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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
TIAGO SOUZA MACHADO CASADO
SABEDORIA TRÁGICA NO ÚLTIMO NIETZSCHE
MARÍLIA
2010
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TIAGO SOUZA MACHADO CASADO
SABEDORIA TRÁGICA NO ÚLTIMO NIETZSCHE
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Filosofia da
Faculdade de Filosofia e Ciências de
Marília UNESP, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Dr. José Carlos Bruni
MARÍLIA
2010
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Ficha catalográfica elaborada pelo
Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação – UNESP – Campus de Marília
Casado, Tiago Souza Machado.
C334s Sabedoria trágica no último Nietzsche / Tiago Souza
Machado Casado. – Marília, 2010.
97 f.; 30 cm.
Dissertação (mestrado em filosofia) – Faculdade
de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2010.
Bibliografia: f. 94- 97
Orientador: José Carlos Bruni
1. Filosofia alemã. 2. Trágico. 3. Dionisíaco. 4. Existência.
I. Autor. II. Título.
CDD 193
TIAGO SOUZA MACHADO CASADO
Este exemplar corresponde à versão
final da Dissertação defendida e
aprovada pela banca examinadora em
16 de novembro de 2010.
BANCA EXAMINADORA:
1º membro (Presidente): Professor Dr. José Carlos Bruni - UNESP
_________________________________________________________
2º membro: Professora Drª. Clélia Aparecida Martins – UNESP
_________________________________________________________
3º membro: Professor Livre-Docente Franklin Leopoldo e Silva – USP
_________________________________________________________
MARÍLIA
2010
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Ana Maria e José Roque, pelo estímulo e confiança
diante das minhas escolhas;
Ao meu avô, Sr. Fidelcino, com quem aprendi os valores mais nobres
e de quem a presença foi sempre fundamental em minha vida;
Ao meu orientador, Dr. José Carlos Bruni, pela paciência e sempre
sábias palavras, pelas quais pude ampliar minhas perspectivas para a
elaboração desta pesquisa;
Aos meus amigos, em especial, Adriano, Nelson e à professora e
amiga Toni, pelas aulas de inglês seguidas de bons cafés. E ao Édison, pela
força durante a finalização do projeto.
Ao teatro e aos meus parceiros desta arte, na qual encontro o impulso
dionisíaco que me faz melhor olhar para a vida;
À UNESP Campus de Marília e ao Programa de Pós-graduação em
Filosofia, principalmente aos professores com os quais convivi no curso
das disciplinas. E também aos funcionários, em especial, Aline, Paulo,
Edna e Sirlei, pela disponibilidade e atenção;
Por fim, a todos os que contribuíram, de qualquer forma, com esta
pesquisa.
Sobre grandes coisas – eu vejo coisas grandes!
- A gente deve calar
ou falar grande:
fale grande, minha sabedoria encantada!
(Nietzsche, “O ditirambo final”)
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar a construção filosófica de
Friedrich Nietzsche acerca do sentido de sabedoria trágica, desde sua
formulação no estudo sobre a tragédia até os escritos finais no que
concerne ao trágico. Nesse intuito, busca-se aprofundar o estudo dos
elementos tratados por Nietzsche ao longo de sua produção filosófica,
passando pelos conceitos apolíneo e dionisíaco, a partir dos quais tratará do
nascimento da arte trágica e do enfrentamento do pessimismo, e retratando
as modificações sofridas por seu pensamento ao distanciar-se da concepção
metafísica de arte e voltar-se a um projeto pelo qual enaltece a força
dionisíaca em oposição ao conhecimento moral e metafísico. Desse modo,
serão analisados os caminhos percorridos por esta filosofia trágica, que
encontrará sua máxima na concepção do eterno retorno e na força
dionisíaca de afirmação da existência.
Palavras-chave: Trágico. Dionisíaco. Eterno retorno. Existência.
ABSTRACT
This research aims to analyse the philosophical construction of Friedrich
Nietzsche specifically the tragic wisdom’s meaning, since when it was
formulates in the study of the tragedy until the final writings in regard to
the tragic. To this end, the focus was to analyse with details the study of
elements that are used by Nietzsche throughout his philosophical
production, through with the apollonian and dionysian’s concepts, from
which will deal with the begin of the tragic art and the confront of the
pessimism, and reflecting the changes suffered from his thought that is to
be distant from the metaphysical conception of art and to be with a project
that extols the dionysian force in opposition to the moral and metaphysical
knowledge. Thus, it will be analysed the paths that are taken by this tragic’s
philosophy, and that will find its maximum in the conception of eternal
recurrence and Dionysian’s power of life’s affirmation.
Keywords: Tragic. Dionysian. Eternal recurrence. Existence.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................8
CAPÍTULO I
A CONCEPÇÃO PRIMEIRA DO SABER TRÁGICO: O PULSAR DIONISÍACO
1.1 – Cultura, Tragédia e prelúdio da filosofia trágica....................................................13
1.2 – A herança Schopenhauriana: Ruptura e continuidade............................................29
CAPÍTULO II
A VISÃO TRÁGICA DA EXISTÊNCIA
2.1 – A afirmação dionisíaca contra a negação metafísica e moral.................................41
2.2 - 2.2 – O “Sim” incondicional ao destino ante a visão trágica do eterno retorno.....60
CAPÍTULO III
O SABER TRÁGICO NO IMPULSO DIONISÍACO PARA A VIDA
3.1 – A vontade de potência no caminho da superação...................................................69
3.2 – A força dionisíaca no canto do “Sim!”: transvaloração e anúncio do homem
trágico..............................................................................................................................73
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................90
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................94
9
INTRODUÇÃO
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) desenvolveu uma filosofia sob as marcas
de um pensar polêmico, profundo e por vezes contraditório, o que faz com que seu legado
filosófico represente sempre um desafio aos olhos do leitor. E esta pesquisa se propõe a
apresentar, sem abandonar as contradições desse pensamento, o entendimento final da
sabedoria trágica anunciada em sua obra, partindo dos conceitos iniciais que suscitaram
seu pensamento trágico. Como será apresentado no primeiro capítulo, quando Nietzsche
inicia, em 1871, seus escritos sobre a arte trágica, revela um incontido entusiasmo pelo
mundo grego antigo ao descrever este povo como aquele que possuíra a força vital no
enfrentamento do pessimismo, algo claramente retratado em sua obra da juventude, O
Nascimento da Tragédia. Além disso, nela inicia a crítica à racionalidade socrática,
atribuindo-lhe a decadência e morte da tragédia. É nessa obra, contudo, que desenvolve
dois conceitos fundamentais de sua filosofia: o apolíneo e o dionisíaco, impulsos que
possibilitaram o nascimento da arte trágica. Será a partir desses elementos, que duelam
numa incessante luta de destruição e reconciliação, que passará a investigar o momento em
que a “beleza passa a ser subordinada à razão [...] desvalorizando e desclassificando o
poeta trágico por não ter consciência do que faz e não apresentar claramente seu saber”
1
.
A arte trágica, que possibilita o acesso às questões fundamentais da existência, será
contraposta à metafísica racional inaugurada pela filosofia socrático-platônica, que impõe
o teórico e conceitual ao instinto e, com isso, desvaloriza o homem trágico. Nesse
momento inicial de sua filosofia, Nietzsche exalta a experiência trágica que tem como
1
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zaar editor, 1997.
p.11.
10
fundo a música e é personificada em seu mito, cujas forças são capazes de justificar “o pior
dos mundos” e transfigurá-lo.
A partir dessas teses preliminares, Nietzsche inicia sua crítica à metafísica
ao mesmo tempo em que demonstra, através da tragédia, a esperança no retorno do espírito
trágico na Alemanha. Nesse sentido, a música de Richard Wagner ocupará o lugar mais
elevado diante de suas expectativas nesse projeto, significando a “promessa de uma era
trágica”
2
. Além disso, nessa época, sua filosofia trazia as influências notórias de
Schopenhauer, de quem o afastamento se tornará público em 1878, com Humano,
demasiado humano, quando evidencia também o rompimento com o músico Wagner. A
respeito dessas figuras marcantes de seu pensamento, na tentativa de um definitivo
esclarecimento, Nietzsche irá explicitar no Ecce homo os “equívocos” que deveriam ser
esquecidos a respeito de sua primeira obra. No entanto, cabe aqui buscar os principais
aspectos que conduziram tais mudanças nessa perspectiva.
Nesse sentido, o segundo capítulo busca apresentar as transformações
sofridas pelo pensamento nietzschiano acerca do trágico, principalmente quando revela, em
Tentativa de Auto Crítica, de 1888, seus propósitos iniciais a respeito de sua obra da
juventude (O Nascimento da Tragédia), esclarecendo os aspectos anteriormente admitidos
na proeminente tarefa em combater a metafísica e a moral, que passa a ocupar o alvo de
suas críticas por significar um sintoma de decadência ao desprezar o instinto e “negar todos
os valores estéticos”. Essa crítica se dará juntamente à exaltação do dionisíaco como força
afirmativa de todos os aspectos da vida, algo ensinado pela tragédia e assumido pela
filosofia nietzschiana em seu mais alto sentido.
2
NIETZSCHE, Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, § 4. Tradução e organização de Marcelo Backes.
Porto Alegre: L&PM, 2006.
11
Esse propósito, todavia, revela o abandono progressivo de Nietzsche em relação à
metafísica de artista e o empenho em opor o dionisíaco ao “domínio” do conhecimento
racional inaugurado pela filosofia socrática. Não obstante, a moral cristã também se
encontra no cerne dessa crítica, por provocar o “apequenamento do homem” por meio da
desvalorização do instinto e pela instauração de uma moral dos fracos. Desse modo, será
contra esses dois modos de concepção que sua filosofia trágica terá sentido quando se
desvia dos resquícios do trágico pensado sob os pilares da tragédia e se desloca para um
pensar contra o preconceito presente nos valores instaurados.
Nesse viés, é pelo pensamento “abissal” do eterno retorno que sua perspectiva
filosófica selançada rumo ao saber trágico, que nessa máxima encontrará o sentido da
existência e de todas as coisas. Tal pensamento, descoberto na “mais solitária solidão”
3
,
propõe o desafio iminente ao homem diante da constatação de que tudo retorna
eternamente, num eterno acontecimento do mundo. Essa ideia, intimamente ligada à
aceitação e ao amor ao destino, isto é, à capacidade de ver beleza em tudo aquilo que é
necessário à vida, permanece na filosofia nietzschiana como uma força cuja carga aponta
para o homem trágico anunciado por Zaratustra.
Ainda na procura pelo entendimento que possa apontar, definitivamente, à
perspectiva trágica nietzschiana da existência, tendo o eterno retorno como premissa
fundamental, o terceiro capítulo discute o princípio da vontade poder, conceito pelo qual
Nietzsche define o mundo: “toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder.
O mundo [...] seria justamente ‘vontade de poder’ e nada mais”
4
. Essa vontade, que
expressa o jogo das forças do mundo e suas relações imprevisíveis, que “relacionam-se de
modo diferente, dispõem-se de outra maneira; a todo instante, [...] vencendo resistências,
3
MARTON, Scarlett. Nietzsche e a celebração da vida. Cadernos Nietzsche. n. 2.1997. p. 10.
4
NIETZSCHE. Além do bem e do mal Op. Cit. § 36.
12
se auto-supera e, nessa superação de si, faz surgir novas formas”.
5
Tal compreensão das
múltiplas forças atuantes na vontade aprofundará o propósito crucial de superação do
homem fraco e reprimido em direção ao caminho da superação.
Esse caminho ensinado, ora no ensinamento deixado pela tragédia, cujas lições
percorrerão, sem dúvida, toda a obra nietzschiana pela onipresença dionisíaca, ora no
anúncio trazido por Zaratustra, apontará para a missão do filósofo trágico, título atribuído
por Nietzsche a si mesmo: “tenho direito de reconhecer a mim mesmo como o primeiro
filósofo trágico [...] antes de mim não existiu essa transferência do dionisíaco para o pathos
filosófico: faltava a sabedoria trágica”
6
. A afirmação, contudo, não esgotaseu propósito
filosófico em si mesmo, tendo em vista o desafio lançado aos filósofos do futuro, que
deverão tomar em suas mãos “o martelo e o cinzel” para esculpir a figura de um novo
homem, livre dos valores e impostos e portador de uma nobre sabedoria: trágica e
dionisíaca.
É a partir desses aspectos que esta pesquisa procura estudar a construção filosófica
nietzschiana da sabedoria trágica, valendo-se das obras correspondentes a cada período do
pensamento de Nietzsche, bem como de outras que contribuíram para o objeto deste
estudo, na tentativa de encontrar a direção que possa apontar a possível posição final de
Nietzsche ao anunciar seu saber trágico.
5
MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 70.
6
NIETZSCHE, Ecce homo. Op. Cit. , p.86
13
CAPÍTULO I
A CONCEPÇÃO PRIMEIRA DO SABER TRÁGICO:
O PULSAR DIONISÍACO
14
1.1 Cultura, Tragédia e prelúdio da filosofia trágica
Buscar a máxima da compreensão nietzschiana acerca da concepção de
sabedoria trágica é o objetivo desta pesquisa. E no esforço por uma clareza no
entendimento do tema tratado por Nietzsche ao longo de seus escritos, buscar-se-á,
especificamente no último período de suas reflexões - momento em que assume uma
postura radicalmente nova em relação a tudo que antecedeu à idéia de tragédia, os
elementos fundamentais pelos quais sua filosofia trágica foi construída. No entanto, como
ponto de partida, faz-se imprescindível recorrer, inicialmente, a O Nascimento da
Tragédia, na qual Nietzsche tratará dos elementos fundamentais que apontarão seu
entendimento sobre o trágico e as condições que possibilitaram o nascimento da arte
trágica, bem como decifrar as causas da sua decadência.
Embora mais tarde o próprio Nietzsche traga reconsiderações sobre seu
primeiro livro, há, entretanto, indícios que evidenciam a permanência do trágico em seu
pensamento. Todavia, a compreensão da tragicidade passa por mudanças que revelam os
motivos do olhar cuidadoso de Nietzsche sobre sua obra. Por um apelo para que certos
aspectos do livro sejam desconsiderados, declara que O Nascimento da Tragédia “influiu e
fascinou pelo que era erro, por sua inclinação ao wagnerismo, como se o mesmo fosse
um sintoma de ascensão”
7
. Dessa maneira, para esclarecer suas ideias a respeito do
fenômeno do trágico, Nietzsche observa, de início, como os gregos lidaram com o
pessimismo, de que forma o superaram. E nesse sentido elucidará: “A tragédia
precisamente é a prova de que os gregos não foram pessimistas: Schopenhauer enganou-se
nesse como em outros pontos.
8
O abandono de Nietzsche a Wagner e a Schopenhauer traz
um entendimento fundamental a respeito dos equívocos apontados sobre o nascimento da
7
NIETZSCHE, Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, Op. Cit., § 1.
8
Ibidem.
15
tragédia e, não obstante, da compreensão do trágico. Essa desconfiança retratada sobre sua
primeira obra estaria no fato de que ela estaria “impregnada” de certas coisas que deveriam
ser abandonadas. Schopenhauer aparece como principal referencia teórica de Nietzsche
quando este se propõe a pensar a tragédia. Importa observar, sem reservas, que o lugar que
assume a arte e, sobretudo, a música em sua filosofia, deve-se a essa influência.
9
Mas as
disparidades com o filósofo aparecem e se tornam intensas quando Nietzsche vê em
Wagner o romantismo pessimista da filosofia schopenhauriana. Nessa época (1872), há o
rompimento com o artista alemão, aquele que outrora significara o renascimento do
espírito trágico na Alemanha. A música de Wagner personificava a “promessa de uma era
trágica”
10
, trazida em O Nascimento da Tragédia, e Nietzsche é entusiasmado pelo
momento nacionalista pelo qual passava a Alemanha no século XIX, que consistia na
busca de seu fortalecimento como nação. Para Nietzsche, “um povo vale precisamente
tanto quanto é capaz de imprimir em sua vivência a marca do eterno”
11
. Essa promessa,
entretanto, é revista ao afastá-la de Wagner e, ao que tudo indica, por um embasamento
psicológico: “o que ouvi da música wagneriana, ainda jovem, nada tem a ver em absoluto
com o próprio Wagner (...) ao descrever a música dionisíaca, descrevi aquilo que eu havia
escutado, eu, instintivamente, tudo traduzia e transfigurava no novo espírito que trazia em
mim”
12
. O problema que se assenta, portanto, esem condicionar o renascimento de
uma época trágica a Wagner, o artista a quem Nietzsche mais estimava até 1872, e a quem
dedica seu livro.
Neste período, no entanto, importa observar que Nietzsche tem como
referência a Grécia antiga e, portanto, “segue a tradição instaurada no final do culo
9
As influências da filosofia de Schopenhauer no pensamento trágico de Nietzsche serão discutidas adiante.
10
, NIETZSCHE, Ecce homo, § 4.
11
____. O Nascimento da Tragédia. Tradução, notas e posfácio de J. Guinzburg. São Paulo: Companhia das
letras, 1996. § 24.
12
____. Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, § 4.
16
XVIII, na Alemanha, de pensar o trágico como uma dualidade de princípios metafísicos ou
ontológicos [...]”
13
. E, nesse viés, embora seja o pensador que buscará mais a fundo o
sentido de uma existência trágica, Nietzsche não é o primeiro a tratar do assunto, visto que
está inserido no movimento de valorização do ideal grego de beleza e da necessidade de
sua retomada pela arte no projeto de renovação cultural da Alemanha, algo iniciado por
Winckelmann e seguido por muitos outros artistas e intelectuais da época como Herder,
Goethe, Schiller, Schelling, Hegel e Hölderlin; todos instigados pela “nostalgia da Grécia”.
Com a preocupação em encontrar um outro modo de pensar o teatro ou a tragédia em sua
época, tendo como inspiração a Grécia antiga, estetas como Goethe e Schiller (entre os
principais expoentes) levaram adiante diferentes abordagens e interpretações acerca da arte
trágica.
Com Winckelmann inicia-se um processo de afirmação do sujeito diante
da natureza e do mundo, posto que sua condição era de estranhamento, de ruptura e
sujeição. Havia a crença de que na Antiguidade a relação entre homem e natureza era
harmônica, atingida por meio da arte e, dessa forma, esta deveria servir de exemplo para os
modernos. A arte passa a ser vista como um meio pelo qual o artista restabelecesse o
vínculo do homem com a natureza, daí a valorização da sua força criativa. No entanto, esse
rompimento com a arte vigente não significava retornar aos velhos modelos da
Antiguidade, buscando simplesmente imitá-los. O ideal tinha como foco a valorização da
faculdade criadora do artista, que se apresentava como um novo “eu” diante do mundo,
algo característico do movimento “Sturn und Drang(Tempestade e ímpeto), formado por
jovens intelectuais da época, como Goethe, que lançariam as bases do Romantismo na
Alemanha. De acordo com Rosenfeld (1991)
14
, o movimento é marcado por um profundo
13
MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zaar editor,
2006. p. 202.
14
ROSENFELD. Anatol. Autores pré-românticos alemães. São Paulo, EPU, 1991. p. 9.
17
pessimismo no que se refere à sociedade e à civilização. E, acreditando haver um conflito
inevitável entre indivíduo e sociedade, os jovens, ao invés de se posicionarem contra os
abusos da época e buscar uma sociedade mais justa, exaltam a emancipação do indivíduo
de modo anárquico e excessivo da subjetividade.
Dessa exaltação da subjetividade surge o arquétipo do “gênio original”,
do poeta criador expressão do grande homem que age como mediador entre a finitude
humana e o infinito divino. Esse gênio não imita, mas cria, inspirado em sua subjetividade,
assim como Deus cria a natureza. O gênio, para os jovens poetas da época, possuía o dom
natural o princípio criador do artista. Segundo Rosenfeld (1991), este período também é
chamado “Era do gênio” (Geniezeit), pois, sofrendo da dor do mundo (Weltschmerz), o
indivíduo luta pela sua liberdade, tendo em vista sua incompatibilidade com a sociedade. A
partir daí, os jovens poetas buscarão expulsar o gênio romântico para dar lugar ao gênio
alemão em toda sua potência artístico-criadora.
“O gênio é bardo e vidente, porta-voz das esferas mais altas; mensageiro
divino, herói colossal, mediador do infinito no médium da finitude. Não
imita a divindade e a natureza; é, antes, criador como Deus e a natureza.
[...] Obedecendo á inspiração subjetiva e ao impulso expressivo, produz
obras originais, talvez imperfeitas no que se refere à forma exterior, mas
dotada de unidade íntima.”
15
Na visão de Goethe, retornar à Antiguidade significa buscar o original, o
tempo em que o homem possuía uma harmonia com o mundo, entre o humano e o divino.
Segundo a idealização de Goethe, a Grécia é um mundo onde o homem pode tornar-se um
homem completo, em harmonia consigo mesmo e com o mundo, pois “suas forças não
estavam cindidas, fragmentadas; o grego era um ser uno consigo mesmo e em unidade com
15
Ibidem, p. 21.
18
a totalidade do mundo.”
16
O artista, liberto dos princípios e amarras da mimese, pode criar
em sua liberdade, a partir de si mesmo. Por meio de uma relação harmônica com o mundo
externo, estabelece um novo princípio criador, pois não é mais dependente de um deus e
volta-se a si mesmo como orientador. Para Goethe, “o homem atinge o que é único e
excepcional se todas as suas qualidades entrarem em acordo harmonioso. Este era o destino
feliz dos antigos em sua mais bela época.”
17
Assim, a visão trágica do mundo, como se pode observar, surgirá a
partir do século XVIII, quando as análises filosóficas da tragédia conduzirão a chamada
“filosofia do trágico”. Segundo Roberto Machado (2006), essas análises apontarão para a
idéia de conflito e resolução do conflito, de oposição entre princípios no conflito trágico.
Isso será pensado, basicamente, a partir da discussão kantiana sobre separação entre sujeito
e objeto, finito e infinito, sensível e ideal, numa tentativa de ultrapassar o projeto kantiano.
Dessa forma, o trágico passa a ser pensado sob o conceito kantiano de sublime. Essa idéia
fundamenta-se num acordo discordante que conduz a um acordo final, uma resolução. De
modo geral, as teorias do trágico são variações desta idéia: a apresentação do
inapresentável, o sensível do supra-sensível. No entanto, as disparidades entre as
concepções estarão do modo como o conflito é resolvido, o que marcará as diferenças entre
os pensadores do trágico.
Nietzsche pertence aos que se colocaram ao projeto de construção de
uma filosofia do trágico, mas como crítico de toda sua tradição, chegando a afirmar que
nunca a cultura e a arte genuína estiveram tão distantes como na Alemanha. Na visão de
Nietzsche, a tragédia sempre foi interpretada erroneamente ao ser tratada a partir de um
ponto de vista moral, na qual sua finalidade última seria a purificação de ações
16
“WINCKELMANN” In Herder e Goethe, Le tombeau de Winckelmann, p. 79,85. apud MACHADO, 2006
Op. Cit. , p.22.
17
GOETHE apud MACHADO, 2006, p. 22.
19
“socialmente” incorretas. Os estetas, além de caracterizarem como trágica a luta do herói
com o destino, o triunfo da ordem moral no mundo, ainda consideram o ouvinte não como
homens excitáveis esteticamente, mas como seres morais. Assim sendo, o jovem Nietzsche
constata que, desde Aristóteles, não fora dada sobre o efeito trágico uma explicação da
qual se pudesse inferir uma atividade estética do ouvinte. Seu objetivo é propor uma nova
análise da tragédia, evidenciando as deficiências de seus predecessores e apontando para
um novo conceito do trágico.
Mesmo considerando os caminhos independentes que serão traçados por
Nietzsche, será importante observar os pressupostos que o levarão, em Ecce homo, a
afirmar-se o primeiro filósofo trágico. Qual será a novidade que o diferenciará
fundamentalmente dos que pensaram o trágico até então? O esforço em buscar o sentido
mais amplo dessa questão – certamente encontrado em seus últimos escritos, deverá,
todavia, voltar-se aos conceitos a partir dos quais apresenta os elementos constitutivos da
tragédia o apolíneo e o dionisíaco e a relação existente entre eles, na qual poderemos
situar sua posição preliminar na trajetória histórico-filosófica do trágico. Além disso, a
superação do pessimismo será a principal empreitada do projeto da arte trágica.
18
As concepções tradicionais sobre a tragédia são abandonadas por
Nietzsche, sobretudo a tese defendida por Aristóteles. Nietzsche desconsidera o que afirma
o filósofo a respeito de que a tragédia encena a catástrofe ao suscitar o temor e a piedade,
devido aos infortúnios pelos quais passava o herói
19
. Para ele, ao contrário, o sofrimento
vivido pelo herói representa aquilo que é indispensável e inevitável da vida, e não uma
18
De acordo com Rosa Maria Dias, “A tragédia proporciona aos gregos a possibilidade de experimentar o
dionisíaco e voltar para o dia-a-dia sem a visão pessimista da vida”. Ou seja, a experiência dionisíaca
proporcionada pela arte trágica permite a experiência de eternidade, desafiando a sentença pessimista de
Sileno sobre a preferível escolha de não existir a viver sob a constante ameaça da morte. Cf. DIAS, Rosa
Maria. Arte e vida no pensamento de Nietzsche. In: LINS, Daniel; COSTA, Sylvio; VERAS, Alexandre
(Orgs.). Nietzsche e Deleuze: Intensidade e Paixão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
19
ARISTÓTELES. Poética. § XIII, 1453a. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
(Os Pensadores).
20
condenação sob o aspecto de culpa e castigo, que o condena e responsabiliza por sua
infelicidade. O sofrimento pensando como punição pressuporia uma visão moralista de
mundo, fazendo com que o destino deixe de existir como obra de uma ação afirmativa.
Nietzsche exalta o aspecto da afirmação do destino, retratada na ação do herói trágico.
Apontei repetidas vezes para o grande equívoco de Aristóteles, quando
acreditava reconhecer os afetos trágicos em dois afetos deprimentes: no
horror e na compaixão. Se tivesse razão, a tragédia seria uma arte
perigosa para a vida, pois seria preciso prevenir os demais a seu respeito
[...] A arte, que em outros casos constitui o grande estimulante da vida,
uma embriaguez, uma vontade de viver, seria aqui prejudicial à saúde,
pois estaria à serviço de um movimento descendente, como se fosse
servidora do pessimismo.
20
Para Nietzsche, a tragédia não desperta “afetos deprimentes”, como
constatou Aristóteles, mas gera um impulso para a vontade de viver que se opõe ao
pessimismo. Em escritos posteriores a O Nascimento da Tragédia, Nietzsche retoma a
discussão do trágico a partir da ideia de que a arte é configurada como “grande estimulante
da vida”, que possibilita escapar da visão pessimista da existência.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche desenvolverá quatro temas
fundamentais: o primeiro será a elaboração de uma teoria da tragédia, fundamentadas nas
divindades Dioniso e Apolo. O segundo será a crítica da ciência e do otimismo da filosofia
socrática, segunda a qual o mundo é ordenado racionalmente. Em terceiro aparece o elogio
à arte, segundo a afirmação de que a existência se justifica enquanto fenômeno estético.
O quarto tema desenvolvido trata da oposição ao pessimismo e de sua superação na
celebração incondicional da vida. Essa questão está presente em toda a obra, significando a
base para a definição da tragédia. Ao tratar da superação do pessimismo, a obra também se
opõe ao otimismo socrático, pois a arte trágica não busca ordenar a existência
20
NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos. 15 [10] “O que é trágico?”, primavera de 1888. Tradução de Karina
Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
21
racionalmente, mas apresentar a possibilidade de afirmar e aceitar o destino na vivência de
cada instante. Esta afirmação, no entanto, não consistiria na rendição ao fatalismo e à
indiferença diante dos fatos, mas, ao contrário, é por meio da ação que ocorre a aceitação
trágica, cabendo ao próprio indivíduo se apropriar do destino, num agir “heróico”.
Tratando-se da discussão do nascimento da arte trágica, Nietzsche
considera que a tragédia grega atingiu sua perfeição pela reconciliação da embriaguez e da
forma, personificadas em Dioniso e Apolo, contrários que aparecem unidos pela primeira
vez, de forma sublime, na tragédia. Para tal esclarecimento, passa a distinguir o apolíneo e
o dionisíaco, entendendo Apolo como a divindade da luz, da clareza, da ordem e da
harmonia, fundado na aparência (schein), explicitado em O Nascimento da Tragédia
associado à maneira de como ele concebe o indivíduo, relacionando-o ao principium
individuationis
21
schopenhauriano.
[...] E assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um
indivíduo que erra, se esforça e sofre: esse, em geral, aparece com essa
nitidez e precisão épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de
sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisíaco por meio dessa
aparição alegórica. Em verdade, porém, esse herói é o Dioniso sofredor
dos mistérios, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da
individuação”.
22
Dioniso é a divindade da música e da embriaguez, que conduz ao Uno-
primordial, capaz de romper as fronteiras individuais e afirmar a alto-exaltação. A
embriaguez do dionisíaco rompe com as limitações individuais e conduz os seres à
unidade, manifestada na obra de arte: o orgiasmo dionisíaco dissolve o artista apolíneo.
Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma
comunidade superior. Ele desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto
21
Para Rosa Maria Dias, por “princípio de individuação” Schopenhauer entende o espaço e o tempo que
individuam, multiplicam e fazem suceder os fenômenos. Cf. Nietzsche e Schopenhauer: uma primeira
ruptura. 2003, Op. Cit. p.232.
22
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. Op. Cit. p.32
22
de, dançando, sair voando pelos ares. [...] Do interior do homem também
soa algo de sobrenatural: ele sente-se como um deus, ele próprio
caminha agora tão extasiado e elevado, como vira em sonho os deuses
caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte a
força artística de toda natureza, para a deliciosa satisfação do Uno -
primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.
23
A entrada de Dioniso na Grécia apolínea faz com que os helenos
deparem-se com a sabedoria pessimista de Sileno, que nega-se a aceitar a brevidade da
vida. Como forma de se protegerem desse pessimismo, os gregos passam a contemplar e a
se submeterem ao mundo onírico dos deuses do Olimpo. O mundo da criação tica é
refletido na arte trágica ao encenar a afronta da sabedoria de Sileno: “aquela inaudita
desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela moira [destino] a reinar
impiedosa sobre os conhecimentos”.
24
Daí nasce a tragédia, arte de traduzir em música,
dança e palavras as dores e alegrias da vida. Arte que combina uma dualidade estilística,
porque traz a lírica dionisíaca dos ditirambos e onírico mundo apolíneo, expresso na cena.
25
Assim, o que prevalece é a “aliança fraterna entre as duas divindades: Dioniso fala a
linguagem de Apolo e Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dioniso.”
26
Segundo Nietzsche, o ideal artístico das artes gregas instaurado por
Winckelmann levou em conta somente a existência de um único impulso: o apolíneo,
desconsiderando o dionisíaco. Tal perspectiva foi seguida por Goethe e tantos outros que
trataram qualquer outro impulso como transgressão que deveria ser punida com intuito de
retornar à harmonia original. Assim, para Nietzsche, seus precursores voltaram-se somente
para a compreensão da arte apolínea.
Em O Nascimento da Tragédia, Apolo e Dioniso são representantes vivos
de dois mundos artísticos diferentes e, juntos, expressam a visão de mundo do povo grego
23
Ibidem, § 1.
24
Ibidem, § 3.
25
Ibidem, § 8.
26
Ibidem, § 21.
23
e o universo mítico ao qual estavam ligados. O ponto de partida dessa análise será a
percepção da “serenojovialidade” (Heiterkeit)
27
dos gregos, a harmonia buscada tão
nostalgicamente pelos modernos.
Para Nietzsche, a passagem que ocasionou a luta para a reconciliação do
dionisíaco e do apolíneo, e que possibilitou o nascimento da tragédia, é descrito como uma
transformação de um fenômeno natural e um fenômeno artístico. O fenômeno natural é o
dionisíaco puro, selvagem, bárbaro e titânico; o fenômeno artístico é a arte trágica, o teatro,
a tragédia. “[...] Estabelecer uma aliança entre o dionisíaco e o apolíneo é transformar o
saber dionisíaco em arte”.
28
Na arte grega, o efeito supremo da civilização apolínea
aparece como alternativa ao sofrimento da existência e “[...] precisa através de poderosas
alucinações e alegres ilusões, triunfar sobre uma pavorosa profundeza da visão do mundo e
sobre a mais excitável sensibilidade ao sofrimento”.
29
Desse modo, a arte foi a maneira que
o povo grego encontrou para transfigurar sua dor e, assim, justificar sua existência. No
entanto, Nietzsche alerta que a criação dos deuses olímpicos não deve ser confundida como
uma forma de elevação moral, de santidade ou censura. Pois “aqui não nada que lembre
ascese, espiritualidade e dever, aqui nos fala uma opulenta e triunfante existência, onde
tudo que se faz presente é divinizado, não importando que seja bom ou mau.”
30
Ainda
nesse contexto, a individuação é representada pelo elemento apolíneo, e pode ser entendida
a partir da maneira como os gregos lidaram com a crueldade e a destruição, pela justa
disputa (agon), procurando se proteger de um mundo sombrio e aterrador, através da ilusão
artística. Descreve Nietzsche no § 3 de O Nascimento da Tragédia: “De que outro modo
27
Na tradução de J. Guinsburg de O Nascimento da Tragédia o termo é traduzido como “serenojovialidade”,
embora a tradução mais freqüente para griechische Heiterkeit tem sido “serenidade grega”, o que para o
tradutor é insuficiente e redutora por suprimir os demais sentidos do termo. Opta, então, pela composição de
dois sentidos principais da palavra ale Heiterkeit: serenidade e jovialidade. (Cf. Nota nº 2 da tradução).
28
MACHADO, 2006, p. 224.
29
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. Op. Cit. p.32.
30
Cf. Ibidem, § 3, p. 35.
24
aquele povo, tão excitável em sua sensibilidade, tão impetuoso em seus desejos, tão apto
unicamente em seus sofrimentos, teria podido suportar a existência, se esta, em sua glória
superior, não lhe tivesse sido mostrada em seus deuses?”.
31
Portanto, a noção de agon
32
pode ser compreendida através da noção de individualidade, isto é, de combate individual
que brilho à existência, tornando a vida do indivíduo digna de ser vivida, pela busca da
glorificação. Como escreve Machado (2006): “Se o suportável do sofrimento exige a
proteção da arte como meio de tornar a vida suportável, a solução homérica é velar,
encobrir o sofrimento criando uma ilusão protetora contra o caótico e o informe. Essa
ilusão é o principio de individuação”.
33
O que levou os gregos a criarem esse mundo
ilusório, de beleza e glória, e tão diferente da existência marcada pela dor e sofrimento, era
a presença de um impulso artístico responsável pela criação de formas, da bela aparência: o
impulso apolíneo, personificado no deus Apolo, cuja manifestação se pela produção das
formas, da beleza e da medida.
Entretanto, a teoria da tragédia construída por Nietzsche, a partir da qual
Apolo representa a medida e Dioniso o excesso, afirma ser Dioniso o grande herói trágico.
O ditirambo dionisíaco, incorporando o ideal apolíneo da medida, transmuta-se no ritual
que reproduz o próprio nascimento da tragédia, que etimologicamente “tragédia” tem
como significado a junção de tragos (“bode”) e oide (“canto”). Esta referência remete ao
culto ao deus Dioniso por seus seguidores, no qual um cortejo entoava cantos que
exaltavam o cultivo da vinha. O cortejo também representa a encenação do episódio mítico
em que um bode é levado ao sacrifício após comer as uvas cultivadas, tornando-se, assim,
31
Ibidem, p.29.
32
“Esta noção é tão central em “O agon em Homero” texto da distinção entre a teogonia titânica dos
horrores e a teogonia olímpica do júbilo que Nietzsche chega a considerá-la como “a mais nobre e mais
fundamental das idéias gregas”, um dos pensamentos mais notáveis da Grécia antiga, por libertar o grego do
abismo pré-homérico da selvagem crueldade feita de ódio e de prazer destruidor.” Cf. NIETZSCHE,
Samtliche Werke,1, p.792, 786, 787, 791; trad. bras. in Cinco prefácios para cinco livros não escritos, p. 86,
77, 78, 84. apud MACHADO, 2006, p. 203.
33
MACHADO, 2006, p. 206.
25
um ícone do ritual da embriaguez, da dança e da música do ditirambo dionisíaco. Do
entoar do canto pelos ditirambos nasce a arte trágica: “o coro dionisíaco a descarregar-se
sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo”.
34
Em desafio à sabedoria de Sileno,
ao pessimismo por ele anunciado, a efervescência dionisíaca do rito trágico, no cortejo das
bacantes, vem afirmar a vida como prazerosa, mesmo em sua brevidade e dor.
Nietzsche considera que toda representação na tragédia é na verdade a
expressão do dionisíaco, impulso responsável pela dissolução das formas, caracterizado na
arte figurada na música. Dioniso “aparece em uma pluralidade de figuras, sob a máscara de
um herói combatente [...]”.
35
Este impulso conduz o homem a buscar o que se está
escondido detrás da bela aparência das formas: um mundo desmesurado, selvagem e
aniquilador. Desse modo, o dionisíaco torna-se elemento essencial e dominante na tragédia
grega, isto é, “essa aliança precária dominada por Dioniso, pois na tragédia, é [Dioniso] o
fundo do trágico [...] sobre Apolo é Dioniso quem ruge”.
36
Nietzsche considera esses dois
impulsos como algo sempre presente, agindo sob oposição e reconciliação. A tragédia
representa uma obra de arte suprema por significar, ao mesmo tempo, uma metafísica – por
ser um conhecimento que se opõe ao saber socrático, e uma redenção, enquanto
justificação da existência. Tratando do aspecto metafísico, cabe observar que os impulsos
apolíneo e dionisíaco são antes impulsos cósmicos que regem o mundo, isto é, simbolizam
suas próprias forças estéticas. Partindo da idéia de mundo como um caos indiferenciado, as
forças nele mesmo presentes são utilizadas para criar uma ordem, através de formas e
imagens, movimento que se expressa no apolíneo, mas pela destruição também dessas
formas e imagens, o que se expressa no dionisíaco. Nietzsche denomina este mundo de
34
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. Op. Cit. § 8.
35
Ibidem, p. 32.
36
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Edmundo Fernandes dias e Ruth Joffily Dias.
edição. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p.8.
26
“Uno-primordial” (Ur-Eine), o “verdadeiramente existente” (Wahrhaf-Seiende), marcado
pela dor e contradição, num processo contínuo de criação e destruição.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche irá opor o dionisíaco ao saber
apolíneo que, segundo ele, encontrou seus limites ao aproximar-se da racionalidade e da
lógica e, assim, “todas essas indicações evidenciam, portanto que, se Nietzsche não se
denomina um filósofo apolíneo é porque nisso uma limitação e uma insuficiência, no
sentido de que, abandonando a si mesmo, o saber apolíneo se transforma em saber
racional”.
37
A sabedoria apolínea aparece então limitada por não ser uma afirmação integral da vida,
mas uma proteção contra o terrível da dor e do sofrimento, mostrando-se assim parcial, ao
deixar de lado algo que não pode ser ignorado e fatalmente se impõe: a outra força artística
da natureza, o dionisíaco, a afirmação da totalidade. Tal como descreve Deleuze sobre a
essência do dionisíaco: “Dioniso afirma tudo o que aparece, mesmo o mais áspero
sofrimento, e aparece em tudo o que é afirmado. A afirmação múltipla ou pluralista é a
essência do trágico”.
38
E , desse modo, expressa Nietzsche em referência à arte apolínea e
seu sentido pelo impulso dionisíaco:
“Só consigo, pois, explicar o Estado dórico e a arte dórica como um
contínuo acampamento de guerra da força apolínea: em uma
incessante resistência contra o caráter titânico-bárbaro do dionisíaco
podia perdurar uma arte tão desafiadoramente austera, circundada de
baluartes uma educação tão belicosa e áspera, um estado de natureza tão
cruel e brutal”.
39
Dessa forma, o saber dionisíaco revela os limites do saber apolíneo,
demonstrando sua impotência ao negar o lado sombrio e tenebroso da vida pela criação da
ilusão do individuo heróico, que se mostra insuficiente contra um saber aniquilador.
37
MACHADO, 2006, p.210.
38
DELEUZE, 1978, p.11
39
NIETZSCHE, 2005, p.29
27
Embora seja notável em Nietzsche um evidente elogio artístico de dar sentido à vida pela
expressão superabundante da força do individuo heróico, capaz de afirmar-se
esteticamente, “tal análise mostra-se reduzida quando sua preocupação se volta para
apresentar um saber mais importante e mais profundo que o apolíneo: o saber trágico”.
40
Tratando desse aspecto, na compreensão nietzschiana, Sócrates, ao incitar
um saber fundado na lógica e somente na razão, assinalou o fim da tragédia ao submeter a
arte ao julgamento desta, passando a considerá-la como atividade irracional, desmerecendo
os instintos e com isso assinalando a extinção do dionisíaco. “Sócrates na condição de
instrumento de dissolução grega, reconhecido pela primeira vez na condição de décadent
típico [...] ele não é nem apolíneo nem dionisíaco”.
41
Tendo em vista que a visão trágica de
mundo não se consolida com predominância na Grécia, que no século V a. C. surge a
concepção teórica de mundo advinda com o otimismo socrático, Nietzsche considera que o
filósofo ateniense assinala o fim da tragédia. Isso é constatado nas peças de Eurípedes
42
,
ao passo que apresentam um mundo ordenado racionalmente. O tema é tratado em O
Nascimento da Tragédia pela crítica ao socratismo e ao pensamento científico.
Ao assimilar os preceitos socráticos, a dramaturgia de Eurípedes
incorpora um estilo díspar das tragédias de Ésquilo e Sófocles. Desse modo, várias críticas
são lançadas a Eurípedes, sob a acusação de abandonar Dioniso e Apolo pela dialética e,
consequentemente, matar o gênio da música. “A divindade que falava por Eurípedes não
era Dioniso nem Apolo, mas sim um demônio de recentíssimo nascimento, chamado
Sócrates”
43
, diz Nietzsche, impiedosamente. Dessa forma, as obras de Eurípedes
40
MACHADO, 2006, p.210
41
NIETZSCHE. Ecce homo. Op. Cit. p. 83.
42
Aqui se trata da perspectiva de Nietzsche sobre o trágico e sua apropriação da tragédia. As peças de
Eurípedes, nesse sentido, não se distanciam do tema central das tragédias gregas: a apresentação das
narrativas míticas e heróicas; no entanto, embora consagre Dioniso, seu foco privilegia a racionalidade dos
heróis.
43
NIETZSCHE. O nascimento da tragédia. Op. Cit. § 12.
28
apresentam um traço racionalista na apresentação das peças, surgindo, então como “o
primeiro sóbrio a condenar os poetas bêbados”
44
. Com essa mudança ocorre o surgimento
do otimismo lógico, buscando, ao fim de cada encenação, alcançar uma certeza, uma
conclusão. A tragédia, contudo, não possui uma estrutura dialética, pois mostra-se
despretensiosa em solucionar as tensões da vida.
45
Nietzsche defende que a tragédia morre em decorrência do surgimento da filosofia
socrática e sua influência na obra de Eurípedes, que exclui o dionisíaco, dando lugar à
dialética e à ciência, que roubam a cena ao sobrepor-se à arte. Declara seu embate ao
racionalismo ao associar a filosofia de Sócrates ao fim da arte trágica, que o
racionalismo se opõe ao instinto, que não opera por meio da reflexão dialética.
Nietzsche critica a racionalidade socrática por sobrepor a ciência à arte, na
intenção de alcançar conceitos que se coloquem além dos fenômenos. A arte trágica não se
assemelha a isso, que busca justificar esteticamente a existência, mesmo através da
ilusão. Para Nietzsche, a sabedoria do artista revela ao espectador para a verdade de que
apenas as representações constituem o mundo. “A contradição enquanto essência das
coisas reflete-se na ação trágica [que] cria a partir de si mesma, a ilusão metafísica, que é a
intenção da tragédia.”
46
É a ilusão pela qual resulta o consolo metafísico possibilitado pela
arte, que confronta a visão pessimista que prefere a morte a sofrer o aniquilamento. A
tragédia traz a verdade exprimida no consolo metafísico, conduzindo os homens para a
44
Ibidem.
45
Em sua análise sobre a concepção dialética da tragédia por Hegel, Roberto Machado afirma que o conflito
trágico tem como finalidade uma “reconciliação”, que ocorre ao final de cada saga trágica. Esta é a
reconciliação do indivíduo com o próprio destino. As concepções hegeliana e nietzschiana se aproximam
nesse aspecto, pois o herói se redime ao cumprir aquilo que lhe foi destinado. No entanto, para Nietzsche, o
que prevalece é dissonância, no plano fenomênico. Ao passo que somente o Uno-primordial conduz à
unidade e à totalidade. Embora Nietzsche apresente uma aliança fraterna entre Apolo e Dioniso, opostos que
se unem por uma reconciliação que gera a arte trágica, essa dualidade se faz por meio dos impulsos apolíneo
e dionisíaco, predominando o dionisíaco. Cf. MACHADO, 2006, pp. 136, 220.
46
NIETZSCHE. Fragmentos Póstumos, 8[2]. Inverno de 1870-7, outono de 1872.
29
certeza da eternidade. Ela assegura a eternidade pela visão de que mesmo no ocaso o
jubilo, mesmo que pela derrota vitoriosa.
O tema da justificativa estética da existência é amplamente tratado em O
Nascimento da Tragédia. Nietzsche afirma que apenas “como fenômeno estético o mundo
e a existência podem justificar-se eternamente”.
47
Tal sentença remete à ideia de que os
fenômenos e a aparência podem traduzir a única verdade sobre a realidade, tendo em vista
a constatação de que a arte trágica não busca como finalidade a ilusão, que apresenta
consolo pela verdade da aparência.
A percepção da vida como fenômeno estético leva a compreensão de que
a realidade tem como essência o que pode ser percebido pela aparência, ou seja, por ela
(aparência) limitada. A arte trágica tem como função revelar a verdade da vida ao conduzir
o homem ao Uno-primordial, isto é, à unidade. O conhecimento verdadeiro a que se refere
associa-se à perspectiva dionisíaca que a tragédia apresenta, ao mostrar que existe algo
indefectível e infinito, mesmo com o aniquilamento individual do herói. Essa verdade
sobre a essência imutável do Uno-primordial é transmitida pelo coro trágico, distanciando-
se do mundo apolíneo da mudança dos fenômenos.
O objetivo de Nietzsche, contudo, não é estabelecer uma teoria
sistemática fundamentada na “verdade”, como elaborada pelos metafísicos, que “o saber
absoluto conduz ao pessimismo: o melhor remédio contra ele é a arte.
48
O pensamento
socrático, ao buscar fundar a verdade absoluta, pretende atingir o impossível, pois almeja o
fundamento último sobre a realidade.
A tragédia pertence aos métodos de consolo dos caracteres passionais e
indomáveis. Aconselha a aguardar pela tranqüilidade e liberdade interior
que está além deste mundo. Desse modo, ela afasta temporariamente a
47
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. § 5.
48
____. Fragmentos Póstumos, 19[52], verão de 1872.
30
insatisfação moral de tais naturezas consigo mesmas: não ser capaz do
impossível não deveria ser motivo de aflição.
49
Nietzsche enaltece a sabedoria trágica dos gregos justamente porque ela
traz a ideia de que a arte proporciona consolo para encarar as limitações da vida; num viver
eterno de cada momento, de cada instante. Sendo assim, mesmo com sofrimento, o destino
trágico é afirmado, pois o que é doloroso também é celebrado; isso se distancia do
pessimismo ao qual a tragédia poderia submeter; mas este é enfraquecido, devido à total
aceitação do aniquilamento experimentado. Há, no entanto, a constatação de que o
sofrimento é inocente e não merecido. De acordo com Rosa Maria Dias “a infelicidade não
é um castigo, mas alguma coisa a partir da qual o homem é consagrado [...] levado a
tornar-se um personagem sagrado”.
50
Nessa consideração sobre a existência, portanto,
pessimismo e tragédia se desvinculam.
1.2 A herança schopenhauriana: Ruptura e Continuidade
Sabe-se que o próprio Nietzsche irá assinalar seu rompimento com
Wagner e também sua aversão a Schopenhauer, ao rever os equívocos de sua obra da
juventude, como foi apontado anteriormente, fato que aparece consumado quando diz:
“Ela cheira escandalosamente a hegeliana e em apenas algumas fórmulas é acometida pelo
veneno amargo-cadavérico de Schopenhauer [...] justo a tragédia é prova de que os gregos
não foram pessimistas: Schopenhauer se engana neste como em todos os outros pontos”.
51
49
Ibidem, 3[65] 123, primavera de 1880.
50
DIAS, Rosa Maria. Dioniso na Grécia apolínea. In LINS, Daniel; PÁL PELBART, Peter (Orgs.)
Nietzsche e Deleuze: bárbaros e civilizados. São Paulo: Annablume, 2004. p. 205.
51
NIETZSCHE, F. Ecce homo, Op. Cit., p. 83.
31
Entretanto, a esse respeito, parece inegável que as primeiras
considerações de Nietzsche acerca da tragédia passam pelos caminhos traçados por
Schopenhauer, sobretudo na construção dos conceitos fundamentais que constituirão sua
filosofia a partir de O Nascimento da Tragédia. Por isso, será imprescindível que uma
compreensão que se pretenda mais profunda do pensamento de Nietzsche acerca do trágico
esclareça o afastamento de sua filosofia das marcas schopenhaurianas.
Para Rosa Maria Dias (2003), não é sentido considerar que uma ruptura
radical de Nietzsche com a filosofia de Schopenhauer só aconteceu em 1875-1876, quando
ele se separou de Wagner, pois uma análise de O Nascimento da Tragédia pode revelar o
quanto o livro é provido de fórmulas emprestadas da filosofia de Schopenhauer. “Dioniso e
Apolo seriam a transposição da relação entre vontade e representação, ela mesmo derivada
da distinção kantiana entre coisa em si e fenômeno.”
52
Todavia, a autora reconhece que há
indícios preliminares de que um afastamento dos conceitos schopenhaurianos podia ser
notado em fragmentos póstumos de 1870-1871, anteriormente à concepção de O
Nascimento da Tragédia, nos quais Nietzsche apresenta críticas à metafísica de sua
filosofia, em antecipação às mais severas que faria ao autor de O mundo como vontade e
representação a partir de 1875. O ponto de partida, segundo a autora, diz respeito à visão
schopenhauriana acerca da vontade. Para Schopenhauer, que utiliza a distinção feita por
Kant entre coisa em si e fenômeno, inserindo nesta a relação entre vontade e
representação, a vontade ocupa um lugar fundamental.
“Apesar de toda ordenação que caracteriza nosso campo da consciência,
de toda regularidade, que parece fazer do mundo da representação o lugar
mesmo da verdade, tudo seria mesmo um sono vazio ou uma insana
quimera, se não houvesse mesmo uma coisa mais fundamental, mais
52
Cf. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e Schopenhauer: uma primeira ruptura. In: FEITOSA, 2003, Op.Cit. p.
238.
32
fisicamente real: o mundo da vontade, O mundo é para Schopenhauer,
sobretudo, vontade.”
53
É através do corpo, segundo Schopenhauer, que se tem acesso a essa
realidade mais íntima, isto é, é através dele que o homem tem a consciência interna de que
ele é vontade “em si”. Porém isso não ocorre da visão do corpo visto de fora, no espaço e
no tempo, como objetivação da vontade, como representação, e sim enquanto
imediatamente experimentado em nossa vida afetiva “na alternância entre dores e
prazeres, faltas e satisfações, desejos e decepções que surge a vontade como essência e
princípio do mundo, como querer sem dono, transindividual, cego e sem razão, em sua
tenebrosa e abismal perpetuação.”
54
Para Schopenhauer, essa vontade é a força que move
o homem e que, antes de se objetivar em diversos fenômenos, de se exprimir na
multiplicidade dos indivíduos, a vontade se objetiva em formas eternas e imutáveis, que
não estão nem no espaço nem no tempo.
*
Nesse sentido, graças ao tempo, ao espaço, à
causalidade e dispositivos do intelecto humano, o ser único de qualquer espécie, a essência
genérica dos objetos naturais, se apresenta como multiplicidade de seres da mesma espécie,
num nascer e perecer incessantemente renovado, em sucessão infinita.
A vontade, portanto, na compreensão de Schopenhauer, age como um
impulso cego e gratuito, com anseio ávido de vida, “que se objetiva imediatamente em
idéias e mediatamente em fenômenos”
55
. Pelo princípio da individuação, a unidade
primitiva da vontade se multiplicaria, constituindo, assim, o mundo dos fenômenos –
expressão e produto da vontade. Para Schopenhauer, o homem é objetivação em grau mais
elevado da vontade, na qual ela representa a si mesma com maior perfeição. E a dor e a
53
SCHOPENHAUER, apud DIAS, 2003, Op.Cit. , p. 232.
54
Ibidem.
*
Schopenhauer se apodera das “idéias platônicas” ao formar tais conceitos. Elas são os arquétipos das coisas
particulares, as primeiras objetivações do querer da natureza, isto é, realidades intermediárias entre a vontade
uma e a multiplicidade das individualidades.
55
Ibidem. p. 233.
33
destruição fazem parte da ordem das coisas, decretada pela mundo das vontade,
criminalmente indiferente ao destino dos indivíduos. Além disso, a vontade humana é
dominada por egoísmos, e a satisfação de um indivíduo acarreta o sofrimento de outro.
A experiência estética, na filosofia schopenhauriana, será a
possibilidade de afastamento desse estado de coisas. Nela reside o meio pelo qual o
homem pode se libertar da vontade, do desejo e, conseqüentemente, da dor. Por meio da
arte, “subtraímo-nos, por um momento, à odiosa pressão da vontade, celebramos o sabá da
servidão do querer [...]”
56
. A percepção estética, representação intuitiva pura na qual não
intervêm nem o entendimento nem a razão, sempre conceituais, é visão imediata e direta.
O sujeito, nesse estado, torna-se sujeito puro de conhecimento, isto é, destituído de
vontade. Como gênio, ele não olha o presente, a dor, o tédio e a paixão - , sua visão é
independente do princípio da razão, mas ligada à contemplação pura, da eternidade, na
qual alcança o interlúdio de sabedoria.
Diferentemente de Schopenhauer, para Nietzsche, a vontade é dor e
prazer supremos ao mesmo tempo, e não mais a pura dor, do puro sofrimento. Dor e prazer
encontram-se juntos e se interpenetram sob o fundo de uma alegria metafísica.
“A vontade é uma forma de fenômeno (Erscheinung), ou, ainda, a vontade pertence à
aparência (schein). [...] Não é nada mais do que a própria aparência.”
57
Para Nietzsche,
portanto, a aparência é o conceito mais geral, e a vontade torna-se então um caso mais
particular da aparência. Ou seja, a vontade nada mais é do que aparência e fenômeno.
Segundo Haar (1993), Nietzsche conserva a distinção do ser verdadeiro e originário da
aparência, mas ela própria permanece intrafenomênica. Para essa afirmação, Haar
fundamenta-se no seguinte fragmento de Nietzsche: “O querer, o uno originário, é ele
56
SCHOPENHAUER, A. Le monde comme et représentation. Trad. Bourdeau e Ross. Paris: PUF, 1978. §
38.
57
NIETZSCHE. Fragmentos póstumos, dezembro de 1870-abril de 1871, 7[167] apud DIAS, 2003, p. 241.
34
mesmo um fenômeno: não caminho em direção ao uno originário. Ele é inteiro
fenômeno.” Dessa forma, a aparência não significa pura ilusão, mas aparição. E nesse
sentido, contrariamente a Schopenhauer, a aparência, em Nietzsche, já deve se encontrar na
vontade.
58
Sendo assim, enquanto que para Schopenhauer o gênio é o sujeito do
conhecimento, que se desvincula do mundo da representação, num breve estado em que o
intelecto se volta contra a vontade e contra a ordem da natureza, para Nietzsche, o próprio
ser quer se tornar representação, ou seja, necessita da aparência para aliviar seu tormento
original. Nesse sentido, a vida é toda representação, como espelho do Uno-primordial.
Portanto, se a vontade tem necessidade de representação, a
representação está na vontade ou a ela está originalmente associada. E nesse viés, a
arte não é imitação das idéias, mas produção originária das aparências; e essas não são nem
puras ilusões nem degradações de uma instância mais originária, mas aparições. E na
tragédia, o coro se exterioriza em aparências, projetando na máscara trágica a presença
mesma de Dioniso.
Nos helenos a vontade anseia pela existência, que deve ser transfigurada
na aparição apolínea. Diante do horror da sabedoria dionisíaca, o mundo grego volta-se à
materialização da beleza por meio do impulso apolíneo. A vontade utiliza-se das
aparências para atingir seu objetivo: suprimir sua dor e livrar-se da contradição original.
Nos gregos a vontade queria, transfiguração do gênio e do mundo
artístico, contemplar-se a si mesma: para glorificar-se,suas criaturas
precisavam sentir-se dignas de glorificação, precisavam rever-se numa
esfera superior, sem que esse mundo perfeito da introvisão
[Anschauung] atuasse como imperativo ou como censura.
59
58
Cf. DIAS, 2003, p. 242.
59
NIETZSCHE, F. O Nascimento da tragédia, Op. Cit. , § 3.
35
Segundo Nietzsche, a vontade, por um fenômeno eterno, sempre busca
meios para unir suas criaturas à vida, como um estímulo que as move a continuarem
vivendo e jamais negá-la, como ocorre em Schopenhauer.
60
Diz ele (Schopenhauer) em O mundo como vontade e representação”II
p. 495: é o surgir do conhecimento de que o mundo, a vida não podem
proporcionar verdadeira satisfação e portanto não são dignas de nosso
apego: nisso consiste o espírito trágico ele conduz à resignação”..quão
diversamente falava Dionísio comigo!
61
Desse modo, o apolíneo e o dionisíaco representam estágios do Uno-
primordial enquanto forças que, incessantemente, buscam redimir-se por uma
reconciliação, exprimindo-se na arte. A aparência torna-se uma necessidade para a
libertação. Nas formas estéticas, a vontade se expressa buscando sua efetivação,
glorificando-se nas vontades individuais. Nesse ciclo, o dionisíaco é o conhecimento da
dor intrínseca do Uno-primordial refletido na própria existência individual que busca
proteger-se. Daí, vemos o efeito apolíneo, oferecendo, pelas formas de beleza, pela arte, a
proteção e a glorificação da vontade, que conduzirá à aceitação da realidade. Nesse
sentido, a vontade, e não Apolo, é o primeiro artista, pois o artista, ao criar sua obra,
realiza uma tarefa maior também efetivada pelo mundo, na qual ele mesmo é uma
imagem, porém uma obra necessária para a efetivação dessa tarefa, isto é, desse processo
que o mundo realiza.
[...] Na medida em que o sujeito é um artista, ele está liberto de sua
vontade individual e tornou-se um médium através do qual o único
sujeito verdadeiramente existente celebra sua redenção na aparência. [...]
nós somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e
proteções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso
significado de obras de arte pois como fenômeno estético, podem a
existência e o mundo justificar-se eternamente.
62
60
Cf. Ibidem, §18.
61
Ibidem.
62
Ibidem, § 5.
36
Na perspectiva de Nietzsche, através da arte trágica, os gregos
reproduziam esse processo, pois o conhecimento do mundo era possibilitado pelo estado
dionisíaco que, sendo ele mesmo irrepresentável, manifestava-se a cada momento como
pulsão do Uno-primordial, ao mesmo tempo em que conduzia à percepção de que nossa
existência empírica é o verdadeiramente não existente (Nichtseiende), de modo que
acontece sob um ininterrupto vir-a-ser que age somente em representações, isto é, em
aparências do verdadeiramente-existente (Wahrhaft-seiende), que mesmo com todo
sofrimento, faz a vida digna de ser vivida.
63
Diferentemente de outras análises sobre a tragédia que consideram esse
impulso ao conhecimento uma falta, devendo ser punido por significar uma transgressão,
para Nietzsche, na tragédia, ele tinha como objetivo mostrar que tudo se faz por um jogo
estético, isto é, um jogo inocente de construção e desconstrução pelo puro prazer (o do vir-
a-ser), e não tinha objetivo de cumprir uma finalidade ou levar a uma purificação.
Contudo, importa observar que, para Nietzsche, este estado de unidade do homem com a
natureza não acontece como algo inevitável e tão simples a ponto de estar presente nas
bases da todas as culturas, mas age como conseqüência de uma determinada forma de
cultura, no caso do povo grego, um “supremo efeito da cultura apolínea”. O homem
moderno, segundo Nietzsche, está preso a uma ilusão cultural, pois sua natureza está ligada
a essa cultura e em função dela, assim como a arte, que estaria afastada da verdadeira arte
– aquela que deve possibilitar um vínculo vital com a natureza. O artista da cultura
moderna, tendo um saber ilusório, torna-se um adversário da verdadeira arte e não sua
origem. O verdadeiro artista, ao contrário, deve tornar-se um médium por meio do qual o
63
Ibidem, §4.
37
verdadeiro artista apareça, renunciando sua vontade individual, para que, na aparência, o
verdadeiramente existente celebre sua redenção.
Ainda nesse sentido, Nietzsche considera que o artista subjetivo já é um
mau artista por estar subordinado à vontade do empírico-real, a serviço de um “eu”, ao
contrário do que deve ser a verdadeira produção artística: a renúncia de toda subjetividade
e vontade individuais, numa “pura contemplação desinteressada.”
64
Do ponto de vista do espectador estético, Nietzsche entende que o mito
trágico faz com que o espectador se aprofunde para além do olhar, isto é, do superficial, e
penetre os mistérios das emoções inconscientes. Porém nota que, mesmo que seus
impulsos se dirijam à visibilidade, os efeitos artísticos apolíneos não são capazes de
suscitar os efeitos desejados: a contemplação livre da vontade, da individuação fim
último da arte apolínea. Ao passo que, a magia do dionisíaco é capaz de fazê-lo penetrar o
aniquilamento que sofre o herói trágico, sentindo prazer ao vê-lo diante do sofrimento e
buscando ao mesmo tempo o refúgio à unidade.
“O mito trágico deve ser entendido como uma afiguração da
sabedoria dionisíaca através de meios artísticos apolíneos: ele leva o
mundo da aparência ao limite em que este nega a si mesmo e procura
refugiar-se de novo no regaço das verdadeiras e únicas realidades.”
65
A imagem já não é mais suficiente, pois convidava para além do olhar, como num rasgar o
véu e ir além dos mistérios ocultos. No entanto, esse mesmo olhar é desviado, buscando na
aparência, a proteção frente uma profundidade ainda maior. Desse modo, é possível notar
que no mito trágico a ação de dois impulsos vitais: o apolíneo e o dionisíaco, um ao
lado do outro, numa ação do visível para além do visível.
64
Cf. Ibidem, § 5.
65
Ibidem, § 22.
38
Com o artista trágico ocorre o mesmo processo. Pois os dois impulsos
agem na sua ação, como um elemento da individuação ele cria formas, depois as destrói
num processo contínuo, e assim seu prazer torna-se ainda maior. Como diz Nietzsche: “O
seu imenso impulso dionisíaco engole todo esse mundo das aparências, para deixar
pressentir por trás dele, e por meio de sua destruição, uma suprema alegria artística no seio
do Uno-primordial”.
66
Segundo Nietzsche, somente através do espírito da música podemos
compreender a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois na individualidade de tal
aniquilamento que o eterno fenômeno dionisíaco se faz perceptível, pela arte,
à qual leva a expressão a vontade em sua onipotência , por assim dizer,
por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda a
aparência e apesar de todo aniquilamento. A alegria metafísica com o
trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente
inconsciente para a linguagem das imagens.
67
A arte trágica, nessa perspectiva, não é uma metafísica como ao mesmo tempo é um
conhecimento, pois pelo dionisíaco, é capaz de impulsionar a um conhecimento que leve à
vivência da realidade do mundo. Nessa realidade encontra-se a imagem do Uno-
primordial, que por meio de formas, se efetiva na aparência, num devir contínuo, da
percepção do finito. No entanto, o apolíneo, buscando evitar que este conhecimento leve à
negação da vida, oferece a arte, como proteção que deve triunfar diante das potências
dionisíacas, e assim, levando à aceitação da realidade. Nesse sentido, no conhecimento
dionisíaco prevalece a vivência trágica em oposição ao conhecimento teórico, pois é capaz
de conduzir à afirmação da vida. O conhecimento ao qual conduz o apolíneo, da beleza,
das formas, não possui uma finalidade moral, pois essa beleza não se evidencia com o Bem
66
Ibidem.
67
Ibidem, § 16.
39
ou com a Verdade, mas faz-se somente no estético. O que ocorre com o trágico é uma
transposição da instintiva sabedoria dionisíaca à linguagem das formas.
Portanto, o conhecimento que vemos, advindo da experiência
dionisíaca, se de foram imediata, isto é, sem a mediação de imagens, mas através de
uma intuição (Anschauung), livre de conceitos. Assim, este conhecimento ulterior diverge
do conhecimento socrático, pois nele a vivência está acima do discurso racional. Além
disso, ele não é moral, pois não se vincula ao conceito de Bem ou Verdade. Com objetivo
de justificar o horror da existência, as belas formas atuam como um antídoto contra o
horror da sabedoria trágica, gerada pelo dionisíaco. O sentido de ser da tragédia encontra-
se na justificação estética do eterno movimento de criação e destruição das formas, no qual
a arte está a favor da vida e do eterno vir-a-ser. Essa consolação metafísica não nega o
aspecto de horror da vida, mas o transfigura em representação que sentido à existência.
O homem dionisíaco, portanto, será capaz de afirmar a vida mesmo diante do absurdo da
existência e do sofrimento individual, afirmando-a num sim incondicional e além da
individualidade, mas em sua totalidade.
A finalidade da arte trágica consiste na aceitação da vida mesmo diante
da dor e do sofrimento, pois seu aniquilamento nada afeta a ação da vontade como essência
da vida. Diante disso, procura fazer com que o espectador se alegre com o sofrimento do
herói que sucumbe, pois a destruição da individualidade não significa o aniquilamento da
força do mundo e da vontade. Este é o ensinamento proporcionado pela tragédia: permitir
conduzir ao conhecimento da unidade de tudo o que existe e tomar a arte como jubilosa
esperança pela qual o feitiço da individuação possa ser rompido, como pressentimento de
uma unidade restabelecida.
68
A arte surge como possibilidade de salvação diante dos
pensamentos que constatam o horror da existência, criando representações que possibilitem
68
Cf. Ibidem, § 10
40
o homem viver. A arte apolínea tem a missão de fazer com que a beleza triunfe sobre o
sofrimento e a dor inerentes à vida; a dionisíaca deseja revelar o eterno prazer da
existência, algo que não acontece pela aparência, mas na percepção de que o sofrimento
não deve ser negado, mas sim, ser afirmado em toda sua plenitude. O contrário seria sua
negação que conduziria à superficialidade e consequentemente, à decadência. Para
Nietzsche, a arte trágica é uma metáfora do mundo, no sentido de que reproduz a sua
dinâmica. O processo que a arte trágica representa é o mesmo que ocorre no mundo e daí
sua importância ser capaz de reproduzir essa mesma dinâmica. O mundo, como eterna
possibilidade do criar e do vir-a-ser, não permite espaço para o determinado, para verdades
absolutas, pois sua única verdade é a constante transformação, isto é, um eterno devir.
Em Nietzsche, portanto, o trágico terá um novo sentido: a afirmação da
vida sob todas as suas condições, alegres ou duras, sendo ela mesma um incessante e
inocente jogo que deseja o viver.
Com o prenúncio da morte da tragédia, advinda da dialética, Nietzsche
aposta, no inicio de sua filosofia, no renascimento do trágico: “Ousai, agora, ser homens
trágicos: sereis, pois, redimidos.”
69
Desse modo, a filosofia de Nietzsche, elaborada em O
Nascimento da Tragédia, pretende significar o anúncio do retorno da arte trágica, isto é, o
renascimento do espírito trágico na Alemanha do século XIX. Esse intuito é claro pela
dedicação de sua obra a Wagner e por aquilo que sua música viria fazer pela nação alemã.
No entanto, o rompimento com a música wagneriana faz com que o ideal de Nietzsche não
se concretize, porém, ainda na obra, percebe-se o despertar não somente do renascimento
de uma era trágica, mas de uma perspectiva filosófica trágica.
69
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia. Op. Cit., § 20.
41
CAPÍTULO II – A VISÃO TRÁGICA DA EXISTÊNCIA
42
2.1 A afirmação dionisíaca contra a negação metafísica e moral
Se O Nascimento da Tragédia apresenta-se como um livro controverso,
no qual o objetivo utópico é o renascimento da arte trágica e, concomitantemente,
apresentar um pensamento filosófico que se opõe ao socratismo e à moral cristã, Nietzsche
se tornará o perito de suas próprias promessas, buscando, com cautela, o esclarecimento de
suas interpretações – o que fará pelas autocríticas.
70
O fato de ter reproduzido, de início, algumas fórmulas schopenhaurianas e
até mesmo hegelianas é assumido por Nietzsche, no que concerne à oposição apolíneo
dionisíaco, que remeteria a um propósito metafísico. Entretanto, seu objetivo era
compreender o dionisíaco enquanto fenômeno, isto é, impulso (instinto) não-metafísico,
passando, então, a ter a metafísica como adversária. O combate de Nietzsche à metafísica
inicia quando reconhece em Sócrates um sintoma de decadência:
71
A oposição se volta
também ao cristianismo, ao passo que Nietzsche considera a religião cristã distante dos
valores tanto apolíneos quanto dionisíacos, pois “nega todos os valores estéticos”.
72
Ao
negar tais valores, o cristianismo fundamenta-se na moral, que se tornará antagonista da
filosofia nietzschiana.
A oposição entre falso e verdadeiro, segundo Nietzsche, é uma
necessidade dos décadents, por não suportarem a realidade tal como é apresentada.
73
A aceitação do mundo tal como ele é consiste na afirmação da existência sem julgamentos
ou negação dos seus aspectos mais sombrios. Desse modo, Nietzsche coloca sob suspeita a
70
Nietzsche não tende a uma ruptura com o pensamento trágico por meio de suas autocríticas, mas procura
esclarecer algumas questões de O Nascimento da Tragédia. Para Miguel Nascimento, a pretensão de
Nietzsche não era romper com suas ideias iniciais, mas se rompimento este é no sentido de mudar a
perspectiva em relação a esse pensamento, sem explicitar uma “correção”: a ruptura vem ressignificar o
trágico e fazer crítica ao caráter moral da filosofia”. Cf. NASCIMENTO, Miguel Antonio. Interpretação do
trágico em Nietzsche. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. p. 28.
71
NIETZSCHE. Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, Op. Cit. § 1.
72
Ibidem.
73
Ibidem, § 2.
43
metafísica, cuja estrutura está na dualidade entre verdade e representação, rompendo com a
filosofia tradicional e evitando estabelecer tais fundamentos, ainda que na juventude
recorra à oposição verdade-mentira para acusar os decádents e sua crença falsificadora.
Quando busca esclarecer os pressupostos de sua primeira obra, em 1888,
Nietzsche procura redimir-se dos elementos que na ocasião marcou seu pensamento:
Wagner e Schopenhauer. Assume, portanto, as ideias que defendera e demonstra a intenção
maior de seu propósito trágico da juventude: superar o pessimismo que é revestido da
metafísica e da moral. No prefácio Tentativa de Autocrítica (1886) a intenção se mostra
evidente quando retoma as indagações feitas na época em que elaborou suas investigações
sobre a arte trágica: “O que significa, entre os gregos da melhor época, da mais valorosa,
da mais forte, o mito trágico? E o fenômeno dionisíaco? O que significa, dele nascida, a
tragédia?”
74
Essas indagações demonstram o não esgotamento das questões sobre o trágico
desde a publicação de seu primeiro livro: o dionisíaco como elemento essencial para a
compreensão trágica da existência e a crítica ao socratismo.
Para Nietzsche, a ciência e a arte constituem-se de duas maneiras opostas
de se compreender a realidade. A arte proporciona consolo à vida, através da ilusão, que
transmite a verdade pelo êxtase, e a ciência por assegurar verdades irrefutáveis. Ambas
podem proporcionar consolo e alívio. Afirma que chegou ao aprendizado de “um novo
problema: hoje eu diria que foi o problema da ciência mesma – entendida pela primeira vez
como problemática e questionável.”
75
Admitindo a polêmica despertada em seu “temerário” livro, dezesseis
anos mais tarde, declara que trata-se de “olhar a ciência com a ótica do artista, mas a arte,
com a da vida”.
76
Essa ótica do artista, anunciada em 1871, torna-se a perspectiva de
74
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, Tentativa de Autocrítica (Prefácio), § 1.
75
Ibidem, § 2.
76
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, Tentativa de Autocrítica (Prefácio), § 2.
44
Nietzsche para ver a existência, para pensá-la artisticamente; no entanto, a vida mesma
assume o propósito de revelar a arte. Arte e vida se unem no sentido de criar uma nova
“medida” para que se possa compreender o mundo ensinamento da tragédia: o
dionisíaco. Desse modo, quando Nietzsche diz que a ótica da vida passa a vislumbrar a arte
significa que sua visão de mundo pôde aprender com os poetas trágicos a estabelecer uma
nova relação com o mundo, capaz de superar a própria arte, sendo essa configuração
estética a única justificativa possível para o existir.
A arte trágica concebe valores estéticos pelos quais os gregos podem
aceitar o ocaso, o sofrimento e a dor. Por esses valores são capazes de superar o
pessimismo cujo impulso era para a náusea da negação da existência. No entanto, ao
morrer a tragédia, uma nova visão sobre a vida surge e se reaproxima do pessimismo. Os
questionamentos de Nietzsche acerca da época trágica dos gregos voltam-se para a moral
que se instaura desde a morte da tragédia. Nesse sentido, Nietzsche assimila o pensamento
socrático-platônico à tradição cristã, contrapondo suas perspectivas a essa doutrina. Sendo
assim, para Nietzsche, a tradição metafísica e o cristianismo denotam, em sua moral,
sintoma de hostilidade à vida.
O ódio ao ‘mundo’, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à
sensualidade, um lado-de-inventado para difamar melhor o lado de cá,
no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso, [...] tudo isso, não
menos que a vontade incondicional do cristianismo de deixar valer
apenas valores morais, se me afigurou sempre como a mais perigosa e
sinistra de todas as formas possíveis de uma ‘vontade de declínio’, pelo
menos um sinal da mais profunda doença, cansaço, desânimo, exaustão,
empobrecimento de vida.
77
A referência de Nietzsche à moralidade é no sentido de considerá-la a “vontade de
declínio”, isto é, o anseio pelo nada, que conduz ao niilismo; resultante da desvalorização
da visão trágica em razão do otimismo científico. A moral que se oculta no conhecimento
77
Ibidem, § 5.
45
científico é denunciada pela perspectiva trágica, pela qual surge “uma filosofia que ousa
rebaixar a moral ao mundo da aparência e não somente entre as aparências [...] mas entre
os ‘enganos’”.
78
A filosofia de Nietzsche tem como objetivo a superação desse estado de
niilismo.
Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o
meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si,
fundamentalmente, uma contra-doutrina e uma contra-valoração da vida,
puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de
filólogo e homem das palavras eu a batizei [...] com o nome do deus
grego: eu a chamei dionisíaca.
79
A “contradoutrina” de Nietzsche, denominada dionisíaca, visa à
superação da moral. É por meio do termo “dionisíaco” que define sua perspectiva em prol
da vida e sua busca como filósofo em constituir um pensamento antidogmático e anti-
metafísico, que assume os elementos negados pela moral cristã. Essa é a busca que
conduziu a filosofia nietzschiana no estudo da tragédia e a escolher o deus da embriaguez,
mesmo com as desconsiderações em relação à obra. Importa, portanto, elevar Dioniso
como o “combatente” necessário à superação das doutrinas que renegam a existência.
Entretanto, cabe esclarecer que não se trata do dionisíaco associado ao Uno-primordial,
mas da postura afirmativa tomada pelo deus que desafia a morte.
A noção de consolo metafísico, presente em O Nascimento da Tragédia,
também é questionada pela “contradoutrina” dionisíaca, pois o entendimento final trazido
em Tentativa de Autocrítica revela que o que Nietzsche procura solucionar, tratando-se dos
“enganos” cometidos, é o ensinamento de como superar todo o consolo metafísico,
inclusive o que defendera em sua obra inicial, tratando-se do alívio produzido pela arte.
Evitando todo e qualquer “romantismo de consolo”, declara: “devereis aprender a rir, meus
78
Ibidem.
79
Ibidem.
46
caros amigos, se quereis continuar sendo por completo pessimistas; talvez, em
conseqüência disso, como ridentes mandeis para o diabo toda ‘consoladoria’ metafísica – e
a metafísica, em primeiro lugar!”
80
. Com O Nascimento da Tragédia, portanto, Nietzsche
inaugura sua crítica à metafísica (socrática), à moral (judaico-cristã) e, concomitantemente,
ao niilismo, construindo uma filosofia do trágico por meio da oposição e reconciliação
entre apolíneo e dionisíaco, recusando o pessimismo e decidindo por afirmar a vida.
Dessa forma, a crítica apresentada tardiamente neste prefácio indica um
acerto de contas em relação aos equívocos e polêmicas da obra, pois a questão do trágico
permanece conservada na filosofia nietzschiana. A fórmula do consolo metafísico da arte é
abandonada por Nietzsche, mas a perspectiva dionisíaca nascida com a tragédia é mantida.
Desse modo, a permanência dionisíaca marca a escolha de Nietzsche e torna-se um
horizonte por ele seguido em toda sua perspectiva filosófica.
Tal apropriação do dionisíaco será evidente em Crepúsculo dos ídolos,
de 1888-9, quando Nietzsche intitula-se o “último discípulo de Dioniso”
81
. Ainda nesta
obra são retomados os conceitos apolíneo e dionisíaco, tendo em vista a superação do
pessimismo pela afirmação da vida, ensinamento provindo da tragédia: “O artista trágico
não é um pessimista. Ele diz sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de
produzir terror, ele é dionisíaco.”
82
Por essas declarações, é possível notar que o tema do
trágico aparece mesmo no momento final da produção intelectual de Nietzsche, pois
fórmulas de O Nascimento da Tragédia são retomadas e Dioniso consagrado como seu
mestre ao assumir-se seu discípulo.
80
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, Tentativa de Autocrítica (Prefácio), § 7.
81
_____. Crepúsculo dos ídolos – ou como filosofar com o martelo, “O que devo aos antigos”, § 5. Op. Cit.,
2 ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
82
Ibidem, “A razão na filosofia”, § 6.
47
Em A Gaia Ciência (1881-2) sua devoção a Dioniso também pode ser
encontrada, ao lamentar o “pessimismo romântico” predominante no período, almejando
pelo “pessimismo dionisíaco”
83
. Nesse caso, o pessimismo dionisíaco” é apresentado
como trágico, e adquire esse sentido como possibilidade de aprofundar sua crítica ao
wagnerismo e a Schopenhauer, embora Nietzsche evite mencionar o termo (trágico),
visando o afastamento das fórmulas de sua análise sobre a tragédia. No entanto, o sentido
trazido pelo pessimismo dionisíaco é ainda o que afirma a existência pelo “sim”, que
afirma os valores estéticos e trágicos, diferentemente daquele que empregara como oposto
aos valores vitais. Mesmo não associando diretamente o dionisíaco ao trágico, na tentativa
de se afastar dos resquícios da metafísica de artista, ele é mantido, pois o dionisíaco o
perpetua e o torna essencial em toda filosofia nietzschiana.
Em 1888, quando realiza uma auto-análise, Nietzsche finaliza com o
questionamento frente à possibilidade de ser compreendido; seguindo com a revelação de
um novo antagonista de Dioniso: o Crucificado
84
. Em Ecce homo, quando se refere pela
última vez a Dionísio, o faz colocando a moral cristã como problema diante do trágico,
pois sua filosofia posiciona-se como adversária dessa moralidade, que nega a vida e, por
isso, é oposta ao dionisíaco trágico. Desse modo, ao apresentar um novo antagonista de
Dioniso, Nietzsche sinaliza a mudança em relação ao sentido de “dionisíaco”, que passa a
ser relacionado a aniquilamento e vitalidade. Assim, o conceito de dionisíaco adquire
maior dimensão em diferentes passagens da filosofia nietzschiana, passando a ser projetado
além da metafísica e da moral. Principalmente em Além do Bem e do Mal e Genealogia da
83
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 370, Op. Cit. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
84
A crítica de Nietzsche se volta contra a instituição do cristianismo, isto é, à religião cristã, que Nietzsche
dissocia do projeto do cristianismo primitivo, iniciado por Jesus Cristo, pois declara: “com alguma tolerância
na expressão, poder-se-ia chamar Jesus de ‘espírito livre’” (Aurora, § 32). Em O Anticristo essa diferença é
apresentada quando critica a apropriação da proposta pela Igreja, que o transforma numa moral que nega a
existência, significando uma vulgarização do próprio cristianismo: “no fundo, existiu apenas um cristão, e
esse morreu na cruz. O evangelho ‘morreu’ na cruz” (Aurora, § 39).
48
Moral, as transformações sofridas pelo pensamento de Nietzsche em relação ao trágico
são bem notáveis, que o propósito agora está em torno da moral judaico-cristã e não
mais na superação do pessimismo que se punha na tragédia, ora pela sabedoria de Sileno,
ora pela filosofia de Schopenhauer. O combate iniciado por Nietzsche é agora contra à
moralidade, o que consiste numa nova postura filosófica, trágica e fundamentalmente
dionisíaca.
Ao retratar Dioniso, após 1872, Nietzsche intensifica seu propósito
filosófico, representando o dionisíaco como possibilidade de transgressão dos valores
morais e metafísicos. Dioniso é personificado como deus da força e do caos e, nesse novo
aspecto, Apolo também é considerado, pois a capacidade de criação e representação é parte
inerente dessa nova perspectiva dionisíaca, que é tanto criação quanto destruição.
O desenvolvimento de um pensamento que afirme dionisiacamente a
vida demonstra a preocupação de Nietzsche em não querer sistematizar uma filosofia que
produza a moral, ao passo que esta contraria fundamentalmente a perspectiva dionisíaca de
afirmação plena da vida, pois se coloca na postura de julgar, submetendo o mundo a
parâmetros inatingíveis. Para a compreensão desse propósito, entretanto, é necessário
colocar-se além de bem e de mal, já que sua visão diante da existência opõe-se a toda visão
moral bem como aos valores por ela estimados.
Mesmo na recusa em sistematizar uma filosofia, Nietzsche admite haver
parâmetros que acentuam seu pensamento filosófico, pois busca estabelecer um elemento
pelo qual sua obra seja unida. Esse aspecto pode ser observado em Humano, demasiado
humano, de 1878, quando declara que todos os seus escritos conduzem à incitação e “à
inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados”, inaugurando uma “escola de
49
suspeita”
85
. Nietzsche sentia-se, no entanto, um desabrigado em sua pátria, algo que o
levou a inventar um abrigo próprio, poeticamente alicerçado na arte.
86
Esse isolamento,
marcado em Humano, demasiado humano, é conseqüência de sua ruptura com Wagner e
Schopenhauer, pois neste livro Nietzsche admite os equívocos e enganos a respeito desses
dois precursores de seu pensamento, diagnosticando o “incurável romantismo” de ambos.
Além disso, admite também seu engano referente à nação alemã e ao futuro.
87
Em Humano, demasiado humano, Nietzsche posiciona-se de forma mais
enfática e categórica contra os resquícios do pessimismo herdados por sua adesão à
filosofia de Schopenhauer. Do mesmo modo, argumenta tal adesão, dizendo que sua
interpretação da obra do filósofo revelaria o que ele mesmo pretendia dizer, na tradução da
filosofia de Schopenhauer para a sua filosofia, ainda em gestação, justificativa válida,
inclusive, para sua inclinação ao wagnerismo.
A noção de “consolo metafísico”, como já discutida no capítulo anterior,
é associada à necessidade dos gregos em criarem a arte trágica para encobrir e aliviar os
perigos e tormentos da existência. Essa necessidade, descrita em O Nascimento da
Tragédia, revela a ilusão apolínea e a embriaguez dionisíaca como necessárias a essa
condição, no sentido de proporcionarem um afugentamento dos males da existência.
Nietzsche passa a se distanciar de tais fórmulas quando analisa suas considerações sobre a
tragédia, modificando a importância dada ao consolo metafísico da arte.
a preocupação constante em romper com a concepção dualista da
realidade: fenômeno e coisa-em-si, mundo ideal e mundo sensível, buscando,
definitivamente, superar essa noção. Quando decide iniciar a crítica ao pensamento
metafísico, recorre, primeiramente, à arte, considerando-a uma elucidação da verdade pela
85
NIETZSCHE. Humano, demasiado humano, Prólogo, §1. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo.
Companhia das letras, 2005.
86
Ibidem.
87
Ibidem.
50
representação. Após 1871, essa teoria passa a ser modificada, pois a arte não aparece
como o meio para se compreender a falta de fundamentos. Essa mudança que ocorre na
filosofia nietzschiana, segundo Eugen Fink (1998), marca definitivamente a ruptura de
Nietzsche com Wagner, Schopenhauer e com as preocupações com a Grécia trágica, dando
lugar ao método da desconfiança, que, ao se distanciar da arte, aproxima-se da ciência.
O fato é que a força artística, a partir daí, sofre uma transformação e se
expande, pois sua função não se esgota como força consoladora, mas como perspectiva
artística capaz de confrontar e assumir a totalidade, sejam os prazeres e os males da
existência, sem, contudo, exercer a função consoladora, compreendida, anteriormente, pelo
arrebatamento dionisíaco. Diante da impossibilidade de se esgotar o conhecimento da
realidade, o que se tem é a possibilidade de compreender a verdade enunciada como
“interpretação” e “perspectiva”. De acordo com as interpretações de Nietzsche, no sentido
extra-moral, a filosofia e a ciência são desprovidas de verdades eternas, e por isso podem
se aproximar da arte. Entretanto, o consolo artístico é abandonado para suportar a escassez
de verdades eternas além do plano da realidade. Esse abandono, todavia, não permite uma
situação caótica e niilista, ao passo que considera a “mentira” como elemento
indispensável à vida, em sentido extra-moral.
No intuito de combater a metafísica, Nietzsche procura desvendar os
artifícios utilizados pela moral vigente para se sustentar filosoficamente, desmascarando as
tentativas de fundamento de um sistema universal e verdadeiro. Sua crítica a esse empenho
de se estabelecer a verdade aparece na passagem em que menciona a “superior proteção”
como tentativa de proteger-se das incertezas e instabilidades da existência.
88
Para
Nietzsche, entretanto, a vida é a arte do engano, pois “vive da ilusão”, e por isso não
acredita em qualquer meio pelo qual se atinja a verdadeira realidade.
88
NIETZSCHE. Humano, demasiado humano, Prólogo, §1.
51
Nietzsche considera os “espíritos livres”, que admite ainda não
existirem, herdeiros dos poetas trágicos, e que estes possuem a capacidade de elevação do
homem. Esses espíritos, portadores da libertação, hão de libertar os homens “atados” aos
deveres sociais e ao seu culto, pois trazem a vontade de superação e o árduo desejo de
descobrir um mundo ainda não conhecido, isto é, um mundo além-do-homem: “uma
veemente e perigosa curiosidade por um mundo indescoberto flameja e lhe inflama os
sentidos”.
89
O espírito livre é assemelhado ao herói trágico, pois ambos possuem
predicados dionisíacos. Essa aproximação dos conceitos presentes em sua análise da
tragédia revela e justifica uma diretriz comum transcorrendo sua perspectiva filosófica. Ao
serem arrebatados por essa liberdade, os indivíduos, presos pelos grilhões da moral e da
metafísica, passam a um estado em que prevalece a quietude diante dos deveres:
Assim se vive, não mais nos grilhões de amor e de ódio, sem Sim e sem
Não, [...] de preferência escapando, evitando, esvoaçando, mais uma vez
além, novamente para o alto. De fato, ao espírito livre dizem respeito, de
ora e diante, somente coisas, e quantas coisas! que mais o
preocupam...
90
É notável, nesse apontamento, a aproximação do homem trágico de O
Nascimento da Tragédia do super-homem de Zaratustra, pois a atitude de se elevar sobre o
mundo, deixando as preocupações e sobrevoando a realidade com “liberdade de pássaro”,
aponta para esses elementos nas duas obras de Nietzsche. Tais aspectos permitem
compreender uma busca de unidade na filosofia nietzschiana, mesmo pela composição de
enigmas e posições fragmentadas, o que torna sua filosofia um desafio.
89
Ibidem, § 3.
90
Ibidem, § 4
52
Em Humano, demasiado humano, a questão da valoração de todos os
valores aparece ao tratar da “necessidade de ser injusto”
91
. Nesse aforismo, Nietzsche trata
dos juízos injustos da vida, discutindo sua fragilidade por serem ilógicos e insuficientes,
pois não compreendem as experiências humanas em sua totalidade, mesmo com toda
pretensão de universalizar seus conceitos. A atitude a ser adota é de não julgar, como diz:
“se ao menos pudéssemos viver sem avaliar, sem ter aversão e inclinação”.
92
Desse modo,
não julgar, portanto, consiste em sua maior aspiração, pois seu objetivo é desviar-se dos
valores morais, religiosos e metafísicos, dando voz à possibilidade uma nova construção de
valores, sem, contudo, almejar universalizar conceitos ou fundamentar um “imperativo”.
De acordo com Nietzsche, não atribuir valores para a vida consiste na
constatação de que “a humanidade não tem qualquer objetivo, e por isso [...] o homem não
pode nela encontrar consolo e apoio, e sim desespero”
93
. Esse peso quase insuportável de
ausência de finalidades implica em assumir a falta de valores que se assenta sobre a vida,
tarefa possível somente aos espíritos livres. Isso significa converter o desespero em
“renúncia” aos valores morais, libertando-se deles.
Enquanto crítico da moral, Nietzsche também se lança contra “as
religiões pessimistas”, ao aproximá-las da concepção pessimista de Schopenhauer. Para o
filósofo, essas religiões são responsáveis por despertar a consciência no homem, a
partir da culpa de ter nascido, atribuindo o pecado como origem humana. Diante disso,
um esforço do homem em corresponder às expectativas e ideais impostos pela moral,
devido a tal origem pecaminosa. E diante da constatação do inalcançável e inatingível que
é agradar aos deuses, frustra-se, sendo solapado por uma vida de sofrimentos e sacrifícios,
passando a suplicar, como lhe resta, aos deuses pela redenção de sua culpa, que, segundo
91
NIETZSCHE. Humano, demasiado humano, § 32.
92
Ibidem.
93
Ibidem, 33.
53
Nietzsche, “não corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, mas imaginária”.
94
O homem pecador, a quem é imposto o fardo e o peso da culpa, é comparado com o
homem trágico, que, mesmo no culto a seus deuses, é livre desse peso.
O olhar do santo, dirigido ao significado, terrível em todo aspecto, da
breve existência terrena, à proximidade da decisão final sobre infinitos
espaços de novas vidas, esse olhar em brasa, num corpo semi-
aniquilado, fazia tremer os homens antigos em todas as profundezas;
olhar, desviar o olhar com horror, de novo sentir o encanto do
espetáculo, abandonar-se a ele, saciar-se com ele até a alma estremecer
em ardor e calafrio: esse foi o último prazer que a Antiguidade inventou,
após ter se tornado insensível até mesmo á visão das lutas entre homens
e animais.
95
É desse espetáculo transfigurado e dolorosamente prazeroso que nasce a
tragédia, isto é, por um olhar voltado à brevidade da vida. A religião pessimista traz a
culpa que se aproxima da sentença de Sileno, assumindo que “não ter nascido” seria o
maior bem ao homem, e diante da impossibilidade dessa decisão, morrer logo significaria
melhor solução. Para Nietzsche, a visão trágica que superou esse pessimismo deve ser
assumida como um instrumento contra as imposições morais.
Ao contrário do homem cristão, que deseja redimir-se de sua culpa, o
que a tragédia retratava era justamente a superação do temor da existência, alcançado
quando o homem é capaz de lançar-se ao “seu próprio abismo”, pois não sucumbe diante
do ocaso e do terrível da realidade. O estado dionisíaco de embriaguez proporcionava a
alegria na tragédia, ainda que pelo temor acerca da brevidade da vida. Sendo assim, caberia
ao homem cristão voltar-se para a concepção grega de vida dos antigos. Quanto ao
espectador das tragédias, Nietzsche menciona que era necessário que o mesmo enfrentasse
a tragédia de si mesmo para fortalecer-se como herói, posto que era provocado a ter uma
atitude de afirmação, sendo capaz de aceitar a finitude.
94
NIETZSCHE. Humano, demasiado humano, § 141.
95
Ibidem.
54
Durante milênios ela [a arte] ensinou-nos a olhar a vida, em todas as
formas, com interesse e prazer, e a levarmos nosso sentimento ao ponto
de finalmente exclamarmos: Seja como for é boa a vida’. Esta lição da
arte, de ter prazer na existência e de ter a vida humana como uma parte
da natureza, sem excessivo envolvimento, como objeto de uma evolução
regida por leis – essa lição se arraigou em nós, ela vem agora novamente
á luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento.
96
Há, entretanto, um distanciamento de Nietzsche do elogio da arte
realizado em O Nascimento da Tragédia, ao passo que afirma, logo adiante, que “o homem
científico é a continuação do homem artístico”, algo que sinaliza a mudança do papel da
arte até então e demonstra um interesse por elementos da ciência. No entanto, o modo
como trata da questão não se aproxima da utilização da ciência pelos cientistas de sua
época, mas revela uma nova direção seguida em seu pensamento, ou seja, entre arte e
ciência. Pois a arte trágica deixou a lição de que a vida deve ser percebida enquanto obra, e
jamais poderá ser conhecida por julgamentos que na verdade a depreciam.
O clamor de Nietzsche se faz pela exortação de um “jubiloso grito de
conhecimento”
97
, buscando uma visão mais profunda, além da arte e da religião. Essa é a
convocação que faz ao homem de seu tempo: que se torne um espírito livre,
desvencilhando-se do olhar imposto pela moral. Nesse momento aproxima-se do
conhecimento científico, considerando que a arte e a ciência possuem semelhanças ao
permitirem conhecer a vida, de forma a superar a visão moralizante: uma coisa é
necessário ter: ou um espírito leve por natureza ou um espírito aliviado pela arte e pelo
saber”
98
.
96
Ibidem, § 222.
97
Ibidem, § 292.
98
Ibidem, § 486.
55
Nietzsche menciona, ainda na obra, um andarilho errante, que vaga
sobre a terra sem uma direção, e o diferencia de um viajante: “não [é] um viajante que se
dirige a uma meta final: pois esta não existe”
99
. O andarilho, por meio das errâncias,
encontra-se com espíritos livres, reconhecidos como filósofos e também andarilhos:
eles, nascidos dos mistérios da alvorada, ponderam como é possível que
o dia, entre o décimo e o décimo segundo toque do sino, tenha um
semblante assim puro, tão luminoso, tão sereno-transfigurado: eles
buscam a filosofia da manhã.
100
Em Aurora, de 1880-81, Nietzsche manterá o problema da moral ao
tratar da confiança do homem nela depositada e essa confiança refere-se não apenas ao
homem comum, mas também aos próprios filósofos que a ela mantém “devoção”. O
objetivo ao qual se dirige a obra, que, segundo Nietzsche, é habitada por um “ser
subterrâneo”, é escavar aas raízes mais profundas da moral. Seguindo essa perspectiva,
critica a tradição filosófica por ser dominada por fundamentos morais, como nos
“imperativos categóricos”, em que a função de seus juízos se aproximam da moral
religiosa, transformando-se em “crenças consoladoras”: “muitos prosseguem raciocinando
que a ‘vida não seria tolerável se não houvesse Deus!’ (ou como se coloca nos círculos
idealistas: ‘a vida não seria tolerável, se lhe faltasse a significação ética de seu
fundamento!)”
101
. Para Nietzsche, a necessidade de se estabelecer fundamentos últimos
por princípios de verdade recai na crença em um deus; por isso denuncia o moralismo que
se assenta sobre esse pensamento que se intitula filosófico. Seu objetivo, segundo
Nietzsche, assim como a moral, é justificar a existência humana, que é injustificável.
99
Ibidem, § 638.
100
Ibidem.
101
NIETZSCHE. Aurora: reflexões sobre os preceitos morais, § 90. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2004.
56
Desse modo, a filosofia nietzschiana pretende romper com todo tipo de
moralidade, procurando negar não só a moralidade como a imoralidade, justificando que os
juízos, morais ou imorais, não se assentam sobre verdades:
Não nego que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e
combatidas; do mesmo modo, que muitas consideradas morais devem
ser praticadas e promovidas. Mas acho que, num caso e no outro [...]
temos que aprende a pensar de outra forma para enfim, talvez bem
mais tarde, alcançar ainda mais, sentir de outra forma.
102
Nietzsche radicaliza sua crítica ao negar a moralidade e a imoralidade,
propondo um pensar além dessas oposições e dualismos como única maneira de escapar
das imposições da moral. Contudo, o autor não defende a escassez absoluta de princípios
ou critérios na existência humana, ou mesmo a pura permissividade, mas apresenta um
pensar além, um novo sentir, prezando por uma percepção da realidade que não se limite
aos parâmetros morais. Nesse novo sentir, nenhum aspecto da existência é evitado ou
desprezado, tornando possível a aceitação trágica do mundo.
Com A Gaia Ciência (1881-2) Nietzsche ratifica seu propósito com o
esclarecimento do que se pode esperar do conhecimento filosófico. Esse momento de
“júbilo” da obra é marcado por uma tentativa de buscar alternativas para a filosofia, não
ficando somente nas duras críticas à moral. A verdade a todo custo é posta sob suspeita, ao
passo que a vontade de verdade inscrita nas correntes filosóficas vincula-se aos
preconceitos morais e, a partir desses, a realidade é julgada como uma distorção de uma
essência superior. Em oposição a essa ideia de verdade, Nietzsche propõe uma ciência de
aceitação plena da aparência da realidade. Essa ciência deve ser inspirada no aprendizado
artístico: a ciência olhada com a ótica do artista e a arte com a ótica da vida, como
102
Ibidem, § 103.
57
declarara em sua Tentativa de Autocrítica. A arte é aquela que vem ensinar a superar os
preceitos e as verdades preestabelecidas sobre a vida:
essa vontade de ‘verdade a todo custo’, esse desvario adolescente de
amor à verdade nos aborrece: para isso somos demasiadamente
experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... não cremos
que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu...
103
Nietzsche mantém a perspectiva artística de conhecimento da realidade
pela verdade da aparência, visão essa que se opõe ao pensamento metafísico, que contraria
essa interpretação. Desse modo, mesmo que modifique seu sentido, a arte permanece no
pensamento nietzschiano. O que se apresenta é que a perspectiva artística revela a melhor
maneira de perceber que o mundo se faz de representações, pois a ideia de consolo é
deixada em favor dessa percepção, que Nietzsche procura escapar da crença em algo
além da “superfície” da realidade. Aludindo aos gregos, afirma: “Esses gregos eram
superficiais, por profundidade!”
104
. O “superficial” refere-se à percepção de que a
realidade é constituída de fenômenos, de representações, e não verdade além dessa
realidade aparente. Essa atitude de perceber com profundidade a superfície remete à
postura do artista, que aprecia a realidade existente, por isso não deseja consolar.
O objetivo metafísico de opor um mundo real a um mundo ilusório,
segundo Nietzsche, representa a finalidade da moral de fundar verdades além da realidade,
visando a manutenção dos homens sob a condição de rebanho. Escapando a essas
imposições, o homem pensado por Nietzsche seria um espírito livre, capaz de superar tais
limitações. Tal superação acontece quando se transgride a conceituação moralista de vida e
de finalidade da existência: “todos temos jardins e plantações ocultas dentro de nós [...]
103
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência, Prólogo, § 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
104
Ibidem, Prólogo, § 4.
58
somos todos vulcões em crescimento que terão sua hora de erupção”.
105
Eis a
possibilidade de superar, pela perspectiva artística, tanto a limitação do pensamento
metafísico quanto a condição social do rebanho.
Para Nietzsche, a metafísica, a moral e a religião são criadas pelo
homem para se proteger do niilismo, pois diante do absurdo da existência, torna-se
preferível a vontade do nada. Embora diferentes, são crenças que procuram confortar seus
seguidores, dando-lhes segurança.
Nietzsche elabora uma filosofia que aposta numa relação diferente com
a vida, um olhar mais amplo e um agir sem preconceitos. Essa perspectiva não tem como
preocupação a finalidade e se afasta dos julgamentos para compreender. Desse modo, a
vontade de uma verdade que possa ser estabelecida e irrefutável é desmascarada: “Não
possuímos nenhum órgão do conhecer, para a ‘verdade’: nós ‘sabemos’ (ou cremos, ou
imaginamos) exatamente o tanto quanto pode ser útil ao interesse da espécie”.
106
Assim,
denuncia a busca aparentemente desinteressada ou até mesmo ao conhecimento que possa
ser útil ao homem, pois transforma-se em devoção a pretensas verdades e doutrinas.
Inaugurando um método de suspeita, a filosofia nietzschiana questiona
toda e qualquer verdade e doutrina instituídas, sem, contudo, propor uma adesão ao estado
niilista conseqüente da ausência de valores ou descrença em relação aos conceitos
atribuídos à existência. Em contrapartida, incita à “travessia do deserto”, rompendo com
toda atitude de julgamento e superando o niilismo. Dessa forma, o homem pode
transformar a realidade e lançar-se a uma nova perspectiva de vida.
Desse modo, Nietzsche anseia por uma existência superior, por uma
superação do homem, que seja liberta dos preconceitos morais e alcance uma existência
que supere qualquer parâmetro de vida. A sociedade do rebanho, nivelada pela moral,
105
Ibidem, § 9.
106
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 354.
59
impede essa ascensão. Nessa questão, diferencia o homem nobre (guerreiro) e o homem
inofensivo (escravo), que personificam dois tipos de moralidade: dos senhores e escrava,
afirmando o pathos da distância entre os indivíduos.
107
O agravamento dessa distância,
inerente à humanidade, deve conduzir à superação da moral predominante, aquela que
nivela os homens, apesar das contradições e diferenças. Elogia, portanto, o homem
heróico, no sentido de que este possui os atributos necessários para a invenção de um novo
modo de viver, que decide pela vida, assumindo as adversidades e as glórias, conforme diz
Thomaz Brum: “Há traços heróicos na opção trágica de Nietzsche, como também uma
profunda compreensão da natureza paradoxal do homem”.
108
Em relação ao pathos da distância, feito à partir da crítica ao rebanho, o
propósito não é justificar a dominação dos senhores sobre os escravos, mas apresentar a
diferença entre aqueles que encontram-se nivelados pela ordem imposta socialmente aos
indivíduos. Importa, nesse sentido, romper com o estado de rebanho e intensificar a força
heróica dos instintos. Por essa crítica, Nietzsche se opõe aos sistemas filosóficos, por
serem delimitados. Essa delimitação inicia-se com a filosofia socrática, que supervaloriza o
conhecimento racional, desconsiderando os instintos. Desde Sócrates, o instinto abdicado e
reprimido pela racionalidade constitui o império moral, representado no rebanho. Exclui-se
a possibilidade da força instintiva, tão inerente aos gregos e afastada por Sócrates. No
entanto, para Nietzsche, os impulsos podem possibilitar transgressões que contestem a
ordem, isto é, que “arrastam os indivíduos muito acima e além da mediania e planura da
consciência de rebanho”
109
. Sua proposta é apresentar essa força instintiva reprimida pela
107
_____. Além do bem e do mal, § 260. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
108
BRUM, J. T. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p.
81.
109
NIETZSCHE. Além do bem e do mal, § 201.
60
moral e pela tradição filosófica, clamando para que os “filósofos do futuro” a levem
adiante com mais radicalidade, a fim de superar o pensamento filosófico metafísico.
Nietzsche acredita que o humanismo cristão intensifica a domesticação
moral dos indivíduos, pois corresponde ao niilismo que assume uma vida de negação e
decadência, provocando, dessa forma, o “apequenamento do homem”. Em referência a
essa concepção niilista, retrata uma sociedade cansada: “A visão do homem agora cansa
o que é hoje o niilismo senão isto? [...] Estamos cansados do homem.”
110
Esse cansaço,
segundo Nietzsche, é consequência da civilização que reprimiu os instintos humanos,
desvalorizando-os na pretensão de uma humanidade “pacífica”, mas que depois se voltam
contra o homem.
111
Por meio dessa crítica, Nietzsche anuncia uma postura nova diante da
vida, capaz de reconhecer e vencer o cansaço que acomete o homem e criar uma nova
forma de compreender o mundo. Desse modo, sua filosofia põe à prova os valores criados
pela moral e os “ideais que hostilizam a vida [...] difamadores do mundo”.
112
Nietzsche
acredita que, ser capaz de atravessar o niilismo, é poder criar uma forma de existência
superior e liberta dos princípios morais. Assim, é possível afirmar a vida sem juízos de
condenação e sem preconceitos, que nada mais fazem do que reduzir a existência. É por
essa visão que Nietzsche anuncia uma filosofia trágica, assumindo-se um discípulo de
Dioniso.
110
____. Genealogia da Moral: uma polêmica, I, § 12. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia
das letras, 1998.
111
Cf. Ibidem, II. § 16.
112
Ibidem, II, § 224.
61
2.2 O “Sim” incondicional ao destino ante a visão trágica do eterno retorno
A partir das premissas trágicas de aceitação do destino e afirmação da
vida Nietzsche definirá sua ideia de amor fati: “aprender a ver como belo aquilo que é
necessário nas coisas: assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati
[amor ao destino]; seja este, doravante o meu amor!”
113
. Aceitar aquilo que é necessário à
vida permite escapar da atitude pessimista diante da existência, ou seja, daquilo que lhe é
próprio. Essa afirmação permite um olhar o mundo como obra de arte, pois tudo o que
existe inevitavelmente torna-se belo. Partindo do entendimento de que sua filosofia preza
pela arte como meio de compreender a realidade, abandonando os juízos morais, o mundo
pode ser afirmado artisticamente. O amor fati também se relaciona com a noção de
aceitação do destino, considerando que nem todas as ações partem das livres decisões do
indivíduo: “De fato, aqui e ali alguém toca conosco o querido ocaso: eventualmente ele
conduz a nossa mão, e a mais sábia providência não poderia conceber música mais bela do
que a que então consegue com esta tola mão”.
114
Desse modo, permitir a ação do acaso
significa aceitar o que nos é apresentado inevitavelmente, isto é “amar o destino”.
Transformar em belo tudo o que é inevitável à existência demonstra o aprendizado herdado
da arte no pensamento nietzschiano, porém de forma reformulada. O aprendizado
adquirido com aos artistas a atribuir beleza à realidade permite escapar do pessimismo e da
moral negadora do mundo. No entanto, a expectativa é a superação até mesmo da ótica do
artista: “Pois neles esta sutil capacidade se encerra, normalmente, onde termina a arte e
começa a vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, iniciando
pelas coisas mínimas e cotidianas”.
115
113
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 276.
114
Ibidem, § 277.
115
Ibidem, § 299.
62
A compreensão do amor fati, que aparecerá para Nietzsche como algo
intrinsecamente ligado ao eterno retorno, conceito a ser tratado adiante, consiste, portanto,
no amor ao destino, na capacidade de viver esta mesma vida por um mero infinito de
vezes. Ele levanta o questionamento acerca da nossa posição diante da vida, opondo-se ao
pessimismo, ao desespero e à negação diante da dor e da incerteza. No Ecce homo,
Nietzsche conceberá o amor fati como uma atitude de grandeza em oposição aos valores
que até então se sobrepuseram à realidade diante de suas adversidades. Tais valores
estariam, para ele, distantes da vida e consequentemente a renegariam. Assim, o amor fati
passa a significar para Nietzsche o ato supremo do amor mais incondicional: “Minha
fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja
para frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-
lo [...] mais amá-lo.”
116
O papel que assume o trágico na filosofia de Nietzsche, ora como
oposição incessante das forças da natureza, personificadas no apolíneo e no dionisíaco, ora
como compreensão do dionisíaco como afirmação integral da vida, são perspectivas que
lançaram sua filosofia para um entendimento ainda maior e mais profundo acerca do
trágico. Tal entendimento terá como fio condutor a compreensão do eterno retorno como
formulação suprema na filosofia trágica de Nietzsche. Essa noção, associada ao amor fati e
à vontade de potência (conceito a ser discutido no capítulo a seguir), como condições
essenciais para uma postura afirmativa diante da existência, demarcará a posição final da
filosofia nietzschiana acerca da sabedoria trágica.
O eterno retorno (Ewige Wiederkunft) surge na filosofia de Nietzsche na
suposta condição de que a vida, tal como ela é no presente, deverá ser vivida por um
número infinito de vezes, com todas as dores e alegrias e diante de suas mesmas incertezas,
116
NIETZSCHE, Ecce homo, Op. Cit. , § 10, p. 62.
63
assumindo que tudo é irreversivelmente eterno e não cessa em retornar. Esse entendimento
não nasceu de uma compreensão sistêmica ou meramente conceitual, mas acometeu
Nietzsche numa visão datada do verão de 1881, como descreve, pela primeira vez, no §
341 de A gaia ciência:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais
solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e
como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e
não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento
e suspiro e tudo o que de indivisivelmente pequeno e de grande em
tua vida de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do
mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo
este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre
virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao
chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses
assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe
responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse
pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te
transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada
coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o
mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar
de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que
essa última, eterna confirmação e chancela?
117
Nessa obra, Nietzsche menciona o ocorrido no aforismo sob título “peso
formidável”, no qual se encontra suas primeiras impressões sobre o tema. Nele é sugerida a
figura de um suposto demônio que acompanha o ser humano constantemente, sobretudo na
solidão, com intuito de exortá-lo de que a vida, assim como ela é, deverá ser vivida numa
quantidade imensurável de vezes. A figura desse demônio assume aquilo que revela a forte
e, por ora, assustadora condição de que a vida deve ser vivida plena e irrestritamente sob
todas as suas forças, pois elas retornam irremediavelmente. Esse ponto de vista não se
assemelha a uma noção metafísica, mas à condição mesma da própria existência enquanto
jogo de forças que o próprio homem é capaz de compreender. Como diz Marton (2003),
117
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência, Op. Cit. , § 341, p. 223.
64
O demônio não fundamenta essa radicalização e o interlocutor dela toma
conhecimento, na exposição de Nietzsche, sem objeções. O demônio
representa evidentemente uma voz interior, que no recolhimento da
“mais solitária solidão” exprime o que muito se preparou num
homem.
118
Considera-se que o eterno retorno foi um conceito inacabado da obra
Nietzsche. O aspecto que fundamenta essa noção é o ciclo repetitivo da vida, partindo da
constatação de que tudo já aconteceu de alguma maneira e há um número limitado de fatos.
Desse modo, todas as coisas que no presente ocorrem ocorreram no passado e também
ocorrerão no futuro. Embora essa idéia possa parecer inverossímil e até mesmo insensata,
importa notar que ela o é uma forma pragmática da percepção do tempo, pois não é um
ciclo temporal que se repete indefinidamente ao longo da eternidade.
A partir dessa doutrina, Nietzsche questiona a ordem das coisas,
considerando os pólos opostos que se complementam tornando a realidade múltipla em
forças que lhe permitem adquirir várias faces, mas sendo sempre uma única realidade.
Logo, bem e mal, angústia e prazer, são instâncias complementares da realidade -
instâncias que se alternam eternamente. Como a realidade não tem objetivo ou finalidade
(pois se tivesse já a teria alcançado), a alternância nunca se finda. Ou seja, considerando-se
o tempo infinito e as combinações de forças em conflito que formam cada instante finitas,
em algum momento futuro tudo se repetirá infinitas vezes. Assim, vemos sempre os
mesmos fatos retornarem indefinidamente.
Essa idéia reaparece diversas vezes em Assim falou Zaratustra,
sobretudo na terceira parte, como descrito em O convalescente:
Tudo vai e volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo
refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. Tudo se desfaz, tudo é
refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se,
118
MARTON, Scarlett. Nietzsche e a celebração da vida. Cadernos Nietzsche. n. 2.1997. p. 10.
65
tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel
do ser. Em cada instante começa o ser; em torno de todo ‘aqui’ rola a
bola ‘acolá’. O meio está em toda parte. Curvo é o caminho da
eternidade.
119
Nietzsche reconhece ter encontrado semelhança dessa idéia em
Heráclito, demonstrando conforto no filósofo pré-socrático quando diz:
“a afirmação do fluir e destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca, o
dizer Sim á oposição e á guerra, o vir a ser, com radical rejeição até
mesmo da noção de Ser nisto devo reconhecer, em toda circunstância,
o que me mais aparentado entre o que até agora foi pensado.”
120
No filósofo grego Nietzsche encontra as raízes da sua doutrina do eterno retorno, sobretudo
na teoria do devir, com base na oposição eterna das forças.
121
Segundo Benchimol (2002),
Nietzsche busca em Heráclito não apenas a perspectiva fundamental de sua concepção do
devir, que no pré-socrático já pode ser encontrada na hipótese do fogo, como único
elemento que não pode ser pensado de outro modo senão como movimento, como também
encontra nele os indícios de uma postura avessa à bipartição metafísica do conhecimento:
Heráclito aparece para Nietzsche o filósofo que com maior profundidade
e agudeza percebeu a incompatibilidade entre o pensamento científico-
conceitual e o conhecimento filosófico intuitivo [...]. Acima do
conhecimento intuitivo, ele não reconhece sequer a autoridade da razão e
das condições formais básicas da lógica e da
linguagem.
122
Desse modo, Nietzsche se apodera da noção do impermanente e imutável acerca de sua
compreensão trágica, desviando-se radicalmente de qualquer postura metafísica de
119
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e ninguém. 12 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 269-270.
120
NIETZSCHE, Ecce homo; O Nascimento da Tragédia, Op. Cit. , § 3, p. 64.
121
“Tudo se origina por oposição e tudo flui como um rio, e limitado é o todo e um cosmos há; nasce ele
de fofo e de novo por fogo é consumido, em períodos determinados, por toda a eternidade. E isto se processa
segundo o destino. Dos contrários, o que leva à gênese humana chama-se guerra e discórdia.” Cf.
HERÁCLITO. In: os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 2000. p. 83.
122
BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro Nietzsche. São
Paulo: Annablume, Fapesp, 2002. p. 47
66
conhecimento. Será a partir desses pressupostos que a doutrina do eterno retorno irá se
fundamentar.
A doutrina do ‘eterno retorno’, isto é, da translação incondicionada e
infinitamente repetida de todas as coisas essa doutrina de
Zaratustra poderia, afinal, já ter sido ensinada também por Heráclito.
Pelo menos o estoicismo, que herdou de Heráclito quase todas as
suas representações fundamentais, tem vestígios dela.
123
A noção do eterno retorno do mesmo está associada à recorrência de
todas as circunstâncias da vida, sejam pelos acontecimentos ou pelos juízos que a
envolvem. Essa idéia é comparada a uma ampulheta que sempre é virada, no sentido de
que o ser humano está sempre condicionado a um ciclo incessante e infinito das coisas. “É
preciso que cada dor, cada alegria, cada pensamento e cada suspiro, todo o infinitamente
grande e infinitamente pequeno de tua vida aconteça novamente, tudo na mesma sequência
e na mesma ordem.”
124
No Ecce homo, Nietzsche recorrerá ao tema por diversas vezes,
associando-o à vontade de poder e ao amor-fati. Essa perspectiva o afastará
definitivamente do pessimismo da filosofia, pois o homem trágico é suficientemente forte e
pleno por ser capaz de afirmar a vida tal como ela é e não desejar que tudo seja diferente,
pois é capaz de compreender sua dinâmica.
A força desse pensamento, em Nietzsche, está ligada ao poder de
transformar, de construir e de destruir. Essa idéia permite que o ser humano indague a si
próprio acerca do desejo de querer viver a vida tal como ela é por uma quantidade
imensurável de vezes, com todas as suas dores e seus problemas mais duros. Tal
constatação aparece como um peso que seria suportado somente com um amor
123
NIETZSCHE, Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, § 3, apud MARTON, Nietzsche e a celebração da
vida, 1997, Op. Cit. , p.10.
124
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, Op. Cit. , § 341, p. 223.
67
incondicional à vida, pois ela implica não apenas a aceitação da existência tal como ela é,
mas a capacidade de amar essa mesma existência diante de todas as suas incertezas e
desafios.
O eterno retorno, como compreensão e aceitação do destino, estará
inexoravelmente ligado à noção do trágico na filosofia de Nietzsche, pois a percepção de
uma vida trágica está associada a aceitação da vida tal como ela é, compreendendo todos
os seus aspectos como sempre presentes em contrariedades que infinitamente persistem. A
aceitação dessa vida torna-se o parâmetro último da felicidade e o ser humano de ser capaz
de decidir-se por ela num lançar-se irrestrito.
Dioniso é a personificação dessa perspectiva trágica, cuja vida é
assumida em todas as suas circunstâncias, como na morte. Dioniso não cessa de nascer e
morrer, como num martírio voluntário e consciente de que a morte é condição para
afirmação da vida. Zaratustra irá reafirmar essa característica, pois será a figuração
máxima da compreensão do eterno retorno e do amor fati em suas mais extremas
conseqüências. Para Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, “o pensamento do eterno
retorno, [será] a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar.”
125
Com Zaratustra, Nietzsche revela as experiências de si próprio, escrevendo sob uma forma
narrativo-dramática e o conceitual. O profeta Zaratustra transforma-se num anunciante
ávido em proclamar o desejo pela existência, o “Sim mais uma vez”, revelando sua
compreensão do destino sob a ótica do eterno retorno e aceitando essa condição na busca
da superação. Para Heidegger, o eterno retorno é a mais superior afirmação diante da vida
porque “afirma até mesmo a aniquilação e o sofrimento como pertencentes ao ente.”
126
Ainda nesse sentido, sobre Zaratustra, considera Salaquarda (1997): Zaratustra visa à
125
NIETZSCHE, Ecce homo; Assim falou Zaratustra, Op. Cit. , § 1, p. 111
126
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Tradução de Marco Antônio Casanova. vol. I. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 217.
68
probidade (Redlichkeit), ao tornar-se si-mesmo (Selbst-werdung) e à auto-suficiência
(Eigenständigkeit), à síntese, ao futuro do indivíduo como da humanidade. Em tudo isso,
visa à superação
.”
127
127
SALAQUARDA, Jörg. A Concepcão básica de Zaratustra. Cadernos Nietzsche. n. 2. 1997, p. 32.
69
CAPÍTULO III
O SABER TRÁGICO NO IMPULSO DIONISÍACO PARA A VIDA
70
3.1 A vontade de poder no caminho da superação
Nietzsche traz um profundo e esclarecedor entendimento pelo qual o
mundo pode ser compreendido, um princípio fundamental de todas as coisas e que não é
dado pela razão. Esse princípio assume que a vida é vontade de poder”
128
. Essa ideia se
firma sobre a multiplicidade de todas as coisas.
Finalmente, supondo que se pudesse explicar toda a nossa vida instintiva
como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade a
vontade de poder, como é minha tese [...] suponde que se pudesse
reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se
encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição – é
um único problema -, então se obteria o direito de definir toda força
atuante, inequivocamente, como vontade de poder. O mundo [...] seria
justamente ‘vontade de poder’ e nada mais.
129
A vontade de poder é considerada por Nietzsche uma perspectiva para a
compreensão da vida, entretanto, com ela não pretende fundar qualquer verdade metafísica
ou tende à pretensão de uma certificação científica. Tal perspectiva é apresentada como
proposição e não prejudica sua intenção de desconstruir as crenças metafísicas
solidificadas pela tradição filosófica, pois a vontade de poder é elaborada em oposição ao
conceito schopenhauriano da vontade. “Força” é a palavra pela qual Nietzsche definirá a
vontade que atua na própria vontade: “é necessário arriscar a hipótese de que em toda parte
onde se reconhecem ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade e todo acontecer mecânico, na
medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade”
130
.
A força que atua na vontade, aqui mencionada, não significa propriamente o querer, ainda
menos uma adequação à ideia de causalidade, pois a vontade de poder gera, antes de tudo,
múltiplos efeitos, isto é, a pluralidade, de modo imprevisível e incontrolável. Sendo assim,
128
NIETZSCHE. Além do bem e do mal Op. Cit. § 13.
129
Ibidem, § 36.
130
Ibidem.
71
a vontade de poder se opõe à defensoria metafísica de afirmação de uma única verdade,
bem como contesta a fundamentação moral acerca da uniformidade que aos indivíduos é
imposta, transformando-os em civilização de rebanho, como foi apresentado no capítulo
anterior.
Enquanto critério de sua perspectiva filosófica, a vontade de poder
possibilita o distanciamento da vontade de verdade. Nesse aspecto, Nietzsche critica a
obstinação diante da confiança na gramática como um sintoma “miserável e a falência
humana”, que busca, com a implantação de um “bem comum”, “a felicidade universal do
rebanho em pasto verde”
131
. Ao contrário, no conceito da vontade de poder, está a noção
da pluralidade das forças sob as quais a vida se constrói, algo expressado na multiplicidade
do mundo. A vontade de poder nietzschiana, como força incessante de superação que é
própria do mundo, não estabelece um fundamento de um sistema, que sua perspectiva
não busca eternizar-se enquanto verdade.
Com Zaratustra, uma vontade criadora é ensinada aos homens uma
vontade capaz de, ao mesmo tempo, avaliar e criar valores que ultrapassem a
desvalorização de todos os sentidos, gerados pelo vazio niilista. Esse vazio, contudo, pode
ser atravessado pela vontade de poder, sem a vontade de veneração que se prostra aos
deuses
132
. Ainda neste discurso, Zaratustra menciona uma vontade voraz (“de leão”) que
expressa uma atitude sem medo, faminta, recolhida e violenta. Tal atitude deseja o
conhecimento e a esse respeito é insaciável, ainda que para aumentar sua sabedoria
necessite enfrentar o sofrimento. Essa vontade que aí expressa não em nada se aproxima da
vontade de conhecer o “verdadeiro”, ou seja, ela desconhece a vontade de verdade que
131
Ibidem, § 44.
132
NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra, II, “dos famosos sábios”. 12 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
72
impera sobre a realidade, submetendo-a as valorações
133
. Essa vontade, contudo, atribui
novos sentidos a tudo o que existe, desejando pensar a totalidade da existência. Nesse
sentido, a conduta heróica é rejeitada, pois na vontade de heroísmo do ser sublime ainda
não a superação da própria ação, estando sua sombra à sua frente: “Somente quando
voltar as costas a si mesmo, pulará por cima de sua sombra na verdade, para dentro do
seu sol!”
134
. O ser sublime precisa redimir-se de suas vitórias, de seus atos heróicos e
buscar a ação do “super-herói”, o que foi capaz de se livrar do desapego das vitórias e
aprendeu a rir, abandonando a vontade de heroísmo para o “ataque”.
Zaratustra denuncia a pretensão de um conhecimento “imaculado”,
afirmando que dele não nasce verdade alguma, pois desse empenho que quer conhecer a
verdade resulta o desprezo pelos aspectos terrenos, gerando uma “vontade morta”
135
. Esse
conhecimento de contemplação se abstém da vontade que deseja criar: “viver é consumir-
se no fogo, sem, contudo, aquecer-se”
136
. Em oposição a esse “desejo de nada desejar”,
próprio dos fracos e cansados, Zaratustra anuncia a liberdade que existe no desejo de
conhecer, e este estabelece uma perspectiva plena com a realidade, uma “vontade de
amor”.
No pensamento de Nietzsche o sentido do eterno retorno estabelece total
ligação com a vontade de poder. Esta se evidencia pela força vital da dinâmica da própria
vida, buscando se impor como força diante do outro, no desejo de tornar-se forte. Trata-se
de um aspecto fisiológico de uma postura afirmativa da totalidade. Para Scarlett Marton
(2000) essa noção encontra-se no cerne da filosofia de Nietzsche, pois envolve a auto-
superação de si.
133
Ibidem, II, “Do superar a si mesmo”.
134
Ibidem “Dos seres sublimes”.
135
Ibidem “Do imaculado conhecimento”.
136
Ibidem, “Das velhas e novas tábuas”, § 13.
73
Querendo ser mais forte, a força esbarra em outras que a ela resistem; é
inevitável a luta por mais potência. A cada momento, as forças
relacionam-se de modo diferente, dispõem-se de outra maneira; a todo
instante, a vontade de potência, vencendo resistências, se auto-supera e,
nessa superação de si, faz surgir novas formas. Enquanto força eficiente,
é, pois, força plástica, criadora. É o que revela a própria expressão Wille
zur Macht: o termo Wille entendido enquanto disposição, tendência,
impulso e macht associado ao verbo machen, fazer, reproduzir, formar,
efetuar, criar. A vontade de potência é o impulso de toda força a efetivar-
se e, com isso, criar novas configurações em sua relação com as demais.
137
Desse modo, uma relação permanente de confronto ou de luta na
busca pela força. São as forças da própria vida que se alternam diante do desejo de se
afirmarem. Assim sendo, há uma dinâmica na vontade de poder que envolve o si e o outro,
na medida em que a busca por afirmar-se é de si mesmo e esta relaciona-se com o outro
num recíproco jogo da vontade. Segundo Andrade (2007), a relação que se estabelece
revela um amor próprio na medida em que se busca superar os adversários, através de uma
dinâmica pela qual ocorre a efetivação dos próprios instintos.
138
Ocorre, então, a vontade
de auto-superar-se diante de si mesmo e dos demais, por meio de “comportamentos ativos,
amor ao destino, ânsia de domínio, sede de posse, afeto de comando, o assenhorar-se de
[...]
139
.
Quanto ao instinto, que na consideração tradicional e regulamentadora
era considerado uma força perigosa, involuntária e, por vezes, patológica, em Nietzsche,
segundo Andrade (2007), ele passa a representar um saber inerente ao ser assumido e até
mesmo fortalecido, na medida em que possibilitaria uma afirmação de si e um aumento da
vontade de potência. O contrário, para Nietzsche, seria manifestação de uma anti-natureza
137
MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000. p. 70.
138
ANDRADE, D. P. Para além da loucura e da normalidade: a experiência de si como transgressão nos
textos autobiográficos de Nietzsche. 2005. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Faculdade de Filosofia
Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 130-132.
139
Cf. Ibidem, p. 125.
74
e, consequentemente, de doença. Trata-se, nesse sentido, de uma transgressão, pois
sobrepõe a força instintiva a qualquer parâmetro racional.
A vontade de poder representa a força do homem em superar o medo e
glorificar-se diante das adversidades, pois traz a multiplicidade de forças próprias do
mundo, que atuam nessa vontade.
3.2 A força dionisíaca no canto do “Sim!”: transvaloração e anúncio do homem
trágico
A intenção que moveu Nietzsche durante toda uma trajetória filosófica,
circunscrita sob as marcas de um pensar polêmico, profundo e ora tantas vezes
contraditório, não teria sentido se tal perspectiva não tivesse como objetivo a vida. Sendo
assim, chega-se novamente à questão inicial que esta pesquisa propõe ante o papel
fundamental que fez de Nietzsche um pensador trágico: qual seria o fundamento último de
uma vida trágica por ele apresentado em suas análises finais? E mais, qual o ensinamento
que desta compreensão trágica pode-se obter como máxima para uma vida afirmada na
totalidade, e daí, o sentido de uma sabedoria trágica? Eis a direção para a qual lançamo-nos
com intuito de aproximação dos propósitos que poderão apontar, ao menos, o ponto crucial
para o qual os caminhos percorridos deveriam conduzir.
A partir da ideia da multiplicidade de forças, como analisado no item
anterior, é que o perspectivismo nietzschiano irá se radicalizar, isto é, das forças que agem
na vontade de poder. Essa apropriação buscará aproximar sua definição de mundo (vontade
de poder) da arte, justamente por haver nos dois elementos a força criadora, bem como o
75
desprovimento de essências e fundamentos, tornando tudo puramente “acontecimento
interpretativo”
140
.
Desse modo, a interpretação será para a filosofia nietzschiana um
instrumento fundamental para pensar o mundo e transvalorar os valores estabelecidos, pois
o perspectivismo é o olhar sem reservas lançado ao mundo, permitindo a criação de novos
valores e novas perspectivas, sempre possíveis. Desse modo, transvalorar não significa
simplesmete inverter a ordem das coisas e do mundo, dada pela perspectiva moral, mas,
sobretudo, criar valorações diferentes. Diz Nietzsche:
“Para novos filósofos, não escolha. Para espíritos fortes e originais o
bastante para estimular valorizações opostas e tresvalorar e transtornar
‘valores eternos’, para precursores e arautos, [...] homens do futuro que
atem no presente o nó, a coação que impõe novos caminhos à vontade
milenar”
141
.
Com a vontade de poder, os novos filósofos da transvaloração serão
capazes de superar as definições e finalidades da moral e redimir a herança histórica da
tradição metafísica, transformando em criações “demasiadamente humanas” todas as
valorações. Assim, de acordo com Osvaldo Giacóia, aos novos filósofos, que sucederão
este que porta esta perspectiva, o próprio Nietzsche, caberá “tomar em suas mãos o martelo
e o cinzel, para esculpir a figurado futuro humano na história”
142
.
A vontade que aqui se afirma, entretanto, não está relacionada a uma força
subjetiva que age sobre a fragilidade do sujeito, ou seja, esta vontade que impulsiona os
espíritos livres consiste no desafio do homem em assumir a autoria de sua própria história,
sem, contudo, apontar para uma racionalidade subjetiva. Desse modo, o que se espera é
140
VATTIMO, Gianni. Introdução a Nietzsche. Tradução de Antonio Guerreiro. Lisboa: Presença, 1990. p.
91.
141
NIETZSCHE. Além do bem e do mal. Op. Cit. § 203.
142
GIACÓIA, Osvaldo. Nietzsche para além do bem e do mal. Op. Cit. p. 51.
76
criar pontes pelas quais seja possível atravessar o niilismo, determinando o rumo a ser
seguido.
A filosofia nietzschiana apresenta a tarefa trágica de decifrar enigmas
como um dos princípios fundamentais diante do perspectivismo, buscando desconstruir o
ideal de verdades inabaláveis sustentado pela crença metafísica. Esse ideal corresponde,
segundo o pensamento de Nietzsche, ao aspecto religioso, pois assume uma devoção à
supostas verdades eternas. Ao mesmo tempo em que procura criar novas valorações,
distanciando-se da vontade de verdade, a filosofia trágica nietzschiana, que assume a
errância, também denuncia e desmascara os preconceitos morais, dando lugar à vontade
criadora, à vontade de poder.
Quando anuncia a aurora de sua filosofia, é aos filósofos do futuro que
Nietzsche se dirige, ao passo que considera situados fora de seu tempo aqueles que pensam
por um filosofar livre dos preconceitos morais e metafísicos. Sua filosofia trágica assume,
contudo, a dificuldade de se encontrar “heróisdispostos assumir os infortúnios trazidos
por esta perspectiva. encontra-se a aproximação feita entre o trágico e o filosófico, que
intensifica seu intuito de apropriar-se da visão artística na tarefa de buscar um
conhecimento sobre o mundo. Essa vontade presente na tragédia, que decifra os enigmas
da existência e se confronta com o destino, também opera na filosofia de Nietzsche.
Enquanto filósofo trágico, Nietzsche aposta em uma filosofia que recomece, aludindo ao
desafio de Édipo diante da esfinge, ao ponto de desafiá-la, suspeitando do conhecimento
estabelecido e aceitando o mundo aparente sem a pressuposição de uma sublime verdade.
É quando Nietzsche indaga “Quem é Édipo? Quem é a esfinge?”
143
que se constata a
sugestão de uma inversão, remetendo-se à vontade de verdade e o confronto possibilitado
pelo desafio colocado por Édipo à Esfinge, desafio este que consistiria em pô-la diante de
143
NIETZSCHE. Além do bem e do mal, § 1.
77
seus próprios enigmas. Assim, propõe a inversão diante do imperativo da verdade,
constatando sua fragilidade e revelando o que de escondido na superfície da realidade
mesma, isto é, aquilo que é ocultado pelos que se propõem a sustentar verdades absolutas.
É assim que a filosofia trágica de Nietzsche retrata a busca por um
“herói”, aquele que assume os desafios mais abissais da existência, mesmo suas
conseqüências, abandonando o paradigma da “verdade a qualquer custo” e lançando-se ao
conhecimento. Nesse sentido, a existência deve ser compreendida como um jogo de forças
incessantes, na qual existem derrotas e superações. Assim a vida é representada nessa
filosofia, isto é, por uma multiplicidade de organismos independentes e com força própria
“não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é
precisamente vontade de poder”
144
.
Na filosofia de Nietzsche, o deus Dioniso estará presente desde o seu
início em 1871, mesmo que por vezes oculto e discretamente abrigado: “o ambíguo e
grande deus tentador, a quem certa vez, em todo sigilo e reverência, ofereci meu
primogênito”
145
. Quando procura revelar tudo o que aprendeu, em 1886, Nietzsche o
invoca em referência à sabedoria dionisíaca. Entretanto, como se pôde ver no capítulo
precedente, Dioniso sofre transformações em seu sentido na filosofia trágica, pois o
conceito de dionisíaco que conduz os seres à unidade primordial, não mais possui essa
definição, que incorpora, na vontade de poder, o aspecto fragmentado e ilimitado das
forças do mundo.
Nietzsche, assumindo-se último discípulo do deus Dioniso, adota a
perspectiva dionisíaca, estimulando a superação do equívoco diante da confiança na
vontade de verdade, assumindo os riscos dessa postura. Dioniso estimula a travessia do
144
Ibidem, § 259.
145
Ibidem, § 295.
78
deserto pela coragem de “descobridor e explorador”
146
, cujos caminhos conduzem ao
fortalecimento do indivíduo. Como se pretende elucidar nesta pesquisa, o conceito do
dionisíaco passa por mudanças no decorrer do projeto trágico nietzschiano, deixando de
significar o Uno e convertendo-se em multiplicidade, em dissolução. Assim, o dionisíaco
passa a ser compreendido na estreita ligação com a vontade de poder, que é fragmentação.
na força dionisíaca da vontade de poder a afirmação da “inocência do vir-a-ser”, que
remete à imprevisibilidade e à brevidade condição da existência. Segundo Nietzsche,
Dioniso representa um espírito livre que traz consigo um “fatalismo alegre e confiante [...]
na crença em que no todo tudo se dissolve e tudo se afirma – e ele não nega mais [...]
147
.
A permanência do dionisíaco no decorrer da obra de Nietzsche pode
apontar para uma unidade que se inscreve em sua filosofia trágica. De acordo com Brum, o
dionisíaco representa “talvez o único conceito que percorre toda a obra nietzschiana”,
podendo ser encontrado desde O Nascimento da Tragédia até os últimos momentos de sua
vida”
148
.
No Ecce homo, Nietzsche trará seu entendimento mais profundo acerca da
afirmação da vida em seu vir-a-ser como formulação máxima da sabedoria trágica
dionisíaca, que havia sido expresso anteriormente no Crepúsculo dos ídolos. Esta
afirmação se dá a partir de uma perspectiva nascida da abundância de vida capaz de aceitar
a realidade da existência na mesma medida em que sua força ousa conhecer a verdade. É
uma afirmação capaz de alegrar-se com a própria inesgotabilidade das forças vitais de sua
vontade para ser em si mesma o “eterno prazer do vir a ser” e que irá marcar sua posição
final na trajetória histórico-filosófica do trágico. Assim diz Nietzsche:
146
NIETZSCHE. Além do bem e do mal, § 295.
147
_____. Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, Op. Cit. § 49.
148
BRUM, J. T. Nietzsche: as artes do intelecto. Op. Cit., p. 73.
79
Até que ponto eu também havia descoberto, justamente com isso, o
conceito “trágico”, o discernimento final sobre o que é a psicologia da
tragédia, eu já o trouxe à baila várias vezes, a última delas no crepúsculo
dos ídolos: ‘O dizer sim à vida, até mesmo em seus problemas mais
estranhos e mais duros, a vontade para a vida, que se alegra em sua
própria inesgotabilidade ate mesmo no sacrifício de seus mais altos tipos
foi isso que eu chamei de dionisíaco, foi isso que eu entendi como
ponte para a psicologia do poeta trágico [...]”
149
.
Essa definição aponta para o ponto culminante de sua concepção acerca
da filosofia do trágico, ao mesmo tempo em que reivindica ser o primeiro a atingir na
totalidade a essência da filosofia trágica, reconhecendo o dionisíaco como pathos
filosófico: “[...] Nesse sentido eu tenho direito de reconhecer a mim mesmo como o
primeiro filósofo trágico [...] antes de mim não existiu essa transferência do dionisíaco para
o pathos filosófico: faltava a sabedoria trágica.”
150
Não obstante, os pressupostos preliminares que permearão esse
entendimento da filosofia de Nietzsche se encontravam, como visto, em O Nascimento
da Tragédia, na afirmação do dionisíaco como expressão da força vital da natureza
humana, sobre a qual irá, contudo, indagar mais tarde: “Sim o que é dionisíaco? nesse
livro a uma resposta para essa pergunta um “sabedor” fala aqui, o iniciado e discípulo de
seu deus”
151
.
No entanto, em seu entendimento tardio, Nietzsche lançará crítica a si
mesmo e a sua concepção filosófica da juventude, ao dizer incontidamente sobre os
postulados de sua primeira obra: “Ela cheira escandalosamente a hegeliana e em apenas
algumas fórmulas é acometida pelo veneno amargo-cadavérico de Schopenhauer [...].”
152
Por essa e outras razões aqui descritas, vários fatores corroboraram para que Nietzsche
149
NIETZSCHE, Ecce homo. Op. Cit. , p.86.
150
Ibidem, p. 86.
151
NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, Prefácio, 1996. Op. Cit. , p.17.
152
NIETZSCHE, Ecce homo. Op. Cit. , p.83.
80
abandonasse suas teses iniciais, voltadas para uma concepção metafísica de arte e de
artista, e se lançasse a fundo numa perspectiva que ultrapassasse os parâmetros estéticos,
em direção a uma sabedoria trágica além do homem e, essencialmente, dionisíaca.
Como apontado no primeiro capítulo, o dionisíaco será para Nietzsche o
fundamento de uma força vital, cuja essência é a dissolução, a desordem e, ao mesmo
tempo, o ávido impulso para a vida. Esse aspecto dissolutor e afirmativo do dionisíaco
reaparecerá em Assim falou Zaratustra, na qual Nietzsche evidencia a independência do
trágico em relação à forma da tragédia, tendo em vista a singularidade da narrativa poético-
dramática do livro ao elaborar um pensamento filosófico, sobretudo pela marca do
aforismo. Nietzsche descreve a selvagem sabedoria do personagem-título a partir da
superação do niilismo moral e metafísico, que se torna um filósofo trágico ao afirmar o
eterno retorno e a inocência do devir como ponto culminante de um longo aprendizado.
Assim escreve Nietzsche:
“E, quando conversei a sós com a minha selvagem sabedoria, disse-me
esta, zangada: ‘Tu queres, desejas, amas; e somente por isso louvas a
vida! Isso leva Zaratustra a comentar sua relação com a sabedoria e com
a vida dizendo: Do fundo do meu ser, amo somente a vida [...] Que,
porém, eu seja condescendente com a sabedoria, e muitas vezes
condescendente demais: isto provém de que ela me lembra demasiado a
vida! [...] Tem-se sede dela e não se fica saciado, olha-se para ela através
de véus [...] mutável, é ela, e voluntariosa.”
153
Em sua trajetória, Zaratustra critica os famosos sábios, que tem o
espírito do povo, sem jamais conhecerem a altivez do espírito, a felicidade no terror do
espírito; ao mesmo tempo, elogia os espíritos livres, solitários senhores do deserto, homens
verazes, sem deuses, de vontade de leão e, por esses motivos, odiados pelo povo.”
154
No
canto noturno, o personagem aparece pela primeira vez cantando ao invés de discursar,
153
NIETZSCHE. Obras incompletas. São Paulo: Nova Cultural, 2005. p. 122.
154
MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zaar editor, 1997.
81
esse canto é explicitamente caracterizado por Nietzsche como um “ditirambo dionisíaco”,
que em O Nascimento da Tragédia Nietzsche enaltecia ao dizer que nele o homem é
incitado à máxima intensificação de todas as capacidades simbólicas, ao mesmo tempo em
que advertia sobre o perigo que esse demoníaco cantar representava para o homem
apolíneo que, “diante desse fenômeno, ficava assombrado e temeroso”
155
. Nesse sentido,
no Ecce homo, Nietzsche desmerece até mesmo a tragédia grega em nome do Zaratustra, e
assim dirá em relação a este seu canto:
“Eu sou o descobridor do ditirambo. Escutai como Zaratustra fala
consigo mesmo antes do sol nascer [...] nenhuma língua a teve antes de
mim. Também a tristeza mais profunda desse Dioniso como esse se
torna ditirambo; eu tomo, na condição de sinal, na canção da noite [...]
assim sofre um deus, um Dioniso.”
156
Segundo Machado (1996), tal referência ao dionisíaco pode ser
compreendida ao perceber que Zaratustra, com relação ao que vinha sendo seu ocaso,
passa do desejo de iluminar o que é noturno para ser noturno para ser iluminado. “[...]
Zaratustra aparece pela primeira vez sentindo-se pobre, invejoso com fome de maldade,
cansado de sua virtude, hostilizado pelo que é luminoso.”
157
Assim, o impulso dionisíaco
aparece no íntimo do personagem como conflito inerente ao seu próprio existir, que diante
do ocaso e da estranheza, deseja superar-se.
A sabedoria trágica dionisíaca de Zaratustra será então evidenciada a partir desse
momento, no qual o personagem aparece numa fase crucial de sua trajetória, ao ver-se
diante de um conflito desconcertante e uma insatisfação frenética, tal qual descrito por
Nietzsche em O Nascimento da Tragédia quando trata da cultura apolínea frente à ameaça
do impulso dionisíaco. Assim analisa Roberto Machado:
155
Ibidem, p. 87.
156
NIETZSCHE, Ecce homo. Op. Cit. p. 122.
157
MACHADO, 1997, Op. Cit. p. 88.
82
[...] se tal momento é tão decisivo na trajetória de Zaratustra é porque
apresenta pela primeira vez, em um estado semelhante ao analisado por
Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, quando a cultura apolínea se
viu mortalmente ameaçada por aquilo de que procurava se proteger: a
pulsão dionisíaca, que se manifestava no culto das bacantes [...] este
culto dos cortejos orgiásticos que mulheres em transe coletivo, dançando
e cantando,em honra a Dioniso invadiram a Grécia é a principal
negação dos valores principais da cultura apolínea”. Em vez de processo
de individuação, é uma experiência de reconciliação do homem com os
outros homens e com a natureza [...]
158
.
Esse aspecto reconciliador do dionisíaco, que possibilita a unidade do
homem com sua natureza e rompe a individuação ao passo que afirma a totalidade da vida
em toda sua inesgotabilidade, é descrito por Nietzsche em sua primeira obra, quando
afirma: “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa,
mas também a natureza alheada, inamistosa volta a celebrar a festa da reconciliação com
seu filho perdido, o homem.”
159
Ademais, em O Nascimento da Tragédia, o problema que
os gregos tiveram que equacionar constituía-se de dois termos opostos: de um lado, a
criação de um mundo homérico, apolíneo, como repressão dos sombrios impulsos
dionisíacos; por outro lado, a torrente invasora do dionisíaco que dissolvia, abolia e engolia
as fronteiras apolíneas, que então se revelavam artificiais, fictícias.
160
Outro aspecto importante é que em todo o Zaratustra, e também em quase
todas as obras de Nietzsche, o riso e a dança aparecem associados à possibilidade de
vencer o niilismo, não como rejeição do sofrimento, mas como uma expressão da
sabedoria dionisíaca traduzida na canção de Zaratustra como afirmação do eterno retorno,
que não pode ser confundida com o otimismo socrático.
[...] essa ética do dançarino que canta é sem dúvida, a do fundamento
dionisíaco do eterno retorno. [...] O que o Zaratustra aprendeu com as
experiências entre os homens foi exatamente a cantar ‘com uma nova
lira’. Ele aprendeu a ética da seleção do eterno retorno que produz a
158
Ibidem.
159
NIETZSCHE, Obras incompletas, Op. Cit. p. 30.
160
Cf. MACHADO, 1997, Op. Cit. p. 92.
83
mudança de qualidade do ‘outra vez’ do ‘toda eternidade’, porque é a
alegria que quer a eternidade (a dor diz: passa!).
161
No entanto, embora a alegria de Zaratustra surja como algo
notavelmente positivo em sua trajetória, afirmada no aprendizado do eterno retorno e sob o
pulsar dionisíaco, o personagem também se constantemente diante da dor e do conflito,
proveniente de sua própria vontade, ao passo que esta, em seu fundo original, é pura dor,
falta, anelo. “Quando se diz que a vontade é o fundo de todas as coisas, diz-se que todas as
coisas estão abertas para o devir [...] é o perpétuo lançar-se sem fundo, é o próprio
abismo.”
162
Nesse sentido, o impulso de eternização dos acontecimentos da existência
que, para Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, era o critério de valor mais
decisivo,
163
mantém um nexo com a concepção da sabedoria trágica dionisíaca apresentada
em Assim falou Zaratustra, na qual o pensamento do eterno retorno é formulado de modo
independente da estética metafísica de sua primeira obra; pensamento este que no Ecce
homo considera “a mais alta fórmula da afirmação que um dia pôde ser alcançada [...]
164
.
Assim, a afirmação da existência em seu devir não se faz unicamente a
partir de uma transfiguração artística e, portanto, a vida não depende necessariamente de
uma justificação estética, mas pode ser criada como uma obra de arte, encontrando nesta
apenas uma vertente para inspirar sua autopoiesis. Nessa perspectiva, ainda no Ecce homo,
Nietzsche irá considerar ao tratar do Zaratustra: “Meu conceito de ‘dionisíaco' tornou-se ali
161
GUBERNIKOFF, Carole. Zaratustra cantor: uma leitura a partir de “o convalescente”. In: FEITOSA,
2003, Op. Cit. p. 201.
162
FERNANDES, Sinésio P. O dionisismo segundo o pensamento de Nietzsche em torno de O Nascimento
da Tragédia. In: FEITOSA, 2003, Op. Cit. , p. 254.
163
“E o valor de um povo – como, aliás, o de um homem – mede-se precisamente por esta só faculdade de
poder imprimir o selo da eternidade nos acontecimentos de sua existência.” Cf. NIETZSCHE, O nascimento
da tragédia, Op. Cit. , p. 40.
164
NIETZSCHE, Ecce homo. Op. Cit. , p. 122.
84
o ato mais supremo.”
165
E, neste mesmo sentido, Nietzsche idescrever Zaratustra como
aquele que foi capaz de ver o fundo mais longínquo da existência ao dizer: “Ele viu mais
longe, ele quis mais, ele alcançou mais do que qualquer outro homem [...]. Não há
sabedoria, não há psicologia, não há arte do discurso antes do Zaratustra.”
166
Desse modo, a sabedoria trágica dionisíaca tealcançado seu mais alto
sentido, pois nele, a eloqüência torna-se música, e tudo o que aparece é afirmado “na mais
alta espécie de tudo o que é.
167
Portanto, toda a trajetória filosófica seguida por Nietzsche
em torno do trágico terá nesse momento seu ponto ápice, ao reconhecer no Zaratustra a
sabedoria dionisíaca em sua mais suprema afirmação, “pois nele vê, muito antes, um
motivo para ser, ele mesmo, o sim eterno a todas as coisas, ‘o ilimitado dizer sim e
amém’... Isso é a idéia de Dioniso mais uma vez.”
168
Em Além do bem e do mal, de 1886, Dioniso torna-se um deus-filósofo,
num possível apontamento subseqüente de uma identificação de Nietzsche a Dioniso.
169
Em Crepúsculo dos ídolos, uma leitura psicofisiológica indica o homem dionisíaco como o
único a transmutar-se num ininterrupto vir-a-ser, incapaz de negar os sinais afetivos e
corpóreos.
170
Dessa forma, em Nietzsche, o dionisíaco passa a assumir uma posição
essencial, pois deixa os limiares estéticos e se aproxima do humano enquanto instinto e
natureza, em busca da vida em plenitude. Dessa forma, Nietzsche abre os caminhos por
meio dos quais seguirá em direção sua interpretação filosófica em busca da sabedoria
trágica.
165
Ibidem, p. 119.
166
Ibidem, p. 120.
167
Ibidem, p. 121.
168
Ibidem, p. 122.
169
Cf. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, Op. Cit. , § 5 p. 72.
170
Para o homem dionisíaco é impossível não entender uma sugestão qualquer, ele não desconsidera nenhum
sinal dos afetos, ele tem no grau mais elevado o instinto intelectivo e divinatório, assim como Possi no grau
mais elevado a arte da comunicação. Ele se insere em cada pele e em cada afeto: ele transforma-se
constantemente.” Cf. NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, § 10, Op. Cit.
85
Para Nietzsche, o dionisíaco constitui a força que rompe com toda
fundamentação moral e se instaura como uma derradeira força de afirmação. Essa
interpretação se dissocia de qualquer saber socrático, platônico, cristão ou até mesmo
idealista. A perspectiva dionisíaca do mundo desvenda uma “uma fórmula de afirmação
suprema nascida da superabundância, [...] um dizer sim sem reservas, ao sofrimento
mesmo [...] a tudo o que é estranho e questionável na existência.”
171
Essa visão constitui a
adesão a uma vida mais profunda, mais nobre, na qual todos os aspectos são assumidos,
isto é, nada é negado em favor de mundos além da existência ou paradigmas filosóficos
supra-imanentes, que se opõem à vida. Essa visão é atestada por Nietzsche num fragmento
póstumo de 1888, no qual o dionisíaco é mencionado como
uma afirmação extasiada da vida como totalidade enquanto ela é igual a
si mesma em toda mudança, igualmente poderosa, igualmente feliz: a
grande participação panteísta na alegria e na dor, que aprova e que
santifica até os aspectos mais terríveis e mais enigmáticos da vida; a
eterna vontade de gerar, de produzir e reproduzir, o sentimento da
unidade necessária da criação e destruição.
172
Desse modo, a compreensão de Dioniso atrela-se à posição frente à vida,
ou seja, na afirmação de seu caráter iminentemente trágico. Isso consiste, todavia, num
incondicional dizer “Sim” à totalidade da existência, como afirma o próprio Nietzsche: “a
vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais
elevados tipos a isto chamei dionisíaco, sito entendi como a ponte para a psicologia do
trágico.”
173
Assim, a vida como trágica tem sentido quando é assumida pela ótica
dionisíaca, isto é, na percepção do prazer eterno do vir-a-ser, do regozijar-se com
transmutação como sua condição suprema. É sob esse paradigma que Nietzsche
desenvolve sua filosofia trágica, seu conhecimento trágico, e, assim, o contrapõe ao
171
NIETZSCHE. Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, § 2.
172
____. apud LEFRANC, Jean. Compreender Nietzsche. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 70
173
____. Ecce homo, O nascimento da tragédia, § 3.
86
pessimismo velado nas concepções filosóficas ocidentais desde Platão, evidenciando o
suscitar de uma autenticidade filosófica. Como afirma: “Nesse sentido, tenho o direito de
considerar-me o primeiro filósofo trágico ou seja, o mais extremo oposto de um filósofo
pessimista. Antes de mim não houve essa transposição do dionisíaco em um pathos
filosófico: faltava a sabedoria trágica.”
174
Nietzsche reconhece em Heráclito semelhança quanto a essa ótica para o
mundo, pois nele haveria uma pré-visão oposta ao socratismo:
A afirmação do fluir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca,
o dizer Sim à oposição e á guerra, o vir a ser, com radical rejeição até
mesmo da noção de “Ser” nisto devo reconhecer, em toda
circunstância, o que é a mim mais aparentado entre o que até agora foi
pensado.
175
Desse modo, estabelece-se uma íntima sintonia ente o filósofo trágico e o
homem dionisíaco, pois encontra-se a expressão da vida mesma como vontade de poder
a soma plural e diversa das forças que se inter-relacionam, digladiando-se numa tensão
permanente de hierarquias transitórias, ou seja, num jogo que expressa a dinâmica da vida
mesma. Esse jogo pode ser entendido como um processo ininterrupto e eternamente
fluente. E constitui aquilo que o filósofo trágico exprime, por um pathos, por uma
multiplicidade de impulsos que buscam afirmar-se, como afirma o próprio Nietzsche: “O
pathos afirmativo par excellence, por mim denominado pathos trágico.”
176
Neste se
encontra um dos principais pilares nietzschianos: o desenvolvimento de um homem
trágico, jamais alheio aos sentimentos instintivos, capaz de romper com os limites da
resistência, de reinventar valores e impor-lhes novas configurações de forças para, assim,
formar uma nova e reinventada espécie, forte, e autoconstrutiva.
174
Ibidem, p. 95.
175
Ibidem, p. 94.
176
Ibidem, Assim falou Zaratustra, § 1, p. 111.
87
“Os homens jamais espirituosos, pressupondo-se que eles são também os
mais corajosos, são aqueles que melhor e mais amplamente vivenciam
as tragédias mais dolorosas: mesmo por isso, contudo, eles honram a
vida; porque ela lhes contrapõe o seu maior antagonismo.”
177
Ora, se essa potência da vontade de poder atravessa o indivíduo (e
qualquer vivente) e instaura nela a possibilidade de novas conotações, essa vontade,
portanto, age como uma força plasmadora e, não obstante, criadora. Pois por sua ação, o
vivente “intensificaria sua potência ao moldar e organizar o caos.”
178
reside o sentido
da superação de si como ação da vontade de poder, isto é, um efetivar-se enquanto
assegurar-se do si mesmo, do qual diz Nietzsche: “amo aquele que deseja criar para além
de si e, consequentemente, perece.”
179
Nesse mesmo sentido parece apontar Heidegger
quando trata da vontade de poder em Nietzsche: “a vontade é vontade como querer para
além-de-si-mesmo, como querer-mais.”
180
Considera-se, assim, que se em Nietzsche a
exigência de concepção de um indivíduo suficientemente forte, que seja capaz de afirmar-
se na totalidade da existência, esse indivíduo modelo passa, necessariamente, pela
compreensão da criação como fenômeno em seu plano filosófico. Esse princípio
acompanhará Zaratustra de modo visceral na construção das figurações de Nietzsche,
sobretudo na concepção de suas tipologias do humano: no caráter salvífico-transformador
que circunscreve o herói trágico, alcançando o espírito livre, ao revelar-se forte e senhor
de si mesmo. A noção do filósofo que cria estará, ainda, em Além do bem e do mal, na
percepção desta como característica da condição humana: “No homem estão unidos criador
e criatura, no homem matéria fragmento, abundância, lodo, argila, caos, absurdo; mas
177
NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos. “Incursões de um extemporâneo”, § 17.
178
ARALDI, Claudemir Luís. Niilismo, criação, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São
Paulo: Discurso / Unijuí, 2004. p. 414.
179
NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra, “Do caminho do criador”.
180
HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Tradução de Marco Antônio Casanova. vol. I. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2007. p. 46.
88
nele também criador, escultor, dureza de martelo, deus-espectador.”
181
Nesse sentido,
criar evidencia-se com expressar impulsos ou instintos, de modo a tornar-se senhor da
superabundância de todas as forças que a vida apresenta. Essa compreensão só seria
possível ao filósofo trágico.
Partindo desse sentido, observa-se que a crítica de Nietzsche à moral não
se dirige apenas como crítica a qualquer filosofia que não se volta para a vida, mas também
como exaltação da vontade criadora que move o homem enquanto vontade de poder, e que
se coaduna na tragicidade. Sua filosofia tem como intenção reivindicar a atividade da
filosofia enquanto criação de valores, inerente ao filosofar, em detrimento de um pensar
simplesmente ostensivo e conservador dos valores estabelecidos que, na ótica de
Nietzsche, acabam por serem estéreis e frívolos. Nesse viés, o filosofar com o martelo
182
estabelece uma
tarefa artístico-criadora e, por isso, dionisíaca, ao tomar para si o prazer
inevitável do destruir. Como diz Nietzsche: “[...] entre as pré-condições para uma tarefa
dionisíaca, é decisiva a natureza do martelo, o prazer mesmo no destruir. O imperativo:
tornai-vos duros!’, é a verdadeira marca de uma natureza dionisíaca.”
183
Assim, o sentido
do imperativo da filosofia nietzschiana de transvaloração de todos os valores encontra-se
arraigado no dever de criar novos valores, abandonando aqueles cujo sentido se legitima na
fraqueza, na escravidão ou no ressentimento. Dioniso é tomado por Nietzsche como
anunciante dessa nova força, que ao invés de negar quaisquer impulsos que sejam, os
assume como vitais. “O homem trágico consente até mesmo no sofrimento mais agudo; ele
é suficientemente forte, rico, bastante divinizante para isso [...].”
184
181
NIETZSCHE. Além do bem e do mal, § 25.
182
A figuração do martelo é simbolizada por Nietzsche em sua incisiva oposição aos postulados da tradição
platônico-cristã, como apresentado nas últimas linhas de Ecce homo. Cf. NIETZSCHE, Ecce homo, Op. Cit. ,
p. 153-154.
183
____. Ecce homo, Assim falou Zaratustra, § 8, Op. Cit. , p. 126.
184
____. Fragmentos póstumos 14 [89] apud LEFRANC, J. Op. Cit. , p. 70.
Neste fragmento Nietzsche exalta a figura do homem trágico em oposição à figura de Cristo, ressaltando a
inferioridade dos valores cristãos por não afirmarem a vida, mas o cultivo de valores do fraco.
89
Para Nietzsche, somente o homem trágico poderia assumir uma
perspectiva de vida criadora, pois ele não se constitui de qualquer tarefa plasmadora de
valores funestos e adormecidos para a vida. O além do homem apresentado por Nietzsche,
em todo seu emblema, não sucumbe frente à imperativa tarefa de instigar a revisão e a
necessária transvaloração dos valores ratificados pela tradição platônico-cristã, assumindo
a pujança da vontade de poder e suportando a carga do eterno retorno. Dessa forma, o
Nietzsche tardio conserva a noção de homem superior, como oferta a um ser humano
elevado por ser capaz de não somente assumir valores, mas inventá-los. Dioniso torna-se
figuração do homem criador, em suas mais diversas aparições, ora como homem trágico,
ora como filósofo do futuro, mas sempre como criador. A vontade de poder, enquanto
manifestação de um impulso criador do mundo, ela se assemelha a um instinto artístico, e
desse modo, é ressignificada por uma justificação estética da vida. A vontade age enquanto
arte na tarefa de interpretação do homem diante do mundo, pela perspectiva, que é capaz
de criar valores e, ao mesmo tempo, desconstruí-los. Acerca desse papel, diz o próprio
Nietzsche:
O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme
sua natureza a natureza é sempre isenta de valor: foi-lhe dado,
oferecido um valor, e fomos nós esses doadores e ofertadores! O mundo
que tem algum interesse para o ser humano, fomos nós que o criamos!
185
A sabedoria trágica dionisíaca para Nietzsche será, dessa forma, o alcance
superior de uma necessidade de se voltar à vida, com todas as suas forças e diante de suas
incertezas. Resta, contudo, ser capaz de assumir os aspectos que lhe são inerentes, como os
mais aterrorizantes e dissolutores, no ávido potencial de transfigurá-la. É ser capaz de
assumi-los totalmente e, não obstante, amar a vida sendo esta mesma. Isso consiste em
aceitar incondicionalmente a existência em toda sua escassez de sentido, em todo seu fluxo
185
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, Op. Cit. § 301.
90
inconsistente, como um palco do eterno devir, como um palco no qual o homem artista
quer subir de novo, num “Sim” mais uma vez.
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A motivação que conduziu esta pesquisa na busca pelos esclarecimentos
que apontariam para a posição final de Nietzsche sobre a sabedoria trágica partiu não
somente da observação de que o trágico mantém-se no cerne da filosofia nietzschiana,
sendo Nietzsche um pensador do trágico e, não obstante, da tragédia. Como se procurou
retratar, não seria essa a novidade que tornaria marcante sua filosofia trágica, que a esse
propósito se dedicou tantos outros pensadores na Alemanha Moderna. O fato é que, se o
trágico é um elemento sem o qual a obra de Nietzsche não teria sentido, já que sua filosofia
desponta em O Nascimento da Tragédia (1872) investigando as condições do
nascimento da arte trágica por meio dos impulsos apolíneo e dionisíaco, importa observar,
curiosamente, aquilo que finalmente Nietzsche entenderá por trágico quando se põe a rever
seus conceitos iniciais sobre a tragédia quando afirma que “para ser justo em relação a O
Nascimento da Tragédia ter-se-á de esquecer algumas coisas”
186
. Nesse sentido, é sem
reservas que em Ecce homo (1888) esses esclarecimentos apontarão para as principais
motivações de seu pensamento trágico, esclarecendo sua inclinação e esperança acerca da
música wagneriana e retratando os valores culturais embutidos nesse movimento. Nessa
auto-análise, aponta também para aquilo de mais importante que se coloca na obra: a
maneira como os gregos lidaram com o pessimismo e o superaram. Nesse sentido, não
poderia deixar de fora sua aproximação com a filosofia pessimista de Schopenhauer e os
conceitos impregnados pelo “veneno amargo-cadavérico” do filósofo, de quem se afastaria
assumidamente a partir de 1876. Ainda na obra, evidencia-se o embate contra a filosofia
Socrática e sua influência decadente no mundo grego ao sobrepor a razão acima de todos
os valores e desvalorizar o homem instintivo: “Sócrates na condição de instrumento da
186
NIETZSCHE, Ecce homo, O Nascimento da Tragédia, § 1.
92
dissolução grega, reconhecido pela primeira vez como décadent típico [...] ‘Racionalidade’
contra instinto, racionalidade a qualquer preço, como violência perigosa, solapadora da
vida!”
187
. Em oposição também à moral cristã, Nietzsche esclarece que se posiciona
duramente em relação aos valores negadores da vida, isto é, àqueles que “não são
apolíneos nem dionisíacos”. É nesse sentido que o dionisíaco se tornará sua “arma” mais
poderosa no embate travado contra a moral e a metafísica, pois nele encontra a “raiz” de
toda arte grega e a força vital que assume todos os aspectos da vida: duros ou alegres.
Quando, no entanto, abandona progressivamente a metafísica de artista,
Nietzsche passa a construir um pensamento independente da forma da tragédia e mais
próximo do que viria ser o homem trágico, de quem a busca torna-se constante desde que
constata a decadência do homem pelos valores metafísicos e morais que a ela se impõem.
É que vai buscar os limites dessas formas de conhecimento e as condições em que se
solidificaram na humanidade, conduzindo-a ao niilismo e condicionado-a como “rebanho”.
A essa condição, porém, Nietzsche exalta a força dionisíaca, que assume o aspecto da
afirmação da totalidade, da inesgotabilidade e da aceitação, que consiste numa postura
trágica: “O dizer sim à vida, até mesmo em seus problemas mais estranhos e mais duros, a
vontade para a vida [...] foi que chamei de dionisíaco”.
188
Percorrendo esses caminhos, a filosofia nietzschiana encontra no eterno
retorno a fórmula que dará o sentido mais fundamental para a compreensão trágica da
existência. Esse pensamento “abissal” que assume que “é preciso que cada dor, cada
alegria, cada pensamento e cada suspiro, todo o infinitamente grande e infinitamente
pequeno de tua vida aconteça novamente”
189
, sem dúvida marca a postura filosófica de
Nietzsche e o distingue fundamentalmente como um filósofo trágico.
187
Ibidem.
188
Ibidem.
189
NIETZSCHE. A Gaia Ciência, Op. Cit., § 341.
93
Sua perspectiva trágica, entretanto, se elevará quando no Zaratustra
(1885) apresenta um pensamento livre das formas conceituais e circunscrito pela forma
poética e narrativa, realizando aquilo que em O Nascimento da Tragédia não foi
possível devido a sua elaboração por meio de conceitos: “Que pena que eu não pude dizer
como poeta o que eu tinha então a dizer [...] deveria ter cantado!”
190
. Aí a força dionisíaca
se apresenta pela musicalidade, tão enaltecida por Nietzsche quando pensou a tragédia. “É
com Zaratustra que ele atinge a maturidade”, tendo em vista que nele aparecem mais
profundamente todos os temas essenciais de seu pensamento, como assume: “a mais livre
das minhas produções”
191
. Entretanto, o que Zaratustra vem anunciar cantando é a
filosofia do eterno retorno, da afirmação do homem que ultrapassa os limites do bem e do
mal, “como ultrapassagem do niilismo extremo”
192
. E ainda como diz Eugen Fink,
“com Zaratustra começa o período definitivo da filosofia de Nietzsche
[...] depois do início romântico... depois da reação científico-
desmistificadora, Nietzsche encontra agora sua verdadeira natureza, suas
ideias fundamentais e decisivas”
193
.
E como nesta pesquisa se esforçou em demonstrar, considerando aquilo
que Heidegger apontou como os cinco termos capitais presentes na obra de Nietzsche:
“niilismo”, “transvaloração dos valores”, “super-homem”, “vontade de poder” e “eterno
retorno”, a filosofia nietzschiana detém aquilo que nenhum outro pensamento, ainda que
profundo, tenha anunciado: um saber trágico e elevadamente dionisíaco.
190
NIETZSCHE. Tentativa de autocrítica, § 3.
191
Carta a Peter Gast, 10 de janeiro de 1883. Apud MACHADO, 2006, Op. Cit., p.19.
192
Karl Löwith, Nietzsches Philosophie der Ewigen Widerkehr des Geichen, cap. II.
193
FINK, Eugen. Nietzsches Philosophie, p.59-60, TR.fr., p.75.
94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Obras de Nietzsche citadas:
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Sociologia) Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São
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ARALDI, Clademir Luís. Niilismo, criação, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos
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ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
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BENCHIMOL, Márcio. Apolo e Dionísio: arte, filosofia e crítica da cultura no primeiro
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BRUM, J. T. Nietzsche: as artes do intelecto. São Paulo: L&PM, 1986. (Coleção
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