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No final do século XIX e início do XX, um novo conceito de trabalho estava
em construção na sociedade brasileira, inclusive na curitibana: a representação da
positividade do trabalho que, segundo Karvat, era apresentado como possibilidade
de redenção humana, como fonte de riqueza e criação, de força moral e dignidade, o
que garantiria a própria cidadania (1998, p.2-3). Como escreveu Queluz, o trabalho
seria então percebido como meio de regeneração e redenção moral das “classes
perigosas”, meio de adequar os indivíduos a sociedade, concretizando o projeto de
civilização republicana que então se forjava (2000, p.18).
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Se, pelo menos, até o século XVI o trabalho era visto na sociedade ocidental
como um sofrimento, praticamente uma tortura, a partir desse período ele ascendeu,
pouco a pouco, da mais humilde e desprezada posição, ao nível mais elevado e à
mais valorizada das atividades humanas. Com a fábrica mecanizada, a partir do
século XVIII, essa valorização atingiu uma dimensão crucial, a partir da ilusão que
proporcionava de que a produtividade humana poderia ser ilimitada (DECCA, 1982,
p.7-8). O processo revolucionário fabril transformou a sociedade civil, com a
pregação moral do tempo e do trabalho, que resultaram na introjeção do ‘relógio
moral’ no corpo de cada homem, gerando autodisciplina, controle de si mesmo,
crítica à ociosidade ( DECCA, 1982, p.15).
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Nesse mundo do trabalho, que ganha contornos específicos no século XIX e
início do XX, indivíduos que, por vontade própria ou por circunstâncias consideradas
adversas, não trabalhassem eram vistos como um “atentado a positividade do
trabalho” (KARVAT, 1998, p.2) e assim como pessoas contra a sociedade. O
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Extensa é a bibliografia que direta e indiretamente aborda as chamadas “classes perigosas” ,
expressão que surgiu na Europa do século XIX, e foi usada pela inglesa Mary Carpenter para definir
“ um grupo social formado à margem da sociedade civil”. Carpenter escrevia sobre criminalidade e
“infância culpada” (meninos de rua) (CHALHOUB, 1996, p.20). No Brasil, desde o fim do século
XIX, a expressão foi utilizada para designar grupos de indivíduos, que com transformações sociais
acarretadas pelas indústrias, pela urbanização crescente e modificações nas relações sociais,
representavam perigo de insurreição contra a ordem da sociedade; pessoas consideradas como
vivendo no limiar da criminalidade: desempregados, biscateiros, vadios, pedintes de esmolas, etc.
Confira, entre outros, o trabalho de Louis Chevalier. Classes laborieuses et clases dangereuses à
Paris, pendant la première moitié du XIXéme (1978) e os livros de Sidney Chalhoub: Trabalho,
lar e botequim (2001) e Cidade febril (1996, capítulo 1).
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Mas isso não significou passividade dos trabalhadores. Como escreveu Edward Thompson, o
processo que resultou no mundo industrial moderno foi marcado também por lutas pontuais desses
trabalhadores. Homens e mulheres, com os costumes que os guiavam, leis que reivindicavam ou
contestavam, práticas religiosas que professavam (BERTUCCI; FARIA FILHO; TABORDA de
OLIVEIRA, 2010, p.16-17). Thompson (1981, p.50) afirma: “o passado humano não é um agregado
de histórias separadas, mas uma soma unitária do comportamento humano, cada aspecto do qual
se relaciona com outros de determinadas maneiras, tal como os atores individuais se relacionavam
de certas maneiras (pelo mercado, pelas relações de poder e subordinação, etc)”.