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abordagem, verifica-se que rotinas domésticas, expressões faciais e comportamentos, por
exemplo, podem perfeitamente ser lidos e é esse o procedimento utilizado pelos personagens
Jorge e, principalmente, Juliana. Tais leitores serão analisados mais adiante neste trabalho.
Desse modo, considerando a perspectiva realista de Eça de Queirós e as múltiplas
possibilidades dos processos de leitura, é possível perceber a intencional crítica social
revelada através da composição de personagens leitores e suas atuações ao longo da trajetória
narrativa de O primo Basílio. Torna-se viável também compreender a dimensão do exercício
da leitura, especialmente a literária, uma vez que para identificar os recursos críticos e
estéticos queirosianos, faz-se necessário um movimento ativo do leitor sobre o texto,
buscando e construindo significados, fazendo correlações e preenchendo possíveis
indeterminações. Nas palavras de Nunes (1998): “a prática da leitura seria um adestramento
reflexivo, um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos e dos outros” (p. 175). E
no tocante à leitura literária especificamente, ele acrescenta:
Os textos literários [...] abolem, “destroem” o mundo circundante, cotidiano,
graças à função irrealizante da imaginação que os constrói. E prendem-nos na teia de
sua linguagem, a que devem o poder de apelo estético que nos enleia; seduz-nos o
mundo outro, irreal, neles configurado [...]. No entanto, da adesão a esse “mundo de
papel”, quando retornamos ao real, nossa experiência, ampliada e renovada pela
experiência da obra, à luz do que nos revelou, possibilita redescobri-lo, sentindo-o e
pensando-o de maneira diferente e nova. A ilusão, a mentira, o fingimento da ficção,
aclara o real, ao desligar-se dele, transfigurando-o (NUNES, 1998, p. 178).
Evidencia-se, portanto, que a literatura possui uma extraordinária capacidade de
recriação da realidade, de forma a apresentá-la de maneira mais intensa, original, criativa,
podendo assim, sensibilizar e estimular reflexões. A natureza artística consagra-se a partir do
estético, ou seja, ao expressar uma emoção e/ou viabilizar um conhecimento “estetizado”, no
caso específico da literatura, pelo autor. Tal efeito se dá mediante a percepção do leitor, parte
fundamental na concretização da funcionalidade do texto literário.
E essa transformação do real, sugerida pela arte literária, vincula-se à proposta realista
de Eça de Queirós, especialmente em O primo Basílio. O fenômeno da leitura é tratado na
obra ao mesmo tempo como um aspecto relevante na composição de personagens, cujas
atuações e mentalidades estão arraigadas ao seu modo de ler, como também é um recurso
utilizado pelo autor sob a forma de um alerta que contribuiria para a transformação da
sociedade portuguesa, afinal, é confiando na capacidade comunicativa da leitura literária que
Eça investe na sua criação romanesca com acentuado enfoque na crítica social e de costumes.