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trabalho, gravidez indesejada, baixa autoestima, depressão, doença psiquiátrica, ou
mesmo em razão da própria criança não corresponder às expectativas, por ser
deficiente (física ou mental), não corresponder aos padrões de beleza, apresentar
temperamento difícil ou hiperatividade, fatos que independem de condição social ou
econômica, como bem demonstra o gráfico 02 da página 63.
Aliados a esses fenômenos temos o pouco tempo dedicado à família que
acaba por desenvolver vínculos afetivos frágeis, onde impera o individualismo em
detrimento do bem estar de todos os seus membros, impedindo relações familiares
embasadas no respeito e na equidade. Assim, ao mesmo tempo em que a sociedade
exige equilíbrio da família para cuidar de suas crianças com amor e sem violência, não
fornece elementos materiais e simbólicos que afirmem o afeto e o cuidado como norte
das relações familiares.
Obviamente, grande parte do fenômeno de abandono material de crianças
pode ser explicada por esta situação de extrema injustiça [concentração de
riquezas]. São pouco significativos estatisticamente os casos de abandono
material de crianças por parte de pais medianamente ou muito abastados.
Isto, contudo, não exclui o abandono efetivo de crianças, comum em
famílias ricas, nas quais os pais tem muito compromissos de caráter social e
nas famílias de classe média, em que o marido e a mulher desempenham
atividades profissionais.
Se o abandono material de crianças deriva maciçamente de uma iníqua
distribuição de renda, sendo a distância entre o salário mais alto e mais baixo
de milhares de vezes, esse tipo de sociedade funciona através de uma
engrenagem dentre cujas funções encontra-se a da vitimação
16
. Há, pois, a
nível social, a produção de vítimas. Trata-se de crianças vitimadas pela
fome, pela ausência de abrigo ou por habitação precária, por falta de escolas,
pela exposição a toda sorte de doenças infecto-contagiosas, por inexistência
de saneamento básico.
Também no processo de vitimização
17
, a engrenagem social responde pela
produção de vítimas. Entretanto, o processo de vitimização não atinge
apenas as crianças vitimadas. Essas últimas têm maior probabilidade de
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Vitimação: corresponde ao que Azevedo & Guerra chamam de “crianças de alto risco”. Segundo as autoras:
Estas são as crianças-vítimas de violência estrutural, característica de sociedades como a nossa, marcadas pela
dominação de classes e por profundas desigualdades na distribuição da riqueza social. São as que,
eufemisticamente, denominamos menor, enquanto a categoria designativa da infância em situação irregular, a
reclamar, portanto, intervenção e proteção do Estado. (2007, p. 26).
17
Vitimização: também de acordo Azevedo & Guerra, são as crianças que se encontram em “estado de sítio”,
gerando a chamada “violência inerente às relações interpessoais adulto-criança”. Assim, esclarecem as autoras:
(...) São r7elações hierárquicas, adultocêntricas, porque assentadas no pressuposto do poder do adulto (maior
idade) sobre a criança (menor idade). A vitimização – enquanto violência interpessoal – constitui uma
exacerbação desse padrão. Pressupõe necessariamente o abuso, enquanto ação (ou omissão) de um adulto, capaz
de criar dano físico ou psicológico à criança. Por essa razão costuma-se considerar abuso-vitimização como as
duas faces da mesma moeda de violência. (2007, p. 35).