Download PDF
ads:
LEOCÁDIA APARECIDA CHAVES
AS MARGENS DA NAÇÃO MODERNA EM VENTOS DO APOCALIPSE,
DE PAULINA CHIZIANE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação e Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
parte dos requisitos para obtenção do grau de
Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa,
sob a orientação da Profa. Dra. Maria
Nazareth Soares Fonseca.
Belo Horizonte
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Chaves, Leocádia Aparecida
C512m As margens da nação moderna em Ventos do apocalipse, de Paulina
Chiziane / Leocádia Aparecida chaves. Belo Horizonte, 2010.
120f.
Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca
Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Literatura moçambicana – Critica e interpretação. 2. Chiziane,
Paulina, 1955-. 3. Ventos do apocalipse. 4. Intelectuais. 5. Memória. 6.
Estado nacional. I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
Letras. III. tulo.
CDU: 869.0(679)
ads:
LEOCÁDIA APARECIDA CHAVES
AS MARGENS DA NAÇÃO MODERNA EM VENTOS DO APOCALIPSE,
DE PAULINA CHIZIANE
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-graduação em Letras da PUC
MINAS e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (Orientadora) – PUC Minas
_________________________________________________________
Profa. Dra. Ivete Lara Camargos Walty – PUC Minas
__________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Zilda Ferreira Cury - UFMG
Belo Horizonte, 26 de fevereiro de 2010.
À minha mãe, meu pai, Júnior e
Liliam, que de maneiras diferentes,
em momentos diferentes, sempre
“alimentaram” meus sonhos e
acreditaram em mim.
AGRADECIMENTOS
À Deus, que guia minha vida desde sempre.
Ao Prof. Hugo Mari, coordenador do curso de pós-graduação.
À Profa. Maria Nazareth Soares Fonseca que, ao longo dos últimos três anos, com paciência
e sabedoria, tem acolhido meus sonhos, projetos e idéias e, como verdadeira mestra,
orientado meus passos nos estudos literários.
Aos professores Audemaro Taranto Goulart, Ivete Lara Camargos Walty, Lélia Maria
Parreira Duarte, Maria Nazareth Soares Fonseca, Márcia Marques de Morais, Melânia Silva
Aguiar e Terezinha Taborda Moreira que me apresentaram, com competência e delicadeza,
próprias dos sábios, um mundo novo, que sempre desejei conhecer, mas só intuía existir.
Ao pessoal da Secretaria, em especial à Berenice, pela atenção e prestatividade.
À CAPES, que favoreceu meus estudos, financiando-os ao longo desses últimos dois anos.
Ao Júnior, companheiro escolhido por Deus e enviado pelos anjos.
À minha mãe, que por meio de seu infinito amor, vela por mim todos os dias de sua vida.
À Liliam, minha verdadeira heroína.
Aos meus colegas de curso, com os quais dividi alegrias e angústias.
Às amigas Juliana Salvadori e Márcia Souto, companheiras de muitas jornadas.
RESUMO
Esta dissertação analisa o romance Ventos do apocalipse (1999), da moçambicana
Paulina Chiziane, representante de um tipo específico de intelectual, na acepção
moderna do termo, característico da contemporaneidade: o escritor-intelectual. Sob
esta perspectiva examinam-se tanto os enunciados como o processo de enunciação do
romance com o intuito de demonstrar que a narrativa, ao trazer ao protagonismo vozes
marginais tais como elementos da cultura tradicional, bem como refugiados e
sobreviventes de guerra – apresenta-os em reconfiguração. Em outras palavras, o
romance, ao reconfigurar essas vozes, faz-se signo da própria nação moderna em
construção: essas vozes, na cena textual, rasuram e violentam um discurso fundacional
de nação homogênea, anônima e horizontal, pois explicitam as dissidências, existentes
embora sufocadas, a esse discurso. Por outro lado, esta contra-narrativa de nação
também se constitui como um possível “lugar de memória”, pois, ao configurar-se
como simulacro de ambientes de memória”, exibe os dilemas de uma literatura que,
intencionalmente, dialoga com os conflitos de um país que se reconsti de uma guerra
civil, terminada em 1992.
Palavras-chave: Escritor-intelectual, Literatura, Contra-narrativa de nação, Lugar de
Memória, Ambiente de Memória.
ABSTRACT
This thesis aims at analyzing the novel Ventos do apocalipse (1999), by Mozambican
author Paulina Chiziane, who, according to our point of view, represents a particular
type of modern intellectual, characteristic of the contemporaneity, namely a writer-
intellectual. We have examined both the novel’s statements and enunciation in order to
show that this contra-narrative, by bringing forward marginal voices such as
elements of the traditional culture as well as war refugees and survivors – reconfigures
them as if the novel itself stood for the modern nation still in construction. These
voices, in the textual scenario, erasure and violate the foundational discourse of a
homogenous, anonymous and horizontal nation, since they explicit the dissidences to
such discourse, dissidences that have been suffocated. On the other hand, this contra-
narrative is also a realm of memorysince, by configuring itself as a simulacrum of
the “spaces of memory”, it shows the dilemmas faced by a literature which,
purposefully, dialogues with the conflicts of a nation still reconstructing itself after the
civil war end in 1992.
Key-words: Writer-intellectual, Literature, Contra-narrative of Nation, Realm of
Memory, Spaces of Memory.
SUMÁRIO
1 PERCURSOS DE UMA ESCRITA INTERVALAR ....................................................... 8
2 CONFIGURAÇÕES DE UMA ESCRITORA-INTELECTUAL MODERNA ............ 13
2.1 Prólogo – Entre mito e história: ambivalências .......................................................... 26
2.2 Signos de uma sociedade convulsionada: reconfigurações ......................................... 33
3 AS MARGENS DA NAÇÃO MODERNA EM VENTOS DO APOCALIPSE ............... 51
3.1 Refugiado, condição para uma nação imaginada ....................................................... 54
3.2 O narrador-contador, uma voz marginal .................................................................... 62
3.3 Minosse, outra margem violentadora ......................................................................... 69
4 VENTOS DO APOCALIPSE: “LUGAR DE MEMÓRIA” E ENCENAÇÃO DE
“AMBIENTES DE MEMÓRIA” ...................................................................................... 79
4.1 Mbelele: um ritual reconfigurado em ambiente de memória ..................................... 84
4.2 O velho, o ancião em ambientes desfigurados de memória ........................................ 99
5 COMO UM CÃO QUE FAZ O SEU BURACO, UM RATO QUE FAZ A SUA
TOCA... .......................................................................................................................... 108
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 113
8
1 PERCURSOS DE UMA ESCRITA INTERVALAR
Repensar o processo de formação das nações modernas a partir da perspectiva das
minorias, isto é, a partir das margens, sem reproduzir o pensamento moldado de acordo com o
centro, é uma demanda latente na contemporaneidade, em especial para as nações africanas de
língua portuguesa
1
, que ainda vivem as conseqüências diretas dos traumas de sua história
recente: opressão colonial até meados dos anos de 1970, seguida por intensas e longas guerras
civis pós-independência em um mundo em franco processo de globalização. Tal demanda, no
entanto, tem sido abordada por um tipo muito característico de intelectual, os escritores-
intelectuais, provenientes das mais diversas áreas de conhecimento, como das Ciências
Sociais, da História e da Literatura. Ao se debruçar sobre o tema da nação moderna, estes
escritores têm contribuído para a reconfiguração e o questionamento dos espaços e discursos
de poder. Na literatura africana, em especial em Moçambique, esta questão tem alimentado o
projeto literário de muitos escritores e produzido um repertório extenso e criativo de
narrativas alternativas de/para sua nação. Neste sentido, Inocência Mata, em A crítica
literária africana e a teoria pós-colonial (2007), ressalta que nos Cinco (Angola, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe) a literatura tem cumprido um
papel crucial:
[...] não raro é apenas por via da literatura que as linhas do pensamento intelectual
nacional se revelam, e se m revelando, em termos de rias visões sobre o país,
actualizando identidades sociais, colectivas e segmentais, conformadas nas diversas
perspectivas e propostas textuais. Pensemos, por exemplo, nos “nossos” Cinco
países, durante o regime monopartidário, em que a liberdade de expressão estava
cerceada em nome de desígnios ditos do “interesse nacional” e ditados pela
consolidação da pátria [...] (MATA, 2007, p.28)
Segundo a estudiosa, nestes espaços, a literatura, mais do que outras áreas de
conhecimento, foi e ainda tem sido um veículo fundamental para a representação/encenação
de questões latentes para suas sociedades:
[...] como representação artística do imaginário cultural, [a literatura] é um desses
documentos (do imaginário) e, como tal, um objeto simbólico muito importante na
construção da imagem da sociedade, sobretudo em espaços políticos emergentes,
1
Segundo a reflexão realizada pela pesquisadora Inocência Mata, em Da língua à cultura: alguns aspectos da
problemática lingüística nos cinco ( Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe)
(2006), é preciso considerar a diversidade que se esconde por trás do bloco “países africanos de língua oficial
portuguesa”.
9
que vivem de forma por vezes ambígua e tensa a sua s-colonialidade. O estudo
desse objeto simbólico é tamm um dos veículos para que se chegue à história
como o o outras fontes menos convencionais do discurso da ciência histórica -,
pois é grande a probabilidade de ele se construir pela incorporação das contingências
da história e das informações do contexto espácio-temporal, que a análise textual
não deverá ignorar. (MATA, 2007, p.28)
Portanto, estes emergentes espaços s-coloniais, ao produzirem escritas que encenam
muitos dos seus dilemas, permitem que os Estudos Literários, associados aos Culturais, leiam
essas textualidades literárias como signos dessas sociedades. Esta é a trilha seguida na
investigação da obra literária Ventos do apocalipse (1999), da moçambicana Paulina
Chiziane, uma vez que a escritora, a nosso ver, produziu/elaborou/teceu neste romance, com
maestria, um discurso de nação a partir das margens, e, por conseguinte, dos marginalizados.
Salientamos, porém, que sua obra tem sido investigada pelo meio acadêmico, quase sempre,
na perspectiva da escrita feminina, isto é, do discurso de gênero. No entanto, acreditamos que
Ventos do apocalipse, pede uma leitura mais ampla, voltada às questões que perpassam a
formação de um discurso de nação a partir de outras margens, enfoque privilegiado neste
trabalho, como dito acima.
No estudo deste romance discute-se como a escritora operou, tanto nos enunciados
quanto no processo de enunciação, a ruptura com um discurso de nação homogênea,
veiculado/posto em prática no período pós-independência com a justificativa de garantir os
direitos dos cidadãos. Esse discurso totalizador, proposto pela elite dirigente, com a
justificativa de ser racionalizante, modernizador e cientificista” se opôs, por exemplo, ao da
tradição, construindo, portanto, um projeto monotico de nação. Maria do Carmo Ferraz
Tedesco, na tese Narrativas da moçambicanidade: os romances de Paulina Chiziane e Mia
Couto e a reconfiguração da identidade nacional (2008), ao discutir o processo de formação
do discurso de nação em Moçambique, cita Cahen que explicita:
O partido estado figurou, em Moçambique, ser uma força marcada pela unicidade da
sua orientação política, como o ideal de formação de um Estado-nação, que movido
pelo mito da homogeneidade conduziria a destruição de grupos sócio-culturais
específicos. (CAHEN apud TEDESCO, 2008, p.181)
Nesse sentido, torna-se importante ressaltar que o projeto de nação e o discurso
forjado nos pós-independência, ao tentar romper com a voz do colonizador, voz opressora,
fez-se colonizadora e opressora pela ideologia socialista, silenciando as complexidades,
pluralidades e diverncias da nação em construção, que em Ventos do apocalipse, são
encenadas/mobilizadas/agenciadas como protagonistas. Partindo destas questões, indaga-se:
10
como as narrativas literárias de espaços pós-coloniais, em especial Ventos do apocalipse,
encenam seus dilemas, suas margens, nas línguas herdadas dos colonizadores? Essa questão,
instigou-nos a examinar o modo como Paulina Chiziane mobilizou, no espaço literário, as
margens da nação moçambicana, mostrando-as, no contexto pós-colonial de guerra civil
2
, em
processos de ambivalência e deslocamento, e como a questão da ngua literária é
reconfigurada na escrita da intelectual.
Esta investigação desdobra-se em três capítulos nos quais se desenvolvem as questões
acima apresentadas. A partir das discussões propostas, sinaliza-se para a compreensão de que
Paulina Chiziane se conforma, no nosso entendimento, como este tipo particular de
intelectual, uma escritora-intelectual moderna, pois tem contribuído, por meio de sua escrita,
isto é, de sua “voz ativa”, para desestabilizar” o status quo vigente.
No primeiro capítulo desta dissertação, Configurações de uma escritora-intelectual
moderna, discute-se o papel fundamental do escritor-intelectual s-colonial e porque
Paulina Chiziane, em nosso entender, pode ser considerada como pertencente a essa categoria.
Para tanto, tomaremos como referência o conceito de escritor-intelectual defendido por
Edward Said (2004), (2005) e (2007), bem como as reflexões de Kwane Appiah (1997),
Boaventura de Sousa Santos (2002) e Homi K. Bhabha (2001) e (2007) sobre a condição do
escritor-intelectual na s-colonialidade e como a sua produção se faz mostra desta condição.
Ainda nesta perspectiva, discutiremos a concepção de “literatura menor” desenvolvida pelos
estudiosos Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1977). A questão proposta neste capítulo permite-
nos ainda dialogar com as reflexões dos téoricos Hayden White (2001), Roberto Reis (1998) e
Wolfgang Iser (2001) sobre a concepção intervalar da literatura, que, segundo os teóricos
citados, queda-se entre a ficção e a História. É nesse lugar intervalar, portanto, que a
literatura se faz produtora de sentidos, concepção fundante para a nossa investigação.
Este capítulo se subdivide em duas partes. Na primeira parte, Prólogo entre mito e
história: ambivalências, examina-se a arquitetura discursiva inaugural do romance, que se dá
entre mito e história. Não fortuitamente, este fio condutor, constituído no diálogo ambivalente
com a tradição, produz tanto uma estética própria de escrita como encena uma concepção de
tempo e de história que permeia a narração. Na discussão dessa questão nos balizamos,
fundamentalmente, nos estudos de Boubou Hama e J. Ki-Zerbo (1980). na segunda parte,
2
A guerra civil em Moçambique iniciou-se logo após a conquista da independência em 25 de setembro de 1975.
A disputa pelo poder foi alimentada entre o partido do governo, FRELIMO, e a oposição, RENAMO
(Resistência Nacional Moçambicana). Essa disputa, que devastou o país, cessou em 4 de outubro de 1992,
quando foi decidido o cessar-fogo em Roma. “Com a assinatura do Acordo de Paz passou a haver uma busca de
“reconciliação nacional pela base”, pondo fim à guerra civil que durou 16 anos”. (HERNANDEZ, 2005, p.612)
11
Signos de uma sociedade convulsionada: reconfigurações, analisa-se o processo de
desconstrução e retomada de mitos ancestrais como signo dessa moderna nação em
construção que se produz no intervalo: entre a tradição e a modernidade, o passado e o
presente e, por isso, conforma-se como possibilidade de sobrevivência cultural, uma vez que
se faz espaço de rememorização e ensinamento para a sociedade.
no segundo capítulo, As margens da nação moderna em Ventos do apocalipse,
analisa-se, a partir do conceito de margem de Jacques Derrida apresentado por Silviano
Santiago (1976), como os marginalizados do poder assumem o protagonismo rasurando, isto
é, violentando uma narrativa de nação homogênea, anônima e horizontal. Nesse sentido,
demonstramos que essa narrativa de nação se constitui, a nosso ver, como uma contra-
narrativa, pois nos apresenta um discurso de nação conflitual nos moldes proposto por Homi
K. Bhabha (2001) e (2007), refencia crucial para a leitura do romance. Na investigação
proposta selecionaremos três signos: a condição de refugiado, a função do narrador no espaço
da escrita e o lugar da mulher. Este capítulo subdivide-se em três partes. Na primeira,
Refugiado, condição para uma “nação imaginada”, procuramos ressaltar que o conceito de
nação imaginada de Benedict Anderson (1989) nos possibilita “ler” a condição de refugiado
na perplexidade do viver” como elemento ambivalente porque, ao mesmo tempo em que
rasura um projeto de nação único, homogeneizador, favorece a construção do ideal de união
de um grupo, o dos refugiados, como possibilidade de reconstrução de uma “comunidade
imaginadanascida em contexto caótico. Na segunda parte, O narrador-contador, uma voz
marginal, analisamos a partir dos teóricos Amadou Hampaté (1980) e Walter Benjamin
(1994) tanto a importância do narrador para as culturas tradicionais como a sua
desvalorização na contemporaneidade. Entretanto, instrumentalizados com o repertório
teórico desenvolvido por Terezinha Moreira Taborda (2005), discutimos como Paulina
Chiziane, ao reterritorializar a função do narrador criado no espaço da escrita literária,
presta homenagem à tradição ao mesmo tempo em que desenvolve uma estratégia de
resistência cultural em um contexto silenciador das diferenças. na terceira parte, Minosse,
margem violentadora, refletimos como Paulina Chiziane, vista como escritora-intelectual,
mobiliza no enunciado e na enunciação elementos que configuram, na personagem Minosse,
a força violentadora da margem feminina. A personagem, em sua ambivalência, tensiona os
lugares pré-estabelecidos pela tradição patriarcal. Por outro lado, ela também pode ser lida
como signo da nação moçambicana, pois carrega em sua identidade funções e papéis
múltiplos: os delegados pela tradição e configurados pela condição, em deslocamento, de
pertencer a uma sociedade convulsa.
12
No terceiro e último capítulo desta dissertação, Ventos do apocalipse: “lugar de
memória” e encenação de “ambientes de memória”, discute-se essa contra-narrativa de
nação como um possível “lugar de memória” pois, a nosso ver, encena “ambientes de
memória” reconfigurados e, por vezes, desfigurados, isto é, fragmentos da nação em
construção. Para essa discussão nos balizamos em teóricos que têm refletido sobre o processo
da memória e os desafios enfrentados pela sociedade contemporânea na sua preservação:
Amadou Hampaté Bâ (1980), Maurice Halbwachs (1990) e Pierre Nora (1976). Este capítulo
divide-se em duas partes. Na primeira, Mbelele: um ritual reconfigurado em ambiente de
memória, discutimos como a escritora-intelectual, no seu fazer literário, ao reconfigurar um
ritual da tradição, encena um ambiente de memória” mostrando a nação em sua ambivalência
e possíveis reconfigurações. Na segunda, O velho, o ancião em ambientes desfigurados de
memória, examinamos a importância do velho, isto é, do ancião, como transmissor de
conhecimento para as sociedades tradicionais e como essa questão é encenada no romance,
que se constrói sob os escombros da guerra, sob o desmanche das referências da comunidade.
Salientamos que o fio condutor da dissertação é a construção de um discurso de nação
intervalar, tecido pela escritora-intelectual entre os tênues limites da história e da ficção, tanto
por meio dos enunciados quanto pela enunciação. Ao encenar as margens de sua nação,
concentrando-se em suas ambivalências e deslocamentos – suas tradições, valores, histórias,
anstias, sonhos e ações Chiziane, como esperamos demonstrar, rompe com um discurso
homogeneizador que apaga a diferença e a dissonância.
13
2 CONFIGURAÇÕES DE UMA ESCRITORA-INTELECTUAL MODERNA
Testemunhar uma história de opressão é necessário, mas não suficiente, a não ser que essa
história seja direcionada para o processo intelectual e universalizada para incluir os
sofredores. (SAID, 2003, p.187-188)
Qual é o papel público desempenhado pelos escritores-intelectuais nas sociedades
modernas, em especial nas sociedades africanas pós-coloniais? O literato, o produtor de
ficção, pode ser reconhecido como um escritor-intelectual? Que tipo de narrativa eles estão
produzindo? Quais estratégias mobilizam para escrever suas narrativas? Por que essas
narrativas podem ser recebidas como cruzamentos de discursos, que nascem da confluência
do literário com a formação de um discurso de nação?
As questões com que introduzimos este capítulo o relevantes para entender as
narrativas ficcionais produzidas pelas sociedades africanas s-coloniais de ngua
portuguesa. Isto porque tais produções abordam significativas questões sócio-político-
culturais referentes à construção dessas, ainda recentes, nações modernas. Acreditamos,
portanto, que estas questões norteiem as produções literárias desses escritores que,
preocupados com as estratégias narrativas e/ou discursivas enunciadas em sua escrita,
indagam, a partir das suas vivências, reflexões e questionamentos, acerca do seu papel junto à
sociedade. Em outras palavras, este tipo de escritor, o escritor-intelectual, ao elaborar uma
narrativa ficcional, contempla as questões acima colocadas, produzindo uma escrita que se
pauta pelo cruzamento de discursos e, por isso, provoca significativos diálogos entre a
literatura e outras áreas de conhecimento. Dentre estas áreas ocupa lugar de destaque os
Estudos Culturais, que buscam, por meio do repertório teórico das ciências humanas,
estabelecer uma prática dialógica com a matéria literária, intentando “leiturasque lancem
“luzsobre os processos sociais vivenciados pelas modernas nações em construção. Essa é a
trilha de investigação que percorremos para o estudo do romance Ventos do apocalipse,
vendo-o, principalmente, como a elaboração de uma escritora-intelectual que se dispõe, por
meio de sua produção, a responder às questões acima postas.
Deste modo, compreender a amplitude de atuação do escritor e do intelectual no
mundo contemporâneo é uma questão premente para o nosso estudo. Teóricos e críticos dos
mais diversos campos de saber e de diferentes contextos têm discutido essa questão. Um dos
14
grandes estudiosos desta temática foi Edward Wadie Said, teórico da literatura e crítico
ativista filiado aos Estudos Culturais, referência importante para esta reflexão. A convite da
BBC de Londres, Said proferiu as Conferências Reith (1993) nas quais discutiu as
representações do intelectual. Nestas conferências, defendeu que uma das tarefas dos
intelectuais [...] reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que
tanto limitam o pensamento humano e a comunicação(SAID, 2005, p.10). A partir dessa
reflexão indagamos: o autor/escritor, ao produzir ficção, poderia ser considerado um
intelectual? Sua escrita literária poderia ser usada como instrumento para derrubar
estereótipos e categorias redutoras”? No texto “O papel público de escritores e intelectuais”,
Said (2004) constata que
[...] durante os últimos anos do culo XX, o escritor assumiu cada vez mais os
atributos antagonistas do intelectual, em atividade como falar a verdade para o
poder, testemunhar a perseguição e o sofrimento, fornecer uma voz dissidente em
conflitos com autoridades. Sinais de amalgamação de um (papel) com outro [...].
(SAID, 2004, p.32)
Partindo deste pressuposto, em nosso entendimento, a resposta não estaria
simplesmente no fato do escritor ser visto como um intelectual, uma vez que as funções e/ou
papéis que legitimam um e outro podem entrelaçar, mas sim em como o escritor utiliza o
espaço da literatura, com as estratégias que lhe são próprias, para testemunhar a perseguição,
a opressão, a exclusão e o sofrimento, tornando-se uma voz dissidente como a do intelectual
e, nesse sentido, configurando-se como um escritor-intelectual. Said nos lembra que o
escritor-intelectual deve assumir um papel fundamental, que é o de testemunhar a experiência
de um país ou de uma região e dar a essa experiência uma identidade pública.
Neste sentido, grande parte dos escritores pós-coloniais dos países africanos de ngua
portuguesa, em especial de Angola e Moçambique, tem se configurado como escritores-
intelectuais, pois, por meio de suas produções literárias – prosa e poesia – questionam
estereótipos e categorias redutoras, testemunham o sofrimento, o silenciamento, a perseguição
das minorias e tornam públicas estas experiências. Esta condição pós-colonial, que tem sido
encenada, pressupõe uma nova percepção da sociedade, e, por conseguinte, da nação, que se
refaz nos processos de permanências e rupturas da pré-colonialidade, da colonialidade e da
pós-colonialidade. É no entrecruzamento destes tempos e destas memórias, portanto, que suas
produções têm nascido e sobre elas refletido, recusando modelos sócio-político-culturais
redutores impostos tanto pelo colonizador quanto pelos “senhores” da independência.
Em outras palavras, os escritores desses espaços africanos têm representado em suas
15
produções os processos de conformação de suas “modernas nações”, nações estas que, no
período pós-indepenncia – conquistada somente em 1975 vivenciaram guerras civis
intensas e ainda hoje se recuperam dos seus traumas e perdas em um mundo que, por
conseqüência da globalização, já se configura, geográfica, cultural, potica e economicamente
de outra maneira. Essas produções literárias têm mostrado, tanto no nível do enunciado, isto é,
por meio dos temas com os quais trabalham, quanto no da enunciação, marcada pelo
cruzamento de linguagens e discursos, as rupturas, mudanças e permanências pelas quais m
passado suas respectivas sociedades.
Entretanto, precisamos lembrar que, mesmo antes da independência, já existia nestes
espaços coloniais uma literatura em prol dos oprimidos. Porém, grande parte desta produção
literária, voltada contra o poder metropolitano, construiu-se a partir de um “fardamento
ideológico”, que impediu, muitas vezes, o uso do espaço da escrita como um espaço criativo.
Em outras palavras, essa literatura se dedicou, fundamentalmente, à construção de um
discurso político-partidário. Neste mesmo contexto, contudo, contrariando a regra da
literatura militante, alguns escritores, ao se reinventarem no espaço colonial por meio de suas
escritas, fizeram-se ícones e influenciaram, e ainda influenciam na contemporaneidade,
escritores pós-coloniais. Em Moçambique, o escritor José Craveirinha destaca-se como
referência notável no fazer literário, justamente por mobilizar para o espaço da escrita
elementos da oralidade e, deste modo, usá-lo tanto como locus privilegiado para testemunhar
e tornar pública a opressão de seu povo quanto para criar uma maneira própria de dizê-lo.
Kwame Appiah, em A casa do meu pai (2007), ao analisar algumas produções pós-
coloniais, afirma: [...] descolonizados escrevem, agora, como sujeitos de uma literatura
própria”, pois “[e]screver para e sobre nós mesmos (...) ajuda a constituir a moderna
comunidade de nação(p.88). A afirmação de Appiah vem ao encontro do que nos diz Said
sobre o papel do intelectual no mundo contemporâneo e nos autoriza a considerar Paulina
Chiziane, escritora moçambicana contemporânea, uma intelectual, ou, mais especificamente,
uma escritora-intelectual, pois esta, a nosso ver, tem produzido uma “literatura própria”. Uma
literatura que tanto defende “os padrões de verdade sobre a miséria humana e denuncia a
opressão (SAID, 2005, p.12) quanto foge de estereótipos e categorias redutoras de
representação nos enunciados e na enunciação de sua textualidade, ajudando a constituir a
moderna comunidade de nação moçambicana. Em outras palavras, Chiziane, além de fazer de
seu projeto literário um espaço de denúncia das violências que têm sofrido as minorias de sua
nação, faz de sua escrita espaço criativo de encenação de questões sócio-potico-culturais e,
por isso, a nosso ver, configura-se como “sujeito de uma literatura própria”. Tal projeto, de
16
acordo com nosso ponto de vista, esexemplificado de maneira mais madura na escrita de
Ventos do apocalipse (1999)
3
, objeto de análise desta dissertação.
Porém, antes de iniciarmos a análise do romance selecionado sob a perspectiva
sinalizada, pensamos ser de suma importância mapearmos, mesmo que de maneira
esquemática, elementos da biografia de Paulina Chiziane, uma vez que consideramos a
dimensão da experiência como um dos pontos fulcrais de sua escrita.
Paulina Chiziane, filha de pai alfaiate e mãe camponesa pretos o-assimilados”
4
nasceu no ano de 1955 na vila de Manjacaze, proncia de Gaza, sul de Moçambique.
Interessante notar que a escritora, em entrevista a Patrick Chabal publicada em Vozes
moçambicanas (1994), ao falar de seus pais, ressalta a condição de “não-assimilados”,
condição que acentua um posicionamento de resistência ao processo colonizatório vigente.
Nesse sentido, podemos vislumbrar as ideologias que marcaram a formação e a educação de
Chiziane desde a sua mais tenra infância. Ainda criança, sua família migra para a capital da
nação, Lourenço Marques, que, após a independência, passa a ser chamada de Maputo.
Importante ressaltar que neste trânsito saída do campo, da vila de Manjacaze, para a
cidade segundo a própria Chiziane, não se rompeu o vínculo com o elemento fundante de
sua cultura, isto é, com a tradição de contação de histórias : “[...]vivemos sempre nesse
ambiente. [...] Em termos de amor à cultura, essa foi a maior inflncia, porque foi uma coisa
muito forte” (CHABAL, 1994, p.297). Quando questionada sobre o gosto pela escrita, a
escritora retoma esse elemento tradicional para mostrar suas origens, sua formação e a
ambiência de sua formação:
[...] o meu gosto de escrever vem de muito longe, da infância, mesmo. E, neste
momento, para mim não há maior realização do que essa. Era uma obsessão. Agora,
leituras? Bom, há a nossa tradição. A minha raiz cultural é uma raiz puramente
africana, embora com muitas influências da cultura que (sic) dominou. A minha avó,
a mãe da minha mãe cujos irmãos desapareceram, era uma contadora de histórias
muito célebre. Vinha gente de muito longe para a ouvir contar histórias, claro que
nos fins-de-semana, nos dias de festa. Mas para nós em casa, sempre que houvesse
uma noite de lua cheia... De manhã, a avó dizia-nos para irmos procurar lenha no
mato. Íamos cedo, arrumávamos tudo, punhamos tudo em ordem ...(CHABAL,
1994, p.297)
Desde muito cedo seu universo cultural era múltiplo: em casa falava a língua chope,
3
Todas as citações de Ventos do apocalipse, nesta dissertação, se referem à edição portuguesa de 1999 e serão
indicadas a partir de agora apenas pelo número da página.
4
Tedesco, ao discutir a condição de assimilado, cita Mendonça: “Ser assimilado implica romper com o universo
cultural e lingüístico de que se é herdeiro para se optar por outro imposto como alternativa para o prestígio e a
ascensão sociais. O assimilado não é um africano e nunca será europeu” (MENDONÇA apud TEDESCO,
2008, p.116).
17
na rua o ronga e na escola o português. Esta diversidade linguística ajuda-nos a desenhar a
complexidade cultural de seu país. É nesta atmosfera que Chiziane se constrói como escritora.
E é esta atmosfera que se faz presente na sua produção literária, nascida do diálogo com as
línguas orais e com os costumes tradicionais traduzidos para o espaço da escrita, como
analisaremos neste estudo.
adulta, depois da independência, Chiziane trabalhou no Ministério da Saúde e, ao
longo de toda a guerra civil, na Cruz Vermelha, quando entrou em contato direto com as
populações refugiadas. Com relação a essa experiência, a própria escritora, em entrevista a
Katheleen Gomes (1999), diz:
Na minha profissão eu andava em vários sítios, via muitas tragédias (...)
Fui trabalhar em Manjacaze, na província de Gaza (Sul de Moçambique, uma das
zonas mais afectadas pela guerra civil, juntamente com Inhambane), como assistente
da Cruz Vermelha. Havia vários deslocados de guerra que se concentravam aí
porque era um lugar de maior segurança, com um programa de ajuda alimentar,
sanitária, etc. (GOMES, 13/11/1999)
Paulina Chiziane, ao falar de sua vida, mostra-nos com quais fios tece as suas
narrativas e nos sinaliza para as tênues fronteiras entre ficção e História. Sua produção
literária foi iniciada, publicamente, sem estardalhaço, em meados dos anos de 1980, ao
publicar alguns contos no jornal O domingo e no semário Tempo (CHABAL, 1994, p.297).
Contudo, foi em 1990, quando publicou Balada de amor ao vento primeiro romance de
autoria feminina em Moçambique – que definitivamente impactou o público e a crítica
moçambicana. Após essa publicação seguiram-se Ventos do apocalipse, publicado em 1993
em Moçambique e em 1999 em Portugal; O sétimo juramento (2000); Niketche: uma
história de poligamia (2002); O alegre canto da perdiz (2008); e o mais recente As
andorinhas (2009).
Kwame Appiah (2007), ao discutir o papel dos intelectuais do chamado Terceiro
Mundo, destaca que eles são o produto histórico do cruzamento das culturas ancestrais
tradicionais com os valores culturais ditos do Ocidente. Evidentemente, de uma forma ou de
outra, escritores oriundos de espaços colonizados tiveram contato com a cultura do agente
colonizador e, muitos deles, “digeriram” de maneira criativa esta experiência. E, como
intelectuais, trouxeram para o texto as reflexões, questionamentos e críticas relativas a essa
vivência multicultural. Como nos diz Silviano Santiago, em O cosmopolitismo do pobre
(2008), esse contexto tem favorecido uma atitude cosmopolita por parte dos excluídos do
poder, atitude que tem minado os discursos silenciadores da diferença. E é isto que
18
observamos na representativa produção de Chiziane, uma produção que traz à cena as
minorias excluídas, a diferença.
Ainda segundo Appiah (2007), o contato com a cultura do outro, do colonizador,
favoreceu uma formação ambígua e descentrada. Ambígua, porque influenciada tanto pelo
universo do colonizador quanto pelo seu próprio; descentrada, porque, na resistência,
aprendeu a perder de vista o colonizador, imposto como referência, parâmetro, centro. Nesta
trilha de compreensão, podemos entender que esta formação ambígua e descentrada refleti
nas produções de muitos escritores-intelectuais pós-coloniais. Ao “escreverem suas nações”,
mobilizam as margens/fronteiras minando, portanto, narrativas harmônicas e homogêneas de
nação. Ao mesmo tempo, desprivilegiam estruturas opressoras, dominadoras e uníssonas,
como por exemplo, as da sociedade patriarcal, o discurso modernizador e teleológico de nação
e outros discursos que estruturam formas de poder instauradas em África no pós-
indepenncia.
Portanto, é desse lugar ambíguo e descentrado que as percepções” / produções estão
sendo elaboradas/tecidas. Essas percepções/produções, por não se circunscreverem a espaços
antípodas uma vez que o são nem simples recuperação do passado, isto é, da tradição,
nem cópia do modelo ocidental e até mesmo do modelo instaurado no pós-independência -
nascem deslocadas”, porque frutos de uma formação “ambivalente”, de contextos ambíguos
e que por isso ocupam um lugar intersticial, um entre-lugar.
Chiziane, por conseguinte, oriunda deste contexto ambíguo e descentrado, ao ser
questionada sobre a identidade da literatura moçambicana em entrevista concedida à Gil
Filipe (2008) no Jornal Notícias, responde que muito se tem a fazer:
Não penso que possamos dizer que temos uma literatura moçambicana, ou seja, que
se identifique como tal. Nós estamos todos os dias à procura de estéticas de isto ou
daquilo para escrevermos ou para abordarmos a literatura. Os nossos modelos de
aprendizagem ainda são os europeus. Até que ponto nos esforçamos por fazer
reviver a estética tradicional moçambicana? (FILIPE, 04/06/2008)
Ao encontro dessas percepções, Boaventura de Sousa Santos, em Entre Próspero e
Caliban (2002), ao discutir o lugar do crítico na pós-colonialidade, diz ser necessário
construir [...] uma prática e uma temporalidade discursivas marcadas pela negociação,
tradução e articulação de elementos antagônicos e contraditórios. Esta seria a terceira via
ou o “terceiro espaço” ocupados pelo crítico s-colonial, a via ou espaço da cultura” (p.31).
Estes críticos, segundo o estudioso, têm elaborado, por meio de suas escritas, justamente este
terceiro espaço, fruto da negociação entre elementos antagônicos e contraditórios, entre
19
elementos da chamada cultura da periferia áreas descolonizadas e a do centro Ocidente
–, entre elementos da tradição e da modernidade, do passado e do presente, do acontecido e do
ficcionalizado, do privado e do público, do local e do nacional, do rural e do urbano. A nosso
ver, estas reflexões também nos remetem para a importância do papel do escritor, mais
especificamente do escritor-intelectual, bem como para a relevância de suas narrativas neste
contexto de produção.
De outra forma, Homi k. Bhabha (2007), ao discutir sobre a produção intelectual neste
terceiro-espaço em O local da cultura, diz-nos que
É o terceiro-espaço, que embora em si irrepresentável, constitui as condições
discursivas da enunciação que garantem que o significado e os símbolos da cultura
não tenham unidade ou fixidez primordial e que até mesmo os signos possam ser
apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo. (p.67-68)
Portanto, segundo os teóricos, são necessárias estratégias discursivas que, ao
apresentar uma outra perspectiva de escritura dos locais de cultura, rompam com a coesão,
unidade, homogeneidade e o binarismo dos discursos de nação. Para melhor compreender esta
construção em terceira-via, também tomamos como referência a concepção de “literatura
menor”, desenvolvida pelos teóricos Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1977) em seu ensaio A
literatura menor. Estes teóricos, ao explicarem sua concepção, dizem que “[u]ma literatura
menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma ngua maior
(p.25). Esta “literatura menor”, segundo os estudiosos, tem como características o processo
de desterritorialização da ngua, bem como sua reterritorialização, a ramificação do
individual no imediato político e o agenciamento coletivo na enunciação. Operações estas,
argüimos, realizadas por Paulina Chiziane na escritura de Ventos do apocalipse, como
examinaremos ao longo desta dissertação. Neste sentido, salientamos que o processo de
desterritorialização e reterritorialização tanto por meio dos enunciados quanto pelas
enunciações é a estrutura basilar desta escrita, fundamentalmente no que se refere a lugares
e concepções. É por este motivo que Chiziane, a nosso ver, ao escrever Ventos do apocalipse,
produz uma escrita de terceira-via, pois, simbolicamente, ao desterritorializar e
reterritorializar lugares como o da tradição, o do refugiado, o da mulher, o do velho bem
como concepções de tempo e de memória, apresenta possibilidades
deslocadas/reconfiguradas. Tais possibilidades acenam para uma literatura própria que, sendo
um discurso de nação, mostra alguns dos dilemas vivenciados por sua sociedade. Nesta trilha
de entendimento, a própria Chiziane, ainda em entrevista a Gil Filipe (2008), insiste na
necessidade de se produzir uma literatura que rompa com os padrões do colonizador, da
20
língua dita maior:
Neste momento a nossa viola é a língua portuguesa. O que é que nós fazemos com a
língua portuguesa em Moçambique? Eu escrevo na língua portuguesa e ainda me
pedem para usar a estética da escrita da língua portuguesa. Por amor de Deus!
(FILIPE, 04/06/2008)
Antes de passarmos à efetiva análise de Ventos do apocalipse, pensamos ser também
de fundamental importância, para a discussão do papel blico desempenhado por Chiziane
como escritora-intelectual, apresentar algumas considerações sobre a recepção do seu
primeiro romance, Balada de amor ao vento (1990), que mostra a gênese de um projeto
literário em terceiro-espaço, já amadurecido em Ventos do apocalipse, como dito.
Salientamos que a construção desse terceiro-espaço, ensaiado no primeiro romance,
Balada de amor ao vento, dá-se quando Chiziane mobiliza a voz de uma mulher – Sarnau
para mostrar alguns dos dilemas vivenciados por sua sociedade no período colonial. Porém, a
escritora não o faz a partir de uma perspectiva binarista, pelo contrário. Ao fazê-lo, insiste nas
ambivalências identitárias vivenciadas pelo homem, pela mulher, pelo colonizado, enfim, por
uma Moçambique que, mesmo sob o jugo colonial, convive ainda com outros tempos e
espaços.
Balada de amor ao vento, segundo a própria autora, “[é] um livro que fala da
condição feminina e da África em geral.” (CHABAL, 1994, p.298). Em entrevista a Patrick
Chabal, no calor da publicação, Chiziane relata como o romance foi recebido pela crítica
moçambicana:
A reação ao meu livro? Bom, é o primeiro livro feminista que sai em Moçambique.
Até agora ainda não encontrei muitas pessoas que falassem da qualidade em termos
estéticos, a esse nível superior. Mas as pessoas estão muito interessadas no tema.
Porque, através deste pedaço de leitura, eles constroem outros mundos, portanto é
uma coisa que causa polêmica, é uma coisa que faz as pessoas conversarem,
refletirem, tudo isso. Realmente, em termos de tema, eu penso que consegui atingir o
objetivo. Agora em termos estéticos... (CHABAL, 1994, p.299-300)
Nesta entrevista, a autora, ao se mostrar consciente das polêmicas suscitadas por seu
livro, também expõe sobre o lugar que pretende ocupar como escritora, ou melhor, como
escritora-intelectual em sua sociedade. E, mesmo reconhecendo que a recepção do seu livro se
deu muito mais com relação ao tema exposto do que pelos aspectos estéticos, considera-o
importante porque reflete, fundamentalmente, sobre a condição feminina em seu país. Anos
depois, em 1999, a escritora volta a revelar em entrevista a João Moreira, no Jornal virtual
Expresso de Lisboa, o desconforto que sentiu com a recepção de Balada de amor ao vento:
21
O meu primeiro livro levantou muitas dúvidas: primeiro uma mulher que escreve,
depois que fuma, depois que fala de amor...não deve ser flor que se cheire. Tentavam
afastar-me da sociedade, ainda continuo a ser vista como uma aventureira, como
uma pessoa que não tem âncora no meio social. (MOREIRA, 04/12/1999)
É importante ressaltar que Chiziane inaugura a publicação do romance de autoria
feminina ocupando, no momento, um lugar desconfortável: o da escritora-intelectual, em
uma sociedade, é preciso lembrar, que ainda mantém fronteiras rígidas entre o lugar da mulher
e o do homem. Em muitos momentos, a própria escritora revela o preconceito que teve de
enfrentar, por ser mulher, ao tentar publicar o seu primeiro livro em seu país:
Como é que a sociedade recebeu a notícia de que eu estava a escrever o meu livro?
Primeiro como cepticismo e muito desprezo da parte dos homens. Muitas pessoas
acreditavam e ainda acreditam que a mulher o é capaz de escrever mais do que
poeminhas de amor e cantigas de embalar. Consideraram-me uma mulher frustrada,
desesperada, destituída de razão. Foi um momento terrível para mim. [...] Do
período que vai da escrita do livro até à sua publicação, entrei em contato com
homens de diversas insituições e que o me ajudaram em nada ou ajudaram muito
pouco. Contudo, quase todos eles o se esqueceram de fazer-me propostas sexuais,
convites de jantar, como condição necessária para a ajuda de que tanto necessitava.
Mais tarde entrei na Associação dos Escritores. Mesmo ali a minha integração como
mulher não se fez sem grandes esforços. (CHIZIANE, 1994, p.16)
Talvez por isso, desde a sua estréia como romancista, convive com a indagação de
seus leitores sobre o lugar ocupado pela mulher em sua cultura. As respostas, dadas aos
leitores, deixam aflorar a visão da intelectual:
Tenho um mundo de informações sobre a África, sei muito bem o que é... os nossos
problemas, o amor, o adultério, a poligamia. E eu sinto que a visão do mundo
existente hoje, pelo menos em termos de escrita, é o ponto de vista masculino.
(CHABAL, 1994, p.298)
É nesse sentido que se confirma, a nosso ver, a postura de escritora-intelectual, que na
sua produção faz uso do espaço literário para dizer “sobre as coisas da sua África”,
desempenhando, portanto
[...] um papel público na sociedade, que o pode ser reduzido simplesmente a um
profissional sem rosto, um membro competente de uma classe, que quer cuidar
de suas coisas e de seus interesses. (SAID, 2005, p.25)
Nesta perspectiva, Said ainda ressalta que a importância do papel blico do escritor-
intelectual “[...] é o fato [dele] ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar
corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e
22
também por) um blico.(SAID, 2005, p.25) e é isso que o configura como um sujeito
atuante. Porém, há que notar que, ao representar, dar corpo e articular um ponto de vista, uma
atitude ou opinião pelo público, neste caso em particular pelas minorias, o escritor-intelectual
o faz na sua perspectiva de leitura de mundo.
Em contrapartida aos detratores do primeiro romance da escritora, Chabal (1994),
estudioso das literaturas africanas de língua portuguesa, na introdução de sua obra Vozes
moçambicanas, assim o defende:
[...] o que é notável no seu livro é a vontade em desafiar um assunto controverso na
actualidade da vida moçambicana. Além disso critica explícita ou implicitamente as
realidades das relações humanas (e sexuais) assim como a ordem social que emergiu
em Moçambique desde a independência. (CHABAL, 1994, p.67)
Chiziane, dessa forma, cumpre seu papel de escritora-intelectual desde o seu primeiro
romance, pois, ao fazer sua produção literária nascer no cruzamento de tempos, deslocando
papéis estabelecidos e situações dadas, mostra sua nação como resultado de complexos
processos culturais. Nesse sentido, também se pode dizer que a escritora-intelectual assume
um lugar de inconformação, como é acentuado por Edward Said (2005), pois:
Mesmo os intelectuais que são membros vitalícios de uma sociedade podem, por
assim dizer, ser divididos em conformados e inconformados. De um lado, há os que
pertencem plenamente à sociedade como ela é, que crescem nela sem um sentimento
esmagador de discordância ou incongruência e que podem ser chamados de
consonantes: os que sempre dizem sim; e, de outro, os dissonantes, indivíduos em
conflito com sua sociedade e, em consequência, inconformados e exilados no que se
refere aos privilégios, ao poder e às honrarias. (p.60)
Este lugar incômodo, inaugurado com a publicação de Balada de amor ao vento,
consolida-se, a nosso ver, ao longo de sua produção, e é esse lugar que parece levar Chiziane
a ocupar metaforicamente uma situação de exílio. Pois, ao desafiar a sociedade à repensar
seus paradigmas culturais, a escritora desassossega os discursos aparentemente consolidados e
apresenta à sua nação uma possibilidade de leitura do contexto, dos lugares legitimamente
alocados em outra perspectiva.
Para uma compreensão mais aguda do papel da literatura na produção de discursos
polissêmicos, ressaltamos as interseções possíveis entre o texto literário e o histórico e, nesta
perspectiva, trazemos à discussão as reflexões elaboradas por Hayden White em O texto
histórico como artefato literário (2001), um dos intelectuais contemporâneos que mais
contribuiu para este debate. O teórico, como historiador, defende o seguinte ponto de vista:
23
Trata-se, obviamente, de uma ficção do historiador a suposição de que vários estados
de coisas que ele constitui na forma de começo, meio e fim de um curso do
desenvolvimento sejam todos “verdadeiros ou “reais” e que ele simplesmente
registrou “o que aconteceu”, na transição da fase inaugural para a fase final. Porém
tanto o estado inicial de coisas quanto o final são inevitavelmente construções
poéticas e, como tais, dependentes da modalidade da linguagem figurativa utilizada
para lhes dar o aspecto de coerência. Isto implica que toda narrativa não é
simplesmente um registro “do que aconteceu” na transição de um estado de coisas
para outro, mas uma redescrição progressiva de conjuntos de eventos de maneira a
desmantelar uma estrutura codificada num modo verbal no começo, a fim de
justificar uma recodificação dele num outro modo no final. Nisto consiste o “ponto
médio” de todas as narrativas. (WHITE, 2001, p.115)
Conforme se constata na citação, tanto o discurso histórico quanto o literário são
construções poéticas, muito embora intentem objetivos diferentes, pois o historiador tem o
compromisso com a comprovação de seu “enredo”, diferentemente do literata, produtor de
ficção. Porém, que se ressaltar que tanto um quanto o outro buscam representações de
realidade para a construção de seus enredos. Ambos, portanto, produzem narrativas. E neste
sentido, conforme White (2001), nenhuma narrativa “é simplesmente um registro do que
aconteceu” e nisto consiste o “ponto médio” de todas as narrativas.
O teórico salienta que os historiadores, [a]o sugerir enredos alternativos de uma dada
sequência de eventos hisricos, [...] fornecem aos eventos históricos todos os possíveis
significados de que a arte da literatura da sua cultura é capaz de dotá-los” (WHITE, 2001,
p.108). Deste modo, tanto uma narrativa quanto outra produz sentidos, pois “sugerem enredos
para eventos históricos”. Ainda nesta perspectiva, o estudioso, em uma reflexão lúcida,
ressalta que
Na realidade, a história – o mundo real ao longo de sua evolução no tempo – adquire
sentido da mesma forma que o poeta ou o romancista tentam pro-lo de sentido,
isto é, conferindo ao que originariamente se afigura problemático e obscuro o
aspecto de uma forma reconhecível, porque familiar. Não importa se o mundo é
concebido como real ou apenas imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a
mesma. (WHITE, 2001, p.115)
Nesta mesma trilha, Roberto Reis (1998), em (Re) lendo a História, ao discutir a
função da narrativa histórica e da narrativa ficcional, salienta que ambas
[...] se assemelhariam aos mitos de uma sociedade tribal, no sentido de que podem
ser entendidas por exemplo como discursos que intentam (este projeto
inconsciente) conferir uma certa ordem ao tecido social, por assim dizer
domesticado e disciplinado o que, em larga medida, é espontâneo, caótico e
aleatório. (REIS, 1998, p.233)
Portanto, Reis, em sua análise, também defende que toda narrativa cumpre um papel,
24
guarda intenções. O estudioso também salienta que toda narrativa é produzida em um
determinado contexto histórico por um sujeito social, que se faz porta-voz de um determinado
projeto ideológico e de classe. Assim sendo, tanto um texto historiográfico quanto um
ficcional são produzidos em um “solo histórico” por um sujeito social que, consequentemente,
irá deixar essas marcas em suas produções. Dessa forma, mesmo compreendendo que a escrita
ficcional é o espaço da criação/invenção, deve-se perceber nela as sugestões de processos
sociais e simlicos que se entrecruzam conformando representações de realidade. Tais
conformações possibilitam ao leitor/investigador perceber a narrativa histórica e a ficcional
como discursos que propõem a, por meio de um processo inconsciente, “[...] conferir uma
certa ordem ao tecido social [...]” (REIS, 1998, p.233).
Outra abordagem importante sobre a questão é a de Wolfgang Iser (2001) em Os atos
de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. Nesse ensaio Iser defende que toda
construção textual é composta por atos de fingir e simulacros. Assim, tanto os textos
ficcionais quanto os não-ficcionais têm elementos em comum que se fundam na realidade.
Ao tecer esta consideração o autor rompe com uma tradição de pensamento que compreende
ficção e realidade no limite de uma oposição binária. Em outra perspectiva, Iser elabora sua
reflexão a partir da tade real, fictício e imaginário. Ao apontar esta via de entendimento, o
teórico defende que
[...] no texto ficcional muita realidade que o deve ser identificável como
realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas
realidades por certo diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em tais
pelo fato de entrarem na representação de textos ficcionais. Por outro lado, também é
verdade que estas realidades, ao surgirem no texto ficcional, neles não se repetem
por efeito de si mesmas. Se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar
nesta referência, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades
que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não pode ser deduzido da
realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade
retomada pelo texto. (ISER, 1996, p.958)
O teórico, por conseguinte, destaca que o imaginário ganha “predicado de realidade
na medida em que pode penetrar no mundo e agir” (ISER, 1996, p.959). O imaginário,
segundo Iser, nasce pelos diversos atos de fingir: a seleção, a combinação e o desnudamento
de sua ficcionalidade, pois “[...] é necessário o concurso de várias funções para que se realize
a “mediação”, no texto ficcional, do imaginário com o real” (ISER, 1996, p.960).
A seleção, realizada por todo e qualquer autor, é [...] uma transgressão de limites na
medida em que os elementos acolhidos pelo texto agora se desvinculam da estruturação
semântica ou sistemática dos sistemas de que foram tomados” (ISER, 1996, p.960-961). a
25
combinação é o correspondente intratextual da seleção como ato de fingir, pois “[...] abrange
tanto a combinalidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os
esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações” (ISER, 1996, p.963).
Cabe lembrar que os relacionamentos, segundo o teórico, o resultados das combinações,
criando uma aparência de real. Iser salienta que esse relacionamento pode assumir múltiplas
maneiras no texto ficcional. Já o desnudamento da ficcionalidade do texto literário
[...] é reconhecido através de convenções determinadas, historicamente variadas, de
que o autor e o público compartilham e que se manifestam nos sinais
correspondentes. Assim, o sinal de ficção não designa nem mais a ficção, mas sim o
“contrato entre autor e leitor, cuja regulamentação o texto comprova o como
discurso, mas sim como “discurso encenado”. (ISER, 1996, p.970)
Como resultado destes fatores, instaura-se, portanto, segundo Iser (1996), a narrativa
do como se, do fingido. Mas a narrativa do como se o é menos, é outra, é fingida porque
contém muitos elementos identificáveis de realidade
[…] que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural, quanto da
literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao texto ficcional uma realidade de todo
reconhecível, posta agora, entretanto, sob o signo do fingimento. Por conseguinte,
este mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado
não é o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se o fosse.
(ISER,1996,p.972-973)
Assim, tanto White (2001), quanto Reis (1998) e Iser (1996) nos permitem, a partir de
suas reflexões, considerar as marcações históricas privilegiadas nas narrativas literárias para a
construção de uma leitura do real. Em Ventos do apocalipse as marcações históricas
aparecem de maneira privilegiada na intromissão da voz autoral no texto e nos elementos de
realidade selecionados e combinados ao longo da narrativa, como, por exemplo, os da
tradição oral mobilizados, de maneira quase didática, ao longo do romance, bem como o “solo
histórico” sob o qual se constrói a tessitura. Nesse sentido, torna-se importante esclarecer que,
ao longo desta dissertação, usaremos, indistintamente, a terminologia voz autoral, voz da
intelectual e voz do autor implícito, como representação funcional de questões caras para o
escritor-intelectual, ou seja, para o autor empírico. Porque este, ao desempenhar o seu papel
público no espaço literário, inscreve-se, no nosso entender, tanto por meio dessas vozes,
quanto por meio da voz do narrador e das personagens.
Chiziane, portanto, ao produzir este romance, apresenta, a nosso ver, uma narrativa
alternativa/contra-narrativa de uma “realidade histórica”, mostrando-nos, sob a perspectiva de
signos diversos e por meio de uma linguagem ppria um outro enredo possível para essa
26
nação em construção. Nesta narrativa são as comunidades rurais, tornadas refugiados da
guerra em seu próprio país, que ganham voz. São esses refugiados que contam sagas
individuais relacionando-as com as coletivas, conformando parte da história do povo
moçambicano dialogando com a tradição e a modernidade e nascendo da conjugação entre o
passado e o presente. São estas vozes que ressaltam os percursos de homens e mulheres,
crianças, jovens e velhos que tiveram suas aldeias, clãs e famílias pulverizados e, por
conseqüência, suas crenças, sonhos e valores culturais convulsionados. Trazidas para o
primeiro plano dessa narrativa de nação, essas vozes evidenciam que uma comunidade/uma
nação é muito mais que “forças produtivas”, como entendem os discursos das elites.
Essa narrativa, como texto ficcional, encena conflitos reais vividos pelo povo
moçambicano e a escritora-intelectual, ao fazê-lo, transgride o próprio espaço da ficção,
contaminando sua enunciação com os conflitos político-econômico-sociais vigentes. Mais
especificamente, Paulina Chiziane, nesse romance, refamiliariza um contexto traumático a
guerra civil moçambicana encenando-o por meio de uma escrita descentrada, uma escrita
marcada tanto pelas rupturas quanto pelas permanências. “Não sendo simplesmente o registro
do que aconteceu” (WHITE, 2001, p.115), as rupturas e as permanências são mostradas tanto
no enunciado quanto na enunciação quando, por exemplo, as marcas da oralidade com seus
elementos constitutivos mito, provérbios e canções populares – mostram a força da tradição
compondo uma escrita própria, com uma estética própria, rompendo com o modelo europeu.
A voz autoral e as outras vozes agenciadas do narrador-contador de histórias e das
personagens sinalizam questionamentos, críticas e reflexões sobre a “realidade
circundante. Desta forma, de maneira criativa, como analisaremos, Chiziane cumpre com
maestria o seu papel público de escritora-intelectual, assumindo uma forma de narrar que se
concretiza nos agenciamentos de vários gêneros literários, como o conto, o mito, o ficcional e
o histórico, sempre em diálogo.
2.1 Prólogo – Entre mito e história: ambivalências
No prólogo do romance, o narrador, assumindo-se como contador de histórias
ancestral, conclama o leitor a “ouvir” e anuncia o que será contado:
Vinde todos e ouvi
Vinde todos com as suas mulheres e ouvi a chamada.
27
Não quereis a nova música de timbila
que me vem do coração? Gomucomu,1943 (p.14)
As o convite, que desloca a instância da leitura para a escuta, como discutiremos
mais detidamente no capítulo dois desta dissertação, o narrador relata três contos que, podem
ser lidos como mitos, pois são referências fundantes do romance: “O marido cruel,” “Mata,
que amanhã faremos outro” e “A ambição de Massupai”. Elaboração curiosa para a “abertura”
de um romance que nos leva a fazer algumas indagações: que “leitura” podemos realizar de
um romance pós-colonial que se constitui a partir de três contos tradicionais da cultura
moçambicana, narrados por um contador diferenciado? Em que medida podemos ler essa
arquitetura discursiva tanto no vel do enunciado quanto no da enunciação embasada em
elementos da cultura tradicional como empenho da escritora-intelectual para dizer das coisas
de sua cultura? Como mito e História dialogam nesta narrativa, que pode ser lida como um
possível discurso de nação?
Um caminho de investigação para essas questões passa por compreender a função do
mito nas sociedades tradicionais africanas. Deste modo também poderemos compreender a
“função” desempenhada por este no romance Ventos do apocalipse. Boubou Hama e J. Ki-
Zerbo
5
(1980), em Lugar da história na sociedade africana, dizem que, em geral, o mito,
como representação fantástica do passado, domina o pensamento tradicional africano. Isso a
tal ponto que, às vezes, a escolha e o sentido dos acontecimentos reais deviam obedecer a um
“modelo” tico que predeterminava até os gestos mais prosaicos do soberano ou do povo
(HAMA; KI-ZERBO, 1980, p.61-62)”. Nesse sentido, “[...] pode-se constatar que o tempo
africano, é, às vezes, um tempo tico e social, mas também que os africanos têm consciência
de serem agentes de sua própria história”. (HAMA; KI-ZERBO, 1980, p.61)
Nesta perspectiva, torna-se importante compreendermos o lugar da ancestralidade,
pois esta relaciona-se diretamente com a concepção de tempo e identidade de uma
comunidade tradicional africana:
[...] em geral o tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os
sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua
maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais,
quanto o eram durante a época que viviam. (HAMA; KI-ZERBO, 1980, p.62)
Portanto, as histórias dos ancestrais e a tradição, configuradas no mito, desempenham,
ao mesmo tempo, uma dupla função: a da intemporalidade e a da dimensão social. E, neste
5
Intelectuais africanos colaboradores na publicação História Geral da África pela UNESCO (1980).
28
sentido, tanto uma função como a outra consolidam na comunidade o sentimento de pertença,
de identidade cultural. Nesta trilha de compreensão, a concepção de mito relaciona-se
diretamente com a concepção de tempo porque o prenuncia. Essa compreensão, entretanto,
o é simplista e teleológica, pois, como vimos, o homem é um sujeito que atua no seu tempo.
Nesta perspectiva, a compreensão do tempo para o africano tradicional ocupa uma terceira-
via, pois não é uma simples continuidade do passado, muito menos o resultado de sua
superação, mas sim produto de uma
[...] causalidade [que] atua em todas as direções: o passado e o presente sobre o
futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos acontecimentos
passados, mas por uma irrupção direta que pode exercer em todos os sentidos.
(HAMA; KI-ZERBO, 1980, p.62)
Como já dito, o homem africano sabe de seu papel como sujeito histórico e, segundo
os estudiosos, não concebe o mundo como uma reedição estereotipada do passado, pois, a
[...] invocação do passado não significa o imobilismo e não contradiz a lei geral da
acumulação das forças e do progresso” (HAMA; KI-ZERBO, 1980, p.68). Portanto, não
uma compreensão positivista da função do mito e da concepção do tempo. Parece-nos que
essa é a concepção que norteia a escrita desse romance, esta narrativa de nação, como
discutiremos neste capítulo.
Esta narrativa, elaborada por uma escritora-intelectual, faz da literatura espaço para
mostrar “as coisas de sua África” e “[...] as três histórias referidas tanto legitimam a
pertinência do que será revelado, quanto registram a sua importância no contexto de
rememoração em que situa o romance (FONSECA, 2007, p.225)”, fazendo-se, portanto,
referência às origens e a conhecimentos que têm sido relegados pela modernidade. Em
entrevista a Katheleen Gomes (1999), Chiziane, sobre esta questão, diz que
Na tradição “bantu” é mesmo assim. Quando as pessoas se reúnem para debater um
tema, seja de que natureza for, os principais oradores, nas suas palavras
introdutórias, fazem referência a pequenos contos e provérbios. Por exemplo, podem
falar da esperteza do coelho. Quando é um debate muito profundo, onde se fazem
grandes reflexões, o orador principal é capaz de dizer: “Lembram-se da história do
coelho e do cágado, quando o coelho convidou o cágado para a corrida?” Se no meu
livro vou falar da fome, da ambição e da guerra, coloco os três contos. Eles
pertencem ao passado, ninguém sabe quem foi o autor. Tento estabelecer uma
relação entre passado e presente. (GOMES, 13/11/1999)
Contudo, devemos lembrar que estas referências não se limitam ao simples resgate da
tradição, como veremos na última seção deste capítulo. O primeiro mito, “Marido cruel”,
conta-nos uma história/estória acontecida muitas gerações passadas, em um tempo no qual
29
[...] os homens obedeciam às leis da tribo, os reis tinham poderes sobre as nuvens, o negro
dialogava com os deuses da chuva, e Mananga era terra de paraíso”(p.16). Interessante notar
que, na contação deste mito, margeiam-se tanto a distância temporal, ou seja, a
intemporalidade “muitas gerações passadas” quanto elementos da dimensão social os
homens obedeciam às leis da tribo [...]” –, mostras da dupla função do mito que, entre a ficção
e a História, revela um contexto e transmite um ensinamento.
Dando continuidade à contação, o narrador revela as mudanças ocorridas na aldeia:
Perante as infâmias das novas gerações, os deuses começaram a vingar-se. Enviaram o Sol
que queimou as nuvens, as chuvas, os rios e a terra”(p.16). E é neste tempo de carestia, na
aldeia de Mananga, que o marido alimenta-se às escondidas da sua família: “[...] comia
sozinho o que conseguia arranjar, voltando sempre de mãos vazias e com a ngua cheia de
lamentações” (p.17). A esposa descobre sua “façanha,” mas a torna pública quando a
abundância retorna à aldeia:
Quando chegou a altura da colheita, a mulher preparou uma festa e convidou os
familiares. Estando todos reunidos debaixo da sombra, ela condenou a atitude
criminosa do marido em voz alta e disse: - Homem que mata, jamais merecerá o
meu perdão. Arrumou todos os seus pertences, pegou nos filhos e abandonou o
marido cruel para todo o sempre. (p.18)
Portanto, por meio deste conto tico, somos informados do tempo de carestia que
assola a aldeia de Mananga, sua causa e o comportamento do homem nesta circunstância.
no segundo, o título “Mata que amanhã faremos outro” recupera um [...] ditado dos tempos
do velho Império de Gaza, que se tornou célebre, sobrevivendo muitos is e muitas luas e,
como o grão, semeando de boca em boca, até os nossos dias” (p.18). Ao contar este mito, o
narrador informa aos ouvintes da origem do ditado e os caminhos percorridos por ele até a
sua narração “palavras como o grão, semeando de boca em boca”. Alude-se, aqui, à tradição
oral como instrumento de transmissão de acontecimentos passados e à sua função social:
preparar as novas gerações para assumirem as funções legitimadas pelo grupo.
O narrador conta que, mais de cem anos, as terras de Mananga foram invadidas
pelos guerreiros de Muzila. Estes conquistaram a vitória “[...] espalhando ordem e soberania
por essas terras, chacinando os inimigos, submetendo as tribos conquistadas, apoderando-se
das suas mulheres e incorporando no exército todos os jovens das terras usurpadas” (p.18-19).
Neste contexto de guerra, isto é, de estado de exceção, os camponeses fugitivos estabeleceram
regras de segurança “[...] é proibido falar, tossir ou espirrar no esconderijo. Podes borrar-te,
ou mijar-te, mover-te é que não, porque é perigoso. As crianças são livres, nada as detém”
30
(p.19) e, por isso, “[...] é preciso silenciar o choro dos meninos” (p.19). A partir desta lição,
nas fugas, os maridos aconselham as esposas dizendo: [...] mulher, o menino vai chorar e
seremos descobertos. Mata este, que depois faremos outro (p.19). Este conto mítico nos
revela, portanto, uma estratégia terrificante de sobrevivência em tempos de guerras
imemoriais, que é trazida à lembrança, no presente, pelo contador/narrador que,
provavelmente, quer ensinar algo!
na enunciação do terceiro mito, “Ambão de Massupai”, a contação é aberta com
uma afirmação que tanto remete à linguagem dos prorbios quanto à intromissão da voz
autoral que pontua aspectos da tradição ancestral: “Em todas as guerras do mundo nunca
houve arma mais fulminante que a mulher, mas é aos homens que cabem as honras e os
generais” (p.20). Este mito mostra a trajetória de uma cativa que se tornou amante de um
dos generais de Muzila. Massupai, por amor e ambição, trai o seu povo e mata seus filhos a
pedido do amante:
Escuta o meu plano: silenciando os teus filhos, seremos mais livres para o amor.
Com a minha valentia, conquistarei territórios, dominarei todas as tribos, desde
o Save a ao Limpopo, por que não? Sou poderoso. Hei-de organizar o meu
império e derrubar Muzila, e depois abandonarei todas as minhas mulheres.
Serei rei de todos os reis, e proclamar-te-ei mãe de todas as mães.
Ah, senhor, seja feita a tua vontade.
Tens de ajudar-me. Os chopes são gente da tua e oferecem muita resistência.
Podes ajudar-me a aniquilá-los.
Sim, sim, sim, por ti farei tudo, meu senhor. Com a minha ajuda serás rei de
todos os reis. Com a tua valentia, serei a mãe de todas as mães. (p.21)
O Imperador Muzila, porém, descobre a trama do seu general ordenando a morte do
traidor. Massupai enlouquece: [...] começou a revolver as sepulturas com as mãos, para
ressuscitar os filhos que perdera. Depois fugiu para o mar, e nunca mais ninguém ouviu falar
dela” (p.22).
O narrador, caminhando para o desfecho da narração desses três contos míticos,
finaliza a contação com uma espécie de coro que afirma:
As folhas caem no Outono na ceifa do vento. As águas do rio desembocam no mar,
voam para o u e voltam, enchendo de novo os rios. As estações do ano andam à
roda. Até nós, seres humanos, morremos para voltar a nascer. Somos a encarnação
dos defuntos há muito sepultados, não somos? A terra gira e gira, a vida é uma roda,
chegou a hora, a história repete-se, KARINGANA WA KARINGANA
6
. (p.22)
Portanto, após a narração de três histórias, que mostram sociedades convulsionadas, o
6
Fórmula clássica de se iniciar um conto no universo das narrativas orais, em Moçambique. Exerce a mesma
função de "Era uma vez" (cf. CRAVEIRINHA, 1995).
31
narrador, no desfecho, aponta para a concepção circular de tempo que sustenta tanto a
narração em si quanto a estrutura do enredo. Esta concepção, entretanto, apresentada logo na
abertura do romance pela escritora-intelectual, não nos parece acidental, pois rompe com a
compreensão de uma linearidade temporal e, assim, mostra sua narrativa no terceiro-espaço.
Espaço este em que passado e presente se retramam aos moldes das crenças tradicionais,
como nos disseram os estudiosos Hama e Ki- Zerbo (1980), sem, contudo, estereotipar o
futuro”, impossibilitando a ação do sujeito social. Este terceiro-espaço operado pela escritora-
intelectual também se confirma quando esta traz para o registro escrito a estratégia de
transmissão oral, contação de história por meio dos mitos. Salientamos, porém, que esta
operação ocorre em deslocamento, pois a narrativa assume o legado da tradição fazendo-o
parceiro da escrita literária.
No desfecho, prenuncia-se a (re) contextualização das três histórias/estórias, isto é,
dos três mitos, em tempos futuros: “As águas do rio desembocam no mar, voam para o céu e
voltam, enchendo de novo os rios” (p.22). Chiziane, como escritora-intelectual, parece,
estrategicamente, usar a boca do narrador/contador para também prenunciar a sua concepção
sobre o presente. Valendo-se de mitos e narrativas próprios do universo da oralidade, parece
reafirmar o que disseram Hama e Ki-Zerbo: o mito, aqui, não determina os acontecimentos;
são pontos de partida para o entendimento do presente e, deste modo, servem para legitimar o
relato.
Também gostaríamos de chamar a atenção para os possíveis significados do título da
obra, Ventos do apocalipse, em que se uma referência clara ao último livro bíblico, o
Apocalipse. Este livro relata a visão dada por Jesus, por intermédio de um anjo, à João, seu
servo, visão de desgraças, pestes, perseguições, destruições, flagelos e derrocada de
importantes cidades até o Juízo Final. É uma “narrativa” que mostra, através de uma
testemunha, o que acontecerá a todos que não seguirem a palavra de Deus, isto é, que não
servirem à Deus. A intertextualidade insinuada tanto no título quanto em acontecimentos
narrados no romance é muito sugestiva, uma vez que a escritora-intelectual, ao criar um
narrador/contador, cria uma “testemunhadas desgraças que assolaram e das que vão assolar
a aldeia de Mananga. Num movimento de transgressão, ao retomar o texto bíblico, que pode
ser compreendido como uma narração tica cristã, o faz, também, em reconfiguração e,
junto aos mitos da tradição moçambicana, mostra o apocalipse em Moçambique.
Neste sentido, é importante notar que a escritora, ao usar tanto os mitos da tradição
ancestral quanto o da cultura cristã, sinaliza-nos possíveis leituras da realidade encenada.
Nesta narrração deslizante, Chiziane (re) apresenta o como se dos refugiados da guerra civil
32
moçambicana por mais de uma via e, deste modo, mostra o entre-lugar de sua nação, narrada
a partir de matrizes culturais distintas, e até mesmo antagônicas, que se mostram em diálogo.
A percepção ambígua e descentrada da intelectual apresenta-se nas escolhas dos fios com os
quais tece a narrativa, sinalizando para uma construção discursiva de terceira via. O
apocalipse narrado no romance, inspirado no texto blico e em mitos da cultura
moçambicana, é potencializado por forças que, metaforicamente, aludem aos ventos do
próprio apocalipse moçambicano assumido, no cenário do romance, pela guerra civil
avassaladora no pós-independência. Este cruzamento de leituras ticas mostra um diálogo
entre contraditórios, pois, se nos mitos tradicionais narrados os pecadores são sobreviventes,
no mito bíblico somente os fiéis serão salvos. Talvez por isso seja pertinente explicitar a
pergunta que paira sobre o texto de Chiziane: haveria salvação para uma nação que, logo após
a conquista da independência, empreendeu uma guerra fratricida, uma guerra entre iros?
O próprio título da obra se configura como uma profecia e como uma resposta, pois o leitor é
avisado pela nomeação da obra que são ventos apocapticos que guardam esta
história/narrativa, e, portanto, espalham e disseminam os males, impossibilitando qualquer
tentativa de reunir, organizar e acalmar a vida ou de semear as esperanças. Nesta perspectiva,
tanto os mitos oriundos da tradição quanto o texto bíblico funcionam, ao mesmo tempo,
como norteadores e desnorteadores da saga encenada a fuga dos refugiados de Mananga e
Macuácua rumo ao Monte, como veremos.
No romance não separação entre o tempo histórico e o tempo tico, não há uma
dicotomia entre o acontecimento histórico e aquele relatado pelo mito. Assim, consolida-se a
construção discursiva numa terceira margem, numa terceira via em que “[...] verdade e
mentira não são mais compreensíveis de maneira binária e opositiva mas como uma trama de
elementos intercambiáveis que se na própria superfície da linguagem” (DEALTRY, 2002,
p.191). Esta concepção de narração mostra a compreensão de História da escritora-intelectual
que, de certa forma, é defendida por Dealtry:
[...] a história deixa de ser representada por uma linha contínua, cheia, indo em
direção ao futuro, para ser simbolizada por uma linha fragmentada, não-sequencial,
caminhando tanto para frente quanto para trás. Assim não faz mais sentido crer que a
verdade esteja nos fatos. É possível apenas acreditar que o jogo da narrativa constrói
representações temporárias e falhas acerca da história do ser humano. (p.191)
E é nesta trilha de compreensão, que vamos examinar o sentido produzido na repetição
em outros contextos, com outras personagens e outros desfechos, isto é, sempre em
deslocamentos desses mitos, dessa história, dessa narrativa de nação, que, na circularidade
33
temporal, no diálogo entre o mito e a história, narra a nação.
2.2 Signos de uma sociedade convulsionada: Reconfigurações
Na abertura da parte I do romance, lemos/ouvimos o provérbio tsonga: Maxwela ku
hanya! U ta sala u psi vona“Nasceste tarde! Verás o que eu não vi” (p.23). na abertura
da parte II expõe-se um trecho da canção popular changane: A siku ni siko li ni psa lona,
isto é, “Cada dia tem a sua história” (p.144). Ora, o uso do provérbio e do trecho de canção
pela escritora-intelectual, a nosso ver, desautorizam a atitude premoniria do narrador no
desfecho do prólogo: “A terra gira e gira, a vida é uma roda, chegou a hora, a história repete-
se [...]” (p.22). Mediante esses vestígios contradirios, indagamos: as histórias/estórias se
repetirão?
Sob a perspectiva dos teóricos Hama e Ki-Zerbo (1980) podemos afirmar que a
enunciação do provérbio e do trecho da canção nos mostram o lugar ambivalente do mito
para as culturas africanas tradicionais, pois, apesar de referências, estes não são estereótipos.
Nesse sentido, os trechos acima transcritos e que abrem as seções do romance servem tanto
como “contra-prova” para a profecia quanto como “prova”, isto é, confirmação da
concepção temporal e histórica das culturas africanas tradicionais encenadas no romance. Ou
seja, os mitos são ponto de partida e, neste sentido, configuram esta escrita de nação na
ambiguidade porque “casada” com a contradição e o antagonismo. Os três mitos, portanto,
são tecidos” no contexto da guerra civil e a repetição literal, entendida como predestinação
tica, é reconfigurada no presente, deixando de ser mera repetição do passado.
Maria Nazareth Soares Fonseca (2007), em seu ensaio Ler um romance: Ventos do
apocalipse, ressalta que a repetição na narrativa importa uma estratégia característica das
narrativas tradicionais orais, pois, nelas, a repetição [...] tem uma função importante para a
memorização” (p.224). Chiziane, como escritora-intelectual, ao selecionar aspectos
tradicionais de sua cultura, como os mitos, combiná-los, relacioná-los e reconfigurá-los no
espaço da escrita, ao mesmo tempo em que homenageia a cultura tradicional mostra sua
nação em deslocamento, pois encena-a em outro contexto, o contexto de guerra civil.
Todavia, devemos nos lembrar que estes mitos, quando relacionados aos tempos de
guerra, por apresentarem como características marcantes a intemporalidade e a fuão social,
34
tornam-se, de certo modo, “histórias exemplares”. Em outras palavras, podemos entender que
cada um dos mitos, ao dizer de tempos difíceis, de guerra e fome - “tempos passados”- , de
certo modo, são reatualizados, refamiliarizados quando postos em diálogos com experiências
do presente da diegese. No entanto, esta referência não se prende na voz da tradição, uma vez
que a escritora-intelectual deixa marcas de sua própria voz (questionamentos, críticas e
pontos de vista) na voz narrativa, ao longo da fabulação.
A retrama desses mitos, nas pespectivas já sinalizadas, ocorre ao longo da primeira e
segunda partes do romance. Salientamos, porém, que esta reconfiguração histórico-mítica se
por meio de uma narrativa que se desdobra, isto é, uma narrativa que, a princípio, tem
como norte três mitos, mas que ao longo dos acontecimentos narrados, tornam-se parte de
outra grande história que se destaca: a história do povo de Mananga e a sua fuga para a
aldeia do Monte. Desta forma, o mito em si deixa de ser o centro da narração para se tornar
componente de um enredo mais complexo. Assim, estrategicamente, a escritora-intelectual
opera um descentramento na escrita por meio da arquitetura discursiva, que pode ser
entendido como indicador de outros descentramentos, como veremos.
Na primeira parte do romance “ouvimos”, pela voz do narrador, a história do povo
da aldeia de Mananga. Conhecer a história desse povo implica conhecer a história de Sianga
e sua família, personagens metonímicos por representarem as comunidades rurais de uma
Moçambique mergulhada em uma guerra fratricida em fins do século XX. Estas personagens
nos apresentam as angústias de se viver em um contexto conturbado, no qual “tudo que é
sólido desmancha no ar (MARX; ENGELS apud HALL, 2003, p.14), um contexto em que
elementos externos impostos às pequenas localidades definem os rumos de indivíduos e
povos. Nesta realidade, os elementos da tradição, por força da guerra e do próprio movimento
da história, são reconfigurados, no movimento eterno do lembrar-esquecer e, deste modo,
constantemente questionados pela voz narrativa que, ora distanciada dos acontecimentos, ora
muito colada a eles, acompanha o desenrolar dos acontecimentos, analisados ao longo deste
trabalho.
[…] Sianga abre a boca e pragueja numa expressão de desalento.
- Que noite! Que pesadelos terríveis! Os sonhos malditos são o presságio dos dias de
amargura, isso são. Morre o fogo, morre o fumo, a vida é apenas cinza e pouco falta
para que dela não reste um pedaço de pó.
Que noites as minhas!
Minosse desperta, e instintivamente, a mão procura o parceiro do leito. Não está .
Para onde terá ido? Nunca foi madrugador, é um preguiçoso crónico, um inútil.
Ouve-se uma voz nas traseiras da casa e ela recrimina. Sianga é mesmo imprudente,
sem dúvida alguma. A porta da casa não se abre a um estranho quando o chão ainda
está frio, os feitiços funcionam melhor no ventre da madrugada. De repente,
35
inquieta-se. Talvez tenha vindo alguém informar de uma grande desgraça, quem
sabe? Abandona a cama e aproxima-se da porta. Apura os ouvidos. Coloca o olho no
postigo e tenta observar. fora o u está mais claro, amanhece. A voz de Sianga
escuta-se forte, numa prece desesperada.
- Gugudja, gugudja Mambo, ndirikuza!
Sianga dialoga com os defuntos. (p.25-26)
Neste trecho, o leitor é levado a “mergulhar” no cotidiano de Mananga através da
focalização em Sianga e sua esposa. Este mergulho é conduzido por um cruzamento de vozes:
a voz narrativa, a voz das personagens e a voz que imprime no relato as posições da escritora-
intelectual, flagrada em outros momentos da história/fabulação –. A voz do narrador nos
apresenta as personagens e suas vivências. as personagens, em muitos momentos, ganham
voz e se pronunciam no interior dos relatos narrados. A voz da intelectual, por sua vez,
insinua-se, deixando marcas evidentes nos eventos narrados. Desta forma, o plurilinguismo se
constitui no alicerce deste romance e essa polifonia, ao ganhar densidade ao longo da
narrativa, faz-se signo dos processos múltiplos de uma sociedade em
desconstrução/construção ao propor uma outra tecelagem das histórias/narrativas da guerra
moçambicana.
Sianga amanhece praguejando, teve maus sonhos e os “[o]s sonhos malditos são o
presságio dos dias de amargura, isso são (p.25-26). Nesta passagem, passamos a conhecer a
crença do narrador e da personagem sobre o poder premonitório dos sonhos. Importante
salientar que isso não seria possível senão por deliberação da escritora-intelectual que, como
vimos, diz querer falar “das coisas da África”. A crença nos sonhos, marca das culturas
tradicionais africanas, é convocada, nesta encenação, mostrando o passado, indicado pelos
saberes da tradição, e “contaminando” o presente. Neste momento da narração, os presságios
da personagem induzem o leitor a perguntar o que está por vir, pois ainda nos lembramos do
desfecho do prólogo: “[...] chegou a hora, a história repete-se [...]” (p.22).
Em paralelo, Minosse, ao acordar, procura pelo esposo e não o encontra. Em seguida,
ouvimos o que ela diz/pensa sobre Sianga: “[n]unca foi madrugador, é um preguiçoso
crônico, um inútil (p.25). Neste trecho ocorre o processo inverso: é o presente que
contamina” o passado; a mulher, a esposa, “[...] enfrenta o marido com fúria de fêmea
(p.29) e, assim, desestabiliza o lugar tradicional de subordinação ocupado pelas mulheres em
sua cultura, questão que examinaremos com mais intensidade no capítulo dois desta
dissertação. O narrador, que tudo sabe e tudo , apresenta-nos os sentimentos da personagem
no mesmo instante em que ela mesma assume a voz: [o]s olhos dela são o céu inteiro
desabando em catadupas de fúria. Pragueja numa revolta silenciosa, mas que mal fiz meu
36
Deus?” (p.29). Com palavras duras inferioriza o homem, o esposo:
Que espécie de marido tenho eu? Confesso, meu Deus, e peço perdão. Tu bem
sabes, deste-me como marido um inútil. [...] Ai, Deus, homem que se preza, morre
de fome preservando a honra, mas o meu vende-me para encher a pança. Ah,
maldita fome, maldita vida. (p.29)
Tanto uma passagem como a outra mostram o ponto de vista da intelectual que
acompanha, vigilante, o desenrolar da história/narrativa, rasurando a narrativa calcada em
fatos e em acontecimentos. As interferências feitas pela voz autoral permitem que o leitor
entre em contato com os conflitos e tensões vividos pela sociedade.
Como dito, além da pontuação feita pela voz autoral que instiga o leitor a perceber
as tensões que tecem a história/estória narrada, direcionando” a narrativa, entra-se em
contato com as crenças, costumes e comportamentos característicos de determinadas regiões
de Moçambique. Como dito, acreditamos que esse “mundo de informações sobre a África” é
assumido em seu romance com os deslocamentos característicos da época atual. Uma mostra
desta operação é quando Minosse repreende o seu esposo sobre sair de madrugada: “A porta
da casa não se abre a um estranho quando o chão ainda está frio, os feitiços funcionam melhor
no ventre da madrugada” (p.25-26). Entretanto, os tempos são outros – de urgência, de guerra
e, por isso, já não hora certa para abrir portas a estranhos. As portas da casa de Minosse
são abertas em horário proibido, como nos parece ser a escrita de Ventos do apocalipse,
escrita que busca apreender “o calor da guerra”, dos acontecimentos ainda no ventre da
madrugada.
Neste ínterim, Sianga, em desespero, dialoga com os defuntos: Gugudja, gugudja
Mambo, ndirikuza!(p.26). O narrador relata que Sianga faz oferendas, espalhando no chão
milho, mapira, rapé e aguardente. Em seguida o ouvimos: - Escutai defuntos, amparai
defuntos, abri vossas portas para o filho que sofre, dizei alguma coisa, aguardo a vossa
mensagem, gugudja, ndirikuza Mambo, ndirikuza! (p.26). Interessante notar que a escritora-
intelectual opta pelo registro das partes iniciais e finais da oração na língua da personagem, o
que também mostra o formato da oração. Este aspecto não é ingênuo, uma vez que a escritora-
intelectual faz de sua narrativa espaço para a inscrição de uma ngua literária intervalar, pois
elaborada em língua portuguesa “na dita língua maior” contaminada por elementos da
oralidade e da tradição, produzindo, assim, uma “literatura menor” aos moldes concebidos por
Deleuze e Guatarri (1977), como discutimos na primeira parte deste capítulo.
Neste continuum, por meio da fala/sonho de Sianga, somos informados mais
detidamente sobre este cenário contemporâneo, devastado pela seca e pela guerra:
37
- Tenho viajado em florestas calcinadas, regadas de sangue e ossos humanos
espalhados por todo o lado. Esta noite estava rodeado de espectros dançando à
minha volta. Bebiam vinho tinto em taças feitas de crânios dos mortos passados e
recentes. E o vinho que bebiam era sangue puro, sangue inocente. Empurrei os
espectros que fechavam o meu caminho e tentei fugir mas eram tantos os ossos dos
mortos que não sobrava um espaço para meter o pé. Foi daí que, na tentativa de fuga,
pisei um crânio e um osso fragmentado de um maxilar que me feriu a planta do pé.
Senti dores e gritei. As dores despertaram-me e dei por mim gritando como um
menino. Saltei da cama acariciando o e este doía-me na realidade. Quando me
convencia a mim mesmo de que o passava de um somho mau, ouvi trovoadas
distantes no ventre da madrugada.
- Trovoada! – interrompe Minosse. – Deve ser chuva, awêêê!...
- Chuva não, mãe de Manuna; era fogo. Saí da palhota para escutar. O ribombar
ouvia-se distante. Trepei o cume da figueira e vi. Os clarões eram enormes,
acendiam e apagavam, fogo aceso calcinando a terra tal como vi nos sonhos. (p.33)
No trecho citado, não sabemos se o sonho invade a realidade ou se é a realidade que
adentra o sonho: ambivalência, negociação de contraditórios. As imagens conclamadas pela
descrição do sonho são tão fantasmagóricas (“espectros dançando à minha volta”, taças feitas
de crânios humanos”), quanto calcadas na realidade, como se lê no último parágrafo da
citação. Ao mesmo tempo em que os espectros fecham o caminho de Sianga, este diz acordar
com dores por ter pisado num crânio e num osso fragmentado de um maxilar. Em um mesmo
enunciado a intelectual registra, por meio da voz de Sianga, a mistura entre sonho e realidade:
Quando já me convencia a mim mesmo de que não passava de um sonho mau, ouvi
trovoadas distantes no ventre da madrugada!” (p.33). Como se constata, não se marcam
oposições entre o sonhado e o vivido; o relatado ocupa uma outra via, uma terceira, em que
sonho e realidade conformam o mesmo universo, aos moldes das crenças tradicionais bem
como a concepção de narração: entre o tico e o histórico. Este trecho, portanto, mostra
como a escritora-intelectual realiza deslocamentos/descentramentos de sentidos. Por meio da
voz da personagem, a voz autoral nos mostra espectros de uma realidade vivenciada pelo seu
povo, realidade em que o místico e o real conformam mutuamente um mesmo cenário.
E é nesse contexto que o mito “Marido cruel será retomado e, deste modo,
reconfigurado. Esta reconfiguração, entretanto, atingirá dois núcleos familiares na aldeia de
Mananga. Este dado é interessante, uma vez que mostra a repetição do gesto, mas com a
ampliação das ocorrências e reconfiguração de sentidos. A primeira ocorrência, mostrada pela
voz do narrador, dá-se na família de Sianga:
Minosse e Muinga conheceram-se na intimidade. Para resolver alguns problemas, ela
vendeu-lhe amor em troca de milho. Mas está mesmo à vista que o tipo é um grande
cretino, isso é verdade. O desgraçado dormiu com a mãe, agora quer a filha, mas
onde está a moral que nos legaram os nossos antepassados? (p.83)
38
E, à medida que a seca se agrava, este mesmo gesto repete-se em outro núcleo
familiar: O marido abandona o lar. A mãe esconde o pedaço de milho roubado para comê-lo
quando a criança adormecer” (p.107). A seca é explicada, nesta parte da narrativa, neste outro
contexto, pelas mesmas causas observadas nos tempos imemoriais: “Já não chove, os
pecadores expulsaram as nuvens, estão ausentes, distantes” (p.71). Porém, no presente, os
subterfúgios agenciados pelas personagens para se escapar da morte são outros: a esposa se
prostitui com o consentimento do marido; a mãe esconde o alimento da família para si . No
contexto explícito de seca e guerra civil, os valores e costumes são transgredidos, ou melhor,
estão sempre em deslocamento.
A seca e a guerra também alimentam o êxodo
7
que, sob o olhar observador da
escritora-intelectual, ganha enfoque. Como estratégia discursiva, a voz narrativa, ao iluminar a
figura de Sianga, registra os fatos ao mesmo tempo em que infere as transformações
decorrentes da guerra:
O êxodo aumenta em Mananga, Sianga está bem informado sobre isso. O amor é
uma fantasia inventada pelos homens, não existe e nunca existirá, isso é claro e
evidente. No passado, os homens organizaram exércitos e mataram-se por amor à
terra, em defesa do território, da soberania, e agora que a coitadinha já não tem nada,
deu tudo o que tinha a dar, foi terrivelmente sugada, os homens abandonaram-na
porque está em desgraça. Os mais fortes foram trabalhar nas minas das terras do
Rand e um dia voltarão com motorizadas, bicicletas e roupas baratas para aliciar as
mulheres da terra. As mulheres mais jovens foram para o subúrbio das cidades
vender a sua honra em troca de pão, fazendo reviver, subtilmente, os antigos centros
de prostituição já banidos pela lei. (p.70)
Interessante notar que a escritora-intelectual, ao mostrar o êxodo e seus efeitos, parece
construir uma comparação entre a terra e a mulher, especialmente, quando a voz narrativa
lembra que o amor e o cuidado não existem mais. Os homens, depois de “aproveitar” tanto de
uma como de outra abandonam-nas. A idéia do estupro, quase explicitamente colocada, nos
remete às violências sofridas tanto por uma quanto pela outra. Outro aspecto saliente nesta
passagem é a ironia que se revela em Sianga, que está a falar das jovens mulheres aliciadas
por mbolos de dinheiro e poder neste mundo contemporâneo as motorizadas, as roupas – ,
enquanto ele mesmo agencia a esposa.
A construção textual também é solo frutífero para a visualização dos dramas
7
Hernandez (2005), ao apresentar uma leitura da guerra civil moçambicana, traz para seu texto o testemunho de
um chefe tradicional, que, ao nos dizer sobre as conseqüências da guerra, desabafa: “[...] A revolução afastou-nos
da nossa terra, de nossos antepassados, da nossa população, da chuva, das nossas cerimônias, de muita outra
coisa. É por isso que estamos hoje a sofrer.” (HERNANDEZ apud CISCATO, 2005, p.611)
39
vivenciados pelo povo da aldeia que metominiza os moçambicanos. Termos como êxodo,
exércitos, soberania, terra, território, subúrbio e cidade mostram algumas das tensões que
permeiam o contexto narrado. Assim, tanto o enunciado quanto a enunciação permitem ao
leitor perceber os movimentos migracionais pelos quais passaram milhares de moçambicanos
no contexto de guerra civil, bem como as conseqüências desses movimentos para os modos de
viver do povo moçambicano. E, assim, o texto, ao descrever a situação dos desfavorecidos,
encena tanto a condição da população sofrida, quanto à da nação. Desta forma, o êxodo, que
marca a trajetória de milhares de indivíduos se mostra na escrita de Chiziane posta em
distensão pelo narrador distanciado, acompanhado pela visão observadora e crítica da voz
autoral.
Nesse cenário de penúria, o movimento dos refugiados da guerra ganha presença
quando a chegada do povo de Macuácua altera, significativamente, a vida da comunidade de
Mananga. Tanto pela voz do narrador quanto pela voz coletiva do povo de Mananga
ouvimos sobre os receios e as angústias produzidas com a chegada dos deslocados:
A chegada dessas pessoas de Macuácua é uma agressão, uma invasão e causa
revolta em todos os habitantes de Mananga. A recepção é hostil e as atitudes
fratricidas. O nosso povo sente o desejo louco de defender o território à força de
ferro mas as autoridades impõem-se, malditas autoridades. Deixaram esses
forasteiros fixar-se no nosso solo, nesta terra tão pobre e tão seca. Vieram apenas
para roubar-nos os alimentos, a paz e o sossego com seus problemas. Mas onde se
escondeu a nobreza desse povo? Que tipo de gente é essa capaz de abandonar a
terra, os haveres, os túmulos dos antepassados por temer conflito? (p.109)
Eles não são do nosso clã, são estrangeiros. Os nomes desses intrusos nem nos
interessam. Os hábitos fúnebres deles são inferiores, são diferentes dos nossos. Que
se enterrem entre eles. Ainda bem que o cemitério deles fica distante do nosso.
Vieram aqui para conspurcar a nossa terra com os seus cadáveres, os seus fantasmas
e espíritos malignos. Misturar os defuntos deles seria um grande sacrilégio. Nós
queremos paz e repouso tranqüilo para os nossos mortos sem interferências
estrangeiras. (p.111)
Os deslocados não o bem-vindos! Afinal de contas, refugiados são gente “sem eira
nem beira”. Neste tecido textual, “tecido esgarçado de nação”, percebemos as pegadasda
escritora-intelectual, registrando as mudanças provocadas pelos tempos de guerra e carência,
nas escolhas lexicais, isto é, no campo semântico, marcado pelos termos agressão, invasão,
forasteiros, relacionados à hostilidade, à atitude em defesa da terra tão pobre e tão seca.
Nessa escrita somos levados a refletir sobre os encontros e desencontros culturais no s-
indepenncia, quandoo outro” deixa de ser o externo, o colonizador e passa a ser a
comunidade vizinha, que por continncias impostas pela situação de guerra, passa a ser
ocupantes do mesmo terririo. Outra questão interessante é como o discurso do colonizador
40
está entranhado no discurso da tradição: Os hábitos fúnebres deles são inferiores, são
diferentes dos nossos”, quer dizer, o que é diferente é, por conseguinte, automaticamente
inferior. E o somente isso. Chiziane, ao construir essa discursividade, aponta para a
falência do discurso homogêneo de nação ao nos mostrar que nem mesmo comunidades
vizinhas conseguem se conceber fazendo parte de uma mesma comunidade imaginada falha
do modelo totalizador de nação que não conta da pluralidade étnica e lingüística da rego.
É este olhar que mobiliza o leitor a perceber, na cena literária, o desmanche da sociedade em
guerra:
Essas autoridades fazem coisas que não são do agrado do povo. Meteram os
filhos desses estrangeiros nas escolas dos nossos. Os professores andam
esgotados, a fome aperta e ainda por cima têm que aturar os filhos desses cães. (...)
Os foragidos são tipos cheios de sorte. Recebem maior atenção das autoridades e
não entendemos por quê. Desde que aqui estão, assistimos à chegada de carros
trazendo comidas, roupas, alimentos, mantas, tendas, ou para evacuar um doente
para o hospital da cidade, e nós, donos da terra, que lhe damos abrigo e conforto,
sofrendo tanto como eles, não recebemos sequer um pedaço de consolação. Se não
fosse por temer as autoridades, já os teríamos expulso à pedrada. (p.111)
A partir deste trecho somos levados a visualizar um dos grandes problemas
potencializados pela guerra: o contato indesejado entre povos de etnias diferentes, com
costumes e crenças diferentes, mas que sob as mesmas condições, em alguns momentos,
podem se unir em prol da sobrevivência, da construção de uma utopia, como discutiremos no
segundo capítulo desta dissertação. A guerra atinge a todos e Mananga não está fora disso:
Os cadáveres atingem quase uma centena e os feridos nem se contam. Os mais corajosos
estão na azáfama de cuidar dos mortos e dos feridos. O momento é difícil. [...]” (p.119).
É importante notar que, no romance, a intertextualidade com os mitos, tanto os
tomados à tradição moçambicana quanto à tradição ocidental judaico-cristã, mais
especificamente ao Êxodo e ao Apocalipse bíblicos, torna-se uma estratégia de diálogo com o
sagrado. Um exemplo claro deste diálogo com a tradição cristã, já presente no título, -se
particularmente quando a aldeia do Monte é descrita e apresentada como um destino pródigo
aos famintos e deslocados de Mananga e de Macuácua, similar à Canãa onde correm leite e
mel: Por (no Monte) correm águas benditas por todos os vales. Nos riachos residem os
espíritos bons que purificam a alma e curam as mágoas” (p.119). Nesse êxodo, os
sobreviventes buscam a salvação desejando deixar para trás uma realidade de perseguições e
tragédias. É nesta parte do romance que estrategicamente ocorrerá a “repetição” dos outros
dois mitos, Mata que amanhã faremos outro” e “Ambição de Massupai”.
O narrador nos informa, com detalhes, sobre o cenário pelo qual transita o povo em
41
peregrinação, mas é a escritora-intelectual que assume as considerações sobre o sofrimento do
homem negro:
Naquele lugar, a mata foi barbaramente revolvida, a vegetação maltratada e
queimada enquanto a terra exibia crateras múltiplas provocadas pelo detonar das
bombas. Por todo o lado se sentia o cheiro fresco das vidas recém-ceifadas. O chão
estava pestilento e viscoso. Até nos ramos altos das árvores grandes o verde-escuro
das folhas estava salpicado de manchas de sangue. (p.165)
O sofrimento é milenar na história do homem negro e este jamais se conformou. Faz
guerras. Revoluções. Luta. Umas vezes perde e outras ganha. O povo inteiro sofre e
mergulha na turbulência dos sentimentos de ódio e de rancor contra Deus e contra os
homens. (p.171)
Esta repetição tica, neste cenário, não nos parece gratuita, pois, como já dito, a
escritora-intelectual, usando desta estratégia, própria dos contadores e narradores
tradicionais, assegura a atenção do leitor, vendo-o como ouvinte da história que conta e deve
ser memorizada. A repetição desempenha no romance um duplo papel: reitera o diálogo com
a contação, que lança mão desta como estratégia de memorização, ao mesmo tempo em que
insere o mito na estória/fabulação e, deste modo, mitifica-a, produzindo, portanto, uma
narrativa de nação a partir deste entre-lugar.
Na fuga do povo de Mananga e Macuácua, Doane o dorme, está ao lado da esposa
e pensa nela. O filho desejado amadurece e nascerá em breve, na próxima lua nova. E se
nascer agora? (p.159). Como veremos, em outro contexto, com outras personagens, a
história se repete – Karingana Wa Karingana”:
Maldição dos espíritos vocifera Doane. Logo aqui e com tantos perigos. É
preciso impedir este nascimento, é preciso travar, a criança o pode nascer
aqui.
Calma, Doane, tudo correrá bem.
Mas a criança vai chorar, e se o invasor estiver por perto saberá que estamos
aqui, seremos descobertos e talvez massacrados. Morrerão todos por causa de
um filho que é meu. (p.159)
Porém, logo percebemos tratar-se de uma outra história, pois o grupo, ao perceber a
intenção de Doane, pronuncia-se: - Escuta, Doane, já morreram tantos e não foi por culpa
de ninguém. Calma, por favor” (p.160). As advertências não impedem que Doane, com raiva
de sua esposa, afaste-se em meio ao bombardeio, em cenário em que os aviões voam por
cima de suas cabeças[...]mais ameadores que os abutres” (p.160). Nessa “repetição”,
Doane, enlouquecido, tem um fim trágico: é engolido por uma jibóia, aquela que envolve o
corpo de sua presa, sufocando-a para depois engolir. Doane – protagonista desse mito
42
reconfigurado é sufocado e engolido. Essa situação parece ser imagem do novo cenário,
espaço em que os comportamentos, antes referenciados pela tradição, estão em plena
convulsão, estão a ser engolidos pelos tempos. Nesse contexto, marcado por tantas desgraças,
a reconfiguração do mito sinaliza os deslocamentos e descontinuidades: depois da morte do
pai, o bebê nasce, mas não sobrevive; a mãe, ao perder o filho, enlouquece e se suicida:
Com as duas mãos, faz um arco com que enrola o pescoço e salta dos ramos num
voo deixando-se flutuar no vazio. As pernas balançam como a cauda de uma enguia
abrindo caminho o oceano do céu e depois ficam rígidas, imóveis. (p.180)
Através de intensos deslocamentos, o sentido do mito é reatualizado para assumir o
horror vivido pelos desterrados em sua peregrinação. Como se vê, “Mata que amanhã
faremos outroo se repete em sua totalidade, pois é reconfigurado no contexto de uma
outra guerra em que, a princípio, perde-se a possibilidade de se “fazer outro filho”.
O olhar da escritora-intelectual acentua que o percurso, em busca da salvação, isto é,
em busca do Monte, será marcado pelas decepções com a realidade social, violentada pela
guerra civil. Os tempos se cruzam passado, presente e futuro em um constante jogo de
ameaças. Os valores morais e as crenças estão em xeque:
O assaltante é mostrado a todos e o espanto é total. Pobre Mani Mossi. É mesmo o
filho dela, o primogénito dela. Como é que veio aparecer aqui? mais de um ano
que deixou a mãe, e nós a pensarmos que foi trabalhar na cidade para ajudar a
família. Massiguita! E nós louvamos os nossos homens que abateram o inimigo na
noite do sinistro, quando afinal abatiam os próprios filhos que queriam assassinar os
seus irmãos e as suas mães. (p.174)
O cruzamento de vozes na narrativa é recurso hábil para descrever a triste descoberta –
que o assaltante era o filho de Mani Mossie acentua a intensidade e o tumulto do momento
em que cada vez mais a guerra se revela insana para os aldeões. Neste trecho, a polifonia
assume o questionamento sobre a perda dos valores tradicionais, valores que garantiam o
respeito à unidade familiar e comunitária: “A arma do mal ergue-se e divide a família. Mas
para onde foi o amor e a liberdade que nos ensinaram os nossos antepassados? Onde ficou
enterrada a moral e a vergonha deste povo?” (p.174).
Questionamentos como esses alertam o leitor para as questões próprias de uma nação
convulsionada pela guerra, contexto em que os valores transmitidos pelos antepassados, são
esquecidos”, o cuidado com o outro, com o irmão, é negligenciado em função da
sobrevivência:
43
A noite chega e os homens preparam-se para a partida, Theni ainda esvivo. É
melhor deixá-lo aqui. Que a morte o leve e os abutres o comam, de resto isso não é
novidade, centenas de pessoas que encontraram o último repouso ao relento.
(p.176)
Entretanto, neste mesmo grupo, Sixpence, o líder eleito, configura-se como um
contraponto à voz dos desterrrados:
Sixpence é terrível, é incompreensivo, não gosta de ouvir opiniões de mais ninguém.
Quer que carreguemos este cadáver que tem um fora e a caba na cova. Diz
que não podemos abandoná-lo, porque é desumano, não podemos enterrá-lo porque
ainda está vivo, mas qual vida se todos vêem que ele está morto? O que é mais
desumano é travar a viagem dos vivos por causa de um morto. (p.176)
Mais um antagonismo se explicita na história. Ao mesmo tempo em que ouvimos” os
lamentos de membros do grupo contra Sixpence, sabemos que ele foi eleito der, por
unanimidade, pelos deslocados. E, nesse jogo de vozes, a voz narrativa agenciadora da
coletividade, ao longo da peregrinação, pergunta sobre o que fazer com os companheiros
moribundos “ – Que fazemos com este, Sixpence?” (p.176). Esta indagação do grupo insinua
o desejo de que o líder autorize o abandono do ferido. E, este, ao dizer “[v]iajará connosco até
que a morte o leve” (p.176), acentua a tensão do grupo que questiona a importância de cuidar
de alguém que vai morrer.
No processo de desumanização que atravessam os peregrinos, quase prevalecem
valores como “salve-se quem puder” e “cada um por si e Deus por todos”. No entanto, a
narrativa, ao encenar os dramas vivenciados pelos deslocados de guerra, assume-os nas
ambivalências do ser/estar neste contexto convulso. Tais ambivalências mostram-se, como
observamos, na tensão entre o grupo e Sixpence, que consegue chamar o seu rebanho” à
razão. E, neste sentido, é visível a avalição da intelectual sobre dramas vivenciados pelas
personagens que, metonimicamente, assumem papéis “tirados” do contexto social. Essa
presença se manifesta na costura do enredo, que é tecido com os fios dados pela voz
narrativa e pelos diferentes roupagens com que ela se configura. Os dramas da peregrinação
são então desenhados com tintas fortes como se percebe nos trechos que se seguem:
Os viajantes tentam repousar, o estômago está alerta, não adormece, incomoda.
Pela centésima vez olham para as panelinhas vazias. O que ainda restava da farinha
crua ficou molhado na travessia, está apodrecido, não se aproveita. Tentam mastigar
os grãos secos de milho mas depressa desistem. Os olhos identificam em volta. O
chão está coberto de ervas frescas, rasteiras. É desta erva que os porcos se
alimentam e engordam. Por todo o lado as malangas balançam as folhas majestosas.
O tubérculo da malanga é saboroso, tem o gosto da batata-doce, mas nunca o
comemos cru. Colhem a erva dos porcos e os tubérculos da malanga, mas falta a
44
fogueira para eliminar as toxinas na verdura. Há demasiada lenha no matagal, mas
não se pode acender fogueira porque não convém, de resto, sforo também não há,
ficou molhado na travessia. O estômago reclama e o povo abandona os rodeios e os
devaneios. Com as duas mãos pegam no tubérculo da malanga, trincam, saboreiam.
(p.179)
Vigésimo primeiro dia. Os viajantes estão desesperados. Têm visões
fantasmagóricas, as trevas executam nos olhos a dança macabra. A diarreia continua
a fazer a estrada da morte, em cada passo há um que fica. (p.182)
Extenuados, após tantas provações, os peregrinos avistam a aldeia do Monte: “A
aldeia está ali, monumento erguido sobre o monte” (p.183). Nos agradecimentos misturam-se
rias crenças: agradecem a Deus e aos defuntos; não exclusão.
Interessante notar que, ao chegarem ao Monte, no suposto lugar de salvação, a
narrativa abre-se a uma profunda lamentação pelos horrores da guerra e pelo esfacelamento da
sociedade: os sobreviventes perderam a família, os amigos, os haveres. Este desmanche
também se mostra na própria pele dos sobreviventes, tornada lugar de inscrição da
desfiguração da nação moçambicana continuamente aludida, em forma figurada, no romance:
Perderam a família, os amigos e todos os haveres. Perderam o sonho, a esperança, e
mesmo a realidade não lhes pertence. Até a roupa que lhe confortava o corpo, os
ramos e os arbustos roeram. A pele que protege os ossos os espinhos rasgaram,
sangraram. O rei das trevas jogou com eles em cada noite. A fidelidade aos defuntos,
as leis das tribos, o orgulho do homem, as normas mais elementares da vida humana,
tudo quebraram. […] Somos homens nobres, feitos à semelhança de Deus, minha
gente! Mas à semelhança de Deus? É pouco provável. Se o homem é a imagem de
Deus, então Deus é um refugiado de guerra, magro, e com ventre farto de fome. Deus
tem este nosso aspecto nojento, tem a cor negra da lama e não toma banho à
semelhança de nós outros, condenados da terra. (p.184-185)
A desfiguração apocalíptica provocada pelos horrores da guerra, apresentada no trecho
pela intromissão da voz autoral, novamente aponta para uma leitura em diálogo com o último
livro do Novo Testamento, o Apocalipse de São João (BÍBLIA, 1993). Essa intertextualidade
dá condição à intelectual de colocar em xeque o discurso catequizador do cristianismo,
insinuado tanto nas ambivalências constrdas ao longo da narrativa quanto no
questionamento dos dogmas cristãos: somos feitos à imagem e semelhança de Deus? Num
discurso ambivalente e inico, a voz coletiva é mobilizada pela escritora-intelectual que se
mescla à fala das personagens:
- Deus existe, sim. Ele é omnipotente e invisível e está mesmo aqui à nossa volta.
Está dentro de nós. [...]
- Sendo assim, Deus é um refugiado de guerra e sente o sofrimento da gente.
- Então esse Deus é um Deus camaleão. Onde há pretos é preto, onde brancos é
brancos. Se chega a ponto de ser refugiado de guerra é um Deus fraco, impotente
45
como este povo de Mananga. Estamos cansados de sofrer, Sixpence. (p.191-192)
É neste contexto de indagações de deslocamentos que os desterrados chegam ao
Monte e, como mortos-vivos, são recebidos com solidariedade pelo povo da aldeia. O Monte,
num primeiro momento, é o paraíso tão sonhado: “Água bendita, ofertada com amor e
sementes de esperança. O fardo da vida torna-se leve quando a humanidade reside no coração
de cada homem, quando a fraternidade atinge o universo ultrapassando as barreiras do
sangue” (p.186-187). Nota-se neste trecho que, mais uma vez, a narrativa se vale do texto
bíblico e da exploração do campo semântico do discurso cristão para representar o lugar
utópico sonhado por aquele povo. Expressões e termos como água bendita, oferta, sementes
de esperança, fardo da vida e fraternidade constrõem o clima paradisíaco do Monte, abrigo
daqueles que foram salvos das perseguões, das tragédias, “do dragão” e das bestas”. Mas
uma questão persiste: existe salvação para aqueles que foram obrigados a deixar suas aldeias,
seus clãs, seus pertences, para trás?
A seca vivenciada pelo povo de Mananga, mbolo de tristezas e tragédias causadas
tanto pela desobediência aos defuntos quanto pela guerra, flagelo divino, é contrastada à
abundância de água no Monte que, a princípio, é o paraíso, pois está distante da guerra, e,
portanto, das desobediências feitas aos deuses. No entanto, os ventos do apocalipse também
atingem o Monte e, infelizmente, aos poucos, a bonança ali vivida distancia-se da visão
tica alimentada pelos refugiados e o lugar é descrito ainda em comparação com o texto
bíblico: “Um monte de torturas como o monte Calvário” (p.201). À medida que os
sobreviventes vão se refazendo, reconstruindo-se moral e fisicamente, também vão
conhecendo os problemas da aldeia: nem todos os moradores são bons, o chefe é um
usurpador e catástrofes naturais também chegam até ali: as águas não tardam a rolar e eles,
que tiveram de enfrentar a seca, agora devem enfrentar as enchentes! Neste novo contexto
catastrófico, a voz da intelectual parece sinalizar contra o posicionamento vitimizado,
assumido, na maior parte das situações, por muitas nações no continente africano. E a ajuda?
Quando chega? Virá? É o que todos querem saber:
A ajuda virá, dizem. E virá da Europa e da América, da Ásia, da Austrália e de
outros países africanos a quem a sorte ainda favorece. A notícia corre de boca e a
expectativa aumenta. Da Europa? Perguntam os mais velhos com cepticismo, ao que
os mais jovens respondem com segurança: da Europa sim! Os mais velhos não
ficam felizes, parecem preocupados. Fazem uma ponte entre a ajuda que vão
receber e a colonização [...]. (p.234)
A narrativa agencia a voz do jovem e a dos mais velhos para encenar o contraste entre
46
pontos de vista de diferentes gerações. Abre-se espaço para uma reflexão crítica que nos
permite perceber os pontos de vista que a escritora-intelectual semeia no trecho: “A ajuda virá,
dizem. E vida Europa e da América, da Ásia, da Austrália e de outros países [...]”. Estes
questionamentos agenciados são fundamentais quando pensamos em duas questões: a situação
de dependência ecomica de grande parte do continente africano e o uso do discurso da
ajuda humanitária pelos organismos internacionais de modo a articular suas interferências no
processo de construção destas nações em formação.
A ajuda humanitária chega e a aldeia consegue se reerguer. Os habitantes celebram,
agradecem e buscam a redenção:
Chegou o momento da grande festa. Os que acreditam nos defuntos fazem as suas
orações com devoção, pedem perdão e remissão dos pecados, aproveitando a ocasião
para uma saudação ao sol-levante, ritual que deixou de ser praticado desde os
meados deste século. Zuze, o grande espírito, responde certo do além túmulo, os
crentes sentem-no. As oferendas aos mortos, os aldeões deixam-nas na base de
qualquer árvore, numa cerimónia simbólica, as árvores os deuses da família ficaram
na aldeia de origem. O sol despontou, a hora do ofício religioso aproxima-se, o padre
acedeu ao convite do povo com muita satisfação e vem a caminho. Terminam o ritual
dos mortos apressadamente e regressam às palhotas. (p.269)
Porém, nem todos no Monte dividem os mesmos sonhos, os mesmos projetos e, diante
disso, reindagamos: é possível operar uma redenção total em meio a uma guerra fratricida?
Nesse sentido, a narrrativa parece nos responder quando apresenta a história de Emelina, que
vivia no Monte isolada dos demais, sem vez e sem voz. Entretanto, nesta contra-narrativa de
nação, Emelina ganha espaço quando é estimulada pela enfermeira da ajuda humanitária a
contar a sua história: Vomita toda a angústia sobre a terra para que o vento a sepulte. Vamos
chora, desabafa, que eu te escuto(p.247). Danila, a enfermeira, quer escutar a refugiada;
abre-se um espaço de contação dentro da contação maior que se “agita” no romance:
A história que vou ouvir, é igual a de todos os tempos, karingana wa karinagana.
Mas a tradição esquebrada, os tempos mudaram, os contos já não se fazem ao
calor da fogueira. As histórias de hoje não começam com sorrisos nem aplausos
mas com suspiros e lágrimas. São tímidas e não ousadas. São tristes e não
alegres. Era uma vez... (p.247)
Interessante notar que a voz da enfermeira nos remete à voz do narrador ao citar a
chave de abertura do conto tradicional “karingana wa karinagana”. Esta também parece servir
de instrumento para que a voz autoral insinue uma avaliação do presente, lembrando que os
tempos são outros: não mais o calor da fogueira para se contar histórias e elas não são mais
ouvidas com sorrisos e aplausos, mas sim com lágrimas e suspiros – tempos de guerra!
47
Como no mito “A ambição de Massupai”, contado no Prólogo, o narrador, antes de
traçar o perfil de Emelina, deixa que se ouça uma outra voz que avalia o poder da mulher:
Os poetas cantam a mulher como símbolo de paz e pureza. Os povos veneram a
mulher como símbolo do amor universal. Porque ela é uma flor que prazer e
calor. Mas excões, têm que existir, para confirmar a regra. Senão o haveria
também recém-nascidos atirados nas lixeiras, nas valas, nos esgotos das grandes
cidades. O que os poetas esqueceram é que, para além do símbolo do amor, a mulher
é também parceira da serpente. (p.249)
Aqui, mais uma vez, acentua-se no romance a voz autoral polemizando e rompendo
com “leituras estereótipadas, modelos redutores” e binaristas. A mulher vista pelos poetas,
desde tempos imemorais, como símbolo de paz e pureza, também é símbolo do amor e
parceira da serpente, como nos conta o Gênesis um dos textos blicos com o qual o
romance dialoga. O narrador, de certa forma, ao descrever a personagem Emelina, desloca a
mulher vista pelos poetas com símbolo de paz e pureza e acentua a ambivalência, a
complexidade, ao narrar a sua história no cruzamento entre os dois mitos: Mata que amanhã
faremos outro” e “Ambição de Massupai”.
As vozes, a do narrador e a de Emelina, informam-nos que no passado, quando era
casada e com filhos, ela se apaixonou por um homem nobre e poderoso, também casado e
polígamo. Emelina comparava o marido e o amante. Separar-se do marido é sempre fácil,
mas como separar-se dos filhos?” (p.250). Perturbada pelo amor, forjou um ataque à sua
palhota incediando seu filhos e, em seguida, pediu ao seu amante que fizesse o mesmo:
Quero-te só para mim, dizia Emelina. Contra a minha vontade manténs ainda as duas
esposas. Mata-as da mesma forma que matei os meus filhos” (p.251). O amante quase
cumpriu o pedido de Emelina, mas “[d]e repente, compreendeu que o amor por Emelina o
inspirava ao crime. Decidiu fugir do tormento” (p.251).
Como acentuamos anteriomente, a repetição dos dois mitos parece funcionar como
estratégia para a memorização, bem como para exposição de reconfigurações de tempo,
espaço e sujeitos. Neste novo tempo e espaço, a trajetória de Massupai” – desesperada com o
abandono do seu amante, com a morte de seus filhos, com a fuga de seu marido e com o fruto
do amor proibido no ventre é atravessada pelos horrores da guerra. Por isso, sua
história/estória prenuncia outros acontecimentos que irão alterar significativamente a vida no
Monte. Como sujeito dessa nova narrativa, Emelina/Massupai, ao contar a sua trajetória,
atualiza os mitos, mas também demontra não haver mais lugar para a encenação tradicional
destes. Sua história/estória pode ser entendida na relação efetiva que estabelece com os
48
textos bíblicos, Gênesis e Apocalipse: é vida e morte. É vida, uma vez que a contação de sua
história realiza o desejo da enfermeira de salvá-la; é morte porque, metaforicamente, as suas
palavras prenunciam a invasão da aldeia pelos “cavaleiros do Apocalipse”, os soldados da
guerra. Na história/estória de Emelina se concretiza a ambição de Massupai:
De todos os lados surgem homens trajando de verde camuflado, de armas em punho
ostentando nos rostos o sorriso da morte. Ouve-se um violento estrondo
acompanhado de uma saraivada de balas que se abatem sobre as cabas que
dispersam procurando abrigo.
Armagedon, Armagedon, grita o padre em corrida […].
São dois, são três, são quatro, o povo inteiro cava sepulturas. O quarto, o terceiro e o
segundo já aterraram. O primeiro está a quase aterrar. O seu cavalo reverbera no Céu
ofuscando a vista, gira, balança-se, rodopia, ginga, toma posição de aterragem, os
pés do cavalo estão a um milímetro do co, cavaleiro nobre sorri satisfeito, Deus,
tende piedade deste povo inocente! Perante o espanto do galhardo cavaleiro, o
cavalo encolhe os pés, bate as asas para o alto e sobe, sobe, acabando por ficar
suspenso nas nuvens.
E a aldeia do Monte recebe o seu baptismo de fogo. (p.274-275)
O juízo final no romance, portanto, se aproxima da visão de João para o fim dos
tempos, mas, no Monte, não há sobreviventes como no texto bíblico: a destruição é total e
realizada por homens, por irmãos, e não imposta por Deus como castigo. A desgraça veio
pelas mãos de Emelina, também vítima da guerra. Considere-se, todavia, que, apesar de a
história/estória de Emelina ser uma motivação para o apocalipse, ela é contada no romance a
partir de uma sinalização de recomeço: “Karingwana Wa Karingwana”. E, nesse sentido,
embora a narrativa não nos apresente uma solução, uma resposta, não apaga inteiramente a
força das histórias/estórias da tradição como forma de narrar a sociedade.
É vital salientar que, de acordo com a tese central exposta nesta dissertação,
procuramos demonstrar por meio da análise como a escritora-intelectual preocupa-se em
tecer a ramificação do caso individual no contexto político, bem como acentuar o
agenciamento coletivo na enunciação, estratégias consideradas por Deleuze e Guatari (1977)
quando cunham o conceito de “literatura menor”. “Vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais
certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda a literatura no seio daquela que
chamamos de grande (estabelecida) (p.28). Em outras palavras, estratégias como o uso das
micro-narrativas – isto é, dos mitos mostrou como a escritora operou agenciamentos
coletivos e a ramificação do individual no imediato político, a guerra, na qual indivíduos,
timas e sujeitos de sua própria história, compõem uma história maior. Em suas
ambivalências e deslocamentos, estes indivíduos tanto encenam quanto são encenados em
49
suas angústias e trajetórias particulares, relacionadas à história da família, da aldeia, do grupo
e da comunidade. Segundo os teóricos Deleuze e Guatarri (1977), o individual na “literatura
menor” mostra o imediato político porque “[...] O caso individual se torna mais necessário,
indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele”
(p.26).
A voz da intelectual, portanto, é ouvida, no âmbito da literatura, a partir de uma
construção textual que assume neros variados, como a memória de guerra e a narrativa
oral, perpassados, como já vimos, por contos, mitos, trechos de canções e provérbios, isto é,
elementos da cultura tradicional que são retramados” no contexto desta escrita literária. Estes
elementos, identificáveis da/na realidade, foram combinados e relacionados para a construção
de um enredo possível da nação moçambicana em construção. Também, como fonte de
elementos identificáveis da realidade para a elaboração da narrativa, lembramos a experiência
de Chiziane na guerra e as formas como esta experiência se fez presente em sua escrita tanto
como recomposição de dados da realidade quanto nas intromissões da voz autoral. Esta
funciona como testemunho, como voz da experiência daquele que, como o narrador de Walter
Benjamin, tem muito para contar. Em entrevista, Chiziane relembra episódios que de certa
forma foram retomados na feitura do romance:
Quando entrei no campo de refugiados vi uma mulher que parecia estar a fugir de
mim. Não lhe dei grande importância na altura, mas no dia seguinte, quando me vê,
volta a fugir e isso chamou-me a atenção, mas achei que talvez fosse um daqueles
traumas de guerra. Fiquei com vontade de saber porque é que ela fugia, fui à tenda
onde vivia e apanhei um susto maior. Disse-me: “Quando te vi chegar pensei que
estava a ver a minha filha a regressar da morte”. Ela estava grávida quando foi
massacrada. Vocês são muito parecidas”. Aquilo foi muito forte e a partir de então
estabeleci uma relação muito afectiva com ela, procurei saber como é que a filha se
chamava, que idade tinha... A história dela passou a ser minha história. Voltei da
missão, passaram-se meses, mas aquela imagem incomodava-se. Decidi escrever a
história da guerra a partir daquela mulher chamada Minosse, que é o personagem do
livro, e da filha, Wusheni. Esses são dois nomes verdadeiros que eu mantenho no
livro, numa espécie de homenagem a esta mulher que abalou o meu estado de
espírito. (GOMES, 13/11/ 1999)
Por outro lado, Ventos do apocalipse não pode ser visto como um simples relato de
guerra já que, ao trazer elementos identificáveis de realidade para a escrita literária, propôs
um enredo ficcional que se diferencia de um enredo histórico, como discutimos na primeira
parte do capítulo. Entretanto, Chiziane criou um enredo tico-histórico, como também
discutimos, e, assim, entregou ao público uma “refamiliarizaçãodo passado, bem como do
presente, numa escrita multifacetada por questões traumáticas e urgentes para a sociedade
moçambicana. Uma “refamiliarização”, todavia, que pode ser mais verossímil que a notícia
50
divulgada pela mídia, reconhecida como verdadeira”:
O jornal falou da mulher raptada, violada, assassinada. A televisão mostrou imagens
de uma criança chorando ao lado do cadáver da mãe que tinha a caba decepada. A
rádio falou da mulher a quem obrigaram a incendiar os filhos com as próprias mãos.
Ninguém falou da mulher que se apaixonou pelos olhos do assassino e fez do
inferno seu ninho de amor. O jornalista esqueceu-se de relatar o caso fantástico de
uma mulher que abraça apaixonadamente o homem que destruiu os seus
descendentes e geme de amor rebolando sobre as cinzas do filho que gerou. (p.252-
253)
Neste trecho, é possível perceber a acentuada presença da intelectual, que questiona a
inexistência de contra-discursos na mídia. O fato visto, noticiado, diz pouco, pois uma gama
de elementos que compõem a trajetória de Emelina, por exemplo, são desconsiderados pelo
noticiário. Ao interferir, a intelectual aponta para a riqueza do discurso literário que se faz
com os fios do real e do imaginário.
Com maestria, portanto, a escritora-intelectual, a partir da reconfiguração dos mitos,
encenou elementos da cultura tradicional em choque com as questões da contemporaneidade.
No seu processo de criação mobilizou estratégias diversas para trazer à tona algumas
possíveis realidades de sua nação em formação, que foram encenadas, estruturalmente, a
partir do diálogo entre os textos ticos e a História, bem como a partir das observações
feitas da realidade ou pelas suas percepções da realidade. Chiziane, produzindo uma escrita
em terceira-via sempre em distensão, faz de seu romance signo de sua cultura e dos terríveis
momentos de guerra por meio do agenciamento de vozes marginalizadas e silenciadas que no
âmbito da literatura ganharam força e que serão objeto de estudo no capítulo dois deste
trabalho, quando analisaremos mais detidamente como alguns elementos dessa escrita podem
ser configurados como vozes marginais, desestabilizadoras de uma narrativa de nação
homogênea, anônima e horizontal, ao encenar uma narrativa de nação conflitual e em
construção.
51
3 AS MARGENS DA NAÇÃO MODERNA EM VENTOS DO APOCALIPSE
“Não há uma margem branca, virgem, vazia, mas um outro texto, um tecido de diferenças de
forças sem nenhum centro de referência presente [...]”. (SANTIAGO, 1976, p.57)
Ao longo do primeiro capítulo, ao discutir a função do escritor-intelectual,
demonstramos como, por meio de suas produções, ele nos permite “vislumbrar” muitas das
questões enfrentadas por sua sociedade. Ao realizar essa discussão, mostramos também como
Paulina Chiziane, a nosso ver, cumpre o seu papel de escritora-intelectual: ao produzir uma
escrita, em especial em Ventos do apocalipse, que se come em deslocamento, a escritora
propõe reconfigurações de enunciados e enunciações, signos de sua sociedade convulsionada
Moçambique. Neste segundo capítulo pretendemos ampliar essa leitura mostrando como a
narrativa de Ventos nos permite perceber a nação moderna moçambicana sob a perspectiva
das margens, desassosegando as narrativas de fundação da nação moçambicana
aparentemente consolidadas e desafiando a sociedade a repensar seus paradigmas culturais.
Mas para examinar essa questão na obra duas outras se fazem pertinentes: quais
elementos na narrativa investigada nos possibilitam ver/pensar a nação moçambicana a
partir das margens? Qual a configuração das margens nesse romance?
Para iniciar nosso estudo é importante esclarecer que, ao utilizarmos o termo
“margem”, assumimo-lo na perspectiva de Derrida, apresentada por Silviano Santiago (1976)
no Glossário de Derrida: “A margem não é um além, o que prescreveria o limite. Não é, por
conseguinte, um “fora” (dehors) em oposição a um dentro” (dedans). O limite é violentado,
rasura-se, perde-se; [...]. O fora e o dentro se escrevem e não se separam” (p.57). A “margem”
nessa perspectiva se configura como violação do limite e é nessa perspectiva que
analisaremos as margens da nação em construção no romance, isto é, do ponto de vista dos
marginalizados, das minorias, que “violentam os limites” e, por isso, tornam-se elementos
fulcrais nessa narrativa de nação, ou melhor, nessa contra-narrativa de nação.
Em nossa “leitura” de Ventos do apocalipse entendemos que as minorias violentam as
margens porque se apresentam e/ou são apresentadas em deslocamentos, em conflito com
lugares e percepções estabelecidos pelo status quo vigente, tanto no mundo público quanto no
mundo privado, isto é, tanto relacionadas aos poderes do Estado que se constituiu no pós-
52
indepenncia, sob a aura de um discurso único, quanto aos poderes familiares e
comunitários. Para tanto, selecionamos três “elementos” que, em nossa leitura, fazem-se signo
exemplar dessa não em construção a partir das margens: a condição do refugiado, a
função do narrador no espaço da escrita e o papel da mulher, todos postos em processos de
deslocamento como procuraremos examinar.
Antes de passarmos à análise proposta, devemos esclarecer o sentido do conceito de
nação que privilegiaremos neste estudo. Benedict Anderson (1989), em sua obra Nação e
consciência nacional, defende que toda nação é
[...] imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais
conheceo a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer
ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua
comunhão. (ANDERSON, 1989, p.14)
Nesse sentido, o teórico nos leva a refletir sobre a existência de nações imaginadas
como comunidades poticas imaginadas sendo intrinsecamente limitadas e, ao mesmo tempo,
soberanas (2008, p. 32). Ao analisar o papel dos crioulos na formação da América Espanhola,
Anderson afirma que foram justamente as comunidades crioulas que desenvolveram, bem
antes da maior parte da Europa, concepções de sua nation-ness (ANDERSON, 1989, p.60).
Isto porque os crioulos em condição intermediária, sem serem nativos nem europeus, mas
mesmo assim funciorios da coroa deslocavam-se, a trabalho, pelo terririo e, em sua
peregrinação, constram seus laços de “irmandade”:
A última coisa que o funcionário quer é regressar à pátria; pois ele o tem pátria
com qualquer valor intrínseco. E mais: em sua rota espiral de ascensão, depara-se
com companheiros de peregrinação igualmente ansiosos, seus colegas funcionários,
oriundos de lugares e famílias de que pouco ouviu falar e que espera certamente
jamais ter de ver. Porém, com a experiência de tê-los como companheiros de
viagem, emerge uma consciência de conexão (“Por que estamos nós...aqui...juntos?),
sobretudo quando compartilham de uma única língua-de-Estado. (ANDERSON,
1989, p.66)
Conforme o teórico, o companheirismo entre eles não se baseava apenas num
determinado trecho da peregrinação, mas na fatalidade do nascimento: fora da Europa, na
América. A condição de excluído favoreceu a construção de um fator de identificação que os
uniu e alimentou o desejo de configuração de uma nação que os comportasse: a nation-ness.
Contudo, o teórico nos lembra que este grupo social não agregou os outros excluídos da terra:
negros e índios. Entretanto, analisar a formação da nation-ness a partir dos crioulos permite-
53
nos pensar a formação de uma nation-ness a partir do protagonismo dos refugiados dos
excluídos – encenados em Ventos do apocalipse, como analisaremos.
Homi Bhaba (2001), no texto DissemiNAÇÃO: tempo, narrativas e as margens da
nação moderna, discute o papel das narrativas das nações modernas na construção dos
discursos de nação. Em sua reflexão, afirma que essas narrativas devem ser “[…] uma forma
liminar de representação social, um espaço marcado internamente pela diferença cultural e por
histórias heterogêneas de povos em conflito, autoridades antagônicas e localizações culturais
em tensão” (p.543). Importante salientar que essa postura crítica põe em xeque uma vertente
de narrativa de nação que têm como objetivo silenciar as diferenças ou serem compreendidas
como um “[…] jogo de polaridade e de pluralidade no espaço homogêneo e vazio da
comunidade nacional” (BHABHA, 2001, p.559).
Segundo o teórico, “[o] discurso da minoria reconhece o estatuto da cultura nacional –
e do povo como espaço conflitual e performativo da perplexidade do viver em meio das
representações pedagógicas da vida” (BHABHA, 2001, p.554). Nesse sentido, consideramos
a reflexão de Bhabha como suporte fundamental para o nosso estudo, pois, em Ventos do
apocalipse, a narrativa de nação se constrói distante de um discurso binarista em que as
margens não são simplesmente: “o fora em oposição ao dentro”, mas sim um espaço
conflitual em que a “perplexidade do viver” se mostra tanto no enunciado como na
enunciação, produzindo um discurso heterogêneo e dissonante.
Portanto, para o estudo do romance na perspectiva das margens da nação moderna,
tanto a proposição de Anderson (1989) quanto à de Bhabha (2001) são fundamentais. Dos
estudos de Anderson nos interessa a constituição de nações a partir do lugar de exclusão,
como a dos crioulos na América Espanhola; de Bhabha, a reflexão sobre narrativas de nação
que encenam o povo como espaço conflitual. Dessa maneira, ambas as visões nos servem
como “chaves de leitura” para a análise do romance que, a nosso ver, pode ser lido como uma
metáfora da nação em construção. Nesse sentido, o conceito de nation-ness de Anderson
(1989) instrumentaliza a leitura do romance quando “lemos” nos refugiados uma condição
que alimentou um nação imaginada: o Monte. a reflexão de Bhabha (2001) fundamenta a
nossa análise quanto ao entendimento de Ventos do apocalipse como uma narrativa a
contrapelo, isto é, uma contra-narrativa de nação que não se encena uma nação harmônica. A
existência dos refugiados e a encenação de uma nação imaginada por eles rasuram o projeto
de nação posto em andamento pelo estado-nação socialista. Nesse sentido, os signos
selecionados a condição do refugiado, a função do narrador no espaço da escrita e o lugar
ocupado pela mulher mostram-se como “margens violentadoras” num espaço conflitual de
54
uma escrita que também pode ser lida como peregrina, ou seja, uma escrita que se constrói no
deslocamento: entre o espaço da escrita e da oralidade. Importante ressaltar que, nesse espaço
conflitual, podemos “ler” na coletividade refugiados tanto uma condição que alimentou a
construção de uma nação imaginada como a que nos possibilita entrar em contato com outras
margens, como a ocupada pela mulher na sociedade moçambicana tradicional, conforme
discutiremos neste capítulo, e o lugar do velho, num contexto “furioso”: o da guerra civil,
conforme examinaremos no terceiro capítulo. Salientamos, porém, que as questões espaciais,
em sentido próprio e figurado, são também encenadas no romance em constantes
ambivalências, o que nos parece mostrar “o caminhopercorrido pela nação em construção,
encenada na sua complexidade, heterogeneidade e conflituosidade.
3.1 Refugiado, condição para uma nação imaginada
Benedict Anderson (1989), ao conceber a nação como uma comunidade imaginada,
certifica-nos que o elo que une os membros desta dita comunidade não é natural, mas
construído, e não pode ser simplesmente circunscrito a qualquer (de)limitação geográfica,
lingüística, étnica e/ou cultural. Anderson, ao analisar a formação das nações na América
Espanhola, mostrou-nos como a “fatalidade” da exclusão serviu de amálgama entre os
crioulos. Seguindo esta linha, indagamos: como podemos “perceber” os refugiados de
Mananga, encenados no romance Ventos do apocalipse, como condição para uma nação
imaginada?
Chiziane, como escritora-intelectual, mostra-nos em seu contra-discurso de nação os
excluídos os maltrapilhos, os marginalizados, os refugiados que parecem corporificar a
moderna nação moçambicana em construção em pleno contexto de guerra civil. Estes
“marginais”, por sua vez, parecem romper com o lugar de exclusão, pois, na fatalidade da
guerra, passam a buscar um lugar/uma nação que os comporte. Salientamos, porém, que essa
escrita de nação, a partir dos refugiados, não apaga o lugar de conflito e tensão entre os povos
de diferentes origens. A tensão justamente mostra a complexidade desta sociedade e sinaliza
para a impossibilidade de construção de uma nação homogênea, como pretendido pelo Estado
socialista. Esse aspecto é fundamental, pois essa escrita de nação não se constrói na harmonia
55
e na horizontalidade, muito pelo contrário e, neste sentido, o agenciamento de uma voz
coletiva pela escritora-intelectual nos mostra esta questão:
Bem-vindos a Mananga diríamos nós, se boas vindas nos trouxessem. [...] Que tipo
de gente é capaz de abandonar a terra, os haveres, os túmulos dos antepassados por
temer um conflito? Eles deviam lutar e resistir, expulsar os invasores como fazem
todos os povos. São um bando de cobardes, sim, em vez de mostrarem o que valem,
preferem transferir os seus problemas para outra gente. A nossa terra está pobre,
não tem alimentos para dar os habitantes, como é que vai sustentar estes medricas
que nem conhecem a lição de gratidão? Estes renegados causam-nos prejuízos.
(p.109-110)
Entretanto, a guerra encenada no romance durou quase vinte anos, e, ao longo dos
anos, cada vez mais aldeias e povos se transformaram em refugiados. Os de Mananga, por
causa das ambições de Sianga, são atacados e nessa fatalidade se unem aos de Macuácua:
Os aldeões estão desorientados, mas os de Macuácua estão mais calmos e nem
choram. foram graduados na academia de sofrimento, passaram por situações
daquelas vezes sem conta antes de abandonar a aldeia natal. Dão a mão fraterna e
solidária, aos novos estagiários da mesma academia, esquecendo o ostracismo e as
hostilidades de que foram vítimas. Consolam. Amparam. Aconselham. (p.130)
Assim, os de Macuácua, distanciados, cada vez mais, de sua aldeia natal, reconstroem-
se na dor, em busca de um refúgio, tensionando, dessa forma, o lugar de exclusão, de apatia e
de morte instituído pelo Estado vigente em oposição aos rebeldes mantenedores da guerra
civil. Estes refugiados acabam por desafiar os limites da nação que não os comporta por meio
da resistência e da sobrevivência, reforçando um outro ideal de nação apresentado pelo
narrador que parece assumir a voz de uma coletividade:
Cessaram os choros. O terror cedeu o lugar à passividade e o povo deixa-se
conduzir como cordeiros para o último destino onde o princípio nem fim. As
lágrimas já não são líquidas, cristalizaram, riscam, sangram. Mas dizem que a vida
é bela do lado de lá. Dizem que o céu é mais azul e as nuvens verdadeiras. Do lado
de , a floresta é pasto, come-se pão de qualquer bananeira, de qualquer papaeira.
Dizem que cada arbusto é fonte, bebe-se seiva de palma, de cana e de caju. Do lado
de lá há sorrisos e risos e os cansaços repousam no regaço de terra dizem. (p.147)
Essa é a descrição do refúgio: um lugar paradisíaco. É esse lugar que alimenta o
imaginário do grupo que se forma. A guerra desloca os sentimentos que costuram
Moçambique como nação. Vivendo em espaços devastados pela guerra, o que existe é o
sonho de alcançar um lugar em que eles possam viver em paz e na abundância: o Monte.
Este aspecto do romance parece nos mostrar não só o conflito em si, a guerra civil, mas,
sobretudo, a nação conflitual que se conforma. Não possibilidade de existência de uma
56
nação homogênea e harmônica e sim de projetos de nação. O Monte parece ser um desses
projetos, o projeto desse grupo de refugiados que imagina uma nação que, talvez, possa
garantir laços identitários, baseados na solidariedade, mais sólidos.
Essas angústias e sonhos encenados no romance, representações possíveis da realidade
(ISER, 2001), remete-nos às afirmações de Said (2005) em que este ressalta ser em um
contexto conturbado e violento que o intelectual deve usar a sua voz para “desenterrar o que
estava esquecido” (p.35). É por este motivo que Ventos do apocalipse, constrói na contramão
dos discursos homogeneizadores, pois se constitui em uma narrativa que desenterra as
margens” esquecidas, violentando uma possível versão de nação coesa e expondo a oposição
entre governo e rebeldes. Nesse romance são os excluídos dessa relação opositiva que
ganham vez e voz, são eles, as margens, que violentam os limites impostos, que se encenam e
são encenados na busca de sua nação imaginada porque não são margens vazias!
Os estudiosos Akhil Gupta e James Ferguson (2000) em Mais além da “cultura”, ao
refletirem sobre a condição das nações modernas, levam-nos a entender que a nação não pode
ser compreendida, naturalmente, como ligações contínuas entre espaço, sociedade e cultura,
pois, vivemos sob a égide da descontinuidade, dos deslocamentos. Por conseguinte, não
podemos configurar as nações e as culturas como isomórficas. Essa concepção vem ao
encontro da escrita de nação apresentada em Ventos do apocalipse, em que os lugares a
sociedade e a cultura mostram-se, metaforicamente, minados como os seus campos, em
descontinuidades, deslocados tanto nos aspectos materiais como culturais. É por essa razão
que associamos à ótica de Anderson (1989), Bhabha (2001) e (2008) e Said (2004), (2005) e
(2007) a dos teóricos Akhil Gupta e James Ferguson (2000), pois consideramos que Chiziane,
como escritora-intelectual, usa sua voz para desenterrar o que estava esquecido” mostrando o
espaço, a sociedade e a cultura nos deslocamentos potencializados pela guerra. O modo como
o conflito é encenado sinaliza para descontinuidades de toda ordem como multies em
deslocamento perdendo suas referências comunirias, costumes e tradições desrepeitados em
nome da sobrevincia, crianças armadas , uma narração costurada com o cruzamento de
vozes:
Em Macuácua a guerra é quente, dizem. Fica distante de Mananga, mas não tão
distante, sendo necessário apenas uma manhã de marcha para chegar lá. Os que
escapam da guerra procuram refúgio, procuram sossego, seguem o mesmo trilho que
os cães quando estes farejam os caminhos com tranquilidade. Chegam a Mananga
em cardumes. Primeiro foi uma família, depois outra, e outra, agora são centenas.
Estão aglomerados como porcos no canto norte da aldeia. (p.109)
A jovem entristece de repente, baixa os olhos e chora envergonhada. A cabra o
57
pare no meio do rebanho. O semeador vê apenas a semente aberta, verde, viva
porque a terra oculta o cenário do nascimento. Homens estranhos viram a sua
tatuagem secreta, ficarão impotentes, estéreis. As crianças espreitaram o lugar onde
nasceram, crescerão surdas e mudas. (p.163)
O único elemento novo é que atacantes não passavam de puberdade. Não possuíam
fardamento de soldados edois, os que pareciam ser os chefes, é que tinham armas
de fogo. (p.168)
Todavia, a mesma guerra que disseminou a dor como os tentáculos de um polvo
gigante e potencializou as descontinuidades na nação moçambicana, como pudemos
observar, também serviu de elemento de coesão entre as suas vítimas:
Não razão para precipitação, irmãos de Mananga. De uma tempestade para a
outra há uma distância de calma e repouso. [...] Os de Mananga concordam,
escutam, são palavras sensatas. Aceitam a solidariedade dos antigos rivais e selam
uma fraternidade, um nó indestrutível. (p.130)
É nesse momento de desgraça comum compartilhando as conseqüências da guerra
civil que os de Mananga se unem ao povo de Macuácua, antes discriminados e relegados
[...] como porcos que sobreviviam no canto norte da aldeia” (p.109). Agora, os de Mananga
estão na mesma situação, são timas das atrocidades da guerra, foram atacados pelos
próprios irmãos Sianga e seus compassas e querem unir forças para fugir juntos como
relata o narrador:
O choque cede lugar ao medo que aconselha à prudência da fuga. Em todos os cantos
a conversa é a mesma: gente, vamos fugir para a aldeia do Monte, lugar de paz e
sossego onde a história da guerra é apenas um murmúrio desagradável. (p.119)
Por outro lado, as diferenças não se apagam nessa escrita à contrapelo, e os de
Mananga, mesmo somando forças com os de Macuácua, externalizam a relação conflitual nas
margens: Os de Macuácua estão sempre a dar opiniões, querem dominar-nos, o que é que
julgam que são? Estamos cansados dos seus doutorismos” (p.148).
Mas o destino os une e é a partir de um sonho em comum que o grupo passa a se
enxergar coeso, pois na mesma condição: tornam-se irmãos na exclusão, refugiados. A
proximidade entre vida e morte fica bem detalhada na descrição: Os corpos vivos marcham
sepulcros, como duendes, como sombras mortas” (p.148). Sombras mortas que [a]rrastam
consigo todos os haveres que lhes restam, para o novo mundo, para o recomeço da vida ou
para o prolongamento da agonia” (p.148). Mas o que lhes resta? O narrrador nos conta e a
intelectual denuncia:
58
As mãos trémulas rebuscam os utensílios sobreviventes nas palhotas incineradas.
Recolhem os restos dos cereais, a enxada, a bilha que o estalou nas chamas, a
metade da capulana e do cobertor que não queimaram, o cesto velho, a esteira e a
peneira, o colar de missanga, o último ornamento dos deuses que escapou. (p.129)
As sobras são poucas. Terra não se tem, a casa não se , a aldeia não existe.
apenas restos, migalhas, fragmentos: “A sociedade está desorientada, deambula nas trevas
da amargura [...] (p.130). E com estes restos, restos de si mesmos, povos diferentes
compartilham perdas semelhantes: as dores da guerra. É em meio a essa dor que se fortalece o
sonho de busca por um “novo mundo” – uma nação imaginada - “para o recomeço da vida ou
para o prolongamento da agonia”:
Os pés descalços galgam chão duro. [...]Ninguém olha para trás, todos desejam
esquecer o passado. Tão-pouco olham para frente. Reina a insegurança, o que haverá
à frente? [...] Os companheiros de viagem não trocam palavras banais nem
conversas de nada. Falar de nada é falar da vida. Nenhum dos peregrinos deseja
enfrentar a realidade. (p.148-149)
Porém, é preciso salientar que a concretização desse sonho, a peregrinação, é efetivada
em ambivalências: “[...] Ninguém olha para trás, todos desejam esquecer o passado. Tão-
pouco olham para frente (p.148-149)”. Essas ações são importantes para se compreender os
sentidos desse discurso de nação, pois elas nos permitem perceber a descrição da peregrinação
como uma estratégia da escritora-intelectual para mostrar as ambivalências possíveis na
busca de uma não imaginada neste contexto fratricida, nação que se constituirá nas
descontinuidades, na impossibilidade. Dessa forma, Chiziane, ao produzir esta narrativa, que
mostra a fuga dos “deslocados”, realiza uma escrita sobre o que Bhabha (2001) denomina
como “perplexidade do viver”.
Em Ventos do apocalipse são os “cadáveres” que ganham vida: “[...] mas o que são
eles senão cadáveres em movimento? (p.180). Como mortos-vivos, na ambivalência dos
zumbis, perambulam pelo país em busca de um lugar onde poderiam voltar à vida, fugindo
das atrocidades cometidas pelo Estado, que também tinha o propósito de construir uma nação,
em confronto com o(s) projeto(s) de nação dos “rebeldes”. Importante ressaltar que, segundo
a tradição vodu, zumbi é um ser humano a quem o sacerdote ou sacerdotisa roubou a alma
menor. Esse indivíduo perde o controle sobre o seu corpo, que passa a ser manejado como
um escravo pelo ladrão. Essa escravidão se mantém por causa do estado de transe
catapléptico – e o indivíduo é, por este motivo, reconhecido como um “morto-vivo”. É a partir
dessa compreensão que lemos a condição dos refugiados : “mortos-vivos”, pois tiveram suas
almas “roubadas” – palhotas, aldeia, familiares, pertences, machambas, costumes, rituais,
59
referências não por sacerdotes, mas pelos homens que alimentam a guerra fratricida. Deste
modo, os refugiados de Ventos do apocalipse passam a, metaforicamente, viver em estado
cataplético. Porém, ainda resta vida, vida que os impulsiona à sobrevivência, à esperança.
Nessa ambivalência do ser e do existir em um contexto convulsivo, peregrinam em busca do
paraíso perdido, de um lugar onde se possa estabelecer uma possível comunidade, uma
“nação” que os aceite como filhos que se construam como irmãos. Mas, será isto possível?
Os refugiados de Macuácua e Mananga não estão sozinhos nessa busca. Existem
centenas de outros grupos perambulando país afora, sem contar os que não sobreviveram: “Os
mortos recentes são fugitivos de outras aldeias que cometeram a imprudência de se banhar no
lago. A sede atraiu-os para a morte traidora, não estamos seguros aqui [...]” (p.170):
Em Bacodane, em Ncanhine, em Alto Changane, em todas as localidades o grito do
povo é de horror e de pavor. Por sua vez a cúpula da vila conferencia, é preciso fazer
alguma coisa pelo povo que morre porque se não for prestada ajuda urgente em
Manjacaze, não restará um homem. Contactam a administração da província que,
por sua vez, informa que não é ali que o povo morre. O alarme se ouve em
Mananga, em Macuácua, em Gilé, em Zob, em todas as parcelas do território. É
grave a hecatombe que caiu sobre a terra. Em todo o país o povo desesperado está de
joelhos, estende a mão pedindo esmola. (p.234)
A província de Gaza é uma das mais afetadas pela guerra e pela seca. É eleito o
distrito de Manjacaze como palco de operações desta zona do país. Aviões,
helicópteros, pairam no ar e pisam os solos inférteis para salvar vidas em perigo.
(p.237)
É neste clima de tensão, sofrimento e esperança que acontece o êxodo do povo de
Mananga e Macuácua, que, aos moldes do Êxodo blico, partem para a terra prometida, terra
de paz e abundância:
Disse ainda o Senhor: certamente, vi a aflição do meu povo, que está no Egito, e
ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe o sofrimento; por isso
desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma
terra boa e ampla, terra que mana leite e mel; (BÍBLIA,1993,p.53)
Como dito no primeiro capítulo, essa intertextualidade mais uma vez nos mostra
Ventos do Apocalipse como resultado de uma elaboração discursiva intervalar: entre mito e
história, escrita de nação constituída em um terceiro-espaço. Os povos de Mananga e
Macuácua são representações possíveis para os de Bacodane, Ncanhine, Alto Changane, Gilé,
Zobué, distrito de Manjacaze e muitos outros, que tamm foram expulsos do projeto de
nação em construção pelo Estado mantenedor da Revolução”.
Nesse sentido, a esperança da chegada ao paraíso pelo mantém o grupo unido e
alimenta o pouco de vida que resta nesses “cadáveres ambulantes”. Entretanto, estes
60
continuam convivendo com a ambivalência de sentimentos: ao mesmo tempo em que se
incomodam com o pressentimento de que esta é uma viagem perdida, sabem que é preciso
tentar! lhes resta essa chance de sobrevivência, e esta os anima a assumir o percurso
extenuante: “Dos sessenta e tal que partiram restam menos de quarenta. Sentem que é uma
viagem perdida, jamais chegarão. Em ninguém resta a vontade de caminhar, já não têm medo
da morte e todos suspiram por ela mas a maldita não lhes acode” (p.182-183). Todavia, ainda
sobreviventes e o der Sixpence o condutor do rebanho aos moldes de Moisés “[...]
cumpre com o seu juramento até as últimas conseqüências, embora sinta que conduz um
rebanho morto, sem possibilidade de salvação(p.183). Ressaltamos que os termos rebanho
e “salvação” nos mostram, reiteradamente, o Monte como uma possibilidade de ressurreição
dos peregrinos e, mesmo contrariando as evidências “sem possibilidade de salvação” eles
chegam e são recebidos com festa:São os viajantes involuntários, ó gente, gritam uns para os
outros enquanto abandonam os esconderijos” (p.185). São reconhecidos e auxiliados como
“viajantes involuntários” pelos irmãos que estão no Monte e que também já foram
“viajantes involuntários” (p.185).
Interessante notar que o desfile macabro que surge das trevasé recebido com festa
por outros que também já ocuparam esse lugar de trânsito, de perdas. Nesse sentido, é
importante retomamos as reflexões de Anderson (1989) quando diz sobre a importância do
companheirismo e da comunhão partilhada pelos que estão na mesma condição e como esses
sentimentos são capazes de alimentar o sonho de uma nação imaginada. Tal como
visualizamos no trecho abaixo, a “fraternidade” e a “solidariedade”, bem como a intenção
firme de se evitar a repetição das cenas de horror que todos guardam no pensamento,
fortalecem o lugar, isto é, o sentimento de pertença à uma possível comunidade/nação
imaginada, apresentada pelo narrador e encenada pela intelectual:
A aldeia inteira recebe-os e dá-lhes as boas-vindas. Por fraternidade. Por
solidariedade. Por compaixão. Por curiosidade. Por recordação dos momentos
atrozes que passaram, Deus sabe quando e como. Uns alargam os olhos na
esperança de descobrir entre os recém-chegados os familiares desaparecidos no
último ataque a aldeia natal. Outros esperavam ver de entre os homens o filho que
partiu para o combate há mais de três anos e jamais regressou. Outros não esperam
nada e nem ninguém, simplesmente assistem ao dilema. Choram. [...] Os
pensamentos de todos unem-se na recordação da mesma cena: homens fardados,
fogo ardente, estrondos. Homens matando, embora conscientes de que ceifando
vidas também se matam. Aldeias em chamas, colheitas incendiadas, usurpadas ou
perdidas, gente estripada, ferida, morta às centenas ou aos milhares, lágrimas, ruína,
deslocações, miséria. (p.185-186)
Como nos mostra o trecho, muitos que viviam no Monte também vieram de outros
61
lugares, de outras aldeias destrdas pela guerra e, ali, juntos, reconstroem suas vidas.
Compartilham dores e memórias, ruínas da guerra, ruínas de vidas: Choram por si e por tudo
aquilo que foi vida, porque, hoje nada o senão detritos de um temporal, restos
fragmentados daquilo a que ontem tiveram orgulho de chamar vida (p.185-186).
Homi Bhabha (2001), retomando Foucault, afirma que as narrativas de nação devem
mostrar a integração marginal dos indivíduos. Neste romance, e em especial neste trecho,
percebemos a voz da escritora-intelectual apresentando as angústias dos refugiados, dos
exilados, dos errantes da nação em construção, ou melhor, da nação construída na errância
pela integração de indivíduos marginalizados, pois, embora possamos ler o Monte como um
campo de refugiados, também podemos percebê-lo como concretização de uma nação
imaginada, de um possível abrigo para estes refugiados. Entretanto, essa concretização
também se mostra ambivalente. Num primeiro momento, pela voz do narrador, percebemos
que o lugar é constrdo por uma visão paradisíaca que motivou os refugiados e se
consolidou na ausência, na esperança, no deslocamento até a conquista:
Os viajantes abrem os olhos furtivamente. É um sonho doce, uma miragem
acústica, não pode ser outra coisa. [...] O céu desnuda-se com rapidez e tudo se
com maior clareza. Do lado sul, vejo um monte grande de areia, e sobre ela uma
aldeia de sonhos.[...] A aldeia está ali, monumento erguido sobre o Monte. A estrada
é linda assim a curvar, a subir e a descer toda ela serpenteada como o rio Changane.
(p.183)
Entretanto, depois da chegada ao Monte, ainda conduzidos pela voz do narrador,
também somos levados a conhecer a visão crítica dos peregrinos sobre o Monte, uma visão
desmistificada do paraíso
Sobre o solo do Monte cresce uma aldeia moribunda, disforme, sem estética nem
geometria. A aldeia do Monte é um monumento macabro, dramático. A vida dos
homens é inaceitável. Pesada. Deprimente. [...] Tem meia centena de cabanas
construídas à pressa, qualquer um as conta bem. Parecem pocilgas, parecem
galinheiras, são vulneveis ao vento, ao frio e à chuva. São paredes baixas feitas de
palha, apenas para preservar a intimidade do sono, nada mais. Outros cento e tal são
tendas de campanha para seis pessoas onde dormem dez ou mais. Ensardinhadas.
Desconfortadas. Esses abrigos são desumanizantes. (p.201)
Contudo, por estarem longe da guerra, ainda acreditam na concretização do sonho: À
parte a desgraça dos homens o lugar é aprazível, diga-se. [...] O Monte é um pedaço do céu.
Um paraíso acabado” (p.202). sabemos, porém, que o Monte não se configurará como um
pedaço do céu”, um paraíso acabado”, pois nessa contra-narrativa de nação os espaços
concretos e metafóricos se mostram em instabilidade constante, representação possível da
62
nação moçambicana em construção no armagedon da guerra. É justamente esta instabilidade
que impossibilita ao leitor uma compreensão harmônica dessa nação em construção, pois
todos os processos se constroem em convulsão/implosão, tendo a experiência da guerra como
medida/pametro para as demais vivências.
Por outro lado, a “romancista”, ao produzir esta textualidade de nação, impede que as
“margens” sejam apenas estatísticas de relatórios governamentais e/ou não-governamentais,
pois, no espaço da escrita ficcional, traz à cena uma possível nação imaginada, gestada a
partir das “margens”, com os paradoxos que esse processo implica. No espaço da escrita as
tensões não são apagadas e, nesse sentido, desmancham-se os lugares tradicionalmente
demarcados e configurados pelo gênero, poder e tradição. O papel do narrador é importante
para se compreender esse desmanche operado na enunciação do romance, ao mesmo tempo
em que se configura como lugar de resistência.
3.2 O narrador-contador, uma voz marginal
Em Ventos do apocalipse, Chiziane também mostra os conflitos que se efetivam no
espaço da ngua literária em Moçambique, herdeira do sistema de poder implantado pela
metrópole portuguesa até fins do século XX e mantido pelo Estado independente. A
reconfiguração desse espaço de poder se concretiza, no nosso entendimento, com a
ressignificação da língua literária, que coloca em xeque o lugar de subalternidade das
minorias” no pós-colonial, tanto no nível do enunciado quanto no da enunciação.
No vel do enunciado, como vimos no primeiro capítulo, a escritora-intelectual
legitima processos de desterritorialização na escrita do texto quando tece ramificações dos
conflitos individuais no imediato potico bem como quando realiza o agenciamento coletivo
na enunciação ao trazer para a arquitetura discursiva do seu romance três contos ticos, que
podem ser lidos como signos de uma tradição coletiva marginalizada. Já no processo de
enunciação, como veremos neste capítulo com mais profundidade, a desterritorialização da
escrita é motivada pela convocação/evocação de elementos da oralidade, os quais propiciam a
reterritorialização da língua literária. Nesse movimento expõe-se um registro literário
fortemente oralizado e delineia-se um outro espaço de enunciação, ocupado pelas minorias,
que, por meio da reconfiguração do narrador, rasuram o “modelo ocidental de escrita” e, ao
63
apresentar uma estética própria de narrar, assumem-se como margem violentadora.
Esta operação, porém, não se dá de maneira tranila. Em entrevista a Chabal (1994) a
escritora-intelectual, ao ressaltar a força da oralidade em sua escrita, também salienta as
dificuldades que enfrenta para elaborar o universo cultural, bem como o imaginário de sua
cultura, na língua européia:
Posso dizer que a oralidade é o elo mais forte da minha escrita. Para mim a oralidade
mais dinâmica à palavra. Não gosto da palavra escrita que não se pode “ouvir”.
Para mim essa história de ser bilingue, ou trilingue, ter uma cultura africana e
escrever numa língua européia é um grande dilema. Porque, muitas idéias, que eu
tenho, as idéias mais belas e mais profundas, tenho-as na língua em que as coisas me
foram contadas ou em que certas ações realizadas, tratando-as de fatos reais. Os
momentos mais sagrados da minha vida ou da vida de qualquer indivíduo só podem
ser expressos na língua que aprendemos desde o primeiro momento. Para os meus
filhos será talvez o português. Mas para mim? Nem uma expressão de amor, nem
uma expressão de amargura, nada que se pareça, não pode ser em português.
(CHABAL, 1994, p.300)
Entretanto, mesmo assumindo toda a dificuldade do processo de criação na língua do
outro, a escritora não se intimida face ao desafio, pois também sabe da importância de se
escrever em uma linguagem própria “sobre as coisas de sua África”. Sua natural vivência em
uma “língua primeira” torna mais difícil a obrigação de escrever numa língua européia”, mas
o que fazer? A escritora procura responder à pergunta: “Eu não quero escrever em português,
o estou interessada em ser uma escritora de língua portuguesa, estou interessada em ser
uma escritora africana de expressão portuguesa (CHABAL,1994,p.300). Este
posicionamento é ratificado em outra fala:
Ao querer ser uma escritora africana de expressão portuguesa eu tenho esses
problemas, porque eu não consigo traduzir diretamente as coisas como elas são para
uma outra ngua sem ser a minha. Tenho que recriar a ngua, e neste processo de
recriação muitos valores se perdem. Mas o que é que eu posso fazer? (CHABAL,
1994, p.300)
Assim, a romancista, como escritora-intelectual, consciente de seu projeto literário e
dos desafios que precisa enfrentar para produzir uma escrita de “expressão portuguesa”,
mobiliza elementos próprios de sua cultura, elementos marginalizados pelo sistema literário
“maior” e os recria em Ventos do apocalipse em um ambiente de “contação de histórias”.
Como se vem considerando até então, essa recorrência à oralidade constitui uma estratégia
narrativa de grande efeito na produção de uma literatura que nasce do desarranjo da ngua
oficial do seu país, e que, na própria narrativa, assume, de forma conflituosa, como a própria
escritora ressalta, os (re)arranjos metafóricos da nação moçambicana em construção.
64
Neste sentido, a fabulação/estória/texto é construído com a presença de um narrador
que dialoga com as vozes da tradição e que, desde o Prólogo, concretiza uma enunciação
intervalar, pois intercambia-se entre “oficial” e o tradicional”, entre o modelo de narrativa
escrito, próprio da cultura ocidental, e um modelo de narrativa oral, próprio das comunidades
tradicionais moçambicanas. A recorrência aos mitos, como analisamos ao longo do
primeiro capítulo desta dissertação, bem como aos ditados, profecias, poemas, orações e
cantos, compõem o repertório de um narrador que se configura como um “contador de
histórias”. Reveja a conclamação feita pelo narrador aos leitores/ouvintes à cena da
contação/narração:
Vinde todos e ouvi
Vinde todos com as vossas mulheres e ouvi a chamada.
Não quereis a nova música de timbila que me vem do coração? Gomucomu,1943.
(p.14)
Desde o Prólogo, como podemos constatar, o narrador abre espaço para um leitor
diferenciado, para um leitor-ouvinte ou leitor-espectador, como ressalta Terezinha Taborda
Moreira (2005). Esse narrador, ao iniciar a contação com essa espécie modelar de convite,
confirma um modo ritualizado do “como se fosse” (ISER, 2001) ao redor da fogueira, aos
moldes do espaço da contação/narração tradicionais:
Escutai os lamentos que me saem da alma. Vinde, sentai-vos no sangue das ervas
que escorre pelos montes, vinde escutai repousando os corpos cansados debaixo da
figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados. Quero contar-vos
histórias antigas, do presente e do futuro porque tenho todas as idades e ainda sou
mais novo que todos os filhos e netos que hão-de nascer. Eu sou o destino. A vida
germinou, floriu e chegamos ao fim do ciclo. Os cajueiros estão carregados de fruta
madura, é época de vindima, escutai os lamentos que me saem da alma,
KARINGANA WA KARINAGANA. (p.15)
Os tempos verbais, no imperativo e no presente do indicativo, demonstram o poder
desta fala e a força da tradição num tom de transmissão de conhecimento em que o narrador
enuncia: [vou contar] os lamentos que me saem da alma” (p.15). Ressaltamos que esses
lamentos dizem respeito ao momento em que os convidados o se assentar sobre “o sangue
das ervas que escorre pelos montes”. Neste trecho, a voz da intelectual parece se impor à voz
do narrador a partir dos recursos mobilizados pela escrita e, em uma atmosfera de “Karingana
Wa Karingana”, faz-se a abertura de uma contação de história/estória. Interessante notar que o
leitor-ouvinte é informado de que a voz do contador é onipresente: sabe do passado, do
presente e do futuro aos moldes dos sábios contadores de histórias/estórias que, com sua
65
experiência, contam/narram a(s) história/estória(s) e a(s) memória(s) do povo. Salientamos,
porém, que é em um contexto conturbado o da guerra civil e de (re)construção da nação
moçambicana que sua voz se produz: “vinde escutai repousando os corpos cansados
debaixo da figueira enlutada que derrama lágrimas pelos filhos abortados”. Permitindo que na
voz do narrador esteja a do contador tradicional, Chiziane, em uma atitude engajada”, recria
o lugar do tradicional contador de histórias/estórias e produz uma contra-narrativa de nação
usando o espaço da escrita como lugar de sobrevivência e resistência.
Terezinha Taborda Moreira (2005), em sua obra O vão da voz, ao estudar a figura do
narrador em textos literários de escritores moçambicanos como Luís Bernardo Honwana, Mia
Couto, Suleiman Cassamo, José Craveirinha, Ungulani ba ka Khosa e Paulina Chiziane,
discute como a presença da oralidade assinala um certo “jeito de contar” e “um certo jeito de
escutar” se configurando com elemento constitutivo de uma “potência discursiva” dessa
literatura. Este narrador/contador, que instala um ambiente de escuta, pode ser configurado
como de “perfil performático”, aquele que, segundo Moreira, articula voz, letra e gesto,
elementos de uma performance. A estudiosa compreende esse processo como
[...] um processo de substituição ao ato de contar histórias das sociedades
tradicionais e, simultaneamente, como ato de inscrição, no texto escrito, de um
“certo jeito de contar” que se coloca como um traço de oralidade. (MOREIRA,
2005, p.24)
A mesma, ao analisar a figura do narrador em Ventos do apocalipse, entende que ele
se configura como de “perfil performático”, pois mostra na escrita um gestual próprio de um
contador de histórias, como por exemplo, em suas interlocuções. A narração, ao mesmo tempo
que contextualiza o leitor-ouvinte, orienta-o ao longo de toda a narração-contação:
fora, a Lua pinta de prata a noite silenciosa e fria. A calma é quebrada pelo coro
dos mochos e morcegos, bichos de mau agouro. É o prelúdio da desgraça, a
procissão vai no adro. (p.45)
Está quase tudo preparado, a seca já abriu clareiras em todos os bosques para que o
segundo cavaleiro faça uma aterragem triunfal na hora. Os homens trabalham de
sol a sol no preparo da grande ceifa; faltam poucos instantes, é hora de cavarmos
as nossas sepulturas, yô! (p.55)
A canção da colheita diz que cada dia tem a sua história. E tem, é verdade. A
canção da amargura tem um coro de esperança. O coro de esperança diz que depois
da tormenta vem a bonança com liberdade e paz. Liberdade para amar, liberdade
para viver. Mas a liberdade está longe, porque a dor alcançou os cantos do universo.
(p.203)
Por meio das imagens produzidas e pela anunciação dos tempos apocalípticos, ao
66
longo de toda narrativa, como se /ouve no trechos acima, o narrador-contador tanto “instala”
o seu leitor-ouvinte no “como se fosseao redor de uma fogueira, ambiente de contação de
história/estórias, como confirma sua presença, seu controle sobre a contação, recursos
próprios dos contadores tradicionais. Esse narrador-contador também mobiliza outros
recursos, de forma quase pedagógica, para chamar a atenção do seu leitor-espectador. Veja-se,
por exemplo, a intercalação de um poema na narrativa como forma de fechar o processo de
ensinamento:
O povo de Mananga não teme a morte, mas ama a vida e não quer perdê-la. A vida
é a dádiva mais sagrada de todos os seres. No momento da agonia ou da alegria
mais nos aconchegamos a ela sussurrando-lhe ao ouvido este belo poema:
Vida
apesar das amarguras
eu amo-te
com as tuas delícias e malícias
adoro-te. (p.96)
Essa “potência discursiva” pode ser considerada uma força violentadora que, em
Ventos do apocalipse, faz-se signo da moderna nação em construção. Mas, para compreender
essa potência discursiva, é preciso avançar na compreensão do papel do narrador nessas
culturas tradicionais. Paulina Chiziane, ao falar de suas origens, relatou a importância do
ritual de contação de histórias/estórias ao redor das fogueiras nas zonas rurais de
Moçambique, bem como a força deste costume tradicional no meio urbano do país. Amadou
Hampaté
8
, estudioso das culturas tradicionais africanas, também refere-se a esse costume
no texto, A Tradição viva (1980), ao definir os sentidos de tradição para as culturas
africanas:
Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à tradição
oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos te
validade a menos que se apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie,
pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos
séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de
grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África.
(HAMPA BÂ, 1980, p.181)
A oralidade é, portanto, marca da tradição, responsável pela transmissão do
8
Amadou Hampâté Bâ, desde muito cedo, aprendeu a ouvir, a guardar, a preservar e a divulgar os valores de seu
povo. Marcado por uma formação holística, nos moldes africanos, ao longo de sua vida dedicou-se à coleta e ao
registro de narrativas e vivências dos povos das savanas. Deste modo, configurou-se um mestre da transmissão
oral e especialista no estudo dessas sociedades, um verdadeiro historiador malinque (do Mali), que contribuiu
para a divulgação e valorização das histórias de seu povo e de sua África. (cf. HAMPATÉ BÂ, 2003)
67
conhecimento; é o agente mantenedor da memória, da história, responsável pela coesão e
sentido de um grupo, de uma sociedade. Conforme Hampaté Bâ, o contador de
histórias/estórias é uma testemunha viva de um acontecimento e por isso, de uma certa forma,
o ser contador “mora” em todo africano:
Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como
aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-
se testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, acerto ponto, um
contador de histórias. (HAMPA, 1980, p.215)
Entretanto, o seu estudo, ao mesmo tempo em que apresenta ao “ocidente” um
aspecto fundamental da cultura africana, alerta para o desaparecimento desse pilar cultural,
acelerado pelas consequências da primeira guerra mundial. Em sua visão: O grande
problema da África tradicional é, em verdade, o da ruptura da transmissão (HAMPA,
1980, p.217). Todavia, o estudioso malinês nos informa que
[...] de um tempo para , uma importante parcela da juventude culta vem sentindo
cada vez mais a necessidade de se voltar às tradições ancestrais e de resgatar seus
valores fundamentais, a fim de reecontrar suas próprias raízes [...]. (HAMPA
, 1980, p.217)
Nesse sentido, Ventos do apocalipse parece confirmar a percepção de Hampaté Bâ, já
que Paulina Chiziane mobiliza no espaço da literatura, espaço intervalar entre a ficção e a
História, a escrita e a oralidade elementos tradicionais de sua cultura para narrar a sua
nação. Entretanto, ela não o faz ao modo do historiador, mas sim como uma escritora-
intelectual que, em sua própria escrita, por meio dos enunciados e da enunciação
reterritorializa esses elementos, isto é, reconfigura-os.
Outro teórico que nos ajuda a pensar aspectos relacionados ao papel do narrador é
Walter Benjamim (1994), especialmente em O narrador: considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov. No contexto de pós-primeira Guerra Mundial, marcado pela reformulação das
técnicas produtivas e pelo fortalecimento do espaço privado, o teórico discute a função do
narrador tradicional e o porquê de sua extinção na Europa. É interessante notar que, em
contextos culturais diferentes, a mesma questão é colocada por estudiosos com formação e
origens diferentes, mas com a mesma preocupação: discutir a importância do narrador, e
conseqüentemente, do ato de narrar, como elemento de coesão e de transmissão de
conhecimentos. Benjamin (1994), em seu estudo, analisa a presença do narrador – o contador
de histórias ligado ao povo na obra de Nikolai Leskov e salienta: “São cada vez mais raras
68
as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre
alguma coisa, o embaraço se generaliza (BENJAMIN, 1994, p.198). Depreende-se das
colocações de Benjamin que o narrar é a capacidade de comunicar experiências e uma
sociedade que perde esta capacidade deixa de trocar experiências. O teórico considera que a
narração
[...] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática,
seja num provébio ou numa norma de vida de qualquer maneira, o narrador é um
homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p.200)
Para Benjamin (1994), o narrador que dá conselhos não é aquele que dá respostas, mas
sim o que “faz uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada”(1994). A narrativa, segundo Benjamim, é uma arte artesanal de comunicação que
[...] não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma
informação ou um relatório. Ela megulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a
mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p.205)
A compreensão de Benjamin (1994) sobre o papel do narrador difere um pouco do
entendimento das sociedades africanas tradicionais, como nos expõe Hampaté (1980).
Contudo, a partir destas posturas teóricas, temos condições de avaliar o porquê desses
aspectos serem considerados elementos fulcrais na contra-narrativa de nação de Chiziane. Ao
destacarmos o papel do narrador tradicional nas comunidades e sua função social, somos
capazes de dimensionar como as experiências eram passadas”, como as memórias de uma
sociedade eram construídas e, ao mesmo tempo, mensurar os prejuízos advindos da perda
dessa capacidade, aspectos que discutiremos no próximo capítulo desta dissertação.
No entanto, é nesse contexto conturbado, de perdas, que ouvimos” pela “boca” de
uma narrador diferenciado um narrador-performático criado em Ventos do apocalipse,
representações possíveis de experiências de um povo. Neste “como se”, ouvimos a
transmissão de experências por um narrador comunitário.
Nesta narrativa, “[a] presença da textualidade oral e de algumas formas de
transmissão, como vimos, instala na narração o acontecimento de uma voz no ato rituastico
da performance oral das narrativas” (MOREIRA, 2005, p.22) recriando o poder” e o espaço
do narrador na escrita. Moreira nos explica ainda que a voz instalada na escrita não deve ser
confundida com a fala e sim “[...]depreendida de dentro do universo de sentido do texto [...]”
(MOREIRA, 2005, p.22). Esse processo, segundo a estudiosa, traduz/transcria as formas da
69
tradição oral no texto narrativo. Importante notar que o “narrador-performático” deve ser visto
como uma instância híbrida, uma terceira-via, já que assume a legitimidade do narrar e
recupera a instância da contação no texto literário.
Tomando como ponto de partida esta compreensão, também podemos considerar a
criação deste narrador em Ventos do apocalipse como elemento legitimador de uma
“literatura menorno sentido dado por Deleuze e Guatarri (1977), pois a escritora-intelectual
faz da “língua maior” espaço da minoria, da oralidade, ao fazer do narrador uma instância
capaz de imbricar escrita e fala. Esse narrador híbrido demonstra, a nosso ver, a preocupação
da escritora-intelectual, em fazer do romance um lócus de narração transfigurado pela
oralidade. Uma narrativa rasurada por elementos que comem a cultura das minorias
marginalizadas, as margens da nação moderna. Essa estratégia parece nos mostrar a
enunciação de uma nação intervalar, pois, ao fazer nascer um narrador na intersecção entre a
escrita e a oralidade, a escritora-intelectual permite que a narração se construa em terceira-via.
Deste modo, o contador de histórias/estórias, figura emblemática das sociedades tradicionais,
é recuperado por estratégias que permitem a intersecção entre voz e letra, como lemos neste
romance. Essa escrita, portanto, torna-se, a nosso ver, um espaço-signo da nação em
construção, nação que se constrói no intervalo, no entre-lugar, pois rasura o espaço da escrita
para dizer ao público das questões atinentes à sua cultura de uma maneira própria, com uma
narrativa própria, com um “narrador próprio”.
3.3 Minosse, outra margem violentadora
Inocência Mata (2007), no artigo Mulheres de África no espaço da escrita: a
inscrição da mulher na sua diferença, investiga o lugar ocupado pelas mulheres escritoras nos
sistemas literários dos países africanos de ngua portuguesa e como aquelas “[...] se foram
posicionando ao longo dos tempos em relação a questões nacionais e específicas, locais e
universais” (2007, p.422). Nesse sentido, a estudiosa salienta a importância em perceber
[...] a trajetória literária de mulheres cuja produção não apenas teve um papel
fundamental na construção de um imaginário de resistência fundacional das diversas
nacionalidades, ainda quando a escrita literária era subsidiária da construção da
nação política e cultural, como na transformação desse sistema no período pós-
colonial. (MATA, 2007, p.422)
70
A estudiosa nos diz que parte das escritoras teve papel fundamental na transformação
do sistema literário no período pós-colonial. Nesse rol de escritoras estudado por Mata (2007)
inclui-se Chiziane que, segundo a teórica, “[...] actualiza um discurso que inclui o
questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito que é
‘silenciado’, tendo como intuito apelar à mulher moçambicana para uma mudança
consciencializada” (MATA, 2007, p.437).
Porém, a nosso ver, Chiziane, como escritora-intelectual, na construção da
personagem Minosse em Ventos do apocalipse, vai além do simples “apelo à
consciencialização”, uma vez que nos possibilita compreendê-la tanto como metonímia da
condição da mulher moçambicana como signo da nação em construção. Minosse, nos seus
múltiplos papéis e identidades mulher, esposa lobolada
9
, mãe, aldeã, viúva, anciã, avó,
refugiada faz-se mostra das ambivalências tanto da mulher quanto da nação. Ressaltamos,
porém que, como mulher, assume tanto a simbologia da terra-mãe quanto da terra violentada e
violentadora, como veremos.
Na primeira parte do romance, entramos em contato com Minosse, que, na esfera
privada, convive com o seu esposo e seus filhos, Wusheni e Manuna, e, na esfera pública,
com os demais da aldeia de Mananga. A aldeia pode ser lida como metomia da nação
moçambicana, uma vez que a maior parte da população moçambicana no século XX ainda
vivia no mundo rural. Logo na abertura do romance, em uma situação cotidiana, ao ser
requesitada pelo esposo: - Minosse, Minosse wê? (p.27)”, “ouvimos” pela “boca” do
narrador, sabedor de todos os tempos e detalhes, acerca de seu comportamento:
Ela desperta. A chamada repete-se e ela tapa os ouvidos. Abandona a cama. Espreita
o marido pelas fendas das paredes decaídas. Vê, nas proximidades, um bando de
rapazes movimentando-se rápido de cabeças erguidas ao céu, saraivando fisgadas
contra um bando de ssaros em pleno voo. [...] Agora o lema é: aquilo que não te
come, come-o tu. (p.27)
É pela fala do narrador que sabemos que Minosse tapa os ouvidos” para não escutar a
intimação do marido e, por extensão, do poder patriarcal. Em uma atitude de resistência
demonstra não querer escutar a ordem que virá da boca de Sianga. Entretanto, sabemos que,
como mulher, esposa e mãe, ela deve respeito aos valores patriarcais, apresentados nessa
contra-narrativa sempre em deslocamento. Neste trecho também se pode ouvir a voz da
9
O lobolo é um costume tradicional moçambicano em que o pai da noiva recebe do noivo um determinado valor
pelo casamento negociado.
71
escritora-intelectual, a transformar um enunciado que registra a carência do lugar em uma
espécie de provérbio: “come-se de tudo para sobreviver”.
Como boa esposa, Minosse tem que responder ao chamado do marido. Deve se
levantar imediatamente e ir ao seu encontro, mas “[...] sai da palhota simulando passos
apressados” (p.27). O narrador que tudo vê e conta destaca a dissimulação da mulher, que
disfarça, finge e camufla. Mas é a intelectual que aponta possíveis estratégias de resistência
feminina nessa sociedade patriarcal ainda vigente. Minosse, assim apresentada, parece
sinalizar uma rasura com a tradição: deve atender ao marido, mas não o fará nos seus termos,
por isso finge passos rápidos! O narrador complementa: “Esposa dos velhos tempos ainda
preserva as tradições e o respeito dos antigos. Aproxima-se do marido, faz uma vénia,
ajoelha-se solenemente, de olhos fitos no chão” (p.27). A mesma esposa que tapa os ouvidos e
finge passos apressados é a que se ajoelha diante do marido. Esse comportamento
ambivalente mostra o lugar ocupado pelas mulheres nessa contra-narrativa de nação.
Historicamente silenciadas pelo poder patriarcal, elas emergem nesta escrita com a força que
é própria das margens segundo o conceito derridiano.
Num contexto de seca, fome e guerra, Minosse, insatisfeita com o marido e com a
opressão da tradição, exclama:
- Espantoso! Como te transformaste num miserável! Dizias-te filho e ministro
principal de Zuze, o grande espírito. Dizias que reinavas nas montanhas do sol-
posto, que dançavas sobre os escombros dos homens e do demônio seu servo.
Mentiroso sem vergonha. Amedrontavas o povo para roubar-lhe os poucos bens que
produzia. Para onde foi o teu poder, desgraçado? (p.29-30)
Neste trecho, através da voz da própria personagem, ouvimos a denúncia e o desabafo
de uma mulher / esposa que tem um ponto de vista crítico sobre a postura do marido – o velho
Sianga. Este, no período colonial, ocupava o lugar de régulo
10
, prestando serviços à
metrópole; agora, em tempos de independência e guerra civil, não encontra o seu lugar, não
tem mais lugar, é somente mais um deslocado! Minosse revela, da “margem”, como o
homem, seu marido, usava das crenças tradicionais para se manter no poder no período
colonial. Mas agora não. Agora, ele também é um marginal. Este trecho não nos mostra
apenas a revolta de uma esposa, mas, sobretudo, o conhecimento e a criticidade da voz
10
Os régulos, reis ou chefes locais existiam como uma função determinada pela tradição africana que é
anterior à chegada dos colonizadores. Muitas vezes os colonizadores faziam comércio e pactos com os régulos e
os transformavam em aliados porque tinham interesse em que eles, - porque dominavam os habitantes de sua
aldeia - pudessem ser importantes aliados principalmente no comércio de produtos e escravos. Porém, com a
independência, a estrutura administrativa do Estado emergente destituiu estas autoridades e indicou Secretários
do governo para a administração local, fato que causou muitas revoltas e resistências.
72
marginal. Da voz que conhece das questões políticas públicas por meio do seu mundo
privado, aparentemente distanciado do poder. Entretanto, diferentemente de Minosse, Sianga,
mesmo ocupando um lugar marginal nos novos tempos velho, aldeão, “desprotegido” –não
tem um olhar crítico sobre as leis da tradição. Por quê? Ora, mesmo nessa sociedade
convulsionada, Sianga ainda ocupa um lugar de prestígio, o lugar do homem, diferentemente
da mulher. Portanto, essas duas personagens, ao nos mostrar lugares marginais, mostram-nos,
também, as margens em conflito.
Importante ressaltar que nessa escrita ambivalente da nação, em que os tempos se
encontram e desencontram, leremos/ouviremos que o velho Sianga, no presente, usa
novamente das crenças tradicionais para “manipular” o povo de Mananga. Nesse sentido,
ressaltamos a postura crítica da escritora-intelectual, que, ao trazer à cena em Ventos dos
apocalipse o ritual do Mbelele reconfigurado, tece as relações de poder mobilizadas pela
tradição, como discutiremos no capítulo três.
Como já dissemos, Minosse, mulher lobolada: - Ah, maldita. Gastei as minhas vacas
comprando-te, mulher preguiçosa e sem respeito (p.28), mesmo “moldada pela tradição
patriarcal não se limita a seus “contornos” e questiona a permanência da prática deste costume
quando Sianga expressa a vontade de lobolar a própria filha:
- A velhice enlouquece-te, Sianga, pai de Manuna.
- Não, não estou louco. Tu eras assim como ela: bonita, meiga, agradável. Mas como
é que só agora descobri isso? Já é tão tarde. Casaremos nossa filha com um homem de
bem, um homem com fortuna.
- Mas esse homem de onde virá, pai de Manuna?
- Não sei, mulher, mas pela Wusheni vou cobrar umas boas dúzias de vacas é que
vou. Ah! Lembrei-me do Muianga. Ele tem o curral cheio, ah, isso tem. Dos bois dele
vou comer bem e uma boa parte passará para o nosso curral, mulher, faremos um bom
negócio.
- O Muianga? Estás louco de verdade. Esse homem está mais velho que um cadáver,
que felicidade poderá dar à nossa filha, Deus do céu?
- Estás a chorar? Por mais que chores, digo-te, esse lobolo será feito e Wusheni será a
quinta esposa desse velho e, com o dinheiro que ele trouxer, irei lobolar outra mulher
mais jovem e mais bela que tu, minha velha, verás. (p.73)
O primeiro aspecto que gostaríamos de salientar no trecho é a sua forma/estrutura
dialógica. Nas sociedades tradicionais moçambicanas, determinados assuntos, como o lobolo
costume tradicional – não deveriam ser questionados, muito menos pela mulher, sujeito que
deveria assumir sua condão de subalternidade. Mas, nessa narrativa a contrapelo, a voz da
mulher/esposa/mãe irrompe e questiona o marido, contrariando os costumes, em um
deslizamento próprio que tanto rasura o projeto de nação implantado pelo Estado ao mostrar
73
a força das margens, quanto mostra as contradições e ambivalências da tradição e dos
costumes nas próprias margens.
No diálogo, fica evidente que a mãe preocupa-se com a felicidade da filha, não com
os “ganhos” em decorrência do “negócio”. o esposo, almeja os lucros com a negociação,
inclusive, com outros casamentos que poderá contrair, perpetuando a prática do lobolo.
Importante ressaltar que este costume, bem como outros, foram proibidos pelo Estado laico
que emergiu no pós-independência. Entretanto, esta escrita de nação traz para o palco práticas
e costumes que conformavam o universo cultural das comunidades rurais, sem se esquecer de
encená-lo no espaço da resistência e do questionamento. Neste trecho podemos tomar
Minosse como metonímia de uma nação convulsa, a questionar práticas tradicionais como o
lobolo a partir do objeto que se faz sujeito, a mulher, uma vez que a proibição do Estado a
este costume, por si, é inócua. Também, é interessante notar que Minosse, representante de
uma coletividade, questiona o marido e a negociação, mas não obtém sucesso: [...] quis
argumentar mas a aproximação da filha eliminou os seus intentos” (p.73). Porém, mais tarde,
a filha, herdeira das angústias de sua mãe, e, portanto, de toda a coletividade feminina, em
uma atitude de resistência ao pré-estabelecido pelo pai, isto é, pela tradição, responde à
imposição: - Pai, eu nunca viverei com esse homem” (p.82). Por outro lado, sua mãe, “[...]
está triste, mas satisfeita. A idéia de ver a filha casada com aquele fardo velho repugnava-lhe”
(p.84). Interessante salientar a ambivalência do comportamento de Minosse nesta situação:
triste, mas satisfeita”. Esse cruzamento de sentimentos também nos serve como imagem para
a condão intervalar dessa contra-narrativa de nação, que se constrói entre as permanências
e mudanças sob os escombros de uma guerra, sob um novo tempo em construção. Ainda é
preciso salientar que esse “novo tempogestado por Minosse e concretizado por sua filha
mostra a dialética do tempo, da memória e da História, distante de uma leitura de mundo
binarista e linear. “O apelo à consciencialização ocorre tanto a partir de quem vive a
experiência do lobolo, da suposta subalternidade, quanto da jovem que não aceita que sua
vida seja oprimida pelo costume. Entretanto, é imprescindível lembrar que a escritora-
intelectual explicita, por meio da fala de Sianga, a submissão de parte das mulheres à prática
tradicional:
– Irmã Rosi, tu entendes esse ofício. Trata de convencer essa cabra enquanto tomo
um pouco de rapé. [...] A tia esforça-se por ganhar a parte da recompensa que lhe
caberá no desfecho do caso. As esposas do Júlio e André desempenharam bem o
seu papel e só a velha Minosse é que permanece muda. (p.83)
74
A voz da personagem é habitada pela voz da escritora-intelectual que, a contrapelo,
usa o espaço da escrita tanto para denunciar práticas opressoras da cultura patriarcal
tradicional e possíveis resistências, como também para mostrar a sobrevivência de costumes
arraigados que têm respaldo de parte da sociedade, principalmente na zona rural. Por este
motivo, como temos reiteradamente afirmado, podemos considerar que esta escrita de nação
se faz no diálogo de contradirios, na polifonia, com as muitas vozes sociais.
Nessa sociedade, a filha, ao enfrentar o pai, sofrerá na pele a punição e a
discriminação pela comunidade, como se lê/ouve no diálogo entre eles:
- Eu não quero esse homem nem outro qualquer.
- Mas quem te pediu opinião, moça? Enlouqueces-te? Aqui quem decide sou eu, sou
o chefe da família,o sou?
[...]
- Com quem queres viver então?
- Com o homem mais maravilhoso deste mundo, que todos desprezam e eu adoro.
Ele é pobre, é forte e é bom.
- É o Dambuza com certeza. O que viste tu nesse cão?
- Ele é homem e eu sou mulher, não basta?
- Prostituta, desavergonhada. Os tempos são maus, a juventude de hoje é desgraçada,
onde é que se ouviu isso da boca de uma filha? Onde se viu tanta desgraça?
Casarás com Muinga, eu é que decido.
- Que me torturem, que me matem, com esse homem o viverei um instante.
(p.82)
Nessa conversa, percebemos tempos e espaços em choque: Sianga, representando o
poder patriarcal tradicional é enfrentado por Wusheni, símbolo da moderna nação em
construção. Neste trecho, a força violentadora das mulheres fica impressa na voz de Wusheni,
quando rompe com a sua família. Mas esse rompimento não resolve o seu drama e a fenda
criada na família pela “rasura” do costume desdobra-se em uma tragédia familiar quando
Manuna, irmão de Wusheni, aproveitando-se do ataque à aldeia, propõe-se a vingar o costume
quebrado”:
Há contas a ajustar com o Dambuza, esse cão. [...] o cunhado está só, mais enrolado
que um caracol procurando a proteção de parede, desprotegido, desarmado. Ainda
bem que a minha irmã o esaqui, nunca sabeque fui eu. [...] Wusheni estava
atrás da porta empunhando a catana com força de mulher. No momento certo deu o
golpe certo. Na agonia do adeus, Manuna vira a ponta do punhal rasgando
verticalmente o ventre de quem o fere. Wusheni e Manuna, dois irmãos que
partilharam o mesmo ventre, do mesmo leite, do mesmo amor e do mesmo ódio,
tombam na mesma batalha. Na mesma palhota, no mesmo instante, dão o último
suspiro. Não tiveram tempo de se identificar. Dambuza escapa ileso por milagre e
refugia-se na mata. (p.117-118)
75
A narração dessa tragédia familiar nos possibilita algumas inferências: uma delas é
perceber a vingança de Manuna como alegoria da guerra, da guerra fratricida que devasta o
país. O fato de os irmãos morrerem um pela mão do outro, sem o saber, é muito sugestivo,
uma vez que, no plano nacional, “irmãos” lutam pelo poder do país e se matam mutuamente.
Interessante notar que a batalha travada pelos dois irmãos sugere uma outra encenada no
romance: a batalha em que não simples oposição, e sim uma situação intervalar mostrada
com a morte dos filhos. O filho de Sianga – o jovem Manuna – cobra o costume rompido pela
irmã a jovem Wusheni mas ela “[n]o momento certo deu o golpe certo(p.117). Não
sobreviventes nesse duelo. Lembremo-nos de que Wusheni rompeu com o pai, com a família,
com a tradição, mas não sobrevive. Já o seu irmão, pretenso garantidor da tradição, ao vingar-
se, morre pelas mãos da irmã. Entretanto, Minosse, a mãe, força ambivalente, é quem
sobreviverá a esta hecatombe familiar.
Com o ataque à aldeia, Sianga e o seu grupo o desmascarados e punidos com a
morte; e Minosse, esposa sem marido, mãe sem filhos, e sem terra, “[...] Cai. Grita.
Chora. Torna a levantar-se e sofre nova recaída. Estende-se no regaço da terra-mãe com os
braços em cruz contemplando o céu, única alternativa ao seu alcance” (p.127). Mulher, em
ruínas, como a terra-mãe conseqüências da guerra ao estender-se no seu regaço, parece
fundir-se a ela e as rasuras parecem uma só: as da terra refletidas na mulher-mãe-esposa-
aldeã-viúva e as da mulher-mãe-esposa-aldeã-viúva refletidas na terra: integração das
margensmulher e terra abandonadas.
Como já sabemos, após a destruição de Mananga os sobreviventes m como destino
o Monte. Na peregrinação, Minosse, como nossa personagem signo, é assim descrita pelo
narrador:
Na viagem fantasma, a velha Minosse vai à frente e nem os homens fortes
conseguem seguir o passo dela. Caminha leve como uma pena. Todos se espantam.
Os desgostos fizeram dela uma pessoa morta. Ela é um fantasma. Os fantasmas não
têm corpo e nem sentem peso. Ela caminha leve e livre mesmo sem saber para onde
vai. (p.155)
A voz da escritora-intelectual, neste trecho, ecoa quando nos mostra a “força da
figura feminina” que, contrário do que defende o discurso patriarcal, é de competência: “nem
os homens fortes conseguem seguir o passo dela”.
Ao longo de toda a narrativa sobre o êxodo, Minosse não ganhará voz, mas o leitor
sabe de sua presença, ainda que como presença fantasmagórica. O grupo dos poucos
sobreviventes chega ao Monte e se reconstrói. Mas Minosse continua em um mundo à parte:
76
Os de Mananga navegam na nova vaga, mas Minosse permanece na margem da
onda ninguém entende bem porquê. Vive solitária recolhida no seu mundo de guerra
e paz. Sentada na margem do riacho não dá conta do tempo. (p.207)
Interessante notar que o campo semântico presente nesse trecho produz uma imagem
de Minosse que reitera, metonimicamente, a condição feminina, bem como a expõe como
signo dessa contra-narrativa de nação: Minosse, aquela na margem do rio, entre a guerra e a
paz. O seu silêncio, ao longo da peregrinação, e mesmo no Monte, parece ser signo das fendas
causadas pela guerra. Entretanto, o seu silêncio, paradoxalmente, causa ruídos”, pois reflete
sobre o lugar do homem no sistema cultural em que vive/sobrevive:
Deixa-se arrastar no desfile de recordações que, como sempre, convergem no
mesmo ponto. Sianga jovem, Sianga velho, Sianga régulo, polígamo e próspero,
Sianga frustrado de rabo sempre colado no chão a inventar rabugices. ( p.211)
A figura do marido/homem continua ocupando um lugar em sua memória. No entanto,
o é um lugar de centralidade, pois o avalia com criticidade e ironia, rasurando o lugar de
poder estabelecido para o homem na sociedade patriarcal. A escritora-intelectual, ao criar”
esta personagem, mostra-nos as resistências a esse discurso de poder presente na
contemporaneidade:
E pensa no homem masculino, aquele que dirige os destinos da vida, que segundo se
diz, foi criado à semelhança de Deus. Para ela o homem é mesmo Deus, porque ele
faz vir um filho ao mundo e diz: é meu. Em seguida vira-se para o Nascente e diz:
eis uma nova vida gerada por mim. Ele dá abrigo, carinho, alimento e fá-lo crescer.
Depois coloca-o no paraíso e determina: desta árvore não comas; desta água não
bebas; segue este caminho que Deus me mostrou e que eu segui, caminha, caminha
sempre sem nunca olhar para trás. E o filho desorientado, perdido, deseja
loucamente desistir de caminhar, voltar ao ventre materno como se isso fosse
possível. (p.257)
Interessante notar que o narrador, ao expor os pensamentos de Minosse acerca do
homem, consolida-a como uma margem violentadora, pois a coloca “[...] no centro do
mundo” (p.255). Com lucidez e ironia, o narrador mostra um movimento dialético nas suas
reflexões, pois, ao mesmo tempo em que aproxima o homem de Deus, critica-os: esses
deuses” desorientam ao invés de orientarem seus filhos. Esse pensamento dialético aponta
para o terceiro-espaço, espaço em que há outro futuro possível para sua sociedade:
77
Por vezes o caminho indicado não leva a lugar nenhum, até que acaba sentado à
beira da estrada e decide: hei-de fazer o meu caminho. E faz. Hei-de construir o
mundo. E constrói, quando os deuses protegem. (p.257)
Dessa forma, o pensamento de Minosse, ao mesmo tempo em que mostra as
circunstâncias-limite da sociedade patriarcal nesta nação em construção, também sinaliza que
esta tensão pode levar a mudanças. E, nesse contexto de divagações, questiona-se: Qual é o
sentido de sua vida no Monte? “A minha machamba é tão grande! Mas com quem irei comer
tudo isto? Sou uma velha e desventurada” (p.211). Relembramos que, mesmo no Monte,
os sonhos não são realizados, a utopia não é conquistada. A insatisfação com o novo lar, os
desafios dos novos tempos, agonizam a mulher/mãe/terra. Minosse, quando diz “minha
machamba é tão grande”, parece até dizer de si. Mas esse dizer de si mostra
metafórica/metonimicamente Moçambique, um terririo tão grande, mas que não tem
alimentado aos seus filhos. Por outro lado, a personagem olha ao seu redor e percebe que no
Monte também existem outros desvalidos, abandonados à própria sorte, como o rapazinho,
Sara e seus irmãos órfãos da guerra. É por meio de sua voz e da voz do narrador/contador
que entramos em contato com outras margens desta nação:
- Vem, menino. Dar-te-ei pão e abrigo e tu dar-me-as o conforto da tua companhia.
És três vezes órfãos, eu sei. Os teus pais morreram, os defuntos te abandonaram e o
povo inteiro te renega. Quero ser a tua mãe e tua avó, não tenho medo das maldades
que dizem que tens, porque sei que não tens nenhuma. A questão de fundo meu filho
é a fome, meu filho, é a fome, todos sabem que albergando-te terão mais alguém
para alimentar. Vamos, levanta-te, vem comigo. (p.221)
Abraça a menina com ternura e deixa que ela chore até à exaustão. [...] É pequena
ainda e parece ter dez anos apenas. Os irmãos aparentam seis e quatro anos, são
demasiado pequenos para enfrentar a vida e seus tormentos. (p.231)
No primeiro trecho, na voz da personagem Minosse ecoa a voz da intelectual quando
se explica o porquê da exclusão sofrida pelo rapazinho: a questão de fundo é a fome”,
enunciado que revela as cruéis estratégias de sobrevivência em tempo de guerra. Entretanto,
Minosse difere dos demais da comunidade imaginada e se faz mostra da rasura no coletivo.
Ela adota os órfãos e divide “o pão”. Ao fazê-lo, sinaliza que Ventos do apocalipse
conforma, sim, a integração marginal dos indivíduos. Como já foi apontado, é interessante
notar o modo como esta personagem, por meio de seus questionamentos, mostra o lugar da
mulher/mãe/esposa/refugiada/sobrevivente/guardiã e contestadora dos costumes, isto é das
múltiplas identidades possíveis, dos múltiplos lugares discursivos ocupados pelos
personagens.
78
Minosse conseguiu realizar um pedaço do seu sonho. Os meninos órfãos confiam
nela. Vivem com a sua proteção. Semeiam os campos orientados por ela. Ensina-
lhes as manhas da terra, os segredos da semente, as voltas da água e os movimentos
do vento. Ela não pode ensinar mais do que isto. Lamenta o facto de não haver na
aldeia uma escola onde possam aprender outros modos de vida porque no mundo
moderno tem exigências que ela desconhece. As crianças deliram porque a velha
apagou neles o fogo de terror. Quando a noite chega sentam-se à volta da lareira e
contam histórias. Falam do futuro. (p.231-232)
A personagem, ao mesmo tempo em que se sente recomposta ao assumir a missão de
ajudar os órfãos, teme a morte e o futuro que aguarda às crianças, medo que parece aludir ao
próprio futuro da nação. Por meio da voz do narrador ouvimos sobre seus receios:
Minosse pensa com insistência: vou morrer. Talvez os meninos encontrem uma tia
dedicada, uma família substituta e, quem sabe, talvez o governo tome conta deles e
crie leis. Durante a infância talvez tenham protecção. Mas um dia serão homens,
serão mulheres, abandonarão os orfanatos desorientados sem destino e lutarão para
sobreviver. Não têm família, não têm escola e toda a sociedade lhes fecha a porta.
Emprego não teo com certeza. Que fao eles para sobreviver se todas as portas
lhes são vedadas? Primeiro tentarão viver com decência, mas sem resultado. Depois
virá a revolta, a vingança e finalmente o crime. (p.259)
Minosse, ao olhar para seus “filhos, netos”, olha para o futuro. Essa visão, quase
profética, mostra um futuro desanimador: esses, a quem a mãe/avó acolheu, representam uma
coletividade, resultado de quase duas décadas de guerra, que nada terão. O narrador, após
expor a triste constatação da personagem, não nos mais informações sobre sua vida e a de
seus “filhos, netos”; simplesmente nos deixa no silêncio. Esse estado de suspensão parece ser
uma estratégia da escritora-intelectual para mostrar a situação intervalar da nação
moçambicana em construção: sem repostas, em busca de caminhos. Portanto, a mulher/
esposa lobolada/mãe/aldeã/ viúva/ anc/ sobrevivente/ refugiada assume na “pele”, isto é, em
sua trajetória de vida, a “vida” dos refugiados da “nação imaginada”, em frangalhos,
representando uma coletividade em agonia. Nesta agonia, questiona e sinaliza a necessidade
de uma educação formal para os seus filhos netos, sem deixar de lhes ensinar o que sabia,
pois, nos novos tempos, para enfrentar os novos desafios, são necessários conhecimentos
formais! Como anciã, preocupa-se com o futuro sem se esquecer de ensinar sobre o passado,
que alimenta a memória, a História e a identidade de um povo. Esta é, talvez, a questão
fundamental para se pensar esta nação em construção. E Chiziane, como escritora-intelectual,
também enfrenta este dilema de uma maneira muito própria em Ventos do apocalipse, como
analisaremos no próximo capítulo desta dissertação.
79
4 VENTOS DO APOCALIPSE: “LUGAR DE MEMÓRIA” E ENCENAÇÃO DE
“AMBIENTES DE MEMÓRIA”
“Maxwela ku hanya! U ta sala u psi vona.”
(Nasceste tarde! Verás o que eu não vi.)
(provérbio tsonga, p.24)
Neste capítulo, analisaremos como Paulina Chiziane, concebida neste estudo como
uma escritora-intelectual moderna, mobiliza no romance Ventos do apocalipse estratégias
narrativas para encenar elementos da memória coletiva de seu povo num contexto intervalar
contexto da guerra civil moçambicana – e em que medida essas memórias, ao comporem uma
contra-narrativa de nação, encenam “ambientes de memória” ao mesmo tempo em que
ocupam o espaço literário como um “lugar de memória”.
Para tanto, é preciso compreender como se processa a “produção” da memória coletiva
nas sociedades africanas tradicionais. Amadou Hampaté (1980), ao discutir a importância
da tradição oral para as comunidades africanas ágrafas, apresenta-nos os significados dessa
tradição:
A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os
aspectos. [...] Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural,
iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor
sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.183)
Nesse sentido, podemos entender que a memória coletiva dessas comunidades tradicionais se
funda na vivência da tradição oral, que remete, segundo o estudioso, à crença em uma unidade
primordial, à origem. Essa transmissão” de memória ocorre de forma ritualizada, num
[...] contexto mágico-religioso e social [que] situa o respeito pela palavra nas
sociedades da tradição oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras
herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. O que a África tradicional mais preza é
a herança ancestral. O apego religioso ao patrimônio transmitido exprime-se em
frases como Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que
suguei no seio da minha mãe”. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.187)
A prática coletiva e o contexto mágico-religioso definem o “lugar” ocupado pela herança
ancestral na África tradicional, lugar em que a comunicação da memória é sagrada e o
respeito à palavra do mais velho e às deixadas pelos ancestrais é condição para se “[...]
80
preservar ou restabelecer o equilíbrio das forças, do qual depende a harmonia do mundo
material e espiritual” (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.189). O estudioso, no desenvolvimento de sua
análise, ainda nos revela que:
Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento ou a
narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do
princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao
presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência.
Aí reside toda a arte do contador de histórias. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.215)
Portanto, o contador de histórias/estórias, ao “trazer” ao presente um evento, via narrativa,
o o faz na perspectiva de simples recordação, mas sim como atualização de dados da
memória coletiva que deve ser partilhada por todos no momento da audiência: um momento
“vivo” que se desenvolve como um ritual. Nesse sentido, é importante ressaltar que essa
transmissão também se reforça na crença da fidedignidade dos testemunhos, porque, como
afirma Hampâté Bâ, aquele que narra o faz de um lugar legitimado pela comunidade:
O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem
que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a
fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído à verdade em
uma determinada sociedade. [...] (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.182)
Dessa forma, a memória individual é talhada pela coletiva e ambas são atualizadas por
um testemunho fidedigno, capaz de manter a coesão da comunidade e, por conseguinte,
perpetuar a história do grupo.
Já Maurice Halbwachs (1990), em Memória coletiva e memória individual, ao
discutir o processo de construção da memória, sugere que toda memória é por definão
coletiva”. Sua construção ocorre, necessariamente, numa comunidade afetiva em que:
[...] se opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no
nosso espírito como no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que é possível se fizeram e continuam a fazer parte
de uma mesma sociedade. Somente assim podemos compreender que uma
lembrança possa ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBAWCHS,
1990, p.34)
Essa construção partilhada de que nos fala Halbwachs reforça os laços de pertença e
de identidade cultural. Na esteira de Halbwachs, Henry Rousso (1998), em A memória não é
mais o que era, ao tratar da memória coletiva, argumenta que
81
Seu atributo mais imediato é garantir a continuidade do tempo e permitir resistir à
alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda vida
humana; em suma, ela constitui eis uma banalidade um elemento essencial da
identidade, da percepção de si e dos outros. (ROUSSO, 1998, p.94-95)
alguns pontos de contato entre a análise dos tricos: ambos, de certa forma,
tratam da memória coletiva como resultado do (com)partilhamento das memórias por uma
dada comunidade afetiva, e, ao mesmo tempo, compreendem-na como elemento integrante da
identidade cultural de um grupo/povo.
Devemos nos lembrar, porém, de que Hampaté (1980), ao realizar seu estudo,
remete-nos ao fato de que, mesmo em grupos tidos como homogêneos as “comunidades
afetivas” m ocorrido processos de misturas de tempos e espaços, gerando profundas
ambivalências. Estes grupos, por conseguinte, têm vivenciado sua identidade cultural também
em processos ambivalentes:
Os diferentes mundos, as diferentes mentalidades e os diferentes períodos
sobrepõem-se, interferindo uns nos outros, às vezes se influenciando mutuamente,
nem sempre se compreendendo. Na África o século XX encontra-se a lado com a
Idade Média, o Ocidente com o Oriente, o cartesianismo, modo particular de
“pensar” o mundo, com o “animismo”, modo particular de vivê-lo e experimentá-lo
na totalidade do ser. (HAMPATÉ BÂ, 1980, p.216)
Essa passagem nos mostra os trânsitos culturais vivenciados pela África
contemporânea e, a partir dessa constatação, somos levados a refletir sobre os processos de
construção e transmissão da tradição na atualidade, pois, “diferentes mundos, diferentes
mentalidades” tem tanto convivido quanto se sobreposto, nem sempre se compreendendo”.
Nesse sentido, Stuart Hall (2003), em A identidade cultural na pós-modernidade, ao
discutir a condição identitária cultural do homem s-moderno, diz-nos que “[d]entro de nós
identidades contradirias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2003, p.13)”. Isso se deve,
segundo o estudioso, às paisagens sociais que estão entrando em colapso como resultado de
mudanças estruturais e institucionais (HALL, 2003, p. 12), como a vivida em Moçambique.
Interessante notar que é nesse contexto ambivalente, de colapso, que Hampaté
(1980) tanto divulga aspectos da cultura tradicional africana quanto conclama outros
pesquisadores a fazê-lo, como vimos no capítulo dois desta dissertação, uma vez que para
parte da [...] nova “inteligentsia” africana, formada em disciplinas universitárias euroias, a
Tradição muitas vezes deixou de viver. São Histórias de velhos”!” (HAMPA BÂ, 1980,
p.217). Pode-se dizer que o estudioso malis tem consciência tanto da necessidade de a
82
tradição ser considerada ainda que, e talvez por isso mesmo, atravessada por expressões da
modernidade – quanto do fato de a tradição não ser única, pois cada povo preserva e transmite
diferentes formas de ver e compreender o mundo.
Vindo ao encontro do alerta pelo estudioso malinês sobre o descaso da nova
“inteligentsia” africana para com a tradição e a memória, tomamos como referência as
reflexões de Pierre Nora (1976) em Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Ao analisar as sociedades modernas, o autor diz não existirem mais os ambientes de
memória”, uma vez que não há mais espaços para o nascimento e flncia natural da memória
espontânea elemento identitário de um povo, de uma comunidade. Em contrapartida a essa
perda, Nora (1976) considera que as sociedades modernas têm criado “lugares de memória”,
instituídos para substituir os “ambientes de memória”. Os museus, arquivos, bibliotecas,
centros de documentação, monumentos oficiais e parques temáticos, entre outras
possibilidades, funcionam, na opinião do historiador, como lugares de preservação de
vestígios daquilo que não mais existe. São criados, portanto, lugares para guardar, acumular e
conservar as memórias do passado, e, nesse sentido, como observa Nora, “[h]á locais de
memória porque não há meios de memória” (NORA, 1976, p.7).
Todavia, devemos nos lembrar que, se considerarmos a história atual dos países
africanos, esses “lugares de memória” não ocupam espaços tão privilegiados como na Europa.
Em Moçambique, cenário de Ventos do apocalipse, um dos motivos prováveis para tanto
está na luta desenfreada” para reconstruir os espaços públicos imprescindíveis à prestação
de serviços básicos à população, que a partir de 1992, com o fim da guerra civil, m sido
retomados
11
. Portanto, uma questão deve ser colocada: como elementos da memória coletiva
têm sido transmitidos na contemporaneidade, em Moçambique, em um cenário convulsionado
em função do longo processo colonizatório e descolonizatório, que alimentaram as guerras de
libertação e também a guerra civil? Como a sociedade moçambicana tem se relacionado com
a perda dos seus “ambientes de memória” e, ao mesmo tempo, com a impossibilidade de
construção de “lugares de memória”? Enfim, como tais questões se encenam no romance em
estudo?
Em nossa análise, Chiziane, como escritora-intelectual, ao criar Ventos do apocalipse,
constrói um possível “lugar de memória” no âmbito da literatura. Segundo Nora (1976), “[o]s
lugares de memória são, antes de tudo, restos” (p.12) no sentido material, simbólico e
11
É preciso lembrar que, mesmo incipientes, existem significativas iniciativas para construção de arquivos em
Moçambique. Tedesco (2008) cita em seu estudo o Projeto de Recolha de Fontes Orais de História, conduzido
pelas equipes da Universidade Eduardo Mondlane. Seus “documentos” foram disponibilizados para consulta no
Arquivo Histórico de Moçambique.
83
funcional. Explicando-se, diz-nos que mesmo um arquivo que guarde um acervo de
documentos “[...] é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica”
(p.21) e ressalta que mesmo um lugar de memória puramente funcional com um manual de
aula ou um testamento só “[...] entra na categoria se for objeto de um ritual” (p.21). Em outras
palavras, tomando as reflexões de Nora (1976) sobre “lugar de memória”, acreditamos que
narrativas literárias como Ventos do apocalipse, ao procurarem trazer para a cena textual
vestígios dos ambientes de memória, podem ser consideradas um “lugar de memória”. Um
“lugar de memória” deslocado, pois, ficcionalmente, recria as memórias do passado por meio
de representações de “ambientes de memória” também deslocados, em um processo de
desmanche próprio de uma nação convulsionada. Estas representações e encenações de
restos” são feitas no sentido material, simbólico e funcional porque o romance, como um
“lugar de memória”, é construído a partir de um “solo histórico”, de “fragmentos” da
memória coletiva bem como das individuais, de uma matéria que “tanto a imaginação do
escritor como a do leitor” investem de uma aura simbólica. Essa aura simbólica, a nosso ver,
relaciona-se com a funcionalidade ritualizada, que em Ventos do apocalipse se efetiva
quando a escritora-intelectual, ao criar um narrador-contador, também cria um leitor-ouvinte.
Assim, figurativamente, instala, aos moldes da cultura tradicional, “um como se fosse ao
redor da fogueira” e nele se encena um ambiente de contação e transmissão de história, de
memórias. Esta funcionalidade ritualizada é perceptível quando “lemos” Ventos do
apocalipse como uma narrativa de nação proposta por uma escritora-intelectual que se
empenha em desconstruir um discurso homogêneo de nação e, ao mesmo tempo, apresenta
um contra-discurso de nação que encena os espaços e os indivíduos esquecidos pelo poder.
Como temos destacado, a escritora conduz o leitor-ouvinte a um ambiente que, instalado por
estratégias características da contação, possibilita a vivência “ritualizada pelo processo de
leitura”, um modo de ouvir “as coisas de sua África”, uma forma de se compreenderem as
tradições de sua Moçambique.
Assim, Ventos do apocalipse, como um “lugar de memória”, ao encenar elementos
da memória coletiva bem como da memória individual em deslocamento, reconfiguração e
desfiguração, exibe, a nosso ver, alguns dos múltiplos processos vivenciados pela sociedade,
pela cultura, pela identidade moçambicana, sinalizando, portanto, possíveis movimentos de
construção desta nação. Porém, para aprofundar a análise das questões apontadas, vamos
focalizar, neste momento, o processo de enunciação e os enunciados referentes ao Mbelele
um ritual tradicional da cultura moçambicana e ao lugar dos velhos guardiães do saber,
das memórias do seu povo. Tanto um elemento quanto o outro nos mostram processos de
84
construção da memória coletiva, que podem ser lidos como “ambientes de memória”,
deslocados, ambivalentes, reconfigurados e até mesmo desfigurados, no espaço do romance.
4.1 Mbelele: um ritual reconfigurado em ambiente de memória
O Mbelele, segundo a tradição, é um ritual em que as mulheres, dirigidas por um
régulo ou por um sacerdote, participam de uma representação lasciva e sedutora para
conclamar os chicuembos ou ‘almas perversas’ causadoras da secura.” (CIPIRE apud
FONSECA, 2007, p.227). Ritual realizado, portanto, para agradar aos maus espíritos e
receber, como bênção, as chuvas em épocas de estiagem. É por meio da intromissão da
intelectual na narrativa que passamos a conhecer, por meio da voz do narrador, muitos
elementos da tradição oral que, como o Mbelele, caíram no esquecimento ao longo dos
séculos. O contato com os europeus, a emigração“As gentes ouviram palavras dos homens
vindos do mar e transformaram-se; abandonaram os seus deuses e acreditaram em deuses
estrangeiros. Os filhos da terra abandonaram a tribo, emigraram para terras estrangeiras [...]”
(p.60) – e as campanhas antiobscurantistas (p.87) colaboraram para esse silenciamento
cultural. Mas Chiziane, como escritora-intelectual, por meio do espaço da escrita em Ventos
do apocalipse, “regressa ao passado, com a cabeça no presente” (p.60) ao encenar/por em
cena o subterrâneo dessa memória coletiva “apagado pelo discurso oficial”, como o Mbelele,
um ritual de ambientes de memória” em processo de esquecimento. Esta
encenação/ritualização, como veremos, também pode ser lida como uma rasura do discurso
homogêneo, silenciador e “modernizador” da nação em construção.
Neste sentido, precisamos lembrar que o espaço literário constrdo entre a ficção e
a História – também é tecido com elementos da memória individual e coletiva, fios resistentes
manejados pela escritora-intelectual para impedir o apagamento, o desaparecimento, o
silenciamento cultural. Halbwachs (1990), ao discutir a memória coletiva, o faz na perspectiva
de construção intercambiada entre a individual e a coletiva:
No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por
suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram,
enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se apóiam
uma sobre a outra, não são as mesmas que apareceo com mais intensidade para
cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto
de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar
que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho
85
com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, nem todos se
aproveitam do mesmo modo. (p.51)
Portanto, a memória figura como a recriação do passado no presente a partir de
elementos – fragmentos, estilhaços – partilhados por uma comunidade afetiva. Dessa maneira,
quando tomamos a escrita de Chiziane como encenação de realidade, como discutimos no
primeiro capítulo, permitimo-nos usá-la como instrumento possível de “leitura” do universo
representado, uma vez que a escritora-intelectual, para “dizer das coisas da África”, mobiliza
elementos da memória coletiva de seu povo sob um olhar próprio – sua memória individual.
A aldeia de Mananga, como sabemos, atravessa um tempo apocalíptico de seca,
fome, guerra e destruição:
A terra esseca e teimosa como uma burra, a ponto de recusar-se a levantar uma
nuvenzinha de poeira. Os olhos embaciados passeiam na placie deserta à procura
do refúgio da alma. As cabanas dispersas na aldeia perderam os biombos de ervas
que preservam a intimidade de cada lar. Nos céus reina o verde inútil nas copas das
árvores. A mente de Minosse trabalha na descoberta de novas fórmulas de
sobrevivência. As folhas do cajueiro, da figueira e da mangueira não se comem. As
da abacateira serão comestíveis? Todos dizem que não, mas quem já experimentou?
Se comemos os frutos dessas árvores, por que não podemos comer também as
folhas? (p.28)
A desgraça penetrou em Mananga. se ouvem rumores da guerra em Macuácua,
mas ultimamente os roquetes de bazucas e rajadas de metralhadora aproximam-se
de Alto Changane. Já se ouvem notícias de camponeses mortos e capturados. (p.58)
Nesse contexto, indagamos: como a sociedade e a cultura de um povo sobrevivem?
Ressaltamos que a sobrevivência buscada por Minosse dos frutos às folhas em tempo de
seca, fome e guerra pode ser entendida como uma alegoria que nos permite compreender
como a escritora-intelectual, no espaço da escrita, aponta para as sobrevivências possíveis
das coisas da África”. Em outras palavras, Chiziane, como escritora-intelectual, ao mobilizar
na sua escrita tanto elementos de cultura tradicional quanto os dilemas característicos de
contextos de guerra, faz do espaço literário um lugar de sobrevincia, um “lugar de
memória”. A nosso ver, ao encenar ambientes de memória” reconfigurados e até mesmo
desfigurados, a escritora assume, em uma perspectiva deslocada dos frutos às folhas um
outro discurso de nação possível, um discurso de nação a contrapelo, às avessas, como temos
argumentado neste estudo.
Na aldeia de Mananga, enquanto a maior parte dos aldeões luta pela sobrevivência
vital, Sianga, antigo régulo, cria um plano para retomar a sua antiga função social e mostrar o
seu poder ao povo que “[...]está desorientado. Tem fome no corpo e no espírito(p.53). A
86
melhor forma para isso, em sua perspectiva, é fazer chuva! Mas como chuva? - Onde iremos
encontrar a água?(p.53). Sianga responde: “- O mbelele, vamos realizar o mbelele” (p.53).
Mas o seu interlocutor questiona: “– Que entendes tu de mbelele, Sianga? (p.53)”.
Ora, a credibilidade do velho Sianga não foi colocada em xeque, a nosso ver,
fortuitamente. Como poderia Sianga, o antigo régulo, um ancião, não conhecer o ritual que
faz parte da memória coletiva? Lembremos que esse ritual fora “expurgado” pelo discurso
oficial. Sianga responde que conhece dele, “muitas coisas” (p.53). Curioso notar que, mesmo
em desuso”, o ritual é lembrado por Sianga como saída para os problemas que enfrentam.
Em nosso entendimento, um sintoma dos vestígios dessa memória coletiva que, quer se queira
ou o, constrói-se e reconstrói-se através dos tempos. No entanto, sabemos que o interesse
maior do antigo régulo, ao “resgatar” o Mbelele, está em retomar o seu prestígio perante a
comunidade e, por conseqüência, o poder. Interessante notar que essa passagem mostra o
ponto de vista crítico da escritora-intelectual com relação aos possíveis usos da tradição pelo
poder, por meio das artimanhas de Sianga que mobiliza elementos da própria cultura para
alcançar seus objetivos pessoais, como mencionado no capítulo anterior. Dessa maneira,
enunciados, na narrativa, transformam-se em denúncia de possíveis manipulações inerentes à
sua sociedade em contexto de guerra. Nesse sentido, o povo não existe como corpo
homogêneo, existe como espaço conflitual, disputa de poder, disputa de memória e, nesta
perspectiva, Sianga pode ser lido como signo de um espaço conflitual desta nação em
construção.
Para a realização desse ritual ancestral, Sianga sabe que é preciso mobilizar a
comunidade, a sua “comunidade afetiva” e, para isso, orienta os seus discípulos nos primeiros
passos a serem dados:
Vocês os três, Guezi, Languane, Mathe, são os mais indicados para esta tarefa. Têm
a cabeça algodoada e barba longa, óptimo perfil de pregador. A partir de amanhã
visitem as casas das mulheres mais linguareiras; conversem com elas, lamentem a
situação de fome, condenando as novas gerações por terem abandonado o culto aos
antepassados. É preciso fazer crer que a falta de chuva é castigo supremo. (p.53-54)
De forma irônica, o leitor é informado do estratagema de Sianga. Ele escolhe homens
de “cabeça algodoada e barba longa” para efetivar o seu plano, sabendo que os de sua
comunidade afetiva” vão dar crédito às palavras de pessoas que sejam referência na
comunidade, os mais velhos! “Os de cabeça algodoada e barba longa”, compartilhando de
suas iias, irão “alinhavar” uma retórica adormecida no imaginário da comunidade. Esta,
consciente do abandono do culto aos antepassados, acreditará que a falta de chuva seja
87
resultado do castigo supremo. “Falem sempre da seca, da miséria, fome, morte e doenças e
quando tiverem saturado os ouvidos delas, convençam-nas de que o mbelele é única saída”
(p.54). O antigo régulo orienta os profetas” a conduzirem o discurso de convencimento da
comunidade de forma fundamentada e, para a persuasão, utiliza referências-chave da cultura
tradicional:
[...] falem das boas colheitas, não esquecendo que só os dirigentes espirituais,
portanto, nós, é que temos o poder sobre as nuvens. Que os novos líderes têm o
poder na ngua; que o negócio dos defuntos os antigos entendem. As
linguareiras irão transmitir imediatamente estas idéias de boca em boca. (p.54)
Ora, mesmo neste contexto convulsionado, deslizante, fluído, Sianga sabe o que é
importante para a comunidade, pois tem ciência do que é importante para si mesmo. Por isso,
com a cabeça no presente volta ao passado” e “apela” aos valores adormecidos como o
necio dos defuntos” e o poder dos dirigentes espirituais”. Nesse trecho, denuncia os novos
dirigentes, que têm o poder na língua”, referência metafórica ao poder institdo, pois
essa “língua oficial” pouco tem feito por eles e é essa língua que tanto Sianga, neste
momento, quanto Chiziane, como escritora-intelectual, ao longo de todo o romance,
denunciam: a ngua do poder oficial, a língua homogeneizadora, que apaga as diferenças e
exclui a tradição. Por outro lado, Sianga, capaz de perceber as ambivalências de seu povo, de
sua cultura, prenuncia:
Haverá balbúrdia, o povo dirigirá apupos às autoridades actuais. Depois vão
conspirar e procurar-nos em segredo, e entraremos na segunda parte do plano, e
ah! Encheremos os nossos celeiros com milho que vamos cobrar pela realização do
mbelele. (p.54)
Esta percepção nos mostra alguns dos paradoxos vividos por um povo que se encontra
na instabilidade do ser e do existir. uma crise de identidade latente, explícita em um
emaranhado cultural múltiplo e complexo resultante das permanências culturais tradicionais
bem como dos processos colonizatório e descolonizatório e do contexto de guerra civil. É
nesta situação limite que a comunidade se torna alvo fácil de discursos manipuladores, como
o realizado pelos discípulos de Sianga, signo de outros processos ocorridos na
contemporaneidade no continente africano bem como em outras partes do mundo s-
colonial.
Entretanto, é importante ressaltar que a voz da manipulação não é uníssona neste
“lugar de memória”. Um dos comparsas de Sianga volta a questioná-lo: Eu volto a
88
insistir: que mbelele podes tu realizar, Sianga? Desde quando recebeste os poderes para falar
com as nuvens?” (p.54). Este trecho é curioso porque, de antemão, o leitor-ouvinte já sabe
que Sianga parece não ter autoridade para realizar um ritual de tal envergadura. No entanto,
entre os seus, resta a crença de que é possível a realização por alguém autorizado. “Falando
claro, não vamos realizar o mbelele, mas sim a primeira parte do plano. O que interessa é o
objetivo a alcançar” (p.54). Após a enunciação do projeto maquiavélico, Sianga é chamado de
injusto por seus comparsas por desejar enganar o povo, mas aquele, em um desabafo,
justifica o seu plano criticando o discurso oficial, o discurso do poder:
- Mais injusto ainda foi usurparem-nos o poder e as nossas terras. Injusto foi
queimarem-nos os lugares de culto, e todas as amarguras que passamos. Muitos dos
meus homens viram-se obrigados a procurar exílio em outras paragens porque aqui
a vida era impossível. É preciso ter fé, que o nosso reino voltará. Formaremos um
comando ainda mais forte que nos tempos de outrora. (p.54)
Interessante notar que, por meio dessa personagem astuciosa, a escritora-intelectual
nos mostra como uma parcela dos marginalizados do poder possivelmente enxergava os
donos do podere, neste contexto, como podem ter se articulado para resistir à nova ordem
modernizadora. Sianga, neste cenário de penúria e revolta, comporta-se como um camaleão,
realizando um duplo movimento para retomar o poder, pois, ao mesmo tempo em que propõe
a realização de um ritual ancestral junto à sua comunidade, também se alinha, às escondidas,
aos “rebeldes” que lutam contra o governo. Sianga, portanto, não nos é apresentado como um
aldeão ingênuo e sua voz, ao assumir um tom crítico sobre tudo que o rodeia, mostra-nos a
rasura do discurso oficial feita por um da margem: ex-régulo, aldeão, velho, empobrecido pela
seca e pela nova ordem. Assim como o réptil, Sianga se adapta ao contexto, assumindo, na
fluidez dos discursos das identidades, uma estratégia de sobrevivência. Esta ambivalência
vivida pela personagem – retorno à tradição e aliança com soldados – mostra o tempo
intervalar que sociedade e cultura vivenciam. É neste tempo que tanto os “ambientes de
memória” como os discursos de poder e de memória são construídos/encenados:
O homem desfeito do disfarce era mais jovem que o milho tenro. Falou dos
problemas de nossa terra; da seca, das lojas vazias, das catástrofres infindas
causadas pela ausência dos cultos. Na verdade, o discurso feito por esse rapaz não é
muito diferente daquele que faz o secretário da aldeia. Existe diferença, mas
pequena. Enquanto o secretário da aldeia fala dos opressores. O primeiro fala dos
grupos obscurantistas que devem ser banidos, e este enaltece estas práticas e
promete restaurá-las. Disse ainda mais: que os actuais secretários da aldeia são uns
estrangeiros pois o pertencem à tribo nem ao clã. Disse que os régulos são os
verdadeiros representantes, medianeiros entre os desejos do povo e os poderes dos
89
espíritos. Falou ainda da liberdade, fraternidade, unidade, e muitas coisas iguais
àquelas que diz o secretário da aldeia. (p.50-51)
Assim, por meio da voz do narrador-contador, articulada no espaço da margem,
ouvimos também a voz inica da escritora-intelectual a fazer uma avaliação violentadora dos
discursos que lutam pela nação e sustentam a guerra civil. Esta voz nos mostra, portanto,
ressignificações de discursos que, neste contexto conturbado, questionam a ordem
estabelecida para (re)tomarem o poder, questão que, como pano de fundo, gerencia as ações
de personagens como o astuto e enfraquecido Sianga. Por outro lado, também percebemos a
intromissão dessa voz quando se denuncia a distância cultural que existe entre os secretários
da Nova Ordem instituída e as comunidades rurais:
Que poderes tem o secretário da aldeia para realizar o mbelele? Noutros tempos
havia régulos e eleitos, autênticos representantes da tribo perante a reunião do
Grande Espírito. Tinham nhamussoros dos bons que pressagiavam tudo. (p.61)
Esta distância entre dirigente e comunidade, denunciada neste “lugar de memória”, é um dos
elementos causadores do esvaziamento do sentimento de unidade do grupo, pois os dirigentes
o fazem parte da mesma “comunidade afetiva” dos seus subordinados, isto é, não
compartilham dos mesmos valores, das mesmas crenças, da mesma memória coletiva, fato
que potencializa o esfacelamento das culturas tradicionais nesta nova ordem. Os tempos são
outros, [a] revolução transformou tudo” (p.61). Entretanto, a intelectual, ao realizar esta
constatação, também lembra que [a]gora não há chicote, nem xibalo, e o negro jamais será
deportado (p.61). Estes trechos, a nosso ver, denunciam, com sua caracteristíca
ambivalência, tanto o passado colonial como o presente pós-independência, que convive com
os trânsitos/deslocamentos/desfigurações, resultando, por isso, em reconfigurações: E o
mbelele? Quem vai realizar o mbelele se os régulos foram banidos?(p.61). Neste sentido,
acreditamos ser válido refletir sobre o cruzamento de discursos na narrativa, pois estes nos
mostram os dilemas da nação em construção. Eneida Souza (2004), em seu texto Saberes
narrativos, vale-se dos estudos de J.F. Lyotard (1986) para discutir o lugar das pequenas
narrativas em contraposição às grandes narrativas e ao fazê-lo nos mostra que
O saber narrativo dos pequenos relatos o irá, contudo, atuar como força
legitimadora, distinguindo-se por um caminho avesso à demonstração e à
especulação. Através do pluralismo irredutível dos “jogos de linguagem”, insiste-se
sobre a presença do aspecto local dos discursos, dos compromissos e na
precariedade das legitimações. (SOUZA, 2004, p.57)
90
Ao desenvolver suas reflexões, a autora também nos mostra que estudos pioneiros da Nova
História e da meta-história têm se voltado para narrativas que privilegiam diferentes pontos
de vista como modo de contar os acontecimentos. Nessa perspectiva cita Burke (1999), que
nos apresenta o porquê desse retorno às narrativas:
Em primeiro lugar, poderia ser possível tornar as guerras civis e outros conflitos
mais inteligíveis, seguindo-se os modelos dos romancistas que contam suas
histórias, partindo de mais de um ponto de vista [...]. Tal expediente permitiria uma
interpretação do conflito em termos de um conflito de interpretações. Para permitir
que as “vozes variadas e opostas” da morte sejam novamente ouvidas, o historiador
necessita, como o romancista, praticar a heteroglosia. (BURKE apud SOUZA,
2004, p.58)
Tomando como referência essas reflexões, é possível dimensionar o “lugar de memória” que
Ventos do apocalipse constitui/conforma, uma vez que o romance nos leva a ouvir/refletir
sobre múltiplos discursos e pontos de vista sobre um mesmo acontecimento/evento. Este
“saber narrativo”, construído como um “lugar de memória” entre dois tempos, passado e
presente; entre dois discursos, o da tradição e o da modernidade; e entre as disputas pelo
poder nos mostra uma sociedade em convulsão encenada em sua busca por “ambientes de
memória” de modo a se reconstruir:
O momento é de dificuldades. Quem escapa da fome não escapa da guerra; quem
escapa da guerra é ameaçado pela fome. Os jovens arrumam a trouxa e partem. Os
velhos, as mulheres e as crianças ficam.
Os deuses são o alicerces do homem. O que seria do desespero do seres humanos
sem esses omnipotentes invisíveis? Em cada alma há lamentos mas os deuses são a
esperança. Quando o Sol adormece, há cânticos em todas as fogueiras de todas as
famílias. São cânticos para os deuses do pai, outros para os deuses da mãe, e o mais
sublimes para o mais forte de todos os deuses.
Defuntos, salvem os meus rebentos nascidos dos meus pecados, alimentados com o
sangue do vosso sangue. Muzimos, poupem-nos os sofrimento. Desobedecemos às
leis da tribo, o cumprimos os vossos desejos, não seguimos os caminhos por vós
ensinados. Esquecemos de saudar o Sol de cada manhã. O uputo, bebemo-lo e
esquecemos de lhe oferecer. Muzimos, reconhecemos os nossos erros, por amor aos
nossos filhos que são os vossos, mandem-nos chuva!
- não tenho forças. Os meus olhos negros, de tanto olhar o céu, acabaram por
ficar com a cor do firmamento. Nos músculos não restam forças para erguer os
braços ao céu, e suplicar a vida ao Deus de todos os deus.
- É tempo de fazer o mbelele. - Gastei a enxada de tanto arranhar a terra que não
sangra.
- Chegou a hora do mbelele.
-Pedi a benção a todos os muzimos, a todos os defuntos, já nada resta mais. É inútil.
- Que esperam para fazer o mbelele?
- Sim, o mbelele.
- Desgraça, desgraça, desgraça. (p.58-59)
91
Na parte inicial desse trecho ouvimos uma avaliação pesarosa acerca dos
esquecimentos e negligências às práticas e costumes ancestrais que alimentavam os espíritos
dos aldeões”, garantindo o sentimento de proteção pelos deuses. Como desdobramento dessa
reflexão, a realização do Mbelele é sinalizada como um retorno aos costumes e uma saída
para as dificuldades. Entretanto, esta solução é apresentada pro meio de um discurso
escarnecedor, pois o ritual, ao mesmo tempo em que é apresentado como possível solução
para os problemas do povo, é visto como indecoroso no presente:
- A expressão sublime de submissão e humilhação é o mbelele.
- O mbelele? Que vergonha! Mulheres nuas e com traseiro de melancia a exibir as
mamas aos pássaros e o cu aos gafanhotos faz chover? Que vergonha!
- A nudez das fêmeas é a súplica da chuva; o sangue dos justos e inocentes é o
reconhecimento das nossas culpas. É o tempo o mbelele.
- Sim,sim,sim, o mbelele, seja feito o mbelele. (p.59)
Por meio do entrecruzamento de múltiplas falas, isto é, através do pluralismo
irredutível dos “jogos de linguagem” (SOUZA,2004,p.57) este emaranhado textual dialético e
ambivalente mostra ao leitor-ouvinte as possíveis angústias de indivíduos em meio a uma
sociedade que tem perdido seus valores identitários e em busca de suas refencias culturais.
Nessa situação intervalar, essas vozes trazem à tona tanto a culpa pela não obediência a
tradições negligenciadas ao longo dos tempos, como também um olhar crítico sobre a
retomada, por exemplo, do Mbelele, mostrando-nos, portanto, “a precariedade de discursos
legitimadores”.
Nesse sentido, Ventos do apocalipse, construído na distensão, além de nos apresentar
vozes questionadoras quanto à postura de Sianga no uso” da tradição dentro do seu próprio
grupo, também apresenta vozes dissonantes fora do seu rculo de poder. Wusheni, a filha do
antigo régulo, questiona a autoridade do pai: [...] o meu pai vai dirigir os grandes cerimoniais
do mbelele. Este povo distinto perdeu o uso da razão. Como é que podem confiar um trabalho
dessa envergadura a um tonto?(p.76). Mungoni, o mais célebre de todos os adivinhos a
quem o povo venera, é consultado por Sianga e seu grupo sobre o parecer dos defuntos quanto
à realização do Mbelele, mas este é porta-voz de mau agouro. Neste momento da
narrativa/contação, o leitor-ouvinte, “como que instalado” na reunião ritualística, ouve os
detalhes do que é contado-narrado:
Mungoni prepara os seus materiais e espalha os ossos divinatórios na pele de cabra.
Olha atentamente para a disposição com que os ossos caíram, concentra-se neles
profundamente, demoradamente. Exibe uma expressão grave que arrepia todos os
observadores. (p.88-89)
92
Sianga depende da confirmação desse célebre adivinho para dar continuidade ao
processo que culminará na realização do Mbelele: - Fala, homem, diz alguma coisa. És
famoso e por alguma razão o povo te venera” (p.89). Mas os presságios não são bons. Pela
“boca do adivinho” ouvimos: - As conchas aprisionam os sorrisos, as tartarugas recolhem
aos abrigos e os is escondem-se no ventre do mar. conspiração na alma dos mortos”
(p.89). Interessante notar que a escritora-intelectual, ao construir a encenação deste ritual em
seu romance, por nós considerado um possível “lugar de memória”, também reverencia a
tradição dos adivinhos, dos que sabem “ler” o futuro na disposição de ossos, pedras, sementes
e outros materiais que são espalhados para formarem um texto. Na citação acima, o adivinho
se pronuncia de forma enigtica, fazendo alusões aos seres da natureza para dizer dos maus
presságios que ele intui a partir da disposição dos ossinhos signos espalhados na pele de
cabra.
Como se percebe no romance, a retomada do ritual se faz em deslocamento. Desde o
princípio do episódio somos informados de que o “mentor” do ritual não sabe conduzi-lo
como dita a tradição, porque, embora seja um ancião e saiba de “muitas coisas”, não sabe de
tudo. Dessa forma, somos levados a acreditar que o ritual a ser realizado é, em parte, invenção
de Sianga. Para melhor compreender o episódio, retomamos o que diz Halbwachs (1990)
quando discute a construção da memória coletiva e acentua ser ela fruto de vários processos,
inclusive resultado dos processos da memória individual. No episódio que estamos
analisando, observaremos que o Mbelele tanto é trazido” ao presente por Sianga quanto
pelos demais da aldeia. O conjunto de lembranças reconstrói um novo “ambiente de
memória” e nele, certamente, o Mbelele seria ritualizado de forma diferente do que fora um
dia realizado, segundo outras ordens e outras tradições: Quem vai fazer o mbelele? [...] o
resta outro caminho a seguir senão regressar ao passado, com a cabeça no presente” (p.60).
Ora, a narrativa encenando a reconfiguração do Mbelele por Sianga, seu grupo e sua
comunidade, exibe uma recriação que se faz signo de possíveis processos de reconfiguração
de outros “ambientes de memória” em contextos reais de sociedades convulsionadas. Nesta
escritura intervalar de nação, Chiziane, ao encenar em processo de recriação este “ambiente
de memória” entre permanências e mudanças mostra movimentos próprios da memória e
da História que assumem um lugar privilegiado em sua contra-narrativa.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que somos informados das artimanhas de Sianga
para reviver esse ambiente de memória”, também o somos da consulta aos adivinhos, prática
comum na cultura moçambicana tradicional que nos remete a determinadas permanências
93
culturais, como por exemplo, à crença na manifestação dos defuntos e na capacidade dos
adivinhos de interpretarem essa manifestação. Entretanto, não interessa à Sianga
manifestações contrárias ao seu intento e, por isso, ele não ouvidos à Mungoni. Requisita
outro adivinho, famoso por sua vigarice. Este i confirmar a aprovação dos defuntos para a
realização do ritual:
As adivinhas estão terminadas. Nguenha ergue a voz altiva piscando os olhos de
troça.
- Que me dizem a isto, digníssimos membros do conselho?
- Não entendemos nada, rugem as vozes em revolta.
- Com que então não entenderam, hem? Que ignorantes- interveio o antigo régulo,
com certeza, a linguagem de Nguenha é especial, técnica, inacessível, entendida
por peritos na matéria, como eu por exemplo. (p.91)
Este episódio nos mostra como a tradição pode ser usada de maneira a justificar os
mais diversos intentos. Embora a maioria não acredite em Nguenha, fato evidente pelo
rebuliço causado por suas adivinhas, Sianga, o “líder”/“salvador”, precisa dessas falas para
legitimar seu projeto pessoal.
Contudo, a narrativa, ao encenar este “ambiente de memória e, deste modo,
reconfigurá-lo, não evidencia, apenas, os jogos de poder quanto ao uso e manipulação da
tradição. Em movimento ambivalente, também nos mostra procedimentos, costumes e crenças
de suma importância para a cultura tradicional moçambicana. Sianga um homem entre dois
tempos, passado e presente sabe que é necessário reunir-se com os curandeiros e adivinhos
referendados pela comunidade, pois sem eles o ritual não terá validade, ou melhor, o seu
prestígio não será reconhecido como demanda a tradição.
Sianga, ao dar continuidade ao projeto de realização do Mbelele referendado pelas
adivinhas de Nguenha instaura, na comunidade, um período de purificação de tudo e de todos,
o qual também é um tempo de terror, inaugurado pelos donos do poder” em Mananga:
Foi decidida a purificação da terra, da gente e de todas as coisas. Criou-se um
tribunal para julgar todos os violadores da lei e a conseqüente purificação. Todos
concordaram que os feiticeiros seriam julgados e humilhados em público. (p.92)
Em todo o episódio percebe-se o olhar crítico da escritora-intelectual interferindo
naquilo que é narrado. Questões sobre nero, poder e tradição são apresentadas junto às
alterações ocorridas na aldeia. A consideração de que as mulheres são o início de todo mal e,
portanto, são as que mais têm a pagar, é recortada da fala da tradição, mas com uma intenção
que extrapola a obediência cega aos ditos que explicam que, se a chuva não cai, mulheres, a
94
culpa está convosco” (p.92). Nesse trecho da obra, a(s) voz(es) narrativa(s) se entrecruza(m)
em jogo de sentidos extremamente inicos para encenar o lugar das mulheres em Mananga,
tomado como metonímia de outros espaços. A ruptura anunciada sutilmente pelo jogo de
vozes que acentuam a arbitrariedade dos julgamentos de mulheres “quer as velhas quer as
jovens” (p.92), explica o fato de muitas mulheres, em função de mudanças trazidas pelo
processo de cristianização, o aderirem ao ritual de purificação. A posição firme de muitas
delas leva o tribunal a respeitar a nova ordem que se instala, ainda que respeitadas demandas
da tradição:
- Tendes as vossas razões, jovens, razões bastante plausíveis. Trazei cada uma
de s uma galinha, seis ovos, uma peneira de milho para que os defuntos
aceitem a vossa abstenção. Se não o fizerem, os defuntos revoltar-se-ão e nós,
deitadores de sorte, rogaremos pragas e deitaremos sobre vós azares de todos
aqueles a quem purificamos para que caiam sobre s todas as desgraças do
mundo. (p.94)
Por outro lado, no processo de preparação do ritual, algumas mulheres se valem da
instalação de “um tempo de conspiração” (p. 61) e procuram, às escondidas, o tribunal para
denunciar seus maridos: Nesta semana tão sagrada ele ousou dormir na minha esteira. Foi
mesmo nesta última noite, obrigando-me a desrespeitar e violar os princípios” (p.94);
entretanto, o “órgão”, embora composto por homens do século XX, perpetua visões
legitimadas pela tradição passada de geração a geração: a mulher é sempre a maior culpada! A
voz dos “senhores juízes” produz-se de acordo com uma mentalidade que, mesmo
reconhecendo a culpa dos homens, considera as mulheres também culpadas. A fala de um dos
juízes, em resposta à denúncia das mulheres sobre o desrespeito feito pelos homens é bem
sintomática: Nada fizeram, bem se vê. Deixaram-nos desencaminhar-se, dormiram
convosco, sentiram prazer, agora querem colocar as culpas nos ombros dos coitados?” (p.95).
Todavia, nesta nova era, os “homens do poder” culpam tanto os maridos quanto as esposas e
todos devem pagar para aplacar a ira dos defuntos: Trazei cada um de vós uma galinha para
pedir perdão aos mortos” (p.95).
Com ironia, portanto, a escritora-intelectual, tanto na caracterização da personagem
Sianga quanto no resgate” do ritual nos mostra possíveis reconfigurações de discursos de
poder, que se adequam a contextos, circunstâncias e interesses. Entretanto, são “ambientes de
memória” como estes que servem de unidade identitária para uma “comunidade afetiva com
“fome de espírito”, ou seja, em busca de valores, crenças e rituais que garantam os laços
identitários e a união do grupo em torno de problemas e fragilidades comuns:
95
Os homens não aceitam a indiferença dos deuses e tentam despertá-los do sono
secular sacudindo-os com rezas, rituais, batucadas, sangue de galo e de cabrito
cujas carnes tenras acabam nos estômagos dos que possuem garras e dentes. Há
rumores nas ruas a qualquer hora do dia e da noite. São os homens que vão e
voltam dos tribunais; são mulheres que partem para a limpeza da terra, regressando
com as mãos conspurcadas de tanto esgaravatar à procura dos vestígios dos seus
crimes. Há arrependimento, há pureza, há santidade nos corações de todos. (p.95)
O trecho parece fazer um balanço do movimento gerado pela retomada do mbelele na aldeia.
O movimento/evento, mesmo alimentado por contradições, atos de fingimento e
questionamentos, encenou em um “como se fosse aos moldes ancestrais e acabou por
mobilizar a comunidade em prol de uma crença comum; fortalecer, pelo menos durante
aquele período, os laços dessa comunidade afetiva; e favorecer a reconstrução da memória
coletiva. No último dia da semana sagrada, somos informados de que todos têm um papel a
cumprir para que as mulheres realizem o Mbelele e, neste “clima”, os anciãos – avôs e avós –
cuidam dos netos e lhes explicam o grande acontecimento:
Dorme, meu queridinho, que ela tarda vir. Está longe, correndo debaixo do Sol
abrasante, gritando, cantando, para que as nuvens escutem. As rezas e as ofertas
falharam. Os papás falaram com os deuses da mãe e deuses do pai e falharam. a
nudez das mamãs quebrará o silêncio dos ventos, porque a mulher é a mãe do
universo. (p.98-99)
Nessa oportunidade, um outro ambiente de memória é “convocado”, instalado na
narrativa e, como espectadores-ouvintes, entramos em contato com um diálogo de
antagônicos, pois não há uma confluência de crenças e saberes, e os netos, mesmo ouvindo os
avós, escutam os cânticos com outros ouvidos, ouvidos cristianizados:
Escutas a música que se ouve, avô? Vem de longe, vem das nuvens, parece ntico
dos anjos. Avô, conheces os anjos? Alguma vez viste um? Eu vi, no catecismo lá na
igreja. São brancos, vestem roupas brancas, compridas, m cabelos claros e lisos
como as barbas de milho. Vivem no u azul límpido, tocam trompetas, cantam
com Deus ao lado do Sol. (p.99)
Este diálogo entre netos e avós – presente e passado nos mostra a memória coletiva
em reconfiguração, pois este “ambiente de memória” encenado/(re)criado, resulta do
entrecruzamento dos tempos, constituindo-se, portanto, em um terceiro-espaço, um espaço de
ambivalência tecido entre os mais velhos e os mais jovens:
As vozes que escutais são dos anjos que vivem no céu; são vozes dos seres que
vivem no Guemetamusse, aldeia onde nunca ninguém chega, onde o céu se casa
96
com a terra. São as vozes de chuva, do mbelele. Os anjos da paz caminham nos
campos purificando a terra. Não podem ser vistos pelos olhos dos homens. Quem
os vê, recebe dos deuses o castigo supremo; nele se encarnam todos os maus
espíritos; vê-los conduz à cegueira e impotência sexual, e nos casos mais severos
pode-se ser fulminado pelo raio da morte. Agora meus filhos sabeis de toda a
verdade. Quem quiser vê-los que vá ao campo caçar borboletas e fisgar pássaros.
Aqui não prendemos ninguém, apenas protegemos, quem quiser que vá. Ah, são
vozes de chuva, são vozes do mbelele e trazem a música de paz de todos os pontos
da terra. As vozes são belas, sim. A curiosidade é um grande mal, perdoa-nos avô,
ficaremos aqui na segurança da tua proteção. (p.100)
Num discurso tecido tanto com elementos da tradição ancestral moçambicana quanto
com outros da crença cristã, o avô rasura o discurso catequizador. Como estratégia de
sobrevincia, constrói na terceira-via outra leitura possível do mbelele que, em
deslocamento, é transmitido para a nova geração, para as crianças. O ritual “reformatado”
caminha para o seu desfecho com uma cerimônia, em que todos da aldeia participam:
Todo o povo se encontra na clareira circular aberta com enxadas e suor, ao lado do
templo dos espíritos. As mulheres fazem um grupo, os homens outro, mesmo as
crianças se dividem em grupos e por sexos. [...]
Num canto do círculo as fumaradas das fogueiras pincelam o ar. Tambores e
tamborins aguardam a vez de ser aquecidos. Ouvem-se os bum bum soltos, os
instrumentos da música ritual estão a ser afinados, a orquestra vai ser bela.
Cessou o movimento das chegadas, o povo inteiro cumpriu o horário
religiosamente. Os mestres do ritual transpõem as portas do templo, os músicos
colocam-se na posição certa, estão prontos. Os curandeiros, adivinhos, mestres
eleitos, desfilam exibindo vestimentas de gala preparadas para a ocasião. (p.101)
Essa passagem nos instala no âmago da cerimônia. O leitor-espectador pode até ouvir
o rumor dos instrumentos de percussão. A organização espacial remete às crenças e
hierarquias tradicionais, que na contemporaneidade ganham novos contornos, tal como o
ritual reconfigurado por Sianga.
A presea de um narrador, que absorve em sua fala os elementos da ambientação,
pode explicitar algumas das características apontadas por Terezinha Taborda Moreira (2005)
quando cunha a expressão narrador-perfomático. Segundo Moreira (2005), o narrador-
performático, em sua fala, destaca características das lendas, dos contos orais e, desse modo,
conduz-nos ao ambiente de encerramento da cerimônia: O sol a última olhadela e morre
contente. Vai contar aos mortos que na terra há luta e sacrifício na esperança de fazer
sobreviver o homem negro(p.102). Neste continuum ritualístico, o narrador-contador traz à
cena o canto da aldeia:
A wu nguene moya / que venha o espírito
He moya / Oh, espírito
Namutla ku ni moya/ Hoje chegou o espírito
97
He moya/ Oh, espírito (p.102)
Este canto, escrito em duas línguas, mostra-nos a preocupação de fazer a narrativa dialogar
com a oralidade, ao mesmo tempo em que permite ao leitor perceber, na tradução para a
língua portuguesa, os sentidos do canto. Em outras palavras, o espaço ficcional é utilizado
para legitimar o diálogo entre estratos culturais e tradições diversas, para mostrar /registrar a
solenidade do canto ancestral. Nesse sentido, relembramos as falas da escritora, discutidas no
capítulo dois desta dissertação, para dizer das dificuldades que enfrenta ao escrever em língua
portuguesa e ocupar um lugar de escritora de “expressão portuguesa”, pois, como ela mesma
acentua
[o]s momentos mais sagrados da minha vida ou da vida de qualquer indivíduo
podem ser expressos na ngua que aprendemos desde o primeiro momento. [...]
Nem uma expressão de amor, nem uma expressão de amargura, nada que se pareça,
não pode ser em português. (CHABAL, 1994, p.300).
Portanto, na encenação deste momento rituastico, a escritora-intelectual, respeitando
um momento sagrado”, não se permite realizar o registro do canto apenas em língua
portuguesa, pois o canto que ouvimos” nos remete a umambiente de memória vivo,
pulsante, que também convida aos de sua aldeia à dança ritualística, rememorada pelos da
comunidade afetiva:
Os corpos mergulham na dança imemorial e sem idade. [...] Os gritos dos tambores
despertam a terra que adormece, o povo anestesia-se com o lenitivo das suas vozes,
as vibrações sonoras atingem o além-túmulo e o coração da selva que é residência
dos deuses e estes, compreendendo os gritos e lamentos dos seus protegidos,
respondem numa voz única que é o tumulto do sangue: Presente. (p.102)
Como o trecho nos mostra, a dança ritualística é vivenciada naturalmente pela
comunidade afetiva, pois é imemorial. O trecho parece nos indicar as permanências de gestos
e comportamentos, fragmentos de uma herança gestual de um universo cultural que, mesmo
em contexto convulsionado, pode ser reconstruído neste “lugar de memória”. Porém,
simultaneamente à dança, o narrador-contador alerta para a resposta dos deuses aos lamentos
dos homens e a resposta é o tumulto do sangue: Presente”. Neste trecho, o leitor-espectador é
informado da impossibilidade do sucesso do mbelele. Além disto, o narrador-contador
também nos informa que Sianga e o povo da aldeia, em coro, realizam uma oração ritualística
para encerrar a semana ritualística:
98
-Escutai, escutai filhos de Mananga!
- Siavuma! – todos respondem em uníssono.
- São os espíritos da Mananga que falam.
- Siavuma!
- Ouvimos as vossas preces.
-Siavuma!
- Ouvimos as vossas lamentações.
- Siavuma.
- A chuva cairá! (p.104)
As vozes que escutamos a do narrador, a de Sianga e as do povo de Mananga nos
mantêm sintonizados a esse ambiente de memória, encenado como resultado de cruzamentos
culturais. A oração ritualística, ao mesmo tempo em que remete “aos espíritos de Mananga”, é
tecida por uma espécie de ladainha indicada pela repetição do termo “siavuma”. Entretanto,
mesmo neste clima de celebração, Mungoni insiste em alertar o povo sobre a farsa de Sianga.
Interessante salientar que, na narrativa, esse célebre adivinho apresenta suas desconfianças
quanto a Sianga mobilizando tanto os seus recursos de premonirios quanto analisando os
fatos que os rodeiam. Essa personagem, portanto, parece ser outro signo desse tempo em que
o laico e o sagrado conformam uma possibilidade de leitura de mundo:
- Sinto apenas o fogo, o fogo que me queima, há fogo no ar.
- Fogo? E de onde vem esse fogo?
- Vem dos montes e corre fluido dos canos dos homens do Sianga.
-Explica-te, homem!
-Sois cegos, meu povo? Não vêem? Não sentem? (p.104)
Ao mesmo tempo em que usa argumentos concretos para convencer o povo de que o
mbelele é uma “farsa”, o adivinho entra em transe e repete: “– Sangue, sangue do ovo e do
filho do homem, sangue!” (p.105). Portanto, Mungoni, signo da cultura tradicional, faz-se
mostra de diferentes discursos, fundamentando sua opinião tanto no domínio transcendental
quanto no racional-concreto.
Importante ressaltar que não era intenção de Sianga, como já vimos, finalizar o
mbelele. Mas o desenrolar do ritual, em algum momento, escapa-lhe. Esse hiato entre o
projeto inicial de Sianga e o processo “natural de reconstrução do ritual parece ser uma
estratégia do processo narrativo para acentuar que os movimentos da memória e da História
são resultado de muitos discursos e interesses. Esse processo ambivalente entre “verdade e
mentira” parece nos mostrar alguns dos paradoxos identitários que compõem a memória
coletiva da comunidade de Mananga, pensada como metomia de Moçambique.
Por conseguinte, o mbelele explicita tanto os trânsitos possíveis da memória coletiva,
sempre em reconstrução, bem como o uso do espaço do romance como um “lugar de
99
memória”, encenação “de um ambiente de memória”. Nesta perspectiva, também se torna
necessário lembrar que Chiziane, ao criar esse ambiente de memória em sua escrita, evidencia
uma parte da memória coletiva que se confronta com todas as complexidades de um novo
tempo, a contemporaneidade. Nesta escrita deslizante, o leitor-espectador é jogado de um lado
a outro, pois não há verdades instaladas, mas apenas construções de significados,
reconfigurações.
4.2 O velho, o ancião em ambientes desfigurados de memória
Como vimos no segundo capítulo desta dissertação e no início do terceiro, a partir dos
estudos de Amadou Hampaté (1980), a tradição nas sociedades africanas relaciona-se
umbilicalmente com a transmissão oral e é essa transmissão oral que garante a formação e a
coesão da comunidade. “A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona
todos os aspectos” (HAMPABÂ, 1980, p.183).
O estudioso nos diz que “[o]s grandes depositários da herança oral são os chamados
tradicionalistas”. Memória viva da África, eles são suas melhores testemunhas. Quem são
esses mestres?” (HAMPABÂ, 1980, p.187). Os tradicionalistas são os responsáveis pela
guarda, manutenção e transmissão da herança cultural, com a utilização da fala viva e de sua
relação com ambientes de memória. Como acentua Hampaté Bâ, a formação de um
tradicionalista bem como a educação de todos os indivíduos numa aldeia começa,
[...] em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas mais
idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira lula
tradicionalista. São eles que ministram as primeiras lições da vida, não somente
através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas, lendas,
máximas, adágios, etc. O provérbios são as missivas legadas à posteridade pelos
ancestrais. Existe uma infinidade deles. (HAMPA, 1980, p.194)
Nesse “ambiente de memória”, próprio das culturas tradicionais, atualizava-se a
memória coletiva e consolidavam-se os laços identitários de um grupo/clã/aldeia/povo.
Coerente com esta perspectiva, Fernando Catroga (2001), no artigo Memória e História,
exe que a relação entre a memória individual e coletiva é íntima, pois ambas coexistem e se
formam em simultâneo, construindo, assim, laços identitários. Esta identidade será a
referência tanto para o reconhecimento do indivíduo como pertencente a um clã/grupo como
do sentimento individual de pertença a esse grupo. Nesse processo, a memória individual é
100
também a memória familiar e grupal, pois o indiduo, ao rememorar algo importante para
si, trabalha com o material da memória coletiva que se desenvolve a partir de laços, de
vivências familiares, escolares e profissionais como também defende Maurice Halbwachs
(1990).
Portanto, em sociedades tradicionais, uma relação direta entre uma memória
individual e coletiva, e, neste sentido, conseguimos avaliar o peso” da tradição na construção
da identidade de um grupo, de uma comunidade africana tradicional. Levando em
consideração os dilemas vivenciados por Moçambique na contemporaneidade, indagamos:
Como Chiziane, assumindo o papel de escritora-intelectual, reelabora, em sua narrativa de
nação, o lugar do velho, do ancião, do transmissor de conhecimentos? Como o encena a partir
dos deslocamentos entre “ambientes de memória” e os novos padrões ditados pela moderna
sociedade?
Salientamos que no segundo capítulo desta dissertação, ao discutirmos o papel do
narrador vendo-o com características do sábio contador de histórias das culturas tradicionais
examinamos como a escritora-intelectual, no processo de enunciação, ao criar um narrador-
contador, um narrador-performático, destacou a importância desta função. Neste momento,
porém, enfocaremos, fundamentalmente, por meio dos enunciados do romance Ventos do
apocalipse, a condição propriamente dita do velho, do ancião, como transmissor de
conhecimento nesta situação intervalar de guerra civil. Nesse sentido, refletiremos sobre
como esse ambiente de memória” é encenado. Para esta análise, dois momentos da narrativa
são cruciais: o primeiro se dá quando Mananga é atacada; o segundo, já no Monte, quando em
uma conversa entre jovens e velhos ouvimos sobre os dilemas quanto ao futuro da nação.
Passemos às discussões.
Como anteriormente argüido, o ataque sofrido por Mananga, em nossa leitura, faz-se
metomia da hecatombe vivida pela sociedade moçambicana ao longo período da guerra
civil. Ao ouvirmos, por meio da voz da intelectual, presente em tantos momentos da narração,
que a “[s]ociedade está desorientada, deambula nas trevas da amargura, e mais do que nunca
precisa de um conforto de espírito (p.130), somos levados a considerar um duplo
movimento: compartilhar das dores das timas e refletir sobre alguns dos dilemas vividos
pela sociedade a que pertencem. Nesta situação apocalíptica, por meio de um discurso
formulado na terceira pessoa do plural, somos informados das perdas e vazios que assolam
esse povo que, com o processo colonizatório, foi submetido à cristianização, momento em que
tiveram suas crenças/cultura silenciadas. na independência, esse mesmo povo foi obrigado
a renunciar “às aprendizagens” do período colonial, bem como a ratificar o esquecimento de
101
antigas crenças, consideradas obscurantistas. Agora, onde devem as pessoas buscar conforto?
A citação abaixo traz para a cena do romance essas questões:
Na aldeia já não há igreja. Restam apenas ruínas do edifício por nós construído com
suor e sangue à custa do chicote português. Destruímos este monumento na euforia,
porque tínhamos conquistado a liberdade. O Deus daquela igreja veio com os
colonos. [...] O que queríamos era construir uma sociedade sem igrejas, nem
padres, nem papas brancos. Os padres pé-descalços invadiram depois a aldeia,
havia-os aos montes mas agora fugiram da fome. (p.130)
Neste trecho, a escritora, como agente de uma enunciação coletiva, parecer querer
acentuar tanto as descontinuidades culturais vivenciadas pelo seu povo como as angústias
causadas por estes processos. E, sob esta perspectiva, é importante destacar que a voz
narrativa o produz um discurso ingênuo sobre os processos culturais, pois, a nosso ver, os
entende como construções e ressignificações que, no processo colonizatório e
descolonizatório, deram-se de maneira conflituosa e ambivalente. Nesse sentido, Ventos do
apocalipse se aproxima dos costumes legitimados pelos rituais da “contação exemplar”, do
processo de contação estórias para (in)formar os ouvintes em um contexto intervalar de
guerra civil – entre descontinuidades e continuidades, o retorno às rzes culturais:
A população desvairada chama pelos mais velhos da tribo, pelos conselheiros, pelos
curandeiros e adivinhos. É preciso falar com os defuntos, os vivos têm sede das
palavras de consolo. Os mais idôneos conferenciam. (p.131)
Nesse contexto convulsionado, os mais velhos são a referência maior e as providências
quanto aos mortos devem ser tomadas a partir de suas instruções, pois, segundo a tradição
A cada morte deve ser dado um funeral de acordo com as condições de sua
ocorrência. Os que dormem não morreram de doença nem de velhice. Qual é a
solução para casos destes? (p.131)
Todavia, onde estão estas referências, estes ambientes de memória” que orientam e
são capazes de dar coesão às ações da comunidade afetiva, de avaliar o passado, o presente e
demarcar os caminhos em direção ao futuro? O apelo ao mais-velho, neste momento, é
significativo: - Chamai o Chilengue, o conselheiro fiel da nossa tribo, que conhece todas as
leis desde os tempos do primeiro homem(p.131). Como resposta, pela voz do narrador que
compartilha o seu lugar com a da intelectual, ouvimos sobre o desaparecimento destes
ambientes de memória”:
102
- O Chilengue? Esse dorme o sono pacífico de todos os anjos. Tem a caba
rachada por um golpe de machado. Aquela cabeça augusta ficou cortada no fronte.
Toda aquela nobreza e sabedoria ficaram divididas em carne, caixa craniana e
cartilagens. Os olhos saíram das órbitas. Até o cérebro saiu à luz para exibir ao
mundo o seu cinzento invulgar na história dos homens. (p.131)
Neste trecho é possível perceber tanto um campo semântico fortemente marcado por
referências ao macabro, desenhando o cenário de morte e destruição dos velhos, como a visão
critica que acentua a importância do velho nas sociedades africanas, permitindo que se pense
na afirmação de Hampaté sobre a função dos velhos-sábios da tradicição ancestral: “Em
África”, diz o pensador malinês, “quando um velho morre é uma biblioteca que arde!”
(HAMPA apud RODRIGUES,2009,p.35). Não por um acaso, no trecho citado, a parte
do corpo do ancião afetada é a cabeça, não qualquer cabeça, mas sim uma cabeça “augusta”
que, metaforicamente, remete-nos à biblioteca aludida por Hampaté Bâ.
No romance de Chiziane, a chegada do tormento não faz com que os aldeões
desesperados desistam. Eles buscam proteção das balas, pois é preciso preservar a
continuidade da aldeia. Para isso procuram a sabedoria dos mais velhos: o [...] Timane que
herdou a sabedoria dos antigos ngunis para preparar a magia que torna os homens vulneráveis
às balas” (p.131). Logo percebem que Timane está muito ferido e vai morrer sem realizar o
ritual, sem transmitir esse ensinamento. Buscam Bingwane
12
, capaz de fazer “vomitar todos
os horrores que se viveram” (p.132):
- Oh, essa está viva e sem única ferida. Deambula pela aldeia de trouxa à caba e
fala português que ninguém sabe onde aprendeu. Diz que os portugueses virão
buscá-la para a terra deles onde o nem pretos nem guerra. Esta desmiolada.
(p.132)
Ironicamente a referência à palavra viva de velhos, cuja cabeça “é um capítulo, um
livro, uma enciclopédia, uma biblioteca” (p.132) remete a Bingwane, que, embora sem
nenhuma ferida, está desmiolada: fala em português e quer ir para Portugal, “terra em que
o tem nem pretos nem guerras” (p. 132). De certa forma, a personagem parece não manter
mais laços identitários com o seu grupo e pode ser lida como significante desse “ambiente
desfigurado de memória ”: o lugar dos velhos, dos anciãos como transmissores da tradição em
desmanche, convulsionado, em que a fluência natural da memória está rasurada e, embora
viva, está desmiolada. Entretanto, esta condição pode ser transitória, pois sua insanidade pode
se dissipar. Neste sentido a imagem provocada por esta personagem nos remete à condição
12
O nome da personagem é grafado de duas maneiras no romance: Bingwana e Bingwane. Optamos pela grafia
Bingwane.
103
dessa nação em construção: viva, mas desmiolada. Essa condição, que pode ser transitória,
apresenta-se em total descontinuidade, e, como estratégia discursiva, ratifica estas perdas pela
voz do narrador-contador, que lamenta as mortes dos velhos, a morte da tradição, a morte da
memória coletiva:
Ah, pobreza deste povo. Nem padres, nem conselheiros, nem velhos, a tribo está
desorientada, somos ovelhas perdidas, somos ófãos. Mataram os velhos, mataram
os novos. O povo não tem biblioteca. As cabeças foram decepadas e em breve será
o enterro. Semearemos entre as pedras os segredos da vida e da morte, a sabedoria
da água e da nuvem. Reina em nós uma escuridão absoluta, que faremos agora?
(p.132)
Surpreendentemente, após as lamúrias e o desespero, ouvimos que ainda há um ancião
que sobreviveu à tragédia: Simonhane, que é procurado pela aldeia para “[...] dizer-nos a
sentença dos oráculos” (p.132). Pela boca do narrador somos informados de que o adivinho
[...] atirou os ossículos para o fundo da latrina porque diz que lhe segredam amarguras
maiores que esta” (p.132). No entanto, mesmo desiludido com a mensagem dos defuntos, em
meio à hecatombe, Simonhane se movimenta:
Tenta pensar e descobre que a memória sofreu grande abalo. Descola o traseiro do
chão. Levanta-se. Leva a mão direita ao joelho e ampara-o para caminhar.
Cambaleia. Sente a coluna mais fortificada, larga o joelho e caminha erecto.
(p.133)
Por meio desses movimentos cambaleantes, visualizamos a condição desse
sobrevivente que também indica a sobrevivência da tradição. Entretanto, Simonhane, ao tentar
falar às crianças, constata: “Estão surdas, estão mudas, estão quase mortas” (p.133). Neste
contexto, esta fala/desabafo do ancião nos sinaliza para o futuro desta nação, nação esta que
se constrói sob a beligerância material e cultural, sob a desfiguração de seus “ambientes de
memória”.
Chiziane como escritora-intelectual, fazendo do espaço da escrita um possível “lugar
de memória”, delega a Simonhane uma função que se mostra no modo como ele assume o
lugar de transmissor de experiências da coletividade: Senta-se na sombra, no meio das
crianças apinhadas. Tosse. Pigareia. A memória regressa e percorre os caminhos da infância.”
(p.133). Ao começar a contar, como se fosse ao redor de uma fogueira “[...] histórias dos bons
e velhos tempos” (p.134), isto é, ao encenar este “ambiente de memória, ele propicia que as
crianças “murchas” recuperem o vigor, sintoma de vida. Simonhane, ao contar a história da
destruição do último khokhole (fortaleza) de Mananga, também transmite aos seus ouvintes o
104
respeito que havia às mulheres, às crianças e aos velhos nas guerras de outros tempos,
diferentemente dos tempos atuais. E, ao dar continuidade à sua contação, Simonhane permite
ao leitor-espectador visualizar as crianças e o ambiente de contação e interagir com o
contador, com o sábio:
- Como? O que é isso de guerras antigas?
- Ah, meu menino. Tens razão, nasceste hoje. [...]
- Mas, avô, guerra é sempre guerra.
[...]
- E como é que eram os khokholes?
[...]
- Dentro do khokhole cabiam todas as pessoas?
- Claro que não, menino, claro que não. [...] (p.134-138)
É bastante significativo que, ao encerrar a contação, Simonhane morra, pois esse
desfecho parece significar a morte dos “ambientes de memória bem como a dos
transmissores da memória coletiva”, que nesta contra-narrativa de nação assume o
protagonismo. No entanto, esse momento da narrativa constrói outros possíveis significados
que merecem ser destacados. A contação e seu desfecho – a morte de Simonhane – ao mesmo
tempo em que mostra a destruição das “bibliotecas vivas”, de seus ambientes de memória”,
também indica a possibilidade de a destruição poder, de certa forma, ser impedida porque a
escrita do romance encena uma possível salvação, transformando-se, como temos acentuado,
em umlugar de memória”. E como um “lugar de memória” o romance pode encenar
ambientes reconfigurados ou até mesmo desfigurados, pois, ao indagar sobre o
desaparecimento destes ambientes e de suas tradições, estes passam a existir no espaço da
ficção, da textualidade literária. Nesse sentido, segundo Nora (1976):
À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a
acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos,
sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se
tornar prova em que não se sabe que tribunal da história. (NORA, 1976, p.15)
Outro momento marcante nesta contra-narrativa de nação, que mostra a tradição e o
lugar do velho colocados em xeque, é o diálogo entre os jovens e os velhos no Monte. Este
diálogo ocorre em um momento muito curioso: uma reunião para se discutir as provincias
para a celebração da missa católica na festa de ação de graças pela paz que, aparentemente,
reina na “nação imaginada”, bem como as provincias celebrativas relacionadas aos defuntos
e aos ancestrais. Sob o efeito do álcool, as separações entre velhos e novos se quebram e
instala-se “o conflito de gerações:
105
Na reunião dos homens os mais velhos é que falam e os jovens escutam. É a
tradição. Mas à medida que o álcool corre quebram-se as regras do jogo. O jovem
Mundau é o primeiro a destravar a língua e a falar com uma arrogância sem limites.
- Uma cerimônia para os defuntos? Vós sois mais casmurros que os burros, ó
velhos. Os mortos são para ser esquecidos. (p.264).
Notemos que nem na aldeia do Monte, para onde os sobreviventes migraram, lugar no qual o
bombardeio da guerra ainda não chegara, estabilidade. Pelo contrário. Nesse espaço
também a tradição e o lugar do mais velho são questionados, tensionados, pois todos têm
compartilhado o mesmo tempo convulso. Ao ouvirmos na citação a voz do jovem
desterrrado, parece que, na contramão, percebemos a voz da intelectual denunciando o
descaso dos novos tempos com os ancestrais, considerados um dos pilares da cultura
tradicional mambicana, sempre encenada em conflito no romance:
Os velhos levantam vozes agressivas. Estão ofendidos. Repreendem. Condenam.
Recordam os velhos tampos da moral e respeito. Por instantes, gera-se um conflito
de idéias expressas com palavras azedas. É o conflito de gerações. Os jovens estão
contra os velhos. Na família polígama a mulher nova está sempre contra a mulher
velha. (p.265)
Este conflito, nesta contra-narrativa de nação, é representado por um intenso debate entre os
jovens e os velhos quando aqueles cobram destes os inúmeros rituais que realizaram para os
defuntos sem alcançarem sucesso, inclusive o mbelele: “O culto aos antepassados é coisa para
velhos e não para novos” (p.265). Neste sentido, destacamos que o olhar da intelectual disseca
os rios conflitos que podem ser percebidos no âmago de sociedades tradicionais nas quais
os “lugares e fuões” são por vezes rigidamente demarcados. Mas neste contexto de
desmanches e deslocamentos, as descontinuidades passaram a marcar de maneira indelével
esta sociedade.
Nesta perspectiva, percebemos que essa contra-narrativa de nação se configura como
um “lugar de memória” privilegiado, pois encena o desaparecimento dos ambientes de
memória com a ajuda de várias vozes sociais. É neste “lugar de memória” que Mungoni,
ancião e adivinho, sobrevivente à hecatombe, em tom professoral próprio dos velhos sábios
de todos os tempos, ensina aos mais jovens:
- Minha gente. Falar dos defuntos o é falar dos corpos mortos, das caveiras, dos
ossos, da cinza e do . Falar dos antepassados é falar da história deste povo, da
tradição e não do fanatismo cego, desmedido. Não há novo sem velho. O velho lega
a herança ao novo. O novo tem a sua origem no velho. Ninguém pode olhar para a
posteridade sem olhar para o passado, para a história. [...] Aquele que respeita a
106
morte respeita também a vida. Acreditar nos antepassados é acreditar na
continuidade e na imortalidade do homem. (p.265)
As falas do adivinho/ancião deixam transparecer a voz da intelectual e, além de
fazerem um balanço da situação cultural, também parecem sinalizar ao povo uma possível
solução, fugindo do binarismo velho versus novo por meio de uma terceira via. Uma via que
permite reconfigurações, pois os tempos não estão isolados. Neste trecho a voz de Mungoni
faz eco ao entendimento que Bhabha (2007) tem sobre esta questão, a relação entre passado e
presente:
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja
parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma idéia do novo como ato
insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa
social ou precedente estético; ela renova o passado refigurando-o como um “entre-
lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-
presente” torna-se parte da necessidade, eo da nostalgia, de viver. (p.27)
Portanto, não dicotomia entre o passado e o presente, há um novo tempo “passado-
presente” e, neste sentido, as palavras de Mungoni bem como as de Bhabha (2007) iluminam
o trabalho artesanal realizado pela escritora-intelectual em Ventos do apocalipse, uma vez
que este “passado-presente” permeia toda a sua escrita de nação, a lembrar da abertura do
romance, o prólogo. É neste viés, por meio da voz de Mungoni, que a escritora-intelectual diz
da importância dos “ambientes de memória”, dos “lugares de memória”:
- Comparemos então as tradições antigas e as novas. Todas as religiões novas têm
celebrações especiais em datas específicas. Celebram o nascimento e a morte dos
seus profetas. Oferecem sacrifícios, pedem-lhe bênção e a clencia, rendem
homenagem aos sacerdotes, vivos e mortos. Os povos de todo o mundo constroem
mausoléus e estátuas e depositam flores em homenagem aos seus heróis. Todas
estas realizações o são mais do que uma nova face do culto dos antepassados.
Fazer uma cerimônia dedicada aos defuntos da família, da tribo, ou do clã é render
uma homenagem à tradição, à história, à cultura, minha gente! (p.266)
Este trecho, a nosso ver, confirma mais uma vez nossa percepção de que o escritor-intelectual
deve desconstruir “estereótipos e categorias redutoras” (SAID,2005, p.10). Chiziane, por
meio da “voz” de uma personagem, ao examinar como povos diversos rendem homenagem ao
passado aos antepassados, à tradição leva o seu leitor, e, possivelmente, os jovens de sua
nação em construção, a pensar sobre o valor e a importância destes elementos para o
fortalecimento da identidade cultural tão esgarçada pelos tempos incertos percorridos por sua
sociedade. Nesta avaliação, acrescenta:
107
O confronto entre a cultura tradicional e a cultura importada causa transtornos no
povo e gera a crise de identidade. Estamos tão sobrecarregados de idéias estranhas
à nossa cultura que da nossa gênese pouco ou nada resta. Somos um bando de
desgraçados sem antes nem depois. O jovem que é eleito para a nova liderança leva
dentro de si o conflito que irá desencadear a crise no sistema por ele dirigido. Vêm
daí a ineficiência e a decadência. Se ele o sabe quem é nem de onde vem,
logicamente que não saberá por onde deve caminhar. Qualquer desenvolvimento só
é perfeito quando tem uma raiz que o sustenta. A árvore cresce bem quando
repousa sobre o solo fértil e seguro. (p. 267)
Esse discurso de matiz engajado no âmbito da literatura não mostra apenas a condição
pós-colonial moçambicana e algumas de suas conseqüências. Evidencia também a
necessidade de construção de uma identidade própria, que Ventos do apocalipse, como
contra-narrativa de nação, por meio de diferentes estratégias, mostrou ser possível: uma
identidade constituída/constrda por meio de processos ambivalentes, ocupando um terceiro-
espaço entre continuidades e descontinuidades, entre passado e presente. Uma identidade
nacional tecida com as vozes violentadoras das margens, com as memórias subterrâneas que,
neste romance, alimentaram a produção de um discurso de nação heterogêneo e agregador da
diferença. Essa nos pareceu ser a percepção desta escritora-intelectual que se empenhou em
testemunhar sobre os silêncios e os silenciados de sua sociedade, de sua região, de sua nação,
utilizando o espaço da literatura e fortalecendo diálogos intensos entre a História e a ficção.
108
5 “ COMO UM CÃO QUE FAZ O SEU BURACO, UM RATO QUE FAZ A SUA
TOCA...
Paulina Chiziane, ao construir Ventos do apocalipse, desempenha seu papel de
escritora-intelectual, como examinamos neste estudo, justamente por fazê-lo “como se fosse
um grito de desabafo”, “uma viagem aos infernos da guerra que assolou o seu país”.
Produziu uma escrita “a quente”, como nos disse o escritor moçambicano Luís Carlos
Patraquim,em resenha crítica no ano do lançamento da obra em Portugal
13
. Como escritora-
intelectual, ao publicar Ventos do apocalipse pela primeira vez em 1993, Chiziane não se
limitou às circunstâncias da época, isto é, a seu lugar de exílio metafórico como mulher
escritora, muito mais forte naqueles anos se comparado com a atualidade e recente cessar
fogo da guerra civil. Não se inibiu, não se calou, escreveu. Trouxe à vida muitos “cadáveres”
que uma narrativa de nação oficial provavelmente “enterraria”. Nesse sentido, lembramos
que a escritora-intelectual dedica sua obra Á G.E.T.U.P (Grupo Especial de Trabalho nas
Unidades de Produção) - Um grupo de jovens lutadores pela liberdade que a história se
esqueceu de registar. (p.5).
Sua dedicatória trouxe à lembrança o que ficou de fora dos registros da história
oficial
14
. É a partir do seu registro literário então que somos levados a pensar sobre muitos
outros “esquecimentos” até então desconsiderados pela historiografia nacional, mas que têm
sido “lembrados”, muitas vezes de maneira magistral, pela literatura. A escrita de nação
proposta por Paulina Chiziane é elaborada como se esta fosse uma
[c]ronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os
pequenos, leva[ndo] em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode
ser considerado perdido para a história (BENJAMIN, 1994, p.223)
Porém, como também vimos, Chiziane não apenas narrou sem distinguir! Ela o fez
por meio de um processo de escrita criativo, operando deslocamentos na ngua do
13
Chiziane finalizou a escrita de Ventos do apocalipse em 15/04/1991, antes da assinatura do acordo de paz em
Moçambique, mas só o publicou, pela primeira vez, em 1993.
14
É preciso considerar que os estudos de História, desde o Movimento dos Annales, liderados por Lucien Febvre
e Marc Bloch no final dos anos 1920 na França, têm avançado muito no que se refere aos temas e métodos de
pesquisa. Nessa esteira, a corrente de estudos aberta pela História das Mentalidades, em fins dos anos de 1960, e
consolidada pela Nova História Cultural nos anos de 1970, tem garantido a incorporação de novos temas – como
mentalidades, micro-história, história da vida privada, história do cotidiano, história do gênero, história da
sexualidade, enfim, a história dos modos de viver e sentir das minorias – aos estudos históricos mundiais.
109
colonizador por exemplo, quando insiste em trazer para o romance elementos da cultura
oral, quando opta por este gênero literário, próprio da estética européia e o reconfigura a partir
de elementos de sua cultura isto é, produzindo uma literatura própria por meio de um
processo de desterritorialização e reterritorialização de lugares, concepções e discursos de
poder.
Chiziane, a nosso ver, ao elaborar a arquitetura discursiva em Ventos do apocalipse
no intervalo entre o mito e a História; ao recriar o papel do narrador tradicional em sua escrita
/contação; ao rasurar a língua colonizadora com registros de línguas moçambicanas, o
somente se construiu como escritora de “expressão portuguesa”, mas também construiu uma
literatura moçambicana de “expressão portuguesa”, uma literatura, portanto, de terceira-via,
como examinamos.
O narrador polifônico, distanciado, que “empresta” sua voz ou seu lugar de fala a
outros narradores como o da tradição oral e o da intelectual bem como a diferentes
personagens, isto é, ao partilhar o esforço da narração em Ventos do Apocalipse, encaixa
micro-histórias em uma macro-história, e, assim, apresenta-nos as múltiplas e complexas
realidades possíveis em uma Moçambique que é o cruzamento dos tempos: passado e
presente.
Nesta trilha, a escritora-intelectual, a nosso ver, “[e]screv[e] como um cão que faz seu
buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontr[a] seu próprio patoá, seu próprio
terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATARRI, 1977, p.29). Como um cão
farejador, Chiziane buscou com a escrita deste romance, tanto pelo enunciado quanto pela
enunciação, mostrar a condição intervalar de sua nação.
O seu patoá, de acordo com nosso ponto de vista, consolidou-se na medida em que a
escritora trouxe elementos de sua cultura tradicional, em choque com a oficial, e os encenou,
deslocando lugares e valores, rearranjando no espaço da escrita neste outro “lugar de
memória” que também encenou “ambientes de memória” – o como se da nação moçambicana
em contexto de guerra civil. Entretanto, o romance de Chiziane e sua proposta de escrita não
se esgotam nisso. Ao produzir este discurso de nação no deslocamento de língua e linguagem,
a autora o faz com os “restos” temporais da pré-colonialidade, da colonialidade bem como
com os da s-colonialidade no cruzamento dos tempos, com seus “estilhaços” compondo
nas rupturas e permanências os muitos agoras”, como nos lembra Benjamim ao discutir
sobre o tempo presente. Em outras palavras, como temos repetido, a escritora mostrou-nos, a
partir das margens, um outro narrar desta nação em construção. Um narrar que, entre mito e
História, escrita e oralidade, passado e presente, tradição e modernidade, velho e novo se
110
constrói na ambivalência, nas descontinuidades, movimentos signo do processo de construção
de nações pós-coloniais, como Moçambique.
Chiziane em entrevista a Gil Filipe em 04/06/2008 diz sobre a necessidade que da
produção literária moçambicana criar uma identidade própria e, neste sentido, entendemos
que sua fala também sinaliza outros processos da nação em construção:
Esta o é uma crítica que faço aos outros, pois eu também sou alvo dela.
Reparemos numa coisa: a música é diferente da escrita, porque o músico, pelo
menos, canta na sua língua, explica a escritora, segundo quem “para você poder ser
bom na literatura, salvo algumas e raras excepções, tem que escrever em modelos
de A, ou de B, ou de C. Ora, bolas, que eu saiba, na nossa estética tradicional,
quando se vai contar um grande conto, primeiro começa-se pelos ditados ou
provérbios, etc. Essa é a estética da minha terra. Eu sou muitas vezes criticada e os
meus críticos dizem e escrevem que ‘a Paulina escreve coisas que não têm forma’.
E eu pergunto, forma de quê? foi muito bom eu aprender a ler e a escrever uma
língua que não é originariamente nossa”, comenta. (FILIPE, 04/06/2008)
Chiziane, consciente do papel de escritora-intelectual, ao produzir uma narrativa como
Ventos do apocalipse enfrentou este desafio, pois mobilizou as margens da moderna nação
tanto por meio do enunciado quanto da enunciação. Construiu, a nosso ver, uma narrativa
com identidade própria. Sua narrativa, como vimos, ao trazer para o protagonismo as
margens sociais os refugiados, a mulher, elementos da tradição, o ancião nos apresentou
signos da fragmentação do consenso cultural (BHABHA, 2007), do consenso de nação. Em
outras palavras, apresentou-nos, por meio de uma contra-narrativa de nação, uma outra
reconfiguração da memória, da História. Ao reencenar o mbelele o passado Chiziane
introduziu outras temporalidades, pois, no presente, reconfigurou o ritual nos cruzamentos
culturais que, segundo Bhabha (2007), [...] afasta qualquer acesso imediato a uma identidade
original ou a uma tradição ‘recebida’” (p.21), sinalizando deste modo para uma outra
construção da nação.
Esta narrativa literária, constituída em/de deslocamentos e deslizamentos de
“verdades” e de concepções historicamente constrdas e consolidadas, configura-se,
portanto, como locus privilegiado, pois neste espaço literário minorias, como vimos,
apresentam-se e são apresentadas como “margens violentadoras” de um discurso de nação
homogêneo e anônimo, em que
[o]s indivíduos não são o início nem o fim da narrativa nacional; [pois]
representam a fronteira divisória entre os poderes totalizantes do social e as forças
que significam os discursos mais específicos a favor do conflitual, dos interesses
desiguais das identidades diferenciadas dentro da população. (BHABHA, 2001,
p.541)
111
Ventos do apocalipse, portanto, ao trazer o indivíduo nomeado, identificado, no
espaço polífono favoreceu o cruzamento de vozes, mostras de discursos e lugares, que
compõem, certamente o universo real da nação moçambicana. Encenados neste espaço
literário, tais elementos se fazem representações possíveis” de histórias individuais e
coletivas que compõem o povo como espaço conflitual e não harmônico da nação. Desta
maneira, o romance acolhe a diferença sem hierarquia e a encenou nos jogos de poder. Esta
contra-narrativa produzida entre o mito e a História, de acordo com nossa leitura, não
sinaliza uma resposta, mas sim um caminho de leitura possível tanto do romance quanto do
contexto encenado por ele. Sinaliza ainda que a nação pode ser imaginada no espaço
conflitual do povo, da cultura, da identidade. Este narrar possibilita a ruptura com discursos
de poder e de nação que solapam a diferença, a dissonância. É preciso lembrar que a escritora-
intelectual, mesmo quando encena na peregrinão dos refugiados a gestação da utopia de
uma nação imaginada, não o faz sem rasuras, fissuras. Encena também sua impossibilidade,
encena a distopia presente em sua sociedade.
Sua contra-narrativa, portanto, na ngua e na linguagem mostra uma visão de mundo
que se constrói a partir dos fragmentos, estilhaços de uma nação em busca de sua identidade,
de sua (re)construção. Esta narrativa de nação, nascida da tradução e articulação de
elementos contradirios, foge de representações binárias e excludentes, pois privilegia a
ambivalência como estratégia significativa para mostrar “as coisas de sua África”, de sua
Moçambique e, assim, faz-se no terceiro-espaço “[...] que acompanha a assimilação de
contrários” que cria a instabilidade oculta que pressagia poderosas mudanças culturais”
(BHABHA, 2007, p.69). Sob esta perspectiva, a escritora desloca o discurso de nação da
homogeneidade para a heterogeneidade, do centro para a periferia e faz do espaço literário
entre a ficção e a História um “lugar de memóriaque afronta a estética do colonizador ao
criar a sua própria. Afronta uma percepção de tempo e de história positivista e linear ao
apresentar uma narrativa plural, ambígua. Afronta discursos do poder com o agenciamento
das margens, deslocando os centros”. Faz deste saber narrativo” um espaço para encenação
de uma nação multicultural. Portanto, Chiziane, ao desempenhar o seu papel público de
escritora-intelectual, em especial ao produzir Ventos do apocalipse, permite-nos ouvir a sua
voz, bem como de seus agenciados e, deste modo, apresenta a nação a partir das minorias
destituídas de poder, pelos passados não ditos/não encenados, que assombram o presente
histórico (BHABHA, 2007).
Chiziane, apresentando ao público essa narrativa ficcional nascida em “solo histórico”,
como nos lembra Reis (1998), apresenta uma alternativa de escrita da História e para a
112
História de seu povo, de sua nação que, segunda ela, em entrevista concedida a Kathleen
Gomes em 1999, “já estava escrita pela vida e pela história”. Por meio de sua narrativa, a
escritora nos apresenta uma nação que é uma colcha de retalhos e não [...] uma tapeçaria
harmoniosa de culturas”, por meio de uma obra na qual se “articula a narrativa da diferença
cultural que nunca permite que a história nacional se olhe a si própria narcisisticamente”
(BHABHA, 2001, p.567).
113
REFERÊNCIAS
ADÃO, Deolinda. Novos espaços no feminino: uma leitura de Ventos do apocalipse, de
Paulina Chiziane. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em
África: vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Edições Colibri, 2007.p.199-207.
ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Intelectuais cosmopolitas: mulheres, migrações e espaço
público. In: CURY, Maria Zilda Ferreira; WALTY, Ivete Lara Camargos (Orgs.) Intelectuais e
vida pública: migrações e mediações. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2008.
p.43-58.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira.
São Paulo: Editora Ática, 1989.
ANDERSON, Benedict. Pioneiros crioulos. In: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a
origem e a difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008. p.84-106.
APOCALIPSE. In: A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,
1993. 1v. p. 263-278.
APPIAH, Anthony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura. Trad.Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. A pessoa que fala no romance. In: Questão de literatura e de estética:
a teoria do romance. Trad. Bernadini et al. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1998. p.134-163.
BAKHTIN, Mikhail. O plurilinguismo no romance. In: Questão de literatura e de estética: a
teoria do romance. Trad. Bernadini et al. São Paulo: UNESP/Hucitec, 1998. p.107-133.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p.15-105.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p-197-221. (Obras escolhidas, vol.1)
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política : ensaios
sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora
Brasiliense,1994.p-222-232. (Obras escolhidas, vol.1)
BHABHA, Homi K. Compromisso com a teoria. In: O local da cultura. Trad. Myriam Ávila;
Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte, 2007. p.43-69.
BHABHA, Homi K. DissemiNAÇÃO: tempo, narrativa e as margens da nação moderna. In:
O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte, 2007. p.43-69.
114
BHABHA, Homi K. Locais da cultura. In: O local da cultura. Trad. Myriam Ávila; Eliana
Lourenço de Lima Reis; Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte, 2007. p.19-43.
BICALHO, Solange de Oliveira. Voz, Letra e Exclusão em três obras de Uanhenga Xitu.
2002.118 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Belo Horizonte.
CAHEN, Michael. O estado, etnicidade e a transição política. In: MAGODE, José (Org.).
Moçambique, etnicidade, nacionalismo e o Estado. Maputo: Instituto Superior de Relações
Internacionais, 1996.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro:
Duas cidades/Ouro sobre azul. 2004. p.169-191.
CATROGA, Fernando. Memória e história. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras do
milênio. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRS, 2001. p.43-69
CETICISMO ABERTO. Zumbis (ou a lenda dos mortos-vivos). Dispovel em:< www.ceticis
moaberto.com/referências/zumbis.htm>. Acesso em: 24 nov. 2009.
CHABAL, Patrick. Entrevista: Paulina Chiziane. In: Vozes moçambicanas: literatura e
nacionalidade. Lisboa: Veja, 1994. p. 292-301.
CHABAL, Patrick. Literatura e identidade nacional em Moçambique. Vozes moçambicanas:
literatura e nacionalidade. Lisboa: Veja, 1994. p.14-38.
CHABAL, Patrick. O desenvolvimento da literatura moçambicana. Vozes moçambicanas:
literatura e nacionalidade. Lisboa: Veja, 1994. p.39-69.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e terririos literários. Cotia:
Ateliê Editorial, 2005.
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... Por uma nova visão do mundo. In: AFONSO, Ana Elisa de
Santana (Coord.). Eu, mulher em Moçambique. República de Moçambique: GEGRAF,
1994. p.12-18.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
CHIZIANE, Paulina. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.
CHIZIANE, Paulina. O sétimo juramento. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.
CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. República de Moçambique: Gráfica dos
Correios. 1993.
CHIZIANE, Paulina. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
115
CRAVEIRINHA, José. Karingana ua karingana. In: Karingana ua karingana. Maputo:
AEMO, 1995. p.9.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Intelectuais em cena. In: CURY, Maria Zilda Ferreira; WALTY,
Ivete Lara Camargos (Orgs.) Intelectuais e vida pública: migrações e mediações. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2008. p.11-28.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Representações literárias da nação. In: PEREIRA, Maria
Antonieta; REIS, Eliana Lourenço de L. Reis (Orgs.). Literatura e estudos culturais. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000. p.213-227.
CURY, Maria Zilda Ferreira; FONSECA, Maria Nazareth Soares. Mia Couto: espaços
ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
DAVID, Débora Leite. O feminino em dois romances de Lídia Jorge e Paulina Chiziane.
Dispovel em: <www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/01/dossie/01.pdf>. Acesso em:
15 nov. 2009.
DEALTRY, Giovanna Ferreira. Memória e esquecimento como formas de construção do
imaginário da nação. In: LOPES, Luiz Paulo da Moita; BASTOS, Liliana Cabral.
Identidades: recortes multi-interdisciplinares. Campinas: Mercado das Letras, 2002. p.189-
200.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Feliz. A literatura menor. In: Kafka: por uma literatura
menor. Trad. Júlio Caston Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977. p 25-42.
DEPARTAMENTO DE LETRAS DA PUC/RJ. Supervisão geral de Silviano Santiago.
Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. p. 57.
DUTRA, Robson. Niketche e os vários passos de uma dança. In: MATA, Inocência;
PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em África: vozes de uma margem sempre
presente. Lisboa: Colibri, 2007. p.309-315.
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Trad. Hildergard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
ÊXODO. In: A Bíblia: tradução ecumência. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 1v.
p. 51-93.
FILIPE, Gil. Paulina Chiziane: acordo ortográfico cria-me confusão. Entrevista
concedida por Paulina Chiziane. Jornal Notícias, 04/06/2008. Disponível em:
<www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimz2/getxml/pt/.../178598>. Acesso em: 24 nov. 2009.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Campos de guerra com mulher ao fundo no romance
Ventos do apocalipse. In: Scripta, Revista da PUC Minas. Belo Horizonte, v.7, n.13, p.302-
313, 2º semestre de 2003.
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Contornos das nações literárias no universo da
“falescrita”. In: Scripta, Revista da PUC Minas. Belo Horizonte, v.1, n.2, p.147-153, 1º
semestre de 1998.
116
FONSECA, Maria Nazareth Soares. Ler um romance: Ventos do apocalipse, de Paulina
Chiziane. In: MARI, Hugo; WALTY, Ivete, FONSECA, Maria Nazaré Soares (Orgs.).
Ensaios sobre leitura II. Belo Horizonte: PUC Minas, 2007. p. 219-240.
GÊNESIS. In: A Bíblia: tradução ecumênica. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
1v. p. p.3-51.
GOMES, Kathleen. Nunca houve arma mais fulminante que a mulher. Entrevista concedida
por Paulina Chiziane. Revista eletrônica Suplemento Leituras. Disponível em:
<www.publico.pt/publico/1999/11/13/leituras/1lflc02.html>. Acesso em: 13 nov. 2009.
GOULART, Audemaro Taranto. Notas sobre o desconstrucionismo de Jacques Derrida.
Belo Horizonte, 2003. Disponível em: <www.ich.pucminas.br/posletras>. Acesso em: 20 mar.
2008.
GUERREIRO, Manuela Sousa. Paulina Chiziane a escrita do feminino. Entrevista
concedida por Paulina Chiziane. Disponível em: <www.ccpm.pt/paulina.htm>. Acesso em: 13
set. 2009.
GUPTA, Akhil; FERGUSON, James. Mais além da cultura”: espaço, identidade e potica
da diferença. In: ARANTES, Antonio A (Org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus,
2000. p.31-48.
GUSMÃO, Manuel. Da literatura enquanto construção histórica. In: BUESCU, Helena et. A
Floresta encantada novos caminhos da literatura comparada. Trad. Alexandre Dias Pinto.
Lisboa: Dom Quixote, 2001. p.533-573.
HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva e memória individual. In: A memória coletiva.
São Paulo: Vértice, 1990. p.25-52.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HAMA, Boubou; KI-ZERBO, J. Lugar da história na sociedade africana. In: KI-ZERBO, J.
(Org.) História Geral da África Metodologia e Pré-História da África. o Paulo: Ática,
1980. p.61-71.
HAMILTON, Russell G. Niketche a dança do amor, erotismo e vida: uma recriação
novelística de tradições e linguagem por Paulina Chiziane. In: MATA, Inocência; PADILHA,
Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em África: vozes de uma margem sempre presente.
Lisboa: Colibri, 2007. p.317-330.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição Viva. In: KI-ZERBO, J. (Org). História Geral da
África – Metodologia e Pré-História da África. São Paulo: Ática, 1980. p.181-218.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena/Casas das
Áfricas, 2003.
117
HERNANDEZ, Leila. Moçambique. In: HERNANDEZ, Leila. A África na sala de aula:
visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005. p.584-612.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz
Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001,
p.955-987.
LARANJEIRA, José Pires. Ficção ensaística. Jornal Literário, Portugal, 21 out. 2008. p.25.
LARANJEIRA, José Pires. Mulheres que escrevem: Noémia, Alda, Conceição, Chiziane. In:
Veredas, Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Porto Alegre, v.7, p.31-39,
2006.
LARANJEIRA, José Pires. O polígono polígamo. Jornal Literário, Portugal, 27 nov. 2002.
p. 21.
LEENHARDT, Jacques; JATAHY, Sandra (Orgs.). Apresentação. In: Discurso Histórico e
Narrativa Literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. p.9-15.
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: História e memória. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2003. p.525-539.
LE GOFF, Jacques Le. Memória. In: História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP,
2003. p.419-471.
LEITE, Fábio. Valores civilizatórios em sociedades negro-africanas. In: África, revista do
Centro de Estudos Africanos, n.18/19, 1995-1996. p.103-118.
MARTINS, Leda. Performances do tempo espiralar. In: Graciela Ravetti, Márcia Arbex
(Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte:
Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG, 2002. p.69-91.
MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões. Luanda:
Editorial Nzila, 2007.
MATA, Inocência. Da ngua à cultura: alguns aspectos da problemática lingüística nos Cinco
(Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe). In: Quo Vadis
România?. Zwischen Poskolonialismus und Selstbestimmung: Mehrsprachigkeit und
Sprachenpolitik im heutigen Afrika, n.21/2006, p.38-45.
MATA, Inocência. Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua
diferença. In: MATA, Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em África:
vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007. p.421-440.
MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In:
Metamorfoses, Revista da Cátedra Jorge de Lua para Estudos Literários Luso-Afro-
Brasileiros/UFRJ. Lisboa: Cosmos, 2000. p.135-142.
MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana: a História e as escritas. Maputo: UEM,
1999.
118
MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz a metamorfose do narrador na ficção
moçambicana. Belo Horizonte: Editora PUC Minas/ Edições Horta Grande, 2005.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: LE GOFF, Jacques;
NORA, Pierre (Orgs.). História: novos problemas. Trad. Theo Santiago. Rio de Janeiro: F.
Alves, 1976. p.7-28.
OLIVEIRA, Francisco de. Intelectuais, conhecimento e espaço público. In: MORAES, Denis
de (Org.). Combates e utopias. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.55-67.
PADILHA, Laura Cavalcante. Entre a voz e Letra: o lugar da ancestralidade na ficção
angolana do século XX. Niterói: EduFF, 1995. p.15-52.
PATRAQUIM, Luís Carlos. Com Ventos do apocalipse Paulina Chiziane assume-se com uma
das revelações mais promissoras da nova ficção moçambicana; Espécie de viagem ao fim da
noite”, no tempo da paz. Jornalblico Leituras, Portugal, 19 jun. 1999.
PERUZZO, Lisângela Daniele. Moçambique, duas visões: a representação da guerra e de seus
desdobramentos. Revista Crioula, maio de 2008, n. 13. Disponível em: <www.fflch.usp.br
/.../Artigos%20e%20Ensaios%20-Lisangela%Daniel%20Peruzzo.pdf>. Acesso em: 24 nov.
2009.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de
Graduação. Sistema de Bibliotecas. Padrão PUC Minas de normalização: normas da ABNT
para apresentação de trabalhos científicos, teses, dissertações e monografias. Belo Horizonte,
2008. Dispovel em: <http://www.pucminas.br/ biblioteca>. Acesso em: 18 jan. 2010.
REIS, Roberto. (Re) lendo a História. In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra
Jatahy (Orgs.). Discurso Histórico e Narrativa Literária. Campinas: Editora da UNICAMP,
1998. p.233-249.
REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. O eu possível na dança do amor: Niketche, uma história de
poligamia. In: Veredas, Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Porto Alegre,
v.7, p.207-218, 2006.
REVISTA CRIOULA. Entrevista com Inocência Mata: a essência dos caminhos que se
entrecruzam. Maio de 2009. No. 5. Disponível em: <www.fflch.usp.br/dlcv
/revistas/.../Entevista%20-%20Inocencia%20Mata.pdf>. Acesso em: 26 nov. 2009.
RICCIARDI, Giovanni. Espaço biográfico e literatura. In: CAIRO, Luiz Roberto;
SANTURBANO, Andréa; PETERLE, Patrícia; OLIVEIRA, Ana Maria D. de (Orgs.). Visões
poéticas do espaço: ensaios. Assis: FCL-Assis/UNESP Publicações, 2008. p.111-138.
RODRIGUES, Jacinto. A corrente espiritual sufi no Islão como forma de compreensão
em torno da universalidade e do diálogo. Disponível em: < ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros
/6903.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2009.p.35-44.
ROSA, Guimarães João. A terceira margem do rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001. p.79- 85.
119
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;
AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998, p.93-101.
SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.
Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.46-60.
SAID, Edward W. A representação do colonizado: os interlocutores da antropologia. In:
Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. p.114-136.
SAID, Edward W. A potica do conhecimento. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.
Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.176-189.
SAID, Edward W. História, literatura e geografia. In: Reflexões sobre o exílio e outros
ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.209-228.
SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
SAID, Edward W. O papelblico de escritores e intelectuais. In: MORAES, Denis de (Org.).
Combates e utopias. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.25-50.
SAID, Edward W. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993.
Trad.Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SAID, Edward W. Sobre a provocação e o assumir posições. In: Reflexões sobre o exílio e
outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.248-253.
SAID, Edward W. Sobre causas perdidas. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.
Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.274-300.
SALGADO, Maria Teresa. Um olhar em direção à narrativa contemporânea
moçambicana. Disponível em: <www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas.../n15_ Parte03_
art07.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2009.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. In: O cosmopolitismo do pobre. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.45-63.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura anfíbia. In: O cosmopolitismo do pobre. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008. p.64-73.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: colonialismo, s-colonialismo e
inter-identidade. In: RAMALHO, Maria Irene; RIBEIRO, Antônio Sousa (Orgs.). Entre ser e
estarrzes, percursos e discursos da identidade. São Paulo: Afrontamento, 2002. p.23-85.
SANTOS, Luis Alberto Brandão; PESSOA, Silvana Pessoa. Sujeito, tempo e espaços
ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
120
SINDRA, Angélica Gherardi. Deslocamentos do intelectual moderno: o lugar do Luandiano
Vieira no contexto político e literário angolano. In: CURY, Maria Zilda Ferreira; WALTY,
Ivete Lara Camargos (Orgs.) Intelectuais e vida pública: migrações e mediações. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2008. p.201-220.
SOUZA, Eneida Maria de. Saberes narrativos. In: Scripta, Revista da PUC Minas. Belo
Horizonte, v.7 ,n.14, p.56-66, 1º semestre de 2004.
TEDESCO, Maria do Carmo. Narrativas da moçambicanidade: os romances de Paulina
Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. 2008. 217f. Tese (Mestrado
em História) – Universidade de Brasília, Distrito Federal.
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e História Cultural. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio
de Janeiro: Elsevier,1 997. p.127-162
VICTORINO, Shirlei Campos. A geografia da guerra em Ventos do apocalipse. In: MATA,
Inocência; PADILHA, Laura Cavalcante (Orgs.). A mulher em África: vozes de uma
margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007. p.351-364.
VIEIRA, Else R. P. Estudos literários e estudos culturais: territórios dos caminhos que
convergem. In: PEREIRA, Maria Antonieta; REIS, Eliana Lourenço de L. Reis (Orgs.).
Literatura e estudos culturais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2000. p.9-
26.
WALLERTEIN, Immanuel. O fim das certezas e os intelectuais comprometidos. In:
MORAES, Denis de (Org.). Combates e utopias. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2004. p.51-54.
WALTY, Ivete Lara Camargos. Intelectuais e outros saberes. In: CURY, Maria Zilda Ferreira;
WALTY, Ivete Lara Camargos (Orgs.). Intelectuais e vida pública: migrações e mediações.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2008. p.29-41.
WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do Discurso: Ensaios
sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: EDUSP, 2001.
p.97-116.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo