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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Letras
André Luiz Barros da Silva
Sensibilidade, coquetismo e libertinagem
––
A Pamela inglesa, as Pamelas francesas e as mudanças éticas e estéticas no século XVIII
Rio de Janeiro
2007
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André Luiz Barros da Silva
Sensibilidade, coquetismo e libertinagem: A Pamela inglesa, as Pamelas francesas e as
mudanças éticas e estéticas no século XVIII
Tese de Doutorado em Literatura Comparada
apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro/UERJ para a obtenção do grau de
Doutor em Literatura Comparada.
Orientador: João Cezar de Castro Rocha
Co-orientador: Roger Chartier
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B
S586 Silva, André Luiz Barros da.
Sensibilidade, coquetismo e libertinagem: A Pamela inglesa, as
Pamelas francesas e as mudanças éticas e estéticas no século XVIII /
André Luiz Barros da Silva. – 2007.
321 f.
Orientador : João Cezar de Castro Rocha.
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Ficção – História e crítica – Teses. 2. Richardson, Samuel,
1869-1761. Pamela – Crítica e interpretação. 3. Ficção francesa – Séc.
XVIII – Teses. 4. Ficção inglesa – Séc.XVIII - Teses. I. Rocha, Joao
Cezar de Castro. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Letras. III. Título.
CDU 82-3(091)
André Luiz Barros da Silva
Sensibilidade, coquetismo e libertinagem – A Pamela inglesa, as Pamelas francesas e as
mudanças éticas e estéticas no século XVIII
Tese de doutoramento
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Letras – Literatura comparada
Aprovada a 23 de março de 2007
Prof. Doutor. João Cezar de Castro Rocha (UERJ)
Doutoramentos: 1) 1997 – UERJ (Literatura Comparada); 2) 2002 – Stanford University,
EUA (Literatura Comparada).
Ass.: _____________________________________________
Profa. Doutora Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos (Universidade de São Paulo)
Doutoramento: abril de 1991 – USP (Teoria Literária e Literatura Comparada).
Ass.: _____________________________________________
Prof. Doutor Ítalo Moriconi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Doutoramento: 1991 – PUC-RJ (Depto de Letras).
Ass.: _____________________________________________
Prof. Doutora Elisabeth Chaves de Mello (Universidade Federal Fluminense)
Doutoramento: dezembro de 1993 – PUC-RJ (Depto de Letras).
Ass.: ______________________________________________
Prof. Doutora Deise Quintiliano (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Doutoramento: dezembro de 2001. UFRJ / EHESS (École des Hautes Études en Sciences
Sociales, Paris) – Letras Neolatinas.
Ass.: __________________________________________
Agradecimentos:
A Cláudia H. Monteiro, cuidado, amor, apoio;
Maria Margarida Barros,
João Cezar de Castro Rocha,
Aluisio Pereira de Menezes,
Roger Chartier,
Humberto Alves da Silva (in memoriam),
Antônio José da Costa Barros (in memoriam),
Luiz Sérgio Coelho de Sampaio (in memoriam),
Maria Helena Junqueira,
Adauto Novaes,
Márcio Souza Gonçalves,
Sandra Guardini T. Vasconcelos,
Ítalo Moriconi,
Romaric Surge Büel,
Luiz Costa Lima,
Carlinda Pate Nuñez,
Stella Caymmi,
Deolinda Vilhena,
Eduardo Portella,
Raquel Abi-Sâmara,
Michel Delon.
RESUMO
O trabalho examina a recepção de Pamela; or Virtue rewarded, de Richardson, na
França do século XVIII. O romance de 1740 é analisado a partir de suas ambigüidades
constitutivas: a erótica e a individual-subjetiva. Começa sendo comparado a antecessores
franceses influentes: Lettres portugaises, atribuído a Guillerages (1669), e La Princesse de
Clèves, de Madame de Lafayette (1678). Destaca-se, por um lado, a nova figuração da
resistência feminina e classista por meio da escrita e, por outro, a mudança na percepção
dos domínios público e privado (só se persegue a criada Pamela porque há o espaço secreto,
anterior à instauração do domínio público burguês). Três peças baseadas no romance,
escritas por Boissy, La Chaussée e D’Aucour (que em 1743 foram fracassos e hoje são
desconhecidas), são objeto de leitura cuidada, ensejando o retrato do panorama histórico do
teatro parisiense, eixo cultural da França naquele momento. Nessa trilha, analisam-se as
peças Mélanide, sucesso de La Chaussée (1741), e Le méchant, de Gresset (1747). A
sensibilité surge como traço cultural de base à época, a justificar uma mudança no pacto
estético entre o leitor-espectador e as obras. Trata-se do surgimento de uma nova
verossimilhança, que Diderot será o primeiro a descrever. O romance de libertinagem, fruto
da licenciosidade nas letras, licenciosidade patente na prepotência de Mr. B., patrão de
Pamela, é flagrado como contraponto aristocrático e cerebral à sensibilité. O coquetismo
seria a terceira forma de realismo do momento, aproximando a narrativa do coloquialismo
da conversation mundana. Os três novos tipos de prosa ficcional agravam o momento
presente vivido com intensidade, o qual, em nosso ponto de vista, é um traço fundamental
do novo realismo da “mistura de estilos” (Auerbach). Entre os três, a voga de Pamela e da
sensibilité determinará um tipo novo de patético não-clássico, exigindo do leitor-espectador
uma postura ética e estética inédita. Por fim, a análise de Nanine, a “Pamela de Voltaire”
(1749), mostra um autor experimentado no ambiente mundano e teatral do Antigo Regime,
perseguindo essa nova ordem ética e estética, em que a condition (classe social, sexo,
profissão, posição na família etc.) serve para agravar a ilusão do leitor-espectador, deixando
de ser, de uma vez por todas, fundamento imutável de regras clássicas.
Palavras-chaves: Primórdios do romance na Inglaterra e na França (séc. XVIII);
Teatro francês pré-Revolução; Mudanças estéticas na prosa ficcional (século XVIII);
Literatura da sensibilité.
RÉSUMÉ
La thèse examine la réception de Pamela; or Virtue rewarded, de Richardson, dans
la France du XVIIIè siècle. Le roman de 1740 est analysé à partir de ses ambiguïtés
constitutives: l’érotique et la individuel-subjective. Au commencement, il est comparé aux
prédécesseurs français influents: Lettres portugaises, atribué à Guillerages (1669), et La
Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette (1678). On relève, premièrement, la nouvelle
figuration de la résistance feminine et classiste à travers l’écriture et, après, la
transformation de la perception des domaines public et privé (la persécution de Pamela est
justifiée seulement par l’existence de l’espace du secret, avant l’instauration du domaine
public bourgeois). Trois spectacles adaptées à partir du roman, écrites par Boissy, La
Chaussée et D’Aucour (trois échecs en 1743 et aujourd’hui inconus), sont object d’analyse,
en stimulant une description du panorama historique du théâtre parisien, axe culturel de la
France dans ce moment-là. Ainsi, nous analysons le spectacle Mélanide, succés de La
Chaussée (1741), et Le méchant, de Gresset (1747). La “sensibilité” est vue comme
caractéristique culturel de l’époque, en justifiant un changement du pacte estéthique entre le
lecteur-spectateur et les œuvres. C’est le surgissement d’une nouvelle vraisemblance, que
Diderot sera le premier à bien décrire. Le roman de libertinage, fruit de la licenciosité dans
les lettres, évidente comme caractéristique de Mr. B., patron de Pamela, est vu comme
l’opposé aristocratique et cérébral à la “sensibilité”. Le coquettisme serait la troisième
forme de réalisme en ce moment-là, en approchant le récit du ton familier de la
conversation mondaine. Les trois nouveaux types de prose fictionelle alourdent le moment
présent vécu avec intensité, caractéristique fondamentale du nouveau réalisme du “mélange
de styles” (Auerbach). Parmi les trois, la vogue de Pamela et de la “sensibilité” déterminera
un type nouveau de pathétique non-classique, en exigeant du lecteur-spectateur une attitude
étique et esthétique inédite. Finalement, l’analyse de Nanine, la “Pamela de Voltaire”
(1749), montre un auteur expérimenté dans les ambients mondain et théâtral du Ancien
Régime qui cherche cette nouvelle ordre étique et esthétique, dans laquelle la “condition”
(classe sociale, sexe, profession, position dans la famille etc.) aggrave l’ilusion du lecteur-
spectateur, en changeant son finalité pour toujours – elle ne sera plus le fondement
immuable des règles classiques.
Mots-clés: Surgissement du roman en Anglaterre et en France (XVIIIè siècle);
Théâtre français pré-révolutionnaire; Transformations esthétiques de la prose ficctionelle
(XVIIIè siècle); Littérature de la “sensibilité”.
ABSTRACT
The work analyses the reception of Richardson’s Pamela; or Virtue rewarded in
Eighteenth century. We examine the constitutive ambiguities of the novel of 1740: the
erotic and the individual-subjective ambiguities. At the beginning, it is compared to French
influents predecessors: Lettres portugaises, assigned to Guillerages (1669), and Madame de
Lafayette’s La Princesse de Clèves (1678). We highlight, in the first place, the new literary
figuration of the feminine and class representative resistance through the writing and, on
the other side, the change in the perception of the public and private domains (Pamela, the
maid, is hunted only because there were the secret domain, before the instauration of the
public bourgeois domain). Three plays based on the novel, wrote by Boissy, La Chaussée
and D’Aucour (three fiascos in 1743 and today unknown), are well studied, stimulating the
description of the historical panorama of the Parisian theater, cultural axis of France at that
time. In this way, we analyze the play Mélanide, a success by La Chaussée (1741), and Le
méchant, by Gresset (1747). The sensibilité appears as a cultural characteristic of that
historical moment that justifies a change in the esthetical pact between the reader-spectator
and the narratives. It is the arising of a new form of verisimilitude, that Diderot will
describe in the first place. The libertinage novel, result of the increasing of the licentious
literature, clear in the prepotency of Mr. B., Pamela’s boss, is viewed as an aristocratic and
cerebral counterpoint to the sensibilité. The coquetry is the third form of realism of the
period studied, what approaches the narrative to the colloquialism of the mundane
conversation. The three new types of fictional prose aggravate the present moment lived
with intensity, that is, in our point-of-view, a fundamental trait of the new realism of the
“mix of styles” (Auerbach). Among the three, the vogue of Pamela and of the sensibilité
will determine a new type of pathetic not-classical, obliging the reader-spectator an
unprecedented ethical and esthetical posture. Finally, the analysis of Nanine, the “Voltaire’s
Pamela” (1749), shows an author experienced in the worldly and theatrical ambient of the
Ancien Régime, seeking that new ethical and esthetical order, in which the condition (the
social class, the sex, the profession, the position in the family etc.) work for intensify the
illusion of the reader-spectator, no more being, once for all, the base of immutable classical
rules.
Keywords: The rise of novel in England and in France (XVIII Century); French theater
before Revolution; Esthetics transformations of the prose of fiction (XVIII Century);
Literature of sensibilité.
Sumário
Introdução...........................................................................................................................11
1. Ambigüidade no reino das certezas: amor, erotismo e dubiedades individuais.............17
1.2. O reino das ambigüidades............................................................................................22
1.3. As ambigüidades de base se desdobram: as contradições da condição social.............27
1.4. A ambigüidade individual da criada: a valorização da credulidade.............................31
1.5. A escrita como resistência e possibilidade de reverter a posição de vítima.................37
1.6. A gradativa e discreta transformação de Mr. B............................................................40
1.7. Uma ancestral de Pamela: La vie de Marianne...........................................................47
1.8. A carta: coloquialismo resistente no horizonte das belles-lettres................................50
1.9. As cartas da fictícia freira portuguesa..........................................................................57
1.10. A carta como ameaça: La Princesse de Clèves..........................................................71
1.11. O amor no cenário de poder e erotismo.....................................................................84
1.12. A virtude, qualidade clássica feminina, frente à impetuosidade masculina...............90
1.13. Ian Watt: a ambigüidade em contexto histórico e sociológico...................................96
1.14. Pedaços do mundo antigo: público, privado e classe em Pámela.............................101
1.15. Pequeno panorama do erotismo em prosa anterior a 1740.......................................103
1.16. “Paixões” clássicas: Racine e uma nova representação do desejo individual..........109
1.17. Romance e moral: Mr. B. como libertino.................................................................119
1.18. Mudança no tratamento do tempo: Voltaire segundo Spitzer e Auerbach...............127
1.19. Um “filósofo rococó”: superficialidade, universalismo e sedução em Voltaire.....136
1.20. O mundanismo segundo Voltaire............................................................................140
1.21. Le méchant: o mundano se torna réu......................................................................146
2. Pamela chega à França: translado e transformação de uma personagem....................153
2.1. A recepção da Paméla francesa pela visão de dois missivistas................................157
2.2. A singular paródia de um romance em meio à voga de paródias
cômico-operísticas...........................................................................................................165
2.3. Crébillon fils e o espírito de paródia como contraponto...........................................169
2.4. Ancestralidade dos salons no início do século XVII: o hôtel de Rambouillet..........171
2.5. De volta a Boissy e sua Paméla: entre o divertissement e a comédia clássica..........174
3. Origens da comédie larmoyante e da sensibilité, ainda em 1735-1736........................188
3.1. A sensibilité no domínio............................................................................................189
3.2. O tableau e as lágrimas..............................................................................................193
3.3. Mélanide: o tom adequado de tratamento do amor....................................................195
3.4. Não se pode representar o amor sério no teatro ........................................................198
3.5. Mélanide: a transformação do classicismo ...............................................................202
3.6. Mélanide: a invenção do “final feliz” .......................................................................207
4. A Paméla lacrimosa de Nivelle de La Chaussée..........................................................210
4.1. O novo realismo teve um exemplo francês em Marivaux ........................................213
4.2. A sensibilité como mediadora da leitura e da audiência ...........................................216
4.3. Virtude e vício do romance: o útil e o agradável ......................................................221
4.4. O martírio como modelo de purgação .....................................................................227
4.5. Em torno do realismo das “Pamelas”, no palco e no romance ................................233
4.6. Uma prosa coquete: Marivaux e a questão feminina ...............................................239
4.7. Marivaux e a concepção da fala e da atuação no monde .........................................243
4.8. Coquetismo e conversation ......................................................................................245
4.9. A peça de La Chaussée .............................................................................................248
5. La Déroute des Paméla: radicalizando o cômico contra as pretensões
do sentimento....................................................................................................................254
5.1. A Mãe Azul: a edição popular como personagem.....................................................259
6. A vitoriosa Pamela de Voltaire ....................................................................................267
6.1. Prefácio de Nanine ....................................................................................................268
6.2. O philosophe enternecido ..........................................................................................274
6.3. O ancião famoso e o elogio da pobreza digna ...........................................................278
6.4. Rousseau espectador de Nanine ................................................................................282
6.5. Hombert se revela: a “reconnaissance” final ancorada na tradição narrativa............287
Conclusão..........................................................................................................................293
Referências .......................................................................................................................308
11
Introdução
Os estudos relacionados à literatura do século XVIII localizam no surgimento do
romance Pamela, or Virtue Rewarded, de Samuel Richardson, em 1740, um momento
especial de transformação da forma narrativa, bem como das formas de leitura que terão um
destino determinante na cultura ocidental. Nosso intuito, no presente trabalho, foi tentar não
apenas perceber com maior acuidade as novas propostas formais e semânticas que o
romance trouxe, com conseqüências importantes no estabelecimento do gênero romance,
mas também captar o modo de repercussão intercultural que ele motiva na França do
período. De saída, percebemos que tal objetivo não se alcançaria sem o esforço de flagrar
debates sub-reptícios ao narrado, tanto no que toca ao novo – e, na época, desvalorizado –
gênero, quanto em relação às tensões classistas e até eróticas em jogo, por um lado, na
sociedade e, por outro, na prosa de ficção. Nossa aposta inicial era a de que, se
chegássemos a descrever tais tensões a partir dos textos da época, e de forma a menos
anacrônica possível, poderíamos nos aproximar de um olhar minucioso sobre as mudanças
no âmago da atividade de escrita de narrativas ficcionais em nossa cultura. Tal
possibilidade, que incluiria nosso esforço na trilha de uma história do gosto ou da estética
no período tratado, implicaria, necessariamente, em uma análise das mudanças também no
âmbito da leitura, em um momento em que a prosa ficcional se estabelecia no campo
artístico inglês e francês. Esse nível estético de nossa pesquisa se somaria ao nível
sociológico (percebido por meio de obras ficcionais) de modo a compor um retrato possível
da emergência de um novo etos antropológico no próprio momento em que ele emerge, por
meio da escrita e da leitura, no seio da cultura letrada em vias de tornar o livro objeto de
consumo individual industrializado.
Portanto, ao surgir Pamela e as obras francesas por ela motivadas, um novo
paradigma de escrita e leitura ficcionais se instaurava, tendo a sensibilité como interface
valorizada entre texto e leitor. Tal novo paradigma define uma nova postura do escritor e do
12
leitor diante do que se narra. O “novo pacto estético” que surge, redimensionando as
antigas regras clássicas (alicerçadas em Aristóteles e em Horácio), deve ser compreendido
em sua própria época, e como resposta a tensões específicas de momento. O segundo passo,
então, é perceber como tal nível, que poderíamos chamar de estético, reflete e absorve
tensões sociais e culturais mais amplas, de modo a fazer da transformação nas artes
narrativas uma mudança na própria forma como o homem percebe a si próprio, em nossa
cultura. Por meio da leitura, e do novo pacto entre texto e leitor, pelo qual a sensibilité
passa a comandar, é uma nova imagem do homem, uma nova antropologia (não no sentido
da disciplina acadêmica, mas no de um possível olhar ou estudo do homem sobre si
mesmo) que se estabelece. Tais ambições de ordem generalizante não poderiam deixar de
ser apenas projeto sem o percurso de leitura e análise, texto a texto, que passamos a
descrever agora.
Partimos de uma leitura cerrada do romance original, em duas versões: a original, de
1740, e a de 1801, cujo texto foi retocado por Richardson, por seus editores e por suas
filhas. Passou-se, também, pela tradução francesa de 1742. Nessa primeira parte do
trabalho, o importante foi tentar flagrar e descrever Pamela como um acontecimento de
dupla vertente. Por um lado, estabelece uma semântica das ambigüidades, pela qual
erotismo e amor, prepotência patronal e fragilidade serviçal e ímpeto masculino e pseudo-
passividade feminina mantêm-se como pólos de tensão nunca resolvidos. Ou melhor, só
resolvidos com o casamento de Mr. B. com Pamela, solução apontada como pouco rica em
termos artísticos. Por outro lado, a carta e, depois da Lettre XXXII, o diário estabelecem um
narrar que condensa o presente, vivido com intensidade. Sem ter inaugurado as trilhas
epistolar ou do diário em literatura, o autor utiliza tais formas de maneira nova,
intensificando a opressão e o sentimento trágico (por meio das perseguições de Mr. B.) e
acabando por dotar a escrita de uma força inédita. Tal força incluiria, por um lado, a
possibilidade de resistência e contra-ataque da parte mais fraca, bem como a possibilidade
de auto-investigação angustiada, de modo a lidar com as contradições que a protagonista
sente em si própria (e o leitor, nela e em Mr. B.). Há ainda o aspecto do martírio da
protagonista, que pode ser visto como representação, no próprio texto, da idéia de purgação
e de catarse, que deita raízes no cristianismo, mas também serve como alegoria do que a
prosa de Richardson empreendia em termos estéticos, naquele momento: o leitor é por ele
13
convocado a sentir o que o protagonista-narrador sente, o próprio texto surgindo como
martírio e subseqüente purgação para quem o lê. O novo realismo que emerge com Pamela
seria pautado pela introspecção sentida com intensidade no aqui-e-agora. Isso explicaria o
imenso frisson causado pelo romance de Richardson, tanto na Inglaterra quanto em toda a
Europa, notadamente na França.
Depois do esforço de propor novas vias de leitura de Pamela, nos concentramos na
forma como tal romance será recebido na França dos anos 1742-43. Entre reações de
rechaço diante do lastro sentimental (La Chesnaye des Bois) e de aplauso diante do novo
realismo dir-se-ia minucioso (Des Fontaines, Madame de Graffigny), o romance vai se
integrando ao ambiente cultural francês até sua consagração cabal, com o Éloge de
Richardson, de Diderot, em 1762, logo após a morte de Richardson. Mas será no teatro que
a repercussão do romance inglês no nível do gosto estético se sentirá mais agudamente. O
trabalho se estruturará, a partir desse momento, na leitura acurada das três peças que se
basearam abertamente no romance inglês: a comédia Paméla en France, ou la Vertu mieux
éprouvée de Louis de Boissy (estreada em maio de 1743), o drama Paméla, comédie en
vers et en cinq actes, de Nivelle de La Chaussée (estreada a 6 de dezembro de 1743), e a
comédia La déroute des Paméla en un acte en vers, de Godard d’Aucour (estreada a 23 de
dezembro de 1743). Obviamente, para se empreender a análise de peças tão desconhecidas,
que transpunham para o palco uma narrativa surgida originalmente em livro, foi preciso um
estudo cuidadoso do ambiente cultural francês daquele momento, no qual o teatro
desempenhava papel central.
Na verdade, por meio do exame do erotismo – discreto e represado – e das
ambigüidades que ele, como um dos temas centrais, determinava no caso do romance de
Richardson, percebemos elementos convergentes e divergentes entre os ambientes culturais
inglês e francês. Passa-se, portanto, à análise de textos dos primórdios do romance que
incluem o horizonte do amor e do erotismo, fazendo da narrativa ficcional uma forma de
acesso ou reflexão constituinte da subjetividade humana. São os casos de Lettres
portugaises, atribuído a Guillerages (1669) e La Princesse de Clèves, de Madame de
Lafayette (1678). Tais romances são ancestrais franceses de Pamela, e pertencem a uma
cultura de Corte na qual o segredo, erótico ou político, tinha importância central nos
movimentos subjetivos dos personagens. Tais textos nos ajudam a jogar luz sobre a zona de
14
sombras em que jaz a esfera do privado, no caso de Mr. B.: sua fantasia, corroborada pelos
membros de sua classe social, é a de manter sua relação com Pamela nessa zona sombria,
alijada da vida pública mas ainda não constituída como espaço legal. Nesse sentido, e sendo
Mr. B. um magistrado da Justiça, não adianta a uma criada tornar pública a perseguição
sofrida: a “libertinagem” do patrão é perfeitamente adequada à sociedade da época – como
a do duque de Nemours, em La Princesse de Clèves, e como o do amante da freira Mariane,
em Lettres portugaises. Na falta da divisão institucionalizada e juridicamente estatuída
entre o privado e o público, a zona secreta do abuso e do pacto estratégico ganha em
importância.
Tais reflexões indicam não apenas a riqueza do plano erótico em literatura, mas
certa tensão entre os etos sentimental e libertino, nos dois lados do Canal da Mancha, na
época. Tantos os textos licenciosos franceses, obscenos ou filosófico-obscenos,
clandestinamente comercializados, quanto os romances discretamente erotizados ingleses,
como Love in excess, de Eliza Haywood, apontam para uma convergência, no plano da
escrita e da leitura, dessas hipóteses percebidas no plano ficcional. Ou seja, como em uma
analogia, também nas letras o secreto (clandestino) integra erotismo e política (filosofia ou
a nova ética). Do mesmo modo, o personagem-tipo complexo (para diferencia-lo dos
personagens-tipo simples da commedia dell’arte) do libertino surge como representante, no
plano das letras, do etos cortesão que usava as relações humanas como instrumentos
amorais de suas ambições, e da manutenção de sua reputação. Nesse ambiente cultural, um
Voltaire fará, em 1736, seu elogio do mundano (Le mondain e Défense du mondain ou
Apologie du luxe), de modo a reforçar o partido da superficialidade, da ligeireza e da
frivolidade na escrita. E o ex-jesuíta Gresset descreverá o mesmo mundano de forma pouco
abonadora em Le méchant, peça de 1747. Do mesmo modo, Voltaire havia ensaiado uma
aproximação à nova forma attendrissante ou larmoyante com L’Enfant prodigue, sua peça
de 1738. Dois anos antes, também em 1736, Fagan estreara L’Amitié rivale de l’amour, e
Des Fontaines batizara o novo gênero: comédie larmoyante. Tais reações em cadeia provam
que o momento era de tensão entre as duas formas de lidar com o ato de narrar, no teatro ou
fora dele: a sensibilité parece aceder ao poder no campo artístico, em meio ao olhar
desconfiado do libertino. Este ganharia uma síntese literária inusitada exatamente em 1735-
15
36, com o romance Les égarements du cœur et de l’esprit, de Claude Crébillon,
considerado o primeiro romance de libertinagem a merecer o título.
Tais tensões da atmosfera cultural francesa explicam o surgimento da comédia
Paméla en France, de Boissy, bem como seu fracasso depois de algumas poucas
apresentações. Tal fracasso nos parece, no entanto, matéria rica para reflexão: o partido
sentimental não teria reagido à parodia de Pamela? A leitura cuidadosa de um sucesso
estrondoso de La Chaussée, Mélanide, considerada a mais bem sucedida comédie
larmoyante da época, também nos ajuda a entender o maior fracasso da história da
Comédie Française: sua Paméla com pretensões attendrissantes. Esta foi encenada nada
mais que uma vez em toda a História, e saiu sob vaias. Figura de proa do novo gênero
larmoyant, La Chaussée nos leva a uma análise mais acurada do novo pacto entre texto e
leitor, que estabelece a identificação dos sentimentos como fundamental, e as lágrimas
como prova fenomenológica requerida. Nesse âmbito, as reflexões de Diderot serão
centrais no sentido de proporem uma teoria incipiente da nova forma de escrita/leitura –
muitas vezes à revelia de seu autor. Em seus textos sobre o teatro, Les entretiens sur Le Fils
naturel (1757) e o Discours sur la poésie dramatique (1758), mas também no Éloge à
Richardson, Diderot propõe uma forma de escrita e leitura, para o palco e para as páginas
do romance, que integra a comoção diante de um tableau como forma de identificação e
“nova catarse”. Não admira, portanto, que a chegada de Pamela na França se tenha dado
sobre o palco: a efervescência artística passava pela experimentação de novas formas de
narrar e de assistir/ler. Por ali passavam, do mesmo modo, a reflexão sobre um novo etos,
que integrava a moral a seus atos tanto no âmbito privado (subjetivo), quanto no público.
Em vez de máscaras, segredos e subterfúgios, esse novo etos trazia à baila certa suposta
verdade íntima. A condition de que fala Diderot (a posição social, familiar ou profissional
do personagem, que leva à identificação agravada e sentida pelo espectador/leitor) serve
para que quem está na platéia (ou lendo) se reconheça no palco (ou na página). E serve para
uma medição do escopo ético do personagem, segundo uma nova régua sensível: por meio
dos textos ou das peças, o espaço público é repensado como local de encontro de
identificações e sentimentos. O libertino ou cortesão estava sendo neutralizado por novos
constrangimentos patéticos ou catárticos em pleno processo de experimentação nas artes.
16
Por fim, Nanine, de Voltaire, sua peça baseada em Pamela, nos ajudará a perceber
como um defensor do mundanismo, formado e integrado ao etos da frivolidade e do
coquetismo – chegando mesmo a adaptá-lo como forma narrativa, segundo Auerbach e
Spitzer –, chegará a integrar o partido do sentimento. Na verdade, tal decisão se integra
perfeitamente à tensão da época, clara na própria Lettre à M. D’Alembert, de Rousseau,
onde se encontra um elogio a Nanine. Ao contrário de Pamela, Nanine inclui um nobre que,
desde o início da peça, destoa de seus pares ao buscar um amor verdadeiro. A diferença de
condição social entre ele e a criada, Nanine, é obstáculo forte o bastante, mas se desfaz –
assim como o pseudo-triângulo amoroso – quando se revela que o pai da moça perdera seus
bens e fora obrigado a se tornar soldado, condition respeitável na construção nacional
cívica que compõe o novo horizonte das Lumières. Por outro lado, desde o começo o nobre
e sua mãe se mostravam meio críticos em relação à frivolidade e à falta de ética da
aristocracia: em 1749, e na perspectiva de Voltaire, já era possível transformar a divisão
interna do cortesão que abraça as mazelas imanentes a seu monde, apesar de criticá-las
(como no caso de Versac em Les égarements du cœur et de l’esprit), em um ataque direto
ao etos que presidia aquela classe dominante francesa.
Entre a sensibilidade e seus desdobramentos fundamentais nos palcos e páginas
franceses da época, o coquetismo que aproxima a narrativa de um presente coloquial
valorizado, e a libertinagem, um tipo de indiferença à moral a se contrapor ao envolvimento
almejado pelo partido sentimental, o século XVIII viu nascer uma nova percepção estética
– bem como um novo etos. O romance Pamela é o epicentro dessa transformação, e suas
adaptações para os palcos franceses, sintomas bastante fortes de que algo de novo se
insinuava, entre Inglaterra e França, entre o teatro e o romance, entre o leitor e a obra.
17
1. Ambigüidade no reino das certezas: amor, erotismo e dubiedades individuais
O título deste capítulo pode surpreender quando se conhece a estrutura bipolar, de
verdadeiro combate, do romance Pamela, de Samuel Richardson, um combate no qual
Mister B. e Pamela mantêm-se envolvidos até o início do volume 2 da primeira edição
inglesa
1
. Porém, parece que, nesse caso, as aparências de fato enganam. Tentaremos
demonstrar que, por trás de uma férrea disputa entre um patrão e sua criada, surge um
campo de ambigüidades constitutivo do romance, o qual só se arrefece no fim do volume 1
(ou seja, na metade do quinto dia do diário, uma segunda-feira, na primeira edição inglesa,
correspondendo ao fim do primeiro volume, na francesa). Logo em seguida, tal campo sofre
uma inesperada distensão, rumo ao casamento, que apazigua as contradições. As referidas
ambigüidades revelam uma complexidade literária inusitada da obra, que obviamente se
refletirá na exigência de uma nova postura por parte do leitor. Essa característica (a nosso
ver, pouco explorada pela crítica) pode jogar nova luz sobre um momento de
complexificação do ato de escrita e leitura, para além de importantes mudanças já
conhecidas – por exemplo, a inclusão de personagens “baixos” (de classes sociais baixas), o
novo “realismo” descritivo, que favorece o coloquialismo (típico no romance epistolar), e o
tratamento sério do cotidiano
2
. As ambigüidades que indicaremos contradizem, em alguma
medida, aqueles que não reconhecem no texto uma riqueza literária a sobreviver a seus
anacronismos, muitas vezes apenas superficiais.
1
Referimo-nos, aqui, aos volumes tal como constam na primeira edição, de 1740. RICHARDSON, Samuel.
Pamela; or Virtue Rewarded. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 2001, que reproduz a edição
original, de 1740 – de agora em diante, apenas Ed. 1740.
2
A referência a Erich Auerbach aqui é clara a partir dos próprios termos escolhidos (Mímesis. A
representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994 (1946)). O termo
“realismo”, na frase, aparece sintonizado com o significado que lhe confere o crítico alemão, apenas de forma
um pouco mais pontual no que toca à focalização histórica: interessa-nos o fenômeno de surgimento, em
várias obras em prosa, de uma nova forma de transposição da vida cotidiana concreta para a ficção, em
contraponto ao gosto clássico, na virada do século XVII para o XVIII, na Inglaterra mas também na França.
Fugindo, por ora, de uma complexa dicussão mais ampla sobre o termo (desenvolvida, por exemplo, no
clássico A ascensão do romance, de Ian Watt), retenhamos apenas a idéia, defendida por muitos
pesquisadores, de que o período indicado vui nascer romances e novelas com tendência documental, e que
ameaçavam a hegemonia das regras clássicas de verossimilhança.
18
Comecemos afirmando que uma das ambigüidades a serem apontadas foi
prefigurada, de alguma maneira, por leitores que viram no romance uma dubiedade que
acabou sendo classificada como pura e simples hipocrisia – da protagonista e/ou do autor.
Nos anos 1920, Aurelien Digeon, considerado um dos responsáveis pela avaliação e
hierarquização crítica do romance inglês oitocentista, principalmente de Fielding e
Richardson, assim definiu tal dubiedade, com a qual mostrava-se incomodado:
...what irritates the reader is to find that under the pretence of giving us an
edifying and moral novel, the author has presented a salacious tale, the
sole interest of which lies in discovering whether a ruffian will finally
succeed in seducing a young woman. “Will Pamela be violated or not?”
Such, in a word, is the question which soon becomes the point at issue…
3
É improvável que se retrate a duplicidade de que falávamos de forma mais crua e
direta. É bem conhecida a reação dos que viram no romance dubiedade de fundo erótico,
facilmente classificada de hipocrisia. Suas pseudo-continuações satíricas, como Shamela,
de Henry Fielding, e Anti-Pamela, de Eliza Haywood, enveredam por esse caminho, ao
tornar risíveis cenas em que a linguagem decorosa, vitimizada ou mesmo exacerbadamente
imprecativa escondem o puro e simples interesse amoroso ou erótico do patrão em relação a
sua presa supostamente indefesa. No que toca à primeira recepção da obra na Inglaterra,
deve-se a Fielding a precedência de tal reação, em forma de ficção leve e ligeira, em maio
de 1741. No mês seguinte, surge a primeira reação crítica séria de repúdio a tal dubiedade
erótico-amorosa: Pamela censured: In a letter to the editor. Em vez de paródia cômica, seu
autor desconhecido se concentra em criticar as próprias promessas que Richardson
estampara na introdução à obra, tais como a “garantia” de que o romance “...is intirely
divested of all those Images, which (...) tend to inflame”
4
. Escreve o “censor” ou primeiro
crítico do romance:
Shewing That under the Specious Pretence of Cultivating the Principles of
Virtue in the Minds of the Youth of both Sexes, the Most Artful and
Alluring Amorous Ideas are convey’d.
3
DIGEON, Aurélien. The novels of Fielding. Londres: G. Routledge, 1925 (o original, Les romans de
Fielding – Paris, Hachette –, é de 1923), apud. KREISSMAN, Bernard. Pamela-Shamela. Lincoln:
University of Nebraska Studies, 1960. p. 31.
4
KREISSMAN, Bernard, op. cit., p. 31.
19
And that, instead of being divested of all Images that tend to
inflame; Her letters abound with Incidents, which must necessarily raise
in the unwary Youth that read them, Emotions far distant from the
Principles of Virtue.
5
O autor passa a listar cenas picantes do romance, como aquelas em que de fato
aparecem “…Naked breasts being run over with the Hand, and Kisses given with such
eagerness that they cling to the Lips”
6
. Não é difícil notar que tal crítica séria substitui o
riso de censura provocado pelas passagens de Shamela nas quais o erotismo apenas
sugerido (ou usado como exemplo negativo) de trechos de Pamela virara comicidade:
…if you don't come to me, I'll come to you, says he; I shan't come to you I
assure you, says I. Upon which he run up, caught me in his Arms, and
flung me upon a Chair, and began to offer to touch my Under-Petticoat.
Sir, says I, you had better not offer to be rude; well, says he, no more I
won't then; and away he went out of the Room. I was so mad to be sure I
could have cry'd.
7
O que pretendemos, no entanto, é oferecer uma visada mais enriquecida do
problema, de modo a não reduzi-lo a uma censura ao aspecto supostamente (ou
hipocritamente) erótico da obra, ou – o que é mais comum entre críticos modernos – à falta
de brechas de sentido no texto, caracterizada pelos preceitos moralizantes de Pamela, pela
crueza do erotismo e das perseguições de Mr. B., pela pífia inclusão da palavra “rewarded
no subtítulo do romance etc. Como não nos interessa aqui reiterar estranhezas ou
anacronismos do leitor moderno diante de um texto dos primórdios de um gênero que, nos
séculos seguintes, teria chance de expandir imensamente seu potencial de crescente
complexidade estrutural, semântica e lingüística, voltemos a nossa trilha analítica.
Em primeiro lugar, apontemos uma característica que nos parece central: a nítida
oscilação entre os pólos de avaliação a respeito das motivações respectivas de Mister B. e
de Pamela. Tal avaliação ocorre por meio de interessantes espelhamentos, que, obviamente,
incluem o leitor como terceiro elemento a participar da ambigüidade, que parece, assim, se
ampliar bastante. Em primeiro lugar, há uma constante variação no julgamento mútuo entre
os dois personagens, a qual ajuda a embaralhar a avaliação que o leitor faz, a cada
5
Idem, ibidem.
6
Idem, p. 32.
7
FIELDING, Henry. Shamela. Londres: Penguin Books, 1990. p. 30.
20
momento, dos atos e palavras dos dois. Esse triplo espelhamento – ou tripla perspectiva
oscilante – dá a impressão de um jogo de gato e rato que, sem dúvida, às vezes é proposto
pelo autor de forma um tanto incipiente, muito embora tal oscilação, em si, indique grande
complexidade narrativa, para a época.
Mas, de que oscilação se está falando? Primeiro, como se adiantou, trata-se de uma
variação dupla, que faz tanto de Pamela quanto de Mister B. réus de um tribunal mútuo
constante, bem como do tribunal suposto – mas fundamental, é claro – do leitor. “Suposto”,
aqui, significa que o leitor é um “observador ausente”, não referido no texto
8
. Desde as
primeiras páginas do romance, esse tríplice tribunal imprime dinamismo ao ato de leitura,
enriquecendo-o com as tais ambigüidades, aparentemente insolúveis. Estas se desenrolam
em dois níveis ao longo do volume 1, complexificando a flagrante e patética tensão entre os
dois protagonistas
9
.
Comecemos pela ambigüidade de primeiro nível, mais simples e de fácil percepção:
a que contrapõe os impulsos eróticos e hierarquicamente justificados de Mr. B. a uma nova
visão fundamentada na (velha) virtude com vistas a propor uma ética do casamento. Em
seguida, a ambigüidade de segundo nível se caracteriza pela dubiedade constitutiva que as
duas partes envolvidas demonstram individualmente consigo mesmas, ou seja, tanto Mr. B.
quanto Pamela se cindem em dúvidas sobre si e seus atos. Nomeemos a primeira de
ambigüidade erótico-amorosa e a segunda, de individual-subjetiva. Essas duas
ambigüidades, uma mais imediatamente visível (e imediatas foram as reações a ela na
primeira recepção da obra, por volta de 1740-41) e a outra mais sutil, mantêm o arco da
tensão da narrativa desde seu início até a inesperada distensão no início do volume 2 (da
primeira edição) que, mais adiante, desembocará no casamento. Também se pode dizer que
a ambigüidade mais visível, de primeiro nível, tem como alicerce latente a de segundo
nível: são as dúvidas de Pamela quanto a sua própria condescendência diante das violências
verbais e dos atos funestos do patrão que permitem supô-la disponível a seus assédios. Do
8
Ele está presente, entretanto, como destinatário potencial de uma grande número de textos introdutórios
publicados desde a primeira edição de Pamela, para não falar nos anúncios em periódicos e até elogios em
meio a discursos e sermões, que se seguiram ao lançamento do romance – estes últimos não incluídos, é claro,
no corpo da edição. A análise dessa recepção, editada ou não, encontra-se em: KEYNER, Thomas; SABOR,
Peter (org.) The Pamela controversy. Criticisms and adaptations of S. Richardson’s Pamela – 1740-1750.
Vol. 1. Londres: Pickering & Chatto, 2001.
9
“Patética” é usado, aqui, no sentido corrente atual, não no observado no século XVIII francês e inglês, em
que significava uma culminância do sublime na tragédia clássica.
21
mesmo modo, é a sucessão de perdões por parte de Mr. B., aliada a cenas em que se mostra
cada vez mais amoroso e cada vez menos eroticamente direcionado, que levam a supô-lo
em transformação. Com efeito, só será possível a passagem da ética antiga para a nova (da
erótico-hierárquica para a amorosa e casamenteira) porque a ambigüidade erótico-amorosa
se assenta tanto sobre impulsos e convenções sociais aceitas na sociedade da época,
tacitamente ou não (assédio erótico aceitável do patrão, opressão da criada etc.), quanto
sobre uma base menos sólida, ou seja, as dúvidas e divisões de consciência individuais.
São tais ambigüidades, de primeiro e de segundo nível, que mantêm a tensão da
narrativa, desde a precoce cena do susto da protagonista diante da aparição de seu “Mestre”
ou “Senhor”, curioso diante da carta (a primeira!) que ela acaba de escrever e dobrar
10
, até
o momento de distensão no início do segundo volume, que muda as “regras do jogo”
narrativo, desembocando no casamento e na nova vida da protagonista como esposa de um
nobre de toga
11
. A distensão que, na verdade, é revelação do amor matrimonialmente
direcionado de Mr. B. (na carta amorosa que marca a virada, há uma alusão indireta ao
casamento: “...I shall have nothing to do, but to make you happy, and be so my self”
12
),
representa a grande reviravolta do romance, aquela que desfará todas as ambigüidades e
transformará grande parte do volume 2 em uma espécie de “manual de casamento” para
mulheres dos anos 1740 na Inglaterra. Isso se torna literal com os 48 artigos do “Method”
de comportamento da boa esposa, proposto por Mr. B. e aceito e recapitulado por Pamela
13
.
As únicas tensões que restam nesse volume 2 são em relação a Lady Davers, irmã de Mr.
B., representando a hierarquia social da época, e à bastarda do magistrado, último ponto de
suspense da narrativa, cujo desenlace só ocorre a 21 páginas de seu fim (Ed. 1740, pág.
482).
10
Ed. 1740, p. 12-13. Voltaremos a esta cena logo adiante.
11
A distensão começa com a carta de Mr. B. que assim se inicia: “In vain, my Pamela, do I find it to struggle
against my Affections for you.”. A frase-revelação seria: “...for I find I cannot live a Day without you”. (Ed.
1740, p. 250). Tal trecho encontra-se poucas linhas (apenas três parágrafos) após o final escolhido pelo
tradutor francês para o volume 1 (o volume 2 só sairia na França um ano depois, em 1743). Como se sabe, tal
arbitrariedade era comum nas traduções da época. Mas ela revela mais do que se espera: nota-se a extrema
sensibilidade do tradutor em terminar o primeiro volume deixando em suspenso qualquer conclusão sobre o
destino de Pamela, e no momento imediatamente anterior a que tal destino comece a se delinear de forma
menos surpreendente ou ambígüa. Pois é graças a essa carta que ela aceita, pela primeira vez, um chamado de
Mr. B., no caso, para voltar para a casa. Quinze páginas depois (Ed. 1740), o casamento está marcado para
dali a 14 dias.
12
Ed. 1740, p. 251.
13
Idem, p. 448-451.
22
Obviamente, não podemos pretender, nos limites da primeira parte deste trabalho,
nem visar a uma leitura definitiva e inovadora de um romance objeto de bibliografia crítica
bastante extensa e rica no mundo todo, nem fazer um apanhado das principais teses e
hipóteses aventadas nessa bibliografia. Portanto, não é o caso de lançar hipótese inédita
nem de compilar as muitas existentes, mas de propor uma leitura do texto que se integre a
nosso projeto geral de traçar uma repercussão do romance de Richardson em certas obras e
em certos leitores-escritores franceses do período estudado. Nesse sentido, é importante
destacar elementos constitutivos – inclusive contrapondo-os a romances-chaves, anteriores
a Pamela, como as Lettres portugaises, La Princesse de Clèves e La vie de Marianne –,
elementos esses que possam ter favorecido determinadas reações, tanto de escrita quanto de
leitura. É o que motiva e justifica nossa própria hipótese de leitura crítica do romance.
1.2. O reino das ambigüidades
Por um lado, Mister B. desde o princípio parece bem identificado com a posição do
senhor de prestígio, em uma sociedade em que os limites da autoridade aristocrática são
bem marcados, e os gentlemen exercem seu desejo soberanamente. Os signos inquietantes
de seu interesse erótico pela criada (ambigüidade de primeiro nível) são percebidos
primeiro pelos pais de Pamela: para eles, a generosidade patronal só pode guardar segundas
intenções. A “confirmação” de tais intenções tem como conseqüência a primeira crise de
Pamela, aliás, anunciada pela preocupação antecipada dos pais: “I hope the good ’Squire
has no Design; but when he has given you so much Money, and speaks so kindly to you,
(...) and Oh! That fatal Word, that he would be kind to you, if you would do as you should
do, almost kills us with Fears”
14
.
Tal condenação paterna e materna se antecipa à própria experiência de Pamela,
influenciando-a antes da hora: “I Must needs say, that your Letter has fill’d me with much
Trouble. For it has made my Heart, which was overflowing with Gratitude for my Young
14
Ed. 1740, p. 13.
23
Master’s Goodness, suspicious and fearful…”
15
. Já está posto o problema da constituição
do sentido por meio de julgamentos (olhares) diversos, em um perspectivismo de várias
vozes narrativas que Richardson aperfeiçoaria oito anos depois, em Clarissa. Mais uma
advertência do pai, na carta VIII, e dá-se o esperado e temido
16
; na carta X, ela escreve, sob
o choque de uma “sad scene” passada com o patrão: “...to be sure, now it is too plain, that
all your Cautions were well-grounded”
17
. O roubo da carta é prenúncio de uma dimensão
importante da estrutura geral do romance: trata-se de demonstração da força opressora de
Mr. B., que se exercerá por meio da tentativa de acesso às cartas secretas. O sumiço da
carta que narra a primeira cena de investida erótica do patrão fazendo Pamela (e o leitor, é
claro) supor que Mr. B. tem, pelo menos potencialmente, controle total até sobre os escritos
secretos da criada é um elemento de sutileza surpreendente, pois antecipa as estratégias de
vigilância que marcarão a primeira parte do romance.
Na verdade, tal sumiço tivera um antecedente, ainda na primeira carta. Trata-se,
também, do primeiro susto da protagonista, quando Mr. B. surge de repente enquanto
Pamela dobra a primeira carta. “Who have you been writing to, Pamela?”, pergunta e, ao
saber que é para os pais dela, diz: “Well then, Let me see how you are come on in your
Writing!”, e toma-lhe a carta “…without saying more, and read it quite thro’, and then gave
me it again”. Em seguida, depois de elogiar sua forma de escrever e de liberar-lhe todos os
livros da falecida mãe, deixa-a “...all in Confusion, at his Goodness. Indeed he is the best of
Gentleman, I think!”
18
.
15
Idem, p. 15.
16
Usamos o termo perspectivismo para tentar descrever a multiplicação e complexificação das vozes
narrativas, tendência inegável do romance moderno. Em um momento inaugural do novo gênero, é
plenamente compreensível que tal tendência apareça a um só tempo como incipiente e já deixando entrever
suas potencialidades. Do mesmo modo, sem estendermo-nos sobre o tema, na obra de um crítico como
Bakhtin encontram-se conceitos relacionados a tal riqueza, como o de dialogismo (estrutura lingüística geral
crucial para o romance) e o de romance polifônico, especificamente a respeito de Dostoiévki. Obviamente, em
um romance em que as cartas iniciais para os pais transformam-se, na verdade, em um extenso diário em
primeira pessoa, como Pamela, o perspectivismo – diferentes focos individuais narrativos em conflito –
apenas se deixa adivinhar; em Clarissa, de 1748, o autor o extenderá e o tornará mais complexa. Sem justapor
nenhum dos dois conceitos de Bakhtin, lembramos somente da sintonia com a idéia de plurivocidade narrativa
crescentemente complexa como aspecto do romance moderno a ser considerado. No próprio século XVIII, o
romance epistolar pode ser vista como campo de experimentação privilegiado dessa tendência: de Julie ou La
nouvelle Heloïse, de Rousseau (1761), a Les liaisons dangereuses, de Laclos (1782), ou Aline et Valcour, de
Sade (1793), a complexificação das perspectivas narrativas em conflito só aumenta, como se sabe. C.f.
VERSINI, Laurent. Le roman épistolaire. Paris: PUF, 1979.
17
Idem, p. 21.
18
Ed. 1740, p. 12-13.
24
A frase final é o primeiro exemplo de uma oscilação que atravessará o romance,
remetendo à técnica de Richardson de exagerar certa avaliação de Pamela para depois
frustrá-la, dificultando que o leitor julgue tanto os atos de Mr. B. quanto as reações da
criada. Tal técnica, nem sempre realizada com sutileza pelo autor, ajuda a compor as
ambigüidades apontadas, já que favorece avaliações sempre mais ou menos equivocadas de
quem lê. Nunca se tem certeza a respeito dos elementos à disposição para tal avaliação: será
Mr. B. mesmo um celerado? E Pamela, será hipócrita em sua resistência aos assédios?
Obviamente, é o segundo nível de ambigüidade, ou seja, as divisões individuais vividas
pelos protagonistas, que está na base desse jogo de equívocos, alicerçando ambigüidades
mais explícitas com dubiedades menos visíveis. Isso porque, por um lado, é a inclinação
progressivamente amorosa e cada vez menos erótica de Mr. B. (dubiedade individual
constitutiva do magistrado) e, por outro lado, é a inclinação ao amor, ou pelo menos a
disponibilidade a ele, mesmo em meio ao mais grosseiro destrato ou perseguição
(dubiedade individual constitutiva de Pamela) que confundem o leitor. Tal favorecimento
ao equívoco é agravado porque esse leitor é, até certo ponto (como se indicará adiante),
privado do que se passa com Mr. B., dado que sua transformação não é narrada, mas surge
em atos isolados (o rapto, a carta-proposta de quase casamento etc.). Do mesmo modo, a
ambigüidade individual de Pamela é inconsciente a ela mesma, apenas podendo ser inferida
pelo leitor – Henry Fielding e Aurélien Digeon foram dois dos que exploraram essa senda,
com perspectivas diferentes, um, de pura sátira, o outro, de crítica literária.
Portanto, o perspectivar-se se apresenta como constitutivo já que o foco narrativo
principal, a voz de Pamela, em primeira pessoa, com suas cisões internas (dúvidas,
arroubos de martírio/afeição, sofrimento/gratidão), é o único acesso que se tem à de Mr. B.,
a qual, por sua vez, também se mostrará menos sólida do que a princípio se supõe, já que o
personagem mudará de posição, do erotismo inicial rumo ao amor. Como Fielding e
Digeon, nós, leitores, somos chamados a desconfiar de Pamela, não por conta de uma
hipotética hipocrisia, mas pela suposição, bem plausível, calcada em uma percepção da
estrutura narrativa, de que sua perspectiva (seu foco de visão subjetiva) só pode ser mesmo
parcial. Parcial ele é também em relação a si própria, já que a subjetividade espontânea fala
de suas próprias falhas e inconsciências, ao falar de suas esperanças, reações, avaliações,
sentimentos, lutas e medos. Se a prosa de ficção se constitui, naquele momento, como
25
campo de constituição de complexidades a partir da produção de sentido, tal campo
favorece a construção de um novo modo de perceber a subjetividade em perspectiva.
19
Porém, se a condenação a uma suposta hipocrisia de Pámela se assenta, na verdade,
em suas dubiedades de base, a condenação a Mr. B. (tanto por parte dos leitores quanto por
parte dos pais de Pamela, os primeiros leitores de suas cartas), assenta-se, é claro, em um
dado sociológico bastante concreto. Trata-se de um dado percebido como cotidiano na
Inglaterra da época: o fato de os gentis-homens (gentlemen) terem a liberdade de dispor
sexualmente de mulheres de baixa extração social, com a tácita anuência da sociedade em
geral.
20
Men of all classes are expected to take casual sexual pleasure – though it’s
better for poor men not to roam too much. Middle- and upper-class young
ladies have chastity most explicitly demanded of them (for worldly
reasons of family and descent) but lower-class girls are not supposed to
set any such value on themselves – they are there for sexual
convenience.
21
Além dessa ambigüidade erótico-amorosa, a cena destacada acima, da primeira
carta, é inaugural também no que toca à ambigüidade que chamamos aqui “de segundo
nível”, em que Pamela se mostra confusa diante da própria avaliação: o terror súbito diante
da intromissão dá lugar ao fascínio diante da gentileza do gentleman. Compare-se a
passagem com outra, bem mais dramática, em pleno aprisionamento persecutório na
19
C.f. VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2002. Quinta lição. p. 76-79. A autora destaca, sem explicitar ponto a ponto em relação a
Pamela, o que aqui chamamos de ambigüidade de primeiro nível, relacionando-a à construção de uma
subjetividade moderna por meio da literatura, em Richardson. “O romancista [Richardson] caminhou na corda
bamba da ambigüidade, ao explorar as formas inconscientes do impulso sexual, mantendo suas heroínas
rigorosamente dentro dos limites do comportamento exemplar e criando uma complexidade psicológica que
deixava entrever motivações íntimas nem sempre totalmente condizentes com o que explicitavam no nível do
discurso” (p. 77). Para além da alegada consciência total da missivista em relação a seus próprios sentimentos
(seu coração), percebe-se, desde as desconfianças paternas, como o olhar do leitor vê além do que o autor da
carta quis mostrar. Tais desconfianças paternas não fariam parte de uma pedagogia da leitura complexa
(perspectivada), rumo à construção de uma subjetividade moderna “dobrada em si”?
20
Seja como casos jurídicos reais, mesmo que esporádicos, seja como construção imaginária de raízes
surpreendentemente arcaicas, esse “erotismo da desigualdade” (segundo Sandra Gilbert) ou “dialética do
mestre e da criada” (segundo BOUREAU, Alain. Le droit de cuissage. La fabrication d’um mythe XIIIè-
XXè siècle. Paris: Albin Michel, 1995) é onipresente no teatro e na literatura a partir do século XVIII.
Boureau mostra como se trata de uma fantasia de alto apelo dramático, o que leva a pensá-lo como uma
espécie de tema moral privilegiado do tempo.
21
RICHARDSON, Samuel. Pamela; or, Virtue Rewarded. Londres: Penguin Books, 2003 (1980). p. 14. O
livro traz a edição de 1801 (De agora em diante, apenas Ed. 1801). O trecho é da introdução, de Margaret A.
Doody.
26
propriedade de Lincolnshire, mais de 160 páginas adiante; a frase é lapidar no que toca à
dubiedade individual constitutiva de Pamela: “What is the Matter, with all his ill Usage of
me, that I cannot hate him?”
22
Tais exemplos demonstram bem que a construção de ambigüidades depende do
julgamento de Pamela diante dos atos do patrão, tendo o leitor como juiz – às vezes
desconcertado – de versões conflituosas. Estaria ele diante de uma verdadeira pedagogia do
julgamento possível diante das contradições que as relações humanas incluem,
inevitavelmente? Nesse sentido, as dicotomias morais de fato perceptíveis no romance –
vício/virtude, erotismo libertino/amor de casamento, consciência/inconsciência (das
posturas individuais), perseguidor/vítima, repressão/gentileza etc., que em geral
determinam a tendência, a nosso ver pouco frutífera, de ler o romance como um “manual de
comportamento moral” travestido de ficção, podem constituir preparação para
complexidades narrativas antes impensadas
23
. Ler Pamela é, hoje (como deve ter sido na
época), ter contato com brechas abertas pelas ambigüidades narrativas, a favorecer a
pluralidade do sentido, em meio a uma fachada – só aparentemente sem fendas – de
dicotomias sociais e morais.
22
Ed. 1740, p. 179.
23
No âmbito de seu trabalho sobre as relações entre os primeiros romances (ditos “modernos”) e a moral,
Raquel de Almeida Prado encarece tal idéia, como exemplo da interessante hipótese de Shelly Yahalom
segundo a qual formas extraliterárias como os manuais de moralidade influíram no tom moral de romances e
de seus prefácios, nas primeiras décadas do século XVIII. “Yahalom mal cita o exemplo de Richardson, que
bem poderia figurar como paradigma de sua tese, já que este passa diretamente da confecção de manuais
espitolares, na sua função de diretor de consciência, para a de romances epistolares”. PRADO, Raquel de
Almeida. Perversão da retórica, retórica da perversão. Moralidade e forma literária em “As ligações
perigosas” de Choderlos. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 28. Sandra G. Vasconcelos também cita a ligação
entre Pamela e a atividade imediatamente pregressa de seu autor: “Instado a escrever um manual de cartas,
dessas que se trocam entre familiares e amigos, o tipógrafo, com um olho nas questões de estilo e o outro nas
possibilidades didáticas da empreitada, fez melhor que a encomenda”. VASCONCELOS, Sandra G., op. cit.,
p. 71. Thomas Keymer não deixa de ressaltar os trabalhos anteriores de Richardson no campo do manual de
comportamento: The aprrentice’s Vade Mecum (1733) e Letters written to and for particular friends, on the
most important occasions (publicado em 1741, mas escrito no ano anterior), mais conhecido como Familiar
letters. Mas também chama a atenção para uma obra muito mais imaginativa que Richardson editara em
novembro de 1739, ou seja, um ano exato antes de Pamela: a livre adaptação, feita de próprio punho por
Richardson, das Fables, of Æsop and Other Eminent Mythologists, de Sir Roger L’Estrange (1692). A postura
de Keymer é bastante interessante, pois se contrapõe à tradição de ler Pamela como obra que peca pela falta
de uma dimensão propriamente imaginativa, e pelo excesso de moralismo. (Ed. 1740, p. xvii e sqq.). Nossa
análise das imagens de animais em cenas importantes do romance, feita antes da leitura do texto de Keymer,
vai na mesma direção de tentar perceber a dimensão fabular em romance só aparentemente sem muitas
brechas para a imaginação.
27
1.3. As ambigüidades de base se desdobram: as contradições da condição social
Como já se indicou, os dois níveis de ambigüidade apontados acima se dão diante
de um pano de fundo bem concreto: as hierarquias sociais estão bastante presentes como
elementos do par amor/erotismo. Quanto a isso, é importante destacar, em primeiro lugar,
um ponto quase nunca referido: Pamela é filha de um pai com habilidades intelectuais, que
alcançara certa posição na sociedade, mas que falira
24
. Ainda na segunda carta do pai, lê-se:
“We are, ’tis true, very poor, and find it hard enough to live; tho’ once, as you know, it was
better with us”
25
. O pai prossegue descrevendo seu trabalho manual pesado: parece ser
trabalhador de empreitadas de escavação de valas, com direito a ressonâncias bíblicas
(“água e barro”): “But we would sooner live upon the Water and Clay of the Ditches I am
forc’d to dig, than to live better at the Price of our dear Child’s ruin”. Percebemos, portanto,
que Pamela faz parte de uma família que decaiu socialmente. Não se trata de camponeses e
nem mesmo de pobres de longa data, e sua condição anterior, financeiramente mais digna,
incluía até mesmo a possibilidade de negócio próprio de cunho intelectual, mesmo que na
área rural: quase no fim do romance, toma-se conhecimento de que o pai de Pamela
“...without Success, try’d to set up a little Country School, (for my Father understood a
little of Accompts, and wrote a pretty good Hand)”
26
. O talento ou o dom de Pamela com
24
Apenas em 2001, na introdução à edição do texto original do romance, vemos Thomas Keymer usar tal
constatação para ir contra a maioria dos críticos, que, segundo ele, tendem a ressaltar com certo exagero o
desnível social entre patrão e empregada, bem como para ressaltar o cuidado de Richardson como escritor que
ansiava por reconhecimento social. “...Richardson was in many respects a highly diffident writer, craving of
literary and social respectability for his work, and restrospectively anxious to appease the learned and polite.
He had alredy shown his caution by making Pamela something above a peasant in his origins, thus
temperating her story as rather less extreme stark a tale of social topsy-turvydom than modern critics would
sometimes have it”. Ed. 1740, “Introduction”, p. xxviii.
25
Ed. 1740, p. 13. Na edição de 1801, há a seguinte italização: “...though once, as you know, it was better
with us”. Ed. 1801, p. 45.
26
Ed. 1740, p. 455. O interessante é que em edições subseqüentes, revistas pelo autor, por suas filhas ou
mesmo por editores, a informação da empreitada intelectual e comercial do pai, ou seja, sua tentativa de criar
uma escola rural (“...Country school...”) é trazida já para a carta n° 5, com direito a itálicos: “...you, my father,
who are so well able to teach, and write so good a hand, succeeded no better in the school you attempted to set
up; but was forced to go to such hard labour”. Ed. 1801, p. 48 (o outro trecho citado é repetido nessa edição,
p. 475). Note-se que os atenuantes da empreitada do pai – “...a little Country school...” e “...understood a
little...” – são substituídas por advérbios e adjetivos entusiásticos: “...so well able to teach, and write so good
a hand...”. Como destaca Thomas Keymer, esse tipo de mudança em geral se devia à preocupação de
Richardson em tornar o texto aceitável diante do juízo de leitores respeitáveis da época, no caso, retratando
uma Pamela empobrecida mais por tramas do destino do que por ineficiência e inaptidão paternas.
28
afazeres intelectuais e com a escrita – mesmo que a partir de lições dadas pela falecida
Lady Davers, mãe de Mr. B. – ganha em verossimilhança. Além disso, e como aspecto
importante da caracterização da família pequeno-burguesa trabalhadora, porém decaída, a
bancarrota favorece um etos contrito, religioso, puritano, nítido nessa outra passagem da
importante carta inicial do pai, que servirá como roteiro ético para Pamela:
“...in the Midst of our Poverty and Misfortunes, we trusted in God’s
Goodness (...), and doubt not to be happy hereafter, if we continue to be
good, tho’ our Lot is hard here; but the Loss of our dear Child’s Virtue,
would be a Grief that we could not bear, and would bring our grey Hairs
to the Grave at once”
27
.
Pode-se imaginar, num esforço de análise, que a confiança que pais e filha mantêm
em sua honestidade, o que, aos olhos de um membro da classe alta, como Mr. B., soa como
orgulho exagerado, tenha como origem essa antiga condição burguesa, ora perdida. Em
todo caso, o romance será atravessado, de ponta a ponta, por uma noção idealizada da
pobreza como garantidora de probidade e retidão de caráter. Isso fica claro desde as
primeiras cartas entre Pamela e seus pais: “It is a thousand Pities, he [John, quem entrega
as cartas de Pamela aos pais clandestinamente] says, that such honest Hearts should not
have better Luck in the World. But this is more Pride to me, that I am come of such honest
Parents, than if I had been born a Lady”
28
. Em francês: “Mais je tire plus de vanité d’être
née de parents si vertueux, que si j’étois la fille d’une Dame de qualité”
29
.
Na verdade, tal idealização é um traço cultural de origem imemorial, interessando-
nos, aqui, apenas como elemento estrutural do romance a justificar toda a resistência de
Pamela. Quanto a uma análise histórica ou sociológica de tal idealização da “pobreza
honesta”, cabe-nos aqui apenas cogitar num costume da cultura popular européia que, no
século XVIII, integrará cada vez mais o discurso antiaristocrático. Costume esse que, aliás,
é a exata contraparte de outro discurso provavelmente ainda mais antigo: o ataque e a
27
Ed. 1740, p. 14. Em edições posteriores, esse último lamento patético do pai é amenizado: “...would very
soon bring our grey hairs to the grave”. Ed. 1801, p. 46.
28
Ed. 1740, p. 16-17.
29
RICHARDSON, Samuel. Paméla ou La Vertu récompensée. Paris: Libreiarie A.G. Nizet, 1977 (1742). p.
39 (tradução atribuída erroneamente a Prévost) – de agora em diante, apenas Ed. francesa.
29
suspeita diante dos pobres, vistos como ímprobos e maus-caracteres em potencial
30
. Perto
do final de Pamela, aliás, com a serviçal já devidamente empossada como Mrs. B., uma
cena ilustra a dubiedade com que a “poor people” era vista. Após a missa na qual Pamela
fez boa figura diante dos vizinhos da propriedade rural de Bedfordshire, “Several poor
People begg’d my Charity, and I beckon’d John with my Fan, and Said, Divide, in the
further Church-Porch, that Money to the Poor, and let them come tomorrow Morning to
me, and I will give them something more, if they don’t importune me now”
31
. A filha de
pais que “...never were Beggars”
32
agradava os pedintes com a condição que sumissem da
cena “exalted” (elevada, no sentido social) da qual agora era protagonista.
Porém, no limite deste estudo, é mais importante perceber que com tal idealização
(dir-se-ia instrumental para o autor) acontece algo parecido à ambigüidade observada no
nível erótico. No mesmo primeiro nível de ambigüidade
33
, as regalias e o luxo da classe da
ex-patroa e do atual patrão constituem ameaça sedutora comparável à das investidas
masculinas. Um exemplo inicial, notável exatamente por relacionar a retidão na pobreza
com as investidas patronais, já aparece na terceira carta:
...that which gives me most Trouble is, that you seem to mistrust the
Honesty of your Child. (...) set your Hearts at rest; for altho’ I have liv’d
above myself for some Time past, yet I can be content with Rags and
Poverty, and Bread and Water, and will embrace them rather than forfeit
my good Name, let who will be the Tempter.
34
Como se vê, a maior ameaça de deslize moral está ligada ao gosto que a “menina”
pode ter adquirido pela vida “above herself”, ou seja, pelos ornamentos e prazeres da vida
aristocrática. Nesse sentido, a relação da vestimenta com o estrato social, tema bastante
recorrente no primeiro volume já que Pamela é costureira, mantém-se na mesma sintonia
35
.
Quanto a isso, cite-se um exemplo precoce no romance: os primeiros presentes dados pelo
30
Erich Auerbach dá indicações de que tal costume pode ter sido revertido em seu contrário (ou seja, o elogio
da pobreza) pela tradição cristã, a partir do Novo testamento, de Santo Agostinho e de São Francisco de Assis.
AUERBACH, Erich, op. cit., capítulos 1, 2 e 3.
31
Ed. 1740, p. 488.
32
Idem, p. 395.
33
Como se deve lembrar, trata-se da distinção entre o nível mais visível, erótico-amoroso, em contraponto ao
mais sub-reptício, ligado às divisões internas e individuais de cada protagonista.
34
Ed. 1740, p. 15.
35
Trataremos do tema do vestuário, da costura e de seus sentidos sociais no romance de Richardson quando
analisarmos a peça Nanine, de Voltaire, adiante, no Capítulo 6.
30
patrão são velhas roupas da ex-patroa. “...The Cloaths are fine Silks, and too rich ant too
good for me, to be sure. I wish it was no Affront to him to make Money of them, and send
it to you: it would do me more good”. Para pôr tal idéia em prática, no entanto, a criada terá
que vencer o fascínio de ter ouvido da boca do patrão as seguintes frases “These, Pamela,
are for you; have them made fit for you, when your Mourning is laid by, and wear’em for
your good Mistress’s sake”
36
.
A ética da contrição puritana, pela qual a virtude é inegociável, acaba constituindo a
base da resistência de Pamela, resistência na qual se inclui sua dignidade corporal (sua
virgindade), mas também seu trabalho, cujo destino está em cheque desde a primeira “sad
scene” de investida do patrão. Porém, o destaque dado ao trabalho como tema em si, no
romance, não é muito grande e, em vez de solidariedade ou preocupação com futuras
dificuldades profissionais, a semântica é toda a dos sentimentos, desde a primeira vez em
que Mrs. Jervis tenta insistir para Pamela ficar: “Well, well, Pamela, I did not think I had
shew’d so little Love to you, as that you should Express so much Joy to leave me”
37
. A
reação dos outros empregados é muito mais a da perplexidade diante de rumores a boca
pequena, que aumentam tanto a tensão quanto a curiosidade – e tingem o patrão com uma
suspeita difusa e, por isso mesmo, perigosa. Há, é claro, empatia e apoio (dir-se-ia classista)
dos outros empregados da casa, mas já houvera, também, desde a carta n° 5, advertência
quanto ao perigo representado pelos empregados homens: “She [Mrs. Jervis] heard one of
our Men, Harry, (...) speak freely to me; I think he call’d me his pretty Pamela, and took
hold of me, as if he would have kiss’d me; for which you may be sure I was very
angry...”
38
.
Em todo caso, estruturalmente a incômoda boataria se destaca como ponto
fundamental a circunscrever um espaço semipúblico, dentro da própria casa do magistrado:
o crescimento de tal boataria significa que seus atos particulares podem ser julgados por
esse tribunal inesperado, nem particular, pois se trata de uma classe com modos próprios,
avessa a qualquer controle sobre a informação, nem público, pois é formado pela equipe
leal de serviçais. Conseqüentemente, Mr. B. se vê obrigado a levar Pamela, em segredo,
para um outro espaço privado: sua afastada propriedade de Lincolnshire.
36
Ed. 1740, p. 18.
37
Idem, p. 39.
38
Idem, p. 17.
31
1.4. A ambigüidade individual da criada: a valorização da credulidade
Se a condição social, expressa ou não nas vestimentas, e a reação classista dos
outros criados são balizas bastante concretas – sociologicamente orientadas – do texto, ao
descrevermos, agora, a ambigüidade individual da protagonista atingiremos zonas
semanticamente mais rarefeitas. Em Pamela, a ambigüidade individual (de segundo nível)
se divide em duas frentes, compondo a subjetividade à qual o leitor tem acesso. A primeira
frente é uma inquietação diante da própria condescendência para com Mr. B., ligada ao
jogo erótico-amoroso vivido no presente. A segunda, é uma perplexidade diante das
próprias hesitações, cujas raízes se prolongam até a memória infantil. Um exemplo da
primeira frente foi dado acima: “What is the Matter, with all his ill Usage of me, that I
cannot hate him? To be sure, I am not like other People! I am sure he has done enough to
make me hate him; but yet when I heard his Danger, which was very great, I could not in
my Heart forbear rejoicing for his Safety.”
39
Nem sempre tal comportamento ganha expressão consciente, como no caso da
passagem citada (apesar das pouco convincentes desculpas que Pamela dá a si mesma,
garantindo que tal condescendência se deve à memória da antiga patroa morta). Em geral,
essa postura é inferida da forma de Pamela agir, perdoando o patrão mesmo quando este lhe
traz os maiores dissabores. Tal postura pode, facilmente, ser confundida pelo leitor
moderno com a bondade de uma moralista incorrigível
40
. É o que parece claro em outro
trecho, esse ainda mais próximo a um indício de atração erótico-amorosa: “I look’d after
him, out of the Window, and he was charmingly dress’d: To be sure, he is a handsome
Gentleman! – What pity his Heart is not as good as his Apprearance! Why can’t I hate
him?”
41
.
39
Idem, p. 179.
40
“Moralista”, aqui, no sentido hoje corrente, ou seja, alguém que pratica uma moral estrita e estreita.
41
Idem, p. 196.
32
Na carta escrita, provavelmente, pelo reverendo William Webster, publicada antes
do lançamento do romance no periódico Weekly Miscellany e republicada como texto
introdutório à primeira edição, lêem-se elogios a tal aparente dubiedade:
No Art used to inflame him [Mr. B.], no Coquetry practised to tempt or
intice him (…); but, on the contrary, artless and unpractised in the Wiles
of the World, all her Endeavours (…) tended only to render herself as un-
amiable as she could in his Eyes: Tho’ at the same time she is so far from
having any Aversion to his Person, that she seems rather prepossess’d in
his Favour, and admires his Excellencies, whilst she condems his Passion
for her. A glorious Instance of Self-denial!
42
Nota-se o grau de consciência de um leitor privilegiado do manuscrito do livro, bem
como do próprio autor em relação aos pólos de oscilação subjetiva ou às contradições de
Pamela, elogiadas por antecedência. A “calibragem” da protagonista no que toca a seus
aspectos psicológicos e éticos parece ter sido feita com sutileza. Na verdade, como se vê
pelo trecho citado, trata-se de sintonizar a psicologia de Pamela com certa ética, de modo a
levar o monólogo interior – como que inaugurado por Madame de Lafayette em La
Princesse de Clèves
43
– a níveis de coerência talvez inéditos.
O exemplo paroxístico do retrato irônico de uma tal complacência moralista (e, por
isso, cega) diante da crueldade, no século XVIII, será um dos únicos textos do Marquês de
Sade publicados enquanto o autor vivia, embora anonimamente: Justine, ou les Malheurs
de la vertu, lançado em 1791
44
. Destacando, de antemão, estarmos cientes do salto histórico
representado pela comparação de obra surgida com mais de 50 anos de distância em relação
a Pamela, valemo-nos aqui de Sade especificamente como um autor interessado em testar e
ultrapassar os limites da moral por meio do romance. A relação da moral com a prosa de
ficção nos parece tema de central importância, principalmente no momento de instauração
do gênero romance, que aqui investigamos. Nesse sentido, a obra de Sade surge como a
exacerbação desse mesmo debate, travado, em geral, nos prefácios dos romances, desde as
primeiras décadas do século XVIII
45
. Basta lembrar um exemplo, considerado inaugural
quanto ao gênero que se convencionou chamar de “romance de libertinagem”: lê-se no
42
Idem, p. 8.
43
Trataremos desse ponto adiante, neste mesmo Capítulo, itens 1.10 e 1.11.
44
Paris: Chez les Libraires associés, 1791. 2 vol.
45
Um exemplo de estudo sobre as estreitas relações da moral com os romances do século XVIII, desde suas
primeiras décdas, é o livro de Raquel de Almeida Prado, op. cit.
33
prefácio a Les égarements du cœur et de l’esprit, de Crébillon fils, ainda em 1736, essa
pérola de frívola e ligeira reflexão sobre as relações entre verossimilhança e moral: “...une
femme vertueuse, um homme sensé, il semble que ce soient des êtres de raison qui ne
ressemblent jamais à personne”
46
.
Voltando ao Marquês de Sade, reconhecidamente um herdeiro da obra de Crébillon
fils, assim como no subtítulo de Pamela, a palavra “récompense” consta da introdução do
livro:
Le dessein de ce roman (...) est nouveau sans doute; l’ascendant de la
Vertu sur le Vice, la recompense du bien, la punition du mal, voilà la
marche ordinaire de tous les ouvrages de cette espèce (...). Mais offrir
partout le Vice triomphant et la Vertu victime de ses sacrifices, montrer
une infortunée errante de malheurs en malheurs; jouet de la scéleratesse;
(...) étourdie des sophismes les plus hardis, les plus spécieux; (...) en proie
aux séductions les plus adroites, aux subordinations les plus irrésistibles;
n’ayant pour opposer à tant de revers, à tant de fléaux, pour répousser tant
de corruption, qu’une âme sensible, un esprit naturel et beaucoup de
courage (...) c’était, on en conviendra, parvenir au but par une route peu
frayée jusqu’à présent.
47
O entusiasmo de Sade é de alguém que se esforça para inverter o modelo vitorioso
da Pamela de Richardson, em que a virtude crédula e condescendente, mesmo diante das
maiores baixezas de um nobre com ascendência sobre ela, se vê recompensada. A própria
exacerbação antimoralista do marquês surge assim como um programa de virulência com
alvo específico: como num jogo literário, seu exercício é o de elaborar o inverso exato da
expectativa virtuosa. Não se pode negar tratar-se de “...route peu frayée...”, ou seja, de
projeto inédito e engenhoso, levando-se em conta a já referida importância da moralidade
no âmbito do romance setecentista. Por outro lado, percebe-se tamm o quanto tal projeto
é devedor do sucesso de Pamela dos romances que lhe seguiram a trilha: como Justine,
também Pamela sofre os maiores revezes e opressões por conta de sua virtuosidade
inquebrantável, em um verdadeiro périplo do martírio; a diferença está na viravolta do
casamento, recompensa final de tanto sofrimento
48
.
46
CRÉBILLON FILS, Claude. Les égarements du cœur et de l’esprit. In: TROUSSON, Raymond. Romans
libertins du XVIIIè siècle. Paris: Robert Laffont, 1993. p. 21.
47
LELY, Gilbert. Sade. Études sur sa vie et sur son œuvre. Paris: Gallimard, 1967. p. 232-233.
48
A questão de Pamela e do martírio será por nós tratada adiante no Capítulo 4, item 4.4, “O martírio como
modelo de purgação”.
34
Além de ter escrito sua obra cerca de meio século depois de Richardson, no
desesperançado e anti-idealista período pós-Terror, Sade não propõe nenhuma saída pública
ou institucionalizante para as fortes contradições sociais que seu tempo viveu. A tarefa a
que se propõe é muito mais a de demolir qualquer laivo de idealização que ainda resta
depois de acontecimentos tão contundentes e dolorosos, a partir de 1789 – ainda mais para
a aristocracia da qual ele fazia parte e com a qual partilhava o imaginário, até certo ponto.
Richardson atua em ambiente cultural e a partir de pressupostos totalmente diversos: sua
aposta no casamento surge como solução socialmente aceitável (pública e
institucionalizada) para os impulsos amorais e cruéis pautados pela intemperança da
aristocracia. Pode-se acusá-lo, talvez, de preceituar um modelo que surge como remédio
para contradições fortes demais, tudo isso por meio da literatura, a qual, pela cartilha
moderna (pós-século XVIII), não devia se prestar a tal papel. Apesar disso, não se pode
deixar de reconhecer que tal receituário teve imensa repercussão cultural e, como muitos
indicam, a partir de Clarissa (1748), mais do que o casamento em si, foram outros
ingredientes do romance richardsoniano – já presentes em Pamela – que acabaram dando
espaço para o surgimento de uma Julie ou La Nouvelle Heloïse, de Rousseau, cujo
potencial de exemplo cultural positivo é apontado por Charles Taylor
49
. O que só reforça
nossa opção de nos atermos, primeiro, às ambigüidades e tensões do volume 1 do romance,
pré-casamento – obviamente, sem tirar do horizonte tal solução escolhida por Richardson, o
que seria absurdo, pois corresponderia a negligenciar um fato estrutural da obra.
Pelo que foi exposto acima, há certa coerência em Pamela suspender o juízo de
valor diante das ações do magistrado ou de qualquer pessoa que cruze seu caminho,
seguindo o estilo de frases como essa: “...sure the Heart of Man is not capable of such black
Deceit...”
50
. Se a questão é erigir um modelo positivo e com o potencial de
institucionalizar-se pelo qual complexas questões ligadas à relação homem-mulher e a
diferenças sociais na época inultrapassáveis são discutidas e direcionadas para uma solução
– o casamento –, seria incongruente tirar de Pamela a disponibilidade ao laço amoroso,
apesar do comportamento condenável do patrão – o perdão quase incondicional é a um só
49
TAYLOR, Charles. As fontes do self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola,
1997. p. 367-383.
50
Ed. 1740, p. 148.
35
tempo traço reconhecível de um suposto moralismo, como ponto essencial a encaminhar o
desenlace do casamento.
Também a favor de Richardson diga-se não ser inverossímil que uma menina de 15
anos, educada nos preceitos expostos desde a primeira carta, tenha a mesma dificuldade em
reconhecer indícios da atração erótica masculina que demonstra em distinguir a crueldade
alheia. Faz sentido, aqui, a aproximação com a personagem Suzane Simonin, de La
religieuse, de Diderot. Ambos os autores parecem estar respondendo à questão: como
representar a subjetividade (exposta em cartas) de uma menina que nada conhece do mundo
a não ser a infância opressiva em casa e os claustros conventuais, a partir dos 16 anos e
meio? A única forma é tentando manter a verossimilhança no que toca à ingenuidade e aos
“desvios de formação”, frutos daquilo que o autor supostamente quer criticar na Igreja de
sua época. Do mesmo modo, não é permitido a Richardson descuidar do retrato da
ingenuidade de Pamela, embora obviamente, contraposta a sua firmeza de caráter (a virtude
como ponto inegociável e suas respostas insubmissas), ela pareça forçada ou artificial em
vários momentos.
Falta traçar minimamente o segundo aspecto de dubiedade individual da
protagonista: suas hesitações. Quanto a isso, destaquemos apenas a cena da indecisão e
subseqüente desistência diante da oportunidade de fugir de Lincolnshire e da opressão de
Mrs. Jewkes. Uma comparação entre as edições de 1740 e 1801 é esclarecedora. Na
primeira edição, Pamela credita seu fracasso em tentar fugir da casa, tendo, para isso, de
ultrapassar alguns touros (ou vacas), a nada menos que feitiçaria: “...there is Witchcraft in
this House; and I believe Lucifer is bribed (…) and is got into the Shape of that nasty grim
Null, to watch me! – For I have been down again; and ventur’d to open the Door, and went
out about a Bow-shoot into the Pasture; but there stood that horrid Bull”
51
. Reunindo
coragem, apesar de todas as dúvidas e temores, ela tenta de novo e:
...I looked, and saw the Bull, as I thought, between me and the Door; and
another Bull coming towards me the other way: Well, thought I, here is
double Witchcraft, to be sure! Here is the Spirit of my Master in one Bull;
and Mrs. Jewkes’s in the other; and now I am gone (…). I ventur’d to look
51
Idem, p. 152.
36
back, to see if these supposed Bulls were coming; and I saw they were
only two poor Cows…
52
Na edição de 1801, surge uma perspectiva nada menos que psicológica (avant la
lettre) para a paralisia diante dos touros/vacas
53
:
You know, my dear mother, that I was always from childhood afraid of a
Bull; and you used to tell me, that as cows for their meekness and useful
were to be likened to good women; so bulls, when fierce and untameable,
were to be compared to wicked men: and thence you gave me such
cautions and instructions, to avoid such libertine men, as have had a place
in my memory ever since.
54
Além desse mergulho na memória, também se fica sabendo que uma das vacas
ferira outra criada da casa poucos dias antes das tentativas frustradas de Pamela. Peter
Sabor, em nota à edição, aponta como motivo de tal inserção textual as críticas feitas ao
romance, apontando a suposta hipocrisia de Pamela, que nessa cena de indecisão de fato
não parece querer escapar das amarras de Mr. B
55
. Esse exemplo faz notar que as
hesitações de Pamela nem sempre são nitidamente creditadas pelo autor a divisões de
consciência da protagonista, pelo menos na primeira edição da obra. O que não impedia que
os leitores percebessem nela tal divisão dir-se-ia comprometedora, já que implicava a
hipótese da cabal hipocrisia da protagonista – inclusive à revelia da vontade de Richardson.
Em muitos momentos essa avaliação da dubiedade individual da personagem está
sintonizada com a própria avaliação de um nobre como Mr. B.: “...specious hypocrite! (…)
when my Passion, in spite of my Pride, and the Difference of our Condition, made me stoop
to a Meanness that now I despise myself for; yet you could enter into an Intrigue with a
Man you never knew…”
56
. Assim escreve ele à própria criada no momento de maior cólera
diante da simples suposição de um caso com Mr. Williams, o pastor com quem se encontra
algumas vezes em Lincolnshire e quase a ajuda a fugir.
52
Idem, p. 153.
53
Note-se a ambigüidade subjacente, mesmo na edição original, entre os sexos dos animais: a princípio
confundidos com intempestivos touros, eles são, na realidade, dóceis vacas. Tal ambigüidade diminui diante
da explicação psicológica e memorialística inserida na edição de 1801.
54
Ed. 1801, p. 187-188.
55
Idem, p. 526.
56
Idem, p. 164.
37
1.5. A escrita como resistência e possibilidade de reverter a posição de vítima
Antes de passarmos ao exame da dubiedade individual constitutiva de Mr. B.,
destaquemos o exato reverso de tal dubiedade, no caso de Pamela, ou seja, a um aspecto
importante de sua cabal e tão elogiada firmeza de caráter
57
. Será que tais dubiedades e
hesitações não teriam como contraponto uma nova positividade, não aquela (antiga) do
moralismo virtuoso, mas a da resistência como forma de contra-ataque? E nesse contra-
ataque, não seria a escrita a única arma à disposição da parte mais fraca? Como logo se
verá, a reflexão sobre tais questões tem como objetivo permitir que investiguemos se
Pamela surge, no volume 1 do romance, meramente como vítima de seu patrão-algoz.
No entanto, reagir a elas lembrando que tudo desemboca em uma feliz união
religiosa (com imensas conseqüências civis), selada no volume 2, não resolve o problema,
uma vez que, como adiantamos, as ambigüidades, que apontam para a inovação contida no
romance, se observam apenas no primeiro volume. Como já indicamos, a solução de
valorização do casamento, de grande importância estratégica como instrumento de
provocação e mudança cultural (na verdade, proposta de uma nova conformação de
subjetividade), não parece ter o mesmo valor se nos atermos à avaliação especificamente
literária. Provavelmente é senso comum da crítica literária que tudo o que aplaina
ambigüidades e apazigua repentinamente, e de forma simplória, as tensões da narrativa
deteriora o valor de um texto. É o caso do casamento na estrutura de Pamela, or Virtue
Rewarded – bem como a antecipação do desenlace no título (Rewarded) compromete o
suspense exigido em qualquer narrativa, a partir mesmo de seu título.
Portanto, limitando-nos tão somente à trama observada no volume 1, repetimos a
questão: a resistência da e na virtude, a firmeza contraposta às dubiedades, se esgota em
retratar Pamela apenas como vítima, uma mártir que, no futuro, será recompensada? A
57
Voltando à carta de provável autoria do reverendo Webster, ele entusiasma-se com tal firmeza, da seguinte
forma: “It [o romance] shews Virtue in the strongest Light (...). The beautiful Sufferer keeps it ever in her
View, without the least Ostentation, or Pride; she has it so strongly implanted in her, that thro’ the whole
Course of her Sufferings, she does not so much as hesitate once, whether she shall sacrifice it to Liberty and
Ambition, or not; but (...) carries on a determin’d Purpose to persevere in her Innocence, and wade with it
throughout all Difficulties and Temptations, or perish under them”. Ed. 1740, p. 7.
38
nosso ver, a melhor resposta – ou seja, a mais complexa – será a que conseguir perceber no
texto uma possibilidade antes impensada de ver Pamela como pronta a impor seus desejos e
sua visão de mundo no momento mesmo em que ela parece mais subjugada pelo poder de
seu “algoz”. É o que desenvolveremos a seguir.
Na verdade, a resposta aponta para uma semântica estrutural do romance em torno
da idéia de escrita como resistência e posterior imposição de sentido próprio, ou seja,
ultrapassagem objetiva da condição de vítima. Nesse périplo, no entanto, como indicamos,
o que menos interessa é a virada impositiva final, pois essa é representada, primeiro, por
uma distensão inesperada (ou seja, pouco justificada na narrativa que a precede)
58
e, em
seguida, pela confirmação do casamento; este, além de estar fora do âmbito da questão,
pois se dá no volume 2, surge de uma sucessão de resoluções repentinas de Mr. B., tão
repentinas que soam como externas às tensões do volume 1. O que queremos apontar, no
entanto, não é o mero apaziguamento de tais tensões e ambigüidades pelo casamento, mas a
ultrapassagem subjetiva de Pamela, que se dá antes de o casamento demonstrar-se viável,
ultrapassagem essa representada pela própria resistência, que permite a Pamela manter seu
senhor de alguma forma (subjetivamente) subjugado.
Se a criada escreve cartas desde o começo, é muito cedo tamm, e de forma
pública e não clandestina, que ela se torna uma leitora: “[Mrs. Jervis] takes Delight to hear
me read to her; and all she loves to hear read, is good Books, which we read whenever we
are alone”
59
. O talento intelectual do pai, que chegara a tentar dirigir uma escola rural
60
,
parece favorecê-la no emprego. Em seguida, quando Pamela percebe pela primeira vez as
intenções de Mr. B., instaurando-se a crise, seu comentário desabusado em relação à criada
é: “This Girl is always scribbling; I think she may be better employ’d”
61
. A autoridade e o
poder que a mãe de Pamela apontara no patrão se expressa, então, pela primeira vez, no
desaparecimento da carta onde ela contava aos pais a primeira cena de assédio. Na falta da
carta original, ela resgata apenas de memória seu importante conteúdo. Em seguida, conta
que Mr. B. ordenara a Mrs. Jervis, sua chefa imediata, “...to bid me not spend so much time
58
A distensão ocorre na já referida carta em que Mr. B. confessa ter lutado inutilmente contra sua afeição por
Pamela. Ed. 1740, p. 250-251.
59
Ed. 1740, p. 17.
60
Tratamos disso no item 1.3, acima.
61
Ed. 1740, p. 22.
39
in writing; which is a poor Matter for such a Gentleman as he to take notice of…”
62
. Como
se vê, ela estranha que o magistrado gaste tempo com a escrita de uma serviçal. Em meio a
arroubos agressivos, o patrão demonstra perceber o orgulho por trás de uma virtude
inquebrantável: “Ay, (...) that’s her Art”, diz, referindo-se ao suposto talento de passar-se
por uma “gentlewoman born”, ou seja, por uma “lady” de nascença, o que ela mesma disse
não querer parecer. E continua: “...But let me tell you, the Girl has Vanity and Conceit, and
Pride too...”
63
.
Finalmente, ele se refere diretamente à ameaça que a escrita de Pamela representa:
“...you may only advise her (...) if she stays here, that she will not write the Affairs of my
Family purely for an Exercise to her Pen and her Invention”
64
. Então, na discussão entre
patrão e criada: “Very well, Boldface, said he, and Equivocator, again! You did not open
your Mouth to any other; but did you not write to some other?”
65
. E: “And so I am to be
exposed, am I, said he, in my House, and out of my House, to the whole World, by such a
Sawcebox as you?”
66
.
Tais trechos bastam para mostrar como se vai tecendo no romance uma rede
semântica rica em torno da própria idéia do poder que a escrita porta, tanto como forma de
resistência em momentos de opressão inescapável quanto como crescente e consistente
fortalecimento da protagonista que busca reverter sua situação de vítima
67
. Se em algum
grau a estrutura semântica do volume 1 se baseia na subjugação da moça como vítima,
parte frágil na contenda, tanto social quanto sexualmente, também se revela um inusitado
potencial positivo de contra-ataque e auto-valorização. Se já na carta n˚ 11 Pamela pode se
insurgir verbalmente contra seu mestre e senhor, isso só ocorre graças à insistência
clandestina na escrita das missivas, que a instruem sobre o olhar masculino de tendência
invasora (algo que uma menina de sua idade talvez ainda não pudesse discernir) e que lhe
dá munição para reagir, soando extremamente arrogante a ouvidos aristocráticos: “I said, I
won’t stay! You won’t, Hussy, said he! Do you know who you speak to! I lost all Fear, and
62
Idem, p. 26.
63
Idem, p. 29.
64
Idem, ibidem.
65
Idem, p. 30. Na edição de 1801, “mouth” está em itálico, tornando mais nítido o paralelismo entre fala e
escrita. Ed. 1801, p. 62.
66
Idem, p. 31. (Ed. 1801, 62).
67
Não seria a escrita clandestina uma espécie de substituta da oração religiosa, prática dos que crêem na
contrição como forma de resistir a maus momentos, como os pais de Pamela?
40
all Respect, and said, Yes, I do, Sir, too well! – Well may I forget that I am your Servant,
when you forget what belongs to a Master”
68
.
Portanto, Pamela surge não mais apenas como vítima. Do mesmo modo, não se
limita a ser a militante de uma moral contrita, afastada de códigos tradicionais de hierarquia
social. Ela é também a missivista resistente, e é a própria escrita feminina que contrasta e
faz ressaltar com uma cor inédita a extrema violência tácita do assédio masculino, do quase
estupro doméstico
69
. Então, não seria o ato de escrita da personagem uma contra-violência?
Ou seja, só se justificando porque a personagem se vê desde sempre como vítima de
violência iminente, tal ato surgindo como força possível em uma simples criada, naquele
tempo e lugar. Vale lembrar o quanto da dialética vítima-algoz se reconhece na obra (e na
vida) de um dos primeiros escritores a encarecerem o aspecto de resistência política ou
cultural da escrita, o prolixo Jean-Jacques Rousseau, leitor entusiasta de Richardson.
1.6. A gradativa e discreta transformação de Mr. B.
A repentina distensão do início do volume 2, com a subseqüente decisão do
casamento
70
, dissolve todas as fontes de ambigüidade e tensão que viemos tentando
descrever. Um leitor moderno, pós-Stendhal e pós-Flaubert
71
, diria que na verdade se
dissolvem rápido demais, ou seja, sem a devida expressão de motivações emocionais
coerentes por parte do único protagonista que se transforma, no caso, Mr. B. Afinal, Pamela
mantém sua posição do início ao fim: a “virtude na pobreza” como ponto inegociável,
mantido por meio da escrita clandestina, ajudará a impor sua nova ética. Poder-se-ia
argumentar que o leitor, na verdade, tem pouco acesso às mudanças da subjetividade de Mr.
68
Idem, p. 23.
69
É interessante observar como o famoso “droit de cuissage” dos aristocratas franceses mantém-se como uma
fantasia recorrente no imaginário francês ao longo do século XVIII, aflorando em peças como Le mariage de
Figaro, de Beaumarchais, em um período (escrita em 1778, estreada em 1784) em que esse tipo de tema tabu
pôde ser abertamente usado no palco como forma de ataque aos privilégios aristocráticos. C.f. BOUREAU,
A., op. cit., e VIGARELLO, Georges. Histoire du viol. XVIè-XXè siècle. Paris: Éditions du Seuil, 1998.
70
Ed. 1740, p. 176. Nesta página do romance, o casamento é efetivamente marcado, a princípio para dali a 14
dias.
71
Ou seja, depois da consagração de um nível complexo de realismo sério, exigindo justificativas subjetivas
para os atos e as transformações dos personagens, a bem de uma verossimilhança dir-se-ia mais documental.
41
B. pelo simples fato de que não ouvimos sua voz tanto quanto a de Pamela, narradora
principal do romance.
Na verdade, o desenvolvimento da dubiedade individual constitutiva de Mr. B.
poderia ser descrita em alguns itens, na forma de questões com as quais ele se depara, uma
após a outra, contra sua vontade, e diante das quais opta por uma readaptação. Os itens que
passamos a listar a seguir, de (a) a (d), demonstram nitidamente suas mudanças diante da
inesperada resistência da criada. A primeira questão de Mr. B. é: (a) como lidar com o fato
de que as negativas de Pamela deixaram de ser vistas, em sua própria casa (e pelos pais da
criada, seus interlocutores clandestinos), como pura e simples insolência subalterna,
perigando se legitimar? Tal ameaça à soberania do patrão só se constitui por conta do apoio
(dir-se-ia classista) dos outros empregados da casa, e até mesmo de Mrs. Jervis. Ou seja, a
ameaça de legitimação da posição de Pamela se dá por meio de uma afetividade dos iguais:
eles “sentem”, espontaneamente, que tratar uma moça de 15 anos daquela forma é
moralmente inaceitável.
Mr. B. responde a essa “semipublicidade” de sua ação – que ele considerava
aceitável no espaço privado, secreto, de sua propriedade – afastando Pamela de tal espaço,
habitado pelo julgamento “semipúblico” dos outros empregados. Da mesma forma há,
como já apontamos, o receio da semipublicidade potencial das cartas de Pamela para seus
pais. É fácil entender por que uma semipublicidade é mais perigosa, no caso da sociedade
da época, do que a publicidade total. É que essa última é simplesmente ineficaz: sendo ele
juiz, do que adiantaria a Pamela ou a seus empobrecidos pais buscarem os meios públicos
legais? Haveria isenção da Justiça daquela época diante de acusação de uma mera criada
cujo patrão, ainda por cima, é um célebre magistrado?
A dúvida de Mr. B. passa, então, a seu segundo momento, pois ele simplesmente
levara a moça para sua propriedade em Lincolnshire, bem longe dos outros criados, e ela
continuava arredia: (b) como subjugar a resistência empedernida num espaço agora franca e
inescapavelmente privado, ou seja, para os padrões da época, secreto? Ele responde a isso
pela atuação de sua implacável aliada, Mrs. Jewkes, e de uma perseguição opressora e sem
fim, que aproxima os dias de Pamela naquela casa do clima de terror do romance gótico,
gênero que surgiria cerca de 24 anos depois do romance de Richardson, a partir de 1764,
com The Castle of Otranto, de Horace Walpole, muito provavelmente influenciado pelo
42
clima geral dessa passagem de Pamela. Esse período – rico na instauração de uma maior
complexidade subjetiva da protagonista, como logo mostraremos, embora instaurador
também de um modelo persecutório francamente exagerado que, das narrativas ditas
góticas, desemboca nos filmes de terror atuais – culmina com a carta-proposta de
casamento, refutada ponto a ponto por Pamela
72
.
Aparentemente, portanto, é o momento de Mr. B. encarar a questão fundamental
dessa primeira fase: (c) em vez de subjugar a criada, tarefa impossível, como ele poderia
transformar sua própria ética, passando de uma “raposa libertina” a um homem moralmente
probo por vontade de autotransformação? Tal questão é respondida, nesse primeiro
momento, por meio do texto do contrato de casamento, proposto na carta. Fica a impressão,
no entanto, de que a mudança é brusca demais – a tal aparente falta de justificativas por
parte do protagonista. Mas, será que essa mudança não seria coerente com o fato de aquela
ser a parte do romance em que, de fato, Pamela tem menos contato com Mr. B. e, portanto,
na qual menos acesso tem o leitor aos atos e pensamentos dele? O que, aliás, é também
coerente com a estrutura persecutória, de verdadeiro terror baseado na vigilância e na
autoridade, que marca essa fase: à distância, a fidelidade canina de Mrs. Jewkes e o horror
das ameaças se amplificam, e o verdadeiro confinamento vigiado numa zona secreta, fora
do espaço público – como Suzanne Simonin nos claustros de La religieuse, de 1761 – soa,
a ouvidos muito atentos, como uma crítica à sociedade que permitia esse inusitado
zoneamento.
Trata-se, portanto, de ler tal passagem
73
como a transformação dos poderes
ilimitados do nobre togado em um verdadeiro quadro de terror e suspense, com fundo de
erotismo, com se sabe. São ingredientes apontados como constitutivos do romance gótico, a
diferença estando na absoluta ausência de acontecimentos sobrenaturais ou climas
inverossimilmente fantásticos
74
. A fantasia, no caso, está mais próxima do que Freud
72
Ed. 1740, p. 188-192.
73
Como veremos adiante, no Capítulo 4, o trecho do romance é tão marcante na França da época que, bem
antes de Diderot, Nivelle de La Chaussée, ainda em 1743, escolhe o pseudotriângulo amoroso em
Lincolnshire como tema de sua peça larmoyante, Paméla, comédie en vers et en cinq actes, que não passou da
estréia.
74
Não é o caso, aqui, de fazer uma introdução ao romance gótico. Uma muito boa se encontra em “Romance
gótico: persistência do romanesco”, oitava lição do livro de Sandra Vasconcelos (VASCONCELOS, Sandra
G., op. cit., p. 118-135). Apenas apontamos rapidamente características daquele que se tornaram consenso na
crítica: “...o gótico pode ser definido em função da natureza do enredo, que (...) depende em grande parte do
jogo entre suspense e alívio da tensão” (p. 125). Há também as “...possibilidades que essa forma literária
43
nomeia como tal: por trás dos medos e das hesitações de Pamela, está a pressão exercida
por uma perseguição eroticamente motivada e subjetivamente justificada. É então que a
protagonista começa a notar suas próprias contradições diante da repressão sofrida. É
também nesta passagem que se dá o pseudotriângulo amoroso, na verdade fruto apenas, por
um lado, da imaginação de Mr. B. e, por outro, da esperança de Williams. O momento de
maior opressão é também o de maior sentimento de culpa por parte da criada: ela se sente
penalizada por tentar fugir, em seu apavoramento, e Mr. B. tamm a culpa pelo suposto
caso com Williams.
A mártir passa então por sua maior provação, assim como os leitores, que testam ao
máximo sua fidelidade à versão que Pamela dá aos acontecimentos. Por outro lado, o
melodramático e o terrífico podem ser lidos como tentativa de resolver a ambigüidade
inicial ligada às reações de Pamela, ainda por demais leves e – segundo a leitura que aponta
sua suposta hipocrisia –, intentando manipular vontades e prazos do patrão (por meio do
adiamento sucessivo do término de um último serviço de costura, por exemplo). A
resolução pelo terror seria uma oportunidade de o leitor tomar, de uma vez por todas, o
partido favorável a Pamela, tamanho é seu pavor e a suposta insensibilidade e brutalidade
do patrão. Na verdade, a manutenção da ambigüidade, do conflito entre as duas versões fica
clara quando se recorda a extrema gentileza com que Mr. B. avisa do translado da criada,
aproveitando para reiterar seu interesse apaixonado: “‘Dear Pamela,/ ‘THE Passion I have
for you, and your Obstinacy, have constrained me to act by you in a manner that I know
will occasion you great Trouble and Fatigue, both of Mind and Body. Yet, forgive me, my
dear Girl...”
75
. A gentileza é o contraponto à sua brutalidade e, ambiguamente, a justifica –
pelo menos, essa é uma versão possível.
apresenta de lidar com a repressão, os tabus e áreas de ambivalência emocional, principalmente no terreno da
sexualidade”. (idem). Trata-se de referência às interessantes hipóteses de David Punter, autor de The
Literature of Terror (1980). Percebe-se como a ausência da fantasia no sentido do sobrenatural e do
francamente inverossímil não impede que se classifique um romance como gótico (ou precursor dele). No
caso, a fantasia instaurada, por meio do terror dos protagonistas, tem a ver com sua economia psíquica e com
suas tensões, expectativas, tabus e recalques sexuais, na linha freudiana. Em uma fórmula: a opressão
eroticamente motivada engendra um mundo de terror fantasioso (Freud diria: neurótico), em que a
sexualidade aparece como ameaça, transformada em medo e causando repressão, ou seja, uma maior atuação
das autocensuras do superego.
75
Ed. 1740, p. 104. O trecho pertence ao importante bilhete de Mr. B. que integra a carta XXXII, a última de
Pamela aos pais.
44
Retornando à carta-proposta contratual de casamento, é fundamental lembrar que
ela ainda não incluía um ponto importantíssimo, crucial da nova ética: a idéia de
precedência do casamento. Na carta-contrato, Mr. B. propõe que a criada, em troca de
importância de dinheiro e de propriedades, seja, primeiro, testada e avaliada como
“Mistress” (amante), durante doze meses (note-se a precisão,pica da linguagem
contratual). E mesmo assim, no fim desse tempo, o casamento ainda mantém-se apenas
como possibilidade (itálico nosso): “...I may, after a Twelve-month’s Cohabitation, marry
you...”
76
.
Fica clara a importância que passa a ter socialmente a precedência do casamento
como ato institucional. É bastante coerente que essa precedência como garantia (em relação
aos impulsos eróticos) seja encarecida no momento de transição cultural em que um quadro
da valorização feminina é pintado ficcionalmente como esboço de um novo plano ético
para a mulher entre os domínios público e privado
77
. Na verdade, ao contrário do que se
observará no romantismo e – o que é mais importante, na nossa perspectiva – mesmo nos
romances de base sentimental, que já antecipavam tal tendência, não se trata, em Pamela,
nem de transbordamento diante do próprio sentimento amoroso antes desconhecido, nem de
busca de garantias de amor verdadeiro por parte de Mr. B. ou de Pamela (nesse nível, o
jogo de gato e rato das ambigüidades é mais com o leitor: é ele que tenta decifrar, com
dificuldade, as verdades amorosas dos dois protagonistas). Com efeito, o tema do amor
surge sub-repticiamente e, apenas no caso de Mr. B., como tentativa de apaziguar um
incômodo íntimo – aquele diante do obstáculo inédito representado pela nova criada a seus
arroubos. Trata-se, mais especificamente, da passagem da paixão ao amor (“Dear Pamela,/
THE Passion I have for you...”, escreve ele, ao transpor a criada para Lincolnshire
78
), sendo
a paixão facilmente confundível com interesse erótico.
76
Idem, p. 191.
77
“Público e privado”, aqui, se refere, de um lado, à já referida precedência do casamento como condição do
apaziguamento de contradições eróticas e sociais e, de outro, à virtude/virgindade como fator de valorização
da mulher ainda não casada. Por outro lado, parece-nos uma tarefa inútil tentar reconstituir a intencionalidade
de Richardson ao escrever tal romance. Levando-se em conta até mesmo o surpreendente jorro criativo que
supõe-se ter sido a escrita do romance (uma média de três mil palavras ou mais por dia, segundo Thomas
Keymer – “Introdução” à Ed. 1740), não se pode afirmar que ele almejasse fazer um puro e simples manual
de moralidade, embora, como apontamos, o romance tenha tendência a tornar-se, apenas em sua segunda
parte, uma espécie de “manual da mulher casada”. Uma pista de motivações inconscientes é dada por Thomas
Keymer ao referir-se a certa tendência libertária de Richardson, segundo ele mantida sutil e
surpreendentemente viva, mesmo quando ele estava estabelecido como cidadão respeitado. Ed. 1740, p. ix-xii.
78
Ed. 1740, p. 104.
45
Portanto, ao contrário dos dois gêneros citados (certo romantismo e o romance
sentimental francês dos anos 1730), na narrativa de Richardson as mudanças propriamente
amorosas se passam de forma bastante discreta, e só se revelam muito gradativamente – o
que não combina, em nada, com certo modelo de amor fulminante do romantismo. O
larmoyant que domina a boca-de-cena não é o amoroso, o ligado a sentimentos vindos
direto do coração dos personagens para os dos leitores, mas o da opressão, do medo e da
perseguição; da resistência, da fé e da esperança; por fim, da hesitação e da dúvida em
relação ao outro e a si mesmo. Aí pode estar o motivo de Pamela ser muito mais lembrado
como romance ligado a um erotismo represado, que se transforma em medo e contrição, do
que ao sentimentalismo propriamente amoroso. Sentimentos há, certamente, e descritos em
minúcia; mas a autenticidade e a verdade que Pamela transmite parece ter mais a ver com o
amor a seus pais e a Deus (alicerces de uma resistência aferrada que tem as dúvidas como
pano de fundo) e menos ao amor em relação a algum homem. Porém, como se tenta mostrar
neste estudo, as ambigüidades perpassando a narrativa indicam uma complexidade que
corre por baixo de signos tradicionalistas, como o amor aos pais e a Deus. É nesse sentido
que se pode afirmar que o que está descrito no romance é uma verdadeira – e inédita –
mecânica da introspecção, em que as certezas (a virtude/virgindade, a fé e o amor aos pais)
compõem a superfície do que está em jogo em um plano mais incerto, profundo e
complexo: a relação erótico-amorosa e suas vicissitudes, inclusive sociais; a resistência
erótico-classista por meio da escrita clandestina; e as dúvidas sobre si e sobre o outro como
base de uma subjetividade mais elaborada. Muito mais elaborada do que a lógica da
contrição religiosa tout court, ou do que o moralismo casamenteiro, por exemplo. Isso
também é verdade quanto a Mr. B., pois, como já se ressaltou, nele o amor surge muito
discretamente, por meio de decisões que guardam sempre enorme grau de ambigüidade:
agiria ele por amor, por interesse erótico ou porque se sente afrontado pela arrogância da
criada?
Lembremos de passagem que, por exemplo, em La Princesse de Clèves, um
precursor de certos modelos de romantismo literário, Mademoiselle de Chastres, a futura
Madame de Clèves, desperta a paixão imediata tanto de seu futuro marido quanto do duque
de Nemours: ambos revelam-se apaixonados assim que vêem pela primeira vez a novata
adentrar os salões do monde. No caso de Mr. B., não há transbordamento em momento
46
algum: sua forma de agir é ditada muito mais pelo olhar e pela avaliação classistas. Ele age
motivado por incômodos e hesitações (às quais não temos acesso) diante do fato de,
primeiro, sentir-se eroticamente atraído e ser insolentemente rechaçado, e depois, de cogitar
e, por fim, decidir casar-se com uma jovem de baixa extração. Várias páginas se passam até
que o nevoeiro das ambigüidades dê acesso ao amor.
A resposta do magistrado diante da próxima e última questão dá início à integração
da ex-criada na classe alta: (d) Como oficializar uma relação segundo uma nova concepção
ética valorizadora da mulher e de um etos da honestidade e da honra (a virtude é a
honestidade aceitável em nível corporal, relacional, erótico-amoroso; o casamento, sua
tradução legal e institucional)? Esse ancestral sério e grave de My fair lady envereda, daí
em diante, pela trilha da adaptação social-classista, em que são ressaltadas não a
ambigüidade erótico-amorosa, nem a individual dos protagonistas, típicas do volume 1,
mas as contradições da sociedade que os rodeia, representadas em especial por Lady Davers
e pela história da filha bastarda de Mr. B. Quanto a esse aspecto, mesmo sem elementos
como o amor fulminante ou a paixão verdadeira, Pamela poderia ser visto como um
antecedente do romantismo, uma vez que se trata, agora, de contrapor à sociedade da época,
a seus vícios tacitamente praticados, o etos do amor e da precedência do casamento. Nesse
volume 2 fica em primeiro plano a crítica a tradições da elite vistas como decadentes, o que
fica claro ao se apontar as intemperanças de Mr. B. e de sua irmã como fruto de uma
educação equivocada típica da classe nobre
79
. Se no primeiro volume fora Mr. B. quem
encarnara esse código cotidiano tácito da nobreza, ainda sobrevivente meio século depois
da revolução republicana de 1688, agora, tendo ele trocado de “partido”, é a própria
sociedade em sua estrutura consagrada que se torna inimiga – no sentido de Rousseau ou de
um personagem como o Werther, de Goethe.
Porém, não tendo Mr. B. as características subjetivas básicas dos protagonistas
românticos à la Rousseau ou o Goethe do Sturm and Drag, já que, como vimos, nem o
amor fulminante, nem a paixão transbordante seriam características suas
80
, qual é o ponto
dessa mudança que se torna nitidamente inegociável, ou seja, como constitutivo da nova
79
Trataremos do tema da educação aristocrática voltada para o desregramento principalmente masculino no
item 1.17, adiante.
80
Representariam, antes, a passagem de Mr. B. da libertinagem automatizada (aceita e praticada como traço
de classe) a uma tomada de consciência sobre a importância de mudar a si próprio e à sociedade ao redor.
47
ética em sua vontade de institucionalização? Trata-se, é claro, da precedência do
casamento, ou seja, da obrigação de oficializar o casamento como forma de elidir (e,
portanto, de responder a) o inegociável de base, que é a virtude igualitária. Ou seja, o
casamento oficial surge como instrumento de transformação social insuspeito: em Pamela,
ele surge como a chancela máxima – pública, legal e institucional – da passagem de uma
espécie de caos erótico-amoroso socialmente arbitrário e prepotente a uma nova
organização ética em que a virtude não tem mais apenas o sentido erótico e corporal: ela
passa a ser característica indispensável do casal como instituição reconhecida, ou seja, do
homem e da mulher. Nasce o homem virtuoso, o “homem de bem”, o “chefe de família”,
detentor e guardião de uma ética coerente, que se reflete no código legal e em um novo
autocontrole cotidiano.
1.7. Uma ancestral de Pamela: La vie de Marianne
O tema da manutenção da virgindade como forma de uma jovem pobre garantir o
mínimo de respeito em uma sociedade hostil remete ao início de La vie de Marianne, o
romance de Marivaux, cuja publicação se inicia em 1731. Embora seja quase impossível
que Richardson o tenha lido no original, pois consta que não lia em francês e a primeira
tradução inglesa do romance, oficial e moralizada, de Mary Mitchell Collyer, data de 1742,
a verdade é que, não apenas o tom geral de aventuras da órfã empobrecida às voltas com a
necessidade de trabalho, mas também o tema da recompensa à virgindade, cuja passagem
específica citamos logo abaixo, indicam possível conhecimento indireto do romance. De
fato, é bastante provável que, em cerca de oito anos, de 1731 a 1739, Richardson tenha
tomado conhecimento, em algum resumo ou relato, do conteúdo da narrativa que se tornara
um dos maiores sucessos editoriais da França do período. Além disso, é bem conhecida a
profusão de contrafações e edições ilegais que circulavam na Inglaterra da época; e, um
sucesso de leitores como La vie de Marianne, com sua temática inovadora, era candidato
natural a esse tipo de publicação extra-oficial – por que não uma tradução inglesa anterior à
de 1742, por exemplo?
48
Portanto, mesmo sem reconhecer uma leitura direta da obra de Marivaux por parte
de Richardson, a verdade é que La vie de Marianne (em inglês, The Virtuous Orphan, or
The Life of Marianne Countess of ***) representou – junto com o romance de 1733 de
Prévost, Histoire du chevalier Des Grieux et de Manon Lescaut – uma importante virada no
cenário do romance francês, à época, com repercussões do outro lado do Canal da Mancha.
Foi um divisor de águas: pela primeira vez se liam aventuras realistas das dificuldades
amorosas (mas também financeiras) de uma protagonista que principia como órfã destituída
de bens, tendo de aceitar constrangimentos, profissionais ou galantes, para sobreviver.
Obviamente, há atenuantes bastante fortes ao patético ligado à pobreza da protagonista-
narradora, já que sua alta linhagem vem estampada no próprio subtítulo do romance: Les
Avantures de Madame la Comtesse de ***. Sintomaticamente, a personagem que de fato é
de baixa extração, Manon Lescaut, é uma viciosa incorrigível, e acaba contagiando o nobre
Cavaleiro Des Grieux, que abandona sua virtuosidade de nascença para persegui-la, mas,
no final, consegue “salvar-se” da loucura amorosa (e da “baixa” influência de Manon) ao
retomar a sobriedade aristocrática. Mesmo assim, o simples trecho que citaremos do
romance de Marivaux deixa claro que a falta de dinheiro e posição de Marianne estrutura a
narrativa desde seu começo. Trata-se do início do romance, na “Première partie”, quando a
irmã do cura que abrigara e educara a órfã, agonizante, fala com a menina, que, aliás,
alcançara a idade de Pamela, quinze anos. A longa citação se justifica pelo acúmulo de
temas análogos aos do romance de Richardson:
...je n’ai plus qu’une chose à vous dire, c’est d’être toujours sage, je vous
ai élevée dans l’amour de la vertu, si vous gardés vôtre éducation, tenés,
Marianne, vous serés heritiere du plus grand trésor qu’on puisse vous
laisser, car avec lui, ce sera vous, ce sera vôtre ame qui sera riche; il est
vrai, mon enfant, que cela n’empêchera pas que vous ne soyés pauvre du
côté de la fortune & que vous n’ayés encore de la peine à vivre; peut-être
aussi Dieu recompenserat-il vôtre sagesse dès ce monde: les gens
vertueux sont rares, mais ceux qui estiment la vertu ne le sont pas;
d’autant plus qu’il y a mille occasions dans la vie où l’on a absolument
besoin des personnes qui en ont; par exemple, on ne veut se marier qu’à
une honnête fille, est-t-elle pauvre, on n’est point deshonoré en
l’épousant; n’a-t-elle que des richesses sans vertu, on se deshonore, & les
hommes seront toûjours dans cet esprit là, cela est plus fort qu’eux, ma
fille, ainsi vous trouverés quelque jour vôtre place; & d’ailleurs la vertu
est si douce, si consolante dans le cœur de ceux qui en ont fussent-t-ils
toûjours pauvres, leur indigence dure si peu, la vie est si courte; les
hommes qui se mocquent le plus de ce qu’on appelle sagesse, traitent
49
pourtant si cavalierement une femme qui se laisse seduire, ils acquierent
des droits si insolens avec elle, ils la punissent tant de son desordre, ils la
sentent si dépourvue contr’eux, si desarmée, si degradée, à cause qu’elle a
perdu cette vertu dont-ils se mocquoient, qu’en verité ma fille, ce n’est
que faute d’un peu de reflexion qu’on se derange, car en y songeant qui
est-ce qui voudroit cesser d’être pauvre, à condition d’être infame.”
81
Ressalte-se que a idade de Marianne parece ser nada menos que idêntica à de
Pamela. “...aussi avois-je alors quinze ans & demi pour le moins, avec toute l’intelligence
qu’il faloit pour entendre cela”, escreve a primeira
82
. Da serviçal de Mr. B. fica-se sabendo
que tinha visto os pais havia “...Six Months since...”
83
e “...was Fifteen last February…”
84
,
e é bastante plausível pensar que a visita aos pais se relaciona com seu aniversário. Isso
indica que era uma idade vista como adequada para uma menina adentrar o mundo dos
obstáculos classistas, profissionais e, é claro, erótico-amoroso.
O todo o trecho citado impressiona a um leitor de Pamela pela sintonia temática
ponto a ponto. Primeiro, a idéia da educação virtuosa; em seguida, a virgindade como
tesouro mais valioso que o dinheiro; enfim, a idéia de recompensa de Deus – e do futuro
marido – pela virtude preservada. Portanto, a recompensa não é apenas metafísica ou
religiosa; há o nível pragmático – “...les gens vertueux sont rares, mais ceux qui estiment la
vertu ne le sont pas...” –, o ponto de vista masculino, reflexo de certo utilitarismo social,
acaba sendo dissecado: aos olhos dos homens, a virgindade surge como compensação à
pobreza, minimizando a inevitável falta de dignidade social: “...il y a mille occasions dans
la vie où l’on a absolument besoin des personnes qui en ont; par exemple, on ne veut se
marier qu’à une honnête fille, est-t-elle pauvre, on n’est point deshonoré en l’épousant...”.
Isso porque, também seguindo a lógica de uma sabedoria utilitária, “...les hommes seront
toûjours dans cet esprit là, cela est plus forte qu’eux...”, ou seja, haveria uma ética do
casamento virtuoso subjacente e inescapável, defendida para além dos impulsos libertinos
inconseqüentes. Também de uma perspectiva das relações entre homem e mulher, essa
81
MARIVAUX. La vie de Marianne ou Les avantures de la comtesse de ***. Première partie. Paris: Chez
Pierre Prault, 1731. p. 33-34 (p. 26-27, no original – daqui em diante: 26-27 or.). Disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k104316t>. Acesso em: 20/09/2006. Trata-se de um dos muitos
documentos acessíveis no site da Bibliothèque Nationale de France (BNF), disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/>, daqui por diante, apenas (BNF-Gallica). Certamente falta um ponto de interrogação
concluindo a frase final da citação.
82
Idem, p. 35 (28 or.).
83
Ed. 1740, p. 13.
84
Idem, p. 16.
50
última se enfraquecerá deveras ao ceder a tais impulsos que, embora irreverentemente
defendidos e praticados, não anulam a pressão social por um etos do casamento com
virtude (ou seja, no caso, com manutenção da virgindade): trata-se de resistir para não se
degradar e, assim, não se tornar joguete do desejo masculino: de “...les hommes qui se
mocquent le plus de ce qu’on appelle sagesse...” até o fim da citação.
Como se vê, a semântica é praticamente a mesma, e oferece justificativa tanto
religiosa quanto pragmática e social para a defesa da virgindade de uma jovem sem
nascença ou recursos. Como destacamos, mesmo conhecendo-se de antemão a origem
nobre da protagonista, o que está sendo discutido é a melhor ética acessível a uma menina
empobrecida em um ambiente institucionalmente hostil, no qual impera a libertinagem
tacitamente admitida.
Longe de esgotarmos o complexo tema das relações entre La vie de Marianne e
Pamela, apenas chamamos a atenção para um aspecto estrutural em ambos os romances, o
qual parece importante como uma espécie de fundamento inegociável de um novo etos – e
cuja inclusão em dois romances de tanta difusão nos anos 1730 e 1740 indica, no mínimo, o
diagnóstico de uma sintomática cultural de momento. Seria a virgindade antes do
casamento, que, para nós, leitores contemporâneos, soa tão anódina como bandeira social,
um dos pilares da luta por uma nova ética das relações pessoais no Ocidente? Ou seria ela
uma interseção entre a sabedoria pragmática, os dogmas religiosos e essa tal nova ética, um
ponto de inflexão que servia a essas três dimensões da questão, se mantida inegociável e
com o casamento no horizonte (como recompensa)? Por ora, retomemos a análise do
romance de Richardson na esperança de melhor circunscrever tais questões.
1.8. A carta: coloquialismo resistente no horizonte das belles-lettres
O destaque dado à resistência de Pamela por meio da escrita, uma espécie de
alicerce menos evidente das resistências religiosa e sexual-moral da criada, nos coloca no
centro da questão da carta como forma na literatura da época. Diferentemente da
protagonista de Marivaux, a forma de romance epistolar que Richardson escolhe em 1740
51
torna presente e dá sensação de simultaneidade ao que, em La vie de Marianne, ainda
pertencia ao modo de narrativa memorialista, bastante comum na França do século XVII.
Na verdade, tanto as cartas quanto as memórias constituíam tradições editoriais, embora
não no sentido de uma prosa de ficção. Excetuam-se, obviamente, as Lettres portugaises,
de 1669 (que analisamos no próximo item), que, além de limitar-se às cartas da freira, sem
as respectivas respostas do amante, na época não eram consideradas fictícias, mas
autênticas. Como não vem ao caso compor, aqui, uma panorâmica do romance epistolar
antes do surgimento de Pamela (o que já foi feito por Laurent Versini
85
), apenas
apontamos, neste item, sucintamente, um importante momento da moda epistolar no século
XVII francês, com Madame de Sévigné, segundo certos modelos de tonalidade de
linguagem herdado de Voiture e Guez de Balzac. É um momento que influenciará o ângulo
pelo qual a forma epistolar será apropriada pelos romancistas do século seguinte.
Comecemos apontando uma diferença crucial de tom entre La vie de Marianne e
Pamela. No primeiro romance, pode-se definir o estilo da narradora como coquete: ela
pratica um coloquialismo gracioso de salon, ou seja, assumidamente semelhante ao estilo
da conversação feminina no monde, à época
86
. A própria narradora o indica, no início do
romance:
Quand je vous ai fait le recit de quelques accidens de ma vie, je ne
m’attendois pas, ma chere amie, que vous me prieriés de vous la Donner
toute entiere, & d’en faire un livre à imprimer (...) où voulés vous que je
prenne un stile./ Il est vrai que dans le monde on m’a trouvé de l’esprit,
mais ma chere je crois que cet esprit là n’est bon qu’à être dit, & qu’il ne
vaudra rien à être lû.
87
Tal estilo era obviamente considerado “baixo” por especialistas em belles-lettres,
como o prestigiado Batteaux que, mesmo algumas décadas mais tarde, em 1775, usava um
trecho de Madame de Sévigné (1626-1696) como exemplo de estilo baixo, e um de Fléchier
(1632-1710) para exemplificar o alto. A lembrança de um trecho extraído da mais famosa
missivista a ser lida nos anos de 1730, já que a primeira parte de sua Correspondance é
85
VERSINI, Laurent, op. cit.
86
Remetemos, nesse ponto, a nossa própria análise da fertilíssima leitura feita por Leo Spitzer de La vie de
Marianne. Seções de 4.1 a 4.4, do quarto capítulo, e de 6.2 a 6.4, no sexto.
87
MARIVAUX, op. cit., p. 10 (3 or.).
52
publicada entre 1734 e 1737
88
, uma das responsáveis pelo próprio interesse editorial na
publicação de cartas, é indício bastante claro de que, na época da célebre obra de Batteaux,
ela é um meio a favorecer a escrita banalizada, “baixa”, segundo a linguagem neoclássica.
Porém, em 1775, Batteaux já pode defender o estilo, cujo alto grau de informalidade se
impusera, mesmo que revisto e edulcorado pelo responsável pela edição nos anos 1730,
Denis-Marius Perrin. Tal informalidade relativa na escrita fora, aliás, a marca do círculo de
Madame de Sévigné: seu sobrinho Bussy-Rabutin, La Rouchefoucauld, Madame de
Lafayette, Mademoiselle de Scudéry, entre outros. Sua aura de novidade no uso de
linguagem menos elevada provinha também do fato de não se limitar a missivistas do
monde, como fora o caso de Voiture e Guez de Balzac. Batteaux escreve:
Voilà un morceau bien ecrit; mais dans le style le plus simple. La matiere
elle-même est grande [a morte do prestigiado marechal Turenne]; mais le
genre dans lequel on traite est le plus petit de tous. Il faut donc que la
matiere s’abaisse & se réduise au niveau du genre: c’est la regle.
Comment s’y réduit-elle?/ Le premier privilége du genre epistolaire est la
liberté.
89
Ao contrário dela, “Fléchier n’oublie rien de ce qui peut donner à son discours de la
force, de la grandeur, de l’eclat. Il songe non-seulement à lier, à serrer les sons dans les
périodes, mais encore à les faire tomber de maniere que la chûte soit agréable pour l’oreille
& pour l’esprit...” (...). O inverso é verdadeiro: “...si Madame de Sévigné eût employé les
grands mots, les figures, les inversions, l’harmonie soutenue, l’amplification, les nombres
triplés, elle n’eût point fait une lettre”
90
. Em suma, em 1775, e muito graças às edições
emendadas e amenizadas da correspondência de Madame de Sévigné, as cartas já podiam
ser incluídas como forma literária aceitável, se devidamente adjetivada (Batteaux prefere
“style simple” a “style bas” para definir tais cartas). A epistolografia já não precisava se
escorar na autoridade dos antigos: a de Ovídio e suas Héroïdes; a de Cícero e Quintiliano e
seus preceitos retóricos aplicados às cartas; ou mesmo a de Abelardo e Heloísa e suas juras
88
Na verdade, as primeiras edições clandestinas de cartas de Madame de Sevigné datam ainda de 1725 e
1726. Foi para combatê-las que sua neta, Pauline de Simiane, decidiu pela publicação. C.f. DUCHÊNE,
Roger. Naissance d’un écrivain. Madame de Sévigné. Paris: Fayard, 1996.
89
BATTEAUX, Charles. Principes de la littérature. Genebra: Slaktine Reproductions, 1967 (Paris: 1775).
p. 491 (181-182 no original).
90
Idem, p. 493 (189-190 or.).
53
de amor traduzidas livremente, em 1687, por Bussy-Rabutin (lembre-se, sobrinho de
Madame de Sévigné).
Também as Lettres de Voiture e suas seqüência dialogal, as Lettres de Guez de
Balzac, ambas modelares desde os anos 1630, cedem lugar a cartas que não tinham mais a
retórica como referência última. Do mesmo modo, as Provinciales, de Pascal, intensamente
lidas no período pelo círculo da própria Madame de Sévigné, cedem o lugar, na preferência
dos leitores, ao misto de coquetterie e sentimentalismo desta nos anos 1720 e 1730.
Agrada-lhes, sobretudo, o tom a um tempo afetuoso e focado em um presente que surge
com tintas mais intensas e pessoais, em um tipo de encarecimento do aqui-e-agora que, é
claro, favorecerá nova proximidade em relação a leitores de classes sociais não
familiarizadas com regras retóricas:
C’est à vous que je m’adresse, mon cher Comte, pour vous ecrire une des
plus fâcheuses pertes qui pût arriver en France: c’est la mort de M. de
Turenne. Si c’est moi qui vous l’apprends, je suis assurée que vous serez
aussi touché & aussi désolé que nous le sommes ici. Cette nouvelle arriva
lundi à Versailles. Le Roi en ai eté affligé comme on doit l’être de la perte
du plus grand capitaine, & du plus honnête-homme du monde. Toute la
Cour fut en larmes; & M. De Condom pensa s’evanouir.
91
Mesmo sem podermos saber se o estilo foi ou não adaptado pelo revisor à voga
larmoyante dos anos 1730-40 (que analisaremos no Capítulo 3, adiante), o tom pessoal,
com aspectos de simplicidade e afeto e, mais, praticado por uma voz feminina egressa do
Grand Siècle, sintonizava-se completamente com o horizonte de expectativas dos leitores
contemporâneos. Na verdade, o próprio ato de publicação das cartas, nos anos 1720 e 1730,
é sintoma duplo. Por um lado, Pauline de Simiane, neta da autora, ao compilar as cartas em
livro, responde a uma demanda do público leitor, que havia aumentado em grande
proporção e acostumara-se com a linguagem coloquial, as memórias, os relatos de viagem e
até a prosa de ficção. Por outro, as decisões editoriais, inclusive de retoque do texto,
passam a influir no modo de escrita e recepção de cartas em livro
92
. Compare-se, por
91
Idem, p. 491 (180-181 or.).
92
No item 5.1 (Capítulo 5, abaixo), analisamos a ampliação de um público leitor francês não-aristocrático, na
virada do século XVII e nas primeiras décadas do XVIII. C.f. CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na
França do Antigo Regime. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
54
exemplo, o estilo de Madame de Sévigné com o consagrado anteriormente, de Voiture; este
inicia da seguinte forma carta não datada a Guez de Balzac
93
:
Monsieur,/ s’il est vray que j’ay tousjours tenu dans vostre memoire le
rang que vous me dites, vous n’avez pas eu, ce me semble, assez de soin
de mon contentement, d’avoir tant tardé à me donner une si bonne
nouvelle, et souffert si long-temps que je fusse le plus heureux homme du
monde sans le sçavoir. Mais peut-estre que vous avez jugé, que cette
fortune estoit tellement au delà de ce que je devois esperer, qu’il vous
falloit avec loisir chercher des termes pour me la rendre croyable, et qu’il
estoit besoin que toute la rhetorique fust employée, pour me persuader que
vous ne m’aviez pas oublié. Et certes, en cela, au moins, estes-vous bien
juste, que ne voulant me donner pour toute l’affection que vous me devez,
que des paroles, vous les avez choisies si riches et si belles, que sans
mentir, je suis en doute si les effets valent beaucoup mieux. (...) Il me
desplaist seulement, que tant d’artifice et d’éloquence ne me puissent
desguiser la verité, et qu’en cela je ressemble à vos bergeres, qui sont trop
grossiers, pour estre trompées par un habile homme.
94
Como se percebe, aqui também o autor se dirige diretamente ao interlocutor, mas,
além da falta de data, local e mesmo nome do destinatário, há uma onipresença da idéia de
retórica e de condição social. Não que tais idéias sejam problematizadas; elas servem para
construir o próprio ornamento, que se baseia num elogio da elevação do outro, justificativa
do uso da linguagem elevada (segundo a retórica) e do tratamento nobre do interlocutor. O
missivista eloqüente (no sentido antigo, de mestre da eloqüência) escolhe os termos
adequados com vistas a certo efeito – é tal procedimento que Voiture inclui como tema
retórico agradável, de modo a introduzir o conteúdo da carta, que demora a se fazer nítido,
dada a longa introdução. Em carta a 3 de março de 1671 à filha, Madame de Sévigné
escreve:
Me voici à la joye de mon cœur toute seule dans ma chambre à vous écrire
paisiblement; rien ne m’est agréable que cet état. J’ai dîné aujourd’hui
chez Madame de Lavardin après avoir été en Bourdaloue, où étoient les
Meres de l’Eglise; c’est ainsi que j’appelle les Princesses de Conty & de
Longeville. Tout ce qui étoit au monde étoit à ce Sermon, & ce Sermon
étoit digne de tout ce qui l’écoutoit. Jai songé vingt fois à vous, & vous ai
souhaité autant de fois auprès de moi. Vous auriez été ravie de l’entendre,
93
São somuns cartas não datadas alternadas a cartas datadas na correspondência do autor.
94
VOITURE. Lettres. Paris: A. Courbé, 1654 (BNF-Gallica, 1990). p. 3-4.
55
& moi encore plus ravie de vous le voir entendre. (...) Je me fais rire moi-
même observant le plaisir que j’ai de faire toutes ces choses.
95
O texto se inicia com a descrição de um sentimento pessoal e imediato, que inclui à
referência ao cœur. Importa aqui o sentimento individual em primeira pessoa, e uma
narrativa focada em um sentir intenso no presente: “Me voici à la joye...”. A narrativa de
fatos sociais recentes é intercalada, sempre e a cada momento, com o afeto da missivista em
relação à destinatária interlocutor, de modo a passar a idéia de que, enquanto participava
dos encontros, a mãe nunca deixava de pensar nela: “...ce Sermon étoit digne de tout ce qui
l’écoutoit. J’ai songé vingt fois à vous, & vous ai souhaité autant de fois auprès de moi.
Vous auriez été ravie de l’entendre...”. O sentimento, no caso, abarca o momento do sermão
e o da escrita da carta, criando uma simultaneidade entre fatos (públicos) e pensamentos
(privados) totalmente análoga à simultaneidade do momento da leitura da carta, a qual só se
tornará pública em livro. Assim como a carta cria a ilusão fundamental do simultâneo (“Me
voici...”), a ilusão de um presente partilhado entre quem escreve e quem lê, apesar de as
duas saberem do hiato temporal entre escrita e leitura, torna a leitura mais intensa, e tal
intensidade é partilhada, é claro, pelo terceiro vértice que surge quando elas viram livro, o
do leitor. Assim como Madame de Sévigné representa narrativamente a prática de pensar na
interlocutora e, ao mesmo tempo, traduzir seus sentimentos durante seus encontros sociais,
a carta publicada convida o leitor a acolher uma representação agravada do sentimento que
une as duas missivistas, ou seja, convida-o a valorizar tal sentimento e prática de
simultaneidade. Como se vê, para além de um modismo de leitura, talvez haja algo na voga
das cartas que as relacione à intensidade da experiência do aqui-e-agora, mediada pelo
sentimento (ou, para usar o termo generalizante da época, pela sensibilité). Essa estrutura
narrativa valoriza sobremaneira o enunciador (os missivistas), incitando à identificação
admirada por parte do receptor – o leitor.
Quanto à recepção de publicações de correspondências, citemos um exemplo
esclarecedor: a 19 de abril de 1745, quando aparecem as Lettres du cardinal Mazarin
96
,
Françoise de Graffigny (autora, dois anos depois, das ficcionais Lettres d’une Péruvienne,
95
SÉVIGNÉ, Madame de. Lettres choisies de Mme la marquise de Sévigné à Mme de Grignan, sa fille,
qui contiennent beaucoup de particularitez de l’histoire de Louis XIV. Troyes: ateliers de Jacques
Lefèvre, d’après Monmerqué, 1725). p. 4-5.
96
LETTRES du cardinal Mazarin. Amsterdã: edição do abade Soulas d’Allainval, [1670?].
56
um dos maiores sucessos da forma epistolar na França de então) testemunha a favor da
leitura do estilo simples das cartas, daquelas desprovidas de fatos heróicos, mais próximas
da lida cotidiana: “Il est vray que les lettres, tant mauvaises soient-elles, se font toujours
lire et que, quand elle ne diroient que l’histoire d’une vie aussi commune que les notres, on
liroit que l’on s’est levé, chaussé, vetu, diné, soupé, etc.”
97
Madame de Graffigny – como
ficou conhecida – vai mais longe que o tradicionalista Batteaux, valendo-se do sucesso da
correspondência de um prestigiado e polêmico ministro de Luís XIV para elogiar o estilo
que se aproxima do coloquial. Mas a análise não é só temática e classista, e acaba por
contrapor, mesmo que de passagem, duas concepções críticas diante do fenômeno do
sucesso das lettres: “Est-ce l’amour de la verité, que nous croions etre toujours dans les
lettres, qui nous les rends si amusantes, ou la curiosité de penetrer dans ce qui etoit
autrefois des secrets?” É a própria Françoise de Graffigny quem responde, votando na
concepção preferida: “Le genre n’y fait rien au moins. Nous lirions avec le meme
empressement les lettres de nos valets, temoins celles de Pamela
98
. A resposta do fiel
interlocutor Devaux esclarece ainda mais o ponto de vista defendido:
Je crois comme vous, chère amie, que c’est l’amour de la vérité qui nous
fait aimer les lettres en tant qu’elles sont des lettres. Les faits curieux se
font lire partout et de tous stiles, mais il me semble que les lettres meme
qui seraient depouillées ne laisseroient pas de plaire. Rien ne charme
comme la naivité; cependant il y a bien des gens qui s’en ennuyent.
99
O diálogo é uma peça da transformação do gosto e dos pressupostos que regiam a
leitura, na época. Devaux concorda que o atrativo, nas cartas, não é o potencial de segredo,
de revelação da vida particular de personalidades próximas aos fatos mais importantes do
momento, como Mazarin, mas “l’amour de la vérité”. Este se contrapõe aos “faits curieux”
e se traduz, também, por pura e simples “naivité” que, no entanto, ainda tem seus
detratores, ou seja, aqueles que se entediam diante dela. Como texto de recepção crítica,
sem a consciência de sê-lo, a provocação e a resposta apontam para o interesse cada vez
maior – e, aí sim, cada vez mais consciente – pela expressão de uma representação ilusória
97
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondance. Tome 6. Dainard, J.A. (org.). Oxford: The Voltaire
Foundation, 2000. p. 327-328.
98
Idem, p. 328.
99
Idem, ibidem.
57
do cotidiano (“...levé, chaussé, vetu, diné...”) cujo interesse não são nem lances grandiosos
da História (“faits curieux”), nem segredos só então revelados, segredos políticos ou
pessoais (“...ce qui etoit autrefois des secrets...”), mas o banal e o corriqueiro, contanto que
verdadeiros, e não apenas verossimilhantes, indo contra a antiga divisão clássica entre os
dois termos (“naivité” e “amour de la vérité”).
A questão da epistolografia nos leva a examinar, necessariamente, duas obras de
grande influência na constituição da sensibilidade do leitor francês dos séculos XVII e
XVIII: Lettres Portugaises, de 1669, e La Princesse de Clèves, de 1678. Tentaremos
entender não só o foco cada vez mais coloquial em um presente vivido com mais
afetividade e menos retórica, mas também o papel da escrita feminina ficcionalmente
representada. Esse último ponto voltará à baila quando analisarmos, no Capítulo 7, adiante,
a questão do coquetismo como antifilosofia feminina em La vie de Marianne – um franco
¡¡contraponto francês à busca da “verdade do coração”, tarefa típica da literatura
sentimental e, estruturado de outra forma, também de Pamela. Menos próximos de Pamela
no tempo do que o de Marivaux, os romances de Guillerages e de Madame de Lafayette,
respectivamente, mostrar-se-ão bem próximos do projeto de Richardson, tanto nas
semelhanças como nos flagrantes contrastes; pode.se dizer que Richardson – como tantos
outros – são filhos desse dois autores seiscentistas. Seus textos já foram bastante estudados,
mas mantêm-se como singularidades precursoras no cenário clássico do século que viu
surgir a Académie Française.
1.9. As cartas da fictícia freira portuguesa
Como se sabe, o “AU LECTEUR”, que abre o romance Lettres Portugaises,
motivou uma das mais longas incertezas na atribuição de autoria da história da crítica
literária. Quem seria o autor das cartas? Seriam mesmo ficção ou seriam autênticas? A
seqüência de afirmações do editor anônimo vai do aviso da obtenção de “une copie
correcte” à decisão de imprimir as cartas pois “Il est difficile qu’elles n’eussent enfin paru
avec des fautes d’impression qui les eussent défigurées”, passando pela informação de que,
58
se outros já as conheciam e muito as elogiavam, isso não significava que se possuísse o
nome nem do destinatário, umgentilhomme de qualité, qui servait en Portugal”, nem do
tradutor
100
. Mais de trezentos anos se passaram sem que se chegasse à autoria, período em
que se construiu o mito da autenticidade das cartas, principalmente a partir de 1699,
primeiro tendo o cortesão Chamilly como suposto destinatário e, no fim do século XIX,
atribuindo-se a autoria à freira Mariana Alcoforado. O mito atravessou séculos e afastou a
crítica literária da análise do livro: tanto para Saint-Simon, em 1703, quanto para Camilo
Castelo Branco, em 1876, tratava-se de documento a flagrar um amor transbordante, não
ficção. Somente com Leo Spitzer, nos anos 1950, a obra começaria a ser alvo de crítica
temática, estilística e lingüística mais acurada e, mais recentemente, em 1962, graças ao
trabalho de crítico e historiador do livro de Frédéric Deloffre, pôde-se chegar a provas
quase incontestáveis a respeito do autor mais provável: Gabriel de Lavergne, conhecido
como Monsieur de Guillerages.
Essa verdadeira saga crítica tricentenária, com lances de minúcia investigativa, é
sintomática de certa perseguição aos romances, iniciada em 1660, que muito provavelmente
obrigara o autor a excluir o texto de um volume que publicou sob sua assinatura em 1668.
De forma mais intrinsecamente ligada a nossa investigação, esse excesso de discrição no
caso de um romance sentimental avant la lettre, em que o coloquial típico da epistolografia
chocava-se de frente com o classicismo reinante, faz pensar que tal expressão literária de
uma “verdade do coração” só podia mesmo vir à luz, naquele momento do Antigo Regime,
sob segredo de autoria. Como vimos no caso da semântica da narrativa de Pamela, o
segredo indica um espaço possível de escape ao domínio público (por exemplo, a
propriedade de Lincolnshire; ou o claustro, em La religieuse, de Diderot) em um momento
anterior à constituição de uma divisão mais universalizada e juridicamente alicerçada entre
público e privado
101
. Quanto a isso, lembre-se da bastante provável hipótese de que as
Lettres portugaises tenham sido escritas a pedido da princesa Henriette da Inglaterra,
100
GUILLERAGES. Lettres portugaises. Paris: Gallimard, 1990. p. 73.
101
Examinaremos o tema do segredo e de sua relação com o erotismo e a estratégia política no próximo item,
ao investigarmos o estatuto da carta secreta desaparecida, em La Princesse de Clèves – a carta como
intermediária entre o público e o privado. Adiantemos um ponto: nesse romance, a galanteria de corte é
representada como estreitando importantes laços de poder; todo o perigo está em que a carta que denuncia o
Vidame de Chastres à Rainha ultrapassasse seu domínio secreto, o que levaria ao fim de tais laços.
59
protetora das artes, de Racine, de Boileau e do próprio Guillerages, para mostrá-la
“...comment pouvait écrire une femme prévenue d’une forte passion”
102
.
Interessa-nos, aqui, porém, um outro “mistério” ligado à obra. Trata-se, na verdade,
de uma curiosa discussão crítica em torno de suas primeiras linhas, discussão surgida no
próprio ano de seu lançamento, 1669, e também inconclusa por mais de trezentos anos.
Autores como Leo Spitzer, Wolfgang Leiner e Susan Lee Carrell defenderam a tese, em
1959, 1964-76 e 1980, respectivamente, de que a primeira carta contém uma personificação
abstrata do amor da narradora, Mariane, e não uma simples referência ao interlocutor, seu
amante. Ou seja, nas frases iniciais, o “amor” a que a missivista se refere seria seu próprio
sentimento projetado como interlocutor por ela constituído: “Considère, mon amour,
jusqu’à quel excès tu as manqué de prévoyance. Ah! malhereux! Tu as été trahi, et tu m’as
trahie par des espérances trompeuses”
103
. Surge, portanto, desde a primeira linha do
romance, a questão das relações da obra com o classicismo seiscentista. Isso porque, como
lembrou uma aluna em Heidelberg a Spitzer, em 1959, ensejando tal análise supostamente
não-anacrônica – e depois contestada – do trecho inicial, a apóstrofe “mon amour” não era
usada, no século XVII, para designar o ente amado
104
.
Ao tentar examinar as relações do romance com a retórica e até com a tragédia, na
trilha da polêmica sobre a apóstrofe inicial, Frédéric Deloffre acaba descrevendo com
maior acuidade qual teria sido a singularidade da obra no cenário daquele momento. Se a
hipótese dele está correta e o romance for um drama psicológico progressivo com estrutura
de agravamento gradativo e desenlace repentino, e não mero lamento feminino estático (do
qual a narrativa foi acusada), a tensão dramática teria influência direta e prestaria tributo à
estrutura da tragédia, tão prestigiada na época. Deloffre aposta no aumento gradativo da
tensão contra a idéia da suposta homogenia lamentadora da protagonista: a partir da
segunda carta, ela já percebe que seu amor pode estar ameaçado. A primeira linha da
terceira, uma frase abrupta e patética, sem preliminares e em primeira pessoa, seria
comparável à semântica de Corneille: “Qu’est-ce que je deviendrai, et qu’est-ce que vous
voulez que je fasse? Je me trouve bien éloignée de tout ce que j’avais prévu...”, escreve a
102
GUILLERAGES, op. cit., p. 42.
103
GUILLERAGES, op. cit., p. 50-57 e p. 75.
104
Idem, p. 53. Destaque-se aqui que o próprio Spitzer voltou atrás, em 1969, aceitando a singularidade
própria às Lettres portugaises, e a atribuição do “mon amour” ao amante-interlocutor.
60
freira Mariane. Na quarta, o drama chegando a seu auge, é anunciada a catástrofe final:
“...vous avez connu le fond de mon cœur et de ma tendresse, et vous avez pu vous résoudre
à me laisser pour jamais...”. Na quinta, “...après quelques ultimes convulsions, apporte la
purification des passions, la χάθαρσις tragique: le drame s’achève en s’éteignant”
105
. Mas
Deloffre só aponta tal influência clássica para centrar-se com mais cuidado sobre a
inovação que um romance de cartas sem as respostas do destinatário representa naquele
momento. Não sendo apenas “artifício técnico”, a forma epistolar seria natural para tratar
do assunto (uma exigência clássica), e a falta de cartas de resposta, artisticamente
necessária, pois, na situação em que Mariane se encontra...
...les lettres sont pour elle l’unique moyen de communiquer non seulement
avec son amant, mais avec elle-même: il vient effectivement un moment
où ce second objet l’emporte: “J’écris plus pour moi que pour vous, je ne
chercher qu’à me soulager” (IV, p. 97). Les Lettres jouent à la fois le rôle
des conversations et des monologues de la tragédie.
106
O trecho indica um parentesco entre Lettres Portugaises e Pamela: a posição
impotente da mulher. Mariane tem apenas as cartas para expressar seu amor, e chega a ter
consciência de que as escreve mais para si mesma do que para o amante – que, como o
previsto, nem as lerá. Pamela também se encontra em posição de opressão, não por um
vivaz sentimento despertado por outrem, como a freira portuguesa, mas pela perseguição
bem mais concreta, feita com estratagemas obsessivos de vigilância, por um homem que,
pelo que parece a princípio, nem a ama, apenas quer impor sua autoridade (de homem e de
patrão). Recordemos que o romance La religieuse, de Diderot, claramente influenciado por
Pamela, inclui a mesma lógica: presa nos sucessivos claustros desde os dezesseis anos,
Suzanne só tem a escrita como forma de comunicar-se não apenas com o mundo exterior,
mas também consigo própria e, se nada mesmo der certo, de legar sua infeliz (e
larmoyante) experiência ao futuro. É fácil perceber o que tal semântica da moça perseguida
com acesso, apenas, à escrita clandestina permite em termos de autoconsciência trágica, e
de introspecção não apenas lamentosa, mas também com potencial autotransformador: no
105
Idem, p. 64.
106
Idem, p. 65.
61
limite, dado seu beco sem saída trágico, sobra-lhe o solilóquio como forma de auto-
conhecimento, antes do fim.
Assim como Suzanne Simonin, e em especial depois da verdadeira clausura em
Lincolnshire, Pamela não tem a menor garantia de ver seus textos lidos por quem quer que
seja antes de ela desvanecer de pavor ou devido a algum ato impensado durante uma
tentativa de fuga, por exemplo. Aliás, a partir da carta XXXII a forma epistolar é
repentinamente substituída por aquilo que se pode classificar como um diário, do tipo
testamental, por conta exatamente do isolamento forçado da criada
107
. Em outras palavras:
caso ela não sobrevivesse à violenta opressão do juiz, seu diário se transformaria em seu
único e sofrido testamento. É exatamente o que ocorre com as páginas escritas nos
sucessivos claustros por Suzanne. Como ela, Pamela usa o diário como única forma de falar
consigo e, se der muita sorte, com a posteridade, bem como de refletir com introspecção, no
calor dos acontecimentos. Com Freud, anacronicamente, diríamos que se trata de
psicoterapia solipsista.
Porém, na verdade, ao inventar uma narrativa que se inicia como romance epistolar
e, em seguida, se torna um diário cujas apóstrofes se endereçam, obviamente, a seus pais,
seus únicos interlocutores, mesmo sem garantia de ser por eles lidas, Richardson acena com
uma alternativa formal, entre o memorialista e o epistolar – duas tradições do século XVII
que, no XVIII, migrarão para a prosa de ficção. É claro que, ao manter os pais como
interlocutores (mesmo que virtuais), o diário de Pamela corresponde, quase em todos os
aspectos, a uma seqüência de cartas sem resposta, cartas que incluem descrições minuciosas
tanto das variações emotivas íntimas da missivista, quanto de tarefas banais, de fatos
corriqueiros e de conversas cotidianas importantes ou não, tudo isso se completando com
muitas apóstrofes a Deus e aos pais e, obviamente, com muita aflição reiterada. Sabe-se o
quanto essa nova forma narrativa espantou e atraiu o público da época, na França e fora
dela, e Richardson tinha consciência do potencial da nova técnica. Lembre-se uma única
passagem – além da referência de Françoise de Graffigny citada acima: Diderot. em seu
famoso Éloge de Richardson, assim justifica a profusão de detalhes realistas, para muitos
críticos do romance, na época, em grande parte desnecessários:
107
Trataremos dessa virada das missivas para o diário (ou pseudo-diário testemunhal) no Capítulo 2, item 2.1.
62
Ce sont toutes ces vérités de detail qui préparent l’âme aux impressions
fortes des grands événements. Lorsque votre impatience aura été
suspendue par ces délais momentanés qui lui servaient de digues, avec
quelle impétuosité ne se répandra-t-elle pas au moment où il plaira au
poète de les rompre.
108
Por outro lado, o mesmo Diderot tenta ver complexidade onde muitos só vêem
repetição lamentosa da protagonista, ao analisar outra personagem feminina, a Clémentine,
do romance Sir Charles Grandison, de 1753:
Mais pourquoi cette Clémentine est-elle si interessante dans sa folie?
C’est que n’étant plus maîtresse des pensées de son esprit, ni des
mouvements de son coeur, s’il se passait en elle quelque chose honteuse,
elle lui échapperait. Mais elle ne dit pas un mot qui ne montre de la
candeur et de l’innocence; et son état ne permet pas de douter de ce
qu’elle dit.
109
Por meio de uma personagem francamente desequilibrada, não estaria Diderot
fazendo sutil alusão às outras duas personagens femininas que ele vinha de analisar linhas
acima em seu Élode de Richardson, Clarissa e Pamela? Não haveria como perceber, nessas
duas protagonistas, a divisão sub-reptícia entre o que elas pensam dizer e o que acabam
realmente dizendo, à revelia de sua consciência? Não seria Pamela também uma louca nos
momentos mais opressivos da perseguição de Mr. B., ao tornar sua própria dimensão
erótica inegociável diante de um poderoso magistrado? Portanto, não estaria sua “loucura”,
ou divisão de consciência, do mesmo modo alicerçada, como em Clémentine, em seu
“candeur”, em sua “innocence”, de modo a que o leitor não possa “...douter de ce qu’elle
dit”?
Sem entrarmos na análise da visão de Diderot quanto aos novos tipos de realismo e
de verossimilhança propostos por Richardson (o que faremos nos Capítulos 3 e 4, adiante),
apenas destacamos como o agravamento e a repetição dos lamentos sofridos talvez esteja
estritamente ligada à estrutura tanto das Lettres portugaises, quanto de Pamela. Isso
porque, como vimos, em ambos eles servem a um aprofundamento da percepção que o
leitor pode ter da subjetividade da personagem, que chega a extremos de autoconsciência,
108
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson. In: Œuvres complètes de Diderot. Tome 5. Paris: Garnier
Frères, Libreires-éditeurs, 1875. p. 216-217 (BNF-Gallica, p. 220-221).
109
DIDEROT, Denis, op. cit., p. 226 (229 or.).
63
bem como de autocontradição, em meio à opressão, sentida como potencialmente trágica,
que a obriga à escrita sem certeza alguma de atingir seus interlocutores.
Porém, é importante apontar uma diferença entre o lamento de Mariane e o de
Pamela, uma diferença que indica a distância entre uma postura próxima ao classicismo
seiscentista e a virada representada pelo romance de Richardson. Na verdade, Mariane
oscila entre dois pólos: por um lado, seus insistentes protestos patéticos de amor ferido
aumentam a empatia do leitor diante de uma amante com ares de autenticidade (é difícil
“douter de ce qu’elle dit”). Por outro lado, há um cuidado, aliás, bastante nobre, de
desculpar seu amante por tudo o que se passa, já que é ela a única culpada por se ter
encantado de forma tão desmedida. Quanto a isso, há várias passagens; citemos uma:
...l’amour que j’ai pour vous vous sert si fidèlement, que je ne puis
consentir à vous trouver coupable, que pour jouir du sensible plaisir de
vous justifier moi-même. (...) Si j’avais resiste avec opiniâtreté à votre
amour, si je vous avais donné quelque sujet de chagrin et de jalousie pour
vous enflammer davantage, (...) vous pourriez me punir sévèrement et
vous servir de votre pouvoir
110
.
Como se nota, tal oscilação ou ambigüidade é frutífera ao posicionar a missivista
como uma vítima que, aristocraticamente, poupa seu suposto algoz, já que é mais vítima de
fraqueza própria do que da força do outro. Nesse sentido, a portuguesa Mariane, mesmo em
um convento, é uma ancestral mais nobre do que a princesa de Clèves, que surgiria nove
anos depois: seu conflito não é contra o mundanismo ou a galanterie que grassa na corte
francesa, mas contra a própria fraqueza em não integrar-se lucidamente a tal
comportamento consagrado, o que lhe teria poupado dor e desilusão. “J’ai vécu longtemps
dans un abandonnement et dans une idolâtrie qui me donne de l’horreur...”
111
, escreve na
última carta, quando começa a livrar-se do amor que a consumira. Obviamente, no outro
pólo, o amor sem reciprocidade e sem diálogo, já que não há resposta às cartas, é hiper-
valorizado como sentimento de força singular, incomparável, muito mais intenso que a
indiferença do interlocutor ausente, numa tradição que vem do amor cortês, só que
creditada, ineditamente, apenas à mulher:
110
GUILLERAGES, op. cit., p. 90.
111
Idem, p. 104-105.
64
Je regrette pour l’amour de vous seulement les plaisirs infinis que vous
avez perdu (...). Ah! si vous les connaissiez, vous trouveriez sans doute
qu’ils sont plus sensibles que celui de m’avoir abusée, et vous auriez
éprouvé qu’on est beaucoup plus heureux, et qu’on sent quelque chose de
bien plus touchant, quand on aime violemment, que lorsqu’on est aimé.
112
O trecho é claro: os prazeres são infinitos, e bem maiores que os da sedução
(“...m’avoir abusée...”), para aquele(a) que ama, mesmo sem resopsta, sem
correspondência, nos dois sentidos da palavra. Na ausência do amante, a missivista brande
e celebra a grandeza do que sente, que ultrapassa, em muito, tanto a galanteria cotidiana,
quanto a indiferença e o mutismo de quem é apenas amado, sem ter a felicidade
incomensurável de amar. A lógica é cerrada: sem resposta a suas cartas, a freira ostenta e
valoriza seu amor como uma bandeira provocativa diante do amado ausente e mudo. Mas –
e aí está a sutileza – deixando claro não só que ele não precisa sentir o que ela sente, pois
nem todos chegam a tal ponto de prazer desmedido (por ser desmedido, só pode ser raro,
numa lógica própria à tragédia), mas também que seu amor precisa ser curado, de modo a
que ela retorne à normalidade do decoro, do cotidiano de freira.
A questão a destacar, ao compararmos com Pamela, é a submissão admitida e
mesmo desejada de Mariane, enquanto para a criada de Mr. B., na primeira parte do
romance, o foco é em sua insubmissão inegociável: “Il y a des moments où il me semble
que j’aurais assez de soumission pour servir celle que vous aimez...”
113
, chega a escrever a
freira no fim da penúltima carta, ainda com esperanças de reaver o amado, referindo-se a
uma amante francesa dele, em um extremo absurdo de submissão que, no entanto, sempre
pode ser lido como recurso retórico para tentar despertar o amante da indiferença (“...votre
indifférence m’est insupportable”)
114
. Antes disso, ela usara seu estado de paixão
transbordante para tentar cativá-lo outra vez: “...je vous conjure de profiter de l’état où je
suis, et qu’au moins ce que je souffre pour vous ne vous soit pas inutile!”
115
. Tal entrega
exacerbada entra em choque com o ambiente de galanteria e libertinagem dos círculos
112
Idem, p. 85.
113
Idem, p. 95.
114
Em um exemplo do nível de ambigüidade alcançado no romance, o trecho citado dá a entender que a
inusitada submissão na verdade precedia um embate entre pretendentes: “Hélas! J’ai souffert vos mépris,
j’eusse supporté votre haine et toute la jalousie que m’eût donnée l’attachement que vous eussiez pu avoir
pour une autre, j’aurais eu, au moins, quelque passion à combattre, mais votre indifférence m’est
insupportable”. GUILLERAGES, op. cit., p. 99.
115
Idem, p. 95.
65
aristocráticos do momento. Não que Mariane deixe de reclamar dos supostos “...plaisirs
languissants que vous donnent vos maîtresses de France. (...) Je me flatte de vous avoir mis
en état de n’avoir sans moi que des plaisirs imparfaits...”
116
. Porém, ao retornar à condição
de freira no claustro, e quanto a isso Deloffre destaca que “...la seule fois où Mariane
évoque son état de religieuse, c’est pour vanter les avantages qu’il présente pour un amant
délicat par rapport à celui d’une femme mariée!”
117
.
Parece-nos que a semântica das Lettres portugaises aponta para a concepção de um
feixe de impulsos, afecções ou paixões que entram em dinamismo, ou seja, que a partir de
uma passividade inicial, dão lugar ao movimento interno. Tal estado só é possível porque
ela reconhece o amor publicamente – ou pelo menos no espaço do convento, onde vive:
“...je veux que tout le monde le sache, je n’en fais point un mystère, et je suis ravie d’avoir
fait tout ce que j’ai fait pour vous contre toute sorte de bienséance...”
118
. Se pensamos na
extrema discrição e na constante sensação de vigia mútua e opressiva de outra protagonista
às voltas com seus íntimos mouvements
119
, a do romance La Princesse de Clèves, teremos
acesso a outro retrato da ousadia necessária para a revelação do amor no seio de uma
sociedade de corte – se, no convento, Mariane foge ao regime opressor que grassa na
société, submete-se a outra opressão, a religiosa. Porém, se uma passagem como a última
citada pode confundir mais uma vez o leitor à cata da ancestralidade do amor transbordante
romântico, contra todos os “decoros” (bienséances), não podemos esquecer que Mariane
deseja nada menos do que extinguir o amor de que sofre, mesmo depois de valoriza-lo
provocativamente diante do amado. Como vimos, chega a creditar o próprio fato de tê-lo
percebido à vontade de querer acabar com ele. Ou seja, talvez se trate, em Mariane, de uma
luta titânica entre vontade e involuntário, uma luta individual, e pouco voltada para o socius
(ao contrário de Madame de Clèves).
Portanto, a visão de uma freira entregue tão somente a seu transbordamento
amoroso é reducionista no caso do romance atribuído a Guillerages. Pois, se as Lettres
portugaises de fato podem ser vistas como ancestrais do discurso romântico da verdade
116
Idem, p. 81.
117
Idem, p. 68-69. Tradução nossa.
118
GUILLERAGES, op. cit., p. 82.
119
Tratamos da semântica do termo mouvement nas Lettres portugaises no texto inédito “A concepção de
“movimento” nas Lettres portugaises – Novo momento na representação da subjetividade ocidental”.
66
amorosa “do coração”, a verdade é que a narrativa não partilha até o fim da semântica
estrita de tal movimento surgido na Alemanha em fins do século XVIII. Tal constatação
vem do fato de Mariane manter a tal postura típica do Ancien Régime, assumindo a
dimensão trágica de seu sentimento, provocando, mas não culpando o oficial francês e
nunca cogitando reivindicar direitos nem um novo etos para a mulher não-aristocrata.
Concordamos com Frédéric Deloffre quando ele destaca:
Mariane n’a rien de la “belle âme” à la façon de La Nouvelle Heloïse.
Dans l’histoire des mentalités, l’originalité majeure de l’ouvrage est de
peindre une passion brûlante sans y mêler les conventions d’une vertu
équivoque, même pas sous forme de revendication en faveur d’une femme
victime de la mauvaise foi masculine.
120
No romance, fica de fato claro que o problema da freira não é se adequar a uma
nova forma de amar, a um só tempo heróica e sofrida, que notadamente Rousseau
defenderá. Seu incômodo crescente até a decepção final demonstra que ela luta contra uma
ilusão perigosa que a enlevara, mas que deve ser extinta e, se possível, nunca mais
experimentada: “Je vous écris pour la dernière fois, et j’espère vous faire connaître, par la
différence des termes et de la manière de cette lettre, que vous m’avez enfin persuadée que
vous ne m’aimiez plus, et qu’ainsi je ne dois plus vous aimer”
121
. Se tal enlevamento é
fascinante tanto para o leitor quanto para a protagonista-narradora, é também desabonador,
pois ameaça arrastar a mulher para longe de uma racionalidade e um equilíbrio cortesãos.
Na verdade, Mariane chega a escrever que só teve acesso a seus transbordamentos
amorosos porque lutou com afinco para combatê-los: “Je n’ai bien connu l’excès de mon
amour que depuis que j’ai voulu faire tous mes efforts pour m’en guérir”
122
. Portanto, nada
de ímpeto de lutar contra os constrangimentos e convenções sociais que atrapalham seu
amor, ao contrário da protagonista de La Princesse de Clèves: Mariane é quem decide pela
luta antiamorosa, em prol de uma lucidez socialmente favorecida da mulher que não
conhece a posição de vítima.
120
Idem, p. 68. Da introdução de Frédéric Deloffre.
121
Idem, p. 98.
122
Idem, p. 99.
67
Si les Portugaises ne contiennent aucune revendication en faveur des
droits de l’amour ou de la femme, c’est sans doute que ces droits sont
considérés comme acquis dans le monde de Madame de Longueville et de
Condé, de Henriette d’Angleterre et de Louis XIV.
123
De fato, portanto, a religiosa integra-se num etos da liberdade masculina sob o
Antigo Regime, liberdade de dispor até de religiosas como amantes, sendo ela responsável
por extinguir em si mesma a paixão ilusória que não deveria ter deixado um cavalheiro
despertar. Se, por um lado, discordamos do estudioso quando ele descrê de uma leitura que
veja Mariane, pelo menos em algum grau, como “...femme victime de la mauvaise foi
masculine...”, pois tal aspecto faz parte do próprio teor de ressentimento que se percebe na
narradora – embora sem ser encarecido como ponto central de resistência ou combate –, por
outro lado, concordamos quando diz que o romance expressa uma concepção moral
aristocrática pessimista, reconhecível, por exemplo, em La Rochefoucauld. É, aliás, uma
análise possível da Princesse de Clèves, como veremos, embora a Madame de Clèves
chegue muito mais longe que a freira Mariane no que toca a defender seu amor diante das
galanterias cortesãs. De fato, as cartas de Mariane podem ser descritas como a tomada de
consciência (na quinta e última carta) de uma mulher apaixonada, em um mundo que não
aceita tal posição dir-se-ia essencialista (no sentido de um amor que vai contra as
aparências e condutas aceitáveis).
Lembremos de passagem que, em La religieuse, Suzanne Simonin, que, colocada
num convento aos dezesseis anos e meio de idade, a um só tempo resiste e é moldada pela
instituição conventual. Nesse romance de 1760 só publicado vinte anos depois, vemos uma
freira que, também em idade de formação, se vê às voltas com algo nela mesma que resiste
à loucura dogmática e institucional ambiente, ao longo de todo seu calvário que a um só
tempo a aterroriza e a forma, ou a “deforma”, pois fica claro que, nem para a vida
conventual, nem para o mundo exterior Suzanne está formada, ao fim e ao cabo. Isso
justifica o desenlace sem conclusão, em que se destaca a dubiedade moral ( que a
protagonista demonstrara durante toda narrativa: “Je suis une femme, peut-être um peu
coquette, que sais-je? Mais c’est naturellement et sans artifice”
124
. O jogo entre o natural e
123
Idem, p. 68. Da introdução de F. Deloffre.
124
DIDEROT, Denis. La religieuse. In: Œuvres complètes de Diderot. Tome 5. Paris: Garnier Frères,
Libreires-éditeurs, 1875. p. 171 (BNF-Gallica, p. 175).
68
o artifício atravessara todo o romance: o que guardará de natural alguém que desde a idade
de formação (dezesseis anos) é enclausurada em conventos sucessivos? O coquetismo,
mantido intacto, no entanto, dá o tom do que escapa à busca de uma essência moral que,
supostamente, se adquiriria mediante uma formação “escorreita”. O romance de Diderot
pode ser visto por vários aspectos: é libelo contra a Igreja, na trilha de Voltaire, crítica à
suposta disciplina conventual feminina ou mesmo, por fim, um inusitado romance a unir os
cont´raios, ou seja, o sentimental e o libertino, dadas as situações em geral envoltas em
erotismo com que a moça se depara nos sucessivos conventos. A escrita é, ali, também uma
forma de auto-reflexão para além do que alcança a consciência, se não for pedido de
socorro de uma moça perplexa com a constatação de que os supostos templos da essência –
os conventos – são muito pouco essencialistas.
Retornando às cartas da freira portuguesa, vai ficando claro ao longo do romance de
1669 que a única revolta da protagonista é contra uma atitude individual do amante
indiferente que, no entanto, do modo como é descrita por Mariane já na terceira carta, é
bastante comum entre os homens da época: “Oui, je connais présentement la mauvaise foi
de tous vos mouvements: (...) vous aviez fait de sens froid un dessein de m’enflammer,
vous n’avez regardé ma passion que comme une victoire, et votre cœur n’en a jamais été
profondément touché”
125
. O comportamento cerebral de conquista masculina à la Valmont
de Les liaisons dangereuses, comportamento que no século XVIII será denominado
“libertino”, é descrito também sempre que Mariane se refere às maitresses do destinatário:
“...cesse, Mariane infortunée, (...) de chercher un amant (...) qui est en France au milieu des
plaisirs...”; e, a já citada: “...il vaut mieux souffrir tout ce que je souffre, que de jouir des
plaisirs languissants que vous donnent vos maîtresses de France”
126
.
Em síntese, a oscilação que viemos tentando descrever se dá entre o ressentimento
individual em relação à indiferença do amado que não responde e a submissão amorosa,
que ultrapassa tal ressentimento, entre as bienséances da mulher e da religiosa no convento,
e o pathos amoroso que ameaça ultrapassa-las. Isso remete Mariane a uma divisão interna,
ou seja, a um ressentimento em relação a sua própria ilusão amorosa, e a decisão final de
voltar-se às bienséances, ou seja, em extinguir seu amor. No próximo item tentaremos
125
Idem, p. 85.
126
Idem, p. 76 e p. 81.
69
demonstrar como um romance como La Princesse de Clèves problematiza ainda mais tal
concepção dir-se-ia metafísica do amor
127
, contrária às convenções tácitas da relação entre
homens e mulheres da época, bem como entre uma freira e sua instituição, tudo isso sem
ameaçar as estruturas hierárquicas sociais.
Por seu lado, em seu “novo realismo”, Richardson prefere excluir a questão do amor
infinito e encarecer o casamento como realização possível da infinitude amorosa no aqui-e-
agora. A leitura de Pamela como uma espécie de “manual da moral casamenteira” parece
ter sido favorecida – para nós, leitores ocidentais, acostumados desde os romances gregos
com um mito platônico do amor – pelo fato de o autor reduzir a questão amorosa a um
embate classista, pelo qual, sem a mínima exaltação amorosa, Mr. B. pondera e decide que
a melhor forma de “ter” Pamela é, primeiro, oprimindo-a e, ao fim e ao cabo, casando-se
com ela – ou seja, submetendo-se ao etos da igualdade pelo sentimento e abandonando o da
conquista meramente erótico-classista. Argumentamos, acima, que o fato de a
transformação individual de Mr. B., central no romance, ocorrer longe dos olhos do leitor
se justifica porque Pamela é quem narra os acontecimentos. Mas, quando Mr. B. se refere
diretamente a seu amor pela criada, depois do período de perseguição em Lincolnshire,
utiliza uma linguagem contratual, antecipando a forma do próprio casamento: “The
following ARTICLES are proposed to your serious Consideration; and let me have an
Answer, in Writing, to them (...) what you give for Answer, will absolutely decide your
Fate, without Expostulation or further Trouble
128
. No artigo VI, se lê: “...I have not taken
all these Pains, and risqued my Reputation, as I have done, without resolving to gratify my
Passion for you…”; e no VII:
…if your Conduct be such, that I have Reason to be satisfied with it, I
know not (…) that I may, after a Twelve-month’s Cohabitation, marry
you; for if my Love increases for you, as it has done for many Months
past, it will be impossible for me to deny you any thing.
129
127
O termo é usado por Jean Mesnard. MORALE et métaphysique dans La Princesse de Clèves. In:
MESNARD, Jean. La culture du XVIIè siècle. Enquêtes et synthèses. Paris: PUF, 1992. p. 546-555.
128
Ed. 1740, p. 188.
129
Idem, p. 191.
70
Como se vê, além da lista de condições monetárias e de herança embutidas nos
“Terms”
130
desse contrato que Pamela terá de aceitar ou recusar no prazo de um único dia,
há apenas uma possibilidade de que o patrão case com ela (na edição de 1801, em vez de
“...that I may...” se lê “...but I may...”, o que torna mais clara a expressão de uma
possibilidade, sem dúvida forte, dada a última frase citada, mas ainda assim apenas
possibilidade). Estamos diante de uma paixão que se comunica por meio de uma linguagem
jurídica contratual, deixando claro que o rico magistrado nega a Pamela não só um
tratamento minimamente digno no dia-a-dia, mas também lhe nega (e, por tabela, ao leitor)
o discurso amoroso que as belles-lettres vinham praticando, na Europa, desde os tempos
gregos, passando, é claro, pelos versos do amor cortês medieval.
Lembremos uma afirmação de Frédéric Deloffre de modo a trazermos de volta o
tema do diário. Como já ressaltamos, ele diz que as cartas, para Mariane, são “...l’unique
moyen de communiquer non seulement avec son amant, mais avec elle-même”: “J’écris
plus pour moi que pour vous...”
131
. O crítico aponta ser necessário, “pour des raisons
artistiques, que les lettres de l’amant ne soient pas donnés, puisqu’elles ne peuvent être que
‘froides, pleines de redites’”
132
. Na nossa trilha de análise, tais afirmações aproximam a
forma epistolar em Lettres Portugaises não apenas de monólogos de tragédia, como intui
Spitzer, nem só dos divertimentos verbais de corte, do tipo “questions d’amour”, como
indicam Jacques Rougeot e Deloffre (aliás, brilhantemente
133
), mas também, e talvez mais
apropriadamente, de um passo na direção do diário íntimo. Tendo como interlocutor não o
abstrato “amor” personificado, mas o próprio amante que desapareceu e, na falta deste, pois
tornou-se um missivista fantasmático, a si própria, autora e destinatária do diário. Portanto,
mais do que uma ambigüidade quanto à dimensão abstrata da apóstrofe “...mon amour...”,
que sustentou uma polêmica tricentenária, o que está em jogo é a forma como um conjunto
de cartas se transforma em diário por falta de resposta do destinatário, sendo usado como
auto-investigação heurística de modo a curar-se de uma paixão descabida.
Tanto a indiferença de um destinatário que nem mais responde às missivas
(“...pourquoi ne m’avez-vous point écrit? (...) votre injustice et votre ingratitude sont
130
Idem, ibidem.
131
GUILLERAGES, op. cit., p. 65.
132
Idem, ibidem.
133
Idem, p. 31 e sqq.
71
extrêmes...”
134
), quanto a admissão de Mariane de que escreve as cartas para si própria
provam o déficit dialógico do romance, que acaba sendo, como destacamos, uma longa
oscilação entre o ressentimento em relação a um outro ausente e o charmoso
transbordamento de quem prefere atacar a si própria a exigir, culpar ou punir o
desaparecido. “Um diário de consolo a si” poderia ser subtítulo ao texto. Na verdade, é um
diário de auto-aprendizado que chega à conclusão, dolorosa, mas necessária, resumida na
seguinte frase da última carta: “J’ai éprouvé que vous m’étiez moins cher que ma
passion...”
135
. A “cura” se conclui com o fim da pseudocorrespondência transformada em
diário, enquanto o impulso amoroso se revela auto-ilusão a ser dissipada por vontade da
portadora, que surge mais lúcida e independente depois de sua via-crucis verbal.
1.10. A carta como ameaça: La Princesse de Clèves
Nove anos depois do surgimento do enigmático Lettres portugaises, outro romance
publicado anonimamente surge do mesmo círculo próximo à princesa Henriette da
Inglaterra tendo o amor como tema central, La Princesse de Clèves. Em vez de
correspondência ou diário, o romance tem a corte de Henrique (Henri) II (1547-1559) como
pano de fundo histórico, e por pouco não recebe o título de Mémoires, gênero não-ficcional
praticado por muitas personalidades proeminentes, à época
136
. Se a contextualização
segundo os preceitos do romance histórico, à la Segrais (que, aliás, era confidente de
Madame de Lafayette), aparentemente o afasta do romance atribuído a Guillerages, a
verdade é que sua trama ce centra no triângulo amoroso entre Mademoiselle de Chastres,
que é a princesa do título, seu marido, o príncipe de Clèves, e o duque de Nemours, o
vértice galante ou libertino. Na verdade, a narrativa propriamente histórica será considerada
deslocada em relação a esse eixo amoroso desde sua primeira recepção, nas Lettres a
Madame la Marquise *** sur le Sujet de La Princesse de Clèves, de Valincour, do mesmo
ano de publicação do romance, 1678. Visto por Fontenelle e Saint-Simon como cortesão de
134
Idem, p. 89.
135
Idem, p. 99.
136
LAFAYETTE, Madame de. La Princesse de Clèves. In: ROMANS du XVIIè siècle. Paris: Gallimard,
1958. p. 55.
72
rara erudição e seriedade, Valincour critica, com ironia, a inclusão da História da corte de
Henrique II no romance:
J’ay eû peine à comprendre le rapport qu’il peut y avoir entre ce qu’elle
luy conte de Madame de Valentinois, de Madame d’Estampes, de la mort
du Dauphin, & l’Histoire de la Princesse de Cleves. Cependant il me
semble, que dans des ouvrages de cette nature l’on ne doit rien souffrir,
qui ne soit necessairement lié au sujet. (...) Vous vous souviendrez sans
doute à propos de cela, de ce que nous avons dit tant de fois des grands
Romans, & de leurs auteurs, qui sous prétexte d’écrire l’histoire d’un
Prince, écrivent celle de tout le monde. (...) ne seroit-ce pas un joli
dessein, que celuy d’un homme, qui ramassant les aventures particulieres
de Henri IV, par exemple, ou de quelque auteur de nos Rois, trouveroit
moyen d’y faire entrer tout ce qui se seroit passé durant le siecle de ce
Prince, non seulement en France, mais en Anglaterre, en Espagne, en
Turquie, en Perse, & dans tous les autres parties du monde?
137
Se lembrarmos da carta de Françoise de Graffigny sobre o sucesso editorial da
publicação de cartas, por volta de 1745, que ela e Devaux creditam a um “amour de la
vérité” e da “naivité”, notaremos como tal distinção entre um fio narrativo de personagens
desconhecidos (“...en lisant cette longue description de la Cour, qui est au commencement,
je crûs que j’allois lire l’histoire de France, & j’oubliay la Princesse de Cleves, dont je
n’avois jamais veû le nom qu’au titre du livre”
138
) e o pano de fundo histórico já antecipa a
questão de contrapor-se “faits curieux” não banais à história do “heros”, ou seja, o núcleo
da ficção. Exemplo dos limites críticos de Valincour é o fato de ele próprio manter a
atenção voltada para a avaliação de uma verdade histórica, mesmo admitindo que se trata
de um romance, ou seja, de ficão. Ao iniciar a análise da cena do torneio ao ar livre,
escreve: “Vous sçavez trop bien l’histoire, Madame, pour douter que ce tournoy ait este
effectif, & que les choses ne s’y soient passées comme l’Auteur les raconte”
139
. Páginas
depois – da 90 em diante – tal análise do histórico e do verossímil se torna matéria de uma
discussão douta e mais extensa, em forma de diálogo com um “homme d’une grande
érudition”
140
, sobre as relações da história inventada (“vraisemblance”) com a História
137
VALINCOUR. Lettres a Madame la Marquise *** sur le Sujet de La Princesse de Clèves. p. 32-33
(18-21 no original). (BNF-Gallica). Disponível em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k8576m>. Acesso
em: 20/04/2005.
138
Idem, p. 26 (6 or.).
139
Idem, p. 51 (57 or.).
140
Idem, p. 66 (87 or.).
73
(“vérité”). Por ora, porém, Valincour chega a conclusão peremptória: “...je suis persuadé
que ces sortes de digressions ne font point de veritables ornements. Il me semble que cela
ne sert qu’à embarrasser le corps d’un ouvrage, & à le rendre moins régulier...”
141
.
Portanto, as digressões não se integram na lógica da história inventada, da ficção, a não ser
em um episódio que, para Valincour, liga o pano de fundo político-cortesão à trama
amorosa propriamente dita.
É ao citar o episódio da carta extraviada do vidama de Chastres que Valincour
expressa a maior surpresa, em forma de elogio, diante do romance. Para ele, digressões
aceitáveis são apenas as que “...soient absolument necessaires, pour faire entendre le reste.
Par exemple, l’histoire de Monsieur le Vidame de Chartres est fort bien amenée: il semble
qu’il ait été impossible à l’Auteur de l’éviter...”
142
. Tal trecho elogioso vem do mesmo
autor que critica, entre outras passagens, a decisão por sua própria morte, tomada por
Monsieur de Clèves; Valincour se dá o direito de inserir uma hilária paródia de desdém
diante de traços do patético romântico (avant la lettre), ou sentimental:
...de bonne foy, quelle compassion pour un homme qui meurt, parce qu’il
veut mourir; qui meurt comme un sot, sans vouloir estre éclairci; qui
s’afflige, & qui se desespere, sans sçavoir de quoy. Monsieur est entré
deux nuits dans le jardin de la Forest; je ne sçay ce qu’il y a fait; je ne
sçay mesme s’il a veû ma femme: n’importe, je ne veux pas le sçavoir; il
faut se desesperer, il faut mourir.
143
O trecho deixa bem clara a tensão entre a forma elegante e distanciada com que o
nobre autor dessas Lettres... trata do problema da verossimilhança: o sentimental, na cena, é
totalmente desvalorizado em prol de uma suposta experiência vivida no monde. Há várias
passagens que deixam nítida a maneira como Valincour usa tal sistema refrencial próprio
para julgar o grau de verossimilhança das escolhas narrativas do “Auteur” do romance
(como se sabe, Madame de Lafayette o lançara anonimamente). Um exemplo: “Il falloit
que Chastelart fust bien indiscret, & bien étourdi, pou luy aller porter une lettre qu’il avoit
ramassée devant tant de monde, & que l’on avoit dire estre de Monsieur de Nemours. A
141
Idem, p. 23 (34 or.).
142
Idem, p. 24 (35 or.).
143
Idem, p. 61 (76 or.).
74
mon avis, cela n’est pas d’un homme qui sçait vivre à la Cour...”
144
. Saint-Simon diz de
Valincour: “C`était un homme infiniment d’esprit et qui savait extraordinairement,
d’ailleurs un répertoire d’anedoctes de cour, où il avait passé sa vie dans l’intrinsèque et
parmi la compagnie la plus illustre et la plus choisie, solidement vetueux et modeste,
toujours dans sa place...”
145
.
Porém, apesar desse tom altivo e crítico constante, o episódio da carta secreta do
vidama de Chastres é vista por Valincour como sendo coerente com a ambição da autora de
unir contexto histórico e trama subjetivo-amorosa. Isso nos leva a inferir da importância da
dimensão do segredo como elo entre o político e o erótico-amoroso, na época. Como logo
se verá, nosso alvo é refletir sobre os domínios público e secreto (figuração cara à época, no
lugar do moderno domínio do privado) sob o Antigo Regime seiscentista.
Todo o episódio começa com o vidama de Chastres contando ao duque de Nemours
“la plus importante affaire de ma vie...
146
”: sua ligação com a rainha, iniciada sob o signo
do sigilo total:
Un jour, entr’autres, on se mit à parler de la confiance. Je dis qu’il n’y
avoit personne en qui j’en eusse une entière (...). La Reine me dit qu’elle
m’en estimoit davantage; qu’elle n’avoit trouvé personne en France qui
eust du secret et que c’estoit ce qui l’avoit le plus embarassée... Enfin, il
me sembla qu’elle souhaitoit de s’asseurer de mon secret et qu’elle avoit
envie de me confier les siens.
147
(Itálicos nossos.)
A rainha chega a perguntar se o vidama tem amantes, pois “...seroit impossible que
je fusse contente de votre amitié si vous estiez amoureux”
148
. Ele mente: diz-se livre, mas
mantém ligação com Madame de Thémines, por quem se considera apaixonado, e ainda
com outra mulher. Destaque-se que, apesar da ambigüidade erótica ou amorosa, a ligação
com a rainha se define principalmente como relação de poder por meio do segredo e da
confiança, como se lê na última frase da “Seconde Partie” do romance: “Depuis ce jour-là,
144
VALINCOUR, op. cit., 37 (28 or.).
145
SAINT-SIMON. Mémoires. Tome premier. Paris: Gallimard, 1947-1958. p. 625. Aqui, usamos
“verossimilhança” no sentido corrente, de semelhança com certa percepção consagrada de usos e costumes
difundidos.
146
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1174.
147
Idem, p. 1176.
148
Idem, p. 1178.
75
elle eut en moy une entière confiance; elle ne fit plus rien sans m’en parler et j’ay conservé
une liaison qui dure encore”
149
.
A crise se instaura quando Madame de Thémines, sem motivo aparente, termina a
relação e, pouco depois, envia-lhe uma carta revelando tal motivo: descobrira a existência
da segunda amante, anônima no romance. A carta é o pivô de toda a crise, que será ainda
maior porque o vidama, no meio-tempo, iniciara relação apaixonada com uma quarta
mulher, Madame de Martigues. Freqüentando-a muito na casa da rainha delfina, deixara a
rainha desconfiada de que era essa última sua possível amante. Para piorar as coisas, o
Cardeal de Lorraine, ciumento da posição política do vidama, quase descobre o motivo da
inquietude recente da soberana ao acompanhar de perto as diatribes dela com a delfina.
No momento em que o vidama conta o imbróglio para o duque de Nemours, a carta
tinha caído de seu bolso durante um jogo de corte, fora imediatamente lida em voz alta
pelos curiosos cortesãos presentes e, por fim, chegara às mãos da delfina sob a versão de
pertencer a ele, duque de Nemours. Num lance magistral da autora, o vidama cogita a
hipótese de a rainha confundir a amante anônima consigo própria, na carta de Madame de
Thémines, o que agravaria deveras a situação, pois significaria alta traição. Tudo o que o
vidama pede ao duque é que se assuma como destinatário da carta, confirmando boato que
ele mesmo lançara na corte e salvando sua carreira e seu destino. Mas havia a perspectiva
do próprio duque, para quem aquilo tudo era muito inquietante, uma vez que a delfina era
amiga da princesa de Clèves, a mulher a quem queria demonstrar todo interesse amoroso.
Conhecendo a fama de libertino do duque, o vidama adivinha o motivo da inquietude e
oferece um bilhete escrito por uma amiga de Madame de Thémines garantindo a sua
amante, quem quer que fosse, a veracidade de toda a história. O caminho se abre para o
desenlace da confusão.
Em vez de ir à delfina, é claro que o duque vai antes à princesa de seus sonhos,
convencendo-a de que a carta nada tem a ver com ele. Mas o duque é obrigado a sair
apressado, pois a delfina chega repentinamente. Esta exige a carta e a princesa mente
dizendo que a entregara ao marido, Monsieur de Clèves, e este, ao duque. A delfina que,
como todos na corte, nada sabe da atração mútua entre a princesa e o duque, fica
149
Idem, p. 1179.
76
irritadíssima, pois não terá o que dizer à Rainha, e “...que pourra-t-elle s’imaginer?”
150
É
ela que tem a idéia da carta falsa, simulada, escrita “...d’une main inconnue”
151
.
Tendo chamado de volta o duque, ela fica sabendo que este já entregara a carta ao
vidama e este, à amiga de Madame de Thémines. Novo impasse e os dois resolvem
escrever a carta falsa de memória. A descrição da cena guarda um ar de sutil erotismo: “Ils
s’enfermèrent pour y travailler; on donna ordre à la porte de ne laisser entrer personne et on
renvoya tous les gens de M. de Nemours. Cet air de mistère et de confidence n’estoit pas
d’un médiocre charme pour ce prince et mesme pour Mme de Clèves”
152
. É esse clima que
põe tudo a perder, pois o prazer de estarem juntos impossibilita concentração, memória e,
por fim, a escrita minimamente séria do simulacro da carta original: “...quand Mme de
Clèves voulut commencer à se souvenir de la lettre et à l’escrire, ce prince, au lieu de luy
aider sérieusement, ne faisoit que l’interrompre et luy dire des choses plaisantes. Mme de
Clèves entra dans le mesme esprit de gayeté...”
153
. Mais do que isso, o momento do prazer
ou do flerte deve ser estendido o máximo possível, para além de qualquer pressão das
circunstâncias altamente perigosas e comprometedoras para os personagens que cercam o
duque e a princesa, e que deles dependem: “M. Nemours estoit bien aise de faire durer un
temps qui luy estoit si agréable et oublioit les intérests de son amy. Mme de Clèves ne
s’ennuyoit pas et oublioit aussi les intérests de son oncle [o vidama]. Enfin à peine, à quatre
heures, la lettre estoit-elle achevée...”
154
. Valincour aprecia deveras essa cena galante, e vê
nela justificativas verossimilhantes ausentes de outras passagens do romance:
Tout ce qui peux flater la vertu plus délicate, s’y rencontre: la presence
d’um mari, la necessite de cette affaire, l’occasion de rendre un service de
la derniere importance, enfin tout semble autoriser Madame de Cleves, &
luy procurer le moyen d’entretenir Monsieur de Nemours, avec um plaisir
qui ne peut estre combatu d’aucun scrupule raisonnable./ Je vous asseûre
que je me suis réjoui de cette aventure...
155
150
Idem, p. 1188.
151
Idem, ibidem.
152
Idem, p. 1189.
153
Idem, ibidem.
154
Idem, ibidem.
155
VALINCOUR, op. cit., p. 39-40 (33-34 or.).
77
Por fim, a carta está tão mal falsificada que todo o plano vai por água abaixo, e não
apenas o vidama cai em total desgraça, mas a delfina também acaba expulsa do reino
francês.
Destaquemos, na narrativa de todo o imbróglio, que, além da questão já apontada da
importância do segredo, que estrutura as relações de poder (voltaremos a isso adiante),
surge a do amor como involuntário e incontrolável, que tanta importância terá no romance.
Justificando a inacreditável ousadia e incoerência de ligar-se a mais uma mulher em meio
às tensões já envolvidas, o vidama diz (itálico nosso): “...la Reine estoit assez contente de
moy; mais comme les sentiments que j’ay pour elle ne sont pas d’une nature à me rendre
incapable de tout autre attachement et que l’on n’est pas amoureux par sa volonté, je le suis
devenu de Mme de Martigues...”
156
. Esse impulso que ultrapassa a vontade põe em cheque
o destino do vidama, assim como as brincadeiras e os flertes involuntários e totalmente
inconseqüentes do duque e da princesa durante a escrita da carta falsa põem em cheque
todo o plano e o futuro dos dois mais poderosos personagens envolvidos no episódio, o
vidama e a delfina. O amor parece desestruturar o social, contra a vontade consciente
humana. Destaque-se que, no caso do vidama, ele ainda se confunde com a pluralidade
típica do interesse erótico (a dimensão erótica, como se sabe, é intrinsecamente pluralista,
enquanto a amorosa, unívoca). Até o fim do romance, o leitor percebe que a perspectiva da
protagonista, a Madame de Clèves, é a de enfrentar a passio erótico-amorosa de forma
inédita: em primeiro lugar, assumindo-a como essencialista e unívoca e, finalmente,
renunciando ao monde e à corte – ou seja, internando-se em um convento. Porém, não se
tratará de tornar-se uma freira, o que nos parece fundamental para entender sua
complexidade constitutiva
157
.
Mas como entender todo o episódio da carta desaparecida e, depois, reescrita em
forma de simulação na perspectiva do que vínhamos investigando sobre Pamela e as
Lettres portugaises? Como fica bastante claro, a carta ameaça destruir o acordo entre a
rainha e o vidama, acordo esse que é a um só tempo erótico, pois a rainha só o confirma
depois de saber que ele não tem amantes, e político, dado o tom e os objetivos da rainha.
Tal acordo parece coerente com a estrutura do Antigo Regime, em meio a um ambiente em
156
Idem, p. 1180.
157
A opção final da protagonista será analisada adiante, a partir do segundo parágrafo do próximo item.
78
que o eixo moral se confunde com o político, ambos sendo determinados por uma
hierarquia social cujo topo da pirâmide é o rei. Nesse ambiente, a adulação (flatterie) é
funcional, “...pois apenas pela submissão à vontade real e à etiqueta a aristocracia mantém
sua posição diante de concorrentes. Posição obviamente sempre precária, porque todo
privilégio é revogável pela vontade soberana do rei”
158
. Portanto, quanto mais próximo ao
eixo central (o rei), maiores são as pressões centrípetas e mais importantes são as alianças
de apoio mútuo, o que explica a estratégia da rainha. Tal cenário reforça a visão de um
pesquisador como Jean Mesnard, segundo o qual o romance de Madame de Lafayette está
banhado em nostalgia aristocrática em relação aos tempos de Henrique II: as aspirações da
classe dominante acabam em pura decepção diante dos constrangimentos e de certo
ostracismo a que o Absolutismo de Luís XIV as relegarão.
159
Nesse cenário, bem mais importante do que sentimentos que chegam a público, ou
que são expressos diante de quem devem sê-lo (o ente amado), é o segredo praticado (e
guardado) na zona sombria fora de olhos e ouvidos públicos. Se há falta de uma bússola
moral, seja erótica, seja política, num ambiente onde tais dimensões se misturam, a única
garantia de confiança são segredos compartilhados, inclusive os amorosos, é claro: são
armas bastante potentes na luta intestina que não aparecerá nos relatos de batalha ou da
diplomacia, mas que define cabalas
160
, grupos de interesse e destinos no âmbito do poder:
“...il me sembla qu’elle souhaitoit de s’assurer de mon secret et qu’elle avoit envie de me
confier les siens. Cette pensée m’attacha à elle, je fus touché de cette distinction et je luy fis
ma cour avec beaucoup plus d’assiduité que je n’avois accoutumé”, diz o vidama,
confundindo claramente a distinção concedida (o que lhe outorga poder de confidente da
rainha e, claro, o engaja em intrigas de corte à favor dela) e um interesse ambiguamente
erótico: “...je fus touché (...) et je luy fis ma cour...”.
Algumas linhas adiante, fica bastante claro, pela boca da própria rainha, o porquê de
o segredo ser o alicerce político e moral na corte (itálico nosso): “...il seroit impossible que
je fusse contente de votre amitié si vous estiez amoureux. On ne peut se fier à ceux qui le
sont; on ne peut s’asseurer de leur secret. Ils sont trop distraits et trop partagez, et leur
158
CHARTIER, Roger. Trajectoires et tensions culturelles de l’Ancien Régime. Paris: Écoles des Hautes
Études en Sciences Sociales, 1989, mimeo. Apud Hansen, João Adolfo. “O discreto”, in Novaes, Adauto
(org.). Libertinos, libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 94.
159
MESNARD, Jean, op. cit., p. 551e sqq.
160
O termo “cabale” é bem comum, na época, no sentido de grupos rivais, conspiratórios.
79
maîtresse leur fait une première occupation qui ne s’accorde point avec la manière dont je
veux que vous soyez attaché à moy”
161
. Como se vê, o amor é o maior inimigo do segredo
que, por sua vez, serve de alicerce à aliança de corte – ou seja, à aliança que leva em conta
as relações de poder na corte. O interessante paradoxo, no caso, é que em um ambiente de
franca, constante e dissoluta deslealdade, em que uma das primeiras lições (pessimistas) do
monde aristocrático é a inexistência de norte ético, a maior ameaça seja o essencialismo da
fidelidade amorosa.
162
Duas passagens no início do romance, que parecem generalizantes em demasia
quando lidas da primeira vez, são particularmente esclarecedoras quanto à visão da falta de
eixo moral na corte francesa
163
. A primeira inclui até mesmo a lúcida admissão da mistura
entre erótico e político na corte, que apontávamos há pouco:
Mme de Chastres, qui avoit eu tant d’application pour inspirer la vertu à
sa fille, ne discontinua pas de prendre les mesmes soins dans un lieu où ils
estoient si nécessaires et où il y avoit tant d’exemples si dangereux.
L’ambition et la galanterie étoient l’âme de cette cour, et occupaient les
hommes et les femmes. Il y avoit tant d’intérests et tant de cabales
différents, et les dames y avoient tant de part que l’Amour estoit toujours
meslé aux affaires et les affaires à l’Amour.
164
Eis a aliança do político e do erótico-amoroso admitida textualmente, em um
comentário generalista do narrador com intuito de contextualização – o que implica, é
claro, em reflexão pseudo-sociológica avant la lettre
165
. A segunda passagem completa a
precedente e faz vislumbrar a importância da palavra “sensibilité” no âmbito das
onipresentes e inquebrantáveis intrigas de corte: “...les intérests de grandeur et d’élévation
161
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1178-1179.
162
É claro que a falta de eixo ético não exclui um etos todo próprio do cortesão, baseado nos manuais que têm
em Baldasar Castiglione e seu Il cortegiano, de 1528, um modelo sempre reeditado e readaptado aos tempos
que correm – sendo o libertino, a nosso ver, um tipo tardio de cortesão aos moldes do modelo de Castiglione.
Ou seja, mesmo as facções menos descontentes com o Absolutismo e mais afeitas ao jogo amoral das intrigas
de corte tinham como eixo a própria estrutura, real e imaginária, da corte européia que começou a ser
moldada no Renascimento europeu, tendo como um dos modelos certamente alguns ideais medievais visíveis
no retrato que Madame de Lafayette da corte de Henrique II.
163
Trata-se, afinal, da época narrada ou da de publicação da obra? A ambigüidade quanto a isso parece ser
constitutiva do romance. É bastante conhecida a voga, iniciada no século XVII, de romances sobre tempos
passados ou terras distantes que, na verdade, descreviam a França ou a Paris de então.
164
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1117.
165
A dimensão que se pode chamar de erótica ou, menos anacronicamente, de galante (ou, no século XVIII,
de libertina), só será separada da amorosa no final da narrativa. Cremos, mesmo, ser o romance de Madame
de Lafayette um marco na constituição dessa separação.
80
se trouvoient souvent joints à ces autres intérests moins importans, mais qui n’étoient
moins sensibles”. A frase seguinte é uma pérola de síntese: “Ainsi il y avoit une sorte
d’agitation sans désordre dans cette cour, qui la rendoit très agréable, mais aussi très
dangereuse pour une jeune personne”
166
. A “agitação sem desordem” indica o quanto as
“sensibilités” ou os “intérests sensibles” (aqui ainda ligados à idéia dos sentidos, ou seja, do
erotismo separado do amor) sobrepujavam os “intérests de grandeur et d’élévation”,
heranças de uma aristocracia requintada do passado, na sintonia da análise de Mesnard.
A mistura entre o erótico-amoroso e o político é notavelmente visível em trechos do
próprio episódio da carta perdida do vidama, que serve como ligação agravada da vida das
intrigas de corte com a juventude ainda pouco experimentada da princesa de Clèves, que
“...avoit ignoré jusqu’alors les inquiétudes mortelles de la déffiance et de la jalousie...”
167
.
A justificativa da rainha está banhada em preocupação persecutória em relação ao rei: “Je
vous choisis pour vous confier tous mes chagrins, et pour m’aider à les adoucir. Vous
pouvez juger qu’ils ne sont pas médiocres. Je souffre en apparence, sans beaucoup de
peine, l’attachement du Roy pour la duchesse de Valentinois; mais il m’est insupportable”.
Então, ela lista outras inimizades e, por fim, diz: “...je n’ay osé jusqu’ici me fier à personne,
je me fie à vous; faites que je ne m’en repente point et soyez ma seule consolation. Les
yeux de la Reine rougirent en achevant ces paroles...”
168
. Depois de quase se jogar aos pés
dela, o vidama admite que a aliança foi finalmente selada.
Muito esclarecedora em relação ao ambiente de corte e a suas contradições, a cena
em que Madame de Clèves e o duque de Nemours se trancam em um quarto para escrever
nos remete à relação de Pamela com a escrita. A alegria incontrolável dos dois personagens
pode muito bem ser vista como representação de um espaço apartado, particular, surgido
por conta da escrita da carta. É como se a tarefa imposta a si próprios pelos dois abrisse a
possibilidade de tal espaço, mesmo no seio de uma corte com tendência claustrofóbica,
onde os nobres se vigiam todo o tempo. Essa dialética entre o segredo e a vigilância mútua
nos parece típica de centros de poder, onde é de suma importância estar informado sobre os
movimentos dos rivais. Em um dos pólos se encontra a importância do segredo, única
forma de burlar a vigilância opressora e constante. O capítulo “De la cour”, em Les
166
Idem, p. 1118.
167
Idem, p. 1191.
168
Idem, p. 1179.
81
caractères, de La Bruyère, descreve elegantemente tal atmosfera, que pede dissimulações,
máscaras, falsificações, já que qualquer encontro pessoal ocorre em meio a olhares
interessados e avaliadores, segundo os ventos da luta pelo prestígio e pela reputação na
corte. “Cour”, na primeira frase, aparece na acepção de certa sabedoria do cortesão em seu
habitat natural, sabedoria que lhe vale a sobrevivência ali
169
:
2 – Un homme qui sait la cour est maître de son geste, de ses yeux et de
son visage; il est profond, impénétrable; il dissimule les mauvais offices,
sourit à ses ennemis, contraint son humeur, déguise ses passions, dément
son cœur, parle, agit contre ses sentiments.
170
7 – L’on s’accoutume difficilement à une vie qui se passe dans une
antichambre, dans des cours, ou sur l’escalier.
171
62 – N’espérez plus de candeur, de franchise, d’équité, de bons offices, de
services, de bienveillance, de générosité, de fermeté dans un homme qui
s’est depuis quelque temps livré à la cour, et qui secrètement veut sa
fortune. Le reconnaissez-vous à son visage, à ses entretiens? Il ne nomme
plus chaque chose par son nom...
172
64 – La vie de la cour est un jeu sérieux, mélancolique, qui applique: il
faut arranger ses pièces et ses batteries, avoir un dessein, le suivre, parer
celui de son adversaire, hasarder quelquefois, et jouer de caprice; et après
toutes ses rêveries et toutes ses mesures, on est échec, quelquefois
mat...
173
Trata-se, como se vê, de uma síntese, em poucas páginas, de toda uma cultura (e de
um comportamento correspondente) iniciada na Renascença, prescrita em manuais como Il
cortegiano, de Castiglione, e reiterada em vários momentos, como o século XVII francês.
A função de La Bruyère, nada romântica, não parece ser a de mostrar o que há por trás do
comportamento cortesão, mas simplesmente afirmar que, nesse ambiente, não existe um
por trás”. Em outras palavras: não há escapatória senão o perigoso jogo de xadrez em que
interesses e lances devem se manter fora da visão, embora todos saibam que, para um
ponteiro de relógio rodar, é preciso haver uma engrenagem secreta. A elegante metáfora do
relógio faz culminar a seqüência de descrições de um ambiente em que não há instâncias
externas, legais, a recorrer, mas apenas o rei como ápice da pirâmide de poder:
169
Note-se como a palavra tem, ela também, por assim dizer, duas faces de significado, pois ficou consagrada,
e até hoje, com um sentido relacionado à galanteria, nítido na expressão: “fazer a corte a uma mulher”.
170
LA BRUYÈRE. Les caractères. Paris: Bookking International, 1993. p. 181.
171
Idem, p. 181-182.
172
Idem, p. 196.
173
Idem, p. 197. O trecho é citado também por Norbert Elias. ELIAS, Norbert. O processo civilizador.
Volume 2. Formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 (1939). p. 225.
82
65 – Les roues, les ressorts, les mouvements sont cachés; rien ne paraît
d’une montre que son aiguille, qui insensiblement s’avance et achève son
tour: image du courtisan, d’autant plus parfaite qu’après avoir fait assez
de chemin, il revient souvent au même point d’où il est parti.
174
O cortesão roda em torno de um centro, sem questionar-se aonde vai, pois é o seu
interesse (concorrendo com outros interesses) que está no comando. Às vezes, fracassa,
mas é sempre preciso guardar segredo, pois... “Les hommes ne veulent pas que l’on
découvre les vues qu’ils ont sur leur fortune, ni que l’on pénètre qu’ils pensent à une telle
dignité...”
175
.
No caso de Madame de Clèves, a questão do segredo adquire um tom muito mais
individual, embora, como fica claro, ela partilhe da mesma claustrofobia de corte, sendo um
elo, e frágil, na cadeia de vigilâncias e influências de poder mútuas. Só que, no seu caso, e
principalmente a partir do imbróglio da falsa carta, sua escolha pessoal – bastante
enfatizada, o que é considerado uma inovação de Madame de Lafayette – se baseia não
apenas em uma nova autoconsciência de seu amor em relação ao duque de Nemours, mas
também de uma luta interna, inédita, para aplacar tal amor sem apelar para as conveniências
da relação extraconjugal (mesmo depois de morto seu marido!)
176
. O trecho em que
Madame de Clèves percebe o teor de seu sentimento é também o de uma brusca percepção
de sua divisão interna. Poder-se-ia falar de um primórdio da psicologia, por via literária:
Quand elle pensoit qu’elle s’estoit reproché comme un crime, le jour
precedent, de lui avoir donné des marques de sensibilité que la seule
compassion pouvoit avoir fait naistre et que, par son aigreur, elle luy avoit
174
LA BRUYÈRE, op. cit., p. 197.
175
Idem, p. 190. A julgar pelo uso da mesma metáfora por Samuel Johnson, a imagem do relógio no sentido
de mecanismo invisível era de uso comum tanto na França quanto na Inglaterra. Querendo descrever o
aspecto da prosa de Richardson de explorar a vida interior dos personagens, Johnson faz uma comparação que
se tornou famosa: Richardson era o “homem que sabia como se fazia um relógio” e Henry Fielding, o
“homem que podia dizer a hora olhando para o mostrador”. VASCONCELOS, Sandra G.. op. cit., p. 72.
176
Nesse sentido, também poderíamos dizer, como em relação às Lettres portugaises, que Madame de Clèves
só descobre seu amor para, sem seguida, lutar contra ele. Ao contrário, porém, da freira Mariane, ela não o faz
por decoro ou crença total na estrutura social vigente, mas, de forma inédita, em nome de uma concepção
mais alargada, abstrata e essencialista do amor: a fidelidade final ao marido morto, ao convento e ao monde,
contra o duque de Nemours, faz dela um ser estilhaçado entre as tentações reais (a presença do duque) e uma
resistência virtuosa voltada para o além, embora pagando tributo ao monde. A riqueza dessa posição final
talvez seja um dos segredos do sucesso do romance, até hoje.
83
fait paroistre des sentimens de jalousie qui estoient des preuves certaines
de passion, elle ne se reconnaissoit plus elle-mesme.
177
Surge, então, neste exato momento, o ímpeto de afastamento de Madame de Clèves
em relação a seu amado proibido, ímpeto que a levará à recusa final, mesmo depois de
viúva. Se pensarmos em Pamela, surgido 62 anos depois, notaremos a tentativa de a
protagonista escapar a essa lógica das sombras, do segredo, onde se movem os mecanismos
secretos de um nobre como Mr. B., incluindo o acesso inquestionável ao corpo de mulheres
de baixa extração, entre elas, suas criadas. Nesse sentido, como no caso de Madame de
Clèves, também sua atividade de escrita cria um espaço aberto e privado em um ambiente
opressor, de vigilância e perseguição constantes. Esse espaço é propriamente de resistência,
e permite que a jovem direcione a discussão sobre seu destino erótico-amoroso para uma
ética que visa a vida pública, a oficialização contratual do casamento, a saída do mundo das
sombras.
Fora do âmbito do que aqui chamamos de sombras, ou seja, do domínio
particularíssimo, secreto, da vida de Mr. B., a criada seria defendida por leis igualitárias e
não seria a única a constranger-se por um código estrito de comportamento: o ex-patrão
também teria de refrear sua impetuosidade aristocraticamente justificada. Em conformidade
com o pessimismo de La Rochefoucauld ou La Bruyère, em sua época Madame de
Lafayette não destaca o potencial de reversão das expectativas sociais que tem a carta
escrita pelos dois apaixonados: ela dá acesso a momentos por demais fugazes de liberdade
amorosa no seio da corte, momentos que não se sustentarão institucionalmente e, pior, que
passam a ameaçar todo o etos do amor extraconjugal secreto, a serviço não de um amor
essencialista, mas de interesses particulares, eróticos e/ou políticos. Se Pamela tem à
disposição a saída do casamento, mesmo que depois de um martírio pessoal, a claustrofobia
interesseira da corte, mais votada ao pluralismo erótico (o vidama) que ao amor
exclusivista, não admite saídas senão a morte (Monsieur de Clèves, primeiro mártir do
novo tipo de amor-paixão integrado a certo grau de realismo) ou o convento, mesmo que
177
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1190.
84
este acabe se alternando a estadias em casa, próximas ao inescapável monde, embora sem
propriamente freqüentá-lo – como se vê na opção final de Madame de Clèves.
178
1.11. O amor no cenário de poder e erotismo
Se o erótico e o político são indiscerníveis no ambiente da corte da época, no retrato
feito por Madame de Lafayette, o amor não se confunde nem com uma, nem com outra
dessas dimensões, surgindo mesmo como o perigo maior que ameaça desatar tal laço
estreito (erótico-político). Tal concepção do amor sem dúvida tem raízes no mesmo
passado que sustenta a nostalgia cavalheiresca que Mesnard reconhece no romance – e que
o leva a colocá-lo no nível nostálgico de um “amor metafísico” impossível de se realizar no
presente vivido
179
. Como a Mariane das Lettres portugaises, portanto, a princesa de Clèves
partilha de um pessimismo encontrável na obra de La Rouchefoucauld e, segundo Mesnard,
também em Pascal e em Racine
180
: o amor simplesmente não combina com a vida sob o
Absolutismo porque nele se experimenta... “le spectacle de la cassure du monde”, o qual
implica necessariamente uma “vision tragique” pela qual “...le rève et l’ideal se heurtent
brutalement avec l’hostilité des choses...”: “...l’œuvre de Madame de Lafayette peut ainsi
être approchée de celle de La Rochefoucauld et de Saint-Simon: ils sont autres
représentants de l’haute aristocratie, autres écrivains engagés dans une tache douloureuse et
ironique de désmystification”
181
.
Não se precisa mais creditar a surpreendente – mas coerente – recusa final da
princesa de Clèves diante do duque de Nemours a uma mera fidelidade ao discurso de
Madame de Chastres (sua mãe) agonizante. Nele, a mãe lhe recomendara força e coragem
para se retirar da corte se necessário e para tomar decisões brutas e difíceis,
“...quelqu’affreux qu’ils vous paraissent d’abord: ils seront plus doux dans les suites que les
178
Refiro-me à última página do romance, onde se toma conhecimento de que a protagonista passará períodos
num convento e outros em casa, mesmo que em retiro. Voltaremos ao ponto no item a seguir.
179
MESNARD, Jean, op. cit., p. 549-555.
180
Idem, p. 553.
181
Idem, ibidem. Norbert Elias analisa o pessimismo, o escapismo e mesmo a revolta da aristocracia durante o
Absolutismo em ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa Editorial, 1972.
85
malheurs d’une galanterie”
182
, seqüência exata do que ocorre a partir do episódio da carta
(mal) falsificada. Como indica Mesnard, há um aprendizado progressivo, à la Mariane, das
Lettres portugaises: a menina que ouvira o discurso agonizante da mãe experimentara, em
seguida, a desvalorização dos laços afetivos não relacionados ao poder no ambiente da
corte, bem como sentira em si mesma a força de uma paixão unívoca, não erótica,
escolhendo, por fim, um modo de retirar-se da corte que não constava do tal discurso
materno: passa a dividir seu tempo entre sua casa e um retiro religioso. “Elle passoit une
partie de l’année dans cette maison religieuse et l’autre chez elle; mais dans une retraite et
dans des occupations plus saintes que celles des couvents les plus austères...”. A última
frase deixa claro que ela se tornará, na morte, a mártir que só ela mesma soubera ter sido
em vida: “...et sa vie, qui fut assez courte, laissa des exemples de vertu inimitables”
183
.
Mesmo levando-se em conta a austeridade destacada no texto, chama a atenção o
fato de ela não ter ido definitivamente para o convento, destino possível para uma mulher
no panorama da cultura da época. Na verdade, se Monsieur de Clèves fora um mártir do
amor unívoco e afetuoso (ou seja, sem que o vetor erótico fosse o preponderante), sua
esposa opta por outra espécie de martírio. Este incluirá não apenas a auto-anulação na vida
conventual, que representaria um corte nítido em relação à vida mundana (nos dois sentidos
da palavra “mundana”), mas uma alternância que não a faz esquecer (nem ao leitor) que ela
manterá uma vida subjetiva individual, particular, privada, nem que austera. O ponto nos
parece crucial para entender a riqueza com que a autora trata da relação da via sentimental
(afetivo e amoroso, para além do erótico) com o entorno realistamente retratado
184
.
O domínio do sentimental, no caso, pode ser descrito como esforço de construção literária
de um espaço interno, íntimo, para além da vida pública do monde. Se ela termina seus dias
entre o convento e sua casa (quem sabe, inaugurando-a na literatura como espaço privado,
separado da corte e dos salons), também os finda presa a uma verdade do coração (ou da
psique) que a distingue dos outros, que a enobrece, antes que a morte a mistifique ainda
182
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1141.
183
Idem, p. 1254.
184
Obviamente, referimo-nos, aqui, aos primórdios do realismo, de um realismo de pano de fundo, em que o
pseudo-histórico serve de frágil horizonte à trama. Será, sem dúvida, a base do realismo do romance
sentimental dos anos 1730-1740, de Marivaux e Prévost, no romance, e da comédie larmoyante, no teatro, que
trataremos mais adiante neste trabalho. A imbricação do meio cortesão com os afetos e até a incipiente
psicologia da protagonista ganhará cores menos mundanas e mais “baixas” (no sentido clássico) ao incorporar
personagens de camadas sociais menos favorecidas e até dificuldades financeiras. Mas a base de um esforço
de integração a um contexto íntimo e externo será o mesmo.
86
mais. Nota-se que se pisa o continente do psicológico pela primeira vez. Em suas Lettres...
críticas, Valincour elogia um trecho-chave do romance: a reflexão da princesa logo após o
imbróglio do vidama de Chastres:
...Madame de Clèves demeura seule, faisant beaucoup de réflexion sur
tout ce qui luy venoit d’arriver. Il n’y a rien de plus beau que toutes ces
réflexions, & il faut avoûër que l’Auteur est admirable, lors qu’il
entreprend de faire voir ce qui se passe dans nostre cœur. L’on ne peut
mieux en connoistre tous les mouvements, ni les exprimer avec plus de
force & plus de délicatesse. Ces retours de Madame de Clèves sur elle-
mesme, ces agitations, ces pensées differentes qui se détruisent l’une
l’autre, cette difference qui se trouve de ce qu’elle est aujourdhuy avec ce
qu’elle estoit hier, sont des choses qui se passent tous les jours au dedans
de nous-mesmes, que tout le monde sent, mais qu’il y a tres-peu de
personnes qui puissent dépeindre de la maniere dont nous le voyons
icy.
185
A intensidade da auto-reflexão sentimental surpreende o leitor privilegiado de 1678.
Os “retours de Madame de Clèves sur elle-mesme”, nesse verdadeiro (e primeiro?)
monólogo interior, parecem ter sido inovação à época, destacando-se o aspecto da
autotransformação e, conseqüentemente, das decisões tomadas a partir do auto-exame:
“...cette difference qui se trouve de ce qu’elle est aujourd’huy avec ce qu’elle estoit hier...”.
Os dois trechos destacados em seguida por Valincour para expressar objeções, acusando-as
de pouca verossimilhança, como em vários outros pontos de suas Lettres...
186
, nos ajudam a
esclarecer algumas questões. O primeiro começa com a frase: “...elle ne se reconnoissoit
plus elle-mesme, quand elle pensoit encore que Monsieur de Nemours voyoit bien qu’elle
connoissoit son amour...”
187
. E o segundo, com a frase: Elle fust estonné de n’avoir point
encore pensé combien il estoit peu vraysemblabe qu’un homme comme M. de Nemours,
qui avoit toujours fait paroistre tant de légèreté parmi les femmes, fust capable d’un
attachement sincère et durable”
188
. Em seguida, há a passagem do narrador em terceira
pessoa para uma primeira pessoa dramatizada, um monólogo em que o verbo “dire” parece
185
VALINCOUR, op. cit., p. 198-200.
186
Quanto ao uso do conhecimento prático da corte para criticar certas descrições do ambiente da société e
supostas inverossimilhanças de Madame de Lafayette, ver acima, nota 141.
187
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1190.
188
Idem, p. 1191.
87
ser usado em sentido figurado, já que não se trata de externar, mas de certo fluxo de
consciência:
Elle trouva qu’il estoit presque impossible qu’elle pust estre contente de
sa passion. Mais quand je le pourois estre, disoit-elle, qu’en veux-je faire?
Veux-je la souffrir? Veux-je y répondre? Veux-je m’engager dans une
galanterie? Veux-je manquer M. de Clèves? Veux-je me manquer à moy-
mesme?...
189
Como se vê, o tema do “moy-mesme” e do não reconhecimento interno (“...elle ne
se reconnoissoit plus elle-mesme...”), de uma transformação vivida de dentro, em que o
amor incontrolável emerge à revelia da consciência ou, para usar termo da autora, da
“vontade”, está colocado e determinará o desenrolar do romance. Depois da primeira
conversa com o duque depois da morte do marido, Madame de Clèves “...ne se connoissoit
plus”
190
. Depois de recuperar-se da “maladie de langueur”, ela chama “...à son secours,
pour se défendre contre luy, toutes les raisons qu’elle croyoit avoir pour ne l’épouser
jamais”: “Il se passa un assez grand combat en elle-mesme”
191
. As referências à divisão
interna são muitas, e remetem à resistência da protagonista diante da força das concepções
consagradas – e, para ela, inaceitáveis – do amor cortesão e galante (libertino, se chegaria a
dizer no século seguinte). Tal resistência, no romance, vem sempre acompanhada de
conflitos internos, hoje diríamos, psicológicos: “Elle fut étonné de ce qu’elle avoit fait; elle
s’en repentit; elle en eut de la joye (...). Elle examina encore les raisons de son devoir qui
s’oppsosoient à son bonheur...”
192
.
Na verdade, o aprendizado da jovem, desde o discurso da mãe agonizante, passa
pela visão do matrimônio enquanto instituição desrespeitada nesse mundo sem norte moral
(ou antes, com uma bússola apenas erótica-política) – daí a separação entre amor e
casamento, da qual ela acaba sendo “vítima”. A morte do marido, nesse cenário, é resultado
da visão aristocrática pessimista diante de algo que não se encontra naquele momento e
lugar: amor no casamento. Porém, e inesperadamente no caso do contexto do Antigo
Regime, a jovem viúva decide procurar um caminho que seja alternativo à pura e simples
189
Idem, ibidem.
190
Idem, p. 1250.
191
Idem, p. 1252.
192
Idem, p. 1250.
88
galanteria, e daí vem seu ineditismo ético. De fato, como mostra Mesnard, a partir de sua
experiência progressiva, ela cria para si uma “concepção metafísica do amor”, como
nomeia Mesnard
193
. A admiradora de Pascal e de Port-Royal confere à protagonista de seu
romance, na verdade, uma concepção agostiniana, pela qual há que se resistir à tentação dos
sentidos em nome de um “devoir” e um “repos” (são os termos de Madame de Clèves) que
só existe para ela, no ambiente de corte: “Il est vray (...) que je sacrifie beaucoup à un
devoir qui ne subsiste que dans mon imagination”, responde ao duque na última conversa
entre os dois
194
. A tentação dos sentidos é sempre fortíssima, exigindo violência de quem a
eles quer se contrapor, mesmo que seja com um fantasma: “Ah! Madame, luy dit M. de
Nemours, quel fantôme de devoir opposez-vous à mon bonheur?”
195
Como em Santo
Agostinho, a visão interior deve ser temperada com estoicismo para resistir à avalanche da
passio: “J’avoue, répondit-elle, que les passions peuvent me conduire; mais elles ne
sçauraient m’aveugler”
196
. O pensamento – afetado, porém não subjugado pelos
sentimentos – é local secreto da resistência ao longo dos vários monólogos interiores da
protagonista, contrapondo-se necessariamente aos sentidos, ao prazer e aos próprios
sentimentos que ameaçam transbordar:
Pensez-vous que vos résolutions tiennent contre un homme que vous
adore (...)? Il est plus difficile que vous ne pensez, madame, de résister à
ce qui nous plaist et à ce qui nous aime. Vous l’avez fait una vertue
austère, qui n’a presque point d’exemple; mais cette vertu ne s’oppose
plus à vos sentiments et j’espère que vous les suivrez malgré vous.
197
A resistência é em nome do “repos” e do “devoir”: “Ce que je crois devoir à la
mémoire de M. de Clèves seroit foible s’il n’estoit soutenu par l’intérest de mon repos; et
les raisons de mon repos ont besoin d’estre soutenues de celles de mon devoir”
198
. Tal
repouso se traduzirá em um retirar-se do monde que, como já indicamos, se confunde com
o retirar-se do mundo: “La réligion, curieusement absente de presque la totalité du roman,
193
Arrisquemos, aqui, que ela, na verdade, repercute uma concepção medieval de amor, guardada ainda em
algum canto do imaginário cortesão seiscentista.
194
Idem, p. 1249.
195
Idem, p. 1245.
196
Idem, p. 1247.
197
Idem, p. 1248.
198
Idem, ibidem.
89
apparait comme le refuge final de la princesse”
199
. A decisão de Madame de Clèves de
dividir o tempo que lhe resta entre o convento e a austeridade caseira se mostra uma forma
de evitar ser seduzida por sua visão: “...la pensée de l’épouser luy fust venue dans l’esprit
sitost qu’elle l’avoit reveu dans ce jardin...”
200
. O mesmo ocorre com ele: “La pensée
d’estre privé pour longtemps de la veue de Madame de Clèves luy estoit une douleur
sensible, et surtout dans un temps où il avoit senty le plaisir de la voir et de la voir touchée
de sa passion”
201
. A repetição do verbo “voir” é sintomática de um paradoxo: a presença
visível é penosa para quem sente um amor que ultrapassa os sentidos.
No final, Madame de Clèves se vale da saúde fraca para afastar-se ainda mais do
monde: “...comme elle connoissoit ce que peuvent les occasions sur les résolutions les plus
sages, elle ne voulut pas s’exposer à détruire les siennes, ny revenir dans les lieux où estoit
ce qu’elle avoit aimé”
202
. O retiro religioso, no entanto, não é completo, o que remete a um
aprendizado interno a seu casamento, já que seu marido “optara” por um “retiro eterno”, ou
seja, a morte. Em sua busca de alternativa aos perversos e perigosos jogos galantes ela
encontra outra saída, bastante contraditória para olhos cortesãos da época, embora
remetesse para uma inclusão ou uma “importação” dos preceitos (agostinianos?) do retiro
religioso para o dia-a-dia doméstico. Como destacamos acima, com o gesto a princesa
parece ter fundado um espaço privado que é, ao mesmo tempo, metáfora de seu espaço
subjetivo íntimo: a casa é austera e contrapõe-se ao monde de forma a resguardar a
autonomia de seu fluxo subjetivo.
O último recado ao amado se pautara pela mesma negação dos sentidos,
principalmente da visão: “...elle le prioit de ne pas trouver étrange si elle ne s’exposoit
point au péril de le voir et de détruire, par sa présence, des sentiments qu’elle devoit
conserver...”
203
. Uma pessoa das relações de Madame de Clèves leva o recado, já que ela
dissera não querer “...sortir des règles qu’elle s’estoit imposées et (...) craignoit les accidens
qui peuvent arriver par les lettres”
204
. É a última menção a cartas no romance. Retomando
nossa análise da carta do vidama, podemos ressaltar que o medo diante dos “acidentes que
199
MESNARD, Jean, op. cit., p. 555.
200
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1250.
201
Idem, p. 1252.
202
Idem, p. 1253.
203
Idem, p. 1253.
204
Idem, p. 1251.
90
podem chegar por carta” surgira violentamente naquele episódio central, a partir da
revelação pública, quase evitada por meio da falsificação, de um segredo erótico que traria
conseqüências no âmbito do poder. No caso de Madame de Clèves, a dimensão do poder e
das intrigas de corte estava completamente afastada desde a morte de seu marido: nada
impedia que ela revelasse o segredo do amor, aliás, mútuo, entre ela e o duque. Por isso
mesmo, sua resistência é um ato ainda mais inédito e “impossível”, tornando-a uma espécie
de Antígona da corte francesa, que se nega a cumprir uma lei geral (tacitamente aceita na
cidade, ou seja, Versailles) em nome de um princípio que só existe em sua “imaginação”:
“...elle voyoit aussi qu’elle entreprenoit une chose impossible, que de résister en présence
au plus aimable homme du monde qu’elle aimoit et dont elle estoit aimée, et de luy résister
sur une chose qui ne choquoit la vertu, ny la bienséance”
205
. A negação das “leis tácitas da
cidade” é tão violenta que mesmo diante da aceitação geral, da falta de impedimentos
públicos (“...ne choquoit la vertu, ny la bienséance...”), ela continua resistindo, em nome de
princípios. Sua diferença em relação a essa outra “Antígone” que é Monsieur de Clèves, seu
marido, morto por defender outra “impossibilidade” em Versailles, o amor no casamento, é
que ela consegue fugir da morte e criar um exemplo ético novo: o desejo de afastamento do
monde torna-se, então, exemplo inimitável (aliás, como toda exceção, pelo menos no
momento em que ocorre) de combate às regras erótico-amorosas ali vigentes.
1.12. A virtude, qualidade clássica feminina, frente à impetuosidade masculina
Uma última palavra é necessária sobre a virtude da princesa de Clèves. Sua mãe
que, como ela, perde o marido quando ainda nova, também, como ela,... “...avoit passé
plusieurs années sans revenir à la cour. Pendant cette absence, elle avoit donné ses soins à
l’éducation de sa fille; mais elle ne travailla pas seulement à cultiver son esprit et sa beauté
[razão e sentidos], elle songea aussi à luy donner de la vertu et à la luy rendre aimable”
206
.
Ao contrário de outras mães, que não tocavam no tema do amor, “...elle luy montroit ce
205
Idem, ibidem.
206
Idem, p. 1113.
91
qu’il y a d’agréable pour la persuader plus aisément sur ce qu’elle luy en apprenoit de
dangereux; elle luy contoit le peu de sincerité des hommes, leurs tromperies et leur
infidelité...”
207
. Sua entrada na corte se dá aos dezesseis anos
208
. Como citado acima,
“Mme de Chastres (...) avoit eu (...) d’application pour inspirer la vertu à sa fille...”
209
. Na
última conversa com a filha, Madame de Chastres, agonizante, revela ter notado a paixão
da moça pelo duque de Nemours
210
. Ela diz: “...vous etes sur le bord du précipice (...).
Songez ce que vous devez à votre mari; songez ce que vous vous devez à vous-mesme, et
pensez que vous allez perdre cette réputation que vous vous estes acquise et que je vous ay
tant souhaitée”
211
.
Mas, será a princesa de Clèves uma apóstola da virtude? Ao contrário do que
acontece no romance de Richardson, em La Princesse de Clèves nada leva a inferir que
“virtude” signifique “virgindade”, embora, obviamente, no romance de 1740 “virtude” não
se limite a tal significado O final do discurso da mãe dá a pista: a única coisa que pode
perturbar sua felicidade “...en sortant de ce monde...” seria “...de vous voir tomber comme
les autres femmes”
212
. Como indica Jean Mesnard, tal postura autoriza a definir a mãe
como uma cabeça clássica, que valoriza “...le soin avec la ‘réputation’ à conserver et avec
la recherche d’une grandeur d’exception”
213
. No panteão terminológico do Grand Siècle,
ela estaria caracterizando para a filha “...la grandeur propre à la femme, tandis que, pour
l’homme, c’est la valeur dans le combat que la constitue”. Mesnard invoca, então, La
Rochefoucauld e a máxima em que distingue... “...la valeur des hommes et la vertu des
femmes”
214
.
A citação de La Rochefoucauld, com seu ar clássico seiscentista, é preciosa e nos
permite voltar a Pamela e ao fio de nossa investigação sobre a postura de resistência da
207
Idem, ibidem.
208
Lembremos a idade de cada uma de nossas protagonistas: Pamela provavelmente, 15 anos e meio;
Mariane, das Lettres portugaises, apenas diz, no fim da última carta: “...j’étais jeune, j’étais crédule, on
m’avait enfermée dans ce couvent depuis mon enfance...”, o que permite pensar numa idade parecida, já que
ela foi seduzida por seu interlocutor ausente pouco tempo antes da primeira carta; Suzanne Simonin, de La
religieuse, inicia sua via crucis aos 16 anos e meio; e a protagonista de La vie de Marianne, aos 15 anos “mais
ou menos” vai para Paris e inicia suas aventuras sentimentais.
209
Nota 160, acima.
210
Surge uma hipótese: teria ela, de forma inconsciente e ambígua, empurrado a filha na direção do
galanteador?
211
LAFAYETTE, Madame de, op. cit., p. 1141.
212
Idem, ibidem.
213
MESNARD, Jean, op. cit., p. 548.
214
LA ROUCHEFOUCAULD. Maximes. Paris: Éd. J. Truchet, 1967. p. 23.
92
protagonista, tendo a virtude como ponto inegociável. Do mesmo modo que a princesa de
Clèves, Pamela “escolhe” a virtude por conta da educação paterna e materna, e sabe da
importância de reforçar constantemente tal escolha, tamanha é a força da prática e do
pensamento contrários a ela, na Londres de sua época. Também como no romance de
Madame de Lafayette, tal “opção”
215
lhe confere um valor feminino, em contraponto a
certa ira irracional do patrão, traço do temperamento que justifica vários dos rompantes,
com correspondent apostos bastante injuriosos, que farão a delícia dos autores de sátiras
baseadas no romance, como Henry Fielding
216
. O reverso masculino dessa virtude (pelo
menos segundo o classicismo) será a impetuosidade altaneira de Mr. B. e de sua irmã, Lady
Davers, a qual, coerentemente, só surgirá como questão depois de o casamento ter se
consumado – ou seja, no volume 2.
Tal “Impetuosity of (...) Temper”
217
oscila entre dois pólos semânticos: é vista
como grandeza ou nobreza, o que fica claro apenas se lembramos do chamamento “the
Stateliness of his Temper”
218
, mas também como incontroláveis “Humours” que, quando
tomam conta do magistrado, é melhor que a recém-esposa se afaste estrategicamente:
“...she must learn that Lesson, never to come near me, when I am in those Humours (...);
for, after a-while, if let alone, I always come to myself, and am sorry for the Violence of a
Temper...”
219
.
Essa impulsividade ou intemperança (“Intemperance”
220
) inata do patrão surge
como explicação retrospectiva bastante verossímil para sua violência verbal diante de
Pamela na primeira parte do romance. Mas ela não possui apenas o aspecto inato, claro na
comparação com o temperamento da irmã: “...the Violence of Temper so like mey
215
Estamos destacando as palavras “escolha” e “opção” de forma a deixar clara a postura ativa da
protagonista diante de sua autodefesa da virtude: a educação de berço parece não ser suficiente se não se
atualiza a todo momento tal posição ética. Tal aspecto do romance nos parece apontar para sua modernidade,
pois, apesar das balizas morais aparentemente estreitas, parece estar se construindo nele uma concepção da
formação a partir de escolhas e dos atos de resistência que delas decorrem, concepção que será alargada
principalmente no Bildungsroman alemão do século XIX, circunscrevendo traço importante da subjetividade
moderna.
216
Um pequeno exemplo de Shamela, da Letter VI: “...why how now Saucy Chops, Boldface, says he—
Mighty pretty Words, says I, pert again. —Yes (says he) you are are a d—d, impudent, stinking, cursed,
confounded Jade, and I have a great Mind to kick your A—. You, kiss— says I. A-gad, says he, and so I will;
with that he caught me in his Arms, and kissed me till he made my Face all over Fire”. FIELDING, Henry.
Shamela. Londres: Penguin Books, 1990. p. 29.
217
Ed. 1740, p. 443.
218
Idem, p. 441.
219
Idem, p. 442.
220
Idem, ibidem.
93
Sister’s...”
221
. Há o importante dado da análise psicológica e sociológica avant la lettre de
Mr. B.: a “Intemperance” passa a ser vista como aspecto negativo, a ser reprimido,
desencorajado:
We People of Fortune, or such as are born to large Expectations, of both
Sexes, are generally educated wrong. (...). We are usually so headstrong,
so violent in our Wills, that we very little bear Controul./ Humour’d by
our Nurses, thro’ the Faults of our Parents, we practise first upon them;
and shew the Gratitude of our Dispositions, in an Insolence that ought
rather to be check’d and restrain’d, than encouraged.
222
Depois de passar pela escola e de magoar os pais ao voltar ainda mais insolente para
casa, “...a Wife is look’d out for: Convenience, or Birth and Fortune, are the first Motives,
Affection the last (if it is at all consulted): And two People thus educated, thus trained up in
a Course of unnatural Ingratitude (...) are brought together”. O que acontece? “...they
revenge the Cause of all those who have been aggrieved and insulted by them, upon one
another”. Na síntese de Richardson nota-se até uma ponta de ironia: “The Gentleman has
never been controuled: The Lady has never been contradicted”. O retrato pouco abonador
de si e de seus pares classistas continua, atingindo, agora, a união entre os da mesma classe:
Separate Beds are often the Consequence; perhaps Elopements; if not, an
unconquerable Indifference, possibly Aversion. And whenever, for
Appearance-sake, they are obliged to be together, every one sees, that the
yawning Husband, and the vapourish Wife, are truly insuportable to one
another; but, separate, have freer Spirits, and can be tolerable
Company.
223
Do mesmo modo, na forma de referir-se a Mr. B. sua irmã, Lady Davers, oscila
entre o fascínio temeroso diante de seus rompantes, ao compará-lo a um leão ou a um cão, e
certa serenidade psicológica. “Will you venture, said she, to accompany me to him! – Dare
you follow a Lion in his Retreats?”, diz ela, após ser atacada verbalmente pelo irmão, ainda
não encolerizado com Pamela
224
. “He has none of your puny Hearts, but as courageous as a
Lion; and, Boy and Man, never fear’d any thing”, define, durante a recapitulação que faz
221
Idem, ibidem.
222
Idem, p. 443-444.
223
Idem, p. 444-445.
224
Idem, p. 433.
94
com Pamela de toda a história desde antes das núpcias
225
. Na última frase, o leão não perde
a majestade, mas sua falta de consciência do perigo ganha aspecto infantil: “Boy and Man”.
Esse quadro feito por Mr. B. e por sua irmã – como se disse, com lucidez
psicológica e sociológica – constitui uma das últimas revelações dessa primeira Pamela,
publicada em dois volumes, a 6 de novembro de 1740. Na verdade, representa um
desdobramento dos aspectos que diferenciam não apenas a posição social do patrão e da
serviçal tornada esposa que, ao contrário dele, recebera uma educação pautada pela virtude,
mas também suas posições sexuais. Nesse sentido, a lembrança da visão classicista da
virtude como o correspondente feminino (passivo?) da coragem guerreira nos remete à
imagem citada por Mr. B. (e extraída de uma fábula de Esopo) da dureza do carvalho em
contraposição à flexibilidade do bambu
226
:
...you must not suppose, whenever I am out of Humour, that, in opposing
yourself to my Passion, you oppose a proper Butt to it; but when you are
so good, like the slender Reed, to bend to the Hurricane, rather than, like
the sturdy Oak, to resist it, you will always stand firm in my kind Opinion,
while a contrary Conduct would uproot you, with all your Excellencies,
from my Soul.
227
Com efeito, Mr. B. tem o direito de usar tal metáfora de fábula, pois ele mesmo foi
flexível diante da exigência ética e institucional de Pamela, vergando-se a uma moralidade
que o ultrapassava. Por outro lado, em um momento completamente diferente, pois se trata
agora de um casal em seu dia-a-dia, e não mais de patrão e empregada praticando jogos de
vigilância, perseguição e resistência (como no volume 1), o importante parece ser sintetizar
os artigos de uma espécie de “manual feminino de bom comportamento no casamento”. A
partir do reconhecimento dos diferentes temperamentos (“Tempers”), de um lado, a
“Meekness” (docilidade, submissão) de Pamela, de outro, a “Stateliness” (imponência,
magnificência) de Mr. B.
228
, é o que de fato surge na “awful Lecture”
229
que Mr. B.
225
Idem, p. 453.
226
É muito interessante como Thomas Keymer aponta influências do fabulista grego em Pamela, por mais
impensáveis que sejam, principalmente saídas da tradução de Sir Roger L’Estrange, na qual se baseia a edição
das Æsop Fables, publicadas por Richardson a 20 de novembro de 1739, ou seja, quase exatamente um ano
antes de Pamela. Ed. 1740, op. cit., p. xvii-xxii.
227
Idem, p. 443.
228
Idem, p. 441.
229
Idem, p. 448.
95
ministra a Pamela para explicá-la o “Method” de convivência a ser seguido dali em diante.
Os 48 artigos variam da sugestão de manter-se distante quando ele está em seus “humores”
(“1. That I must not, when he is in great Wrath with any body, break in upon him, without
his Leave”), com direito a comentário de Pamela avaliando da universalidade ou não da
recomendação: “But I fansy this Rule is almost peculiar to himself
230
), até a promessa de
auto-repressão dos rompantes: “48. That a Husband who expects all this, is to be incapable
of returning Insult for Obligation, or Evil for Good; and ought not to abridge her of any
Privilege of her Sex”
231
.
A última frase nos traz de volta à diferença entre os sexos e suas conseqüências
sociais, não limitadas a preceitos internos ao casamento, mas refletindo também uma
percepção bastante concreta da institucionalização do laço amoroso. Na disputa entre Mr.
B. e sua irmã que, insolente e ainda transtornada com a notícia do casamento, propõe que o
irmão imagine o que aconteceria se ela um dia quisesse se casar com o cavalariço de seu
pai. O magistrado logo aponta a diferença: “...a Man ennobles a Woman he takes, be she
who she will; and adopts her into his own Rank, be it what it will: But a Woman, tho’ ever
so nobly born, debases herself by a mean Marriage, and descends from her own Rank, to
his she stoops to”
232
.
O exemplo que ele dá em seguida é extraído da aristocracia de corte: quando a
família Stuart aliou-se à família comparativamente menos nobre Hyde, ninguém se negou a
chamar Anne, filha de Edward Hyde, de Lady Alteza Real, nem a suas filhas de rainha
Mary e rainha Anne. Também quando o par do reino deixou a corte para se casar com a
filha de um rico comerciante, “...his Consort immediately became ennobled by his
Choice...”
233
.
A descrição do temperamento típico da nobreza, bem como da postura que uma
mulher vinda de classe baixa deve ter no casamento com um nobre são apenas dois dos
vários temas do volume 2 que redimem Mr. B. ao jogar nova luz sobre aspectos um tanto
sombrios do volume 1, como as seqüências de insultos, as perseguições e a lenta progressão
do amor incipientemente expresso pelo patrão. Na verdade, nota-se uma preocupação em
230
Idem, ibidem.
231
Idem, p. 451.
232
Idem, p. 422.
233
Idem, ibidem.
96
simplesmente apagar as ambigüidades que vínhamos apontando, tanto a erótico-amorosa
quanto as divisões individuais íntimas, por meio de uma solução totalizante – o casamento.
Para leitores modernos que podem achar tal estrutura simplesmente naïve, pífia, depois de
tantas vicissitudes históricas de instituição hoje tão banalmente presente em nosso dia-a-
dia, lembremos o escândalo que devia ser, na época, um senhor de terras e magistrado,
depois de seguidas tentativas de agarrar (no sentido erótico) sua criada em casa, optar por
curvar-se, por amor, às exigências morais da serviçal, pondo, com isso, em cheque o
comportamento de seus pares – como no caso de uma Madame de Clèves de dedo em riste,
acusando-os de falta de eixo ético na vida privada. Diferentemente dela, no entanto, Mr. B.
torna público e oficializa seu laço com a criada, não precisando desaparecer do monde. Em
suma, a questão do casamento parece servir para auscultar o estado de coisas da sociedade
da época quanto à ética amorosa privada e à chance de sintonizar de forma nova tal ética
privada desejável (mas pouco praticada) com a imagem pública do homem nobre. Entre o
privado e o público não deveria mais haver a zona do segredo, a enconbrir abusos e
violências sexuais. O Século das Luzes, otimista, entrava nos corredores das propriedades
de Mr. B.
1.13. Ian Watt: a ambigüidade em contexto histórico e sociológico.
No ponto em que estamos, é importante cotejar algumas de nossas conclusões às do
mais influente estudioso dos primórdios do romance na Inglaterra, que julga Pamela como
marco incontestável desse momento do século XVIII. Em A ascensão do romance, Ian
Watt contextualiza o que aqui chamamos de dois níveis de ambigüidade no texto de
Richardson. Tal contextualização é preciosa no sentido de tornar mais claras motivações e
estratégias narrativas – nem sempre conscientes no autor – que compõem tais ambigüidades
constitutivas. A análise se justifica por ser a obra de Watt, até hoje, um ponto de referência
que determinou o próprio modo de abordar a obra de Richardson na perspectiva de um
romance europeu inaugural do gênero. Ressaltemos, a princípio, que tentaremos apontar
como a própria análise de Watt está atravessada por ambigüidades que os domínios do
amor, do erotismo e do casamento inevitavelmente estabelecem. Além disso, ao
97
contextualizar a posição de Richardson, Watt se vale de uma visada sociológica que, se traz
elementos explicativos para as dubiedades propriamente ficcionais da narrativa de 1740,
aposta, a nosso ver de forma por demais otimista, em um espelhamento entre o social e o
romanesco. Ao entendermos a posição de Watt, mais esclarecida deverá ficar a nossa.
Em primeiro lugar, Watt aponta que as mulheres passam por uma importante
transição na Inglaterra da época: na passagem da família patriarcal para a que denomina de
“família conjugal”
234
, elas perdem o antigo lugar tradicional no seio da produtividade
econômica doméstica e, muito mais ociosas, acabam desvalorizadas. Além disso, o
individualismo crescente, constitutivo da “família conjugal” (definida como núcleo fechado
constituído por marido e esposa, sem maiores influências da demais parentalha), implica
mais dependência econômica e a estigmatização das “solteironas”. É ressaltada, em novo
cenário, a arcaica inferioridade social feminina. As contradições das mulheres somavam-se
umas às outras: tinham mais tempo de leitura, mas grandes dificuldades diante das
mudanças, inclusive o novo desafio de conseguir maridos, dedicadas que estavam a
atividades domésticas anódinas, como costura e piano. Em suma, muitas das contradições,
ligadas ao status legal ou à situação econômica da mulher, tinham como solução desejada
um bom casamento.
Em seguida, Watt discorre sobre a forma como o protestantismo e, especificamente,
o puritanismo encareceu e idealizou a virtude no matrimônio, ao contrário da tradição
cristã, que relacionava “...os valores religiosos mais elevados (...) com o celibato”
235
.
Mesmo assim, segundo ele, o puritanismo (e epígonos seus, como Milton) apropriou-se de
idéias cristãs egressas de São Paulo ou Santo Agostinho, segundo as quais... “A natureza
física do homem e seus desejos eram tidos como radicalmente maus (...): por conseguinte a
virtude tendia a resumir-se numa questão de suprimir os instintos naturais”
236
. Nessa trilha,
alternando seu exame entre os alicerces religiosos com repercussões culturais imemoriais e
as mudanças da Inglaterra da época de Richardson, Watt acaba incluindo a questão de
classe. Segundo ele, na Inglaterra da época, “a classe média tendia a associar façanhas e
234
O termo é de Émile Durkheim. WATT, Ian. A ascensão do romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e
Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 123.
235
Idem, p. 136-137.
236
Idem, p. 137.
98
licenciosidade sexuais com a aristocracia”
237
. Trata-se, em suas palavras, de uma “nova
ideologia sexual”
238
, e ele admite que investigar suas origens é bastante problemático. O
grande modelo da nova ideologia seria a própria Pamela, assim descrita: “...a heroína
exemplar deve ser muito jovem, muito inexperiente e de constituição física e mental
delicada que desmaia diante de qualquer investida sexual; essencialmente passiva, antes do
casamento não sente nada por seu admirador”
239
.
Do mesmo modo, do lado masculino, como escreve Defoe em The review (1706),
“em nossa busca de sexo o diabo geralmente tenta o homem, não a mulher”
240
. Na mesma
linha, com outros argumentos, o século XVIII inglês teria assistiu também à defesa da
poligamia
241
. Quanto à mulher, a antiga imagem da Eva tentada pela maçã torna-se, de uma
hora para outra, arcaica diante da “nova ideologia sexual”, que favorecia um controle
pesado e constante diante da tendência erótica masculina. Porém, “por um tortuoso
processo que o psicólogo não desconhece”, como escreve Watt – decerto surpreso diante da
inversão um tanto inexplicável –, exclui a mulher de todo e qualquer papel ativo na
sedução: “Não está claro por que se deveria esquecer a odiosa relação da serpente com
Eva”
242
.
Portanto, numa rápida panorâmica do argumento de Watt, o mesmo avanço
individualista que trouxe às mulheres a livre escolha e certa independência e ociosidade
mentais, colocou-as, paradoxalmente, na Inglaterra da época, diante de uma única solução
para suas fortes contradições: conseguir um bom partido, mantendo a imagem virtuosa. O
que, como vimos, não era fácil, pois para o homem era financeiramente cômodo e pouco
estigmatizante manter-se solteiro. Nesse sentido, os homens arcam com o peso do
puritanismo por conta da idéia de que a cupidez e a libertinagem eram exclusividades suas
(Watt chama de “estreitamento da escala ética” ao âmbito sexual).
Valendo-se da força do argumento do autor, a qual, segundo Sandra Vasconcelos,
reside na “homologia (...) entre forma literária e processo social”
243
, tal contextualização
social e histórica parece imprescindível para se perceber algumas das opções narrativas de
237
Idem, p. 139.
238
Idem, ibidem.
239
Idem, p. 141.
240
Idem, ibidem.
241
Idem, p. 129-130.
242
Idem, ibidem.
243
VASCONCELOS, Sandra G., op. cit., p. 14.
99
Richardson, muitas vezes estranhas para o leitor contemporâneo. Ao mesmo tempo, Watt
inclui em seu exame dimensões que historiadores franceses, por exemplo, chamariam de
mentalidades: as motivações subjetivas, às vezes inconscientes, que estão em jogo no
domínio imaginário da cultura e que, em algum grau, desempenham um papel na criação
literária. Com um olho na situação concreta por que passam as mulheres que, como se sabe,
formava a maior parte dos leitores dos romances, em geral, e de Pamela, em particular, e
com outro olho no imaginário, nas obsessões e nos interesses de um autor como Richardson
(ele próprio sempre cercado de mulheres solteiras em sua entourage), Watt toma cuidado
para não fazer daquela homologia uma transposição mecânica do social ao literário.
Obviamente, sua análise propriamente estrutural do romance não é minuciosa. Em
contrapartida, o panorama que ele traça em torno da obra é rico, variado, movimentado e
historicamente dinâmico.
Em primeiro lugar, lembremos que nossa visão de uma ambigüidade erótico-
amorosa pode muito bem ser constitutiva não só do romance, mas do próprio imaginário de
muitos homens da época. Quanto a isso, ao analisar um trecho que nós também destacamos,
ou seja, o debate entre Mr. B. e Lady Davers sobre as diferenças entre um nobre casar com
uma mulher de baixa extração e uma lady fazer o mesmo com um criado, Watt escreve:
“Mr. B. pode realizar o capricho de uma mésalliance porque é um fato inegável que os
homens são sujeitos à paixão sexual; mas uma mulher que fizesse a mesma coisa teria que
admitir que perdera sua imunidade aos anseios sexuais – imunidade que é uma constante
nas heroínas de ficção inglesas desde Pamela até recentemente...”
244
. Em outro trecho, ele
completa: “Richardson (...) vivia obcecado por sexo, como podemos ver em algumas
declarações suas sobre o recato sexual”, reconhecendo que o autor de Pamela é vítima do
“estreitamente da escala moral” ao sexo, que acarreta, por exemplo, a sinonímia entre as
palavras “virtude” e “virgindade”. Por fim, em um trecho do posfácio de Richardson para
Clarissa, citado por Watt, lê-se: “O que genericamente demais é chamado amor devia
(talvez com a mesma generalidade) ser chamado por outro termo”. Ele próprio sugere
cupidez ou estímulo erótico (...) por mais que choque os ouvidos delicados”
245
.
244
WATT, Ian, op. cit., p. 143-144.
245
Idem, p. 140.
100
O que os três trechos parecem mostrar é que os impulsos sexuais masculinos eram
não apenas pressupostos como inevitáveis como o puritanismo ajudou a focaliza-los de
forma inaudita (o “estreitamento da escala moral”, ou a obsessão de Richardson); por fim,
tal cenário mental, por assim dizer, favorecia inexoravelmente a ambigüidade, aliás, típica
do domínio erótico. A tal ponto que, no último trecho citado, as invectivas anti-românticas
de Richardson misturam amor e erotismo em um pacote só, inclusive com a menção aos
termos exatos. Ora, como vimos, a transformação central em Pamela é exatamente a
passagem de Mr. B. do erotismo ao amor. Se Richardson e sua época confundiam os dois
termos, invectivando contra ambos e, como destaca Watt, defendendo a amizade como
solução subjetiva aceitável, correlata à solução objetiva e institucional do casamento
246
.
Aqui já percebemos que, mais do que o casamento como “deus ex machina moral”,
na feliz expressão de Watt
247
, ou seja, como panacéia das contradições culturais, importa
descrever as tensões e ambigüidades de uma obra que se quer literária. O próprio Watt
reconhece que a solução do casamento soa estranha a leitores de hoje:
...a narrativa não termina com o casamento, mas prossegue por cerca de
duzentas páginas, cada detalhe da cerimônia nupcial e do padrão conjugal
resultante sendo elaborado (...). A ênfase nos parece estranha e sugere
falta de proporção formal no romance. Na verdade, talvez indique as
verdadeiras intenções do autor: em 1740 a classe média ainda não tinha
um conceito de casamento completamente estabelecido, e Richardson
deve ter percebido que elaborar um novo modelo de conduta para as
relações entre homem e mulher envolvia considerar muitas questões que
para nós são irrefutáveis, mas sobre as quais não havia concordância geral
naquela época.
248
Nesse sentido, o foco de uma leitura revalorizadora do romance, hoje, fica sendo
não a felicidade e os preceitos do comportamento feminino no casamento, que tomam
grande parte do volume 2, mas as ricas ambigüidades erótico-amorosa (primeiro nível) e
individual (segundo nível), que conformam o volume 1 e trecho inicial do 2. (Diga-se, de
passagem, que também concordamos com Watt sobre a menor importância da continuação
de Pamela, lançada em fevereiro de 1741; ele a classifica simplesmente como “uma idéia
infeliz de Richardson”). Constitutivo dessas ambigüidades é o triângulo amor-erotismo-
246
Idem, p. 140.
247
Idem, p. 150.
248
Idem, p. 131.
101
amizade, bastante rico em termos subjetivos e capaz, potencialmente, de pôr em movimento
as “complexidades das forças justapostas (...) responsáveis pelas singulares qualidades
literárias que Pamela trouxe para a ficção”, nas palavras de Watt
249
.
um aspecto por nós levantado: a ausência, em Pamela, do amor fulminante (ou, no
termo popular, “à primeira vista”) e da paixão no sentido transbordante.
1.14. Pedaços do mundo antigo: público, privado e classe em Pamela
Portanto, chegamos à idéia de que Pamela é um ataque à forma erótica aristocrática
(libertingem), mas também ao transbordamento, ao sentimentalismo, que o autor talvez
visse como tendência bastante forte da nova ideologia sexual feminina (amor literário
250
).
Segundo o novo modelo, do qual Pamela é o “original”, uma “terceira via” é buscada, com
o auxílio do puritanismo e da institucionalização de um novo etos tornado público. Se o
rechaço à libertinagem é bastante visível (está em primeiro plano, por assim dizer), isso não
faz da negação do amor idealizado um aspecto de menor importância. Tal aspecto
diferencia Pamela, por exemplo, de dois romances apontados como desdobramentos do
impacto cultural dessa primeira narrativa de Richardson na França: Julie ou La Nouvelle
Heloïse e Les liaisons dangereuses: o romance de Rousseau faz apologia do amor
idealizado, quase sagrado, e o de Laclos, disseca a libertinagem aristocrática, sem excluir o
que ela tem de arriscada e, em 1782, já de decadência, já que no final os libertinos são
derrotados. Pamela seria a apologia de uma via do meio, em que as decisões ligadas ao
destino erótico-amoroso não são tomadas nem de forma exacerbada e desmedida, com a
conseqüente tensão diante do status quo social, nem de forma cerebral e cruelmente
interessada. Trata-se, em vez disso, de concatenar as fortes tensões erótico-amorosas em
uma fórmula pública institucionalizada – mesmo que seja por meio de um déficit de
249
Idem, p. 151.
250
Apesar de já presente em romances gregos, como Daphnis e Chloé, de Longus, o tema do amor toma a
forma hiper-idealizada que servirá de matéria-prima ao romantismo novecentista com o amor cortês
provençal, a partir, mais ou menos, do século XI. A referência é importante porque tentamos ressaltar o anti-
romantismo de Richardson, que determina que seu combate à expressão da libertinagem (no sentido de
erotismo) não significa exaltação do amor idealizado, mas de um certo pragmatismo realista em que o
casamento é desejável e, mesmo, ato de ousadia classista.
102
intensidade erótico-amorosa. Como já vimos, se as ambigüidades eróticas (do lado de Mr.
B.) se transformam em pesadelo à la romance gótico, a suposta força infinita do sentimento
(do lado de Pamela) vira resistência feminina, tão virtuosa quanto, em vários trechos,
também amedrontada.
Nesse sentido, já podemos chegar a uma síntese de análise do volume 1, no qual o
casamento ainda não surgiu no horizonte, mas apenas o “mock-marriage”, ou o
“shamarriage”: trata-se do volume em que as tensões classistas, de gênero social (homem-
mulher) e propriamente erótico-amorosas chegam a seu auge. Ali se dá a encenação da
inferioridade da criada no mundo aristocrático, da mulher no mundo dos homens e de uma
jovem de 15 anos diante do assédio erótico. Se Watt tem razão em ressaltar que... “Não há
(...) novidade nenhuma em fazer uma heroína de ficção considerar a castidade um valor
supremo; novidade era atribuir tais idéias a uma criada”
251
, a verdade é que esse era apenas
um dos elementos temáticos inéditos: também novidade era retratar uma mulher em busca
de um etos (de um “novo código feminino”, como aponta Watt) pelo qual ela se
posicionasse como sujeito da livre escolha de seu destino – como uma voz socialmente
valorizada, e expressa com um realismo patético inédito. Novidade era também retratar
uma menina de 15 anos encarando a luta frontal com o etos libertino, pelo qual ela seria
apenas um corpo à disposição do prazer do patrão. Parece-nos importante ver tais
desdobramentos como um feixe de problemas colocados, pela primeira vez, na boca-de-
cena de um texto de ficção, e levados ao extremo de tensão e ambigüidade.
Obviamente, em toda e qualquer época o que se chama de genericamente de
“erotismo” ou “desejo sexual” só pode fazer parte da vida social ou pública de forma
transversal. Por “transversal”, queremos dizer que o erotismo cria um espaço de códigos
próprios, particulares, mais ou menos secretos e, segundo a lógica de um “processo
civilizador” na cultura européia
252
, privados. Tais códigos são capazes de traduzir impulsos
que têm o corpo e a fantasia, inconsciente ou não, como origem – e essa seria uma
definição muito rápida de erotismo ou desejo sexual – de modo a serem aceitáveis segundo
a moralidade consagrada, em cada época. É claro que estamos, aqui, simplificando
cabalmente as vicissitudes do erotismo na sociedade. Esse intróito nos serve, apenas, para
251
Idem, p. 145.
252
Cf. ELIAS, Norbet. O processo civilizador, op. cit.
103
ressaltar que, neste ponto da discussão, faz-se necessário contextualizar a relação entre
erotismo e prosa de ficção no período tratado, não para esgotar o assunto, mas para
percebermos em que ambiente o erotismo todo próprio, opressivo e persecutório, de
Pamela vinha à luz. Queremos chamar a atenção para certos pontos importantes da
tradução ou da figuração literária do erotismo na cultura letrada anterior a Pamela, de
forma a melhor circunscrever o panorama propriamente literário em que o romance surge e
se impõe como influência cultural, na Inglaterra ou fora dela.
1.15. Pequeno panorama do erotismo na prosa anterior a 1740
Se durante a Idade Média – como mostra Bakhtin em sua obra famosa sobre
Rabelais – observa-se a expressão do baixo corporal em praça pública, por meio da
representação grotesca e risível, principalmente nas festas e nos carnavais, tal liberdade
carnavalesca foi sendo exilada da vida pública com a força cada vez maior dos
constrangimentos aos impulsos (o avanço do que Elias chama de “processo civilizador”).
Rabelais, foco do estudo de Bakhtin, teria traduzido parte dessa cultura festeira em forma
narrativa. Pode-se dizer algo parecido do célebre Decameron, de Boccacio, que, do mesmo
modo, legou um anedotário bastante rico relativo a esse baixo corporal, traduzido para a
cultura letrada do século XIV. Podemos citar um terceiro autor que se dedicará ao retrato
erotizado do cotidiano, aproveitando as brechas que as artes conseguem abrir no moralismo
religioso do período: Aretino. Elizabeth L. Eisenstein cita Buckhardt a respeito: “The
polemical writings which a hundred years earlier Poggio and his opponents interchanged
are just as infamous in their tone and purpose but they were not composed for the press (...).
Aretino made all his profit out of a complete publicity and in a certain sense may be
considered the father of modern journalism”. A autora comenta: “The title ‘father of
modern journalism’ may be somewhat too dignified for one of the founders of the gutter
press”
253
.
253
EISENSTEIN, Elizabeth L. The printing revolution in early modern Europe. Cambridge: Cambridge
University Press, 1996 (1983). p. 130.
104
Junto ao fascínio exercido por um texto como o Satyricon, de Petrônio, irradiando
seu erotismo da Antigüidade, o legado dos três autores citados será bastante festejado ao
longo do século XVII francês, que tanto fascínio sente pela cultura italiana do período
descrito como a Renascença. Isso ocorre mesmo em meio ao clacissismo do Grand Siècle, o
qual, obviamente, ameaça destruir aquele legado. Os textos dos autores aqui lembrados se
mantêm como referências curiosas, permitindo que o leitor seiscentista tivesse acesso a um
estilo que o classicismo abominava. Este é totalmente incompatível com o baixo corporal
tanto por questões institucionais (já que é a arte oficial da Académie), quanto por questões
artísticas (a bienséance é conceito de base do classicismo). É impossível pensar em
classicismo sem a exclusão de descrições corporais baixas, já que, como se sabe, o
movimento se baseia, como um todo, na divisão de estilos aristotélica. No entanto, do
mesmo modo, é impossível pensar na cultura do século XVII francês excluindo o partido
dos “antigos”, ligado, indissociavelmente, à busca renascentista pelo paganismo e pelo
individualismo helênicos. Nesse cenário, só mesmo os romances anônimos, clandestinos e
pornográficos, ancestrais do romance de libertinagem, se referirão diretamente ao baixo em
seu aspecto sexual. Referir-se diretamente, no caso, significa: sem ambigüidades, sem
negociar com a moralidade pública consagrada, inclusive aquela alicerçada nas religiões
dominantes na Europa da época, ou seja, o cristianismo e o protestantismo.
A representação do erotismo na prosa de ficção tem sido tema de debates por parte
de muitos autores, em um esforço para melhor precisar o que seja o romance de
libertinagem francês do século XVIII. Trataremos desse ponto adiante. Por ora, interessa
saber especificamente como o erotismo era expresso em literatura antes do surgimento de
Pamela, tanto na Inglaterra quanto na França. Numa rápida panorâmica, pode-se dizer que
já se esboçava uma bifurcação entre dois tipos de abordagem ficcional do tema: o
sentimental e o libertino. Como veremos adiante
254
, a comédie larmoyante surge por volta
de 1735 e 1736, mesma data de composição e publicação de Les égarements du cœur et de
l’esprit, considerado por muitos o primeiro romance libertino. Ao mesmo tempo, desde
meados do século XVII havia uma literatura pornográfica cujo surgimento, segundo Jean
DeJean, se deve, por um lado, à repercussão das mudanças políticas representadas pela
Fronda e, por outro, à ampliação do mercado de impressão, distribuição e venda de
254
No capítulo 3.
105
livros
255
. Não se advogará, aqui, ingenuamente a tese, criticada com certo vigor, da pura e
simples continuidade e homogeneidade entre a pornografia em prosa do século XVII e o
romance de libertinagem do XVIII
256
. Por outro lado, parece-nos impossível negar que,
enquanto fenômeno histórico, tal filão de livros clandestinos em pleno século clássico
257
é
responsável por um costume de leitura, por uma tradição não-oficial que se difundirá na
França de então, e favorecerá o acolhimento da narrativa dita libertina, muito mais
elaborada e sutil, e menos clandestina, no século seguinte, de Crébillon fils a Laclos. Há
quem localize o início da publicação pornográfica no século XVII especificamente em
L’École des filles, de 1655, e uma inscrição que diz muito sobre a recepção dessa obra
relaciona-a à tradição renascentista italiana de Aretino: “L’École des filles, que l’on dit
estre tiré de l’Arétin”, escreve em uma carta Guy Patin, a 17 de agosto de 1655, registrando
a condenação do livro na Justiça
258
. Dada a força da economia e da cultura francesas na
Europa do século XVII, tal tradição licenciosa – ou mesmo pornográfica – terá
repercussões do outro lado do Canal da Mancha.
Na Inglaterra, como aponta Sandra Vasconcelos, um tipo de literatura em que o
erotismo desempenhava um certo papel, sendo representado de forma um tanto mais
opressiva e, em geral, alusiva, certamente aumentou a receptividade dos leitores para o
primeiro romance de Richardson. Um dos sinais mais indiscutíveis disso parece ter sido o
sucesso de Eliza Haywood com Love in excess, de 1719.
Foi (...) provocando o leitor, deixando-o suspenso entre as sugestões
eróticas e as reiteradas afirmações a respeito da virtude de suas heroínas,
que Eliza Haywood manteve um público cativo e se tornou uma das
autoras mais populares e vendidas da ficção da primeira metade do século
XVIII na Inglaterra. O estupro procrastinado, negado porém desejado, foi
uma das poderosas armas do enredos que diligentemente construiu para o
deleite de seus leitores, convenientemente convencidos, através de seus
prefácios e dos inúmeros comentários moralizantes introduzidos ao longo
255
C.f. DeJEAN, Joan. The reinvention of obscenity. Sex, lies and tabloids in early modern France.
Chicago: The University of Chicago Press, 2002.
256
C.f. GOLDZINK, Jean. À la recherche du libertinage. Paris: L’Harmattan, 2005.
257
C.f. DeJEAN, Joan, op. cit.; ABRAMOVICI, Jean-Christophe. Obscénité et classicisme. Paris: PUF,
2003; JEANNERET, Michel. Eros rebelle. Littérature et dissidence à l’âge classique. Paris: Seuil, 2003;
ABRAMOVICI, J.-C. Le livre interdit. De Théophile de Viau à Sade. Paris: Payot, 1996.
258
DeJEAN, Joan. A politização da pornografia: l’École des filles. In: HUNT, Lynn (org.). A invenção da
pornografia. Obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800. São Paulo: Hedra, 1999. p. 117.
Lembremos que sob a assinatura de Aretino (Arétin, em francês) escondia-se mais de um autor.
106
da narração, de que seus mais altos propósitos incluíam a condenação do
vício e a exaltação da virtude.
259
Como a autora destaca, na verdade o surgimento de Pamela pode ser apontado
como uma reação, ou uma tentativa de tornar decoroso um tipo de narrativa cujos
ingredientes, visíveis em amatory novellas ou, na denominação afrancesada, chroniques
scandaleuses, já eram conhecidos do público leitor inglês da época. A ligação de
Richardson com Eliza Haywood não se deu apenas por meio de influências ou reações de
escrita mais ou menos perceptíveis pela crítica. Como editor, Richardson publicou não
apenas a peça cômica de Haywood, A Wife To Be Lett, de 1735, mas tamm reeditou o
próprio romance Love in Excess, em 1732, incluído na terceira edição de Secret Histories,
Novels, and Poems, in Four Volumes
260
. Seu único pronunciamento sobre Haywood, em
termos desabonadores, numa carta de 6 de dezembro de 1750, ganha assim uma nova
perspectiva de leitura. Mais interessante ainda é pensar que o mesmo homem que edita a
comédia de uma autora já bastante famosa por seus escritos scandaleux (o que, na época,
era eufemismo para “obscenos”), assina uma invectiva contra o teatro – e no mesmo ano,
1735!
261
Na verdade, a troca intercultural é intensa, provando que a própria Eliza Haywood,
assim como outros romancistas ingleses do período, reconhecidamente imitaram modelos
de romances franceses de fins do século XVII e início do XVIII. A recíproca também é
verdadeira. Em uma rápida panorâmica de tal intercâmbio nas primeiras décadas do século
XVIII...
A number of anedoctes and bibliographical evidence show that novels and
short fictions were translated from French to English or vive versa, then,
not knowing it was a tarnslation, was translated back into the language of
the original. Aphra Behn’s translation of Brilhac’s Agnes de Castro
(1688) was retranslated into French from her English version and
259
VASCONCELOS, Sandra G., op. cit., p. 58.
260
Ed. 1740, “Introduction”, p. xi-xii.
261
Trata-se de The Apprentice’s Vade Mecum, de 1733, ampliado em 1735 e lançado com o título de A
Seasonable Examination of the Pleas and Pretensions of, and Subscribers to, Play-houses. Thomas Keymer
se impressiona como um autor que em 1740 defenderá a resistência classista de uma criada, em 1735 escreve
que o teatro... “...corrode social identities and hierarchies by giving ‘a Person, destin’d to the laborious, and
most useful Part of Life, a Taste for a Station beyond his own’”. Ed. 1740, “Introduction”, p. xii-xiii.
107
appeared in Madame Thiroux d’Arconville’s 1761 Romans traduits de
l’anglais.
262
Houve também o caso de autores bem sucedidos na Inglaterra que tiveram suas
obras publicadas anonimamente em versão francesa e, depois, republicadas em inglês,
ainda anonimamente. Assim ocorreu com a própria Eliza Haywood, cujo romance The
Fortunate Foundlings foi traduzido de forma infiel para o francês como Les heureux
orphelins, em 1754, obteve sucesso – com a assinatura do Abée Prévost – e, por isso
mesmo, foi lançado na Inglaterra como sendo outro romance, atribuído ao autor francês:
The Happy Orphans
263
. Na biografia de Samuel Johnson, Boswell narra a história de Mr.
Murphy, editor do Gray’s Inn Journal, a quem indicaram para traduzir um “conto oriental”
supostamente escrito em francês. Mais tarde ele notou tratar-se de um conto de Johnson.
Não admira, portanto, que a tradução francesa de Pamela, lançada sem os nomes do autor e
do tradutor, tenha sido tida como romance escrito originalmente em francês. É o que lança
como hipótese não provada La Chesnaye des Bois, em sua obra Lettres amusantes et
critiques sur les romans en général, anglois et françois, tant anciens que modernes,
adressées à Miledy W***.
Qu’est-ce que Pamela, Madame? Selon quelques-uns ce sont des lettres
monotones, qui composées avec tout le froid qu’on reproche à vos
insulaires, ont pris naissance sur les bords de la Seine, et ne doivent leur
origine, qu’à quelque anglico François, qui pour avoir voulu copier les
mœurs de votre nation [a Inglaterra], en a fait un ridicule assortiment.
264
Mesmo que, em seguida, Des Bois inclua a hipótese de a obra ser mesmo de um
inglês, o trecho não é interessante e esclarecedor apenas pela confusão entre traduções de
traduções, nos traslados de obras de cá para lá do Canal da Mancha. Também nos esclarece
sobre a forma sofisticada com que, no século XVIII francês, a ausência de assinatura do
262
McMURRAN, Mary Helen. The eighteenth-century novel: National or transnational? Nova York:
Dissertação do Department of Comparative Literature, New York University, 1998. Disponível em:
http://novel.stanford.edu/pdf/mcmurrin.pdf. Acesso em 15 set. 2005.
263
KENT, John P. Crébillon fils, Mrs. Eliza Haywood and Les Heureux Orphelins: A Problem of Authorship.
Romance Notes 11, 1969. p. 326-332. Apud McMURRAN, Mary Helen, op. cit.
264
DES BOIS, Aubert La Chesnaye. Lettres amusantes et critiques sur les romans en général, anglois et
françois, tant anciens que modernes, adressées à Miledy W ***. (BNF-Gallica). Disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k87356r>. Acesso em: 20 set. 2005.
108
autor, do tradutor ou de ambos, leva leitores e escritores a incluírem na própria reflexão
sobre o surgimento de uma obra os traços culturais relacionados a uma concepção de país
(e de cultura nacional) muito diferente da que se formará no século XIX. Por meio da
análise de um estilo de ficção epistolar um tanto diferente do que se estava acostumado a
ler na França, Des Bois cria a possibilidade de o romance trazer nada menos que a paródia
francesa da forma de falar, pensar e compor ficção dos ingleses. O gradiente de humor
requintado da proposta é bastante alto, ainda mais levando em conta o tom de seriedade da
primeira obra de Richardson. A passagem é preciosa também como pista sobre ruídos
inesperados
265
na transposição cultural proporcionada pela tradução de uma narrativa
ficcional. Pois se trata de uma inversão, sem dúvida bastante ao estilo mundano francês, do
próprio modo de leitura requerido pelo romance.
A sugestão de lê-lo como romance cômico, a parodiar a prosódia e as obsessões
erótico-amorosas inglesas, é um contraponto pautado pela distensão bem humorada,
revelando ser o inverso irreverente das diretrizes de leitura que o próprio Richardson, como
editor, inclui ao publicar os textos introdutórios “Preface by the Editor”, “To the Editor of
the Piece intitle, PAMELA; or, VIRTUE Rewarded”, de J.B. de Freval, e “To my worthy
Friend, the Editor of PAMELA, Etc.”, atribuído ao reverendo William Webster. Des Bois
seria o anti-Freval e o anti-Webster, uma vez que esses dois companheiros de Richardson
tentavam induzir a uma leitura séria, elevada e, no limite, até crédula das cartas de Pamela,
favorecendo uma leitura que as tomasse quase como sendo reais ou, pelo menos, que
tomasse Pamela como personagem a ser julgada eticamente como ser humano real, diante
do qual a comoção deve ser a maior possível. Basta citar uma passagem de Freval:
...it’s surprizing that a young Person, so circumstanced, could, in
Contempt of proffer’d Grandeur on the one side, and in Defiance of
Penury on the other, so happily and prudently conduct herself thro’ such a
Series of Perplexities and Troubles, and withstand the alluring Baits, and
almost irresistible Offers of a fine Gentleman…
266
Na verdade, o próprio Richardson chega a admitir que tal tipo de confusão de leitura
favorece a obra, e que não será ele a desfazê-lo. Ao manter sua pose pública de simples
265
“Ruídos” é usado aqui no sentido que o termo ganhou na teoria da informação: “erro” na decodificação de
uma mensagem por parte do receptor.
266
Ed. 1740, p. 8.
109
editor das cartas de certa Pamela, ele procurava “to avoid hurting that kind of Historical
Faith which is generally read with, tho’ we know it to be Fiction”, escreve ele numa
carta
267
. Na sexta edição da obra é o próprio Richardson quem inclui diretivas de leitura,
por meio de uma nova sinopse das cartas e do diário, ao longo de nada menos que 36
páginas. Há quem ache tal inclusão na verdade um desejo de diminuir tais diretivas. É o que
defende Alice Wakely, ao apontar que:
...the editorial role has by now changed from one which provides access to
the responses of a particular community of readers in order to spell out
how the text should be interpreted; in the sixth edition, the editor simply
provides the general reader with the tools with which to elicit a projected
meaning.
268
A constatação de que em tais paratextos se trata de diretivas de leitura e tentativas
de controle por parte do autor-editor não nos exime de ver na própria série de repetições,
interna à narrativa, uma reiteração de um estilo de falar, bem como de temas morais,
religiosos ou erótico-amorosos de número limitado e, em geral, em um prisma puritano,
como indica Ian Watt. Pois a hipótese irreverente de Des Bois, apoiada na incógnita do
autor e mesmo na dúvida sobre tratar-se mesmo de uma tradução, consegue reverter toda a
tendência ao rigor puritano em prol de uma visão bem setecentista francesa do uso do livro
anônimo com intuitos satíricos e paródicos – no caso, sátira antiinglesa ou, por assim dizer,
de combate intercultural por meio do riso.
1.16. “Paixões” clássicas: Racine e uma nova representação do desejo individual
Se o romance de libertinagem só pôde vir à luz na França, em 1735-36, por conta do
interesse pelos escritos licenciosos, despertado e alimentado por uma proto-indústria
clandestina do livro no século anterior (sendo um desdobramento menos perseguido e mais
267
CARTA a William Warburton, 19 de abril de 1748. In: SELECTED Letters. Apud Ed. 1740,
“Introduction”, p. xxi.
268
KEYMER, Thomas; SABOR, Peter (org.). The Pamela controversy. Criticisms and adaptations of S.
Richardson’s “Pamela” – 1740-1750. Vol. 1, op. cit. p. lvi.
110
literário dos romances obsceno e filosófico-obsceno
269
), a comédie larmoyante teria como
ancestral as Lettres portugaises, La princesse de Clèves e outras narrativas que tratavam do
amor na trilha idealista que deita raízes na tradição do amor cortês (inclua-se aí, como
indica Voltaire no prefácio a Nanine, até algumas peças da juventude de Corneille), o qual
desembocará no mito do amor infinito, romântico
270
.
Note-se aí, no entanto, exatamente as duas tendências em relação às quais
Richardson parece tentar se diferenciar: sua Pamela não inclui nem o amor infinito
(fulminante, transbordante e a-social), nem a representação literária do impulso erótico com
vistas a inserir-se no monde (uma das definições do romance de libertinagem por nós
aceita
271
). Quanto a esta última, poderíamos dizer que as narrativas que incluem tal
impulso, antes de Pamela, tendem a apresentá-la como um desenvolvimento no sentido do
baixo de um tipo de paixão clássica (ou seja, elevada). A tese parece bastante ambiciosa, a
princípio; mas revelará sua extrema coerência quando analisarmos determinado texto pouco
citado de Erich Auerbach. O crítico aponta no classicismo francês, principalmente com
Racine, mas já com Corneille, uma nova forma de concepção, teatralmente elaborada, das
paixões como figuração do desejo humano entendido, cada vez mais, como fenômeno
psíquico, e não como empuxo sobre-humano (divino) a ameaçar as leis da dimensão
propriamente humana. É o que Auerbach chama de uma “naturalização” das paixões
272
.
Tal hipótese de Auerbach nos parece bastante rica no quadro de uma reflexão ainda
mais ampla sobre o surgimento de formas de prosa ficcional que combatem ou tentam
reduzir o aspecto sublime (supra-humano) constitutivo da tradição classicista, dominante
nas artes francesas do século XVII. Não apenas as narrativas obscenas ou de libertinagem,
269
C.f.: GOLDZINK, Jean. À la recherche du libertinage, op. cit. O autor diferencia o romance de
libertinagem desses dois outros tipos de romance – bem como do “picaresco” afrancesado, também conhecido
como “romance burlesco”, de Lesage e Sorel). Fica claro, porém, que sua emergência só foi possível por
conta do ambiente criado pelo gosto crescente por essas novas formas romanescas. Chama a atenção o fato de
ele igualar o romance sentimental à la Marivaux e Prévost (sem dúvida com alguma influência “picaresca”, ou
seja, de um realismo que incluía baixos personagens e temas) com o burlesque de Lesage, Scarron e Sorel.
Nosso trabalho pretende mostrar como Marivaux traz elementos narrativos inéditos tanto para o romance
sentimental (e Pamela seria um dos “filhos” de Marivaux) e o de libertinagem. Ver os itens 4.1 (Capítulo 4),
7.2 e 7.3 (Capítulo 7).
270
Nossos Capítulos 3 e 4, adiante, tratarão da sensibilité e da comédie larmoyante como traços fundamentais
da cultura francesa da época, a nosso ver cruciais para a ascenção do romance – e para as repercussões de
Pamela.
271
Cf.: GOLDZINK, Jean, op. cit.
272
Trata-se de: AUERBACH, Erich. Racine et les passions. In: Le cultes des passions. Essais sur le XVIIè
siècle Français. Paris: Éditions Macula,1998.
111
mas também o novo realismo ou a nova verossimilhança larmoyant (ou sentimental) nos
parecem reações, com um destino bastante frutífero, aos preceitos de elevação do teatro
clássico. Esse panorama mais amplo nos ajudará a melhor situar e avaliar a importância de
tais transformações nas formas de narrativa, à época.
Auerbach localiza na polêmica mantida por Racine, Nicole e alguns outros, nos
anos 1660, contra o teatro e contra o romance, em nome do jansenismo, o germe da busca
do autor de Phédre por uma configuração toda própria – e moderna – das paixões. O ataque
do famoso Nicole, escrito como resposta a um Racine ora afastado dos jansenistas, destaca
o suposto “envenenamento” que o teatro é capaz de produzir no “público” por conta da
descrição de “paixões criminosas”, capazes de “corromper as almas simples e
inocentes”
273
. Isso porque...
...tout le monde sait que l’esprit du christianisme n’agit que pour éteindre
les passions, et que l’esprit du théâtre ne travaille qu’à les allumer, quand
il arrive que quelqu’un dit un peu rudement que ces deux esprits sont
contraires, il est certain que le meilleur pour les poètes c’est de ne point
répondre, afin qu’on ne réplique pas...”.
274
O crítico alemão não concorda com Gonzague Truc, segundo o qual não
deveríamos, hoje, tentar entender a mecânica subjetiva desse embate, só aparentemente
datado, entre Nicole e Racine. Na verdade, trata-se de momento privilegiado para flagrar o
choque entre uma concepção nascente de arte da escrita, no caso, a tragédia neoclássica, e o
arcabouço cristão dominante. Não se trata, portanto, apenas de tentar perceber como
premissas dogmáticas logo cairão por terra; Auerbach acha muito mais produtivo tentar
observar que o incômodo e o choque ocorrem não apenas entre os dogmas e a arte, mas
indicam nada menos que a nova possibilidade de autonomia da representação artística do
que se chama, classicamente, de “paixões”:
273
O trecho, citado por Auerbach, inclui as seguintes frases: “Un faiseur de romans et un poète de théâtre est
un empoisonneur public, non de corps, mais des âmes fidèles (...). Plus il a eu soin de couvrir d’un voile
d’honnêteté les passions criminelles qu’il y décrit, plus il les a rendues dangereuses, et capables de surprendre
et de corrompre les âmes simples et innocentes”. AUERBACH, op. cit., p. 40.
274
Idem, p. 41.
112
Nous avons ici l’un des premiers documents illustrant le combat entre
christianisme et art mondain
275
(...). Jusque-là, le combat de l’Église avait
eu pour cibles des hérétiques ou des ennemis politiques; la mondanité
comme telle n’était pas une ennemie pour elle, elle se situait à l’intérieur
de sa sphère, et les éventuels désordres de la vie instintictive n’avaient pas
une portée fondamentale qui aurait compromis l’existence du
christianisme. Ici, les choses ont changé. (...) le désir humain a acquis le
rang d’un contenu psychique indépendant, fondamentale et autonome,
d’une chose admirable et sublime en soi, et il menace de remplacer le
christianisme et, plus généralement, toute pieuse humilité par une sorte de
métaphysique des passions.
276
Nitidamente, Auerbach toma as “paixões” na obra de Racine como uma dimensão
nova da escrita teatral, que aponta para todo um continente de subjetividade que se
autonomiza em relação às milenares diretrizes morais cristãs. Nessa linha de reflexão, e
com uma insuspeitada influência freudiana, Auerbach descreve essa nova concepção das
paixões em Racine – na verdade, já perceptível em Corneille – como a ascensão do baixo
corporal em seu sentido de impulso (no caso, erótico) para o âmbito do então valorizado
domínio do sublime. A hipótese surpreende, já que se trataria de admitir um passo
importante em um suposto processo de “sublimação” (no sentido freudiano) ou sofisticação
representacional, a tornar admissível para as classes dominantes da sociedade da época,
talvez pela primeira vez, a dimensão das paixões e, obviamente, entre elas, o amor-paixão.
Só que este desta vez é relacionado não a uma força supra-humana, mas a forças subjetivas,
a “afecções”, a “movimentos” íntimos, para usar termos da época
277
, ou ao desejo sexual,
utilizando expressão atual. Auerbach descreve este último como “conteúdo psíquico
independente, fundamental e autônomo”. O trecho em que ele lança a hipótese também nos
parece valer a transcrição, principalmente por situar a suposta virada no âmbito de uma
visão mais alargada do processo histórico:
Rappelons que la passion érotique doit originellement cette promotion [a
conteúdo psíquico independente] à son lien avec le culte marial et avec
l’amour mystique de Dieu, et que le culte européen de la femme trouve
275
Ao contrário do que se vê em outras patres do presente trabalho, “mondain” aqui se refere ao domínio não-
religioso, secular, e não aquele relacionado ao monde como representação da Corte e dos salons aristocráticos
típicos da França dos séculos XVII e XVIII.
276
Auerbach, op. cit., p. 41.
277
Tratamos desse tema em nosso ensaio: BARROS, André Luiz. A concepção de ‘movimento’ nas Lettres
portugaises – Novo momento na representação da subjetividade ocidental. Revista Alea – Estudos neolatinos.
Rio de Janeiro, nº 9/1, jan.-jun. 2007.
113
son origine dans l’alliance entre mentalité courtoise et pensée
rédemptrice. Mais ici, au XVIIè siècle français, passion érotique et culte
de la femme se sont émancipés, occupent les cœurs en tant que contenu à
part entière et en tant qu’idéal...
278
Aí está enunciada, com toda clareza, a hipótese mais geral de Auerbach: pela
primeira vez, pelo menos desde o amor cortês, a “paixão erótica” teria se emancipado do
“culto da mulher” de forma admissível para leitores letrados. No final do mesmo parágrafo,
Auerbach dará início a um quadro sociológico do “público”, em formação na época,
indicando a importância de pensar em tais premissas sociológicas a fim de perceber em
quais aspectos sociais concretos se apóia a transformação do gosto que se tenta flagrar:
...le public (...), don’t l’ascension sociale ne repose plus sur l’esprit et sur
la naissance mais, fondamentalement, sur une base matérielle qui crée des
conditions et habitudes de vie communes, voit dans le roman et dans le
drame la consécration de la grande passion terrestre, et découvre dans
celle-ci le signe distinctif de l’humanité la plus haute et la plus
sublimée.
279
Por fim, Auerbach torna ainda mais precisa sua idéia de uma “sublimação” – dir-se-
ia, cultural – da nova concepção do erótico, socialmente experimentada, em passions
neoclássicas, no palco. O termo “sublimée” (sublimiert, em alemão), como lembra em nota
a tradutora francesa, indica uma oscilação de Auerbach entre “...la réference au sublime
moral et esthétique comme dépassement du Beau, et la théorie freudienne qui fait du
refoulement des instincts (sic) et des pulsions sexuelles un des ressorts de la création
artistique”
280
. Na verdade, ela esquece de ver no uso do termo uma terceira via, só
perceptível se em vez de iluminar supostas influências – Kant sendo presença inescapável –
ou oscilações, ela tivesse apostado em uma possível nova noção do termo a partir da leitura
auerbachiana do teatro francês do século XVII. Não se poderia supor que, no caso,
“sublimação” refere-se apenas e tão-somente ao nível estético e ficcional, descrevendo a
valorização e a incorporação de formas (antes consideradas) baixas em obras admissíveis
278
AUERBACH, op. cit., p. 42.
279
Idem, ibidem. É célebre o desenvolvimento posterior que Auerbach empreende dessa análise da origem da
palavra e da concepção de “público”, em AUERBACH, Erich. La Cour et la ville. In: LIMA, Luiz Costa
(org.). Teoria da literatura em suas fontes. Volume 2. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2002. p.
707-747.
280
Idem, ibidem. A tradutora é Diane Meur.
114
pela camada letrada da sociedade da época? Deslocando o conceito de Freud para o âmbito
propriamente literário, Auerbach teria captado um fenômeno a um só tempo artístico e
sociológico, o que deixaria claro o brilhante final do parágrafo citado:
...le peuple, lui, lié aux sources naturelles de la vie par les besognes et les
nécessités quotidiennes, considère certes ses propres désirs comme une
chose concrète, légitime et même, dans certaines circunstances, poétique
(quand des obstacles tragiques s’opposent au cours naturel des choses),
mais jamais comme une chose sublime en soi, qui donnerait lieu à une
emphatique introspection.
281
Essa contraposição da sublimidade erótica, artisticamente elaborada nas tragédias
setecentistas, e uma visão da vivência que as classes baixas manteriam dos próprios desejos
sexuais em sua concretude, legitimidade e até dimensão poética (ou lírica), surpreende pela
tentativa de circunscrever um fenômeno específico do teatro a diferenças sociais
descritíveis. Nesse sentido, a “sublimação” dos desejos sexuais – agora com um sentido de
fato bastante próximo do proposto por Freud – só seria acessível às classes altas. Mas se
lembrarmos que para Freud toda e qualquer pulsão tem como ancoragem ou modelo último
o desejo sexual, talvez possamos melhor ressaltar o ponto destacado por Auerbach: a
forma, bastante inusitada e específica, como na obra de Racine tais desejos mundanos
282
são transformados em uma concepção valorizada de impulsos (passions) convencional e
tradicionalmente direcionados para a “glória”, a “coragem”, o “destemor diante da morte”,
a “ambição”, o “orgulho”, o “élan guerreiro” – em suma, valores clássicos e aristocráticos
por excelência. Todas essas paixões (no sentido neoclássico francês do termo), como se
sabe, têm raízes na Antigüidade pagã, de onde, obviamente, o classicismo da época tira seu
modelo máximo. Em um momento de transformação estética, tais paixões (pathos) parecem
servir a uma certa alquimia artística refinada pela qual os impulsos baixos e corporais (os
do tipo sexual), tão exercitados em festas e em arte durante a Idade Média e a Renascença,
se tornam algo como simulacros, agora naturalizados, daqueles antigos impulsos pagãos
greco-romanos, tão combatidos pela Igreja católica. Tais modelos naturalizados, exercidos
nas tragédias de Corneille e Racine de forma hipertrofiada, acabam contribuindo na
281
Idem, ibidem.
282
No sentido de “seculares”.
115
constituição da concepção subjetiva (Auerbach usa “psíquica”), literariamente elaborada,
do desejo individualizado.
Se pudéssemos resumir tal insight em um episódio da própria psicanálise, diríamos
que a apropriação que Freud faz do mito de Édipo, por exemplo, é a via contrária da
mutação literária descrita por Auerbach: a cultura neoclássica chegara a ponto de identificar
o sublime passional a impulsos eróticos (pulsionais, na linguagem freudiana); o pai da
psicanálise recorre às paixões clássicas para melhor descrever tais impulsos (ou pulsões),
na modernidade. A naturalização do supra-sensível se inverte, então, em retomada do
abstrato, do mito, com o intuito de descrever impulsos que operam, segundo a psicanálise,
entre o concreto e o abstrato, entre o corporal e a fantasia: as pulsões, ou impulsos eróticos.
Como se vê, o crítico alemão não defende a idéia de que o neoclassicismo de Racine
se resume a uma transposição sofisticada do erótico vivido no cotidiano. O que existe é
uma tradição no tratamento ficcional das questões amorosas e eróticas que, segundo
Auerbach, teria sofrido nova inflexão com Racine, incorporando alguma dimensão da
experiência concreta, cotidiana, “baixa”. Trata-se de perceber como essa nova dimensão
mundana da vitalidade individual, constituída a partir das tintas clássicas, aponta para
regiões perigosas e negras da existência. Se a tragédia sempre contou com tais regiões,
como elas se localizam, nesse momento de mutação e naturalização do supra-humano, do
que ultrapassa a vontade consciente – em suma, do inconsciente?
O vigor dos personagens de Racine, segundo o crítico, remete a uma “hipertrofia da
personalidade humana”, aliás, já visível desde Corneille: “...Racine achève d’amener à leur
rayonnante floraison l’expansion et le développement de la personnalité mondaine, qu’il
conçoit plus profondément et plus concrètement que ses prédécesseurs”. É desse modo que
seus personagens tocam zonas proibidas: “Ses créatures sont d’une formidable vitalité,
toutes ou presque évoluent sur la périlleuse arête qui sépare la passion de la mort, et même
les femmes, lorsqu’il y va de leurs instincts, méprisent le modeste bien qu’est la vie”
283
.
Fica claro tratar-se de impulsos vitais cujo poder ultrapassa uma concepção
dogmaticamente limitada do recomendável e, pior, do fatalmente ameaçador. Em outras
palavras, e seguindo o fio ousado da argumentação de Auerbach: não teria a concepção
moderna dos impulsos do desejo individual se constituído a partir de uma retomada
283
Idem, p. 43.
116
setecentista da visão clássica e pré-cristã de forças supra-humanas e supraterrestres que
habitam cada homem? Se pudemos destacar ecos de Freud nesse texto do crítico alemão,
Nietszche também parece comparecer, ampliando a visão de uma pura e simples tradução
do sexual em “...toute-puissance et (...) dignitas supraterrestre”, nas palavras do próprio
Auerbach
284
: “Athalie n’est ni um drame chrétien ni même simplement um drame humain,
mais une lutte sauvage des instincts de pouvoir”
285
. A citação remete a uma visão de
Racine como anti-humanista, o que surpreende em um autor muitas vezes acusado de
crença demasiada – e por vezes melancólica – no poder da literatura como eixo da cultura
ocidental: “Mais la pièce [Athalie] n’est pas chrétienne, car sa teneur est impie, et elle n’est
pas humaine, car nous autres hommes, en Europe, croyons en un rapport plus profond, plus
personnel, plus intérieur avec notre destinée”
286
. O aspecto atemporal e inatual do estilo
neoclássico se conjuga a uma visão pré ou anti-jurídica, reforçando seu aspecto anti-
humanista: “Au fond Racine ne s’est jamais préoccupé de la justice, qu’elle soit terrestre ou
divine...”
287
.
Como se percebe, não se trata de ver em Racine um representante da classe
dominante que extrai dos antigos uma concepção de dignidade pessoal, de transcendência
do mundo físico e temporal, como a se tratar de um paganismo revivido. Seu mundanismo,
na verdade, é mais concreto, naturalizado e específico, segundo Auerbach: trata-se de
incluir na cultura da época, por meio de uma nova forma ficcional elaborada e aceitável
para a Academia e para a aristocracia (embora rejeitada pela Igreja), a questão do desejo
individual como inexorável, agravando-a em seus aspectos não-racionais
288
, impulsivos e
mesmo fatais, o que lhe acrescenta um valor sublime inaudito e inédito sem deixar de
revelar sua dimensão concreta, ou seja, imanente ao ser humano.
Aparentemente, tal ascensão da autonomia do desejo foi não apenas um fenômeno
inaugural, mas também se extinguiu com certa rapidez no cenário das artes da época, com o
declínio do prestígio que o teatro neoclássico exercera no século XVII. Na verdade, em vez
284
Idem, p. 44.
285
Idem, p. 45.
286
Idem, p. 46.
287
Idem, ibidem.
288
Acreditamos que tal dimensão é análoga ao sentido estóico de passio, descrito por Auerbach no texto “De
la Passio aux Passions”. (In: AUERBACH, Erich. Le culte des passions. Essais sur le XVIIè siècle Français,
op. cit.), que examinamos em nosso ensaio “A concepção de ‘movimento’ nas Lettres portugaises – Novo
momento na representação da subjetividade ocidental” – ver acima, nota 273.
117
de extinção, melhor seria descreve-lo como o surgimento de inéditas mutações, em um
momento em que novas formas literárias, então ainda desvalorizadas, como o romance,
passariam a permitir o exercício de narrativas que integrassem tal concepção naturalizada
do sublime em um novo realismo, chegando-se a soluções artísticas insuspeitas, para a
época. Por exemplo: o romance de libertinagem não poderia ser visto como uma “de-
sublimação” violenta do domínio do amor-paixão tendo o monde e o desejo de obter e
manter reputação como o único possível? Pamela, como já indicamos, não conteria um
outro tipo de “de-sublimação” em que o institucional (o casamento) surge como solução?
Veremos adiante, nos Capítulos 3 e 4, que também a narrativa sentimental pode ser vista
como uma re-sublimação, uma re-mitologização em novos termos: a transcendência, no
caso, não remete mais a valores supra-humanos (coragem, glória, espírito guerreiro), mas a
um dínamo íntimo (o coração), que põe em movimento o continente sentimental
289
.
Dois trechos do texto de Auerbach remetem ao momento de declínio do classicismo
francês, que ensejaria a ascensão de novas formas de lidar com o sublime por meio da
escrita ficcional. Por um lado,... “Athalie reste la floraison particulière d’une époque
particulière, tout en débordant sur l’intemporel et l’inactuel, car le style d’une époque,
exacerbé, se détache de son époque, dégénère en paradoxe, et ne trouve plus nulle part de
réception ni d’écho intérieurs”
290
. Por outro lado, segundo o crítico alemão, a inovação de
Racine não foi bem compreendida por seus contemporâneos, nem foi levada adiante no
próprio teatro: “...ce qui me semble sûr, c’est que les contemporains sont loin d’avoir
reconnu la portée de l’œuvre racinienne”. Auerbach conclui: “Nous nous bornerons à noter
que Racine est resté sans postérité, et qu’il devait en être ainsi; sous une forme très
atténuée, l’idéalisation de la passion autonome ne s’est transmise qu’au roman, sur lequel
l’œuvre de Racine (...) a exercé une influence considérable”
291
. A última frase é clara: a
transformação que Racine empreende no âmbito do classicismo tardio teria sido
incorporada muito mais pelo romance do que por outra qualquer forma artística literária.
289
Os neologismos aqui propostos – de-sublimação e re-subilmação – seguem na esteira do sugerido por
Auerbach: no declínio do neoclassicismo francês do século XVII, novas formas literárias incorporarão de
forma nunca vista a tradição clássica das paixões e do sublime como representação da subjetividade humana.
O supra-humano ou divino, que estava na base do desmedido de tais paixões, cede o lugar para o apenas
humano: dá-se a de-sublimação, em Racine ou nos romancistas de libertinagem. Mas, mesmo em meio à voga
realista, aquilo que ultrapassa a vontade consciente pode ser revalorizado tendo o coração (o continente
íntimo dos sentimentos) como sol irradiador: dá-se uma re-sublimação em novos termos.
290
AUERBACH, Erich. Racine et les passions, op. cit., p. 46.
291
Idem, p. 40 e 49.
118
Tal quadro traçado por Auerbach parece nos indicar trilhas ainda não percebidas de
análise das mutações por que passou a representação do passional e do erótico na ficção dos
séculos XVII e XVIII. Por ora, destaquemos um exemplo que será retomado adiante (no
Capítulo 7): Claude Crébillon, autor daquele que é considerado o primeiro romance de
libertinagem, Les Égarements du corps et de l’esprit, de 1735-36, era filho de Prosper
Jolyot de Crébillon, um dos mais célebres autores de tragédias dos anos 1720-1730. Do
mesmo modo, as tragédias nos moldes de Corneille e Racine constituíam uma das formas
de ficção escrita mais prestigiada da época, apesar das polêmicas com eclesiásticos em
geral – o que autoriza a pensar que o surgimento do romance de libertinagem tem como
pano de fundo ou contraponto todo o imaginário criado pelas tragédias do Grand Siècle, no
qual as “paixões” (ou seja, segundo Auerbach, a concepção setecentista neoclássica do
desejo individual) constituíam a figuração da subjetividade do indivíduo. Além disso, se o
teatro perpassou com tamanho prestígio a cultura artística do Grand Siècle francês, e se a
comédia era o contraponto mais “realista”
292
à tragédia, fica clara a enorme importância
dela para a constituição de uma nova seriedade realista na narrativa de ficção, a partir do
início do 1700: a pintura dos vícios e do “baixo” social passou a ser possível também a
narrativas sérias, em um momento de decadência da sublimidade artística de corte
classicista.
Tal quadro de contextualização, cuja ousadia é pretender estabelecer uma visada, a
um só tempo, ampla e específica da obra de Racine (“ampla”, já que a vê como um
momento da mais que milenar representação do amor e do erotismo na ficção escrita;
“específica”, porque se trata de circunscrever a contribuição exclusiva de Racine), nos
ajuda a flagrar um momento inaugural da representação ficcional do desejo, e de cogitar se
o romance de libertinagem não seria um momento logo posterior e, além disso, reativo, em
relação ao teatro de Racine (e às tragédias setecentistas, pautadas pelas “paixões”). Do
mesmo modo, o “fenômeno” Pamela, com as conseqüências que logo veremos na França
da época, se insere no quadro de de-sublimação e re-sublimação contraposto ao classicismo
292
O termo é ustilizado aqui apenas como contraponto à pintura do sublime e das classes elevadas, típica da
tragédia no classicismo. Como se sabe, a comédia podia se permitir maior concretude de pintura da realidade
porque lhe era permitido a inclusão de personagens e de temas “baixos” (na escala clássica). A comédia se
distingüia, mesmo, como representação mais realista dos comportamentos humanos, viciosos ou virtuosos,
com o nobre intuito de correção moral por meio do riso. Cf: ARISTÓTELES. Poética. In: Poética clássica.
São Paulo: Cultrix, 1997; BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renscimento. O
contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília: Hucitec/Editora da Unb, 1993.
119
seiscentista: a própria forma epistolar remete a uma condensação do tempo no presente
vivido com intensidade, fazendo dos sentimentos agravados o único ultrapassar possível da
consciência e das convenções sociais – a hybris moderna, por excelência.
1.17. Romance e moral: Mr. B. como libertino
O paradoxo que apontamos do autor que se propõe, já na introdução, a compor uma
obra moralmente edificante diante do substrato semântico erótico coloca Pamela no centro
do debate que marcou os primórdios da valorização do romance. Como também já
destacamos, naquele momento, na Inglaterra e na França – embora com maior amplitude
nesta última –, o comércio clandestino de livros licenciosos era uma realidade, e em 1735 e
1736, na França, o romance Les égarements du corps et de l’esprit, de Claude Crébillon,
marcará época como invenção literária que inclui personagens às voltas exclusivamente
com conquistas amorosas, com o jogo dissimulador da société raffinée e com uma
amoralidade franca que beirava a crueldade. A menção a um simples trecho de seu prefácio
já indica o ponto núcleo do referido paradoxo – entre moralidade admitida e amoralidade
textual praticada pelo autor: “...une femme vertueuse, um homme sensé, il semble que ce
soient des êtres de raison qui ne ressemblent jamais à personne”
293
. A frase surge como
conclusão do debate central do prefácio, que versa sobre a perigosa aproximação realista
(sem o uso da palavra, é claro) entre os personagens do romance e os parisienses da vida
real. O autor chega a defender as applications, ou seja, o reconhecimento de pessoas reais
supostamente retratadas na obra. E termina com essa tirada, francamente anti-Pamela avant
la lettre.
A se considerar que tal frase de efeito conclui um prefácio pautado pela defesa da
clássica dualidade de Horácio, segundo a qual uma obra de arte deve reunir o útil e o
agradável (“L’homme qui écrit ne peut avoir que deux objets: l’utile et l’amusant”
294
),
293
CRÉBILLON FILS, Claude. Les égarements du corps et de l’esprit. In: TROUSSON, Raymond. Romans
libertins du XVIIIè siècle, op. cit., p. 21.
294
Idem, p. 19.
120
sendo o útil, é claro, o domínio da moral, ou seja, a instrução moral do leitor, a defesa dos
personagens como os petits maîtres e os roués
295
tem como horizonte a idéia de que serão
exemplos em negativo do modo acertado de agir.
Como se sabe, a noção de uma tensa alternância entre o probo (o moralmente
edificante) e o cruel (aquilo que a moral condena), alternância fundamental em Pamela e
objeto de importantes polêmicas travadas por escritores e membros eclesiásticos
preocupados com as balizas morais, aparentemente fluidas, das novas formas narrativas não
canônicas. Era o caso, notadamente, do teatro e do romance, o primeiro atacado com mais
vigor nos anos 1660 do que no século XVIII, e mais por escritores ligados à Igreja; o
segundo, alvo de ataques durante os dois séculos seguidos
296
. Adiante (item 7.6, Capítulo
7) examinaremos rapidamente o tema, que consideramos bastante amplo, da relação da
moralidade com as novas formas de narrativa ficcional (notadamente, o romance). Se
pudéssemos resumir assunto tão geral, diríamos que no classicismo a boa moralidade de um
escrito estava plenamente justificada, senão pressuposta quando as regras eram observadas.
Tanto a elevação social dos protagonistas quanto a adequação da linguagem a um estilo
também elevado eram como que garantidoras da moralidade da semântica de determinado
texto, teatral ou não. Por mais que representantes ou defensores da moralidade religiosa
tenham atacado certo tipo de teatro clássico, a verdade é que o partido da Académie sai, de
certo modo, vencedor ao impor não a moral cristã, mas o preceituário aristotélico e
horaciano como modelos de julgamento formal, e também moral, das obras.
A verdade é que, quaisquer que tenham sido os excessos do partido
devoto, quer tenham-se resumido a condenar apenas o espetáculo teatral,
quer tenham estendido o anátema a todo prazer sensível – além da
matéria, à própria forma artística –, a literatura neoclássica não parece ter
295
Dois termos típicos da época. Segundo Voltaire, o petit-maître é o representante da “jeunesse impertinente
et mal élevée”. Aplicava-se tamm a um tipo baixo de aventureiro galante e conquistador. Próximo a ele, o
roué é o que vive de golpes, é companheiro de débauches e de vida airada, a partir da etimologia original que
identificava os criminosos passíveis de sofrer os suplícios da “roda” (roue). Ver TROUSSON, Raymond, op.
cit., p. XXXVIII-XL; LAROCH, Philippe. Petits-maîtres et roués. Québec: Presses de l’Université de Laval,
1979. MAUZI, Robert. LIdée de bonheur au XVIIIè siècle. Paris: Armand Colin, 1960. p. 30-33.
296
A obra clássica sobre os ataques ao romance no século XVIII francês é: MAY, Georges. Le Dilemme du
roman du XVIIIe. siècle. Étude sur les rapports du roman et de la critique (1715-1767). Paris: PUF, 1963.
Sobre os ataques ao teatro, há um grande número de textos, o último, mais tardio, sendo a Lettre à
D’Alembert, de Rousseau (1750). Mas a polêmica com os eclesiásticos ou seus defensores vem de
d’Aubignac, Nicole e le Prince de Conti, por volta de 1660, e de Bossuet e o Père Caffaro, entre outros, por
volta de 1694. Cf.: GOLDZINK, Jean. Comique et comédie au siècle des Lumières. Paris: LHarmattan,
2000. P. 17-48 – em especial o capítulo “Du Christ en croix au rire en larmes”.
121
dissociado valores estéticos dos valores morais, o que fica ilustrado com a
importância dada às regras das bienséances.
297
Com o crescente prestígio do romance, a questão, obviamente, volta à tona, já que
se trata de prosa ficcional muito próxima às formas narrativas tidas como “verdadeiras” ou
“documentais”
298
, sem as regras poéticas a limitar formal ou semanticamente autores e
leitores. Não surpreende que os partidos da moralidade tenham se insurgido novamente
299
.
A questão da moralidade e do surgimento do romance nos obriga a examinar com
mais cuidado de tratamos ao nos referirmos a personagens com perfil libertino. Um amplo
domínio de estudos relacionados ao romance de libertinagem, crescente desde os anos 1970
e bastante prolífico desde a década de 1990, prova a importância desse personagem-tipo no
século XVIII francês. Sua contemporaneidade em relação ao surgimento de Pamela e o
próprio perfil do personagem de Mr. B., um nobre a cujas práticas libertinas alude-se em
várias passagens do romance, nos parece motivo suficiente para tal exame. Não
esqueçamos, por exemplo, que a palavra “Libertine” encontra-se em um dos textos
introdutórios ao romance, To the Editor of the Piece intitled PAMELA; or VIRTUE
Rewarded, aliás, assinado por um francês, “Your most Obedient,/ and Faithful Servant,/ J.
B. D. F.”. Ele é identificado como sendo Jean Baptiste de Freval, tradutor francês que na
época trabalhava em Londres, e que teve versões suas publicadas por Richardson, como
The history of the heavens, tradução do original do abbé Pluche. Escreve Freval, na
conclusão de seu texto:
The reigning Depravity of the Times has yet left Virtue many Votaries. Of
their Protection you need not despair. May ever head-strong Libertine
whose Hands you reach, be reclaimed; and every tempted Virgin who
reads you, imitate the Virtue, and meet the Reward of the high-meriting,
tho’ low-descended, PAMELA. I am, Sir,/ Your most Obedient
300
297
PRADO, Raquel de Almeida, op. cit.,. p. 29.
298
A respeito da relação da prosa ficcional com as formas de verdade e de documento, cf.: LIMA, Luiz Costa.
História. Ficção. Literatura. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2006.
299
Sobre o tema, cf.: PRADO, Raquel de Almeida, op. cit.; MAY, Georges, op. cit.; BÉNICHOU, Paul.
Morales du Grand Siècle. Paris: Gallimard, 1948; LAFOND, Jean. Littérature et morale au XVIIè siècle. In:
Colloques internationaux du CNRS, nº 557: Critique et création littéraire en France au XVIIè siècle. Paris,
[1968?]; VARGA, Kibedi. Rhétorique et littérature: études de structures classiques. Paris: Didier, 1970.
300
Ed. 1740, p. 6.
122
Na primeira versão francesa do romance, o substantivo masculino, Libertine, cuja
origem latina o torna ainda mais expressivo em inglês, aparece no plural – e acrescido de
ponto de exclamação: “Et puisses-tu convertir tous les libertins obstinés entre les mains
desquels tu tomberas!”
301
O desconforto diante da condition da protagonista desaparece na
versão francesa: “Puissent toutes les jeunes filles qui te liront imiter la vertu de PAMÉLA,
et être récompensées comme elle!”
302
O trecho prova que a menção à idéia de libertino
como o contrário do devoto era prontamente compreendida por leitores ingleses. No início
do volume 2 do romance, é o próprio Richardson quem põe a palavra na boca de Pamela.
Ao ler a carta anônima, obtida em segredo das mãos de uma cigana que lhe prediz o futuro,
e ao ver ali descrito o suposto plano de Mr. B. para enganá-la, forjando o casamento com
ele por meio de um falso vigário, a protagonista, atônita, desespera-se diante de mais essa
reviravolta do destino – e do enredo: “This is the worse, as I hop’d all the Worst was over;
and that I had the Pleasure of beholding a reclaimed Gentleman, and not an abandon’d
Libertine”
303
. O libertino, no caso, é o que engana a mulher utilizando-se para isso do altar
e, assim, profana um ato religioso. Trata-se da trilha argumentativa de vários sermonistas
franceses em fins do século XVII, que tornam corrente o significado de libertino como
“ímpio” ou “contrário à religião”
304
.
O outro uso do termo inglês “libertine” data da edição de 1801 que, como vimos,
inclui mudanças feitas por Richardson, por suas filhas ou pelos editores. Trata-se do trecho,
(já examinado por nós no item 1.4) em que, ao passear com Mr. Williams, seu generoso
pretendente, e com Mrs. Jewkes, sua severa governanta e superiora hierárquica, Pamela vê
o touro que algumas páginas depois se tornará, em sua imaginação, um monstro – ou uma
espécie de terrível superego – a impedir que ela escape pelo portão do pasto, mesmo
quando já o abrira. O trecho é esclarecedor ao demonstrar como Richardson enriqueceu a
narrativa com um elemento de ordem psicológica. Trata-se, pura e simplesmente, da
confissão de um medo infantil da moça, relacionado a uma frase ouvida da mãe, que é
destinatária da carta.
301
Ed. francesa (ver nota 29, acima), p. 23.
302
Idem, ibidem.
303
Ed. 1740, p. 226.
304
Cf.: GROETHUYSEN, Bernard. Les origines sociales de l’incredulité bourgeoise en France. In:
Philosophie et histoire. Paris: Albin Michel, 1995.
123
An ugly, surly, grim creature. Mrs. Jewkes said, my dear mother, that was
not the first mischief he had done. [Ela se refere a um ataque do animal a
uma cozinheira da casa, que no momento já se recuperava]. You know,
my dear mother, that I was always from childhood afraid of a bull; and
you used to tell me, that as cows for their meekness and usefulness were
to be likened to good women; so bulls, when fierce and untameable, were
to be compared to wicked men; and thence you gave me such cautions and
instructions, to avoid such libertine men, as have had a place in my
memory ever since.
305
Destaque-se, portanto, uma diferença fundamental na forma como a própria
narrativa traz novos elementos da memória e da afetividade (no caso, traumática) ligada a
tal memória. A psicologização que aí se vê é bastante coerente com um momento de
paralisia da criada diante de sua maior chance de fuga desde o início da perseguição. Mas
note-se, também, que em 1740 o autor dispensou tal tipo de aprofundamento narrativo,
limitando-se a uma estranha retórica coloquial da missivista, que parece viver numa espécie
de tempo presente bastante comprimido, uma continuada imediatez narrativa, muito
provavelmente um dos fatores de impacto do romance para leitores da época. Voltaremos,
adiante, a tal questão. Por ora, ressalte-se apenas esse trecho do prefácio de Richardson,
extraído da bastante fiel tradução francesa de Clarisse Harlowe, feita por Le Tourneur em
1785:
Toutes ces lettres sont écrites dans la chaleur même du sujet ou de
l’événement qui les occasionne, en sorte qu’elles abondent en
descriptions, en réflexions instantanées, inspirées par le moment où
l’impression est la plus fraîche & la plus vive (...). Il doit y avoir, dit un
des principaux personnages, une bien plus grande énergie de sentiments &
de vie dans le style de celui qui écrit au sein même de sa détresse, (...)
lorsque la suite des événements de sa destinée est encore cachée dans les
ténèbres de l’avenir; que dans le récit froid, inanimé d’une personne qui,
le cœur à l’aise & dans les ténèbres de calme, ne fait plus que raconter à
loisir des dangers évanouis, des obstacles surmontés...
306
O trecho e a citação desdobrada de Richardson, que menciona os pensamentos de
um personagem seu, vale pela consciência do autor sobre um elemento crucial do romance
epistolar do modo como o compôs. De passagem, diga-se que a imagem final, do escritor
que vive nas “trevas da calma”, é uma crítica ácida a um gênero de prosa, ficcional ou não,
305
Ed. 1801, p. 187-188.
306
RICHARDSON, Samuel. Clarisse Harlowe. Genebra: Paul Barde Imprimeur-Libraire, 1785. p. xvi-xvii.
124
bastante comum por toda Europa, principalmente na França e na Inglaterra, desde o século
XVII, gênero que seu romance chega exatamente para suplantar – as memórias
307
. No
trecho, Richardson parece estar didaticamente chamando a atenção dos leitores para um
aspecto que certamente o “fenômeno” Pamela o ensinara a considerar como o segredo da
força inovadora de sua própria prosa.
Mas voltemos ao fio de nossa indagação sobre as relações entre o personagem do
libertino e Pamela. A analogia que Pamela fazia, no trecho citado, entre o sexo dos animais
e o dos humanos nos remete a um outro trecho em que ressurge a imagem do libertino –
dessa vez uma passagem que consta da primeira edição da obra e se mantém na de 1801.
Depois de ler pela primeira vez algumas cartas de Pamela, Mr. B. inicia seu “julgamento”:
“About nine o’Clock he sent for me down in the Parlour. I went a little fearfully; and he
held the Papers in his Hand, and said, Now, Pamela, you come upon your Trial.”
308
Na
seqüência, ao mesmo tempo que se mostra surpreendido com a inteligência e a
engenhosidade (wit) que a criada demonstra nas cartas, ele ironiza sua forma de
argumentar: “…you chop Logick very prettily”, que foi traduzido para o francês mantendo
a pitada de ironia: “…voilà la plus jolie logique du monde”
309
. E ele cinicamente chama
suas investidas de “innocent Exercises”, no que Pamela rebate da seguinte forma, com
direito a itálico como signo de ironia: “...could I have been without those innocent
Exercises, as you are pleased to call them, I should have been glad to have been as dull as a
Beetle”. E ele: “But then, Pamela (…), I should not have lov’d you so well”. O embate
continua de forma ágil, e ela rebate: “But then, Sir (...), I should have been safe, easy, and
happy”. Ele: “Ay, may-be so, and may-be not; and the Wife too of some clouterly Plough-
boy”. Mais uma vez, ela contra-ataca, demonstrando a dialética entre o natural e o
civilizado, que Rousseau tanto explorará dali a alguns anos: “But then, Sir, I should have
been content and innocent; and that’s better than being a Princess…”. Ele, então, deixa
ainda mais clara a tensão que os contrapõe, aludindo a outro animal que não o touro, nem a
barata (ou besouro) e nem a vaca ou o boi de arado:
307
Tocaremos na questão das memórias como gênero importante de meados do século XVII para meados do
XVIII no Capítulo 7, adiante.
308
Ed. 1740, p. 230.
309
Ed. francesa, p. 253.
125
And may-be not, said he [refere-se a ela ser contente e inocente se casada
com o caipira]; for if you had had that pretty Face, some of us keen Fox-
hunters [“...chasseurs de renards...”] should found you out; and, spite of
your romantick Notions [“…idées romanesques…
310
] (which then too,
perhaps, would not have had such strong Place in your Mind) would have
been more happy with the Ploughman’s Wife, than I have been with my
Mother’s Pamela.
311
A proliferação de animais, no caso, aponta para identificações inesperadas e, apesar
dos vários momentos de certo “patético doméstico” (no sentido do século XVIII) ao longo
da narrativa, a imagem dos caçadores de raposas, coletivizados, como um grupo que pratica
como esporte ou hobby a “caça” às esposas dos camponeses locais é um momento especial
de violência metafórica por parte de Mr. B. Nessa seqüência de identificações animais, o
patrão-perseguidor também se torna touro, assim como, sem sua escrita clandestina, Pamela
se transformaria numa barata indefesa, embora, numa imagem da sagacidade dissimulada
ou de dubiedade erótica, também pudesse ser vista como uma raposa pronta a ser caçada. A
análise desses trechos deixa claro que Richardson nem sempre é bem sucedido na sua
célebre pretensão de direcionar o leitor por caminhos que considera os mais corretos de
apreensão da narrativa.
312
310
Idem, ibidem.
311
Ed. 1740, p. 232. (Toda a seqüência da discussão).
312
Os autores da introdução ao Volume 1 de The Pamela controversy – Criticisms and adaptations of
Samuel Richardson’s “Pamela” – 1740-1750 (KEYMER, Thomas; SABOR, Peter (org.), op. cit.), or
organizadores chamam a atenção para tal discussão ao comentar a sinopse (“table of contents”) de 36 páginas
que Richardson acrescenta à sexta edição da obra, de maio de 1742. Depois de lembrar que a mesma adição é
feita pelo autor no caso da segunda e subsequentes edições de Clarissa, eles afirmam: “A diferença é que a
sinopse de Pamela passou quase despercebida em meio à crítica moderna, muito por conta de sua não
inclusão em edições recentes do romance, enquanto a sinopse de Clarissa foi central no debate que envolveu
o sentido textual e a tentativa de reafirmação de um controle autoral por parte de Richardson, em edições
subseqüentes. Nesse caso também se pode ficar tentado a detectar a mesma tendenciosidade velada de
sumariar, a mesma proibição autoral de leituras desviantes (das quais, no fim das contas, acabou havendo
muitos exemplos). É bastante perspicaz a análise de Alice Wakely, segundo a qual o corte que Richardson faz
dos textos introdutórios de J.B. de Freval e do reverendo William Webster na sexta edição (1742) e a inclusão
da referida sinopse na verdade pode representar não um aumento de rigor, mas um relaxamentodo autor em
relação à leitura da obra. Escreve ela: “...the editorial role has by now changed from one which provides
access to the reponses of a particular community of readers in order to spell out how the text should be
interpreted; in the sixth edition, the editor simply provides the general reader with the tools with which to
elicit a projected meaning”. WAKELY, Alice. Author and editor in the works of Samuel Richardson.
Dissertation. Oxford: University of Oxford, Department of Philosophy, 2000. p. 53, apud The Pamela
controversy. Vol. 1, op. cit., p. lv-lvi. A decisão de Richardson talvez reflita um momento do século XVIII
em que a comunidade de leitores privilegiados, fechada e autolegitimadora por natureza, parece estar cedendo
lugar a um público mais amplo que garanta a existência cultural da obra. E mesmo a relação direta com o
autor, embora mistificada quando esse tem talento em autopromover-se como personalidade de destaque (o
caso de Richardson, bem como de Rousseau, na França), já demonstra sinais de poder tornar-se mais
complexa e impessoal, ficando a obra no centro das atenções.
126
A última passagem citada torna nítida uma característica central do tipo social que,
àquele momento, ficou consagrado pelo termo “libertino” (libertin, na França, e Libertine,
na Inglaterra). Como se sabe, trata-se de um tipo não no sentido que o teatro
(principalmente a commedia dell’arte) consagrou, embora, como o tipo cômico, componha-
se de traços limitados e listáveis, favorecendo reconhecimento imediato
313
. Sinteticamente,
Mr. B. faz parte do horizonte de expectativas dos leitores da época (franceses e ingleses)
quanto ao tipo social intuído em sua generalidade, sem relações com o libertino tal como
fora criado no âmbito específico do romance de libertinagem. No caso de Pamela, o
personagem-tipo exerce poder e crueldade, mas, ao fim e ao cabo, arrepende-se – ou
converte-se.
Tentaremos, agora, tornar mais nítido certo aspecto da construção discursiva do
libertino na França das primeiras décadas do século XVIII, quando o sentido do termo
passa por importantes transformações. Não seria uma forma eficaz de nos aproximarmos
desse homem da época, que recebe para ler as primeiras obras de libertinagem, de Claude
Crébillon ou Charles Duclos, e, logo em seguida, as páginas de Richardson com um
libertino austero e obsessivo, que sofre certa mudança de concepção, convertendo-se ao
comportamento oposto ao que antes praticava, como um ex-ímpio arrependido?
314
Parte-se
aqui, portanto, da constatação de um valor atribuído aos personagens méchants ou
libertinos em pleno Ancien Regime, época em que o cristianismo forte convivia com certo
amoralismo aristocrático “oficioso”. Centremo-nos no modo como se constitui um tipo
análogo a ele, o mundano, com seu etos próprio, em dois polêmicos poemas de Voltaire, Le
mondain e Défense du mondain, e, em seguida, na peça de teatro de Gresset, Le méchant,
obras nas quais alguns aspectos do personagem-tipo complexo inventado por Claude
Crébillon se deixam flagrar, embora ainda sem o memo grau de complexidade literária.
Refletir sobre tais questões nos leva a uma espécie de “genealogia da moral” no
âmbito estético do século XVIII francês, momento crucial de surgimento tanto da produção
e da distribuição de livros em quantidade quase industrial, quanto do próprio romance, o
313
Em um trabalho ainda em preparo, especificamente sobre o romance de libertinagem, desenvolveremos a
definição do que chamamos de personagem-tipo complexo (para diferenciá-lo dos personagens-tipo da
commedia dell’arte).
314
A referência a Duclos, autor de Les confessions du comte de ***, de 1741, não é gratuita: seu libertino-
narrador também converte-se ao amor – ou melhor, à amizade pela via do amor. Cf.: DUCLOS, Charles
Pinot. Les confessions du comte de ***. In: TROUSSON, Raymond, op. cit., p. 163-264.
127
gênero moderno por excelência. Seja aquele o momento de surgimento de uma esfera
pública burguesa
315
, ou de uma nova rapidez de propagação da opinião
316
, a verdade é que
mudam as formas de recepção de obras, impressas ou encenadas, e tanto por conta de novas
materialidades de produção e distribuição, quanto por causa de novas sensibilidades em um
momento de mutações também no âmbito da subjetividade dos receptores-leitores –
mutações essas a serem favorecidas por tais mudanças formais, conteudísticas e materiais
da difusão de textos de ficção e peças teatrais. Por um lado, os romances passam a
constituir um importante campo de síntese dos antigos estilos poéticos ou teatrais (tragédia,
epopéia, comédia). Por outro, estabelecem um novo domínio de experimentação de formas
de comunicação a partir da combinação entre, de um lado, uma inédita forma de produção
de sentido irredutível à dominante moralidade dual (bem versus mal), já que afeita a
ambigüidades de vários níveis e, de outro, um realismo de condensação da narrativa no
presente vivido intensamente.
1.18. Mudança no tratamento do tempo: Voltaire segundo Spitzer e Auerbach
As transformações no tratamento do tempo na narrativa de ficção em geral e, em
particular, no romance são reconhecidamente centrais quando se analisa a evolução do
gênero, desde seu surgimento até suas fases mais recentes, e até hoje. Quanto a isso,
lembremos como Erich Auerbach propõe uma análise da “narrativa da memória em
camadas”, ao examinar a revolução na prosa empreendida por Virginia Woolf, Joyce e
Proust
317
. Tema relacionado, por excelência, aos modernos (o próprio Auerbach lembra
como alguns teóricos relacionaram reflexões filosóficas sobre a temporalidade, como a de
Bergson, com as mudanças na narrativa ficcional), as mudanças na forma de tratar
ficcionalmente o tempo parecem cruciais em momentos em que tal gênero narrativo se
transforma, redimensionando-se. Nesse sentido, parece-nos bastante plausível que o
315
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo
Universitário, 2003.
316
TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Kimé, 1993.
317
AUERBACH, Erich. Mímesis, op. cit., p. 484 e sqq.
128
momento em que o gênero “romance moderno” tenha surgido, no século XVIII inglês e
francês, contenha, em germe e de maneira mais ou menos caótica, muitas formas potenciais
de tratamento do tempo que serão desenvolvidas no âmbito do romance, nos séculos
seguintes.
No capítulo sobre os modernos, que conclui seu Mimesis, Auerbach descreve dois
tipos de processos de temporalidade na representação de conteúdos mentais dos
personagens: a mera “continuação da trama interna da consciência na sua liberdade natural
e despropositada” e a mais radical inserção de digressões totalmente desconexas em termos
espaciais e temporais, que abrem “em profundidade temporal” uma imagem (no caso
analisado pelo crítico, o rosto triste da personagem de To the lighthouse, de Virginia
Woolf). A favor de nossa escolha – só aparentemente anacrônica – de recorrer a análise de
um texto da autora inglesa do início do século XX, lembremos que Virginia Woolf tinha
total consciência da importante transformação que a prosa ficcional sofrera no século
XVIII. Em Um teto todo seu (1929), escreve: “Assim, para o término do século XVIII
promoveu-se uma mudança que, se eu estivesse reescrevendo a história, (...) consideraria de
maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas. A mulher de classe média
começou a escrever”
318
. O reconhecido papel das mulheres escritoras, nos primórdios dos
romances inglês e francês (Eliza Haywood e Madame Lafayette são apenas dois exemplos,
lançando anonimamente seus romances), exime-nos de relacionar tal passagem a momento
anterior ao final daquele século. Em prol da idéia de que o surgimento de escritoras se
relaciona à ascensão e à aceitação do romance já no XVIII, lembremos, com Ian Watt,
que... “...muitas mulheres, sobretudo da classe média urbana, tinham maior tempo ocioso
que antes e dedicav-no, em grande parte, a atividades literárias e culturais. Isso se refletia
na crescente tendência de livreiros e escritores a dirigirem-se especialmente ao público
feminino”
319
. Como demonstra o crítico inglês, a transição para certo capitalismo, na
Inglaterra de então, tirou das mulheres não casadas seu papel pré-determinado na família
patriarcal que atuava como núcleo produtivo (pré-capitalista) e não lhes permitiu ingressar
no mercado de trabalho, dado seu flagrante status social inferior, em relação aos homens
320
.
A domesticidade e o tempo livre de uma vida sem obrigações de trabalho ou ambições
318
VASCONCELOS, Sandra G., op. cit., p. 108.
319
WATT, Ian, op. cit., p. 133.
320
Idem, p. 124 e sqq.
129
públicas são elementos sociológicos a indicar certa relação entre a forja de uma nova forma
de representação do tempo nos romances (francamente subjetivo e ligado ao espaço privado
doméstico) e o fato de terem sido as mulheres a assumir um papel de proa na escrita de tais
narrativas. Escrita e leitura estando em mãos femininas, por que não seriam tanto o cenário
psicológico e sentimental quanto a temporalidade doméstica e introspectiva (na trilha do
fluxo de consciência já perceptível em La Princesse de Clèves, de 1678
321
) constitutivos do
novo gênero?
Do mesmo modo, não precisamos ligar o trecho citado ao débito de Joyce para com
Henry Fielding e Laurence Sterne, e nem a observação dos salons de Proust em relação à
literatura frívola dos salons do século XVIII parisiense. Fica claro que, entre os romancistas
modernos, havia muitos ávidos leitores dos textos surgidos no nascedouro do gênero, no
século XVIII – e que muitos deles conheciam, com extrema lucidez, as origens do gênero
romance e as potencialidades que tal forma portava desde seu nascimento.
Com efeito, a referência à análise feita por Auerbach da nova temporalidade do
romance do século XX só nos serve, aqui, como intróito a uma outra passagem do crítico
alemão, esta mais próxima de nosso estudo: sua leitura da prosa do século XVIII. No
capítulo 16 de Mimesis, “A ceia interrompida”, ele analisa o romance do Abbé Prévost,
Manon Lecaut, e trechos de Voltaire, de modo a apontar em que momento da mistura de
estilos se encontrava a prosa francesa das primeiras décadas daquele século. A certa altura,
ao tratar de Voltaire, ele aponta:
O que lhe é característico é, antes de mais nada, o tempo; a rápida e
precisa concentração do desenvolvimento, as rápidas mudanças das
imagens, a combinação surpreendentemente repentina de coisas que não é
habitual ver juntas: nisto é quase único e incomparável, e neste tempo está
grande parte da sua graça
322
.
Em relação ao autor de Candide, Auerbach tinha destacado, páginas antes, o que
chamara de “técnica do holofote”, ou seja, o modo como Voltaire ilumina apenas o que
quer iluminar, em um novo perspectivismo dir-se-ia ideológico pelo qual aponta, com
eficácia inédita, aspectos incongruentes e supostamente risíveis nos argumentos e nas
321
Ver acima, item 1.11 (Cpítulo 1).
322
AUEBACH, Erich, op. cit., p. 362.
130
convicções de seus inimigos. A estratégia voltaireana é conhecida, embora dificilmente
tenha sido iluminada com maior acuidade antes desse exame de Auerbach. Inimigos de
Voltaire havia desde os milenares, como os dogmas de todas as religiões, até os mais
elaborados, como a metafísica de Leibniz (como se sabe, Candide é um ataque paródico a
tal metafísica)
323
. No trecho que citamos, o crítico se centra ainda mais, e exclusivamente,
no tempo como característica inédita de Voltaire, mais ainda do que sua irônica “técnica do
holofote”.
O tempo, no caso, é o da rapidez com graça, ou seja, da agilidade textual que
transforma qualquer argumentação, tanto a sua quanto as de seus inimigos, em um jogo
gracioso de conversação, contrapondo antíteses simplificadas e superficiais para que o
leitor se decida, em um átimo de tempo, em poucas frases e períodos, sobre questões
bastante complexas de política, arte, religião etc. – e para que favoreça sempre o ironista
em detrimento do ironizado. Auerbach descreve tal postura como a de um precursor das
Lumières que, “no fundo, (...) um moralista”, tende a tudo julgar pela régua da razão prática
e sã (ou seja, do homem médio):
Isto está em relação com a inspiração ativa e valente que alentava o
Iluminismo: a sociedade humana deveria ser liberada de tudo o que se
opunha ao progresso racional; tais empecilhos eram, evidentemente, as
condições religiosas, políticas e econômicas, que se haviam formado
historicamente, irracionalmente, em contradição com o senso comum (...);
parecia necessário desacreditá-los, não entendê-los ou justificá-los.
324
Como se vê, pela análise lingüística cerrada, que une forma e conteúdo, o autor
conclui que a técnica de Voltaire de desacreditar o “irracional” só tem êxito por se aliar a
técnicas lingüísticas específicas: a do “holofote”, por um lado, e a leve e ágil
superficialidade, por outro. Ao contrário de Manon Lescaut, não há “calidez exagerada”,
pois é a graciosidade com ligeireza (nos dois sentidos da palavra, tanto rapidez quanto
frivolidade) que é encarecida por Voltaire. Ou seja, não há apelo ao sentimental, o que se
vê, por exemplo, na contradição moral flagrante no romance, em que o casal protagonista, o
chevalier des Grieux e Manon, não escapa de um duro julgamento ético por parte dos
leitores da época: ela é de baixa extração social e tem como vício maior, definidor de toda a
323
Idem, 359-362.
324
Idem, p. 367.
131
narrativa, o “prazer” que, logo fica claro, no caso significa “prazer sexual”; ele passa quase
toda a narrativa perseguindo-a, arriscando seu nome de família em golpes baixos e
criminosos e sujeitando-se a humilhações desonrosas. Mesmo assim, “...o Abade Prévost
quer fazer, de qualquer modo, das duas personagens dois heróis, que ‘na verdade’ são bons,
e que se diferenciam enormemente dos patifes comuns”
325
. Auerbach reconhece ser esse
sentimentalismo uma prática textual típica da comédie larmoyante, embora não indique que
o rótulo e o pequeno movimento teatral parisiense em prol do gênero recém-nascido só vem
a surgir quatro anos depois do lançamento do romance, já em 1735
326
.
Tal traço, e a ausência do socialmente problemático (“...o ambiente social é uma
moldura que é aceita como se apresenta”
327
), diferenciam o romance de Prévost dos textos
citados de Voltaire. Mas suas semelhanças são ainda mais importantes para nós – e elas não
estariam presentes se a escolha do crítico alemão tivesse recaído sobre um trecho não de
Voltaire, mas de um romance como Julie ou la Nouvelle Héloïse, de Rousseau (1761), ou,
antes dele, de Pamela. É que, embora (segundo as palavras de Auerbach) Manon Lescaut
mantenha-se no “estilo erótico-sentimental” e um romance como Candide, de Voltaire, no
“propagandístico”
328
, ambos os textos e, talvez, grande parte da produção em prosa das
cinco primeiras décadas do século XVIII, na França, seguem ª.. “A tendência da época
[que] não se dirige para o sublime, mas para o gracioso, elegante, espirituoso, sentimental,
racional e útil, tudo o que pertence ao nível médio”
329
.
Não é difícil perceber que o que Auerbach define como o tempo de Voltaire e que se
encontra, sim, no Manon Lescaut, de Prévost, embora sem o traço ideológico-polêmico
típico do autor de Zadig, é a ligeireza e a graciosa habilidade verbal que tem uma de suas
origens na conversação leve, frívola e diverstissante da sociedade aristocrática parisiense
do período. A análise de um bilhete de Voltaire a Madame Necker, no mesmo capítulo,
bilhete antes analisado por Leo Spitzer, demonstra cabalmente que escrita de ficção e
escrita (ou conversa) de salão mantêm ligações bastante estreitas nesse momento, nos
círculos em que o escritor transita, entre acadêmicos (elege-se historiador do rei em 1745),
325
Idem, p. 358.
326
Ver adiante, Capítulo 3.
327
Idem, p. 359.
328
No sentido de argumentar sobre questões ideológicas e doutrinárias da época, como o apoio ou não às
guerras e às religiões.
329
AUERBACH, Erich, op. cit., p. 367.
132
gente de teatro (sua carreira começa em 1718 e é bastante bem sucedida até sua morte, em
1778), cortesãos esclarecidos (na corte de Sceaux, da duquesa de Maine, e, mais tarde, no
salão de sua amante, Madame du Deffand) e novos philosophes (é o líder inegável do parti
des philosophes).
Obviamente, se estamos tentando perceber em que medida a minúcia narrativa do
banal, característica de um coloquialismo simultâneo aos acontecimentos da trama,
determina um novo estilo “médio” (segundo padrões clássicos), proposto por Richardson de
forma bastante agravada com Pamela, é inevitável percebermos algumas das mudanças na
temporalidade da narrativa, observadas no período. Nesse sentido, filho de uma geração
que viveu o período da Regência (1715-1723) e os primeiros anos sob Luís XV, Voltaire
foi formado em sociedade por essa frivolidade ágil e divertida, que pode atingir a alta ironia
e o cinismo cortesãos, um estilo que não só Prévost, mas Marivaux e muitos futuros autores
de textos libertinos, como Crébillon fils, transpuseram para a seara nascente do romance. A
título de exemplo rápido, seu Zadig ou la destinée – Histoire orientale, considerado o
primeiro “conto filosófico”, que seria re-trabalhado até ser publicado em 1747, nasceu do
desafio de compor um conto de entretenimento, em um típico jeu littéraire de salão. “A
Duquesa du Maine imaginara uma loteria assaz original com as vinte e quatro letras do
alfabeto. Quem tirava o C tinha que escrever uma comédia, quem tirava o O uma ópera, etc.
A sorte obrigou Voltaire a escrever romances. Nessa sociedade era igualmente punida
qualquer gafe. A punição consistia em escrever ‘um conto na hora’”
330
.
Leo Spitzer faz uma bela e precisa descrição do estilo que estamos tentando
circunscrever em sua análise, anterior à de Auerbach, do mesmo bilhete a Madame
Necker
331
.
330
MILLET, Sérgio. Introdução. In: VOLTAIRE. Contos. Editora Abril Cultural: São Paulo, 1972. p. 13.
331
O bilhete é o seguinte: “Ferney, 19 juin 1770./ A Madame Necker./ Quand les gens de mon village ont vu
Pigalle déplyer quelques instruments de son art: Tiens, tiens, disaient-ils, on va le disséquer; cela sera drôle.
C’est ainsi, madame, vous le savez, que tout spectacle amuse les hommes, on va également aux marionettes,
au feu de la Saint-Jean, à lOpéra-Comique, à la grand’messe, à un enterrement. Ma statue fera sourire
quelques philosophes, et renfrognera les sourcils éprouvés de quelque coquin d’hypocrite ou de quelque
polisson de folliculaire: vanité des vanités!/ Mais tout n’est pas vanité; ma tendre reconnaissance pour mes
amis et surtout pour vous, madame, n’est pas vanité./ Milles tendres obéissances à M. Necker.” Pigalle é o
escultor que vai à casa do escritor, em Ferney, para compor uma escultura que se tornaria famosa.
AUERBACH, Erich, op. cit., p. 368.
133
Voltaire ne s’émeut pas de ce que l’existence a d’illusoire, loin de lui
l’idée de faire de son gran teatro del mondo um tribunal universel ou une
baroque danse macabre, chez lui, tout reste “spectacle drôle”, rien de plus
– jeu rococó avec lê cadavre et la pourriture. A aucun moment, Voltaire
ne manifeste de l’émotion ou de la tristesse quant à sa propre
décrépitude.
332
O intuito de Spitzer é, entre outras coisas, definir em minúcia os elementos
constitutivos do incomparável estilo voltaireano que, para ele também, define um estilo de
época. O crítico acha por bem diferenciar dois elementos constitutivos importantes do
texto: as “luzes” (lumières), ou seja, a racionalidade, e o rococó. O primeiro elemento é
descrito como a aptidão de ir do particular ao geral com rapidez: é o que faz Voltaire ao
pular do mal-entendido ou da piada da dissecação para a idéia de que “...todo espetáculo
diverte os homens” e, daí, para o vanitas vanitatum das Escrituras. Perceba-se que será
Auerbach, quinze anos depois, quem analisará tal agilidade como uma nova temporalidade
da narrativa. Por ora, Spitzer descreve com argúcia como aproximando-se do presente
vivido (de um realismo baixo ou médio), Voltaire consegue manter a elevação herdada do
classicismo que ele, Voltaire, como se sabe, praticou no teatro:
Voltaire nous a conduits jusqu’au bord de l’abîme qui separe l’homme de
l’homme, mais nous em arrache très vite par la rapidité, l’élégance, la
souplesse de son language – autremen dit, le billet joue à dissimuler les
abîmes qu’on ne peut plus que pressentir derrière l’aisance mondaine.
Quelle superiorité chez un esprit de se sentir soudain à une distance
glaciale des hommes et de les fréquenter encore – quel tour de force, de
commander as statue en connaisant la vanité d’une telle entreprise, de
glisser dês sous-entendus dans cette missive personelle, et d’avoir encore
le courage de réussir élégamment à la rendre “superficielle”, légère: c’est
couvrir d’un masque mondain les abîmes que séparent les hommes.
333
Levando-se em conta que se trata de um bilhete que não fora escrito para
publicação, percebe-se até que ponto a elevação do estilo impregnava mesmo a linguagem
corrente da nobreza no Antigo Regime – e é exatamente isso que fascina Auerbach e
Spitzer, que se vêem diante de uma espécie de flagrante da escrita e da fala em que o
classicismo se alterna ao coloquialismo. Se lembramos de nossa panorâmica da tradição de
332
SPITZER, Leo. Quelques interpretations de Voltaire. In: Études de style. Paris: Gallimard, 1970. p. 363.
O texto é de uma conferência ministrada por Spitzer em 1931.
333
Idem, p. 364.
134
escrita de cartas ainda no século XVII francês, com Madame de Sévigné, Guez de Balzac e
Voiture (item 1.8, acima), podemos afirmar que a oscilação entre o alto e o baixo, o elevado
e o coloquial era o que mais atraía escritores e leitores daquele momento, e século XVIII a
dentro. Na verdade, tal mistura definia, também, a conversação em société. Ou seja, em
uma análise estritamente formal da linguagem da aristocracia da época, pode-se dizer que,
se é compreensível certo prazer extraído da fala que unia o elevado ao mais leve e frívolo
(nunca o “baixo”, mas pelo menos o “médio”, como descreve Auerbach), é mais curioso
pensar no crescente fascínio de tais cabeças educadas no classicismo pela escrita que
incorporava o coloquial. Tal constatação indica, simplesmente, que a tendência a um novo
realismo, integrador da experiência imediata banal, cotidiana, se impunha mesmo ao mais
distanciado dos etos artísticos: o do neoclassicismo francês do Grand Siècle
334
.
Destacamos as análises feitas por dois mestres da crítica diante de um bilhete de
cerca de dez linhas por crermos que elas iluminam as operações formais de um escritor que
representa uma transição, a nosso ver, crucial. Na passagem citada, Spitzer acha por bem
destacar, mais de uma vez, a total ausência de emoção de Voltaire diante de sua própria
decrepitude e morte. Como veremos no próximo item, o que Spitzer tenta definir como o
“bilhete rococó voltaireano”, que poderia muito bem ganhar o nome de “bilhete frívolo
anti-sentimental”, é uma transposição de conceitos vindos da história da arte: barroco
versus rococó: não há mais lugar para os “abismos” e angústias metafísicas da alma, mas
também não se pode transpô-los para o plano de um coração laico. No bilhete, como
mostrará Spitzer, Voltaire como que vivencia a transição francesa do século XVIII inteiro:
não é mais apenas clássico (distanciado), mas ainda não é o racionalista que deseja tudo
iluminar de uma cena, embora se encaminhe para tal etos. O sentimental, excluído do
bilhete, surge como contraponto médio ao clássico distanciado e ao baixo racionalizado – o
novo materialismo das Lumières.
Retornando a nosso eixo de análise, se entre as inovações formais condensadas no
primeiro romance de Richardson está um coloquialismo feminino e sentimental (lembremos
que Pamela é filha de um burguês letrado empobrecido, e não de camponeses), é óbvio o
alinhamento do romance à tendência reconhecida por Auerbach em Manon Lescaut. É por
334
Sobre distanciamento e cultura classicista francesa do Antigo Regime, cf.: PAVEL, Thomas. L’art de
l’éloignement. Paris: Gallimard, 1996.
135
isso que o trecho que se segue combina tanto com uma descrição do que se passa em
Pamela: “O prazer que o autor tenta despertar no leitor pela representação da corrupção
infantilmente lúdica e inconstante dos seus amantes é, no fundo, um estímulo sexual, que é
interpretado constantemente de forma sentimental-moral, cuja calidez é exagerada para a
produção de um moralismo sentimental”
335
. No caso de Pamela (e aqui retomamos o tema
da ambigüidade constitutiva do romance) seria preciso apenas substituir o trecho:
“...representação da corrupção infantilmente lúdica e inconstante dos seus amantes...” por
algo como: “...representação das investidas prepotentes de Mr. B. e da resistência virtuosa,
sempre à beira da dubiedade, de Pamela...”. O resto da frase, no entanto, poderia ser
mantida.
Em suma, Auerbach descreveu um processo de transformação do erótico em
sentimental mediante um pacto de leitura talvez pouco compreensível para o leitor de hoje,
depois que as culturais ocidentais viveram uma imensa ampliação do campo do permitido
no que toca à codificação social do desejo e do sexo. Por tal pacto, o autor simula que
oferece tão somente uma narrativa sentimental (ou seja, que trata de uma suposta “verdade
do coração” dos protagonistas), mas, na verdade, retrata uma tensão erótica constante.
No caso, o nível sexual não estaria recalcado nem reprimido, mas metaforizado: é
substituído, sucessivamente, por violência, opressão, fantasia persecutória (o “assédio
sexual”, hoje juridicamente codificado), imposição classista, resistência da e na virtude
(entendida como virgindade e/ou como elevação moral) etc. A voz de Pamela, a narradora-
missivista ou a autora de diário, reorganiza os fatos narrados com o filtro do sentimento. O
feminino, no caso, ganha uma imagem que será cara a nossa cultura, dali em diante: a da
mulher alquimista, que transforma qualquer coisa – e em especial o erotismo – em amor. O
leitor-pactário, por sua parte, torna-se aprendiz de feiticeiro para poder conviver com um
sentido que, a cada momento, se bifurca. Finge acompanhar a narradora e ver sentimento
em tudo, mas sabe muito bem – e extrai prazer disso – que a tensão erótica subjaz a cada
cena. Por outro lado, o sentimental (mediano) doma o erótico (baixo), assim como o fazia a
paixão (elevada) em Racine, como o próprio Auerbach indicara em outro estudo: é uma
forma moralmente aceitável de aceder a tal região insondável do desejo sexual, que mistura
o “baixo” (corporal) com o “elevado” (supra-racional).
335
AUERBACH, Erich, op. cit., p. 358.
136
1.19. Um “filósofo rococó”: superficialidade, universalismo e sedução em Voltaire
Contrastemos a visão de Auerbach com a de Leo Spitzer, que também reconhece no
texto de Voltaire elementos em franca transformação no momento em que Pamela é
publicado. Spitzer nomeia de “rococó” a marca francamente superficial, agradável sem
problematização, dos textos de Voltaire, principalmente as linhas a Mme Necker. É termo
emprestado das artes plásticas e, como se sabe, não existia na época dos artífices do que
hoje se considera rococó, como Watteau (1684-1721), Boucher (1703-1770) ou Fragonard
(1732-1806). Surge na Alemanha em meados do século XIX e, a princípio, tem sentido
pejorativo: seria uma degradação do barroco religioso do século XVII espanhol em uma
nova superficialidade de corte – julgada como de menor valor artístico. Tal sentido é
revertido no século XX, embora ainda guarde algo da origem: valoriza-se o rococó como
uma espécie de estilo aristocrático de transição, ou de uma fase contraditória ou decadente,
entre o classicismo seiscentista (aristocrático) e o neoclassicismo pós-revolucionário
(republicano) franceses. Porém, um aspecto do que Spitzer destaca parece crucial na
tentativa de descrever a nova temporalidade narrativa proposta por Richardson. Ele escreve:
Un tel billet, que la destinataire glissait dans son corsage, devait continuer
à agir sur sa tête et sur son cœur: cette aptitude à partir des plus petites
choses de la vie pour aborder les plus grands problèmes de l’humanité, à
toucher le cœur de la vie à partir des “questions de boutique”, à faire tenir
les contenus les plus grands dans les formes les plus petites, à éclairer
largement les plus petites circonstances, cette pénétration profonde des
circonstances fortuites sur le mode de l’improvisation, reste la conquête
unique du XVIIIè siècle français.
336
A nosso ver, a passagem possui inescapável otimismo diante da racionalidade das
Lumières. Com efeito, apesar mesmo de seu início francamente erótico, em que o decote de
Madame Necker serve de receptáculo a um texto que agirá em sua racionalidade (“tête”) e
em sua emoção (“cœur”), a análise valoriza o talento de Voltaire em partir de pequenos
336
SPITZER, Leo, op. cit., p. 362.
137
detalhes ou “questiúnculas” na medida em que chegará aos “...plus grands problèmes de
l’humanité...” e ao “...cœur de la vie...”. Ou seja, Spitzer não valoriza criticamente o estilo
do bilhete de Voltaire apenas e tão somente por sua graciosidade sedutora, esquecendo-se,
por instantes, de sua postura de “philosophe”, sempre pronto a abordar os temas mais
amplos da humanidade. Se levada em conta, essa dimensão sedutora do bilhete voltaireano
tornaria menos importante sua reflexão pseudofilosófica incrustada em dez linhas de afeto e
faria ressaltar o puro e simples desejo mundano (mascarado em graciosidade
pseudofranciscana) de informar sobre sua estátua prestes a ser erigida e de manter a relação
afetuosa com Madame Necker
337
.
Há uma rica contradição no texto de Spitzer que pode nos esclarecer sobre esse
ponto. Ele defende, ao mesmo tempo, duas idéias díspares: a primeira, de que no bilhete
Voltaire usa a superficialidade rococó para cruzar um abismo, ou seja, para mascarar
profundezas: “...car Voltaire a reconnu le ‘pot aux roses’, la pourriture derrière toute
communauté humaine, et as virtuosité a jeté um pont par-dessus les abîmes de la solitude
dans le monde”. A segunda, de que por trás das máscaras na verdade não há nada, ou há o
vazio onde Voltaire desaparece:
Nous ne voyons pas bien ce qui dans la dernière phrase est mondanité et
ce qui est épanchement, et nous sommes congédiés avec le sentiment
qu’ici l’éternel solitaire se dissimule derrière la mondanité: ce n’est pas
qu’il oppose aux apparences du monde son être profond, mais il disparaît
derrière les masques complexes de as personnalité. (...) Dans ce lettre,
Voltaire se donne et se reprend, se dépeint et se cache en même temps.
338
Diante da frivolidade mundana é raríssimo se ver uma postura que não seja
condenatória. A razão nos parece simples: em termos artísticos, movimentos como o rococó
337
De maneira nenhuma propomos, aqui, uma redução ou anulação da riqueza das leituras de Spitzer e de
Auerbach. Queremos, apenas, chamar a atenção para o aspecto especificamente mundano do bilhete, o que
leva, inevitavelmente, a uma leitura que incorpore da forma a menos ingênua possível o que o próprio Spitzer
chama de “...toucher le cœur de la vie à partir des ‘questions de boutique’...”.
338
Ambas as passagens, traduzidas por mim, estão em SPITZER, Leo, op. cit., p. 365. “...car Voltaire a
reconnu le ‘pot aux roses’, la pourriture derrière toute communauté humaine, et sa virtuosité a jeté un pont
par-dessus les abîmes de la solitude dans le monde”; “Nous ne voyons pas bien ce qui dans la dernière phrase
est mondanité et ce qui est épanchement, et nous sommes congédiés avec le sentiment qu’ici l’éternel solitaire
se dissimule derrière la mondanité: ce n’est pas qu’il oppose aux apparences du monde son être profond, mais
il disparaît derrière les masques complexes de sa personnalité. (...) Dans cette lettre, Voltaire se donne et se
reprend, se dépeint et se cache en même temps.”
138
ou uma narrativa que exime leitores e comentadores de certa complexidade – que só quer
distraí-lo, como ocorre hoje, por exemplo, com a literatura comercial de sucesso, ou seja, o
chamado best-seller – estaria comprometida. Esse seria um incômodo dir-se-ia formal. Mas
há ainda o incômodo filosófico, por assim dizer, que parece ser o expresso, brilhantemente,
por Spitzer: tratar assuntos abissais, como a morte, com frívolas piruetas estilísticas não
parece correto. O mais curioso, no entanto, é que o próprio Spitzer, em texto de mais de 20
anos depois, no final dos anos 1950
339
, trilhará um caminho a nosso ver mais percuciente,
ao tratar de La Vie de Marianne, o romance de Marivaux que começa a ser lançado em
1731. Sem por ora adiantar o que trataremos especificamente à frente
340
, destaquemos que,
já no texto dos anos 1930 as conclusões de Spitzer apontam para a descrição de um
dificilmente concebível mundanismo sem fundo, ou seja, um cinismo cuja intenção não se
sintoniza nem com o projeto iluminista, nem com o humanista, mas que, tudo indica, era
comum nos salons e cortes parisienses, de forma mais acentuada a partir da Regência
(1715-1723). A morte de um rei que em seus últimos anos influenciara toda a aristocracia
com uma devoção exacerbada e um tanto sufocante, aliada ao governo de Phillipe
d’Orleans, dito “Phillipe Egalité”, com claras tendências libertinas, sem falar nas crises
econômica (fracasso do Sistema de Law) e política (as últimas guerras sob Luís XIV
tinham sido frustrantes), são elementos já apontados como deflagradores de um momento
de inédita distensão política, social e mesmo comportamental
341
.
A caracterização feita por Spitzer de um Voltaire filósofo da Ilustração, um
racionalista que, em um pequeno bilhete, ergue pontes graciosas sobre questões abissais ou,
em outras palavras (como fica claro no fim do texto), um humanista que usa a leveza para
dissipar o trágico da vida, nos ajuda a descrever um ponto importante em nossa perspectiva.
Se Auerbach batiza de “técnica holofote” aquela usada por Voltaire para iluminar apenas os
aspectos de uma cena ou um fato narrado que corroborem sua tese e ridicularize as demais,
339
O texto “A propos de ‘La Vie de Marianne’ (Lettre à M. Georges Poulet)” foi publicado em SPITZER,
Leo. Romanische Literaturstudien. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1959. Já “Quelques interprétations de
Voltaire” data de 1931 (SPITZER, Leo. Romanische Stil- und Literaturstudien. In: Kölner Romanistische
Arbeiten. Marburg: N.G. Elwert’sche Verlagsbuchhandlung, 1931).
340
Tratamos exatamente dessa análise, e da importância de reconhecer-se uma prosa coquete em Marivaux,
no Capítulo 4, itens 4.6, 4.7 e 4.8.
341
Cf.: SGARD, Jean. Prévost romancier. Paris : José Corti, 1968.
139
arriscaríamos nomear a técnica utilizada por Voltaire, com o auxílio da leveza própria da
prosa ou mesmo da conversa divertissante de salão, como “técnica da compressão”, ou “da
condensação”. Seria uma condensação radical, em que o “grande” se comprime até caber,
graciosamente, no “pequeno”: “...cette aptitude à partir des plus petites choses de la vie
pour aborder les plus grands problèmes de l’humanité, à toucher le cœur de la vie à partir
des ‘questions de boutique’...”. Por essa técnica estilística, só se tem acesso ao “grande” (às
grandes idéias, aos universalismos, às questões políticas, filosóficas etc.) por meio do
“pequeno” (os detalhes aparentemente insignificantes). Não se estaria diante de uma técnica
com potencial para reverter o classicismo hegemônico? Sem dúvida, ainda mais levando
em conta o já citado diagnóstico de Auerbach: “A tendência da época não se dirige para o
sublime, mas para o gracioso, elegante, espirituoso, sentimental, racional e útil...”, já que
“...o enaltecimento trágico do herói clássico desaparece desde o começo do século
XVIII”
342
.
No entanto, para além desse novo gosto setecentista pelo superficial, seja ele
sentimental ou racionalmente justificado (o caso da “técnica do holofote”, forma de ironia
lógica de Voltaire), cremos que Spitzer precisa a técnica ao retratar-lhe propriamente como
uma condensação, uma compressão: não é que o escritor do século XVIII goste apenas dos
temas pequenos ou medianos, é que ele parece ter adquirido a capacidade ou a
sensibilidade para perceber no “pequeno” indícios condensados do “grande”, deixando de
lado, portanto, a partir daí, a hierarquização clássica segundo a qual o “pequeno” (o
“baixo”) não é digno de ser retratado. Do lado racional, teríamos o “holofote”
ridicularizador de Voltaire; mas, do lado sentimental, teríamos algo como Pamela. Tratar-
se-ia da condensação do instante vivido intensamente, das banalidades narradas, tanto das
banalidades íntimas (sentimentais), quanto das externas (a representação do cotidiano
concreto). Em vez da ligeira frivolidade (mundanismo) ou da racionalidade irônica e
excludente (iluminismo), tais fatos corriqueiros agora seriam banhados pela luz do
sentimento exacerbado: o de perseguição, da opressão sentida no aqui-e-agora, da ameaça à
dignidade social e sexual, sempre no contingente, a partir de pequenos atos, proibições,
342
AUERBACH, Erich, op. cit., p. 367.
140
ditos das governantas, brigas dúbias com o patrão, bilhetes, pequenas tarefas domésticas
inacabadas etc. – em suma, o quadro que se lê em Pamela.
1.20. O mundanismo segundo Voltaire
Ce temps profane est tout fait pour mes moeurs./ J’aime le luxe, et même
la mollesse,/ Tous les plaisirs, les arts de toute espèce,/ La propreté, le
goût, les ornements:/ Tout honnête homme a de tels sentiments. (...) O le
bon temps que ce siècle de fer!/ Le superflu, chose très nécessaire,/ A
réuni l’un et l’autre hémisphère.
Esses versos são de Le mondain, de 1736
343
, que valeu a Voltaire um exílio forçado
na Holanda. O poema foi divulgado a sua revelia, fora do círculo de suas amizades mais
estreitas, com a previsível reação de instâncias da Igreja. Suas estrofes definem o tipo do
“mundano” para uma audiência que aplaudia uma vida frívola e prazerosa nos salons
aristocráticos. Elas se inserem em um importante momento de transição no Ancien Régime,
momento de ascensão dir-se-ia irresistível do racionalismo, do deísmo e até do ateísmo no
seio de uma sociedade católica em que jesuítas e jansenistas demonstravam fraturas na
própria estrutura da Igreja. Le Mondain e sua seqüência, Défense du mondain, são
exemplos bastante sintomáticos do estado da discussão no momento em que surgiram – o
segundo, em 1737. Trata-se de perceber como o debate, mais ou menos sub-reptício ao
campo intelectual e artístico e egresso do século anterior, pôde ser apropriado por Voltaire
e transformado em matéria de textos aparentemente inofensivos. Escrito por um jovem
autor com fortes relações de amizade e de apoio mútuo no mundanismo dos salões, e cuja
filosofia racionalista e atéia se valerá de tais ligações para se impor no panorama
intelectual, o poema é uma peça em prol da aceitação do luxo como traço cultural positivo.
343
VOLTAIRE. Le mondain. In: Mélanges. Gallimard: Paris, 1977. p. 302. Também disponível em:
<
http://www.voltaire-integral.com/Html/10/23_Mondain.html>. Acesso em: 22 out. 2005.
141
Seu aspecto abertamente “moderno”, aproveitando ecos tardios (mas ainda bastante
presentes no panorama francês da época) da famosa querela entre antigos e modernos
344
,
fica claro em sua estratégia de retratar mitos e personagens greco-romanos e bíblicos, bem
como os próprios tempos antigos de modo geral, com um afiado realismo irônico, já a partir
dos primeiros versos:
Regrettera qui veut le bon vieux temps,/ Et l’âge d’or, et le règne
d’Astrée,/ Et les beaux jours de Saturne et de Rhée,/ Et le jardin de nos
premiers parents;/ Moi, je rends grâce à la nature sage/ Qui, pour mon
bien, m’a fait naître en cet âge/ Tant décrié par nos tristes frondeurs:/ Ce
temps profane est tout fait pour mes moeurs.
345
Adão e Eva teriam... “Les ongles longs, un peu noirs et crasseux,/ La chevelure un
peu mal ordonnée,/ Le teint bruni, la peau bise et tannée”. “...un bon vin frais ou la mousse
ou la sève/ Ne gratta point le triste gosier d’Ève;/ La soie et l’or ne brillaient point chez
eux,/ Admirez-vous pour cela nos aïeux?” O “tempo profano”, moderno, da “idade de
ferro” de que fala o poema é o do mecenato das artes, que envolve a vida do honnête
homme em um eterno e benfazejo luxo, ainda por cima, necessário : “Le superflu, chose
très nécessaire...”.
A divulgação de Le mondain lhe vale um escândalo seguido de perseguição, e
Voltaire foge para a Holanda. A partir do título, o texto o situa no partido de onde seu autor
de fato provinha: a carta de Voltaire a Cideville, com o poema em anexo, com a
recomendação de ser distribuído apenas a amigos, deixa clara a aproximação entre a vida
ociosa e incrédula dos mundanos desde a Regência e os mais altos ventos científicos
colhidos na Inglaterra. “Newton est ici le dieu au quel je me sacrifie, mais j’ai des chapelles
pour d’autres divinités subalternes: voilà le Mondain
346
. O conde de Bussy morre de
repente e seus papéis caem em mãos erradas: um desafeto de Voltaire
347
faz 300 cópias do
poema, causando furor em Paris. O motivo específico da perseguição é obscuro, podendo
ser ou o retrato nada pio de Adão e Eva, ou o elogio a Colbert que, segundo o próprio
Voltaire, teria desagradado ao cardeal Fleury. Louvar Colbert era uma espécie de tabu na
344
Como se vê, “moderno”, no caso, é termo extraído especificamente daquela famosa querela. Cf.: DeJEAN,
Joan. Antigos contra modernos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.
345
VOLTAIRE, op. cit., p. 303.
346
Idem, ibidem.
347
Provavelmente o presidente Dupuy.
142
França de então: o homem das finanças de Luís XIV, que aumentara os impostos para que o
Palácio de Versailles fosse construído e ainda favorecera as novas manufaturas, acabou
levando a fama por uma crise econômica que se deveu muito mais ao ímpeto guerreiro do
rei. Fleury teria tomado os versos que se seguem como ironia contra ele: “Oh que Colbert
était un esprit sage!/ (...) le ministre, utile avec éclat,/ Sut par le luxe enrichir notre État./ De
tous nos arts il agrandit la source;/ Et du midi, du levant, et de l’Ourse,/ Nos fiers voisins,
de nos progrès jaloux,/ Payaient l’esprit qu’ils admiraient en nous”
348
. É claro que, fosse
pela quebra do tabu político, fosse como ironia direcionada a um dos grandes da Corte, a
passagem só faz aumentar a ousadia que atravessa todo o poema.
Qualquer que tenha sido o motivo da divulgação e do escândalo, o resultado é o
exílio na noite de 23 de dezembro de 1736: vai para a Holanda passando por Givet
(França). Fica por lá dois meses, com a identidade falsa de Révol, negociante, e volta para
sua casa, em Cirey, em fevereiro do ano seguinte. É na Holanda que escreve a continuação
Défense du mondain ou Apologie du luxe, um contra-ataque na polêmica. Nesse poema
acham-se versos que tocam mais especificamente no ponto de que tratávamos, a tensão
entre o mundano, visto não só como deísta ou ateu, mas como amante do luxo e da
frivolidade, e as autoridades eclesiásticas.
349
O novo poema é um diálogo do autor com um devoto, à mesa, diante de suntuoso
banquete. O crente é logo tachado de hipócrita por conta de seu gosto por vinho e café,
servidos à larga. Até que o narrador-alter-ego exclama: “O faux dévot, véritable mondain,/
Connaissez-vous; et, dans votre prochain/ Ne blâmez plus ce que votre indolence/ Soufrre
chez vous avec tant d’indulgence./ Sachez surtout que le luxe enrichit/ Un grand État, s’il
en perd un petit./ Cette splendeur, cette pompe mondaine,/ D’un règne heureux est la
marque certaine”
350
. Como se vê, e como já ficara sugerido sarcasticamente no elogio a
Colbert, a “reconversão” forçada à qual Voltaire induz o devoto – visto agora como um
mundano inescapável, já que sua época é toda mundana – termina em um louvor ao
348
VOLTAIRE, op. cit., p. 303. A Ursa (“Ourse”), em astrologia, indica o norte.
349
Na versão de Voltaire, obviamente interessada, teria sido o abbé Desfontaines, seu rival mais persistente,
quem teria mostrado os versos a um tal padre Couturier, que mantinha relações com o poderoso cardeal
Fleury; o motivo: inveja do sucesso da tragédia Alzire. VOLTAIRE. Œuvres. Paris, Gallimard, 1970, p. 1445.
350
“O faux dévot, véritable mondain,/ Connaissez-vous; et, dans votre prochain/ Ne blâmez plus ce que votre
indolence/ Soufrre chez vous avec tant d’indulgence./ Sachez surtout que le luxe enrichit/ Un grand État, s’il
en perd un petit./ Cette splendeur, cette pompe mondaine,/ D’un règne heureux est la marque certaine.”
VOLTAIRE. Mélanges, op. cit., p. 305.
143
coletivo, ao Estado francês, que só tem a ganhar em proeminência internacional com o
brilho do luxo. Vale a pena citar alguns versos que traduzem bem o entusiasmo mundano
ligado a certa tradição do cortesão, que procura viver envolto em obras-de-arte até o ponto
da vertigem dos sentidos:
Il faut se rendre à ce palais magique/ Où les beaux vers, la danse, la
musique,/ L’art de tromper les yeux par les couleurs,/ L’art plus heureux
de séduire les coeurs,/ De cent plaisirs font un plaisir unique./ Il va siffler
quelque opéra nouveau
351
,/ Ou, malgré lui, court admirer Rameau./ Allons
souper. Que ces brillants services,/ Que ces ragoûts ont pour moi de
délices!/ Qu’un cuisinier est un mortel divin!/ Chloris, Églé
352
, me versent
de leur main/ D’un vin d’Aï dont la mousse pressée,/ De la bouteille avec
force élancée,/ Comme un éclair fait voler le bouchon;/ Il part, on rit; il
frappe le plafond./ De ce vin frais l’écume pétillante/ De nos Français est
l’image brillante.
353
Os artifícios que circundam o gentilhomme, que enganam seus olhos, confundem-se
com as borbulhas do vinho espumante, e tudo se funde na imagem final do próprio francês,
indivíduo destacado por conta de seu brilho. O materialismo só parece ser suportável, e só
vale à pena, para o mundano de Voltaire, com o embriagar-se coletivo, uma espécie de
opção cívica pelo luxo. Nesse cenário, a resistência devota é um atraso, se não for pura
hipocrisia. Extrai-se das duas badinages (brincadeiras, gracejos), como as chama o próprio
Voltaire, uma defesa do mundanismo inevitável e sem volta. Le mondain termina com uma
frase lapidar, “Le paradis est où je suis”. Défense du mondain traz o interlocutor beato
rindo e bebendo muito, e todos no banquete concordando alegremente com as teses
definidas pelo próprio autor como honnêtes. O mundano era a encarnação frívola do
personagem-tipo do honnête homme, tão importante na formação da imagem do próprio
francês, já no século XVII
354
.
Cerca de cinqüenta anos depois dos dois poemas mundanos, a leitura do
Avertissement daquela que ficou conhecida como “Edição Kehl” das Œuvres complètes de
Voltaire, a cargo de Beaumarchais, Condorcet, do editor Pancoucke e outros, de 1785 a
351
Era comum que a platéia assobiasse (em vez das palmas modernas) para expressar seu agrado ou
desagrado diante de um espetáculo.
352
Mitos gregos. Damis larga Eglê para ficar com Clóris.
353
Voltaire, idem, p. 305.
354
Cf.: AUERBACH, Erich. La Cour et le ville, op. cit.; e BURY, Emmanuel. Literature et politesse.
L’invention de l’honnête homme (1580-1750). Paris: PUF, 1996.
144
1789, serve para esclarecer, por contraste, certos aspectos do contexto de 1736-37. Nos
anos imediatamente anteriores à Revolução, os autores do Avertissement se apropriam de
forma estratégica dos versos, a partir de uma polêmica que incluía toda a frivolidade que o
grupo auto-intitulado “mundano” exercitava, meio século antes: “Toute prédication contre
le luxe n’est qu’une insolence ridicule dans un pays où les chefs de la religion appellent
leur maison un palais, et mènent dans l’opulence une vie molle et voluptueuse”
355
. Os
“descendentes intelectuais de Voltaire” já podiam escrever suas idéias de forma direta e,
por assim dizer, mais programática.
A argumentação contra a censura dos filósofos é admitidamente mais elaborada.
Numa edição que serviu para erigir-se o mito de um Voltaire sem máculas, apesar de suas
intensas polêmicas e de seus enérgicos inimigos –, o autor do Avertissement defende a
sofisticada tese da opulência servindo para mitigar a desigualdade social, por meio de
fantaisies, ou seja, de algo bem próximo do embriagar-se de que falava Voltaire no poema:
“Si l’on suppose une grande inégalité établie, le luxe n’est point un mal en effet, le luxe
diminue en grande partie les effets de cette inégalité, en faisant vivre le pauvre aux dépens
des fantaisies du riche”
356
. Tal ocorreria exatamente por conta da ostentação, já que o luxo
é a riqueza ostentada, muito mais saudável, segundo o autor de tal prólogo (Beaumarchais?
Condorcet?), do que a não ostentada: “Une grande inégalité de fortune, dans un pays où les
délices sont inconnues, produit des complots, des troubles, et tous les crimes si fréquents
dans les siècles de barbarie”
357
.
O argumento de leitores célebres que se apropriavam tardiamente de Le mondain e
de Défense du mondain tem a clara vantagem de, com um golpe só, defender os poemas
prestes a serem lidos e embutir idéias igualitárias, como as que se depreende de Le mariage
de Figaro. É o que se vê na seqüência: “Il n’est donc qu’un moyen sûr d’attaquer le luxe;
c’est de détruire l’inégalité des fortunes par les lois sages qui l’auraient empêché de nuire.
Alors le luxe diminuera sans que l’industrie y perde rien; les moeurs seront moins
corrompues; les âmes pourront être fortes sans être féroces”
358
. E ele conclui, voltando-se
355
VOLTAIRE. Mélanges, op. cit., p. 306.
356
Idem, ibidem.
357
Idem, ibidem.
358
Idem, p. 307.
145
nominalmente para seu interlocutor: “Les philosophes qui ont regardé le luxe comme la
source des maux de l’humanité ont donc pris l’effet pour la cause...”.
Como Voltaire, o autor do Avertissement de 1785-89 relaciona os artigos de luxo à
indústria, tanto a manufatura (a protofábrica), quanto aos empreendimentos comerciais de
busca, transporte e venda de produtos cobiçados, vindos de outros continentes. Mas a
diferença entre as duas épocas, distantes em cinqüenta anos, fica clara quando se avança no
prólogo, na censura que os próprios defensores de Voltaire lhe fazem. Nessa divergência, a
questão do Estado volta a ser fundamental:
et ceux qui ont fait l’apologie du luxe, en le regardant comme la source de
la richesse réelle d’un État, ont pris pour un bon régime de santé un
remède qui ne fait que diminuer les ravages d’une maladie funeste. C’est
ici toute l’erreur qu’on peut reprocher à M. de Voltaire; erreur qu’il
partageait avec les hommes les plus éclairés sur la politique qu’il y eût en
France, quand il composa cette satire.
359
O caso de Le mondain deixa entrever que nos anos 1736-37, de acordo com a
postura típica do Ancien Régime, um autor como Voltaire ainda não via o potencial de
tensão que permeava o âmbito do luxo, de um lado, e o da indústria e do comércio, do
outro, o primeiro, pertencente ao imaginário e à estratégia social de distinção da
aristocracia, e o segundo, entregue a classes consideradas subalternas. O luxo mundano
servia tanto para atacar a presunção espiritualista dos devotos quanto para instituir a vitória
do libertino, do méchant, entregue à embriaguez dos sentidos. Não se tocava nas tensões e
contradições inerentes à condição de possibilidade concreta do fausto – a indústria e o
comércio. Tal questão ficava relegada à constatação do conforto e do prestígio da posição
de mecenas; afinal, sempre haveria artistas menos abastados a circundar as classes
mundanas, com seus talentos e seu fascínio pela riqueza ostentada. Nos anos 1785-89, para
gente como Beaumarchais e Condorcet, a doença real era a desigualdade, e o luxo era
apenas sintoma. Se mantê-lo e louvá-lo não era condenável, em si (e até ajudava a mitigar
certa tensão social), o era por conta da desigualdade real de fundo, que condenava o Estado
mais cabalmente do que a fantasia representada pela cultuar de ostentação da riqueza; a
359
Idem, ibidem.
146
desigualdade concreta é que tinha de ser combatida, não sua simulação. O mundano e
frívolo criado por Voltaire é simpático por sua fantasia; os que os sustentam, ou seja, seus
mecenas, são, pela primeira vez, detestáveis.
1.21. Le méchant: o mundano se torna réu
Se o mundanismo não encontrara nos versos de Voltaire de 1736-37 uma
oportunidade de defesa de seu etos capaz de evitar o escândalo, ele teria de esperar até 1747
para ver surgir uma condenação cabal em forma de comédia, e que obtivesse o sucesso
entre o próprio público mundano. É bem provável que o aparecimento de Le méchant, a
peça em questão, tenha sido uma conseqüência de alguns anos de disputa sub-reptícia entre
visões de mundo (etos) em constante tensão. O fato de ter sido escrita por um ex-jesuíta
expulso da Companhia de Jesus, que depois da peça abandonará o monde parisiense, só faz
enriquecer o exame de tal disputa – que parece ter atravessado a própria vida de Jean
Baptiste Louis Gresset (1709-1777).
Tendo ingressado na Companhia aos 16 anos, Gresset logo será enviado a várias
províncias francesas como professor de talento. Desponta precocemente no mundo das
letras e no grand monde, com o divertido poema Vert-Vert, de 1734, no qual um papagaio,
muito querido por ser pio e devoto, é enviado de um convento a outro para alegrar novas
donas. No caminho, por conta de más companhias, muda da linguagem beata para uma
prosa blasfema, escandalizando as freiras da nova casa. É devolvido em desgraça, punido
com a solidão e pão dormido, arrepende-se, converte-se e acaba sendo morto por piedade.
A trama, no caso, pouco importa; o sucesso surge por conta da graciosidade com que são
retratadas as intrigas e confusões conventuais. O poema causa escândalo e as freiras da
Ordem da Visitação pressionam por uma punição. Gresset, que estava estudando teologia
em Paris, é enviado à cidade de La Flèche e sua chegada coincide com novo escândalo
literário: surge outro poema seu, satírico e impertinente, La chartreuse, onde o jovem
critica o Parlamento. A reincidência irrita os jesuítas, que recorrem ao poderoso cardeal
147
Fleury; Gresset acaba sendo desligado discretamente da instituição, o que o agrada, pois
pode se manter em bons termos com a Companhia.
Com uma sinecura em Paris e assiduidade no salon da duquesa de Chaulnes, de
quem – como o precoce Meilcour dos Égarements du cœur et de l’esprit, de Crébillon – ele
foi provavelmente amante, Gresset vê sua fama de versejador chegar a Frederico II, da
Prússia, causando ciúmes a Voltaire. Antes disso, já havia despertado a curiosidade e o
anticatolicismo do autor de Candide, que escrevera ao amigo Cideville, a 19 de janeiro de
1736: “Mme du Chêtelet est de votre sentiment sur La Chartreuse. Je n’ai point lu l’adieu
aux révérends pères mais je suis fort aise qu’il les ait quittés. Un poète de plus, et un jésuite
de moins, c’est un grand bien dans le monde”
360
. Gresset escrevera o poema em sua
mansarda no colégio jesuíta Louis-Le-Grand, onde o próprio Voltaire estudara. Não admira
que um fosse leitor do outro.
Gresset estréia no teatro em 1740, com uma tragédia, Édouard III, tenta um drama
em 1745, Sidney, e, finalmente, dois anos depois, escreve Le méchant, que é encenada na
Comédie Française a 15 de abril. O sucesso é impressionante: 24 apresentações, para 18 mil
espectadores
361
. Trata-se de mais uma “comédia séria”, na classificação posterior de
Diderot (1757), uma “comédia enternecedora”, na de Voltaire, por volta de 1738, ou
“comédia lacrimosa”, na de Fagan (e Desfontaines), ainda em 1736. Qualquer que fosse o
nome do novo gênero, a verdade é que não é o próprio Gresset quem o batiza, posto que sua
peça não tem prefácio. Na intriga, Cléon, o méchant, é descrito com a minúcia de quem
transitou pelos salões parisienses com olhos acidamente críticos, de um jesuíta re-
convertido e, ao fim e ao cabo, desencantado com a superficialidade e os perigos do
mundanismo. Basta saber que Gresset decide se afastar de Paris no ano seguinte ao sucesso
estrondoso, mesmo ano em que é eleito para a Académie. Morará em Amiens o resto da
vida, reaparecendo em pouquíssimas oportunidades, como em 1759, quando em sua Lettre
sur la comédie mostrará extremo remorso por ter escrito para o teatro. Voltaire comentará,
em Le pauvre diable: “Gresset se trompe, il n’est pas si coupable”
362
. O outro partido, anti-
voltaireano e anti-philosophique, também se surpreenderá com o mea culpa. Piron compõe
360
VOLTAIRE. Correspondance I (1704-1738). Paris: Gallimard, 1977. p. 705.
361
LOUGH, John. Paris théâtre audiences. In the seventeenth and eighteenth centuries. Londres: Oxford
University Press, 1972 (1957). p. 179.
362
THÉÂTRE du XVIIIè siècle. Paris: Gallimard, 1972. p. 1472.
148
um epigrama que assim se inicia: “Gresset pleure sur ses œuvres/ Comme un pénitent des
plus émus”
363
. Gresset rejeitara ambos os lados do monde.
Le méchant quase se chamou L’Esprit de méchanceté ou L’Esprit à la mode, numa
indicação de que seu autor queria flgrar, por meio dela, um fenômeno contemporâneo que
considerava generalizado
364
. Desde o início fica claro que o foco será no comportamento
do mundano típico, que pensa poder manipular seus circundantes em interesse próprio, ou
simplesmente por diversão
365
. Por isso mesmo, e porque há a intuição de que Cléon se
localizaria entre seu ancestral, Versac, de Les égarements du cœur et de l’esprit, de Claude
Crébillon (1736), e seu sucessor, Valmont, de Les liasions dangereuses, de Chordelos de
Laclos (1782)
366
. A característica básica do méchant é semear o ódio e a divisão, e seu
habitat, ou mesmo o lugar que o inventou, é a Paris contemporânea. A criada Lisette é
porta-voz e será a responsável por desmascará-lo. O cruel mundanismo de Cléon não é
apenas uma “forma”, um “estilo” de atuar em sociedade, o que se poderia supor diante do
esprit e da facilidade de saisir le ridicule que lhe caracteriza. Lisette deixa claro que as
máscaras que ele usa servem a uma concepção, ou mesmo a um ethos mais profundo e
arraigado, surgido nas sociedades de Paris.
Mais je ne parle pas seulement de son style./ S’il n’avait de mauvais que
le fiel qu’il distille,/ ce serait peu de chose, et tous les médisants/ ne
nuisent pas beaucoup chez les honnêtes gens. Je parle de son goût de
troubler, de détruire,/ Du talent de brouiller, et du plaisir de nuire:/ (...)
Dans votre terre, ici, fixé depuis longtemps,/ Vous ignorez Paris et ce
qu’on dit des gens.
367
Lisette tenta abrir os olhos de Géronte, dono da casa e muito ligado aos hábitos de
sua região provinciana. A irmã dele, Florise, está amigada com Cléon, que quer estragar o
363
Idem, ibidem.
364
Idem, ibidem.
365
Do mesmo modo, na acepção erótica surgida em literatura no início do século XVIII, o “libertino”
coleciona mulheres conquistadas como passatempo.
366
Jacques Truchet é um dos que o destaca, em nota à edição da peça. THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p.
1474. E conclui, diferenciando os âmbitos teatral e romanesco, o que para nossa pesquisa tem óbvio valor:
“...et se Le méchant démeure une œuvre si discrète et si parfeitement (? decorosa ?), c’est (...) parce que le
théâtre – au moins la Comédie Française – ne pouvait pas se permettre les mêmes (audácias ? ousadias ?) du
roman” e se Le méchant mantém-se como uma obra tão discreta e tão perfeitamente decorosa, é em grande
parte porque o teatro – pelo menos a Comédie Française – não podia se permitir as mesmas audácias do
romance”.
367
THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p. 1210.
149
casamento da filha, Chloé, com Valère. Este passara a infância naquela província, fora
prometido a Chloé e, agora, depois de alguns anos em Paris, tornara-se nada menos que um
aprendiz de mundano, cujo mestre é o próprio Cléon. Géronte é a favor do casório e Cléon
quer impedi-lo pelo prazer de fazê-lo, mas também porque, sem casamento, não seria Chloé
a pôr as mãos no dote prometido por Géronte, mas a própria Florise, e Cléon não se casaria
com ela senão... “...sous condition d' une très-bonne part dans la succession”
368
. Ariste é o
amigo equilibrado e bem imbuído de uma moral honnète que ajuda a desvendar o nó do
enredo – é o contraponto nobre a Lisette, boa e sagaz, porém humilde.
Embora seja mais que estilo de falar, só se pode ter acesso ao mundanismo cruel
pela fala, ou seja, pela observação da performance social de Cléon. Outra vez, Lisette:
Quand Ariste parlait, Cléon faisait la mine;/ Il animait madame en
l’approuvant tout bas;/ Son air, des demi-mots que vous n’entendiez pas,/
Certain ricanement, un silence perfide,/ Voilà comme il parlait, et tout
cela décide./ Vraiment il n’ira pas se montrer tel qu’il est,/ Vous présent:
il entend trop bien son intérêt;/ Il se sert de Florise, et sait se satisfaire/ Du
mal qu’il ne fait point par le mal qu’il fait faire.
369
O mundanismo amoral de Cléon é não apenas suposto na maioria dos parisienses,
mas define um “partido dos mundanos” também dentro da casa onde se passará a comédia-
drama, sendo Florise praticante de um amoralismo volúvel que parece combinar com o
estilo de Cléon. Diz Lisette: “Tour à tour je l’ai vue/ (…) Six mois dans la morale et six
dans les romans/ Selon l’amant du jour et la couleur du temps...”
370
.
Mas o que definiria, de forma mais específica, tal amoralismo, tal “maldade social”?
Frontin, o criado de Cléon, nos permitirá uma descrição mais próxima do etos ali em jogo –
e uma reincidente volubilidade, para a qual na época havia o termo inconstance, é central.
Mas é volubilidade bem diferente da observada em Florise, posto que sem nenhuma eleição
de objetos amorosos. Trata-se, na verdade, de variação dos objetos da própria crueldade
social. “Pour vos maudits plaisirs on nous a pour la vie/ Chassés de vingt maisons”, diz
Frontin. E, adiante: “Ne prétendez-vous donc qu’au triste amusement/ De vous faire haïr
368
Idem, p. 1225.
369
Idem, p. 1212.
370
Idem, p. 1211.
150
universellement?”
371
. Como se vê, a sina do méchant é trocar infinitamente de relações, e
só mantê-las pelo tempo que pode enganar suas presas sobre sua honnêteté. Cléon defende-
se – e revela-se – ao afirmar que, para ele, a amizade é dispensável, e que prefere a ela o
prazer de meter-se em novas intrigas, de prejudicar uns e outros e, só assim, ser temido:
“Cela m’est fort égal; on me craint, on m’estime,/ C’est tout ce que je veux, et je tiens pour
maxime/ Que la plate amitié, dont on fait tant de cas,/ Ne vaut pas les plaisirs des gens
qu’on n’aime pas./ Être cité, mêlé dans toutes les querelles,/ Les plaintes, les rapports, les
histoires nouvelles,/ Être craint à la fois et désiré partout,/ Voilà ma destinée et mon unique
goût”
372
. Nem as mulheres e nem mesmo a família serve de limite ético a seu gosto pelo
prazer e pela crueldade social (méchanceté):
Toute femme m’amuse, aucune ne m’attache./ Si par hasard aussi je me
vois marié,/ Je ne m’ennuierai point pour ma chère moitié…”; “Je pense
comme vous;/ La parenté m’excède, et ces liens, ces chaînes/ Des gens
dont on partage ou les torts ou les peines,/ Tout cela préjugés, misères du
vieux temps;/ C’est pour le peuple enfin que sont faits les parents.
373
A sofisticação do texto de Gresset, só aparentemente inofensivo e, a nosso ver, no
limite entre o decoroso e o inovador – pelo menos no que tange à clara ousadia de levar um
mundano-libertino para o palco da Comédie Française como protagonista –, se deixa ver,
por exemplo, na acidez que um parisiense tão típico como Cléon usa para falar da capital.
“Paris! Il m’ennuie à la mort,/ (...) Tout ce qu’on est forcé d’y voir et d’endurer/ Passe bien
l’agrément qu’on peut y rencontrer./ Trouver à chaque pas des gens insupportables,/ Des
flatteurs, des valets, des plaisants détestables”
374
. Mas não é exatamente ele o símbolo
dessa capital da frivolidade e da volubilidade ética? É por isso que tal passagem contrasta
de forma cômica com o entusiasmo do jovem Valère com Paris, poucos versos depois; e se
Cléon é seu mestre em mundanismo, deduz-se que, ou Cléon é o que hoje chamaríamos de
uma “personalidade dúbia”, de “duas caras”, ou ele gosta de manejar suas verdades e
mentiras com uma liberdade capaz de confundir o próprio leitor-espectador.
371
Idem, p. 1225-1226.
372
E assim Cléon conclui: “Quant aux amis, crois-moi, ce vain nom qu’on se donne/ Se prend chez tout le
monde, et n’est vrai chez personne;/ J’en ai mille, et pas un.” Idem, p. 1226.
373
Idem, p. 1224 e 1229.
374
Idem, p. 1232.
151
A dimensão propriamente erótica do odiado protagonista se deixa flagrar quando
Valère se mostra apaixonado pela mulher que Cléon escolheu para “formá-lo”, no sentido
libertino do verbo: “J’ai tout arrangé pour qu’il eût Cidalise;/ Elle a, pour la plupart, formé
nos jeunes gens”
375
. E quando Valère chega: “J’ai (...) beaucoup de goût pour elle,/ Et pour
l’aimer toujours, si je m’en fais aimer,/ J’observe ce qui peut me la faire estimer”. A
rubrica, em itálico, indica o ridículo de tal postura aos olhos do “mestre méchant”: “Cléon,
avec un grand éclat de rire./ Feu Céladon, je crois, vous a légué son âme:/ Il faudrait des
six mois pour aimer une femme”
376
. A ironia diante da pressa do discípulo jovem expressa
total descrença no amor, e faz lembrar os égarements de Meilcour, o jovem “em formação”
de Les égarements du corps et de l’esprit.
Se Versac, o libertino (méchant) desse romance inacabado de Crébillon, tornou-se o
primeiro libertino da prosa de qualidade francesa da época, havendo certa unanimidade em
datar-se daí o início do roman de libertinage
377
, Meilcour foi o primeiro discípulo em
posição de formar-se (eroticamente) no monde e, como Cléon e o Valmont de Les liaisons
dangereuses são ilustres descendentes de Versac, pela cena citada se vê que Valère o seria
de Meilcour. Está aí descrita a linhagem de personagens libertinos, de 1736 a 1782. Até a
virada do século, no momento já republicano da França, tal personagem-tipo ainda
retornará reencarnado. Na verdade, ele atravessara o século: La Morlière (Angola, 1746),
d’Argens (Thérèse philosophe, 1748), Chevrier (Le colporteur, 1761), Dorat (Les malheurs
de l’inconstance, 1772), Laclos (Les liaisons dangereuses, 1782), Nerciat (Les amours du
Chevalier de Faublas, 1787-89), Sade (La philosophie dans le boudoir, 1795) etc. A lista
pode ser bastante ampliada, embora sempre sabendo que tratamos, nesse caso, não do
libertino específico de Crébillon e Laclos, mas de uma imagem literária ou teatral
generalizada do méchant homme, do mundano, do petit-maître ou mesmo do rué ou do
scélerat, que atravessa o século e a cultura francesa do período. Seriam matérias-primas
375
Idem, p 1223.
376
Idem, p. 1238. Céladon é o personagem de Astrée, o romance pastoral de d’Urfé, de 1607, que virou
sinônimo de amante delicado, criado, por sua vez, a partir de um personagem guerreiro das Metamorfoses, de
Ovídio.
377
GOLDZINK, Jean. Questions sur la naissance du récit libertin des Lumières. In: PERRIN, Jean-François;
STEWART, Philip (org.). Du genre libertin au XVIIIè siècle. Paris: Éditions Desjonquères, 2005. p. 74-85;
TROUSSON, Raymond, op. cit., p. 3-15.
152
para aquele romance que se define como “de libertinagem” e do personagem-tipo complexo
do libertino, sem confundir-se com ele
378
.
378
Como deixa claro em especial este último parágrafo, nossa análise de Le méchant, de Gresset, se insere em
uma pesquisa sobre o romance de libertinagem e sobre o libertino como personagem-tipo complexo (para
diferenciça-lo dos personagens-tipo da commedia dell’arte) – pesquisa em curso e que será por nós
desenvolvida logo depois do presente trabalho.
153
2. Pamela chega à França: translado e transformação de uma personagem
Como descrever a verdadeira apropriação feita pelo teatro parisiense dos anos 1742
e 1743 da personagem Pamela e da narrativa de mesmo nome, lançada na tradução de
Prévost em 1742? O primeiro ponto a destacar é o caráter “implosivo” das estréias: em um
espaço de tempo bastante apertado – apenas sete meses, de maio a dezembro de 1743 –, o
insucesso das três estréias foi cabal e leva, ele próprio, a refletir sobre esse verdadeiro
fenômeno negativo. A pior reação ocorre diante da tentativa feita por La Chaussée de
transformar parte da trama de Richardson em uma comédie larmoyante ou attendrissante
1
.
O que se pode dizer das duas outras, comédias sem nenhuma ambição à seriedade
“enternecedora”, é que se saíram um pouco melhor, também por conta da despretensão
característica dos espetáculos encenados no Théâtre des Italiens. Não que a expectativa em
relação à obra de La Chaussée tenha sido pouca. A trupe da Comédie Française apostou no
sucesso da peça, sem medir gastos para a encenação, segundo relata o prestigiado biógrafo
do autor, Gustave Lanson
2
. O motivo era simples, e indica o quanto o momento era
propício ao novo gênero teatral que ensaiara um surgimento por volta de 1735-1736: o
autor acabara de emplacar a primeira comédie larmoyante de sucesso, também elogiada
pelos periódicos e pelos supostos entendidos da cena teatral. Tratava-se de Mélanide,
encenada a 12 de maio de 1741 e que acabaria alcançando cerca de 12 mil espectadores ao
longo de 22 apresentações no teatro da Rue des Fossés Saint-Germain, onde ficava a
Comédie Française. Era um sucesso considerável, levando-se em conta o período de baixa
de espectadores naquele teatro
3
. Levando-se também em conta que a peça trazia elementos
1
Os detratores do novo gênero – provavelmente sob a batuta do abade Desfontaines – cunharam o nome
comédie larmoyante. Comédie attendrissante será o nome preferido dos que a defendem, como Voltaire,
embora este só se resolva a abraçar a nova causa com Nanine, de 1749. Ver adiante, nosso Capítulo 6.
2
Lanson foi aos Archives de la Comédie Française conferir os livros de contas da companhia: o Registre
relativo à sexta-feira, 6 de dezembro de 1743, e o Compte du general pour l’année 1743-1744. LANSON,
Gustave. Nivelle de la Chaussée et la comédie larmoyante. Genebra: Slatkine Reprints, 1970 (1903). p. 163.
3
Como mostra John Lough, no período de 1715 a 1750 se observa uma baixa de público nas produções da
prestigiada trupe. Para Lough, os motivos são bastante difíceis de serem inferidos. “It is difficult to account
for the slump in the fortunes of the Comédie Française in the period between 1715 and 1750”. LOUGH, John.
Paris théâtre audiences. In the seventeenth and eighteenth centuries. Londres: Oxford University Press,
154
pouco palatáveis para o público que freqüentava o teatro, a começar pelo próprio título, um
nome simples de mulher, sem nada de mitológico. É Lanson quem aponta:
Cela étonna. C'était bon pour la tragédie: les héros de l'histoire et de la
fable sont connus. Mais un nom inconnu, un nom de l'invention de
l'auteur, ni symbolique ni grotesque, insignifiant, incolore, qui n'annonçait
ni l'intention morale de l'auteur, ni les caractères, ni le sujet, on n'avait
jamais donné de titre pareil à une comédie.
4
A passagem ganha em importância se notamos a quase simultaneidade com o
lançamento de Pamela: cinco meses depois, já que a primeira edição do romance de
Richardson saiu em dezembro de 1740, anonimamente, em Londres. Porém, lembremos
que, se na França é impossível encontrar título anterior àquela data sem referências à
nobreza do protagonista – e mesmo La vie de Marianne, que começou a vir à público em
1731, traz como subtítulo: ...ou les aventures de Madame la comtesse de *** –, na
Inglaterra havia exemplos prévios, como The Life and Strange Surprising Adventures of
Robinson Crusoe of York, Mariner: who lived Eight and Twenty Years, all alone in an
uninhabited Island on the coast of America..., lançado por Daniel Defoe em 1719. Seu
romance de 1722, hoje conhecido como Moll Flanders, trazia como título The Fortunes
and Misfortunes of the Famous Moll Flanders, o “Famous”, no caso, escondendo em
1972 (1957). p. 175. Segundo o autor, nem mesmo a razão mais plausível para a fuga dos espectadores
explica o que terá acontecido: se o retorno do Théâtre des Italiens e de o surgimento de outros teatros, como o
Théâtre de la Foire, roubam público à Comédie, por que quando essa concorrência aumenta ainda mais, ou
seja, de 1751 em diante, a Comédie vê suas salas lotarem novamente, em irresistível nível ascendente, até o
fim do século? Sem nos arvorarmos a resolver a questão, arriscamos uma hipótese que aponta para o
surgimento de um novo gênero nos palcos parisienses. Segundo o gráfico de “Totais Anuais de Espectadores
na Comédie Française da Páscoa de 1681 à Páscoa de 1771”, a baixa chega a seu ponto limite exatamente no
período de 1736 a 1742, ou seja, o momento que vê nascer a comédie larmoyante como gênero novo. Terá
sido um impasse diante da decadência de formas teatrais antigas, das tragédias gregas ou orientalistas às
comédias tradicionais à la Molière, que fez surgir o novo formato narrativo? E se tal novo gênero trazia como
protagonistas burgueses com dramas familiares ou profissionais, os mesmos que Diderot tomará como ideais
para favorecer uma identificação do espectador diante de suas “conditions”, não teriam determinado um maior
afluxo de um público burguês ao teatro, já existente, sem dúvida (como mostra Auerbach em seu La cour et la
ville), mas que pode ter se afastado do teatro por conta da decadência dos antigos gêneros? É claro que tal
público só tenderá a aumentar à medida que mais dramas forem sendo encenados, que as idéias dos
philosophes, inclusive sobre o teatro, forem se difundindo e, é claro, que a população for aumentando. Se essa
é apenas uma hipótese de trabalho a ser confirmada ou não, a verdade é que Lough não cita nenhum grande
sucesso – ou seja, os que atingiam 25 mil espectadores ou mais – do período de 1736 a 1742. Por exemplo,
um dos maiores deles, Mérope, de Voltaire, atrai 30 mil espectadores entre fevereiro de 1743 e março de
1744. Desse modo, Mélanide acaba sendo, de fato, um dos maiores sucessos desse período de vacas magras:
não se poderia supor que seus 11 mil espectadores correspondem a uns 25 mil em período de afluência mais
normal?
4
LANSON, Gustave, op. cit., p. 160.
155
algum grau a baixa extração da personagem principal: como Crusoe, personagem baseado
em marinheiro real, Flanders tem uma fama suspeita. Na verdade, o romance é exercício
entre as muito lidas histórias fictícias de criminosos ou prostitutas e as biografias autênticas
desse mesmo tipo de gente de baixa extração, no que se pode chamar de variante inglesa
um pouco mais urbana do pícaro
5
. Dois anos depois, com Roxana: The Fortunate Mistress
Or, a History of the Life and Vast Variety of Fortunes of Mademoiselle De Beleau,
Afterwards Called the Countess De Wintselshei, Defoe finalmente deixa bem claro já no
título que, por maiores que sejam as quedas morais ou sociais que a protagonista sofra ao
longo da trama, ela acabará ascendendo à nobreza.
No caso de Mélanide, que seria re-encenada com grande prestígio ainda duas vezes
antes que La Chaussée se arriscasse em sua Pamela, ambas no Théâtre de la Monnaie, em
Bruxelas, com estréias a 13 de maio e 15 de outubro de 1743. Antes de La Chaussée
falecer, em 1754, ainda veria a peça encenada mais duas vezes na Comédie, em maio e
junho de 1751, e mais uma no teatro de Bruxelas, em junho de 1753. Até o fim do século,
mesmo depois da Revolução, seriam mais 36 encenações, estando, portanto, totalmente
incorporada ao repertório da companhia. Será a peça-símbolo da comédie larmoyante por
suas qualidades estruturais, provando que já em 1741 o novo gênero podia ser frutífero, se
o autor soubesse aproveitar
6
. Isso já podia ser lido no Anedoctes Dramatiques – Tome 1:
“C’est peut-être la meilleure des Pieces dans le genre attendrissant. C’est un Roman, si l’on
veut, mais un Roman Dramatique, qui fait beaucoup d’effet sur le Théâtre. La quatrieme &
la cinquieme Acte sont de la plus grande chaleur”
7
. O mesmo Anedoctes..., no entanto, não
poderia deixar de chamar a atenção para o que as “más línguas” diziam do novo gênero:
Le pathétique de cette Piece n’a pas cependant empêché M. Piron de
plaisanter sur les Drames de ce genre, qu’il compare à de froids Sermons:
5
VASCONCELOS, Sandra G., op. cit., p. 59-63. WATT, Ian, op. cit. p. 95-96. Cf.: RICHETTI, John.
Popular Fiction before Richardson. Narrative patterns – 1700-1739. Oxford: Clarendon Press, 1992.
McKEON, Michael. The Origins of English Novel (1600-1740). Baltimore: The John Hopkins University
Press, 1991.
6
Muitas das informações foram extraídas de CÉSAR (Calandrier Électronique des Spectacles sous l’Ancien
Regime et sous la Révolution). Disponível em: <
http://cesar.org.uk/cesar2/publications>. Acesso em:
02/05/2006.
7
ANEDOCTES dramatiques. Tome 2. Paris: Chez la Veuve Duchesne, Libraire, 1775. p. 22. In: CÉSAR.
Disponível em: <
http://cesar.org.uk/cesar2/publications>. Acesso em: 03/05/2006.
156
“Tu vas donc entendre prêcher le P. de la Chaussée”? dit-il un jour à un de
ses amis qu’il rencontra allant à une représentation de Mélanide.
8
O perfil inevitavelmente moralista da comédie larmoyante não cai bem aos ouvidos
cínicos da sociedade fereqüentadora da Comédie, nem de concorrentes experimentados
como Alexis Piron, cuja L’École des pères atingira as mesmas 22 apresentações e 12 mil
espectadores, por volta de 1728, e sua comédia nada sentimental, La Métromanie, dez anos
depois, tornara-se um dos sucessos da Comédie, com muitas reapresentações até o final do
século.
Mas antes da tentativa séria do “Père” La Chaussée, como queria Piron, Louis de
Boissy já havia tentado transmudar o clima do romance de Richardson rumo ao tom de
mofa, tão ao gosto do público do Théâtre des Italiens. Como qualquer autor que transitava
no monde e demonstrava ambição, Boissy não se limitava a escrever para o teatro
especializado em comédias, que se localizava no Hôtel de Bourgogne, na rua Mauconseil,
próximo a Les Halles e à igreja de Saint-Eustache. Na verdade, como veremos adiante,
quando tratarmos de sua trajetória, ele estreara em 1721, na Comédie Française. E sua peça
anterior a Paméla en France, intitulada La Fête d’Auteuil ou La fausse méprise, estreou a
23 de agosto de 1742 mais próximo ao Sena e ao Palácio do Louvre, ou seja, no Théâtre
Français, o que indica capacidade de versejar nos moldes clássicos, a qual faltava a grande
parte dos autores que só escreviam para aquele teatro. Como também veremos adiante, sua
relação sarcástica com a Inglaterra tivera um precedente com a bem sucedida comédia Le
François à Londres, de 1727.
A melhor forma de nos aproximarmos do contexto no qual surgiu a peça de Louis
de Boissy, tão característica de um momento da cena teatral parisiense do Antigo Regime, é
conhecermos a reação de certos leitores e interlocutores da época diante da ansiedade em
torno do próprio romance de Richardson, bem como do primeiro espetáculo que nele se
baseava. Dona de uma imensa correspondência com seu amigo François-Antoine Devaux,
Françoise de Graffigny, futura autora das Lettres péruviennes (1745) e freqüentadora de
vários salons – em especial o famoso Caveau, onde encontrava-se com Crébillon fils,
Charles Duclos, Caylus, Moncrif, o pintor Boucher, o compositor Rameau, entre outros –
estava tão integrada aos hábitos da capital da época que se via obrigada a estar presente à
8
Idem, ibidem.
157
maior parte das estréias tanto na Comédie Française quanto no Théâtre des Italiens.
Passagens dessa longa interlocução por cartas, em 1742 e 1743, são um retrato bastante
acabado das expectativas, do interesse acolhedor e do horizonte crítico de leitores
privilegiados na Paris da época, em um momento imediatamente anterior à conformação de
uma crítica literária como hoje a conhecemos. O pano-de-fundo da formação clássica
explica não apenas a perplexidade diante do impacto da leitura de Pamela, mas também a
densidade das análises, testemunho do processo de elaboração de novas formas de
acolhimento de textos narrativos, em pleno curso, na época.
2.1. A recepção de duas Pamelas, a inglesa e a francesa, pela visão de dois missivistas
Em outubro de 1742, a futura escritora Françoise de Graffigny, na época apenas
uma dama coquete, sem fortuna e freqüentadora assídua de sociétés parisenses de
aspirantes às letras, compartilhará com seu destinatário, Devaux, a ansiedade de assistir à
comédia baseada no romance, com toda ironia de quem disputa com ele a avaliação crítica
mais “correta” da obra inglesa que cruzara o Canal da Mancha: “Toi, tu denigre tout ce qui
est aplaudit ici [em Paris], temoins Pamela [a tradução do romance]. Or etant si oposé sur
le gout, l’un de nous a tort”, escreve a Devaux, que morava fora de Paris, em Lunéville.
Comment, Pamela est deja au theatre et elle a été bien recuë? Je me fais
une vraye feste de la voir. Faites, je vous prie, epier le moment ou elle
sera imprimée; jamais je n’ai eu tant d’impatience d’aucune piece. Je
n’imagine pas comme Boissi a pu tourner ce sujet; j’avouë que cela est
forte au-dessus de moy. Je ne l’aurois jamais cru theatral.
9
Françoise responde ao amigo que, antes mesmo dela, tem ambições de tornar-se
autor dramático (é dele a peça Les Portraits, hoje desconhecida):
Ô je m’y pers: c’est bien a present que je te vois deux tête! (sic)
Comment, apres le degout affreux que tu m’a marqué de Pamela, tu
9
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondance. Tome 4. Oxford: The Voltaire Foundation/Taylor Institution,
1996. p. 167.
158
meurs d’impatiance de la voir en comedie, et de voir son frere? (...) Alons,
malgré tes caprices tu sera bientot satisfaits, car on imprime l’un et
l’autre.
O irmão de Pamela é ninguém menos que Joseph Andrews, ou melhor, o romance
lançado por Henry Fielding em 1742, The History of the Adventures of Joseph Andrews,
and of his friend Mr. Abraham Adams. Em outra carta, Françoise revela que o abade
Desfontaines, seu amigo e editor das Observations sur les écrits modernes, queria guardar
segredo sobre sua autoria da tradução do romance de Fielding para o francês: “...une dame
angloise vien de la traduire et l’abbé Desfontaines le met en français. Il paroitra
incessament, mais motus, c’est une confidence que l’on m’a faite sous peine de la vie”
10
.
De fato, o título da versão se completa com: “...publiées en anglois en 1742 par M.
Fielding et traduites en françois à Londres par une dame angloise sur la 3è édition
11
.
Portanto, simultaneamente à tentativa de Louis de Boissy de transformar Pamela em um
personagem do sarcástico Théâtre des Italiens, o jesuíta Desfontaines, um militante da vida
jornalística, teatral e editorial parisiense, figura importante na aceitação e na própria
denominação da comédie larmoyante, encarrega-se da segunda paródia cômica feita por
Fielding do romance de Richardson, a primeira tendo sido Shamela, ainda em abril de
1741, apenas quatro meses depois do surgimento da Pamela original.
Mas qual será o destino da tentativa dir-se-ia alquímica de Boissy, de mudar em
comédia ligeira o romance de cartas sentimental de maior impacto da época? Françoise de
Graffigny falta à estréia, e apenas registra, dando asas à curiosidade de Devaux: “On a
donné hier aux Italiens Pamela; elle est de Boissi et a été tres bien reçuë. Il y a un autre
roman anglois sous le titre du Frere de Pamela [como vimos, o romance ‘Joseph Andrews’,
de Fielding]”, completa, confirmando a simultaneidade de uma e outra adaptação. O “tres
bien reçuë” (sic) chega a intrigar leitores de hoje que se deparam com notícias do fracasso
da peça
12
. Na verdade, porém, apesar de nunca mais reencenada de 1743 até hoje, Pamela,
ou la Virtue mieux éprouvée não chega a ser o “fenômeno de um noite só” que será, em
dezembro daquele mesmo ano, a peça de La Chaussée. Prova disso, além da notícia dada
por Françoise, é o verbete das Anedoctes dramatiques, de 1775:
10
Idem, p. 201 (Carta de 6 de março de 1743).
11
Idem, p. 204.
12
Idem, ibidem.
159
Boissy avoit tiré le sujet de sa Comédie du Roman de Paméla de
Richardson, qui occupoit alors tout Paris; mais sa Piece n’eut pas un
succés si brillant. La Fête qui en fait le dénouement, très-ridicule à lire,
mais fort agréable à la représentation, la fit jouer treize fois.
13
O final do texto prova que o insucesso da peça não foi tão acentuado: treze
apresentações, à época, um pouco mais da metade do número alcançado pela bem-sucedida
Mélanide na Comédie, no mesmo período de baixa de espectadores, é, pelo menos, um
ensaio de sucesso. Porém, como deixa claro a própria Françoise, ensaio não garante
decolagem: “La Pamela des Italiens est chute le lendemain de sa reussite. On atent la
guerison de Silvia, qui a la gripe, pour donner une petite piece qui, dit-on, eteira (sic) celle-
la”
14
. A resposta de Devaux traz perplexidade diante da promessa não cumprida pela peça:
“Je suis desolé de la chute de la Pamela. Je comptois sur elle pour notre après Pasques,
mais elle est singuliere cette chute. Comment, la premiere representation ayant pris, les
autres ont-elles eté si diferentes?”
15
Alguns aspectos da repercussão de Pamela em Paris e no imaginário de leitores e
espectadores como Graffigny e Devaux ficam nítidos nesses fragmentos de cartas,
exemplos cabais de uma “communauté de lecteurs” parisiense constituída em torno do já
citado Caveau e da Société du Bout-du-Banc
16
. O primeiro ponto a destacar é a imensa
expectativa em torno dos desdobramentos que o romance inglês original – e sua
protagonista, cada vez mais famosa como uma espécie de “entidade” desligada do corpo do
texto – favoreceria na França daquele momento.
13
ANEDOCTES dramatiques. Tome 2, op. cit., p. 34. Disponível em:
<http://cesar.org.uk/cesar2/books/anecdotes/display.php?volume=1p&index=1>. Acesso em: 4/07/2006.
14
GRAFFIGNY, Madame de, op. cit., p. 208.
15
Idem, p. 211.
16
São duas sociétés, regidas em especial pelo conde de Caylus, por volta de 1735 a 1748, contando com a
assiduidade de nomes como Claude Crébillon, Duclos, Maurepas, Moncrif, Piron e, é claro, Françoise de
Graffigny, entre outros. São típicos encontros em que peças, contos ou poemas, escritos especialmente para
tais noites – às vezes a muitas mãos –, eram recitados ou encenados pelos convivas. O conceito de
“communautés de lecteurs”, definido por Roger Chartier, nos parece, no caso, talhado para descrever o que se
dava em tais sociétés: uma ágil e constante circulação de textos, escritos ou a serem encenados, todos eles
partilhados por um tipo de leitor que se preparava para influir ou que já influía na vida cultural francesa,
futuros escritores. Lembremos que todos os citados, inclusive Madame de Graffigny, serão autores de
repercussão. Nesse sentido, trata-se de uma “comunidade de leitores” privilegiada, já que dedicada a fazer
circular textos com certa rapidez na Paris da época e intervindo na vida cultural que ali se conformava. A
sofreguidão com que Graffigny e seu interlocutor, Devaux, trocam novidades sobre as últimas leituras, ou têm
acesso aos últimos lançamentos editoriais ou às estréias teatrais é a prova da importância dessa circulação
febril de textos e peças, na Paris da época. CHARTIER, Roger. L’ordre des livres. Paris: Albin Michel,
1992. p. 1-33.
160
A 20 de junho de 1742, a missivista termina a leitura da versão francesa do
romance. “Je viens de lire un roman anglois traduit par un Anglois”. E vem a descrição
material:: “Il contient plus de neuf cent pages de tres menue impression”; para aumentar o
efeito de pressa e prazer na leitura: “Je l’ai lu en deux jours”
17
. De saída, utiliza o mesmo
termo descritivo que Voltaire empregarará sete anos depois no prefácio a Nanine, sua peça
baseada em Pamela
18
: “C’est un monstre indeffinisable. Votre nourice ecriroit mieux.
Insolente, pecore, drolesse sont les plus nobles epitetes que vous trouvez dix fois dans une
page”
19
. O “monstro” é uma obra que não se encaixa em nenhum modelo clássico.
Primeiramente, portanto, a forma, a retórica, dimensão privilegiada nas avaliações dos
missivistas formados na educação clássica (e que, enquanto mundanos, devem ambicionar
escrever e publicar, eles também), é desfigurada e, pior, não define seus contornos, o que
prova a inadequação em relação aos modelos. Como Voltaire, Françoise de Graffigny faz
análise formal, mas seus epítetos, lançados com ironia, para denotar enfado (“...dix fois
dans une page...”) já indicam que outra dimensão, propriamente moral, está em jogo no
comentário precoce. Porém, antes disso, o tom é criticado: “...c’est le petit chaudron sur la
porte”, completa ela, para descrever o caráter repetitivo. A expressão vem de “chaudrons
de Dodone”, pessoa que fala demais, ou barulho monótono, a partir do som ancestral de
caldeirões pendurados em colunas gregas e batendo em estátuas de bronze. Mas, como se
verá, o foco na forma não impedirá o elogio ético do romance. Afinal, Pamela não devia ser
recebida como uma personagem meio modelar, meio real, em que pecados de estilo se
neutralizariam por conta da graciosidade do falar comum, banal, eventualmente repetitivo,
mas sempre carregado de sentimento?
Na verdade, um “monstro” pode produzir efeito totalmente contrário ao da rejeição,
soando como o canto de uma nova, sedutora e estranha sereia da narrativa ficcional: “C’est
un monstre et ses effets sont des prodiges. Je ne saurois encore comprendre pourquoi je ne
l’ai pas jeté cent fois par la fenetre, et j’y ai passé une nuit entiere”
20
. A 28 de julho,
Devaux reconhece o prodígio irresistível, mas o localiza apenas na primeira parte do
romance, aliás, o que analisamos no nosso Capítulo 1:
17
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondance. Tome 3, op. cit., p. 323.
18
Ver item 6.1 do Capítulo 6, adiante.
19
GRAFFIGNY, Madame de, op. cit., p. 323.
20
Idem, ibidem.
161
Le premier volume de Pamela me feit le meme effet qu’a vous, mais les
trois quarts du second m’ont ennuyé a la mort. Elle est pas trop mal ecrite,
quoy qu’en dise l’abbé Desfontaines (…). Je suis plutot du sentiment de
St-Lambert, qui dit que c’est une servante qui n’a que des vertus de
servante, dont il ne luy scait aucun gré. Pour moy, j’osera presque dire
que c’est un mauvais livre, et qui ne fait que redoubler mon antipahite
pour les Anglois...
21
A referência a Desfontaines nos aproxima da discussão sobre a comédie larmoyante,
que se iniciara ainda em 1735, quando aquele mesmo abade-jornailsta batizara o novo
gênero
22
. Mas a crítica de Devaux surpreende, pois o abade ataca muito pouco o estilo
“baixo” (para padrões clássicos) de Pamela; na verdade, defende o romance ao longo de
grande parte das 22 páginas dedicadas ao romance em seu jornal Observations sur les écrits
modernes:
Quelqu’uns trouvent le stile negligé et plat, parce qu’il est simple et
naturel. Ils ignorent que s’il estoit écrit autrement, il seroit mal ecrit. (...).
Je trouve qu’il est tel qu’il doit être pour toucher; naif, simple, coulant, et
quand il le faut, très-pathètique. J’avoue que le stile de quelques-uns de
nos romanciers est plus géométrique. Mais celui de Pamela est toujours
naturel, toujours vif…
23
.
A defesa vai contra o gosto hegemônico da época, que deveria ser defendido por
futuros autores em busca de um lugar ao sol, como Graffigny e Devaux. É o gosto
dominante na Académie, e quem quer que ambicionasse influência intelectual ou mesmo
algum cargo não poderia se desviar muito dele
24
. À crítica jornalística do abade, votada,
21
Idem, p. 321-323.
22
Ver o início do Capítulo 3.
23
GRAFFIGNY, Madame de, op. cit., p. 326.
24
Lembremos de dois conceitos de Pierre Bourdieu, “campo literário” e “campo de produção cultural”,
desenvolvidos em relação à Paris do fim do século XIX. São, para nós, referências ao examinarmos a
produção intelectual dos anos 1730-1750. É claro que não podem ser aplicados ipsis literi, pois a época inclui
elementos diferentes dos que estão em jogo no período tratado por Bourdieu. Mas há também semelhanças.
Um exemplo: a idéia de subcampo de produção restrita, que Bourdieu aplica à “vanguarda consagrada” de
fins do XIX, parece-nos capaz de descrever o espaço (ainda desprestigiado) do romance e dos romancistas no
campo de produção cultural, bem como no campo social e no espaço social que o englobam. Mas ressaltemos
que o próprio campo de produção cultural é bem diferente do de fins do século seguinte, já que é muito
submisso à corte e ao rei, relegando, assim, grande parte de seus produtos e produtores não a subcampos
sociais, mas à clandestinidade, à extra-oficialidade (à Bastilha, por exemplo). O romance não será objeto de
nenhum movimento coletivo consciente de busca de legitimidade e autonomia, como é o caso da vanguarda
literária e em artes plásticas do momento tratado pelo sociólogo francês. Sua legitimação (com a conseqüente
162
ainda, a um nível formal (o estilo), Devaux tinha contraposto o mesmo desgosto de classe
que Françoise de Graffigny em meio a seus elogios da primeira carta, acrescentando o
incômodo diante da protagonista servante. Mas na carta seguinte da missivista, sem
argumentar com os polemistas, mas escrevendo como mulher de sociedade, ela tomará
francamente o partido de Desfontaines, e esquecerá de suas primeiras reticências formais, a
9 de setembro de 1742:
Pour Pamela, je te deteste de ne pas adorer cet Anglois. Quel verité de
caractere ! Il est tout ce qu’il doit etre, le plus honnete homme du monde,
le plus tendre, le plus genereux, le plus vray. Ah, qu’on me donne un ami
ou un amant comme celui-la ! (…) Avec tout ce degout de stile, je le relis
a present, et je suis plus enchantée que la premiere fois des expressions
naturelle[s], des qu’il est question de sentiment et de finesse.
25
A passagem mostra como Madame de Graffigny acaba rendendo-se à “naturalité”
do estilo, mesmo que sob a condição de se acrescentar “finesse” ao “sentiment”. Contra o
ímpeto sentimental nada se pode argumentar; na verdade, de pouco vale a análise do caráter
repetitivo e “baixo” ou banal da narrativa diante do fato de que não se consegue largar o
livro ao longo de mais de novecentas páginas. Um pouco antes, na mesma carta, ela
defendera que “...il [o estilo] doit etre le plus naïf qui soit possible, mais il ne doit pas etre
bas”
26
. Os pecados de repetição são, na verdade, pecadilhos: “Je voudrois que Pamela ne
pria point tant Dieu, et qu’elle eu un peu plus de merite a resister a son maitre, mais
anatheme contre celui qui l’ose traiter de mauvais livre!”
27
Devaux comparará Milady
Davers, a irmã de Mr. B., a Madame Dutour, a roupeira de La vie de Marianne, de
Marivaux, vendo verossimilhança na última e baixeza na primeira: “Mde Dutour est cent
autonomia dos romancistas) ocorrerá aos sobressaltos, a cada ressurgência de uma obra capaz de impor-se no
campo de produção cultural, onde ele, romance, era mal visto. A situação mantém-se igual até o final do
século: o que há são picos de repercussão, como Julie ou Les liaisons dangereuses. Cf.: BOURDIEU, Pierre.
As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Ed. Cia. das Letras, 1996. Na mesma
linha, análises do meio intelectual brasileiro de fins do século XIX mostram como o desvio e a autonomia
eram raros e perigosos: “...ainda mais do que comprar livros quase nunca lidos, a classe dominante, isto é, o
Estado, fornecia os meios para a própria manutenção do homem de letras”. Cf.: ROCHA, João Cezar de
Castro. Literatura e cordialidade. O público e o privado na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Eduerj, 1998.
p. 115.
25
GRAFFIGNY, Madame de, op. cit., p. 327.
26
Idem, ibidem.
27
Idem, ibidem.
163
fois moins poissarde!”
28
A missivista resolve o impasse polêmico externando a estrenheza
com a impossibilidade de se chegar a um só juízo de gosto diante da obra: “Toi, tu denigre
tout ce qui est apluadit ici, temoins Pamela. Or etant si oposé sur le gout, l’un de nous a
tort”
29
.
A troca de comentários críticos é ótimo exemplo da forma como uma nova obra era
acolhida nos círculos de leitores privilegiados, ou seja, aqueles que encenavam suas
próprias peças e viam convivas de suas sociétés ascenderem à Academia (como é o caso de
Charles Duclos, freqüentador do Caveau). Tais “comunidades de leitores” eram
caracterizadas por uma busca ávida de novidades no campo do livro. “A propos, n’y a-t-il
point de preface ni a La Grecque ni a Mde du Luz? S’il y en a, envoyez-les-moy”, escrevia
Françoise de Graffigny a 24 de dezembro de 1740 a respeito do romance de Prévost,
Histoire d’une grecque moderne, e da novela de Duclos, Histoire de Madame de Luz.
“Dites-moy si [Histoire de Madame de Luz] est bien nouvelle”, pergunta ela. Os trechos
demonstram como tais leitores, que formavam um circuito ágil de crítica interpares na Paris
da época, necessitavam dos prefácios como subsídio a seus juízos de gosto. Nessa
antecâmara da crítica literária, a leitura e a freqüência do que quer que aparecesse em livro
ou em palcos era condição sine qua non para manter-se e vencer na “comunidade” – no
caso, também com teor francamente de concorrência mútua.
O ritmo ágil, o verdadeiro fluxo de edições lidas e comentadas, bem como de peças
vistas, indica o grau de interesse e ambição dos missivistas. A atenção nunca é bastante:
Françoise logo se referirá a mais um subproduto do romance de Richardson: “Il y a une
nouvelle Pamela, ou pour mieux dire, la Pamela elaguée, comme dit l’abbé D.F. On a
retranché toutes ses oraisons, une partie de ses reflections, enfin, les broussailles qui
fatiguoient trop la vuë pour la chercher deriere. Je tacherai de la voir sans acheter”
30
. A
justificativa que o abade Desfontaines faz em seu jornal, cinco dias depois da estréia da
Pamela de Louis de Boissy, baseia-se em críticas que o romance recebera quando lançado
na versão completa:
28
Idem, p. 329.
29
Idem, p. 327.
30
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondance. Tome 4, op. cit., p. 209.
164
Plusieurs personnes ont trouvé que l’Histoire de Pamela étoit prolixe et
diffuse, qu’elle contenoit des détails et des moralités qui ennuyoient, et
que si on dévoroit bien des dégoûts dans cette lecture, c’est que l’intérêt y
régnoit au suprême degré. (...) Grace aux soins de M. [...] ils seront
intéressés sans aucun dégoût: ils n’auront point de vains gémissemens
monotones à entendre sans cesse; point de réflexions morales à essuyer
fréquemment, et surtout point de lettres languissantes à lire. Tout cela se
trouve supprimé dans une nouvelle édition de cet ouvrage, en deux petits
volumes in-12, intitulé Mémoires de Paméla. Elle est commune à Paris, et
se vend chez plusieurs libraires. On peut l’appeler Paméla élaguée.
31
Essa edição, hoje desconhecida
32
, talvez seja a mesma de que fala La Chesnaye Des
Bois em suas Lettres amusantes et critiques sur les romans en général, surgido também em
1743. Ele a chama de Mémoires, e a descreve como um “extrait”, de que toma
conhecimento por meio de um amigo que a lera ainda em manuscrito:
Le commencement, et la fin en sont neufs. Vous y verrez d’abord
comment pamela (sic), encore enfant a été conduite chez Miledy B, quelle
éducation elle y a reçuë, de quelle maniere elle s’est comportée après la
mort de cette dame dans la maison de Milord B son fils. (...) Presque par
tout on a conservé jusqu’aux expressions. On n’a retranché que des
répétitions ennuyeuses, et de certaines naïvetés, qui convenoient peut-être
dans la bouche de pamela, encore fille, et domestique de Milord B, mais
qui ne conviendroient pas dans celle d’une miledy.
33
O exemplo vale como prova da avalanche de Pamelas editoriais ou teatrais. Mas
voltemos ao trecho em que Madame de Graffigny aposta em Silvia – pseudônimo da atriz
Mademoiselle Benozzi – para fazer esquecer rapidamente o fracasso da primeira Paméla
francesa, a de Louis de Boissy, apenas treze noites após a estréia. O frisson se caracteriza
pela informação antecipada: Françoise já espera ansiosa a futura peça L’Ile des talens, de
Fagan, conhecendo, por ora, apenas o nome daquela que será a atriz principal. É clara a
urgência diante da profusão de espetáculos, fazendo “andar a fila” e, é claro, esquecer os
anteriores. Diante disso, compreende-se outro índice de ansiedade, ligado ao fato de nem
sempre ser possível ver todos os espetáculos – ainda mais, como no caso de Devaux,
estando longe de Paris –, e de nem sempre se querer esquecê-los; para tanto, há as versões
31
Idem, p. 189.
32
Não se encontrou nenhum exemplar até hoje.
33
DES BOIS, La Chesnaye. Lettres amusantes et critiques sur les romans en général, anglois et françois,
tant anciens que modernes, adressées à Miledy W***. [1740-41?]. p. 124-125. BNF-Gallica. Disponível
em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k87356r>. Acesso em: 20/08/2006.
165
em livro. “J’ai encore envoyé aux Italiens demander Pamela: elle n’est pas encore
imprimée”, escreve a 15 de março, com a peça provavelmente ainda em cartaz
34
. A
ansiedade dos amigos missivistas não impede que o livro só venha à luz dois anos depois,
em 1745.
2.2. A singular paródia de um romance em meio à voga de paródias cômico-
operísticas
Mas o que propõe a Paméla de Boissy em termos teatrais? Terá trazido algum
aspecto novo, ou uma suposta “cor local” ao texto de Richardson? A análise do incício da
peça nos remeterá à necessidade de traçar um panorama do gosto pela comédia e pela
paródia, nas décadas que a antecedem. O recuo nos afastará, por algumas páginas, do texto
do espetáculo estreado em março de 1741, mas nos aproximará do espírito que favoreceu
seu aparecimento e seu acolhimento. Depois desse recuo ou desvio contextualizador, no
qual poderemos melhor visualizar o frisson cômico e satírico que toma conta de Paris em
especial depois da morte do Rei Sol, poderemos voltar a analisar um texto que guarda pistas
sobre a forma como um comediógrafo da Paris dos anos 1730-1740 pôde traduzir um
romance de mais de 400 páginas em uma peça de 78.
Paméla en France se inicia com a protagonista sarcástica diante da própria
prolixidade: “Ah que ma bonne mere & que mon cher papa/ Vont être transportés de joye,/
En lisant cette Lettre la!/ Que mon babil les charmera!”
35
. A irreverência prenuncia mais
irreverências: o marquês francês enamorado da jovem inglesa exilada surge simplesmente
travestido de mulher, pois não pode “...un instante être sans Pamela”. O espisódio em
Lincolnshire, onde Pamela conhece Mr. William, formando um pseudotriângulo amoroso,
base para La Chaussée tentar compor sua peça sentimental, nove meses adiante, serve aqui
para explicar como Pamela chegara ao hexágono francês: aproveitara a posse da chave,
saíra pelos fundos do jardim e, ao contrário do romance, não tivera medo de touros, reais ou
34
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondance. Tome 4, op. cit., p. 208.
35
BOISSY, Louis de. Paméla en France, ou La vertu mieux éprouvée. Comédie. Paris: Chez Jacques
Clousier, 1745.
166
imaginados. O tom de paródia auto-referente e – se é possível usar o termo – meta-narrativa
fica claro quando Pamela avisa que ela e seu ex-patrão “...bornerons sagement/ Notre
avanture au second tome”, ou seja, manterão suas identidades de personagens da forma
como se lê antes do casamento redentor da criada, que se dava no início do terceiro tomo de
um total de quatro. Isso porque Mr. B deve continuar com a imagem de perseguidor, e
Pámela de virtuosa ofendida. O comentário sobre a semântica do romance original aponta
para as razões de seu impacto em anglo-saxões ou gauleses: é a opressão persecutória do
patrão, e a resistência honrada de Pámela que choca leitores de ambos os países – por que
desfazer-se da identidade que fez tais caracteres repercutirem tanto? (“...Mais vous
retrancherez moitié de la premiere [partie de l’histoire]/ Paméla: Oui pour rester tous deux
dans notre caractere...”
36
).
Estamos, aqui, claramente, no campo da paródia, comum principalmente entre
narrativas ficcionais em prosa, pelo menos desde os exercícios parodísticos de Hamilton em
relação às Mil e uma Noites. Na seara propriamente teatral, a paródia foi um gênero de
divertissement cômico-musical surgido nas primeiras décadas do século, em geral trazendo
“Parodie” no próprio título. Uma das mais conhecidas e aplaudidas foi a Parodie de
Télémaque, de Fuselier e Le Sage (o autor de Gil Blas), de 1715, apresentada no informal
Théâtre de la Foire, na Foire de Saint-Germain. O espetáculo era uma paródia em segundo
grau do romance de Fénélon, um dos mais lidos do final do século XVII – com várias
edições em Portugal e no Brasil
37
. Em segundo grau, no caso, porque parodiava a
adaptação operística do romance feita por Pellegrin, a tragédia-lírica Télémaque, ou
Calypso, de 1714, com música de Destouches
38
. “...ce genre de piéce étoit alors dans sa
nouveauté...”, afirma-se no Dictionnaire des Theatres de Paris, de 1767
39
, que credita a tal
36
Idem, p. 6.
37
Cf.: CRISTÓVÃO, Fernando Alves. Presença de Fénelon no espaço literário luso-brasileiro: subsídios
para um estudo. Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 1983. MARTINS, João Paulo. História e Romance: a
idéia de história em ‘As Aventuras de Telêmaco’ e as relações entre o texto histórico e a prosa ficcional na
passagem dos séculos XVII-XVIII. In: I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. Rio de Janeiro,
Casa de Rui Barbosa, 2004. Disponível em:
<
http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/joaopaulommartins.pdf>. Acesso em: 22/09/2006 .
38
Cf.: O extenso e aprofundado estudo: GUYON-LECOQ, Camille. La vertu des passions: l'esthétique et la
morale au miroir de la tragédie lyrique (1673-1733)
. Paris: Honoré Champion, 2002.
39
PARFAICT, Claude et François. Dictionnaire de Theatres de Paris. Tome 5. (Parfaict Dictionnaire).
Paris: Rozet, 1767. p. 372. CÉSAR, op. cit. Disponível em:
167
fato o sucesso dessa peça, apenas razoavelmente composta. Fora dos palcos, em prosa,
surge outro Telêmaco em 1736, o Télémaque Travesti, de Marivaux, narrativa que reconta a
história do romance original em tom divertido e de maurivaudage
40
.
Portanto, a Paméla de Boissy – e seu início francamente voltado para comentar, em
foram de paródia, a trama original – se inclui em um novo ambiente favorável a paródias
mais do que a adaptações (“imitações” seria um termo menos anacrônico, para a época),
mas que não as vê em grande número no teatro feitas a partir de obras em prosa. É
importante conhecer esse panorama teatral, rico e variadíssimo, para compreender-se o
contexto em que surge a paródia-imitação de Boissy.
O cenário se movimenta e é acrescido de muita irreverência em especial depois de
1715, com a morte de Luís XIV, e de 1716, com o retorno do Théâtre des Italiens, que tinha
sido fechado pelo rei em maio de 1697. Há um imenso número dos chamados Teatros de
Sociedade espalhados por toda Paris e por hôtels, maisons de campagne e castelos pelos
arredores da capital, ligados à pompa oficial da corte em maior ou menor grau, de
Fontainebleau a Sceaux, da sala de Arsenal ao Hôtel de Brancas, onde a comédia impera,
licenciosa, parodística ou musical. Há os Théâtres de la Foire, na Foire Saint-Germain e na
Saint-Laurent, onde paródias, facécias, parades, divertissements, fêtes, pantomimas,
óperas-cômicas, ballets e até espetáculos de marionetes grassam dia e noite. É o
contraponto às apresentações oficiais do Théâtre du Palais-Royal, sede da Académie
Royale de Musique, à pompa das encenações realizadas em datas especiais, que incluem até
“tragédias santas” (como Absalon, de Duché, que estreou em Saint-Cyr, em 1702, foi
mostrada em Versailles como uma das favoritas de Luís XIV em sua fase mais devota, com
o futuro regente, o duque d’Orléans, no papel de Davi, e foi encenada pela trupe dos atores
<http://cesar.org.uk/cesar2/books/parfaict_1767/display.php?volume=5&index=372>. Acesso em:
22/08/2006.
40
São raros e isolados os exemplos do que hoje se chama adaptação de obra em prosa de ficção para o palco.
Para o período que pesquisamos, cite-se a adaptação do conto Le sylphe, de Crébillon fils, à qual nos
referiremos algusn parágrafos adiante. Surpreendentemente, encontra-se um caso de transposição para o teatro
bastante recuado no tempo. Por volta de 1673, Boursault tenta levar para o palco nada menos que o romance
de Madame de Lafayette La Princesse de Montpensier, lançado anonimamente onze anos antes. Trata-se do
primeiro exercício da autora no novo gênero de narrativas históricas, inaugurado por seu amigo Segrais. O
espetáculo é um fracasso, e Germanicus, que terá várias apresentações de 1673 a 1689, é nada menos que
uma reformulação da primeira peça ao gosto do público e do meio teatral da época, ou seja, localizando a
trama dezesseis séculos antes e rebatizando os personagens com nomes romanos. Certamente apostando em
um ambiente mais propício aos “modernos”, Boursault voltará a tentar o feito com uma adaptação para o
palco do romance La Princesse de Clèves, cinco anos depois. Mas a peça terá apenas duas apresentações.
168
franceses em 1712), e às próprias peças sérias do Théâtre Français. E há, é claro, o redivivo
e bastante bem sucedido Théâtre des Italiens a partir de 1716, no Hôtel de Bourgogne, que
mantém o repertório só de comédias. Nesse panorama, o gosto pelas tragédias na tradição
do classicismo do século anterior, ou pelas óperas sérias ou trágico-líricas sancionadas pela
Académie Royale de Musique representa apenas uma dimensão ínfima de um universo rico,
complexo e, na verdade, febril, em que praticamente a cada reunião social há uma
encenação, em salas incrustadas em propriedades por toda a capital e com gente de
sociedade arvorando-se como atores. Instaura-se, obviamente, um verdadeiro clima de
concorrência. O Mercure de fevereiro de 1734 traz a seguinte descrição:
Le goût pour la Comédie, si en vogue depuis quelque temps, ne s’est point
ralenti du tout à Paris; on voit tous les jours des Compagnies, où l’on se
fait un plaisir de représenter des Pièces de Théâtre, et où elles sont, pour
l’ordinaire, jouées avec applaudissement. Parmi ces sortes de Sociétés,
celle qui était à l’
Hôtel de Brancas, et ensuite à l’Hôtel de Lauzun, est une
de celles parmi lesquelles il y a de meilleurs sujets. Nous en avons parlé
dans le Mercure de mars 1732. Des Personnes de distinction, et des
connaisseurs éclairés ont vu leurs représentations avec plaisir; et ces
Messieurs ont été souvent honorés de la présence de plusieurs Princes et
Princesses, entre autres Madame la
Duchesse du Maine y a assisté
plusieurs fois, et en a paru satisfaite.
41
O aspecto competitivo fica ainda mais claro em trechos como o que se segue, de
uma carta do presidente Hénault a Madame du Deffand, de 15 de julho de 1742: “Il y a de
grands projets de comédie pour cet hiver: on a élevé non pas autel, mais théâtre contre
théâtre”
42
. Em carta enviada do hôtel de Adnet de 17 de setembro de 1747, é Madame de
Staal quem diz à mesma Madame du Deffand:
...venons à la comédie. On joua hier La Mode, en vérité fort bien, et à la
suite une pièce de Senneterre assez bouffonne. Duplessis, habillé en
vieille, joua très plaisamment la baronne du Goulai. La connoissez-vous?
C'est une bonne figure: son ajustement, son chant, sa danse, la rendirent
très comique. Les facéties ont un succès plus sûr et bien plus général que
41
THÉÂTRE pour “ces Messieurs”. Mercure de France. 21 de fevereiro de 1734. p. 368 sq. Disponível em:
<http://www.chass.utoronto.ca/~trott/societe/notes/Arsenal.htm>. Acesso em: 23/08/2006.
42
LETTRES de la Marquise du Deffand à Horace Walpole, auxquelles sont jointes des lettres de madame du
Deffand à Voltaire. 4 volumes. Paris: Chez Ponthieu, 1824. p. 58-59. Disponível em:
<http://www.chass.utoronto.ca/~trott/societe/soc_M.htm>. Acesso em: 23/07/2006.
169
les choses plus travaillées, mais n'en fait pas qui veut: il me seroit aussi
impossible de faire une jolie farce qu'une belle tragédie.
43
Tais trechos, estendendo-se de 1732 a 1744, bastam, por ora, para iniciar a descrição
de um clima de época no qual se propagam os “teatros de sociedade” e, neles, a comédia,
em suas variadas formas, na época. Esse período é o mesmo da Pamela afrancesada de
Boissy, e é também o do aprendizado informal de certo colaborador anônimo do Théâtre
des Italiens, aprendizado feito exatamente numa famosa société onde comédias, vaudevilles
e facécias são escritas e encenadas em grande profusão: o Caveau, surgido em 1729 sob as
asas de dois autores de chansons e vaudevilles, Gallet e Panard. De Charles Duclos a
Helvétius, de Caylus à já citada missivista Madame de Graffigny, o Caveau se torna um dos
mais liberais e permissivos “teatros de socidade” de uma época ilberal e permissiva: “...il y
a déjà, vers 1731-1732, autour de Jeanne Quinault, (...) l’actrice du Français, et de Caylus,
un petit cercle dans lequel on jouait volontiers un théâtre improvise, qui s’exprime bientôt
dans des recueils de ‘lazzis’”, descreve Jean Sgard
44
. O jovem Crébillon sentir-se-á à
vontade na nova société, o que se explica por seu passado recente junto aos atores e autores
do Théâtre des Italiens. Entender esse período da vida de Crébillon e o porquê desse à
vontade no meio cômico, licencioso e frívolo é fundamental para percebermos o ambiente
em que Louis de Boissy foi formado e para o qual ele escreveu sua Paméla em France.
2.3. Crébillon fils e o espírito de paródia como contraponto
Quando, por exemplo, o jovem Claude Crébillon, filho de um dos mais prestigiados
autores de tragédias da época, Prosper Crébillon, passa a colaborar anonimamente com o
Théâtre des Italiens, Boissy já é autor experimentado e querido na companhia, que, como se
indicou, se destacava por suas paródias não de romances, mas de tragédias e óperas. “Tout
l’attire [Claude Crébillon], dès son entrée dans le monde (il a tout juste dix-neuf ans), vers
la comédie: la comédie sensible, raffinée, élégante de Marivaux, Boissy et de Destouches,
43
STAAL, Madame de. Oeuvres. Tome 2. Paris: chez Antoine Augustin Renouard, 1821. p. 461. Também
disponível em: <http://www.chass.utoronto.ca/~trott/societe/soc_M.htm>. Acesso em: 23/08/2006.
44
SGARD, Jean. Crébillon fils. Le libertin moraliste. Paris: Éditions Desjonquères, 2002. p. 87.
170
mais plus encore la comédie truculente des Comédiens italiens”
45
. Boissy destacava-se por
certa sofisticação, em meio a atores que se arvoravam a escrever, como Jean-Antoine
Romagnési, um dos líderes do Théâtre des Italiens do Hôtel de Bourgogne, filho francófono
de ator italiano, fugido de Paris, soldado que em seguida deserta e retorna à capital sob a
proteção do ator Jean Quinault, da Comédie Française, até entrar finalmente para a trupe
italiana. Com uma biografia conturbada como essa dificilmente Romagnési e outros atores-
autores da companhia dos italianos demonstrariam talento de versificadores. Certamente,
Boissy está entre os autores da companhia que são prestigiados pela habilidade em
metrificar e rimar: “Comme les Comédiens italiens peinaient à écrire en vers, ils avaient
sollicité l’aide de Crébillon...”
46
. Lembre-se que, apesar da aparente simplicidade do enredo
de La Paméla française para leitores atuais, trata-se de comédia em versos rimados.
Como já se apontou, tanto o ambiente francês, em geral, como o do Théâtre des
Italiens, em particular, era campo fertilíssimo para sátiras e paródias. Mais uma vez, fica
claro que naquele momento o alvo dos parodistas se limitava à seara dos espetáculos,
teatrais ou operísticos. Apesar de ser filho do seriíssimo e prestigiado Prosper Crébillon,
autor de tragédias como Catilina e rival preferido de Voltaire na escalada deste último
como autor de prestígio na Comédie Française, Claude Crébillon morou de favor com
Romagnési na época em que atou com o Théâtre des Italiens e é prova viva do gosto cada
vez mais difundido pelo contraponto derrisório. Louis-Sébastien Mercier escreverá o
seguinte, algumas décadas depois, lembrando de Crébillon, em seu Tableau de Paris:
Un jour il me dit en confidence qu’il n’avait pas encore achevé la lecture
des tragédies de son père (...). Il regardait la tragédie française comme la
farce la plus complète qu’a pu inventer l’esprit humain. Il riait aux larmes
de certaines productions théâtrales (...). Le rôle du capitaine des gardes,
tantôt traître, tantôt fidèle, selon la fantaisie du poète, le faisait surtout
pâmer de joie.
A conclusão de Jean Sgard nos parece certeira, mesmo descontando-se supostos
exageros da parte dos dois amigos:
45
Idem, p. 51.
46
Idem, p. 53.
171
...peut-on saisir ici chez notre romancier l’esprit même de la parodie,
jusque dans cette façon de renverser la hiérarchie, de discréditer le “roi de
Versailles” pour mettre en honneur le capitaine des gardes, tout en
considérant au fond que la parodie est plus fidèle à la vérité que la
tragédie à la française.
47
O próprio status de autor anônimo de Claude Crébillon no Théâtre des Italiens,
facilitado pelo costume de escrever espetáculos a várias mãos, se explica facilmente pela
irreverência diante das tragédias, praticadas tanto por seu pai quanto por seu protetor e,
como já dito, futuro rival de seu pai, Voltaire. Crébillon fils é responsável, também, por
uma paródia da época que tira da Paméla de Boissy a precedência emmatéria de
transposição satírica de obra em prosa para o palco, no Théâtre des Italiens. Trata-se de La
Sylphide, de 1730, imitada (termo da época para nosso “adaptada”) do pequeno conto
licencioso Le Sylphe, de nosso futuro inventor do romance de libertinagem. Paródias de
óperas, como Arlequin Phaéton, de 1731, feita a partir do Phaéton de Quinault, que teve
reprises seguidas no Théâtre du Palais-Royal de 1692 a 1731, chegando até 1742 e
despedindo-se, provavelmente, na corte, em 1750. O tempo era de paródias que às vezes
sobreviviam aos próprios originais.
2.4. Ancestralidade dos salons no início do século XVII: o hôtel de Rambouillet
O ponto central a ressalvar no panorama aqui desenhado é o surgimento de um
contraponto informal ou mundano à etiqueta e ao cerimonial da corte, contraponto este que
teve sua origem ainda no início do século XVII, e que atravessará o seguinte – o que nos
obriga a um rápido recuo no tempo.
Muitos pesquisadores localizam no hôtel da marquesa de Rambouillet, surgido
ainda nos anos de 1620-1630, o início da tradição dos salons parisienses. É um momento
crucial para entender como, cerca de cem anos depois, a experiência teatral, séria ou
cômica, se desenrolará entre o espaço público dos Théâtres de Foire e a privacidade
selecionada dos teatros de société – levando-se sempre em conta que as esferas pública e
47
Idem, p. 52.
172
privada sofrem franca transformação durante o Ancien Régime, não podendo ser
comparadas, nem em sua concepção imaginária, nem na prática, ao que hoje entendemos
como tais. Analisando-se o motivo que leva a marquesa de Rambouillet a criar seu salon
em um espaço arquitetonicamente modificado para tal – já que ela própria atua como
projetista, arquiteta e decoradora –, é possível descrever com mais exatidão a separação que
irá se operar, na França das décadas seguintes, entre la Cour e la Ville. Isso determinará,
também, é claro, o gosto pela comédia como contraponto a certo “processo civilizador” que
fazia da vida da Corte, em torno do rei, um exercício estéril de seriedade, etiqueta,
convencionalismo e cerimoniais. É Tallemant des Réaux quem descreve, em trecho de suas
Historiettes:
...dès vingt ans elle [Madame de Rambouillet] ne voulut plus aller aux
assemblées du Louvre. Elle disait qu’elle n’y trouvait rien de plaisant (...)
et que quelquefois il lui est arrivé de se mettre en une chambre pour se
divertir du méchant ordre qu’il y a pour ces choses-là en France. Ce n’est
pas qu’elle n’aimait le divertissement, mais c’était en particulier.
48
Nesse contexto, a descrição de um estudioso do período inaugural do hôtel de
Rambouillet, é de serventia para um momento cem anos adiante, em que a comédia, em
48
GÉNÉTIOT, Alain. Poétique du loisir mondain. De Voiture à La Fontaine. Paris: H. Champion, 1997. p.
120. No hôtel da marquesa de Rambouillet já se encontrava o gosto por teatros, bem como certa teatralização
dos encontros sociais, levando a confundir os limites entre reunião em sociedade e representação ilusionista.
“...un soir donc qu’il y avoit grande compagnie à l’hostel de Rambouillet, tout d’un coup on entend du bruit
derrière la tapisserie, une porte s’ouvre, et Mademoiselle de Rambouillet (...), vestue superbement, paroist
dans un grand cabinet tout à fait magnifique, et merveilleusement bien esclairé. Je vous laisse à penser si le
monde fut surpris. Ils sçavoient que derrière cette tapisserie il n’y avoit que le jardin des Quinze-Vingts, et
sans en avoir eu le moindre soupçon, ils voyoient un cabinet si beau, si bien peint, et presque aussy grand
qu’une chambre, qui sembloit apporté là par enchantement” (TALLEMANT. Les Historiettes de Tallemant
de Réaux. Tome 2. Paris: Alphonse Levavasseur, Libraire, 1834. p. 226-227. (BNF-Gallica). Disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k315695>. Acesso em: 22/08/2006. Cf.: CRAVERI, Benedetta. L’âge
da la conversation. Paris: Gallimard, 2002. p. 47-49). A arquitetura do hôtel é subvertida pela própria dona,
que atua como arquiteta, em prol de um uso inédito do espaço para a conversation e até quadros teatrais. Ela
inova “...en faisant percer de larges fenêtres propices à une demeure d’agrément, en haussant les plafonds et
en déplaçant les escaliers, de façon à permettre la disposition en enfilade des pièces de réception, dans
l’optique de la nouvelle fonction qu’elle entend promouvoir, la conversation mondaine dans le salon à la
française...” (GÉNÉTIOT, Alain, op. cit., p. 119). Certa feita, brinda o prestigiado bispo de Lisieux com um
quadro teatral inesperado: “La marquise proposa donc à M. de Lisieux d’aller se promener dans la prairie.
Quand il fut assez près de ces roches pour entrevoir à travers les feuilles des arbres, il aperçut en divers
endroits je ne sais quoi de brillant. Étant plus proche, il lui sembla qu’il discernoit des femmes, et qu’elles
étoient vêtues en nymphes. La marquise, au commencement, ne faisoit pas semblant de rien voir de ce qu’il
voyoit. Enfin, étant parvenus jusqu’aux roches, ils trouvèrent mademoiselle de Rambouillet et toutes les
demoiselles de la maison, vêtues effectivement en nymphes, qui, assises sur ces roches, faisoient le plus
agréable spectacle du monde”. (TALLEMANT, op. cit., p. 218-219).
173
suas múltiplas formas, na feira ao ar livre ou nos cômodos dos castelos ou hôtels,
representará contraponto e descanso em relação à “méchante ordre” praticada na órbita do
rei:
C’est donc à la Ville, en face du Louvre et concurremment à lui, que naît
la civilisation mondaine qui propose une alternative, un mode différent
d’être ensemble, privilégiant le loisir et le divertissement en accord avec
l’humeur enjouée de la maîtresse de maison.
49
O recuo até os momentos inaugurais da valorização de um tipo de divertissement de
salon nos ajuda a melhor entender o porquê da riqueza e da pluralidade de formas teatrais
não oficiais e não sérias. É sabido que aquele estado de coisas cultural francês inaugurado
por Madame de Rambouillet manteve-se e expandiu-se bastante ao longo do século XVII e
do início do XVIII, tornando-se, na verdade, muito mais agudo com a liberalização dos
comportamentos trazida pela morte de Luís XIV, que se voltara, nos últimos anos de seu
reinado, de forma acentuada, para uma devoção religiosa inédita – daí, por exemplo, a
“tragédia santa” citada acima. Nesse panorama, os anos de 1730 surgem como um
prolongamento lógico da maior distensão e permissividade também favorecida pelos modos
ditos libertinos tanto do regente, Phillip II, duque d’Orléans, quanto do jovem Luís XV, que
ascende ao trono em 1723
50
.
49
GÉNÉTIOT, Alain, op. cit., p. 120.
50
Essa imagem do período é hegemônica entre historiadores e pesquisadores do período. (Cf. STEWART,
Phillip. Le masque et la parole. La langage de l’amour au XVIIIè siècle. Paris: José Corti, 1973; COULET,
Henri (org.). La Régence. Paris: Armand Colin, 1970). Há também um interesse recente em matizar
conclusão tão difundida. Bernard Hours se debruça principalmente no reinado de Luís XV, em especial de
1750 em diante. Antes disso, no entanto, destaca argumentos que compõem a visão a que nos referimos:
“...plusieurs symptômes conduisent au même diagnostic pessimiste: avec le règne du Bien-Aimé [Luís XV]
commence l’ ‘automne de Versailles’. Plus les années passent, plus on juge ‘désuets’ un nombre croissant
d’usages et l’étiquette paraît de plus en plus souvent ‘ridicule’. (…) De cette décadence, le roi est responsible
et l’on retrouve le portrait bien connu d’un Louis XV écartelé entre le privé et le public, entre l’homme et le
monarque: “Fatigué par le cérémonial, il aime à vivre en particulier”. Hours combate essa imagem, bem como
a fama de libertino de Luís XV, percebida por ele como emanando da Igreja e de uma nobreza descontente
com sua escolha de ter como amante a plebéia Jeanne Poisson, futura Madame de Pompadour. (HOURS,
Bernard. Louis XV et sa Cour. Paris: PUF, 2002. p.1-2. No trecho, Hours cita: SOLNON, Jean-François. La
cour de France. Paris: Fayard, 1987. p. 423). Mas a imagem da Regência (1715-1723) como período de uma
nova permissividade nos costumes e nas artes é coerente com o surgimento de um inédito realismo na prosa
ficcional, com Le Sage, Marivaux, Prévost e Claude Crébillon, bem como no teatro, com a febre das
comédias, paródias e espetáculos informais, nas feiras ou no Théâtre des Italiens. Também o surgimento de
um gênero novo, a comédia larmoyante, indica nova liberdade de acolhimento da produção artística não
convencional, nem oficial. Nem que seja apenas de forma panorâmica, portanto, a assertiva nos parece
correta.
174
2.5. A Paméla de Boissy: entre o divertissement e a comédia clássica
O retrato de uma maior liberalidade na escrita e encenação de comédias no teatro
parisiense dos anos 1720 a 1740 pode ser traçado a partir da trajetória do próprio Louis de
Boissy, autor da primeira Paméla francesa. A riqueza do meio teatral parisiense da época,
bem como, é claro, o temperamento pessoal do personagem em questão, fazem de Boissy
não um autor reservado de théatres de société, mas um daqueles homens que transitavam
entre vários mundos – tendo o Théâtre des Italiens como referência de liberalidade e
sarcasmo. Estreou em 1721, aos 27 anos, com uma comédia em prosa, La rivale d’elle-
même, ou Le mari galant de sa femme, na Comédie Française. Depois, tenta sem sucesso a
seara da tragédia, com Alceste et Adméte, vetada pela censura, reescrita (“...y substitua plus
de 600 vers nouveaux...”, como se lê na Bibliothèque des Théâtres de Maupoint, de 1733
51
)
e, só então, rebatizada de La mort d’Alceste, em 1727. Mas o artifício de nada adiantou,
pois a peça tem apenas duas representações.
A sorte de Boissy começa a mudar naquele mesmo ano, mais especificamente a 3 de
julho, quando estréia Le François à Londres, comédia em um ato e em prosa, assim
descrita no verbete do Dictionnaire Portatif Historique et Litteraire des Theatres, de De
Leris: “...donnée pour la premiere fois au Thé. Fran. Le 3 Juillet 1727, très-goutée, & jouée
23 fois de suite”
52
. Ou seja, o espetáculo teve uma apresentação a mais que o imenso
sucesso attendrissant Mélanide. A contar pelo verbete desse dicionário, Boissy era um
especialista em diferenças culturais entre os dois países: “Le contraste des caracteres des
François & des Anglois, est naturel & touché avec vivacité dans cette piece...”, e o
complemento é informação sobre a entrada da peça no repertório da companhia: “...que l’on
51
BIBLIOTHÈQUE des theatres. Paris: Chez L.-François Prault, 1733. p. 7. Disponível em:
<http://cesar.org.uk/cesar2/books/maupoint/display.php?index=0>. Acesso em: 01/07/2006.
52
DE LERIS. Dictionnaire Portatif Historique et Litteraire des Theatres. Paris: Chez C. A. Jombert,
1763. p. 214. Disponível em:
<http://cesar.org.uk/cesar2/books/leris/view_entry.php?id=3336&search_string=françois%2Bà%2Blondres&r
efresh=1152055258>. Acesso em: 04/07/2006.
175
donne souvent au Public”
53
. Na verdade, trata-se de reprodução das impressões registradas,
com as mesmas palavras, na Bibliothèque des Théâtres, “...Avec des anedoctes sur la
plûpart des Piéces contenuës en ce Recüeil, & sur la vie des Auteurs, Musiciens &
Acteurs”, de 1733, onde se lê o mesmo “...le contraste des caracteres des François & des
Anglois y est touché avec vivacité; cette Piéce fut goutée & suivie au Théatre François au
mois de Juillet 1727”
54
.
O mesmo Dictionnaire descreve assim a carreira do autor nascido na cidade de Vic,
em Auvergne, em 1694: ele “...commença à travailler pour le Théatre en 1721, & est un des
Auteurs qui l'a fait le plus abondamment. Ses pieces ont beaucoup de brillant, & il en a
d'excellentes”
55
. Ele será autor abundante, entra para a Académie Française em 1754 e
passa a editar com sucesso o periódico Mercure em 1755. Na verdade, o início na Comédie
Française não deve enganar quanto ao talento de Boissy para comédias leves e frívolas,
como a própria Paméla en France. Para o Théâtre des Italiens, porém, era vantajoso ter um
versejador, que conhecia as regras clássicas e podia trazer prestígio a uma companhia que
não podia praticar uma informalidade como a dos teatros de Foire ou de Société. Tenha
sido ou não o sucesso de Le François à Londres que levara Boissy a compor sua Paméla, a
verdade é que ele é autor não apenas de couplets graciosos como também de uma leveza
cômica muito ao gosto da época. Um exemplo de couplet, dedicado a Dumenil, a
Demoiselle Marie, atriz parisiense que estreou na Comédie Françoise em 1737: “Dans son
brillant essai, qu'applaudit tout Paris,/ Le suprême talent se développe en elle,/ Et prenant
un essor dont les yeux sont surpris,/ Elle ne suit personne & promet un modele”
56
. A idéia
de modelo e de ineditismo ou singularidade (“Elle ne suit personne...”) se deixa ver, aqui,
de forma clara. A mesma alternância tensa esteve em jogo na acolhida ou absorção de
Pamela na cultura francesa da época. Afinal, causando tamanha repercussão por conta de
sua singularidade de linguagem (coloquial e sentimental) e de postura ética (a virtude
resistente, ou teimosa, em uma sociedade de aristocratas que tinham na libertinagem uma
espécie de ponto de honra), as Pamelas, personagem e romance, tornaram-se modelos por
excelência da nova narrativa.
53
Idem, ibidem.
54
BIBLIOTHÈQUE des Theatres, op. cit., p. 148. Disponível em:
<http://cesar.org.uk/cesar2/books/maupoint/display.php?index=148>. Acesso em: 04/07/2006.
55
DE LERIS. op. cit., p. 515.
56
DE LERIS, op. cit., p. 567-568.
176
Do “nós” como plural de modéstia, usado pelo personagem do jardineiro, Mathurin,
ao fato de o Chevalier ficar sabendo da chegada de Pamela à França “...Par les nouvelles à
la main”, esses ancestrais dos jornais diários, que espalhavam por Paris as novidades
redigidas por verdadeiras proto-redações
57
, Paméla en France traz referências ao dia-a-dia
do público, o que a uma tragédia nunca era permitido. Mas uma questão emerge em meio
ao tom agradável de divertimento rimado e, a páginas tantas, prometedor de uma fête ao
final da intriga – o que lhe garantiu casa lotada, segundo o trecho das Anedoctes
dramatiques que citamos no item 2.1: “La Fête qui en fait le dénouement [da peça de
Boissy], très-ridicule à lire, mais fort agréable à la représentation, la fit jouer treize fois”
58
.
Como, aliás, não podia deixar de ser, a questão que logo se destaca é a da
comparação intercultural entre os costumes franceses e ingleses. “Les gens de mon pays ont
l’abord plus honnête,/ Des faveurs du beau sexe ils font la conquête,/ C’est toujours
poliment, & du ton qui convient./ Un Anglois les arrache, un François les obtient.”
59
. O
trecho a seguir é menos coquete e mais relacionado ao nó “virtude versus libertinagem”,
fazendo pensar em uma relação feita pelo comediógrafo entre resistência virtuosa e uma
prática supostamente inglesa de pudor feminino:
PAMÉLA. Plus vos manieres sont aimables,/ Plus nous devons vous
éviter...”. “LE CHEVALIER. Il faut pour son triomphe, il faut,
Mademoiselle [o triunfo da virtude incomum de Pamela],/ Qu’elle
éprouve & résiste a la séduction,/ Des fêtes, des plaisirs, de tout ce qu’on
appelle/ Fine galanterie, ou belle passion;/ (...) Et que pour sortir plus
brillante & plus belle,/ Elle passe par la coupelle/ D’un jeune Amant
François, & Gascon, qui plus est.
60
57
Robert Darnton relata o caso da “gazette à la main” de Madame Doublet, apurado e redigido por criados
seus, em um bureau parisiense. “...un nommé Gillet son [de Madame Doublet] valet de chambre est à la tête
du bureau tenu par les laquais que l’on paye à la feuille, que ces bulletins sont bons, parce que c’est le
résultat de tout ce qui se dit dans les meilleures maisons de Paris...”, lê-se em um relatório de espião de
polícia. DARNTON, Robert. Vies privées et affaires publiques sous l’Ancien Regime. In: Actes de la
Recherche en Sciences Sociales. Représentations du monde social – Textes, images, cortèges. Paris: Seuil,
setembro 2004. p. 29.
58
ANEDOCTES Dramatiques. Tome 2, op. cit., p. 34.
59
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 18.
60
Idem, p. 18-19.
177
E, finalmente, de maneira mais direta e generalista, retomando a idéia de “crisol”
(coupelle), ou seja, vaso onde se fundem metais ou, mais abstratamente, onde se apuram
sentimentos: “...pour bien éprouver la vertu d’une fille;/ Il faut absolument le creuset [outra
vez, “crisol”] de Paris”. A imagem de rudeza no trato com as mulheres emana do ex-patrão
inglês de Pamela e, por extensão, de todos os homens ingleses. Trata-se, sobretudo, de uma
rudeza verbal, retratada na peça por meio da inversão ligeira e graciosa da ironia:
...Dans vos climats vous n’avez éprouvé,/ Que les combats grossiers & la
hauteur choquante,/ D’un Gentil-homme brusque & des plus mal appris,/
Qui toujours vous trate en servante,/ Et vous prodigue è tout propos/ Les
agréables noms, les doux & tendres mots,/ Et de sotte & d’impertinente.
61
Contra a grosseria inglesa, o francês oferece, de um lado, fortes imagens sensórias,
em sua melhor tradição licenciosa: “S’il eut embrassé vos genoux,/ Si vous baisant la main
d’une bouche pressante...” e, em seguida, a delicadeza de outra tradição mundana, a da
galanteria, com direito a sentido eufemístico da palavra “touchante” relacionada à cena
licenciosa, significando a um só tempo “delicada” e “concreta”: “C’est pour rendre à vos
yeux la chose plus touchante,/ S’il vous eut dit, ma Reine, ma charmante,/ Je meurs,
ressuscitez un homme tout à vous;/ (...) Ce discours vous eut attendrie”
62
.
A cena ajuda a perceber em que medida a comédia ao estilo do Théâtre des Italiens
influenciará Claude Crébillon em sua invenção máxima, o romance de libertinagem. O
jovem que freqüentava a sala na rua Mauconseil, e que assistia comédias de Boissy desde
seus 20 anos de idade devia absorver com especial atenção diálogos como o que
analisamos, centrado nas minúcias de linguagem do momento da conquista masculina, a
prova estando em seus próprios escritos dialógicos, como La nuit et le moment, de 1745, e
Le hazard au coin du feu, de 1763: “PAMÉLA. J’aurois ri......../ LE CHEVALIER. Bon,
fille que rit/ Commence d’être favorable,/ On est bien près de plaire alors qu’on divertit. P.
Ce ton là pour mon cœur n’est pas bien redoutable./ L.C. C’est pourtant le bon ton de
Paris...”
63
.
61
Idem, p. 21.
62
Idem, p. 22.
63
Idem, ibidem.
178
Depois da descoberta da mascarade do marquês, que estava disfarçado como sua
própria irmã, Pamela resolve reafirmar sua virtude, de preferência a “...achetter lâchement
comme tant d’autres font,/ Une fortune illégitime,/ Par un déréglement, (...)/ Et sous un
faux dehors jouir au sein du crime/ De tout l’éclat de la vertu”.
64
A referência à fortuna
ilegítima e aos crimes faz pensar no destino do romance de libertinagem, bem como na
literatura obscena que já grassava na época: na França, Pamela parece mais informada do
que nunca das modalidades de práticas libertinas das mulheres. Por sua vez, a concierge
Nerine conclui o primeiro ato com graciosa leveza, tendo a virtude como questão de fundo,
em relação à qual o comediógrafo tenta contribuir com uma reflexão também leve; ele
discorda da atribuição de um pudor supostamente menos acentuado na França, em relação à
Inglaterra: “La sagesse par-tout dépend des conjonctures,/ Et l’honneur des autres pays/
N’est pas plus épuré que celui de Paris”. Na verdade, a idéia de uma virtude oscilante para
melhor lidar com a vida real, em nova perspectiva realista, acaba imperando no trecho:
Tout chancéle ici bas, c’est notre destinée./ On est sage aujourd’hui, l’on
ne l’est pas demain,/ Notre vertu va droit dans la journée,/ Selon le tems
qu’il fait, & selon le chemin,/ Elle tombe l’après dinée,/ Et se releve le
matin.
65
No fim das contas, portanto, a especificidade da moral ligada aos costumes, na
França, é motivo de um orgulho com tom sarcástico: a oscilação ética é vista com certa
serenidade cômica, afinal há nela prós e contras, ganhos e perdas. A reentrada do marquês
sem o disfarce se desenvolve no sentido da analogia entre conquista erótico-amorosa e
ofensiva militar, bastante comum na época, principalmente nos textos licenciosos ou de
libertinagem. Na verdade, tal analogia indica que a intrepidez heróica e guerreira
aristocrática passara a ser canalizada para os jogos amorosos de corte ou de salon.
Si l’héroïsme viril du corps à corps avec l’ennemi se réduit à des
entreprises sexuelles sans grand danger pour le séducteur, les liens du
courage et de la galanterie chevaleresque se défont. L’honneur n’est plus
qu’affirmation égoïste de soi, mépris pour les victimes, privilège
arbitraire. Le raffinement chevaleresque cède la place à la brutalité.
66
64
Idem, p. 26.
65
Idem, p. 28.
66
DELON, Michel. Le savoir-vivre libertin. Paris: Hachette, 2000. cap. 2: “Le modèle militaire et la
violence”. p. 52.
179
É famosa a cena de um dos primeiros romances ditos de libertinagem, Les
confessions du comte de ***, de Charles Duclos, em que o conde se precipita sobre sua
conquista “...avec tant d’empressement que j’obtins la dernière faveur ayant encore mon
épée au côté et mon chapeau sous le bras”
67
. Nas Liaisons dangereuses, considerado
momento máximo de sofisticação de forma e conteúdo do gênero, a guerra é incorporada à
estrutura das idas e vindas da intriga, e os dois libertinos, Madame de Merteuil e o visconde
de Valmont, praticam táticas e estratégias de conquista, em relação a suas vítimas, mas
também em relação um ao outro, até o embate final. “Le libertinage peut alors apparaître
comme la continuation civilisée et sexualisée de l’état de guerre hobbien, ou comme la
continuation de la politique dans la vie mondaine”, escreve um estudioso de Laclos
68
.
Porém, como o combate se transferiu de teatros de guerra reais e concretos, onde exércitos
particulares se enfrentavam sem respeito a um rei ou a um Estado unificado, para o teatro
mundano, para os salons, as alcovas e as antecâmaras da corte, as escaramuças libertinas
ocorrerão, agora, no âmbito da civilidade.
Tout se passe comme si le libertinage, cette violation soigneusement
réglée, se soumettait aux normes de la civilité (...). Le libertinage,
fantasme d’une société de l’étiquette en manque de gloire, tente de
répondre à cette étrange question: comment faire le mal sans violer la
politesse (la dernière élégance des héros sans héroïsme)?
69
Portanto, não admira que Valmont abuse da analogia na cena da tomada da fortaleza
da presidenta de Tourvel, quando alcança ao “théâtre de sa victoire”:
Ce ne’st donc pas, comme dans mes autres aventures, une simple
capitulation plus ou moins avantageuse (...); c’est une victoire complète,
achetée par une campagne pénible, et décidée par de savantes
manœuvres.
70
Je la conduisis vers le lieu précédemment désigné pour le champ de ma
gloire. (...) Jugez-moi donc comme Turenne ou Frédéric [da Prússia]. J’ai
forcé à combattre l’ennemi qui ne voulait que temporiser; je me suis
67
DUCLOS, Charles. Les confessions du comte de ***. In: TROUSSON, Raymond, op. cit., p. 184.
68
GOLDZINK, Jean. Le vice en bas de soie. Paris: José Cortí, 2001. p. 120.
69
Idem, p. 122.
70
LACLOS, Choderlos de. Les liaisons dangereuses. Paris: Gallimard, 1952. p. 334.
180
donné, par de savantes manœuvres, le choix du terrain et celui des
dispoitions; j’ai su inspirer la sécurité à l’ennemi, pour le joindre plus
facilement dans sa retraite; j’ai su y faire succéder la terreur, avant d’en
venir au combat.
71
Na peça Paméla en France, encenada 39 anos antes do aparecimento do romance de
Laclos, mas apenas dois após o de Duclos, a concierge já começa usando o vocabulário de
guerra: “Vous voilà pour combattre, & pour vaincre/ la belle,/ En habit sortable & décent,
[ou seja, viril, masculino]/ Il vous donne un air conquerant,/ Qui vous promet déja la
victoire près d’elle”. O marquês dá seqüência à analogia: “J’ai de sa part à craindre un
ennemi puissant. (...) C’est la vertu rebelle”. E Nérine mantém o tom, analisando a tática da
outra: “Pour reculer elle est trop avancée”
72
. Em terras francesas, Pamela parece ter
substituído a opressão persecutória e um tanto paranóica de um patrão inclemente e bruto
pela violência dissimulada de um tipo libertino que se espelha numa “dessublimada” ou
transubstanciada imagem do herói militar. A cada latitude cabe um ideal de masculinidade.
Mas a comédia sabe jogar com essas diferenças. A horas tantas, depois de dizer que
não imitará seu “...incivil prédécesseur” (“Je ne le suivrai pas dans son impolitesse,/ Et je
ferai toujours doux, flatteur & soumis”), o marquês se surpreende com a seguinte frase de
Pamela, com seu óbvio sentido licencioso: “Ah! Devenez brutal, c’est moi qui vous en
presse. (...) Ayez à mon égard les façons les plus dures,/ Reprochez-moi tous mes défauts,/
Et le peu que je sui, & le peu que je vaux,/ Chassez-moi de chez vous, dites-moi des
injures”
73
. Aqui se pode imaginar a intensidade do efeito cômico diante de uma platéia que,
em sua imensa maioria, lera a tradução do romance de Richardson e mantivera-se suspensa,
ao longo de nove centenas de páginas, diante da extrema delicadeza resistente e cidadã da
criada para com qualquer sinal de brutalidade de matiz erótica por parte de Mr. B. A
inversão feita por Boissy nessa cena traz consigo um alto grau de abrandamento da tensão,
pela via de um realismo mais ousado. Com ela, alcança-se o fundo licencioso ou quase
obsceno que desataria o nó da suposta (ou não) hipocrisia de Pamela. Por trás da máscara
de pudor, a suposição aqui é de prontidão para a cena de conquista, na trilha do que foi
apontado por Jean-Marie Goulemot ao estudar a literatura erótica ou obscena do período.
71
Idem, p. 340; trecho citado por Delon, Michel, op. cit., p. 53.
72
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 29.
73
Idem, p. 37-38.
181
Diferentemente do romance libertino, o romance erótico nunca encena
uma resistência ao ato amoroso. Neste não há nada mais do que corpos
oferecidos, desejos espontâneos e volúpias imediatas. Se ele evoca uma
resistência, é para melhor descrever um início de violação, espécie de
pimenta, por outro lado, sem maior conseqüência, já que a vítima dá seu
consentimento rapidamente e acaba partilhando o júbilo e os prazeres de
seu agressor. A noção de obstáculo, tão essencial à narrativa libertina, é
totalmente alheia ao mundo erótico.
74
Obviamente, a permissividade característica da comédia a aproximava – sem, no
entanto, confundi-la – das narrativas eróticas que grassavam na França desde o século
anterior. A cena destacada o prova, embora mostre, também, que se trata de licenciosidade
integrada à própria lógica contraditória e tensa que emana do romance de Richardson. O
alívio com gosto de cumplicidade licenciosa que ela certamente provocava nos
espectadores os aproximavam do sarcasmo de um Fielding ao descrever uma cena de
investida erótica em seu Shamela claramente ressaltando a óbvia ambigüidade erótica da
reação da Pamela original:
Upon which he run up, caught me in his Arms, and flung me upon a
Chair, and began to offer to touch my Under-Petticoat. Sir, says I, you had
better not offer to be rude; well, says he, no more I won't then; and away
he went out of the Room. I was so mad to be sure I could have cry'd. Oh
what a prodigious Vexation it is to a Woman to be made a Fool of.
75
A cena fogosa leva o marquês a externar vapores idealizados, corteses: “LE
MARQUIS. Des injures! À vous, mon Astre, ma Déesse...”, e em justificativa engenhosa
para a impetuosidade erótica: “PAMÉLA. J’en ai besoin [des injures] pour vous haïr”
76
.
Porém, na seqüência, o marquês conquista a criada inglesa, de forma convincente. Já
completamente conquistada pelos modos cuidadosos do marquês, Pamela encontrará um
obstáculo artificial inventado pela concierge para garantir, de maneira ainda mais cabal, a
“vitória” de seu patrão: ela diz que a festa a ser dada ali no fim daquele mesmo dia seria
simplesmente a do casamento do marquês com uma dama da região, e acrescenta que ela
74
GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão. Leitura e leitores de livros
pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial, 2000. p. 73.
75
FIELDING, Henry. Shamela. Londres: Penguin Books, 1990. p. 28.
76
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 38.
182
desejava conhecê-la. Pamela, com muita raiva, duvida de todas as juras que acabara de
ouvir do marquês e diz que, por vingança, casará com o jadineiro Mathurin. Nérine, que
constata: “Elle aime le Marquis, sa douleur me l’annonce”
77
, conta ao marquês que o
estratagema ajuda a se certificar do amor da criada e, na verdade, aumenta-o, ao incluir um
obstáculo imprevisto. Ele, é claro, teme pela reação dela. O Chevalier – aliás, assim como a
concierge – revela ser uma espécie de Arlequim, personagem-tipo da commedia dell’arte
que tornou-se um dos símbolos do Théâtre des Italiens. Ele surgia em geral como animador
da intriga, sarcástico e mexeriqueiro, e jamais pisou no prestigiado palco da Comédie
Française.
A commedia dell’arte, aliás, fora a base da instauração do Théâtre des Italiens em
Paris, em 1681, com peças encenadas exclusivamente em italiano, com gestual hiperbólico
e bufão típico, que virou outra marca da companhia. A referência ao Arlequim, aqui, se faz
de passagem, já que, como personagem nomeado, ele só surgirá na terceira e mais
livremente cômica das peças analisadas, La déroute des Pámela, que estreou no Théâtre des
Italiens a 23 de dezembro de 1743, e que analisaremos no Capítulo 5, adiante. Na verdade,
Nérine e o Chevalier são personagens de ligação, manipuladores da intriga, bem ao gosto
do público da commedia dell’arte. Obviamente, isso não significa que Pamela e o marquês
se afastem da simplicidade de personagens-tipo, mas sem dúvida eles se aproximam, de
alguma forma, de protagonistas de uma leve comédia sentimentalizada, ou larmoyante.
Com efeito, apesar da demonstração de verdade sentimental do marquês, o autor gasta
muito mais tempo nas intrigas artificiosas, semelhantes à de qualquer espetáculo divertido
de commedia dell’arte, do que na pintura do amor entre os dois protagonistas, assumindo
para a peça o perfil de comédia leve. Sendo impensável uma comédia mais séria – no
sentido de larmoyante – no Théâtre des Italiens, a pitada de sentimento entre o marquês e
Pamela, que sustentaria um interesse menos superficial e convencional na peça, acaba indo
por água abaixo. Ainda não seria dessa vez que o aspecto de uma “verdade no amor”,
fundamental para aproximar a Pamela vinda da Inglaterra do gosto pelas lágrimas
amorosas, que já grassava na França, teria um pouso admissível no palco parisiense.
Faltava à Pamela en France menos commedia dell’arte e mais diálogos ou monólogos
77
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 43.
183
apaixonados por parte do marquês e da criada. Mas será que o Théâtre des Italiens os
aceitaria?
Uma das provas do gosto convencional de comédia de personagens-tipo é a postura
de pura e simples diversão no manuseio da intriga, que se anuncia quando o Chevalier
descreve a si mesmo: “Et moi, de tout Ceci, je serai Spectateur,/ On a beau faire, on a beau
dire,/ Je m’amuse de tout, & ne prens rien à cœur. (...) Qu’on fasse bien ou mal on me voit
toûjours rire,/ Ou de la chose, ou de l’Acteur”
78
. Páginas adiante, na suposta leitura que faz
da carta de amor de Pamela ao jardineiro analfabeto, o Chevalier transforma o texto em
carta de ódio, impedindo que a criada se vingue do marquês. Em seguida, confessa que,
mesmo se fracassar na tentativa de conquistar Pamela, “...Je me divertirai toûjours à leur
sujet,/ Et je satisferai ma gaité naturelle”, reforçando seu espírito de Arlequim, personagem
sempre disposto, acima de tudo e de todos, a divertir-se e intrigar. Diante de Nérine,
obviamente, diz ser o alvo da carta, e quando ela lembra da amizade do marquês, diz: “En
fait de belle, on n’épargne personne,/ La tromperie est toûjours bonne...”. Logo fica patente
a superficialidade (assumida) do personagem pela rapidez com que desiste da disputa com
o marquês, ao ser desmascarado pelo jardineiro que, escondido, ouve o Chevalier lendo o
verdadeiro conteúdo do bilhete e o reconhece. O jardineiro passa a ser “Un rival tout
nouveau que vous [o marquês] n’attendiez pas”, segundo Nérine.
Mais adiante, nos conselhos do Chevalier ao marquês, revela-se a prática, comum
na época, de referências satíricas ao próprio meio teatral parisiense sério. Boissy o faz
graciosamente, ao comparar a arte da conquista à da magia e, em seguida, à da ópera. Sem
expulsar o jardineiro, e sem atos rudes em relação a ela – aqueles que o patrão inglês de
Pamela sabidamente praticava – há muito mais chance de vencer o pudor feminino: “...si tu
veux user de violence,/ Qu’elle soit douce em apparence,/ Et ravisse les sens pour
subjuguer le cœur”. A aula de sedução continua: “Pour retenir ses pas & vaincre sa rigueur,
Il faut avoir recours à l’art Magique”
79
.
Aqui, Boissy joga, elegantemente, com o sentido arcaico de uma palavra como
“charme” que, obviamente, está na órbita semântica de “séduction” e logo aparece ligada
ao fascínio do espetáculo – tanto o operístico ou teatral, quanto o do conquistador amoroso,
78
Idem, p. 27.
79
Idem, p. 68.
184
suave e encantador (“ravissant”), no texto. No século XVI, só havia de “charme” o
significado: “Opération magique”, bem como de “charmant”, o de: “Qui a un pouvoir
magique”. O adjetivo “charmeux” já se aproxima mais do sentido posterior, ligado ao jogo
da sedução: “Charmeux. Qui charme, qui a um pouvoir magique, surnaturel (au propre et
au figure)”, como se lê no Dictionnaire de la Langue Française du Seizième Siècle. O
exemplo destacado não deixa dúvida: “charme” transladava-se do campo da magia para o
da galanteria. “Les apasts d’une charmeuse dame. P. de Cornu, Œuvr. poet.; p. 7. Il dort
donques recueilli Dedans les couches Cyprines Pinctes du charmeux oubli De toutes ses
concubines. Luc de la Porte, trad. Horace, Epodes, 5”
80
.
Diante da surpresa do marquês para com a “art magique”, o Chevalier rebate:
“...sois moins effrayé,/ C’est celui qu’on exerce au Théâtre Lirique”. Trata-se das óperas,
apresentadas na Academie Royale de Musique. Aqui, elas representam todo um leque de
espetáculos, dimensão do savoir-faire amoroso e galante: “Pour Paméla le Spectacle la
charme,/ La Danse la ravit, & le chant la desarme./ Pour la soumettre enlève-la/ Dans une
gloire d’Opéra”. Essa dimensão é contrária ao pudor: “...l’air de ce pays-là/ Est si contraire
à l’innocence,/ Qu’en y mettant le pied, (...) dans l’instant/ Elle y tombe en foiblesse &
meurt subittement”
81
.
O marquês adere ao clima de glorificação dos meios teatrais e operísticos que, na
verdade, são os mesmos dos da festa – aquela que se anuncia mais uma vez como
conclusão do espetáculo. Ele fará o papel do prazer enamorado da sagesse (tanto no sentido
de “discrição” quanto no de “pudor”), ideal, segundo Nérine. Na verdade, como fica claro
no fecho do Chevalier, trata-se do impacto gracioso da dimensão teatral e festeira – a arte
mágica, no caso, representando os poderes encantatórios do próprio palco e de seus
recursos quando contrapostos à realidade (e mesmo a punição ao jardineiro deve ser
“comique”): “Pour l’exécution allons tout disposer,/ Si sa vertu résiste à ce choc redoutable/
Il faudra qu’elle soit (...) invunérable”
82
. O Chevalier-Arlequim traz uma solução frívola e
graciosa para o excesso de seriedade não só de Pamela, mas também do marquês.
O jardineiro Mathurin, com seu uso completamente desastrado do plural de
modéstia e seus erros crassos de linguagem (exemplo: “J’allons vous expliquer la chose (...)
80
DICTIONNAIRE de la Langue Française du Seizième Siècle. Paris: Librairie M. Didier, 1964 (1934).
81
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 69.
82
Idem, p. 70.
185
Comme vous excellez dans l’atr de l’Ecriture/ Que je n’avons pas ce talent...”
83
), mantém o
tema da magia, reforçando a imagem de credulidade de campônio: os trovões que surgem
em dia de tempo bom só podem ser efeito mágico. “Le Marquis est sorcier...”
84
. Logo surge
uma trupe de fantasmas negros de tochas nas mãos. Trata-se da escaramuça teatral para
incutir medo no simplório jardineiro, já anunciada pelo Chevalier quando apresentara seu
plano. Um fantasma conduz Mathurin por um alçapão que surge de repente no palco, em
recurso típico de teatro ingênuo, de feira, tão ao gosto da época. O jardineiro pensa estar
sendo “englouti[t] vivant”, e o outro fantasma diz a Pamela que, na verdade, ele foi levado
a uma cave, e como é um apreciador de vinho, estará muito bem. Como é de seu feitio,
Pamela acha que se trata de estratagema de seu “nouveau Maître” para “...arrêter mes pas,
& tromper ma vertu”.
Mas este é o momento da virada leve e graciosa da comédia: repentinamente, tudo
se ilumina, Pamela se pergunta, “Quel pouvoir a produit cette métamorphose?”, e o
fantasma responde: “C’est le plaisir qui les habite”, anunciando o personagem-tipo não de
uma commedia dell’arte, mas da mais francesa parade, uma espécie de peça bastante
despretenciosa apresentada em festas, de corte ou de société, cujos personagens em geral
ganhavam nomes como “o Prazer”, “o Amor”, “a Discrição”, “a Alegria”. Por vezes, há
também personagens com nomes-estereótipos, como Gilles, Isabelle ou Villebrequin. A
parade seria uma “...imitation mondaine d’un type de pièces populaires”, o que explica sua
superficialidade unida à graça frívola. Teria se imposto como “forme fixe du théâtre (au
sens où l’on dit que le sonnet est une forme fixe de la poèsie)”, incluindo um “zézaiement
conventionnel et des séries de mots estropiés”, ou seja, uma linguagem distoante da culta,
com erros de fala que criam efeito cômico – como no caso de Mathurin, na peça analisada –
, histórias jocosas e licenciosas e uma atmosfera de “immoralité affectée qui ne tirait pas à
conséquence”
85
. O Chevalier-Arlequim, afrancesando-se, revela ser, no fim das contas, um
mestre de parade.
Se em seu plano a música tinha um papel crucial, ela surge agora, na trama e
invadindo todo o teatro, para enlevar a jovem resistente. “On entend un prelude”, lê-se na
83
Idem, p. 11.
84
Idem, p. 75.
85
As definições são de Jacques Truchet na introdução de: THÉÂTRE du XVIIIè siècle. Paris: Gallimard,
1972. p. xxxiv.
186
rubrica, e Pamela: “O Ciel! Qu’elle musique tendre!/ Mon cœur sensible a peine à s’en
défendre./ Pour attaquer mes sens, tout s’unit à la fois”
86
. Aparece o Prazer, ou seja, o
marquês, que pede, cantando: “Pour exprimer la beauté de mon choix,/ De vos accords
redoublez l’harmonie”, jogando com o duplo sentido de “accords”, o galante e o musical,
ou seja, “assentimentos” e “acordes”. Segue-se, portanto, o divertissement ou a parade,
com versos cantados: o Prazer mostra elegância, discrição, delicadeza e alegria: “La
Décence avec la gaïeté/ Marchent toûjours à mon côté;/ L’une pare mes traits, & l’autre les
aiguise”. Surgem a Decência e a Alegria: “LA DÉCENCE: (...) du plaisir impétueux,/ Ma
main arrête la Licence”; “LA GAYTÉ: Moi je déride [alegro] la sagesse,/ Je donne à tout
un air badain”
87
.
Tudo, portanto, termina em canto e dança, o Prazer afirmando: “Sans le plaisir, ah!
La sagesse ennuye,/ Sans la sagesse on outre le plaisir,/ Pour bien goûter le charme de la
vie,/ Il faut sans cesse les unir”. Pamela aparece pela última vez para dizer: “...mon trouble
est extrême,/ Ménagez la sagesse, épargnez sa pudeur”, mantendo até o último minuto a
postura virtuosa que, no entanto, agora afinal se fragiliza. Como já ressaltado, o
divertissement do final do espetáculo pode ter sido a razão das treze apresentações da
Paméla en France de Boissy, apesar de sua incipiência como urdidura de escrita teatral:
“La Fête qui en fait le dénouement, très-ridicule à lire, mais fort agréable à la
représentation, la fit jouer treize fois”
88
. Porém, várias páginas atrás, fora a própria Pamela
quem criticara o excesso de zelo ou autocensura em relação à escrita, sempre esquecida
pelos “bons cœurs”:
Écrivons, écrivons. (...)/ Quel plaisir de m’étendre en dépit du Censeur!/
Lorsqu’ils ont à parler de ce qui les regarde,/ Les bons cœurs ne tarissent
pas,/ Et la reconnoissance est toujours babillarde:/ Cette précision, dont on
fait tant de cas,/ Est le langage des ingrats.
89
86
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 78.
87
Idem, p. 79.
88
ANEDOCTES Dramatiques. Tome 2, op. cit., p. 34.
89
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 10.
187
A “reconnoissance” diante do marquês travestido de marquesa, no início da peça,
está ligada não ao conceito aristotélico
90
, mas a reconhecimento afetivo diante da nova
“patroa”. Tal afetividade é “toujours babillarde” e, como na obra de Jean-Jacques
Rousseau, que começará a surgir na década seguinte, não deve respeitar as regras da
linguagem dita culta, nem do decoro. Mas o termo pejorativo, “babillarde”, trai uma
contradição insolúvel, na peça. Apesar de ser feita para o Théâtre des Italiens, trata-se de
uma comédia em versos metrificados e rimados, o que torna completamente impossível o
coloquialismo que traria um peso sentimental ou larmoyant à peça. Isso fica claro desde o
começo, quando, apesar da cena quase bufa, comum no Théâtre des Italiens, do
travestimento do marquês em marquesa, a troca de elogios e agradecimentos entre os
personagens, além de metrificada, é totalmente decorosa e em francês castiço. E isso se
repete na cena que devia ser a de transbordamento sentimental, quando o marquês, sem
disfarces, se declara a Pamela. Um exemplo:
PAMÉLA. ...Quoique vous ayez fait,/ L’amour, Messieurs, est toujours
votre excuse./ LE MARQUIS. Ce n’est pas un mot dont j’abuse,/ Si vous
sçaviez du mien tout l’ascendant secret,/ Et son histoire véritable,/ Je suis
certain qu’elle vous toucheroit/ Et qu’à vos yeux je serois moins
coupable.
91
Como se vê, o enternecimento, que daria algum lastro de densidade à peça frívola
demais, deixa de comparecer não apenas por conta da opção pela comédia próxima ao
divertissement e à parade: pode-se ouvir a voz da convenção de comédia clássica
seiscentista, à la Molière, por trás da frivolidade rococó (setecentista) da divertida Paméla
francesa de março de 1743. Nesse périplo, a seriedade do romance original se transforma
em comédia ligeira, embora metrificada, assim como a libertinagem um tanto truculenta, à
inglesa, se transmuda em galanteria charmante, o estilo masculino francês do libertino
encantador. A aclimatação não é só de forma e de tom, mas, como se vê, também de etos: o
galante Don Juan francês (incluído no panteão clássico por Molière) resolve as opressões
do mundo e do coração por meio da festa final, conciliação impensável – e libertina – entre
o peso da virtude feminina e a leveza de sua derrota empreendida pelo galanteador.
90
Ver item 6.5, no Capítulo 6, adiante.
91
BOISSY, Louis de, op. cit., p. 34.
188
3. Origens da comédie larmoyante e da sensibilité, ainda em 1735-1736
Em 1743, Nivelle de la Chaussée era um autor de maior projeção em Paris e, por
extensão, na França do que Louis de Boissy, já que ingressara na Academia em 1736 e
dedicava-se quase que exclusivamente ao gênero sério. Boissy só entrará na Academia em
1754, quatro anos antes de sua morte. O grande sucesso de La Chausée foi Mélanide,
sucesso inesperado para a própria trupe da Comédie Française, indicando uma mudança de
ventos: era a primeira comédie larmoyante assumida como tal a atingir tamanha projeção.
Porém, essa acolhida, em 1741, representava um segundo momento do novo gênero.
Embora haja autores com tendência attendrissante desde pelo menos Inès de Castro, de
Houdart de la Motte, de 1723
1
(os primórdios do sucesso do gênero datando do século
anterior e da polêmica com as précieuses, poetas e, principalmente, romancistas dedicadas
ao tema do amor
2
), o rótulo comédie larmoyante só surgiu como reversão de seu original
significado pejorativo, no prefácio de L’amitié rivale (de l’amour), que estreou em 16 de
novembro de 1735. No texto, editado com a peça antes do final daquele ano
3
, Barthélemy-
Christophe Fagan ousara se defender da crítica derrisória assumindo a etiqueta:
Ne peut-on, sans abandonner la vraie Comédie, prendre une route qui n’ait
pas encore été frayée? (...) Il est vrai qu’en suivant ce dernier genre [assim
definido: “...peindre ce que la nature a d’aimable et parfait...”], le fond
sera toujours plus sérieux; jusques-là même qu’il pourra être larmoyant.
4
1
Cf. VINCENT-BUFFAULT, Anne. História das lágrimas. Séculos XVIII-XIX. São Paulo/Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988 (1986).
2
Trataremos do tema adiante, no Capítulo 3, item 3.4.
3
Assim se lê em DE LEIRIS, op. cit., p. 323: “AMITIÉ (l’) Rivale, Comédie en cinq actes & em vers, de M.
Fagan, représentée le Mercredi 16 Novembre 1735. suivie des Trois Freres Rivaux, Paris, Chaubert 1735. in-
8º ”. A indicação final, “in-8º ”, prova que se trata de livro impresso. Chaubert é um “libraire” conhecido de
Paris, que integraria a Compagnie des Libraires juntamente com Pierre Gandouin, Huart & Moreau, Nyon fils,
Bordelet Prault fils, Ganeau, Barrois Damonneville Durand, Grange, Robustel, Pissot e Brocas. Da “Rare
Book collection”, seção “French Theatre”, da Monash University, Melbourne, Austrália. Disponível em:
<http://www.lib.monash.edu.au/exhibitions/french/xfrtcat.html>. Acesso em 24/09/2005.
4
FAGAN, Barthèlemy-Christophe. Théatre de M. Fagan, et autres œuvres du mesme auteur. Tome
premier. Paris: Chez N.B. Duchesne, 1760. p. 210.
189
Alguns meses depois, o abade Desfontaines se juntava ao novo partido, acolhendo o
rótulo. Ninguém menos que Louis de Boissy será apontado por ele, em seu periódico
Observations sur les écrits modernes, como autor de uma comédie, estreada recentemente,
que se enquadraria no novo estilo. A peça, de grande sucesso, se chama Le comte de
Neuilly, descrita pelo autor, naquele momento, como uma comédie héroïque. Estréia a 28
de janeiro de 1736, e Desfontaines escreve, no mesmo momento:
Je ne m'amuserai point à relever les défauts de cette Pièce, qui a eu un si
triste sort sur le Théâtre Italien, pour lequel il faut avouer qu'elle n'étoit
pas faite. C'étoit pourtant une Comédie dans le goût nouveau qu'on
voudroit introduire, c'est-à-dire dans le genre du Comique Larmoyant. La
versification étoit coulante et aisée, et le sujet bien conduit. Mais toute
histoire romanesque ne convient pas au théâtre, et celle-ci en est la
preuve.
5
De menor repercussão, na época, mas de imensa importância por conta dos
desdobramentos que o gênero e o próprio panorama cultural do século apresentam é o fato
de L’enfant prodigue, de Voltaire, também ter sido vista como uma “comédia lacrimosa”.
Se lembrarmos, ainda, que Le préjugé à la mode, de La Chaussée, estreada a 3 de fevereiro
de 1735, também foi assim classificada, identificamos um momento especial de confluência
da nova tendência, a qual, no entanto, não terá nem desdobramentos imediatos, já que não
se tem notícia de seqüência bem recebida de peças definidas pelo rótulo, nem uma reflexão
consistente a respeito do novo gênero. Esta só surgirá com Chassiron, em 1749, e,
finalmente, com Diderot, em 1757-58.
3.1. A sensibilité no domínio
Como ressaltamos, ao surgir, o adjetivo “lacrimosa” apresentava um sentido
pejorativo. Porém, logo pareceu sob medida para traduzir uma característica cultural que
5
DICTIONNAIRE International des Termes Littéraires (DITL). Disponível em:
<
http://www.ditl.info/arttest/art1235.php>. Acesso em: 24/08/2005.
190
definiria toda uma época nas letras francesas. Trata-se da coloração “sensível”
6
de um novo
tipo de tragédia que não poderia mais manter nem a sobriedade, nem a sublimidade
exigidas pelo classicismo.
Tal asserção, de caráter bastante geral, tem vários modos de ser abordada. Na
verdade, sensibilité é uma palavra capaz de definir o pendor de toda a cultura francesa da
época pelo tema do amor retratado de forma enternecedora (attendrissante). Optamos por
começar investigando alguns trechos de um autor que, por interessar-se por questões
estéticas e conceituais e por abraçar certo materialismo de origem lockiana, toca em pontos
cruciais para se compreender a concepção de sensibilité do período. Além disso, como já se
indicou, foi ele quem deu, pela primeira vez, forma teórica à nova comédie larmoyante (que
chamou de comédie sérieuse) alguns anos depois do surgimento dela: Diderot. Citemos um
trecho lembrado por Roger Chartier do Diderot crítico (ou protocrítico) de artes plásticas,
nos Salons:
Comment faire [des] tableaux avec des mots (...). Autement dit, quels
pouvoirs de langage convoquer et mobiliser pour qu’à la lecture – à voix
haute, basse, ou à voix silencieuse – une image apparaisse, flottante
d’abord, errante comme une ombre élyséenne, puis insistante, obsessive,
bientôt envoûtante, envahissant l’âme, occupant l’esprit, travaillant le sens
et les sens, prête à franchir les frontières de l’intérieur et de l’extérieur, en
voie de vision ou d’hallucination.
7
Compare-se esse trecho com um ficcional, mas revelador, tirado do conto Le Neveu
de Rameau (seu tamanho se justifica, já que, como indicaremos adiante, a idéia inicial de
chamar atenção para os sens só se resolve em sua parte final):
Je ne méprise pas les plaisirs des sens; j’ai un palais aussi; et il est flatté
d’un mets délicat ou d’un vin délicieux; j’ai un cœur, et des yeux, et
j’aime à voir une jolie femme, j’aime à sentir sous ma main la fermeté et
la tondeur de sa gorge, à presser ses lèvres des miennes, à puiser la
volupté dans ses regards et à en expirer entre ses bras. Quelquefois, avec
mes amis, une partie de débauche, même un peu tumultueuse, ne me
déplaît pas; mais, je ne vous le dissimulerai pas, il m’est infiniment plus
doux encore d’avoir terminé une affaire épineuse, donné un conseil
salutaire, fait une lecture agréable, une promenade avec un homme ou une
6
O termo remete a “sensibilité”, tema central de nosso Capítulo 3.
7
CHARTIER, Roger. Inscrire et effacer. Culture écrite et littérature (XIè-XVIIIè siècle). Paris:
Gallimard/Seuil, 2005. p. 156.
191
femme chère à mon cœur, passé quelques heures instructives avec mes
enfants, écrit une bonne page, remplir les devoirs de mon état, dit à celle
que j’aime quelques choses tendres et douces qui amènent ses bras autour
de mon cou.
8
Mesmo levando-se em conta a oscilação vertiginosa entre seriedade e sarcasmo que
caracteriza o conto de Diderot, as duas passagens são bons exemplos sobre como o autor se
referia à sensibilidade a partir de uma postura dir-se-ia materialista, no sentido de tentar
estabelecer marcos concretos e contingentes para as reações sensíveis – que hoje
chamaríamos de “subjetivas”. Se no primeiro trecho a questão é até que ponto a linguagem
e a leitura são instrumentos capazes de intermediar o quadro pintado e as imagens que o
leitor construirá em sua mente. É notável, portanto, a extrema concisão de “...travaillant le
sens et les sens...”, já que se trata de reconstruir (travailler) o sentido do que se escreve/lê
por meio dos sentidos, no caso específico, a fim de atingir a zona das imagens mentais,
alucinatórias: o escritor reconstrói o sentido do quadro pintado por meio de um quadro
escrito; o leitor reconstrói tal quadro tendo o escritor como intermediário. Desse modo, o
interior e o exterior, ou seja, a subjetividade e a objetividade se imbricam e se
intercambiam, sem que sua existência seja negada.
No segundo trecho, Diderot contrapõe o prazer dos sentidos, da mesa à cama (“...un
mets délicat ou un vin délicieux...”, “...une partie de débauche...”), a um outro tipo de
prazer, menos carnal e concreto, mais social e ligado aos sentimentos. Como no trecho
anterior, trata-se de partir de uma materialidade (da pintura ou das sensações corporais)
para compor uma rica descrição que não desprezasse nem os sentidos (o carnal), nem
dimensões mais sutis da subjetividade – o homem do século XVIII diria, da
“sensibilidade”. Nessa descrição, Diderot estava disposto a incluir uma espécie de
imaginação ativa, alucinatória, pela qual sentimentos menos violentos que as passions
podiam brotar a partir de quadros, pintados ou reais: terminar uma tarefa espinhosa, dar um
conselho salutar, fazer uma leitura agradável, passear com alguém, conviver com os filhos,
preencher as obrigações de sua carreira profissional ou dizer coisas belas a quem se ama.
Percebe-se, assim, que Diderot vai na mesma direção do que escreve Mistelet, de forma
8
DIDEROT, Denis. Le neveu de Rameau. Satyre. Nendeln/Liechtenstein: Klaus Reprint, 1972 (Paris, 1891).
p. 66. (BNF-Gallica). Disponível em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k278290>. Acesso em:
15/02/2006.
192
mais generalista, em seu De la Sensibilité par rapport aux drames, aux romans et à
l’éducation, de 1777:
La Sensibilité est le principe qui met toutes les passions en mouvement;
mais qui, en les opposant les unes aux autres, en adoucit toujours les
effets; et de ce choc à peu près étal, de cet équilibre entre tant de
sentiments divers, naît la vertu. La Raison l’éclaire et la dirige, le grand
homme est formé...
9
Nota-se que a questão se concentra no abrandamento daquilo mesmo que a
sensibilité põe em movimento, ou seja, as paixões. O choque entre estas últimas produz o
equilíbrio da virtude, que precede o trabalho da razão. A sensibilité é, portanto, colocada ao
mesmo tempo como dínamo máximo e como elemento temperador da violência das
paixões, vindo mesmo antes da prestigiada razão; é a pedra angular da subjetividade
humana, em sua versão setecentista. Como Diderot, Mistelet participa da tendência geral de
“dessublimação” das paixões
10
. E também como Diderot, recorre a certo materialismo, que
tem raízes em Locke, para descrevê-la ainda mais claramente, nela incluindo a idéia de um
interior e de um exterior por onde transitam signos e sons, ou seja, tanto a materialidade
quanto o potencial imaginativo da linguagem (da escrita e da leitura):
Tous les hommes cherchent le plaisir et les méchants comme les autres, et
tous expriment celui qu’ils ressentent par des signes et des sons. Les
plaisirs qui ne touchent que superficiellement nos organes, se font
connaître par les ris; mais ceux dont nous sommes réellement affectés, qui
remplissent nos âmes, les grands plaisirs enfin restent concentrés dans
notre cœur ou ne s’expriment que par larmes.
11
O autor defende um neo-epicurismo da expressão (signos e sons), desvaloriza o riso
e valoriza ao extremo os prazeres do coração, expressos apenas e tão-somente por meio de
signos e sons condensados em lágrimas. Estas surgem, portanto, como a expressão exterior
do que há de mais caro na sensibilidade, vista como o primum mobile das paixões que, no
9
MISTELET. De la Sensibilité par rapport aux drames, aux romans et à l’éducation. Amsterdã-Paris:
Mérigot Jeune, 1777.
10
Referimo-nos a nossa própria hipótese de uma “dessublimação” como forma de reagir, esteticamente, ao
classicismo, com futuras possibilidade de “ressublimações” (é o caso da literatura hoje chamada de
sentimental, rumo ao romantismo e sua nova concepção de sublime). Ver itens 1.16 e 1.17, acima, a nota 70,
adiante, e nossa Conclusão.
11
MISTELET, op. cit., p. 26-27.
193
entanto, também as tempera e abranda. Trata-se de um signo que surge como inserido
social e concretamente – fenomenológico avant la lettre –, mas que pode muito bem ser
convocado e mobilizado pelo escritor de modo a tornar-se um elemento do tableau que ele
compõe para que, na mente do leitor, “...à la lecture (...) une image apparaisse, flottante
d’abord, errante comme une ombre élyséenne, puis insistante, obsessive, bientôt
envoûtante, envahissant l’âme, occupant l’esprit...”, como descreve Diderot no primeiro
trecho citado, acima. Essa imagem cuja aparição alucinatória (na linguagem de Diderot) é
estimulada pela leitura tem o potencial de estimular as lágrimas do leitor, é claro.
3.2. O tableau e as lágrimas
Antes de chegarmos especificamente à Pamela de La Chaussée, podemos lembrar
que o próprio Diderot refletiu sobre as lágrimas e a leitura, em seu Éloge de Richardson, de
1762
12
. Roger Chartier indicou como é a técnica da constituição de um tableau por parte do
escritor, a qual, para Diderot, pode levar a um maior impacto dos signos e dos sons, de
modo... “...à muer le lecteur en spectateur et la lecture en vision et écoute”
13
. O tableau
como unidade é tudo que o escritor deve procurar para atingir seu fim de émouvoir, ou seja,
de pôr em movimento as passions dos espectadores, o que, como vimos, significa se
sintonizar, por signos e sons (pela linguagem), com a sensibilité daqueles.
O início dos Entretiens sur le Fils naturel, primeiro texto de Diderot sobre as
mudanças na arte dramática, composto em forma de diálogo ficcional precedido de pequena
introdução em primeira pessoa, é marcado por um momento de choro coletivo, por conta de
uma confusão entre a realidade dada e o tableau criado pelo dramaturgo. A cena parece
representar, de forma surpreendentemente complexa, o que Diderot defende como modo de
partilhar a sensibilité por meio das lágrimas. Diante da surpresa de ver um ator muito
12
Sobre esse texto de Diderot e uma certa “revolução da leitura” por meio das lágrimas, o texto definitivo é
“Le commerce du roman. Les larmes de Damilaville et la lectrice impatiente”, que passamos a incorporar em
nossa análise. CHARTIER, Roger, op. cit., p. 155-175. Franklin de Matos se debruça sobre a questão
específica do tableau. MATOS, Franklin de. O filósofo e o comediante. Ensaios sobre literatura e filosofia na
Ilustração. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. A poética do quadro (Sobre O filho natural de Diderot). p.
48-65.
13
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 166.
194
parecido com o velho Lysimond, personagem recém-falecido (na ficção), entrar na sala de
ensaio (na realidade), todos, atores e personagens, vêm brotar lágrimas em seus olhos –
nessa simbiose labiríntica de Diderot entre realidade e ficção:
...à peine y parut-il, que, ce moment de l’action remettant sous les yeux de
toute la famille un homme qu’elle venait de perdre, et qui lui avait été si
respectable et si cher, personne ne put retenir ses larmes. Dorval pleurait.
Constance et Clairville pleuraient. Rosalie étouffait ses sanglots et
détournait ses regards. Le vieillard qui représentait Lysimond, se troubla,
et se mit à pleurer aussi. La douleur passant des maîtres aux domestiques,
devint générale, et la pièce ne finit pas.
14
O narrador, uma espécie de alter-ego de Diderot, completa, em diálogo interior,
depois de enxugar as lágrimas, voltando da ficção à realidade: “‘Il faut que je sois bien bon
de m’affliger ainsi. Tout ceci n’est qu’une comédie’”
15
. O espectador (ou leitor) valoriza-se
como “bom” de coração ao chorar diante de um quadro representado ficcionalmente: não
seria um segredo do sucesso do novo gênero?
Como se sabe, tais passagens publicadas em 1757 pertencem exatamente ao texto
que incluirá uma justificativa teórica a respeito da trilha iniciada cerca de vinte anos antes,
por volta de 1735 e 1736, com as primeiras comédies larmoyantes. Anne Vincent-Buffault,
em sua História das lágrimas, lembra que a tendência já se fazia notar mesmo antes de o
rótulo ter sido inventado e, de pronto, esvaziado de seu sentido pejorativo.
...Le Philosophe marié (O Filósofo casado), de Destouches (1727), cujo
autor queria “iluminar a virtude de uma forma tão bela que ela atraía a
veneração pública”, coloca em cena um pai compreensivo e seu filho,
chorando a seus pés, ao confessar-lhe um casamento secreto (ato IV, cena
I). A doçura dos sentimentos paternos introduz uma nuança no tradicional
princípio da autoridade, e esta cena de interior mistura as lágrimas do
público àquelas dos atores.
16
Gustave Lanson, muito mais lembrado como autor de Histoire de la littérature
française, de 1894, do que de Nivelle de la Chaussée et la comédie larmoyante, de 1903,
14
DIDEROT, Denis. Dorval et Moi. In: MÉNIL, Alain (org.). Écrits sur le théâtre. 1. Le drame. Paris:
Pocket, 1995. p. 59. É o título original do texto que ficou conhecido como Entretiens sur le Fils Naturel.
15
Idem, ibidem.
16
VINCENT-BUFFAULT, Anne, op. cit. p. 87.
195
credita a La Chaussée, em primeiro lugar, uma radicalização do patético e, em segundo –
principalmente em Mélanide –, um modelo melhor acabado para o novo gênero.
Em Le Préjugé à la mode (O Preconceito da moda [talvez a melhor
tradução seja “O tipo de preconceito na moda”]) (1735), a sensível
Constance tenta libertar seu marido do temor do ridículo que, na vida
mundana, está associado ao amor conjugal.
17
O marido agradece aos pés da esposa, dizendo: “Ele está a seus pés/ É onde devo
morrer... Deixe-me nas lágrimas/ Expiar meus excessos e vingar todos os seus charmes”
18
.
O abade Prévost, autor de uma peça importante para se entender a tendência antes do
rótulo, seu Manon Lescaut, de 1732, escreve entusiasmado no seu jornal Le Pour et le
contre: “o público deu (...) ‘marcas extraordinárias de aprovação à nova peça. Ele riu,
derramou lágrimas, sentiu todas as paixões que o autor quis despertar’”
19
. É o primeiro
grande sucesso de La Chaussée: as vinte apresentações a partir de fevereiro somam 17 mil
espectadores, e a peça retorna em dezembro. A 16 de março, como se lê no Dictionnaire
portatif historique et littéraire des théâtres, de De Leris, “...les Comédiens avoient joué par
extraordinaire cette piece (...) & il y eut un grand concours, quoique les places fussent
haussées d’un tiers, & le Parterre au double...”, já que o lucro daquele dia reverteria para
Mlle Gaussin, atriz que tivera a casa incendiada e que protagonizaria, seis anos mais tarde,
várias das 160 apresentações de Mélanide, registradas da estréia, em 1741, até 1786. Uma
análise mais acurada dessa peça se impõe pois se trata da mais bem acabado e mais bem
sucedido exemplo de comédie larmoyante da época.
3.3. Mélanide: o tom adequado de tratamento do amor
A peça conta a história de Mélanide, mulher retirada do monde que acaba de voltar a
Paris e, na casa da amiga Dorisée, participa das intrigas anteriores ao casamento – que
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem.
19
Idem, p. 88.
196
afinal não se realizará – entre Rosalie, filha de Dorisée, e o rico Marquês d’Orvigny, para
quem a moça estava prometida. A dona da casa visa a saldar dívidas e “procès” com a
união. O obstáculo é o jovem D’Arvine, supostamente sobrinho de Mélanide e enamorado
por Rosalie, totalmente sem posses, mas, como sói acontecer em triângulos amorosos,
bastante insistente. Mélanide se afastara na vida airada de Paris por conta de “segredos”,
que serão revelados ao longo da peça, estando em um tipo inusitado de “reconhecimento” o
charme do texto. Ela tenta persuadir o sobrinho de que só as “...gens heureux...”, no sentido
de bem posicionadas socialmente, devem dedicar-se ao amor: “...Accablé sous le poids
d’une chaine importune,/ Eh, comment voulez-vous aller à la fortune?”
20
. O segredo
começa a ser revelado quando o Marquês D’Ovigny fala de “...ce triste & secret hyménée,/
Dont on me fit briser la chaîne fortunée”. Ele diz ter sofrido muito e empregado “...bien des
soins superflus/ A chercher en tous lieux une épouse si chère,/ Alors pour me venger des
rigueurs de mon père”
21
.
Nota-se um espelhamento da situação de D’Arviane: as conveniências e os deveres
sociais – no caso, defendidos pelo pai – tinham arruinado aquele amor maior do passado. A
esposa teria morrido, o que, para seu interlocutor, Theodon, tio de Rosalie, torna inúteis os
remorsos do marquês
22
. Este está ressabiado com o “...amour à mon âge (...)/ Je vais servir
à tous le fable & de risée”. Há ainda a dúvida de que Rosalie também lhe ame e o medo da
disputa com o jovem rival – tudo se justificando e engrandecendo o personagem por conta
da grande e inigualável paixão perdida no passado. Na cena seguinte, Theodon informa a
Mélanide que os pais dela a tinham deserdado: “Qu’avez fait à ceux qui le sang vous lie,/
Pour qu’ils se soient ainsi contre vous déchainés?”
23
. O segredo começa a ser revelado: “Ce
fut à l’âge dangeureux,/ Où souvent le bonheur peut mieux que la sagesse...”.
Da semântica desse amor, central na peça, fazem parte palavras de que vínhamos
tratando: “Je plûs; j’y fus sensible (...) notre amour naissant, si doux, si plein de charmes,/
En s’augmentant toujours, me coûta bien des larmes”
24
. O tema do amor como paixão é
flagrado nessa comédie larmoyante em um momento de transformação em seus
20
LA CHAUSSÉE, Nivelle de. Mélanide. Paris: Chez Parult fils, 1741. p. 12 (13 do original). (BNF-Gallica).
Disponível em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1084947>. Acesso em: 14/09/2006.
21
Idem, p. 27 (26 do or.).
22
Idem, p. 28 (27 or.).
23
Idem, p. 32 (31 or.).
24
Idem, 35 (34 or.).
197
pressupostos éticos e na forma como se dá o embate entre as paixões e o meio contingente,
como veremos mais adiante, neste mesmo capítulo. Para antecipar, digamos que o embate
tenso entre paixões públicas (glória, sucesso, cólera, coragem) será substituído pela
resolução da tensão amorosa idealizada por meio do casamento, exatamente como em
Pamela.
Mélanide confessa que... “Nous vîmes, mais trop tard, que jamais l’hymenée/ Ne
seroit le bonheur de notre destinée.(...) Des haines, des procès, & mille circonstances,/
Auroient fait rejetter nos plus vives instances”
25
. O segredo nada tem a ver com alianças
eróticas no seio do poder, na órbita da Corte, mas, ao contrário, é a causa da fuga do
monde, marcante para Mélanide (cuja ancestral, Mme de Clèves, criou uma forma híbrida
ao fugir do monde sem dele afastar-se completamente, no fim do romance de Mme de
Lafayette): “Nos feux étoient secrets: s’ils étoient declarés,/ Notre perte étoit sûre; on nous
eût séparés”. Surge um outro segredo: eles tinham se casado secretamente. Com isso, as
duas famílias ficam contra os amantes. Mélanide usa uma metáfora natural para descrever
os descaminhos de sua sensibilité: “A peine mon opprobre eut été prononcé,/ Par un père en
fureur il me fut annoncé;/ Au rang de ses enfans je ne fus plus comptée;/ Dans le fond d’un
désert je me vis transportée...”
26
.
Pode-se creditar a leveza das cenas entre dois jovens amantes à falta de
posicionamento de Rosalie, que é aconselhada a manter a indiferença com D’Arviane para
fazê-lo desistir. O tom de leveza está ligado à idéia de comédie, em contraponto à tragédia,
na época, circunscrevendo, assim, o novo gênero misto. O talento dir-se-ia psicológico de
La Chaussée o leva a individualizar até uma personagem pouco complexa, como Rosalie,
que depois de mostrar-se sonsa e esquiva com D’Arviane, diz, quando ele sai de cena: “Que
son sort est cruel! Du moins il peut s’en plaindre./ Et moi, par le devoir réduite à me
contraindre,/ Je ne puis recevoir aucun soulagement”
27
. Mesmo assim, o tom
individualizado dura pouco, sendo substituído pelo tom generalizante classicista típico, no
sentido de uma eloqüência de púlpito, sem traço de patético, mais próximo das máximas
dos moralistas do século anterior: “Voilà donc où conduit un tendre engagement!/ Nous
aurions dû prévoir tant de sujets de larmes”.
25
Idem, ibidem.
26
Idem, p. 36 (35 or.).
27
Idem, p. 53 (52 or.).
198
Sendo a análise do tom de crucial importância para flagrar o hibridismo entre
seriedade e cômico, que Diderot creditará, anos mais tarde, à nova comédie larmoyante
(assim batizada desde 1735, como vimos no início do presente Capítulo), as cenas com a
presença dos amantes anteriores a esta, no espetáculo, estão longe da seriedade e do peso
que grande parte do romantismo pós-rousseauniano imporá ao tema amoroso. A gravidade
surge de forma fugaz e pouco expressiva, por exemplo, quando D’Arviane diz que se não
encontrasse seu amor, se mataria. Mas o tom da cena não é nem grave, nem cômico, no
sentido de risível, é, mais propriamente, leve. Théodon, como personagem de ligação entre
os outros e entre o presente e os segredos do passado, é uma espécie de arlequim sem o
riso, que pela argúcia desvenda os nós interpessoais. Na verdade, o que se divisa é um
contraste entre esse amor mais leve de D’Arviane e Rosalie (apesar das preocupações
patéticas de Mélanide e de Dorisée diante do amor proibido) e o mais grave e sério entre
Mélanide e o marquês. Neste ponto, seria importante, antes de examinarmos o desfecho de
uma peça que prepara o terreno de recepção para um romance como Pamela, analisar,
mesmo que de forma rápida, uma barreira crucial para o estabelecimento da comédie
larmoyante na França de então: a resistência ao tratamento sério do tema do amor no teatro
da época.
3.4. Não se pode representar o amor sério no teatro
A rejeição a um tratamento sério do tema do amor no palco teve um momento
classicista para nós importante no ataque feito por Molière às précieuses. Segundo Paul
Bénichou, elas se confundiriam com o grupo de autoras de romances que haviam, do início
para o meio do século XVII, eleito o amor como tema principal. A própria Madame de
Lafayette seria uma précieuse, só que marcada por maior complexidade semântica. Boileau
vê em Clélie, de Madeleine de Scudéry – classificado por alguns como “romance
romanesco” típico – um exemplo de préciosité, o que nos credita a concordar com
Bénichou quando ele aponta no romanesco votado ao amor a característica básica daquelas
précieuses.
199
Na primeira defesa enfática do gênero, Traité de l’origine des romans, publicado
em 1670 como introdução a Zayde, Histoire espagnole, narrativa ficcional de sua amiga,
Madame de Lafayette, o abade Pierre-Daniel Huet da a seguinte definição de romance:
“...les poëmes ont pour sujet une action militaire ou politique, et ne traitent l’amour que par
occasion: les Romans au contraire ont l’amour pour sujet principal, et ne traitent la
politique et la guerre que par incident”
28
. Em 1745, um mestre do novo patético larmoyant
em prosa, Baculard d’Arnaud, pode escrever, em seu Discours sur le roman, o que logo se
tornaria uma espécie de palavra-de-ordem: “Le roman enfin est le livre de l’humanité. Il
insinue dans notre âme cette sensibilité, cette tendresse, le principe des véritables vertus”
29
.
Sessenta e cinco anos depois, em 1800, Madame de Staël já poderá celebrar a
vitória tanto dos romances quanto do amor como tema central sério:
Les anciens n’avaient de motif de préférence pour les femmes, que leur
beauté (...). Les modernes connaisant d’autres rapports (...), ont pu seuls
exprimer ce sentiment de prédilection qui intéresse la destinée de toute la
vie aux sentiments de l’amour. Les romans, ces productions variées de
l’esprit des modernes, sont un genre presque entièrement inconnu aux
anciens. (...) Une sensibilité réveuse et profonde est un des plus grands
charmes de quelques ouvrages modernes; et ce sont les femmes qui, ne
connaissant de la vie que la faculté d’aimer, ont fait passer la douceur de
leurs impressions dans le style de quelques écrivains.
30
No período de 1670 à década de 1740, o problema não era tanto reconhecer no amor
o alvo principal do romance, mas aceitar esse último como gênero valorizado – os
contemporâneos diriam: “elevado”, embora seu reinado se inicie exatamente no momento
em que o adjetivo perde seu valor. Como exaltar um gênero sério que tem tal tema como
nuclear? Tanto Molière, em Précieuses ridicules e em Femmes savantes, quanto Saint-
Évremond condenam o idealismo, do tipo cortês, de tais romancistas. “L’amour est encore
un dieu pour les précieuses. Il n’excite point de passion dans leurs âmes; il y forme une
espèce de religion (...). Elles ont tiré une passion toute sensible du cœur à l’esprit et
28
HUET, Pierre-Daniel. Traité de l’origine des romans. Paris: Chez N.L.M. Desessarts, éditeur, imprimeur-
libraire, An VII (1796). p. 7. (BNF-Gallica, p. 15). Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k650112>. Acesso em: 05/11/2006.
29
ARNAUD, Baculard. Discours sur le roman, apud SGARD, Jean. Introduction: Éloge de Richardson –
Janvier 1762. In: DIDEROT, Denis. Arts et letters (1739-1766). Critique I. Varloot, Jean (org.). Paris:
Hermann, 1980. p. 190.
30
DE STAËL, Madame. De la littérature. Paris: GF/Flammarion, 1991 (1800). p. 179-181.
200
converti des mouvements en idées”, escreve Saint-Évremond
31
. Já se reconhece aí um
ancestral da tentativa futura, propriamente romântica, de incutir um pseudo-realismo – ou
seria melhor, uma força expressiva mais convincente – dos “mouvements du cœur”; sabe-se
também que tal tentativa desembocará em um idealismo de segundo nível, como não
poderia deixar de ser, já que se trata de uma fantasia da autenticidade última localizada no
cœur, com o pressuposto da hiper-valorização desses mouvements supostamente interiores.
A subjetividade moderna nascia como alocação da verdade ética na intimidade.
Por ora, porém, lembremos que a polêmica nas letras diante do uso do amor como
tema central sério – em detrimento do heroísmo aristocrata, da magnanimidade (Bénichou
chama também de “generosidade”), da glória, todo esse escopo da virtualidade clássica –
atravessa o século XVII e, pelo menos nas artes mais institucionalizadas, como o teatro,
chega às primeiras décadas do século XVIII, tendo a seara do romance como campo de
batalha periférico e muito menos prestigiado. No prefácio a Nanine, em 1749, Voltaire
sente necessidade de evocá-la, apontando o caso do jovem Corneille, cujas peças votadas
ao amor não deveriam ser relegadas apenas ao julgamento do partido contrário ao tema. A
citação serve mesmo como um resumo da questão:
...dans notre Nation la Tragédie a commencé par s’approprier le langage
de la Comédie. Si on y prend garde, l’amour dans beaucoup d’ouvrages,
dont la terreur & la pitié devraient être l’ame, est traité comme il doit
l’être en effet dans le genre comique. La galanterie, les déclarations
d’amour, la coquéterie, la naïveté, la familiarité, tout cela ne se trouve que
trop chez nos Héros & nos Héroïnes de Rome & de la Grèce dont nos
Théâtres retentissent. De sorte qu’en effet l’amour naïf & attendrissant
dans une Comédie, n’est point un larcin fait à Melpomène, mais c’est au
contraire Melpomène qui depuis longtems a pris chez nous les brodequins
de Thalie.
32
Voltaire caracteriza o tratamento sério do amor como aproximação entre tragédia e
comédia, supostamente reconhecível desde os primórdios do classicismo seiscentista
francês. Em uma frase, Voltaire resume a ameaça que o tema representa para o classicismo:
31
BÉNICHOU, Paul. Morales du grand siècle, op. cit., p. 250.
32
Melpomène e Thalie são, respectivamente, as musas da tragédia e da comédia; “chausser le brodequin”
significava representar ou escrever comédias. VOLTAIRE. Nanine. In: Collection Complète des Œuvres de
Mr. de Voltaire. Première édition. Tome dixième. Ouvrages dramatiques avec les pieces relatives a chacun.
Tome quatrième. Amesterdã: aux dépens de la Compagnie, 1756. p. 360 (BNF-Gallica, p. 379). Disponível
em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k719991>. Acesso em: 07/11/2006.
201
“Si on y prend garde, l’amour dans beaucoup d’ouvrages, dont la terreur & la pitié
devraient être l’ame, est traité comme il doit l’être en effet dans le genre comique”
33
. Ou
seja, o amor quer destronar a catarse aristotélica (terror e piedade) do centro das obras
escritas ou encenadas. Se Voltaire tenta apontar nos primórdios da tragédia grega o tema
amoroso é porque, obviamente, quer se colocar no partido das précieuses na polêmica que
vinha do século anterior. O que leva a afirmar que é a experiência nos romances, feita por
aquelas que foram chamadas de précieuses (a descrição em série, “...La galanterie, les
déclarations d’amour, la coquéterie, la naïveté, la familiarité...”, mostra bem a tendência
aristocrática da preciosité), que permitirá ao teatro – e, acrescentemos, ao próprio romance,
quando este passar a ser respeitado – incorporar o tema do amor com seriedade. Isso
porque, se seguirmos a arguta visão de Bénichou, a luta contra o tema do amor como
central na obra se confunde com a luta contra o romance como gênero menor, no século
XVII francês.
“Romanesque” passa a significar “que explora o tema do amor”, assim como
“romance” até hoje mantém o sentido de “caso amoroso”. A leitura de romances incita,
principalmente nas mulheres, maioria de seu público, emoções ligadas ao amor. O fato de
Molière – como indica Bénichou – reconhecer um lugar social valorizado para os
romances, apesar de atacar o idealismo das romancistas précieuses, indica seu lugar
complexo nas letras classicistas. E indica que o cenário estava mudando a favor do amor e
do gênero romance. “Voilà, voilà le fruit de ces empressements/ Qu’on vous voit nuit et
jour à lire vos romans:/ De quolibets d’amour votre tête est remplie”, diz Gorgibus no Le
cocu imaginaire, para, no fim de sua fala, deixar claro que se ela não lesse romances seria
bem mais fácil casá-la contra a vontade dela, seu intento maior na peça: “...si vous n’aviez
lu que ces moralités/ vous sauriez un peu mieux suivre mes volontés”
34
.
Nas Anedoctes dramatiques, de 1775, depois da afirmação pouco convincente de
que a peça é adaptação de um romance (“On prétend que cette Piece est tirée d’un Roman
intitulé Mademoiselle de Bontems”), e depois de um elogio que talvez seja válido até hoje
(“C’est peut-être la meilleure des Pieces dans le genre attendrissant”), nota-se como, na
época, o tema amoroso indicava, necessariamente, tratar-se do gênero romance, mesmo que
33
Idem, ibidem.
34
BÉNICHOU, Paul, op. cit., p. 251.
202
no teatro: “C’est un Roman, si l’on veut, mais un Roman Dramatique, qui fait beaucoup
d’effet sur le Théâtre”
35
. Apesar de destacar o alto grau de emoção em que a peça
costumava deixar a platéia (“Le quatrieme & le cinquieme Acte sont de la plus grande
chaleur”), o autor do verbete faz questão de incluir a anedota de Piron, que já citamos no
início do Capítulo 2:
Le pathétique de cette Piece n’a pas cependant empêché M. Piron de
plaisanter sur les Drames de ce genre, qu’il compare à de froids Sermons:
“Tu vas donc entendre prêcher le P. [Père] de la Chaussée”? dit-il un jour
à un de ses amis qu’il rencontra allant à une repésentation de Mélanide.
36
O falastrão Alexis Piron errou o alvo, já que a comédie larmoyante tentava, na
verdade, afastar-se de uma retórica tradicional, rumo a uma nova retórica que se queria
invisível e se baseava na sensibilité e no tableau patético. O pathos da nova eloqüência que
não se apresentava como tal era unicamente attendrissant, e o amor (com seus modos
expressivos próprios: as lágrimas, a sensibilité) transformava-se em paixão única a ser
invocada pelo orador – ou escritor.
3.5. Mélanide: a transformação do classicismo
Feito esse panorama da polêmica contra o amor como tema, voltemos à peça de La
Chaussée. Destacávamos que o amor jovem entre Rosalie e D’Arviane é retratado em tintas
leves, que se aproximam da idéia da época do que fosse uma comédia. Ao contrário, o
grande amor entre Mélanide e o Marquês D’Arvigny surge sob a luz do patético extremo,
propenso a extrair lágrimas do parterre, ainda mais na conclusão da peça. Isso indica que o
propriamente larmoyant nessa comédie larmoyante está não tanto no tema do amor, que
nele ou é tratado de forma leve e cômica (para padrões da época), ou perifericamente, mas
35
ANEDOCTES dramatiques. Tome 1. Paris: Chez la Veuve Duchesne, Libraire, 1775. p. 535-536. In:
CÉSAR (Calendrier Électronique des Spectacles sous l’Ancien Régime et sous la Révolution). Disponível
em: <
http://cesar.org.uk/cesar2/dates/dates.php?fct=edit&performance_UOID=106872>. Acesso em:
04/11/2006.
36
Idem, ibidem.
203
no amor enquanto ligado aos temas do sofrimento no passado, à luta contra as convenções
sociais, e da família. Para entendermos isso, porém, é preciso conhecer o desfecho da peça.
Estávamos no quarto ato, quando começa o “...grand chaleur...” de que fala o autor
do verbete das Anedoctes dramatiques. Mélanide ainda não havia encontrado o marquês de
D’Arvigny, já que se mantinha avessa ao monde e à vida social, retirando-se para cômodos
reservados quando chegava visita. Desde a primeira conversa com o marquês, Théodon
desconfia que é ele o marido ilegal de Mélanide, mas esta lhe revelara outro nome: o conde
D’Ormancé. Neste quarto ato, Théodon sonda o marquês e, dito e feito: há 16 anos, usara
aquele nome – é ele o amor proibido de Mélanide, que a reputava morta. A Théodon, o
marquês se diz inclinado por Rosalie, ou seja, pela “infidelidade” a Mélanide; diz-se
escravo do amor a Rosalie por culpa de Théodon.
É claro que, como o marquês não é legalmente casado, pode casar-se com Rosalie,
para desespero de Mélanide. Ela sabe de sua decisão e pede que Théodon interceda de
novo. O tema da família é onipresente: “Parlez-lui de son fils; il sauvera sa mère”
37
. Na
conversa na qual Mélanide tenta reverter a decisão de D’Arviane, que inaugurara este ato
com um insulto ao marquês, motivo de duelo para breve, o rapaz toca no centro do
pseudoconflito entre as concepções de amor tradicional e idealizada – “pseudo” porque ele
se desfará no fim da peça: “...l’hyménée/ N’a-t-il jamais été l’ouvrage de l’amour?/ Serois-
je le premier?”
38
. Mélanide lhe diz: “Vous étes (sic) à la fois le fruit & la victime/ D’un
hymen, que la loi n’a pas cru légitime”
39
. Conta-lhe que é sua mãe, mas não que o marquês
é o pai. Por sua vez, Théodon revela ao marquês que ele é pai do rapaz; este, na cena
seguinte, surge apenas desconfiando disso.
Na conversa com o marquês, Théodon define bem o perigo que espreita o jovem:
“Enfant né pour pleurer la honte de sa mère,/ Déplorable héritier d’opprobre & de misère,/
Sans état, sans aveu, sans nom, sans bien, sans rang;/ Qui va se voir privé de tous les droits
du sang”
40
. E cita um perigo ligado a Mélanide: “Mélanide bien-tôt vous en fera verser [les
larmes]./ Elle vivoit pour vous. Il faut bien qu’elle meure”
41
. O marquês deplora o amor a
Rosalie que, na frase, surge como fruto da visão, ou seja, de uma simpatia imediata, o
37
LA CHAUSSÉE, Nivelle de, op. cit., p. 74 (73 no original).
38
Idem, p. 83 (82 or.).
39
Idem, p. 84 (83 or.).
40
Idem, p. 93 (92 or.).
41
Idem, p. 94 (93 or.).
204
famoso “amor à primeira vista”, que toca de supetão a sensibilidade do casal: “Ah! Rosalie,
hélas! Pourquoi vous ai-je vúe?”. O marquês está tomado pela paixão amorosa, o que o
torna cego não às leis e virtudes, como no classicismo, mas a uma nova ética do coração, e
aí está a grande mudança. É que o amor a Rosalie, que o inquieta e confunde no presente (a
ponto de invectivar Théodon, que o teria inoculado a paixão), o impede de agir segundo sua
paixão anterior. O embate entre paixões ocorre entre amor-paixão e amor-paixão, em um
mesmo indivíduo, e não, como no classicismo, entre paixões como a glória, a cólera, a
coragem ou o espírito guerreiro e a mediania virtuosa, não-divina. Isso porque, como
veremos, diferentemente do classicismo, em uma peça como Mélanide o desfecho não vem
do choque titânico entre paixões, ou delas com o “demasiado humano” circundante, mas da
resolução apaziguadora ligada a um único e supervalorizado tipo de paixão: o amor.
Sigamos a análise contraposta à tradição clássica, que nos parece capaz de jogar
nova luz sobre uma peça como Mélanide – partindo do princípio sabido de que o teatro e a
poesia eram, na época, domínios em que a tradição clássica imperava. Seguindo a lógica do
classicismo, trata-se de um embate no mesmo personagem, o Marquês D’Orvigny-Conde
D’Ormancé, entre duas paixões, todas as duas amorosas. Porém – e aí, pelo que parece, está
um traço de transformação crucial do classicismo para certa modernidade romântica –, o
desfecho vai numa direção contrária à lógica clássica. É que a defesa larmoyante do amor-
paixão original por Mélanide – como se sabe, um amor ilegal e com traços trágicos (ela foi
deserdada e abandonada pela própria família e, por isso, afastou-se do monde por muitos
anos) – implica a mudança da solução tradicional, clássica, de contraposição das paixões
com a falta delas (ou seja, das paixões com a mediocridade, com a tibieza, ou com as leis, a
virtude).
Trata-se, na verdade, de tornar virtude uma paixão específica, aliás, a paixão, por
excelência: o verdadeiro amor. Seu caráter de erro, ou seja, seu desvio em relação à norma
humana ou legal, é transformado em acerto, é valorizado e ganha estatuto referencial – é
como que institucionalizado. Passa a haver não um embate entre as paixões nobres (desejo
de glória, a honra pessoal, a coragem etc.) e os limites e constrangimentos apequenados,
com a consciência aguda da possibilidade da morte ou do fracasso (ou seja, do trágico),
fórmula básica da tragédia clássica seiscentista. A base sociológica de tal tragédia está bem
descrita por Bénichou na seguinte passagem:
205
...c’est le caractère essentiel de la féodalité, que le joug social se fasse
faiblement sentir aux nobles. Le bien ne peut résider pour eux dans la
privation, dans la contrainte pénible du devoir sur les appétits du moi.
Toute vertu doit prendre appui au contraire sur leur personne. Leur seul
devoir est d’être digne d’eux-mêmes, de porter assez haut leurs visées, et
de donner aux petits des exemples suffisamment édifiants de leur
grandeur
42
.
Portanto, o herói trágico está fadado a buscar as paixões, o mal, o funesto, e a fugir
do medíocre, do apequenado: fracasso maior que a morte é a vida não-nobre. Por isso é
que, na tragédia clássica, a paixão, bem como o ato ilegal que ela engendra, surgem com
um brilho fulgurante, atraente, inebriante (para o espectador-leitor): o terror brilha ali com
uma intensidade própria. É nessa direção que vai Bénichou quando escreve: “La société
noble [do feudalismo medieval ao século XVII francês] n’a jamais admis la censure des
passions pour condition de la valeur humaine”
43
.
Se as paixões destacadas pela arte classicista francesa do século XVII, com
Corneille e Racine, por exemplo, são as listadas acima (busca da glória, coragem
inquebrantável, destemor diante da morte, força de guerreiro – o aspecto militarista
tradicional da nobreza), não se pode esquecer que elas são temperadas por uma virtude
nobre que não minimiza em nada o valor de tais paixões: a magnanimidade (ou
generosidade), que surge na ética de Aritóteles como virtude-mór do soberano. Ela não
minimiza as outras e, na verdade, até as potencializa, por razões óbvias: a magnanimidade é
uma espécie de absolvição final, depois de as paixões já terem perpetrado seus atos.
Como mostra Bénichou, ela é o desdobramento do triunfo do vencedor, um
desdobramento da nobreza, um ultrapassar nobre do poder de punir: só pode ser
magnânimo quem tem tal poder, só o muito forte pode pousar suas armas generosamente
diante do mais fraco
44
. A generosidade pode, portanto, ser definida, em última instância,
como o poder do soberano-filósofo, ou do nobre seiscentista, de perdoar um outro nobre no
qual reconheça valores nobres – que são, obviamente, aquelas paixões listadas há pouco.
Bénichou mostra, brilhantemente, que a “generosidade” de que falam os
contemporâneos Corneille e Descartes está totalmente integrada ao quadro de valorização
42
BÉNICHOU, Paul, op. cit., p. 20.
43
Idem, ibidem.
44
Idem, p. 31-42.
206
do eu nobre capaz de paixões naturais que ultrapassam a natureza, a servidão, os
constrangimentos em geral, a lei. A virtude, a “generosidade”, em Corneille e Descartes,
consistiria “...à aimer et à désirer tout ce dont le désir ou l’amour prouve et fortifie la
liberté”
45
. Tal liberdade faz parte do “...amour emphatique des grandeurs et le penchant à se
célébrer soi-même...”, faz parte de “...l’ambition, l’audace, le succès...” como valores
supremos da feudalidade, resgatados no século XVII, diante dos quais o mal “...résidait
dans la faiblesse ou la timidité, dans le fait de désirer peu, d’oser petitement, de subir une
blessure sans la rendre: on s’excluait par là du rang des maîtres pour rentrer dans le
commun troupeau”
46
. A generosidade, virtude do nobre, não se choca com as paixões,
como acontece no cristianismo; nessa perspectiva cornelliana e mesmo cartesiana, ela
integra o partido das paixões máxinas:
...la perfection morale paraît résider justement dans une harmonie du désir
et de la liberté: cette harmonie se produit dans les âmes généreuses, du fait
que le désir s’y portant toujours vers des objets dignes de lui, n’aliène pas
la liberté du moi, qui n’est qu’un autre nom de sa dignité.
47
Toda a análise fica clara ao lermos uma única frase de Corneille: “Il y a dans la
générosité la même passion de l’emporter que dans la vengeance, mais elle est d’une
qualité plus haute”
48
. A clemência, a magnanimidade é, portanto, nada menos que um ato
de desdobramento do triunfo: “...faites hautement connaître enfin à tous/ Que tout ce
qu’elles ont [as grandezas] est au-dessous de vous.../ Votre gloire redouble à mépriser
l’empire”, diz o conselheiro de Auguste, em Cinna, para ajudá-lo a curar-se de seu fastio
por não ter mais como aumentar seu raio de poder. No fim da peça, a clemência de
Alexandre diante de seus traidores surge como um “...défi au destin et à la tentation de
punir...”, e como vitória: “Je suis maître de moi comme de l’univers (...)/ Ô siècles, ô
mémoire,/ Conservez à jamais ma dernière victoire!”
49
. Nesse cenário, se a razão e o
constrangimento tomam parte na generosidade, isso se dá tão somente como cálculo de
45
Idem, p. 32.
46
Idem, p. 22-25
47
Idem, p. 32.
48
Idem, p. 39.
49
Idem, p. 39-40.
207
maximização da glória futura, na mesma corrente de expansão nobre do eu. A glória seria
uma paixão temperada pela razão:
3.6. Mélanide: a invenção do “final feliz”
Voltando a Mélanide, trata-se de perceber que a vitória final do amor entre a
protagonista e o marquês é a vitória de uma paixão amorosa específica diante de outra
paixão amorosa (do marquês por Rosalie) e diante da lei, das hierarquias, das regras sociais.
O embate agora se localiza exclusivamente no nível das paixões amorosas, as outras
paixões (com a glória como alvo) estando exiladas no campo de um etos aristocrático
rejeitado: eis aí o nível que favorece a idealização do novo gênero. O encarecimento
artístico do amor-paixão, ou das emoções (os movimentos ligados ao amor, de que trata o
romance), se contrapõe, no entanto, às relações contingentes da lei, do opróbrio objetivo
representado pelo casamento perpetrado ilegalmente (contra a vontade dos pais e da
sociedade). Por um lado, a revivescência da tradição idealizante do amor cortês, na trilha
das précieuses. Por outro lado, uma nova relação entre a ação ficcional e o meio
contingente: uma tendência realista.
Se na tragédia grega o ultrapassar-se da lei é traço do destino da linhagem, sendo
inexorável e levando ao desenlace trágico – pense-se em Antígona –, por essa nova
tendência realista as leis e as regras sociais dominantes passam a ser utilizadas pelo autor
como obstáculos pequenos à efetivação do amor-paixão, a paixão por excelência. No caso
de Mélanide, um obstáculo a ele acaba sendo, como no classicismo, uma paixão tíbia: um
amor que não chega aos pés daquele “verdadeiro” (o amor fraco por Rosalie). A lei é a
própria estrutura social, as convenções, as regras dos mais velhos (dos pais do marquês e
dos pais de Mélanide): do mundo antigo, que se contrapõe, erroneamente, à força do amor
verdadeiro. Nesse cenário, porém, a constituição de uma nova família tem a força de
transmudar os erros passados, as paixões e os atos criminosos que se foi levado (pelas
paixões) a efetivar nesse passado de agora em diante transformado.
208
De fato, a fala final do marquês não é de exaltação do amor-paixão em si, nada tem
de idealizante e se volta para a definição de uma nova ética pela qual sua decisão pretende
se justificar. Tal ética tem como ponto de partida exatamente a simpatia imediata, aflorada
no momento em que ele vê e ouve pessoalmente Mélanide: “Avant que de revoir un objet si
touchant,/ J’ai crû ne pouvoir vaincre un coupable penchant...”
50
. O que o convenceu foi a
percepção tanto de um coração (um íntimo expresso, em última instância, em uma ética
visível de amor ao filho, D’Arviane, e ao marido), quanto de uma aparência encantadores:
“Vous, en qui je retrouve un cœur & des appas/ Dignes d’être adorés de tout ce qui
respire?” Essa força do sentimento contingente, imediato e dilacerante é um traço
importante da sensibilité: contra ela, não há argumentos. Essa verdade ultrapassa o espaço
da cena, na página ou no palco: do impacto da sensibilité tanto o leitor quanto o espectador
devem partilhar, como veremos adiante
51
.
O ponto central é o chamamento do marquês no nível de uma nova moral que se
estabelecia. Tal moral parte do reconhecimento de cœur à cœur, de uma simpatia a partir da
identificação entre sensibilités parecidas, irmãs. Mas onde vai desembocar? “Avez-vous pû
me croire assez de barbarie/ Pour vous abandonner, vous, que j’ai tant chérie...”
52
, diz o
marquês. Mais adiante, dirá: “Madame, vous voyez dans quelle douce chaîne,/ Aussi bien
que l’Amour, mon devoir me raméne!”. E, por fim, na fala final: “Mélanide (Embrassant
Rosalie): Qui, moi? Si j’y consens! Oui, vous serez ma fille./ Le Marquis: “Ne faisons
désormais qu’une même famille./ O ciel! Tu me fais voir, en comblant tous mes vœux,/
Que le devoir n’est fait que pour nous rendre heureux”
53
.
O devoir marca o nó ético: abandonar alguém tão touchant e sensible ao grande
amor e à família quanto Mélanide seria “barbárie”. Portanto o dever, a decisão moral que se
impõe é a da retomada do grande amor do passado, mesmo que ilegal. É que tal decisão, tal
dever, por levar a se constituir uma família, vai contra os crimes passionais passados em
prol de uma nova institucionalização no presente – a família. Assim, resolve o nó passional
em um final feliz, não mais trágico, mas propriamente attendrissant, larmoyant: trata-se de
aplacar o passional por meio do público e institucional (o casamento). Se no classicismo as
50
LA CHAUSSÉE, Nivelle de, op. cit., p. 101 (100 no original).
51
Ver item 4.2.
52
Idem, ibidem.
53
Idem, p. 102 (101 or.).
209
próprias paixões eram públicas (glória, sucesso, orgulho, fama de guerreiro, coragem), na
comédie larmoyante o ilegal e o secreto só se tornam públicos por meio da paixão-mór, o
amor. O amor é, então, paixão bifronte, a um tempo ilegal e passível de conferir legalidade?
Seria, então, o amor a resolução ou o aplacar-se de uma antiqüíssima dicotomia – teria-se
inventado, afinal, a única e cabal paixão-virtude?
O casamento então surge, como em Pamela, como a transmutação da paixão (ilegal)
em felicidade familiar (“...nous rendre heureux”). O herói banhado em paixões públicas
cede lugar, finalmente, na modernidade, à institucionalização pública como transformação
da paixão de dois em uma família de vários (o marquês se tornará sogro daquela com quem
quase se casara, Rosalie).
De fato, foi contra o constrangimento exercido por uma lei e por uma hierarquia
estabelecidas que o amor ilegal triunfou – a frase chega a ser tautológica. Mas nesse
momento ainda pré-romântico das letras européias, essa tensão não será levada a seu
extremo e, portanto, não se centrará na luta de ideal versus concreto – do amor-paixão
idealizado versus o contingente, a condição social. A saída larmoyante integra a antiga
tragédia no etos não-clássico que se anuncia, e o faz por meio do teatro, uma arte central no
classicismo dominante, à época
54
.
54
Trataremos da relação entre retórica e literatura adiante, neste capítulo. Ver notas 67, 72 e 73, abaixo.
210
4. A Paméla lacrimosa de Nivelle de La Chaussée
Como se sabe, o autor de um sucesso tão cabal quanto Mélanide, a mais bem urdida
das comédies larmoyantes, viverá um fracasso acachapante com sua Paméla, comédie en
vers et en cinq actes, apenas dois anos depois, em 1743. A peça estréia a 6 de dezembro
daquele ano na Comédie Française. Quem narra é Gustave Lanson: “Il paraît (...) que
malgré le succès de larmes qu’avait eu l’ouvrage ‘dans des sociétés brillantes et choisies où
il avait été lu’, la confiance des messieurs de la Comédie tomba à la dernière heure, et
qu’ils firent une ample distribution de billets rouges
1
. A citação é de D’Alembert e billets
rouges eram nada menos que bilhetes distribuídos na platéia contendo a lista dos momentos
em que os espectadores deviam aplaudir ou gritar... “...de temps en temps: Que cela est
beau! Cela est divin!... Paix la cabale” [pedido para que um grupo contrário à peça
(cabale) faça trégua]
2
.
Lanson ironiza: “La cabale ne se laissa pas intimider: c’était tout le public...”. Ainda
segundo ele, foi um dos “mais belos tumultos que jamais se viu na Comédie”. O Chevalier
de Mouhy, autor de vertiginosos romances de aventura como La paysanne parvenue, relata
que não se chegou nem mesmo ao fim da peça, tamanha foi a vaia. Nas Anedoctes
dramatiques se pode ler: “Au sortir de la premre représentation de cette Comédie,
quelqu’un demanda à la porte: comment va Pamela? un mauvais plaisant répondit: elle
pâme, hélas!” – o verbo pâmer seguido da interjeição formando o nome da personagem
3
.
No Anedoctes... se confirma a chuva de vaias na estréia.
Resultado: sete meses depois do fiasco de Louis de Boissy no Théâtre des Italiens, a
Paméla de La Chausée torna-se o espetáculo que menos tempo ficou em cartaz em toda a
história da Comédie Française – tem uma única apresentação. Segundo Lanson, a própria
idéia de levar o romance de Richardson para o palco já era catastrófica. Para ele, se o livro
agradara por conta de seus estrangeirismos e da curiosidade despertada pelos costumes
1
LANSON, Gustave, op. cit., p. 163.
2
Idem, ibidem.
3
ANEDOCTES dramatiques, op. cit., p. 535-536.
211
privados ingleses, só era possível torná-la francesa e levá-la para o palco despojando-a
“...de tout ce qui la rendait singulière et charmante”, já que o espectador de teatro na Paris
daquele momento “...a le goût ombrageux, n’aime pas à être dérouté, et se révolte contre
l’inconnu”
4
. Se o espectador parisiense odeia novidades, odeia ainda mais o que Lanson
classifica como as características dessa protagonista, que tanto contraste faz com as
heroínas da tragédia. A citação bastante longa se justifica, pois este ótimo apanhado dos
possíveis motivos de rejeição da peça indica, pela negação, um horizonte de expectativas –
e de contra-expectativas – do espectador mediano naquele momento, em Paris.
...cette petite puritaine humble selon le monde et selon Dieu, effarouchée
et tremblante devant son noble maître, soumise en tout ce qui n’est pas
péché, confuse et éplorée pour une marque de politesse ou de
bienveillance qui vient d’un si riche seigneur, angéliquement pure et
droite, se défendant en théologienne contre les propositions coupables à
grand renfort de citations bibliques et de versets de l’Écriture, incapable
de mentir même pour sauver son honneur, aussi incapable de concevoir la
méchanceté que l’athéisme, douce envers l’injustice et la souffrance, prête
au martyre sans une plainte; point maussade dans ses larmes continuelles
que son sourire vient parfois illuminer; femme, et bien femme avec cela,
qui sait bien quelle robe lui est plus seyante, qui note bien quels habits
font valoir la belle et fière figure de son persécuteur, et qui enfin l’eût
peut-être moins vite et moins aimé pieux et chaste come elle: une fille
d’Ève qui séduisait le démon jusqu’à le faire repentir.
5
Como se vê, até a acusação de uma feminilidade frívola e dissimulada da jovem que
sabe usar a roupa certa para cada ocasião está presente no período citado, cujo tamanho
denuncia não só perspicácia descritiva, mas impaciência com o moralismo da personagem.
Lanson segue reclamando do despotismo do patrão (“...dépositaire de l’autorité, il est
justice of peace de son comté”), citando o que talvez tenha sido um elemento a despertar
especial curiosidade no boca a boca francês em torno do livro: “...il essaye de la violer”
6
.
Mas o ponto central da crítica de Lanson está logo adiante e se refere àquelas
características de estilo do romance que tanto espanto causaram nos leitores franceses da
época – e a prova está no fato de Diderot dedicar grande parte de seu Éloge de Richardson
ao tema. Lanson escreve: “Rien n’était resté enfin de cette observation méticuleuse qui
4
LANSON, Gustave, op. cit., p. 164.
5
Idem, ibidem.
6
Idem, ibidem.
212
décomposait les moindres sentiments, notait les moindres velléités, scrutait les plus intimes
motifs des actions et des pensées pour en juger la valeur morale...”
7
. Portanto, um traço
fundamental da leitura do romance, e que explica até seu tamanho
8
, parece a Lanson crucial
para a acolhida perante leitores franceses, traço esse totalmente impossível de ser
reproduzido em um palco: o realismo detalhista, minucioso, descrevendo as pequenas
variações do humor e dos sentimentos da criada, seus atos, suas roupas, suas ínfimas
decisões e justificativas, bem como o estranho dia-a-dia doméstico nas propriedades de Mr.
B.
Para Diderot, o novo realismo tem uma função estética inaudita, de despertar os
sentidos e o espírito para o ínfimo, o quase imperceptível, ou seja, a função de alargamento
da percepção que desemboca na função moral que o philosophe valoriza nos romances de
Richardson:
Pensez de ces détails ce qu’ils vous plaira (...). Ils sont communs, dites-
vous; c’est ce qu’on voit tous les jours! Vous vous trompez; c’est ce qui
se passe tous les jours sous vos yeux, et qe vous ne voyez jamais (...) Eh
bien! Il en est pour vous des phénomènes moraux ainsi que des
phénomènes physiques: les éclats des passions ont souvent frappé vos
oreilles; mais vous êtes bien loin de connaître tout ce qu’il y a de secrets
dans leurs accents et dans leurs expressions (...) l’art du grand poëte et du
grand peintre est de vous montrer une circunstance fugitive qui vous avait
échappé.
9
O fato é que, retomando a dualidade pintura-escrita, o realismo detalhista de
Richardson adequava-se como luva à defesa que o philosophe fazia da ilusão do tableau
como núcleo de uma nova verossimilhança, que mantém com a imaginação uma relação
complexa, ao contrário do “...tissu d’événements chimériques et frivoles...” de que eram
7
Idem, p. 165.
8
“J’ai entendu reprocher à mon auteur ses détails qu’on appelait des longeurs: combien ces reproches m’ont
impatienté! (...) soyons équitables. Chez un peuple entraîné par mille distractions, où le jour n’a pas assez de
ses 24 heures pour les amusements dont il s’est accoutumé de les remplir, les livres de Richardson doivent
paraître longs”, escreve Diderot. DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson. In: Œuvres complètes de
Diderot. Tome 5. Paris: Garnier Frères, Libreires-éditeurs, 1875. p. 216-217 (BNF-Gallica, p. 220-221).
Disponível em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k23392d>. Acesso em: 10/10/2006. Cf. CHARTIER,
Roger. Inscrire et effacer, op. cit., p. 159.
9
DIDEROT, Denis, op. cit., p. 221 (217 or.).
213
feitos os chamados “romances romanescos”
10
: “Peintres, poëtes, gens de goût, gens de
bien, lisez Richardson (...). Sachez que c’est à cette multitude de petites choses que tient
l’illusion: il y a bien de la difficulté à les imaginer: il y en a bien encore à les rendre”
11
. Isso
porque a suspensão da expectativa, ou o labirinto interminável de minúcias realistas,
pintadas como quadros do dia-a-dia, adia para mais tarde o prazer da eclosão ou da
resolução das paixões: “Lorsque votre impatience aura été suspendue par ces délais
momentanés qui lui servaient de digues, avec quelle impétuosité ne se répandra-t-elle pas
au moment où il plaira au poëte de les rompre!”. O resultado é aquele perseguido por um
novo tipo de escritor-filósofo por meio não do terror e da piedade, mas da sensibilité, para a
qual é imprescindível o trabalho da nova ilusão realista
12
: “C’est alors qu’affaissé de
douleur ou transporté de joie, vous n’aurez plus la force de retenir vos larmes prêtes à
couler, et de vous dire à vous-même: Mais peut-être que cela n’est pas vrai. Cette pensée a
été éloignée de vous peu à peu; et elle est si loin qu’elle ne se présentera pas”
13
.
4.1. O novo realismo teve um exemplo francês em Marivaux
Um indício de que a nova visão defendida por Diderot está na base do romance
como novo gênero é que, na seqüência, para metaforizar e, com isso, aumentar o grau de
verossimilhança de sua posição de leitor afetado diante do novo estilo, ele apela para uma
imagem idêntica à que justifica o realismo em La Vie de Marianne, o romance pré-
richardsoniano de Marivaux. No primeiro volume, de 1731, antes da narrativa propriamente
dita, o suposto editor explica como chegou ao texto das memórias que o leitor tem em
mãos:
Il y a six mois que j’achetai une maison de campagne à quelques lieuës de
Rennes, qui depuis trente ans a passé sucessivement entre les mains de
10
A citação está na frase de abertura do Éloge de Richardson: “Par un roman, on a entendu jusqu’à ce jour un
tissu d’événements chimériques et frivoles, dont la lecture étair dangereuse pour le goût et pour les mœurs”.
DIDEROT, Denis, op. cit., p. 215-216 (212-213 or.).
11
Idem, p. 222 (218 or.).
12
Ver nota 11 do Capítulo 3, acima, e nota 16 no presente Capítulo, abaixo. Cf.: MATOS, Franklin de, op. cit.
13
DIDEROT, Denis, op. cit., 222 (218 or.).
214
cinq ou six personnes. J’ai voulu faire changer quelque chose à la
disposition du premier appartement, & dans une armoire pratiquée dans
l’enforcement d’un mur, on y a trouvé un manuscrit en plusieurs cahiers
contenant l’Histoire qu’on va lire, & le tout d’une écriture de femme.
14
Em seu panegírico a Richardson, Diderot escreve:
Une idée qui m’est venue quelquefois en rêvant aux ouvrages de
Richardson, c’est que j’avais acheté un vieux château; qu’en visitant un
jour ses appartements, j’avais aperçu dans un angle une armoire qu’on
n’avait pas ouverte depuis longtemps, et que, l’ayant enfoncée, j’y avais
trouvé pêle-mêle les lettres de Clarisse et de Paméla. Après en avoir lu
quelques-unes, avec quel empressement ne les aurais-je pas arrangées par
ordre de dates! Quel chagrin m’aurais-je pas ressenti, s’il y avait eu
quelque lacune entre elles! Croit-on que j’eusse souffert qu’une main
téméraire (j’ai presque dit sacrilége) en eût supprimé une ligne?
O novo realismo – na verdade, uma tendência já testada e aprovada pelo público
francês, graças a Marivaux e Prévost – nunca alcançara o grau de detalhismo nem de
prolixidade que se vê no romance de Richardson e, a crer em Diderot e em Lanson, aqueles
foram dois elementos cruciais para seu sucesso impressionante no hexágono francês. Em
suas Lettres amusantes et critiques sur les romans en général, anglois et françois, tant
anciens que modernes, adressées à Miledy W***, um ano após a publicação da tradução
francesa, La Chesnaye Des Bois cita Marivaux antes de Richardson em seus comentários
gerais sobre o gênero ainda pouco prestigiado.
...Marianne, et le paysan parvenu vous ont paru développer les ruses de
l’esprit et du cœur. M De M auteur de ces deux derniers ouvrages, dans sa
façon de peindre les caractéres peut être pris pour modéle (sic). (...) Quel
est leur langage? On distingue aisément le discours de la campagne, et
celui de la ville. On s’apperçoit du changement, qu’opére dans un
villageois l’usage et la fréquentation de personnes d’une éducation plus
cultivée. Les degrés en son si marqués, qu’il n’a pas besoin d’advertir son
lecteur...
15
14
MARIVAUX. La vie de Marianne ou Les avantures de la comtesse de ***. Première partie. Paris: Chez
Pierre Prault, 1731. p. 8-9 (BNF–Gallica, p. 1-2). Disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k104316t>. Acesso em: 12/10/2006.
15
DES BOIS, Aubert La Chesnaye. Lettres amusantes et critiques sur les romans en général, anglois et
françois, tant anciens que modernes, adressées à Miledy W***. [1740-41?]. p. 30-31 (BNF-Gallica, p. 18-
19). Disponível em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k87356r>. Acesso em: 12/10/2006.
215
O espanto do leitor Des Bois se dá por conta da incorporação da própria prosódia,
campesina ou parisiense, à narrativa em primeira pessoa de Marivaux. Contra todas as
regras da retórica tradicional, que ditava um estilo elevado, cultivado (elocutio) e
argumentativo, nunca calcado nem na actio (gestos e tom da fala), nem no ethos, que, no
caso do orador, prescinde de palavras para se instaurar, dado que é o conjunto de elementos
públicos de sua posição social, sua profissão, seus antecedentes e sua trajetória de
probidade ou malversação
16
.
Sem nos propormos a alongar, aqui, a análise que tem por base a retórica, basta
apontar o fato de que, no caso dos romances de Marivaux, não se trata apenas de seguir a
tendência geral de inclusão de domínios retóricos antes considerados periféricos – como a
actio e o ethos. Trata-se, muito mais radicalmente, de tentar passar ao largo da tradição
retórica regrada ou, em outros termos (e, talvez, para ouvidos da época), de praticar uma
inédita retórica que simula ser invisível, uma “não-retórica” em que o referente não é a tão
16
Na verdade, se na retórica de Aristóteles o etos (ethos) é central e constitutivo, ao lado do logos e do
pathos, as letras classicistas francesas, como se sabe, sempre privilegiaram no mais alto grau, de um lado, a
ornamentação do belo estilo (logos, discurso demonstrativo) e, de outro, a pintura das paixões (pathos),
substituindo o orador pelos personagens (caractères) que, ao contrário do primeiro, são antes instrumentos
das paixões do que as podem manipular. “...le genre épidictique ou démonstratif est par excellence celui du
tour de force verbal, de la parole comme spectacle en elle-même et presque pour elle-même, objet de ce
bonheur littéraire auquel nuisaient les finalités pratiques du judiciaire et du déliberatif”. FUMAROLI, Marc.
Héros et orateurs. Rhétorique et dramaturgie cornéliennes. Genebra: Droz, 1996. p. 312. Essa parece ser
uma das razões pelas quais o novo gênero, instaurador da literatura, terá o personagem individualizado como
um de seus elementos principais (Robson Crusoe, Moll Flandres, La vie de Marianne, L’homme de qualité
(Manon Lescaut), Pamela, Clarisse, Tom Jones etc.). O caractere moderno é algo como o ethos em
movimento, ou seja, o “quem fala” (o sujeito da enunciação) não apenas agindo, mas também como foco
principal do interesse, seja ele narrador ou não (e em muitos dos exemplos citados, de fato será). Numa
evolução mais ampla da poética e da retórica, trata-se de dar menos importância aos ornamentos e ao estilo
(logos), e de lidar de forma diferente com o pathos. No caso delas, paixões, parece ter havido uma
incorporação inédita à trajetória do indivíduo e às múltiplas máscaras representadas pelos personagens: só se
poderá percebê-las, a partir do romance moderno, não mais em sua abstração supra-individual (pública ou
coletiva, como na Grécia antiga), mas em sua agonística a partir de focos individualizados (os personagens
em sua versão moderna). A partir, portanto, desses ethos (com suas justificativas históricas individuais para
serem como são) em constante choque. Não há espaço, aqui, para estendermo-nos sobre as diferenças entre os
personagens no teatro grego e no romance moderno, por exemplo. Pretendemos, apenas, ter tocado em um
ponto de interseção, a nosso ver pouco tratado, entre retórica e o surgimento da literatura. Além do que
chamamos em outra parte deste estudo de “dessublimação”, talvez tenha havido, na virada para o romance
moderno, um novo tipo de pendor pelo foco do ethos na prosa de ficção como forma de pintar uma
subjetividade propriamente moderna. Isso só pode ter se dado, se nossa trilha for correta, em detrimento dos
outros dois domínios aristotélicos das tradições tão aproximadas da poética e da retórica, o logos e o pathos.
Nesse cenário geral, a criação da psicanálise e outras transformações culturais de época podem ter significado
uma segunda dobra desse caractere, dessa vez sobre si mesmo, com as conseqüências que se conhece no
campo do romance. Cremos que a hipótese desse desvio em prol do ethos
pode trazer elementos para uma
ampliação de teorias sobre a ascensão do sujeito-individual moderno. Cf.: LIMA, Luiz Costa. Limites da voz.
Montaigne, Schlegel. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1993.
216
respeitada tradição oratória elevada, mas um suposto olhar virgem do autor para a realidade
crua, sem intermediários. Para que isso fosse possível, era necessário que se supusesse uma
autoridade e um talento nesse olhar a extrair da (também suposta) realidade traços cujo
impacto no espactador-leitor, primeiro, o confundisse (o iludisse) com a verossimilhança e,
segundo, o enternecesse com os sentimentos identificáveis.
4.2. A sensibilité como mediadora da leitura e da audiência
A sensibilité seria, obviamente, o novo vínculo, entre subjetivo e objetivo, na
ausência da antiga verve ornamental (estilo elevado, de Cícero a Racine), bem como do
antigo manejo abstrato das paixões – a forma de tratá-las classicamente como entidades
abstratas investidas, cada uma delas, em um personagem, de modo que o embate desses
personagens fosse a figuração humana de paixões supra-humanas. Utilizamos, há pouco,
“entre subjetivo e objetivo” pois, como se sabe, os autores mais eficientes seriam os que,
por meio do estímulo concreto dos sentidos (a leitura/o tableau no palco), tocassem em
zonas abstratas do leitor-espectador (os sentimentos), provocando reações outra vez
concretas: lágrimas, palidez, desmaios, confusões enternecidas entre realidade e ficção (daí
a complexa brincadeira de Diderot no início das Entretiens sur le Fils Naturel) etc. É nessa
mesma linha que a própria redação do Éloge à Richardson pode ser vista “...como uma
representação dos efeitos produzidos pela leitura do romance” de Richardson
17
: o texto se
apresenta como impressões entusiasmadas do leitor Diderot diante quase de uma epifania: o
insight de que Richardson indica um novo caminho estético para a prosa de ficção:
J’avais parcouru dans l’intervalle de quelques heures un grand nombre de
situations, que la vie la plus longue offre à peine dans toute sa durée.
J’avais entendu les vrais discours des passions; j’avais vu les ressorts de
l’intérêt et de l’amour-propre jouer cent façons diverses; j’étais devenu
spectateur d’une multitude d’incidents, je sentais que j’avais acquis de
l’expérience.
17
CHARTIER, Roger. Do palco à página. Publicar teatro e ler romances na época moderna – séculos XVII-
XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. O romance: da redação à leitura. p. 102.
217
(...) les passions qu’il peint sont telles que je les éprouve en moi; ce sont
les mêmes objets qui les émeuvent, elles ont l’énergie que je leur connais;
les traverses et les afflictions de ses personnages sont de la nature de
celles qui me menacent sans cesse; il me montre le cours général des
choses qui m’environnent. Sans cet art, mon âme se pliant avec peine à
des bias chimériques, l’illusion ne serait que momentanée et l’impression
faible et passagère.
18
A identificação, no caso, deve ser efusiva, como se a leitura tivesse poderes de
evocar imediatamente impasses, contradições e angústias pessoais, espelhando uma
experiência própria por meio de outra experiência que se adquire: a dos personagens.
Conhecendo-se a importância que Diderot dava à palavra “experiência”, surpreende essa
sua crença em uma experiência da leitura que fecunda, como numa epifania, a experiência
vivida. O texto do Éloge de Richardson será, portanto, como indica Roger Chartier, um
testemunho por escrito dessa leitura-experiência, que Diderot advoga a todos e a cada um.
É a perspectiva diderotiana de um uso da sensibilidade totalmente novo, que busca
fazer das lágrimas um outro tipo de testemunho imediato de uma identificação total com o
lido ou visto no palco. Como escreve Roland Mortier, de forma mais generalizante:
...la “sensibilité” en pleurs est une des formes que prend une philosophie
empiriste (ou sensualiste), qui peut chez certains se muer en matérialisme.
De même que la sensibilité, à son autre versant, frôle parfois l’érotisme ou
le voyeurisme, elle traduit ici la douleur en des termes physiques,
concrets, perceptibles aux sens.
19
Se o leitor-espectador de formação clacissista – ainda a maioria, na época – exultava
diante da ascensão altiva e hiper-cultivada do herói ao mundo das paixões titânicas supra-
humanas, a generalização dos “modernos” estava na suposição (clara em uma Madame de
Staël, em 1800) de uma irmandade universal dos sentimentos – numa re-sublimação das
antigas paixões. Porém, o que muda radicalmente é a forma de acesso a tais entidades
generalizáveis (porque universais); agora, é apenas por meio de um “novo tipo de catarse”,
pautada pela afetação vigorosa e imediata do espectador-leitor, sem o intermédio do antigo
18
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson, op. cit., p. 217-218 (213-214 or.).
19
MORTIER, Roland. Des larmes de la sensibilité aux larmes du sentiment: Baculard d’Arnaud, Diderot,
Ballanche. In: Le cœur et la raison. Recueil d’études sur le dix-huitième siècle. Oxford/Bruxelas/Paris: The
Voltaire Foundation/Editions de l’Université de Bruxelles/Universitas, 1990. p. 315.
218
e tradicional prazer das audiências diante dos ornamentos de linguagem de Cícero, ou da
métrica perfeita de Corneille e Racine.
Qu’est-ce qui nous affecte dans le spectacle de l’homme animé de
quelques grandes passions? Sont-ce ses discours? Quelquefois. Mais ce
qui émeut toujours, ce sont des cris, des mots inarticulés, des voix
rompues, quelques monosyllabes qui s’échappent par intervalles, je ne
sais quel murmure dans la gorge, entre les dents. La violence du sentiment
coupant la respiration et portant le trouble dans l’esprit (...), le reste n’est
qu’une suite de bruits faibles et confus, de sons expirants, d’accents
étouffés que l’acteur connaît mieux que le poète.
20
A arte do ator, aquele capaz de manejar a máscara (persona), o ethos de cada
personagem, se torna a chave para Diderot explicar o que quer sugerir não só para o teatro,
mas também para a prosa de ficção em geral. Se são eles que se centram, desde o século
anterior, no sentimento, na sensibilité, no amor, o poeta e o romancista devem,
necessariamente, pautar-se pelo trabalho do ator, aquele que maneja todos os elementos da
expressão que a tradição retórica tratava como periféricos, já que não eram propriamente
discursivos. Se Aristotéles descreve a retórica como arte dos três discursos, o epidíctico
(logos), o jurídico (ethos) e o deliberativo (pathos), Diderot tenta propor para o poeta, para
o romancista e também para o pintor uma via não-dicursiva, mas humanamente expressiva:
gestos, posturas, sons inarticulados, muxoxos, gritos de sofrimento, choros etc. Diderot se
inscreve, assim, na sintonia de uma valorização da actio, na verdade já visível desde
Cícero, e que teve desdobramentos no sentido de expandir o domínio da retórica, antes que
ele como que começasse a desabar. Só que, ao revalorizar o trabalho do ator, em vez do
romancista e do dramaturgo, Cícero visava ao muito mais prestigiado – em sua época –
campo do jurídico:
...l’actor, c’est l’acteur de théâtre initié à la haute discipline rhétorique, et
qui peut servir de modèle d’actio oratoria au grand advocat. Cette
20
DIDEROT, Denis. Écrits sur le théâtre. 1. Le drame. MÉNIL, Alain (org.). Paris: Pocket, 1995. p. 81. Cf.:
MATOS, Franklin de. O filósofo e o comediante. Minas Gerais: Editora UFMG, 2001. p. 53: “O que é que
nos afeta no espetáculo do homem animado por alguma grande paixão? São seus discursos? Às vezes. Mas o
que comove sempre, são gritos, palavras inarticuladas, vozes entrecortadas, alguns monossílabos que escapam
por intervalos, não sei que murmúrio na garganta, por entre os dentes. Quando a violência do sentimento corta
a respiração e leva o tumulto ao espírito, as sílabas das palavras se separam, o homem passa de uma idéia a
outra; começa uma porção de discursos; não acaba nenhum (...) é apenas uma seqüência de ruídos fracos e
confusos, de sons expirantes, de acentos abafados que o ator conhece melhor que o poeta”.
219
rédemption sociale de l’acteur de théâtre par son initiation aux disciplines
de l’esthétique rhétorique apparaît chez Cicéron, avec éclat, dans l’estime
que l’auteur du De Oratore accorde à l’acteur Roscius (...); il ne se lasse
pas de le proposer en exemple du decorum le plus achevé dans le geste, la
voix, la grâce des attitudes.
21
Essa ênfase em um novo tipo de patético tende a submeter o todo-poderoso domínio
do pathos, tão caro ao classicismo, ao do ethos, que integra as características do enunciador
ao que ele diz ou faz
22
. Trata-se de perceber como o pathos, as paixões, só se podem
mostrar ou mesmo ser purgadas por meio de uma nova expressividade que inclui as
lágrimas, nos personagens e nos espectadores, mas inclui também uma superação do
sofrimento como último momento de uma via crucis valorizadora, a provar que se está
lidando com um bom coração – tanto no palco quanto na platéia. “Il faut que je sois bien
bon de m’affliger ainsi. Tout ceci n’est qu’une comédie”, dizia o “Eu” de Diderot no início
das Entretiens sur Le Fils Naturel. Compare-se com passagem do Éloge de Richardson:
“Mon âme était tênue dans une agitation perpétuelle. Combien j’étais bon! combien j’étais
juste! que j’étais satisfait de moi! que j’étais satisfait de moi! J’étais ce qu’est un homme à
la fin d’une journée qu’il a employée à faire le bien”
23
.
La sensibilité (...) se veut (...) l’illustration vivante d’une philosophie toute
tendue vers le destin terrestre d’un homme réhabilité, lavé de tout péché
originel, par ses qualités de cœur. Les héros de Baculard, comme ceux de
Nivelle de La Chaussée, mais aussi comme ceux du théâtre de Diderot, se
rejoignent dans le sublime du pathétique et des larmes.
24
A coerência de tal concepção da sensibilidade como pedra-de-toque de um novo
tipo de catarse (uma nova relação estética com a obra) fica clara quando se nota a forma
como Diderot defende sua tese do tableau, aproximando o pintor do escritor, e propondo
um modo de fazer desaparecer a distância “symétrique” imposta pelo classicismo entre os
personagens, no palco, e entre eles e os espectadores:
21
FUMAROLI, Marc. Héros et orateurs. Rhétorique et dramaturgie cornéliennes. Genebra: Droz, 1996. p.
291.
22
Cf. AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso. A construção do ethos. São Paulo: Editora
Contexto, 2005.
23
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson, op. cit., p. 217 (213 or.).
24
MORTIER, Roland, op. cit., p. 317.
220
Est-il possible qu’on ne sentira point que l’effet du malheur est de
rapprocher les hommes, et qu’il est ridicule surtout dans les moments de
tumulte, lorsque les passions sont portées à l’excès, et que l’action est la
plus agitée, de se tenir en rond, séparés, à une certaine distance les uns des
autres, et dans un ordre symétrique? Serait-ce une règle qu’il faut
s’éloigner de la chose, à mesure que l’art en est plus voisin, et mettre
moins de vraisemblance dans une scène vivante où les hommes mêmes
agissent, que dans une scène colorée où l’on ne voit, pour ainsi dire, que
leurs ombres?
Je pense, pour moi, que si un ouvrage dramatique était bien fait et
bien représenté, la scène offrirait au spectateur autant de tableaux réels,
qu’il y aurait dans l’action de moments favorables au peintre.
25
O primado do afastamento, elemento artístico clássico por excelência, deve ser pura
e simplesmente destruído e, em seu lugar, o novo teatro deve favorecer a dissimetria das
aproximações corporais a compor quadros mais próximos da realidade. O sofrimento e as
lágrimas são algo como um aproximador universal – caríssimo às artes, portanto. A ponto
de o leitor-espectador “entrar” e “misturar-se” à ficção, como no começo das Entretiens sur
le Fils Naturel, bem como nessa passagem do Éloge de Richardson:
O Richardson! on prend, malgré qu’on en ait, un rôle dans tes ouvrages,
on se mêle à la conversation, on approuve, on blâme, on admire, on
s’irrite, on s’indigne. Combien de fois ne me suis-je pas surpris, comme il
est arrivé à des enfants qu’on avait menés aux spectacles pour la première
fois, criant: Ne le croyez pas, il vous trompe... si vous allez là, vous êtes
perdu.
26
Trata-se, como destaca Chartier, de um novo espectador a ser produzido, cuja hiper-
presença – como que dentro da narrativa ou da encenação – é, na verdade, signo de sua
invisibilidade, a permitir-lhe entregar-se à ilusão. É inevitável que a primeira dessas
ilusões, que engendra os prazeres das seguintes, seja a de sua própria ausência da cena.
Nesse sentido, a complexa brincadeira didática de Diderot incluindo o narrador na cena do
ensaio de Le Fils Natirel e fazendo-o confundir ficção e reaildade é a representação irônica
dessa hiper-presença, que se torna ausência:
Diderot inscrit (...) le roman dans cette esthétique paradoxale et
problématique qui fait dépendre l’effet d’une œuvre de “la constitution
25
DIDEROT, Denis. Entretetiens sur le Fils Naturel, op. cit., p. 70.
26
DIDEROT, Denis. Éloge à Richardson, op. cit.,
221
d’une nouvelle espèce de spectateur – un nouvaeu sujet – dont la nature la
plus profonde consisterait précisément à être convaincu de sa propre
absence de la scène de la représentation”
27
.
Tal paradoxo talvez nos leve a explicar, mais adiante
28
, por que o método
lacrimoso, depois de aproximar e de comover tantas audiências nas primeiras décadas do
século XVIII francês, por conta de sua própria repetição e de sua vulgarização ao longo do
século seguinte, acabará por transformar o espectador-leitor em um ser um tanto indiferente
e outra vez distanciado desse novo patético.
4.3. Virtude e vício do romance: o útil e o agradável
Numa cronologia que, na verdade, remonta à Grécia antiga, na trilha do então
prestigiado Pierre-Daniel Huet, autor do Traité de l’origine des romans, de 1670, Des Bois
afirma que “...dans toutes les parties de l’Europe, les faiseurs de romans succederent aux
historiens fabuleux, qui pendant plusieurs siècles répandirent l’ignorance et la barbarie dans
tout l’empire”
29
. Sua definição de romance è a seguinte: “...histoires feintes, écrites en
prose, et avec art, pour le plaisir et l’instruction des lecteurs
30
. As palavras-chaves, no
caso, são “feintes” (fingidas, ou ficcionais), “plaisir” e “instruction”. Na linha da tese de
Diderot, debitária das de Huet, de La Chesnaye Des Bois e, mais ancestralmente, de
Horácio, sua defesa da “ilusão” e do “quadro” como forma de atingir um novo tipo de
relação do espectador ou do leitor com o visto ou lido, a instrução moral é o pano de fundo
constante daquele elogio que incorpora tão completamente o patético (no sentido de
melodramático) a seu próprio estilo: “...grâce à cet auteur, j’ai plus aimé mes semblables,
plus aimé mes devoirs; (...) je n’ai eu pour les méchants que de la pitié; (...) j’ai conçu plus
27
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 166, a partir de: FRIED, Michael. Absorption and theatricality: painting
and beholder in the age of Diderot. Berkeley/Los Angeles/Londres: University of California Press, 1980. p.
104.
28
Ver o item 4.4, “O martírio como modelo de purgação”, adiante.
29
DES BOIS, La Chesnaye, op. cit., p. 8 (4 or.).
30
Idem, p. 7 (13 or.).
222
de commisération pour les malheureux, plus de vénération pour les bons, (...) plus d’amour
pour la vertu...”
31
.
Precursor de toda e qualquer defesa do romance na França, Huet assim define o
objetivo máximo do gênero: “La fin principale des Romans, ou du moins celle qui doit
l’être, et que se doivent proposer ceux qui les composent, est l’instruction des lecteurs, à
qui il faut toujours faire voir la vertu couronnée, et le vice châtié”
32
. Porém, seguindo a Ars
poetica de Horácio, tão em voga na França do século XVII, o agradável deve ser apenas o
atalho para se alcançar o útil, no caso do romance:
Mais comme l’esprit de l’homme est naturellement ennemi des
enseignements, et que son amour-propre le révolte contre les instructions,
il le faut tromper par l’appas du plaisir, et adoucir la sévérité des
préceptes, par l’agrément des exemples, et corriger ses défauts en les
condamnant dans un autre. Ainsi le divertissement du lecteur, que le
Romancier habile semble se proposer pour but, n’est qu’une fin
subordonnée à la principale, qui est l’instruction de l’esprit, et la
correction des mœurs...
33
A linguagem carregada do jansenismo da época, com direito a rejeição da revolta
ditada pelo amor-próprio, circunscreve uma diretriz que se manterá válida para muito além
da virada do século. Em 1736, ao inaugurar a tradição menos moralista da literatura quiçá
em muitos séculos, Claude Crébillon paga tributo a tal forma francesa e horaciana de
acolher o gênero bastardo, iniciando do seguinte modo o prefácio de Les égarements du
cœur et de l’esprit: “L’homme qui écrit ne peut avoir que deux objects: l’utile et l’amusant.
Peu d’auteurs sont parvenus à les réunir. Celui qui instruit, ou dédaigne d’amuser, ou n’en a
pas le talent; et celui qui amuse n’a pas assez de force pour instruire: ce qui fait
31
DIDEROT, Denis, op. cit., p. 224 (220 or.).
32
HUET, Pierre-Daniel.Traité de l’origine des romans. Paris: Chez N.L.M. Desessarts, éditeur, imprimeur-
libraire, An VII (1796). p. 4-5 (BNF-Gallica, p. 11-12). Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k650112>. Acesso em: 05/11/2006. Antonio Candido destaca que a
famosa obra de Huet é, na verdade, um diálogo com ares de refutação da obra de Cintio (ou Giraldi), primeiro
defensor, ainda renascentista, dos romances, em contraposição à tradição clássica. Segundo Candido, Cintio
“...chega a dizer que a composição dos ‘romances italianos’ [ao estilo de Ariosto e Boiardo] não deve ficar
escravizada às regras de Aristóteles e Horácio, que não conheceram a língua italiana nem esta ‘maneira de
compor’”. A perspectiva de Candido nos serve aqui na medida em que chama a atenção para as raízes da
defesa do novo gênero, ainda no Renascimento italiano. Como se sabe, o classicismo francês do XVII terá
como um de seus modelos mais constantes o ambiente daquela renascença. CANDIDO, Antonio. O patriarca.
In: Educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática, 2003. p. 72-82.
33
HUET, Pierre-Daniel, op. cit., p. 11 (4 or.).
223
nécessairement que l’un est toujours sec, et que l’autre est toujours frivole”
34
. Obviamente,
o romance de libertinagem não objetiva nem iludir para melhor atingir a sensibilidade, nem
tornar a prosa instrumento de instruções morais condensadas em máximas.
Diderot toca em ponto nevrálgico da questão logo no início do Éloge..., ao comparar
Richardson aos moralistas franceses do século XVII. Trata-se de ultrapassar a dicotomia
horaciana de alguma outra forma que não escamoteie o problema moral na recepção de
qualquer obra – o que fazia, de certa forma, o classicismo, ao subsumir a moralidade ao
simples foco nos “grands” (ou seja, o fato de a moral estar inestricavelmente ligada à
condição hierárquica do personagem na sociedade), e o que fará, séculos depois, o
realismo, ao dizer-se amoral por supostamente retratar a realidade nua
35
. Nesse momento
ancestral do romantismo, Diderot parece defender a ilusão e o tableau como métodos para
dar o próximo passo no sentido do realismo nascente, sem negligenciar a função ética do
texto. Como ele o faz? Ao propor que a ação, em sua verossimilhança dir-se-ia vertiginosa
– no sentido de fornecer tantos detalhes minuciosos e tableaux sensíveis que o espectador-
leitor se esqueça por instantes de que está diante de uma obra-de-arte –, olhe mais para si
próprio e para seus medos, suas raivas, suas expectativas, seus afetos, sua compaixão, seus
pequenos sofrimentos e vitórias do que para a grandiloqüência, a retórica, o pathos
encenado segundo os preceitos e as regras aprendidas na escola e propagadas pela
Académie. Indo direto ao ponto logo na primeira página do panegírico, Diderot escreve:
Tout ce que Montaigne, Charron, La Rochefoucauld et Nicole ont mis en
maximes, Richardson l’a mis en action. (...) Une maxime est une règle
abstraite et générale de conduite dont on nous laisse l’application à faire.
Elle n’imprime par elle-même aucune image sensible dans notre esprit:
mais celui qui agit, on le voit, on se met à sa place ou à ses côtés, on se
passionne pour ou contre lui; on s’unit à son rôle, s’il est vetueux; on s’en
écarte avec indignation, s’il est injuste et vicieux. Qui est-ce que le
caractère d’un Lovelace, d’un Tomlinson, n’a pas fait frémir?
36
34
CRÉBILLON FILS, Claude. Les égarements du cœur et de l’esprit, op. cit., p. 19.
35
O romantismo também seguirá a mesma trilha sempre que o autor, reputado gênio, pressupuser uma
capacidade própria de conhecer e apontar aos leitores a suposta trilha certa e virtuosa do coração. É claro que
desde seu embrião, o movimento (recheado de tantos sub-movimentos) corre tal risco. Mas na época de
Diderot e Rousseau, o proto-romântico ainda estava na fase de criar uma nova forma de tocar a audiência/o
leitorado em sua sensibilidade (em seu coração, em seus sentimentos desinteressados), contra as regras
poéticas e retóricas legadas por mais de 1700 anos dessas artes tão arraigadas na cultura francesa e européia.
Era ainda um “especialista de fazer brotar lágrimas”, o que, para a época, era uma novidade impressionante o
bastante para o cenário do Antigo Regime.
36
DIDEROT, Denis, op. cit., p. 217 (213 or.).
224
A percepção certeira ficará como traço constitutivo dos modernos, em contraponto
aos antigos, e pode ser encontrada cerca de quatro cruciais décadas depois, em 1800, na
pena daquela que é considerada por muitos a definidora e anunciadora da vitória dos
modernos nas letras: Madame de Staël. Ela, porém, com seu pendor filosófico, sugere a
melancolia como forma de generalizar os quadros particulares que os modernos
aprenderam tão bem a pintar. Seria ela, melancolia, uma substituta (mais uma vez)
abrandada da eclosão das lágrimas? “Sans doute il faut frapper l’attention par le tableau
présent et détaillé de l’objet pour lequel on veut émouvoir; mais l’appel à la pitié n’est
irrésistible, que quand la mélancolie sait aussi bien généraliser que l’imagination a su
peindre”
37
. No entanto, a tendência a unir a análise dos filósofos à dos escritores acaba
obrigando a autora a buscar traços generalizantes dos modernos, em detrimento de suas
inovações particularizantes; em vez de detalhes e minúcias, Madame de Staël busca
grandes e abstratas sínteses modernas. Quando tarta dos romances ingleses, a prolixidade e
o detalhismo vêm de novo à tona, bem como sua defesa da mulher na linha de frente da
revolução da sensibilité na Europa:
Il est un genre d’ouvrages d’imagination, dans lequel les Anglais ont une
grande prééminence: ce sont les romans sans merveilleux, sans allégorie
(...). ce n’est pas avec le tableau des jouissances de l’amour-propre qu’on
fait un roman intéressant (...). Les mœurs anglaises fournissent à
l’invention romanesque une foule de nuances délicates et de situations
touchantes. (...) Si les Français supportent les détails inutiles qui sont
accumulés dans ces écrits, c’est par la curiosité qu’inspirent des mœurs
étrangères. Ils ne tolèrent rien de semblable dans leurs propres ouvrages.
38
Na mesma linha de argumento intercultural de Gustave Lanson (“Les Français
feraient un livre mieux que les Anglais en leur prenant leurs idées; ils les présenteraient
avec plus d’ordre et de précision: (...) ils suppriment beaucoup d’intermédiaires...”
39
),
Madame de Staël chama a atenção para o fato de os ingleses terem sido os primeiros a
37
DE STAËL, Madame. De la littérature. Paris: GF/Flammarion, 1991 (1800). p. 183.
38
Idem, p. 243-244.
39
Idem, p. 248.
225
crerem que bastava o “...tableau des affections privées, pour intéresser l’esprit et le cœur de
l’homme...”
40
.
O próprio Richardson se pronuncia, no prefácio de seu Clarisse Harlowe, traduzido
por Le Tourneur, sobre como conseguiu incluir na ação e nos detalhes descritos do
cotidiano a moralidade que o romance defende, e à qual não deve renunciar – quem sabe,
depois de ler o Éloge... de Diderot: “Toutes les lettres sont écrites dans la chaleur même du
sujet ou de l’événement qui les occasionne, en sorte qu’elles abondent en descriptions, en
réflexions instantanées, inspirées par le moment où l’impression est la plus fraîche & la
plus vive”. A coerência interna que o romancista devia criar para o gênero em mutação,
coerência inextricável entre forma e conteúdo, entre sintaxe e semântica romanescas, bem
como entre essa nova semântica em contraponto a um classicismo no qual o destino era
sabido de antemão, já parecem coisas perfeitamente conscientes a Richardson – a
importância do trecho nos parece justificar sua citação completa:
Il doit y avoir, dit un des principaux personnages, une bien plus grande
énergie de sentiments & de vie dans le style de celui qui écrit au sein
même de sa détresse, au moment où son cœur est sur la roue de
l’incertitude, lorsque la suite des événements de sa destinée est encore
cachée dans les ténèbres de l’avenir; que dans le récit froid, inanimé d’une
personne qui, le cœur à l’aise & dans le calme, ne fait plus que raconter à
loisir des dangers évanouis, des obstacles surmontés; & si elle n’est plus
elle-même que foiblement émue du souvenir de sa propre histoire,
comment fera-elle passer dans l’ame du lecteur des émotions vives &
profondes?
41
A posição de Diderot diante do que aqui chamamos de novo realismo é complexa e,
tendo sido expressa não apenas no Éloge de Richardson em que vínhamos nos detendo, só
pode ser apreendida em um estudo longo e específico sobre o tema. Apenas indicaremos os
elementos que nos permitam perceber um aspecto para nós importante desse
posicionamento. Na verdade, Diderot toma partido entusiasmado pela nova radicalização
do realismo, mas esclarece que não é papel da arte, pintada ou escrita, nem imitar ipsis
litteris a natureza (ou seja, copiá-la mediocremente), nem geometrizá-la como faz a
40
Idem, p. 245.
41
RICHARDSON, Samuel. Clarisse Harlowe. Paris: Chez Moutard, imprimeur-libraire, et chez Merigot le
jeune, libraire, 1785. p. xvj-xvjj. Lê-se no frontispício da edição: “Traduction nouvelle et seule complete par
M. Le Tourneur”.
226
ciência
42
. “Por mais bem feito que possa ser, o melhor quadro, o mais harmonioso, não
passa de um tecido de falsidades que se cobrem entre si”, escreve em um dos Salons
43
. Por
outro lado: “Sendo una a natureza, como meu amigo concebe que haja tantas maneiras
diversas de imitá-la e que a todas se aprove? Isso não decorreria de que, na impossibilidade
reconhecida e talvez feliz de apresentá-la com uma precisão absoluta, haja uma margem de
convenção sobre a qual se permite que a arte passeie?”
44
Tal convenção impede que
Diderot se afaste automática e irrefletidamente da tradição clássica: o legado de 17 séculos
não se esgota com uma canetada, e um teórico deve enfrentá-lo se quer propor algo de
novo.
Porém, indo totalmente contra aquela tradição, defende o fato de que, mesmo se há
um campo de manobra para o artista, diverso da natureza e da cientificização dela, as obras
de arte não deixam de nascer dos sentidos e da concretude da experiência cotidiana do
artista. Na verdade, entre a ação humana, científica ou de cópia documental e a natureza,
resta o espaço de manobra do artista, espaço que permite a distinção entre esses três
domínios, o espaço cavado pela experiência: “Miguelângleo dá à cúpula de São Pedro, em
Roma, a mais bela forma possível. O geômetra de La Hire, impressionado por esta forma
por esta forma, traça a sua épura e acha que esta épura é a curva de maior resistência. Que é
que inspirou esta curva a Miguelângelo? A experiência diária da vida”
45
.
Essas idas e vindas de Diderot são famosas, e impedem que se sitematize
estritamente seu pensamento – para o bem de nossa própria reflexão sobre a época dele e
sobre o tema de que trata, a experiência estética em seu ponto de transformação. Mais fértil
42
O termo “realismo” não existia, na época. Usamos aqui no sentido mais comum de uma descrição a mais
fiel possível da realidade concreta. A reflexão de Ian Watt, nesse ponto, nos ajuda ao mostrar a ligação
inextricável entre tal desejo de realismo e o surgimento do romance moderno, no século XVIII. Na verdade,
tal definição se liga à idéia da ascensão dos sentidos como meio de conhecimento do real. “Certamente o
moderno realismo parte do princípio de que o indivíduo pode descobrir a verdade através dos sentidos: tem
suas origens em Descartes e Locke e foi formulado por Thomas Reid em meados do século XVIII”, escreve
Watts. A essa constatação, acrescenta que uma individualização da experiência em seu caráter de novidade
conforma o realismo tal como surge, de forma constituinte, no romance moderno. Também a apresentação do
ambiente é determinante para formar tal realismo. O tempo e formas de criar autenticidade – já tratamos de
algumas: a forma epistolar ou memorialística ou os prefácios em que se lê que a narrativa a seguir tem autor
real. Sem nos alongarmos no tema, apenas destacamos como Watt relaciona inexoravelmente o surgimento do
romance com a questão de como se representar o real na prosa de ficção, questão totalmente inexistente no
período clássico ou classicista. WATT, Ian. Ascensão do romance, op. cit., p. 11-33.
43
DIDEROT, Denis. Salons, I. Apud LIMA, Luiz Costa. O fingidor e o censor. No Ancien Regime, no
Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 150.
44
LIMA, Luiz Costa, op. cit., p. 165-166.
45
Idem, p. 161.
227
que essa tarefa talvez seja atentarmos para uma estrutura narrativa específica que conforma
o tipo de realismo que o romance quer para si, nesses seus primórdios: a estrutura do
martírio, tão cara a Richardson. Talvez ela nos dê acesso àquilo que, na experiência
imediata diante da obra, no palco ou na página, o espectador-leitor buscava e o dramaturgo-
romancista lhe oferecia naquele momento, em termos de realismo. Não seria uma espécie
inusitada e nova de realismo catártico o que Diderot propõe? É o que pretendemos
responder ao fim do próximo item.
4.4. O martírio como modelo de purgação
Retornado-se a Marivaux como um dos iniciadores, na França, dessa anti-retórica
que quer passar a integrar a actio e até o sermo (a conversação civil, entre homens e
mulheres cultivados, em sociedade, na linha de Guazzo, Della Casa e Castiglione) à escrita,
não é difícil compreender por que o périplo do personagem do sofrimento mais extremo até
uma felicidade final será um ótimo modelo no caso de uma escrita lacrimosa. Não é o caso
de fazer, aqui, a genealogia dessa estrutura narrativa, que tem raízes óbvias na tradição
cristã do Novo testamento, bem como um momento importantíssimo, também ligado ao
cristianismo, com a Divina comédia, de Dante. Importa, para nós, perceber que relações a
preferência pelo martírio dos protagonistas tem com o que aqui chamamos de “nova
catarse”, formalizada por Diderot.
De princípio, é importante lembrar que ao analisar a mesma Vie de Marianne, o
crítico alemão Leo Spitzer atenta para o fato de a nobreza da protagonista (conhecida do
leitor por conta do subtítulo do romance, La Vie de Marianne ou les Aventures de la
comtesse de..., mas desconhecida pelos outros personagens) se revelar nos vários “nãos”
que ela dá ao longo de sua trajetória: ela recusa o emprego de doméstica, as propostas
ambígüas do Monsieur de Climal, um marido impossível que os pais de Valville lhe
oferecem, o casamento com seu amado ao ver que prejudicará sua benfeitora, o claustro e o
casório precoce proposto pelo oficial. Spitzer usa a palavra “resistência”: “...caractère de
228
femme résistante, c’est-à-dire active dans sa résistance (stoïque quelquefois): l’activité de
Marianne est de dire non dans des situations essentielles...”
46
.
É claro que tal seqüência marcada por uma intuição diante do que pode lhe ser
prejudicial (cuja novidade para o leitor médio da época se minimiza por conta da nobreza
garantida da protagonista) ganhará em vigor patético se as tentações ao estoicismo,
advindas de tais situações em seqüência, tornarem-se mais vigorosas ou irrecusáveis. Como
já se deve ter recordado, é o que acontece em Pamela or Virtue rewarded – mas sigamos a
análise de Spitzer. As negativas seguidas às “tentações do acaso” vão constituindo...
...les étapes de son chemim labyrinthique qu’elle porsuit impertubable
(...). Marianne, l’Héroïne séculière, ‘soutient une scène’ pénible (...). Ses
‘actions’ (refus, renoncements) prouvent la texture noble dont est fait son
être. La Vie de Marianne est bel et bien le premier roman français (...) qui
montre l’héroïsme séculier de la femme fière et vertueuse, abandonnée à
elle-même au milieu du torrent de la vie, plus forte que les hommes qui
l’entourent ou la poursuivent, parce que forte en elle-même.
47
Spitzer dá uma chance ao cinema ao lembrar que Marianne é ancestral de uma longa
linhagem an França e fora dela, cujo “...dernier rejeton est l’heroïsme de Gone with the
Wind [E o vento levou...]”
48
. O crítico integra a história da religiosa, nos últimos livros do
romance, apontada como destoante por alguns analistas da obra, nessa lógica do martírio:
ela seria um duplo necessário de Marianne. Ela também tem “le meilleur cœur du monde, et
le plus singulier”. E ela também “...a été persécutée (...) par le destin dès sa prime jeunesse,
mais, munie des grâces de l’esprit et du cœur, elle a du ‘cran’ comme Marianne (...); elle
aussi sait dire non à ce qui ne convient pas à sa nature noble...”
49
. Porém, mais doce, mais
oprimida por tristezas, como verdadeira cristã, ela se dedicará mais aos outros que a si
mesma. Aí se encontra sua diferença fundamental para com Marianne, e o gênio de
Marivaux em construir um tipo de martírio cuja resolução não está no além, mas no próprio
monde:
Marianne est une martyre de la vie qui devient une héroïne en disant non à
ce qui ne convient pas à sa nature; la Religieuse est une martyre qui dit
46
SPITZER, Leo. A propos de La Vie de Marianne. In: Études de style. Paris: Gallimard, 1970. p. 372.
47
Idem, p. 372-373.
48
Idem, p. 373.
49
Idem, p. 381.
229
non à la vie même (...). Il est certain que notre roman, loin d’être désaxé,
comme le pensent tant de critiques, par l’histoire de la Religieuse, ne fait
que gagner en ampleur et sérieux par le parallélisme suggéré entre
l’héroïsme séculier et l’héroïsme dévot
50
.
Spitzer mostra como seria impossível, por seu temperamento de artista, que
Marivaux deixasse de secularizar o martírio, tornado-o social e mundando, e não místico e
religioso. É que, fascinado pelo mundanismo, pela conversação e pela coqueteria como arte
ou estética, Marivaux faz sua Marianne encontrar graça e bondade em algumas mulheres do
monde, que se tornam modelos para ela. A religiosa não passa de uma alma com pendores
místicos e sem talento para a vida social – é uma alma gêmea por contraste no essencial,
não por semelhança. “...Marianne ne trouve pas seulement son pendant dans un être voué à
la sainteté, mais aussi dans certains personnages du ‘beau monde’ qu’elle a décidé de ne
pas abandonner”
51
. O paradoxo de Marianne está exposto por Spitzer em uma única frase,
que designa a forma como suas certezas nobres do coração, junto com a força de recusa e
de seleção do “bom caminho”, conformam uma natureza própria voltada para a vida da
graça e da conversação em sociedade – bem longe de qualquer claustro religioso: “Leur
nature [das mulheres que Marianne admirava] est une œuvre d’art”
52
.
Aquí se pode arriscar o paralelismo: não seria essa mesma tendência ao martírio que
o leitor deveria portar diante das páginas de um romance? Com efeito, para Diderot,
Richardson foi o mestre na arte de fazer tal leitor sentir-se o mais puro e bom dos homens,
purgando suas dificuldades e dores por meio da leitura. O martírio, no caso, serve para bem
discernir o virtuoso do vicioso, ou seja, o mártir do algoz:
Richardson sème dans les cœurs des germes de vertu qui y restent d’abord
oisifs et tranquilles: ils y sont secrètement, jusqu’à ce qu’il se présente une
occasion qui les remue et les fasse éclore. Alors ils se développent; on se
sent porter au bien avec une impétuosité qu’on ne connaissait pas. On
éprouve, à l’aspect de l’injustice, une révolte qu’on ne saurait s’expliquer
à soi-même. (...) à chaque ligne il fait préférer le sort de la vertu opprimée
au sort du vice triomphant. Qui est-ce qui voudrait être Lovelace avec tous
ses avantages? Qui est-ce qui ne voudrait pas être Clarisse, malgré toutes
les infortunes?
53
50
Idem, p. 382.
51
Idem,ibidem.
52
Idem, p. 383.
53
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson, op. cit., p. 219 (215 or.).
230
Em 1895, um século e meio depois do surgimento da Pamela na França, um crítico
faz alusão ao aspecto de martírio e purificação, depois de analisar ponto a ponto, ao longo
de 80 páginas, os aspectos negativos e positivos dos romances de Richardson, como numa
condensação tardia da recepção de tais romances na França:
De même que dans la vie, devant un lit de mort, s’évanouissent les
souvenirs profanes et qu’au-dessus des réalités mesquines ou triviales
l’image de ceux qui partent nous apparaît plus pure et déjà moins
humaine, de même, en présence de Clarisse mourante, ce n’est plus à
l’humble petite dévote, à la provinciale prétentieuse, à la verbeuse et
fastidieuse correspondante des premiers chapitres que nous songeons,
mais uniquement à celle qui meurt pour être restée, au milieu des plus
terribles épreuves, maîtresse de sa conscience et de son âme. Lentement
préparée par une foule d’événements accumulés, l’émotion se dégage plus
encore de la multiplicité des impressions douloureuses que d’un choc
violente et subit.
(...) Toute la morale de l’œuvre est dans cette glorification de la
douleur purificatrice, et c’était là une grande nouveauté.
54
Antes desse apanhado, que inclui elementos de crítica ao romancista próximos a
alguns argumentos do Diderot do Éloge..., Joseph Texte tinha esmiuçado desde a nova
vulgaridade trazida por Rochardson (as cenas picantes entre patrões e empregadas) até a
prolixidade detalhista, só aparentemente estéril. Chegara a destacar o aspecto protestante e
puritano da prosa do inglês, propondo mesmo uma tese sobre o aspecto religioso e cristão
da narrativa moderna, inegavelmente interessante:
“Le roman d’analyse, a écrit Vigny, est né de la confession. C’est le
christianisme qui en a donné l’idée, par l’habitude de la confidence”. On
pourrait dire (...) que c’est peut-être l’absence de la confession dans le
protestantisme qui a donné naissance au roman d’analyse morale.
Richardson, qui fut une manière de directeur laïque de consciences, “un
confesseur protestant”, comme l’appelle un critque anglais [Leslie
Stephen], a peut-être dû son succès à l’effacement du prêtre dans la
société anglaise du XVIIIè siècle. Quoi qu’il en soit, c’est bien ici un
genre tout chrétien et, par suite, tout moderne. (...) La casuistique
chrétienne, cette “histoire naturelle de l’âme” [Taine, “Littérature
anglaise”, Tomo IV, p. 103], est une incomparable maîtresse de
54
TEXTE, Joseph. J.-J. Rousseau et les origines du cosmopolitisme littéraire. Genebra: Slatkine Reprints,
1970 (Paris: 1895). p. 251.
231
philosophie pratique. La faire entrer dans le roman, c’était ouvrir au genre
tout un domaine nouveau.
55
Esse aspecto religioso é valorizado por Diderot como a manutenção de um fim
moral para além do realismo comezinho – embora o próprio Diderot, anos mais tarde, vá
ajudar a separar o campo estético, romanesco, teatral ou pictórico, de qualquer fim moral
pré-estabelecido. Jean Sgard chega a propor que...
...pour Diderot il y ait deux sortes de réalisme. Un réalisme didactique, qui
relève de l’illusion progressive: par la “multitude de petites choses” (...)
Richardson fait concurrence à la nature (...). Et (...) un réalisme
visionnaire, qui relève de l’illusion fantasmatique: dans les scènes de folie
ou de mort, les “circonstances” et les petits détails vrais ne servent plus
qu’à imposer un “tableau” grandiose, un “modèle idéal”, le lecteur
emporté pas des “impressions fortes” (...). L’illusion ici est totale, proche
du délire, et elle introduit à une crise morale: “Cela déchire l’âme”. Alors
que le réalisme didactique nous apprivoise en nous éclairant petit à petit
sur l’expérience quotidienne, le réalisme fantasmatique provoque rupture
et conversion; ils nous éclaire sur le sublime de la vertu, sur une morale
du sacrifice.
56
O ciclo da busca de Diderot – bem como de vários escritores que fizeram da
sensibilité, tanto dos personagens quanto do espectador-leitor, o santo graal da luta contra o
classicismo – parece ter chegado a seu termo. De fato, se o fim moral por trás dessa
inovação surpreendente que é o novo realismo do romance moderno tem de ser preservado,
há que haver a radicalização de tal fim, a ponto de propor-se que o leitor-espectador entre
em verdadeiro êxtase diante da página ou do palco, e por fim se purifique de seus malfeitos,
de suas méchancetés. O momento de vitória de tal tese, no entanto, talvez seja o mesmo em
que aquele êxtase larmoyant inicie sua descida, começando a se exacerbar, em vez de
encantar. Aproxima-se o momento em que o larmoyant voltará a ser rejeitado como
patético, hiperbólico, melodramático. Isso tudo não impede que, pouco antes de Joseph
Texte emitir seus julgamentos, em 1857, Nassau William Senior receba a confissão de um
nobre parisiense, amigo e correspodente seu – ninguém menos que Alexis de Tocqueville –,
55
Idem, p. 239-240.
56
SGARD, Jean. Introduction: Éloge de Richardson – Janvier 1762. In: VARLOOT, Jean (org.). Diderot.
Arts et letters (1739-1766), Critique I. Paris: Hermann, 1980. p. 189.
232
sobre o gosto bem francês de ler as páginas de Richardson em voz alta alguns anos depois
da Revolução, na virada do século anterior:
Les étrangers sont en fait des provinciaux. Ils suivent en littérature,
comme les gens de la campagne en vêtements, les modes que la capitale a
abandonnées. Quand j’étais jeune, vous aviez problablement cessé de lire
Richardson: nous le connaissons par cœur. Nous pleurions sur le sort de
lady Clementina [a heroína do romance “Sir Charles Grandisson”, de
1753-54] , dont Miss Senior n’a sans doute jamais entendu parler. Pendant
le Premier Empire, nous, les membres de l’ancien régime, avons quitté
Paris, comme nous le faisons maintenant, et pour les mêmes raisons. Nous
vivions dans nos châteaux où, étant enfant, je me souviens davoir
entendu lire à haute voix Sir Charles Grandisson et Fielding. Un nouveau
roman était alors un événement.
57
A arte de decorar os textos mais importantes, por conta de uma leitura freqüente,
repetida por várias noites, é um traço típico da ascensão do livro no século XVIII. Roger
Chartier lembra que tal gravidade e tal assiduidade estão ligadas à leitura dos Evangelhos,
que um trecho de La Vie de mon père, de Rétif de la Bretonne, ajuda a ilustrar rapidamente:
Era então depois do jantar que o pai de família fazia uma leitura da Santa
Escritura: ele começava pelo Gênese e lia com unção três ou quatro
capítulos, conforme sua extensão, acompanhando-os de algumas
observações curtas e pouco freqüentes, mas que julgava absolutamente
necessárias. Não posso me lembrar com que enternecimento aquela leitura
era ouvida, como ela transmitia a toda numerosa família um tom de
bonomia e de fraternidade (na família, incluo os criados). Meu pai
começava sempre com estas palavras: “Concentremo-nos, meus filhos, é o
Espírito santíssimo que vai falar”. No dia seguinte, durante o trabalho, a
leitura da noite anterior constituía o assunto das conversas, sobretudo
entre os rapazes do arado.
58
Não admira que os romances de Richardson, com seu pano de fundo moral e mesmo
uma pretensão de religiosidade sub-reptícia, sejam vistos, por Diderot, como leitura para
“...l’homme tranquille et solitaire, qui a connu la vanité du bruit et des amusements du
monde, et qui aime à habiter l’ombre d’une retraite, et à s’attendrir utilement dans le
57
TOCQUEVILLE, Alexis de. Œuvres completes. Tome VI. Correspondence Anglaise. Paris: Gallimard,
1991. p. 470.
58
BRETONNE, Rétif de la. La vie de mon père. Apud CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França
do Antigo Regime. São Paulo: Editora UNESP, 2003 (1997). p. 220.
233
silence”
59
. Lembremos que sendo o retiro de Tocqueville no campo, ele estava afeito a toda
uma mitologia da leitura autêntica, mais concentrada porque longe do barulho do monde,
apresentando-se, já que no ambiente rural, “...como patriarcal, fraternal, comunitária, em
contraste com aquela outra, corrompida e desunida, das grandes cidades”
60
. Rétif fora
claro: “Não posso me lembrar sem comoção com que atenção essa leitura era ouvida”. Essa
“...concentração completa dos indivíduos naquilo que estão fazendo, aquela absorção
colocada como o oposto exato da frivolidade da época...”
61
favorece um acolhimento mais
íntimo e focado do texto de Richardson, exemplar de uma literatura que quer tocar o leitor a
ponto de purgá-lo de seus males – e que, como mostra Chartier, é filha de uma atenção
campesina ao que se lê. Qualquer que fosse o destino da literatura da sensibilidade, é nítido
que gerações inteiras da elite européia ao longo do século XIX tinham passado a infância e
o início da vida adulta próximas a Richardson – a Pamela, a Clarisse, a Clementina.
4.5. Em torno do realismo das “Pamelas”, no palco e no romance
Voltando a Gustave Lanson, destaquemos sua decepção diante da Paméla de
Nivelle de La Chaussée, por total contraste com o realismo ao qual ele teve acesso ao ler o
romance de Richardson. No palco, não sobrava... “...rien, de cette imitation patiente de la
vie, dans son train de chaque jour, de cette copie frappante des gestes, des attitudes, des
tons, des paroles, qui donnait au récit une expression si intense”. No fim das contas, a peça
seria nada mais que o “...squelette décharné de l’histoire romanesque, dans ses incidents les
plus matériels, l’ombre de la morale, dans ses plus banales conclusions”. A sentença final
de Lanson é que La Chaussée não soube muito bem o que fazer com esse esqueleto, e
parece ter alongado sem brilhantismo a peça, além de dar corpo à história com bagatelas:
“...l’inspiration de vint pas”
62
.
59
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson, op. cit., p. 221 (217 or.).
60
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 256.
61
Idem, ibidem.
62
LANSON, Gustave, op. cit., p. 165.
234
Na verdade, como se percebe ao ver a impaciência de Diderot com seus
contemporâneos que reclamam da prolixidade de Pamela, no Éloge de Richardson (“Mes
chers concitoyens, si les romans de Richardson vous paraissent longs, que ne les abrégez-
vous? soyez conséquents. Vous n’allez guère à une tragédie que pour en voir le dernier
acte”
63
), as críticas não surgiram apenas diante da peça séria de La Chausée, que ousava
transpor as muitas páginas do romance para o palco. O laçamento da tradução francesa já
havia despertado a atenção de críticos, como o padre Goujet, que testemunha, desde 1742,
ano do lançamento da tradução atribuída erroneamente a Prévost, que o romance recebera
“críticas amargas”
64
. O padre Le Blanc apontara, em 1745, “...les longueurs et un fonds de
mœurs basses qui peuvent révolter la plupart des Lecteurs”
65
. A Lettre sur Paméla, de
1742, atribuída ao abade Marquet, aponta “la négligence du style”. O abade Desfontaines,
que no passado empregara um novato Diderot como jornalista, defende com bastante
ímpeto o novo romance, em seu periódico Observations sur les Écrits Modernes, na linha
do que seu antigo empregado formalizará mais tarde em seus escritos sobre a comédie
serieuse: Richardson teria tido a “...grand art de sçavoir éviter (...) l’apparence de l’art...”,
dando ao leitor “...l’illusion essentielle à un Livre de fiction”
66
.
Em uma prova cabal de que a naturalidade perseguida por Marivaux, que tentamos
apontar em nosso estudo, tinha como fundo um visível traquejo na (e um forte fascínio
pela) conversação mundana, o padre Granet, aludindo ao Paysan parvenu, reclama não só
do arrivismo do personagem, mas principalmente do artificialismo – mascarado em
naturalidade – de sua fala: “Est-il plus étonnant de voir un Artamène, un Alexandre, un
Pharamond, né, élevé et formé en Français que de voir un jeune rustre sortir de Champagne,
venir à Paris, (...) plaire à sa maîtresse, (...) de le voir, dis-je, (...) étaler sous l’écorce d’une
simplicité artificielle l’esprit le plus fin et le plus délicat”
67
. Em detrimento de Pamela,
Desfontaines confessa que “...le stile de quelques-uns de nos Romanciers est plus soigné &
d’une élégance plus géométrique...”, mas que, se Pamela tivesse sido “...écrit autrement, il
63
DIDEROT, Denis. Éloge de Richardson, op. cit., p. 221 (217 or.).
64
MODONA, Marie-Louise Nepi. Les premières réactions de la critique française devant les œuvres de
Richardson (1742-1762). In: Lingue straniere – Volume 16. Roma: 1967. p. 16-32.
65
LETTRES. Amsterdã, 1751 (reedição das Lettres d’un François, 1745), Lettre XXX. Apud MODONA, M.-
L. N., op. cit., p. 16.
66
DESFONTAINES. Observations sur les Écrits Modernes. Tome. 29. 1742. Apud MODONA, M.-L- N., op.
cit, p. 17.
67
MODONA, M.-L. N., op. cit., p. 17.
235
seroit mal écrit, parce qu’un stile compasse ruineroit le système du Livre & le rendroit
insupportable”
68
.
La Chesnaye De Bois protesta contra a intensidade do elogio de Desfontaines: “Je
respect ses décisions; mais je dois encore faire cas de celles du public, de qui j’ai entendu
dire que les lettres de pamela sont noyées dans une foule de fadaises, qui portant le dégoût
et l’ennui dans l’esprit du lecteur, lui cachent em plusieurs endroits la naïveté, la simplicité
du stile, qui fait tout le mérite du livre em question...”
69
. Para além da bastante comum
reclamação de prolixidade vazia, Des Bois toca, sem notar, em um ponto importante de
diferenciação cultural ao duvidar da autenticidade da virtude de Pamela:
il me baisa de force au cou, dit pamela dans plusieurs de ses lettres, et à la
bouche, il mit la main dans mon sein, etc. Ces sortes d’expressions trop
naïves, et souvent répétées font un détail assez plaisant. Elles n’inspirent
point de l’horreur pour le vice. La vertu de pamela seroit véritablement
aimable, si elle étoit couverte du voile de la modestie. La gloire de passer
pour vertueuse la charme autant que d’être vertueuse.
70
Para além de apontar a ambigüidade inescapável de uma relação patrão-empregada
que se enflama em libertinagem recusada por Pamela, o trecho já se insere no esforço
proto-nacionalista de circunscrever características culturais diferenciais: “En Angleterre,
madame, j’entends parmi le monde poli, les amants traitent-ils leurs maîtresses, de sottes,
de salopes, etc. Si le caractere du mylord d’après nature, mais je n’en crois rien, il faut
avouer que dans la Grande-Bretagne on fait grossierement l’amour”
71
. A precariedade do
mercado livreiro da época, e a falta de informação nos frontispícios de traduções como a de
Pamela, surgida em 1742, leva a boatos sobre a procedência da obra, bem como sobre
quem seria seu tradutor francês – a ponto de, depois de décadas sendo aceito que o tradutor
seria o abade Prévost, ter sido apontado o próprio Aubert La Chesnaye Des Bois como
autor da versão francesa
72
.
68
Idem, p. 18.
69
DES BOIS, La Chesnaye, op. cit., p. 79-80 (122 or.).
70
Idem, p. 34 (54 or.).
71
Idem, p. 35 (55 or.).
72
GRAFFIGNY, Madame de. Correspondence. Tome 3. DAINARD, J.A. (org.). Oxford: The Voltaire
Foundation/Taylor Institution, 1992. p. 323.
236
Qu’est-ce que pamela, madame? Selon quelques-uns ce sont des lettres
monotones, qui composées avec tout le froid qu’on reproche à vos
insulaires, ont pris naissance sur les bords de la Seine, et ne doivent leur
origine, qu’à quelque anglico françois (sic), qui pour avoir voulu copier
les moeurs de votre nation, en a fait un ridicule assortiment. Selon d'
autres, c’est la traduction d' une histoire écrite, et arrivée il y a trente ans
sur les bords de la Tamise.
73
Depois de decidir-se pela autoria inglesa autêntica, Des Bois passa a tentar
distinguir as especificidades culturais do romance, e as possíveis razões de seu imenso
sucesso em Paris:
Nos dames, sentant dès le premier volume l’ennui que ces lettres
inspirent, ne les ont lûës qu’en bâillant, et frappées d’une vertu purement
imaginaire, en dèsapprouvant la fausse simplicité de l’héroïne angloise,
elles ont bien voulu prendre part à son triomphe. Toutes, pour apprendre à
l' auteur des confessions du Comte De qu’elles aiment la vertu, toutes ont
pamela sur leur toilette, et se font gloire de lui donner leurs suffrages,
peut-être autant par bienséance, que par inclination. Ainsi, madame, plaire
et divertir n’est point ce que fait pamela...
74
O autor das Confessions du comte de***, citadas por Des Bois, era Charles Pinot
Duclos, amigo de Claude Crébillon e presença freqüente no monde, junto com futuras
romancistas, como Françoise de Graffigny, leitora voraz de Pamela e autora das bastante
sensíveis Lettres d’une péruvienne. Tratava-se de um texto francamente de libertinagem, o
que faz da passagem de La Chesnaye uma anedota saborosa: as mulheres dos salons
parisienses, por coqueteria, se divertem em simular uma virtuosidade apenas imaginária,
diante dos autores libertinos. A demanda de veracidade e autenticidade por parte de Pamela
é, para elas, puro fingimento feminino em busca, porém, da mesma “recompensa” ou do
mesmo “triunfo”, já que o casamento não é algo que se possa dispensar.
Des Bois deixa claro que o francês, seja autor, seja apenas homme du monde,
conhece os meandros do método da sedução: “L’auteur fait de cette femme un caractere
brutal pendant qu’il devroit être doux et engageant. Pour séduire il faut de l’adresse dans
l’esprit, non de la mauvaise humeur”
75
. Porém, mesmo tais métodos obrigam a uma ética,
cujo limite está na manipulação do outro em prol de um interesse próprio: “Vouloir faire
73
DES BOIS, La Chesnaye, op. cit., p. 27 (43 or.).
74
Idem, p. 29-30 (47 or.).
75
Idem, p. 36 (56 or.).
237
naître de l' amour entre ces deux jeunes gens, pour les en punir ensuite, profiter de la
foiblesse de l' un, et de la confiance de l' autre, pour les perdre, c' est
agir contre toute probité”
76
. O que não exime a própria Pamela do romance inglês de ser
um exemplo das “femmes de ce siècle”:
Elle a l’art d’engager le mylord à l’épouser. Je la trouve habile de sçavoir
le tenter, et l’attirer sans prendre les airs de coquette. Son panégyriste ne
lui donne pas les ruses et les tromperies des femmes de ce siécle. Mais
pourquoi la priver de ces innocens artifices, qui ne font que rendre une
beauté plus aimable?
77
Na verdade, a falta de coquetismo de Pamela não traz conseqüências apenas no
nível da moral que se possa extrair do romance. O estilo acaba se estragando também, o
que, para um gosto francamente mundano francês, pode ser tão ou mais grave: “Les
réflexions qu’elle fait durant le cours de ses malheurs, ne sont pas dignes d’une fille, qui
paroît dans ses lettres avoir eu l’esprit cultivé, et ses soliloques, les petits raisonnemens
qu’elle fait avec elle même, loin d’être très-agréables et très-jolis , sont d’une platitude
affreuse”
78
. O próprio sucesso francês de Pamela pode ter sido apenas fogo de palha,
apenas escândalo, e não julgamento de gosto letrado:
...et pamela, qui comme une heroïne sans pareille a beaucoup charmé
dans votre pays, n’a fait que du bruit en France à cause de la singularité de
ses lettres, et de sa conduite. Si c’est ainsi qu’on attaque et qu’on
récompense en Angleterre la vertu, il étoit de l’honneur de vos myledys de
protéger celle-ci...
79
Des Bois acaba cedendo à ironia ao julgar que Pamela, para os franceses, não
passará de uma moda das letras, como o fora Le sopha, romance de libertinagem de Claude
Crébillon bastante afastado de objetivos moralistas. Sonha em ver, em futuro próximo, suas
páginas sendo usadas por seus leitores em atividades mais frívolas e mundanas:
Il est du bel air d’avoir un pamela; il a fait éclipser le sopha, j’attend avec
impatience que quelque autre le fasse décamper de dessus la toilette des
76
Idem, p. 37-38 (58-59 or.).
77
Idem, p. 46-47 (71 or.).
78
Idem, p. 47 (72 or.).
79
Idem, p. 49 (74-75 or.).
238
dames, pour aller occuper les antichambres, et peut-être servir de papillote
au friseur d’un petit maître ou à la coëfeuse de quelque demoiselle que
l’heure du spectacle presse.
80
Com efeito, Des Bois descreve o espírito dos petits-maîtres e das demoiselles
dividido entre as páginas, o palco e o enrugamento capilar com vistas a encontros sociais
urgente. Não seria uma definição concisa da vida dos leitores de Pamela na França da
época? Muitas décadas mais tarde, em tom mais sério, Joseph Texte apontará como traço
cultural típico inglês a firmeza de caráter de Pamela e de Clarisse: “Comme Paméla,
Clarisse est profondement anglaise, j’entends qu’elle a um fond de fermeté et de solidité
dans le jugement qui la distingue au premier abord des héroïnes de nos romans. Elle sait ce
qu’elle veut, et pourquoi elle le veut. Elle n’a ni caprices ni lubies de jolie femme”
81
.
Esse tipo de auto-imagem francesa já concorria, ainda em 1742, para um esforço
crítico de diferenciação entre o estilo romanesco de Marivaux e o de Richardson. O
coquetismo surge, ali, como algo incorporado estilisticamente pelo autor francês,
diferentemente do inglês; no caso, determina a inferioridade do primeiro. O abade Haller, a
quem se atribui a Lettre sur Paméla, primeira reação à tradução francesa, coloca Clarisse
no “...premier rang entre les Romans...”, mas diz que não gostaria de revoltar os franceses,
“...qui se flatent d’y avoir si bien réussi”
82
, e coloca Marivaux como único autor a
aproximar-se de Richardson. Continua sua análise destacando que, em La Vie de Marienne,
a heroína, que “...ne paroît jamais qu’ornée de pompons pour plaire à sa Bienfaitrice, ou à
son Amant...”, “...parle en fille d’esprit...” (ou seja, como uma coquete) e “...aime une
certaine vertu générale”, enquanto Clarisse é a história de uma jovem que “...connoît tous
ses devoirs, & qui les remplit tous”
83
. O estilo de Marivaux é “amusant”, o de Richardson,
“instructif”: o binômio horaciano mantinha-se como bússola para o comentarista, que
condena em Marivaux e em sua Marianne um coquetismo estilístico.
80
Idem, p. 49-50 (76 or.).
81
TEXTE, Joseph, op. cit., p. 232.
82
MODONA, M-L. N., op. cit., p. 19.
83
Idem, p. 19-20.
239
4.6. Uma prosa coquete: Marivaux e a questão feminina
A reação de Des Bois diante de Pamela ilustra bem o conflito cultural entre uma
visão que não admite o envolvimento sério e patético, preferindo um certo coquetismo que
o mondain de Voltaire teria aplaudido
84
. Tal via superficial (ou ligeira, como o indicou
Auerbach, acima
85
) parece conformar um modo específico de prosa, uma espécie de prosa
coquete, que Leo Spitzer localizou como uma invenção de Marivaux, na França dos anos
1730. O exame da valorização da prosa frívola, apesar de tudo, séria, embora contrária ao
novo patético das lágrimas, deve nos servir para melhor situar a narrativa que a ela se
contrapunha, e que teve em Pamela um momento inaugural e de grande repercussão. O
lastro sentimental é a outra face da moeda da leveza graciosamente feminina destacada pela
análise de Spitzer, que passamos agora a examinar mais de perto.
O crítico alemão relaciona o novo tipo de prosa a certa concepção
surpreendentemente valorizadora da mulher portadora de uma fala frívola e espontânea,
indicando uma transformação de imensa importância nas formas de produzir e ler textos de
ficção, na época. Como ele demonstra, frivolidade e espontaneidade, leveza e despojamento
se superpõem na narrativa de Marivaux, pois ela aponta para uma singular “glorification du
principe féminin dans la pensée humaine”, mesmo quando o personagem é masculino
(como o protagonista de Le paysan parvenu): o Monseigneur-ministro de La vie de
Marianne, sensível a ponto de acatar o pleito da protagonista, “...gouvernait à la manière
des sages, dont la conduite est douce, simple, sans faste, et désintéréssée pour eux-mêmes
(...). Ils n’avertissent point qu’ils seront habiles. C’est un génie sans ostentation qui les
[leurs opérations] a conduites...”
86
Para nossos propósitos, no entanto, o fundamental é que tal princípio feminino
inclui nitidamente a dimensão da coquetterie, que naquele autor é aproximada, de forma
surpreendente, de uma inédita filosofia mais generalista exercida sob o ângulo feminino.
Para melhor expor sua tese, Spitzer italiza termos de trecho do romance de Marivaux que
considera fundamentais:
84
Ver item 1.20, no Capítulo 1, acima.
85
Ver itens 1.18 e 1.19, no Capítulo 1.
86
SPITZER, Leo. A propos de “La Vie de Marianne”. In: Études de style. Paris: Gallimard, 1970. p. 383.
240
Si on savait ce qui se passe dans la tête d’une coquette en pareil cas,
combien son âme est déliée et pénétrante; si on voyait la finesse des
jugements qu’elle fait sur les goûts qu’elle essaie, et puis qu’elle rebute, et
puis qu’elle hésite à choisir, et qu’elle choisit enfin par pure lassitude; car
souvent elle n’est pas contente, et son idée va toujours plus loin que son
exécution; si on savait ce que je dis là, cela ferait peur, cela humilierait les
plus forts esprits, et Aristote ne paraîtrait plus qu’un petit garçon.
87
A estratégia de Marivaux é a de valorizar o coquetismo (a frivolidade), justificando-
o por uma suposta concepção de fundo que a sustenta e define como forma aguda de fala e
pensamento: as mil e uma hesitações, a inquietude permanente e até a lassidão final fazem
parte de um modo de pensar sobre atos e posturas da vida muito mais délié (fino) e
pénétrant do que todo o legado de Aristóteles – o filósofo se torna um menino assustado
diante da força dessa lógica do pensar feminino. Essa antifilosofia cujo surpreendente
fundamento é a superficialidade, antifilosofia que emana da fala ou da escrita em primeira
pessoa do singular dos protagonistas de Marivaux, parece caracterizar um momento crucial
da representação subjetiva nesses anos 1720-30, uma vez que a valorização do coquetismo
espontâneo da mulher (ou mesmo o do homem) constitui a transposição para o nível da fala
de características de uma classe social dominante. Como se sabe, o coquetismo e a
frivolidade de salão representam, naquele momento (desde que Luís XIV tornou a
aristocracia em maior grau dependente de privilégios por ele concedidos), a linguagem por
excelência da vida airada dos salons e da aristocracia em geral ociosa e festiva.
Veremos, mais adiante, como a tradição de obras sobre a conversação, sobre os
jogos de corte e sobre a auto-constituição do “perfeito cortesão” (o homem de corte)
influenciarão os autores de ficção, em especial os romancistas de libertinagem. Por ora,
adiantemos que Marivaux põe na boca-de-cena a arte de conversação intuitiva frívola,
versão feminina e afetada do que Castiglione chama de sprezzatura em seu renascentista Il
Cortegiano (1528). Ambos valorizam, no entanto, o poder da fala graciosa e cativante e,
mais o segundo que o primeiro, a capacidade de imposição de interesses próprios,
87
Idem, p. 378.
241
implicando uma habilidosa condução das idéias do interlocutor por meio de uma “art de
plaire dans la conversation
88
.
Por ora, voltemos à especificidade de Marivaux. A operação de valorizar tal
superficialidade teatralizada ganha uma força própria, no caso de Marivaux, uma vez que
não surge sozinha, mas se insere na voga sentimental. Essa última seria a base geral – ou
seja, largamente praticada, à época – da inovação de Marivaux: a prosa sentimental, que
valoriza as lágrimas e as variações emocionais íntimas, é largamente encontrável na prosa
de então, como transformação cada vez mais realista (com seus componentes psicológico e
sensorial) do romanesco do século XVII, na obra de Marivaux se acha articulada à
glorificação da performance social feminina (coquetismo valorizado como atuação pública
no Antigo Regime). Spitzer chama a atenção para o naturalismo relacionado à “sabedoria
do instinto inato”, capaz de transformar lágrimas em força, no campo de atuação social dos
personagens (posição feminina fortemente positivada). Se a narradora-protagonista escreve:
“Je pleurai donc, et il n’y avait peut-être pas de meilleur expédient (...). Notre ame sait bien
ce qu’elle fait, ou du moins son instinct le sait pour elle...”, e se essas lágrimas “...viennent
d’ennoblir Marianne dans l’imagination de son amant”, e fazer “...foi d’une fierté de cœur
qui empêchera bien qu’il ne la dédaigne”, tal capacidade de chorar fica claramente entre o
consciente e teatral e o espontâneo e autêntico – e uma pista é o uso da palavra expédient.
Spitzer escreve:
C’était la sagesse de l’instinct inné qui lui dictait des pleurs qui en soi
pourraient être considérés comme témoignage de faiblesse, mais qui, en
l’occurrence, produisent l’effet que même le calcul le plus réfléchi
n’aurait pu produire: celui de faire apparaître aux yeux de l’amant le cœur,
la dignité, le romanesque, la majesté, même la divinité de Marianne.
89
Mas tais lágrimas não participariam, elas também, em algum grau, de umcalcul le
plus réfléchi”? Ou seja, não poderiam ser vistas como um expediente teatral a ser utilizado
publicamente com vistas a alcançar certo efeito no jogo social? Será que a própria escolha
do termo “calcul” por Spitzer, atributo masculino e aristotélico por excelência, não acaba
mascarando o fato de que, no caso das mulheres, especialidade de Marivaux, se não há
88
É o subtítulo de Galateo, ou Galatée, em francês, outro famoso e influente manual do cortesão, escrito por
Giovani della Casa em 1558 e muito lido na França do século XVII.
89
Idem, ibidem.
242
cálculo filosófico refletido há, sim, um cálculo ligado à performance social, à atuação no
monde, sendo a coquetterie o signo de tal forma de calcular não-masculina? Como sabe
quem conhece a análise de Spitzer, ele se concentra em descrever uma concepção filosófica
feminina inusitada emanando da prosa de Marivaux, a qual iria contra a existencialista
demonstrada por Georges Poulet. Tal concepção tem como lastro a idéia da “sagesse de
l’instinct inné”, ou seja, de uma verdade inata a lastrear toda coquetterie ou frivolité,
justificando-a e legando-lhe força filosófica. Mas será que tal moeda de duas faces,
indissociáveis – quais sejam: a face inata (a verdade do coração) e a face performática (o
coquetismo) –, não se alicerçaria, ela também, em certa concepção da linguagem e da
atuação no jogo social (na vida pública limitada do Ancien Régime) ainda mais
esclarecedora a respeito da singularidade tanto de Marivaux quanto do romance de
libertinagem?
Como vimos, o retrato feito por Spitzer de uma filosofia feminina que emanaria dos
romances de Marivaux destaca a concepção de fala e atuação sociais na qual a leveza
afetada (a frivolidade) é destacada e valorizada como fundamental. Poulet e Spitzer
concordam em relação e um ponto: há em Marivaux uma nova intensificação do instante
fragmentário na narrativa – embora Spitzer discorde da forma de continuidade que se
contrapõe a tal fragmentação; para ele, trata-se da concepção da filosofia no feminino, de
que falávamos
90
. Mas será que, em vez da ênfase de Poulet no “ser feito de nada” de corte
existencialista, supostamente encontrável nos romances do autor de Le paysan parvenu,
uma concepção que anteciparia um “não saber onde se está” que se desenvolve em “não
saber aonde se vai”, numa percepção do nada sob a capa dos jogos sociais
91
, a obra de
Marivaux não exporia de forma muito mais clara um otimismo da teatralização, da leveza
de salon, sem dúvida ligada à concepção feminina de que fala Spitzer, mas também à do
manejo calculado dos jogos sociais?
90
Idem, p. 368 e 384-385. Spitzer aproxima a posição de Marivaux da máxima de Valéry segundo a qual
“tout grand sentiment ne peut se maintenir tel que grâce à l’hypocrisie”. Do nosso ponto de vista, usar
“hipocrisia” seria demonstrar uma postura crítica insustentável: tanto em Marivaux, quanto nos romancistas
de libertinagem, não há como pensar na expressão de sentimentos sem relacioná-la a algum grau de
teatralização (atuação) no jogo social.
91
Tal posição de Poulet está exposta em Spitzer, op. cit., 368-369.
243
4.7. Marivaux e a concepção da fala e da atuação no monde
Desde o início de La vie de Marianne surge a tematização da fala e da própria
escrita inseridas em um jogo social marcado pelo manejo feminino das aparências.
J’ai vû une jolie femme dont la conversation passoit pour un
enchantement, personne au monde ne s’exprimoit comme elle, c’étoit la
vivacité, c’étoit la finesse même qui parloit: les connoisseurs n’y
pouvoient tenir de plaisir. La petite verole lui vint, elle en resta
extrêmement marquée; quand la pauvre femme reparut ce n’étoit plus
qu’une babillarde incommode: voyés combien auparavant, elle avoit
emprunté d’esprit de son visage.
92
Se para a narradora-protagonista (e, pelo viés de Spitzer, para o próprio Marivaux)
“personne n’a plus d’esprit que nous [les femmes], quand nous en avons un peu...”
93
, o
problema passa a ser como expressar tal esprit por meio da escrita.
...je parlois tout-à-l’heure de stile, je ne sçai pas seulement ce que c’est;
comment fait-on pour en avoir un? Celui que je vois dans les livres, est-ce
le bon? Pourquoi donc est-ce qu’il me déplait tant le plus souvent? Celui
de mes lettres vous paroît-il passable? J’écrirai ceci de même.
94
A opção pelo romance epistolar está devidamente justificada, embora se trate, como
nas Lettres portugaises (e como no primeiro romance de Crébillon fils, Lettres de la
marquise de M*** au comte de R***, de 1745), de missivista única (ou seja, de um
monólogo em cartas) e, diferentemente dos romances de Guillerages e Crébillon, missivista
que narra sua vida desde a tenra juventude até a velhice, como uma memorialista. Portanto,
são memórias ficcionais compostas em linguagem de salon
95
, retomando a tradição
memorialística em modo coloquial.
92
MARIVAUX. La vie de Marianne ou Les avantures de la comtesse de ***. Première partie. Paris: Chez
Pierre Prault, 1731. p. 11 (BNF–Gallica, p. 4). Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k104316t
>. Acesso em: 26/06/2006.
93
Idem, ibidem.
94
Idem, p. 13 (6).
95
Ver o próximo item, 4.8.
244
O importante paradoxo em que incorre tal tematização, tão integrada ao próprio
estilo que Marivaux compõe – sua “marivaudage”
96
–, está no fato de que o elogio da
coquete mundana convive com a ode ao despojamento de linguagem e de coração, ou seja,
com o novo coloquialismo de tendência realista, expressão narrativa (de grande sucesso, na
época) do fundo de “sabedoria do instinto inato” que Spitzer reconheceu como alicerce
daquele coquetismo. Retorna-se, portanto, à dupla: espontaneidade (despojamento) e
frivolidade (coquetismo); a questão é: como sustentar o paradoxo de um “coquetismo
espontâneo”? Como ser “teatralmente espontâneo”? Como costuma acontecer, tal paradoxo
ajuda a refletir sobre as bases estruturais e temáticas da inovação de Marivaux, com suas
conseqüências na prosa de ficção que a ele se segue, incluindo aí o romance de
libertinagem.
Tal paradoxo indica até que ponto vai a força da corrente sentimentalista na obra de
Marivaux. Definida por Erich Auerbach como “literatura de lágrimas”, tal corrente tem
enorme repercussão entre os leitores da época e é, na verdade, a base do grande sucesso
tanto de Marivaux quanto de Prévost nos anos que se seguem ao período da Regência.
Auerbach relaciona o fascínio dos leitores do período com a natureza a um só tempo
psíquica e sensorial das lágrimas: trata-se de um signo expressivo imediato, performático,
de suposto sentimento íntimo verdadeiro. Em outras palavras, é a própria eclosão da
verdade psíquica pessoal no nível material e sensório. O crítico alemão aproxima,
pertinentemente, tal signo da literatura da época de um sensualismo, ou seja, de um
erotismo:
...a sua eficácia [das lágrimas], que está no limite entre o anímico e o
sensorial, é aproveitada, revela-se especialmente apropriada para exercer
o estímulo, composto de erotismo e de sensibilidade, que estava então na
moda. (...) o elemento íntimo-erótico nas descrições e insinuações torna-se
grande moda a partir da Regência.
97
96
FLEURY, Jean. Marivaux et le marivaudage. Paris: E. Plon et cie., Imprimeurs-Éditeurs, 1881.
DELOFFRE, Frédéric. Une Préciosité nouvelle. Marivaux et le marivaudage. Paris: Slatkine, 1993 (Les
Belles Lettres, 1955).
97
AUERBACH, Erich. Mímesis. São Paulo: Perspectiva, 1994 (1946). p. 355-356.
245
Acontecimento fenomenológico, as lágrimas são como que o ponto irredutível da
dimensão pessoal face ao social, assim como do psíquico face ao público
98
. São o signo
externo da sensibilidade que se quer interna e abstrata, como um substrato ou um instinto –
no sentido de pertencer a todos os homens, de ser universal – que foge à visão. Um trecho
do texto de Spitzer nos esclarece quanto ao fundo da “sabedoria do instinto inato” que se
depreende da narrativa de Marivaux:
...les manières nonchalantes, presque minaudières, de l’auteur Marianne
coïncident admirablement avec la définition de l’esprit de conversation,
(...) enfin, de tout ce en quoi Marivaux voit de la culture: manque
d’ostentation et d’apparat, savoir-faire naturel et spontané.
99
4.8. Coquetismo e conversation
Incorporado ao próprio estilo da protagonista-narradora, a nosso ver o coquetismo
que emana de La vie de Marianne coincide com a definição do “esprit de conversation” que
grassa na Europa pelo menos desde o Cortegiano de Castiglione – uma obra inúmeras
vezes traduzida na França desde o século XVI até o XVIII. A arte de buscar a graciosidade
com ares displicentes (sprezzatura), a aparência de facilidade e espontaneidade em toda e
qualquer situação em société, o constante e interminável prazer no trato, que inclui a
improvisação de temas, gracejos e galanteios (já que as mulheres são alvo perferencial da
art de plaire, junto, é claro, com os superiores hierárquicos e o rei), sempre e a todo custo
evitando a afetação, é um traço renascentista que chega ao início do século XVIII francês
mantendo-se como referência máxima do nobre que transita na corte.
98
Há toda uma bibliografia sobre lágrimas e sensibilidade no século XVIII. Indiquemos apenas alguns títulos:
VINCENT-BUFFAULT, Anne, op. cit.; DARNTON, Robert. Lire au XVIIIè. La nouvelle Heloïse et ses
lecteurs. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1985; HAZARD, Paul. La pensée europeènne au XVIIIè
siècle. Paris: Fayard, 1979 (1946); MAUZI, Robert. L’idée de bonheur en France au XVIIIè siècle. Paris:
Albin Michel, 1998 (1960). Sobre a sensibilité, há um texto que a flagra como conceito a ser utilizado pelo
historiador: CHARTIER, Roger (org.). La sensibilité dans l’Histoire. Paris: Gérard Monfort, 1987, com
textos de Chartier,
Georges Duby, Lucien Febvre, Robert Mandrou, Pierre Francastel e outros.
99
SPITZER, Leo, op. cit., p. 389.
246
Mas, tendo eu várias vezes pensado de onde vem essa graça, deixando de
lado aqueles que nos astros encontraram uma regra universal, a qual me
parece valer, quanto a isso, em todas as coisas humanas que se façam ou
se digam mais que qualquer outra, a saber: evitar ao máximo, e como um
áspero e perigoso escolho, a afetação; e, talvez, para dizer uma palavra
nova, usar em cada coisa uma certa sprezzatura [displicência] que oculte a
arte e demonstre que o que se faz e diz é feito sem esforço e quase sem
pensar.
100
A tradução de sprezzatura sempre foi um desafio para tradutores de várias épocas,
desde as primeiras edições. “L’essence du courtisan est la sprezzatura, notion dont les
traducteurs ont bien du mal à rendre compte et qui est située à mi-chemin entre la
‘désinvolture’ et la ‘grâce’: um art du comportement, soigneusement élaboré et maîtrisé,
qui évite toute affectation”, escreve um historiador do reinado de Luís XV
101
. Na verdade, a
continuação da análise traz seu ponto fundamental:
Cet art devenu second nature fait oublier tout l’artifice sur lequel il repose,
il est conditionné par des vertus essentielles: le jugement, la prudence, la
modération et la discrétion. Ainsi paré, le courtisan connaît parfaitement
la bienséance, c’est-à-dire l’adéquation des paroles et des gestes à la fois
au lieu, au temps, aux personnes et à son propre état.
102
Fica clara a postura por assim dizer artificialista do perfeito cortesão, que sabe
manejar a graciosidade da fala (da conversation) de acordo com o momento e a situação
social, sem nunca deixar transparecer nem esforço, nem a própria natureza artificial
(teatral) da atuação em société: “Porém, pode-se dizer que é arte verdadeira aquela que não
pareça ser arte; e em outra coisa não há que se esforçar, senão em escondê-la, porque, se é
descoberta, perde todo o crédito e torna o homem pouco estimado”
103
.
Percebe-se que a tensão em jogo no caso do cortesão – tensão que deve ser
devidamente dissimulada – tem como lastro o poder que ele tem de lidar com qualquer
situação que se lhe apresente: a introjeção da etiqueta (do decoro, ou seja, da bienséance) é
nele total, e apesar disso ele consegue ter um campo de manobra ou de afastamento que lhe
permite manejar a própria discreção. Se compararmos com a concepção subjacente à
100
CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 42.
101
HOURS, Bernard. Louis XV et sa Cour. Paris: PUF, 2002. p. 17.
102
Idem, ibidem.
103
CASTIGLIONE, Baldassare, op. cit., p. 42.
247
narrativa de Marivaux, veremos que difere da expressa por Castiglione – que, obviamente,
o faz de forma mais explícita, pois se trata de um pretendido “manual”, embora só possa ser
definido como uma obra em algum ponto entre as belas-letras e a filosofia. A protagonista-
narradora Marianne valoriza ao máximo as aparências em sociedade e a forma como podem
ser dominadas (femininamente). Mas acaba deixando transparecer – e essa é a tese de
Spitzer – que um instinto, um substrato, uma concepção, uma antifilosofia comanda, por
baixo, o jogo do coquetismo.
Em vez da manipulação cerebrina da sprezzatura, há um vigor sub-reptício do
elemento feminino, que sabe valorizar o manejo da espontaneidade em sociedade, mas
apenas na medida em que tal pseudo-espontaneidade (ou “espontaneidade teatral”) é
sustentada e recebe sua energia daquele elemento supostamente universal e “instintual”, ou
seja, presente desde sempre, sem que se possa apagá-lo ou modificá-lo. Logo se nota que
um naturalismo de fundo rege tal visão que, no entanto, traz a novidade da glorificação da
dimensão teatral característica da vida em sociedade, principalmente do ponto de vista das
mulheres. Se o cortesão demonstra poder masculino de cálculo e estratégia para além das
energias sociais que o constrangem, a protagonista de Marivaux demonstra uma energia
feminina que governa (sem cerebralismos, embora com certo cálculo dir-se-ia teatral) o
ímpeto sob as aparências. Ambos apresentam antecâmaras próprias. No primeiro caso, um
poder dissimulatório e autocontrole de modo a imperar nas situações concretas. No
segundo, um elã um tanto mais misterioso, que sustenta o vigor da atuação frívola
104
. A
obra de Marivaux não representaria, portanto, a possibilidade de uma nova bifurcação na
narrativa ficcional, a partir da mesma fonte da conversation mondaine como modelo? O
coloquialismo, invadindo a prosa de ficção, não estaria abrindo mais vias do que se poderia
104
Obviamente, não pretendemos defender uma hipótese de sexualização das posturas de Castiglione e
Marivaux, o primeiro tendo representado uma suposta concepção masculina, o segundo, uma suposta noção
feminina. Para nós, o problema desse tipo de sexualização de concepções está em que ele tende a reduzir
imediatamente o foco de concepções historicamente determinadas, projetando nos autores do passado noções
bastante precárias e redutoras de certas concepções atuais do que sejam discursos ligados a posturas
masculinas ou femininas. Apesar disso, não se pode deixar de perceber – com Spitzer – que a posição das
mulheres na sociedade da época de Marivaux o autoriza a construir personagens como Marianne, de onde
emana a tal concepção mais generalizante. E que, apesar da proeminência das mulheres não apenas na época,
mas até mesmo no texto de Il Cortegiano, os papéis sociais são muito diferentes, e o próprio título da obra do
italiano faz referência apenas à versão masculina do ser social que se pretende descrever e aperfeiçoar: o
cortesão. Além disso, como já apontado, a concepção percebida em Marivaux está presente mesmo em
personagens masculinos, o que nos capacita a dizer que o modelo do “cortesão” de Castiglione estava pronto
para ser posto em prática por cortesãs.
248
prever – de um lado, o cerebralismo no monde (o libertino); de outro, o agravamento
patético dos sentimentos (a sensibilité); ambos, a partir de uma narrativa-matriz
frivolamente engajada no momento presente.
4.9. A peça de La Chaussée
É em meio à tensão determinada por posturas narrativas como a de Marivaux, em
La vie de Marianne, bem como de olhares críticos como o de La Chesnaye des Bois,
francamente favorecedores de uma prosa amusante e frivole, contra a pretensão de verdade
moralmente instrutiva, que surge a segunda tentativa de levar Pamela aos palcos
parisienses. A análise de tal transposição cênica nos levará a entender melhor o choque
intercultural que as duas vertentes parecem ter experimentado no momento e lugar em que
nos concentramos no presente estudo.
Nivelle de la Chaussée optou por começar pelo episódio de Lincolnshire (apenas
Lincoln, na peça), com a suspeita de La Jewks (a Mrs. Jewkes do romance) de que Pamela
e Williams estejam tendo um caso e planejem fugir juntos. Milord (Mister B.) não o crê
pois o destino do jovem está em suas mãos. Alguns trechos de La Jewks parecem comentar,
concisa e ironicamente, o perfil de Pamela para leitores franceses: “Triste, dormant fort
peu, (...)/ Pleurant comme une sotte, écrivant comme quatre...”
105
. Ou: “Bon! bon! tous les
moments sont égaux avec elle./ Sans cesse, au moindre mot, prompte à s’effaroucher/ Sa
sauvage vertu lui tourne la cervelle!/ (...) Une fille d’esprit est quelquefois bien sotte”
106
.
Quando Milord começa a falar, o tom muda completamente, e a seriedade patética
que La Chausée procura o obriga a criar um patrão confessamente apaixonado desde o
princípio: “Quel est le labyrinthe où mon amour m’engage!”. Milord acha que foi muito
aperssado e bruto com a criada ao tentar demonstrar seu amor. Apesar disso, o medo que
ela tem dele lhe parece mais vantajoso que a raiva, numa lógica confusa de sentimentos na
105
LA CHAUSSÉE, Nivelle de. Paméla, Comédie, en vers et en cinq actes. In: Œuvres de Nivelle de La
Chausée. Genebra: Slatkine Reprints, 1970. p. 271 (original: Paris: Chez la Veuve Dúchense Libraire, 1777.
p. 8).
106
Idem, ibidem (p. 10 no original).
249
qual há direito até para chamá-la de imbecil, adjetivo um tanto forte para um apaixonado:
“La Jewks: Votre nom seulement la fait évanouir. Milord: Tant mieux, rien ne m’est plus
utile/ (...) Mons aspect feriot donc mourir cette imbecile?”
107
.
Na próxima cena, Milord ouvirá, escondido, a conversa entre Williams, Pamela e La
Jewks. A criada pede a Williams que a tire dali. Ele tentara angariar aliados entre os
proprietários da região, sem sucesso; uma proto-luta de classes, ou pelo menos uma tensão
entre elas se faz sentir na justificativa do fracasso: “J’ai vu que chez les Grands on respecte
leur vice;/ Ils ont cet avantage”. Nesse meio, a virtude é desprezada “...Lorsque l’éclat du
rang ne l’accompagne pas./ (...) De l’innocence obscure on ne fait aucun cas”
108
. La
Chaussée mantém também a ambigüidade da protagonista que, agora se sabe, não odeia
para poder, pelo medo, ser mártir – uma mártir do temor que, ao contrário de alguém
decidido pela negaça (ou seja, alguém raivoso), pode ainda ceder: “Ce n’est pas qu’il soit
haïssable/ (...) Qu’il brise ma chaîne,/ Et je ferai pour lui mes plus sincères vœux”
109
. No
fim ela confessa que “La violence de ses feux/ Altere, pour moi seule, un caractère
heureux” – e o “pour moi seule” indica que os fogos guardam seu aspecto amoroso por
baixo da cólera.
No por demais longo diálogo com Pamela, Milord valoriza o grau de virtude de uma
mera criada: “Si ce n’est qu’en l’état où vous êtes réduite,/ Tant de vertu n’est pas facile à
conserver./ (...) La vertu la plus pure & la plus affermie/ Triomphe rarement de la
nécéssité”
110
. Diante da resistência inquebrantável de Pamela, Milord apela para um
estratagema que Gustave Lanson reconhece em outras duas peças da época: “Milord...
ayant lu sans doute Mithriade e l’Avare, il feint de vouloir donner Paméla à Williams...”
111
.
O rapaz cai na armadilha, enlevado, e Milord, obviamente, explode de raiva: “...tu m’aurois
alors arraché mon estime”, diz a Williams, que dependia de tal estima para seguir a carreira
de pastor. Williams invectiva Milord pois “...On ne doit respecter que l’amour légitime”
112
.
Como em Mélanide, a legitimação do amor está no centro do jogo.
107
Idem, p. 272 (11 or.).
108
Idem, ibidem (14 no original).
109
Idem, p. 273 (17 or.).
110
Idem, p. 275 (24 or.).
111
LANSON, Gustave, op. Cit., p. 165.
112
LA CHAUSSÉE, Nivelle de, op. cit., p. 277 (32 or.).
250
No diálogo com Pamela, quando esta diz que seu interesse em Williams era apenas
como apoio para a fuga, Milord lança uma frase esclarecedora quanto a aspecto importante
da peça – e que surgira apenas como pano de fundo no romance: “...en enlèvement n’a rien
qui déshonore”, no que Pamela rebate: “Mais un libérateur n’est point ravisseur”
113
. O tema
surge explícito: o rapto (enlèvement) com intenções eróticas ou de casamento é um mito,
mas também uma realidade no Ancien Régime. Um exemplo entre muitos é o do duque de
Fronsac, filho do marechal de Richelieu, que “...provoque un incendie pour enlever le fille
d’un marchand et la violer”
114
.
Na verdade, os termos rapt e enlèvement eram sinônimos de violation desde a Idade
Média, na Europa, o que traz algumas confusões semânticas e algumas conseqüências para
a própria compreensão do quadro dos estupros no Antigo Regime. Apesar do sentido
moderno, “Il n’y a point de texte qui requière l’enlèvement et le transport pour déclarer une
défloration violente”, garante uma compilação de sentenças
115
. No trecho da peça citado
acima, o uso de “ravisseur” não deixa dúvidas: trata-se mesmo da idéia de rapto segundo o
sentido moderno, ligada, obviamente, à de estupro. A conseqüência última do uso da
imagem do rapto é que “...le viol [estupro] est acte de sexe autant qu’acte de possession,
exercice directe d’une ascendance, marque d’un pouvoir”
116
.
O que hoje conhecemos como estupro se relaciona com outro mito menos
corriqueiro no dia-a-dia do Antigo Regime: o droit de cuissage ou droit su seigneur, ele
também evocado na cena acima, que radicaliza em forma de duplo sentido o que Joseph
Texte caracterizará como o realismo de Richardson que toca “du doigt la vulgarité des
choses”
117
. Consistia no suposto direito do patrão de novas criadas ou governantas de
passar a primeira noite de trabalho na cama, com elas. Obviamente, tal mito tão difundido
na França de então compunha o horizonte de pressupostos dos leitores de Richardson, bem
como dos espectadores de La Chaussée. Em 1735, o próprio Louis de Boissy havia escrito e
feito encenar no Théâtre de l’Opéra-Comique Le Droit du Seigneur ou le Mari retrouvé et
la femme fidèle. Antes dekle, ainda em 1699, Dufresny lança La Noce interrompue, em que
113
Idem, ibidem (34 or.).
114
DELON, Michel. Le savoir-vivre libertin. Paris, Hachette, 2000, p. 57-58.
115
BONIFACE, A. de. Arrests notables de la cour du parlement de Provence. Lyon: 1708. t. IV, p. 329. Apud
VIGARELLO, Georges. Histoire du viol. XVIè-XXè siècle. Paris: Éditions du Seuil, 1998. p. 62.
116
VIGARELLO, Georges. Histoire du viol. XVIè-XXè siècle, op. cit., p. 63.
117
TEXTE, Joseph, op. cit., p. 214.
251
um cond etenta casar a afilhada de sua esposa com um camponês de suas terras só para ter
acesso à moça meses a fio. O mesmo Dufresny será mais explícito no título de Le Droit du
Seigneur, 33 anos depois, estreando tal nome eufemístico para o droit de cuissage (direito
de coxas). Voltaire assinará seu Le Droit du Seigneur em 1762, mas em 1756, no Essai sur
les mœurs, havia refletido bastante a respeito. Desfontaines (não se trata do editor do
Observations sur les Écrits modernes) lança outro Le Droit du seigneur teatral, em 1784,
mesmo ano da peça que difundirá a fama de tal direito até hoje: Le mariage de Figaro, de
Beaumarchais, com música de Mozart. Na peça, o conde de Almaviva intenta praticá-lo
com Suzanne, noiva de Fígaro. Segundo ela, o conde quer “...obtenir de moi, secrètement,
certain quart d’heure, seul à seul, qu’un ancien droit du Seigneur... Tu sais s’il était
triste!”
118
.
Portanto, mesmo que tal direito não passasse de um mito, ele compunha o
imaginário dos que assistiram à peça de La Chaussée, naquele 6 de dezembro fatídico, dia
de sua única apresentação. E a cena citada demonstra claramente como ao escrever a peça
ele trouxe para a boca-de-cena, mesmo que na forma de um duplo sentido, um tema no qual
os leitores do romance não ousavam tocar abertamente em textos da época, embora sua
presença difusa explique uma parte do frisson que o livro causou na França. Numa versão
inglesa do romance para o palco, Pamela, or Virtue triumphant, de James Dance, de 1741,
a violação era nada menos que o acontecimento central do espetáculo.
The dramatic high spot is the attempted rape, and once this situation has
been resolved the suspense is over, interest flags, and the play dies a
lingering death. In a very stupid piece of showmanship, Dance stages this
climactic scene in the first act, after which three acts of unrelieved
monotony are required to get Pamela to the altar.
119
Como se vê, o uso do estupro no primeiro plano, no palco, não era garantia de uma
boa urdidura dramática, nem de sucesso de público ou de crítica.
Retomando o fio da peça, com raiva de Williams e de Pamela, Milord chama outra
governanta. La Chaussée apela, então, para o “reconhecimento”: do fundo do teatro (com
118
BOUREAU, Alain. Le droit de cuissage. La fabrication d’un mythe – XIIIè-XIXè siècle. Paris: Albin
Michel, 1995. p. 40.
119
KREISSMAN, Bernard. Pamela-Shamela. A study of the criticisms, burlesques, parodies and adaptations
of Richardson’s “Pamela”. Lincoln: University of Nebraska, 1960. p. 55.
252
direito a rubrica: “Mad. ANDREWS, au fond du théâtre
120
), madame Andrews vai se
chegando a Pamela até que esta perceba que ela, na verdade, é sua mãe. Ela enganou os
patrões da filha e veio defendê-la. Pamela toma conehcimento do plano de Milord e La
Jewks para vencê-la pela violência. O estilo patético é repetitivo, sem a graça que se via em
Mélanide: “L’artifice & la force... Ah! je tremble d’effroi (...)/ La terreur me saisit, & ma
raison se trouble./ Je ne vois plus qu’objets terribles & confus;/ Je ne sais où je suis; je ne
me connois plus...”
121
. Segue-se uma reviravolta: Pamela teria se afogado, e a prova é suas
roupas boiando ali perto, sem o corpo. Milord e La Jewks estão terrificados: Pamela está
morta. Madame Andrews se revela ao patrão e pede que deixe a filha ir para casa dos pais.
Milord revela a morte de Pamela a Madame Andrews. Mas eis que Pamela aparece e conta
que pensara em se matar, mas desistira no último segundo, e como álibi para sua fuga,
jogara na água algumas vestes. Quando viu o patrão e a mãe desesperados, desistiu da fuga.
Feliz de revê-la, Milord chega a propor a ela aquilo de que sempre fugiu, como bom
libertino: “J’ai toujours fui l’hymen comme un malheur extrême;/ La richesse, le rang, que
dis-je? un trône même,/ N’auroient pu me forcer à m’y déterminer./ Je veux des biens d’une
autre espèce:/ Ce sont les prémices d’un cœur,/ Dont je sois le premier & le dernier
vainqueur”
122
. Um de seus argumentos é a idéia que teve de se matar, caso Pamela tivesse
mesmo morrido. Mas, bem ao estilo da Pamela do romance, a de La Chaussée também
recusa. O estilo continua grandiloqüentemente vazio: “...pour m’assurer le plus rare
bonheur,/ Je ne franchirois pas des bornes indiscrettes,/ Que la nature n’a point faites,/ Dont
la raison gémit! Mon choix répond à tout”
123
. O fluxo patético parece, às vezes, levar a um
aprofundamento psicológico: “Quel sujet vous force à vous dédire? (...)/ Ah! Milord, (...) il
faut mieux me taire./ Milord: Quoi! toujours des déguisemens! Parles. Paméla: Je crains
votre colère”; ou “Je voulois, mais en vain, me cacher à mio-même/ Les mouvements
secrets de ma foiblesse extrême...”
124
; mas o tom larmoyante mantém-se prolixo, sem
reviravoltas dramatúrgicas. Na verdade, diante da vida pregressa de Milord, Pamela teme
que ele a engane com uma falsa cerimônia. Pamela diz a Miladi que a idéia de “casamento
ilegal” (como em Mélanide) estava na razi de sua recusa: “...je craignois le péril trop
120
LA CHAUSSÉE, Nivelle de, op. cit., p. 280 (46 no original).
121
Idem, p. 282 (53 or.).
122
Idem, p. 284 (60 or.).
123
Idem, ibidem (61 or.).
124
Idem, p. 285 (64-65 or.).
253
certain,/ Où nous conduit toujours un hymen clandestin”
125
. Milord tem preocupações
típicas de um grande proprietário de terras: desconfia que a irmã boicota seu casamento de
olho em seus bens.
Milord reencontra Williams, que lhe diz querer deixar Pamela para alguém que a
mereça (“Je serois prêt encore à lui rendre sa fio,/ Si l’amour inspiroit une ardeur légitime/
A quelqu’un plus heureux & plus digne que moi”
126
), apesar do amor que sente por ela.
Diante das desgraças do dia, Milord desmaia nos braços de Williams. Nesse momento,
retornam Miladi com Pamela e Madame Andrews. A irmã pede a Pamela que reviva
Milord: é a única com tal poder. “Quel son de voix touchant me rappele à la vie?”, diz ele.
Fica claro que Miladi convencera a criada a voltar para salvar Milord da morte. Ela,
sabendo do desespero do patrão, sente que seu amor é legítimo (verdadeiro). Ele jura
delicadeza, depois de tanta brutalidade contra a criada. Esta acredita pela primeira vez nele,
ainda timidamente, depois de tantas páginas: “Ma mère, mes soupçons commencent à
s’éteindre”. A mãe faz o mini-sermão final: “La modestie excuse & fait tout pardonner./
Prends l’esprit de ton rang, & non pas la licence./ Souviens-toi, quelque droit qu’il puisse te
donner,/ Qu’on peut, dans sa grandeur, conserver l’innocence”
127
. A suposta chave-de-ouro
é o subtítulo do romance de Richardson: “Trop heureux de servir moi-même/ De
récompense à la vertu!”
128
.
125
Idem, p. 287 (71 or.).
126
Idem, p.288 (77 or.).
127
Idem, p. 289 (81 or.).
128
Idem, ibidem (82 or.).
254
5. La Déroute des Paméla: radicalizando o cômico contra as pretensões do sentimento.
O fracasso em seqüência de Paméla en France, ou la Vertu mieux éprouvée, de
Louis de Boissy, e da Paméla, de La Chaussée, respectivamente em março e em dezembro
de 1743, animou a verve cômica um autor obscuro, filho de um comerciante de tecidos com
tanto talento para a escrita que pouco depois de chegar a Paris já se integrara aos salons e
publicara dios romances. Quis fazer uma peça que pusesse fim à mania fracassada de
transpor a personagem inglesa para os palcos da capital. Claude Godard, que passaria a
assinar Godard d’Aucour (1716-1795), é hoje conhecido como autor de textos licenciosos,
e do romance tido como libetino, Thémidore ou Mon histoire et celle de ma maîtresse, de
1745. Em fins de 1743, tinha publicado as Lettres du chevalier Danteuil à Mlle de Thélis e
as hoje mais conhecidas Mémoires turcs, história da estadia na França de dois turcos, na
linha satírica, licenciosa e orientalista que vinha das Lettres persanes, de Montesquieu, até
o Sopha, de Claude Crébillon. No teatro, como as duas Pamelas de que faz mofa, nunca
obteve sucesso. Na verdade, um bom casamento (com uma prima em quinto grau de
Madame de Pompadou) e habilidade para galgar bons cargos o livraram das dificuldades
em geral reservadas aos autores de segundo ou terceiro time
1
.
La déroute des Paméla en un acte en vers (Par Monsieur ***) estreou 17 dias
depois do fracasso de La Chaussée, a 23 de dezembro de 1743, obviamente no Théâtre des
Italiens, templo das comédias. A ironia e simplicidade fazem dela a melhor das três peças –
o que ninguém na época poderia chegar a imaginar, é claro. Um arlequim como sempre
desabusado inicia a peça dizendo: “Je n’en puis revenir, une autre Paméla?/ Ma foi, je crois
que ce nom là,/ Va devenir le nom par excellence...”, sem saber que, além das outras peças
que o século viria a ver sob o mesmo título, na França, pelo menos uma escritora de
primeira time batizaria a filha com aquele nome inglês – Madame de Genlis
2
. As peças
1
TROUSSON, Raymond, op. cit., p. 267-271.
2
Trata-se de Pamela Brûlart de Sillery (1777-1831), filha ilegítima com seu amante secreto, Philippe
d’Orléans, duque de Chartres. Ao nascer, foi para a Inglaterra, e retornou para ser educada junto aos filhos
legítimos do duque. Oficialmente, era um órfã adotada pela generosa governanta, a própria Madame de
255
anteriores são tratadas como “duas crianças infelizes” que a mãe, a Pamela verdadeira, veio
salvar do triste destino que “...Pour leur malheur conduisit à Paris”. Ela pergunta das
meninas e ouve, do arlequim: “Dans cet Hôtel depuis près d’une année/ Nous avons reçû
votre aînnée/ Elle eut quelque revers, mais elle va son train,/ Sa sœur cadette est morte au
Faubourg S. Germain”
3
. Como se sabe, era na rue des Fossés Saint-Germain-des-Prés, no
Faubourg Saint-Germain, que ficava a Comédie Française, onde a Paméla de La Chaussée
“falecera” na estréia.
O arlequim argumenta que Pamela não morrera “...faute d’avoir du monde,/ Ses
beaux yeux en firent la ronde” (“faire la ronde”: atraíram multidão). A platéia aplaudira ao
vê-la, “...Mas par malheur elle parla./ Un froid mortel la prend, elle tombe en foiblesse”
4
.
No enterro, gravou-se no túmulo: “Ce gît une Beauté dolente/ Qui croyoit arracher des
pleurs,/ Mais plus elle fut gémissante,/ Plus elle trouva de rieurs”
5
. Arlequim confessa à
mãe Pamela que o público parisiense “...rit tous les jours au tragique”. A mãe das Pamelas
pergunta da mais velha, e arlequim diz que na peça dela, fez um “..vrai rolle de Diable”.
Uma nota-de-pé-de-página explica: “Dans la Paméla des Italiens, Arlequim fait le rolle
d’un Diable couleur de rose, & n’a que quatre Vers à dire
6
. Arlequim trará a “Pamela des
Italiens”, que, obviamente, vive ali no Hôtel de Bourgogne, onde fica o Théâtre des
Italiens.
Ela reclama que “Toujours quelqu’un survient lorsque je veux écrire...”. Madame
Pamela acha que essa Pamela Italiana não tem ennhum traço dela própria, a original. Diante
da ameaça de desmascará-la, a Pamela Italiana adverte: “De grace gardez le silense,/ On
Genlis, preceptora dos filhos de Philippe. Aos 14 anos, parecida com o duque, era uma das mais belas
mulheres da corte. Além de Pámela ou L’Heureuse adoption, conto moral típico da pedagoga Madame de
Genlis (Limoges: E. Ardant et C. Thibaut, 1868), podemos citar: Paméla française ou La Vertu en célibat et
en mariage; dépeinte dans les Lettres de Messieurs D. Talbet et L. Mozingue; rédigées dans le goût de
Clarissa et Grandisson, de Madame de Riccoboni (Amsterdã/Haia: 1768). E Paméla ou la Vertu
récompensée. Comédie em cinq actes em vers. (NEUFCHÂTEAU, François de. Paris: Chez Barba libraire,
1802 (estreou em 1793)). Do mesmo modo, não tratamos, no presente estudo, das Pamelas do italiano Carlo
Goldoni: La Pamela, de 1756, e Pamela maritata, de 1758, ambas escritas e representadas em Roma, para o
público italiano. La Pamela surgiu logo depois de outra adaptação de um romance larmoyant, a peça La
peruviana (1754), baseada em Lettres péruviennes, de Madame de Graffigny (1745). A versão do romance de
Richardson foi a primeira peça de Goldoni a ser traduzida na Inglaterra, e Neufchâteau na verdade traduziu-a,
três décadas depois de seu surgimento. Sua repercussão ficou limitada ao âmbito de Roma: só em 1762 o
autor italiano aceita o convite para dirigir o Théâtre des Italiens, em Paris.
3
D’AUCOUR, Godard. La déroute des Paméla. Comédie en un acte en vers. Paris: Chez la Veuve Pissot,
1744. p. 4.
4
Idem, p. 6.
5
Idem, ibidem.
6
Idem, p. 8.
256
n’est déjè que trop enclin à critiquer”. E quando a mãe pergunta se ela nasceu na França,
ela diz: “Hélas non! un François à Londres/ Le premier me fit voir Paris./ J’avois un autre
nom...”. A brincadeira é com o próprio Louis de Boissy, autor de Le François à Londres,
grande sucesso na Comédie Française ainda em 1725. O nome fora mudado porque ela
ganharia as graças do público, já que “Son histoire veniot d’être ici publiée”, numa
referência à tradução do romance.
Tal Pamela inautêntica “...ne cédai qu’au nom de mariage;/ Une fille à ce mot peut-
elle résister?”. Obviamente, a Pamela original se revolta diante da facilidade com que a
Italiana (parisiense) aceita propostas amorosas: isso desonrará toda a família. Mais bem
sucedida que a Pamela “mais nova” (ou seja, mais recente, a de La Chaussée), pois
agüentou treze apresentações, a Pamela Italiana se orgulha de ter finalmente agradado
Paris, “Après quelques corrections (...)/, En musique, en ballets, en décorations...”, ou seja,
em outros meios que não o teatro falado, propriamente dito. Teria havido uma moda de
desenhos, ilustrações e mesmo objetos decorativos com o rosto suposto de Pamela, como
houve na Londres da época? É o que o trecho sugere.
A Pamela Francesa reaparece, então, pedindo que um autor do Théâtre des Italiens a
ressuscite, escrevendo uma nova paródia. Arlequim aceita, e aquela Pamela pede que eles
fustiguem a platéia, de modo a exigir aplausos: “En vérité c’est une étrange affaire/ Qu’on
de puisse venir à bout de le [o Parterre, ou seja, a platéia] ranger”
7
. A crer em Gustave
Lanson, não era nada incomum que os diretores das companhias fizessem aquilo a que
D’Aucour faz referência aqui, ou seja, controlassem a reação que desejavam por parte da
platéia, basta lembrar dos billets rouges com instruções sobre os momentos certos para
aplaudir e ovacionar o espetáculo em sua estréia. Arlequim aproveita para ironizar o certos
autores que fazem “...eux-mêmes leur Critique,/ Pour éviter d’avoir de trop rudes censeurs;
Et qui dans leur humeur peu sage/ Au lieu de blâmer [censurar] leur Ouvrage,/ Font des
leçons aux Spectateurs”
8
.
Surge então uma mulher vestida de “Bohémienne”, como se lê em itálico, na
rubrica. É uma referência à Paméla de La Chaussée, na qual a mãe de Pamela aparece de
repente disfarçada de governanta. “Bohémienne”, como se sabe, significa “cigana”, e
7
Idem, p. 18.
8
Idem, ibidem.
257
decerto D’Aucour faz uma brincadeira com o fato de Madame Andrews surgir falando
todos os detalhes da vida da filha, como uma cigana que quer mostrar que sabe informações
sobre a história pessoal de uma cliente. A mãe-cigana quer saber se a filha sabe de seu
destino. Esta diz: “Le Public me l’a fait connoître,/ Trop sincère, il ne cache rien”. O duplo
sentido é eficiente, pois o arlequim chama o público de “rusé bohémien”, que signfica
“astuto cigano” ou “astuto boêmio”. Arlequim rebate: “Il [le Public] ne parle pas au hazard/
Car il médite chez Procope/ Les arrêts qu’il répand ensuite dans Paris,/ Ses décisions font
la planche [gíria para “palco”],/ Sans avior vû votre belle main blanche,/ A ce que vous
valiez il sçut mettre le prix”
9
. Ou seja, o público, nas noites boêmias do Procope, primeiro
café de fama em Paris, desde 1669, favorecido por se localizar ao lado da Comédie
Française, na rue des Fossés Saint-Germain, emite sentenças sobre as peças daquela noite,
decidindo de sua sorte. É, portanto, tão cigano (que lê o futuro) quanto boêmio, sem
precisar ver sequer as linhas em “...votre belle main blanche”.
Arlequim faz as críticas irônicas devidas, dizendo que Pamela fica melhor na
Comédie Française do que nos Italiens, pois “Votre éternel babil nous mit presque en
délire,/ Il ne faut pas toujours tout dire,/ On n’a plus rien le lendemain”. E completa:
“Parlez, parlez, on les tolère ici [aos discursos];/ Passons à la reconnaissance”, referindo-se,
com pressa cômica, à praxe teatral clássica do “reconhecimento”. A comicidade se
completa em sua fala seguinte, quando arlequim dirige a cena, incitando mãe e filha a
aproveitarem a oportunidade: “Allons, c’est à présent qu’il faut vous embrasser./ Quoi! le
plus bel endroit on le laisse passer./ Que sert-il donc de faire une reconnoissance?”
10
.
Encontrando-se pela primeira vez as duas Pamelas, inquietas com a original que
quer puni-las, a Italiana diz: “Laissez, laissez crier le monde,/ Il faut un peu vous aguérir/
Et braver [enfrentar] hardiment le Public quand il gronde [ralha]./ Au plutôt délogeons
d’ici”
11
. A Francesa, tentando sair do teatro, faz anedota de uma situação comum no teatro
parisiense diante de estréias malfadadas: “...Et pour où donc vos Auteurs/ Dans de certains
jours de malheurs/ Gagnent-ils doucement la ruë?” Estando a Pamela Francesa preocupada
com o que os parisienses dirão de uma fuga pela janela, diz a Italiana, incentivando a outra
a manter o tom cômico, e abdnonar o larmoyant: “...descendez de votre gravité./ In ne faut
9
Idem, p. 20.
10
Idem, p. 24.
11
Idem, ibidem.
258
point dans sa misère/ Conserver tant de vanité,/ Vous faites toujours la pincée,/ Ne sçavez-
vous que répandre des pleurs?” Ela responde: “C’est par-là que l’on prend les cœurs,/
Qu’on intéresse, & que l’ame charmée...”; no que a Italiana: “Voici du beau, du larmoyant,/
Mais il est déplacé, je ne puis vous entendre/ Verser des larmes à présent;/ (...) je veux fuir
(...) Et (...) Cet escalier n’est pas galant”
12
.
Dois versos impressos em itálico foram extraídos da Paméla de La Chaussée,
“...mot pour mot...”, como avisa a rubrica, servindo de referência cômica: “Du moins
aurons-nous des chevaux?/ Si nous allons à pieds nous serons attrapées...”. A piada pode
ter a ver com a passagem aparentemente incompreensível das Anedoctes dramatiques sobre
a peça de La Chaussée:
Dans la Pamela de la Chaussée, qui ne put faire réussir ce Roman sur le
Théâtre, commme il en avoit fait réussir tant d’autres, un Acteur se
plaignoit de n’avoir pas trop de tems pour faire une commission [entrega];
un autre répondoit: Vous prendrez mon carrosse, afin d’aller plus vite. Ce
vers fit redoubler les huées contre la Piece qui tomba tout à plat.
13
Têm a idéia de se jogar no rio, como a Pamela de La Chaussée. Há referência – com
direito a notas-de-pé-de-página – tanto a um vivier [viveiro de peixes], supostamente onde
aquela Pamela quase se afoga, quanto à trape [alçapão]. Diz a nota, sobre este último:
Dans la Paméla qui fut jouée aux Italiens, l’Auteur de cette Piece pour se débarasser du
Jardinier que Paméla alloit épouser au préjudice du Marquis, le fait disparoître par une
trape, & il n’en est plus question, c’est un diable couleur de rose qui fait se prodige
14
.
Como se vê, o comentário auto-referente em relação à composição teatral é
totalmente livre, com prejuízo para a reputação dos autores das duas Pamélas fracassadas.
De fato, na cena burlesca do desaparecimento de Mathurin, o jardineiro enamorado da
patroa, Boissy lançava mão da trupe de atores que encenariam o espetáculo final. Um deles,
vestido de duende, pega Mathurin pela mão e este pensa estar sendo levado por um diabo
para o inferno. “Je sis défunt!...”, diz, em sua ortografia de jardineiro. Até Pamela é
enganada, o que lhe permite um trocadilho gracioso: “Je trouve, hélas, un Amant de ma
12
Idem, 28-29.
13
ANEDOCTES dramatiques. Tome I. Paris: Chez la Veuve Duchesne, Libraire, 1775. p. 535-536.
Disponível em: CÉSAR <
http://cesar.org.uk/cesar2/dates/dates.php?fct=edit&performance_UOID=106872>.
Acesso em: 17/10/2006.
14
D’AUCOUR, Godard, op. cit., p. 30.
259
sorte,/ Le seul qui m’aimoit sagement;/ Il vouloit m’épouser & le Diable l’emporte”
15
. Os
atores levam o pobre para uma adega e o deixam ali feliz, entre barris de vinho.
5.1. A Mãe Azul: a edição popular como personagem.
É nesse momento da peça de Godard d’Aucour que surge a Mère Bleue (Mão Azul),
“...Des beaux atrs la mère cherie/ La gloire de la Libraire,/ L’Imprimeuse des Livres
bleux”
16
. Para quem conhece a história da impressão de livros na França da época, é fácil
saber do que se trata. É a figuração em forma de personagem da mais famosa coleção de
livros populares do Antigo Regime francês. Segundo Roger Chartier, trata-se de uma
“...fórmula editorial, inventada pelos Oudot em Troyes no século XVII, fazendo circular no
reino livros baratos, impressos em grande quantidade e vendidos por ambulantes
[colporteurs]...”
17
. O fenômeno não é exclusivamente francês: “Na Inglaterra, os
chapbooks (ou livros de ambulantes) são vendidos a um preço derrisório (...) e impressos às
centenas e milhares...”; e na Espanha “...é no século XVIII que os pliegos de cordel
encontram sua forma clássica, aquela de pequenos livretos de uma ou duas folhas, e uma
difusão maciça, garantida em parte pelos ambulantes cegos que cantam seus textos
versificados antes de vendê-los”
18
. Segundo Robert Mandrou, historiadores da região de
Champagne creditam o início da coleção ao desejo de publicar “...à côté des livres
ordinaires reliés veau, dos gravés or, qui ont été depuis les débuts de l’imprimerie la forme
normale d’édition – de petits livres in-12, in-32, de quelques pages, à l’intention des
colporteurs”
19
.
Como se destacou, “colporteurs” eram os vendedores ambulantes de livros e outros
produtos, aqueles que podiam carregar. Obviamente, os livros a se vender para gente menos
endinheirada tinham de ser não apenas pequenos, mas de fácil leitura, daí o nascimento do
mercado livreiro popular na França de então. O sucesso foi tamanho que por todo país
15
BOISSY, Louis de. Paméla em France, op. cit., p. 75-76.
16
D’AUCOUR, Godard, op. cit., p. 31-32.
17
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime, op. cit., p. 261.
18
Idem, p. 261-262.
19
MANDROU, Robert. De la culture populaire aux 17e et 18e siècles. Paris: Stock, 1975 (1964). p. 19-20.
260
passou-se a encontrar tais vendedores recheados de livros de capa azulada
20
, “...petits livres
imprimés sur un mauvais papier à peine blanc, granuleux, qui boit l’encre, mal brochés
d’un simple fil, recouverts d’une feuille bleue sans titre ni dos: ils ont un avantage pourtant:
ils se vendent un sol ou deux [sol: moeda da época], et sont donc à la portée de
quiconque”
21
.
“Contes bleus” era uma das formas de se chamar os contos de fadas, os “contes
borgnes”, ou “contes de loup”. Mas eles não constituíam a maior parte do que os
colporteurs vendiam. Havia, sim, narrativas curtas situadas no país da “Faérie” (inclusive
de autores de respeito, como Perrault e Madame d’Aulnoye), mas havia uma quantidade
ainda maior de “...ouvrages qui traitent de la vie quotidienne: calendriers et livrets
scientifiques et techniques”
22
. Os livros pios parecem ser ainda mais numerosos. Porém, o
historiador Roger Chartier demonstrou que “...a denominação Biblioteca Azul não cobre os
livros religiosos impressos nas mesmas formas e pelos mesmos editores – o que é
confirmado pelos catálogos de Troyes que a reservam para os ‘livros recreativos’...”
23
.
Havia também compilações de cânticos ofertados a algum santo, a Jesus Cristo ou
celebrando a vindima; pequenos catecismos ou narrativas edificantes extraídas dos
Evangelhos; obras de devoção, indulgência, preces; e as vidas de santos, os mais
numerosos, segundo Mandrou
24
.
Ao lado dessas obras de fundo religioso ou moral e, segundo Roger Chartier, mais
propriamente integrado ao que se convencionou chamar de “Bibliothèque bleue”, havia
uma prosa de ficção popular de puro divertimento, embora em menor número. “...sont
d’abord des romans, petites histoires rapides, sans autre prétention que l’historiette sans
moralité particulière qui est contée: La patience de Grisélidis, La guinguette de Suresnes;
ce sont surtout les farces burlesques (...) et des chansons profanes, pastorales, complaintes
de buveurs...”
25
. Na verdade, Chartier lembra que análise das edições pertencentes a A.
Morin diverge totalmente da de Mandrou ao arrolar muito mais textos de ficção do que
20
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 250. Ele aponta a “...difusão generalizada para todo o reino, incluindo as
províncias meridionais, dessas histórias que não são mais publicadas apenas pelos editores de Champagne ou
de Rouen”.
21
MANDROU, Robert, op. cit., p. 20.
22
Idem, p. 43-44.
23
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 249.
24
MANDROU, Robert, op. cit., p. 45.
25
Idem, p. 46.
261
piedosos na Biblioteca Azul: 41,4% seriam de ficção, enquanto apenas 28,3%, de instrução.
“Segundo esse corpus, os best-sellers são laicos, já que a literatura romanesca e cômica
(13,2% das edições) e os romances de cavalaria (12,7%) vêm na frente, antes mesmo dos
cânticos e cantigas de Natal (11,6%)”
26
.
Entre as narrativas ficcionais havia o “...sucesso popular da figura nova e ambígua
do ‘bandido de grande coração’”
27
, em obras como História da vida, grandes ladroeiras e
sutilezas de Guilleri. E há ainda muitos livros de fundo sentimental, sobre o amor ou a
morte, como o Jardin de l’honnête amour ou o Imperfection des femmes; manuais de jogos
de dados ou carteados; e narrativas pseudo-históricas sobre a França, com fundo mítico, nas
quais Carlos Magno convive com encantadores e diabos. Por fim, pequenas peças de teatro,
“...encore que le mot soit gros pour désigner des bouts de dialogues de quelque pages, qui
s’apparentent de très près aux récits burlesques des Halles”
28
. Mais uma vez, Chartier
mostra que, ao contrário do que acreditava Mandrou, a maior parte dessas obras é extraída
de títulos já existentes no mercado formado pelos livreiros parisienses ou provincianos:
“...na maioria das vezes, [a genealogia dos textos que compõem a Biblioteca Azul] remonta
a um texto de tradição erudita, e isso seja qual for a categoria de obras considerada”. Na
verdade, seguindo a lógica de absorver na Bibliothèque bleue obras que estão perdendo
fôlego no mercado da capital, não é só com o Cozinheiro francês, de La Varenne, que se
observa o que é destacado por Chartier: “Graças aos impressores de Troyes, a obra inicia
uma segunda e duradoura carreira no próprio momento de seu abandono pelos
parisienses...”; certamente muitas obras passaram pelo mesmo périplo.
Retornando a La déroute des Paméla, a Mère Bleue passara a procurar por Pamela
ao saber que ela viera para a França. De acordo com o que acabamos de ver, o público
entendia imediatamente ao vê-la no palco transformada em personagem que se tarta de
tentar resgatar a Pamela fracassada em Paris para a série de obras resumidas lançadas pela
Bibliothèque bleue: a prolixidade de Pamela encontraria finalmente um ótimo destino mais
conciso. “Vous n’avez donc pas vû la Gazette à la main?/ Vous auriez été droit au faubourg
S. Germain”, indica arlequim, referindo-se a outra instituição do Antigo Regime, um
26
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 264.
27
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 249 e o capítulo 8 do mesmo livro, “Figuras literárias e experiências sociais:
a literatura da malandragem na Biblioteca Azul”, p. 287-374.
28
Idem, ibidem.
262
ancestral da imprensa, a gazette à la main, que era feita em proto-redações por proto-
jornalistas, ou seja, por criados ou arrivistas bastante informados sobre as novidades dos
salons parisienses
29
.
Arlequim descreve a Mãe Azul citando obras existentes: “Elle renferme en sa
boutique/ Ces chefs-d’œuvres divins du Pont-Neuf si connus,/ Les recueils des Bons mots,
Almanachs, Art magique,/ Chansons, Roger-bon-Tems, avec Fortunatus,/ Est-elle en vogue
en Angleterre?”
30
A resposta devia suscitar risos na platéia: “Madame Pamela: On y vante
très-fort sa belle impression”. Ora, todos ali presentes sabiam que a impressão dos livros da
Bibliothèque bleue eram abaixo de sofrível. A fala da Mãe Azul refere-se a sua ampla
difusão na França e, quiçá, fora dela, numa boutade sobre a empresa precursora do mercado
de massa do século XX: “J’imprime pour toute la terre”. Arlequim brinca: “Et pour le
Zodique avec permission...”. A Mãe Azul diz já ter “...des habits tout prêts pour elles”.
Uma nota-de-pé-de-página explica: “Ce sont des Mantelets de papier bleu
31
, ou seja, as
famosas capinhas azuis dos livros da coleção, transformadas em capas femininas usadas por
cima do vestido (mantelete).
O fio de referências vai continuar: com a permissão de Madame Pamela, a Mãe
Azul promete que “Dès demain je les mène à Troye,/ Les quatre Fils Aymond les verront
avec joie,/ Ils deviendront peut-être leurs Epoux...”. Trata-se não só da referência à cidade
onde a Biblitothèque bleue foi criada, no século XVII, e onde, desde então, foi editada e
impressa, Troyes, mas também a um best-seller da coleção: Histoire des quatre fils Aymon.
O título aparece na resposta de associações de personalidades públicas de Mont-de-Marsan,
na Gasconha, e de Carcassonne, mais ao sul, para a pergunta do questionário do abade
Grégoire relativo “...ao patois e aos costumes das pessoas do campo”, enviado a 13 de
agosto de 1790 – ou seja, pouco menos de cinco décadas depois da época de estréia de La
déroute des Paméla. A pergunta, a 37ª do questionário, é simples: “Que espécie de livros se
29
DARNTON, Robert. Vies privées et affaires publiques sur l’Ancien Regime. In: Actes de la Recherche en
Sciences Sociales. Représentations du monde social. Textes, images, cortèges. Paris: Seuil, setembro 2004. p.
24-37. O trecho a seguir é particularmente esclarecedor: “La fameuse gazette à la main de Mme Doublet se
fondait (..) sur les rumeurs rapportées chaque matin par son domestique après un tour chez les concierges des
hôtels parisiens. À en croire le rapport d’un espion de police, ce valet pourrait éter considéré comme le
premier reoprter de l’histoire de France – et ses collègues comme les premiers professionnels des bureaux de
rédaction...”, p. 29.
30
D’AUCOUR, Godard, op. cit., p. 35.
31
Idem, p. 36.
263
encontram mais comumente entre eles [os camponeses]?”
32
. “A coleta dos títulos
individualmente citados é magra: a História dos quatro filhos Aymon pelos Amigos da
Constituição de Mont-de-Marsan e de Carcassonne...”, revela Chartier
33
.
A Mãe Azul continua sua história hipotética: “L’une & l’autre, dit-on, vouloit être
Comtesse,/ Elles n’y perdront rien; les quatre Fils Aymond/ Sont d’une ancienne Maison,/
On vante par tout leur Noblesse...”
34
. Segue uma referência cômica ao quase suicídio da
Pamela de La Chaussée, encenada “nos franceses” (forma coloquial de referir-se à Comédie
Française, na época). Parece ter intrigado os espectadores daquela peça o fato de o vestido
de Pamela não estar molhado, mesmod depois do ocorrido no lago. Arlequim justifica, com
ironia: “Elle n’a plongé qu’un moment,/ En passant dans la cour le soleil l’a séchée”
35
. Ao
ver as Pamelas chorando, arlequim diz: “...on ne pleure jamais ici”, em referência ao fato de
o Théâtre des Italiens ser um templo dedicado apenas à comédia.
A Mãe Azul cobre a Pamela Francesa com um pequeno presente: um mantelete feito
de papel azul. Arlequim acha que a pequena capa serve-lhe “...à merveille”. A Pamela
Italiana recusa o ornamento argumentando que “...Paris me voit encore très-favorablement,/
Et de ces lieux je ne suis point bannie”
36
. Diante do desespero da Pamela Francesa, que crê
que elas nunca mais verão a luz do dia, a Mãe Azul garante que “...pendant les belles
saisons,/ Très-modestement habillées,/ Vous irez promener sur les Quais, sur les Ponts”
37
,
referindo-se à venda dos volumes da Bibliothèque bleue às margens do Sena ou sobre as
pontes, como se vê até hoje no caso dos bouquinistes. Surge, em seguida, mais uma
referência, quando a Mãe Azul diz, para consolá-las: “...Vous ayant quelque jour corrigée
& revûë,/ Vous sera le Tome second/ De l’Innocence reconnuë”
38
.
Les soupirs de sifroi, ou L’Innocence reconnue (1675) é o título de uma obra trágica
do autor de narrativas licenciosas Pierre-Corneille Blessebois (1646?-1700?), autor também
de Le rut or La pudeur éteinte [O Cio ou O Pudor extinto], Histoire amoureuse de ce temps
e Le Zombi du Grand-Pérou. Sua aparição na peça indica como as obras proibidas por
licneciosidade no século anterior ainda deviam circular sob a capa azulada. Tal hipótese é
32
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 246.
33
Idem, p. 249.
34
D’AUCOUR, Godard, op. cit., p. 37.
35
Idem, p. 38.
36
Idem, p. 40.
37
Idem, p. 41.
38
Idem, ibidem.
264
corroborada pela resposta da sociedade dos Amigos da Constituição de Ambérieu ao
questionário do abade Grégoire, em dezembro de 1790, na qual se referem a livros “..que os
viajantes ou comerciantes introduzem nas (...) aldeias e que muitas vezes são perigosos aos
costumes e mais ainda ao repouso público”
39
. Roger Chartier acredita poder tratar-se de
“...romances pornográficos impressos fora das fronteiras pelas sociedades tipográficas
estrangeiras”
40
. Ou seja, não são títulos da Bibliothèque bleue, que se arriscaria a uma
perseguição totalmente desigual por parte da Libraire, órgão do regime que controlava os
textos em circulação em território nacional.
A Pamela original, enfim, apressa-se a voltar à Inglaterra, “...N’ayant point l’art
d’augmenter mes appas...” com as capinhas azuis oferecidas pela Mãe Azul. De fato, ela
tenta escapar da vulgarização editorial de que percebe ser vítima fácil, caso continue em
Paris. De repente, surgem no palco os personagens inusitados que participarão do
“divertissement” dançado final. Numa última tirada de graça, trata-se tão somente de vários
dos protagonistas de best-sellers da Bibliothèque bleue. Lê-se, na rubrica: “Entrent Pierre
de Provence, Richard sans Peur, la Belle Maguelonne, l’Innocence reconnuë, les quatre
Fils Aumonds, sur le même cheval, & toute la Bibliothéque Bleue (sic)”
41
. Sans Raison,
outro dos personagens saídos dos pequenos livros azulados, inicia uma ode cantada à
Bibliothèque bleue que nada deve aos jingles publicitários de hoje – denunciando um tipo
de comicidade bufona e frívola de Godard D’Aucour diante do comércio de livros do
momento: “Celébrons la gloire/ Des beaux Livres Bleux,/ Leur Magazin fameux/ Devient
le Temple de Mémoire (...)/ Nouvelles brochures de France/ Chez elle vous devez
régner...”
42
. A ode derrisória atinge, é claro, os autores menores, da baixa boemia
parisiense, aliás, como o próprio autor da peça: “Auteurs à la glace,/ Fretin [peixe miúdo;
pessoa desconhecida] du Parnasse,/ Dont Paris est plein,/ Dans son Magazin/ Venez
prendre place; (...) Rimez à l’instant,/ Tout Paris attend/ Qu’on fasse de bonnes Etrennes
[estréias]”.
As referências chegam até certa Hélene, “L’imprimeuse de Livres bleux qui demeure
à la nouvelle Troye”, segundo se lê na nota-de-pé-de-página. Ela é comparada, por Richard
39
CHARTIER, Roger, op. cit., p. 253.
40
Idem, ibidem.
41
D’AUCOUR, Godard, op. cit., p. 42.
42
Idem, p. 42-43.
265
sans Peur, à Helena da Tróia mítica. “...De notre gloire éclatante [a glória ou o sucesso dos
livros azuis]/ Achille même est jaloux”
43
. O vaudeville que se segue inclui mais
advertências rimadas aos autores contemporâneos: “Un présompteux Rimeur/ Croit la Pièce
incomparable,/ Certain d’un succès flatteur,/ C’est Robert le Diable,/ C’est Richard sans
Peur:/ Vient enfin l’heure critique,/ Ses plaisirs ont été courts;/ En vain à sa Clique/
L’Auteur a recours,/ C’est un écrivain de nos jours”
44
. Arlequim surge então “...voulant
composer un Couplet”. Mas ele fracassa confusamente: “Là, là, là... Que veux-je dire?.../
Ah! Parterre, mes amours,/ C’est toi qui m’inspire.../ Point de rime en ours.../ Au diable les
vers pour toujours”. Por fim, no nível da própria platéia, a última estrofe é uma última ode
ao fracasso teatral:
Au Parterre
Je tremble pour notre Auteur,
Dans ce moment redoutable,
Il n’est dans sa folle ardeur,
Ni Robert le Diable,
Ni Richard sans Peur:
C’est de votre complaisance
Qu’il implore le secours,
Un peu d’indulgence,
Voilà son recours,
C’est un Ecrivain de nos jours.
45
Depois do ponto final, na página seguinte, a “Approbation” do censor é uma última
peça importante para dar acesso ao meio em que as três peças foram escritas, encenadas e
publicadas. O censor escreve, em primeira pessoa, um texto burocrático, de pura praxe:
“J’ai lû par ordre de Monsieur le Lieutenant Général de Police, une Comédie qui a pour
titre: La Déroute des Paméla; & je crois que l’on peut en permettre l’impression. A Paris ce
sept Janvier 1744”. A assinatura é simples, apenas um nome: Crébillon. Trata-se de Prosper
Jolyot de Crébillon (1674-1762), o autor teatral, rival de Voltaire, autor de tragédias ao
gosto clásssico do início do século XVIII, como Atrée et Thyeste (1707) ou Sémiramis
(1717) Era um dos 32 censores das Letras em 1744
46
, e seu filho, Claude Crébillon,
sucedeu-o na função depois de sua morte – apesar de ter sido nada menos que o inventor do
43
Idem, p. 44.
44
Idem, p. 45.
45
Idem, p. 46.
46
SGARD, Jean. Crébillon fils. Le libertin moraliste. Paris: Éditions Dejonquéres, 2002. p. 225.
266
romance de libertinagem
47
. As contradições do momento se fazem notar facilmente: a peça
que faz graça com os autores contemporâneos e com seus fracassos, escrita por um autor de
segundo ou terceiro time, termina com a aprovação de um censor de grande fama na
composição de tragédias clássicas, e pai do criador da libertinagem literária.
47
Idem, capítulo XII, “Le Censeur das Lettres”, p. 219-239.
267
6. A vitoriosa Pamela de Voltaire
Nanine, lançada por Voltaire em 1749, é mais uma prova de que a busca da mistura
teatral entre o riso e a seriedade ou, em outros termos, entre uma persiflage mondaine e o
tratamento sério (às vezes moralista) do cotidiano foi uma espécie de Santo Graal estético
para autores dos anos 1730 em diante. Na verdade, dessa vez a tentativa vinha de um autor
de quem não se a esperava: Voltaire havia criticado tal obsessão como uma espécie de falta
de gosto, ou seja, uma negação de preceitos básicos da boa composição teatral, marcando
uma postura que, como veremos, demonstra a uma só vez conservadorismo estético e fina
intuição sobre os perigos de abusar-se do aspecto larmoyant. Toda sua estratégia será de
atacar o que se passa a chamar, naquele mesmo momento, de tragédie bourgeoise e de
aceitar o attendrissement, mas só quando se mescla com o cômico. “Si vous traitez les
intérêts d’un bourgeois dans le style de Mithridate
1
, il n’y a plus de convenances; si vous
représentez une aventure terrible d’un homme du commun en style familier, cette diction
familière, convenable au personnage, ne l’est plus au sujet”, escreverá ele em Théâtre de
Pierre Corneille, avec des commentaires, em 1764
2
.
Como também veremos ao tratar do prefácio a Nanine, o caminho para essa nova
mistura é a ancestral tradição de tratar-se do amor no palco francês. A temática amorosa
então será, para ele, a única capaz de evitar o ridículo do uso de um estilo elevado para
tratar de temas (e condições sociais) baixos, corriqueiros, “familiares”, em suma,
burgueses. Dir-se-ia que Voltaire elogia “por vias tortas” a nova mistura de cômico (baixo)
e trágico (elevado), se feita em doses medidas. Sua estratégia é de quem maneja bem as
tramas da tradição e do prestígio institucionalizado: em vez de apontar para o futuro e para
a inovação estética, como Diderot fará a partir de 1757, ele lembra do uso do amor no
teatro ao longo do Grand Siècle, por parte de Corneille e Molière. Na verdade, o que ele
1
A tragédia de Racine, de 1672, rimada em versos dodecassílabos, em estilo clássico canônico.
2
Apud NAVES, Raymond. Le goût de Voltaire. Paris: Slaktine Reprints, 1967 (1938). p. 271.
268
elogia é a possibilidade de se passar do trágico ao cômico, do patético ao riso, sem perder a
“conveniência”, um sinônimo da época para o conceito clássico da bienséance (decoro).
6.1. Prefácio de Nanine
Conhecida como “a Pamela de Voltaire”, a peça é, de fato, mais uma “variação
sobre o tema Pamela” já desde o subtítulo: Nanine ou Le préjugé vaincu, uma espécie de
reflexo especular semântico de La vertu recompensée, tradução literal da Virtue rewarded
original: a virtude é que vence o preconceito, sendo por isso recompensada. Na primeira
edição da Collection complètte des Œuvres de Mr. de. Voltaire, de 1756 (retocada por
Voltaire, que morreria em 1778), em seu 10° tomo, a peça recebe outro subtítulo, aliás,
bastante revelador quanto ao que destacaremos no item “O philosophe enternecido”,
abaixo: “NANINE, OU L’HOMME SANS PRÉJUGÉ/ COMEDIE EN III. ACTES/ EN VERS
DE DIX SILLABES
3
. A variante, citada em uma pequena nota na edição da Bibliothèque
de la Pléiade como suposto “faux titre” da edição de 1775
4
, talvez tenha sido preterida ao
longo dos anos por revelar, com rapidez exagerada, a diferença fundamental entre o Mister
B. do romance inglês e o conde d’Olban da peça de Voltaire. De fato, é impossível
considerar o juiz e dono de terras criado por Richardson como um “homem sem
preconceito”, se se entende que o autor francês usa o substantivo com o significado de
“falta de respeito pelas hierarquias sociais”. Isso porque, como é sabido, a trama se
desenrola em torno do verdadeiro escândalo que é um patrão da época sequer pensar em
casar-se com uma criada sua. Já o conde francês, como se verá adiante, é um aristocrata-
philosophe com alto grau de indiferença diante das diferenças de estrato social.
O prefácio da peça já se encontrava no volume lançado em 1749, a única diferença
sendo um trecho depois suprimido em que o autor reclamava reiteradamente de uma
contrafação surgida com inesperada rapidez. O texto ganha importância crucial não só por
3
VOLTAIRE. Nanine. In: Collection Complète des Œuvres de Mr. de Voltaire. Première édition. Tome
dixième. Ouvrages dramatiques avec les pieces relatives a chacun. Tome quatrième. Amesterdã: aux dépens
de la Compagnie, 1756. p. 357 (BNF-Gallica, p. 376). Disponível em:
<
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k719991>. Acesso em: 07/11/2006.
4
THÉÂTRE du XVIIIè siècle. Paris: Gallimard, 1972. p. 1447.
269
sua singularidade na época, mas também como documento sobre uma transição na forma
como o autor negocia com os “antigos” (ou seja, com a hegemonia do gosto da época,
marcado pelo prestígio inabalável da tragédia de Racine e de Corneille, bem como da
comédia de Molière
5
) o advento de novos gêneros “impuros” ou híbridos, segundo o gosto
dominante. Com efeito, a singularidade parece advir do fato de Voltaire se sentir obrigado a
justificar-se a respeito de seu exercício de comédie attendrissante, diferenciando-o, se
possível fosse, do novo rótulo comédie larmoyante, que La Chaussée logo encampará como
novidade positiva. De forma ainda mais intensa, ataca o nome tragédie bourgeoise, o que
indica a força negativa que este tem naquele momento para ouvidos “antigos” – levando a
inferir a estratégia ousada de Diderot, em 1757, ao inserir no debate a variação drame
bourgeois.
Quanto ao momento de eclosão desse debate sub-reptício ao gosto dominante
daquele momento, já mostramos
6
como ele começara a se explicitar ainda nos anos 1735-
36, principalmente com L’amitié rivale (de l’amour), de Fagan (1735), e L’enfant prodigue,
do próprio Voltaire (1736; prefácio publicado em 1738). Aí estaria localizada a primeira
menção à comédie larmoyante que, como vimos nos Capítulos 3 e 4, logo depois será
encampada com esse nome por La Chaussée como uma espécie de bandeira estética própria
– sua Paméla sendo tentativa de buscar na personagem de Richardson uma chancela
“internacional” para o novo gênero. Citando apenas uma passagem do prefácio de 1738,
vemos que Voltaire usa a palavra “larmes” de forma positiva, embora lhe pareça recurso
estético extremado (“...jusqu’aux larmes”). Também a aproxima do sentido de
attendrissement, de sua preferência; este seria um larmoyant em menor intensidade:
Nous n’inférons pas de là que toute comédie doive avoir des scènes de
bouffonnerie et des scènes attendrissantes. Il y a beaucoup de très bonnes
pièces où il ne règne que de la gaieté; d’autres toutes sérieuses, d’autres
mélangées, d’autres où l’attendrissement va jusqu’aux larmes.
7
5
Como se sabe, a “querela entre antigos e modernos” teve seus momentos decisivos por volta dos anos 1660
e dos anos 1690. Mas, como também se sabe, seus efeitos e conseqüências se estenderam por várias décadas
depois, e ainda era subreptícia às discussões tratadas neste capítulo. Ver nota 296, no item 1.17 (Capítulo 1,
acima). Cf.: DeJEAN, Joan. Antigos contra modernos, op. cit.
6
No início do Capítulo 3.
7
VOLTAIRE. L’Enfant prodigue. In: Collection Complète des Œuvres de Mr. de Voltaire. Première
édition. Tome dixième. Amsterdã: Aux dépens de la Compagnie, 1756. (BNF-Gallica). Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k719991>. Acesso em: 15/04/2006.
270
Mas continuemos no prefácio de 1749. Escolhendo como alvo de crítica o hoje
obscuro autor de um texto sobre a comédie larmoyante, Martin de Chassiron, Voltaire
desenvolve uma argumentação pouco linear, talvez por conta de sua posição semi-antiga,
semimoderna, o que talvez tenha levado Flaubert a assim descrevê-lo, no século seguinte:
“Préface peu franche et peu explicite”
8
. E, no entanto, o texto toca em pontos cruciais para
se entender a posição de alguém que negocia com os limites do gosto consagrado pela
academia a partir de seu interior – já que Voltaire fora eleito historiographe de France em
1745 e, no ano seguinte, fora eleito para a Academie française. Era seu coroamento
institucional e também uma resposta bastante vigorosa às críticas do grupo de Desfontaines,
Fréron e Fagan.
O prefácio começa, portanto, com a referida polêmica com Martin de Chassiron,
autor das Réflexions sur le comique larmoyant, lançado no mesmo ano de surgimento da
peça, 1749. Voltaire logo se dedica a provar a hipótese de que a respeitada tragédia
francesa do Grand Siècle já mostrava uma tendência forte a incorporar o estilo baixo das
comédias no que tocava ao tema amoroso, principalmente antes do surgimento de Molière.
Também Corneille é referência, como é sabido no caso do autor dos Commentaires sur
Corneille: ele teria praticado de forma até graciosa essa “mistura condenável”, em início de
carreira. Sem faltar, é claro, um “antigo”, como garantia do valor dessas experiências de
mistura do baixo cômico com o alto trágico: Terêncio, pai da “alta comédia”
9
. Mas o
objetivo de Voltaire é, pura e simplesmente, responder a sua maneira às questões colocadas
por Chassiron (que não é nomeado no prefácio, sendo chamado apenas de “académicien de
La Rochelle”): seria a comédie larmoyante aceitável?
Nos ziguezagues iniciais de sua argumentação, há o ataque à “tragédie bourgeoise”,
condenada também por Chassiron. Segue-se uma pergunta que só o romance moderno
responderia a contento: “En effet, que serait-ce qu’une intrigue tragique entre des hommes
du commun? (...) ce serait manquer à la fois l’objet de la tragédie et de la comédie; ce serait
une espèce bâtarde, un monstre né de l’impuissance de faire une comédie et une tragédie
8
Apud THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p. 1444.
9
“Le grand homme qui a porté à un si haut point la véritable éloquece dans les vers, qui a fait parler à l’amour
un langage si touchant à la fois et si noble [Corneille], a mis cependant dans ses tragédies plus d’une scène
que Boileau trouvait plus propre de la haute comédie de Térence que du rival et du vainqueur d’Euripide [ou
seja, Sófocles]”. THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p. 873-874.
271
véritable”
10
. No entanto, naquele momento a via do cômico lhe parecia a única possível
para tratar de personagens comuns e de fatos cotidianos, objetivo final do “monstro
estético” que tantos autores buscavam – ou que o contexto social e cultural impunha, contra
os modelos canônicos.
Depois do ataque inicial a uma suposta tragédie bourgeoise, Voltaire vê no tema
amoroso a via de construção do desejado “monstro tragicômico”, a comédie larmoyante,
sem nomeá-la desse modo. Ele parte, então, para a defesa do uso da linguagem amorosa
corriqueira na tragédia e na comédia clássicas: Corneille, Racine e Molière a utilizaram em
algumas passagens. Nelas se percebe “...la simplicité, qui a ses charmes, la naïveté, qui
quelquefois même tient du sublime...”, as quais, crê ele, podem levar ao patético. São
momentos em que “...la tragédie s’abaisse et où la comédie s’elève, que ces deux atrs se
rencontrent et se touchent. C’est là seulement que leurs bornes se confondent”
11
. É claro
que... “...si toute la pièce du Misanthrope [de Molière] était dans ce goût, ce ne serait plus
une comédie...”, do mesmo modo que... “Si Oreste et Hermione s’exprimaient toujours
comme on vient de le voir, ce ne serait plus une tragédie”
12
. Portanto, para Voltaire,
somente o tema do amor justifica o rebaixar-se da tragédia e o elevar-se da comédia. Mas,
como anunciado, o argumento segue excluindo a via da pura e simples “degradação da
tragédia”: é a comédia que pode emergir, se o autor souber fazer suceder um riso
controlado às lágrimas também limitadas. Estas últimas seriam apenas uma via
relativamente fraca para o verdadeiro patético, ou seja, seriam algo como um “semi-
sublime”, como vimos (daí tanta reticência: “...simplicidade, que tem seus charmes, a
ingenuidade, que às vezes tem mesmo algo de sublime”). Para Voltaire, sem o riso, a
comédia perde sua essência; e só com lágrimas, é a tragédia que a perde.
O cuidado extremo em não diminuir em demasia o grau de comicidade fica claro
mesmo na escolha formal do verso de dez sílabas, que já tinha sido usado na primeira
tentativa de comédie attendrissante representada por L’enfant prodigue. Como se sabe, o
verso de doze sílabas era o hegemônico no teatro do Grand Siècle, inclusive nas comédias.
Raymond Naves chama a atenção para isso, em 1938:
10
Idem, p. 871. A referência ao “monstro” é a mesma de Madame de Graffigny em uma carta a Devaux,
como analisamos no item 2.1, acima.
11
Idem, p. 874.
12
Idem, p. 874.
272
...le larmoyant, mêlé de comique, est encore acceptable, mais il represente
une limite, et, pour bien marquer sa nature, qui le rattache à la comédie,
Voltaire invente de rimer Nanine et L’Enfant prodigue em décasyllabes,
vers rapides qui conviennent aux récits plaisants (voir la Pucelle) et qui ne
permettent pas des tirades ‘sérieuses’...
13
Naves chega a contrapor o projeto de Voltaire ao dos mentores da comédie
larmoyante:
...il a soin également d’ajouter au thème attendrissant quelque caractère
burlesque, quelque ‘original’, qui maintient la pièce dans sa mesure. Au
contraire, la tragédie bourgeoise, le drame de La Chaussée et de Diderot,
prétend émouvoir profondément, et sans contre-partie; dès lors il y a
dissonance entre le sujet et la forme, et le goût est choqué...
14
Ao defender a possibilidade de o bom comediógrafo levar o espectador do
semipatético (do larmoyant) ao riso decoroso, Voltaire acaba chegando a uma inversão
inesperada, embora coerente com os novos ventos que o século anuncia. Afirma que “...ce
passage [do attendrissement para o riso], tout difficile qu’il est de le saisir dans une
comédie, n’en est pas moins naturel aux hommes”
15
. Mantém ainda a pose clássica ao dar
como exemplo um episódio tirado da pena de Homero. Porém, no parágrafo seguinte, leva
o argumento à conclusão talvez desejada, ao exemplificar com a batalha de Spire, de 1703,
em que a resposta-piada de um soldado francês a um oficial alemão se difunde pela tropa
francesa, “...de bouche en bouche, et on rit au milieu du carnage”
16
. O exemplo guarda
ainda algo de heróico, dado o peso do próprio cenário, o campo de batalha. Mas o esboço
de grand finale do prefácio não deixa dúvida sobre o front em que Voltaire está lutando:
“Quel misérable & vain travail, de disputer contre l’expérience! Si ceux qui disputent ainsi,
ne se payaient pas de raison, & aimaient mieux des vers, on leur citerait ceux-ci./ L’amour
régne par delire,/ Sur ce ridicule Univers.”, e seguem-se versos de louvação ao amor como
tema admissível na tragédia, na comédia, na elegia, no madrigal brincalhão, pois “...Tous
13
NAVES, Raymond, op. cit., p. 270-271.
14
Idem, p. 271.
15
THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p. 875.
16
Idem, ibidem.
273
les genres de Poésie,/ De Virgile jusqu’à Chaulieu,/ Sont aussi soumis à ce Dieu,/ Que tous
les états de la vie”
17
.
A graciosa pirueta final do autor revela a mudança de perspectiva sem ferir
suscetibilidades, num estilo de Corte caro a Voltaire, em que o tom de frivolidade parece
preparar ouvidos menos afeitos a mudanças. Em certo sentido, o incômodo de Flaubert com
o prefácio talvez se explique pelo recurso à louvação de tema tão amplo quanto inócuo em
si – o amor –, ainda por cima justificado graças à autoridade de textos de quase um século
de antecedência (é o caso das peças da mocidade de Corneille), como forma de defender
um gênero novo. Como, digamos, “peça de negociação” o prefácio se sustenta; mas ele leva
o selo da duplicidade, principalmente no final conciliador, talvez outro signo a justificar o
epíteto citado do autor de Madame Bovary: aquele seria um prefácio “...peu franche et peu
explicite”.
Mas a passagem final também deixa claro que Voltaire já se sente à vontade para
incluir não as bienséances formais como balizas do aceitável em termos de riso e lágrimas,
mas pura e simplesmente um fato corriqueiro, extraído da experiência vivida, com o qual a
escrita da peça deve ser afetada: vêem-se homens passarem do patético ao risível a todo
momento, na vida real. Se, nove anos antes, Richardson tinha tomado a via da
verossimilhança de um “patético banal e cotidiano” em prosa por meio da discussão moral
e amorosa – o amor imbricado à moral –, um Voltaire inesperadamente afável com a nova
idéia polemiza com toda a tradição clássica teatral – mesmo que desemboque no tom
frívolo final – para propor que o tema do amor seja o filão a permitir, por via do
“enternecimento”, uma mimese teatral séria do cotidiano (com personagens baixos, na
escala social, bem como com linguagem mais próxima do coloquial). A salvaguarda do riso
obrigatório após o enternecimento, para que a comédia continue a ser comédia, não invalida
o feito: conseguiu-se, com os personagens e temas baixos, corriqueiros, da comédia, atingir
certa sublimidade.
Falta destacar que essa concepção, clara no texto do prefácio, favorece uma sintonia
de Voltaire em relação à nova forma de produção e recepção “sentimental” ou marcada pela
sensibilité”, segundo a definição dada no Capítulo 3, acima. Com efeito, o autor favorece
17
VOLTAIRE. Nanine, op. cit., p. 383-384 (364-365 or.).
274
uma busca de sensações do leitor ou do espectador, certamente sensações comparáveis às
experimentadas em uma situação extrema, como uma batalha, mas que nada têm a ver com
a tradição artística canônica: como “crítico” ou pensador do teatro, Voltaire aponta para a
valorização do sentir do espectador, em contraste com as referências clássicas do autor. Ao
leitor-espectador como decodificador passivo se quer substituir o leitor-espectador
“sentimentalmente e sensorialmente envolvido”.
6.2. O philosophe enternecido
Mas como situar a própria peça no contexto do que está discutido polemicamente –
embora de forma branda – em seu prefácio? E como ler a peça como um diálogo
transcontinental com o “fenômeno” Pamela?
Comecemos pelo personagem do conde d’Olban. Trata-se de um nobre sui generis,
já que busca um amor verdadeiro. “L’éclat vous plaît; vous mettez la grandeur/ Dans les
blazons: je la veux dans le coeur”, diz ele para a baronesa de l’Orme, em sintonia com o
discurso do coração
18
. Já está posto aí, desde a primeira cena do primeiro ato, o contraste
de base entre, de um lado, o gentilhomme, tipo ideal do aristocrata, único que a baronesa
considera digno, pois se preocupa com o rang (a hierarquia, a categoria, a alta condição
social), e, de outro lado, o honnête homme, um tipo social mais recente, que tem a ética e o
decoro social pessoais como duas balizas como que a compensar seu trânsito mundano
também louvável. Responde a baronesa: “Vous oseriez trahir impudemment/ De votre rang
toute la bienséance,/ Humilier ainsi votre naissance,/ Et, dans la honte où vos sens sont
plongés/ Braver l’honneur?”
19
Pelo que parece, a baronesa não conhece e não deseja
admitir um conceito de honra diferente do tradicional. Por seu lado, o que deseja um conde
d’Olban com perfil de philosophe de seu tempo é desvalorizar o peso dado socialmente às
18
Idem, p. 391 (372 or.)..
19
Idem, ibidem. Percebe-se, aqui, como é o “discurso do coração” que parece impudente (“descarado”,
“insolente”: termos que equivalem a impudent) aos olhos da aristocrata de cepa. Não por representar a
débauche, mas, ao contrário, por ir contra um dos pilares da aristocracia, a naissance. A “vergonha onde os
sentidos estão mergulhados” é a ilusão de uma suposta “verdade do coração”, sendo sens, nesse caso, um
sinônimo de sentiment: o caráter materialista do “sentimentalismo” fica claro ao se apontar o elo entre os
sentidos e os sentimentos.
275
hierarquias – o que contrasta frontalmente com sua condição e, na verdade, representa uma
crise vinda do interior mesmo dessa classe social. Percebe-se aí uma estratégia bem
voltaireana de cooptar o cortesão da platéia no sentido de identificar-se com o philosophe,
este último aparecendo como um honnête homme compenetrado nos estudos e nas
descobertas de seu tempo. (A equação evolutiva idealizada seria: gentilhomme honnête
homme philosophe).
A nova “honra”, que poderia ser descrita como a passagem da honneur aristocrática
(por feitos em guerras, por nome de família etc.) para a honnêteté philosophique, implica
uma nova antropologia. “Le singe est né pour être imitateur,/ Et l’homme doit agir d’après
son cœur”, diz o conde, como uma deixa para a pronta ironia da baronesa: “Voilà parler en
homme libre, en sage./ Allez, aimez des filles de village...”
20
. Em conversa com a baronesa,
Nanine se refere a “...un livre Anglais...” que está lendo, cujo autor “...prétend que les
hommes sont frères,/ Nés tous égaux...”
21
. Mas não vinga a tentativa de Nanine de passar
por uma leitora descrente, pois quando ela diz: “...ce sont des chimères;/ Je ne puis croire à
cette égalité”, a baronesa já sabe que o conde professa a mesma estranha antropologia, que
chega a exercê-la na prática, pois enamorou-se da serviçal, e que, para cúmulo, ameaça
tornar pública tal desonra, assumindo seu amor. Por isso se incomoda tanto com o que
chama de “fundo de vaidade” que a leitura teria atiçado na criada. No começo dessa cena, a
5ª do primeiro ato, a baronesa tinha se surpreendido com um tipo menos subjetivo ou
abstrato de vaidade, ou seja, a estampada na forma de Nanine se vestir: A baronesa:
“Comme elle est mise! et quel ajustement! Il n’est pas fait pour une créature/ De votre
espèce. Nanine: Il est vrai. Je vous jure,/ Par mon respect, qu’en secret j’ai rougi/ Plus
d’une fois d’être vêtue ainsi”
22
.
Lembremos que se trata de tema de suma importância em Pamela, onde certas
descrições de vestuário servem para avaliar, às vezes em minúcias, se há traços de
arrogância subalterna na forma de a criada se vestir em ocasiões específicas. No romance,
ela é costureira, o que aproxima metaforicamente o tema das roupas que uma criada usa
(em outras palavras, da imagem pública relacionada a um estrato social) da outra atividade
central de Pamela, a escrita. Assim, costura e escrita/leitura determinam traços básicos da
20
THÉÂTRE du siècle XVIII, op. cit., p. 882.
21
Idem, p. 888. VOLTAIRE. Nanine, op. cit., p. 400 (381 or.).
22
Idem, p. 887.
276
personagem: eles a distinguem pelo poder de manipular sua própria aparência (como
qualquer costureira; hoje se diria: estilista), bem como pelo poder de manipular as palavras
e, por extensão, os sentidos e a “leitura” (no sentido de “interpretação”) do que se passa no
seu cotidiano sob as vistas de Mr. B. Na primeira aproximação de Mr. B. em relação a
Pamela, ainda na primeira carta, ele informa: “...I will be a Friend to you, and you shall
take care of my Linen”
23
. Vinte e três cartas depois, fica claro o poder da costura como
forma de aumentar a auto-estima, bem como de manipular as aparências – no caso, a ponto
de embaralhar olhares identificadores. Se desde a primeira carta Mr. B. presenteia a criada
com roupas de qualidade, em geral herdadas da ex-patroa, mãe de Mr. B., incluindo roupas
de baixo femininas, como shifts, ancestral das chemises, e aventais, como na carta 6, ele
chega, na carta seguinte, a lhe dar sapatos de seda, adornos coloridos de cabelo, meias de
fino algodão e seda e até espartilhos
24
.
Um episódio é particularmente esclarecedor sobre o tema. Logo após a visita de
quatro ladies, amigas do patrão, que destilam ironias quanto à proximidade dele com a
criada, assim como muitos elogios à beleza da moça (o que a agrada), Pamela descreve para
os pais, na carta n° 24, a noite em que resolveu vestir roupas mais humildes, adequadas ao
convívio fora de uma casa nobre, preparando-se para voltar à casa dos pais, para espanto
dos outros empregados da casa e de Mrs. Jervis. Nem a criada Rachel, nem a governante a
reconhecem, e esta última diz: “Pamela! Thus metamorphos’d!”
25
. Logo entra o patrão, que
não escapa à ilusão de ótica e ainda se interessa eroticamente pelo que julga ser uma moça
pobre da redondeza. A atração não tarda em revelar sua dimensão de curto-circuito de
identidades: Mr. B. se sente tanto mais atraído quanto mais a suposta aldeã se parece com
Pamela, como se fosse uma irmã menos virtuosa. “I dare say you are Pamela’s Sister...”; e,
afinal, “I would not be so free with your Sister, you may believe; but I must kiss you
26
.
Essa permissividade de dois pesos e duas medidas é reiterada em um trecho
excluído da edição de 1801, talvez indicando que a nova versão abranda certas arestas:
“...sure I may be innocently free with you, tho’I would not do her so much Favour”
27
. A
reiteração mantém, mesmo que no limite, a ambigüidade típica do protagonista: a
23
RICHARDSON, S. Pamela. Londres: Oxford University Press, 2001 (Ed. 1740). p. 11.
24
Idem, p. 19.
25
Idem, p. 55.
26
Idem, p. 56.
27
Idem, p. 57.
277
liberalidade (inocente!?) com a irmã menos bem vestida de Pamela pode ser realização de
impulso erótico, interdito no caso da subalterna, mas reforça o respeito que o patrão reserva
à Pamela verdadeira – sua “triste vexação” não incluiria, portanto, uma certa sensação de
ser lisonjeada?
A reação de Mr. B. é análoga a sua raiva diante das cartas de Pamela: o grave é o
poder manipulador do disfarce. “...you little Villain! (…) Who is it you put your Tricks
upon? (…) so you must disguise yourself, to attract me, and yet pretend, like an Hypocrite
as you are...”
28
. Se quanto à importância da escrita e da costura na construção da
personagem e do romance não pode haver dúvidas, a verdade é que têm funções e pesos
diferentes. Assim como cartas são instrumentos privados que podem tornar públicos (para
fora da casa) atos por demais privados (a ponto de almejarem o segredo), o vestuário é
instrumento público que reitera a condição social dos indivíduos, mas que, usado como
“Trick” (ou seja, de forma particular), pode embaralhar as distinções sociais consagradas.
Num caso, o crime é revelar a vida privada que sempre se subtraiu à hierarquia pública, e
que a ela não deve explicações; no outro caso, o crime é disfarçar (criar uma “ilusão de
ótica” particular) onde o que havia era a pura repetição da hierarquia pública. O disfarce
corresponderia, mais exatamente, ao subterfúgio de fazer sair as cartas de forma
clandestina. É como se as vestes projetassem uma identidade clandestina, mas possível, a
quem as usa como suposto disfarce – e as mulheres, ainda mais quando costureiras, têm
acesso privilegiado a esse “laboratório clandestino” de identidades sociais. Disfarces ou
trocas de vestuário são cartas na manga para quem guarda outra identidade, particular,
privada, que, no entanto, quer tornar-se pública, em especial diante da crise das antigas
identidades hierárquicas aristocráticas.
A prova é que Pamela pode mesmo inverter o sentido do que se vem discutindo: “I
have been in Disguise indeed ever since my good Lady, your Mother, took me from my
poor Parents”
29
. Ou seja, o que Mr. B. chama de disfarce é a identidade social (privada) que
a moça considera mais autêntica, e que se quer revelar como tal, resistindo à identidade
hierárquica tradicional do Ancien Régime – e que o senhor da casa quer impor à criada, só
que a seu modo. A crise dessa identidade tradicional surge exatamente aí, diante do
28
Idem, ibidem.
29
Idem, ibidem.
278
erotismo aguçado do patrão – tacitamente de acordo com os “direitos” de um senhor no
Ancien Régime, mas com a ambigüidade de criar uma zona privada numa sociedade em
que a esfera pública estabelecida (as hierarquias) comandam as relações sociais. No caso de
Pamela, como que pela primeira vez, o erotismo perde seu caráter de prática privada
tacitamente aceita e acaba desestabilizando a identidade ancestral da criada de uma casa
nobre, identidade transmitida, ela também, de forma tradicional: Pamela é uma herança
deixada pela mãe a Mr. B. Essa reviravolta, inesperada no cenário social da época, só
acontece por conta do ponto inegociável de Pamela, ou seja, a virtude, que lhe permite
conquistar a zona de jogo, uma zona de manipulação tanto com palavras, quanto com a
escolha do vestuário. Permite-lhe um paradoxo: disfarçar-se com sua suposta identidade
“verdadeira”, de modo a contrapor-se à identidade hierárquica supostamente “imposta”.
6.3. O ancião famoso e o elogio da pobreza digna
Uma gravura de Moreau le Jeune mostra a trupe da Comédie Française lotando o
palco que, à época em que foi traçada, estava ainda alocado na gigantesca sala de máquinas
das Tuileries. Pequenas coroas de louros são elevadas pelas mãos de atrizes e atores em
gestos de efusão comemorativa, enquanto muito se fala no parterre, bem abaixo do palco,
ali onde se vêem apenas as cabeças do público. Uma maioria de homens aplaude
emocionada, aponta o palco com gestos largos, conversa vivamente entre si ou admira as
muitas damas nos altos camarotes laterais ao palco, também lotados. Tais mulheres se
debruçam sobre o apertado palco de apenas dez metros de largura por oito de altura e, aliás
como todos na cena, são banhadas por uma bela luz sem profundidade, que desenha rostos
e corpos, muitas vezes de baixo para cima, como a fusão dos clarões de várias velas. Logo
se nota que a sensação de falta de profundidade se deve à zona escura no centro de um
palco surpreendentemente fundo, o qual volta a se iluminar lá atrás, deixando ver
279
grandiosas colunas em arcos como numa arquitetura de palácio romano ou neoclássico, não
se sabe se verdadeira ou pura fantasia cenográfica.
30
No centro de toda essa cena, como alvo do tributo de tantas pessoas – consta que
cabiam até oito mil espectadores na sala –, está um único busto, prontamente encimado por
uma das várias pequenas coroas de louro na mão de uma jovem atriz. Sua cabeça se alinha
à da estátua graças ao pedestal que ergue esta última à altura humana. O título da gravura
revela seu tema: Hommages rendus à Voltaire sur le Théâtre Français le 30 mars 1778.
Trata-se de uma bela gravura setecentista, daquelas em que uma cerimônia é representada
como um benfazejo caos de homens e mulheres alegres e vigorosos, com intensa
proximidade corporal, admirando-se uns aos outros. Mesmo que a cena se passe no templo
onde se representavam as obras-primas do Grand Siècle, da tríade Corneille-Racine-
Molière. Sabe.se que eles dividiam espaço com comédias menos clássicas e, com o passar
do século, mais dramáticas e menos risíveis. A cerimônia de homenagem a Voltaire, no
instante de sua morte, no entanto, surpreende por transformar-se em celebração da vida, em
um dos centros borbulhantes do Ancien Régime.
A longa descrição da gravura justifica-se, aqui, como ilustração do momento de
maior popularidade de Nanine, 29 anos depois de sua estréia, a 16 de junho de 1749. Nessa
estréia ela chegara apenas a doze representações, ou seja, uma a menos que a Pamela de
Boissy, a mais bem sucedida da trinca de 1742-1743. A julgar pelo comentário feito por
Collé em 1763, em seu famoso Journal et mémoires, cerca de vinte anos antes de Nanine, a
marca de doze apresentações era considerada fracasso: “Il y a quarante ans les drames qui
réussissaient avaient des vingt-cinq, trente représentations; dix ou douze représentations
étaient des chutes”
31
. Parece que Collé não se deixou trair por nostalgia própria ou de
outros: de fato, os sucessos de Voltaire, Œdipe, de 1718, Hérode et Marianne, de 1728,
Zaïre, de 1732, e Mérope, de 1743-44, alcançaram, em décadas diferentes, 30, 28, 31 e 29
apresentações, respectivamente. A mais bem sucedida delas, Mérope, chegou a 30 mil
30
De fato, a profundidade do palco incrustado na sala de máquinas das Tuileries era impressionante: nada
menos que 46 metros. Pranchas arquitetônicas de Jacques F. Blondel, publicadas entre 1752 e 1756, podem
ser visualizadas no site da Kyoto University Library. Disponível em: <
http://ddb.libnet.kulib.kyoto-
u.ac.jp/exhibit-e/f01/f01_4cont.html
>. Acesso em: 12/06/2005.
31
LOUGH, John. Paris Theatre Audiences. In the seventeenth & eighteenth centuries. Londres, Oxford
University Press, 1972 (1957), p. 180.
280
espectadores
32
. Dessas peças, nenhuma pertence ao período de baixa de público na
Comédie Française, para o qual não se tem uma justificativa convincente, entre 1736 e
1748, com posterior aumento significativo: “The average attendance for the five years
1753-8 was over 160,000 [espectadores], compared with less than 120,000 for the five
years 1743-8”
33
. A verdadeira perplexidade de um especialista do teatro setecentista
francês, como John Lough, diante da aguda queda de freqüência entre 1736 e 1742 (período
que inclui os anos das Pamelas ratées de La Chaussée e Boissy) indica a gravidade da crise
pela qual passava esse pilar da vida cultural francesa da época. Como costuma acontecer
com variações de gosto cultural, é difícil saber o porquê da volatilidade de um público
famoso exatamente por sua volubilidade em usos e costumes sociais.
Nesse cenário, o surgimento da comédie larmoyant pode ser tanto causa quanto
conseqüência: seu surgimento pode ter sido ou uma resposta dos autores de teatro diante do
impasse, ou um dos motivos dessa volatilidade de um público pouco afeito à
transformação. O certo é que tanto o maior sucesso quanto três dos maiores fracassos do
novo gênero datam exatamente desse período: por um lado, Mélanide, de La Chaussée, de
1741; por outro, e tentando aproveitar tal sucesso, as referidas Pamelas, de 1742 e 1743.
Seja ou não devido à nova inclinação pelo larmoyant, a verdade é que a re-
encenação de Nanine, em 1754, torna-se uma consagração e, daí em diante até a morte de
Voltaire (e além), a peça entrará para o panteão dos dramas bem acolhidos pelo público.
Depois da montagem de 1754, haverá várias reapresentações, e não apenas na Comédie
Française. Dois anos depois, uma apresentação da peça é cancelada em Lausanne e outra é
confirmada em Berna, cidade da Suíça, país de origem de Rousseau, autor de fortes elogios
a Nanine, a serem analisados abaixo
34
. A encenação enseja a ironia anti-religiosa do autor a
Jacob Vernes, no clima de contrição em que o país devia estar mergulhado com o terremoto
de Lisboa, ocorrido um ano antes: “Tous ces desastres [tremores de terra em Lisboa e em
Mequinez, no Marrocos, onde, como escreve Voltaire na mesma carta, “...cem mil árabes
foram engolidos pela terra”] ont privé Lausanne de la comédie. On a joué Nanine à Berne;
mais pour expirer ce crime affreux, on a indiqué um jour de jeûne”
35
.
32
Idem, p. 178.
33
Idem, p. 177.
34
No item 6.4.
35
VOLTAIRE. Correspondence choisie. Paris: Librairie Générale, 1990. p. 458.
281
O fato de Nanine ter sido a escolhida, junto com Irène, última peça escrita por
Voltaire, como atração principal da noite de coroamento do busto de seu autor recém-
falecido prova que o gosto da época tinha se direcionado francamente a favor do drama,
afastando-se de tragédias de perfil mais clássico ou filosófico, como Zaïre ou Mahomet (Le
Fanatisme ou Mahomet le prophète). Em 1791, quando da transferência das cinzas de
François-Marie Arouet para o Panthéon, a peça já figurava solitária no repertório, como um
momento auge da extensa produção dramática do novo mito intelectual. Tudo indica que,
para o gosto principalmente da segunda metade do século XVIII, Voltaire conseguira
transpor para o teatro o primeiro romance de Richardson sem cair nos erros dos autores que
antes dele haviam se arvorado à mesma tarefa. Mas quais das características da peça podem
ter ajudado nesse sucesso, sintonizado com um gosto cada vez mais voltado para a nova
subjetividade privada, a trazer no bojo uma ética também nova?
Como nas outras duas adaptações teatrais francesas, são recorrentes e parecem
estruturalmente importantes tanto os comentários sobre a própria compulsão de Pamela
pela escrita, quanto sobre o estilo dessa escrita. O trecho de uma carta escrita por Nanine e
lida pelo patrão assim se inicia: “Lisons: Ma joie et ma tendresse/ Sont sans mesure, ainsi
que mon bonheur;/ Vous arrivez, quel moment pour mon cœur!...”. A citação dentro da
peça termina com: “Mais il n’est rien que je ne sacrifie/ Au seul mortel que mon cœur doit
chérir”. A seguir vem o elogio: trata-se de bela peça literária de um novo tipo, pródiga em
transbordante sinceridade amorosa. “Voilà donc le style de Nanine:/ Comme elle écrit,
l’innocente orpheline!/ Comme elle fait parler la passion!”
36
.
Duas cenas depois, quando o conteúdo da carta, endereçada a um tal de Philippe
Hombert, chega aos ouvidos do conde d’Olban, sua fúria o fazendo perguntar o que faz a
moça, e o criado Germon respondendo: “Mais... elle écrit dans son appartement”, o conde
ordena que se confisque de imediato seus papéis: “...allez prendre/ Ce qu’elle écrit; vous
viendrez me le rendre”
37
. A chegada da mãe do conde, em seguida, reforça a imagem de
nobre em crise, pouco identificado com a institucionalidade do Antigo Regime: a marquesa,
falando em um “...ton petite vieille babillarde”, como pede a rubrica do autor, ressalta a
decadência das novas gerações aristocráticas: “...feu votre grand-père (...) c’ètait um
36
THÉÂTRE du XVIIIè siècle, op. cit., p. 911.
37
Idem, p. 914.
282
homme, lui;/ On ne voit plus de sa trempe aujourd’hui”; “J’entends parler de nouvelle
cuisine,/ De nouveaux goûts; on crève, on se ruine;/ Les femmes sont sans frein, et les
maris/ Sont des benêts. Tout va de pis em pis”
38
. Portanto, a posição passadista da mãe a
aproxima da postura crítica do filho no seio da aristocracia, que ficara clara em passagens
como: “Ce monde-ci n’est qu’une loterie/ De biens, de rangs, de dignités, de droits,/
Brigués sans titre, et répandus sans choix”
39
, denotando a atitude de nobreza desencantada,
que lembra mesmo certa vertente do barroco espanhol (à la Valle-Ínclan em A vida é
sonho); ou ainda essa auto-descrição do conde: “Jeune, honnête homme; il est fort à son
aise;/ Je vous responds qu’il a des sentiments;/ Son caractère est loin des moeurs du
temps”
40
. Nesse sentido, a marquesa demonstra ter pelo menos uma característica a
favorecer sua posterior aceitação de esposa tão humilde para o filho, já que o tema da
decadência da aristocracia se liga a seu horror à tendência traiçoeira e competitiva da
baronesa, a prometida para casar-se com o conde, e que passa a peça tentando demovê-lo
do antiaristocrático amor a Nanine.
6.4. Rousseau espectador de Nanine
Alguns versos depois de Germon avisar que Nanine “...a déjà repris/ Modestement
ses champêtres habits...”, aparece o próprio Philippe Hombert, o personagem misterioso, o
preferido de um célebre inimigo do teatro e, anos depois, inimigo do próprio Voltaire: Jean-
Jacques Rousseau
41
. A surpresa de ver Rousseau, em seu elogio a Hombert, tão próximo da
38
Idem, p. 917.
39
Idem, p. 897.
40
Idem, p. 904.
41
O trecho faz parte da invectiva de Rousseau contra a desvalorização e a zombaria diante de personagens de
idosos, no teatro, em contraste com a supervalorização da juventude, antecipando, ironicamente, um traço
importante do romantismo que o próprio autor ajuda a fundar. Ele acabara de protestar contra a “ascendência”
dos personagens femininos sobre os masculinos e vê na desvalorização teatral da velhice mais um indício da
diferença entre as culturas francesa e suíça, e da decadência da aristocracia da primeira delas. “La même
cause qui donne, dans nos Pièces tragique & comiques, l'ascendant aux femmes sur les hommes, le donne
encore aux jeunes gens sur les vieillards ; & c'est un autre renversement des rapports naturels, qui n'est pas
moins répréhensible. Puisque l'intérêt y est toujours pour les amans, il s'ensuit que les personnages avancés en
âge n'y peuvent jamais faire que des rôles en sous-ordre”, escreve. “Remercions l'illustre Auteur de ZaÏre &
de Nanine d'avoir soustrait à ce mépris le vénérable Luzignan & le bon vieux Philippe Humbert . Il en est
283
posição da marquesa d’Olban logo se dissipa se notamos que sua estratégia é menos
passadista e nostálgica e mais reformadora, ou “revolucionária”, como se diria algumas
décadas depois. Para ele, no texto em questão, a Lettre à M. d’Alembert, também conhecida
como Lettre à d’Alembert sur les spectacles, escrita e publicada em 1758, não há retorno
possível, e deve-se apostar no uso da razão como instrumento de reforma com vistas à
virtude, à qual, crê ele, só se chega pela via da simplicidade e do natural. Obviamente, o
simples e o natural não se confundem com o passado elegante ou heróico da aristocracia,
mas com um mítico estado de natureza. “Mítico”, no caso, surge como metáfora, pois se
trata de uma mitologia da razão, portanto, não-religiosa, a ser invocada pelo discurso
filosófico, instrumento potente o bastante para atacar o artifício no aqui e agora, já que um
retrocesso temporal é impensável. “Le drame de la chute ne precède donc pas l’existence
terrestre; Rousseau transporte le mythe religieux dans l’histoire elle-même...”, escreve Jean
Starobinski
42
. Rousseau não sugere, portanto, o abandono do artifício, mas o uso de certo
artifício contra os vários e poderosos véus artificiais que a sociedade criou e perpetua,
negando o acesso à virtude – isso se se reconhece a razão como artifício supremo, único
capaz de furar o bloqueio dos outros artifícios sociais, tais como as ciências e as artes.
Nessa lógica bem ao estilo de Rousseau, o teatro é combatido como sendo um dos
mais ostensivos artifícios da época na demonstração cabal do mar vicioso em que a
sociedade vem se afundando. O ideal seria, é claro, incorporar ao tempo presente a pureza
de coração que os homens só exerceram plenamente, em sociedade, em sua idade da
inocência, perdida num passado imemorial. Mas como o teatro teria condições de fazê-lo,
se ele é um espelho sem distorções (ou seja, sem ambições reformadoras ou
revolucionárias) daquela mesma sociedade aristocrática que o freqüenta, e que se reconhece
no palco, a cada peça, a cada personagem? Contra tais doses cavalares de ilusão artificiosa
quelques autres encore ; mais cela suffit-il pour arrêter le torrent du préjugé public, & pour effacer
l'avilissement où la plupart des Auteurs se plaisent à montrer l'âge de la sagesse, de l'expérience & de
l'autorité?”, completa, elogiando Voltaire e seus dois personagens. Trata-se do tema da decadência da
aristocracia que, como vimos, é o mesmo – guardada as devidas proporções – da Marquesa d’Olban, só que
com o encaminhamento filosófico de Rousseau: a sociedade é o espelho do que lê ou vê nos palcos, portanto,
uma reforma na sociedade deve começar pela dos textos e dos palcos: “Qui peut douter que l'habitude de voir
toujours dans les vieillards des personnages odieux au Théâtre, n'aide à les faire rebuter dans la Société, &
qu'en s'accoutumant à confondre ceux qu'on voit dans le monde avec les radoteurs & les Gérontes de la
Comédie, on ne les méprise tous également ?”
Cf.: THÉÂTRE français du XVIIIè siècle, op. cit., p. 1406 e
1445.
42
STAROBINSKI, Jean. La transparence et l’obstacle. Gallimard: Paris, 1971. p. 24.
284
e viciosa “conservadora”, só mesmo o artifício da razão filosófica, a seu ver muito mais
isento e potencialmente reformador que o das artes.
Nos dois trechos da Lettre à M. d’Alembert em que Rousseau se refere a Nanine,
trata-se de reconhecer um novo tipo de sensibilidade no palco francês, em que o “belo
moral”, ou seja, a virtude, surge na boca-de-cena, contrariando os argumentos de que a
exposição do vício favorece seu reconhecimento e sua recusa na vida real: “...la source de
l’intérêt qui nous attaché qui est honnête & nous inspire de l’aversion pour le mal, est en
nous & non dans les Pieces”
43
, resume. Essa fonte íntima de julgamento moral, avessa e
supostamente imune aos artifícios da sociedade contemporânea, reflete-se no “amor do
belo” a ser experimentado pelo espectador que observa o palco. Nesse ponto surge a nota-
de-pé-de-página que especifica que se trata do “belo moral”:
Quoiqu’en disent les Philosophes, cet amour est inné dans l'homme, &
sert de principe à la conscience. Je puis citer en exemple de cela, la petite
pièce de Nanine qui à fait murmurer l'assemblée & s'est soutenue que par
la grande réputation de l'Auteur, & cela parce que l'honneur, la vertu, les
purs sentimens des la nature y sont préférés à l'impertinent préjugé des
conditions.
44
A peça em questão é uma “petite pièce” por conta de sua aparente despretensão, por
ser uma comédia e, portanto, estar fora da concorrência séria entre tragédias (era famosa, na
época, a disputa entre Voltaire e Prosper Jolyot de Crébillon nesse domínio), e por seu
sucesso limitado, se comparada a peças que lotavam as salas por mais de 30 apresentações.
Mas é ao murmúrio da assembléia que Rousseau dá o máximo valor, murmúrio que traduz
certa perplexidade diante do enredo, que contraria muitos no parterre, e que talvez só não
se tenha transformado em gritos de protesto por conta da “grande reputação do Autor”. Três
anos antes de dar por terminado seu Julie ou La nouvelle Heloïse, Rousseau vê em Nanine
uma obra incômoda para olhos e ouvidos de société por inverter a tradição da comédia que
sempre oferecia tipos méchants, supostamente para que se corrigissem erros morais dos
espectadores; ou a da tragédia, que tentava alcançar o sublime pela via da exacerbação das
paixões aristocráticas. Como vimos, Rousseau negava qualquer eficácia didática ou
43
FUCHS, M. (org.). Lettre a Mr. D’Alembert sur les spectacles. Lille/Genebra: Librairie Giard/Librairie
Droz, 1948. p. 30.
44
Idem, p. 30-31.
285
moralizante da cena teatral que lhe é contemporânea. Condenava-a em bloco, como sendo
uma pseudoverossimilhança que, na verdade, surtia o efeito estéril de um espelho sem
inversão de imagem – ou seja, de um prazer leviano de copiar infinitamente a si próprio,
numa reprodução automática e bonachona de posturas e idéias morais consagradas. Para
ele, se tais posturas e idéias eram tão somente negativas, Nanine, ao contrário, teria sido um
marco ao propor, pela primeira vez, uma moral positiva, algo bastante necessário na França
daquele momento. O murmúrio era, portanto, o resultado de uma dupla auto-censura: nem a
irritação diante de tal proposta moral, nem a aprovação podia ainda explicitar-se no aberto
entusiasmo de vaias ou aplausos.
Mas é na outra referência à peça que Rousseau cita o velho Hombert, assim
aproximando-se do diagnóstico da marquesa d’Olban de decadência da aristocracia
contemporânea. Depois de apontar como sinal de degradação dos costumes – devidamente
refletida no palco – a proeminência dos personagens femininos sobre os masculinos, ataca a
proeminência dos jovens sobre os velhos. “...é uma outra inversão das relações naturais,
que não é menos repreensível”, escreve.
Remercions l'illustre Auteur de Zaïre & de Nanine d'avoir soustrait à ce
mépris le vénérable Luzignan & le bon vieux Philippe Humbert (sic). Il en
est quelques autres encore; mais cela suffit-il pour arrêter le torrent du
préjugé public, & pour effacer l'avilissement où la plupart des Auteurs se
plaisent à montrer l'âge de la sagesse, de l'expérience & de l'autorité ? Qui
peut douter que l'habitude de voir toujours dans les vieillards des
personnages odieux au Théâtre, n'aide a les faire rebuter dans la Société
(...)? Observez à Paris, dans une assemblé, l'air suffisant & vain, le ton
ferme & tranchant d'une imprudente jeunesse, tandis que les Anciens,
craintifs & modestes, ou n'osent ouvrir la bouche, ou sont à peine
écoutés.
45
Mais uma vez, fica clara a ácida crítica à justificativa que se baseava em Aristóteles,
e que apostava na “inversão” empreendida no espectador pela catarse (terror e piedade)
como instrumento moralizante típico do teatro. Combatendo qualquer possibilidade de
inversão, por meio de sua hipótese de uma ineficácia da verossimilhança do teatro em geral
(“Je sais que la Poétique du Théatre prétend faire tout le contraire, & purger les passions en
les excitant: mais j'ai peine à bien concevoir cette règle. Seroit-ce que pour devenir
45
Idem, p. 67.
286
tempérant & sage, il faut commercer par être furieux & fou?”
46
), Rousseau reduz a nada a
pretensão dos defensores do teatro de moralizarem à partir do palco.
Qu'on n'attribue donc pas au Théâtre le pouvoir de changer des sentimens
ni des moeurs qu'il ne peut que suivre & embellir. Un Auteur qui voudroit
heurter le goût général, composeroit bientôt pour lui-seul. Quand Molière
corrigea la Scene comique, il attaqua des modes, des ridicules; mais il ne
choqua pas pour cela le goût du public, il le suivit ou le développa,
comme fit aussi Corneille. (...) En ce sens il sembleroit que cet effet, se
bornant à charger & non changer les moeurs établies, la Comédie seroit
bonne aux bons & mauvaise aux méchans. Encore dans le premier cas
resteroit-il toujours à savoir si les passions trop irritées ne dégénerent
point en vices.
47
Portanto, se o personagem méchant nada traz de instrutivo ou moral para o
espectador também méchant, ainda periga contaminar o “honnête spectateur” com as más
paixões que lhe incute. Em ambos os casos, destaque-se que tais paixões encenadas nada
têm de “catárticas”: são tomadas não no “negativo”, mas sem nenhuma inversão – daí a
urgência de exemplos moralmente positivos. Essa “limpeza de campo”, em que o autor ser
arvora a pôr abaixo os subterfúgios teóricos dos defensores do teatro do momento, só pode
mesmo desembocar na ode ao contato direto do espectador com a peça, bem como a uma
reação direta e íntima diante dela, uma vez que o espectador só tem seu próprio coração a
guiá-lo:
Il ne faut, pour sentir la mauvaise foi de toutes ces réponses, que consulter
l'état de son cœur à la fin d'une Tragédie. L'émotion, le trouble, &
l'attendrissement qu'on sent en soi-même & qui se-prolonge après la
Pièce, annoncent-ils une disposition bien prochaine à surmonter & régler
nos passions? (...) Ne fait-on pas que toutes les passions sont sœurs,
qu'une seule suffit pour en exciter mille, & que les combattre l'une par
l'autre n'est qu'un moyen de rendre le coeur plus sensible à toutes? Le seul
instrument qui serve à les purger est la raison, & j'ai déjà dit que la raison
n'avoit nul effet au Théatre.
48
Como se vê, o combate radical de Rousseau contra o teatro francês de sua época –
cujos antecedentes datam de meados do século XVII e cujo destino se confundiu, desde
46
Idem, p. 26.
47
Idem, p. 24-25.
48
Idem, p. 27.
287
aquela época, com o debate contra o ainda menos prestigiado gênero do romance
49
baseia-se na cabal defesa da razão como elemento que se encontra simplesmente excluído
do palco, e que ajuda a regrar-se e defender-se dos transportes das ilusórias paixões
encenadas. O isento coração de cada um será o único árbitro capaz de levantar a
desconfiança quanto ao domínio exclusivo das paixões, típico do teatro. A “equação de
Rousseau” está completa: só se chega à razão, contra as paixões, por meio do sentimento
individual (coração), desconfiado das artes como um todo, bem como da civilização que as
inventa e aplaude.
6.5. Hombert se revela: a “reconnaissance” final ancorada na tradição narrativa
Tal sobrevôo da posição de Rousseau joga luz, indiretamente, sobre o elogio à
função dos soldados, que se segue à revelação da identidade de Hombert, na peça. Trata-se
da reconnaissance final do drama: a revelação de que ele é o pai, e não o amante de
Nanine. Sendo ele soldado, torna-se importante o elogio dessa função na sociedade, logo
assumida pela marquesa, mãe do conde. Tal elogio se faz urgente, pois desvenda o próprio
mito de origem de Nanine: Hombert, seu pai, a abandonara com “pauvres parents” por ter
perdido todos os seus bens e, “forçado pela miséria”, tornara-se soldado. “Ne voulant pas,
dans mon funeste état,/ Qu’elle passât pour fille d’un soldat,/ Lui défendant de me nommer
son père”, conclui, dando a deixa para o início do elogio da marquesa: “Pourquoi cela?
Pour moi, je considère/ Les bons soldats; on a grand besoin d’eux”, secundada pelo conde:
“Qu’a ce métier, s’il vous plaît, de honteux?”
50
A nostalgia da marquesa, que explica sua crítica à aristocracia da qual ela mesma
faz parte, torna possível tal posição condescendente diante da classe militar
hierarquicamente mais baixa. Por razões diferentes dos philosophes que são seu filho e
Rousseau, ela defende a função subalterna de um personagem que ganha ainda mais em
complexidade se admitimos a importância do “mito da origem” da protagonista, como
49
A tradição de ataque ao teatro e ao romance. Ver nota 296, Capítulo 1.
50
THÉÂTRE français du XVIIIè siècle, op. cit., p. 931.
288
demonstrado na análise do romance. Se lá era crucial lembrar que seu pai era um
“trabalhador intelectual” (burguês) falido, na peça de Voltaire é fundamental a vergonha de
Hombert diante da obrigação de servir como soldado, que determina a pseudo-orfandade de
Nanine. A reconnaissance representa, para o personagem, também cura dessa vergonha: o
elogio da soldadesca é consolo e reencontro de Hombert com sua dignidade, pela boca de
mãe e do filho nobres.
Mas parece haver algo ainda a examinar nesse enigma da origem, cujo desenlace é o
fim da peça. Ainda mais quando se sabe que Voltaire hesitou bastante em dar a Nanine uma
origem verdadeiramente humilde
51
. Tal revelação, extraída de uma edição de 1823 das
Œuvres, se verdadeira, indica o peso dos constrangimentos ligados à hierarquia social da
época sentido mesmo por um autor com o grau de independência de Voltaire. Na verdade,
tanto Mme d’Argental, que teria convencido Voltaire a fazer de Nanine uma filha de pais
humildes, como seu modelo inglês, quanto o próprio autor eram leitores de romances como,
La vie de Marianne, de Marivaux, no qual o desfecho se mantinha na trilha bastante
tradicional da revelação de uma origem nobre. Trata-se de tradição desde a
“ancestralidade” do romance, ainda na Grécia ou em Roma, passando pelos textos
medievais, um exemplo famoso sendo Dafnis e Cloé, a narrativa amorosa e erótica de
Longo, do século II d.C., no qual os dois amantes abandonados por pais nobres se
conhecem, apaixonam-se e descobrem até o amor físico em meio ao bucolismo camponês,
e crendo-se filhos de campônios (senão da própria Natureza, representada por animais
campestres, já que tinham sido largados junto a cabras, por elas sendo protegidos para que
não morressem).
O desenlace trazido pelas reconnaissances, em Dáfnis e Cloé, pode nos ajudar a
aprofundar a análise do personagem ancião de Nanine. Nessa longa cena final, envolta em
alegria bucólica, Dionisofanes revela ter abandonado o filho não por vergonha, mas por
crer que três filhos já bastavam para ele. O que hoje chamaríamos de uma confissão de
infanticídio – pois ele diz ter posto os objetos junto ao bebê “...menos como sinais de
51
Lê-se a seguinte “Notice” na edição de 1832 das Œuvres: “Cette pièce eut d’abord un tout autre
dénouement; Nanine se trouvait être fille de gentilhomme, et le mariage du comte n’était pas une
mésalliance”. Ainda segundo esse texto, teria sido Mme d’Argental que o convencera a criar o final tal como
o conhecemos hoje, alegando que do outro jeito ele “...aurait fait finir la pièce comme finisent tants mauvais
romans”. Cf. THÉÂTRE français du XVIIIè siècle, op. cit., p. 1444.
289
reconhecimento do que como oferendas fúnebres”
52
–, não parece ser emocional ou
socialmente custosa para o personagem, o que autoriza a cogitar uma normalidade de
abandonos de crianças entre os nobres grego-romanos da época. Tal conclusão é
corroborada pela fala do pastor Lamon, algumas páginas antes, confessando não ser o pai
verdadeiro de Dáfnis sem transmitir nenhum tipo de repreensão diante do ato: “Foram
outros pais que o tiveram e que o abandonaram, talvez porque tivessem filhos de mais idade
e estes lhes bastassem”
53
. A única autocrítica, na fala de Dionisofanes, é quanto a sua
própria juventude (ou seja, presumidamente: sua pouca experiência de vida) na época do
ato.
É na fala do velho Megacles que surge a figura da vergonha. Trata-se do verdadeiro
pai de Cloé, que está sentado na parte menos prestigiada da mesa de festejos por conta da
idade avançada, segundo a hierarquia da época. Ele recobre a juventude de supetão
(“...soltou um grande grito, como um jovem...”) ao reconhecer a filha, e relembra:
“Antigamente eu tinha apenas parcos recursos; tudo o que possuía, eu
havia gasto em coregias e trierarquias. Assim estava eu quando me nasceu
uma filha. Hesitei em criá-la, pobre como estava, e assim coloquei-lhe
estes adornos, como sinais de reconhecimento, e abandonei-a, sabendo
que muitas pessoas desejam ter filhos dessa maneira.”
54
.
“Coregias” e “trierarquias” eram impostos típicos do mundo helênico, pagos pelos
cidadãos ricos nas cidades gregas, destinados a cobrir custos de encenações teatrais (por
exemplo: o vestuário do coro) ou manter a equipagem de embarcações. A recuperação
financeira posterior de Megacles aponta para a forma de mobilidade social da Grécia da
época. Mas o ponto a ser destacado é a vergonha da pobreza e, por conta desta, o
subseqüente abandono da filha. Se o nobre confessa sem remorsos um “semi-infanticídio”,
o pobre demonstra remorsos extremos por sua própria condição social, e piedade da
criança, junto com a esperança de que ela viva, só que em família mais feliz. A pobreza
camponesa surge aí, no entanto, como mais digna do que a decadência urbana: as famílias
camponesas surgidas em meio bucólico escapam da pobreza inesperada, forçada e indigna
das cidades. Como se sabe, em Dáfnis e Cloé, a contraposição entre campo e cidade é
52
LONGO, Dáfnis e Cloé. Campinas: Editora Pontes, 1990. p. 91.
53
Idem, p. 89.
54
Idem, p. 98.
290
crucial ao longo de toda a narrativa, mas especialmente em seu desfecho, o campo
representando o espaço rústico, onde os impulsos corporais do casal têm livre curso, e a
cidade, o espaço da decadência (a figura de Gnaton, que quer que Dáfnis lhe “sirva de
mulher”, levando o camponês Lamon às lágrimas e à confissão, é o símbolo da decadência
dos costumes).
Les amours pastorales de Daphnis et Chloé, a versão francesa do romance, foi
muito lido na França ao longo de toda a segunda metade do século XVI, com edições
seguidas a partir da tradução de Jacques Amyot, de 1559, em 1578, 1594, 1596 e 1609.
Após intervalo de um século quase exato, em 1712, surge a primeira edição setecentista.
Dessa vez, em época de aperfeiçoamento e aceleração produtiva do mercado de livros, as
edições se sucederão rápidas, demonstrando ritmo mais moderno de sucesso editorial: de
1714 a 1718 há uma edição por ano. O espaçamento então muda: 1722, 1728, até que em
1731 surgem duas edições no mesmo ano, fenômeno que se repetirá em 1745, depois da
edição de 1734. A 28 de setembro de 1747, é encenada a “ópera pastoral” em três atos
Daphnis et Chloé, de Joseph Bodin Boismortier, concorrente menos célebre de Rameau,
cujo sucesso obriga a uma reestréia cinco anos depois. O ritmo editorial se manterá: 1749-
50-51-57, para em 1761 o livro ingressar no supplement à Bibliothèque de campagne. As
edições se sucederão: 1764-66-70-72-73-76-77(duas)-79-80(duas)-82-84-85-92(duas)-95-
96-97(duas)-98- an VII - an VIII -1800-03(duas), surgindo em 1810 a famosa tradução de
Paul-Louis Courier, estabelecida então como canônica. Rousseau trabalhará numa ópera
homônima de 1774 a 1776, deixando-a inacabada; ela aparecerá em fragmentos em 1779,
um ano após sua morte. Toda essa seqüência impressiona: é dos livros mais lidos do século.
A edição mais famosa e prestigiada é a de 1718, com 28 gravuras feitas de Audran, a partir
de pinturas da lavra do próprio regente, Philippe d’Orleans. O romance ficará relacionado
ao período de “Philippe Egalité”, época de distensão dos costumes após a morte de Luís
XIV, sem restringir-se totalmente a ele.
Portanto, o tema da vergonha diante da própria pobreza habitava a imaginação dos
leitores franceses de romance no século XVIII. Ele parece crucial não só por jogar luz sobre
as diferenças sociais internas à França do Ancien Régime, mas também sobre as diferenças
culturais entre os tratamentos francês e inglês do tema. Lembremos que um ponto
irredutível e estrategicamente importante da força da Pamela criada por Richardson é seu
291
louvor reiterado à pobreza digna
55
. O adjetivo “digna” lhe confere armas potentes: a
“virtude mesmo na pobreza”, uma pobreza não de berço, mas por falência, como a de
Megacles, diferencia os Andrews dos camponeses e dos outros criados, em geral
pertencentes a famílias de criados, elevando-os à condição de uma burguesia que luta para
não sucumbir financeiramente. Em vez da idealização da vida no campo, nos textos
chamados de pastorais, que parecem ter servido como forma de evasão imaginativa a
segmentos da nobreza descontente sob Luís XIV
56
, a postura é de encarecimento da ética
no trato pessoal entre indivíduos de classes sociais diferentes, rumo a uma nova codificação
do espaço de respeito profissional. Se há idealização – e a reiteração da protagonista
favorece essa interpretação –, ela é de um tipo novo, e não encontra tanto eco na própria
tradição literária, como é o caso do par bucolismo campesino versus decadência citadina.
Voltando a Nanine e a Philipe Hombert, destaca-se a função militar subalterna, em
uma sociedade em que, como se sabe, o militarismo era central, tanto na prática, com o
prestígio e o bom trânsito na Corte dos militares de alta hierarquia, quanto simbolicamente,
com a manutenção no Anicen Régime do antigo ideal cortesão de honra e glória ligada a
feitos guerreiros. Uma passagem de Emmanuel Le Roy Ladurie sobre “o que Saint-Simon
chama[va] de ‘o bom-tom da Corte e dos exércitos’” basta-nos, aqui, para situar a
continuidade dessa longa tradição:
“...todos esses militares fanfarrões, verdadeiros ou falsos, cultivaram uma
relação favorável e às vezes de deferência com a Maintenon e, claro, com
seu real esposo. Modo de lembrar mais uma vez que a alta aristocracia,
mesmo despojada de seu poder civil pelos togados dos conselhos e dos
parlamentos, conserva os trunfos de primeira grandeza graças à guerra e
na guerra, este tema imenso e contínuo do reinado”
57
.
A fanfarronice, baseando-se ou não em feitos reais de guerra (“...militares
fanfarrões, verdadeiros ou falsos...”), indica o grau de inserção e trânsito dos militares
como personagens nas esferas de poder e também, por isso mesmo, nos círculos festeiros da
Corte, o que fica claro quando se vê personagens de cortesãos libertinos com passagem
55
Ver item 1.3, Capítulo 1.
56
Em A sociedade de corte, Norbert Elias explica o imenso sucesso de um romance herdeiro do estilo pastoral
de Dáfnis e Cloé, o Astrée, de d’Urfé, como desejo de imaginativa de parte da nobreza descontente sob Luís
XIV. Cf.: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte, op. cit.
57
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Saint-Simon ou o sistema da Corte. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 2004 (1997). p. 192.
292
pelo campo de batalha, como no caso do narrador e protagonista das Confessions du comte
de ***, de Charles Pinot Duclos, de 1741
58
. Mas Hombert é tudo menos um libertino, e sua
vergonha vem do fato de, falido, ter sido obrigado a tornar-se soldado, como um
desocupado qualquer que, em vez de tornar-se um roué ou um petit-maître pavoneando-se
pelos salões
59
, contenta-se, de forma humilhante (para a sensibilidade da época), com a
busca de um modesto ordenado.
58
DUCLOS, Charles Pinot. Les confessions du comte de***. In: TROUSSON, Raymond, op. cit., p. 163-264.
59
Trata-se de dois personagens comuns na vida parisiense do Ancien Régime, e que integravam a massa de
boêmios falastrões, circulando pelos teatros, formando “cabalas” contra certos autores e a favor de outros ou
mesmo tentando tornar-se jornalistas, autores teatrais ou romancistas. Na Encyclopédie ele é assim definido:
“un insecte léger qui brille dans sa parure éphémère et secoue ses ailes poudrées”. Ver LAROCH, Phillippe.
Petits-maîtres et roués. Quebec: Presses de l’Université de Laval, 1979; e DARNTON, Robert. Boêmia
literária e revolução. O submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo: Ed. Companhia das Letras,
1987.
293
Conclusão
É senso comum dizer que Pamela, de Richardson, é um marco do surgimento do
romance moderno. Ou que os dois famosos textos de Diderot sobre o teatro, Entretiens sur
Le Fils naturel e Discours sur la poésie dramatique, inauguram o teatro moderno. Sem
entrar, aqui, na polêmica sobre o que seja o moderno, que tanta tinta já consumiu desde a
própria “querelle des anciens et des modernes” (ou seja, desde a França do século XVII), a
verdade é que o consenso já consagrou os anos 1730 a 1750, mais ou menos, como um
momento fundamental para o estabelecimento de novas formas de narrar e de ler livros (ou
assistir a espetáculos) na cultura ocidental. Porém, essa consagração é uma faca de dois
gumes. O imenso interesse no século das Lumières ou do Aufklärung, e a interminável
bibliografia a ele ligada, chega a assustar o pesquisador que quer atravessar o senso
comum, acadêmico ou não. Ter acesso ao século das Luzes significa mais do que ter uma
teoria geral sobre tal século, ou sobre como ele se desenrolou desde a devoção e o ímpeto
guerreiro de Luís XIV até o ateísmo e o ímpeto persecutório de Robespierre; ou desde a
altivez trágica de Racine até a sensibilidade individualista de Rousseau. Nesse sentido, no
presente trabalho, tentamos incorporar a inquietação de um historiador do livro como Roger
Chartier ao apontar para o século das Luzes a preocupação de Foucault em relação a
continuidades, linearidades e causalidades artificiais. São essas as armadilhas em que o
historiador menos avisado pode cair, impingindo tais distorções do pensamento ao
momento histórico pesquisado. Chartier se refere, especificamente, à tendência a ver a
Revolução Francesa como culminância de um processo linear e reconhecível, dir-se-ia
inexorável.
Lorsqu’elle succombe à “la chimère de l’origine”, l’histoire charrie, sans
toujours en avoir claire conscience, plusieurs présupposés: que chaque
moment historique est une totalité homogène, dotée d’une signification
idéale et unique présente en chacune des réalités qui la composent et
l’expriment; que le devenir historique est organisé comme une continuité
nécessaire; que les faits s’enchaînent et s’engendrent en un flux
ininterrompu, ce qui permet de décider que l’un est la “cause” de l’autre.
294
(...) la notion d’origine est lourde d’un autre risque: proposer une lecture
téléologique du XVIIIè siècle qui ne le comprend qu’à partir de son
aboutissement obligé – la Révolution – et qui n’en retient que ce qui
conduit à cette fin nécessaire – les Lumières.
1
Como se vê, também em nosso caso o afã de isolar o início, seja do romance
moderno, seja do teatro, pode mascarar certa ansiedade de abarcar gêneros ou formas
artísticas bastante complexos em um golpe de vista, ou em um salto teórico – do mesmo
modo que períodos históricos podem ser vistos, com uma lente torta, como totalidades
homogêneas e já prenhes, idealmente, de seu destino futuro.
Sem entrar em intrincados debates de filosofia da história, ressaltemos apenas que
tentamos manter acesa em nosso presente estudo a inquietação de Chartier e de Foucault.
Isso porque cremos que ela nos permitiria perceber que, estando isentos de apontar origens
pontuais, ou de julgar quais origens nos interessariam, e quais desprezaríamos, dado o
destino de certas inovações ou transformações estéticas, podíamos apenas tentar ser o
menos anacrônicos possíveis no exame de tais mudanças – o resto emanaria da leitura
cerrada das obras, se emanasse. Outros mestres nessa via de inquietação foram Erich
Auerbach e Leo Spitzer, cujas obras são provas cabais do embate minucioso com o texto,
para além das visões generalizantes que os queira classificar, descontextualizar, julgar
segundo padrões anacrônicos e, portanto, empobrecer. Contra qualquer teleologia, só
mesmo a leitura cuidadosa do que os textos dizem não só da época em que surgiram, mas
também da prosa de ficção, em geral, e de si mesmo, em particular.
Assim procedendo, esperamos ter flagrado não a origem do romance, nem a do
teatro, nem mesmo a de uma nova forma de narrar e ler/ver obras, nas páginas ou no palco.
Apenas cremos ter iluminado certos aspectos das transformações por que passaram a
narrativa e a leitura/assistência nos anos de 1735 a 1750. Trata-se de um período que viu
surgir um novo realismo, ainda pouco “condensado em um presente intensamente sentido”
(segundo a fórmula que propomos e justificamos nos itens 1.16 a 1.19, no Capítulo 1), mas
já contrário ao afastamento clássico típico. É o realismo de Prévost e de Marivaux, que já
inclui elementos como o martírio subjetivo individual e o amor como tema sério e
romanesco por excelência, mas sem a compressão radical da subjetividade no aqui-e-agora,
1
CHARTIER, Roger. Origines culturelles de la Révolution française. Paris: Éditions du Seuil, 2000
(1990), p. 15-16.
295
observada em Pamela. Não por acaso, é a época em que o mesmo Marivaux criava, por
meio do realismo recém-nascido, uma prosa coquete e frívola que representava uma reação
– dir-se-ia aristocrática – ao peso que aquela condensação propunha. Isso porque o que
chamamos de condensação do presente vivido intensamente só se mostra textualmente
eficaz em conexão com a opressão dos sentimentos – com o novo patético que surgia na
época
2
. O patético não representava mais o pathos, as paixões grandiosas e sobre-humanas
que o neoclassicismo consagrara, mas sentimentos cotidianos, banais, embora pressionados
por situações de intensidade emocional inaudita. O herói, o protagonista não precisava mais
ser especial – as situações por que passava já o eram, suficientemente. E qualquer um,
protagonista ou leitor/espectador, tinha a capacidade de sentir, um sentir imanente ao
cotidiano. Recapitulando: Marivaux é a um só tempo realista-sentimental e frívolo; sua
Marianne é uma nobre sem o saber, mas se martiriza como uma moça pobre, martirizando,
desse modo, os leitores; essa nova estrutura semântica favorece um agravamento do
sentimental no contingente, contra o grandioso e ideal no tempo dilatado do classicismo – a
glória, a magnanimidade, a coragem, sempre diante do tribunal da eternidade pagã. Em vez
de falarmos em “marco zero”, o leitor/crítico cuidadoso talvez faça melhor em apontar
mudanças insidiosas, insinuantes. Até porque o classicismo não morreria de um só golpe.
A retomada de alguns aspectos do que propomos serve aqui para tentar demonstrar
o esforço requerido para se compor um retrato o mais possível complexo de determinado
momento histórico nas letras, há três séculos. Se Marivaux não é nem só coquete, nem
apenas realista, embora já não seja clássico, Richardson não pode ser visto apenas como um
autor de manual de cartas, travestido de dúbio romancista interessado, no fundo, em
erotismo – ou em tornar seu livro um sucesso de vendas. Seu papel histórico e literário
parece ser mais rico. Sem deixar de notar que a solução do casamento compromete,
retroativamente, a qualidade literária do romance (pelo menos segundo nossos padrões
atuais), preferimos enfrentar o texto de Pamela como um desafio histórico-literário, em que
estruturas formais ou semânticas nos comunicariam as tais mudanças a se insinuar na forma
de escrever e ler, naquela época. Daí que nossa análise do romance se centre apenas na
parte anterior ao casamento, nas ambigüidades erótico-amorosa e individual-psicológica ali
2
Como se percebe pela frase seguinte, “patético”, na presente conclusão, refere-se não ao classicismo, mas à
nova forma de comoção promovida e requerida pela narrativa sentimental.
296
ainda reconhecíveis. Para o primeiro romance de um editor, em um momento em que o
gênero não estabelecera seus cânones – por um lado, não se acreditava que ele os
merecesse, por outro, nem todos os romances de um Swift ou de um Dafoe se encaixam no
cânone moderno que consagraria Gulliver e Robinson Crusoe –, Pamela é sintomático e
bem sucedido o bastante, na Inglaterra e fora dela, para merecer exame cuidadoso.
O fascínio despertado pelo romance na época em que ele apareceu e sua
incorporação na irresistível corrente de sensibilité que tomou conta das letras francesas da
época apontam para uma constatação nem sempre admitida. Não seria o moderno
constitutivamente mais sentimental, em sua estrutura formal e em sua semântica, do que
deixa notar o combate ao sentimento, este também intrínseco ao ímpeto moderno? Ou seja,
ao retomarmos a discussão da sensibilité e do larmoyant não estaríamos tocando em uma
região que os modernos, críticos e autores, deixaram de lado por conta da luta da literatura
a partir de Flaubert para desligar-se dessa espécie de sublime democrático e individualizado
que é o sentiment?
A discussão é ampla, e requer que organizemos seus termos. Em primeiro lugar, é
importante recorrer a nosso item 1.16 (Capítulo 1), e às intuições de Auerbach ali expostas.
Trata-se de notar como Racine e, em menor medida, já Corneille, aproveitavam-se de
tendências dir-se-ia materialistas de modo a aproximar seu desenho do sublime e do sobre-
humano dos impulsos corporais e fantasiosos, eróticos ou amorosos, do ser humano. Essa
forma de ver a sublimação específica dos neoclássicos seiscentistas franceses nos ajuda a
pensar em uma incorporação bastante plausível da tradição clássica, em teatro e em prosa
ficcional, a novos momentos culturais. Ou seja, dado que, para um espírito clássico, a
referência do Ocidente em termos de artes é a arte greco-romana, e dado que por cerca de
22 séculos essa fora de fato a referência única, não é inconcebível que as transformações
que apontamos no século XVIII indiquem a inclusão de tal “mundo (hoje) esquecido” ao
“novo mundo” que se anunciava. Em suma, tanto o novo realismo quanto o romance de
libertinagem, por exemplo, podem ser vistos como tendo como referência o neoclassicismo
seiscentista: são reações a ele ou incorporações de certos elementos dele.
Nesse sentido, a literatura que se convencionou chamar de sentimental, a da
sensibilité, que estudamos especificamente nos Capítulos 3 e 4, poderia ser vista como uma
297
“dessublimação” com subseqüente “ressublimação”, rumo ao romantismo
3
. Os
neologismos se justificam por conta da dinâmica que se deseja descrever. Se um Diderot
deixa claro o objetivo de rebaixar a condition dos personagens, para favorecer a
identificação agravada do espectador com os personagens (“dessublimação”), o
encarecimento dos sentimentos e da verdade do coração chegará, no romantismo alemão e,
na verdade, já com Rousseau, ao nível de um supra-humano (de um sublime)
individualizado (“ressublimação”). Não se deve esquecer que as técnicas ficcionais e
lingüísticas experimentadas ao longo de vários séculos se incorporarão a essa segunda fase
do esforço: se o sublime tinha história nas artes, ele integrará em outro arranjo, mas, sem
dúvida, com elementos ancestrais, muitas vezes inconscientes a autor e leitores, o esforço
de construir a continente do sublime sentimental. O próprio Diderot aponta tal tendência em
seu Éloge à Richardson. Como vimos no item 4.4 (“O martírio como modelo de
purgação”), Jean Sgard reconhece dois tipos de realismo de Diderot:
Un réalisme didactique, qui relève de l’illusion progressive: par la
“multitude de petites coses” (...) Richardson fait concurrence à la nature
(...). Et (...) un réalisme visionnaire, qui relève de l’illusion fantasmatique:
dans les scènes de folie ou de mort, les “circonstances” et les petits détails
vrais ne servent plus qu’à imposer un “tableau” grandiose...
4
Não seria essa bifurcação de Diderot índice de dois destinos reconhecíveis na
literatura ocidental: de um lado, o realismo que acabará se consagrando em fins do século
XIX, tratando de forma séria o cotidiano; de outro, o realismo “sublimado”, por assim
dizer, ou “ressublimado”, já que foi preciso o advento do primeiro realismo, de Marivaux a
Richardson, para que esse segundo, um realismo enlevado, pudesse surgir. Ele é fruto do
novo tipo de patético, pelo qual personagem e leitor/espectador partilham a força
dilacerante do sentimento, que arrasta o ser individual a decisões muito semelhantes a
conversões religiosas, como indica o próprio Sgard, ao fim da citação: “Alors que le
3
Do mesmo modo, em trabalho inédito, desenvolvo a idéia de que o romance de libertinagem opera uma
“dessublimação” com vistas a tornar imanente o ímpeto sobre-humano (clássico). O gênero surgido em 1735-
36 encarece a busca não do impulso ou do desejo sexual como amoral, na trilha do Racine lido por Auerbach,
mas da mestria na manipulação dos outros, sob o prisma de seu interesse individual. Interesse não sexual, mas
tão somente de manutenção da fama e da reputação na Corte, por meio do agrado às mulheres – personagens
fundamentais naquele ambiente.
4
SGARD, Jean. Introduction: Éloge de Richardson – Janvier 1762. In: Diderot. Arts et letters (1739-1766).
Critique I. Varloot, Jean (org.). Paris, Hermann, 1980. p. 189.
298
réalisme didactique nous apprivoise en nous éclairant petit à petit sur l’expérience
quotidienne, le réalisme fantasmatique provoque rupture et conversion; ils nous éclaire sur
le sublime de la vertu, sur une morale du sacrifice”
5
.
Na verdade, com óbvias influências cristãs (conversão e martírio/sacrifício), o
realismo que desembocará no sublime romântico é totalmente coerente e justificável como
procedimento semântico uma vez que a literatura buscará (também ao longo do século XIX,
ao contrário do que se costuma crer) não apenas divertir, mas também instruir, para retomar
a fórmula clássica de Horácio. Ou seja, ela mantém, por meio da sublimidade do
sentimento individual uma função ética para a literatura. Tal teor positivo do sentimento é
reconhecível por outro indivíduo (o leitor/espectador), pois este possui poder e direito de
avaliação, outorgado por sua pura e simples igualdade como cidadão portador de
sentimentos – o Rousseau romancista se encontra, aqui, com o filósofo político. Se todos os
homens (de bem) têm coração, podem julgar eticamente os atos e sentimentos de outros
homens – e confrontar-se, de forma catártica, com a ética desejável de seus próprios atos ao
comparar-se a outros homens, ou a modelos de homens em romances ou peças de teatro.
Tal estrutura ética e mesmo política se manterá no horizonte até que o realismo
menos sublime, mais imanente, surja no palco das letras européias, com Balzac e Stendhal,
e o sonho de tornar a literatura algo autônomo em relação à moral se consuma. A
indiferença que Flaubert persegue em relação aos atos de sua Bovary passa a ser o símbolo
da amoralidade ideal do romance: o narrador já não interfere – o discurso indireto livre está
inventado. O fim do século XIX, com Baudelaire e Mallarmé, e o século XX podem ser
vistos como desdobramentos dessa nova autonomia. Uma história do embate entre literatura
e moral, ainda a ser escrita, talvez reconheça nos satíricos ingleses do século XVIII, como
Fielding e Sterne, essa vontade de autonomia da ficção em relação à moral. Mas não se
pode esquecer que são olhos de hoje que re-arrumam assim o passado das letras: os
próprios Fielding e Sterne justificavam sua liberdade com base nas regras clássicas que
admitiam o cômico como retrato do ridículo, com vistas, é claro, à condenação dos vícios
eis que a moral se insinua novamente, e como alicerce da escrita satírica
6
.
5
Idem, ibidem.
6
Cf.: o prefácio de Joseph Andrews, de Henry Fielding, é uma peça clássica de defesa da prosa cômica de
ficção com base nas regras clássicas. Muitas de suas justificativas são as mesmas de Molière em meados do
século anterior, o XVII. FIELDING, Henry. Joseph Andrews. Londres: Penguin, 1985 (1742). p. 25-31.
299
Como se pode inferir nesse nosso retorno à questão do moderno, nosso cuidado em
não projetar teleologias ou modelos atuais à literatura da época nos ajudou a ler tais textos,
bem como as quatro peças escritas, na França da época, a partir de Pamela – os textos de
Boissy, La Chaussée, D’Aucour e Voltaire –, sem contar as peças de Gresset (Le méchant)
e a Mélanide de La Chaussée, não como defesas anacrônicas do larmoyant ou, no caso das
comédias, ataques a ele, mas como invenções narrativas inseridas nas tensões estéticas de
que vínhamos falando. Como tais, esses textos indicam esforço de digerir a voga da
sensibilité, cuja força é patente. E se o é, não seria o caso de admitirmos, nós, tão afastados
no tempo, que a dimensão sentimental conformou a própria literatura no modo como a
conhecemos, sendo incorporada como traço cultural a unir textos/peças e
leitores/espectadores, desde o século XVIII? E se assim for – com a devida ancestralidade
outorgada às Lettres portugaises e à Princesse de Clèves –, não seria o caso de pesquisar tal
fase intermediária não como preparação ao romantismo vindouro, com sua profundidade
filosófica, nem como breve ante-sala do hoje desvalorizado melodrama?
7
As dimensões da
sensibilité, se pensada em termos gerais, e do larmoyant, expressão ligada ao excesso que
chega à borda dos olhos, não teriam sido propriamente o que permitiria a relação mais
básica e intensificada entre texto e o leitor/espectador comum pelos séculos seguintes?
Se o texto se presta a enlevamentos estéticos não afetados pelas emoções, a verdade
é que eles são raros, e mesmo o especialista mais ligado às estruturas não afetivas do texto,
do cerebralismo etéreo de Mallarmé ao distanciamento de Brecht, reconhece que, sem o
alicerce da tensão que se poderia chamar de emotiva, a forma não se preenche de sentido.
Em outros termos: se a relação do leitor/espectador com o lido/visto pode chegar a níveis
por assim dizer matemáticos de neutralidade emocional, em que a busca formal fechada
nela mesma toma a boca-de-cena, mesmo nesses casos extremos como denominar a tensão
subjacente à leitura ou às descobertas estruturais do leitor? Não seria ela emoção, ou afeto?
E a falta dela não constituiria tão somente uma não-leitura, ou um desligamento entre texto
e leitor/espectador? Se a arte moderna logrou um esvaziamento semântico, pelo qual o
próprio da formalização artística pudesse surgir em sua pureza ou inteireza, a verdade é
que, a semântica tendo se exilado de certas obras, ela manteve-se no nível da relação entre a
7
O gênero só será valorizado a partir de 1801, com Guilbert de Pixérécourt. Cf.: GINISTRY, Paul. Le
mélodrame. Paris: Louis-Michaud Éditeur, [1910?].
300
obra e o olho e os ouvidos de quem a lê ou vê. E não era exatamente nisso que Diderot
estava interessado ao procurar uma nova forma de escrita e encenação, de modo a causar
impacto emocional antes impensado, certo dilaceramento no leitor/espectador? Ele não
tentava adaptar essa nova forma de escrever/ler/ver à linguagem própria ao classicismo, da
qual era filho? E nesse movimento, ele não chegou a propor uma nova teoria da “catarse
moderna”? A diferença é que Diderot ainda supunha que o novo patético sério não
prescindisse de uma semântica personificada, com identificações localizadas em cada
personagem, segundo sua classe social, sua profissão, seu lugar na família (sua condition).
Porém, mais do que essa figuração, não nos interessaria em sua reflexão, na verdade, a
forma como ele relaciona a obra à ilusão sob tensão (emocionada, de alguma forma) do
leitor/espectador, criando uma teoria da catarse moderna, muito mais adaptada ao mundo
em que o livro estava em vias de se tornar objeto individual acessível a muitos, e no qual
uma classe deveria representar o novo modelo de mediania social dos cidadãos – a classe-
média, ou burguesia?
8
Em todo esse debate, no entanto, um ponto que não podemos perder de vista é que,
como já adiantamos em algum grau, mesmo nos níveis mais rarefeitos da arte do século
XX, o trabalho de leitura pressupõe uma “re-semantização” da obra, de modo a articulá-la a
algum conteúdo partilhável por mais de um leitor (pense-se em Malevitch, em pintura, e em
Paul Celan, em poesia).
Nesse sentido, grande parte do que se lê ou a que se assiste hoje, no mundo todo,
guarda alguma relação com o tema de nosso estudo – apesar de seu aparente recorte
histórico específico. Na verdade, o que se acaba descrevendo nas páginas antecedentes é
uma mudança na forma de comunicação no Ocidente, que parte de uma tradição que levava
em conta modelos clássicos e chega a um modo inédito de criar (e fruir) verossimilhança.
Obviamente, tal transformação na sensibilidade estética só se pôde efetivar levando-se em
conta mudanças sociais, econômicas e materiais de grande importância. Destaquemos duas
delas: 1) o novo comércio de livros, a permitir acesso individual da classe letrada às
mesmas páginas bem impressas; 2) a aceitação ampliada dos valores burgueses, a partir do
8
Sem entrarmos na discussão sociológica, destaquemos que na falta do circuito de reconhecimento interpares
da aristocracia, antes a consumidora quase exclusiva das obras – pense-se nos théâtres de société, nos
detalhes arquitetônicos dos hôtels particulares ou no preço proibitivo dos livros –, a classe que valoriza o
empreendimento individual especializado com vistas a uma vida familiar (o triângulo da condition de Diderot:
classe social, família e profissão) invade a cena. Cf.: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte, op. cit.
301
incentivo ao empreendimento individual, ao pragmatismo no trabalho, à especialização e à
vida doméstica familiar. A partilha da leitura e dos valores favorece a identificação: a
comédia sérieuse ou bourgeoise será a assunção do burguês tanto às cadeiras do teatro
quanto ao proscênio, numa alegoria do que ocorre na sociedade.
Essa visada sociológica de grande escala, no entanto, não pode comprometer nosso
exame pontual das mudanças que ocorrem nas obras e em quem as lia/via, bem como em
quem sobre elas refletia, como Diderot. Mesmo porque, nem a aristocracia era um
monobloco em seus costumes artísticos, nem a burguesia o será, nos séculos vindouros. Na
verdade, o que se percebe no contato com os textos é que a nova narrativa sentimental tenta
agravar ou intensificar a experiência da escrita e da leitura, condensando ou comprimindo a
sensação de espaço-tempo, como se o presente contingente passasse a ser vivido de modo
forte por quem lê. Tal nova sensibilité (no sentido de postura receptora de textos e
espetáculos) inclui o materialismo, que valoriza, por exemplo, as lágrimas, prova material e
pública da emoção sentida, mas também remete a um além da experiência vivida. Tal além,
no entanto, não está no palco alargado do tempo, como ocorria no classicismo, em que
virtudes sobre-humanas, como a glória, a coragem ou o ímpeto guerreador, ultrapassavam
as convenções e a mediania. Agora tal “além” está não no palco público, mas dentro de
cada um: o sentir, tanto no sentido de emoções quanto no sentido de sensações (a
ambigüidade de significado da palavra “sentido”), vai além da realidade perceptível pelos
sentidos, apontando um para-além do presente, interno ao próprio presente.
O coração passa a ser o oceano imprevisível que escapa às regras sociais, aos
constrangimentos institucionais, às regras morais. Apesar de Pamela não valorizar tal
transbordamento no que toca à afeição que Mr. B. vai sentindo, gradativamente, pela
criada, nem vice-versa, já que sua decisão parece pragmática, a verdade é que há a crença
em um valor do sentimento de dignidade (de virtude) pessoal da protagonista: esse é seu
lastro. Contra toda a ancestralidade cultural e social, ela se agarra a tal verdade,
experimenta um martírio por conta disso, mas, no final, triunfa sobre o socius – périplo
ligado à classe, já que Mr. B. não passa por nada igual a isso. A aposta no sentimento
individual se mostra altamente recomendável para seres socialmente frágeis. Porém, antes
ainda do romantismo, é mais tábua de salvação do resistente – sem garantias de reverter a
situação prejudicial – do que bandeira anti-sociedade. Nesse sentido, o casamento é mesmo
302
a melhor solução – embora o romance pudesse terminar aí: sem o ímpeto dos românticos
para contrapor-se filosoficamente aos costumes vigentes, Pamela e Mr. B. descansam das
ambigüidades fatigantes da primeira parte do romance nesse “final feliz” devidamente
institucionalizado, que se estende demais, e se desdobra em um segundo volume, criticado
até pelo maior defensor de Richardson, Ian Watt.
Porém, é preciso ter cuidado para não dar saltos muito lineares na análise desse
“núcleo duro” da nova estética que se insinua pela pena de Diderot, depois de adentrar as
letras francesas com elementos vindos da ancestralidade gaulesa (Guillerages, Madame de
Lafayette, Prévost, Maruivaux) e do fenômeno anglo-saxão (Richardson). Isso porque a
compressão do presente vivido, promovida pela literatura da sensibilité, que recomenda
esforço identificatório e lacrimal por parte do leitor, embute em sua mecânica seu próprio
contrário. Trata-se, mais propriamente, de uma dialética interna à “nova catarse”, bem
percebida por Roger Chartier. Se Diderot descreve o que se opera na nova verossimilhança
com sua teoria do tableau, numa passagem do lido ao visto, da página ao palco (nem que
seja o palco mental do leitor de romances), sua trilha reflexiva acaba esbarrando no fato de
que o visitante de uma exposição de quadros é, em grande medida, um contemplador
passivo. Daí que a força que o quadro tem de engajar o leitor/espectador é, paradoxalmente,
também uma armadilha para desengajá-lo. Em outras palavras, a presença patética do
sentimento, impetuosa e dilacerante, na página ou na cena, pressupõe não apenas a presença
de quem lê ou vê, mas também sua ausência. Como fica claro em trecho que citamos no
capítulo 4:
Diderot inscrit (...) le roman dans cette esthétique paradoxale et
problématique qui fait dépendre l’effet d’une œuvre de “...la constitution
d’une nouvelle espèce de spectateur – um nouveau sujet – dont la nature
la plus profonde consisterait précisément à être convaincu de sa propre
absence de la scène de la répresentation”.
9
Não surpreende que no momento de constituição e de experimentação de novas
formas narrativas, e de certo patético ou catártico que se tornará dominante na cultura, se
instaure o paradoxo dos contrários: presença-ausência. A “presença ausente” do novo
leitor/espectador o faz, a um só tempo, assoberbado pela força do presente comprimido
9
CHARTIER, Roger. Inscrire et effacer, op. cit., p. 166.
303
com intensidade, na narrativa, e relaxado diante de tamanha intensidade no plano da arte,
antecipando a via de uma futura rejeição do drama pelo drama – ou seja, o melodrama, que
tenta cooptar de forma um tanto grosseira o leitor/espectador pela via proposta por Diderot.
O leitor/espectador também está, ao mesmo tempo, presente nos personagens com que se
identifica, e ausente de si mesmo, embora se projete na obra, fora de si. O prazer que a
ilusão acarreta é, portanto, de uma só vez, condição sine qua non de uma nova catarse
possível e apagamento dessa catarse, pela via não de um afastamento estilístico regrado
pelo classicismo, mas de um sentimento de indiferença, talvez novo no que toca à relação
entre leitor/espectador e obra. “L’élégance du style n’a que faire là où la mutation du récit
en tableau requiert la violence du sentiment”, escreve Chartier
10
. Atravessando a espessa
camada estilística do clássico a nova verossimilhança prescreve o impacto direto com o
tableau, impacto paradoxalmente tomado com a possível indiferença dos que “estão sem
estar” na cena, dos que são espectadores e personagens ao mesmo tempo, já que podem não
ser nem um nem outro – ou seja, já que podem estar alheios à própria cena que lêem ou à
qual assistem.
É perceptível, portanto, o limite daquele otimismo de Diderot no engajamento do
espectador ou do leitor. Como vimos, esse limite é estabelecido pela própria dinâmica
dialética do ler-ver: ela pressupõe uma presença ausente, ou a ascensão, no interior da nova
catarse, a uma zona de indiferença apenas suposta como possibilidade, mas só alcançável
por meio do realismo enlevado e dilacerante. Será que, nessa nova dinâmica estética
complexa, o leitor/espectador não corre o risco de desviar-se da seriedade e passar a ver o
patético simplesmente como risível? Será que a compressão do tempo vivido intensamente
não periga quebrar, por momentos ou para sempre, a cadeia ilusória? E, finda a ilusão, será
que a tal indiferença acessível ao leitor/espectador não pode transformar-se no
distanciamento que favorece o riso? Será que a ética sempre na boca-de-cena não pode
cansar e demandar um tratamento contrário, em vez de sério, cômico – sem deixar de ser
ético, já que o comediógrafo aponta os vícios da sociedade? Tendo o realismo se justificado
como forma de acesso sério a tais vícios, na trilha do que a comédia fazia de forma leve e
risível, será que essa nova operação não mantém sempre em seu horizonte essa sua origem
no cômico e baixo, como uma sombra sua? É esse o outro lado da moeda visível na própria
10
Idem, ibidem.
304
época de instauração do sentimental em literatura. E o próprio Diderot oscilará entre um e
outro – basta lembrar de seus escritos cômicos, como Jacques le fataliste et son maître, Le
neveu de Rameau e, mesmo no teatro, com sua última peça que, a partir do próprio título
estabelece a ética pessoal como horizonte temático: Est-il bon, est-il méchant?, uma de suas
derradeiras obras, de 1781. Na peça, Hardouin, alter-ego de Diderot, diz, a certa altura, em
meio às tramas engenhosas que inventa de improviso com o fito de manipular amoralmente
os personagens a sua volta, que lhe procuram pedindo favores: “Ah! si Molière revenait,
avec tout son incroyable génie, combien il aurait de peine à obtenir le suffrage des gens
qu’il a rendus si difficiles!”
11
A frase é dúbia, pois lhe pediram uma peça de teatro para ser
encenada em um théâtre de société, mas ele também trata seus amigos e conhecidos como
títeres de seus atos. Em uma rápida auto-avaliação, Hardouin diz para si: “Je sers le vice, je
calomnie la vertu... oui, mais la vertu simulée”
12
. Como em Le méchant, de Gresset (1747),
o personagem maledicente e astuto está no proscênio, só que, em 1781, valorizado como
mestre das relações em sociedade.
Tal virada de Diderot se justifica não apenas pela via da comédia. Isso porque,
obviamente, nesse rico século XVIII, não será apenas o cômico a indicar indiferença diante
do sentimento alheio pela via realista (a indiferença da tragédia e da épica era altiva e
idealizante). Outro gênero surgirá como contraponto à dominância do novo patético
sentimental. Se, na verdade, o cômico sobrevivera mesmo no seio do classicismo
seiscentista, com Molière, e atravessará a cultura teatral ou romanesca da virada do século
na França (de Lesage a Destouches, de Scarron a Voltaire), a verdade é que uma nova
forma literária proporá uma via não sentimental no próprio momento de instauração da
sensibilité literária. É o caso do romance de libertinagem, cuja “dessublimação” centra a
narrativa exclusivamente nas liaisons entre homens e mulheres imanentes ao monde
homens e mulheres em busca da mestria na lida sedutora e amoral para manter a própria
reputação. O etos libertino, surgido como aspecto literário sofisticado por volta de 1735-36,
com Les égarements du cœur et de l’esprit, de Claude Crébillon
13
, não aspira a nenhum
engajamento sentimentalmente agravado do leitor com o texto. Ao contrário, parece tentar,
o tempo todo, esvaziar a pretensão amorosa como verdade do coração – e do texto como
11
DIDEROT, Denis. Est-il bon, est-il méchant? In: Œuvres. Paris, Gallimard, 1972, p. 1351.
12
Idem, p. 1311.
13
Cf.: GOLDZINK, Jean. À la recherche du libertinage, op. cit.
305
suposto acesso a tal verdade, no personagem e, por extensão, no leitor. O jogo pressupõe
cumplicidade nas máscaras, nas escaramuças, no manejo do segredo e das zonas proibidas,
em que o erotismo pode desposar a estratégia política, e onde os atos e palavras servem a
interesses desligados da moral identificatória, já que ocorrem no domínio dos movimentos
interessados da política pessoal. Não admira que um romance de tamanha importância
retroativa como La Princesse de Clèves seja também um ancestral da ascensão desse etos
libertino, embora seu desfecho seja francamente pró-sentimental, Madame de Clèves
terminando como mártir do novo partido.
Sem nos alongarmos no tema – objeto de pesquisa em curso –, digamos que o
romance de libertinagem tenta instaurar não uma “presença ausente” no sentido de uma
intensidade dentro da qual se pressupõe uma indiferença possibilitada pela entrega passiva
do leitor/espectador à ilusão (ao divertimento, no sentido originário de “devertere”: afastar-
se, desviar-se), mas uma “ausência presente”. Dessa vez, é a indiferença quem está na boca-
de-cena, como um estandarte do libertino, que não deseja envolver-se em quaisquer
constrangimentos morais, mas luta por transitar independentemente a eles. Nesse jogo, é
claro que o envolvimento se mantém como horizonte dir-se-ia recalcado, por trás da
indiferença almejada. Prova-o o final das Liaisons dangereuses, em que os dois libertinos,
o conde de Valmont e a marquesa de Merteuil, sofrem as conseqüências públicas de seus
atos secretos. Mas já em Les égarements du cœur et de l’esprit as idas e vindas erótico-
amorosas do ainda indeciso Meilcour contrastam com a indiferença dura e descrente do
libertino experimentado, Versac.
Mas essa já seria uma outra história, a justificar um mergulho em outros textos de
época. Por ora, deixemos como fecho a idéia de que grande parte das narrativas de ficção
que grassam em livro, nos palcos e, a partir do século XX (como nota Auerbach no final de
seu Mimesis), também no cinema devem seu impacto continuado à nova verossimilhança,
com a catarse correspondente, que começou a se tornar hegemônica no período que
estudamos. Um tal alicerce da cultura não pode ser visto apenas como fase exacerbada ou
tosca na trilha rumo a uma nova indiferença, dessa vez, anti-semântica e formal. Trata-se,
muito mais propriamente, de um alicerce, mesmo, e um daqueles que costumam ficar na
sombra, recalcados, apesar de sua inegável proeminência como sustentáculo cultural. O
paradoxo é irônico: as lágrimas, rechaçadas por sua estridência, se exilam da cena, mas
306
continuam, insidiosamente, a estruturar a relação desta com os leitores ou espectadores.
Trata-se da coluna que sustenta a relação individual do leitor com a página, do espectador
com o palco, daquele com as variadas telas (tableaux) que hoje povoam nosso cotidiano, da
TV à Internet.
Tal coluna pode ser descrita, mais uma vez, como uma convocação do autor ou,
mais propriamente, da obra para que o leitor ou o espectador nela se perca, para se achar.
Ou seja, para que, divertindo-se por conta da ilusão de realismo, ausente nessa ilusão de
presença fictícia na página ou na tela, possa reencontrar um modo novo de presença fora da
página ou da tela – na vida. Tal dinâmica resume três séculos de embate entre emissores e
receptores, entre obras e leitores, entre imagens e espectadores, o que, por si só, justifica
uma nova aproximação, menos anacrônica, menos judiciosa e mais minuciosa, focada em
um momento anterior à exuberância de linhas, de gêneros e de comprovações filosóficas
que se observou no romantismo.
De 1735 a 1749, na França, a partir das novas formas realistas-sentimentais
(larmoyantes) francesas, bem como do sucesso ambíguo e contraditório de um romance
inglês desenha-se uma nova forma de ler e ver textos em prosa ficcional e peças de teatro.
Tal fenômeno de envolvimento inaudito entre o público e as obras, literárias ou teatrais,
acontece em uma cultura pautada por uma tradição galante e cortesã, em que a conversation
fora valorizada a ponto de invadir o espaço narrativo ficcional, contra os cânones clássicos.
Mas o novo engajamento por parte do leitor exigia não apenas que ele reconhecesse ali uma
nova verossimilhança, mas que a narrativa se tornasse, para ele, algo como um espelho
ético. Nesse sentido, nem o novo coquetismo, que deitava raízes em Madame de Sévigné e
era elaborado pelo pouco prestigioso (como romancista) Marivaux, nem o romance de
libertinagem, que tornava sofisticado e cerebral a linhagem licenciosa seiscentista,
representavam caminhos capazes de selar aquele novo pacto entre a obra e o
leitor/espectador. Um romance vindo de Albion, cujo título é, pela primeira vez, um
simples nome de mulher, sem nenhum título de nobreza a antecedê-lo, será um ponto de
entrecruzamento de características fundamentais na constituição do novo gosto, hoje
chamado, de forma generalista, de moderno. Entender, em minúcia, por que
especificamente o romance Pamela foi tão importante para essa transformação foi nosso
projeto. Nem a superficialidade ligeira a transmudar o clássico em graciosidade coloquial e
307
contingente de salon (a prosa coquete); nem a indiferença amoral dos que buscam obter ou
manter a reputação no monde, por meio de conquistas eróticas (os libertinos). O novo modo
de ler e ver pedia uma mudança mais acentuada, que incluísse tanto o coloquialismo
banalizado, quanto o realismo ambíguo das ligações erotizadas. Tal mudança se encontrava
em Pamela, e passou a ser referenciada ao romance como marco especial do surgimento de
uma leitura envolvida e envolvente, de uma empatia agravada e de um engajamento por
parte do leitor ou do espectador que, no extremo, podia se tornar almejado dilaceramento,
com vistas à autotransformação pela via ficcional. O leitor/espectador, bem no fundo, sabe
tratar-se de um dilaceramento artificial, induzido, e ele só leva a ilusão até onde ela lhe é de
serventia subjetiva. Isso não importa. A essa altura, no ponto final da obra, ou na derradeira
cena, no teatro, a verdadeira pedagogia do gosto iniciada por Pamela já terá produzido seu
efeito.
308
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