impossível a disposição de tempo para ensaiar e montar uma nova obra.
Então, a proposta é feita a Izabel e dentro de suas possibilidades, urgentemente, as duas,
juntas pudessem levar toda essa idéia à sua concretude.
Sem, um colóquio sobre a falta também se caracteriza como uma performance, com o
que usa de recursos “atemporais”, não é um espetáculo no qual se constroem
personagens, que dialogam em um campo fechado, mas sim personas que interagem
com o público, fazendo da boca de cena uma boca aberta para que os adereços, como
cenário, vazem para a platéia.
223
Na Planície, logo montanha, aparece o mar... Espetáculo realizado pela Benvinda Cia. de Dança com
Izabel Stewart e Silvana Lopes sob direção de Dudude Herrmann. HERRMANN , E-mail, 2010“Silvana
Lopes, Heloisa Domingues, Izabel Stewart, foram intérpretes de trabalhos da Benvinda Cia de Dança
224
HERRMANN , E-mail, 2010
74
Sem, um colóquio sobre a falta. Dudude Herrmann – foto Jacqueline de Castro, 2007.
A segunda cena do espetáculo começa interrompendo a anterior com uma sirene e uma
luz branca a 100%. Um pequeno black out e as duas dançarinas estão no centro do palco
com dois copos cada uma, e começam a passar água de um copo para o outro. Uma cena
estática com o barulho da água, sugerindo um tom ecológico, da importância da água
para a vida. Terminando esta cena começa uma disputa pelo resto da água que sobrou
em um dos copos. É uma cena que se apropria da construção do movimento através da
técnica de contato-improvisação, em que a disputa é feita com certo desleixo de
intenções, tornando a cena um pouco “bêbada”. Poderíamos pensar na violência entre
povos na disputa entre as riquezas e em busca da sobrevivência.
75
Sem, um colóquio sobre a falta. Izabel Stewart. Foto Guto Muniz, 2008.
O espetáculo tem como característica a repetição de quebras. Essas quebras são
características do espetáculo. Como sinais de emergência, emergência do tema
abordado, emergência dos mundos criados pelas improvisadoras. Essas quebras são
administradas pelas mudanças de foco, urgentemente, como no caso da cena dos copos
de água em que o foco é somente o barulho da água caindo dentro do copo. Para as
artistas, dar o foco para a água já era suficiente para entendimento naquele momento e
para todo “um discurso sem palavras”. Essa cena é imediatamente seguida de uma outra
em que o foco estará em outro lugar, de outra maneira.
Então, depois desta cena é que se estabelece a diferença entre as duas intérpretes, cada
uma se recolhe a seu mundo. No cenário, uma montanha de sacolas plásticas constrói o
fundo do palco para a personagem de Izabel caminhar. As duas dançarinas pontuam
76
dois tipos de comportamento antagônicos e entram em conflitos do uso, do consumismo
e da poluição do mundo pelo ser humano.
A figura frágil e dominada pelo consumismo e “não conscientizada” do mal ecológico,
incorporada por Izabel Stewart, provoca e alude de forma bem clara e contundente à
movimentação oriunda do repertório de dança clássica, muitas vezes retomando gestos,
com os braços e com as pernas, da coreografia de A Morte do Cisne, de Fokine.
225
Sem, um colóquio sobre a falta. Izabel Stewart. Fotos Guto Muniz, 2008.
A figura de Izabel começa a desvairar, transbordada de um domínio técnico e corporal,
com movimentos de técnica clássica ampliados com exagero. Brinca e patina com as
sacolas de lixo, vagueia e se diverte, perdidamente alienada no lixão. A partir deste lixo
limpo vai construindo sua própria roupa, uma blusa e uma saia, que relembram a roupa
da morte do cisne, desenhado para Pavlova por León Bakst.
225
Este trabalho foi criado e apresentado pela bailarina Anna Pavlova, um ícone da dança clássica.
Coreografia apresentada em 1905, no teatro Marinsky, com música de Saint-Sains e coreografia de
Mikhail Fokine.
77
Anna Pavlova – A morte do Cisne
A personagem
226
ou mundo de Dudude representaria a figura “esclarecida”, preocupada
com as conseqüências provocadas pelas ações da humanidade na natureza, que dá valor
a coisas não materiais e principalmente respeita a vida, a água e também se coloca como
vítima de uma situação de que não tem domínio total. Ela não adquire aqui qualquer
forma de técnica elaborada e refinada e sim um corpo cotidiano que age. Enquanto a
outra brinca com a sujeira, Dudude a limpa, com uma tranqüilidade de quem exerce
uma ação de trabalho. Faz o seu trabalho. Dudude reforça a imagem que tinha
visualizado para a personagem que é de uma garça suja de petróleo, fraquinha. Izabel
durante os ensaios torce o pé e por prevenção enfaixa o tornozelo. Dudude sugere que
Izabel absorva a faixa para o figurino.
Estabelece-se um desequilíbrio entre intenções e estéticas, fortalecendo cada uma das
dançarinas com suas particularidades. Vemos, na primeira personagem, interpretada por
Dudude Herrmann, uma figura forte, que está sempre limpando a sala dos sacos de lixo.
Seu movimento é de uma intensidade que chega a tremer e vai beber na movimentação
procurada pelo gesto Butoh, técnica japonesa, movimentação calcada na falta de
perspectiva e esperança com o mundo, na minimização de seus movimentos e na tensão
interna no corpo da dançarina. Como se uma personagem trabalhasse para libertar a
outra da cápsula alienada em que vive, consumindo e poluindo a Terra. E para alcançar
seu objetivo faz, com muita decisão, a agressão ao corpo da outra - a figura torpe e
frágil, dominada pelo consumo -, rasgando sua roupa e deixando-a nua. Portanto, existe
226
Apesar de estarmos na tentativa de pensar em mundos para criação de um estar em cena preferi usar
personagem para falar desses mundos, uma vez que não encontrei ainda uma palavra que representasse
isso melhor.
78
uma violência em prol da defesa de um suposto salvamento do Planeta, deixando claro
que a alienação é do ser humano em relação ao seu poder de mudar o meio ambiente e
ele é o culpado pela mudança climática da terra.
“Sem, Um Colóquio Sobre a Falta”. Dudude Herrmann – foto Jacqueline de Castro, 2007.
Enfim, de certa forma ela não tem interesse em falar diretamente sobre violência, porém
Sem, um colóquio sobre a falta
nos deixa a pergunta, não será esse um perfil da
violência desde o tema, a concepção, a movimentação das dançarinas, o vídeo e o
roteiro de músicas?
Em entrevista, Dudude Herrmann deixou bem claro que um tema como a violência é um
assunto muito falado da mídia e que ela não se interessa em reforçar coisas que já estão
por aí escancaradas. Que, sim, já dirigiu o trabalho Quero Que Isto Seja uma Cena para
o Festival Cenas Curtas-Galpão Cine Horto, com textos poéticos de Gertrude Stein, com
Elisa Belém e Daniel Antonio, e que o texto abordava a violência, mas que em suas
próprias escolhas de temas a trabalhar em suas coreografias esse assunto não é
abordado.
No entanto, essa violência poderia estaria em metáforas nas próprias tensões provocadas
pelas imagens que se criam, pelas músicas que se usam, como, por exemplo, o Quarteto
para o Fim dos Tempos, de Messiaen, composto em um campo de concentração, e
depois o Ensaio de Orquestra gravado, sob regência do maestro Karajan. A
79
interferência desse plano de atuação que as músicas vão tramando provoca uma
atmosfera e vai se formando um “terreno devastado, destroços, o pós-guerra. Para
além disso, é uma devastação, os campos de concentração, ... é um momento tão atroz,
que todo mundo tem um envolvimento com isso por mais distante que esteja da sua
história pessoal
227
, diz Izabel.
A escolha das músicas, em seu final, foi uma seleção e lapidação dentre algumas eleitas.
As músicas foram escolhidas por temas ou paisagens possíveis. Izabel procurou
escolher dentro do que já tinha de imagem de vastidão. Outras músicas levadas por
Dudude foram escolhidas ao acaso. Conta Izabel que “Dudude fechou os olhos, pegou
alguns cds em sua casa.
228
Depois, é claro, umas foram sendo descartadas e outras
foram ganhando cor e forma dentro da obra. Minha participação como assistente
também se insere nesse olhar de fora que trás questões e deixa em aberto considerações
sobre as músicas usadas. Em um primeiro ensaio que eu assisti, com quase tudo já
estruturado sugeri mudança na escolha de uma música que foi acatada e redirecionada.
Surge então um paradoxo, personagem e “persona”, improvisador. Acabo de descrever
duas personagens, e passo a falar em dois mundos, como sugere Izabel Stewart em
entrevista:
É sempre a gente que está ali. Quando eu falo de
devastação, e é uma devastação, é um vazio que eu tenho
dentro de mim. São espaços vazios, que temos nas nossas
vidas, nas nossas dores, nas nossas relações. E que algum
momento eu penso em personagem, é tudo muito
misturado. Nunca pensei na criação de uma personagem,
mas são mundos, e um mundo que vive em mim, e que eu
levo esse mundo para essa cena, ele enriquece a cena, faz
o trabalho revelar alguma coisa desse mundo. Existem
outros mundos que servem a outros trabalhos. A maneira
como eu apresento esse mundo é como se apresenta uma
cor.”
229
Em um trabalho que tem como linguagem a improvisação, estão, portanto, em cena
duas improvisadoras, e ao mesmo tempo, como as dançarinas são performers e estão em
227
STEWART, 2009.
228
Ibidem.
229
Ibidem.
80
constante improvisação, trazem para a cena seu mundo próprio, fazendo uma junção de
vida e arte, personagem e performer. A criação da personagem-persona sem dúvida
passa por essa aproximação do que podemos chamar realidade do artista. As
personagens ficam sujeitas às personas, que muitas vezes são redutoras, ficando presas
ao “mundo”, mas também em conexão com o universal e, então, podemos falar do
estabelecimento de arquétipos. Com Cohen, vemos que “o ‘performer’ vai representar
partes de si mesmo e de sua visão do mundo. É claro que quanto mais universal for esse
processo, melhor será o artista.
230
Nesse trabalho a composição improvisacional assume algumas características da
performance. Segundo Renato Cohen
231
, na performance se trabalha com persona.
Performer pode ser aquele que está vivenciando o tempo presente com sua própria vida
construindo essa “persona”.
Na performance geralmente se trabalha com persona e
não com personagens. A persona diz respeito a algo mais
universal, arquetípico (exemplo: o velho, o jovem, o urso,
o diabo , a morte etc.). A personagem é mais referencial .
Uma persona é uma galeria de personagens ( por exemplo
velho chamados x com característica y).”
232
Para Cohen, em seu livro Performance como linguagem, “o trabalho do performer é de
‘levantar’ sua persona. Isso geralmente se dá pela maneira: de fora para dentro (a
partir da postura, da energia, da roupagem dessa persona).
233
Para Dudude, através
da limitação e da individuação ela pode se separar mas também fazer parte e relacionar:
Preciso reaver o unitário para poder estar com os outros unitários como eu.
234
“Sem, um colóquio sobre a falta”. Dudude Herrmann e Izabel Stewart – foto Jacqueline de Castro, 2007.
230
COHEN, 2007, p.106.
231
COHEN, 2007, p.107.
232
Ibidem.
233
Ibidem, p.106.
234
HERRMANN, 2007
81
Na última cena Dudude despe com rapidez a intérprete Izabel, em um movimento de
agressividade, como que cortando a cabeça dos reis, ou através do símbolo da dança
clássica, que é representado pelo tutu branco da bailarina. Improvisar é tomar decisão,
como se toma decisão em um campo impregnado de imposição autoritária, de uma
relação calcada no discernimento do certo e do errado. Então, posso entender que a
improvisação caminha ou acontece em um campo em que a comunhão de interesses, ou
a tentativa de tomar decisões através de discussão, diálogo, e escuta, seja resultado de
um conjunto de pessoas que trabalham, em horizontalidade do uso do poder e
autoridade, com opiniões próprias e autônomas e decisões para que possam conviver
com diferentes opiniões alheias.
“Sem, um colóquio sobre a falta”. Dudude Herrmann e Izabel Stewart – foto Guto Muniz, 2007.
Para Izabel, Sem, um colóquio sobre a falta
é a construção de uma imagem só, através
de duas imagens distintas, que cada uma das improvisadoras tem. É assumido que cada
uma tem a liberdade de criar seu próprio mundo e de respirar e coabitar no mesmo
82
espaço, elas se relacionam diferentemente com o contexto e assumem e afinam as
diferenças.
"Da terra semeada de vazios, nada resta
Solo devastado
Uma montanha de nada
Só a falta
Sozinha
Louca desamparada"
235
Entre leituras possíveis, podemos fazer uma analogia da “alienação ecológica”, persona
apresentada por Izabel, e a dança tradicional, também alienada, que vive de sonhos e
fantasias, cercada de luxo e soberba. Sua desconstrução seria operada pela dança
moderna, que rompe com a indumentária ou espartilhos, representada muito bem pelo
coreógrafo Merce Cunnigham que, nos anos 60, liberta a coreografia do desenho
criando um novo estilo de dança
236
, e depois pela dança pós-moderna, “persona” de
Dudude Herrmann, que estabelece uma posição mais radical em relação à libertação dos
gestos e da composição.
Sem, um colóquio sobre a falta
é realizado dentro dos parâmetros da Nova Dança, que
tem como ponto forte a improvisação, a não separação da vida e da arte, e a não
estrutura hierárquica no trabalho coreográfico. Usa a improvisação dentro do espetáculo
e tem como pontos fortes de interseção o despojamento e a relação entre os
improvisadores fundamentalmente em estado de alerta.
237
Nessa composição, a
improvisação tem como marca referencial o espaço, ou a composição do espaço, às
vezes, mas essencialmente tem marcas regidas pela trilha sonora por onde a linha do
espetáculo acontece. A obra tem um compromisso com a maneira despojada do
encontro com o imprevisto, na construção do espetáculo a cada dia diferente de
apresentação, e faz uso de técnicas pós-modernas como o contato improvisação, o
release e técnicas corporais contemporâneas
238
.
235
E-mail de Izabel, 2009.
236
In BANES, 1980, p. 15.
237
AGUIAR, 2007. Ver palestra de Giovane Aguiar no EDH – comentário das fortes características da
Nova Dança: despojamento e relação entre os improvisadores.
238
Cf. RODRIGUES, Eliana. Contato Improvisação Dança e pós- modernismo. EDUFBA.
83
A composição dessa obra, dentro da improvisação, muitas vezes segue a trilha sonora
por onde a linha do espetáculo acontece. Dudude afirma que atualmente usa a música
como parceira, não para desenhá-la ou acompanhá-la em gestos e movimentos: a música
causa atmosferas e dá uma linha de contorno ao próprio espetáculo, às vezes pontuando
com o seu início e fim, um “quadro”, uma pausa de transferência, a pausa, e o início de
outra música, uma divisão em capítulos ou como se através da música pudéssemos
passar páginas de um livro, e durante essa transição, fazendo intervalos, trazendo a
pausa e, depois de virada da página, a outra formação da nova página chegaria aos
nossos olhos e ouvidos, pela grafia de disposição das letras, pela dinâmica das músicas,
pela mudança de luz, pela mudança de estado das intérpretes.
A construção das cenas tem um compromisso com a maneira como se constrói uma
linha dramática e conta com a construção in loco que a improvisação provoca. O
inusitado e a postura aberta para o que pode vir a ser, a disponibilidade que o
improvisador assume em cena comportando-se em um campo de despojamento, do
improviso, da brincadeira da dinâmica, ora provocada pela mudança de foco, ou pelo
espaço, ou pela mudança de atmosfera, enfim, a improvisação exige do improvisador.
Sua presença é que faz dela um dos pontos de luz e emanação de fluxos de energia
constante para estar a fazer um espetáculo.
Para Izabel “o trabalho tem uma estrutura que dá uma formalizada. (...) uma estrutura
ventilada, que é porosa, vaporosa
239
, e é nesse sentido que a estrutura equivale a uma
imagem de esqueleto ou a andaimes, permitindo através de escolhas mais abertas e
casuais preencher os vazios - ou não - durante sua apresentação. Essa estrutura, nesse
caso, está na direção de Dudude Herrmann, que traz uma forma já pensada e
orquestrada, mas que cabe o convite para o outro entrar e brincar fazendo que a
estrutura viva na relação entre os intérpretes e cada um com seu compêndio. Para
Dudude cabe a cada improvisador ser autônomo em suas escolhas e agir sempre na
urgência e com intensidade. Em alguns momentos Dudude diz: “se você não reagir às
minhas provocações eu vou te comer”
240
, de certa forma é uma provocadora intensa.
Ela traz para o outro intérprete um lugar não hierarquizado de forças, em outras
palavras: contracene comigo sem que nenhuma de nós seja a protagonista. E essa
239
STEWART, 2009
240
Conversa informal com Dudude por telefone, 2010. Arquivo: izabel, você topa fazer esse trabalho?
84
eleição envolve o improvisador de tal forma tão intensa que provoca um desafio para o
improvisador que deve descobrir sua maneira de penetrar nessa estrutura, como comenta
Izabel:
Eu tento borrar esse limites do que é meu, pessoal,
íntimo, privado, de uma coisa que faz sentido ser
compartilhada. (...) A estrutura precisa ser preenchida,
todos os vazios que ela deixa, e são mil possibilidades de
dar cor. Isso é muito desafiador.
241
Enfim, nesse espetáculo, também como processo de construção e de composição de
percepções, ambas as improvisadoras são responsáveis, fazendo um duo interpretativo
sem protagonistas e sem hierarquias nas relações de criação e atuação. Retoma-se assim
uma das principais características da Nova Dança - a de não-hierarquia entre os
artistas-, como podemos ler no programa da obra, escrito por Dudude Herrmann:
Meu modo operante de acesso: criar estruturas cênicas
onde o intérprete seleciona e escolhe suas ações todo o
tempo, um exercício proposital de individuação. A sedução
é o risco e o atrevimento é a improvisação.”
De qualquer maneira esse modo de composição sem hierarquia está em processo e
depende do trabalho e da parceria, podemos observar diferentes posturas da diretora.
No caso do Sem, um colóquio sobre a falta, temos a presença de uma diretora que sabe
o que quer e aonde quer chegar e orienta a intérprete através de discussão e afinação do
entendimento da obra. Dudude comenta:
"como diretora estou sempre atenta no desvio ou equívoco
por parte do interprete que lida com o material e assunto
colocados, caso eu, no lugar de concepção e direção não
esteja acordada, trabalhamos mais esclarecendo as ações,
uma questão que considero importante é a terceirização,
isto é , a partir da aparição do trabalho, eu delego para o
trabalho as necessidades, o que ele deseja, ele passa a ser
o sujeito de toda a movimentação que o envolve, então
farejo as pistas e procuro ser fiel para com a excelência de
cada trabalho que construo, então estou na condição de
estar "a serviço da obra” e desejo que o(s) intérpretes que
241
STEWART, 2009
85
trabalham comigo tenham também esta postura de
simplicidade e escuta de estar a serviço de algo que nesse
caso é sempre maior do que o intérprete/improvisador.
Então como diretora e idealizadora de meus projetos estou
na condição de delegar para "algo" que urge em se
fisicalizar e posso dizer que minha perseguição é
conseguir que minha pessoa desapareça e em seu lugar
esteja a arte, meu corpo instrumento está a serviço da
produção de significados, significantes, em uma prática
intensa de produção de sensibilidades.”
242
Podemos também destacar outras instruções/indicações de trabalho de Dudude que
revelam modos de pensamento sobre o estar em cena e sobre o preparar os bailarinos
antes de uma improvisação. Neste caso, são falas recolhidas em ensaio no Estúdio antes
de mapear uma praça para fazer a obra Como Habitar uma Paisagem Sonora, com a
presença de Tarcísio Ramos, Izabel Stewart, Silvana Lopes, Marise Dinis, Paola
Rettore, Paulo Azevedo:
“Sou eu quem sou pego... vai deixando esta figura
aparecer. Ela não é você. Está deixando ser.
(...)Atravessando – Paisagem. Não temos a intenção de
provocar. Não estamos aqui para sermos provocativos.
Sumir na multidão. Dar este presente. Função de fazer
paisagem, você está conduzindo e produzindo imagem do
outro. O que você escolhe da paisagem do outro. Você
está regendo um mapa sutil. (...) Anos de treinamento para
exercitar este instrumento. Anos de treinamento para
exercitar este instrumento. Imagem: movimento largo e
equalizar a resistência. O largo pode ser na cabeça,
condição de rasgar e espaço de cortar. Improviso: seleção
de escolhas. Não insista - se caiu no estrangulamento saia.
Imagem... rabo, rastro, tem rabo e rastro que sou eu. O
tempo está escolhendo. As corridas podem manter o jogo
de composição. Se me sentir esperando, você não está
esperando nada. A composição é uma equação, para não
se sentir sozinho. Somos sempre +1 no espaço. Não
estamos fazendo nada importante. Isso que nos delega a
liberdade de estarmos fazendo algo muito importante. (...)
Hoje em dia eu não quero mais facilitar.”
243
242
HERRMANN, 2010. “Terceirização, o sujeito é deslocado para a obra, o que a obra me pede. É a
obra que me demanda atitudes, ações.” Comentário de Dudude.
243
Anotações minhas durante o ensaio, 2007. Belo Horizonte.
86
Para Izabel duas coisas que Dudude fala sempre e que servem “para a vida” são: “está
valendo o tempo todo e olha para os lados.”
244
E completa: “à improvisação cabe a
reação aos estímulos, e não precisa fingir nada, é uma organização dos sentidos.”
245
Todas essas relações de autoritarismo de hierarquias aparecem nesta obra contrapondo-
se à proposta do modo processual de composição e atuação não hierarquizada que
Izabel, Dudude, os elementos, adereços, a água, as músicas, os espaços da cena - em
contradição com o modo de realizá-la em seu processo - enfatizam.
A obra questiona essas relações hierárquicas. Dudude Herrmann denuncia uma estrutura
hierárquica de relação que ela própria evita e contra a qual luta. Em um sentido ilusório
ou idealista, o processo de composição em oposição ao “enredo”, isto é, o que acontece
em cena, deflagra conflito e os embates.
Como afirma a própria Dudude em seu texto Dissertação sobre um nada, o trabalho
com improvisação é uma “habilidade de crença e acarreta na esperança de que o outro
possa estar. Excelências na maior valia da existência. Fluxos de positivismos na
humanidade, homem planeta seguindo adiante na evolução”.
246
Mas não almeja a
formação de um grupo ou coletivo.
A parceria formada pelas duas intérpretes já modifica a forma de estruturação do
trabalho. As duas colaboram com a pesquisa do tema, da movimentação, da escolha da
música, da discussão do cenário, são as duas provocadoras e provocadas contribuindo
para a formação desse espaço que será o provocante.
Nos últimos anos, ambas dançarinas estiveram estudando dança na França, e em
parceria trabalharam com improvisação. O encontro de Dudude Herrmann com Tica
Lemos, nos anos 90, faz com que volte a trabalhar com improvisação, retomando
métodos, rememorando e levando novamente para o palco esse modo de composição já,
então, tão trabalhado desde os anos 70, quando ela era bailarina do Trans-Forma, sob a
direção de Marilene Martins.
244
Ibidem.
245
Ibidem.
246
HERRMANN, “ Dissertação Sobre Nada”.
87
Vê-se, portanto, que este último espetáculo de Dudude Herrmann marca o fim também
da Benvinda Cia. de dança. Companhia que, mesmo buscando informalidade, sinalizava
a repetição de padrões hierárquicos nos quais as companhias se estruturam. “Na
verdade”, como pontua a diretora Dudude Herrmann, “Sem, um colóquio sobre a falta
é
um divisor de águas
247
, o último da Benvinda e o primeiro da nova estrutura de
trabalhos em parcerias com outros artistas.
Em um trabalho de modo composicional cabe também a repetição de moldes com que
hoje a dança constrói uma obra. Ela não desaparece todos os dias e passa a ser
reconstruída repetidamente, ela existe na estrutura e essa estrutura vai ganhando cor de
acordo com as seleções de cada apresentação. A repetição de um espetáculo
improvisado acontece através de algumas cenas já estabelecidas, mas nessa estrutura
ventilada “a repetição vai criando um caldo. Para Tica, isso de não repetir é um tabu:
quando uma coisa dá certo, a gente tenta repetir aquilo de novo, fechando, assim o
espectro”.
248
247
HERRMANN, 2008.
248
STEWART, 2009
88
A Arte da Desaparição: DESAPARECIMENTO
Benvinda – Cia de Dança: Dudude Herrmann, Margo Assis, Luciana Gontijo, Ana Virginia Guimarães,
Sérgio Marrara (Pena), Patrícia Werneck, Ana Gastelois. Foto: Mariana Martins, 1996. Esta foto pode ser
vista de trás para frente, como metáfora da desaparição da Cia, sugestão de Dudude Herrmann.
Dudude anuncia o desaparecimento da Benvinda Cia. De Dança em março do ano de
2007. É preciso observar a maneira de sair de cena, de findar, evocando a poesia da
palavra desaparecimento, como algo que magicamente, misteriosamente, sai de nossos
domínios sensoriais, como se não conseguíssemos mais vê-la, tê-la, pegá-la, por não
sabermos onde ela se encontra, e ficamos com a imagem, com a memória dela. É sem
dúvida mais do que um simples terminar, é uma manifestação política como diz Hakim
Bey:
A partir da minha interpretação, o desaparecimento
parece ser uma opção radical bastante lógica para o
nosso tempo, de forma alguma um desastre ou uma
declaração de morte do projeto radical. Ao contrário da
interpretação niilista e mórbida da teoria, a minha
pretende miná-la em busca de estratégias úteis para a
contínua ‘revolução de todo dia’: a luta que não pode
cessar mesmo com o fracasso final da revolução política
ou social, porque nada, exceto o fim do mundo, pode
89
trazer um fim para a vida cotidiana, ou para as nossas
aspirações pelas ‘coisas boas’, pelo Maravilhoso.”
249
Desejos de que as pessoas se tornem independentes, fortes como pilares autocentrados
que sejam livres no caminhar e na escolha de seus pares. Retirando-se assim, talvez, até
a figura do diretor, são pares, não importa funções, se são coreógrafos, diretores,
criadores da ideia, e sim que são artistas que se encontram. Talvez se volte a estabelecer
uma hierarquia pelo produto: a dança, a obra.
Em termos situacionistas, desaparecimento do artista é ‘a
supressão e a realização da arte’. Mas de onde nós
desaparecemos? E algum dia seremos vistos ou ouvirão falar de
nós outra vez? Iremos para Croatã: qual é o nosso destino? Toda
a nossa arte consiste em uma mensagem de adeus para a história
– ‘Fomos para Croatã’ – mas onde é isso , e o que faremos
lá?
250
Esse discurso e posição política, em relação às dificuldades encontradas pelos artistas
no que se refere às políticas públicas do Estado, também é uma preocupação da artista.
Em texto publicado pelo ENARTCI
251
, Dudude vai pontuar a questão da falta de
permanência de uma política cultural no Brasil, e sua constante mudança que vai na
contramão da carência da arte “de tempo para aprendizado, de maturação, de
descobertas de linguagens artísticas”. Por isso ela desabafa depois de 15 anos de
resistência à frente de uma companhia de dança importante no Brasil:
“Sinto tristeza e muito desânimo, quando a cada ano,
temos quase todos que começar tudo outra vez, batendo de
frente com a nosssa única opção, pensar e fazer projetos.
Vamos aos poucos nos perdendo nos sonhos, nos desejos,
na imaginação de criarmos e inventarmos de acordo com
nossas urgências essenciais.
252
249
BEY, 2001, p. 64
250
Ibidem, p. 67
251
HERRMANN, Dudude. ENARTCI Ano VI. Publicação Hybridus.2008. Belo Horizonte, p.51.
ENARTCI - Encontro de Dança Contemporânea de Ipatinga - 6ª Edição
252
Ibidem.
90
Cartão de desaparição da Benvinda Cia. de Dança. Designer: Viviane Gandra. 2008. Verso.
Cartão da desaparição da Benvinda Cia. de Dança. Designer: Viviane Gandra. 2008. Frente.
Foram 15 anos de muitos espetáculos, muitos artistas e conquistas financeiras. Como já
apontei, a Benvinda Cia. de Dança, mesmo que extremamente informal, era repetidora
91
de padrões hierárquicos através dos quais as companhias e os governos se estruturam. O
desaparecimento, como ponte, marca o início da possibilidade de atravessar, de seguir
outro caminho, um atalho, ou simplesmente um caminho diferente, seja lá o que for.
Com a decisão de rompimento com a estrutura institucional mediante o
desaparecimento, o espetáculo é construído com dois pilares formados pelas dançarinas,
e expressa a idéia de encontrar artistas dispostos e com necessidades de realização pela
dança. Pode-se fazer uma analogia dessa nova formatação com uma caixa de entrada de
e-mails vazia, isto é, sempre com disponibilidade para a entrada e saída de pessoas e de
idéias em movimento, um lugar por onde o ar circula livremente, que se faz existir
exatamente pela possibilidade de ficar vazia, cheia, meio cheia, e tomar novas
configurações. Dudude expressa também a vontade de que possamos encontrar saídas
para encontrar parceiros que apostem nas iniciativas que possam perdurar por um tempo
maior que o tempo de um projeto:
“Enfim, desaparecida Companhia e Estudio mais uma vez
vejo , confirmo e afirmo que na verdade Benvinda/Estudio
dependiam única e exclusivamente do meu querer. E assim
vou levando a vida, mais atenta para não cair novamente
na sedução do Mercado e fazer o que de fato vim fazer
aqui nesta existência, trabalhar e trabalhar não perdendo
a dignidade jamais e não compactuando com o sistema de
eleitos. Muitos foram meus colaboradores enquanto
intérpretes, agradeço a todos, pois cada um foi particular
a sua maneira e aprendi e ainda aprendo tais diferenças, o
que me ajuda no entendimento do meu próprio trabalho e
sua necessidade de existir.”
253
Mas de onde a Benvinda desaparece? Esta é a pergunta. Como o processo de
improvisação instaura e convive com o desaparecimento? Instantaneamente desaparece
o momento, momento de criação, esse já foi... A dança é efêmera, quando a estrutura é
improvisacional, não só a dança: a condição de movimento é efêmera, pois o que vale é
o presente e ele já passou! A desaparição só é catastrófica no sentido matemático “de
uma repentina mudança topológica. O que poderia ser mais “desaparecedor” que o
corpo em movimento, em suma, a dança? O desaparecimento da Benvinda reforça o
“lugar algum” da dança, questionando o corpo-matéria, o corpo-energia, o movimento
253
HERRMANN, E-mail, 2010.
92
em si. Nesse sentido, a desaparição é uma forma de composição, não só como uma
pausa que em seu silêncio compõe temas em sua ausência. A desaparição faz parte da
composição, pois é uma forma de compor na ausência.
O desaparecimento da Benvinda reforça a Benvinda em sua existência: seus processos
de busca de relações humanas mais profundas e de comunhão, e os processos de
composição de desaparecimentos ou de improvisação, na desconstrução de relações de
poder internas à Cia. e externas com o mercado. Não nos esqueçamos de que o
improvisador, aquele que está sempre interagindo, deve saber a hora de sair, ou de
entrar, o lugar vazio também é composição, a pausa também é música, e o
desaparecimento se faz inevitável para que nos rastros de nossas memórias se estruture
um corpo, provocando em sua percepção a memória, cada vez mais aguçada para aquilo
que de certa forma já passou.
Segundo Jean Baudrillard, para se criar uma imagem deve-se extrair do objeto tudo o
que se pode ver e perceber, como suas dimensões, “seu peso, seu relevo, o perfume, a
profundidade, o tempo, a continuidade e, é claro, o sentido.
254
Depois de se retirar
seus elementos, nessa desaparição ainda restam os vestígios. Vestígios viram um campo
aberto para a composição, a imaginação, para a próxima composição.
Tudo está na arte de desaparecer. Mesmo assim essa
desaparição deixa vestígios, seja ela o lugar de aparição
do Outro, do mundo, ou do objeto.”
255
Politicamente o que está sendo envolvido na declaração de desaparição é exatamente
seu surgimento. Isto é, o modo de produção não será, nessa nossa contemporaneidade,
nada senão a imagem de si mesmo, como uma extensão do Mesmo
256
. Desaparecer a
Benvida Cia. de Dança, tornar notória e pública essa desaparição e festejá-la e
comemorá-la e sempre recordá-la: a desaparição, diante do público e da imprensa, é o
que a faz existir, o vestígio é a anunciação de sua desaparição e, claro, de seu rastro, sua
254
BAUDRILLARD, 1997, p. 32
255
Ibidem, p. 32 e 34.
256
Cf. ibidem, p. 35.
93
presença. Para Baudrillard, “sente-se que alguma coisa quer ser fotografada, quer
tornar-se imagem e não é para durar: é, ao contrário, para melhor desaparecer.
257
Na improvisação Dudude tem sua própria estratégia de composição ressaltando, em
entrevista, que: “Improvisação é um exercício de desapego. É um exercício de
desaparecimento.
258
Desaparecer como brincadeira para ser descoberto pelo outro. A anunciação do
desaparecer convoca para a brincadeira, mantendo a tensão do plano, percebendo as
linhas, a luminosidade, do momento. Há que anunciar para desaparecer, preparar toda
percepção envolvida para a captura exata do momento em que se desaparece. Há essa
força do envolvimento da convocação, pois é na observação do momento seguinte, após
a desaparição e sua inteireza, que está a força da mesma para deixar impresso em seu
rastro sua ausência, sua presença.
Eu desapareço por eleição do outro, de outra paisagem; observe-se que aparecer e
desaparecer não significa falar de um outro lugar, pode ser de um mesmo lugar, mas é
em outra configuração, outra Gestalt
259
. Dudude usará a palavra configuração,
ampliando o significado conhecido da percepção: lugar, tempo, textura, cor...
Configuração é um somatório de coordenadas, somatório de elementos, de linhas em
um plano “xy” por Dudude, por exemplo: “Desaparecer nesta configuração para
aparecer em outra.
260
O foco eleito faz uma imagem desaparecer em sua potência. O improvisador aparece ou
estabelece o foco, em linhas de força, para ver aquilo que contém a imagem com
desaparição.
257
Ibidem, p. 31.
258
HERRMANN, trans. 2008. Transcrição das fitas gravadas por mim da Oficina de Improvisação
ministrada por Dudude Herrmann em São Paulo, Galeria Olido - 25/07/2008.
259
GARDNER, 2003, p.125.
260
E-mail de Dudude Herrmann. 5 de junho de 2009 14:29. Assunto: Re: Desaparecimento, desaparição,
desaparecendo... dia 05 de junho de 2009; assunto: desaparecimento, desaparição, desaparecendo. Em E-
mail à Dudude eu a desejo uma boa desaparição ou desparecimento ou desaparecendo e ela me responde:
(...) DESAPARECER NESTA CONFIGURAÇÃO PARA APARECER EM OUTRA.
94
DESAPARECER é um Estado
Quando Dudude pensa em desaparecer, duas imagens fortes, imagens no sentido de
imaginação, imediatamente se formam para mim. Veja que, só o anúncio e o
pensamento de desaparição já provocam a formação do rastro. A primeira relação com a
imagem é aquela em que a dançarina atua para desocupar aquele espaço que ocupava
antes, deixando que a paisagem se faça aparecer com sua ausência. Eu não estou falando
em falta, mas ausência, aquela que nos faz sentir em sua ausência, e sua não presença, o
desejo, rastro, a memória.
Outra imagem é aquela do estado (estado nu), como, no famoso conto, a roupa do Rei
está no imaginário, na construção do imaginário, da imagem do desaparecimento.
Existir não está em questão.
Essa imagem provoca uma sensação e torna-se um estado em mim. Através de meu
imaginário e da formação dessa imagem de desaparição, vou me misturando à
paisagem, fazendo com que eu pertença a essa imagem, ou a esse lugar, nu, dissolvendo
e criando transparência através de meu próprio corpo, não me tornando invisível aos
seus olhos, mas fazendo em mim um estado de pertencimento à paisagem, como
elemento de um conjunto, como a desaparição do “um” em lugar de um “todo”. Para
Cézanne, o ponto de fuga sai da própria pintura e vai para o olho de quem vê.
261
Em conversa com Izabel Stewart, ela comenta a palestra “My Stroke of Insight”, da Dra.
Jill Bolte Taylor
262
, neurocientista de Harvard, sobre sua experiência com um derrame
em 1996, e faz relação com essa imagem criada pelo cérebro em que as células do corpo
misturavam-se com o ambiente. É o estado de desaparição que o improvisador, às vezes,
procura. Em textura, misturar-se com as outras coisas.
261
Cf. JEUDY, 2002, p.120.
262
Em E-mail, Dudude indica esses dois vídeos e os comenta:Estes dois vídeos são de uma palestra
com a Drª Jill Bolte Taylor, uma Neuroanatomista de Harvard. Ela teve um derrame e conseguiu estudá-
lo e se lembrar de tudo. Esse é o relato de sua experiência descrito de forma apaixonada e magnífica.
Quanta emoção! Ela escreve detalhadamente como foi a experiência de Oneness, una com o todo,
resultante como efeito colateral. Imperdível, não deixem de ver.”
Parte1:http://es.youtube.com/watch?v=m0O0Il8Vn_g&feature=related
,Parte 2:
http://www.youtube.com/watch?v=thWwpYNN3-A&NR=1
Tradução e Legendas: Nayara Alves e Atílio Baroni
95
Fazendo parte do conjunto ou não, eu sou mais um elemento, eu me desapareço, o que é
diferente de “eu desapareço”, pois há uma força de escolha e poder. Eu exerço essa
força, eu exerço a escolha. Tudo isso no campo do imagético de quem atua em sua
própria desaparição. Em termos práticos, o improvisador procura, através de sua
percepção, de seu movimento, da posição em que se encontra e da relação que
estabelece com o lugar, com os lugares, com as coisas e com as pessoas que ali estão,
fazer esse jogo de ser foco ou não, de trazer o olhar do outro para o objeto ou não,
mudando a dinâmica, posicionando-se de forma que apareça ou desapareça, ou se
misture às pessoas ou formas, fazendo uma mimese com o público, criando através de
movimento uma diferença ou uma igualdade, fazendo-se comum, integrando-se ao
momento e ao espaço, à arquitetura e ao movimento do lugar, ou não.
A instalação do querer do improvisador, de sua escolha, de sua vontade, da eleição de
fazer parte ou não dessa paisagem, torna ou provoca um corpo, uma diferente textura.
Internamente, a sensação de desaparecimento, que fica no imaginário do improvisador,
é perceptível em sua atuação pela eleição ou escolha de modos de atuação ou ação
dentro da cena. Como expliquei anteriormente: um “fato-imaginário”, como chamo essa
percepção atuante, o que em si já é um paradoxo.
O que eu estou chamando de estado é um estado que vem da minha própria imaginação,
e esta pode ser percebida ou não: depende do foco, depende da Gestalt, depende de
quem vê. Como a criança que se esconde atrás de uma fraldinha de pano ou de um
travesseiro, cobrindo somente seu rosto ou seus olhos, e a mãe interagindo e entrando
na brincadeira diz: “Cadê o meu bebê? Sumiu!” E depois a felicidade do bebê quando
descoberto com a retirada da fraldinha e, ao descobrir seu rosto, é descoberto como um
todo.
Em Dudude Herrmann esse processo de desaparecimento ocorre em suas
improvisações. Dudude está preocupada em resolver questões que sua formação e sua
vivência profissional permitem, isto é, o que a sua percepção, já tão treinada, organiza, e
ir além. Ela está preocupada com sua própria relação com os elementos, objetos, sons,
público, pessoas, luzes, cores, com o outro improvisador. Dudude Herrmann contracena
com esses elementos. Ela sabe que provoca uma imagem e sua conseqüente
96
desaparição, em momentos consecutivos, pois para ela a imagem é algo provocante nela
mesma e no espectador. Tudo isso mantendo a observação interna de suas escolhas, de
modo de estar ali, naquela hora daquela maneira. Pela imagem, o mundo impõe sua
descontinuidade, seu esfacelamento, seu inchamento, sua instantaneidade artificial.
263
As escolhas também estariam em um tempo descontinuado. De certa forma ela está
sempre em embate com a paisagem ou com outro improvisador. Ela denomina o
ambiente de provocante, e o improvisador, ora provocador e ora provocado. Ela está em
embate.
Dudude tem a preocupação da percepção do outro
264
, por isso gosta de explicar para o
público que está em improviso, para que o próprio espectador já se nutra de outras
percepções e já se coloque de forma diferenciada como público. Esta preocupação com
a formação da imagem do outro é como se ela tivesse um zoom ou um foco nas mãos e
trouxesse relevância, ou colocasse em primeiro plano o que ela elege. Como uma
iluminação em palco italiano, foco, penumbras, contraluz e toda ambientação que pode
ser transformada e criada pela iluminação.
A intenção de mudança nessa paisagem está no modo de percepção do outro, daquele
objeto, ou daquele lugar, transformado pela sua presença/ausência, - mudar a imagem,
ou trazer o foco para aquilo que se deseja seja visto em primeiro plano é uma
perseguição para a improvisadora, no sentido de uma percepção gestáltica. Citando
Baudrillard: “e o sujeito só é um bom médium fotográfico se entra nesse jogo, se
exorciza seu próprio olhar e seu próprio juízo estético, se frui de sua própria
ausência.
265
263
Cf. BAUDRILLARD, 1997, p31.
264
A Prosa do Mundo
“Fala-se muito sobre o outro e o outro é uma inexistência.
Se sou eu a olhar o mundo
Sou eu a olhar o mundo e ponto final!
Que importa o que dizem as filosofias/
Importa essa sensação de que o outro só é uma teoria sobre ele:
Se me dizem das suas angústias ou prazeres
Só o sentido do outro importa
E o absurdo de tudo ronda esse poema
Qual transgressão és capaz de cometer hoje
Com tua perversão de cada dia?
Essa sim me interessa, enquanto és o outro”
Poema de Vera Casa Nova usado na trilha sonora da Obra: “Como habitar uma paisagem sonora.”
265
BAUDRILLARD, 1997, p.31.
97
A paisagem, em si, não está sendo formada no sentido “estético”, e sim em um sentido
de construção de composição. Ela acontece por consequências. Acasos fazem parte dos
momentos. Nessa interferência da desaparição, a mudança do olhar é procurada pela
coreógrafa. Então, está também na percepção do outro daquele objeto transformado por
sua interferência, seja através de sua presença ou de sua ausência, alternadas em um
jogo de composição.
A coreógrafa Dudude nem sempre está preocupada em ter o domínio de fazer ou
compor uma paisagem, essa também acontece por acasos, pela mudança de
luminosidade (uma nuvem cobriu o sol). Ela busca mais a mudança de olhar que sua
interferência corpórea e/ou seu movimento provoca. Há uma seleção interna paralela ao
que ocorre com o ambiente. A paisagem, uma vez formada com sua presença, passa a
existir depois em sua ausência, como um rastro daquilo que foi e passou; afinal ela não
é somente uma improvisadora: é também uma provocadora.
Mesmo assim essa desaparição deixa vestígios, seja ela o
lugar de aparição do Outro, do mundo, ou do objeto.
Alías, é a única maneira de o Outro existir - na base de
seu desaparecimento calculado (seguindo regras do jogo
da desaparição) tudo o que se engendra conforme o modo
de produção não será nunca senão a imagem de si mesmo,
uma extensão do Mesmo.”
266
O desaparecimento como uma posição política.
(...) a arte de fazer desaparecer o outro.
Isso exige todo um cerimonial.
267
Retomando a análise do “corpo político” de Sally Banes e do “consenso” para o
trabalho, temos questões profundamente políticas, que envolvem não só o indivíduo,
mas até mesmo um país. A “legitimação do subversivo”, já lamentava nos anos 50
Lionel Trilling, crítico de arte e literatura, citado por Hal Foster
268
, faz desse modo de
composição através da improvisação e da performance a propaganda da venda da arte
266
Ibidem, p. 34.
267
BAUDRILLARD, 1997, p. 47.
268
Cf. HAL,1996, p. 33.
98
nos EUA, representando este país perante outros, tornando-o como uma bandeira da
democracia, de pura expressão de liberdade, e colocando a arte abstrata,
reconhecidamente, como embaixadora dos EUA, e o capitalismo como forma político-
econômica e social frente ao que a URSS trazia para o Ocidente, na época da Guerra
Fria. Institucionalizou-se assim o que antes era uma arte a serviço de um novo
pensamento, de uma nova razão para viver, para não cair nas armadilhas da vida
programada - amor e sexo livres -, escolhas individuais respeitadas, maneiras
alternativas de viver, a comunidade como expressão de convivência arrojada e
consensual, libertária. Como se o acesso ao capital e ao mercado, que gera
oportunidades e dá chance a todos, estabelecesse uma noção diferenciada de uma
democracia, e um governo que visasse ao povo, com o povo, pelo povo.
É interessante pensar que esse foco para a liberdade de expressão de cada um, a
individualidade, e consequentemente a valorização do indivíduo como cidadão, coloca o
ser humano como peça fundamental de seu próprio destino, e do destino do Planeta
Terra, e responsável individualmente pelas questões que afligem o mundo. É via de mão
dupla: mais independência, mais cidadania, mais responsabilidade, mais particularidade.
A improvisação como modo composicional reforça, ainda hoje, aqui no Brasil, essa
busca pela “voz de cada um” ou pela “democracia”, ou “consenso”. O problema está em
que não existe mais o mesmo contexto do surgimento do movimento. A atitude
transgressora em alguns casos institucionalizou-se, fazendo às vezes de forma
autoritária suas apresentações, exigindo, por parte dos artistas, do público (aquele que
deveria estar no papel de participante como característica da própria performance) um
comportamento de silêncio e imobilidade. Isso se contrapõe ao que os performers da
Nova Dança estabeleceram: que os espectadores eram tão importantes, porque se
delegava a eles uma “força” ou “energia”, sem que eles soubessem, ainda que muitas
vezes fosse árduo o trabalho de assistir às improvisações, pois não tinham hora para
acabar e os artistas estavam envolvidos com a experimentação.
269
Outro paradoxo é que essa liberdade toda pode levar também o modo de composição a
ser (a) político e mantenedor do status quo. Como Sally Banes conclui em Terpsichore
in Sneakers:
269
BANES, 1980, p. 67. “For the audience, Contact improvisation is sometimes exhausting to watch,
sometimes exhilarating, sometimes boring or frightening.”
99
Se ela é um novo establishment, a dança pós-moderna é
tão pluralista que inaugura um novo tipo de
establishment: um que tolera a invenção e dá as boas
vindas à mudança.”
270
É exatamente sobre esse pluralismo que Foster Hal
271
em seu texto Contra o
pluralismo, argumenta que enfatizar esse estado de pluralismo, no qual nada é ortodoxo,
nenhuma arte é dominante, é também uma posição política. Em 1964, Herbert Marcuse
já destacava esse pluralismo, não com a euforia da liberdade de expressão, mas
exatamente como um “novo totalitarismo”. As performances e os happenings, mesmo
que em tentativa subversiva e contra o poder dos museus, acabavam dentro deles: “a
arte continuou a ser feita tanto contra a teoria institucional quanto em seu nome.”
272
Por isso gostaríamos também de assinalar que o espetáculo Sem, um colóquio sobre a
falta, com todas as suas críticas e posicionamentos, assim como com a busca de novas
formas, ainda pode ser questionado em certos aspectos, quando reforça o lugar do
teatro, o lugar do público e o lugar da codificação e da marcação de representação de
uma obra, fazendo-a paradoxalmente se repetir e não se repetir, usando outros modos de
composição além da improvisação; fazendo performance e representação, uso de
personagem, da persona e do performer ao mesmo tempo; uma reação e uma ação que o
define exatamente como lugar de rompimento da estrutura de grupo e de afirmação da
forma de trabalho em parcerias; um espetáculo carregado de tantos modos de
composição. Por isso o próximo passo de Dudude, aquilo que virá depois do
rompimento, a levará para a interferência urbana, que veremos no 3º capítulo.
Ao final a peça acaba com um pequeno parêntese. Entre parênteses é na verdade uma
televisão de 14 polegadas colocada em cena, na qual exibe um vídeo. A princípio
Dudude pensou em um vídeo que pudesse mostrar animais domésticos trancados em
grades e animais presos em cativeiros. Izabel, a pedido de Dudude, capta imagens de
pequenos animais dentro de cercados: galinhas, cachorros. Dudude pede a Marcelo
Kraiser que edite o material para colocar no espetáculo. Finalmente Marcelo termina
270
Ibidem, p.19. “If it is a new establishment, post-modern dance is so pluralistic that it inaugurates a new
type of establishment: one that tolerates invention and welcomes change.”
271
Cf. 1996.
272
Cf. ibidem, p.34.
100
editando outro material para finalizar o Grafhonoptik
273
, o que se vê é criado para a
obra, e nos mostra várias galinhas e frangos em várias situações de cativeiro e nos reduz
a espectadores de nós mesmos, conduzidos à imagem de simples “exploradores e
controladores” da natureza. Podemos evocar Baraka, filme produzido na década de 90,
pelo diretor Ron Frieke, que traz essa questão da vida sem sentido da
contemporaneidade dos grandes centros urbanos, e nos mostra com cenas similares de
granjas e produção de frangos e a distância do homem ocidental e a busca espiritual do
ser humano. Citando a sinopse do próprio espetáculo: “Sendo assim, ‘Sem, um colóquio
sobre a falta’ é fruto deste tempo de incertezas, e traz em suas paisagens as cores, os
sons e as sensações deste mundo.
Foto: Guto Muniz
Como protesto de rupturas com o estabelecido nada melhor que fechar esse capítulo
com a declaração de despedida do Living Theatre do Brasil:
Encontrar novas formas. Derrubar as barreiras à arte. A
arte é confinada à prisão da mentalidade do
establishment. Isto é, assim como costuma ser feita,
funciona para servir às classes dominantes. Se a arte não
puder ser usada para servir às necessidades do povo, nos
livramos dela! Não precisamos de arte, se ela não puder
dizer a verdade, esclarecendo o que precisa ser feito e
como fazê-lo.
274
273
Marcelo Kraiser, artista multimídia, doutor em Letras pela UFMG, deu aos seus trabalhos realizados
na mídia audiovisual o nome de Grafhonoptik (também grafado como Graphonoptico e grafonóptico).
274
MALINA, 2008, p.263.
101
3º Capítulo
E o Andarilho? A estrutura.
Obra: Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora
Tema: A estrutura da composição improvisacional, o trabalho de Dudude, seus
pensamentos e as confluências com outros pesquisadores da dança.
O improvisador acontece nas rachaduras. É preciso
farejar o espaço (...). Um bom improvisador fareja, abre
suas cinesferas
275
, antenas da pele (...). Observa os
habitantes e - o mais importante - pede permissão.
Dudude Herrmann
276
Tenho saudades do que é breve
e vai para além dos barcos.
Esvai com a alvorada.
Saudades do menino cálido,
que se perdeu nos campos
entre o cais e o beco
e a tenra ilusão dos fósseis.
Saudades daquele menino:
amante das ruas,
andarilho das tardes.
O meu menino.
Eu mesmo.
Manoel de Barros, Meninos da Sétima Rua
(Diálogo entre Giovane e Dudude)
DUDUDE: Qualquer coisa é improvisação?
GIOVANE: Não, nem improvisação é qualquer
coisa. Inclusive até para que o acaso faça parte
deve existir uma estrutura anterior que permita
isso.
277
275
Cf. RENGEL, 2005, p.33, significado para Laban. Para Dudude: “Quanto à cinesfera, trabalho em um
campo de potência / energia, o contato-improvisação usa muito e a nomeia também de campo de luz/
campo pessoal/ esfera de energia/ cinesfera/ kinesfera e por aí vai, na improvisação falamos muito
também desta potência dos seres animados.
276
HERRMANN, 2008.
277
AGUIAR, 2007.
102
Para que a improvisação em dança chegasse aos dias de hoje desde a Nova Dança, e ser
o que ela representa, tendo a aspiração e desejo de ser um lugar de manifestação de
inquietações do artista da dança na contemporaneidade, ela passou e bebeu em fontes do
início do século passado, como vimos anteriormente: em Isadora Duncan e Dalcroze,
nas idéias dadaístas, em Antonin Artaud e em Marcel Duchamp. Posteriormente pode-se
citar Jonh Cage na música e na performance, e finalmente, na dança, Mary Wigman e
Rudolf Laban, Ann Halprin e o impulso - sem volta - proporcionado pelo mestre Merce
Cunningham. Nas últimas décadas, a grande ruptura dos anos 60 e 70, a contracultura, o
pós-Cunningham, todos esses movimentos, personalidades e suas ações artísticas
contribuíram para que hoje o modo de composição improvisação seja também uma
maneira de ser processo-resultado, criando-se uma técnica de espetáculo.
A dança contemporânea, a dança-teatro e a dança pós-moderna fazem uso da
improvisação em seu processo de criação. A improvisação é usada para colher material
em uma organização estabelecida em que os dançarinos improvisam, ou seja, o que é
improvisado é capturado para ser editado e colocado para compor a cena do espetáculo
pelo coreógrafo. O diferencial que a Nova Dança propõe é que a “improvisação é o
produto da cena. A dança contemporânea não necessariamente a usa assim, você pode
até ter alguns coreógrafos que fazem isso, mas em geral o processo de improvisação é
visto como material para uma outra pessoa.”
278
(Diálogo entre Giovane e Dudude)
GIOVANE: Trabalhar com improvisação é muito
mais complexo, porque lá [ na peça com direção]
quem te diz isso é o coreógrafo, aqui você é o
criador, entendeu? Você está criando e mostrando,
entendeu?
DUDUDE: Está produzindo imagem.
Hoje a improvisação na dança não é somente usada como recurso de composição e sim
como fim. O espetáculo em si trabalha todo o tempo dentro de uma estrutura que
permite a improvisação, ou seja, a improvisação acontece dentro de uma estrutura.
278
Giovane fita 1 - 23 11 07 visitas Benvinda EDH
103
Giovane Aguiar comenta que “[a] primeira coisa que Daniel Lepkoff me disse [foi]:
improvisar é aprender a respeitar a estrutura.
279
E Giovane esclarece, fazendo uma
analogia com as artes plásticas, que a estrutura é o suporte no qual você desenvolve a
sua improvisação, é como o suporte que o artista plástico escolhe para fazer sua obra de
arte: “diferente do que se imagina, estrutura não é um tema, não é uma frase, é o
caminho pelo qual você vai se orientar durante a improvisação, é como a sua bússola
ou mapa.
280
Segundo Dudude, a improvisação tem uma estrutura, um suporte, mesmo quando se diz
que não tem - isso já passa a ser a estrutura. Dudude torna presente essa estrutura e
podemos ver essas buscas como improvisadora não só em seu trabalho composicional
atual, mas também como educadora.
A estrutura permite o aparecimento das particularidades do improvisador, quando
sozinho, ou em um grupo de improvisadores. Para Izabel Stewart, bailarina e
improvisadora, a estrutura da improvisação é arejada para que possa ser
preenchida.”
281
Uma improvisação pode ser o que propõe a idéia de um improvisador,
ou pode ser realizada com várias idéias com a participação de diferentes intenções dos
improvisadores, chegando-se a um consenso. A estrutura, com suas características
específicas, deverá ser anteriormente acordada entre os participantes para que a
construção do espetáculo “in loco” aconteça. A estrutura funcionaria como os andaimes
de um edifício, metáfora sugerida por Izabel em sua entrevista
282
: “Em todo o trabalho
de Dudude eu vejo isso: a maneira de penetrar esses andaimes está na ordem de mil
possibilidades , a maneira como se penetra nessa ossatura , a maneira de colorir essas
linhas.”
283
Isso garante ao improvisador sua ação contínua e apoiada, pois quando ele
encontra-se sem voz, quando ele momentaneamente não tiver mais voz, ele não ficará
completamente perdido, pois tem uma base aonde se ancorar, e ele irá recorrer à
estrutura. Izabel completa: “E ela (a estrutura) precisa que eu a preencha. A estrutrura
precisa que eu a preencha em todos esses vazios e isso é muito desafiador.
284
279
Entrevista a Giovane Aguiar. Escrita e respondida por e-mail. Para Daniel Lepkoff, a improvisação é
uma técnica de ação em tempo real.
280
Ibidem.“Eu tinha o roteiro do luar com o mapa da mina.” Manoel de Barros, Arranjos para Assovio.
281
STEWART,2009.
282
Idem.
283
Ibidem
284
Idem.
104
Improvisar é aprender a respeitar a estrutura”, como afirma Lepkoff: respeitar a
estrutura permite que diferentes pessoas possam estar jogando no mesmo espaço-tempo,
concatenando os desejos em suas confluências. Apesar de ser “vazada” e “arejada”, a
estrutura dá o limite, o roteiro, o mapa para a improvisação.
Por outro lado, improvisar pode ser “aprender”. Na verdade, aqui o aprendizado se dá
no próprio exercício da improvisação, sendo essencialmente experimentação. Na
improvisação, não havendo um modelo a seguir, perde-se o sentido de certo e errado:
essa dualidade é diluída, não existe esse valor dual.
Técnicas vêm sendo desenvolvidas desde o início do século XX visando preparar não só
individualmente o improvisador, mas também estabelecer uma prática de improvisar,
com um método de aplicação, exercícios e treinamento para a própria improvisação. A
mais codificada e difundida no mundo hoje, como técnica de improvisação, com a
característica de fazer ‘in loco’ a obra, é a técnica de Steve Paxton, o Contato
Improvisação, que hoje em dia é praticada em diferentes partes do mundo, e
improvisadores de diferentes lugares podem jogar juntos, pois conseguirão se entender.
Tornou-se, por assim dizer, popular. Isto é, já se estabeleceram códigos nesta técnica de
improvisação: o estudo do peso do corpo, a escuta do outro, o contato, ou seja, como eu
me relaciono com o outro, sempre em um jogo de construção improvisada. Para
Giovane Aguiar, improvisador e pesquisador em Contato Improvisação:
A principal característica da improvisação é exatamente
a experimentação, e a JAM session é o lugar de
experimentação, onde a técnica é a estrada que você usa
para se chegar àquele lugar e, dependendo de quem a
promove, ele estabelece métodos, formas particulares de
aplicação. Um improvisador treina essas técnicas para
adquirir uma habilidade. As pessoas da década de 70
gastaram 20 anos para desenvolver e codificar essas
técnicas.
285
A maneira como o artista se prepara para estar em estado de improvisador, a relevância
da memória e do compêndio individual de experiência, vistos no primeiro capítulo, o
285
AGUIAR, Fita 1, 23 /11/07, Visitas Benvinda EDH.
105
desapepego e a desaparição vistos no segundo capítulo seriam pontos centrais para esse
modo de estar em performance, uma vez que o improvisador é vivo na atitude, na ação,
na interferência, em suas escolhas no momento e maneiras de dar foco àquilo que ele
elege, tanto como improvisador solista como também no jogo com vários
improvisadores, fazendo parceria nas decisões, nos comandos da cena, nas
contaminações e interferências que pode causar e provocar no outro improvisador, tendo
como entendimento que ele se faz no ambiente e que o tempo é o suporte.
Para Dudude:
“É fato que para um improvisador quanto maior for sua
informação corporal maior o arquivo para improvisar,
quanto mais técnicas mais apto estará o improvisador,
não se esquecendo que ele necessita do desapego para
estar compondo no momento do presente.
286
Lisa Nelson, em seu texto Compositions, Communication, and the Sense of Imagination,
afirma que o improvisador necessita, para desenvolver seu trabalho, de uma pré-técnica,
que seria utilizada como “mapas para seguir com feed-back, sistemas para que se
observem seus padrões, processos, estratégias e apetite para começar fisicamente, isto
é, acordar, ficar alerta e disponível, estar pronto para a dança”. É uma prática que
inclui a percepção “para perseguir os aspectos do ambiente no corpo interno e
externo.
287
Lisa Nelson trabalha com a preparação do dançarino para um corpo criativo utilizando-
se de ferramentas, isto é, exercícios, que denomina “Tuning Scores”, um sistema
improvisacional criado por ela, que dialoga com o exercício da espontaneidade e
codireção que possa compartilhar com a composição coreográfica. Nesse sistema reside
o que para Lisa são as duas ferramentas ou chaves para a arte da dança improvisacional
que o dançarino deverá desenvolver: exercitar a disciplina da observação e o exercício
286
286
Parágrafo escrito por Dudude por E-mail entre Dudude e eu. Assunto: Paola fiz algumas correções
(...), 27 abril de 2010.
287
NELSON, 2006.
106
da memória.
288
O sistema tuning scores fornece instrumentos ao dançarino para que ele
dê sentido ao movimento, expondo suas opiniões sobre espaço, tempo, ação e desejo, e
isso é o que lhe permite situar-se em uma estrutura improvisacional.
Essa estrutura de improvisação proporcionará um código de cumplicidade entre
improvisadores, uma comunicação ou um entendimento entre os “players”, no caso de
uma improvisação com mais de um improvisador. No texto mencionado, Lisa Nelson
sustenta que o sistema dos tuning scores não é diferente da preparação, como técnica
formal e prática, de qualquer outra técnica de dança, que segundo ela pode ser clássica,
contato-improvisação, flamenco, yoga ou qualquer outra forma.
289
Ela acredita que a
proposição de um ambiente de estudo pode ser a essência da improvisação. Hoje Lisa
Nelson prefere não denominar tuning scores como método, preferindo somente suscitá-
lo, pois considera que ela e os tuning scores estão ainda em experimentação, não
constituindo (ainda) um sistema de referência que pudesse ser aplicado de maneira
fixa.
290
Para ela a dança improvisacional é por si própria uma idéia.
291
Construir uma partitura interna funcionaria como organizar e afinar nossas observações,
imaginações, desejos e as relações com o ambiente, desenvolvendo o nosso sentido de
encontro.
292
Nesse caminho da improvisação para o processo-espetáculo começa-se,
então, a discutir como se estrutura o espetáculo com técnica de improvisação.
Katie Duck inventou uma estratégia de entradas e saídas como estrutura de
improvisação. Sobre isso Dudude comenta: “Ela trabalha exclusivamente com
improvisação e sempre diz: I’m looking for the entrance. I’m looking for the exit.
293
Em entrevista Arnaldo Alvarenga, bailarino e coreógrafo do Trans-Forma, conta que em
três momentos e contextos distintos ele já presenciara a força da improvisação, como
resultado final: com Rolf Gelewski, Katie Duck e Dudude Herrmann. Os momentos e
contextos distintos a que se refere Alvarenga estão na dependência do método que o
288
Cf. idem.“Tuning scores refletem o sol do nosso conhecimento exercitando a observação e a
memória.”
289
Cf. Ibidem.
290
NELSON, 2010.
291
Ibidem.
292
AGUIAR, 2007. NELSON,2010
293
HERRMANN, 2008. “Katie sempre fala: Eu estou procurando pela entrada, eu estou procurando pela
saída.”
107
improvisador está criando ou que nesses últimos 20 anos de experimentação foi
codificando. No caso de Katie Duck esse “procurar pela saída” funciona como pilar da
postura ou de como deve ser a presença e o foco do improvisador.
O Contato - Improvisação já é uma técnica de improvisação repleta de convenções, de
conhecimento do eixo e do peso do próprio corpo, em relação com o eixo e o peso do
corpo do outro. Para Giovane Aguiar existem termos na improvisação muito usados,
como por exemplo, “Choice, isso é, escolha. Ou outro termo para exemplificar é Key, a
chave. São termos de uma terminologia da improvisação.
294
Existem métodos também
já bem estruturados e Giovane cita o View Points, que necessita de decisões relativas ao
lugar para o qual se dirige o seu olhar, fazer uma seleção, focalizar, fazer um zoom,
enfim, escolher e selecionar, visando o que mais se aproxima de uma Gestalt.
O improvisador, para estar no momento do Contato, deve o tempo todo se fazer
perguntas e tentar respondê-las, perguntas como “onde” e “como” ele se coloca diante
do outro, e “onde estão a entrada e a saída” da estrutura. A estrutura da improvisação
pede que o improvisador esteja permanentemente inquieto, e as perguntas são suas
ferramentas para estar presente. Com as respostas a essas inquietações, em interseção
com as respostas do outro, é que se vai criando e fazendo a performance da
improvisação em si. É na confluência das escolhas, nessa seleção, que a improvisação
vai acontecendo, assim, no gerúndio.
Nesse sentido, trabalhar com a improvisação significa tomar decisões, ter escolhas ao
mesmo tempo ser avassalado e cortado por aquilo que não se domina. Você deve pegar
a chave, e isso significa que você deve escolher uma porta, uma saída ou entrada, pois
está sempre diante de uma passagem, o tempo todo, fazendo escolhas, abrindo
possibilidades, dando a fagulha que conduz a arriscar, entrar, sair, começar e terminar,
destampar. Quando dançarinos de diferentes proveniências se encontram, eles já
dominam os jogos de improvisação com seus limites, códigos, e poderão improvisar
numa comunhão de entendimento do espaço-tempo em cumplicidade. O resultado passa
a ser dependente ligado ao grupo de improvisadores, considerando-os como um
294
Giovane Aguiar, palestra no EDH 23/11/07 fita 01. Tem uma coisa que falo na improvisação que é
choice, escolha, é outro termo que uso muito na improvisação: Key, a chave. Quando você vai pegar a
chave, esses termos são da terminologia da improvisação. View points é um método.”AGUIAR, 2007.
108
conjunto que vai funcionar e ter sua particularidade, pois será uma formação única na
qual cada improvisador ou provocador colabora com sua individualidade o ambiente
dissolvendo todos e tudo numa provocação de tempo e espaço e confluências de várias
cordas que se entrelaçam, em uma abertura para se pensar em dimensões.
As improvisações têm estratégias a seguir, que podem ser definidas anteriormente,
através de uma conversa entre os improvisadores, para definir alguns parâmetros que
podem ser de foco, buscas de espaços, conversar com o outro, trazer a espontaneidade, a
intuição, mas respeitando uma atmosfera que se procurará desenvolver. Pode-se definir
tempo limitado, número de pessoas em cena, ocupação do espaço, referência musical.
Tudo isso são elementos que podem pertencer a uma estrutura. Mas tudo isso acontece
em um tempo-espaço que desaparece instantaneamente e dá lugar e tempo ao que surge.
Lembrando as palavras de ordem de Dudude para a improvisação que valem para a
vida, segundo Izabel: “Está valendo o tempo todo e olha para os lados!”. Quer dizer:
esteja presente, é necessário prestar atenção, em você e no entorno. Podemos perceber
aqui toda a imersão do sujeito no mundo, uma imersão consciente como propõe Lisa
Nelson.
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora
Quem chegou, ainda que apenas em certa
medida, à liberdade da razão, não pode
sentir-se sobre a Terra senão como um
andarilho.
295
F. Nietzsche
295
Nietzsche: O andarilho (http://ysahdsalloum.multiply.com/reviews/item/81)
109
Poética de um Andarilho – a escrita do movimento lado de fora. Dudude Herrmann. Foto Nilmar Lage ,
2005.
Dudude foi bolsista do Projeto Bolsa Virtuose 2000
296
, indo estudar na França a convite
de Josef Nadj, para conhecer seu trabalho, assim como buscar outros artistas de seu
interesse. Como uma artista antropófaga, alimenta-se de outros conhecimentos, e, como
estrangeira oriunda de uma história de colonização, metaforicamente veste-se de
cocar.
297
Dudude volta à sala de aula, nesse momento e por um tempo, como aluna.
Teve como professores na França,de janeiro a julho de 2001: Vera Orlock, Karim
Sebbar, Pascoal Queneau, Olivier Gelpe, entre outros.
296
Dudude Herrmann foi contemplada pela Bolsa Virtuose pelo Ministério da Cultura do brasil , a nível
de curso de estágio. Período de 01.02.2001 a 26/07/2001. Artista orientador M. Josef nadj do Centre
Choreographique Nacional de .Orleans.
297
Depoimento de Dudude Herrmann Pirinópolis, dia 12 de fevereiro de 2009.
110
Caderno de Dudude Herrmann que inclui relatório para a Bolsa Virtuose .
Dudude precisava alimentar-se novamente de estímulos, de quereres, e exercitar a
investigação. É muito recorrente essa tendência do artista da dança de sair pelo mundo
atrás de seus interesses, de observar outras culturas, de se alimentar através de
estímulos. Não seria somente uma relação de observação, mas também de tentar deixar
seu movimento se exercitar do lado de fora da mesmice da sala de aula ou do teatro a
quatro paredes, entrando em contato com outros ambientes, outras pessoas, outros
ventos. Esse contato exige um estado de presença exercitado com a intensidade de
artista curiosa.
Ao voltar, realizou a pesquisa Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no
espaço de fora como bolsista do Programa Bolsa Vitae (2003/2004), o que permitiu a
ela entrar em estado de puro prazer: “Eu me senti amparada”. Conta Dudude que foi
como um corpo farejador, procurando uma praça para exercer sua investigação. Depois
de mapear várias praças da cidade de Belo Horizonte, ela escolheu a de Santa Teresa
para realizar o seu trabalho, por esta abrigar em si várias características de uma praça
“arquetípica”.
111
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora. Dudude
Herrmann.Belo Horizonte, 2005. Foto: Silvana Lopes.
Para concluir a bolsa, Dudude elaborou um folheto explicativo, anunciou e chamou a
mídia. Era o anúncio de uma performance dentro das convenções contemporâneas de
registro de uma obra de dança. No programa vê-se um texto de Dudude relatando
poeticamente o processo e suas ressonâncias:
Um acontecimento no espaço de fora - a praça
- produto de sensibilidades adquiridas. Esse
andarilho andou às voltas na palavra, no
movimento e na paisagem para aprender o
movimento existindo como dança no espaço
natural da vida. O que é o espaço? O que é a
dança? Junte os dois e terá uma paisagem.
298
A obra Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora
299
vem
com uma necessidade de busca do espaço de fora, e Dudude, na intenção de
observadora e de inventora simultaneamente, de contempladora de uma nova paisagem
e fazendo parte da mesma, sai do estúdio para o espaço público e elege uma praça como
298
HERRMANN, Programa de um Andarilho.
299
Nome completo dado ao trabalho: “Poética de um Andarilho. A escrita do movimento no espaço de
fora.” Dados: Estréia 21 a 25 de março 2004 / Praça JK; 28 março e 01 abril 2004/ Praça Santa Teresa.
112
o lugar de sua pesquisa. Dudude participa da cena cotidiana dessa praça e recria com
sua presença outra cena: com seu olhar e uma gestalt, a improvisadora recria um novo
ambiente, interfere, modifica as percepções e os olhares, enfim inventa uma cena que
nunca existiu. De forma a sair do formal do estudo da dança que pede um lugar amplo e
vazio, já instucionalizado como aquele lugar de estudo da dança e que traz consigo todo
uma memória e uma referência de um lugar. Dudude comenta: “você vai para a rua e
neutraliza esse campo”
300
. De modo análogo, citando o fotógrafo Eugênio Sávio, a foto
pode ser inventora de uma cena que nunca existiu, criando um mundo próprio
301
.
Tudo está exposto: as coisas e o improvisador, no tempo.
A escrita do movimento no espaço de fora é uma busca de sair pela janela, para o
mundo de fora, romper e vagabundear errante. O desafio proposto por Dudude é fazer o
jogo da improvisação e da dança, até então provocado na solidão de um estúdio e de
uma sala fechada, agora a céu aberto em uma praça. Explorar o mundo sem enclausurar-
se em si mesmo, misturando-se à paisagem.
302
A improvisação é intrínseca à
experimentação, em uma constante descoberta:
Sou uma artista, artista da dança. Demorei muito para
chegar nessa qualificação; introjetar o trabalho que
sempre me moveu e que me fez chegar até aqui: o espaço
de fora. Penso que esse fora adentra cada vez mais e que
na verdade, estou em plena provocação de descoberta.
Não sei ao certo aonde vou parar, mas estou aqui: eu,
minha dança, minha história e todos meus arquétipos.”
303
Sobre o Andarilho, Nietzsche diz que “ele quer ver e ter os olhos abertos para tudo o
que propriamente se passa no mundo; por isso não pode prender seu coração com
demasiada firmeza a nada de singular; tem de haver nele próprio algo de errante, que
encontra sua alegria na mudança e na transitoriedade.
304
300
Atelier de Dudude Herrmann, em 09 de maio, dia das mães, estive relendo toda a dissertação ao lado
de Dudude e pude retomar alguns pontos e rever algumas datas.
301
Cf. Palestra de Eugenio Sávio, Casa Fiat de Cultura. Artes Plásticas e Comunicação na
Contemporaneidade, juntamente com o Said, dia 29 de maio, Belo Horizonte.
302
GOLDBERG, 2006, p. IX .“A história da performance no séc XX é a história de um meio de
expressão maleável, indeterminado, com infinitas variáveis praticado por artistas impacientes com
limitações dos termos mais estabelecidos e decididos a pôr sua arte em contato direto com o público.”
303
HERRMANN, Textos produzidos por Dudude Hermann, ao longo do trabalho Poética de um
Andarilho – A escrita do movimento no espaço de fora, realizado com o apoio das Bolsas Vitae de Artes
2002/2003.
304
Andarilho Niesztche http://ysahdsalloum.multiply.com/reviews/item/81
113
No processo da obra Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de
fora, Dudude se comporta exatamente como o andarilho caracterizado por Nietzsche: “e
eu aqui neste lugar danço agora o céu, o sol, o vento, o outro e assim por diante.”
305
Não foi a primeira vez que a coreógrafa trabalhou em espaço externo. Em várias
oportunidades, juntamente com outros artistas, ela vivenciou experimentações de
improvisação em espaço público e aberto, principalmente nos Festivais de Inverno da
UFMG, os quais foram sediados em diferentes cidades históricas de Minas Gerais como
Ouro Preto, São João Del Rey, Diamantina e Poços de Caldas, além de contar com
edições na capital, Belo Horizonte. Duas das principais características do Festival de
Inverno da UFMG são a experimentação e as interseções entre as áreas de
conhecimento em artes. Nesses anos em que Dudude foi coordenadora de dança, ela
pode também promover a dança em lugar de apresentação performática. Além de
ocupar o espaço teatro, na rua aconteceram improvisações estruturadas juntamente com
a música e com as artes plásticas. Foram recorrentes trabalhos como cortejos, procissões
pelas ruas das cidades e foi relevante a quantidade de praças visitadas pelos dançarinos
da área de dança. A cada festival podemos dizer qual ou quais praças foram ocupadas e
destacar uma característica particular da necessidade ou da temática daquele ano:
interferências urbanas realizadas no festival juntamente com as outras áreas artísticas
como a música, as artes plásticas e a literatura; performances com músicos
profissionais como o UAKTI, outras com a banda da cidade, outras com o grupo de
flautistas de São João Del Rey. Realizava-se assim a integração dos artistas e alunos em
um trabalho integrado à cidade anfitriã. É notável a atuação da coreógrafa Dudude na
direção e decisão da interlocução da dança nesse momento, na escolha da utilização
desses espaços com um olhar cenográfico, fazendo da arquitetura da cidade o próprio
cenário. Essas interferências podem ser chamadas de performances também, uma vez
que, para Marco Paulo Rolla, artista multimídia, a “performance é um campo artístico
onde várias técnicas e diferentes disciplinas artísticas são aplicadas.
306
E a
improvisação, quando ocorre com a interação do público, passa a ser uma performance
ou até um happening, linguagens parceiras da Nova Dança, como lembra Giovanne
Aguiar.
305
HERRMANN,2008.
306
E-mail dia 2 de setembro de 2009 de Marco Paulo Rolla.
114
A obra Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora, de certa
forma, utiliza todo o contexto investigativo que o Festival propõe, e assim não apenas
aperfeiçoa sua formação, mas também deixa inscrito na memória de Dudude esse lugar.
Praça, onde as possibilidades brotam, despertando-lhe a curiosidade e o desejo de
explorar com intensidade tudo o que uma praça pode oferecer, atravessando os sentidos,
as sensações, promovendo estados de percepção e principalmente convertendo os
estímulos em qualidades de movimentos, deixando uma escuta para as interferências
causadas na pele pelo ambiente do lugar. Já no processo de composição dessa obra a
experimentação, diária, sozinha faz a diferença para preparar Dudude para a obra.
Dudude questiona o lugar de aprendizado da dança, a sala de dança: espaço vazio, um
espelho; por isso se propõe a ir para o espaço de fora. Tratar de se deslocar para um
campo de estudo, espacialmente, sempre foi tarefa do artista da dança. “Andarilho” é
adjetivo de dançarino. Nossa Andarilha faz o percurso do estudo em Paris e, logo
depois, em sua volta a Belo Horizonte, se faz andarilha, volta para uma investigação,
como se quisesse resgatar algo perdido no tempo. Algo que fosse de sua própria “terra”,
de seu próprio passado, que estivesse em seu corpo, guardado, que pudesse deixá-la em
contemplação e em busca de uma memória corpórea de sensações. Precisava ver o céu e
brincar. Procurava um lugar mais aproximado de sua infância: voltemos à praça. Essa
necessidade que temos de ir e vir: de ser andarilha no seu próprio corpo e nas memórias
de sua própria vida, ir lá, lembrar-se de seu corpo, de suas sensações, recuperar de certa
forma esse estado-criança e transpor para o dia de hoje, através da percepção do
contexto atual, de uma praça e de seu corpo, de sua arquitetura e seus canteiros,
esquinas e coretos.
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora.. Dudude Herrmann. Caravana
Funarte, 2007. Fotos: Adriana Moura (objetos) e Silvana Lopes.
115
Eu elegi a praça da manhã: pai, mãe, bola, criança,
babá, todo esse contexto, sombra, árvore. Eu queria fazer
simplesmente uma prática de sensibilidades. Dançar na
invisibilidade.”
307
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora. Dudude Herrmann.
Caravana Funarte, 2007. Foto: Silvana Lopes.
Dudude sentiu a necessidade de buscar alguma coisa inscrita em seu próprio corpo,
lembrar em seus ossos, em sua pele, de um modo que pudesse voltar até em seu corpo
antes de ter começado a aprender a dançar. Já exercendo sua capacidade de estudo e
investigação, com a disciplina de uma bailarina, Dudude passa vários meses indo
diariamente para a praça de Santa Teresa e lá permanecendo 3 horas. Aí trabalha sua
percepção, afina seus olhares, procura interagir com o espaço, com seu movimento. Aí
se deixa também ser levada e ser escolhida por uma criança, um pássaro, um cachorro,
uma planta, um adulto, deixa-se fazer parte da praça, como paisagem, como criança,
como pássaro, como árvore. Mistura-se textualmente, exercita a presença e o
desaparecer, muda seu foco, embaça sua visão. Deixa seus órgãos do sentido livres, pois
a princípio não tem objetivo focado, não foi estudar especificadamente o canto dos
pássaros, foi estudar seu próprio movimento com os cantos dos pássaros, com a grama,
com a formiga, com as varredoras de rua, com o vento, o sol, a chuva. Foi observar e
entrar em contato com o que não conhece, fazer um exercício de andarilho como aquele
que procura. Estar em uma praça pública por escolha, impondo uma disciplina de
trabalho, diariamente, como um funcionário público. Dudude fez uma das coisas mais
importantes para o artista: dar-se tempo. O tempo é o alimento para o artista
investigativo. Ele é cheio de intensidades e é o espaço onde se instauram as novas
307
HERMANN, 2009.
116
percepções. É necessário dar tempo para insights. Enfim o tempo é quando, e a dança é
filha viva do quando (quando se faz verbo no presente para o bailarino) e é nele que a
dança se faz presente.
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora. Dudude Herrmann. Caravana
Funarte, Salvador 2007. Foto: Silvana Lopes.
A escrita surgiu como uma necessidade de registro. Sempre com seu caderno de
anotações, foi se exercitando como num diário: contemplava, dançava, esperava,
observava e escrevia: “Meu caderno é meu corpo, meu corpo de riscar. Estaria mais
uma vez andarilho no espaço! Simplesmente aqui.
308
Dudude faz uma referência a
Manoel de Barros quando diz “meu caderno é meu corpo. Na verdade, a poesia de
Manoel de Barros acompanha todo o processo de concepção dessa obra como
inspiração
309
: está presente no refinar a observação da paisagem, na afinação sinestésica
308
HERRMANN, Entrevista de 05 06 08.
309
HERRMANN, comunicação pessoal, novembro de 2009.
117
dos sentidos, na própria ideia da construção de cadernos de notações, caderno de
rascunhos. No caderno “00” de notações, Dudude escreve: “Leio influências, como
Manoel de Barros, que em alguma poesia diz: ... ‘o que desabre o ser é ver e ver-se...’
Pronto! É isso o que estou fazendo.
310
Dudude começa seu processo de escrita e, no total, produz quatro cadernos que estão
para ser publicados como seu caderno de artista. Quatro paredes, quatro cadernos,
quatro estações:
Para entender nós temos dois caminhos: o das
sensibilidades que é o entendimento do corpo; e o da
inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender, mas para incorporar
Entender é parede: procure ser uma árvore.!
311
A sua escrita adveio do espaço de fora. O contexto: o que o entorno provocava nela era
o que a levava a escrever. Escrita que Dudude entende que acaba também passando por
um filtro ou referência da dança.
A estratégia de trabalho da coreógrafa foi pontuada por um ritual e muita disciplina. Ela
saía do Estúdio Dudude Herrmann, localizado no Bairro Santa Efigênia, e se dirigia à
praça Santa Teresa, bairro vizinho, ambos cortados pelo Ribeirão Arrudas.
310
HERRMANN, Caderno de Notações – Poética do Movimento no Espaço de Fora. Caderno 00,
revisado por Dudude Herrmann do manuscrito em outubro de 2009, p. 1.
311
BARROS, 1996, p.37
118
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora. Dudude Herrmann.
Caravana Funarte, 2007. Foto: Silvana Lopes.
Queria trabalhar como funcionário público durante a
semana e descansar no final da semana. Respeitar os
feriados. Eu ia com meu corpo escritório.”
312
Dudude já se equipara de adereços e figurino propício e, no decorrer do processo, a
roupa foi ganhando mais significados, como o macacão feito especialmente para a obra
Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora, que remete aos
trabalhadores de rua; o carrinho de feira, que ajuda no próprio transporte das coisas; e
depois, os “adereços”, coisas que vão por acaso, por coincidência, encontrando seu
espaço e de certa forma se dependurando e se ajeitando , procurando seu lugar como
Dudude procura seu lugar na praça.
Dudude explora a condição de improvisadora com uma intensa vontade de estabelecer
uma pertença a um “estado”, na intenção de ser mais um na praça: “Vim aqui habitar
em estado de dança.
313
Conta Dudude que abria sua cinesfera em um sentido amplo e
relacionava-se com as coisas e com os bichos, com as plantas e com as cores. Então
passava por estados de êxtase quando, depois de um tempo, percebia que, de repente,
estava se relacionando com um passarinho. Esse ia e voltava e depois bem na frente dela
312
HERRMANN, Depoimento Dudude Herrmanan 12 de fevereiro 2009 Pirinópolis.
313
idem
119
se regozijou e fez uma dança. Durante o processo um cachorro tornou-se como que seu
cão de guarda. Conectava-se com as folhas caídas, em relações de corpos.
Essas companhias foram para Dudude pequenos presentes. Pensava na estrutura da
praça, na distribuição do espaço, e em como ela percebia tudo isso: percebendo e ao
mesmo tempo se percebendo na sua própria estratégia de percepção. Enquanto isso,
questões surgiam e se apagavam e se desmanchavam:
Qual é a democracia da praça? Uma relação só de mão
dada. Como eu lido com as matérias , meu corpo- filtro,
meu corpo poroso.
314
E em várias outras situações Dudude teve oportunidade de se relacionar com pessoas de
diversas idades, de funções, de vontades. Comenta que percebia como velhos, crianças,
às vezes mendigos, estavam muito mais liberados desse “mundo dos homens”.
Assim fazia a seleção e focava tanto suas percepções quanto seus pensamentos.
Rapidamente tornava-se uma questão política, tentava focar no “agora” e nas “coisas”,
entrava no campo da análise ou, impondo seu olhar para o campo social, passava para
outra intensidade e outros fluxos de intenções e focos como: “vou ver o que aquele
vermelho daquela calça vai refletir naquele amarelo.
Dudude se propôs a fazer nesse projeto essa escrita a partir de estar ali na contemplação.
Saía com suas ferramentas, com seu uniforme, “marcando território. Quando Dudude
fala desse território, está falando de uma intensidade de abrangência da cinesfera, e no
sentido de captação, inclusive com sua máquina fotográfica, com sua água, com seu
caderno e sua escrita, e muitas vezes era isso que fazia: escrevia.
Os percursos também eram aleatórios para se chegar à praça, como que uma sorte
retirada de um papelzinho, provocando estímulos, já no início, oriundos de sua própria
provocação e improvisados como uma brincadeira: “Hoje vou pegar esse ônibus, ver
aonde ele vai! O tempo todo de prontidão para esse percurso e demarcação de território
fazia de seu próprio corpo uma bússola.
314
idem
120
Mas, no fundo, o que foi fazer Dudude ali? Foi ficar em outro lugar, definitivamente.
Mesmo ficando ali, tratava de se ausentar dali. Queria entrar em um estado de produção
de sensibilidade, não só no sentido de aguçar a sua própria sensibilidade, mas também
de ser estrangeira em seu lugar: assim pode-se trabalhar o desconhecido. Ficar estranho
ao outro: “Preciso ficar estrangeira. Eu construo história como o outro cria histórias.
315
E completa: “Eu precisava de alimento, ao invés de me isolar e ficar no meu mundo,
aonde vou ganhar alimento?
316
Depois veio a construção dos adereços, da roupa adequada para o trabalho na rua.
Apareceram a caixa de correio, uma bandeira, o estandarte e muitos sacos plásticos.
No Andarilho eu e Gabriela
317
da Elvira Matilde criamos
toda uma casa corpo, quando saio como andarilha tenho
meu uniforme com tudo bem pensado para o exercício da
rua, este é focado na prática de sensibilidades e estar
descalça para mim significa um link muito grande com a
dança contemporânea e ali estou em um lugar de
identificação com a rua em si, para tanto meu uniforme,
carrinho, bandeira, estandarte, caixa de correio todos
compõem a roupagem deste andarilho que se encontra nas
horas do tempo.”
318
Gabriela, a figurinista, acrescentou no carrinho alguns detalhes e colocou a foto de
D.Olympia
319
, uma conhecida e famosa andarilha de Ouro Preto. Dudude percebe no
arquétipo do louco o tanto que ela sugou para sua construção do trabalho: coisas de D.
Olympia. Ela, no entanto, mantinha sua lucidez. O andarilho está sempre às voltas,
andando, mesmo parado.
Eu peguei a metáfora dele, eu não virei um andarilho,
aquele que está sempre indo, e é uma pesquisa que vem me
recorrendo o tempo inteiro. Eu transformei esse espaço da
praça em espaço da dança para mim. Revigorar meus
315
HERRMANN, 2009.
316
HERRMANN, Depoimento Pirinópolis
317
Artista plástica Gabriela Demarco que criou a marca Elvira Matilde, marca de moda brasileira.
318
E-mail de Dudude Herrmann, do dia segunda-feira, 2 de junho de 2008, 23:37.
319
Com cajado na mão, lá vinha dona Olympia subindo as ruas de Ouro Preto (MG). Pelos caminhos da
cidade, as memórias de Olympia Cotta (1889-1976) traziam para os passantes histórias de reis e
princesas, figuras da construção do Brasil.
http://www.sescsp.net/sesc/revistas/subindex.cfm?paramend=1&IDCategoria=4390
121
sentidos, dar uma vitalidade no significado da dança. De
onde vem o alimento da vida?
320
As andanças de Dudude duraram meses, passando então pelas quatro estações do ano, e
como ela mesma disse: pude comprovar que, sim, as estações em Belo Horizonte são
muito bem definidas... “em uma caem as folhas, na outra vemos as flores, em outra
chove...
321
Estudioso da improvisação no teatro, o artista e Mestre em Artes Luiz Carlos Garrocho,
também presente no encontro em Pirinópolis, comenta, em seu site, Poética de um
Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora. Segundo ele, o espaço e as
coisas levam a improvisadora a um lugar diferente de atuação, numa intensidade de
estado presente, o que a faz relacionar-se com os mesmos de forma a se misturar a eles,
sem se sobrepor, e deixando essa relação dissolvida de hierarquia: a estrutura proposta
por Dudude é justamente misturar-se à praça, fazendo parte como mais um elemento
desse ambiente. Diz Garrocho:
A Poética de um Andarilho, de Dudude Herrmann,
apresenta uma convergência nessa questão. A performer
não se sobrepõe ao espaço, aos outros. Obviamente que
era, pelo que percebemos do seu relato, cada vez mais
empurrada numa espécie de transe naquele espaço,
principalmente quando entram os objetos, o estandarte
etc.”
322
Uma praça, crianças, e formigas...“Formiga é um ser tão pequeno que não aguenta nem
neblina. Bernardo me ensinou: para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de
água no coração delas. Achei fácil.
323
320
idem
321
idem
322
GARROCHO, http://olhodecorvo.redezero.org/corpo-e-movimento-e-anotacoes-sobre-as-tentativas-de-
um-encontro/ Luiz Carlos Garrocho. Visitado dia 28/08/09. Continuação da citação: “Mas é um princípio
interessante. Esse interesse, o qual exponho aqui, tem por fundo as criações cênicas de Robert Wilson
nos
seus primórdios. Um autista foi um dos seus parceiros de criação, para dar somente um exemplo. E tem a
ver com o reconhecimento de outras poéticas corporais. Não estou falando de movimento, de habilidades
ou desabilidades, dos códigos que têm seguido a dança por esses caminhos…” Cf.
http://www.luizcarlosgarrocho.redezero.org/todos-os-tempos-ao-mesmo-tempo-lisa-nelson-e-daniel-
lepkoff/
323
BARROS, 1996, p.29.
122
Para Dudude cada trabalho precisa de um corpo específico:
o corpo que eu faço [n]o Andarilho, no qual eu preciso
de vários arquétipos, é diferente do corpo que eu faço na
planície. Eu preciso de outras coisas potenciais no nível
de contaminação dos relevos, as fissuras da intensidade
da luz, de um mundo sem cerca, da pele, do mundo”, e
exemplifica: no SEM, já é um corpo completamente
fragmentado não tem sujeito, não tem eu.
324
A improvisação emerge da relação de abertura e flexibilidade da consciência (no sentido
de Lisa Nelson), em suas escolhas e sensibilidade, ao mesmo tempo com uma estrutura,
enquanto uma condição que não depende inteiramente da própria consciência e que,
portanto, determina a situação da composição como um todo. O que na verdade
podemos comandar?
Então, mesmo querendo selecionar os estímulos externos, as escolhas, definitivamente,
não são de todo nossas. Elas nos escolhem e nos pegam em um estado de contemplação,
e nos deixam em outro estado de contemplação. No relaxamento as cinesferas se abrem
e coisas nos avassalam. Uma parte de nós age, a outra contempla. Não podemos
controlar o que é do outro. Nossa vida, em relação à existência, é do “outro”. Outro
mistério. Segredo. Surpresa. Acaso.
Dudude foi assolada enquanto se exercitava na praça. Soube da gravidade da
enfermidade de um ente muito querido e em fase terminal, e continuou a trabalhar, e as
cores mudaram, os céus já não eram os mesmos, os passarinhos já voavam diferente, as
árvores com suas raízes observavam a menina na praça sentindo o efêmero da vida. As
folhas caiam e não eram mais só folhas caindo de uma árvore, árvore que desfolha na
estação de desfolhar: era a força da natureza sustentando a inconstância do viver, do
nascer e morrer, do ciclo da vida, pois a folha caía e a bailarina, em sua infantilidade e
ingenuidade, ali ficava sem se mover. A sensação das coisas poderia ser a mesma, mas
a introjeção era muito particular, pois a recepção para as coisas era diferente. Um corpo
ferido e triste tem porosidade diferente, a musculatura é diferente: os batimentos
cardíacos, os fluxos, a respiração - tudo internamente modificado. Veio a paralisação,
veio não a contemplação, mas estar ali e ser contemplado. Agora, mais do que nunca, a
324
HERRMANN, 2008.
123
folha que caía é que vinha em seu movimento observar a bailarina. A árvore, ali há tanto
tempo, é que revia e reconhecia aquela criança no banco da praça.
Os estímulos externos vieram agora em outra onda de ressonância, porque no navegar
espacialmente dessa onda ela, agora, encontrava outra vibração na dançarina. A
percepção passou a ser diferente em uma intensidade e foco completamente novos. A
sirene de uma ambulância, que antes era estímulo dentro do que significa esse som, com
toda a carga que já existe, agora vinha com uma adrenalina e uma urgência de
desesperação, de finitude. A sirene passa então a ser um recorte de lembrança pessoal da
ausência da pessoa amada, da impossibilidade diante da morte, da incompetência diante
de fatos da natureza, impotência humana diante do mundo. Na verdade, o tempo todo
estamos lidando com a perda e temos de lidar com a morte do outro e sentir em nossa
própria pele que ficamos vivos.
Por isso o silêncio, a pausa, a paralisação do corpo.
Há que se inventar o sentido da vida. Por isso há que se refinar para reinventar os
sentidos, para criar as ficções, para que se criem os conceitos filosóficos e aí, então,
estabelecer mais uma vez um sentido artístico de estar ali no máximo de sua potência de
sensibilização. Dessa reinvenção nasce a vontade de resgatar as sensações, de imprimir
e deixar-se encharcar pelas impregnações da memória:
Sim, peguei (chuva) no mês de novembro e meu caderno
numero 3 está todo molhado de chuva e de lágrimas, pois
foi quando [a pessoa querida] começou a morrer, este
caderno tem uma escrita bem diferente dos demais.
325
E a chuva cai.
E as lágrimas molham o caderno e disputam com os pingos da chuva as palavras
borradas. A lágrima quente que vem de dentro, a chuva fria que vem de fora. Tudo
chove: o corpo e a alma.
325
E-mail Sent: Monday, September 14, 2009 10:35 AM
124
Fiz duas praças, eu troquei de praça, porque eu não
agüentava, uma foi em um momento muito difícil(...). Está
tudo misturado. (chora). [A escrita] O caderno muda, ele
fica duro. Eu fiquei imóvel, eu não conseguia me mexer e
ia para o hospital. Pára tudo. Cheguei à conclusão que
um corpo triste não consegue se mover. Um corpo que
processa a morte: aí eu entendi o luto. A pausa, o
intermezzo, a espera, a dilatação. Aí nesse processo eu
descobri que dança é uma produção de alegria.”
326
Enquanto estamos vivenciando e nos sensibilizando, podemos pensar em acaso, como
aquilo que acrescenta, acaso que parece ser sempre bom. Quando estamos nos
sensibilizando podemos nos encontrar com aquilo que é também do acaso, que pode ser
surpreendente e se tornar quase como uma revelação. É porque, na maioria das vezes, a
brincadeira é séria.
O corpo dá referência do aqui que pode também dar referência do agora. Agora eu
escolho. Agora eu decido. É um exercício humano de corpo mente e alma de uma
intensidade, pois ele acontece quase que simultaneamente na decisão do que se elege e
do que se faz. O corpo decide o que pode dar.
Há algo que se relaciona com o mistério que está no modo de orquestrar um movimento
artístico, uma atuação. Estar no presente em sã consciência não depende de nós. Não só
as coisas nos escolhem: as palavras, os momentos de nascer e de morrer é que nos
escolhem.
Enquanto o próprio artista instrumentaliza seus modos de percepção, sua sensitividade,
ele aguça todo o corpo para estar presente no momento da dança. Tudo pode sutilmente
emergir, ou afetar no corpo do outro, através das percepções do outro e de sua
preparação para vivenciar aquele momento presente. O que é ficção passa a ser
realidade vivenciada com tal intensidade como quando acordamos assustados e
ofegantes de um sonho ou pesadelo. É notável essa condição de provocado em nosso
corpo, onde as coisas são percebidas e absorvidas pelos órgãos do sentido, daquilo que
nos é palpável com nossos sentidos. Mesmo assim, instaura-se alguma coisa em uma
326
HERRMANN, 2009.
125
ordem à qual não temos acesso: de modo sutil muito mais coisas são registradas em
nossa memória, coisas que podem se estabelecer no corpo e na mente.
A performance é a somatória dessas linguagens todas. A
improvisação é linguagem do desapego. [O improvisador]
precisa das coisas falando. É bonito isso, né? A gente
precisa de aprender a escapar e deixar na contemplação.
Contemplar em um museu. Contemplar os quadros.
327
Vídeos sobre a obra Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de
fora
328
Tem mais presença em mim o que me falta.
Manoel de Barros
Dudude , com a colaboração de vários artistas como Mônica Rodrigues, Pablo Lobato,
Sonia Labouriau, teve imagens de Poética de um Andarilho - a escrita do movimento
no espaço de fora, captadas em dias, performances e praças diferentes. Depois, com
esse material nas mãos, pediu a três artistas do audiovisual para fazerem
individualmente sua edição, dando-lhes liberdade para interpretações e interferências
artísticas, sem intervirem muito no foco da composição do vídeo. Juliana Saúde e
Marcelo Kraiser foram convidados para trabalhar poeticamente o material captado,
Joacélio Batista foi convidado para realizar um vídeo com objetivo mais documental.
Juliana foi escolhida, depois de prontos os outros dois vídeos porque a coreógrafa sentiu
que faltava um olhar feminino em vídeo.
329
Juliana acompanhava de perto e foi várias
vezes à praça com seus alunos observar o dia a dia e se aproximando da prática da
andarilha. De certa forma foi ela, dos três, a que mais se misturou ao processo de
feitura e não só do material recolhido em vídeo.
É notável que os três videomeakers tenham feito abordagens particulares em suas
versões do trabalho de edição do material registrado, e mesmo assim haver nos vídeos
repetições sistemáticas de algumas cenas: focos de importância percebidos pelos três.
327
HERRMANN, 2008.
328
Os vídeos se encontram no DVD que acompanha essa dissertação.
329
E-mail Dudude Herrmann 9 de setembro de 2009.
126
No áudio, a ambientação do lugar praça está descrita nos três vídeos pela permanência
do burburinho causado pelas crianças que aí brincam...
De Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora para a
passeadora a projetista.
"dançam nos pés do acaso"
330
Nietzsche
De um trabalho voltado para o fazer constante, aberto às intempéries, e com estrutura
bem vazada, Dudude mergulha em novo projeto, na idéia, talvez, de falar o que desejava
e de programar alguma coisa. A artista sai do desvio e para com o intuito de fazer um
balanço e talvez até uma projeção. De qualquer maneira há uma declaração de
impossibilidade de parar pois, explica Dudude: “Eu sou viciada em arte, meu escritório,
corpo , está sempre aberto.
331
Dudude já se prepara para o novo trabalho: A projetista, fase 1 – projeto, que já tivera
uma pré-estréia apresentada no Espaço Ambiente, em Belo Horizonte, e no Festival
Nova Dança, Brasília, ambos em 2009, onde Dudude falou de seus projetos, leu suas
anotações, falou da condição econômica do artista, da posição política, enfim dos
modos operantes de uma artista para a sobrevivência em um mercado na base de
Editais, a maioria com dinheiro público; e de outros que as empresas particulares estão
definindo. Falou ainda do que era importante ou não, o que é arte ou não, ou o que é
contemporâneo, ou o que é de interesse para a empresa fazer seu marketing, aliado a
projetos sociais, realizados através da arte, instrumentalizando crianças e jovens.
Quero fazer um trabalho das coisas que estão me
incomodando, e atualmente são muitas coisas que estão me
incomodando. Um trabalho que arremesse ao longe, que
330
“Para Nietzsche o homem é individualidade irredutível, à qual os limites e imposições de uma razão
que tolhe a vida permanecem estranhos a ela mesma, à semelhança de máscaras de que pode e deve
libertar-se. Em Nietzsche, diferentemente de Kant, o mundo não tem ordem
, estrutura, forma e
inteligência
. Nele as coisas "dançam nos pés do acaso" e somente a arte pode transfigurar a desordem do
mundo em beleza e fazer aceitável tudo aquilo que há de problemático e terrível na vida.”
331
HERRMANN, 2009.
127
ultrapasse as coisas perversas que estamos vivendo
atualmente. Estou começando a escrever esse trabalho por
que vou ter que falar muito. Mexer nem muito, talvez nem
mexa. A projetista daquilo que arremessa ao longe, que
faça desdobramento, deixar o artista voar criar asas. O
artista está sendo colocado em um lugar muito pequeno, e a
intenção deve ser exatamente esta, acabar mesmo: nos
abafar.”
332
Dudude busca estar “presente” o tempo todo, não só na praça ou no mercado, inclusive
na hora desse depoimento. Comenta: “Essa configuração, desse jeito que estamos aqui,
não voltará a acontecer.
333
Em Pirinópolis, no Encontro de Coreógrafos dentro do Festival Nova Dança, Dudude
propõe fazer um passeio e convida todos a passear junto. Em ressonância com seu
trabalho Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora, propõe
estar do lado de fora, como o próprio nome indica, desviando o próprio olhar para o
desconhecido, trazer o olhar do outro para aquilo que não se observava. Mudar a
paisagem através da mudança de foco ou ponto de fuga. Sem dúvida mudar o olhar.
Estou propondo passear, sem caráter obrigatório, criar
estados. O estado de encontro é permanente. Desviar o
foco para o desconhecido. Vou criar e sugerir uma
estratégia de passeio em grupo.”
334
Dudude comenta que para esse passeio ela vai criar a estratégia do que pode ser, a sua
estrutura base, são como regras ou limites, para que não se percam, para que o grupo
possa ter pontos de encontro, já estabelecidos. Pontos que podem ser geográficos, ou do
silêncio, ou de movimentos, ou de foco, mas o grupo guarda sua individualidade e a
particularidade de cada integrante, contudo com suas antenas ligadas e suas cinesferas
também abertas para a experiência trabalhar no máximo da percepção, do lugar, do
outro, do grupo e de si mesmo. Observar o que conversa com o quê.
Dentro das estratégias, o silêncio está ligado à escuta, escuta em um sentido mais amplo
de saber ouvir, o que ouvir, permitindo-se, então, inclusive o diálogo. Ficar em silêncio
332
Ibidem
333
HERRMANN, 2009.
334
idem
128
não significa calar-se. E vários elementos vão se colocando em sintonia, as pessoas vão
se colocando em um estado de vibração conjunta, na intensidade que a presença
provoca, prestando a atenção aos fluxos de necessidades, ao que pede atenção. Se um
para, os outros também param, se um quer começar a conversar, o outro também
conversa. Dudude comenta que prefere o silêncio.
De certa forma Dudude transita sua idéia de arte nessa busca intensa de modificar
olhares para o mundo, trazendo para ele uma certa cor de esperança e comunhão.
Encontra essa força e capacidade que a arte tem de transformar (referência ao nome do
grupo em que foi formada) as pessoas e o mundo em um lugar de melhor convivência.
Não só entre as pessoas, mas em uma comunhão com as outras naturezas - animal,
vegetal e mineral -, tentando assim encontrar seus pares para estudar, investigar.
Trabalhar para que essa improvisação, que a própria vida exige em seu mistério
fundador da criação, seja uma percepção aguçada e refinada do devir, na alma e no
coração. Dudude em sua “presença” se propõe a se dedicar à dança, ao seu movimento,
ao seu entendimento do mundo, deixando que ele também se apodere das técnicas de
improvisação sempre com as antenas ligadas.
Na improvisação você não está colocando o seu corpo só
para um experimento; ele tem um caráter de
experimentação. Ele não está só a serviço do experimento
ele é a própria experimentação. Isso pode ser uma
diferença de uma improvisação que compõe uma cena e a
improvisação como espetáculo.”
335
O que pode o corpo? Para Dudude o corpo é fim e não somente instrumento de lidar
com o movimento, é o movimento e o pensamento, a presença e o imaginário. No corpo
encontramos várias interseções, mediadores, interferências, preocupações da autora com
a ecologia, com o papel da mulher, com questões políticas, com a organização social,
numa tentativa sempre andarilha de buscar e buscar, e não parar nunca. O corpo pede
movimento e alma, e o pensamento paz... há que continuar caminhando.
“Na verdade quando atuo como improvisadora me nutro
de vazios, de nada, de tela branca, de dúvidas, de corpo
poroso e de frente para o abismo da imprecisão das
coisas, da efemeridade das ações, e da potência do
335
AGUIAR, 2007.
129
presente. Então, estou ali desaprontadamente pronta, ali
estão em jogo toda a minha vida, todo o meu discurso, e
sua importância é sempre maior do que a minha simples
figura. Busco então a inteireza, a ética, e o que o espaço
está colocando, eu e tudo o mais são espaços. É certo que
sempre busco coisas que eu não sei. O improvisador para
mim precisa ser simples, não querer demais, e saber que
pode estar em uma situação de risco todo o tempo, e ter
sempre seu clown na manga.”
336
No caso de Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora
Dudude foi contemplar, trabalhar com a observação, estar... provocar e ser provocada,
em tempo presente, faz parte como elemento em um movimento de deixar vir, tentando
ao máximo desaparecer na existência do momento prévio sendo a vida sua própria
estrutura. A estrutura como metáfora da própria vida.
o movimento não para nunca. Acho que independe de
nós. Mesmo parados a terra gira e nos leva,
E nos leva,
E nos leva...”
337
336
E-mail de Dudude Herrmann, dia: quinta-feira, 11 de setembro de 2008 15:54, assunto: Entrevista
programada 30 de agosto de 2008.
337
HERRMANN, Textos produzidos por Dudude Hermann, ao longo de Poética de uma Andarilho – A
escrita do movimento no espaço de fora.
130
Considerações Finais
Essa dissertação se ateve ao desenvolvimento do modo de composição improvisação na
dança, que veio durante o século passado se desenvolvendo como instrumento de
formação de um indivíduo que trabalhasse com suas particularidades e possibilidades,
que devolvesse a ele a condição de expressão individual sem perder o caráter
experimental e investigativo, conectando-o ao mundo e à sua cultura. Isso foi mostrado
e analisado no trabalho da bailarina e coreógrafa Dudude Herrmann.
Destaca-se, em relação à improvisação, entre outras filosofias de Dança, a importância
das escolas Alemã e Estadunidense e suas reverberações na dança no Brasil, e
principalmente na formação de Dudude através da Escola de Dança Moderna Marilene
Martins, de influências do Professor Klauss Vianna e do pedagogo Rolf Gelewski, e
posteriormente do encontro da mesma com seus pares, principalmente americanos,
como Katie Duck, Lisa Nelson e Daniel Lepkoff, e brasileiros, como Giovane Aguiar e
Tica Lemos.
É importante lembrar que, a improvisação como conteúdo de dança ganha espaço como
disciplina, no Brasil, na UFBA, com o curso superior e seu currículo desenvolvido por
Dulce Aquino, aprovado pelo MEC. A improvisação não só passa a ser exercitada como
experimentação e exploração com fins a servir à composição, ou ao descobrimento de
possibilidades do bailarino e invenção de novos modos de se movimentar, reservada a
investigação de movimento e de linguagem, mas torna-se suporte e fim de uma obra
artística.
A improvisação como disciplina é, na formação do bailarino, cada vez mais importante,
ressaltada também como conteúdo de aprimoramento e formação de um ser, perspectiva
valorizada pelos grandes mestres como Laban e Wigman e, no Brasil, disseminada por
alunos dos mesmos, e especificadamente em Belo Horizonte por Rolf Gelewski e
Marilene Martins, no sentido de fortalecimento do ser.
Analisei o trabalho de Dudude Herrmann através de três obras pinçadas metodicamente
para, de certa forma, corresponder às metáforas criadas pelo texto, que não está
preocupado em fazer uma abordagem histórica em sua essência, nem análise política da
131
dança, mas em destacar elementos fundamentais da improvisação que seriam: a
memória usada com rapidez, e por isso treinada, como recurso e elemento fundamental
para esse momento presente para tomar as decisões que o momento instantâneo vai
pedir, fazendo, então, que esse compêndio que um bailarino vai formando seja também,
para o bailarino, recurso de fácil acesso; o desaparecimento como forma de estar no
rastro de algo que já aconteceu, por demonstrar que a dança está no presente - e a
improvisação nos lembra esse gerúndio o tempo todo, a desaparição como elemento de
composição do efêmero; e finalmente a estrutura, que foi tratada como recurso técnico
de espetáculo com improvisação-fim, e o texto trata de verificar onde estaria essa
estrutura, como uma malha, uma teia, um andaime de prédio em construção. Assinalo,
então, que a própria estrutura é que permite estar vivo dentro dela por ser vazada e
arejada.
Procurei destacar Dudude Herrmann como coreógrafa e bailarina brasileira, renomada, e
sua importância como representante de um pensamento de todo uma corrente de
filosofia de dança, e atual mantenedora dessa linguagem como uma artista persistente e
resistente, apesar de todas as políticas desanimadoras para o artista da dança na
atualidade. Além disso, sua competência e generosidade como formadora e
disseminadora dessa filosofia e pensamento da dança fazem-na responsável pela
continuidade dessas filosofias da Escola Alemã, desenvolvendo em um sentido paralelo
as particularidades dessa dança no contexto brasileiro e fazendo parceria com os
estudiosos da dança na atualidade.
Defender uma dissertação de mestrado sobre dança e improvisação no trabalho de uma
coreógrafa brasileira vem marcar a escrita de um pensamento que começa a ter uma cara
local, atendendo à necessidade de que cada vez mais nossos artistas possam receber
reconhecimento em nossa memória, e nossa história artística possa ser catalogada e
contada. O tratamento acadêmico desse tema, no contexto brasileiro, outorga respaldo à
própria dança, essa dança contemporânea, de vanguarda, transversal, marginal, tão
cansada de tropeçar nas dificuldades de sobrevivência no país.
132
O trabalho desenvolvido por Dudude
338
faz um paralelo entre o que se foi
desenvolvendo no pensamento da dança moderna e nossa contemporaneidade, com
tamanha força e persistência, perdurando até então nessas quatro décadas com seu
trabalho ininterrupto, sempre na tentativa de ESTAR, por termos uma coreógrafa
afinada e inserida no mundo, com suas limitações de percepções, mas com suas antenas
ligadas e pronta para correr risco e interagir, colocando-se a serviço de cumprir a dupla
posição de provocadora e provocada.
A improvisação na dança promove um discurso político e coloca o dançarino em
contato com o presente deixando-o, antes de tudo, muito consciente e muito vivo, por
ser um modo de composição vivo, fazendo parte de um todo e interferindo e sendo
afetado pelo mundo. Mais especificamente analisei como esse processo de composição
ocorre na trajetória e no momento atual da coreógrafa, dançarina, atriz, professora
Dudude.
A improvisação trabalha a questão do corpo no espaço-tempo como uma questão pós-
moderna e agora, talvez, estejamos discriminando, dentre as várias dimensões, a
dimensão do tempo: a dança no tempo, como se a Estrutura estivesse suspensa no
Tempo ou o Tempo apoiado no Espaço. O vocabulário usado na prática da
improvisação mostra a dimensão do tempo: ‘presente’, instante, momentum, ínfimo,
efêmero, memória. O tempo pode ser a própria estrutura. A estrutura pode ser o tempo:
Composição no instante
339
. Não é um tempo da história, é um tempo da presença em
toda sua infinitude e finitude.
A improvisação se faz, por assim dizer, no gerúndio, como contínua e criativa adaptação
a uma situação fluida e cambiante. Aprende-se a avaliar, sob diversas formas, no
momento mesmo da experimentação, as características dessa estrutura vazada e da
presença do(s) improvisador (es), em uma aparição de uma criação in loco,
configuração instantânea, única, sem apreensão de autoria e sem volta, em tempo.
338
Dudude comenta agora seu atelier se refere ao seu nome Dudude e também que tem o desejo de
começar a ser citada somente por Dudude.
339
NELSON, Conversação, 2010. Lisa Nelson atualmente prefere chamar esse trabalho, que ainda está
em processo, de “composição no instante”, deixando a palavra improvisação pelo motivo de tentar dar
mais significação para um trabalho específico de corpo, dança no momentum. Cf. Programa do projeto
Momentum de 2007, onde o subtítulo já traz “composição no instante”, proferidos por Luiz Carlos
Garrrocho e Dudude Herrmann.
133
Referências
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VÍDEOS
BARAKA - O Mundo Além das Palavras. Direção Ron Frike -1992 .
Vídeo Encontro Internacional de Criadores e Coreógrafos. Festival Nova dança, Brasília
- Pirinópolis, 2009. Diretor Geral Giovane Aguiar.
40 Invernos - Documentário. Direção e Edição: Evandro Lemos e Sérgio Vilaça.
Belo Horizonte, 2006.
PALESTRAS
Transcrição do áudio: Paola Rettore.
VIANNA, Klauss. Programa Agenda do Corpo, Corpo – Escola de Dança, Coordenação
Paola Rettore, Belo Horizonte, 1989.
AGUIAR, Giovane. Visitas Benvinda, Estúdio Dudude Herrmann, Belo Horizonte,
2007.
NELSON, Nelson e LEPKOFF, Daniel.Conversação, coordenação e mediação Dudude
Herrmann, Centroequatro, Belo Horizonte, 10/02/2010. Tradução Tom Rezende
HERRMANN, Dudude. Conversatório. Encontro de Coreógrafos. Coodenação
Giovane Aguiar. Festival Internacional de Nova Dança. Pirinópolis, 2009.
ARTIGOS - REVISTAS
HERRMANN, Dudude. ENARTCI Ano VI. Publicação Hybridus. 2008. Belo
Horizonte
138
ENTREVISTAS:
ALVARENGA, Arnaldo. 2009. Faculdade Belas Artes/UFMG, Belo Horizonte.
AGUIAR, Giovane. Encontro de coreógrafos Festival Nova Dança, organizado por
Giovane Aguiar. Pirinópolis, 2009.
NELSON, Lisa. Fevereiro de 2010. Tradução simultânea de Cristiana Menezes, no
Estúdio Casa Branca, em Brumadinho.
LEMOS, Tica. Encontro de coreógrafos Festival Nova Dança, organizado por Giovane
Aguiar. Pirinópolis, 2009.
MARTINS, Marilene. Entrevista cedida por Marilene Martins no dia 01 de julho de
2009, Belo Horizonte , em sua casa, com presença de Dudude Herrmann.
STEWART, Izabel. Sexta-feira, dia 30 de maio de 2009.
HERRMANN, Dudude. Julho de 2008.
HERRMANN, Dudude. Novembro de 2007.
HERRMANN, Dudude. Encontros especiais para discussão do texto final, conversas
informais 2010.
SOARES, Marta. Encontro de coreógrafos Festival Nova Dança, organizado por
Giovane Aguiar. Pirinópolis, 2009.
WERKEMA, Mauro. Entrevista cedida a Paola Rettore em Março de 2008 em Belo
Horizonte na Livraria Quixote.
139
Paola Rettore e Dudude Herrmann, São Paulo, 2008.
Foto: Frederico Herrmann.
AULAS de Dudude Herrmann gravadas por Paola Rettore:
HERRMANN, Dudude, transcrição. 2008. Transcrição das fitas gravadas da Oficina de
Improvisação ministrada por Dudude Herrmann em São Paulo, Galeria Olido – 25 e
26/07/2008.
140
ANEXO I: Obras
Relação
340
das obras com datas de estréia da Benvinda Cia de Dança e Dudude
Herrmann Cia de Dança.
1992 Arrotos e Desejos
1993 Plus – Interseções Barrocas em Andamento Latino
1995 Iphigenia
1997 O que fazer para o jantar
1998 Um solo para uma dança e um violão
1999 O Armário
2000 Barrocando
2002 4 solos para 3 intérpretes
2003 Tanque
2004 Maria de Lourdes em Tríade
2004 Poética de um Andarilho - a escrita do movimento no espaço de fora
2004 Pedaço de uma Lembrança
2005 Solos Benvindos
2005 Às voltas com o dançar
2005 Como habitar uma paisagem sonora
2006 Na Planície, logo montanha, aparece o mar...
2007 Disyquilibrio
2007 Sem, um colóquio sobre a falta
2008 Paisagens Alteradas
Dudude Herrmann, Foto: Vinícius Reinaldi, Sabará, 2000.
340
Cf.www.dududeherrmann.art.br
141
ANEXO II: Prêmios:
2003/2004 Bolsas Vitaes de Artes. Pesquisa do Andarilho.
2002 Premio Amparc de melhor bailarina e melhor bailarina revelação e Premio Sated,
melhor bailarina, 4 solos para 3 intérpretes.
2001 Melhor Coreografia e melhor Bailarino – “Barrocando”, Prêmio Amparc
Bonsucesso.
2000 Bolsa Virtuose Minc, permanência no 1° semestre de 2001 em Paris e Centro
Coreográfico Nacional de Orleans , FR.
2000 Melhor Cenário “O Armário” e Maitre de Dança, prêmio Sated.
1999 Melhor Direção, melhor espetáculo, melhor trilha, - O homem que sabia
Português, prêmio Sated/prêmio Bonsucesso.
1996 Iphigênia - melhor coreógrafa, prêmio Bonsucesso.
1994 Prêmio Estímulo, prêmio pela obra, Minc-Funarte.
1991 Prêmio Cauê : melhor espetáculo, coreografia, bailarina, Carne Viva, 1º Ato –
Grupo de Dança.
1989 Prêmio Fundacem: Triunfo, um delírio barroco, melhor espetáculo, melhor roteiro.
142
Anexo III: Parceiros Atuais de Dudude Herrmann em Improvisação
Quando se pergunta a Dudude como ela se nutre a fim de se fortalecer para o exercício
da improvisação, ela fala de seus parceiros aqui no Brasil e também no exterior.
Atualmente tem como seus parceiros nessa busca de investigação alguns coreógrafos e
improvisadores, e podemos citar Giovanne Aguiar, de Brasília, e Tica Lemos
341
, uma
das fundadoras do Estúdio Nova Dança, de São Paulo. Dudude cita e comenta
342
sobre
alguns, dentre outros, parceiros atuais, que fazem parte da troca e da busca dentro dessa
inquietação e das questões que ela levanta sobre a improvisação.
“Giovane Aguiar. Uma pessoa parceira, amigo e
colaborador, conheci na década de 90, através de Tica
Lemos que me falou que ele dançava lindo e que estava
desenvolvendo um trabalho com Gisele Rodrigues em
Brasília e que eu deveria conhecer, foi o que fiz, posso
considerá-lo como parceiro do EDH também, pois veio
várias vezes ministrar oficinas, desde então mantemos
contato.
Cristiane Paoli Quito. Amiga, incentivadora
colaboradora, conheci através de Tica Lemos, fomos
juntas numa viagem à Europa para um Festival de
Improvisação promovido por Katie Duck em Armsterdã,
desde então nos comunicamos e afinamos nossas
impressões, dancei em alguns eventos sob sua direção e
comungamos o lugar da improvisação intensamente.”
Atualmente, desde março de 2010, Dudude Herrmann está trabalhando em seu novo
Estúdio Casa Branca na companhia e sendo dirigida por Quito.
341
Tica Lemos estudou com Steve Paxton e trouxe na década de 90 o contato improvisação para o Brasil,
dando seu primeiro curso sobre esse tema dentro da programação da Mostra de Dança da Corpo – Escola
de Dança em 1990.
342
E-mail de Dudude Herrmann: 11 de setembro de 2008 15:54. Assunto: Entrevista programada 30 de
agosto de 2008.
143
Tica Lemos. Minha grande amiga, a vi pela primeira vez
em um Festival de Brasília, ela estava voltando dos
EUA/EUROPA cheia de vontade para trabalhar, comecei
a convidá-la para os Festivais de Inverno da UFMG. E
logo que abri meu estúdio Tica veio dançar e se tornou
uma colaboradora assídua ministrando diversas oficinas
e cursos no estúdio. Ficou muito animada com a proposta
do estúdio e, em seguida, ela com mais três sócias
abriram o NOVA DANÇA onde também atuei como
colaboradora durante sua existência. Posso dizer que
Tica Lemos é uma amiga e parceira para o resto de
minha vida, numa ajuda e união de forças continuadas.
Marco Paulo Rolla. Amigo de muitos anos, comungamos
pensamentos distintos porém parecidos, a maneira que
trabalhamos é muito parecida e o interesse que temos um
pelo trabalho do outro nos faz desenvolver trabalhos
juntos, para o resto da vida.
Tarcísio Ramos Homem. Participou intensamente do
primeiro trabalho Arrotos e Desejos e sempre presente e
animado em dançar mais e mais. É um companheiro à
distância e disponível tanto para trabalhos prazerosos
quando para trabalhos emergenciais. Disposto, sempre se
colocou inteiro.
Ana Lana Gastelois, Artista em potencial, colaboradora
em trabalhos pontuais desde Bing, Arrotos e Desejos, O
Armário (prêmio Sesc/Sated - Melhor cenário) atuando
como bailarina e logo depois como cenógrafa, mostrando
um entendimento sensível e sempre próxima em um
momento importante do meu trabalho.
144
Arnaldo Alvarenga, amigo trabalhamos em vários
momentos juntos compartilhamos de vários trabalhos
como criadores e sempre esteve acompanhando meu
trabalho e nutro por ele uma admiração.
Paola Rettore, sempre curiosa e ativa e dançarina, se
atreve em dançar, foi minha cúmplice enquanto Cia de
Dança do Palácio das Artes, entendia minhas aflições e
compartilha comigo até hoje. Participou dos primeiros
trabalhos com a força vital de seus movimentos, ficamos
por um tempo afastadas espacialmente e em seu retorno
aproximamos mais uma vez com a maturidade adquirida
e neste momento me sirvo como objeto para seu estudo o
qual me ajuda a entender e desentender o meu trabalho.
Eugenio Pacelli esteve ao meu lado na construção da Cia
Dudude Herrmann como bailarino e como figurinista.
Silvana Lopes. Artista em potencial. Durante um bom
tempo (1999 a 2007) tive em Silvana uma parceira inteira
e disponível, sua compreensão para com as idéias
lançadas eram apreendidas. Posso afirmar que Silvana
foi uma intérprete da linguagem que a Benvinda Cia de
Dança desenvolveu ao longo de sua existência.
Heloisa Domingues, uma bailarina que foi chegando e
aos poucos foi pertencendo à Benvinda com uma
curiosidade e um interesse de dançar uma dança que
fosse construída a partir dela mesma. Participo
ativamente de sua busca desta dança e da construção da
Heloisa artista.
Izabel Stewart. Uma amiga, comadre e parceira, conheci
Izabel no Rio de Janeiro. Todas as vezes que ia ministrar
145
uma oficina, lá estava Izabel, ela dançava com um grande
amigo meu o João Saldanha. Quando estava residindo em
Paris encontrei Izabel e desde então começamos a nos
afinar em um lugar mais profundo de arte, então ela veio
morar em BH e eu a convidei para fazer assistência de
alguns trabalhos desenvolvidos pela BENVINDA.
Marise Dinis. convidei Marise para participar da equipe
da Benvinda pois via seu interesse no trabalho que
desenvolvíamos, seu movimento, sua maneira ética de
dançar, isto sempre me agradou.
André Lage. Amigo, um ser curioso. André sempre está às
voltas de seu desejo, nosso encontro em Paris despertou
nele o desejo da dança, da improvisação e nos aproximou
por meio de varias questões que rondam o estudo e o
entendimento da Arte, acho uma pessoa interessante e
sagaz em suas maneiras de apreender, para mim André
daria um ótimo crítico.
Patrícia Siqueira (aluna). Acompanho Patrícia por
muitos anos, desde que apareceu no estúdio com sede de
aprender algo que a motivasse na dança, foi beber no
teatro, no vídeo, fez a maioria das oficinas do estúdio,
sempre disposta e ávida pela prática da improvisação.
Posso considerar que Patrícia aproveitou o EDH ao
máximo.
Rose Akras. A parceria com Rose abriu muitas
inquietações no que diz respeito à improvisação. Rose
colaborou no EDH oferecendo muitas oficinas e
contaminando várias pessoas, pessoas estas que
participaram do Momentum. (...) o estudo mais direto
com os sentidos, a apresentação do BMC foi e é um
146
campo de interesse que ainda preciso esgotar, ali está um
terreno fértil para a exploração da improvisação.
Dudude gostaria de citar, então todos os bailarinos que uma vez estiveram junto a ela,
em momentos não tão fortes da improvisação como lugar de obra.
Todos os bailarinos tem uma parcela de e foram de algum
modo presentes e importantes no processo de meu
trabalho: Fernanda Vianna, Margo Assis, Luciana
Gontijo, Joana Carneiro, Paula Neves, Amália Lima, Ana
Virginia Guimarães, Sergio Pena, entre outros.
Em relação às JAMs promovidas pelo estúdio de 1994 a 2007, que aconteciam no
Estúdio na Praça JK coordenadas pela Dudude e depois coordenada pela Dulce
Magalhães. Sobre a aluna e parceira Dudude comenta:
“Dulce Magalhães me acompanha e eu a acompanho
desde de 1992, foi minha aluna, a vi se tornar arquiteta.
Ela, na medida do possível, acompanhou as produções
tanto da Benvinda como do EDH. Se interessou muito
pelo contato e pelas sessões de Jam, que eu realizava no
estúdio. Tentei vários formatos. A partir de 2006,
convidei Dulce para assumir esta função de
coordenadora das Jams, pois vi nela uma vontade e
interesse de praticar, neste momento já estava exausta de
levar a frente tal projeto, de fazer com que as pessoas se
seduzissem por esta prática. Hoje existe o Grupo de
Contato, que se reúne independentemente lá no estúdio
para praticar. Dulce hoje é uma amiga e uma parceira
que acredita nesta forma de trabalhar, o que foi
apreendido durante a existência do EDH em si.”
Como artista parceiro multimídia atual Dudude cita:
147
Marcelo Kraiser parceiro para a improvisação na
composição e na interferência musical e audiovisual.
Compartilhando seus estudos sobre a improvisação e
ministrando cursos e palestras no EDH e administrando
tempo de improvisação como provocador e co-
organizador do Arte Expandida.
Dudude Herrmann e Frederico Herrmann, Foto: Nilmar Lage.
148
Estado de Minas. Data: 30 de abril de 1999. Caderno Espetáculo p. 3.
Sobre a cidade de Belo horizonte e o interesse e a relação com as JAMs, que antes eram
encontros semanais, depois passaram a ser encontros quinzenais e finalmente no
formato que chegou ao último ano, sempre no estúdio e na praça JK uma vez ao mês:
“Fraca, a comunidade da dança em Belo Horizonte não
se interessa muito pelo contato, é claro que existem
pessoas que se interessam, mas que não são propriamente
dançarinos profissionais, como é o caso de Dulce,
Vinícius, José Washington entre outros.”
Nesta mesma entrevista, Dudude afirma que com o fechamento e desaparição do
Estúdio Dudude Herrmann as Jams também acabariam:
“SIM. Estou em um momento de hiato, esperando a
direção do vento. Preciso descansar desta empreitada
que foi o EDH/BENVINDA. Preciso reaver o unitário
para poder estar com os outros unitários como eu
343
.”
343
Texto convite em E-mail de Dudude. 26 de maio de 2009 17:08. Assunto: Dia 05 de junho tem!!!!
(confirme sua presença):
DESOCUPAÇÃO DO ESPAÇO!!!!!!!!CELEBRAÇÃO DE UM TEMPO EXISTIDO!!!!!!!VOCÊ
ESTÁ CONVIDADO A COMPARECER NA GRANDE JAM DIA 05 DE JUNHO SEXTA-FEIRA DE 19:00 AS 24:00!!!!! na Av.
Alphonsus de Guimarães 62 (esquina com Av. dos Andradas) ESTA JAM TERÁ UM CARÁTER DE AGRADECIMENTO PELO
ESPAÇO QUE ACOLHEU DURANTE 15 ANOS UM PENSAMENTO DE ARTE, CRIAÇÕES DE DANÇA, MOVIMENTOS
EFÊMEROS, PESSOAS, IDÉIAS, COISAS NASCERAM, ADQUIRIRAM PROPRIEDADE!!!!! VOCÊ FEZ PARTE DISSO
PORTANTO VENHA DANÇAR, CELEBRAR JUNTO. SUA PRESENÇA É ESSENCIAL NESTE MOVIMENTO!!!!!!!!!!!!”
149
Anexo IV: Sinopse e ficha técnica da obra: Pedaço de uma lembrança.
Centro de Cultura de Belo Horizonte – Programação Cultural Novembro de 2006.
Modos de Dançar. Dudude Herrmann e Frederico Herrmann. Fotógrafo não identificado.
150
151
Anexo V: Sinopse e ficha técnica da obra: Sem, um colóquio sobre a falta.
152
SEM
Um colóquio sobre a falta
Sinopse
Como o próprio nome sugere aborda a falta, em
intensidades distintas como as questões que permeiam
nossa existência, a relação com este organismo terra, a
relação de nossos corpos cegos e ao mesmo momento em si
mesmados, a confusão da abundância. Que abundância é
esta?
Este trabalho tem apoio na impermanência dos seres e das
coisas, com uma estrutura ventilada tendo na composição
instantes inusitados.
A Benvinda Cia de Dança trabalha diretamente a
linguagem da improvisação, para tanto, SEM é um lugar
provocador para nós. Sugere a abordagem da falta de
CUIDADO, DA ÁGUA, DO SENSO DE OLHAR AO
REDOR, DA PROJEÇÃO, DA MEMÓRIA, e assim por diante.
Este assunto é determinante no modo de trabalho desta cia, no que diz respeito ao que
produzimos enquanto lixo no mundo, a atenção para o rastro largado e que ressoa por aí
afora.
SEM
Um colóquio sobre a falta
153
Ficha Técnica:
Direção e Concepção: Dudude Herrmann
Ensaiadora: Paola Rettore
Interpretes: Dudude Herrmann e Izabel Stewart
Stand By: Paola Rettore e Silvana Lopes
Iluminação e Sonorização: Orlan Tôrres
Produção: Jacqueline de Castro
Coleta de Imagens de vídeo: Izabel Stewart e Marcelo Kraiser
Elaboração do vídeo: Marcelo Kraiser
Trilha Sonora: Feldman/ Messian/Arnaldo Batista
Paisagem Sonora: Marcelo Kraiser
Fotos: Jacqueline de Castro
Duração aproximada: 45 minutos
Relação das Músicas de Sem, um colóquio sobre a falta:
Rothko Chopel Feldman Orchestral Work&Chamber
Symphony nº 40 Mozart
Clube Bed to Death - Rob D
Minimalistes Steve Reich
The Clash
Material de cena:
200 sacolas plásticas de texturas variadas
200 copos de plástico
154
Espaço Cultural CPFL, setembro de 2007.
155
Anexo VI: Sinopse e ficha técnica da obra: Poética de um Andarilho - a escrita do
movimento no espaço de fora
Frente e Verso Programa
Miolo do Programa
156
ENARTCI – Corpo e Barbárie. Foto: Adriana Moura.
157
Anexo VII: Declaração
158
Anexo VIII: Panfletos do Estúdio Dudude Herrmann
159
160
161
ANEXO IX: Cadernos de aula, de anotações: alho nos olhos
Figurino para Bing, Cia. Absurda, de Niura Bellavina, o mesmo figurino foi usado por Izabel Stewart em
Sem, um colóquio sobre a falta, acima e desenhos de estudo para Bing.
162
ANEXO X: Improvisação (palavra gigante) – Texto de Dudude
provisação (palavra gigante): Corpo em estado de “Obra”
em dança mais questões correlatas a ação de estar
estar ali entregue no instante zero?
te na expectativa que ele se torne eterno.
detetive que investiga alguma coisa que o faz prosseguir... talvez o
? Quer dizer com minhas células, meu corpo vazio a
inocência, do desaprontamento, e de se
detalhes, as coisas vistas e não vistas.
Im
Aparecer e desaparecer
Quanto mais exercito a improvisação
produzindo e compondo imagens se revelam e trazem mais e mais questões....
Perguntas são sucessivamente colocadas no plano real do acontecimento
Por que me interesso tanto pela linguagem da improvisação em dança?
Pela efemeridade deste fazer?
Qual a disponibilidade do improvisador de
É vital sua confrontação com o vazio?
Penso como um fotógrafo que captura o instan
Estudo, treino e aprendo, apreendo os momentos onde o acontecimento foi de uma
intensidade nauseante, revelando algo maior que nossos corpos, e nos trouxe a sensação
que sempre há algo além da imagem.
ETERNIDADE
Penso como um
desejo da captura deste momento, onde tudo é revelado
Que “tudo” poderá ser isto??
Para improvisar preciso estar inteira
serviço de um por vir, de um vir a ser
O que pode ser esta imagem, “estar inteira”?
Um improvisador para mim necessita cuidar da
colocar em um estado de imanência com o todo que o envolve.
Mas que todo é este?
TUDO
As pequenas coisas, as grandes coisas, os
Tornar se visível e construir um estado de ser coisa também, desmanchar seu corpo
homem e deixar transformá-lo em uma ferramenta potente de significados, para que a
audiência possa absorver e re significar o momento da maneira que lhe é apresentada
Partindo de um entendimento que cada um tem o universo dentro, que coabita este
tempo, e que tudo faz a diferença e modifica as ações decorrentes de outra ação.
163
Então tudo já está acontecendo, o improvisador então recorta um intervalo de tempo e
se apropria dele, um trabalho de ourives refinado, delicado e atrevido Entendo que o
improvisador precisa ser ele próprio seu provocador, ele transfere o sujeito para o
espaço do acontecimento e ele deve saber que tudo que produz se configura e revela
como uma imagem, e ele sabe que está sempre sendo visto por algo, por alguém, e que
esta sensação o afeta e modifica seus procedimentos futuros próximos
Ele trabalha com partículas infimamente pequenas de projeção de tempo, pois também
sabe que tudo pode mudar como um piscar de olhos
É fato que nunca contamos quantas piscadas de olhos damos quando estamos nesta
ação.Isto me interessa, perseguir alguma coisa que não sei.
Instrumentalização de um improvisador: uma vida inteira
No meu entender o improvisador precisa gostar de trocar, gostar de mudar, precisa ser
curioso, precisa ter fome de vida, fome de saber, fome de tentar sempre mais uma vez, e
ser totalmente despretensioso. Porque isso? Porque ele sabe que corre o risco do
fracasso, do ridículo, e o que ele pode fazer?
Seria bom que a disponibilidade fosse uma constante, treinar improvisação é ampliar
nosso repertório, aumentar nossa enciclopédia tanto física, como sensorial, é estudar e
estender as conexões com a vida, é discutir o inusitado, a surpresa e se colocar inteiro
no meio da cruz, presente
ESPAÇO X TEMPO
O improvisador precisa ser atrevido para lançar os dados e se comprometer com o que
aparece, administrando e compondo junto. Partindo do pensamento que as coisas falam,
que tudo fala e que ele é e será mais um no espaço, talvez ele seja o deflagrador de
situações que surgem assim!!
A espontaneidade para um artista que lida no campo da improvisação, não existe, para
mim existe um treinamento intelectual refinado atuando no campo sutil, e as
configurações são selecionadas quase instantaneamente por um intelecto treinado na
composição de qual imagem está sendo produzida, no campo real. Passado, presente e
futuro são reduzidos no instante infinitesimal de segundos.
O tempo vale.
A vida vale.
Tudo é importante.
Não vivemos de aparência.
164
Vivemos de acordos potentes e lúcidos, o intuito talvez seja de escancarar aquilo que lá
está uma aventura certamente!
Hoje meu lugar de interesse tem se voltado a questão da Aparição e da Desaparição.
Minha questão é a seguinte
O que acontece quando sou vista pelo espaço?
No sentido da prontidão das células e da conexão em um campo de energia que faz com
que quando algo aparece, tudo que ali está aparece junto e registramos juntos este
instante mágico.Esta sensação me faz tentar novamente, me sinto como um caçador ,
que estuda seus hábitos, seus impulsos, suas ferramentas, para novamente capturar este
instante, que eu chamaria de Instante Zero
Na maioria das vezes quando estou em estado improvisatório, aparição e desaparição
estão juntas.
Procuro capturar este momento da aparição para entender o grau de energia que
acontece para tal, e a sensação de desapego que preciso ter, para que isto se efetive.
Instante Zero é a potência sobre potência, que cria um campo de imanência, onde a
sensação é que o tempo parou, e tudo foi visto e registrado pelas células do espaço.
Talvez centésimos de segundos tornam-se eternos e largos.
Magnífico, não?!
Chego então a outra questão que me tem chamado atenção, trabalhar o corpo como se
fosse uma “obra” de arte em permanente estado de exposição
Tenho feito esporadicamente este exercício e tenho também ministrado oficinas com
este intuito de treinarmos a excelência de estarmos em performance por tempos
estendidos de 20 minutos a quatro horas/seis horas de trabalho, aceitando os vazios, as
desaparições, deixando o espaço se revelar como potência, como lugar. Cada vez mais
isto tem me interessado.
E percebo como a simplicidade é importante para se deixar ser tempo, espaço e assim
desvelar a dança, soltar e desamarrar o espaço.
Que espaço é esse?
Espaço é tempo, vida, lugar, ação, acontecimento, e tudo se passa junto, acontecendo no
tempo real e em uma configuração única, a sensação de uma única vez.
Não há repetição. Mais uma vez improvisa-se e mais uma vez tudo é novidade, a menor
mudança altera e modifica o acontecimento.
165
Gosto dessa sensação, justamente por isso sou improvisadora, estou sempre começando
algo que não sei muito bem o que é, mas estou, e este é o meu exercício como artista de
dança e pessoa no mundo.
Atelier de Dudude Herrmann, 2010. Foto: Francisco Herrmann.
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