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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL - PPGLDC
RITOS DE PASSAGEM:
A EXPERIÊNCIA ERÓTICA E O MENINO-NARRADOR NA FICÇÃO
DE ANTONIO CARLOS VIANA
Paulo André de Carvalho Correia
Feira de Santana
2010
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL - PPGLDC
RITOS DE PASSAGEM:
A EXPERIÊNCIA ERÓTICA E O MENINO-NARRADOR NA FICÇÃO
DE ANTONIO CARLOS VIANA
Paulo André de Carvalho Correia
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA AO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL DA UEFS, TENDO COMO
ORIENTADOR O PROFESSOR DOUTOR ROBERVAL
ALVES PEREIRA, COMO REQUISITO PARCIAL PARA A
OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM LITERATURA.
Feira de Santana
2010
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL - PPGLDC
RITOS DE PASSAGEM:
A EXPERIÊNCIA ERÓTICA E O MENINO-NARRADOR NA FICÇÃO
DE ANTONIO CARLOS VIANA
Paulo André de Carvalho Correia
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Diversidade Cultural, avaliada e aprovada por
________________________________________
Professor Doutor Roberval Alves Pereira (Orientador)
_________________________________________
Professora Doutora Maria Lúcia Dal Farra (Membro)
____________________________________________
Professor Doutor Aleilton Santana daFonseca (Membro)
Em 02/09/2010
Feira de Santana, Setembro /2010
A literatura […] é a infância finalmente reencontrada.
(Georges Bataille, A literatura e o mal)
A rede entre duas mangueiras
balançava no mundo profundo.
O dia era quente, sem vento.
O sol lá em cima,
as folhas no meio,
o dia era quente.
E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.
Um dia ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços,
me deu um abraço,
me deu as maminhas.
A rede virou,
o mundo afundou.
Depois fui pra cama febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.
(Carlos Drummond de Andrade, “Iniciação amorosa”, Alguma poesia)
Visão de menino é assim mesmo, disse tio Alfredo quando João lhe contou como ele menino
via Xambá. Não digo que menino não veja as coisas direito. São as névoas do olhos feito
você diz. É que menino vê muito, vê até demais da conta. Só que vê de través, junta o que
sentiu e as coisas que aconteceram mesmo. Visão de menino é que nem visão de santo, tem
lume nas bordas, pinga estrelas. Olho de menino vive cheio de estrelas. Olho de menino vive
cheio de neblina, depois com o tempo clareia, ou se apaga, não sei. Depois a gente vê melhor,
melhor não digo, vê diferente, a força de antes vai minguando no escorrer do tempo. Tudo em
menino é girândola, grito susto, foguetório, brumado de sonho.
(Autran Dourado, O risco do bordado)
AGRADECIMENTOS
A ROBERVAL PEREYR, MAIS QUE ORIENTADOR, AMIGO, PELA
SENSENBILIDADE E PELA PACIÊNCIA COM QUE ME AJUDOU A
CONDUZIR ESTA PESQUISA;
À FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DA BAHIA
FAPESB, PELO APOIO FINANCEIRO INDISPENSÁVEL PARA A
REALIZAÇÃO DESTA PESQUISA;
A ANTONIO CARLOS VIANA, PELA DISPONIBILIDADE E ABERTURA;
A MAYRANT GALLO, POR POSSIBILITAR O ENCONTRO COM OS CONTOS
DE ANTONIO CARLOS VIANA;
A HEIDE (ESPOSA), PELA AJUDA E PACIÊNCIA;
AOS AMIGOS, IDMAR BOAVENTURA E THIAGO LINS, PELAS
CONVERSAS, DISCUSSÕES E SUGESTÕES DE LEITURA;
AOS COLEGAS DE MESTRADO QUE, DIRETA OU INDIRETAMENTE,
CONTRIBUÍRAM PARA A PRODUÇÃO DESSE TRABALHO, EM ESPECIAL:
JULIANA SOUZA, EDSON OLIVEIRA, ANDRÉ LUÍS, JOSÉ INÁCIO E
LUCIANA OLIVEIRA;
AOS MEUS AMIGOS, TODOS, PELA PREOCUPÃO SOLIDÁRIA COM O
ANDAMENTO DA PESQUISA, QUE SOFRERAM JUNTO COMIGO, QUE ME
AMPARARAM QUANDO, POR VEZES, PENSEI NA IMPOSSIBILIDADE DA
TAREFA.
AOS PROFESSORES E FUNCIONÁRIOS DO PPGLDC, TAMBÉM FIGURAS
INDISPENSÁVEIS;
FINALMENTE, AOS MEUS IRMÃOS (MARCELO, RITA, ANTONIO E
FRANCISCO) E EM ESPECIAL A MINHA MÃE (CARMINHA), A QUEM
DEVO TUDO.
A GUIDO, MEU PAI (IN MEMORIAM)
E A ANA CLARA, MINHA FILHA,
MARGENS DO MEU UNIVERSO.
RESUMO
A ficção de Antonio Carlos Viana surge na década de 70, momento em que se configuram
novos rumos e tendências na literatura brasileira. Trinta anos separam o primeiro livro do
autor Brincar de manja (1974) do seu quinto livro Aberto está o inferno (2004). Tema
recorrente em sua obra é o rito de passagem, que marca a transição da infância para a idade
adulta, instaurado pela experiência erótica. O rito configura-se como uma situação limite e
encerra um duplo salto: o salto para “a outra margem de si mesmo” do personagem, marcado
sobretudo, pela descoberta do real, e o salto poético, realizado na transfiguração do
personagem em narrador da história. O erotismo e o menino-narrador são dois aspectos
constituintes do rito de passagem nas narrativas ficcionais de Antonio Carlos Viana, e
inauguram “um tumultuado processo de conhecimento e autoconhecimento”. Ambos
celebram a dramatização do processo de criação ficcional do autor e sua concepção de
literatura e de ficção. As narrativas de rito de passagem são recortadas, sobretudo, de dois
livros do autor: O meio do mundo e outros contos (1999) e Aberto está inferno (2004), visto
que reúnem boa parte da produção anterior do escritor sergipano, como também apresentam
contos inéditos.
PALAVRAS-CHAVE: ANTONIO CARLOS VIANA; CONTOS; EROTISMO; MENINO-
NARRADOR; RITOS DE PASSAGEM
RESUMEN
La ficción de Antonio Carlos Viana surge en los años 70, cuando se está dando forma a las
nuevas orientaciones y tendencias en la literatura. Treinta años separan el primer libro del
autor - Brincar de manja (1974) - del quinto libro - Aberto está o inferno (2004). Tema
recurrente en su obra es un rito de paso que marca la transición de la niñez a la adultez,
introducido por la experiencia erótica. El rito se configura como una situación extrema y
contiene un doble salto: el salto a "la otra margen de mismo," del personaje, marcado
principalmente por el descubrimiento de lo real y el salto poético, celebrado en la
transfiguración del personaje en narrador de la historia. El erotismo y el niño-narrador son dos
aspectos constituyentes del rito de paso en los relatos en la ficción de Antonio Carlos Viana, y
inaugurán un proceso "tumultuoso de conocimiento y el autoconocimiento." Ambos celebran
el drama del proceso de creación del autor y su concepción de la literatura y de la ficción. Los
relatos de rito de paso se cortan, especialmente, de dos libros: O meio do mundo e outros
contos (1999) y Aberto está o inferno (2004), ya que juntos engloban gran parte de la
producción anterior del escritor sergipano, pero también presenta cuentos inéditos.
PALAVRAS-LLAVES: ANTONIO CARLOS VIANA; CONTOS; EROTISMO; MENINO-
NARRADOR; RITOS DE PASSO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 10
1 A FICÇÃO DE ANTONIO CARLOS VIANA E A LITERATURA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA....................................................................
14
1.1 Breves Dados Biográficos........................................................................... 14
1.2 Antonio Carlos Viana e a literatura brasileira contemporânea.................... 14
1.3 A dimensão regional na ficção de Antonio Carlos Viana............................ 26
2 O RITO DE PASSAGEM E SEUS ASPECTOS: O EROTISMO E O
MENINO-NARRADOR NA FICÇÃO DE ANTONIO CARLOS VIANA........
38
2.1 O rito de passagem: uma situação-limite..................................................... 38
2.2 O Erotismo: A instauração do rito ficcional................................................ 45
2.3 O menino-narrador: A visão liminar........................................................... 59
3 A EXPERIÊNCIA ERÓTICA: O SALTO PARA OUTRA MARGEM.......... 77
3.1 As experiências eróticas em O meio do mundo.......................................... 77
3.2 As experiências eróticas em Aberto está o inferno..................................... 102
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 116
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 118
ANEXOS................................................................................................................... 125
INTRODUÇÃO
Nosso primeiro contato com a ficção de Antonio Carlos Viana foi numa oficina de
leitura e criação literária em 2003
1
. Lemos dois contos: "Jardins suspensos" e "Domingos da
paixão". No primeiro deles, encontramos um relato de um menino (narrador da história) que
anseia por descobrir o sexo de um estranho hóspede que habita em sua casa. O segundo,
também num ambiente rural, encena a descoberta da sexualidade num ritual simbólico de
castração, realizado pela tia do narrador-personagem. Ambos narram, sob a perspectiva do
olhar infantil, a descoberta do mundo, através da experiência erótica. Chamou-nos a atenção
nos contos o trabalho com a linguagem. Na construção do universo ficcional, a visão infantil
apresenta-se cheia de buracos” e “luzes”, realçando a carga erótica do signo. As elipses, os
subentendidos, as alusões, as metáforas e uma certa dose de lirismo são características
marcantes dos textos.
Tempos depois, tivemos contato com o autor numa palestra em que contou sua
experiência com a escrita literária, desde seus primeiros escritos até a publicação de O meio
do mundo e outros contos (1999). Adquirimos esse livro e tivemos acesso a outras variantes
do universo ficcional de Antonio Carlos Viana. Notamos que os ritos de passagem encenados
pela descoberta do sexo se mostraram frequentes. Em 2005, lemos Aberto está o inferno
(2004) que, como já sugere o título, escancela as portas ao erotismo, mas também outros
aspectos inquietantes da condição humana, como a loucura, a violência e a morte. A perda da
inocência também é determinante no livro. "Ana Frágua", conto de abertura, narrado em
terceira pessoa, encena o rito de passagem de um menino com a prostituta Ana Frágua, que
acabara de extrair dentes.
Chamou-nos ainda a atenção, nesse contato inicial com a obra do autor, a linguagem
seca e precisa, à linha de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, em que, não raramente, as
personagens estão vivendo situações extremas (morte, loucura, sexo), das quais extraem uma
revelação brutal do real. São textos que geralmente encenam uma situação epifânica,
momento de uma "revelação poética" (PAZ, 1982), em que se vislumbra o real em todo seu
fascínio e horror, num instante de salto para a "outra margem".
Com o avanço de nossas leituras, descobrimos que Antonio Carlos Viana elegeu o
1
A oficina de leitura e criação de contos foi realizada na Universidade Estadual de Feira de Santana pelo
Professor e escritor Mayrant Gallo.
10
conto como espaço privilegiado de sua expressão e que tinha três outros livros publicados. O
primeiro, Brincar de Manja, foi publicado na década 70, para muitos críticos a idade do ouro
do conto brasileiro (em nossa visão, amparada por outras, momentos de cristalização dos
ganhos temáticos e formais originados principalmente nas décadas de 50 e 60). Viana ganhou,
no período, com o conto "Brincar de Manja", a menção de um dos melhores contos do ano de
1974. Publicou, ainda, os livros Em pleno castigo (1981) e O meio do mundo (1993). Vimos,
então, como a opção por uma perspectiva infantil e pelo erotismo era uma constante em seus
textos, como destaca Paulo Henriques Brito na apresentação de O meio do mundo e outros
contos:
[...]Muitas histórias neles incluídas seguem um roteiro semelhante:
um menino (quase sempre o narrador em primeira pessoa) vislumbra
confusamente algum aspecto perturbador da existência - o sexo,
principalmente, mas às vezes a morte, ou banalidade do real - numa
pequena epifania da miséria humana (BRITO, 1999, p. 8).
Também merece destaque em sua ficção a predominância da ambientação rural, o
que não quer dizer que não haja contos de ambiência urbana. inclusive os que trazem
outros ambientes que não remetem à realidade brasileira, a exemplo de um que situa a ação
em Marrakech ("Parque em Marrakech"). No entanto, a recorrência a um ambiente rural é
dominante. Como suas histórias apresentam situações-limite que configuram um momento de
luminosidade poética, a ambientação rural intensifica essa experiência, pois apresenta-se
como uma cicatriz arcaica, aberta - como uma ferida - no presente de um mundo
desencantado e globalizado. À sua maneira, Viana encena algo presente na atual ficção - que,
por falta de um termo melhor, chamaremos aqui regionalista - ao adequar a herança arcaica
recebida ao mundo contemporâneo.
Nosso recorte para análise concentrou-se nos dois mais recentes livros do autor: O
meio do mundo (1999) e Aberto está o inferno (2004), por uma única justificativa: os dois
livros reúnem boa parte de sua produção
2
. O meio do mundo e outros contos (seleção e
apresentação de Paulo Henriques Britto) é uma antologia que reúne contos dos três livros
anteriores e contos inéditos e Aberto está o inferno apresenta contos novos e contos
2
Antonio Carlos Viana pertence ao grupo de escritores que voltam ao texto, revisam-no, modificam-no,
reescreve-o. Se pegarmos os três livros anteriores (Brincar de Manja, Em pleno Castigo e O meio do mundo) e
compararmos com O Meio do mundo e outros contos e Aberto está o inferno, veremos que escapam de uma nova
revisão e reescritura pouco mais de uma dezena de contos. Vale ressaltar que, em 2009, quando esta pesquisa
estava em andamento, Antonio Carlos Viana publicou seu livro mais recente, Cine privê, pela Companhia das
Letras.
11
revisitados. Nosso corpus de análise constituiu-se basicamente das narrativas que apresentam
um menino-narrador relatando sua experiência erótica. Postulamos que, por um lado, essas
narrativas de meninos-narradores que relatam sua experiência erótica (cerca de um terço dos
contos dois dos livros) encenam um violento processo de conhecimento e autoconhecimento
levado a cabo pela "revelação poética" e, por outro lado, metaforizam o próprio processo de
criação ficcional. Nessas narrativas, sempre a encenação de uma situação-limite, ligada ao
erotismo, que leva à descoberta do mundo por um menino que, sendo sempre outro a cada
conto, permanece basicamente o mesmo: o autor, implícito nas redes do texto. Nossa análise,
portanto, além de levar em consideração os aspectos temáticos, também observou os aspectos
formais dos contos estudados. Aliás, numa análise adequada do texto literário, não é possível
dissociar esses dois aspectos.
No primeiro capítulo deste trabalho, "A ficção de Antonio Carlos Viana e a literatura
brasileira contemporânea", buscamos traçar uma contextualização da produção ficcional do
autor desde a publicação do primeiro livro até os dias atuais. Partimos do pressuposto de que
a década de 70 caracteriza um período de configuração de novos rumos e tendências da
literatura brasileira contemporânea. Delimitado o período, objetivamos situar, com apoio nos
estudos de críticos como Antonio Candido, Silviano Santiago, Nizia Villaça, entre outros, as
tendências temático-formais da ficção contemporânea, no Brasil, e traçar as confluências e
divergências com a obra de Antonio Carlos Viana. No segundo momento, nosso intuito foi
discutir a obra do escritor sergipano pela perspectiva do "regionalismo", tomando a "dimensão
regional" (CANDIDO, 1989, p. 161), também como um espaço para dramas humanos
universais.
No segundo capítulo, "O rito de passagem e seus aspectos: o erotismo e o menino-
narrador na ficção de Antonio Carlos Viana", discutimos os aspectos que compõem
propriamente o nosso recorte de estudo. Primeiro, analisamos o rito de passagem realizado
através da perda da inocência na ficção de Antonio Carlos Viana. Faremos uma sucinta
abordagem antropológica, para estabelecer a importância do rito no universo ficcional do
autor. Vale ressaltar que quando dizemos aqui "ficcional" estamos pressupondo a encenação
do rito na e pela linguagem, numa espécie de “jogo”, que é a celebração da própria linguagem
(BARTHES, 2002). Nosso intuito foi associar o rito, num nível explícito, a um processo de
busca de conhecimento e autoconhecimento, e no nível implícito, a um processo de indagação
recursiva da própria ficção. Isso coaduna com a noção de Ricardo Piglia quando diz que,
12
"num sentido, um escritor escreve para saber o que é literatura" (PIGLIA,1994, p. 69).
Colocamos em foco, em seguida, dois aspectos que compõem a encenação da perda
da inocência: a) o erotismo, elemento problematizador da perda que nos é encenada pela visão
do próprio menino; e b) o menino, ator e narrador do relato. A discussão se apoiará em teorias
sobre o foco narrativo, como as de Teodor W. Adorno, Walter Benjamim, Silviano Santiago,
Maria Lúcia Dal Farra, no intuito de perceber como esse menino narra sua experiência, não
mais investido pela autoridade e tradição da "sabedoria", mas visando apreender o sentido de
um evento que o deixa perplexo diante do peso brutal da realidade.
Analisamos o erotismos como um aspecto que instaura a busca do saber, no sentido
da descoberta do real. os aportes teóricos de Georges Bataille, em O Erotismo (2004), nos
auxiliarão a entendê-lo como uma força transgressora de questionamento e abertura do ser.
Também Octavio Paz (1967) traz aportes que nos levam a pensar o erotismo como um salto
do ser para a “outra margem”. São duas chaves de análise muito precisas suscitadas pela
própria ficção de Antonio Carlos Viana. Cabe aqui uma ressalva. Ricardo Piglia afirma, em "A
leitura de ficção", que não acredita em escritor sem teoria (PIGLIA, 1994, p. 68). Viana leu e
traduziu o livro de Georges Bataille, O Erotismo, o que nos possibilita insinuar que,
provavelmente, um diálogo implícito do universo ficcional de Viana como o universo
teórico-filosófico de Bataille. Todo escritor, de fato, deve ter uma "visão" sobre a própria
literatura
3
.
O terceiro e último capítulo desta dissertação, "A experiência erótica: o salto a uma
outra margem", foi o momento de um diálogo mais forte com os contos de Viana, no qual
deslindamos um "tumultuoso processo de conhecimento e autoconhecimento" (PEREYR,
2009, p. 05), instaurado, no caso, pela experiência erótica. Trata-se de um processo que
também metaforiza a forma de questionamento e autoquestionamento da própria ficção. É
nesta perspectiva que a experiência erótica é também travessia para a "outra margem", em
que, no momento da iluminação poética, o menino-narrador encontra-se com a "outridade",
com esse outro que se apresenta alheio e estranho a cada um de nós, mas que em última
instância, somos nós mesmos (PAZ, 1982, p. 156).
3
Cabe aqui explicar que , em grego, “teoria” significa precisamente visão.
13
1 ANTONIO CARLOS VIANA E A LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
1.1 Breves dados biográficos
Antonio Carlos Viana nasceu em 1944, na capital sergipana, onde fez licenciatura em
Letras pela Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe, para onde voltou,
mais tarde, para lecionar Teoria da Literatura e Literatura Brasileira. Fez no mestrado um
estudo sobre a obra de Nelson Rodrigues e no doutorado um estudo comparativo entre as
obras de Paul Valéry e João Cabral de Melo Neto. Coordenou e publicou o livro didático
Roteiro para redação: lendo e argumentando, pela Scipicione (1998), e manteve, durante
algum tempo, um curso de redação para alunos do ensino médio, duas empreitadas que
revelam a insatisfação do autor em relação ao nível de leitura e escrita de alunos que entravam
na faculdade de Letras; segundo ele, era necessário voltar ao “ponto zero” para então trabalhar
com a literatura. Atualmente dedica-se diariamente ao trabalho com a ficção e ministra, de
forma esporádica, oficinas literárias.
Viana tem seis livros publicados e alguns contos dispersos em antologias, coletâneas e
revistas. Seu primeiro livro foi Brincar de Manja (1974), cujo conto homônimo foi
selecionado como um dos melhores publicados naquele ano, integrando a antologia Os
melhores contos de 1974 (1975). Em 1981, sete anos após a publicação do primeiro livro,
publicou, pela editora Hucitec, em convênio com a Subsecretaria de Arte e Cultura da
Secretaria de Estado da Educação e Cultura de Sergipe, Em pleno castigo. Em 1993, lançou o
terceiro livro, O meio do mundo, ganhador do II Concurso Nacional de Literatura, promovido
pela Associação Gaúcha de Escritores em conjunto com a Prefeitura Municipal de Garibaldi.
Em 1999, pela Companhia das Letras, o autor lançou a antologia O meio do mundo e outros
contos, em que reuniu contos publicados nos livros anteriores, além de alguns inéditos.
Aberto está o inferno (2004), pela Companhia das Letras, em que também reúne contos
revisitados e inéditos. Cine Privê (2009) é o seu livro mais recente.
1.2 Antonio Carlos Viana e a literatura brasileira contemporânea
Antonio Carlos Viana publicou seu primeiro livro em 1974, período em que a
narrativa curta firmou-se, desenvolvendo temáticas e ganhos formais das duas outras décadas
14
anteriores. Trinta anos separam o primeiro do último livro do autor, o que nos convida a uma
visão panorâmica da literatura brasileira, em evidência nesse período, principalmente no
tocante ao conto, para poder contextualizar a obra do contista sergipano.
O primeiro livro insere-se num período em que se configuram novos rumos e
tendências na literatura brasileira. Alguns críticos delimitam como marco da literatura
contemporânea, no Brasil, um fato político-histórico: o golpe militar e a ditadura política
instaurada em 1964, que trazem consequências sociais, políticas e econômicas impactantes
para a vida e o imaginário brasileiros. São notórios os efeitos que tal regime político causou à
literatura como um todo, e à prosa de ficção, em particular, principalmente pela censura
imposta aos escritores e aos artistas de maneira geral.
Antes de prosseguirmos, é preciso delimitar a abrangência do termo “contemporânea”
que estamos usando aqui. Primeiro, enquanto um recorte temporal que se inicia no período
pós-64, como o entendem Flora Süssekind (2004), Luciana Stegagno Picchio (1997) e
Silviano Santiago (2002). Portanto, seguindo a trilha desses e de outros críticos que refletiram
sobre os rumos da literatura brasileira contemporânea, como Antonio Candido (1989) e Nizia
Villaça (1997), traçaremos um painel da literatura produzida a partir do golpe militar até os
nossos dias. Segundo, entendemos como contemporânea uma produção amplamente
caracterizada pela pluralidade, o que torna difícil uma reflexão exaustiva sobre temas e
tendências. O que faremos aqui é esboçar alguns pontos e aspectos predominantes para
considerar, em contexto, a obra de Antonio Carlos Viana, buscando discutir de que forma ela
se aproxima e se distancia de alguns temas e tendências.
Em relação à narrativa curta, a década de 70, como referimos, cristaliza os ganhos
formais e temáticos da década de 60 período que, como descreve Ângela Vilma em sua
dissertação de mestrado sobre a contística de Herberto Sales, significou, além do
florescimento do gênero, “a década da 'solidificação' das experimentações iniciadas em 45”
(VILMA, 2004, p. 60). Italo Moriconi, por sua vez, define a década de 70 como momento de
apogeu do conto no Brasil (MORICONI, 2000, p. 281). Ainda segundo ele, “o conto afirma-
se como instrumento adequado para expressar artisticamente o ritmo nervoso e convulsivo da
década passional” (MORICONI,2000, p. 281), buscando trazer “à tona o lado violento e
obscuro da realidade” (MORICONI,2000, p. 281).
Antonio Candido (1989), em “A nova narrativa”, refere-se, a respeito da prosa de
15
ficção, a uma “legitimação da pluralidade” e afirma que: “não se trata mais de coexistência
pacífica de diversas modalidades de romance e conto, mas de desdobramentos destes gêneros,
incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas em suas fronteiras” (CANDIDO,
1989, p. 269). Ainda segundo ele, o “envolvimento agressivo parece ser uma das chaves para
se entender a nossa ficção recente” (CANDIDO, 1989, p. 210), e o conto representaria o
melhor dessa ficção pela penetração veemente no real, “graças a técnicas renovadoras,
devidas quer à invenção, quer à transformação das antigas” (CANDIDO, 1989, p. 210).
Alfredo Bosi (1995) e Fábio Lucas (1989) são de opiniões semelhantes. Para Bosi, “o conto
cumpre a seu modo o destino da ficção contemporânea” (BOSI, 1995, p. 7), condensando e
potencializando em seu espaço todas as possibilidades da ficção. Lucas, por seu turno, afirma
que o conto é um dos gêneros que mais se adequou às exigências modernas (LUCAS, 1989, p.
108).
Como tendência da prosa de ficção contemporânea, Candido ainda apresenta o que ele
chama de ruptura do pacto realista, com a presença de um universo insólito, tendência que
veremos evidenciada por outros críticos com a noção de realismo mágico, fantástico ou
alegórico. Realça também a tendência do “realismo feroz”que, para ele:
[…] talvez se perfaça melhor na narrativa em primeira pessoa, dominante na
ficção brasileira atual […]. A brutalidade da situação é transmitida pela
brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa
que assim descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e
matéria narrada (CANDIDO, 1989, p. 212).
Tal dominância, segundo o crítico paulista, revela o esforço do escritor para apagar as
distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular outro traço de maior importância
na ficção atual que, associado à atomização do ímpeto narrativo realizado de melhor forma no
conto, na crônica e no sketch, “permite manter a tensão difícil da violência, do insólito ou da
visão fulgurante” (CANDIDO, 1989, p. 214).
O escritor sergipano é eminentemente contista. O conto, como veremos adiante,
tornou-se o gênero privilegiado de sua expressão. Uma tendência marcante, principalmente
em relação ao primeiro livro de Viana é a presença do insólito. O livro sofre forte influência
do realismo mágico. O conto “Brincar de Manja”, por exemplo, narra, sob uma perspectiva
infantil, uma terrível encenação por parte dos habitantes e do próprio povoado para
escamotear a morte do irmão do menino-narrador: o vento das nove deixa de passar, as
16
pessoas passam dias e noites na calçada das casas, a escola transforma-se num barco e sai à
deriva levando colegas e professora do menino-narrador e sua mãe mantém a rotina de
fabricar doces de goiaba como se não tivesse um morto em casa. Outro conto, “Parábolas dos
gatos ao amanhecer”, relata, também sob um olhar infantil, uma “agoniante” morte de gatos
após a partida de um misterioso casal de namorados do vilarejo. Perpassa os contos do livro
uma “situação de pesadelo” (BRITO, 1999, p.9), que indiretamente refere-se ao “pesadelo
real”, instaurado pelo estado político e pela censura.
Essa tendência cede espaço a uma tendência mais “realista”, no segundo livro,
característica que marcará também os livros subsequentes de Antonio Carlos Viana. Trata-se,
na verdade, de um “realismo do discurso” (LUCAS, 1989, p. 139), que ganhou corpo,
sobretudo, a partir de Em pleno castigo, em que não a preocupação com a documentação
referencial: evidencia-se a “atenção ao processo de escrita” (LUCAS, 1989, p. 109).
Dentre as tendências destacadas por Candido, a que contextualiza mais precisamente
os contos de Antonio Carlos Viana é a dominância da narrativa em primeira pessoa. No caso,
como vimos, o narrador em primeira pessoa, muitas vezes associado a um olhar infantil,
ambientado num espaço rural, e que, sob o signo da experiência erótica, descobre de forma
brutal a realidade. Tal característica de muitos contos do escritor sergipano não encurta a
distância entre o narrador e a matéria narrada, mas adensa a brutalidade da situação, a
exemplo de “Olhos de fogo” (O meio do mundo e outros contos), em que a narradora narra
sua história recheada de um erotismo torpe, de loucura e de morte. A narrativa constitui-se da
fala dirigida à mãe pela filha, em que relata a violenta experiência erótica a que o pai a
submete, a que se segue o parricídio e a consequente loucura em que ela se encerra. O
discurso da personagem torna-se ainda mais brutal pela falta de pontuação a exceção da
vírgula, ao longo do texto. O discurso é como que despejado, revelando, assim, no plano da
forma, a dupla violência sofrida pela personagem: a do pai e a do possível enfermeiro do
manicômio, quando lhe aplica a medicação, o que ela associa ao ato do pai:
[…] a senhora em conversinha com esse homem tão limpo com esses olhos
de fogo me prendendo desse jeito, porque minha cabeça, meu corpo sobre a
cama e ele querendo escorrer dentro de mim, me botando de bruços, uma
picada tão fina que nem machuca como ele me machucava, mas que tanto
entontece, que sempre me entristece, minha mãe (VIANA, 1999, p. 90).
Flora Süssekind (2004), em Literatura e vida literária, distingue duas trilhas que, em
17
seu ponto de vista, caracterizam a literatura brasileira da década de 70 e do início dos anos 80:
“o naturalismo evidente no romance-reportagem ou disfarçado das parábolas e narrativas
fantásticas e a 'literatura do eu' dos depoimentos, das memórias, da poesia biográfico-
geracional” (SÜSSEKIND, 2004, p. 72). Segundo ela, a preferência por uma “literatura-
verdade”, ou pelo realismo mágico” em detrimento de uma linguagem mais ficcional, se
pela emergência de um grande interlocutor imposto pelo estado político: a censura
(SÜSSEKIND, 2004, pp. 17-18). Como frisamos, Brincar de Manja é um livro marcado
pela presença do discurso do realismo fantástico, mas nele não percebemos explicitamente a
“obsessão da referencialidade”, tal como a define Süssekind. Pelo contrário, nos contos do
livro se insinua o que vai ser preponderante em Viana: a referida recorrência a um menino-
narrador, que traz uma perspectiva não-totalizadora da experiência associada ao erotismo
aspecto que revela uma preocupação com a linguagem e com o estatuto ficcional: trata-se de
uma obra que joga com as elipses, os subentendidos, as alusões, buscando uma linguagem
mais ficcional”.
A obra de Antonio Carlos Viana escapa, sob certos aspectos, a esses rumos da
literatura contemporânea traçados por ssekind. Nela não uma preocupação em fazer
uma “literatura mimética”. Ao contrário, revela “uma tendência contemporânea em que a
narrativa acaba tendo a si mesma como referente”, como afirma Fábio Lucas (LUCAS, 1989,
p. 133) a respeito da ficção de Rubem Fonseca, que, diga-se de passagem, insere-se no quadro
das influências de Viana. As narrativas do contista sergipano, ao afirmar-se enquanto ficção,
instauram, como já dissemos, um “realismo do discurso”. É claro que vemos encenado em
boa parte dos contos, como analisaremos adiante, o ambiente rural brasileiro, minimizado, na
contemporaneidade, pela produção maciça da prosa urbana. Mas, cabe desde já a ressalva:
com Viana, estamos distante do discurso sociológico que marcou principalmente o romance
regionalista de 30.
A ambientação rural da maioria dos contos de Viana nos leva indiretamente a um
mundo de forte herança arcaica no qual a modernidade e a pós-modernidade chegaram de
forma violenta ou precária, haja vista a fala de Ronaldo Correia Brito, em entrevista publicada
na revista virtual Rascunho a respeito da invasão das lan houses nas pequenas cidades do
sertão e da prostituição de crianças e adolescentes nos postos de gasolina (BRITO, 2009, on
line). A tensão entre os dois mundos, o arcaico e o pós-moderno, está presente também nos
contos de Antonio de Carlos Viana, mas, numa perspectiva diversa: trata-se de uma tensão
18
construída primeiramente na e pela linguagem e que só dessa forma ilumina a realidade. Neste
sentido, o escritor sergipano escapa ao aprisionamento exposto por Flora ssekind,
produzindo uma ficção que não esconde seu estatuto de ficção, que desvela sua ficcionalidade
e que, ao fazê-lo, termina por desvelar a própria realidade na qual se insere.
Silviano Santiago, em dois ensaios de Nas malhas das letras (2002) “Poder e
alegria: a literatura brasileira pós-64 reflexões” e “A prosa literária atual” –, também
descreve rumos e tendências na literatura brasileira contemporânea e fornece algumas chaves
analíticas que consideramos importantes para pensar a obra de Antonio Carlos Viana. No
primeiro, buscando estabelecer as características temáticas da produção literária
contemporânea, parte de uma distinção básica entre a nova literatura e a anterior, segundo a
qual a nova literatura deixa de apresentar como tema principal e dominante a exploração do
homem pelo homem. Segundo ele:
De maneira tímida e depois obsessiva, a literatura brasileira a partir da queda
do regime Goulart e do golpe militar de 64, passou a refletir sobre o modo
como funciona o poder em países cujos governantes optam pelo capitalismo
selvagem como norma para o progresso da nação e o bem-estar dos cidadãos
(SANTIAGO, 2002, p. 14).
Uma literatura que descobre, assustada e indignada, a violência do poder e que opta
dramaticamente pelos temas do particular e do cotidiano, da cor da pele, do corpo, da
sexualidade, que mostra a cara dos donos do poder e que se insinua como rachaduras no
concreto, com voz baixa e divertida em tom menor e coloquial (SANTIAGO, 2002, p. 21).
Uma literatura em que “a alegria desabrochou tanto no deboche, quanto na gargalhada, tanto
na paródia e no circo quanto no corpo humano que buscava a plenitude de prazer e gozo na
própria dor” (SANTIAGO, 2002, p. 26). Para Santiago, a alegria talvez tenha sido a idéia
principal da boa literatura pós-64, o que configuraria uma ruptura no processo evolutivo linear
do modernismo, marcando o advento do pós-modernismo na literatura brasileira.
Antonio Carlos Viana opta pelo corpo, pela problematização do erotismo, que se
insinua como rachaduras no concreto, mas não pela plenitude do prazer. O erotismo em seu
contos, muitas vezes, está desvinculado da idéia de prazer, está ligado mais a uma descoberta
nauseante do sexo e do real, associada, quase sempre, ao grotesco. É o que se dá, por
exemplo, em “O dia em que Céu casou”, que encena a descoberta do sexo do menino-narrador
com “Lita”, uma presença estranha no seio da família, da qual não sabemos nada, a não ser
19
que é portadora de elementos demoníacos simbolizados no conto pela sua demência, como diz
o narrador-personagem: “Lita cada dia mais idiota, dormia encolhida no outro lado da cama,
do lado da parede. Era uma alma penada, meio muda, dizendo palavras soltas e poucas”
(VIANA, 1999, p. 19).
O corpo erótico na ficção vianiana não se dissocia do corpo esfomeado (EAGLETON,
2006, p. 15). Esse é também um aspecto característico em Rubem Fonseca, como evidenciou
Deonísio da Silva (1983) em O caso Rubem Fonseca: violência e erotismo em Feliz ano novo,
desvelando duas fomes nas personagens fonsequianas: a fome da sobrevivência (estômago) e
do desejo (erotismo):
Essas personagens são extremamente carentes, principalmente de
alimentação, moradia, instrução e afeto. Os limites de seus atos são marcados
pela sobrevivência e pelo desejo. Precisam não somente matar a fome, como
também matar a fome sexual, no sentido mais pleno na sexualidade (SILVA,
1983, p. 62).
Essas duas fomes estão presentes na ficção vianiana. Mas nela não há, em primeiro
plano, a busca da consecução do prazer, a necessidade de matar conscientemente a “fome
sexual”. Nela, muitas vezes, o erotismo constitui-se como uma “força humana” (FONSECA,
1991) que impele os personagens a um desvelamento cruel da realidade ou desencadeia um
conflito trágico. A alegria e o prazer em Viana são percebidos enquanto ausência; em seu
universo ficcional “não vitórias nem nenhuma perspectiva de redenção”, como afirma
Paulo Henriques Brito na apresentação de O meio do mundo e outros contos (1999, p. 9). A
encenação erótica em vários de seus contos põe o narrador-personagem diante de um evento
perturbador da existência, desvelando a violência do fato e a ordem repressora em que está
inserido. Nesse sentido, a noção de “crueldade” como operador teórico, como propõe Ângela
Maria Dias (2004), permitiria uma análise mais apropriada desse universo ficcional, que a
noção de alegria”, identificada por Santiago em parte significativa da produção do período
em foco.
No segundo ensaio, para tentar uma classificação da literatura dos últimos anos, dentro
do que denomina de anarquia formal”, Santiago começa discutindo o tema que mais tem
instigado a ficção atual: o corpo como lugar de descoberta do ser. Ele diz:
Como tema instigante dos últimos anos, o corpo é o lugar da descoberta do
ser, retomada da força dionisíaca em oposição à força apolínea, e o erotismo
20
é a força que impele o corpo a um comportamento o-racional e não
reprimido; o corpo é lugar da liberdade de onde sai o grito do indivíduo
contra as sociedades repressivas (SANTIAGO, 2002, p. 32).
O erotismo, segundo o crítico, é “força de saber”, inventor de caminhos. Esse é o
sentido de erotismo que encontramos nos contos de Antonio Carlos Viana. Um erotismo que
abre as portas da percepção do menino-narrador, geralmente imerso num ambiente repressor.
Quase sempre, não ouvimos o grito de liberdade desse narrador, mas o encontramos nauseado
com a descoberta de um mundo asfixiante e brutal. O conto “Domingos da paixão” é
exemplar neste sentido. Nele, o menino-narrador relata seu rito de passagem, associando-o ao
ritual de castrar animais realizado por sua tia figura marcante da ordem repressora no
período da scoa. O conto, num nível simbólico, encena o despertar da sexualidade e sua
tensão com a ordem castradora. Como veremos, se há alguma brecha para a busca do prazer é
pela possibilidade do menino-narrador deixar o ambiente repressor e ir morar com os pais.
No que se refere ao aspecto formal, Santiago afirma que a “anarquia formal” é um
dado importante para mapear a prosa literária atual. Mas, segundo ele, essa anarquia
[…] não deve ser tomada, a priori, como um dado negativo na avaliação da
prosa literária de agora. Pelo contrário, demonstra a vivacidade do gênero,
capaz de renascer das próprias cinzas, fala da maleabilidade da forma, pronta
para se moldar idealmente a situações dramáticas novas e díspares, e
exprime a capacidade do romancista, que sempre busca a dicção e os
caminhos pessoais (SANTIAGO, 2002, p. 34).
No entanto, tal anarquia não suplanta o que o autor chama de desejo dos romancistas “de
reencontrar as raízes do gênero e readaptá-lo à realidade brasileira”. Esses romancistas
“guardam em comum a preocupação com o autoconhecimento revelado pela experiência da
escrita romanesca” (SANTIAGO, 2002, p. 35). Mesmo sem parâmetros precisos que
permitam aglutinar a nova literatura brasileira, Santiago tenta estabelecer algumas tendências
predominantes no romance atual: (a) a do memorialismo ou da autobiografia, que busca a
conscientização política do leitor; (b) a do romance-reportagem com a mistura de fact e
fiction; (c) a dos relatos das minorias, ligados à descentralização da fala e do saber, nos quais
subjaz uma idéia de escrita como espaço para articular uma lacuna no saber; e (d) a quarta
tendência configuraria o retorno da prosa de caráter regionalista que, segundo Santiago,
discute “as injustiças que são feitas em nome de um projeto de nação unitário, centrado no
sul” (SANTIAGO, 2002, p. 43).
21
Como ressaltamos, guardadas as devidas proporções e as especificidades dos
gêneros, com certo cuidado analítico, podemos situar a ficção de Antonio Carlos Viana, ainda
que com ressalvas, em duas dessas tendências. Se pensarmos o menino-narrador como uma
instância narrativa que cria uma perspectiva que não consegue dar conta do real, que produz
vazios, elipses e subentendidos que convidam o leitor à construção de sentidos, poderemos
situar a obra de Viana parcialmente na tendência dos relatos das minorias. Por outro lado, se
pensarmos na predominância de uma ambientação rural, podemos pensar a ficção do escritor
sergipano como prosa regionalista, apesar do próprio autor ver o termo como reducionista e
castrador de sentidos. Não vemos a preocupação com um projeto unitário de nação na recente
prosa regionalista. Como afirma Hermenegildo José Bastos, tal preocupação desde Graciliano
Ramos foi deixada para trás (BASTOS, 2001, p. 52). No regionalismo de Viana, o que temos
é uma tensão mais geral associada à questão de como adequar a herança do mundo arcaico
com os elementos da pós-modernidade que vão invadindo com mais força as cidades do
interior do país. Nessa tensão, a ficção faz emergir um imaginário arquetípico, perpassado
pelo daimon erótico.
Em sua História da literatura brasileira (1997), em que dedica uma capítulo à
literatura produzida “dos anos do golpe ao fim do milênio”, Luciana Stegagno Picchio afirma
que o conto é o gênero que mais revela a originalidade da nova literatura brasileira
(PICCHIO, 1997, p. 640). E que dentro dessa nova literatura havia, além daqueles que
“souberam chegar ao universal sem abandonar sua específica tradição temática e estilística
nacional” (PICCHIO, 1997, p. 639), os que trouxeram à literatura brasileira “a modernidade
agressiva e anti-retórica, juntamente com a velocidade estilística dos modelos norte-
americanos” (PICCHIO,1997, p. 639), situando Rubem Fonseca com suas crônicas
urbanas, cruéis e poéticas, e Dalton Trevisan, pela linguagem seca, pela velocidade com que
arrasta o conto (PICCHIO, 1997, p. 639). Duas tendências também encontradas nos contos de
Viana. Sua ficção mantém um forte diálogo com a tradição, ao seu modo, ao mesmo tempo
em que se aproxima da crônica cruel e poética de Fonseca e da linguagem seca de Trevisan. O
conto “Quando meu pai enlouqueceu”, de Aberto está o inferno (2004), oferece-nos uma
chave de leitura que mescla essas duas tendências: numa linguagem concisa e veloz, o
narrador em primeira pessoa relata sua viagem de retorno depois da derrota na urbe moderna,
num forte diálogo com a tradição regionalista brasileira que tematizou o contundente êxodo
rural sertanejo, numa perspectiva que já aparece em Essa terra (2001), de Antônio Torres :
22
Chovia no dia em que meu pai enlouqueceu. Sempre chove em dia de
desgraça. Foi assim quando meu irmão quebrou o braço, quando minha mãe
sofreu um aborto e no enterro da minha avó. A gente voltava do Rio, onde
fomos morar e não deu certo. A morte de Getúlio acabara com os sonhos de
meu pai (VIANA, 2004, p. 15).
Antes de tecer algumas considerações mais gerais e entrelaçar os fios do percurso que
estamos trilhando, aqui, na análise dos ensaios acerca da literatura contemporânea, vamos
discutir algumas reflexões de Nizia Villaça, em Paradoxos do pós-moderno: sujeito e ficção
(1996), em que ela discute a condição pós-moderna no contexto da ficção brasileira. Villaça
constatou duas linhas na criação e crítica contemporâneas que encerram duas visões opostas
acerca da linguagem (VILLAÇA, 1996, p. 71). A primeira vertente encerraria, segundo a
autora, a descrença na capacidade de dizer da linguagem, colocando “mais a descoberto a
arbitrariedade do signo, a restrição do sentido por ela determinada, a problematização das
relações do texto com um referente, com um real” (VILLAÇA, 1996, p. 71). A segunda
caracteriza-se pela manutenção de um discurso simbólico, mítico (VILLAÇA, 1996, p. 71).
Nesta vertente, utilizando os conceitos de “analogia” e “ironia” do poeta e pensador mexicano
Octavio Paz, ela analisa o universo ficcional de Dalton Trevisan, estruturado, segundo ela, no
eixo Eros-Thanatos, sublinhando a morte representada nas falas estratificadas da pequena
burguesia. Pensar a literatura brasileira por estas duas vertentes seria problemático; o texto
literário de maneira geral sempre expôs a arbitrariedade do signo e as relações do texto com
um referente. Isso não é específico, mas apenas predominante na s-modernidade. Aliás,
como afirma a própria autora,
[…] não poderíamos dizer que a nossa produção mais recente esteja
mergulhada no primeiro caso. O da linha
pastiche/fragmento/desreferencialização/intertextualidade como querem
fazer crer alguns críticos no afã de nos colocar pari passu com a pós-
modernidade européia e americana. A própria realidade brasileira,
evidentemente, não se insere como um todo nos padrões tecnológicos,
políticos, morais, econômicos que configuram a posmodernidade nos termos
acima descritos (VILLAÇA, 1996, p. 75).
Por outro lado, não podemos mergulhar toda a literatura brasileira na idéia da
manutenção do discurso simbólico, da forma colocada pela autora, de reencantamento do
signo, apontando para um tempo e espaço míticos, cujo principal exemplo seria a obra de
23
Guimarães Rosa (VILLAÇA, 1996, p. 77). Se houvesse uma fronteira clara entre as duas
vertentes, teríamos uma boa e segura chave de leitura para a literatura contemporânea e para a
obra do contista sergipano. O foco narrativo em Antonio Carlos Viana reflete toda uma
problematização em torno da arbitrariedade do signo e da relação referencial; nesse sentido,
estaria situado na primeira linha, mas seus contos, de forma mais nue que em Guimarães
Rosa, apresentam a manutenção do discurso simbólico, com a a recorrência do tema do rito
de passagem da infância para a idade adulta, celebrado em várias perspectivas em sua obra. A
bem da verdade, Nízia Villaça traça um panorama mais amplo da prosa contemporânea,
revelando uma pluralidade de tendências. O desejo de inserir a ficção brasileira na pós-
modernidade obscurece um traço dessa ficção: uma forte tendência a um realismo mimético
ainda presente na contemporaneidade, haja vista romances como: Cidade de Deus, de Paulo
Lins, e outros que buscam mimetizar a realidade dos grupos marginalizados.
Para Adriana Maria Almeida de Freitas (2009, on-line) caracteriza a literatura
brasileira contemporânea a continuidade e a ruptura com a tradição. Nesse sentido, ela
estabelece três tendências: a primeira, situada principalmente nas décadas de 70 e 80, marcada
pela “proliferação de obras que pretendiam resgatar a memória individual ou coletiva e
preencher, via literatura, os imensos vazios de uma sociedade que durante muito tempo se viu
privada de informação”(FREITAS, 2009, on-line); a segunda, tendência de natureza mítico-
simbólica, que, segundo a autora, aparece remodelada em novas faces: “trata-se de obras que
apesar de priorizarem o trabalho ficcional ou parodístico, terminam por sugerir –
conscientemente ou não uma essência nacional, coesa ou fragmentada, a ser restituída à
sociedade brasileira” (FREITAS, 2009, on-line), citando como exemplo Viva o povo
brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro e Galvez, o imperador do Acre, de Márcio Souza; a
terceira estaria marcada pelo alargamento das fronteiras do ficcional, num movimento de
autorreferencialidade. Nela estariam situadas as obras Stella Manhattan, de Silviano Santiago,
Bandoleiros e Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll. Mas Freitas ressalva que a
autorreferencialidade não é um aspecto intrínseco à contemporaneidade: esta apenas a
radicalizou; e destaca, neste sentido, as contribuições de Machado de Assis, Guimarães Rosa e
Clarice Lispector.
Entre a segunda e a terceira tendências propostas pela autora, podemos situar a obra de
Antonio Carlos Viana. Temos nela encenadas temas mítico-simbólicos, como o rito de
passagem referido, a loucura e a morte, situações-limite da existência humana. Por outro
24
lado, principalmente através do foco narrativo e de uma retomada do tema da perda da
inocência, a ficção de Viana pode ser lida sob a perspectiva de autorreferencialidade, pois
chama a atenção sobre si mesma e sobre seus processos enunciativos, haja vista a situação
irônica que se estabelece entre o olhar ingênuo do menino-narrador e a ótica do autor-
implícito, que, invisivelmente, governa aquele.
Os ritos de passagem da infância para a idade adulta, celebrados no universo ficcional
de Antonio Carlos Viana, metaforizam a própria celebração do processo criativo. São ritos da
própria linguagem, numa perspectiva metaficcional, em que a ficção e o escritor em seu
processo criativo se autoquestionam. Esse recurso, associado no caso de Viana a uma
perspectiva infantil de narrar, instaura, tomando as palavras de Roberval Pereyr, em estudo
sobre a obra de Campos de Carvalho, “um tumultuoso processo de conhecimento e
autoconhecimento” (PEREYR, 2009, p. 5). Tal processo perpassa o corpo, como vimos,
mas avança para o universo simbólico humano, desestabilizando suas estruturas e quadros de
referência cognitivos.
Judith Grossmann, em Temas de teoria da literatura (1982), discute o caráter
metalinguístico da literatura. Segundo ela, “a obra literária deve ser considerada como um
produto sincrônico de uma hierarquia de metalinguagens, que vai dos discursos não-literários
ao discurso literário, como culminação, e ainda, de uma diacronia de metalinguagens
literárias” (GROSSMANN, 1982, p. 9). Luiz Costa Lima (2006), em estudo mais recente,
define o discurso ficcional como um discurso que chama atenção sobre si mesmo, no qual está
em questão não postular uma verdade isso, segundo o teórico, constitui o discurso
historiográfico mas colocá-la entre parênteses (LIMA, 2006, p. 21). Tal atributo pertence a
qualquer texto do campo ficcional. A ficção contemporânea, no entanto, “assume maior
consciência” em relação a ele, estabelecendo um jogo na e com a linguagem, que poderíamos
traduzir aqui no sentido barthesiano de “trapaça” (BARTHES, 2002), em que o próprio
processo criativo e o estatuto ficcional são colocados em cena, como um jogo, num recursivo
processo de questionamento e autoquestionamento.
Autoquestionamento no sentido que lhe Hermenegildo José Bastos (2001), num
ensaio sobre a obra de Murilo Rubião, que integra uma pesquisa mais ampla sobre a ficção
contemporânea. Para o autor, em Murilo Rubião “a literatura se auto-representa como
mecanismo diabólico de construção de fantasmas e monstros. Este tema o aproxima de outros
escritores brasileiros, cujas obras o formas de autoquestionamento literário” (BASTOS,
25
2001, p. 15). Segundo o autor, o fantástico é um elemento diferencial da ficção de Rubião que
radicaliza o autoquestionamento da ficção e do próprio processo de escrita, pois “os contos
narram a história da sua produção” (BASTOS, 2001, p, 102). Exemplar neste sentido é o
conto “Nadinha” (O meio do mundo e outros contos). Nele, com as palavras de Paulo
Henriques Britto, “o extremo do patético recebe uma abordagem de contenção extrema, e o
resultado é um conto magistral que cabe inteiro em pouco mais de uma página” (BRITTO,
1999, p. 10). O conto narra de forma avara, a avara vida de Nadinha, personagem que
título ao conto. A rala vida da personagem está expressada numa extrema contenção de
linguagem. Ao mesmo tempo em que é curto para simbolizar a insignificância da vida da
personagem, em sentido contrário, o conto extrai o ximo de sentido da vida de Nadinha e
da linguagem concisa do relato. Daí a perfeita simetria entre tema e forma. Ainda nesta
perspectiva, o conto revela muito do processo de criação do autor: dizer muito numa precisa
concisão de linguagem que se nota desde a primeira frase: “Nasceu assim e assim cresceu: um
nadinha” (VIANA, 1999, p. 24).
1.3 A dimensão regional em Antonio Carlos Viana
Fábio Lucas, no ensaio “O conto no Brasil moderno: 1922-1982”, comenta o
abrandamento da tendência regionalista em favor da problemática urbana, devido basicamente
a um fator sociológico: “a forte concentração urbana que se verificou no país” (LUCAS,
1989, p. 136). Segundo ele, para percebermos esse abrandamento:
[...]Basta que comparemos o realismo do conto regionalista, na sua
transparência, preocupado em transcrever o ambiente, físico e social, com o
realismo do período predominantemente urbano do conto, voltado para uma
atividade esquadrinhadora e descobridora do ambiente, liberto da obrigação
documental e denotativa, com que se comunica o horror da ambigüidade na
ficção realista-naturalista do século passado (LUCAS, 1989, pp. 137-138).
Tal fala encontra ressonância num texto ficcional, que o antecede em, pelo menos,
uma década. Referimos-nos a “Intestino grosso”, um conto metaficcional que integra o livro
de contos Feliz ano novo, de Rubem Fonseca (2004), publicado originalmente em 1975. No
conto, intercalam-se duas vozes, a de um jornalista-entrevistador e a de um escritor que
conhecemos pelo nome de “Autor” que fala de seu universo ficcional – possivelmente o alter-
ego de Rubem Fonseca. Situado estrategicamente no final do livro, o conto funciona como um
26
posfácio, uma chave de leitura, para os contos anteriores e para a própria ficção fonsequiana.
Num dos trechos da mesma entrevista, o jornalista pergunta ao “Autor” se existe uma
literatura latino-americana, ao que ele responde:
Não me faça rir. Não existe nem mesmo uma literatura brasileira, com
semelhanças de estrutura, estilo, caracterização, ou o que seja. Existem
pessoas escrevendo na mesma língua, em português, o que já é muito e tudo.
Eu nada tenho a ver com Guimarães Rosa, estou escrevendo sobre pessoas
empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado. […]
Não dá mais para Diadorim. (FONSECA, 2004, p. 173).
Num trecho anterior da entrevista, respondendo a pergunta a respeito de sua primeira
publicação, ele diz: “Demorou. […] Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os
sertões da vida. Eu morava num edifício de apartamento no centro da cidade e da janela de
meu quarto via anúncios coloridos em gás neon e ouvia barulho de motores de automóveis”
(FONSECA, 2004, p. 164). Sem muitas mediações, estamos diante do “Bicho urbano”,
cantado por Ferreira Gullar em A vertigem do dia (GULLAR, 1997, p. 303), um sujeito que,
imerso no espaço da grande cidade, embotado de fumaça e gente, pode falar de seu
universo. Daí sua negação de espaço à ficção de caráter regionalista que expressa na fala:
“Não dá mais para Diadorim”.
As ressonâncias com o texto de Fábio Lucas são evidentes, principalmente no que diz
respeito às consequências estéticas da concentração urbana e à idéia de um realismo urbano.
O próprio conto é exemplar nesse sentido, raleando a ficção, para tornar a matéria narrada um
discurso conceitual, uma discussão de idéias, encurtando a distância entre verdade e ficção
(VIDAL, 2000, p. 158), e denotando o afastamento do realismo-naturalismo de que falava
Fábio Lucas. O universo ficcional de Fonseca é eminentemente urbano, e, conforme
Ariosvaldo José Vidal, em vários momentos de sua obra, Fonseca busca compreender o papel
da literatura e do artista numa sociedade cada vez mais poluída e estandardizada pela imagem
eletrônica. Mas como afirma Candido: O mundo rústico do sertão ainda existe no Brasil e
ignorá-lo é um artifício” (CANDIDO, 1989, p. 23). Antonio Carlos Viana, em resposta, por e-
mail, também disse-nos que: “a gente não pode esquecer [...] que existe um mundo dos
grotões, [...] que necessita de alguém que lhe voz. É isso que faço, dar voz a personagens
de um mundo rural, que, hoje, depois das antenas parabólicas, não é mais tão virgem assim”
(VIANA, 2009. Grifo nosso)
4
. O que evidencia que o universo rural não está esgotado em
4
Ver entrevista anexa.
27
nossa literatura como prenunciou o personagem de Rubem Fonseca, mas que como afirma
Ronaldo Correia de Brito, tornou-se tão complexo como o universo urbano (BRITO, 2009). E
os personagens desse ambiente sofrem uma doença grave: “Adequar o mundo arcaico que
herdaram ao mundo globalizado em que se viram inseridos de forma brutal, num intervalo
muito curto” (BRITO, 2009). E, como afirma Mayrant Gallo, na apresentação da entrevista de
Antonio Carlos Viana à revista Iararana: “[...] o campo perdeu a inocência, tornou-se tão
terrível e doentio quanto o espaço urbano das grandes metrópoles, sempre pintado desde
tempos imemoriais, como cenário de dor e infâmias” (GALLO apud VIANA, 2006, p. 22).
Ronaldo Correia de Brito refere-se ao seu recém-publicado Galiléia (2008) romance
no qual a tensão entre o mundo arcaico herdado e o mundo globalizado é muito forte: talvez
essa tensão possa ser a chave analítica da ficção regionalista contemporânea. No caso de
Antonio Carlos Viana, revela-se, principalmente, no relato do rito da perda da inocência:
trata-se de uma tensão que não se desfaz, que permanece diante da revelação brutal da
realidade. O ambiente rural torna-se um espaço em que os personagens são expostos a
situações mais extremas” (HOLHFELDT, 1988, p. 86). se faz necessário dizer que o que
estamos postulando aqui é que a recorrência a uma ambientação rural nos contos de Viana é
imprescindível porque seus personagens estão vivendo situações-limite marcadas pela forte
herança arcaica do “impulso mítico” (SOUSA, 1988, p. 16), metaforizado pelo rito de
passagem plasmado pela linguagem do contista. E aqui nos é imposta uma ressalva.
Ariosvaldo José Vidal, analisando o conto “Intestino grosso”, afirma que o encurtamento
entre a ficção e a realidade nega ao texto a imersão no passado, que segundo ele é a matéria-
prima do narrador (VIDAL, 2000, p. 158). Mas Ariosvaldo refere-se a uma ficção de
ambiente urbano. A prosa de ambientação rural talvez realize melhor a imersão no passado e a
retomada da herança de uma imaginário mítico, o que por sijustificaria a sua existência.
Em Viana, como dissemos, os contos encenam a tensão entre o passado e o presente, o
passado repressor e o presente brutal. É nessa tensão, por exemplo, que se constrói o conto “A
mulher das mangabas”, em que um netinho entra num embate simbólico com a avó, símbolo
da permanência e continuidade da tradição. O desfecho de tal embate se com a descoberta
do sexo e do mundo pelo menino, o que também simboliza sua expansão em relação ao
universo metaforizado pela avó.
Para além de qualquer classificação, o regionalismo pode ser uma importante chave de
leitura no que diz respeito à tensão moderno (pós-moderno) versus arcaico, marca da
28
literatura de Viana em que “convivem o Brasil arcaico, sufocante, e o país vibrante, sensual;
cidades da Europa e a paisagem do semi-árido; o português cultivado e a fala brasileira; a alta
cultura e a miséria; o humor e a angústia; o medo e o prazer”
5
.
O regionalismo tal como o estamos postulando aqui, apesar do diálogo que estabelece,
está longe daquele regionalismo dos anos de 1930, que buscava compor um retrato
sociológico do Nordeste. Como afirma Flávio Moura, “trata-se agora de expressar uma visão
mais poética dessa realidade” (MOURA, 2005, p. 40). Em seu ensaio, Moura procura situar a
produção de escritores nordestinos contemporâneos, como Antonio Carlos Viana, Francisco
Dantas, Raimundo Carreiro e Ronaldo Correia de Brito. Para ele, o que esses escritores têm
em comum é a distância do naturalismo dos autores de 30. E se podem ser chamados
regionalistas é pelo diálogo que mantém com a tradição e não pelo critério geográfico. Ainda
segundo Moura, “esses autores fornecem um contraponto cada vez mais consistente com o
thriller urbano” (MOURA, 2005, p. 41). A respeito da obra de Viana, ele diz: “É até possível
encontrar o semi-árido como ambientação de seus contos, mas ater-se a esse ponto é perder o
essencial: a habilidade com que maneja a narrativa curta e a capacidade de transformar a
riqueza do vocabulário regional não em exuberância e estilo, mas em precisão descritiva e
sordidez”(MOURA, 2005, p. 42). Bem ilustra o fragmento destacado do conto “As meninas
do coronel”, de Aberto está o inferno, em que o velho coronel vai ao bordel afogar sua
viuvez: “Aos poucos, aos pouquinhos, os dedões de cada lado da pomba bem depenada,
escancelavam com gosto, o repinicar da língua na flor de açucena aflita, o roxo se
transformando no vermelho luminoso de romã recém aberta” (VIANA, 2004, p.152). O
próprio Antonio Carlos Viana, numa palestra na Bienal do Livro de Salvador de 2009,
afirmou que o conto é quase que escrito numa redondilha, ritmo mais que representativo de
uma linguagem popular. Nesse sentido, o diálogo com a tradição traduz-se no trabalho com a
linguagem, como alerta o próprio escritor, afirmando que o problema é achar a linguagem
adequada para expressar o mundo dos grotões sem cair no exagero dos termos regionais
(VIANA, 2009)
6
.
Hélio Pólvora (2002), no ensaio “Ainda temos regionalistas?”, do livro Itinerários do
conto: interfaces críticas e teóricas da moderna short story, apresenta algumas considerações
pertinentes a nosso percurso argumentativo. A primeira delas é que não devemos confundir
regionalismo com localismo (PÓLVORA, 2002, p. 99). A segunda evidencia que a “longa
5
Texto-orelha de Aberto está o inferno (2004).
6
E-mail do escritor em resposta ao autor desta pesquisa.
29
fissura entre a civilização urbana e a civilização sertaneja fez com que duas correntes, a
urbana e a regionalista, corressem paralelas em literatura (PÓLVORA, 2002, p. 100). A
terceira apresenta três fases do regionalismo: (a) a descritiva dos costumes, do ambiente e do
homem do campo; (b) a de registro das matrizes da fala coloquial, em que situa Valdomiro da
Silveira; (c) a de “integração de todos os protagonistas: paisagem, homem, documentação e
psicologismo”, em que se enquadra a ficção de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa (em
Sagarana, de 1946, livro símbolo de uma renovação do regionalismo pela complexidade
estrutural e alquimia da linguagem) (PÓLVORA, 2002, pp.100-101).
Com Guimarães Rosa, o regionalismo universaliza-se. Não podemos deixar de
registrar aqui a citação que Pólvora faz de Eduardo Portela e o comentário que segue a ela,
pois vem colaborar com o nosso trabalho e com as falas de Guimarães Rosa e Ronaldo
Correia de Brito: “'A Região é o mundo'. Quem ainda duvida, pense um pouco no papel
integrador das comunicações, em especial a televisão, que tem nivelado, infelizmente, as
culturas localista e metropolitana. Desaparecem as 'ilhas' culturais” (POLVORA, 2002, pp.
100-1). Como não relacionar tudo isso à fala de Rosa, sob a máscara de Riobaldo, (“O sertão
está em toda a parte”) (ROSA, 2003, p. 24) e a de Brito, quando retoma Rosa e acrescenta: “O
sertão está em toda parte, é infinito” (BRITO, 2009, on-line)?
Na segunda seção do ensaio, Pólvora analisa a obra de J. J. Veiga, uma das referências
de Antonio Carlos Viana, principalmente no que se refere ao menino-narrador e ao que
Haroldo Bruno (1974) chamou de “exploração do universo da infância”. Uma obra que foge
ao regionalismo associado ao universo sertanejo. Mas o próprio Pólvora justifica sua entrada
no universo regionalista:
O regionalismo na obra do goiano José J. Veiga independe do espaço
geográfico. Ao estrear, em 1959, com Os cavalinhos de Platiplanto, contos,
ele o fazia em plena madureza de estilo, de linguagem e, sobretudo, como
um dos condôminos daquele terceiro estágio da nossa regionalidade literária
a “terceira margem” a que se referiu Guimarães Rosa, ou seja, a
transfiguração, a metalinguagem (PÓLVORA, 2002, p. 106).
A citação de Pólvora nos remete à idéia de que não é o aspecto geográfico que determina a
inscrição de um texto na vertente regionalista, mas, muito mais, a forma como se plasma a
linguagem de um ambiente que não é urbano. Segundo o crítico baiano, é isso que ocorre em
Veiga na recorrência à oralidade, seja na captação de falares, seja reproduzindo máximas
populares que traduzem a sabedoria dos humildes (PÓLVORA, 2002, p. 107). Nesse sentido,
30
como vimos acima, os contos de Antonio Carlos Viana estariam inseridos na vertente
campesina, não mais pelo critério geográfico, mas pelo trabalho com a linguagem na recriação
poética desse ambiente que não é urbano.
Para José Aderaldo Castello, o conceito de regionalismo é tão “vasto e esponjoso, que
de modo complacente poderia ser aplicado a Dostoiéviski e até a um Joyce” (CASTELLO,
2001, p. 54). Segundo Castello, “o regionalismo na literatura brasileira” é associado,
sobretudo, ao Nordeste dos anos 30, designando uma fornada literária específica, o 'romance
do Nordeste'” (CASTELLO, 2001, p. 54). E apresenta um segundo segmento do
regionalismo, monopolizado pela figura de João Guimarães Rosa, como se este não tivesse
nenhuma ligação com a tradição regionalista. Teríamos, então, dois veios no regionalismo: (a)
o primeiro ligado “ao retrato da terra, à narrativa dos conflitos sociais e à confissão de seus
protagonistas”, tendo José Lins do Rego como representante (CASTELLO, 2001, p. 54); (b) o
segundo, dado às experiências com a linguagem, ao emaranhado de fábulas e lendas, ao verbo
que emana da terra”, (CASTELLO, 2001, p. 54) em que Guimarães Rosa seria a expressão
máxima. Castello estica tanto o conceito (incluindo as obras de Rubem Fonseca, Dalton
Trevisan e Lygia Fagundes Telles), que o anula.
Muito antes de Castello, Antonio Candido (1989), no ensaio “Literatura e
subdesenvolvimento”, de A educação pela noite e outros ensaios, já havia afirmado que o
conceito de regionalismo associado à prosa de ficção do Nordeste dos anos 30 não tinha mais
sentido e que muitos escritores (como é o caso Antonio Carlos Viana) veriam o rótulo como
defeito. Mas o próprio Candido afirma que “isso não impede que a dimensão regional
continue presente em obras de maior importância”, despida de uma tendência impositiva ou
do requisito de uma consciência nacional (CANDIDO, 1989, p. 161).
Flávio Aguiar, num ensaio publicado na revista Bravo (2001), que veicula também o
texto de José Castello, apresenta o sentido de sertão (regionalismo), que Castello omite mas
que é uma importante chave de leitura para a ficção regionalista contemporânea. Para Aguiar,
“o sertão, além de um espaço determinado, tornou-se um outro tempo, uma “cicatriz arcaica
no presente”, mas [sic] um dos lugares de onde emana a consciência de nossa identidade e de
seus problemas” (AGUIAR, 2004, p. 58, grifo do autor). Para operar com o conceito de
regionalismo, temos de levar em conta esse sentido de cicatriz arcaica no presente. assim
podemos analisar e ler a obra de Antonio Carlos Viana e toda a ficção regionalista atual.
Na dissertação de mestrado intitulada Alicerces do conto brasileiro, apresentada no
31
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, Mayrant Gallo (2000) postula uma
tipologia do conto literário brasileiro em três vertentes fixas: o conto de conteúdo fantástico,
tendo como fundador Álvares de Azevedo com Noite na taverna (1855); o conto de
ambientação rural, tendo como matriz sica Lendas e romances (1871) e História e
tradições da Província de Minas Gerais (1872), de Bernardo Guimarães; e o conto de
sondagem psicológica, cuja matriz é Machado de Assis, com Histórias da meia-noite (1873) e
Papéis avulsos (1882). Segundo Gallo, todo contista, por mais singular que para, numa
acurada análise, acaba encerrado em uma das três vertentes ou, quando não, é usuário das três,
indiscriminadamente (GALLO, 2000, p. 7).
Com devida Cautela, utilizando essa classificação, podemos filiar Antonio Carlos
Viana nas três vertentes, pois ora seus contos apresentam as três indiscriminadamente, ora
predomina uma delas. No primeiro livro, Brincar de manja, em detrimento das outras duas,
predomina a vertente de conteúdo fantástico, embora a ambientação rural seja também
relevante. A partir de Em pleno castigo, predomina a ambientação rural, sem abrir mão da
sondagem psicológica. O próprio Gallo, na apresentação da entrevista de Viana na revista
Iararana, situou o contista sergipano na vertente campesina. O escritor baiano prefere o termo
ambientação rural a regionalismo. Talvez para fugir do vínculo do regionalismo com o ciclo
do romance nordestino. Seria de ambientação rural todo conto ambientado no interior do país
longe dos centros urbanos (GALLO, 2000, p. 147). Esse sentido também está presente em
Pólvora quando situa J. J. Veiga na vertente regionalista, e também em Aguiar. É esse sentido
que estamos tentando delimitar aqui, com o propósito de analisar os contos de ambientação
rural de Antonio Carlos Viana.
Antonio Hohlfeldt (1988) também prefere a denominação “conto rural” a “conto
regionalista”, pois considera a primeira mais abrangente e mais precisa. Abarca autores
significativos “cuja ação dramática está cingida ao espaço rural, ou sobre este se volta,
reflexivamente” (HOHLFELDT, 1988, p. 82). É nesse sentido que ele situa J. J. Veiga na
vertente rural, tendo como critério “a relação de opressão e invasão do campo pela cidade”
(HOHLFELDT, 1988, p. 82). Nela situa também o universo ficcional de Guimarães Rosa em
que percebe a presença de relações mágicas e demoníacas que habitam a região rústica
sertaneja (HOHLFELDT, 1988, p. 85). Trata-se de dois sentidos de rural que ainda permeiam
a prosa de ficção que passeia por essa vertente: a tensão urbano x rural e a presença de uma
imaginário arcaico no ambiente rural.
32
Numa perspectiva “transculturadora”, Marli Fantini (2003), num estudo sobre
Guimarães Rosa (Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens) apresenta a possibilidade
de lermos a obra do escritor mineiro e – numa interpretação nossa – o regionalismo como uma
“terceira margem”, um “meio do mundo”, em que entram em tensão o colonialismo residual e
a modernidade; enfim, como um “entre-lugar” liminar e disjuntivo de onde emergem várias
temporalidades, culturas e territórios em confronto”( FANTINI, 2003, p 75). Segundo ela,
Uma das metas a alcançar neste ensaio é a apreensão, no universo escrito de
Guimarães Rosa, de novas formas enunciativas capazes de mobilizar-se no
sentido de aproximar, comparar e entrecruzar formações discursivas
produzidas em condição colonial com novos modelos de produção
simbólica, a essa altura assinalados pela marca da heterogeneidade e da
hibridez cultural (FANTINI, 2003, p. 33).
Baseada em conceitos como “entre-lugar”, “zona-fronteiriça”, “local da cultura”,
Fantini exemplifica a recorrente tendência rosiana em explorar o confronto, a conversação, a
transição e a interatividade entre sistemas, enfocados de forma dicotômica: “natureza e
cultura, mythos e logos, arcaico e moderno, regional e transnacional” (FANTINI, 2003, p. 73
). Nesse sentido, Rosa, segundo a pesquisadora, seria um “transculturador”, aquele que
resgata as culturas saturadas pelo impacto da modernização, ou, em outras palavras, é aquele
que pôde estender, através da literatura, “uma ponte entre setores localistas com padrões
culturais próprios (frequentemente muito arcaicos) e um projeto modernizador de maior
amplitude (FANTINI, p. 77).
Não vamos nos estender muito no trabalho de Fantini. queremos ressaltar que seu
texto leva em conta a vida diplomática do escritor mineiro (sua vida entre fronteiras) e o seu
conhecimento de várias línguas, o que lhe possibilitou a criação de universo ficcional liminar
em nossa literatura. Queremos ainda salientar que essa idéia de transculturação, no universo
rosiano, coaduna com outra perspectiva que a obra de Rosa como a universalização do
regionalismo, principalmente pelo trabalho na e com a linguagem, como já vimos com
Pólvora. Mas o que nos chama atenção e que converge para nossa análise é a noção de ficção
regionalista como “entre-lugar” de tensões, confluências, diálogos entre o mundo rural de
forte herança arcaica e o mundo moderno (ou pós-moderno). Em Viana, podemos traduzir
esse “entre-lugar”pela metáfora título de um dos contos, “O meio do mundo”, sendo que o
que sobressai nesse espaço, na verdade, é a tensão entre dois mundos, duas realidades. Essa
tensão nunca é totalmente transposta, nem mesmo quando o menino-narrador, perplexo com a
33
descoberta do real, põe-se a narrar a sua experiência.
O sentido de regionalismo, que acabamos de discutir, possibilita-nos uma análise
acurada da ficção vianiana que não lhe castra os sentidos, mas os faz aflorar, excedendo os
limites de qualquer classificação. No recorte metodológico que fizemos da obra do autor,
selecionando os contos de rito de passagem que apresentam o menino-narrador, o sentido de
regionalismo como “entre-lugar” permite-nos perceber a própria condição liminar do relato,
que encena a zona limite entre o território perdido da infância e o território nebuloso e caótico
da idade adulta. A presença do elemento simbólico, do impulso mítico, na encenação do rito
de passagem, que nos transporta do mundo profano para a esfera do “sagrado”, marca a
singularidade do mundo rural diante do universo urbano desencantado.
Nesse diálogo com a tradição regionalista, Viana “arca com seus precursores” (Borges,
s/d), no sentido de que sua ficção modifica nossa percepção dos autores nela inseridos, como
José Lins do Rego, Graciliano Ramos, J.J. Veiga e Guimarães Rosa, como também a modifica
o futuro. Nessa tradição, inventada em algum ponto de nossa história, a ficção insere-se
alterando-a, pois como afirma T.S. Eliot “Tradição e talento individual” a nova obra de
arte modifica a ordem existente (ELIOT, 1989, p. 39), reajustando as relações, proporções e
valores de cada obra (ELIOT, 1989, p. 30). A ficção de Viana pode ser inserida na tradição
regionalista como um “literatura menor”, no sentido que lhe Gilles Deleuze e Féliz
Guattari (1977): uma literatura que provoca uma desterritorialização” (DELEUZE;
GUATTARI, 1977, p. 28) da língua e da própria tradição.
Deixemos que a própria obra imponha e sugira sua classificação. Encerremos essa
seção com a análise de um conto do autor que escapa ao nosso corpus, mas que nos permite
pensar a noção de regionalismo que desenvolvemos até aqui. O conto em questão intitula-se
“Das Dores”, a nosso ver um dos melhores da antologia O meio do mundo e outros contos
(1999). Passemos a ele.
O conto narra a história de Das Dores, personagem que, inserida numa ordem
patriarcal, gradativamente descobre, de forma torpe, o sexo e o mundo. Em seu percurso
espacial e existencial Das Dores é abusada por três homens; os dois primeiros, homens que
tomam posse da terra que fora de seu pai e com isso adquirem o “direito” de explorá-la.
Desses dois nascem dois rebentos; quanto ao terceiro, não sendo “senhor de terra”, mas um
sujeito que encerra aspectos do ambiente urbano, consegue seus “préstimos” com a troca de
comida, depois que ela é expulsa da terra pelo último dos dois primeiros homens.
34
Chama a atenção no conto o trabalho com a linguagem, a forma como o narrador em
terceira pessoa plasma o universo de Das Dores, através do discurso indireto livre recurso
presente, por exemplo, em Vidas secas (2007), de Graciliano Ramos que garante o
distanciamento emocional, “a secura de sua voz”, que traduz a própria “secura” do espaço.
Vale aqui ressaltar que, em oposição aos contos em que os meninos tomam a rédea da
narrativa para narrar sua descoberta do sexo, Das Dores, por sua condição feminina inserida
numa ordem patriarcal, não tem poder de voz. Quem lhe a voz é esse narrador que se
mantém distanciado do universo a quem empresta a voz. A situação de alienação, o estado de
“coisa” em que se encontra a protagonista, encenado a partir de certo distanciamento, desvela
o lado humano da mulher representada e a força do ambiente masculino e repressor em que
está inserida.
Os três primeiros períodos do conto nos revelam como o recurso do discurso indireto
livre é usado para apresentar a personagem e seu ambiente e também o seu aprendizado
sexual:
Ela sabia que mais dia menos dia aquilo ia acontecer. Não sabia por quê,
mais ia. Também naquele cu-de-judas, só mesmo os cachorros para ensinar a
ela e vez ou outra um bode doido. Por isso ela não se assustou quando ele
veio por trás e fez tudo aquilo sozinho sem nem poder ver. Apenas
emprestou o corpo e ficou esperando. Achava que era assim, cedo ou tarde ia
ter de acontecer. Que então fosse assim (VIANA, 1999, p. 43. Grifo nosso).
A secura do ambiente e da própria Das Dores cujo nome sabemos pelo título do conto,
pois o narrador, apesar do distanciamento emocional, está tão grudado à personagem, que,
num texto de pouco mais de quatro páginas, usa o pronome “ela” trinta e oito vezes é a
secura da própria linguagem: da sintaxe direta e precisa, de frases curtas; das escolhas lexicais
que nos remetem ao ambiente inóspito do sertão, pelo menos, daquele inventado em
Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e outros escritores da tradição nordestina, como
“cu-de-judas” e “bode doido”; por fim, na forma como plasma as duas vozes: a do narrador e
a da personagem, silenciada devido à ordem patriarcal em que está inserida, mas que
entrevemos no discurso daquele, como bem denota a frase: “Achava que era assim, cedo ou
tarde ia ter de acontecer”.
Esse é o primeiro momento de Das Dores, quando casa com o “perneta” para garantir
principalmente a permanência na terra que pertencera à família. Dessa primeira relação nasce
João, o primeiro filho. O trecho que narra seu nascimento também desvela o ritmo seco,
35
imparcial do narrador no sentido de plasmar, na linguagem, a aridez não só do ambiente, mas
da existência da própria personagem:
Foi numa noite de chuva e a mãe saiu correndo légua e meia feito doida e
veio uma mulher que lhe abriu as pernas bem mais que o catinguento e de
dentro puxou uma coisa que se chamou João. Não disse ui nem ai, não
gostou do sangue que parece tinha se acumulado todo para de uma vez
(VIANA, 1999, p. 44. Grifo nosso).
O grifo é nosso para sinalizar, mais uma vez, a escolha lexical. O trecho também
sinaliza bem o jogo de vozes do narrador e da personagem, haja vista justamente os elementos
lexicais. Destaquemos ainda do trecho a fala do narrador que traduz toda a brutalidade do
nascimento da criança: “e de dentro puxou uma coisa que se chamou João”, nome que se
refere ao santo do imaginário católico, devido à proximidade da festa junina, uma tradição
rural nordestina, configura-se como uma herança arcaica. Outro elemento a destacar é o
estado de “coisa” atribuído ao filho e, por extensão, à própria Das Dores, no sentido que lhe
daria Eudoro de Sousa (1995): um estado de “queda” em que as possibilidades de ser lhe
estão vetadas. Neste sentido, Das Dores estaria no terreno do diabólico, na expressão de
Sousa, pois desligada de sua possibilidade de transcendência, de ultrapassagem de seu
condicionamento existencial, histórico e social. Outros elementos demoníacos afloram no
conto, enfatizando o estado de “coisa” da protagonista: a perna de pau do primeiro homem, a
língua descorada do segundo que, segundo ela, “parecia ter parte com bicho, bode ou gato”
(VIANA, 1999, p. 45).
O segundo momento caracteriza-se pela transição da terra para as mãos do segundo
homem, que além do direito à terra, adquire ainda o poder sobre Das Dores. Marca também
esse momento o nascimento do segundo filho. Se no primeiro momento a protagonista tinha
como parâmetro os animais para seu aprendizado sexual, no segundo ela perde a referência.
Daí achar esquisito o uso que o homem faz de seu corpo:
Até que veio um dia outro homem e disse que ali tudo tinha um novo dono.
Achou esquisito quando ele veio por cima com sua língua descorada e ela
achou que o homem tinha mesmo parte com o bicho, bode ou gato. A
diferença é que esse demorava tanto em cima dela que no outro dia estava
moída de cansada (VIANA, 1999, p. 45).
O terceiro momento não tem relação com a terra, mas com o sistema de trocas. Das
36
Dores cede seus serviços e recebe leite para os meninos. Esse terceiro momento marca, além
de uma nova fase no aprendizado sexual, também uma migração da personagem. O segundo
dono expulsa Das Dores e sua mãe da terra e as coloca na invasão perto do rio, uma
aglomeração de traço urbano. O conto encena a inserção de Das Dores numa outra ordem,
baseada na troca, em que parece haver uma certa ascensão da personagem, pois esta aparenta
ter o poder de escolha, mas trazendo ainda a condição de subalternidade da mulher e a
experiência do sexo desprovido de prazer. O conto talvez encene a inserção de Das Dores na
modernidade urbana, mas apenas no sentido de uma troca de espaço e de forma de
exploração. A condição da personagem não se altera:
Aí veio o bodegueiro e disse que ela querendo podia arrumar um leite para as
crianças e uns remédios de verme. De noite, no quartinho de taipa, a mãe
virou de costas e tapou os ouvidos. E ela fez o que nunca viu cachorra
nenhuma fazer. Nem por trás como o perneta, nem por cima como o
demorado. Ele disse que nunca ia faltar leite na casa dela e ela aceitou e ele
disse que assim também ela nunca corria perigo de ter mais neném e era
assim que ele gostava. No outro dia pagou para ela ir tirar o resto dos dentes.
Quando voltava para casa, ela viu pela primeira vez os meninos alegrinhos,
vadiando pela lama, brincando com os caranguejos. teve pena do outro
não ter o pezinho torto também para fazer parelha com o irmão” (VIANA,
1999, p. 46-47. Grifo nosso).
O final do conto é emblemático. muito que se discutir a respeito do pensamento de
Das Dores plasmado pelo narrador a respeito do segundo filho não ter o pezinho torto como o
outro. Tratar-se-ia de um possível recurso para resolver – ou, ao contrário, instaurar – a tensão
arcaico x moderno, presente x passado, urbano x rural? Deixemos a pergunta no ar. Nosso
objetivo, aqui, é perceber como o conto em foco enquanto amostra da obra de Antonio
Carlos Viana insere-se na vertente regionalista de nossa ficção, trabalhando com recursos
por meio dos quais revela que, mais que o critério geográfico, o trabalho com a linguagem na
construção de uma ambientação rural é preponderante como critério de análise, evidenciando
mais uma vez que a vertente regionalista não se esgotou. Ela permanece na medida em que se
renova. A obra de Antonio Carlos Viana tem papel efetivo nessa renovação.
37
2 O RITO DE PASSAGEM E SEUS ASPECTOS: O EROTISMO E O MENINO-
NARRADOR, NA FICÇÃO DE ANTONIO CARLOS VIANA
Neste capítulo, focaremos o conceito de rito de passagem que estamos utilizando para
caracterizar as narrativas que encenam uma experiência inaugural que leva o personagem a
outra margem de si mesmo, como também os aspectos que constituem esse rito: o erotismo e
o menino-narrador. Discutiremos, num primeiro momento, a noção de rito de passagem,
levando em consideração o sentido de “liminaridade”, importante na compreensão do enfoque
que estamos dando à obra do escritor sergipano. Em seguida, levaremos em consideração,
como já dissemos, os outros dois aspectos que constituem o rito de passagem na ficção de
Viana: o erotismo e o menino-narrador.
2.1 Os ritos de passagem: uma situação-limite
Numa primeira aproximação, poderíamos afirmar que “os ritos de passagem se
associam às grandes mudanças na condição do indivíduo” e que “as principais transições
marcadas por esses ritos são o nascimento, a entrada na idade adulta, o casamento e a morte”
(HELLERN, Victor et al., 2000, p. 28). Estas etapas são celebradas praticamente em todas as
sociedades. Segundo Carmen Junqueira (1985), as passagens são sempre acompanhadas de
atos especiais (JUNQUEIRA, 1985, p. 176). Esses atos especiais são os ritos que, segundo a
autora, constituem “um conjunto de atos e práticas que se realizam sempre da mesma forma e
em ocasiões determinadas” (JUNQUEIRA, 1985, p. 179). Na visão de Douglas Davies (1993
), “a noção de ritos de passagem é fruto da tentativa de interpretar os acontecimentos rituais
destinados a marcar as várias mudanças de estatuto social vivenciadas pelos membros de uma
determinada sociedade ao longo da vida” (DAVIES, 1993, p. 17).
O antropólogo belga Arnold Van Gennep (1978), pioneiro no estudo dos ritos de
passagem, define-os como “ciclos cerimonias pelos quais passa o homem em todas as
circunstâncias graves de sua vida” (GENNEP, 1978, p. 157), tanto na esfera individual, como
na esfera social:
Para os grupos, assim como para os indivíduos, viver é continuamente
desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e
renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em
seguida a agir, porém de modo diferente. E sempre novos limiares a
38
atravessar, limiares do verão, do inverno, da estação ou do ano, do mês ou da
noite, limiar do nascimento, da adolescência ou da idade madura, limiar da
velhice, limiar da morte e limiar da outra vida para os que acreditam nela
(GENNEP, 1978,, pp. 157-158).
Na verdade, mais que uma definição,Van Gennep legou à tradição dos estudos
antropológicos um estudo abrangente sobre a estrutura ou “esquema” dos ritos de passagem.
Para ele, os rituais apresentam três fases comuns: a) a primeira fase caracteriza-se por uma
separação das condições sociais prévias; b) a segunda pelo estágio liminar de transição; c) a
terceira, pela incorporação de uma nova condição, ou reagregação à antiga (PEIRANO, 2003,
p. 22). Na visão do próprio Van Gennep, “as sequências cerimoniais [...] acompanham as
passagens de uma situação a outra e de um mundo (cósmico ou social) a outro” (VAN
GENEP, 1978, p. 31) e distinguem uma categoria especial de Ritos de passagem (grifo do
autor), que, submetida à análise, decompõe-se em Ritos de separação, Ritos de margens e
Ritos de agregação (GENNEP, 1978, p. 31. Grifo do autor). Ou seja, o esquema geral dos
ritos de passagem constitui-se, em teoria, de ritos preliminares (separação), liminares
(margem) e posliminares (agregação) (GENNEP, 1978, p. 31. Grifo do autor). Exemplos de
cada um desses ritos são os funerais (ritos de separação), os casamentos (ritos de agregação) e
a iniciação (um rito de margem). Van Gennep demonstrou um grande fascínio pela fase
liminar dos rituais (PEIRANO, 2003, p. 22), em função de “os indivíduos ou grupos
[entrarem] em um estado social de suspensão, separados da vida cotidiana, porém ainda não
incorporados a um novo estado” (PEIRANO, 2003, pp. 22-23).
Para Roberto da Matta (1978), na apresentação da edição brasileira de Os ritos de
passagem, de Arnold Van Gennep,
a grande descoberta de Van Gennep é que os ritos de passagem, como o
teatro, têm variantes, que mudam de acordo com o tipo de transição que o
grupo pretende realizar. Se o rito é funeral, as tendências das sequências
formais será na direção de marcar ou simbolizar separações. Mas se o sujeito
está mudando de grupo (ou de clã, família ou aldeia) pelo casamento, então
as sequências tenderiam a dramatizar a agregação dele no novo grupo.
Finalmente, se as pessoas ou grupos passam por períodos marginais
(gravidez, noivado, iniciação, etc.), a sequência ritual investe nas margens ou
na liminaridade do objeto em estado de ritualização (DA MATTA, 1978, p.
18).
Dispensaremos um pouco mais de atenção ao rito liminar, ou de margem, e ao
39
conceito de liminaridade, pois os contos de Antonio Carlos Viana que recortamos para análise
encenam, em certos aspectos, precisamente um rito liminar, mais especificamente o rito de
puberdade. (HELLEN; NOTAKER; GAARDNER, 2000, p 29).
Para explicar o esquema ritual, Van Gennep usou uma metáfora que se tornou célebre
entre os estudiosos do assunto. Segundo ele, toda sociedade pode ser comparada a uma casa
com seus quartos, corredores e portas de comunicação, em que, para passar de um
compartimento a outro, principalmente entre os “semicivilizados”, são necessárias
formalidades e cerimônias (VAN GENNEP, 1978, p. 41). Nesta metáfora, o corredor
representaria o rito liminar ou de margem, que, em sua definição, seria uma “situação
especial” em que o indivíduo flutua entre dois mundos (GENNEP, 1978, p. 36). Neste sentido,
os ritos de puberdade enfatizariam a fase liminar ou de margem, pois estariam ritualizando o
processo de transição da infância para a idade adulta. Na análise de Mariza Peirano, o
período de margem caracteriza-se pelo estado de suspensão, de separação da vida cotidiana.
(PEIRANO, 2003, pp. 22-23). Ainda segundo a autora, “neste momento, os indivíduos são
'perigosos', tanto para si próprios quanto para o grupo a que pertencem” (PEIRANO, 2003, p.
23).
O antropólogo americano Victor W. Turner (1974) recupera e desenvolve a noção de
“liminaridade” de Van Gennep (1978, p. 31). Para Turner, “liminaridade” é a passagem entre
'status' e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e logicamente articulados”.
Ainda segundo o autor, “passagens liminares caracterizam-se por serem “um grau
intermediário” (TURNER, 1974, p. 5), ou seja, as passagens constituem-se num “entre-lugar”
e os liminares (pessoas em passagem)” “não estão aqui, nem lá,” (TURNER, 1974, p. 5),
transitam nesse entre-espaço. Tais fases e espaços podem ser muito criativos, ou podem ser
considerados perigosos do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem.
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são
necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas
furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam
a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades
liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições
atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimoniais.
Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma variedade
de símbolos, naquelas sociedades que ritualizam as transições sociais e
culturais. Assim a liminaridade frequentemente é comparada à morte, ao
estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões
selvagens, a um eclipse do sol ou da lua (TURNER, 1974, p 117).
40
A citação é extensa, mas necessária, não só para entendermos a noção de liminaridade como a
define Turner, como também pela presença de vários aspectos presentes nos contos de
Antonio Carlos Viana, principalmente no que se refere à ambiguidade. Neles, além do
menino-narrador que, de certa forma, poderíamos chamar de liminar, aparecem vários
elementos ambíguos, como por exemplo: a casa perdida no meio do mundo, em “O meio do
mundo”, o hermafrodita, em “Jardins suspensos”, e “Lita”, a demente em “O dia em que Céu
casou”.
Roberto DaMatta (2000), no ensaio “Individualidade e liminaridade: considerações
sobre os ritos de passagem e a modernidade”, estabelece uma relação entre áreas conceituais,
segundo ele, aparentemente distantes, como a liminaridade, conceito ligado à tradição
antropológica, e o conceito de individualidade, relacionado aos estudos sociohistóricos das
grandes civilizações (DAMATTA, 2000, p. 8). DaMatta afirma que, a partir de seu estudo
sobre o carnaval brasileiro, começou a estranhar a noção de liminaridade como a define
Turner. Para o brasileiro, o limem e o paradoxal não podem ser vistos como negativos,
principalmente em sociedades como a nossa, constituídas de espaços ltiplos, em que a
institucionalização do intermediário é um modo fundamental e incompreendido de
sociabilidade (DAMATA, 2000, p. 14. Grifo do autor). Neste sentido, o carnaval, define
DaMatta, permite “relativizar velhas e rotineiras relações e viver novas identidades que
possibilitam leituras inovadoras do mundo” (DAMATA, 2000, p. 14). A liminaridade adquire,
portanto, um aspecto positivo, pois possibilita novas relações sociais, ultrapassando o status
de espaço de questionamento da manutenção da lei e da ordem. A partir deste ponto, DaMatta
estabelece a relação entre a liminaridade e o processo de individualização e a função dos ritos
de passagem. Para ele, é a experiência de estar fora-do-mundo que engendra e marca os
estados liminares”, ou seja, “é a aproximação com estados individuais que engendra a
liminaridade” (DAMATA, 2000, p. 14). E “os ritos de passagem tratam de transformar a
individualidade em complementariedade, isolamento em interdependência, e autonomia em
imersão na rede de relações que os ordálios, pelo contraste, estabelecem como um modelo de
plenitude para a vida social” (DAMATA, 2000, p. 14).
Tendo em vista a ficção de Antonio Carlos Viana, o aspecto “negativo” da
liminaridade no sentido de questionar a manutenção da lei e da ordem (Turner) coaduna com
o aspecto positivo” de gerar possibilidades de novas leituras do mundo (DaMatta). Os dois
41
aspectos não se excluem. O rito de passagem, em Viana, realiza-se sempre através da
experiência erótica do menino-narrador. O erotismo, no sentido atribuído por Georges Bataille
(2004), é transgressor e sempre põe em xeque a ordem e a lei estabelecidas, o que leva a uma
leitura inovadora do mundo.
Cabem aqui algumas considerações a respeito do sentido que estamos dando, aqui, à
noção de rito de passagem que estamos utilizando, para nos referir a algumas narrativas
ficcionais que compõem a obra de Antonio Carlos Viana.
Numa primeira aproximação, poderíamos reafirmar que as narrativas que aqui serão
analisadas encenam a celebração da passagem da infância para a vida adulta, geralmente
associada à descoberta do sexo. Como vimos, a passagem é sempre acompanhada de um
ato especial. Na ficção de Viana esse ato especial associa-se a uma situação-limite
(configurada na experiência erótica). O próprio Viana, comentando a respeito do primeiro
livro publicado pela Companhia das Letras, afirma: “Em O meio do mundo e outros contos,
todas as situações são situações-limite. Seus personagens estão vivendo o momento em que
suas vidas vão dar uma guinada” (VIANA, 2009, on-line). Neste sentido, a noção de rito de
passagem caberia adequadamente para nos referirmos às narrativas que constituem nosso
recorte de estudo.
A noção de liminaridade estabelecida por Van Gennep tem uma fundamental
importância na análise dos contos, que podemos associá-la à noção de uma “outra
margem”, entendida por Octavio Paz (1982), como uma “outra voz”, que é a voz da poesia.
Aliás, não com essa noção, mas com a metáfora de Guimarães Rosa, “a terceira margem”,
como também com a noção de Silviano Santiago (e do hoje reverenciado Homi Bhaba) de
“entre-lugar”. vimos com Marli Fantini, no primeiro capítulo, que estas noções estão
associadas à noção de liminaridade, usada por ela para se referir a um relato híbrido e
fronteiriço que traz as heranças de um mundo arcaico e os dilemas do mundo pós-moderno.
As narrativas de Antonio Carlos Viana, neste sentido, encenam essa “zona fronteiriça”
caracterizada como uma suspensão temporal da vida cotidiana. O conto “O meio do mundo” é
exemplar neste sentido. Essa expressão “o meio do mundo” poder ser entendida como um
espaço “liminar”, um “entre-lugar”, que, mais que dividir, põe em tensão dois mundos
opostos, no caso, o mundo infantil e o mundo adulto. Toda a narrativa é ambígua; põe em
tensão uma perspectiva infantil e o olhar malicioso do autor-implícito. “[...] Meu pai disse
'fique que volto já' e se perdeu pelo mato ralo do fundo da casa. Era uma casa no meio
42
do mundo” (VIANA, 1999, p. 14).
Liminar também é o menino-narrador, pois vive um momento intermediário entre a
inocência e a marca do “pecado”. Em “Jardins Suspensos”, essa ambiguidade está
concretizada na figura do hermafrodita, ser híbrido por natureza. “Nas águas de Dalila”
realiza isso no jogo lusco-fusco entre menino-narrador e tia que viera da cidade a passeio,
como nos revela o fragmento abaixo:
Começou a se enxugar devagarinho, primeiro o rosto, depois os cabelos e,
quando foi enxugar as costas, me esperou. Era para esfregar com força. Fazia
bem à circulação. E voltando a falar sem parar, disse que íamos ser grandes
amigos, pena ficar tão pouco tempo. […] Agora sou eu, a toalha voando das
minhas mãos, esfregando-me as costas com muito mais força que eu quando
passei nas costas dela. “Que cabelos mais bonitos, meu Deus” […]. “Olha
só, o short está jus-ti-nho!” (VIANA, 1999, p. 111)
Essas narrativas e as outras que compõem nosso objeto de estudo são, portanto,
liminares, pois encenam esse espaço ambíguo e intermediário, entre dois extremos. Ou, como
afirma DaMatta, retomando Turner, essas narrativas e seus meninos-narradores “contradizem
o dilema hamletiano e 'são e não são ao mesmo tempo'” (DAMATTA, 2000, p. 13). […]
“Nada de sombra do pai, e eu achei a vida a coisa mais estranha do mundo, assim de repente,
depois de uma caminhada sem fim, eu ali outro mas o mesmo (VIANA, 1999, p. 17. Grifo
nosso).
Uma outra noção que nos permite relacionar o rito de passagem à ficção é a noção de
“jogo”, conforme a define Johan Huizinga (1996), no seu Homo ludens. Para ele, a noção de
jogo permeia ambos os campos. Ele diz que “o ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é
feita, uma ação. A matéria dessa ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma ação
representada num palco. O rito, ou 'ato ritual', representa um acontecimento cósmico, um
evento do processo natural” (HUIZIGA, 1996, p. 18. Grifo do autor). No ritual, “a
humanidade 'joga', representa a ordem da natureza tal como ela está impressa em sua
consciência”(HUIZINGA 1996, p. 19). Ainda segundo o autor, “as formas desse jogo litúrgico
deram origem à ordem da própria comunidade, às instituições políticas primitivas”
(HUIZINGA, 1996, p. 19). em relação ao campo poético, Huizinga afirma que “a poiesis é
uma função lúdica. Ela se exerce no interior da região dica do espírito, num mundo próprio
para ela criado no espírito, no qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente
da que apresentam na 'vida comum', e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da
43
causalidade” (HUIZINGA, 1996, 133).
Huizinga, em sua argumentação, ainda traz alguns elementos na definição da criação
poética, vista como um jogo, que consideramos pertinentes para nosso enfoque. Para ele,
a poesia está para além da seriedade, num plano mais primitivo e originário a
que pertencem a criança, o animal, o selvagem e o visionário, na região do
sonho, do encantamento, do êxtase, do riso. Para compreender a poesia
precisamos ser capazes de envergar a alma da criança como se fosse uma
capa mágica, e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do
adulto (HUIZINGA, 1996, p. 133).
7
Nada mais pertinente para pensarmos o jogo ritual em Antonio Carlos Viana. É sob o
manto da inocência ainda que perdida, ou em vias de perder-se que Viana constrói seu
relato. O que estamos buscando salientar aqui é que como na visão de Huizinga, tanto o rito
de passagem, quanto a narrativa ficcional, são perpassados pela idéia de jogo. Em Viana, esse
jogo ritual, além de representar a perda da inocência através da transição para a idade adulta,
encena uma experiência tumultuosa de descoberta do real e da outra margem do ser, no plano
propriamente ficcional, isto é, poético. Isso problematiza o esquema ritual traçado por Arnold
Van Gennep, já que o singulariza numa “forma” específica.
Recordemos que qualquer rito tem uma fase pré-liminar, uma fase liminar e uma fase
pós-liminar. O que caracteriza cada rito é a ênfase que a cada fase. Vimos, aqui, que o rito
de puberdade ou de iniciação enfatiza a fase liminar, mas as outras fases estão também
presentes. Tanto Van Gennep, quanto Victor W. Turner, analisaram que a fase liminar é
sucedida pela fase de agregação à comunidade. Vale ressaltar que ambos os autores
analisaram sociedades tradicionais em que a coerção social era muito forte. No mundo e na
narrativa modernos, o aspecto agregativo é mais frouxo. Nas narrativas de Antonio Carlos
Viana, a agregação é algo problemático e, como temos afirmado, “criativo”. O menino-
narrador agrega-se ao mundo adulto pela descoberta do sexo, mas não se integra à
comunidade dos adultos. Ele tornou-se adulto, mas rompeu, de certa forma, os laços que o
mantinham ligado a alguma comunidade. Em “O meio do mundo”, após sua experiência
erótica, o menino-narrador diz: “Adeus pai, adeus mãe, foi o que veio na minha cabeça, como
se fosse uma despedida de viagem, que eu nunca que fosse ser o mesmo quando fosse pedir a
benção no outro dia à minha mãe” (VIANA, 1999, p. 15)
8
. Diante de uma experiência
7
A referência aqui à poesia não coincide necessariamente com o poema, mas com a atividade artística; no
caso, a literária de um modo geral.
8
Aqui, o texto de Viana retrata a situação do homem moderno deslocado: individualizado mas “perdido”, em
44
desagregadora, ele afirma: Não sei por que tive naquela hora a certeza de que ia voltar só”
(VIANA, 1999, p. 16). Não nenhum elemento da agregação do menino-narrador, mas
elementos que denotam sua nova condição: a de um ser perplexo com a experiência inaugural
que tivera. O pai, que poderia lhe explicar a experiência, o deixou só. Daí sua necessidade de
contar o que aconteceu. É isso que o torna narrador.
Em resumo, meninos-narradores estão no limiar, zona fronteiriça entre a infância e a
idade adulta onde todos os valores oscilam e a crise o tom e o clima da situação. Esse
limiar é encenado sempre de uma forma nova, mas sempre dando ênfase a estes dois aspectos
que destacamos: o menino-narrador e a experiência erótica, que constituem simbolicamente o
sujeito poético e a experiência poética. Seja representando a “passagem” através da relação
sexual com uma mulher carvoeira, ou através de um hermafrodita, ou ainda através de ritual
de castração, todos os personagens estão experienciando um período de margem e uma
situação-limite em que a inocência está sendo perdida e um novo mundo, mais cruel e
“humano”, se desvela ao olhar do menino-narrador que, “mal […] conseguiu desvencilhar-se
do acontecimento” (LISPECTOR, 2000, p. 259), relata sua experiência vazada ainda pela
inocência e pela revelação brutal do real. Uma experiência erótica transgressora que questiona
o ser e lança o pequeno personagem à outra margem de si mesmo, que, aí, se configura como
um terreno instável, um “campo minado”, uma “areia movediça”. Neste caso, ao mesmo
tempo em que se uma revelação poética (descoberta do real pelo menino-narrador),
instaura-se também o impasse: situação paradoxal, que confere à obra de Viana a efetividade
das obras consequentes.
2.2 O erotismo: a instauração do rito ficcional
Perguntado a respeito da frequência de assuntos de cunho sexual em seus contos, na já
referida entrevista publicada na revista Iararana, Antonio Carlos Viana responde que o
erotismo em seus contos talvez seja uma reação a tudo que ele recebeu como educação
(VIANA, 2006, p. 28). Para ele, as narrativas que encenam o sexo, quase sempre vivido de
forma degradante, talvez sejam fruto da visão católica que lhe impingiram (VIANA, 2006, p.
28).
relação a um mundo ao qual não se adapta. Revela-se, mais uma vez, a incompatibilidade entre indivíduo e
sociedade, tão marcada a partir do advento da modernidade. O menino desadaptado, de certa forma, retrata a
figura do anti-herói moderno, a que se refere Octavio Paz no ensaio; “Ambiguidade do romance” (PAZ,
1982, pp. 274-277).
45
vimos, com Silviano Santiago, no primeiro capítulo, que o corpo [o erotismo]
tornou-se um tema da literatura brasileira produzida a partir da década de 70. Trata-se do
erotismo como “inventor de caminhos”, uma “força de saber”, espaço da retomada da força
dionisíaca em detrimento da força apolínea. No entanto, dentro dessa tendência, cada autor
trabalha de forma particular com o tema. Em Viana, o erotismo instaura impasses, seja entre a
liberdade e as “estruturas repressivas” da sociedade, seja entre o mundo arcaico e o mundo
(pós-)moderno desencantado, seja entre a transgressão e a interdição. É a partir desses
impasses que ele [o erotismo] se constitui como uma “força de saber”, um “inventor de
caminhos” .
Antonio Carlos Viana leu e traduziu o ensaio de Georges Bataille, O erotismo,
publicado pela L&PM, em 1987; o que nos possibilita insinuar que um diálogo implícito
do erotismo tal como encenado por Viana em seu universo ficcional com o universo teórico-
filosófico de Bataille. Cabe-nos aqui fazer algumas reflexões a respeito de tal diálogo, além
de trazer outras considerações que nos permitam precisar o sentido do erotismo na obra
ficcional do autor sergipano.
Nas narrativas de Viana, como vimos, o erotismo configura-se como um aspecto
que instaura o tumultuoso processo de transição da infância para a idade adulta, o que implica,
entre outras coisas, a descoberta do real pelo menino-narrador. A experiência erótica, no caso,
deflagra um instante epifânico, de luminosidade poética
9
, em que a “Máquina do mundo” se
revela em todo seu esplendor e crueldade, em que o ser se revela ao próprio ser que,
embasbacado, não consegue dar conta da experiência vivida.
A experiência erótica nessas narrativas de rito de passagem guarda (e acentua) um
sentido transgressor. Ela não desestabiliza o ordem e a racionalidade estabelecidas, como
também proporciona uma abertura para o questionamento da realidade. Na obra de Viana, a
título de exemplo, como afirma Paulo Henriques Britto, “A náusea é a reação da consciência
inocente diante da revelação brutal da realidade” (BRITTO, 1999, p. 9). Trata-se de uma
revelação que sempre põe em questão o sujeito, no caso o menino-narrador e seu mundo. Uma
revelação que abarca uma dupla violência: a) a violência transgressora da experiência erótica;
b) e a violência da ordem estabelecida sempre repressora, que se desvela, então, em todo seu
9
Esse é o sentido que encontramos no ensaio de Jairo Sapucaia (2006), Aquém do umbral: finitude existêncial
no conto de Hélio Pólvora. A epifania “como uma elevação ao estado de luminosidade poética”
(SAPUCAIA, 2006, p. 14). A epifania configura-se no momento “em que a obra opera a transcendência, na
ultrapassagem dos condicionamentos adquiridos na esfera sócio-cultural e histórica, enfim, numa esfera pré-
ontológica, ou seja, “em que o ser nos interpela sobre sua essência” (SAPUCAIA, 2006, p. 14).
46
peso na experiência erótica. Essa dupla violência é abarcada e consubstanciada na experiência
poética.
Talvez esse sentido transgressor encenado na narrativa de Antonio Carlos Viana seja,
em parte, fruto do diálogo com a noção de erotismo de George Bataille. Para o filósofo
francês, o erotismo constitui-se como se frenquentemente no processo criativo da
tensão entre a “transgressão e a interdição”. O autor parte da seguinte premissa: “o erotismo é
um dos aspectos da vida interior do homem” (BATAILLE, 2004, p. 45), mas se tornou um
aspecto humano devido ao “trabalho”, por meio do qual os humanos se impuseram interdições
(dentre elas, as sexuais), que diziam respeito basicamente “à atitude em relação aos mortos”
(BATAILLE, 2004, p. 46).O erotismo que está na consciência do homem faz com que seja
um ser em questão (BATAILLE, 2006, p. 46) e ponha em desequilíbrio, ao menos por
instantes, as interdições impostas pelo trabalho.
Josiane Orvatich (2007), em dissertação de mestrado sobre o erotismo e a transgressão
em George Bataille, afirma que, para Bataille, o erotismo se apresenta como um espelho de
um mundo polarizado por dois princípios antagônicos, representados, por um lado, pelo
mundo do trabalho, da racionalidade, sustentado por um “sistema de interditos” , e, por outro,
pela “violência do mundo transgressivo”, da festa e da desmedida, “expressa pelo excesso da
sexualidade e da morte” (ORVATICH, 2007, p. 13). Em outras palavras, “o erotismo se
articula em torno de dois movimentos opostos: a busca da continuidade dos seres humanos, a
permanência além de um momento fugaz, versus o caráter mortal dos indivíduos, sua
impossibilidade de superar a morte” (BRANCO, Lucia Castelo, 1987, p. 10). Neste sentido, o
erotismo equivale à “arte criativa” (MAY, 1975): ambos “nos permitem alcaar além da
morte” (MAY, 1975, p. 23). A essa relação da experiência erótica e da experiência poética
levaremos em consideração mais detidamente um pouco adiante.
Para Bataille, o erotismo guarda uma intrínseca relação com a morte. Segundo ele,
somos seres “descontínuos” (BATAILLE, 2004, p. 21)
10
. “Entre um ser e um outro um
abismo, uma descontinuidade” (BATAILLE, 2004, p. 22). O homem vive a tensão desses dois
aspectos de sua existência: “Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração
deste perecível [a descontinuidade], temos uma obsessão por uma continuidade primeira, que
nos religa geralmente ao ser” (BATAILLE, 2004, p. 26). Essa nostalgia pela continuidade
perdida comanda o erotismo. Em sua leitura do erotismo na obra George Bataille, Josiane
10
[…] Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente em uma aventura ininteligível, mas
temos a nostalgia da continuidade perdida. (BATAILLE, 2004, p. 25).
47
Orvatich comenta:
Deste modo, o erotismo, ao refletir o embate de dois mundos opostos que se
resvalam, no choque da “consciência de morte”, aponta para a continuidade,
entendida em oposição à descontinuidade, como negação da individualidade
fechada e “lugar do cruzamento de violências fundamentais”. (ORVATICH,
2007, p. 17).
O sentido transgressor do erotismo vem do embate entre esses dois mundos. Por isso,
Bataille afirma: “o erotismo é o desequilíbrio no qual o ser coloca a si mesmo em questão,
conscientemente” (BATAILLE, 2004, p. 48). O ser quer romper com sua descontinuidade,
buscando a continuidade perdida, mas sem perder sua individualidade. No erotismo, “o que
está sempre em questão é a substituição do isolamento do ser, a substituição de sua
descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (BATAILLE, 2004, p. 26).
Este embate, como revela o próprio Bataille em sua leitura de Roger Caillois, cinde o
próprio tempo humano,
dividido em tempo profano e em tempo sagrado, o tempo profano é o tempo
do ordinário o do trabalho e do respeito às interdições e o tempo do
sagrado o da festa, quer dizer, essencialmente aquele da transgressão das
interdições. No plano do erotismo, a festa é frenquentemente o tempo da
licença sexual. No plano propriamente religioso é, em particular, o tempo do
sacrifício, que é a transgressão da interdição da morte (BATAILLE, 2004, p.
404).
Para Camille Dumoulié (2005), em Bataille, “o erotismo é o campo privilegiado [da]
experiência da transgressão afirmativa que, todavia, nada afirma senão o desejo e abre o
limite ao ilimitado” (Dumoulié, 2005, p. 282). Essa experiência pode ser explicada pela noção
de gasto, de excesso, pois o erotismo “conduz a um gasto sem reserva, a uma nudez
comparada ao êxtase, que Bataille denomina soberania” (DUMOULIÉ, 2005, p. 280). Esse
gasto sem reserva é que fundamenta a transgressão. Mas, como revela Dumoulié, “ela não é a
meta do desejo, mas uma consequência necessária para uma vontade que não pode se afirmar,
criar, superar-se, a não ser transgredindo seu limites” (DUMOULIÉ, 2005, p. 283).
Nabor Nunes Filho (1997) apresenta a transgressão como uma atitude de recusa que se
em três sentidos: a) o “ultrapassar limites”: “trata-se da capacidade de ir além das
fronteiras do permitido” (FILHO, 1997, p. 36); b) o “invadir espaços proibidos” (FILHO,
1997, p. 36); c) o desvio de uma rota estabelecida”: sob este aspecto, o homem seria um ser
48
rebelde que se “recusou a ser determinado por leis que lhe apontavam um único caminho, um
destino” (FILHO, 1997, p. 137). O homem, transgressor por natureza, seria sempre o
“desajustado” em relações às leis, interditos e tabus criados por ele próprio.
Em Jardins suspensos” (O meio do mundo e outros contos), o menino-narrador
ultrapassa os limites da infância através da experiência erótica com um hermafrodita que,
neste caso, simboliza os outros dois sentidos: a invasão do espaço proibido, pois encerra um
elemento posto à margem da sociedade devido ao estranhamento que causa, que se
caracteriza pela hibridez, ao trazer marcas do masculino e do feminino; e apresenta também
“o desvio da rota” como bem expressa a metáfora do final do relato: “[...] abriu bem as pernas
e de dentro delas brotou uma rosa sangrenta capaz de mudar o rumo de qualquer abelha”
(VIANA, 1999, p. 32).
Das considerações feitas sobre as reflexões de George Bataille, podemos afirmar
que o erotismo é uma atividade essencialmente humana. Nabor Nunes Filho afirma que “O ser
humano […] é um ser essencialmente erótico. Antes de ser um animal racional, o homem é
um ser desejante, constantemente sedento e quase insatisfeito” (FILHO, 1997, p. 18). George
Bataille, por sua vez, diz que “o erotismo, em seu conjunto, é infração à regra das interdições:
ele é uma atividade humana” (BATAILLE, 2004, p. 146). Vale aqui ressaltar, como o faz o
autor de História do olho, que se o erotismo é uma atividade sexual, “ela o é na medida em
que difere da atividade reprodutora dos animais” (BATAILLE, 2004, p. 46). A atividade
sexual é erótica todas as vezes que não for simplesmente animal (BATAILLE, 2004, p. 46).
Em uma passagem de seu ensaio, Bataille afirma que o erotismo distingue-se da
atividade sexual dos animais por que é limitado por interdições e torna-se o campo da
transgressão dessas interdições. “O desejo do erotismo é o desejo que triunfa sobre a
interdição (BATAILLE, 2004, p. 403). Mais adiante ele volta a afirmar:
Não existe ninguém que não se conta do absurdo relativo, do caráter
gratuito, historicamente condicionado, da interdição da nudez, e, de outra
parte, do fato que a interdição da nudez e sua transgressão determinam o
tema geral do erotismo quer dizer, da sexualidade transformada em
erotismo (a sexualidade própria do homem, a sexualidade de um ser dotado
de linguagem) (BATAILLE, 2004, p. 403).
Na visão de Rodolfo A. Franconi, o erotismo, apesar de estar relacionado à atividade
sexual, independe da realização sexual; seria, neste sentido, um valor em si”, “um inventor
de caminhos que utiliza o sexo como fonte inesgotável de prazer e persegue os mais ousados
49
meios para atingi-lo” (FRANCONI, 1999, p. 18). Para Octavio Paz (1967), “o erotismo não é
uma simples imitação da sexualidade, é a sua metáfora” (PAZ, 1967, p. 26).
Paz parte da premissa do caráter humano do erotismo e de sua historicidade (PAZ,
1967, p. 23). Para o teórico mexicano, o jogo erótico é uma representação da sexualidade
animal, uma representação que simboliza o reflexo do olhar humano no espelho da natureza.
O homem reflete-se na sexualidade, mergulha nela, funde-se nela e separa-se
dela. A sexualidade, porém, nunca olha o jogo erótico; ilumina-o sem o ver, é
uma luz cega. […] a ação erótica é uma cerimônia que se desenrola para
das costas da Sociedade e diante de uma natureza que nunca contempla essa
representação. O erotismo é ao mesmo tempo fusão com o mundo animal e
ruptura, separação do mundo, solidão irremediável (PAZ, 1967, p. 25).
Para o autor, o sentido do erotismo passa pela tensão natureza/sociedade/linguagem. O
homem, na busca de uma fusão com o mundo animal, produz uma metáfora, uma imagem de
si mesmo, que não pertence ao mundo da natureza e que rompe com o mundo da sociedade e
da linguagem. Daí, sua definição do erotismo como “tiro imaginário” em que o “homem é
atirado para atingir sua própria imagem, para se atingir a si mesmo”; como “a experiência de
vida plena porque nos aparece como um todo palpável em que penetramos; mas ao mesmo
tempo vida vazia, que se olha a si mesma, que se representa” (PAZ, 1967, p. 26).
Erotismo e linguagem são dois aspectos humanos inseparáveis. Ambos enfatizam a
relação com o outro (JUNIOR, Luis Costa, [200?], p. 7). Na relação com o outro, podemos
falar tanto de uma erótica da linguagem como de uma linguagem erótica. Tanto no erotismo
como na linguagem, o outro participa como sujeito do processo em que duas subjetividades se
encontram (DURIGAN, Jesus, 1985, pp. 21-22). No caso da linguagem poética, a relação
com o erotismo ainda é mais flagrante. Roland Barthes (2006) fala da “fruição
11
para referir-
se à relação do texto com o leitor. Para o teórico francês, o texto literário (a partir da
modernidade) produz um espaço que é a possibilidade de uma “dialética do desejo, de uma
imprevisão do desfrute em que haja um jogo” (BARTHES, 2006, p. 9). Nesse espaço, duas
margens são traçadas: uma margem sensata e uma outra margem (grifo do autor) móvel,
vazia, “lá onde se entrevê a morte da linguagem” (BARTHES, 2006, p. 12). O texto, fenda
entre essas duas margens, torna-se erótico, pois, para Barthes, é a intermitência, “a encenação
de um aparecimento-desaparecimento” (BARTHES, 2006, p. 17), que constitui o erotismo.
11
O tradutor explica, em nota, que o termo “fruição” encerra a acepção de “gozo, posse e usufruto”, que além
de apresentar o sentido de prazer físico contido no termo original (jouissance) reproduz poeticamente o
movimento fonético do original francês.
50
O prazer do texto, para o autor, “é semelhante a [um] instante insustentável,
impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação
ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza” (BARTHES,
2006, p. 12). Vale ressaltar que Barthes refere-se, de forma geral, ao texto que seduz o leitor
pela noção de “escritura”, “ciência das fruições da linguagem, seu Kama-sutra (BARTHES,
2006, p. 11),os textos produzidos na modernidade –, e não somente ao texto de prazer ou
texto erótico, que, segundo a noção de Jesus Antônio Duringan, se “apresenta como um
tecido, um espetáculo, uma textura de relações significativas que no seu conjunto configura e
entrelaça papéis e características com a finalidade de mostrar uma representação cultural
particular, singular, da sexualidade” (DURINGAN, 1985, p. 38).
A noção de texto como um espaço de sedução do leitor, de uma fenda entre a cultura e
sua destruição, coaduna com as noções de erotismo propostas por Georges Bataille o
erotismo como um aspecto humano que põe em jogo a interdição e a transgressão e a de
Octavio Paz – que situa o erotismo como uma metáfora da sexualidade, que coloca em tensão
a cultura e a natureza. A noção nos ajuda a entender os textos de Antonio Carlos Viana, não
como textos eróticos tal como os define Duringan, mas como textos que, através do jogo com
a linguagem, trazem o erotismo como elemento instaurador de um rito de passagem que tem
como base uma tumultuada descoberta do real. Não queremos dizer com isso que os textos
eróticos também não funcionem dessa forma, haja vista as narrativas ficcionais do próprio
Georges Bataille, História do olho (2003) e O azul do céu (1986).
História do olho, narrado em primeira pessoa, “apresenta as confissões de um jovem
narrador que insiste em se manter na maior objetividade” (MORAES, 2003, p. 13), relatando
as experiências de personagens que vivem no universo perverso e polimorfo das crianças em
que nada é proibido e onde tudo ou quase tudo acontece (MORAES, 2003, p. 14). Para
Roland Barthes (2003), a História do olho é, na verdade, a história de um objeto: o “olho”.
(BARTHES, 2003, p. 115). Através de processos como a metáfora e a metonímia, o “olho”
“passa por variações através de um certo número de objetos substitutivos, que mantêm com
ele a relação estrita de objetos afins […] e, contudo, dessemelhantes” (BARTHES, 2003, pp.
116-117). Na esteira da reflexão de Barthes, Josiane Orvatich (2007) analisa o “Olho” como
símbolo da consciência racional que se transmuta em outros objetos (ovos, colhões, ânus),
percorrendo um “outro mundo”, mais caótico e menos ordenador e colocando em questão,
dessa forma, a idéia de um consciência racional como ordenadora do mundo (ORVATICH,
51
2007, p. 12).
O azul do céu, como revela o texto de contracapa, narra a história de “um homem
angustiado e torturado por conflitos íntimos, que se perde em paixões tortuosas e se consome
até a beira do morte. Uma história de amor e morte na qual o erotismo – ou mais exatamente a
perdição – se transforma numa forma de conhecimento humano” (Texto de contracapa, 1986).
Ambos os livros desvelam a visão de mundo de Bataille, um mundo regido por princípios
antagônicos: o interdito e a sua transgressão. Para ele, a relação erotismo/literatura estaria
ligada ao poder que a narrativa teria de revelar as possibilidades da vida através da incitação
de um momento deria. A essa relação nos voltaremos mais detidamente. Por enquanto, nos
voltemos à relação entre erotismo e conhecimento que delineamos através do comentário dos
dois romances do filósofo francês.
Para Rollo May (1978), Eros, doador do “espírito vital”, “criador da vida”, está
associado ao elemento demoníaco. “O demoníaco, evidentemente, não é uma entidade, mas
refere-se a uma função fundamental, arquetípica da experiência humana uma realidade
existencial do homem moderno, e ao que saibamos de todos os homens” (MAY, 1978, p. 137).
Ou por outra, “o demoníaco é o impulso de todo ser para afirmar-se, fazer-se valer, perpetuar-
se e ampliar-se” (MAY, 1978, 137). Como parte de Eros, o demoníaco também produz
conhecimento, ou nas palavras do autor, “o conhecimento é expressão do demoníaco”(MAY,
1978, p. 183). Neste sentido, a experiência erótica, como uma experiência demoníaca, é
momento singular de conhecimento. Este é o sentido que encontramos nas experiências
eróticas encenadas nos contos de ritos de passagem em Antonio Carlos Viana. Tal experiência,
além de desvelar ao menino-narrador o real em toda sua crueldade e horror, também
desordena seu lugar de ser, lançando-o num espaço liminar em que o universo da infância e o
universo adulto confundem-se.
Portanto, o erotismo é uma forma de conhecimento arrebatadora, que implica uma
“experiência interior” (BATAILLE,1992, p. 11), uma experiência que corresponde à
necessidade humana de colocar em jogo (em questão), tudo“aquilo que o homem sabe pelo
fato de ser” (BATAILLE, 2004, pp. 11-12). O erotismo, afirma Bataille, é uma forma de
conhecimento que nos leva à encruzilhada de “violências fundamentais” (BATAILLE, 2004,
p. 39).
Vale ressaltar que todas essas experiências possuem uma mesma origem demoníaca:
são frutos do terror original”, que segundo Walter Schubart (1975, p. 9) está na origem da
52
experiência religiosa humana. Como afirma Rollo May (1978), o demoníaco significa gerar,
procriar. Nele reside nossa capacidade de nos abrirmos ao poder de eros (MAY, 1978, p. 139).
Trata-se de experiências que guardam um aspecto demoníaco que põem em questão o ser e
lhe abrem muitas possibilidades. Nas palavras de Susan Sontag (1985), a sexualidade [o
erotismo]
“permanece como uma das forças demoníacas na consciência do homem
impelindo-o, de quando em quando, para perto das proibições e desejos
perigosos, que abrangem do impulso de cometer uma súbita violência
arbitrária contra outra pessoa ao anseio voluptuoso de extinção da
consciência, à ânsia da própria morte” (SONTAG, 1985, p. 61).
Esse sentido encontramos nas narrativas de Viana de que estamos tratando. “Nas
garras do leão” (Aberto está o inferno, 1999) narra os jogos eróticos de um casal de irmãos
que viviam sob as “garras” da mãe. À medida que os jogos se intensificam – começaram com
inocentes brincadeiras pegam “uma estrada sem retorno” (VIANA, 2004, p. 120). Esses
jogos que os levam a uma espantosa experiência de descoberta do mundo e de si, via
erotismo, ao mesmo tempo os distanciam do mundo da infância e da ligação com a figura
materna. “Cada lua para nós era um chamado muito forte, e ela nos olhava como a dois
desconhecidos” (VIANA, 2004, p. 121).
A experiência poética também possibilita-nos esta forma de conhecimento
arrebatadora, pois ela nos “leva ao mesmo ponto que cada forma de erotismo, à indistinção, à
confusão dos objetos distintos. Ela nos leva à eternidade, ela nos leva à morte, à
continuidade” (BATAILLE, 2004, p. 40). Segundo o próprio Bataille, no prólogo de O azul
do céu, “[a experiência poética] que revela as possibilidades da vida não atrai
necessariamente, mas incita um momento de ria, sem o qual o seu autor [e o leitor] estaria
cego para essas possibilidades excessivas”. Ainda na visão do autor, assim como o erotismo, a
experiência poética seria uma experiência interior no sentido de colocar em jogo aquilo que o
homem sabe sobre o ser. Através das “imagens perturbadoras” e dos “meios termos”, [...] “o
poético é o familiar dissolvendo-se no estranho, e s mesmos com ele” (BATAILLE, 1992,
p. 13). A literatura [a experiência poética], como o erotismo, pode pôr a nu o jogo da
transgressão da lei (BATAILLE, 1957, p. 27).
Roland Barthes, em seu já referido ensaio “A metáfora do olho”, afirma que
53
à transgressão dos valores, princípio declarado do erotismo, corresponde
se é que esta não funda aquela uma transgressão técnica das formas da
linguagem, pois a metonímia [para Barthes, o erotismo de Bataille é
metonímico] não é outra coisa senão um sintagma forçado, a violação de
um limite do espaço significante; ela permite, no próprio nível do discurso,
uma contra-divisão dos objetos, das acepções, dos sentidos, dos espaços e
das propriedades, que é o próprio erotismo (BARTHES, 2003, p. 123).
Essa não seria uma função de toda literatura segundo o próprio Barthes, como vimos
em O prazer do texto? O “ser da literatura” extravia a linguagem, faz os objetos percorrerem
lugares aos quais não estão acostumados ou destinados são retirados de seu lugar-comum
tal como ocorre com o elemento erótico, que, também, percorre lugares inusitados.
Na visão de Bella Josef (1986), a experiência poética “implica um desenvolvimento
erótico do texto” (BELLA, 1986, p. 290). Ainda segundo a autora,
A escrita consciente de sua própria artificialidade é semelhante ao erotismo,
pois ambos subvertem o primeiro nível denotativo, funcional. Sarduy afirma
que o erotismo é um jogo 'cuja finalidade está em si mesmo e cujo propósito
não é a condução de uma mensagem - a dos elementos reprodutores neste
caso – mas um desperdício em função do prazer'. Como a retórica barroca, o
erotismo apresenta-se como a ruptura total do nível denotativo, direto e
natural da linguagem (BELLA, 1986, p. 297).
Buscamos estabelecer, até aqui, a relação entre o erotismo e a experiência poética,
tomando como base o erotismo. A partir da noção bakhtiniana de “carnavalização -
transposição do carnaval para a linguagem da literatura” (BAKHTIN, 1997, p. 122) –, vamos
fazer um caminho inverso, partindo agora da experiência poética. Vimos com Bataille que o
erotismo estabeleceria uma polarização entre o mundo da razão e do trabalho, de um lado, e o
mundo da violência e da festa, do outro. Para Mikhail Bakhtin (1996), o carnaval põe em
tensão o “alto” e o “baixo”, o “alto” representado pela cabeça (razão) e o “baixo”, pelos
órgãos genitais, pelo ventre e pelo traseiro (BAKHTIN, 1996, pp. 18-19). Através do
“grotesco ambivalente”, a visão carnavalesca do mundo combina o corpo descomposto e
disforme da velhice e o corpo ainda embrionário de uma nova vida. “A vida se revela no seu
processo ambivalente, interiormente contraditório” (BAKHTIN, 1996, p. 23). Tal como o
erotismo, na definição de Bataille, o corpo grotesco é um corpo aberto e incompleto, que “não
está nitidamente delimitado no mundo: está misturado ao mundo, confundido com animais e
coisas. É um corpo cósmico e representa o conjunto do mundo material e corporal em todos
os seus elementos” (BAKHTIN, 1996, p 24).
54
Para o teórico russo, a visão de mundo carnavalesca “é a base profunda da literatura
do Renascimento” (BAKHTIN, 1996, p. 21). Diríamos não da produção literária desse
período mas de toda a literatura produzida depois dele. Eliane Robert Moraes (2003) analisa
no ensaio “O efeito obsceno”, a importância do vocabulário obsceno no interior da cultura
pornográfica que nasce na Europa, no Renascimento, e seus efeitos para toda literatura
moderna. A autora, referindo-se aos ensaios organizados por Lynn Hunt (A invenção da
pornografia a obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800), diz que o período
caracterizou-se pela difusão de imagens e palavras que feriam o pudor, fazendo da
representação explícita do sexo sua pedra de toque (MORAES, 2003, p. 4). Temos uma
concordância com a tese de Bakhtin em relação ao nascimento do grotesco e do obsceno.
Na ficção de Antonio Carlos Viana, também aparece o grotesco tal como o define
Bakhtin, através, por exemplo, do uso da comparação entre uma imagem sagrada e uma
imagem obscena, como acontece no conto “O meio do mundo”, quando o menino-narrador,
no ápice de sua experiência erótica, compara a mulher carvoeira com a imagem sacra de São
Sebastião:
Ela me virou no chão, a esteira dura me espetando as costelas, ela por cima,
eu por baixo, eu por cima, até que me sacudi todo e ela ficou na pose de São
Sebastião da parede de meu quarto, um braço ao longo do corpo, o outro por
trás da cabeça, mostrando sua chaga viva (VIANA, 1999, 15).
A comparação da mulher carvoeira, além de trazer o sentido do grotesco
sagrado/profano, sugere a relação erotismo/sagrado/martírio. A história do santo mártir, não
coincidentemente trabalhada pelo pintores renascentistas, dentre eles Marco Palmezzano, cujo
quadro talvez seja referido na citação acima, fala do santo em seu momento de martírio com
as flechas dos soldados romanos. O que ressalta que a experiência erótica, tem também, um
sentido de martírio, pois assim como o mártir a mulher carvoeira, simbolicamente, é flechada.
Situação semelhante, no que se refere ao grotesco e ao demoníaco, pode ser verificada
na experiência erótica vivenciada pelo menino-narrador com uma demente, como acontece
em “O dia em que Ceú casou” (O meio do mundo e outros contos), ou mesmo na relação do
narrador-personagem com uma velha prostituta que enxuga a baba vermelha que escapulira
da boca”, da qual extraiu dentes, como acontece no conto Ana Frágua”, de Aberto está o
inferno (2004). Como sugere o título, o demoníaco surge como possibilidade de abertura a
“Eros”, como uma “zona secreta”, laboratório da criação. São imagens ambivalentes e
55
transgressoras que rompem o mundo infantil do menino, colocando-o em questão, abrindo as
infinitas e complicadas possibilidades de ser. Nesse sentido, tanto a experiência erótica,
quanto a experiência poética conduzem-nos, em termos filosóficos, à revelação e à abertura
do ser.
Assim como Georges Bataille, Octavio Paz (1982) também estabelece uma relação
entre a experiência erótica, a mística e a poética. Mas Paz parte sempre (ou chega sempre) à
experiência poética. Para ele, as experiências erótica, mística e poética são sempre momentos
de epifania, de revelação do ser. “Revelação de nossa condição original” (PAZ, 1982, 187).
Vale ressaltar que o pensamento do poeta e crítico mexicano parece estar polarizado em dois
aspectos opostos que podem ser traduzidos pelo mundo profano representado pelo mundo da
história, da razão, e pelo mundo sagrado, a-histórico, em que o homem ainda comunga com a
natureza; uma polarização com o mesmo sentido revela-se em alguns tulos de ensaios:
“Verso e prosa”, “Analogia e ironia” etc. (PAZ, 1984).
Em “Ambiguidade do romance”, Paz afirma que a poesia é revelação da condição
humana e consagração de uma experiência histórica concreta (PAZ, 1984, p. 282), ou por
outra, é a consagração ou transmutação de um instante, pessoal ou coletivo, em arquétipo, em
um modelo no qual estão fundados os povos (PAZ, 1984, p. 274). Essa consagração é
realizada por dois princípios antagônicos que se articulam na linguagem poética: a analogia e
a ironia. Como afirma o próprio crítico e poeta, “a analogia concebe o mundo como ritmo:
tudo corresponde porque tudo ritma e rima” (PAZ, 1984, p. 89). Já a ironia seria “a ferida pela
qual sangra a analogia; é a exceção, o acidente fatal, no duplo sentido do termo: o necessário e
o infausto. A ironia mostra que o universo é uma escrita, cada tradução dessa escrita é
diferente” (PAZ, 1984, p. 101). Tais princípios não corresponderiam às noções de
continuidade e descontinuidade estabelecidas por Bataille para a definição de erotismo? O
próprio Paz revela, nesse ensaio, a ligação desses princípios com a atração erótica. Para ele, a
atração erótica busca liberar a sociedade dos obstáculos que impedem a operação das leis da
atração apaixonada (PAZ, 1984, p. 94).
A experiência poética, assim como o erotismo, proclama a coexistência dinâmica dos
contrários e sua identidade final (PAZ, 1982, p. 123). Neste sentido, tanto a experiência
erótica, como a mística e a poética constituem-se em uma “terceira margem”, um entre-lugar
de coexistência dos contrários. Na experiência erótica, a transgressão e o interdito entram
numa tensão dinâmica; na religiosa, o sagrado e o profano, o “alto” e o “baixo”; na poética, a
56
imagem e o conceito, a analogia e a ironia, o signo e o não-signo. Como afirma Paz em “A
outra margem”:
No encontro amoroso, na imagem poética e na teofania, conjugam-se sede e
satisfação: somos simultaneamente fruto e boca, numa unidade indivisível.
O homem, dizem os modernos, é temporalidade. Mas essa temporalidade
quer se apaziguar, saciar-se contemplar-se a si mesma. Jorra para se
satisfazer. O homem se imagina e, ao se imaginar, revela-se (PAZ, 1984, p.
165).
Em A chama dupla, amor e erotismo (1995), Octavio Paz reflete sobre a conexão
íntima entre sexo, erotismo e amor. No primeiro ensaio do livro, “Os reinos de Pã”, analisa as
conexões entre o erotismo e a experiência poética. Para ele, a relação entre ambos é tal que
poderíamos nos referir ao erotismo como uma “poética corporal” e à poesia como uma
“erótica verbal” (PAZ, 1995, p. 9). Ambos são movidos pela imaginação potência que
transfigura o sexo em cerimônia e rito, a linguagem em ritmo e metáfora. Ainda segundo Paz:
A imagem poética é um abraço de realidades opostas e a rima é uma cópula
de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela mesma, no seu
modo de operar, é erotismo. E do mesmo modo: o erotismo é uma
metáfora da sexualidade. Que diz essa metáfora? Como todas as metáforas,
designa algo que esta além da realidade que a origina, algo diferente dos
termos que a compõem. Se Góngora diz púrpura nevada, inventa ou
descobre uma realidade que, embora feita de ambas, não é sangue nem neve.
O mesmo acontece com o erotismo: diz, ou antes, é algo diferente da mera
sexualidade (PAZ, 1995, p. 10. Grifo do autor).
O que nos revelam a experiência poética e a experiência erótica? E a resposta seria:
nossa condição original, a revelação de nós mesmos, :
A experiência poética, como a experiência religiosa [e a erótica]
12
, é salto
mortal: um mudar a natureza que é também um regressar a nossa natureza
original […]. Poesia e religião são revelação. Mas a palavra poética não
precisa da autoridade divina. A imagem é sustentada em si mesma, sem que
seja necessário recorrer à demonstração racional nem à instância de um
poder sobrenatural: é a revelação de si mesmo que o homem faz a si mesmo
(PAZ, 1984, p. 166).
12
Pela leitura que fizemos dos ensaio de Paz podemos incluir a experiência erótica ao lado da experiência
poética e da religiosas.
57
Nessas experiências, como ocorre com o menino-narrador de Antonio Carlos Viana, entramos
em contato com uma potência terrível que nos sacode e nos lança à outra margem do ser. Por
isso, podemos aproximar a experiência poética da experiência erótica e da experiência do
sagrado, como faz Paz:
[…] A sexualidade se manifesta na experiência do sagrado como uma
potência terrível; e este na vida erótica: todo amor é revelação, uma sacudida
que faz tremer os alicerces do eu e nos leva a proferir palavras que não são
diferentes das empregadas pelo místico. Ocorre algo parecido na criação
poética: ausência e presença, silêncio e palavra, vazio e plenitude são estados
poéticos tanto quanto religiosos e amorosos (PAZ, 1982, pp. 171-172).
Na experiência poética do menino-narrador é deflagrada uma epifania que, em muitos
contos, configura-se como uma“experiência do total estranhamento” (PAZ, 1994, 129). Ao
relatar sua experiência erótica, o menino-narrador, mesmo sem compreender direito o que se
passou, sabe que fez uma viagem sem volta do universo infantil para a idade adulta. Sua única
possibilidade de retorno reside na instauração da experiência poética, pois como afirma Paz,
em “Analogia e ironia”, “a poesia é a reconquista da inocência” (PAZ, 1984, p. 86) ou, em a
Dupla chama, “é a experiência de volta à origem” (PAZ, 1994, p. 129). Mas essa volta ao
reino da infância, símbolo máximo da “pátria original”, está vazada pela “ironia”, pela
experiência da perda ou da queda da qual surge a “inocência autêntica”, que inclui o
demoníaco em seu bojo, como afirma Rollo May(1986). Uma “inocência como qualidade da
imaginação, a inocência do poeta ou do artista”, que é a presença da claridade infantil na
idade adulta e de onde “jorram o assombro e o encantamento” (MAY, 1986, p. 41).
Em “A linda Lili” ( Aberto está o inferno), o menino-narrador narra o rito de transição
de sua irmã através do início do ciclo menstrual. Lila era uma mulher de vinte anos com rosto
de menina que cantava com uma bela voz os hinos religiosos. Um dia, numa dessas novenas,
o sangue escorre pelas pernas de Lili, que perde a voz para os cânticos. Mas não é Lili que
perde o reino da infância. Por traz da história da personagem, o narrador também conta seu
rito: seu momento de transição. No final do relato, ele diz: “[...]Depois ela encostou a cabeça
em meu peito, enxugando os olhos com os dedos, e foi que senti pela primeira vez meu
corpo dar também sinais de desespero” (VIANA, 2004, p. 36). Se por um lado o menino-
narrador se conta da descontinuidade, do despregar-se do reino da infância pelo desejo
sexual que explode por outro, ao relatar seu desespero, volta a esse reino pelo assombro e pelo
encantamento. É no relato que ele adquire a “inocência autêntica”, que traz em seu bojo a
58
descontinuidade e a continuidade juntas.
As duas experiências a erótica e a poética são transgressoras devido a não
esconderem os limites transgredidos. Michel Foucault (2009), no ensaio “Prefácio à
transgressão” (Ditos e escritos), em que discute o conceito chave da filosofia de Georges
Bataille, afirma que tanto a linguagem poética quanto o erotismo são circulares, remetem a si
próprios e se fecham no questionamento sobre seus limites (FOUCAULT, 2009, p. 40). Para o
filósofo francês, a “experiência da transgressão” (FOUCAULT, 2009, p. 32)
é um gesto relativo ao limite; é aí, na tênue espessura da linha, que se
manifesta o fulgor de sua passagem, mas também sua trajetória na totalidade,
sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo seu
espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma
obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a
transpor uma linha que atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um
movimento de tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do
intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos; ele
os situa em uma incerteza, em certezas invertidas nas quais o pensamento se
embaraça por querer apreendê-las (FOUCAULT, 2009, p. 32).
Talvez esteja uma possível explicação para a recorrência do erotismo na narrativas
de Antonio Carlos Viana. Trata-se de um jogo centrado nesse transpor e recomeçar um limite
que recua ao horizonte do intransponível. Se as experiências erótica e poética podem ser
equiparadas, e, se como postularemos na seção seguinte, o menino-narrador é uma alegoria do
processo de escrita do escritor sergipano, então Viana está jogando o tempo todo com os
limites de sua escrita, talvez buscando levar sua linguagem e a linguagem em geral até o
infinito, até o intransponível, mesmo que este sempre esteja para do horizonte da
linguagem. No entanto, o escritor sergipano continua sua luta com as palavras, buscando
sempre “o meio do mundo” , onde o signo e a ausência, o som e o silêncio se encontram, no
breve instante da revelação poética, em que a “outra margem”, a “outridade” se apresenta a
nós em toda sua estranheza (PAZ, 1982, p. 156).
2.1 O menino-narrador: a visão liminar
Na entrevista publicada na revista Iararana, Antonio Carlos Viana comenta a respeito
59
de suas influências e ressalta mais um aspecto importante em sua ficção. Segundo ele, vem de
J.J. Veiga o narrador infantil que tanto preza. Ainda segundo ele, em consonância com o que
temos afirmado, “o narrador-criança é interessante porque, como ele o mundo de certo
ângulo, sempre ficam sombras que criam no leitor espaços que devem ser preenchidos pouco
a pouco. O universo infantil é todo cheio de mistérios porque a criança não tem pleno
entendimento das coisas […]” (VIANA, 2006, p. 26. Grifo nosso).
É este narrador-infantil que passamos a considerar mais de perto agora. E vamos
considerá-lo a partir de dois aspectos analíticos: (i) buscando situá-lo entre o “narrador
clássico”, tal como o definiu Walter Benjamim (1985), e o “narrador pós-moderno”, ensaiado
por Silviano Santiago (2002), para discutirmos mais demoradamente sobre a questão do
narrar na contemporaneidade, que entre outros, como vimos, foi discutida por Teodor W.
Adorno no ensaio “A posição do narrador no romance contemporâneo”; (ii) em outro viés,
vamos levar em consideração a questão do narrador como um aspecto de linguagem da
narrativa, de forma geral, e da linguagem do autor, em particular; e discutiremos ainda o
ponto de vista infantil, como uma máscara do autor-implícito que, com outros aspectos da
narrativa, constitui a visão de mundo e da literatura do autor.
Comecemos então por Teodor W. Adorno (1983). Para esse filósofo, a posição do
narrador contemporâneo caracteriza-se por um paradoxo: “não se pode mais narrar, ao passo
que a forma do romance exige narração” (ADORNO, 1983 269). “O romance precisou
concentrar-se naquilo de que o relato não conta” (ADORNO, 1983, p. 269), para não abrir
mão da herança realista que lhe permitia dizer as coisas como realmente são, teve que
renunciar “ao mandamento épico da objectualidade” (ADORNO, 1983, p. 269). Quando o
filósofo alemão tece essas considerações, tem em vista a narrativa do início do século XX,
como as de James Joyce, Thomas Mann, Marcel Proust, entre outros, e revela como esses
romances quebram com o realismo que vigorou no romance do século XIX. Ele ainda situa
novas narrativas em confronto com a sociedade capitalista, caracterizada pela alienação e pela
mesmidade. Para Adorno, “narrar é ter algo especial a dizer” e isso é impedido pelo mundo
administrado, pela estandardização e pela mesma mesmidade (ADORNO, 1983, 270).
Uma primeira ressalva a ser feita em relação a nossa incursão pelas reflexões de
Adorno, é no que se refere à questão dos gêneros. Em seu ensaio, ele trata do romance, e nós
estamos abordando a obra de um contista. Mas uma aproximação é possível, se partirmos da
60
noção de novelización del cuento
13
. Para Luis Beltrán Almería, o conto tem uma alma oral e a
novela [o romance] nasceu para a escritura (ALMERIA, 1997, p. 23-24. Tradução nossa.)
14
, e
o processo de novelización consiste na dissolução do cânon e na possibilidade de fusão com
outros gêneros. Neste sentido, segundo o autor, “o conto literário é um gênero proteico, que,
dentro de alguns fundamentos canônicos muito amplos, mas concretos, deve apoiar-se em
outros gêneros, sejam estes consagrados literariamente ou outros mais elementares e
procedentes da fronteira entre a oralidade e a escritura...” (ALMERIA, 1997, p. 25. Tradução
nossa)
15
.
A novelizacíon del cuento traz como consequências todos os aspectos levantados por
Adorno. O conto abriu mão da objetividade épica e concentrou-se naquilo que o relato não
conta. Daí seu jogo com as elipses, com os subentendidos, com a metáfora, com os elementos
implícitos que exigem uma maior participação do leitor na construção do sentido do texto. O
menino-narrador, na ficção de Antonio Carlos Viana, revela bem este processo. A ótica
infantil mina a objetividade e concentra no relato tudo aquilo que ele não compreende, mas
que insinua, deixa implícito. Neste sentido, podemos afirmar, como as palavras de Cid Seixas
(2003) no ensaio “Criação e crítica: sobre o conto e o poema”, quando diz que “o conto não
vale pelo que conta. Mas pelo que não conta. Pelo que se projeta no silêncio e fica. É
precisamente aquilo que se instala, e habita para sempre a sensibilidade e a inteligência do
leitor” (SEIXAS, 2003, p. 21), e é isso que aproxima o conto do gênero lírico, o que o faz
jogar com a objetividade épica.
Neste sentido, Walter Benjamim (1994), num ensaio em que analisa o conto, decreta a
morte do narrador clássico. À época de seu ensaio, Benjamim afirmava que a arte de narrar
estava em baixa, o que privava os seres humanos, ou pelo menos os que nascemos do século
XX, da faculdade de intercambiar experiências (BENJAMIM, 1994, p. 198). Segundo ele,
uma das causas é a invenção de uma nova forma de comunicação: a informação
(BENJAMIM, 1994, p. 202). Neste sentido, Benjamim está em consonância com Adorno.
Ambos pertencentes à chamada Escola de Frankfurt acreditam que a sociedade burguesa
produz a crise do romance e da narrativa clássica.
13
Encontramos a noção no ensaio de Luis Beltran Almería, El cuento como nero literário. In:
FRÖHLICHER, Peter, NTERT, Georges. Teoría e Interpretación del cuento. ed. Alemanha: Peter
Lang. 1997.
14
[…] el cuento tiene un alma oral y la novela ha nacido para la escritura.
15
[…] el cuento literario és um género proteico, que, dentro de unos fundamentos canónicos muy amplios pero
concretos, debe apoyarse en otros géneros ya sea estos géneros consagrados literariamente u otros más
elementales y procedentes de la frontera entre oralidad y escritura …
61
Para Walter Benjamim, o narrador clássico extrai a autenticidade de seu relato da
experiência vivida. Daí os dois grupos de narradores clássicos destacados por ele: “o
camponês sedentário” e o “marinheiro comerciante” (BENJAMIM, 1994, p. 198). Enquanto o
primeiro encarna-se como o sábio que conhece sua história e tradição, o segundo é aquele que
viaja e, portanto, tem muito o que contar (BENJAMIM, 1994, p. 198). Ou por outra, enquanto
o narrador camponês busca a autoridade na distância temporal, o narrador viajante extrai a sua
da distância espacial. Essa distância, seja ela temporal ou espacial, possibilita à narrativa algo
que lhe é inerente: sua dimensão utilitária: o conselho tecido na substância viva da existência:
[A verdadeira narrativa] ela tem sempre em si mesma, às vezes de forma
latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num
ensino moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa
norma de vida de qualquer maneira o narrador é aquele que sabe dar
conselhos. Mas se 'dar conselhos' parece hoje algo antiquado, é porque as
experiências estão deixando de ser comunicáveis (BENJAMIM, 1994, p.
200).
Um dilema latente no menino-narrador da obra ficcional de Antonio Carlos Viana
reside justamente em como intercambiar sua experiência. Mas, como a própria figura do
menino denota, o relato de sua experiência erótica não está investido da autoridade da
narrativa clássica. Na verdade, ele narra sua experiência para tentar compreender o que
aconteceu. Benjamim afirmou, de forma provocativa, que a arte de narrar está em vias de
extinção” (BENJAMIM, 1994, p. 97). O que nos revela o menino-narrador (o que veremos ao
longo desta seção) é que o que talvez tenha se extinguido seja uma forma de narrar: o que o
narrador perdeu mesmo foi a autoridade com que investia a narrativa. Mas seu relato ainda
conta uma experiência, cheia de lacunas, que o leitor é convidado a preencher.
Através do menino-narrador da obra ficcional de Antonio Carlos Viana coloca-se a
questão do sujeito contemporâneo, um sujeito, segundo Nízia Villaça, desreferencializado que
perdeu as formas privilegiadas de experienciar o mundo e que, mais que narrar discute as
possibilidades da escritura hoje (VILLAÇA, 1996, p. 39). Ainda segundo Nizia Villaça, o
narrador clássico descrito por Walter Benjamim perde impacto na contemporaneidade
(VILLAÇA, 1996, p. 40). Villaça acerta em seu ensaio sobre a ficção contemporânea, quando
diz que as subjetividades contemporâneas estão armadas sobre um paradoxo, o que revela,
como ressalva a autora, que, mais que o surgimento de uma subjetividade pós-moderna,
“temos a concomitância ou alternância” de alguns tipos de subjetividade. E a perda de
62
impacto do narrador clássico demonstra que este não se extinguiu, como postulava Benjamim,
mas está aí, entre tantas subjetividades. Se trouxermos isso para a análise da narrativa de
Antonio Carlos Viana, veremos que o menino-narrador guarda traços ou resquícios desse
narrador clássico, mais especificamente caracterizado pelo desejo de intercambiar uma
experiência. O que resulta numa narrativa que impossibilita qualquer tentativa de transmissão
eficaz, plena ou satisfatória. A experiência que narra o menino-narrador já não é concebida em
sua dimensão de partilha comunitária da memória, palavra e práticas sociais, a experiência é
concebida como algo pertencente à esfera individual (OLIVEIRA, 2000, p. 644). Em Viana, o
menino-narrador narra para tentar organizar o caos da experiência vivida.
Apesar de guardar características tradicionais, o menino-narrador não é um narrador
clássico, como o descreveu Benjamim. No entanto, não é um narrador pós-moderno, como o
definiu Silviano Santiago (2002) no ensaio O narrador pós-moderno”, em Nas malhas das
letras.
Para Santiago, o narrador contemporâneo encerra o seguinte dilema: “Quem narra uma
história é quem a experimenta ou quem a vê?”(SANTIAGO, 2002, p. 38). Desta questão o
autor tenta sua primeira hipótese de trabalho, estabelecendo o que denomina de narrador pós-
moderno:
aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de uma
repórter ou de um espectador[que] narra a ação enquanto espetáculo a que
assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona
na sala de estar ou na biblioteca; […] não narra enquanto atuante
(SANTIAGO, 2002, p. 39).
Vale aqui uma ressalva. A partir da tipologia que postula, Santiago não exclui outras
possibilidades de narradores na narrativa ficcional brasileira contemporânea. Pelo contrário,
sua tipologia é estabelecida a partir de uma obra em particular: os contos de Edilberto
Coutinho. Mas ainda sob o olhar do crítico brasileiro, vejamos quem é esse narrador pós-
moderno. Para o autor, “é o movimento de rechaço e de distanciamento que torna o narrador
pós-moderno” (SANTIAGO, 2002, p. 39). Neste sentido, esse narrador é comparado a um
jornalista, pois transmite pelo narrar a informação (SANTIAGO, 2002, p. 39), ou seja, é
aquele narrador que lança o olhar a outro, que narra a partir da observação. Daí a segunda
hipótese na sua definição:
63
[…] o narrador pós-moderno é o que transmite uma 'sabedoria' que é
decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que
narra foi tecida na substância viva de sua existência. Neste sentido, ele é o
puro ficcionista, pois tem de dar 'autenticidade' a uma ação que, por não ter o
respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da
verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-
moderno sabe que o real e o autêntico são construções de linguagem
(SANTIAGO, 2002, p. 40).
Santiago associa o narrador pós-moderno à noção de escritura ou jogo de linguagem.
Mas este não é um atributo exclusivo do narrador pós-moderno. Sabemos que o autor hora
nenhuma pretende uma tipologia totalizadora, pois não desconhece que moderno já é, em
muitos casos, o puro ficcionista que concebe a verossimilhança como a coerência interna do
relato. Veremos, mais adiante, com Maria Lucia Dal Farra (1978), em O narrador
ensimesmado, que a mesma noção de escritura está associada ao narrador em primeira pessoa,
que experimenta e narra uma experiência, mas que é uma máscara ficcional para
problematizar o ato de criação e os processos de escrita ficcional.
Ainda segundo Santiago, o narradors-moderno, aquele que olha, “é a contradição e
a redenção da palavra na época da imagem. Ele olha para que seu olhar se recubra de palavra,
constituindo uma narrativa” (SANTIAGO, 2002, p. 51). Um narrador que “existe para falar
da pobreza da experiência […], mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo
de comunicação” (SANTIAGO, 2002, p. 49). O crítico e escritor toca em dois pontos fulcrais
de nossa análise. A questão da pobreza da experiência e da pobreza da palavra. A experiência
do menino-narrador de Antonio Carlos Viana não é pobre, é uma vivência inaugural que
marca uma transição tumultuada em sua vida. O que é “pobre” - no sentido de
estrategicamente precário - é o olhar com o qual recobre a experiência. Eis porque,
paradoxalmente, esse olhar infantil que não compreende de todo o que narra, que recobre a
narrativa de uma subjetividade lírica, faz surgir na (e através da) linguagem, a experiência
inaugural (erótica), isto é, poética. É dos limites e da riqueza do olhar e das palavras infantis
que conhecemos essa experiência inaugural. A questão em Antonio Carlos Viana não é a
pobreza da experiência, mas a “pobreza” da palavra; no entanto, dos limites do signo é que o
escritor faz brotar a riqueza da narrativa. Não podemos esquecer que seus personagens estão
vivendo situações-limite, que são sempre momentos de luminosidade poética em que nos é
revelado o ser em sua integridade isto é, em seu claro-escuro constitutivo. A grande tensão
desses personagens é que eles não conseguem compreender de todo a experiência que
64
viveram e que narram.
Esse menino-narrador narra sua experiência, como dissemos, tentando compreendê-la,
fazendo convergir em seu relato dois conceitos discutidos por Antonia Torreão Herrera (2006)
em seu ensaio “Considerações sobre a narrativa e narrador em colóquio com Walter
Benjamim”: o conceito de narrativa dentro da perspectiva benjaminiana e o conceito de
escritura.
Nesse ensaio, Herrera discute a questão da narrativa e do narrador a partir do ensaio
de Benjamim que trouxemos acima, “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”. Herrera concorda com Benjamim em relação à noção de perda do narrador clássico,
pelo fato de a experiência estar em baixa. A autora afirma ainda que Benjamim “encontra no
termo ruína a expressão do efeito deletério dessa perda”, e acrescenta: “paradoxalmente [...],
de resgate da história (HERRERA, 2006, p. 277). Ao longo de sua reflexão, ela vai analisar
como, apesar da extinção preconizada por Benjamim, a narrativa persiste (HERRERA, 2006,
279). No entanto, revela: a narrativa não tem mais o estatuto da narrativa clássica,
“estabelecida numa experiência passível de ser transmitida como lição de vida. Para persistir,
a narrativa utiliza-se de “procedimentos e técnicas que se tornam elementos da própria
narrativa para estruturar seus relatos” (HERRERA, 2006, p. 280). Seria, como afirma a autora
lendo um texto de Ricardo Piglia: “encontrar outra voz, outra enunciação que ajude a narrar”
(HERRERA, 2006, p. 281), “deixando que a linguagem fale nas bordas, no que se ouve, no
que chega do outro”(HERRERA, 2006, p. 281).
Para analisar a forma de persistência da narrativa, Antonia Torreão Herrera estabelece
uma distinção entre narrativa e escrita, revelando como se relacionam e se diferenciam. De
forma livre, trazemos aqui essa modulação por considerarmos de grande valia no que estamos
postulando: um narrador que habita entre o narrador clássico e o narrador pós-moderno:
A escrita se estrutura numa rede de afluxos e influxos, de fios e tramas, num
ato esquizofrênico de esfrega com a linguagem, fazendo coincidir arroubo e
técnica, força expressiva e labor artesanal, fazendo da língua o palco e o
cenário, e o protagonista do drama mais premente do homem.
A escrita é como uma teia que apanha o leitor na trama de suas tessituras,
configurando camadas arqueológicas de dimensões reflexivas do saber e da
linguagem, pondo a nu a questão ética do fazer literário. A escrita é
construção conflitada e autorreflexiva.
[…] A escrita espicaça, enerva, provoca, desconfia, se auto-ironiza e constrói
tramas no próprio fazer literário.
A escrita autoreflexiva e persecutória do como dizer arrebata o leitor no
abismo da língua e suas possibilidades e impossibilidades, um
65
questionamento de como fazer além daquele texto que se apresenta, ameaça
paralisar o desejo do outro, mas se o desperta , todavia, é com a intensidade
de uma busca ao tesouro (HERREA, 2006, pp. 282-283).
Por outro lado,
A narrativa obedece a um desenrolar mais fluido. Ao sabor do ritmo das
ações e relações entre agentes, seus atributos que compõem no presente de
uma linguagem o pretérito de uma experiência, no tempo ou no espaço, […],
proporcionando ao leitor uma viagem na corrente dos acontecimentos
narrados, uma aventura ética. A escrita nos proporciona mais uma aventura
estética.
A narrativa como um lugar, espaço de poder, de persuasão tem efeito de
aliciamento. A escrita tenta exercer um poder explícito sobre a língua, sobre
o dizer, enquanto o poder da narrativa se imiscui pelo dito, pela aparente
indiferença pela língua, pela não visibilidade conferida à linguagem, à sua
construção. Todavia confere-lhe credibilidade, legitima-a como mimese.
Importa-lhe mais o projeto ético que o estético. Encanta, distrai, renova os
sentimentos, é mimética e encantatória.
A narrativa […] chega a um grande público como o é o de Jorge Amado e
desperta o prazer de ouvir /ler e o desejo de narrar (HERREA, 2006, p. 282-
283).
Essa modulação feita por Herrera para diferenciar a noção de narrativa da noção de
escrita possibilita-nos pensar nosso objetivo. Podemos associar, como vimos com as
reflexões teóricas de Walter Benjamim e Silviano Santiago, cada um dos tipos de narradores a
uma das noções discutidas. Ao narrador clássico associa-se à noção de narrativa; ao narrador
pós-moderno, a noção de escrita. O menino-narrador de Antonio Carlos Viana representa a
convergência dos dois conceitos, tal como postula Herrera em relação a escritores como
Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, quearticulam uma boa estória, num
fio narrativo que prende o leitor e um labor de exploração dos modos de dizer, configurando
uma singularidade de escrita que acrescenta algo a mais à simples história” (HERRERA,
2006, p. 283). A escolha do menino-narrador possibilita marcas da narrativa, a mais cara delas
o traço de oralidade que nos alicia desde as primeiras frases do seu relato. Vale ressaltar que
esse é uma aspecto caro à narrativa de José J. Veiga, uma das influências de Viana; sobretudo,
no livro de estréia do autor goiano, Os cavalinhos de Platiplanto (1959).
Por outro lado, tal narrador põe em tensão os modos de dizer, desvelando a força
expressiva e o labor artesanal de uma narrativa ímpar na literatura brasileira. É sob esta
perspectiva que concordamos com Maria Lúcia Dal Farra quando afirma que o narrador em
primeira pessoa dramatiza o processo de escrita. O menino-narrador dramatiza o processo de
66
criação ficcional de Antonio Carlos Viana, ao mesmo tempo em que permite a essa narrativa
manter o fio narrativo, o elemento de aliciamento. Neste sentido, podemos afirmar, sob o viés
reflexivo de Antonia Torreão Herrera, que, na narrativa de Antonio Carlos Viana, uma
convergência da aventura ética que caracteriza a narrativa e da aventura estética que
caracteriza a escrita.
“O dia em que Céu casou” é exemplar neste sentido. Assim começa o menino-narrador
sua história: “Nunca entendi direito aquela insistência de meu pai para minha irmã passar a
noite de lua de mel em nossa casa” (VIANA, 1999, p. 17). O menino-narrador coloca na
primeira frase do relato aquilo que é o central em sua narrativa: sua falta de entendimento
sobre o fato que vai narrar. Ele conta sua incapacidade em compreender a experiência que,
diga-se de passagem, mais que entender a insistência do pai, é a experiência erótica que
deflagra seu rito de passagem com a demente com a qual dormia, como se insinua no segundo
parágrafo da história:
Nossa casa era tão pequena, tudo tão apertado, e eu que estava contando não
dormir no mesmo quarto que Lita, perdi todas as esperanças. Ia ser a
primeira vez que eu ia dormir numa cama sozinho. Era chato dormir com
Lita. Ela roncava, aquela boca murcha soltando seu bafo sobre mim a noite
inteira. Mas Lita nunca se incomodou com a minha presença. Trocava de
roupa na minha frente, e eu vendo as pelancas do peito dela quase batendo
no umbigo, e, se eu estava olhando ela dizia “ah”, pondo a língua de fora. Eu
estava numa idade em que essas coisas não tinham o mesmo sentido de
antigamente, mesmo sendo as pelancas dos peitos de Lita (VIANA, 1999, p.
17).
O parágrafo transcrito acima nos indício dessa outra história contada de forma
implícita pelo menino-narrador e da relação narrativa versus escrita. Há dois elementos fortes
da narrativa no texto: as marcas da oralidade: o uso frequente do pronome “eupara marcar o
sujeito da fala, como também a nominalização frequente de seu antagonista, no caso Lita,
nome que aparece quatro vezes no parágrafo. Há também, no texto, o silêncio como elemento
estruturador; sob o olhar inocente da perspectiva infantil, situa-se o outro, implícito, que se
esconde nos interstícios do texto, como bem revela a última frase da citação acima: “Eu
estava numa idade em que essas coisas não tinham o mesmo sentido de antigamente,
mesmo sendo as pelancas dos peitos de Lita”. É evidente na frase a insinuação de que o
menino-narrador já não é tão inocente, pois está vivendo o limiar entre a infância e a idade
adulta. Por outro lado, o menino-narrador encena uma questão relativa ao que narrar e como
67
narrar. A aventura ética do menino-narrador não esconde, mas desvela a aventura estética do
autor, implícito nas redes do texto. Não é possível dissociar as duas. Neste sentido,
O narrador-menino é um jogo de claro-escuro. Como ele não tem idade para
entender o que se passa a sua volta, torna-se adequado para a verdade que
ultrapassa sua própria fala. É nos interstícios dela que o texto ganha sua
dimensão literária. O autor implícito é, no fundo, quem manda no jogo da
ficção. Em “Retratos”, por exemplo, uma crítica à família, mas isso o
narrador não sabe na sua voz inocente. Quem sabe é a mão que manipula a
história. Nesse jogo é que se estabelece a literatura (VIANA, 2009)
16
.
A fala do autor nos dá a exata dimensão da convergência entre a noção de narrativa e a
noção de escrita e de como o menino-narrador, caro à sua obra, inaugura o espaço intersticial
entre o narrador clássico e o narrador pós-moderno. Vimos, com ele, que, nos interstícios da
fala do narrador, uma outra voz se enuncia, a do autor-implícito. E, que nas suas narrativas, há
sempre essa tensão entre a voz do narrador que não compreende de todo o fato e que, mesmo
vazada pela perda, ainda mantém certa inocência no relato, e uma outra vozque é a “voz do
silêncio”, do autor implícito que a ultrapassa e a suplementa. Se, por um lado, a voz do
narrador está tentando relatar uma experiência tumultuosa maior que seu entendimento, por
outro, o silêncio astucioso do autor implícito está justamente problematizando o narrar e o
modo de narrar. Assim o texto ficcional, ao tempo em que conta uma história, termina por
encenar o próprio processo de criação.
Ricardo Piglia (2002), nesta perspectiva, nos traz considerações importantes em suas
“Novas teses sobre o conto”. Para pensar melhor a questão, vamos trazer aqui essas “teses”,
publicadas no Brasil em O laboratório do escritor (1994) e também em Formas breves (2004
). Nessas primeiras teses, Piglia apresenta como definição a idéia de que o conto sempre conta
duas histórias, uma visível e a outra secreta: A arte do contista consiste em saber cifrar a
história 2 [a secreta] nos interstícios da história 1. Um relato visível esconde um relato
secreto, narrado de modo elíptico e fragmentário” (PIGLIA, 2004, p. 90). Dessa forma, “o
conto é construído para revelar artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca
sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da
vida, uma verdade secreta” (PIGLIA, 2004, p. 94).
Nas “Novas teses sobre o conto”, o autor argentino analisa o sentido dos finais do
conto. Segundo ele, “o final faz ver um sentido secreto que estava cifrado e como que ausente
16
Fragmento retirado de uma resposta a um questionário realizado pelo autor desta pesquisa em 2009. Ver
anexo.
68
na sucessão clara dos fatos. O conto, portanto, está sempre direcionado para o seu desfecho”.
Esta tese é um pouco parecida com a de Antonio Carlos Viana. Viana usa a metáfora da flecha
para dizer de sua visão sobre o conto. Para ele, “o conto é como uma flecha que você atira
somente para acertar o alvo, não pode haver descaminhos”(VIANA, 2009, p. 2). Direcionado
para o seu final, o conto põe em primeiro plano, como afirma Piglia, os problemas da
expectativa, ou seja, conta com a presença de quem espera o relato (PIGLIA, 2004, p. 100). O
interlocutor implícito é um resquício da tradição oral. Ele permite que a situação de
enunciação permaneça cifrada, até o final do relato quando se a revelação. O mistério da
forma encerra-se na silhueta instável de um ouvinte (PIGLIA, 2004, p. 101). Ricardo Piglia
chega a afirmar que “não é o narrador oral que persiste no conto, mas a sombra daquele que o
escuta” (PIGLIA, 2004, p. 101). É esse interlocutor implícito que possibilita e a justifica, o
subentendido e a elipse, a rapidez e a concisão dos relatos breves. O que vale ressaltar das
teses do crítico argentino é justamente essa ligação que o gênero mantém com sua origem. O
conto sempre narra uma história, ou seja, a própria forma do conto possibilita que a narrativa
persista.
Essas implicações sobre a forma têm desdobramentos na figura do narrador. O
interlocutor implícito orienta o discurso do narrador-personagem. Daí os traços de oralidade
presentes em seu discurso. Em relação ao menino-narrador, sua enunciação apresenta várias
marcas da oralidade. Basta lermos o início de “O meio do mundo” para ver que o menino tem
uma forma de narrar que sugere a forma oral e com ela também esse interlocutor de que fala
Piglia: “A estrada é mais comprida quem nem , mais ainda que a do Mulungu onde a gente
ia ver o doutor uma vez por ano” (VIANA, 1999, p.13. Grifo nosso). Os elementos grafados
são marcas da oralidade. Por outro lado, como duplo desse narrador, o autor-implícito joga
com a linguagem, naquele sentido que lhe deu Herrera acima.
Lançar mão de um narrador em primeira pessoa que não tem o pleno entendimento das
coisas, que possui uma visão associada ao lúdico, ao mágico, ao poético, é jogar com as
possibilidades e limites da própria ficção e da própria experiência humana. O menino-
narrador narra uma experiência erótica pela qual acabou de passar. Neste sentido, apesar de
carregado de todas as características do universo infantil, seu olhar está vazado pela perda da
inocência, pela queda. Isso cria uma ambiguidade em seu relato. É dessa forma que uma outra
voz madura e diabólica –, em última instância, a voz do autor- implícito, se imiscui na voz
69
do menino-narrador para instaurar estrategicamente certas lacunas. São lacunas inquietantes,
demoníacas, provocativas, a serem preenchidas ou ampliadas pelas intervenções do leitor.
Em seu ensaio O narrador ensimesmado (1978) sobre o narrador em primeira
pessoa na obra de Vergílio Ferreira, Maria Lúcia Dal Farra traz pertinentes considerações para
a nossa pesquisa. Duas delas focaremos de forma mais acurada: a) a modulação que faz entre
os conceitos de ótica e ponto de vista; b) e a noção de que o “autor-implícito dramatiza na
narrativa de primeira pessoa a origem e o desenvolvimento de sua ficção” (DAL FARRA,
1978, p. 42). Para a autora, o ponto de vista é dependente de uma ótica mais ampla. “Para
aquém da perspectiva estreita do narrador-máscara uma visão muito mais extensa e
dominadora, cujos limites serão demarcados pela posição dos valores que veicularão na obra”
(DAL FARRA, 1978, p. 23). A ótica seria um atributo do autor-implícito, um elemento
também textual, a quem caberia essa visão mais extensa e dominadora; o ponto de vista
caberia ao narrador, a quem o autor-implícito empresta uma visão mais ou menos restrita,
extraindo da deficiência ou da amplitude dessa visão um determinado efeito (DAL FARRA,
1978, p. 23).
Na visão de Maria Luiza Ritzel Remédios (1986), “o autor-implícito, versão ficcional
do autor histórico, distingue-se do narrador, pois enquanto esse[…] conta os eventos, o autor
implícito organiza a narrativa em sua totalidade, refletindo uma imagem específica em cada
obra que produz” (REMEDIOS, 1986, p. 28). Neste sentido, o narrador pode ser definido
como um ser ficcional criado para proferir a emissão, para se tornar o agente imediato da voz
primeira. “Metamorfoseado nele, a autor tem a indumentária necessária para proceder à
instauração do universo que tem em vista” (DAL FARRA, 1978, p. 19).
O narrador é uma máscara textual que configura uma postura visual comandada por
uma outra maior: “aquela que enxerga no defeito ou na amplitude de visão conferida ao
narrador a certeza do sucesso dos valores que quer manipular” (DAL FARRA, 1978, p. 24). O
ponto de vista do narrador é um recurso explícito de condução da reelaboração do mundo pelo
leitor, mas não é a única nem a verdadeira. “O ponto de vista do narrador, por mais amplo e
restrito que seja, sempre é um recurso do autor-implícito para promover lacunas – por excesso
ou carência de lucidez juntas visão e cegueira, num intercâmbio dialético […] darão a
coloração verdadeira do romance” (DAL FARRA, 1978, p. 24).
No caso, o menino-narrador, na ficção de Antonio Carlos Viana, é sempre um recurso
para promover lacunas pela carência de lucidez. Esse narrador apresenta uma dupla carência:
70
é um narrador em primeira pessoa que, por excelência, representa uma visão limitada; e
assume, ainda, uma perspectiva infantil, “cheia de buracos e luzes”, adequada, como afirma o
próprio Viana, para a verdade que a ultrapassa, umaverdade silenciosa” que se imiscui nos
interstícios do texto, nas entrelinhas, nas lacunas deixadas pela visão e pela voz do menino-
narrador.
Para Osca Tacca (1983), a instância do narrador define-se justamente pelo “saber” -
que podemos traduzir para o ver e pelo “dizer” pela voz (TACCA, 1983, p.62). Toda
questão da narrativa ficcional passa pela figura do narrador e, em última análise, toda a
narrativa pode ser definida como um jogo de informação (TACCA, 1983, p. 63). O narrador,
que existe a partir do texto, interpõe-se entre o autor e o leitor (virtual) para contar/informar.
Para Tacca, sua voz é a única realidade do relato (TACCA, p. 65). vimos com Dal Farra
que o relato esconde uma outra figura que comanda a voz do narrador; no entanto, a voz
explícita que conduz o leitor na reelaboração do universo diegético é a do narrador. Daí a
importância que lhe Tacca quando afirma que qualquer questão da narrativa passa pela
figura do narrador e que “a visão do narrador determina, pois, a perspectiva do romance
(TACCA, 1983, p. 67) – no nosso caso, do conto .
O saber” e o “dizer” que definem a instância do narrador podem ser traduzidos pelas
noções de “voz” e “focalização”, tal como definidas por Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1997
). Para o teórico, “todo texto narrativo implica a mediação de um narrador” (AGUIAR E
SALVA, 1997, p. 759) e sua voz “tem como funções primárias e inderrogáveis uma função de
representação, isto é, de produzir intratextualmente o universo diegético […] e uma função de
organização e controle do texto narrativo” (AGUIAR E SILVA, 1997, p. 759). a
focalização, elemento importante na estruturação da diegese, “compreende as relações que o
narrador mantém com o universo diegético e também com o leitor (implícito, ideal e empírico
) (AGUIAR E SILVA, 1997, p. 765). Enquanto a primeira faz referência a classificações do
narrador em primeira ou em terceira pessoa e aqui vamos passar ao largo das implicações e
limites de tal classificação a segunda [a focalização] refere-se à perspectiva, ângulo de
visão, foco narrativo ou ponto de vista do narrador também problemáticos e cheios de
incursões teóricas em torno das quais ainda não houve um consenso
17
.
17
Alfredo Leme Coelho de Carvalho, no livro Foco narrativo e fluxo da consciência (Questões de teoria
literária) traz algumas considerações, principalmente a respeito do foco narrativo ou ponto de vista. Para ele,
a expressão mais usada é “ponto de vista” e provém da linguagem relativa à arte da pintura, trazendo os
dicionários Caldas Aulete e o dicionário Webster. O primeiro assim o define: “o ponto que o pintor escolhe
para pôr os objetos em perspectiva; lugar alto, donde se descobre o largo horizonte; (fig.) modo de ver ou
entender um assunto ou questão”. O Webster: “posição particular (no espaço, tempo ou desenvolvimento) da
71
Segundo Oscar Tacca, da relação entre o “como contar” e o “como saber” é que surge
o que na narrativa chamamos de perspectiva (TACCA, 1983, p. 67). Em relação ao narrador
em primeira pessoa em que narrador e personagem coincidem, o saber e o dizer são sempre
limitados, pois o mundo é visto através de um elemento que não chega a compreender de todo
o que narra, ou que compreende de outro modo a experiência que narra. No caso do menino-
narrador, essa relação é ainda mais problemática, pois além de trazer a perspectiva de um
menino, narra implicando-se na história. E, nas narrativas de Antonio Carlos Viana, esta
implicação não passa nem por uma distensão temporal, como é o caso das narrativas Menino
de engenho (1995), de José Lins do Rego, e Infância (1995), de Graciliano Ramos. Em ambas
as narrativas, narradas em primeira pessoa, temos uma distensão temporal entre o evento
narrado e sua enunciação. São narradores-personagens adultos que lançam seu olhar sobre o
universo infantil. uma distância temporal entre o eu-narrador e o eu-personagem. Vale
ainda ressaltar que, além de apresentarem fortes traços autobiográficos, as duas narrativas
foram produzidas e são lidas pelo viés do memorialismo, o que supõe que o narrador,
envelhecido, tranquilizado, retornado ao aprisco, debruçará sobre seu passado e porá em
ordem suas lembranças (BUTOR, 1974, p. 50).
Essa questão passa pela relação do narrador e o narrado, que, por sua vez, está ligada à
dupla temporalidade da narrativa
18
. Neste caso, o narrador apresenta uma visão retrospectiva,
“pois ele se encontra no presente, enquanto o que narra é passado” (REMEDIOS, 1986, p.
27). Não negamos o caráter pretérito do narrativa, mas o que veremos nas narrativas
qual se avalia ou de onde se considera alguma coisa”, “maneira articular de se avaliar algo”, atitude mental
baseada na razão, ou opinião, a respeito de alguma coisa”. Na ficção, o termo refere-se às atitudes e idéias do
autor e, mais estritamente ao narrador da história, “à mente através da qual é apresentado o material da
história. Por outro lado, foco, termo oriundo da Física, “é o ponto para onde convergem, ou de onde
divergem, os eixos de ondas sonoras ou luminosas, que se refletem ou refratam”. No caso da ficção, “além
de sugerir o ponto de partida da visão, indica a inevitável marca que deixa o narrador no material de sua
narrativa (CARVALHO, 1981, p.3).
Massaud Moisés , por sua vez, em seu Dicionário de termos literários, apresenta os termos “foco
narrativo”, “foco de narração”, “visão”, “ângulo visual”, “ponto de vista” como sinônimos. Todos dizem
respeito ao prisma adotado pelo narrador. Correspondem à indagação: “quem narra? e de que perspectiva?”
(MOISES, 1997, p. 407).
Raimundo Carrero (2009), diferente do que foi posto pelo dois autores anteriores, afirma que o ponto de
vista é “a visão que o romancista tem do mundo, a maneira como interpreta a condição humana, o modo de
refletir” (CARRERO, 2009, on-line). Neste caso, o noção de ponto de vista de Carrero se aproxima da noção
de “ótica”, de Maria Lúcia Dal Farra, a visão dominante da narrativa.
18
Segundo Tzvetan Todorov (1976), o tempo é uma das propriedades características da informação que nos
fazem passam do discurso à ficção (TODOROV, 1976, p. 55). Ainda, segundo ele, duas temporalidades estão
implicadas na narrativa a do universo representado e a do discurso que o representa (TODOROV, 1976, p.
56). Uma das questões levantadas por Todorov é a da ordem (Grifo nosso), segundo a qual a o tempo da
narração (do discurso) nunca poderá ser perfeitamente paralelo ao tempo narrado (da ficção). “Há
necessariamente intervenções no “antes” e no “depois”. Em resumo, as duas temporalidades são de naturezas
diferentes: o do discurso é unidimensional, a da ficção plural (TODOROV, 1976, p. 57).
72
ficcionais de Antonio Carlos Viana que encenam o rito de passagem é que a distensão
temporal entre o evento vivido e o evento narrado é pequena.
Maria Lucia Dal Farra, em seu ensaio sobre o foco de narrativo em primeira pessoa,
traz a noção de Romberg de “aspecto dual do narrador”, que, segundo ela, “assegura ao
narrador de primeira pessoa a ambivalência como sujeito do enunciado e objeto da ação: o
narrador é personagem da própria história que conta” (DAL FARRA, 1978, p. 40). Ainda
segundo a autora, essa noção implica dois atos diferentes, o narrar e o experimentar,
“catalisados num único ser, que pode distanciar-se ou aproximar-se de si mesmo” (DAL
FARRA, 1978 p. 40), ou seja, o narrador é velho e o personagem é moço ou narrador e
personagem situam-se no mesmo tempo. Essa é uma das premissas para denominarmos
“menino-narrador” o narrador que aparece nos contos de ritos de passagem de Antonio Carlos
Viana um narrador em primeira pessoa que narra uma experiência erótica e que a narra no
“calor da hora”, sem uma grande distensão temporal.
Vale ressaltar que esse “aspecto dual” refere-se ao narrador de primeira pessoa
protagonista cujo grande objetivo é “narrar a si mesmo” (DAL FARRA, 1978, p. 42). Neste
caso, o narrador transforma-se no autor da narração, na entidade responsável pela criação das
outras máscaras da narrativa, ou seja, é a partir dele que as outras personagens adquirem vida.
Na máscara do narrador em primeira pessoa, o autor-implícito representa a sua própria, ou
seja, sob a máscara desse narrador, o autor-implícito “elabora a mimesis do seu próprio ato de
criação, tornando verossimilhante o que já era veracidade” (DAL FARRA, 1978, 42).
Para Tzvetan Todorov (1976), o narrador em primeira pessoa não implicaria um
aspecto dual, mas um triplo aspecto, pois uma diferenciação entre o “eu narrado” e o “eu
narrador”. Segundo ele, “[...]desde que o sujeito da enunciação se torne o sujeito do
enunciado não é mais o mesmo sujeito que enuncia (TODOROV, 1976, p. 71). Entre eles (o
eu narrado e o eu narrador), intercala-se um sujeito da enunciação enunciada, que toma a
cada um parte do conteúdo precedente, mas sem fazê-lo desaparecer de todo: “ele nada mais
faz do que imergi-los (TODOROV, 1976, p. 71. Grifo do autor). Teríamos não mais o
“aspecto dual”, mas um triplo aspecto: o eu narrado, o eu narrador e o sujeito da enunciação
enunciada. Neste caso, um fosso espaco-temporal entre o narrador e o personagem,
possibilitando uma maior liberdade no jogo com as temporalidades da narrativa. No caso de
Viana, assumindo a perspectiva de Todorov, o narrador “escolhe” narrar e vivenciar os fatos
como recentes, adotando a perspectiva infanti. A visão de Todorov permite pensar a noção de
73
menino-narrador muito mais como uma escolha de uma certa visão, no sentido de como os
fatos que compõem o universo fictício são apresentados (TODOROV, 1976, p. 63), no caso,
sob o olhar de um menino que acabou de perder o universo infantil. No entanto, a noção de
“aspecto dual” apresenta-se a mais adequada para pensarmos o narrador em primeira pessoa
na ficção de Viana, posto que catalisa dois momentos importantes das narrativas de rito de
passagem: o experimentar o rito e o narrar. É sob essa máscara ficcional que o autor-implícito
joga o jogo da criação. Todorov parece sinalizar isso em seu texto quando fala sobre o
processo de disfarce do sujeito da enunciação nas narrativas em primeira pessoa. A nosso ver,
baseado em Dal Farra, esse sujeito da enunciação estaria melhor representado na figura do
autor implícito:
O narrador verdadeiro, o sujeito da enunciação do texto em que uma
personagem diz “eu”, está apenas mais disfarçado. A narrativa na primeira
pessoa não explicita a imagem de seu narrador, mas, ao contrário, torna-a
mais implícita ainda. E qualquer ensaio de explicitação pode tender a
dissimular de maneira cada vez mais perfeita o sujeito da enunciação; o
discurso que se confessa não faz mais que ocultar pudicamente sua
propriedade de discurso (TODOROV. 1976, p. 72).
Em seu ensaio, Maria Lucia Dal Farra ainda afirma que o autor-implícito, no romance
em primeira pessoa, “recria o seu próprio relacionamento com suas scaras através do
relacionamento que o narrador mantém com os personagens e com o universo narrado” (DAL
FARRA, 1978,, p. 42). Mais adiante, a autora faz uma afirmação um pouco mais categórica a
respeito desse foco narrativo: segundo ela, na narrativa em primeira pessoa, “o autor-implícito
dramatiza [...] a origem e o desenvolvimento de sua ficção” (DAL FARRA, 1978, p. 42). Sob
a máscara do narrador, o autor implícito pode transitar silenciosamente nos interstícios do
texto, armando a rede de signos que o leitor deve decifrar. Na narrativa em primeira pessoa
talvez se perfaça melhor a noção de Piglia de que “um escritor escreve para saber o que é a
literatura” (PIGLIA, 1994, p. 68). Neste sentido, a narrativa em primeira pessoa transforma-
se, em certos casos, numa “alegoria perfeita” do ato de criação e do trabalho do autor-
implícito (DAL FARRA, 1978, p. 49).
Nas narrativas ficcionais que encenam os relatos de meninos-narradores sobre suas
experiência eróticas, vemos, de forma bastante radical, a dramatização do ato de criação
ficcional e do trabalho com a ficção de Antonio Carlos Viana. O relato da experiência erótica
esconde, sob suas linhas, o relato da experiência poética do autor, sua visão de mundo e sua
74
visão sobre a literatura e a ficção. Ao colocar no cerne da narrativa o relato de um menino que
vive uma fase liminar entre a infância e a idade adulta, entre a inocência e a queda,
metaforizada pela descoberta do sexo, Viana joga com as possibilidades da ficção, um
discurso ambíguo, inocente e cruel, dico e sério, poético e prosaico, um discurso que se
constitui como uma terceira via, um entre-lugar em que realidade e imaginação entrecruzam-
se em formas mais variadas(CASTELO, 2009, on-line). Evocar a infância no momento
mesmo de sua perda, para recuperá-la no relato, possibilita ao ficcionista Antonio Carlos
Viana representar esse discurso que nos leva sempre à outra margem de nós mesmos, pois se
constitui como uma terceira margem” que nos revela nossa condição. A experiência erótica
encerra a experiência poética do escritor (no momento da criação) e do leitor (que (de)cifra no
texto esse momento epifânico de revelação do real e da condição humana).
O menino-narrador, neste sentido, é o mediador entre entre essas duas experiências,
como também o mediador entre as experiências concretas e ficcionais do escritor. Por um
lado, encerra sua experiência como escritor que na literatura uma via, a do meio, de
questionar e organizar um mundo que lhe parece insólito e cruel, mas que guarda um sentido
humano. Por outro, encerra um olhar poético que foi resgatado do poeta que o autor
transfigurou em contista, como revela o mesmo na entrevista concedida a Mayrant Gallo,
publicada na revista Iararana: “Logo cedo desisti de ser poeta. fui descobrir que podia ser
contista depois de ler os grandes, como Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca,
Maupassant, Tchekov, e o de sempre Machado de Assis” (VIANA, 2006, p. 24).
O menino-narrador encerra assim a alegoria ou um traço alegórico fundamentaldo
processo de criação ficcional do escritor Antonio Carlos Viana. É um narrador marcado por
um discurso ambíguo, pois narra sua experiência erótica a partir da perspectiva do olhar
infantil, um olhar inocente, inaugural, mas um segundo olhar, marcado pela queda”, pela
perda de uma inocência primeira, que, como vimos, faz surgir uma “inocência autêntica”,
nas palavras de Rollo May(1986).
Aliás, poderíamos afirmar, como o faz Roberval Pereyr (2009) sobre a obra de
Campos de Carvalho, que, através desse menino-narrador que relata sua experiência erótica,
Antonio Carlos Viana
encena o drama de sua vida (ou da vida de suas criaturas, no caso do artistas)
como uma aventura perigosa que põe em primeiro plano, de alguma forma, a
busca de conhecimento e autoconhecimento. Não se furta ao assombro, às
tensões, aos conflitos enfim, a uma existência marcada pela crise
75
permanente, em cujos picos (ou situações-limite) o regozijo e a dor se
enlaçam de forma intensa, sublinhando a indigência e a grandeza do ser
humano (PEREYR, 2009, p. 6).
76
3 A EXPERIÊNCIA ERÓTICA: O SALTO PARA OUTRA MARGEM
Neste capítulo, dividiremos as experiências eróticas dos meninos narradores em dois
momentos: o primeiro, identificado em O meio do mundo e outros contos (1999). O segundo
momento, será focalizado no penúltimo livro publicado do autor, Aberto está o inferno (2004)
Faremos isso levando em consideração não a sequência cronológica dos livros, mas
também nuances sentido que nos sugerem as obras, levando em conta as continuidades e
rupturas de sentido entre um livro e outro. Vale ressaltar que essa divisão não é excludente.
Faremos, caso seja pertinente, a comparação de uma narrativa de um livro com a de outro,
buscando sempre uma análise mais acurada da narrativa em foco.
O meio do mundo e outros contos leva-nos a focar uma terceira margem” resultante
da articulação desses momentos (ou lugares) existenciais. Aberto está o inferno segue a
tendência de O meio do mundo, mas se neste se insinuava em algumas das histórias alguma
possibilidade de redenção e de experiência plena, naquele, como sugere a epígrafe de que
empresta título ao livro “Aberto está o inferno e não véu algum que cubra a perdição”
não possibilidade dessa insinuação. O livro encena um universo torpe, no qual os
personagens enfrentam sozinhos situações extremas e catastróficas.
3.1 As experiências eróticas em O meio do mundo e outros contos
“O meio do mundo”, conto que nome e abre a coletânea, como afirma o próprio
Viana, narra a história de
um menino [que] é levado pelo pai por um caminho enorme, extenso, seco,
com muito sol. Com sede, ele não sabe para aonde [sic] está indo. E
caminha, caminha, caminha. Até que chega em um determinado lugar, onde
o pai o deixa com uma mulher suja. Uma carvoeira fedorenta,
completamente desarrumada. O pai empurra o menino que, até aquele
momento, não sabia nada do que iria acontecer. O homem conversa um
pouco com a carvoeira, vai embora e deixa seu filho com ela (VIANA, 2008,
on-line).
O conto, chave de entrada da obra de Antonio Carlos Viana, pode ser lido sob a ótica
da viagem, uma constante que Vânia Maria Resende (1988) encontra na obra de Guimarães
Rosa, sobretudo, nos contos “As margens da alegria” e os “Cimos” (ambos de Primeiras
77
estórias, 1988). Segunda a autora, sob essa perspectiva “o menino é a personagem central que
experimenta as seguintes etapas: saída para o mundo, conhecimento do mesmo e volta para o
lugar de origem, após uma significativa experiência de vida” (RESENDE, 1988, p. 33). No
caso de “O meio do mundo”, poderíamos substituir pela tríade: a viagem, a experiência
erótica (rito de passagem), a volta para casa.
O conto inicia-se com o relato da viagem e a falta de conhecimento do menino-
narrador sobre o destino da mesma:
A estrada era comprida que nem só, mais ainda que a do Mulungu onde a
gente ia ver o doutor uma vez por ano. Meu pai na frente, calado mais que
nunca, o sol ardendo na cabeça, até que ele pôs um lenço no cocuruto calvo.
Minha mãe tinha me dado um chapéu que nem dava mais na minha cabeça.
E lá íamos no silêncio da areia quente esfolando os pés, minha alpercata mais
comida que correia de amolar faca. Na verdade nem sabia para onde estava
indo. […] sabia que a estrada era um nunca de ter fim, as casinhas
rareando, criação perdida vez ou outra por entre a capoeira do mato
(VIANA, 1999, p. 13).
O trecho em destaque dialoga com a viagem empreendida pela família de Fabiano em
Vidas secas, de Graciliano Ramos, pelo espaço ermo do sertão, mas no conto a chegada ao
destino da viagem traz a experiência extrema da descoberta do sexo e da passagem do mundo
infantil para o mundo adulto. Na volta, o menino não sabe bem o que aconteceu, mas sabe que
houve uma mudança substancial em sua vida. Outro aspecto que aparece no texto comum a
alguns relatos de rito de passagem é a atitude questionadora do menino-narrador: ele querer
saber para onde a viagem o está levando. Tal questionamento tem desdobramentos no trecho
que relata sua chegada com o pai numa casinha perdida em que o mesmo entra como se fosse
um velho conhecido e lhe oferece água:
Eu estava de garganta estorricando, mais por querer adivinhar por que tanto
caminho para dar naquela casinha perdida com a carvoeira atrás. Algumas
cabras foram chegando para beber água num barreirinho, um bode terrível de
fedorento que montou numa delas e ficou se babando todo. Meu pai disse
“fique aí que volto já” e se perdeu pelo mato ralo do fundo da casa. Era uma
casa só no meio do mundo (VIANA, 1999, p. 14).
O menino-narrador quer saber por que tanto caminho para dar naquele lugar. O espaço
lhe um resposta que ele não consegue compreender: o bode que sobe em uma das cabras e
se baba todo. Na verdade, o fragmento, no plano da narrativa, funciona mais como uma pista
78
do autor-implícito dada ao leitor para aquilo que vai ocorrer ao menino-narrador. Viana
enfatiza, em uma de suas entrevistas, que o erotismo nasce do próprio ambiente das
personagens (VIANA, 2008). A cena do bode já insinua o erotismo iminente.
Chega, então, o momento em que se a experiência erótica que instaura o momento
crítico do rito de passagem e da descoberta do mundo. A mulher entra e volta soltando os
cabelos que o narrador compara a um anum:“A mulher foi dentro e veio sem o pano na
cabeça, desamarrando a pindoba que prendia a chusma de cabelos negros como se carregasse
um anum no ombro” (VIANA, 1999, p. 14). O menino tem medo do desconhecido, mas,
como havia lhe ensinado o pai, não ia deixar o medo transparecer: “Deixar o medo
transparecer eu não ia, lembrava agora das palavras de meu pai quando eu menino, nunca
deixe o medo aparecer, Tonho, o medo lambe a alma e assassina” (VIANA, 1999, p. 14). Dá-
se então a experiência erótica:
[…] A muda, ela podia ser muda, quem nem gemido dava, puxou o peito
para fora e fez como que ia dar de mamar. O tempo parecia se encompridar
como meu corpo naquela hora, se estender para um nunca acabar de horas, e
de repente parou nas cigarras cantando. E o calor amornando meu pescoço.
A mulher fedia. A blusa toda aberta, um peito pulando quente em minha
boca, fornido, preto de carvão aqui e ali, até no bico de um rosado triste.
Levou minha mão com jeito e a dela se encaminhou para onde nenhuma
outra tinha se encaminhado ainda, a não ser a minha. Escolado no saber dos
pastos, nem me assustei com o molhado de suas entrepernas. Deixei que
fosse até onde quisesse e quando arrebentou a saia era outra mulher, mais
ainda pintalgada de carvão, mas com força igual a de égua quando entestava
de ir beber no poço. Sentada em meu colo, se ajeitou inteira e poderosa, eu
magro demais para sustentar seu corpo e minhas pernas parecia que iam
estalar se ela fizesse movimentos bruscos, se ajeitando toda, eu como a me
perder no sumidouro do mundo. Escanchou-se que nem eu correndo em
cima do cavalo de seu do Adobe pelo pasto estorricado. Agora era tudo
nos descaminhos e pela primeira vez adivinhei o que era uma campina
verde, devia ser assim, diferente de tudo que eu tinha visto até então. Adeus,
pai, adeus mãe, foi o que me veio a cabeça, como se fosse uma despedida de
viagem, que eu nunca que fosse ser o mesmo quando fosse pedir a benção no
outro dia à minha mãe (VIANA, 1999, p. 14-15).
Uma citação extensa, mas pertinente, pois concentra toda a experiência erótica do
menino-narrador. O primeiro aspecto a destacarmos é que a linguagem do narrador-
personagem está impregnada de lirismo como bem evidencia o trecho em que fala do
encompridamento do tempo e de seu corpo ou da suspensão do tempo cotidiano nas cigarras
cantando fora. A experiência erótica configura-se como uma experiência liminar que
79
suspende o tempo ordinário. Nela, a confluência de todos os tempos e de todos os espaços,
como sugere o segundo aspecto que destacamos: para dar conta de uma experiência
desconhecida, o menino-narrador recorre a todos os elementos do universo infantil que está
sendo perdido, mas que é recuperado justamente pelo seu relato o espaço /tempo da
experiência poética. Essa recuperação, no entanto, não diz o impasse nem instaura o sentido
da continuidade. Tudo para o narrador permanece como descaminho.
Por fim, insinua-se a volta, passada a experiência erótica do rito de passagem e da
descoberta do mundo. Desse momento, o primeiro aspecto a destacar é o jogo alteronímico
“eu-ela” estabelecido logo após o rito sexual que marca o processo de individuação do
menino-narrador e o olhar lançado ao outro: Me levantei como se tivesse pegado serviço
novo, ela vestiu a saia, eu puxei as calças, abotoou a blusa com desleixo, eu amarrei a tira de
couro na cintura” (VIANA, 1999, p. 16. Grifo nosso). Tal jogo se estabelece porque o
menino-narrador, de certa maneira, percebe que viveu uma experiência extrema que o
transformou como ele mesmo afirma: “Nada de sombra do pai, e eu achei a vida a coisa mais
estranha do mundo, assim de repente, depois de uma caminhada sem fim, eu ali outro, mas o
mesmo (VIANA, 1999 p. 16. Grifo nosso). Ou seja, uma “figura fronteiriça” (PEREYR, 2009,
p. 9), que poderia ser ainda denominada de “inocente culpado” (PEREYR, 2009, p. 9), no
sentido de que a experiência erótica simboliza a queda primordial de que nos fala a Bíblia;
uma queda que, entre tantos sentidos, significa a tomada de consciência do homem de sua
condição e de suas possibilidades. Daí a certeza de que voltará só: “Não sei porque tive
naquela hora certeza de que ia voltar só” (VIANA, 1999, p. 16).
“O meio do mundo” é, então, o limiar entre o universo infantil e o mundo adulto;se
a transição de um a outro, é onde ambos se apresentam sem muita distinção. “O meio do
mundo” é também o limiar entre a experiência erótica e a experiência poética do menino
narrador, problematizada pelo autor-implícito. Ao passar pela experiência erótica, o narrador-
personagem instaura a experiência poética na tentativa de compreender ou apreender algum
sentido da experiência vivida. Insinua-se através da voz narrativa do personagem, a voz do
autor-implícito que usa da ótica infantil para construir uma narrativa em que o real se desvela
em toda sua torpeza e beleza. Não é o escritor uma criança quando a “máquina do mundo” se
desvela em todo seu esplendor e horror? A grande questão é que o autor-implícito, diferente
do menino, não é nada inocente. Daí o o jogo ou a malícia que ultrapassa a voz do menino,
conforme flagramos no final e no início do livro. No primeiro parágrafo, o menino fala de
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“vagas conversas na noite, meu pai pedindo as poucas economias a minha mãe, dizendo que
estava faltando remédio de carrapato e que tinha que negociar uns cabritos na Vagem Grande”
(VIANA, 1999, p. 13). No final do relato, antes de partir, quando foi apanhar a mochila, o
menino viu “um bolinho de dinheiro, como se esquecido por alguém” (VIANA, 1999, p. 16).
É o autor-implícito quem ata as duas pontas do relato. O menino não sabe, mas o pai tomou o
dinheiro para pagar sua primeira relação sexual. Coisa que motivou o escritor a escrever o
conto. Segundo ele, numa sessão de terapia, a sexóloga disse-lhe ser comum no interior os
pais levarem os filhos para a primeira relação sexual (VIANA, 2008, on-line).
Algo semelhante ocorre no conto de abertura de Aberto está o inferno, “Ana Frágua”.
Mas além de apresentar um narrador em terceira pessoa, o relato revela que o menino está
buscando sua primeira relação sexual. Apesar de não pagar pela relação devido à situação
inusitada em que ela acontece, ele junta o dinheiro para pagá-la, uma velha prostituta do
bordel da pequena cidade. Diferente de Tonho, personagem de “O meio do mundo”, o menino
de “Ana Frágua” “já sabia de muita coisa, também tinha os irmãos que falavam tudo”
(VIANA, 2004, p. 11). lhe faltava coragem e o dinheiro. O que une os dois personagens é
não entender direito a experiência que estão vivendo, mas que se configura como uma
experiência singular e luminosa (epifânica). No conto em questão, o narrador diz a respeito da
relação sexual do menino: “Puxou para cima dela e [o] conduziu pela primeira vez por
caminhos escuros, mas ele nunca viu tanta claridade
19
na escuridão” (VIANA, 2004, p. 13.
Grifo nosso). Outra coisa que marca algo comum aos dois personagens é saberem que a
experiências que viveram experiências epifânicas, reveladoras - mudaram suas vidas, como
já vimos na citação de “O meio do mundo”, acima, e nesta de “Ana Frágua” :
Ele se achou pela primeira vez senhor da vida, e quando ela disse que ele
tinha um pau muito gostoso e que ia dar muita alegria a muitas mulheres no
mundo, o pescoço do menino se empertigou de vez, num orgulho tão grande
que ele até se esqueceu de deixar o dinheiro e ela nem reclamou (VIANA,
2004, p. 14).
“Jardins suspensos” relata a descoberta do sexo e do mundo por parte do menino-
narrador com um hermafrodita que estranhamente convivia com ele e a mãe. Diferentemente
de “O meio do mundo”, a experiência não se na tríade viagem-descoberta do sexo-volta.
Aliás, a experiência não se propriamente com uma relação sexual, mas com a revelação do
19
A epifania, o equivalente do conto anterior, da “campina verde” adivinhada, diferente de tudo que o menino
já tinha visto.
81
sexo do estranho hóspede. O relato inicia-se com a inquietação do menino sobre a “graça” que
a mãe dizia ao hermafrodita:
Dava pena vê-lo a tarde inteira sentado no banquinho de plástico ao lado do
tanque, no quintal. Minha mãe vinha e dizia “vai, vai lavar essa xoxotinha”.
Ele se levantava inteiramente outro, na sua bata estampada, com a voz
ranhenta e pastosa. Eu ficava intrigado com a minha mãe falando aquilo e
ele em vez de ficar triste, ficava era alegre.[...] E em mim vinha uma
curiosidade intensa que crescia a cada tarde, tentando descobrir que tipo de
roupa ele usava por baixo porque nunca tinha visto nada parecido com cueca
na corda de estender (VIANA, 1999, p. 29).
A mãe fazia tudo para esconder o hóspede de todos na vila e, de certa forma, também
do menino-narrador, proibindo que fosse brincar com os outros meninos Mas, como revela o
narrador, isso só faz aumentar sua inquietação:
Não sei que moral tinha minha mãe para despistar todo mundo de nossa
vida, fazer com que ninguém se interessasse por nada que nos acontecia. Ela
dizia que era também para eu não dizer nada na escola e, quando
perguntassem quantos éramos, eu dizer dois. […] Eu vivia sozinho
naquela casinha de nada, com aquele hóspede cuja origem minha mãe
mantinha em segredo e que fazia espicaçar minha imaginação (VIANA,
1999, p. 30).
O único contato do hermafrodita com o mundo era quando na primeira sexta-feira
vinha um homem de branco que realizava um ritual. Nesta ocasião, como relata o menino-
narrador, era possível vê-lo um pouco diferente, com as feições de quem conheceu o paraíso
(VIANA, 1999, p. 30). Tudo isso aumenta a inquietação do menino que, na escola, gostaria de
perguntar a alguém os segredos do mundo. Um dia lhe mostram um “revistinha” que o faz
ficar com febre e aumenta sua curiosidade (VIANA, 1999, p. 31). A revista (evidentemente
erótica) desestabiliza o quadro cognitivo do menino, que não consegue enquadrar o
hermafrodita no que vê.
Até que num dia, sem já se conter dentro de casa, o menino é surpreendido com “a voz
ranhenta e pastosa que lhe diz: “Quer ver dentro de mim?” Daí se dá o desenlace do conto e o
rito de passagem do menino-narrador: “E levantou a bata. Não usava nada mesmo por baixo.
Com um riso estranho nos olhos, sentado num banquinho de plástico azul, abriu bem as
pernas e de dentro delas brotou uma rosa sangrenta capaz de mudar o rumo de qualquer
abelha” (VIANA, 1999, p. 32). Esse final revela que a experiência erótica do menino-narrador
82
é vivida de forma plena. A metáfora da rosa sangrenta” denota isso, pois responde à
inquietação do personagem-narrador.
Em sua experiência erótica, o menino consegue vislumbrar a continuidade perdida de
que nos fala Bataille, coisa rara no universo ficcional de Viana. Aliás tanto o hermafrodita,
quanto a rosa que carrega no meio das pernas são símbolos dessa continuidade perdida. Para
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1989), no Dicionário de símbolos, o hermafrodita tem o
mesmo sentido que andrógino, “signo da totalidade, [que] aparece no final e no começo dos
tempos” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 52); é signo também de uma unidade
primeira que, aplicada ao homem, apresenta-se como a inocência ou virtude primeira a ser
reconquistada (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 52). a rosa simboliza, em um de
seus aspectos, a manifestação oriunda das águas primordiais; simboliza também a taça da vida
(CHEVALIER E GHEERBRANT, 1989, p. 788). Daí a experiência erótica com o
hermafrodita encerrar o sentido de um vislumbre da “unidade primordial”, entendida, como
observa Roberval Pereyr, não como uma noção abstrata e estática de todo, e menos ainda no
mero sentido de uma identidade, mas como uma unidade que não nega – ao contrário articula
a coexistência, muitas vezes tensa e complexa, de pólos opostos (PEREYR, Roberval, 2000
).
Mas a vislumbramos, nesse caso, através da máscara ficcional do menino-narrador
sob a qual se esconde o autor-implícito. O título faz referência aos jardins suspensos da
Babilônia, uma das sete maravilhas do mundo. Babilônia é também o nome da vila na qual
morava o narrador-personagem que aparece implícito em uma das falas dele: “ A vila tinha de
bonito o nome, de civilização antiga e opulenta, como dizia a professora nas aulas de
história. Nabucodonosor era meu rei” (VIANA, 1999, p. 30) . A metáfora final, “A rosa
sangrenta capaz de mudar o rumo de qualquer abelha” nasce nesse jardim maravilhoso que na
visão cristã, seria lugar do pecado e da perdição. Neste sentido, a “rosa sangrenta” indica o
espaço simbólico da transgressão dos interditos. Um paraíso que é um inferno: lugar
fronteiriço da pureza suja e da inocência-culpada, situação-limite que dá o retrato da condição
humana.
Segundo Elémire Zolla (1997), o andrógino é o “arquétipo errante” (ZOLLA, 1997, p.
5), “símbolo da identidade suprema na maioria dos sistemas religiosos” (ZOLLA, 1997, p. 5).
Quando o autor-implícito constrói o relato da experiência erótica de um menino com um
hemafrodita num espaço fechado e repressor, mas que traz marcas de um passado mítico, ele
83
está construindo um espelho da própria experiência poética que, na contemporaneidade, está
fundamentada numa “unidade primordial”, que, em última análise, significa “a reconquista da
palavra em sua plenitude e todas as implicações daí advindas” (PEREYR, 2000, p. 35). Ou,
como alerta o mesmo Pereyr, implica a substituição do princípio de identidade pelo fecundo
princípio da “contradição necessária” (PEREYR, 2000, p. 35).
Nesta perspectiva, a experiência erótica com o hermafrodita – ser contraditório que é e
não-é ao mesmo tempo, ou que traz em si ambos os sexo fundidos metaforiza a própria
experiência poética da qual emergem as mais díspares e estranhas visões (PEREYR,2000, p.
37) que nos proporcionam, num “jogo anormal de forças contrárias”, um instante fugaz da
unidade perdida (PEREYR, 2000, p. 40).
“O dia em que Céu casou”, como vimos, é outro conto que traz de forma explícita a
inquietação do menino-narrador diante do real e da experiência erótica que instaura seu rito de
passagem. Mas, aqui, a inquietação em primeiro plano refere-se à insistência do pai para que a
irmã passe a noite de lua-de-mel em casa: “Nunca entendi direito aquela insistência de meu
pai para minha irmã passar a noite de sua lua-de-mel em nossa casa” (VIANA, 1999, p. 17).
Uma das primeiras questões suscitadas por essa inquietação é a possibilidade do menino
narrador dormir numa cama sozinho. “Nossa casa era tão pequena, tudo tão apertado, eu, que
estava contando não dormir no mesmo quarto de Lita, perdi todas as esperanças. Ia ser a
primeira vez que eu ia dormir sozinho” (VIANA, 1999, p. 17). Aparece no trecho uma
questão premente nas narrativas que encenam ritos de passagem: os ambientes parecem
apertados. No conto em questão, até a cama o menino-narrador tem que dividir com Lita, uma
demente que mora com a família e da qual não sabemos qual o parentesco; dela temos a
descrição – já utilizada anteriormente - que nos dá o narrador:
Ela roncava, aquela boca murcha soltando seu bafo sobre mim a noite
inteira. Mas Lita nunca se incomodou com a minha presença. Trocava de
roupa na minha frente, e eu vendo as pelancas dos peitos dela quase batendo
no umbigo, e, se eu estava olhando, ela dizia “ah”, pondo a língua de fora.
Eu estava numa idade em que essas coisas não tinham o mesmo sentido de
antigamente, mesmo sendo as pelancas dos peitos de Lita (VIANA, 1999, p.
17).
No fragmento, além da descrição física de Lita, temos algumas indicações sobre o
menino-narrador que é importante salientar. A primeira coisa é sua insistente
pronominalização o uso recorrente do pronome “eu”, como que para marcar sua
84
individualidade. A outra é a consciência de estar numa idade liminar entre a infância e a idade
adulta, marcada pela percepção de que as “pelancas do peito de Lita” guardam um sentido
erótico. É esse erotismo iminente que o coloca nessa idade liminar.
Outra questão que nasce com o erotismo da idade liminar é a preocupação do menino-
narrador em saber como vai ser a experiência sexual de Céu, a irmã que mal chegou à
puberdade e vai casar com um homem – o doutor Videlson – que tinha a idade de ser pai dela.
É o que revela o discurso do narrador ao trazer a fala da “Vó Melina” e da “Tia Maura”:
Quando a família soube que Céu ia casar com um agrônomo da capital, com
a idade de ser pai dela, foi o maior alvoroço do mundo. Melina disse
logo: “Perdemos nossa santinha”. Céu tinha mesmo cara de santa que ficava
iluminada no altar-mor. Tia Maura falou que casar uma menina naquela
idade era um crime. Os órgãos ainda em formação. Tia Maura era a mais
sabida da família. Vinha nos visitar de tempos em tempos, morando no fim
do mundo, onde tinha uma escolinha. Ela falou isso na frente de todos nós.
Meu pai ficou mais vermelho do que era. Minha mãe ficou de cabeça
baixa. Só vó Melina repreendeu a filha, e eu fiquei achando que órgãos era a
palavra mais feia do mundo (VIANA, 1999, p. 18).
Essa inquietação aumenta com a chegada dos familiares para o casamento. O primo
lhe diz coisas que acontecem no casamento e que ia acontecer com Céu:
[…] Meu primo Zito, dois anos mais velhos que eu, dizia umas coisas que
eu não conseguia pensar que fossem verdade, que tudo aquilo ia acontecer
com Céu, encabulada como era. Mas ele dizia que sim, que casamento era
aquilo, que tinha mesmo de enfiar senão o noivo não era homem, mas a
mulher gostava. E tinha homem que obrigava até a botar na boca. Comecei a
ficar deveras preocupado, achando que Céu era capaz de morrer de dor e de
desgosto (VIANA, 1999, p. 20).
Chegou o dia do casamento. Depois da festa, sobraram a família e o noivo. Céu e
doutor Videlson foram para o quarto, e o narrador-menino atento: “do quarto de Céu nenhum
ruído e eu torcendo que fosse tudo mentira de meu primo” (VIANA, 1999, p. 23). A partir daí,
o conto uma virada e a história implícita vem à tona. A história de Céu lugar à
experiência erótica do menino-narrador, uma experiência que o deixa perplexo diante da
revelação brutal do real e que tem seu ápice com as “pequenas flechas de fogo” que escapam
de dentro dele. Segundo Chevalier e Gheerbrant, de modo geral, “a flecha é o símbolo de
ultrapassagem de condições normais”, é também apropriada “para simbolizar a ruptura de
ambivalência” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 435), o que nos parece simbolizar
85
também tanto a transgressão como a ruptura, vividas pelo menino-narrador na experiência
erótica:
[…] Adormeci sem saber como e quando acordei tomei o maior susto. Eu
estava colado no corpo de Lita, me balançando todo. Achei que estava
doente e fiquei suando frio quando senti meu descontrole sobre aquelas
pequenas flechas de fogo escapando de dentro de mim, molhando meu
calção, e que não eram mijo. Lita se remexeu um pouco, fedendo a restos de
comida. Engrolou umas poucas palavras e se deitou de costas. Do quarto de
Céu, nenhum barulho, nem mesmo de assoar nariz. Apenas o sapo coaxava
no quartinho, enquanto eu permanecia ali quieto, sem saber o que fazer, cada
vez mais assustado com as coisas do mundo (VIANA, 1999, p. 23).
Singulariza, ainda, essa experiência erótica de rito de passagem, a presença do louco,
que, além do aspecto grotesco, visto na descrição que faz o narrador de Lita acima, representa
o símbolo daquele que está fora dos limites da razão e fora das normas da sociedade
(CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 560). ainda nessa experiência a possibilidade
de um incesto (não sabemos o grau de parentesco entre o menino-narrador e Lita, sugere-se,
no conto, um laço consaguíneo muito forte), o que radicaliza ainda mais essa experiência e
deixa mais perplexo o personagem. Desta forma, a situação-limite instaurada pela experiência
erótica torna-se uma forma privilegiada de conhecimento do mundo e de si mesmo.
Na narrativa, afloram dois aspectos caros ao processo de criação: a inocência e a
loucura, como bem analisa Roberval Pereyr (2005, 2009)
20
em seus dois ensaios sobre a obra
de Campos de Carvalho.vimos com Rollo May, que se trata de uma “inocência autêntica”,
que é a inocência do artista. Por um lado, como as narrativas anteriores, o conto encena a
perda da inocência, por outro, no nível implícito, encena o aflorar dessa inocência autêntica da
qual jorra a perplexidade do menino-narrador que, em última análise, é a perplexidade do
autor-implícito diante da criação e do mundo. A loucura assume papel preponderante na
narrativa, visto que ela conduz ao mesmo fim que a inocência autêntica: ao assombro e ao
encantamento. D a hipótese que estamos perseguindo desde o início deste ensaio: as
narrativas em foco celebram, em certo sentido, o próprio processo de criação ficcional do
escritor, alguém dotado da inocência primordial que, associada à malícia do homem adulto,
expressa sua visão crítica e sua perplexidade diante de um “mundo estranho e louco”.
20
Os ensaios em questão são, respectivamente, PEREYR, Roberval. A cacofonia sem (O processo de
criação ficcional na Obra reunida de Campos de Carvalho). Feira de Santana, 2005. (Inédito) e PEREYR,
Roberval. Maldição e inocência na Obra reunida de Campos de Carvalho (com acréscimo da novela
Espantalho vestido de pássaros). Feira de Santana, 2009. (Inédito)
86
“Domingos da paixão”, como sugere o título que faz uma inversão do ritual cristão,
encena a experiência erótica do menino-narrador relacionando-a com os “rituais” realizados
pela tia no Domingo de Páscoa. A experiência, aqui, não se através da descoberta do sexo,
mas da descoberta da possibilidade do mesmo. O conto encena a relação entre o erotismo e o
sacrifício, no sentido que lhe Georges Bataille (2004), ou, em outras palavras, a relação
entre o erotismo, o sagrado e a violência que se pelo reconhecimento de que o desejo atiça
um fogo interior incontrolável (MAYOR, 2004, p. 254). Devido a essa relação, o conto opera
com vários estratos simbólicos, dentre eles, os da religião cristã. Vamos tentar destrinçar esses
estratos com o intuito de compreender a experiência erótica e poética do menino-narrador.
Como parte do elemento ritual, a primeira questão que trazemos é a febre que acomete
o menino-narrador no período da Quaresma tempo de quarenta dias, que para o cristão
significa o momento de penitência, de arrependimento dos pecados e de preparação para a
Páscoa. Com as chuvas pontuais da quaresma surge a febre: “A Quaresma era um tempo de
chuva forte e minhas febres começavam sem mais nem menos, ela à espera daquele domingo
e eu querendo que tudo passasse logo, o coração agoniado sem eu saber por quê” (VIANA,
1999, p. 34).
O Domingo de Páscoa ou Domingo da Paixão, como sugere o autor-implícito, “um dia
abafado, de folhas úmidas enterradas na lama grossa debaixo das mangueiras” (VIANA,
1999, p. 34), quando “um cheiro de terra e sangue parecia tomar conta do mundo”(VIANA,
1999, p. 34), era o dia do ritual que consistia na castração dos animais do sítio. A tia, que não
gratuitamente se chamava Prazeres, fazia os preparativos desde a véspera. Um dos primeiros
elementos é o avental branco. Chevalier e Gheerbrant, apontam a importância e o significado
das vestes tanto como símbolo exterior da atividade espiritual, quanto símbolo da atividade
sacerdotal (CHEVALIER e GEERBRANT, 1989, p. 947-948). No conto em foco, trata-se da
veste que logo seria maculada pelo sangue das vítimas.
Outro elemento desse ritual é a presença de “seu Biluca”, um homem que vinha ajudar
a tia Prazeres. Ela ficava nervosa com a possibilidade de seu Biluca não aparecer. “O domingo
nos pegava bem acordados, eu mais pelo calorão subindo pelo corpo, ela pelo nervosismo
de seu Biluca de repente adoecer, ou esquecer do trato, não vir fazer aquele serviço que me
deixava tão nervoso. […] Entrava e saía olhando a estrada” (VIANA, 1999, pp. 33-34). Mas
quando seu Biluca chegava parecia haver na tia uma transformação. Iniciava-se então o ritual,
que mais parecia o ritual erótico entre a tia Prazeres e seu Biluca e do qual o menino narrador
87
apresenta vestígios:
Os dois voltavam por volta do meio-dia. Ela com o avental nem tão
branco, respigado aqui e ali de vermelho, sem o pano na cabeça, alguns fios
de capim seco e um ou outro carrapicho nos cabelos soltos, o cocó desfeito.
Ele, com as unhas empretecidas de coágulos e terra, o ar cansado, bem ao
contrário dela, toda corada e feliz. Era sempre molho pardo o almoço do dia,
que ela preparava de véspera, o vinagre ferindo meu nariz ardido de tanta
febre, que mais aumentava ao ver os dois vindo alegres em minha direção.
Depois os cachorros começavam a chegar desconfiados, de rabo murcho, um
filete de sangue escorrendo entre pernas. Tia prazeres sorria. Falava com voz
rascante de vitória: “sai, demônio, agora quero ver você andar de putaria
com as cachorras!”. Eu me admirava porque na frente do seu Biluca ela
falava de um jeito diferente, um brilho outro nos olhos, e ficava comentando:
“Viu Biluca, como os ovos de Tubarão estavam graúdos? Ô coisa que
cresce depressa!”. Ele ficava meio sem graça, me olhando de banda, e se
vinha com a mesma brincadeira de todos os anos, “quando é que vamos
fazer um servicinho aí?”, me agarrando entre as pernas. Eu me encolhia
todo, tia rindo, um riso maluco, a boca cheia de molho e farinha (VIANA,
1999, pp. 34-35).
É nesse ritual que se percebe uma alteração de humor na tia Prazeres. Como
dissemos parece que através dele, a tia realiza uma experiência erótica na qual vislumbra
aquela continuidade perdida de que nos fala Georges Bataille. Por outro lado, essa experiência
erótica se na castração de órgãos sexuais dos animais, vetando a esses a possibilidades da
atividade reprodutora. Neste sentido, no conto, a personagem caracteriza-se como um
elemento do interdito, da repressão. Seu prazer se realiza na interdição da atividade sexual dos
animais. Daí seu gozo em falar da “faca amolada de seu Biluca”: “'Um golpe só, e a gente
vê os quibas voarem longe!', dizia com uma força bruta na voz” (VIANA, 1999, p. 35). Como
lembra Chevalier e Gheerbrant, a faca tem uma importância nas cerimônias de sacrifícios
rituais, simboliza o “princípio ativo modificando a matéria passiva” (CHEVALER e
GHEERBRANT, 1989, p. 414). A faca ainda é associada ao falo. Daí talvez podermos falar de
uma possível transferência de objeto de prazer da tia prazeres que transforma a faca em objeto
de consecução de prazer.
A história complica-se justamente pela perda de seu Biluca e sua faca, como diz o
narrador, no Domingo da Paixão, em seus doze anos:
Mas naquele dia, nos meus doze anos, quando acordei da minha sonolência,
notei nela uma tristeza diferente, toda mole de estar chorando. Me pediu para
ir acender um cadeeiro, que por ela ficava tudo no escuro. Pela primeira vez
falou comigo como se eu fosse crescido. Seu Biluca a abandonara para
88
sempre, dissera que não vinha mais mesmo, e por isso ia se desfazer de todos
os bichos. Seu Biluca, eu me lembro, havia dito por indiretas no almoço,
“ele pode ajudar, está bem grandinho”. Fiquei frio, esquecido da febre
por alguns instantes. Tia Prazeres, na cozinha, como se estivesse com raiva,
só fez dizer “Nasci só, morro só” (VIANA, 1999, p. 35)
A tia mudou, fechou-se em si mesma e acabou com os bichos. Junto com as chuvas
pontuais da Quaresma, as febres do menino-narrador voltaram. A tia ainda guardava a
esperança que seu Biluca voltasse, preparou, na véspera, o almoço e os aventais. É que se
o desenlace do conto. Numa experiência onírica, o menino-narrador relata o que, por um
lado, parece ser seu sacrifício, e, por outro, o despertar para o sexo. Nesse momento, até a
linguagem se torna febril, numa superposição de imagens e frases como nos revela o uso
recorrente da conjunção “e”, o uso dos pronomes “eu” e “ela”, além de alguns jogos
antitéticos, que marcam o jogo alteronímico e o processo de individuação do narrador-
personagem:
O mesmo sono dolorido, espesso e quente, cheio de imagens que eu não
compreendia, me trazia agora tia Prazeres cantando nos meus sonhos
confusos. Eu ia e voltava, ia e voltava, o olho queimando, devia estar
vermelho, ela ali ao meu lado, longe de mim. Eu caía na sonolência e a
levava para os anos passados, ela forte e bonitona, as mãos cheias de sangue,
rindo dos animais mutilados. Eu penetrava num espaço morno e quente, o
seu colo cheio de dedos que podiam de repente se transformar em facas,
tocando-me delicada, lentamente, eu sem querer voltar àquele mundo de
copos de água fria que não acalmavam a minha sede. Mas aquelas mãos, um
forte cheiro de sangue e terra pela boca da minha calça curta nos meus treze
anos, e alguma coisa podia se romper a qualquer momento e eu sem saber o
que podia sair de dentro (VIANA, 1999, pp. 36-37. Grifo nosso).
O fragmento suscita aquela relação que estabelecemos no início da leitura do conto: a
relação entre o erotismo e o sacrifício, metaforizado aqui pela mutilação dos animais e pelas
imagens que emergem do estado onírico do próprio narrador personagem. Segundo Bataille
(2004), “o que o ato de amor e sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida
ordenada pela convulsão cega dos órgãos. O mesmo acontece na convulsão erótica: ela libera
órgãos pletóricos dos quais os jogos cegos se desenrolam além da vontade pensada dos
amantes” (BATAILLE, 2004, pp. 143-144). Essa parece ser a tônica da experiência erótica do
narrador-personagem. Toda a experiência ocorre à revelia de sua consciência. É tanto que
desperto do momento febril, ele não tem coragem de por as mãos dentro das calças ou iraté
o quartinho ver que coisa pegajosa era aquela que saía dele” (VIANA, 1999, p. 37). Para
89
tentarmos explicitar melhor o sentido dessa relação pela revelação da carne, trazemos ainda
Bataille em seu ensaio quando afirma que “[...] a carne é a expressão de uma volta [da]
liberdade ameaçadora” (BATAILLE, 2004, p. 144), ou seja, da continuidade perdida. A
própria linguagem do conto e principalmente do fragmento em que acontece a experiência
erótica, dá-nos a dimensão dessa liberdade, como ilustra a citação acima.
Terminada a experiência, a febre do personagem cede. Nesse momento a tia percebe
que ele está crescido e, de certa forma, descobriu a sexualidade. Como não pode mutilá-lo
concretamente, manda-o para a casa dos pais, o que, em certo sentido, metaforiza a
maturidade da “travessia” realizada: “'O tempo passa e a gente nem se conta', a voz de
repente doce e diferente como nas noites do tempo de seu Biluca. Enquanto fazia a garapa,
tinha pensado muito e tomado uma decisão: no outro dia era melhor eu ir embora, morar com
meus pais, que já era tempo” (VIANA, 1999, p. 37).
Outro conto de O meio do mundo e outros contos que encena o rito de passagem sob o
signo da experiência erótica e do conflito familiar é “A mulher das mangabas”. O relato
encena o conflito do menino-narrador com a avó com quem morava instaurado por um
elemento que implica uma alta carga simbólica: a janela. Segundo a enciclopédia eletrônica
Wikipédia (2010), a janela “é o símbolo da receptividade, da abertura para as influências
vindas de fora, da entrada da luz. Representa também a sensibilidade às influências externas.
A janela pode ainda ser considerada como sendo um símbolo da consciência, ou um portal
para o inconsciente” (WIKIPEDIA, 2010,). Esses também são sentidos que suscita o conto.
Mas os mais preponderantes são a abertura para as influências externas e a janela como
símbolo da consciência, consequentemente do conhecimento, e, no caso do conto, do
despertar para uma nova fase da vida, via experiência erótica.
O menino-narrador inicia seu relato apresentando a repreensão que lhe dava a avó para
sair da Janela: “Vovó Daleça dizia sai da janela, menino. Menino que vive na janela só dá para
mexerico” (VIANA, 1999, p. 130). Aqui como no conto anterior, o narrador-menino não vive
com os pais, que nem sequer são mencionados. Mas diferentemente do anterior, a avó aparece
como um símbolo do universo infantil que está sendo perdido. O tempo afigura-se inexorável.
O menino-narrador começa a ser chamado pelo mundo que vislumbra da janela: “Eu saía e
ficava zanzando sem ter para onde ir. A janela me chamava como um cachorrinho é chamado
pela cinza. Vovó não gostava. Sentada, me dizia, fique não, Netinho, janela ficou pra moça
namoradeira” (VIANA, 1999, p. 130).
90
A princípio, o menino-narrador cede aos pedidos da avó, pois ainda mantém uma forte
ligação com essa personagem, que, no conto, representa o mundo infantil. Numa linguagem
transfigurada pela “inocência autêntica”, ele narra um pouco de sua ligação com a avó, em sua
narrativa já permeada pelo elemento erótico:
Eu ficava ajoelhado nos pés dela e ela fazendo cafuné na minha franja do
meio da cabeça até a testa. O resto era tudo raspado. Era bem fresquinha
minha cabeça. Vovó passava a mão e falava que eu ia ficar grande, um rapaz
muito bonito. Ia ser a cara do vovô. Minhas sobrancelhas eram iguaizinhas
às dele. Sem pensar em nada, as nuvens voando finas, aquela mão
velhinha me alisando e aquela sonolência. Uma vontade de enfiar cada vez
mais minha cabeça nas pernas dela. Mas sem maldade nenhuma (VIANA,
1999, p. 130).
O conflito vai se acentuado progressivamente através do elemento janela, depois que,
um pouco mais crescido, o narrador-personagem se sente expulso das pernas da avó. “Quando
cresci um pouco mais, ela não deixou. Que eu estava na idade de menino de rua. Não sei
por que me senti para sempre expulso de suas pernas
21
” (VIANA, 1999, p. 130). Depois disso,
ele insiste em ficar na janela para que a avó o chame. Mas ela não o chamou mais. Como ele
mesmo afirma: “A verdade demorou muito a vir” (VIANA, 1999, p. 130). Surge, então, a
mulher das mangabas, personagem que vai intensificar o conflito avó versus menino.
O narrador-personagem “ficava o tempo todo na janela”, vendo as mesmas pessoas
para cima e para baixo. Ele gritava os vendedores e escondia-se. A avó gostando da
brincadeira. Quando passava a mulher das mangabas a avó dizia: “[…] grite não, Netinho,
senão ela vem perguntar” (VIANA, 1999, p. 131). Como os meninos-narradores dos contos
anteriores que vão despertando para o mundo, o menino ficava intrigado com o incômodo da
avó com a mulher das mangabas. Uma tardinha, sentindo-se dono da rua, o menino-narrador
pergunta a avó: Vovó Daleça, a mulher das mangabas vem, por que a senhora não gosta
que eu chame ela” (VIANA, 1999, p. 131). Dá-se o início do conflito, como ele mesmo relata:
“Vovó agarrou chorar de olhos enxutos, o nariz fungando, olhando longe como perdida nos
tempos do vovô. Eu, que ficava emocionado se via alguém chorando, desci correndo da
janela” (VIANA, 1999, p. 131). O conflito culminará no “negócio que, anos mais tarde, se
chamou angústia” (VIANA, 1999, p. 133)
22
. O menino fecha-se em seu quarto. Ruiu-se a
21
Talvez uma metáfora do parto, que simboliza a passagem a um outro momento da vida, no caso, a entrada
numa idade liminar.
22
É importante salientar que ocorre esse marcador temporal no texto, na página citada. O que nos causa um
problema metodológico, pois tal marcador realça uma distância temporal grande entre o fato vivido e o fato
91
relação entre os dois; consequentemente o menino desgarra-se do universo infantil: “Estava
ali desde ontem
23
. Não me sentia mais ligado a ninguém. Antes era o Netinho da Vovó Daleça.
Agora, solto no mundo, desenlaçado, cachorro sem dono. Se viesse um circo garanto que eu
ia. […] O melhor mesmo era me ir de vez” (VIANA, 1999, p. 135).
O marco maior desse desenraizamento é o grito lançado à mulher das mangabas,
depois de dois dias com uma febre, parecida com a do menino do conto anterior. É o grito
que o faz despertar da febre e para a descoberta do mundo (VIANA, 1999, p. 135):
Desde anteontem sem ver a rua sem ocupar meu lugar na janela. Deviam ser
umas quatro horas da tarde. Todas as frutas tinham passado. Do meu
lugar, tinha ouvido todos os gritos conhecidos. Menos o da mulher das
mangabas. Vinha sempre perto das cinco horas, a cara pegando fogo debaixo
do cesto enorme. Os braços pendurados, roliços de tão bem feitos. O mesmo
grito fino como se fosse de colega amigo pra brincar. E furou as paredes, me
fez pular da cama, força estranha me arrancando da modorna. Corri pra
janela e nem vi vovó sentada comendo carocinhos de abóbora. a voz me
envolvia, fazendo-me ver o mundo girar pela primeira vez. Ainda a alcancei
na esquina: “Ei! Mulher das mangabas!” .
Instaura-se então o rito de passagem, transgredindo o universo infantil que retorna
agora no relato vazado pela experiência da perda. Ou melhor, pela possibilidade da
experiência erótica desvelada pela primeira vez por duas grandes mangabas, como relata o
narrador: “A mulher se abaixou pra pegar o cesto e eu dei uma mãozinha. Foi quando vi duas
mangabas bem grandes e bem doces balançarem dentro da blusa daquela mulher” (VIANA,
1999, p. 136. Grifo nosso). O “ver” metaforiza justamente o despertar do erotismo,
seguindo uma tradição que vem da canção de amor provençal em que o “ver” origem à
coita o sofrimento amoroso. Depois disso, aumentam o desejo e a consciência do
despertar do elemento erótico:
Todas as tardes a mulher das mangabas vinha socorrer os meus chamados e
partir se remexendo, me deixando muito mais remexido. Depois apanhei
amizade com uns meninos da rua. Não veio circo pra partir, mas encontrei
muitas vezes a mulher das mangabas
24
a dar mel a nós crianças (VIANA,
1999, p. 136).
narrado. Mas, no decorrer do texto, o autor traz outros marcadores que indicam uma proximidade entre o fato
vivido e o fato narrado. A narrativa desenvolve-se num crescendo que culmina no rito de passagem,
distendendo-se novamente depois dele.
23
Esse é o primeiro marcador que revela uma proximidade entre o fato narrado e o fato vivido.
24
Vale salientar aqui o sentido erótico da palavra, que, segundo o site Brasil Escola (2010), é de origem tupi e
significa “coisa boa de comer”. Vale ainda ressaltar o gosto doce da fruta, o que um sentido especial ao
relato, desvelando a experiência erótica como uma inventora de caminhos na consecução do prazer.
92
A janela, no conto, funciona então como um elemento que potencializa a experiência
erótica e a descoberta do mundo exterior. Em um sentido, mais implícito, no qual atua a
máscara ficcional do autor, a janela metaforiza a própria ficção que abre nossa percepção para
o real, para nossa condição, e desestabiliza nossos lugares no mundo.
“Nas águas de Dalila” encena o rito de passagem sob o signo da experiência erótica do
menino-narrador com a tia a mulher casada com o tioque vem descansar, por uns dias, na
cidade. A narrativa desenvolve-se através de um jogo erótico de ditos e não-ditos, à feição de
dois textos fundamentais da literatura brasileira. O primeiro, um conto célebre de Machado de
Assis (2009) “Missa do galo” –; o segundo, um fragmento de um romance de J.J. Veiga
(1980) Sombras de reis barbudos autor que, como vimos, é uma referência explícita de
Antonio Carlos Viana.“Missa do galo” desenvolve-se “em torno da narração efetuada por
Nogueira de um episódio da sua vida: a 'conversação' que manteve com uma senhora
(Conceição) em uma noite de Natal” (DURIGAN, 1985, p. 67). Diferentemente da narrativa
de Viana, logo no início, o narrador-personagem marca a distância temporal entre o fato
narrado e o fato vivido, o que nos leva a desconfiar de sua narrativa, pois já não é o imaturo
adolescente que viveu a experiência: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma
senhora, muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo
ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria
acordá-lo à meia noite” (ASSIS, 2009, p. 45. Grifo nosso).
Segundo Durigan, o discurso desse narrador, que atualiza e cria os sentidos do conto,
que pode ser considerado exemplar quanto ao procedimento adotado para dar forma à história
(DURIGAN, 1985, p. 68). Ainda segundo o autor, tal discurso brinca com o leitor, levando-o
ora a sustentar as “intenções sedutoras” de Conceição, ora a visão romântica de Nogueira,
oriunda da leitura de Os três mosqueteiros”, apresentada na narrativa (DURIGAN, 1985, p. 68
). Duringan sugere uma leitura com base numa “dialética não resolvida”, na metáfora da
dúvida, que orienta a construção retórica do conto (DURIGAN, 1985, p. 68). O discurso do
narrador Nogueira assemelha-se ao discurso irônico do póstumo Brás Cubas e do casmurro
Bentinho, ambos “narradores maliciosos” que jogam com a figura do leitor, desestabilizando
seu lugar na produção de sentido do texto.
Em Viana, a ambiguidade, o jogo entre o dito e não-dito surge da visão limitada do
menino-narrador. O jogo erótico é criado, como já afirmou o autor em referência à recorrência
93
da visão infantil em sua obra, a partir da voz que ultrapassa a voz do menino-narrador, a voz
do autor implícito. Em Machado, o jogo retórico parece criação do próprio narrador. Em
Viana, apesar de impulsionado pelo jogo erótico, o jogo retórico surge também dos vazios,
subentendidos, elipses e ambiguidades proporcionados pela visão limitada do menino-
narrador. Processo semelhante acontece no romance de J. J. Veiga, Sombras de reis barbudos,
no capítulo sétimo, intitulado “O caderno proibido”, onde o narrador, que também adota a
perspectiva infantil, narra, igualmente de forma ambígua e elíptica, sua iniciação com a tia
Dulce, quando fora passar um temporada na casa do tio.
“Nas águas de Dalila” desenvolve-se em torno do banho de cachoeira que o menino-
narrador e a tia foram tomar um dia após a chegada da mesma. O narrador inicia seu relato
com o chamado da tia: “Ela disse 'vem, vem, estou te esperando'”. Daí vem uma primeira
descrição da tia que se repetirá ao longo da narrativa, desvelando o seu forte poder de
sedução. “E saiu jogando os cabelos para trás, num gesto bonito que ela sabia fazer”
(VIANA, 1999, p. 108). A tia possibilita ao personagem-narrador o banho de cachoeira, pois
não lhe era permitido ir sozinho. Ele é quem fica mais contente na casa, aliás o único, que
avó, mãe e tia não olharam com bons olhos a mulher do irmão.
Nunca me deixavam ir sozinho, como se eu fosse ainda criança. Por isso
que, quando ela chegou, fui eu quem ficou mais contente, pra dentro e pra
fora enquanto não vi o carro do tio Claudionor apontar na estrada. Ele
chegou todo afobado, tomando a benção a vovó e dizendo que iria embora
no outro dia bem cedinho. Só tinha vindo mesmo trazer a mulher, que estava
louca para conhecer a família e descansar um pouco a cabeça. E ela foi
entrando toda dona da situação, cumprimentando a todos na sala sem
nenhum medo das caras feias das irmãs do marido (VIANA, 1999, p. 108).
Abrimos aqui um parêntese para a descrição que o menino-narrador faz de Dalila
quando a foto de casamento. Ela nos permite fazer uma breve referência, pelo menos
temática, ao poema de Manuel Bandeira,Balada das três moças do sabonete Araxá”, onde o
autor joga com um aspecto caro à nossa sociedade: a relação entre o desejo e a publicidade
25
.
“Os cabelos louros apareciam derramados nos ombros, e na boca o riso da moça de Kolynos”
(VIANA, 1999, p. 108). Ambos os textos tratam do desejo que as mulheres despertam no
sujeito. No poema, o eu-lírico, num tom de blague, até o reino pelas mulheres do sabonete
25
Ver ensaio de Jean-Francois Held, que no final dos anos 60, analisava a relação entre o erotismo e a
publicidade. Segundo ele, na publicidade o que importa é despertar o desejo, fazer ferver a libido: “o
vendedor acompanha, e as carteiras abrem-se”(HELD, s/d, p. 102)
94
Araxá. Mulheres que são objeto de desejo, mas que não podem ser consumidas, pois são
fictícias. Estão para despertar o desejo do eu-lírico. No conto, o riso da tia é comparado
ao da moça da propaganda do creme dental. Duas questões suscitam essa imagem. Primeiro, a
tia configura-se como um signo do mundo urbano que invade o espaço campesino,
despertando o desejo de um personagem desse espaço e a repulsa de outros. A segunda, ela
surge como elemento de desejo de uma sociedade de consumo. Nisso ela se diferencia de
todas as outras imagens que vimos nos outros textos. As outras apresentaram algum traço
grotesco: a mulher carvoeira fedia e lhe faltavam alguns dentes, o hermafrodita desvela uma
rosa sangrenta, à mulher das mangabas também faltam alguns dentes. Dalila tem o riso da
moça da Kolynos. Dalila talvez seja a grande metáfora do esfumaçamento das fronteiras entre
os dois mundos. É no banho de cachoeira, espaço simbólico do devir humano, segundo o
Dicionário de símbolos (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 160) que, num jogo de
lusco-fusco, o menino-narrador vai ser despertado para o erotismo que vai deflagrar seu rito
de passagem. Após a breve estadia da tia, o narrador-personagem não será mais o mesmo. No
conto, não importa a intencionalidade dos gestos da tia. mas seu poder de sedução que
desperta o desejo no narrador-personagem, possibilitando a este uma experiência inaugural.
Importa como ele interpreta cada gesto da tia, despertado pelo desejo.
Uma de suas leituras acontece na sua chegada à cachoeira. Dalila chegara primeiro,
pois ele tinha ido vestir o short vermelho que ela lhe trouxera de presente. De longe, ele a
mulher que tem nome da personagem bíblica que fez Sansão sucumbir. “Logo de longe, notei
o faiscar dos cabelos louros sobre a pedra e ela sem a parte de cima da roupa de banho. Assim
que me viu, sentou-se segurando o sutiã com uma das mãos enquanto acenava com a outra. A
água estava uma delícia, estava me esperando pra cair de novo” (VIANA, 1999, p. 109).
Nesse e outros fragmentos que veremos, perfaz-se melhor a noção da fenda erótica de
Barthes. No caso, a fenda se realiza entre a consciência de sedução de Dalila, insinuada pelo
discurso do narrador, e a “falta de jeito” dele com a situação. Por isso, a imagem da tia
segurando o sutiã solto, cobrindo uma zona erógena que pode ser desvelada a qualquer
momento, metaforiza bem a intermitência erótica. Outras ações e falas vão se agregando a
isso para intensificar o jogo erótico, a exemplo da que transcrevemos abaixo, ocorrida no
cenário do banho:
[...]Ainda acrescentou que eu era um homem e que “cabelos bonitos”!.
Soltava gritinhos debaixo da água, agarrava-se a mim sem prestar atenção
95
onde pegava, abrindo a boca, a água empastando os cabelos sem lhe tirar a
beleza. Inclinava a cabeça dum lado, inclinava do outro, voltava-se a se
segurar em mim com força porque a água estava cegando-a. Eu todo solto,
sem saber o que fazer com as mãos. Quando quase ia escorregando é que
passei molemente um braço na sua cintura, que estava numa temperatura
agradável. Uma coisa me tomou por dentro, o corpo interiro respondeu. Ela
se afastou, olhou-me de modo sério e estranho (VIANA, 1999, pp. 109-110).
Nesse jogo erótico de passar a mão sem saber onde, Dalila desperta o Sansão que
no menino-narrador, algo o toma por dentro, o corpo responde, mas de novo surge a fenda:
ela se afasta e fala do homem que era o narrador-personagem, despertando nele forças
atávicas que o empurram ao rito:
[…] nunca pensara o Claudionor com um sobrinho tão crescido. Até se
espantou quando me viu na sala, ele falava em você como criança. Mas
que nada! Um homem! E eu sem poder falar o queixo batendo, meu corpo
sem controle, o short se deformando. Sua voz tão perto de meus ouvidos me
deixava estonteado. Quando terminou de me enxugar, abriu a toalha no chão,
deitou-se de papo pro ar, soltou as alças do sutiã e sorriu (VIANA, 1999, p.
110).
O sorriso seria uma permissão? Assim como em Machado, fica a dúvida no ar. A cada
gesto e fala da tia, a narração do menino ganha mais ambiguidade. Com o desenrolar,
intensifica-se a fenda erótica, criada por este olhar inocente e malicioso a um tempo, como
revela o trecho que citamos em toda a sua extensão:
Deitei-me à distância, olhando como a barriga dela era fininha, cheia de
pelinhos dourados até chegar ao mais embaixo numa reentrância bem feita.
O biquíni branco, minha curiosidade na zona escurecida, um de cada
lado. Desci o olhar, as cochas firmes, não muito grossas, os mesmos pelinhos
dourados. Ela as balançava delicadamente, olhos meio fechados, boca
entreaberta. A minha ressequida, um bola de saliva grossa. Deitei-me de
bruços, um medo danado dela me chamar para cair de novo. Minhas
pulsações eram visíveis. Fiquei a contemplá-la sorrateiro, os braços cruzados
sob a testa, o corpo colado à terra, a maciez da grama. Tentei mudar os
pensamentos. De repente, ela levantou a cabeça e perguntou se eu estava
dormindo. “Vou cair mais uma vez, topa?” Não falei nada, nem me sentia em
condições de pôr-me em diante dela. Sem se preocupar com as alças do
sutiã, se foi sozinha, a deslumbrante visão da carne branca secando-me a
garganta de vez. Pus a mão no short e meus dedos trouxeram um fio liguento
(VIANA, 1999, pp. 110-111).
O olhar do narrador-personagem vai desvelando as zonas erógenas: a barriga fina e
cheia de pelinhos, a reentrância bem feita, olhos meio fechados (como também Nogueira
96
descreve Conceição, protagonistas de “Missa do galo”). Numa frase nominal muito comum ao
seu estilo, Viana descreve a zona erótica, intermitente entre o biquíni e a pele, ou seja, entre o
velar e o desvelar produzido pelos nós a cada lado do peça de roupa. Não houve uma
realização sexual propriamente dita, mas através desses elementos que causam pulsações no
corpo do narrador-personagem, este vai descobrindo seu potencial erótico, como se dá, por
exemplo, na constatação do fio liguento que traz nos dedos.
Quando voltam da cachoeira, sob os “olhos de cara amarrada da avó, mãe e tia”, o
menino-narrador e Dalila vão tomar banho. Ela primeiro. Depois ele, num banho mais
demorado que o de costume, envolvido na atmosfera deixada por Dalila. É a primeira vez que
observa seu corpo com atenção. Aí se dá o rito de passagem:
Pela primeira vez, observei meu corpo com mais atenção. A marca do sol,
minhas pernas escuras, o peito forte. Todo ele se movimentava nos mínimos
detalhes. Vibrava intensamente. Diante do espelho, fiz muque no braço.
Olhei-me de lado. O cabelo era mesmo bonito. Entrei debaixo com a boca
viscosa. Ensaboei-me com lentidão. Aquele torpor não devia acabar nunca.
As mãos descobrindo caminhos insuspeitados (VIANA, 1999, p. 112),
Outro conto que narra o rito de passagem pelo despertar do erotismo é “Parábolas dos
gatos ao amanhecer”, no qual Viana paga tributo ao realismo fantástico. O conto, publicado
em 1974, em Brincar de manja livro de estréia do autor ganha uma nova versão em O
meio do mundo e outros contos, desenvolvendo um pouco mais o erotismo que se insinuava
tênue na primeira versão. Como sugere o título, o conto narra uma história contando outra.
Pois o termo “parábola”, de origem grega, significa comparação, refere-se a uma narração
alegórica na qual o conjunto de elementos evoca uma outra realidade (Dicionário Aurélio, p.
513), tanto fantástica, quanto real.
O menino-narrador narra, de forma explícita, a história de Dasdores e sua filha
Dilurdes, uma estranha adolescente que namora um cavaleiro que ninguém sabe de onde veio.
À primeira vista, parece que todos vivem às voltas com a religião de Dasdores e o namoro da
filha:
Uma coisa é ver os outros, a gente fazer muda logo a cor do pano. Por essas
e outras é que dona Dasdores não podia falar dos namoros de hoje em dia.
Era uma mulher cheia de religião, sempre às voltas com missas, ladainhas,
procissões. A filha é que botava tudo a perder. Isso no nosso modo de ver.
[…] Todo mundo conversa mole, catando pedaços de um dia tal qual o de
ontem para não morrer. Quando morria, olhares pousavam como mariposas
97
em Deodato e Dilurdes. Ela, pelos doze, treze anos, branca como cera, capaz
de desmaios e suspiros mais fortes que o vento em noite de tempestade. Ele
numa idade de incerteza, ora mais velho, ora mais novo que todos nós.
Morava no não-sei-onde, nunca dando as horas pra seu ninguém (VIANA,
1999, p. 137).
Ao narrador, fica a vontade de “furar o cerco, descobrir o mistério que em volta da
casa” (VIANA, 1999, p. 138). Essa vontade aumenta com o falatório que acrescenta
elementos demoníacos ao namoro de Deodato e Dilurdes:
Aí deram para falar que Dilurdes era alma de outro mundo. A mãe tinha feito
promessa pra ela ficar boa em criança e tinha dado ela pra Satanás. Que ela
era morta muito tempo e que aquela brancura não era normal. Que
aquele tipo de namoro só podia ser de quem estava com o diabo no corpo.
Diziam que quem dava banho era a mãe e que precisava passar talco nela
todinha, senão começava a feder. Eu achava aquilo tudo invenção, porque se
Deodato dava tanto aperto e tanto beijo podia ser gente de verdade
(VIANA, 1999, p. 139).
destoa o olhar do menino em relação aos demais. Se por um lado os elementos
demoníacos atribuídos a Dilurdes a distanciam do restante do povoado, por outro aumenta a
curiosidade do menino-narrador. Nesse sentido, esses elementos demoníacos vão despertando
a consciência do narrador-personagem, via erotismo, para o mundo.
Surge então o elemento fantástico. Começam a aparecer gatos mortos no povoado, na
mesma época em que Deodato dera para aparecer a qualquer hora. Surge o boato de que ele e
Dilurdes vão casar. Dasdores encomenda uma colcha de cerzido à tia do narrador-
personagem. Mas um dia, pegam a peça incompleta e vão embora, deixando para trás os gatos
numa posição escandalosa e numa agonia de morte.
Tinham ido embora sem que ninguém visse. Quem vimos mesmo foram
alguns urubus impacientes. Teve casa que eles chegaram a comer gatos
dentro mesmo como se não tivesse moradores. A casa das duas ficou
abandonada, se acabando aos poucos. Hoje, no lugar, um monte de ripas,
barro e madeira suja. No quintal, um monte de mamoeiras que dão para
esconder um casal de namorados (VIANA, 1999, p. 142).
Qual seria a relação entre a morte dos gatos e o estranho casal? Não é fácil precisar. O
gato, segundo Chevalier e Gheerbrant (1989, pp. 461-463), apresenta um simbolismo
ambíguo entre tendências benéficas e maléficas; às vezes simboliza a sabedoria superior,
outras simboliza o pecado e a morte. Essa ambiguidade encontra-se na narrativa. Os gatos
98
simbolizam excesso e morte no caos que se instaura após o desaparecimento do casal. Se
pensarmos na situação de pesadelo” instaurado no conto após “sumiço”, de certa forma, o
conto faz uma referência ao pesadelo real instituído pelo estado político a Ditadura militar
instituída – e pela censura da época. O casal, neste caso, seria o elemento de fuga desse estado
através da relação erótica, pois metaforizam a transgressão dos interditos. Todo povoado vive
em função dele. Por outro, a “parábola” dos gatos revela o que fazia o casal, possibilitando ao
narrador despertar para o erotismo. A parábola, para o menino-narrador, é um forma de
conhecimento, pois o desperta para o mundo do sexo, do gasto e do excesso, como deixa
transparecer sua fala final citada acima.
“Parábolas dos gatos ao amanhecer” é também uma metáfora do próprio processo de
criação ficcional que cria um mundo próprio para falar de outro: o mundo real. Processo
semelhante ao de J. J. Veiga que cria situações dolorosas” - fantásticas como um recurso
para que o realismo possa emergir, pois como afirma afirma Samira Youseff Campedelli
(1982), em Veiga, o mundo representado na ficção “é o nosso mundo mesmo”
(CAMPEDELLI, 1982, p. 101). O conto em questão, num breve momento de revelação
poética, nos deixa entrever, sob a superfície fantástica e terrível, uma verdade secreta que só a
criação poética é capaz revelar na linguagem por breves instantes.
“Meu tio tão só” também trata do rito de passagem, mas sob o viés do homoerotismo.
Nele também não a relação sexual na experiência erótica, mas o despertar para uma
sexualidade homoerótica; e, no caso, destituída de qualquer possibilidade de prazer. O relato
foca explicitamente a história do suicídio do tio do narrador-personagem que, como sugere o
conto, parece ter sido motivado pela não aceitação, por parte do povoado, da sexualidade do
tio. Por outro lado, o menino-narrador revela que seu caminho será o mesmo do tio o
suicídio dele é prenúncio do seu.
Logo no início no conto, nos é desvelada a identificação entre ambos através da
comida: “Minha mãe estava fazendo minha comida e do tio Bau quando vieram dizer que ele
tinha se enforcado na beira do rio. A princípio não acreditamos. Ali gostavam de brincar com
a gente, aquilo podia ser mais uma brincadeira” (VIANA, 1999, p. 26). Em seguida, essa
identificação entre ele o tio se pela semelhança entre o corpo do narrador-personagem e o
do tio. Quando segue a mãe para ir ver o tio, o narrador nos uma pista do que será o seu
corpo: “Já não podia correr muito (VIANA, 1999, p. 26)”. Depois ao ver o tio ele questiona:
“Nunca pensei que galho de cajueiro fosse tão forte a ponto de aguentar um corpão como o do
99
meu tio. Se ele tivesse pensado bem, não teria se arriscado tanto” (VIANA, 1999, p. 26).
Mais adiante ele narra a forma como descem o tio do galho.É que ele desperta para
sua condição:
Quem arriou o corpo foi um grupo de homens. Um subiu no cajueiro, os
outros dizendo “cuidado pra não quebrar a cara”, “vai ser a primeira vez que
ele cai por cima”, como se o morto fosse um cachorro sem dono. […] Cinco
ficaram aguardando para amortecer a queda, poque segurar o corpo de tio
Bau ninguém ia conseguir mesmo. Quando o do alto cortou a corda, foi um
baque só. Foi como se o tio Bau caísse dentro de mim. Houve um começo de
riso e as pessoas foram se afastando até restar eu minha mãe. mais
calma, foi chamar uma carroça e nem fomos pra casa dele naquele fim de
estrada. Levamos o corpo pra nossa (VIANA, 1999, p. 27. Grifo nosso).
Em seguida, vêm as mulheres costurar a mortalha do tio. E elas possibilitam ao
menino-narrador, através do corpo do tio, tomar consciência do próprio corpo: “As mulheres
raspavam o olho por certa parte do corpo dele, cochichavam entre si e depois engoliam a
risada, sempre olhando para mim. Por isso mesmo que nunca tive coragem de entrar nu nas
águas do rio com os outros meninos. Além da tristeza, um calafrio (VIANA, 1999, p. 28).
Morto e enterrado o tio, o narrador-personagem assume seu lugar na zombaria do
povoado, o que o leva a pensar se o galho do cajueiro aguentaria um corpo menos pesado que
o do tio:
Quando fomos de tardinha botar uma cruz no do cajueiro, a gritalhada
das janelas foi ainda maior. Minha mãe disse que eu não ligasse. O povo
quer sempre alguém para servir de Cristo. Enquanto ela rezava, fiquei
admirando a galha em que tio Bau tinha se enforcado. Até que ele soube
escolher. Era mesmo muito forte, capaz de aguentar um outro corpo que não
fosse ainda tão pesado como o dele (VIANA, 1999, p. 28).
Sob o relato da história do tio, lemos a história do próprio narrador-personagem. Na
classificação do foco narrativo, tenderíamos a situar esse narrador como narrador-testemunha,
aquele que está na história, mas que conta a história de outro. Mas, se, por um lado, sua
narrativa nos revela a história do tio; por outro, nas entrelinhas revela a história do próprio
menino-narrador que, como sugerido, terá o mesmo final da do tio. É no limiar entre as duas
história que o conto ganha sua dimensão literária. É daí que problematiza um dos mais
importantes papel da ficção: falar de si mesma, quando fala do mundo e vice-versa.
100
“Quinta-feira tem drama” encena o rito de passagem, brincando com a relação
realidade/ficção, algo comum na ficção de Viana (Em O meio do mundo e outros contos
temos além do já visto “Parábolas dos gatos ao amanhecer” e da narrativa agora em questão, o
relato “As mulheres dos três reis magos” que relata uma encenação teatral do dia de natal. Em
Aberto está o inferno ainda encontramos “Figurinhas difíceis” que dialoga com o cinema). O
conto encena o despertar do potencial erótico, que, em certo sentido, é o despertar para uma
nova fase da vida, através da história de uma peça teatral não representada que trazia, pela
primeira vez, uma personagem feminina para o colégio interno masculino:
Logo se espalhou a notícia. Uma menina no nosso teatrinho. Até que enfim
uma saia para enfeitar os nossos dramas das quintas-feiras. A surpresa dos
cartazes, as cadeiras gemendo de expectativas. Tudo no maior segredo.
Autor nenhuma ousava falar dos ensaios, do nome da peça, das substituições
(VIANA, 1999, p. 123).
A garota desperta as “violências fundamentais” dos meninos. Como afirma o próprio
narrador: “Nem bonita, nem feia” (VIANA, 1999, p. 124). Mas usando saia. Mariolívia deixa
“todo o dormitório em pé de guerra”(VIANA, 1999, p. 124). Ele “só pensava na coragem das
freiras em soltar aquela menina tão magrinha, cabelinhos escorridos, no meio de tanta fera
encurralada. E ainda mais no teatro” (VIANA, 1999, p. 124).
Mas o tempo passa, a férias se aproximam e a peça não é encenada e os meninos vêem
a possibilidade de se misturarem ao mundo:
[...]Dentro em pouco, seriam as férias, estaríamos lá fora, saboreando a mesa
farta das ilusões caseiras, das fugas pelos regos da chuva. Iríamos nos
misturar ao mundo. Contávamos os dias. as mariolívias vinham em
abundância, molhando os lençóis de nossa adolescência. Diante delas, aquela
sumia, perdia as formas, deixava de caminhar por sobre os sofrimentos da
paz. Acordávamos a cada dia mais suados, o dormitório recedendo a gozos
machucados, fomes ampliadas. Quase não falávamos mais em teatro, e
poucos queriam saber se ela era santinha ou a menina que viu a Virgem de
Fátima.
[…] O interesse foi morrendo e o nome da peça nem chegou a ser escrito. A
malas estavam arrumadas, alguns carros abrindo suas portas, e o mundo
abrindo suas cortinas (VIANA, 1999, pp. 128-129).
Abrem-se as portas do teatro do mundo. Se Mariolívia surge como possibilidade de
realização erótica no espaço fechado da escola, através do teatro, o mundo oferece
101
possibilidades maiores. No entanto, é necessário o despertar provocado por Mariolívia, que
metaforiza a ficção, que possibilita ao menino-narrador e colegas uma nova percepção do
mundo – uma percepção que nasce da possibilidade do prazer. Erotismo e ficção, no conto, se
encontram, para revelar ao narrador-personagem sua nova condição no mundo e uma nova
faceta do real. Esses dois aspectos o erotismo e a ficção são aspectos caros a Viana, na
celebração de seu processo criativo. É como se o autor estivesse afirmando o lugar desses
universos como revelação da condição humana.
3.2 As experiências eróticas em Aberto está o inferno
Vamos começar a análise das experiências eróticas de Aberto está inferno a partir de
um conto revisitado. “Nas garras do leão” foi publicado pela primeira vez em Brincar de
manja (1974) e reeditado no livro em questão. As mudanças são significativas na produção de
sentidos do conto. No entanto, a base da história continua a mesma: um jogo sensual entre
dois irmãos que estão despertando para o erotismo, sob o jugo da mãe que passa horas
trancada no quarto com uma terrível dor de cabeça. Na análise do relato, vamos buscar alguns
subsídios na leitura que faz Georges Bataille de Morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë,
em seu A literatura e o mal (1957).
A princípio, o menino-narrador e a irmã não sabiam o que fazer quando a mãe sentia a
dor de cabeça e trancava-se no quarto:
Mal sentia a tal dor de cabeça, corria logo para o quarto, trancafiando-se até
altas horas. Eu e Camila ficávamos preocupados procurando o que fazer pro
tempo passar logo. Nos primeiros tempos, quando ainda não tínhamos nos
acostumado à solidão, era um mastigar sem fim de coisas que não
preenchiam o vazio. Estar sem ela era estar fora do mundo (VIANA, 2004,
p. 115).
A mãe, nesse primeiro momento, é o símbolo da segurança, do abrigo, do calor, da
ternura e da alimentação (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1989, p. 580). Com o passar do
tempo, ela vai se transformando no “risco da opressão” e no “símbolo da castração”
(CHEVALIER E GEERBRANT, 1989, p. 580), basicamente, a partir dos “jogos sensuais”
(BATAILLE, 1957, p. 17), que começam com a descoberta de um mundo escondido nos
recantos da casa:
102
Com o passar do tempo, fomos descobrindo caixas, recantos dentro da casa
que nem imaginávamos existir em tempos de saúde. Recantos escuros, onde
eu e Camila ficávamos no princípio quietos, sem nenhum ruído para não
acordá-la. […] E foi um mundo escondido brotando de todos os cantos
(VIANA, 2004, p. 115).
Além do jogo entre si, os irmãos começam um jogo com a mãe, evitando as
contrariedades e os reclames dela. O menino-narrador pensava no dia em que ela não
resolvesse sair mais do quarto. “Nós dois, naquele casarão, íamos nos perder para sempre”
(VIANA, 2004, p. 116). Instaura-se uma realidade regida pela tensão entre esses dois pólos
opostos: de um lado, o mundo de uma “infância selvagem, ainda não constrangida pelas leis
da sociabilidade e da educação convencional” (BATAILLE, 1957, p. 17), criada pelo
erotismo, despertado pelos jogos dos irmãos. Esses jogos adensam a possibilidade do incesto
que talvez seja o verdadeiro leão sugerido pelo título do conto. Do outro lado, o mundo do
interdito, regido pela mãe, sua dores de cabeças e suas reclamações, pois como afirma o
menino-narrador, os jogos entre ele e a irmã “não estavam de acordo com a dor que ele
sentia” (VIANA, 2004, p. 117) e “aquela dor de cabeça nunca dava trégua nem a ela nem a
nós (VIANA, 1994, p. 118) . Ora o menino-narrador e a irmã se entregavam aos jogos que os
despertavam para um novo mundo, ora se reduziam à extensão dos gestos da mãe:
[…] Quando notou que tínhamos medo que ela tivesse uma recaída, dizia
que seu fim estava perto, o tínhamos a menor compreensão da vida. E
assim foi nos reduzindo à extensão de seus gestos, à sua irredutível maneira
de ser. Como criança tem um mundo despreocupado (a aproximação dos
outros nos fazia sentir isso), percebemos que esse mundo dera lugar a
um outro. Ela corria o dia inteiro, preparando a comida, cuidando dos
lençóis sempre alvíssimos, deixando tudo muito ordenado para que, se
morresse, não ficássemos totalmente ao desamparo, como se não
fôssemos dois desamparados (VIANA, 2004, p. 116. Grifo nosso).
No entanto, o desamparo representado pelo outro mundo que se aproxima – um mundo
do qual forças atávicas eclodem com a consciência de que o mundo infantil está ficando para
trás vai se adensando, ao tempo que vai abrindo a consciência dos personagens para a
descontinuidade à qual cada um está condenado. Isso os lança, cada vez mais, ao reino
selvagem da sexualidade e do incesto.
Tudo começou com os jogos sob os lençóis. O menino-narrador e a irmã ficavam na
cama procurando entender o desenho das telhas:
103
[...]Eu via sempre muita cara. Umas rindo, outras se transformando em
bichos estranhos. Camila via raposas, gaviões abrindo asas e cavalos
sendo montados. Nunca um desenho coincidia com o outro. […] Quando as
mãos não estavam apontando os desenhos nas telhas, repousavam sobre as
pernas do outro, a princípio quietas, mas com o tempo se moviam
lentamente ao desconhecido. A proximidade de nossos corpos era cada vez
maior, e ela nem se incomodava com isso (VIANA, 2004, p. 119).
Após o jogo com as telhas, surge o jogo com as colchas de retalhos:
Quando todas as telhas já tinham sido vasculhadas, pegávamos as colchas de
retalhos para adivinhar de quem tinha sido aquele vestido, aquela camisa,
aquela calça. Ela costurava em tempos de saúde. Quando um adivinhava e o
outro não, vinha o castigo. Os que Camila me infligia eram sempre mais
perigosos que os meus, castigando a si e a mim indiretamente. Raramente eu
exigia pagamento pesado, embora ela achasse sempre tudo a peso de ouro.
Eram pagamentos escondidos sob os lençóis que, às vezes, duravam mais
que o necessário e eu ficava aflito com aquele sem-fim de Camila (VIANA,
1997, p. 119).
Depois das colchas, o jogo se torna mais perigoso, o menino-narrador e a irmã buscam
um espaço maior que a cama, e o encontram na clareira entre as árvores, de onde desvendam
os desenhos que formavam as nuvens. A cada passo do jogo, vão entrando numa zona mais
selvagem, mais erótica, que desvela a zona proibida do sexo. E cada vez mais se distanciavam
da mãe, que a essa altura parecia sumida do mundo” (VIANA, 2004, p. 120). Esse jogo os
leva a uma estrada sem retorno.
O nosso plano agora era esse: ficar debaixo de uma daquelas árvores
enormes e descobrir palmo a palmo, noite adentro, animais ferozes que as
sombras projetavam em nossos corpos. Animal feroz é sempre grande, tem
garras pontudas, e isso os galhos mostravam sem nenhum pejo. Ela parecia,
a cada dia, mais alheia a tudo (VIANA, 2004, p. 120).
O jogo chega a um ponto extremo: a metáfora dos animais ferozes revela isso. Mais
distantes da mãe, chegam mais próximos da transgressão, através da realização do incesto.
Georges Bataille, numa leitura de um ensaio de Claude Levi-Strauss, traz uma passagem do
antropólogo francês segundo a qual a “proibição do incesto [...] constitui o passo fundamental
graças ao qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza para a cultura”
(BATAILLE, 2004, p. 311). O narrador-personagem e a irmã caminham na linha tênue que é o
104
próprio erotismo, que implica uma alternância de atração e horror (BATAILLE, 2004, p. 333).
A cada lua cheia aproximava-se para eles a possibilidade de transpor essa linha: “cada lua
cheia era para nós um chamado muito forte, ela nos olhava como a dois desconhecidos”
(VIANA, 2004, p. 120).
Neste sentido, a narrativa sugere que ambos caíram nas garras do leão, uma vez que a
mãe não os reconhece. O conto faz-nos ver como o erotismo se constitui nessa linha tênue.
Por outro lado, não seria essa também a perigosa linha na qual caminha o escritor em sua
criação? Passeamos, leitor e autor, nessa difícil fronteira, entre a interdição que nos nega uma
herança primordial que nos faria plenamente ser e a transgressão que nos daria acesso à
“continuidade” do ser, mas sob o risco da culpa, do remorso, da rejeição social e da queda na
indistinção selvagem da inconsciência cega, com seus abismos e sombras inarredáveis.
“Jogos”, como sugere o título, também encena um rito através do jogo sensual, mas
numa perspectiva diferente da do conto anterior. Neste conto estão em foco os diferentes
papéis encenados pelo menino-narrador e Zuuma menina com quem fora criado junto – em
dois espaços distintos: a “bodega” do pai da menina e a escola.
A bodega, onde o narrador-personagem ajuda Zu, representa o espaço do despertar
para a experiência erótica, do despertar do jogo sensual que traz não só as transgressões
próprias do mundo infantil, como as interdições impostas. a escola, onde Zu infligia os
maiores castigos ao menino-narrador, é o espaço da imposição das interdições, que se
tornavam mais fortes devido à falta de coragem ou de conhecimento, por parte dele, para
transgredi-las. Por uma lado, a bodega representava o espaço de expansão do sujeito,
enquanto a escola o espaço que lhe impunha limites.
O jogo da bodega começa com o pegadio dos dois personagens:
[…] Nem sei quando começou aquele nosso pegadio. Zu ainda menina, nem
carocinho de peito tinha, mas já levantava a blusa e pedia que eu chupasse o
biquinho. Eu achava aquilo a maior doideira, capaz de dona Alzira pegar a
gente e o fuzuê estava armado. Nunca que iam pensar que era Zu quem
começava tudo. Ela levantava a blusa, punha uma perna entre as minhas,
puxava minha cabeça e ficava à espera. Depois parecia que se cansava e saía
como se nada tivesse acontecido, meu corpo cheio de formigamentos
(VIANA, 2004, pp.134-135).
Vale ressaltar que os jogos o da bodega e o da escola são sempre iniciados pela
personagem feminina, que usa a dissimulação como uma forte estratégia. ao narrador-
105
personagem cabe uma falsa inocência que não permite entender corretamente os jogos e levá-
los adiante. Essa inocência, no entanto, é uma estratégia do autor-implícito, para que no relato
do fato vivido brote a “inocência autêntica”, que não esconde sua ligação com o “mal”, com o
erotismo.
O jogo da bodega continua, à medida que os personagens crescem e se expandem para
o mundo:
Os peitinhos de Zu mudavam do dia pra noite, eu sentia no apertar dos
dentes, no amojo dos lábios, tinha até medo de puxar sem querer a pedrinha
que minha língua roçava. Ela se contorcia um pouco e eu começava a
achar que o balcão estava encolhendo a cada dia, queria ter onde espojar
melhor as pernas. E Zu queria agora se demorar mais, a perna entre as
minhas pernas como pra sentir alguma coisa a mais que o brim do calção.
Do jeito que ia, ela ia terminar fechando as portas da bodega. Depois a
gente saía, um sem olhar pra cara do outro, de tarde ia para a escola, todas
as classes misturadas numa mesma sala, dona Maura sempre bonitona com
seu coque perfeito (VIANA, 2004, p. 135).
Na escola espaço institucional Zu realiza o jogo das interdições. Nele, ela
representa os limites impostos ao narrador personagem, desvelando de forma cruel e torpe sua
descontinuidade, sua limitação como ser descontínuo. Isso se aplica até no nome do menino,
pronunciado por Zu, “José dos Santos”, desvelando sua individualidade e sua limitação, o que
não acontece no jogo erótico.
Quando Zu tomava conta da aula, me fazia passar vergonha. Mandava
que eu fosse pro quadro fazer fração. Eu não acertava uma e ela dizia “José
dos Santos, você está muito mal em matemática, sentar”, e ela mesma
resolvia tudo num minuto. Eu ia para minha carteira com uma vergonha
danada, por causa do meu tamanho, estava crescendo acelerado, deixando
outros pra trás. Minha idade ninguém sabia direito. Zu me dava um carão na
frente de todos, acho que pra ninguém desconfiar do que ela me pedia pra
fazer dentro do balcão (VIANA, 2004,, p. 136).
O jogo da transgressão chega ao momento extremo quando Zu, “sem mais nem
menos”, pega a mão do menino-narrador e coloca no meio das pernas, debaixo da saia. Ele
vai buscar em seu universo infantil algo que o leve a compreender essa nova experiência: “A
mesma de taboca que a gente pegava na beira do rio, uma lanzinha gostosa que nem
precisava de sopro para voar” (VIANA, 2004, p. 137). Mas apesar da resposta do corpo
(“Meu corpo logo respondeu, virou um fole de tirar formiga” (VIANA, 2004, p. 137), o
106
menino narrador recua com medo: “Puxei a mão rapidinho, com medo de Dona Alzira chegar
e me ver daquele jeito. Zu correu lá para dentro com tanta rapidez e com a cara entufada que a
mãe veio me perguntar se a gente tinha brigado” (VIANA, 2004, p. 137).
Ao fugir da experiência transgressora, o menino-narrador cai na experiência da
interdição. Essa parece ser aquela que marca mais o seu rito de passagem, e justifica aquilo
que disse Viana em resposta ao autor desta pequisa, sobre a relação entre seu universo
ficcional e o universo teórico-ficcional de George Bataille. A nosso ver, o menino-narrador,
essa figura fronteiriça que transita entre os universos infantil e adulto através da experiência
erótica, se não realiza uma experiência plena, consegue entrevê-la quando assume a voz
narrativa. No conto em questão, parece ser esse o sentido: aquilo que lhe é vetado na
experiência concreta, torna-se entrevisto na experiência narrada. Na experiência vivida
transparece muito mais o peso da interdição:
[…] Zu me pegou de jeito na tabuada do oito, que nunca entrou na minha
cabeça. “José dos Santos”, ela chamou, como se fosse a primeira vez que a
gente se visse. A blusa bordada arrebitada nos peitinhos, a fita verde nos
cabelos, combinando com os olhos. Me perguntou duas vezes quanto era
oito vezes nove, e duas vezes errei. Foi quando ela pediu para estender a
mão. Pensei logo no acontecido da manhã. Doida ela não era de fazer aquilo
na frente da classe inteira, que via meu rosto queimando. Toda séria, ela
abriu a gaveta de dona Maura, pegou a palmatória e me lascou dois bolos
ardidos (VIANA, 2004, p. 137).
Por não realizar a experiência da transgressão plenamente, resta ao menino-narrador
sofrer a experiência da interdição. Isso justifica os dois bolos na mão que se furtou ao ato
transgressor. O erotismo presente no conto coloca o menino-narrador no entre-lugar entre o
jogo da transgressão e o jogo da interdição. De certa forma, essa é também a condição do
escritor que, enquanto criador, caminha sempre na linha tênue entre dois opostos que se
articulam, se tensionam e se complementam. Numa metáfora quitaneana, o escritor (o artista),
no ato da criação, tem que fazer presente seu D. Quixote(o lado transgressor) e seu Sancho
Pança (o lado da interdição). É isso, em certo sentido, o que encena o conto.
“Prima Otília” encena o despertar do erotismo do menino-narrador com uma prima
que vem da cidade visitar sua família e que reúne em si aspectos díspares: ao mesmo tempo
que é uma mulher bela, fede, devido a um problema urinário provocado por um aborto. Tais
aspectos lhe atribuem a ambivalência grotesca:
107
Minha mais remota lembrança de desejo se chama prima Otília. Era minha
prima em segundo grau e aos meus olhos parecia de outro mundo. Quando
ela se aproximava para me dar um beijo, eu sentia uns formigamentos
estranhos que mesmo ela sabia provocar. que prima Otília fedia.
Parecia que vivia mijada. Mas mesmo isso não me tirava uma exaltação de
corpo que eu ainda não sabia identificar (VIANA, 2004, p. 127).
Ao olhar do narrador, a prima Otília reúne características opostas. Por um lado, o
menino-narrador descreve sua beleza:
[…] Muito bonitona, tinha sido miss qualquer coisa quando nova, olhos
claros, os mais claros da família. Era difícil na família ter uma mais bonita
do que ela, nem mesmo Neide Lacerda, uma prima nossa que cantava no
rádio.
[…] toda arrumada como sempre e como sempre bela, com os cabelos
arrepanhados na nuca, umas penugenzinhas soltas que davam vontade
maluca de soprar. Nunca a tinha visto tão bela, num vestido fino que a gente
logo percebia ser caro além da conta, mesmo pro bico dela (VIANA,
2004, pp. 128-129).
Por outro lado descreve o cheiro, que não o incomodava, ao contrário: “ficava com os
sentidos mais aguçados” (VIANA, 2004, p, 128).
[…] Parecia que o havia dinheiro que tirasse aquela inhaca de prima
Otília, porque se tivesse, ela cheiraria a perfume francês e sabonete da
melhor marca (p. 28).
[…] Mas nunca tive vontade nenhuma de gritar, de dizer que ela era fedida,
tal a beleza que emanava dela e a tranquilidade dos olhos que pareciam me
abençoar cada vez que recaíam sobre mim (VIANA, 2004, pp. 128-129).
Numa dessas visitas, a prima vai ao quintal para se trocar entre as bananeiras. O
menino-narrador se esconde entre mangueiras e tem uma visão erótica que lhe desnorteia os
sentidos, recorrendo a elementos do universo infantil para tentar compreender o mundo que se
desvela a seus olhos:
Os troncos das bananeiras faziam uma barreira pra olhos indiscreto, mas
nem tanto.ela levantou discretamente os panos da saia, baixou tudo com
cuidado e vi suas coxas de uma alvura sem igual na vida. Nem tapioca era
igual. Tinha algo de leitoso, e bem no alto...Meu coração disparou. Alguma
coisa se entortou em mim. E prima Otília, a saia erguida, fez uma troca mais
demorada que das outras vezes. conhecia perna de mulher até o joelho e
de prima Otília eu tinha vergonha de dizer pra mim mesmo o que tinha visto
(VIANA, 2004, p. 130. Grifo nosso).
108
Prima Otília revela-se ao menino-narrador com seu corpo grotesco (ao mesmo tempo
belo e fedido) um corpo ambivalente, aberto e incompleto, como vimos com Bakhtin no
capítulo anterior. Esse corpo grotesco coaduna com o aspecto erótico para instaurar o rito de
passagem e a descoberta do real, que se revela em todo seu fulgor. Ainda no que se refere ao
grotesco, concordamos com Muniz Sodré (1985), em A comunicação do grotesco, que a
noção funciona para a apreensão e problematização da cultura brasileira (SODRE, 1985, p. 38
). No caso do conto e da obra de Viana como um todo, o grotesco não se apresenta sob a
forma do mau gosto e do kitsch, mas passa por uma transfiguração estética, que problematiza
esse ethos “marcado pelas influências escatológicas da tradição popular” (SODRE, 1985, p.
38).
Em sua experiência poética que também é a do autor implícito, a julgar inclusive
pelo vocabulário empregado, o menino encena não o corpo ambivalente da prima, mas
também sua visão ambivalente que reúne tanto os aspectos grandiosos da personagem, seus
atributos físicos e subjetivos, quanto seu elemento disforme, sua bexiga furada que a deixa
com um mau cheiro perene. Neste sentido, a noção bakhtiniana de visão carnavalesca nos
possibilitaria ler o grande desafio do escritor brasileiro: desvelar a tensão dos aspectos
contraditórios que constituem nossa cultura, descosturando a colcha de retalhos que tenta
unificá-los.
“A linda Lili” narra o despertar do erotismo do menino-narrador a partir da história de
Lili. Como a personagem anterior, Lili apresenta traços contraditórios e ambivalentes. A
princípio, “Lili era uma louca santa” (VIANA, 2004, p. 36), que cantava bonito e iluminava a
rua com sua voz nas noites de novena. Neste primeiro momento, ela é investida de uma áurea
de santidade, visto que, com vinte anos, ainda permanecia com o corpo e a voz de menina:
Lili, não havia menina mais linda na Jabutiana, com seus cabelos longos e
lisos, sobretudo assim, vestida de santa Maria Gorete. A pele que nem seda
da Pérsia, como dizia minha mãe. Lili, com vinte anos e cara de menina,
nem peito tinha, a voz era mesmo de uma criança. Falava-se aos cochichos
do corpo de Lili. Eu não entendia nada (VIANA, 2004, p. 36).
No final do fragmento, o menino-narrador nos deixa, a partir de sua perspectiva, uma
pista da sua históriacomum a muitos outros narradores de outros contos que vimos -: sua
inquietação ante o fato de falarem da falta de sangramento de Lili. Mas um dia, em uma das
novenas, “umas gotas de sangue escorreram pelas pernas de Lili sem ela ver, enquanto
109
cantava o 'De rosas e lírios'”(VIANA, 2004, p. 37). E
uma alegra inusitada tomou conta da casa, da vizinhança e até os homens
que ficavam bebendo fora, amigos de meu pai, vieram ver. Havia se
realizado o maior milagre e eu nem desconfiava qual era. Era como se Lili
tivesse cantado a vida toda pr'aquele instante. Para enxugar o filete de
sangue, minha tia mais velha tirou a toalha da mesa, tomando cuidado para
não fazer ir ao chão as cocadas e os pés-de-moleque. As velhas que estavam
na fila da frente logo acudiram com os véus para guardar o sangue como
relíquia (VIANA, 2004, p. 37. Grifo nosso).
O sangue - “universalmente considerado o veículo da vida” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1989, p. 800) surge como um elemento que vai mudar não só a
condição de Lili, mas também a do menino-narrador que, a princípio, não entendia o milagre
realizado. Depois do fato, Lili não voltou a cantar nunca mais. Continuou sangrando e foi
levada ao hospital onde passou meses. Quando voltou era outra aos olhos da vizinhança e do
menino-narrador.
[…] Todos se admiravam como Lili tinha botado corpo em tão pouco
tempo... Tinha até ficado mais bonita. que eu não achei. O rosto parecia
inchado. […] Para mim era uma outra pessoa que eu tinha ali na minha
frente, não era mais a linda Lili. No rosto, de igual os olhos, que ainda
tinham um pouco do brilho de antigamente. […] Eu vi que Lili nunca mais
seria a mesma, e ela me olhou do mesmo jeito que olhei para ela. […] A voz,
quando ela se dirigiu a mim, tinha se modificado. Rouca e feia. Sobretudo
triste (VIANA, 2004, p. 39).
Para Lili e para o narrador a sensação de que a personagem “tinha se ferido para
sempre” (VIANA, 2004, p. 39). O sangue, também símbolo da fertilidade (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1989, p. 800), metaforiza o sacrifício no qual a própria Lili foi a vítima
imolada. Ela não aceita seu rito de passagem simbolizado pelo ciclo menstrual que a abria
para a fertilidade e para a experiência erótica. A louca santa pouco a pouco passa a ser
percebida pelo menino-narrador como um objeto de desejo, despertando-o assim para a
realização erótica. E isso é percebido no restante da fala do narrador, ao descrever sua
admiração pelo novo corpo de Lili. Se ela realiza seu rito pelo ato sacrificial simbólico que
lhe abre uma chaga, o narrador realiza o seu através desse novo olhar lançado a Lili:
Estava admirado que seus peitos tivessem crescido daquele jeito e os quadris
se arredondado tanto quanto os da minha tia mais nova. Ela disse que não
110
gostava do corpo que tinha agora e começou a chorar. Não se incomodava se
tivesse morrido menina e nem desconfiava do que ia ser o resto dos seus
dias sangrado assim. Depois encostou a cabeça no meu peito, enxugando os
olhos com os dedos, e foi que senti pela primeira vez meu corpo dar
também uns estranhos sinais de desespero (VIANA, 2004, p. 39).
Mais duas narrativas “Senhas” e “Dadado” trazem a perspectiva do menino-
narrador às voltas com o erotismo. Mas não realizam a experiência erótica, em nenhum desses
sentidos: o concreto ou o simbólico. Lançam o olhar que lhes é característico o lusco-fusco
e encenam um fato que o menino-narrador não compreende de todo. Podemos afirmar, de
certa forma, que os narradores personagens realizam o rito de passagem, mas não conseguem
perceber a nova condição em que vivem. Ambos narram experiências alheias que, em certo
sentido, os implicam. Em “Senhas”, o menino-narrador relata a relação conturbada entre pai e
mãe. Em “Dadado”, a experiência do primo do narrador-personagem.
Em “Senhas”, o menino relata o esgarçamento do casamento dos pais, junto com o
esfacelamento da relação erótica do dois. Ele vive dois momentos distintos. Um com a
“senha” do pigarro do pai que, sob a ótica do autor-implícito, seria um sinal de realização
erótica que deixa tudo mais “leve” na casa, e outro na ausência do pigarro, que torna tudo
mais “pesado” e revela a “descontinuidade”.
Era sempre na hora da Voz do Brasil que os pigarros se acentuavam. Minha
mãe fazia que estava ralhando: “Pare de fumar, homem, senão daqui a pouco
vai escarrar sangue”. Mas era como se falasse só para ele pigarrear mais. Eu
ouvia o riso dele todo voltado para dentro, arrematado por um novo pigarro,
mas sem escarrar nada. Aquilo me dava um nojo!
Quando meu pai não pigarreava, eu sentia o ar pesado, gatos e cachorros
apanhavam por pouco, minha mãe só faltando xingar Deus e todos os santos.
De do quartinho de trabalho de meu pai, eu ouvia as latas se batendo com
as panelas, ela reclamando da merda de vida que levava. “Trabalho de sol a
sol e nenhuma recompensa. cara feia é o que recebo”, dizia. Meu pai,
diante de uma pancada mais forte que ela dava num cachorro erguia a
cabeça, me olhava, parecia que ia dizer alguma coisa, mas desistia. Dias
assim ele cuspia muito dentro da latinha cheia d'água que ficava ao lado da
banqueta de trabalho. Batia sola e cuspia, batia sola e cuspia, meu estômago
ficava embrulhado. […] Quando minha mãe gritava que a comida estava na
mesa, a gente ia, eu sem nenhuma vontade de comer (VIANA, 2004, pp. 84-
85).
A única reação do menino-narrador é o nojo, “a usea”, de que nos fala Paulo
Henriques Britto na apresentação do livro anterior, “diante da revelação brutal da
111
realidade”(BRITTO, 1999, p. 9). Essa atitude vai aumentando com a escassez dos pigarros do
pai e a violência maior da mãe e culmina numa tentativa fracassada do pai e da mãe de uma
realização sexual que tem como consequência o rito de passagem do filho, que agora terá que
sustentar a casa.
Voltei a dormir e quando me levantei vi que meu pai tinha ido embora com
tudo que era dele. Minha mãe estava na cozinha com a cara de sempre.
Sem olhar para mim, nem tocou no assunto. disse que dali em diante eu
tratasse de arrumar as ratoeiras e aprender logo como se pegava guaiamum
(VIANA, 2004, p.87).
O menino-narrador realiza o rito de uma maneira mais crua: terá que assumir o lugar
do pai no sustento da casa. Essa, talvez, seja uma forma mais torpe da experiência do rito. O
narrador não passa pela experiência inaugural que o desperta para o erotismo e o mundo. Mas
lança seu olhar a uma experiência fracassada e a partir dela assume sua descontinuidade.
Em “Dadado”, o menino-narrador, que fala em nome de uma certa coletividade, narra,
também sem compreender de todo, a experiência erótica de Dadado, encarregado de comprar
a carne da família – já que a avó do menino-narrador não deixa os netos sairem, – com a Lica,
a quem chamam de “a perdida da rua”: “Todo dia Dadado passava em casa pra entregar o
quilo de carne. Nossa avó dava a ele o dinheiro sempre adiantado, porque no outro dia ele
trazia a carne logo cedo e ela ficava com tempo para fazer outras coisas. A gente nunca tinha
posto o pé no açougue, vó Nair não deixava” (VIANA, 2004, p. 131).
O narrador e seus irmãos são opostos ao personagem de “A mulher das mangabas”,
uma vez que este vence o conflito com a avó e descobre o mundo pelas veias do erotismo. O
menino-narrador e seus irmãos ficam presos à avó, que lhes veda a experiência de descoberta
do mundo, de abertura para o mundo exterior. Por isso, lhe cabe lançar os olhos para a
experiência alheia, tentando, a partir de sua perspectiva limitada, entender o que ocorreu.
Dadado um dia deixa de entregar a carne. Para o narrador-personagem foi até um
alívio, seria melhor comer escaldado de ovo do que comer o guisado fedendo a fumaça
(VIANA, 2004, p. 133). A primeira a dar conta do sumiço do filho é a mãe de Dadado que
chega angustiada procurando por ele, colocando a culpa na avó Nair e nos netos molóides que
“nem sabem comprar o pedaço de carne” (VIANA, 2004, p. 132).
Mas surge Lica que chega, como outros vizinhos, para bisbilhotar o que está
acontecendo. O narrador, utilizando o discurso direto, traz a fala de Lica, uma fala erótica, que
112
abre uma fenda no sumiço de Dadado. Ela diz: “Não vendo que Dadado não se perdeu!
Aquilo era homem feito!” (VIANA, 2004, p. 132). Por fim, chega Dadado, todo desconfiado,
dizendo que tinha sido roubado e por isso sumira com medo de uma surra. Mas sob a voz
inocente do narrador-personagem, surge a insinuação de que Dadado havia gastado o dinheiro
com Lica: “Já na ponta da calçada, ela derreou o ombro da blusa, puxou, pra todo mundo ver,
uma nota amassada da alça do sutiã com que saiu se abanando na maior risada” (VIANA,
2004, p. 133).
Ambos os contos ilustram bem o trabalho do autor-implícito com a perspectiva
infantil, que “não tem” o pleno entendimento das coisas, deixando o texto cheio de fraturas e
vazios. A escolha dessa máscara ficcional revela a visão do autor sobre a ficção e sobre o
processo ficcional que, em certo sentido, significa extrair do mínimo de recursos o máximo de
expressão.
Duas outras narrativas de Aberto está o inferno destacamos para falar da perspectiva
infantil e de sua relação com a experiência erótica. Ambas apresentam certa ambientação
urbana, o que joga muito com a questão da linguagem dos contos. Os narradores não se
apresentam tão inocentes quantos os anteriores e suas experiências são mais desencantadas. A
primeira, a já referida “Figurinhas difíceis”, traz como tema o cinema. Narra a descoberta da
experiência erótica do menino-narrador e seus colegas através das telas de cinema. A segunda,
“Tadinho do professor Tadeu”, narra uma aula sobre o erotismo imortalizada pela turma do
narrador-personagem.
Em Figurinhas difíceis”, o despertar erótico se através de Maria Antonieta Pons
26
,
uma atriz de cinema que deixava o narrador e os colegas entusiasmados com a vida e o
mundo. Valia a pena ter nascido para ver os filmes de Maria Antonita Pons” (VIANA,
2004, p. 92).
É Maria Antonieta Pons que desperta os personagens para o erotismo latente. Como
afirma o próprio narrador, “Nessa época ainda não sabíamos de comichões pelo corpo, mas
foi ela que despertou. […] Dali em diante víamos os filmes dela com outros olhos e outro
corpo” (VIANA, 2004, p. 94). Passa a fase da atriz, sua figurinha fica tão fácil quanto a de
Cantiflas, e outras atrizes vão surgindo como Sarita Montiel. Com isso, o olhar dos
personagens vai da tela para as ruas, pois, como diz o narrador: “as balizas da Escola Normal
com as pernas de fora eram muito mais palpáveis que a Maria Antonieta Pons”. E o cinema,
26
Segundo o site Wikipédia (2010), atriz de cinema cubana e dançarina de rumba.
113
como a literatura de ficção, realiza o despertar do erotismo e da percepção do real.
E, assim, ela foi sumindo de nossas vidas sem que sentíssemos. Nem nos
sonhos aparecia mais. Nossos álbuns ficaram incompletos, o grupo se
desfez. E nunca mais notícia de Maria Antonieta Pons. A nossa preocupação
era adulterar a carteirinha pra ver Norma Benguell
27
nua, currada por um
bando de playboys (VIANA, 2004, p. 95).
Em “Tadinho do professor Tadeu”, o narrador-personagem narra a “aula erótica” do
professor que ele e os colegas viviam azucrinando. Tal aula acontece depois que o professor
começa a namorar a professora Vanda, objeto erótico de todos da turma, e encontra a turma
encenando uma possível relação sexual entre ele e a professora. A aula, que tem como
consequência o afastamento dos dois professores da escola, fica guardada na memória do
narrador-personagem e ele a transpõe para o relato. É importante frisar que a aula acontece
num espaço que constitui, na visão de Althusser, um dos “Aparelhos Ideológicos do Estado” –
a escola –, espaço privilegiado de produção e manutenção das interdições, mas que, ao mesmo
tempo, como revela o relato, apresenta-se também como o lugar de questionamento das
interdições, via exercício crítico próprio de todo espaço de recepção e produção de
conhecimento como o do professor Tadeu. O relato apresenta, de certa forma, uma resposta
ficcional de Viana à censura imposta ao seu livro O meio do mundo pela Universidade Federal
de Sergipe, que indicou o livro na lista do vestibular e depois o retirou sob a alegação de que
era pornográfico :
[…] Falou da importância da pornografia em nossa vida. Que em todas as
épocas sempre houve pornografia e nem por isso a humanidade parou de
evoluir. A pornografia liberta a alma da mediocridade do dia-a-dia, nos
outra dimensão da vida. Leiam Arentino, peçam a Vandeca […] um poema,
garanto que vão gostar. Que o que a gente estava fazendo não tinha nada de
errado, estávamos estimulando a imaginação, coisa que a escola não fazia.
Não há algo que estimule mais a imaginação do que o sexo, ele disse. Que é
preciso uma boa dose de sacanagem pra viver bem. Porra, o cara tava com
tudo, usando um vocabulário que nunca imaginamos que fosse usar. E foi
uma aula do cacete. Falou que a hipocrisia do mundo era grande e que um
dia a gente ia ver isso de perto. Se liguem, que não entrássemos nessa,
fôssemos sempre autênticos como a Vandeca. […] Se as pessoas soubessem
trepar […] o mundo seria menos infeliz, que quem não trepa pensa em
fazer o mal aos outros, é assim que nascem as guerras e todas as
infelicidades. Se os generais trepassem não mais haveria tanta tortura. Não
vêem os padres? A igreja sempre foi cheia de escândalos, sabem por quê?,
27
Segundo o site Wikipédia (2010), “primeira atriz brasileira a apresentar-se em uma cena de nu frontal no
filme Os cafajestes”.
114
porque a batina esconde o pau, mas não cobre as taras. […] “É dos puritanos
que vem todo o mal do mundo. Quando vocês forem infelizes, vejam se não
é falta de uma boa trepada. Talvez tenha sido hoje a melhor aula da minha
vida, mais do que todas essas outras cheias de senos e co-senos. Essa vocês
nunca vão esquecer”. O cara detonou (VIANA, 2004, p. 111).
A aula do professor Tadeu é uma verdadeira apologia à “imaginação pornográfica
28
”,
que, numa primeira definição, seria “uma das formas extremas de consciência humana”
(SONTAG, 1987, p. 49). Na narrativa, ela aparece em oposição à escola. Esta, no caso,
constitui-se no espaço por excelência da interdição, ao passo que a imaginação pornográfica
leva a efeito a transgressão ao interdito. O professor Tadeu estabelece, em sua aula, a relação
entre o erotismo e a imaginação, desvelando-os como aspectos humanos que dinamizam a
vida, tanto na esfera individual, como na social. Para Octavio Paz (1995), “o agente que move
tanto o ato erótico, como o poético é a imaginação” (PAZ, 1995, p. 10). A imaginação
estimula o erotismo e o erotismo incita a imaginação. São duas faces indissociáveis. Vale
ainda ressaltar que ambos, a imaginação e o erotismo, estão encenados numa narrativa
ficcional, o que desvela a relação intrínseca desses três aspectos humanos: a imaginação, o
erotismo e a ficção (a experiência poética). A imaginação pornográfica se opõe ao saber
instituído simbolizado pela escola que “fornece saídas autênticas da consciência humana”
(SONTAG, 1987, p. 73), ou, como diz o professor Tadeu, “nos outra dimensão da vida”.
Resta-nos dizer ainda que a imaginação pornográfica revela a vida mais autêntica ao professor
Tadeu que no início do conto aparece como um sujeito “alienado” ante as interdições
individuais (psicológicas) e sociais. Ao conhecer Vandeca, não gratuitamente professora de
literatura, o professor Tadeu desenvolve, de forma significativa, uma expansão da
consciência, o que o leva à aula erótica (e poética) que marca para sempre a vida de seus
alunos.
28
O termo tomamos de empréstimo de Susan Sontag do ensaio “A imaginação pornográfica”. Tanto no ensaio
de Sontag, tanto aqui neste trabalho o termo aparece como sinônimo de erotismo e seus cognatos. Não vamos
estabelecer aqui as nunces que envolvem os dois termos. Ambos, na visão de teóricos, às vezes, aparecem
muito próximos, em outros referem-se a aspectos distintos. Seguindo a visão de Octavio Paz, ambos são
representação (metáfora) da sexualidade.
115
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, nosso objetivo foi analisar e apresentar aspectos importantes da obra
do contista sergipano Antonio Carlos Viana, uma obra de ficção relativamente pouco
discutida, da qual, até onde sabemos, ainda não havia ainda nenhum estudo de maiorlego.
Neste sentido, um dos primeiros problemas a ser enfrentado foi o desafio do (quase)
ineditismo e as implicações daí advindas. Estabelecemos como recorte de análise um tema
recorrente na ficção de Viana e que, ao nosso ver, constitui-se como uma chave de entrada ao
universo ficcional do autor: o rito de passagem de um menino-narrador, instaurado pela
experiência erótica.
Em nosso percurso argumentativo, muitos pensadores de destaque não foram
abordados, a exemplo de Claude Levi-Strauss no que se refere à problemática dos ritos de
passagem, e Sigmund Freud, no que tange à abordagem do erotismo. Isso se deu devido a
algumas escolhas metodológicas, mas também a alguns percalços e, sobretudo, à incipiência
de nossa leitura. Certamente, esses e outros autores apontariam outros rumos e desvios à
nossa pesquisa. Ainda assim, acreditamos que nosso percurso, embora não represente todo o
caminho que é preciso percorrer, foi um bom início de caminhada.
Se conseguimos dizer algo significativo sobre a obra de Antonio Carlos Viana, cumpre
frisar que ainda nela muito a pesquisar. Entramos no “bosque” da sua ficção apenas por
uma senda (por que não dizer “vereda”?); outras estão para serem exploradas, como as
narrativas que tratam das mais diversas quadras da vida, a exemplo da velhice. Em outra
perspectiva, poderíamos ainda enfocar aqueles contos em que diferentes vozes se
entrecruzam, na segunda pessoa do singular, como em “Vá Deralda”, em que “duas vozes
separadas pelo recurso dos parênteses, porém irmanadas na crueldade, dirigem-se em
momentos diversos à mesma personagem, cuja voz nunca ouvimos (BRITTO, 1999, p. 10).
Aliás, como sugere Paulo Henriques Brito, outra possibilidade de entrarmos no universo
ficcional de Antonio Carlos Viana é pela via da crueldade. E, acrescentamos, das formas
inéditas de encená-la.
Nesta perspectiva, vale frisar que, enquanto desenvolvíamos esta pesquisa, o autor
lançou mais um livro: Cine Privê (2009), que está definido na epígrafe do profeta Isaías que
abre a coletânea: “Toda cabeça está enferma, e todo coração abatido”. Nos 20 relatos que
compõem o livro, os personagens a maioria narradores em primeira pessoa estão vivendo
116
situações extremas em que vislumbram, de forma torpe e cruel, algum aspecto da realidade.
Neste sentido, os relatos que encerram uma perspectiva infantil (quase metade do livro) dão o
justa medida desse revelação cruel, associada à perda de uma inocência primeira. Viana, de
certo modo, desvela as relações do mundo infantil com os aspectos demoníacos da própria
condição humana. Mas essa salvo em alguns momentos em que articulamos erotismo e
crueldade – é uma outra história. Que pretendemos, em breve, contar.
Resta-nos comentar a relação autobiográfica que estabelecemos com a leitura da
ficcão de Antonio Carlos Viana. Para Ricardo Piglia, em o Laboratório do escritor (1994),
uma “pessoa escreve sua vida quando pensa estar escrevendo suas leituras (PIGLIA, 1994, p.
70). No que diz respeito a este trabalho, ao abordar os ritos de passagem nas narrativas
ficcionais de Antonio Carlos Viana, realizamos também nosso rito, nos lançamos a nossa
“outra margem”. Não nos referimos aqui unicamente ao rito acadêmico da titulação, mas ao
“salto” do conhecimento que o encontro com a obra ficcional de Viana nos proporcionou ao
longo desta pesquisa. Neste sentido, sentimo-nos como o professor Tadeu, do último conto
visto no terceiro capítulo. A leitura da ficção de Viana possibilitou-nos um encontro com as
saídas autênticas da consciência; revelou-nos uma outra dimensão da vida.
117
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124
ANEXOS
Entrevista concedida por e-mail pelo escritor Antonio Carlos Viana ao autor
desta pesquisa em: 12/03/2009
Paulo André: Li numa de suas entrevistas que você o com bons olhos o rótulo
“regionalista” para suas obras sabemos das implicações políticas e de leitura do termo.
Recordo-me que chegou a dizer que as experiências de suas histórias podem acontecer tanto
aqui quanto em Paris, o que daria um cunho universal aos seus relatos. Mas percebo que
muitos de seus contos têm uma ambientação rural, que, creio, intensifica as experiências de
seus personagens (o relato “O meio do mundo” não teria a mesma força se acontecesse sob o
signo desencantado da cidade, aliás se fosse um personagem urbano, “Tonho” não tomaria as
rédeas da narrativa). Eu tenho certa simpatia pelo termo e acho que me ajuda a ler a sua obra,
mas não o vejo com sentido de exótico ou de uma literatura menor, mas no sentido de um
espaço ainda marcado pelo mundo arcaico. Tenho na cabeça uma frase de Ronaldo Correia de
Brito falando do romance Galiléia e que me ajuda a pensar sua obra. Ele diz: “O meu sertão é
complexamente urbano” e penso que sua preocupação é a mesma que a dele: pensar a
adequação do mundo arcaico que herdamos ao mundo globalizado; claro, caminhado por
outras trilhas. O que você pensa a respeito disso?
Antonio Carlos Viana:Eis o que escrevi sobre o assunto para o “Estadão”:
“Ninguém é doido. Ou, então, todos”, diz o narrador de “A terceira margem do rio”, de
Guimarães Rosa. Parodiando-o, eu diria que todos somos regionalistas ou ninguém é, porque,
no fundo, todo escritor fala de sua região. O problema é que a palavra regionalismo adquiriu,
ao longo do tempo, marcas que foram estigmatizando-a: tipos engraçadinhos, fala arrevesada,
dicionário ao lado. Hoje, não há escritor que goste de ser chamado de regionalista. A palavra é
muito redutora. O mais interessante é que ela se aplica, quase exclusivamente, a autores
vindos do Nordeste.
É evidente que o regionalismo, na linha de 30, não tem mais razão de ser. Ele foi muito
importante naquele momento. Ele pode ter morrido, mas não a dimensão do regional. O
125
problema que se coloca ao escritor que se arrisca, hoje, a falar desse universo é o da
linguagem. Recorrer ao pitoresco, ao engraçadinho, à fala típica do homem rural não funciona
mais. Deixar de falar desse mundo é impossível, porque ele existe e grita para ser ouvido.
Encontrar o tom certo, eis a questão.”
O que a gente não pode esquecer é que existe um mundo dos grotões e que necessita de
alguém que lhe voz. É isso que faço, dar voz a personagens de um mundo rural, que hoje,
depois das antenas parabólicas, não é mais tão virgem assim. O urbano, o globalizado o
invadiram. Concordo com você que o personagem do “Meio do mundo” não teria o mesmo
efeito se fosse urbano, a história seria outra. O que eu procuro é captar o que se passa na
mente dessa gente que vive em condições mínimas de existência. Não para fingir que esse
mundo não existe. Como eu disse acima, o problema é achar a linguagem adequada sem cair
no exagero dos termos regionais, que só afastam o leitor.
PA: “Brincar de Manja”, como assinala Paulo Henriques Brito, paga tributo à voga do
realismo mágico dos anos 70, vividos sob os auspícios da ditadura militar. Por que a escolha?
Por que, em seguida, uma ficção de corte mais “realista” e erótica?
ACV: Quando comecei a escrever, o sucesso retumbante de “Cem anos de solidão” deixou
todo mundo atônito. Na mesma época eu havia descoberto José J. Veiga. Baseado nos dois,
achei que poderia explorar esse mundo do realismo mágico. Depois vi que não era tão fácil
assim, havia as leis da verossimilhança que devem existir em qualquer conto, romance,
novela. Não era só pegar ruminantes invadindo uma cidade e a história estava pronta. A coisa
parecia fácil, mas não era. Quando percebi que, em algumas histórias minhas, havia uma
pulsação erótica latente, achei que podia ser um caminho meu. A partir do segundo livro, dei
vazão a esse veio. Me interessei em descobrir como o erotismo eclode nas pessoas das classes
mais pobres, dos que não têm condições de entender o que se passa dentro deles.
PA: Hermenegildo José Bastos, no livrinho interessante sobre a obra de Murilo Rubião,
discute a hipótese da literatura como prática da crueldade, a partir da relação ao inverso entre
126
a conquista literária brasileira e a derrota histórica. Sua literatura é uma “prática de
crueldade”? Como você vê isso?
ACV: Sou um admirador dos “Cantos de Maldoror”, de Lautréamont. Para mim, é o livro que
melhor nos faz ver o mal como tônica do mundo. Nele, não espaço para o bem. Me
lembrei agora do filme de Lars Von Trier, “Dogville”, que também vai nessa linha temática.
Meus contos têm muito dessa visão do mundo onde a crueldade impera. Quem é bom,
honesto, na tem vez em nossa sociedade. Em qualquer espaço, o mal domina. Tenho
consciência de que algumas de minhas histórias são cruéis, como “Das Dores”, “Olhos de
fogo”, “Barba de arame”. outras em que a crueldade vem disfarçada, como “Ana Frágua”,
“Náufragos”...
PA: O menino-narrador e o erotismo, caros à sua obra, põem em foco a ficcionalidade de seu
texto. Segundo Hermenegildo José Bastos focar a ficcionalidade é questionar o fundamento
epistemológico do critério da verdade, tão em voga no mundo moderno, mas também
questionar o papel da criação literária num país como o nosso, onde sempre coube à literatura
formular, em nome das classes dominantes, o projeto da nacionalidade. Como você situa sua
obra? Neste contexto de autoquestionamento da literatura?
ACV: Não me lembro mais quem foi que disse que toda literatura é metalinguagem, pois ela
sempre termina falando de si mesma. Quando escolhemos um tipo de narrador, estamos
dizendo que só ele é capaz de transmitir uma verdade, a verdade do texto. O narrador-menino
é um jogo de claro-escuro. Como ele não tem idade para entender o que se passa a sua volta,
torna-se adequado para a verdade que ultrapassa sua própria fala. É nos interstícios dela que o
texto ganha sua dimensão literária. O autor implícito é, no fundo, quem manda no jogo da
ficção. Em “Retratos”, por exemplo, há uma crítica à família, mas isso o narrador não sabe na
sua voz inocente. Quem sabe é a mão que manipula a história. Nesse jogo é que se estabelece
a literatura. Esta existe para dizer verdades, mas não pode ser de forma explícita, senão vira
discurso sociológico, filosófico, antropológico.
Cada escritor escolhe um viés para dizer o mundo que o cerca. Se bem que eu tenha em meus
livros contos muito urbanos, é o ambiente rural que mais me interessa, pela virgindade do
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olhar das personagens. Elas estão sempre descobrindo alguma coisa que um menino da cidade
não descobriria por viver num mundo cheio de informação. Onde situar minha pequena obra?
Sinceramente, não sei. Às vezes sinto ecos de Lins do Rego, outras da secura de Graciliano
Ramos. Acho que fico por aí. Seria pretensão demais? O que procuro fazer entender, creio eu,
é que o Brasil na é a violência de um Rubem Fonseca ou a cafajestice dos Nelsinhos de
Trevisan. Há ainda um Brasil ingênuo, longe das cidades, que precisa ser perscrutado.
PA: Li num texto qualquer, um pensamento de Borges de que o conto acompanha a biografia
do autor. Numa entrevista concedida ao também escritor Mayrant Gallo, você falou que o
conto está mais de acordo seu jeito de ser. Você pode explicar um pouco mais essa idéia?
ACV: Ele está mais de acordo comigo porque sou muito lacônico, não sou uma pessoa loquaz.
Procuro falar só o necessário. O conto me satisfaz porque posso dizer muito em pouco espaço.
Também não tenho muita paciência para lidar com histórias longas. Meus contos dificilmente
ultrapassam cinco folhas. Não tenho ambições de ser romancista. Acho que não dominaria
espaço tão grande, com inúmeras personagens, jogar com tempos largos.
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