Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
MARIANA MARGUTTI CONTRERAS
RELAÇÃO FAMILIAR VIOLENTA: um estudo das agressões físicas
praticadas contra as crianças atendidas no Abrigo Casa Lar Ciã-
Katuá
FORTALEZA – CEARÁ
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
MARIANA MARGUTTI CONTRERAS
RELAÇÃO FAMILIAR VIOLENTA: um estudo das agressões físicas praticadas
contra as crianças atendidas no Abrigo Casa Lar Ciã-Kat
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
Profissional em Planejamento e Políticas blicas do
Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade
Estadual do Ceará, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Planejamento e
Políticas Públicas.
Área de concentração: criança e violência
intrafamiliar
Orientadora: Profª. Drª. Maria do Socorro Ferreira
Osterne.
FORTALEZA – CEARÁ
2010
ads:
3
C764r
Contreras, Mariana Margutti
Relação Familiar Violenta:
um estudo das agressões
físicas praticadas contra as crianças atendidas no
Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá- Fortaleza, 2010.
122p.
Orientadora: Profª. Drª. Mª do Socorro F. Osterne.
Dissertação (Mestrado Profissional em
Planejamento e Políticas Públicas) Universidade
Estadual do Ceará, Programa de Pós-Graduação em
Políticas Públicas
1. Família. 2. Criança. 3. Violência intrafamiliar.
Universidade Estadual do Ceará, Programa de Pós-.
Graduação em Políticas Públicas.
CDD: 341.533
4
A todas as crianças vítimas de agressão em seus
próprios lares.
Aos meus avós:
Dinival Contreras, in memoriam;
Pérola Therezinha Freire Contreras in
memoriam;
Paschoal Benedito Margutti, in memoriam; e
Maria Vergínia Zanatta Margutti;
Meus pais:
Eduardo Freire Contreras; e
Ivone Margutti Contreras.
Meu irmão:
Eduardo Marcelo Margutti Contreras.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Governo do Estado do Amapá, pela iniciativa pioneira que oportunizou aos
servidores públicos deste Estado, crescimento profissional, certo de que, seguramente,
os investimentos serão revertidos em melhor atendimento à população;
À equipe da Escola de Administração Pública, pelo carinho, dedicação e paciência
com que sempre nos recebeu;
À Universidade Estadual do Ceará, ao Professor Dr. Horácio da Silva Frota,
coordenador do curso e aos demais professores, pela disposição em trazer o Programa
de Pós Graduação ao Estado do Amapá;
À Professora Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne, minha orientadora, por toda
ajuda despendida e suas valiosas observações;
À Professora Msc. Alzira Nogueira, pelas preciosas contribuições;
Aos colegas de turma, pelos momentos felizes e “desesperadores” que passamos
juntos;
À querida amiga e colega de turma Maria da Conceição da Silva Cordeiro, por ter
aberto sua casa e estado ao meu lado, nos momentos mais difíceis;
Ao querido Roberto Emerson Vieira dos Santos, por ter incutido em minha mente o
desejo de participar do processo seletivo deste Programa de Pós Graduação, tendo
prestado indispensáveis contribuições, desde o momento da seleção até a entrega da
versão final do trabalho; e
À equipe do abrigo Ciã-Katuá, pela dedicação e carinho que dispensam às pequenas
vítimas da nossa sociedade, em especial à Telma, Nayara, Evângela, Eliany e
Waldirene.
6
Era uma casa muito engraçada
não tinha teto não tinha nada
ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
ninguém podia dormir na rede
porque na casa não tinha parede
ninguém podia fazer xixi
porque pinico não tinha ali
Era uma casa muito engraçada
não tinha teto não tinha nada
ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
ninguém podia dormir na rede
porque na casa não tinha parede
ninguém podia fazer xixi
porque pinico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos número zero
Mas era feita com muito esmero
na rua dos bobos número zero
A casa - Vinicius de Moraes
7
RESUMO
Este estudo busca compreender a origem da violência intrafamiliar contra crianças, como se
tecem as relações sociais justificadoras dessa violência, bem como a existência da
“permissividade social” para essas práticas. Para isso utilizamos metodologia flexível, na
medida em que nos propusemos a trabalhar com dados quantitativos, colhidos de fontes
secundárias, e dados qualitativos, por meio da pesquisa de campo. No estudo foram eleitos
cinco casos de agressão física que geraram afastamento das crianças do lar e abrigamento na
Casa-Lar Ciã-Katuá, nosso campo de estudos. Contextualizamos a pesquisa dentro de um
cenário traçado a partir do delineamento da realidade brasileira e amapaense, tendo como
referências dados estatísticos e conceituais. Como eixo principal e ponto de conexão de todos
os parâmentros levantados no estudo, temos a análise de situações de abrigamento, com as
conseqüências que representaram para a criança e a família. O resultado da pesquisa converge
para o entendimento de que a violência contra a criança é um fenômeno transclassista, de
ocorrência freqüente e ratificada por valores sócio-culturais.
Palavras-chave: Família, criança, violência intrafamiliar.
8
ABSTRACT
This study intends to understand the origin of the intrafamiliar violence against children, how
do social relations justify this kind of violence, and the existence of a “social permission” for
these actions. To achieve these goals, we used flexible methodology, because we proposed to
bring quantitative datas, from secondary sources and qualitative datas, from the field survey,
where we have elected five physical aggressive cases in which the children had to be took off
from their home and lead up to “Abrigo Casa-Lar Ciã-Katuá”, our study field. Our researches
started from the Brazilian and “Amapá” state realities, taken from statistics and conceptual
datas. As a main axle and connecting to the study parameters we analyzed the situations of
some institutionalized children with its consequences to the child and to the family. The
researches results converge to the understanding that violence against children happens to
poor and rich families and it is often ratified by socio-cultural values.
Keywords: Family, Child, Intrafamiliar violence.
9
LISTA DE TABELAS
TABELA 01 Impacto das violações dos direitos de crianças e adolescentes por
população municipal com 17 anos de idade ou
menos.......................................................................................................
41
TABELA 02 Intensidade da violência intrafamiliar na década de 1980...................... 62
TABELA 03 Quantidade de municípios por população infanto-juvenil e por idade de
IDH no Brasil..........................................................................................
77
TABELA 04 Evolução dos números e das taxas (em 100.000) de homicídio por
idade na população de 0 a 12 anos. Brasil, 1997 e 2007.........................
78
TABELA 05 Número de homicídios na população de 0 a 19 anos por UF e Região.
Brasil, 1997/2007.....................................................................................
79
TABELA 06 Números e taxas médias de homicídios (em 100 mil) de crianças e
adolescentes. Municípios do Brasil. 2003/2007. Ordenada por UF e
taxa de homicídios....................................................................................
79
TABELA 07 Direitos da criança e suas principais violações........................................ 80
10
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Vênus no Espelho” de Velázquez (Ano: 1642/1651).................................. 33
FIGURA 2 As meninas” de Velázquez (Ano: 1656)....................................................... 34
FIGURA 3 Vaidade que vem do berço”........................................................................ 35
FIGURA 4 Síndrome da criança sacudida....................................................................... 65
FIGURA 5 Mapa de exclusão social................................................................................
76
FIGURA 6 Mapa de exclusão social - Detalhe................................................................ 77
FIGURA 7 Amapá – Taxa média de homicídios. População total. 2006........................ 78
11
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1
Processo cíclico de geração das modalidades de
agressões............................................................................................ 60
GRÁFICO 2
Modelo para compreensão dos fatores determinantes dos maus-tratos na
infância..........................................................................................................
63
12
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABRINQ
Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos
ACLCK
Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá
ANCED
Associação Nacional de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e
do Adolescente
Art.
Artigo
CEAP
Centro de Ensino Superior do Amapá
CEATS
Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro
Setor da Fundação Instituto de Administração
CECRIA
Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
CESEIN
Centro Sócio Educativo de Internação
CIP Centro de Internação Provisória
CLAVES Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde
CONANDA
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FCRIA Fundação da Criança e do Adolescente
FIA Fundação Instituto de Administração
FUNABEM Fundação do Bem estar do Menor
IBGE Instituto brasileiro de Geografia e Estatística
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
ONU Organização das Nações Unidas
PESTRAF Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins
de Exploração Sexual e Comercial
SAM Serviço de Assistência ao Menor
SIMS Secretaria de Estado de Inclusão e Mobilização Social do Amapá
UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância
13
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO
..........................................................................................
15
2
PERCURS
O METODOLÓGICO
............................................................
25
2.1 CAMPO DE ESTUDO................................................................................
26
2.2 ESTRATÉGIAS DE COLETA DE DADOS..............................................
26
3 A CRIANÇA NAS RELAÇÕES DE SOCIABILIDADE: DA
CONDIÇÃO DE OBJETO AO RECONHECIMENTO DE
SUJEITO DE DIREITOS.........................................................................
29
3.1 A HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA: DIFERENTES OLHARES.......
29
3.2 DOS AVANÇOS TEÓRICOS AO RECONHECIMENTO JURÍDICO-
POLÍTICO: UMA TRAJETÓRIA POLÍTICA...........................................
38
3.2.1
Definição de Criança, Família e Violência
.............................................
38
3.2.1.1
Crianç
a
........................................................................................................
39
3.2.1.2
Família
........................................................................................................
42
3.2.1.3
Violência
.....................................................................................................
48
3.3 INFÂNCIA E A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR....................................
50
3.4
A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO TOCANTE A PROTEÇÃO À
CRIANÇA...................................................................................................
54
4 A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR E REDE DE PROTEÇÃO À
CRIANÇA NO ESTADO DO AMAPÁ...................................................
59
4.1 ESPÉCIES DE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA .............................
59
4.1.1
Abuso Físico
...............................................................................................
64
4.1.2
Síndrome da Criança Sacudida
................................................................
65
4.1.3
Abuso Sexual
..............................................................................................
66
4.1.4
Exploração Sexual
.....................................................................................
68
4.1.5
Abuso Emo
cional
.......................................................................................
69
4.1.6
Privação de Alimentos
...............................................................................
70
4.1.7
Administração Intencional de Drogas e Ven
enos
...................................
71
4.1.8
Negligência de Assistência Médica
...........................................................
72
4.1.9
Negligência de Segurança
..........................................................................
73
4.1.10
Abandono
................................................................................................... 74
4.2
CONTEXTOS: BRASILEIRO E AMAPAENSE.......................................
75
4.3
ESTRUTURA PROTETIVA NO ESTADO DO AMAPÁ.........................
80
4.3.1
Varas da Infância e da Juventude
............................................................
81
4.3.2
Conselhos Tutelares
...................................................................................
81
4.3.3
Órgãos de Atuação
Correlata
...................................................................
82
4.3.4
Funda
ção da Criança e do Adolescente
...................................................
83
4.3.5
Os Abrigos
..................................................................................................
83
5
O
O
CAMPO E OS DADOS DA PESQUISA
.......................................................
86
14
5.1
CONTEXTUALIZANDO O ESTADO DO AMAPÁ..........................................
86
5.2 A FUNDAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE..........................
88
5.3 O CAMPO DE ESTUDO: ABRIGO CASA LAR CIA-KATUÁ...............
91
5.4 OS CASOS DE VIOLÊNCIA ESTUDADOS............................................
93
5.4.1
E.F.L., sexo masculino
...............................................................................
94
5.4.2
L.R., sexo feminino
....................................................................................
96
5.4.3
W.F.P., sexo masculino
..............................................................................
98
5.4.4
A. M. M., sexo masculino e A. M. L., sexo feminino
...............................
101
5.5 PERCEPÇÃO DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA ACERCA DO
ABRIGAMENTO........................................................................................
105
5.6 DETERMINANTES SOCIOCULTURAIS................................................
106
5.7 RELAÇÕES SOCIAIS JUSTIFICADORAS..............................................
110
5.8 PERMISSIVIDADE SOCIAL.....................................................................
113
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
....................................................................
116
REFERÊNCIAS
.........................................................................................
119
15
1 INTRODUÇÃO
As formulações iniciais são significativas para situar o desejo de investigar
a violência física contra a criança. As dimensões desta questão nos remetem a uma
observação marcante na prática profissional como Defensora Pública junto às Varas de
Família, Órfãos e Sucessões da Comarca de Macapá-Ap, que revelou uma triste
realidade, especialmente para as crianças.
Neste diapasão, percebemos uma multiplicidade de situações, tais como:
processos de separação judicial e divórcio em que os pais utilizam-se dos filhos para
demonstrar poder; processos de investigação de paternidade em que as mães nem
sempre sabem quem o os pais, e estes, por sua vez, tentam se furtar ao máximo da
responsabilidade; processos de alimentos em que os pais utilizam subterfúgios para
não pagá-los aos filhos e, pior, nestes casos, geralmente a figura do abandono
afetivo, nos quais o fim do relacionamento do casal implica no rompimento dos laços
entre o pai e seus filhos. Estes casos têm em comum a marca da desestrutura sócio-
familiar que agride as crianças de forma incisiva, trazendo graves conseqüências na
vida adulta.
As crianças são a parte mais vulnerável da relação familiar e os adultos, em
especial os pais, demonstram fragilidades emocionais para lidar com seus próprios
dilemas e acabam por prejudicar o desenvolvimento psicológico das crianças,
agredindo-as cruelmente, ainda que de forma inconsciente.
A experiência como advogada no Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá
1
colocou-nos
mais próxima à triste realidade enfrentada pelas crianças vítimas de agressão física,
tendo em vista que esta instituição recebe crianças em grave situação de risco pessoal
e/ou social, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA
2
, em
seu artigo 101, parágrafo único, que diz: “O abrigo é medida provisória e excepcional,
1
O Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá é uma unidade ligada a Fundação da Criança e do Adolescente - FCRIA. Esta
fundação está localizada no município de Macapá e tem por finalidade promover a política de atendimento
integral aos direitos da criança e do adolescente do Estado.
2
O Estatuto da Criança e do Adolescente Lei Nº. 8.069/90 dispõe acerca da proteção integral à criança e ao
adolescente.
16
utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não
implicando privação de liberdade”.
Sabe-se que o número de crianças vítimas de agressão é muito maior do que
as estatísticas demonstram. Em primeiro lugar porque existe um “pacto de silêncio”
no qual a sociedade tolera e, muitas vezes, incentiva a agressão contra as crianças,
justificando, muitas vezes, o ato violento como “método pedagógico”. Ademais,
somente os casos de maior gravidade justificam a medida protetiva do abrigamento,
retirando a criança do seio familiar.
Sabemos que a família está inserida no contexto social e sua análise
depende da compreensão dos diversos fatores que envolvem a dicotomia
público/privado. A sociedade capitalista trouxe mudanças de paradigmas nos quais o
poder e a hierarquia passaram a reger as relações sociais de maneira mais explícita a
competitividade existente em nossos dias faz com que impere o individualismo,
gerando a fragilização dos laços socioafetivos.
Essa situação extrapola o ambiente social e invade o familiar, trazendo a
relação de poder e dominação ao espaço doméstico e justificando a “superioridade
do homem sobre a mulher e do adulto sobre a criança, de modo que, aquele que tem
poder é quem tem “legitimidade para submeter o dominado a suas regras, podendo,
para tanto, utilizar-se dos mecanismos que dispuser, sejam eles econômicos, afetivos
ou simplesmente culturais.
Daí porque a violência doméstica se reproduz nas diversas classes sociais,
não se restringindo a famílias pobres ou com baixa escolaridade. Entretanto, a vivência
tem demonstrado que as mulheres e as crianças economicamente mais privilegiadas
denunciam menos seus agressores, seja por vergonha ou receio de desaprovação
social.
Nesse passo, percebe-se que os casos de violência contra crianças que
geram abrigamento no Município de Macapá estão restritos às classes sociais menos
favorecidas, o que não implica dizer que as crianças de classe média e alta não sejam
submetidas às diversas violações em seus direitos. Pior, sobre elas, o “pacto do
silêncio” é mais incisivo, já que é imperiosa a preservação do modelo familiar.
17
O caso da menina Isabela
3
, proveniente de uma família de classe média, por
exemplo, amplamente noticiado pela televisão brasileira, chamou a atenção da
população para esta problemática que, a bem pouco tempo, estava escondida na
intimidade dos lares brasileiros: a violência física contra a criança. Depois da
divulgação do caso, muitos outros se tornaram públicos, dando visibilidade à
intimidade familiar violenta, onde muitas crianças estão inseridas.
Dessa forma, pudemos observar que elementos empíricos indicam que a
violência física contra a criança é um fenômeno transclassista, podendo ocorrer em
diferentes estratos sociais e educacionais. No Brasil, apesar da fragilidade dos
indicadores sociais, as estatísticas m demonstrado um crescimento alarmante desse
fenômeno.
De acordo com o Conselho Nacional dos direitos da Criança e do
Adolescente CONANDA: “(...) anualmente 6,5 milhões de crianças sofrem algum
tipo de violência intrafamiliar no Brasil, 18 mil são espancadas diariamente e 300 mil
crianças são vítimas de incesto” (CONANDA, 2000, p.331).
O fenômeno vem assumindo no Brasil uma maior visibilidade,
especialmente a partir dos esforços e pressões da sociedade civil organizada e dos
avanços legais trazidos pela Constituição da República, de 1988, que introduziu no
ordenamento jurídico a doutrina da proteção integral e o atendimento prioritário às
crianças e adolescentes, considerando sua peculiar condição de sujeito de direitos em
desenvolvimento, bem como pelo Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA,
incumbido de conceituar criança e adolescente, além de regulamentar a doutrina da
proteção integral, inovando pelo fato de ser destinada a todas as crianças e
adolescentes e não apenas a algumas categorias (consideradas carentes ou infratores,
por exemplo), como eram as legislações anteriores.
3
O caso da menina Isabela foi destaque absoluto em todos os noticiários da televisão brasileira por mais de 30
dias. Trata-se de um crime bárbaro em que a garota de cinco anos de idade sofreu esganadura e, em seguida, foi
atirada pela janela do sexto andar do apartamento onde seu pai residia juntamente com a madrasta e os dois
filhos do casal. Este caso foi julgado no período de 25 a 29 de março de 2010, aproximadamente dois anos após
o crime, perante o Tribunal do Júri de Santana, na Comarca de São Paulo, sendo os acusados (Alexandre
Nardoni e Ana Carolina Jatobá) condenados pelo homicídio da criança.
18
No entanto, o esforço público não pode acomodar-se nos trabalhos
existentes, é preciso caminhar e aprimorar essa estrutura por meio do desenvolvimento
de Políticas Públicas que, além de buscar minorar os efeitos dos atos violentos,
previnam a sua ocorrência. Isto requer a delineação de um diagnóstico apurado para
que sejam estruturadas ações estatais eficazes que envolvam, além da Administração
Pública, a sociedade enquanto partícipe e receptora dos resultados.
No que tange ao delineamento das dimensões do objeto, compreendemos
que não é aprazível discutir acerca de violência, especialmente quando se trata de
agressões intrafamiliares, mais especificamente contra as crianças. Sabemos que a
família é vista como um refúgio, um local de segurança, onde se tecem as relações
sociais mais íntimas. Entretanto, é cada vez mais freqüente o número de casos de
abusos cometidos no contexto familiar.
A violência extrapola as relações interpessoais, podendo ser encontrada,
entre outros, na desigual distribuição de renda, trazida pela sociedade capitalista, no
desrespeito a etnias, faixas etárias, condição cultural e outras. É com base nesta
violência estrutural que analisamos a violência doméstica contra as crianças.
A magnitude do problema vem ganhando destaque em função dos prejuízos
sociais que acarretam. Relevante observar sua internalização pelos meios de
comunicação e pela cultura popular, dificultando o enfrentamento político do
fenômeno.
As crianças são expostas à violência desde a mais tenra idade, seja em razão
de exposição à mídia, seja pela agressão direta praticada pela própria família e
professores, seja por meio de brincadeiras, canções de roda e lúdicas, nas quais a
violência é internalizada como algo natural e aceitável.
Vejamos, exemplificativamente, duas cantigas infantis anteriores à
massificação da informação e, ainda hoje, muito presente na sociedade.
ATIREI O PAU NO GATO
Atirei o pau no gato-to
Mas o gato-to
Não morreu-reu-reu
Dona Chica-ca
19
Admirou-se-se
Do berro, do berro, do berro
Que o gato deu
Miau.
SAMBA LÊ LÊ
Samba lê lê
Ta doente
Ta com a cabeça quebrada
Samba lê lê
Precisava
É de umas boas palmadas
Samba, samba, samba lê lê
Samba, samba, samba la la
A primeira, “Atirei o Pau no Gato”, remete a naturalização da violência
imotivada; a segunda, “Samba Lê”, internaliza a violência física como todo
pedagógico aceitável e até esperado pela sociedade na educação das crianças. Assim,
percebemos que a violência não é um fenômeno social recente, tampouco isolado, mas
apresenta-se multifacetado e transclassista, na medida em que atinge a todos,
indistintamente.
Estudos demonstram que a criança vítima de violência, quando adulta,
tende a repetir a agressão, seja por estar internalizada e entender que aquela é a única –
ou a melhor forma de agir, seja por ter atingido o status hierárquico justificador da
violência: ser adulto! Assim, a estrutura normativa e de Políticas Públicas, deve
abraçar com destaque a família. É certo que a Constituição prevê em seu art. 226, §8º
que: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a
integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”.
Entretanto, a norma constitucional não basta em si mesma, haja vista o
crescente número de casos de agressões praticadas no âmbito familiar, tendo como
vítimas, geralmente, crianças, adolescentes e idosos, sujeitos mais vulneráveis, em
razão de suas peculiaridades. Assim, de acordo dados do UNICEF, 96% dos casos de
violência física e 64% dos casos de abuso sexual contra crianças de até seis anos de
idade são praticadas por familiares.
A criança pode ser submetida a várias formas de violência que foram
pormenorizadas no corpo do trabalho e, de acordo com dados do Centro Latino
20
Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (CLAVES), podem ser classificadas
como:
1. Abandono: é caracterizado pela ausência do responsável pela criança.
Pode ser parcial, quando a ausência é temporária, e total, quando
afastamento do grupo familiar, ficando a criança desamparada e exposta a
várias outras formas de violência.
2. Negligência: é o ato de privar a criança de algo de que ela necessita para
seu desenvolvimento sadio. Pode ser exemplificado na privação de
alimentação, saúde, vestuário e outros.
3. Violência Física: representada por qualquer ação não acidental cometida
por um adulto (ou pessoa mais velha) que cause dor injustificada e
provoque conseqüências negativas para a criança, podendo chegar até a
morte.
4. Violência Psicológica: é definida pelo conjunto de atitudes, palavras e
ações dirigidas à criança no intuito de envergonhar, censurar e pressionar a
criança reiteradamente, por meio de humilhações ou gritos, provocando
medo e sentimento de rejeição.
5. Violência Sexual: representada pelo abuso (todo ato sexual envolvendo
adulto(s) e criança(s), objetivando estimulação sexual de um ou outro) ou
exploração (quando o ato sexual envolvendo criança(s) tem objetivo de
lucro para o adulto explorador).
Com base nos dados analisado, percebemos que a violência física é a mais
intercorrente, atingindo a maioria das crianças, independente de gênero, idade e
condição sócio-econômica. Essa violência aparece dentro de uma relação de
dominação, em que o mais forte deve ser respeitado e o mais fraco deve respeitar e
obedecer simplesmente, independente de manifestação de vontade.
A relação de dominação é descrita desde a Antiguidade. Em Roma os filhos
eram considerados propriedade do pai, sendo-lhe possível, portanto, deliberar acerca
de tudo que dizia respeito a ele, inclusive a decisão acerca de sua vida ou morte.
21
Vejamos a Tábua Quarta, da Lei das XII Tábuas (redigida por dez
legisladores romanos os decênviros) que teriam tirado subsídios da legislação grega,
para trazer regras de conduta, no campo familiar:
Tábua 4
Do Pátrio Poder e do Casamento
1. É permitido ao pai matar o filho que nasceu disforme, mediante o
julgamento de cinco vizinhos.
2. O pai terá sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de
vida e morte e o poder de vendê-los.
3. Se o pai vender o filho três vezes, que este filho não recaia mais sob o
poder paterno.
4. (...)
Hoje a situação é bastante diferente, a legislação de quase todo o mundo,
com exceção de alguns países, proíbe a tortura e a morte de uma pessoa por outra.
Ademais, os Estados que adotam a pena de morte, em tese, precedem-na de um
julgamento idôneo.
Ainda assim, é bastante comum encontrarmos violência de todas as formas
praticadas contra os seres humanos, especialmente contra as crianças e, o mais grave, é
que tais agressões ocorrem no silêncio dos lares. Essa violência vai desde um simples
“tapinha pedagógico” até a tortura que, não raras vezes, culminam na morte da vitima.
O Brasil apresenta um quadro preocupante de agressões físicas praticadas
pela família contra suas crianças. A maioria dos pais não considera castigos
moderados como agressão física, entendendo-os como método de disciplina e, pior, o
paradigma “moderado” é subjetivo, podendo, para alguns, abranger queimaduras
severas, especialmente nas mãos.
O Amapá, por seu turno, não se apresenta como uma exceção quando
discutimos a violência intrafamiliar, fazendo parte desse quadro temerário de violência
contra a criança. Temos em nosso contexto social uma reprodução do que se vive na
esfera nacional, pois é significativo o numero de agressões contra menores de 12 anos,
tanto as de caráter físico e sexual, quanto as de caráter psicológico.
22
As agressões são geralmente praticadas sob o manto protetor da
“disciplina” sendo, geralmente, bem toleradas pela sociedade, inclusive pelas vítimas,
que acreditam terem “merecido” a agressão. Esta aceitação absorvida culturalmente, o
escudo da impunidade, fortificada pelo medo e a colaboração dos demais integrantes
da família, acabam perpetuando a violência.
É dentro desse contexto da realidade do Estado do Amapá, mais
particularmente no interior do Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá, que nos propusemos a
responder as seguintes perguntas de partida:
1. Quais os determinantes socioculturais da violência intrafamiliar contra
crianças?
2. Como se tecem relações sociais justificadoras da violência contra
criança?
3. Existe uma ”permissividade social” nas práticas de violência
intrafamiliar contra a criança?
De fato, buscamos compreender como o espaço da proteção converteu-se
em lugar de dor e sofrimento, tendo necessitado da intervenção estatal para que a
criança fosse afastada de seu lar, objetivando a imediata cessação da violência, de
modo a evitar desfechos mais trágicos, como no caso da menina Isabella Nardoni, em
São Paulo.
A importância da temática incide sobre a dimensão social, na medida em
que pode contribuir para uma reflexão, possibilitando uma futura intervenção
objetivando prevenir novos casos desta forma de violência.
Abalizados os problemas iniciais, foram traçados como objetivos do estudo os
seguintes desígnios:
1. Desenvolver uma análise do cenário da violência praticada contra a
criança no contexto familiar, a partir dos casos atendidos no Abrigo Casa
Lar Ciã-Katuá, contribuindo, assim, para a reflexão crítica dos atores
sociais e institucionais que integram a rede de atenção à criança,
cooperando para a elaboração de propostas de Políticas Públicas de
proteção às vítimas nas vertentes curativa e preventiva.
23
2. Compreender o fenômeno da violência física praticada contra criança no
interior da família, desvendando os determinantes socioculturais dessas
problemáticas e os fatores que incidem sobre ele;
3. Promover uma análise da violência intrafamiliar praticada contra as
crianças, relacionando-a com o sistema de vulnerabilidades em que a
família está inserida, com a perspectiva de contribuir para desvendar os
determinantes desse fenômeno e com a estruturação de políticas públicas
para enfrentá-lo;
4. Compreender como se constitui o processo de naturalização das práticas
de violência intrafamiliar contra a infância, a partir do entendimento das
representações que a família desenvolve sobre suas crianças se essas o
vista como objeto de poder e controle dos pais ou se são percebidas como
sujeito de direitos, pessoas em desenvolvimento que precisam ser educadas
para tornarem-se adultos seguros e independentes.
Na etapa inicial da investigação, formulamos algumas hipóteses que
poderiam explicar o fenômeno que se pretendeu analisar, sem, contudo, estabelecer
estes parâmetros como verdades a serem comprovadas no âmbito da pesquisa. Dessa
forma, apontamos as seguintes possibilidades de interpretação da problemática
investigada:
1. A violência constitui determinação imanente ao processo de formação e
desenvolvimento da sociabilidade capitalista. Em verdade, essa formação
social se gesta e desenvolve a partir de violências que caracterizam relações
contraditórias desse sistema. Assim, implica considerar que as contradições
e antagonismos da sociabilidade capitalista extrapolam a dimensão do
trabalho, invadindo outras esferas da vida social, neste caso particular, as
relações familiares. De fato, a origem da violência intrafamiliar contra a
criança não pode ser identificada fora da esfera de reprodução das
experiências vividas pelos sujeitos no contexto das relações sócio
históricas.
24
1. A família não é uma instância autônoma, ela está inserida na dinâmica da
vida social e, portanto, recebe influência de processos macrossocietais,
reproduzindo suas contradições decorrentes da estrutura desigual e
excludente da sociedade brasileira. Contudo, tais desigualdades precisam
ser compreendidas para além das determinações meramente econômicas, na
perspectiva de evitar os equívocos de que a violência intrafamiliar contra
crianças é um fenômeno que se reproduz exclusivamente entre as famílias
pobres. Compreendem-se as contradições do capitalismo em sua totalidade,
portanto, como elemento organizador da cultura e do sistema de valores que
estrutura as relações familiares. Assim, se por um lado, a sociedade exige
equilíbrio da família para cuidar dos filhos, por outro, não no cotidiano
elementos materiais e simbólicos que afirmem o afeto e o cuidado como
balizadores das relações sociais. Ao contrário, a vida contemporânea está
fortemente marcada pelo individualismo e fragilização dos laços
socioafetivos, impedindo, assim, que as famílias disponham dos subsídios
para organizar suas relações com respeito e equidade. Em verdade, pesa
sobre as famílias um sistema de vulnerabilidade que afeta de modo
particular a vida das crianças, sujeitos mais frágeis no contexto das relações
familiares.
3.Vivemos em uma sociedade “adultocêntrica”, onde o adulto - centro das
relações sócio-familiares - é detentor do poder-verdade e a criança é
desconsiderada em seus saberes e desejos. É bastante comum ouvirmos pais
dizendo aos filhos: “Faça o que estou mandando; você não tem querer”.
Dessa forma, as crianças são educadas para obedecer aos adultos pelo
simples fato de serem adultos. Essa lógica “adultocêntrica” atua de modo
articulado com o processo de banalização da violência presente do
noticiário televisivo aos jogos infantis Inegavelmente, a violência se institui
como estratégia de mediação de conflitos nas diferentes esferas da vida
social, assim, o diálogo, o afeto e outras práticas dão lugar a violência,
força, poder.
25
2 PERCURSO METODOLÓGICO
No delineamento do percurso metodológico desta investigação, optamos
por traçar uma metodologia flexível, uma vez que não foi possível prever todas as
hipóteses e situações que apareceram no decorrer do trabalho.
Respeitando as especificidades do objeto da investigação, caracterizamos
essa pesquisa com metodologia qualitativa, pois, como alerta Nery e Borges:
uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo
indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não
pode ser traduzido em números. O ambiente natural é a fonte direta para a
coleta de dados e o pesquisador é o instrumento-chave. (2005, p.15).
As idéias dos autores convergem para o método dialético, buscando desvendar
as contradições que caracterizam o fenômeno da violência familiar contra a criança.
Nosso desafio foi compreender o hiato entre o modelo jurídico que estabelece a
família ideal aquela que protege suas crianças e a realidade das famílias que
povoam as estatísticas e o noticiário que agridem seus filhos. É relevante destacar
que as relações familiares e o contexto de violência contra a criança estão em
constante mutação decorrente do caminhar ininterrupto da sociedade.
Sabemos que a violência física intrafamiliar está subordinada ao “pacto do
silêncio”, por diversas razões, dentre as quais, a tolerabilidade social, a desinformação
e a crença na legitimidade da agressão. Assim, temos consciência de que os dados
estatísticos existentes não refletem a real dimensão do problema. A pesquisa
quantitativa é, inegavelmente, indispensável para dimensionar os problemas e
justificar a implementação de Políticas Públicas.
Entretanto, para atingir o propósito deste trabalho, foi necessário um estudo
criterioso e aprofundado dos sujeitos que protagonizaram a violência no contexto
familiar, para que pudéssemos entender suas concepções acerca do problema.
O propósito é ir além das circunstâncias de vida para chegar aos modos de
vida. Conhecer o modo de vida, o modo como os sujeitos constroem e vivem
a sua vida, seus valores, crenças, costumes e práticas cotidianas, conhecer
26
sua experiência social, tudo pressupõe superar o questionário e privilegiar a
narrativa e a oralidade, significa, enfim, decidir sobre a abordagem
qualitativa. (OSTERNE, p.37, 2001).
A pesquisa qualitativa vai além de relatar e quantificar dados, visa observar a
realidade vivida e buscar na subjetividade a essência do fenômeno a ser analisado. O
objeto desse estudo relação familiar violenta, no que tange a agressões físicas contra
crianças, tem a peculiaridade de lidar com a subjetividade dos envolvidos e suas
experiências no contexto sócio-familiar.
2.1 CAMPO DE ESTUDO
O campo de estudo corresponde ao espaço físico que o pesquisador elegeu
para representar a realidade empírica estudada. Este local representa o cenário ocupado
por pessoas formadoras de grupos sociais titulares de histórias objeto da investigação,
neste caso, o Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá.
2.2 ESTRATÉGIAS DE COLETA DE DADOS
Para atingirmos os objetivos de compreensão da dinâmica familiar onde
agressões físicas contra crianças, definimos que as estratégias de coleta de dados
seriam desenvolvidas a partir de pesquisa de campo, por meio de análise documental e
processual, e da técnica de pesquisa bibliográfica aplicáveis, sem dúvida, ao que se
abordou.
Para chegarmos às metas propostas, foram colhidos dados estatísticos
secundários especialmente por meio da pesquisa bibliográfica, mas demos ênfase na
pesquisa de campo, notadamente nos processos da Vara da Infância e Juventude da
Comarca de Macapá analisados e nas pastas das crianças abrigadas no Ciã-Katuá. As
fases quantitativa e qualitativa foram estudadas de forma interdependente e
complementar, com o fim de abranger o objeto do estudo a partir da descrição,
compreensão e análise da violência física intrafamiliar no Estado do Amapá,
especialmente os casos que geraram afastamento do lar e abrigamento no Ciã-Katuá,
estando a criança abrigada entre o biênio 2008/2009.
27
A primeira fase da pesquisa foi destinada ao levantamento bibliográfico e
documental acerca da temática abordada. A partir daí, foi possível traçar um cenário
comparativo dessa forma de violência no âmbito nacional e no Estado do Amapá.
O segundo momento cuidou de traçar o perfil sócio-econômico e o nível de
escolaridade das famílias que agridem fisicamente suas crianças. Para isso, foram
analisados os arquivos dos casos de denúncias confirmadas trazidas ao Conselho
Tutelar de Macapá e à Promotoria da Infância e Juventude da Comarca de Macapá/AP,
no biênio 2008/2009.
O terceiro passo consistiu na seleção de casos específicos, os quais
mereceram estudo mais aprofundado, com objetivo de entender os determinantes
socioculturais da agressão intrafamiliar, bem como o sistema de vulnerabilidades das
famílias que se envolvem em episódios violentos e o processo de naturalização dessa
modalidade de violência.
Foram estabelecidos os seguintes critérios para a seleção dos casos:
a) ter sido a criança vítima de agressão física praticada no âmbito familiar; e
b) ter sido a criança afastada do lar em decorrência da agressão e levada ao
Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá.
Os casos selecionados foram cuidadosamente analisados, notadamente no
que tange aos relatórios psicológicos e sociais da criança, do agressor e da família,
relatórios médicos quando existiram, documentação escolar e demais informações
constantes nos arquivos do Abrigo e nos processos judiciais que as agressões geraram.
Observamos que em todo o texto da dissertação as falas e relatos dos envolvidos estão
destacados em itálico.
Ressaltamos, ainda, que as famílias estudadas foram alvo de visitas cnicas
realizadas pela pesquisadora, em razão do trabalho desenvolvido no Abrigo como
advogada, por ocasião dos acontecimentos que levaram as crianças a serem abrigadas,
de forma que, mesmo sem a perspectiva da pesquisa conhecemos de perto a realidade
dos envolvidos.
Concluída a fase de coleta de dados, foram sistematizadas as informações,
para que se pudesse conhecer, interpretar e analisar o significado da agressão física
28
praticada contra crianças no âmbito familiar no Estado do Amapá, especialmente
aquelas que foram afastadas de seus lares, ainda que temporariamente, e abrigadas no
Ciã-Katuá.
Em linhas gerais, a dissertação está estruturada em três capítulos principais,
além da Introdução, Percurso Metodológico, Considerações Finais e Referências.
No capítulo, “A Criança nas Relações de Sociabilidade: da Condição de
Objeto ao Reconhecimento de Sujeito de Direitos”, abordamos a evolução da
concepção de infância através dos tempos sob diferentes olhares. Analisamos a
etimologia do vocábulo infância, passamos à visão de Philippe Ariès, que estudou a
história da infância por meio da iconografia, desde a Idade Média, traçando um
paralelo com a realidade atual.
Abordamos, ainda, a trajetória política que trouxe às crianças
reconhecimento jurídico-político e a evolução legislativa que cuidou da proteção das
crianças.
No capítulo intitulado “A Violência Intrafamiliar e Rede de Proteção à
Criança no Amapá” cuidamos de discutir as espécies de violência perpetradas contra
as crianças, bem como analisar o quadro dessa violência no Brasil e no contexto social
amapaense. Por fim, explicitamos as medidas legais incidentes e a rede de proteção.
Coube ao capítulo seguinte, sob o título “O Campo e os Dados da
Pesquisa”, contextualizar geopoliticamente o Estado do Amapá, descrever a Fundação
da Criança e do Adolescente e o Abrigo Ciã-Katuá, eleito o campo de pesquisa.
Em seguida, foram descritos os casos analisados para, enfim, finalizar com
a conclusão dos resultados da pesquisa.
29
3 A CRIANÇA NAS RELAÇÕES DE SOCIABILIDADE: DA CONDIÇÃO DE
OBJETO AO RECONHECIMENTO DE SUJEITO DE DIREITOS
Neste capítulo abordaremos a construção e a firmação do posicionamento
social da criança, desde as acepções primordiais até o quadro atual. Para tanto,
arrimaremos nosso olhar nos estudos de autores que descrevem esse processo
inacabado de maneira clara e capaz de estabelecer os marcos evolutivos da leitura
social acerca dos que comporão as gerações futuras.
Evidentemente que o levaremos apenas um historiar acerca das reflexões
feitas sobre o papel e a condição dos infantes no contexto humano. É preciso aclarar
que é a partir dessa visão aprimorada sobre a infância que a sociedade volta-se cada
vez mais, dentro de uma linha histórica, para o detalhar das especificidades infantis,
amparando a criança a partir de medidas sociais e legais, bem como repudiando
comportamentos anteriormente discriminalizados e estabelecendo responsabilidades
materiais e socioafetivas, exigindo a proteção por parte do poder público e postando-
se, embora ainda em proporções tímidas, como agente de atuação direta na proteção
dos infantes e da soberania de seus direitos.
Teremos, ao desenvolver este tópico, um ponto de partida para acrescer a
essa história: os fatores que nos fazem rever os atos praticados contra as crianças,
filtrando-os, para aprofundar o nosso conhecimento sobre situações inaceitáveis no
tocante ao desenvolvimento necessário para que o infante de hoje torne-se um adulto
seguro e bem referenciado socialmente.
É dessa feita que abriremos nossa discussão.
3.1 A HISTÓRIA SOCIAL DA INFÂNCIA: DIFERENTES OLHARES
Antes de adentrarmos na história da infância propriamente dita, imperioso se
faz a análise do significado etimológico do vocábulo. De acordo com Silva (1993, p.
465):
Derivado do latim infantia (incapacidade de falar), de infans,
originariamente quer exprimir a situação de quem não fala ou de quem ainda
não fala: qui fari non potest.
30
Mas, na acepção jurídica, infância não assinala simplesmente o período em
que não se pode falar, mas aquele que vai do nascimento à puberdade.
Nesta circunstancia, conforme se acentuava entre os romanos é a infância
compreendida em dois períodos:
a) o primeiro, aquele em que, em verdade, não pode o ente manifestar o seu
pensamento por palavras, qui fari non potest, que vai até os sete anos.
b) o segundo, denominado de infância maior (infantia majores), que se
limita com a puberdade ou adolescência, distinguindo-se da simples infância,
porque na maior já as pessoas têm a faculdade de falar – fari potest.
A partir da definição do termo, é possível verificarmos que, desde
muito à criança é imposta a condição de “ser menos importante”, daí as expressões,
hoje consideradas pejorativas, “menor” e “infante”.
A dita incapacidade de comunicação cessava aos sete anos de idade,
momento em que o indivíduo passava a ser considerado uma “miniatura de adulto”,
sendo tratado como tal. Não era ponderada a especial condição de pessoa em
desenvolvimento, assim, não havia escolas, nem tampouco pessoas incumbidas de
zelar pela educação das crianças.
Rousseau contribuiu sobremaneira na mudança de paradigmas acerca da
infância ao desenvolver a concepção de que o cérebro infantil funciona de modo
diverso da mente adulta. Assim, segundo o autor, a imaturidade da criança não
significa carência ou insuficiência de inteligência, mas fase do desenvolvimento.
O filósofo inaugura uma nova filosofia da formação da pessoa, rompendo
com a educação cumulativa e a pregação de preceitos empregada anteriormente.
Ademais, emprega o vocábulo infância na acepção de criança, tal qual conhecemos na
atualidade, abrangendo-o até o início da puberdade.
Rousseau, na obra Emílio ou Da Educação, divide o amadurecimento da
pessoa em cinco fases, cada uma das quais configura um Livro [Capítulo] de seu
trabalho, os quais, olhados por Michel Launay na introdução feita ao texto do autor,
receberam identificação didática facilitadora do entendimento da obra. Vejamos: A
idade da natureza (infans), desde o nascimento até os dois anos de idade; a idade da
natureza (puer), dos dois aos doze anos; a idade da força, de doze a quinze anos; a
idade da razão e das paixões, dos quinze aos vinte anos; e, a idade da sabedoria e do
casamento, dos vinte aos vinte e cinco anos.
31
Referenciando a primeira infância, Rousseau afirma que:
Os primeiros desenvolvimentos da infância dão-se quase todos ao mesmo
tempo. A criança aprende a falar, a comer e a andar aproximadamente ao
mesmo tempo. Esta é propriamente a primeira fase de sua vida. Antes, não é
nada mais do que aquilo que era no ventre da mãe; não tem nenhum
sentimento, nenhuma idéia; mal tem sensações e nem mesmo percebe a sua
própria existência: Vivit, et est vitae nescitus ipse suae. (“Vive e não tem
consciência de sua própria vida”). (2004, p.68).
Em seguida, define a fase pueril, representada pelo término da infância:
“Eis a Segunda fase da vida, aquela onde acaba propriamente a infância, pois as
palavras infans e puer não são sinônimas. A primeira está contida na segunda e
significa quem não pode falar (...)”. (2004, p. 69).
O iluminista foi além em sua crítica e, no primeiro capítulo de sua obra
Emílio, narra a maneira como as crianças eram tratadas desde a mais tenra idade,
especialmente pelas próprias mães.
Ao nascer, uma criança grita; sua primeira infância passa-se chorando. Ora
sacodem e a mimam para acalmá-la, ora a ameaçam e lhe batem para que
fique quieta. Ou lhe fazemos o que lhe agrada, ou exigimos dela o que nos
agrada, ou nos submetemos às suas fantasias, ou a submetemos às nossas:
não há meio-termo, ela deve dar ordens ou recebê-las. Assim suas primeiras
idéias são de domínio e servidão. Antes de saber falar ela dá ordens, antes de
poder agir ela obedece e, às vezes, castigam-na antes que possam conhecer
seus erros, ou melhor, cometê-los. (ROUSSEAU, 2004, p.25).
Nestes pequenos fragmentos do texto já é possível vislumbrar que a criança
era praticamente despersonificada. Acreditava-se que não tinham sequer sentimentos,
logo, não podiam ser consideradas sujeito de direitos e, portanto, não mereciam
qualquer proteção legal. Dessa forma, a violência foi o método pedagógico mais
empregado para “doutrinar” as crianças desde a mais tenra idade.
A atual compreensão da condição específica do ser humano nos primeiros
anos de vida é bastante recente. Desta feita, a importância por essa fase do
desenvolvimento do indivíduo e, consequentemente, a proteção legal, tardou em
chegar. Em nosso país, até a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei .
8069/90, a legislação que cuidou do tema objetivava apenas proteger órfãos e punir
32
delinquentes. As demais crianças não recebiam qualquer tipo de proteção do Estado,
cabendo às famílias educar conforme lhes aprouvesse.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se
criança o indivíduo até doze anos incompletos; e, adolescente, a pessoa partir de doze
e até dezoito anos incompletos. A partir daí cessa a proteção da lei em razão da idade,
por ser a pessoa considerada plenamente capaz de, por si só, realizar os atos da vida
civil.
Esta norma revolucionou o Direito Infanto-Juvenil ao instituir a doutrina da
proteção integral dos direitos da criança e do adolescente. Referida doutrina tem por
alicerce jurídico e social a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada
pela Assembléia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989.
A despeito das inovações trazidas pela nova legislação, ainda há muito
trabalho pela frente para que sejam resguardados os direitos da pessoa em
desenvolvimento, especialmente no que tange a efetivação de políticas blicas
eficazes no combate aos abusos ainda cometidos contra a população nesta faixa etária.
Hodiernamente devemos considerar infância como a condição de “ser
criança”. Pessoas nesta fase do desenvolvimento são protagonistas das relações sociais
que desenvolvem, além de participarem dos processos históricos e socioculturais a que
estão inseridas. Assim, são dignas de respeito e merecedoras de tratamento que lhes
possibilite o desenvolvimento de aptidões que contribuirão para a sociedade futura.
O historiador francês Philippe Ariès trouxe em sua obra “História Social da
Criança e da Família”, uma análise da infância tomando por referência obras de arte e
literárias, nas quais foram observados bitos, como vestuário e situações da vida
social, em diversos momentos da história da humanidade.
Na Idade Média não existia percepção de infância. As crianças eram
afastadas de seus lares aos sete anos de idade e colocadas no seio de outra família para
que aprendessem, empiricamente, a desempenhar serviços domésticos e, por vezes,
algum outro oficio, retornando ao lar original por volta de 14 a 18 anos.
Raramente eram representadas na iconografia, significando a pouca [ou
nenhuma] importância a que lhes atribuíam. Eram retratadas como “pequenos
33
adultos”, o havendo distinção entre as atividades desenvolvidas por eles, podendo
ser encontrados juntos tanto em salas de aula, como em tavernas, demonstrando
absoluta ignorância acerca do desenvolvimento humano.
Não havia distinção entre os universos adulto e infantil, motivo pelo qual
eram representadas com as mesmas características dos homens e mulheres, que em
tamanho inferior. Sobre essa abordagem, consideramos adequada a relevância dada
por Ariès.
O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças, nos raríssimos casos em
que era exposta, a musculatura do adulto: assim, no livro de salmos de São
Luís de Leyde, datado do fim do século XII ou do início do XIII, Ismael,
pouco depois de seu nascimento, tem os músculos abdominais e peitorais de
um homem. (ARIÈS, 2006, p. 17).
Para demonstrar essa unificação de universos, adulto e infantil, vivida por
longo período da história humana e com traços até nossos dias, pausamos a seqüência
pedagogicamente elaborada pelo autor sob comento e apresentamos alguns indicadores
de que a unidade proposta naquele longínquo tempo influenciou o pensamento de
outras épocas, inclusive a nossa. Para tanto, apresentamos, primeiramente, duas obras
da lavra do mestre espanhol Diego Velázquez, datadas do Século XVII. Vejamos.
FIGURA 1: “Vênus no Espelho” de Velázquez (Ano: 1642/1651)
Nessa obra, observamos que o artista coloca a figura infantil nua ao lado da
adulta, também desnuda, indicando que não há distinção no nível de exposição entre as
idades, o que demonstra o tratamento uniforme para as diversas fases da vida,
inclusive quando se falava em nudez, sério tabu naquela época.
34
Em segundo lugar, ainda no largo acervo do pintor espanhol, podemos
observar, também, o quadro “As meninas” ilustrado adiante.
FIGURA 2: "As meninas" de Velázquez (Ano: 1656)
Serve-nos essa pintura para ilustrar que meninos e meninas eram vestidos
como miniaturas dos adultos, pois, além de não se considerar suas vontades, era o
vestuário do adulto que impunha a regra do bem vestir e da elegância, aplicado em
uniformidade para as crianças.
Ademais, demonstrando a persistência dessa unificação de parâmetros entre
criança e adulto, em nossos dias, temos fotos e respectivas legendas, publicadas na
Revista Veja, edição nº. 2153, de 24 de fevereiro de 2010, p. 90/92, em matéria de
autoria de Cristiane Sinatura, intitulada “GUARDA-ROUPA DE GENTE GRANDE -
Difícil resistir: toda mamãe que tem queda por roupas e recursos para bancar
caprichos, próprios ou filiais, cultiva em sua filhinha um estilo Suri
4
de ser”,
demonstrando que essa relação ainda existe.
4
Suri Cruise, aos três anos, filha dos atores Tom Cruise e Katie Holmes, é considerada um ícone da moda
infantil sendo, por isto, imitada mundialmente.
35
Fotos Lailson Santos e Ernani D'Almeida
VAIDADE QUE VEM DO BERÇO
Sofia, 2 anos, combina vestido e sapato com a mãe, Ana Cristina, que sempre quis ter
menina "para enfeitá-
la toda"; Luana, 3, tem 28 pares de sapatos, sendo sete de
saltinho, que ganhou em troca de largar a chupeta
FIGURA 3
Isso é favorecido, na atualidade, pela vaidade humana, que transforma a
criança em um “boneco vivente” ou em uma “vitrine” para a riqueza dos pais ou,
ainda, para a satisfação de uma lacuna psicológica do próprio adulto que se
recompensa inundando o filho com facilidades e presentes, os quais, quando
desmedidos, podem ocasionar a formação de um futuro adulto sem maturidade ou
referência para conduzir-se sozinho no contexto social.
Nesta linha indica o trecho da reportagem publicada no semanário:
cinco anos organizando desfiles infantis, a consultora de imagem Ana
Cury constata o mais do que evidente: o capricho no visual das pequenas
Suris está diretamente ligado ao perfil das mães. "São mulheres que têm uma
carreira, sabem da importância da imagem e deixaram para ter filhos mais
tarde. Quando engravidam, querem que sua posição social se transmita para
toda a família", analisa. A empresária Ana Cristina Bonfim, 33 anos, mãe de
Sofia, 2, se encaixa perfeitamente no perfil. Sempre atenta às novidades, não
passa semana sem comprar alguma roupinha para a filha. O entusiasmo
supera amplamente as necessidades. Sofia tem dez novos pares de sapatos
para o inverno que ainda nem começou. "Eu sempre quis ter uma menina
36
justamente para enfeitá-la toda", explica Ana Cristina, explicitando um
desejo universal. As duas muitas vezes saem combinando a estampa de
vestidos comprados na mesma loja. (...)
Interessante assinalar que a mesma reportagem demonstra preocupação
acerca da situação retratada, como vemos no trecho a seguir.
(...) Segundo a psicopedagoga Ana Cássia Maturano, a vontade de parecer
gente grande faz parte da psique infantil desde que o mundo é mundo, e cabe
aos pais dosar os excessos, de acordo com os próprios valores morais - sem
falar nos materiais mesmo. "Toda menina quer pegar a roupa da mãe para
brincar. Isso é saudável, mas os pais têm de tomar o cuidado de não reduzir o
filho a um boneco nem transformá-lo em um pequeno adulto", explica (...).
Dessa feita, apesar de ter sido indicada pelo autor com maior força em
determinado período histórico, devemos ser conscientes de que tal problemática
perdura até hoje.
No entanto, voltando a linha histórica traçada por Ariès, tem que a partir do
Século XIII foi possível notar diferença nas características das crianças retratadas.
“Numa outra ilustração do livro de Jô, as crianças aparecem escalonadas por ordem de
tamanho” (ARIÈS, 2006, p. 18). Ainda no campo religioso, surge a figura do Menino
Jesus e de Nossa Senhora menina, ligados ao mistério da maternidade da Virgem.
Entretanto, essas mudanças se tornaram mais significativas a partir dos
Séculos XIV e XV e, paulatinamente, as cenas religiosas eram substituídas pelas
profanas – que retratavam cenas da vida cotidiana.
No Século XV a família passou por uma gradual transformação, na medida
em que a educação paulatinamente deixava de ser absolutamente doméstica e as
escolas não eram mais exclusividade de clérigos. As crianças conviviam mais com
suas próprias famílias, na medida em que ao invés de serem levadas a outros lares,
freqüentavam escolas e, apesar de muitas vezes morarem em pensionatos, acabavam
estreitando os laços familiares, como ressalta o grande autor, “Esse fenômeno
comprova uma transformação considerável na família: esta se concentrou na criança, e
sua vida difundiu-se com as relações cada vez mais sentimentais dos pais e dos filhos”.
(ARIÈS, 2006, p. 160).
37
Apesar da difusão das escolas, elas ainda eram predominantemente para os
meninos burgueses, que os filhos dos nobres e proletários se mantinham na
instrução doméstica e, às meninas a educação se dava em casa e, excepcionalmente,
em conventos. Essa distinção entre os gêneros faz com que os homens sejam criados
para prover os lares, enquanto as mulheres devem cuidar da casa, do marido e dos
filhos, tornando-a economicamente frágil e vulnerável à dominação masculina. Nesse
prisma, Osterne (2001, p. 135/136), referenciando a classificação de Weber, relata:
Nesse tipo [de dominação], a obediência decorre de uma dignidade própria à
pessoa obedecida, santificada por fidelidade à tradição. A relação que se
estabelece nesse modelo é entre o ‘senhor’ que ordena e os súditos que
obedecem. O conteúdo das ordens fixa-se através da tradição, cuja violação
poria em risco a legitimidade do domínio do senhor. Em suas características,
distinguem-se duas formas de manifestação: a estrutura puramente patriarcal
de administração e a estrutura estamental. A primeira teria servidores
recrutados em completa dependência do senhor: escravos, servos, eunucos e
plebeus. Na segunda, os servidores, embora pessoas independentes,
investem-se em seus cargos por privilegio ou concessão do senhor.
A dominação do tipo patriarcal do pai de família, do chefe da parentela ou
do ‘soberano’ é, nas elaborações weberianas, o tipo mais puro de
dominação tradicional. Para si, a associação doméstica constitui,
efetivamente, uma célula reprodutora das relações tradicionais de domínio.
Compõe, assim, um tipo de dominação na qual o senhor assume a autoridade
legítima em razão simples do hábito inveterado.
Pouco a pouco houve declínio do modelo convencional e o conseqüente
aumento de unidades escolares, nos moldes das instituições de ensino que conhecemos
atualmente. Os educandários, então, passaram a ter importante papel no
desenvolvimento da criança, uniformizando padrões morais e éticos de conduta social.
Em meados do Século XVIII há nova quebra de paradigmas familiares, na
medida em que educadores criticam o hábito do privilégio patrimonial dos filhos
decorrer da primogenitude ou da escolha dos pais, defendendo a absoluta igualdade de
direitos. Ademais, no final daquele Século as meninas passaram a ser admitidas nas
escolas, transformação bem assinalada por Ariès (2006, p. 162), “Na realidade, esse
respeito pela igualdade entre os filhos de uma família é uma prova de um movimento
gradual da família-casa em direção à família sentimental moderna”.
A partir do culo XIX deu-se a extensão dessa nova acepção de família,
especialmente no que tange à compreensão de infância e a importância a ela atribuída
38
para todas as camadas sociais. As crianças passaram a ser vistas como o centro da
família, sendo-lhes dedicado amor e carinho e, saúde e educação passaram a ser
prioridade dos pais.
Podemos, inclusive, indicar que tal posicionamento advém de um instinto
natural de continuidade: o pai progride e prepara o filho para levar o progresso adiante,
o qual será levado mais longe ainda por seu neto, seguindo-se o ciclo pelas gerações.
Hoje observamos que essa postura gerou um amadurecimento sobre a
necessidade de se proteger os que são a continuidade social e isto desencadeou um
constante crescimento de instrumentos de proteção.
3.2 DOS AVANÇOS TEÓRICOS AO RECONHECIMENTO JURÍDICO-
POLÍTICO: UMA TRAJETÓRIA POLÍTICA
3.2.1 Definição de Criança, Família e Violência
Antes de adentrarmos no cerne da questão aqui estudada, faz-se necessário
conceituar os principais objetos de estudo. Os conceitos de criança, família e violência
são dinâmicos, na medida em que acompanham o desenvolvimento da sociedade.
Nosso objetivo não consiste em exaurir o tema, mas sim trazer diferentes
visões acerca de cada um dos vocábulos. Assim, buscou-se estudar desde a etimologia
de cada verbete, passando por entendimento de filósofos e estudiosos dos assuntos, até
o atual conceito jurídico.
3.2.1.1 Criança
Inicialmente, cumpre-nos identificar a significância do termo criança.
Observamos em nosso estudo que diversas são as explicações ou explorações para esta
palavra, indicando: a cria da mãe, aquele que tem pouca idade, dentre outras. No
entanto, a etimologia nos leva a raiz do vocábulo, indicando sua relação direta com o
verbo criar, como bem explica Cunha (2007, p. 227), vejamos.
39
Criar vb. ‘dar existência a, gerar, formar’ XIII. Do lat. Creare. (...) cria sf.
‘animal que ainda mama’ XVI. Dev. de criar. (...) criAÇÃO / ‘-çon XIII, -çõ
XIV etc. / Do Lat. Creatio õnis / criADO adj. sm. que se criou’ (...)
criANÇA sf. ‘ser humano de pouca idade, menino ou menina’ XIII (...).
Dessa feita, o autor nos indica o século XIII como sendo a data de
utilização, pela primeira vez na língua portuguesa, do vocábulo com aquela acepção.
Assim, hoje, temos que a palavra criança adquiriu o sentido que conhecemos a partir
daquele momento histórico, tendo sua raiz no ato de criação, ou seja, de dar vida a um
ser humano que, antes de tudo, passará por uma fase tenra, na qual merecerá o cuidado
daqueles que lhe tem a obrigação de cuidar, ou melhor, dar boa criação.
Nesse prisma, a atual Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 que é conhecida por “Constituição Cidadã” expressão do Deputado Ulysses
Guimarães, à época Presidente da Assembléia Nacional Constituinte e um dos
responsáveis por sua elaboração em razão de ser amplamente voltada para a defesa
dos direitos dos cidadãos, sendo uma de suas principais características a valorização
dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A Constituição não definiu “Criança”, deixando esta tarefa para o legislador
infraconstitucional. Entretanto, em seu artigo 227, in fine, preconizou a doutrina da
proteção integral e o atendimento prioritário de todos os direitos da criança e do
adolescente.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Como se pode observar, pela ordem constitucional, os direitos de todas as
crianças e adolescentes devem ser universalmente reconhecidos, por serem especiais e
específicos, considerando-se a peculiar condição da pessoa em desenvolvimento. A
Lei Maior prioriza o atendimento de todas as necessidades e não admite qualquer
forma de violação aos direitos, sejam eles representados na forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão.
40
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Nº. 8069/90, por seu turno,
definiu juridicamente, criança e adolescente, estabelecendo, no Art. 2º., que:
“Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”
Embasado no modelo constitucional, o ECA adotou a “Doutrina da
Proteção Integral à Criança e ao Adolescente”, cujos alicerces jurídico-sociais estão na
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (Adotada pela Assembléia-
Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989) de onde foi extraído o texto da
norma pátria.
Referida doutrina tem por destinatários todas as crianças e adolescentes,
não apenas uma categoria delas, classificada como carente, menos favorecida,
abandonada, infratora, como costumavam ser as legislações anteriores.
A doutrina da proteção integral, conforme preconiza Gomes da Costa
(1992, p.19)
(...) afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de
especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor
prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade de
seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que
torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte
da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas
específicas para promoção e defesa de seus direitos.
Ainda nesse sentido, Cury (1999, p.19) informa que:
(...) a proteção integral tem, como fundamento, a concepção de que crianças
e adolescentes são sujeitos de direitos, frente à família, à sociedade e ao
Estado. Rompe com a idéia de que sejam simples objetos de intervenção do
mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e
qualquer pessoa, bem como de direitos especiais decorrentes da condição
peculiar de pessoas em desenvolvimento.
Essa mudança de paradigma é de grande relevância, que há
reconhecimento legal de que crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento
e sujeitos de direitos específicos, antes mitigados ao assistencialismo. Nessa
perspectiva, passam a protagonizar direitos, conforme dispõe o art. 3º, do ECA.
41
Art. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade
.
Nesse prisma, o ECA não traça meras intenções do Estado brasileiro em
relação a crianças e adolescentes, mas assegura medidas protetivas e instrumentos
capazes de responsabilizar quem os descumprir.
Entretanto, os esforços públicos o têm sido suficientes para minimizar as
agressões intrafamiliares que vitimam crianças. Cada vez mais nos deparamos com
dados estatísticos demonstrando a fragilidade do sistema protetivo, na medida em que
o índice da violência e de violações de direitos é crescente. Vejamos:
TABELA 01
/ Fonte: SEDH (2007, p.230).
3.2.1.2 Família
De certo que a humanidade, por sua essência coletiva e interativa inegável,
defronta-se, desde sua gênese, com a árdua tarefa de estruturar relações equilibrando
as diversas faces dos interesses individuais e coletivos, ou seja do privado e do
público. Se de um lado, o homem projeta seus objetivos individuais, por outro,
constata que a realização destes depende, obrigatoriamente, da qualidade das ligações
que constrói no meio social. Nesta linha, Aristóteles, em: “A Política”, consagrava
que “Uma família supre melhor a si mesma que um indivíduo, e um Estado melhor
42
ainda que uma família. Ora, o Estado significa uma associação de homens que possui o
meio de suprir sua existência. (ARISTÓTELES, 1988, p.29).
É nesta associação, humana e coletiva, que o individuo situa-se e expande
sua dimensão social. Demais disso, o caráter coletivo aprimora a existência de diversos
entendimentos e posturas, motivados pela absorção e interpretação singular que cada
um aproveita das situações concretas existentes no correr da vida em sociedade. Disto
nasce a constante discussão acerca da postura ou atitude correta ou incorreta; moral ou
imoral; ou ainda: lícita ou ilícita, que buscamos discutir dentro das relações familiares.
Desta feita, verificamos que a família deixa cada vez mais a esfera pública,
na medida em que adentra a privada. Entretanto, esta evolução social que fez com que
a família cuidasse melhor das crianças, amando-as e respeitando-as como sujeito de
direitos, tem demonstrado que não conseguiu se estabelecer de forma plena, na medida
em que, cada vez mais, estão agredindo suas crianças, sujeitos mais frágeis da relação
familiar. Isso tem feito com que, cada vez mais, o Estado interfira na intimidade dos
lares, no intuito de punir os agressores e prevenir novas violações dos direitos infantis,
traçando o caminho inverso, do privado para o público.
A partir dessas considerações iniciais, passamos à árdua tarefa de definir
família, cientes de sua multiplicidade de sentidos e, sem a pretensão de esgotar o tema,
mas tão somente trazer algumas concepções necessárias em razão do objeto de estudo:
‘violência intrafamiliar. Desta feita, iniciaremos a análise com a definição trazida por
Silva (1993, p. 268):
Derivado do latim família, de famel (escravo, doméstico), é geralmente tido
em sentido restrito, como a sociedade matrimonial, da qual o chefe é o
marido, sendo a mulher e os filhos associados dela.
Mas, em sentido lato, família quer significar todo “conjunto de pessoas
ligadas pelo vínculo da consangüinidade” (CLÓVIS BEVILÁQUA).
Representa-se, pois, pela totalidade de pessoas que descendem de um tronco
ancestral comum, ou sejam provindas do mesmo sangue, correspondendo à
gens dos romanos e ao genos dos gregos.
É a comunhão familiar, onde se computam todos os membros de uma mesma
família, mesmo daquelas que se estabeleçam pelos filhos, após a morte dos
pais.
Na tecnologia do Direito Civil, entretanto, exprime simplesmente a
sociedade conjugal, atendida no seu caráter de legitimidade, que a distingue
de todas as relações jurídicas desse gênero. E, assim, compreende somente a
reunião de pessoas ligada entre si pelo vínculo da consangüinidade, de
43
afinidade
5
[nota de rodapé destacada pela autora] ou de parentesco, até os
limites prefixados em lei. Ou seja, o conjunto de pessoas vinculadas
economicamente e submetidas à autoridade de uma pessoa, que as chefia e
as representa.
Família. Entre os romanos, além do sentido de conjunto de pessoas
submetidas ao poder de um cidadão independente (homo sui juris), no qual
se compreendiam todos os bem que às mesmas pertenciam, era sinônimo de
patrimônio, propriamente aplicado aos bens deixados pelo de cujus.
6
[nota de
rodapé destacada pela autora] (...).
Aristóteles, por sua vez, na obra “A Política”, conceitua família sob dois
aspectos: reprodução e união de recursos para saciar as necessidades do dia a dia e
para produção de riqueza, onde cada um tem seu papel bem definido: o homem lidera
e comanda as ações, o filho perpetua o clã, a mulher tem o papel reprodutor e o
escravo tem a força produtiva, sendo por isso, também parte da família. Vejamos:
A dupla união do homem com a mulher, do senhor com o escravo, constitui,
antes de tudo, a família. Hesíodo disse, com razão, que a primeira família se
formou da mulher e do boi feito para a lavra. Com efeito, o boi serve de
escravo aos pobres. Assim, naturalmente, a sociedade constituída para
prover às necessidades cotidianas é a família, formada daqueles que
Carondas chama homos pyens (tirando o pão da mesma arca), e que
Epimenedes, de Creta, denomina homocapiens (comendo na mesma
manjedoura). (ARISTÓTELES, 1988, p. 12/13).
A família é uma das mais antigas instituições humanas. Na sua forma mais
tradicional, é composta por um casal e seus filhos e tem por finalidade, entre outras,
proteção, divisão do trabalho e transmissão de costumes e crenças. Esta é a primeira
manifestação de sociedade e a célula mater de todo grupo social.
Porém, a concepção de família, historicamente, foi sendo modificada.
Vários são os aspectos da evolução conceitual de família no tocante à ordem social e
política, como: família nuclear burguesa, família extensa, família patriarcal, matriarcal,
matrimonial, informal, homoafetiva, monoparental, anaparental, pluriparental,
eudemonista, entre outros. Estes conceitos de família mudaram ao longo dos tempos,
respondendo às transformações histórico-sociais com significado de novos arranjos
familiares.
5
Afinidade é a relação de parentesco estabelecida entre um cônjuge e os parentes consangüíneos do outro.
6
Expressão latina equivalente ao falecido, aquele cuja sucessão está aberta.
44
Ariès, em sua análise da iconografia relata que até o século XVII
praticamente não havia vida privada, as obras restringiam-se a retratar a vida pública
das pessoas. Vejamos:
A vida no passado, até o século XVII, era vivida em publico: apresentamos
vários exemplos desse domínio da sociedade. (...) a visita dos convidados
aos recém-casados já deitados, as brincadeiras durante a noite de núpcias
etc., são mais uma prova do direito da sociedade sobre a intimidade do casal.
Por que haveria alguma objeção, se na realidade não existia quase nenhuma
intimidade, se as pessoas viviam misturadas umas com as outras, senhores e
criados, crianças e adultos, em casas permanentemente abertas às
indiscrições dos visitantes? A densidade social não deixava lugar para a
família. Não que a família não existisse como realidade vivida: seria
paradoxal contestá-la. Mas ela não existia como sentimento ou como valor.
(ARIÈS, 2006, p. 190/191).
O sentimento de família, segundo o autor, foi sendo paulatinamente
construído entre os séculos XV e XVIII. No início, restringia-se às classes sociais mais
privilegiadas, mas, pouco a pouco, estendeu-se para as demais, na medida em que
‘impôs-se tiranicamente às consciências’.
Muitas vezes apresentou-se a evolução dos últimos séculos como o triunfo
do individualismo sobre as obrigações sociais, entre as quais figurava a
família. (...) É claro que a família moderna não possui mais a mesma
realidade material da época do Ancien Régime, quando era confundida com
um patrimônio e uma reputação. (...). A família tornou-se uma sociedade
fechada onde seus membros gostam de permanecer, e que é evocada com
prazer (...). Toda a evolução de nossos costumes contemporâneos torna-se
incompreensível se desprezamos esse prodigioso crescimento do sentimento
da família. Não foi o individualismo que triunfou, foi a família. (ARIÈS,
2006, p. 191).
No século XVIII começa a surgir a acepção da família nuclear-burguesa,
como aquela estabelecida em torno de um ‘núcleo’ centrado nos filhos, na casa e no
patrimônio e tendo como pressupostos a hierarquia e a subordinação, o poder e a
dominação exercido pelo homem sobre a mulher e, por ambos, sobre as crianças. Este
‘modelo’ foi amplamente difundido entre as sociedades e, ainda hoje, é considerado,
por muitos, o ‘ideal’ de família.
Osterne (2001), referenciando Morgan, Engels, Max Weber, Malinowsky,
Erich Fromm, Levi Strauss, Adorno, Horkheimer, Habermas, Agnes Heller e Reich,
dentre outros, fazendo alusão a sua dissertação de Mestrado (1991), conclui que:
45
(...) a privatização da instituição familiar e a passagem das funções
socializadoras para o âmbito mais restrito do lar burguês constituíram, para
seus autores, ocorrências determinantes para a formação da família moderna.
Respaldando tal reconhecimento, encontra-se a compreensão da emergência
da economia de mercado como acontecimento marcante a influenciar a
natureza, os fundamentos e as perspectivas das relações sociais.
As relações de mercado e a crescente industrialização modificaram, lenta,
mas radicalmente, o status social da família. A ascensão do capitalismo
determinou a união da família, para vencer as controvérsias da luta pela vida,
ao mesmo tempo que a enfraqueceu como grupo extenso, incapaz de
subsistir ao ambiente da proletarização.
A nova divisão social do trabalho consolidou a separação entre casa e local
de trabalho, produzindo grandes e paradoxais alterações na família.
Rearranjaram-se os papeis e as funções, fazendo aparecer outra organização
e correspondente dinâmica estrutural familiar. (OSTERNE, 2001, p. 58).
Essa concepção idealizada, entretanto, não sobrevive à dinâmica social,
marcada por inúmeros outros arranjos pessoais que não podem deixar de ser tratados
como entidades familiares. Segundo Goldani, as transformações sociais foram
responsáveis por afetar a organização familiar de modo particular. A autora afirma
que:
De modo geral, estudos recentes têm mostrado que houve profundas
transformações na sociedade contemporânea relacionadas à ordem
econômica, à organização do trabalho e ao fortalecimento da lógica
individualista. Ao mesmo tempo, apontam uma revolução na área da
reprodução humana, mudança de valores e liberalização de hábitos e
costumes. Em conseqüência, ocorreram mudanças radicais na organização
das famílias, dentre as quais se observam, por um lado, processos de
empobrecimento acelerado e de (des) territorialização gerada pelos
movimentos migratórios, além da perda gradativa da eficiência do setor
público na prestação de serviços. Por outro, houve um enxugamento do
grupo familiar (família menor), um aumento das variedades de arranjos
familiares (monoparentais, reconstituídas). (GOLDANI, 1994, p.11).
Estudiosos do tema têm desenvolvido esforços para compreender em que
medida as alterações na concepção de família desencadearam um processo de
fragilização dos vínculos familiares, tornando-os vulneráveis. No caso particular da
sociedade brasileira essa realidade agrava-se em razão do sistema de desigualdades
que funda sua própria formação, o que exige desenvolvimento de políticas públicas
que dêem suporte para superação das dificuldades advindas dessa nova realidade.
46
No âmbito jurídico, temos que a atual Constituição da República (1988)
confere ampla proteção à unidade familiar, preceituando que a família constitui a base
da sociedade e é dotada de especial proteção do Estado.
Art. 226. A família, base da sociedade tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre
o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
§ - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada
por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º - O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia
separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou
comprovada separação de fato por mais de dois anos.
§ - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o
exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.
§ - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos
que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de
suas relações.
É possível verificar que a Constituição não conceituou família de forma
absoluta, mas, sem esgotar as possibilidades, reconheceu três espécies de entidades
familiares:
1. Aquela constituída pelo casamento (civil ou religioso com efeitos civis);
2. A formada pela união estável entre o homem e a mulher; e
3. A composta por qualquer dos pais e seus descendentes.
Até pouco tempo, o “modelo” idealizado da família nuclear-burguesa,
fundada na hierarquia das relações e composta pelo homem, a quem cabia o mundo
exterior, pela mulher, responsável por afazeres domésticos e pelos filhos, que deviam
obediência aos pais, era o único aceitável na sociedade brasileira.
As Constituições de 1934, 1946, 1967 e 1969 estabeleciam que “A família é
constituída pelo casamento indissolúvel, sob proteção especial do Estado.”
A legislação civilista manteve a indissolubilidade do vínculo do casamento
até 1977, quando se deu a aprovação da “Lei do Divórcio”. Cumpre salientar que, na
47
época, o conceito de dominação masculina estava tão arraigado que, para lei civil, a
mulher casada era considerada relativamente capaz de exercer, por si só, os atos da
vida civil, implicando na necessidade de assistência do marido, a quem cabia, dentre
outros, chefiar a sociedade conjugal, administrar os bens do casal e exercer o pátrio
poder – este ultimo, com a colaboração da mulher.
A atual Constituição da República, de 1988, e sua legislação correlata,
atribuíram uma visão pluralista para a família, abrigando inúmeros arranjos existentes.
A recente Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) que busca coibir a violência
doméstico-familiar contra a mulher, em seu artigo 5º, inciso III, identifica como
família qualquer relação de afeto, ampliando o rol Constitucional.
Surge, pois, no direito, o conceito de família eudemonista
7
, que busca a
comunhão de vidas, com base no amor e no afeto, sob o prisma da igualdade de
direitos e deveres, da liberdade e da solidariedade. Sob esse aspecto, preleciona Dias:
O novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da
afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem
axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não
mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-
instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e
contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes
como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com
isso, a proteção do Estado. (DIAS, 2007, p. 41).
Infelizmente, esta nova concepção ainda não está internalizada na grande
maioria das famílias, que ainda são regidas pela hierarquia e subordinação, razão pela
qual vemos elevar os índices de violência doméstica.
3.2.1.3 Violência
Conceituar violência não é tarefa fácil, que o termo é nitidamente
polissêmico. Segundo Osterne, etimologicamente, podemos entender violência, como:
Recorrendo-se ao estudo da etimologia latina da palavra violência, encontra-
se que o termo procede do latim vis que, além de significar violência,
7
Expressão que, na sua origem grega, se liga ao adjetivo feliz e denomina a doutrina que admite ser a felicidade
individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que
levam à felicidade (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, p. 592).
48
também se refere a força, vigor e potência. A rigor, vis refere-se ao emprego
da força, a vias de fato, do mesmo modo que a força das armas. (OSTERNE,
2007, p. 25).
Não conceito legal de violência, que deve ser entendida como um
fenômeno transclassista presente em todas as sociedades, desde as mais primitivas até
as mais civilizadas. É tida como degradante para a condição humana, eis que
alicerçada em desigualdade e dominação.
Sem a pretensão de exaurir o tema, procuramos discutir o conceito de
violência a partir da visão de alguns filósofos e teóricos.
Para Freud (1997), a violência é intrínseca ao ser humano, sendo necessária
como instinto agressivo relativo à morte (tanatos), que equilibra o instinto de
sobrevivência (eros) e garante a preservação da espécie.
No entanto, segundo o psicanalista, o processo civilizatório inibe e canaliza
esses instintos e, ao lado dos inegáveis benefícios sociais, trazem riscos consideráveis,
podendo chegar até ao de desaparecimento da humanidade, pela inibição da função
sexual, num processo que se assemelha à domesticação de certas espécies animais.
Por outro lado, a evolução científico-tecnológica aplicada à indústria bélica
e à engenharia genética, tornou possível à espécie humana criar e destruir a vida, o que
também pode ser fatal à humanidade, em caso de erro ou ato agressivo.
Em sua obra “Teoria da Violência” (1876), Engels discute a violência
política representada pelo domínio do homem pelo homem. Entende que o fator
econômico é determinante e surge primeiramente como produto das relações de
produção capitalista, na medida em que pessoas desprovidas dessa tecnologia
subordinam-se inexoravelmente aos detentores, ou seja,
“A relação entre o regime de distribuição e as condições materiais de
existência de uma determinada sociedade está tão arraigada na natureza das
coisas, que chega a se refletir, comumente, no instinto do povo”. (ENGELS,
1979, p.129)
Entretanto, de acordo com o autor, a propriedade privada dos meios de
produção o representa, por si só, a violência. A verdadeira dominação acontece com
49
relação à ideologia que é imposta pelos proprietários aos não detentores de meios de
produção, com objetivo de expandir suas riquezas.
Assim, percebemos esse fenômeno nas diversas relações sociais ao longo da
história: senhor feudal e servo; escravocrata e escravo; burguês e operário. Dessa
forma, o capitalismo se desenvolveu por meio da dominação econômica e ideológica,
pois, nos dizeres do filósofo, a paz social e o consequente equilíbrio da sociedade
são percebidos quando a classe dirigente consegue subjugar as demais com o
consentimento destas, que devem aquiescer em se submeter a normas de
comportamento impostas que, por sua vez, trazem sensação de segurança, nem sempre
real, para a sociedade.
Contemporaneamente, Hannah Arendt, estuda a violência tomando por base
as guerras ocorridas no início do século XX e as manifestações estudantis da década de
1960. Os jovens da época eram contrários a toda forma de violência e insurgiam-se,
por meio de resistência, contra o emprego da força. Lutavam contra universidades que,
segundo eles, subsidiavam pesquisas para um pseudo desenvolvimento que poderia
levar à destruição do mundo (ARENDT, 2008).
A filósofa o concebe a violência como um fenômeno em si mesmo e
contraria a tendência de cientistas que a concebem como um elemento natural –
segundo a “Teoria dos Instintos”, a agressividade retrata uma reação “normal” do
individuo, que apenas a razão diferencia o ser humano das demais espécies do reino
animal.
Hannah entende que é justamente a razão que torna o ser humano a “fera”
mais perigosa, já que mesmo com o avanço tecnológico, produto da atividade mental
razão, o homem age com base em padrões de comportamento primitivos.
Assim como Arendt, Minayo, também contemporânea e fundadora do
Centro Latino Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (CLAVES), acentua que
o avanço da democracia originou a concepção negativa da violência, na medida em
que conscientiza acerca da cidadania e todos os direitos a ela inerentes, tornando
ilegítimo o uso da força física, moral, econômica ou política para sobrepujar parcela da
população, considerando essa pratica condenável como violência. (MINAYO, 1999).
50
3.3 INFÂNCIA E A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR
Primordial que conceituemos a violência intrafamiliar, trazendo o estudo já
feito como porta aberta para nossa discussão. Assim, construímos nosso trabalho a
partir da definição de Cesca a seguir apresentada.
Pode-se pensar na violência intrafamiliar como toda ação ou omissão que
prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o
direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser
cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo
pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de
consangüinidade, e em relação de poder à outra. Portanto, quando se fala de
violência intrafamiliar deve-se considerar qualquer tipo de relação de abuso
praticado no contexto privado da família contra qualquer um de seus
membros. Deve-se ainda ressaltar que o conceito de violência intrafamiliar
não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre, mas também
às relações em que se constrói e efetua. (CESCA, p. 43, 2004).
Assim, percebemos que a violência intrafamiliar não é restrita a laços
consangüíneos, tampouco ao espaço físico onde é perpetrada, mas deve ser entendida
com base em relações abusivas praticadas no contexto familiar privado.
Os castigos físicos, violência mais comum perpetrada pelos familiares
contra as crianças, surgiram por volta do século XVIII e eram justificados, na medida
em que os pais deveriam cuidar para que os filhos não recebessem s influências. Na
Inglaterra de 1780, as crianças podiam ser condenadas à morte, por enforcamento e,
dados históricos demonstram que entre os anos de 1730 e 1779, metade das pessoas
que morreram em Londres tinha menos de cinco anos de idade.
A violência intrafamiliar, como vimos, não é um fenômeno recente e,
historicamente, as crianças sempre foram as maiores vítimas potenciais desta
modalidade de agressão, dada sua vulnerabilidade característica. Segundo Azevedo e
Guerra (1998), foi em 1184 a.C. as primeiras alusões à violência contra as crianças,
trazidas em relatos da mitologia greco-romana, na qual os pais que matavam seus
filhos eram defendidos, sendo seus atos plenamente justificáveis.
O Código de Hamurabi, escrito e codificado por Khammurabi, rei da
Babilônia no século XVIII a.C., representa a primeira redação unificada de um corpo
de leis e, no Capítulo XI, que trata de Adoção, ofensas aos pais” e “Substituição de
51
Criança”, retrata claramente a relação de dominação/dependência do pai para com os
filhos. Vejamos a transcrição de alguns artigos:
Art. 192. Se o filho de um dissoluto ou de uma meretriz diz a seu pai adotivo
ou a sua mãe adotiva: “tu não és meu pai ou minha mãe”, dever-se-á cortar-
lhe a língua.
Art. 193. Se o filho de um dissoluto ou de uma meretriz aspira voltar à casa
paterna, se afasta do pai adotivo e da mãe adotiva e volta à sua casa paterna,
se lhe deverão arrancar os olhos.
(...)
Art. 195. Se um filho espanca seu pai se lhe deverão decepar as mãos.
Isso demonstra que, desde a primeira lei codificada de que temos notícia, a
violência intrafamiliar perpetrada contra os filhos é justificável pelo poder hierárquico
do pai sobre a prole.
No decorrer da evolução da sociedade, a situação não sofreu grandes
alterações: na Grécia Antiga era comum eliminar a vida de recém-nascidos deficientes,
eis que acreditava-se que a deformidade marcaria os demais descendentes daquele
individuo; em Roma o pater era titular do poder sobre a vida e a morte dos filhos,
conforme visto acima, na Lei da XII Tábuas: “O pai terá sobre os filhos nascidos de
casamento legítimo o direito de vida e morte e o poder de vendê-los.”; inúmeras
passagens bíblicas registram sacrifício de crianças, inclusive pelo próprio pai,
demonstrando a pouca [ou nenhuma] importância dada aos filhos.
Essa situação não se restringiu à Antiguidade, passando pelas Idades Média
e Moderna, conforme descrito por Áries e atingindo a Contemporânea. De acordo com
Gonçalves (2003, p. 101), temos que:
Na Rússia do século XIX, as taxas de mortalidade situavam-se em torno de
50%, índice elevado que alguns autores creditaram aos excessos de
autoridade paterna. A severidade paterna, no entanto, derivava da tradição
russa, que organizava a família em torno da escassez afetiva do pai.
Esperava-se que o pai fosse hostil e restritivo, às vezes mesmo violento para
com os filhos; o castigo corporal para punir e educar era pratica recorrente e
comum.
Mais recentemente, ainda segundo a autora, na década de 1970,
pesquisadores tomaram conhecimento de que meninas de Karoo, na África do Sul,
eram iniciadas sexualmente aos cinco ou seis anos de idade, por pais, irmãos ou outro
52
parente. E, o mais grave, a prática estava tão internalizada na cultura daquela
sociedade que as adolescentes se indignaram quando souberam que o costume fora
considerado “violência sexual contra crianças.
Entretanto, no século XX, as políticas públicas passaram a ser vistas como
veículo de bem estar para a sociedade e as crianças também mereceram atenção.
Surgiu a concepção de que deveriam ser protegidas não pela família, mas pela
sociedade como um todo e pelo Estado.
Quando um grupo de médicos dos Estados Unidos reconheceu, nos anos 60,
que algumas crianças estariam sendo vitimas da violência exercida pelos
seus pais ou responsáveis, começou a ganhar corpo a idéia de que, em
algumas circunstancias, a criança deveria ser protegida inclusive da própria
família. Assim, começa a ser desenhado um modelo que justifica a
intervenção sobre a família; mais que isso, o modelo sugere que, sob
circunstancias especificas, o bem estar da criança sobrepuja-se à convivência
familiar e demanda que cesse o pátrio poder. (GONÇALVES, 2003, p. 93).
Nessa linha, a partir da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança
(1989), o Brasil inseriu na legislação o dever de profissionais da educação e da saúde
em informar a autoridade blica casos de violência contra a criança, ainda que não
confirmados. Aliados a essa nova realidade, surgiram inúmeros programas sociais
buscando coibir tal forma de violação de direitos. Nesse sentido, temos:
Na verdade, a violência doméstica, ou seja, aquela que ocorre,
especificamente, nos lares, não é um produto de nossa sociedade moderna,
pois que sempre aconteceu. No entanto, em um passado não muito distante,
argumentávamos, a fim de não proteger as suas vítima, que aquilo dizia
respeito a um problema de família e que terceiros, estranhos àquela relação,
“não tinham que se meter”. É muito conhecido o ditado popular que diz: “em
briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Esse anos todos de
passividade estatal fizeram com que a violência nos lares aumentasse cada
dia mais. Assim, é muito comum a violência praticada por pais contra filhos
(...). (GRECO, 2007, p. 287).
A família deixa, pois, de ser espaço eminentemente privado, na medida em
que o poder público interfere nestas relações, objetivando coibir abusos e proteger seus
membros. Essa intervenção, contudo, não se deu de forma abrupta, tendo sido
efetivada de forma paulatina. Vejamos:
A intervenção do Estado sobre a família foi se desenhando aos poucos, ao
longo dos últimos séculos. O poder ilimitado do pater famílias no Direito
53
Romano conheceu as primeiras restrições com a promulgação do digo
Civil de Napoleão: a noção de res publica implica no reconhecimento da
existência da criança como cidadã desde o nascimento, movimento que torna
o Estado co-responsável pela sua criação e educação. O pátrio poder passa
portanto a ser concebido como uma concessão do Estado, o que autoriza a
vigilância e, a seu juízo, a interdição (SIMÕES, 1983 apud GONÇALVES,
2003, p. 95).
Entretanto, atualmente, questiona-se acerca do momento em que deve ser
feita a interferência, bem como a dicotomia prejuízo e benefício trazido às vitimas,
especialmente as crianças, quando são afastadas de seus lares, seja para serem
inseridas definitiva ou temporariamente em família substituta, seja pelo abrigamento
provisório, como medida protetiva, visando a cessação imediata da violência que
determinou a segregação. Nesse sentido, Gonçalves (2003) chama atenção para o risco
das ações interventivas junto à família, transformarem-se em controle e ingerência do
público na esfera eminentemente privada, trazendo graves prejuízos estruturais à
sociedade como um todo.
(...) a falta de parâmetros seguros para iniciar um processo de intervenção na
dinâmica da família, e a ausência de indicadores sobre a eficácia dessa
intervenção, terminam por justificar o que quer se faça em nome do bem
estar da criança. Tais programas colocam para a família o risco de ser
invadida por ações que não se sabe porque começaram, não têm garantias de
eficácia e não se sabe como e por que parar. A verdade transitória e a
discordância dominante neste terreno não impedem, contudo, que leis
continuem a ser promulgadas, que famílias sejam separadas, e que se viva
hoje sob a égide de uma intervenção que pode ser tão prejudicial e violenta
quanto o ato que a gerou. Crianças de tenra idade são acusadas de assédio
sexual em razão de um beijo na face de um amigo. Famílias sofrem o efeito
devastador da suspeita de incesto cometido pela figura paterna. Exageros
gerados por um saber incipiente, mas que ainda assim promove efeitos
sociais concretos. (GONÇALVES, 2003, p. 138)
3.4 A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA NO TOCANTE À PROTEÇÃO À CRIANÇA
Definitivamente a criança não foi prioridade dos legisladores ao longo da
história, assim como não o foi para a família e a sociedade. Voltando aos estudos de
Ariès, constatamos que somente a partir do século XVIII, com o surgimento das
escolas, da concepção privada de lar, da consagração da igualdade entre os filhos, da
valorização de sua companhia, enfim, da gênese da família nuclear burguesa,
percebemos a criança sendo vista como ‘ser importante’ ao núcleo familiar.
54
Entretanto, a idéia de proteção restringia-se ao campo privado, sem ingerência do setor
público.
Desta feita, a busca de se consagrar a proteção especial para população
infanto-juvenil é bastante recente, tendo surgido somente no século XX, conforme
veremos:
1919 Inglaterra Instituída a primeira entidade internacional de apoio à
criança, cujo primeiro trabalho consistiu em arrecadar fundos para as crianças vítimas
da I Guerra Mundial.
1923 – Brasil – Criação do primeiro Juizado de Menores, tendo como titular
o magistrado Dr. Mello Mattos.
1924 Suíça Aprovação da Declaração de Genebra, que tratou dos
Direitos da Criança, que serviu de base para a “Convenção dos Direitos da Criança”.
1927 Brasil Edição do Código Mello Mattos, primeiro a tratar
especificamente acerca de crianças e jovens até 18 anos de idade. Este instrumento
jurídico seguiu uma linha assistencialista e repressiva.
1930 Brasil Getulio Vargas cria o Ministério da Educação e da Saúde
Pública, demonstrando preocupação em priorizar estas pastas em beneficio das
crianças e jovens.
1942 – Brasil – Getulio Vargas institui o Serviço de Assistência ao Menor
SAM, órgão vinculado ao Ministério da Justiça responsável por abrigar menores de 18
anos em conflito com a lei.
1945 Criação da Organização das Nações Unidas ONU, com objetivo
de manter a paz e a segurança internacional, bem como promover a cooperação para o
desenvolvimento das nações.
1946 Criação do Fundo das Nações Unidas para a Infância UNICEF,
cujo primeiro objetivo foi garantir assistência às crianças vítimas das guerras,
especialmente na Europa, Oriente Médio e China.
1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos.
1950 – Brasil – Instalação, pelo UNICEF, de programas de proteção à
saúde das gestantes e crianças.
55
1959 - Declaração Universal dos Direitos da Criança. Este texto, cujo Brasil
figura como signatário, traz princípios que devem se seguidos, ou seja, regras de
conduta, e não obrigações impostas aos Estados. Dada a importância do documento,
passo a transcrever:
Declaração Universal dos Direitos das Crianças
UNICEF
20 de Novembro de 1959
As Crianças têm Direitos
Direito à Igualdade, sem Distinção de Raça Religião ou Nacionalidade
Princípio I
A criança desfrutará de todos os direitos enunciados nesta Declaração. Estes
direitos serão outorgados a todas as crianças, sem qualquer exceção,
distinção ou discriminação por motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de outra natureza, nacionalidade ou origem social,
posição econômica, nascimento ou outra condição, seja inerente à própria
criança ou à sua família.
Direito a Especial Proteção para o seu Desenvolvimento Físico, Mental e
Social
Princípio II
A criança gozará de proteção especial e disporá de oportunidade e serviços,
a serem estabelecidos em lei por outros meios, de modo que possa
desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma
saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao
promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá
será o interesse superior da criança.
Direito a um Nome e a uma Nacionalidade
Princípio III
A criança tem direito, desde o seu nascimento, a um nome e a uma
nacionalidade.
Direito à Alimentação, Moradia e Assistência Médica Adequadas para a
Criança e a Mãe.
Princípio IV
A criança deve gozar dos benefícios da previdência social. Terá direito a
crescer e desenvolver-se em boa saúde; para essa finalidade deverão ser
proporcionados, tanto a ela, quanto à sua mãe, cuidados especiais, incluindo-
se a alimentação pré e pós-natal. A criança terá direito a desfrutar de
alimentação, moradia, lazer e serviços médicos adequados.
Direito à Educação e a Cuidados Especiais para a Criança Física ou
Mentalmente Deficiente
Princípio V
A criança física ou mentalmente deficiente ou aquela que sofre da algum
impedimento social deve receber o tratamento, a educação e os cuidados
especiais que requeira o seu caso particular.
Direito ao Amor e à Compreensão por Parte dos Pais e da Sociedade
Princípio VI
A criança necessita de amor e compreensão para o desenvolvimento pleno e
harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com o
amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um
ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias
excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe. A
56
sociedade e as autoridades públicas terão a obrigação de cuidar
especialmente do menor abandonado ou daqueles que careçam de meios
adequados de subsistência. Convém que se concedam subsídios
governamentais, ou de outra espécie, para a manutenção dos filhos de
famílias numerosas.
Direito à Educação Gratuita e ao Lazer Infantil
Princípio VII
A criança tem direito a receber educação escolar, a qual será gratuita e
obrigatória, ao menos nas etapas elementares. Dar-se-á à criança uma
educação que favoreça sua cultura geral e lhe permita - em condições de
igualdade de oportunidades - desenvolver suas aptidões e sua
individualidade, seu senso de responsabilidade social e moral. Chegando a
ser um membro útil à sociedade.
O interesse superior da criança deverá ser o interesse diretor daqueles que
têm a responsabilidade por sua educação e orientação; tal responsabilidade
incumbe, em primeira instância, a seus pais.
A criança deve desfrutar plenamente de jogos e brincadeiras os quais
deverão estar dirigidos para educação; a sociedade e as autoridades públicas
se esforçarão para promover o exercício deste direito.
Direito a ser Socorrido em Primeiro Lugar, em Caso de Catástrofes.
Princípio VIII
A criança deve - em todas as circunstâncias - figurar entre os primeiros a
receber proteção e auxílio.
Direito a ser Protegido Contra o Abandono e a Exploração no Trabalho
Princípio IX
A criança deve ser protegida contra toda forma de abandono, crueldade e
exploração. Não será objeto de nenhum tipo de tráfico. Não se deverá
permitir que a criança trabalhe antes de uma idade mínima adequada; em
caso algum será permitido que a criança dedique-se, ou a ela se imponha,
qualquer ocupação ou emprego que possa prejudicar sua saúde ou sua
educação, ou impedir seu desenvolvimento físico, mental ou moral.
Direito a Crescer Dentro de um Espírito de Solidariedade, Compreensão,
Amizade e Justiça entre os Povos.
Princípio X
A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a
discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra índole. Deve ser
educada dentro de um espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os
povos, paz e fraternidade universais e com plena consciência de que deve
consagrar suas energias e aptidões ao serviço de seus semelhantes”.
1964 Brasil Criação da Fundação do Bem Estar do Menor
FUNABEM, em substituição ao Serviço de Assistência ao Menor SAM, com
atribuições correlatas.
1979 Brasil Edição do Código de Menores, que revogou o anterior
Mello Mattos, mas manteve os mesmos parâmetros.
1983 Brasil Criação da Pastoral da Criança, pela Igreja Católica, como
rede solidária de proteção da criança e do adolescente, que visa combater a fome e a
desnutrição infantil.
57
1988 Brasil Promulgação da Constituição da República, que
estabeleceu, em seu artigo 227, a Doutrina de Proteção Integral”, mais tarde
regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Vejamos:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
1989 Aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
Trata-se de instrumento jurídico mais eficaz que a “Declaração”, uma vez que sugere
princípios segundo os quais os povos devem seguir. Foi ratificado pelos paises
membros da ONU, com exceção dos Estados Unidos da América e da Somália.
1990 Promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado
mundialmente um dos melhores diplomas legais que tratam dos direitos da criança.
Dentre as inovações do Estatuto temos, em seu artigo 6º, uma regra de
hermenêutica determinando que, na interpretação da lei, levar-se-ão em conta os fins
sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres
individuais e coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas
em desenvolvimento.
Fins sociais indicam a intenção do legislador em permitir que a lei persiga
os fenômenos sociais na concretização dos direitos ali assegurados; exigências do bem
comum, por seu turno, representam elementos que impulsionam a sociedade para um
ideal de justiça; respeito aos direitos individuais e coletivos, constitui parâmetro
basilar do Estado de Direito, sem o qual não há ordem, igualdade e respeito; e,
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, passa a ser reconhecida como
característica intrínseca de pessoas com idade inferior a dezoito anos.
Nesse prisma, Gomes da Costa, elucida como deve ser compreendida a
expressão legal: condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
[A expressão] Não pode ser definida apenas a partir do que a criança não
sabe, não tem condição e não é capaz. Cada fase de desenvolvimento
deve ser reconhecida como revestida de singularidade e de completude
58
relativa, ou seja, a criança e o adolescente não são seres inacabados, a
caminho de uma plenitude a ser consumada na idade adulta, enquanto
portadora de responsabilidades pessoais, vicas e produtivas plenas.
Cada etapa é, à sua maneira, um período de plenitude, que deve ser
compreendida e acatada pelo mundo adulto, ou seja, pela família, pela
sociedade e pelo Estado. (GOMES DA COSTA,1992, p. 39).
1990 Criação da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do
Adolescente, com objetivo de promover defesa de direitos e exercício de cidadania.
1992 Criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente CONANDA, por meio de lei federal, em parceria da sociedade civil e
do governo, cujo objetivo reside no estabelecimento de políticas públicas para o
cumprimento dos preceitos estabelecidos no Estatuto.
1998 – Assinatura do “Pacto Comunitário Contra Violência Intrafamiliar”.
59
4 A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR E REDE DE PROTEÇÃO À CRIANÇA
NO ESTADO DO AMAPÁ
Neste capítulo, delinearemos os caracteres da violência intrafamiliar e da
rede existente para combatê-la, expondo a contraposição desses dois marcos dentro da
realidade do Estado do Amapá. Para tanto, devemos definir as modalidades de
violência e seus fatores impulsionantes, apresentar nosso quadro social em relação ao
fato e apresentar o instrumental público para o desenvolvimento de ações para
combater o problema. Eis o propósito deste capítulo.
4.1 ESPÉCIES DE VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA
São inúmeras as agressões cometidas contra os infantes, de natureza física
(agressão, tortura, extermínio), sexual (abuso e exploração) e psicológica
(humilhação), em ambiente doméstico ou objetivando exploração comercial. Essa
prática costuma atingir todas as classes sociais.
Para delinearmos esse universo nebuloso, temos um conceito basilar
denominado “Síndrome da Criança Espancada”, que nos é apresentado por Gomes
(2004, p. 485).
Termo criado em 1971, a ndrome da Criança Espancada (Battered Child
Syndrome) define um quadro de abuso e violência contra a criança, que,
diferentemente do que o nome sugere, não se limita ao espancamento
propriamente dito. A negligência com as necessidades básicas da infância,
tais como a alimentação, saúde e educação, o abandono, as agressões e o
abuso sexual fazem parte dessa entidade.
Entende-se por violência psicológica a imposição de sofrimento psíquico,
no qual a pessoa é humilhada, rebaixada e fica com a autoestima comprometida. Essa
agressão é a mais difícil de ser percebida, que não deixa marcas latentes no corpo,
mas produz resultados devastadores no desenvolvimento do indivíduo, podendo ser
perpetrada isolada ou cumulativamente, sendo comum também nos casos de agressões
física e sexual.
60
A agressão sexual, por seu turno, pode se dar por meio de abuso ou
exploração. O primeiro ocorre quando um adulto utiliza-se da criança para satisfazer
sua própria lascívia, podendo o ato ser caracterizado como estupro. De acordo com
Faleiros (2000, p.7), nestes casos, há uma:
(...) situação de ultrapassagem (além, excessiva) de limites: de direitos
humanos, legais, de poder, de papeis, do nível de desenvolvimento da
vítima, do que esta sabe e compreende, do que o abusador pode consentir,
fazer e viver, de regras sociais, familiares e tabu.
A exploração sexual, por seu turno, acontece quando um adulto aufere
vantagem econômica a partir da prática sexual da criança com terceiro, que se por
meio da rede de comercialização do sexo.
Contudo, a violência física é a mais comum de todas e, também, a mais
aceita socialmente. Pode caracterizar-se desde uma simples palmada, entendida por
alguns como “pedagógica”, chegando até as últimas conseqüências quando leva a
criança à morte. Ultimamente, tem sido recorrente na mídia notícias de extrema
barbárie contra crianças.
É nossa tarefa neste momento buscar, a partir destes breves comentários
iniciais sobre violência e suas espécies relacionadas à criança, desenvolver um
referencial descritivo de cada modalidade, localizando-a dentro do contexto da
violência intrafamiliar. No entanto, antes de detalharmos as modalidades de agressões,
devemos olhar o processo cíclico de geração desse fenômeno, descrito por Azevedo &
Guerra (2007, p. 44).
GRÁFICO: 01
Abuso em Família
Físico/Sexual
Episódios de desaparecimento
de Crianças
Maturação para tornar-se um
agressor/explorador
Exploração de crianças
61
Como vemos, após um período de maturação, o agente da violência inicia
um ciclo de atos que se interligam em uma relação de causa e consequência que se
repetem e acabam por se agravar, gerando uma constante elevação nos índices de
criminalidade e periculosidade. Ademais, devemos atentar para o fato de que o
agressor/explorador pode, em alguns casos, não passar pelos primeiros tipos de
violência, indo diretamente para a exploração, desenhando um ciclo menor, mas o
menos perigoso.
Acrescendo, podemos verificar que nas últimas décadas o fenômeno da
violência contra as crianças vem ganhando volume nas estatísticas de segurança
pública, não por existir uma nova pandemia social, mas porque, cada vez mais, a
consciência da proteção vem derrubando as barreiras do silêncio que costumam
permear estas agressões.
Porém, devemos reconhecer que o “pacto do silêncio” ainda oculta grande
parte dos casos de violência contra a criança. As agressões físicas estão internalizadas
na sociedade como forma legitima de educar e, portanto, em regra, não causam repulsa
social. Pelo contrário, é comum percebermos olhares de reprovação e até comentários
como: “esse menino precisa de umas boas palmadas”, para demonstrar a
reprovabilidade de alguma conduta infantil.
a agressão sexual causa uma repulsa tão grave que os demais membros
da família e da comunidade acabam tratando-a como tabu e escondem-na, como se
jamais tivessem tomado conhecimento do fato.
Muitas crianças preferem sair de casa e habitar as ruas violentas a
permanecer em casa sob constantes abusos. Além disso, grande parte das pessoas
agredidas que não são submetidas a tratamentos psicológicos, acabam por reproduzir o
ciclo sucessivamente.
De outro lado, a imprecisão dos dados e das referências nasce da falta de
constituição de uma estrutura mais acurada de acompanhamento. No entanto, os dados
que existem são suficientes para demonstrar a seriedade do problema e assinalar sua
dimensão global, como se depreende do quadro abaixo, emprestado de Azevedo &
Guerra, o qual demonstra a intensidade preocupante já na década de 1980.
62
Forma de
Abuso –
vitimização
O que dizem os dados internacionais
Estimativas para o
Brasil
Física
- Estima-se que 10% das crianças de menos
de 5 anos que se apresentam aos pronto-
socorros ou hospitais são vitimas de abuso
físico. Observações recentes têm revelado que
cerca de 15% das crianças hospitalizadas no
Quebec sofrem de uma deficiência ria a
nível de peso ou estatura, porque foram
nutridas ou negligenciadas por seus pais.
Psicológica
- Trata-se de estatísticas difíceis de compilar
porque os sinais não são evidentes. Elas estão
embutidas em outras estatísticas de crianças e
adolescentes colocados em famílias
substitutas, centro de readaptação para
crianças com problemas de comportamento
etc.
Sexual
- Uma menina em 5 (20%) e um menino em
10 (10%) são vitimas de abuso sexual antes
dos 18 anos. Cerca de 9% de todas as
mulheres foram sexualmente vitimizadas por
parentes e 5% estiveram envolvidas em
incesto pai-filha.
- A “SOS criança” estima que 5.000 meninos
e 3.000 meninas menores de 18 anos estão
envolvidos em prostituição em Paris.
- Das estatísticas da policia e da lista de
assinantes de material pornográfico calcula-se
que, nos EUA, 1.200.000 menores de 16 anos
estejam envolvidas em comercialização
sexual.
6,0 milhões de
meninas (20% do
total) 3,1 milhões
de meninos (10%
do total)
totalizando 9,1
milhões de crianças
(cerca de 15% do
total de crianças
brasileiras de 0 a
19 anos).
TABELA: 02
/ Fonte: Azevedo & Guerra (2007, p. 45)
A importância desses dados tabulados pelas autoras reside na certeza da
gravidade e da ascensão do problema dentro de nossa sociedade. Este agravamento
seguiu uma curva de aumento vertiginosa, tornando o problema um fato inegável e de
abrangência significativa dentro da atividade de políticas públicas.
Mas dessa gravidade surge, inevitavelmente, a argüição sobre os fatores
que, conjunta ou separadamente, dão origem a essa violência. Para responder-nos,
entendemos que o pensamento esquematizado de Gomes (2004, p. 488), nos seja
pertinente e eficaz. Vejamos, então, nossa reprodução do modelo do autor.
63
MODELO PARA COMPREENSÃO DOS FATORES DETERMINANTES DOS MAUS-TRATOS
NA INFÂNCIA
Fatores Socioculturais
1. Valores e normas sobre violência e força; aceitação dos castigos
corporais.
2. Hierarquia social desigual; relações interpessoais exploradas.
3. Competição versus cooperação.
4. Sistema econômico injusto; aceitação permanente da classe pobre.
5. Desvalorização de filhos e outros dependentes.
6. Manifestações institucionais dos valores acima: lei, assistência medica,
educação, sistema de benefícios sociais, esportes e diversão, outros.
STRESS FAMILIAR
Stress gerado pela criança
Stress sócio-
circunstancial
Stress gerando pelos
pais
1. Diferença física (por
ex: deficiência,
Feiúra/beleza).
2.
Mentalmente diferente
(por ex: retardado).
3. Diferença de
temperamento (por ex:
difícil).
4. Diferença de
comportamento (por
ex: hiperativo).
5. Filho Adotivo.
1. Pobreza, desemprego,
mudança ou isolamento,
habitação precária.
2. Relação com os
genitores; discórdia-
agressão, dominação-
submissão.
3. Problemas de afeto,
stress perinatal, forma
de criação, escolha
como bode expiatório,
inversão de papeis,
filhos em excesso ou
indesejados.
1. Baixa autoestima.
2. Vitimas de abuso
quando crianças.
3. Depressão.
4. Alteração de caráter;
doença psiquiátrica.
5. Abuso de
substâncias
químicas.
6. Ignorância de
educação;
expectativas irreais.
Situações Desencadeantes
Disciplina.
Discussão/conflito familiar.
Abuso de substancias
químicas.
Problema ambiental agudo.
Maus-tratos
Lesão.
Incapacidade de prover
cuidados.
Intoxicação.
Maus-tratos psicológicos.
GRÁFICO: 02
64
Esse processo complexo e multifacetado indica que a violência intrafamiliar
decorre de inúmeros fatores que, somados, resultam na agressão contra os infantes.
Este fenômeno pode acontecer de várias formas segundo a classificação das violações,
sejam elas físicas, psicológicas ou sexuais. Dentro desta catalogação apresentaremos
as mais intercorrentes.
4.1.1 Abuso Físico
Caracterizado facilmente, acaba por constituir nos registros a forma mais
recorrente de violência contra a criança, sendo geralmente indicado por lesões
(equimoses, escoriações, fraturas, queimaduras, dentre outras) sem justificativa fática
plausível ou aceitável, tais como: “ele vive caindo” ou “não presta atenção onde anda
e vive se ferindo”.
Outro indicativo importante a ser considerado são os sinais de repetição
sistemática das lesões e sua multiplicidade. Desta feita, serve de alerta a presença de
traços de ferimentos anteriores perto de outros mais recentes.
Ademais, a forte incidência dessa modalidade decorre, também, da
aceitação social da chamada “palmada pedagógica”, representando o castigo físico
tolerado na sociedade em face às transgressões infantis. O problema reside no fato de
ser diminuta a linha divisória entre esta medida e a agressão. Assim, acaba a violência
sendo justificada ou até mesmo encoberta deliberadamente por este “modo de
criação” adotado pela humanidade ao longo dos tempos.
Sobre sua escala de gravidade e os fatores que desencadeiam o ato lesivo no
momento da agressão, são esclarecedoras as palavras de Gomes (2007, p. 489).
A gravidade das lesões pode variar desde uma simples equimose a fraturas
do crânio com hemorragias meníngeas e do tecido nervoso, com morte
subseqüente.
(...)
Ocorre, geralmente, em meio a crises socioambientais, sendo muitas vezes
desencadeado por atitudes da própria criança, tais como choro persistente,
teimosia, desobediência e micção ou evacuação nas roupas.
65
Vemos, então, que, em primeiro lugar, o abuso físico tem grande margem
de ocorrências e gera um sem número de possíveis lesões, sendo limitada,
lamentavelmente, somente pela morte do agredido. Por outro lado, cabe-nos aclarar de
imediato as palavras do autor citado, pois, embora não exista razão, e nem poderia ser
diferente, para creditar responsabilidade ou culpa à criança pela agressão de que é
vitima, devemos indicar que, ante um momento de crise e de estresse, o agressor inicia
seu ato lesivo a partir de comportamentos da criança que o faz externar o seu
desequilíbrio ou despreparo e porque terá nessa conduta do infante a justificativa para
o seu agir.
Logo, ao dizer que existem condutas infantis que desencadeiam a violência
física, não se está transferindo a responsabilidade pelo ato, mas sim identificando
pedagogicamente o fator de liberação da descarga violenta.
4.1.2 Síndrome da Criança Sacudida
Uma modalidade específica de violência física merece destaque, pois sua
incidência e risco de morte são marcantes. E, o que torna essa observação importante é
a simplicidade de sua concretização. É bastante comum o adulto sacudir uma criança,
no entanto, esse movimento forte, intenso e constante é extremamente arriscado, pois o
chacoalhar pode lesionar o cérebro do bebê e levá-lo a desenvolver deficiências
neurológicas podendo causar, até mesmo, a morte. Tais males acabam por acontecer
em razão sistemática da movimentação como vemos na figura adiante.
FIGURA: 04 - Fonte: Observatório da Infância
66
4.1.3 Abuso Sexual
Recorremos a Deslandes para conceituar Abuso Sexual como sendo:
Todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual cujo
agressor esteja em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado
que a criança ou o adolescente com o intuito de estimulá-lo sexualmente ou
utilizá-lo para obter satisfação sexual (DESLANDES, 1994, p. 13).
Embora geradora de manifesta repulsa da sociedade, esta modalidade de
violência tem como caractere marcante o silêncio social, donde se ergue a dicotomia
entre a condenação do ato que vem a público e a passividade ante as situações restritas
a intimidade da casa ou da família ou, ainda, que são tema restritos a cochichos.
Sobre esse pilar de perpetuação da agressão familiar opina Nelson Vitiello
em sua contribuição
8
à Azevedo & Guerra (2007, p. 123):
O desconforto que sentimos em lidar com o assunto é tão grande que apenas
recentemente observamos tais ‘temas malditos’ como incesto, estupro e
abuso sexual de crianças versados em conclaves ou como objeto de
publicações. Durante muito tempo estabeleceu-se sobre esses temas um
verdadeiro ‘complô do silêncio’, com o qual a sociedade e os profissionais
procuraram encobrir a existência desse problema tão incômodo.
Esse ‘silêncio’ era ainda maior quando o processo de vitimização ocorria
dentro do âmbito familiar. De fato, o horror social ao incesto é tão intenso
que estudar esse aspecto do comportamento humano é algo que nos
incomoda e aflige. O conceito do lar e da família como refúgios intocáveis,
onde cada ser humano consegue proteção contra o mundo exterior, adverso e
hostil, é algo que nos é muito grato cultivar.
Essa observação nos trás de maneira frontal o maior escudo usado pelo
abusador: a conveniência social e a consagração do próprio conceito protetivo do lar
que devemos buscar consolidar, mas que, ao mesmo tempo, protege o violentador. Isto
acaba por favorecer o cometimento desse crime e nos leva a constante e inevitável
constatação de que, apartando-se as agressões sem relação de continuidade, como um
estupro em via pública cometido por agressor sem qualquer relação de parentesco ou
convivência com a vitima, no campo intrafamiliar o agente da violência sempre terá
um liame de confiança e proteção, mas também de hierarquia sobre a criança, da
8
Trata-se de texto, pertencente ao Capitulo 3 da obra, produzido pelo autor citado, mas que compõe obra
organizada por Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra e indexada em nome destas.
67
indicação de pais, tios, padrastos, irmãos e de pessoas com relação próxima à vitima
como agentes do ato.
Sobre isso temos o posicionamento da UNICEF (1998, p. 139): “Por outro
lado, a família é considerada um santuário, onde ninguém tem o direito de interferir ou
questionar as atividades paternas, pois um mito que lhes confere uma imagem de
guardiães da criança”.
Interessante e alarmante é o processo de notificação da situação ao Poder
Público e à sociedade, a qual, em regra geral, ocorre por dois caminhos:
a. A descoberta ocasional, marcada pela flagrante constatação do ato,
gerando a reação imediata de indignação por quem descobre o fato e o
notifica, ressalvando-se que ainda é relevante o número de casos que, por se
tratarem de pais ou esposos, principalmente, os agressores acabam
reprimindo a possibilidade de denúncia.
b. De outra maneira, a notificação advirá da intensidade da agressão e de
suas conseqüências físicas na vitima, pois as lesões, por vezes, são de
tamanha gravidade que inevitavelmente exigem atendimento médico-
hospitalar, onde a origem das seqüelas acaba por aflorar de maneira
inegável.
Notadamente o agressor utiliza, como forma de coibir a denúncia por parte
da criança ou de terceiro, o mecanismo da ameaça, relacionado a espancamento ou à
morte, a dependência econômica e a promessa de recompensa pelo silêncio e
conivência.
Outro aspecto do abuso sexual que vem sendo revisto é a inclinação que
temos de sempre estruturar o ato agressivo tendo um homem como agressor e uma
vítima de sexo feminino. Isto ocorre porque, primeiramente, está consolidado que
meninos e meninas são vitimas dessa violência, sob todas as suas formas, e, em
segundo plano, desenvolve-se cada vez mais a caracterização da mulher como
abusadora, embora isto ainda seja um longo caminho a ser percorrido, em razão da
esmagadora presença do homem como autor do ato abusivo, sendo, geralmente, a
mulher cúmplice da ação. Raros os casos notificados que modificam esta estrutura.
68
Acerca desses aspectos, temos as importantes ponderações de Gomes (2004
p. 489/490).
O abuso sexual, em todas as suas manifestações, é de difícil diagnóstico.
Ocorrendo, em sua maior parte, na intimidade dos lares, é praticado por pais,
tios, padrastos, irmãos ou outras pessoas próximas à criança e que obtêm sua
conivência mediante promessas de recompensa ou ameaças, que tolhem
completamente a capacidade de reação. A agressão quase sempre parte de
alguém que inspira temor, respeito ou até mesmo amor, daí a dificuldade em
ser detectada.
Os casos que chegam ao conhecimento das autoridades, quase sempre,
decorrem de uma descoberta casual pela mãe, avó u outra pessoa da família
(ou vizinhança), ou então, os que pela sua gravidade e exuberância,
necessitam de atendimento médico-hospitalar tornando-se de conhecimento
público.
Raras são as crianças que têm coragem para denunciar práticas sexuais por
parte de familiares. Mães ou madrastas o costumam acreditar que seus
companheiros possam molestar filhas ou enteadas; as ameaças de
espancamento ou morte, quase sempre são suficientes para fazê-las calar, no
caso de darem crédito às queixas infantis.
Meninos e meninas o, igualmente, objeto dessa prática, porém o sexo
feminino é o mais atingido.
(...)
os desvios de personalidade, o homossexualismo latente (por vezes
manifesto) e o fato de, em idade tenra, terem sido também vitimas de abuso
sexual, pode servir para explicar a Ação desses indivíduos.
O quadro dessa modalidade, extrema e infelizmente comum, é assustador
dentro de nossa realidade, merecendo a atenção de todos e o desenvolvimento de ações
públicas de combate.
4.1.4 Exploração Sexual
Uma modalidade ainda comum no contexto da realidade social brasileira é a
transformação de crianças em mercadoria sexual, para servir aos diversos “prazeres”,
perversões e vontades de toda sorte de pessoas.
Embora acabe por apresentar os caracteres do abuso sexual em sua
consumação, esta modalidade de violência ganha independência na medida em que se
adiciona ao ato de cunho corporal uma fase anterior, qual seja, a negociação de valores
por terceiro em troca da “utilização” do infante como “brinquedo daquele presta a
recompensa econômica.
69
Dessa feita, podemos apontar como diferencial característico a construção
de lucratividade por meio de mercancia do sexo tendo crianças como objeto de
negociação.
Hoje, em nosso país, temos uma grande estrutura voltada para esta
modalidade de negócio ilícito e imoral, utilizando-se, inclusive, a internet como
facilitadora. Sobre isto, o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e
Adolescentes – CECRIA apresenta observação em sua Pesquisa sobre Tráfico de
Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual e Comercial
PESTRAF para o período de 2000 a 2002, o que entendemos não ter se modificado,
sendo pertinente o comentário como vemos abaixo.
No Brasil, as crianças eram alvo fácil dos criminosos até meados da década
de 90 por falta de rigor em processos de adoção internacional. A prática
passou a ser coibida a partir da efetivação das Comissões Judiciárias de
Adoção Intencional, criadas pelos Tribunais de Justiça nos estados, sob
inspiração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Entretanto,
indícios de que não houve redução no tráfico de adolescentes,
principalmente do sexo feminino, para fins de exploração sexual dentro do
Brasil. (CECRIA/PESTRAF, 2002).
Logo, não se trata de modalidade de pequena importância em nosso país,
merecendo, inclusive, política pública específica.
4.1.5 Abuso Emocional
Também corrente em nossa sociedade e dentro das famílias, o ataque ao
psicológico infantil é comumente praticado no cotidiano social, quase sempre aceito
pela comunidade, que sequer consegue identificá-lo. É possível identificarmos tal
violação sob várias formas: no excesso de proteção, em ameaça e gritos, na construção
de conceitos negativos sobre ex-cônjuges, hoje identificado como uma sub-
modalidade, chamada de “alienação parental”, tratamento com desprezo, desrespeito
e de humilhação, acentuação de caracteres físicos em desconformidade com os padrões
sociais, dentre inúmeras formas.
Sobre isso comenta Gomes (2004, p. 490).
70
Difícil de ser diagnosticado, em vista de sua imponderabilidade, o abuso
emocional, no nosso entendimento, forma, com o abuso sexual e o físico, a
tríade de maus-tratos que mais repercussões negativas podem trazer ao
desenvolvimento futuro de uma criança. Aqui vamos encontrar ofensas,
ameaças, chantagens emocionais e ralhos, que levados a extremos podem
causar o surgimento de verdadeiras psicopatologias. O terrorismo
psicológico (ex.: fechamento da criança em um quarto escuro) também se
inclui nessa modalidade de mau-trato.
A atitude de certos pais, que não permitem que seus filhos “cresçam”,
achando-os incapazes de fazer qualquer coisas sem serem vigiados, ou a
necessidade que alguns sentem de comandar” decisões, impedindo as
crianças de desenvolver suas aptidões e potencialidades, gerando indivíduos
inseguros diante da vida, pode constituir, numa visão mais ampla, uma
variação do abuso emocional.
Concordamos com a dificuldade de notificação em virtude do desenrolar
dessa agressão e sua aceitação social, pois é encoberta pelo dia a dia e não provoca
indignação, ao contrário, excetuando-se os casos gravíssimos que chegam ao público,
tal comportamento dificilmente é questionado.
4.1.6 Privação de Alimentos
Um dos pontos de maior incidência de vínculo de dependência e
subordinação da criança em relação ao adulto é a relação alimentar. Isto pode ser
diagnosticada até mesmo pela mais rasa das análises, pois é na infância em que
recebemos o amparo nutricional de maneira completa, sendo direito básico, cuja
privação, deliberada ou decorrente de desvios de conduta ou vícios, acaba por
configurar um ato de violência grave contra a criança.
Acerca disso, explana Gomes (2004, p. 489):
A subnutrição infantil decorre, comumente, administração de
alimentos, seja de forma deliberada ou negligente. Em nosso meio, onde a
incidência de indivíduos de baixa renda é grande, é freqüente a subnutrição
por tentativa da mãe, ou responsável, em ‘fazer o leite render e sobrar para
os outros irmãos’. Mães alcoólatras ou viciadas ‘economizamo dinheiro
que seria destinado à alimentação da prole para saciar seus vícios.
(...)
Freqüentemente, mães que se sentem rejeitadas ou desamadas, frente a filhos
não desejados ou não planejados, podem se envolver em casos de
negligencia, por conta das crises geradas pela ausência física do
companheiro.
71
Podemos, então, considerar que esta violação de direitos protegida pela
norma brasileira vem, de maneira significante, compor o quadro de violência contra
crianças, embora não possa ser confundida com questões socioeconômicas, que a
violência é decorrente de conduta voluntária do agente e não deriva diretamente da
condição de vulnerabilidade econômica das famílias mais pobres, onde a desnutrição é
fruto de desamparo financeiro e não de uma postura agressora da modalidade em que
estamos focados.
4.1.7 Administração Intencional de Drogas e Venenos
Apesar de desejarmos que esta modalidade de violência fosse um quesito
teórico, somos levados por nossos estudos a constatar que é muito comum, cotidiano
mesmo, a administração de drogas e venenos em crianças. Pior, em determinados
casos, essa violação faz parte do conselho de mães para “acalmar crianças levadas
ou garantir uma longa noite de sono tranqüilo. Afinal, quem de nós nunca ouviu uma
mãe mais “experiente” aconselhar outra a dopar seus filhos mais inquietos, ou que
resistem a uma boa noite de sono? Quem de nós não conhece um caso de mãe de
administrou calmante ao seu filho no leite?
Exatamente essas condutas, extremamente toleradas em nossa sociedade e,
muitas vezes sequer questionadas, representam um recurso de criação pautado numa
forma muito grave de violência, afinal, tal procedimento atinge diretamente o
desenvolvimento do infante, causando-lhe, não raro, dependência química ao
medicamento.
Outra forma bastante comum dessa modalidade de agressão é o incentivo
ou o constrangimento das crianças ao consumo de drogas das mais variadas espécies.
Neste caso, o mais comum é o adulto, geralmente genitores, sob o efeito do álcool
levar, de uma forma ou de outra, seus filhos a beberem e se embriagarem. Esta
conduta, por vezes, o é questionada, pois a sociedade tende a não condenar ou
reprimir aquilo que nos parece geralmente ser uma brincadeira, afinal, um pequeno
gole não causaria mal.
72
Para nos arrimar sobre isso, recorremos novamente a Gomes (2004, p. 489),
vejamos.
Calmante e soníferos podem ser administrados a crianças ‘levadas’ ou que
‘custam’ a dormir, atrapalhando ou perturbando adultos, tanto nos lares,
quanto em hospitais e instituições. A prática nos mostra que tais fatos não
são tão raros quanto seria desejável. Crianças com quadros de intoxicação
por benzodiazepínicos e barbitúricos, freqüentemente são atendidas nos
serviços de emergência dos hospitais.
Pais dependentes de substancias tóxicas, e/ou álcool podem obrigar seus
filhos ao uso das mesmas, em suas ‘viagens’.
Com isso, temos que essa modalidade de agressão é comum e passiva de
aceitação e tolerância da sociedade, sendo presença marcante em nosso quadro de
violência.
4.1.8 Negligência de Assistência Médica
O dever de promover a saúde da criança, quando não observado, acaba por
gerar uma forma de violência comum na realidade brasileira, mas que, no entanto,
ainda não tem sido identificada como ofensa ao direito dos infantes, pois, no cotidiano,
ainda não provoca a repulsa social em termos gerais.
Mas como identificar essa modalidade de agressão? Parece-nos que Hélio
Gomes é elucidativo quanto a essa conceituação, observemos.
A não observância, intencional ou negligente, de tratamento médico
recomendado para uma enfermidade, caracteriza essa forma de mau-trato. A
não administração de medicamentos prescritos (ex.: criança epiléptica
privada de medicação anticonvulsivante) ou a recusa em aceitar internações
ou tratamentos específicos (ex.: cirurgia em caso de apendicite; transfusão de
sangue) serve de modelo para o tipo. (GOMES, 2004, p. 490)
Do conceito encontra-se a motivação para a calma em relação a esse tipo de
violação. Afinal, dentro do contexto socioeconômico brasileiro, muitas das vezes, o
ato descrito na definição acaba por ser disfarçada pela condição econômica do
agressor. Isto é, a sociedade brasileira ainda não separa a falta de tratamento de saúde
em razão de debilidade financeira da inobservância ou desleixo quanto à saúde dos
infantes dentro do ambiente familiar.
73
Assim, o primeiro quadro, embora produza ofensa, acaba por ser tolerada e
compreendida. Já a segunda forma, intencional ou negligente, precisa ser trazida à tona
como forma indignante de agressão.
4.1.9 Negligência de Segurança
Fato comum no cotidiano brasileiro, essa modalidade de violência nos é
apresentada diariamente nos noticiários, fazendo-nos refletir sobre a condição
econômica do agente, a sua maturidade, o seu senso de responsabilidade e o nível de
desenvolvimento intelectual de nossa sociedade, pois as situações que se apresentam
são, muitas vezes, absurdas, outras demonstram a desvirtuação em razão da jogatina,
da bebida e outros vícios e, por fim, temos a entrega da segurança de uma criança a
terceiros, babás, por exemplo, ou até mesmo a outra criança, responsável pelo lar
enquanto os pais trabalham ou desfrutam de compromissos sociais.
Essa realidade acaba por demonstrar que, por vezes, o adulto simplesmente
negligencia o cuidado que deve ter com o infante, afinal, por mais que tenha um
contratado ou voluntário para cuidar da criança, a obrigação de zelo não se exaure e
nem se transmite a quem está cuidando da criança.
Temos, também, que nas classes de menor renda é comum o infante ficar
sob a responsabilidade de um irmão mais velho para viabilizar o trabalho dos pais
enquanto nas classes mais altas, geralmente é uma pessoa adulta contratada quem
assume esse papel. No primeiro caso, inegável negligência, socialmente aceita e
justificável; no segundo, o responsável acaba assumindo o risco de ter sua criança
negligenciada por terceiros.
Ademais, não ter o devido cuidado no armazenamento de substâncias
perigosas, como remédios e produtos de higiene e limpeza, ou de artefatos perigosos,
como armas de fogo e objetos cortantes, por exemplo, constitui relevante aspecto das
ocorrências de negligência, sendo considerado de altíssimo risco e com elevada taxa
de notificação de casos fatais de acidentes domésticos. Além disto, também é comum
o desleixo na condução crianças em ambientes públicos, gerando acidentes e
desaparecimentos.
74
Sobre este contexto, temos as observações de Gomes.
Crianças pequenas deixadas a sós, sem nenhuma supervisão, ficam sujeitas a
acidentes, principalmente se têm baixa idade.
Em nosso meio, nas classes de baixa renda, é comum lactentes e crianças
que estão iniciando os primeiros passos ficarem sob a guarda de irmãos,
muitas vezes em idade pré-escolar, incapazes, eles mesmos, de prover
qualquer assistência a si próprios, ou aos menores, para que os pais (na
maioria dos casos, a mãe) possam sair para trabalhar.
A necessidade de atender aos compromissos profissionais ou sociais faz com
que, nas classes mais abastadas, os filhos sejam deixados com babás ou
empregadas, nem sempre habilitadas ou predispostas ao trato infantil, fato
esse que pode ensejar situações facilmente caracterizáveis como de
negligência. A figura caricata da babá que namora o soldado ou o porteiro,
enquanto a criança se em apuros, é bem menos ficção do que se possa
imaginar.
Crianças que se “perdemnos shoppings, “soltam” da mão e correm para a
rua, que caem de janelas ou em piscinas sem que ninguém veja, são um bom
exemplo de negligência de segurança.
São freqüentes, no dia-a-dia, os acidentes letais com armas de fogo, deixadas
nas residências, ao alcance das crianças, sem quaisquer medidas de proteção.
(GOMES 2004, p. 490).
A grande incidência desta modalidade de violência em nosso cotidiano,
gerada por fatores extra ou intrafamiliares, acaba por construir um cenário de extremo
perigo às crianças, que acabam sendo expostas a inúmeros riscos dentro de casa.
Entretanto, a mesma sociedade que se indigna com o fato, depois de sua ocorrência,
não costuma adotar uma postura mais atuante na prevenção desta agressão.
4.1.10 Abandono
Esta modalidade acaba por constituir-se em prática longeva na história
humana, expressando-se de várias formas em nosso cotidiano, seja entregando os
filhos a terceiros, seja deixando a criança em via pública ou às portas de alguma casa,
dentre largo elenco.
Objetivamente, o abandono tem ligação extremada com a debilidade
financeira do agente e, subjetivamente observado, relaciona-se com a deterioração ou
inexistência de vínculos afetivos ou, ainda, pela recusa e repulsa à criança.
A partir do abandono, há um desmoronamento da ligação entre a criança e o
adulto. Dessa feita, não é incomum que crianças não tão pequenas passem a morar nas
75
ruas, dependentes da própria sorte e sujeitando-se a todo tipo de maus-tratos,
exploração e violência urbana, integrando-se a um meio de vida onde a prostituição, as
substâncias entorpecentes e os atos ilícitos fazem parte do cotidiano.
4.2 CONTEXTOS: BRASILEIRO E AMAPAENSE
O Brasil seguiu a evolução mundial e, além de subscrever Tratados
Internacionais de Direitos Humanos, também tem avançado na legislação interna, com
a assinatura, em outubro de 1998, do “Pacto Comunitário Contra Violência
Intrafamiliar”, demonstrando interesse em coibir a prática de violência contra as
crianças.
Neste mesmo ano, o Ministério da Justiça fez uma Campanha Nacional
contra a Violência Intrafamiliar, oportunizando a sociedade que trouxesse sugestões no
combate à violência, evidenciando a intenção de traçar uma política pública
participativa. A partir daí, algumas ações começaram a ser implantadas.
Azambuja (2006, p.01) comenta a estrutura legal construída pela
Constituição da República para combater práticas comuns de desrespeito aos direitos
humanos da criança brasileira.
A trajetória percorrida pela criança, ao longo da história, vem marcada por
inúmeras situações de violência, referendadas, muitas vezes, pelo próprio
ordenamento jurídico. A partir da Constituição Federal de 1988, no Brasil, a
criança adquire o “status” de sujeito de direitos, descortinando-se novo
cenário, embasado no reconhecimento de sua condição de pessoa em
desenvolvimento e de prioridade absoluta, princípios que têm seu
nascedouro na Doutrina da Proteção Integral, em consonância com a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. A nova ordem
constitucional brasileira, garantidora do princípio da dignidade humana e da
Doutrina da Proteção Integral à criança e ao adolescente, estatuída em 1988,
passa a exigir a revisão de muitas práticas, consolidadas ao longo do tempo,
embasadas no não reconhecimento de direitos à população infanto-juvenil.
Como se pode perceber, o fenômeno da violência intrafamiliar contra
crianças vem assumindo no Brasil uma maior visibilidade, especialmente a partir dos
esforços e pressões da sociedade civil organizada e dos avanços legais introduzidos
76
pela Constituição da República de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente-
ECA.
Evidentemente que essas mudanças normativas, isoladamente, não teriam
força para eliminar essa modalidade de violência doméstica, a qual se estabelece tendo
como palco um Estado em que a desigualdade e a exclusão social marcam o contexto
brasileiro como um todo. Vejamos o que nos mostra o Mapa da Exclusão elaborado
pela Associação Nacional de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente – ANCED:
FIGURA: 05
FONTE: ANCED (2008, p. 04)
Como nota-se da realidade geral trazida pelo mapeamento, o Brasil tem
como fator de favorabilidade à violência, o denso índice de exclusão social em suas
regiões, levando-nos a elencá-lo com relevância.
Observando ainda o detalhe do mapa apresentado, veremos que a situação
específica do Estado do Amapá é de gravidade preocupante em razão de nível agudo
de desigualdade e exclusão social, vejamos o detalhe ampliado.
77
FIGURA: 06
FONTE: ANCED (2008, p. 04).
No entanto, ao contrário da análise mais repentina, temos que aclarar que a
exclusão, apesar de importante, não determina que a violência intrafamiliar esteja
restrita ao ambiente pobre e desatendido. O que ocorre, sabidamente, é que o nível de
exposição pública das famílias de classe social mais economicamente debilitadas é
maior.
A ocorrência de violência contra criança nas diversas classes sociais é
inegável e vem sendo confirmada nos estudos promovidos sobre o tema. No mais, a
própria distribuição da população infanto-juvenil entre os municípios, relacionada com
de Índice de Desenvolvimento Humano IDH, demonstra que a temática atinge a
todos os estratos sociais, e não apenas as camadas menos favorecidas da sociedade,
como encontramos na tabela seguinte.
TABELA: 03
FONTE: CEATS/FIA (2007, p. 18).
Outro ponto marcante da realidade brasileira é a evolução do volume de
crimes praticados contra as crianças, incidência esta claramente demonstrada quando
78
observamos a evolução dos homicídios diagnosticada em 2010 no Mapa da Violência
no Brasil, obra assinada por Júlio Waiselfisz, como vemos adiante.
Evolução do Número e das Taxas (em 100.000) de Homicídio por Idade na População
de 0 a 12 anos. Brasil, 1997 e 2007
TABELA: 04 - FONTE: Waiselfisz (2010a, p. 44)
Já o Amapá, de acordo com estudos realizados pelo mesmo autor, em
mapeamento feito em 2008 sobre homicídios apresentava uma realidade alarmante,
tendo em vista o volume de homicídios, ocorrência geral, praticados no Estado naquele
ano, vejamos o mapa obtido.
FIGURA: 07 – FONTE:
Waiselfisz (2008, p. 17).
79
Em termos regionais, o Amapá, agora tratando de casos de homicídios
contra crianças e adolescentes, encontra evolução significativa, mesmo quando
alinhado com unidades federativas de maior população, como vemos no quadro.
Numero de Homicídios na População de 0 a 19 anos, por UF e Região. Brasil, 1997/2007
TABELA: 05 – FONTE: Waiselfisz (2010, p. 46).
Mas é no banco de dados
9
utilizado por Waiselfisz na elaboração de
Mapeamento de 2010 que encontramos um dado específico sobre o indicativo
homicídio em relação a crianças e adolescentes, demonstrando o volume de violações
contra esses sujeitos de direito na realidade interna do Estado do Amapá, colocando
lado a lado todos os municípios. Vejamos,
TABELA: 06 – FONTE: http://www.institutosangari.org.br. Acesso em 06/04/2010.
9
Arquivo em Excel disponibilizado para download no site http://www.institutosangari.org.br.
Número e Taxas Médias de Homicídio (em 100 mil) de crianças e adolescentes.
Municípios do Brasil. 2003/2007. Ordenada por UF e Taxa de Homicídios.
Município UF
Média
Anos
Popul. Número de Homicídios Taxa
(1000) 2003 2004 2005 2006 2007
Macapá AP 1 178,9 34 30 23 40 26 14,5
Santana AP 1 51,8 12 16 10 11 6 11,6
Porto Grande AP 3 7,7 0 0 1 1 0 8,7
Laranjal do Jarí AP 3 19,4 0 2 1 1 3 8,6
Oiapoque AP 3 9,2 0 0 0 0 1 3,6
Vitória do Jarí AP 5 6,7 0 1 0 0 0 3,0
Mazagão AP 3 8,1 0 0 0 0 0 0,0
Tartarugalzinho AP 5 5,2 0 0 0 0 0 0,0
Calçoene AP 5 4,0 0 0 0 0 0 0,0
Amapá AP 5 3,9 0 0 0 0 0 0,0
Pedra Branca do Amapari AP 5 3,1 0 0 0 0 0 0,0
Cutias AP 2,7 0 0 0 0 0
Ferreira Gomes AP 2,4 0 0 0 0 1
Itaubal AP 2,3 1 0 0 0 0
Pracuúba AP 1,6 0 0 0 0 0
Serra do Navio
economicamente
AP 2,2 0 0 0 0 0
80
Mas não podemos nos furtar de diagnosticar, em um plano mais específico,
que as violações se constituem sob diversos eixos relativos aos infantes no Brasil e,
conseqüentemente, no Estado do Amapá, como vemos no quadro abaixo, elaborado
aproveitando a visão da UNICEF (1998, p. 140).
DIREITO VIOLAÇÕES
À vida e à saúde
Não atendimento médico
Atendimento médico deficiente
Prejuízos por ação ou omissão de agentes externos
Práticas hospitalares e ambulatoriais irregulares
Irregularidades na garantia da alimentação
À liberdade, ao respeito e
à dignidade
Aprisionamento
Violência física
Violência psicológica
Violência sexual
Discriminação
Práticas institucionais irregulares
Atos atentatórios ao exercício da cidadania
À convivência familiar e
comunitária
Ausência de convívio familiar
Inadequação do convívio familiar
Ausência de infra-estrutura
Atos atentatórios ao exercício da cidadania
À educação, à cultura ao
esporte e ao lazer
Impedimento de acesso à educação
Impedimento de permanência no sistema educacional
Ausência ou impedimento de acesso à creche ou pré-escola
Ausência de condições educacionais adequadas
Ausência ou impedimento de uso de equipamentos de cultura, esporte e lazer
Atos atentatórios ao exercício da cidadania
À profissionalização e à
proteção no trabalho
Exploração do trabalho de crianças e adolescentes
Condições adversas de trabalho
Inobservância de legislação trabalhista
Ausência de condições de formação e desenvolvimento
TABELA: 07 – FONTE: Pesquisadora, a partir de UNICEF (1998, p. 140).
É nesse campo amplo que encontramos a temática de nosso estudo, o qual
observa e analisa uma porção desse universo de transgressões.
4.3 ESTRUTURA PROTETIVA NO ESTADO DO AMA
O Amapá, como o restante das unidades federativas, possui uma estrutura
voltada para o atendimento de crianças vítimas de violência intrafamiliar. Não obstante
a existência do aparato fica evidente que ele não tem a eficácia necessária para
eliminar, ou amesmo diminuir, em índices expressivos, as violações sofridas pelos
infantes.
81
O abrigo Casa-lar Ciã-Katuá, campo de nosso estudo, tem encaixe nessa
estrutura e possui papel importante no acolhimento dessas vítimas. No entanto,
precisamos localizá-lo dentro dessa rede. Para tanto temos que observar os agentes que
compõe esse sistema.
4.3.1 Varas da Infância e da Juventude
Trata-se de órgão judicial responsável por apurar os fatos ocorridos, bem
como tomar medidas, sejam elas protetivas em relação às vitimas, ou de
encaminhamento para o Ministério Público do conjunto probatório de responsabilidade
dos agressores, para que sejam julgados nas Varas Criminais.
Isso ocorre porque essas Varas têm como base a proteção dos interesses das
crianças e dos adolescentes, consolidando-se como ente preservador das boas relações
da família e garantia dos direitos da criança. Para tanto, referidas Varas contam com
corpo técnico especializado que, por meios da multidisciplinariedade, buscam alcançar
as informações necessárias para o esclarecimento dos fatos sob apuração.
Por outro lado, reforçando o papel de protetor do Poder Público, é na Vara
da Infância e Juventude que encontramos o Ministério Público especializado, sendo,
antes de tudo, mais um órgão responsável pela concretização dos direitos assegurados
às crianças, além de funcionar como fiscal dos atos desencadeados dentro dos
procedimentos judiciais.
4.3.2 Conselhos Tutelares
São colegiados, compostos por membros eleitos pelo voto direto, embora
isto seja alvo de críticas daqueles que entendem que o processo pode se tornar uma
simples disputa por cargos, de pessoas que terão um papel de fundamental importância
dentro da estrutura pública de combate a violência contra crianças e adolescentes.
Os conselhos atuam no cotidiano da sociedade, fiscalizando, apurando
denúncias, encaminhado os casos para o Ministério Público ou para a Vara da
82
Infância, determinando abrigamento e desabrigamento, enfim, tomando providências
para garantir a efetividade do sistema protetivo estatal.
Não podemos deixar de ressaltar que sua existência traz a possibilidade de
participação estrutural da comunidade, sendo seus membros cidadãos imbuídos de
autoridade pública.
4.3.3 Órgãos de Atuação Correlata
reconhecemos que o sistema protetivo o é suficiente para eliminar a
incidência da violência contra crianças e isto acaba por conferir grande importância ao
processo de conexão entre os órgãos de proteção. Este sistema utiliza características
específicas, devendo interligar-se com os demais órgãos públicos e entidades privadas
que fazem parte da chamada rede protetiva.
Essa visão decorre da certeza de que, para atuar com eficiência, as
instituições devem buscar suporte em entidades, no nosso caso, principalmente as
públicas, para que, aproveitando a aptidão de cada agente em relação à demanda
existente, possa atender a vítima sob os mais variados aspectos.
Poderíamos, então, assinalar que aqueles órgão não são suficientes para dar
suporte a todos os aspectos que envolvem os casos, necessitando, desta feita, da
complementaridade de outros agentes para saciar a problemática do dia-a-dia. Assim,
utilizamos o sistema de saúde, afinal, a violência contra as crianças também é um
problema de saúde pública, o aparato policial, conferindo proteção e auxiliando no
cumprimento das demais medidas protetivas, a rede de ensino, para promover a
continuidade da formação escolar dos protegidos, os órgãos de assistência social, para
garantir o atendimento ou encaminhamento de demandas de todos os envolvidos,
incluindo agressores. Enfim, serão correlatos todos os órgãos que possam se agregar
no atendimento das demandas originadas pela proteção integral da criança vítima de
violência intrafamiliar.
4.3.4 Fundação da Criança e do Adolescente.
83
Como órgão central da estrutura executiva no Estado do Amapá, a
Fundação da Criança e do Adolescente FCRIA é uma autarquia fundacional que
desenvolve e articula ações de proteção, tornando-se um agente com papel
fundamental para o êxito das políticas de prevenção e combate à violência
intrafamiliar contra crianças.
Sua atuação, no caso específico da violência intrafamiliar, é marcada pela
estruturação do abrigo Ciã-Katuá, que acolhe as crianças em situação de risco pessoal
e/ou social, incluindo aí, as vítimas de agressões físicas, e desenvolve um trabalho de
atendimento dessas demandas, contando com o auxílio dos demais órgãos protetivos e
de cunho assistencial, em busca de solução para os casos.
Além disto, também funciona como um articulador de atendimento a todo
círculo familiar, visando o diagnóstico da situação da vítima e sua família,
encaminhando-os para programas governamentais de melhoria da qualidade de vida.
É, portanto, órgão central das políticas públicas de combate à violência intrafamiliar.
4.3.5 Os Abrigos
Abrigos são locais que oferecem às crianças cuidados básicos de saúde,
higiene, alimentação, educação e lazer, quando se faz necessário o afastamento do lar
para que possam ser melhor trabalhados, tanto a família quanto a própria criança
vitimizada, a fim de que se restabeleçam os laços afetivos e possam voltar a conviver.
Com a promulgação da Constituição da República de 1988, bem como com
a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, a chamada
institucionalização da criança e do adolescente – abrigamento, passa a ter caráter
excepcional e temporário nos moldes esculpidos no art. 101, parágrafo único, in
verbis: O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição
para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade.
A primeira ruptura provocada com o sistema anterior está intimamente
relacionada com o novo paradigma filosófico-político introduzido no cenário jurídico
por meio da “doutrina da proteção integral”. Desta feita, o afastamento excepcional e
provisório do lar somente será admitido quando houver ameaça ou lesão efetiva aos
84
direitos fundamentais da criança e do adolescente, nas hipóteses enumeradas pela lei.
São elas:
a) Ação ou omissão da sociedade ou Estado;
b) Falta, omissão ou abuso dos responsáveis;
c) Em razão de conduta indevida.
Nesse passo, verificamos que tal medida de proteção somente poderá ser
utilizada depois de esgotadas todas as demais possibilidades de manutenção da criança
em sua família natural, com as articulações que visem o fortalecimento dos vínculos
familiares, nos termos do art. 100, do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Na
aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas preferindo-se
aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
O Caráter temporário revela que a medida do abrigamento deve ser o mais
breve possível, no intuito de reatar os laços familiares e, na impossibilidade, como
forma de transição para colocação em família substituta.
Como sujeitos de direitos, às crianças são assegurados, dentre outros, o
direito a uma moradia digna que possa garantir-lhes o pleno desenvolvimento social,
bem como a proteção das integridades física, psíquica e moral, preferencialmente em
companhia da família.
Nesse sentido, as crianças afastadas de seus lares e levadas a abrigos, que
devem sempre ser entendidos como espaços de proteção e jamais como medida
privativa de liberdade, carecem de peculiar atenção do Estado, que estão sendo
inseridas em um espaço estranho e convivendo com pessoas com as quais não
possuem vínculos afetivos.
Apesar da provisoriedade e transitoriedade, os abrigos devem estar
preparados, com suas equipes técnicas, formadas por profissionais das áreas de
psicologia, pedagogia, arte-educação, serviço social e jurídico, bem como demais
profissionais envolvidos: equipe administrativa, cozinheiras, faxineiras, babás e outros,
para atender crianças que terão uma permanência breve, mas, também, para aquelas
que permanecerão por mais tempo, em razão da dificuldade que exige a singularidade
85
de cada caso em desconstruir a imagem negativa que criança trouxe consigo e
reestruturar a família para que tracem um novo projeto de vida.
86
5 O CAMPO E OS DADOS DA PESQUISA
5.1 CONTEXTUALIZANDO O ESTADO DO AMAPÁ
Antes de apresentarmos o campo de estudo propriamente dito, imperioso
contextualizar geopoliticamente a região em que está inserido, para uma melhor
compreensão do espaço em que serão desenvolvidos os estudos. Assim, procuramos
demonstrar algumas características do Município de Macapá, capital do Estado do
Amapá.
De acordo com dados do IBGE, o Estado do Amapá está localizado no
extremo Norte do Brasil e possui uma área de 142.814,585 Km². A população atual
está em torno de 587.311 habitantes (IBGE, 2007). Macapá, a capital, concentra
366.484 habitantes (IBGE, 2009), em uma área de 6563 Km², resultando em uma
densidade demográfica de 52,4 habitantes por Km².
O Estado do Amapá é bastante recente, que até 01 de janeiro de 1991 era
território federal e, portanto, desprovido de autonomia político-administrativa.
Ademais, por estar localizado no extremo Norte do país, na região amazônica e sem
acesso terrestre, foi (e ainda é) subpovoado, com aproximadamente 1,92 habitantes por
km² (IBGE 2007).
Devido a sua localização, Macapá tem importante papel na defesa do
território nacional e, por isso, desde 1764, com o início da construção da Fortaleza de
São José, sob o comando do Marquês de Pombal, passou a ser importante base militar.
A criação do Território Federal do Ama deu-se em 1943 com o
desmembramento do então Estado do Grão-Pará (atual Estado do Pará), tendo o
Comandante Aníbal Barcelos (Capitão de Mar e Guerra da marinha do Brasil) sido
nomeado o primeiro governador.
Como se pode perceber, nosso campo de estudo é muito distante da
realidade vivida pelo “resto” do país, especialmente as regiões mais desenvolvidas
situadas no eixo sul/sudeste. Assim, temos um Estado que o possui industrialização
nem tampouco agricultura suficiente para sua manutenção. A economia gira em torno
de exploração de produtos naturais, como minérios, especialmente manganês, por
87
meio de contratos/convênios com empresas estrangeiras, além de pesca e extração de
castanha do Brasil e de açaí (fruto típico da região amazônica muito utilizado na
alimentação local), estes últimos, para consumo regional.
A renda per capita do Município é de R$ 243,00. Como não há
industrialização, os empregos são, em sua maioria, públicos ou no ramo do comércio.
uma grande desigualdade social e a maioria da população vive de empregos
informais e habita áreas alagadas. Cerca de 80% do Município não conta com
saneamento básico e apenas 15% recebem água tratada os demais extraem-na de
poços.
Na área da educação, temos 123 escolas públicas e 41 privadas, englobando
ensino fundamental e médio. duas Universidades Públicas a Federal e a Estadual,
esta criada em 2006 e dez Instituições Privadas de Ensino Superior, sendo a mais
antiga (Centro de Ensino Superior do Amapá - CEAP) estabelecida no ano de 1992.
Com estes dados, é possível perceber que a maioria da população tem
baixa escolaridade, sendo que até muito recentemente, o curso de nível superior era
acessível às famílias que podiam manter seus filhos em outros Estados da Federação.
A rede de saúde, formada por 04 hospitais públicos e 30 centros/postos de
saúde não conseguem atender satisfatoriamente a população.
Desta feita, é possível perceber que o município de Macapá enfrenta
problemas socioeconômicos, com alta taxa de desemprego. Grande parte da população
apresenta nível social, econômico, educacional e cultural insatisfatórios, o que
pressupõe um elevado mero de crianças vivendo em condições precárias e expostas
às diversas formas de violência.
O poder público, em atendimento às exigências legais, especialmente a
Constituição da República e o Estatuto da Criança e do Adolescente, possui órgãos que
atendem crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e/ou social, a exemplo da
Fundação da Criança e do Adolescente FCRIA, responsável pelo Abrigo Casa-Lar
Ciã-Katuá, foco de nossa pesquisa.
88
5.2 A FUNDAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
A Fundação da Criança e do Adolescente – FCRIA, é uma instituição
pública vinculada à Secretaria Estadual de Inclusão e Mobilização Social do Amapá
SIMS e tem por objetivo articular e utilizar a rede de atendimento disponível para
coordenar e executar a política de promoção, garantia e defesa dos direitos da criança e
do adolescente no âmbito estadual.
A FCRIA foi estabelecida na década de 1980 e, até 2004, teve os cargos
totalmente ocupados por servidores comissionados, quando houve o primeiro (único,
até agora) concurso para provimento de cargos efetivos. Ainda hoje, os dirigentes são
estranhos aos quadros da Fundação.
A Fundação conta com as seguintes unidades operacionais: Centro de
Internação Provisória CIP, Centro Sócio Educativo de Internação CESEIN, Casa
de Semiliberdade e Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá – ACLCK.
Compete ao CIP receber adolescentes enviados pelas Varas da Infância e
Juventude sob acusação de haverem cometido algum ato infracional
10
. Trata-se de
internação provisória, uma vez que ainda não comprovação de que o adolescente
estivesse agindo em desconformidade com a lei. Assim, fica internado por um período
de até 45 dias, podendo, excepcionalmente, ser estendido por igual prazo.
Nesta unidade o adolescente recebe atendimento social, psicológico,
pedagógico e jurídico. Entretanto, fica impedido de frequentar escolas, direito
constitucionalmente assegurado, motivo pelo qual esta modalidade de internação deve
ser o mais breve possível, a fim de não atrapalhar o período letivo do adolescente.
Incumbe ao CESEIN ressocializar adolescentes enviados pelas Varas da
Infância e Juventude, após a constatação inequívoca do cometimento de ato infracional
considerado, pelo magistrado, passível de internação. Apesar da medida de internação
não comportar prazo determinado, não poderá ultrapassar o período de três anos, sendo
que compete à equipe técnica da unidade elaborar relatório semestral para o juiz
10
Menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, desta forma, adolescente não comete crime, mas infração
penal análoga a crime; não é punido, mas recebe acompanhamento socioeducativo, com o objetivo de
ressocialização.
89
verificar a continuidade da medida ou a progressão para a Casa de Semiliberdade.
Cumpre salientar que a idade limite para o fim da internação é de 21 anos
11
.
O Centro é dotado de equipe multidisciplinar para atender adolescentes e
familiares, além de possuir uma escola pública para os internos. Ademais, não é
incomum o estabelecimento de convênios com entidades profissionalizantes para que
promovam cursos dentro da unidade com cunho pedagógico e vislumbrando o futuro
profissional do adolescente em conflito com a lei.
A Casa de Semiliberdade abriga adolescentes enviados pelas Varas da
Infância e Juventude, após a constatação inequívoca do cometimento de ato infracional
considerado, pelo magistrado, passível de restrição parcial de liberdade, bem como de
adolescentes que tiveram progressão de medida provenientes do CESEIN. Nesta
unidade os adolescentes também não ultrapassam o prazo máximo de três anos de
medida.
O adolescente também recebe atendimento social, psicológico, pedagógico
e jurídico, tem permissão para frequentar escolas e trabalhar, mas devem retornar à
Casa tão logo concluam essas tarefas e, ainda, devem permanecer na unidade em finais
de semana e feriados, salvo autorização de visita a seus lares.
Como demonstrado acima, as três unidades tem por objetivo precípuo a
ressocialização do adolescente em conflito com a lei para que seja reinserido na
sociedade, comportando-se como esperado. A última unidade a ser tratada aqui,
entretanto, tem características absolutamente diversas das anteriores e representa o
campo de pesquisa deste trabalho: o Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá – ACLCK.
O ACLCK recebe crianças em situação de risco pessoal e/ou social
encaminhadas pela Vara de Infância e Juventude, Promotoria de Infância e Juventude,
Conselhos Tutelares Municipais, Polícia Militar e sociedade. Aqui não há prazo
mínimo ou máximo preestabelecido para o abrigamento, uma vez que o objetivo da
casa é conferir proteção à criança que teve um direito violado, entretanto, a retirada da
11
Considerando que o período máximo de internação é de três anos, se o adolescente cometer um ato infracional
às vésperas da maioridade, poderá ser internado até os 21 anos incompletos. Assim, a maioridade não é causa
extintiva da internação.
90
família também configura em agressão, motivo pelo qual o afastamento deve ser o
mais breve possível.
O abrigo funciona em uma casa alugada e, sempre que possível, mantendo
características de uma “casa”, para que as crianças tenham um menor impacto do
afastamento de seus lares de origem. Como as demais unidades, também conta com
equipe multidisciplinar para atendimento dos abrigados e seus familiares; as crianças
freqüentam escolas, participam de atividades esportivas e festas tradicionais.
Cumpre salientar que desde o ano de 2001 foi dado início ao processo de
municipalização do abrigo, por meio de acordo de cooperação firmado entre o
Governo do Estado e o Município de Macapá, no qual o atendimento às crianças
passaria para a competência da esfera municipal.
Trata-se de inegável avanço para o público atendido: as crianças; isso
porque a municipalização exige que cada município tenha um abrigo com uma equipe
multidisciplinar preparada para atender suas crianças em situação de risco social ou
pessoal. Isso permite que a equipe tenha maior proximidade da família e, assim, possa
desenvolver seu trabalho de reestruturação com mais facilidade e maior possibilidade
de êxito.
Hoje, o abrigo ainda pertence à estrutura estadual que possui apenas uma
unidade operacional: o Casa-Lar Ciã-Katuá, localizado na Capital do Estado e
responsável por receber crianças de todos os municípios. Isso dificulta o trabalho da
equipe em reestruturar a família, que exige deslocamentos periódicos, o que implica
em gastos com transporte e alimentação dos servidores, além de “desfalcar” a equipe
para os demais trabalhos.
Desta forma, a Fundação da Criança e do Adolescente ainda é responsável
pelo Abrigo Casa Lar Ciã-Katuá, que recebe crianças de todo o Estado em situação de
risco pessoal ou social, compreendidos, basicamente, por abandono, maus tratos,
violência física e psíquica, abuso e exploração sexual e comercial, proporcionando
acolhimento, estudo psico-sócio-pedagógico e acompanhamento jurídico extensivo à
família para que possam restabelecer os vínculos e reinserir a criança no seio familiar.
91
5.3 O CAMPO DE ESTUDO: ABRIGO CASA LAR CIA-KATUÁ
A instituição Abrigo Casa Lar Ciã-Katfunciona em uma casa alugada
que possui as seguintes dependências:
1. Um quarto onde dormem os infantes (considerados pela equipe crianças
de zero a cinco anos de idade), sob responsabilidade de babás contratadas pelo Estado
por meio de serviço terceirizado que trabalham em turnos de 12 horas.
2. Um quarto onde dormem os meninos (de seis a doze anos), sob
responsabilidade de educadores sociais servidores públicos estaduais, de vel
médio, que desempenham suas funções em turnos de 6 horas (período diurno) ou 12
horas (período noturno).
3. Uma suíte onde dormem as meninas (de seis a doze anos), também sob
responsabilidade de educadores sociais, que cumprem o expediente de trabalho acima
descrito.
4. Um banheiro de uso comum dos meninos e infantes.
5. Uma sala de estar grande onde ficam dois jogos de sofás, um televisor,
um reprodutor de DVD e uma mesa para os educadores. Este ambiente tem as paredes
decoradas de acordo com a época do ano: carnaval, páscoa, dia das mães, das crianças,
natal e outros.
6. Uma sala íntima repleta de armários, onde são guardadas as roupas,
sapatos e materiais escolares dos educandos, bem como objetos pessoais dos
educadores.
7. Uma sala com banheiro, local destinado ao trabalho da equipe técnica,
mobiliada com armário, três mesas e cadeiras, além de um rack com computador e
impressora. Neste momento a equipe técnica é formada por: uma psicóloga, uma arte-
educadora, uma advogada, duas pedagogas e três assistentes sociais, todos servidores
públicos que cumprem jornada de 6 horas diárias, de segunda a sexta feira, sendo que
uma parte da equipe trabalha no período matutino e outra no vespertino.
Em área independente da acima descrita, temos:
92
8. Uma cozinha grande, onde duas cozinheiras revezam plantão de 12 horas
diurnas, uma área de serviço, um almoxarifado, onde são guardados gêneros
alimentícios e produtos de higiene e limpeza e uma pequena suíte onde funciona a
parte administrativa, ocupada pela chefe da unidade e uma auxiliar.
A unidade conta, ainda, com um veículo popular e um motorista,
responsável pelo transporte das crianças à escola, atividades esportivas, de lazer,
consultas médicas e outros, além de atender a demanda da equipe técnica.
A casa funciona obedecendo a “regras e normas” instituídas pelos próprios
servidores e seguindo a uma rotina diária pouco flexível, que passo a descrever:
ROTINA DO ABRIGO
6h – despertar e higiene pessoal (banho).
6h30min – desjejum, seguido de higiene bucal.
7h saída para escola crianças que estudam de manhã e atividade pedagógica para
os que não foram à escola.
9h – lanche da manhã, seguido de higiene bucal.
9h30 min. – atividade esportiva.
10h30min. – higiene pessoal (banho).
11h30min. – almoço, seguido de higiene bucal.
12h30min. chegada da escola, higiene pessoal (banho) e almoço, seguido de higiene
bucal; e saída para a escola – crianças que estudam no período vespertino.
13h – Hora do repouso (as crianças dormem ou apenas descansam em suas camas).
15h – lanche da tarde, seguido de higiene bucal.
15h30 – atividade pedagógica.
17h – atividade esportiva.
18h – chegada da escola. Higiene pessoal (banho).
18h30min. – jantar, seguido de higiene bucal.
19h – atividade pedagógica e/ou tarefa da escola.
20h – ceia, seguida de higiene bucal.
20h30min. – preparação para dormir.
93
As crianças podem receber visitas de familiares e amigos, desde que o
estejam impedidos judicialmente. As visitas ocorrem às segundas, quartas e sextas-
feiras e têm por objetivo a manutenção do vínculo familiar.
Em finais de semana, é comum que a equipe técnica programe atividades
externas à casa, como passeio em praças públicas e na orla do rio Amazonas, onde
existem parques, campos para prática esportiva e outras atividades externas. Uma vez
por mês, a sorveteria mais tradicional da cidade recebe as crianças e doa sorvetes.
Além disso, a equipe, juntamente com as crianças e, mediante apoio de
órgãos e da sociedade, promovem festas temáticas, na unidade, para comemorar
eventos como: carnaval, páscoa, dia das mães, dos pais, das crianças, natal, e outras.
5.4 OS CASOS DE VIOLÊNCIA ESTUDADOS
Aqui serão trazidos os casos que elegemos para subsidiar a pesquisa
qualitativa que nos propusemos a realizar.
Em obediência à ética, imprescindível ressaltar que utilizamos processos
judiciais findos da Vara de Infância e Juventude da Comarca de Macapá, os quais
tivemos acesso em razão do próprio trabalho como advogada do Abrigo Ciã-Katuá,
bem como registros constantes das pastas das crianças em questão, cujo acesso se deu
da mesma maneira.
Os nomes das pessoas envolvidas não foram divulgados, em primeiro lugar,
por absoluta desnecessidade, e, por fim, para preservar a intimidade dos envolvidos,
motivo pelo qual também não poderão, a teor da legislação brasileira, constar de
anexo. Assim, não houve, em nenhum momento, quebra de ética, seja profissional ou
acadêmica, que os sujeitos da pesquisa não sofreram qualquer tipo de exposição ou
desconforto com o trabalho.
5.4.1 E.F.L., sexo masculino
Chegou ao abrigo aos 06 anos de idade, encaminhado pela Promotoria da
Infância e Juventude, a partir de requerimento do Conselho Tutelar de Macapá, em
94
razão de denúncia anônima, relatando maus-tratos. Permaneceu abrigado por 11 (onze)
meses, quando foi reinserido com sucesso na família, reestruturada e consciente de
seu papel na sociedade.
A criança foi levada ao hospital pela mãe com queimadura de grau nas
mãos. Consta do laudo médico assinado pela cirurgiã pediátrica responsável (Z.A.S.):
(...) Tem queimaduras de grau com necrose das polpas digitais dos 2º,
e quirodáctilos, direito e esquerdo, em fase de gramulação. No momento,
não podemos prever a gravidade das seqüelas, que irão desde a perda das
impressões digitais até a amputação de falanges distais.
Em depoimento ao Conselheiro Tutelar, a mãe relata in literis que:
(...) estava na casa da vizinha senhora..., onde faz pequenos serviços
domésticos, e que ao retornar para sua residência, por volta de dez da
manhã, seu filho E., havia comido o resto de alimento que tinha dentro da
geladeira e, em seguida, foi mexer com o restante da panela, sua mãe
chamou-lhe atenção. Que segundo dona... (a mãe) estava de cabeça quente,
pois havia acabado de chegar do trabalho, resolveu castigá-lo colocando as
duas mãos da criança no fogo do fogão, causando queimaduras graves. Que
dois dias depois, percebendo a gravidade do ferimento levou a criança ao
Hospital da Criança, que ficou internada sem previsão de alta (...).
(M.F.L.).
Em audiência perante a Vara da Infância, pouco mais de três meses do fato,
a mãe relata:
Que está arrependida pelo ato cometido contra a criança, que é seu filho;
Que pretende retomar a guarda da criança; Que tem outros três filhos; Que
o pai de E. não reconhece a paternidade, porque época da concepção a
declarante morava com o pai de sua filha mais velha; Que está respondendo
a inquérito policial pelos fatos em apuração; Que quando encontra com a
criança esta a chama de mãe e ora diz que quer ir embora consigo, e ora diz
que não quer; Que sabe da gravidade da lesão causada a seu filho; Que
trabalha como diarista auferido cerca de R$ 100,00 (cem Reais) por mês;
Que seu companheiro trabalha como pedreiro e tem um bom
relacionamento com as crianças.
Relatórios psicossociais da equipe do Ciã-Katuá e da Vara da Infância
resultaram das seguintes observações:
Verificou-se que a família é composta pela mãe (26 anos), o padrasto (60
anos), dois filhos exclusivos da agressora inclusive E., e dois filhos do casal. Ela
95
trabalha como doméstica, auferindo R$ 200,00
12
(duzentos Reais) por mês, enquanto
ele presta serviço autônomo de pedreiro, quando tem trabalho... O casal estudou até a
quarta série do ensino fundamental.
A condição de habitabilidade da família é compatível com a precária
condição financeira do casal: moram em casa alugada (R$ 50,00 (cinqüenta Reais)
mensais) de um cômodo, guarnecido apenas por um fogão, uma geladeira, uma cama e
uma mesa com duas cadeiras.
A mãe-agressora dizia-se exausta e arrependida de ter praticado os fatos que
culminaram no abrigamento do filho e informa que tem consciência da gravidade do
seu ato, justificando pelo fato de tê-lo cometido em momento de total descontrole.
Sobre a própria infância, relata:
É a mais velha de nove irmãos e teve uma infância “ruim”. Por falta de
condições de sua genitora, foi criada por uma tia até os sete anos de idade,
tendo sido muito maltratada. Por esse motivo, voltou a residir com sua mãe
e padrasto, já que o pai havia falecido. Aos doze anos percebeu que o
padrasto nutria excessivo ciúme por ela, ocasião em que passou a molestá-
la sexualmente, culminando o estupro quando completara 15 anos. Os
abusos continuaram até que ele foi preso. Aos 17 anos constituiu sua
primeira união que gerou a filha mais velha.
As outras duas crianças da casa que foram entrevistadas, F. (sexo feminino,
08 anos) e F. (sexo masculino, 4 anos) narraram um cotidiano organizado, com
horários preestabelecidos para refeições, higiene e limites sobre como e onde brincar e
não citaram castigos de maior severidade, mas descreveram um ambiente carente de
recursos, onde não é incomum episódios, tal como ocorreu com E., de pegar alimentos,
especialmente farinha, sem que a mãe se dê conta.
Em atendimento psicológico, com objetivo de aferir as conseqüências da
agressão no infante, foi solicitado a ele que fizesse um desenho. E. desenhou um
“Saci”; observava suas mãos e desenhava as mãos do Saci”, tendo apagado e refeito
por duas vezes. Ao final respondendo ao psicólogo acerca do que o “Saci” estaria
pensando, falou: Ele está brincando e está bem!
12
O valor do salário mínimo, atualmente, é de R$ 510,00 (quinhentos e dez Reais).
96
De acordo com o parecer psicossocial, a criança não apresenta
desestruturação mental, nem comprometimento de relacionar-se com adultos.
Entretanto, foi sugerido acompanhamento sistemático para determinar a viabilidade de
recolocação na família.
Em outra oportunidade, ao ser perguntado à criança se ela sabia os motivos
do abrigamento, relatou que: A mamãe batia muito em mim, mas eu sei que ela fazia
isso porque gosta de mim... Ela ficava braba comigo quando eu fazia bagunça em
casa.
Durante os onze meses de abrigamento, a mãe-agressora mostrou-se
presente e interessada em reatar os laços afetivos com o filho-agredido. Eram
freqüentes as visitas da genitora que demonstrava arrependimento em relação à
agressão e bastante carinho pelo filho. Ademais, após os primeiros cinco meses, a
criança começou a passar finais de semana em casa, para reforçar os vínculos afetivos
com a mãe e não quebrar a relação com o padrasto e os irmãos, além de promover uma
melhor readaptação à rotina familiar.
A família foi inserida em programas governamentais assistencialistas, para
que pudesse ter melhor condição econômica e, assim, de manter os filhos na escola e
proporcionar-lhes alimentação mais abundante.
5.4.2 L.R., sexo feminino
Chegou ao abrigo, aos 02 meses de idade, encaminhada pelo Conselho
Tutelar, a partir de denúncia anônima confirmada de maus-tratos. Permaneceu
abrigada por três meses, quando foi entregue à avó materna que, mesmo sem muita
condição de cuidar do bebê, decidiu ficar com a menina.
Consta da denúncia que mãe e filha estavam morando em um hotel de
trânsito
13
, onde a primeira teria atirado violentamente a infante em um sofá, pois a
menina chorava demais.
13
Trata-se de local custeado pelo Governo do Estado que abriga, temporariamente, pessoas pobres vindas do
interior do Estado ou outra localidade, geralmente para tratamento de saúde, até que possam retornar a suas
casas.
97
Em atendimento social a mãe relata que é solteira, está em Macapá
pouco mais de um ano, engravidou logo que chegou de um “rapaz” que mora no
interior e de quem ela não tem notícias. Informa que trabalha como doméstica na casa
de um senhor com quem mantém relações sexuais esporádicas. Nega a agressão,
dizendo que: Tão querendo tirar minha filha e dar pros outros.
A psicóloga constatou que a genitora sofre de transtornos mentais e deve
ser submetida a tratamento psiquiátrico; constatou, ainda, que ela não tem condições
de ser responsável pela filha, já que não consegue cuidar de si própria, eis que
perceptível a falta de higiene e cuidado pessoal.
Por estar amamentando a infante, a equipe técnica decidiu permitir visitas
diárias, pela manhã e à tarde, mas a agressora raramente comparecia no abrigo e,
quando o fazia, geralmente, estava acompanhada pelo “patrão”.
Este, por sua vez, confirma que a genitora trabalha com ele e, às vezes,
“namora”, também, mas ela gosta de viajar para o interior pra namorar os novinhos.
Afirma não ser o pai da menor, pois quando conheceu e acolheu a mãe, a gravidez
era notória. Informa, ainda, que elas estavam no hotel, pois ela é de lua, às vezes ta
bem, outras vezes ta mal. Indica que a ajudaria a cuidar da criança se ela vivesse
maritalmente com ele.
O serviço social constatou que se trata de pessoa pobre, aposentado por
idade pelo INSS, de onde retira o valor de um salário mínimo com o qual se sustenta,
pagando aluguel. É solteiro e tem dois filhos maiores que vivem em outro Estado, mas
não lhe prestam qualquer auxílio.
Todas as vezes que a mãe amamentou a criança no abrigo, o fez sob
supervisão ora da assistente social, ora da psicóloga da unidade que, em relatório
conjunto, informam que a genitora não tem paciência com a infante e, muitas vezes,
quando a criança recusa o seio, sufoca-a, apertando-lhe contra si. Questionada a
respeito dessas agressões, bem como do fato de haver jogado a filha contra o sofá, a
genitora afirmou que:
Ela tem que me obedecer (...). Eu vo cria sozinha porque o pai abandonou
ela e eu quando eu peguei barriga. Ele tem mulher e não que outros filho.
98
Eu também não queria(...) E eu tenho que da contra dela só, então vo fazer
do meu jeito(...). Quando ela chora é só eu que reparo e eu fico nervosa com
choro de menino.
A equipe sugeriu que entrassem em contato com o pai da criança, mas a
mãe recusou-se em prestar qualquer informação que pudesse indicar o paradeiro do
genitor, sob a alegação de que: Se ele quisesse saber da filha já tinha procurado.
Então, ante a impossibilidade de entregar a infante aos cuidados maternos, a
equipe entrou em contato com a avó da infante, que reside no interior do Estado do
Pará. Ela informou que a filha sempre teve problemas e que não sabe mais o que fazer.
Comovida com a situação da neta, falou: Eu não tenho condições de comprar
passagem para ir buscar a criança, mas se mandarem dinheiro eu vou. Aqui não tem
muita coisa, mas onde come seis, come sete. Não vou deixar minha neta ser doada.
Em seguida, a equipe viabilizou a vinda da avó, efetuou estudo social do
caso e encaminhou à Vara da Infância, onde o juiz titular acatou os relatórios, ouviu a
avó materna e a mãe da infante e acabou por conceder-lhe a ‘guarda
14
’.
5.4.3 W.F.P., sexo masculino
Chegou ao abrigo, aos 11 anos de idade, encaminhado pelo Conselho
Tutelar, a partir de denúncia de vizinhos, dando conta de que o garoto vivia “na rua”
praticando pequenos furtos para comprar alimentos e, não raras vezes, era surrado pelo
pai. Permaneceu abrigado por dez meses, ocasião em que completou 12 anos e
precisou ser transferido para o “Abrigo Marluza Araújo”, pertencente ao Município de
Macapá e responsável por receber adolescentes em risco pessoal ou social.
A criança chegou ao abrigo suja e com muita fome. Apresentava
escoriações no corpo e externava bastante revolta por estar “preso”. Sob incisivos
protestos tomou banho, trocou as roupas e se alimentou. Em seguida, foi atendido pela
assistente social que lhe explicou as regras e normas da Casa, bem como esclareceu
14
Segundo o artigo 33 do ECA, guarda é a atividade que “obriga à prestação material, moral e educacional à
criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”.
99
que ele não estava preso, mas sim sendo protegido da situação de risco em que se
encontrava.
No dia seguinte a pedagoga da unidade constatou que o garoto está
cursando a primeira série do ensino fundamental, tendo sido reprovado duas vezes, em
razão, principalmente, da contumaz ausência na escola.
A psicóloga, por seu turno, averiguou que o menino apresentava dificuldade
de estabelecer vínculos sociais e afetivos com as demais crianças e servidores da
unidade, utilizando agressividade como meio de solucionar conflitos. Relatou, ainda,
que gosta do pai quando ele o bebe e não me bate. Relatou, também que a mãe o
abandonou com o pai quatro anos para viver com outro homem no interior do
Estado do Pará e nunca mais deu notícias.
O pai-agressor confirma que foi deixado pela esposa com o filho,
demonstrando revolta por ter ficado com toda a responsabilidade de criá-lo. Informa
que o abandono deixou a criança agressiva e desobediente. Aliado a isso, o pai é
obrigado a deixar o filho sozinho em casa para poder trabalhar (como ajudante de
pedreiro). Sai de casa por volta de cinco horas da manhã, retornando aproximadamente
às dezoito horas. Dessa feita, o garoto fica responsável por levantar cedo, ir à escola,
preparar o almoço e cuidar da casa.
Em atendimento social, o genitor confirma que agride fisicamente o filho,
alegando estar educando a criança. Segundo ele:
Eu bato porque não tem outro jeito, ele não ouve agente (...) desobedece,
não vai pra escola, e fica por roubando as pessoas na rua. Eu sou pobre
mas nunca roubei ninguém. Trabalho pra ter minhas coisas e pra poder
beber no fim do dia, que é meu luxo, né? Tenho direito! (...). Já ele é
vagabundo, não trabalha e não estuda e quer ter as coisa. Eu disse que
não vou sustentar vagabundo(...). vamos ver se vocês aqui vão dar jeito
nele... ele tava mesmo precisando de um susto...
Perguntado acerca de sua infância, o agressor relata que:
Foi uma época “ruim”. Sendo o mais velho de treze irmãos teve que
trabalhar cedo pra ajudar a cuidar da família. O pai vivia bebendo e batia
na mãe e nos filhos. Estudou a primeira série cinco vezes e depois desistiu,
mas sabe ler e escrever bem. Acha que o pai batia nele sem motivos, porque
era um bom filho, não ficava “vadiando” na rua.
100
Verifica-se que a percepção do pai acerca do abrigamento é distorcida da
realidade, que não houve compreensão de que o filho estava em risco social, sendo
negligenciado e fisicamente agredido. Pelo contrário, o genitor age como se a criança
pudesse ter total percepção da realidade em que está inserida, devendo agir como uma
pessoa adulta, plenamente desenvolvida, na medida em que estabelece
responsabilidades que extrapolam sua peculiar condição de desenvolvimento.
A criança, por seu turno, também desenvolveu uma compreensão
desvirtuada acerca do abrigamento, na medida em que se sente presa e obrigada a
fazer coisas que não quer (como, por exemplo, seguir a rotina da casa, com horários
preestabelecidos de acordar, fazer higiene pessoal, alimentar-se, ir à escola,
desenvolver atividades pedagógicas, arte educativas e sociais, entre outros).
Desenvolveu sentimento de raiva em relação aos servidores do abrigo e,
constantemente repetia que: faço (...) se eu quiser... você não é nada pra mim pra
pensar que pode me mandar... eu vou fugir daqui....
Ao definir sua relação familiar, o garoto diz:
Eu gosto do meu pai porque ele é a única família que eu tenho. O problema
é que ele bebe muito, todos os dias (...) aí ele chega em casa com raiva e me
bate. Eu tenho que fazer as coisas da casa senão ele briga, mas eu não faço
e a casa fica suja. Quando minha mãe morava aqui era melhor porque ela
cuidava de mim, mas ela foi embora porque ela também não gostava quando
meu pai bebia e quando eu fazia bagunça (...).
Durante o período de permanência no Ciã-Katuá, o menino empreendeu
fuga em três ocasiões, tendo sido encontrado pelo Conselho Tutelar na orla da cidade,
tomando conta de carros para conseguir dinheiro. A criança não conseguia se adaptar a
uma rotina preestabelecida na qual não tinha liberdade de ficar na rua e buscar trabalho
remunerado.
Apresentou, ainda, dificuldade de concentração e aprendizado na escola e
problemas de convivência social na casa. Dizia que queria voltar a conviver com o pai
e prometia que mudaria seu comportamento em casa. Entretanto, por duas
oportunidades, quando passou por estágio de convivência no intuito de reforçar os
101
laços afetivos, a criança voltou à rua e deixou de freqüentar a escola, ficando exposta a
riscos sociais. Em ambas as vezes, o próprio pai o levou de volta ao abrigo.
A partir daí, o genitor passou a culpar os servidores do Ciã-Kat pelo
comportamento do filho, dizendo:
Vocês falam que não pode bater, que conversando jeito, mas ele ta cada
dia pior. Agora eu não quero mais ele (...). ele vai ter que ficar por aqui
mesmo. Ele não me obedece e faz o que bem entende (...). eu estou velho pra
cuidar sozinho dele, preciso cuidar um pouco de mim (...) ficar sem ele é
bem mais fácil, eu não me preocupo (...). posso vim visitar toda semana.
Ao atingir a idade limite de permanência no Ciã-Katuá, foi transferido para
o abrigo de adolescentes. O pai, no entanto, continuou visitando o abrigo infantil a
procura de informações do filho, mesmo ciente da transferência...
5.4.4 A. M. M., sexo masculino e A. M. L., sexo feminino
Trata-se de casal de irmãos que chegou ao abrigo aos 06 e 08 anos de idade,
respectivamente, encaminhados pela Vara da Infância e Juventude de Macapá AP.
Permaneceram no abrigo por um período de 06 anos, quando foram encaminhado para
o “Abrigo Marluza Araújo”, em razão do primeiro ter completado 12 anos de idade.
Ressalta-se, aqui, que a garota permaneceu no Ciã-Katuá até os 14 anos,
excepcionalmente, atendendo a determinação judicial, para que os irmãos não fossem
separados.
O abrigamento se deu em razão do pai haver espancado gravemente as duas
crianças que, época, relataram que o motivo da surra teria sido o fato de que a
menina, de oito anos de idade, pegou um cacho de bananas da cozinha da avó e comeu
o quanto pode, tendo convencido o irmão a comer também, mesmo ele afirmando que
não deveriam mexer na comida.
Consta do processo que o pai fora preso em razão da agressão e, na
delegacia, teria apanhado muito dos presos que ali estavam. O genitor afirmou que não
batera nas crianças, sendo a avó materna dona das bananas, a responsável pelas
agressões.
102
Em atendimento psicológico o pai demonstra forte sentimento de raiva para
com as crianças, que as culpa pela agressão sofrida por ele na delegacia. Afirma
que:
Eles mentiram pro delegado dizendo que foi eu quem bati neles.(...) Eles
mexeram nas banana da avó deles e ela é muito nervosa, então ela bateu
neles e eles falam que foi eu, (...) e agora eu não quero mais eles na minha
casa, senão eu bato mesmo, agora eu bato. Tu penso, agente chega em
casa depois de trabalha no sol o dia todo e ainda tem essa (...).
Os irmãos demonstraram bastante união durante todo o período de
abrigamento, sendo que a menina (mais velha) tinha domínio sobre as ações do
menino. Em razão da longa permanência na instituição, sentiam segurança para
intimidar as demais crianças e servidores do abrigo.
A garota apresentava problemas comportamentais na escola, induzindo
colegas e professores a sentir “pena” dela e, com isso, agradar-lhe com mimos
variados, como doces e materiais escolares. Essa situação foi se agravando a ponto
dela passar a furtar dinheiro da bolsa de funcionários para gastar na escola. Segundo o
relatório psicológico:
A. está abrigada mais de cinco anos e, durante todo esse período, não
teve oportunidade de desenvolver o sentimento de posse, que no abrigo
não pode ser “dona” de nada. Todos os objetos do abrigo são coletivos,
assim, com exceção de sua escova de dentes e material escolar, os demais
objetos: roupas, sapatos, brinquedos, alimentos e a a cama em que
dormem, são coletivos. (...). Desta feita, a jovem adolescente tem
necessidade de auto afirmação e de sentimento de posse que sempre lhe fora
tolhido em razão do abrigamento (...).
Foram feitas inúmeras intervenções psicossociais objetivando minimizar as
conseqüências da institucionalização por longo período, mas a adolescente mostrava-
se cada dia mais arisca e descontente com sua condição. Durante o período do
abrigamento, a equipe tentou por diversas vezes estabelecer contato com a família que,
muitas vezes, mudava-se de casa para dificultar a localização.
Salienta-se que a família é composta por pai (31 anos), mãe (30 anos) e
outros nove filhos. Residem em uma pequena casa de dois cômodos, com banheiro
103
externo e sobrevivem da venda de produtos excedentes de agricultura familiar. Os pais
são analfabetos e as crianças freqüentam escola quando dá pra levar.
relatos de que o genitor usa álcool diariamente e esteve envolvido em
episódios de agressão doméstica contra a esposa, que, segundo relatório social
“apresenta comportamento passivo frente ao companheiro, demonstrando temor em
contrariá-lo.”.
Durante o período de abrigamento foi oportunizado a ambos, por diversas
vezes, colocação em família substituta, por apadrinhamento
15
, ora separados, ora em
conjunto. No inicio de cada apadrinhamento, ambos se apresentavam receptivos e
felizes, mas transcorrido certo tempo, geralmente quando percebiam interesse das
famílias em assumi-los como filhos, passavam a desrespeitar os membros da família,
praticar pequenos furtos na casa e agir em desacordo com as regras da casa, dizendo
que “preferiam voltar ao abrigo”.
Em atendimento psicológico, ambos relatavam que gostavam de ser
apadrinhados porque ganhavam presentes, mas não queriam ser adotados porque
preferiam voltar a morar com a família de origem. Diziam, ainda, sentir saudades de
casa.
Apesar da grande cumplicidade entre os irmãos, o garoto imputa à irmã a
responsabilidade por estarem afastados do lar. Vejamos trecho do relatório psicológico
do menino:
A.(A.M.M) responsabiliza A. (A.L.M.) por estarem afastados de casa, já que
foi a irmã quem teve a idéia e efetivamente pegou e comeu as bananas,
convencendo-o a fazer o mesmo (...). Ele verbaliza que disse para a irmã
que não mexesse na comida, mas ela não lhe ouviu; em razão disso, o pai
bateu nos dois e acabou apanhando na delegacia(...).
A adolescente, por seu turno, também se sente culpada por ambos estarem
no abrigo e demonstra arrependimento. Em atendimento psicológico, relata:
15
Trata-se de programa social que incentiva o recebimento de crianças por famílias substitutas, objetivando
trazer aproximação e criar vínculos afetivos para, posteriormente, chegar a adoção. Este programa, inicialmente
intitulado “Apadrinhamento Natalino”, cujo escopo primordial era oportunizar às crianças abrigadas passar o
período de festas natalinas com uma família, tornou-se mais abrangente e, hoje, possibilita que pessoas
previamente cadastradas pela Vara da Infância, após passarem por estudo psicossocial, possam levar crianças em
apadrinhamento desde finais de semana até períodos maiores.
104
Se eu soubesse que meu pai ia ser preso e apanhar na prisão, eu não tinha
comido as bananas. Eu só queria comer as bananas; não queria que
ninguém apanhasse (...) e o pior foi que o A. (A.M.M.) me disse que não era
pra fazer. E eu sabia que não era pra fazer (...). Agora meu pai não deixa a
gente voltar pra casa (...).
Inúmeras tentativas de reaproximação foram feitas, entretanto, a família se
mostrou absolutamente indiferente em relação às crianças abrigadas. O pai
desenvolveu um sentimento de raiva em relação aos filhos em razão de ter apanhado
na delegacia. Em depoimento judicial, ele afirma:
Eu não bati; mas são meus filhos; se eu quisesse bater, batia (...). Eu não
quero eles de volta; pode deixar no abrigo mesmo; se eu não presto pra
ser pai eles vão encontrar pai na rua (...).
a mãe, absolutamente dependente do companheiro, com quem vive desde a
adolescência e tem onze filhos, demonstra indiferença em relação ao futuro das
crianças abrigadas. Vejamos:
Se ele que é pai não quer, eu não posso fazer nada! (...) É ele que põe
comida na casa; se ele não aceita eles de volta, eu não vou brigar com ele e
fica na rua também (...) eles que fizeram errado de mexer nas banana (...) e
por isso ele [o pai] apanhou (...).
Por outro lado, as crianças, mesmo cientes da situação e totalmente sem
vínculo afetivo com a família de origem, desconhecendo, inclusive, a maioria dos
membros (irmãos que nasceram quando estavam sob medida protetiva), recusavam-
se em permanecer em famílias substitutas, até mesmo uma que se dispôs a adotar
ambos, pois diziam que queriam voltar para casa dos pais.
Agente gosta da tia M., gosta de ficar na casa dela no fim de semana; ela é
legal, presente e leva pra passear; mas morar pra sempre agente não
quer; agente quer voltar pra nossa casa (...). (A.M.L.).
Percebemos, pois, que a institucionalização por longo período, contribuiu
para que estas crianças desenvolvessem uma imagem dos pais e da família que
existem em seus imaginários, o que impede que enfrentem a realidade em que estão
inseridos, prejudicando-os ainda mais.
105
A história destes irmãos retrata a fragilidade do Estado no atingimento de
seus objetivos reinserção da criança no seio familiar, com a reconstrução dos laços
afetivos ou, em última hipótese, colocação em família substituta, nos termos da
legislação vigente.
Estas crianças ficaram abrigadas por 06 (seis) anos e, por fim, foram
transferidas para outra instituição com traumas psicológicos indeléveis. Soube-se que
no outro abrigo o garoto sofreu abuso sexual de adolescentes mais velhos e a
adolescente se submetera a um auto-aborto. Hoje, são pessoas revoltadas e potenciais
adolescentes infratores, que a família, a sociedade e o Estado falharam na missão
constitucional de lhes garantir “proteção integral”.
5.5 PERCEPÇÃO DA CRIANÇA E DA FAMÍLIA ACERCA DO ABRIGAMENTO
Observamos que, em consonância com a legislação pátria, o abrigamento há
de ser excepcional e ter a menor duração possível, eis que a privação da criança da
companhia dos pais e irmãos, ou seja, da convivência familiar, traz conseqüências
negativas para a construção de sua identidade.
É comum percebermos o estabelecimento de vínculos afetivos entre as
crianças abrigadas e os funcionários, especialmente babás e educadores sociais, que
têm uma convivência diária mais próxima. Por outro lado, também não é incomum
vislumbrarmos agressões verbais recíprocas, por meio das quais pretende-se
demonstrar “poder” e, por vezes, agressões físicas por parte das crianças contra os
funcionários do Abrigo.
Observamos nos pais grande dificuldade de perceber a violência como parte
de sua historia de vida e as graves consequências perpetradas nos filhos que foram
retirados dos lares em razão das agressões.
É bastante comum casos em que a família prefere ver o filho abrigado a -
lo em sua companhia, sob a alegação de que as crianças o lhes obedecem mais e,
pelo menos no abrigo, seguem uma rotina saudável, que m acesso a alimentação
regular e frequentam escolas. Se estivessem em casa, ficariam na rua, o se
alimentariam tão bem e iriam para a escola quando lhes aprouvesse. Nesse prisma,
106
quando a família transfere ao Estado a incumbência de zelar pelo bem-estar da criança,
é possível perceber a fragilidade dos vínculos afetivos estabelecidos entre seus
membros.
Por outro lado, pais que não admitem o afastamento dos filhos e, muitas
vezes, chegam a agredir verbalmente a equipe, chegando a ameaçá-los, por entender
que estão privados da companhia dos filhos em razão daquelas pessoas e, muitas
vezes, não percebem que o afastamento é medida protetiva concedida à criança em
situação de risco.
Esta relação varia de acordo com o vínculo estabelecido entre família e as
crianças, sendo que a fragilidade do nculo aumenta proporcionalmente ao tempo de
abrigamento. Assim, quanto maior o afastamento menor, o vínculo e a vontade de
restabelecer os laços afetivos.
5.6 DETERMINANTES SOCIOCULTURAIS
Traçamos como um dos objetivos deste trabalho compreender o fenômeno
da violência física praticada contra as crianças no interior da família, desvendando
seus determinantes socioculturais, bem como os fatores sobre ele incidentes.
Naquela oportunidade, trouxemos como hipótese que a violência
constituiria um processo imanente de formação e desenvolvimento da sociabilidade
capitalista em razão de suas relações contraditórias. Ademais, dissemos que a
violência intrafamiliar poderia ser explicada pela reprodução das experiências
violentas sofridas pelo agressor.
De fato, analisando a extensa literatura que trata do tema, pudemos verificar
que a relação de dominação é pressuposto ensejador da violência e esta dominação é
característica da sociabilidade capitalista, não ficando restrita à família. Vejamos:
A violência estrutural, inerente ao modo de produção das sociedades
desiguais em geral e da sociedade capitalista, em particular, não é a única
forma de “fabricar-crianças-vítimas”. A seu lado e por vezes, mas não
necessariamente em intersecção com ela coexiste a violência inerente às
relações interpessoais adulto-criança.
Como a historia social da infância tem se incumbido de mostrar, essas
relações são de natureza assimétrica. São relações hierárquicas,
107
adultocêntricas, porque apresentadas no pressuposto do poder do adulto
(maior de idade) sobre a criança (menor de idade). (...).
Como porém, a violência interpessoal constitui uma transgressão (mais ou
menos consciente) do poder disciplinador do adulto, ela exige que a vítima
seja “cúmplice”, num “pacto de silêncio”.
(...)
Como a vitimização não é um fenômeno isolado mas sim um processo que
se prolonga às vezes por anos, a vítima passa a viver uma situação típica de
um estado de sítio, em que sua liberdade enquanto autonomia pessoal é
inteiramente cerceada e da qual se resgatará, via de regra, recuperando o
poder da própria palavra, isto é, tornando pública a violência privada de que
foi vítima... (AZEVEDO & GUERRA, 2007, p. 35)
Entretanto, a sociabilidade capitalista não é a única responsável pelas
relações familiares violentas, que, como vimos, a violência contra a criança não é
um fenômeno recente, tendo sido retratada desde o inicio da civilização. Assim, seria
leviano considerá-la, por si só, responsável pelas relações familiares marcadas pelo
traço da violência.
A reprodução da experiência vivida pelos agressores também há de ser
considerada como fator determinante na análise do fenômeno. Tal reprodução pode ser
percebida tanto na literatura analisada, como nos casos especificamente estudados.
Nestes termos, temos:
São muitas as mães que relatam ter sofrido violência em casa de seus pais.
Os relatos são ainda mais duros quando, por orfandade ou abandono, elas
precisam deixar a casa paterna para viver com parentes próximos ou
distantes. (...). Embora sejam comuns os relatos de castigos que as enchiam
de medo e a educação que tolhia seu desejo, as lembranças mais
desagradáveis advém dos castigos físicos despropositados e do sentimento
de injustiça que acompanha algumas punições recebidas. (GONÇALVES, p.
258).
Nesse sentido, o primeiro e terceiro dos casos analisados trazem,
respectivamente, relatos acerca da própria infância como um período ruim, em razão
das violências que sofreram. Vejamos:
Por falta de condições de sua genitora, foi criada por uma tia até os sete
anos de idade, tendo sido muito maltratada. (...) Aos doze anos percebeu que
o padrasto nutria excessivo ciúme por ela, ocasião em que passou a
molestá-la sexualmente, culminando o estupro quando completara 15 anos.
Foi uma época “ruim”. Sendo o mais velho de treze irmãos teve que
trabalhar cedo pra ajudar a cuidar da família. O pai vivia bebendo e batia
na mãe e nos filhos. Estudou a primeira série cinco vezes e depois desistiu,
108
mas sabe ler e escrever bem. Acha que o pai batia nele sem motivos, porque
era um bom filho, não ficava “vadiando” na rua.
Assim, percebe-se que a sociabilidade capitalista e a reprodução da
experiência vivida são fatores que devem ser levados em conta na análise da violência
doméstica contra as crianças. Entretanto, fatores como o estresse não podem ser
desconsiderados quando se trata de desvendar fatores determinantes da violência física
contra a criança.
A pesquisa de campo demonstrou que, por vezes, o agressor tem
consciência de que praticou o ato em momento de estresse. Vejamos os depoimentos
dos dois primeiros agressores, respectivamente:
(...) estava de cabeça quente, pois havia acabado de chegar do trabalho (...).
(...). Quando ela chora é eu que reparo e eu fico nervosa com choro de
menino.
em outras oportunidades, mesmo havendo negação da agressão, como no
caso do casal de irmãos relatado, é possível perceber que o motivo determinante para a
agressão que gerou o abrigamento ocorreu em um momento de estremo colapso
emocional. Vejamos:
(...) Eles mexeram na banana da avó deles e ela é muito nervosa, então ela
bateu neles e eles falam que foi eu, (...). Tu já penso, agente chega em casa
depois de trabalhá no sol o dia todo e ainda tem que agüentá essa (...)
Nesse passo, referenciando o gráfico 02, página 63, (Gomes, 2004), temos
presentes os seguintes fatores de estresse determinantes dos maus-tratos perpetrados
contra as crianças estudadas, respectivamente:
1. Stress sócio-circunstancial representado pela pobreza e habitação precária;
2. Stress sócio-circunstancial caracterizado por ser o filho indesejado; aliado
ao stress gerado pelos pais, no que tange a doença psiquiátrica;
3. Stress gerado pela criança, marcado pela diferença de temperamento, stress
sócio-circunstancial assinalado pela pobreza e isolamento, bem como
109
stress gerado pelos pais, relativo ao abuso de substâncias químicas, neste
caso, o álcool;
4. Stress sócio-circunstancial apontado pela pobreza, desemprego, habitação
precária, problemas de afeto e filhos em excesso e indesejados, além do
stress gerado pelos pais, representado pelo abuso de substância química,
particularmente o álcool e ignorância de educação;
Assim, implica considerar que as contradições e antagonismos da
sociabilidade capitalista extrapolam a dimensão do trabalho e invadem outras esferas
da vida social, sendo as relações familiares particularmente afetadas. Isto acaba por
desestruturar a família, gerando violências que vitimizam os sujeitos mais frágeis e
vulneráveis da relação: as crianças.
5.7 RELAÇÕES SOCIAIS JUSTIFICADORAS
Delineamos, também, como objetivo deste estudo, desvendar como se
tecem as relações sociais justificadoras da violência contra criança.
Trouxemos como hipótese que a família não pode ser vista como uma
instância autônoma, que está inserida na dinâmica da vida social e, portanto, recebe
influência de processos macrossocietais, reproduzindo contradições decorrentes da
estrutura desigual e excludente da sociedade brasileira. No entanto, a desigualdade
deve ser compreendida em sentido amplo, para evitar uma interpretação equivocada
em que a violência intrafamiliar contra criança é um fenômeno que se reproduz
exclusivamente entre famílias de classe social menos favorecidas.
Notadamente, a pesquisa demonstrou que a violência intrafamiliar contra as
crianças caracteriza-se por ser, de fato, um fenômeno transclassista. Nesse passo,
pudemos observar a tabela 03 da página 77, demonstrando que famílias ricas também
sofrem com o sistema de vulnerabilidades que desencadeiam na violência física contra
suas crianças.
Nesse passo, percebeu-se que a desestrutura familiar aparece em todos os
casos de agressão gerados em razão do estresse cotidiano, que pode ser caracterizado,
dentre outras razões, pelo abandono afetivo, medo do desemprego ou sobrecarga de
110
trabalho, gravidez indesejada, baixa autoestima, depressão, doença psiquiátrica, ou
mesmo em razão da própria criança não corresponder às expectativas, por ser
deficiente (física ou mental), o corresponder aos padrões de beleza, apresentar
temperamento difícil ou hiperatividade, fatos que independem de condição social ou
econômica, como bem demonstra o gráfico 02 da página 63.
Aliados a esses fenômenos temos o pouco tempo dedicado à família que
acaba por desenvolver vínculos afetivos frágeis, onde impera o individualismo em
detrimento do bem estar de todos os seus membros, impedindo relações familiares
embasadas no respeito e na equidade. Assim, ao mesmo tempo em que a sociedade
exige equilíbrio da família para cuidar de suas crianças com amor e sem violência, não
fornece elementos materiais e simbólicos que afirmem o afeto e o cuidado como norte
das relações familiares.
Obviamente, grande parte do fenômeno de abandono material de crianças
pode ser explicada por esta situação de extrema injustiça [concentração de
riquezas]. São pouco significativos estatisticamente os casos de abandono
material de crianças por parte de pais medianamente ou muito abastados.
Isto, contudo, não exclui o abandono efetivo de crianças, comum em
famílias ricas, nas quais os pais tem muito compromissos de caráter social e
nas famílias de classe média, em que o marido e a mulher desempenham
atividades profissionais.
Se o abandono material de crianças deriva maciçamente de uma iníqua
distribuição de renda, sendo a distância entre o salário mais alto e mais baixo
de milhares de vezes, esse tipo de sociedade funciona através de uma
engrenagem dentre cujas funções encontra-se a da vitimação
16
. Há, pois, a
nível social, a produção de vítimas. Trata-se de crianças vitimadas pela
fome, pela ausência de abrigo ou por habitação precária, por falta de escolas,
pela exposição a toda sorte de doenças infecto-contagiosas, por inexistência
de saneamento básico.
Também no processo de vitimização
17
, a engrenagem social responde pela
produção de vítimas. Entretanto, o processo de vitimização não atinge
apenas as crianças vitimadas. Essas últimas têm maior probabilidade de
16
Vitimação: corresponde ao que Azevedo & Guerra chamam de “crianças de alto risco”. Segundo as autoras:
Estas são as crianças-vítimas de violência estrutural, característica de sociedades como a nossa, marcadas pela
dominação de classes e por profundas desigualdades na distribuição da riqueza social. São as que,
eufemisticamente, denominamos menor, enquanto a categoria designativa da infância em situação irregular, a
reclamar, portanto, intervenção e proteção do Estado. (2007, p. 26).
17
Vitimização: também de acordo Azevedo & Guerra, são as crianças que se encontram em “estado de sítio”,
gerando a chamada “violência inerente às relações interpessoais adulto-criança”. Assim, esclarecem as autoras:
(...) São r7elações hierárquicas, adultocêntricas, porque assentadas no pressuposto do poder do adulto (maior
idade) sobre a criança (menor idade). A vitimização enquanto violência interpessoal constitui uma
exacerbação desse padrão. Pressupõe necessariamente o abuso, enquanto ação (ou omissão) de um adulto, capaz
de criar dano físico ou psicológico à criança. Por essa razão costuma-se considerar abuso-vitimização como as
duas faces da mesma moeda de violência. (2007, p. 35).
111
sofrer abusos de toda sorte (...). No que tange aos maus-tratos, à
negligência e aos abusos-exploração de natureza sexual, sobretudo
quando tais ocorrências têm lugar no seio da família, o agente agressor
situa-se em todas as classes sociais, vitimizando não apenas crianças
pobres, mas também as crianças de classe média e rica. Dessa forma,
embora haja uma certa sobreposição entre crianças vitimadas e crianças
vitimizadas, o processo de vitimação atinge exclusivamente filhos de
famílias economicamente desfavorecidas, enquanto o processo de
vitimização ignora fronteiras econômicas entre as classes sociais, sendo
absolutamente transversal, de modo a cortar verticalmente a sociedade. Eis
porque conceber a sociedade dividida em classes sociais revela-se
insuficiente para a compreensão e explicação do fenômeno da vitimização.
(AZEVEDO & GUERRA, 2007, p. 15/16). (grifo nosso).
No entanto, analisando as crianças que foram abrigadas no Ciã-Katuá no
último biênio, verificou-se que apenas as famílias pobres que agrediram seus filhos
sofreram intervenção estatal gerando o afastamento das vítimas do lar, por meio do
abrigamento. Isso não implica dizer que as famílias economicamente mais favorecidas
não violam direitos fundamentais de seus filhos, mas, nestes casos, o “pacto do
silêncio” é mais presente, o que dificulta as denúncias e expõem as vítimas a agressões
reiteradas, que muitas vezes culminam na morte das crianças.
Nesse sentido, a família resiste em permanecer em seu espaço privado, de
forma que as violências domésticas ficam reclusas nos lares, sem intervenção do poder
público. Vejamos as considerações de Osterne (2006, p. 169) acerca da relação
público/privado estabelecida na violência doméstica de gênero, perfeitamente
aplicável à nossa discussão:
O debate, portanto, dos paradoxos embutidos na relação público e privado é
fundamental para que se possa organizar o pensamento em torno da
politização do problema da violência domestica contra a mulher. Afinal de
contas, é, exatamente o significado de seu caráter privado que impossibilita a
visibilidade de sua feição política e inviabiliza ações de impacto no combate
a sua existência. É nessa linha de compreensão que se pretende situar o
problema da necessidade de (re) significar o conceito de vida privada (...).
Neste prisma, verifica-se que apesar do crescente aumento de casos
denunciados, a violência intrafamiliar contra a criança, especialmente a física, ainda
permanece sub-notificada, de forma que o é possível estabelecer com exatidão a
dimensão deste problema.
112
De fato, para as pessoas cuja ocupação não facilita o contato com esta cruel
realidade, a vitimização de crianças, quando chega ao seu conhecimento,
adquire contornos de inusitado, de esporádico, de excepcional. Quem jamais
lidou com o fenômeno não tem idéia de seu significado estatístico e de seus
efeitos devastadores. O objetivo nuclear desta introdução consiste em
mostrar que, tal como o processo de vitimação, o de vitimização tem suas
saúdes numa ordem social iníqua, na qual as relações sociais são permeadas
pelo poder. (...). (AZEVEDO & GUERRA, 2007, p. 14).
5.8 PERMISSIVIDADE SOCIAL
Por fim, objetivou este trabalho em compreender a existência de uma
permissividade social nas práticas de violência intrafamiliar contra a criança, que teve
por hipótese, o fato de vivermos em uma sociedade “adultocêntrica, onde o adulto
seria detentor do poder-verdade e a criança desconsiderada em seus saberes e desejos,
de forma que as crianças seriam educadas para obedecer aos adultos pelo simples fato
de serem adultos. A lógica “adultocêntrica” favoreceria o processo de naturalização
da violência presente do noticiário televisivo aos jogos infantis.
A sociedade adultocêntrica pode ser caracterizada pela relação de poder e
hierarquia. De acordo com Azevedo & Guerra, na sociedade ocidental, dois
sistemas distintos de dominação-exploração: o patriarcado e o racismo. O primeiro
torna aceitável a dominação homem-mulher e o segundo, a do branco sobre o negro.
As autoras trazem, ilustrativamente, o seguinte caso: o capitalista persegue
a maximização do lucro; a mulher se sujeita a condições de trabalho precárias e a
salários mais baixos, fato que a torna força de trabalho ideal para que o empresário
eleve ao máximo seus lucros; e a cultura do patriarcado, que inferioriza a mulher, e
não tolera o desemprego masculino. Analisando estas dimensões, percebe-se o
antagonismo presente na relação patriarcado-racismo-capitalismo. Nesse prisma,
Nesse universo conceitual, o poder define-se como macho, branco e rico. No
contexto desta Antologia, cabe agregar ao poder o qualificativo de adulto. O
caráter adultocêntrico da sociedade brasileira foi mencionado, isolado dos
demais atributos que cabia analisar. Efetivamente, a natureza dos sistemas de
dominação-exploração, quer seja tomada de per si, ou vista através da
simbiose patriarcado-racismo-capitalismo, é contraditória, de antagonismo.
113
Isso equivale a dizer que os interesses das classes subalternas não são apenas
diferentes dos das classes dominantes, mas opostos. Os interesses dos negros
são antagônicos aos interesses dos brancos. Os homens investem muitos
esforços para preservar o status quo machista, enquanto os interesses
femininos caminham em sentido contrário. De outra parte, entre adultos e
crianças não propriamente contradições. uma hierarquia, na qual o
poder do adulto destina-se a socializar a criança, a transforma-la num adulto
à sua imagem e semelhança. Trata-se do fenômeno da repetição, responsável
pela transmissão dos padrões de conduta adultos às novas gerações. Há, pois,
entre o patriarcado-racismo-capitalismo, de um lado, e o adultocentrismo, de
outro, uma diferença que merece explicitação. (AZEVEDO & GUERRA,
2007, p. 16/17).
Nesse diapasão, temos ocupando a posição ápice da hierarquia do poder: o
homem, branco, rico e adulto. Contraditoriamente, a concentração de rendas,
perpetrada pelo sistema capitalista, faz com que muito poucos homens pertençam a
esta categoria que Azevedo & Guerra denominam de macropoder. Ainda de acordo
com as autoras, a vitimização das crianças não depende exclusivamente dessa
modalidade do poder, mas de parcelas menores de poder. Deste modo, o agressor
almeja o macropoder e, utiliza-se do que as autoras chamam de síndrome do pequeno
poder, para “treinar”. Concluem as autoras:
Pequeno ou grande, o poder permeia todas as relações sociais, deteriorando-
as. A rigor, as relações de poder revelam a desigualdade social entre seus
protagonistas. Crianças o consideradas socialmente inferiores e adultos,
mulheres socialmente inferiores a homens, negros socialmente inferiores a
brancos, pobres socialmente inferiores a ricos. (AZEVEDO & GUERRA,
2007, p. 18).
De fato, as pesquisas demonstraram que a agressão contra as crianças,
especificamente a física, é socialmente aceita. Os agressores justificam-na como
pedagógica e as próprias vítimas aceitam-na pela mesma razão. Vejamos:
Mas as lembranças evocam também castigos que consideram <merecidos>.
Se a punição é vista como justa, a lembrança vem acompanhada de um
sentimento que é ao mesmo tempo de afeto e agradecimento. O carinho
sobreleva a critica. (...)
São afetos que permanecem mesmo quando as punições eram menos
brandas. Dessas lembranças, que retêm apesar da crítica, elas retiram uma
lição: não repetir com os filhos os mesmos procedimentos. (...).
114
(...) pode-se deduzir os mesmos critérios que hoje elas usam para diferenciar
a palmada da violência. Não bater por qualquer razão; nas bater demais; e
conversar antes (...). (GONÇALVES, p. 258/260).
A pesquisa de campo, por sua vez, confirma esta permissividade,
demonstrando a internalização da concepção de violência como método pedagógico,
de modo que agressores e agredidos percebem-na com naturalidade. Ademais,
verificou- se que as crianças são percebidas como ‘propriedade’ dos pais que, sobre
elas, podem exercer seu poder e controle. Vejamos:
A mamãe batia muito em mim, mas eu sei que ela fazia isso porque gosta de
mim... Ela ficava braba comigo quando eu fazia bagunça em casa (E.F.L.).
Ela tem que me obedecer (...). Eu vo cria sozinha porque o pai abandonou
ela e eu quando eu peguei barriga. (...) E eu tenho que da contra dela só,
então vo fazer do meu jeito(...). (mãe de L.R..)
Eu gosto do meu pai porque ele é a única família que eu tenho. O problema
é que ele bebe muito, todos os dias (...) aí ele chega em casa com raiva e me
bate. (...). (W.F.P.).
Eu bato porque não tem outro jeito, ele não ouve agente (...) desobedece,
não vai pra escola, e fica por roubando as pessoas na rua. Eu sou pobre
mas nunca roubei ninguém. (...). (pai de W.F.P.).
A.(A.M.M) responsabiliza A. (A.L.M.) por estarem afastados de casa, já que
foi a irmã quem teve a idéia e efetivamente pegou e comeu as bananas,
convencendo-o a fazer o mesmo (...). (trecho do relatório psicológico de
A.M.M.).
Se eu soubesse que meu pai ia ser preso e apanhar na prisão, eu não tinha
comido as bananas. Eu só queria comer as bananas; não queria que
ninguém apanhasse (...). (trecho do relatório psicológico de A.L.M)
Eu não bati; mas são meus filhos; se eu quisesse bater, batia (...). (pai de
A.M.M. e A.L.M.)
(...) eles [os filhos] que fizeram errado de mexer nas banana (...) e por isso
ele [o pai] apanhou (...)”. (mãe de A.M.M. e A.L.M.).
Desta forma, percebemos que, apesar dos avanços sociais e legais no que
tange à percepção de infância, o fenômeno da “coisificação” da criança ainda é latente
na sociedade atual, na medida em que os adultos, especialmente os pais, sentem-se
“proprietários” dos filhos e aplicam-lhes castigos físicos, com cunho pedagógico,
apoiados pela sociedade que legitima este poder.
115
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando a trajetória deste trabalho e observando os problemas trazidos,
buscamos primeiramente conceituar os principais institutos relacionados à violência
intrafamiliar contra as crianças. Assim, investigamos as origens etimológicas dos
termos infância, família, criança e violência, bem como trouxemos as concepções de
alguns estudiosos dos temas.
Traçamos uma trajetória acerca da compreensão da criança ao longo dos
tempos, especialmente com base nos estudos iconográficos de Ariès, que nos
demonstram como a criança passou de objeto a sujeito de direitos. Entretanto,
pudemos verificar que, ainda hoje, muitos pais ainda concebem seus filhos como
“objetos”, usando-os para demonstrar status.
Em seguida, delineamos o quadro das espécies mais comuns de violência
praticadas contra as crianças no âmbito familiar e contextualizamos a realidade do
Estado do Amapá em comparação com a brasileira. Analisamos, ainda, a rede de
proteção trazida pela legislação, onde se localiza o abrigo Ciã-Katuá, nosso campo de
estudos.
Por fim, realizamos a pesquisa, onde constatamos que a violência física
intrafamiliar é um fenômeno transclassista e está presente na sociedade desde sempre,
sendo, pois, inegavelmente, uma questão de saúde pública.
Observamos que a violência instaura-se por inúmeros e complexos fatores e
atingem a relação familiar, podendo chegar a um grau de comprometimento em que
cessam os vínculos afetivos entre os sujeitos envolvidos.
Assim, quando a violência, que deveria estar do lado de fora, ocorre dentro
do ambiente familiar, tendo por algoz pessoas que deveriam cuidar e zelar pelo bem-
estar físico e psíquico das crianças, a questão toma proporções incomensuráveis, daí o
porquê da violência intrafamiliar ser objeto de freqüentes debates na política e na
sociedade, resultando na elaboração de leis que visam coibir essa prática.
Nesse prisma, a violência contra as crianças vem sendo objeto de estudos
mais incisivos, especialmente nas últimas décadas, quando percebe-se um
116
agravamento profundo da questão, como bem assinala o relatório da UNICEF (2006b).
Vejamos:
Todos os anos, cerca de 275 milhões de crianças em todos os lugares do
mundo são vítimas do fogo cruzado de violência doméstica e sofrem todas as
conseqüências de uma vida familiar turbulenta. A violência contra crianças
envolve abusos e lesões físicas e psicológicas, negligência ou tratamento
negligente, exploração e abuso sexual. Entre os perpetradores encontram-se
pais e outros familiares próximos.
O caráter global deste fenômeno enseja discussões de políticas públicas que
envolvam a sociedade, não como receptora, mas como partícipe dos programas de
enfrentamento ao fenômeno. De outra forma, a ordem jurídica, que é ao mesmo tempo
componente e produto da sociedade e cuja célula mater é a família, não será capaz de
transcender a banalização histórica da violência doméstica.
Não basta, pois, a edição de leis que preconizem a “doutrina da proteção
integral” para todas as crianças e adolescentes, seo houver conscientização e
envolvimento da sociedade, especialmente no que tange à quebra do “pacto do
silêncio”, de forma esta violência seja cada vez menos sub-notificada, para que
tenhamos cada vez mais crianças efetivamente protegidas, já que, nos termos da
Constituição da República, artigo 227.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Assim, além dos pais e familiares, cada profissional envolvido no cuidado
de crianças, sejam eles médicos, enfermeiros ou professores, bem como a sociedade
como um todo, são responsáveis, de algum modo, pelas crianças, que são
reconhecidamente sujeitos de direitos, dentre eles, o inalienável direito à vida, que
deve ser garantido por toda a sociedade.
Neste prisma, as políticas públicas que tratam da violência, especialmente
contra crianças, devem ter ampla repercussão. Isso porque, muitas vezes, o
desconhecimento ou o temor do envolvimento fazem com que os profissionais que
117
trabalham com esse público e se deparam com crianças vítimas de maus-tratos não
saibam como agir, e acabam sofrendo implicações legais trazidas pelo ECA e pela
Constituição da República.
O ECA determina explicitamente que os profissionais das áreas de saúde e
educação informem a autoridade policial competente qualquer suspeita de maus-tratos
a crianças e adolescentes, sob pena de responsabilidade.
A infância deve, pois, ser tratada sem demagogia para que as crianças,
sujeitos de direitos que são, possam ter garantido o alcance de seus direitos humanos,
previstos como direitos do homem e do cidadão.
No entanto, o esforço público não pode acomodar-se com os trabalhos
existentes. É preciso sempre aprimorar essa estrutura por meio do desenvolvimento de
Políticas Públicas que, além de buscar minorar os efeitos dos atos violentos, previnam
a sua ocorrência.
118
REFERÊNCIAS
ANCED. Associação Nacional de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente. Plano Trienal 2008 2010. São Paulo. 2008. Disponível em
www.anced.org.br
. Acesso em 03/04/2010.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 10ª. Ed., 2008.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaksman.
Rio de Janeiro, Editora LCT, 2006.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Nestor Silveira Chaves. 15ª. Ed., Rio de
Janeiro: Ediouro, 1988.
AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violência Sexual Intrafamiliar: é possível
proteger a criança? Revista Virtual Textos & Contextos n. 5. Novembro, 2006.
Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br
. Acesso em 01/07/2008.
AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência
Doméstica da Infância e na Adolescência. São Paulo: Editora Robe, 1995.
AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e
violência fatal em família: primeiras aproximações ao nível de Brasil. São Paulo:
Iglu, 1998.
AZEVEDO, Maria Amélia e GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo (org.).
Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. 2ª. Ed., São Paulo: Iglu, 2007.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de
outubro de 1988. Disponível em
www.planalto.gov.br/legislaçao. Acesso em 23/02/2010
.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. 1990. Disponível em
www.planalto.gov.br/legislaçao. Acesso em 10/04/2010
.
CEATS/FIA – Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro
Setor da Fundação Instituto de Administração. Os bons conselhos: pesquisa
“conhecendo a realidade”. 2007. Disponível em:
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.spdca/conhecendoarealid
ade.pdf. Acesso em 06/04/2010
.
CECRIA/PESTRAF. Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes
para fins de exploração sexual no Brasil 2000–2002. Relatório Nacional. Brasília,
2002.
119
CESCA, Taís Burin. O papel do psicólogo jurídico na violência intrafamiliar:
possíveis articulações. Revista Psicologia & Sociedade; 16 (3): 41-46; set/dez.2004.
CONANDA. Encontros de articulação do CONANDA com os conselhos tutelares.
Brasília. CONANDA, 2000.
CURY, Munir, PAULA, Paulo Afonso Garrido de, MARÇURA, Jurandir
Norberto.Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado. 2. ed. São Paulo:
RT,1999.
DESLANDES, Suely Ferreiro. Prevenir a violência um desafio para profissionais
de saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1994.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.
ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FALEIROS, Eva T. Silveira. Violência Sexual a categoria chave na compreensão
do abuso sexual contra crianças e adolescentes, In: repensando os conceitos de
violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Brasília: Thesaurus,
2000.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, “Novo Aurélio Século XXI: o dicionário
da língua portuguesa”. 3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
FREUD, Sigmund. Por que a guerra? Lisboa: Edições 70, 1997.
GOLDANI, Ana Maria. “As famílias brasileiras: Mudanças e Perspectivas”, in:
Cadernos de Pesquisa, nª. 91., p. 7/22. São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Cortez,
1994.
GOMES DA COSTA, Antonio Carlos. In: CURY, Munir, AMARAL e SILVA,
Antonio Fernando do, MENDEZ, Emilio García (Coords.). Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros,
1992.
GOMES, Hélio. Medicina Legal. 33ª. Ed. rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 2004.
GONÇALVES, Hebe Signorini. Infância e Violência no Brasil. Rio de Janeiro:
FAPERJ, 2003.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Vol. II 3. ed. Niterói-RJ:
Impetus, 2007.
120
MINAYO, Maria Cecília de Souza. É possível prevenir a violência? Reflexões a
partir do campo da saúde pública. Revista Ciência e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro:
ABRASCO. Vol. 4., nº. 1, p. 7-23, 1999.
NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Especialista Independente para o Estudo das
Nações Unidas sobre Violência contra Crianças, United Nations, Nova Iorque.
2006. Disponível em
http://www.un.com
. Acesso em 22/05/2009.
NERY, José Reinaldo Cardoso. BORGES, Maria Lúcia Teixeira. Orientações
Técnicas para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos. Macapá. Ed. UNIFAP. 2005.
OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Família, pobreza e gênero: o lugar da
dominação masculina. Fortaleza: EdUECE, 2001.
OSTERNE, Maria do Socorro Ferreira. Violência na Relações de Gênero e
Cidadania Feminina. Fortaleza: EdUECE, 2007.
PRADO, Antônio Orlando de Almeida (org.). Código de Hamurabi, Lei das XII
Tábuas, Manual dos Inquisidores, Lei do Talião. o Paulo: Paulistanajur Ltda.,
2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. São Paulo: Martins Fontes,
3.ed. 2004.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
SINATURA, Cristiane. Guarda-Roupa de Gente Grande. In Revista Veja. ed. 2153,
ano 43, n. 8., p. 90/92. São Paulo: Editora Abril, 2010.
UNICEF. A infância brasileira nos anos 90. Brasília – DF: UNICEF, 1998.
UNICEF. A situação das crianças e dos adolescentes brasileiros. 2006a. Disponível
em
http://www.unicef.org/brazil/
. Acesso em 01/07/2008.
UNICEF. Violência doméstica contra crianças. 2006b. Disponível em
http://www.unicef.org/brazil/smi7/cap2-dest1.htm. Acesso em 01/07/2008
.
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência nos Municípios Brasileiros. São
Paulo: Instituto Sangari, 1ª Ed.2008.
WAISELFISZ, Júlio Jacobo.. Mapa da Violência no Brasil 2010: A Anatomia dos
Homicídios o Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 1ª Ed. 2010.
121
Sites visitados
http://www.observatoriodainfancia.com.br/article.php3?id_article=957
. Acesso em
09/04/10.
http://www.institutosangari.org.br
. Acesso em 06/04/2010.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo