Download PDF
ads:
JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES
ALÉM DA CRUZ E DA ESPADA: ACERCA DOS RESÍDUOS
CLÁSSICOS D’A DEMANDA DO SANTO GRAAL
Fortaleza
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES
ALÉM DA CRUZ E DA ESPADA: ACERCA DOS RESÍDUOS
CLÁSSICOS D’A DEMANDA DO SANTO GRAAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da UFC como parte dos requisitos para
obtenção do título de Mestre em Letras na Área de
Literatura Comparada.
Orientador: Professor Doutor Francisco Roberto Silveira
de Pontes Medeiros
Fortaleza
2010
ads:
“Lecturis salutem”
Ficha Catalográfica elaborada por
Telma Regina Abreu Camboim Bibliotecária CRB-3/593
Biblioteca de Ciências Humanas UFC
T645a Torres, José William Craveiro.
Além da cruz e da espada [manuscrito] : acerca dos resíduos
clássicos d’A Demanda do Santo Graal / por José William Craveiro
Torres. 2010.
383f. ; 31 cm.
Cópia de computador (printout(s)).
Dissertação(Mestrado) Universidade Federal do Ceará,Centro
de Humanidades,Programa de Pós-Graduação em Letras,
Fortaleza(CE),16/08/2010.
Orientação: Prof. Dr. Francisco Roberto Silveira de Pontes
Medeiros.
Inclui bibliografia.
1-GRAAL LENDAS HISTÓRIA E CRÍTICA.2-ROMANCES ARTURIANOS
HISTÓRIA E CRÍTICA.3-ROMANCES DE CAVALARIA EM PORTUGUÊS
HISTÓRIA E CRÍTICA.4-LITERATURA CLÁSSICA HISTÓRIA E CRÍTICA.
5-TEORIA DA RESIDUALIDADE(LITERATURA).I-Medeiros,Francisco Roberto
Silveira de Pontes,orientador.II-Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-
Graduação em Letras. III-Título.
CDD(22ª ed.) P869.31
92/10
JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES
ALÉM DA CRUZ E DA ESPADA: ACERCA DOS RESÍDUOS
CLÁSSICOS D’A DEMANDA DO SANTO GRAAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará como parte integrante dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras
na Área de Literatura Comparada.
Aprovada em _____/_____/_____
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros (orientador)
Universidade Federal do Ceará UFC
____________________________________________________
Prof. Dr. Orlando Luiz de Araújo (1º examinador)
Universidade Federal do Ceará UFC
____________________________________________________
Prof. Dr. José Rodrigues de Paiva (2ª examinador)
Universidade Federal de Pernambuco UFPE
Agradecimentos
Ao Doutor Francisco Roberto Silveira de Pontes
Medeiros, que aceitou orientar esta dissertação;
ao Doutor Orlando Luiz de Araújo, por sua diligente co-
orientação;
ao Doutor José Rodrigues de Paiva, pela importante
contribuição acadêmica;
à Prof.ª Dr.ª Ana Márcia Siqueira, pelas valiosas
observações;
à CAPES, que me possibilitou os recursos para a pesquisa
e para a escrita desta dissertação;
ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC, por
conceder-me a oportunidade de aperfeiçoar meus
conhecimentos;
à Universidade Federal do Ceará, em cujo berço obtive
minha habilitação profissional.
Dedico esta dissertação
aos orientadores de toda uma vida acadêmica: Roberto
Pontes e Elizabeth Dias Martins;
aos amigos do grupo de estudos: Adalucami Menezes,
Caio Montenegro, Cássia Alves, Carolina Aquino, Felipe
Hélio Dezidério, Isabel Guimarães, Patrícia Barros,
Raimundo Cleodimar Júnior e Silvana Andrade;
aos colaboradores: Juliana, Zenilde, Luidi e Renata.
RESUMO
O presente trabalho tem como principais objetivos apontar os trechos de teor clássico
presentes n‟A Demanda do Santo Graal (edição portuguesa), novela de cavalaria da primeira
metade do século XIII, e explicar o porquê de excertos dessa natureza no âmbito da obra
literária em questão. Procura, ainda, mostrar de que modo a Idade Média realiza uma
retomada de valores da Antigüidade clássica; sobretudo no que concerne à postura do
cavaleiro medieval: chegou-se à conclusão de que este tinha o herói que se movimenta nas
epopéias e nos mitos greco-romanos como ideal de bravura, de virtude e de lealdade, bem
como à de que o imaginário deste (ou “criado em torno deste”) era praticamente o mesmo
daquele, por conta da semelhança existente entre os contextos histórico-literários em que
surgiram ambos. A teoria que serve de base para a realização deste trabalho é a da
Residualidade, elaborada por Roberto Pontes, crítico, ensaísta e professor da graduação e do
programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará UFC. Durante a
pesquisa, os conceitos de imaginário e residual, propostos, respectivamente, pela École des
Annales e por Raymond Williams, crítico literário de orientação marxista, fazem-se também
presentes. No que concerne à metodologia, deve-se dizer que a pesquisa foi realizada,
basicamente, por meio da leitura de clássicos da Literatura das antigas Grécia e Roma (Ilíada
e Odisséia, de Homero; Eneida, de Virgílio; e Metamorfoses, de Ovídio) e de novelas de
cavalaria portuguesas (Amadis de Gaula e, principalmente, A Demanda do Santo Graal), bem
como por meio da Literatura Comparada, visto que houve um trabalho de confronto entre
esses textos. Por fim, esta investigação mostra-se relevante à comunidade acadêmica porque
aborda, numa novela tipicamente medieval e cristã (estamos falando d‟A Demanda do Santo
Graal), um importante aspecto das novelas de cavalaria: o clássico, tão negligenciado pela
maioria dos estudiosos que se debruçam sobre as novelas do ciclo bretão.
Palavras-chave: Imaginário; Residualidade; Mitologia; Cavalaria; Graal.
ABSTRACT
The present work has as main objective to point the passages of classic content presented in
the medieval novel A Demanda do Santo Graal (portuguese edition of The Quest for the Holy
Grail), a novel about chivalry of the first half of the thirteenth century, in order to explain the
reason why exist these passages in the novel in question. Another objective is to show how
the Middle Ages realize a retaking of values of classical Antiquity, especially with regard to
the attitude of the medieval knight: this was the greek hero (or roman hero) as the ideal of
bravery, virtue and loyalty; the imaginary of medieval cavalier (or "the imaginary created
around of the medieval knight") was practically the same imaginary of greek hero (or roman
hero), because of the similarity between the historical and literary contexts in which they both
arose. The theory that underpins this work is the Teoria da Residualidade, created by Roberto
Pontes, critic, essayist and professor of Literature of the Universidade Federal do Ceará
UFC. During the research, the concepts of imaginary and residual, proposed respectively by
the École des Annales and Raymond Williams, a marxist literary critic, are also present. With
regard to the methodology, it must be said that the research was conducted, at first, through
readings of classics of the ancient Literature (Homer‟s Iliad and Odyssey, Vergil‟s Aeneid and
Ovid‟s Metamorphoses) and portuguese novels about chivalry (Amadis de Gaula and,
especially, A Demanda do Santo Graal) and through comparative literature, since there was a
work of comparison between these texts. Finally, this research is relevant to the academic
community because it mentions, in a medieval and christian novel (A Demanda do Santo
Graal), an important aspect of the novels about chivalry: the classic, so much neglected by
most scholars which deal with the novels of the breton cycle.
Keywords: Imaginary; Residuality; Mythology; Chivalry; Grail.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................08
1. DO REFERENCIAL TEÓRICO........................................................................................44
1.1. Da história da intertextualidade e do conceito e da classificação do intertexto……52
1.2. Da proposta da École des Annales para a construção de uma Nova História e dos
conceitos de mentalidade, imaginário e ideologia…………………………………..55
1.3. Dos conceitos de dominante, residual, arcaico e emergente………………………..97
1.4. Dos conceitos de Residualidade, resíduo, hibridação cultural e cristalização……..101
1.5. Das últimas considerações sobre o referencial teórico……………………………...111
2. O IMAGINÁRIO DO HERÓI GRECO-ROMANO A PARTIR DO QUE SE PODE
RETIRAR DA LITERATURA CLÁSSICA…………………………………………….114
3. AS INTERTEXTUALIDADES E OS RESÍDUOS CLÁSSICOS D‟A DEMANDA DO
SANTO GRAAL................................................................................................................214
3.1. As intertextualidades que A Demanda do Santo Graal estabelece com obras literárias
da Antigüidade clássica……………………………………………………………217
3.2. O imaginário clássico-residual do cavaleiro mediévico a partir do que se pode retirar
d‟A Demanda do Santo Graal.……………………………………………………..227
CONCLUSÃO………………………………………………………………………………352
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS……………………………………………………...357
8
INTRODUÇÃO
A Idade Média foi, particularmente pela noção de
renascença, mas também de maneira mais difusa, um
barqueiro da Antigüidade.
Jacques Le Goff
1
A expressão novela de cavalaria faz surgir, na mente daqueles que com ela entram em
contato, tipos medievais que muito fazem parte do imaginário do Ocidente: reis e rainhas,
cavaleiros nas suas belas montarias, donzelas em perigo, padres e monges, bruxas e
feiticeiros. Acontece que as novelas de cavalaria, ao lado de outras produções literárias da
Idade Média (as cantigas lírico-amorosas, as satíricas e as de Santa Maria), trazem para o
leitor muito da atmosfera mediévica na qual viveram esses indivìduos, “porque o tema épico-
guerreiro da literatura medieval está fortemente impregnado da estrutura sócio-político-
econômica do Feudalismo
2
(MONGELLI, 1995, p. 15). Para alguns historiadores, como se
pode ler no texto “Galaaz e Lancelot: dois modelos distintos de cavaleiro medieval
3
”, de
Adriana Maria de Souza Zierer, essas novelas chegam a ser mesmo importantes para o
conhecimento do mundo medieval; sobretudo quando se fala naquele dos séculos XII e XIII:
O historiador Hervé Martin também concorda com Le Goff sobre a
importância das fontes literárias na compreensão de uma “mentalidade
cavaleiresca”, expressando os sistemas de valores e códigos ideológicos da nobreza
francesa no século XIII (MARTIN, 1996, p. 299).
1
LE GOFF, Jacques. As Raízes Medievais da Europa / Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007.
p. 19.
2
MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur. Cotia: Íbis, 1995. p.
15.
3
ZIERER, Adriana Maria de Souza. “Galaaz e Lancelot: dois modelos distintos de cavaleiro medieval”. In:
PONTES, Roberto; MARTINS, Elizabeth Dias (org.). Anais [do] VII Encontro Internacional de Estudos
Medievais Idade Média: permanência, atualização, residualidade. Fortaleza / Rio de Janeiro: UFC / ABREM,
2009. pp. 95-101.
9
Para este autor
4
as obras literárias expressam aspirações e normas da
sociedade medieval que correspondem a faltas e a mudanças desta sociedade. Os
romances de cavalaria buscavam ressaltar a força da nobreza, escondendo a situação
de fortalecimento das monarquias Capetíngia e Plantageneta nos séculos XII e XIII,
bem como o crescimento da importância dos mercadores e banqueiros no mesmo
período (MARTIN, 1996, p. 299). Os romances, poemas e canções de gesta
expressariam a visão do mundo feudal e o código da cavalaria, ao mesmo tempo em
que, com o declínio das Cruzadas no século XIII, os nobres estão tomados de um
sentimento de inquietude, dúvida e desilusão, daí a criação neste período de um
modelo de restauração do cavaleiro (ZIERER, 2009, p. 95).
Ainda sobre as novelas de cavalaria trazerem muito da Idade Média, diz Heitor Megale,
em O Jogo dos Anteparos A Demanda do Santo Graal: a Estrutura Ideológica e a
Construção da Narrativa
5
:
Tivemos sempre em mente a situação da novela
6
dentro da História Literária e da
História da Civilização Medieval, o que nos permitiu considerá-la um documento
das relações dos homens entre si e da representação que os homens têm destas
relações, sendo que estas relações e esta representação constituem exatamente a
ideologia. Adotamos o conceito de que ideologia é, em primeiro lugar e
principalmente, um produto da história da atividade, da práxis do homem. Deve
ficar bem claro que esta práxis, que verifica a verdade do pensamento, não pode ser
uma práxis limitada, mas deve ser uma práxis total (MEGALE, 1992, p. 11).
É que, como disse Jorge Wanderley, “nos escritos de imaginação também não ficam
barrados os registros ou a proximidade para com a realidade concreta e o comezinho
7
(1992,
p. 255). Assim, como no Medievo prevaleceram os aspectos religioso/místico por meio do
Cristianismo e dos rituais de magia praticados por culturas pagãs (como a dos celtas, por
exemplo) e cavaleiresco
8
através do comportamento guerreiro e cortês do homem de
4
Zierer refere-se a Martin.
5
MEGALE, Heitor. O Jogo dos Anteparos A Demanda do Santo Graal: a Estrutura Ideológica e a
Construção da Narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992. p. 11.
6
Megale refere-se, em especial, à Demanda do Santo Graal, embora suas palavras possam ser estendidas às
demais novelas de cavalaria, quer façam elas parte do ciclo arturiano, do carolíngio ou mesmo de qualquer
outro, da Península Ibérica ou não.
7
WANDERLEY, Jorge. “Literatura”. In: JOBIM, José Luís (org.). Palavras da Crítica: Tendências e
Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. (Coleção Pierre Menard.) p. 255.
8
Adjetivo traduzido diretamente do francês (chevaleresque) e não dicionarizado em Língua Portuguesa, mas
largamente utilizado por críticos literários e por medievalistas (Massaud Moisés, Lênia Márcia de Medeiros
10
espada , é mesmo natural que as novelas de cavalaria, porque produções literárias desse
período histórico, tragam, no seu interior, em maior ou em menor grau, elementos
pertencentes a estas duas instituições mediévicas: a Igreja Católica e a Cavalaria. Noutras
palavras e para utilizar aqui termos usados por Adriana Maria de Souza Zierer e por Heitor
Megale, nos excertos dos seus textos pouco citados , as novelas de cavalaria não tinham
como não trazer, no seu bojo, muito da “mentalidade cavaleiresca” do Medievo ou da
“ideologia” religiosa e/ou cavaleiresca do Homem medieval (ou seria melhor dizer “das
ideologias dos homens medievais”?). Para encerrar, pelo menos por ora, essa questão da
Literatura medieval como forma de trazer à tona a História da Europa mediévica, por meio do
que dizem aos leitores as personagens das narrativas em prosa e o eu lírico das cantigas
trovadorescas sobre os modos de agir, de pensar e de sentir de membros da Cavalaria, da
Igreja e da sociedade civil da Baixa Idade Média, vale a pena ler o que escreveu Lênia Márcia
de Medeiros Mongelli sobre A Demanda do Santo Graal, “o maior monumento literário da
Idade Média portuguesa” (MONGELLI, 1995, p. 12.), em seu livro Por quem Peregrinam os
Cavaleiros de Artur
9
, quando se referiu aos aspectos cavaleiresco e religioso (cristão) dos
séculos XII e XIII presentes nessa obra medieval. As seguintes palavras desta pesquisadora
podem mesmo ser estendidas às demais novelas de cavalaria da Baixa Idade Média:
Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval, Yara Frateschi Vieira, Segismundo Spina, Heitor Megale,
Adriana Maria de Souza Zierer, Irene Freire Nunes) para se referir ao estilo nobre e gentil no trato dos
cavaleiros medievais, bem como à bravura e ao pendor destes para as batalhas. Um sinônimo dicionarizado
para esse vocábulo, em Língua Portuguesa, poderia ser cavaleiroso “adj. (sXV cf. IVPM) relativo ou próprio
de cavaleiro; altivo, valoroso” , de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS,
Antônio (dir.). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). ainda quem utilize, nos países de Língua Portuguesa
(Augusto Magne, Irene Freire Nunes), o adjetivo cavalheiresco no lugar de cavaleiresco, o que não está
errado. Uma das acepções que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz para o verbete cavalheiresco
é: “relativo a cavaleiro ou às novelas de cavalaria”. Entretanto, a utilização do adjetivo cavaleiresco, nos
países lusófonos, para se referir ao comportamento guerreiro e cortês do cavaleiro medieval parece estar mais
consentâneo com a Língua de Camões e, por isso mesmo, ser mais interessante, uma vez que a palavra
cavalheiresco, pelo menos em Língua Portuguesa, parece estar já bastante carregada de um único sentido:
“relativo a ou próprio de cavalheiro; delicado, nobre, galante” (ibidem), o que corresponderia apenas a um dos
aspectos comportamentais do homem de espada mediévico, de modo que o aspecto guerreiro, beligerante,
deste, pelo menos aparentemente, acabaria por ficar de lado.
9
MONGELLI, op. cit., p. 12.
11
Tendo sido A demanda do Santo Graal vertida ao português por volta de
1220, ia alto o processo de discussão dessas idéias
10
, que apaixonaram a famosa
escola francesa de Chartres, empenhada em compreender as relações entre razão e
fé, e a que não ficou indiferente o fogoso Abelardo; natural, portanto, que a novela
se impregnasse da realidade à volta e se transformasse em porta-voz da ideologia
cristã, no momento exato, além do mais, em que Igreja e Cavalaria se davam as
mãos (ibidem, p. 13).
no que concerne especificamente às novelas medievais portuguesas
11
, trataram dos
seus aspectos religioso e cavaleiresco, com vista a apontá-los como reflexo, na Literatura, das
mentalidades, dos imaginários ou das ideologias mediévicas dos séculos XII e XIII
10
Mongelli refere-se ao empenho da Igreja Católica em procurar alimentar no povo mediévico em geral, e em
particular nos cavaleiros medievais, o gosto pela ascese e pela penitência; ou seja, em formar homens
religiosos, cristãos, seguidores do Evangelho de Cristo, indivíduos capazes de desprezar as coisas terrenas e de
exaltar as espirituais (1995, p. 13).
11
Massaud Moisés (A Literatura Portuguesa. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 27.) informa que Tristão, o
Livro de Galaaz e o Mago Merlim, novelas do ciclo bretão ou arturiano, eram tidas em alto apreço pela realeza
(D. Duarte, por exemplo) e pela fidalguia, de modo que chegaram mesmo a exercer uma forte influência
“sobre os hábitos e os costumes palacianos da Idade Média portuguesa” (idem). De todas as novelas que
circularam por Portugal, somente permaneceram: História de Merlim, José de Arimatéia, A Demanda do
Santo Graal e Amadis de Gaula (novela de fins do século XIII ou da primeira metade do século XIV, de
acordo com estudiosos nesse gênero literário). Ainda de acordo com Massaud Moisés, “A versão portuguesa
da História de Merlim desapareceu [...]. O José de Arimatéia [...] foi publicado finalmente em 1967, em
edição paleográfica [...]; pertence a outra trilogia [...], formada com a História de Merlim e A Demanda do
Santo Graal (idem). Nesta dissertação, sempre que forem feitas referências às novelas de cavalaria
portuguesas, o leitor deverá pensar nas duas mais acessíveis aos estudiosos e ao grande público: o Amadis de
Gaula e A Demanda do Santo Graal. Esta novela, em galego-português, traduzida diretamente do francês,
língua em que estão escritos os seus originais, que pertencem à segunda prosificação do ciclo arturiano
(ibidem, p. 26). Além disso, reforçam o fato de a Demanda possuir uma versão portuguesa as alterações que
foram feitas à história original francesa pelo tradutor, no século XIII, durante o reinado de D. Afonso III, para
que ela se aclimatasse à realidade histórico-cultural portuguesa (idem), como também afirmou Heitor Megale
(MEGALE, Heitor. “A Demanda do Santo Graal: o códice 2594 de Viena e os testemunhos franceses da Post-
Vulgata”. In: Signum: Revista da ABREM Associação Brasileira de Estudos Medievais, São Paulo / Rio de
Janeiro, n. 9, pp. 67-93, 2007.): “o texto português [da Demanda] evidencia certo critério de acomodação à
mentalidade, ao ideário, à cultura, bem como ao imaginário português” (ibidem, p. 91). Com relação ao
Amadis de Gaula, a questão da autoria, ainda que não esteja totalmente resolvida, para muitos estudiosos
portugueses, espanhóis, franceses, brasileiros (dentre estes, Massaud Moisés) e até mesmo para pesquisadores
de outras nacionalidades, encontra-se finalizada, para o crítico português Rodrigues Lapa. Este afirmou,
num artigo intitulado “A Questão do Amadis de Gaula no Contexto Peninsular” (Grial, Revista Galega de
Cultura. Vigo, 27, jan.-mar. 1970, p. 14-18.), que “existe um fragmento do romance na nossa língua, do
século XIII ou XIV, no arquivo dum aristocrata castelhano residente em Madrid. [...] Está, creio bem, desde
agora, encerrada a velha questão do Amadis de Gaula [...] Podemos portanto dizer que as duas mais altas
expressões do gênio literário galego-português são o Amadis de Gaula e Os Lusíadas; e talvez não seja por
mero acaso que essas duas obras-primas, surgidas com intervalos de três séculos, tenham como autores dois
portugueses de origem galega: João de Lobeira e Luís de Camões” (RODRIGUES LAPA apud MOISÉS, op.
cit., pp. 46-47). Ainda que Massaud Moisés tenha sido impelido a acreditar nas palavras de Rodrigues Lapa,
diante mesmo de tantas evidências históricas e literárias que pesam em favor de uma autoria portuguesa para o
Amadis de Gaula, as quais não convém aqui enumerar, o pesquisador brasileiro preferiu ser cauteloso com
relação a essa questão e afirmou: “Não há, porém, argumentos cabais que permitam decidir acerca das duas
teses citadas. Falta ainda encontrar provas mais concludentes para dar por solucionado o problema, se bem que
alguns pormenores internos façam pender a balança para o lado português, como foi notado inclusive por
espanhóis, dentre os quais Menéndez Pelayo” (Orígenes de la Novela, vol. 1, págs. 345-346)” (MOISÉS, op.
cit., p. 46).
12
(pre)dominantes na Europa e, em especial, em Portugal, grandes críticos literários brasileiros,
como: Massaud Moisés, em suas conhecidas obras A Literatura Portuguesa
12
e A Literatura
Portuguesa Através dos Textos
13
, mais especificamente nos subcapítulos que ele dedicou à
Demanda do Santo Graal e ao Amadis de Gaula; Lênia Márcia de Medeiros Mongelli
14
,
12
Em seu texto sobre as novelas de cavalaria portuguesas, e em especial sobre A Demanda do Santo Graal
(ibidem, p. 26-29), Massaud Moisés, na página 27, fala sobre a cristianização (sobre o caráter religioso,
portanto) desta: “À volta de 1220, em França, por influxo clerical [...], cristianiza-se [...]. Com isso, tem-se a
presença da ascese, traduzida no desprezo do corpo e no culto da vida espiritual”. E explica, na página 29, o
porquê disso: “A Demanda corresponde precisamente à reação da Igreja Católica contra o desvirtuamento da
Cavalaria [...]. A Demanda, cristianizando a lenda pagã do Santo Graal, colabora intimamente com o processo
restaurador da Cavalaria andante”. Também, na página 29, Massaud Moisés fala sobre o caráter cavaleiresco
dessa narrativa: “Novela a serviço do movimento renovador do espìrito cavaleiresco, em que o herói também
está a serviço não mais do senhor feudal mas de sua salvação sobrenatural, uma brisa de teologismo varre-a de
ponta a ponta, o que não impede, porém, a existência de circunstanciais jactos líricos e eróticos, nem algumas
gotas de fantástico ou mágico, em que o real e o imaginário se cruzam de modo surpreendente”. No que
concerne ao Amadis de Gaula, Massaud Moisés, no texto que dedicou a essa novela (ibidem, pp. 46-47), mais
especificamente na página 47, tece considerações em torno do caráter cavaleiresco da narrativa e deixa de lado
o seu aspecto religioso, certamente porque a personagem que nome ao livro, Amadis, bem diferente do
protagonista d‟A Demanda, Galaaz, é excessivamente humano: “Amadis é um perfeito cavaleiro-amante e
sentimental, vivendo em plena atmosfera do „serviço‟ cortês, caracterizado pela dedicação constante e
obsessiva à bem-amada, a fim de lhe conseguir os favores [...]. O cavaleiro humaniza-se, terreniza-se [...].
Amadis anuncia o herói moderno, de largo curso e influência no século XV e no XVI, servindo de elo de
ligação entre um mundo que morria, a Idade Média, e outro que despontava, a Renascença”.
13
Massaud Moisés (A Literatura Portuguesa através dos Textos. 30. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. p 41.) aponta
os aspectos religioso (cristão) e cavaleiresco dA Demanda do Santo Graal a partir do comportamento de dois
importantes personagens dessa novela, Boorz e Perseval, no episódio intitulado “A Barca Misteriosa O
Torneo Forte e Maravilhoso”, correspondente aos capìtulos 250-253 dA Demanda. Sobre o primeiro aspecto,
diz: “Na primeira [parte do episódio], protagonizada por Boorz e Perseval, dois dos principais cavaleiros de
Camaalot, observa-se [...] a presença de ingredientes místicos que fazem da Demanda uma novela „ao divino‟,
isto é, cristã e transcendental” (idem). sobre o segundo, o cavaleiresco, afirma: “A segunda parte, encetada
no segundo parágrafo, contém o recheio mais freqüente desse tipo de narrativa épica: „a justa‟, quando a troca
de armas se realizava homem a homem, e o „torneio‟, quando coletiva” (idem). Massaud Moisés já não trata
dos aspectos religioso e cavaleiresco do Amadis de Gaula, em seu livro A Literatura Portuguesa Através dos
Textos. Acontece que ele não contemplou, neste, a novela dos Lobeira, no capítulo dedicado ao Humanismo
português.
14
Sobre os aspectos cavaleiresco e religioso d‟A Demanda do Santo Graal e da preponderância deste frente
àquele, dentro dessa narrativa medieval, Lênia Márcia de Medeiros Mongelli escreveu, em Por quem
Peregrinam os Cavaleiros de Artur (pp. 16-17): “Há, aqui, uma série de dados que as canções de gesta e as
novelas de cavalaria fixaram com precisão. A Demanda mais do que todas, por insistir no ponto sutilmente
crucial das ligações vassálicas: se homens livres juravam fidelidade, as implicações do contrato são antes
subjetivas do que comerciais. Já que o ponto de partida está no arbítrio pessoal, tudo depende da capacidade de
cada um em manter os propósitos iniciais, o que coloca em causa muito menos a destreza bélica do que
quesitos como a honra, a lealdade, a inteireza de caráter etc. Se o serviço militar é a razão de ser de toda a
transação, o teor religioso da fidelidade jurada conduz a uma certa mística da vassalidade, de inestimáveis
conseqüências para as novelas de cavalaria até Cervantes. Na Demanda, é a sua pedra-de-toque: embora as
pequenas justas e as grandes batalhas alegorizem a indefectível vertente guerreira da Cavalaria, é das
dificuldades de conciliar o juramento com impulsos contrários a ele que a obra se nutre. Pode-se até dizer que,
se os cavaleiros da Távola Redonda não estivessem presos a um juramento, que é pacto sagrado com Deus,
com o Rei e com a Cavalaria, a grandiosa essência moral da novela quedaria enfraquecida. Esta polaridade
transforma-a num dos mais eficientes instrumentos de doutrinação da Igreja”. A partir duma exaustiva
pesquisa sobre os aspectos cio-histórico-culturais da Idade Média (sobretudo a dos séculos XII e XIII) e
dum conhecimento ímpar das Sagradas Escrituras, Lênia Márcia de Medeiros Mongelli procurou, nesse livro,
mostrar as motivações que levaram à escrita d‟A Demanda do Santo Graal (a da segunda prosificação) e as
alegorias bíblicas que se encontram por trás dos vários episódios que compõem essa novela de cavalaria. De
13
Maria do Amparo Tavares Maleval e Yara Frateschi Vieira, em longos capítulos de A
Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. I Trovadorismo, Humanismo
15
(“A Novela de
acordo com a pesquisadora, A Demanda é fruto duma época em que as peregrinações estavam em evidência:
as pessoas dirigiam-se a lugares sagrados, ou iam em busca de objetos sacros, com o intuito de garantir a
purgação dos seus pecados e, em conseqüência disso, a salvação e a morada celeste. Isso justificaria, na
narrativa, o fato de cento e cinqüenta cavaleiros terem se colocado em busca, passando por muitos lugares
sagrados (ermidas, fontes), dum objeto santificado: o Santo Cálice (ou Santo Graal). Vale salientar que essa
procura também (e principalmente) deveria levar ao conhecimento de si mesmo; ou seja, ao
autoconhecimento. Por isso, os cavaleiros colocavam-se à prova, indo sempre ao encontro (ou simplesmente
não evitando) daquilo que seria capaz de lhes fazer cair em tentação. E como os pecados mais comuns à época
eram aqueles ligados à carne (em especial os relacionados ao ato sexual) e à quebra de juramento (lealdade ao
suserano e, mormente, à Igreja), a maior parte dos episódios d‟A Demanda procurou mostrar, a partir do
comportamento de determinados cavaleiros (Lançalot, Erec, Galvam), o que poderia acontecer àqueles que
incorressem nessas faltas: do veto à contemplação do Santo Graal, o que significava que os mistérios divinos
não seriam revelados, até a ida ao Inferno. A Demanda do Santo Graal, para Lênia Márcia de Medeiros
Mongelli, também procurou, a todo custo, combater uma onda de neoceltismo que começava a se fazer
presente àquela época, com todo o paganismo e a presença da femina ardente a que tinha direito, bem como
investir contra uma lírica trovadoresca que colocava a mulher em destaque (as cantigas lírico-amorosas de
Amor e de Amigo); daí esta ter sido posta sempre, ao longo de toda a novela, na situação de pecadora e
daquela que levava o Homem ao pecado, à semelhança de Eva. Em Por quem Peregrinam os Cavaleiros de
Artur, Lênia Márcia de Medeiros Mongelli não tece nenhum comentário direto acerca dos aspectos
cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula. Apenas é possível perceber, a partir do seguinte comentário da
autora, que, nesta novela (ou mesmo no ciclo que mais diretamente diz respeito ao Amadis de Gaula), o
segundo aspecto procurou, por meio da peregrinação, sufocar o primeiro, que, como já foi dito, consiste não
no aspecto guerreiro do cavaleiro medieval como também na maneira como ele se dirige à sua amada: “Não
terá a Demanda inaugurado um sentido de aventura e um modelo de peregrinação que dará seus melhores
frutos justamente em novelas amorosas posteriores? Pretendendo banir do mundo o amor carnal, não terá
oferecido suprema ironia a fórmula ideal para servi-lo? É o que se deduz das intermináveis andanças de
Amadis” (ibidem, p. 148). Vale salientar que esse comentário em torno dos aspectos cavaleiresco e religioso
do Amadis de Gaula não deixa entrever, nem de longe, a supremacia, nesta obra, do primeiro aspecto sobre o
segundo; simplesmente limita-se a dizer que o segundo aspecto teve por interesse diminuir ou mesmo
suplantar o primeiro.
15
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval e Yara Frateschi Vieira (A
Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. I Trovadorismo, Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992. pp. 55-
78; 145-151) situam as origens do aspecto cavaleiresco dA Demanda do Santo Graal nas histórias em torno
do Rei Artur e dos seus cavaleiros, recolhidas da tradição oral ou de documentos que se querem literários ou
históricos, e as dos aspectos místico e religioso no paganismo e no esoterismo mediévicos e na figura do Santo
Graal: “No que tange à Demanda propriamente dita, o primeiro „nó‟ a desatar é a distinção entre a lenda de
Artur e o mito do Graal, que, embora apareçam indissociáveis na memória popular, foram originalmente
separados, sendo o tema do Graal muitíssimo mais antigo que o de Artur e bem menos facilmente datável. A
figura histórica de Artur, com toda a nebulosidade que a cerca, tem sido identificada por especialistas como
um famoso chefe guerreiro das Ilhas Britânicas, dux bellorum dos bretões, que entre os séculos VI e VII ficou
célebre em perigosas batalhas contra os inimigos saxões, descendo em bandos das planícies germânicas à
época da invasão do Ocidente por hordas de rbaros, após a queda do Império Romano. Os principais
responsáveis pela transmissão dos feitos do herói inglês foram os conteurs bretões, narradores de contos e
fábulas folclóricas que passavam de pais para filhos, tanto na tradição irlandesa quanto galesa, recolhidos nos
famosos mabinogion. Antes de prosseguirmos no encalço desse fio da meada tema bélico por excelência,
sustentáculo do heroísmo cavaleiresco desfaçamos a ponta do outro, amarrado ao Graal. Aqui, a essência do
objeto é religiosa e, se quiséssemos recuar às suas fontes, teríamos que considerar a tradição céltica, a
irlandesa, os rituais pagãos da Natureza, a origem bizantina, o esoterismo franco-maçônico, a alquimia, as
crenças judaico-cristãs e até o evangelho apócrifo de Nicodemus. [...] Quanto à junção dos dois veios, o
guerreiro e o religioso, o caminho a percorrer é pelo menos mais nítido, porque contamos com textos
historicamente datados. Colocando de lado as lendas galesas, que desde remotamente fazem menção a ambos
os temas, é com Nennius, historiador do século VIII, que temos a primeira descrição efetiva dos grandes feitos
de Artur nas batalhas contra os saxões [...]. E chegamos a Chrétien de Troyes (1135-1190), o talentoso autor
que escreveu sete novelas em verso sobre a “matéria de Bretanha” (entre 1162 e 1182) [...]. É aqui que, pela
14
Cavalaria: A Demanda do Santo Graal e “A Prosa de Ficção: Amadis de Gaula”), livro
coordenado, assim como toda a coleção da qual ele faz parte, por Massaud Moisés; Augusto
Magne
16
, autor de duas edições (a de 1944 e a de 1955-70), em galego-português, d‟A
Demanda do Santo Graal
17
; Américo Facó, chefe da Seção da Enciclopédia e do Dicionário
primeira vez, se juntam os dois motivos que vimos perseguindo, o de Artur e do Graal. Se as suas novelas
anteriores são recheadas de episódios amorosos, [...] o Perceval deriva para o tema místico, embora sem
caracteres cristãos [...]. Diz-se que a cristianização desse material, já agora composto de lenda do Rei Artur e
do mito do Graal, se deu no espaço de tempo que medeia entre Chrétien de Troyes e o alemão Wolfram von
Eschenbach [...]. Quase pela mesma época, pouco antes, se falava com mais especificidade em „ciclo do
Graal‟ e/ou „ciclo de Artur‟ em um deles está a nossa Demanda [...]. O primeiro conhecido, e agora de
caráter predominantemente cristão, é a tetralogia composta por Robert de Boron (entre 1190 e 1212,
provavelmente em 1202) [...]. As mais diferentes explicações têm sido trazidas à baila para justificar a
desarmonia com que Boron mistura elementos pagãos e cristãos, com prevalência dos últimos [...]. Bem mais
significativo, porque também muito mais amplo, é o ciclo conhecido por Vulgata, atribuído a Gautier Map e
composto de cinco livros: L‟estoire del Saint Graal, L‟estoire de Merlin, Le Livre de Lancelot del Lac (em três
partes, escrito entre 1214-1227), La quest del saint graal (1220-1221) e La mort le roi Artu (por volta de
1230-1235). [...] Quanto ao ponto que nos interessa, a Queste contém a essência da nossa Demanda [...]. Por
fim, a Demanda portuguesa insere-se no último ciclo de que vamos tratar, chamado Post-Vulgata (escrito
provavelmente entre 1230 e 1240) e tido como compilado por um pseudo-Robert de Boron [...]. A Post-
Vulgata é composta também por uma trilogia: a História de Merlim [...]; o José de Arimatéia [...]; e, por fim, A
demanda do santo graal(ibidem, pp. 56-61, passim). No que diz respeito ao Amadis de Gaula, as autoras
enfatizam os seus aspectos cavaleiresco e mìstico; bem como a quase ausência do religioso (cristão): “Como
na tradição artúrica, faz a novela o elogio do „melhor cavaleiro do mundo‟, das suas aventuras com os seus
pares na defesa dos injustiçados, dos desvalidos e perseguidos, notadamente os órfãos, as donzelas e as viúvas.
[...] Dos moldes arturianos guarda muitos outros ingredientes, como o determinismo dos heróis, sustentado em
profecias e em sonhos; a presença de monstros, anões e gigantes, fadas e magos; o enredo formado, nos
primeiros livros, pelo entrelaçamento de aventuras, muitas vezes concomintantes; [...] Estes e outros aspectos
não têm passado despercebidos para a crítica: [...] Afasta-se, no entanto, do ascetismo da Demanda, uma vez
que o prêmio almejado pelo cavaleiro é a posse da mulher amada, a realização terrena, carnal, do amor, alheio
à noção de pecado ou culpa, que levou à perdição o par Lancelote/Genebra. E quando surge um ermitão no
enredo, é para nele ocupar um papel secundário, não sendo sequer capaz de demover o herói, por ele nomeado
significativamente Beltenebros, dos seus intentos autodestrutivos, motivados pelo desprezo da amada, e
afastados com o reatamento do romance. Apenas nos últimos livros, os mais retocados e/ou acrescentados por
Montalvo, a figura do ermitão será valorizada através de Nasciano, um „santo homem‟ a quem Esplandián
deve a vida e os ensinamentos. Faz a novela, sobretudo, o elogio do perfeito amador, assim determinado desde
o nome Amadis. O „serviçoque presta com obsessiva lealdade à sua senhora, Oriana, a Sem-Par, está em
consonância com as regras do amor cortês, passando por todas as suas fases fenhedor, precador, entendedor
e drut. Das canções de amor dos trovadores se afasta, no entanto, em um aspecto: a vassalagem amorosa é
dirigida não a uma mulher casada, objeto do platônico e masoquista amor trovadoresco; mas a uma donzela
solteira, que, como muitas „amigas‟ dos cantares de amigo, se deixa possuir pelo amado bem antes do
matrimônio” (ibidem, pp. 148-149, passim). E ainda: “Já a crìtica tem demonstrado que os grandes traços de
modernidade da obra podem ser entrevistos na sociabilidade dos cavaleiros em defesa de ideais comuns e na
convivência cortesã correspondente à que se percebe no Cancioneiro de Resende, por exemplo” (ibidem, p.
151).
16
Apesar de ter nascido na França, Augusto Magne naturalizou-se brasileiro e elaborou boa parte da sua edição
d‟A Demanda do Santo Graal no Rio de Janeiro. Primeiro, publicou-a em três volumes, no ano de 1944;
depois, em dois volumes, nos anos de 1955 (o primeiro tomo) e 1970 (o segundo tomo).
17
Augusto Magne, no prefácio da sua edição de 1944 dA Demanda do Santo Graal (Rio de Janeiro: INL.),
deixa entrever os aspectos cavaleiresco e religioso dessa novela com base no comportamento de Galaaz, o
protagonista da obra: “Galaaz, figura central do romance; Galaaz, santo corpo e santa creatura, fiel sergente
de Jesus Cristo, e em que está personificado o cavalheirismo cristão. Verdade é que algumas de suas proezas
causam estranheza em leitores do século XX. Escandaliza-nos, por exemplo, a leviandade com que mata a
cinco cavaleiros de rei Artur pelo simples crime de terem inveja ao linhagem de rei Bam; mas, aos olhos da
Idade Média, era o cavaleiro impecável, que puxava da invencível espada ou brandia a lança temerosa em
15
do Instituto Nacional do Livro INL e escritor da Introdução da primeira edição d‟A
Demanda
18
de Magne (a de 1944); Heitor Megale, pessoa responsável não por três edições
defesa de nobre causa, inspirada no mais puro idealismo” (ibidem, p. XII). No prefácio da sua edição de 1955-
70, Magne não trata dos aspectos cavaleiresco e religioso d‟A Demanda. Vale ressaltar que Augusto Magne
não problematizou esses dois aspectos do Amadis de Gaula, nos prefácios que escreveu para as suas edições
d‟A Demanda do Santo Graal. Aliás, o Amadis de Gaula sequer foi mencionado nesses prefácios.
18
Na Introdução da primeira edição d‟A Demanda do Santo Graal de Augusto Magne, publicada em 1944 pelo
Instituto Nacional do Livro INL , Américo Facó, chefe da Seção da Enciclopédia e do Dicionário do
referido instituto, assim se refere ao caráter religioso da novela em questão, quando pensa naquele que teria
tomado para si o trabalho da tradução ducentista d‟A Demanda em terras portuguesas: “A quem atribuir a
versão? Obra acaso do gosto e vagares de um monge, que a tivesse cumprido zelosamente na paz do seu
eremitério? É esta hipótese a que primeiro nos salteia à reflexão de que a narrativa pertence ao grupo dos
romances arturianos mais penetrados do influxo, então soberano, do pensamento e fervor católicos; depressa,
porem, nós nos advertimos de outra. Como a cultura eclesiástica foi a predominante na formação do século
XIII, o tradutor da Demanda do Santo Graal bem podia ser um clérigo, isto é, um excelente letrado, homem
do mundo e não propriamente homem de Deus, embora a diferença de condição não o fizesse muito
discordante, pelo espírito, de um monge autorizado em belas letras, que obedecesse às práticas e regras de um
mosteiro. Mas, hipótese por hipótese, ambas se valem” (MAGNE, op. cit., p. 25). É possível perceber, por essa
citação, que Américo Facó chega a pensar que o tradutor da versão portuguesa d‟A Demanda do Santo Graal
pudesse estar ligado à Igreja Católica (ser monge ou clérigo), pelo fato d‟A Demanda portuguesa trazer em seu
bojo, como se viu, muito dos preceitos católicos que orientaram a vida da Europa (e, especificamente, de
Portugal) na Baixa Idade Média (do século XI ao XV). O aspecto religioso (cristão) d‟A Demanda do Santo
Graal também foi observado por Américo Facó com base da natureza do próprio objeto procurado: “Que
origem ou natureza tinha entretanto o Graal para o próprio Chrétien? Onde estava o mistério? Qual o símbolo
da cousa irrevelada? A dúvida, se não ignorância dos que tomaram ao poeta por modelo, era talvez completa, e
as suas interpretações ou divergiam, e tanto mais quanto queriam ser mais precisas, ou se perdiam por muito
abstratas. Isso mesmo explica em parte por que o problema do Graal permanece extremamente complexo para
os investigadores modernos. Segundo estes, a idéia estava talvez originariamente ligada a um vaso cristão, a
que a imaginação popular tivesse conferido atributos sobrenaturais; ou era uma criação da mítica céltica,
modificada por influência cristã; ou, nova hipótese, a fusão de duas formas primitivas, uma céltica e uma
cristã, em nova forma popular, que existisse antes do romance arturiano. Entre as diferentes interpretações
dadas pelos continuadores de Chrétien, tornou-se predominante a que reconhecia o Graal como um vaso ou
cálice da Última Ceia; ora teria servido a José de Arimatéia para recolher nele o sangue que fluia das chagas
do Crucificado; ora o teria Jesus confiado ao mesmo José de Arimatéia, que o transmitira mais tarde a um
parente, avô de Persival; ou ainda, como vagamente o insinuou Mennessier meio século depois de Chrétien, o
Graal seguira a Jode Arimatéia até a Grã-Bretanha...” (ibidem, p. 18). Quanto ao caráter cavaleiresco dA
Demanda, Américo Facó como nia Márcia de Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval e
Yara Frateschi Vieira disseram n‟A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. I assinala o seu
aparecimento, dentro do ciclo arturiano, a partir dos escritos de Nennius, que datam, aproximadamente, do
ano 1000 d.C.. Américo Facó também lembra que as primeiras histórias em torno do Rei Artur remontam,
ao que tudo indica, ao século VI, como se pode ver a partir destas citações: “O que se afigura incontestável é
que jamais houve um Rei Artur para inspirar a ficção poética e romanesca, mas que existiu muito
provavelmente um guerreiro Artur, que lutou com vantagem contra os invasores saxões da antiga Britânia, no
século VI. Os factos, que um moderno medievalista inglês aponta as a historical nucleus para todo o romance
arturiano, são pelo mesmo prosaicamente reduzidos a este simples esquema: houve um chefe guerreiro que
enfrentou e bateu os invasores, foi traìdo pela esposa e um parente muito chegado, e morreu em combate”
(MAGNE, op. cit., p. 14.) e “Para maior precisão, convem notar que antes de Chrétien a tradição de Artur
ocupara alguns escritores. A Historia Britonum, dita de Nennius, pia ou compilação de autor ou autores
mais antigos, data das proximidades do ano 1000, e conta lendas relativas às vitórias de Artur, na luta contra
os invasores vindos do norte da Alemanha. Outra, a Historia Regum Britanniae, de Geoffrey of Monmouth
que por singularidade assinava Geoffrey Arturus, divulgou-se pouco antes de 1150. Esta última, com a sua
cronologia extravagante, e os elementos feéricos que lhe entraram na composição com aparência de coisas
reais, foi muito tempo a fonte onde beberam cronistas e poetas. Uma e outra, escritas em latim, e àquele tempo
aceitas como verdadeiras, influiram decisivamente no advento do ciclo arturiano” (ibidem, p. 15). Américo
Facó, no seu texto sobre A Demanda do Santo Graal, não trata dos aspectos cavaleiresco e religioso do
Amadis de Gaula; entretanto, deixa claro que o ciclo arturiano, do qual faz parte A Demanda portuguesa,
16
em português moderno d‟A Demanda do Santo Graal
19
(a de 1988, a de 1996 e a de 2008)
como também pela realização de dois ensaios muito abrangentes sobre essa obra: O Jogo dos
Anteparos A demanda do santo Graal: a estrutura ideológica e a construção da narrativa
20
influenciou os demais ciclos de novelas de cavalaria que apareceram pela Península Ibérica durante os séculos
XIII, XIV, XV e XVI: “Ao meiado do século XIII, os numerosos livros da matière de Bretagne já formavam
de modo mais ou menos completo o que se chama Ciclo Arturiano. Mas por força da longa fascinação que
exercera nos espíritos, o seu romanesco continuou a excitar o talento literário em toda parte, na realização de
versões novas, ou imitações, ou mais raramente obras de característicos originais. A sua influência deu causa a
um sub-gênero de romances de aventuras, às vezes sem alusão a Rei Artur, mas realmente filiados ou
aparentados ao romance arturiano pela natureza dos assuntos tratados, ou pelo método seguido na composição.
Método um tanto uniforme, certamente, não raro fastidioso, e que sobreviveu até o século XVI, quando os
epígonos portugueses, Barros, Morais, Vasconcelos, por exemplo, ainda escreviam de Clarimundo, de
Palmeirim, de Sagramor, com abundância e talento como antes o fizera do seu herói o autor do Amadis de
Gaula” (ibidem, p. 22). Como se pode perceber, esta citação não permite ao leitor entrever com que
intensidade os aspectos cavaleiresco e religioso d‟A Demanda do Santo Graal e das demais novelas de
cavalaria do ciclo arturiano fazem-se presentes nos demais ciclos que apareceram pela Península Ibérica após a
matéria artúrica.
19
Na apresentação de sua edição d‟A Demanda do Santo Graal publicada pela Companhia das Letras
(MEGALE, Heitor (org). A Demanda do Santo Graal. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Col.
Companhia de Bolso.), Heitor Megale fala dos aspectos religioso e cavaleiresco dessa novela, como se pode
perceber a partir da seguinte passagem: “Encantados, os cavaleiros partem em busca de uma nova visão do
Graal, na esperança de presenciar mais uma vez tal estado de êxtase e de devolver Camalote a seus dias de
glória. Estamos diante de uma coletividade que desenvolve uma saga caldeada com o místico e o profano. As
aventuras dos cavaleiros da távola redonda retratam atividades da cavalaria errante da Baixa Idade Média,
estando todos eles dispostos a enfrentar todo tipo de aventuras. São justas, torneios, vinganças, prodígios,
tentações, sonhos e visões a suceder-se com alta carga alegórica” (ibidem, p. 11). Por místico deve-se entender
tudo aquilo que se encontra no âmbito do sagrado; quer pertença às religiões (como a Católica, por exemplo),
quer aos rituais que envolvem a magia (como os do povo celta). Ainda sobre o aspecto religioso da Demanda,
Heitor Megale diz, na página 14 do referido livro: “De fato, sob o véu da alegoria, a matéria da Bretanha
adaptou-se ao longo do tempo a diversos gostos e influências religiosas que orientaram seus heróis para a
busca do Graal, símbolo da graça divina, e contrapuseram, aos heróis amorosos, os heróis ascéticos como
Galaaz e Persival. O processo de cristianização é visível desde o inìcio do primeiro livro”. Vale salientar que,
nessa apresentação escrita por Megale, não há nenhuma alusão aos aspectos religioso e cavaleiresco do
Amadis de Gaula. Também a introdução e a apresentação que foram por ele escritas para as suas duas outras
edições dA Demanda do Santo Graal (uma publicada pela T.A. Queiroz, em parceria com a Editora da
Universidade de São Paulo, em 1988, e a outra publicada pela Ateliê Editorial, em parceria com a Editora
Imaginário, em 1996) não fazem qualquer menção aos aspectos aqui levantados (o cavaleiresco e o religioso)
dentro da obra dos Lobeira. Nessas, Heitor Megale faz um histórico da matéria arturiana, que vai das
primeiras histórias de caráter oral em torno do rei Artur até os textos da segunda prosificação ou da Post-
Vulgata, na qual se enquadra a versão portuguesa dA Demanda do Santo Graal (T. A. Queiroz / Editora da
Universidade de São Paulo, 1988; e Ateliê Editorial / Editora Imaginário, 1992.), bem como fala aos leitores
sobre o que o motivou a escrever uma versão modernizada d‟A Demanda do Santo Graal: o desejo de fazer
crescer o público leitor em torno d‟A Demanda, a partir da facilitação da sua leitura, que seria possível
somente após a atualização da linguagem em que originalmente está escrita a novela (galego-português), e do
acesso mais amplo ao texto completo, uma vez que se encontra em número muito reduzido, no Brasil, a edição
de Augusto Magne (a de 1955-70) que traz A Demanda do Santo Graal em sua integralidade (T. A. Queiroz /
Editora da Universidade de São Paulo, 1998).
20
Em O Jogo dos Anteparos A demanda do santo Graal: a estrutura ideológica e a construção da narrativa,
Heitor Megale fala dos aspectos cavaleiresco e religioso d‟A Demanda, na seguinte passagem: “Todas as
leituras da Demanda do Santo Graal centradas na simbologia mística confirmam que as atividades
cavaleirescas se orientavam para o domìnio espiritual” (MEGALE, op. cit., p. 12). Nessa obra, que foi a sua
tese de doutoramento, Megale propôs uma divisão tripartite da novela em questão, com base em três grandes
núcleos narrativos por ele identificados dentro dela: (i) movimento centrípeto, que tem início em véspera de
Pentecostes, quando os cento e cinqüenta cavaleiros dirigem-se para Camaalot, e que termina quando todos
saem em busca (demanda) do Santo Graal; (ii) movimento centrífugo, que é aquele que mostra aos leitores a
17
e A Demanda do Santo Graal: das Origens ao Códice Português
21
; Segismundo Spina, na
introdução de Presença da Literatura Portuguesa. Vol. I Era Medieval
22
, primeiro volume
debandada dos cavaleiros de Artur pelo mundo, à procura do Santo Vaso e com o intuito de viver grandes
aventuras, e no qual se pode observar o entrelaçamento das histórias dos principais cavaleiros da Távola
Redonda (Galaaz, Galvam, Ivam de Cenel, Boorz, Lionel, Persival, Lancelot, Erec etc); e (iii) resultados, que
vão do secionamento dos cavaleiros em dois grupos (o dos merecedores e o dos indignos de participar da
postumeira festa, ou o dos puros e o dos impuros) até o completo desmoronamento do Reino de Camaalot,
passando pelas últimas revelações, que giram em torno “das qualidades de Palamades e da vileza de Galvam,
[d]as mortes de Galaaz e de Persival e [d]as informações acerca das origens demonìacas da besta” (ibidem, p.
124). Para Heitor Megale, a derrocada do Reino de Artur deveu-se à quebra de juramentos e à ausência da
moral (sobretudo da cristã) por parte de muitos dos membros de sua cavalaria; principalmente por parte de
Lancelot. Este, a um só tempo, não traiu a confiança de Artur, ao manter um relacionamento secreto com a
rainha Genevra, de modo a quebrar o juramento de fidelidade que havia feito ao seu rei, como também se
mostrou incapaz de cumprir dois dos dez mandamentos divinos: “não pecar contra a castidade” e “não desejar
a mulher do próximo”. Essa ausência de moral por parte da maioria dos cavaleiros da Távola Redonda, n‟A
Demanda do Santo Graal, seria um reflexo do que estaria acontecendo, em termos históricos, reais, na Europa
dos séculos XII e XIII. Já com relação à narrativa, Megale chegou mesmo a afirmar, n‟O Jogo dos Anteparos,
que a verdadeira causa da queda do reino de Camaalot foi mesmo a revelação, para Artur e para os cavaleiros
da Távola Redonda, do caso adulterino de Lancelot e Genevra. Tal fato levou a uma luta interina, na capital de
Logres, entre os da linhagem do rei Bam, à qual pertencia Lancelot, e os da linhagem de Artur. Esse confronto
favoreceu a entrada de Mars da Cornualha em Camaalot, devido ao enfraquecimento das forças do reino de
Logres. Os aspectos cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula não foram abordados por Heitor Megale
dentro d‟O Jogo dos Anteparos.
21
Heitor Megale, que realiza, em seu livro A Demanda do Santo Graal: das Origens ao Códice Português
(Cotia: FAPESP / Ateliê Editorial, 2001.), um histórico de toda a matéria da Bretanha não em Portugal
como também em toda a Europa, afirma isto, com relação ao aspecto cavaleiresco de todo o ciclo arturiano:
“O maior mérito, no entanto, de estar na amplitude da ressonância humana que tal matéria provoca. São
estórias que implicam na sedução mágica da mulher e do amor, no apelo ao mistério e ao desconhecido, na
invencibilidade da esperança, na aventura heróica suscitada pelo sonho ou pelos arroubos do coração. E tais
abstrações concretizam-se invariavelmente na aceitação e no enfrentamento da prova e do desafio, o que faz
com que as duas molas mestras de todos os seus textos acabem por ser o amor e o combate” (ibidem, p. 27).
Esse excerto do livro de Megale reforça o que já foi dito na introdução desta dissertação quanto ao aspecto
cavaleiresco do homem de espada: aquele consiste não só no comportamento guerreiro deste como também na
sua forma de proceder com relação às mulheres e ao Amor (cortesmente). Ainda sobre o aspecto cavaleiresco
da matéria arturiana, mas sendo já mais especìfico, com relação à sua presença dentro dA Demanda do Santo
Graal, diz Megale: “Chrétien de Troyes e sucessores, até o inìcio da época moderna, estabelece no discurso
um vínculo indissociável com o combate: sofrimento cavaleiresco e prazer erótico, homem e mulher, de tal
modo que, de um ao outro tempo da narrativa, o amor é sempre diferido, ocupando o desejo todo o intervalo
entre um e outro tempo. São as molas mestras, amor e combate, a que se fez referência. Amor e ação
guerreira constituem como que a dupla fonte de luz que banha o universo romanesco, sob cuja claridade as
estruturas narrativas se organizam. Essas estruturas desdobram-se por isso sobre dois planos metonimicamente
unidos, episódio com episódio, de modo que resulta menos uma alternância do que um conjunto complexo de
ações, de imagens desdobradas, incessantemente projetadas na tela da História. O sistema comporta dois
modos de realização, dependendo de o amor e o combate, em paralelo ou num entrelaçamento, permanecerem
distintos ou se confundirem sobrepondo-se, com maior ou menos interação. De qualquer maneira, motivam-se
um ao outro e nem se distinguem nem se confundem totalmente. Mesmo nos romances centrados em torno do
Graal e nos quais o erotismo tende a sublimar-se em exaltação mística, a referência ao fine amors ou àquilo em
que ele implica pode permanecer subjacente, mas nunca desaparece” (ibidem, pp. 39-40). Já com relação ao
aspecto religioso dos textos que compõem a matéria da Bretanha e, em especial, daqueles que giram em torno
do Graal, Heitor Megale diz o seguinte: “Sem dúvida, a organização que a matéria arturiana recebeu em
sua primeira prosificação cíclica foi definida ideologicamente por uma diretriz cristianizadora. Paul Zumthor,
em seu Éssai de Poétique Médiévale, fala de uma scriptura virtual comparável à dos livros da Bíblia e lembra
que todo romance novo de fins do século XII e do século XIII constitui uma reinterpretação da Bíblia. De fato,
sob o véu da alegoria, a matéria da Bretanha adaptou-se, ao longo do tempo, a diversos gostos e influências
religiosas que orientaram seus heróis para a busca do Graal, mbolo da graça divina, e contrapuseram aos
heróis amorosos os heróis ascéticos como Galaaz e Persival. [...] O processo de cristianização é visível desde o
18
da coleção dirigida por Antônio Soares Amora; e Adriana Maria de Souza Zierer, professora
da Universidade Estadual do Maranhão (“Galaaz e Lancelot: dois modelos distintos de
cavaleiro medieval
23
”). Em Portugal, falaram acerca das novelas de cavalaria lusitanas,
início do primeiro livro: Estoire del Saint Graal, que apresenta-se como proveniente da boca do próprio Deus
por meio de um livro que Cristo deu para ser copiado. A Estoire de Merlin torna-se um tecido narrativo que
mescla a vida da corte de Artur com os milagres de Cristo. La Queste del Saint Graal associa elementos
míticos bretões não apenas a costumes cristãos, mas a uma vivência cristã muito acentuada. Albert Pauphilet
viu na Queste da Vulgata o quadro da vida cristã, o espírito monástico, o ascetismo, o misticismo guerreiro e
as ordens militares, tendo afirmado tratar-se de um “romance” de Cister. Mas a Vulgata contém, antes da
Queste, o mais profano dos romances do ciclo: Le Livre de Lancelot del Lac, do nome da personagem-título
cuja trajetória exalta a cavalaria, ao mesmo tempo que conduz o campeão do rei e amante da rainha à
depuração de sua dupla fidelidade. Tal encaminhamento terá seu objetivo atingido em La Mort le roi Artu que,
ao encerrar o ciclo, recupera os valores cristãos, determinando o castigo da culpa dos amores adúlteros de
Genevra e Lancelote” (ibidem, pp. 49-50). Embora Heitor Megale não tenha tratado diretamente dos aspectos
cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula, em A Demanda do Santo Graal: das Origens ao Códice
Português, é possível entrever que ele também se referiu à novela dos Lobeira, quando, ao falar do aspecto
cavaleiresco d‟A Demanda, afirmou: “Chrétien de Troyes e sucessores, até o início da época moderna,
estabelece no discurso um vínculo indissociável com o combate: sofrimento cavaleiresco e prazer erótico,
homem e mulher” (ibidem, pp. 39-40).
22
Segismundo Spina (Presença da Literatura Portuguesa. Vol. I Era Medieval. 11. ed. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2006. Col. Presença da Literatura Portuguesa.), ao tratar dos aspectos religioso e cavaleiresco d‟A
Demanda do Santo Graal, diz o seguinte: A Demanda do Santo Graal, cujo autor revela consistir na tradução
de um original francês, não exprime com absoluta pureza os ideais da vida cortesã guerreira e sentimental da
cavalaria medieval, pois a sua arquitetura e o seu espírito aparecem comprometidos por um simbolismo
religioso e heterodoxo, a traduzir a realização da futura Igreja de Cristo, que corresponderá agora à era do
Espírito Santo, em que Josefes, filho de José de Arimatéia, é o bispo da nova igreja, e Sarraz a sede do
„Palácio Espiritual‟. O fato de Galaaz o cavaleiro eleito por Deus recusar constantemente os combates
cavaleirescos que põem à prova apenas a força pessoal, e o fato de Lançalote considerado a flor da cavalaria
universal não ter sido aceito na mara do Graal em virtude dos seus amores clandestinos com a Rainha
Genebra (mulher do Rei Artur), revelam a intenção ascética do autor da novela, a condenar a cavalaria pela
cavalaria e reprovar pela base a galantaria palaciana” (idem, pp. 20-21). Como se pode perceber, Spina
enfatiza bastante o caráter religioso da Demanda, em detrimento do cavaleiresco, que consiste, como foi
visto, no comportamento guerreiro e cortês do homem de espada. Já quando fala dos aspectos religioso e
cavaleiresco do Amadis de Gaula, no parágrafo seguinte, realiza uma operação inversa; ou seja, mostra que,
nesta novela, este caráter sobressai-se perante aquele: “Tal simbolismo não se revela no Amadis de Gaula,
novela que se filia como a Demanda ao ciclo cavaleiresco bretão: aqui o Amadis é o protótipo criado pela
cavalaria medieval, o cavaleiro em pleno exercício de suas façanhas, liquidando monstros e malvados, tendo
como fulcro de suas aventuras o objeto amado, e amando segundo o ritual e o espírito que vivificou as cortes
da Europa feudalizada” (ibidem, p. 21).
23
Adriana Maria de Souza Zierer (op. cit.) enfatiza o aspecto religioso d‟A Demanda do Santo Graal, como se
pode perceber a partir do seguinte excerto do seu texto: “A presença do religioso na narrativa é constante,
havendo uma clara luta entre Deus e o diabo. Deus dirige-se diretamente aos fiéis, impedindo-os de cometer
maus atos, como, por exemplo, quando aparece a Persival uma linda donzela capaz de encher o seu coração de
amor, levando-o a quase realizar o ato sexual. Repentinamente, o jovem ouve uma voz do Céu e desmaia para
logo a seguir a donzela transformar-se no diabo (A Demanda do Santo Graal, I, 1955, pp. 373-375). Assim, a
interferência divina impediu que um dos cavaleiros eleitos cometesse pecado, permitindo que ele continuasse a
sua busca vitoriosa pelo Graal. Os eremitas também m papel de destaque no relato: através de sua voz,
desvendam os sonhos dos cavaleiros e fazem previsões” (op. cit., p. 99). Ainda para Zierer, mais do que em
Persival, é em Galaaz, personagem principal da Demanda, que o aspecto religioso (cristão) da narrativa faz-se
sentir: “O modelo literário principal do cavaleiro cristão é a figura de Galaaz no romance A Demanda do Santo
Graal proveniente da França, do ciclo da chamada Post-Vulgata da Matéria da Bretanha. Na segunda
prosificação deste texto anônimo que predominou em Portugal, Galaaz é o cavaleiro que irá encontrar o Santo
Vaso, o cálice com o sangue de Cristo na Cruz. Seu elemento central: é o eleito de Deus para fazer uma ação
predeterminada. Não vai em busca de aventuras a esmo, mas sim busca cumprir o seu destino, que foi
determinado por Deus: encontrar o Santo Graal e garantir outra vez a harmonia do reino arturiano” (ibidem, p.
19
também apontando os traços religioso e cavaleiresco dessas como reflexos da época e do local
em que foram produzidas, António José Saraiva e Óscar Lopes, em História da Literatura
Portuguesa
24
; Irene Freire Nunes, autora duma edição portuguesa d‟A Demanda do Santo
Graal
25
e dum interessante ensaio sobre essa novela de cavalaria, que leva o mesmo nome
98). A pesquisadora também explica o porquê de o protagonista da Demanda trazer em si toda essa
religiosidade: “O cavaleiro perfeito [,Galaaz,] tem analogias com o próprio Cristo. Ainda que Cristo seja
considerado o “rei dos reis” na Idade Média, em A Demanda do Santo Graal os atributos espirituais de Galaaz
o levam a agir quase como um religioso. Embora tenha habilidade com as armas, passa toda a demanda a
jejuar e rezar e veste uma estamenha (blusa de lã com farpas que feriam a pele), o que reforça sua condição de
penitente. Em uma ocasião pede a um paralítico que o ajude a levar uma mesa e o cura, lembrando os feitos
bíblicos de Jesus [...] Galaaz ao longo do livro realiza mais ações milagrosas, como expulsar o demônio e
curar leprosos. O personagem está mais ligado ao Reino Celeste que ao Terrestre. Chega a se tornar rei em
Sarras, mas quando o Graal retorna aos céus, Galaaz morre e ascende juntamente com os anjos (A Demanda
do Santo Graal, II, pp. 412-413)”. o aspecto cavaleiresco da Demanda não foi esquecido pela estudiosa.
Este, de acordo com Zierer, aparece em Galaaz, ainda que em menor grau, se comparado aos traços de
religiosidade que permeiam esse personagem, e também em Lancelot, como se pode perceber a partir das
seguintes passagens: “Galaaz é o modelo tìpico do herói: possui uma beleza interna e externa. Talvez devido a
esta beleza a donzela se apaixonou por ele, o que acabou por levar a uma tragédia. Ele é corajoso e forte, mas
só luta por um propósito justo, chega a negar-se a lutar contra cavaleiros durante a Demanda que o chamam de
covarde, muitas vezes sem conhecê-lo devido à armadura” (ZIERER, op. cit., p. 100.) e Nesta narrativa
Lancelot está consciente de seus pecados e embora tenha valor como guerreiro é impedido de realizar ações
dedicadas aos cavaleiros puros” (ibidem, p. 98). O objetivo de Adriana Maria de Souza Zierer, com o seu
ensaio, foi justamente o de mostrar que o aspecto cavaleiresco, preponderante no século XII, encontra-se
presente em narrativas desse período, como O Cavaleiro da Carreta, em que o personagem principal é
Lancelot, e que o religioso é bastante evidente em novelas de cavalaria do século XIII, devido ao intenso
processo de cristianização das instituições cavaleirescas que foi operado pela Igreja Católica na Europa deste
período. Os aspectos religioso e cavaleiresco do Amadis de Gaula não foram contemplados por Zierer em seu
texto.
24
Assim se referem António José Saraiva e Óscar Lopes (História da Literatura Portuguesa. 12. ed. Porto:
Porto Editora, 1982.) aos aspectos cavaleiresco e religioso d‟A Demanda do Santo Graal: “O ciclo novelìstico
bretão adaptou-se, ao longo do tempo, a diversos gostos e influências religiosas que orientam os seus heróis
para a busca do Santo Graal, símbolo da Graça divina, e contrapuseram aos heróis amorosos, como Tristão e
Lançarote, heróis ascéticos, como Galaaz e Perceval” (idem, p. 40). Também afirmam, sobre esses aspectos:
“O ciclo [do Graal] pertence à última fase das sucessivas versões da matéria da Bretanha, na qual os feitos de
cavalaria e os enredos de amor foram adaptados a uma intenção religiosa” (ibidem, p. 95). E dizem ainda: “A
obra tem uma intenção religiosa e representa, relativamente à moral cortês que inspira os cantares de amor,
uma completa inversão de valores. Ao passo que na lírica cortês, como em todo o romance cortês anterior a
esta fase, se exalça o amor como o caminho para a felicidade e a perfeição moral, na Demanda todo o amor é
considerado pecaminoso, e a virgindade recomendada como o estado mais perfeito. [...] O romance tem um
arcaboiço simbólico muito bem concatenado que exprime alegoricamente uma doutrina moral e religiosa,
relacionada talvez com a heresia dos Espirituais, que anunciavam o advento de uma nova Igreja, a do Espírito
(Santo)” (ibidem, pp. 96-97, passim). sobre os aspectos cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula, os
pesquisadores portugueses dizem o seguinte: “O tema da sensualidade que percorre o Amadis traduz uma
concepção de vida bem diferente, portanto, da que está simbolizada na Demanda do Santo Graal. O ideal do
cavaleiro ao mesmo tempo façanhudo e generoso, fogosamente combativo mas terno e suspiroso no amor;
roído de cruéis, graves ou mortais desejos, mas fielmente casto; ao serviço de uma paixão bem humana, mas
cujo preço é a vitória sobre incríveis e infindáveis dificuldades de todos os géneros esse ideal, em cuja
confecção, no Amadis, se tem reconhecido a participação do maravilhoso bretão e da gesta francesa,
corresponde bem ao comedimento de uma aristocracia cada vez mais palaciana. Falta-lhe o picante do amor
adulterino e trágico de Tristão e Lançarote, bem como o ascetismo que o profliga e corrige na Demanda,
embora acuse claras influências do maravilhoso arturiano” (ibidem, pp. 99-100).
25
Irene Freire Nunes, no prefácio que escreveu para a sua edição d‟A Demanda do Santo Graal (2. ed. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. p. 7.), vai buscar as origens do aspecto cavaleiresco d‟A Demanda
portuguesa nas mais remotas histórias em torno do Rei Artur, exatamente como fizeram Lênia rcia de
20
dessa obra medieval e que foi publicado no livro Textos Medievais Portugueses e suas
Fontes: Matéria da Bretanha e Cantigas com Notação Musical
26
, organizado por Heitor
Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval e Yara Frateschi Vieira n‟A Literatura Portuguesa em
Perpectiva: “A Demanda do Santo Graal ms. 2594 da Biblioteca Nacional de Viena insere-se num ciclo
vasto e tardio da literatura arturiana [...]. A lenda arturiana foi transmitida por textos vários dos quais o mais
antigo é a Historia Brittonum, composição anónima anterior ao século XI que apresenta Artur, chefe bretão do
Norte e herói de lutas locais, como um herói cujos feitos cobriram toda a Bretanha. A Historia Regum
Britanniae de Geoffroy de Monmouth (século XII) dá a Artur um lugar central na epopeia dos Bretões”.
com relação ao aspecto religioso (cristão) da novela em questão, a pesquisadora portuguesa situa a origem
deste na obra de Chrétien de Troyes, não muito diferente do que disseram, no texto que elaboraram para o
primeiro volume d‟A Literatura Portuguesa em Perspectiva, as três medievalistas brasileiras há pouco citadas:
“O tema do Graal surge pela primeira vez em Chrétien de Troyes no seu romance Perceval le Gallois ou le
Conte du Graal e é apresentado como um objecto maravilhoso de origem desconhecida guardado pelo rei
mutilado de um reino estéril. Perceval, o herói, falha a sua missão de libertador por todos esperado pois, por
ignorância e discrição, guarda o silêncio na presença do Graal em lugar de formular a pergunta que levantaria
a maldição. O conto de Chrétien de Troyes interrompe-se sem que Perceval volte a encontrar o castelo do
Graal. Os seus numerosos continuadores modificam-lhe o espírito. A lenda, eivada de paganismo, é
cristianizada. O Graal, recipiente grato, caldeirão mágico, vaso ou prato, nunca claramente definido em
Chrétien, é agora o Santo Vaso da Última Ceia onde é recolhido o sangue de Cristo. É Robert de Boron, autor
da trilogia em verso li livres dou graal Joseph, Merlin, Perceval , quem vai (entre 1191 e 1212) não
explicar a origem do Graal mas também articular a história do Graal com o reinado de Artur. Da trilogia de
Robert de Boron apenas se conservam o Joseph e 502 linhas do Merlin. O primeiro estabelece a trajectória do
Graal, vaso sagrado da última ceia, no qual José de Arimateia recolhe o sangue de Cristo, transmitido depois a
Bron, seu cunhado, cujo neto, Perceval, deverá acabar as aventuras que a ele se ligam. O segundo, Merlin,
estabelece uma relação entre a era apostólica do Graal e o reinado de Artur: menciona a instituição da Mesa
Redonda com a sua <<seeda perigosa>> segundo o modelo da mesa do Graal, a intervenção de Merlin nos
amores de Uterpandragon e Ygerne, o nascimento de Artur, a sua educação por Auctor e finalmente a sua
coroação. O terceiro, Perceval, conhecido apenas pelas versões em prosa, narra o fim das aventuras do Graal,
cujo herói é Perceval, e a destruição do reino de Artur” (ibidem, pp. 7-8). Nesse prefácio, Irene Freire Nunes
não tece nenhuma consideração acerca dos aspectos cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula.
26
No seu texto A Demanda do Santo Graal”, publicado no livro Textos Medievais Portugueses e suas Fontes:
Matéria da Bretanha e Cantigas com Notação Musical (MEGALE, Heitor; OSAKABE, Haquira (org). São
Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 1999. pp. 77-99.), Irene Freire Nunes, a exemplo do que fez Lênia Márcia
de Medeiros Mongelli em Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur, fala do aspecto religioso (cristão)
d‟A Demanda do Santo Graal com base nas passagens dessa obra que dão ênfase às relações incestuosas e aos
pecados relacionados à carne (sobretudo com relação às relações sexuais) praticados pelos cavaleiros de Artur,
mas que refletem muito bem o que andava acontecendo pela Europa nos séculos XII e XIII, época em que
apareceu a novela em questão. Esses excertos corresponderiam ao intuito da Igreja Católica em combater o
desvirtuamento da cavalaria através da apresentação do mau exemplo, ou seja, do mau comportamento das
personagens, para o público leitor, como disseram Massaud Moisés (2005), Lênia Márcia de Medeiros
Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval e Yara Frateschi Vieira (1992). Para Irene Freire Nunes, ao
censurar esses trechos de teor erótico d‟A Demanda, na edição de 1944, Augusto Magne acabou por fazer uma
nova narrativa medieval, uma vez que ele teria retirado dela partes essenciais; talvez mesmo a sua razão de ser,
se for feita uma análise d‟A Demanda do Santo Graal a partir do ponto de vista de Lênia Márcia de Medeiros
Mongelli, quando esta pesquisadora procurou saber “por que[m] peregrina[ra]m os cavaleiros de Artur”: “Ao
omitir tudo o que se liga à carne e ao incesto, Magne reescreve a Demanda. Ora a Demanda herda a temática
da „falta‟, do pecado, essencial à Vulgata e retomada pelo autor do Tristan em prosa. O pecado, que é a
condição do „segre‟, é dobrado pela falta hereditária. É o pecado oculto do pai que conduz ao erro e à cegueira
do filho. A oposição pai-filho insere-se na estrutura trágica do mundo ocidental de que a Demanda exibe o
mecanismo. Também o recalcamento da Mulher transforma a dama em irmã. O laço entre o amor e a aventura
é desvirtuado quando o ermita proíbe a presença da amiga e da esposa na Demanda. O sentido é invertido. O
incesto espreita a escrita cristã. [...] Trata-se precisamente de uma história de incesto que se prepara em que o
filho é sacrificado ao desejo culpável do pai pela nora e em que vários crimes se vão suceder para „ocultar‟ a
falta. Mas o silêncio mais significativo é o que rodeia o incesto de Artur. O estatuto ambíguo de Mordret na
Demanda parece ser o resultado do recalcamento de uma falta que torna a sua revelação tanto mais fatídica.
Veículo do princípio trágico segundo o qual o inimigo se encontra no interior daquele que o procura, o filho-
21
Megale e por Haquira Osakabe; Ivo Castro e Isabel Adelaide Almeida, elaboradores dos
verbetes referente à Demanda e ao Amadis de Gaula que se encontram no Dicionário da
Literatura Medieval Galega e Portuguesa
27
, organizado por Giulia Lanciani e por Giuseppe
Tavani.
Contudo, há ainda, nas novelas de cavalaria, outro aspecto, além doscitados religioso
e cavaleiresco: o que daqui para frente será chamado de clássico. Como se verá mais
pormenorizadamente, ao longo desta dissertação, o aspecto clássico das novelas de cavalaria
não existiu apenas naquelas que um dia fizeram parte do ciclo clássico
28
, “referente a novelas
sobrinho de Artur é o instrumento do seu destino. [...] A Demanda reproduz o essencial da Mort Artu, mas o
personagem de Mordret é mais fruste, ao mesmo tempo mais ausente e mais carregado. Como se tivessem
querido negá-lo sem o conseguir. As circunstâncias da traição são abreviadas e o narrador fornece um resumo
dos acontecimentos em que insiste no parentesco tio-sobrinho atribuído a Artur e Mordret. Quase nada prepara
o leitor para a irrupção súbita de Mordret na história com toda a carga trágica de que é portador. Antes da
batalha de Salaber (Salesbierres) mal figura na Demanda e os poucos episódios que lhe dizem respeito
parecem intrusões destinadas a denegrir o personagem. [...] na Demanda a revelação da identidade de Mordret
e da profecia que o condena só surgem com a sua morte [...] Como só surgem com a morte o ódio de Artur e o
seu reconhecimento de paternidade [...] Outro problema, ligado não ao incesto mas à filiação e, indiretamente,
ao pecado é o que liga Lancelot e Galaaz. [...] Segundo a nova moral o amor já não salva, mas conduz à perda.
Lancelot já não encontra o seu nome [Galaaz], mas perde-o [...] Na nova apologética da virgindade, Lancelot
não pode acabar a aventura do Graal pois não é casto e o novo herói do Graal tem de o ser tão completamente
[...] Assim o nome de Galaaz é o nome de seu pai, o nome que o pai perdeu. Ele é, na verdade, filho de
Galaaz (ibidem, pp. 82-86, passim). sobre o aspecto cavaleiresco d‟A Demanda do Santo Graal, Irene
Freire Nunes deixa entrever pouca coisa, no seu texto; apenas nas seguintes passagens pode-se perceber algo
nesse sentido: “A longa batalha [em torno da morte de Galvam] descrita no Brut reduz-se a poucas linhas na
Demanda (ibidem, p. 94, grifo nosso.) e “O Galvam da Demanda é o produto de dois personagens
contraditórios: o cavaleiro „déchu‟ que se esquiva, mente, trai e constituiria a negação de todas as virtudes
corteses que antes encarnava; e o cavaleiro „mescheant‟, o herói trágico a quem os oráculos predizem o
fratricídio e que tem de executá-lo em virtude de um mecanismo inelutável que o compele a agir, na cegueira e
no desconhecimento, em nome das mesmas virtudes que representa” (idem). Em “A Demanda do Santo
Graal”, Irene Freire Nunes não faz nenhuma alusão aos aspectos cavaleiresco e religioso do Amadis de Gaula.
27
No verbete dedicado à Demanda do Santo Graal, pode-se ler, sobre os aspectos religioso e cavaleiresco dessa
novela, o que aqui vai dito: “A Demanda roda em torno da figura de Galahad (Galaaz), o cavaleiro virgem e
sem mácula, nascido do adultério de Lancelot com a filha do rei Pelles. Nele, fundem-se o espírito da cavalaria
com a religião, enquanto, noutro plano, se extingue a linhagem de Nascien, que José de Arimateia convertera
ao cristianismo” (CASTRO, Ivo. Demanda do Santo Graal In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe
(org). Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa / Tradução de José Colaço Barreiros e Artur
Guerra. Lisboa: Caminho, 1993. p. 203). Como se pode perceber, os dois aspectos, da maneira como foram
postos para o leitor, parecem ocupar, em Galaaz, mas também dentro da narrativa da qual ele faz parte, igual
espaço, diferentemente do que afirmou Segismundo Spina (op. cit). No que tange ao Amadis de Gaula, o
verbete dedicado a esta obra revela o seguinte, sobre os referidos aspectos: “Livro de cavalarias, marcado por
uma forte componente maravilhosa e assente no relato de aventuras que vão definindo heróis e vilões em
função de valores como a fé, a honra e o amor, Amadis propunha, no seu entrelaçado de histórias, uma leitura
envolvente” (ALMEIDA, Isabel Adelaide. Amadis de Gaula”. In: LANCIANI & TAVANI, op. cit., p. 50).
Essa declaração sobre o Amadis de Gaula não consegue transmitir para o leitor a verdadeira dimensão que os
aspectos cavaleiresco e religioso possuem dentro da narrativa em questão.
28
“o ciclo denominado „clássico‟, cujos heróis vieram do mundo clássico mediterrâneo (Roman de Thèbes,
1150; Roman d‟Enéas, 1160; Roman de Troye, 1165)” (MONGELLI; MALEVAL; VIEIRA, op. cit., p. 56).
22
de temas greco-latinos
29
que apareceram “em versões corteses da ngua de oïl
30
”, antes do
“ciclo „bretão‟ ou „arturiano‟
31
. O classicismo das novelas de cavalaria, diferente do que
podem pensar alguns estudiosos, não desapareceu com a matéria greco-romana de meados do
século XII: ele não continuou a existir durante esse século como invadiu o seguinte o
XIII
32
, passou pelo XIV e se tornou mais evidente nas novelas de cavalaria dos séculos XV
e XVI, devido à chegada da Modernidade, que possibilitou, dentre outras coisas, o surgimento
do Humanismo e do Classicismo, estéticas que, como se sabe, caracterizaram-se por uma
retomada dos valores da Antigüidade. Assim, com a extinção da matéria greco-romana, o
29
MOISÉS, 2005, p. 27.
30
SARAIVA; LOPES, op. cit., p. 93.
31
MONGELLI; MALEVAL; VIEIRA, op. cit., p. 56.
32
O fato dos medievalistas trabalharem, na maioria dos casos, com textos quatrocentistas ou quinhentistas que
são, na verdade, cópias dos originais das novelas de cavalaria produzidas por volta dos séculos XIII e XIV, faz
com que eles titubeiem na hora de afirmar se os trechos de teor clássico que encontraram dentro das narrativas
mediévicas estavam nos originais ou se teriam sido acrescentados a esses posteriormente, por copistas
simpáticos ao Humanismo ou ao Classicismo. Pesquisadores que se debruçam sobre essa querela geralmente
acabam por concluir que esses excertos de feição clássica foram introduzidos nas narrativas originais das
novelas de cavalaria pelos escribas que ficaram encarregados de copiá-las. Ao que parece, esses estudiosos
analisam a questão a partir do ponto de vista histórico-literário, de modo que julgam improvável que uma
novela de cavalaria originada nos séculos XIII e XIV, época em que a ideologia cristã pela Europa era muito
forte, possa ter trazido consigo aspectos da cultura greco-romana, tão combatida pela Igreja Católica do
Medievo. Assim, é mais fácil pensar que os elementos clássicos presentes nas novelas de cavalaria, a partir de
intertextualidades ou do comportamento das personagens que, em algum momento, retomavam aquele dos
heróis mitológicos, tenham sido acrescidos aos originais, por parte mesmo dos copistas, nos séculos XV e
XVI, quando vigoraram, na Europa, o Humanismo e o Classicismo. Ao analisar o episódio de Nasciano,
passagem de “sabor” clássico existente dentro do Amadis de Gaula, novela de cavalaria, ao que tudo indica, de
fins do século XIII ou da primeira metade do século XIV, Menéndez y Pelayo supôs que ele, o episódio,
tivesse sido acrescentado à narrativa por Garci Rodríguez de Montalvo, autor da versão quinhentista do
Amadis de Gaula, a mais antiga de que se tem notícia, publicada em 1508, em castelhano, na cidade espanhola
de Saragoça. No entanto, Costa Marques, na sua edição do Amadis (COSTA MARQUES, F (trad). Amadis de
Gaula: Notícia Histórica e Literária / Seleção, Tradução e Argumento de F. Costa Marques. Coimbra:
Atlântida, 1972. Colecção Literária Atlântida.), afirma, com base em argumentos de Rodríguez-Moñino, que
“o episódio de Nasciano, de sabor renascentista e relacionado com a história do nascimento de Rômulo e
Remo, não foi acrescentado por Montalvo, como supunha Menéndez y Pelayo, mas existia na redacção
anterior” (ibidem, p. 16). Essa “redacção anterior” a que se refere Costa Marques trata-se “de um manuscrito
do século XV, anterior ao nascimento de Montalvo” (idem), recentemente descoberto na Espanha
(provavelmente a tradução hebraica do Amadis a que fez referência Costa Marques à página 12 do seu livro).
Isso quer dizer que, quanto mais se recua no tempo, mais fica comprovada a existência de passagens clássicas
dentro das novelas de cavalaria dos séculos XIII e XIV. Vale salientar que intertextualidades e trechos com
teor clássico também existem dentro da edição portuguesa dA Demanda do Santo Graal, que, como se sabe,
teria sido traduzida diretamente do francês para o galego-português (ou para um leonês ocidental muito
interferido de galeguismos), no século XIII ou no início do século XIV (segundo Ivo Castro), por Joam Vivas
(ou Bivas); embora seja bem verdade que os pesquisadores trabalham mesmo com a cópia escrita “entre 1400-
1438, durante o reinado de D. Duarte” (MONGELLI; MALEVAL; VIEIRA, op. cit. p. 55). No entanto, como
se verá no decorrer deste trabalho, muitos são os estudiosos que afirmam (Werner Jaeger, Jacques Le Goff e
Heitor Megale, por exemplo), em seus livros, que a épica greco-romana exerceu, sim, muita influência não
sobre as novelas de cavalaria produzidas na Baixa Idade Média como também nas produções épicas de todos
os tempos.
23
aspecto clássico sobreviveu, nas novelas de cavalaria dos demais ciclos bretão e carolíngio
, não por meio das constantes alusões que elas passaram a fazer, através de
intertextualidades, às histórias dos gregos e dos romanos antigos, reais ou míticas, como
também (e principalmente) a partir da identificação do cavaleiro medieval, enquanto
personagem, com o herói das epopéias e dos mitos greco-latinos: o imaginário deste se
fazendo presente no modo de agir, de pensar e de sentir daquele.
Em se tratando das novelas de cavalaria portuguesas, é mais prudente dizer que somente
o Amadis de Gaula teve seus trechos de teor clássico o seu aspecto clássico, portanto,
conforme dele se falou no fim do parágrafo anterior problematizados por grandes estudiosos
da matéria da Bretanha, embora seja bem verdade que alguns ensaístas que escreveram sobre
A Demanda do Santo Graal, como Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, Heitor Megale e
Irene Freire Nunes, tenham percebido características comportamentais típicas dos heróis das
epopéias e dos mitos grego-romanos em Artur, em Galaaz, em Lancelot, em Mordret e em
Galvam, bem como propósitos que guiaram a escrita de antigas epopéias dentro d‟A
Demanda, como se pode ver a partir das seguintes citações:
Na História fabulosa de Geoffrey, a imagem do Rei [Artur] tem muito de semideus
e/ou de heróis mitológicos (MONGELLI, op.cit, p. 20).
O mito de Artur amolda-se idealmente à lenda do Graal, já que suas características
de herói, nos termos oferecidos pela tradição greco-romana, são indispensáveis para
governar um reino supra-humano (ibidem, p. 59).
De alguma maneira, mesmo indiretamente, se estabelece a relação entre Galaaz e o
Santo Vaso, fora do arbìtrio dos homens. Por isso a mensagem provém da “Ínsoa da
Lediça”, que poderia ser substituìda por “Ilhas bem aventuradas”, “Ilha Encoberta”,
“Avalon” ou “Pousada do Sol” (como está na Crônica do Imperador Clarimundo, de
João de Barros), variações terminológicas de um mesmo sentido toponímico,
entendido como aquelas “terras sem ter logar, / Onde o Rei mora esperando.” Galaaz
esteve recluso até agora em um mosteiro de monjas, aguardando completar dezoito
anos e sair pelo mundo para cumprir sua missão. Este procedimento reproduz a
trajetória arquetípica dos heróis primitivos ou fundadores, a inscrever Galaaz na
esfera dos mitos (ibidem, p. 61, grifo nosso).
24
Galaaz nasce com uma espécie de estigma, correspondente ao “ponto fraco” ou
vulnerável que punha em risco a invencibilidade dos heróis mitológicos (ibidem, p.
76).
A seqüência das três visões [de Lançalot] lembra uma visita completa ao submundo
infernal: a travessia do Caronte, a separar os bons dos maus; o escalonamento das
covas, da mais clara à mais escura; o fogo que arde infinitamente; e, por fim, a
suprema ironia de contemplar a beatitude dos eleitos, para sempre vedada ao
pescador (ibidem, p. 126).
A partir da aventura dos sonhos, acompanhamos a inevitável decadência de
Lançalot, que corre par e passo à da monarquia arturiana, como se a queda de um de
seus mais significativos heróis (lição aprendida desde Homero) fosse o negro
presságio de um negro porvir. São muitos os testemunhos da misteriosa certeza de
que os desmandos de Lançalot são um sintoma de infortúnios coletivos que se
avizinham (ibidem, p. 128).
Mas o silêncio mais significativo é o que rodeia o incesto de Artur. O estatuto
ambíguo de Mordret na Demanda parece ser o resultado do recalcamento de uma
falta que torna a sua revelação tanto mais fatídica. Veículo do princípio trágico
segundo o qual o inimigo se encontra no interior daquele que o procura, o filho-
sobrinho de Artur é o instrumento do seu destino. [...] A Demanda reproduz o
essencial da Mort Artu, mas o personagem de Mordret é mais fruste, ao mesmo
tempo mais ausente e mais carregado. Como se tivessem querido negá-lo sem o
conseguir. As circunstâncias da traição são abreviadas e o narrador fornece um
resumo dos acontecimentos em que insiste no parentesco tio-sobrinho atribuído a
Artur e Mordret. Quase nada prepara o leitor para a irrupção súbita de Mordret na
história com toda a carga trágica de que é portador. Antes da batalha de Salaber
(Salesbierres) mal figura na Demanda e os poucos episódios que lhe dizem respeito
parecem intrusões destinadas a denegrir o personagem. [...] na Demanda a revelação
da identidade de Mordret e da profecia que o condena surgem com a sua morte
[...] Como surgem com a morte o ódio de Artur e o seu reconhecimento de
paternidade (NUNES In: MEGALE & OSAKABE, op. cit., pp. 83-84, passim, grifo
nosso).
O Galvam da Demanda é o produto de dois personagens contraditórios: o cavaleiro
„déchu‟ que se esquiva, mente, trai e constituiria a negação de todas as virtudes
corteses que antes encarnava; e o cavaleiro „mescheant‟, o herói trágico a quem os
oráculos predizem o fratricídio e que tem de executá-lo em virtude de um
mecanismo inelutável que o compele a agir, na cegueira e no desconhecimento, em
nome das mesmas virtudes que representa (ibidem, p. 94, grifo nosso).
O escudo dos heróis é a um tempo sinal de reconhecimento e instrumento de erro
trágico. A troca de armas faz desembocar a epopéia na tragédia (ibidem, p. 96,
grifo nosso).
A novelística arturiana reconstrói o mundo bretão a partir das lendas históricas de
Geoffrey of Monmouth, de Gildas, de Beda, o venerável, de William of Malmesbury
e de Wace. Este mundo reconstruído através da ficção adquire um sentido
específico, se considerarmos que existe, em sua reconstrução, um propósito
semelhante ao de Vergílio na Eneida (livro de cabeceira dos historiadores e sábios
do século XII): “Imperium sine fine dedi” [...] “Tu regere imperio populos, Romane,
memento; / Hae tibi erunt Artes, pacisque imponere morem, / Parcere subjectis, et
debellare superbos”. Tal propósito ufanista e profético da Eneida não existe na
Demanda (MEGALE, 1992, p. 82).
A realeza universal a que, à moda virgiliana, acenavam os textos dos historiadores,
se cumpre nesta convergência do mundo para o reino de Logres, para Camaalot, para
dentro do castelo, em torno da Távola tendo, em seu centro, o elemento articulador
25
das ambições terrenas associadas à magia da religião para garantir um governo
superior e perene do universo (ibidem, pp. 83-84).
Acontece que os objetivos das pesquisas de Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, de Heitor
Megale e de Irene Freire Nunes em torno d‟A Demanda, como atestaram já algumas notas de rodapé
desta introdução, não foram os de tratar dos excertos de teor clássico dessa novela: eles, como os
demais que se dedicaram à análise da narrativa em questão, resolveram, através do estudo dos aspectos
religioso e cavaleiresco d‟A Demanda do Santo Graal, mostrar o quanto essa produção literária esteve
a serviço da ideologia dominante do Medievo (aquela encabeçada pela nobreza aliançada com a
Cavalaria e com a Igreja Católica) e, conseqüentemente, o quanto essa obra foi capaz de espelhar o
local (Europa) e a época (Idade Média) em que foi produzida. Logo, percebe-se que abordar o aspecto
clássico d‟A Demanda não constituiu sequer objetivo secundário das investigações desses
medievalistas. Porém, críticos houve que, ao perceberem, no Amadis de Gaula, passagens que faziam
alusões diretas, por meio de intertextualidades, a histórias da Antigüidade greco-romana (mitos e
grandes epopéias), bem como excertos que mostravam, na figura dos cavaleiros medievais que se
movimentavam nesta narrativa, o imaginário típico dos heróis das antigas Grécia e Roma, resolveram
pesquisar as origens de tais trechos, com vista a elucidar o que estaria escrito nos originais da
novela e o que a estes teria sido acrescentado pelos escribas humanistas e quinhentistas, quando
realizaram as suas cópias do Amadis. Estão, entre estes estudiosos, os portugueses F. Costa Marques
33
e M. Rodrigues Lapa
34
, ambos selecionadores e tradutores de episódios da novela dos Lobeira para a
Língua Portuguesa, além de terem sido os prefaciadores das suas edições desta narrativa, e os
espanhóis Menéndez y Pelayo
35
e Rodriguez Moñino
36
, que escreveram ensaios em que abordaram a
obra medieval em questão. É certo que deve haver um maior número de ensaios brasileiros e
portugueses que tratam desses excertos de feição clássica presentes nas novelas de cavalaria
portuguesas; no entanto, o estágio atual das pesquisas em torno da matéria da Bretanha portuguesa
permite divisar, sobre esse assunto, apenas os trabalhos que foram aqui arrolados
37
. Desse modo, esta
dissertação pretende ajudar no preenchimento dessa lacuna dentro dos estudos medievais, uma vez
33
COSTA MARQUES, op. cit.
34
Sobre o classicismo presente no Amadis de Gaula, disse Rodrigues Lapa (Amadis de Gaula, de João Lobeira /
Selecção, tradução, argumento e prefácio de Rodrigues Lapa. 6. ed. Lisboa: Seara Nova, 1973.): “Este
realismo nas cenas de amor é das cousas mais saborosas, mais vivas e originais de todo o romance. o que
quer que seja de robustez clássica no culto pronunciado da beleza física, no forte e higiênico sensualismo de
alguns episódios. Quando Elisena vai, de noite, ao luar, à câmara de Periom, a sua aia Darioleta abre-lhe o
manto, contempla-lhe o corpo esplêndido e diz-lhe: Senhora, em boa hora nasceu o cavaleiro que vos
possuirá esta noite! Com o mesmo rei se passou outra cena semelhante, reminiscência do episódio da filha de
Brutus, na Demanda do Santo Graal. A filha do conde de Selândria insinuou-se no leito do rei Periom,
hóspede de seu pai. Logo que ele se deitou, <<achou-se abraçado com uma donzela muito formosa e juntada a
boca com a dele>> (ibidem, p. 13-14, grifo nosso). E ainda: “Pois bem, a personalidade de Amadis ocupa,
como criação artística, um meio-termo entre Guilam, o amador estéril, e Galaor, o gozador de fêmea. Visto a
esta luz e apesar dos defeitos já apontados da sua figuração, o tipo do nosso herói adquire particular
significado e atinge, pelo seu equilíbrio e pelo seu realismo, as proporções de um vulto clássico(ibidem, p.
14, grifo nosso).
35
MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Orígines de la Novela. Madrid, 1905. Tomo I, Introducción, pp. CXCIX-
CCXLVIII.
36
RODRÍGUEZ-MOÑINO, António; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El Primer Manuscrito del
Amadis de Gaula. Madrid, 1957.
37
O autor desta dissertação desconhece produções científicas, sobretudo brasileiras, inteiramente dedicadas ao
estudo dos excertos de feição clássica existentes dentro das novelas de cavalaria, quer sejam estas do ciclo
bretão, quer sejam do ciclo carolíngio; porém, acredita que possam existir trabalhos acadêmicos nesse sentido,
mas em número muito reduzido frente àqueles que abordam os aspectos cavaleiresco e religioso (cristão)
dessas narrativas mediévicas. Também o autor desta traz consigo uma certeza praticamente absoluta: os textos
científicos que existem sobre o aspecto clássico das novelas de cavalaria se é que existem não abordam
essas passagens clássicas da forma como elas serão trabalhadas neste ensaio; ou seja, eles certamente não
utilizam, quando tratam desses trechos de teor clássico, a teoria (a da Residualidade) com a qual também se
pretende realizar a presente investigação.
26
que, como foi visto, aqueles que discorrem, em suas produções acadêmicas (artigos, ensaios,
monografias, dissertações e teses), sobre as novelas de cavalaria portuguesas dão pouca ou nenhuma
atenção aos trechos de feição clássica que elas possuem. A exceção à regra parece ser mesmo o
Amadis de Gaula, produção literária que, como se de observar, tem merecido, por parte da crítica,
uma abordagem nesse sentido.
É possível que essa quase ausência de investigações em torno do aspecto clássico das novelas de
cavalaria portuguesas deva-se à falta de percepção de alguns estudiosos para com o “sabor” clássico,
como gostaria de dizer F. Costa Marques, de determinadas passagens dessas obras: certos
comportamentos de personagens dessas narrativas mediévicas, devidamente descritos em trechos da
obra, acabariam por ser interpretados, por um bom número de pesquisadores, como manifestações do
imaginário próprio da Idade Média, quando, na verdade, seriam formas de proceder típicas da
Antigüidade greco-latina. Outra hipótese é a de que os pesquisadores até consigam identificar, nas
novelas de cavalaria portuguesas, seus excertos de feição clássica; entretanto, como estes apareceriam
apenas “esporadicamente”, no interior dessas novelas, acabariam por ter o seu valor subestimado por
parte da crítica. Sendo assim, valeria mesmo a pena tratar somente dos aspectos mais “importantes”: o
cavaleiresco e o religioso, que são os que preponderam nessas produções do Medievo. Os que
porventura pensam desta forma certamente enxergam o aspecto clássico das novelas de cavalaria tão-
somente a partir das intertextualidades que essas produções mediévicas estabelecem com as histórias
greco-romanas da Antigüidade (os mitos e as epopéias), de modo que o aspecto clássico existente nas
passagens em que as personagens dessas novelas comportam-se como os heróis das antigas Grécia e
Roma acaba por ser parcial ou totalmente ignorado. No que concerne especificamente à Demanda do
Santo Graal, pode ser que os investigadores não consigam perceber os trechos “clássicos” nela
existentes e, conseqüentemente, dar-lhes a devida importância pelo fato de essa obra ser
enquadrada na Baixa Idade Média (do século XI ao XV) e de tratar, como se pode perceber pelo seu
próprio título, de algo relacionado à religião católica, ao Cristianismo. Esses traços o medieval e o
cristão seriam o suficiente para que certos estudiosos afastassem qualquer aspecto da Antigüidade
greco-romana inclusive o paganismo clássico que lhe é inerente (não o maravilhoso céltico) que
essa narrativa pudesse vir a ter. Diferentemente do que acontece à Demanda, o Amadis de Gaula teria
o seu aspecto clássico ressaltado pelos medievalistas muito provavelmente devido ao fato de sua
edição mais antiga (uma refundição castelhana de diversas cópias do original desconhecido), a qual
todos têm acesso, datar de 1508
38
, época em que os estudos clássicos estavam em voga pela Europa.
Conforme se pôde observar numa das notas de rodapé desta introdução, muitos pesquisadores
acreditam que esses trechos clássicos do Amadis tenham sido acrescentados à narrativa original dessa
novela pelos humanistas e/ou pelos quinhentistas que se propuseram a escrever as suas edições dessa
obra medieval, o que não teria acontecido às demais produções e/ou às cópias das obras que fazem
parte do ciclo bretão (dentre elas A Demanda do Santo Graal portuguesa) e que são anteriores, em
termos temporais, ao Humanismo e ao Classicismo, fato que faria com que elas, exatamente por isso,
estivessem livres desse teor clássico. Parecem esquecer, os estudiosos da matéria da Bretanha, que os
textos em torno do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda a que eles têm acesso são, na
maioria dos casos, transcrições, realizadas nos séculos XV e XVI, das obras originais (geralmente
francesas) ou cópias das traduções desses originais para outras línguas (A Demanda do Santo Graal
portuguesa enquadra-se neste caso). Assim, da mesma forma como o Amadis de Gaula teve o seu
aspecto clássico estudado por críticos pelo fato de sua edição mais antiga, como se viu, datar duma
época em que os estudos clássicos estavam sendo largamente difundidos pela Europa (1508), a versão
portuguesa d‟A Demanda do Santo Graal a que os estudiosos têm acesso, por se tratar de cópia
quatrocentista duma tradução d‟A Demanda francesa realizada, no século XIII, para o galego-
português (ou para um leonês ocidental cheio de galeguismos) por Joam Vivas (ou Bivas), deveria ter
tido o seu aspecto clássico também problematizado por pesquisadores. Sobre essa questão d‟A
Demanda do Santo Graal portuguesa, como acontece também à edição mais antiga do Amadis a que
os investigadores têm acesso, estar voltada para duas direções (para o Trovadorismo e para o
38
Conforme informa F. Costa Marques no prefácio da sua edição do Amadis de Gaula: “No ano de 1508, Garci
Rodríguez (e não Ordóñes) de Montalvo publicava na cidade espanhola de Saragoça Los quatro livros del
Virtuoso cavallero Amadis de Gaula” (COSTA MARQUES, op. cit., p. 5).
27
Humanismo/Classicismo), dizem Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares
Maleval e Yara Frateschi Vieira:
Se a Demanda tem o rosto voltado para duas direções, conforme consideremos o
original (século XIII) e a tradução (século XV)
39
aspecto que não pode ser
desmerecido , a questão das origens do assunto
40
é bem mais complexa, sendo
quase impossível separar os múltiplos veios que se entrecruzam, vindos de países
distantes entre si, de culturas às vezes antagônicas e de fatos descaracterizados por
remotíssimas superposições de elementos (MONGELLI; MALEVAL; VIEIRA, op.
cit., p. 56).
Como se pôde ver, as medievalistas admitem a presença de elementos clássicos
(provenientes do culo XV) dentro d‟A Demanda do Santo Graal (com relação à linguagem,
mas certamente também no que diz respeito ao conteúdo de determinadas passagens da obra),
que entrariam em contradição, em antagonismo, com o seu preponderante caráter
trovadoresco (advindo, sobretudo, de duas instituições bastante influentes no século XIII: a
Cavalaria e a Igreja). Como este trabalho irá mostrar, esse aspecto clássico das novelas de
cavalaria quer elas façam parte do ciclo bretão, quer do carolíngio deveria ser tido, pelos
medievalistas, antes como um legado da Antigüidade greco-romana para a Idade Média que
uma influência do Humanismo ou do Classicismo sobre as cópias das narrativas produzidas
nos séculos XIII e XIV.
39
Devido à confusão de datas que giram em torno da elaboração da tradução e da cópia d‟A Demanda do Santo
Graal em terras portuguesas (ou mesmo em território francês, no caso da tradução), é possível que as
pesquisadoras tenham pensado em dizer “o original português (século XIII) e a cópia deste (século XV)” ou “a
tradução portuguesa (século XIII) e a cópia desta (século XV)”, e não “o original (século XIII) e a tradução
(século XV)”.
40
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, Maria do Amparo Tavares Maleval e Yara Frateschi Vieira referem-se à
questão da prioridade da cópia portuguesa frente à espanhola com base na quantidade de arcaísmos
lingüísticos de origem trovadoresca que ambas possuem. Para M. Rodrigues Lapa e para D. Carolina
Michaëlis, a Demanda portuguesa, por apresentar mais palavras e expressões próprias do Medievo do que a
castelhana, estaria mais próxima da versão original, escrita em francês. O que essa passagem do texto das
autoras do primeiro volume d‟A Literatura Portuguesa em Perspectiva deixa entrever é que elas são
cautelosas quanto a essa afirmação de Rodrigues Lapa e de Carolina Michaëlis, uma vez que mesmo no
Renascimento português era possível encontrar, em textos, sentenças e termos bem próprios do Trovadorismo.
Desse modo, o simples fato d‟A Demanda portuguesa trazer arcaísmos trovadorescos (o que poderia significar
que, em termos temporais, sua cópia teria sido realizada antes da transcrição castelhana) não seria o suficiente,
na visão das três pesquisadoras, para afirmar a proximidade maior do texto português com relação ao original
francês, do qual foi copiado.
28
Devido à impossibilidade de se abordar, numa dissertação, o aspecto clássico das duas
novelas de cavalaria portuguesas (a Demanda e o Amadis), o que levaria a um trabalho
grandioso de pesquisa, apenas A Demanda do Santo Graal será o objeto de estudo da
investigação que aqui será empreendida. Assim, serão devidamente analisadas
intertextualidades que esta obra estabelece com os mitos e com as epopéias da Antigüidade
greco-latina, bem como passagens em que os modos de agir, de pensar e de sentir das suas
personagens retomam o imaginário ou a ideologia dos heróis e dos demais seres ficcionais
das epopéias e dos mitos greco-romanos. Entretanto, tudo leva a crer que tanto a forma como
a análise dos trechos de teor clássico d‟A Demanda será realizada quanto as conclusões a que
esse exame levará possam ser estendidas às demais obras do ciclo bretão (dentre essas, o
Amadis de Gaula). Aliás, durante a escrita desta dissertação, serão mesmo inevitáveis alusões
às novelas de cavalaria em geral e, em particular, ao Amadis de Gaula. Vale salientar, ainda,
que o texto d‟A Demanda do Santo Graal que servirá de base para este trabalho data do
século XV; portanto, é cópia realizada por, pelo menos, seis escribas, dos quais não se sabe
nome da tradução d‟A Demanda francesa pertencente ao ciclo da Post-Vulgata da matéria
da Bretanha
41
(ou à segunda prosificação da matéria arturiana, ou, ainda, ao ciclo do
Pseudo-Robert de Boron) para o galego-português (ou para um leonês ocidental carregado de
galeguismos) realizada por Joam Vivas (ou Bivas), no culo XIII. Coube ao jesuíta Augusto
Magne a elaboração, na Áustria e no Rio de Janeiro, entre os anos de 1922 e 1941
42
, com base
no manuscrito quatrocentista 2594 da Biblioteca Nacional de Viena, em galego-português, na
versão espanhola d‟A Demanda (utilizada esta, por Magne, apenas nos momentos em que o
manuscrito do século XV mostrou-se completamente ilegível) e nas publicações realizadas em
41
Essas informações estão de acordo com as idéias de Heitor Megale (2001) acerca do manuscrito 2594 da
Biblioteca Nacional de Viena. Contudo, Irene Freire Nunes (op. cit., p. 11.) afirma que “A Demanda do Santo
Graal [...] é um pergaminho do século XV, pia de um manuscrito de época anterior que não é ainda o
manuscrito original da tradução”; e ainda: “É evidente a presença de vários copistas. Distinguem-se, a meu
ver, sete mãos diferentes. [...] Fanni Bogdanow [...] considera a existência de cinco mãos” (ibidem, p. 12,
passim).
42
MAGNE, Augusto (org). A Demanda do Santo Graal, por Augusto Magne. Rio de Janeiro: INL, 1944. (Dois
volumes de texto e um volume de glossário.)
29
torno de capìtulos d‟A Demanda do Santo Graal pelos lusitanistas alemães Ferdinand Wolf,
em 1865, Karl Von Reinhardstoëttner, em 1887, e Otto Klob, em 1902
43
, de parte da edição
que servirá de base para a investigação que aqui se empreenderá sobre o aspecto clássico da
versão portuguesa da novela em questão: a edição Magne de 1944. Não será utilizada, nesta
pesquisa, o segundo tomo da edição Magne de 1955-70, que, como se sabe, não traz os
truncamentos da edição de 1944, motivados por convicções morais do padre, devido mesmo à
sua raridade
44
: poucas são as bibliotecas, os bibliófilos e os pesquisadores que possuem os
seus dois volumes. Para preencher as lacunas textuais existentes na edição Magne de 1944,
serão utilizados, nesta dissertação, somente o primeiro tomo da edição Magne de 1955
45
, a
edição d‟A Demanda do Santo Graal de Irene Freire Nunes, realizada com base no ms. 2594
da Biblioteca Nacional de Viena, na edição Magne de 1944, no texto “Anotações Crìticas ao
Texto da Demanda do Santo Graal”, de Joseph-Maria Piel, nas correções de Rodrigues Lapa
à edição (parcial) de Karl Von Reinhardstoëttner, nos trabalhos de Fanni Bogdanow
46
e em
43
Além de Wolf, Reinhardstoëtner e Klob, que publicaram trechos d‟A Demanda do Santo Graal portuguesa,
outros pesquisadores fizeram alusão, em seus escritos, à novela de cavalaria em questão; ou então se
propuseram a publicá-la em parte ou integralmente, mas logo abandonaram o intento. Sobre isso, diz Irene
Freire Nunes (op. cit., pp. 12-13.): “O manuscrito de Viena conheceu várias edições parcelares e algumas
tentativas de edição integral interrompidas. É mencionado a partir de 1838 por F. Joseph Mone, em 1856 por
Ferdinand Wolf, em 1870 por Francisco Adolfo Varnhagen. Em 1887 por Karl Reinhardstoettner que publica
os 72 primeiros fólios. Em 1897 por Carolina Michaëlis que supõe que a Demanda é a terceira parte do ciclo
de que o Josep Abarimatia é a primeira e a considera uma refundição do tempo de D. Duarte de um
manuscrito do século XIII. É mencionado por Wechssler em 1895, que descobre vastos fragmentos de um
possível original da Demanda. Por Otto Klob, em 1902, que projecta uma edição completa do manuscrito de
Viena mas abandona o seu projecto em favor de Wechssler que por sua vez não o realiza. Por W. Entwistle,
em 1925, que a considera fonte das referências à matéria de Bretanha nos cancioneiros galego-portugueses.
Por Bohigas Balaguer que estabelece a relação entre a Demanda portuguesa e a castelhana, derivadas de um
antepassado comum em lìngua peninsular”. A pesquisadora não esqueceu da enorme contribuição dada aos
estudos arturianos pelo Professor Josep-Maria Piel, que deixou inacabada a sua edição d‟A Demanda do Santo
Graal devido à extinção da Imprensa Universitária de Coimbra, que tinha tomado para si a responsabilidade
de publicá-la: “Após ter concluìdo a preparação deste trabalho foi-me dada a conhecer a existência de uma
edição do Professor Joseph Piel, confiada à extinta Imprensa Universitária de Coimbra e que, devido a essa
extinção, ficara incompleta” (ibidem, p. 14).
44
Heitor Megale fala, na introdução de uma das suas edições d‟A Demanda do Santo Graal, da raridade em se
encontrar a edição Magne de 1955-70, como se pode ler no seguinte excerto: “Duas razões nos levaram a
preparar a presente edição [de 1988]. A primeira é o fato de andarem, tempo, esgotadas as edições Magne.
A de 1944 foi generosamente distribuída pelo então Ministério da Educação e Saúde às bibliotecas. A de
1955-70 deve ter tido uma tiragem muito inferior à daquela e constitui verdadeira raridade” (MEGALE, 1988,
p. 14).
45
MAGNE, Augusto (org). A Demanda do Santo Graal / Ed. fac-similada org. por Augusto Magne, Vol. I. Rio
de Janeiro: INL, 1955.
46
“nomeadamente para os vocábulos „car‟ e „obem‟” (NUNES In: MEGALE & OSAKABE, op. cit., p. 79).
30
manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris
47
, e a terceira edição
48
, a de 2008, do texto d‟A
Demanda elaborado por Heitor Megale, em português moderno, com base na mencionada
cópia do século XV, nas edições Magne de 1944 e 1955-70, na edição dos 70 primeiros in-
fólios d‟A Demanda portuguesa elaborada por Karl Von Reinhardstoëttner, em 1887, e nas
edições Pauphilet (La quête du saint Graal du ms. BNFr. 343) e Bonilla y San Martin (La
Demanda del sancto Grial con los maravillosos fechos de Lanzarote y de Galaz su hijo).
Além disso, a utilização da terceira edição Megale, neste trabalho, deve-se ao fato de ela, por
estar em português moderno, facilitar a compreensão dos textos das edições Magne e do texto
da edição de Irene Freire Nunes, que se encontram em galego-português. A certeza de que a
sua obra ajudaria na compreensão do texto d‟A Demanda elaborado por Augusto Magne foi o
que levou Heitor Megale a dizer, sobre a sua edição modernizada dessa novela de cavalaria,
em 1988, as seguintes palavras:
Duas razões nos levaram a preparar a presente edição. [...] A segunda razão é o
reconhecimento de que o texto [de Augusto Magne], ainda que muito modernizado
em relação ao manuscrito, é de acesso extremamente reduzido, dada a dificuldade
que oferece ao público a leitura da língua arcaica. Foi necessário estabelecer
critérios de natureza filológica que facilitassem a leitura, com vistas a colocar ao
alcance de maior público a lenda do Graal, tomando todo o cuidado para transmitir,
ao mesmo tempo, a beleza literária do texto, sem distorcer as formas de mentalidade
e de sensibilidade que se exprimem no original (MEGALE, 1988, p. 14, passim).
Assim, selecionada, dentre as novelas de cavalaria portuguesas, aquela que servirá para
a coleta do material a ser analisado o corpus nesta dissertação (os trechos de teor clássico
d‟A Demanda portuguesa) e apontada a sua origem (cópia quatrocentista de original
ducentista, Portugal), chegou o momento de dizer quais os objetivos gerais e específicos da
investigação que seaqui empreendida: (i) demonstrar, através de comparações, que a Idade
47
“Procurei afanosamente nos manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris a solução para a longa lista de
nomes próprios que figuram nos fls. 12c a 13b, mas apenas encontrei alguns, já que nenhum fornece uma lista
equivalente. Outros foram surgindo mais tarde, ao sabor do contacto com novos textos” (idem).
48
Para a coleta do corpus que será analisado nesta dissertação, será utilizada (também) a terceira edição Megale,
a de 2008, publicada pela Companhia das Letras, uma vez que foi, esta, a última versão d‟A Demanda, em
português moderno, elaborada por Heitor Megale.
31
Média representa, em boa medida, uma retomada de valores da Antigüidade greco-romana e
que o cavaleiro medieval retoma características do herói das antigas Grécia e Roma, a quem
tinha como exemplo de coragem, de lealdade e de virtude; (ii) explicar o motivo da existência
de passagens clássicas dentro das novelas de cavalaria, composições literárias tão distantes,
em termos temporais, da Antigüidade greco-latina (objetivos gerais); (iii) apontar os trechos
de teor clássico presentes n‟A Demanda do Santo Graal e mostrar que o aspecto clássico é tão
inerente e importante a essa obra como o são os aspectos cavaleiresco e religioso nela
presentes, consagrados pela crítica; (iv) justificar o porquê de excertos clássicos existirem
dentro d‟A Demanda do Santo Graal, obra tipicamente medieval e cristã (objetivos
específicos).
Pelo que foi exposto, esta pesquisa mostra-se relevante à comunidade acadêmica
porque, primeiro, procura dar conta de um dos três pilares das novelas de cavalaria: o aspecto
clássico, tão negligenciado pela maioria dos medievalistas que se dedicam ao estudo desse
tipo de narrativa. Em seguida, porque procura explicar o motivo de essas produções trazerem
tantos excertos de teor clássico. Depois, porque visa trabalhar com uma novela de cavalaria
que, aparentemente, está livre dessa “contaminação” clássica, uma vez que, em termos
temporais, ela se encaixa em plena Baixa Idade Média (século XI ao XV), na primeira metade
do século XIII, quando Portugal ainda se encontrava, em se tratando de Literatura, em plena
vigência do Trovadorismo (1189 1418); portanto, numa época em que os valores
predominantes eram, sobretudo, os da Igreja Católica e não aqueles greco-latinos da
Antigüidade, pagãos, que seriam retomados, dezenas de anos depois, pelos humanistas e pelos
quinhentistas. Está-se a falar, claro, d‟A Demanda do Santo Graal, obra, para muitos
estudiosos, praticamente fora de cogitação, quando o assunto é “aspecto clássico das novelas
de cavalaria”. Por fim, porque procura trabalhar com uma proposta nova, no que concerne à
32
análise literária e cultural: a Teoria da Residualidade, apresentada por Roberto Pontes
49
,
orientador desta dissertação, a institutos locais e nacionais de fomento à pesquisa, como a
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará UFC , o
Grupo de Trabalho GT da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e
Lingüística ANPOLL e o Conselho Nacional de Pesquisas CNPq , nos quais foi muito
bem acolhida. Essa teoria, já utilizada em diversos trabalhos acadêmicos (de simples ensaios a
teses de doutorado) tem por objetivo, primeiramente, apontar, numa determinada época,
vestígios dum período anterior; ou seja, mostrar que certos aspectos comportamentais e
culturais “vivos” e tidos como pertencentes a um dado momento são, na verdade, traços
característicos duma era passada, que foram retomados, por uma pessoa ou por um
determinado grupo, de forma consciente ou inconsciente. Porém, a Residualidade não teria
um status de teoria se se propusesse apenas a indicar os vestígios, num determinado instante,
de imaginários de outros momentos da história dos povos. Ela vai além. Por ser teoria,
articula conceitos e procura explicar como certos modos de agir, de pensar e de sentir dum
determinado conjunto de indivíduos foram parar noutro(s) grupo(s) social(is), tempos depois.
Assim, a Teoria da Residualidade, como é possível perceber no livro Poesia Insubmissa
Afrobrasilusa
50
, de Roberto Pontes, bem como noutros ensaios e em demais produções
acadêmicas deste estudioso (Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto
Pontes, concedida à Rubenita Moreira, em 05/06/06
51
, Lindes Disciplinares da Teoria da
Residualidade
52
e “Três Modos de Tratar a Memória Coletiva Nacional
53
”), não toma
emprestado idéias e conceitos de pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento
49
Prof. Dr. Francisco Roberto Silveira de Pontes Medeiros: poeta, crítico, ensaísta, teórico e professor do Curso
de Letras e do Mestrado em Literatura Comparada da Universidade Federal do Ceará UFC.
50
PONTES, Roberto. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor / Edições
UFC, 1999.
51
________. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes, concedida à Rubenita Moreira,
em 05/06/06. Fortaleza: (mimeografado), 2006.
52
________. Lindes Disciplinares da Teoria da Residualidade. Fortaleza: (mimeografado) [s/d].
53
________. “Três modos de tratar a memória coletiva nacional”. In: Literatura e Memória Cultural Anais do
2º Congresso da ABRALIC, vol. II, pp. 149-159, Belo Horizonte, 1991.
33
humano (como a História, a Antropologia, a Literatura e até mesmo a Química) como também
(re)trabalha esses conceitos, de modo a criar os seus próprios, como os de resíduo,
cristalização e hibridação cultural
54
, por exemplo. Assim, poder-se-ia mesmo dizer que essa
(indicar de que maneiras os imaginários movem-se no tempo e no espaço, fato que deu à
Residualidade de Roberto Pontes a condição de teoria) foi a maior contribuição do crítico
cearense às idéias de Raymond Williams, que, em seu livro Marxismo e Literatura
55
, cuja
tradução brasileira data de 1979, falava em residual para se referir a algo “efetivamente
formado no passado, mas que ainda está ativo no processo cultural, não como elemento do
passado, mas como um elemento efetivo do presente” (WILLIAMS, 1979, p. 125). Este
estudioso, diferente daquele, não se dedicou, em sua obra, à explicação detalhada de como se
dão esses resíduos; limitou-se praticamente à definição do que eles vêm a ser algo também
realizado pelo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em uma das acepções que esse
renomado léxico dedica ao vocábulo resíduo , e os diferenciou de outros processos
existentes dentro da complexa malha que forma a cultura da humanidade: o dominante, o
arcaico e o emergente, os quais serão abordados adiante, neste trabalho, por interessarem
diretamente à investigação que aqui se pretende realizar.
Como se viu, não dá para discorrer sobre resíduo sem falar em imaginário e em
mentalidade. De fato, esses conceitos complementam-se, visto que, grosso modo, resíduo é
um imaginário duma época presente em outra e mentalidade é a abstração de um imaginário
ou de um conjunto de imaginários. Assim, quanto à definição de mentalidade e de
imaginário, este trabalho recorrerá às acepções dadas a esses vocábulos pela École des
Annales (ou Escola dos Anais). Vale salientar que os franceses que formaram essa corrente de
pensamento dentre os quais figuram Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Robert
54
O conceito de hibridação cultural elaborado por Roberto Pontes assemelha-se muito àquele que Peter Burke
deu para o mesmo fenômeno, em Hibridismo Cultural (Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo:
Editora Unisinos, 2006. Coleção Aldus).
55
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Tradução de Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1979.
34
Mandrou, Georges Duby e Jacques Le Goff, quase todos modernistas ou medievalistas
imprimiram à História, enquanto ciência, um novo método de análise dos acontecimentos,
através da mudança do objeto de estudo: eles deixaram de se debruçar sobre mapas e sobre
documentos de cunho estatístico e se voltaram às obras literárias, para delas extrair o
imaginário que os ajudaria a reconstruir a história dos povos. Para que os leitores possam
conhecer melhor essa e as demais propostas da École des Annales para a construção duma
Nova História, bem como os conceitos elaborados por seus membros ilustres, esta dissertação
recorrerá aos livros Pequena História dos Historiadores
56
, de Philippe tart; A Escola dos
Annales (1929 1989): a Revolução Francesa da Historiografia
57
, de Peter Burke; A
História Continua
58
, de Georges Duby; O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um
Moleiro Perseguido pela Inquisição
59
, de Carlo Ginzburg; e Fernand Braudel: uma
Biografia
60
, de Pierre Daix; e ao texto “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões
sobre Mentalidade e Imaginário
61
”, de Hilário Franco Júnior.
No que diz respeito especificamente a esta pesquisa, como foi dito na parte desta
introdução dedicada aos objetivos gerais e específicos, mostrar-seque o imaginário dos
cavaleiros medievais presente n‟A Demanda do Santo Graal retoma aquele dos heróis das
histórias greco-romanas da Antigüidade, pois aqueles tinham estes como arquétipo. É possível
que, por conta disso, as novelas de cavalaria tenham feito, em suas narrativas, tantas alusões à
cultura clássica, quer através da forma como se comportavam os cavaleiros mediévicos, ou
56
TÉTART, Philippe. Pequena História dos Historiadores / Tradução de Maria Leonor Loureiro. Bauru:
EDUSC, 2000. (Coleção História).
57
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 1989): a Revolução Francesa da Historiografia / Tradução de
Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
58
DUBY, Georges. A História Continua / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor /
Editora UFRJ, 1993.
59
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição
/ Tradução de Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes; Revisão técnica de Hilário Franco Jr. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
60
DAIX, Pierre. Fernand Braudel: uma Biografia / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: RECORD,
1999.
61
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões sobre Mentalidade e
Imaginário”. In: Signum: Revista da ABREM Associação Brasileira de Estudos Medievais, n. 5, 2003
(Homenagem a Jacques Le Goff).
35
seja, da mesma maneira como outrora agiam os heróis dos mitos greco-latinos e das epopéias
das antigas Grécia e Roma, quer mesmo através de alusões a personagens ou a trechos dessas
obras, a partir de intertextualidades. Como se verá, pelas fontes históricas utilizadas (obras
literárias), pelo seu caráter pontual, ou seja, pelo fato de se concentrar num problema
específico, e pelo fato de procurar, no passado da Idade Média (Antigüidade clássica), as
origens de certos elementos culturais e/ou de determinados fenômenos sociais típicos do
Medievo, esta dissertação aproximar-seimenso, ainda que sem o mesmo brilhantismo, dos
ensaios produzidos pelos participantes da École des Annales que giraram em torno de uma
“história-problema” e de uma “história da longa-duração”, e que foram realizados a partir do
método regressivo.
Também a preocupação, neste trabalho, em conceituar intertextualidade, à luz de
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, para que os leitores possam fazer uma idéia do que esse
termo significa, bem como para que possam diferençar bem intertextualidade de
residualidade. Também porque foram as intertextualidades que A Demanda e o Amadis
estabelecem com mitos e com epopéias da Antigüidade clássica que chamaram a atenção para
algo maior e mais importante: para o imaginário do herói das antigas narrativas greco-
romanas que se encontra, de forma residual, no comportamento do Homem medieval das
novelas de cavalaria (dentre elas, A Demanda). Já a utilização das idéias de Vítor Manuel
nesta dissertação, sem que houvesse a necessidade de confrontá-las com as de outros
pesquisadores, deve-se ao fato de ele ter feito, de forma bastante satisfatória, em seu livro
Teoria da Literatura
62
, um excelente histórico das pesquisas que giram em torno da
intertextualidade, de modo que pouca coisa há para se acrescentar ao que ele escreveu:
partindo dos estudos que Saussure realizou sobre o assunto, ainda de forma embrionária,
Vítor Manuel de Aguiar e Silva chegou até Kristeva, tida como a verdadeira criadora do
62
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Vol. I. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.
36
termo intertextualidade, sem deixar de contemplar os estudos que Bakhtin e que Riffaterre
realizaram sobre essa questão. Todo esse percurso permitiu que Vítor Manuel chegasse a
conclusões bastante sensatas quanto ao fenômeno da intertextualidade: para ele, a relação
intertextual nem deveria ficar totalmente restrita à estrutura dos textos cotejados, ou seja, à
coincidência de seqüências de palavras existentes entre dois ou mais textos, como querem
ainda hoje alguns estruturalistas e pós-estruturalistas, nem deveria ser estabelecida entre
objetos artísticos de natureza diversa, como querem atualmente os adeptos da Semiótica, ou
entre obras que possuem como característica comum apenas o fato de pertencerem a um
mesmo gênero ou subgênero literário. Em seu livro Teoria da Literatura, Vítor Manuel de
Aguiar e Silva também classifica, com base em dicotomias, o fenômeno da intertextualidade.
Para aquele, esta pode ser: endoliterária ou exoliterária; hetero-autoral ou homo-autoral;
explícita (citações, paródia ou imitação declarada) ou implícita (alusões); corroboradora ou
contestatária. Enfim, o primeiro capítulo desta dissertação ocupar-se de todo esse
referencial teórico (e por isso será denominado “Do referencial teórico”) que foi aqui
apresentado: dos conceitos de intertextualidade e intertexto (1.1); mentalidade, imaginário e
ideologia (1.2); residual, arcaico, emergente e dominante (1.3); Residualidade, resíduo,
hibridação cultural e cristalização (1.4); e realizará, ao cabo, algumas considerações em
torno das relações entre intertextualidade e residualidade, e Escola dos Anais e Marxismo
(1.5).
O segundo capítulo versará, com base nas epopéias da Antigüidade clássica (Ilíada
63
e
Odisséia
64
, de Homero
65
, e Eneida
66
, de Virgílio
67
) e nos mitos greco-romanos presentes em
63
HOMERO. Ilíada / Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
64
________. Odisséia / Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
65
As traduções da Ilíada e da Odisséia que serão utilizadas nesta pesquisa foram realizadas, como se viu, por
Carlos Alberto Nunes. A preferência por essas traduções, em detrimento daquelas realizadas por Odorico
Mendes, deve-se ao fato de Nunes ter tentado, nas suas, aproximar-se o máximo possível dos textos gregos, ao
passo que Mendes suprimiu trechos dos poemas homéricos, nas suas traduções, além de ter-lhes encurtado os
versos. Sobre os critérios das traduções da Ilíada e da Odisséia realizadas por Carlos Alberto Nunes e por
Odorico Mendes, disse as seguintes palavras o professor João Ângelo Oliva Neto (USP): “O critério da
tradução de Carlos Alberto Nunes, de meados do século passado, é exatamente o oposto [daquele que foi eleito
37
Metamorfoses
68
, de Ovìdio, e n‟O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula): Histórias
de Deuses e Heróis
69
, de Thomas Bulfinch
70
, sobre a essência do Homem das antigas Grécia e
Roma; em especial, sobre o que de mais característico na figura do herói greco-latino da
Antigüidade
71
. Tal essência será vislumbrada a partir dos comportamentos (modos de agir e
de demonstrar aquilo que sentem; noutras palavras, a partir de atitudes que apontam para o
imaginário) das personagens das histórias encontradas nessas obras de ficção. Vale salientar
que não há nenhuma novidade nessa (re)construção da História Antiga por meio da Literatura;
principalmente quando se trata da Grécia. Qualquer livro de História Geral
72
, por mais
elementar que seja, faz referências ao poeta Homero, ao nomear as duas primeiras etapas da
história grega de períodos Pré-Homérico e Homérico: este “É assim denominado porque o
por Odorico Mendes]: não manteve o número de versos do original, como forjou em português o mesmo
ritmo e praticamente a mesma dimensão do verso grego. Permitindo-se mais espaço, não foi sintético, não foi
conciso, não suprimiu aquelas repetições, não suprimiu epítetos, o que não quer dizer que sua tradução seja
imprópria. Percebemos que o critério de fidelidade de Carlos Alberto Nunes é ser, em português, semelhante a
Homero, para quem nas condições da poesia daquele tempo, brevidade e concisão não eram valor absoluto.
Enquanto Odorico Mendes na diferença queria produzir o mesmo deleite poético que Homero e os aedos que o
recitaram, Carlos Alberto Nunes acolheu o pressuposto teórico de que é possível recriar o ritmo do verso
homérico em nossa língua, o que tem interesse, pois, por pequena que seja, podemos testemunhar parte do que
foi a experiência de sentir aquele andamento, no qual não existe poesia composta originariamente em
português. Não é poupado ainda hoje de censura, segundo a qual o verso longo é frouxo e verborrágico, e o
léxico por vezes tem certo ranço de simbolismo tardio, em vez de saboroso arcaìsmo” (OLIVA NETO, João
Ângelo. A travessia para o português. Revista EntreLivros, São Paulo, n.1, p. 30, s/d).
66
VIRGÍLIO. Eneida / Tradução e notas de Odorico Mendes; apresentação de Antonio Medina;
estabelecimento do texto, notas e glossário de Luiz Alberto Machado Cabral. Cotia / Campinas: Ateliê
Editorial / Editora da Unicamp, 2005. (coleção Clássicos comentados; dirigida por Ivan Teixeira.)
67
A tradução da Eneida que será utilizada nesta dissertação será a do Odorico Mendes, uma vez que Carlos
Alberto Nunes não traduziu a epopéia de Virgílio.
68
OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
69
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula): História de Deuses e Heróis /
Tradução de David Jardim Júnior. 28. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
70
Trechos do livro de Bulfinch serão utilizados, ao longo desta dissertação, sempre que os mitos de
Metamorfoses mostrarem-se muito fragmentados, de modo a impossibilitar uma melhor caracterização do herói
mítico da Antigüidade clássica. Vale salientar que Thomas Bulfinch foi um grande estudioso em Cultura
Clássica: “nasceu em 1796 em Massachussets, Estados Unidos [...]. Graduou-se em 1814 pela Universidade de
Harvard e foi professor da Boston Latin School. A literatura foi seu interesse principal durante toda a vida e
seu trabalho mais conhecido é A Idade da Fábula, que corresponde ao Livro de Ouro da Mitologia. Estava
escrevendo Heróis e Sábios da Grécia e Roma quando faleceu, em 1867”. Essas informações acerca de
Bulfinch foram retiradas de uma das orelhas d‟O Livro de Ouro da Mitologia, cuja bibliografia foi pouco
citada.
71
Assim, interessarão de forma mais imediata a esta dissertação os seguintes mitos de Metamorfoses: “A
História do Duelo de Aqueloo por Djanira”, “A História de Hércules, Nesso e Djanira”, “A Luta de Perseu”,
“A História de Jasão e Medéia”, “O Javali da Caledônia”, “A Deificação de Enéas” e “Mais Histórias de Roma
Antiga”; bem como estes mitos d‟O Livro de Ouro da Mitologia: “Hércules”, “Perseu”, “Teseu” e “O
Velocino de Ouro”.
72
Por exemplo, o de Florival Cáceres (História Geral. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1996. p. 60).
38
conhecimento da sociedade grega desse período deve-se, basicamente, às informações
fornecidas pelos poemas de Homero, a Ilíada e a Odisséia (CÁCERES, 1996, p. 60.), ao
passo que aquele “Compreende a época do povoamento da Penìnsula Balcânica por indo-
europeus, desde 2800 até 1100 a.C., aproximadamente[, de modo que] O conhecimento que
temos dessa época é resultado de investigações arqueológicas” (idem). Essa recorrência à
Literatura, por parte dos historiadores, sempre ocorre quando eles se defrontam com a
escassez de fontes doutra natureza, ao se debruçarem sobre determinados períodos históricos.
Foi o que ocorreu com os estudiosos em Grécia antiga, como foi mostrado, mas é o que
também ocorre com os medievalistas. Sobre essa questão, diz Heitor Megale, n‟O Jogo dos
Anteparos, ao se referir à utilização, por parte dos estudiosos em Idade Média, de novelas de
cavalaria (no caso, A Demanda do Santo Graal) como fontes históricas:
A ausência de variada fonte de documentação histórica, sem dúvida, terá influído,
entre os historiadores especializados na matéria, a adotar critérios de valorização
documental para as narrativas épicas da Idade Média. Afinal, os cerimoniais são
raros e, além das crônicas da época, que aponta Clinchamps não seriam arroladas
entre as fontes, restariam apenas estas narrativas, as únicas, aliás, a apresentar, em
minúcias, o dia-a-dia do cavaleiro.
A demanda do santo Graal, narrativa da matière de Bretagne, que preenche
todos estes requisitos, justifica o valor que, genericamente, a estas obras, atribuiu a
óptica dos historiadores (MEGALE, 1992, p. 22).
[...] convém lembrar a influência das lendas arturianas nos Livros de linhagens e na
própria vida de Nuno Álvares. Isto é relevante para a consideração da Literatura
como fonte de informação, admitida sua função especular, com o que, já o dissemos,
concordam os tratadistas da cavalaria ao se ocuparem do cavaleiro, de sua
investidura, do ritual, das armas, dos escudos e de seu dia-a-dia (ibidem, p. 23).
Como se pôde perceber, a carência de documentação histórica, bem como a recorrência
à Literatura para suprir essa lacuna, também é comum aos medievalistas. A Demanda do
Santo Graal, ou qualquer outra novela de cavalaria, pode e deve ser utilizada como fonte
histórica, por parte dos medievistas, pois ela influenciou mesmo os Livros de linhagem, que
estão na base da historiografia portuguesa, como afirma Massaud Moisés:
39
Houve quatro livros de linhagens [...]. No Livro IV, acentuam-se as preocupações
novelescas, com a inclusão duma tentativa (a primeira) de erguer uma história
completa de Portugal, iniciada em Adão e Eva e terminada nos reis portugueses da
Reconquista. Apresentando mais interesse histórico-literário que estético, aqui a
História e a Cavalaria se mesclam, preparando o advento de Fernão Lopes, com
quem se abre a época seguinte (MOISÉS, 2005, p. 30).
Também a utilização, neste trabalho, das epopéias e dos mitos clássicos para a
(re)construção de aspectos históricos das antigas Grécia e Roma vai ao encontro da proposta
historiográfica da École des Annales, que afirma ser a Literatura uma das formas mais
interessantes de se conhecer o que de mais substancial numa coletividade de um dado
momento, como se pode perceber a partir destas palavras de Georges Duby, ao tratar das
melhores fontes históricas para a compreensão do Medievo:
Com efeito, ao contrário de Braudel, cuja maneira de escrever a história deriva de
uma conjunção entre as abordagens do geógrafo e do economista, e que confessava
sem reticências hesitar arriscar-se pelo terreno da cultura, particularmente do
religioso, Lucien Febvre, de sua parte, extraindo sua informação mais das obras
literárias que das cartas e muito mais que das estatísticas, sentia-se mais à vontade
neste terreno que em qualquer outro (DUBY, op. cit., p. 87, grifo nosso).
Vale salientar que esse método de abordagem proposto pela École des Annales pode ser
utilizado não só para a (re)construção da História medieval e da História antiga como também
para a (re)constituição da história dos povos de todas as épocas. Porém, nesta dissertação, as
epopéias e os mitos clássicos não serão utilizados para a elaboração de toda a História da
Antigüidade clássica, mas sobretudo para a (re)criação do imaginário (ou da ideologia) dos
heróis greco-latinos, ou seja, daqueles que aparecem nas narrativas em verso das antigas
Grécia e Roma, empunhando armas e combatendo em busca de glória
73
. Exatamente por isso,
este capìtulo será intitulado “O imaginário do Herói Greco-Romano a partir do que se Pode
73
Exatamente por isso, ou seja, por se tratar da (re)construção do imaginário dum certo grupo social, o dos
guerreiros da Antigüidade clássica, bem representados pelos heróis das epopéias e dos mitos greco-romanos,
esta dissertação não levará em conta o aspecto cronológico, quando for tratar das histórias greco-latinas, pois é
sabido que algumas delas são muito mais antigas que outras, inclusive dificilmente datáveis, como Thomas
Bulfinch por diversas vezes deixa entrever n‟O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula): História de
Deuses e Heróis. Também o fato de muitas lendas serem comuns aos gregos e aos romanos faz com que a
observância a esse aspecto temporal resulte infrutífera e desnecessária, pois todos sabem que os gregos
influenciaram os romanos em todos os aspectos da vida.
40
Retirar da Literatura Clássica”. Eventualmente, será necessário recorrer também à Literatura
clássica para que possam ser (re)construídas as manifestações religiosas da época
(Antigüidade clássica), presentes também nos antigos heróis greco-romanos, mas, como não
poderia deixar de ser, pertencente a uma camada muito maior das populações das antigas
Grécia e Roma. E para não ficar somente no âmbito da Literatura, o que poderia significar,
para alguns estudiosos, erro dos mais graves, dado o caráter ficcional das fontes históricas
(epopéias e mitos clássicos) e excessivamente subjetivo da interpretação dessas fontes, por
parte do pesquisador, esta dissertação mostrará o que dizem acerca do herói da Antigüidade
clássica também a Antropologia e a História, através de estudiosos como Werner Jaeger, em
Paidéia: a Formação do Homem Grego
74
; Jean-Pierre Vernant, em As Origens do
Pensamento Grego
75
, de sua autoria, e em O Homem Grego
76
, obra da qual foi o diretor e na
qual é possível encontrar ensaios de Yvon Garlan, Giuseppe Cambiano, Luciano Canfora,
James Redfield, Oswyn Murray e Mario Vegetti; Junito de Souza Brandão, em Mitologia
Grega Vol. III
77
; Maria Helena da Rocha Pereira, em Estudos de História da Cultura
Clássica Vol. I: Cultura Grega
78
; Pierre Vidal-Naquet, em O Mundo de Homero
79
; Mário
Curtis Giordani, em História da Grécia
80
; André Malta Campos, em “O legado literário de
Homero
81
”; e Adriane da Silva Duarte, em “O Sentido Religioso do Mito
82
. Essas obras
servirão para reafirmar as impressões do autor desta dissertação quanto ao imaginário do
74
JAEGER, Werner. Paidéia: a Formação do Homem Grego / Tradução de Artur M. Parreira. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
75
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego / Tradução de Manuela Torres. Lisboa: Teorema,
1997.
76
__________ (dir). O Homem Grego / Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial
Presença, 1993.
77
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. III. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
78
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Vol. I: Cultura Grega. 7. ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
79
VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero / Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
80
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia. 8. ed. Petrópolis: Vozes, s/d.
81
CAMPOS, André Malta. O legado literário de Homero. Revista EntreLivros, São Paulo, n.1, pp. 21-24, s/d.
82
DUARTE, Adriana da Silva. O Sentido Religioso do Mito. O Estado de o Paulo, São Paulo, 25 abr. 1992.
Caderno Cultura.
41
herói da Antigüidade clássica; impressões, essas, que poderiam ser tidas como falsas, por
parte de alguns estudiosos, se ele ficasse apenas no âmbito da Literatura.
o terceiro capìtulo, que terá por tìtulo “As Intertextualidades e os Resíduos Clássicos
d‟A Demanda do Santo Graal”, será totalmente dedicado à novela de cavalaria que será o
objeto desta investigação. Num primeiro momento (3.1) serão apontados os trechos de teor
clássico dessa novela, ou seja, os excertos que fazem uma alusão direta às personagens e aos
fatos encontrados nas obras da Literatura greco-latina da Antigüidade, no nível da
intertextualidade; depois (em 3.2), as passagens que giram em torno dos cavaleiros medievais
e que fazem lembrar determinados acontecimentos narrados nas epopéias e nos mitos dos
gregos e dos romanos antigos, de modo a mostrar que o imaginário destes (ou “criado em
torno destes”) fez-se presente, em boa medida, em meio àqueles. Portanto, neste capítulo
haverá um intenso trabalho com a Literatura Comparada, uma vez que o seu objetivo principal
é mostrar, a partir dessas retomadas à cultura dos antigos que fazem as novelas de cavalaria
dentre elas, A Demanda do Santo Graal , que o Homem mediévico sobretudo o que
participava da cavalaria estava imbuído de um imaginário “clássico”; ou seja: ele se
comportava, em muitos aspectos, como o herói dos mitos greco-romanos, por conta de -los
como arquétipo, como modelo. Será por meio da Teoria da Residualidade que o terceiro (e
último) capítulo desta dissertação mostrará de que maneira esse modo de agir, de pensar e de
sentir dos heróis greco-latinos saiu da Antigüidade e chegou à Idade Média. quem pense
que os cavaleiros medievais copiaram o comportamento dos heróis da Antigüidade clássica a
partir do que leram nas histórias greco-romanas; no entanto, o processo foi mais complexo,
como se poderá observar a partir das palavras de Jacques Le Goff, em As Raízes Medievais da
Europa
83
, em A Civilização do Ocidente Medieval
84
e em Dicionário Temático do Ocidente
83
LE GOFF, op. cit.
84
________. A Civilização do Ocidente Medieval / Tradução de José Rivair de Macedo. Bauru: EDUSC, 2005.
42
Medieval Vol. II
85
; de Geneviève d‟Haucourt, em A Vida na Idade Média
86
; de Ivan Lins,
em A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas
87
; de Michel Pastoureau, em No Tempo dos
Cavaleiros da Távola Redonda: França e Inglaterra, séculos XII e XIII
88
; de Danielle
Régnier-Bohler, em História da Vida Privada Vol. II: da Europa feudal à Renascença
89
; de
Michel Zink, em Dicionário Temático do Ocidente Medieval Vol. II
90
; de Mário Curtis
Giordani, em História do Mundo Feudal II/2 Civilização
91
; de José Hermano Saraiva, em
História Concisa de Portugal
92
; de Jean Flori, em A Cavalaria: a Origem dos Nobres
Guerreiros da Idade dia
93
; de Alain Demurger, em Os Cavaleiros de Cristo: Templários,
Teutônicos, Hospitalários e outras Ordens Militares na Idade Média (sécs. XI-XVI)
94
; de
Alfredo Paschoal, em Templários: História da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do
Templo de Salomão
95
; de Pier Campadello, em Templários: sua Origem Mística
96
; e de Karen
Ralls, em Os Templários e o Graal
97
.
Por fim, a conclusão, na qual os leitores verificarão se os objetivos desta investigação
foram alcançados e quais as hipóteses, dentre as que foram levantadas no intróito desta
85
LE GOFF, Jacques. “Sonhos”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval Vol. II. / Coordenador da Tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru / São Paulo: EDUSC /
Imprensa Oficial do Estado, 2002.
86
D‟HAUCOURT, Geneviève. A Vida na Idade Média / Tradução de Marisa Déa. São Paulo: Martins Fontes,
1994.
87
LINS, Ivan. A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas / Prefácio de Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro:
Coeditora Brasílica, 1939.
88
PASTOUREAU, Michel. No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda: França e Inglaterra, séculos XII e
XIII / Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras / Círculo do Livro, 1989. (Coleção Vida
Cotidiana.)
89
RÉGNIER-BOHLER, Danielle. “Ficções: Exploração de uma Literatura”. In: DUBY, Georges (org). História
da Vida Privada Vol. II: da Europa feudal à Renascença / Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
90
ZINK, Michel. “Literatura(s)”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. op. cit.
91
GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/2 Civilização. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
92
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. 15. Lisboa: Publicações Europa-América, 1992.
(Coleção Saber.)
93
FLORI, Jean. A Cavalaria: a Origem dos Nobres Guerreiros da Idade dia / Tradução de Eni Tenório dos
Santos. São Paulo: Madras, 2005.
94
DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalários e outras Ordens
Militares na Idade dia (sécs. XI-XVI) / Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,
2002.
95
PASCHOAL, Alfredo. Templários: História da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de
Salomão. São Paulo: Madras, 2006.
96
CAMPADELLO, Pier. Templários: sua Origem Mística. São Paulo: Madras, 2006.
97
RALLS, Karen. Os Templários e o Graal / Tradução de Paulo Soares e Cynthia Cortes. 2. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
43
dissertação, devem ser consideradas as mais acertadas. Depois de tecidas as últimas reflexões
ainda em torno do assunto sobre o qual este trabalho propôs-se a falar desde o início, e que
certamente servirão para reafirmar os resíduos clássicos das novelas de cavalaria (e, em
especial, os d‟A Demanda do Santo Graal) como reflexos de algo maior e mais importante
que existiu na Idade Média européia (a presença de imaginários dos antigos gregos e romanos
nos homens mediévicos em geral e, em especial, no cavaleiro medieval), serão apresentadas
aos leitores sugestões de outras pesquisas que poderão ser desenvolvidas a partir da leitura de
outras novelas de cavalaria do ciclo bretão (ou mesmo do carolíngio) e com base na Teoria da
Residualidade.
44
DO REFERENCIAL TEÓRICO
Na cultura e na literatura nada é original, tudo é
residual.
Roberto Pontes
98
Conforme foi dito na introdução desta dissertação, este capítulo será totalmente
dedicado à teoria (a da Residualidade) e às idéias (em torno do que vêm a ser
intertextualidade, mentalidade e residual) que servirão, nos dois capítulos próximos, para
indicar e para delimitar, nas novelas de cavalaria portuguesas (em especial n‟A Demanda do
Santo Graal
99
), os trechos que realizam uma clara alusão a passagens de epopéias e de mitos
da Antigüidade clássica, bem como os excertos dessas narrativas greco-romanas e dessas
prosas medievais que trazem, no seu bojo, muito dos modos de agir, de pensar e de sentir dos
heróis das antigas Grécia e Roma e dos cavaleiros da Europa mediévica. Também será com
base na teoria e nas idéias que serão apresentadas nesta parte do trabalho que os trechos das
epopéias e dos mitos greco-latinos, no segundo capítulo, e que os excertos das novelas de
cavalaria portuguesas (principalmente os d‟A Demanda), no terceiro, terão sua classificação
(se portadores de mentalidade; se resíduos; se híbridos; se cristalizados; se intertextos
endoliterários ou exoliterários, hetero ou homo-autorais, implícitos ou explícitos,
corroboradores ou contestatários) e suas origens devidamente apontadas. Se estiverem no
âmbito do intertexto, as origens dessas passagens poderão ser encontradas sem que se faça
muito esforço: bastará, para tanto, que se observe, por exemplo, a que personagem (ou a quais
personagens) e/ou a que episódio (ou a quais episódios) o excerto da obra em análise
98
PONTES, s/d, p. 01.
99
MAGNE, 1955.
45
(epopéia, mito greco-romano ou novela de cavalaria) está se remetendo. É evidente que, para
que o pesquisador possa apontar determinados trechos das obras estudadas como intertexto,
faz-se necessário que ele não saiba o que esse termo significa, mas que também possua
uma razoável bagagem literária; caso contrário, ele não conseguirá perceber o fenômeno da
intertextualidade presente nessas passagens e irá julgar que tudo o que encontrou escrito nos
livros sobre os quais se debruçou, para fins de estudo, pertence mesmo às narrativas deles, ou
seja, que nenhuma das passagens dessas obras remete-se a um trecho ou a um episódio doutro
livro; ou então, sem essa carga de leitura necessária, não saberá, o investigador, em que obra
deverá buscar os subsídios necessários para apontar como intertexto determinado excerto de
um dos livros com os quais trabalhou. Já com relação às explicações das origens de
determinados comportamentos e das mentalidades dos heróis greco-romanos e dos cavaleiros
medievais que se encontram de forma tipificada ou arquetípica, é verdade, porque literária
dentro das epopéias e dos mitos greco-latinos e das novelas de cavalaria, a partir dos modos
de agir, de pensar e de sentir das personagens que, quer nas obras literárias da Antigüidade
clássica, quer nas produções literárias do Medievo, empunham a espada em busca de glória,
deve-se dizer que elas, essas origens (melhor: que as explicações acerca dessas origens),
deverão ser buscadas, sobretudo e principalmente, na História, na Antropologia e na
Psicanálise. Exatamente por isso, nos dois próximos capítulos, será possível perceber que à
teoria que servirá a esta pesquisa, a da Residualidade, serão sempre acrescentados
comentários de teor psicanalítico, historiográfico ou antropológico, retirados de ensaios
reconhecidamente importantes no âmbito da Antropologia, da Psicanálise e da História. Como
se pôde ver, quer por via da intertextualidade, quer pela da residualidade, esta pesquisa irá
buscar, em obras literárias da Idade Média (novelas de cavalaria portuguesas; dentre elas, a
versão lusa d'A Demanda do Santo Graal), indícios (ou vestígios; ou, ainda, resíduos) do que
as produções literárias da Antigüidade clássica (principalmente as epopéias e os mitos) dizem,
46
a partir de suas personagens, acerca dos comportamentos e das mentalidades dos gregos e dos
romanos antigos em geral e, em particular, dos modos de agir, de pensar e de sentir dos heróis
greco-latinos.
Para que se possa compreender o enquadramento de determinados excertos das novelas
de cavalaria medievais em especial os d'A Demanda do Santo Graal portuguesa , das
epopéias (Ilíada
100
, Odisséia
101
e Eneida
102
) e dos mitos clássicos (presentes em
Metamorfoses
103
e n'O Livro de Ouro da Mitologia
104
), realizado nos dois próximos capítulos
deste trabalho, no grupo dos intertextos, no dos trechos portadores de mentalidade clássica ou
no dos resíduos greco-romanos, bem como a forma como foi operada a classificação desses
excertos, nesses dois capítulos, faz-se necessário, antes, o domínio conceitual dos seguintes
termos: intertextualidade e intertexto; mentalidade; residual; Residualidade, substrato
mental, resíduo, hibridação cultural e cristalização.
A primeira parte deste capítulo (1.1 Da história da intertextualidade e do conceito e da
classificação do intertexto) girará em torno das palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva,
retiradas de Teoria da Literatura
105
, sobre a história da intertextualidade das primeiras
considerações realizadas por Saussure em torno da definição de anagrama até a
conceitualização de intertextualidade dada por Kristeva, passando pelo termo hipograma, de
Riffaterre, e pela idéia de texto polifônico, de Bakhtin e sobre o conceito e as formas de
classificação do intertexto: endoliterário ou exoliterário; homo-autoral ou hetero-autoral;
explícito ou implícito, oculto ou dissimulado; corroborador ou contestatário. Nela também se
poderá observar o posicionamento de Vítor Manuel quanto aos diversos estudos realizados
pelos lingüistas e críticos literários sobre o fenômeno da intertextualidade; sobretudo quando
100
HOMERO, op. cit.
101
________. op. cit.
102
VIRGÍLIO, op. cit.
103
OVÍDIO, op. cit.
104
BULFINCH, op. cit.
105
AGUIAR & SILVA, op. cit.
47
esta se estabelece entre textos literários. A existência, nesta dissertação, de um subcapítulo
dedicado à conceituação de intertextualidade e de intertexto pode ser justificada mesmo pela
presença do fenômeno da intertextualidade em trechos das novelas de cavalaria portuguesas
da Baixa Idade Média: algumas passagens dessas narrativas medievais fazem alusões a
personagens e/ou a episódios das epopéias e dos mitos da Antigüidade clássica, como se verá
no terceiro capítulo desta dissertação, quando forem apontadas e devidamente classificadas as
intertextualidades que A Demanda do Santo Graal e o Amadis de Gaula estabelecem com
certas obras literárias das antigas Grécia e Roma. Justifica-se, também, pela importância
dessas intertextualidades para a pesquisa aqui empreendida em torno dos resíduos clássicos
presentes nas novelas de cavalaria e, por extensão, no Medievo, uma vez que foram essas
relações intertextuais estabelecidas entre as narrativas medievais em questão e as epopéias
e/ou os mitos da Antigüidade clássica que chamaram a atenção para algo maior e mais
importante: para um imaginário greco-romano o do herói das antigas Grécia e Roma, bem
representado pelas lendárias personagens de espada que povoam as antigas narrativas em
verso que se encontra presente também na Idade Média principalmente na figura do
cavaleiro medieval, cujas formas de agir, de pensar e de sentir foram muito bem representadas
pelas personagens das novelas de cavalaria , período histórico em que os valores (sociais,
religiosos, morais) apresentam-se, na sua maioria (pelo menos é essa a idéia que se tem),
opostos aos da Antigüidade greco-latina. Sendo assim, o fenômeno da intertextualidade (pelo
menos a partir do ângulo em que ele será visto neste trabalho: o das alusões que as novelas de
cavalaria fazem, de maneira bem direta, a personagens e/ou a episódios de obras literárias dos
antigos gregos e romanos) representaria uma das formas mais evidentes de residualidade
clássica no Medievo. Entretanto, no meio acadêmico, quem não tenha chegado a essa
conclusão quanto à relação entre o fenômeno intertextual e o residual presentes nas novelas
de cavalaria (ou, ainda pior, quanto mesmo às semelhanças e às diferenças existentes entre
48
intertextualidade e residualidade): ora equiparam o fenômeno da residualidade ao da
intertextualidade, ou seja, tomam um pelo outro, ora menosprezam o fenômeno da
residualidade frente ao da intertextualidade, quando, na verdade, tudo indica, como se verá
no capítulo três, que, no que concerne às novelas de cavalaria portuguesas da Baixa Idade
Média, o fenômeno da intertextualidade, a partir da ótica da retomada dos valores clássicos
existentes nas epopéias e/ou nos mitos dos antigos gregos e romanos pelas narrativas
cavaleirescas, está mesmo subordinado ao da residualidade, pelo fato de a intertextualidade,
como foi dito, mostrar essa retomada dos valores clássicos operada pelo Homem medieval
(ou pelos homens mediévicos) de forma mais direta (através de alusões), mais evidente.
Assim, a necessidade de definições corretas, precisas, para intertextualidade e intertexto, com
vista a distanciar e a aproximar o que está por trás desses termos do que vêm a ser
residualidade e resíduo, serve também para justificar a presença deste subcapítulo nesta
dissertação.
A segunda parte (1.2 Da proposta da École des Annales para a construção de uma
Nova História e dos conceitos de mentalidade, imaginário e ideologia) abordará não a
proposta da École des Annales para a renovação do método de pesquisa historiográfico
utilizado em fins do século XIX e no alvorecer no século XX o político mas também os
conceitos de mentalidade e imaginário apresentados por Georges Duby e por Jacques Le
Goff/Hilário Franco Júnior, retirados do livro A História Continua
106
, e do ensaio “O Fogo de
Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário
107
”. Como se verá,
a definição dada pela Escola dos Anais para o vocábulo mentalidade coaduna com a acepção
primeira dessa palavra em língua francesa (mentalité, de 1842), de acordo com o Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa
108
. Justifica-se a existência deste subcapítulo na presente
106
DUBY, op. cit.
107
Ensaio de Hilário Franco Jr. com base em texto de Jacques Le Goff.
108
HOUAISS, op. cit.
49
dissertação pela necessidade de divulgação, que ainda há, dos pensamentos da École des
Annales, sobretudo quanto ao conceito de mentalidade, no universo acadêmico dos cursos de
Letras (as idéias dessa corrente de pensamento francesa são largamente difundidas pelos
cursos de História), de modo a mostrar que a Literatura e a História podem e devem caminhar
juntas, com vista à construção duma História mais viva, rica e crítica. Além disso, esta
segunda parte faz-se necessária porque, mesmo nos dias de hoje, uma enorme dificuldade,
no ambiente acadêmico, em se fazer a distinção correta entre os termos mentalidade,
imaginário e ideologia. A definição de imaginário far-se-á importante, também, para a
compreensão do que vem a ser residual, uma vez que não há como conceitualizar este
vocábulo sem tratar daquele, e para que seja possível um melhor entendimento dos conceitos
operativos da Teoria da Residualidade, que serão apresentados na quarta parte deste capítulo,
e das razões que levaram Roberto Pontes a elaborar tal teoria.
A terceira (1.3 Dos conceitos de dominante, residual, arcaico e emergente) trará a
definição de residual da forma como esse fenômeno cultural foi pensado por Raymond
Williams, em seu livro Marxismo e Literatura
109
. E, para que se possa compreendê-la
devidamente, será necessário também confrontá-la com os conceitos de dois outros
fenômenos culturais abordados por Williams na sua referida obra: com o de emergente, ao
qual a conceitualização de residual opõe-se diametralmente, e com o de arcaico, do qual a
definição de residual distingue-se basicamente pelo aspecto da (in)consciência psicológica.
Esses conceitos estão intimamente ligados entre si, bem como à conceitualização de
dominante, pois, na falta desta, os três ficam sem sentido. Exatamente por isso, o subcapítulo
em questão tecerá algumas considerações em torno do que vem a ser dominante, em termos
de cultura, ainda com base nas idéias de Raymond Williams. É de grande importância, a
terceira parte deste capítulo, não pelas reflexões que Williams realizou em torno dos
109
WILLIAMS, op. cit.
50
diversos fenômenos que formam a complexa malha da cultura dos povos, dentre os quais
foram assinalados o residual, o arcaico e o emergente, mas também, e principalmente, pelo
fato de essas idéias também terem influenciado como aconteceu às da École des Annales, no
que diz respeito à proposta de renovação da História, enquanto área do conhecimento, e ao
conceito de mentalidade formulado por essa agremiação francesa Roberto Pontes na
elaboração de sua teoria.
A quarta parte do presente capítulo (1.4 Dos conceitos de Residualidade, resíduo,
hibridação cultural e cristalização) tratará da Teoria da Residualidade. Assim, este
subcapítulo trará desde importantes e interessantes informações quanto à formulação dessa
teoria (os motivos que levaram Roberto Pontes a elaborá-la, os conceitos e as idéias que
primeiramente o influenciaram e as principais propostas ou objetivos da Residualidade) até
comentários sobre os seus lindes teóricos e sobre os seus conceitos operativos: mentalidade,
resíduo, hibridação cultural e cristalização. Esta quarta parte deste capítulo mostra-se de
suma importância para esta dissertação, pois será com base nos conceitos operacionais da
Teoria da Residualidade, elaborados por Roberto Pontes a partir doutros existentes no
âmbito da Antropologia, da História e até da Química, e nas leituras de determinados ensaios
antropológicos, historiográficos e psicanalíticos que giram em torno dos universos grego,
romano e medieval (já apontados na introdução desta dissertação), que irão ser feitas a
seleção, a delimitação (portanto a construção do corpus) e a classificação dos trechos das
narrativas em verso da Antigüidade greco-romana e dos excertos das novelas de cavalaria
portuguesas da Baixa Idade Média (A Demanda do Santo Graal e Amadis de Gaula) que
trazem, através de suas personagens, os comportamentos e as mentalidades do Homem (ou
dos homens) das antigas Grécia e Roma e do Homem da Europa mediévica (mormente o herói
mítico greco-romano e o cavaleiro medieval), bem como explicadas as origens dessas
maneiras de agir e de pensar. Este subcapítulo mostra-se importante também para a
51
comunidade acadêmica em geral e, em especial, para o universo acadêmico dos cursos de
Letras, uma vez que lhes apresenta uma nova proposta teórico-metodológica que se
mostrou bastante eficiente na articulação de conceitos de diferentes áreas do conhecimento
bem como na reformulação desses (conclusão a que facilmente se pode chegar, bastando, para
tanto, apenas cotejar os conceitos operativos da Teoria da Residualidade com aqueles que
influenciaram Roberto Pontes na elaboração de sua teoria e que podem ser encontrados nos
dois subcapítulos anteriores), de modo a aclimatá-los a uma nova realidade: a brasileira ,
sempre com vista à explicação de como se dão certos fenômenos literários e culturais, sob a
ótica da influência dum período histórico sobre outro, duma cultura sobre outra, dum
momento histórico-literário sobre outro.
Ao cabo deste capítulo serão tecidas as últimas considerações sobre o referencial teórico
que norteará a análise histórico-literária que seempreendida nos dois capítulos seguintes
(1.5 Das últimas considerações sobre o referencial teórico). Procurar-se-á, com base nos
conceitos apresentados ao longo deste, mostrar em quais aspectos a intertextualidade e a
residualidade aproximam-se e em quais pontos distanciam-se, bem como apresentar
argumentos capazes de defender uma convivência harmoniosa entre conceitos elaborados pela
École des Annales e por Raymond Williams, crítico literário de formação marxista. Essa
comparação, ao fim do capítulo, visa pôr fim, definitivamente, às dúvidas que, mesmo após a
leitura das quatro partes em que este se subdivide, porventura ainda tenham permanecido,
para os leitores desta dissertação, quanto, principalmente, às características e aos objetivos
dos fenômenos intertextual e residual; sobretudo quando esses se encontram presentes nas
novelas de cavalaria portuguesas da Baixa Idade Média (A Demanda do Santo Graal e
Amadis de Gaula). Agora, o primeiro subcapítulo:
52
1.1 Da história da intertextualidade e do conceito e da classificação do intertexto
O termo intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva, por volta da década de 60,
para se referir às relações dialógicas que um texto mantém com outro(s). Kristeva, no entanto,
não foi a primeira a perceber essas relações dialógicas que os textos estabelecem entre si. Essa
questão havia sido levantada bastante tempo. As raízes da intertextualidade, de acordo
com Vítor Manuel de Aguiar e Silva (Teoria da Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.),
devem ser procuradas entre os estruturalistas. Saussure, com o seu conceito de anagrama, foi
o primeiro a lançar as sementes do que, mais tarde, viria a ser chamado de intertextualidade.
Por anagrama pode-se entender o mesmo que palavra-tema, ou seja, uma palavra em torno da
qual irradiam uma série de outras, que estabelecem, com essa palavra-tema, determinadas
relações sintagmáticas. Saussure teria percebido que essa palavra-tema estabeleceria sempre
determinadas relações sintagmáticas com outros vocábulos, independente do texto em que ela
se encontrasse. Então, ele começou a verificar o “comportamento” de uma mesma palavra-
tema em textos diferentes. A aproximação dos mais variados textos, portanto, dava-se, para
Saussure, a partir da palavra-tema por eles utilizada. não se pode dizer que Saussure foi o
primeiro a tratar de intertextualidade porque, quando se fala de intertexto ou de
intertextualidade, está-se a tratar de estruturas lingüísticas que se encontram acima da
morfológica, como a sintática e a semântica. Um (pós-)estruturalista que se voltou para o
estudo da intertextualidade nos âmbitos sintático e semântico foi Michel Riffaterre, a partir do
seu conceito de hipograma, que pode ser um texto ou um grupo de palavras que pertence a
um determinado texto. Contudo, Kristeva, ao chamar de intertextualidade o diálogo
estabelecido entre os textos, não se baseou nos estudos de Saussure em torno do conceito de
anagrama ou nos de Riffaterre sobre o de hipograma, mas naqueles que Bakhtin havia
53
realizado em torno do texto polifônico. Para Bakhtin, todo texto é polifônico e dialoga sempre
com outros textos, no nível da enunciação.
Para evitar que atribuíssem um significado muito amplo para intertextualidade, Michel
Riffaterre propôs uma definição de intertextualidade que se circunscreve apenas ao aspecto
estrutural dos textos, sobretudo no que diz respeito aos aspectos sintático e semântico. Para
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, essa proposta de Riffaterre não é viável por dois motivos: em
primeiro lugar, porque ela falseia a noção de dinâmica textual; depois, porque não nada
que comprove que a intertextualidade trabalhe apenas com os elementos invariantes
encontrados num texto e noutro. Sobre essa questão da intertextualidade estar ligada à
invariabilidade de determinados elementos textuais, diz Vítor Manuel de Aguiar e Silva:
Ocorrem fenómenos de intertextualidade caracterizáveis em termos de
identidade estrutural, mas ocorrem também múltiplos fenómenos de interação
textual que são refractários a tal caracterização (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 626).
Entretanto, se Vítor Manuel de Aguiar e Silva é cauteloso quanto à visão
excessivamente estruturalista (e talvez por isso estreita, para muitos) que Riffaterre tem de
intertextualidade, ele não é menos prudente com relação à ampliação do conceito de
intertextualidade e ao trabalho com a intertextualidade que é realizado por outros estudiosos
no assunto (Roland Barthes, por exemplo). Vítor Manuel de Aguiar e Silva contesta
determinados estudiosos em intertextualidade, sem nomeá-los, pelo fato de alguns deles
estabelecerem relações intertextuais entre obras literárias somente por elas pertencem ao
mesmo gênero ou ao mesmo subgênero literário
110
, ou ainda pelo fato de afirmarem haver
intertextualidade entre os aspectos sintático e semântico de determinadas obras literárias e
determinados elementos da Pintura ou da Música
111
. Preferindo, portanto, a sensatez do meio-
110
Para Vítor Manuel de Aguiar e Silva (2006), o fato de dois textos pertencerem a um mesmo nero ou a um
mesmo subgênero literário traz à tona um problema de caráter sistêmico e não algo que esteja no âmbito da
intertextualidade.
111
Na visão de Vìtor Manuel de Aguiar e Silva, isso “ocorre porque o policódigo literário contém regras,
preceitos e convenções que permitem, legitimam ou valorizam as inter-relações formais e semânticas da
54
termo, Vítor Manuel de Aguiar e Silva oferece as seguintes definições de intertextualidade e
intertexto
112
: intertextualidade como a interacção semiótica de um texto com outro(s)
texto(s)” (AGUIAR E SILVA, 2006, p. 625); intertexto como o texto ou o corpus de textos
com os quais um determinado texto mantém aquele tipo de interacção” (AGUIAR E SILVA,
2006, p. 625).
Em Teoria da Literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva assinala a existência de dois
tipos de intertextualidade: a intertextualidade exoliterária, que se pode entender como o
diálogo que uma obra literária estabelece com textos que não pertencem ao âmbito literário; e
intertextualidade endoliterária, que é a relação dialógica que uma obra literária estabelece
com outras obras do mesmo gênero. Ainda sobre essa questão em torno do(s) diálogo(s) que
uma obra literária estabelece com outros textos, não se pode esquecer de que esse diálogo
pode ser hetero-autoral, quando uma obra literária estabelece diálogos com obras de vários
autores, ou homo-autoral, quando uma obra literária estabelece diálogos com obras do próprio
autor que a escreve.
A intertextualidade, para Vítor Manuel de Aguiar e Silva, pode se manifestar de duas
formas: de modo explícito, através de citações
113
, da paródia e da imitação declarada
114
; e de
modo implícito, oculto ou dissimulado, por meio de alusões
115
.
Não se poderia concluir esta breve explanação sobre intertextualidade sem falar da
importância, para a Literatura, do diálogo que as obras literárias estabelecem entre si. Para
literatura com outras artes e não porque a produção de um determinado texto literário envolva relações
intertextuais com um determinado texto pictórico ou com um determinado texto musical” (AGUIAR &
SILVA, op. cit., p. 629).
112
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (op. cit.), pode-se entender por
intertexto um “texto literário preexistente a outro texto e que é aproveitado, por absorção e transformação, na
elaboração deste, ou que o influencia”. Também pode ser chamado de subtexto, de texto palimpséstico ou de
texto-fantasma (“ghost text”, para Riffaterre).
113
Excertos de textos retirados de uma ou mais obras, sem que sofram qualquer tipo de alteração, para servirem
como opinião abalizada e, assim, defenderem pontos de vista assumidos por outro texto.
114
Parece ter faltado a paráfrase, que, para o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (op. cit.),
quer dizer “interpretação ou tradução em que o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sua letra” ou
“interpretação, explicação ou nova apresentação de um texto (entrecho, obra etc.) que visa torná-lo mais
inteligível ou que sugere novo enfoque para o seu sentido”.
115
Menções a determinados textos, realizadas de forma vaga ou indireta.
55
Vítor Manuel de Aguiar e Silva, graças à intertextualidade é que não se pode falar em
literatura puramente lúdica ou em divertimento gratuito. Para o estudioso português, é através
da intertextualidade que uma obra literária afirma ou nega algo; daí ele falar nas funções
corroboradora e contestatária (ou subversiva) da intertextualidade. A função corroboradora
manifesta-se, nas obras literárias, a partir de citações e da imitação declarada, ou seja,
quando uma obra literária reafirma, confirma, valida ou exalta outra. Já a função contestatária
faz-se sentir através da paródia, expediente pelo qual uma obra literária refuta, invalida ou
menospreza outra.
1.2 Da proposta da École des Annales para a construção de uma Nova História e dos
conceitos de mentalidade, imaginário e ideologia
Para que se possa entender a importância da École des Annales para a História,
enquanto ciência, faz-se necessário realizar uma breve história dessa área do conhecimento.
Não começando, como fez Peter Burke, em seu livro A Escola dos Annales
116
, por Heródoto
ou Tucídides, pois não necessidade de ir tão longe: a atmosfera científica do início do
século XX (época em que mais ou menos surgiu a Escola dos Anais
117
), de acordo com G.
Bourdé
118
, é capaz de explicar, de per si, bastante coisa, pois se sabe que foi nesse período
em que, por motivação histórica (qual seja: a Segunda Revolução Industrial, que possibilitou
o avanço da industrialização e, conseqüentemente, o desenvolvimento do capitalismo),
imperaram o cientificismo e, indissociável deste, o positivismo. Isso significa dizer que, para
que um estudo alçasse o valor de científico, ou seja, para que uma área do conhecimento fosse
116
BURKE, op. cit. p. 17.
117
A École des Annales teve sua origem em 1929, ou seja, um pouco depois do primeiro quartel do século XX.
118
TÉTART, op. cit.
56
considerada ciência, todas as suas afirmações deveriam ser passíveis de comprovação, por
meio de testes e/ou de mensurações. Para G. Bourdé, certamente foi esse cientificismo
positivista que “azedou” o modo de se escrever a História, uma vez que se passou à
Prioridade do documento escrito, prioridade dos grandes homens e do
acontecimento político, militar: no início do século XX, a escola positivista impõe
seu estilo, método, objetos de estudo, seu rigor eletivo. Constitui-se em
academicismo. Mas as crìticas afloram, denunciando as “dosagens famacológicas
positivistas” (BOURDÉ apud TÉTART, 2000, p. 15).
Essa História positivista (ou política), diferentemente do que se possa pensar, não
vigorou apenas na França ou na Europa, mas em todo o mundo, no alvorecer do século XX.
Quem dá prova disso é Peter Burke, quando fala, no seu livro supracitado, das críticas
realizadas, tanto na Europa quanto na América, a esse modo de fazer História.
Por volta de 1900, as críticas à história política eram particularmente agudas, e as
sugestões para a sua substituição bastante férteis. Na Alemanha, nesses anos,
ocorreu a chamada “controvérsia de Lamprecht”. Karl Lamprecht, professor em
Leipzig, colocava em oposição à história política nada mais do que uma história de
indivíduos a história cultural ou econômica, considerada como a história do povo.
Posteriormente, definiu a história “primordialmente como uma ciência
sociopsicológica”. Nos Estados Unidos, o famoso estudo de Frederick Jackson
Turner sobre “o significado da fronteira na história americana” (1893) produziu uma
clara ruptura com a história dos acontecimentos políticos, ao passo que, no início do
novo século, um movimento foi lançado por James Harvey Robinson sob a bandeira
da “Nova História”. De acordo com Robinson, “História inclui qualquer traço ou
vestígio das coisas que o homem fez ou pensou, desde o seu surgimento sobre a
terra”. Por método, “A Nova História deverá utilizar-se de todas as descobertas
sobre a humanidade, que estão sendo feitas por antropólogos, economistas,
psicólogos e sociólogos” (BURKE, 1997, p. 21).
Odalia também aponta o cientificismo positivista como a primeira fonte de insatisfação
dos ainda iniciantes historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, que, mais tarde, seriam os
criadores da École des Annales, para com o objeto e o método historiográficos de então:
57
A insatisfação que os jovens Marc Bloch e Lucien Febvre demonstravam, nas
cadas de 10 e 20, em relação à história política, sem dúvida estava vinculada à
relativa pobreza de suas análises, em que situações históricas complexas se viam
reduzidas a um simples jogo de poder entre grandes homens ou países ignorando
que, aquém e além dele, se situavam campos de forças estruturais, coletivas e
individuais que lhe conferiam densidade e profundidade incompatíveis com o que
parecia ser frivolidade dos eventos (ODALIA apud BURKE, 1997, p. 07).
Essa necessidade premente da “prioridade do documento escrito”, aliada a um “método”
carregado de “rigor”, deve ter mesmo tirado o sono e a paciência de Bloch, de Febvre e de
muitos outros historiadores da Europa e da América. Como pesar ou medir, por exemplo,
coisas de natureza simbólica ou das quais se tinha apenas um pequeno vestígio material?
Como conseguir documentos escritos capazes de comprovar tudo aquilo a que os
historiadores tinham chegado por meio de hipóteses
119
? Pior: como reproduzir, passo a
passo, da forma como exige o método científico, as condições de vida duma época bastante
remota, para se chegar à conclusão verdadeira dos fatos? Como negar a presença do povo na
realização dos fatos históricos? Os historiadores do final do século XIX e do início do XX
(dentre esses, Charles Péguy, F. Simiand e Henri Berr) logo perceberam que o cientificismo
positivista antes atrapalhava (porque engessava, paralisava) a (re)construção dos fatos
históricos que o contrário. Por isso, não tardaram, nessa época, a aparecer fortes críticas ao
modo positivista de se fazer História. Aliás, Burke chama a atenção para o fato de que as
primeiras reações à História política tinham sido esboçadas, literalmente, em obras de
historiadores de meados do século XIX, como se pode ler no seguinte excerto:
119
Este trecho, retirado do livro A História Continua, de Georges Duby, certamente serve para ilustrar a angústia
dos historiadores do início do século XX pela falta de documentos históricos capazes de comprovar aquilo a
que eles tinham chegado por meio de hipóteses: Em que fontes de informação, em que critérios basear-se
para enunciar mais que meras impressões quanto às relações que acaso se estabeleceram, na sociedade
medieval, entre a obra de arte e por falta de outra palavra o público?” (DUBY, op. cit., p. 96).
58
Mesmo no século XIX, alguns historiadores foram vozes discordantes. Michelet e
Burckhardt, que escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou menos na
mesma época, 1865 e 1860, respectivamente, tinham uma visão mais ampla da
história do que os seguidores de Ranke. Burckhardt interpretava a história como um
campo em que interagiam três forças o Estado, a Religião e a Cultura , enquanto
Michelet defendia o que hoje poderìamos descrever como uma “história da
perspectiva das classes subalternas”, em suas próprias palavras “a história daqueles
que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a possibilidade de
descrever seus sofrimentos” (Michelet, 1842, p. 8). Não podemos esquecer que a
obra-prima do velho historiador francês Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga
(1864), dedicava-se antes à história da religião, da família e da moralidade, do que
aos eventos e à política (BURKE, 1997, p. 19).
Contudo, a primeira investida de sucesso contra a História positivista foi mesmo a dos
historiadores econômicos, cujos maiores representantes, na França, foram Henri Hauser e
Ernest Labrousse, que enfatizaram, nos seus estudos historiográficos, o fator econômico, em
detrimento do político. Sobre isso, falaram, respectivamente, Burke, com base em discursos
de Hauser, Sée e Mantoux; Tétart e Duby:
Os historiadores econômicos foram, talvez, os opositores mais bem organizados da
história política. Gustav Schmoller, professor em Estrasburgo, nesse tempo
pertencente à Alemanha (1872), por exemplo, foi o cabeça de uma importante escola
histórica. Uma revista de história social e econômica foi criada em 1893, a
Vierteljahrschrift fur Sozial und Wirschaftsgeshichte. Na Grã-Bretanha, alguns
estudos clássicos de história econômica, como os de William Cunnigham, Growth of
English Trade, e J. E. Thorold Roger, Six Centuries of Work and Wages, datam de
1882 e 1884, respectivamente (Coleman, 1987, PP. 38ss). Henri Hauser, Henri Sée e
Paul Mantoux, na França, começaram a escrever sobre história econômica no final
do século XIX (HAUSER, 1899; SÉE, 1901; MANTOUX, 1906, apud BURKE,
1997, p. 19).
Reação conjuntural, a prioridade do político, do militar, da nação, é suplantada pela
questão de atualidade da economia. Em torno dos trabalhos de Henri Hauser (1866-
1946) e de Ernest Labrousse (1895-1988), a história econômica abre seu caminho. A
história econômica quantitativa afina-se, estabelecendo como hipótese que uma
leitura verdadeira do Antigo Regime, por exemplo, e de suas evoluções passa
pelo conhecimento prático, social e econômico, das condições de vida. Como em
Péguy e nos historiadores marxistas (cf. supra), embora numa vertente diferente,
seja a “massa que é convocada pela história” (Ch.-O. Carbonell). Coroando esta
evolução, a primeira cátedra de história econômica da Sorbonne é criada em 1927
(TÉTART, 2000, p. 108).
59
Na época a que me refiro, a maioria dos historiadores consagrados limitava-se ainda
ao estudo do poder, político, militar ou religioso, em suas manifestações exteriores.
Empenhavam-se em reconstruir uma cadeia de acontecimentos, pequenos e grandes,
questionando-se sobre seus protagonistas e suas causas acidentais, ou então
consideravam a evolução e o jogo formal das instituições. Desde o início dos anos
trinta, entretanto, abrira-se uma frente pioneira sob o impacto do grande abalo que
sacudiu na Europa as bases da produção e das trocas. Historiadores mais
empreendedores, e que se multiplicavam, haviam voltado sua atenção para os
fenômenos econômicos. Inspirando-se em modelos construídos pelos economistas
em torno das idéias simples de crescimento e crise, eles tentavam compreender
como o valor das coisas evoluía no passado, esforçando-se por identificar tendências
de longa duração e ciclos. Tratavam, com esta finalidade, de garimpar nos arquivos
os documentos até então negligenciados, porque pouco oferecem a respeito dos fatos
e gestos dos políticos e militares. Colhiam braçadas de dados numéricos nos livros
de contabilidade, nos recenseamentos e inventários, desenvolvendo métodos
estatísticos ainda sumários para tratar este material (DUBY, 1993, p. 10).
Acontece que o aspecto econômico, apesar de quantificável, ou seja, de seu caráter
quantitativo, abria a possibilidade para o estudo da distribuição de riquezas numa dada
sociedade e, conseqüentemente, para o estudo das classes subalternas, justamente aquelas que
tinham ficado de fora, nos estudos historiográficos da segunda metade do século XIX e no
início do século XX, e sobre as quais muitos dos historiadores gostariam de falar, como se
pode depreender a partir destas palavras de Georges Duby:
Antes de me tornar propriamente um historiador, orientara-me, com a ajuda deste
mestre
120
, para uma outra concepção da história. Muito mais carnal, saborosa e útil
que a concepção superficialmente centrada nos indivíduos excepcionais, príncipes,
generais, prelados ou financistas cujas decisões parecem dominar a efervescência
dos fatos, era para mim a história do homem comum, do homem em sociedade, e eu
sentia que era urgente encetar resolutamente esta história (DUBY, 1993, pp. 12-13).
Porém, História de base econômica ainda não era aquilo que muitos dos historiadores da
época desejavam, pois o aspecto social das pesquisas historiográficas ficava em segundo
plano. E foi assim durante muito tempo, mesmo depois do aparecimento da École des
120
Duby referia-se a André Allix.
60
Annales, que se deu em 1929. Segundo Duby, “Em 1942, entretanto, a economia ocupava o
primeiro plano da cena, relegando a história „social‟, como comparsa subordinada, a um papel
secundário” (DUBY, op. cit., p. 11). Por isso, boa parte desses historiadores insatisfeitos foi
buscar em Marx e em Engels subsídios para a construção de uma História social e totalizante.
Não é de se estranhar, portanto, que tenham surgido, logo após a História econômica, as
Histórias marxistas ou marxizantes, centradas no estudo das classes sociais; sobretudo no
embate entre elas. O marxismo influenciou bastante alguns dos participantes da Escola dos
Anais, no início de suas carreiras como historiadores, como se pode ler nos seguintes trechos
das obras de Philippe Tétart, Peter Burke e Georges Duby:
Este enfoque influencia contudo a geração dos “Annales” e seus herdeiros que são
sensíveis ao contexto político (idade de ouro do comunismo), a essa maneira de
abordar a história (social, econômica) através dos conceitos de inversão de relações
sociais, de evolução lenta das estruturas materiais, econômicas, sociais, de
observação das “massas”, enfim reconvocadas pela história. Em 1976, F. Braudel
declara que se sente “sempre tentado, perante um homem, a -lo encerrado num
destino que ele mal fabrica”. Homens como G. Duby, J. Le Goff, D. Richet, F.
Furet, P. Vilar, J.-P. Vernant e outros sofreram, cada qual a seu modo, a influência
marxista (TÉTART, 2000, p. 117).
Inclusive a relação entre os Annales e o marxismo diferiu de lugar para lugar. Na
França, a simpatia pelo marxismo se acompanhava, geralmente, de uma certa
distância em relação aos Annales, apesar da lealdade dúplice de Labrousse, Vilar,
Agulhon e Vovelle. Na Inglaterra, ao contrário, os marxistas, especialmente Eric
Hobsbawm e Rodney Hilton, estavam entre os primeiros a saudar os Annales
(Hobsbawm, 1978). Pode-se entender essa acolhida em termos de estratégia
intelectual: os Annales eram um aliado na luta contra o domínio da história política
tradicional. É possível também que os marxistas estivessem impressionados com a
afinidade entre a sua história e a dos franceses não somente devido à ênfase nas
estruturas e na longa duração, mas também por sua preocupação com a totalidade,
um ideal que foi de Marx antes de ser de Braudel. A afinidade tornou-os mais
receptivos à mensagem dos Annales (BURKE, 1997, pp. 112-113).
Durante esta segunda etapa de meu itinerário científico, cuidei principalmente de
história econômica, e foi então que a influência do pensamento marxista agiu mais
fortemente sobre minha maneira de refletir sobre o passado. Na realidade, eu estava
disposto a acolhê-la (DUBY, 1993, p. 77).
61
Muitas vezes ouvi jovens que me escutavam, em Teerã, Caracas ou na China,
perguntarem uns aos outros, aos cochichos: ele é marxista? Minha dívida para com o
marxismo é imensa, e gosto de reconhecê-la (ibidem, p. 80).
Sem negar as valiosas contribuições da História econômica, a começar pelo fato de que
foi esta a que suplantou a História política, bem como a contribuição dada pelo marxismo à
construção de uma História social, dois jovens historiadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, no
final da década de vinte, resolveram, a partir da criação de uma revista (Annales d‟histoire
économique et sociale), ampliar os horizontes da análise histórica, recorrendo a diversas áreas
do conhecimento, como Antropologia, Geografia, Sociologia (principalmente a estas duas
últimas) e até Literatura, para (re)construir a história das sociedades, o que certamente serviu
para causar um vertiginoso aumento das fontes históricas para esses historiadores e para os
que com eles trabalhavam ou para aqueles que, mais cedo ou mais tarde, a eles se aliaram.
Desse modo, nasceu a École des Annales
121
. E ainda que a questão econômica constituísse o
“carro-chefe” das primeiras publicações da Escola dos Anais, devido mesmo à natureza da
maior parte das fontes utilizadas pelos pesquisadores dessa escola
122
, o fator social ganhava
importância a cada dia e passava a ser explicado a partir de elementos e de fenômenos
culturais. Essa explicação dos fatos sociais de uma dada civilização a partir do estudo de
elementos e de fenômenos da cultura do seu povo, aliada ao caráter subjetivo das fontes ou
das interpretações das fontes e ao respeito à individualidade do Homem, certamente foi a
principal responsável pelo afastamento de muitos participantes da École des Annales do
marxismo ou das Histórias marxistas ou marxizantes, pois se sabe que estas
121
A agremiação de historiadores comandada por Marc Bloch e por Lucien Febvre passou a ser conhecida pelo
primeiro nome do título de seu periódico (Annales).
122
Certamente Burke teria utilizado “movimento”, no lugar de “escola”.
62
inspiram-se no modelo histórico de materialismo dialético proposto por Marx e
Engels. Tentando integrar a “totalidade” da história num sistema ideológico, o
marxismo reduz Clio a uma “luta de classes” (motor da história), opondo de modo
“perpétuo opressores e oprimidos”. Situada no âmago da história, a luta de classes,
tornada conceito, instrumento e visada, engendra um poderoso determinismo:
sozinha, conjugada ao movimento histórico, ela faz história. O acontecimento é
abandonado (visto como conseqüência, acidente) e o homem não mais existe
enquanto indivíduo e sim enquanto elo de sua classe social (TÉTART, 2000, p.
115).
Sobre essa necessidade de procurar explicações para os fenômenos sociais também em
fontes eivadas de subjetividade, porque embasadas no pensamento que um indivíduo tinha de
si e/ou do grupo ao qual pertencia, Georges Duby disse as seguintes palavras:
Sentíamos a urgência de ir mais além, para junto das forças que não se situam nas
coisas, mas na idéia que delas se tem, e que comandam na realidade de forma
imperativa a organização e o destino dos grupos humanos. E aliás os próprios
marxistas mostravam-nos o caminho, pois reconheciam que uma classe existe
eficazmente no momento em que os que a constituem tomam consciência disso
(DUBY, 1993, p. 89).
sobre o caráter interdisciplinar da pesquisa historiográfica realizada pela Escola dos
Anais, desde a sua origem, que resultou, conforme foi dito, no aumento de fontes históricas
para os investigadores; sobre o caráter subjetivo dessas fontes e das interpretações que os
historiadores da Escola faziam dessas fontes e sobre a importância de se conhecer elementos e
fenômenos culturais de um povo para se chegar a uma explicação quanto à estrutura social e a
determinados fatos sociais de uma dada civilização, falaram Burke, Duby, Tétart, Odalia e
Daix:
63
Em 1928, foi Bloch quem tomou a iniciativa de ressuscitar os planos de uma revista
(uma revista francesa, agora), obtendo sucesso em seu projeto (Febvre (1945), pp.
398 ss; Leuilliot (1973), p. 317 ss; Fink (1989), ch. 7). Novamente, foi solicitado
que Pirenne dirigisse a revista; contudo, em virtude de sua recusa, Febvre e Bloch
tornaram-se os editores. Originalmente chamada Annales d‟histoire économique et
sociale, tendo por modelo os Annales de Géographie de Vidal de la Blache, a revista
foi planejada, desde o seu início, para ser algo mais do que uma outra revista
histórica. Pretendia exercer uma liderança intelectual nos campos da história social e
econômica. Seria o porta-voz, melhor dizendo, o alto-falante de difusão dos apelos
dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história. O
primeiro número surgiu em 15 de janeiro de 1929. Trazia uma mensagem dos
editores, na qual explicavam que a revista havia sido planejada muito tempo antes, e
lamentavam as barreiras existentes entre historiadores e cientistas sociais,
enfatizando a necessidade de intercâmbio cultural. O comitê editorial incluía não
somente historiadores, antigos e modernos, mas também um geógrafo (Albert
Demangeon), um sociólogo (Maurice Halbwachs), um economista (Charles Rist),
um cientista político (André Siegried, um antigo discípulo de Vidal de la Blache).
Os historiadores econômicos predominaram nos primeiros números: Pirenne, que
escreveu um artigo sobre a educação dos mercadores medievais; o historiador sueco
Eli Heckscher, autor do famoso estudo sobre o mercantilismo; e o americano Earl
Hamilton, muito conhecido por suas obras sobre as finanças americanas e sobre a
revolução dos preços da Espanha. Nessa ocasião, a revista tinha a feição de um
equivalente francês, ou de uma rival, da Economic History Review inglesa. Contudo,
em 1930, declarava-se a intenção de a revista estabelecer-se “sobre o terreno mal
amanhado da história social”. Preocupava-se também com o problema do método no
campo das ciências sociais, tal como a Revue de Synthèse Historique (BURKE,
1997, pp. 32-33).
O compromisso de Bloch com a geografia era menor do que o de Febvre, embora
seu compromisso com a sociologia fosse maior. Contudo, ambos estavam pensando
de uma maneira interdisciplinar (ibidem, p. 27).
O período de encontros diários, em Estrasburgo, entre Bloch e Febvre durou apenas
treze anos, de 1920 a 1933; foi, porém, de vital importância para o movimento dos
Annales. Mais importante ainda pelo fato de que ambos estavam cercados por um
grupo interdisciplinar extremamente atuante. Daí a importância de realçar-se o
ambiente em que se formou o grupo (idem).
Não menos decisivo foi meu íntimo convívio com os Annales d‟histoire économique
et sociale [...]. Daquela leitura assídua, extraí dois ensinamentos. Que o historiador
não deve fechar-se em sua toca, mas acompanhar atentamente o que acontece nas
disciplinas vizinhas. Que realizar uma investigação com todo o rigor necessário não
impõe a obrigação, no momento de divulgar os resultados do levantamento, de
escrever com frieza, que o cientista cumpre tanto melhor sua função na medida em
que agrada ao leitor, prendendo-o e conquistando-o pelos encantos de seu estilo
(DUBY, 1993, pp. 13-14, passim).
Em 1960, Fernand Braudel decidiu criar uma nova revista, Études rurales [...]. E
convidou-me a dirigi-la, com Daniel Faucher. Faucher era um dos últimos
representantes da grande escola francesa de geografia, cuja fertilidade decorria da
íntima imbricação entre geografia humana e geografia física. Naquele momento, a
aliança estava sendo desfeita. Estávamos ali para tentar salvar o que fosse possível, e
pretendíamos, nas páginas da revista, unir os geógrafos aos historiadores, mas
64
também aos antropólogos, economistas, sociólogos, agrônomos, convencidos de que
precisávamos aplicar no estudo deste imenso campo, o dos campos e campesinatos
do mundo a parte do programa dos Annales, de longe a mais fecunda, que exortava
todas as ciências humanas à cooperação (ibidem, p. 75, passim).
A ampliação da noção de fonte é portanto motriz para os “Annales”. Denunciando a
devoradora paixão dos metódicos pelas notas de rodapé, o estudo dos textos e
deles, Febvre, Bloch e depois Braudel e seus discípulos militam para que o
historiador dialogue não com “todos” os assuntos, mas também com o conjunto
das fontes disponíveis (escritas, materiais, orais) susceptíveis de fazer falar o homem
do passado (TÉTART, 2000, p. 111).
Daì a atenção dos “Annales” para com todas as fontes que trazem ensinamentos
sobre a história do cotidiano, da civilização material, das crenças, em suma, de tudo
o que faz a sedimentação de uma cultura, de uma economia, de uma sociedade num
dado tempo, num dado período (idem).
Mas se não pretendo, como historiador da sociedade feudal, limitar minha
curiosidade a estes detalhes, se tento compreender o que era uma batalha, a paz, a
guerra, a honra, para os combatentes que dela participaram, não me será suficiente
expor os “fatos”. Devo esforçar-me por encarar as coisas com os olhos desses
guerreiros, tenho de me identificar com eles, que não passam de sobras, e este
esforço de incorporação imaginária, esta revitalização exigem que eu dê “minha
contribuição”, como se diz. Algo de subjetivo. A história de hoje renuncia à busca
ilusória da objetividade total (DUBY, op. cit., p. 59).
La Societé féodale marcou-me até em minha maneira de escrever. Lendo hoje
algumas de suas páginas, espantam-me sua juventude, sua inesgotável fecundidade,
suas audácias. Nelas encontro muita coisa que ainda hoje estimula nossas pesquisas,
impulsionando-nos para frente. Por exemplo, o convite, na época insólito, a recorrer,
na busca de uma melhor compreensão do comportamento dos guerreiros do século
XII, ao testemunho da literatura de divertimento que os encantava, das canções de
gesta e dos romances de cavalaria que lhes propunham modelos de comportamento.
E essas pistas que seguimos para penetrar até as estruturas mais profundas de uma
cultura, julgamos que nos foram indicadas recentemente pelos etnólogos,
apaixonados por mitos e sistemas de parentesco. Pois já as vejo indicadas neste livro
(ibidem, pp. 14-15).
Com efeito, ao contrário de Braudel, cuja maneira de escrever a história deriva de
uma conjunção entre as abordagens do geógrafo e do economista, e que confessava
sem reticências hesitar arriscar-se pelo terreno da cultura, principalmente do
religioso, Lucien Febvre, de sua parte, extraindo sua informação mais das obras
literárias que das cartas e muito mais do que das estatísticas, sentia-se mais à
vontade neste terreno que em qualquer outro (ibidem, p. 87).
Ainda mais que Marc Bloch, Lucien Febvre tinha a convicção de que a economia
não explica sozinha as estruturas e a evolução de um grupo social. Esta convicção
incitou-o a dar um novo nome à revista: Annales. Économies, Sociétés, Civilisations.
A economia continuava à frente, mas o social instalava-se no cerne do projeto, em
posição de comando, e o lugar que lhe havia sido atribuído pelos fundadores em
65
1929, complementar, não acessório, pelo contrário, aberto para o futuro da pesquisa,
incumbia agora às “civilizações”, ou seja, ao que hoje denominarìamos cultura
(idem).
Abre-se, em conseqüência, o leque de possibilidades do fazer historiográfico, da
mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras
ciências do homem os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador
ampliar sua visão do homem. Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a
individualidade, como em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas
análises no econômico e no social [...] (ODALIA apud BURKE, op. cit., p. 07).
o combate concentra-se num único lugar de convergência da investigação: uma
única ciência, a história, faz frente às demais. Mais ainda, no que diz respeito à
história privilegiada, se todo o seu horizonte social é levado em consideração, das
hierarquias às mentalidades, o fato é que a economia é que vem a ser visada
sobretudo. [...] Com isto, alarga-se o fosso entre os Annales e a Revue de Synthèse.
Para Henri Berr, “a sociedade engloba a economia” e os Annales portanto vieram
apenas lançar luz sobre “um aspecto da vida das sociedades, que por muito tempo
ficou à sombra e para o qual o marxismo havia chamado a atenção” (DAIX, 1999, p.
173, passim).
Esse caráter interdisciplinar da École des Annales deve ser visto antes como um meio do
que como um fim. Para conseguir alcançar seus objetivos (bastante inovadores para a época,
vale salientar), que eram, principalmente, resolver determinadas questões históricas, ou tratar
de determinados assuntos específicos, no que se refere à história dos povos, da forma mais
abrangente possível (e não simplesmente narrar a história das diversas civilizações), e
escrever a história de todas as atividades humanas, os historiadores da Escola dos Anais
tinham mesmo de se valer das mais variadas áreas do conhecimento. Só que, conforme se viu,
nem todos os participantes trabalhavam com a mesma metodologia ou com as mesmas áreas
do conhecimento: alguns se sentiam à vontade trabalhando com a Geografia e com a
Economia, como era o caso de Braudel, ao passo que outros gostavam mesmo de se aventurar
pela Antropologia e pela Literatura, como fazia Febvre. Essas diferenças entre os
participantes certamente foi o que levou Peter Burke, no seu livro inteiramente dedicado à
66
Escola dos Annales
123
, a empregar o termo “movimento” para caracterizar essa agremiação de
historiadores, e não a palavra “escola”. Vale salientar que, além dessas divergências entre os
partícipes quanto à preferência de cada um com relação à área de pesquisa e quanto ao
método de trabalho, a École des Annales possuiu fases bem distintas, conforme assinala
Burke: uma marcada pela iconoclasia ou pela ruptura com a tradição, a primeira; uma
marcada pela (re)construção ou pela (re)criação, a segunda; e, finalmente, uma marcada pela
fragmentação ou pela perda de especificidade, a terceira e última. Portanto, a heterogeneidade
sempre foi uma das características dessa escola, que era vista como homogênea por seus
admiradores mais apaixonados, que não queriam enxergar nela contradições nem atitudes
discordantes entre os seus membros, ou, pelo contrário, por seus críticos mais ferrenhos, que a
enxergavam sempre da mesma forma: hostil quanto à História política ou à dos grandes
eventos. Sobre os objetivos da Escola dos Anais e a relação desses com o caráter
interdisciplinar dessa agremiação, sobre o caráter heterogêneo ou plural da escola em questão,
reflexo não da sua proposta interdisciplinar mas também das suas diversas fases, cada uma
delas com uma característica bem marcante, e sobre os principais integrantes da École des
Annales, ao longo dessas três eras, escreveram Peter Burke e Pierre Daix as seguintes
palavras:
Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por
uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas
e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois
primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a
sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e tantas
outras (BURKE, 1997, pp. 11-12).
Esse estudo revela que, como Febvre, Bloch pensava no tema sob a perspectiva de
uma história-problema (ibidem, p. 26).
123
BURKE, op. cit.
67
Essa escola é, amiúde, vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica
uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas
concepções, hostil ou, pelo menos, indiferente à política e aos eventos. Esse
estereótipo dos Annales ignora tanto as diferenças individuais entre seus membros
quanto seu desenvolvimento no tempo. Talvez seja preferível falar num movimento
dos Annales, não numa “escola” (ibidem, p. 12).
Os Annales, não obstante sua vivacidade, nunca constituíram uma escola no sentido
estrito, vale dizer, um sistema de pensamento fechado sobre si mesmo. Pelo
contrário, a senha a ser dada na entrada é a paixão pela história, nada mais que isto,
o que no entanto é muito, e de par com esta paixão, a busca de todas as suas
possibilidades novas (DAIX, 1999, p. 173).
Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a
1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra
de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishement
histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se aproxima verdadeiramente
de uma “escola”, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e
novos métodos (especialmente a “história serial” das mudanças na longa duração),
foi dominada pela presença de Fernand Braudel. Na história do movimento, uma
terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela
fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão
grande que perdera muito das especificidades anteriores. Era uma “escola” unificada
apenas aos olhos dos seus admiradores externos e seus críticos domésticos, que
perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e à história
dos eventos (BURKE, 1997, pp. 12-13).
Mais significativas, contudo, do que as tarefas administrativas foram as mudanças
intelectuais ocorridas nos últimos vinte anos. O problema está em que é mais difícil
traçar o perfil da terceira geração do que das duas anteriores. Ninguém nesse período
dominou o grupo como o fizeram Febvre e Braudel. Alguns comentadores chegaram
mesmo a falar numa fragmentação (DOSSE, 1987) (idem).
Deve-se admitir, pelo menos, que o policentrismo prevaleceu. Vários membros do
grupo levaram mais adiante o projeto de Febvre, estendendo as fronteiras da história
de forma a permitir a incorporação da infância, do sonho, do corpo e, mesmo, do
odor. Outros solaparam o projeto pelo retorno à história política e à dos eventos.
Alguns continuaram a praticar a história quantitativa, outros reagiram contra ela
(idem).
A terceira geração é a primeira a incluir mulheres, especialmente Christiane
Klapisch, que trabalhou sobre a história da família na Toscana durante a Idade
Média e o Renascimento; Arlette Farge, que estudou o mundo social das ruas de
Paris no século XVIII; Mona Ozouf, autora de um estudo muito conhecido sobre os
festivais durante a Revolução Francesa; e Michèle Perrot, que escreveu sobre a
história do trabalho e a história da mulher (Klapisch, 1981; Farge, 1987; Ozouf,
1976; Perrot, 1974) (ibidem, pp. 79-80).
68
Esta [terceira] geração, por outro lado, é mais aberta a idéias vindas do exterior.
Muitos dos seus membros viveram um ano ou dois nos Estados Unidos, em
Princeton, Ithaca, Madison ou San Diego. Diferentemente de Braudel, falam e
escrevem em inglês. Por diferentes caminhos, tentaram fazer uma síntese entre a
tradição dos Annales e as tendências intelectuais americanas como a psico-história,
a nova história econômica, a história da cultura popular, antropologia simbólica, etc
(ibidem, p. 80).
O centro de gravidade do pensamento histórico, porém, não está mais em Paris,
como seguramente esteve entre os anos de 30 e 60. Inovações semelhantes
acontecem mais ou menos simultaneamente em diferentes partes do globo. A
história das mulheres, por exemplo, tem se desenvolvido não na França, mas
também nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Holanda, Escandinávia, Alemanha
Ocidental e na Itália [...]. Há mais do que um centro de inovação ou centro
nenhum (idem).
O movimento tem sido freqüentemente discutido como se pudesse ser atribuído a
apenas três ou quatro de seus membros. As realizações de Lucien Febvre, Marc
Bloch, Fernand Braudel e outros são realmente espetaculares. Contudo, como no
caso de muitos movimentos intelectuais, esse é um empreendimento coletivo para
qual contribuições significativas foram feitas por um bom número de indivíduos.
Isso é mais óbvio no caso da terceira geração, mas também é verdadeiro para a era
de Braudel, valendo mesmo para o tempo de seus fundadores (ibidem, pp. 14-15).
O núcleo central do grupo é formado por Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand
Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. Próximos
desse centro estão Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon e Michel
Vovelle, quatro importantes historiadores cujo compromisso com uma visão
marxista da história particularmente forte no caso de Vilar coloca-os fora desse
núcleo. Aquém ou além dessa fronteira estão Roland Mousnier e Michel Foucault.
Este aparece esporadicamente neste estudo em razão da interpenetração de seus
interesses históricos com os vinculados aos Annales (ibidem, p. 11).
Embora a heterogeneidade seja uma das características mais marcantes da Escola dos
Anais, pelos motivos que foram expostos, o se pode esquecer de que havia, sim, uma
unidade no grupo, e esta não consistia, como pensavam os inimigos da École des Annales, no
fato de os componentes dessa agremiação recusarem-se a escrever História política: todos os
integrantes da Escola dos Anais, sem exceção, independente da fase a que tenham pertencido,
desejavam construir uma História interdisciplinar, ou seja, uma História capaz de dialogar
com as mais variadas áreas do conhecimento, de modo a buscar, noutras ciências e até mesmo
nas artes, novas fontes historiográficas e/ou novas metodologias para o estudo dessas fontes.
69
E se fosse necessário encontrar, dentre as diversas áreas do conhecimento utilizadas pelos
integrantes da École des Annales em suas pesquisas, um ponto de interseção, uma ciência ou
uma das artes com a qual todos tenham trabalhado, certamente esse ponto de encontro ou essa
área do conhecimento seria a Sociologia (por extensão, as Ciências Sociais), pois a proposta
da Escola dos Anais, desde o seu início, com a revista Annales d‟histoire économique et
sociale, foi a de trazer para perto da História principalmente a ciência de Comte, mas também
a de Malinowski. Peter Burke, em A Escola dos Annales, assim se refere à preocupação
básica de todos os participantes dessa agremiação francesa, que era a de unir a História às
Ciências Sociais; ao peso das idéias de Durkheim sobre os participantes da escola em questão;
e ao trabalho de determinados participantes da École des Annales com a História política:
Mesmo assim, algumas de suas preocupações básicas permanecem, pois a revista e
os indivíduos a ela associados oferecem o mais sistemático exemplo, neste século,
de uma interação fecunda entre a história e as ciências sociais (BURKE, 1997, p.
13).
Aprendeu, igualmente, com Meillet e Lévy-Bruhl; contudo, como comprova a
análise de suas últimas obras, sua maior influência foi a do sociólogo Émile
Durkheim, que iniciou sua carreira de professor na École mais ou menos na época
de seu ingresso [...]. Em sua maturidade, Bloch reconheceu sua profunda dívida com
a revista de Durkheim, Anée Sociologique, lida entusiasticamente por um grande
número de historiadores de sua geração [...] (ibidem, p. 26, passim).
O livro [de Bloch] preocupa-se com um dos temas centrais da obra de Durkheim, a
coesão social (ibidem, p. 36).
A preocupação de Durkheim com a comparação, a tipologia e a evolução social
deixou suas marcas num capìtulo ao final do livro, intitulado “O feudalismo como
tipo social”. Neste, Bloch afirma que o feudalismo não era um acontecimento único,
mas antes uma fase recorrente da evolução social. Com sua precaução habitual,
observando a necessidade de análises mais sistemáticas, não deixa de citar o Japão
como uma sociedade que espontaneamente produziu, em sua essência, um sistema
similar ao desenvolvido no Ocidente medieval europeu. Contudo, assinala
diferenças significativas entre as duas sociedades, citando especialmente o direito de
o vassalo europeu desafiar seu senhor. De todo jeito, sua preocupação com
tendências recorrentes e comparações com sociedades remotas dão ao seu trabalho
70
um caráter sociológico mais marcante do que em outros historiadores franceses de
sua geração (ibidem, p. 37).
Os medievalistas do grupo dos Annales estão longe de rejeitar a história política,
mesmo quando dedicam maior atenção a outros temas. Georges Duby, que começou
como historiador social e econômico, transferindo-se depois para a história das
mentalidades, escreveu uma monografia sobre a batalha medieval de Bouvines
(ibidem, p. 101).
François Furet e Michel Vovelle, que devotaram muito de seu tempo à Revolução
Francesa, apesar de seus outros interesses históricos, não podem ser acusados de
negligenciar a política. Nem Marc Ferro, historiador da Revolução Russa e da
primeira Guerra Mundial. Mas a figura mais destacada neste domínio é certamente
Maurice Agulhon (ibidem, p. 102).
Resumindo, Febvre e Braudel podem não ter ignorado a história política, mas não a
tomaram muito a sério. O retorno à política na terceira geração é uma reação contra
Braudel e também contra outras formas de determinismo (especialmente o
“economismo” marxista) (ibidem, p. 103).
Difícil, por exemplo, é se debruçar sobre o conceito de mentalidade, proposto por
Lucien Febvre e retrabalhado por alguns de seus companheiros de escola (Georges Duby e
Jacques Le Goff, principalmente), anos depois, sem que se lembre, imediatamente, das idéias
de consciência coletiva e coesão social, propostas por Émile Durkheim, e do conceito de
pensamento pré-lógico ou de mentalidade primitiva pensado pelo antropólogo Lucien Lévy-
Bruhl. De fato, foram esses dois estudiosos das Ciências Sociais os que mais contribuíram
para a elaboração, por parte de Marc Bloch e de Lucien Febvre, daquilo que se encontra por
trás do vocábulo mentalidade, termo que revolucionou o modo de se fazer História na década
de sessenta; porém, é bem verdade que algumas idéias de outros pesquisadores também
tenham ajudado nesse sentido: as de instrumental intelectual, do lingüista Antoine Meillet, e o
estudo sobre as multidões revolucionárias e sua mentalidade coletiva, do historiador Georges
Lefebvre, por exemplo. Sobre as influências exercidas por Durkheim, Lévy-Bruhl, Lefebvre e
71
Meillet sobre os primeiros pensadores da Escola dos Anais, no que concerne, sobretudo, à
criação do termo mentalidade, Burke escreveu o seguinte:
Embora Bloch não se utilizasse freqüentemente do termo, seu livro [Les Rois
Thaumaturges] foi uma obra pioneira para o que hoje denominamos de história “das
mentalidades” (BURKE, 1997, pp. 29-30).
[La Societé Féodale] Preocupa-se com a sociedade feudal como um todo, com o que
hoje designarìamos “a cultura do feudalismo”. Como também, ainda uma vez, com a
psicologia histórica, com que o autor chamava de “modos de sentir e de pensar”
(ibidem, p. 36).
A frase com que Bloch descreveu mais de uma vez seu livro [Os Reis Taumaturgos]
foi “representações coletivas”, uma frase bastante associada ao sociólogo Émile
Durkheim, tanto quanto a frase “fatos sociais”, encontrável também nas páginas de
sua obra (Idem, pp. 21, 51, 409). Em verdade, sua maneira de abordar o tema deve
muito a Durkheim e a sua escola (Febvre, 1945, p. 392; Rhodes, 1978). Sob um
aspecto, pelo menos, pode ser criticado, talvez tardiamente, por ter sido
durkheiminiano um pouco demais (ibidem, p. 30).
[Marc Bloch] Dedica também um capítulo [do seu livro A Sociedade Feudal] à
“memória coletiva”, um tema que tanto o fascinou quanto ao seu amigo, o sociólogo
durkheiminiano Maurice Halbwachs (ver p. 33) (ibidem, p. 36).
Sem dúvida, La societé féodale é o seu livro mais durkheiminiano. Persiste em
utilizar a linguagem da consciência coletiva, da memória, das representações
coletivas (Bloch, 1939, pp. 363, 368, 379) (idem, p. 36).
Um deles foi Paul Vidal de la Blache, um geógrafo interessado em colaborar com
historiadores e sociólogos [...]. O segundo desses professores foi o filósofo e
antropólogo Lucien Lévy-Bruhl, criador do conceito de “pensamento pré-lógico” ou
“mentalidade primitiva”, um tema que surgiria nos trabalhos de Febvre na década de
30. O terceiro foi o historiador da arte Émile Mâle, um dos pioneiros a concentrar-se
não na história das formas, mas na das imagens, na “iconografia”, como dizemos
hoje [...]. Finalmente, havia o lingüista Antoine Meillet, um aluno de Durkheim
particularmente interessado nos aspectos sociais da língua [...]. Febvre reconheceu
também seu débito para com inúmeros historiadores anteriores. Durante toda a vida
expressou sua admiração pela obra de Michelet. Reconheceu Burckhardt como um
de seus “mestres”, juntamente com o historiador da arte Louis Courajod. Confessa
também uma surpreendente influência, a do político de esquerda Jean Jaurès
(ibidem, p. 24, passim).
72
Depois de completar seu antigo projeto de geografia histórica, Febvre, tal qual
Bloch, mudou o rumo de seus interesses para o estudo de atitudes coletivas, ou
“psicologia histórica”, como ele, da mesma maneira que seu amigo Henri Berr,
denominou esse tipo de trabalho (ibidem, p. 31).
Um dos volumes mais notáveis foi o editado pelo antigo professor de Febvre,
Antoine Meillet, dedicado ao que se pode chamar de “instrumental intelectual”
(outillage mental). Pode-se afirmar que esse volume lançou as bases para o
nascimento da história das mentalidades. Deve-se contudo assinalar que, nessa
mesma época, Georges Lefebvre, antigo colega de Febvre em Estrasburgo, publicou
um artigo que se tornaria famoso sobre o estudo das multidões revolucionárias e sua
mentalidade coletiva (ibidem, pp. 37-38).
Le problème de l‟incroyance au XVIe siècle: la réligion de Rabelais é uma das obras
históricas mais fecundas publicadas neste século. Juntamente com o livro de Bloch,
Les Rois Thaumaturges, e o artigo de Lefebvre sobre as multidões, inspirou a
história das mentalidades coletivas, com a qual, a partir dos anos 60, tantos
historiadores franceses se preocuparam. Da mesma maneira que tantos outros
estudos de Febvre, este se origina de sua reação ao ponto de vista de outro
historiador. Febvre estava irritado com a maneira pela qual se interessou por
Rabelais. Seu interesse nascera de uma sugestão feita por Abel Lefranc em sua
edição de Pantagruel, segundo a qual Rabelais fora um ateu que escrevia com a
finalidade de solapar o cristianismo. Febvre estava convencido de que essa
interpretação era não apenas um erro quanto a Rebelais, mas cometia o erro do
anacronismo, por atribuir ao autor de Pantagruel idéias que não poderiam ser
pensadas no século XVI. Propôs-se a refutá-la (ibidem, pp. 39-40).
E o que seria, então, mentalidade, termo tão comumente encontrado nas obras escritas
pela maioria dos integrantes da École des Annales e sobre o qual deitaram tanta tinta
historiadores do mundo inteiro (inclusive componentes da própria Escola dos Anais, como
Georges Duby e Jacques Le Goff), a fim de compreendê-lo melhor, de traçar o seu perfil?
Duby, integrante da terceira fase da Escola dos Annales, e Burke assim se referem à
mentalidade:
Marc Bloch, de Les Rois thaumaturges a La société féodale, convidava-nos a
considerar a “atmosfera mental”. De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a
escrever a história das “sensibilidades”, dos odores, dos temores, dos sistemas de
valores, e seu Rabelais demonstrava magnificamente que cada época tem sua
própria visão do mundo, que as maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e
que, em conseqüência disso, o historiador é solicitado a se precaver o quanto puder
das suas, sob pena de nada compreender. Febvre propunha-nos um novo objeto de
73
estudo, as “mentalidades”. Era o termo que utilizava. Pois nós o retomamos (DUBY,
1993, p. 88).
Ele não consta do Littré, embora já fosse utilizado no meado do século XIX por
derivações da palavra mental, designando vagamente o que se passa na esfera do
espírito [...]. Com esta, o que se queria dizer, sempre vagamente, eram certas
disposições psicológicas e morais a julgar as coisas [...]. O termo seria consagrado
pelo título escolhido por Levy-Bruhl para sua obra que provavelmente maior
repercussão teve, La Mentalité primitive [...]. Eis a definição oferecida por Gaston
Bouthoul em 1952: Por trás de todas as diferenças e nuances individuais, subsiste
uma espécie de resíduo psicológico estável, feito de julgamentos, conceitos e
crenças aos quais aderem, no fundo, todos os indivíduos de uma mesma sociedade.”
Assim era o que entendíamos (idem).
Com efeito, nós começávamos convencidos de que no interior de “uma mesma
sociedade” não existe apenas um “resìduo”. Ou pelo menos que este resìduo não
apresenta a mesma consistência nos diversos meios ou estratos de que se compõe
uma formação social. E sobretudo, recusávamo-nos a aceitar como estável este
resíduo, ou antes estes resíduos (fazíamos questão do plural). Eles se modificam ao
longo das eras, e nos propúnhamos precisamente a acompanhar atentamente tais
modificações (idem).
Afirmávamos em primeiro lugar que o estudo a longo prazo desse sistema não deve
em hipótese alguma ser isolado do estudo da materialidade, e foi efetivamente para
justificar esta proposição primordial que nos apegamos a esta palavra,
“mentalidade”. Outros termos, derivados das palavras espìrito ou idéia, podendo
levar a esquecer que os fenômenos cujo estudo sugeríamos enraízam-se
inevitavelmente no corporal e favorecendo o desvio para uma Geistesgeschischte
sem amarras cujas insuficiências denunciávamos. O que buscávamos conhecer, com
efeito, passava-se nas cabeças, que não podem ser separadas de um corpo, no
animus e não na anima, como nos teria provavelmente dito Hugues de Saint-Victor
se pudéssemos pedir sua opinião. E se os traços deixados pelos “julgamentos”,
“conceitos” e “crenças” compartilhados por nossos ancestrais do século XII, embora
menos palpáveis que os de uma operação de arroteamento ou de uma expedição
militar por sinal dependentes elas próprias de alguns desses julgamentos, conceitos
e crenças –, não são menos “reais”, nós advertìamos os historiadores contra o perigo
de interpretá-los sem levar em conta simultaneamente o que outros traços ensinam a
respeito dos procedimentos de educação pelos quais eram transmitidas de geração
em geração as representações mentais, a respeito das condutas que estas pretendiam
justificar, dos medos que ajudavam a descartar, das percepções de que se nutriam, ao
mesmo tempo deformando-as, em suma, de todo o concreto da existência na qual
essas representações mergulhavam suas raízes e sobre as quais repercutiam,
constantemente. As mentalidades, das quais pretendíamos fazer um novo objeto
histórico, m interesse, e mesmo m existência como repetíamos
incansavelmente, contra os partidários de uma história autônoma do “pensamento”
ou da “vida espiritual” uma vez encarnadas, no sentido primeiro e mais forte da
palavra (ibidem, pp. 89-90).
Todavia e vinha aqui nosso segundo princípio não era pelos indivíduos que nos
interessávamos. Não raro obrigados, naturalmente, a apreender o que desejávamos
alcançar através do caso de uma personalidade, tentávamos abstrair seus
pensamentos individuais. Exatamente como não aceitávamos separá-los de seu
corpo, tampouco consentíamos em isolar este indivíduo do corpo social em que se
74
inseria. Com o termo mentalidades, designávamos o conjunto vago de imagens e
certezas não conscientizadas ao qual se referem todos os membros de um mesmo
grupo [...]. Ora, nós procurávamos reconhecer [...] este magma confuso de
presunções herdadas ao qual [cada pessoa] se refere a cada momento, sem prestar
atenção nele mas sem tampouco expulsá-lo de seu espírito (ibidem, p. 91, passim).
A empreitada tornava-se francamente arriscada face a esta história dos gostos, dos
desejos, das inquietações, muito mais indecisa, e cujos traços eu ainda não estava na
época capacitado a detectar (ibidem, p. 96).
Sua
124
contribuição mais substancial, contudo, para a história das mentalidades, ou à
história do “imaginário medieval”, como agora denomina, foi realizada vinte anos
depois com a publicação do La naissance du Purgatoire, uma história das mudanças
das representações da vida depois da morte. Segundo Le Goff, o nascimento da idéia
de Purgatório fazia parte da “transformação do cristianismo feudal”, havendo
conexões entre as mudanças intelectuais e as sociais. Ao mesmo tempo, insistia na
“mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos
intelectuais”, em outras palavras, de mentalidades, observando que, nos séculos XII
e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o
que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte” (BURKE, 1997, p. 86).
Mais séria, porém, é a crítica a Febvre por presumir muito facilmente uma
homogeneidade de pensamento e sentimentos entre os vinte milhões de franceses da
época, escrevendo com convicção sobre “os homens do culo XVI”, como se não
houvesse diferenças significativas entre os pressupostos de homens e mulheres, ricos
e pobres, e assim por diante (ibidem, p. 42).
Ainda que Durkheim e Mauss tenham empregado ocasionalmente o termo, foi o
livro de Lévi-Bruhl, La mentalité primitive (1922), que o lançou na França. Assim
mesmo, apesar de ter lido Lévi-Bruhl, Marc Bloch preferiu descrever seu Les Rois
Thaumaturges (1924), hoje reconhecido como uma obra pioneira na história das
mentalidades, como uma história de representações coletivas (termo preferido por
Durkheim), representações mentais, ou mesmo ilusões coletivas. Nos anos 30,
Febvre introduziu o vocábulo instrumental intelectual, mas não obteve grande
sucesso. Foi Georges Lefebvre, um historiador situado nos limites do grupo dos
Annales, que cunhou a frase história das mentalidades coletivas (ibidem, pp. 131-
132).
Das palavras de Georges Duby e de Peter Burke acerca de mentalidade, retiradas,
respectivamente, dos livros A História Continua
125
e A Escola dos Annales
126
, pode-se chegar
às seguintes conclusões: (i) o que se encontra por trás do termo mentalidade, utilizado
124
Peter Burke refere-se a Jacques Le Goff.
125
Op. cit.
126
Op. cit.
75
primeiramente por Lucien Febvre nos estudos que ele realizava em torno das atitudes
coletivas ou da “psicologia histórica”, já foi chamado, outrora, de atmosfera mental, por Marc
Bloch, e passou a ser denominado, anos depois, de estruturas mentais, de hábitos de
pensamento ou de aparatos intelectuais, por Jacques Le Goff, até que este, ao lado de
Georges Duby, optasse pelo vocábulo imaginário: isso mostra o quanto o conceito de
mentalidade foi (re)trabalhado ao longo do tempo, porque de natureza escorregadia; (ii) a
palavra resíduo pode funcionar como sinônimo de mentalidade; (iii) mentalidade seria o
modo de agir, de pensar (modo de ver o mundo; crenças; valores, julgamentos) e de sentir
(odores, medos) de um determinado grupo de indivíduos dum certo local e duma determinada
época; (iv) a mentalidade possui um caráter espiritual (em oposição à material, porque se
passa no interior dos indivíduos); inconsciente, uma vez que os indivíduos herdariam de seus
grupos, ao nascer, determinados modos de agir, de pensar e de sentir, dos quais não saberiam
as origens nem as verdadeiras causas (neste ponto, temos a mentalidade com as mesmas
características do fato social, de Durkheim: generalidade, exterioridade e coercitividade);
plural, pois cada grupo de indivíduos que compõe uma sociedade vê as coisas duma
determinada forma (na Idade Média, os componentes do Alto Clero certamente não pensavam
ou agiam da mesma maneira que os do Baixo Clero), daí se falar em mentalidades, ou seja,
utilizar-se o termo no plural; coletivo, visto que, ainda que se possa chegar a ela por meio de
um único indivíduo
127
, não se pode esquecer de que este pertence a um grupo, a uma
127
Os seguintes excertos das obras A Escola dos Annales, de Peter Burke, A História Continua, de Georges
Duby, e O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição (/tradução de
Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes; revisão técnica de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.), de Carlo Ginzburg, mostram que é perfeitamente possível apreender a mentalidade de um
grupo a partir do que se pode colher dos modos de agir, de pensar e de sentir de um dos indivíduos que
compõe essa coletividade: “A biografia histórica é praticada por diferentes razões e assume formas
diferentes. Pode ser um meio de entender a mentalidade de um grupo. Uma dessas formas é a vida de
indivíduos mais ou menos comuns, como o burguês Joseph Sec, sobre quem Vovelle escreveu em razão de
sua ‘irresistível ascensão’, ou do artesão parisiense, Jean-Louis Ménétra, estudado por Daniel Roche” (Le
Goff, 1989; Vovelle, 1976; Roche, 1982; apud BURKE, 1997, p. 104), Desta vez, observava a carreira
excepcional de um indivíduo excepcional, de um campeão do mundo, de um vencedor, observava como vivia
76
coletividade, a qual ele, inevitavelmente, representa; e mutável, uma vez que o modo de agir e
de pensar de um determinado grupo de indivíduos pode mudar, com o passar do tempo.
Também se pode concluir que (v) os elementos culturais de caráter material, noutras palavras,
os objetos produzidos pelo Homem (utilitários ou artísticos), nada mais são que
concretizações daquilo que se pode chamar de mentalidade, pois sempre trazem em si, a partir
de suas características, os costumes um determinado grupo social de um certo período
histórico, ou seja, os seus modos de agir, de pensar e de sentir.
O trabalho com a mentalidade, por parte dos historiadores da École des Annales, abriu
uma nova perspectiva para as pesquisas históricas: a História das mentalidades, que aumentou
o Platini, o Tapie do século XII, pois ele me interessava, mas sobretudo para ser capaz, através dele, através
dos numerosíssimos vestígios deixados por sua turbulenta passagem por este mundo, de saber mais, muito
mais sobre o cavaleiro comum, sobre a cavalaria” (DUBY, op. cit., p. 138), “também como em Bouvines, só me
interessava quando me informava sobre o coletivo. O verdadeiro tema do livro não é Guilherme, mas a
cavalaria, seu ideal, os valores que ela afirmava respeitar. E também um sistema político, o ‘feudalismo’, pois
através desse caso concreto o funcionamento de suas engrenagens pode ser descoberto com muito maior
clareza que nos tratados ou nas cartas(ibidem, p. 139), Este livro conta a história de um moleiro friulano
Domenico Scandella, conhecido por Menocchio queimado por ordem do Santo Ofício, depois de uma vida
transcorrida em total anonimato. A documentação dos dois processos abertos contra ele, distantes quinze
anos um do outro, nos dá um quadro rico de suas idéias e sentimentos, fantasias e aspirações. Outros
documentos nos fornecem indicações sobre suas atividades econômicas, sobre a vida de seus filhos. Temos
também algumas páginas escritas por ele mesmo e uma lista parcial de suas leituras (sabia ler e escrever).
Gostaríamos, é claro, de saber muitas outras coisas sobre Mennochio. Mas o que temos em mãos nos
permite reconstruir um fragmento do que se costuma denominar ‘cultura das classes subalternas’ ou ainda
‘cultura popular’” (GINZBURG, 1987, p. 16) e Este livro narra sua história. Graças a uma farta documentação,
temos condições de saber quais eram suas leituras e discussões, pensamento e sentimentos: temores,
esperanças, ironias, raivas, desesperos. De vez em quando as fontes, tão diretas, o trazem muito perto de
nós: é um homem como nós, é um de s. Mas é também um homem muito diferente de nós. A
reconstrução analítica dessa diferença tornou-se necessária, a fim de podermos reconstruir a fisionomia,
parcialmente obscurecida, de sua cultura e contexto social no qual ela se moldou. Foi possível rastrear o
complicado relacionamento de Menocchio com a cultura escrita, os livros (ou, mais precisamente, alguns dos
livros) que leu e o modo como os leu. Emergiu assim um filtro, um crivo que Menocchio interpôs
conscientemente entre ele e os textos, obscuros ou ilustres, que lhe caíram nas mãos. Esse crivo, por outro
lado, pressupunha uma cultura oral que era patrimônio não apenas de Menocchio, mas também de um vasto
segmento da sociedade do século XVI. Em conseqüência uma investigação que, no início, girava em torno de
um indivíduo, sobretudo de um indivíduo aparentemente fora do comum, acabou desembocando numa
hipótese geral sobre a cultura popular e, mais precisamente, sobre a cultura camponesa da Europa pré-
industrial, numa era marcada pela difusão da imprensa e a Reforma Protestante, bem como pela repressão a
esta última nos países católicos” (ibidem, p. 12).
77
enormemente as fontes historiográficas para os pesquisadores que resolveram se aventurar por
ela, de modo que praticamente tudo passou a ser tido como fonte histórica. Foi a partir da
revolução historiográfica proposta pela História das mentalidades que os objetos de arte,
notadamente os livros de teor literário (epopéias, novelas, romances), eivados de
subjetividade, passaram a ter valor verdadeiramente científico-documental para a História,
não apenas porque traziam narrativas que, ainda que não tivessem acontecido, descreviam
muito bem os costumes de uma época, mas mais no sentido de que as obras literárias traziam
sempre uma leitura (a do autor) da sociedade; uma visão crítica desta. Os primeiros
integrantes da Escola dos Anais a se debruçarem, efetivamente, em suas pesquisas, sobre a
Literatura foram Marc Bloch e Lucien Febvre. Este preferia canções ou novelas a documentos
estatísticos ou cartoriais. Após Febvre, que pertenceu, juntamente com Bloch, à primeira fase
da Escola dos Annales, somente os integrantes da terceira fase, principalmente Georges Duby,
utilizaram a Literatura (bem como as outras artes) como documento histórico. Isso se deveu
não só ao fato de a segunda fase da École des Annales ter sido chefiada, praticamente, por um
homem, Fernand Braudel, que procurava na Geografia Humana e na Sociologia respostas
para as suas indagações históricas ou soluções para as suas histórias-problema, de modo a
deixar todas as artes de lado, quando das suas pesquisas, mas também pelo fato de os
historiadores que participaram dessa segunda fase terem achado insustentáveis muitos dos
argumentos oferecidos pela História das mentalidades para a explicação dos fatos históricos e,
conseqüentemente, mais importantes, porque mais “cientìficas”, as Histórias econômica e
social. De qualquer forma, foi durante o “reinado” de Braudel que a História das
mentalidades começou a atrair adeptos e a ganhar importância; mas o período de maior
produção científica em torno das mentalidades deu-se mesmo entre 1960 e 1980. Vale
salientar que a literariedade das pesquisas realizadas pelos integrantes da École des Annales
não ficava restrita apenas às fontes, que eram obras literárias, mas estava também presente na
78
linguagem em que eram vazados os ensaios resultantes dessas investigações. Sobre a
utilização de obras de arte como fontes historiográficas, em especial das obras literárias; sobre
a receptividade da História das mentalidades por parte dos componentes da Escola dos Anais,
ao longo de três fases (1929-1989), e dos demais historiadores das décadas de 60 e 70 do
século XX; e sobre a linguagem literária das produções acadêmicas dos participantes da
agremiação em questão podemos ler as seguintes palavras de Georges Duby, de Peter Burke e
de Pierre Daix, retiradas, respectivamente, de A História Continua
128
, A Escola dos
Annales
129
e Fernand Braudel: uma biografia
130
:
Mas este exercício, perigoso, exigiu de minha parte uma verdadeira conversão. E,
para começar, a adaptação dos métodos que eu costumava utilizar para tratar a
informação. Já não me encontrava diante de palavras, de discursos, mas diante de
objetos, e de uma categoria muito particular: o que não perecera da criação artística,
ou seja, quase sempre o melhor, a parte considerada mais perfeita que o respeito dos
conhecedores conseguira preservar das destruições cegas e dos ataques do tempo. A
parte mais “genial”, portanto. Aqui é que se manifestava a primeira dificuldade. Eu
precisava isolar nesses objetos excepcionais fosse o manto do imperador Henrique
II, conservado no tesouro da catedral da Bamberg, ou a estátua de Adão outrora
erguida na tribuna de Notre-Dame de Paris o que parece decorrer do “gênio”, da
sensibilidade pessoal do artista, de suas invenções imprevisíveis, de sua livre
inspiração, em suma, o que se mostra irredutível a qualquer explicação na obra, para
separá-lo do que não o é, de todo o resto, desse fundo geral de que se apoderam
tantos os pequenos mestres quanto os grandes criadores, e que só ele mantém
relações com o meio social e cultural (DUBY, 1993, p. 95).
Em O ano mil, a porta do laboratório se entreabre. Os documentos não figuram aqui
como simples apêndices, como em L‟Économie rurale: formam o corpo principal
deste pequeno volume. Mas são documentos de um gênero especial. Também eles
são quase todos obras de arte. Obras literárias, textos, cuidadosamente polidos por
virtuoses da retórica (ibidem, p. 98).
Eu estava mudando de material, mais ou menos como um escultor que troca a
madeira pelo mármore. Desviava minha atenção das cartas, inventários, dos
testemunhos breves fornecidos pelas fontes abruptas, ásperas, sem preparo sobre as
quais se baseava toda a minha tese de doutorado. Dali para a frente, eu leria
sobretudo narrativas, poemas, em latim ou outras línguas, escritos que refletiam de
maneira menos direta, menos ingênua, a vida em sociedade, deformados,
complicados que são pela preocupação de agradar, de disseminar determinada
doutrina, mas também menos secos, mais loquazes, e em todo caso de interpretação
128
Op. cit.
129
Op. cit.
130
Op. cit.
79
mais difícil. Para extrair-lhes o sentido, prevalecia-me da experiência recém-
adquirida, quando me interroguei sobre a obra de arte para situá-la em seu contexto.
A respeito desses textos, fazia perguntas análogas: onde, por quem, com que
intenção haviam sido redigidos? E como relacioná-los aos sistemas de valores, aos
modelos de comportamento, a todo o corpo de representações confusas que
denominávamos mentalidades? (ibidem, p. 99).
Mais tarde, aventurei-me pela exuberância das canções e dos romances de cavalaria:
queria ver como o amor e a morte haviam sido sonhados. É com efeito o sonho que
percebemos nesses textos. Mas ele não apresenta menos interesse, para mim, que o
real. A realidade dos comportamentos amorosos é de qualquer maneira
inapreensível. Mas pelo menos o seu reflexo projeta-se necessariamente na literatura
de evasão, a esta, propondo personagens exemplares a serem imitados por seu
público, não deixa de repercutir nos comportamentos, como acontece com a
literatura hagiográfica (DUBY, 1993, p. 146).
em Bouvines eu tratara de me identificar com os cavaleiros, esforçando-me por
perceber como eles viam o mundo quando se lançavam a galope uns contra os
outros, ao mesmo tempo evitando machucar-se demais (ibidem, p. 114).
Eu procurava igualmente captar o comportamento daqueles rapazes e homens mais
maduros, às vezes incapacitados, que, vociferando, morrendo de sede,
enceguecidos pela poeira do terreno pisoteado, agitaram-se como condenados em
suas couraças, naquele dia de verão. De que instrumental dispunham? Que gestos
faziam, manejando essas armas, conduzindo suas montarias? Eu tentava inclusive
penetrar em suas consciências. Que pretendiam? Em que momento a alegria que no
início do confronto fazia do combate uma festa evoluíra para a exasperação da
violência, transformando-se num prazer furioso, cego, de destruir e colher os
destroços do que caía no fragor da debandada? Tinham medo os cavaleiros? E de
quê? Qual o herói mítico cuja arrogância empenhavam-se em imitar? Que entendiam
precisamente por proeza, lealdade? Onde se situava, para eles, o ponto de honra? Em
suma, eu observava exatamente como Margaret Mead observara os manus. Tão
desarmado quanto ela, mas não mais (ibidem, p. 111).
O esboço de uma história das ideologias, das reflexões que eu desenvolveria num
capítulo de Faire l‟histoire, e em seguida em As Três Ordens, é assim descoberto
neste livro, e dou-me conta de que foi efetivamente ao descrevê-lo que se modificou
decididamente minha posição face ao testemunho, à fonte escrita. Até então eu
esperava os documentos que me ensinassem a verdade dos fatos, cuja lembrança
tinham por missão preservar. Logo verifiquei que esta verdade é inacessível e que o
historiador tem oportunidade de aproximar-se dela em vel intermediário, ao
nível da testemunha, questionando-se não sobre os fatos que relata, mas sobre a
maneira como os relatou. Eis por que dou atualmente mais atenção aos relatos, por
mais fantasmagóricos que sejam, do que às anotações “objetivas”, descarnadas, que
podemos encontrar nos arquivos. Essas narrativas ensinam-me mais e para
começar, sobre seus autores através de suas tergiversações, do que têm dificuldade
para dizer, do que não dizem, esquecem ou ocultam. Ora, é a este autor que me
apego, retendo de suas palavras, para começar, o que revelam sobre sua própria
cultura, suas esperanças, seus temores, a maneira como pensa o mundo e a si
mesmo. A imagem que tem de si mesmo é o que procuro reconstituir. Estou hoje
convencido de que se encontra aqui a única “realidade” que posso tocar, e de que
das mulheres do século XII, por exemplo, nunca apreenderei algo mais verdadeiro
que uma imagem, a que flutuava no espírito dos raros homens cujos escritos
80
conservamos. Freqüentemente encontro dificuldades para fazer com que reconheçam
esta evidência. A prova disto está na aspereza das discussões que me opunham
constantemente, em meu seminário, a Karl Ferdinand Werner, belo historiador das
instituições. Não conseguia convencê-lo. Ele se aferrava obstinadamente à letra do
texto, sem se preocupar com a ideologia de que era prisioneiro o autor desse texto, e
a respeito do qual é importante informar-se previamente, para enxergar mais
claramente o verdadeiro que esta ideologia mascara e distorce (ibidem, p. 99-100).
Foi realmente um historiador da geração de Braudel que despertou a atenção pública
para a história das mentalidades, através de um livro notável, quase sensacional,
publicado em 1960. Philippe Ariès era um historiador diletante, “um historiador
domingueiro”, como ele próprio se chamava, que trabalhava num instituto de frutos
tropicais, devotando seu tempo de lazer à pesquisa histórica. Demógrafo histórico
por formação, Ariés veio a rejeitar a perspectiva quantitativa (da mesma maneira que
rejeitou outros aspectos do mundo burocrático-industrial moderno). Seus interesses
direcionaram-se para a relação entre natureza e cultura, para as formas pelas quais
uma cultura vê e classifica fenômenos naturais tais como a infância e a morte
(BURKE, 1997, p. 81).
O livro de Philippe Ariès foi particularmente um desafio aos demógrafos históricos;
um desafio ao qual alguns deles responderam dando maior atenção ao papel dos
valores e das “mentalidades” no “comportamento demográfico”; em outras palavras,
pelo estudo da família, da sexualidade e, como desejava Febvre, da história do amor
[...]. Os estudos nessa área muito contribuíram para estabelecer uma ponte entre a
história das mentalidades baseada em fontes literárias (por exemplo, o Rabelais de
Febvre) e a história social, que negligenciava o estudo de valores e atitudes (ibidem,
p. 83, passim).
Como vimos, na geração de Braudel, a história das mentalidades e outras formas de
história cultural não foram inteiramente negligenciadas, contudo, situavam-se
marginalmente ao projeto dos Annales. No correr dos anos 60 e 70, porém, uma
importante mudança de interesse ocorreu. O itinerário intelectual de alguns
historiadores dos Annales transferiu-se da base econômica para a “superestrutura”
cultural, “do porão ao sótão” (ibidem, p. 81).
A história das mentalidades não foi marginalizada nos Annales, em sua segunda
geração, apenas porque Braudel não tinha interesse nela. Existiram, pelo menos,
duas outras razões mais importantes para essa marginalização. Em primeiro lugar,
um bom número de historiadores franceses acreditava, ou pelo menos pressupunha,
que a história social e econômica era mais importante, ou mais fundamental, do que
outros aspectos do passado. Em segundo lugar, a nova abordagem quantitativa,
analisada no capítulo anterior, não encontrava no estudo das mentalidades o mesmo
tipo de sustentação oferecido pela estrutura socioeconômica (ibidem, p. 99).
Por outro lado, a história das mentalidades, tal como foi praticada a partir dos anos
60 por Georges Duby, Robert Mandrou, Jacques Le Goff e tantos outros, deve muito
ao exemplo de Febvre, como também ao de Bloch (ibidem, p. 42).
A figura principal na psicologia histórica à la Febvre foi o falecido Robert Mandrou
(Joutard/Lecuir, 1985). Logo após a morte de Febvre, Mandrou encontrou entre seus
81
papéis um arquivo contendo notas sobre um livro não escrito, que deveria ter sido a
continuação do Rabelais, sobre o nascimento da mentalidade francesa moderna.
Decidiu prosseguir a obra de seu mestre e publicou sua Introduction à la France
Moderne, com o subtìtulo “Um ensaio em psicologia histórica 1500-1640”, em
que incluía capítulos sobre saúde, emoções e mentalidades (Mandrou, 1961). Logo
depois da publicação desse livro, ocorreu a ruptura entre Braudel e Mandrou.
Quaisquer que tenham sido as razões pessoais, a ruptura se produziu no decorrer de
um debate sobre o futuro do movimento dos Annales. Nessa discussão, Braudel
defendeu a inovação, enquanto Mandrou preferia a herança de Febvre, o que ele
chamava “o estilo original” (Annales première manière), em que a psicologia
histórica ou a história das mentalidades desempenhavam um papel importante
(ibidem, p. 84).
Na década de 60, como seus
131
interesses moveram-se gradualmente em direção à
história das mentalidades, colaborou com Mandrou em sua história cultural da
França. Posteriormente, foi além de Bloch e do estilo original dos Annales.
Inspirado em parte na teoria social neomarxista, preocupou-se com a história das
ideologias, da reprodução cultural e do imaginário social, que procura combinar com
a história das mentalidades (ibidem, pp. 86-87).
Este livro
132
pode ser lido como um romance de capa e espada. Escrevi-o com
enorme prazer, para agradar ao amante de história. Por este motivo, pode parecer
inconsistente. Mas está na verdade tão carregado de dados eruditos, é tão sério
quanto As Três Ordens. Menos austero, é verdade. Houve quem se deixasse enganar
por isto. Certo crítico alemão advertia, peremptório, no fim de uma resenha
globalmente amável: esta obra não se destina aos especialistas. Ora, os especialistas
são os principais destinatários (Duby, 1993, p. 138).
acabaram por criar, com o torneado de suas frases, seu vocabulário, uma língua dos
Annales de certa qualidade literária, mas que irritaria seus adversários
profundamente. Será que a história é ou pode ser, pretendendo-se uma ciência,
também questão de escrita, de modo literária? (DAIX, 1999, p. 177).
Durante a década de 70, Georges Duby passou a repensar a utilização do termo
mentalidade para designar os modos de agir, de pensar e de sentir de um certo agrupamento
social de uma determinada época:
não utilizo a palavra mentalidade. Ela não é satisfatória, e não demoramos a nos
dar conta disso. Na época, no entanto, pelo fim dos anos cinqüenta, convinha
perfeitamente, em razão de suas fraquezas, de sua própria imprecisão, para designar
131
Burke estava a falar de Georges Duby.
132
Duby referia-se ao seu livro Guilherme Marechal (op. cit.).
82
a terra incógnita, que convidávamos os historiadores a explorar conosco e da qual
ainda não conhecíamos os limites nem a topografia (DUBY, 1993, pp. 88-89).
As influências marxistas que recebeu no início de sua carreira certamente o fizeram
optar pelo termo imaginário, em substituição à palavra mentalidade, conforme falou sobre
isso Peter Burke:
Um termo recente, empregado por exemplo por Duby (1978) e Corbin (1982), que
mais ou menos corresponde à velha história das representações coletivas. O
vocábulo antigo tinha vinculações durkheiminianas, enquanto o novo, “imaginário”,
relaciona-se com tendências neomarxistas. Parece ter se originado de C. Castoriadis,
L‟instituition imaginaire de la societé (1975), um estudo que é, por sua vez, devedor
da famosa definição de ideologia de Althusser, fundamentada na pressuposição de
“relação imaginada às reais condições de existência” (BURKE, 1997, p. 130).
Desse modo, Duby chegou ao seguinte conceito de imaginário:
Quanto ao outro termo, imaginário”, tomava-o em seu sentido mais amplo, para
designar o que existe na imaginação, a faculdade do espírito de forjar imagens. E
com razão, quer-me parecer, pois minha intenção era escrever a história de um
objeto extremamente real, apesar de imaterial, a representação mutante que a
sociedade dita feudal tinha de si mesma, captar uma das formas dessa representação,
construída segundo um esquema ternário cujos traços foram identificados por
Georges Dumézil no mais profundo da cultura “indo-européia”. Estudei as
manifestações dessa figura, as transformações que ela sofreu durante dois séculos
em suas relações com o concreto das relações sociais, e era nisto, em minha
preocupação de inserir este esquema estrutural do decorrer do tempo e na
experiência vivida, que minha investigação diferia da de Dumézil. Eu queria tentar
vislumbrar como uma imagem deste tipo é construída, se difunde, se desgasta,
apagando-se bruscamente diante de uma outra ou ajustando-se aos poucos para não
ceder lugar, até modificar-se completamente. E por quê? Em busca de que ideal? A
serviço de que interesses? Lançava-me numa história das mais novas e cujas
dificuldades demonstrei numa nota metodológica, a história dessas utopias
justificadoras, tranqüilizadoras que são as ideologias, imagens ou antes conjuntos de
imagens imbricadas, que não são um reflexo do corpo social, mas que, sobre ele
projetadas, pretenderiam corrigir suas imperfeições, orientar sua caminhada num
determinado sentido, e que por isto estão ao mesmo tempo próximas e distantes da
realidade sensível (DUBY, 1993, p. 113).
83
Pelas palavras de Georges Duby depreende-se que o vocábulo imaginário está mesmo
relacionado às imagens que um determinado grupo de uma certa época faz de si e de tudo o
que está à sua volta; ou seja, imaginário é o modo como um grupo social enxerga ou pensa o
mundo em que vive; o modo como (re)age a algo, como sente (no sentido mais amplo da
palavra sentir) e como percebe tudo aquilo que lhe afeta. Cada época tem, portanto, o seu
próprio imaginário, visto que as pessoas de cada época vêem a realidade duma determinada
maneira e manifestam-se, por palavras, por atos e por meio de emoções, duma forma única.
Em suma, Duby passou a chamar de imaginário o que, antes, ele e os demais integrantes da
École des Annales denominavam mentalidade. Jacques Le Goff, que também fez parte da
Escola dos Anais, na sua terceira fase, juntamente com Georges Duby, certamente deve ter
concordado com essa mudança de nomenclatura operada pelo amigo, pois, no começo da
década de 70, escreveu um ensaio intitulado “A história das mentalidades. Uma história
ambìgua”, no qual procurou definir e caracterizar melhor os termos mentalidade e imaginário,
de modo a apontar as diferenças existentes entre ambos e a relacioná-los devidamente. O
conteúdo desse ensaio de Jacques Le Goff foi discutido por Hilário Franco Júnior, em seu
texto “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões sobre Mentalidade e
Imaginário
133
”, publicado na Signum: Revista da ABREM Associação Brasileira de Estudos
Medievais, 5, 2003, em homenagem a Jacques Le Goff. Para Hilário Franco Júnior, Le
Goff havia percebido, muito, o caráter ambíguo do termo mentalidade, de modo que era
necessário desfazer essa ambigüidade, caracterizar e definir melhor o termo em questão:
Mas a palavra, e o que ela pretendia designar nas Ciências Humanas, sempre sofreu
da dupla acepção vinda do latim medieval mentalis, “da alma” e “do intelecto”,
categorias que o racionalismo moderno considera antagônicas. Daí a história das
133
FRANCO JÚNIOR, op. cit.
84
mentalidades ter quase sempre revelado essa contradição quanto ao seu objeto o
inato ou o adquirido, o inconsciente ou o consciente? levando Jacques Le Goff a
rotulá-la de “história ambìgua” (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 74).
Na tentativa de eliminar essa ambigüidade, poder-se-ia ficar tentado a definir
mentalidade privilegiando ou a genética ou o intelecto. Mas no primeiro caso se
estaria muito próximo da sociobiologia e suas explicações reducionistas, que vêem
nas culturas produtos de hereditariedades solucionadas pelo processo de evolução. E
no segundo, a história da mentalidade perderia sua especificidade e se confundiria
com a tradicional história do pensamento e com a antropologia culturalista. Ora, o
ser humano não é apenas uma coisa ou outra. Marc Bloch já percebera que a
“mentalidade religiosa” abarca ao mesmo tempo “pensamento” e “sentimento”.
Jacques Le Goff reconheceu que a mentalidade é feita de automatismos não
desvinculados dos sistemas de pensamento (ibidem, p. 75).
Hilário Franco Júnior. apresentou, no seu ensaio, os quatro traços básicos da
mentalidade, com vista a desfazer-lhe a ambigüidade, a caracterizá-la e a conceituá-la
devidamente, bem como a diferenciá-la de imaginário. O primeiro desses traços é o de ser, a
mentalidade, algo antiqüíssimo, presente já no homo sapiens, uma espécie de psiquismo
primitivo formado por emoções básicas capazes de provocar reações fisiológicas e
neurológicas, mas também feições, gestos e sons que serviriam para externar, para os outros
indivíduos, essas emoções. Enfim, a mentalidade estaria numa área de interseção entre o
biológico e o social:
Primeiro, ser uma área de interseção entre o biológico e o social, guardando por isso
componentes da longa vida pré-histórica do homem [...]. Como para a Neurologia
atual o próprio surgimento da consciência ocorre com uma representação, a da
relação entre um objeto e o organismo no qual se encontra o cérebro que estabelece
tal relação, pode-se pensar que o primeiro exemplo disso aconteceu cerca de
quarenta mil anos, quando o homem deixou as marcas de suas mãos impressas na
parede de uma caverna, como que a registrar para si e para os outros a própria
existência. Marcas simples, “primitivas”, mas que de certa forma inauguram a
História, ou seja, tornam o homem o primeiro animal que representa a si mesmo,
que busca a definição e o reconhecimento de si, que tem consciência da própria
existência (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 76).
Em razão disso, a mentalidade poderia talvez ser entendida como o substrato
protocultural comum ao homem e ao animal de que falava Claude Lévi-Strauss.
85
Substrato que precisa ser sempre considerado, pois não se pode pretender
compreender o homem levando em conta apenas sua trajetória posterior à invenção
da escrita (ibidem, 2003, p. 77).
De fato, os dados reunidos pela Paleontologia indicam que “desde o seu
aparecimento, o homo sapiens deve ter sido provido das suas características
psíquicas essenciais que em nada diferiam qualitativamente das dos homens atuais”.
Segundo a Psicologia comportamental, uma inscrição filogenética das emoções
básicas, que parecem remontar às origens animais do homem, tanto que elas se
manifestam desde os primeiros meses de vida dos humanos e estão presentes nos
animais. Independentemente da abordagem, não dúvida de que o núcleo daquele
psiquismo primitivo e sempre atual é constituído pelas emoções (ibidem, 2003, p.
78).
A favor do universalismo das emoções básicas, argumentou-se que elas provocam
sempre as mesmas reações fisiológicas (o ritmo cardíaco eleva-se com o medo, a
raiva e a tristeza, baixa com a alegria, a repugnância e a surpresa) e neurológicas (a
tristeza provoca um aumento bilateral do fluxo sangüíneo em certa zona cerebral,
enquanto a alegria acarreta uma diminuição unilateral do fluxo na mesma zona)
(ibidem, p. 79).
Deste ponto de vista, as emoções são formas de adaptação a situações nas quais as
exigências são desproporcionais às possibilidades perceptíveis e cognitivas do
sujeito, daí o medo e a fuga diante do perigo, a cólera contra o obstáculo, etc. No
entanto, emoções não são apenas sentidas interiormente, são comunicadas por
feições, gestos, sons. Tais exteriorizações fazem parte da própria emoção, não
somente expressam como também determinam muito da intensidade que o estado
emocional tem para o próprio sujeito e a direção que, por ricochete nos parceiros
sociais, acaba por tomar no íntimo do indivíduo (idem).
O segundo, o de estarem, essas emoções primitivas, ligadas a uma forma específica de
racionalidade, predominantemente analógica. Desse modo, a mentalidade não seria uma
interseção entre o biológico e o social como também uma união entre o emocional e o
racional, porque analógica:
Segundo traço, as emoções primitivas estão relacionadas a uma forma específica de
racionalidade. Estudos recentes demonstram que os mecanismos emocionais não são
simples reações a estímulos, mas estados mentais cognitivos que ao menos no caso
das sociedades pré-industriais, inclusive a medieval parecem ter sido
predominantemente analógicos. De fato, podemos com certo grau de segurança
sugerir que a forma primitiva (no sentido evolutivo) de pensamento era subjetiva e
dava-se por analogia, elemento ao mesmo tempo racional e emocional que
86
estabelece entre dois ou mais elementos, fatos ou ações, correspondências
fundamentadas em (pretensos ou concretos) pontos comuns. Esse pensamento
espontâneo percebe similitudes de funções que transformam o universo em uma
imensa rede de conexões. O conjunto de emoções básicas e o pensamento analógico
são formas diferentes, mas não contraditórias, de percepção do mundo e de
intervenção sobre ele. Isso não significa, é claro, que desde os primeiros tempos o
homem não pensasse também de forma lógica, dedutiva, por encadeamento de
causas e efeitos. Desde mais ou menos 450.000 anos, utilizavam-se na caça lanças
de madeira, o que pressupõe um controle adequado de tempo e espaço e portanto
uma concepção de causalidade. Entretanto, prevalecia a relação analógica com o
mundo: percebia-se que lançar um dardo ou uma flecha (causa) possibilitava abater
o animal (conseqüência), mas para que a causa fosse mais eficiente e o efeito mais
completo, havia forças desconhecidas a considerar, e nesse processo predominavam
procedimentos analógicos. Se toda arma ou instrumento tem uma utilização explícita
que é lógica, nas sociedades arcaicas tem ainda uma utilização implícita que é
analógica (FRANCO JÚNIOR, 2003, pp. 80-81).
Evidentemente, é impossível fazer a arqueologia do pensamento analógico, mas é
plausível a hipótese de que seu ponto de partida tenha sido a percepção de um dado
da natureza, a simetria, visível talvez em primeiro lugar no próprio corpo humano. A
verticalidade deste permitiu ao homem pré-histórico notar a simetria bilateral (olhos,
orelhas, narinas, caninos, seios, testículos, braços, mãos, dedos, pernas, pés,
artelhos, nádegas), acentuada pelo eixo vertical cabeça-nariz-boca-pescoço-umbigo-
sexo-coluna vertebral (ibidem, 2003, p. 82).
Como indicam diversos dados fornecidos por Marcel Otte, os procedimentos
mentais analógicos são inegáveis para a Pré-História (ibidem, 2003. P. 84).
O terceiro traço é o de ser, a mentalidade, algo estável, imóvel, inerte, porque de
natureza biopsíquica. Isso significa dizer que as emoções e os afetos dos primeiros tempos
continuam os mesmos; apenas são motivados por fatores diferentes ou esboçados de maneiras
diferentes (e aqui entram os imaginários), de acordo com a cultura de cada época ou de cada
período histórico, ou, ainda, de acordo com a cultura de cada agrupamento ou classe social de
uma civilização de um dado tempo. Corrobora com o que foi dito o fato de o tronco
encefálico, também conhecido como cérebro de répteis, uma das zonas mais antigas do
cérebro humano, em termos de evolução, ser o centro de produção dessas emoções e desses
afetos. Assim, não se poderia falar em mentalidades, várias para cada época, pois existiria
uma só mentalidade humana, que se teria originado ainda na Pré-História e se mantido
praticamente a mesma até os dias de hoje; porém, poder-se-ia, sim, falar em vários
87
imaginários (um para cada época ou período histórico ou, ainda, um para cada grupo ou
camada social de uma civilização dum dado tempo). O medo, por exemplo, faz parte da
mentalidade humana, pois é um sentimento que está presente no Homem desde os tempos
mais remotos; desde a sua origem na terra. Esse sentimento é comum também aos animais,
pois está ligado à sobrevivência de qualquer ser vivo. No entanto, em cada período histórico,
o medo se apresenta aos homens sob diferentes roupagens, assim como os homens de cada
época ou de cada camada social esboçam reações diferentes frente àquilo que lhe faz medo.
Sobre a imutabilidade da mentalidade ao longo do tempo, falou Hilário Franco Júnior as
seguintes palavras:
Terceiro traço, a predominância dos fatores biopsìquicos na mentalidade faz dela “o
nìvel mais estável, mais imóvel das sociedades” e revela assim seu papel de “inércia,
força histórica capital”. Exatamente por isso, não concordamos que a mentalidade
tenha modelos, que “o palácio, o mosteiro, o castelo, as escolas, os pátios são, ao
longo da Idade Média, os centros onde se forjaram as mentalidades.” Tais centros, e
outros, eram veículos seletivos que expressavam de formas culturalmente próprias
certos aspectos da mentalidade. Pelo mesmo motivo, acreditamos ser contraditório
falar em “grandes oscilações de mentalidade” ou em “fatos de mentalidade
efêmeros”, como as modas de vestuário, na verdade dados culturais, não mentais.
Tal imobilidade relativa deve-se ao fato de na formação do aparelho cerebral do
homo sapiens sapiens, aparecido há cem mil anos, a emoção ter despontado antes da
razão e ter sido uma forma de racionalidade primitiva útil para sua sobrevivência
[...]. A Psicanálise já tinha de certa forma intuído estas idéias ao afirmar que
“existem no homem formações psìquicas hereditárias, qualquer coisa de análogo ao
instinto dos animais”, “esquemas filogenéticos hereditários” chamados por Freud de
“fantasias originárias” e que podem ser interpretadas como indìcio de que para ele
“o que na P-História foi realidade de fato ter-se-ia tornado realidade psìquica”.
Porque as emoções são inicialmente processadas de modo “arraigado e automático”
na “consciência central”, para usar expressões de Damásio, as transformações
civilizacionais não alteram o essencial delas diante dos três grandes momentos da
trajetória humana, o nascimento, a reprodução e a morte (FRANCO JÚNIOR, 2003,
pp. 85-86).
Da mesma maneira que na evolução das espécies certas inovações fixaram-se
geneticamente nas suas populações, no ser humano a mentalidade registrou em
algum momento, provavelmente há centenas de milhares de anos, ou mais, as
emoções e os afetos dos primeiros tempos, e que em muitos casos continuam ainda
atuais, embora sob outras roupagens (ou mais exatamente, como veremos,
expressadas por outros imaginários). O medo é uma boa amostra disso, pois como
uma equipe coordenada por Marcus Lira Brandão tem demonstrado, na
neurobiologia dessa emoção um papel importante cabe ao tronco encefálico
(chamado de cérebro de répteis), uma das zonas mais primitivas do cérebro humano.
88
Além dos medos inatos, geneticamente herdados, os medos incondicionados,
decorrentes de situações traumáticas individuais, também acionam aqueles circuitos
neuroquímicos primitivos, existentes há dezenas, talvez centenas de milhões de
anos. O medo da noite, por exemplo, esteve presente entre os hebreus dos tempos
bíblicos, os romanos, os medievais, os homens da Modernidade. Nos textos
veterotestamentários, a noite é a antevisão da morte. Em Virgìlio, a “noite profunda”
equipara-se às “pálidas sombras do Érebo”. Na Idade Média, a noite pertence “aos
feiticeiros e aos demônios”, é “o tempo dos perigos sobrenaturais [e] da angústia”.
Na Idade Moderna, é o reino de Satã. Mas no interior dessas culturas, cada medo foi
processado por meio de imagens específicas a cada grupo social (ibidem, pp. 86-87).
Em função da presença do mesmo conjunto básico de elementos na psicologia
coletiva de todos os povos de todas as épocas, é preferível falar em mentalidade no
singular e sem adjetivação. É verdade que a diferenciação social surgida dez mil
anos, provavelmente resultado das construções culturais necessárias para disciplinar
o meio ambiente e o grupo humano, talvez tenha gerado conjuntos psíquicos com
certas especificidades, mas havendo entre eles, como estamos sugerindo, um
denominador comum saído da matriz pré-histórica. Daí o homem ter em todas as
partes do mundo e em todas as épocas, um certo número de características essenciais
na forma de pensar e sentir. A partir de experimentos psicológicos provando que
crianças de poucos meses podem compreender diversas noções, antropólogos
cognitivos questionam a idéia de que os povos diferem na sua maneira essencial de
conceber o tempo, a procriação, a natureza e o sobrenatural. As inegáveis diferenças
entre as culturas são “variantes saìdas de um mesmo processo de aprendizagem, que
é universal”. Existe ampla variedade de comportamentos, fatos culturais, mas deve-
se considerar que eles ocorrem dentro de um leque de possibilidades limitado,
fornecido por uma herança psíquica inconsciente e enraizada. Obviamente, isso não
significa determinismo genético, pois as condições geográficas, culturais e sociais
levam cada grupo humano a lidar de forma própria com aquela herança, que a longo
prazo se transforma. Todavia, a relação entre o mental e o cultural é pouco clara, por
envolver ritmos históricos bastante diferentes. De toda forma, sendo o substrato
emotivo-racional mais estável, não se devem usar qualificativos em relação à
mentalidade de um mesmo conjunto civilizacional e temporal. A nosso ver, é
legítimo falar em mentalidade medieval ou mentalidade chinesa, mas apesar de
muito usada, o que deve ter contribuìdo para a “ambigüidade” desse tipo de história
são imprecisas expressões como “mentalidade fechada” ou “mentalidade religiosa”
(ou política, ou econômica, etc). É mais exato, nesses últimos casos, falar em
manifestações (religiosas, ou políticas, ou econômicas, etc., apesar de tais termos
serem anacrônicos quando empregados em relação à Idade Média) da mentalidade
(ibidem, pp. 92-93).
Por fim, o quarto e último, que é o de ser, a mentalidade, coletiva, ou seja, comum à
raça humana, a todos os indivíduos, independente da época e do local em que estes tenham
vivido. Entretanto, seria possìvel falar em mentalidade da Idade Média” ou em “mentalidade
mediévica”, mas se chegaria a esta por meio dos diversos imaginários medievais; noutras
palavras, das imagens que cada agrupamento social ou que cada classe social faria de si e de
seu universo. Sobre o caráter coletivo da mentalidade, disse Hilário Franco Júnior:
89
Quarto e último traço a assinalar, decorrência dos anteriores: sendo o conjunto de
automatismos, de comportamentos espontâneos, de heranças culturais
profundamente enraizadas, de sentimentos e formas de pensamento comuns a todos
os indivíduos, independentemente de suas condições sociais, políticas, econômicas e
culturais, mentalidade é a instância que abarca a totalidade humana. Os indivíduos,
isto é, os conscientes pessoais, são constituídos por ela, que é coletiva. Mas isso não
significa que a mentalidade seja a somatória das personalidades que compõem uma
dada sociedade (FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 89).
Apesar de tudo o que se acabou de ver, os historiadores relutam em adotar uma
definição universalista da mentalidade por colocarem os processos inconscientes
fora de sua alçada. É expressivo o caso de Jacques Le Goff, que depois de ter
considerado promissora a colaboração da Psicanálise, avaliou como “fraqueza” o
recurso ao instrumental psicológico por parte de Marc Bloch e Lucien Febvre. A
definição grupal de mentalidade é mais aceita, adotada por exemplo por Georges
Duby e Rolf Sprandel. Acompanhou-os Jacques Le Goff, para quem mentalidade é o
que de comum (o que não exclui diferenças) a César e seus soldados, São Luís e
seus componeses, Colombo e seus marinheiros. Michel Vovelle nela a “herança
inconsciente” que deve ser examinada “desde o subsolo até o sótão”, ou seja, nos
diferentes níveis sócio-culturais. Preferindo a postura universalista, Philippe Ariès
pensa que ela é a “totalidade psìquica que se impõe aos contemporâneos sem que
eles o saibam”, é o “inconsciente coletivo”. Tanto a uns quanto a outros, Carlo
Ginzburg critica o caráter interclassista deste tipo de abordagem, propondo substituir
“mentalidade coletiva” – expressão que com razão considera pleonástica por
“cultura popular
134
”, o que é confundir conceitos próximos porém diferentes. No
134
Eis a crítica feita por Carlo Ginzburg, no seu livro O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as idéias de um
moleiro perseguido pela inquisição (op.cit., pp. 30-32), ao caráter interclassista da história das mentalidades,
bem como a sua proposta para o estudo da “cultura popular”, em substituição ao estudo da “mentalidade
coletiva”, termo que ele julgava pleonástico: “A essa altura poder-se-ia perguntar se o que emerge dos
discursos de Menocchio não é mais uma „mentalidade‟ do que uma „cultura‟. Apesar das aparências, não se
trata de uma distinção fútil. O que tem caracterizado os estudos de história das mentalidades é a insistência nos
elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão de mundo. As sobrevivências, os
arcaísmos, a afetividade, a irracionalidade delimitam o campo específico da história das mentalidades,
distinguindo-a com muita clareza de disciplinas paralelas e hoje consolidadas, como a história das idéias ou a
história da cultura (que, no entanto, para alguns estudiosos engloba as duas precedentes). Inscrever o caso de
Menocchio no âmbito exclusivo da história das mentalidades significaria, portanto, colocar em segundo plano
o fortíssimo componente racional (não necessariamente identificável à nossa racionalidade) da sua visão de
mundo. Todavia, o argumento decisivo é outro: a conotação terminantemente interclassista da história das
mentalidades. Esta, como já foi dito, estuda o que têm em comum „César e o último soldado de suas legiões,
São Luís e o camponês que cultivava as suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas‟.
Nesse sentido, na maior parte das vezes, o adjetivo coletiva acrescentado a „mentalidade‟ é pleonástico. Ora,
não queremos negar a legitimidade de investigações desse tipo, porém, o risco de se chegar a extrapolações
indevidas é muito grande. Até mesmo um dos maiores historiadores deste século, Lucien Febvre, caiu numa
armadilha desse gênero. Num livro inexato mas fascinante, tentou, através da investigação sobre um indivíduo
mesmo sendo excepcional como Rabelais , identificar as coordenadas mentais de toda uma era. Enquanto se
trata de demonstrar a inexistência de um presumìvel „ateìsmo‟ em Rabelais, nenhum problema. Entretanto,
quando se adentra o terreno da „mentalidade (ou psicologia) coletiva‟, sustentando que a religião exercia sobre
„os homens do século XVI‟ uma influência, ao mesmo tempo, profunda e opressora, da qual era impossìvel
escapar, como não escapou Rabelais, a argumentação se torna aceitável. Quem eram aqueles mal identificados
„homens do século XVI‟? Humanistas, mercadores, artesãos, camponeses? Graças à noção interclassista de
„mentalidade coletiva‟, os resultados de uma investigação conduzida sobre um pequeno estrato da sociedade
francesa composto por indivíduos cultos são tacitamente ampliados até abarcar completamente um século
inteiro. É o retorno da tradicional história das idéias. Os camponeses, isto é, a grande maioria da população
90
entanto, ele está certo quanto à inviabilidade de se fazer história das mentalidades,
pois o estudioso não pode ter acesso à psicologia coletiva profunda de um período a
não ser através de fragmentos necessariamente classistas, filtrados e expressados
culturalmente. Ou seja, como veremos, através de imaginários, categorias do viver
humano sempre bem ancoradas no presente, ao contrário da mentalidade com seu
ritmo quase inerte, sua presença de longuíssima duração, sua tendência tangencial à
a-historicidade. Se nascimento, reprodução e morte são, como dissemos, dados de
mentalidade, e portanto sempre atuais, por outro lado cada período pensa e
experiência aqueles momentos-chave de formas específicas (ibidem, pp. 90-91).
E se por um lado Hilário Franco Júnior, em seu texto, também concorda com Jacques
Le Goff, quando este confirma as obras literárias como produções do imaginário, por outro
lado discorda, quando Le Goff afirma que tais obras não conseguem trazer à tona os modos de
agir, de pensar e de sentir dos grupos ou das camadas sociais que as produziram e/ou que as
consumiram. O ensaio de Hilário Franco Júnior ainda diverge daquele que foi escrito por
Jacques Le Goff quanto a outras questões. As desarmonias entre os dois textos giram,
basicamente, em torno das diferenças existentes entre imaginário e representação, imaginário
e simbolismo, e imaginário e ideologia. Além disso, Hilário Franco Júnior acusa Jacques Le
Goff de não ter dito, em seu ensaio, qual é e como se a relação entre mentalidade e
imaginário:
Aprofundando as sugestões que Arturo Graf fizera em fins do século XIX, Jacques
Le Goff foi um dos poucos que elaborou uma proposição clara e coerente,
apontando as diferenças e os vários pontos de contato entre imaginário, símbolo e
ideologia, insistindo na especial riqueza das obras literárias e artísticas como
produções do imaginário, apontando seu caráter coletivo, social e histórico
(FRANCO JÚNIOR, 2003, p. 94).
daquela época, são vislumbrados no livro de Febvre para serem apressadamente liquidados como „massa
[...] semi-selvagem vítima das supertições‟, enquanto a afirmação de que era impossìvel, naquele tempo,
formular uma posição irreligiosa conseqüente em termos críticos traduz-se em outra bastante previsível de
que o século XVII não era o século XVI e Descartes não era contemporâneo de Rabelais. Apesar destes
limites, o modo como Febvre consegue separar os múltiplos fios que ligam um indivíduo a um ambiente, a
uma sociedade, historicamente determinados, permanece exemplar. Os instrumentos que usou para analisar a
religião de Rabelais podem servir também para analisar a religião, tão diversa, de Menocchio. Em todo caso, a
essa altura deve estar claro por que à expressão „mentalidade coletiva‟ seja preferìvel a também pouco
satisfatória expressão „cultura popular‟. Uma análise de classes é sempre melhor que uma interclassista”.
91
Contudo, não acompanhamos inteiramente as considerações do grande historiador
em razão de cinco pontos. O primeiro, quando afirma que o imaginário faz parte do
campo da representação mas não deve ser confundido com ele, pois é criativo e
ultrapassa o caráter intelectual da representação. Ora, toda representação é imagem e
toda imagem é representação, intelectual ou afetiva, portanto não pode ser entendida
como “tradução mental de uma realidade exterior”, já que muitas representações são
de objetos internos ao sujeito o caso, para lembrar apenas temas estudados pelo
próprio Le Goff, do Purgatório, dos sonhos e do tempo). O segundo ponto, quando
distingue o simbolismo do imaginário, o que nos parece correto, mas sem aprontar a
articulação essencial entre eles: aquele é a linguagem constitutiva deste. O terceiro
ponto, quando propõe distinguir as ideologias, “puramente intelectuais”, do
imaginário composto de imagens, como se os procedimentos intelectuais não
trabalhassem também com imagens (mesmo que freqüentemente verbais) e como se
as ideologias não fossem imagens idealizadas que a sociedade, ou parte dela, projeta
sobre si mesma. O quarto ponto, quando afirma que os documentos privilegiados
para a história do imaginário, as obras literárias e artìsticas, não podem “fornecer
informações sobre aquilo para o que não foram feitas”. Acreditamos, ao contrário,
que além dos objetivos intencionais de seus autores/compiladores, estas obras
podem revelar muito do sistema de valores e das formas inconscientes de sentir e
agir da sociedade que as produziu e consumiu. O quinto ponto, quando não explica
qual é e como se a relação entre mentalidade e imaginário, o que na verdade
sugerira anteriormente em uma entrevista, ao afirmar que o imaginário “encontra-se
com muita freqüência na raiz das motivações históricas, e revela em profundidade as
estruturas e as mentalidades de uma época.” (ibidem, pp. 94-95).
Talvez tentando preencher as lacunas deixadas por Le Goff, em seu texto, Hilário
Franco Júnior, no seu ensaio, trata da relação entre mentalidade e imaginário. Para o
historiador brasileiro, os termos imaginário e mentalidade não são sinônimos, de modo que
um não tem como tomar o lugar do outro. No entanto, eles se complementam: mentalidade
seria o complexo de emoções e de pensamentos analógicos existentes no Homem desde os
tempos mais remotos; imaginário, por sua vez, seria a decodificação
135
e a representação
cultural dessas emoções e/ou desses pensamentos analógicos. Aquela, invariável, com o
passar do tempo (intemporal), universal, ou seja, comum a toda a humanidade, e abstrata;
este, variável (temporal), limitado, noutras palavras, válido apenas para um determinado
grupo ou camada social de uma civilização duma certa época, ou então válido apenas para um
dado período histórico, e concreto, porque pautado naquilo que se pode ver (objetos,
comportamentos observáveis). Hilário Franco Júnior também fala na possibilidade de se
135
O orientador desta dissertação, Prof. Dr. Roberto Pontes, certamente teria optado pelo vocábulo
“descodificação”.
92
chegar à mentalidade por meio dos imaginários, como se estes fossem partes daquela, o todo.
Entretanto, ele chama a atenção para a impossibilidade de se apreender a mentalidade humana
na sua forma mais pura, mais verdadeira: seria possível apenas chegar a uma imagem (e o
historiador utiliza mesmo, em seu trabalho, a metáfora do espelho) defeituosa, deformada, da
mentalidade, via imaginários. Por fim, Hilário Franco Júnior tece considerações sobre o
caráter impessoal da mentalidade, pelo fato de ela não dizer respeito a nenhum grupo em
particular, mas a toda a humanidade; e sobre o caráter social do imaginário, por este despertar
consciência social nos indivíduos que participam de um determinado agrupamento social, de
modo a lhes dar uma sensação de pertença não somente ao momento histórico do qual fazem
parte, mas à História como um todo:
Enfim, acreditamos que imaginário não recobre as noções de mentalidade e de
representação, complementando-as, articulando-se estreitamente com elas. Se
mentalidade é o complexo de emoções e pensamento analógico (estruturas arcaicas
sempre presentes no cérebro), imaginário é a decodificação e representação cultural
(portanto historicamente variável) daquele complexo (FRANCO JÚNIOR, 2003, p.
95).
Entendendo imaginário como tradução histórica e segmentada do intemporal e
universal, vamos partir de uma formulação geral que a seguir procuraremos
justificar: imaginário é um sistema de imagens que exerce função catártica e
construtora de identidade coletiva ao aflorar e historicizar sentimentos profundos do
substrato psicológico de longuíssima duração (ibidem, pp. 95-96).
Mais do que isso, apesar das especificidades das imagens construídas e consumidas
pelo homem medieval (ou antigo, ou moderno, ou ocidental, ou oriental), é possível,
através delas, visualizar algo do homem intemporal. Toda imagem é uma forma
elaborada culturalmente com material pré-existente àquela cultura, embora as
sucessivas e diferentes moldagens ao longo de milênios acabem por provocar
alterações no próprio material. Dito de outra maneira, é a partir do imaginário que se
pode pretender alcançar a mentalidade, mesmo sabendo que a filtragem impede o
contato direto (ibidem, p. 97).
ninguém pode apreender a mentalidade, somente suas emanações, os imaginários. O
imaginário é espelho da mentalidade: revela mas deforma (idem).
93
Todo imaginário é um sistema, não mera acumulação de suas imagens [...]. Apenas
em conexão com outras, cumprindo seu papel de instituidoras de discursos, de
sistemas semiológicos, é que as imagens exteriorizadas sob forma verbal, plástica
ou sonora ganham sentido e, conscientemente ou não, expressam determinadas
cosmovisões [...]. Em outros termos, toda imagem nasce de um imaginário e o
realimenta (ibidem, p. 100, passim).
Mas como nenhum imaginário é emergência direta da mentalidade, pois passa pelo
filtro cultural do grupo cujos valores exprime, a porção de pensamento analógico
nele contida varia conforme a época e o segmento social considerado (ibidem, p.
102).
Enquanto a mentalidade, grande denominador comum psicológico da espécie
humana, não personaliza nem indivíduos nem grupos, os imaginários, formas
próprias de os homens verem o mundo e a si mesmos, criam elos, geram e mantêm
grupos, despertam consciência social. Ao expressar valores coletivos, os imaginários
dão ao homem a sensação de pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer
parte de uma história (ibidem, pp. 195-106).
De fato, os imaginários nascem, vivem e morrem através de seus contatos e
contrastes com outros do mesmo espaço cultural (ibidem, p. 106).
sendo um sistema, todo imaginário tem uma dinâmica, um ritmo próprio de
transformação, mais acelerado, mais histórico, do que a estabilidade geológica da
mentalidade (ibidem, pp. 109-110).
Dito de outra forma, imaginários são significantes que alteram os significados
(mentalidade), dando um ritmo histórico, ainda que muito lento, a estes últimos. O
imaginário é a única forma de a realidade interna tornar-se objetiva (nunca se sabe
como as coisas são em si, apenas como são vistas), o que por sua vez leva à
transformação dela (ibidem, p. 110).
Em suma, os sentimentos de qualquer imaginário não são específicos dele, e sim
expressões de uma sensibilidade que o ultrapassa, que é anterior a ele, mas
manifestada de acordo com a escala de valores vigente (ibidem, p. 113).
Logo, a concretude e a delimitação dos imaginários torna mais factível estudá-los do
que a abstração da mentalidade, pois invertendo a idéia de Jacques Le Goff tudo
é fonte para o historiador dos imaginários. Se a finalidade do conhecimento não é
descobrir o segredo do mundo, e sim dialogar com o mistério do mundo, como
pensa Edgar Morin, a história da mentalidade e dos imaginários necessariamente
multidisciplinar, como vimos é o campo privilegiado para esse diálogo. Diálogo
entre, se assim podemos dizer, um personagem oculto e outro visível, com as falas e
os gestos deste permitindo ao estudioso inferir os daquele. alcançamos as
emoções que caracterizam o primeiro graças às imagens delas veiculadas pelo
segundo, a tendência analógica de um pela sistematização dessa tendência feita pelo
outro, a estabilidade daquele pela catarse possibilitada por este, a totalidade de um
pela dinâmica própria ao outro. E como todo diálogo é ação de mão dupla,
94
percebemos que, embora de forma muito lenta, as imagens afetam as emoções, o
sistema imagético e a produção de analogias, a catarse a estabilidade, a dinâmica a
totalidade (ibidem, p. 115).
Outro termo bastante recorrente nas pesquisas dos integrantes da Escola dos Anais é
ideologia. Aliás, este é mesmo indissociável de mentalidade e de imaginário, que foram
conceituados e caracterizados pouco. Para Georges Duby (apud BURKE, 1997) e Hilário
Franco Júnior, a ideologia possui um caráter político e é voltada para a prática: trata-se da
visão de mundo que um determinado grupo ou camada social tenta impor, muitas vezes por
meio do poder que detém, a uma determinada sociedade, com vista a dominá-la. Para Hilário
Franco Jr., toda ideologia, por seu caráter projetivo, é utópica:
Latente na “mentalidade” da época, esse sistema intelectual foi concretizado como
ideologia com finalidades políticas. Ideologia, observa Duby, não é um reflexo
passivo da sociedade, mas um projeto para agir sobre ela (Duby, 1978) (BURKE,
1997, p. 87).
cada ideologia é manifestação sistematizada da visão de mundo de um dado grupo
social. Apesar de possuírem discursos, meios de ação e identificações sociológicas
diferenciadas, todas elas apontam para um mesmo alvo, por partirem da
sedimentação comum da mentalidade. Devido a seu caráter projetivo, toda ideologia
é utópica (FRANCO JR., 2003, p. 112).
A École des Annales também introduziu, no cenário dos estudos historiográficos, novas
formas de abordagem (novos métodos, portanto) do fato histórico. Não substituiu a
narrativa linear dos acontecimentos pela “história-problema”, como já foi visto, como também
trabalhou, amplamente, com a “história comparativa”, com a “história da longa-duração” e
com o método regressivo. Os participantes da Escola dos Annales nunca estudavam uma
civilização ou um período histórico isoladamente. Na busca constante de respostas para um
95
determinado problema, eles sempre comparavam uma dada sociedade ou uma certa época
com outras que lhes estivessem próximas ou mesmo distantes, no espaço e/ou no tempo. Com
a “história da longa-duração”, procuravam, por exemplo, mostrar as influências culturais que
um determinado período histórico legou a outro, justamente ao que lhe era imediatamente
posterior, em termos temporais. O método regressivo, por sua vez, buscava, sempre no
passado, fosse este próximo ou longínquo, soluções para problemas encontrados no âmbito de
uma civilização ou, simplesmente, as origens de determinados fenômenos que poderiam ser
encontrados numa sociedade. Sobre a “história comparativa”, sobre a “história da longa-
duração” e sobre o método regressivo assim se pronunciaram Febvre (apud TÉTART, 2000) e
Burke:
Um terceiro aspecto que enfatiza a importância do estudo de Bloch é o que seu autor
chama de “história comparativa”. Algumas comparações são feitas com sociedades
distantes da Europa como a Polinésia, embora sejam feitas de passagem e com
extrema cautela: (“não transfiramos os Antìpodas para Paris ou Londres”) (Bloch,
1924, pp. 52ss, 421n.). A comparação entre a França e a Inglaterra, porém, é central
no livro, os dois únicos países em que o toque real era praticado. Acrescente-se,
porém, que a comparação é feita de maneira a permitir a constatação das diferenças.
Em resumo, Bloch utilizava, em 1924, o que iria pregar quatro anos mais tarde
num artigo chamado “Por uma história comparativa das sociedades européias”. Nele
o autor defende o que chama de “uso mais competente e mais geral” do método
comparativo, distinguindo o estudo das similaridades entre sociedades do estudo das
suas diferenças, e o estudo das sociedades vizinhas no tempo e no espaço do das
sociedades distantes entre si, recomendando, porém, que os historiadores
praticassem “ambas as perspectivas” (BURKE, 1997, p. 30-31).
A outra grande evolução foi afirmar “que entre o passado e o presente” não
“separação estanque” (FEBVRE, 1932, apud TÉTART, 2000, p. 113).
Les Rois Taumaturges foi notável em pelo menos três outros aspectos. Primeiro,
porque não se limitava a um período histórico convencional, a Idade Média.
Seguindo o conselho que mais tarde formularia em termos gerais em seu Métier
d‟historien, Bloch escolheu o período para localizar o problema, o que significava
que tinha de escrever “a história da longa-duração”, como foi chamada por Braudel
uma geração depois. Tal perspectiva conduziu Bloch a conclusões interessantes;
uma das mais importantes foi a de constatar que o ritual do toque não apenas
sobreviveu no século XVII, a época de Descartes e de Luís XIV, mas nele floresceu
como jamais, pelo menos no sentido de que Luís XIV tocou um número maior de
doentes do que seus predecessores. Não era, pois, um mero “fóssil” (BURKE, 1997,
p. 29).
96
Les caractères originaux de l‟histoire rurale française é mais famoso, talvez, pela
aplicação do “método regressivo”. Bloch encarecia a necessidade de ler a “história
ao inverso”, pois conhecemos mais a respeito dos últimos perìodos e deve proceder-
se de maneira a ir do conhecido ao desconhecido (Idem, p. xii). Bloch trabalha de
maneira eficiente o método, contudo não reclama sua criação. Sob o nome de
“método retrogressivo” havia sido empregado por F. W. Maitland um estudioso
admirado por Bloch em sua obra clássica Domesday Book and Beyond (1897); o
“além” do tìtulo refere-se ao período anterior à realização do Domesday Book, em
1086 (ibidem, p. 35).
Em outras palavras, Bloch não criou o novo método. Sua tarefa foi empregá-lo de
uma maneira mais consciente e sistemática do que os seus predecessores (ibidem, p.
36).
Enfim, por seu caráter interdisciplinar, por ter ampliado enormemente as fontes
históricas para os pesquisadores e por ter utilizado novos métodos historiográficos no estudo
dos acontecimentos históricos, a Escola dos Anais foi mesmo a principal responsável pelo
advento da Nova História, que, de acordo com Philippe Tétart, procurou realizar uma História
“total”. Para finalizar este subcapìtulo, eis o que escreveu Tétart, em seu livro Pequena
História dos historiadores
136
, sobre a herança deixada pela École des Annales para a Nouvelle
Histoire e sobre as propostas desta para a renovação da História, enquanto ciência:
Posta em órbita com Faire de l‟histoire (Le Goff, Nora, 1974), oficializada com o
lançamento da obra coletiva La Nouvelle Histoire (1978), a gestação da nova
corrente remonta aos anos 1960. Saìda da filiação dos “Annales” à École Pratique
des Hautes Études, essa corrente, constituída majoritariamente de medievistas e de
modernistas, deve muito a Braudel, sucessor de Febvre, mas também a Georges
Duby, Robert Mandrou, notadamente, iniciadores e em seguida atores. Tira
igualmente sua identidade da marca de geração marxista (Nora, Furet, Le Roy
Ladurie, Richet, etc. são militantes ou “companheiros de estrada” comunistas nos
anos 1950) e da influência de um campo das ciências sociais ampliado e
empreendedor (sociologia, etnologia, antropologia sobretudo, e até a psicanálise)
(TÉTART, 2000, p. 119).
136
Op. cit.
97
Jacques Le Goff precisa ainda que esta história nova será a história das “estruturas
globalizantes” e da “longa duração”. Outro ponto capital: ela deverá interessar-se
pela história do imaginário, porque se trata de uma “realidade histórica”, às vezes de
seu centro. Na linha das intuições de Febvre em 1933, ele sublinha seu “desejo
insaciável de ampliar o horizonte do pensamento humano”. Assim, pressupõe a
acepção dinâmica de um encontro fecundo entre todas as ciências do homem.
Através da fundação de uma “antropologia histórica”, prossegue ele, o historiador
poderá se desfazer das “seduções da maiúscula – a história com H maiúsculo”.
Voltar-se-á para a “vivência dos homens” e fundará uma história total e coerente,
capaz de apreender os grandes espaços e as grandes massas históricas (ibidem, p.
121).
1.3 Dos conceitos de dominante, residual, arcaico e emergente
A definição de residual, termo que mais diretamente interessa a esta pesquisa, foi
elaborada pelo crítico literário Raymond Williams, em seu livro Marxismo e Literatura
137
.
Seu objetivo, ao cunhar esse termo, foi o de mostrar que, numa sociedade de uma determinada
época, existem, além dos elementos culturais e dos fenômenos sociais dominantes, que são
aqueles que melhor caracterizam um período histórico e que, na maioria das vezes, são
produzidos no âmbito das classes detentoras de poder, fenômenos sociais e/ou elementos
culturais que foram gestados no passado e que, de alguma forma e/ou por algum motivo,
vieram à tona em um momento histórico ulterior ou se arrastaram por vários períodos
históricos posteriores ao da sua origem. Williams, no seu livro supracitado, dá a esses
elementos culturais e/ou a esses fenômenos sociais os nomes residual ou arcaico. Vale
salientar que ele admite, no começo do seu texto, a dificuldade de se distinguir, na prática,
um do outro:
137
Op. cit.
98
Qualquer cultura inclui elementos disponíveis do seu passado, mas seu lugar no
processo cultural contemporâneo é profundamente variável (WILLIAMS, 1979, p.
125).
Por “residual” quero dizer alguma coisa diferente do “arcaico”, embora na prática
seja difícil, com freqüência, distingui-los (idem).
Para Raymond Williams, o arcaico seria todo e qualquer elemento cultural ou
fenômeno social capaz de ser identificado como algo do passado, mas que estaria sendo
revivido, por alguma razão, de forma consciente, por um determinado agrupamento social:
Eu chamaria de “arcaico” aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento
do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, ocasionalmente, a ser
“revivido” de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante
(WILLIAMS, 1979, p. 125).
O residual, por sua vez, seria tudo aquilo formado no passado, mas passível de ser
constantemente retomado, de forma inconsciente, por indivíduos de um grupo ou camada
social, de modo a ser tido como algo próprio mesmo das épocas posteriores ao seu
surgimento:
O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo
no processo cultural, não como um elemento do passado, mas como um elemento
efetivo do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se
podem expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante,
ainda são vividos e praticados à base do resíduo cultural bem como social de
uma instituição ou formação social e cultural anterior (WILIAMS, 1979, p. 125).
99
Williams chama a atenção, ainda, para o fato de o residual poder ser incorporado, total
ou parcialmente, sem qualquer conflito, à cultura dominante de uma determinada civilização
de um dado período histórico; ou então, para o contrário: de manter, o residual, com essa
cultura dominante, uma relação alternativa ou mesmo oposta, ou seja, conflituosa:
É importante distinguir esse aspecto do residual, que pode ter uma relação
alternativa ou mesmo oposta com a cultura dominante, daquela manifestação ativa
do residual (distinguindo-se este do arcaico) que foi incorporada, em grande parte ou
totalmente, pela cultura dominante (WILLIAMS, 1979, p. 125).
Um elemento cultural residual fica, habitualmente, a certa distância da cultura
dominante efetiva, mas certa parte dele, certa versão dele em especial se o resíduo
vem de alguma área importante do passado terá, na maioria dos casos, sido
incorporada para que a cultura dominante tenha sentido nessas áreas (ibidem, p.
126).
Além disso, em certos pontos, a cultura dominante não pode permitir demasiada
experiência e práticas residuais fora de si mesma, pelo menos sem um risco. É pela
incorporação daquilo que é ativamente residual pela reinterpretação, diluição,
projeção e inclusão e exclusão discriminativas que o trabalho de tradição seletiva
se faz especialmente evidente (idem).
Pelas seguintes palavras do crítico galês é possível depreender que o arcaico, com o
passar do tempo, pode dar lugar ao residual, ou seja, algo que foi incorporado a uma
civilização conscientemente, por parte de um determinado grupo ou de uma certa camada
social, pode ser utilizado, pelas futuras gerações dessa sociedade, de forma inconsciente:
Na monarquia, não praticamente nada que seja ativamente residual (alternativo
ou opcional), mas com pesado e deliberado uso adicional do arcaico, uma função
residual foi totalmente incorporada com função política e cultural específica
marcando os limites, bem como os métodos de uma forma de democracia
capitalista (WILLIAMS, 1979, p. 126).
100
Porém, nem tudo, numa civilização, provém do passado. Raymond Williams acredita
que, a todo momento, são criados novos elementos culturais, novas práticas, novas relações e
novos tipos de relações sociais, da mesma forma como são atribuídos novos significados e
novos valores a elementos culturais e a fenômenos sociais considerados antigos. O crítico
marxista deu o nome de emergente a esse novo fenômeno social ou a esse novo elemento
cultural produzido, majoritariamente, no seio dos grupos ou das camadas dominantes de uma
certa civilização dum dado momento. E se, conforme falou Williams, é difícil diferençar o
arcaico do residual, também não constitui tarefa das mais fáceis distinguir o residual do
emergente ou algo rigorosamente novo daquilo que somente ganhou uma nova significação
ou um novo valor, com o passar do tempo. Para finalizar o presente subcapítulo, eis a
definição de emergente dada por Raymond Williams, bem como as palavras desse crítico
literário sobre a dificuldade de se diferenciar residual de emergente ou algo realmente novo
daquilo que teve o seu valor ou o seu significado modificado, tempos depois de sua
origem:
Por “emergente” entendo, primeiro, que novos significados e valores, novas práticas,
novas relações e tipos de relação estão sendo continuamente criados. Mas é
excepcionalmente difícil distinguir entre os que são elementos de alguma fase nova
da cultura dominante (e nesse sentido “especìfico da espécie”) e os que lhe são
substancialmente alternativos ou opostos: emergente no sentido rigoroso, e não
simplesmente novo. Como estamos sempre considerando relações dentro de
processo cultural, as definições do emergente, bem como do residual, podem ser
feitas em relação com um sentido pleno do dominante. Ainda assim, a localização
social do residual é sempre mais fácil de compreender, que grande parte dele
(embora não toda) se relaciona com formações sociais anteriores e fases do processo
cultural, nas quais certos significados e valores reais foram gerados. Na subseqüente
omissão de uma determinada fase de uma cultura dominante então um retorno
aos significados e valores criados nas sociedades e nas situações reais do passado, e
que ainda parecem ter significação, porque representam áreas da experiência,
aspiração e realização humanas que a cultura dominante negligencia, subvaloriza,
opõe, reprime ou nem mesmo pode reconhecer (WILLIAMS, 1979, p. 126-127).
101
Nesse processo complexo realmente uma confusão constante entre o localmente
residual (como uma forma de resistência à incorporação) e o geralmente emergente
(ibidem, p. 128).
Não obstante, em nosso próprio período como em outros, o fato da prática cultural
emergente é ainda inegável, e juntamente com o fato a prática residual, uma
complicação necessária da pretensa cultura dominante (ibidem, p. 129).
1.4 Dos conceitos de Residualidade, resíduo, hibridação cultural e cristalização
Com base em conceitos vistos nos subcapítulos anteriores, mormente os de
mentalidade, imaginário e residual, bem como noutros conceitos, que serão apresentados
ainda neste subcapítulo, como o de hibridismo cultural e o de cristalização, Roberto Pontes,
poeta, crítico e ensaísta, professor do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC), elaborou a Teoria da Residualidade.
Com essa teoria, quis Roberto Pontes, primeiramente, mostrar (sobretudo na Literatura)
que certos aspectos comportamentais e culturais “vivos” e tidos como pertencentes a um dado
momento histórico são, na verdade, traços característicos duma era passada, que foram
retomados, por uma pessoa ou por um determinado grupo, de forma consciente ou
inconsciente.
Em seguida, articulando diversos conceitos, Roberto Pontes procurou explicar como
certos modos de agir, de pensar e de sentir dum determinado conjunto de indivíduos foram
parar noutro(s) grupo(s) social(is), tempos depois. Para tanto, ele não tomou emprestado
idéias e termos de pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento humano (como a
História, a Antropologia, a Literatura e até mesmo a Química) como também (re)trabalhou
esses termos, de modo a criar os seus próprios, para aclimatá-los à realidade brasileira. Assim
102
se referiu Roberto Pontes ao seu trabalho de organizador de idéias afins (praticamente todas
elas girando em torno da cultura) que se encontravam separadas, porque utilizadas por
diferentes agremiações de intelectuais europeus, bem como à necessidade de uma teoria
brasileira que procurasse explicar, sob o viés da herança, da influência cultural e da
interpenetração de culturas, determinados fenômenos literários e culturais:
Observei apenas algumas palavras que foram ditas sobre determinadas realidades.
Estas palavras foram aproveitadas e colocadas dentro de um campo de análise e
prova. Isto vem a ser o que chamam sistematização. A sistematização é que termina
resultando na teorização (PONTES, 2006, pp. 09-10).
Mas a sistematização da teoria da residualidade, com aplicação na cultura e na
literatura, esta, sim, é original e vem a ser um marco de pensamento teórico
independente, gerado no seio da Unidade de Literatura Portuguesa do Departamento
de Literatura da Universidade Federal do Ceará, fruto de um esforço investigativo
conjunto de professores-doutores, alunos de graduação e pós-graduação, monitores,
e alunos-bolsistas PIBIC-UFC-CNPq-FUNCAP (PONTES, s/d, p. 01).
Façamos agora um raciocínio analógico: o grande mérito de compreender, classificar
e analisar a cultura e a literatura como resíduo vem a ser o de delimitar um espaço
próprio de investigação, procedimento metodológico contraposto visceralmente ao
dos demais investigadores acadêmicos brasileiros, quase sempre rendidos a teorias e
práticas colhidas na França, Alemanha, Inglaterra, Rússia, nos Estados Unidos da
América do Norte e noutras paragens. Com esta nova postura teórico-crítica abre-se
um fosso abissal entre o conhecimento apoiado em base exógena para compreender
e analisar o que somos, como somos e o que podemos ser, e o assente em base
endógena, cuja capacidade interpretativa é muito mais vantajosa e apropriada ao
exame do mesmo objeto (ibidem, p. 02).
Dentre os conceitos utilizados por Roberto Pontes na elaboração de sua teoria estão,
como foi dito no início deste subcapítulo, os de mentalidade e imaginário, formulados pela
École des Annales, ao longo de cadas, como se viu no subcapítulo 1.2, e o de residual,
proposto por Raymond Williams, crítico literário de orientação marxista. Além desses três,
tidos por Pontes como aqueles que primeiro o despertaram para a elaboração da Teoria da
Residualidade, existem outros dois, não necessariamente menos importantes que os já citados,
103
uma vez que todos se complementam, ou seja, visto que um não existe sem o outro: o de
hibridismo cultural, pensado por Peter Burke em livro homônimo, e o de cristalização, da
forma como deste falou o quìmico James D. Dana, no capìtulo “Cristalografia” de seu Manual
de Mineralogia.
O residual, de Williams, deu lugar, na teoria de Roberto Pontes, ao termo resíduo; o
termo hibridismo cultural, de Burke, passou à hibridação cultural, na Teoria da
Residualidade; já a cristalização saiu da Química para explicar determinados fenômenos
culturais ou literários. Em suma, Pontes não se limitou a “costurar” conceitos de diversas
áreas ou de diversas correntes de pensamento, mas procurou mesmo repensá-los, antes de os
colocar à disposição de seus alunos-pesquisadores e da comunidade acadêmica em geral. O
que à primeira vista pode parecer uma simples mudança de nomenclatura de termos, por
exemplo, na verdade traz, em si, uma demorada reflexão quanto ao vocábulo que melhor
explica determinado processo. Essa escolha da melhor palavra
138
certamente advém do fato de
ser também, antes de qualquer coisa e acima de tudo, poeta, o teórico em questão. Assim,
Roberto Pontes deve ter preferido o termo hibridação, ao invés de hibridismo, pelo fato de o
sufixo do primeiro vocábulo transmitir melhor a idéia de ação, de dinamismo, de algo em
138
Exemplo disso foi o fato de Roberto Pontes ter preferido o termo afrobrasiluso, por ele cunhado, à expressão
luso-afro-brasileiro, que, na sua concepção, transmite a idéia (errônea), por conta da utilização de hífens na
sua composição (por aglutinação), de culturas separadas, ou seja, de culturas que não mantêm contato entre si:
O sintagma literatura afrobrasilusa tem vantagens incontestáveis sobre as denominações antes questionadas e
outras ainda de uso corrente, pois seu segundo termo se compõe por aglutinação, com a perda do limite
vocabular entre duas formas que se reúnem por composição ou por derivação e assim passam a constituir um
único vocábulo fonético‟, tal e qual nos ensina J. Mattoso Camara Jr. O mesmo autor nos diz que a
justaposição reúne duas formas lingüísticas num vocábulo mórfico, quando, ao contrário da aglutinação, cada
forma se conserva como um vocábulo fonético distinto em virtude da pauta acentual; ex.: pré-histórico, [...]
guarda-chuva. [...] Também nomes adjetivos, compostos por justaposição [...] como a associação de dois
nomes gentílicos (luso-brasileiro)‟. A pragmática da justaposição é, pois, manter separados os elementos do
lexema; já a da aglutinação é, como vimos, nominar algo que se fundiu definitivamente, a não ser que
coloquemos em dúvida o saber de J. Mattoso Câmara Jr. (PONTES, 1999, pp. 165-166) e De modo que, em
afrobrasilusa, deve vir em primeiro lugar o elemento morfológico que sugere a idéia de mais remoto
historicamente; o segundo deve ser o que patrocina a idéia de liame, de ponte, e este só pode ser o referente ao
Brasil, pois é neste país que a fusão das etnias se aperfeiçoa, visando a integração e o entendimento mútuo; a
Portugal cabe o fecho fonológico-ortográfico deste neologismo porque, em qualquer ritual, são lugares de
honra sempre o primeiro e o último, os quais cabem aqui, respectivamente, aos africanos, que hoje
reinventaram a Língua Portuguesa, e aos lusitanos, que a modelaram a partir do Lácio. A nós, brasileiros, cabe-
nos a alegria de desempenhar a função de elo aglutinante nesta palavra sonora e bela que muito bem exprime a
realidade nova de uma literatura afrobrasilusa” (ibidem, pp. 166-167).
104
constante mudança, em andamento, em processo, como de fato acontece com as culturas, a
todo momento; ao passo que o segundo vocábulo transmite apenas uma idéia de doutrina, de
uma teoria ou de um pensamento capaz de explicar como ocorre determinado fenômeno.
O conceito de cristalização, na Teoria da Residualidade, também foi retrabalhado.
Como suas origens remontam aos estudos dos cristais, ou seja, à Química, então ele não
tem o significado que Peter Burke atribuiu-lhe em seu livro Hibridismo Cultural
139
,
comumente utilizado nas Ciências Sociais, ou seja, o de ser um período em que, após
determinadas trocas culturais, tudo “vira rotina e se torna resistente
140
a mudanças
posteriores” (BURKE, 2006, p. 114). O termo cristalização, da forma como foi pensado por
Pontes, relaciona-se ao refino de um elemento cultural, como acontece ao melaço de cana ao
se transformar em açúcar, ou então à simples transformação de um elemento cultural em
outro.
Ainda no âmbito das mudanças operadas por Roberto Pontes sobre os termos por ele
utilizados na construção de sua teoria, não há como esquecer o descarte que o teórico cearense
realizou do caráter inconsciente do residual, de Raymond William; de modo a considerar
como resíduo tudo aquilo que remanesce do passado, independente de ter sido retomado de
forma consciente ou inconsciente por parte de um indivíduo ou de um grupo ou camada
social. Acontece que Pontes, como muitos antropólogos contemporâneos
141
, sabe das
dificuldades de se provar a (in)consciência de um ato praticado por um indivíduo ou por um
agrupamento social.
Apenas as idéias em torno de mentalidade/imaginário, da Escola dos Anais, parecem ter
permanecido intactas na Teoria da Residualidade, conforme se pode depreender a partir das
palavras de Roberto Pontes sobre esse conceito. Agora, as palavras deste quanto aos lindes
139
Op. cit.
140
Daí a idéia do cristal, ou seja, de algo duro, difícil de romper.
141
François Laplantine, por exemplo.
105
disciplinares da Teoria da Residualidade. Depois, os conceitos de resíduo e de mentalidade
142
por ele formulados, para mostrar o quanto sua teoria está consoante com as idéias da Escola
dos Annales e com os pensamentos de Raymond Williams.
Ora, ao Norte da teoria da residualidade se situa a História, mormente a “Nouvelle
Histoire” surgida com a “École des Annales” e, mais especificamente, a História das
Mentalidades. A princípio é mister esclarecer que quem reconheça a importância
da História das Mentalidades e quem se oponha frontalmente a este constructo
teórico. Da nossa parte, reconhecemos a validade deste ramo recente e particular da
História, bem como compreendemos ser o conceito de mentalidade bem mais
extenso do que podemos imaginar. Por isso, cumpre não aos historiadores, mas a
quem se dispuser a trabalhar com os resíduos mentais objetivamente expressos na
cultura, ir mais longe, como sugeriu Jacques Le Goff, “ao encontro de outras
ciências humanas” (PONTES, s/d, p. 03-04).
Ao Sul, a teoria da residualidade confina com a Sociologia e a Antropologia,
sobretudo com o vigoroso pensamento de Raymond Williams, ex-professor nas
universidades de Oxford e Cambridge. Williams foi o único a dedicar, antes de nós,
duas páginas a respeito da residualidade. Suas observações se acham num capítulo
de Marxismo e Literatura. Além deste livro, importante se faz a leitura de outro, do
mesmo autor, intitulado Cultura. Antes de Williams já estava nesta mesma área de
lindagem o sociólogo brasileiro Guerreiro Ramos, em cuja obra fomos encontrar
pela primeira vez o “insight” da residualidade. Seu livro Introdução à cultura nos
revelou estar a visão de mundo de uma época muito bem posta em determinadas
obras literárias, de modo que estas são expressões de mentalidade epocal; do mesmo
modo nos convenceu ser a obra considerada erudita não mais do que o refinamento,
isto é, a cristalização do substrato inventivo popular (ibidem, p. 04).
Ao Leste, temos a investigação da Geologia, em cruzamento com a da Estética e da
Fenomenologia de Gaston Bachelard. Isto ocorreu porque ao elegermos o conceito
de cristalização verificamos que a Mineralogia dispunha de um repertório teórico
sólido respeitante aos cristais, de modo a nos oferecer o mínimo de informações
necessárias à construção do conceito de cristalização no reino da cultura. Daí
indicarmos sempre aos nossos pesquisadores a leitura do capìtulo “Cristalografia”
do Manual de mineralogia de James D. Dana (ibidem, p. 05).
A Oeste temos por confinantes eruditos do quilate de Fustel de Coulanges, autor de
A cidade antiga, uma das obras mais notáveis de interpretação do mundo greco-
romano. A leitura das páginas ora indicadas, daquele que foi considerado pela
melhor crítica o maior historiador francês do século XIX, é capital para a
142
O conceito de mentalidade de Roberto Pontes, como se verá, aproxima-se daquele que foi utilizado pelos
integrantes da École des Annales num primeiro momento, antes que Georges Duby e Jacques Le Goff
tivessem-no mudado para imaginário. No entanto, a idéia de se trabalhar com os modos de agir, de pensar e de
sentir de um determinado agrupamento social duma certa época, a partir da Literatura, que foi uma das
propostas da Escola dos Anais para a construção de uma Nova História, como se viu, encontra-se também
presente no discurso de Roberto Pontes.
106
compreensão da remanescência de mentalidade no processo civilizatório. A seu lado
temos Ernst Robert Curtius, erudito alemão autor de um monumento ensaístico
intitulado Literatura européia e Idade Média latina, livro que nos permite
compreender a dinâmica da transmissão formal em arte, dos povos antigos aos
contemporâneos. Três eruditos brasileiros somam-se aos dois antes citados. O
primeiro é Segismundo Spina, professor emérito da USP, autor de quatro livros mais
do que imprescindíveis à verificação da residualidade poética em nossa literatura de
Língua Portuguesa. O segundo é Ariano Suassuna, autor da melhor introdução à
Estética produzida entre nós e de outros trabalhos em que solidifica a concepção
da arte armorial, hoje bem compreendida, a qual mantém pontos de convergência
com a teoria da residualidade. O terceiro é Darcy Ribeiro, o antropólogo que nos
deu, talvez, a melhor compreensão da nossa nação em seu livro O povo brasileiro.
Neste mesmo lado, trabalhando a hibridação cultural, temos Nestor Garcia Canclini,
com excelentes aportes que se achegam à teoria da residualidade nas páginas de
Culturas híbridas. E ao contributo deste pesquisador vem somar-se o de Massimo
Canevacci, na mesma matéria. Ambos têm perspectiva própria para tratar de fatos
específicos mas convergem em suas considerações gerais para o universo por nós
estudado sob o mesmo conceito hibridação cultural (ibidem, pp. 06-07).
Sobre mentalidade/imaginário, disse Pontes:
Trabalhamos a mentalidade a partir de umas leituras vistas no nosso doutorado de
Literatura Portuguesa da PUC-Rio, quando estudamos a História Nova, ou a
Nouvelle Histoire eis como se chama o grupo de historiadores que, a partir da
década de 50 e a partir, também, dos estudos da École des Annales, começaram a
renovar o estudo da História, na França (PONTES, 2006, p. 10).
Está em Guerreiro Ramos; ele afirma que ninguém melhor do que Shakespeare para
representar a época em que ele escreveu; ninguém melhor do que Dante para
representar, também, a época em que ele escreveu, isto é, a Idade Média já numa
certa fase, não toda a Idade Média. Ninguém melhor do que Richard Wagner para
representar a época romântica em que ele escreveu e que significa bem o modo de
ser do alemão naquele momento. Então, como é que vamos conhecer a mentalidade
desses povos, como vamos conhecer a mentalidade desses homens, como vamos
conhecer a mentalidade que permaneceu por muito tempo nas culturas? Através do
que podemos considerar vestígios, remanescências, resíduos, encontráveis nas obras
da cultura espiritual e material dos povos. Porque é através da cultura material que
chegamos a compor um painel da cultura espiritual dos povos. Cultura espiritual
aqui no sentido de conjunto de idéias, conjunto ideológico de um momento. É este o
conceito que fazemos de mentalidade (ibidem, p. 11).
A mentalidade tem a ver não só com aquilo que a pessoa de um determinado
momento pensa. Mas um indivíduo e mais outro indivíduo e mais outro indivíduo, a
soma de várias individualidades, redunda numa mentalidade coletiva. E essa
mentalidade coletiva é transmitida através da História. Por meio da mentalidade dos
indivíduos, a mentalidade coletiva se constrói. E esta última é transmitida desde
épocas remotas, e mesmo remotíssimas a épocas recentes (ibidem, p. 13).
107
Já sobre resíduo, foram estas as palavras do teórico cearense:
Que é resíduo? Está dito no livro Poesia insubmissa afrobrasilusa, está dito na
minha tese O jogo de duplos na poesia de Mário de -Carneiro, está dito nos
vários escritos que temos elaborado e publicado em Anais e Atas de reuniões
científicas nacionais e internacionais, em revistas, em livros, que resíduos são aquilo
que remanesce de uma época para outra e tem a força de criar de novo toda uma
cultura, toda uma obra. O resíduo é dotado de extremo vigor (PONTES, 2006, p.
08).
O resíduo é aquilo que resta de alguma cultura. Mas não resta como material morto.
Resta como material que tem vida, porque continua a ser valorizado e vai infundir
vida numa obra nova. Essa é a grande importância do resíduo e da residualidade.
Não é reanimar um cadáver da cultura grega, da cultura medieval, e venerá-lo num
culto obtuso de exaltação do antigo, do morto, promovendo o retorno ao passado,
valorizando a melancolia e a saudade, como fizeram os portugueses durante a fase
do Saudosismo literário; não é isso. A gente apanha aquele remanescente dotado de
força viva e constrói uma nova obra com mais força ainda, na temática e na forma. É
que se o processo da cristalização. Não posso dizer onde começa nem onde
termina a cristalização (ibidem, p. 09).
Resíduos. Remanescências. Permanências. Estas palavras se equivalem, mas é
preferível em nossa teoria e nas nossas investigações priorizar o emprego do
vocábulo resíduo a fim de fixarmos uma terminologia nossa. Podemos usar os
outros termos para explicar. Quando falo de resíduo, falo de remanescência; se digo
resíduo, digo sobrevivência (ibidem, p. 07).
Sobre a indissociabilidade dos termos que compõem a Teoria da Residualidade,
sobretudo no que concerne à forte ligação entre mentalidade/imaginário e resíduo, falou
Roberto Pontes:
Essas coisas podem ser investigadas tanto separadamente quanto em conjunto,
porque uma implica na outra e ajudam a esclarecer ao mesmo tempo o objeto
investigado. São o que a teoria chama de conceitos operativos, ou operacionais, isto
é, indispensáveis à operação do esclarecimento. São, pois, os conceitos operativos
da nossa teoria (PONTES, 2006, p. 08).
108
Quando falo em vestígios, falo em resíduo. A mentalidade não pode se dissociar de
resíduo. Quando falamos de um conceito e do outro separadamente é através de um
artifício didático, mas não podemos indicar exatamente onde termina o resíduo e
onde começa a mentalidade (ibidem, p. 10-11).
O termo hibridação cultural, pensado por Pontes, teve por norte o conceito de Peter
Burke em torno de hibridismo cultural. Para o professor de Cambridge, o hibridismo cultural
dá-se pelo encontro, pelo contato, pela interação ou pela troca de elementos e/ou de
fenômenos pertencentes a culturas diferentes. Termos técnicos para se referir a hibridismo
cultural, de acordo com Burke, são aculturação, quando há a influência apenas de uma
cultura sobre outra, de forma unilateral, e transculturação, quando se quer enfatizar uma
influência recíproca entre duas culturas:
A globalização cultural envolve hibridização. Por mais que reajamos a ela, não
conseguimos nos livrar da tendência global para a mistura e a hibridização
(BURKE, 2006, p. 14).
Os historiadores também, inclusive eu mesmo, estão dedicando cada vez mais
atenção aos processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural
(ibidem, p. 16).
O que o último exemplo sugere assim como muitos outros exemplos é que
devemos ver as formas híbridas como o resultado de encontros múltiplos e não
como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos
elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos (ibidem, p. 31).
Um termo mais técnico é “aculturação”, cunhado em torno de 1880 pelos
antropólogos americanos que estavam trabalhando com as culturas dos índios. A
idéia fundamental era a de uma cultura subordinada adotando características da
cultura dominante [...]. O sociólogo cubano Fernando Ortiz se aproximou mais da
idéia contemporânea de reciprocidade quando sugeriu a substituição da noção de
“aculturação” de mão única pela de “transculturação” de mão dupla (ibidem, p. 44).
109
Neste caso, está particularmente claro que o hibridismo é muitas vezes, senão
sempre, um processo e não um estado (ibidem, p. 50).
Hoje, o termo “hibridismo” aparece com freqüência em estudos pós-coloniais, na
obra de Edward Said, por exemplo. “Todas as culturas estão envolvidas entre si”,
escreve Said a respeito de nossa situação atual, “nenhuma delas é única e pura, todas
são hìbridas, heterogêneas” (ibidem, p. 53).
Quanto ao hibridismo, é um termo escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e
metafórico, descritivo e explicativo. Os conceitos de sincretismo, de mistura e de
hibridismo m também a desvantagem de parecerem excluir o agente individual.
“Mistura” soa mecânico. “Hibridismo” evoca o observador externo que estuda a
cultura como se ela fosse a natureza e os produtos de indivíduos e grupos como se
fossem espécimens botânicos (ibidem, p. 55).
Em nosso mundo, nenhuma cultura é uma ilha. Na verdade, já muito que a
maioria das culturas deixaram de ser ilhas. Com o passar dos séculos, tem ficado
cada vez mais difìcil se manter o que poderia ser chamado de “insulação” de
culturas com o objetivo de defender essa insularidade. Em outras palavras, todas as
tradições culturais hoje estão em contato mais ou menos direto com tradições
alternativas. A segregação é uma possibilidade no curto prazo, como vimos,
mas não é uma opção viável em la longue durée. Por conseguinte, as tradições são
como áreas de construção, sempre sendo construídas e reconstruídas, quer os
indivíduos e os grupos que fazem parte destas tradições se dêem ou não conta disto
(ibidem, pp. 101-102).
Burke também falou, no seu livro Hibridismo Cultural
143
, sobre o caráter híbrido de
determinados subgêneros literários:
também gêneros literários híbridos. O romance japonês, o africano e
possivelmente também o latino-americano devem ser encarados e julgados pelos
críticos como híbridos literários e não como simples imitações do romance
ocidental (BURKE, 2006, p. 27).
O romance africano também se situa em um cruzamento de gêneros, que inclui o
conto folclórico oral tradicional, o romance europeu e, entre os dois, o equivalente
africano dos folhetos brasileiros, os textos populares produzidos entre a Segunda
Guerra Mundial e a guerra civil nigeriana na cidade mercantil de Onitsha (ibidem, p.
28).
143
Op. cit.
110
Agora, o conceito que Roberto Pontes deu a hibridação cultural, para que se possa
constatar a similitude deste com o de hibridismo cultural, formulado por Burke e visto
pouco:
Então, a gente começa a pensar no resíduo, naquilo que remanesce das culturas
várias. Mas nós pensamos concomitantemente, na hibridação de culturas. E o que
vem a ser hibridação cultural? Este é um conceito que acompanha o de
residualidade. Hibridação cultural é expressão usada para explicar que as culturas
não andam cada qual por um caminho, sem contato com as outras. Ou seja, não
percorrem veredas que vão numa única direção. São rumos convergentes. São
caminhos que se encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam. A hibridação
cultural se nutre do conceito de hibridismo comum à mitologia. Que é um ser
híbrido? É aquele composto de materiais de natureza diversa (PONTES, 2006, p. 05-
06).
Para finalizar este subcapítulo, as palavras de Roberto Pontes sobre cristalização; sem
dúvida, o conceito mais original dentre todos os aportes da Teoria da Residualidade, embora
sua “semente”, como disse o estudioso cearense, já tivesse sido lançada por Guerreiro Ramos,
no seu livro Introdução à Cultura:
O nível da cristalização apropria o material gerado pelas camadas dominadas do
povo e a obra daí surgida já é de nível culto, semi-clássica ou clássica, processo pelo
qual se constrói um repertório com raízes na memória coletiva nacional. As obras
assim surgidas incorporam resíduos os mais remotos, e são vazadas numa linguagem
coerente com aquilo que exprimem. Nelas materializa-se uma visão do mundo
representativa da identidade nacional, universo simbólico que confronta e resiste à
homogeneização imposta pelos centros internacionais produtores de cultura de
massa, fundada na teletecnologia, padronizadora por excelência. Devemos o
conceito de cristalização a Guerreiro Ramos, que, já nos idos de 1939, cunhara o
termo no sentido agora adotado. [...] Ao nível da cristalização entrevemos o popular
sedimentado, sendo este o foro de uma linguagem bastante elaborada, continente dos
símbolos da identidade nacional (PONTES, 1991, pp. 149-150).
111
1.5 Das últimas considerações sobre o referencial teórico
Este capítulo não poderia ser finalizado sem que se falasse, antes, da relação entre
intertextualidade e residualidade, bem como da relação entre a École des Annales e o
Marxismo.
Após a leitura dos tópicos 1.1 e 1.4 do presente, deve ter ficado claro, para o leitor desta
dissertação, que intertextualidade e residualidade são mesmo fenômenos distintos. O
primeiro, conforme palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, ocorre quando um texto,
em seu conteúdo, alude a outro texto ou ao conteúdo de outro texto, no todo ou em parte, por
meio de um sintagma, de uma frase, de uma oração ou de um período, de modo a corroborar
ou a contestar algo. Para que o fenômeno intertextual estabeleça-se entre dois ou mais textos,
Vítor Manuel chama a atenção para o fato de que o aspecto estrutural faz-se tão ou mais
importante que o conteudístico, ou seja, dois textos que giram em torno do mesmo assunto,
ainda que ambos se posicionem quanto a este de forma oposta, não é o suficiente para que se
possa falar em intertextualidade, pois esta só se estabelece entre textos por meio do intertexto,
que é mesmo uma estrutura comum (sintagmática, sintática, semântica) aos textos, que
permite o diálogo entre estes.
O segundo, por sua vez, é algo infinitamente mais amplo, pois não se circunscreve
apenas aos limites dos textos ou das palavras. A residualidade procura estudar, como se viu,
como os modos de agir, de pensar e de sentir de um certo grupo ou camada social dum
período histórico, noutras palavras, como os imaginários de um determinado agrupamento ou
classe social duma dada época, foram parar, tempos depois, noutra civilização. Para tanto, a
residualidade pode lançar mão de qualquer objeto como fonte histórica, com vista a chegar à
verdade dos fatos. Por acaso, pode realizar seu trabalho de História comparada com base em
112
obras literárias, como aliás fizeram muitos dos integrantes da Escola dos Anais, mas não
necessariamente. Desse modo, pode-se chegar à conclusão de que o trabalho com a
intertextualidade subordina-se ao estudo da residualidade, que é algo infinitamente maior,
pelo fato de aquela ser apenas um dos expedientes metodológicos com que as pesquisas em
torno desta podem trabalhar, na sua busca constante pela (re)construção dos fatos históricos.
O objetivo maior desta dissertação, como se sabe, é mostrar, a partir do imaginário medieval
que se pode retirar das novelas de cavalaria, que os modos de agir, de pensar e de sentir do
cavaleiro mediévico aproximam-se muito das formas de raciocinar e de se comportar do herói
da Antigüidade clássica, justamente aquele que se movimenta nas epopéias e nos mitos greco-
romanos. A pesquisa é, como se pôde constatar, histórica; contudo, por estar sendo
desenvolvida no seio do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Ceará (UFC), tem, obviamente, de utilizar obras literárias (novelas de cavalaria, epopéias,
mitos greco-romanos) como fontes históricas, bem como trabalhar com a Literatura
Comparada e, por tabela, com a intertextualidade. Entretanto, como se viu, as fontes
poderiam ser outras.
Já no que concerne à utilização de conceitos da Escola dos Annales aliados a de teóricos
marxistas, nesta dissertação, deve-se dizer que não nisso nenhum problema, haja vista a
enorme contribuição do Marxismo, como se viu no tópico 1.2, para a construção da École des
Annales. Os conceitos que serão utilizados ao longo deste trabalho, tanto os dos Annales
quanto os de Raymond Williams, crítico literário de formação marxista, não entram em
contradição nem em conflito entre si; antes se complementam. Isso, quando não querem dizer
a mesma coisa, como, por exemplo, o de “longa-duração”, amplamente utilizado por Braudel,
e o de residual, com o qual Williams trabalhou, em suas análises literárias. Esta dissertação
simplesmente resolveu trabalhar com este (que foi remodelado, repensado por Roberto
113
Pontes), simplesmente porque tem por guia a Teoria da Residualidade, que privilegiou o
conceito pensado por Raymond Williams.
114
O IMAGINÁRIO DO HERÓI GRECO-ROMANO A PARTIR DO QUE SE
PODE RETIRAR DA LITERATURA CLÁSSICA
Os mitos e as lendas heróicas constituem um tesouro
inesgotável de exemplos e modelos da nação, que neles
bebe o seu pensamento, idéias e normas para a vida.
Werner Jaeger
144
O presente capítulo, como foi dito na introdução desta dissertação e no início do
capítulo anterior, procurará chegar à essência do herói da Antigüidade clássica a partir das
imagens
145
(ou do imaginário
146
) que deste foram criadas pelos gregos e romanos. Tais
imagens, como não poderia deixar de ser, deram-se a conhecer à posteridade por meio das
mais diversas fontes históricas; dentre estas, as obras de arte (poemas, vasos de cerâmica,
estátuas), que estão entre as fontes mais valorizadas pela École des Annales, como mostrou o
capítulo passado.
Por se tratar de um trabalho produzido para o Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Ceará UFC , bem como para se manter em conformidade com as
idéias da Escola dos Anais, esta dissertação, neste e no próximo capítulo, utilizará obras
literárias como fontes historiográficas; assim, as imagens dos heróis greco-romanos que
interessarão a esta pesquisa serão, sobretudo, aquelas que se encontram nas epopéias dos
antigos Ilíada e Odisséia, de Homero, e Eneida, de Virgílio e em alguns dos mitos
147
que
144
JAEGER, op. cit., p. 68.
145
A palavra imagem deve ser entendida, aqui, como aspecto particular pelo qual um ser ou um objeto é
percebido ou como “opinião (contra ou a favor) que o público pode ter de uma instituição, organização,
personalidade de renome, marca, produto etc.; conceito que uma pessoa goza junto a outrem”; ou então como
“qualquer maneira particular de expressão literária que tem por efeito substituir a representação precisa de um
fato, situação etc. por uma alegoria, visão, evocação etc”; ou ainda como “representação mental de um ser
imaginário, um princìpio ou uma abstração” (HOUAISS, op. cit.).
146
Imaginário, aqui, como “reunião de elementos pertencentes ou caracterìsticos do folclore, da vida etc. de um
grupo de pessoas, um povo, uma nação etc.” ou como algo “criado pela imaginação e que só nela tem
existência; que não é real; fictìcio” (idem); ou ainda como “o modo de agir, de pensar e de sentir de um
determinado agrupamento social de um certo perìodo”, conforme se viu no capìtulo anterior.
147
De Metamorfoses: “A História do Duelo de Aqueloo por Djanira”, “A História de Hércules, Nesso e Djanira”,
“A Luta de Perseu”, “A História de Jasão e Medéia”, “O Javali da Caledônia”, “A Deificação de Enéas” e
115
compõem a obra Metamorfoses, de Ovídio, e O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da
Fábula): Histórias de Deuses e Heróis, de Thomas Bulfinch.
Outro motivo também pode ser apontado para a escolha de obras literárias como fontes
históricas, por parte desta pesquisa: o fato de serem, os artistas de um modo geral e os poetas,
de modo particular, as antenas da raça”, conforme disse Ezra Pound no seu livro ABC da
Literatura
148
; ou seja, aqueles capazes de captar, melhor do que quaisquer outros, tudo aquilo
que pensam ou sentem (bem como a forma como reagem a esses pensamentos e a esses
sentimentos) os que fazem parte do seu grupo social.
Ciente do caráter ficcional das fontes históricas que serão utilizadas neste capítulo e no
próximo, bem como da subjetividade que é mesmo inerente à interpretação desse tipo de fonte
(textos literários), o autor desta dissertação, como se verá, reforçará suas considerações sobre
o imaginário que se criou em torno do herói da Antigüidade clássica com base no que
disseram sobre isso pesquisadores consagrados na área dos Estudos Clássicos, como Jean-
Pierre Vernant, Yvon Garlan, Giuseppe Cambiano, Luciano Canfora, James Redfield, Oswyn
Murray, Mario Vegetti, Werner Jaeger, Pierre Vidal-Naquet, Maria Helena da Rocha Pereira,
Junito de Souza Brandão, Mário Curtis Giordani, Adriane da Silva Duarte e André Malta
Campos. Certamente, muitos desses pesquisadores, senão todos eles, também utilizaram os
poemas épicos dos antigos gregos e romanos, bem como mitos de Metamorfoses, como fontes
historiográficas, num sentido lato, ou seja, para a compreensão de todo o universo greco-
romano da Antigüidade, ainda que tenham se debruçado sobre esses textos apenas para
compreender melhor o comportamento do herói greco-latino. Acontece que este, além de
herói, foi cidadão e cultuou os deuses. Enfim, o autor desta dissertação, ao verificar o que
disseram esses estudiosos acerca do herói da Antigüidade clássica, acredita anular qualquer
impressão falsa que venha a ter sobre este, a partir de suas próprias leituras.
“Mais Histórias de Roma Antiga”. D‟O Livro de Ouro da Mitologia: “Hércules”, “Perseu”, “Teseu” e O
Velocino de Ouro”.
148
POUND, Ezra. ABC da Literatura. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
116
Compreender o herói das antigas Grécia e Roma, o homem que se movimenta nas
narrativas épicas da Antigüidade, com a espada na mão, sempre em busca de glória, é ter uma
imagem (exagerada, em alguns aspectos, é verdade) do guerreiro antigo, do combatente, do
grego ou do romano que ia às batalhas, defender o seu povo, a sua pátria, a sua cidade,
conforme se pode depreender das seguintes palavras de Junito de Souza Brandão, retiradas do
terceiro volume de Mitologia Grega
149
:
O termo herói, comenta Brelich, permaneceu nas línguas modernas sobretudo com o
sentido de guerreiro, de combatente intrépido. E talvez tenha sido este o significado
mais antigo da palavra e é principalmente esta a conceituação que Homero empresta
aos bravos da Guerra de Tróia (BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 41-42).
Hesíodo restringiu igualmente o conceito de herói àqueles que combateram em
Tróia e em Tebas. Efetivamente, excetuando-se a morte, nada realça tanto um
número tão grande de heróis como o qualificativo de combatente. Tal predicado se
expressa mais freqüentemente na mitologia, mas, logo se verá, ele se encontra
presente também no culto. Note-se, de passagem, que o “caráter de combatente”
distingue, de certa forma, os heróis dos deuses. É verdade que estes também
combatem, ou melhor, combateram, até consolidar sua posição divina, como
aconteceu na Titanomaquia e na Gigantomaquia (ibidem, p. 42).
Dissemos que o espírito bélico do herói está igualmente presente no culto. Pois bem,
um dos motivos prinicpais do culto do herói é a proteção que o mesmo dispensa à
sua pólis em guerra. [...] Não é, porém, apenas sob forma de visões ou mito que se
manifestava na Grécia a convicção de que os heróis protegiam efetivamente as
tropas de sua pólis, mas essa mesma persuasão alimentava um culto real e
verdadeiro (ibidem, pp. 31-32, passim).
É ainda ver a imagem que os homens comuns e que os poetas pintaram desse guerreiro,
e também a imagem que este tinha de si mesmo. Em suma, é conhecer o imaginário que foi
criado, na Antigüidade, em torno dessa figura tão importante para o universo greco-latino e
que se fez presente, um bom bocado, no cavaleiro medieval, como mostrará o próximo
capítulo desta dissertação.
Como esta pesquisa tem por objetivo principal mostrar, por meio das novelas de
cavalaria da Baixa Idade Média, que o cavaleiro mediévico, apesar de viver numa época em
que predominou o Cristianismo, agia, pensava e sentia, em muitos momentos, como o herói
149
BRANDÃO, op. cit.
117
da Antigüidade clássica (época em que predominou o paganismo) e que procurava,
conscientemente, em certas ocasiões, comportar-se como este, por possuí-lo como arquétipo,
como modelo a ser seguido, então ela se enquadra naquilo que a Escola dos Annales chamou
de “história-problema”, já que a sua proposta o é a de simplesmente contar a história de
uma determinada época, mas a de chamar mesmo a atenção para um determinado aspecto
histórico, para um determinado “problema”, com o intuito de dei-lo em evidência, de
procurar compreendê-lo melhor e, se possível, até de solucioná-lo.
Por trabalhar com a “história comparativa”, por meio da Literatura Comparada, o
presente estudo está de acordo com mais uma das propostas da École des Annales para a
construção de uma Nova História; e por mostrar que a Idade Média representa, em boa
medida, uma continuação da Antigüidade clássica, em muitos aspectos, o conceito de “longa-
duração”, da Escola dos Anais, far-se-á, de certa forma, também presente nesta dissertação:
ele apenas será substituído pelo termo resíduo, pensado por Raymond Williams e utilizado
por Roberto Pontes em sua Teoria da Residualidade. Acontece que o termo resíduo apresenta-
se mais livre que o conceito de “longa-duração”, que este, diferentemente do que acontece
àquele, é geralmente pré-fixado em determinado número de anos. E antes que se comece a
falar do herói da Antigüidade clássica, que é o principal objetivo deste capítulo, deve-se dizer
que foi somente por uma questão didática que este trabalho resolveu tratar das imagens
criadas em torno do herói grego-romano antes de falar do imaginário medieval em torno do
cavaleiro, pois foram mesmo as inúmeras intertextualidades que as novelas de cavalaria
portuguesas da Baixa Idade Média realizaram com obras literárias das antigas Grécia e Roma,
bem como as semelhanças existentes entre os modos de agir, de pensar e de sentir dos
cavaleiros medievais com os modos de se comportar e de raciocinar dos heróis da
Antigüidade clássica, que motivaram a presente investigação. Sendo assim, este estudo
118
mostra-se adepto do “método regressivo”, proposto pela Escola dos Annales, por procurar, no
passado, explicações para determinados aspectos históricos de um dado período.
Feitas essas considerações, deve-se dizer que, no âmbito dos Estudos Clássicos, o termo
herói pode significar duas coisas. Em primeiro lugar, o indivíduo resultante da união de um
deus (ou de uma deusa) com uma mortal (ou com um mortal), ou seja, o mesmo que
semideus, como se pode ver no seguinte excerto do terceiro volume da obra Mitologia Grega.
Como se verá, esta é uma definição bastante reducionista:
Via de regra, os heróis m um nascimento complicado, como Perseu, Teseu,
Héracles e muitíssimos outros. Descendem de um deus com uma simples mortal:
Minos, Sarpédon e Radamanto, filhos de Zeus e Europa; Castor, Pólux, Clitemnestra
e Helena, do mesmo Zeus e Leda; Asclépio, de Apolo e Corônis; ou de uma deusa
com um mortal: Enéias e Aquiles, frutos respectivamente dos amores de Afrodite e
Anquises e de Tétis e Peleu ou, por vezes, lhe é atribuìda uma “dupla paternidade”:
Teseu é filho de Posìdon e “Egeu”; Héracles, de Zeus e “Anfitrião” (BRANDÃO,
2007, vol. III, p. 22).
Em segundo lugar, numa acepção mais ampla da palavra, “um ser humano capaz de
superar os limites que separam o homem dos seres comuns. Sua existência é devotada à busca
do Espírito, seja este o Graal ou um elixir da imortalidade
150
(JULIEN, 2005, p. 109). Dito
isso, verifica-se que a segunda acepção parece ser a mais interessante das duas, já que abarca,
em si, de certa forma, a primeira; afinal de contas, Hércules
151
(filho de Júpiter
152
e de
Alcmena), Perseu (filho de Júpiter e de Dânae) e Aquiles (filho de Tétis e de Peleu), por
exemplo, foram considerados heróis não simplesmente pelo fato de terem nascido da união de
deuses com mortais, mas, principalmente, pela maneira superior como se comportaram, pelo
tipo de vida ímpar que levaram, pelas qualidades morais e pela bravura sobre-humanas que
possuíram, pelos grandes propósitos que os moveram e pelos ideais de triunfo que os guiaram.
Aliás, Brandão, no seu livro supracitado, chama a atenção para a etimologia da palavra herói,
150
JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia / Tradução de Denise Radonovic Vieira e ilustração de
Mônica Teixeira. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2005.
151
Também chamado de Héracles.
152
Também chamado de Zeus.
119
que não significa “aquele que nasceu da união de um deus com uma mortal”, mas sim “o
guardião, o defensor, o que nasceu para servir”. Isto serve para reforçar o que foi dito acerca
do herói; ou seja, que ele é dado a conhecer não pela sua origem divina, mas, antes, pelos seus
atos:
Etimologicamente, h3rwv (héros) talvez se pudesse aproximar do indo-europeu
servā, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, “ele guarda” e o latim
seruāre, “conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil”, donde herói seria o
“guardião, o defensor, o que nasceu para servir” (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 15).
Sobre a origem dos heróis, Junito de Souza Brandão, apoiado nas palavras de Farnell,
logo emenda que nem todos eles nasceram de deuses, de modo que nem todos podem ser
chamados de semideuses:
os heróis seriam tanto seres humanos quanto divindades particulares, ou seja,
uma verdadeira mistura ou fusão de tipos, uma vez que, para Farnell, os heróis não
possuem a mesma origem, apresentando-se escalonados em sete categorias. Desse
modo, teríamos desde heróis de origem divina até os simplesmente criados por
eruditos e poetas... A teoria conciliatória de Farnell fez e ainda faz sucesso, pois até
mesmo o seguríssimo Nilsson a abraçou, ao afirmar que os heróis constituíam um
grupo muito heterogêneo (the heroes were a very mixed company”). Neste grupo
promíscuo o erudito sueco incluiu as divindades locais decadentes, os ancestrais das
grandes famílias, personagens históricas e algumas outras categorias (BRANDÃO,
2007, vol. III, p. 17).
Porém, ainda que não necessariamente tenham sido filhos de um deus ou de uma deusa,
Pierre Vidal-Naquet, em seu livro O Mundo de Homero
153
, ao se referir aos filhos de Afrodite,
Tétis e Zeus que lutaram na guerra de Tróia (Enéias, Aquiles e Sarpédon, respectivamente),
adverte que “A maioria dos heróis [...] descende, de forma mais ou menos direta, do próprio
Zeus”. O mesmo ele diz acerca da origem dos reis, com base em Homero:
Duas deusas têm filhos entre os heróis envolvidos. Afrodite é mãe de Enéias;
seduziu Anquises, primo de Príamo; além disso, deve a Páris-Alexandre ter recebido
o pomo que a fez suplantar em beleza tanto Hera como Atena. Tétis é uma das
Nereidas, divindades marinhas que o poeta se permite enumerar no início do canto
XVIII da Ilíada. Mas ela goza de um estatuto muito diferente do de Afrodite. Seu
153
VIDAL-NAQUET, op. cit.
120
filho Aquiles é legítimo. Tétis desposou um mortal, Peleu, porque lhe foi
profetizado que teria um filho mais poderoso do que seu pai. Zeus, rei dos deuses, é
o pai de Sarpédon, rei dos lícios, engajado no campo troiano. Seu escanção,
Ganimedes, é um prìncipe troiano. A maioria dos heróis, dos “reis”, descende, de
forma mais ou menos direta, do próprio Zeus (VIDAL-NAQUET, 2002, pp. 64-65).
No que concerne à classe dominante, no alto da escala, sem dúvida alguma,
estão aqueles a que Homero chama de “reis nascidos de Zeus”. Todos têm uma
genealogia e, com muita freqüência, ela remonta a um deus e, portanto, mais ou
menos diretamente, a Zeus, que, ele mesmo, é pai de numerosos deuses e deusas.
Até mesmo o ciclope Polifemo é filho de Posìdon, “o agitador do solo” (ibidem, p.
96).
Mircea Eliade, do alto de sua sabedoria, ao falar da origem do herói, preferiu não
tratar da sua origem divina, mas enfatizar o seu caráter sobre-humano. Noutras palavras,
enquanto a maioria dos pesquisadores procurou a origem do herói por cima, ou seja, pelo
Olimpo, Eliade olhou para baixo, de modo a compará-lo com os humanos. Para Mircea
Eliade, o herói deve ser visto, antes, a partir do seu caráter sobre-humano, e não do divino. O
historiador romeno, naturalizado ianque, situa, ainda, o aparecimento do herói na Era de Zeus,
logo depois do surgimento dos homens, como se pode ver a partir deste trecho retirado do
livro de Brandão:
Mircea Eliade remata o magnífico retrato do herói, traçado por Brelich, com
as seguintes palavras: “Utilizando uma fórmula sumária, poderìamos dizer que os
heróis gregos compartilham uma modalidade existencial sui generis (sobre-humana,
mas não divina) e atuam numa época primordial, precisamente aquela que
acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. A sua atividade se desenrola depois
do aparecimento dos homens, mas num perìodo dos „começos‟, quando as estruturas
não estavam definitivamente fixadas e as normas ainda não tinham sido
suficientemente estabelecidas. O seu próprio modo de ser revela o caráter inacabado
e contraditório do tempo das „origens‟...” (ELIADE in BRANDÃO, 2007, vol. III, p.
19).
Ainda que não possuíssem origem divina, ou seja, fossem filhos de deuses (semideuses)
ou descendentes “mais ou menos” diretos de Zeus, os heróis sempre procediam da mais alta
nobreza greco-romana: geralmente, eram filhos de reis, como atesta o seguinte trecho do
citado livro de Junito de Souza Brandão:
Consoante Rank, o herói descende de ancestrais famosos ou de pais da mais
alta nobreza: habitualmente é filho de um rei. Seu nascimento é precedido por
121
muitas dificuldades, tais como a continência ou a esterilidade prolongada, o coito
secreto dos pais, devido à proibição ou ameaça de um Oráculo, ou ainda por outros
obstáculos, como o castigo que pesa sobre a família. Durante a gravidez ou mesmo
anterior à mesma, surge uma profecia, sob forma de sonho ou de oráculo, que
adverte acerca do perigo do nascimento da criança, uma vez que esta e em perigo
a vida do pai ou de seu representante. Via de regra, o menino é exposto num monte
ou num “recipiente”, cesto, pote, urna, barco, é abandonado nas águas, as mais das
vezes, do mar. É recolhido e salvo por pessoas humildes: pastor, pescador, ou por
animais e é amamentado por uma fêmea de algum animal, ursa, loba, cabra... ou
ainda por uma mulher de condição modesta. Transcorrida a infância, durante a qual
o adolescente, não raro, mostras de sua condição e natureza superiores, o “futuro
herói” acaba descobrindo, e aqui as circunstâncias variam muito, sua origem nobre.
Retorna à sua tribo ou a seu reino, após façanhas memoráveis, vinga-se do pai, do
tio ou do avô, casa-se com uma princesa e consegue o reconhecimento de seus
méritos, alcançando, finalmente, o posto e as honras a que tem direito. Mas, após
tantas lutas, o fim do herói é comumente trágico. A grande glória lhe será reservada
post mortem (BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 20-21).
Como se viu, Brandão, consoante Rank, não falou da origem nobre do herói como
também dos problemas que geralmente antecedem o seu nascimento, da possibilidade de
serem abandonados após a sua nascença, em decorrência desses problemas, do despertar de
suas virtudes heróicas durante a adolescência, do seu triunfo na idade adulta e da sua morte
gloriosa. A seguir, trechos dos mitos “Perseu”, “O Velocino de Ouro”, “Teseu”, Os
Monstros: a Esfinge” e “A Guerra de Tróia”, retirados d‟O Livro de Ouro da Mitologia (A
Idade da Fábula): História de Deuses e Heróis
154
, de Thomas Bulfinch, que comprovam o
que foi dito por Junito de Souza Brandão. Os heróis escolhidos para ilustrar o que foi dito
pelo mitólogo carioca foram Perseu, Jasão, Teseu, Édipo e Páris:
Perseu era filho de Júpiter e de Dânae. Seu avô, [o rei] Acrísio, assutado com
a predição de um oráculo, no sentido de que o filho de sua filha seria o instrumento
de sua morte, determinou que a mãe e o filho fossem encerrados numa arca, e esta
colocada no mar. A arca flutuou até Serifo, onde foi encontrada por um pescador,
que levou a mãe e o filho a Polidectes, o rei do país, que os tratou com bondade.
Quando Perseu tornou-se homem, Polidectes mandou-o combater Medusa, monstro
terrível que devastava o país (BULFINCH, 2002, p. 142).
muitos e muitos anos, viviam na Tessália, um rei e uma rainha, chamados
Atamas e Nefele, que tinham dois filhos, um menino e uma menina. Depois de um
certo tempo, Atamas enfarou da esposa, expulsou-a e casou-se com outra mulher.
Nefele, receosa de que os filhos corressem perigo, em vista da influência da
madrasta, tratou de livrá-los desse perigo. Mercúrio ajudou-a e deu-lhe um carneiro
com velocino de ouro, no qual Nefele colocou as duas crianças, certa de que o
carneiro as levaria a um lugar seguro. O carneiro elevou-se no ar com as duas
crianças nas costas, tomando o rumo do nascente, até que, ao passar sobre o estreito
154
BULFINCH, op. cit.
122
que separa a Europa da Ásia, a menina, cujo nome era Heles, caiu no mar, que
passou a ser chamado Helesponto, hoje Dardanelos. O carneiro continuou a viagem,
até chegar ao reino da Cólquida, na costa oriental do Mar Negro, onde depositou são
o salvo o menino, Frixo, que foi hospitaleiramente recebido pelo rei do país, Etes.
Frixo sacrificou o carneiro a Júpiter e ofereceu a Etes o Velocino de Ouro, que foi
posto numa gruta sagrada, sob a guarda de um dragão que não dormia. Havia na
Tessália outro reino, perto do de Atamas, e governado por um parente seu. Cansado
com os cuidados do governo, o Rei Esão passou a coroa a seu irmão Pélias, com a
condição de que este a mantivesse apenas durante a menoridade de seu filho Jasão.
Quando, chegando à idade conveniente, Jasão foi reclamar a coroa a seu tio, este
fingiu-se disposto a entregá-la, mas, ao mesmo tempo, sugeriu ao jovem a gloriosa
aventura de ir em busca do Velocino de Ouro, que se sabia estar no reino da
Cólquida e que, segundo afirmava Pélias, era a legítima propriedade da família.
Jasão acolheu a idéia e tratou logo de fazer os preparativos para a expedição.
Naquele tempo, a única navegação conhecida pelos gregos era feita em pequenos
botes ou canoas, feitos de troncos de árvores, de modo que, quando Jasão incumbiu
Argos de construir uma embarcação capaz de transportar cinqüenta homens, o
empreendimento foi considerado como gigantesco. Foi realizado, contudo, e o barco
tomou o nome de “Argo”, em homenagem ao seu construtor. Jasão convidou a
participarem da empresa todos os jovens gregos amantes de aventuras, muitos dos
quais tornaram-se depois conhecidos entre os heróis e semideuses da Grécia. Entre
eles, encontravam-se Hércules, Teseu, Orfeu e Nestor. Os expedicionários foram
chamados argonautas, do nome do barco (ibidem, pp. 159-160).
Teseu era filho de Egeu, rei de Atenas, e de Etra, filha do rei de Trézen, por
quem foi criado. Depois de homem, foi mandado a Atenas e entregue a seu pai.
Egeu, separando-se de Etra, antes do nascimento do filho, colocou a espada e as
sandálias sob uma grande pedra e determinou à esposa que lhe mandasse o filho
quando este fosse bastante forte para levantar a pedra. Chegada a ocasião, a mãe de
Teseu executou a incumbência e o jovem removeu a pedra com facilidade e se
apoderou da espada e das sandálias. Como as estradas estavam infestadas de
bandidos, o avô de Teseu aconselhou-o a seguir o caminho mais seguro e mais curto
para o país de seu pai: por mar. O jovem, contudo, sentindo em si o espírito e a alma
de um herói, e desejoso de se destacar como Hércules, cuja fama corria, então, por
toda a Grécia, pelo fato de destruir os malfeitores e os monstros que flagelavam o
país, resolveu fazer a viagem mais perigosa e aventurosa por terra (ibidem, p. 186).
Laio, rei de Tebas, foi advertido por um oráculo de que haveria perigo para
sua vida e seu trono se crescesse seu filho recém-nascido. Ele, então, entregou a
criança a um pastor, com ordem de que fosse morta. O pastor, porém, levado pela
piedade, e, ao mesmo tempo, não se atrevendo a desobedecer inteiramente à ordem
recebida, amarrou a criança pelos pés e deixou-a pendendo do ramo de uma árvore.
O menino foi encontrado por um camponês, que o levou aos seus patrões. O casal
adorou a criança, que recebeu o nome de Édipo, ou Pés-Distendidos (ibidem, p.
152).
Páris fora criado na obscuridade, porque havia certos augúrios funestos a seu
respeito, desde a infância, segundo os quais ele seria a causa da ruína do estado
155
(ibidem, p. 256).
Como se pôde ver, Perseu, Jasão, Teseu, Édipo e Páris (ou Alexandre) tiveram uma
origem nobre: Dânae, mãe de Perseu, era filha de Acrísio, rei de Argos; Esão, pai de Jasão, foi
rei de Iolco; Egeu, rei de Atenas, e Etra, filha do rei de Trézen, eram os pais de Teseu; Laio,
155
Tróia.
123
rei de Tebas, o genitor de Édipo; Príamo, rei de Tróia, foi o pai de Páris. Hércules (ou
Héracles), que foi citado mais de uma vez, nesses trechos do livro de Bulfinch, também foi
filho de reis: Anfitrião
156
, rei de Tirinto, e Alcmena, filha de Electrion, rei de Micenas. Essa
nobiliarquia dos heróis greco-romanos, no plano mítico, certamente corresponde, no plano da
realidade, à dos guerreiros das antigas Grécia e Roma, pois se sabe que aqueles nada mais
foram que representações literárias (imagens criadas pelos povos e pelos poetas greco-
latinos), simbólicas, destes. Sobre o caráter nobiliárquico dos guerreiros da Antigüidade
clássica disseram estas palavras Luciano Canfora e Yvon Garlan, ao se referirem ao alto
investimento que eles precisavam fazer para se armarem para as batalhas:
Como, durante muito tempo, ser guerreiro implicou também dispor dos meios para
prover ao armamento pessoal, a noção de cidadão-guerreiro identificou-se com a de
rico, detentor de um certo rendimento (na maior parte dos casos, fundiário) que
desse ao potencial guerreiro a possibilidade de se armar a expensas próprias
(CANFORA in VERNANT, 1993, pp. 108-109).
O armamento dos hoplitas tinha-se entretanto simplificado e aligeirado. De um
modo geral, desapareceram as braçadeiras, coxetes e protecções anti-setas, tal como
a segunda lança utilizada como dardo, que aparecem em algumas reproduções
arcaicas. A couraça de bronze moldada foi substituída por uma casaca de linho ou de
couro reforçada com placas metálicas. Mesmo assim, porém, o conjunto exigia um
investimento importante, pelo menos de uma centena de dracmas áticas, que
representavam cerca do salário trimestral de um operário medianamente qualificado
(GARLAN in VERNANT, 1993, p. 58).
Previsões oraculares em torno de Perseu, Édipo e Páris deram conta de que eles seriam,
quando adultos, a causa da morte de seus genitores ou equivalentes e/ou a razão da ruína de
sua cidade natal ou de seu povo. Tais presciências teriam sido o motivo de os três terem sido
expostos, ou seja, afastados do seio familiar, logo após o nascimento. Foi isso o que deixou
em evidência a Literatura, por meio dos mitos. Entretanto, histórias da Antigüidade greco-
romana dão conta de que o rei Acrísio acreditava ser Perseu filho de Dânae e de Preto, que era
156
Comumente, os livros trazem Hércules (ou Héracles) como filho de Júpiter e de Alcmena. Acontece que,
conforme chamou atenção para esse fato Junito de Souza Brandão, temos, com Hércules e com Teseu, um
caso de “dupla paternidade”. De acordo com Julien (op. cit. p. 21), enquanto Anfitrião combatia os telebenos e
os tafienes, “Zeus usou seus traços para seduzir Alcmena. Desta união nasceu Héracles, que Anfitrião
reconheceu como filho”.
124
tio desta e irmão daquele, de modo que teríamos um caso de incesto; e também dão conta
de que Laio amarrou Édipo pelos tornozelos antes de mandá-lo para a exposição (versão de
Sófocles, Édipo Rei), de modo que a deficiência física de Édipo pode não ter acontecido em
decorrência desta, mas ter surgido antes de ele ter sido exposto. Esses mitos encontram
correspondências no mundo real, no que concerne à prática da exposição infantil e às leis do
matrimônio. O historiador Giuseppe Cambiano afirmou que, na Grécia antiga, a exposição
infantil poderia ser resultante do nascimento: (i) de meninos ou de meninas disformes, (ii) de
filhos ilegítimos (bastardos); (iii) de crianças do sexo feminino. Além disso, o pai que
descobrisse que a filha havia mantido relações sexuais antes do matrimônio poderia expulsá-
la de casa. Junito de Souza Brandão também chama a atenção para o fato de que o nascimento
dos heróis poderia ser tido como irregular, quando fruto de relacionamento incestuoso, e que
isto também servia para justificar a exposição da criança:
No entanto, nem as crianças disformes eram expostas; por vezes, eram-no
também recém-nascidos em boas condições físicas. [...] Não existem dados
numéricos seguros, mas é possível que a maior parte das crianças expostas fossem
ilegítimas, e não legítimas supranuméricas, ou seja, filhos bastardos de pais de
nacionalidade mista ou nascidos fora de um casamento legal, sobretudo filhos de
escravos. Era difícil, mesmo entre os pobres, que a exposição recaísse sobre o
primeiro filho legítimo varão, e o número de recém-nascidos do sexo feminino
expostos devia ser muito maior. [...] A exposição era também um modo de evitar um
excesso de núbeis, que continuariam a pesar economicamente nas costas do pai. [...]
Por volta de 270 a. C., o poeta Posidipo afirmava: <<Todos, mesmo os pobres, criam
um filho varão; uma filha, mesmo que sejam ricos, expõem-na.>> A criança exposta
podia ser recolhida por outros, que tinham a faculdade de a tratar como livre ou
como escrava; tratá-la como livre não significava, porém, adoptá-la. [...]
Provavelmente, a prática mais corrente era reduzir o exposto à condição de escravo,
para o manter ao serviço e, no caso de raparigas, também para as preparar para a
prostituição ou para o vender quando fosse oportuno (CAMBIANO in
VERNANT, 1993, pp. 77-78, passim).
Uma lei atribuída a Sólon determinava que, se um pai descobria que a filha
mantinha relações sexuais antes do matrimónio e o sinal inequívoco era a gravidez
, excluía-a da família e podia vendê-la. Para ela, deixava de haver perspectivas de
matrimónio, donde a importância da custódia como garantia de preparação das
condições de acesso às núpcias (CAMBIANO in VERNANT, 1993, p. 81).
Os heróis podem ter ainda um nascimento irregular, em conseqüência de um incesto:
Egisto é fruto do incesto de Tieste com sua filha Pelopia, e a “ninhada tebana”,
Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene, provém de Édipo com sua própria mãe
Jocasta...; acrescente-se, ademais, que muitos heróis, além do nascimento difícil ou
irregular, são expostos, por força normalmente de um Oráculo, que prevê a ruína do
rei, da cidade, ou por outros motivos, caso o recém-nascido permaneça na corte ou
125
na pólis. É assim que Páris, Édipo e Egisto são expostos num monte. O primeiro o
foi porque sua sobrevivência, como sonhara sua mãe Hécuba, ameaçava Tróia [...];
Édipo, porque, segundo o oráculo, estava condenado a cometer o parricídio e casar-
se com a própria mãe; e Egisto, porque Pelopia fora violada [...]; outros são expostos
nas águas do mar, como Perseu, que punha em perigo a vida de seu avô, o rei
Acrísio [...] Em geral, o exposto é recolhido por uma pessoa humilde e criado numa
corte: Édipo, no palácio de Pólibo e rope, em Corinto; Perseu, no de Polidectes,
na ilha de Serifo. Alguns expostos em montes, como Egisto e Páris, são alimentados
por um animal: o troiano Páris o foi por uma ursa; Egisto, por uma cobra [...]
(BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 22-23, passim).
Com relação à exposição de Páris, o mito afirma que ela se deveu ao fato de sua mãe,
Hécuba, ter ficado sabendo, por meio de um sonho, que o filho que gestava seria a causa da
destruição de Tróia. Porém, é possível que algum acontecimento da vida de Alexandre,
anterior ou posterior ao seu nascimento, capaz de ser ancorado na realidade, possa ter
motivado essa exposição. Acontece que, excetuando-se os acontecimentos em torno da guerra
de Tróia, da qual Páris participou, pouco se sabe do seu passado, como disse Vidal-Naquet:
Um dos heróis da Ilíada, contudo, não conseguiu sair totalmente da
adolescência. Trata-se de Páris-Alexandre, irmão de Heitor e amante de Helena, que
Páris raptara na Lacedemônia. É provável que a lenda de Páris não estivesse
inteiramente formada por ocasião da composição da Ilíada. Do seu passado, Homero
evoca rapidamente o julgamento envolvendo três deusas. Saberemos, mais tarde,
que Páris veio ao mundo com presságios de destruição para Tróia, que foi exposto
no monte Ida, assim como Édipo no Citéron, que foi recolhido e que regressou à
família após ganhar um concurso juvenil. Contentemo-nos, todavia, com o que diz
Homero no canto III da Ilíada. Páris é um homem duplo. Ele tem um nome duplo:
Páris-Alexandre; o único outro caso é o bebê de Heitor e Andrômaca: Escamandro
para os seus pais, Astìanax (“O Rei da Cidade”) para os troianos (VIDAL-
NAQUET, 2002, p. 89).
Vale salientar que a Perseu (e também a Rômulo e a Remo) coube o tipo de exposição
mais antiga, de acordo com Brandão: aquela em que a criança é posta numa arca e lançada ao
mar (Rômulo e Remo foram postos numa cesta e deixados levar pela correnteza de um rio). Já
Édipo e Páris foram abandonados no topo de um promontório. Este, assim como aconteceu
aos filhos de Réia Sílvia, que foram amamentados por uma loba, esteve aos cuidados de um
animal, após o nascimento: uma ursa. Aliás, todos os expostos (Perseu, Édipo, Páris, Rômulo
e Remo), antes de experimentarem a nobreza, passaram pelas mãos de pessoas bastante
humildes: Perseu foi entregue ao rei de Serifo, Polidectes, por um pescador; Édipo, que se
126
tornou o rei de Tebas, com a morte de seu pai, Laio, foi, quando criança, levado por um
camponês a um casal, que o criou; Páris foi recolhido e criado pelo pastor Agelau, antes de
seguir para Tróia, o reino dos seus pais; Rômulo e Remo foram educados pelo pastor
Faustulus e por sua mulher, Aca Larência, antes de Rômulo se tornar o rei de Roma.
Desde tenra idade, os heróis davam provas de sua força e de seu pendor para as
batalhas: Hércules, ainda no berço, estrangulou duas serpentes que tinham sido enviadas por
Juno
157
para matá-lo; Teseu
158
, aos dezesseis anos, conseguiu levantar um rochedo e retirar,
de debaixo dele, as sandálias e a espada que seu pai Egeu tinha deixado, para quando o
filho tivesse idade suficiente para usá-las, bem como destruiu os malfeitores e os monstros
que encontrou pelo caminho que levava ao reino de seu pai, que ficava em Atenas. Eis os
trechos do livro de Bulfinch que comprovam o que ora foi dito sobre esses heróis:
Hércules era filho de Júpiter e Alcmena. Como Juno era sempre hostil aos
filhos de seu marido com mulheres mortais, declarou guerra a Hércules desde o seu
nascimento. Mandou duas serpentes matá-lo em seu berço, mas a precoce criança
estrangulou-as com suas próprias mãos (BULFINCH, 2002, p. 176).
Teseu era filho de Egeu, rei de Atenas, e de Etra, filha do rei de Trézen, por
quem foi criado. Depois de homem, foi mandado a Atenas e entregue a seu pai.
Egeu, separando-se de Etra, antes do nascimento do filho, colocou a espada e as
sandálias sob uma grande pedra e determinou à esposa que lhe mandasse o filho
quando este fosse bastante forte para levantar a pedra. Chegada a ocasião, a mãe de
Teseu executou a incumbência e o jovem removeu a pedra com facilidade e se
apoderou da espada e das sandálias. Como as estradas estavam infestadas de
bandidos, o avô de Teseu aconselhou-o a seguir o caminho mais seguro e mais curto
para o país de seu pai: por mar. O jovem, contudo, sentindo em si o espírito e a alma
de um herói, e desejoso de se destacar como Hércules, cuja fama corria, então, por
toda a Grécia, pelo fato de destruir os malfeitores e os monstros que flagelavam o
país, resolveu fazer a viagem mais perigosa e aventurosa por terra (ibidem, p. 186).
Sobre o caráter sobre-humano que os heróis apresentavam a partir de pouca idade,
Brandão falou estas palavras, tomando, inclusive, Hércules e Teseu como exemplos:
De qualquer forma, exatamente por ser um herói, a criança vem ao mundo
com duas “virtudes” inerentes à sua condição e natureza: a timh/ (timé), a
“honorabilidade pessoal” e a a0reth/ (areté), a “excelência”, a superioridade em
157
Também chamada de Hera.
158
O herói da Mitologia Greco-Romana responsável pela morte do Minotauro, monstro da Ilha de Creta.
127
relação aos outros mortais [...], o que o dispõe a gestas gloriosas, desde a mais tenra
infância ou tão logo atinja a puberdade: Héracles, conta-se, aos oito meses,
estrangulou duas serpentes enviadas por Hera contra ele e seu irmão Íficles; Teseu,
aos dezesseis anos, ergueu um enorme rochedo sob que seu pai Egeu havia
escondido a espada e as sandálias; o jovem Artur, e somente ele, foi capaz de
arrancar a espada mágica de uma pedra... (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 23).
Essa imagem da criança-herói que foi fixada para a posteridade pelos poetas da
Antigüidade clássica coaduna com o que conta a História acerca dos cuidados que eram
dispensados aos recém-nascidos das antigas Grécia e Roma. Giuseppe Cambiano afirmou que
desde muito cedo as crianças gregas eram “temperadas” para as armas, como se pode ver no
seguinte excerto:
Os recém-nascidos eram imediatamente postos à prova e temperados pelas amas,
que os lavavam com vinho e não com água, para evitar que fossem atacados por
convulsões. Eram as amas e não as mães que os educavam, não os enfaixando e
habituando-os a uma alimentação austera, a não terem caprichos e não temerem a
escuridão e a solidão (CAMBIANO in VERNANT, 1993, p. 85).
Durante toda a vida, o herói greco-romano corre o mundo em busca de aventuras.
Geralmente, essas aventuras estão sempre acompanhadas do maravilhoso, ou seja, de magias,
de feitiços, de seres sobrenaturais etc. Quando não buscam tais aventuras de bom grado,
acabam sendo submetidos a elas por vontade de um deus ou de alguém que lhes é superior:
um rei, por exemplo. Perseu, já adulto, foi mandado por Polidectes à caça da Medusa,
monstro que transformava em pedra tudo o que para ela olhasse. Com a ajuda de Minerva e de
Mercúrio
159
, Perseu conseguiu matar esse monstro e dar fim ao sofrimento do povo daquela
região. Em seguida, utilizando os sapatos alados de Mercúrio, Perseu, que voava pela Etiópia,
salvou Andrômeda, filha da rainha Cassiopéia, de um monstro marinho. Antes disso,
enfrentou Atlas, o gigante, e transformou-o numa grande montanha, com a ajuda da cabeça da
Medusa que havia cortado e que levava consigo. Eis as passagens retiradas de Metamorfoses,
de Ovídio, que mostram as aventuras de Perseu:
159
Também conhecidos, na Mitologia Greco-Romana, como Palas e Hermes, respectivamente.
128
Fugiu sorrateiramente, passando por países longínquos,
Florestas densas e rochosas, até chegar à casa do Gorgone.
Por todos os lados, no campo, ao longo das estradas,
Viu formas de homens e animais transformados em estátuas de pedra,
Apenas por terem olhado para o rosto da Medusa. Ele também
Tinha visto aquele rosto, mas só como reflexo
No escudo de bronze que brandia na sua mão esquerda; e atacou
Enquanto as serpentes e o Gorgone estavam dormindo.
Atingiu-lhes a cabeça, e daquele sangramento materno
Nasceram os dois seres alados, Pégaso e seu irmão.
(OVÍDIO, 2003, pp. 92-93)
Perseu saudou Atlas: “Se a glória
Do nascimento divino tem algum significado para você,
Eu sou o filho de Júpiter, e, se você prefere
Se espantar com grandes façanhas, descobrirá que as minhas
São maravilhosas”. Mas Atlas, desconfiado,
Pensou numa antiga profecia de Têmis:
Atlas, chegará o tempo em que sua árvore perderá
Seu ouro, e o saqueador será o filho de Júpiter.”
Temeroso disso, Atlas emparedou sua orquídea,
Dando-a para ser guardada por um monstruoso dragão,
E manteve todos os estranhos dela afastados. Dirigindo-se a Perseu, disse:
“Saia daqui, seu mentiroso! Nem Júpiter
Nem sua glória vão lhe assegurar sua entrada aqui”. E deu-lhe
Um forte empurrão, mas Perseu resistiu,
Argumentou, e tentou apaziguá-lo. Mas, por fim,
Inferior em termos de força (quem poderia igualar-se
À força de Atlas?), disse ao gigante:
“Bem, já que você não vai me dar nada,
Eu tenho algo aqui para você!” Virou-se de costas,
E segurou, com sua mão esquerda escondida atrás do corpo,
A cabeça da terrível Medusa. E, já grande como era,
Atlas cresceu mais. Era quase como uma montanha: sua barba
E cabelo, as florestas, braços e ombros,
Escarpas, sua cabeça, o pico da montanha, e seus ossos, rochas.
E à medida que crescia, porque assim era a vontade dos deuses,
Sua grande carga chegou até o céu estrelado (ibidem, p. 90).
E Perseu a viu de lá do céu, Andrômeda,
Com os braços amarrados, persa a um rochedo; seus cabelos
Flutuavam, tocados por uma leve brisa, e lágrimas quentes
escorrendo pelo rosto
[...]
Desceu até ela
Dizendo: “Minha querida, as correntes que deveriam prendê-la
São apenas amarras amorosas em vez de grilhões. Posso lhe perguntar
Qual é o seu nome, seu paìs, a razão dessa sua situação?”
[...]
Ela disse seu nome, seu país, acrescentando, em seguida,
A história de como sua mãe tinha-se jactado tanto de sua beleza.
Não tinha terminado de contar tudo, quando o mar rugiu
E dele emergiu um monstro. Ela soltou um grito de pavor. Seus pais
Estavam a um palmo de distância, ambos lamentando [...]
Isso chocou Perseu
Profundamente. [...]
ele lhes disse,
“[...]
129
Eu, Perseu, filho de Júpiter e Dane,
[...]
Se eu conseguir salvá-la, ela será minha?
O que mais eles poderiam responder além de Sim?
Prometeram também lhe dar
Um reino como seu dote.
Como uma embarcação
Que oscila, mesmo com o esforço dos remadores
Tentando empurrá-la para o seu curso, assim aproximou-se
o monstro, levantando grandes ondas,
Uma funda do rochedo poderia facilmente atingi-lo,
Quando Perseu subiu até as nuvens e sua sombra
Pairou sobre a superfície da água, e o monstro, vendo
Aquela sombra, avançou contra ela. Como uma águia
Enxerga em campo aberto uma cobra serpenteando
Pelo mato e mergulha para apanhá-la, e
Finca suas garras atrás de sua cabeça, para evitar ser atacada pelo
veneno armazenado nas presas mortais,
Assim Perseu mergulhou dos céus em direção ao mar e atacou o monstro,
Que rugiu quando o ombro direito foi atingido pela
Espada. O ferimento parecia doer muito, e a besta marinha
Contorceu-se, esticou-se, mergulhou, voltou à superfície várias vezes.
De novo Perseu alçou vôo e atacou, o monstro vociferava, tentando
se desviar dos golpes, com sua cauda de peixe.
Seu vômito era uma mistura de sangue e água salgada.
As sandálias aladas ficaram pesadas com aquela gosma, e
Perseu achou que seria melhor
Não depender mais delas. Encontrou uma rocha
Que se projetava no mar e para lá ele voou, e de lá
Atacou de novo e de novo. Sua espada cravou fundo
Nas vísceras do monstro e as praias ecoaram
Para o céu os seus aplausos. Pai e mãe
Rejubilaram-se, saudaram seu genro, o salvador
De sua descendência (ibidem, pp. 91-92, passim).
Enquanto Fineo olhava, em dúvida, para um e outro,
Pensando qual deles deveria ser poupado, até que,
Com toda a força que a raiva lhe dava,
Lançou a arma na direção de Perseu, mas ela,
Desgovernada, cravou-se no assento de uma poltrona,
E Perseu, guerreiro, a arrancou dali
E a arremeteu de volta, e o teria matado,
Se Fineo não tivesse se encolhido para se esconder atrás do altar
Em busca de abrigo. Com isso, a lança encontrou
Outra vítima; cravou-se na testa de Rhoetu,
Alguém tentou arrancá-la, e Rhoetu prostrou-se,
Espirrando sangue no chão e nas mesas.
Nada mais poderia detê-los agora: todos pegaram suas armas.
Alguém disse que Cefeo deveria morrer com Perseu,
Mas Cefeo tinha ido embora, para bem longe do palácio,
Para chamar Justiça, Fé e todos os deuses
Que protegem os anfitriões e os convidados, para que testemunhassem
Que ele havia tentado dar um basta naquilo, em toda aquela loucura.
[...]
Havia um jovem, ali, Atis, da Índia,
Cuja mãe era uma ninfa de rio, Limnaee.
[...]
Ele era um exímio arremessador de dardos e teria
Usado de suas habilidades naquele momento,
Mas Perseu, arrancando do altar
130
Um estilete em brasa, usou-o como porrete e golpeou
O rosto do rapaz, deixando os ossos à mostra.
[...]
Erito, filho de Actor, tinha um machado,
E Perseu não usou a cimitarra contra ele,
Mas sim um grande alguidar que atingiu
Em cheio seu rosto. O sangue vermelho esguichou para todo lado,
A cabeça bateu no chão em convulsões mortais.
E então Perseu avançou contra os outros, Polidemon,
Liceto, Abaris, Hélices, Filégias,
Clito, e pisoteando nos quadris das vítimas moribundas.
[...]
Percebendo que sua força falharia
Diante daqueles intermináveis oponentes, Perseu exclama:
“Já que vocês pediram, chamarei meu inimigo para me ajudar.
Se algum amigo aqui estiver” e levantou bem alto
A cabeça de Gorgone “Se algum amigo aqui estiver,
Que vire seu rosto para outro lado!” E Tescelo respondeu:
“Procure outra pessoa para atemorizar com sua magia!”
E empunhou seu dardo, e na hora foi transformado em estátua.
O seguinte foi Ampix,
Que empunhava uma espada quando sentiu a mão direita pesar,
E os punhos ficarem rígidos. [...]
[Fineo] Junta as mãos, implorando:
“[...] era pela minha noiva que eu lutava.
Sua exigência foi mais meritória que a minha.
Eu admito, e não peço por mais nada,
A não ser pela minha vida: que todo o resto seja seu!”
[...]
Perseu respondeu:
“[...] você não vai morrer; você vai durar séculos,
Ser visto por séculos, na casa de seu irmão
[...]”. E balançou aquela cabeça,
De modo que Fineo a olhasse, e como ele se esforçasse
Para desviar o olhar, seu pescoço endureceu.
(ibidem, pp. 96-100, passim)
Hércules, como foi dito, enfrentou, desde criança, os obstáculos que Juno pôs em seu
caminho. Durante sua vida, teve de servir, a mando da mulher de Júpiter, a Euristeus (filho do
rei de Argos, Estênelo, e de Nicipe, a filha de Pélope, descendente de Perseu), que o obrigou a
realizar doze difìceis tarefas, conhecidas como “Os Doze Trabalhos de Hércules
160
”. A seguir,
trechos do duelo que Hércules travou com o deus-rio Aqueloo, por Dejanira, e do assassinato
do centauro Nesso, que a tentou violentar. Também um excerto em que o herói, antes de
morrer, fala dos grandes feitos que realizou em vida. Todas as passagens foram retiradas de
Metamorfoses:
160
Os doze trabalhos de Hércules foram: (i) Leão de Neméia, (ii) Hidra de Lerna, (iii) Corça dos pés de bronze,
(iv) Javali de Erimanto, (v) Cavalariças de Áugias, (vi) Aves do Lago Erimanto, (vii) Touro de Creta, (viii)
Cavalos de Diomedes, (ix) Cinto de Hipólita, (x) Bois de Gerião, (xi) Pomos das Hespérides e (xii) Cérbero.
131
Tirei o meu manto verde, levantei
Minhas mãos, e assumi a pose apropriada. Ele pegou
Um punhado de poeira e espalhou-a sobre meu corpo;
E fez o mesmo com o dele.
Dessa forma, poderíamos nos agarrar melhor. Hércules então me prendeu
Pelo pescoço, e minhas pernas ele tentou desestabilizar
Com golpes ardilosos, mas eu era pesado,
Pesado e grande. Fiquei ali, firme como um rochedo do mar,
Batido em vão pelas águas. Nós dois paramos
Por um tempo, e nos atracamos de novo, e ficamos grudados um no outro,
Determinados a não nos render, pés confrontando com outros pés.
[...]
Lutei contra os dedos que me pressionavam,
E tomei outra forma, a de um touro.
Mas seus braços agarravam meu ombro esquerdo,
Ele me derrubou e cravou meus chifres no solo.
Com a mão direita
Quebrou um dos chifres e arrancou-o da minha testa.
(OVÍDIO, 2003, pp. 182-183, passim)
[Hércules] Então alcançou a margem oposta e
Estava pegando seu arco, quando ouviu sua esposa
Gritando por socorro: Nesso estava cheio de más intenções.
“Então”, exclamou Hércules, “este monstro de corpo duplo
Tem tanto orgulho de sua força e rapidez que chega
A se tornar violento? Agora me ouça, Nesso!
Deixe as coisas que me pertencem! O veículo que seu pai
Dirige no Inferno eterno deveria servir-lhe de alerta
Contra amores proibidos. Você não me escapará,
Não importa o quanto confie nos seus poderes de cavalo!
Eu o pegarei, se não correndo,
Pela minha destreza”. E, enquanto falava, provou o que dizia:
Lançou contra ele uma flecha que cravou em suas costas
e saiu pelo ombro.
Os dois ferimentos sangravam, e o sangue já estava contaminado pelo
veneno de cobra
No qual Hércules havia mergulhado a ponta.
Nesso arrancou a flecha de seu corpo. “Não vou morrer”.
Pensou, “sem vingança”, e deu seu manto
Manchado de sangue como presente para Dejanira,
A donzela que teria violado.
Queria que ela o guardasse como lembrança sua,
Para ajudar a fazer com que o amasse (ibidem, p. 184).
Foi para isso que subjuquei Busiris,
Que profanou os templos dos deuses com o sangue
De estranhos assassinatos? Foi para isso que liberei
Anteo de sustentar o globo, para isso
Matei Gerion, arrancando-o de Cérbero? Minhas mãos
Agarraram os chifres do touro, e Elis foi beneficiado
Com os bosques partenianos e as águas de Stinfalian.
Minhas mãos trouxeram de volta o cinturão de ouro e
As maçãs de ouro do dragão insone.
Os centauros não conseguiram resistir a mim, nem o javali
Que destruiu Arcádia. Eu matei a Hidra,
Que ganhava com suas próprias perdas, e nenhum bem
Fazia aquele monstro! E os cavalos tracianos,
Alimentados com sangue humano. Suas manjedouras
132
Cheias
De corpos eu descobri, e quando isso aconteceu,
Eu os fiz em pedaços. Estas foram as mãos que dominaram
O leão de Neméia, estes os ombros
Que carregaram o peso do mundo, uma vez, para Atlas.
Juno cansou de dar ordens; eu
Nunca me cansei de obedecê-las (ibidem, pp. 185-186).
Porém, Hércules, a exemplo de Jasão, não esperava que lhe impusessem tarefas a
cumprir para que pudesse participar de grandes aventuras. Exemplo disso foi o fato de ele ter
se juntado a Jasão na busca do Velocino de Ouro, embora tenha abandonado a empreitada no
meio do caminho
161
. Jasão, exemplo de coragem e de astúcia, acabou por conseguir o Tosão
de Ouro após enfrentar três obstáculos, parecidos com alguns dos trabalhos que Hércules
realizara a pedido de Euristeus: arar a terra com dois touros de patas de bronze que soltavam
fogo pela boca e pelas narinas, semear os dentes do dragão que Cadmo matara e dos quais
sairia uma safra de guerreiros que voltariam suas armas contra o semeador e adormecer o
dragão que guardava o velocino. Com a ajuda da feiticeira Medéia, filha do rei Étes que tinha
se apaixonado por Jasão, este conseguiu vencer as três provas e tomou para si o Tosão de
Ouro, que depois foi oferecido ao rei Pélias. Os seguintes trechos da obra de Ovídio mostram
bem os trabalhos realizados por Jasão no reino da Cólquida:
“[...] E então chegaram
Os touros de pés de bronze, soltando fogo pelas ventas,
queimando a grama
Por onde passavam com a sua respiração. [...]
Jasão caminhou
Na direção deles, e eles abaixaram suas carrancas
Ameaçadoras, os chifres com as ponteiras de ferro
Em posição de ataque. Cavavam o solo com seus cascos, irritados.
E os Minianos ficaram gelados de medo, mas Jasão
Continuava caminhando até eles.
Não sentia o fogo que soltavam pelas ventas.
As ervas que Medéia lhe dera, ao que parece, estavam funcionando.
Suas mãos levantaram-se para colocar a canga nos seus pescoços,
Para subjugá-los, fazê-los puxar o arado
Por campos que nunca antes haviam sido semeados (OVÍDIO, 2003, p. 136).
161
Hércules deixou a expedição em Mísia, porque Hilas, um jovem amado por ele, tendo desembarcado para
buscar água, ficou detido pelas ninfas da fonte, fascinadas por sua beleza, Hércules entrou numa discussão,
por causa do jovem, e, durante sua ausência, o “Argo” se fez ao mar, deixando-o” (BULFINCH, op. cit., p.
164).
133
Do capacete de bronze ele tirou os dentes da serpente,
Jogou-os na terra sulcada pelo arado, e seu veneno foi absorvido pelo solo.
As sementes germinaram instantaneamente,
[...]
Assim, aquela terra,
Como uma mulher grávida, fez dela brotarem novas formas de
homens que cresciam,
Despontavam no solo fértil.
Eram centenas e centenas deles e, o mais estranho,
Afloravam já totalmente armados, brandindo suas armas.
O povo os viu apontar suas lanças ameaçadoras contra Jasão,
[...]
Mas Jasão arremessou
No meio daqueles guerreiros uma pedra enorme, e então a fúria que
Era dirigida a ele, voltou-se para os próprios,
e os irmãos recém-nascidos da terra
Feriram-se e mataram-se uns aos outros (ibidem, p. 136).
Mas uma tarefa ainda faltava, pôr para dormir o dragão
Que nunca dorme, o monstro com crista,
Língua tripla, presas retorcidas, o guardião
Da árvore dos frutos de ouro. Jasão espirrou nele
Suco das ervas letaianas, e cantou, três vezes,
Uma canção que chama o sono e acalma até
O mais bravio dos mares, e estanca a correnteza dos rios.
Então o sono chegou àqueles olhos que nunca antes
Souberam o que era o sono, e Jasão ganhou o espólio
De ouro. Orgulhoso, tomou também
Outro espólio, a mulher que o ajudara a vencer (ibidem, p. 137).
Para completar essa galeria dos primeiros heróis greco-romanos, deve-se falar de Teseu
e de Meleagro (ou Meléagro): aquele, conhecido por ter dado fim ao sofrimento dos
atenienses, matando o Minotauro; este, por ter livrado a Caledônia de um terrível javali
enviado por Diana para devastar o lugar. Sobre Teseu, deve-se dizer que essa não foi a sua
única aventura, mas certamente foi a que tornou a sua lenda mundialmente conhecida. Antes
de assassinar o Minotauro, Teseu realizou outras façanhas, a caminho de Atenas, como
enfrentar Perifetes, filho de Vulcano que atemorizava os viajantes, e castigar Procusto,
malfeitor que costumava amarrar todos os viajantes que encontrava pela frente. no que
concerne a Meleagro, há-de se dizer que o seu empreendimento mais memorável foi mesmo o
de ter dado fim à existência do enfurecido javali de Ártemis; porém, ele também participou da
busca do Velo de Ouro. Agora, excertos d‟O Livro de Ouro da Mitologia que tratam dos
134
feitos do filho de Egeu. Logo em seguida, passagens de Metamorfoses que mostram o maior
feito de Meleagro.
No primeiro dia de viagem, chegou a Epidauro, onde vivia um filho de
Vulcano. Perifetes, selvagem feroz, sempre armado com uma clava de ferro, que
atemorizava os viajantes, com seus atos de violência. Ao ver aproximar-se Teseu,
ele o atacou, mas foi logo vencido pelo jovem herói que se apoderou de sua clava e
trouxe-a sempre consigo, depois disso, como lembrança de sua primeira vitória.
Seguiram-se várias lutas semelhantes contra tiranetes e bandidos e em todas Teseu
saiu vitorioso. Um dos malfeitores chamava-se Procusto e tinha um leito de ferro, no
qual costumava amarrar todos os viajantes que lhe caíam nas mãos. Se eram
menores que o leito, ele lhes espichava as pernas e, se fossem maiores, cortava a
parte que sobrava. Teseu castigou-o, fazendo com ele o que ele fazia com os outros
(BULFINCH, 2002, pp. 186-187).
Chegando a Creta, os jovens e donzelas foram todos exibidos diante de
Minos, e Ariadne, filha do rei, que estava presente, apaixonou-se por Teseu, e este
amor foi correspondido. A jovem deu-lhe, então, uma espada, para enfrentar o
Minotauro, e um novelo de linha, graças ao qual poderia encontrar o caminho. Teseu
foi bem-sucedido, matando o Minotauro e saindo do labirinto. Levando, então,
Ariadne, regressou a Atenas, juntamente com os companheiros salvos do monstro.
Durante a viagem, pararam na Ilha de Naxos, onde Teseu abandonou Ariadne,
deixando-a adormecida (ibidem, p. 188).
Os trechos da obra de Ovídio que abordam o triunfo de Meleagro sobre o javali da
Caledônia:
E a deusa [Diana]
Lançou sobre a Caledônia uma grande vingança,
Um javali grande como um touro, com olhos vermelhos da cor do sangue,
Pescoço rijo, pêlos grossos crescendo por todo o corpo,
Como flechas espetadas numa parede, terríveis rugidos, presas longas
Como os de um elefante indiano. Faíscas saltavam
De sua boca; sua respiração queimava a grama.
O monstro estragou várias plantações de milho,
Deixou os celeiros vazios,
À espera de uma colheita que nunca seria feita (OVÍDIO, 2003, p. 164).
Então Meleager e os homens jovens, estimulados pela coragem,
Começaram a se juntar para combater o javali os filhos de Leda,
O boxeador e o ginete, Castor e Pólux,
Jasão, o primeiro armador, e seus outros companheiros
Piritous e Teseu, Linceu, Idas,
Ceneo, que, dizem, já tinha sido mulher,
Leucipo e Acasto, os lanceiros,
Hipotous e Drias, Fileo, os dois filhos
De Actor, e Telamon e Peleu, famosos
Como o pai do grande Aquiles, e Admeto,
Iolo da Beócia, Eurition,
Esquion, Lelex, Hileo, Panopeo,
Nestor, então ainda residente e vigoroso, e um grupo
Que Hipocon mandou de Amicle, Laertes,
135
Anceo, Mopso, o filho de Ecleo, ainda a salvo
Da ruína que a esposa lhe traria. E veio
Também o orgulho das florestas da Arcádia, Atalanta.
(OVÍDIO, 2003, p. 165)
Quando uma pedra
Voou da catapulta armada na muralha,
Lançada pelos soldados, a besta veio para cima dela,
Mortalmente ameaçadora. Dois homens,
Eupalamo e Pelagaon, caíram.
Seus companheiros tentaram puxá-los de volta, para afastá-los
do perigo.
Não conseguiram, entretanto, salvar Enesimo, que se pôs
A correr e foi pego por uma das presas do javali e estropiado por ela.
Nestor se aproximou dos guerreiros troianos
Usando a lança como apoio para com ela saltar, e acabou
Indo terminar seu vôo nos ramos de uma árvore; Hipaso
Tentou enroscar no carvalho as presas do javali, mas, com uma
estocada, o animal abriu um enorme ferimento
Em sua coxa (OVÍDIO, 2003, p. 166).
Meleagro atacou com duas lanças; uma perdeu-se e a outra
Fincou no dorso do monstro. Ele começou a girar
Em círculos, espirrando sangue e baba, e os caçadores
Fecharam o cerco, e fincaram naquele corpanzil outra lança,
e mais outra, e mais outra.
Todos festejaram, e se cumprimentaram,
Comemorando antecipadamente a vitória, e ficaram
Olhando o animal abatido,
Sem coragem de tocá-lo.
Todos mergulharam suas lanças no seu sangue (OVÍDIO, 2003, p. 167).
Todo esse imaginário criado pelos antigos gregos e romanos em torno do
comportamento dos heróis da Antigüidade clássica, no que concerne a viverem em busca de
aventuras, com o intuito de mostrarem aos outros e, principalmente, a si mesmos o seu valor,
e no que diz respeito a batalharem contra malfeitores ou inimigos, para dar redenção a um
determinado povo e, com isto, alcançarem a honra, a glória, repousa no ideal do cidadão-
guerreiro da Grécia antiga, conforme se pode perceber a partir destas palavras de Garlan:
O homem grego estava habituado à guerra e foi mesmo belicoso, como se pode
demonstrar com facilidade e de várias maneiras (GARLAN in VERNANT, 1993, p.
49).
Na vida diária, a guerra é uma preocupação constante para os cidadãos: por isso,
participar nela é uma obrigação que, em Atenas, ia desde os dezanove até aos
cinquenta e nove anos (até aos quarenta e nove anos, no activo, e depois, na
reserva); decidir a respeito dela constitui, por toda parte, a competência mínima das
assembleias populares. A todos os níveis e em todos os campos se afirma o
predomínio do modelo guerreiro: na vida familiar, o soldado é, como se pode ver
nas condecorações dos vasos áticos, a figura central em torno da qual se articulam as
136
relações internas do oikos; na vida religiosa, cada uma das divindades do Olimpo é
dotada de uma função militar específica; na vida moral, o valor de um homem de
bem (agathòs), a sua aretè, consiste em primeiro lugar na coragem racional que
manifesta tanto no seu íntimo, ao lutar contra as paixões mesquinhas, como no
campo de batalha onde o aguarda a <<bela morte>>, a única que tem um significado
social (ibidem, pp. 49-50).
O historiador chama, ainda, a atenção para o fato de que sempre deveria haver um
motivo plausível para a guerra, ou seja, algo que justificasse o embate:
A guerra civil (stasis), que opunha entre si os membros de uma mesma
comunidade política, concebida à imagem da família, era unanimemente considerada
desastrosa e ignominiosa. A única que podia ser valorizada era a guerra entre
comunidades, o pòlemos, e mesmo essa sob condições. De facto, a guerra
desenfreada e selvagem, a guerra dos lobos, era considerada uma transgressão
escandalosa (hybris) às normas de convivência por outras palavras, de justiça
que os homens deviam respeitar não entre eles mas também em relação aos
deuses. O lemos propriamente dito, pelo contrário, não podia prescindir da
observância de determinadas regras: declaração de guerra na forma devida,
realização dos sacrifícios adequados, respeito pelos lugares (santuários), pelas
pessoas (arautos, peregrinos, suplicantes) e pelos actos (juramento) referentes à
divindade, concessão de autorização aos vencidos para recolherem os seus mortos e,
em certa medida, abstenção da crueldade gratuita (GARLAN in VERNANT, 1993,
p. 50).
Contudo, Junito de Souza Brandão afirmou que, independente de guerras, de lutas e/ou
de justas, o objetivo do herói era sempre o de matar, pois ele tinha sede de sangue. Assim, o
motivo para o assassínio poderia ser reles ou até mesmo nem existir, pois o que importava
mesmo era a prática do homicídio. Esse comportamento do herói greco-romano foge, como se
viu, à ética guerreira da Grécia antiga; todavia, não se deve nunca perder de vista que tudo
aquilo que se apresenta acerca da vida daquele nada mais é que uma exacerbação do modo
como este agia, pensava e sentia: o imaginário dos antigos apenas “carregou as tintas do
quadro”, ou seja, exagerou no caráter beligerante do herói mìtico. Sabedores dos absurdos que
poderiam advir da postura sanguinária do herói, que destoava daquilo que se esperava
acontecer, no mundo real, os gregos e os romanos da Antigüidade logo procuraram uma
forma de puni-lo pelo seu insaciável desejo de matar; desse modo, introduziram, em alguns
mitos, o filicídio e o parricídio acidentais: o herói, tentando contra a vida de outrem, acabava
por assassinar ou o seu pai ou o seu filho.
137
A violência dos heróis, no entanto, não se limita ao campo sexual. Talvez sua
tarefa mais brutal seja “matar”, já feita abstração da guerra, das lutas e das justas,
“espaços naturais do derramamento de sangue e da atividade característica do
herói”. Afora tudo isto, são poucos os heróis que não tenham cometido, ao menos,
um homicìdio. “A motivação desses homicìdios, argumenta Brelich, é tão vária,
muitas vezes tão contraditória e sobretudo tão desproporcionadamente
insignificante, que a impressão de que na maior parte das vezes seja puramente
secundária: o importante é o homicìdio e não sua causa”. [...] Heróis e heroìnas
matam “por acaso” ou, segundo expressão técnica, praticam o fo/nov a0kou/siov
(phónos akúsios), o “homicìdio involuntário”, cuja eficácia literária é reconhecida
por Aristóteles. [...] Uma variante do mito é o caso em que o herói, querendo
assassinar alguém, mata, por fatalidade, a um parente, como Aédon, que, desejando
exterminar os filhos de Níobe, golpeia o próprio filho. Uma segunda variante é
aquela em que o herói, querendo matar a uma pessoa, o faz, mas logo em seguida
descobre tratar-se do seu próprio pai: além do caso de Édipo, que mata a Laio, tem-
se no mito o episódio de Altêmenes, que mata a seu pai Catreu, confundindo-o com
um pirata (Apol. 3,16). Há, todavia, muitas outras causas que levam o herói à prática
de homicídio: mata por inveja [...]; por ciúmes (BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 60-
61, passim).
Uma observação importante é que, na lista negra de homicídios praticados por
heróis, a percentagem de parentes assassinados é muito grande [...]... Havia até
mesmo, na antiguidade, catálogos em que se registraram esses tipos violentos de
assassinatos entre familiares (ibidem, p. 61).
O homicídio pode, além do mais, ser conjugado com o sacrilégio: Ájax Oileu
violenta Cassandra junto ao altar da deusa Atená e Neoptólemo mata ao rei Príamo
sobre o altar de Zeus Herquio. Aquiles, apaixonado pelo filho caçula de Príamo,
Troilo, assassina-o dentro do templo de Apolo (ibidem, p. 62).
Quanto ao assassínio pode ser o mesmo agravado, segundo se viu mais acima, pelo
grau de parentesco entre o criminoso e a vítima ou ainda pela crueldade com que foi
praticado. [...] Ulisses, o mais solerte dos gregos, foi assassinado por um simples
adolescente, que, por acaso, era seu filho... (ibidem, p. 64).
Para que o herói obtivesse êxito nas guerras, nas lutas e nas justas em que iria se
envolver, ao longo da vida, sempre em busca de honra e de glória, fazia-se mister que ele
fosse educado, desde cedo, por um grande mestre nas artes das armas. Aquele deixava cedo a
casa dos pais e ia viver ao lado deste, geralmente em florestas ou em montes, para aprender
não a batalhar, mas também para ser iniciado na arte da cura (do corpo e do espírito), na
retórica, na caça, na equitação e na música. A formação-iniciática” do herói, desse modo,
compunha-se de várias etapas: somente depois de passar por todos esses aprendizados e por
uma série de aventuras (como os doze trabalhos a que Hércules foi obrigado a se submeter;
como os percalços pelos quais Perseu teve de passar, antes de se casar com Andrômeda; como
as provas que Jasão enfrentou para obter o Velocino de Ouro e como o labirinto no qual Teseu
138
entrou, para matar o Minotauro), que em muitos casos consistiam no verdadeiro rito
iniciático, era que o herói podia voltar para a sua família e ser tido como cidadão, ou seja,
participar da vida social, política e religiosa da pólis. Era comum, também, que, após a
“formação-iniciática” o herói mudasse o seu nome. A seguir, passagens do livro de Junito
Brandão e de Paidéia: a Formação do Homem Grego
162
, de Werner Jaeger, que abordam o
que já foi dito neste parágrafo acerca da “formação-iniciática” dos heróis:
Dado importante, para que o herói inicie seu itinerário de conquistas e vitórias, é a
“educação” que o mesmo recebe, o que significa que o futuro benfeitor da
humanidade vai desprender-se das garras paternas e ausentar-se do lar, por um
período mais ou menos longo, em busca de sua “formação iniciática”. A partida, a
educação e, posteriormente, o regresso representam, consoante Campbell, o percurso
comum da aventura mitológica do herói, sintetizada na fórmula dos ritos de
iniciação separação-iniciação-retorno, “que poderia receber o nome de unidade
nuclear do monomito”, isto é, partes integrantes e inseparáveis de um mesmo e único
mitologema. Separando-se dos seus e, após longos ritos iniciáticos, o herói inicia
suas aventuras, a partir de proezas comuns num mundo de todos os dias, até chegar a
uma região de prodígios sobrenaturais, onde se defronta com forças fabulosas e
acaba por conseguir um triunfo decisivo. Ao regressar de suas misteriosas façanhas,
ao completar sua aventura circular, o herói acumulou energias suficientes para
ajudar e outorgar dádivas inesquecíveis a seus irmãos (BRANDÃO, 2007, vol. III, p.
23).
Jasão, tão logo abandonou a corte de Iolco, foi entregue ao grande educador de
heróis, o Centauro Quirão [...]. Aos vinte anos organizou a célebre Expedição dos
Argonautas. Navegou com seus cinqüenta e cinco heróis através das “rochas azuis”,
as Ciâneas, também denominadas Simplégades, “as rochas que se fecham”, chegou à
Cólquida, venceu as “provas” impostas por Eetes, enganou o dragão que guardava o
Velocino de Ouro e regressou com o mesmo, para disputar com o usurpador Pélias o
trono que a ele Jasão cabia de direito e de fato. Prometeu, o filantropo, vencidas
tantas fadigas e renúncias, escalou o Olimpo, roubou o fogo celeste e recuperou a
humanidade. Enéias, após tantos sofrimentos “em terra e no mar”, acompanhado da
Sibila de Cumas, desceu aos Infernos e, após cruzar os mortais rios do Hades e
passar pelo monstruoso Cérbero, pôde afinal dialogar com o eídolon, a umbra, a
sombra de seu pai Anquises. Todas as coisas lhe foram reveladas: o destino das
almas, o destino de Roma, que ele iria fundar, e sobretudo como suportar tantas
aflições e sofrimentos que ainda teria pela frente. Enéias, o “piedoso Enéias”, voltou
ao mundo da luz através da porta de marfim, para realizar todas as tarefas que as
Parcas lhe impuseram (ibidem, p. 24).
Vários foram os mestres dos heróis, como Lino, Eumolpo, Fênix, Forbas, Cônidas...,
mas o educador-modelo foi o pacífico Quirão, o mais justo dos Centauros, na
expressão de Homero [...]. Muitos heróis passaram por suas mãos sábias, na célebre
gruta em que residia no monte Pélion: Peleu, Aquiles, Asclépio, Jasão, Actéon,
Nestor, Céfalo... [...] Quirão: ministrava igualmente a seus discípulos conhecimentos
relativos à caça, Cinegética; à equitação, Hípica, bem como lhes ensinava a tanger a
lira e o arremesso do dardo... Mais que tudo, no entanto, o fato de ser Quirão um
médico ferido, um xamã, e residir numa gruta evocam, de pronto, sua função mais
nobre e indispensável aos jovens “históricos”, mas sobretudo aos heróis mìticos, a
162
JAEGER, op. cit.
139
saber, a ação de fazê-los passar por ritos iniciáticos, que outorgavam aos primeiros o
direito à participação na vida política, social e religiosa da pólis e aos segundos a
imprescindível indumentária espiritual, para que pudessem enfrentar a todos e
quaisquer monstros... (ibidem, pp. 26-27, passim).
O mestre dos heróis por excelência era, naquele tempo, o prudente centauro Quíron,
que vivia nos desfiladeiros selvosos, de abundantes nascentes, das montanhas de
Pélion, na Tessália. Diz a tradição que uma longa série de heróis foram seus
discípulos e que Peleu, abandonado por Tétis, confiou-lhe a guarda de seu filho
Aquiles. [...] Embora o poeta do canto nono ponha Fênix em lugar de Quíron, como
educador de Aquiles, em outra passagem da Ilíada, Pátroclo é convidado a aplicar
num guerreiro ferido um remédio que aprendeu de Aquiles, o qual por sua vez o
aprendera outrora de Quíron, o mais justo dos centauros. É certo que o ensino se
limita aqui à Medicina Quíron foi também, como se sabe, mestre de Asclépio ,
mas Píndaro menciona-o igualmente como educador de Aquiles na caça e nas nobres
artes cavaleirescas, e é evidente ter sido esta a concepção originária. O poeta da
“Embaixada a Aquiles” não pôde utilizar o tosco centauro como medianeiro, ao lado
de Ájax e Ulisses, pois um herói cavaleiresco podia surgir como educador de
outro herói (JAEGER, 2001, pp. 49-50, passim).
Permite-nos descobrir de uma só vez o que é característico na antiga educação
aristocrática. Peleu entrega o seu filho Aquiles, sem qualquer experiência na arte da
palavra e na conduta guerreira, ao seu leal vassalo, dando-o a ele como companheiro
no campo e na corte real, e este imprime na consciência do herói um alto ideal de
conduta humana transmitido pela tradição. Essa função recai sobre Fênix devido aos
seus longos anos de comportamento fiel para com Aquiles; ela não é senão a
continuação de uma amizade paternal que uniu o ancião ao herói, desde a mais tenra
infância deste. Recorda-lhe com comoventes palavras os tempos da meninice,
quando à hora da refeição sentava-o nos joelhos e ele não queria ficar com ninguém
mais, como lhe partia os pedaços e lhe dava de beber o próprio vinho, e como ele
freqüentemente se babava e molhava a roupa no peito. Fênix ficou junto dele e
considerou-o como filho quando lhe foram recusados os próprios filhos pela trágica
maldição de seu pai Amíntor. Pôde assim esperar encontrar proteção na velhice
junto do seu jovem herói. Mas, além de aio e paternal amigo, Fênix é ainda o guia de
Aquiles no sentido mais profundo da educação ética. A tradição das antigas sagas
oferece-nos exemplos vivos desta educação; não apenas figuras de vigor e esforço
sobre-humanos, mas também homens em cujo sangue passa a corrente viva da
experiência, cada vez mais profunda, de uma antiga dignidade renovada dia a dia
(ibidem, p. 52).
Do que se tem notícia, ao menos sumária, pode-se destacar o corte de cabelo, a
mudança de nome, o mergulho ritual no mar, a passagem pela água e pelo fogo, a
penetração num Labirinto, a catábase ao Hades, o androgismo, o travestismo, a
hierogamia. [...] Da mesma forma, certos momentos da lenda de Aquiles podem ser
interpretados como provas iniciatórias: ele foi criado pelos Centauros, isto é, foi
iniciado na savana por Mestres mascarados ou que se manifestavam sob aspectos
animalescos; suportou a passagem pelo fogo e pela água, provas clássicas de
iniciação, e chegou inclusive a viver entre as moças, vestido como uma delas,
seguindo um costume específico de certas iniciações arcaicas de puberdade
(BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 27-28, passim).
Outro fato muito importante na iniciação heróica e histórica é a mudança do nome.
Jasão somente deixa seu mestre Quirão aos vinte anos, após receber um novo nome,
consoante Píndaro, Píticas [...]. Outro que mudou de nome, por obra da arte
iniciática do mesmo preceptor, foi Aquiles, conforme testemunha Apolodoro [...].
Igualmente Teseu recebe seu verdadeiro nome, ao término da adolescência,
quando foi reconhecido pelo pai, no dizer de Plutarco, Teseu [...]. O próprio
Héracles, antes de tornar-se “a glória de Hera”, antes do término dos Doze
Trabalhos, chamava-se Alcides (ibidem, p. 31, passim).
140
Similar à “formação-iniciática” dos heróis era o rito de passagem a que eram
submetidos os efebos da Grécia antiga. Para serem considerados cidadãos, o que significava
poder participar da vida política, social e religiosa da pólis, os efebos tinham de se sujeitar,
antes, à vida militar; noutras palavras, tinham de se tornar guerreiros. Além das aulas de
manejo de armas, eles deveriam fazer juramentos de fidelidade à pátria e aos companheiros de
armas e prestar determinados serviços militares para a cidade-estado à qual pertenciam, como
forma de demonstrar tudo aquilo que haviam aprendido com os seus mestres. Com o passar
do tempo, a essas atividades físicas foram se somando aquelas mais ligadas ao intelecto: os
efebos passaram a ter aulas de retórica (Filosofia), de medicina e até de astronomia. O rito
iniciático a que deveriam se submeter os efebos também lembra imenso uma parte da
“formação-iniciática” a que se submetiam os heróis ticos: aqueles, como acontecia a estes,
tinham de se afastar de suas famílias e ir em direção ao campo, com um homem mais velho,
que o iniciava na caça e, dessa forma, introduzia-o no universo adulto. É certo que, por trás
dessa relação pedagógica, existia uma relação de cunho homossexual: acontece que esta era
vista mesmo como algo capaz de contribuir para a formação moral e intelectual do efebo.
Sobre a “formação-iniciática” do efebo da Grécia antiga e sobre o papel importante desta para
a formação do cidadão-guerreiro falaram Giuseppe Cambiano e Luciano Canfora as seguintes
palavras:
A inscrição no demo e, portanto, o ingresso de pleno direito na cidadania era
um passo bastante delicado e antecedia a prestação do serviço militar na qualidade
de efebo, sob a superintendência de um cosmeta e de dez sofronistas, um por cada
tribo. A assembleia procedia à eleição de dois pedótribes, um mestre de armas, um
de tiro ao arco, um de lançamento de dardo e um de catapulta, que se encarregavam
da instrução dos efebos. Por ocasião da festa de Ártemis Agroteras, os efebos
participavam numa procissão e, no santuário de Aglauro, juravam defender a pátria,
as suas fronteiras e as suas instituições e não abandonar o camarada de armas.
Depois, dirigiam-se para o Pireu, onde prestavam serviço de guarda em duas
fortalezas. No segundo ano de serviço, os efebos eram passados em revista pela
assembleia, no teatro de Dioniso, onde demonstravam o que tinham aprendido
durante a instrução militar. Ao entregar-lhes o escudo e a lança, a cidade exprimia a
sua passagem para a condição adulta do hoplita. Em seguida, sob o comando dos
estrategos, começavam a patrulhar o território da Ática, a prestar serviço nas
141
fortalezas e a garantir a segurança nas sessões da assembleia, envergando a clâmide
negra. O serviço de patrulha em zonas fronteiriças, fora da cidade, acompanhado por
estrangeiros, colocava o efebo numa zona intermediária antes de ocupar, como
cidadão de pleno direito, o espaço central da cidade, provavelmente em memória ou
como herança de uma época de iniciação repartida por classes etárias, embora já
tivesse prestado juramente como hoplita (CAMBIANO in VERNANT, 1993, pp.
93-94).
Todavia, sobretudo a partir do século III a. C., o aspecto militar da efebia foi
sendo cada vez mais complementado por uma instrução de tipo superior. O ginásio
continuava a ser o centro da vida dos efebos. Atenas tinha três fora da cidade, o
Liceu, a Academia e o Cinosarco. Em finais do século III a. C., foram criados mais
dois, o Ptolomeu e o Diógeneo, provavelmente construídos em honra de benfeitores
privados. Nesses ginásios, porém, não se praticava apenas a ginástica; havia também
aulas e conferências de filósofos, mestres de retórica, e por vezes também de
médicos. No século I a. C., até um astrónomo fez conferências no ginásio de Delfos.
Entre 208 e 204, foi erigida no Ptolomeu uma estátua ao filósofo estóico Crisipo,
que deve ter ensinado nesse local. Assim, a vida dos jovens atenienses e também dos
estrangeiros que em número crescente chegavam a Atenas para ouvir as lições dos
filósofos e dos mestres de retórica assumia uma nova dimensão (ibidem, p. 94).
Na segunda metade do século V a. C., os sofistas tinham surgido como
símbolos e fautores dessa mudança. Não se dedicavam a um ensino regular e
contínuo, num lugar fixo; iam de cidade em cidade, pronunciando discursos
demonstrativos para arranjar discípulos e dando aulas, onde se aprendia sobretudo a
falar convincentemente em público. Tratava-se em grande parte de um ensino
formal, que incidia nas diferenças de linguagem, nas figuras de retórica e no estilo,
mas que não desdenhava de aplicar esses conhecimentos a temas políticos, éticos e
religiosos de interesse geral (ibidem, p. 95).
De facto, os jovens das famílias mais ricas é que podiam ter acesso a ele e
o seu objectivo consistia essencialmente na formação de elites governativas.
Extremamente atractivo para os jovens, era um tipo de ensino que podia parecer
prematuro em relação à tradicional distinção das tarefas próprias das várias idades
da vida humana, porque antecipava para a juventude a aprendizagem e o exercício
do saber falar que, a partir de Homero era considerado próprio a par da bravura na
guerra do homem completo, se não mesmo do ancião: e o princípio da ancianidade
era fundamental para a atribuição do poder em todas as cidades gregas. Antes de
mais, o jovem devia preparar-se para combater; saber falar viria com o tempo, com a
experiência. O ensino dos sofistas parecia, porém, querer queimar as etapas (ibidem,
p. 95).
Em Creta, a relação homossexual entre um jovem e um amante mais velho
era uma etapa essencial para ele se tornar homem, mas não assumia a forma de uma
corte, assemelhando-se mais a um rapto ritual. Três dias antes do rapto, o amante
informava os amigos do jovem. Estes, tendo em conta a classe do amante que
devia ser igual ou superior à do jovem , decidiam se permitiriam ou impediriam o
rapto. Se o rapto fosse permitido, o raptor, acompanhado por amigos, podia levar o
jovem para fora da cidade, para o campo, onde organizavam banquetes e iam à caça
o desporto típico dos heróis, modelos dos efebos durante dois meses, findos os
quais já não era permitido reter o jovem. Este era o momento da segregação,
acompanhado por uma vida de agregação, típico de uma iniciação. Ao regressar à
cidade, o jovem recuperava a sua liberdade, depois de ter recebido como presente o
equipamento militar, um boi e uma taça; sacrificava o boi a Zeus e festejava o grupo
que o tinha escoltado no regresso, manifestando a sua satisfação ou insatisfação pelo
período de intimidade passado com o amante. Para os jovens de família nobre, não
encontrar um amante era algo de vergonhoso, dado que equivalia ao reconhecimento
da falta das qualidades que permitiam a entrada no grupo dos adultos guerreiros,
simbolizada pela oferta das armas depois da iniciação homossexual. Além disso, os
raptados ocupavam lugares de honra nos coros e nos ginásios e, como sinal de
142
distinção, envergavam o trajo que lhes fora oferecido pelo amante. Assim
começavam a fazer parte da elite constituída por aqueles que eram designados por
kleinòi, <<insignes>> (ibidem, p. 87).
Embora não seja de excluir que existissem relações homossexuais entre jovens da
mesma idade, por norma devia haver uma diferença de idade entre o amante e o
jovem amado. Essa assimetria tornava possível, por um lado, a distinção entre o
papel activo e o papel passivo, e não só no sentido físico, e, por outro lado, a
dimensão pedagógica da relação. [...] O jovem devia revelar ponderação e pór à
prova o amado, testando o seu caráter. A passividade constitutiva do amado não
devia transformar-se em escravidão. Assim se forjavam modelos de conduta que
visavam formar o futuro cidadão livre na sua capacidade de mandar e ser mandado
(ibidem, pp. 90-91, passim).
A relação homossexual não era, portanto, vivida e considerada como oposto à
relação heterossexual: se esta permitia, no matrimónio, a reprodução física de
futuros cidadãos livres, a dimensão pedagógica da relação homossexual contribuía
para a sua formação moral e intelectual (ibidem, p. 91).
Enviar o filho a casa de um mestre e não a um edifício público construído a
expensas da cidade, como era o ginásio estava de certa forma associado à tradição
mítica, que descrevia o herói expulso de casa por um tutor, como Aquiles por Fênix.
[...] O único controlo da cidade sobre a escola era de tipo moral: uma idade mais
avançada e um espaço público como o ginásio podiam permitir a instituição de
relações homossexuais com uma base pedagógica correcta (ibidem, p. 92, passim).
Aprender a ler em voz alta, passando da letras para as sílabas e para as palavras, e
depois aprender a escrever segundo a mesma sequência podia levar vários anos. Em
seguida, o jovem começava também a aprender de cor versos e excertos mais
amplos de poetas, sobretudo de Homero, que foi sempre considerado como um
ponto de referência ímpar de modelos de conduta e de valores (ibidem, p. 92).
Numa palavra, na época clássica, a visão da cidadania resume-se à identidade
cidadão-guerreiro. É cidadão, faz parte de pleno direito da comunidade através da
participação nas assembléias deliberativas, quem é capaz de exercer a principal
função dos homens adultos livres, isto é, a guerra (CANFORA in VERNANT, 1993,
p. 108).
As semelhanças existentes entre a formação, ou seja, a Paidéia, do herói mítico e a do
guerreiro da Grécia antiga devem-se, em boa medida, ao fato de os mitos e as epopéias (a
Ilíada, em especial) terem sido utilizados, durante séculos, na educação das crianças e dos
efebos da Antigüidade. Acontece que a pedagogia do exemplo (os heróis serviam como
modelos a serem seguidos, por conta das obras valorosas que haviam praticado “em vida”)
revestia-se de grande importância para a civilização grega. Com os heróis míticos era possível
aprender, dentre outras coisas, a ter coragem, a ser leal e até a lutar. A seguir, excertos de
143
textos de Jaeger, Campos, Giordani
163
e Vidal-Naquet que atestam o que acaba de ser dito
acerca do papel pedagógico dos mitos e dos poemas épicos:
um ponto em que é preciso insistir, porque é da maior importância para a
compreensão da estrutura espiritual do ideal pedagógico da nobreza. Trata-se do
significado pedagógico do exemplo. Nos tempos primitivos, quando ainda não
existia uma compilação de leis nem um pensamento ético sistematizado (exceto
alguns preceitos religiosos e a sabedoria dos provérbios transmitida por via oral de
geração em geração), nada tinha, como guia da ação, eficácia igual à do exemplo.
Ao lado da influência imediata do ambiente e, especialmente, da casa paterna,
influência que na Odisséia exerce um poder tão grande sobre as figuras de Telêmaco
e Nausícaa, encontra-se a enorme riqueza de exemplos famosos transmitidos pela
tradição das sagas. Desempenham na estrutura social do mundo arcaico um papel
quase idêntico ao que entre nós cabe à História, sem excluir a história bíblica. As
sagas encerram todo o tesouro dos bens espirituais que constituem a herança e
alimento de cada nova geração (JAEGER, 2001, pp. 57-58).
A evocação do exemplo dos heróis famosos e do exemplo das sagas é para o
poeta parte constitutiva de toda a ética e educação aristocráticas. Temos de insistir
no valor deste fato para o conhecimento essencial dos poemas épicos e da sua
radicação na estrutura da sociedade arcaica. Mas até para os Gregos dos séculos
posteriores os paradigmas têm o seu significado como categoria fundamental da vida
e do pensamento (ibidem, p. 59).
O mito contém em si este significado normativo, mesmo quando não é
empregado expressamente como modelo ou exemplo. Ele não é educativo pela
comparação de um acontecimento da vida corrente com o acontecimento exemplar
que lhe corresponde no mito, mas sim pela sua própria natureza. A tradição do
passado celebra a glória, o conhecimento do que é magnífico e nobre, e não um
acontecimento qualquer. O extraordinário, até pelo simples reconhecimento do fato,
obriga. Mas o cantor não se limita a referir os fatos. Louva e exalta o que no mundo
é digno de elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em
vida, a devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima a quem tem
direito, assim todo o autêntico feito heróico essedento de honra. Os mitos e as
lendas heróicas constituem um tesouro inesgotável de exemplos e modelos da nação,
que neles bebe o seu pensamento, ideais e normas para a vida. Uma prova da íntima
conexão entre a epopéia e o mito é o fato de Homero usar exemplos míticos para
todas as situações imagináveis da vida em que um homem pode estar na presença de
outro para o aconselhar, advertir, admoestar, exortar e lhe proibir ou ordenar
qualquer coisa. Tais exemplos geralmente não se encontram na narração, mas sim
nos discursos das personagens épicas. O mito serve sempre de instância normativa
para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade
universal. Não tem caráter meramente fictício, embora originalmente seja, sem
dúvida alguma, o sedimento de acontecimentos históricos que alcançaram a
imortalidade através de uma longa tradição e da interpretação enaltecedora da
fantasia criadora da posteridade. Nem de outro modo se deve interpretar a união da
poesia com o mito, a qual foi para os Gregos uma lei invariável. Está intimamente
ligada à origem da poesia nos cantos heróicos, a idéia de glória, do louvor e da
imitação dos heróis (JAEGER, 2001, p. 68).
No entanto, acima do elemento da raça e do povo, que só podemos apreender
de maneira emocional e intuitiva, e que se conserva com rara imutabilidade através
das mudanças históricas do espírito e da fortuna, não podemos esquecer a influência
163
GIORDANI, op. cit.
144
histórica incalculável que o mundo humano plasmado por Homero exerceu sobre
todo o desenvolvimento histórico posterior da sua nação (ibidem, p. 84).
Os múltiplos significados que esses épicos tiveram para os gregos, ao longo
de sua história, não podem ser determinados de maneira unívoca. De modo geral,
porém, podemos dizer que adquiriram, primeiramente, uma função prática e quase
enciclopédica, “educando” a Grécia Antiga a respeito de procedimentos sociais,
deveres, crenças, comportamentos em família e até habilidades (como as de guerra e
governo), promovendo assim um sentimento de coesão social e, em larga escala, de
coesão étnica. Tiveram, também, de modo mais amplo, um alcance que podemos
classificar de espiritual, e por isso mesmo atemporal. A contínua recitação desses
poemas ao longo dos séculos representava, para os gregos, a possibilidade de
permanência de reflexões cruciais, propostas por meio de histórias envolvendo
antepassados extraordinários, que conviviam com os deuses e em alguns casos deles
descendiam. Esses homens, por sua condição excepcional de semideuses, viviam
situações intensas e muitas vezes excessivas, que os aproximavam dos imortais, ao
mesmo tempo que reforçavam sua condição de mortais. O canto dessas experiências
carregadas de cores tinha, portanto, a capacidade de explicitar, para o homem
comum, o sentido de sua existência simultaneamente finita e divina, e assim nunca
deixava de ser significativo, ainda que ouvido dezenas de vezes (CAMPOS, s/d, p.
22).
Ao que tudo indica, a língua homérica reveste um caráter bastante artificial, o que se
explica razoavelmente pelo fato de a poesia de Homero nada ter de popular. <<Ela se
dirige a uma aristocracia cujas relações ultrapassam os limites da cidade>>. <<A
poesia épica se dirige a toda aristocracia grega: a Ilíada é o mais pan-helênico dos
poemas>> (GIORDANI, s/d, v. I, p. 296-297).
Quando lemos a Ilíada e a Odisséia, não podemos esquecer que esses poemas
eram destinados a serem recitados para um auditório de homens ricos e poderosos,
capazes de ir à guerra armados da cabeça aos pés: capacete, couraça, grevas
(VIDAL-NAQUET, 2002, p. 15).
Nossas bibliotecas se enriqueceram com outras epopéias, de origem oriental,
como a de Gilgamesh, herói da Mesopotâmia, que é também uma reflexão sobre a
condição humana em relação ao mundo divino. Porém, Gilgamesh nos foi
restituído graças às escavações feitas nos tells, colinas da Mesopotâmia (hoje
Iraque), no século XIX. Essa epopéia não pôde ter, portanto, sobre a nossa cultura, a
fabulosa influência da Ilíada nem a da Odisséia (ibidem, p. 100).
A Ilíada, nessa forma, foi naturalmente o grande modelo de toda a épica
posterior (JAEGER, 2001, p. 40).
A vida sedentária, a posse de bens e a tradição são os pressupostos da cultura
da nobreza. Estas três características possibilitam a transmissão das formas de vida
de pais para filhos. Segundo os imperativos dos costumes da nobreza, a finalidade
do jovem consciente do seu padrão deve ser aderir a esse “adestramento” distinto. E,
apesar de na Odisséia existir um sentimento de humanidade para com as pessoas
comuns e até para com os mendigos, apesar de faltar a orgulhosa e aguda separação
entre os nobres e os homens do povo, e existir a patriarcal proximidade de senhores
e servos, não se pode imaginar uma educação e formação consciente fora da classe
privilegiada. O adestramento como formação da personalidade humana, mediante o
conselho constante e a direção espiritual, é uma característica típica da nobreza de
todos os tempos e povos. [...] A educação converte-se aqui, pela primeira vez, em
formação, isto é, na modelação do homem integral de acordo com um tipo fixo. A
importância de um tipo desta natureza para a formação do Homem esteve sempre
presente na mente dos Gregos. Esta idéia desempenha um papel decisivo em toda a
cultura nobre, quer ser trate do xalo\v xa0gaqo/v dos Gregos, da cortesia da Idade
Média cavaleiresca, ou da fisionomia social do séc. XVIII, tal como nos é
145
apresentada por todos os retratos convencionais da época (ibidem, pp. 43-44,
passim).
No que concerne ao homossexualismo presente na “formação-iniciática” dos guerreiros
da antiga Grécia, deve-se dizer que ele também existia na dos heróis ticos. A Literatura
documenta que Hércules, conforme foi dito numa nota de rodapé deste capítulo, deixou de
participar de um rito iniciático, a busca do Velocino de Ouro, empreendida por Jasão,
justamente porque um de seus amados, Hilas, ficou preso em Mísia, por conta de sua beleza:
tendo ido buscar água numa fonte, este foi aprisionado por ninfas que por ele se apaixonaram.
Durante a discussão pela posse do efebo, travada entre Hércules e as ninfas, o Argo lançou-se
ao mar, deixando para trás o filho de Júpiter e Alcmena. Sobre a presença do
homossexualismo nos mitos dos heróis, Junito de Souza Brandão disse as seguintes palavras:
O homossexualismo é outra presença constante no mito dos heróis. [...] Laio,
hóspede de Pélops, raptou-lhe, por paixão incontrolável, o filho Crisipo (Apol.
3,44), o que irá provocar a “culpa primordial” dos labdácidas (BRANDÃO, 2007,
vol. III, p. 60).
Após a “formação-iniciática”, o herói estava pronto para enfrentar qualquer guerra,
como outrora se falou. Mas por que guerreavam os heróis míticos? Já foi visto, por meio das
figuras de Perseu, Hércules, Jasão e Teseu, o herói, antes de qualquer coisa, lutava ou
batalhava em busca de honra e de glória. Deve-se ter percebido, também, que, para alcançar
esse fim, ele, dentre outras coisas, tinha de proteger os mais fracos mulheres, crianças,
viajantes ou até mesmo a população inteira de uma cidade de malfeitores e/ou de monstros:
Perseu livrou Serifo da Medusa; Hércules pôs Neméia a salvo do Leão; Teseu libertou Atenas
do Minotauro; Meleagro defendeu a Caledônia do javali de Diana. Entretanto, havia outras
razões que levavam à guerra os heróis. A Ilíada, cuja narrativa traz guerreiros que muito
tinham passado pela “formação-iniciática”, ou seja, homens maduros, em atividade plena,
apresenta outros motivos. Além disso, pela enorme quantidade de guerreiros que desfilam
146
pelas suas páginas, ela traz inúmeros exemplos mais do modo de agir, de pensar e de sentir do
herói da Antigüidade clássica, capazes de reforçar as características deste que já foram
arroladas até aqui e mesmo de apresentar outras. Contudo, antes que se passe aos guerreiros
da Ilíada, para que se possam dar a conhecer outras razões capazes de levar os heróis para a
guerra, faz-se mister tecer algumas considerações acerca dessa epopéia de Homero, por conta
de seu caráter histórico, principalmente, mas também por seu aspecto híbrido. Essa
historicidade e essa hibridação, aliadas à pedagogia, ou seja, à Paidéia, que é inerente a esse
poema épico, como foi mostrado, decerto ajudam a explicar a estreita relação que existe
entre essa obra de ficção e a realidade que ela procurou representar.
Praticamente todos os ensaios que giram em torno da Ilíada abordam, de alguma forma,
por alguma razão, a Questão Homérica. Esta consiste na tentativa de se descobrir se o mesmo
autor da Ilíada foi também o da Odisséia, ou se para cada um desses poemas houve um autor
diferente, ou, ainda, se vários foram os autores da Ilíada e da Odisséia, cabendo a uma pessoa
de gênio “somente” a compilação das várias histórias que resultaram nos dois mais antigos
poemas do Ocidente. André Malta Campos, num artigo publicado na Revista EntreLivros (“O
legado literário de Homero”), assim se referiu às principais questões em torno da autoria dos
poemas atribuídos a Homero:
afinal, esses poemas foram compostos por um único homem (Homero), por dois
homens diferentes, ou por vários homens?; essa composição aconteceu num
momento determinado, ou passou por fases sucessivas, até que os poemas
adquirissem uma forma final?; os poemas foram transmitidos oralmente, com a
escrita intervindo de modo tardio e acessório, ou a escrita foi decisiva para a sua
transmissão e acabamento? Eram questões complicadas, que se interpenetravam e se
desdobravam em outras mais, produzindo um emaranhado interpretativo vigoroso,
sem paralelo nos estudos clássicos (CAMPOS, s/d, p. 23).
Essas questões (ou essa Questão) surgiram muito tempo: no final do século XVII,
segundo Pierre Vidal-Naquet
164
; embora as discussões mais acaloradas tenham começado a
164
VIDAL-NAQUET, op. cit., p. 122.
147
acontecer a partir da segunda metade do século XVIII. Tais questões foram motivadas pelo
notório caráter híbrido das duas epopéias, tanto no que diz respeito à linguagem em que estão
vazadas (nada menos que quatro dialetos diferentes, de acordo com Maria Helena da Rocha
Pereira
165
) quanto no que concerne à convivência, lado a lado, dentro de ambas as narrativas,
de elementos de culturas gregas temporalmente distantes. Sobre a hibridação cultural dos
poemas homéricos, Pereira discorreu estas palavras:
Na verdade, diversas incongruências e repetições levaram a supor que [os Poemas
Homéricos] deviam ter sofrido interpolações ou acrescentos (PEREIRA, 1993, v.I,
p. 49).
As dificuldades são, efectivamente, muitas. Uma está na linguagem, onde formas
de diversas épocas e elementos de nada menos de quatro dialectos diferentes, quer
dizer, uma ngua oficial, que não deve nunca ter sido falada. Para complicar a
questão, passa-se outro tanto no domínio da arqueologia, sem que haja concordância
entre estratos linguísticos e estratos arqueológicos. Um exemplo frisante é que o
elmo de presas de javali, ornamento dos guerreiros micénicos, aparece descrito no
canto X da Ilíada, mais conhecido por Doloneia, que linguisticamente é dos mais
recentes (ibidem, pp. 49-51).
É frequente que cada herói ou povo tenha os seus epítetos distintivos, os quais,
conforme a descoberta do Prof. PAGE, ascendem, em grande parte, à época
micénica, de cuja tradição derivam. Assim, por exemplo, os Aqueus são <<de belas
cnémides>>, <<de brônzeas túnicas>> ou <<de longos cabelos>>; os Troianos são
<<domadores de cavalos>> (pela razão adiante exposta); Heitor é <<de casco
faiscante>> (ibidem, pp. 55-56).
Uma vez reconhecido o caráter híbrido das epopéias atribuídas a Homero, faltava,
então, explicar como ambas foram elaboradas: foi quando as discordâncias começaram a
aparecer e, em decorrência disso, houve a formação de dois grupos de pesquisadores: o dos
analistas e o dos unitaristas. Para estes, Homero (enfim, a quem se atribui a autoria da Ilíada e
da Odisséia) seria uma espécie de compilador, que, valendo-se de vários poemas mais ou
menos em torno do mesmo assunto (a guerra de Tróia), originários de épocas e de culturas
distintas, teria escrito os dois épicos; para aqueles, à Ilíada e à Odisséia originais, escritas
por Homero, foram sendo realizados acréscimos textuais, ao longo dos tempos. No seu artigo,
Campos falou dos unitaristas e dos analistas:
165
PEREIRA, op. cit. pp. 49-51.
148
Os analistas, de um lado, na esteira da revalorização oitocentista dos aspectos
populares e folclóricos, queriam ver em Homero a síntese de uma longa produção
coletiva, rica em cantos heróicos, que esses estudiosos diligentemente buscavam
discriminar. Desse modo, da Ilíada e da Odisséia chegávamos a subcantos, camadas
ou extratos diferenciados (às vezes, a um “núcleo original”), que ao longo de alguns
séculos foram se transformando e agrupando para formar os conjuntos maiores que
hoje lemos. A série de “cochilos” no enredo dos poemas por exemplo, o
reaparecimento de um herói que havia morrido , aliada a uma suposta diversidade e
discrepância de comportamentos, costumes, objetos e formas lingüísticas,
comprovaria a existência dessas camadas, que o filólogo, espécie de arqueólogo
literário, deveria desenterrar. Em sentido contrário, os chamados unitaristas, por sua
vez, minimizavam a importância desses problemas e descartavam a atuação de um
grupo de poetas, ocupados que estavam em chamar a atenção para a presença de um
grande gênio, que reuniu elementos díspares de uma rica tradição de modo brilhante
e sutil, dando-lhes uma uniformidade e um acabamento que, acima das miudezas,
são claramente percebidos na leitura de ambos os poemas (CAMPOS, s/d, p. 23).
Após pesquisas realizadas por Parry em torno dos epítetos dos heróis que se
movimentam na Ilíada e na Odisséia, a balança pendeu para o lado dos unitaristas, pelo
menos no que diz respeito à Ilíada. Esse pesquisador concluiu que a utilização dos
qualificativos está intimamente relacionada à memorização e à oralidade: os epítetos
ajudariam os cantores a lembrar (ou na lembrança de) partes do poema, que era passado de pai
para filho, de pessoa para pessoa. Sendo assim, Homero teria sido “tão-somente” o
compilador de todo um material (de caráter oral, vale salientar) que se colocou à sua
disposição. Evidentemente que não haveria nisso demérito nenhum: quem a Ilíada com
atenção é capaz de perceber a perfeita coesão da narrativa, de modo que se fosse Homero
“apenas” um compilador ele teria cristalizado (o termo é de Roberto Pontes), ao ter passado
para o âmbito da escrita algo que pertencia à oralidade, os acontecimentos em torno dos dez
últimos anos da guerra de Tróia com muito gênio e com muita arte. Já com relação à Odisséia,
a balança tem sido mais favorável para os analistas, e não são necessárias muitas palavras
para dizer o porquê. Os motivos, como já se pôde perceber, não se devem à linguagem híbrida
do poema e à existência de elementos culturais de origem vária dentro da narrativa, mas à
existência da Telemaquia dentro da Odisséia e às incoerências narrativas e/ou descritivas que
se pode encontrar ao longo desta epopéia. Este capítulo não irá se ocupar muito da Odisséia,
149
uma vez que esta narrativa é um elogio à paz. Interessa a esta pesquisa tratar do herói em
combate, daí a maior importância dada à Ilíada. Somente ao final da Odisséia, praticamente,
com a morte dos pretendentes, é que temos um teor mais guerreiro dentro desta epopéia.
Sobre a pesquisa realizada por Parry em torno dos epítetos da Ilíada e da Odisséia, que deu
um novo rumo à Questão Homérica, fazendo inclinar a balança para o lado dos unitaristas, e
sobre a importância dessa investigação para os estudos que têm por objeto os poemas
atribuídos a Homero, disse André Campos:
Depois de fazer um extenso levantamento das fórmulas epíteto + nome e de
compará-las, Parry concluiu, num primeiro momento, que a epopéia arcaica era
composta por um sistema formular extremamente funcional, que auxiliava o cantor
em sua composição, e, num momento seguinte, que esse sistema, por ser
extremamente complexo, não poderia ser trabalho de um homem só, mas fruto de
uma longa tradição de poesia oral. A oralidade da poesia homérica havia sido
apontada antes, desde o século XVIII pelo menos, mas nenhum estudioso havia se
dado conta de que a oralidade implica características específicas, peculiaridades de
composição que podem ser corretamente compreendidas se vistas de um ponto de
vista próprio, estranho à mentalidade da cultura escrita com que Homero era lido e
debatido, por analistas e unitaristas. Em 1933, por exemplo, C. M. Bowra dizia que a
literatura grega Homero incluído “parecia ter sido escrita por homens como
nós”, isto é, com nosso mesmo conceito de linguagem (CAMPOS, s/d, p. 24).
Os estudos de Parry têm duas implicações importantes: esvaziam a figura do autor e
ampliam a datação da poesia homérica, dando ênfase ao seu longo desenvolvimento.
É esse longo desenvolvimento que explica a multiplicidade que é característica da
Ilíada e da Odisséia o seu amálgama lingüístico, narrativo, histórico e cultural
(que os analistas sublinhavam), recolhido por um mesmo estilo e um fio narrativo
coeso e complexo, que nunca se perde (como assinalavam os unitaristas). Esses
poemas e muitos outros foram transmitidos ao longo de séculos pelos cantores,
que os cantavam valendo-se da memória de um estoque infindável de fórmulas
(recriáveis pelo processo de analogia), que compreendiam, que compreendiam desde
a locução epíteto + nome estudada por Parry e versos que antecedem e sucedem as
falas dos personagens, até blocos temáticos, como situações típicas de banquete,
armamento, combate etc. A estrutura paratática da poesia homérica muito mais
coordenativa do que subordinativa permitia o manejo ligeiro e a improvisação
dessas fórmulas, que eram justapostas quase como que unidades autônomas,
correspondendo a versos ou grupo de versos. Por esse mecanismo, conferia-se
enorme elasticidade ao poema, que, contando a mesma história principal, podia ser
mais ou menos extenso segundo o acréscimo ou a supressão de digressões e
episódios. Como dissemos, a esses poemas épicos se associava, em geral, por uma
recusa ao anonimato, o nome de Homero, que pode ter sido figura histórica (um
aedo grego), mas que jamais foi, para os gregos, aquilo que entendemos por “autor”
para os gregos, ele era “O poeta”. Ainda que essa figura histórica tenha em algum
momento atuado, de maneira feliz, na elaboração tradicional dos poemas, eles
continuaram a ser cantados e recompostos depois dele, sofrendo os efeitos da
tradição, transformando-se em seus convívio com a escrita, num longo processo de
uniformização e cristalização, ao final do qual se fixaram em definitivo. Os textos
que hoje lemos são, portanto, fruto dessa dominação do canto ancestral pela escrita,
e retratam não são as performances de grandes rapsodos, mas também as de hábeis
copistas (ibidem, p. 24).
150
no que diz respeito à Ilíada ser um poema de guerra e a Odisséia ser um poema de
paz, assim se expressaram Pierre Vidal-Naquet e Maria Helena da Rocha Pereira:
A Ilíada é um poema da guerra. Em caso de necessidade, os próprios deuses
intervêm para contrariar os processos de paz. [...] De certa maneira, a Odisséia é o
poema da paz, ainda que por vezes ocorram lutas. Diferentemente da Ilíada,
concluída com a trégua que permite a realização dos funerais de Heitor, a Odisséia
termina com uma paz estabelecida entre Ulisses e as famílias dos pretendentes
mortos por ele (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 51, passim).
A Odisseia é, fundamentalmente, um poema de no/stov, ou seja, de regresso, um
dos muitos que se compuseram, possivelmente o mais extenso, e seguramente o
melhor. Aquela palavra aparece logo na proposição e invocação com que abre a
epopeia. Estamos bastante afastados do tema da Ilíada, embora as figuras principais
continuem ligadas ao ciclo troiano. O alvo agora é a paz, e pode dizer-se que a
nostalgia da paz é a sua dominante (PEREIRA, 1992, p. 87).
Ciente da tradição oral que existe por trás dos poemas homéricos (e, por isso, mais
próximo das idéias dos unitaristas; pelo menos no que concerne à Ilíada), que acaba por
apontar Homero “apenas” como um compilador de muitas histórias, as quais ele teria
magistralmente fundido, falou Carlos Alberto Nunes o seguinte, no prefácio da sua edição da
Ilíada:
tanto a Ilíada como a Odisséia representam a fase última do movimento épico
da Grécia, firmando-se ambos os poemas em copioso material preexistente, isto é,
em poemas de proporções menores, em sagas, lendas, mitos de origem variada, que
iam sendo incorporados a conjuntos cada vez mais complexos (NUNES in
HOMERO, 2002, p. 10).
poema uniforme, firmado em copioso material preexistente, de que dispôs
soberanamente um poeta de gênio. Será o Homero da tradição grega. Se aceitarmos
a concepção dos separatistas, mais do que um poeta de gênio, teria sido Homero um
poeta de sorte, um eleito da Fortuna, para ter encontrado, prontas para a sua
compilação, tão grande número de poesias que se completavam com tamanha
docilidade, o que não seria menor milagre do que o da composição do conjunto
(ibidem, p. 19).
Valendo-se de material copioso e de grande antigüidade, como revela a feitura do
hexâmetro, coube a Homero a primeira síntese grandiosa, em que emprestava feição
monumental a epopéias menores, imprimindo-lhes cunho pessoal (ibidem, p. 32).
O grande merecimento de Wilamowitz consiste em nos ter restituído um Homero
vivo, que se integra num movimento épico de grandes proporções, com o apogeu na
Jônia do século VIII, movimento que não se circunscreve apenas à atividade de
Homero. Antes e depois dele, muitos poetas integravam o movimento épico da
Grécia. Natural de Esmirna, viveu e fez poesias particularmente em Quio, tendo
151
causado tão profunda impressão entre os seus contemporâneos, que os steros lhe
atribuíram a autoria da Tebaida e de outras epopéias. “É necessário”, conclui
Wilamowitz, “identificar o Homero da tradição com o poeta da Ilíada.” (ibidem, p.
33).
Resumindo, direi que o grande merecimento de Pestalozzi consiste em ele haver
firmado, pela primeira vez na história da Questão Homérica, um ponto de referência
para o estudo da Ilíada e da Odisséia fora destes próprios poemas que até então
passavam como sendo os mais antigos monumentos da literatura grega, transmitidos
durante séculos por tradição oral. No entanto, temos um poema perfeitamente
definido, que termina com a morte de Aquiles, como o queria Wilamowitz para a
Ilíada de sua reconstrução. Neste poema não se inspirou Homero para o assunto
propriamente dito de sua epopéia que os acontecimentos eram posteriores aos da
Ilíada , mas fez mais: foi buscar nele temas e sugestões. Esta conclusão poderá ser
de conseqüências imprevisíveis para a fixação da data que Homero teria vivido, isto
é, o autor da síntese majestosa, a última redação da Ilíada (ibidem, pp. 36-37).
Grande é a dívida de Homero em relação a seus predecessores, de que ele mesmo
não fazia mistério, por ser estranho ao movimento épico da Grécia o conceito
moderno da originalidade a todo custo; a originalidade, então, consistia na nova
apresentação de um assunto conhecido, em que ocorriam transcrições longas de
episódios e cenas, dispostos sob nova perspectiva (ibidem, p. 37).
Homero não trabalhava com tesoura e cola: ainda que nos indique honestamente as
fontes de inspiração, imprimia cunho próprio ao material emprestado (ibidem, p.
42).
Muitas poesias isoladas, sagas de tribos distantes, são incorporadas, assim, à lenda
de Tróia, numa “deslocação de mitos” que se impunha à vista do prestìgio alcançado
pela narrativa do famoso cerco (ibidem, p. 46).
Deste modo chegamos à conclusão da unidade da Ilíada. Ainda que composta de
material heterogêneo, da mais variada procedência, sente-se que sua feitura
obedeceu a um plano arquitetônico de linhas sóbrias e de equilíbrio perfeito. Por ser
o livro tradicional, em que muitas gerações trabalharam, na redação final ressalta a
orientação firme de um poeta de gênio, que, sabendo aproveitar o material deixado
pelos seus antecessores, imprimiu-lhe o cunho do seu gênio insuperável (ibidem, p.
54).
Essa discussão em torno da hibridação cultural que existe no âmbito da Ilíada e da
Odisséia levanta outra questão; esta, relacionada ao caráter historicista dos poemas
homéricos: essa hibridação cultural, esse “caldo cultural”, não prejudica as narrativas em
questão como documentos históricos? Para responder a essa pergunta, faz-se necessário falar
um pouco da historicidade dos poemas homéricos.
A Ilíada e a Odisséia constituem-se nos dois mais antigos registros que se tem da
aristocracia grega; por isso, os historiadores sempre as consultam na hora de (re)construir a
história da antiga Grécia. Assim se referiram Carlos Alberto Nunes e Werner Jaeger sobre a
importância dos poemas homéricos como fontes históricas:
152
a Ilíada é uma epopéia, e a Odisséia, um romance. Isto é, na Ilíada vamos
encontrar tradições militares das tribos do mundo helênico, em suas variadas etnias,
com certa base histórica, ainda que transfigurada pelos mitos, ao passo que o tema
da Odisséia é um tema universal, que ocorre na literatura de muitos povos e cuja
ação se passa em toda parte e ao mesmo tempo em parte alguma. Isto explica o fato
de serem tão fecundos os achados arqueológicos no que se refere à Ilíada, ao passo
que m sido desesperadoramente negativas as escavações levadas a cabo nas duas
ilhas Tiaki e Leucas que os entendidos identificam com a tradicional Ítaca
(NUNES in HOMERO, 2002, p. 11).
O testemunho mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero,
se com este nome designamos as duas epopéias: a Ilíada e a Odisséia. Para nós, ele é
ao mesmo tempo a fonte histórica da vida daqueles dias e a expressão poética
imutável dos seus ideais (JAEGER, 2001, pp. 25-26).
Acontece que, e isso não se poder perder nunca de vista, os textos de Homero são, antes
e acima de qualquer coisa, literários. Isso significa dizer que, ainda que estejam pautados na
realidade, ou seja, tirem sua matéria e seus elementos do mundo real, eles não têm obrigação
nenhuma de serem fiéis aos fatos históricos, ou seja, de trazerem, nas suas páginas, apenas
verdades. Também o fato de serem cristalizações de um material de longa tradição oral, como
se viu, faz com que eles tragam, dentro das suas narrativas, elementos pertencentes a
diferentes momentos da civilização grega, tanto no que diz respeito ao aspecto lingüístico
quanto no que concerne ao figurativo (objetos bélicos, arquitetônicos). Mário Curtis Giordani,
em seu livro História da Grécia, falou as seguintes palavras, acerca do caráter histórico dos
poemas atribuídos a Homero:
Toynbee, estudando as conseqüências das invasões dóricas, cita a Ilíada e a
Odisséia como as fontes mais <<detalhadas e atraentes, mas também as mais
aleatórias e menos fidedignas>>. Ainda o mesmo autor adverte que <<qualquer
tentativa de usar a Ilíada e a Odisséia como fontes históricas estaria cheia de
armadilhas>>. Sirvam essas observações de complemento ao que já escrevemos no
capítulo anterior sobre o mesmo assunto. Fantasia e realidade misturam-se em
Homero sob a capa de uma poesia encantadora. O genial poeta canta um passado
distante que ele mesmo conhece através das tradições. Seria esse passado, pelo
menos em parte, o passado miceniano? Os palácios homéricos lembram os palácios
revelados pelas ruínas de Micenas e de Tirinto; os objetos descritos assemelham-se
aos encontrados nas escavações arqueológicas. Como os micenianos, os heróis
homéricos combatem com lanças, espadas, arcos e carros. Entretanto, existem notas
discrepantes entre o mundo dos poemas e o mundo miceniano: a civilização de
Micenas era bem mais rica e as indústrias se encontravam mais desenvolvidas; os
gregos homéricos cremavam os cadáveres, prática essa não encontrada nos túmulos
micenianos; outra nota discrepante: o mundo homérico usa o bronze e o ferro
153
enquanto que o mundo aqueano está situado em plena Idade do Bronze. Com esses
exemplos, o leitor poderá fazer uma idéia do cuidado que se deve ter no uso da
Ilíada e da Odisséia como fontes históricas (GIORDANI, s/d, v. I, p. 108).
Como se viu, a hibridação cultural encontrada nos poemas homéricos fez com que eles
perdessem muito dos seus créditos perante os historiadores (pelo menos com relação aos
historiadores tradicionalistas; ou seja, aqueles que se dedicam apenas a narrar, linearmente, a
história das civilizações). É que eles não têm em mente que a Literatura não precisa ser fiel ao
real para ser verdadeira. Ao criar um mundo fictício, em cima da realidade, Homero (ou quem
quer que tenha sido) criou a Grécia mais autêntica, porque a idealizou. O poeta colocou, nas
suas narrativas, a essência do mundo argivo: tratou, no plano do imaginário, dos modos de
agir, de pensar e de sentir do herói, que, na realidade, correspondia ao cidadão-guerreiro
grego, figura em torno da qual girava todo o mundo heleno. De qualquer forma, mesmo
fictícias e híbridas (pelo fato de oscilarem entre o mundo micênico e aquele posterior às
invasões dóricas), as obras de Homero conseguiram falar, muito bem, para os historiadores
Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet, rio Curtis Giordani e Werner Jaeger, da
estratificação social da Grécia antiga (para ser mais exato, das classes sociais existentes no
período conhecido por Idade das Trevas); do modo como o poder estava distribuído entre as
diversas camadas que compunham a civilização grega pré-histórica; da Economia, ou seja,
dos principais meios de produção desse período; da Religião, ou da relação entre homens e
deuses; e, principalmente, das ações, dos pensamentos e dos sentimentos do herói da
Antigüidade clássica, que representava, simbolicamente, o cidadão-guerreiro da Grécia antiga
(de todos os períodos, como se verá).
No que concerne ao modo de produção e à estratificação social da Idade das Trevas
grega, época em que, para a maioria dos helenistas, teriam vivido os heróis homéricos que se
movimentam na Ilíada e na Odisséia, deve-se dizer que a sociedade estava dividida em
basileus (termo genérico que podia ser utilizado em substituição a basileis, a basilêuteros ou a
154
basilêutatos), que desempenhava funções reais, mas que não possuía poderes absolutos, como
o anax do período micênico (Agamémnon, personagem da Ilíada, enquadra-se nessa figura de
basileus); gerusia, um conselho de anciãos; nobreza, composta por guerreiros aristocratas que
poderiam formar pequenos ou grandes agrupamentos sociais, como os genos (a numerosa
família de Príamo, personagem da Ilíada, é um exemplo de genos), as fratrias ou as tribos; e
camponeses, que trabalhavam nos demos (terras comuns) e ajudavam a sustentar o modo de
produção, que era o feudal. Apesar de ter ocorrido um verdadeiro esfacelamento da estrutura
social do período micênico, após a invasão dórica, muitos aspectos da realidade micênica,
como a estrutura social e o modo de produção pouco citados, permaneceram durante o
período homérico; sobretudo em pequenos reinos: a Ítaca de Ulisses, personagem principal da
Odisséia, é um exemplo, na Literatura, de um desses. A seguir, trechos das obras de
Vernant
166
, Giordani e Vidal-Naquet que tratam da hierarquia social e do modo de produção
da Grécia pré-histórica:
Todavia, desenha-se nitidamente uma oposição entre dois tipos de posse,
designando as duas formas diferentes que uma ko-to-na pode apresentar, um lote,
uma porção de terra. As ki-ti-me-na ko-to-na são terras privadas, usurpadas, ao
contrário das ke-ke-me-na ko-to-na, ligadas ao damos, terras dos demos rurais,
propriedade colectiva do grupo rural, cultivadas segundo o sistema do open-field e
sendo provavelmente objecto de uma redistribuição pediódica. Ainda neste ponto, L.
R. Palmer conseguiu estabelecer uma aproximação sugestiva com o código hitita,
que distingue também duas espécies de posse. A do homem do serviço feudal, do
guerreiro, depende directamente do palácio, e regressa ao palácio quando a prestação
de serviço deixa de ser garantida. Em contrapartida, os <<operários>>, ou seja, os
artesãos, dispõem de uma terra chamada <<de aldeia>>, que lhes é concedida pela
colectividade rural durante um certo tempo e que regressa à posse da colectividade
quando eles abandonam a região. Recorde-se as narrativas indianas, que dão conta
de uma estrutura análoga. Ao vaiçya, o agricultor (viç, cf. latim vicus, grego oi5kov,
o grupo de casas), isto é, o homem da aldeia, opõem-se o ksatrya, o guerreiro (de
ksatram: poder, posse), o homem da propriedade individual, tal como o barão
micénico é o homem da ki-ti-me-na ko-to-na, da terra apropriada, por oposição à
terra comum da aldeia. [...] É neste quadro provinciano que surge, contra toda a
expectativa, a personagem que usa o título que normalmente teríamos traduzido por
rei, o pa-si-re-u, o basileus homérico. Ora justamente ele não é o Rei no seu palácio,
mas sim um simples senhor feudal, dono de uma propriedade rural e vassalo do
anax
167
. Este laço de vassalagem, num sistema de economia em que tudo é
166
VERNANT, op. cit.
167
A sua autoridade parece exercer-se a todos os níveis da vida militar: é o palácio que determina os
fornecimentos de armas, o equipamento dos carros, os recrutamentos de soldados, o enquadramento, a
composição e o movimento das unidades. Mas a competência do rei não se limita apenas ao plano da guerra,
155
contabilizado, reveste também a forma de uma responsabilidade administrativa:
vemos que o basileus vigia a distribuição dos fornecimentos em bronze destinados
aos ferreiros que, no seu território, trabalham para o Palácio. E, evidentemente, ele
próprio contribui, juntamente com outros homens ricos da região, para esses
fornecimentos em metal, com uma quantidade devidamente estipulada. Junto do
basileus, um Conselho de Anciãos, a ke-ro-si-ja (gerusia) confirma esta relativa
autonomia da comunidade rural. Dessa assembleia fazem certamente parte os chefes
das casas mais poderosas. Os simples camponeses, homens do damos em sentido
estrito, que fornecem ao exército a <<carne para canhão>> e que, para retomar a
expressão homérica, contam tanto no Conselho como na guerra, constituem, na
melhor das hipóteses, os espectadores, que escutam em silêncio aqueles que têm
capacidade para falar, e que exprimem os seus sentimentos através de murmúrios
de aprovação ou de descontentamento (VERNANT, 1987, pp. 33-35, passim).
O mundo homérico já não conhece uma divisão do trabalho comparável à do
mundo micénico, nem a utilização a uma tão vasta escala da mão-de-obra servil.
Ignora as múltiplas corporações de artífices agrupados nas cercanias do palácio ou
colocados nas aldeias para executarem as encomendas reais. Com a queda do
império micénico o sistema palaciano fica completamente aniquilado; nunca mais
voltará a reconstruir-se. O termo anax desaparece do vocabulário propriamente
político. É substituído, na sua acepção técnica para designar a função real, pela
palavra basileus, cujo significado meramente regional analisamos, e que, mais do
que uma única pessoa que concentra em si todas as formas de poder, designa,
quando no plural, uma categoria de Grandes, todos eles situados no topo da
hierarquia social. Abolida a autoridade do anax, não voltamos a encontrar vestígios
de um controlo organizado pelo rei, de um aparelho administrativo, de uma classe de
escribas (ibidem, pp. 38-39).
Poder-se afirmar que não existe entre o mundo micénico e o mundo
homérico nenhuma continuidade, nenhuma comparação possível? Isso já foi
afirmado. Todavia, o quadro de um pequeno reino como Ítaca, com o seu basileus, a
sua assembleia, os seus nobres turbulentos, o seu demos silencioso em plano de
fundo, prolonga e esclarece manifestamente certos aspectos da realidade micénica.
Aspectos provincianos, é certo, e que permanecem à margem do palácio. Mas
justamente o desaparecimento do anax parece ter deixado subsistir lado a lado as
duas forças sociais com as quais o seu poder devia ter formado um todo: por um
lado as comunidades rurais, por outro lado uma aristocracia guerreira, cujas famílias
mais importantes detêm igualmente, como privilégio de genos, certos monopólios
religiosos (ibidem, pp. 44-45).
Nem na Grécia nem na nia, onde uma nova vaga de colonos fugidos da
invasão dórica se havia estabelecido, encontramos vestígios de um poder real do tipo
micénico. Mesmo se admitirmos que a Liga Jónica do século VI prolonga, sob a
forma de um agrupamento de cidades-estados independentes, uma organização mais
antiga na qual os reis locais reconhecem a soberania de uma dinastia que reina em
Éfeso, tratar-se-ia nesse caso de uma supremacia análoga à que Agamémnon exerce,
na Ilíada, sobre reis que são seus pares e cuja dependência se limita ao plano de uma
campanha efectuada em comum sob a sua direcção. O que é muito diferente do
controlo que é imposto a todo o momento e a todas as pessoas, actividades ou coisas
pelo anax micénico, por intermédio do palácio (ibidem, pp. 44-45).
Homero mostra-nos exemplos de genos sedentário quando menciona as
numerosas famílias de Príamo, de Nestor, de Aiolos e de Alcínoo. <<O grupo assim
formado goza de uma independência completa e não admite nenhum limite à sua
soberania. Não conhece outras obrigações a não ser aquelas que lhe são impostas por
sua própria religião; não concebe outras virtudes além daquelas que contribuem para
estende-se também ao da economia. O anax é responsável pela vida religiosa; é ele que elabora o seu
calendário, zela pelo cumprimento do ritual, pela celebração das festas em honra dos vários deuses, estipula os
sacrifícios, as oblações vegetais, o valor das oferendas exigidas a cada um consoante a sua posição social.
156
sua honra e prosperidade. Tudo o que faz parte do grupo, pessoas, animais e coisas,
está unidos pelos elos de uma solidariedade absoluta: é o que se chama philotés,
palavra que se deve traduzir, à falta de uma equivalente, por <<amizade>>, mas que
designa uma relação mais jurídica que sentimental>>. [...] Para empreendimentos de
maior vulto, os genos se associavam em fratrias (fratri/a) e essas, por sua vez, em
tribos (fulh/). Tais associações, entretanto, não feriam a soberania de cada genos. A
reunião dos genos, das fratrias e das tribos resultaria na criação da polis, <<um
agrupamento político, econômico e militar que tem por centro um altar>>. [...]
Polìticamente, os gregos evoluíram de um regime patriarcal para um regime
oligárquico. Na polis encontramos uma tríplice hierarquia de reis: basileis
(basilei=v), basilêuteros (basileu/terov) e, acima de todos, o basilêutatos
(basileu/tatov). <<Assim nasceu uma espécie de feudalidade em que os senhores
designados todos sob os nomes genéricos de reis, de príncipes (a1naktev) ou de
anciãos (ge/rontev), formavam uma hierarquia de suseranos e vassalos, desde o
chefe mais poderoso, possuidor do mais rico e do mais vasto domínio e basileus por
excelência, até ao patriarca do mais humilde genos, proprietário rei de um modesto
campo>> (GIORDANI, s/d, v. I, p. 109, passim).
Os poemas homéricos mostram-nos o progresso das atividades agrícolas:
<<Se o pastoreio conserva nos campos homéricos toda a sua importância, limita-se,
contudo, a compensar, por usurpação da floresta, as perdas que sofre com o alastrar
dos terrenos cultivados. Desde que se estabeleceu em solo da Grécia, a raça helênica
pratica a vida sedentária e consagra-se à agricultura. Nos tempos épicos, os gregos
inscrevem-se muito entre os homens <<que comem cevada>> (ibidem, pp. 109-
110).
Não muita dúvida de que a propriedade territorial, direta ou indireta, fosse
o fundamento da riqueza na época em que Homero recitava os seus poemas. Mas ele
pouco se refere a ela, preferindo evocar os rebanhos, e não os campos. Eis aí, sem
dúvida, um eco do real, na medida em que o conflito entre os criadores e os
agricultores tem sido, muito tempo, quase até os nossos dias, um dos traços
dominantes da economia mediterrânea. A criação de animais exige espaços muito
mais vastos do que a agricultura ou a jardinagem (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 100).
No que diz respeito ao aspecto religioso, Mario Vegetti e Mário Curtis Giordani falaram
da importância dos poemas homéricos para a fundação ou, pelo menos, para a consolidação
da Religião grega da Antigüidade. Homero, com as suas epopéias, teria conseguido não só pôr
uma ordem no caos em que viviam mergulhados os relatos divinos, por estarem ligados a uma
antiga tradição oral, como se viu, como também teria conseguido demonstrar, de forma
satisfatória, a relação bastante próxima que havia, no período grego conhecido por Idade das
Trevas, aristocrata por excelência, entre os deuses e os homens, por meio dos heróis da Ilíada
e da Odisséia, que o tempo todo estavam em contato com os olimpianos. Sobre e enorme
contribuição de Homero para a Religião dos antigos gregos (e romanos), Vegetti e Giordani
disseram o seguinte:
157
A poesia épica nasce seguramente tendo como pano de fundo os relatos
míticos tradicionais acerca das divindades e dos poderes sobrenaturais que habitam
o mundo e o dominam. Anónimos, difusos, repetidos e aprendidos de geração em
geração, esses relatos uma espécie de vasto catálogo do imaginário religioso
constituem todo o saber social acerca dos deuses, imediatamente credível e
persuasor, não questionável, precisamente devido ao seu anonimato, à sua difusão
no tempo e no espaço, à antiguidade imemorável das suas origens. Todavia, e devido
a essas mesmas características, o politeísmo que emerge da massa emaranhada dos
relatos míticos é caótico, confuso, desprovido de uma forma imediatamente
compreensível e controlável. A intervenção da poesia épica principalmente, a
Ilíada, embora não faltem provavelmente antecedentes micénicos é acima de tudo
uma operação de selecção e de ordenamento, imprimindo uma forma orgânica e
visível à esfera do divino, que passa a ficar indelevelmente marcada. Portanto, o
politeísmo, antropomórfico e ordenado segundo relações funcionais e de poder
muito precisas, da Ilíada é o sinal de uma extraordinária revolução intelectual, que
à religião grega a sua forma histórica. Contudo, a poesia épica conserva, e até
reforça com eficácia da grande literatura, o carácter fundamental dos relatos míticos,
quer dizer, continua a ser a narração dos factos e das proezas dos deuses, indicando
os locais onde ocorreram, definindo os seus protagonistas como indivíduos dotados
de nome, personalidade e caracteres específicos: personagens narrativas, portanto, e
não abstracções conceptuais ou metafísicas nem figuras totêmicas. [...] O gesto
fundador da poesia épica, o seu olhar configurador do universo da divindade como
narração antropomórfica, está associado à cultura da aristocracia grega empenhada
na colonização da Ásia Menor. Na poesia épica, essa aristocracia exalta-se a si
mesma, as suas origens e os seus heróis, e ao mesmo tempo forma,
projectivamente, às suas divindades: os seus deuses não derivam propriamente,
como escreve Snell, do culto ou dos ensinamentos dos sacerdotes; <<são criados
pelo canto, juntamente com os heróis>>. A dimensão projectiva da formação de um
universo divino na poesia épica, no mesmo contexto do dos heróis aristocráticos,
define as suas características de tipos. Os deuses são representados como heróis cuja
excelência (aretè) máxima é devida à beleza, à inteligência, à força, à perpetuidade
desses dotes, à imortalidade: como é natural, esta implica também, e desde logo,
uma transcendência da condição humana, um limiar intransponível que separa os
deuses dos heróis mais do que estes o estão, pela sua excelência, do resto dos
homens. Esse limiar é imposto pelo carácter projectivo que rege o imaginário
poético criador das divindades homéricas: tende, porém, a ser constantemente
transposto devido ao próprio acto intelectual que o gerou. O acto que configura o
universo divino permanece <<artístico>>, portanto, em certa medida, <<artificial>>; a
sua origem estetizante e tranquilizadora estabelece uma relação especular entre a
natureza mortal do herói aristocrático e a natureza imortal dos seus deuses. O limiar
é transposto em primeiro lugar na genealogia, que garante aos heróis uma
descendência e um parentesco divinos graças à frequente união dos deuses e das
deusas como os mortais, de que provêm as famílias da aristocracia grega. pois
vínculos constantes entre os deuses e os homens, com quem aqueles convivem
assiduamente, ligados como estão por laços de parentesco, de afecto ou de aversão,
e, quanto mais não seja, pela própria necessidade de exigir constantemente as honras
que lhe são devidas enquanto senhores de um poder desmedido. Daí derivam os
cruzamentos e as sobreposições constantes entre o mundo dos deuses e o mundo dos
homens que são uma característica saliente da Ilíada e, depois dela, do imaginário
religioso dos Gregos. E é também daí que deriva o hábito do contacto com os
deuses, uma familiaridade com a sua presença, atribuindo-lhes relações
propriamente humanas: os deuses podem ferir os heróis e ser feridos por eles no
campo de batalha, sentem amor, ciúme, inveja e são dominados por qualquer outra
paixão própria dos homens. Tudo isto faz com que os deuses, embora sejam temidos
pelo seu enorme poder, possam ser também vistos com a ironia e por vezes com o
sarcasmo que recaem sobre as fraquezas dos homens; por isso, a Ilíada, que é o
poema fundador de um universo religioso, também pode ser definido,
paradoxalmente mas com alguma razão, como <<o mais irreligioso de todos os
poemas>> (P. Mazon) (VEGETTI in VERNANT, 1993, p. 237-238, passim).
158
Nos tempos homéricos, podemos assinalar também uma evolução religiosa:
as divindades da religião antiga, distantes e misteriosas, humanizam-se, tornam-se
conhecidas. Os heróis das epopéias possuem noções claras sobre a natureza, o
parentesco e o temperamento dos deuses que aparecem revestidos de formas
humanas com virtudes e defeitos numa mitologia límpida que é a <<parte mais
original, a mais verdadeiramente grega da religião nacional>> (GIORDANI, s/d, v. I,
p. 110).
no que tange ao herói grego da Antigüidade, Werner Jaeger e James Redfield, nos
seus textos, mostraram que Homero, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, pintou-o muito bem:
naquela epopéia, como um guerreiro forte (de força sobre-humana), corajoso, rápido, nobre
(no sentido mais amplo dessa palavra: possuidor de muitas qualidades morais e intelectuais,
mas também pertencente à aristocracia), político (também no sentido lato do termo:
diplomático, polido, cortês, mas, principalmente, envolvido com política, governante); nesta,
como um guerreiro valente, vigoroso, mas, principalmente, prudente, astuto, ético. Todos
esses atributos encontravam-se por trás de uma única palavra: arete
168
. Podia-se dizer,
portanto, que se aproximava do herói homérico o guerreiro da Idade das Trevas que possuía a
arete. Um adjetivo grego que trazia em si todos esses atributos era agathós.
O herói homérico também gostava de realizar tarefas que lhe eram impostas: esse
sentimento ficou conhecido, entre os gregos, como aidos. Vale salientar a presença deste
também no herói mítico: a mando de Euristeus, Hércules submeteu-se a doze trabalhos;
Perseu foi atrás de matar a Medusa, conforme lhe pedira Polidectes; e Jasão lançou-se, ao lado
de muitos outros, em busca do Velocino de Ouro, para satisfazer a vontade de seu tio, Pélias.
É possível perceber, ainda, ao ler a Ilíada e a Odisséia (sobretudo a primeira, por se
tratar, como se viu, de um poema de exaltação à guerra), que os heróis homéricos estavam
sempre em busca do elogio, da honra e da glória, que deveriam advir da habilidade e do
168
“O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que remonta aos tempos mais
antigos. Não temos na lìngua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra „virtude‟, na sua
acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a
uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.
Basta isto para concluirmos onde devemos procurar a origem dela. É às concepções fundamentais da nobreza
cavaleiresca que remonta a sua raiz” (JAEGER, 2001, p. 25).
159
mérito em campo de batalha ou, mesmo, da morte em meio à guerra. Aliás, por esta segunda
via, a honra e a glória tornar-se-iam eternas: o herói sempre seria lembrado por ter sido aquele
que morreu lutando bravamente, sem dúvida em prol de um bem maior, que poderia ser (no
caso da Ilíada certamente seria este) o de defender a pátria. Este comportamento do herói
homérico também coaduna com o do herói mítico (Perseu, Hércules, Jasão, Teseu), conforme
foi mostrado. E se tal modo de agir, de pensar e de sentir do herói das epopéias homéricas
se assemelha àquele do herói mítico, ou seja, ao dos heróis primitivos, também se mostra
praticamente idêntico ao dos heróis dos períodos gregos posteriores e mesmo ao dos heróis
romanos, pois se sabe que o Império Romano, ao dominar a Grécia, herdou desta
praticamente toda a sua cultura. Neste sentido, é que se pode falar, sem medo, de um
imaginário “do” ou “em torno do” herói greco-latino ou de imagens “do” ou “em torno do
herói da Antigüidade clássica: a hibridação cultural presente na Ilíada e na Odisséia, que
tanto atemorizou/atemoriza historiadores puristas, enriquece o tipo de análise história que
este trabalho pretende realizar, com base nas idéias da École des Annales, nas de Raymond
Williams e nas da Teoria da Residualidade, de Roberto Pontes. A seguir, trechos das obras
Paidéia: a Formação do Homem Grego e O Homem Grego que abordam tudo o que há pouco
foi dito sobre as características do herói homérico e que mostram a inegável e importante
contribuição do bardo grego para a fixação, para a posteridade, do imaginário “do” ou “em
torno do” herói grego (mas também do romano):
A partir de Homero, a comunidade política grega é concebida como uma companhia
de guerreiros autogovernada: os guerreiros eram homens; portanto, a comunidade
política era constituída por homens. Por outro lado, a guerra, no sentido de combate
activo, era adequada aos jovens, e isso comportava uma tendência para a exclusão
dos velhos, embora se reconhecesse que a sua experiência poderia ter o seu valor.
Nestor tem de recordar ao seu público que também ele fora outrora um guerreiro.
Não faltam as indicações de que se tendia a relegar os velhos para casa, como o
Laertes da Odisseia, que se retirou para a sua casa de campo onde cuidava da sua
horta: é na idade avançada (como adverte Céfalo em Platão) que se pode constatar a
verdade do provérbio que diz que <<quem é rico tem muitos consolos>> (República,
329c). Por outras palavras, os velhos saem da cidade para saborear as delícias das
suas propriedades, já não podem tomar parte activa nessa competição pela honra que
é a vida do espaço público. Na realidade, Nestor diz (de uma forma alegórica) que,
160
para um velho, é themis, inegavelmente digno, estar em sua casa a receber notícias
dado não poder andar e passear (Odisseia, III, 186-88). Se a guerra determina o
que significa ser-se homem, a virilidade é o requisito necessário para se tomar parte
na guerra e na vida pública em geral. <<A guerra é coisa de homem>>, diz um
provérbio grego. Isso não significa apenas que, no sentido próprio, são os homens
que combatem. Quando Heitor diz esta frase a Andrómaca (Ilíada, VI, 492), o que
ele quer dizer é que, como ela não é um guerreiro, não pode ter nenhuma opinião
acerca da condução da guerra. Esse sentido generaliza-se ainda mais quando
Telêmaco (Odisseia, I, 358) diz a sua mãe para se retirar para os aposentos
femininos porque <<discutir é coisa de homens>> (REDFIELD in VERNANT, 1993,
pp. 156-157).
A Ilíada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina exclusivamente
o espírito heróico da arete, e corporifica este ideal em todos os seus heróis. Junta
numa unidade ideal indissolúvel a imagem tradicional dos antigos heróis,
transmitida pelas sagas e incorporada aos cantos, e as tradições vivas da aristocracia
do seu tempo, que conhece a vida organizada da cidade, como provam
principalmente as pinturas de Heitor e dos Troianos. O valente é sempre o nobre, o
homem de posição. A luta e a vitória são para ele a distinção mais alta e o conteúdo
próprio da vida. A Ilíada descreve sobretudo esse tipo de existência, condicionada,
evidentemente, pela sua matéria (JAEGER, 2001, p. 40).
Os heróis da Ilíada, que se revelam no seu gosto pela guerra e na sua aspiração à
honra como autênticos representantes de sua classe, são, todavia, quanto ao resto da
sua conduta, acima de tudo grandes senhores, com todas as suas excelências, mas
também com todas as suas imprescindíveis debilidades. É impossível imaginá-los
vivendo em paz: pertencem ao campo de batalha. Fora dele os vemos nas pausas
do combate, nas suas refeições, nos seus sacrifícios, nos seus conselhos (JAEGER,
2001, p. 41).
Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de arete é
freqüentemente usado no seu sentido mais amplo, isto é, não para designar a
excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força
dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o homem
comum não tem arete e, se o escravo descende por acaso de uma família de alta
estirpe, Zeus tira-lhe metade da arete e ele deixa de ser quem era antes. A arete é o
atributo próprio de nobreza. Os Gregos sempre consideraram a destreza e a força
incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio e arete
estavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavra é a mesma: a1ristov,
superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente empregado
para designar a nobreza. Para a mentalidade grega, que avaliava o Homem pelas
suas aptidões, era natural encarar o mundo em geral sob o mesmo ponto de vista.
[...] uma vez, nos livros finais, Homero entende por arete as qualidades morais
ou espirituais. Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos
primitivos, designa por arete a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e,
acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e
separada da força, mas sim intimamente ligado a ela. [...] Não é verossímil que na
época em que as duas epopéias nasceram a palavra arete tivesse, no uso vivo da
linguagem, apenas o significado estreito dominante em Homero. A própria poesia
épica reconhece já, ao lado da arete, outras medidas de valor. Assim, a Odisséia
exalta, sobretudo no seu herói principal, acima da valentia, que passa a lugar
secundário, a prudência e a astúcia. Sob o conceito de arete é necessário
compreender outras excelências além da força intrépida, como nos é apresentada,
sem contar as exceções citadas, pela poesia dos tempos mais antigos. A significação
da linguagem na palavra na linguagem comum penetra, evidentemente, no estilo
poético; mas a arete, como expressão da força e da coragem heróicas, estava tão
fortemente enraizada na linguagem tradicional da poesia heróica, que esse
significado havia de permanecer ali por muito tempo. Era natural, na idade guerreira
das grandes migrações, caso análogo aos que outros povos nos oferecem. Também o
adjetivo a0gaqo/v, que embora procedente de outra raiz corresponde ao substantivo
161
arete, continha em si a conjugação de nobreza e bravura militar. Às vezes significa
nobre, outras, valente ou hábil; quase nunca tem o sentido posterior de “bom”, como
arete não tem o de virtude moral. [...] No entanto, todas as palavras deste grupo têm
em Homero, apesar do predomìnio do seu significado guerreiro, um sentido “ético”
mais geral. Derivam ambos da mesma raiz: designam o homem nobre que, na vida
privada como na guerra, rege-se por normas certas de conduta, alheias ao comum
dos homens (JAEGER, 2001, pp. 26-28, passim).
O sentido do dever é, nos poemas homéricos, uma característica essencial da
nobreza, que se orgulha por lhe ser imposta uma medida exigente. A força
educadora da nobreza reside no fato de despertar o sentimento do dever em face do
ideal, que deste modo o indivíduo tem sempre diante dos olhos. Pode-se sempre
apelar para este sentimento aidos e a sua violação desperta nos outros o
sentimento que lhe está estreitamente vinculado, a nemesis. Ambos são em Homero
conceitos constitutivos do ideal ético da aristocracia. O orgulho da nobreza, baseado
numa longa série de progenitores ilustres, é acompanhado pelo conhecimento de que
esta proeminência se pode conservar através das virtudes pelas quais foi
conquistada. O nome de aristoi convém a um grupo numeroso; mas, no seio deste
grupo, que se ergue acima da massa, luta pelo prêmio da arete. A luta e a vitória
são, no conceito cavaleiresco, a autêntica prova de fogo da virtude humana. Elas não
significam simplesmente a superação física do adversário, mas a comprovação da
arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais (ibidem, pp. 28-
29).
Intimamente ligada à arete está a honra. Nos primeiros tempos era inseparável da
habilidade e do mérito. Segundo a bela explicação de Aristóteles a honra é a
expressão natural da medida ainda não consciente do ideal da arete, a que aspira.
Sabe-se que os homens aspiram à honra para assegurar o seu valor próprio, a sua
arete. Deste modo, aspiram a ser honrados pelas pessoas sensatas que os conhecem,
e por causa do seu próprio e real valor. Reconhecem assim como mais alto esse
mesmo valor. Enquanto o pensamento filosófico posterior situa a medida na
intimidade de cada um e ensina a encarar a honra como reflexo do valor interno no
espelho da estima social, o homem homérico adquire consciência do seu valor
pelo reconhecimento da sociedade a que pertence. Ele é um produto da sua classe e
mede a arete própria pelo prestígio que disputa entre os seus semelhantes. [...]Para
Homero e para o mundo da nobreza desse tempo, a negação da honra era, em
contrapartida, a maior tragédia humana. Os heróis tratavam-se mutuamente com
respeito e honra constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de
honra era neles simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral
peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e
os príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta. Ninguém
receia, na Antiguidade, reclamar a honra devida a um serviço prestado. A exigência
de um pagamento é para eles aspecto secundário e de modo nenhum decisivo. O
elogio e a reprovação (e1painov e yo/gov) são a fonte da honra e da desonra. [...] A
ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação aparecem ao sentimento
cristão como vaidade pessoal pecaminosa; os Gregos, porém, viram nisso a
aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o valor. [...] De certo
modo pode-se dizer que a arete heróica só se aperfeiçoa com a morte física do herói.
Ela reside no homem mortal, ou melhor, ela é o próprio homem mortal; mas
perpetua-se, mesmo depois da morte, na sua fama, isto é, na imagem da sua arete,
tal como o acompanhou e dirigiu na vida. Até os deuses reclamam a sua honra e se
comprazem no culto que lhes glorifica os feitos, castigando ciosamente qualquer
violação dessa honra. Os deuses de Homero são, por assim dizer, uma sociedade
imortal de nobres; e a essência da piedade e o culto grego exprimem-se no fato de
honrar a divindade. Ser piedoso quer dizer “honrar a divindade”. Honrar os Deuses e
os homens pela sua arete é próprio do Homem primitivo (JAEGER, 2001, pp. 30-
32, passim).
Apreendemos aqui a significação fundamental da primitiva ética aristocrática para a
formação do Homem grego. O pensamento grego sobre o homem e a sua arete
162
revela-se logo na unidade do seu desenvolvimento histórico. Apesar de todas as
mudanças e enriquecimentos que experimenta no decurso dos séculos seguintes,
conserva sempre a forma recebida da velha ética aristocrática. Neste conceito de
arete se fundamenta o caráter aristocrático do ideal e da formação dos Gregos
(JAEGER, 2001, p. 34).
Com freqüência observaram-se as semelhanças intensas de todos aqueles poemas,
nascidos do mesmo grau de desenvolvimento antropológico. A poesia heróica dos
mais antigos tempos da Hélade partilha os traços primitivos da poesia de outros
povos. Mas essa semelhança reside apenas em caracteres exteriores condicionados
pelo tempo, não na riqueza da sua substância humana, nem na força da sua forma
artística. Nenhuma épica de povo nenhum exprimiu de modo tão completo e tão
sublime como a dos Gregos aquilo que, apesar de todos os “progressos” burgueses,
de imperecível na fase heróica da existência humana: o seu sentimento universal
do destino e verdade permanente da vida. [...] A diferença entre o seu significado
histórico na vida do seu povo e o da épica medieval, aleou francesa, torna-se
manifesta no fato de a influência de Homero ter-se estendido, sem interrupção, por
mais de um milhar de anos, ao passo que a época medieval cortês foi esquecida logo
após a decadência do mundo cavaleiresco (JAEGER, 2001, pp. 64-65, passim).
Homero é o representante da cultura grega primitiva. Já apreciamos o seu valor
como “fonte” do nosso conhecimento histórico da sociedade grega mais antiga. Mas
a sua descrição imortal do mundo cavaleiresco é algo mais do que um reflexo
involuntário da realidade na arte. Este mundo de grandes tradições e exigências é a
esfera mais elevada da vida, na qual a poesia homérica triunfou e da qual se nutriu.
O Pathos do sublime destino heróico do homem lutador é o sopro espiritual da
Ilíada. O ethos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisséia o poema da
sua vida. A sociedade que produziu aquela forma de vida desapareceu sem deixar
qualquer testemunho para o conhecimento histórico, mas a sua representação ideal,
incorporada na poesia homérica, converteu-se no fundamento vivo de toda a cultura
helênica. Hölderlin disse: O que permanece é a obra dos poetas. Este verso exprime
a lei fundamental da história da educação helênica (JAEGER, 2001, p. 66).
A nossa idéia fundamental da origem da épica nas canções heróicas mais antigas, as
quais formam, como em outros povos, a mais primitiva tradição, leva-nos a supor
que a descrição dos combates singulares, a aristéia (que termina com o triunfo de
um herói famoso sobre o seu poderoso adversário), constitui a mais antiga forma dos
cantos épicos. A narração dos combates singulares é mais fértil, do ponto de vista do
interesse humano, do que a ostentação de combates de multidões, cujo espetáculo e
íntima vitalidade logo desaparecem. As descrições de batalhas campais
conseguem despertar o nosso interesse nas cenas dominadas por grandes heróis
individuais. Participamos profundamente da narração dos combates individuais
através do que neles há de pessoal e ético, e que nas batalhas de grupos mal aparece,
e também pela íntima ligação dos seus momentos particulares com a unidade da
ação (JAEGER, 2001, p. 71).
Uma vez que se falou que a hibridação cultural inerente às epopéias de Homero não
compromete o caráter histórico dessas fontes (literárias, sempre é bom salientar) para a
presente pesquisa (muito pelo contrário, como se viu), serão apresentados, agora, trechos da
Ilíada e da Odisséia que exemplificam bem as características do herói homérico e, por
extensão, as do herói mítico, as do herói de toda a Antigüidade clássica e, como se verá no
próximo capítulo desta dissertação, as do cavaleiro medieval; tirantes, evidentemente, no caso
163
deste, algumas especificidades, intrínsecas mesmo à época (Idade Média) e à cultura na qual
viveu (predominantemente cristã). A partir desses excertos também será possível perceber
outros motivos, mais ou menos diferentes dos apresentados, que levavam o herói à luta, à
batalha, à guerra.
As primeiras passagens da Ilíada que foram selecionadas para ilustrar o modo de agir,
de pensar e de sentir, noutras palavras, o imaginário, do herói grego (e do romano) já apontam
duas novas razões para a batalha; ou seja, trazem mais duas causas capazes de levar o
guerreiro homérico à guerra. Essas razões estão relacionadas não à busca da honra, mas à
manutenção desta. Como se sabe, os motivos [literários] da guerra de Tróia foram: (i) o rapto
de Helena pelo troiano Páris, pois aquela era casada com Menelau, um dos chefes argivos; e
(ii) o desprezo à hospitalidade, que Alexandre raptou Helena quando se encontrava, como
hóspede, na casa de Menelau. Como se o adultério não fosse motivo suficiente para uma
contenda, para os antigos gregos (e isto também é válido para os romanos e até para o Homem
medieval) era uma grande ofensa ter a sua hospitalidade menosprezada: isto era considerado
algo desonroso. É tão verdade o que acaba de ser dito que um mito, intitulado Báucis e
Filêmon, inteiramente dedicado a este tema da falta de hospitalidade: furiosos com os
habitantes de uma cidade que não recebiam bem os viajantes que por ela passavam, Júpiter e
Mercúrio, que estavam disfarçados de andarilhos, decidiram destruí-la por completo.
Contudo, eles não se esqueceram de deixar vivo apenas um casal de anciões pobres que os
recebeu honradamente e que compartilhou com eles, sem que soubesse que eram divindades,
o pouco que possuíam. Portanto, o herói da Antigüidade clássica, como acontecia mesmo aos
deuses e aos mais comuns dos homens gregos, valorizava a hospitalidade e abominava o
ultraje, não exatamente o adultério, pois a mulher, na Grécia antiga (e também na Roma
antiga e no Medievo) era vista como mercadoria. Eis os trechos da Ilíada que trazem, por
meio das falas de Aquiles, Nestor e Menelau, o motivo (o literário) da guerra de Tróia.
164
Saliente-se, nas falas de Aquiles, Nestor e Menelau, o companheirismo, o espírito coletivo, do
herói da Antigüidade clássica, que, muitas vezes, saía para a batalha não em prol de si mesmo,
mas por ter tomado para si a dor alheia, a dor do amigo, companheiro de armas.
Com torvos olhos, Aquiles, de rápidos pés, lhe responde:
“Alma despida de pejo, que só de interesse se ocupa!
Como é possível que algum dos Aqueus ao teu mando obedeça,
quer em caminho se pondo, quer seja enfrentando outros homens?
Não foi por causa dos fortes Troianos que vim para Tróia,
para guerreá-los, pois nunca motivo para isso me deram.
Deles, nenhum das manadas um boi me roubou, nem cavalos,
nem no terreno de Ftia, nutriz de guerreiros, tampouco,
minhas colheitas destruíram, pois grandes montanha escuras
e o vasto mar sonoro entre nós de permeio se estendem.
Para teu gáudio, grandíssimo despudorado, seguimos-te,
cão sem nenhum descortino, a vingar-te do ultraje dos Troas
a Menelau (HOMERO, 2002, I, v. 148-160, p. 62).
O domador de cavalos, Nestor, de Gerena, lhes disse:
“Caso inaudito, que todos faleis como crianças ingênuas,
que não possuem nenhuma experiência das coisas da guerra!
Para onde as juras se foram, e os votos, que todos fizemos?
Sejam lançados ao fogo os desígnios e planos de todos,
as libações impolutas e apertos de mão, que trocamos.
Só com palavras sabemos brigar, sem que achemos caminho
para as ações eficientes, pesar de aqui estarmos há muito.
Como o costumas, Atrida, mantém teu propósito firme,
E para os prélios terríveis conduze os guerreiros Argivos.
Que este e outros poucos se percam, que têm por costume aos Acaios
dar maus conselhos. Porém, jamais hão de alcançar seus intentos,
de retornarmos para Argos, sem termos obtido, primeiro,
de Zeus potente a certeza se falso ou veraz prometeu-nos.
Sou de opinião, entretanto, que o filho potente de Crono,
nos falou certo no dia em que as naves entramos velozes
para trazer a estas gentes de Tróia o extermínio e a desgraça:
fez-nos surgir um relâmpago à destra, sinal infalível.
Por isso tudo, ninguém mais insista em voltar para a pátria,
sem que, primeiro, haja ao leito subido de esposa Troiana
e ressarcido os trabalhos e o choro por causa de Helena.
Mas se houver quem ainda insista em voltar para a pátria querida,
e ouse tocar no navio anegrado, de boa coberta,
seja o primeiro a ser presa do Fado inditoso e da Morte.
Eia, senhor, aconselha-te bem, mas aceita outros planos,
que não será de somenos valor o que passo a dizer-te:
Teus homens todos, Atrida, por tribos divide e famílias
que cada tribo se ajude e uns aos outros os membros de um grupo.
Caso me aceites o alvitre, e os Acaios, também, te obedeçam,
Fácil será de saber qual dos chefes, qual dentre os do povo,
fraco, ou de prol, se revela; que à parte eles todos combatem.
Hás de, então, ver se a cidade resiste por causa dos deuses,
ou por fraqueza dos homens, nas coisas da guerra inexpertos.
(ibidem, II, v. 336-368, pp. 87-88)
Foi por Heitor percebido, porém, que de insultos o cobre:
“Páris funesto, de belas feições, sedutor de mulheres!
165
Bem melhor fora se nunca tivesses nascido, ou se a Morte
antes das núpcias te houvesse levado. Mais lucro tivéramos,
do que nos seres opróbrio e de escárnio servires aos outros.
Riem-se à grande os Aquivos de soltos cabelos nos ombros.
Um dos primeiros julgavam que fosses, por seres de físico
tão primoroso; no entanto, careces de força e de coragem.
Como é possível que, sendo qual és, em navios velozes
o mar houvesses cruzado, reunido prestantes consócios
e a gente estranha chegado, da qual a raptar te atreveste
uma formosa mulher, peregrina, cunhada de príncipes,
para desgraça do teu próprio pai, da cidade e do povo,
mofa tornando-te, assim, dos imigos, que exultam com isso?
Não te atreveste a enfrentar Menelau, de Ares forte discípulo?
Fora a ocasião de saberes de quem a mulher seduziste.
Esses cabelos, a cítara, os dons de Afrodite, a beleza,
não te valeram de nada ao te vires lançado na poeira.
Se tão medrosos não fossem os Teucros, há muito vestiras
uma camisa de pedras, por quantas desgraças causaste”.
(ibidem, III, v. 38-57, pp. 104-105)
Vira-se, então, Menelau, de voz forte, e lhes diz o seguinte:
“A mim, também, atenção concedei, porque a dor, mais que a todos,
o coração me angustia. Concordo que Teucros e Aquivos
devem pôr fim à discórdia, que muitos já tendes sofrido
por minha causa e da ofensa provinda do divo Alexandre.
Que morra logo o que está pelo negro Destino fadado
a perecer; conciliem-se os outros, sem mais perder tempo.
Presto um cordeiro trazei para o Sol, de cor branca, e uma ovelha
preta, também, para a Terra; que a Zeus um terceiro daremos.
A majestade de Príamo desça, também, para as juras
solenizar; que os seus filhos soberbos não são de confiança.
Não venha alguém, com perjúrios, destruir o que Zeus prometer-nos.
O coração dos mancebos costuma ser sempre volúvel,
mas quando um velho intervém, o passado e o futuro perscruta,
para que tudo decorra do modo melhor para todos”.
(ibidem, III, v. 96-110, p. 106)
Calcando-lhe o peito com o pé, Menelau
as belas armas lhe tira e, a exultar, com a vitória, prorrompe:
“Sequer assim deixareis os navios velozes dos Dânaos,
Teucros soberbos, a quem não saciam jamais os combates!
De vós, cadelas!, me vieram as mais revoltantes ofensas,
como a que contra o meu lar praticastes, sem terdes receio
de Zeus de voz poderosa, que ampara o direito dos hóspedes,
e que há de um dia, decerto, destruir-vos o burgo altanado.
Sobre me haverdes roubado riqueza infinita, trouxestes
minha legìtima esposa, apesar de vos ter hospedado [...]”.
(HOMERO, 2002, XIII, v. 618-627, p. 313)
Já sobre o valor da hospitalidade para os gregos há, na Ilíada, esta passagem:
Isso disse ele; alegrou-se Diomedes, de voz retumbante;
finca a hasta brônzea na terra, de heróis a nutriz generosa,
e, com palavras afáveis, saudou o pastor de guerreiros:
“Hóspede és meu desde o tempo de nossos avós, vejo-o agora.
Por vinte dias seguidos Eneu, o divino, agasalho
deu em seu belo palácio ao magnânimo Belerofonte,
166
tendo ambos dons hospedais, de subido valor permutado.
Foi o penhor da amizade de Eneu cinturão purpurino;
Belerofonte lhe deu uma copa, adornada com alça,
de ouro, que em casa deixei quando tive de vir para Tróia.
Quanto a Tideu, não me lembro, pois era criança quando ele
foi para Tebas e o exército Acaio ficou destruído.
Por essa antiga amizade, és meu hóspede em Argos, ao passo
que me farás grato hospício se um dia eu chegar até à Lícia.
Cumpre, portanto, que, em meio da pugna, um ao outro poupemos.
Para matar, não me faltam Troianos excelsos e aliados, quem
quer que um deus me conceda, ou quem chegue a alcançar na carreira;
sobram-te Aqueus, outrossim, para a muitos privares da vida.
Ora troquemos as armas, porque possam todos os outros
reconhecer que nós dois nos gloriamos da avita amizade”.
(HOMERO, 2002, VI, v. 212-231, pp. 169-170)
Sobre ela, disse estas palavras Pierre Vidal-Naquet:
Entre os dânaos e os que combatem por Tróia, as relações, sobre um pano de
fundo de guerra de aniquilamento, podem ter momentos de cortesia. É o que se
passa no canto VI quando se encontram Diomedes e Glauco, originário da Lícia. Os
dois homens comparam as suas genealogias e descobrem que são hóspedes
hereditários um do outro. Essa relação de hospitalidade recíproca é tão forte quanto
uma relação de parentesco. Os dois homens permutam as suas armaduras (VIDAL-
NAQUET, 2002, p. 41).
Os historiadores Yvon Garlan e Mário Curtis Giordani deixaram entrever, a partir de
suas falas, que o ultraje feito a Menelau por ris foi, na verdade, um pretexto para a guerra
de Tróia, pois os motivos apontados pela Literatura, apesar de perfeitamente justificáveis,
como de fato se viu, seriam pequenos, frente aos lucros extraordinários que os gregos
poderiam obter pilhando as cidades que se encontravam pelo caminho que levava à Ílion e,
principalmente, esta; ganhando tesouros advindos de resgates de prisioneiros de guerra, por
parte dos inimigos; escravizando crianças, homens e mulheres das cidades conquistadas, bem
como os heróis que fossem subjugados na batalha; roubando do guerreiro assassinado as suas
armas e até mesmo a sua armadura. Os roubos, os saques (também através da pirataria), os
pagamentos de resgate e as escravizações, na Antigüidade clássica, complementavam a
economia das cidades, dos países. Acontece que, àquela época, havia uma grande escassez de
víveres e de recursos de natureza vária; sobretudo na Grécia, por conta da sua geografia, que
nunca se mostrou propícia às atividades agrícolas. Sobre a pirataria como uma das atividades
167
complementares à economia da antiga Grécia e talvez como a causa mais importante da
guerra de Tróia (ou mesmo a verdadeira causa), sobre as riquezas advindas de resgates de
prendas de guerra, sobre as escravizações e sobre os roubos de armamento e de vestimenta
dos guerreiros mortos em batalha, disseram Giordani e Garlan:
Nas relações com regiões distantes através dos mares, desempenha papel importante
a pirataria. Esta condizia com as qualidades belicosas da aristocracia: <<O tráfico é
vilão, a pirataria é nobre. Sente-se orgulho por operar uma razia em terra; como não
se sentiria no roubo de rebanhos e pastores depois de atravessar um braço de mar, ou
em trazer de expedições longínquas navios carregados de despojos? A lança nunca
desdoura. Quando se percebe um hóspede desconhecido, pergunta-se-lhe com
deferência se é pirata. O mesmo homem que se indigna por lhe chamarem capitão-
mercador conta que chefiou nove vezes bandos de corsários e concluiu com orgulho:
<<Assim couberam-me todos os bens em abundância; a minha casa aumentou
rapidamente; tornei-me poderoso no meu país e digno de respeito>> (GIORDANI,
s/d, v. I, p. 110).
repertórios de pretextos, como o que é proposto pelo autor aristotélico da Retórica
para Alexandre, no início do século III a. C.: <que, depois de termos sido vítimas de
injustiças no passado, se tenha agora, dadas as circunstâncias, de punir os que
cometeram essas injustiças, ou que, sendo actualmente vítima de uma injustiça, se
tenha de combater por si próprio ou por benfeitores ou prestar ajuda a aliados
vítimas de uma injustiça, quer no interesse da cidade ou para a sua glória, para o seu
poder ou por qualquer outro motivo desse género. Quando incitamos à guerra
devemos apresentar o maior número possível destes pretextos>. (1425a) (GARLAN
in VERNANT, 1993, p. 51-52).
As suas
169
respostas são convergentes e aparentemente simples: a causa da guerra
teria sido o desejo de <<possuir mais>>, de adquirir, segundo o primeiro
170
, riquezas
e eventualmente escravos, para o segundo
171
, sobretudo escravos, e para ambos,
arranjar comida no mundo animal e no estádio pré-cívico da humanidade (uma vez
desaparecida a abundância natural da idade de ouro ou a simplicidade dos costumes
primitivos). Embora a palavra <<riquezas>> e <<escravos>> possam revestir-se de um
sentido mais ou menos metafórico, isso não modifica em nada a perspectiva global
dos nossos dois filósofos: para eles, a guerra era, essencialmente, a arte de adquirir
pela força meios suplementares de existência, sob a forma de sustento, de dinheiro
ou de agentes produtores, e a paz era a arte de usufruir de tudo isso. [...] Portanto,
como foi mais ou menos sentido pelos próprios historiadores gregos, as relações
internacionais, sejam quais forem as suas metamorfoses, revestem-se sempre de um
aspecto económico, mesmo que a sua face mais saliente tenha, em geral, um carácter
totalmente diferente. Na minha opinião, este ponto de vista é o único que evita um
agravamento da oposição entre as causas económicas e não económicas da guerra
(ibidem, pp. 52-53, passim).
Na melhor das hipóteses, a de uma guerra ofensiva e vitoriosa, avaliavam-se os
lucros menos em dinheiro do que em despojos de diversa natureza: prisioneiros, que
se preferia libertar em troca de um resgate ou vender aos mercadores de escravos a
utilizá-los para aumentar o número de escravos de cada um; gado capturado nos
campos; produtos agrícolas já maduros ou ainda por colher; objectos preciosos
(metal trabalhado ou cunhado, tecidos) e mesmo toda a espécie de objectos
169
As de Platão e Aristóteles para as causas da guerra.
170
Segundo Platão.
171
Para Aristóteles.
168
utilitários (utensílios, revestimentos em madeira, etc). A repartição desses despojos,
a que podiam somar-se conquistas territoriais e tributos mais ou menos regulares,
era um problema essencial e sempre delicado, como provam os tratados que
regulamentam a sua distribuição aos aliados, em função dos seus contingentes ou em
função da natureza, móvel ou imóvel, dos bens conquistados. Infelizmente, não se
sabe bem como é que essa distribuição se efectuava, uma vez deduzidas as partes
concedidas aos combatentes mais valorosos e as armas, as riquezas e, por vezes, as
terras consagradas a uma qualquer divindade sob a forma de primícias e de décimas:
parece que ao Estado cabiam sobretudo (para além dos tributos e das conquistas
territoriais) os metais preciosos obtidos nos saques ou mediante a venda dos
prisioneiros; aos soldados, os bens de consumo e de equipamento; aos seus chefes,
algumas presas de qualidade quanto mais não fosse para os compensar das somas
que teriam desembolsado para melhorar o rancho das suas tropas, se não mesmo
para lhes fornecer armas e garantir o seu sustento (ibidem, pp. 53-54).
Mas é em situações inversas quando se tratava de rechaçar uma invasão inimiga e
garantir a sua própria salvação que as motivações dos combatentes nos são mais
amiúdes descritas. [...] Não havia cidade que não reagisse vivamente, mesmo que
fosse apenas por razões meramente materiais, dado que a maioria dos cidadãos era
constituída por proprietários fundiários. [...] Durante muito tempo, num ambiente
mais ou menos autárquico, tentou-se por termo o mais depressa possível às
incursões através de negociações ou provocando uma batalha decisiva em campo
aberto. [...] Ainda mais do que nunca batalha campal, um cerco é uma prova crucial
que mobiliza todas as energias dos combatentes e do conjunto dos habitantes,
porque um assalto comportava os massacres e as pilhagens inerentes a este gênero
de operação, e muita vezes também a aniquilação da comunidade com a sua redução
à escravidão. Graças ainda ao tratado de Eneias, o Táctico, podemos avaliar a
angústia e a exaltação dos sitiados, bem como o engenho das medidas tomadas
nessas circunstâncias: não contra o inimigo externo, as suas máquinas e os seus
estratagemas, mas também contra o inimigo interno, isto é, os opositores ao regime
dispostos a trair para triunfar. Num clima de extrema tensão, o sentimento patriótico
identificava-se então plenamente, no coração dos cidadãos, com a salvaguarda
imediata da sua pessoa, da sua família, da sua posição social e dos seus bens
(ibidem, 1993, pp. 54-56, passim).
Todavia, o que predomina na história grega, desde as tábuas micénicas do século
XII e dos Poemas Homéricos do século VIII, é algo totalmente diferente: uma
concentração das capacidades e das responsabilidades militares no topo da
hierarquia social, nas mãos de uma elite que no campo de batalha desempenha um
papel determinante, proporcional àquele que desempenha igualmente na política e na
economia. É a essa elite que compete exibir, na primeira fila, a sua riqueza, o seu
poder e a sua coragem, enquanto o povo, em segundo plano, se acantona em
formações compactas para apoiar e aplaudir as façanhas dos campeões. Cabe-lhe
também o privilégio das armas forjadas pelos deuses protectores, dos gigantescos
paveses e sobretudo dos carros de guerra (mesmo que, nos Poemas Homéricos, se
sirvam deles de um modo aberrante, como simples meios de transporte!). Cabem-lhe
também com toda a certeza os melhores despojos, belas prisioneiras e objectos
preciosos, retirados do saque comum. Por conseguinte, as sociedades aristocráticas
do limiar da história grega estavam sujeitas a uma hegemonia global e
funcionalmente indiferenciada, ainda que as virtudes guerreiras fossem as mais
apreciadas e se exprimissem com a maior autonomia (ibidem, 1993, p. 57).
De fato, as teses de Yvon Garlan e Mário Giordani encontram apoio em várias
passagens da Ilíada; como nestas, por exemplo, em que Aquiles fala a Tétis do saque
realizado a Tebas, com o objetivo de espoliar a cidade de todos os seus bens; Alexandre
169
propõe riquezas aos gregos, para que estes possam dar por encerrada a guerra de Tróia;
Adrasto oferece tesouros a Menelau, para não ser por este assassinado; Aquiles desabafa com
Ulisses acerca dos poucos prêmios que recebe, na hora da partilha dos despojos; Heitor
promete aos troianos recompensas para o que conseguir se aproximar das naves argivas;
Dolão propõe a Diomedes e a Ulisses objetos de ouro, para não ser morto por eles; Idomeneu
oferece a Meríones armamentos que foram subtraídos dos heróis troianos que caíram mortos
em batalha; Heitor compromete-se a dar metade do espólio de Pátroclo para aquele que
conseguir arrastar para dentro das muralhas de Tróia o corpo do efebo, bem como oferece a
Aquiles, antes de morrer pelas mãos deste, muito ouro, para que o seu cadáver fosse restituído
a Príamo:
“[...] Tebas, cidade sagrada de Eecião foi por nós assaltada,
completamente destruída e espoliada das muitas riquezas.
Com eqüidade foi tudo entre os homens Aqueus dividido [...]”.
(HOMERO, 2002, I, v. 366-368, p. 68)
Heitor, avançando para eles, falou-lhes:
“Ora, guerreiros Troianos, grevados Acaios, vos digo
o que vos manda propor Alexandre, fautor desta guerra:
Pede que todos os homens Aqueus e Troianos deponham
as belas armas na terra, nutriz de infinitos guerreiros,
para que possa no meio do campo lutar com o discípulo
de Ares, o herói Menelau, por Helena e suas muitas riquezas.
O que provar que é o mais forte, vencendo o adversário na luta,
leve consigo os tesouros e a casa conduza a consorte.
Com juramento firmemos nós outros a paz duradoura”.
(ibidem, III, v. 85-94, p. 106)
Cai o guerreiro [Adrasto] de bruços, bem junto da roda do carro,
indo de boca no chão; logo perto se achou dele o louro
filho de Atreu, Menelau, com sua lança de sombra comprida.
Passa-lhe os braços à volta dos joelhos Adrasto e suplica:
“Ó Menelau, não me mates; aceita resgate condigno.
Em meu palácio, meu pai acumula preciosos tesouros,
bem trabalhados objetos de ferro, e ouro e bronze abundantes.
Meu genitor te dará, de boamente, um resgate elevado,
quando souber que me encontro com vida nas naus dos Aquivos”.
Isso disse ele, abalando, sem dúvida, o peito do Atrida,
que já inclinado se achava a entregá-lo a um dos servos, que o fosse
para os navios velozes levar (ibidem, VI, v. 42-53, pp. 164-165).
“[...] Nem Agamémnone, certo, nem outro qualquer dos Aquivos,
conseguirá convencer-me, pois graça nenhuma me veio
de meu esforço incessante ao lutar contra os nossos imigos.
Tanto ao ocioso, que ao mais esforçado, iguais prêmios são dados;
170
as mesmas honras se outorgam ao fraco e ao herói mais galhardo.
Morre da mesma maneira o inativo e o esforçado guerreiro.
Vêde! Nenhuma vantagem me veio de tantos trabalhos,
a pôr em risco a existência nos mais temerosos combates [...]”.
(ibidem, IX, v. 315-322, p. 222)
Tendo-os ali reunido, [Heitor] propôs-lhe sensato conselho:
“Qual dentre vós quererá pôr em prática o plano que tenho,
para ganhar alto prêmio? Obterá recompensa condigna.
Um belo carro de guerra, com dois ardorosos cavalos,
os do mor preço das naves velozes Acaias prometo
a quem ousar alta glória, com isso, há de obter, por sem dúvida,
aproximar-se das naves de curso veloz, porque vejam
se ainda os Aqueus continuam guardando os navios velozes
ou se alquebrados por causa das perdas que a todos levamos,
e pelo extremo cansaço vencidos, combinam a fuga,
sem se importarem de a guarda noturna fazer neste instante”.
Isso disse ele; os presentes calados e quedos ficaram.
Um tal Dolão entre os Teucros se achava, nascido de Eumedes,
O divo arauto; muito ouro, de fato, possuía, e, assim, bronze.
Exteriormente era pouco agradável, porém velocíssimo.
Com cinco irmãs, era ele o único varão no palácio.
Vira-se, então, para Heitor e os Troianos e diz o seguinte:
“Meu coração e meu ânimo, Heitor, destemido, me levam
a aproximar-me das naves de curso veloz para espiá-las.
Quero, porém, que, primeiro, me jures, alçando o teu cetro,
que me darás cavalos e o carro de adornos de bronze
que nos combates Aquiles conduz, o guerreiro admirável.
Tua confiança verás confirmada; não sou mau escula,
pois pretendo ir pelo campo inimigo, até perto da nave
do grande Atrida Agamémnone, onde quiçá, se reuniram
para pensar no dilema: ou fugir ou aceitar o combate”
(ibidem, X, v. 302-327, pp. 244-245)
Dolão, entre lágrimas, disse:
“Não me mateis; aceitai meu resgate, que em casa possuo
bem trabalhados objetos de ferro e ouro e bronze abundantes.
Meu genitor vos dará de boamente um resgate elevado,
quando souber que me encontro com vida nas naus dos Aquivos”.
(ibidem, X, v. 377-381, p. 246)
Idomeneu, dos Cretenses o chefe, lhe disse, em resposta:
“Lanças, se tal desejares, não uma, somente, mas vinte
dentro da tenda acharás, encostadas no muro esplendente.
Lanças Troianas são todas, tomadas dos nossos imigos,
pois nunca luto a não ser frente a frente com meu adversário.
Por isso tenho abundância de lanças, de escudos copados,
elmos e belas couraças que vivo fulgor irradiam”.
Disse-lhe, então, em resposta, o prudente escudeiro Meríones:
“Tenho, também, belo espólio tomado dos Teucros, na tenda
e no navio anegrado [...]” (ibidem, XIII, v. 259-268, p. 303).
Para animá-los, [Heitor] profere as seguintes palavras aladas:
“Tribos sem conta de nossos vizinhos e aliados, ouvi-me!
Não foi por causa do número, ou para vos ter ao meu lado
que vos chamei das cidades nativas e aqui vos conservo;
mas para que de bom ânimo as Teucras esposas e os filhos
nos defendêsseis do ataque dos fortes guerreiros Acaios.
Por isso esgoto o meu povo, exigindo alimentos e dádivas,
para que todos possais lutar sempre com zelo extremado.
171
Sem vacilar, pois, deveis atirar-vos de encontro ao inimigo,
Para viver ou morrer, que esta é a sorte de toda batalha.
Quem conseguir arrastar para Tróia o cadáver de Pátroclo
e o Telamônio obrigar a afastar-se, metade do espólio
de minhas mãos obterá; para mim, há de ser a outra parte [...]”.
(ibidem, XVII, v. 219-231, p. 394)
“Por teus joelhos, tua vida, por teus genitores, suplico
não consentires que, junto das naves, aos cães atirado
seja o meu corpo. Ouro e bronze abundante, em resgate, recebe,
quantos presentes meu pai te ofertar, minha mãe veneranda,
e restitui o cadáver, que possam, em casa, os Troianos
e suas jovens esposas, à pira funerária entregá-lo”.
(ibidem, XXII, v. 338-343, p. 491)
Enfim, inúmeros são os trechos da Ilíada que transmitem esse caráter ambicioso e
materialista do herói grego. Sobre isso, escreveu Carlos Alberto Nunes:
Nesta altura, chamo a atenção dos leitores para este traço característico do
homem grego: o apego aos objetos de valor. O próprio Ulisses confessa a Alcínoo,
na Esquéria, que seria muito mal recebido em casa se voltasse de mãos vazias
(NUNES in HOMERO, 2002, p. 14).
Além do desprezo à hospitalidade, a quebra de juramento constituía falta grave entre os
heróis, pois jurar significava, para este, comprometer não a sua honra, mas a de todo o
grupo do qual ele fazia parte, perante outrem. Para afiançar o cumprimento de uma jura, os
heróis faziam-na sempre invocando o nome de uma divindade (geralmente Zeus, o maior de
todos os deuses) ou pedindo que um ancião presenciasse o ato: o respeito que se devia à figura
deste, na antiga Grécia, tornava-o tão bom fiador, tão boa garantia, quanto o próprio Zeus.
Aquele que não cumpria uma promessa feita era considerado perjuro; praticamente um
criminoso, pois havia faltado com sua palavra para com os deuses ou para com as autoridades
(muitas, advindas da tradição, como se viu). Por isso mesmo, não raro os perjuros eram
severamente punidos pelos heróis e/ou pelos deuses. Eis, portanto, mais um motivo capaz de
levar à luta, à batalha, o herói da Antigüidade clássica, como mostram estas passagens da
Ilíada:
Os Teucros todos e os homens Acaios desta arte imploraram:
172
“Zeus gloriosìssimo e forte, e vós outros, ó deuses eternos!
que se derramem, tal como este vinho, no chão os miolos
de quantos quebrem as juras solenes firmadas nesta hora,
e os de seus filhos, ficando as mulheres escravas de estranhos”.
(HOMERO, 2002, III, v. 298-301, p. 112)
“[...] Ora cumpre que Atena despaches
para a terrível batalha dos homens Aqueus e Troianos,
porque os Troianos primeiro aos Aqueus exultantes ofendam,
com se tornarem perjuros, quebrando a aliança formada”.
O pai dos homens e deuses de pronto aceitou esse alvitre
e, para Atena voltado, lhe disse as palavras aladas:
“Baixa, sem perda de tempo, às fileiras dos Teucros e Aquivos,
porque os Troianos primeiro aos Aqueus exultantes ofendam,
em se tornarem perjuros, quebrando a aliança firmada”.
Essas palavras a Atena ainda mais excitada deixaram.
(ibidem, IV, v. 64-73, p. 119)
“[...] Zeus poderoso, que no éter demora, nascido de Cronos
a égide fosca há de, certo, agitar lá de cima contra eles,
vendo a traição cometida; cumprido há de ser isso tudo [...]”.
(ibidem, IV, v. 166-168, p. 122, passim)
Quando encontrava guerreiros dispostos a entrar em combate,
estimulava-lhes mais, ainda, o brio, desta arte, falando:
“Não afrouxeis, homens de Argos, jamais do valor impetuoso,
que nunca Zeus poderoso se pôs dos perjuros ao lado!
Sempre tem sido repasto de cães e de abutres as carnes
tenras de quantos primeiro violaram os pactos firmados.
Quando tivermos os muros entrado, haveremos de levar-lhes
em nossas naves as caras esposas e os tenros filhinhos”.
(ibidem, IV, v. 232-239, p. 124)
“Saiba, primeiro, o maior e o mais forte dos numes, Zeus grande,
e a Terra, e o Sol, e as Erínias, também, que nos reinos subterrâneos
têm por função castigar quem houver perjurado na vida:
nunca na jovem Briseide toquei, nem por força de amores,
nem porque em mim tenha atuado outra força qualquer porventura.
Em minha tenda, durante esse tempo, ficou ela intacta.
Se quanto digo é inverdade, que os deuses me dêem sofrimentos
Indescritíveis, tal como costumam punir os perjuros”.
(ibidem, XIX, v. 258-264, pp. 438-439)
Sobre o respeito que os heróis greco-romanos devotavam às divindades, é preciso dizer
que ele advém, primeiramente, do sentimento de pequenez que aqueles passavam a ter,
sempre que se comparavam a estes: era inútil lutar contra os deuses ou contra a vontade
destes, pois, além de possuírem uma força descomunal, eram, os numes, os que traçavam o
destino dos homens, fossem estes heróis ou não. Sendo assim, os heróis não apenas
procuravam obedecer cegamente aos deuses como também louvá-los em todas as ocasiões.
Com esses comportamentos, aqueles esperavam receber algo destes: presentes de natureza
173
vária, ajudas no campo de batalha ou, simplesmente, um conselho, uma palavra que fosse.
Apesar das enormes diferenças existentes entre heróis e deuses, não se pode esquecer nunca
de que eles (con)viviam lado a lado: a Ilíada talvez seja a obra da Antigüidade clássica que
mais evidencie isso, por sua narrativa trazer incontáveis exemplos de inserções dos numes no
campo de batalha dos heróis. A seguir, excertos da Ilíada que mostram bem essa proximidade
de contato existente entre heróis e deuses e essa pequenez que aqueles sentiam, sempre que se
equiparavam a estes:
Quando, porém, pela quarta avançou, qual se fosse um demônio,
com voz terrível lhe diz Febo Apolo, o frecheiro infalível:
“Entra em ti mesmo, Diomedes; afasta-te; é absurdo pensares
que és como os deuses; em caso nenhum podem ser comparados
os moradores do Olimpo com os homens que rojam a Terra [...]”.
(HOMERO, 2002, V, v. 438-442, p. 148)
por este modo o Titida recuou, dirigindo-se aos sócios:
“Caros amigos, realmente, espantado me sinto ante o modo
de o grande Heitor manejar a hasta longa e avançar impetuoso.
Sempre ao seu lado se encontra algum deus, que dos golpes o livra.
Ares agora, que o vulto assumiu de um mortal, o defende.
Por isso tudo recuemos, sem dar aos Troianos as costas;
não é prudente querer contra os deuses usar de violência”.
(ibidem, V, v. 600-606, pp. 152-153)
Sobre a proximidade do herói (porque, antes de tudo, grego) para com os deuses, assim
se expressou Vegetti:
a divindade não está longe nem é inacessível, pode dizer-se que o convívio
com ela caracteriza todos os momentos significativos da existência privada e social;
é tão frequente encontrá-la, em imagens, em práticas culturais específicas, na
narração familiar e pública onde se esboçam as tramas densas de uma simbolização
significativa da existência, que parece não ser de perguntar por que é que os Gregos
acreditavam nos seus deuses. Dever-se-ia antes perguntar como seria possível que
eles não acreditassem, visto que isso implicaria a negação de uma grande parte da
experiência quotidiana de vida (VEGETTI in VERNANT, 1993, p. 231).
Agora, trechos da Ilíada que ilustram o fato de os deuses traçarem o destino dos heróis,
de modo que tudo o que acontecia na vida destes devia-se à vontade daqueles:
Canta-me a Cólera ó deusa! funesta de Aquiles Pelida
174
[...] Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
Qual, dentre os deuses eternos, foi causa de que eles brigassem?
O que de Zeus e de Leto nasceu, que, com o rei agastado,
peste lançou destruidora no exército.
(HOMERO, 2002, I, v. 5-10, pp. 57-58, passim)
Príamo, o neto de Dárdano, aos outros, então, se dirige:
“Ora, guerreiros Troianos, grevados Acaios, ouvi-me!
Vou retornar para Tróia, a cidade varrida por ventos,
por me faltar a coragem de ver com meus olhos a luta
que o herói Menelau vai travar meu querido Alexandre.
Zeus, porventura, já sabe, e os mais deuses eternos e beatos,
a qual dos dois o Destino reserva ser presa da Morte”.
(ibidem, III, v. 303-309, p. 112)
“[...] Para a cidade, depois, Heitor corre, e instruções leva logo
à nossa mãe, que, sem perda de tempo, as matronas reúna
no alto da rocha, onde o templo se encontra de Palas Atena.
Pós ter franqueado com a chave o recesso sagrado do templo,
tome no manto maior que na régia bem-feita se encontra,
o de mais fino lavor e que ao peito mais caro lhe seja,
e sobre os joelhos de Atena, de belos cabelos, deponha.
Mais: doze vacas promete imolar no interior do santuário
ainda indomadas, apenas de um ano, sendo ela benigna
para a cidade, as esposas dos Teucros e nossos filhinhos,
longe mantendo dos muros sagrados de Tróia o Tidida [...]”.
(ibidem, VI, v. 86-96, p. 166)
Mui comovido ante o quadro, o guerreiro,
acariciando-a com a mão, lhe dirige as seguintes palavras:
“Minha tolinha, por que, desse modo, afliges tua alma?
Homem nenhum poderá, contra o Fado, mandar-me para o Hades,
pois quero crer que a ninguém é possível fugir ao destino,
desde que nasça, seja ele um guerreiro de prol ou sem préstimo [...]”.
(ibidem, VI, v. 484-489, p. 177)
Té que, por fim, Menelau se levanta e, com termos violentos,
os companheiros censura, pois sua aflição era grande:
“Bando covarde de Acaios, não digo de Aqueus, bons de lìngua!
Para nós todos será grande opróbrio, o mais grave e humilhante,
que nenhum Dânao revele coragem de a Heitor contrapor-se.
Em água e terra virar se pudésseis, em vez de ficarem
todos sentados, assim, onde se acham, com medo e sem honra!
Pois cingirei minhas armas para ir combatê-lo, que, é certo,
só dos eternos do Olimpo depende alcançar vitória”.
(ibidem, VII, v. 94-102, p. 182)
a Diomedes [Nestor] se volta e lhe fala:
“Toma, Diomedes, das rédeas e faze virar os cavalos,
pois não estás vendo que Zeus nos denega alcançar a vitória?
O grande Crônida a Heitor hoje glória concede perene;
mas amanhã, se o quiser, far-nos-á vencedores de novo.
Nunca os desígnios de Zeus alterar jamais pôde algum homem,
por mais valente e galhardo, pois ele é o poder infinito”.
(ibidem, VII, v. 138-144, p. 199)
Disse-lhe o forte Diomedes, então, em resposta, o seguinte:
“Fico, e hei de tudo arriscar, muito embora pequena vantagem
175
ora possamos obter, pois Zeus grande, que as nuvens cumula,
quer conceder vitória aos Troianos, privando-nos dela”.
(ibidem, XI, v. 316-319, p. 262)
A Automedonte dava ordens, entanto, e aos fogosos ginetes
Pátroclo, para que em pós dos Troianos e Lícios seguissem.
Cego! Se houvesse prestado atenção ao conselho de Aquiles,
provavelmente teria escapado da Morte sinistra.
Mas a vontade de Zeus é mais forte que o arbítrio dos homens,
pois fácil lhe é pôr em fuga o mais bravo e negar-lhe a vitória,
ainda que fosse ele próprio que houvesse a lutar instigado.
Brio, desta arte, ele agora, no peito de Pátroclo inflama.
(ibidem, XVI, v. 684-691, p. 381)
“Filho, por mais que tristeza te cause, deixemos o morto
a descansar, pois tudo isso se deu por vontade dos deuses.
Ora essas armas recebe. São tuas. Hefesto aprontou-as.
Armas como estas decerto ninguém nunca pôs sobre os ombros [...]”.
(ibidem, XIX, v. 8-11, p. 432)
“[...] Freqüentemente inculpavam-me os fortes Argivos; contudo,
culpa não tenho nenhuma, senão, tão-somente, Zeus grande,
a fatal Moira e as Erínias que vagam nas trevas espessas.
Uma cegueira feroz me ensejaram tais deuses no peito,
a qual me fez no conselho, ao Pelida privar do alto prêmio.
Como pudera eu reagir? São os deuses que tudo dispõem [...]”.
(ibidem, XIX, v. 85-90, p. 434)
como provas da obediência cega que os heróis devotavam aos olimpianos, eis as
seguintes passagens da Ilíada:
Disse-lhe Aquiles, de rápidos pés, o seguinte, em resposta:
“Deusa, é razoável que às ordens das duas me mostre obediente,
ainda que muito irritado me sinto. É, de fato, mais útil.
Os deuses folgam de ouvir aos que sempre submissos se mostram”.
A mão robusta, então, logo baixou sobre o punho da espada,
e a grande espada encaixou na bainha, sem que se esquecesse
do que lhe Atena dissera, que foi para o Olimpo, a ajuntar-se
aos outros deuses celestes, na casa de Zeus tempestuoso.
(HOMERO, 2002, I, v. 215-222, p. 64)
A de olhos glaucos, Atena, lhe foi deste modo dizendo:
“Filho de Laertes, de origem divina, Odisseu engenhoso!
É, então, possível que todos fujais para a pátria querida,
precipitando-vos, cegos, nas naves providas de remos?
E deixareis que Troianos e Príamo tanto enaltecem,
a Argiva Helena, por quem tantos homens Aquivos morreram
longe da pátria, jogados nas vastas planícies de Tróia?
Vamos! Dirige-te aos homens Acaios, sem perda de tempo,
e com palavras afáveis procura detê-los a todos,
não consentindo que lancem ao mar os navios simétricos”.
Isso disse ela; Odisseu compreendeu que era a voz de uma deusa.
(ibidem, II, v. 172-182, p. 82)
176
Para que os deuses fossem-lhes propícios ou para não incorressem no desagrado dos
numes, os heróis, constantemente, faziam pedidos, libações e/ou hecatombes a estes, como se
pode ver nestes trechos da Ilíada:
Lança, entrementes, o Atrida nas ondas um barco ligeiro,
para o qual vinte remeiros já havia escolhido. A hecatombe
de Febo Apolo mandou para bordo, assim como a Criseide
de faces belas. O mando ao sagaz Odisseu ele entrega.
Esses, depois de embarcados, as úmidas vias cortaram,
enquanto o Atrida dava ordens a todos que banho tomassem.
Purificaram-se todos, jogando no mar as escórias,
e a Febo Apolo ofertaram, de cabras e touros seletos,
uma hecatombe completa, na praia do mar incansável.
Nas espirais da fumaça até o Céu o perfume subia.
(ibidem, I, v. 308-317, p. 66)
Atirou Menelau, em seguida,
a sua lança, também, dirigindo a Zeus grande uma súplica:
“Dá-me, Zeus pai, que consiga castigo infligir a Alexandre,
causa de minha desonra! Que sob meus golpes sucumba,
para de exemplo servir aos vindouros, que horror manifestem
de retribuir com vilezas a lhana e amistosa hospedagem”
(ibidem, III, v. 349-354, p. 113)
Logo, hecatombes perfeitas aos deuses do Olimpo oferecem.
Nas espirais da fumaça é levado até o Céu, pelo ventos,
o suave odor da gordura. Os eternos, porém, recusaram
o sacrifício, que a todos odiosa era Tróia sagrada.
(ibidem, VIII, v. 549-552, p. 211)
Ledo, Odisseu, com o presságio, dirige-se a Palas Atena:
“Ouve-me, filha de Zeus poderoso, que em todas as minhas
dificuldades me assistes, a quem não se ocultam meus passos,
Palas Atena! Ora mais do que nunca propícia me ajuda.
Dá que possamos, cobertos de glória, voltar para as naves,
pós grande feito acabarmos que há de lembrar sempre os Teucros”.
Por sua parte, Diomedes, de voz poderosa, suplica:
“Ouve-me, Atena, também, nobre filha de Zeus poderoso!
Segue-me como seguiste meu pai, o divino Tideu,
quando ele em Tebas esteve em missão dos guerreiros Aquivos.
No Rio Asopo deixara os Argivos de vestes de bronze,
e razoáveis propostas levou para os filhos de Cadmo.
Feito terrível, porém, conseguiu realizar, ao retorno,
graças a ti, grande deusa, que sempre o amparaste benévola.
-me propícia, igualmente, e, cuidosa, ao meu lado te ponhas.
Hei de imolar-te vitela de um ano, de fronte espaçosa,
e não domada jamais por ninguém, nem vergada no jugo;
hei de ofertar-te uma assim, após ter-lhe dourado os dois chifres!”
Isso disseram, na súplica; Palas Atenas os ouviu.
(ibidem, X, v. 277-295, pp. 243-244)
De acordo com Maria Helena da Rocha Pereira, o suplicante, na Antigüidade clássica,
geralmente era atendido, pois aceitar a súplica, bem como ser hospitaleiro, fazia mesmo parte
177
das normas de conduta do Homem grego. Nos trechos pouco citados, Apolo, que outrora
tinha aceito o pedido de seu sacerdote, Crises, para dizimar o exército grego, resolve aceitar a
hecatombe que lhe é feita pelos heróis acaios; Ulisses e Diomedes pedem ajuda à Atena para
chegarem sãos ao acampamento dos argivos, no que são prontamente atendidos; Menelau, por
sua vez, não consegue atingir Alexandre, após pedir isso a Zeus: acontece que este estava ao
lado dos troianos. Em contrapartida, estes não encontram apoio entre muitos dos outros
olimpianos, ao lhes pedir proteção contra os heróis gregos que ameaçavam invadir Tróia.
Sobre a piedade e a hospitalidade como características do povo grego da Antigüidade, Pereira
disse:
Outras normas de maior alcance são as que dizem respeito aos suplicantes e
hóspedes. Era de bom tom atender e defender quem implorava a protecção de
outrem, tomando a atitude clássica da súplica: tocar com a dextra na barba e a
esquerda nos joelhos. É nessa atitude que, no plano divino, encontramos Tétis no
Olimpo, para obter de Zeus o sinal de anuência ao seu pedido em favor de Aquiles.
Na Odisseia, Ulisses abraça os joelhos da rainha Arete, suplicando-lhe meios para
regressar à sua terra, e depois senta-se na cinza do mégaron, à espera. É então que o
mais idoso dos conselheiros feaces se dirige ao rei Alcínoo, censurando-o por tardar
na sua resposta. O rei acolhe o suplicante como seu hóspede. E desde então ele passa
a gozar dos privilégios inerentes a essa qualidade: dá-se um banquete em sua honra e
entregam-se-lhe os <<presentes de hospitalidade>>. E será reconduzido a Ítaca num
navio. Este caso exemplifica bem o processo pelo qual alguém se torna hóspede de
outro. E, se alguma vez as posições se inverterem, isto é, se o hospedeiro passar pela
terra daquele que acolheu sob o seu tecto, receberá idênticas regalias. Assim se cria
um nculo de ordem moral entre o que e o que recebe, que assume tal
importância que prevalece sobre os deveres militares e atravessa gerações
(PEREIRA, 1993, vol.I, pp. 82-83).
Para Mario Vegetti, esse respeito, essa veneração e essa deferência do herói da
Antigüidade clássica para com os deuses constituíam-se naquilo que os períodos históricos
posteriores iriam chamar de Religião, pois não havia, entre os gregos e os romanos antigos,
nem aqueles elementos característicos das religiões monoteístas, como profetas, livros
sagrados e verdades absolutas, por exemplo, nem palavras, pelo menos na língua grega antiga,
que tivessem significados equivalentes aos que foram dados aos vocábulos “Religião” e “Fé”
pelos mais diversos povos monoteístas, ao longo da História. Vegetti ressalta que muito desse
respeito e dessa deferência advinham do medo: os heróis poderiam cair na sanha dos deuses
178
sem que tivessem tido a intenção de lhes fazer mal. Porém, em alguns casos, é bem verdade,
um herói mais imprudente e/ou excessivamente corajoso poderia enfrentar os olimpianos: esta
é uma situação que também precisa ser levada em consideração, quando se trata da relação
estabelecida entre heróis e deuses, na Antigüidade clássica. Quanto isto acontecia, o herói
passava a ser considerado “contaminado”, portador de um miasma: ele não poderia participar
de nenhuma cerimônia religiosa até que se purificasse por meio de um ritual (kàtharsis) que
consistia, basicamente, na lavagem do corpo com água ou a partir de vapores d‟água. Sobre a
relação dos gregos de um modo geral e dos heróis, de modo particular, com a “religião” e com
os deuses, Mario Vegetti falou:
Em primeiro lugar, essa religião não se baseia em nenhuma revelação
<<positiva>> dada directamente pela divindade aos homens; por conseguinte, não
tem nenhum profeta fundador, ao contrário das grandes religiões monoteístas do
Mediterrâneo, e não possui nenhum livro sagrado que enuncie as verdades reveladas
e constitua um princípio de um sistema teológico. A ausência do Livro implica a
ausência de um grupo de intérpretes especializados; nunca houve na Grécia uma
casta sacerdotal permanente e profissional (já que o acesso às funções sacerdotais
estava, em princípio, aberto a todos os cidadãos, e normalmente com carácter
transitório), e muito menos uma igreja unificada, entendida como aparelho
hierárquico e isolado com legitimidade para interpretar as verdades religiosas e
oficiar as práticas de culto. Também nunca houve dogmas de cuja observância
fosse imposta e vigiada e cuja transgressão desse lugar às imagens da heresia e da
impiedade. [...] Esta série de considerações negativas torna difícil falar
positivamente de uma <<religião>> grega, pelo menos no sentido em que o termo é
usado no contexto das tradições monoteístas. Na língua grega nem sequer existe
uma palavra cujo campo semântico seja equivalente ao termo <<religião>>. A que
mais se aproxima, eusèbeia, é definida pelo sacerdote Êutifron, o protagonista do
diálogo homônimo de Platão, como <<os cuidados [therapeia] devidos aos
deueses>> (Platão, Êutifron, 12e). Portanto, a religiosidade consiste na observância
pontual dos ritos culturais que exprimem o respeito, a veneração e a deferência dos
homens pela divindade, e que consistem sobretudo em oferendas sacrificiais e
votivas. O equivalente grego do termo <<>> também não é muito expressivo. Na
língua corrente, a expressão <<crer nos deuses>> (nomizein tous theoùs) significa
mais <<respeitar>>, honrar a divindade através das práticas de culto, do que estar
racionalmente convencido da sua existência (como acontecerá com a linguagem
filosófica posterior): portanto, nomizein equivalerá a therapeuein, ter para com a
divindade os cuidados rituais convenientes. [...] É evidente que isso não significa
que não existisse um profundo e enraizado temor à divindade e à sua capacidade de
punir as culpas dos homens reduzindo o seu tempo de vida e atingindo também a sua
descendência (VEGETTI in VERNANT, 1993, pp. 232-233, passim).
no comportamento religioso dos Gregos, credulidade e incredulidade, temor
ao divino e desenvoltura para com ele, estão estreitamente ligados; dar um realce
excessivo a qualquer um desses aspectos significaria compreender mal esse
comportamento (ibidem, p. 234).
179
Por vezes, os homens invadem o espaço do sagrado, violam os seus
privilégios ou infringem as normas divinas que regem a ordem social. Isso acontece,
por exemplo, na Ilíada, quando os Gregos reduzem à escravidão a filha de um
sacerdote de Apolo, Criseide, que, por nascimento, está consagrada ao deus e faz
parte dos seus bens. [...] Em todos estes casos existe <<contaminação>> (mìasma),
como existe sempre que se infringem juramentos feitos em nome dos deuses, se
derrama sangue humano ou não se respeitam as regras do rito. A contaminação é
uma culpa que ultrapassa os milites da ordem jurídica e moral: faz recair sobre o
culpado a vingança divina e difunde-se quer no espaço, envolvendo a comunidade
que o alberga (quem expia as culpas de Agamémnon e de Édipo são os exércitos dos
Gregos e a cidade de Tebas, com a <<pestilência>> que lhes é enviada pelos deuses),
quer no tempo, atingindo implacavelmente os descendentes do contaminado, como
aconteceu às famílias trágicas dos Labdácidas e dos Atridas. A idéia do mìasma tem
provavelmente origens materiais, exprimindo a sujidade, a imundície, a mácula de
quem vive sob ou fora das normas impostas pela sua comunidade social, e
revelando-se, em sentido próprio, nas mãos sujas de sangue do homicida, nas chagas
que cobrem o corpo de quem, segundo se pensa, sofre um castigo divino. É claro
que a sujidade material das origens tende depois a moralizar-se, convertendo-se
numa metáfora da <<culpa>> e da <<maldição>> divina. Quem está infectado não
pode aproximar-se do sagrado nas práticas rituais, e deve ser banido da sua
comunidade que, de outro modo, corre o risco de ser contagiada. O ritual
antiqüíssimo do pharmakòs, que revela proveniências orientais indubitáveis, é uma
reminiscência dessa situação: todos os anos, a comunidade escolhe um dos seus
membros marginais com deformações físicas ou psíquicas e declara-o banido,
acompanhando-o em procissão até às portas da cidade, para que com ele sejam
expulsas todas as contaminações que possam existir no grupo social (ibidem, pp.
235-236, passim).
Se a ideia de contaminação tem origens materiais, o acto da purificação
(kàtharsis), na sua forma ritual, também é material. Trata-se essencialmente de uma
ablução efectuada com água (mais raramente de uma fumigação): visa reconduzir o
indivíduo sujo, impuro, ao nível de limpeza, portanto, de pureza, exigido pela sua
civilização. A ablução purificadora efectuar-seem todos os casos em que ocorram,
mesmo sem a existência de qualquer culpa, fenômenos potencialmente
contaminados, como o nascimento, a morte, o sexo, a doença. [...]Na consciência
religiosa e moral das seitas, continuada depois no pensamento filosófico, de que
falaremos mais adiante, a ideia da purificação desenvolve-se em paralelo com a
concepção da culpa contaminante que caracteriza a condição humana: a vida será
então entendida como exercício de purificação da corporeidade e dos vícios que lhe
são inerentes, até que o elemento salvador do elemento espiritual, a alma, se liberte
dos seus laços terrenos (ibidem, p. 236, passim).
Exemplo, na Ilíada, de mìasma e de kàtharsis, respectivamente: quando Agamémnon
enxota, com palavras grosseiras, o sacerdote Crises do acampamento grego e quando o Atrida,
logo em seguida, pede aos argivos que, depois de entregarem a bela Criseide a seu pai, tomem
um banho antes de realizar uma hecatombe a Apolo, para aplacar-lhe a fúria.
Por outro lado, quando caiam nas graças divinas, por ganharem, gratuitamente, a
simpatia dos numes ou por terem prestado a estes boas homenagens, sob a forma de libações
ou de hecatombes, os heróis recebiam presentes, ajudas ou conselhos dos olimpianos, pelo
180
que deveriam ser gratos. As seguintes passagens da Ilíada mostram bem que os heróis não
deveriam desprezar aquilo que recebiam dos deuses:
“[...] Não me censures por causa dos mimos da loura Afrodite,
pois desprezíveis não são os presentes valiosos que os deuses,
de seu bom grado, concedem; que, à força, ninguém os alcança [...]”.
(HOMERO, 2002, III, v. 64-66, p. 105)
Palas Atena, a donzela de Zeus, em Diomedes infunde
força e coragem sem par, para que entre os Argivos pudesse
sobressair mais que todos e glória imortal conquistasse.
(ibidem, V, v. 1-3, p. 135)
A fervorosa oração foi ouvida por Palas Atena;
Leves lhe torna ela os membros, os braços e as pernas robustas,
e, ao lado dele se pondo, lhe disse as palavras aladas:
“Podes, com todo o teu brio, lutar com os Troianos, Diomedes,
pois no imo peito te faço nascer a indomável coragem,
própria do grande Tideu picador, quando o escudo vibrava.
Vou desfazer a caligem que os olhos brilhantes te cobre,
que distinguir, facilmente, consigas os deuses e os homens.
Não te aventures, jamais, a lutar contra os deuses eternos,
caso te venha tentar algum nume do Olimpo elevado;
contra nenhum; mas se a filha de Zeus poderoso, Afrodite,
se aventurar a lutar, então fere-a com o bronze afiado
(ibidem, V, v. 121-132, p. 139)
Disse-lhe Febo, em resposta, o deus claro que ao longe asseteia:
“Cobra coragem, que um bom protetor do Ida augusto te envia
o grande filho de Crono, com o fim de assistir-te e ajudar-te,
Febo, de espada brilhante, que sempre se pôs ao teu lado,
para guardar-te e a cidade de Tróia de lisas muralhas.
Os numerosos amigos concita depressa, animando-os
a dirigirem os brutos no rumo das naves escuras.
Eu próprio hei de ir sempre à frente dos belos corcéis, para a estrada
livre deixar e induzir os heróicos Aquivos à fuga”.
Incontrastável poder no pastor de guerreiros insufla.
[...]
os pés e os joelhos Heitor, desse modo, movia, dando ordens
aos seus amigos, depois de ele a voz ter ouvido de Febo.
(ibidem, XV, v. 253-270, p. 345, passim)
Além de respeito aos deuses, os heróis deviam igual deferência aos seus iguais, aos seus
superiores ou aos mais velhos; sobretudo a estes, como mostram os seguintes trechos da
Ilíada:
Para o conselho dos velhos fez vir os mais nobres Acaios:
o velho Pílio Nestor em primeiro lugar; depois dele,
Idomeneu, os Ajazes e o filho do grande Tideu;
Sexto, fez vir Odisseu, que de Zeus tinha o senso elevado.
181
(HOMERO, 2002, II, v. 404-407, p. 89)
“Por mais cuidado que, amigos, vos dê minha sorte, deixai-me
ir da cidade, sozinho, e buscar os navios dos Dânaos,
para que, súplice, a esse homem violento e funesto depreque.
É bem possível que a minha velhice respeito lhe inspire,
e que se apiede de mim. Como eu sou, é Peleu também velho,
que o pôs no mundo e o educou para exìcio dos homens de Tróia [...]”.
(ibidem, v. 416-421, p. 493)
De acordo com Maria Helena da Rocha Pereira, essa consideração que o herói deveria
ter por seus companheiros de armas e por seus líderes fazia mesmo parte da conduta do herói
da Antigüidade clássica. O mesmo acontecia no âmbito dos deuses: todos se levantavam,
sempre que Zeus adentrava em seu palácio no Olimpo. Foi o que disse Pereira:
Entre essas normas observadas no convívio social, devem salientar-se as
manifestações de respeito por um igual ou superior. Aquiles levanta-se, quando
chegar a embaixada que o procura. E a cortesia é transposta para o plano divino: os
deuses erguem-se, quando Zeus entra no seu palácio no Olimpo; os Ventos põem-se
de pé, quando Íris transpõe os umbrais da sua morada (PEREIRA, 1993, vol.I, p.
82).
Como já foi dito algumas vezes, ao longo deste capítulo, o herói da Antigüidade
clássica sempre lutava em busca de honra, de glória, ainda que essa lhe adviesse com a morte,
enquanto guerreava. Exatamente por isso, os heróis sentiam a necessidade de permanecer em
campo de batalha, de atacar sempre e de nunca retroceder. Para tanto, fazia-se também
importante a presença de um grande líder, capaz de impelir todos os heróis, no momento
certo, para a pugna. Esta poderia se dar, sobretudo, de três formas: pelo embate entre os
cavaleiros e os guerreiros que faziam parte da infantaria; por meio do duelo, da justa, ou,
ainda, pelo enfrentamento entre dois grupos de infantes. Quando agrupamentos de heróis
inimigos encontravam-se, em campo de batalha, não faltavam, entre os amigos,
camaradagem, de modo que um acabava sempre tomando as dores pelo outro. Esse
companheirismo repousava, sobretudo, no sentimento que todos possuíam de pertencer à
mesma pátria; ou seja, no ufanismo; porém, poderia advir também dos laços de parentesco, da
182
hospitalidade ou da comensalidade. Agora, passagens da Ilíada que mostram a preocupação
do herói da Antigüidade clássica em obter glória, ainda que esta viesse post-mortem:
A fixar o infinito
pélago, [Aquiles] à mãe diletíssima implora, estendendo-lhe os braços:
“Mãe, já que vida de tão curto prazo me deste, seria
justo que ao menos tivesse honras muitas de Zeus poderoso
que no alto troa! Ele, entanto, de todo de mim não se importa,
pois consentiu que o potente senhor, de Atreu filho, Agamémnone,
me desonrasse; meu prêmio tomou, de que, ufano, se goza”.
(HOMERO, 2002, I, v. 350-356, pp. 67-68)
Enquanto todos cuidavam do herói Menelau, de voz forte,
rompem a marcha os guerreiros Troianos munidos de escudos.
Os Aqueus todos às armas correram, lembrados da pugna.
Nessa ocasião não puderas tachar o divino Agamémnone
de sonolento, ou covarde, ou propenso a evitar os combates,
sim, pressuroso de entrar na batalha que aos homens dá glória.
(ibidem, IV, v. 220-225, p. 124)
O grande Ajaz Telamônio, também, os Aqueus exortava:
“Sede homens, caros amigo e na alma o pudor tende sempre!
Possa o respeito recíproco a todos dar brio na pugna.
São mais poupados na guerra os que sabem morrer bravamente;
os fugitivos nem glória jamais obterão, nem defesa”.
(ibidem, XV, v. 560-564, p. 353)
Tétis, a deusa dos pés argentinos, de quem fui nascido,
já me falou sobre o dúplice Fado que à Morte há de dar-me;
se continuar a lutar ao redor da cidade de Tróia,
não voltarei mais à pátria, mas glória hei de ter sempiterna;
se para casa voltar, para o grato torrão de nascença,
da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa
conseguirei, sem que o temor da Morte mui cedo me alcance.
(ibidem, IX, v. 410-416, p. 225)
Sobre o fato de o herói da Antigüidade clássica buscar a honra, a glória, ao longo de
toda a sua vida, pronunciaram-se Adriane da Silva Duarte
172
e Werner Jaeger:
Para os gregos, a única forma de vida eterna aspirável pelo homem é a
memória de seus atos sobre a Terra. O ser humano é perecível e por isso deve
sobressair-se em vida: sua glória deve ser terrena (DUARTE, 1992).
Assim se compreende o trágico conflito de Aquiles na Ilíada. A sua
indignação contra os Gregos e a sua recusa em prestar-lhes auxílio não derivam de
uma excessiva ambição pessoal. A grandeza da sua ânsia de honra corresponde à
grandeza do herói e é natural aos olhos do homem grego. Ofendida a honra desse
herói, estremece nos seus próprios fundamentos a aliança dos heróis aqueus contra
Tróia. Quem atenta contra a arete alheia perde, em suma, o próprio sentido da arete.
172
DUARTE, op. cit.
183
[...] A verdadeira gravidade da ofensa [feita a Aquiles] está no fato de ter sido
recusada a honra de uma arete proeminente (JAEGER, 2001, p. 32, passim).
A honra é o troféu da arete; é o tributo pago à destreza. A altivez provém,
assim, da arete; mas dresulta igualmente que a altivez e a magnanimidade são o
que há de mais difícil para o Homem (ibidem, p. 34).
Agora, trechos da Ilíada que comprovam a necessidade de o herói antigo ter de
permanecer no campo de batalha para conseguir chegar à glória. A palavra de ordem era
atacar. Retroceder seria, para o inimigo, sinal de covardia e de medo.
Se [Odisseu], porventura, encontrava um dos reis, ou pessoa graduada,
com termos brandos tentava detê-lo, embargando-lhe os passos:
“Não fica bem, caro amigo, mostrar o temor do homem baixo;
cuida, isso sim, de acalmar-te; concita essa gente a assentar-se,
pois desconheces em todo o seu ânimo os planos do Atrida.
Ora procura tentar-nos, mas breve há de a pena infligir-nos.
Nem todos nós percebemos o que ele externou no conselho.
Não aconteça, colérico, males causar aos Argivos.
Sempre é violento o rancor do monarca de Zeus descendente.
A majestade e o poder ele os herda de Zeus poderoso”.
(HOMERO, 2002, II, v. 188-197, p. 83)
Cheio de bons pensamentos lhe diz [Odisseu], arengando, o seguinte:
“Filho de Atreu, soberano, os guerreiros Aquivos desejam
que ante o universo dos homens mortais inflamado tu fiques.
Não querem dar cumprimento às promessas com que se empenharam
ao virem de Argos, nutriz de corcéis, sob o teu regimento:
que voltariam somente depois de destruir Ílio forte.
Como se fossem mulheres a quem falta o esposo, ou crianças,
uns para os outros se queixam, chorando e almejando retorno.
Grande é, realmente, a fadiga, e o desejo da volta, explicável.
Quem fica apenas um mês afastado da esposa querida,
muito se queixa na nave provida de remos, se acaso
as tempestades do inverno no mar o detêm agitado.
Nós, entretanto, já vimos nove anos completos passarem,
sempre detidos aqui. Não censuro, por isso, aos Acaios
por se angustiarem nas naves recurvas. Mas é vergonhoso
com mãos vazias voltarmos depois de demora tão longa.
(ibidem, II, v. 283-298, pp. 85-86)
Com torvo olhar lhe responde Diomedes, o forte guerreiro:
“Fuga? Presumes que possa deixar-me suadir porventura?
Não se coaduna com minha coragem fugir do inimigo,
ou trepidar; o consueto vigor ainda tenho no peito.
Peja-me de ter de subir para o carro; tão-só, como me acho,
Hei de enfrentá-los, que Palas Atena tremer não me deixa [...]”.
(ibidem, V, v. 251-256, pp. 142-143)
Vira-se, então, para Heitor, censurando-o acremente, Sarpédone:
Para onde foi, divo Heitor, a coragem que sempre mostraste?
Não afirmavas que té sem aliados, sem povo, podias,
só com os cunhados e irmãos, defender a cidade altanada?
184
Ora, em que muito me esforce, nenhum deles vejo ou percebo.
Trêmulos todos estão, como em frente do leão cachorrinhos.
Nós, combatemos, conquanto sejamos apenas aliados.
Enquanto a mim, como aliado, de terra distante sou vindo [...]”.
(ibidem, V, v. 471-478, p. 149)
Por entre as filas o Atrida corria, dando ordens diversas:
“Sede homens, caros amigos, e ardor demonstrai combativo!
Possa o respeito recíproco a todos na pugna dar ânimo.
São mais poupados na guerra os que sabem morrer briosamente,
ao passo que os fugitivos nem glória obterão, nem defesa”.
(ibidem, V, v. 528-532, pp. 150-151)
Disse-lhe Heitor em resposta, o guerreiro do casco ondulante:
“Tudo isso, esposa, também me preocupa; mas quanta vergonha
dos outros homens e, assim, das Troianas de peplos compridos,
eu sentiria se, infame, fugisse às pelejas cruentas.
Isso, meu peito proíbe, ensinando-me a ser valoroso
e a combater sempre à frente dos fortes guerreiros de Tróia,
para mor lustre da glória paterna e de meu próprio nome [...]”.
(ibidem, VI, v. 440-446, p. 176)
Té que, por fim, Menelau se levanta e, com termos violentos,
os companheiros censura, pois sua aflição era grande:
“Bando covarde de Acaios, não digo de Aqueus, bons de lìngua!
Para nós todos será grande opróbrio, o mais grave e humilhante,
que nenhum Dânao revele coragem de a Heitor contrapor-se.
Em água e terra virar se pudésseis, em vez de ficarem
todos sentados, assim, onde se acham, com medo e sem honra!
Pois cingirei minhas armas para ir combatê-lo, que, é certo,
só dos eternos do Olimpo depende alcançar vitória”.
(ibidem, VII, v. 94-102, p. 182)
té que, por fim, fala Diomedes, de voz poderosa:
“Do meu direito valendo-me, Atrida, começo insurgindo-me
contra tua idéia insensata, sem que isso provoque tua cólera.
Foste o primeiro a acoimar-me de fraco, na frente dos Dânaos,
de ser imbele e de pouco valor. Mas, sobre isso, os Argivos,
tanto os anciões como os moços, já têm uma idéia formada.
Zeus poderoso, nascido de Crono, negou-te uma dádiva:
deu-te, sem dúvida, um cetro, o mais alto penhor do comando,
mas não te deu a coragem, sem dúvida a força mais nobre.
Pensas, então, infeliz, que os Aqueus sejam tão destituídos
de varonil decisão para vires propor tal medida?
Se o coração te concita, realmente, a viajar de tornada,
parte: o caminho está franco; na beira da praia os navios
que de Micenas trouxeste, incontáveis, a jeito se encontram.
Outros Acaios aqui ficarão, de cabelos cacheados,
para que os muros de Tróia arrasemos; mas mesmo que todos
queiram voltar para a pátria querida nas céleres naves,
nós, a saber, eu e Esténelo, a luta levar haveremos
té que Ílio santa destruamos, que um deus favorável nos trouxe”.
(ibidem, IX, v. 31-49, pp. 214-215)
“Pobre de mim, que farei? Se fugir, com receio da turba,
é grande mal; mas vergonha maior é vir eu a ser preso
sem mais ninguém, que nos Dânaos o Crônida medo ora infunde.
Mas para que, coração, entregares-te a tais pensamentos?
Sei que somente as pessoas covardes a pugna abandonam.
Quem valoroso se mostra, só tem de conduta uma norma,
185
que é resistir decidido, quer fira, quer seja ferido”.
(ibidem, XI, v. 401-410, p. 265)
Em alguns desses excertos, pôde-se ver heróis contrários aos seus comandantes:
Odisseu e, depois, Diomedes censuram Agamémnon por este pensar em abandonar a guerra,
após tantos anos de cerco, sem que nada tivessem ganho os gregos; Sarpédone censura Heitor
por não perceber, neste, ardor para o combate. Depreende-se, a partir desses excertos, que
tanto os argivos quanto os troianos esperavam mais de seus líderes: que estes fossem
centralizadores, na hora em que realmente deveriam ser, ou seja, na hora da batalha, na hora
de incitar o povo à luta. Estas passagens da Ilíada mostram bem o que acaba de ser dito:
Mas se [Odisseu] encontrava, a gritar, um qualquer dentre os homens do povo,
o percutia com o cetro, increpando-o, desta arte, em voz alta:
“Pára essa bulha, covarde, e atenção presta aos ditos dos outros,
que são melhores que tu, pois te mostras imbele e sem préstimo.
Não vales nada na guerra, ou, sequer, nas reuniões do Argivos.
Reis não queiramos ser todos que, aqui, nos achamos reunidos.
É mau que muitos comandem; um, só, tenha o posto supremo;
um, seja o rei, justamente a quem Zeus, descendente de Crono
deu cetro e leis, para o mando, no povo exercer inconteste”.
(HOMERO, 2002, II, v. 198-206, p. 83)
Com os olhos fixos no chão o adverte o possante Diomedes:
“Cala-te, Esténelo; fica quieto e obedece ao que digo.
De forma alguma censuro Agamémnone, rei poderoso,
por exortar para a luta os Aquivos de grevas bem-feitas.
Dele será toda a glória se os fortes Acaios entrarem
os muros de Ílio sagrada, vencendo os guerreiros Troianos;
mas dele o opróbrio, também, se os Aquivos vencidos ficamos.
Vamos, pensemos, agora, no ardor impetuoso da guerra”.
(ibidem, IV, v. 411-418, p. 129)
A pugna entre os heróis da Antigüidade clássica, como se viu, poderia ocorrer de três
formas: cavalaria contra infantaria; combate entre grupos; duelo ou justa. Da primeira, a
Ilíada dá o seguinte testemunho:
Aos que combatem de carro, primeiro instruções transmitia,
para os cavalos susterem, não fosse correr as fileiras:
“Não queira alguém, por confiar na perìcia e na própria coragem,
só, das fileiras distantes, lutar contra os homens de Tróia;
que não recue ninguém; facilmente seríeis vencidos.
Uso só faça da lança o guerreiro que o carro do imigo
186
perto do seu observar, que há de ser muito mais vantajoso.
Nossos maiores puderam entrar em cidades e muros
por terem sempre adotado essa norma, ardorosos, na luta”.
(HOMERO, 2002, IV, v. 301-309, p. 126)
De acordo com Yvon Garlan e Jean-Pierre Vernant, o combate com cavalos era
relativamente comum, em batalhas travadas na Antigüidade clássica; no entanto, somente os
guerreiros muito afortunados tinham como fazer parte da cavalaria, pois, se o armamento da
infantaria era bastante dispendioso, como se viu, ainda mais caro era adquirir um cavalo.
Isso reafirma o que já foi dito, neste capítulo, acerca da necessidade de o guerreiro pertencer à
nobreza, para poder ser armar. Estas foram as palavras de Garlan e Vernant sobre o status do
cavaleiro na Grécia antiga:
Na Grécia, possuir um cavalo era um sinal evidente de riqueza e pertencer à
cavalaria era uma distinção social, mesmo nas vastas planícies, como a Tessália, a
Beócia, a Campânia, que se prestavam optimamente à criação de gado cavalar
(GARLAN in VERNANT, 1993, p. 61).
o cavalo não deixa de conferir ao seu possuidor uma qualificação guerreira
excepcional. Os Hippeis, os Hippobotas definem uma elite militar e também uma
aristocracia terrena; a imagem do cavaleiro alia o mérito no combate, a condição de
nascimento, a riqueza fundiária e a participação por direito na vida política
(VERNANT, 1987, p. 52).
sobre a segunda forma pela qual a luta poderia se dar, ou seja, por meio do
enfrentamento entre grupos, a Ilíada documenta:
Quando os imigos exércitos vieram, num ponto, a encontrar-se,
lanças e escudos se chocam, bem como a coragem dos homens
com armaduras de bronze; broquéis abaulados se chocam
uns contra os outros; estrépito enorme se eleva da pugna.
Dos vencedores os gritos de júbilo se ouvem e as queixas
dos que tombavam vencidos; de sangue se encharca o chão duro.
Como dois rios, oriundos de um grande degelo dos montes,
numa bacia, somente, o volume das águas despejam,
para reuni-las, depois, nas entranhas do côncavo abismo,
de onde o barulho vai longe, ao pastor, que num monte se encontra:
tal era a grita e o trabalho dos dois combatentes exércitos.
(HOMERO, 2002, IV, v. 446-456, p. 130)
E, no que concerne à terceira forma, a dos duelos ou justas, a Ilíada traz o seguinte:
187
Quando os dois corpos do exército perto se acharam um do outro,
adiantou-se das forças Troianas o divo Alexandre
com arco e espada, nos ombros a pele de um grande leopardo
e duas lanças na mão, revestidas de ponta de bronze,
desafiando, desta arte, os melhores guerreiros Acaios
a que com ele se viessem medir em duelo terrível.
Logo que o viu Menelau, o guerreiro discípulo de Ares,
como avançava com passo arrogante na frente do exército,
muito exultante ficou [...]
dessa maneira, exultou Menelau quando Páris, o belo,
teve ante os olhos, pensando que iria, por fim, castigá-lo.
Rapidamente do carro pulou, sem que as armas soltasse.
Quando o formoso Alexandre, que um deus imortal parecia,
o viu à frente dos outros, sentiu conturbar-se-lhe o peito
e para o meio dos seus recuou, escapando da Morte.
(HOMERO, 2002, III, v. 15-32, p. 104)
Junto de Heitor se deteve [Heleno] e lhe disse as seguintes palavras:
“Filho de Prìamo, Heitor, semelhante a Zeus grande no engenho
na qualidade de irmão, poderei ministrar-te um conselho?
Faze que cesse a peleja entre os homens Aqueus e os Troianos
e, para duelo, provoca inimigo mais forte e valente
que, porventura, se atreva a lutar corpo a corpo contigo.
Ainda no momento não veio de a Morte funesta encontrares,
que isso me foi revelado na voz das eternas deidades”.
(ibidem, VII, v. 46-53, p. 181)
Quando espalhada a batalha, combates pessoais se travaram.
A Arcesilau priva Heitor da existência e ao intrépido Estíquio;
chefe era aquele dos fortes Beócios de vestes de bronze;
de Menesteu de alma grande era fiel companheiro o segundo.
Iaso e Medonte perderam a vida nas mãos do alto Enéias.
[...]
Logo nas filas da frente Polites a Esquio derruba;
Polidamente ao viril Mecisteu; Agenor mata a Clônio.
Páris, por trás, atingiu a Deíoco, no ombro, quando ele
se retirava, indo a ponta do bronze na frente sair-lhe.
Enquanto aos mortos as armas sacavam, dispersos, os outros
Dânaos fugiam (ibidem, XV, v. 328-344, p. 347, passim).
“[...] Vamos! à volta das naus combatei num só corpo. E se deve
ser alguém presa da morte, ferido de longe ou de perto,
que morra, então, pois é glória morrer em defesa da pátria,
mas ficarão protegidos a esposa dileta e os filhinhos,
bem como intacto o palácio e os haveres copiosos, se os Dânaos
para o torrão de nascença em seus barcos velozes voltarem”.
(ibidem, XV, v. 494-499, pp. 351-352)
Para Junito de Souza Brandão, esses duelos ou justas, em meio à guerra coletiva, o
encontrariam correspondências no mundo real: ocorriam apenas no âmbito das epopéias da
Antigüidade para valorizar a figura de uns heróis em detrimento da enorme massa anônima.
Foram estas as palavras de Brandão sobre o que acaba de ser dito:
188
Existe, no entanto, uma pequena questão que ainda levanta certa dúvida na Epopéia
e enseja uma pergunta: como se travavam os combates? Ninguém ignora que as
“guerras épicas” se decidiam, em boa parte, numa séria de monomaquias, de justas,
de lutas singulares entre os grandes heróis, ficando os demais contendores num
plano muito inferior. É difícil pensar e admitir que essa modalidade de luta, essa
“situação poética”, correspondia à realidade militar de qualquer época. Tratar-se-ia,
então, de uma exigência poética, de um expediente para caracterizar melhor as
personagens ou de uma tradição mítica? Talvez se pudesse responder um pouco
evasivamente, dizendo que nem a monomaquia na guerra coletiva e nem tampouco a
própria guerra coletiva sejam resultantes de exigências do gosto épico, cabendo
nesse caso à monomaquia o importante papel de reflexo do núcleo mítico. Os heróis
enfeitam a luta, os demais morrem anonimamente! Com efeito, imaginar-se um
Héracles ou um Teseu, à frente de um exército, seria um total remodelamento do
mito. Um herói autêntico é, no fundo, um solitário. “Valente, diria Ibsen, é o que
está só” (BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 43-44).
Porém, Jean-Pierre Vernant assegurou que essas batalhas individuais, esses duelos,
aconteciam, de fato, no plano da realidade. O historiador francês disse, ainda, que eram esses
combates singulares que afirmavam o valor do herói, nos tempos de Homero. Vernant chega
mesmo, no seu texto, a aproximar o herói homérico do hippeus, ou seja, do cavaleiro, e a
distanciá-lo do hoplita: acontece que este o conheceria a luta ombro-a-ombro e seria
sempre guiado pelo espírito de grupo, de comunidade, bem diferente, portanto, do que
acontecia ao herói da Idade das Trevas, que se realizava mesmo nas refregas individuais, nas
justas. Giuseppe Cambiano endossou esse pensamento de Jean-Pierre Vernant. Sobre as
diferenças existentes entre o herói homérico e o hoplita, foram estas as palavras de Vernant e
de Cambiano:
a democratização da função militar antigo privilégio aristocrático traz consigo
uma mudança radical da ética do guerreiro. O herói homérico, o bom condutor de
carros, podia ainda subsistir na personagem do hippeus; mas pouco tem em comum
com o hoplita, o cidadão-soldado. O que era fundamental para o primeiro era a
façanha individual, o feito heróico realizado em combate singular. Na batalha,
mosaico de duelos em que se defrontavam os promachoi, o valor militar afirmava-se
sob a forma de uma aristeia, de uma superioridade absolutamente pessoal. A
audácia que permitia ao guerreiro realizar essas acções notáveis encontrava-a ele
numa espécie de exaltação, de furor bélico, a lyssa, em que o lançava, como que fora
de si próprio, o menos, o ardor inspirado por um deus. Mas o hoplita não sabe o
que é combate singular; se a ocasião se apresentar, deve recusar a tentação de uma
proeza puramente individual. Ele é o homem do combate cerrado, da luta ombro-a-
ombro. Foi treinado a manter-se na fila, a marchar em ordem, a lançar-se num
movimento único contra o inimigo, a tentar não sair do seu lugar durante a refrega.
A virtude guerreira não é da ordem do thymos; é feita de sophrosyne: um perfeito
189
autodomínio, um constante controlo para se submeter a uma disciplina comum, o
sangue-frio necessário para refrear os ímpetos instintivos que poderiam perturbar a
ordem da formação. A falange fez do hoplita (como a cidade do cidadão) uma
unidade intercambiável, um elemento semelhante a todos os outros, e cuja aristeia, o
valor individual, deverá manifestar-se unicamente no quadro imposto pela manobra
de conjunto, pela coesão do grupo, pelo efeito de massa, novos instrumentos de
vitória. Mesmo na guerra, a Éris, o desejo de triunfar sobre o adversário, de afirmar
a sua superioridade sobre outrem, deve submeter-se à Philia, ao espírito de
comunidade; o poder dos indivíduos deve ceder perante a lei do grupo (VERNANT,
1987, pp. 70-71).
O combate aristocrático da época arcaica era uma prova de valor individual, ao
passo que o combate hoplita tinha introduzido as fileiras e a cooperação como
elementos decisivos (CAMBIANO in VERNANT, 1993, p. 89).
Contudo, não se deve ter a imagem de um herói homérico individualista. Muitos são os
excertos da Ilíada que mostram o espírito de camaradagem, de companheirismo, existente
entre os heróis gregos e entre os troianos e seus aliados:
Silenciosos, furor respirando, os Aquivos avançam,
no coração desejosos de auxílio uns aos outros prestarem.
(HOMERO, 2002, III, v. 8-9, pp. 103-104)
Por outro lado, os Aquivos do campo o cadáver tiraram
do companheiro [Tlepólemo]; esse foi pelo divo Odisseu conhecido,
o sofredor, que sentiu na alma grande incontida revolta.
(ibidem, V, v. 668-670, p. 154)
Pôs a falar, novamente, Diomedes, de voz atroante:
“Se decidis que seja eu que hei de a escolha fazer do meu sócio,
como é possível que venha do divo Odisseu a esquecer-me,
cuja coragem, nos grandes perigos, e o espírito ardente
sempre se firmaram, o herói, distinguido por Palas Atena?
Tendo-o por meu companheiro, até mesmo das chamas ardentes
retornaremos ilesos, por ser mais que todos astuto”.
(ibidem, X, v. 241-247, p. 242)
Obedeceu-lhe Tootes, sem perda de tempo, ao mandado;
corre ao comprido do muro dos fortes Aqueus, e parando
junto dos nobres Ajazes, lhes diz as palavras aladas:
“Nobres Ajazes, mentores dos brônzeos guerreiros Argivos,
manda pedir o notável Pelida, nutrido por Zeus,
da parte de ambos ajuda, ainda mesmo que seja por pouco.
Se for possível, os dois; que é melhor, por, sem dúvida, ter-vos
perto de nós, porque ameaça a esse lado iminente perigo.
Os chefes Lícios, de fato, ali fazem pressão, conhecidos
pela maneira impetuosa com que nos combatentes se portam.
Mas, se ambos vós estiverdes a braços, também, com trabalhos,
venha ajudar-nos, ao menos, Ajaz Telamônio preclaro,
acompanhado de Teucro, que o arco maneja perito”.
O grande Ajaz Telamônio de grado acedeu ao pedido.
(ibidem, XII, v. 351-364, pp. 289-290)
De boamente obedece-lhe o herói Menelau glorioso;
190
com voz possante chamou pelos fortes guerreiros Aquivos:
“Vós, conselheiros e guias dos fortes Acaios, ouvi-me
quantos à custa do povo bebeis nos banquetes dos claros
filhos de Atreu e exerceis sobre os vossos soldados o mando,
vós, a quem Zeus poderoso honra e glória perene concede!
É-me impossível andar à procura, um por um, dos caudilhos,
tal é o furor com que a chama da guerra por tudo se alastra.
Vinde espontâneos; revolta no peito abrigai ante a idéia
de se atirar o cadáver de Pátroclo aos cães dos Troianos”.
Mui claramente chegou aos ouvidos de Ajaz esse apelo,
filho de Oileu, que, muito antes dos outros correu para a pugna.
Idomeneu vem depois, e Meríones, fiel companheiro,
que tinha de Ares funesto a figura exterior e a importância.
(ibidem, XVII, v. 246-259, pp. 394-395)
Dos chefes, pois, dos navios, direi, do conjunto das naves.
Vieram trazidos, os homens da Beócia, por Lito valente,
Arcesilau, Peneleu, Protoénor e Clônio fortíssimo,
de Áulide pétrea habitante, dos campos da Hiria e de Esqueno,
os de Eteono, de montes e selvas, de Escono e de Escolo,
Téspio, também, Micalesso, de vastas campinas, e Graia;
mais: os que à volta habitavam de Iléssio, de Eritras e de Harma;
os moradores, ainda, de Eleona, Peteona, Ocaléia
de Hila e Medeona, cidade de muros de forte estrutura,
Copas, Eutrésis e Tisbe, onde pombas adejam ruidosas:
De Coronéia os que moram na ervosa Haliarto vieram,
os de Platéia habitantes, bem como os campônios de Glissa;
os de Hipotebas, ainda, cidade de aspecto imponente,
da sacra Onquesto, onde o bosque se encontra do divo Posido:
de Arne, também, pampinosa, chegaram, da extensa Midéia,
Nisa divina e de Antedo postrema, lugar fronteiriço:
todos, armaram cinqüenta navios, e cada um dos cascos
com cento e vinte guerreiros da Beócia se achava pejado.
[...]
Os que moravam no vale escavado de Lacedemônia,
dentro de Esparta, de Fáride e Messa, cidade de pombas;
os habitantes, também, de Brísias e Áugias amena,
e os que em Amicla demoram e em Helo, cidade marítima,
bem como os homens de Etilo e os que os muros de Laia habitavam,
trá-los o irmão de Agamémnone, o herói Menelau de voz forte,
dentro de naves sessenta; a departe eles todos se armavam.
No próprio ardor confiado, as fileiras o chefe percorre,
a estimulá-los. Pedia-lhe o peito ardoroso vingar-se
dos sofrimentos passados por causa do rapto de Helena.
[...]
Uns, o comando recebem de Anfímaco e Tálpio; este, filho
de Êurito, o grande; de Ctéato, aquele; ambos de Áctor nasceram.
Diores, o filho do forte Amarinco, outro grupo comanda.
O quarto, alfim, traz Políxeno, o herói de presença divina,
filho de Agástenes, rei que de Áugias possante descende.
Os de dulíquio habitantes e os homens das sacras Equínades,
Ilhas que se acham mui longe no mar, defrontando com a Élide,
vêm por Megete mandados, no porte semelho a Ares forte,
que de Fileu picador descendia, querido dos deuses,
o qual, brigado com o pai, em Dulíquio assentou o palácio:
esses, perfazem quarenta navios de casco anegrado.
Os cefalênios magnânimos traz Odisseu astucioso,
de Ítaca os homens, também, e os de Nérito, monte frondoso,
de Crociléia os guerreiros, de Samo e de seus arredores,
do continente, e os que pastos possuem na terra fronteira:
191
trá-los o divo Odisseu, no saber só a Zeus comparável:
doze navios de casco vermelho ao seu mando obedecem.
[...]
Os de Nisiro habitantes, de Crápato e Caso, bem como
os da cidade de Eurípilo, Cós, da ilha bela Calidna,
vieram trazidos por Ántifo e Fídipo, filhos de Téssalo,
rei poderoso e valente, que de Héracles forte nascera:
estes, em trinta navios dispostos em fila, embarcaram.
Ora, menção seja feita dos de Argos Pelasga habitantes,
dos do Alo e Alope, de Ftia, e de quantos Trequina cultivavam,
bem como os da Hélade, célebres pelas mulheres formosas,
como Mirmídones todos nomeados, Helenos e Aquivos:
destes, cinqüenta navios Aquiles herói conduzira.
(ibidem, II, v. 493-685, pp. 91-97, passim)
Íris, de rápidos pés, sob a forma aludida, lhes fala:
“Como se em paz estivéssemos, velho, te agradam discursos
intermináveis: a guerra, no entanto, nos calca impiedosa.
Certo, em muitíssimas pugnas achado me tenho presente,
mas tais e tantos guerreiros, como esses, jamais tenho visto.
Mais semelhantes à areia do mar ou às folhas das matas,
movem-se todos no plaino, visando a atacar nossos muros.
Por isso, Heitor, recomendo-te agora que faças desta arte:
muitos aliados se encontram na grande cidade de Príamo,
de diferentes países, e línguas de vária estrutura.
Que cada grupo receba instrução de seus guias nativos,
Que hão de saber coordená-los e à guerra, depois, conduzi-los”.
Reconheceu, logo, Heitor que provinha de um deus o conselho;
Fez dissolver a assembléia: os guerreiros às armas correram;
abrem-se todas as portas, porque se franqueasse a saída,
aos combatentes de pé e aos de carro era imenso o estrupido.
[...]
Lá, se puseram em ordem os Teucros e seus aliados.
Sobre os Troianos Heitor comandava, o herói de elmo ondulante,
filho de Príamo. Muitos guerreiros, dos mais distinguidos,
com ele as armas empunham, de a pugna encetar desejosos.
Sobre os Dardânios o mando exercia o nascido de Anquises
e da divina Afrodite, o guerreiro notável Enéias,
pós haver no Ida selvoso a um mortal uma deusa se unido.
Mas de Antenor os dois filhos, do mando, também, compartilham,
ambos prudentes varões, Acamante e o notável Arquéloco.
Os de Zeléia habitantes, da falda contérmina do Ida,
gente opulenta, que as águas escuras do Esepo bebiam,
sob o comando se achavam de Pândaro, o filho notável
do alto Licáone, o mesmo a quem Febo o arco dera em lembrança.
(ibidem, II, v. 795-827, pp. 100-101, passim)
Como se viu, existia, sim, um senso de cooperação entre os heróis homéricos. Esta
passagem de um texto de Giuseppe Cambiano, acerca da solidariedade hoplita, mostra que,
não fosse a utilização da falange, não haveria diferença de comportamento entre o herói
homérico e soldado hoplita:
192
A coragem dos hoplitas não era portanto fruto de uma disciplina propriamente
militar, nem, como vimos, de um furor guerreiro que não conhece o medo (como o
prova a sua prontidão em admitir a derrota). Visando sobretudo garantir a coesão da
falange, essa coragem baseava-se num sentido preciso de solidariedade, que
consistia em não abandonar os companheiros de combate e, portanto, permanecer
firme no seu posto. O espírito de corpo era, por conseguinte, cultivado de um modo
sistemático. [...] Assim, no interior da falange, podiam exprimir-se plenamente as
relações naturais de entreajuda baseadas no parentesco, na amizade e na vizinhança
(GARLAN in VERNANT, 1993, p. 60).
Ainda como exemplo de camaradagem e de senso de coletividade entre os heróis
homéricos pode ser citado este trecho da Ilíada, que gira em torno da hospitalidade e da
comensalidade:
E, para o herói que se achava ao seu lado, virando-se, fala [Aquiles]:
“Pátroclo, põe sobre a mesa uma grande cratera e prepara
vinho bem forte; depois uma taça a cada um oferece.
Sob meu teto ora se acham varões a quem muito distingo”.
(HOMERO, 2002, IX, v. 201-204, p. 219)
Aliás, para o historiador Oswyn Murray, o mundo está mesmo estruturado, tanto na
Ilíada quanto na Odisséia, em torno do rito da comensalidade: este proveria o herói homérico
do senso de companheirismo e de coletividade de que se falou, como se pode ver a partir
destas passagens:
Nos Poemas Homéricos, o mundo está estruturado em torno dos ritos da
comensalidade. As características essenciais da casa de um basilèus heróico são o
mègaron, ou sala dos banquetes, e o armazém, onde se conserva o excedente da
produção, para o utilizar nas festas ou para o oferecer a hóspedes da mesma classe
social. Odisseu disfarçado diz que reconhece a sua casa pelo uso que se faz desse
excedente em actividades sociais ligadas à comensalidade: <<Vejo dentro muitos
homens banqueteando-se: um cheiro a gordura, e ressoa; e ouço o som da cítara,
que os deuses fizeram companhia dos festins>> (Odisseia, 17, 269-71). O balilèus
distrai os membros da sua classe com <<banquetes de honra>> e assim conquista
autoridade e prestígio num mundo onde se luta pela honra. O grupo assim
individualizado é um grupo de guerreiros, cujo estatuto se exprime e cuja coesão se
mantém através do banquete. Num certo sentido, o banquete continua a ser um rito
social, ligado aos processos de auto-identificação e de formação de um grupo por
parte de uma elite aristocrática; todavia, essa elite é também a classe dos guerreiros,
cuja função é proteger a sociedade (MURRAY in VERNANT, 1993, pp. 203-204).
A Ilíada centra-se na cólera de Aquiles, que se exprime pelo seu isolamento e
pela sua recusa em participar nos rituais da comensalidade (ibidem, 1993, p. 204).
Apesar disso, as características dessa imagem mental são importantes para o
desenvolvimento da sociabilidade grega. O banquete homérico (deipnon ou dais) é
antecedido de um sacrifício em que as vítimas animais são mortas como se fossem
193
oferecidas a certas divindades, muitas vezes em ocasiões especiais de culto festivo
ou de grande significado familiar. A carne é grelhada em espetos e o banquete
decorre numa sala (mègaron) onde os convidados do sexo masculino estão dispostos
em filas ao longo das paredes, com pequenas mesas diante deles, dois por mesa;
ocasionalmente são mencionados assentos e porções especiais, mas em geral o que
se acentua é a igualdade. O hóspede não convidado, quer seja um aristocrata de igual
nível ou um mendigo, também recebe a sua parte. O vinho é misturado com água e
servido da cratera. O poeta apresenta uma imagem de felicidade humana expressa
num ritual de sociabilidade (ibidem, 1993, p. 205).
Se a Ilíada exprime a função social <<externa>> do banquete guerreiro na
organização da actividade militar, a Odisseia é uma poesia épica <<interna>>,
construída como entretenimento para o banquete. Cada episódio das viagens de
Telémaco é assinalado pela experiência da comensalidade: toda a acção converge
para o banquete ou se afasta dele. A narrativa central das viagens de Odisseu é
apresentada como uma representação durante o banquete, que compreende diversas
e até opostas formas de comensalidade, entre os Lotófagos, entre os Ciclopes, junto
de Circe e no mundo dos mortos (idem).
A Odisseia cria com o seu próprio lugar de representação uma estrutura
narrativa, envolve o seu público na própria acção épica: é uma representação poética
que se destina ao banquete e que do banquete extrai a sua matéria narrativa. Por isso
o público participa no interior da narração: tanto o poeta como o seu público fazem
parte de um duplo acontecimento, narrado e vivido. A função desta poesia no mundo
da comensalidade é exprimir, por intermédio dos participantes, o significado do
ritual social em que estão empenhados (ibidem, 1993, p. 206).
Assim, o banquete dos heróis apresenta muitas das características
principais de que virão a revestir-se os rituais gregos da comensalidade. Por um
lado, está ligado externamente à função social da guerra, por outro lado, a nível
<<interno>>, está profundamente ligado ao prazer (euphrosyne). No contexto da
poesia heróica, o tema do banquete possui uma forma narrativo-dialógica adequada
à representação no âmbito convivial e capaz de se reflectir nas actividades do
banquete. Todavia, a imagem apresentada ainda só está parcialmente ligada às
necessidades da comunidade e muitas das características específicas dos posteriores
rituais gregos de socialização estão ainda ausentes (idem).
Além da camaradagem e da hospitalidade, o herói da Antigüidade clássica era portador
de muitos outros atributos. Não obstante possuir uma excessiva força física, ele estava sempre
inclinado a proteger os mais fracos, nomeadamente crianças, mulheres e anciãos; e a respeitar
os mais velhos, as tradições, os mortos e até mesmo os guerreiros com os quais se batia.
Também se preocupava com a retórica. Era capaz, ainda, de prever o futuro e de curar tanto o
mais comum dos homens quanto outro herói de doenças do corpo e da alma. Excetuando-se a
força física, todas as outras qualidades formam aquilo que se conhece por areté do espírito: o
herói sempre procurava nutrir em si sentimentos nobres. Agora, trechos das epopéias Ilíada e
Eneida que comprovam o que acaba de ser dito acerca do herói antigo:
194
O Tídida, no entanto, uma pedra
nas mãos tomou grande empresa , que dois dos guerreiros de agora
mal abalar poderiam; sozinho a atirou, facilmente,
indo atingir o guerreiro, nascido de Anquises, no ponto
justo de nome acetáb‟lo – em que o fêmur se encaixa na pelve,
que estraçalhado ficou juntamente com os dois tendões fortes.
(HOMERO, 2002, V, v. 302-307, p. 144)
enquanto Heitor de uma pedra tomou que se achava na frente
da grande porta, achatada na base e de ponta afilada.
Dificilmente dois homens do povo, dos mais esforçados,
conseguiriam movê-la do chão de depô-la no carro
homens dos de hoje. Ele, entanto, sozinho a maneja galhardo.
(ibidem, XII, v. 445-449, p. 292)
Disse-lhe Aquiles, de rápidos pés, o seguinte, em resposta:
“Podes dizer, sem receio, o que na alma vidente souberes.
Por Febo Apolo, querido de Zeus, a quem preces diriges,
nobre Calcante, que possas contar aos Aqueus teus augúrios,
enquanto eu vivo estiver e na terra gozar da existência,
nunca nenhum dos Argivos, ao lado das célebres naves,
há de violência fazer-te, ainda mesmo que penses no Atrida,
que, no momento, se orgulha de ser o melhor de nós todos.
(ibidem, I, v. 84-91, p. 60)
Nela, apoiando-se, pôs-se a falar [Heitor] para os Troas guerreiros:
“Teucros, Dardânios e aliados, agora atenção concedei-me.
Já imaginara que fosse possível voltarmos para Ílio
pós o extermínio completo dos homens Aqueus e seus barcos.
A escuridão, porém, veio antes disso, salvando os Argivos
e as naus de boas cobertas que se acham na praia marinha.
À negra Noite, entretanto, convém demonstrar obediência [...]”.
(ibidem, VIII, v. 496-502, pp. 209-210)
Se Febo Apolo, porém, me fizer vencedor do adversário,
Despojá-lo-ei da armadura e, levando-a para Ílio sagrada,
no templo hei pendurá-la de Apolo, frecheiro infalível,
mas o cadáver será restituído aos navios simétricos,
para que os fortes Aquivos cacheados lhe dêem sepultura
e um monumento lhe elevem na margem do largo Helesponto,
para que possam dizer as pessoas dos tempos vindoiros,
quando, em seus barcos de remos, cruzarem o mar cor de vinho:
„Eis o sepulcro de um homem que a vida perdeu há bem tempo;
pelo admirável Heitor, em combate esforçado, foi morto‟.
Isso dirão, certamente; imortal há de ser minha glória”.
(ibidem, VII, v. 81-91, p. 182)
Mas amanhã, logo cedo, enviemos Ideu aos navios,
para dizer aos dois chefes insignes, os claros Atridas,
o que lhes manda propor Alexandre, fautor desta guerra,
e ainda mais, perguntar-lhes se querem e é justo dar tréguas
ao fragoso combate, até termos queimado os cadáveres,
reiniciando-se a fera peleja no dia seguinte,
té que um dos deuses decida a quem venha a caber a vitória”.
(ibidem, VII, v. 372-378, p. 190)
Vira-se, então, para Ideu o potente senhor Agamémnone:
“Ouves, Ideu, com teus próprios ouvidos, o que te respondem
nossos guerreiros. É grata a resposta também ao meu peito.
195
No que concerne aos cadáveres, não lhes recuso a fogueira;
impedimento nenhum costumamos fazer aos defuntos,
mas, extinguindo o vigor, procuramos aplacá-los com o fogo.
Zeus, de Hera esposo, de voz atroante, confirme esta jura”.
(ibidem, VII, v. 405-411, p. 191)
exclamou Odisseu, exultante:
“Ó viril Soco, que vens do grande Hìpaso, o forte ginete,
a destruição te alcançou; não pudeste da Morte esquivar-te.
Infortunado! Ao morreres, o pai nem a mãe veneranda
vieram fechar os teus olhos, mas corvos virão lacerar-te
as tenras carnes, aos bandos, batendo, ruidosas, as asas.
Morra eu, porém, e os Aquivos dar-me-ão sepultura condigna”.
(ibidem, XI, v. 449-455, p. 266)
o louro Atrida, desta arte, circunda o cadáver de Pátroclo,
a defendê-lo, mantendo sobre ele o pavês e a hasta longa,
pronto a ser vida prostrar o inimigo que ousasse antepor-se-lhe.
Não se descuida, também, do cadáver do herói prestantíssimo,
o alto Pantóida, lanceiro extremado; para ele achegando-se.
(ibidem, XVII, v. 6-10, pp. 387-388)
Pós ter despido o cadáver de Pátroclo, Heitor o arrastava
para poder decepar-lhe a cabeça com o bronze afiado,
e o corpo, assim mutilado, jogar para os cães da cidade.
Aproximou-se-lhe Ajaz, de pavês a alta torre semelho;
o ínclito Heitor retrocede, acolhendo-se às Teucras fileiras;
salta, depois, para o carro, mandando que as armas de Pátroclo
para Ílio sacra levassem, como alto sinal de triunfo.
Com o pavês defendia o cadáver Ajaz Telamônio.
(ibidem, XVII, v. 125-132, p. 391)
Como admitir que te esforces e exponhas, no ardor das refregas,
para salvar os guerreiros obscuros, se o claro Sarpédone,
que foi teu hóspede e amigo, abandonas às mãos dos Aquivos?
Enquanto esteve com vida, serviu-te, e à cidade, de amparo;
e ora permites que seja o cadáver aos cães atirado?
Por tudo isso, se os Lícios me ouvisse, a casa voltáramos,
e a mais terrível catástrofe, então, sobre Tróia caíra.
Se o coração varonil e ousadia os Troianos possuíssem,
tal como soem mostrar os que a pátria querida defendem
contra inimigo tenaz, suportando canseira e lutas,
já para Tróia teriam levado o cadáver de Pátroclo.
Caso nos fora possível tirá-lo do meio da pugna
e para dentro levá-lo da grande cidade de Príamo,
não só as armas do grande Sarpédone os Dânaos trariam
para o resgate; o cadáver, também, com certeza obteríamos,
pois era o morto o escudeiro do herói mais prestante de quantos
ao pé das naves se encontram; só gente esmerada o acompanhava.
(ibidem, XVII, v. 149-165, p. 392)
Disse-lhe, então, em resposta, Agamémnone, rei poderoso:
“Muito me alegra, Laercìada, ouvir essas tuas palavras,
pois discorreste com senso e eqüidade a respeito de tudo [...]”.
(ibidem, XIX, v. 184-186, p. 437)
“[...] Caros amigos, paciência! Esperai mais um pouco, até vermos
se de Calcante os augúrios nos saem verazes ou falsos.
Sim, todos vós, que da Morte escapastes, ainda no espírito
tendes presente a ocorrência, do que podeis dar testemunho.
196
Ontem, parece, ou anteontem, se achavam reunidos em Áulide
as naves todas que a Príamo e a Tróia a desgraça trouxeram.
Junto das aras sagradas, ao pé de uma fonte, nós todos
às divindades do Olimpo hecatombes perfeitas fazíamos,
sob a frescura de um plátano, donde fluía água límpida.
Nisso, um prodígio nos veio: uma serpe com dorso sangüíneo,
monstro terrível, que à luz fora enviado por Zeus poderoso.
Do supedâneo surgindo, do altar, subiu logo pela árvore,
onde a ninhada se achava de um pássaro, míseros seres,
sob as folhinhas oculto, no ramo mais alto do plátano;
oito eram eles; incluindo-se a mãe, que os gerou, nove ao todo.
Por entre pios sentidos ali devorou todos eles
e a própria mãe, que, gemente, esvoaçava ao redor dos filhinhos:
o bote atira-lhe o monstro, apanhando-a por uma das asas.
Mas, pós haver o dragão os filhotes e a mãe devorado,
foi pelo deus, que o enviara, mudado num grande prodígio;
petrificou-o ali mesmo o nascido de Crono tortuoso.
Quantos aos fatos assistíamos, cheios de espantos ficamos.
Mas, vaticínios Calcante começa ali mesmo a tecer-nos
sobre o terrível prodígio, que em meio do ofício nos viera:
“Por que calados ficastes, Aquivos de soltos cabelos?
Esse prodígio por Zeus grande e sábio nos foi enviado.
Vai demorar; veio tarde; mas fama vai ser sempiterna.
Do mesmo modo que o drago os filhotes matou e a mãe deles
oito eles eram, incluindo-se a mãe, que os gerou, nove ao todo
o mesmo número de anos devemos passar nesta guerra,
mas no dezeno, haveremos de entrar a cidade espaçosa.
Foi esse o seu vaticínio, que se há de cumprir sem demora.
Por isso tudo, esforçados Acaios, ficai mais um pouco,
té que possamos tomar a espaçosa cidade de Prìamo”.
(HOMERO, 2002, II, v. 299-332, pp. 86-87)
Era quando aos mortais começa e côa,
Divino dom, gratíssimo descanso:
Tétrico Heitor em sonhos se me antolha,
Debrulhando-se em pranto; com outrora,
[...]
Chorando eu mesmo
Parecia argüi-lo em mesto acento:
“Ó luz dardânia, segurança e apoio!
Donde vens? que detença! Em tal estado
Só te avistamos, caro Heitor, agora
Que a cidade agoniza e os teus perecem?
Que ato indigno afeou teu rosto ameno?
Que feridas são essas?” Ele nada,
De vãs queixas não cura, e grave arranca
Fundo suspiro: “Ui! Foge, o incêndio medra,
Foge, filho da deusa; em preia aos Dânaos
Rui do fastígio Tróia. Assaz fizemos
Pelo rei, pela pátria. Esta só destra,
A haver defensa, defendera Pérgamo.
Seu culto Ílio te fia e seus penates:
Toma-os contigo; o pélago discorram,
Té que lhes fundes majestoso alcáçar”
(VIRGÍLIO, 2005, II, v.277-304, pp. 63-64, passim)
Quando lassos na terra adormeciam,
Dos perigos aflitos, à riba Enéias,
Tardo repouso aos membros concedendo,
Sob o eixo do céu frio recostou-se.
197
Deus do sítio, a surgir do leito ameno,
Entre álamos se antolha o Tiberino:
Ao velho tênue bisso um verdoengo
Cendal compõe, e o touca umbrosa cana.
Ao teucro fala e o peito lhe mitiga:
“Divo renovo, que dos Gregos salva
Pérgamo eterna à Hespéria nos transportas,
Nestas Laurentes veigas esperando,
Casas tens certa, certos os penates;
Avante! não te assuste e feia guerra:
O tumente furor cessou dos deuses.
Por que isto um sonho fútil não reputes,
Em litório azinhal grande alva porca
Deitada encontrarás parida, e em roda
Nela a mamar trinta alvos bacorinhos.
Descanso aqui tereis; trinta anos voltos,
Aqui fundando-a Iulo, deste agouro
Alba derivará seu claro nome.
Não dúbio o vaticínio. O modo em suma
Te ensinarei de conseguir vitória.
(ibidem, VIII, v.25-48, pp. 186)
Com relação ao respeito que os heróis dedicavam aos mortos, deve-se dizer que ele não
se restringia apenas à defesa do corpo dos guerreiros que tombavam pelo campo de batalha
contra a investida do inimigo ou dos cães e abutres. Esse respeito era demonstrado, também, a
partir da organização dos ritos funerários e dos jogos que eram realizados logo após o funeral,
em honra do morto. Eis passagens da Ilíada e da Eneida que confirmam isso:
cem pés de lado, com ela, uma pira gigante construindo,
no alto da qual, consternados, o corpo do herói depuseram.
Inumeráveis ovelhas e bois que se arrastam tardonhos,
em frente à pira degolam e esfolam. Depois, o Pelida
toda a gordura tomando, com ela o cadáver recobre,
desde a cabeça até os pés, amontoando-lhe as carnes à volta.
Junto do leito funéreo, coloca, a seguir, duas ânforas,
de óleo e de mel, e, soltando suspiros profundos, atira
nas chamas quatro soberbos cavalos de colo altanado.
Dos nove cães que o monarca possuía, à sua mesa criados,
dois sacrifica o Pelida, atirando-os às chamas ardentes,
bem como doze mancebos de ilustre prosápia Troiana,
a bronze mortos, pois na alma a ação cruel realizar assentara.
(HOMERO, 2002, XXIII, v. 164-176, p. 502)
Na curva praia
Em piras cada qual, Enéias, Tárcon,
Dos seus, usança velha, os corpos queima;
Na caligem dos fogos sotopostos
Se enoita o céu. Três vezes decorrendo
A infantaria, em fulgurantes armas,
A rogal chama fúnebre circula;
Três a cavalaria; e ululam todos:
198
O choro arneses banha, a terra ensopa;
Grita, clangor, mugindo os ares fere.
Uns lançam na fogueira o ganho espólio,
Guarnecidas espadas, elmos, freios,
Rodas ferventes; uns, de oferta aos donos,
Os broqueis notos e infelizes dardos.
Hecatombes à morte, para a queima
Cerdos e nos contornos apanhada
Imolam grei: na praia arder observam,
Em suas piras semiardidas velam
Sem despegar-se, até que úmida a noite
Inverte o céu de estrelas marchetando.
Nem menos tristes os Latinos armam
Fogueiras mil; dos seus enterram parte,
Levam parte à cidade e às vizinhanças:
Em confuso montão, sem conto e nome,
É consumido o vulgo. Ao longe e ao largo
À competência os fogos alumiam.
Manhã terceira assoma; e, de altas cinzas
Doidos removendo os mistos ossos,
Terra sobre eles tépida amontoam.
Mas na opulenta Laurentina corte
O alarido é maior, mais geme o luto.
(VIRGÍLIO, 2005, XI, v.179-209, p. 238)
mas Aquiles
os Dânaos todos detém para os jogos, fazendo assentarem-se,
e manda vir dos navios os prêmios, caldeiras e trípodes,
mulos, cavalos e bois de cabeça robusta, bem como
servas formosas de porte elegante e, assim, ferro luzente.
Para a corrida de carros, primeiro, os magníficos prêmios
apresentou: bela escrava, muito hábil, e trípode grande
de vinte e duas medidas, com asas de linhas graciosas,
para o que à frente chegar; de seis anos uma égua destina
para o segundo, indomada, com feto de mulo no ventre;
um caldeirão que não fora levado, ainda, ao fogo, apresenta
para o terceiro, mui cândido e belo, de quatro medidas;
de ouro faz vir dois talentos, que ao quarto diz ser destinado;
uma urna de asas, jamais posta ao fogo, para o último apronta.
(HOMERO, 2002, XXIII, v. 257-270, p. 505)
Posto de pé, para os fortes Aquivos, então, se dirige:
“Filho de Atreu, e vós outros, Acaios de grevas bem-feitas,
dois dos mais fortes varões invitemos, agora, a que venham
por estes prêmios, lutar a pugilos. Quem for por Apolo
fornecido, uma vez que os Aqueus vitorioso o proclamem,
o resistente animal para a tenda, exultante, conduza;
a dupla copa há de ter quem ficar no certame vencido”.
(ibidem, XXIII, v. 658-663, p. 516)
Para o terceiro certame o Pelida propôs novos prêmios,
que mostra aos Dânaos guerreiros, a luta penosa anunciando.
Ao vencedor oferece uma trípode, ao fogo adaptável,
em doze bois avaliada por todos os chefes presentes;
para o que fosse vencido, apresenta uma escrava donosa,
em quatro bois avaliada e entendida em trabalhos de preço.
Alevantado, aos Aqueus valorosos, então, se dirige:
“Quem desejar nesta luta mostrar o valor, apresente-se”.
A essas palavras alteia-se Ajaz Telamônio o gigante,
pelo astucioso Odisseu secundado, fecundo em recursos.
199
(ibidem, XXIII, v. 700-709, pp. 517-518)
De acordo com Junito de Souza Brandão, esses jogos funerários deram origem à
agonística, que era uma disputa atlética realizada entre heróis, com o intuito de exercitarem a
prática guerreira. Ainda que os adeptos da agonística corressem risco de morte, o objetivo da
disputa atlética, ainda que se realizasse também por meio de lutas, não era o de eliminar o
adversário. Sobre a agonística, disse Brandão:
A Agonística, em grego a0gwnistikh/ (agonistiké), luta, disputa atlética.
Agonistiké, “agonìstica”, prende-se a a0gw/n (agón), “assembléia, reunião” e, em
seguida, “reunião dos helenos para os grandes jogos nacionais”, os próprios jogos,
os concursos, as disputas. Pois bem, a agonística é como que um prolongamento das
lutas dos heróis nos campos de batalha, porque também no agón os contendores
usam de vários recursos bélicos e, em dependência do certame, expõem, muitas
vezes, a vida, embora, em tese, a agonística não vise a eliminar o adversário. Seja
como for, o agón é uma das formas mais características do culto heróico, se bem que
o culto agonístico não seja exclusivamente heróico, porque também os deuses têm
sua participação nos mesmos (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 44).
No que tange à origem da agonística, a communis opinio é de que a mesma
proviria do culto dos mortos, isto é, teria como função primeira homenagear a
personagens célebres, a heróis, após sua morte. De fato, agônes, sob o aspecto de
jogos nebres, são temas obrigatórios da épica heróica. Desde o XXIII canto da
Ilíada, em que se homenageia Pátroclo, com disputas atléticas, ao VIII da Odisséia,
nos agônes dos Feaces, passando pelo V canto da Eneida, em que se disputam jogos
em memória de Anquises, pai de Enéias (ibidem, vol. III, p. 46).
no que concerne à capacidade do herói em predizer o futuro, denominada mântica,
Junito de Souza Brandão chamou a atenção para o fato de que ela se manifestava, entre os
guerreiros que se movimentam nas epopéias e nos mitos antigos, de diversas maneiras;
principalmente por meio da incubação
173
ou da cleromancia
174
. Brandão afirmou, ainda, que a
arte divinatória poderia estar relacionada à arte da cura, chamada iátrica, e explicou o porquê
disso: pelo fato de o educador dos heróis ter sido, principalmente, como se viu, o centauro
Quirão, que, dentre outras funções, acumulava a de médico. Sobre a mântica e sua associação
com a iátrica, foram estas as palavras de Junito de Souza Brandão:
173
“aquela em que o consulente, deitando-se (incubare é estar deitado) por terra (ctônia), normalmente num
recinto sagrado, tinha sonhos, que eram interpretados pelo mántis” (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 48).
174
“é a adivinhação pela ação de tirar a sorte” (idem).
200
A Mântica na Grécia se apresenta sob formas diversas e como o herói não
tem acesso a todas elas, talvez fosse oportuno apontar primeiro os vários aspectos da
arte divinatória. Grosso modo, a mântica engloba diferentes técnicas, podendo ser:
dinâmica ou por inspiração direta; indutiva (piromancia, eonomancia, hepatoscopia,
oniromancia...); ctônia, por incubação e cleromancia. Esta divisão é apenas de
cunho didático e está longe de ser completa: conta somente das técnicas mais
conhecidas e mais usadas na Hélade e em outras culturas. [...] Uma coisa, porém,
parece fora de dúvida: no oráculo heróico parece prevalecer a mântica por
incubação, sem dúvida a mais empregada por Homero, e a cleromancia
(BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 47-48, passim).
O herói também é médico e tal é a conexão entre Mântica e trica, que é
impossível separar os dois tópicos, a não ser, como fizemos, por motivos didáticos.
Iátrica, em grego 0Iatrikh/ (Iatriké), de i0atro/v (iatrós), “médico”, é a “arte de
curar” (ibidem, pp. 49-50).
Como vimos, a ntica ctônia é a forma característica do oráculo heróico.
Pois bem, a incubação tem por objetivo essencial, na maioria dos casos, a cura, e a
atividade terapêutica dos deuses e dos heróis se exerce principalmente através das
respostas do oráculo. Apolo, deus mântico por excelência, era, ao menos a princípio,
um deus-médico, e assim se torna visível a íntima correlação entre trica e mântica
no majestoso epíteto que lhe empresta o grande trágico Ésquilo, Eumênides, 62:
i0atro/mantiv (iatrómantis), quer dizer, o médico-mântico, “o que sabe curar através
de seus oráculos” (ibidem, p. 50).
Uma característica da mitologia iátrica, que não causa surpresa, é sua
conexão com Asclépio, não por ter sido ele um grande médico e ser filho de Apolo,
o iatrómantis, mas porque seu mestre havia sido Quirão, o educador de tantos heróis
sob tantos aspectos! (ibidem, pp. 50-51).
Mas não é de feridas físicas que curam os heróis com poderes médicos:
curam também a loucura (ibidem, p. 51).
O aspecto sobre-humano dos heróis da Antigüidade clássica também pode ser atestado a
partir do enfrentamento, por parte deste, de gigantes e de feiticeiras: o tamanho daquele e o
caráter sobrenatural dos poderes desta acabam por comprovar, por meio da proporcionalidade,
que somente um ser equivalente a eles, em estatura, em força e/ou em astúcia, seria capaz de
vencê-los, com ou sem ajuda dos deuses. A seguir, excertos da Odisséia que trazem
momentos de defrontações de Ulisses com um ente gigantesco, Polifemo, e com uma
feiticeira, Circe:
Aproximando-me, então, do Ciclope, começo a falar-lhe
e lhe ofereço a vasilha, que enchera de vinho vermelho:
[...]
o vinho aceitou, e o bebeu revelando tão grande
gosto por essa bebida que logo pediu nova dose:
201
[...]
de novo lhe pus outra dose do rútilo vinho.
Três vezes mais lhe of‟reci; por três vezes bebeu o demente.
Mas, quando vi que a bebida alterara a razão do Ciclope,
para ele, então, me voltando, palavras melífluas lhe disse:
“Pois bem, Ciclope, perguntas-me o nome famoso? Dizer-to
Ei-lo; Ninguém é o meu nome; Ninguém costumavam chamar-me
não só meus pais, como os mais companheiros que vivem comigo.”
Isso lhe disse; ele, logo, me torna com ânimo duro:
“Pois de Ninguém farei o último almoço, depois da companha;
todos os outros primeiro; esse o grande presente aludido.”
Disse e caiu para trás ressupino, estendendo-se ao longo
com o cachaço monstruoso encurvado; domou-o logo o sono
que tudo vence; da goela saía-lhe vinho e pedaços
de carne humana. Embriagado expelia no vômito as postas.
Foi quando o pau, que eu cortara, enfiei bem no meio da cinza,
para aquecê-lo. Coragem procuro incutir com palavras
nos companheiros; não fosse algum deles recuar só de medo.
Mas, quando o pau de oliveira, apesar de verde, se achava
quase no ponto de em chamas arder, e ficara brilhante,
rapidamente do fogo o tirei; ao redor se postaram
meus companheiros; coragem nos deu qualquer grande demônio.
Eles, então, levantaram o pau, cuja ponta afilada
no olho do monstro empurraram; por trás, apoiando-me nele,
fi-lo girar [...]
dessa maneira virávamos todos os pau incendiado
no olho redondo, escorrendo-lhe à volta fervente sangueira.
[...]
Solta o gigante urro enorme, que atroa a profunda caverna.
Apavorados recuamos. Depois, arrancou do próprio olho
o pau vermelho do sangue, que dele abundante escorria,
e longe o atira, a agitar as mãos ambas com gesto de louco.
Em altos brados, então, chama os outros Ciclopes, que em grutas
da redondeza habitavam, nos cimos por ventos batidos.
Estes lhe ouviram os gritos, correndo de todos os lados.
Postos em roda da furna, perguntaram de que se queixava:
[...]
De dentro mesmo da furna lhes diz Polifemo fortíssimo:
“Dolorosamente Ninguém quer matar-me; sem uso de força.”
Eles, então, em resposta, as aladas palavras disseram:
“Se ninguém, pois, te forçou, e te encontras aì dentro sozinho,
meio não há de evitar as doenças que Zeus nos envia.
Pede, portanto, socorro a Posido, teu pai poderoso.”
Isso disseram e foram-se logo dali. Ri-me no íntimo
(HOMERO, 2001, IX, v. 345-413, pp. 163-165, passim)
Sem se fazer esperar, veio Circe e o portão lhes franqueia,
belo e brilhante; os estultos, então para dentro a seguiram,
com exceção só de Euríloco, por suspeitar de algum dolo.
Ela os levou para dentro e of‟receu-lhes cadeiras e tronos,
e misturou-lhes, depois, louro mel, queijo e branca farinha
em vinho Pirâmnio; à bebida, assim feita, em seguida mistura
droga funesta, que logo da pátria os fizesse esquecidos.
Tendo-lhes dado a mistura, e depois que eles todos beberam,
com uma vara os tocou e, sem mais, os meteu na pocilga.
Tinham de porcos, realmente, a cabeça, o grunhido, a figura
e as cerdas grossas; mas ainda a consciência anterior conservavam.
Dessa maneira os prendeu, apesar dos lamentos, lançando-lhes
Circe bolotas, azinhas e frutos que dá o pilriteiro,
para comerem, quais porcos que soem no chão rebolcar-se.
202
(ibidem, IX, v. 345-413, pp. 163-165, passim)
Mas, quando estava no vale sagrado e do grande palácio
me aproximava, de Circe que todas as plantas conhece,
Hermes me veio encontrar, o imortal que o bastão de ouro leva
antes de a casa chegar na figura de um moço radiante
a quem o buço começa a aprontar na sazão mais graciosa.
Da mão me toma e, falando, me disse as seguintes palavras:
“Por onde vais, infeliz, através destes montes, sozinho,
do sítio ignaro? Na casa de Circe se encontram teus sócios,
sob a figura de porcos, trancados em boas pocilgas.
Vais até lá com tenção de trazê-los? Não creio, entretanto,
que de lá voltes, mas hás de ficar onde os outros se encontram.
Quero, porém, proteger-te e livrar-te do mal iminente.
Toma esta droga de muita eficácia e o palácio de Circe
entra, porque há de livrar-te a cabeça do dia funesto.
Vou revelar-te os ardis perniciosos usados por Circe:
há de bebida of‟recer-te e veneno te pôr na comida.
Mas impossível ser-lhe-á enfeitiçar-te, que a droga excelente
que ora te entrego desfaz esse influxo. Atende ao que segue:
Logo que Circe com sua varinha tocar-te no corpo,
saca depressa da espada cortante, que ao lado te pende,
e contra a deusa arremete, mostrando intenção de matá-la.
Ela, com medo, há de, então implorar-te que ao leito a acompanhes.
De forma alguma te negues subir para o leito da deusa,
para que os sócios te queira livrar e tratar-te benigna.
O juramento dos deuses, porém, exigir deve dela,
de que nenhuma outra insídia, de fato, planeja em teu dano;
não aconteça fazer-te vileza ao te ver desarmado.”
[...]
Num copo de ouro mexeu a mistura, que a mim destinava
e, com maldosos intuitos, juntou-lhe uma droga funesta,
dando-me logo a beber, o que fiz, sem ficar encantado.
Bate-me, então, com a varinha, dizendo as seguintes palavras:
“Para o chiqueiro vai logo deitar-te com teus companheiros.”
Mas, arrancando da espada cortante, que ao lado pendia,
contra ela avanço, mostrando no gesto intenção de matá-la.
Circe com gritos agudos correu a abraçar-me os joelhos
(ibidem, IX, v. 275-323, pp. 179-181, passim)
Até então, foram apresentadas, sobretudo, as qualidades, as virtudes, dos heróis greco-
romanos. No entanto, em vários momentos, este se apresentava, principalmente nas epopéias
da Antigüidade, também como rancoroso, como vingativo, como impiedoso para com os seus
inimigos, como cruel, como sanguinário; enfim, como portador de certos desvios de caráter,
de sentimentos nada nobres, como deixam entrever as seguintes passagens da Ilíada:
“Se filhos sois, em verdade, de Antìmaco, o herói experiente,
que, de uma feita, opinou em reunião dos Troianos que a vida
a Menelau se tirasse, quando ele e Odisseu a Ílio foram
como legados, que vivo jamais aos Aqueus retornasse;
203
ora ides ambos o preço pagar dessa injúria paterna”.
Isso disse ele e, a Pisandro tirando do carro, com a espada
junto do seio o feriu; cai no chão, ressupino, o guerreiro.
Lança-se Hipóloco ao solo, onde o Atrida o privou da existência;
com duros golpes de espada, o pescoço e os dois braços lhe corta
e, para o meio da turba a rolar, longe o tronco repele.
(HOMERO, 2002, X, v. 138-147, pp. 257-258)
Trós Alastórida veio abraçar-se-lhe aos joelhos, pedindo
que dele houvesse piedade e o prendesse, deixando-o com vida.
Da mesma idade de Aquiles ele era; levasse isso em conta.
Néscio! ignorava que com ele era inútil qualquer argumento,
pois brando peito e intelecto maleável não tinha o Pélida,
sim coração rancoroso. Abraçava-lhe o mísero os joelhos,
a suplicar; mas no fígado Aquiles a espada lhe aterra.
(ibidem, XX, v. 463-469, pp. 459)
“Tolo! Não percas o tempo, nem venhas falar-me em resgate.
Antes que a Pátroclo houvesse descido o momento funesto,
era-me grato, por vezes, poupar aos Troianos a vida.
A muitos, vivos, prendi, comprazendo-me, após, em vendê-los.
Mas de ora avante é impossível poupar a existência a um que seja
dos picadores Troianos que um deus me entregar prisioneiro
ante as muralhas de Tróia, mormente aos nascidos de Prìamo [...]”.
(ibidem, XXI, v. 99-105, p. 464)
Já moribundo, responde-lhe Heitor, do penacho ondulante:
“Por conhecer-te, sabia que tudo seria assim mesmo.
O coração tens de ferro; impossível me fora dobrá-lo.
Que isso, porém, contra ti não provoque a vingança dos deuses,
quando tiveres de a vida perder, muito embora esforçado,
das Portas Céias em frente, aos ataques de Páris e Apolo”.
(ibidem, XXII, v. 355-360, pp. 491-492)
Além dos defeitos pouco apresentados, Junito de Souza Brandão elencou muitos
outros; inclusive físicos. Isso serve para mostrar que o herói da Antigüidade clássica não era
dotado de qualidades, não era apenas bonzinho e perfeito, como a posteridade parece tê-lo
pintado. No próximo capítulo, que tratará do cavaleiro medieval, verificar-se que este ou era
bom ou era mau; ou seja, ou era herói ou era vilão. Esse maniqueísmo, como se verá, nestas
palavras de Brandão, não existia na Antigüidade clássica: o bem e o mal habitavam o mesmo
ser; no caso, o herói greco-latino.
O herói é, em princípio, uma idealização e para o homem grego talvez
estampasse o protótipo imaginário da kaloka0gaqi/a (kaloka-gathía), a “suma
probidade”, o valor superlativo da vida helênica. Aristóteles, Política, 7,1332b, é
explìcito, ao afirmar que os heróis eram fìsica e “espiritualmente”, kata\ th\n yuxh/n
(katà tèn psykhén), superiores aos homens. Sob esse enfoque o herói surge aos
nossos olhos externos e sobretudo “internos”, como alto, forte, bonito, solerte,
destemido, triunfador... [...] Mas este é tão-somente um lado dessa personagem tão
204
polimórfica e ambivalente, embora prototípica de tantas atividades humanas.
Observando-a mais de perto, nota-se que a beleza e a bravura de Aquiles podem ser
empanadas física e moralmente por caracteres monstruosos: um herói aparece
igualmente e com muita freqüência sob forma anormalmente gigantesca ou como
baixinho; pode ter um aspecto teriomorfo e andrógino; apresentar-se como fálico;
sexualmente anormal ou impotente; pode ser aleijado, caolho ou cego; estar sujeito à
violência sanguinária, à loucura, ao ardil e astúcia criminosa, ao furto, ao sacrilégio,
ao adultério, ao incesto e, em resumo, a uma contínua transgressão do métron, vale
dizer, dos limites impostos pelos deuses aos seres mortais. [...] De saída, como se
está falando de atributos contraditórios, é conveniente lembrar que o herói tem a
faculdade de ser tanto uma fonte quase inesgotável de bons serviços quanto de
maldição, sobretudo quando ofendido nesta vida ou depois da morte, o que pode ser,
de certa forma, confrontado com a ambivalência das divindades ctônias Erínias-
Eumênides (BRANDÃO, 2007, vol. III, pp. 52-54, passim).
Como já se falou da “monstruosidade” do androginismo, além do gigantismo,
nanismo e teriomorfismo, vamo-nos ocupar, agora, com as demais deficiências
físicas dos heróis. Estes estão marcados por uma gama tão ampla de outras
anomalias em seus corpos, que seria impossível, dentro de um capítulo, citar e
comentar a todas. Mencionaremos, por isso mesmo, apenas as principais com seus
respectivos portadores. Entre estas destacam-se a policefalia, a acefalia, a
gibosidade, gagueira, coxeadura e cegueira. [...] São muito numerosos os heróis
coxos ou com defeitos e cicatrizes nas pernas, mas neste campo existem no mito
várias atenuações, devidas à idealização dos heróis. Em certos casos a anormalidade
das pernas ou dos pés é tão-somente mencionada, sem uma ligação efetiva com o
mito, como no caso de Édipo, que conserva apenas o nome de pés inchados, sem
maiores conseqüências, aparentemente, para o mito! Em outras personagens,
todavia, inteira ou parcialmente míticas, a coxeadura assume uma função mítica e
religiosa: a deformidade, tida por castigo divino, passa a ser considerada como um
obstáculo à sucessão ou como uma indignidade (ibidem, p. 55, passim).
Outro ponto sensìvel na “monstruosidade” fìsica dos heróis é a cegueira, que
aparece com grande freqüência entre os adivinhos míticos [...]. Existem, porém,
muitos outros heróis, que, por um motivo ou outro, são cegos ou perdem a visão por
efeito de um ato criminoso: [...] Anquises, pai de Enéias, perdeu a vista, porque, um
dia, bêbado, se vangloriou de seus amores com Afrodite (ibidem, p. 56, passim).
um outro ângulo ainda mais sério na “monstruosidade” do herói: seu
comportamento social, ético e moral. Não apenas Héracles, mas vários outros são
vítimas da polifagia, isto é, de um apetite insaciável. Lepreu, epônimo da cidade de
Lépron, na Acaia, desafiou, entre outros, a Héracles para uma competição glutônica.
Cada um devorou um boi inteiro (ibidem, p. 57).
Ao lado, porém, da proverbial polifagia, os heróis cultuavam uma outra
adefagia: seu apetite sexual era tão voraz quanto seu estômago. Como sempre, o
campeão é Héracles: numa só noite, ele fecundou as cinqüenta filhas de Téspio
(Paus. 9,27,7). Outros, mais comedidos (Apol. 2,66), julgam que o fato se passou em
cinqüenta noites consecutivas, mas os “conciliadores”, para não racionalizar, em
demasia, a potência hercúlea, transformaram o prodigioso em “fantástico”: a façanha
teria sido consumada em sete noites sucessivas, possuindo o herói a sete tespíades
por noite. A que sobrou, serviu de sobremesa... Não pára aí, no entanto, o
descomedimento sexual dos heróis. Existem ainda duas modalidades de violência
carnal que os mesmos praticam constantemente: o rapto de mulheres e a violência
propriamente dita, traduzida sob a forma de adultério, estupro, incesto... Teseu, o
“ideal do espìrito ateniense”, raptou a Helena, a mesma que Páris ou Alexandre
raptaria mais tarde [...]... Oríon, que, na ilha de Quios, usara de violência contra a
esposa ou filha de seu hospedeiro Enópion, tentou ainda estuprar a deusa Ártemis
ou, segundo outros, a tentativa de estupro teria sido contra a fiel companheira desta,
a hiperbórea Ópis (ibidem, p. 58, passim).
205
A verdade sobre o lado negro dos heróis, porém, não termina por aqui. Os
atos de intemperança sexual e a violência sanguinária não esgotam os excessos de
sua natureza irrequieta, irascível e tumultuosa, porquanto o herói pratica outrossim e
com freqüência a arte sutil da estúcia e da ladroagem. racles, quase sempre se
inicia por ele, furtou a valiosa manada de éguas de Ífito e, quando este, que ignorava
a identidade do ladrão, saiu para procurá-las, o herói o matou traçoeiramente,
violando o direito de hospitalidade (Odiss. XXI, 22sqq) (ibidem, p. 62).
As citações e exemplos poderiam ir ainda muito longe, mas o que se deseja
acentuar é a ambivalência dessa “criatura” singular. Suas inúmeras qualidades e
serviços extraordinários em favor da lis e da comunidade, mas também suas
fraudes, roubos, solércia criminosa, bem como todas as violências e
“monstruosidades” anteriormente apontadas não se aplicam a este ou àquele tipo de
herói, mas, em maior ou menor escala, o todo dessa vasta complexio oppositorum
faz parte da vivência heróica (ibidem, p. 63).
Como se viu pouco, as mulheres eram umas das principais vítimas das atrocidades
cometidas pelos heróis. Na Antigüidade clássica, tirante poucos exemplos, como as deusas,
porque mesmo as rainhas poderiam ser escravizadas, caso as cidades em que viviam viessem
a ser invadidas por nações inimigas, as mulheres eram tidas como objetos, como mercadorias;
tanto que constavam, como se sabe, entre as prendas de guerra: basta lembrar do motivo da
briga de Aquiles e Agamémnone para se constatar isso. Certamente, o pouco valor dado às
mulheres, nas antigas Grécia e Roma, deve-se ao fato de elas terem sido identificadas com a
figura de Pandora, aquela que trouxe a desgraça para a Humanidade, quando abriu a caixa que
tinha sido enviada do Olimpo. Como se verá no próximo capítulo, algo semelhante ocorre
com as mulheres, na Idade Média; decerto por terem-na aproximado à Eva. Agora, trechos da
Ilíada que mostram a mulher como causa de intrigas entre os homens, de desgraças para os
povos:
Por causa, sim, de uma escrava, eu e Aquiles Peleio brigamos
com termos ásperos, tendo partido de mim as ofensas.
Mas se algum dia concordes ficamos de novo, não há de
demorar muito a ruína de Tróia, um momento que seja.
Ide, no entanto, comer, porque logo encetemos a luta.
Todos, as lanças agucem; a ponto os escudos preparem;
Dêem ração abundante aos cavalos de patas velozes
e aos carros passem revista, pensando no próximo embate,
pois todo o dia teremos de a luta manter espantosa.
Pausa nenhuma há de haver, um momento sequer de repouso,
enquanto a Noite não vier aplacar o furor dos guerreiros.
Há de correr muito suor pelo bálteo dos altos escudos,
e, do maneio da lança, hão de os braços tombar de cansados;
206
muito hão de suar os cavalos, do esforço dos os carros puxarem.
Mas se eu alguém vir do prélio sangrento afastado, querendo
nas curvas naus ocultar-se, remédio nenhum, com certeza,
há de livrá-lo de pasto tornar-se de cães e de abutres”.
(HOMERO, 2002, II, v. 377-393, p. 88)
Vira-se Helena para esse, com termos afáveis e fala:
“Caro cunhado da pobre que apenas desgraças espalha!
Fora melhor, bem melhor, que, no dia em que a luz vi do mundo,
arrebatado me houvesse de casa terrível procela,
para nos montes lançar-me, ou nas ondas do mar ressoante,
que me teriam tragado, evitando esta grande catástrofe.
Mas, já que os deuses quiseram que tudo, desta arte, se desse,
fosse-me, então, destinado marido melhor, que as censuras
dos companheiros sentisse a desonra daí decorrente.
Este, porém, nunca teve firmeza, nem nunca há de tê-la.
Por isso mesmo, estou certa, há de os frutos colher dentro em breve.
Mas entra, um instante sequer, e repousa sobre esta cadeira,
caro cunhado, que mais do que todos, suportas o peso
das conseqüências de minha cegueira e da culpa de Páris
Triste destino Zeus grande nos deu, para que nos celebrem,
nas gerações porvindoiras, os cantos excelsos dos vates”.
(ibidem, VI, v. 343-358, pp. 173-174)
Entretanto, houve mulheres heroínas, na Antigüidade clássica: as amazonas são o maior
exemplo delas; todavia, nenhuma foi mais admirada pelos heróis que Atalanta, por quem
Meleagro apaixonou-se perdidamente.
Uma vez realizada, ao longo deste capítulo, a trajetória da vida do herói greco-romano,
de modo a trazer à tona o imaginário que se formou acerca dessa figura, na Antigüidade
clássica, resta apenas tratar, agora, do seu fim; ou seja, daquilo que poderia levá-lo à morte e
do que poderia lhe acontecer, após o seu falecimento. Geralmente, os heróis morriam em
batalha, golpeados por lanças, por espadas ou por pedras gigantescas. E apesar de alguns
serem semideuses, ou seja, metade deuses e metade homens, os heróis, todos, estavam
sujeitos à morte e a descer ao Hades, a menos que fosse do interesse de um deus torná-los
eternos, como forma de agradecer-lhes pelos bons serviços prestados, ao longo de suas vidas,
aos mais diversos povos: os numes poderiam lhes dar imortalidade levando-os para os
Campos Elísios, também conhecidos como Campos Afortunados ou como Ilha dos
Abençoados, que ficavam na parte ocidental da Terra, sem que experimentassem a morte, ou
arrebatando-os para os céus, em direção ao Olimpo. Agora, excertos da Ilíada, da Odisséia e
207
da Eneida que mostram a presença de heróis no Hades. Depois, passagens d‟O Livro de Ouro
da Mitologia e de Metamorfoses que trazem os dois outros possíveis destinos do herói, após
sua morte: os Campos Elísios ou o Céu/Olimpo.
Canta-me a Cólera ó deusa! funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto de aves (HOMERO, 2002, I, v. 1-5, pp. 57-58).
[Pátroclo] Fica-lhe junto à cabeça e lhe diz as seguintes palavras:
“Dormes, Aquiles, o amigo esquecendo? Zeloso era antes,
quando me achava com vida; ora, morto, de mim te descuidas.
Com toda a pressa sepulta-me, para que no Hades ingresse,
pois as imagens cansadas dos vivos, as almas, me enxotam,
não permitindo que o rio atravesse para a elas ajuntar-me.
Por isso, vago defronte das portas amplíssimas do Hades [...]”.
(ibidem, XXIII, v. 69-74, p. 499)
e eu, arrancando da espada cortante de junto da coxa,
um fosso abri, que de todos os lados um côvado mede,
e libações, à sua volta, fizemos a todos os mortos:
primeiramente, de mel misturado; depois, de bom vinho;
de água a terceira, espalhando farinha por cima de tudo.
Férvidos votos alcei às cabeças exangues dos mortos,
de, quando em Ítaca, em casa, uma vaca imolar-lhes estéril,
a de melhor aparência, queimando preciosos objetos,
e que a Tirésias, à parte, um carneiro, também, mataria,
negro sem mancha, o que em nossos rebanhos os mais excelesse.
Tendo assim, pois, dirigido meus votos ao coro dos mortos,
tomo as duas reses e em cima do fosse as mantenho cortando-lhes
logo o pescoço. Escorreu sangue negro. Em tropel afluíram,
do Érebo escuro provindas, as almas de inúmeros mortos,
moços e moças, e velhos em males há muito experientes,
e virgens tenras, há pouco, somente, do mal sabedoras.
Muitos guerreiros afluem, por lanças de bronze feridos
em duros prélios, que manchas de sangue nas armas ostendem.
Inumeráveis, à volta do fosso, com grande alarido
correm de todos os lados; o pálido Medo me tolhe.
Os companheiros, depois, exortei, ordenando que as reses,
que estavam mortas no chão, pelo bronze cruel abatidas,
logo queimassem, depois de esfolá-las e rogos ter feito
a Hades, o deus poderoso, e à terrível e horrenda Perséfone.
(HOMERO, 2001, XI, v. 24-47, pp. 190-191, passim)
Vão por diante; as veigas já pisavam
Só de claros guerreiros freqüentadas.
Aqui Tideu, Partenopeu famoso,
Adrasto ocorre de palente imagem.
Aqui, mortos no prélio e tão carpidos,
Em fileira os Dardânidas encontra:
Suspiroso a Tersíloco e Medonte,
Glauco e os três Antenóridas contempla,
E a Polibetes consagrado a Ceres,
E Ideu que inda meneia e o carro e as armas.
208
À destra e à sestra as almas se apinhoam:
Não basta olhá-lo, não; retê-lo agrada,
Achegar-se e indagar da vida as causas.
Logo que, pela treva o arnês fulgindo,
O avistam Graios cabos e a falanges
Agamemnônias, trépidos recuam:
Uns, como quando aos barcos se acolheram,
Costas viram; no erguer a voz sumida,
A alguns na boca hiante o grito morre.
(VIRGÍLIO, 2005, VI, v.488-506, p. 152)
As experiências dos heróis com os mortos, no plano mítico, está relacionada aos cultos
mistéricos ou ao orfismo, que aconteciam no mundo real, na Grécia antiga. De acordo com
Mario Vegetti, tais cultos exerciam, na Antigüidade clássica, uma função purificadora:
objetivavam expurgar a alma dos gregos de todas as suas culpas.
Para os Gregos, o deus dos infernos, Hades, é uma divindade sem templo
nem culto. A sua remoção do mundo da visibilidade olímpica, a par do terror gerado
pelo mundo do invisível, do indizível, do contaminante, provoca a necessidade de
uma experiência religiosa diferente, longe dos espaços e das formas de culto público
e diurno. É dessa necessidade que nascem os mistérios (o termo mystèria deriva de
mystes, iniciado, e exprime o secretismo que envolve esses cultos, a obrigação que
têm os seus participantes, os iniciados, de manter silêncio acerca do que é feito e
visto durante os rituais). Contudo, será de esclarecer desde um equívoco que pode
facilmente associar-se ao caráter iniciático e secreto dos cultos mistéricos. De facto,
não estão reservados a uma minoria exclusiva e sectária; qualquer cidadão pode ser
iniciado e, na realidade, costuma -lo; por outro lado, são admitidos indivíduos
normalmente excluídos dos cultos olímpicos da polis, como os estrangeiros e os
escravos, e naturalmente também as mulheres. Portanto, os cultos misteriosos não
são mais restritos do que os cívicos; em princípio e também de facto, são até mais
abertos, já que a esfera dos iniciados potenciais e efectivos supera de longe os
limites da cidadania. Isso significa que se dirigem mais ao homem enquanto tal do
que ao polites, e que penetram portanto num domínio de experiência mais profundo,
mais radical e mais difuso, do que o que respeita à auto-representação e à garantia
do corpo cívico da polis. A necessidade de um complexo processo de iniciação e o
segredo que envolve os rituais misteriosos não implicam portanto uma selecção
entre os possíveis participantes, antes remetem para o carácter profundo,
inexprimível, terrífico da dimensão de experiência em que decorrem. É possível que
a raiz mais remota da religiosidade misteriosa resida nos festivais pré-históricos de
exorcismo da morte, nas inefáveis experiências de perda da corporeidade e de
imortalidade que deviam ocorrer nessas ocasiões e que são devidas ao uso de drogas
alucinógenas (VEGETTI in VERNANT, 1993, pp. 244-245).
<<As coisas vistas, ditas e feitas>> nos mistérios segundo a expressão
canónica que define o seu ritual culminarão portanto numa visão, ou numa série de
visões, capazes de evocar, directa ou simbolicamente, o sexo, a morte, a
ressurreição, e de provocar assim uma sensação de terror primordial nos assistentes
(o ponto culminante do ritual ocorre de noite, numa caverna iluminada por archotes)
e, em seguida, de eliminar, através da epifania tranqüilizante da salvação e do novo
nascimento, essa mesma sensação, de <<purificar>> os seus espectadores-actores.
Embora profunda e radical, embora dirigida ao homem enquanto tal e não ao
cidadão, a experiência dos cultos misteriosos complementa, mas não nega nem
exclui, a da religião olímpica. A polis ateniense tutela, protege e administra os
209
mistérios de Elêusis, que não geram um tipo de homem ou uma forma de vida
estranhos aos da comunidade política, que o iniciado não vive nem deseja uma
existência diferente da dos seus concidadãos (aliás, por norma, também iniciados).
Os mistérios atingem portanto uma esfera de experiência e de problemas
psicológicos e religiosos a que os cultos públicos da polis não dão voz nem respostas
e, precisamente por isso, funcionam como um complemento, tão necessário quão
harmonicamente integrável, não provocando nenhum conflito, privado ou público,
entre o cidadão e o iniciado (VEGETTI in VERNANT, 1993, p. 245).
Por conseguinte, é preciso libertar a alma, libertá-la dos laços de
corporeidade. Ao mesmo tempo, é preciso purificar a alma da culpa que a fez descer
da sua condição de demônio divino e penetrar num corpo; o laço com a corporeidade
é usado como um instrumento necessário para expiar a culpa cujo castigo simboliza.
Para se atingir qualquer um dos objectivos purificação da corporeidade e
purificação da alma a vida terá de ser vista como um exercício de sacrifício, de
renúncia, de ascese: é o que visam todas as regras que definem o modo de vida
sectário. A renúncia principal e fundamental, do ponto de vista simbólico, é a de
comer carne, e, ao mesmo tempo, do sacrifício que lhe está indissoluvelmente
associado na religião da cidade: essa dupla renúncia simboliza a recusa da violência,
do assassínio, do derramamento de sangue que contaminam a existência humana.
Existe depois toda uma série de regras de abstinência, a começar pelo controlo da
sexualidade, que exprimem a recusa de misturar a alma e o corpo (VEGETTI in
VERNANT, 1993, p. 247).
Por conseguinte, para o orfismo, a salvação individual é essencialmente a salvação
da alma, salvação merecida pela prática de uma purificação que não se reduz a um
gesto ritual, antes caracteriza toda a existência: o deus por excelência do orfismo é
Apolo kathartès, o <<purificador>>. Liberta do corpo, a alma purificada pode
regressar à beatitude da sua originária condição divina: os adeptos da seita
costumavam levar para o túmulo tabuinhas de ouro ou de chifre (como as que foram
encontradas em Locros, na Magna Grécia, e em Olbia, no mar Negro), que
confirmam a sua purificação e invocavam os deuses do Além para que a alma do
defunto fosse recebida junto deles (VEGETTI in VERNANT, 1993, p. 247).
Eis os dois outros possíveis destinos do herói, ao fim da vida de guerreiro: os Campos
Afortunados ou o Céu/Olimpo.
Na parte ocidental da Terra, banhada pelo Oceano, ficava um lugar
abençoado, os Campos Elíseos, para onde os mortais favorecidos pelos deuses eram
levados, sem provar a morte, a fim de gozar a imortalidade da bem-aventurança.
Essa região era também conhecida como os Campos Afortunados ou Ilha dos
Abençoados (BULFINCH, 2002, p. 8).
E Hércules cortou e derrubou árvores da majestosa Eta
Para fazer uma pira funerária para si próprio. Pediu
Ao filho de Poea que ficasse com seu arco, sua lança
E suas flechas, que visitariam Tróia de novo.
E Filoctetes aprontou o fogo
Sob a padiola, e quando as chamas estavam crepitando,
Atlas, em torno dela, Hércules estendeu
A pele de leão como se fosse uma colcha,
usou seu cajado como travesseiro,
E deitou ali, despreocupado como um convidado
Para um grande banquete, coroado com um guirlanda, entre
Taças de vinho transbordantes. As chamas cresceram, ficaram mais fortes,
Espalharam-se, envolveram os membros de seu depositário,
210
E os deuses ficaram perturbados pelo campeão da terra.
(OVÍDIO, 2003, pp. 186-187)
Todos os deuses,
Até mesmo a vingativa Juno, sentiram sua ira
Chegar ao fim, tão poderosa era
A bondade que Enéas tinha e assim que Iulo
Foi colocado bem à vista da Sorte,
O heróico filho de Vênus foi destacado para o Céu.
Ele já tinha ido até os deuses, jogado seus braços
Em torno do pescoço de seu pai, implorando: “Querido pai,
Sempre bondoso para mim, favoreça-me agora
E conceda ao meu Enéas, seu próprio neto
Através de mim, alguma divindade, por mais humilde que seja,
Desde que conceda alguma coisa. É suficiente
Já ter visto domínios que nenhum homem pode amar,
Já ter cruzado o rio Stigian”.
Os deuses concordaram, e mesmo Juno
Se comoveu e aprovou (OVÍDIO, 2003, p. 297).
As leis ficaram iguais
Depois de sua morte, com Rômulo como monarca.
Marte tirou seu faiscante capacete, implorando
Perante o trono de Júpiter:”Chegou a hora,
Ó pai, já que o estado romano está
Apoiado em fundações fortes,
Não baseadas em poder de nenhum homem,
Honrar a promessa que me fez e alçar
Seu neto Rômulo aos céus.
Foi convocada uma assembléia, e todos os deuses estavam lá.
Suas lindas palavras: Haverá um que Marte
Tratá pelo céu azul. Deixe que a promessa
Agora se cumpra integralmente”. E Júpiter concordou.
[...]
E voando pelo ar ele
175
chegou ao Palatino.
Ali foi dado ao filho de Ília o julgamento,
Sem ordens tirânicas para seu povo.
Ele pegou da terra seu corpo mortal,
Dissolveu-se no ar
E deu-lhe uma nova forma, mais fluida.
Vestiu-o então com as roupas
Adequadas à sua nova situação, e ele passou a ser chamado de Quirino.
(OVÍDIO, 2003, p. 303)
De acordo com Junito de Souza Brandão, é a morte que confirma a condição sobre-
humana do herói, pois ainda que este não fosse admitido entre os deuses, no Olimpo, como
aconteceu a Enéias e a Rômulo, o túmulo do herói geralmente passava a ser local sagrado,
local de culto, por acreditarem que os seus restos mortais possuíam poderes mágicos. Desse
modo, o herói, mesmo depois de morto, continuava a ser um intermediário entre os mortais e
175
Marte.
211
os deuses: possuía a finitude daqueles, mas suas ações (boas ou más) continuavam a
reverberar entre os povos mesmo após o seu falecimento.
Se o herói tem um nascimento difícil e complicado; se toda a sua existência
terrena é um desfile de viagens, de arrojo, de lutas, de sofrimentos, de desajustes, de
incontinência e de descomedimentos, o último ato de seu drama, a morte, se
constitui no ápice de seu pa/qov (páthos), de sua “prova” final: a morte do herói ou é
traumática e violenta ou o surpreende em absoluta solidão. Afirma Brelich que ainda
não se fez uma estatística, e é pena, mas acrescenta que a maioria dos heróis morre
tragicamente (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 63).
É a morte, no entanto, que lhe confere e proclama a condição sobre-humana.
“Se, por um lado, diz Eliade, não são imortais como os deuses, por outro os heróis se
distinguem dos seres humanos pelo fato de continuarem a agir depois da morte. Os
despojos dos heróis são carregados de temíveis poderes mágico-religiosos. Os seus
túmulos, relíquias, cenotáfios atuam sobre os vivos durante longos séculos. Em
determinado sentido, poderíamos dizer que os heróis se aproximam da condição
divina graças à sua morte: gozam de uma pós-existência ilimitada, que nem é
larvária nem puramente espiritual, mas consiste numa sobrevivência sui generis,
uma vez que depende dos restos, traços ou símbolos dos seus corpos. Com efeito, e
contrariamente ao costume geral, os despojos dos heróis são enterrados no interior
da cidade; são mesmo admitidos nos santuários, como acontece com os “restos
mortais” de Pélops e Neoptólemo, guardados respectivamente nos templos de Zeus
em Olímpia e no de Apolo em Delfos. Seus túmulos e cenotáfilos, no centro da
Ágora, transformam-se no centro do culto heróico, onde se realizam sacrifícios, não
raro acompanhados de lamentações fúnebres e até de “coros trágicos”, como
acontecia em Sicione, em homenagem a Adrasto (Heród. 5,67) (ibidem, pp. 64-65,
passim).
Desse modo, a morte do herói transforma-o em dai/mwn (daímon), num
intermediário entre os homens e os deuses, num escudo poderoso que protege a pólis
contra invasões inimigas, pestes, epidemias e todos os flagelos. Partícipe de uma
“imortalidade” de cunho espiritual, garante a perenidade de seu nome, tornando-se,
destarte, um arquétipo, um modelo exemplar para quantos “se esforçam por superar
a condição efêmera do mortal e sobreviver na memória dos homens” (ibidem, p. 65).
Os verdadeiros propósitos, portanto, dos heróis greco-romanos sempre foram: (i) obter a
glória, (ii) chegar à apoteose
176
e (iii) receber um galardão (presente) dos deuses. Eram esses
os seus objetivos de vida, mas também os de post-mortem.
Com base no que foi dito ao longo deste capítulo, se pode fazer um apanhado do
imaginário do herói da Antiguidade clássica: um ser ao qual também importava o aspecto
espiritual, que vivia atrás de superar os seus próprios limites, que almejava um ideal que não
se limitava a glórias terrenas; uma figura cheia de qualidades morais, como coragem, bravura,
176
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, inclusão de alguém entre os deuses,
em função de suas qualidades, atributos; deificação, endeusamento.
212
lealdade e fidelidade, mas que também possuía defeitos; um ente com firmes propósitos,
incapaz de se desviar do caminho que desejava ou que devia trilhar; um ser ao qual agradava a
nobreza não de caráter, mas também aquela advinda das origens, da família; uma figura
cheia de força e de vitalidade, pronta a auxiliar os fracos, os oprimidos e as minorias; um ente
que buscava participar, geralmente acompanhado dos seus iguais, de aventuras impossíveis
aos homens comuns, como enfrentar seres mágicos e sobrenaturais, como deuses, feiticeiros,
gigantes; um ser que buscava enfrentar obstáculos, com vista a receber, ao fim de tudo, um
galardão, uma recompensa das divindades, e que respeitava os deuses, acima de tudo. Vale
salientar que o herói grego-latino que se movimenta nas epopéias da Antigüidade e nos mitos
das antigas Grécia e Roma nada mais é que uma projeção bastante exagerada do antigo
guerreiro greco-romano, como este capítulo pôde mostrar, em algumas ocasiões, quando
realizou o paralelo mito/Literatura-realidade/História. O que foi dito neste parágrafo acerca do
herói da Antigüidade clássica encontra apoio nas palavras de Brandão e de Brelich (in
Brandão). Este foi o imaginário do herói greco-romano por eles pintado:
Para o pesquisador italiano [Angelo Brelich] assim poderia ser descrita a
estrutura morfológica dos heróis: “virtualmente, todo herói é uma personagem, cuja
morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate,
com a agonística, a arte divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os
mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; o herói é, além
do mais, ancestral de grupos consangüíneos e representante prototípico de certas
atividades humanas fundamentais e primordiais. Todas essas características
demonstram sua natureza sobre-humana, enquanto, de outro lado, a personagem
pode aparecer como um ser monstruoso, como gigante ou anão, teriomorfo ou
andrógino, fálico, sexualmente anormal ou impotente, voltado para a violência
sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o sacrilégio e para a transgressão dos
limites e medidas que os deuses não permitem sejam ultrapassados pelos mortais. E,
embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que
marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início, é
ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a
superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em
razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está
condenado ao fracasso e a um fim trágico (BRANDÃO, 2007, vol. III, p. 19).
Não seria mais simples dizer que o herói, seja ele de procedência mítica ou histórica,
seja ele de ontem ou de hoje, é simplesmente um arquétipo, que “nasceu” para
suprir muitas de nossas deficiências psíquicas? De outra maneira, como se poderia
explicar a similitude estrutural de heróis de tantas culturas primitivas que,
comprovadamente, nenhum contato mútuo e direto mantiveram entre si? Da
Babilônia às tribos africanas; dos índios norte-americanos aos gregos; dos gauleses
213
aos incas peruanos, todos os heróis, descontados fatores locais, sociais e culturais,
têm o mesmo perfil e se encaixam num modelo exemplar (ibidem, p. 20).
Ora, atitudes tão antagônicas demandam forçosamente uma explicação, que não
parece muito difícil. Dotado de timé e areté, mais perto dos deuses que dos homens,
o herói está sempre numa situação limite e a areté, a excelência leva-o facilmente a
transgredir os limites impostos pelo métron, suscitando-lhe o orgulho desmedido e a
insolência (hýbris) (ibidem, p. 67).
Em muitos aspectos, como se verá no próximo capítulo desta dissertação, o imaginário
do cavaleiro medieval, a partir do que se pôde retirar das novelas de cavalaria portuguesas da
Baixa Idade Média, sobretudo d‟A Demanda do Santo Graal, assemelha-se ao do herói da
Antigüidade clássica, conforme foi exposto ao longo deste. E, como não poderia deixar de ser,
o que acontece no âmbito da Literatura também ocorreu no âmbito da realidade, com relação
aos guerreiros das duas épocas assinaladas: o modo de agir, de pensar e de sentir dos homens
que empunhavam as armas no Medievo aproximava-se imenso daquele dos que se dedicavam
às lutas, às batalhas, no universo greco-romano. Somente no que concerne ao caráter religioso
é que os comportamentos, os pensamentos e os sentimentos destes irão divergir dos daqueles;
ainda assim, muito pouco. Neste sentido, pode-se afirmar mesmo que o imaginário do
cavaleiro medieval, quer seja aquele que se movimenta nas narrativas cavaleirescas quer seja
o que viveu no mundo real, é um resíduo, conforme tratou deste termo o capítulo anterior, do
imaginário do herói mítico e do guerreiro da Antigüidade clássica. Exatamente por este
motivo é que se pode falar, num plano mais elevado, mais abstrato, na presença de uma
mentalidade heróica presente nos (ou comum aos) dois períodos históricos referidos. O
próximo capítulo irá tratar do imaginário do cavaleiro mediévico; antes, porém, dedicará
algumas páginas às relações intertextuais que as novelas de cavalaria portuguesas da Baixa
Idade Média estabeleceram com epopéias e com narrativas míticas da Antigüidade clássica,
uma vez que foram essas intertextualidades que chamaram a atenção para a residualidade
clássica do Medievo.
214
AS INTERTEXTUALIDADES E OS RESÍDUOS CLÁSSICOS D’A
DEMANDA DO SANTO GRAAL
Torna-se grego pela educação, a paidéia, e não pelo
nascimento.
Pierre Vidal-Naquet
177
Este capítulo, terceiro e último da dissertação, tratará, como foi dito na introdução e
nos capìtulos passados, das imagens do cavaleiro medieval (ou “do imaginário criado em
torno do cavaleiro mediévico”) que foram legadas à posteridade principalmente pela Baixa
Idade Média (séculos XI ao XV). O seu objetivo será o de mostrar, a partir de excertos das
novelas de cavalaria portuguesas do período histórico pouco assinalado A Demanda do
Santo Graal, principalmente, por ser o principal objeto de estudo da presente investigação,
mas também o Amadis de Gaula , que o imaginário do cavaleiro medievo apresenta-se
residual, se/quando comparado com aquele que foi criado em torno do herói da Antigüidade
clássica: acontece que, como se verá ao longo deste, não práticas guerreiras das antigas
Grécia e Roma chegaram à Idade Média como também o homem que empunhava a espada em
busca de glória, no Medievo, tinha como arquétipo, como modelo, aquele guerreiro greco-
romano que ele decerto conheceu por meio das histórias que lhe chegaram.
A recorrência, neste capítulo (como foi feito no anterior), a obras literárias, para a
constituição do corpus, deve-se ao fato de, como já foi dito, ser a Literatura uma das melhores
formas de conhecimento da realidade: “a literatura exagera a caracterìstica, ela não a
inventa
178
”, como disse Jean Flori. Também pensavam assim alguns dos participantes da
École des Annales, como se viu na parte do referencial teórico inteiramente dedicado às
idéias, às propostas dessa agremiação francesa para a construção de uma Nova História. Além
do mais, por se tratar de uma pesquisa realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Ceará UFC , as fontes não poderiam ser outras. Vale
177
VIDAL-NAQUET, op. cit., p. 37.
178
FLORI, op. cit., p. 102.
215
salientar que a edição d‟A Demanda do Santo Graal que será utilizada neste capítulo goza de
uma vantagem perante as demais: por se tratar de uma cópia portuguesa do original francês
pertencente à segunda prosificação do ciclo arturiano, ela traz em si elementos provenientes
das mais diversas culturas européias: da francesa, da britânica, da portuguesa; mas também da
greco-romana, da céltica (pagãs) e da cristã. Desse modo, ela se mostra apta a apresentar
excelentes imagens do cavaleiro europeu da Baixa Idade Média: por meio de sua hibridação
cultural, acaba por fazer uma síntese, uma abstração, das principais características desse
cavaleiro mediévico. a utilização do Amadis de Gaula
179
(novela que, em muitos de seus
episódios, baseou-se n‟A Demanda, apesar de não trazer, no seu bojo, o caráter
excessivamente religioso desta), neste capítulo, poderá ser justificada pelo fato de esta obra
apresentar algumas das características do cavaleiro medieval da Baixa Idade Média que não
aparecem nA Demanda do Santo Graal, bem como pelo fato de ela reforçar determinados
aspectos em torno desse cavaleiro que foram contemplados pela Demanda.
Ao longo deste capítulo serão ainda feitas referências a textos de grandes historiadores;
muitos deles, medievalistas: Jacques Le Goff, Michel Pastoureau, Jean Flori, Geneviève
d‟Haucourt, Michel Zink, Danielle Régnier-Bohler, Karen Ralls, Pier Campadello, Alain
Demurger, José Hermano Saraiva, Ivan Lins, Mário Curtis Giordani e Alfredo Paschoal. Tais
alusões servirão para confirmar ou para reforçar, a partir da História, as imagens (o
imaginário) do cavaleiro medieval (ou “as imagens que foram criadas em torno do cavaleiro
mediévico”) que o autor desta dissertação conseguiu extrair das novelas de cavalaria
portuguesas da Baixa Idade Média, já referidas; ou seja, a partir da Literatura.
Inevitáveis e constantes, também, serão as alusões, no decorrer de todo este, a passagens
do capítulo anterior, para mostrar como, de fato, o modo de agir, de pensar e de sentir do
cavaleiro medieval (tanto aquele que se movimenta nas novelas de cavalaria quanto o que
179
A edição do Amadis de Gaula que será utilizada neste capítulo foi elaborada por F. Costa Marques
(LOBEIRA, João. Amadis de Gaula / Notícia histórica e literária, selecção, tradução e argumento de F. Costa
Marques. 3. ed. Coimbra: Atlântida, 1972. Colecção Literária Atlântida).
216
realmente existiu) retomava (ou pretendia retomar) o do herói mítico (que pertenceu à ficção)
ou o do guerreiro da Antigüidade clássica (que habitou o mundo real). Noutras palavras, serão
apontados, nesta parte da dissertação, os resíduos clássicos das novelas de cavalaria
portuguesas da Baixa Idade Média (em especial os d‟A Demanda do Santo Graal), que, por
sua vez, servirão para comprovar o classicismo que sempre esteve presente no Medievo.
Conforme foi dito na introdução, este capítulo será dividido em duas partes: a primeira
(3.1 As intertextualidades que A Demanda do Santo Graal estabelece com obras literárias
da Antigüidade clássica) trará excertos d‟A Demanda (e alguns poucos do Amadis de Gaula)
que se remetem a obras literárias (mitos ou epopéias) das antigas Grécia e Roma (foram esses
trechos “clássicos” d‟A Demanda do Santo Graal e do Amadis que chamaram a atenção para a
residualidade clássica do Medievo); a segunda (3.2 O imaginário clássico-residual do
cavaleiro mediévico a partir do que se pode retirar dA Demanda do Santo Graal), as
passagens em que o cavaleiro medieval (o personagem das novelas de cavalaria e/ou o ser
histórico) age, pensa, ou sente como o herói greco-romano das epopéias e dos mitos antigos
ou como o real guerreiro da Antigüidade clássica. No primeiro subcapítulo, ficarão patentes as
idéias de Vítor Manuel de Aguiar e Silva quanto ao fenômeno da intertextualidade, já
apresentadas no capítulo um desta dissertação; no segundo, os pensamentos dos integrantes da
Escola dos Anais, de Raymond Williams e de Roberto Pontes quanto a imaginário, à
ideologia, à mentalidade, a residual, a dominante, a resíduo, à hibridação cultural e à
cristalização. Já ao longo do presente capítulo, perceber-se-á o trabalho com a “história
comparativa”, tão cara à Escola dos Annales, por meio da Literatura Comparada.
Por fim, deve-se dizer que, para a constituição do corpus em torno das
intertextualidades e dos resíduos clássicos d‟A Demanda do Santo Graal, foram utilizadas,
neste capítulo, as edições Magne de 1944 e 1955, a edição de Irene Freire Nunes de 2005 e a
edição Megale de 2008: a edição Magne de 1955 (primeiro tomo da segunda edição, pois o
217
segundo foi editado em 1970) foi utilizada por ser a mais completa (não traz os truncamentos
da edição de 1944, a primeira); o segundo volume da Magne de 1944 foi utilizado para
substituir a edição Magne de 1970 (o segundo tomo da segunda edição), uma vez que esta é
raríssima; a edição de Irene Freire Nunes, de 2005, foi utilizada para preencher as lacunas do
segundo volume da edição Magne de 1944, motivadas por convicções morais do padre; por
fim, a edição Megale de 2008 foi utilizada, sempre em nota de rodapé, para auxiliar na
compreensão dos textos de Magne e de Nunes, que estão em galego-português. A preferência
pelas edições Magne pode ser explicada pelo fato de terem sido, elas, as primeiras e as únicas
edições d‟A Demanda em galego-português produzidas no Brasil, e também as mais
tradicionais, sendo, inclusive, a segunda edição 1955-70 acompanhada do facsimile do
manuscrito medieval.
3.1 As intertextualidades que A Demanda do Santo Graal estabelece com obras literárias
da Antigüidade clássica
Se intertextualidade é o diálogo entre textos que se estabelece tanto no nível da
estrutura, da forma, da expressão, por meio das alusões que um escrito faz a outro, utilizando-
se de palavras, de expressões ou de frases pertencentes a este outro escrito, quanto no nível do
conteúdo, corroborando ou contestando aquilo que o outro escrito disse, conforme deixou
entrever, no seu livro Teoria da Literatura
180
, Vítor Manuel de Aguiar e Silva, então se deve
afirmar que não são muitas as intertextualidades que A Demanda do Santo Graal estabelece
com obras literárias da Antigüidade clássica. Porém, as poucas intertextualidades “clássicas”
que ela traz no seu bojo são suficientes para que um leitor mais atento comece a fazer
questionamentos quanto à presença e à importância de elementos greco-romanos no interior
das narrativas medievais e mesmo dentro do universo mediévico.
180
op. cit.
218
O primeiro intertexto “clássico” que se pode encontrar dentro d‟A Demanda é este:
E depós vésperas, quando começava anoitecer, aveeo que acharom uũ castelo em
chaão pequeno. E havia nome <<Castel Brut>>, por amor de Brutos, que o fezera. E
êste castelo sbulharom os de Tróia e o destroírom, quando os Troiaãos foram
deitados polos Gregos e quando foram deitados por Elena a mui fremosa
181
(MAGNE, 1955, p. 141).
Pode-se perceber, claramente, nessa passagem, alusões à guerra de Tróia, que foi
matéria (assunto) da Ilíada, da Odisséia e da Eneida, as três epopéias da Antigüidade clássica
às quais o capítulo passado fez alusão: o trecho fala da vitória dos gregos sobre os troianos,
após dez anos de intensas batalhas na planície de Ílion; da destruição da cidade de Príamo, por
parte dos argivos; e do resgate de Helena, a bela mulher de Menelau, causa “literária” de toda
a guerra, realizado pelos habitantes da Hélade. O excerto fala, ainda, da destruição do castelo
Brut pelos teucros, após estes terem sido derrotados pelos gregos na guerra de Tróia. Essa
passagem pode ser considerada um intertexto, tendo-se por base as idéias de Vítor Manuel de
Aguiar e Silva em torno do fenômeno da intertextualidade, pelo fato de ela fazer uma clara
alusão, por meio de seu conteúdo e de determinados vocábulos (“Tróia”, “Troiaãos”,
“Gregos”, “Elena”), à destruição de Tróia, episódio contemplado, sobretudo, pela Odisséia,
em sua narrativa. De acordo com a classificação proposta por Vítor Manuel de Aguiar e Silva,
esse trecho d‟A Demanda do Santo Graal, por estabelecer intertextualidade com os poemas
de Homero e Virgílio, nomeadamente com a Odisséia, deve ser tido como um intertexto
endoliterário, porque se realiza entre obras literárias; hetero-autoral, porque se tratam de
obras de autores distintos; explícito, porque fala da guerra de Tróia, de modo a citar,
exatamente, um momento, em especial, dessa guerra, que foi o da destruição de Ílion pelos
gregos; e corroborador, porque reafirma o que havia sido dito nos textos dos antigos
181
E depois de vésperas, quando começava a anoitecer, aconteceu que acharam um castelo num pequeno terreno.
E tinha nome castelo Brut, por causa de Brutos, que o fizera. E este castelo tomaram os de Tróia e o
destruíram, quando os troianos foram derrotados pelos gregos e vencidos por Helena, a mui formosa
(MEGALE, 2008, p. 110).
219
gregos e romanos sobre a destruição de Tróia, por parte dos argivos, e sobre as causas desta
destruição.
Já o outro intertexto “clássico” d‟A Demanda do Santo Graal é este:
Sabede que o castelo estava em ũa grã montanha e era tam forte que rem nom timia.
Aquêle castelo fezera Galmanasar, uũ parente de Prìamos, rei de Tróia. Aquêle
Galmanasar era boõ cavaleiro de armas, e houve seus filhos boõs cavaleiros, que
teverom a terra depós êle tam em paz, que hom houverom vezinho que os ousasse
guerrear. Aquela terra teve sa linhagem de uũ heree em outro, atá que veerom
cristaãos. E nunca rei Mordraim nem Nasciam, quando veerom aa Grã-Bretanha,
nom lhis poderom nuzir, nem Joseph Abaramatia, nem Josefes seu filho nom nos
poderom tornar cristaãos, nem Santo Agosto, que aquela saçom foi em Inglaterra;
ante lhi fezerom i muito scarnho. Unde aveo que porque achou i os mais felões
homens que nunca achou, pôs o nome ao castelo “felom”, que nunca pois perdeu seu
nome. Assi viverom pagãos em êste castelo felom, u tôda a outra terra do reino de
Logres era tomada aa fé de Cristo
182
(MAGNE, 1944, vol. II, p. 188).
Nessa passagem, a narrativa dA Demanda faz uma alusão ao paganismo da
Antigüidade clássica a partir da figura de Príamo, rei de Tróia, de quem Galmanasar, rei do
castelo Felão, era parente. A partir desse trecho, pode-se depreender, ainda, que as origens do
paganismo da Idade Média devem ser buscadas mesmo na Antigüidade greco-romana. Esse
excerto d‟A Demanda do Santo Graal decerto realiza uma intertextualidade com obras da
Antigüidade clássica; nomeadamente, com aquelas em que aparece o rei Príamo e que, sem
dúvida nenhuma, tratam da guerra de Tróia (Ilíada, Odisséia, Eneida). Entretanto, a breve
referência à figura de Príamo não permite divisar com qual obra da Antigüidade greco-
romana, em especial, a Demanda estabelece essa intertextualidade. De qualquer forma, à luz
de Vìtor Manuel de Aguiar e Silva, essa passagem d‟A Demanda do Santo Graal deve ser tida
como um intertexto endoliterário; hetero-autoral; implícito, devido ao fato de não se saber
182
Sabei que este castelo ficava numa grande montanha e era tão forte que nada temia. Aquele castelo fizera
Galmanasar, parente de Príamo, rei de Tróia. Aquele Galmanasar era bom cavaleiro de armas e teve seus filhos
bons cavaleiros, que tiveram a terra depois dele tão em paz que não tiveram vizinho que os ousasse guerrear.
Aquela terra teve sua linhagem de um herdeiro em outro, até que vieram os cristãos. E nunca rei Mordraim
nem Nascião, quando chegaram à Grã-Bretanha, não lhes puderam prejudicar, nem Jode Arimatéia, nem
Josefes, seu filho, não os puderam tornar cristãos, nem Santo Agostinho, que naquela ocasião esteve na
Inglaterra; antes lhes fizeram muito escárnio. De onde aconteceu que, porque achou os mais felões homens
do mundo, pôs nome ao castelo Felão, que nunca depois perdeu seu nome. Deste modo viveram pagãos neste
castelo Felão, onde toda outra terra do reino de Logres estava convertida à de Cristo (MEGALE, 2008, pp.
470-471).
220
exatamente com qual obra da Antigüidade clássica a Demanda estabelece essa
intertextualidade, dada a vagueza com que ela fez essa referência a Príamo; e corroborador,
porque reafirma o paganismo da cultura greco-romana, a partir da personagem troiana.
Também o Amadis de Gaula realiza uma intertextualidade com uma obra da
Antigüidade greco-latina. É o que se pode perceber a partir do seguinte trecho:
Desde que me não tornastes a ver, meus bons Senhores, por muitas terras estranhas
tenho andado e grandes aventuras hão passado por mim, que largas seriam de contar;
mas as que mais me ocuparam e maiores perigos me trouxeram foram as de socorrer
donas e donzelas, em mais injustiças e agravos que lhes faziam. Porque, assim como
estas nasceram para obedecer, com fracos ânimos, e suas mais fortes armas são
lágrimas e suspiros, assim os de forte coração devem tomar para si, de modo
particular, a sua defesa, amparando-as, defendendo-as daqueles que com pouca
virtude as maltratam e desonram, tal como os Gregos e os Romanos fizeram em
tempos antigos, passando os mares, destruindo terras, vencendo batalhas, matando
reis e desterrando-os dos seus reinos, só para vingar as violências e injúrias que lhes
eram feitas, a elas; por isso deles ficou tanta fama e glória nas suas histórias, e
ficará, enquanto o mundo for mundo. Mas o que em nossos tempos se passa, quem
melhor do que vós o sabe, meus bons Senhores, que sois testemunhas de quanta
afronta e perigos passais todos os dias, por essa mesma razão? (LOBEIRA, 1972, p.
94).
Esse excerto do Amadis de Gaula realiza uma clara intertextualidade (também) com a
Ilíada, pois resume, em poucas palavras, essa epopéia de Homero: fala de “Gregos” que
passaram “os mares”, destruìram “terras”, venceram “batalhas”, mataram “reis” e os
desterraram “dos seus reinos, para vingar as violências e injúrias” que foram feitas a
mulheres (no caso da Ilíada, que foram feitas à Helena, devido ao seu rapto por Páris).
Saliente-se, nessa passagem do Amadis, a fala do protagonista, exortando os seus a agirem
como os antigos gregos e romanos, na defesa das mulheres; noutras palavras, a terem os
antigos como modelo, como arquétipo. Esse trecho do Amadis de Gaula pode ser tido como
um intertexto endoliterário, hetero-autoral, explícito e corroborador.
Além dos trechos que estabelecem relações intertextuais com obras literárias das antigas
Grécia e Roma, A Demanda do Santo Graal e o Amadis trazem excertos de “sabor” clássico,
como bem a estes se referiu F. Costa Marques, ao tratar da passagem do Amadis de Gaula que
221
fala do nascimento do filho que o protagonista desta novela teve com sua amada, Oriana. Esse
trecho em muitos aspectos faz lembrar o nascimento de Rômulo e Remo; contudo, como não
nenhum indício vocabular, frasal ou textual capaz de assegurar a relação intertextual entre
esse excerto do Amadis e o mito romano, Costa Marques preferiu se referir a ele como um
trecho de “sabor” clássico. Eis o trecho do Amadis de Gaula que trata do nascimento de
Esplandião, o filho de Oriana com Amadis:
Entretanto, meses após a sua partida, Oriana tem um filho de Amadis. Mas, no dia
em que o envia a criar longe de si, uma leoa arrebata a criança, que amamenta e que
deixa depois ao eremita Nasciano. Este -o a sua irmã e cunhado, para o criarem;
antes, porém, baptiza-o e, vendo-lhe uma palavra escrita em letras brancas sobre a
pele, põe-lhe o nome de Esplandião. A criança vem depois viver com Nasciano, mas
um dia o rei Lisuarte, viajando com os seus cavaleiros e com a rainha e suas donas,
encontra o moço Esplandião, acompanhado da leoa (LOBEIRA, 1972, pp. 87-88).
Um dos excertos de “sabor” clássico d‟A Demanda é este:
Depós êsto, nom tardou muito que veeo o padre de Dalides, mas nom trazia armas,
senam ũa spada. E quando viu o filho morto, disse:
Ai, mizquinho! Morto soom! Morto é o meu filho.
Entam se leixou cair do cavalo em terra, e jouve esmorido ũa gram peça. E quando o
outro cavaleiro o viu assi jazer, tolheu seu elmo e esforçou-o o mais que pôde. E
quando o homem boõ acordou e viu seu filho morto ante si e a spada metuda em êle,
disse:
Ai, filho! Que é êsto, Senhor, que vejo?
E foi-o logo beijar, assi coberto de sangue como jazia, e disse:
Filho, par Deus, mal vos guardei. Filho, vos érades boõ cavaleiro; filho mui
fremoso, filho mui bem talhado, filho ardido, filho esforçado, vós sodes morto por
minha culpa, ca se vos eu nom outorgasse hoje manhaã o que me pedistes, ainda
agora fôrades || vivo e saão; e esta terra valerá menos per vossa morte e tornará ela a
coita e a pobreza, ca nom haverá quem na defenda nem na mantenha em paz. Certas,
filho e amigo, se eu mais vivo depós vós, minha alegria seerá em lágrimas e em
coita, ca de veer alegria soom desesperado, pois vós morto soodes; e se ende al
fezesse, todo o mundo me devia a querer mal e apedrar-me porende; e porende val
mais, ai filho Senhor, que eu moira logo após vós, que viver longamente, ca a vida
me será nojo e trabalho, e morte me será folgança e conforto. De-mais, filho, se eu
agora morresse, nom poderia seer que a minha alma nom fôsse com a vossa ao
paraíso ou ao inferno.
[...]
Então filhou o padre a sua spada e meteu-a per si e caiu logo morto a-cabo de seu
filho
183
(MAGNE, 1955, p. 103).
183
Depois disso, não tardou muito que veio o pai de Dalides, mas não trazia armas, a não ser uma espada. E
quando viu o filho morto, disse:
Ai, mesquinho. Morto estou! Morto está o meu filho!
222
Nessa passagem, o pai de Dalides lamenta o suicídio do filho; mais que isso: culpa-se
por Dalides tê-lo realizado. Desesperado pela dor resultante da perda de quem mais amava e
por sentir-se responsável por esse trágico acontecimento, o pai de Dalides também se suicida,
unindo-se ao filho na hora da morte, com a esperança de encontrá-lo, depois, no Céu ou no
Inferno. Esse trecho d‟A Demanda do Santo Graal em muitos aspectos se parece com um
excerto do mito “Piramo e Tisbe”, presente em Metamorfoses
184
, de Ovídio. Nesse mito,
Piramo mata-se com sua própria espada, por julgar morta Tisbe, a pessoa no mundo que mais
amava. Esta, aparecendo em seguida, logo após o suicídio do amante, julga-se culpada da
morte dele e, por amor, mata-se com a mesma espada, esperando ser enterrada juntamente
com o amado, para permanecer eternamente ao seu lado. Eis a passagem de “Piramo e Tisbe”
a que foi feita referência:
“Tisbe saiu do seu esconderijo,
Ainda assustada e um pouco temerosa, também,
De desapontar seu amor. Olhava atenta à sua volta
Não apenas com seus olhos, mas com seu coração,
Ansiosa para contar a ele sobre aquele terrível perigo,
E sobre sua fuga. Reconheceu
O local, a silhueta da árvore, mas havia algo
De estranho ou diferente na cor das frutinhas.
Seria aquele mesmo o lugar? Olhou para o chão e viu alguma coisa
caída, um leve estremecimento. Deu um passo para trás,
Mais pálida do que a neve, tremendo, como quando a água
Então se deixou cair do cavalo em terra e ficou desamaiado muito tempo. E quando o outro cavaleiro o viu assim
ficar, tirou seu elmo e animou-o mais que pôde. E quando o homem bom acordou e viu seu filho morto diante de
si e a espada enfiada nele, disse:
Ai, filho! Que é isto, senhor, que vejo?
E foi logo beijá-lo coberto de sangue como estava e disse:
Filho, por Deus, mal vos guardei. Filho, vós éreis bom cavaleiro; filho muito formoso, filho muito bem-feito,
filho ousado, filho esforçado, vós estais morto por minha culpa, porque, se vos eu não outorgasse, hoje de
manhã, o que me pedistes, ainda agora estaríeis vivo e são. E esta terra valerá menos por vossa morte e se
reduzirá à dor e à pobreza, porque não terá quem a defenda, nem a mantenha em paz. Certamente, filho e amigo,
se eu viver mais depois de vós, minha vida será em lágrimas e em sofrimento, porque de ver alegria estou
desesperado, pois estais morto; e se outra coisa fizesse, todo o mundo me devia querer mal e apedrejar-me por
isso; e por isso vale mais, ai, filho, que eu morra logo depois de vós, do que viver longamente, porque a vida me
será nojo e trabalho e a morte me será descanso e conforto. Além do mais, filho, se eu agora morresse, não
poderia ser que minha alma não fosse com a vossa ao paraíso ou ao inferno.
[...]
Então pegou o pai sua espada e meteu-a em si e caiu logo morto ao lado de seu filho (MEGALE, 2008, pp. 89-
90).
184
op. cit.
223
Se agita quando uma brisa toca a sua superfície.
Não demorou muito para que reconhecesse seu amado.
Desesperada, arrancou os cabelos, golpeou seu peito inocente
Com seus punhos delicados, e abraçou o corpo tão amado,
Enchendo de lágrimas seus ferimentos, e beijou-lhe os lábios
Mortalmente gélidos. „Ó meu Piramo‟,
Soluçou, „que sina maldosa o tira de mim?
Piramo, responda! É sua amada Tisbe
Quem está chamando. Piramo, escute! Levante sua cabeça!‟
Ao ouvir o nome de Tisbe, o rapaz levantou
Os olhos com o peso da morte sobre eles,
Olhou para o rosto dela e cerrou-os por fim.”
“Tisbe
Viu seu véu ao lado dele, e a bainha de marfim
Sem a espada dentro, e então compreendeu. „Pobre rapaz‟,
Disse ela, „Então foi sua própria mão,
Meu amor, que lhe tirou a vida. Eu também
Tenho uma mão corajosa, eu também
Tenho amor suficiente, e ele me dará forças
Para o último ferimento. Eu o seguirei na morte,
Eu, a causa e sua companheira de morte.
A morte era a única coisa que poderia afastá-lo de mim,
Mas a morte não conseguirá nos separar. Desventurados pais
De Piramo e Tisbe, ouçam-nos,
Ouçam as nossas preces, não nos concedam de má vontade,
A nós que estamos juntos na morte, o direito de ficarmos deitados
finalmente juntos.
Na mesma tumba. E você, ó árvore, agora sombreando
O corpo de um, e muito em breve sombreando
O corpo de dois, guarde sempre na lembrança
O sinal de nossa morte, a escura e pesarosa cor de nosso sangue‟.
Ela apontou a espada para o peito,
Jogou-se em cima de sua lâmina, ainda quente e marcada
Pelo sangue de seu amor.
(OVÍDIO, 2003, pp. 76-77)
Conforme foi dito, o fato de não haver, no plano da forma, da estrutura, nenhum
vocábulo, nenhuma frase; enfim, nada capaz de ligar, com segurança, a passagem d‟A
Demanda referente à morte de Dalides e à de seu pai a esse trecho do mito “Piramo e Tisbe”,
de Metamorfoses, faz com que o emprego do termo intertextualidade seja inapropriado para
se referir a essa proximidade que aqui foi estabelecida entre o excerto deste mito e a passagem
daquela novela.
Eis mais um trecho de “sabor” clássico d‟A Demanda do Santo Graal:
Esta visam viu Galvam, mas Estor viu outra mui maravilhosa e dessemelhada desta,
ca lhe semelhava que êste e seu irmaão Lançarot deciam de ũa cadeira e sobiam
sôbre dous cavalos grandes, e dizia uũ ao outro:
Vaamos buscar o que nom poderemos achar [cá].
224
E assi andarom per muitas jornadas, tanto, atee que Lançarot caía do cavalo e
derribava-o uũ asno, e espia-o da roupa e de quanto lhe achava. E depois [que] sobia
no asno, andava assi longo tempo, ataa que chegava a ũa fonte, a mais fremosa e a
mais saborosa que nunca vira, e decia i por bever. | e u queria bever, fugia-lhe a
água. E quando via que lhe fugia, tornava-se pera donde viera
185
(MAGNE, 1955, p.
207).
Esse excerto em torno do personagem Lancelote lembra imenso uma parte da história de
Tântalo, como se pode ver a partir da seguinte passagem, retirada d‟O Livro de Ouro da
Mitologia
186
, de Thomas Bulfinch:
Tântalo, de dentro de uma lagoa, com o queixo ao nível da água, sentia, no
entanto, uma sede devoradora, e não encontrava meios de saciá-la, pois, quando
abaixava a cabeça, a água fugia, deixando o terreno sob os seus pés inteiramente
seco. Frondosas árvores carregadas de frutos, peras, romãs, maças e apetitosos figos
abaixavam seus galhos, mas, quando ele tentava agarrá-los, o vento empurrava os
galhos para fora de seu alcance (BULFINCH, 2002, p. 321).
Esse personagem mitológico foi condenado a sofrer horrores, no mundo dos mortos, por
ter ousado testar a sabedoria dos deuses. Lancelote, no sonho de Heitor, também estava sendo
impedido de saciar a sede por castigo divino: não por ter tentado, à semelhança de Tântalo,
testar a onisciência de Deus, mas por não ter seguido os ensinamentos deste. Todavia, essa
semelhança entre o trecho da Demanda em torno do sonho de Heitor e o excerto da história de
Tântalo pouco apresentado não são suficientes para que se possa dizer que houve uma
relação intertextual entre as duas passagens, pelos motivos que foram apresentados neste
subcapítulo.
Outro trecho de “sabor” clássico d‟A Demanda do Santo Graal:
185
Esta visão viu Galvão, mas Heitor viu outra muito maravilhosa e diferente desta, porque lhe parecia que ele e
seu irmão Lancelote desciam de uma cadeira e subiam sobre dois cavalos grandes, e dizia um ao outro:
Vamos buscar o que não poderemos achar aqui.
E assim andaram por muitos dias, tanto, até que Lancelote caiu do cavalo e derribava-o um homem, que depois o
fazia subir em um asno e despia-o da roupa e de quanto lhe achava. E depois que subiu no asno, andava assim
longo tempo, até que chegava a uma fonte, a mais formosa e a mais saborosa que nunca vira, e descia para beber,
e quando queria beber, fugia-lhe a água. E quando via que lhe fugia, voltava-se para onde viera (MEGALE,
2008, p. 152).
186
op. cit.
225
Entam deitou o elmo alonge e deitou-se em cruz. E Lionel, que stava com gram
sanha fera, feri-o, dizendo [êle] esta parávoa, tam rijamente, que o matou. Em êsto
aveo milagre mui fremoso, assi como a estória verdadeiramente o divisa, nem
nós nom no leixaremos a contar. O milagre foi tal. Quando Lionel o chagou na
cabeça, [polo] sangue, que houvera | de sair da chaga, que era mui grande, saiu leite
tam branco, como a neve, e saiu ende tanto como a meiadade de barril, e foi
verdade que lhe do corpo saiu. E daquel sangue, que tam branco era, onde a terra
nom pôde seer bem limpa, aveo que saìram ende flores ante que passasse meo
ano depós sua morte, e ainda em aquel tempo cada ano flores que daquelas
saíram, e todo o veraão as poderá [homem] achar, e ham nome aquelas flores
<<calogres>>, e prestam ainda ora a quem se vai o sangue, que lho stancam; mas
bêsta que as come, logo morre. Assi como vos eu conto morreu Calogrenant, e aveo
ende tam fremoso milagre, como vos eu diviso, e u foi soterrado, houve home <<a
ermida de Calogrenant>>, e nunca se lhe cambou seu nome
187
(MAGNE, 1955, p.
257).
É impossível ler esse excerto em torno da morte de Calogrenante sem que se lembre,
imediatamente, do mito “Apolo e Jacinto”, presente em Metamorfoses, de Ovídio. Após um
acidente com um disco atirado pelo deus Apolo, Jacinto morre com um sangramento na testa.
Do sangue do efebo, por vontade divina, logo surge uma flor, que passa a ter o nome de
Jacinto, como forma de homenagear o morto por toda a eternidade. Eis a passagem do mito
que prova o que acabou de ser falado:
Era meio-dia, um dia: Apolo e Jacinto
Despiram-se, esfregaram-se com óleo, e foram treinar
Lançamento de disco. Apolo lançou seu míssil
Pelo ar tão longe que ele furou as nuvens,
E demorou um longo tempo para cair. Quando o fez
Provou que o atirador tinha força e perícia. Jacinto,
Ansioso para que chegasse sua vez, indiferente ao perigo,
Saiu correndo para pegá-lo, antes que caísse
Sobre a terra. Mas o disco ricocheteou e o atingiu
Em cheio no rosto. Ele ficou mortalmente pálido,
Como também pálido estava o deus
que correu para acudir o corpo atropelado.
Apolo tentou reverter o resfriamento mortal que o acometia,
Tentou estancar o sangue que jorrava do ferimento,
manter o espírito no corpo
187
Então deitou-se em cruz. E Leonel, que estava com grande fúria feroz, feriu-o dizendo ele essa palavra
tão rijamente que o matou. Nisto aconteceu um milagre muito formoso como a estória verdadeiramente o revela,
e não deixaremos de contar. O milagre foi este. Quando Leonel o feriu na cabeça, no lugar do sangue que tinha
de sair pela ferida que era muito grande, saiu leite tão branco como a neve, e saía tanto como a metade de um
barril, e foi verdade que lhe saiu do corpo. E daquele sangue que era tão branco, do qual a terra não pôde ser bem
limpa, aconteceu que saíram flores, antes que passasse um meio ano depois de sua morte e ainda, naquela época,
cada ano flores que daquelas saíram e todo o verão as poderá alguém achar, e têm nome aquelas flores
calogres, e servem ainda agora para quem perde o sangue, que o estancam, mas animal que as come logo morre.
Assim como vos conto, morreu Calogrenante, e aconteceu tão formoso milagre, como vos relato. E aquela
ermida, perto da qual ele morreu, e onde foi enterrado, teve nome a Ermida de Calogrenante, e nunca se lhes
trocou o seu nome (MEGALE, 2008, p. 184).
226
Com suas ervas curativas, mas todas as suas iniciativas não
surtiram efeito,
O ferimento estava além de qualquer cura.
[...]
„Tombado antes de chegar o seu tempo, ó Jacinto‟,
Apolo exclamou, „vejo seu ferimento, meu crime:
Você é minha tristeza, minha acusação; minha mão
Foi seu algoz. [...]
Você estará
Comigo para sempre, e minhas canções e música
Falarão de você, e você reviverá
Como uma nova flor, cujas pétalas representarão
Meus gritos de dor, e chegará um tempo
Em que o nome de um grande herói será o mesmo
Destas flores‟. Assim falou Apolo,
E era verdade o que ele disse, porque no chão,
O sangue não era mais sangue; no lugar dele
Cresceu uma flor, mais brilhante do que qualquer outra,
Como se fosse um lírio prateado pintado de vermelho.
Apolo tingiu suas pétalas
De forma que elas ficassem marcadas com sinais
Que pareciam as letras da palavra grega para Tristeza!
Em Esparta,
Até os dias de hoje essas flores cobrem seus filhos de honras
E, num determinado dia, o povo celebra
Rituais para Jacinto, como faziam os antigos.
(OVÍDIO, 2003, pp. 205-206, passim)
Também pelas razões que foram expostas não se pode falar em intertextualidade
entre o trecho referente à morte de Calogrenante e o excerto em torno da morte de Jacinto.
Ao cabo deste subcapítulo pode-se mesmo afirmar que poucas são as passagens d‟A
Demanda e do Amadis que realizam uma intertextualidade, da forma como tratou deste
fenômeno Vítor Manuel de Aguiar e Silva, com obras literárias da Antigüidade clássica, bem
como os trechos dessas novelas que possuem um “sabor” clássico. Porém, esse fato, de per si,
nem de longe é capaz de negar a existência de resíduos clássicos no Medievo e, em particular,
nas novelas de cavalaria. Tal classicismo, como se verá no próximo subcapítulo, subsistiu, na
Idade Média, também (e principalmente) nos modos de agir, de pensar e de sentir do cavaleiro
mediévico, pois este se comportava, pensava e sentia, praticamente a todo momento, como o
herói mítico das antigas Grécia e Roma e/ou como o guerreiro da Antigüidade greco-latina.
227
3.2 O imaginário clássico-residual do cavaleiro mediévico a partir do que se pode retirar
d’A Demanda do Santo Graal
Como foi dito na introdução desta dissertação e mesmo no início do presente
capítulo, este subcapítulo terá por objetivo (re)construir o imaginário do cavaleiro medieval
da Baixa Idade Média com base nas narrativas das novelas de cavalaria portuguesas do
período assinalado; sobretudo a partir do texto d‟A Demanda do Santo Graal, principal objeto
de estudo desta investigação. Vale salientar que as informações obtidas a partir da Literatura
serão sempre cotejadas com aquelas que se encontram nos livros de caráter historiográfico,
para que não seja tido como verdadeiro algo que existiu mesmo no plano da ficção. Esse
casamento da Literatura com a História, de acordo com Michel Pastoureau, faz-se mesmo
importante para todo aquele que deseja chegar à verdade dos fatos, porque, sozinha, a
Literatura pode passar uma imagem distorcida da realidade; no caso do presente estudo, da
Cavalaria, do cavaleiro medieval:
A cavalaria é sobretudo uma maneira de viver. Requer uma preparação especial,
uma sagração solene e atividades que o podem se confundir com as do homem
comum. As literaturas épica e cortês nos dão imagens detalhadas dessa vida, mas
provavelmente um tanto distorcidas em função de seu caráter ideologicamente
passadista. É preciso cotejá-las com outras fontes, narrativas, textos diplomáticos e
os achados arqueológicos (PASTOUREAU, 1989, p. 44).
Como se verá nas próximas páginas, sem que para isso seja necessário ir até o fim deste
subcapítulo, o imaginário do cavaleiro mediévico logo se mostrará residual, em relação
àquele criado em torno do herói mítico da Antigüidade clássica e do guerreiro das antigas
Grécia e Roma.
228
a partir da definição do termo cavaleiro pode-se perceber a proximidade deste com
relação ao herói da Antigüidade. De acordo com Jean Flori, em A Cavalaria: a Origem dos
Nobres Guerreiros da Idade Média
188
,
A palavra cavaleiro nas línguas vernáculas do século XII evoca antes de tudo o
guerreiro e não sugere de modo algum um nível social elevado. O alemão antigo
Ritter ilustra esse propósito; ele está, como sabemos, na origem do francês reître
(cavaleiro alemão) e não passa uma imagem muito brilhante dos primeiros
cavaleiros. O mesmo ocorre na Inglaterra, onde a palavra knight atual, com
ressonância aristocrática, deriva do anglo-saxão cniht, que designava um servidor, às
vezes armado, mas nem sempre mais próximo em todo caso do criado da estrebaria
que do nobre. Em provençal, em espanhol e no francês antigo, o cavalo é tomado
como referência semântica: cavaleiro se aplica ao guerreiro, mas somente ao
combatente de elite a cavalo, provido de um conjunto de armas características. A
palavra não evoca de início nenhuma conotação, senão a do serviço armado. Um
senhor fala de “seus cavaleiros” como de dependentes que lhe devem obediência a
serviço. A palavra assume, todavia, ao longo do século XII, colorações novas de
caráter honorífico, às vezes ético, particularmente perto do final do século (FLORI,
2005, pp. 22-23).
Como indicam os próprios termos que a designam em latim, a noção de cavalaria
remete antes de tudo à idéia de serviço. Militar, como vimos, é primeiramente
servir, inicialmente por meio das armas, mesmo se está agregada a esse termo uma
noção geral de serviço público. [...] Militia é inicialmente o serviço militar, o
exército, o conjunto de soldados, depois os guerreiros a cavalo, enfim, a cavalaria no
sentido em que a entendemos em geral, um tipo de entidade socioprofissional
guerreira e honrosa, de caráter institucional, que tem seus ritos, seus costumes, sua
moral própria, investida de uma função e até de uma missão. Em toda parte, sempre,
o serviço por meio das armas permanece, portanto, central. É a própria essência da
cavalaria (ibidem, pp. 51-22, passim).
Excetuando-se das conceituações de cavaleiro dadas por Flori o cavalo, enquanto
“instrumento” de trabalho do cavaleiro, permanecem, em torno do vocábulo em questão, as
idéias de guerreiro e de serviço (no sentido de presteza) por meio de armas. Tais concepções
também estão presentes no termo herói, conforme falou sobre este, inclusive
etimologicamente, no capítulo passado, Junito de Souza Brandão: donde herói seria o
guardião, o defensor, o que nasceu para servir
189
.
Essas definições de cavaleiro e herói, de per si, dizem muito acerca da proximidade
existente entre os heróis/os guerreiros antigos e os mediévicos, mas não dizem tudo. Faz-se
necessário, então, para que se possa mostrar os resíduos clássicos do cavaleiro medieval, por
188
op. cit.
189
BRANDÃO, op. cit. p. 15.
229
meio do imaginário que em torno dele se criou, na Idade Média, e do qual a Literatura é capaz
de falar, por ser também fonte histórica, realizar uma trajetória da vida do cavaleiro
mediévico, falando de acontecimentos relacionados ao seu nascimento e à sua morte,
passando, evidentemente, por fatos relacionados à sua infância, à sua adolescência e à sua
maturidade. Esse percurso a ser realizado visa mostrar, passo a passo, como os modos de agir,
de pensar e de sentir do cavaleiro medievo aproximavam-se dos modos de se comportar, de
raciocinar e de sentir do herói mítico grego-romano e do guerreiro da Antigüidade clássica.
Para começar, deve-se dizer que A Demanda do Santo Graal não nenhum
testemunho, a partir de suas personagens, do nascimento e da infância dos cavaleiros
medievais. Para se saber algo nesse sentido faz-se mister recorrer ao Amadis de Gaula. De
acordo com esta novela, os cavaleiros medievais, como poderia acontecer aos heróis da
Antigüidade clássica, conforme mostrou o capítulo anterior, poderiam estar sujeitos, logo
após o nascimento, ao abandono. Os principais motivos que levavam à exposição do cavaleiro
eram também as mesmas razões que levavam o herói mítico ou o guerreiro greco-romano a
ser exposto: (i) ser fruto de uma relação não oficializada aos olhos da sociedade ou (ii) ser
filho ilegítimo ou bastardo. No Amadis, podem ser encontrados dois exemplos de exposição:
o primeiro, relativo ao próprio Amadis, que teve de ser abandonado pela mãe, Elisena, por ter
nascido de uma relação não oficializada pela Igreja; o segundo, a Esplandião, filho de Amadis
com Oriana, pelo mesmo motivo
190
. Como o subcapítulo passado aludiu à exposição deste,
ao tratar dos excertos de “sabor” clássico das novelas de cavalaria portuguesas da Baixa Idade
Média, então seapresentado, a seguir, a tulo de exemplo, apenas o trecho que trata do
abandono de Amadis de Gaula por sua mãe. Como se verá, a imagem da exposição de Amadis
em muito se parece com a de Perseu, o herói mítico:
190
Amadis e Oriana haviam realizado um casamento clandestino.
230
Um dia, o rei Periom de Gaula hospedou-se em casa de Garinter, rei da Pequena
Bretanha. Tinha este uma filha de nome Elisena, por quem Periom se apaixonou
subitamente; e do mesmo modo também ela, que até vivera exclusivamente para
os seus deveres religiosos, se sentiu inflamada de irreprimível paixão. Dos seus
escondidos amores, mais tarde legitimados pelo casamento, nasceu Amadis, que
Darioleta, uma donzela de Elisena, pôs a vogar logo após o nascimento, numa arca
bem calafetada, que foi ter ao mar. Dentro dela ia também a espada, sem bainha, que
Periom deixara em casa de Elisena, um anel que dera a esta, semelhante a outro seu
que trazia, e um pergaminho coberto de cera, em que Darioleta havia escrito:
<<Este é Amadis Sem-Tempo, filho de rei>>. Por sorte, foi a arca avistada pelo batel
de um cavaleiro escocês, Gandales, que recolheu Amadis e o deu a sua mulher, para
o criar juntamente com seu filho Gandalim; esta lhe pôs o nome de Donzel do Mar
(LOBEIRA, 1972, p. 29).
Adiante, também se verá, n‟A Demanda do Santo Graal, mais um exemplo de
exposição; contudo, por se tratar apenas de uma alusão rápida a esse fenômeno, o excerto foi
melhor aproveitado para exemplificar a origem nobre da cavalaria.
No que concerne à infância, a imagem pintada pelo Amadis de Gaula é a do menino
iniciado, desde cedo, nas artes da guerra: a partir dos cinco anos, manejando o arco. O
Amadis também deixa entrever uma criança corajosa, aos sete anos de vida; com senso de
justiça e disposta a sair em socorro dos seus, caso seja necessário:
daí em diante, cuidou dele com mais amor, até que atingiu a idade de cinco anos.
Então, fez-lhe um arco à sua medida e outro a seu filho Gandalim, e fazia-o atirar
diante de si. Assim o foi criando até a idade dos sete anos. [...]
Ora, estando todos a olhá-lo como cousa muito estranha e crescida em formosura, o
donzel teve sede e, pondo o arco e as setas no chão, foi a um cano de água beber.
Um donzel mais crescido que os outros roubou-lhe o arco e quis atirar com ele; mas
Gandalim não o consentiu, e o outro empurrou-o rudemente. Gandalim gritou:
<<Acode-me, Donzel do Mar!>>; este, ouvindo-o, deixou de beber e foi-se contra o
grão donzel, que lhe tornou o arco. Tomando-o nas mãos, disse-lhe: <<Em má hora
feriste meu irmão>>; e, dando-lhe com ele um grande golpe na cabeça, com a maior
força que podia, ambos se pegaram a combater. O grão donzel, já sem defesa,
começou a fugir e foi de encontro ao aio que os guardava, que lhe perguntou:
Que tens tu?
Foi o Donzel do Mar que me feriu.
Então foi-se a ele com uma correia e disse-lhe:
Como, Donzel do Mar, já tendes a ousadia de maltratar os moços? Pois ides ver
como vos castigarei por isso.
Ele pôs-se de joelhos perante o aio e disse-lhe:
Senhor, mais quero que me castigueis do que ver alguém que, diante de mim, ouse
fazer mal a meu irmão (LOBEIRA, 1972, pp. 33-35, passim).
Essa imagem trazida pelo Amadis condiz com o que acontecia no mundo real. De
acordo com Geneviève d‟Haucourt, era mesmo por volta dos sete anos de idade que o menino
231
medievo começava a manejar as armas. O treinamento militar tornava-se mais intenso a partir
dos dez anos:
Por volta dos sete anos, o menino começava os estudos sistemáticos com professores
formados. O capelão de seus pais ou um pedagogo profissional ensinava-lhe a ler.
(No século XIII, a maioria das pessoas importantes lia suas Horas). Além disso,
tinha mestres de equitação e de esgrima para que adquirissem fôlego. A partir dos
dez anos, ele começava o preparo militar que seria a ocupação de toda a sua vida:
aprendia a cavalgar, a amestrar pássaros, cães e cavalos, a lutar com um manequim
(o estafermo), a manejar armas pesadas, a fortalecer o corpo. No que se refere aos
talentos de sociedade, aprendia a cortar carnes com asseio e a jogar uma espécie de
gamão e xadrez (D‟HAUCOURT, 1994, p. 89).
Esse preparo para a batalha, para a guerra, a partir da infância, aproxima-se daquilo
que era realizado na Grécia antiga com relação às crianças. Como disse Cambiano, na
Antigüidade Os recém-nascidos eram imediatamente postos à prova e temperados pelas
amas(1993, p. 85). Também bastante cedo, os meninos gregos deixavam a casa dos pais e
iam viver junto a homens que iriam ensiná-los não a batalhar, a guerrear, mas também a
montar, a caçar, a falar bem em público e a tocar instrumentos musicais. Estes homens eram
os mestres de armas. Algo bastante similar acontecia no Medievo: após as primeiras lições de
armas, de convívio social e de boas maneiras, que eram obtidas em casa, até os dez anos de
idade, os meninos dirigiam-se ao castelo de um rico homem, para que pudessem dar
continuidade àquilo que haviam aprendido no lar paterno. Os meninos mediévicos eram,
então, iniciados em atividades semelhantes àquelas dos meninos gregos ou davam
continuação às aprendizagens que haviam recebido: manejo de armas, equitação, caça,
jogos de folgar. Sobre a formação inicial do cavaleiro, disse Pastoureau:
A vida do cavaleiro começa por uma longa e difícil aprendizagem, inicialmente no
castelo paterno, e depois, a partir dos dez ou doze anos, junto a um rico padrinho ou
um grande protetor. A primeira formação, familiar e individual, tem por objetivo
ensinar os rudimentos da equitação, da caça e do manejo das armas. A segunda,
mais longa e mais técnica, é uma verdadeira iniciação profissional e esotérica, sendo
praticada coletivamente. Em todos os escalões da pirâmide feudal, com efeito, cada
senhor é cercado de uma espécie de “escola de cavalaria”, onde os filhos de seus
vassalos, de seus protegidos e eventualmente parentes menos afortunados m
232
aprender o ofício militar e as virtudes do cavaleiro. Quanto mais poderoso o senhor,
maior o número de alunos (PASTOUREAU, 1989, p. 44).
Esta passagem do Amadis de Gaula ilustra muito bem a saída precoce do infante de sua
casa, para que, noutras paragens, pudesse se fazer homem, tornar-se cavaleiro:
Encantados com o Donzel do Mar, Languines e sua esposa levam-no com eles para a
sua corte, acompanhado de Gandalim, que daquele se não quisera apartar. Estimam-
se como irmãos que julgam ser, embora Languines saiba da boca de Gandales as
circunstâncias em que o Donzel do Mar fora encontrado.
Volvido tempo, Lisuarte, rei da Dinamarca, passa pela Escócia, para vir ocupar o
trono da Grã-Bretanha. Com ele trazia sua filha Oriana, de formosura sem par, mas,
como vinha cansada da viagem, ficou ela na corte de Languines, a pedido de seu pai.
O Donzel do Mar é posto então ao seu serviço e logo as duas crianças se amam com
amor infindo. No entanto, ainda ignorante do segredo da sua origem, o Donzel do
Mar, quando chega à idade dos quinze anos, deseja ardentemente ser armado
cavaleiro; disso parte a el-rei Languines, que, diferindo a cerimônia, o faz saber a
Dom Gandales (LOBEIRA, 1972, p. 37).
Durante a adolescência, como se viu, fazia parte da educação do jovem medievo servir
em tudo ao senhor da corte na qual ele se encontrava. Era nessa época em que o mancebo
também mais permanecia ao lado de seu senhor, para aprender, a partir da observação e da
prática, as atividades e as virtudes necessárias ao bom cavaleiro. Durante esse período, o
moço era detentor do título de escudeiro, mas a partir dos quinze ou dezesseis anos ele
começava a pleitear a sua entrada para a cavalaria. Assim se referiram Michel Pastoureau e
Geneviève d‟Haucourt a esta fase da vida do homem medieval:
Até uma idade que varia entre dezesseis e vinte e três anos, esses adolescentes
exercem junto a seu protetor a função de criado doméstico e auxiliar de armas.
Servindo-o à mesa, acompanhando-o à caça, participando de seus divertimentos,
aprendem as virtudes do homem do mundo. Ocupando-se de seus cavalos, limpando
as armas e, mais tarde, seguindo-o nos torneios e nos campos de batalha, adquirem
os conhecimentos do homem de guerra. A partir do dia em que passam a exercer
esta última função até o momento da ordenação como cavaleiro, possuem o título de
escudeiro. Aqueles que, por falta de sorte, mérito ou ocasião, não conseguem
alcançar a ordenação, guardarão esse título por toda a vida. Pois é apenas após a
ordenação e a entrega do equipamento que se pode ostentar o título de cavaleiro
(PASTOUREAU, 1989, p. 44).
Assim que fazia catorze ou quinze anos, ia à corte de um príncipe, onde sua
educação se completava em uma sociedade mais elegante e numerosa. Sua principal
tarefa era “destacar-se” à mesa diante do seu senhor, da mulher ou da filha dele.
Acompanhava seu senhor à caça, à corte, aos torneios e à guerra. Jogava xadrez,
233
conversava, dançava com as damas e tornava-se assim, em todos os sentidos, um
homem da alta sociedade (D‟HAUCOURT, 1994, p. 89).
Sabe-se ainda que as canções de gesta e as novelas de cavalaria, a exemplo do que
acontecia na Antigüidade com relação aos mitos e às epopéias, faziam parte da paidéia do
homem mediévico: a vontade de se tornar um bom cavaleiro era alimentada, ainda, nos
meninos e nos jovens, pelas histórias que ouviam contar ou que liam. As aventuras de rei
Artur e de seus cavaleiros, mas também as de heróis greco-latinos, povoaram a mente de
muitos infantes e mancebos medievos que, tempos depois, vieram a se tornar grandes
guerreiros. Jacques Le Goff, em As raízes medievais da Europa
191
, teceu interessantes
considerações acerca da importância das Literaturas antiga e medieval para a construção de
um mito e de todo um imaginário em torno do cavaleiro, na Idade Média. As ideologias da
Cavalaria (guerreira) e da Igreja (cristã) certamente eram transmitidas às crianças e aos
rapazes também por meio da Literatura. Sobre isso disse Le Goff:
O mais importante para o futuro europeu do fenômeno da cavalaria é a formação,
desde a Idade Média, de um mito cavaleiresco. Esse mito cavaleiresco foi, se não
criado, pelo menos propagado por uma literatura especializada; e aqui é o lugar de
marcar quanto, na herança que a Idade dia legou à Europa, a literatura tem um
grande lugar. O mito do cavaleiro começou a ser orquestrado nas canções de gesta.
Os dois aspectos do cavaleiro, a proeza militar e a piedade, encarnaram-se, desde o
fim do século XI, nos dois heróis de A canção de Rolando, Rolando e Oliveiros. Os
cavaleiros são louvados como os grandes servidores dos reis, graças às virtudes
cavaleirescas, à valentia guerreira ao serviço da fidelidade vassálica. Os cavaleiros
das canções de gesta tiveram sucessores que adquiriram tanto sucesso quanto eles.
São os heróis dos romances de aventuras, cujas duas grandes fontes foram a história
antiga transfigurada, Enéias, Heitor e Alexandre, e a “matéria da Bretanha”, quer
dizer, as façanhas dos heróis celtas, mais imaginários que históricos, em primeiro
lugar as do famoso Artur. Este imaginário, essencial para o imaginário futuro da
Europa, elaborou, no século XIII, depois de ter criado um herói mìtico, o “cavaleiro
errante”, um tema que ilustrou a cavalaria ao reunir os heróis dessas diversas
origens. É o tema dos “Nove Valentes”. É uma história sagrada da cavalaria que
agrupa os valentes antigos (Heitor, Alexandre, César); os valentes bíblicos (Josué,
Davi e Judas Macabeu) e os valentes cristãos (Artur, Carlos Magno, Godofredo de
Bouillon). O imaginário cavaleiresco faz das façanhas guerreiras, da dedicação ao
serviço dos fracos (mulheres, pobres...), que sobreviveu tanto mais na Idade Média
porque o epíteto cavaleiresco, ainda que tenha sido, em grande parte, modelado pela
Igreja, conserva valores leigos numa Europa que se distancia dos valores
propriamente cristãos (LE GOFF, 2007, pp. 83-84).
191
op. cit.
234
José Hermano Saraiva, em sua História Concisa de Portugal
192
, ao falar da importância
das lendas arturianas para a educação de Nuno Álvares, um nobre e guerreiro português do
século XIV, homem de confiança de D. João I, o Mestre de Avis, mostra que Le Goff tinha
mesmo razão:
Era uma cultura mais de consumo do que de produção, e o que se consumia eram
histórias importadas do estrangeiro: os romances de cavalaria da matéria de
Bretanha (isto é, o conjunto das lendas relativas ao rei Artur e seus cavaleiros na
defesa da Bretanha invadida; os factos históricos que estão na base das lendas
situam-se à volta de 1200 e a cristalização lendária está completa e é corrente em
1300).
Os romances de cavalaria estão na moda durante muito tempo e são a leitura
predilecta dos cavaleiros e dos burgueses, que aprenderam a ler e sonham com ser
cavaleiros. O nosso Nuno Álvares, nascido à volta de 1360, criou-se a ouvir esses
livros, especialmente a história de Galaaz, que era um dos companheiros do rei
Artur (SARAIVA, 1992, p. 106).
Essa “formação iniciática”, que começava, como se viu, com a saída do menino
mediévico de sua casa, tinha fim com a entrega das armas que eram feitas ao jovem medievo
por ocasião de sua ordenação, que poderia acontecer, em média, entre os quinze e os vinte e
cinco anos, como se viu. A ordenação de cavaleiro dava-se por meio de uma cerimônia, a da
investidura, que consistia no verdadeiro ritual de passagem do mancebo para a fase adulta:
deixar de ser escudeiro e tornar-se cavaleiro significava não só ter a possibilidade de conduzir
a própria vida, mas também a de obter os direitos de exercer todos os papéis sociais a que o
homem medieval, enquanto cavaleiro, poderia. A “formação iniciática” do cavaleiro
mediévico, como se de notar, semelha-se, do início ao fim, à do herói mítico e à do
guerreiro da Antigüidade clássica: estes só eram considerados cidadãos após intensa formação
militar, realizada longe de casa, e depois de terem passado por um rito de iniciação, que
geralmente terminava com a entrega do equipamento militar ou das armas (lança, escudo) por
parte dos seus mestres. A seguir, trechos do Amadis e d‟A Demanda que mostram o que
192
op. cit.
235
poderia acontecer durante uma cerimônia de investidura na Baixa Idade Média: acontece que
esse ritual geralmente apresentava variações de lugar para lugar e de época para época.
O Donzel chamou Gandalim e disse-lhe:
Irmão, leva a bom recato todas as minhas armas para a capela da rainha, que
espero ser esta noite armado cavaleiro; e, porque me convém partir logo a seguir,
quero saber se quererás ir comigo.
Senhor, eu vos digo que, de meu grado, nunca de vós me partirei.
Ao Donzel do Mar vieram-lhe as lágrimas aos olhos e, beijando-o na face, disse-lhe:
Amigo, faze então o que te disse.
Gandalim pôs as armas na capela, enquanto a rainha ceava; e, levantadas as toalhas,
o Donzel foi à capela, armou-se com todas as suas armas, excepto na cabeça e nas
mãos, e fez a sua oração ante o altar, rogando a Deus que, tanto nas armas como
naqueles mortais desejos que por sua senhora sentia, lhe desse vitória.
Quando a rainha foi dormir, Oriana e Mabília, com algumas donzelas, foram
procurá-lo, por lhe fazer companhia, e, quando Mabília soube que el-rei Periom
estava para montar a cavalo, mandou-lhe dizer que viesse -la antes; veio ele logo,
e disse-lhe Mabília:
Senhor, fazei o que vos pedir Oriana, filha de el-rei Lisuarte.
O rei disse que de bom grado o faria, porque o merecimento do seu pai a isso o
obrigava.
Oriana veio à presença do rei e, vendo-a tão formosa, logo este pensou que no
mundo não poderia encontrar-se igual.
Quero pedir-vos uma mercê disse-lhe ela.
De bom grado vo-la farei.
Fazei-me então cavaleiro o meu Donzel. E mostrou-lho, de joelhos, ante o altar.
O rei viu o Donzel tão formoso, que muito se maravilhou; e, aproximando-se dele,
perguntou-lhe:
Quereis receber a ordem de cavalaria?
Quero disse ele.
Que seja em nome de Deus e que Ele mande que tão bem empregada seja em vós e
tão acrescentada em honra, como vos acrescentou em formosura.
E, calçando-lhe a espora direita, disse-lhe:
Já sois ora cavaleiro. Tomai a espada.
O Donzel cingiu-a então mui gentilmente e o rei disse-lhe:
Certo, este acto de vos armar cavaleiro com maior honra o quisera haver feito,
segundo vosso gesto e aparência me pedem; mas espero em Deus que vossa fama
será tal, que dará testemunho do que, com mais honra, se devia fazer.
Mabília e Oriana ficaram muito alegres e beijaram a mão do rei; e ele,
encomendando o Donzel a Deus, seguiu seu caminho (LOBEIRA, 1972, pp. 41-43).
Quando êles chegarom a [a] abadia, levarom Lançarot pera ũa câmara e
desarmarom-no. E veo a êle a abadessa com quatro donas, e adusse consigo Galaaz,
e [Galaaz] tam fremosa cousa era, [que] maravilha era. E andava tam bem vestido,
que nom podia milhor. E a abadessa chorava com muito prazer, tanto que viu
Lançarot, e disse-lhe:
Senhor, por Deus, fazede vós nosso novel cavaleiro, ca nom querríamos que seja
cavaleiro per maão de outro. Ca melhor cavaleiro ca vós nom no pode fazer
cavaleiro; ca bem creemos que ainda será tam boõ, que vos acharedes ende bem, e
que será vossa honra de o fazerdes; e se vos el ende non rogasse, vó‟lo devìades de
fazer, ca bem sabedes que é vosso filho.
Galaaz, disse Lançalot, queredes vós seer cavaleiro?
El respondeu baldosamente:
Senhor, se prouvesse a vós, bem no queria seer, ca nom cousa no mundo que
tanto deseje como honra de cavalaria e seer [cavaleiro] da vossa maão, ca de outro
nom no querria ser, que tanto vos ouço louvar e preçar de cavala|ria, que nhuũ, a
meu cuidar, nom podia seer covardo nem maau, que vós fezéssedes cavaleiro. E êsto
236
é ũa das cousas do mundo que me maior esperança de seer homem boõ e boõ
cavaleiro
193
(MAGNE, 1955, p. 5).
E quando o scudeiro, que stava ante Galaaz e que todo isto ouvira, viu que aquel que
lhe todo contara, que era sumido, deceu de seu rocim, e foi ficar os geolhos ante
Galaaz, e disse-lhe chorando:
Ai, Senhor! Eu vos rogo, por amor daquele Senhor cujo sinal vós trazedes em
vosso scudo e que em tal sinal prendeu morte, que vós me recebades por vosso
scudeiro e que me façades cavaleiro.
[...]
Galaaz catou em o scudeiro e vi-o chorar tam feramente, como se visse o homem do
mundo que mais amava morto ante si, e filhou-o de gram doo. E porém lhe outorgou
que o faria cavaleiro
194
(ibidem, pp. 73-75, passim).
Aquela noite ficou Lançarot ali, e fêz Galaaz vigília na egreja. E o irmitam, que
sobejo amava Galaaz, velou tôda aquela noite e non quedou de chorar, porque viu ca
se havia de || partir dêle
195
(ibidem, p. 7).
Aquel dia, hora de prima, a missa dita, fêz Lançarot cavaleiro seu filho Galaaz, assi
como era custume
196
(ibidem, p. 7).
Senhora, disse êle, a seeda perigosa é comprida; uũ cavaleiro see i.
Si? disse ela. Par Deus, fremosa aventura i Deus deu. Ca de muitos que i
severom, nunca i tal foi, que i nom fôsse morto. E de que idade pode seer? disse a
rainha.
Senhora, disse el, de dezooito anos
197
(MAGNE, 1955, p. 21).
E Galaaz disse ao scudeiro:
193
Quando chegaram à abadia, levaram Lancelote a uma câmara e o desarmaram. E veio a ele a abadessa com
quatro mulheres, e o trouxe consigo Galaaz, tão formosa pessoa que maravilha era. E andava tão bem vestido
que não podia melhor. E a abadessa chorava muito com prazer, assim que viu Lancelot, e disse-lhe:
Senhor, por Deus, fazei nosso novo cavaleiro, porque não queríamos que fosse cavaleiro por mão de outro;
porque melhor cavaleiro que vós não o pode fazer cavaleiro; porque bem cremos que ainda será tão bom, que
vos achareis bem por isso, e será vossa a honra de o fazerdes, e se ele vos por isto não pedisse, vo-lo deveríeis
fazer, pois bem sabeis que é vosso filho.
Galaaz disse Lancelote , quereis ser cavaleiro?
E ele respondeu vivamente:
Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria ser, porque não há cousa no mundo que eu tanto deseje como a honra
de cavalaria e ser cavaleiro da vossa mão, porque de outro o não queria ser, que vos ouço tanto louvar e prezar
de cavalaria, que ninguém, no meu entender, podia ser covarde e mau, que vós fizésseis cavaleiro. E isto é uma
das cousas do mundo que me maior esperança de ser homem bom e bom cavaleiro (MEGALE, 2008, pp. 18-
19).
194
E quando o escudeiro, que estava diante de Galaaz e tudo isto ouvira, viu que aquele que tudo contara havia
sumido, desceu do seu rocim, e foi ficar de joelhos diante de Galaaz, e disse-lhe chorando:
Ai, senhor! Eu vos rogo, por amor daquele Senhor cujo sinal trazeis em vosso escudo e que em tal sinal
recebeu a morte, que me recebais por vosso escudeiro e me façais cavaleiro.
[...]
Galaaz olhou para o escudeiro e o viu chorar tão copiosamente, como se visse a pessoa do mundo que mais
amava morta diante de si, e teve por ele grande compaixão. E por isso lhe concedeu que o faria cavaleiro
(MEGALE, 2008, pp. 66-67, passim).
195
Aquela noite, ficou Lancelote ali e fez Galaaz vigília na igreja. E o ermitão, que sobejo amava Galaaz, velou
toda aquela noite e não parou de chorar porque viu que havia de se separar-se dele (MEGALE, 2008, p. 20).
196
Aquele dia, hora de prima, rezada a missa, fez Lancelote cavaleiro seu filho Galaaz, assim como era costume
(MEGALE, 2008, p. 20).
197
Senhora disse ele , o assento perigoso está ocupado. Um cavaleiro senta nele.
Sim? disse ela. Por Deus, formosa aventura Deus deu, porque de muitos que sentaram, nunca um houve
que não morresse. E de que idade pode ser? disse a rainha.
Senhora disse ele , de dezoito anos (MEGALE, 2008, p. 31).
237
Amigo, esta noite teende vigília, como sejaides de manhãa cavaleiro, assi como
direito custume [é]
198
(ibidem, p. 77).
Senhor, vós me fezestes cavaleiro, aa mercee de Deus e aa vossa. E porende houve
tam gram prazer em meu coraçom que aadur vo-lo poderia eu dizer. Ca, sem falha, o
milhor cavaleiro do mundo me deu armas. E vós sabedes qual é o custume que faz
cavaleiro novel, que se nom pode scusar de dar uũ dom, se vir que razón é.
Verdade é, disse Galaaz
199
(ibidem, p. 85).
Sobre a utilização de obras literárias e de outras obras de arte como documentos capazes
de falar, com exatidão, da cerimônia de investidura do cavaleiro medieval da Baixa Idade
Média pronunciou estas palavras Jean Flori:
O historiador, preparado para o estudo crítico severo e austero dos textos latinos,
principalmente diplomáticos e jurídicos, desconfia muitas vezes quando ele não as
ignora totalmente das fontes literárias que lhe parecem pouco seguras, pois são
demasiadamente atingidas pelo imaginário. O medievalista literário interessa-se
muitas vezes mais pela forma do texto e seu valor poético do que por sua dimensão
documental e seu gosto o leva geralmente pouco às investigações minuciosas e
áridas da pesquisa histórica (FLORI, 2005, p. 31).
A investidura de um cavaleiro desperta em nossa memória imagens vindas, no
melhor dos casos, de iluminuras de manuscritos muitas vezes tardios (séculos XIV e
mais ainda XV). No pior dos casos, talvez mais freqüente, de filmes ditos
“históricos” muito romanceados, mais preocupados em responder à expectativa
emocional do público que em conformar-se a uma realidade julgada muitas vezes
banal demais; colorida com significados demasiadamente diversos e ambíguos e que
ainda variam conforme os lugares e as épocas. Foi assim que se impôs, em uma
grande parte do público, a imagem estereotipada de uma investidura ritualizada pela
qual todo cavaleiro pode por sua vez “fazer cavaleiro” um postulante que seja digno.
Em diante desse postulante, às vezes com um joelho no chão, ele o investe,
batendo-lhe levemente nos ombros com a mina de sua espada e, com esse gesto,
lhe “confere a cavalaria”, tal como Bayard fez cavaleiro seu rei na véspera de uma
batalha. Ele acrescenta, às vezes, a seu gesto uma declaração ética que menciona os
deveres que lhe competem doravante enquanto cavaleiro: ser em toda parte o
defensor dos fracos e oprimidos, o protetor da mulher e do órfão, o sustentáculo das
causas justas.
Essa representação da investidura não é radicalmente mentirosa, mas ela não deixa
de ser totalmente inexata. Trata-se, de fato, de uma imagem compósita, que reúne
traços que surgiram em épocas diversas e nunca coexistiram. A maioria deles é
muito tardia, outros são primitivos e rapidamente desapareceram, outros ainda
pertencem mais ao domínio do sonho e do mito que ao da realidade (ibidem, pp. 29-
30).
É nesse nível que devemos situar os cavaleiros. Não conhecemos infelizmente, para
eles, rituais de investiduras específicos antes do século XII. A cavalaria, antes dessa
198
E Galaaz disse ao escudeiro:
Amigo, esta noite fazei vigília para que de manhã sejais cavaleiro, assim como direito costume.
E o escudeiro fez como ele mandou e ensinou (MEGALE, 2008, p. 69).
199
Senhor, vós me fizestes cavaleiro, à mercê de Deus e à vossa. E por isso tive tão grande prazer em meu
coração que dificilmente vo-lo poderia dizer. Porque, sem falha, o melhor cavaleiro do mundo me deu armas. E
vós sabeis que, segundo o costume, quem faz cavaleiro novo não lhe pode negar um dom, se vir que é razoável.
É verdade disse Galaaz (MEGALE, 2008, p. 73).
238
data, ainda está no limbo e os cavaleiros são apenas guerreiros, subalternos na
maioria, que combatem por seus mestres e dos quais se exige somente força física,
fidelidade e obediência. Essas são as virtudes de base da futura cavalaria (ibidem,
pp. 35-36).
As mais antigas descrições de investidura cavaleiresca e as mais completas nos
são fornecidas pelos textos literários, principalmente as epopéias. A maioria dos
elementos conhecidos depois já figura e essas descrições, destinadas a agradar ao
público aristocrático e guerreiro das cortes, têm a vantagem de salientar o que
importava mais para esse público. Os aspectos religiosos revelados pela liturgia e
que poderíamos julgar essenciais figuram pouco ou nem figuram. Certamente, as
armas (e em particular a espada entregue ao cavaleiro) podiam ter sido previamente
objeto de uma bênção. Podemos ao menos supor isso em uma época em que a Igreja
abençoava praticamente todos os elementos da vida, das ferramentas de trabalho dos
camponeses ao leito dos jovens recém-casados. Sabemos, por meio de diversos
textos do século XII (Jean de Salisbury, Pierre de Blois, por exemplo), que sua
espada, ao menos em certos casos, havia sido previamente depositada sobre o altar;
esses autores eclesiásticos deduzem que, por isso mesmo, ao ter recebido sua espada
“do altar”, os cavaleiros deviam sentir deveres para com a Igreja; eles não dizem
mais nada e, evidentemente, esses aspectos religiosos e litúrgicos quase não
mereceram a atenção do público das epopéias. [...] Outras epopéias são mais
prolixas e mencionam, às vezes, uma missa (a investidura dos grandes acontece, em
geral, na época de uma grande festa: Pentecostes, Páscoa, Natal ou São João
principalmente), mas sobretudo as festividades e os exercícios esportivos e
guerreiros que acompanham a cerimônia. [...] Ao aspecto profissional se junta aqui a
dimensão festiva, por causa talvez da posição elevada do novo cavaleiro. [...] Em
toda parte, de fato, nos textos de toda natureza, tanto históricos quanto literários, é a
entrega pública da espada que “faz o cavaleiro”. Ao fazer isso, lhe diz o homem de
valor, ele o faz entrar na “ordem da cavalaria, que deve ser sem vilania” (Perceval,
c. 1595-6). Ele precisa seguir o que consiste essa ética cavalheiresca: poupar o
cavaleiro derrotado que pede misericórdia e socorrer as jovens mulheres solitárias
que outros cavaleiros violentam. Os textos do século XII não dizem mais que isso (e
até menos) sobre a investidura propriamente dita (ibidem, pp. 40-43, passim).
Como se pôde perceber, os trechos do Amadis de Gaula e d‟A Demanda do Santo Graal
selecionados para ilustrar a cerimônia da investidura dos cavaleiros da Baixa Idade Média
contemplaram perfeitamente o aspecto litúrgico do ritual, tão negligenciado, conforme disse
Flori, por textos literários e por iluminuras da época assinalada, bem como por filmes cujas
temáticas giram em torno das novelas de cavalaria. Com relação à entrada da Igreja, por meio
de determinadas simbologias, na cerimônia da investidura (daí esta poder ser chamada,
também, de cerimônia de ordenação), falaram Geneviève d‟Haucourt, Jacques Le Goff, Jean
Flori e Michel Pastoureau:
Finalmente o jovem era armado cavaleiro, o que não ocorria sem festas, cada vez
mais suntuosas e dispendiosas, de forma que no século XIV muitos nobres o
conseguiram assumir os gastos e permaneceram a vida toda escudeiros. A recepção
na cavalaria era, a princípio, uma simples entrega das armas ao acolhido que se
239
mostrara digno. Depois, a Igreja isolou os grandes princípios que deviam santificar e
animar o emprego da força e aplicou-se em penetrar as almas com cerimônias
solenes e de uma simbologia expressiva: o jovem banhava-se, confessava-se, vestia-
se de branco, passava uma noite a rezar, depois vestia uma roupa vermelha, símbolo
do sangue que estava pronto a derramar, recebia armas bentas e fazia o juramento de
colocar sua espada “consagrada” (fim do século X) a serviço do direito, e de
proteger os fracos (D‟HAUCOURT, 1994, p. 90).
A entrada na cavalaria se fazia por uma cerimônia que, no final da adolescência,
representava, para os futuros cavaleiros, ao mesmo tempo um rito de iniciação e um
rito de passagem. Essa cerimônia consistia na entrega das armas ao jovem guerreiro,
como se fazia entre os povos germânicos. Se a Igreja nada mudou em relação à
entrega das esporas, rito puramente leigo, introduziu a bênção das armas
características do cavaleiro, a saber, a lança com sua bandeira, o escudo decorado
com o brasão e a espada. Confere um simbolismo cristão ligado à pureza, ao banho
que precede a cerimônia. Desde o final do século XII, ela imporá, no final da
cerimônia de recepção da armadura, uma vigília de armas, que consistia numa
meditação religiosa (LE GOFF, 2007, pp. 82-83).
A importância que assume a cavalaria na sociedade do século XII leva rapidamente
a Igreja a interessar-se pela investidura. A espada que era entregue ao guerreiro
recrutado era muito provavelmente benzida, como todo instrumento de trabalho.
Foram encontradas lâminas de espadas dessa época que têm gravadas invocações
que testemunham a crença dos cavaleiros na proteção divina no exercício de sua
função guerreira. Porém, isso não quer dizer que os cavaleiros se sentiam, por isso
mesmo, “a serviço da Igreja”, como lamentam, aliás, muitos textos eclesiásticos que
deploram as depredações, ataques, violações e pilhagens às quais se entregam tantos
cavaleiros contra os estabelecimentos eclesiásticos, às vezes em detrimento das
próprias igrejas que os recrutaram para sua proteção. Para tentar inculcar em todos
os cavaleiros uma ética que lhes seja própria e geral, a Igreja elaborou para sua
investidura rituais que retomam em grande parte a ideologia que ela propunha desde
sempre aos reis e que ela tenta ampliar agora para o conjunto da classe guerreira.
Essa evolução testemunha um triplo movimento. De um lado, a Igreja observa, com
um certo atraso, a existência de forças armadas que escapam em grande medida à
autoridade dos príncipes (no momento exato, aliás, em que a autoridade real começa,
na França, a se reconstituir); por outro lado, ao dirigir-se a cada cavaleiro investido,
a Igreja constata o surgimento de uma consciência individual que, ainda fortemente
engajada nas estruturas de vassalagem e linhagem, começa todavia a se mostrar. O
apelo de Urbano II à primeira cruzada, dirigindo diretamente aos cavaleiros sem
passar pelo intermediário dos reis ou príncipes, participa da mesma nova
mentalidade. Enfim, com o apelo à cruzada, essa elaboração litúrgica expressa a
tentativa da Igreja de assumir os destinos da sociedade ocidental e, principalmente,
de controlar e dirigir as forças vivas dessa sociedade: a cavalaria. Essa tentativa,
como sabemos, só teve um sucesso parcial (FLORI, 2005, pp. 43-44).
O desdobramento ritual da cerimônia de ordenação foi fixado tardiamente. No
período a que nos referimos, as formas mostram-se ainda bastante diversas, tanto na
realidade quando nas obras literárias. Observa-se particularmente uma grande
diferença entre as ordenações que ocorrem em tempos de guerra e as realizadas em
épocas de paz. As primeiras sucedem num campo de batalha, antes do combate ou
após a vitória; são as mais gloriosas, embora os gestos e as fórmulas estejam
reduzidos à sua expressão mais simples, em geral a entrega da espada e a palmada
no ombro. As segundas coincidem com a celebração de uma grande festa religiosa
(Páscoa, Pentecostes, Ascensão) ou civil (nascimento ou casamento de um príncipe,
reconciliação de dois soberanos). São espetáculos quase lirgicos, tendo por cenário
o pátio de um castelo, o pórtico de uma igreja, uma praça pública ou a relva de um
prado. Exigem dos futuros cavaleiros uma preparação sacramental (confissão,
comunhão) e uma noite de meditação numa igreja ou capela: a vigília de armas.
Seguem-se vários dias de banquetes, torneios e diversões (PASTOUREAU, 1989, p.
45).
240
A cerimônia propriamente desenrola-se segundo uma ordem sacralizada. Ela se
inicia pela bênção das armas, que o padrinho entrega a seguir ao afilhado: primeiro a
espada e as esporas, a seguir a cota de malha e o elmo, por fim a lança e o escudo. O
escudeiro veste a indumentária, recita algumas preces e pronuncia um juramento,
pelo qual se compromete a respeitar os costumes e as obrigações da cavalaria. A
cerimônia termina com a palmada no ombro, gesto simbólico cuja origem e
significado permanecem controvertidos e de variadas formas: mais freqüentemente,
o oficiante, de pé, desfere sobre o ombro ou a nuca do futuro cavaleiro, que se
encontra ajoelhado diante dele, um forte golpe com a palma da mão. Em certos
condados da Inglaterra e algumas regiões da França ocidental, esse gesto se reduz a
um simples abraço ou um vigoroso aperto de mão. No século XIV, esse ritual não se
fará mais com a mão, mas com amina da espada, e será acompanhado da fórmula:
“Em nome de Deus, de São Miguel e de São Jorge, eu te declaro cavaleiro”. Apesar
da diversidade de explicações existentes a respeito desse ato, os estudiosos tendem a
ver nessas práticas o resquício de um costume germânico, segundo o qual um velho
transmitia a um jovem as virtudes e as qualidades do guerreiro. A sagração, etapa
capital na carreira de um cavaleiro, não altera muito sua vida cotidiana, que continua
a se resumir em cavalgadas, batalhas, caçadas e torneios (ibidem, pp. 45-46).
O Amadis e A Demanda não foram fiéis à História apenas quando abordaram, nas suas
narrativas, a parte sacra do rito de iniciação dos cavaleiros, mas também quando mostraram,
em determinados momentos, que nem “todo cavaleiro pode por sua vez „fazer cavaleiro‟ um
postulante que seja digno” (FLORI, 2005, p. 30), outro erro disseminado pelos textos
literários da Baixa Idade Média, de acordo com Flori. Nestes excertos, é possível ver que
Amadis (Donzel do Mar), apesar de desconhecer completamente as suas origens, apenas é
feito cavaleiro não só por trazer em si a certeza de que pertencia a uma nobre linhagem (o que
de fato era verdade) como por fazer todos os que estavam à sua volta acreditarem nisso; e que
Persival nega-se a “fazer cavaleiro” um donzel de origem desconhecida, ainda que este fosse
formoso, forte, rápido e bom:
E [o rei Lisuarte] contou-lhe como fora achado no mar, metido na arca com a espada
e com o anel, como já ouvistes.
Creio no que me contais respondeu ele porque me disse aquela donzela que o
meu amo Gandales me enviava esta espada e eu pensei que se enganara, não me
dizendo que era meu pai; mas a mim não me pesa de quanto me dizeis, excepto de
não conhecer minha linhagem, nem ela a mim. Mas tenho-me eu por fidalgo, que o
meu coração a isso me induz. E agora, Senhor, mais me convém do que antes a
ordem da cavalaria e ser cavaleiro capaz de ganhar honra e preço, como quem não
sabe donde vem e como se todos os da minha linhagem estivessem mortos (como
por tais os tenho), pois que me não conhecem a mim, nem eu a eles (LOBEIRA,
1972, p. 39, grifo nosso).
241
Eu vos rogo que, em gualardam do serviço que vos fiz, que façades cavaleiro êste
meu donzel, que é aqui cõ migo.
E quem é? disse el.
Assi Deus me ajude, disse ela, nom sei, que eu [o] achei em esta furesta, mais
de XV anos, acêrca de ũ lago envolto em panos de sêda, e nom havia mais de três
dias que nacera. Dês aquel tempo atá agora o criei e fiz guardar atá agora, que é mũi
fermoso donzel e grande, fortalezado, e tam vivo e tam ligeiro, que nom || donzel
nesta terra de sua bondade; e rogo-vos que o façades cavaleiro, porque cuido que
seja a cavalaria nem bem empregada.
Como? disse Persival, nom sabedes al de su fazenda, nem onde ou de qual
lin[h]agem é?
Certamente, disse ela, eu nom [o] conheço mais que vós, fora de vista, mas porque
o vejo tam vivo, cuido que seja homem bõo [e] quer[r]ia que fôsse homem boõ e
cavaleiro.
Dona, disse Persival, vós dizestes a vosso prazer; mas certamente, pois que vós
nada nom sabedes de sua linhagem, nom tenho rezam per que o quisesse fazer
cavaleiro, ca hei mêdo de seer de linhagem de vilaãos, e rogo-vos que vos nom pêse
dêlo
200
(MAGNE, 1955, pp. 347-349).
Acontece que, para fazer parte da cavalaria, era necessário pertencer à nobreza
201
. Não
bastava, portanto, somente possuir atributos. Também na Antigüidade clássica, como se viu
no capítulo passado, os heróis míticos e os guerreiros greco-romanos tinham origens nobres:
ou eram filhos ou netos de reis ou faziam parte (no caso dos reais guerreiros) da aristocracia.
Agora, passagens d‟A Demanda do Santo Graal que giram em torno da nobiliarquia dos
cavaleiros medievais, de modo a mostrar que eles por certo deveriam pertencer a uma alta
linhagem para que pudessem ser ordenados:
200
Eu vos rogo que, em galardão do serviço que vos fiz, façais cavaleiro este meu donzel, que está aqui
comigo.
E quem é? disse ele.
Assim Deus me ajude disse ela , não sei, que não o achei nesta floresta, há mais de quinze anos, perto de um
lago, envolto em panos de seda, e não havia mais de três dias que nascera. Desde aquele tempo até agora o criei e
fiz guardar até agora, porque é jovem muito fremoso e grande e forte, e tão vivo e tão ligeiro, que não há jovem,
nesta terra com sua bondade; e rogo-vos que o façais cavaleiro, porque cuido que seja a cavalaria nele bem
empregada.
Como? disse Persival. Não sabeis nada de sua situação, nem de onde ou de qual linhagem é?
Certamente disse ela , eu não conheço mais do que vós, a não ser de vista, mas porque o vejo tão vivo,
cuido que seja homem bom e quereria que fosse homem bom e cavaleiro.
Dona disse Persival , dizeis a vosso prazer; mas certamente, pois que nada sabeis de sua linhagem, não
tenho razão para que o quisesse fazer cavaleiro, porque tenho medo de ser de linhagem de vilãos, e rogo-vos que
vos não pese disso (MEGALE, 2008, p. 242).
201
Segundo Adalberón, “os nobres são originários do sangue dos reis”. A escola histórica alemã parece em parte
confirmar esse ponto de vista: a maioria das famílias que, no século XI, compartilha o poder na Alemanha e na
França, é de fato originária de linhagens carolíngias. Os ramos caçulas, colaterais ou bastardos dessas
linhagens prestigiosas geralmente estão também na origem dos principados menores. Mas a nobreza assim
obtida permanece, todavia, singularmente estreita. [...] A nobreza, reconhecemos, repousa no nascimento. É
uma qualidade transmissível pelo sangue, a título hereditário. L. Génicot resumiu bem esse ponto de vista em
uma fórmula lapidar: “A pessoa nasce nobre, a pessoa não se torna nobre.” Entretanto, a nobreza nunca foi
uma classe totalmente fechada. Sua simples sobrevivência como classe impunha uma renovação, mesmo que
moderada. Os enobrecidos testemunham essa realidade (FLORI, 2005, pp. 116-117, passim).
242
Maravilha pode ende avir, e rem || eu nunca soube. E sabees de qual linhagem é?
E o donzel disse que nom, fora que dizem todos os que semelha do linhagem de rei
Bam, mais que de outro. E ela começou a pensar, e logo [e]smou em seu coraçom
que era filho de Lançarot
202
(MAGNE, 1955, pp. 21-23).
Ante de hora de prima, fêz Galaaz o scudeiro cavaleiro, assi como era custume em
naquel tempo, e depois perguntou-o como havia nome e [el] disse que havia nome
Melias e que era filho de rei.
Amigo, disse Galaaz, pois sodes de gram sem, guardade que seja empregada bem
em vós a cavalaria, de guisa que a honra do vosso linhagem seja per vós avantada.
Certas, pois que filho de rei chega a tempo de receber ordem de cavalaria, deve-se
de adiantar de bondade de cavalaria e de toda proeza ante dolos outros cavaleiros,
assi como faz o raio do sol sôbre as strelas.
E el disse que a honra do seu linhagem nom se perderia per êle, ca por afam de seu
corpo que el devia a prender em cavalaria, nom ficaria de seer b|| cavaleiro
203
(ibidem, p. 83).
Saliente-se, neste último trecho d‟A Demanda, o fato de o postulante (Melias), para ser
feito cavaleiro por Galaaz, logo acrescentar ao seu nome a informação de que era filho de rei.
Decerto, Melias sabia que, se omitisse informações acerca de sua origem, não receberia as
ordens da cavalaria. De acordo com Jean Flori, nobreza e cavalaria mantêm uma estreita
ligação a partir do ano 1000, época em que os medievalistas costumam situar o período de
aparecimento da classe dos cavaleiros; apenas divergem os estudiosos nesse assunto quanto à
relação estabelecida entre essas duas: para uns, a cavalaria transformou-se em nobreza, com o
passar dos tempos; para outros, as duas sempre coexistiram. Certamente, os que defendem a
idéia de que a cavalaria transformou-se em nobreza baseiam-se nos muitos relatos, fornecidos
pela Literatura medieva, que narram a ascensão social de um plebeu, de um servo, por meio
da cavalaria. Ainda que de fato isto tenha ocorrido por um tempo o que levou muitos
pesquisadores a afirmarem aquilo que Flori combateu: “que cada cavaleiro pode tornar
202
Maravilha pode daí advir e nada eu nunca soube. E sabes de qual linhagem é?
E o donzel disse que não, apenas que dizem todos que parece ser da linhagem de rei Bam, mais que de outra. E
ela começou a pensar e logo cuidou em seu coração que era filho de Lancelote (MEGALE, 2008, p. 32).
203
Antes da hora de prima, fez Galaaz o escudeiro cavaleiro, assim como era costume naquele tempo, e depois
perguntou-lhe qual era seu nome e ele disse que tinha por nome Melias e que era filho de rei.
Amigo disse Galaaz , pois sois de muito juízo, guardai que seja empregada bem em vós a cavalaria de
modo que a honra de vossa linhagem seja por vós levada à frente. Certamente, pois que filho de rei chega a
ponto de receber ordem de cavalaria, deve-se adiantar em bondade de cavalaria e em toda proeza a todos os
outros cavaleiros, assim como faz o raio do sol sobre as estrelas.
E ele disse que a honra da sua linhagem não se perderia por ele porque pela dedicação de seu corpo que ele
punha a serviço da cavalaria, não deixaria de ser bom cavaleiro (MEGALE, 2008, p. 73).
243
cavaleiro aquele que ele julgar digno de sê-lo, não importa a origem ou a condição social”
(PASTOUREAU, 1989, p. 42) , a partir do século XII somente nobres passaram a ser
admitidos na cavalaria, como bem documentou A Demanda do Santo Graal. Sobre a estreita
relação entre nobreza e cavalaria disseram estas palavras Jean Flori e Michel Pastoureau:
Uma questão se coloca então: essa valorização crescente da cavalaria, pelos motivos
políticos e militares que conhecemos, teria ela aproximado a cavalaria da nobreza e
mesmo transformado uma na outra? M. Bloch defendeu outrora essa tese,
fortemente nuançada desde então por G. Duby e a maior parte dos historiadores
franceses. A. Barbero tentou recentemente reavivá-la. Ela leva a negar mais ou
menos a existência de uma verdadeira nobreza antes do ano 1000. Só contaria a rede
das alianças “horizontais”, as alianças e os amigos. No século XI, a formação da
cavalaria e a divulgação controlada da investidura teriam assim criado uma
aristocracia guerreira que, salientando a filiação vertical, teria se transformado em
nobreza. A tese é sedutora, tanto quanto sua opositora, defendida por D. Barthelémy,
para a qual, nobreza, poder e cavalaria se confundem desde a origem e não devem
ser de forma alguma separados (FLORI, 2005, p. 119).
O exercício da cavalaria, todavia, podia criar condições que favoreciam o acesso à
nobreza. [...] Provavelmente não era fácil, para um servo, passar-se por cavaleiro
sem o acordo de seus mestres. Mais numerosos foram, provavelmente, os cavaleiros
servos ou simplesmente não-nobres admitidos na cavalaria de seus mestres, com seu
acordo e sob sua iniciativa. Eles puderam assim, pelo exercício das armas, atingir
um nível social que lhes permitia (a eles ou mais facilmente a seus descendentes)
alcançar as margens da nobreza. Os textos assinalam alguns. Essa promoção, é bom
notar, foi geralmente adquirida em decorrência da generosidade de seus mestres que
lhes concedia uma terra ou uma esposa de nível superior ao deles. A cavalaria foi
então para eles um meio de ascender à (pequena) nobreza (ibidem, p. 121).
A situação muda a partir do fim do século XII, em ligação com uma forte reação
nobiliária suscitada pela ascensão econômica e social da burguesia e dirigida contra
ela. Essa reação é expressa ao mesmo tempo nos textos históricos e na literatura. Ela
leva a proibir, a partir daí, a investidura, que se tornara altamente honorífica aos
filhos de famílias plebéias. Em outros termos, a aristocracia fecha aos não-nobres o
acesso à cavalaria, que ela reserva para seus filhos. [...] Entre 1200 e 1230, os
costumes, registrados por escrito em diversas regiões, reservam o acesso à cavalaria
apenas aos filhos de cavaleiros ou aos donos de terras consideradas nobres. Essas
restrições têm um duplo significado. De um lado, elas permitem à aristocracia
“filtrar” o acesso à cavalaria, transformando-a assim em corporação reservada aos
nobres. De outro lado, elas reservam aos soberanos a possibilidade de recompensar
certos personagens, concedendo-lhes cartas de dispensa (ibidem, p. 122, passim).
Teoricamente, todo homem batizado tem acesso à cavalaria: cada cavaleiro pode
tornar cavaleiro aquele que ele julgar digno de -lo, não importa a origem ou a
condição social. As canções de gesta oferecem muitos exemplos de plebeus
(camponeses, lenhadores, guardadores de porcos, comerciantes, jograis, cozinheiros,
porteiros, etc.) que se sagraram cavaleiros em recompensa por serviços prestados ao
herói. Às vezes, são simples servos. [...] Mas a realidade é outra. A partir da metade
do século XII, os cavaleiros tendem a ser recrutados quase exclusivamente entre os
filhos de cavaleiros, formando uma casta hereditária. Se não chegam a desaparecer
de vez, a sagração de plebeus torna-se um fato excepcional. Por dois motivos: o
primeiro reside no processo de cooptação que favorece inevitavelmente o controle
de uma classe, a aristocracia da terra, sobre uma instituição que não é regida por
nenhuma norma de direito; o segundo talvez mais importante deve-se a
244
imperativos sócio-econômicos: o cavalo, o equipamento militar, a cerimônia e as
festas de sagração exigem altas somas; a própria existência do cavaleiro, feita de
prazeres e ociosidade, pressupõe uma certa riqueza, que naquela época provinha
apenas da terra. Ser cavaleiro, com efeito, significa glória e honra; portanto, é
preciso viver, seja da generosidade de um rico e poderoso senhor (um favor que
ainda pode ser obtido facilmente no começo do século XII, mas que se torna mais
difícil cem anos depois), seja dos rendimentos de um patrimônio. Assim, são
numerosos aqueles que preferem a concessão de um feudo, por menor que seja, às
generosidades domésticas de um senhor. Por volta de 1200, os cavaleiros são
essencialmente os senhores e os filhos de senhores. [...] Ocorre então a fusão entre
cavalaria e nobreza (PASTOUREAU, 1989, pp. 42-43, passim).
Nesse último excerto, de Pastoureau, pôde-se perceber por que era necessário fazer
parte da nobreza, da aristocracia, para poder ser cavaleiro: “o cavalo, o equipamento militar, a
cerimônia e as festas de sagração”, aliados à vida “feita de prazeres e ociosidade” do
cavaleiro, exigiam grandes fortunas do postulante. Como se viu no capítulo anterior, essas
também eram as razões para que os guerreiros greco-romanos fossem recrutados entre a
nobreza.
Havia, ainda, na Idade Média, cavaleiros que se julgavam (ou que eram apontados
como) parentes de Cristo, da mesma forma como, na Antigüidade greco-latina, alguns heróis
acreditavam ser (ou eram tidos como) descendentes dos numes. No mundo real, sabe-se que,
no Medievo, as lendas arturianas dividiam espaço com outra: a da existência de uma suposta
descendência de Cristo, a partir do cruzamento da linhagem deste com a dos merovíngios.
Evidentemente, esta lenda não era (nem nunca foi) aceita pela Igreja. Contudo, nada obstava
que algum parente de Cristo tivesse deixado descendentes. Dentre estes, figuraria Galaaz,
personagem principal d‟A Demanda. Ao que parece, um mito que se espalhou pelo mundo
real acabou sendo (re)aproveitado na Literatura, ou seja, simplesmente retornou às suas
origens. Sobre os merovíngios, falou Alfredo Paschoal, em Templários: História da Ordem
dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão
204
, o seguinte:
A dinastia merovíngia surgiu dos sicambrianos, uma tribo do povo germânico
conhecida como franco. Entre os séculos V e VII, os merovíngios reinaram em
204
op. cit.
245
grande parte do que hoje é conhecido como França e Alemanha. O tempo de sua
ascendência coincide com o do rei Artur um período que serve de palco para os
romances sobre o cálice sagrado. Este é provavelmente o período mais impenetrável
do que chamamos hoje Idade das Trevas (PASCHOAL, 2006, p. 66).
sobre o fato de Galaaz descender da linhagem de José de Arimatéia, parente de
Cristo, eis a seguinte passagem d‟A Demanda do Santo Graal:
Êles em êsto falando, catarom e virom que tôdalas portas do paaço se çarrarom e
tôdalas freestas, pero que nom escoreceu porende o paaço, ca entrou i tal raio de
sol, que per da a casa se stendeu; | e aveo entam ũa gram maravilha, [ca] nom
houve tal no paaço, que nom perdesse a fala; e catavam-se uũs aos outros, e nom
podiam rem dizer, e nom houve i tam ardido, que ende não fôsse spantado; pero
nom houve i tal que saísse da seeda, enquanto êsto durou. Aveo que entrou Galaaz
armado de loriga e de brafoneiras e de elmo e de dous sobressinaaes de eixâmete
vermelho; e, depois êle, chegou o ermitam, que lhe rogara que o leixasse andar com
êle, e tragia uũ manto e ũa guarnacha [de] eixâmete vermelho em seu braço.
Mas tanto vos digo, que nom houve no paaço quem podesse entender per u Galaaz
entrara, ca em sua viinda nom abriram a porta, nem ouvirom abrir [a porta] nem
freesta. Mas do ermitam nom vos digo [eu tanto], ca o virom entrar pola porta
grande. E Galaaz, tanto que foe no meo do paaço, disse, assi que todos ouvirom:
Paz seja com vosco.
E o homem boõ pôs os panos, que trazia, sôbre uũ alfâmbar, e foi a rei Artur e disse-
lhe:
Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquel que vem do alto linhagem del-rei
David e de Josep Daramatia, per que as maravilhas desta terra e das outras haverám
cima.
E [d]esto que o homem boõ disse foi el-rei mui ledo. E disse:
Se êsto é verdade, vós sejardes benviindo. E bem seja vúdo o cavaleiro, ca êste é
o que dá-de dar cima aas aventuras do Santo Graal. Nunca foe feit[a] em esta côrte
tanta hon||ra, como lhe nós faremos; e quem quer que êle seja, eu querria que lhe
fôsse muito bem, pois de tam alto linhagem vem, como vós dizedes
205
(MAGNE,
1955, pp. 19-21).
205
Eles nisto falando, olharam e viram que todas as portas do paço se fecharam e todas as janelas, mas não
escureceu por isso o paço, porque entrou um tal raio de sol, que por toda a casa se estendeu. E aconteceu então
uma grande maravilha, não houve quem no paço não perdesse a fala; e olhavam-se uns aos outros e nada podiam
dizer, e não houve alguém tão ousado, que disso não ficasse espantado; mas não houve quem saísse do assento,
enquanto isto durou. Aconteceu que entrou Galaaz armado de loriga e brafoneiras e de elmo e de duas divisas de
veludo vermelho; e, depós ele, chegou o ermitão, que lhe rogara que o deixasse andar com ele, e trazia um manto
e uma garnacha de veludo vermelho em seu braço.
Mas tanto vos digo que não houve no paço quem pudesse entender por onde Galaaz entrara, que em sua vinda
não abriram porta nem janela. Mas do ermitão não vos digo, porque o viram entrar pela porta grande. E Galaaz,
assim que chegou ao meio do paço, disse de modo que todos ouviram:
A paz esteja convosco.
E o homem bom pôs as vestes que trazia sobre um alfâmbar, e foi ao rei Artur e disse-lhe:
Rei Artur, eu te trago o cavaleiro desejado, aquele que vem da alta linhagem do rei Davi e de Jo de
Arimatéia, pelo qual as maravilhas desta terra e das outras terão fim.
E com isto que o homem bom disse, ficou o rei muito alegre. E disse:
Se isto é verdade, sede bem-vindo. E bem seja vindo o cavaleiro, porque este é o que de dar cabo às
aventuras do santo Graal. Nunca foi feita nesta corte tanta honra como lhe nós faremos; e quem quer que ele
seja, eu quereria que lhe fosse muito bem, pois de tão alta linhagem vem como dizeis (MEGALE, 2008, pp. 29-
30).
246
Ao ingressar na cavalaria, por meio da investidura, o cavaleiro automaticamente se
submetia a um código de honra, ou de ética, ou moral, de acordo com Michel Pastoureau.
Esse conjunto de normas, ainda de acordo com esse pesquisador, pode-se encontrar espargido
pelas mais variadas novelas de cavalaria da Baixa Idade Média, como é o caso d‟A Demanda
do Santo Graal e também do Amadis de Gaula. É evidente que, como todo código, esse
também deve ser tido como um/o ideal a ser seguido; por isso, é quase certo que ele não tenha
sido seguido à risca, pelos cavaleiros da Baixa Idade Média. Como exemplo destes poderiam
ser citados os templários:
Alimentando monstruosa e insaciável ambição, passaram os templários a constituir
verdadeiros “bandidos ungidos”, porquanto, si tinham bravura, acobertavam, com o
hábito monástico, os mais detestáveis vícios e as mais violentas paixões do guerreiro
medieval. “Celerados, ímpios, raptores, sacrílegos”, tais, em sua maioria, os
templários no dizer insuspeito do próprio autor de sua regra, São Bernardo, que se
congratula mesmo com isso no “De Laude Novae Militiae” (LINS, 1939, p. 354).
Outra prova do código não ter sido seguido ao da letra é a própria razão de ser d‟A
Demanda: a história de rei Artur e de seus cavaleiros cristianizada para combater os
desvirtuamentos da cavalaria. De qualquer forma, esse código cavaleiresco, que pode ser
resumido em três princípios “fidelidade à palavra dada e lealdade perante todos;
generosidade, proteção e assistência aos que dela precisam; obediência à Igreja, defesa de
seus ministros e de seus bens” (PASTOUREAU, 1989, p. 48) , traz em si, de forma
resumida, todos os deveres do cavaleiro. Sobre o código da cavalaria da Baixa Idade Média
Pastoureau teceu a seguinte consideração:
A cavalaria não impõe apenas uma maneira de viver, mas também uma ética.
Embora haja provas históricas inegáveis do compromisso moral assumido pelo
jovem guerreiro no dia de sua ordenação, forçoso é reconhecer que a existência de
um verdadeiro código de cavalaria é atestada apenas pela literatura. E sabemos que
distância pode haver, no século XII, entre os modelos literários e a realidade
cotidiana. De resto, os preceitos desse código diferem de uma obra à outra, e seu
espírito se modifica sensivelmente ao longo do século (PASTOUREAU, 1989, p.
47).
247
Dentre os deveres do cavaleiro que se encontram implícitos no código podem ser
citados estes: (i) defender a “pátria”; (ii) proteger o rei; (iii) enfrentar todos os seres capazes
de ameaçar a paz e o bem-estar dos povos; (iv) jamais atacar quem estiver desarmado; (v)
zelar pelos interesses da Igreja; (vi) socorrer os indefesos; (vii) aconselhar e ajudar as
mulheres; (viii) ser leal para com os companheiros de companhia; (ix) cumprir com todas as
promessas feitas; (x) ser hospitaleiro para com os viajantes.
No que concerne ao primeiro desses deveres defender a “pátria” , Jean Flori chama a
atenção para o fato de que essa “pátria” não é aquela dos antigos gregos ou romanos: a
pólis, ou cidade-estado, nem mesmo toda a Hélade ou todo o império romano. Também ainda
não trazia em si a noção de pátria da forma como é hoje concebida essa palavra; idéia, aliás,
que Dom Afonso Henriques fez brotar na Europa mediévica. A pátria, na Idade Média,
restringia-se ao território de um condado ou de um feudo; ou então àquilo capaz de unir um
grupo: laços familiares, relações de vassalagem, interesses comuns, religião. Sobre a “pátria”
medieva, assim se expressou Flori:
As conseqüências dessa evolução com relação às mentalidades não devem ser
desprezadas. O antigo adágio romano dulcis et decorum est pro pátria mori
doce e honroso morrer pela Pátria) não desaparece totalmente dos textos nem dos
espíritos [medievais], mas ele não se aplica mais à mesma entidade político-
geográfica. Quando Gregório VII, por volta de 1075, prevendo a cruzada, quer
mobilizar atrás de si guerreiros para libertarem o Santo Sepulcro, ele lhes promete
recompensas espirituais da parte de São Pedro, argumentando que, se é digno e
honroso morrer por uma pátria terrestre, é ainda mais honroso morrer pelo Senhor.
A que pátria faz ele alusão? À cristandade inteira? À Igreja universal? Ao Ocidente
cristão? Não: o primeiro termo de sua comparação designa claramente o “paìs” dos
cavaleiros, o distrito, por vezes o condado ou, melhor ainda, o conjunto dos laços
afetivos e pessoais que unem os homens sob a autoridade de um senhor. Assim, ele
censura os milites por servirem fielmente seus senhores temporais (que todavia lhes
pagam mal e os levam a operações guerreiras duvidosas, perigosas para sua alma,
em que eles têm tudo a perder e pouco a ganhar) e muito menos fielmente seu
“Patrão” monsenhor São Pedro, que pode, entretanto, lhes fazer ganhar o paraìso
como recompensa por uma guerra justa e santa. Quanto ao segundo termo da
comparação empregada pelo papa, ele enfatiza a obediência devida ao Senhor
supremo (de quem os turcos espoliaram a herança e o túmulo em Jerusalém),
obediência superior ao serviço da cristandade ocidental. Esta última noção, todavia,
começa a despontar junta com a noção de Europa. [...] Para eles, um “paìs” é um
modo de viver, sentir, falar, comer, que une entre si as pessoas aproximadas também
pelo serviço de um mesmo senhor, pelas relações de homem a homem, familiares ou
de vassalagem, que lhes dão coesão. É, no fundo, uma noção mais real, ligada ao
sangue, à antiga concepção tribal, clânica, mais profunda e mais profundamente
248
ancorada que uma espécie de “direito do solo”, demasiadamente jurìdico e abstrato
para essa época em que o contato físico, pela visão, pelo tato, conta mais que a
declaração abstrata de um escrito. [...] Em outras palavras, a noção de “pátria”
designa aqui o sentimento comum de pertencer a uma mesma comunidade de vida,
de costumes, diríamos hoje de cultura. Será, aliás, que pode ser de outra maneira?
Resta saber o que, em cada época, une realmente os homens entre si. [...] Na época
do nascimento da cavalaria, o fator primordial de unidade não é inicialmente de
ordem geográfica, ele é de ordem humana, pessoal, poderíamos quase dizer, carnal
(FLORI, 2005, pp. 56-57).
N‟A Demanda do Santo Graal tanto é possível encontrar a noção de pátria enquanto
território administrativo, “entidade polìtico-geográfica” (Reino de Logres), quanto a noção de
pátria advinda da união de um grupo (Cavaleiros da Távola Redonda), dos laços de
vassalagem (Rei Artur e seus cavaleiros) e da religião (Católica). Como exemplos da noção de
pátria advinda do amor e da defesa de uma entidade polìtico-geográfica” a novela de
cavalaria em questão oferece estas passagens:
El-rei, tanto que viu na seeda perigosa o cavaleiro de que Merlim e tôdolos outros
profetas falarom na Gram-[Bretanha], entam bem soube êle que aquêle era o
cavaleiro per que seriam acabadas as aventuras do regno de Logres, e foi com êle
tam alegre que beenzeu Deus
206
(MAGNE, 1955, p. 21).
Assi falava el-rei de Tristam, com mui gram pesar de que nom vinha aa côrte; mas
os outros nom havia[m] ende pesar, ante eram mui ledos, porque a seeda perigosa
havia cima já, e honravam e serviam Galaaz quanto podiam, que nom podiam mais,
ca bem sabiam que êste havia dar cima aas maravilhosas aventuras do regno de
Logres
207
(idem).
Galaaz, ora vejo eu bem que tu acabarás as aventuras do regno de Logres, ca te
vejo esforçado, que nunca cuidei veer homem [que o fôsse] tanto
208
(ibidem, p. 59).
Beentas sejam estas novas e beento seja Deus, que o pera aqui adusse, ca ora
sabemos bem que per êste seerám acabadas as aventuras maravilhosas do regno de
Logres
209
(ibidem, p. 65).
[...] E bem diziam todos que jamais as aventuras do regno de Logres nom
haveriam cima atee que vós viéssedes. E tanto vos atendemos, que ora, aa mercee de
Deus, havemos-vos já
210
(ibidem, p. 81).
206
O Rei, assim que viu no assento perigoso o cavaleiro de quem Merlin e todos os outros profetas falaram na
Grã-Bretanha, então bem soube que aquele era o cavaleiro por quem seriam acabadas as aventuras do reino de
Logres, e ficou com ele tão alegre e tão feliz, que bendisse a Deus (MEGALE, 2008, p. 31).
207
Assim falava o rei de Tristão, com muito grande pesar de que não vinha à corte; mas os outros não tinham
disso pesar, antes estavam muito alegres, porque o assento perigoso estava acabado, e honravam e serviam
Galaaz quanto podiam, que não podiam mais, pois bem sabiam que este havia de dar cabo às maravilhosas
aventuras do reino de Logres (MEGALE, 2008, p. 31).
208
Galaaz, agora bem vejo que acabarás as aventuras do reino de Logres, porque te vejo esforçado, como
nunca cuidei ver alguém que o fosse tanto (MEGALE, 2008, p. 56).
209
Abençoadas sejam estas novas e bendito seja Deus, que o aqui trouxe, porque agora sabemos bem que por
este serão acabadas as aventuras maravilhosas do reino de Logres (MEGALE, 2008, p. 61).
249
Per boa fé, ora posso bem dizer que êste é o melhor cavaleiro que eu nunca vi.
Nunca me creades de rem, se êste nom é Galaaz, o mũi boõ cavaleiro, aquel que -
de dar cima aas aventuras do regno de Logres
211
(ibidem, p. 379).
[...] Êsto seerá em renembrança do pecado per que meu irmaão foi morto, e durará
esta renembrança de mim e de meu irmão que o boõ cavaleiro verrá, que dará
cima aas aventuras do reino de Logres; e de mim seerá hoije-mais esta fonte
chamada, mentre o mundo durar, “fonte da virgem”
212
(MAGNE, 1944, vol. I, p.
403).
Certas, disse Estor, Senhor, sem falha, êle é o milhor cavaleiro do mundo. Eu vii
tanto dêle, que eu sei verdadeiramente que per bondade de cavalaria nom ficará que
nom dee cima aas aventuras de Logres
213
(ibidem, vol. II, p. 27).
Ai! ca nós somos enganados da conhecença dêste homem. Por Santa Maria, êste é
mais ca boõ cavaleiro, que dar cima aas aventuras do regno de Logres. Ora me
nom tenho por desonrado de el desbaratar minha gente, ca a sa bondade de armas
outra bondade nom poderia durar
214
(ibidem, p. 63).
Por boa fé, disse el-rei, vós houvestes o mais fremoso comêço de cavalaria que
nunca houve cavaleiro, [158, c] e vós bem vos mantenedes no que começastes.
Semelha-me que o linhagem de rei Bam, u os melhores cavaleiros do mundo,
nom se aviltará per vós. Ora vos ide, pois vos ir queredes, e Nosso Senhor vos guie e
vos poder de acabardes as aventuras de Logres assi como nós cuidamos que
havedes de fazer
215
(ibidem, p. 155).
Se há nome Galaaz, nom vos maravilhees em, ca u muitas cousas som de ũa guisa,
nom pode seer que ende algũa nom seja maa, e muitos cavaleiros há polo mundo que
nom chamados Galaaz e i boõs e maaus, e bem assi como o mui boõ Galaaz, que
-de dar cima aas aventuras do reino de Logres
216
(ibidem, p. 175).
A Demanda deixa patente, ao longo de toda a sua narrativa, o “patriotismo” dos
cavaleiros da Távola Redonda: por qual outra razão estes buscavam dar cabo às aventuras do
210
[...] E diziam bem todos que jamais as aventuras do reino de Logres teriam fim, enquanto não chegásseis. E
tanto vos esperamos que, agora, por graça de Deus, já o temos (MEGALE, 2008, p. 71).
211
Por boa-fé, agora bem posso dizer que este é o melhor cavaleiro que alguma vez vi, Nunca acrediteis em
mim, se este não é Galaaz, aquele que há de dar cabo às aventuras do reino de Logres (MEGALE, 2008, p. 262).
212
[...] Isto será em lembrança do pecado pelo qual meu irmão foi morto, e durará esta lembrança de mim e de
meu irmão até que o bom cavaleiro venha, que dará cabo às aventuras do reino de Logres; e de mim, de hoje em
diante, será esta fonte chamada, enquanto o mundo durar, a fonte da virgem (MEGALE, 2008, p. 319).
213
Certamente disse Heitor , senhor, sem falha, ele é o melhor cavaleiro do mundo. Tanto vi dele que nem
sei verdadeiramente que por bondade de cavalaria não ficará sem dar cabo às aventuras do reino de Logres
(MEGALE, 2008, p. 339).
214
Ai, quanto estamos enganados a respeito deste homem! Por Santa Maria, este é o melhor cavaleiro, que há de
dar cabo às aventuras do reino de Logres. Ora não me considero desonrado por ele desbaratar minha gente,
porque à sua bondade não é possível resistir (MEGALE, 2008, p. 370).
215
Por boa-fé disse o rei , tivestes o mais formoso começo de cavalaria no que começastes. Parece-me que a
linhagem de rei Bam, que tem os melhores cavaleiros do mundo, não se aviltará por vós. Ora ide, pois ir quereis,
e Nosso Senhor vos guie e vos força para acabar as aventuras de Logres, como cuidamos que haveis de fazer
(MEGALE, 2008, p. 445).
216
Se tem nome Galaaz, não vos maravilheis, porque, quando muitas coisas são de um modo, não pode ser que
alguma delas não seja má, e muitos cavaleiros pelo mundo que são chamados Galaaz, e entre eles, bons e
maus, e assim como o muito bom Galaaz, que de dar cabo às aventuras do reino de Logres (MEGALE, 2008,
p. 460).
250
Reino de Logres, senão a de r fim ao sofrimento de toda a gente que nele vivia? Sabe-se
que, com a perda do Santo Graal, devido ao pecado em que viviam imersos Artur e muitos
dos seus, a fome espalhou-se de forma assustadora pelo Reino de Logres. Seria necessário,
então, reconquistar o Graal; fazê-lo voltar ao reino, para que a fome do povo tivesse fim. O
motivo da debandada dos cavaleiros, portanto, não foi unicamente o de partir em busca de
aventuras, mas o de fazer o bem a toda uma população, por amor à terra que era
compartilhada por todos; inclusive, claro, pelos próprios cavaleiros. Galaaz exemplifica,
melhor que qualquer outro, esse “patriotismo”; esse “amor a Logres e ao seu povo”, pois
dedicou toda a sua vida corpo e alma, literalmente a esta causa: “dar cabo às maravilhosas
aventuras de Logres”. Seu objetivo era o de chegar até o Santo Graal para levar a salvação
para a sua gente: daí advém o caráter messiânico de Galaaz.
Como exemplos da noção de pátria advinda do sentimento de pertença a um grupo,
podem ser citados os seguintes trechos d‟A Demanda:
Dêste nom vos podemos emparar nem defender, senam per boõa palavra, ca é
nosso companheiro da Távola Redonda
217
(MAGNE, 1955, p. 121).
Galvam, vós me havedes morto e escarnido, que me matastes meu sobrinho, o
homem do mundo que eu mais amava. E sabede que eu vingaria sua morte, se nam
fôssedes meu irmaão da Távola Redonda
218
(ibidem, p. 195).
Verdade é, disse Galaaz. || Mas pois vós sodes meu companheiro e da Távola
Redonda e vos el matou ante mim, eu vos vigarei a meu poder
219
(ibidem, pp. 227-
229).
E Palamades disse a Galaaz:
Êste é o cavaleiro que venceu dom Gaeriet, que é uũ dos boõs cavaleiros da Távola
Redonda. Certas, eu o vingarei, se poder
220
(MAGNE, 1944, vol. II, p. 262).
217
Deste não vos podemos amparar nem defender, a não ser por boa palavra, porque é nosso companheiro da
távola redonda (MEGALE, 2008, p. 97).
218
Galvão, vós me tendes morto e escarnecido, que me matastes meu sobrinho, o homem do mundo que eu
mais amava. E sabei que vingaria sua morte, se não fôsseis meu irmão da távola redonda (MEGALE, 2008, p.
144).
219
Verdade é disse Galaaz. Mas, visto que sois meu companheiro e da távola redonda e vos ele matou
diante de mim, eu vos vingarei a meu poder (MEGALE, 2008, p. 165).
220
E Palamades disse a Galaaz:
Este é o cavaleiro que venceu dom Gaeriete, que é um dos bons cavaleiros da távola redonda. Certamente o
vingarei, se puder (MEGALE, 2008, p. 539).
251
Senhores, disse Galaaz, se vós amades mia companha, bem amo eu a vossa outro-
tanto. Mas pois eu vejo que nos havemos a partir, comendo-vos a Nosso Senhor e
rogo-vos que, se fordes aa côrte de rei Artur, que me lhi saudees e a meu padre
Lançarot e a tôdolos cavaleiros da Távola Redonda
221
(ibidem, p. 283).
Lançalot preguntou a Palamades:
Como vos sentides da batalha?
Desta batalha mui mal, disse el, pero guarecerei. Mas pero bem vos digo que me
errastes mui [182, a] mal, que sôo vosso irmaão da Távola Redonda, porque nom
devêrades em mim mão meter em nem ũa guisa
222
(ibidem, p. 287).
Pois, disse Palamades, êste preito é partido, ca eu soõ da Távola Redonda come
vós
223
(ibidem, p. 289).
Como se pôde notar, os cavaleiros, ao se reconhecerem como integrantes da Távola
Redonda, não combatiam entre si, ainda que houvesse motivo para tal. Um embate entre dois
cavaleiros da corte de Artur seria como uma nação que, numa guerra, bombardeasse a si
mesma, de modo a realizar o que se conhece por “fogo amigo”. Logo, percebe-se, pelos
excertos pouco citados, que havia mesmo um sentimento de pertença, entre os cavaleiros
da Távola Redonda, que se assemelha ao patriotismo.
como noção de pátria advinda da vassalagem, eis as seguintes passagens d‟A
Demanda do Santo Graal:
Ai, Senhor cavaleiro! Al me pedide, ca vós nem outro cavaleiro nom matarei,
senam em defendendo meu corpo ou meu senhor
224
(MAGNE, 1955, p. 57).
Mas ora leixa o conto de falar de Persival por contar como aveo a Galaaz quando
tornou ao regno de Logres e como livrou a rei Artur e a terra de Logres dos
Sansoões que vierom i per conselho de rei Mars de Cornualha
225
(MAGNE, 1944,
vol. II, p. 126).
221
Senhores disse Galaaz , se amais minha companhia, bem amo a vossa outro tanto. Mais pois vejo que
temos de nos separar, encomendo-vos a Nosso Senhore rogo-vos que, se fordes à corte de rei Artur, o saudeis
por mim e a meu pai Lancelote e a todos os cavaleiros da távola redonda (MEGALE, 2008, p. 556).
222
Lancelote perguntou a Palamades:
Como vos sentis da batalha?
Desta batalha, muito mal disse ele , mas sararei. Mas bem vos digo que me afrontastes muito mal, que sou
vosso irmão da távola redonda, pelo que não devêreis em mim mão meter, de nenhum modo (MEGALE, 2008,
p. 559).
223
Pois disse Palamades , este preito está acabado, porque sou da távola redonda como vós (MEGALE,
2008, p. 561).
224
Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi, porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei, senão em
defendendo meu corpo ou meu senhor (MEGALE, 2008, p. 55).
225
Mas ora deixa o conto de falar de Persival por contar como aconteceu a Galaaz quando voltou ao reino de
Logres e como livrou rei Artur e a terra de Logres dos Sansões que vieram por conselho de rei Mars de
Cornualha (MEGALE, 2008, p. 420).
252
Em êsto falando, cavalgaram os III irmaãos atá hora de têrça e entom lhis aveo que
toparom com Galvam e com Kea, o moordomo, e com Brandeliz. Aquêles III
cavaleiros se iam quanto podiam para Camaalot, ca ouviram dizer que rei Artur era
cercado, e iam-se porém a mui grandes jornadas per chegarem cedo a sa ajuda. E
tanto que se conhecerom, forom mui ledos, ca peça havia que se nom viram. E
Guerrees lhis preguntou:
A qual logar ides a tam grã coita?
A Camaalot, disserom êles, ca nos disserom que rei Artur era cercado
226
(ibidem, pp.
178-179).
O “patriotismo” resultante das relações de vassalagem certamente repousa no fato de,
geralmente, vários cavaleiros estarem ligados a um único suserano; de modo que todos,
devido aos juramentos a este prestados, num ritual que em muito faz lembrar o da investidura
(ou ordenação) do cavaleiro, acabam por se unir para o mesmo fim: proteger o senhor feudal.
A Demanda também conseguiu ilustrar muito bem, ao longo da sua narrativa, essas relações
de suserania e vassalagem entre o Rei Artur e seus cavaleiros: não por meio de episódios
que narram a defesa daquele por parte destes, como se acabou se ver, mas também a partir dos
trechos d‟A Demanda do Santo Graal que tratam dos feudos ofertados por Artur aos seus
cavaleiros. Michel Pastoureau, no seu livro No tempo dos cavaleiros da Távola Redonda
227
,
assim fala das atribuições do suserano e do vassalo, firmadas durante a cerimônia que sela a
relação de vassalagem entre ambos:
O vassalo é um senhor mais ou menos fraco, que, por obrigação ou interesse,
vincula-se a um senhor mais forte, a quem promete fidelidade. Essa promessa tem
por objeto um contrato que determina as obrigações recíprocas. O senhor promete ao
vassalo proteção e sustento: defendê-lo contra os inimigos, assisti-lo na justiça,
ajudá-lo com conselhos, oferecer-lhe presentes e “generosidades”, sustentá-lo enfim
na corte ou, mais comumente, conceder-lhe uma terra que lhe permita manter-se e
ajudar a manter os seus: o feudo. Em troca, o vassalo deve ao senhor um serviço
militar (cujas modalidades são estabelecidas pelo contrato), assistência política
(conselhos, missões) e jurídica (ajudá-lo a promover a justiça; tomar parte no
tribunal senhorial), às vezes serviços domésticos, gestos de deferência em qualquer
circunstância, e em alguns casos ajuda pecuniária (PASTOUREAU, 1989, p. 35).
226
Nisto falando, cavalgaram os três irmãos até hora de terça e então aconteceu que toparam com Galvão e com
Quéia, o mordomo, e com Brandeliz. Aqueles três cavaleiros iam o mais depressa que podiam para Camalote,
porque ouviram dizer que rei Artur estava cercado e iam com jornadas muito longas para chegarem logo em sua
ajuda. E assim que se reconheceram ficaram muito alegres, porque havia tempo que não se viam. E Guerrees
lhes perguntou:
A que lugar ides com tanta pressa?
A Camalote disseram eles , porque nos disseram que rei Artur estava cercado (MEGALE, 2008, p. 463).
227
op. cit.
253
Salvo para os senhores importantes, o contrato de vassalagem raramente é firmado
por escrito. Mas oferece uma cerimônia ritual mais ou menos idêntica em todas as
regiões: o vassalo, ajoelhado, pronuncia inicialmente uma fórmula de homenagem
(“Eu me torno teu homem...”); a seguir, de pé, jura, sobre a Bìblia ou sobre relìquias,
fidelidade ao senhor; por fim, este último o investe no feudo, entregando-lhe um
objeto que o simboliza (ramo, erva, torrão de terra) ou que representa um poder
(cetro, anel, bastão, luva, estandarte, lança). Genuflexões, troca de beijos e gestos
litúrgicos acompanham a cerimônia, que pode ser definitiva ou periodicamente
renovada (idem).
Por fim, a noção de “pátria” advinda por meio da religião varre A Demanda de ponta a
ponta: antes de serem irmãos porque cavaleiros da Távola Redonda, os cavaleiros o eram
por serem cristãos, por terem sido batizados. Isso é tão verdade que Palamades, apesar de bom
cavaleiro, foi admitido entre os da Távola Redonda depois que se tornou cristão. Ao longo
d‟A Demanda é possível ver trechos como este, que mostram a solidariedade entre os adeptos
do Cristianismo pelo fato de estes se sentirem verdadeiramente irmãos; pertencentes a uma
mesma congregação, que era a de Cristo:
Ai, Senhor! [...] por Deus e por cortesia, faz|ede vós ũa cousa que vos rogo.
Galvam disse que o faria de graado, se podesse.
Eu vos rogo, disse o cavaleiro, que vós me levedes a algũa abadia preto daqui, u
possa receber direituras da Santa Egreja, como cristaão deve fazer em cima da sua
vida.
Se me ajude Deus, disse Galvam, nom sei lugar preto daqui u vos possa levar.
Pois fazede tanto por mim, disse o cavaleiro: levade-me ante vós, e eu vos guiarei.
Entam o filhou Galvam e deitou-o antre os arçoões da sela e cavalgou atrás êle polo
manteer e deu a Estor o escudo a levar, e andarom tanto que chegarom a ũa abadia
que era uũ vale preto dali
228
(MAGNE, 1955, p. 211).
Essa união entre os cavaleiros, fruto da idéia de pertença a uma “nação religiosa”, que
era o Cristianismo, não existiu apenas na ficção. A História mostra que esse sentimento de
identificação entre os cristãos da/na Europa não existiu na realidade como foi mesmo
decisivo para o advento das Cruzadas. Estas, por sua vez, alimentaram ainda mais, no povo
228
Ai, senhor! [...] por Deus e por cortesia, fazei uma coisa que vos rogo.
Galvão disse que o faria de bom grado, se pudesse.
Eu vos rogo disse o cavaleiro que me leveis a alguma abadia perto daqui, onde possa receber o que
prescreve a santa Igreja, como cristão deve fazer no fim de sua vida.
Assim me ajude Deus disse Galvão , não conheço lugar perto daqui onde vos possa levar.
Pois fazei isto por mim disse o cavaleiro : levai-me à vossa frente, e vos guiarei.
Então o pegou Galvão e deitou-o entre os arções da sela e cavalgou atrás dele para o segurar e deu a Heitor o
escudo para levar, e andaram tanto, que chegaram a uma abadia que ficava num vale perto dali (MEGALE,
2008, p. 155).
254
europeu, esse espìrito de “patriotismo” e de solidariedade (entre os cristãos, diga-se de
passagem). Sobre a importância e as conseqüências das Cruzadas para a Europa medieval,
disse Ivan Lins:
Lembradas, no que têem de mais essencial, as cruzadas, examinemos-lhes,
rapidamente, as consequências sociais e intelectuais. A primeira foi o
enfraquecimento do islamismo, que, até então, assustadoramente invasor, foi retido
em sua marcha triunfal, sendo ferido em seu próprio centro de ação. Si, a partir do
século XIV, retomou o crescente a sua atividade conquistadora, passando a ameaçar
de novo a Europa, foi por haverem cessado as cruzadas. Contribuiram elas, demais,
para ressaltar a unidade espiritual dos povos europeus, imprimindo-lhes uma
atividade coletiva suficientemente prolongada, de modo a se considerarem membros
de uma coletividade, congregando-se, nos momentos decisivos, como em
Lepanto, para a defesa da civilização comum (LINS, 1939, p. 412).
Para concluir essa explanação sobre o sentimento patriótico dos cavaleiros medievais
deve-se deixar claro que ele não é fruto da Idade Média. O capítulo passado mostrou que o
patriotismo existia entre os heróis míticos e os guerreiros da Antigüidade clássica: a Ilíada
talvez seja, dentre todas as obras literárias das antigas Grécia e Roma, a que traz esse
sentimento de forma mais patente, entre os antigos.
Além de defender a “pátria”, o cavaleiro medievo deveria proteger o rei: isto é tão
verdade que o próprio jogo de xadrez, surgido na Idade Média, ainda traz essa idéia. Como
esta obrigação do cavaleiro foi contemplada, de certa forma, quando se falou dos deveres
dos vassalos para com os seus suseranos; deveres, esses, que suscitavam, nos vassalos, um
sentimento “patriótico”, então não serão mais apresentados trechos d‟A Demanda do Santo
Graal em torno dessa questão. No entanto, fica aqui um pronunciamento de Jean Flori sobre
esse assunto:
O serviço militar devido pelos vassalos a seu senhor é um dever evocado por todos
os teóricos da vassalagem. [...] Não apenas o vassalo deve abster-se de prejudicar
seu senhor, mas também ele deve [...] assistência militar, enfim, contra seus
inimigos, segundo os costumes também determinados ao longo do tempo. [...] Essa
assistência é recíproca: o senhor se compromete a socorrer seu vassalo e a protegê-lo
se ele for atacado. Em compensação, exige que ele se coloque à sua disposição
armado e acompanhado de cavaleiros em número proporcional às terras “mantidas
por ele”, mas não necessariamente “por causa” desses feudos. Em outros termos, a
255
causa do serviço armado dos cavaleiros é a autoridade do rei sobre seus condes, do
senhor sobre seus vassalos. Ou melhor ainda, é o elo de vassalagem pelo qual se
expressa essa autoridade (FLORI, 2005, p. 58, passim).
Enfrentar todos os seres capazes de ameaçar a paz e o bem-estar dos povos era mais um
dos deveres do cavaleiro mediévico. A Demanda, por se tratar de uma obra literária, carrega
as tintas do quadro e, da mesma forma como outrora fizeram os mitos e as epopéias dos
antigos gregos e romanos, apresenta enfrentamentos de seres sobrenaturais por parte dos
cavaleiros, como se pode ver a partir dos seguintes trechos:
Uũ dia, aveo que stávamos a-cabo de ũa água, e vimos a bêsta cercada de tôdas
partes assi que nom podia scapar em nhũa guisa. E o milhor de meus filhos tiinha ũa
lança e stava mais preto dela ca seus irmaãos, e o mor de meus filhos lhe deu
vozes:
Feride-a, feride-a, e veremos que traz no corpo, onde estas vozes saaem.
E êle creeu seu irmaão e os outros que assi diziam, e feriu-a pola coixa seestra, ca
lhe nom pude alhur dar. E quando se ela assi sentiu ferida, deu ũa voz mui spantosa,
tanto que era maravilha. E pois que deu a voz, saiu d[a]água homem mais negro
que o pez, e seus olhos vermelhos como as brasas, e aquel homem tomou a lança
com que a bêsta foi ferida e feriu aquel meu filho, que a ferira, de tam gram ferida,
que o matou. E depois ao outro; dês i, ao terceiro; dês i, ao quarto; | dês i, ao quinto.
E depois meteu-se na água, de guisa que depois nunca o vi
229
(MAGNE, 1955, p.
127).
Aquel dia, que vos eu digo, aveeo que adus[s]erom cavaleiros | aa côrte ũa mui
fremosa donzela, filha de jaiam, que aquel dia matarom em ũa montanha, e
quando a derom a el-rei, preguntarom-na se queria seer cristaã, e que lhe dariam
terra rica e boõ cavaleiro por marido. E ela disse que ante querria morrer de qualquer
morte, ante que seer cristaã
230
(ibidem, p. 165).
Ainda em torno dessa questão, vale lembrar que Galaaz, até ser contemplado com a
visão do Graal, objetivo maior de sua demanda, não enfrentou seres sobrenaturais como
229
Um dia aconteceu que estávamos perto de uma ribeira, e vimos a besta cercada de todos os lados, assim que
não podia escapar de nenhum modo. E o melhor de meus filhos tinha uma lança e estava mais perto dela que
seus irmãos e o menor de meus filhos lhe gritou:
Feri-a, feri-a, e vereis o que traz no corpo, de onde estas vozes saem.
E ele acreditou em seu irmão e nos outros que assim diziam, e feriu-a na coxa esquerda, porque lhe não pôde
outro lugar atingir. E quando se sentiu ferida, deu um grito muito espantoso, tanto que era maravilha. E depois
que deu o grito, saiu da água um homem mais negro que o pez, e seus olhos vermelhos como as brasas, e aquele
homem pegou a lança com que a besta foi ferida e feriu aquele meu filho que a ferira, com tão grande ferimento
que o matou. E depois ao outro; depois, ao terceiro; depois, ao quarto; depois, ao quinto. E depois meteu-se na
água, de modo que depois nunca o vi (MEGALE, 2008, p. 101).
230
Naquele dia que vos digo, aconteceu que trouxeram cavaleiros à corte uma donzela muito formosa, filha de
um gigante, que naquele dia mataram, numa montanha, e quando a deram ao rei [Artur], perguntaram-lhe se
queria ser cristã, e lhe dariam terra rica e bom cavaleiro por marido. E ela disse que antes queria morrer de
qualquer morte a ser cristã (MEGALE, 2008, p. 125).
256
também teve de se submeter a determinadas provas, para mostrar aos outros, mas,
principalmente, a si mesmo, o seu valor, a sua coragem, a sua bondade e, certamente, a sua
destreza bélica. Quando não enfrentava esses obstáculos de grado, porque, de fato, não os
temia, Galaaz era estimulado a dar cabo deles, geralmente pelo Rei Artur ou por alguém que
lhe era espiritualmente superior. Impossível não lembrar, ao ver Galaaz realizando todas essas
tarefas, de Hércules ou de outro herói mitológico, como Perseu, Teseu ou Jasão. Aliás, com
este último Galaaz também se assemelha, por ter saído em busca de um objeto sagrado: o
Santo Cálice. Jasão, como se viu no capítulo anterior, saiu em demanda do Velocino de Ouro.
Agora, passagens d‟A Demanda do Santo Graal que trazem alguns dos trabalhos que Galaaz
realizou, em sua breve vida: sentar-se na “seeda” perigosa; retirar a espada do pedrão; ser
provado quanto à sua por um homem que o queria matar; expulsar um mau espírito de um
cemitério de homens bons.
Senhor, [disse o ermitam], cedo o veredes em boõ começo.
Entam lhe fêz vestir os panos, que trazia, e foi-o assentar na seeda perigosa. E disse:
Filho, ora vejo o que muito desejei, quando vejo a seeda perigosa comprida.
E quando virom Galaaz na seeda, logo todos os cavaleiros houverom poder de falar,
e bradarom todos a ũa voz:
Dom Galaaz, vós sejades o bem-vúdo ca êles já seu nome sabiiam, ca o
ermitam o nomeara já i
231
(MAGNE, 1955, p. 21).
E Galaaz disse que iria mui de graado. Entam o filhou el-rei pola maão e levou-o
[a]a rebeira do rio, u o padram stava. E os do paaço forom todos com êles, por
veerem [o] que poderia seer. E quando a rainha viu ca el-rei levava Galaaz pola
maão ao pedram, saíu ela com gram companha de donas e de donzelas; e el-rei disse
a Galaaz:
Queredes sacar esta espada dêste padram? Ca a nom quer nhuũ provar, de quantos
aqui som, ca dizem que a [a]ventura nom é sua. Provade-a, se vos aprouver; ca se o
vós nom provades, nom acharemos cavaleiro que o prove.
Entam filhou Galaaz a espada polo mogoram e tirou-a tam ligeiramente, como se
nam tevesse em rem. E depois filhou a bainha e meteu-a dentro e cingeu-a logo, e
disse a el-rei:
Senhor, ora hei já a espada, mais o scudo nom hei.
Amigo, disse el-rei, pois Deus e a [a]ventura vos a espada deu, nom tardará muito
o scudo
232
(ibidem, p. 25).
231
Senhor disse o ermitão , cedo o vereis em bom começo.
Então fê-lo vestir os panos que trazia e foi assentá-lo no assento perigoso. E disse:
Filho, agora vejo o que muito desejei, quando vejo o assento perigoso ocupado.
E quando viram Galaaz no assento, logo todos os cavaleiros tiveram poder de falar, e bradaram todos a uma voz:
Dom Galaaz, sede o bem-vindo pois seu nome sabiam, porque o ermitão o nomeara ali (MEGALE,
2008, p. 30).
257
Muitas mercees, disse o cavaleiro. Pois ora vos peço que me talhedes a cabeça
com esta spada que trago, que nom desejarei tanto cousa como de morrer per maão
de tam boõ cavaleiro como vós sodes, ca bem sei que tam boõ cavaleiro como vós
nom me poderá matar.
Entam tirou a espada da bainha e pose-a na mesa e disse:
Ga|laaz, filhade esta espada e fazede o que vos eu rogo.
E el catou-o e começou-se a sinar polo que lhe dizia, ca o teve por maravilha. E
respondeu:
Ai, Senhor cavaleiro! Al me pedide, ca vós nem outro cavaleiro nom matarei,
senam em defendendo meu corpo ou meu senhor.
[...]
Nom? disse el. Pois quero-vos eu matar.
Entam ergeu a espada e fêz enfiinta que o queria matar. Mas Galaaz, que nunca
houvera medo, nom se moveu, ca nunca el dultara cousa que fôsse. E quando o
cavaleiro viu que o nom podia spantar, disse:
Galaaz, ora vejo eu bem que tu acabarás as aventuras do regno de Logres, ca te
vejo esforçado, que nunca cuidei veer homem [que o fôsse] tanto. E por Esso te
provei eu; porque és mais ardido que outro, te leixei de matar, ca muito seria gram
dapno, se [a] atal sazom morresses. E pero, pois que eu de manhaã hei-de morrer,
nom per ti quero coitar minha morte.
Entam meteu a espada per si e com coita de morte caeu [e] disse a Galaaz:
Senhor, roga a Deus por mim.
Logo que êsto disse, foi morto. E quantos na casa siiam foram maravilhados
233
(ibidem, pp. 57-59).
Depós êsto, nom atendeu mais Galaaz, mas foi-se toste ao muimento; e tanto que i
chegou, ouviu logo ũa voz de tam gram dor, que maravilha era, e dizia assi:
232
E Galaaz disse que iria de muito bom grado. Então o pegou o rei pela mão e levou-o à margem do rio, onde a
pedra estava. E os do paço foram todos com ele, para verem o que poderia ser. E quando a rainha viu que o rei
levava Galaaz pela mão à pedra, saiu com ela com grande companhia de donas e donzelas. E o rei disse a
Galaaz:
Quereis sacar esta espada desta pedra? Pois a não quer ninguém provar de quantos aqui estão, porque dizem
que a aventura não é deles. Provai-a, se vos aprouver, porque se o não provais, não acharemos cavaleiro que o
prove.
Então pegou Galaaz a espada pelo punho e puxou-a tão facilmente, como se não estivesse presa a nada. E depois,
pegou a bainha e meteu-a dentro e cingiu-a logo, e disse ao rei:
Senhor, agora tenho já a espada, mas o escudo não tenho.
Amigo disse o rei , pois Deus e a ventura vos a espada deu, não tardará muito o escudo (MEGALE, 2008, p.
33).
233
Muito obrigado disse o cavaleiro. Pois agora vos peço que me corteis a cabeça com esta espada que
trago, que nada desejarei tanto, como morrer por mão de tão bom cavaleiro como vós, porque bem sei que bom
cavaleiro como vós não me poderá matar.
Então tirou a espada da bainha e colocou-a na mesa e disse:
Galaaz, pegai esta espada e fazei o que vos eu rogo.
E ele olhou-o e começou a persignar-se pelo que lhe dizia, porque o teve por maravilha. E respondeu:
Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi, porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei, senão em
defendendo meu corpo ou meu senhor.
[...]
Não? disse ele. Pois quero-vos eu matar.
Então ergueu a espada e fez de conta que o queria matar. Mas Galaaz, que nunca tivera medo, não se moveu,
porque nunca duvidou do que quer que fosse. E quando o cavaleiro viu que o não podia espantar, disse:
Galaaz, agora bem vejo que acabarás as aventuras do reino de Logres, porque te vejo esforçado, como nunca
cuidei ver alguém que o fosse tanto. E por isso te provei eu; porque és mais valente que outro, te deixei de matar,
porque muito seria grande o dano se neste momento morresses. E pois que de manhã hei de morrer, não por ti,
quero lamentar minha morte.
Então enfiou a espada em si e com sofrimento de morte caiu e disse a Galaaz:
Senhor, roga a Deus por mim.
Logo que isto disse, morreu. E quantos na casa estavam, ficaram maravilhados (MEGALE, 2008, pp. 56-57).
258
Ai, Galaaz, servo de Jesu Cristo, nom te chegues a mim, ca me farás leixar êste
lugar, em que ataaqui foi.
Pero Galaaz êsto ouviu, nom se spantou, como aquêle que era mais sforçado ca
outro cavaleiro, e foi ao muimento e quis erger a campaã, e viu sair fumo tam
negro como pez, depois ũa chama, depois ũa figura em semelhança de homem, a
mais fea e a mais stranha cousa que nunca homem viu, e sinou-se, ca bem lhe
semelhou cousa de diáboo. Entam ouviu ũa voz, que lhe disse:
Ai, Galaaz, santa cousa em ti vejo; eu te vejo cercado de ângeos, que nom posso
durar contra ti. E porém te leixo meu lugar, em que longo tempo folguei.
Quando el a voz ouviu, guardeceu muito a Jesu Cristo e sinou-se e deitou a campaã
alonge do muimento, e viu jazer no muimento corpo de cavaleiro todo armado
234
(ibidem, p. 77).
Ainda que defender a “pátria”, proteger o rei e enfrentar todos os seres capazes de
ameaçar a paz e o bem-estar dos povos constituíssem em deveres do cavaleiro, este jamais
poderia se voltar contra alguém que estivesse desarmado: isso ia contra o código de ética da
cavalaria. Há um excerto n‟A Demanda que ilustra muito bem o que acaba de ser dito:
Cavaleiro, morto me havedes de seer, que esta dona matastes a tam gram torto e a
desonra de mim. Assi Deus me ajude, se desarmados nom fôssedes, eu me vingaria
em guisa, que jamais em outrem nom metêssedes maão, ca se eu armado vos
cometesse, que sodes desarmados, terriam-mo por vilania. E porém vos conselho
que me nom cometades, ca sabede, sem falha, que vos matarei, como quer que no a
vilania tenham
235
(MAGNE, 1955, p. 245).
Outro dever dos cavaleiros era o de zelar pelos interesses da Igreja. N‟A Demanda do
Santo Graal, essa obrigação do cavaleiro restringe-se, praticamente, à obediência aos
preceitos cristãos, católicos, como: amar a Deus sobre todas as coisas; não matar; não pecar
contra a castidade; não desejar a mulher do próximo; enfim, aos dez mandamentos. Como
234
Depois disto, não esperou mais Galaaz, mas foi logo ao mulo; e assim que chegou lá, ouviu logo uma voz
de tão grande dor que maravilha era, e dizia assim:
Ai, Galaaz, servo de Jesus Cristo, não te chegues a mim, porque me farás deixar este lugar em que até agora
fiquei.
Mas Galaaz isto ouviu, não se espantou, como aquele que era mais esforçado do que outro cavaleiro, e foi ao
túmulo e quis erguer a pedra, e viu sair uma fumaça, tão negra como pez, depois uma chama, depois uma figura
em semelhança de homem, a mais feia e a mais estranha coisa que nunca se viu, e persignou-se, porque bem lhe
pareceu coisa do diabo. Então ouviu uma voz que lhe disse:
Ai, Galaaz santa coisa em ti vejo; eu te vejo cercado de anjos, que não posso resistir contra ti. E por isso te
deixo o meu lugar, em que longo tempo folguei. Quando ele a voz ouviu, agradeceu muito a Jesus Cristo e
persignou-se e lançou a pedra longe do túmulo e viu jazer no túmulo um corpo de cavaleiro todo armado
(MEGALE, 2008, pp. 68-69).
235
Cavaleiro, haveis de ser morto por mim, porque esta mulher matastes a tão grande erro e desonra de mim.
Assim Deus me ajude, se o estivésseis desarmados, eu me vingaria, de modo que jamais em outrem não
pusésseis a mão, porque se eu armado vos atacasse a vós que estais desarmados, ter-me-iam por vilania. E por
isso vos aconselho que me o acometais, porque sabei, sem falha, que vos matarei, ainda que mo tenham por
vilania (MEGALE, 2008, p. 176).
259
Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, em Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur
236
, e
Heitor Megale, em O Jogo dos Anteparos A Demanda do Santo Graal: a Estrutura
Ideológica e a Construção da Narrativa
237
, trataram do aspecto religioso da novela em
questão, como bem mostrou a introdução desta dissertação, este capítulo não irá se delongar
em torno desse assunto, pois o que importa aqui é discorrer sobre os resíduos clássicos d‟A
Demanda e do Medievo. Entretanto, ainda para mostrar (se é que é necessário) o quanto essa
novela foi fiel ao universo em que foi gestada (o medieval), vale a pena ler o que disseram
Jacques Le Goff, Jean Flori, Ivan Lins e Mário Curtis Giordani sobre o dever da cavalaria
mediévica para com a Igreja:
Essa oposição radical à guerra e ao serviço militar é expressa mais nitidamente ainda
em Hipólito de Roma, na primeira metade do século III. Ele anuncia claramente a
regra a seguir: nenhum cristão deve se tornar soldado. Se ele o fizer, é preciso
excluí-lo da comunidade dos fiéis, expulsá-lo. É a posição mais corrente na Igreja
primitiva. Mas Hipólito vai mais longe. Contrariamente à atitude mais tolerante
iniciada por João Batista e retomada por São Paulo, ele não admite que um soldado
que se tornou cristão permaneça no exército. Ele deverá escolher: ser soldado ou
cristão. Os dois estados são incompatíveis. Essa intransigência absoluta não foi, ao
que parece, seguida. Eles se contentarão em exigir que os cristãos não se empreguem
como soldados. Tertuliano, no Ocidente, salienta essa necessidade (FLORI, 2005, p.
129).
“A guerra é sempre satânica em suas origens e devemos sempre abster-nos dela.
Mas, si nos não é possível evitá-la; si se trata de nossa defesa, da de nosso país e das
leis de nossos maiores, não resta dúvida de que nos devemos preparar para ela,
mesmo na quaresma” (NICOLAU I apud LINS, 1939, p. 138).
A Europa feudal dos séculos XI e XII é também aquela em que, em ligação com a
Cruzada, aparece uma novidade na ordem monástica. São as ordens militares, sendo
que as principais foram a Ordem dos Templários, a Ordem dos Hospitalares de São
João de Jerusalém, a ordem alemã de Santa Maria dos Teutônicos, a Ordem Inglesa
de São Tomás de Acre e diversas ordens, na Península Ibérica, em ambiente
espanhol e português. Estas ordens são feitas essencialmente para lutar pelo gládio, a
oração e a conversão, contra os infiéis e pagãos. Representam uma importante
anulação da regra segundo a qual os clérigos não devem derramar sangue. São
Bernardo, cisterciense, pouco inclinado a gostar das novidades, louva, no entanto, os
cavaleiros daquilo que ele chama a nova militia engajados na cruzada. Mas essas
ordens militares específicas substituirão, num clima geral de cristianismo,
comportamentos militares. Embora não seja militar, a religião se torna, de maneira
geral, militante. Assim aparece uma noção destinada a uma grande sorte, a do
militantismo (LE GOFF, 2007, p. 90).
A partir de agora os súditos desse império cristão, e logo os cristãos, foram
chamados a defender esse império. A desconfiança em relação à guerra persistiu, no
236
op. cit.
237
op. cit.
260
entanto, por muito tempo no cristianismo. Mesmo quando houve uma evolução em
relação às práticas guerreiras, o porte de armas e a efusão de sangue que resultava
disso foi proibido aos bispos e, de uma maneira geral, aos clérigos. As exceções
foram bastante raras. E a única que foi aceita e até louvada pela Igreja, foi a das
ordens militares que, para a defesa dos Lugares Santos cristãos e em certas ocasiões,
no Ocidente, constituíram, a partir do século XII, grupos de monges cavaleiros na
Península Ibérica, por exemplo, ou na Prússia e na Lituânia com os cavaleiros
teutônicos. Mas a evolução mais importante foi a elaboração de uma teoria da guerra
justa que, na sua essência, foi elaborada por Santo Agostinho. A guerra justa era
uma guerra destinada e praticada não por um personagem individual, mas por um
chefe revestido de uma autoridade suprema como fora o imperador cristão ou como
se tornariam os príncipes e reis da Idade Média. A guerra, aliás, não devia ser
agressiva. O cristianismo recusou sempre a noção de guerra preventiva; ela devia ser
uma resposta a uma agressão ou a uma injustiça (ibidem, pp. 136-137).
Além de sua alta importância para ressaltar a estreita solidariedade, que liga os
diversos povos europeus, imprimindo-lhes uma atividade coletiva suficientemente
prolongada, contribuíram as Cruzadas para preservar a evolução ocidental do
temível preselitismo muçulmano. Adotando uma tese sustentada pêlo Abade Fleury
e retomada por De Maistre e De Bonald, foi Augusto Comte, em sua Dinâmica
Social, o primeiro filósofo, emancipado da teologia, a apreciar a utilidade social das
Cruzadas, salientando-lhes o caráter defensivo (LINS, 1939, pp. 299-300).
No decurso dos séculos XII e XIII esses dois tipos de vida guerreira
238
vão sofrendo
limitações até adquirirem, no século XIII, na maior parte das senhorias um caráter
defensivo (GIORDANI, 1983, p. 196).
Como se pôde observar, a Igreja Católica, que, num primeiro momento, manifestou-se
contrária à participação de cristãos em guerras, teve de elaborar, tempos depois, por ocasião
das Cruzadas, o conceito de “guerra defensiva”, para poder angariar o apoio dos cavaleiros
medievais. Assim, também por meio da luta armada (e, durante muito tempo, principalmente
por essa via) deveriam zelar os cavaleiros pelos interesses da Igreja. Algumas passagens d‟A
Demanda do Santo Graal documentam esse caráter defensivo da cavalaria dos séculos XII e
XIII, época áurea das Cruzadas:
Ai, Senhor cavaleiro! Al me pedide, ca vós nem outro cavaleiro nom matarei,
senam em defendendo meu corpo ou meu senhor
239
(MAGNE, 1955, p. 57).
Assi, disse o cavaleiro, se me quiser [ir], cá nós, que somos estrangeiros e que nom
ganhámos ainda a honra da Mesa Redonda, havemos uma avantagem sôbre vós, que
vós nom havedes sôbre nós; cá nós vos podemos chamar a batalha e a justas a nosso
prazer, e vós nom podedes êsto fazer, que vo-lo nom tenham por gram maldade; mas
se vós nos i chamades, nós nos podemos bem sem culpa escusar, se nom formos
238
ost (hostis), cavalgada (cavalcata).
239
Ai, senhor cavaleiro! Outra coisa me pedi, porque a vós nem a outro cavaleiro não matarei, senão em
defendendo meu corpo ou meu senhor (MEGALE, 2008, p. 55).
261
cha|mados por alei[ve] ou por treiçam. Dixe-vos eu verdade
240
(MAGNE, 1955, p.
355).
Nós o chamamos, disse Galvam, Claudim, e é filho del-rei Claudas da Deserta.
Enquanto êles iam assi falando de Claudim, Claudim se parou em meo do caminho e
começô-os de chamar, se queriam justar. E Persival, que nunca falecera nem receava
aventuira nenhũa, pôs o escudo sôbre a cabeça e o peito, e baixou a lança. E Galvam
lhe disse:
Ai, Senhor! Por mercee, deixaae a justa, ca vos nom conhece o cavaleiro.
E Persival nom respondeu cousa algũa, ante se leixou ir a Claudim e deu-lhe ũ tal
golpe, que o meteu em terra do cavalo, mas outro mal nom lhe fêz, || que era boa a
loriga
241
(MAGNE, 1955, p. 365).
Uma das obrigações dos cavaleiros mais conhecidas do grande público certamente é a
ajuda aos indefesos: não há uma novela de cavalaria ou um livro de História sequer que deixe
de lado essa questão, ao tratar da Idade Média e, em especial, do cavaleiro medieval. Com a
Demanda não poderia ser diferente: alguns trechos de sua longa narrativa mostram o quanto
os cavaleiros eram procurados para resolver contendas, para lutar em defesa de alguém ou
mesmo para livrar uma pessoa da morte ou de um perigo iminente.
E êles ambos em êsto falando, aque cavaleiro que vinha contra êles correndo
quando o cavalo o podia aduzer. E quando chegou a êles, disse-lhes:
Senhores, havede-me mercee e defendede-me de cavaleiro que sem razom me
quer matar.
E quem é? disserom êles. Conho--lo?
Nom, disse êle, mas traze uũ scudo negro e o liom de argém.
E êles entenderom que era Queia o mordomo e responderom:
Dêste nom vos podemos emparar nem defender, senam per boõa palavra, ca é
nosso companheiro da Távola Redonda.
Êles em êsto falando, aque-vos Queia. E êles stando assi a pee disserom a dom
Queia:
Leixade êste cavaleiro, que lhe nom façades mal
242
(MAGNE, 1955, p. 121).
240
Assim disse o cavaleiro , se quiser ir, porque nós que somos estrangeiros, e não ganhamos ainda a honra
da mesa redonda, temos uma vantagem sobre vós, que não tendes sobre nós; porque vos podemos chamar a
batalhas e a justas a nosso prazer, e não podeis isto fazer, que vo-lo não tenham por grande maldade, mas se nos
chamais, podemos bem sem culpa excusar, se não formos chamados por aleive ou por traição. Disse-vos eu
verdade (MEGALE, 2008, p. 247).
241
Nós o chamamos disse Galvão Claudim, e é filho do rei Claudas da Deserta.
Enquanto iam falando de Claudim, Claudim parou no meio do caminho e começou a chamá-los, se queriam
justar. E Persival, que nunca falhara nem receava aventura alguma, pôs o escudo sobre a cabeça e o peito, e
baixou a lança. E Galvão lhe disse:
Ai, senhor! Por favor, deixai a justa, porque vos não conhece o cavaleiro.
E Persival não respondeu coisa alguma, antes se deixou ir a Claudim e deu-lhe tal golpe, que o meteu por terra
do cavalo, mas outro mal não fez, que era boa a loriga (MEGALE, 2008, p. 252).
242
E eles nisto falando, eis que um cavaleiro vinha correndo para eles, quanto o cavalo podia trazer. E quando
chegou a eles, disse-lhes:
Senhores, tende mercê de mim e defendei-me de um cavaleiro que, sem razão, me quis matar.
E quem é? disseram eles. Vós o conheceis?
Não disse ele , mas traz um escudo negro e um leão de prata.
262
Ora querria eu, se prouguesse a Deus, que achássemos algũa aventuira
maravilhosa.
E tanto que êsto disse, viram viῖr uũ cavaleiro armado, sem lança e sem escudo, mal-
chagado, e [vinha] quanto o cavalo o podia aduzer. E tanto que || viu os cavaleiros,
dei-lhe vozes, dizendo:
Ai, Senhores! Por Deus, sodes cavaleiros andantes?
Disseram êles:
Si, mas por que o preguntades?
Por haver vossa ajuda, disse el, ca cavaleiro vem pós mim, que [me] quer
matar, e nom me devedes aa falecer a atal hora, ca todo cavaleiro andante deve
ajudar todos aquêles que lhe ajuda demandarem.
Ora, disseram êles, nom temades, nós vos tomamos em nossa guarda [contra] o
cavaleiro, [qualquer] que el seja
243
(MAGNE, 1955, p. 317).
Esses excertos d‟A Demanda do Santo Graal mostram-se consentâneos com a realidade
medieva, como atesta esta passagem do livro A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas
244
,
de Ivan Lins:
Além do culto da Mulher e do da Virgem, que foi uma consequência do primeiro,
denuncia, nitidamente, a influência católica sôbre a cavalaria, a comiseração para
com os pobres e desvalidos, devendo o cavaleiro tomá-los sob sua proteção e
amparo. [...] O dever do cavaleiro observava no século XIII o autor do poema:
“L‟Ordene de Chevalerie” “é tornar-se o arrimo dos fracos, afim de que o forte os
não vilipendìe” (LINS, 1939, p. 170).
Vale salientar que essa defesa dos mais fracos o representou uma novidade medieva:
ela também se constituía numa das obrigações dos heróis mitológicos e dos guerreiros greco-
romanos, conforme se pôde ver no capítulo passado.
E eles entenderam que era Quéia, o mordomo, e responderam:
Deste não vos podemos amparar nem defender, a não ser por boa palavra, porque é nosso companheiro da
távola redonda.
Eles nisto falando, aproxima-se Quéia. E eles estando assim a pé, disseram a dom Quéia:
Deixai este cavaleiro, não lhe façais mal (MEGALE, 2008, p. 97).
243
Agora, quereria eu, se a Deus aprouvesse, que achássemos alguma aventura maravilhosa.
E tão logo isto disse, viram vir um cavaleiro armado, sem lança e sem escudo, muito ferido, e vinha quanto o
cavalo o podia trazer. E assim que viu os cavaleiros, gritou-lhes dizendo:
Ai, senhores! Por Deus, sois cavaleiros andantes?
Disseram eles:
Sim, mas por que o perguntais?
Para ter vossa ajuda disse ele , porque um cavaleiro vem atrás de mim que me quer matar e não me deveis
falhar em tal hora, porque todo cavaleiro andante deve ajudar a todos aqueles que lhe ajuda pedirem.
Ora disseram eles , não temais, porque vos tomamos sob nossa proteção contra o cavaleiro, seja ele quem
for (MEGALE, 2008, p. 220).
244
op. cit.
263
Intimamente relacionado a este último dever dos cavaleiros mediévicos encontra-se
aquele que diz respeito às obrigações destes para com as mulheres: era obrigação da cavalaria
aconselhá-las e ajudá-las no que fosse preciso; principalmente as defendendo contra homens
que delas procuravam tirar algum proveito. A Demanda traz alguns trechos que abordam o
comportamento que os cavaleiros deveriam ter com relação às mulheres; como estes:
Ai, donzela, disse Lançalot, que ventura vos adusse aqui? Que bem sei que sem
razom non veestes vós.
Senhor, verdade é, | mais rogo-vos, se vos aprouguer, que vaades comigo aaquela
foresta de Caamalot; e sabede que manhaã, hora de comer, seeredes aqui.
Certas, donzela, disse el, muito me praz, ca teúdo soom de vos fazer serviço em
tôdalas cousas que eu poder
245
(MAGNE, 1955, p. 3).
Ai, cavaleiro! Dá-me ũ dom.
E el olhou pera ela e disse-lhe:
Donzela, pidide-o, ca o haveredes, se nom fôr cousa que seja contra meu
juramento.
Respondeu ela:
Muitas mercees. Pois ora me dade êste corço, ca por al nom viim eu aqui.
Ai, doncela! Por Deus, pi[di]de-me outro dom, que [a] atal hora nom poderia eu
êste corço dar, porque muito que nom comi; mas empero, se o corço quiserdes,
filhade dêle quanto quiserdes, del me deixade tam solamente per que eu possa minha
fame perder.
Par Deus, ou eu todo [o] levarei, || ou nom levarei del ninhũa cousa, e rogo-vos
pola fé que devedes a Deus, que todo mo dedes.
Entom disse el:
Eu vo-lo dou, ca, sôbre tal juramento, nom no duvidaria eu a vós nem a outrem
246
(ibidem, p. 327).
Quando el viu a donzela chorar, foi alá, por saber a rezam de seu doo e per lhe poer i
todo conselho que podesse, ca êste era o direito dos cavaleiros andantes, de darem
conselho a tôdas donzelas estranhas
247
(ibidem, p. 337).
245
Ai, donzela disse Lancelote , que ventura vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não viestes.
Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos aprouver, que vades comigo àquela floresta de Camalote; e sabei que
amanhã, à hora de comer, estareis aqui.
Certamente, donzela disse ele , muito me agrada, pois tenho obrigação de vos servir em tudo que puder
(MEGALE, 2008, p. 17).
246
Ai, cavaleiro! Daí-me um dom.
E ele olhou para ela e disse-lhe:
Donzela, pedi-o, que o tereis, se não for coisa que seja contra meu juramento.
Respondeu ela:
Muito obrigada. Pois agora dai-me este corço, porque por outro motivo não vim aqui.
Ai, donzela! Por Deus, pedi-me outro dom, porque agora não poderia este corço dar, porque muito tempo
que não comi; no entanto, se o corço quiserdes, tomai dele o quanto quiserdes, dele deixai-me tão-somente um
tanto para que possa matar minha fome.
Por Deus, eu o levarei todo, ou não levarei dele nenhum pedaço, e rogo-vos pela que deveis a Deus, que
todo mo deis.
Então disse ele:
Eu vo-lo dou, porque, sobre tal juramento, não o negaria nem a vós, nem a outrem (MEGALE, 2008, p. 226).
264
Donzela, disse || êle, eu vos guiarei e vos levarei a salvo.
Senhor, disse ela, se êsto soubesse, ir-me-ia com vosco, ca bem vejo que dêste
cavaleiro nom posso haver ajuda, bem o cuido
248
(ibidem, p. 89).
A outra er foi tal, que uũ cavaleiro levava ũa donzela ante si, e ia polo outro
semedeiro; e ela ia chorando e fazendo tam gram doo, que bem vos semelharia, que
ante querria seer morta ca viva, ca o cavaleiro a presara em casa de seu padre e
queria-a levar ao mato, por haver dela sua virgindade e seu pesar. E tanto que a
donzela viu Boorz, conhoceu bem que era dos cavaleiros do Santo Graal, dos que
nom faleceriam a donzela coitada por rem que aveesse, e deu-lhe vozes quanto pôde:
Ai, cavaleiro boõ, por Deus e por piedade, acorre-me e livra-me dêste desleal, que
me quer escarnecer, se tu és dos boõs cavaleiros que andam na demanda do Santo
Graal.
[...]
Quando Boorz êsto ouviu, nom soube que fezesse: se a seu irmão nom acorresse,
êsto seeria a maior diabrura do mundo; e, de outra parte, se nom acorresse aa
donzela, seria desleal contra Deus e contra o mundo, ca havia prometudo a Deus e
aos da Távola Redonda, que jamais nom faleceria dar ajuda a donzela que lha
demandasse. E ela lh[a] demandava e dizia:
Ai, boõ cavaleiro, por Deus e por piedade, haveede de mim mercê e nom me
leixees scarnecer assi.
[...]
Entam [Boorz] feriu o cavalo das esporas e foi-se depós a donzela, que era quanto
alongada. Encomendou-se muito a Deus e nom andou muito que viu em vale o
cavaleiro que decera e tiinha a donzela sub si para jazer com ela. E ela dava vozes
quanto podia. Entam, quando Boorz êsto ouviu, leixou-se correr ao cavaleiro e deu-
lhe vozes:
Dom cavaleiro, leixade a donzela, que em maau ponto a filhastes
249
(ibidem, pp.
235-237, passim).
Ai, donzela, disse Gansonais, pois Persival vos quer guiar, metede-vos em sua
guarda, ca eu vos digo que vos levará a salvo.
[Eu me] meterei, disse ela, pois me [o] vós conselhades
250
(ibidem, p. 341).
247
Quando ele viu a donzela chorar, foi para saber a razão de sua mágoa e para lhe dar todo conselho que
pudesse, porque este era o dever dos cavaleiros andantes de darem conselho a todas as donzelas estranhas
(MEGALE, 2008, p. 234).
248
Donzela disse ele , eu vos guiarei e vos levarei a salvo.
Senhor disse ela , se isto soubesse, iria convosco, porque bem vejo que deste cavaleiro não posso ter ajuda,
bem o cuido (MEGALE, 2008, p. 76).
249
A outra também foi tal que um cavaleiro levava uma donzela diante de si, e ia pelo outro caminho; e ela ia
chorando e fazendo tão grande lamento, que bem vos parecia que antes queria estar morta do que viva, porque o
cavaleiro a prendera em casa de seu pai e queria levá-la ao mato. E assim que a donzela viu Boorz, reconheceu
bem que era dos cavaleiros do santo Graal, dos que não falhariam a donzela atormentada por algo que
acontecesse, e gritou-lhe o quanto pôde:
Ai, cavaleiro bom, por Deus e por piedade, socorre-me e livra-me deste desleal, que me quer escarnecer, se tu
és dos bons cavaleiros que andam na demanda do santo Graal.
[...]
Quando Boorz isto ouviu, não soube o que fizesse; se a seu irmão não socorresse, isto seria a maior diabrura do
mundo. E, por outro lado, se não socorresse a donzela, seria desleal com Deus e com o mundo, porque havia
prometido a Deus e aos da távola redonda que jamais deixaria de dar ajuda a donzela que a pedisse. E ela a pedia
e dizia:
Ai, bom cavaleiro, por Deus e por piedade, tem de mim compaixão e não me deixes escarnecer assim.
[...]
Então [Boorz] feriu o cavalo com as esporas e foi atrás da donzela que estava já um tanto afastada. Encomendou-
se muito a Deus e não andou muito que viu num vale o cavaleiro que descera e que tinha a donzela embaixo de si
para deitar com ela. E ela gritava quanto podia. Então, quando Boorz isto ouviu, deixou-se correr ao cavaleiro e
gritou-lhe:
Dom cavaleiro, deixai a donzela, que em má hora a tomastes (MEGALE, 2008, pp. 169-171, passim).
265
E a donzela chegou-se e disse || a Galaaz:
Se vós sodes o melhor cavaleiro do mundo e eu som ũa donzela pobre e
descon[se]lhada, pois que vos demando vossa ajuda, por Deus, nom me faleçades a
tal saçom; ca se o vós fezedes, eu serei scarnida, e a desonra seria vossa, ca bem
sabedes vós que sodes teúdo [porque sodes] da Mesa Redonda, per direito, de
ajudardes tôda donzela que ajuda vos demandar
251
(ibidem, p. 343).
Esse modo de agir dos cavaleiros medievais para com o sexo oposto, da forma como
mostraram os excertos d‟A Demanda do Santo Graal, refletem bem o que de fato ocorria no
universo medievo: tanto havia homens prontos a proteger as mulheres quanto existiam
homens prestes a humilhá-las e a maltratá-las de todas as formas. Jacques Le Goff chama a
atenção para o fato de que, em geral, a situação da Mulher na Idade Média era ruim. Apenas
as que pertenciam às camadas superiores da sociedade, como era de se esperar, recebiam
um melhor tratamento. Esse menosprezo às mulheres, por parte da civilização mediévica,
encontra sua razão de ser na figura de Eva, que tinha imerso o mundo em pecados. A situação
da mulher só começou a mudar, de acordo com Ivan Lins, a partir da cristianização da
cavalaria: o Amor pregado pelo Catolicismo fez com que os homens encontrassem, no plano
terreal, um alvo, que era a mulher. Teria sido então a partir desse amor dedicado às mulheres,
num primeiro momento, que teria surgido o culto mariano, que, por sua vez, serviu para
melhorar a visão que se tinha da Mulher. Para Le Goff, o culto à Virgem não assinala o início
da melhoria da situação da Mulher na sociedade medieval, mas o seu fim. Os renascimentos
mediévicos, notadamente o carolíngio, e as cruzadas também serviram para melhorar a vida
das mulheres medievas: deram-lhes mais liberdade. Le Goff aponta os movimentos heréticos
femininos como protestos do “gênero fraco” contra todas as formas de opressão a que
250
Ai, donzela disse Gansonais , visto que Persival vos quer guiar, colocai-vos sob sua guarda, porque vos
digo que vos levará a salvo.
Colocar-me-ei disse ela , pois me aconselhais (MEGALE, 2008, p. 237).
251
E a donzela chegou-se e disse a Galaaz:
Se sois o melhor cavaleiro do mundo, e sou uma donzela pobre e desaconselhada, pois que peço vossa ajuda,
por Deus, não me falheis nesta ocasião; porque se isto fizerdes, serei humilhada, e a desonra seria vossa, porque
bem sabeis que sois obrigado, por dever da mesa redonda, a ajudar toda donzela que ajuda vos pedir (MEGALE,
2008, p. 238).
266
estavam sujeitas as mulheres na Idade Média. Sobre o que acabou de ser dito acerca da
Mulher mediévica, disseram as seguintes palavras Jacques Le Goff e Ivan Lins:
Que ali a mulher tenha sido uma inferior, é algo sobre o quê não dúvida. Nesta
sociedade militar e viril, com a subsistência sempre ameaçada, e onde, por
conseguinte, a fecundidade era antes uma maldição (de onde a interpretação sexual e
procriadora do pecado original) do que uma bênção, a mulher não era honrada. E
parece que o Cristianismo pouco fez para melhorar sua posição material a moral. Ela
é a grande responsável pelo pecado original. E, nas formas de tentação diabólica, ela
é a pior encarnação do mal. [...] Quando no Cristianismo promoção da mulher
somos levados a reconhecer no culto da Virgem, triunfante nos séculos 12 e 13, uma
mudança de rumo da espiritualidade cristã, que passa a sublinhar a redenção da
mulher pecadora por Maria, a Nova Eva; mudança que se revela ainda no
desenvolvimento do culto de Madalena a partir do século 12, como se pode
comprovar a partir da história do centro religioso de Vézelay tal reabilitação não
está na origem mas na conclusão de uma melhoria da situação da mulher na
sociedade (LE GOFF, 2005, p. 285, passim).
Tornando-se o homem, através da purificação e do acréscimo de ternura nêle
produzidos pelo Catolicismo, mais capaz de amar, aplicou essa capacidade, não a
Deus, sêr ininteligível e inaccessível ao seu entendimento, mas à Mulher,
companheira das horas de dor e alegria, que lhe suavizava a existência. Surgiu,
assim, espontaneamente, na Idade-Média, o culto da mulher, que passou a constituir
um dos característicos da cavalaria, e, em consequência dêsse culto, sem que os
seus próprios autores o percebessem, se intensificou também o culto da Virgem
(LINS, 1939, p. 168).
Conservou-se, portanto, Maria, inclusive depois dêsse dogma, a personificação da
mulher no maior esplendor de seus atributos (ibidem, p. 169).
Que haja sido o culto da Virgem uma consequência da elevação moral da Mulher e
da adoração que passou a receber durante a Idade-Média, é a prova mais
concludente a completa inexistência dêsse culto nos primeiros séculos do
Catolicismo (idem).
O papel das mulheres nos movimentos heréticos (notadamente o Catarismo) ou
quase heréticos (as beguinas, por exemplo) é o sinal de sua insatisfação em face do
lugar que lhe era reservado. Desprezo que entretanto se faz necessário nuançar (LE
GOFF, 2005, p. 285).
Nas camadas superiores da sociedade, as mulheres gozaram sempre de um certo
prestígio. Ao menos certas delas. As grandes damas brilhavam vivamente, e aqui
também a literatura reteve o reflexo (ibidem, p. 286).
Muitas vezes se pretendeu que as cruzadas, ao deixar as mulheres sozinhas no
Ocidente, trouxeram um crescimento de seus poderes e seus direitos. Ainda
recentemente David Herlihy sustentou que a condição das mulheres, sobretudo na
camada superior da sociedade senhorial e na França meridional e na Itália, teria
melhorado em dois momentos: na época carolíngia e no tempo das cruzadas e da
Reconquista. A poesia dos trovadores seria o reflexo desta promoção da mulher
abandonada (idem).
Como não poderia deixar de ser, a Literatura também documentou as visões que a
sociedade medieval tinha da Mulher. Estas passagens d‟A Demanda mostram as mulheres
267
como aquelas que atrapalham a vida dos homens; como as que os colocam em tentação, de
modo a desvirtuá-los; como os seres que mais traem; como as criaturas que levam o Homem
para o perigo, para o abismo, para a perdição; enfim, como entes semelhantes ao Diabo ou
que têm pacto com este:
Ora falece, disse el, da Távola Redonda dom Tristam, e nom outrem. Mas maldita
seja a beldade de Iseu, per que o assi havemos perdudo, ca, | se ela nom fôsse, nom
leixara el em nhũa guisa que êle nom veesse a esta festa tam grande
252
(MAGNE,
1955, p. 21).
Quando a dona êsto ouviu, houve tam gram pesar, que nom soube que fezesse, ca
bem sabia que se a donzela o cavaleiro houvesse aa sua vontade, que nom podia seer
que o el-rei [Brutos] nom | soubesse, que tarde ou cedo; e quando o soubesse, que o
cavaleiro com ela era; êle era tam bravo que mataria a donzela e quantos a i
ajudassem
253
(ibidem, p. 145).
Filho, que hás?
Que hei? disse êle: nom veedes a minha molher desleal e alei|vosa, que fêz assi
aqui viῖr cavaleiro stranho, por me scarnir, enquanto nós fomos andar per estar
furesta? Ora fêz já o cavaleiro quanto quis em ela, e pois er filhou suas armas, por
nos fazer semelhar que nom viera aqui por nhuũ [mal].
Par Deus, filho, disse o padre, eu bem cuido que dizees verdade. Ora fazede i
quanto teverdes em [o] coraçom, ca eu vo-lo louvo.
Eu nom sei, disse o [filho], como me possa vingar milhor dêles, ca de os matar.
Matarei ela primeiro, que o fêz aqui vir. E, dês i, êle, que veeo i por meu mal
254
(ibidem, p. 243).
E depois atou seu cavalo a ũa árvor e acostou a ela seu escudo e sua lança e entrou
dentro, e viu estar em uũ leito, o mais fremoso e mais rico que nunca viu, ũa donzela
que dormia; e era tam fremosa, que lhe semelhou mais fremosa que a rainha
Genevra e que a rainha Iseu, e ca a fremosa filha del-rei Peles; ca lhe semelhou que
depois que o mundo foi feito, nom foe molher tam fremosa nem na || vira, empero
rem se foi aaquela Virgem que foe virgem e madre e rainha das rainhas. E depois
[que] catou gram peça pola maravilha que houve de sua beldade, afastou-se
pouco afora, assi todo espantado, ca bem semelhou a êle que, se das as beldades
252
Agora falta disse ele , da távola redonda, dom Tristão, e nenhum outro. Mas maldita seja a beleza de
Isolda, porque o assim temos perdido, porque se ela não fosse, não deixaria ele, de modo algum, de vir a esta
festa tão grande (MEGALE, 2008, p. 31).
253
Quando a mulher ouviu isto, teve tão grande pesar que não soube o que fizesse, porque bem sabia que, se a
donzela tivesse o cavaleiro à sua vontade, não podia ser que o rei [Brutos] não soubesse, cedo ou tarde; e quando
soubesse que o cavaleiro com ela estava, ele era tão bravo que mataria a donzela e quantos ajudassem nisso
(MEGALE, 2008, p. 113).
254
Filho, o que tens?
O que tenho? disse ele. Não vedes a minha mulher desleal e traidora, que fez aqui vir um cavaleiro
estranho, para me escarnecer, enquanto fomos andar por esta floresta? Agora fez o cavaleiro quanto quis nela,
visto que de novo já tomou suas armas, para nos fazer parecer que não veio aqui por nenhum mal.
Por Deus, filho disse o pai , bem cuido que dizes verdade. Agora faze quanto tiveres no coração, porque eu
o louvo.
Eu não sei disse o filho como me possa vingar melhor deles que de os matar. Matarei primeiro a ela, que o
fez aqui vir. E depois a ele, que veio aqui para meu mal (MEGALE, 2008, p. 175).
268
que foram em molheres pecadores fôssem assũadas em ũa, nom seria tam fremosa
como esta era
255
(ibidem, p. 371).
Senhor cavaleiro, eu som natural de Atenas, ũa cidade de Grécia, e som filha de rei e
de rainha, e pola beldade que o emperador de Roma ouviu dezer que havia em mim,
enviou dezer a meu padre que me lhe enviasse, e que me filharia por molher; e meu
padre, que se tinria por bem-aventurado, fêz guisar ũa nave, e metê-me dentro com
gram companha de cavaleiros e de donas e de donzelas; e depois que fomos no mar,
crece[u]nos tam maau tempo e tam gram tormenta, que nos durou XV dias, assi que
nom houve i tam esforçado, que nom houvesse maior esperança de morte ca de vida.
E depois passou o maau tempo e aportámos e achámo-nos na Gram-Bretanha
256
(ibidem, p. 371).
E depois acordou e catou arredor de si e viu a donzela rir, porque vira || que houvera
mêdo. E quando a viu riir, maravilhou-se e logo entendeu que era demo que lhe
aparecera em semelhança de donzela, polo enganar e o meter em pecado mortal.
Entom ergeu a maão e sinou-se e disse:
Ai, Padre Jesu Cristo, [Padre] verdadeiro! Nom me leixes enganar nem entrar na
perdurávil morte; e se êste é demo que me quer tolher de teu serviço e partir de ta
companhia, mostra-me-o.
Tanto que el êsto disse, viu que a donzela se tornou em forma de demo tam feo e
atam espantoso, que nom no mundo homem tam ardido que o visse, que nom
houvesse a haver gram mêdo. Unde aveo a Persival que houve tam gram mêdo que
nom soube que fezesse, fora que disse:
Ai, Jesu Cristo, Padre verdadeiro, Senhor. sei comigo
257
(ibidem, p. 375).
Assi outorgou seu amor ao demo e ele jouve com ela assi como o padre de Merlim
jouve com sa madre. E quando jouve com ela houve ela tam tram sabor que lhi
escaeceu o amor de seu irmão tam mortalmente que nom poderia mais. Ũũ dia
estava ante ũa fonte com seu amigo o demo e começou a pensar muito. E ele lhi
disse:
Que pensades? Vós pensades como poderíades matar vosso irmão?
Par Deus, disse ela, esso. E ora vejo bem que vós sodes o homem mais sisudo do
mundo e rogo-vos por aquel amor que me vós havedes que me ensinedes como o
possa matar ca nom há cousa no mundo com que me tanto prouguesse.
255
E depois atou seu cavalo a uma árvore e encostou nela seu escudo e sua lança e entrou, e viu estar num leito,
o mais formoso e mais rico que alguma vez viu, uma donzela que dormia; e era tão formosa, que lhe pareceu
mais formosa que a rainha Genevra e que a rainha Isolda, e que a formosa filha do rei Peles; porque lhe pareceu
que, desde que o mundo foi feito, não houve mulher tão formosa, nem a vira, embora nada fosse comparado com
aquela Virgem que foi virgem e mãe e Rainha das rainhas. E depois que observou muito tempo pela admiração
que teve de sua beleza, afastou-se um pouco, todo espantado, porque bem pareceu a ele que se todas as belezas
que houve em mulheres pecadoras fossem reunidas numa só, não seria tão formosa como esta (MEGALE, 2008,
p. 256).
256
Senhor cavaleiro, sou natural de Atenas, uma cidade da Grécia, e sou filha de rei e de rainha, e pela beleza
que o imperador de Roma ouviu dizer que havia em mim, mandou dizer a meu pai que me lhe enviasse e me
tomaria por mulher; e meu pai, que se teria por bem satisfeito, fez preparar uma nave, e meteu-me dentro com
grande companhia de cavaleiros e de donas e de donzelas; e depois que estávamos no mar, foi aumentando tanto
o mau tempo e tão grande tormenta que nos durou quinze dias, assim que não houve alguém tão esforçado que
não tivesse maior esperança de morte que de vida. E depois pasou o mau tempo e aportamos e achamo-nos na
Grã-Bretanha (MEGALE, 2008, p. 257).
257
E depois acordou e olhou ao redor de si e viu a donzela rir, porque vira que tivera medo. E quando a viu rir,
espantou-se e logo entendeu que era o demo que lhe aparecera em semelhança de donzela para o enganar e o
meter em pecado mortal. Então ergueu a mão e persignou-se e disse:
Ai, Pai Jesus Cristo, Pai verdadeiro!, não me deixes enganar nem entrar na morte eterna; e se este é o demo que
me quer tirar de teu serviço e separar de tua companhia, mostra-mo.
Assim que ele disse isto, viu que a donzela se tornou em forma de demo tão feio e tão espantoso que não no
mundo ninguém tão valente que o visse que não houvesse de ter grande medo. Daí aconteceu a Persival que teve
tão grande medo que não soube o que fizesse, senão que dissesse:
Ai, Jesus Cristo, Pai verdadeiro, Senhor, ficai comigo (MEGALE, 2008, p. 259).
269
Eu vo-lo ensinarei, disse el. Enviade por vosso irmão que venha com vosco falar a
ũa mara. E, pois fordes i, carrade a porta e entom lhi demandade o que quiserdes.
E el no querrá fazer. E vós travade em ele e teede-o bem e ele se assanhará logo assi
que vos fará nojo mas nom grande. E vós dade vozes e todolos outros cavaleiros
chegar-s‟am i. Entom poderedes dizer que vos aforçou e el-rei o fará prender e fazer
dele justiça e assi seerdes vós vingada.
Bem assi como o demo disse assi o fez ela ca enviou por el. E u lhi ela quis falar
naquelo deu-lhi el ũa palmada tal que todo o rosto foi coberto de sangui e o peito.
Entom ela começou dar vozes:
Valede-me! Valede-me!
E todolos do paaço correrom ali e el-rei Hipomenes outrossi e britarom a porta da
câmara. E quando el-rei viu tal sa filha houve gram pesar e preguntou-lhi quem lhe
fezera aquelo.
Senhor, disse ela, meu irmão que me escarneceu.
Como? disse el, jouve contigo?
Si, disse ela, mau meu grado.
E el-rei fez logo prender seu filho e metê-lo em ũa torre. Dis i, preguntou sa filha:
Jou[184, b]ve hoje contigo?
Nom, disse ela, mas gram tempo há. Mas nom vo-lo ousava a dizer com medo de
me matar.
E esto lhi dizia ela porque se sentia prenhe assi que o poderia entender quem si quer.
Assi meteu rei Hipomenes seu filho em prisom polo deslealdade de as filha. E o
donzel se salvava o melhor que podia mas nom lhi valia rem, ca seu padre e todolos
outros cuidavam que assi era como ela dizia
258
(NUNES, 2005, pp. 449-450).
Essa visão que o Medievo tinha da Mulher não era muito diferente daquela que tinha a
Antigüidade clássica sobre o Ser em questão, como bem mostrou o capítulo anterior. Aliás,
muitos são os mitólogos que comparam Eva à Pandora: Thomas Bulfinch, no seu livro A
258
Deste modo entregou seu amor ao demo, e ele deitou com ela, como o pai de Merlim com sua mãe. E quando
deitou com ela, teve ela tão grande prazer que lhe esqueceu o amor de seu irmão tão mortalmente, que mais não
poderia. Um dia estava diante de uma fonte com seu amigo, o demo, e começou a pensar muito. E ele lhe disse:
Que pensais? Pensais como poderíeis matar vosso irmão?
Por Deus disse ela , isso. E ora bem vejo que sois o homem mais sisudo do mundo, e rogo-vos por aquele
amor que tendes por mim que me ensineis como o possa matar, porque não nada no mundo com que tanto me
agradasse.
Eu vo-lo ensinarei disse ele. Mandai dizer a vosso irmão que venha convosco a uma câmara, e depois que
estiverdes lá, fechai a porta, e então lhe demandai o que quiserdes. E enraivecerá logo tanto que vos fará nojo,
mas não grande; e gritai, e todos os outros cavaleiros irão lá. Então podereis dizer que vos forçou e o rei fará
prender e fazer dele justiça e assim estareis vingada.
Bem como o demo disse ela o fez, que mandou buscá-lo e quando lhe quis falar naquilo, deu-lhe ele uma
palmada tal que todo o rosto ficou coberto de sangue e o peito. Então começou ela a gritar:
Valei-me! Valei-me!
E todos os do paço correram para lá, e o rei Hipômenes também, e arrombaram a porta da câmara. E quando o
rei viu assim sua filha, teve grande pesar e perguntou-lhe quem fizera aquilo.
Senhor disse ela , meu irmão que me escarneceu.
Como? disse ele. Deitou contigo?
Sim disse ela , contra minha vontade.
E o rei fez logo prender seu filho e metê-lo numa torre.
Depois perguntou à sua filha:
Deitou hoje contigo?
Não disse ela , mas muito tempo há, mas não vo-lo ousava dizer com medo de me matardes.
E isto lhe dizia ela, porque se sentia grávida, de tal modo que o poderia perceber qualquer um.
Assim meteu rei Hipômenes seu filho na prisão pela deslealdade de sua filha. E o donzel se desculpava o melhor
que podia, mas não lhe valia nada, porque seu pai e todos os outros cuidavam que assim era como dizia ela
(MEGALE, 2008, pp. 569-570).
270
Idade da Fábula (O Livro de Ouro da Mitologia
259
); e também F. J. Bierlein, em Mitos
Paralelos
260
, por exemplo. Porém, conforme foi dito pouco, a Mulher, na Idade Média,
também foi vista de maneira diferente; justamente da forma oposta, aproximada que foi da
figura de Maria. A Demanda do Santo Graal traz um exemplo de mulher casta, pura, correta,
santificada; enfim, em tudo diferente de Genevra e de Isolda: a tia de Persival.
Esta dona viveu assi dez anos e meo, que jamais nom comeu senam ervas cruas; e
quando passou, avẽo ũ tam fremoso milagre, que rei Artur em Camaalot, bem dez
jornadas dali, o soube aquela hora mesma que ela passou, e diremos em qual guisa.
Verdade foi que foi das fremosas donas do mundo e tam amiga de Deus e da Santa
Egreja, que todos aquêles que a conhiciam falavam ende; e a bondade grande que
havia | foe cousa que a amou rei Artur e lhe demandou seu amor; mas aquela, que
tam boa dona era, que era de ventuira [nom] poderiam nenhũ[a] achar melhor, nom
quis per nenhũa maneira, e porende o desamou sôbre todos os homens do mundo,
em guisa que nunca depois lhe mais esqueceu em seu coraçam; onde aconteceu que
aquel dia que foe morta, que apareceu a essa hora a el-rei Artur, onde jazia dormindo
em sua câmara em Camalot, e vinha coroada; [e] tam fremosa cousa [era] e tam leda,
que muito haveria homem sabor de a veer. E u ela estava em tam gram ledice, disse
a Artur:
Rei Artur, eu me vou pera o paraíso, que me tu quiseste tolher per tua luxúria;
minha castidade me meteu em lidice, e a tua luxúria meterá-te em grande door e em
marteiro, se [te] nom castigas
261
(MAGNE, 1955, p. 335).
Quem se tornava cavaleiro também tinha o dever de ser leal a seus companheiros de
companhia. Essa lealdade consistia, dentre outras coisas, em estar, o cavaleiro, sempre pronto
a escoltar os seus amigos, para impedir que algum mal lhes adviesse; a batalhar ao lado deles,
de modo a tomar para si uma contenda que, inicialmente, não era sua; e a vingá-los, no caso
de eles serem vítimas de alguma injúria, de algum dano físico ou, mesmo, de um assassinato.
259
op. cit.
260
BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos / Tradução de Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
261
Esta mulher viveu assim dez anos e meio, que nunca comeu senão ervas cruas, e quando passou, aconteceu
um tão formoso milagre que rei Artur em Camalote, bem dez jornadas dali, o soube naquela hora mesma em que
ela passou, e diremos de que modo.
Verdade foi que foi das formosas mulheres do mundo e o amiga de Deus e da santa Igreja, que todos aqueles
que a conheciam falavam disso; e a bondade grande que tinha foi a razão por que a amou rei Artur e lhe pediu
seu amor; mas aquela, que tão boa mulher era, que, porventura, nenhuma poderiam achar melhor, não quis de
nenhum modo e por isso o desamou sobre todos os homens do mundo, de modo que nunca depois o esqueceu
mais em seu coração; pelo que aconteceu que, naquele dia que morreu, apareceu naquela hora ao rei Artur que
estava dormindo em sua câmara em Camalote, e vinha coroada, tão formosa pessoa e tão alegre que muito teria
alguém prazer em vê-la. E quando ela estava em tão grande alegria, disse a Artur:
Rei Artur, eu me vou para o paraíso, que tu me quiseste impedir por tua luxúria; minha castidade me s em
alegria e tua luxúria te colocará em grande dor e em martírio, se tu não castigas (MEGALE, 2008, pp. 232-233).
271
Eis alguns trechos d‟A Demanda capazes de ilustrar de que maneiras essa lealdade do
cavaleiro para com os seus amigos de armas poder-se-ia se manifestar:
Que ventura vos adusse aqui? Eu cuidava que érades na côrte.
Senhor, disserom êles, nós nos partimos por pavor [que houvemos de vossa]
morte, ca vos nom partìades senom por algũa coita mui grande. Por esso vemos pós
vós atee aqui e nos encobrimos o melhor que podemos. Quando soubemos que vós
queríades tornar aa côrte, armamos-nos, por tornar com vós, ca por al nom
262
(MAGNE, 1955, p. 9).
Aquela noite, quando rei Artur viu que o linhagem de rei Bam que, a aquel tempo,
era frol e louvor dos cavaleiros do mundo ficarom em sua casa por amor de
Galaaz, começou-os a catar e a pensar que êstes eram os homes do mundo que lhe
mais vêzes milhores foram e que o milhor vingarom de seus imigos
263
(ibidem, p.
45).
Queia disse:
Eu o matei porque o achei em uũ vale u queria talhar a cabeça a Lucam o copeiro e
ferira-o mui mal e, sem falha, talhara-lhe a cabeça, ca o desamava, se eu [a]aquela
hora nom chegara. E eu cheguei e vinguei-o assi como vistes
264
(ibidem, p. 123).
Assi foi Ivam de Cenel queimado pola morte de Lamorant. E esta morte poderá el
scusar, se quisera. Mas o gram coraçom que havia de nom fazer covardice nom lho
sofreu. E quando rei Artur êsto soube, houve grã pesar, tanto que destruiu pois
porende o castelo, mas nom mentre Persival foi vivo. E sabede que desto foi pois
mui perfaçado Galvam e teúdo por covardo, porque se partira assi de Ivam e o
leixara em tam gram feito como o leixou, ca por nhuũ pavor nom no devera a leixar,
[a] atal tempo como aquel
265
(ibidem, p. 175).
Por Deus, donzela, e por cortesia, dizede-me porque fazedes tal doo. Eu vos
prometo que vos ponha conselho a todo meu poder.
Ai, Senhor! disse ela, de o fazer faço mui gram direito, ca todo o mundo nom me
poderia cobrar a perda, que hoje hei recebida, de dos milhores cavaleiros do
mundo, que era meu irmaão, que ora matarom.
E quem era? disse Patrides.
Senhor, disse ela, era Ivam de Cenel.
Ivam, disse êle, é morto?
262
Que ventura vos trouxe aqui? Cuidava que estivésseis na corte.
Senhor disseram eles , viemos por pavor de vossa morte, porque não partiríeis senão por alguma aflição
muito grande. Por isso viemos atrás de vós até aqui e nos ocultamos o melhor que pudemos. Quando soubemos
que queríeis voltar à corte, armamo-nos para voltar convosco, e não por outra razão (MEGALE, 2008, pp. 21-
22).
263
Aquela noite, quando rei Artur viu que os cavaleiros da linhagem do rei Bam que, naquele tempo, era a flor
e o louvor dos cavaleiros do mundo ficaram em sua casa por causa de Galaaz, começou a olhá-los e a pensar
que estes eram os homens do mundo que mais vezes foram melhores para ele e que melhor o vingaram de seus
inimigos (MEGALE, 2008, p. 47).
264
Quéia disse:
Eu o matei porque o encontrei num vale onde queria cortar a cabeça de Lucão, o copeiro, e ferira-o muito e,
sem falha, cortara-lhe a cabeça, porque o desamava, se eu àquela hora não chegara. E cheguei e vinguei, como
vistes (MEGALE, 2008, p. 98).
265
Assim foi Ivã de Cenel queimado pela morte de Lamorante. E esta morte poderia ele evitar, se quisesse, mas
o grande ânimo de não fazer covardia não lho permitiu. E quando rei Artur isto soube, teve grande pesar, tanto
que destruiu por isso o castelo, mas não enquanto Persival foi vivo. E sabei que disto ficou muito desonrado
Galvão e tido por covarde, porque se separara assim de Ie o deixara em tão grande feito como o deixou,
porque por nenhum pavor não o deveria deixar em tal circunstância como aquela (MEGALE, 2008, p. 132).
272
Senhor, disse ela, si, sem falha.
E quem o matou? Disse el; tanto me dizede, ca, se Deus me ajude, eu o vingarei a
meu poder. E se o eu nom fezesse, todo o mundo mo terria a mal, ca foi gram tempo
meu companheiro de armas
266
(ibidem, p. 179).
Quem vos chagou assi?
Par Deus! disse Elaim, uũ cavaleiro que aqui vai, depós que eu vou, se me poderia
vingar. E se me podesse vingar, nom daria rem por cousa que me depois viesse.
E quem é o cavaleiro? disse Estor.
Nom sei, disse êle, fora que anda a sua caça depós ũa besta com mui grã
companha de caães, e aquela é a mais dessemelhada bêsta que eu nunca vi.
E a qual parte se vai? disse Estor.
Per esta carreira, disse Elaim.
Dom Galvam, disse Estor, ora vos || rogo que fiquedes com êle e lhe façades
companha, ca hei pavor de seer chagado aa morte, e se soo ficasse, poder-lhe-ia ende
vir dapno. E eu irei depós o cavaleiro, se o poder vingar
267
(ibidem, pp. 187-189).
Verdade é, disse Galaaz. || Mas pois vós sodes meu companheiro e da Távola
Redonda e vos el matou ante mim, eu vos vingarei a meu poder, senam terria-me
ende por covardo cavaleiro. Ora ficade vós e ide vosso passo, e eu irei após êle e
segui-lo-ei tanto, ataa que o acharei, se Deus quiser
268
(ibidem, pp. 227-229).
Certamente si, disse Persival; e dir-vos-ei por que || rezam. O custume da Mesa
Redonda é tal que, se eu vejo meu companheiro vencer ou matar, convém que o
vingue ante que me parta, e que [eu] mate per minha maão [o que com ele se
combateu], se ambos nom forem companheiros da Mesa
269
Redonda (ibidem, p.
359).
Sobre a lealdade cavaleiresca falou Ivan Lins:
266
Por Deus, donzela, e por cortesia, dizei-me por que fazeis tal lamentação. Eu vos prometo dar conselho a
todo meu poder.
Ai, senhor! disse ela , com muito grande direito de fazer o faço, porque o mundo todo não me poderia
recuperar a perda que hoje recebi de um dos melhores cavaleiros do mundo, que era meu irmão, que agora
mataram.
E quem era? disse Patrides.
Senhor disse ela , era Ivã de Cenel.
Ivã disse ele está morto?
Senhor disse ela , sem falha.
E quem o matou? disse ele. Isto me dizei, porque, assim Deus me ajude, eu o vingarei a meu poder. E se
não o fizesse, todo o mundo me teria por mal, porque foi muito tempo meu companheiro de armas (MEGALE,
2008, p. 135).
267
Quem vos feriu assim?
Por Deus! disse Elaim. Um cavaleiro que aqui vai, atrás de quem eu vou, se me poderia vingar. E se me
pudesse vingar, não daria nada por coisa que depois me adviesse.
E quem é o cavaleiro? disse Heitor.
Não sei disse ele , apenas sei que anda à caça de uma besta com uma grande companhia de cães, e aquela é
a mais dessassemelhada besta que alguma vez vi.
E para onde vai? disse Heitor.
Por esta carreira disse Elaim.
Dom Galvão disse Heitor , agora vos rogo que fiqueis com ele e lhe façais companhia, porque tenho medo
que esteja ferido de morte, e se ficasse só, poderia lhe sobrevir um dano. E eu irei atrás do cavaleiro, se o puder
vingar (MEGALE, 2008, pp. 139-140).
268
Verdade é disse Galaaz. Mas, visto que sois meu companheiro e da távola redonda e vos ele matou
diante de mim, eu vos vingarei a meu poder, senão ter-me-ia por isso como cavaleiro covarde. Agora ficai e ide
devagar, e irei atrás dele e o seguirei tanto, até que o ache, se Deus quiser (MEGALE, 2008, p. 139-165).
269
Certamente sim disse Persival. E dir-vos-ei por que razão. O costume da mesa redonda é tal que, se vejo
meu companheiro vencer ou matar, convém que o vingue, antes que me parta, e mate por minha mão a quem
com ele combateu, se ambos não forem companheiros da mesa redonda (MEGALE, 2008, p. 249).
273
Vinha, depois, a lealdade, que, como pondera Augusto Comte, admiravelmente
combinava as duas qualidades essenciais da Idade Média: o devotamento e a
sinceridade. Era, de fato, a lealdade, o devotamento unido ao respeito da palavra
dada, conduzindo ao desassombrado desempenho de todos os compromissos
assumidos (LINS, 1939, p. 143).
Vale ressaltar que esse espírito de lealdade de que comungavam os cavaleiros medievais
existia entre os antigos gregos e romanos; não se constitui numa novidade dos tempos da
cavalaria, portanto.
Outra obrigação do cavaleiro que, diga-se de passagem, mantém estreitíssima relação
com as que já foram citadas diz respeito ao cumprimento de todas as promessas feitas no ato
da investidura proteger a pátria, o rei, os indefesos, as mulheres; zelar pelos interesses da
Igreja; combater todos os seres capazes de ameaçar a paz e o bem-estar dos povos; jamais
atacar quem esteja desarmado; ser leal aos companheiros de companhia; ser hospitaleiro para
com os viajantes , e mesmo as feitas após esse ritual. O não cumprimento desse dever
levava, automaticamente, o cavaleiro a cometer o crime de perjúrio, que, além de manchar
para sempre a sua reputação, poderia resultar não na sua expulsão da companhia como até
mesmo na sua prisão ou na sua morte, a depender da gravidade do perjúrio. A seguir, excertos
d‟A Demanda do Santo Graal que mostram que, uma vez feita a promessa, por parte do
cavaleiro, este já não poderia mais voltar atrás, sob pena de cometer crime de perjúrio, parecer
aos outros desleal e perder a sua honra:
Galvam, que siia ante el-rei, disse:
Senhor, ainda i al há, que vós nom cuidades. Sabede que nom cavaleiro no
paaço, que nom houvesse de comer quanto pensou ca||da uũ em seu coraçom. E êsto
nunca houve em nhũa côrte, senam em casa del-rei Peles. Mas de tanto fomos
enganados, que o nom vimos senam cuberto. [E porém], quanto em mim é, prometo
ora a Deus e a tôda cavalaria, que, de manhaã, se me Deus quiser atender, entrarei na
demanda do Santo Graal, assi que a manterrei ano e dia e, pola ventura, mais;
e [a]inda mais digo: que jamais nom tornarei aa côrte, por cousa que avenha, [ataa
que] milhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se nam poder seer, tornarei-
me entam
270
(MAGNE, 1955, pp. 31-33).
270
Galvão, que sentava diante do rei, disse:
274
Quando os cavaleiros da Távola Reonda ouvirom que aquêle era Galvam e virom o
que disse, [sofrerom-se] ataa que per comerom; mas tanto que as mesas foram
levantadas, foram todos ante el-rei e fezerom aquela promessa que fezera Galvam, e
disserom que jamais nom quedariam de andar, ataa que vissem atal mesa e tam
saborosos manjares e atam guisados, como eram aquêles que êles aquel dia
comerom, se era cousa que lhes outorgada fôsse, por afam e por trabalho que sofrer
podessem
271
(ibidem, p. 33).
E quando el-rei viu que todos haviam | feita esta promessa, houve gram pesar e
grande amargura em seu coraçom, ca viu ca os nom podia tornar em nhũa guisa
272
(ibidem, p. 33).
A êsto, que el-rei disse, nom soube Galvam que respondesse, ca bem sabia que dizia
verdade, e [fezera-se de grado] afora, se podesse, mais nom podia polos outros, que
prometerom já, assi como êle
273
(ibidem, p. 35).
Entam enviarom polos clérigos e trouxerom o livro sôbre que faziam o juramento da
côrte, e depois o poserom em [a] alta seeda del-rei, e el-rei chamou Galaaz, porque o
tiinha por milhor cavaleiro de quantos i havia, e disse-lhe:
Galaaz, vós sodes como meestre dos cavaleiros da Mesa Redonda e o milhor.
Viinde adiante e fazede o juramento desta demanda.
E el disse que o faria mui de graado. Entam foi ficar os geolhos ante o livro, e jurou
que, se Deus o guardasse de mal e o guiasse, que manterria esta demanda ano e
uũ dia, e mais, se mester fôsse, e que jamais nom tornaria aa côrte, ataa que soubesse
em algũa guisa [a verdade do Santo Graal]. Depois jurou Lançarot e Tristam.
Outrossi sabede que, de tôdolos CL cavaleiros da Mesa Redonda, nom ficou nhuũ
que êste juramento nom fezesse, afora Galvam solamente
274
(ibidem, p. 47).
Senhor, ainda outra cousa que não imaginais. Sabei que não cavaleiro no paço que não houvesse de
comer o que pensou cada um em seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte, senão na casa do rei Peles.
Mas tanto fomos enganados que o não vimos senão coberto. Quanto em mim é, prometo agora a Deus e a toda
cavalaria que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei na demanda do santo Graal, assim que a manterei
um ano e um dia, e porventura mais; e ainda mais digo; jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça, até que
melhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se não puder ser, voltarei então (MEGALE, 2008, p. 39).
271
Quando os cavaleiros da távola redonda ouviram que aquele era Galvão e viram o que disse, pararam até de
comer; mas assim que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e fizeram aquela promessa que fizera
Galvão, e disseram que jamais deixariam de andar até que vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão bem
preparados, como eram aqueles que aquele dia comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por dificuldade e
por esforço que sofrer pudessem (MEGALE, 2008, p. 39).
272
E quando o rei viu que todos haviam feito esta promessa, teve grande pesar e grande amargura em seu
coração porque viu que não podia fazê-los voltar atrás de modo algum (MEGALE, 2008, p. 39).
273
A isto que o rei disse, não soube Galvão o que responder, porque sabia que dizia a verdade, e fizera-se de
bom grado a fora, se pudesse, mas não podia pelos outros que prometeram já, como ele (MEGALE, 2008, p. 40).
274
Então mandaram vir os clérigos e trouxeram o livro sobre o qual faziam o juramento da corte, e depois o
puseram no alto assento do rei, e o rei chamou Galaaz, porque o tinha pelo melhor cavaleiros de quantos
havia, e disse-lhe:
Galaaz, sois como mestre dos cavaleiros da mesa redonda e o melhor. Vinde adiante e fazei o juramento desta
demanda.
E ele disse que o faria de muito bom grado. Então foi ficar de joelhos ante o livro, e jurou que, se Deus o
guardasse do mal e o guiasse, manteria esta demanda um ano e um dia, e mais, se preciso fosse, e não tornaria à
corte, até que soubesse, de algum modo, a verdade do santo Graal. Depois jurou Lancelote e Tristão. Também
sabei que, de todos os cento e cinqüenta cavaleiros da mesa redonda, não ficou nenhum que este juramento não
fizesse, afora Galvão somente (MEGALE, 2008, p. 49).
275
Senhor, disse el, semelha-me que nom catades i minha honra, mas meu mal e
minha vergonça, ca, se eu i nom vou, soom perjurado e desleal; dês i, nom de devia
a teer nhuũ por cavaleiro
275
(ibidem, p. 39).
Esse dever de manter a palavra dada, sob pena de cometer crime de perjúrio, também
existia entre os heróis míticos e os guerreiros das antigas Grécia e Roma, conforme mostrou o
capítulo anterior com passagens da Ilíada.
Por fim, a última obrigação do cavaleiro consistia em ser hospitaleiro para com os
viajantes; notadamente se estes fossem seus colegas de armas, cavaleiros andantes. Contudo,
deve-se deixar claro que a hospitalidade não era, nem nunca foi, um atributo próprio,
exclusivo, da cavalaria. A hospitalidade era comum a todo o povo mediévico, como séculos
antes tinha sido comum, como foi visto, a todo o povo greco-romano, e não aos heróis
mìticos e/ou aos guerreiros da Antigüidade clássica. Estes trechos d‟A Demanda ilustram bem
o que acaba de ser dito acerca da hospitalidade medieva; ou seja, que ela não era comum
apenas ao cavaleiro, mas a toda a gente:
Véspera de Pinticoste, foi grande gente assũada em Camaalot, assi que podera
homem i veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas.
El-rei, que era ende mui ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir, e tôda rem
que entendeu per que aquela côrte seeria mais viçosa e mais leda, todo o fêz fazer
276
(MAGNE, 1955, p. 3).
Filho Galaaz, ora sodes cavaleiro. Deus mande que seja a cavalaria tam bem
empregada em vós, como em nosso linhagem. Ora dizede: irede[s] vós aa rte del-
rei Artur, u muitos homens boõs de tôdalas partes do mundo veem e tôdolos
cavaleiros do regno de Logres soom assumados em esta festa de hoje?
277
(ibidem, p.
9).
275
Senhor disse ele , parece-me que não cuidais da minha honra, mas do meu mal e da minha vergonha,
porque, se eu não for, sou perjuro e desleal e então ninguém me deveria considerar como cavaleiro (MEGALE,
2008, p. 43).
276
Véspera de Pentecostes, houve muita gente reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver muita gente,
muitos cavaleiros e muitas mulheres de muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito alegre, honrou-os
muito e fez servi-los muito bem e toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte mais satisfeita e mais alegre,
tudo mandou fazer (MEGALE, 2008, p. 17).
277
Filho Galaaz, agora sois cavaleiro. Deus mande que seja a cavalaria tão bem empregada em vós, como em
nossa linhagem. Agora dizei: ireis à corte do rei Artur para onde muitos homens bons de todas as partes do
mundo vêm e onde todos os cavaleiros do reino de Logres estão reunidos nesta festa de hoje? (MEGALE, 2008,
p. 21).
276
Aquela noite, fêz el-rei Galaaz jazer em ũa mara, u êle sooìa a jazer, em leito
leito seu, ca muito havia sabor de lhe fazer honra. E tôdolos do linhagem de Rei
Bam jouverom em casa del-rei, por amor de Galaaz
278
(ibidem, p. 45).
E êles entrarom na furesta, e entam cavalgarom tanto, que chegarom ao castelo de
[Va]gam, u foram mui bem servidos de quanto mester haviam. E aquel [Va]gam era
uũ cavaleiro boõ e de boõa vida, e quando viu os cavaleiros da Távola Redonda, que
soube que iam demandar a aventura do Santo Graal, recebeu-os mui bem e teve-se
por bem-andante, de que lhe Deus adussera tantos homes boõs, pois os poderia
albergar. Aquela noite albergarom com [Va]gam e foram tam bem servidos de
quantos êles mester houverom, que êles foram || maravilhados onde houvera tam
asinha aguisado de a tam gram companha fazer tanto algo
279
(ibidem, pp. 53-55).
Ao quarto dia, aveo-lhe que chegou, a[a] hora de véspera[s], a ũa abadia de monges
brancos; e os frades colherom-no mui bem, ca o conhocerom por cavaleiro andante,
e fezerom-no descer, e levarom-no a ũa câmara e desarmarom-no
280
(ibidem, p. 59).
Quando Galaaz se partiu de Melias, andou todo aquêle dia sem aventura achar, que
de contar seja. Aquela noite, chegou a[a] casa de ũa viúva, que morava em meeo de
ũa furesta, que o albergou mui bem, e aquela [noite] || lhe contou o ermitam a vida e
o feito de seu linhagem
281
(ibidem, pp. 89-91).
Pois que Galaaz se partiu de Melias, aveeo-lhe que chegou a castelo, que stava
em ũa montanha, ca o caminho era per i. E Ivam o Bastardo ia com êle. E quando
entrarom pola rua do castelo, aque-vos cavaleiro, que era senhor daquele castelo
e era velho, veeo a êles e disse-lhes:
Senhores, sodes cavaleiros andantes?
Si, disserom êles, mas porque o preguntades?
Eu o pregunto, disse êle, por vossa honra e por vosso bem. E pois que sodes
cavaleiros andantes, eu vos peço tanto que sejades meus hóspedes. E sabede que
seredes honrados e servidos a meu poder, como se fôssedes em casa de rei Artur
282
(ibidem, p. 95).
E aquela sezom que os cavaleiros vierom, stava el-rei [Brutos] acostado a ũa freesta
em seu paaço. E quando os viu assi armados vir e sem companha, conhoceu que
eram cavaleiros andantes, e foi mui alegre com êles, ca muito amara sempre
278
Aquela noite, fez o rei Galaaz ficar numa câmara onde ele costumava ficar, num leito seu, porque tinha muito
gosto de lhe fazer honra. E todos os da linhagem de rei Bam ficaram nos aposentos do rei, por causa de Galaaz
(MEGALE, 2008, p. 47).
279
E eles entraram na floresta, e então cavalgaram tanto que chegaram ao castelo de Vagam, onde foram muito
bem servidos de quanto tinham necessidade. E aquele Vagam era um cavaleiro bom e de boa vida, e quando viu
os cavaleiros da távola redonda, soube que iam demandar a aventura do santo Graal, recebeu-os muito bem e
considerou-se satisfeito de que lhe Deus trouxera tantos homens bons, pois os poderia albergar. Aquela noite,
albergaram com Vagam e foram tão bem servidos de quanto tinham necessidade que ficaram maravilhados de
como tão depressa se preparou para tão grande companhia tanta coisa (MEGALE, 2008, p. 53).
280
Ao quarto dia, aconteceu-lhe que chegou, à hora de vésperas, a uma abadia de monges brancos; e os frades
acolheram-no muito bem, porque o reconheceram como cavaleiro andante, e fizeram-no descer, e levaram-no a
uma câmara e o desarmaram (MEGALE, 2008, p. 57).
281
Quando Galaaz se separou de Melias, andou todo aquele dia sem aventura achar que de contar seja. Aquela
noite, chegou à casa de uma viúva que morava no meio de uma floresta, que o albergou muito bem e, aquela
noite, lhe contou o ermitão a vida e os feitos de sua linhagem (MEGALE, 2008, p. 77).
282
Depois que Galaaz se separou de Melias, aconteceu-lhe que chegou a um castelo, que ficava numa montanha,
pois o caminho era por aí. E Ivã, o bastardo, ia com ele. E quando entraram pela rua do castelo, eis que um
cavaleiro, que era senhor daquele castelo e era velho, veio a eles e disse-lhes:
Senhores, sois cavaleiros andantes?
Sim disseram eles , mas por que o perguntais?
Eu o pergunto disse ele , por vossa honra e por vosso bem. E visto que sois cavaleiros andantes, eu vos peço
muito que sejais meus hóspedes. E sabei que sereis honrados e servidos a meu poder, como se estivésseis na casa
de rei Artur (MEGALE, 2008, p. 81).
277
cavalaria e aquêles que se trabalhavam dela. Entam lhes enviou dizer per dous
cavaleiros que viessem com êle pousar, ca nom queria que pousassem com outrem.
Quando Galaaz e Boorz ouvirom seu mandado, teverom que era ensinado a boõa
barba, || e guardecerom-lho muito e foram-se com os cavaleiros. E depois que foram
dentro e foram desarmados, el-rei feze-os assentar a-par de si e fêz-lhes muita honra
e começou-lhes a preguntar das suas fazendas. E êles lhe disserom [ende] algũas
cousas
283
(ibidem, pp. 141-143).
Entam lhes aveeo que acharom cavaleiro velho, que cavalgava desarmado, fora
de spada, e salvarom-no e o cavaleiro a êles, e preguntou-os onde eram. E êles
disserom que eram da casa de rei Artur.
E sodes vós, disse el, da Távola Redonda?
Sì, disserom êles.
Pois, bem sejades vós vindos, disse el, ca da vossa viinda soom eu muito ledo, e
mais porque é tempo de albergar, ca hojemais me faredes companha aa vossa
mercee e ficaredes comigo em ũa minha forteleza fremosa e viçosa, que é mui preto
daqui, u seeredes albergados e viçosos aa vossa vontade, e rogo-vos que me
outorgues de [ir i].
E êles lho outorgarom, porque entenderom que era | já tempo de albergar-se
284
(ibidem, p. 163).
Em êsto falando, cavalgarom todo aquêle dia sem aventura achar que de contar seja.
Aa noite, chegarom a cas de infançom, que os albergou mui bem, por Estor, que
conhocia
285
(ibidem, p. 201).
Entam se partirom e decerom-se ambos os cavaleiros do outeiro u a ermida stava, e
vierom a seus cavalos e cavalgarom e filharom suas armas e andarom atee a noite e
chegarom aa noite a[a] casa de montan[h]eiro, que os albergou mui bem, tanto
que os conhoceu
286
(ibidem, p. 225).
Senhor, vistes vós per aqui passar cavaleiro de scudo branco e de ũa cruz
vermelha?
Si, disse êle, e vai-se tam toste, que o nom poderedes hoje alcançar. E porende
vos louvaria de ficardes já hoje conmigo, é hora de albergar, e, demais,
semelhades-me chagado. E eu vos | levarei a lugar u pensarám bem de vós e vos
farám muito serviço.
283
E naquele momento que os cavaleiros vieram, estava o rei [Brutos] encostado a uma janela em seu palácio. E
quando os viu assim armados vir e sem companhia, viu que eram cavaleiros andantes, e ficou muito alegre com
eles, porque muito amara sempre a cavalaria e aqueles que a ela se dedicavam. Então lhes mandou dizer por dois
cavaleiros que viessem com ele pousar, porque não queria que pousassem com outrem. Quando Galaaz e Boorz
ouviram seu recado, consideraram que era ensinado a boa barba e agradeceram-lho muito e foram com os
cavaleiros. E depois que estavam dentro e foram desarmados, o rei os fez assentar perto de si e fez-lhes muita
honra e começou a perguntar de seus feitos. E eles lhe disseram um pouco de algumas coisas (MEGALE, 2008,
p. 111).
284
Então lhes aconteceu que acharam um cavaleiro velho, que cavalgava desarmado, exceto de espada, e
saudaram-no e o cavaleiro a eles, e perguntou-lhes de onde eram. E disseram que eram da casa de rei Artur.
E sois vós disse ele da távola redonda?
Sim disseram eles.
Pois sede bem-vindos disse ele , porque por vossa vinda estou muito alegre, e mais, porque é hora de
albergar, de hoje em diante me fareis companhia, à vossa mercê, e ficareis comigo em uma fortaleza minha, que
fica muito perto daqui, onde sereis albergados e satisfeitos à vossa vontade, e rogo-vos que me outorgueis ir lá.
E eles lho outorgaram, porque entenderam que já era hora de albergarem-se (MEGALE, 2008, pp. 123-124).
285
Falando nisto, cavalgaram todo aquele dia sem aventura encontrar que de contar seja. À noite, chegaram à
casa de um infanção que os albergou muito bem, por Heitor, que conhecia (MEGALE, 2008, p. 149).
286
Então partiram e desceram ambos os cavaleiros do outeiro onde a ermida estava, e vieram a seus cavalos e
montaram e pegaram suas armas e andaram até a noite à casa de um montanheiro, que os albergou muito bem,
assim que os reconheceu (MEGALE, 2008, p. 163).
278
E Boorz lho outorgou, ca era tempo [de albergar] e semelhou-lhe homem
287
boõ
(ibidem, p. 229).
E ela, que era mui cortesa, recebeu-o mui bem e disse-lhe:
Senhor, sodes cavaleiro andante?
Dona, disse el, si. Mas porque o preguntades vós?
Senhor, disse ela, por vos fazer quanto serviço e quanta honra poder. Mas, pois
cavaleiro andante sodes, ora seede e folgade, se vos prouver, ca, certas, da vossa
viinda me praz muito.
Dona, disse êle, vossa mercê
288
(ibidem, p. 241).
Com tal sanha e com tal pesar andou Lionel todo aquel dia e aa noite chegou a
mosteiro de monges brancos, u havia muitos boõs homes e de santa vida. E aquel
mosteiro stava bre ũa grande água, que havia nome Celeça. Ali foi Lionel mui
honradamente recebudo e servido aa sua vontade, e bem lhe pensarom das chagas,
ca os freires lhe faziam êsto mui de graado, porque dous cavaleiros andantes faziam
entam novamente aquel mosteiro
289
(ibidem, p. 247).
Tanto que chegarom a[a] ermida, decerom. | E o homem boõ, que i morava, quando
ouviu os strupos dos cavalos, saíu fora. E quando viu os cavaleiros armados, logo
entendeu que eram dos cavaleiros das aventuras, e salvou-os e rogou-lhes que
pousassem em tal casa como êle havia. E êles disseram que muito lhes era mester, cá
já muito era noite
290
(ibidem, p. 301).
Ora diz o conto que Lancelot chegou a[a] pousada daqueles irmitaães que eram
parentes de Persival, e sabede que pois, dês que o conheceram, que lhe fezeram
quanto serviço poderam, ca o prezavam de bondade de cavalaria sobre tôdolos
cavaleiros do mundo que sa | biam, fora solamente Galaaz; e Galaaz conhiciam êles
já muito bem
291
(ibidem, p. 321).
Quando Persival se partiu da donzela, andou atees o seraão pela furesta assi chagado
como era e chegou assi per ventuira a[a] casa de ũa dona viúva, que o albergou mui
bem e que lhe pe[n]sou muito de suas chagas, como aquela que nelo muito sabia, e
287
Senhor, vistes por aqui passar um cavaleiro de um escudo branco e de uma cruz vermelha?
Sim disse ele , e vai tão depressa que o não podereis hoje alcançar. E por isso vos louvaria de ficardes
hoje comigo, porque é hora de albergar e, além disso, me pareceis ferido. E eu vos levarei a lugar onde cuidarão
bem de vós e vos farão muito serviço.
E Boorz concordou, porque já era hora de albergar e pareceu-lhe homem bom (MEGALE, 2008, p. 165).
288
E ela, que era muito cortês, recebeu-o muito bem e disse-lhe:
Senhor, sois cavaleiro andante?
Mulher disse ele , sim. Mas por que o perguntais?
Senhor disse ela , para vos fazer quanto serviço e quanta honra puder. E, visto que cavaleiro andante sois,
ora sentai e descansai, se vou aprouver, porque, certamente, a vossa vinda me agrada muito.
Mulher disse ele , obrigado (MEGALE, 2008, p. 173).
289
Com tal fúria e com tal pesar andou Leonel todo aquele dia e, à noite, chegou a um mosteiro de monges
brancos, onde havia homens muito bons e de santa vida. E aquele mosteiro ficava sobre um grande rio que tinha
o nome Celeça. E aí foi Leonel muito honradamente recebido e servido à vontade e bem lhe pensaram as chagas,
porque os frades lhe faziam isto de muito bom grado, porque dois cavaleiros andantes faziam então de novo
aquele mosteiro (MEGALE, 2008, p. 101).
290
Assim que chegaram à ermida, desceram. E o homem bom que lá morava, quando ouviu o tropel dos cavalos,
saiu. E quando viu os cavaleiros armados, logo entendeu que eram cavaleiros das aventuras, e saudou-os e
rogou-lhes que pousassem em tal casa como ele tinha. E eles lhes disseram que muito lhes era mister, porque já
era muito de noite (MEGALE, 2008, p. 211).
291
Ora diz o conto que Lancelote chegou à pousada daqueles dois ermitães que eram parentes de Persival, e
sabei que assim que o reconheceram, lhe fizeram quanto serviço puderam, porque o prezavam de bondade de
cavalaria sobre todos os cavaleiros do mundo que conheciam, exceto Galaaz; e Galaaz conheciam eles já muito
bem (MEGALE, 2008, p. 223).
279
trabalhou-se muito, depois que soube que era Persival, e feze-o folgar em sua casa
XXII dias
292
(ibidem, p. 347).
Aquel dia, cavalgaram atees a noite [e] chegaram a castelo que era de ũa mũi
fremosa dona, parenta de Persival. E tanto que os do castelo [os] viram armados,
logo conheceram que eram cavaleiros andantes que andavam demandando
[a]ventuiras, e receberam-nos mũi bem; mas quando a donzela viu Persival e o
conheceu, foe tam leda que nom sei que vos direi. Assi foram albergados e viçosos
como se fôsse em casa del-rei Artur
293
(ibidem, p. 369).
A recusa ao ato de hospitalidade poderia soar como uma ofensa, para aquele que tinha
aberto a porta de sua casa para o cavaleiro:
E como? disse el, assi vos cuidades ir tam ligeiramente, que nom ficaredes comigo
ũa noite? Já Deus nom me ajude, se assi fôr, ca seria minha gram vergonça e minha
desonra, e bem mostraríedes que me nom prezades, quando em meu castelo nom
façades o que vos eu rogo
294
(MAGNE, 1955, p. 97).
Desse modo, o cavaleiro não deveria aceitar a hospedagem como também honrar o
hospedeiro durante e após a sua estadia:
E Galaaz, que nom houve sabor de ir após êle, tornou a Dalides, que subira em
seu cavalo, e os outros cavaleiros nom queriam em êle maão || meter, pola honra que
lhes seu padre fezera
295
(MAGNE, 1955, p. 105).
Cavaleiros, rezom hei de me queixar de vós, que em minha casa, u vos eu recebera
mui bem por honra da [cavalaria], me matastes minha filha. Certas, muito me pesará
se dêste aleive nom hei vingança aa minha vontade
296
(ibidem, p. 155).
292
Quando Persival se separou da donzela, andou até a tarde pela floresta assim ferido como estava e chegou
assim porventura à casa de uma mulher viúva, que o albergou muito bem e tratou muito de suas feridas, como
quem disso muito sabia, e esforçou-se muito, depois que soube que era Persival, e o fez folgar em sua casa vinte
e dois dias (MEGALE, 2008, p. 242).
293
Aquele dia, cavalgaram e, à noite, chegaram a um castelo que era de uma muito formosa mulher, parenta de
Persival. E assim que os do castelo os viram armados, logo reconheceram que eram cavaleiros andantes que
andavam buscando aventuras, e receberam-nos muito bem; mas quando a donzela viu Persival e o reconheceu,
ficou tão alegre, que não sei o que vos direi. Assim ficaram albergados e contentes como se fosse em casa do rei
Artur (MEGALE, 2008, p. 255).
294
E como disse ele assim cuidais ir tão ligeiramente que não ficareis comigo uma noite? Deus não me
ajude, se assim for, porque seria minha grande vergonha e minha desonra e bem mostraríeis que me não prezais,
quando em meu castelo não façais o que vos peço (MEGALE, 2008, p. 81).
295
E Galaaz, que não teve vontade de ir atrás dele, voltou a Dalides, que montara seu cavalo, e os outros
cavaleiros não queriam nele pôr a mão, pela honra que lhes seu pai fizera (MEGALE, 2008, p. 86).
296
Cavaleiros, tenho razão de me queixar de vós que, em minha casa, onde vos recebera muito bem, por honra
da cavalaria, matastes minha filha. Certamente, muito me pesará, se deste aleive não tomar vingança à minha
vontade (MEGALE, 2008, p. 119).
280
O desrespeito à estadia poderia resultar em contendas, em atos de vingança por parte do
hospedeiro; à semelhança do que aconteceu na Ilíada, com relação a Páris e a Menelau.
O motivo de tanta hospitalidade por parte do Homem medievo e que certamente
também serve para justificar a do Homem da Antigüidade clássica encontra na monotonia
da vida mediévica a sua razão de ser, de acordo com o historiador Michel Pastoureau. A visita
de um cavaleiro, assim como a de um saltimbanco ou a de um trovador, sempre trazia consigo
novidades das cercanias ou mesmo de locais em que o hospedeiro geralmente nunca tinha
estado:
Essa monotonia da vida cotidiana explica por que se acolhe toda visita com alegria.
A de um peregrino, cujos relatos de viagem despertarão a imaginação. A de um
saltimbanco, cujos volteios e acrobacias serão fontes de imensa diversão. A de um
trovador, que encantará ao rimar as aventuras do rei Artur e seus cavaleiros. E,
sobretudo, a de um hóspede eminente, a quem o castelão oferece o quarto de honra,
localizado ao lado do seu, exibindo orgulhosamente seus bens mais preciosos. O
século XII tem o senso de hospitalidade. Tanto no castelo como na choupana o
visitante é bem-vindo (PASTOUREAU, 1989, p. 70).
Intimamente relacionada ao ato de hospitalidade, dever não do cavaleiro mas de toda
a gente do Medievo e da Antigüidade clássica, como se viu, estava a comensalidade ou a
camaradagem à mesa. Se, conforme disse Murray, os poemas homéricos deixam entrever um
“mundo [...] estruturado em torno dos ritos da comensalidade” (MURRAY in VERNANT,
1993, p. 203), outra coisa não se pode dizer acerca da Idade Média: A Demanda do Santo
Graal prova isso a partir da sua primeira página, quando é feita alusão às mesas que, “à
hora de prima”, deveriam ser postas, para que todos os convidados do Rei Artur pudessem se
regalar com as iguarias que iriam ser servidas. Esse é o primeiro episódio que A Demanda
traz em torno da comensalidade medieva. Ao longo da novela, a narrativa apresenta outros:
Contra a noite, depois de vésperas, quando se assentarom aas mesas, ouvirom viῖr uũ
torvam tam grande e tam spantoso, que lhes semelhou que todo o paaço caía. E logo
depois que o torvam deu, entrou ũa tam grande claridade, que fêz o paaço dous tanto
mais claro ca era ante. E quantos no paaço siam, logo todos forom compridos da
graça do Spíritu Santo e começarom-se a catar uũs aos outros. E êles assi seendo,
entrou no paaço todo comprido de boõ odor, como se tôdalas spécies do mundo i
281
fôssem. E êle foe per | meo do paaço, de ũa parte e da outra, darredor das mesas. E
per u passava, logo tôdalas mesas eram compridas de tal manjar, qual em seu
coraçom desejava cada uũ o que houve mester a seu prazer, saíu-se o Santo Graal do
paaço, que nhuũ nom soube que fôra dêle, nem por qual porta saìra. E os que ante
nom podiam falar, falarom entam. E derom graças a Nosso Senhor, que lhes fazia
tam grande honra e que os assi confortara e avondara da graça do Santo Vaso
297
(MAGNE, 1955, p. 31).
Pois que houverom feito o [juramento] e comerom uũ pouco, por el-rei que os
rogou, er poserom seus elmos em suas cabeças e encomendarom-[se] muito aa
rainha [e] a Deus e spidirom-se com lágrimas e com choro
298
(ibidem, p. 51).
Em aquêlo foi o padre mui alegre, quando del êsto ouviu, ca, sem falha, el amava
aquel filho, que nom podia mais. Quando veeo a noite, assentarom-se a comer em uũ
prado. E o hóspede fazia-lhes muito bcontenente e era mui alegre
299
(ibidem, p.
97).
Da mesma forma como a hospitalidade não era exclusividade dos nobres, a
comensalidade também não o era: a narrativa d‟A Demanda do Santo Graal ora mostra os
cavaleiros em banquetes, ao lado de reis, ora os apresenta ao lado de clérigos, a comer pão e a
beber água. Acontece que cada um oferecia, claro, aquilo que possuía. Todavia, sempre havia
cortesia, no ato: o hóspede era sempre recebido à mesa com bastante polidez. A higiene
também se encontrava presente nesse “ritual”, de acordo com Pastoureau:
Para os cavaleiros da Távola Redonda, por exemplo, alternam-se os dias de
abundância na corte do rei Artur e os dias de jejum no caminho da aventura, quando
têm de se contentar com um pedaço de pão e um pouco de água oferecidos por um
eremita hospitaleiro. Mas trata-se aqui de amplitudes literárias (PASTOUREAU,
1989, p. 77).
297
Contra a noite, depois de vésperas, quando se assentaram às mesas, ouviram vir um trovão tão grande e tão
espantoso, que lhes semelhou que todo o paço caía. E logo depois que o trovão deu, entrou uma tão grande
claridade, que tornou o paço dois tantos mais claro que era antes. E quantos no paço estavam sentados, logo
todos foram repletos da graça do Espírito Santo e começaram a olhar uns aos outros, e viram-se muito mais
formosos, muito mais do que costumavam ser, e maravilharam-se muito do que aconteceu e não houve quem
pudesse falar por muito grande tempo, antes estavam calados e olhavam-se uns aos outros. E eles assim estando
sentados, entrou no paço o santo Graal, coberto de um veludo branco; mas não houve um que visse quem o
trazia. E assim que entrou, foi o paço todo repleto de bom odor, como se todos os perfumes do mundo
estivessem. E ele foi para o meio do paço, de uma parte e da outra, ao redor das mesas. E por onde passava, logo
todas as mesas ficavam repletas de tal manjar, qual em seu coração desejava cada um. E depois que teve cada um
o de que houve mister a seu prazer, saiu o santo Graal do paço que ninguém soube o que fora dele, nem por qual
porta saíra. E os que antes não podiam falar, falaram então. E deram graças a Nosso Senhor, que lhes fazia tão
grande honra e os confortara e abundara da graça do santo Vaso (MEGALE, 2008, pp. 37-38).
298
Uma vez que fizeram o juramento e comeram um pouco, pelo rei que lhes pediu, novamente puseram seus
elmos em suas cabeças e encomendaram-se muito à rainha e a Deus e despediram-se com lágrimas e com choro
(MEGALE, 2008, p. 51).
299
Com aquilo ficou o pai muito alegre, quando dele isto ouviu porque, sem falha, amava aquele filho, que não
podia mais. Quando veio a noite, assentaram-se para comer num campo. E o anfitrião fazia-lhes muita boa
cortesia e estava muito alegre (MEGALE, 2008, p. 82).
282
a literatura cortês, talvez aqui adiantada em relação à realidade, traduz já uma grande
polidez de maneiras. A acolhida de um hóspede desenrola-se sempre segundo o
mesmo cerimonial: o castelão o espera à entrada da casa, pede-lhe que desmonte,
ordens para que alguém retire suas armas e apeie, ordens para que alguém retire
suas armas e tome conta do cavalo; por intermédio de uma das filhas, coloca uma
mantilha sobre o ombro do visitante. A seguir, um empregado faz soar a trompa para
anunciar a refeição; convida-se o visitante a lavar as mãos, no lavatório ou em
magníficas bacias que os serviçais trazem até o salão; entrega-se-lhe uma toalha para
que se enxugue cuidadosamente. Todos dirigem-se à mesa; a toalha de mesa é de um
branco resplandecente; a baixela, de ouro e prata; o dono da casa convida o hóspede
a sentar-se a seu lado, a usar o seu prato, a partilhar sua taça. Os pratos são
numerosos, a comida, requintada e deliciosa, os vinhos, excelentes. Leituras,
espetáculos e canções servem de passatempo durante a longa refeição. Todos, por
fim, se levantam, com o ventre repleto e o espírito alegre; os criados limpam a mesa
e retiram a toalha; lavam-se novamente as mãos, antes de ir conversar num quarto
ou passear no vergel (ibidem, pp. 83-84).
Os gestos de boas-vindas não constituem um clichê literário. A sociedade medieval
encontra-se em permanente deslocamento, e os sedentários provisórios mostram-se
sempre acolhedores para com o viajante. Entre os mais ricos, o costume é oferecer
muitos manjares. Assim também a lavagem das mãos, antes e após a refeição, não é
uma invenção de escritor. Por convicção ou necessidade, a aristocracia tem hábitos
higiênicos e conservará esses costumes até o século XIV. O que os autores exageram
é menos os gestos que o cenário. vimos como as mesas eram dispostas na grande
sala do torreão: algumas tábuas sobre cavaletes, isto é, nada de muito faustoso. A
toalha de mesa, em cuja brancura reside a elegância, é uma raridade reservada aos
dias de festa; os guardanapos são desconhecidos. A baixela de ouro e prata, quando
existe, costuma ficar no aparador, e não sobre a mesa. Mesmo entre os príncipes,
come-se em pratos de estanho ou de terracota. Não garfos, apenas umas poucas
colheres, às vezes uma única faca para dois comensais. As comidas líquidas ou
semilíquidas são despejadas pelos criados numa tigela provida de abas; aqui também
há apenas uma para duas pessoas. Peixes, carnes e alimentos sólidos são servidos em
grandes travessas de pão, os trinchos, contendo caldo ou molho. Com a faca
separam-se pedaços grandes, que são levados à boca com as mãos. Bebe-se o vinho
com uma taça enchida antes da refeição e partilhada com um ou vários vizinhos, ou
então um cálice individual, que o copeiro, atendendo a uma ordem, vai encher no
barril. Os pratos, trazidos da cozinha antes da acomodação dos comensais à mesa,
são cobertos por um pano, que só é retirado no momento de servi-los. Nesse
costume, os textos literários não mostram apenas um procedimento para conservar
aquecidos os alimentos, mas também para evitar qualquer tentativa de
envenenamento; eles põem em cena empregados degustadores, descrevendo práticas
prodigiosas e profiláticas que permitem, com a ajuda de uma trompa de unicórnio ou
um dente de serpente, revelar a presença de veneno (ibidem, pp. 84-85).
De acordo com Ivan Lins, a cortesia cavaleiresca que presidia os atos de hospitalidade e
de comensalidade deve ter suas origens buscadas na “urbanidade romana” que chegou às
cortes mediévicas (daì a origem da palavra “cortesia”), nas quais era educado o cavaleiro, que
acabava por se transformar, também, em cavalheiro. Para Lins, essa cortesia consistia “na
delicadeza das maneiras, modéstia, atenção e obsequiosidade para com as pessoas com que
lidava o cavaleiro”:
283
Atributo essencial do cavaleiro era a cortesia, adquirida nas côrtes dos grandes
senhores, aos quais servia como pagem, escudeiro, etc., até que fosse julgado digno
de ingressar na Cavalaria. Era a cortesia a urbanidade romana requintada,
consistindo na delicadeza das maneiras, modéstia, atenção e obsequiosidade para
com as pessoas com que lidava o cavaleiro, transformando-o em cavalheiro. Foi
graças à cortesia ou cavalheirismo que se amenizou, na Europa medieva, o trato
dispensado aos prisioneiros, dando lugar a rasgos de generosidade, até então inéditos
entre os homens da Idade Média (LINS, 1939, p. 146).
Também Jacques Le Goff e Jean Flori dedicaram algumas palavras à cortesia
cavaleiresca:
A cavalaria mantém relações estreitas com outro comportamento feudal, a cortesia.
Cavalaria e cortesia foram legadas juntas à Europa moderna. A cortesia, como sua
etimologia indica, é definida pelas boas maneiras que se considerava que reinavam
na corte dos reis e dos príncipes. É interessante notar que esses príncipes podem ser
também tanto homens como mulheres, e que, se a cavalaria é um mundo
essencialmente masculino, a cortesia é um universo em que a mulher está
onipresente. [...] É preciso aproximar desses valores e desses comportamentos as
boas maneiras cuja importância o sociólogo Norbert Elias revelou ao encontrar sua
origem na Idade Média, nos séculos XII e XIII. Essas boas maneiras, que ele
descreveu e esclareceu em A civilização dos costumes, consistiram em grande parte
na melhoria das maneiras à mesa, que trouxeram higiene e polidez a uma sociedade
que só adotou o garfo no final extremo da Idade Média. Não comer vários no mesmo
prato, não cuspir, lavar as mãos antes e após as refeições, todo um conjunto de
gestos nasceu na Idade Média, que persistiu até nossos dias. O outro lugar de
aprendizado das boas maneiras é o convento (LE GOFF, 2007, pp. 84-85).
A essas regras de comportamento puramente guerreiro, os trovadores do sul da
França, depois os trovadores do Norte, os romancistas e os poetas franceses, anglo-
normandos, depois germânicos acrescentam a dimensão cortês. O cavaleiro não deve
apenas ser um audacioso soldado e um fiel vassalo, ele também deve aumentar seu
valor humano pelo amor de sua dama, por suas virtudes de homem da corte (FLORI,
2005, p. 163).
Além da lealdade, da hospitalidade, da comensalidade e da cortesia, que, de acordo com
Lins, sintetizavam a cavalaria
300
, ao cavaleiro mediévico podem ser atribuídas outras
qualidades: bravura, enorme força física, destreza na hora da batalha, espírito de aventura,
pureza, honradez, companheirismo, senso de justiça, capacidade de predizer o futuro, poder
de cura, respeitabilidade a Deus e às coisas da Igreja, bondade e beleza; conforme atestam a
Literatura e a História medievais. Todos esses atributos, com a devida adaptação da
300
Primeiro, a lealdade; depois, a liberalidade; em seguida, essa perfeição da Cavalaria civilizada, que se
chamou cortesia, virtudes coroadas e resumidas pêla honra: “antes a morte do que a vergonha”: “Miex
vauroi morir que à honte estre en vie” tal a síntese da cavalaria (LINS, 1939, p. 142).
284
religiosidade do Homem medievo para a realidade pagã da Antigüidade clássica, vale
salientar, também se encontram presentes na figura do herói mítico e na do guerreiro greco-
romano, como bem mostrou o capítulo anterior.
No que concerne à bravura do cavaleiro medieval, o testemunho é da História. De
acordo com Ivan Lins,
A primeira recomendação feita ao cavaleiro, logo após ser armado, era, como é fácil
de ver, “ser bravo”: “sois preux”. “Mais vale ser morto do que chamado covarde”
é um dos incisivos versos da epopéa “Elie de Saint Gilles” (LINS, 1939, p. 142).
no que diz respeito à enorme força física do cavaleiro, capaz de exceder em muito a
do homem comum, A Demanda do Santo Graal traz esta passagem:
E quando os outros o virom cair a terra, leixarom-se correr a Galaaz e quebrantarom
em êle as lanças, mas da sela nom no moverom nem outro mal nom lhe fezerom, ca
era de gram coraçom e de maior fôrça que outro homem
301
(MAGNE, 1955, p. 103).
Como exemplo da destreza do cavaleiro no campo de batalha, lutando contra vários
inimigos ao mesmo tempo, documenta, A Demanda, o seguinte:
Galaaz foi correndo aas suas armas, que stavam ante seu leito, e armou-se o milhor e
o mais toste que de. Entam quiserom êles cometer logo Boorz e quiserom-no
prender, mas nom poderom, ca el se defendeu tam maravilhosamente com sua
espada, que lhes talhava as cabeças e os braços e derribava uũs acá e os outros alá, e
limpou tam bem amara dêles, que, a pouca de hora, nom ficou i outrem afora êles
ambos e o corpo da donzela, fora se foi cavaleiro morto ou mal-chagado que nom
pôde sair
302
(MAGNE, 1955, p. 153).
Tais quais os heróis mitológicos, os cavaleiros corriam, todo o tempo, atrás de
aventuras. É o que mostra A Demanda do Santo Graal, neste trecho:
301
E quando os outros o viram cair em terra, deixaram-se correr a Galaaz e quebraram nele as lanças, mas da
sela não o moveram e outro mal não lhe fizeram, porque era de ânimo forte e de maior força que outro qualquer
(MEGALE, 2008, p. 86).
302
Galaaz foi correndo às suas armas, que estavam diante do leito, e armou-se o melhor e o mais rápido que
pôde. Então quiseram eles atacar logo Boorz e quiseram prendê-lo, mas não puderam, porque ele se defendeu tão
maravilhosamente com sua espada que lhes cortava as cabeças e os braços e derrubava uns para cá e outros para
lá, e limpou deles tão bem a câmara que, em pouco tempo, não ficou ninguém, senão eles ambos e o corpo da
donzela, afora o cavaleiro morto ou muito ferido que não pôde sair (MEGALE, 2008, p. 118).
285
Amigo, disse Lançarot, que faremos desta carta? Convém que a provemos, se a
podemos haver, ca em outra guisa nom nos deveriam a ter por cavaleiros
aventurosos, se nos nom trabalhássemos de tôdas venturas provar.
Disse Persival:
Por al nom veemos nós a
303
(MAGNE, 1955, p. 313).
A pureza do cavaleiro mediévico deveria advir da sua entrega à espiritualidade (ideal
cristão), que, na Idade Média, significava “seguir os ensinamentos da Santa Madre Igreja”:
não pecar contra a castidade, confessar-se; dentre outros.
Cavaleiros da Távola Redonda, ouvide. Vós havedes jurada a demanda do Santo
Graal. E Naciam o ermitam vos envia dizer per mim, que nhuũ cavaleiro desta
demanda nom leve consigo dona nem donzela, senam fará pecado mortal. E nom
seja tal que i entre, se nam fôr bem menfestado, ca em tam alto serviço de Deus
como êste, nom deve entrar se nam fôr bem menfestado e bem comungado e limpo e
purgado de tôdolos cajoões e de pecado mortal; ca esta demanda nom é de taaes
obras, ante é demanda das puridades e das cousas ascondidas de Nosso Senhor, que
fará veer conhocidamente ao bem-aventurado cavaleiro que el scolheu por seu
sargente antre tôdolos cavaleiros terreaaes, ao qual mostrará as grandes maravilhas
do Santo Graal e lhe fará veer o que coraçom mortal nom poderia pensar, nem
língua de homem nom poderia dizer
304
(MAGNE, 1955, p. 43).
Sobre o ideal cristão assim se pronunciou Ivan Lins:
O ideal cristão é, como se sabe, identificar-se o crente dom a Divindade,
consagrando-se, o mais possível, à vida do espírito, desprezando, maltratando e
espezinhando o corpo essa carne corrupta e detestável, fonte de pecado e
abominação, trapo ignóbil que prende o espírito à terra cette guenille, chama-lhe
Philaminte nas “Femmes Savantes”. Daí esmagarem brutalmente os santos as mais
legítimas manifestações da natureza, mortificando, desapiedadamente, a carne,
através de jejuns, cilícios, disciplinas, etc., em verdadeiros “suicídios crônicos”
(LINS, 1939, p. 240).
303
Amigo disse Lancelote , que faremos desta carta? Convém que experimentemos se a podemos tirar,
porque de outro modo não nos deveriam ter por cavaleiros venturosos, se não nos esforçássemos por todas as
aventuras provar.
Disse Persival:
Por outra coisa não viemos aqui (MEGALE, 2008, p. 218).
304
Cavaleiros da távola redonda, ouvi. Vós jurastes a demanda do santo Graal. E Nascião, o ermitão, vos
manda dizer por mim que nenhum cavaleiro desta demanda leve consigo mulher nem donzela, senão fará pecado
mortal. E não seja tal que nela entre, se não for bem confessado, porque em tão algo serviço de Deus como este,
não deve entrar se não for bem confessado e bem comungado e limpo e purificado de todos os danos e de pecado
mortal; porque esta demanda não é de tais obras, antes é demanda dos segredos e das coisas escondidas de Nosso
Senhor, que fará ver conhecidamente ao bem-aventurado cavaleiro que ele escolheu para seu servo entre todos os
cavaleiros terrenos, ao qual mostrará as grandes maravilhas do santo Graal e lhe fará ver o que o coração mortal
não poderia pensar, e língua humana não poderia dizer (MEGALE, 2008, p. 46).
286
Dos mesmos princípios decorria também o celibato como sendo o ideal do cristão,
afim de consagrar-se inteiramente à contemplação da Divindade (ibidem, p. 241).
Transferindo o Catolicismo o destino do homem para um outro mundo, considera a
vida terrena uma peregrinação passageira e desprezível, conduzindo ao ascetismo, e,
consequentemente, ao aniquilamento da vida social (ibidem, p. 245).
Ainda de acordo com este estudioso, a purificação poderia se dar, também, por meio de
banhos:
É preciso, porém, distinguir entre os que pretendiam atingir à santidade e o comum
dos fiéis, entre os quais era frequente o uso dos banhos, até em companhia,
principalmente em se tratando de amantes, que traziam a cabeça coroada de flores, o
que, no dizer severo de Gautier, deu origem a condenáveis abusos (LINS, 1939, p.
240).
A honra, sem dúvida nenhuma, era o ideal do cavaleiro, como outrora havia sido o do
herói mítico e o do guerreiro das antigas Grécia e Roma: aquele, como este, procurava, a todo
custo, alcançá-la; ainda que para isso fosse preciso morrer em campo de batalha, lutando:
Ai, Senhor! disse Lançarot, que dizedes? Tal homem como vós nom deveria haver
pavor, mas sfôrço e boõa sperança. Certas, se || nós morrêssemos todos em esta
demanda, maior honra nos seria ca de morrermos alhur
305
(MAGNE, 1955, pp. 33-
35).
A meu prazer, disse ela, nunca pode ser.
Depois que viu que nom havia al de fazer, disse:
Vaades aa graça de Deus Nosso Senhor, que vos guie e que vos torne aça com
saúde e vos dê honra em esta demanda.
Senhora, disse el, assi o guise Deus, se lhe aprouver
306
(ibidem, pp. 51-53).
Os cavaleiros preferiam antes a morte que a desonra:
Assi? || disse Dalides. Assi me Deus valha, pesa-me ende; agora fôsse eu ferido aa
morte, que jamais nunca haverei honra de cousa que faça, ca êste cavaleiro me
scarneceu por sempre. E por êsto querria seer morto mais que vivo.
[...]
305
Ai, senhor disse Lancelote , que dizeis? Tal homem como vós não deveria ter pavor, mas ânimo e boa
esperança. Certamente, se morrêssemos todos nesta demanda, maior honra seria do que morrer em outro lugar
(MEGALE, 2008, p. 40).
306
A meu prazer, nunca pode ser disse ela, depois que viu que não havia outra coisa a fazer , mas ide com a
graça de Deus Nosso Senhor que vos guie e vos traga de volta com saúde e vos dê honra nesta demanda.
Senhora disse ele , assim o faça Deus, se lhe aprouver (MEGALE, 2008, p. 52).
287
Entam alçou a espada e feri|u-se polo peito, de guisa que pareceu o ferro da outra
parte, e disse que mais queria assi morrer ca outra vez prender desonra por uũ
cavaleiro soo. Entam caiu em terra morto
307
(MAGNE, 1955, p. 107).
Certas, disse Ivam o Bastardo, pois que a comecei, nom me farei afora, ca mo
retraeriam os que sabem, e mais querria morrer ca leixá-la assi
308
(ibidem, p. 127).
Aquela noite, jouve Ivam o Bastardo com gram pesar daquelo que lhe o homem b
|| dissera, ca era cousa que o fazia muito spantar e fazer afora da demanda. E pero
bem sabia que, se fôsse na rte, nunca haveria honra se se quitasse
309
(ibidem, p.
129).
Sobre honra, Ivan Lins proferiu as seguintes palavras:
A honra é o sentimento resultante da combinação do orgulho e da vaidade com os
instintos sociais ou altruísticos, de modo a considerar cada indivíduo sua grandeza
como consistindo no exato cumprimento do dever (LINS, 1939, p. 147).
No que tange ao companheirismo, que se constitui, de acordo com o Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa
310
, num “convìvio cordial e prestimoso”, na vontade de se
estar junto e de cuidar de quem se gosta, A Demanda traz estes excertos, para mostrá-lo como
parte constituinte do imaginário do cavaleiro medievo:
E el-rei [foi] entam ouvir missa aa see, com gram companha de cavaleiros, que
maravilha terríades de os veer. E ele trazia tam rico guarnimento, que maravilha era.
E com a rainha iiam tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E ela e êles
ouvirom missa e foram-se ao paaço
311
(MAGNE, 1955, p. 9).
Dos cento e cinqüenta cavaleiros que fezerom juramento desta demanda foi o
primeiro Galaaz, dês i Tristam e Lançarot e Boorz de Gaunes e Bliobleris e Lionel e
Estor de Mares; Brandinor, seu irmaão, e Elaim o Branco; Banim, o afilhado del-rei
Bam; Abam, boõ cavaleiro a maravilha; Gadram, Laner, Tanri, Pincados, Lelas o
307
Assim? disse Dalides. Assim me Deus valha, pesa-me por isso; agora, fosse eu ferido de morte, que
nunca terei honra em cousa que faça, porque este cavaleiro me escarneceu para sempre. E por isso queria estar
morto, mais do que vivo.
[...]
Então, levantou a espada e feriu-se pelo peito, de modo que apareceu o ferro do outro lado, e disse que mais
queria assim morrer, do que outra vez tomar desonra por um cavaleiro. Então caiu na terra morto (MEGALE,
2008, p. 88).
308
Certamente disse Ivã, o bastardo , pois que a comecei, não desistirei, porque me recriminariam os que
sabem e mais quereria morrer que deixá-la (MEGALE, 2008, p. 102).
309
Aquela noite, ficou Ivã, o bastardo, com muito grande pesar daquilo que o homem bom dissera, porque era
coisa que o fazia muito espantar e desistir da busca. Mas bem sabia que se voltasse à corte, nunca teria honra, se
desistisse (MEGALE, 2008, p. 102).
310
op. cit.
311
O rei foi então ouvir missa na em companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis maravilhado de os ver. E
ele trajava tão fica vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam tantas donas e donzelas, que era grande
maravilha. E ela e eles ouviram missa e foram para o paço (MEGALE, 2008, p. 22).
288
Ruvho, Crinides o Negro, Ocursus o Negro, Acantam o Ligeiro, Danubre o
Cor[ajoso]. Todos êstes cavaleiros sem Tristam eram do linhagem de rei Bam, e
vierom aa côrte de rei Artur por amor de Lançarot. E aveo-lhes assi per boõa
cavalaria e per sua vida que foram companheiros da Távola Redonda e eram
preçados dos cavaleiros sôbre tôdolos cavaleiros da casa de rei Artur, e pola
bondade destes, que eram andantes, era o linhagem de rei Bam nomeado, assi como
vos eu digo
312
(ibidem, p. 49).
Tanto que [Amador de Belrepaire] êsto disse, saí-lhe a alma do corpo. Quando
Galaaz viu que era morto, tolheu o elmo e beijô-o; e êsto fazia el, porque era da
Mesa Redonda.
Pois que viu que era morto, çarrou-lhe a bôca, foi a Melias e pregun | tou-lhe que lhe
faria.
Senhor, disse el, levar-me-ades a ũa abadia, que aqui preto; e se eu houver de
morrer, que moira ante i que alhur em no ermo; e se houver de guarecer, asinha
gorecerei.
Entam o desarmou Galaaz e tirou-lhe o ferro da ferida e atou-lha o milhor que
pôde
313
(ibidem, p. 93).
Assi se foi o cavaleiro depós a bêsta, que bem mostrou aos dous companheiros da
casa de rei Artur, que nhuũ nom queria que fôsse depós a caça. E quando Gilfret se
alevantou, foi a seu cavalo e cavalgou em êle, e esmou que iria aa montanha u outro
cavaleiro jazia. E assi o fêz; foi alá e achou Ivam o Bastardo, que se vinha e que
tirara o ferro de si. Mas perdera tanto do sangue, que se spantava como nom era
morto. E pero, quando conhoceu Gilfret, foi mui alegre e esforçado, tanto como se
fôsse saão
314
(ibidem, p. 133).
disse Boorz a Galaaz:
Muito me praz que vos achei, ca muito cubiçava vossa companha em esta
demanda, e nom me partirei de vós ataa que a ventura nos parta.
Galaaz disse que lhe prazia de coraçom
315
(ibidem, p. 139).
Conta a estória que, depois que Galvam foi guarido da chaga que lhe fezera Galaaz e
sentiu que poderia cavalgar, cavalgou, er col-se a seu caminho e, andando assi per
suas jornadas, aveeo dia que achou Ivam de Cenel, bcavaleiro e ardido, que
era da Mesa Redonda, e salvou-o, tanto que a êle chegou, e o outro outrossi a êle,
312
Dos cento e cinqüenta cavaleiros que fizeram o juramento desta demanda, foi o primeiro Galaaz, depois dele,
Tristão e Lancelote e Boorz de Gaunes e Bliobleris e Leonel e Heitor de Mares. Brandinor, seu irmão, e Elaim, o
branco; Banim, o afilhado do rei Bam; Abão, bom cavaleiro à maravilha; Gradrão; Laner; Tanri; Pincados;
Lelas, o ruivo; Crinides, o negro; Ocursus, o negro; Acantão, o ligeiro; Danúbio, o corajoso. Todos estes
cavaleiros, exceto Tristão, eram da linhagem de rei Bam e vieram à corte de rei Artur por causa de Lancelote. E
aconteceu-lhes assim por boa cavalaria e por sua vida boa que foram companheiros da távola redonda e eram
estimados pelos cavaleiros sobre todos os cavaleiros da casa de rei Artur; e pela bondade destes, que eram
andantes, era a linhagem de rei Bam famosa como vos digo (MEGALE, 2008, pp. 49-50).
313
Assim que [Amador de Belrepaire] disse isto, saiu-lhe a alma do corpo. Quando Galaaz viu que estava morto,
tirou o elmo e beijou-o, e isto fazia ele, porque era da mesa redonda.
Depois que viu que estava morto, cerrou-lhe a boca, depois foi a Melias e perguntou-lhe o que lhe faria.
Senhor disse ele , levar-me-eis a uma abadia, que há aqui perto; e se eu tiver que morrer, que morra antes lá
que em outro lugar no ermo; e se tiver que sarar, depressa sararei.
Então o desarmou Galaaz e tirou-lhe o ferro da ferida e atou-a o melhor que pôde (MEGALE, 2008, p. 79).
314
Assim se foi o cavaleiro atrás da besta, e bem mostrou aos dois companheiros da casa de rei Artur, que não
queria que nenhum fosse atrás da caça. E quando Gilfrete se levantou, foi a seu cavalo e cavalgou nele, e pensou
que iria à montanha onde o outro cavaleiro estava. E assim o fez: foi lá e encontrou Ivã, o bastardo, que vinha
e que tirara o ferro de si. Mas perdera tanto sangue, que se espantava como não estava morto. Mas, quando
reconheceu Gilfrete, ficou muito alegre e animado, tanto como se estivesse são (MEGALE, 2008, p. 105).
315
disse Boorz a Galaaz:
Muito me agrada que vos encontrei, porque muito cobiçava vossa companhia nesta demanda, e não me
afastarei de vós até que a ventura nos separe.
Galaaz disse que lhe agradava de coração (MEGALE, 2008, p. 110).
289
pero nom se conhociam, ca haviam as armas cambadas. E indo pola carreira,
começarom-se a preguntar. E depois que se conhocerom, forom mui ledos e aa-cima
acordarom-se que se nom partissem, pois los Deus ajuntara, ataa que a ventura os
fezesse partir
316
(ibidem, p. 171).
Como foram dados exemplos literários do senso de justiça cavaleiresco, quando se
falou da lealdade do cavaleiro medieval para com seus companheiros de companhia, fica aqui,
então, somente o que disse Lins sobre o profundo sentimento de justiça do cavaleiro:
E, em verdade, a todas as virtudes enumeradas: bravura, lealdade, cortesia,
liberdade, devia acrescer-se ainda profundo sentimento de justiça, ardente
indignação contra o mal e o propósito de consagrar o cavaleiro sua coragem em
prevenir e corrigir qualquer opressão (LINS, 1939, p. 170).
A exemplo do que acontecia com o herói mítico, no que concerne a este ser capaz de
predizer o futuro (geralmente a partir de sonhos, que eram interpretados por sábios, por
pessoas mais velhas oniromancia), o cavaleiro medieval também estava sujeito à mântica, à
arte divinatória. Esta, semelhante ao que ocorria com os heróis greco-romanos, em geral
também se dava por meio de inspiração divina: Deus enviava sonhos aos cavaleiros que se
encontravam imersos em pecado, para mostrar-lhes o que lhes poderia acontecer, caso não se
arrependessem de seus atos, pedissem perdão por eles e passassem a levar uma vida regrada,
com base nos ensinamentos bíblicos. A maioria dos sonhos divinatórios dos cavaleiros
mediévicos tinha, portanto, uma função pedagógica, corretiva. Eis algumas passagens d‟A
Demanda do Santo Graal que ilustram bem essa função oracular do cavaleiro medievo:
Dom Galvam, disse Lançarot, el-rei fêz seu prazer, dês que vo-la mandou provar,
[mas nesta aventura nom devedes vós a entrar], ca nom pode durar longo tempo, que
316
Conta a estória que Galvão, depois que foi curado do ferimento que lhe fizera Galaaz e sentiu que poderia
cavalgar, cavalgou de novo e seguiu o seu caminho e, andando assim por duas jornadas, aconteceu um dia que
encontrou Ivã de Cenel, bom cavaleiro e valente, que era da mesa redonda, e saudou-o assim que a ele chegou, e
o outro também a ele, mas não se reconheciam, porque tinham as armas trocadas. E indo pelo caminho deram
início a perguntas. E depois que se reconheceram, ficaram muito alegres e, por fim, concordaram que se não
separassem, visto que Deus os ajuntara, até que a ventura os fizesse separar (MEGALE, 2008, pp. 128-129).
290
vos nom hajades mal ende, ca vós receberedes porende o maior golpe ou chaga,
onde haveredes pavor de morte ou morreredes
317
(MAGNE, 1955, p. 15).
Grande foe a ledice e prazer que todos houverom. E el-rei se ergeu da mesa e foi aa
mesa u siia Galaaz, e viu i seu nome scripto, e foe mui ledo e disse a Galvam:
Sobrinho, ora podedes veer Galaaz, o mui boõ cavaleiro sobejo, que nós tanto
atendemos e que tanto desejamos a veer.
E os da Távola Redonda falavam mais ameúde cá tôdolos outros. E diziam:
Pois no-lo Deus adusse, servamo-lo e honremo-lo mentre fôr antre nós, nom
viverá muito com nosco pola demanda do Santo Graal, que se começará logo.
Assi me Deus ajude, disse Galvam, bem no devemos servir, ca Deus no-lo enviou
por nos livrar a terra da[s] grandes maravilhas e das estrãias aventuras que tanto
ameúde [a]vêem e de tam longo tempo.
Entam veeo el-rei a Galaaz e disse-lhe:
Senhor, vós sejades benvindo, ca muito tempo há que vos desejei a veer; e graças a
Deus e a vós, que quiseste aqui vir.
Senhor, disse êle, eu viim aqui, ca me convinha a fazer, ca de [aqui] mover
haverám ora todos aquêles que aa demanda do Santo Graal queiram ir; e bem sei que
cedo será começada.
Senhor, disse el-rei, vossa viinda nos é mui mester por muitas aventuras
maravilhosas a que || nom podemos dar cima. E digo-vo-lo por ũa que nos hoje
aveeo; ide-a veer, se vos aprouver
318
(ibidem, pp. 23-25).
Senhor, ontem aveeo a mim e a êste cavaleiro, que chegámos a ũa capela, e
albergámos i. E depois que nos deitámos e dormimos, sonhei eu meu sonho.
E entam lhe contou qual. E depois que lhe contou seu sonho, er contou-lhe Estor o
seu conho. E depois contarom-lhe da maão que virom e o seu a voz lhe disse, e pois
que lho contarom todo, rogarom-no por Deus que lhes dissesse daquele sonho e da
voz, como era.
Quando o homem boõ ouviu o porquê a êle veerom, respondeu e disse a Galvam:
Polo prado que vós vistes, u havia o curral, devemos entender a Távola Redonda,
ca assi como no curral há departimentos de sebes que divisam as estadas dos gaados,
assi na Távola Redonda piares e departimentos que divisam as ũas sedas das
outras. Polo prado, que era verde, devemos entender a humildade e a sofrença. No
curral, u vistes os CL touros, e que nom saíam polo prado, mas polo || chaão,
devedes a saber e entender que, se polo prado saíssem, seriam humildosos e
obedientes. E os touros eram argulhosos e desassemelhados, fora três. Polos touros
devedes vós a entender os companheiros da Távola Redonda, que por seu fornízio e
por sua maa vida, caerom em soberva e em mortal pecado, tam muito, que seus
pecados nom se podem absconder em êles, ante parecem por defora, assi que sam
todos desassemelhados. Dos três touros que eram sem malha devedes a entender que
317
Dom Galvão disse Lancelote , o rei fez seu prazer, pois que vo-la mandou provar, mas nesta aventura
não deveis entrar, porque não pode demorar muito que não hajais mal por isso, pois recebereis o maior golpe ou
ferimento pelo qual tereis pavor da morte ou morrereis (MEGALE, 2008, p. 26).
318
Grande foi a alegria e o prazer que todos tiveram. E o rei se ergueu da mesa e foi à mesa onde sentava
Galaaz, e viu lá seu nome escrito, e ficou muito alegre e disse a Galvão:
Sobrinho, agora podeis ver Galaaz, o muito bom cavaleiro sobejo, que tanto esperamos e tanto desejamos ver.
E os da távola redonda falavam mais amiúde do que todos os outros. E diziam:
Pois Deus no-lo trouxe, sirvamo-lo e honremo-lo enquanto estiver entre nós, porque não viverá muito conosco
por causa da demanda do santo Graal que começará logo.
Assim Deus me ajude disse Galvão , bem o devemos servir, porque Deus no-lo enviou por nos livrar a terra
das grandes maravilhas e das estranhas aventuras que tão amiúde acontecem e desde tão longo tempo.
Então veio o rei a Galaaz e disse-lhe:
Senhor, sede bem-vindo, porque muito tempo que vos desejei ver; e graças a Deus e a vós, quisestes aqui
vir.
Senhor disse ele , vim aqui, porque me convinha, porque daqui hão de partir agora todos aqueles que à
demanda do santo Graal queiram ir e bem sei que logo será começada.
Senhor disse o rei , vossa vinda nos é mui mister por muitas aventuras maravilhosas a que não podemos dar
cabo. E vo-lo digo por uma que nos hoje aconteceu; ide-a ver, se vos aprouver (MEGALE, 2008, pp. 32-33).
291
som sem pecado os dous que eram brancos e fremosos. Fremosos e brancos som os
que sam perfeitos de tôdalas virtudes. Os dous touros que eram brancos significam
Galaaz e Persival, que sam brancos, ca sam virges limpos e sem malha. O terceiro,
u houvera já sinal de malha, êste era Boorz, que peça havia que errara em sua
virgindade, mas depois o corregeu em guisa, que tam bem guardou sa castidade, que
todo aquel erro foe perdoado. Os três touros eram liados polos corpos: sam êstes três
cavaleiros, que sam assi liados de humildade, que já soberva nom pode a êles entrar.
Os outros touros, que diziam: <<Vaamos buscar milhor pasto que êste é>>, êstes sam
os companheiros da Távola Redonda, que disserom, em dia de Pinte|coste:
<<Vaamos aa demanda do Santo Graal, e seremos avondados das honras do mundo e
do manjar celestial, que a graça do Spiritu Santo envia aaquêles que seem aa mesa
do Santo Graal. Ali é o boõ pasto; leixemos êsto e vaamos alá>>. E êles se partirom
da rte e foram polo chaão, ca nom polo prado, ca nom foram aa confissam, como
devia a fazer quem entra em serviço de Nosso Senhor, nem moverom com
humildade nem com sofrença, o que entendemos polo prado verde, mas foram polo
chaão seco, u nom havia verdura nem frol nem fruita. Esta foi a carreira do inferno,
u tôdalas cousas sam secas, que i vaão. E quando tornavam, faleciam ende os chus;
[per aquelo] havedes de entender que, ao tornar desta demanda, falecerám muitos, ca
morrerám í. E os touros que tornavam eram tam magros e tam cansados, que adur
podiam estar. Êstes sam os cavaleiros que da demanda escaparóm e que tornaróm aa
côrte, que seerám tam mazelados de pecados e tam envoltos i, que os uũs mataróm
os outros e nom haverám bondade nem virtude em que possam estar, que nom caiam
no inferno. Dos três sem malha tornerá uũ, e os outros dous ficaram; assi se entende
|| que dos três boõs cavaleiros uũ tornará aa côrte por contar o boõ pasto que
perderam os que jaziam em pecado mortal. Os outros dous ficaróm, porque acharóm
tam gram sabor no manjar do Santo Graal, que se nam partiram ende em nhũa guisa,
pois que [o] houverom a sua vontade. A postomeira palavra de Nosso Senhor, disse
êle a Galvam, nom vos direi, que poderia ende viir mal, e bem nom.
Senhor, disse Galvam, eu sofrer-me-ei ende, se a vós apraz. E bem o devo a fazer,
ca bem me fezestes certo da minha dúvida, que tôda a verdade vejo de meu sonho.
Entam disse o homem boõ a Estor:
A vós semelhava que vós [e] Lançarot vos decìades de ũa cadeira. A cadeira
significa senhorio. O senhorio onde vós decíades [é] a gram honra da Mesa
Redonda, onde decestes, ca a leixastes quando vos partistes da casa de rei Artur; e
sobíades em dous cavalos grandes: os dous cavalos sam argulho e soberva. Depois
dizíades: <<Vaamos buscar o que nom podemos achar [acá]>>. | Êste era o Santo
Graal. Estas sam as puridades de Nosso Senhor e as cousas abscondidas, que vos
nam serám descubertas nem demostradas, ca nom sodes taes quaaes devedes a seer.
E pois vos partìades do outro. Lançarot cavalgava tanto que caìa do cavalo. Êsto
quer dizer ca el caíra do argulho e abaixara em humildade; e sabes tu quem no
derribara do argulho? Aquel que dirribou o argulho do ceeo, e êste é Jesu Cristo, que
abaixou Lançarot e que o espiu dos pecados, assi que se conhoceu e se viu nuu de
tôdas boõas virtudes, que cristaão deve haver, e pediu mercee; e logo que a pediu, o
vestiu Nosso Senhor. E sabedes de quê? De castidade e de humildade e de sofrença
grande e de mesura. Esta foi a roupa que lhe deu. Depois fazia-o sobir em asno;
esta é a [bêsta] que significa homildade. E bem pareceu, tempo foi, que pelo asno
devemos a entender humildade, ca em dia de ramos entrou Nosso Senhor na cidade
de Jerusalém, que era Rei dos reis, e cujas tôdas as requezas eram. E nom quis viir
em cavalo nem em palafrém, ante veeo na mais vil sta que pôde, como || vir em
asno, por aprenderem ende dêle, dês ali adiante, os ricos e os pobres, façanha de
homildade. Em tal bêsta vistes vós cavalgar Lançarot em vosso sonho; e pois andara
assi longo tempo, vinha a ũa fonte, a mais fremosa que nunca vira, e decia por bever.
E quando queria bever, fugia-lhe a água. E quando êle via que nom podia bever,
tornava-se per u viera. A fonte era fremosa e era feita em tal guisa, que nunca
homem tanta água pode sacar que míngüe rem. Esta fonte saborosa é a palavra do
evangelho. O coraçom do que se acha mal de seus pecados, que fêz, tam gram
sabor, que quanto mais beve, tanto há maior sabor de bever. Esta é a graça do Spíritu
Santo e do Graal, que, quanto mais avonda, tanto i fica mais e mais; e porque nom
-de minguar, deve seer chamada fonte. Quando el vinha aa fonte e decia, êsto
mostra que êle viera preto do Santo Graal, e stará i e mudar-se-á, tanto que se nam
292
terra por homem ante aquel Santo Vaso, porque caíra em pecado. E quando se
abaixava a beber e lhe a água fugia, êsto quer mostrar que ficará os geolhos ante o
Santo Vaso, por veer algũa cousa das pu|ridades que i sam. Entam se lhe sconderá o
Santo Graal, ca perderá o lume dos olhos, porque os deitou a veer os lixos terreaaes;
e perderá o poder do corpo, porque serviu longo tempo o poder do diáboo; e durará
esta vingança XXIIII dias, porque foe XXIIII anos sergente do demo. E, depois que
stever assi XXIIII dias, que nom comerá, nem beverá, nem contangerá pee nem
maão, ante lhe semelhará que é em tam bstado como ante que perdesse o lume
dos olhos, entam dirá ũa peça do que viu, e logo se partirá da terra e ir-sepera
Camalot. E vós, que todavia cavalgávades no gram cavalo, êsto mostra que ficaredes
em pecado e em argulho e enveja, e iredes de e de lá, tanto desviando, que
chegaredes aa casa do Rei Pescador, u os homes boõs e os cavaleiros farám as
festas e as grandes lidices das grandes cousas que acharom. E quando vós i
chegaredes e cuidaredes dentro entrar, ali vos dirám que nom ham cura de homem
que faz em pecado mortal e em argulho e em soberva. E s vos tornaredes entam
pera Camaalot, e nom adubaredes i rem da vossa prol na demanda. Ora vos devisei
gram peça do que vos há-de vir
319
(ibidem, pp. 215-221).
319
Senhor, ontem aconteceu a mim e a este cavaleiro que chegamos a uma capela, e nos albergamos nela. E
depois que deitamos e dormimos, sonhei meu sonho.
E então lhe contou qual. E depois que lhe contou seu sonho, também contou-lhe Heitor o seu. E depois
contaram-lhe da mão que viram e o que a voz lhes disse, e depois que lhe contaram tudo, rogaram-no, por Deus,
que lhes dissesse daquele sonho e da voz, como era.
Quando o homem bom ouviu o porquê a ele vieram, respondeu e disse a Galvão:
Pelo prado que viestes, onde havia o curral, devemos entender a távola redonda, porque assim como no curral
há repartições de cercados que dividem os lugares do gado, assim navola redonda esteios e repartições que
separam os assentos uns dos outros. Pelo prado, que era verde, devemos entender a humildade e a paciência. No
curral, onde vistes os cento e cinqüenta touros e que não saíam pelo prado, mas pela terra, deveis saber e
entender que, se pelo prado saíssem, seriam humildes e obedientes. E os touros eram orgulhosos e diferentes,
menos três. Pelos touros deveis entender os companheiros da távola redonda, que por sua fornicação e por sua
vida caíram muito em soberba e em pecado mortal, tanto que seus pecados não se podem esconder neles,
antes aparecem por fora, assim que são todos diferentes. Dos três touros que eram sem mancha deveis entender
que são sem pecado os dois que eram brancos e formosos. Formosos e brancos são os que são perfeitos de todas
as virtudes. Os dois touros que eram brancos significam Galaaz e Persival, que são brancos, porque são virgens,
limpos e sem mancha. O terceiro, que tivera sinal de mancha, este era Boorz, que tempo havia que errara em
sua virgindade, mas depois o corrigiu de modo que tão bem guardou sua castidade, que todo aquele erro foi
perdoado. Os três touros que estavam ligados pelos corpos são estes três cavaleiros que estão assim unidos pela
humildade, que soberba não pode neles entrar. Os outros touros, que diziam “Vamos buscar melhor pasto que
este”, são os companheiros da távola redonda que disseram no dia de Pentecostes: “Vamos à demanda do santo
Graal e seremos repletos das honras do mundo e do manjar celestial que a graça do Espírito Santo envia àqueles
que sentam à mesa do santo Graal. Ali é o bom pasto; deixemos este e vamos lá”. E eles partiram da corte e
foram pela terra, que não pelo prado, porque não foram à confissão, como deviam fazer os que entram em
serviço do Nosso Senhor, nem partiram com humildade nem com paciência, o que entendemos pelo prado verde,
mas foram pela terra seca, onde não havia verdura, nem flor, nem fruta. Esta foi a carreira do inferno, onde todas
as coisas são secas, que vão. E quando tornavam, morriam por isso os mais; e por isso haveis de entender que,
ao voltar desta demanda, faltarão muitos, porque morrerão nela. E os touros que voltavam estavam tão magros e
tão cansados, que dificilmente podiam manter-se de pé. Estes são os cavaleiros que da demanda escaparão e
voltarão à corte, que estarão tão manchados de pecados e tão envolvidos neles que uns matarão os outros e não
terão bondade nem virtude em que possam estar, que não caiam no inferno. Dos três sem mancha, voltará um e
os outros dois ficarão; assim se entende que dos três bons cavaleiros um voltará à corte para o bom pasto que
perderam aqueles que estavam em pecado mortal. Os outros dois ficarão, porque acharão tão grande prazer no
manjar do santo Graal, que não o deixarão de modo algum, pois que o tiveram à vontade. A derradeira palavra de
nosso sonho disse ele a Galvão , não vos direi, porque por ela poderia sobrevir mal e não bem.
Senhor disse Galvão , eu me esforçarei por isso, se voz apraz. E bem o devo fazer, porque bem me
esclarecestes a minha dúvida, que toda a verdade vejo de meu sonho.
Então disse o homem bom a Heitor:
A vós parecia que vós e Lancelote descíeis de uma cadeira. A cadeira significa domínio. O domínio de que
descíeis é a grande honra da mesa redonda, de que descestes, porque a deixastes quando partistes da casa de rei
Artur; e montáveis dois cavalos grandes: os dois cavalos são orgulho e soberba. Depois dizìeis: “Vamos buscar o
que não podemos encontrar aqui”. Este era o santo Graal. Estes são os segredos de Nosso Senhor e as coisas
293
e aquela noite pensou muito nas aventuiras que lhe [a]veeram e nas visoões que vira
em sonhos. O outro dia, depois que ouviu missa, contou-[as] aos ermitaães, ca bem
cuido[u] que eram tam boõs homes contra Nosso Senhor, que bem o [saberiam]
conselhar; e assi o fezerom sem falha, ca entam lhe fezeram saber o conhicimento da
sua linhagem e del-rei Mordraim e de Nasciam e de Cilodornes e de todos aquêles
onde o conto vos já falou, e disseram-lhe discubertamente que era escarnido pola
rainha Genevra, e a rainha por êle
320
(ibidem, p. 323).
Sobre a importância dos eremitas para a interpretação dos sonhos dos cavaleiros e para
as revelações dos sentidos das aventuras que estes vão enfrentando ao longo da demanda que
realizam, e sobre o caráter pedagógico desses sonhos, disse Danielle Régnier-Bohler:
Em La quête du Saint-Graal, o sentido das aventuras se oculta entre as mãos dos
eremitas e das reclusas: se toda aventura é percebida pelo herói como possuidora de
um sentido, sem que, no entanto, ele saiba manipular seus sinais (E. Baumgartner),
os eremitas são os detentores das interpretações, donde os longos discursos e as
múltiplas confissões da narrativa. Trata-se, em particular, da interpretação dos
sonhos, área do ìntimo. “Fica sabendo”, diz o eremita a Lancelot, “que essa visão é
escondidas, porque não sois tais quais deveis ser. E depois vos separáveis um do outro, Lancelote cavalgava
tanto que caía do cavalo. Isto quer dizer que ele caíra do orgulho e abaixara em humildade; e sabedes quem o
derribara do orgulho? Aquele que derribou o orgulho do céu, e este é Jesus Cristo, que abaixou Lancelote e o
despiu dos pecados, de modo que se conheceu e se viu nu de todas as boas virtudes, que cristão deve ter, e pediu
perdão, e logo que o pediu, o vestiu Nosso Senhor. E sabeis de quê? De castidade, de humildade e de paciência
grande e de moderação. Esta foi a roupa que lhe deu. Depois, fazia-o subir em um asno: este é o animal que
significa a humildade. E bem pareceu, tempo, que pelo asno devemos entender humildade, porque em dia de
ramos entrou na cidade de Jerusalém Nosso Senhor, que era Rei dos reis e a quem todas as riquezas do mundo
pertenciam. E não quis vir a cavalo nem em palafrém, antes veio no mais vil animal que pôde, como vir em asno,
para aprenderem com isso dele, daí por diante, os ricos e os pobres, o gesto de humildade. Em tal animal vistes
cavalgar Lancelote em vosso sonho; e depois que andara assim muito tempo, vinha a uma fonte, a mais formosa
que nunca vira, e descia para beber. E quando queria beber, fugia-lhe a água. E quando ele via que não podia
beber, voltava-se para onde viera. A fonte era formosa e feita de tal modo que nunca alguém tanta água pode
tirar que falte. Esta fonte saborosa é a palavra do Evangelho. O coração do que se acha mal dos seus pecados,
que fez, tem tão grande prazer que quanto mais bebe, tanto maior vontade de beber tem. Esta é a graça do
Espírito Santo e do Graal que, quanto mais farta, tanto sobra mais e mais: e porque não de faltar deve ser
chamada fonte. Quando ele vinha à fonte e descia, isto mostra que ele viera perto do santo Graal, e ficará e
mudar-se-á, tanto que se não terá por homem diante daquele santo Vaso para ver alguma coisa dos segredos que
estão. Então se lhe esconderá o santo Vaso, porque perderá a luz dos olhos, porque os deitou a ver os lixos
terrenos; e perderá a força do corpo, porque serviu longo tempo o poder do diabo; e durará esta vingança vinte e
quatro dias, porque foi vinte e quatro anos servo do demo. E depois que estiver assim vinte e quatro dias que não
comerá nem beberá, nem mexerá nem mão, lhe parecerá que está em tão bom estado, como antes de perder a
luz dos olhos; então dirá uma parte do que viu e logo partirá da terra e irá para Camalote. E vós que ainda
cavalgáveis no grande cavalo, isto mostra que ficareis em pecado e em orgulho e inveja e ireis de cá e de lá tanto
desviando, que chegareis à casa do rei Pescador, onde os homens bons e os cavaleiros farão as festas e as
grandes alegrias das grandes coisas que acharam. E quando chegardes e procurardes entrar, vos dirão que não
cuidam de quem permanece em pecado mortal e em orgulho e em soberba. E voltareis então para Camalote e não
conseguireis nada em vosso proveito na demanda. Agora vos revelei grande parte do que vos de acontecer
(MEGALE, 2008, pp. 159-161).
320
e naquela noite pensou muito nas aventuras que lhe aconteceram e nas visões que tivera em sonhos. No outro
dia, depois que ouviu missa, contou-as aos ermitães, porque bem cuidou que eram tão bons homens para Nosso
Senhor, que bem o saberiam aconselhar; e assim o fizeram tomar conhecimento da sua linhagem e do rei
Mordraim e de Nascião e de Cilodornes e de todos aqueles de quem o conto vos falou, e disseram-lhe
abertamente que era ludibriado por causa da rainha Genevra e a rainha, por causa dele (MEGALE, 2008, p. 224).
294
bem mais rica de sentido do que muitos poderiam pen-lo. E agora, escuta-me se
quiseres, e eu te direi a origem de tua raça”. Intermediários indispensáveis entre
Deus e os que buscam o Graal, os eremitas e as reclusas detêm, encerrando em sua
palavra, o próprio sentido das aventuras (RÉGNIER-BOHLER in DUBY, 1990, p.
319).
Em La quête du Saint-Graal, os sonhos são uma fonte de uma verdadeira dinâmica
da narrativa, despertando uma propulsão para outrem, para aqueles que, eremitas ou
reclusas, detêm seu sentido. Muito prolixa sobre a angústia dos sonhadores, oriunda
de uma percepção privada da apreensão de uma significação, a narrativa e em
cena Perceval que, após “a extraordinária visão” das duas damas, alegorias das duas
leis, está “muito perturbado”. Ele dorme até alta manhã e encontra um padre:
“Senhor”, lhe diz ele enfim, após terem conversado longamente, “explicai-me, peço-
vos, um sonho que tive esta noite, sonho tão estranho, parece-me, que não estarei em
paz antes de saber seu sentido”. Mais adiante, esgotado pelo jejum e pelas vigìlias,
Lancelot, tomado pelo sono, viu chegar diante dele um homem cercado de estrelas
acompanhado de sete reis e de dois cavaleiros. Chegando a um eremitério, Lancelot
aprende do eremita que “essa visão é bem mais rica de sentido do que muitos
poderiam pensar”. Quanto a Gauvain e Hector, abrigados em uma velha capela, têm
ambos sonhos “tão extraordinários que não se pode omitir lembrá-los, a tal ponto
estão carregados de significação”; Hector desperta “cheio de angústia”, virando-se e
revirando-se de todos os lados, incapaz de dormir”; Gauvain lhe diz então: “Tive um
sonho muito estranho que me despertou, e não ficarei tranqüilo até que saiba o que
significa”. Assim, cada termo e cada figurante dos sonhos requerem um saber mais
global dos valores que atuam na alegoria: as significações representadas no mais
íntimo do ser aguardam sua revelação. Objeto virtual de uma interpretação, o sonho
é não apenas concebido como um mundo em si, mas se trata doravante de uma luta
por uma significação que se esquiva, que espera de uma maiêutica apropriada o
afloramento à consciência e a atribuição de sentido aos seus elementos (ibidem, p.
385).
[O sonho é o] Teatro de um ensinamento benéfico em La quête du Saint-Graal,
objeto de uma avaliação discursiva de sua verdade (ibidem, p. 386).
Jacques Le Goff também dedicou algumas páginas de seu Dicionário Temático do
Ocidente Medieval
321
ao sonho divinatório. Para esse estudioso, as origens da mântica
mediévica devem mesmo ser buscadas na Antigüidade clássica: eis mais uma das heranças
(ou mais um resíduo, de acordo com Roberto Pontes) que as antigas Grécia e Roma legaram à
Europa medieva. Le Goff, no seu texto, ressalta que apenas os sonhos dos grandes vultos
eram tidos, na Idade Média, como verdadeiras premonições. O medievalista afirma ainda que,
assim como na Antigüidade greco-romana, havia, no Medievo, pessoas que se dedicavam
especialmente à interpretação desses sonhos:
Quando o cristianismo passa a ser a religião e a ideologia dominantes no Ocidente a
partir do século IV, dentre os fenômenos culturais que ele tem que administrar estão
321
op. cit.
295
os sonhos e sua interpretação, cuja importância é conhecida para diversas sociedades
humanas. Como todo conjunto cultural novo, o cristianismo recolheu heranças e em
primeiro lugar a da cultura pagã greco-romana. O documento que sem dúvida
melhor exprime a angústia dos letrados cristãos do século IV diante desta cultura
pagã é precisamente um relato de sonho, o de São Jerônimo, que se transportado
para o Céu diante de um tribunal presidido por Cristo, que lhe acusa de ser “mais
ciceroniano que cristão” (LE GOFF in LE GOFF; SCHMITT, 2002, vol. II, p. 511).
Em matéria de sonho e de interpretação dos sonhos, o paganismo greco-romano traz
até o século II da era cristã teorias e práticas, idéias e atitudes que terão uma certa
posteridade na Idade Média. Ele realiza uma distinção fundamental entre os sonhos
verdadeiros e os sonhos falsos (Odisséia, Eneida). Os sonhos gregos e romanos são
aparições de sombras, de fantasmas, de formas vaporosas que têm um lugar próprio
nos Infernos. Mundo dos mortos, país dos sonhos. Povo dos mortos, povo dos
sonhos. Se a personagem dos sonhos na Idade Média não são mais aparições, o elo
entre sonho e morte, sonho e Além permanece muito forte. Um pensamento culto
hostil aos sonhos, considerando-os ilusões e recusando a presença de alguma
verdade ou de alguma razão nos sonhos, subsistiu em toda a filosofia grega e
romana. Três pequenos tratados de Aristóteles levaram a uma “desvalorização
radical” dos sonhos. Esta tendência crìtica e racionalista se reproduzirá na Idade
Média (ibidem, p. 513).
Ao lado da idéia tradicional no pensamento antigo de que uma hierarquia de
sonhadores e que os únicos que podem ser considerados como sonhos premonitórios
de autenticidade irrefutável são os sonhos de personagens revestidos de uma
autoridade suprema, Macróbio distingue cinco tipos de sonhos cujos nomes latinos
são somnium, visio, oraculum, insomnium e visum. Insomnium e visum não são
dignos de interpretação, pois não ensinam nada sobre as coisas ocultas e sobre o
futuro. Restam os outros três. Antes que o renascimento do século XII restabeleça
seu sentido e sua utilização, eles encontram-se de uma maneira não erudita, prática,
na ciência cristã dos sonhos, fundada sobre a distinção entre o sonho (somnium) que
aparece no sono, a visão que surge no estado de sonho, e o oraculum que se encontra
nos sonhos, pouco numerosos, vindos diretamente de Deus e finalmente rejeitados
pelo cristianismo como adivinhação, erro pagão condenado. Quanto ao insomnium,
ele será substituído na Idade Média por um novo tipo de sonho que o psicanalista
Ernst Jones, discípulo e biógrafo de Freud, batizará nightmare, “pesadelo”, sonho
ruim inventado pela Idade Média (ibidem, pp. 513-514).
Um dos aspectos mais notáveis dos comportamentos dos antigos com relação aos
sonhos foi o recurso a especialistas em sua interpretação: adivinhos “populares” que
exerciam seu trabalho especialmente nas praças públicas, verdadeiros sábios que
tiravam seu conhecimento de obras especializadas, e que davam consultas em suas
casas ou nos templos, ou ainda por ocasião de grandes feiras, mercados ou festas.
Dentre eles, uma elite era formada por teóricos que escreviam tratados sobre o
sentido dos sonhos. A adivinhação pelos sonhos, por mais popular que possa ter
sido, foi julgada pelos antigos como secundária, de menor dignidade,
particularmente se comparada à adivinhação pelas entranhas das vítimas ou pelo vôo
dos pássaros; os arúspices e os áugures eram sacerdotes, mais considerados do que
os oniromantes (ibidem, p. 514).
Outras pessoas, além dos cavaleiros medievais, poderiam predizer o futuro: ermitãos,
mulheres. Essas premonições poderiam ser realizadas doutras formas, e não apenas por meio
de sonhos, como mostram estes trechos d‟A Demanda:
296
Filho, cousa santa e honrada, frol e louvor de todos os menos, outorga-me, se te
praz, que te faça companha em tôda minha vida, mentre te poder seguir, dê[s] que te
partires da côrte del-rei Artur, ca eu bem sei que nom morarás i mais de dia, ca a
demanda do Santo Graal se começará, tanto que tu i chegares. E eu te demando ta
companha, assi como tu ouves que eu sei tua santa vida e ta bondade mais ca tu. E
nom sei no mundo [cousa] que me tanto podesse confortar, dês oimais, como de veer
tam santo cavaleiro como tu seerás, [e de veer maravilhas] como tu veerás, e a que
darás cima. Ca Deus, que te fêz nascer em tal pecado, como tu sabes, por mostrar
seu gram poder e sa gram virtude, te outorgou per sua piedade e pela boõa vida
que tu começaste de sua menenice ataaqui poder e força e bondade de armas e de
ardimento sôbre dolos cavaleiros que nunca trouxerom armas no regno de Logres;
assi que tu darás cima a tôdalas outras maravilhas e aventuras, u dolos outros
falecerom. E porém quero todos teus feitos saber, que acabarás [tu], que fôste feito
em tal pecado, u os outros nom poderom i avir, que forom feitos em leal casamento.
Eu te quero teer companha, como sei que em nosso tempo nunca fêz tam fremosos |
milagres Nosso Senhor, nem tam conhocidos, como fará por ti. Êsto quero eu
melhor saber, por veer as grandes aventuras e milagres, que Deus por ti fará. E
[meterei] em escripto tôdalas maravilhas que Deus mostrará por teu amor [em]
demanda. Filho, outorga-me o que te demando. Que Deus te faça homem boõ.
E Galaaz lho outorgou
322
(MAGNE, 1955, p. 7).
E entam tornou a donzela a el-rei e disse-lhe assi:
Rei Artur, envia-te dizer o irmitam que em êste dia de hoje te vinrá a maior
maravilha e honra, que te nunca veeo. E nom vinrá por ti, mas por outrem
323
(ibidem, p. 25).
E assi como os profetas, gram tempo ante da viinda de Jesu Cristo, profetizarom sua
viinda e que êle li || vraria o pôboo das coitas do inferno, bem assi profitizarom os
santos ermitaães, e outrossi muitos homes boõs, a vossa viinda, mui gram sazom
ante que vós viéssedes. E bem diziam todos que jamais as aventuras do regno de
Logres nom haveriam cima atee que vós viéssedes. E tanto vos atendemos, que ora,
aa mercee de Deus, havemo-vos já
324
(ibidem, p. 25).
Entom ergeu el-rei a cabeça e disse-lhe:
Que dizedes, Senhora?
322
Filho, coisa santa e honrada, flor e louvor de toda a mocidade, outorga-me, se te apraz, que te faça
companhia por toda a minha vida enquanto te puder seguir, desde que partires da corte de rei Artur, porque bem
sei que não demorarás lá mais que um dia, porque a demanda do Santo Graal começará, assim que lá chegares. E
eu te peço tua companhia, assim como tu ouves que conheço tua santa vida e tua bondade, mais que tu mesmo. E
não conheço no mundo coisa que tanto pudesse confortar-me de hoje em diante, como ver tão santo cavaleiro
como tu serás e ver as maravilhas como tu verás e a que darás cabo. Porque Deus que te fez nascer em tal pecado
como sabes, para mostrar seu grande poder e sua virtude, te outorgou, por sua piedade e pela vida boa que
começaste desde a infância até aqui, poder e força e bondade de armas e bravura sobre todos os cavaleiros que,
em qualquer época, trouxeram armas no reino de Logres; assim darás cabo a todas as outras maravilhas e
aventuras em que todos os outros falharam e falharão. E por isso quero todos os teus feitos saber, a que darás
cabo tu, que foste feito em tal pecado, e a que os outros não puderam chegar que foram feitos em leal casamento.
Eu te quero fazer companhia, porque sei que em nosso tempo nunca fez tão formosos milagres Nosso Senhor,
nem tão conhecidos, como fará por ti. Isto quero eu melhor saber, por ver as grandes aventuras e milagres que
Deus por ti fará. E porei por escrito todas as maravilhas que Deus mostrará por teu amor nesta demanda. Filho,
outorga-me o que te peço. Que Deus te faça homem bom.
E Galaaz lho outorgou (MEGALE, 2008, p. 20).
323
E então tornou a donzela ao rei e disse-lhe assim:
Rei Artur, manda-te dizer o ermitão que, neste dia de hoje, te acontecerá a maior maravilha e honra que te
nunca aconteceu. E não virá por ti, mas por outrem (MEGALE, 2008, p. 34).
324
E assim como os profetas, muito tempo antes da vinda de Jesus Cristo, profetizaram sua vinda e que ele
livraria o povo dos sofrimentos do inferno, bem assim profetizaram os santos ermitães e também muitos homens
bons, a vossa vinda, muito tempo antes que vós viésseis. E diziam bem todos que jamais as aventuras do reino de
Logres teriam fim, enquanto não chegásseis. E tanto vos esperamos que, agora, por graça de Deus, o temos
(MEGALE, 2008, pp. 70-71).
297
Digo-vos que tomedes esta spada e a façades tirar da bainha a cada de vossos
cavaleiros da Mesa Redonda, e veredes que grande maravilha vos ende aver[r]á; e
depois aconselhar-vos-ei o que i havedes a fazer
325
(ibidem, p. 35).
[...] Sabe que dom Galaaz, que aqui see êste é ora o milhor cavaleiro do mundo
nom fará tanto bem a esta demanda, como tu farás de mal, ca tu por tua maão que
em maau-ponto filhaste a espada matarás [b]em XVIII dêstes teus companheiros,
ataaes que valem mais ca tu de cavalaria
326
(ibidem, p. 55).
Rei Bandemaguz, eu hei mui gram pesar porque vaas a esta demanda, ca tu i
morrerás e será gram dapno, por duas cousas: ũa, porque és mui boõ cavaleiro; e a
outra, porque és o mais sesudo do regno de Logres. E sabe que soo cavaleiro te
matará a ti e teu sobrinho Patrides, e Erec e Ivam e tantos destes outros, que em
maau-ponto naceu êste pecador, que tanto mal fará, que mais valera que ainda
houvesse por nacer, ca per suas armas seerám, depois da sua morte, mais de C anos
muitos regnos órfaãos de boõs cavaleiros e senhores
327
(ibidem, p. 55).
Direi-vos como façades, disse Josefes. Aí u virdes que Naciam se mandará lançar,
aa sua morte, ali leixade o scudo. E ali ver[r]á o boõ cavaleiro, logo ao quarto dia
que ordem de cavalaria receber
328
(ibidem, p. 73).
E se alguém mi preguntar porque nom podiam ir os cavaleiros andantes a Corberic,
pois sabiam que i o Santo Graal era, eu lho direi assi como a verdadeira estória o
conta. O castelo de Corberic nunca se movia; mas Canabos, o encantador, que foi
ante rei Uter Pandragom e que era o mais sisudo de negromancia, que havia no reino
de Logres, fora Merlim, fundou aquêle castelo em tal guisa que n cavaleiro
estrainho que o demandasse nom no podesse achar, se a ventura o i nom levasse; e
se C vezes i fôsse, já nom saberia ir i mais toste
329
(MAGNE, 1944, vol. II, p. 228).
Outra qualidade do cavaleiro mediévico gira em torno de seu poder curativo; noutras
palavras, é a iátrica greco-romana presente no Medievo, por meio da cavalaria. Estes excertos
d‟A Demanda do Santo Graal servem para ilustrar essa capacidade curadora do cavaleiro:
325
Então ergueu o rei a cabeça e disse-lhe:
Que dizeis, senhora?
Digo-vos que tomeis esta espada e a façais tirar da bainha a cada um de vossos cavaleiros da mesa redonda e
vereis que grande maravilha por isso vos acontecerá: e depois aconselhar-vos-ei o que havereis de fazer
(MEGALE, 2008, p. 41).
326
[...] Sabe que dom Galaaz que aqui está este é agora o melhor cavaleiro do mundo não fará tanto bem
nesta demanda, como tu [Galvão] farás mal, porque pela tua mão que em hora pegaste a espada matarás
dezoito destes teus companheiros, tais que valem mais que tu de cavalaria (MEGALE, 2008, p. 54).
327
Rei Bandemaguz, tenho muita pena de que vás a esta demanda, porque nela morrerás e será grande dano,
por duas causas: uma, porque és muito bom cavaleiro, e a outra, porque és o mais sisudo do reino de Logres. E
sabe que um só cavaleiro te matará a ti e a teu sobrinho Patrides, e Erec e Ivã e tantos outros, porque em má hora
nasceu este pecador que tanto mal fará, que mais valera que ainda estivesse por nascer, porque, por suas armas,
ficarão, depois de sua morte, mais de cem anos, muitos reinos órfãos de bons cavaleiros e senhores (MEGALE,
2008, p. 54).
328
Direi como fareis disse Josefes. Lá onde virdes que Nascião se mandará lançar à sua morte, deixai o
escudo. E chegará o bom cavaleiro, logo ao quarto dia que a ordem de cavalaria receber (MEGALE, 2008, p.
66).
329
E se alguém me perguntar por que não podiam ir os cavaleiros andantes a Corberic, visto que sabiam que lá
estava o santo Graal, eu lhe direi o que a verdadeira estória conta. O castelo de Corberic nunca se movia, mas
Tanabos, o encantador, que foi antes de rei Uter Pandragão e que era o mais sisudo de necromancia que havia no
reino de Logres, afora Merlim, fundou aquele castelo de tal modo que nenhum cavaleiro estranho que o
demandasse não o pudesse achar, se a ventura o não levasse até lá; e se cem vezes fosse lá, quisesse levar
cavaleiro estranho, nunca o saberia levar (MEGALE, 2008, p. 510).
298
E êle preguntou aa donzela:
Donzela, havemos aqui ficar?
Senhor, disse ela, nom sei ainda. Mas segundo as aventuras que nos aqui averrám,
faremos nossa voontade.
E entom preguntou ela a outra donzela:
Mia cõirmaã é guarida?
Nom, disse ela, ante lhe vai peor ca sol.
Pois leva-nos alá, disse ela.
De-grado, disse a donzela.
Entom disse a donzela a Galaaz:
Senhor, sabedes porque vos adusse aqui?
Nom ainda, disse el.
Aqui há uũa dona de grã guisa, disse ela, e nom sei por qual malaventura lhe aveo,
já dois anos, que ensandeceu assi, que nom poderom durar com ela, taa que a
meteerom em ferros, e muitos homes boõs se trabalharom de a guarecer, se
podessem. No outro dia, aveo que veo aqui uũa dona de ordem, que nos disse: se vós
po [134, a] derdes achar o cavaleiro que deve a dar cima aas aventuras do regno de
Logres, el é tam boõ e tal graça de Nosso Senhor, que bem sei que esta dona
guarecerá tanto que a el viir. E por êsto vos duxe aqui; onde convém que vós vaades
veer a dona, e se pode guarecer, prazer-me-á em.
Entom se foi aa câmara u a dona jazia, e acharom-na jazer ainda nas cadeas. E tanto
que ela viu Galaaz, começou a dizer:
Ai, Galaaz! Santa cousa e bem-aventurado corpo, limpa carne e comprida de santa
graça, beenta seja a hora em que tu foste nado, e beento seja Deus que te aqui dusse,
ca de ta viinda me veo tam grã bem, que soõ livre do maau companheiro que havia,
que longamente foi comigo. Êste foi o diáboo, que dous anos me teve e mais e a
mim há feito muito mal. Livra-me, se te praz, destas cadeas, ca, se Deus quiser, nom
haverám mister que jamais me em elas metam, graças a Deus e a vós.
E Galaaz o gradeceu muito a Nosso Senhor e disse:
Aa! dona! A mim nom no gradeçades, mas a Jesu Cristo, que vos êsto fez, que
doo dos pecadores quando lhe praz.
Entom fêz sacar as cadeas aa dona; e despois que se ela viu livre deitou-xe-lhe aos
pees e beijou-lhos, nom o querendo [134, b] el, e chorou pela grã lidice que ende
houve. Dês i, foi-se aa igreja por dar graças a Nosso Senhor daquela grã mercee que
lhe fezera
330
(MAGNE, 1944, vol. II, pp. 77-78).
330
E ele perguntou à donzela:
Donzela, havemos de ficar aqui?
Senhor disse ela , não sei ainda. Mas segundo as aventuras que aqui acontecerão, faremos nossa vontade.
E então perguntou ela a outra donzela:
Minha irmã está curada?
Não disse ela , antes está pior do que costuma.
Pois leva-nos lá disse ela.
De bom grado disse a donzela.
Então disse a donzela a Galaaz:
Senhor, sabeis por que vos trouxe aqui?
Ainda não disse ele.
Aqui uma mulher de alta posição disse ela , e não sei por qual desventura lhe aconteceu, já dois anos
que ensandeceu de tal modo que não puderam agüentar com ela até que a meteram em ferros e muitos homens
bons se esforçaram por curá-la, se pudessem. Outro dia aconteceu que veio aqui uma monja, que nos disse: se
puderdes achar o cavaleiro que deve dar cabo às aventuras do reino de Logres, ele é tão bom e tal graça de
Nosso Senhor, que bem sei que esta mulher sarará assim que o vir. E por isto vos trouxe eu aqui, pelo que
convém que vades ver a mulher, e se o puder curar, agradar-me-á.
Então foi à câmara onde a mulher estava e acharam-na ainda nas correntes. E assim que ela viu Galaaz, começou
a dizer:
Ai, Galaaz! Santa pessoa e bem-aventurado corpo, limpa carne e cheia de santa graça, abençoada seja a hora
em que nasceste e bendito seja Deus que aqui te trouxe, pois por tua vinda me aconteceu tão grande bem, que
estou livre do mau companheiro que tinha, e longamente esteve comigo. Este foi o diabo que dois anos me teve e
299
Ali u albergavam havia ũa donzela, filha do hóspede, que fôra mui fremosa donzela,
mas nom sei por qual maaventura engafecera havia dez anos. E aquela donzela,
que andava com Galaaz, era irmaã de Persival. Quando ouviu que tal donzela havia
na casa, foi-a veer a ũa mera u jazia apartada, e pregun [136, b] tou-lhe quanto
havia que era doente daquel mal. E ela disse que bem havia dez anos e mais.
E cuidades, disse a outra, que possades ende guarecer?
Certas, nom sei, disse ela: todo é em Deus. E pero nom VII anos que aqui veo
uũ irmitam mui bhomem e de santa vida, que me disse: “Nom hajas pavor, ca
tu guarecerás quando vier aqui o boõ cavaleiro que acabar as aventuras do regno
de Logres, e direi-te como. Quando aqui vier, roga-lhe no nome daquel cujo sergente
êle é, que te a vistir aquela vistidura que el trage acaram, e dar-ta-á; e sabe que
serás guarida tanto que a vistires”. Assi me disse o irmitã, mas nom entendo como
possa seer, ca nom sei como podesse achar aquel cavaleiro, e ainda que o achasse,
por ventura nom faria meu rôgo.
Quando a irmaã de Persival êsto ouviu, disse aa donzela:
Ora sêde lêda, ca bem vos avo, ca o boõ cavaleiro, de que vos o irmitã falou, aqui
é; ora lhe rogade que pense de vós.
Quando a donzela doente êsto ouviu, tendeu sas maãos contra o céu e disse:
Ai, Jesu Cristo, Rei de piedade! Have mercee de mim e praza-te de eu guarecer.
Entom enviou por seu padre e disse-lhe:
Ai, padre! Aqui é o boõ cavaleiro per que hei a guarecer. Por Deus, ide a el e
aduzede-mo, ca eu nom ousaria parecer alá ante êstes cavaleiros.
Filha, disse êle, como sabedes vós que é aqui o milhor cavaleiro do mundo?
Eu o sei, [136, c] disse ela, ca esta donzela mo disse.
Ai, donzela! disse o hóspede, por Deus, mostrade-mo.
De grado, disse ela.
Entom lho foi mostrar e o homem boõ ficou os giolhos ante êle e disse-lhe:
Senhor, por Deus, ide acá dentro comigo, ca vos havemos mui mester.
E êle o ergeu e disse que iria i de grado; e o homem boõ o levou aa mara u jazia
sua filha e mostrou-lha tam mal-doente, que nom podia mais. E ela, tnato que o viu,
leixou-se-lhe caer aos pees e rogou-lhe chorando por aquel Deus cujo servo êle era
que lhe desse uũ dom. E êle lho outorgou mui de boa mente. E ela lho graciu entom
e disse-lhe:
Vós me daredes a vestir aquela vistidura que tragedes acarom.
E el houve mui grã vergonça, ca nom queria que lhe nhuũ soubesse que el tragia
estamenha, fora seu abade. Mas pero, porque o havia outorgado aa donzela, nom se
pôde fazer afora e disse-lhe:
Vós a haveredes, mas quero que nhuũ fora nom no saiba que é.
De grado, disse ela.
E el fêz dolos outros sair da câmara e espiu-se entom e deu-lhe a estamenha e
rogou-lhe por a que devia a Deus que o nom dissesse a ninguém. E ela lho
outorgou; dês i, ficou soo e vestiu-a acarom, ca se foi Galaaz pera os cavaleiros, mas
de todo êsto nom lhes disse nada, ca nom queria que lho soubesse nhuũ. E a donzela
que vistira a esta [136, d] menha foi logo tam saã como se nunca houvesse mal
331
(ibidem, pp. 86-88).
mais e a mim tem feito muito mal. Livra-me, se te apraz, destas correntes, porque, se Deus quiser, não haverá
mister jamais que nelas me metam, graças a Deus e a vós.
E Galaaz agradeceu muito a Nosso Senhor e disse:
Ai! mulher! A mim não agradeçais, mas a Jesus Cristo, que vos isto fez, que tem pena dos pecadores quando
lhe apraz.
Então fez tirar as correntes à mulher e depois que ela se viu livre, deitou-se-lhe aos pés, não o querendo ele, e
chorou pela grande alegria que teve. Depois foi à igreja para dar graças a Nosso Senhor, por aquela grande mercê
que lhe fizera (MEGALE, 2008, pp. 381-382).
331
Ali onde albergavam havia uma donzela, filha do anfitrião, que fora mui formosa donzela, mas não sei por
qual desventura, engafecera havia dez anos. E aquela donzela, que andava com Galaaz, era irmã de Persival.
Quando ouviu que tal donzela havia na casa, foi vê-la numa câmara, onde ficava apartada, e perguntou-lhe
quanto tempo havia que estava doente daquele mal. E ela disse que bem havia dez anos e mais:
E cuidais disse a outra que possais sarar?
300
A câmara u estava era mui grande a maravilha e feita a esquadra, e tam fremosa, que
ardur poderiam achar tanto. E rei Peles, por que Deus havia feito muito milagre e
que nom saíra daquela câmara bem havia quatro anos e que nunca al houvera de
comer senam a graça do Santo Vaso, era tam mal-treito, que nom havia poder de se
erguer, ante jazia sempre. E quando viu Galaaz que aduzia o bacio da lança, deu-lhi
vozes:
Filho Galaaz, vem acá e pensa de me guareceres, pois Deus quis que eu guarecesse
em ta viinda.
Quando Galaaz ouviu o que el-rei dizia, logo soube que aquel era rei Peles, de cujo
mal todo o mundo havia doo. Entom se foi dereitamente a el, seu bacio nas mãos; e
el-rei juntou as mãos contra o bacio e descobriu sas coixas e disse:
Vêdes aqui o dooroso colpe que o cavaleiro das duas espadas fêz. Por êste colpe
aveo muito mal, e pesa-me ende.
E sabede que as chagas eram tam frescas como aquel dia que fôra ferido. E Galaaz
tornou o bacio sôbre sas coixas u cuidou que nom havia rem, e ao entornar viu caer
sôbolas coixas três gotas de sangue, e tam toste lhi saíu o bacio de antre as mãos e
foi-se contra o céu, que nom houve poder de o teer. Assi como vos digo, aveo da
lança vingador e do bacio que estava ela, que se partirom do reino de Logres,
vendo-o Galaaz, e foi-se ao céu, assi como a verdadeira estória testimunha. Daquela
santa lança nem daquel bacio nom sabemos mui bem nós se se foram pera os céus;
mas a vontade de Deus foi tal, que nom foi, pois, homem em Inglaterra que dissesse
que os vira.
[180, d] Rei Peles foi logo saão das sas chagas, que tam longamente lhi durarom, e
foi a Galaaz e abraçou-o e disse-lhi:
Com certeza, não sei, disse ela; tudo está em Deus. No entanto, não sete anos que aqui veio um ermitão
muito bom homem e de santa vida que me disse: “Não tenhas medo, porque sararás, quando vier aqui o bom
cavaleiro que há de acabar as aventuras do reino de Logres e te direi como. Quando aqui vier, roga-lhe, em nome
daquele de quem servo é, que te a vestir aquela vestimenta que ele traz rente à pele, e te dará; e sabe que
ficarás curada assim que a vestires”. Assim me disse o ermitão, mas não entendo como possa ser, porque não sei
como poderia achar aquele cavaleiro; e ainda que achasse, porventura não faria meu rogo.
Quando a irmã de Persival isto ouviu, disse à donzela:
Ora ficai alegre, porque bem vos aconteceu, porque o bom cavaleiro, de que vos falou o ermitão, aqui está;
agora rogai que cuide de vós.
Quando a donzela doente ouviu isto, estendeu suas mãos para o céu e disse:
Ai, Jesus Cristo, Rei de piedade! Tem mercê de mim e apraza-te que eu sare.
Então mandou buscar seu pai e disse-lhe:
Ai, pai! Aqui está o bom cavaleiro por quem hei de sarar. Por Deus, ide a ele e trazei-mo, porque não ousaria
aparecer lá perante estes cavaleiros.
Filha disse ele , como sabeis que está aqui o melhor cavaleiro do mundo?
Eu o sei disse ela , porque esta donzela me disse.
Ai, donzela! disse o anfitrião , por Deus, mostrai-mo.
De bom grado disse ela.
Então foi mostrar-lhe e o homem bom ficou de joelhos diante dele e disse-lhe:
Senhor, por Deus, vinde aqui dentro comigo; porque vos havemos mui mister.
E ele o ergueu e disse que iria de bom grado; e o homem bom o levou à câmara onde estava sua filha e mostrou-
a tão doente que não podia mais. E ela, assim que o viu, deixou-se-lhe cair aos pés e rogou-lhe chorando por
aquele Deus de quem servo ele era que lhe desse um dom. E ele concordou de muito boa mente. E ela agradeceu
então e disse-lhe:
Vós me dareis para vestir aquela vestimenta que trazeis rente à pele.
E ele ficou com muita vergonha, porque não queria que ninguém soubesse que usava estamenha. Mas porque
havia concordado com a donzela, não pôde negar e disse-lhe:
Vós a tereis, mas quero que ninguém exceto vós o saiba.
De bom grado disse ela.
E fez todos os outros saírem da mara e despiu-se então e deu-lhe a estamenha e rogou-lhe, pela que devia a
Deus, que o não dissesse a ninguém. E ela concordou; depois ficou e vestiu-a rente à pele, porque Galaaz foi
para os cavaleiros, mas de tudo isto não lhes disse nada, porque queria que ninguém o soubesse. E a donzela, que
vestira a estamenha ficou logo tão boa, como se nunca tivesse estado mal (MEGALE, 2008, pp. 387-389).
301
Filho, santo cavaleiro e santa cousa, comprido de grã direito, rosa direita e lírio me
semelhas direitamente, porque és limpo de tôda luxúria. Rosa me semelhas tu
direitamente, porque és mais fremoso de outro cavaleiro e melhor e de milhor
dõairo, comprido de tôdas virtudes e de tôdalas boas manhas do mundo. Tu és arvor
nova de Jesu Cristo, que el compriu de tôdolos boõs fruitos, que homem não poderia
haver
332
(ibidem, pp. 279-280).
A respeitabilidade a Deus e a tudo o mais que esteja relacionado à Igreja é também uma
característica do cavaleiro medievo. Vale lembrar que também o herói mítico e o guerreiro da
Antigüidade clássica respeitavam, excessivamente, os seus deuses.
Por fim, os dois últimos atributos do cavaleiro: bondade e beleza. Assim como
acontecia aos heróis míticos das antigas Grécia e Roma, essas duas qualidades andavam
sempre juntas: trata-se do kalós kai agathós (ou kalós kagathós) dos gregos. As seguintes
passagens d‟A Demanda giram em torno da bondade e da beleza (que deveriam ser
indissociáveis, em se tratando dos cavaleiros) de Galaaz:
Filho Galaaz, disse Lançarot, stranhamente vos fêz Deus fremosa criatura. Par
Deus, se vós nom cuidá[sse]des seer boõ homem ou boõ cavaleiro assi Deus me
conselhe sobejo seria grã dapno e gram malaventura, de nom seerdes boõ
cavaleiro, ca sobejo sodes fremoso.
E êle disse:
Se me Deus feze fremoso, dar-mebondade, se lhe prouver, ca em outra guisa
valeria pouco. E êle [queira] que [eu seja] boõ e cousa que semelhe minha linhagem
332
A câmara onde estava era muito grande à maravilha e feita à esquadria, e tão formosa, que dificilmente
poderiam achar igual. E rei Peles, por quem Deus havia feito muito milagre e não saíra daquela câmara bem
havia quatro anos e nunca outra coisa comera, senão a graça do santo Vaso, estava tão machucado que não tinha
força para se erguer, antes ficava sempre deitado. E quando viu Galaaz, que trazia a bacia da lança, gritou-lhe:
Filho Galaaz, vem aqui e cuida me curar pois Deus quis que eu sarasse em tua vinda.
Quando Galaaz ouviu o que o rei dizia, logo soube que aquele era rei Peles, de cujo mal todo o mundo tinha dó.
Então foi diretamente a ele com a bacia nas mãos; e o rei juntou as mãos para o céu, e descobriu suas coxas e
disse:
Vedes aqui o doloroso golpe que o cavaleiro das duas espadas me fez. Por este golpe sobreveio muito mal e
pesa-me por isso.
E sabei que as chagas estavam tão frescas, como se tivesse sido ferido aquele dia. E Galaaz entornou a bacia
onde cuidou que nada havia sobre as coxas, e, ao entornar, viu cair sobre as coxas três gotas de sangue, e assim
que caíram, lhe saiu a bacia de entre as mãos e foi para o céu, de modo que não teve força para a segurar. Deste
modo como vos digo aconteceu com a lança vingadora e com a bacia que estava sob ela, que se retiraram do
reino de Logres, aos olhos de Galaaz, e foram para o céu, como a verdadeira estória testemunha. Daquela santa
lança e daquela bacia não sabemos muito bem se foram para o céu; mas a vontade de Deus foi tal, que não houve
depois na Inglaterra quem dissesse que as vira.
Rei Peles ficou logo são de suas chagas que tão longamente lhe duraram, e foi a Galaaz e abraçou-o e disse-lhe:
Filho, santo cavaleiro e santa pessoa, cheio de grande direito, rosa perfeita e lírio me semelhas perfeitamente,
porque és limpo de toda luxúria. Rosa me semelhas perfeita, porque és mais formoso do que outro cavaleiro e de
melhor graça, repleto de todas as virtudes e de todas as habilidades do mundo. És árvore nova de Jesus Cristo,
que ele encheu de todos os bons frutos que alguém poderia ter (MEGALE, 2008, p. 553).
302
e aaquelês onde eu venho; e metuda hei minha esperança em Nosso Senhor; e por
êsto vos rogo que me façades cavaleiro
333
(MAGNE, 1955, p. 5).
E sabede que quantos i stavam se pagavam em como el parecia; e nom era
maravilha, ca, em aquel tempo, nom podia homem achar em todo o regno de Logres
donzel tam fremoso nem tam bem feito; ca em todo era tal, que nom podia homem
achar rem em que lhe travasse, fora que era manso sobejo em seu continente. E
sabede que, quando Lançarot [o] fêz cavaleiro, que se nom pôde sofrer de chorar,
porque sabia que [em] tôdalas partes era de grande quisa, que nom podia de maior
seer; e viia tam pobre festa e tam pequena lediça em sua cavalaria; nem el nom no
podia jamais cuidar, que podesse viir a tam gram cousa, como pois veeo. O corpo
havia bem talhado e o contenente era manso
334
(ibidem, p. 7).
Er disse Lionel:
Quem quer que seja, é o mais fremoso que nunca eu vi de sua idade e, se fôr tam
boõ cavaleiro como é fremoso, muito bem lhe fará Nosso Senhor
335
(ibidem, p. 9).
Dalides catava todavia Galaaz, ca o preçava de fremosura sôbre dolos cavaleiros
que nunca vira: mas nom | podia creer que tam bõo cavaleiro era, como Dondinax
dissera, ca nom havia tal corpo nem tal rosto
336
(ibidem, p. 101).
E Lançarot respondeu:
Filho, pois voz praz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assi como a êle
aprouver e o poderá fazer, vos faça tam boõ cavaleiro como sodes fremoso
337
(ibidem, p. 5).
Assim D‟Haucourt e Pastoureau sintetizaram as qualidades do cavaleiro medievo:
O produto consumado dessa educação, o cavaleiro da moda, nos é assim descrito por
um romance do século XIII: amigo dos torneios, das danças e dos jogos; bom
esgrimista e suficientemente flexível para espevitar com o uma vela presa sobre
sua cabeça; sabia ler e cantar na igreja e conhecia o suficiente as artes liberais para
333
Filho Galaaz disse Lancelote , estranhamente vos fez Deus formosa criatura. Por Deus, se não cuidásseis
ser bom homem ou bom cavaleiro, assim Deus me aconselhe, sobejo seria grande dano e grande desventura não
serdes bom cavaleiro, porque sobejo sois formoso.
E disse ele:
Se me Deus fez formoso, dar-mebondade, se lhe aprouver, porque de outro modo valeria pouco. E ele
quererá que eu seja bom e coisa que semelhe minha linhagem e aqueles de quem eu venho; e posta hei minha
esperança em Nosso Senhor; e por isso vos rogo que me façais cavaleiro (MEGALE, 2008, p. 19).
334
E sabei que quantos estavam agradavam-se de sua aparência; e não era maravilha, porque naquele tempo
não se podia achar em todo o reino de Logres donzel tão formoso e tão bem-feito; porque em tudo era tal que
não se podia achar nada em que o censurasse, exceto que era meigo demais em seu modo de ser. E sabei que,
quando Lancelote o fez cavaleiro, não pôde conter-se de chorar, porque sabia que em toda parte era de grande
prestígio que não podia maior ser; e via tão pobre festa e tão pequena alegria em sua cavalaria; nem ele podia
jamais cogitar que pudesse chegar a tal grandeza como depois chegou. O corpo tinha bem-feito e o modo de ser
era meigo (MEGALE, 2008, p. 21).
335
Também disse Leonel:
Quem quer que seja, é o mais formoso que alguma vez vi na sua idade e, se for tão bom cavaleiro como é
formoso, muito bem fará Nosso Senhor (MEGALE, 2008, p. 22).
336
Dalides olhava ainda Galaaz, porque o prezava de formosura sobre todos os cavaleiros que alguma vez vira,
mas não podia acreditar que tão bom cavaleiro era, como Dondinax dissera, porque não tinha tal corpo e tal rosto
(MEGALE, 2008, p. 84).
337
E Lancelote respondeu:
Filho, pois voz apraz, eu vos farei cavaleiro. E Nosso Senhor, assim como a ele aprouver e o poderá fazer, vos
faça tão bom cavaleiro como sois formoso (MEGALE, 2008, p. 19).
303
poder abrir uma escola em qualquer lugar. Eis-nos longe do nobre iletrado que
muitas vezes imaginamos. Notemos, quanto ao mais, que esse tipo de educação,
esses gostos, perpetuaram-se até nossos dias na sociedade inglesa, que permaneceu
medieval em muitos aspectos (D‟HAUCOURT, 1994, p. 89).
Ao final do século XII, o perfeito cavaleiro não é ainda Perseval, nem Galahad
seguramente, tais como irão aparecer, por volta de 1200, na Demanda do Santo
Graal. Também não é Lancelot, cujos amores com a rainha Guinevere têm algo de
incompatível com as virtudes do cavaleiro. O “sol de toda a cavalaria” é Gawain, o
sobrinho do rei Artur, aquele dentre os companheiros da Távola Redonda que possui
em mais alto grau as qualidades que se espera de um cavaleiro: a franqueza, a
bondade e a nobreza de coração; a piedade e a temperança; a coragem e a força
física; o desdém à fadiga, ao sofrimento e à morte; a consciência de seu valor; o
orgulho de pertencer a uma linhagem, de ser fiel a um senhor, de respeitar a
fidelidade jurada; enfim, e sobretudo, essas virtudes que em francês arcaico são
designadas com os termos “largesse” (generosidade) e “courtoisie” (cortesia), mas
que não encontram uma correspondência exata e satisfatória no francês moderno
(PASTOUREAU, 1989, p. 48).
Largesse é ao mesmo tempo a liberdade, a generosidade e a prodigalidade. Ela
supõe a riqueza. Seu oposto é a avareza e a busca do lucro, que qualificam os
mercadores e burgueses das comunas, constantemente ridicularizados por Chrétien
de Troyes e seus imitadores. Numa sociedade em que a maior parte dos cavaleiros
vive mesquinhamente do que lhes dão ou concedem seus protetores, é normal que a
literatura exalte as oferendas, as despesas, o desperdício e a manifestação do luxo
(idem).
Courtoisie é ainda mais difícil de definir. Compreende todas as qualidades que
acabamos de enumerar, e mais: a beleza física, a elegância e o desejo de agradar; a
doçura, o frescor de alma, a delicadeza de coração e de maneiras; o humor, a
inteligência, uma polidez requintada e, para dizer claramente, um certo esnobismo.
Pressupõe também a juventude, a liberdade de todo apego para com a vida, a
disponibilidade para a guerra e os prazeres, a aventura e a ociosidade. Seu oposto é a
“vilania”, defeito próprio dos vilões, dos rústicos, das pessoas malnascidas e
sobretudo mal-educadas. Para ser cortês, a nobreza de berço não basta; os dons
naturais devem ser refinados por uma educação especial e alimentada por práticas
cotidianas no palácio de um grande senhor. O modelo é a corte de Artur. É que
encontramos as damas mais belas, os cavaleiros mais valentes, as maneiras mais
delicadas (ibidem, p. 35).
Curiosamente, Galvão, que era tido como o mais nobre dos cavaleiros de Rei Artur,
passa a ser, na segunda prosificação d‟A Demanda do Santo Graal, o mais vil: ao longo da
narrativa, ele vai adquirindo os piores defeitos (perjuro, mentiroso), até se tornar assassino. A
substituição de Galvão por Galaaz, passando por Persival, certamente foi uma das
interferências da Igreja sobre as lendas arturianas: era preciso criar um personagem capaz de
trazer em si todas as virtudes que a Igreja desejava incutir nos cavaleiros medievais. Dessa
forma, na Idade Média, devido ao fato de a Igreja Católica ser a instituição mais poderosa
dessa época, somaram-se àqueles defeitos naturais do Homem (perjuro, mentiroso,
304
vingativo
338
, traidor, assassino) outros de caráter exclusivamente religioso: pagão, fornicador.
Aos olhos da Igreja, ser pagão constituía-se num grande defeito; exemplo disso é o fato de
Palamades ser considerado um excelente cavaleiro, mas não o melhor, pelo fato de ser pagão.
Ao se tornar cristão, Palamades logo é admitido entre os cavaleiros da Távola Redonda.
Lancelote, por sua vez, é tido, n‟A Demanda, como um dos melhores cavaleiros do mundo; só
não é o melhor por ser considerado traidor e fornicador (a Igreja pregava a castidade). Desse
modo, pode-se concluir que, entre os cavaleiros mediévicos, havia os bons e os maus, assim
como, para a Igreja, Deus de um lado e o Diabo do outro. Esse maniqueísmo, como se viu
no capítulo passado, não existia nos heróis míticos da Antigüidade clássica: estes traziam
consigo tanto qualidades quanto defeitos; tanto o Bem quanto o Mal. A seguir, trechos d‟A
Demanda do Santo Graal que ilustram os defeitos dos cavaleiros, a partir de Galvão, Leonel
(perjuros, mentirosos, vingativos, traidores, assassinos), Lancelote (traidor, fornicador), o
cavaleiro irlandês (fornicador, incestuoso) e Palamades (pagão).
Quando ela viu que assi Galvam matara aquel cavaleiro, houve ende gram pesar, que
bem || quisera seer morta, e disse per sanha:
Ai, Deus! Porque sofredes vós que o aleivoso cavaleiro e treedor anda assi
matando tôdolos homes boõs per tal mal-aventurança? Ai, Galvam! nunca ta
treiçam foi conhocida como hoje aqui é. Nunca [eu] cuidara êsto, nem mo poderá
homem fazer creente, que em ti houvesse tam gram traiçom como ora vejo, ca ora
vejo eu que tu mataste meu irmaão e mataste Patrides. E Deus nos ende tal
vingança per que vejamos em prazer e per que tua treiçom seja conhocida
339
(MAGNE, 1955, p. 185).
Senhor, disse Lionel, vós diredes o que vos aprouver, mas nom creo eu que, se êle
atal fôsse como vós dizedes, que me leixasse em tal perigo como me leixou, e por
êsto digo bem que nunca per nhũa guisa sereei ledo, ataa que me vingue dêle a tôda
minha gram vontade
340
(ibidem, p. 249).
338
Não se trata, aqui, daquela vingança para se fazer justiça, mas da vingança advinda da desonra.
339
Quando ela viu que assim Galvão matara aquele cavaleiro, teve disse grande pesar, que bem quisera estar
morta e disse com raiva:
Ai, Deus! Por que permitis que o pérfido cavaleiro e traidor ande assim matando todos os homens bons por tão
aventura? Ai, Galvão!, nunca tua traição foi conhecida como hoje aqui está. Nunca imaginara isto, nem me
pudera alguém fazer acreditar, que em ti houvesse tão grande traição como agora vejo, porque ora vejo que
mataste meu irmão e agora mataste Patrides. E Deus nos dê disso tal vingança para que vejamos nisto satisfação
e para que tua traição seja conhecida (MEGALE, 2008, p. 132).
340
Senhor disse Leonel , direis o que vos aprouver, mas não creio eu que, se ele tal fosse como dizeis, me
deixasse em tal perigo como me deixou [Boorz], por isso digo bem que nunca, de nenhum modo estarei alegre
até que me vingue dele com toda minha grande vontade (MEGALE, 2008, p. 178).
305
Ora me leixade, disse Lancelot, ca, pola fé que eu devo a tôda cavalaria, [juro] que
jamais nom serei ledo, ataa que vingue esta desonra, e se me cavaleiro derruba per
fôrça de lança, jamais nom quero cinger espada, se per fôrça de espada o nom
dirribo. Ora pós el [vou], ca jamais nom folgarei, ataa que vaa depós êle.
[...]
E entonce disse Lancelot:
Assi [nom] repousaremos nós nem folgaremos, que nom vinguemos esta desonra;
e aquel que no-la fêz nom é ainda longe. Já Deus nom me ajude, se me eu i outorgo;
ante irei pós êle, e quando fôr noite escura, onde me anoutecer, ficarei e entom
nom me poerá nenhũ culpa
341
(ibidem, p. 319, passim).
E saibam todos, que êste conto ouvirem, que aquel Elaim o Branco foi filho de
Boorz de Gaunes, e feze-o em ũa filha del-rei de Gram-[Bretanha]. Pero ante que
êsto fosse, prometera Boorz a Nosso Senhor de lhe guardar sua virgindade. Mas tam
toste que o ela viu, pagou-se dêle dês ali e amou-o; e depois enganou-o per
encantamento, e jouve com ela e fêz ali aquela noite [aquel] que foe depois
emperador de Cons[tan]tinopla. E se Boorz britou aquêlo que prometeu, nom foi per
seu grado, mas polo encantamento que lhe a donzela fêz; e depois corregeu aquêlo
que fêz, que tôdolos dias da sua vida manteve [castidade]
342
(ibidem, p. 17).
Galvam, que era muito entendudo e que passara muitos perigos taes, logo esmou
que o queria preguntar por morte de seu padre e de seus irmaãos, e foi tam
espantado, que nom soube que fezesse, ca se lhe a verdade dissesse, cuidou que faria
seu dano, ca o tiinha por melhor cavaleiro ca si; se lho encobrisse por pavor, nunca
nenhuũ homem o [oiria] a falar, que lho por melhor de o encobrir ca de o dizer, [ca],
posto que Persival lhe nom fizesse mal ora nem [depois], sempre o desamaria
343
(ibidem, p. 351).
Amigo, aqui nos devemos a partir, ca esta cruz no-lo mostra.
Par Deus, disse Galvam, pêsa-me; mais quisera vossa companhia, ca me partir de
vós.
Entom se abraçaram e se espidiram. Filhou cada sua carreira, Galvam se foi a ũa
parte mũi ledo, por se partir de Persival, ca havia mũi grã pavor de o matar pola
morte de seu padre e de seus irmaãos
344
(ibidem, p. 369).
341
Agora me deixai disse Lancelote , porque, pela que devo a toda a cavalaria, juro que nunca mais
estarei alegre, até que vingue esta desonra, e se cavaleiro me derruba por força de lança, jamais quero cingir a
espada, se por força de espada não o derrubo. Agora atrás dele vou, porque nunca descansarás até que atrás
dele.
[...]
E então disse Lancelote:
Assim não repousaremos nem denscansaremos enquanto não vinguemos esta desonra; e aquele que no-la fez
não está ainda longe. Deus não me ajude, se com isso concordo; antes irei atrás dele, e quando for noite
escura, onde anoitecer, ficarei e então ninguém me porá culpa (MEGALE, 2008, p. 222, passim).
342
E saibam todos que este conto ouvirem que aquele Elaim, o branco, foi filho de Boorz de Gaunes e o fez
numa filha do rei da Grã-Bretanha. Mas antes que isto acontecesse, prometera Boorz a Nosso Senhor lhe guardar
sua virgindade. Mas tão logo ela o viu, gostou dele desde então e amou-o; e depois enganou-o por encantamento,
e dormiu com ela e fez ali aquela noite aquele que foi depois imperador de Constantinopla. E se Boorz quebrou
aquilo que prometeu, não foi por sua vontade, mas pelo encantamento que a donzela fez; e depois corrigiu aquilo
que fez, pois todos os dias de sua vida manteve castidade (MEGALE, 2008, p. 28).
343
Galvão, que era muito experiente e que passara já muitos perigos semelhantes, logo imaginou que lhe queria
perguntar pela morte de seu pai e de seus irmãos, e ficou tão espantado, que não soube o que fizesse, porque se
lhe a verdade dissesse, cuidou que faria seu dano, porque o tinha por melhor cavaleiro que a si; se lho encobrisse
por pavor, nunca ninguém o ouviria falar, que o não tivesse por mal; mas sempre achou melhor encobrir do que
dizer, porque, ainda que Persival não lhe fizesse mal agora nem depois, sempre o odiaria (MEGALE, 2008, p.
244).
344
Amigo, aqui nos devemos separar, porque esta encruzilhada no-lo mostra.
Por Deus disse Galvão , pesa-me; mais quisera vossa companhia do que me separar de vós.
306
Ai! Arcebispo de Conturbe, homem santo e de boõa vida e sisudo, conselha-me
em minha maa ventura e em meu pecado, assi como to contarei. Sabe
verdadeiramente que eu o descobro a Deus e a ti, que soom pecador mais dos
pecadores, que eu jouve com minha mãe e com minha irmaã, e depois matei-as
ambas em uã hora, porque nom queriam comprir minha vontade. E depois, eu stando
catando-as u as matara, sobreveo meu padre, o | rei da Ínsoa do Pôrto; depois que
viu aquela morte, meteu maão a sua spada e eu meti aa minha, e matei-o. E eu
stando catando-o, sobreveeo i meu irmaão, o conde de Geer, e trousse-me mal, e
matei-o. Todo êste mal, que te eu digo, eu hei feito em uũ soo dia. Ora me conselha,
padre santo, ca já tam grande pendença nom me darás, que a eu nom tenha
345
(ibidem, p. 41).
Assi dizia Dalides antre seu coraçom. E, sem falha, êle era uũ dos bõos cavaleiros do
mundo, e nhũa manha maa nom havia em si, senam que se preçava muito, tanto que
nom cuidava que no regno de Logres milhor cavaleiro havia que êle
346
(ibidem, p.
101).
Entam entrarom em seu caminho, falando de poucas cousas, ca muito pensava
Lançarot mas maravilhas que vira, e era tam spantado, que bem querria que nunca
houvesse que veer rem como Genevra, ca bem lhe semelhava que nhuũ pecado nom
no chegava tanto a[a] perdiçom do corpo e da alma como aquêle, e que ambos eram
perdudos per i. Assi ia pensando tam spantado, que rem nom falava, e Persival havia
ende tam gram pesar, que nom sabia que dissesse
347
(ibidem, p. 299).
E quando foi já grande noite, deitarom-se a senhas partes, pensando e com grã pesar.
E Lançarot dormiu mui toste, ca muito trabalhara aquel dia. E quando quis dormir,
comendou-se muito a Nosso Senhor, e fêz sôbre si o sinal da cruz, e disse tal oraçom
qual sabia. E tanto que adormeceu, aveo-lhe ũa visam assaz maravilhosa, ca lhe
semelhava que viia ante si Ivam o Bastardo todo nuu, tam laido e tam feo e tam
spantosa cousa, que maravilha era. E era todo cercado de fogo, assi que ardia de
tôdas as partes tam claramente como candea bem acesa. E depós êle vinha ũa dona
coroada com tam gram pesar e tam chorosa, que bem semelhava que havia coita e
lazeira, e havia a dona escrito na fronte: <<Esta é Ca- || tanance, a rainha de
[I]rlanda, a molher de rei Carados do pequeno braço>>. Depós aquela, viia outra
rainha outrossi vir coroada mui triste e com gram pesar, e catava-a e conhocia que
era a rainha Iseu. E depós ela viinha cavaleiro dando vozes e fazendo doo e
fazendo a mais stranha coita que nunca cavaleiro fêz, que de tôdas partes era cercado
de fogo, e Lançarot, que o catou, conhoceu que era Tristam o fremoso. E a rainha
Iseu ia dizendo a Lançarot:
Então se abraçaram e se despediram. Tomou cada um seu caminho, Galvão foi de um lado muito alegre por se
separar de Persival, porque tinha muito grande pavor de o matar pela morte de seu pai e de seus irmãos
(MEGALE, 2008, p. 256).
345
Ai! Arcebispo da Cantuária, homem santo e de boa vida e sisudo, aconselha-me em minha má ventura e em
meu pecado, assim como te contarei. Sabe verdadeiramente que o revelo a Deus e a ti, que sou pecador, maior
dos pecadores, que deitei com minha mãe e com minha irmã. E depois, matei-as ambas, na mesma hora, porque
não queriam cumprir minha vontade. E depois, estando a olhá-las onde as matara, sobreveio o meu pai, o rei da
ilha do Porto; depois que viu aquela morte, meteu mão à sua espada e eu à minha, e matei-o. E estando a olhá-lo,
sobreveio meu irmão, o conde de Geer, e causou-me mal e matei-º Todo esse mal que te digo, fiz num dia.
Agora me aconselha, padre santo, porque tão grande penitência não me darás, que a não cumpra (MEGALE,
2008, pp. 44-45).
346
Assim dizia Dalides no íntimo de seu coração. E, sem falha, ele era um dos bons cavaleiros do mundo e
nenhum mau costume tinha, a não ser que se prezava muito, tanto que não cuidava que no reino de Logres
melhor cavaleiro havia do que ele (MEGALE, 2008, p. 85).
347
Então entraram em seu caminho, falando de poucas coisas, porque muito pensava Lancelote nas maravilhas
que vira, e estava tão espantado, que bem quereria que nunca tivesse que ver nada com Genevra, porque bem lhe
parecia que nenhum pecado o levava tanto à perdição do corpo e da alma como aquele, e que ambos estavam
perdidos por isso. Assim ia pensando tão espantado, que nada falava, e Persival tinha por isso tão grande pesar,
que não sabia o que dissesse (MEGALE, 2008, p. 209).
307
Vai, Lançarot, tal é o gualardom dos meus amores: outro tal ou pior podes tu
haver, se te nom quitas da folia que fazes com a rainha Genevra.
E Lançarot, que tam muito se maravilhava do que viia, nom se podia teer que nom
dissesse a Iseu:
Êste fogo é encantamento onde tu és assi cercada.
Êsto nom é encantamento, disse Iseu, ante trabalho e fogo do inferno, e tu saberás
como queima, pois te nom queres castigar de teu pecado
348
(ibidem, pp. 303-305).
Êles em êsto falando, aque contra êles vem uũ cavaleiro armado de ũas armas
negras, aquel que derribara Ivam o Bastardo e Gilfret. El vinha sobre cavalo mui
boõ e trazia mais de XXX caães, e tanto que el chegou a êles, preguntou-os, sem
salvá-los:
Senhores, vistes per aqui passar a bêsta ladrador?
Si, disse Boorz. Mas por que o preguntades vós?
| Porque é minha caça, disse êle, e vou após ela e irei ataa que a aventura queira
que a ache. [...] Em esta terra per ventura cavaleiro que, se souber que vós
após ela queredes ir, que vo-lo fará leixar aa vossa desonra, ca tanto andou após ela,
que nom querria que outrem vaa após ela. [...] Certas, disse o cavaleiro, nunca el foi
da Mesa Redonda, empero per muitas vêzes foi em casa de rei Artur. Digo-vos que
nom há tam boõ cavaleiro na Grã-Bretanha, que el nom cuidasse a vencer ante que o
dia saísse
349
(ibidem, p. 161, passim)
O cavaleiro vicioso era punido com a expulsão da Távola Redonda e castigado por
Deus. Além disso, toda a sua descendência (linhagem) ficava manchada, maculada, perante os
homens bons:
348
E quando era alta noite, deitaram-se cada um em seu lugar, pensando e com grande pesar. E Lancelote
dormiu muito rápido, porque muito trabalhara naquele dia. E quando quis dormir, encomendou-se muito a Nosso
Senhor, e fez sobre si o sinal-da-cruz e disse uma oração que sabia. E assim que adormeceu, aconteceu-lhe uma
visão demais maravilhosa, porque lhe parecia que via diante de si Ivã, o bastardo, todo nu, tão disforme e tão
feio e tão espantosa coisa, que maravilha era. E estava todo cercado de fogo, de modo que ardia de todos os
lados tão claramente, como vela bem acesa. E atrás dele vinha uma mulher coroada com tão grande pesar e tão
chorosa, que bem parecia que tinha aflição e desgraça, e tinha a mulher escrito na fronte: “Esta é Catanance, a
rainha da Irlanda, a mulher de rei Carados do pequeno braço”. Atrás dela via outra rainha também vir coroada
muito triste e com grande pesar, e olhava-a e reconhecia que era a rainha Isolda. E atrás dela vinha um cavaleiro
gritando e fazendo lamentação e fazendo a mais estranha aflição que nunca cavaleiro fez, que de todos os lados
estava cercado de fogo, e Lancelote que o olhou, reconheceu que era Tristão, o formoso. E a rainha Isolda ia
dizendo a Lancelote:
Ai, Lancelote, tal é o galardão dos meus amores; outro igual ou pior podes ter se te não quitas da loucura que
fazes com a rainha Genevra.
E Lancelote, que muito se maravilha do que via, não se podia conter de dizer a Isolda:
Este fogo é encantamento de que estás assim cercada.
Este fogo não é encantamento disse Isolda , antes é trabalho e fogo do inferno, e saberás como queima,
visto que não te queres castigar de teu pecado (MEGALE, 2008, p. 213).
349
Eles nisto falando, eis que em direção deles vem um cavaleiro armado de umas armas negras, aquele que
derribara Ivã, o bastardo, e Gilfrete. E vinha sobre um cavalo muito bom e trazia mais de trinta cães e, assim que
chegou a eles, perguntou-lhes, sem saudá-los:
Senhores, vistes por aqui passar a besta ladradora?
Sim disse Boorz. Mas por que o perguntais?
Porque é minha caça disse ele e vou atrás dela e irei até que a sorte queira que a ache. [...] Nesta terra, por
acaso, um tal cavaleiro que, se souber que vós atrás dela quereis ir, vo-lo fará desistir por vossa desonra,
porque tanto andou atrás dela que não quereria que outra pessoa fosse atrás dela. [...] Certamente disse o
cavaleiro ele nunca foi da távola redonda, embora muitas vezes tenha ido à casa de rei Artur. Digo-vos que não
tão bom cavaleiro na Grã-Bretanha que ele não cuidasse vencer, antes que o dia saísse (MEGALE, 2008, pp.
122-123, passim).
308
|| Quando os clérigos virom as seedas guarnidas de novos nomes, conhecerom logo
[que aquê-les] cujas foram, que eram mortos, e [entenderom] que a Deus aprazeria
de [outros] entrarem no lugar deles. E acharom nas seedas outros nomes, [de Erec] e
de Elaim o Branco. Entam foram a el-rei e disserom-lhe o que acharom. E el-rei o
agardeceu muito a Nosso Senhor, que tanto lhes poinha conselho na fazenda do
Santo Graal e da Távola Redonda. E com [Erec] e Elaim outrossi foram todos mui
ledos
350
(MAGNE, 1955, p. 17).
Nom no cuido, disse ela, mas sei verdadeiramente que, se i vai, que fará tam gram
dapno nos cavaleiros, que aqui som, que todo seu linhagem nom nos poderá
cobrar
351
(ibidem, p. 37).
Ora podemos saber porque êste cavaleiro morreu tam cruelmente. Sabede que êsto
foi vingança de Jesu Cristo
352
(ibidem, p. 41).
e pois andarom quanto seriia duas léguas, virom sair de contra ũa irmida
cavaleiro de ũas armas brancas. E [via] quanto o cavalo o podia aduzer, a lança sô o
braço, contra rei Bandemaguz. E el-rei, que o viu vir, volveu a êle e britou a lança
em êle. E o cavaleiro, que o alcançou em descuberto, feri-o tam rijamente, que lhe
falsou a loriga e meteu-lhe o ferro da lança per a espádua seestra, e lançou-o em
terra. Depois desceu e filhou-lhe o escudo e subiu em seu cavalo e disse-lhe:
Muito fôste sandeu, ca|valeiro, que êste scudo filhaste, ca nom é outorgado senam
pera homem soo, e aquel convém que seja o milhor cavaleiro do mundo. Polo
grande erro que vós i fezestes, me enviou acá aquel que as grandes venditas prende,
por filhar de vós vingança, segundo o erro que fezestes
353
(ibidem, p. 41).
A presença do elemento trágico que consiste no enfrentamento, no embate, entre amigos
ou parentes que, na hora da contenda, não se reconhecem isso, na maioria das vezes, por
punição divina a uma falta cometida pelo guerreiro também se encontra n‟A Demanda,
como se pode ver nas seguintes passagens:
Quando o cavaleiro êsto viu, disse:
350
Quando os clérigos viram os assentos guarnecidos de novos nomes, souberam logo que aqueles a quem
haviam pertencido tinham morrido e entenderam que a Deus agradaria que outros entrassem no lugar deles. E
acharam nos assentos outros nomes, de Erec e de Elaim, o branco. Então foram até o rei e disseram-lhe o que
haviam achado. E o rei agradeceu muito a Nosso Senhor que tanto lhes dava conselho na realização do santo
Graal e da távola redonda. E com Erec e Elaim também ficaram todos muito felizes (MEGALE, 2008, p. 27).
351
Não cuido disse ela , mas sei verdadeiramente que, se for, fará tão grande dano aos cavaleiros que aqui
estão, que toda sua linhagem não nos poderá recuperar (MEGALE, 2008, p. 42).
352
Agora podemos saber por que este cavaleiro morreu tão cruelmente. Sabei que isto foi vingança de Jesus
Cristo (MEGALE, 2008, p. 45).
353
e depois que andaram quanto seria duas léguas, viram sair de uma ermida um cavaleiro de umas armas
brancas. E vinha quanto o cavalo o podia trazer, a lança sob o braço, contra rei Bandemaguz. E o rei que o viu
vir, voltou a ele e quebrou a lança nele. E o cavaleiro que o alcançou em descoberto feriu-o tão rijamente, que
lhe quebrou a loriga e meteu-lhe o ferro na lança por sobre a espádua esquerda, e lançou-o em terra. Depois
desceu e pegou-lhe o escudo e montou seu cavalo e disse-lhe:
Muito fostes louco, cavaleiro, que este escudo pegastes, porque não é outorgado senão para um homem só, e
aquele convém que seja o melhor cavaleiro do mundo. Pelo grande erro que nisto fizestes, me enviou aqui aquele
que toma as grandes vinganças, para tirar de vós vingança, segundo o erro que fizestes (MEGALE, 2008, p. 60).
309
Ai, Deus! Viu nunca homem tanta maa-aventura de taaes dous homes se matarem
com suas maãos?
E êle êsto dizendo, chegou cavaleiro, que viinha armado de tôdas armas, e se me
alguũ preguntar quem era, eu lhe diria que era Galvam, que andara dês dia de
Pinticoste ataa aquel dia e nom achara aventura que de contar seja. E quando viu o
padre e o filho jazer mortos e o cavaleiro ferido, maravilhou-se e perguntou ao
ferido que fôra aquêlo. E êle lho disse todo como fôra, mas nom disse que fôra
Galaaz, ante disse que era uũ cavaleiro que trazia o escudo branco [com] cruz
vermelha. E disse aquel cavaleiro ao outro:
Como || [havedes] nome?
Eu hei nome Galvam.
Pois vós soodes, disse êle, vós o devedes de vingar, ca êste é Dalides, dos
cavaleiros do mundo que vós mais amávades, segundo como vós dizíades. E êste é
seu padre, que vos fêz muito serviço e muita honra. E bem sabedes vós que se
Dalides fôsse assi como vós falades, el querria perder a cabeça ante que vos nom
vingasse de seu grado. Assi me Deus valha, êste é o cavaleiro do mundo que vos
mais amava, que vosso parente nom fôsse.
Quando Galvam viu Dalides jazer morto, conhoceu-o e houve gram pesar, ca o
amava muito, e preguntou ao cavaleiro per u ia aquêle que o matara, e êle lho
amostrou. Pois o ouviu, Galvam nom atendeu mais, e começou-se a ir muito de-rixo
pós êle
354
(MAGNE, 1955, pp. 109-111).
Ora diz o conto que quando Galaaz se partiu de Ivam o Bastardo e de Dondinax o
Salvagem, foi-se depós o cervo o mais asinha que pôde, por amor de o acalçar, e
nom andou muito, e scoitou e viu viῖr empós êle tam rijamente uũ cavaleiro sôbre
cavalo, fazendo tamanho arruído como se fossem dez cavaleiros. E se me alguém
preguntasse quem era o cavaleiro, eu lhe diria que era dom Galvam, que iia atrás
Galaaz por vingar a morte de Dalides; mas nom sabia que era Galaaz, ca em nhũa
guisa nom se tomaria com êle. E o scudo que trazia Galaaz, que el nunca vira, o
fazia ir contra êle
355
(MAGNE, 1955, p. 115).
Quando chegou Galvam a Galaaz, deu-lhe vozes e disse:
Cavaleiro desleal e bravo, guardade-vos de mim.
Quando Galaaz ouviu que o chamara desleal, maravilhou-se, e pois que viu que se
nam podia del partir sem lidar, tornou a el e feriu-o tam rijamente, que lhe nom
prestou escudo nem loriga, que lhe nom metesse o ferro da lança polo costado
354
Quando o cavaleiro isto viu, disse:
Ai, Deus! Nunca alguém viu tanta desventura como tais dois homens se matarem com suas mãos!
E ele isto dizendo, chegou um cavaleiro armado, que vinha armado de todas as armas, e se alguém me perguntar
quem era, eu lhe diria que era Galvão, que andara, desde o dia de Pentecostes até aquele dia, e não achara
aventura que de contar seja. E quando viu o pai e o filho jazerem mortos e o cavaleiro ferido, maravilhou-se e
perguntou ao ferido o que fora aquilo. E ele disse tudo como fora, mas não disse que fora Galaaz, antes disse que
era um cavaleiro que trazia o escudo branco e a cruz vermelha. E disse aquele cavaleiro ao outro:
Como tendes nomes?
Tenho nome Galvão.
Por quem sois disse ele , vós o deveis vingar, porque este é Dalides, um dos cavaleiros do mundo que mais
amáveis, segundo dizíeis. E este é seu pai, que vos fez muito serviço e muita honra. E bem sabeis que, se Dalides
fosse assim como falais, ele quereria perder a cabeça antes que vos não vingasse pela própria vontade. Assim me
Deus valha, este é o cavaleiro do mundo que mais vos amava, embora não fosse vosso parente.
Quando Galvão viu Dalides jazer morto, reconheceu-o e teve grande pesar, porque o amava muito, e perguntou
ao cavaleiro por onde ia aquele que o matara. E ele lho mostrou. Depois que o ouviu, Galvão não esperou mais e
começou a ir muito violento atrás dele (MEGALE, 2008, pp. 90-91).
355
Ora diz o conto que Galaaz, quando se separou de Ivã, o bastardo, e de Dondinax, o selvagem, foi atrás do
cervo o mais depressa que pôde, para o alcançar, e não andou muito, escutou e viu vir atrás dele tão
violentamente um cavaleiro sobre um cavalo fazendo tamanho ruído como se fossem dez cavaleiros. E se me
alguém perguntasse quem era o cavaleiro, eu lhe diria que era dom Galvão, que ia atrás de Galaaz para vingar a
morte de Dalides; mas não sabia que era Galaaz, porque de modo algum não se tomaria com ele. E o escudo que
trazia Galaaz, que ele nunca vira, o fazia ir em sua direção (MEGALE, 2008, p. 93).
310
seestro, mais de tanto lhe aveo bem, que a chaga nom foi mortal
356
(MAGNE, 1955,
p. 115).
Galvam jazia arrevessado em no caminho, e entanto aque-vos Boorz, que chegou i
per ventura, e quando o viu o escudo de Galvam, conhocê-o per i e houve gram
pesar, ca sempre lhe fezera amor. Entam deitou Boorz em terra a lança e o scudo e
disse com gram pesar:
Ai, cuitado! Quem vos fêz atal perda?
Depois deceu do cavalo e disse:
|| Ai, meu Senhor dom Galvam! Como vos sentides? Cuidades a gorecer?
Galvam abriu os olhos e nom no conhoceu, e [Boorz] disse quem era.
Eu soom, disse Boorz, vosso amigo, a quem pesa do vosso mal. Por Deus,
dizede-me como vos sentides.
E como havedes nome? disse Galvam.
Eu soom Boorz de Gaunes, disse el, vindo. Certas, eu nom sentiria mal nem ferida,
se me vós vingássedes do mais bravo e do mais desleal cavaleiro do mundo, e vai-se
per esta carreira; e vai tam preto que o alcançaredes, se o bem seguirdes. E nom no
hei tanto per mim como por cavaleiro que matou, que era, sem falha, o milhor
cavaleiro desta terra e havia nome Dalides; eu cuido que o conhocíades.
verdade é, disse Boorz, mas se o eu nom vingar, vingarei-vos da desonra que vos
fêz. Agora dizede que scudo traze, ca eu nom quedarei ataa que o alcalce.
E êle disse que era o scudo branco e a cruz vermelha
357
(MAGNE, 1955, p. 117).
Boorz nom atendeu mais e tomou seu scudo e sua lança e cavalgou em seu cavalo e
foi-se per aquela carreira que lhe mostrara Galvam, e nom andou muito, quando
acalcou Galaaz ante ũa irmida, e iia mui passo e iia cuidando. E tanto que Boorz viu
o scudo branco e a cruz vermelha, logo o conhoceu, | que era o cavaleiro de que se
lhe aqueixara Galvam, e deu-lhe vozes:
Dom cavaleiro, tornade. Eu vos desafio, que tanto mo merecestes, que vos desamo
mortalmente.
Galaaz, quando êsto ouviu, que se nam podia partir del, tornou e feri-o tam
bravamente, que deu com êle e com o cavalo em terra. E Boorz ficou mal-
quebrantado da queeda, ca o cavalo caiu sôbre êle
358
(MAGNE, 1955, p. 117).
356
Quando chegou Galvão a Galaaz, gritou-lhe e disse:
Cavaleiro desleal e bravo, guardai-vos de mim.
Quando Galaaz ouviu que o chamara desleal, maravilhou-se, e depois que viu que não podia livrar-se dele sem
lutar, voltou a ele e feriu-o tão violentamente, que não lhe prestou escudo nem loriga, que lhe não metesse o
ferro da lança pelo costado esquerdo, mas de tanto lhe aconteceu bem, que a ferida não foi mortal (MEGALE,
2008, p. 94).
357
Galvão jazia de bruços no caminho e, neste ínterim, eis que Boorz chega por acaso, e quando viu o escudo de
Galvão, reconheceu-o e teve grande pesar, porque sempre lhe tivera estima. Então deitou Boorz em terra a lança
e o escudo e disse com grande pesar:
Ai, coitado! Quem voz fez tal perda?
Depois desceu do cavalo e disse:
Ai, meu senhor, dom Galvão! Como vos sentis? Cuidais curar?
Galvão abriu os olhos e não o reconheceu. E disse quem era. Por Deus, dizei-me como vos sentis.
E como tendes nome? disse Galvão.
Eu sou Boorz de Gaunes disse ele.
Ai, meu senhor! Sede bem-vindo. Certamente, eu não sentiria mal nem ferido, se me vós vingásseis do mais
bravo e do mais desleal cavaleiro do mundo e vai-se por esta carreira; e vai tão perto que o alcançareis, se bem o
seguirdes. E não o tenho tanto por mim, como por um cavaleiro que matou, que era, sem falha, o melhor
cavaleiro desta terra e tinha nome Dalides.
Verdade é disse Boorz , mas se o não vingar, vingarei a vós da desonra que voz fez. Agora, dizei-me que
escudo traz, porque não pararei até que o alcance.
E ele disse que era o escudo branco e a cruz vermelha (MEGALE, 2008, p. 94).
358
Boorz não esperou mais e tomou seu escudo e sua lança e cavalgou em seu cavalo e foi por aquela carreira
que lhe mostrara Galvão e não andou muito que alcançou Galaaz diante de uma ermida, e ia devagar e ia
cuidando. E assim que Boorz viu o escudo branco e a cruz vermelha, logo reconheceu que era o cavaleiro de
quem se lhe queixara Galvão, e gritou-lhe:
Dom cavaleiro, voltai. Eu vos desafio, que tanto me merecestes, que vos desamo mortalmente.
311
Pois Boorz sobiu em seu cavalo, coitou-se de acalçar Galaaz, || e êsto foi toste, e
disse:
Tornade, cavaleiro, nom digades que me vencestes porque me derribastes, ca êsto
seeria honra dobrada, mas viinde me provar a[a] espada, e entam verrei que
cavaleiro sodes.
Quando Galaaz êstou ouviu, que sem graado se havia a combater com êle e que al
nom podia fazer que a mal lho nom tevessem, meteu maão a[a] espada e disse:
Cavaleiro, [a] torto me fazedes combater cõvosco contra minha vontade.
E entam alçou a espada e feriu de da sua fôrça Boorz tam esquivamente, que lhe
talhou o scudo per meeio do arçom de diante, e o cavalo per meio das spáduas, assi
que a metade caìu de ũa parte e da outra em meio da carreira. E Galaaz, quando êste
golpe houve feito, disse:
Cavaleiro, bem vos aveeo, que nom sodes chagado, e bem me é, assi Deus me
valha, ca bem cuido que soodes boõ cavaleiro. Agora vos rogo que me quitedes e me
leixedes ir, e eu vos quitarei quanta querela de vós hei, o que nom faria, se nom
quisesse, pois que me vós cometestes primeiro
359
(MAGNE, 1955, p. 119).
Boorz, que foi [tam] spantado do | golpe, que nom sabia que dissesse, bem conhoceu
que aquêle era o milhor cavaleiro do mundo, e respondeu:
Senhor, eu vos cometi sandiamente, e acho-me ende mal, ca bem vejo que mal e
vergonça me ende veeo. E tanto vejo per êste golpe que sodes o milhor cavaleiro que
nunca vi. E por êsto querria rogar-vos que me disséssedes vosso nome, ca tal
podedes seer que vos darei por quite, e tal que nom.
Certas, disse êle, amor me fezestes, e por êsto quero vossa paz, e por partir-me de
vosso eixeco, vos direi meu nome Galaaz.
E quando Boorz ouviu o nome de Galaaz, deitou o que lhe ficou do scudo em terra e
foi em geolhos a êle e disse-lhe:
Ai, Senhor Galaaz! Por Deus, perdoai-me, ca vos nom errei senam per
desconhocença
360
(MAGNE, 1955, p. 119).
Depois que o cervo entrou nas matas por semedeiro streito com tal companha
qual vos disse, e [que] Galaaz se queria partir deles, catando da outra parte virom
viῖr sobre uũ gram cavalo gram cavaleiro armado, que era mui grande de corpo e
Galaaz, quando isto ouviu, que se não podia separar dele, voltou e feriu-o tão bravamente, que deu com ele e
com o cavalo em terra. E Boorz ficou mal quebrantado da queda, porque o cavalo caiu sobre ele (MEGALE,
2008, p. 95).
359
Depois que Boorz montou seu cavalo, apressou-se em alcançar Galaaz, e isto foi rápido e disse:
Voltai, cavaleiro, não digais que me vencestes porque me derribastes, porque isto seria honra injustificada, mas
vinde me provar a espada, e então verei que cavaleiros sois.
Quando Galaaz isto ouviu que, contra sua vontade, havia de combater com ele, e outra coisa não podia fazer que
por mal não lho tivessem, meteu mão à espada e disse:
Cavaleiro, sem razão nem direito me fazeis combater convosco, contra a minha vontade.
E então, levantou a espada e feriu com toda sua força Boorz tão violentamente, que lhe cortou o escudo por meio
do arção dianteiro e o cavalo por meio das espáduas, assim que a metade caiu de uma parte e da outra no meio
do caminho. E Galaaz, quando este golpe fez, disse:
Cavaleiro, bem vos aconteceu, que não estais ferido, e bem me é, assim Deus me valha, porque bem cuido que
sois bom cavaleiro. Agora vos rogo que me quiteis e me deixeis ir, e vos quitarei quanta querela de vós hei, o
que não faria se não quisesse, porque me atacastes primeiro (MEGALE, 2008, p. 95).
360
Boorz, que ficou tão espantado do golpe que não sabia o que dissesse, bem reconheceu que aquele era o
melhor cavaleiro do mundo, e respondeu:
Senhor, eu vos ataquei tresloucadamente, e acho-me por isso mal, porque bem vejo que mal e vergonha me
advieram disso. E vejo por este golpe que sois o melhor cavaleiro que alguma vez vi. E por isso queria rogar-vos
que me dissésseis vosso nome, porque tal podeis ser que vos darei por quite, e tal que não.
Certamente disse ele , amor me fizestes, e por isto quero vossa paz e para livrar-me desta contenda, vos
direi meu nome Galaaz.
E quando Boorz ouviu o nome de Galaaz, deitou o que ficou do escudo em terra, e foi de joelhos a ele e disse-
lhe:
Ai, senhor Galaaz! Por Deus, perdoai-me, porque não vos afrontei, senão por desconhecimento (MEGALE,
2008, p. 96).
312
trazia ante si gram cavaleiro armado de loriga e de elmo, ferido mui mal de
muitas feridas. E sabede que era da Mesa Redonda e havia nome Asgares o Triste e
era natural da cidade de Cardoi e era boõ cavaleiro de armas, e aquel que o trazia era
milhor ca el. E se alguém me preguntasse quem era o cavaleiro, eu lhe diria que era
Tristam, o sobrinho de rei Mars da Cornoalha. E êsto fêz el, porque nom conhocia
Asgares. Quando êles êsto virom, disserom:
Per boõa fé, bem-andantes somos; aqui três aventuras, e nós somos três
cavaleiros. Mercee nos fêz Deus, que enviou a cada a sua
361
(MAGNE, 1955, p.
113).
E [Dondinax] deu vozes a Tristam:
Cavaleiro, leixar vos convém o que levades, ca nom havedes i direito, assi como
eu cuido. E se nom [quiserdes], ferir-vos-ei desta lança, e a perda e desonra tôda será
vossa.
Quando Tristam êsto ouviu, que lhe o cavaleiro dizia, embraçou o escudo e meteu a
espada na maão e tornou a êle. E Dondinax lhe deu mui gram golpe da lança, que
lhe falsou o escudo e quebrantou-lhe a lança em meio dos peitos, mas outro mal nom
fêz nem no moveu da sela. E Tristam, que era muito arrizado, feri-o per cima do
elmo tam rijamente, que o lançou em terra smorido, que nom soube se era morto, se
era vivo. Mas outra ferida lhe nom fêz, mas pero foi a ferida tal, que lhe saiu o
sangue polos olhos e polos narizes e pola bôca. E pois que foi em terra, Tristam o
catou e conhocê-o e houve gram pesar [...]. E Tristam lhe disse:
Amigo, como vos sentides?
E êle o catou; e quando || o viu a pee, o nom conhoceu, e disse a Tristam:
Porque vos pesa ora muito? E quem sodes vós? disse Dondinax.
Eu soom Tristam, vosso companheiro da Mesa Redonda, e me pêsa aa maravilha
porque vos meti maão. E sabede que, se vos conhocesse, nom há no mundo homem
nem cousa por que eu vos metesse maão.
E Tristam tolheu o elmo e ficou os geolhos ante el e pediu-lhe mercee. E Dondinax
lhe perdoou, e el tomou-o pola maão e levantou-o
362
(MAGNE, 1955, pp. 135-137,
passim).
361
Depois que o cervo entrou nas matas por uma trilha estreita com tal companhia qual vos eu disse, e Galaaz
queria separar-se deles, olhando do outro lado, viram vir sobre um grande cavalo um grande cavaleiro armado,
que era mui grande de corpo e trazia diante de si um cavaleiro armado de loriga e de elmo, ferido muito mal com
muitas feridas. E sabei que era da mesa redonda e tinha nome Asgares, o triste, e era natural da cidade de Cardoi
e era bom cavaleiro de armas, e aquele que o trazia era mlehor que ele. E se alguém me perguntasse quem era o
cavaleiro, eu lhe diria que era Tristão, o sobrinho de rei Mars de Cornualha. E isto fez ele, porque não conhecia
Asgares. Quando eles isto viram, disseram:
Por boa-fé, bem-sucedidos somos, aqui há três aventuras, e nós somos três cavaleiros. Mercê nos fez Deus que
enviou a cada um a sua (MEGALE, 2008, pp. 92-93).
362
E [Dondinax] gritou para Tristão:
Cavaleiro, deixar vos convém o que levais, porque o tendes direito, assim como cuido. E se não, ferir-vos-ei
com esta lança, e a perda e a desonra toda será vossa.
Quando Tristão ouviu isto que lhe dizia o cavaleiro, embraçou o escudo e meteu a espada na mão e voltou a ele.
E Dondinax lhe deu um muito grande golpe da lança que lhe cortou o escudo e quebrou-lhe a lança no meio do
peito, mas outro mal não lhe fez, nem o moveu da sela. E Tristão, que era muito forte, feriu-o por cima do elmo
tão rijamente, que o lançou em terra desmaiado, e não soube se estava morto, se vivo. Mas outra ferida não lhe
fez; no entanto, foi a ferida tal, que lhe saiu sangue pelos olhos e pelas narinas e pela boca. E depois que estava
em terra, Tristão o olhou e reconheceu-o e teve grande pesar [...]. E Tristão lhe disse:
Amigo, como vos sentis?
E ele o olhou; e quando o viu a pé, não o reconheceu e disse a Tristão:
Por que vos pesa ora muito? E quem sois vós? disse Dondinax.
Eu sou Tristão, vosso companheiro da mesa redonda, e me pesa à maravilha porque vos meti a mão. E sabei
que, se vos reconhecesse, não há no mundo ninguém, nem nada por que vos metesse a mão.
Senhor disse ele , pois vós sois Tristão, eu vos perdôo de todo o coração.
E Tristão tirou o elmo e ficou de joelhos diante dele e pediu-lhe mercê. E Dondinax lhe perdoou, e ele o tomou
pela mão e levantou-o (MEGALE, 2008, p. 107, passim).
313
Par Deus, Boorz, disse Galaaz, esta é a maior maravilha que vós nunca vistes. Esta
donzela se matou endõado com minha espada.
Quando Boorz êsto ouviu, disse:
O diáboo lho fêz fazer. Ora nom sei que façamos, ca seu padre nom nos creerá,
ante dirá que a matamos.
[...]
El-rei, que jazia em sua mara, peça alongada dali, quando ouviu a volta, ergeu-se
todo spantado e foi alá. E quando achou sua filha morta, foi mui sanhudo e disse:
Ai, Deus! Quem fêz êste dapno? [...] Ai, disse el-rei, morto me ham. Prendede-
mos, ca jamais nom seerei ledo, ataa que prenda dêles vingança tal qual me fôr
julgada per minha côrte
363
(MAGNE, 1955, pp. 151-153, passim).
Os cavaleiros medievos também se aproximavam imenso dos heróis míticos e dos
guerreiros da Antigüidade clássica, quando o assunto era jogo ou brincadeira de folgar:
aqueles, como acontecia a estes, dedicavam-se, sobretudo, à caça e ao torneio, atividades a
partir das quais eles poderiam se exercitar e, assim, preparar-se para as verdadeiras batalhas
ou para as guerras. A Demanda faz várias alusões, ao longo de sua narrativa, a essas duas
atividades, praticadas por muitos dos cavaleiros que se dedicaram à busca do Santo Graal:
Outro dia [a]a hora de meo | dia, lhe aveo que achou em uũ vale a bêsta ladrador, e
quando a viu e soube que ela trazia em si onde vinha[m] aquêles ladridos,
maravilhou-se mais [que] de rem que nunca visse, e disse:
Verdadeiramente esta é a bêsta pós que meu padre andou tam longamente e por
que sofreu tanto trabalho. Certas, quero ir após ela, por saber se Deus me querei
dar milhor andança ca a meu padre deu.
Entam se partiu do caminho e foi-se após ela, e nom andou muito, que a perdeu de
olho, ca a bêsta era tam ligeira e ia-se a tam gram ir, como se corisco fôsse após ela.
E Persival se foi após ela seu passo, que nom queria cansar seu cavalo
364
(MAGNE,
1955, p. 275).
363
Por Deus, Boorz disse Galaaz , esta é a maior maravilha que nunca vistes. Esta donzela se matou sem
razão com minha espada.
Quando Boorz ouviu isto, disse:
O diabo lhe fez fazer. Agora não sei o que façamos, porque seu pai não acreditará em nós, antes dirá que a
matamos.
[...]
O rei, que estava em sua câmara, bastante longe dali, quando ouviu o ruído, ergueu-se todo espantado e foi para
lá. E quando achou sua filha morta, ficou muito furioso e disse:
Ai, Deus! Quem fez este dano? [...] Ai disse o rei , mataram-me. Prendei-mos porque nunca mais ficarei
alegre até que tome deles vingançatal qual me for julgada por minha corte (MEGALE, 2008, pp. 117-118,
passim).
364
No outro dia, hora de meio-dia, lhe aconteceu que achou num vale a besta ladradora, e quando a viu e soube
que ela trazia em si a fonte daqueles ladridos, maravilhou-se mais que de coisa que nunca tivesse visto, e disse:
Verdadeiramente, esta é a besta atrás da qual meu pai andou tão longamente e pela qual suportou tanto
trabalho. Certamente, quero ir atrás dela para saber se Deus quererá propiciar-me melhor andança do que a meu
pai.
Então saiu do caminho e foi atrás dela, e não andou muito que a perdeu de vista, porque a besta era não ligeira e
ia tão depressa, como se um raio fosse atrás dela. E Persival foi atrás dela devagar, porque não queria cansar seu
cavalo (MEGALE, 2008, pp. 195-196).
314
Entam disse el-rei aos que stavam a-cabo dêle:
Amigos, assi é que a demanda do Santo Graal é sinal verdadeiro que vós iredes i
cedo; e porque sei verdadeiramente que jamais vos nom veerei assũ||ados em minha
casa, assi como agora vejo, quero que em aquel campo de Camaalot seja agora
começado trebelho tal, que depois da minha morte seja contado, e onde hajam que
retraer nossos herees.
E êles se outorgaram i todos. E tornarom aa cidade e pediram suas armas e
armarom-se e tornarom ao campo. E el-rei nom fezera êsto, senam por veer algũa
cousa d[a] cavalaria de Galaaz, ca bem sabia que nom staria muito em Camaalot
365
(ibidem, pp. 25-27).
Pois que foram assunados no chaão de Camaalot, começarom-se a ferir das lanças,
de guisa que muitos veríades i cair e muitos haviia i, que o faziam mui bem. E
Galaaz, que entrou no campo, começou as lanças a britar e a derribar cavaleiros, e a
fazer tantas maravilhas, que todos diziam que nunca virom tam boõ cavaleiro de
justa. Ca, sem falha, nunca el acalçava cavaleiro adereito, tam ardido nom seria
que o nom metesse em terra; e fêz i tanto, que todos aquêles, | que o virom,
disserom que nunca tam altamente começara cavaleiro a dirribar cavaleiros. E bem
parecia no que naquel dia fezera. Ca, [de] todos aquêles que eram companheiros da
Távola Redonda, nom ficarom senam poucos que êle nom derribasse.
Êste trebelho desta justa durou atee hora de véspera. Entam mandou el-rei que se
parassem, ca se temiia de viir aa-cima alguũ eixeco. E disse-lhe que se fossem
desarmar
366
(ibidem, p. 27).
E seendo falando daquele cavaleiro que ao padre nom podia esqueceer, aque-vos
scudeiro que vinha a pee, tam asinha como se fôsse piom. E quando o homem boõ
[o] viu, perguntou-o:
Que novas trazedes do torneo?
Senhor, mui boas.
Quaaes? disse el.
Meu Senhor, vosso filho venceu o torneo, assi que todo o prez é seu de ũa parte e
da outra.
Beentas sejam taaes novas, e beento seja Deus, que me tal filho deu, que de
cavalaria me semelha [honra e prez]
367
(ibidem, p. 97).
365
Então disse o rei aos que estavam perto dele:
Amigos, assim é que a demanda do santo Graal é sinal verdadeiro de que iríeis daqui logo; e porque sei
verdadeiramente que jamais vos verei reunidos em minha casa, como agora vejo, quero que naquele campo de
Camalote seja agora começado o trebelho tal que, depois de minha morte, seja contado e no qual hajam que
referir nossos herdeiros.
E concordaram com isso todos. E voltaram à cidade e pediram suas armas e armaram-se e voltaram ao campo. E
o rei não fizera isto, senão para ver alguma coisa da cavalaria de Galaaz, porque bem sabia que não estaria muito
em Camalote (MEGALE, 2008, p. 34).
366
Depois que foram reunidos no campo de Camalote, começaram a se ferir com lanças, de modo que muitos
veríeis cair, e muitos havia que o faziam muito bem. E Galaaz, que entrou no campo, começou a quebrar as
lanças e a derrubar cavaleiros, e a fazer tantas maravilhas, que todos diziam que nunca viram tão bom cavaleiro
de justa, porque, sem falha, nunca ele alcançava cavaleiro hábil, por mais valente que fosse, que o não metesse
em terra. E fez tanto, que todos aqueles que o viram disseram que nunca tão altamente começara cavaleiro a
derribar cavaleiros. E bem aparecia no que naquele dia fizera, porque, de todos aqueles que eram companheiros
da távola redonda, não ficaram senão poucos que ele não derribasse.
Este trebelho desta justa durou até hora de vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque se temia
acontecer alguma desavença. E disse-lhes que se fossem desarmar (MEGALE, 2008, p. 35).
367
E estando a falar daquele cavaleiro que ao pai não podia esquecer, eis que chega um escudeiro que vinha a
pé, tão depressa como se fosse um peão. E quando o homem bom o viu, perguntou-lhe:
Que novas trazeis do torneio?
Senhor, muito boas.
Quais? disse ele.
Meu senhor, vosso filho venceu o torneio, assim que todo mérito é seu de uma parte e de outra.
Abençoadas sejam tais novas, e bendito seja Deus, que me tal filho deu, que de cavalaria me parece honra e
valor (MEGALE, 2008, p. 82).
315
Pois que Lionel viu que poderia cavalgar, armou-se e cavalgou, e foi-se e andou
tanto, que chegou a castelo, que havia nome Cidela, u havia aquela hora mui
gram gente fora e dentro, porque havia i pola manhaã uũ torneo, e eram i assunados
muitos boõs cavaleiros da Távola Redonda e de muitas terras. Quando Lionel soube
que ali haviam de haver torneo, pensou que nom poderia seer que alguũs cavaleiros
da | Távola Redonda i nom viessem. [...] Entam preguntou a uũ donzel que i stava:
Cuidas que poderia achar albergue em êste castelo, se alá entrasse?
Nom, disse o donzel, ca tam muitos sam i que nam cabem dentro
368
(ibidem, p.
249).
A caça, além de ser um divertimento capaz de preparar para a guerra, também era uma
atividade necessária ao cavaleiro medieval, uma vez que lhe servia como fonte de
subsistência. Sobre a caça falaram Michel Pastoureau e Ivan Lins:
Ao contrário da guerra e do torneio, a caça é praticada em todas as estações. É um
exercício ante o qual muitos cavaleiros não hesitam em afrontar as intempéries mais
rigorosas e mesmo os piores perigos. Entre alguns chega a ser uma paixão que
confina com o desregramento. Filipe Augusto, por exemplo, a quem poucos
divertimentos conseguiam tirar do tédio, gostava de caçar todos os dias após o
almoço, tanto em tempos de guerra como em épocas de paz, tanto na França quanto
no estrangeiro, e inclusive na Terra Santa.
Mas, se a caça é uma paixão, é igualmente uma necessidade. Tem por objetivo
proporcionar à mesa senhorial os ingredientes indispensáveis a uma alimentação
essencialmente carnívora (PASTOUREAU, 1989, p. 137).
Nada mais apreciado, na Idade-Média, do que a caça. Além do seu alto atrativo
numa civilização ainda preponderantemente militar, de vez que a guerra, na
observação de Augusto Comte, é, apenas, a mais difícil e perigosa das caças, à vista
da equivalência fundamental entre a prêsa e o caçador, tinha ainda a paixão da caça,
na Idade-Média, uma origem extremamente significativa (LINS, 1939, p. 253).
Os torneios, por sua vez, além de servirem como distração e exercício para a verdadeira
batalha
369
ou para a guerra
370
, também eram tidos pelos cavaleiros menos afortunados como
368
Depois que Leonel viu que poderia cavalgar, armou-se e cavalgou, e foi-se e andou tanto que chegou a um
castelo, que tinha nome Cidela, onde havia naquela hora muita gente fora e dentro, porque havia pela manhã um
torneio, e estavam reunidos muitos bons cavaleiros da távola redonda e de muitas terras. Quando Leonel soube
que haviam de ter um torneio, pensou que não poderia ser que alguns cavaleiros da távola redonda não viessem.
[...] Então peguntou a um moço que lá estava:
Cuidas que não poderia achar albergue neste castelo, se lá entrasse?
Não disse o moço , porque tantos estão lá que não cabem dentro (MEGALE, 2008, p. 179).
369
Até o século XIV, a guerra e a batalha são dois fatos militares fundamentalmente diferentes. Num livro
recente, M. G. Ruby mostrou magnificamente como a primeira termina no momento em que a segunda começa:
a batalha é um “procedimento de paz”, um verdadeiro “ordálio”. Provocá-la ou aceitá-la é querer pôr termo
definitivo a um conflito que se prolonga e se deteriora; é correr o risco de perder em alguns instantes os magros
benefícios de vários meses ou mesmo anos de luta; é submeter-se, enfim, ao juízo de Deus sem poder contestar a
sentença que será proferida. Nesse sentido, a batalha pertence ao sagrado, e seus ritos m algo de litúrgico:
escolha de um lugar específico, vasto e plano (a “planìcie campestre”); longa preparação solene (discurso dos
chefes, cerimônia penitencial e eucaristia); lancinantes exortações feitas pelos clérigos de ambas as facções
316
fonte de ascensão social e de fama: muitos eram os que participavam dos torneios não com o
intuito de folgar ou de se exercitar, mas para seqüestrar cavaleiros e exigir, em troca da
libertação destes, uma boa fortuna. Apesar de serem considerados jogos, não raro havia um
grande número de mortes nesses torneios, fato que levou a Igreja Católica a proibir, por
diversas vezes, a atividade em questão. É certo que tais proibições não tiveram nenhuma
repercussão na sociedade mediévica, mas isso serve para explicar por que Galaaz,
diferentemente dos que acontece aos outros, não participa de outro torneio, ao longo d‟A
Demanda do Santo Graal, que não tenha sido aquele proposto pelo Rei Artur. É bem verdade
que, noutro episódio da novela, ele ingressa num torneio, mas tão-somente para salvar Tristão,
que se encontrava em grande perigo. Sobre os torneios medievais falaram Pastoureau, Flori,
Lins e Le Goff:
durante o combate; finalmente derrota sempre total de um dos adversários, para deixar bem claros os plenos
direitos do vencedor. Pois a vitória torna tudo legítimo o que precedeu a batalha e o que irá sucedê-la. Durante
o período que nos interessa, as grandes batalhas entre cristãos são raras, muito raras. [...] O mesmo fenômeno se
observa nos romances de cavalaria. Aos grandes combates coletivos, os autores, e especialmente Chrétien de
Troyes, preferem os duelos, os torneios, os embates de pequenas tropas. Será preciso aguardar um romance
escrito em 1230, La mort le roi Artu, para assistir em detalhe a um combate de grande envergadura: a batalha de
Salisbury. É verdade que a espera é recompensada, pois trata-se de uma batalha de titãs, „a maior que houve‟,
que pôs fim às aventuras de Artur e seus cavaleiros, aniquilando o reino da Távola Redonda. [...]A tática [da
batalha] é relativamente simples. No momento do confronto, cada exército alinha-se grosseiramente em três
filas. Na primeira, agachados, os soldados da infantaria armados de lanças e chuços; na segunda, de pé, os
arqueiros e besteiros; na última, os combatentes a cavalo, com o centro ocupado pelos cavaleiros, com o
equipamento mais pesado, e os flancos, pelos escudeiros, com armas mais leves. [...] Rapidamente, após dois ou
três assaltos de parte a parte, a confusão torna-se generalizada e degenera numa série de combates individuais, ou
talvez de pequenos grupos [...]. Mesmo quando a confusão é total, cada cavaleiro procura enfrentar apenas um
cavaleiro adversário; isso nem tanto em virtude de certas regras de uma honra de cavalaria, que não é muito
respeitada, mas por um propósito baixamente lucrativo: o que importa é fazer prisioneiros, exigir resgates e
terminar o combate o mais rico possível. Não se costuma matar; captura-se para depois negociar. No auge da
refrega processam-se assim negociações de todo tipo; pois os prisioneiros são libertados desde que prometam
pagar um resgate; e eles retomam em seguida as armas para tentar fazer, por seu turno, um prisioneiro cujo
resgate compensará o seu. Por outro lado, hostilidades muito intensas abalam os juramentos de assistência e
lealdade mais sólidos. Assim que o combate se torna um pouco áspero, assim que a fortuna se mostra um tanto
vacilante, cada senhor deve renegociar a fidelidade dos que o acompanham. O dinheiro, também aqui, é o
catalisador da batalha. A realidade da guerra não conhece as façanhas generosas de Gawain, de Lancelot e seus
companheiros” (PASTOUREAU, 1989, pp. 122-123, passim).
370
As guerras do século XII são batalhas insidiosas, cujas principais e muitas vezes únicas operações
consistem no devastamento das terras do vizinho e no lançamento de alguns ataques repentinos contra seu
castelo. Os grandes cercos, assim como as grandes batalhas, são raros. Mas ainda que sejam breves, as atividades
poliorcéticas fazem parte das técnicas de combate e representam, em todos os níveis das disputas feudais, uma
parte importante da vida cotidiana dos exércitos. Um cerco é um empreendimento previsto para durar muito
tempo, no mínimo algumas semanas, podendo chegar a vários anos” (PASTOUREAU, 1989, p. 119).
317
Os torneios são o principal déduit do cavaleiro. Mais que a guerra onde os
verdadeiros confrontos são raros , constituem o essencial da vida militar e o meio
mais seguro para conquistar fama e fortuna. Os romances de cavalaria, e
particularmente os da Távola Redonda, dedicaram-lhes uma boa porção de seus
relatos. A origem dos torneios permanece obscura. Provavelmente é muito antiga e
associada a costumes guerreiros germânicos. Sob a forma medieval, sua existência é
atestada entre os rios Loire e Mosa desde a segunda metade do século XI. A partir
dessa época, e apesar de constantes proibições feitas pela Igreja e certos soberanos,
sua moda não cessa de crescer. Nas regiões em que a paz de Deus diminuiu as
guerras privadas, o torneio representa, com efeito, o único meio de a classe dos
cavaleiros extravasar a agressividade e uma das raras ocasiões de deixar o castelo,
sua monotonia ociosa e a existência rotineira. No entanto, ao longo dos séculos XII e
XIII, a Igreja condena os encontros fúteis onde se brinca de combater, os jogos de
azar e dinheiro em que freqüentemente mortes, onde nascem rancores tenazes e
onde se desperdiçam inutilmente as forças da cavalaria cristã, cuja única
preocupação deveria ser a defesa da Terra Santa. Mas as proibições permanecem
sem efeito (PASTOUREAU, 1989, p. 134).
Mas quem são esses competidores? Na maior parte, jovens cavaleiros recém-
ordenados, solteiros, sem terras, que partem em bandos turbulentos em busca de
aventura e de uma rica herdeira (ibidem, p. 135).
O torneio pode, com efeito, ser considerado um esporte. Esporte de equipe, que a
justa a cavalo em que se defrontam dois a dois em combate individual não existe
antes do século XIV. O torneio do século XII não opõe dois indivíduos e sim dois
grupos de combatentes, alguns a cavalo, outros a pé, e a bela disposição que precede
a contenda transforma-se rapidamente numa confusão tumultuosa, semelhante à dos
campos de batalha, onde se combate em pequenos grupos com o auxílio de sinais de
reconhecimento (idem).
Esse esporte de equipe é igualmente um esporte que envolve muito dinheiro.
verdadeiros profissionais do torneio que alugam serviços ao grupo de competidores
que pagar melhor. Alguns desses campeões formam inclusive um grupo de dois ou
três elementos e se especializam num determinado tipo de combate, sendo então
muito requisitados. Mas independente desse mercenarismo, o torneio é talvez mais
que a guerra uma fonte de lucro para os cavaleiros. Procura-se capturar o
adversário e exigir um resgate, tomando-se-lhes as armas, os arreios e o cavalo.
Múltiplas negociações e trocas de promessas acontecem tanto durante a contenda
quando ao fim das hostilidades. É possível fazer fortuna com os torneios. [...] É
verdade que tal façanha não se realiza sem riscos. O torneio é um esporte perigoso:
muitos saem feridos, e os mortos a quem a Igreja recusa às vezes a sepultura cris
não são raros. A utilização de armas “corteses”, de pontas e gumes rombudos, ou
então de madeira, só aos poucos acabará se impondo. Até a metade do século XIII, o
armamento dos competidores não difere do dos verdadeiros combatentes (ibidem,
pp. 135-136, passim).
Mas, ainda que se assemelhem, os torneios não se confundem com a guerra. São
acontecimentos festivos. [...] Cada torneio é uma festa que atrai consideráveis
multidões. Pois ainda que apenas os nobres participem das justas, os expectadores
pertencem a todas as categorias sociais. E essa festa é também uma feira, que reúne
toda uma súcia de artistas, mercadores, cozinheiros, saltimbancos, mendigos e
malfeitores (ibidem, p. 136, passim).
O torneio dura, em geral, três dias. Os combates começam ao amanhecer, após a
missa, e se interrompem à noite, na hora de vésperas. Várias equipes formadas
segundo a origem geográfica ou feudal enfrentam-se, primeiro sucessivamente,
depois simultaneamente. A confusão é tão grande que os arautos m que
desempenhar para os espectadores o papel de nossos repórteres: descrever os
principais lances da contenda e exclamar os nomes dos autores. A noite é dedicada à
cura de ferimentos, aos festins, à música, à dança e ao romance. Na manhã seguinte,
318
tudo recomeça. Na noite do último dia, enquanto cada um faz suas contas, a mais
nobre das damas presente entrega ao cavaleiro que demonstrou ser o mais valente e
o mais cortês na batalha uma recompensa simbólica. Nas obras literárias geralmente
trata-se de um cio, peixe a que se atribui certas virtudes talismânicas. Quando
participa, Lancelot é sempre o vencedor. Em sua ausência, o prêmio cabe a seu
primo Bohort, mais raramente a Gawain. De um modo geral, a literatura arturiana
parece adiantar-se em relação à realidade: desde o fim do século XII ela descreve
combates a dois, exalta as proezas individuais e atribui às mulheres um papel
determinante no comportamento dos campeões. Mas é apenas no século seguinte
que os torneios irão adquirir, de fato, esse caráter cortês, glorioso e refinado (ibidem,
pp. 136-137).
A sociedade que “torneia” é, portanto, mais ou menos a mesma que a sociedade
aristocrática que guerreia (FLORI, 2005, p. 100).
Os torneios, de resto, não diferem consideravelmente da guerra antes do século XIII.
Não é absurdo crer que eles foram imaginados como treinamento e como substituto
da guerra em uma época em que o fortalecimento da autoridade real e principesca
começa a limitar os conflitos locais, as querelas senhoriais e a insegurança “feudal”,
assim como os benefícios guerreiros resultantes deles (idem).
O desenvolvimento dessas assembléias, geralmente realizadas nos campos entre
duas cidades de relativa importância, revela sua grande semelhança com a guerra e
as primeiras tentativas de regulamentação que as distingue dela. Como a batalha, o
torneio opõe dois campos, dois exércitos, formados por cavaleiros, pedestres,
escudeiros, arqueiros e rapazes, sem que a igualdade de forças seja uma regra
absoluta. Certamente, desejam que as forças presentes o sejam demasiadamente
desiguais, mas os participantes são livres para se reunir ao campo que desejarem
reforçar. Esses agrupamentos são feitos com base em critérios múltiplos: amizades
ou inimizades, laços de parentesco, laços de vassalagem, interesses diversos. A área
do “jogo” é vasta, aberta e mal delimitada: ela engloba campos e pastagens, bosques,
campinas, vilarejos e até uma pequena cidade servem de campo de base para um dos
lados, “os de dentro”, colocados em posição de sitiados, que são atacados pelo outro
lado, “os de fora”. A assembléia dura vários dias: o primeiro é dedicado aos
preparativos e à formação dos grupos; o segundo dia é marcado pelo que chamamos
“proêmios”, que podemos comparar às escaramuças e desafios diversos de “combate
singular” aos quais se entregam geralmente, na guerra, os bachaleres. Esses jovens
em busca de fama vêm provocar seus adversários com injúrias, gritos ou gestos de
desafio, incitando-os a justar, isto é, a aproximar-se para combater, cara a cara. [...]
O verdadeiro torneio, o “combate”, vem em seguida. Como a guerra verdadeira, ele
comporta diversas fases: sítio, ataques, saídas, emboscadas, ataques frontais e fugas
simuladas. O objetivo, aqui, muito mais do que na guerra, não é matar, mas vencer,
capturar, ganhar. [...] É, portanto, errado comparar o torneio a um confronto
individual. Os combates são coletivos, servindo, por isso, como treinamento útil
para assegurar a coesão tática dos esquadrões. [...] O torneio para a cavalaria é,
então, antes de tudo, um esporte coletivo, no qual o conjunto desempenha um papel
preponderante. Será que se deve por isso negar qualquer aspecto individual? Isso
seria excessivo. As epopéias, os romances, os textos de todo gênero demoram-se em
descrever, tanto no torneio como na guerra, as façanhas pessoais, a proeza individual
de seus heróis. É difícil sustentar que essas descrições não tenham nenhum
fundamento realista: a literatura exagera a característica, ela não a inventa. Se esse
público de cavaleiros se entusiasma a esse ponto com o canto dos ataques coletivos e
também, em meio a esses ataques, com a evocação dos belos golpes de lança e de
espada de Rolando, Guilherme, Yvain ou Lancelot, é porque tais confrontos
individuais também tinham seu lugar. Afinal de contas, mesmo no ataque coletivo,
cada cavaleiro pode “visar”, para abatê-lo, um único adversário por vez; e no
“combate” ou na “turba” que resulta dele, os confrontos colocam muitas vezes em
luta guerreiros que distinguem claramente e escolhem às vezes seu opositor,
tentando desmontar ou capturar, como “boa conquista”, alguém mais importante do
que eles. [...] É, portanto, errado que, por um torno do pêndulo da historiografia,
319
sejam negligenciados os aspectos individuais dos combates. Hoje são vistos
unicamente coletivos como, outrora, foram vistos como individuais (ibidem, pp.
100-102, passim).
O interesse militar de tais assembléias é evidente. Como nos verdadeiros combates,
mas com muito menos riscos, os senhores podiam experimentar novas táticas e os
cavaleiros, aumentar sua coesão coletiva e suas técnicas pessoais (ibidem, p. 103).
Atrair os olhares de uma rica herdeira é ainda mais proveitoso, porém aleatório. [...]
O torneio oferecia aos cavaleiros modestos, mas valorosos, toda uma hierarquia de
esperanças de ascensão social e de promoção econômica. [...] podiam, por esse meio
subir, assegurar bem ou mal sua existência de cavaleiro (ibidem, pp. 105-106,
passim).
Com o mínimo risco, certamente, mas não sem riscos, ao longo de toda a Idade
Média é registrado um grande número de casos de cavaleiros mortos em combates
desse tipo. Mas, são apenas acidentes, deplorados como tal pelos combatentes dos
dois campos. Vários documentos atestam, de fato, a moderação dos cavaleiros na
maneira de manejar a lança e a espada, de desferir seus golpes. Às vezes, isso
acontece na guerra, entre cavaleiros e, freqüentemente, no torneio. As crônicas
salientam essa habitual moderação, mencionando alguns casos em que os cavaleiros
“enlouquecidos” começaram a atingir com a lança e a espada como se estivessem
em uma guerra de verdade: resultava então um grande número de mortos e feridos.
Essa é uma das razões que levou a Igreja a partir de 1130, no concílio de Clermont,
mais solenemente em 1139, no concílio de Latrão II, retomado e amplificado
muitos outros concìlios depois, a proibir “essas detestáveis assembléias chamadas
torneios” onde se faz, por simples jogo, exibição de glória vã em afrontamentos que
às vezes provocam a morte de homens. A Igreja chega a privar de sepultura cristã
(mas não de penitência ou de viático) aqueles que viessem a perecer nesses
afrontamentos. Em vão. O prestígio dos torneios não diminui, prova de que eles
respondem então a uma real necessidade e desempenham uma função julgada
indispensável (ibidem, pp. 103-104).
Os mais apreciados e populares de todos os espetáculos e divertimentos medievais
eram os torneios, que lembravam, ao vivo, a atividade guerreira, ainda tão acentuada
na Idade-Média. Eram, na realidade, os torneios verdadeiras batalhas e não apenas
simples divertimentos em que os cavaleiros, para gáudio das damas, ostentassem
agilidade e elegância. Num torneio realizado em Nuis, perto de Colônia, houve, em
1240, nada menos de sessenta mortes (LINS, 1939, p. 256).
O que mais espanta, porém, é especializarem-se muitos cavaleiros em aprisionar,
nos torneios, seus companheiros de armas, enriquecendo-se não só com suas armas e
cavalos, mas ainda com os imensos resgates que cobravam para restit-los à
liberdade (idem).
Em seu papel de representantes da civilização contra a barbárie, condenaram os
Papas e os Concílios, de modo formal, os torneios, “visto custarem, frequentemente,
a vida a muitos homens”, conforme dizia o cânon de um Sínodo, realizado em 18 de
Novembro de 1130, na cidade de Clermont, sob a presidência de Inocêncio II. Ficou,
então, assentado deverem ser privados de sepultura eclesiástica os que morressem
em torneios, decisão confirmada, em 1139, pelo Concílio Ecumênico reunido no
Palácio de Latrão. Eugênio III, Alexandre III, Inocêncio III, Inocêncio IV, Nicoláu
III, Clemente V e muitos outros pontífices renovaram, em vão, as condenações de
Inocêncio II, provando, destarte, ser inútil ameaçar os homens com as penas eternas,
quando estas lhes contrariam os gostos e tendências mais fortes (ibidem, p. 257).
“A vitória alcançada num torneio não era menos gloriosa e produzia, no momento,
uma sensação talvez ainda mais agradável do que o triunfo obtido num campo de
batalha, porquanto, em combate algum, podia a valentia ostentar-se na presença de
tais testemunhas” (ibidem, p. 258).
320
Esses torneios provocam a hostilidade da Igreja, que vê aí o caráter agressivo,
inclusive com relação à Igreja, de homens da segunda função indo-européia (os
bellatores), que não hesitam em derramar sangue, o que é proibido aos clérigos.
Parece que os exageros desses cavaleiros foram uma das principais razões da revolta
do movimento de paz em torno do ano mil do qual se falou. Com o tempo, a
cavalaria será “civilizada” pela Igreja. Em grande parte, para canalizar a sua
violência, a Igreja se esforça por desviar para fins piedosos a violência dos
cavaleiros, fins que eram a proteção das igrejas, das mulheres e dos desarmados e
logo, como se verá, contra os infiéis, no exterior da cristandade. A Igreja consegue
finalmente, no século XII no mais tardar, uma vitória relativa sobre os cavaleiros
(LE GOFF, 2007, pp. 82-83).
Se é verdade que a caça e o torneio preparavam para as verdadeiras batalhas e para a
guerra, não é de todo errado dizer que essas atividades também preparavam os cavaleiros para
recontros individuais, como os duelos, as justas (“batalhas individuais”, lutas “indivíduo
versus indivìduo”). Muitos são os excertos d‟A Demanda que dão conta de duelos entre
cavaleiros, como se pode ver:
Entam met[e]u Dalides maão aa espada e disse a Galaaz:
Cavaleiro, se me dirribastes, nom som vencido porém e chamo-vos aa batalha das
spadas; e se nom vierdes, nom vos terei por homem boõ
371
(MAGNE, 1955, p. 105).
Aqui preto havia ũa don || zela em uũ castelo, que me queria gram bem, gram tempo
há. Mas porque amava eu outra dona mais rica e mais fremosa, nom queria eu fazer
nada do que me ela demandava. E hoje em êste dia, m[e] aveeo que passava perante
aquêle castelo, e saiu a mim cavaleiro armado de tôdas armas e disse-me que
entrasse alá, ca a donzela queria falar comigo, e eu não quis alá tornar. E quando el
viu que nom queria tornar, desfiou-me; e ante que me alongasse, combateu-se
comigo, e aveo assi que o matei, e, dês i, fui-me; e ante que fôsse longe daquel
lugar, vi vir dom Tristam empós mim; e se eu cuidasse que era êle, nom fôra assi o
preito como foi. E êle me rogou que tornasse, mas eu nom quis tornar por seu rôgo
ca o nom conhocia. E começámos nossa peleja antre mim e êle, mas esta foi toste
acabada, ca contra êle nom ousei nada, e aparelhou-me tal qual vós veedes e pose-
me ante si como vistes e levava-me ante si; e levara-me aa donzela, se vós ambos
nom chegárades; e mais quisera seer morto ca me levar[em] alá
372
(ibidem, pp. 137-
139).
371
Então meteu Dalides mão à espada e disse a Galaaz:
Cavaleiro, se me derribastes, não estou vencido por isso, e chamo-vos à batalha das espadas; e, se não vierdes,
não vos terei por homem bom (MEGALE, 2008, p. 82).
372
Aqui perto havia uma donzela num castelo, que me queria muito bem, muito tempo há. Mas porque amava eu
outra mulher, mais rica e mais formosa, não queria fazer nada do que ela me pedia. E hoje, neste dia, me
aconteceu que passava diante daquele castelo, e veio a mim um cavaleiro armado de todas as armas e disse-me
que entrasse lá, porque a donzela queria falar comigo, e não quis voltar. E quando ele viu que não queria
voltar, desafiou-me; e antes que me muito afastasse, combateu comigo, e aconteceu que o matei e, depois, fugi; e
antes que estivesse longe daquele lugar, vi vir dom Tristão atrás de mim; se eu cuidasse que era ele, não fora o
preito como foi. E ele me rogou que voltasse, mas não quis voltar por seu rogo, porque o não reconhecia. E
começamos nossa peleja entre mim e ele, mas esta foi logo acabada, porque contra ele nada ousei e reduziu-me a
tal qual vedes e colocou-me diante de si como vistes e levava-me diante de si: e levara-me à donzela, se vós
ambos não chegáreis; e mais quisera ser morto do que me levarem para lá (MEGALE, 2008, pp. 108-109).
321
Patrides nom atendeu mais, ante lhe disse:
Cavaleiro, guardade-vos de mim, ca vos desafio.
Quando Galvam êsto ouviu, leixou-se correr a êle e derom-se tam grandes lançadas,
que as lanças voarom em peças e êles caírom em terra mal-treitos e mal-chagados.
Galvam || foi mal-treito daquele golpe que o acalcou polo costado seestro e da lança
ficou o ferro em êle. Patrides nom era tam mal-chagado, ca êste era dos boõs
homes do mundo que mais sesudamente justava, mas Dante era tam mal-chagado
que [era pouco menos mal-ferido como] Galvam. Ergerom-se ambos e nom se
nembrarom de mal que houvessem, tanto haviam gram sanha e tanto se desejavam
ambos vingar. Er meterom ambos maãos aas spadas e ferirom-se de tam gram golpes
assi, que se i stevéssedes, veríades os fogos sair dos elmos. E Galvam, que muito
sabia da primeira vez, tirou o ferro de si; e pois folgarom pouco, Galvam, que
nom era tanto treito como Patrides, cometeu-o outra vez, ca bem lhe semelhou que o
terriam por maau, se se nom vingasse daquel que o endõado cometera. E ergeu a
espada e dei-lhe uũ tam gram golpe per cima do elmo, que o meteu em terra
storgido, que nom soube se era noite, se era dia. E Galvam, tanto que o viu em terra,
foi a êle e tolheu-lhe o elmo e o almofre, por lhe talhar a cabe- | ça
373
(ibidem, pp.
181-183).
Tanto que Estor viu o escudo, conhoceu logo que aquel era o que êle demandava, e
deu-lhe vozes:
Senhor cavaleiro, filhade vossas armas e cavalgade, ca vos convém que vos
defendades de mim, ca vos desafio.
Quando o cavaleiro viu que a batalha tiinha não maão, ergeu-se mui vivamente e foi
filhar suas armas e cavalgou e disse a Estor:
Senhor cavaleiro, guardade-vos, se vos aprouver, ca vós vos poderíades bem sofrer
desta batalha, ca eu cuido que nunca vos errei per que me devíades a cometer.
Vós me arrastes tanto, disse Estor, ca nom homem no mundo que tanto desame. E
porém || guardade-vos de mim.
Bem o farei, disse el, pois que a fazer me convém.
Depós êsto, sem mais dizer, leixou-se correr ao outro, e feriram-se tam
feramente, que nom houve i tal que nom fôsse mal-treito e ambos [forom] chagados
de mui grandes chagas; e Estor caeu em terra, êle e o cavalo, ca muito era de gram
fôrça o cavaleiro que o feriu. E quando o viu em terra, disse-lhe:
Cavaleiro, vós me chagastes sem razom, e se me a vilania nom tornasse, eu me
vingaria ora. Mas nom no poderei, ca o quero mais leixar por cortesia ca por vós
374
(ibidem, pp. 189-191).
373
Patrides não esperou mais, antes lhe disse:
Cavaleiro, guardai-vos de mim, porque vos desafio.
Quando Galvão isto ouviu, deixou-se correr a ele e deram-se tão grandes lançadas que as lanças voaram em
pedaços e eles caíram em terra maltratados e muito feridos. Galvão ficou muito ferido daquele golpe que o
atingiu pelo costado esquerdo e da lança ficou o ferro nele. Patrides não estava tão mal ferido, porque este era
um dos bons homens do mundo e que mais sisudamente lutava, mas antes estava muito ferido, o que não
sucedia com Galvão. Ergueram-se ambos e não se lembraram do mal que tivessem, tão grande raiva tinham e
tanto se desejavam ambos vingar. Novamente meteram ambos mãos às espadas e feriram-se com tão grandes
golpes que, se lá estivésseis, veríeis faíscas dos elmos. E Galvão, que muito sofrera da primeira vez, tirou o ferro
de si; e depois que descansaram um pouco, Galvão, que não estava tão ferido como Patrides, atacou-o outra vez,
porque bem lhe pareceu que o teriam por mau se não o vingasse daquele que o atacara sem razão. E ergueu a
espada e deu-lhe um tão grande golpe por cima do elmo, que o jogou em terra desmaiado e não soube se era
noite, se era dia. E Galvão, assim que o viu em terra, foi a ele e tirou-lhe o elmo e o almofre para lhe cortar a
cabeça (MEGALE, 2008, p. 136).
374
Assim que Heitor viu o escudo, soube logo que aquele era quem ele buscava, e gritou para ele:
Senhor cavaleiro, tomai vossas armas e cavalgai, porque convém que vos defendais de mim, porque vos
desafio.
Quando o cavaleiro viu que a batalha tinha na mão, ergueu-se muito vivamente e foi pegar suas armas e
cavalgou e disse a Heitor:
Senhor cavaleiro, guardai-vos, se vos aprouver, porque vos poderíeis bem privar desta batalha, porque eu cuido
que nunca vos afrontei por que me devíeis atacar.
322
Quando foram pouco adiante, acharom cavaleiro armado de tôdas armas, que
lhes pedia justa.
No nome de Deus, disse Galvam, peça que nom achei cavaleiro que me justa ||
demandasse. E pois a êste demanda, nom falecerei eu i.
Amigo, disse Estor, leixade-me vir.
Nom farei, disse Galvam, salva a vossa graça, mas eu irei primeiro, e se me êle
derribar, iredes vós, que sodes milhor cavaleiro ca eu.
Entam filhou sua lança e embraçou o escudo e foi contra o cavaleiro, e o cavaleiro
contra êle, quanto o pôde o cavalo levar, e ferirom-se tam feramente, que fezerom as
lorigas desmalhar. E foi Galvam chagado no peito tam mortalmente, que a lança
pareceu da outra parte, e ambos caerom em terra e, ao caer, quebrarom as lanças. E o
cavaleiro sentiu-se que era chagado aa morte e nom se pôde erger
375
(ibidem, pp.
209-211).
Entam lhe deu logo a maior espadada que pôde per cima do elmo. E quando
Calogrenant viu que se começava a peleja, foi correndo a seu scudo que deitara em
terra, e filhou-o e meteu maão a[a] espada, e êle era boõ cavaleiro e muito ardido e
defendia-se mui vivamente, e durou tanto a batalha, ataa que se ergeu Boorz e, em
seendo tam mal-treito ca jamais nom cuidava a filhar armas, se Deus nom posesse
sôbre êle maão quando viu que Calogrenant se combatia com seu irmaão, houve
grã pesar, ca, se Calogrenant matasse seu irmaão ante êle, nunca jamais seria ledo,
tanto o amava de coraçom; e se seu irmaão matasse Calogrenant, a desonra ende
seria sua, ca bem por êle começara | el aquela batalha
376
(ibidem, p. 255).
No nome de Deus, disse o cavaleiro, muito me praz porque vos achei tam cedo, ca
de gram trabalho soom quite, ca jamais nom quedar[i]a de andar, taã que vos
achasse. Ora vos guardade de mim, ca jamais nom serei ledo ataa que vos faça
peleja.
Como? disse Persival, por vos combaterdes cõ migo vínhades depós mim?
Si, disse o cavaleiro.
E que querela [há] antre mim e vós; disse Persival, por que a batalha se -de
fazer? Ca eu nom me quer[r]ia combater cõ vosco nem com outrem sem rezam; e se
Vós me ultrajastes tanto disse Heitor , que não ninguém no mundo que tanto vos desame. E por isso,
guardai-vos de mim.
Bem o farei disse ele , pois que fazer me convém.
Depois disto, sem mais dizer, deixou-se correr um ao outro, e feriram-se tão gravemente que não houve um que
não estivesse muito ferido e ambos ficaram feridos com muito grandes ferimentos; e Heitor caiu em terra, ele e o
cavalo, porque muito era de grande força o cavaleiro que o feriu. E quando o viu em terra, disse-lhe:
Cavaleiro, vós me feristes sem razão, e se não fosse vilania, eu me vingaria agora. Mas não o farei, porque o
quero deixar mais por cortesia do que por vós (MEGALE, 2008, p. 141).
375
Quando foram um pouco adiante, acharam um cavaleiro armado de todas as armas, que lhes pedia justa.
Em nome de Deus disse Galvão , tempo que não achei cavaleiro que me pedisse justa. Visto que este a
pede, não faltarei a ela.
Amigo disse Heitor , deixai-me ir.
Não o farei disse Galvão com licença; mas irei primeiro, e, se me ele derribar, irei vós, que sois melhor
cavaleiro do que eu.
Então pegou sua lança e embaraçou o escudo e foi contra o cavaleiro, e o cavaleiro contra ele, quanto o pôde o
cavalo levar, e feriram-se tão violentamente, que fizeram as lorigas desmalhar. E ficou Galvão ferido no peito
mortalmente, que a lança apareceu da outra parte e ambos caíram por terra e, ao cair, quebraram as lanças. E o
cavaleiro sentiu que estava ferido de morte e não se pôde erguer (MEGALE, 2008, pp. 154-155).
376
Então lhe deu logo a maior espadada que pôde por cima do elmo. E Calogrenante, quando foi que se
começava a peleja, foi correndo a seu escudo que deitara por terra, e pegou-o e meteu mão à espada, e ele era
bom cavaleiro e muito valente e defendia-se muito vivamente. E durou tanto a batalha, até que se ergueu Boorz e
estando muito ferido, que não cuidava pegar armas, se Deus não pusesse sobre ele a mão, quando viu que
Calogrenante combatia com seu irmão, teve grande pesar, porque, se Calogrenante matasse seu irmão, diante
dele, nunca mais seria alegre, tanto o amava entranhadamente; e se seu irmão matasse Calogrenante, a desonra
disso seria sua, porque bem sabia que por ele começara aquela batalha (MEGALE, 2008, pp. 182-183).
323
vos eu tanto errasse, que me quiséssedes mal mortal, eu vo-lo corrigiria ante, como
dom Galvam mandasse.
E o outro respondeu:
Nom vos aproveita; vós nom vos podedes de mim partir sem batalha. Ora vos
guardade de mim, se quiserdes.
Si farei, disse Persival, pois que vejo que a fazer me convém.
Depós êsto, sem mais tardar, leixou-se correr ao outro, e feriram-se tam rijo, que
foram ambos mal-treitos; mas Persival foi em terra e foi mal-britado daquela queda,
ca o cavalo caíu sôbre êle e o cavaleiro passou per cima dêle, que o nom catou
377
(ibidem, p. 353).
Ai! disse el-rei, êste engano nom vos mester; ou vós vos defenderedes contra
mim desto [de] que vos eu reto, ou eu || farei de vós como de cavaleiro aleivoso.
E se me eu de vós poder defender, disse Boorz, seremos seguros de vós e de
tôdolos outros?
Certas, disse el-rei, si, que jamais nom acharedes depois quem vos pesar faça.
Pois feita nos é [a batalha], disse Boorz per mim nom ficará
378
(MAGNE, 1955, p.
157).
De acordo com Ivan Lins, os duelos também foram proibidos pela Igreja:
Condenação igualmente formal e inapelável fizeram os Papas e Concílios, em nome
da civilização, de toda e qualquer espécie de duelo. [...] Infelizmente, porém, mais
estrondoso ainda foi, neste campo, o fracasso de suas interdições, evidenciando, de
modo insofismável, segundo adverte Augusto Comte, que, quando os hábitos e
preconceitos públicos contradizem as prescrições teológicas, são aqueles e não estas
que prevalecem, mesmo nas quadras de maior fôrça das crenças sobrenaturais.
Imposto pelos costumes militares, predominantes na Idade-Média, conduzia
frequentemente o duelo inúmeros cavaleiros, fervorosos cristãos, a arrostarem,
diretamente, as mais enérgicas condenações da Igreja (LINS, 1939, p. 259, passim).
O objetivo maior do cavaleiro, como foi outrora o do herói tico e o do guerreiro da
Antigüidade clássica, é guerrear; dse prepararem, os cavaleiros, a todo momento, para a
377
Em nome de Deus disse o cavaleiro , muito me agrada pois vos achei tão cedo, que de grande trabalho
estou quite, porque jamais deixaria de andar até que vos achasse. Agora, guardai-vos de mim, porque jamais
estarei alegre até que vos faça peleja.
Como? disse Persival. Para vos combaterdes comigo vínheis depós mim?
Sim disse o cavaleiro.
E que contenda há entre mim e vós disse Persival , por que a batalha se há de fazer? Porque eu não quereria
combater convosco nem com outrem, sem razão; e se eu procedesse tão errado convosco, que me quisésseis mal
mortal, eu vo-lo repararia antes como dom Galvão mandasse.
E o outro respondeu:
Não vos aproveita; não podeis de mim vos separar sem batalha. Agora, guardai-vos de mim, se quiserdes.
Sim, farei disse Persival , pois vejo que fazer me convém.
Depois disto, sem mais tardar, deixou-se correr um ao outro, e feriram-se tão violentamente, que ficaram ambos
muito feridos, mas Persival caiu por terra e ficou tão quebrado daquela queda, porque o cavalo caiu sobre ele e o
cavaleiro passou por cima dele, que o não viu (MEGALE, 2008, p. 246).
378
Ai! disse o rei , este engano não vos é necessário; eu vos defendereis de mim que vos desafio ou farei de
vós como de cavaleiro traidor.
E se eu de vós puder defender-me disse Boorz , estaremos seguros de vós e de todos os outros?
Certamente sim disse o rei que jamais achareis depois quem vos pesar faça.
Pois feita nos é a batalha disse Boorz , por mim não ficará (MEGALE, 2008, pp. 119-120).
324
guerra, por meio de justas, de batalhas e de torneios. Segundo Pastoureau, a guerra poderia
acontecer, basicamente, por três motivos: por mercenarismo; para fazer valer direitos
adquiridos; por desonra, por traição, por infidelidade, por vingança. Por se tratar de uma obra
literária, A Demanda do Santo Graal trouxe, como causa das guerras em que se envolveram
os cavaleiros da Távola Redonda, a mais “nobre” dentre as três pouco citadas: a vingança
de Rei Mars da Cornualha contra Rei Artur, pelo fato de este nunca -lo ajudado a possuir
Isolda; a vingança de Rei Artur e os de sua linhagem contra Lancelote e os parentes deste,
pelo fato de este tê-lo traído com a Rainha Genevra. O mercenarismo, principal motivo das
guerras mediévicas, foi omitido como causa dessas duas, apesar de ter aparecido, ao fim d‟A
Demanda, quando Rei Mars invadiu Logres. Como se viu no capítulo anterior, foi igualmente
omitida o que teria sido, na visão de alguns historiadores, a principal razão da guerra de Tróia:
a obtenção de riquezas advindas dos saques que seriam realizados nesta e noutras cidades.
Sobre as causas das guerras medievas, estas foram as palavras de Michel Pastoureau:
Combater é a razão de ser do cavaleiro. Sem dúvida, sagrado cavaleiro, ele é um
soldado de Deus, que deve temperar seu gosto pela guerra e submetê-lo às
exigências da fé. Mas esse gosto, essa paixão pelas atividades guerreiras, permanece.
De resto, toda uma literatura o alimenta. Uma literatura exaltante, que descreve
combates heróicos, em que cavaleiros magníficos, em armaduras brilhantes,
realizam feitos de guerra inumeráveis, antes de encontrar uma morte sublime ou de
conquistar a mais gloriosa das vitórias. Uma literatura militante, que fala de guerra
justa, de paz magnânima, que exalta a bravura generosa dos que combatem para
fazer valer os direitos de seu senhor, para defender os ministros e os bens da Igreja,
para levar assistência a todos os fracos, a todos os pobres que têm necessidade deles.
A realidade, porém, é outra. As proezas de Gawain as aventuras de Lancelot não
acontecem. Não armaduras invencíveis, nem elmos engastados de pedras
preciosas que fazem triunfar seus portadores. A guerra não é gloriosa, mas
mercenária. A paz não é nobre, mas humilhante e desonrosa. As grandes batalhas
são raras e pouco sangrentas; as mortes sublimes não existem. Aqui, mais uma vez,
há uma grande distância entre as cores brilhantes do sonho e o cinza banal da
existência cotidiana (PASTOUREAU, 1989, p. 101).
Na prática, porém, nem todo mundo pode tomar a iniciativa de declarar guerra, pois
esta supõe um certo poder, econômico e político. Assim, ela é conduzida
essencialmente pelos proprietários de feudos, e mais precisamente pelos
proprietários importantes, em nome de seus interesses próprios ou, mais raramente,
dos de um vassalo. Pondo de lado as Cruzadas, de que falaremos adiante, as guerras
entre nações não existem. Não há senão lutas entre um senhor e seu vassalo,
rivalidades entre dois feudos, vinganças entre duas linhagens (ibidem, p. 102).
325
Na metade do século XIII, o direito de fazer a guerra ainda pertence a todo mundo.
Consiste em um dos dois únicos meios de fazer valer seus direitos; o outro é o
recurso à justiça do senhor. [...] Esse aspecto jurídico da guerra não é evidentemente
o único. Pois, se ela é um meio legal de sancionar seus direitos, é também (talvez
deva-se acrescentar “e sobretudo”) um meio eficaz de aumentar a fortuna e o poder.
A guerra do século XII é sempre uma busca de despojos. Para os poderosos que a
conduzem, isso representa mais uma necessidade que uma avidez vulgar: os bens
saqueados servirão para pagar os mercenários, fortificar os castelos, recompensar os
vassalos que colaboraram para a vitória e, ao fazê-lo, assegurar uma vez mais sua
fidelidade para operações futuras. O que será tanto mais precioso, na medida em que
estas últimas serão provavelmente defensivas, a vitória de um desencadeando
sempre uma nova agressão por parte do outro. Para os cavaleiros que acompanharam
seu senhor, o saque é a justa indenização de sua presença, pois, como veremos, essa
ajuda militar imposta pelas instituições feudais custa não tempo como também
dinheiro, que cada cavaleiro tem de se equipar por conta própria. E entre todos,
aristocratas ou plebeus, vassalos ou mercenários, o espírito de lucro e rapina está
presente; constitui inclusive a principal motivação para lançar-se ao combate, cada
um sendo perfeitamente indiferente às lutas empreendidas em nome de interesses
que não sejam os seus. A guerra, portanto, consiste menos em vencer ou matar o
inimigo do que em capturá-lo, despojá-lo, saqueá-lo. Consiste menos em ações de
envergadura e batalhas decisivas do que em ataques repentinos, escaramuças,
vandalismo, pilhagens e incêndios (ibidem, p. 103).
Agora, passagens d‟A Demanda que giram em torno das causas das guerras nas quais se
envolveram os cavaleiros da Távola Redonda:
Em esta parte diz o conto e a verdadeira estória que rei Mars de Cornualha ouvira
bem dizer que Tristam, seu sobrinho, se fôra pera a Grã-Bretanha e levara consigo a
rainha Iseu e metera-a na Joiosa Guarda. Rei Mars amava Iseu de tam grande amor
que nom lhe podia esqueecer em nhũa guisa, ante era tam cuitado por ela, que nom
podia mais, e muitas vezes quisera mandar dizer al-rei Artur que lha enviasse, mas
nom se atrevia, que sabia que amava tam muito a Tristam que lha nom enviaria em
nhũa guisa, e ainda que o quisesse fazer, leixá-lo-ia por amor do linhagem del-rei
Bam, que amavam todos Tristam de coraçom. E em esta coita e pesar viveu el-rei
Mars doos anos sem Iseu, e desamava por ela tanto a rei Artur que se lhe podesse
nuzir em algũa guisa, faria-o mui de grado. [148, d] Quando a demanda do Santo
Graal foi começada, e os cavaleiros da Mesa Redonda a jurarom e se partirom de
casa de rei Artur, as novas foram per muitas terras preto e longe e forom i muitos,
assi os da terra como os estranhos, que diziam mais de mentiras que de verdades.
Onde aveo que disserom em Gaula e em Gaunes e em a pequena Bretanha e em
Cornualha, que tôdolos cavaleiros da Mesa Redonda eram mortos na demanda do
Santo Graal. Os de Gaula e de Gaunes e de Benoic houverom em tam grã pesar, que
bem quiseram seer mortos por amor de Lançarot e do linhagem de rei Bam. As
novas do doo que êles fezerom chegarom a rei Mars, e quando el viu que lho
afirmaram de verdade, disse:
Ora pode bem dizer rei Artur que seu poder é tornado a nient, pois os cavaleiros da
Mesa Redonda som mortos.
Entom se conselhou com Aldret, que poderia i fazer, que nom havia no mundo
homem que êle tam mortalmente desamava como rei Artur, e ir-lhe-ia de grado a
fazer mal a tal sazom, se o cuidasse acabar. E Aldret, que era cheo de nemiga, disse-
lhe:
Eu vos ensinaria como o podêssedes destroir em como ora el está. [149, a] Vós
sabedes bem que os Sansoões som grã gente e poderosa de terra e de amigos, e êles
desamam rei Artur tam mortalmente, que, se lhe podessem fazer dano e tolher-lhe o
reino, nunca tam gram plazer haveriam. Enviade-lhes dizer como rei Artur perdeu a
companha da Mesa Redonda e fazede-lhes entendente, se quiserem viir a tal estado
326
ao regno de Logres, que ligeiramente o podem conquerir. E sabede que êles verrám i
mui de grado, tanto que vosso mandado virem, e fazede-lhes saber que seredes i com
êles em sua ajuda com quanto poder houverdes poede-lhes dia e sabede que logo i
serám convosco. Bem assi como Aldret conselhou a el-rei Mars, o fêz ele, ca lhes
enviou aquelas novas o milhor e o mais aposto que el soube, ca os Sansoões, que
nom desamavam homem tanto no mundo como rei Artur, como ouvirom estas
novas, forom delo mui ledos e assũarom todo seu poder e meterom-se em naves e
em galees e passarom-se aa Grã-Bretanha e aportarom em Osinedot. E rei Mars, que
bastira tôda esta treiçam, partiu-se com tôda sua gente e [149, b] foi-se pera êles
aaquel logar mesmo u êles aportarom. E forom mui ledos uũs com os outros. Aquel
dia pousarom em ũa foresta que era perto do mar e jouverom i o mais ascondidos
que poderom por nom seerem descubertos. E quando chegou a noite, meterom-se ao
chaão e começarom andar contra a cidade de Camaalot, ca o lugar era mui boõ. E ali
cuidavam a achar rei Artur porque morava i mais que em outro lugar. E assi
andarom os Sansoões folgando o dia e andando de noite, ataa que chegarom dia
sábado aa Joiosa Guarda. E rei Mars, que bem sabia que a rainha Iseu era i, filhou de
seus cavaleiros e dos Sansoões taa quinhentos bem armados e disse-lhes:
E êles assi o fezerom como lhes el ensinou. E os do castelo, que se nom temiam de
nada grã tempo havia, nom se velavam, ante tinham as portas abertas noite e dia. Êm
esta guisa entrou el-rei Mars com todos seus cavaleiros
379
(MAGNE, 1944, vol. II,
pp. 127-129).
379
Nesta parte, diz o conto e a verdadeira estória que rei Mars de Cornualha bem ouvira dizer que Tristão, seu
sobrinho, fora para a Grã-Bretanha e levara consigo a rainha Isolda e metera-a na Joiosa Guarda. Rei Mars
amava Isolda com tão grande amor, que não podia esquecê-la de modo algum, antes era tão apaixonado por ela,
que mais não podia, e muitas vezes quisera mandar dizer a rei Artur que lha enviasse, mas não se atrevia, porque
sabia que ele amava tanto a Tristão, que lha não enviaria de nenhum modo, e ainda que o quisesse fazer, deixaria
de fazê-lo por amor da linhagem do rei Bam, da qual todos amavam Tristão de coração. E nesta dor e neste pesar
viveu rei Mars dois anos sem Isolda e desamava por ela tanto a rei Artur, que, se pudesse prejudicá-lo de algum
modo, de muito bom grado o faria.
Quando a demanda do Santo Graal começou, e os cavaleiros da mesa redonda a juraram, e partiram da casa de
rei Artur, as novas foram por muitas terras perto e longe e para foram muitos, tanto da terra como estranhos,
que diziam mais mentiras do que verdades. Daí aconteceu que disseram em Gaula e em Gaunes e na Pequena
Bretanha e em Cornualha, que todos os cavaleiros da mesa redonda estavam mortos na demanda do santo Graal.
Os de Gaula e os de Gaunes e de Benoic tiveram tão grande pesar, que bem quiseram estar mortos por amor de
Lancelote e da linhagem de rei Bam. As novas do pranto que fizeram chegaram a rei Mars, e quando ele viu que
o afirmavam de verdade, disse:
Ora bem pode dizer rei Artur que seu poder está reduzido a nada, pois os cavaleiros da mesa redonda estão
mortos.
Então se aconselhou com Aldrete a respeito do que poderia fazer, porque não havia no mundo quem ele tão
mortalmente desamava como rei Artur e iria de bom grado lhe fazer mal nesta oportunidade, se cuidasse acabar
com ele. E Aldrete, que era cheio de inimizade, disse-lhe:
Eu vos ensinaria como o poderíeis destruir da forma como agora ele está. Bem sabeis que os sansões são muita
gente e poderosa de terra e de amigos, e eles desamam rei Artur tão mortalmente que, se lhe pudessem fazer
dano e tomar-lhe o reino, nunca tão grande prazer teriam. Mandai-lhes dizer como rei Artur perdeu a companhia
da mesa redonda e fazei-os entender que, se quiserem vir em tal estado ao reino de Logres, facilmente o podem
conquistar. E sabei que virão de muito bom grado, assim que vosso recado receberem, e fazei-os sber que
estareis com eles em sua ajuda com quanta força tiverdes e combinai com eles o dia e sabei que estarão
convosco.
Do modo como Aldrete aconselhou a rei Mars, o fez ele, porque lhe mandou aquelas novas o melhor e o mais
apropriado que soube, porque os sansões, que não desamavam ninguém tanto no mundo como rei Artur, assim
que ouviram estas novas, ficaram muito felizes com elas e reuniram toda sua força e meteram-se em naves e em
galés e passaram à Grã-Bretanha e aportaram em Osinedote. E rei Mars, que tramara toda esta traição, pôs-se em
seu caminho com toda a sua gente e foi ao encontro deles naquele lugar mesmo onde aportaram. E ficaram muito
alegres uns com os outros. Aquele dia pousaram numa floresta que ficava perto do mar e ficaram o mais
escondidos que puderam, por não serem descobertos. E quando chegou a noite, meteram-se ao campo e
começaram a andar em direção à cidade de Camalote, porque o luar estava muito bom. E cuidavam achar rei
Artur, porque morava mais do que em outro lugar. E assim andaram os sansões folgando de dia e andando de
noite, até que chegaram num sábado à Joiosa Guarda. E rei Mars, que bem sabia que estava a rainha Isolda,
tomou entre seus cavaleiros e os sansões quinhentos bem armados e disse-lhes:
327
Entom lhe contou no que falavam e disse-lhi que era verdade. El-rei ouíra algũa
vez dizer que Lançarot amava a raa, mais nom no podia creer, tanto a amava
sobejamente: unde vezes i houve, que respondia assi aos que lho diziam:
Certas, se assi é que Lançarot ama Genevra, eu bem sei que nom é do seu grado,
mas fôrça de amor lho faz fazer, que sol fazer do mais cordo homem do mundo
sandeu e do mais leal cavaleiro desleal, e porende nom sei que vos diga, ca nom
cuidava em n ũa guisa que atam boõ cavaleiro como aquel soubesse assacar
traiçom.
Êsto disse el-rei de Lançarot, que nom podia creer que era verdade. Mas aquela hora
que os sobrinhos lhi foram enquisas, houve ende pesar que era sôbre tôdolos
pesares, ca êle amava a rainha tam desmisuradamente, que nom podia mais. Entom
começou a pensar e esteve assi grã peça que nom falou rem. E Morderet lhi disse:
Senhor, nós vo-lo encobrimos em-mentre podemos e ora dizemo-vo-lo sem nosso
grado. [187, d] Ora fazede i o que vos semelhar e que nom venha em mal a nossa
terra nem a nossos amigos.
Como quer, disse el, que me ende venha, eu me vingarei de guisa que sempre em
falaram, e se me bem queredes, rogo-vos que mo filhedes i.
E êles lho prometeram que o fariam assi, e el-rei lhes prometeu que faria i tal justiça,
que sempre el e as linhagem fossem honrados. Entom se saírom da câmara e foram-
se ao paaço, mas bem parecia el-rei que andava sanhudo
380
(ibidem, pp. 319-320).
Em outro dia, pola manhã, fêz Lançarot erguer a sina vermelha na torre, e os da
foresta viram-na logo e saírom, e Lançarot saíu aquela hora do castelo e começarom
a hoste mui de-rijo, de âmbalas partes. Em aquela batalha, perdeu rei Artur muito, e
muito mais que os outros, ca os da linhagem de rei Bam eram de tam grande
bondade de armas, que el-rei nem seus homens nom lhis pudiam durar que nom
perdessem i muito, cada vez que se juntavam, e êsto era muito amiúde. E a-cima
perdera i el-rei todo, se o arcibispo de Contúrbel nom fôsse, que era parente da raa,
e escomungou todo o reino de Logres, porque el-rei nom queria tornar a sa molher;
mas quando el-rei viu que a santa igreja o constrangia assi, filhou-a. E foi mui mais
ledo ca fazia sembrante; ca el amava a raa sôbre tôdalas cousas do mundo. E sabede
verdadeiramente que Lançarot nom lha dera, se nom fôsse que entendiriam as gentes
que era verdade o que diziam. E desto se escusava el muitas vezes a muitos homens
boõs
381
(ibidem, pp. 345-346).
Vamos àquele castelo o mais cuidadosamente que pudermos.
E fizeram como ele mandou. E os do castelo, que nada receavam, muito tempo havia, não velavam, antes
mantinham as portas abertas noite e dia. Deste modo, entrou rei Mars com todos os seus cavaleiros (MEGALE,
2008, pp. 420-422).
380
Então lhe contou o que falavam e disse que era verdade. O rei ouvira alguma vez dizer que Lancelote
amava a rainha, mas não o podia crer, tanto o amava sobejamente, pelo que vezes houve que respondeu deste
modo aos que lhe diziam:
Por certo, se é que Lancelote ama Genevra, bem sei que não é por sua vontade, mas a força do amor o força,
que costuma fazer da pessoa mais sensata do mundo sandeu e do mais leal cavaleiro desleal, e por isso não sei
que vos diga, porque não cuidava maneira alguma que tão bom cavaleiro como ele soubesse cometer traição.
Isto disse o rei de Lancelote, que não podia crer que fosse verdade. Mas aquela hora que os sobrinhos lhe foram
testemunhas teve disso pesar superior a todos os pesares, porque ele amava a rainha tão desmedidamente, que
mais não podia. Então começou a pensar e ficou muito tempo sem falar. E Morderete lhe disse:
Senhor, nós vo-lo encobrimos o quanto pudemos, e ora vo-lo dizemos contra nossa vontade. Ora fazei o que
vos parecer e que não venha mal a nossa terra e a nossos amigos.
Como quer disse ele que disso sobrevenha, eu me vingarei de modo que sempre a respeito falarão, e, se me
quereis bem, rogo-vos que me apoieis nisso.
E eles prometeram que o fariam, e o rei lhes prometeu que faria tal justiça que sempre ele e sua linhagem
ficassem honrados. Então saíram da câmara e foram ao paço, mas bem demonstrava o rei que andava sanhudo
(MEGALE, 2008, p. 586).
381
No outro dia, pela manhã, mandou Lancelote erguer a senha vermelha na torre, e os da floresta a viram logo e
saíram e Lancelote saiu àquela hora do castelo, e começaram a batalha muito violenta de ambas as partes.
Naquela batalha, perdeu o rei Artur muito, e muito mais que os outros, porque os da linhagem de rei Bam eram
de tão grande bondade de armas, que o rei e seus homens não lhes podiam resistir sem perder muito cada vez que
328
Assi que as novas da morte de Lançarot forom sabudas per da a Grã-Bretanha e
per Gaula e per Gaunes e per Benoic e pola pequena Bretanha e per Escócia e per
Irlanda e per Cornualha, rei Mars era ainda vivo e era tam velho que, aaquele tempo,
nom havia rei no mundo de tam grã idade, e cavalgava ainda esforçadamente e tia
tam bem sa terra, que nom dultava vizinho que houvesse; mas de tanto era seu
linhagem abaixado, que Tristam seu sobrinho era morto. Mas nom havia ende el grã
pesar. Mais da morte da raa Iseu andava êle mui triste, tam sobejamente a amava
muito. Mas da morte de seu sobrinho nom era em triste, mas mui ledo. Quando el
ouviu falar da morte de Lançarot, foi em mui ledo e disse entom:
Hoije-mais nom vejo eu quem me possa defender que eu nom haja o reino de
Logres, pois os da linhagem de rei Bam som mortos. E ainda que fossem vivos, a
morte dêste soo mo daria. Mas vivendo êste, nom há homem no mundo que o acabar
podesse.
Entom assũou quanta gente pôde haver e passou o mar e foi aa Grã-Bretanha. E
[199, b] pois saírom das naves e sacarom o que haviam de sacar, disse rei Mars:
Ora soom na terra em que recebi mais desonra e dano que em lugar u nunca fôsse.
Ora quero que nunca me tenham por rei, se me nom vingo.
Entom mandou fazer aos seus ũa crueza que nunca rei cristaão fêz: que nunca
achassem homem nem molher, que os nom matassem.
Nem eu nom quero, disse el, que de quanto rei Artur fêz, que rem ficasse, mas que
todo seja destruído; e quantas egrejas e quantos mosteiros êle fêz, sejam destruídos,
tantos nom destroiredes, que os eu nom faça mais ricos e milhores. E eu faço
êste destroimento, porque eu nom quero que depois da mia morte paresça em êste
reino rem que fezesse rei Artur.
Êsto mandou rei Mars fazer: unde avo que o reino de Logres foi perto de
destruído
382
(ibidem, pp. 383-384).
se enfrentavam, e isto era muito amiúde. E no fim, perdera o rei tudo, se não fosse o arcebispo de Cantuária, que
era parente da rainha, e excomungou todo o reino de Logres, porque o rei não queria voltar a sua mulher, mas
quando o rei viu que a santa Igreja o constrangia deste modo, pegou-a. E ficou muito mais alegre do que parecia,
porque ele amava a rainha sobre todas as coisas do mundo. E sabei verdadeiramente que Lancelote não a
entregara, se não fosse que as pessoas percebessem que era verdade o que diziam. E ele se desculpava a respeito
para muitos homens bons (MEGALE, 2008, p. 610).
382
Assim que as novas da morte de Lancelote foram sabidas por toda a Grã-Bretanha e por Gaula e por Gaunes e
por Benoic e pela Pequena Bretanha e por Escócia e por Irlanda e por Cornualha, rei Mars estava ainda vivo e
era tão velho que, àquele tempo, não havia rei no mundo de tão avançada idade, e cavalgava ainda
animadamente e mantinha bem sua terra, que não temia vizinho que tivesse; mas tanto estava sua linhagem
rebaixada que Tristão, seu sobrinho, estava morto. Mas não tinha ele disso grande pesar. Mas da morte da rainha
Isolda andava ele muito triste, tão sobejamente a amava muito. Mas da morte de seu sobrinho não estava triste,
mas muito alegre. Quando ouviu falar da morte de Lancelote, ficou muito alegre e disse então:
De hoje em diante, não vejo quem me possa impedir de ter o reino de Logres, pois os da linhagem de rei Bam
estão mortos. E ainda que estivessem vivos, a morte deste me bastaria. Mas vivendo este, não quem no
mundo o pudesse acabar.
Então reuniu quanta gente pôde ter e passou o mar e foi à Grã-Bretanha. E depois que saíram das naves e tiraram
o que tinham de tirar, disse rei Mars:
Agora estou na terra em que recebi mais desonra e dano que em qualquer lugar aonde tenha estado. Agora
quero que alguma vez me tenham por rei, se não me vingo.
Então ordenou aos seus uma crueldade que nunca rei cristão fez: que não deixassem de matar homem e mulher
que achassem.
Tampouco quero disse ele que quanto rei Artur tenha feito fique, mas que tudo seja destruído, e quantas
igrejas e quantos mosteiros ele fez sejam destruídos, porque tantos não destruireis que eu não faça mais e
melhores. E faço esta destruição, porque não quero que depois de minha morte apareça neste reino nada que rei
Artur tenha feito.
Isto mandou rei Mars fazer. Por isso aconteceu que o reino de Logres chegou perto de ser destruído (MEGALE,
2008, pp 642-643).
329
Como se pôde ver, as duas guerras ocorreram, de certa forma, por causa de mulheres.
Esse também foi o motivo literário, como mostrou o capítulo passado, da guerra de Tróia.
Aliás, o historiador Ivan Lins chegou mesmo a afirmar que a Mulher era, nos tempos
medievos, aquilo que movia o cavaleiro para os campos de batalha, em busca de honra, de
glória:
O coroamento da cavalaria era, porém repito a Mulher, que devia constituir
objeto de caloroso culto, empenhando-se cada qual em celebrar, através de heróicas
e arrojadas façanhas, a eleita de seu coração, à qual “referia todos os seus
sentimentos, pensamentos e atos” (LINS, 1939, p. 171).
Era a Mulher que movia os mais puros e nobres corações, nêsses lendários tempos
mediévicos, a buscar o renome, o poderio e a opulência nos sangrentos campos de
batalha (ibidem, p. 173).
Em se tratando do mundo real e de novelas de cavalaria como o Amadis de Gaula, é
possível ter por verdadeira essa afirmação de Lins. No entanto, ela não se encaixa ao enredo
d‟A Demanda do Santo Graal: nesta, o cavaleiro almejava, como galardão, ser contemplado
com um milagre divino, desvendar os mistérios do Santo Graal e/ou, principalmente, ser
arrebatado para os Céus, após a morte. Esses desejos do cavaleiro medieval que se encontrava
a serviço de Cristo em muito se assemelham àqueles dos heróis míticos greco-romanos,
conforme se viu no capìtulo anterior. Agora, trechos d‟A Demanda que mostram as dádivas
que poderiam ser concedidas por Deus aos cavaleiros que se colocavam a seu serviço:
Tanto que foi noite, dormecerom ambos, ca muito eram cansados. Elaim nom
dormia, com coita da sua chaga, ca muito era mal-chagado. E quando foi o primeiro
sono, aveeo que tôda a capela começou de tremer tam feramente, como se se
houvesse de ir em avisso. E entam aveo uũ gram sôo, como se fôsse de torvam, assi
que Elaim, que nom dormia, ficou ende esmorido; e depós êsto, a-cabo de uũ pouco,
entrou lume tam grande na oussia como se cem candeas acesas i stevessem; e
com o lume veerom muitas vozes, que tôdas diziam: <<Ledice e honra e louvor seja
ao Rei dos ceeus>>. Mas em sua viinda, foi a capela tam comprida de bodor,
como se tôdalas espécias do mundo i stevessem. E depois que as vozes cantarom
gram peça tam saborosamente, que Elaim era ende maravilhado, entam parecerom
quatro homes em semelhança de ângeos tam fremosos, que Elaim foi [todo]
maravilhado da sua beldade, e vierom aa campaa, | e filharom-na aos IV cantos e
ergerom-na em alto bem ũa lança e alá a teverom. Depois que êsto fezerom, deceu
sôbrelo altar homem em semelhança de bispo, e siia em sua cadeira mui rica, e
depois [que] deceu sôbrelo altar, disse, em guisa que Elaim o pôde bem entender:
330
Vem adiante, santa molher, e [há-]verás teu pam de cada dia.
E êle tiinha, sem falha, antre ambas as maãos ũa hóstia. Depois que êsto disse, saìu
do muimento, onde ergeram a campaa, ũa molher tôda nua mui velha, e nom [a]
cobria rem, senam seus cabelos que lhe [deciam] ataa [a] terra, [e] tam brancos
como ũa neve; e foi ficar os geolhos ante aquêle que stava sôbre o altar e disse em
guisa que Elaim o pôde mui bem entender:
Senhor, dá-me o em que vivo, se te aprouver.
E êle se abaixou logo e dei-lhe a hóstia, que tinha, e disse-lhe:
Vês aqui o teu Salvador.
E pois o houve recebido, beijou o pee aaquel que siia na cadeira, e, dês i, foi-se
meter em seu muimento, e a campaa foi logo posta sôbre êle assi, que semelhava
que nunca fôra tirada. E entam quedarom as vozes de cantar; e aquel que siia na
cadeira, que veera com gram claridade, foi-se com ela, e ficou a capela escura como
ante.
Pois êste aveo em tal guisa, || como vos eu conto, Elaim, que todo vira, foi logo
guarido e saão de tôdas suas chagas e de tôdas suas feridas. Entam entendeu que
aquelas cousas eram sperituaes e santas, e guardeceu muito a Deus o bem que lhe
fezera, e que lhe sofrera daquelo veer, e que houve tal mercê que o guareceu per tal
virtude. Entam espertou os outros, e êles lhe disserom:
Amigo, que havedes?
Eu hei tam grande ledice e tam grã prazer, camanho nunca cuidei haver em dias da
minha vida.
Beento seja Deus, disse Estor, ca bem como a vós [a]veo fremoso milagre, assi
aveo a mim. Sabede que eu soom saão da chaga que me fêz o cavaleiro caçador.
Bem sei verdadeiramente que alguũ corpo jaz aqui per que êstes milagres [a]veem.
Verdade é, disse Elaim, se vissedes o que eu ende vi, vós o creeríades pola maior
maravilha do mundo.
Ai, Deus! disse Galvam: como fremosas maravilhas aqui há! Verdadeiramente
sam demostradas de Nosso Senhor e sam altas maravilhas do Santo Graal, e sam as
grandes puridades da Santa Egreja. Certas, disse Galvam a Estor, per êsto que Deus
mostrou a Elaim devemos nós a entender que jazemos em pecado mortal e que nom
nos ama Deus como êle e que mais deve seer cavaleiro do Santo Graal que nós
383
(MAGNE, 1955, pp. 199-201).
383
Assim que foi noite, adormeceram ambos, porque estavam muito cansados. Elaim não dormia com dor de seu
ferimento, porque estava muito ferido. E quando foi o primeiro sono, aconteceu que toda a capela começou a
tremer tão fortemente, como se houvesse de ir para o abismo. E então aconteceu um grande ruído, como se fosse
um trovão, tanto que Elaim, que não dormia, ficou por isso desmaiado; e depois disso, daí a pouco, entrou uma
luz tão forte na abside, como se fossem cem velas acesas que estivessem; e com a luz, vieram muitas vozes,
que todas diziam: “Alegria e honra e louvor sejam ao Rei dos us”. E em sua chegada, ficou a capela tão cheia
de bom odor, como se todas as especiarias do mundo lá estivessem. E depois que as vozes cantaram muito tempo
tão agradavelmente, que Elaim estava maravilhado com isso, então apareceram quatro homens em semelhança
de anjos tão formosos, que Elaim ficou todo maravilhado com sua beleza, e vieram à lápide, e tomaram-na pelos
quatro cantos e ergueram-na à altura de uma lança e aí a seguraram. Depois que isto fizeram, desceu sobre o altar
um homem em semelhança de bispo, e sentava-se numa cadeira muito rica, e depois que desceu para o altar,
disse de modo que Elaim pôde ouvi-lo bem:
Vem à frente, santa mulher, e terás teu pão de cada dia.
E ele tinha, sem falha, entre as mãos uma hóstia. Depois que isto disse, saiu do túmulo do qual haviam erguido a
lápide uma mulher toda nua muito velha, e nada a cobria, senão seus cabelos tão longos que lhe desciam até a
terra, tão brancos como a neve. E foi ficar de joelhos diante daquele que estava no altar, e disse de modo que
Elaim o pôde muito bem ouvir:
Senhor, dá-me aquilo de que vivo, se te aprouver.
E ele se abaixou logo e deu-lhe a hóstia, que tinha, e disse-lhe:
Vês aqui o teu Salvador.
E depois que o recebeu, beijou o pé daquele que estava na cadeira, e depois foi-se colocar no seu túmulo e a
lápide foi logo posta sobre ele assim que parecia que nunca fora tirada. E então pararam as vozes de cantar; e
aquele que estava na cadeira, que viera com grande claridade, foi-se com ela, e ficou a capela escura como antes.
Depois que isto aconteceu de tal modo como vos conto, Elaim, que tudo vira, ficou logo curado e são de todas as
suas chagas. Então entendeu que aquelas coisas eram espirituais e santas e agradeceu muito a Deus o bem que
331
Amigo Persival, da demanda do Santo Graal vos digo bem que vós haveredes
muito prazer e muito boõa aventura e muito trabalho e muita lazeira, e que
chegaredes a[a] casa do Rei Pescador, por haverdes o santo manjar do Santo Graal, e
vós seredes i XII companheiros dos boõs a Deus e ao mundo, e ali haveredes tam
grã lidice e tam gram prazer, que nunca maior houvestes; e pois vos partirdes dali,
sabede que vos convinrá, pois, sofre[r]des muito trabalho e muita lazeira em fazendo
companha ao Santo Vaso. Entam vos guiará Nosso Senhor, vós e Galaaz e Boorz de
Gaunes, a ũa terra mui stranha e mui longe do regno de Logres, e em aquela terra
morreredes vós e Galaaz em serviço de Nosso Senhor.
Todo seja, disse Persival, [a]a vontade daquele que me fêz, ca nom dou muito | por
morrer u quer [que moira], tanto que morresse em boõas obras e que minha alma
fôsse salva
384
(ibidem, p. 273).
E el em êsto pensando, oìu ũa voz que lhe disse:
Persival, tu venciste; entra em esta nave e vai-te u te ela levar, e nom te espantes
de rem que vejas, e Deus te guiará u quer que vaas, e de tanto ti averrá bem, que
acharás todos os companheiros do mundo que mais amas, Boorz e Galaaz.
Quando el êsto oíu, houve tam gram ledice, que nom poderia maior, e gradeceu
muito a Nosso Senhor, e filhou suas armas e entrou na nave, e leixou o cavalo na
riba, e o vento deu na vea assi, que o fêz tam toste partir da riba, que, em pouca [de
hora], perdeu a vista da terra
385
(ibidem, p. 375).
Quando Boorz se partiu da abadia, ũa voz lhe disse que fôsse ao mar, ca Persival o
atendia i. El se partiu ende, assi como o conto o há já devisado. E quando chegou aa
riba do mar, a fremosa nave coberta de uũ eixâmete branco [aportou, e Boorz] deceu
|| e encomendou-se a Nostro Senhor, e entrou dentro e leixou seu cavalo fora. E
tanto que entrou dentro, viu que a nave se partiu tam toste da riba, como se voasse. E
catou pela nave e nom viu rem, que a noite era muito escura; e acostou-se ao boordo
e rogou a Nostro Senhor que o guiasse a tal lugar u sua alma podesse salvar. E, pois
fêz as oraçom, deitou-se a dormir. E manhaã, quando se espertou, viu na nave
lhe fizera e lhe permitira aquilo ver, e teve tal misericórdia que o curou por tal virtude. Então despertou os outros
e eles lhe disseram:
Amigo, o que tendes?
Eu tenho tão grande alegria e tão grande prazer, como nunca imaginei ter nos dias de minha vida.
Bendito seja Deus disse Heitor , porque assim como para nós aconteceu formoso milagre, também a mim
aconteceu. Sabei que estou são do ferimento que me fez o cavaleiro caçador. Bem sei verdadeiramente que
algum corpo jaz aqui pelo qual estes milagres acontecem.
Verdade é disse Elaim , se vísseis o que vi, vós o tomaríeis pela maior maravilha do mundo.
Ai, Deus disse Galvão , como formosas maravilhas aqui há! Verdadeiramente o revelações de Nosso
Senhor e são altas maravilhas do santo Graal, e são os grandes segredos da santa Igreja. Certamente disse
Galvão a Heitor por isto que Deus mostrou a Elaim, devemos entender que estamos em pecado mortal e que
não nos ama Deus como a ele e que mais deve ser cavaleiro do santo Graal do que nós (MEGALE, 2008, pp.
146-148).
384
Amigo Persival, da demanda do santo Graal vos digo bem que tereis muito prazer e muita boa aventura e
muito esforço e muita aflição e chegareis à casa do rei Pescador para terdes o santo manjar do santo Graal, e
sereis doze companheiros dos bons a Deus e ao mundo, e tereis tão grande alegria e tão grande prazer que
nunca maior tivestes; e, depois que partirdes de lá, sabei o que vos acontecerá, pois sofrereis muito trabalho e
muita lazeira fazendo companhia ao santo Vaso. Então vos guiará Nosso Senhor a s e a Galaaz e a Boorz de
Gaunes a uma terra muito estranha e muito longe do reino de Logres e naquela terra morrereis vós e Galaaz em
serviço de Nosso Senhor.
Tudo seja disse Persival conforme a vontade daquele que me fez, porque não dou muito por morrer do que
quer que morra, contanto que morresse em boas obras e que minha alma fosse salva (MEGALE, 2008, p. 194).
385
E ele nisto pensando, ouviu uma voz que lhe disse: “Persival, venceste; entra nesta nave e vai-te aonde ela te
levar e não te espantes de nada que vejas, e Deus te guiará aonde quer que vás e tanto te acontecerá bem que
acharás todos os companheiros do mundo que mais amas, Boorz e Galaaz”.
Quando ouviu isto, teve tão grande alegria que maior não poderia, e agradeceu muito a Nosso Senhor, e tomou
suas armas e entrou na nave e deixou o cavalo na margem, e o vento deu na vela de modo que o fez tão depressa
partir da praia que, em pouco tempo, perdeu a vista da terra (MEGALE, 2008, pp. 259-260).
332
cavaleiro armado de loriga e de brafoneiras. E, pois o catou, conhocê-o e tolheu logo
seu elmo e foi-o logo abraçar e fazer com êle maravilhosa ledice. E Persival foi
maravilhado, quando o viu vir contra si, ca nom podia entender quando entrara na
nave. E pero, quando o conheceu, foi tam ledo, que nom poderia chus. E ergeu-se e
abraçou-o e recebê-o como devia. E começou o uum ao outro a contar de sas
aventuras, que lhe aveerom dês que entraram na demanda. Assi se acharom os
amigos na barca que Deus [lhes] guisara, e entendiam i quaes aventuras lhes el
quisesse enviar. E Persival disse que lhe nom falecia de sa promessa, fora Galaaz
386
(ibidem, pp. 375-377).
|| Aquela visam que a Lançarot aveo entam foi tal. Semelhava-lhe que chegava a
rio o mais feo e o mais espantoso que nunca vira, e que nom poderia homem entrar
em êle que nom fôsse morto. E êle catava o rio e nom ousava i entrar, ca o via cheo
de coobras e de vermes, que nom homem que i quisesse bever, que logo nom
fôsse morto, assi era [a] água empeçonhenta dêles. E êle stava catando o rio, e
sinava-se da maravilha que via. Em êsto stando, via sair uũ homem que trazia ũa rica
coroa de ouro em sua cabeça, e êle andava cercado todo de strelas. Depois via ende
sair outro outrossi coroado, que a[a] maravilha semelhava homem boõ e boõ
cavaleiro. E depois via sair o terceiro, e depois o quarto, e depois o quinto, e depois
o sexto e depois o séptimo; e todos eram coroados de coroa de ouro, que tiinha el
pola maior maravilha que nunca êle vira. Depois via ende sair outro magro e cativo,
pobre e lasso, e que nom havia nem ponto de coroa, e tam mal vestido e tam mal
guarnido, que se os outros que ante saírom do rio semelhavam ricos, êste semelhava
pobre e mal-aventurado e desejoso de todo bem. E pero assi pobre como era, ia
contra onde os outros stavam, por entrar | em sua companha. Mas os outros nom no
queriam receber em sua companha, ante o alongavam de si. Depós êstes sete, que
saìrom, viu Lançarot sair uũ, mas aquêle era mui fremoso e valia mais, per semelhar,
ca todos os outros. E porque se aquêle alongava pouco do rio, via Lançarot vir
de contra o céu ũ acompanha de anjos que traziam ũa coroa de ouro mui fremosa e
mui rica, e metiam-lha na cabeça, e faziam em-derredor dêle ũa tam gram ledice e
tam gram festa como se fôsse dos mais altos mártires do céu. E pois haviam
cantado ũa gram peça e dado louvor ao Creador do mundo, entam se iam tôdolos
coroados contra o ceeu. Mas com nhuũ faziam tam gram festa nem lidice como com
aquêle que saíra postumeiro. Assi foram todos os coroados levados contra o ceeu.
Mas o mal guarnido ficava. E quando se via soo, dava vozes.
Ai, Senhores do nosso linhagem, leixades-me soo e pobre e tam cativo? Por Deus,
quando fordes aa casa da lidice, nembrade-vos de mim e rogade ao alto meestre por
mim, que lhe nom esqueça eu.
E êles responderom todos a ũa voz:
Tu te fazes esquecer e tu hás feito per que esquecerás; tu nom merecerás
gualardom, || senam segundo teu trabalho.
Entam se chamava [a]stroso e cativo e fazia seu doo grande; dês i, sumia-se, que
nom sabia Lançarot dêle parte nhũa nhũa
387
(ibidem, pp. 289-291).
386
Quando Boorz partiu da abadia, uma voz lhe disse que fosse ao mar, porque Persival o esperava lá. Ele partiu
como o conto o tem relatado. E quando chegou à beira-mar, a formosa nave coberta de um veludo branco
aportou e Boorz desceu e encomendou-se a Nosso Senhor, e entrou e deixou seu cavalo fora. E assim que entrou,
viu que a nave partiu tão depressa da praia, como se voasse. E olhou pela nave e nada viu, que a noite estava
muito escura; e encostou-se a bordo e rogou a Nosso Senhor que o guiasse a tal lugar onde sua alma pudesse
salvar. E depois que fez sua oração, deitou-se a dormir. E de manhã, quando se despertou, viu na nave um
cavaleiro armado de loriga e brafoneiras. E, depois que o olhou, reconheceu-o e tirou logo seu elmo e foi logo
abraçá-lo e fazer com ele maravilhosa alegria. E Persival ficou maravilhado, quando o viu vir em sua direção,
porque não podia entender quando entrara na nave. E, por isso, quando o reconheceu, ficou tão alegre que não
poderia mais. E ergueu-se e abraçou-o e recebeu-o como devia. E começou um ao outro a contar suas aventuras,
que lhes aconteceram desde que entraram na demanda. Assim se encontraram os amigos na barca que Deus lhes
preparara e esperavam as aventuras que lhes quisesse enviar. E Persival disse que lhe não faltava sua promessa,
exceto Galaaz (MEGALE, 2008, pp. 260-261).
387
Aquela visão que a Lancelote aconteceu então foi esta. Parecia-lhe que chegava a um rio o mais feio e o mais
espantoso que nunca vira e que não poderia alguém entrar nele que não fosse morto. E ele olhava o rio e não
ousava nele entrar, porque o via cheio de cobras e de vermes que não há quem quisesse beber, que logo não fosse
333
Quando veo, em cima do ano, tal dia como êle tomara a coroa, ergueu-se de grã
manhaã e os outros outrossi. E quando entrarom no paaço espirital, catarom ante o
Santo Vaso e virom homem revestido como clérigo de missa, que estava em
geolhos ante a távoa e dava da mão em seu peito dizendo sa culpa; e estava arredor
del mui grã companha de ângeos; e pois esteve grã peça em geolhos, ergueu-se e
começou as missa da gloriosa Senhora. E quando foi depó‟la sagrada, que o homem
boõ tolheu a patena de sôbelo Santo Vaso, chamou Galaaz e disse-lhi:
Vem adiante, sergente de Jesu Cristo, e veerás o que tanto desejaste sempre a veer.
E êle se chegou logo e catou o Santo Vaso e pois houve catado uũ pouco, começou a
tremer mui feramente, tam toste que a mortal carne começou a veer as cousas
espirituaes, e tendeu sas mãos logo contra o ceeu e disse:
Senhor, a ti dou eu graças e a ti oro e a ti bego, porque me fezeste tam grã
mercee, que eu vejo abertamente o que língua mortal nom poderia dizer nem
coraçom pensar. Aqui vejo eu o comêço dos grandes ardimentos. Aqui vejo eu a
raçom das grandes maravilhas. E pois assi é, Senhor, que vós a mim compristes ma
vontade de me leixardes veer o que eu sempre tanto desejei, ora vos rogo que em
esta hora e em esta grã ledice em que som vos Plaza que eu passe desta terreal vida e
vaa aa celestial.
E tam toste como el rogou a Nosso Senhor, o homem boõ que cantava a missa prês o
Corpus Domini e comungou-o. E Galaaz o rece [186, c] beu com grande humildade,
e o homem boõ preguntou:
Sabedes quem soõ?
Nom, disse el, se mo vós nom disserdes.
Pois sabe, disse el, que eu soõ Josefes, o filho de Josef Abaramatia, que Nosso
Senhor te enviou por te fazer companha. E sabes por que me enviou ante que
outrem? Porque semelhas tu a mim em duas cousas: porque viste as maravilhas do
Santo Graal assi como eu, e porque é direito que virgem faça companha a outro
virgem.
Pois êsto Josefes disse a Galaaz, tornou a Persival e beijou-o, e pois Galaaz er disse
a Boorz:
Saudade-mim muito a dom Lançarot, meu padre e meu senhor, tam toste que o
virdes.
Entom se tornou ante a távoa e ficou seus geolhos e nom esteve i se pouco nom.
Quando caeu em terra, a alma se lhi saiu do corpo e levarom-no os ângeos fazendo
grã ledice e bezendo Nosso Senhor (MAGNE, 1944, vol. II, pp. 312-313).
morto, tanto estava a água envenenada deles. E ele estava olhando o rio e persignava-se da maravilha que via.
Nisto, via sair um homem que trazia mui rica coroa de ouro em sua cabeça, e andava todo cercado de estrelas.
Depois via daí sair outro também coroado que, à maravilha, parecia homem bom e bom cavaleiro. E depois via
sair o terceiro; e depois, o quarto; e depois, o quinto; e depois, o sexto; e depois, o sétimo; e todos estavam
coroados de coroa de ouro, que tinha pela maior maravilha que nunca vira. Depois vira sair daí outro magro e
infeliz, pobre e cansado, e que não tinha coroa, e tão mal-vestido e tão mal trajado, que se os outros que antes
saíram do rio pareciam ricos, este parecia pobre e mal-aventurado e desejoso de todo bem. No entanto, assim
pobre como era, ia em direção aonde os outros estavam para entrar em sua companhia. Mas os outros não o
queriam receber em sua companhia, antes o afastavam de si. Depois destes sete que já saíram, viu Lancelote sair
um, mas aquele era muito mais formoso e valia mais, na aparência, do que os outros. E porque aquele se afastava
um pouco do rio, via Lancelote vir do céu uma companhia de anjos que trazia uma coroa de ouro muito formosa
e muito rica e punham-lhe na cabeça e faziam em volta dele uma tão grande alegria e tão grande festa, como se
fosse um dos mais altos mártires do céu. E depois que haviam cantado muito tempo e dado louvor ao Criador do
mundo, então se iam todos coroados para o céu. Mas com nenhum faziam tão grande festa e alegria como com
aquele que saíra por último. Assim foram todos os coroados levados para o u. Mas o malvestido ficava. E
quando se via só gritava:
Ai, senhores da nossa linhagem! Deixais-me e pobre e tão infeliz? Por Deus, quando chegardes à casa da
alegria, lembrai-vos de mim, e rogai ao alto Mestre por mim, que não me esqueça.
E eles responderam todos a uma voz:
Tu te fazes esquecer e tu fizeste para seres esquecido; não merecerás galardão, senão segundo teus feitos.
Então se chamava desgraçado e infeliz e fazia seu lamento grande, que não sabia Lancelote dele nada nada
(MEGALE, 2008, pp. 203-204).
334
Quando Giflet chegou ao outeiro, esteve ũa árvor, atá que se fôsse a chuva e
começou a chorar e catar aaquela parte u el-rei leixara. E nom esteve i muito, que
viu viῖr per meo do mar ũa barqueta em que viam muitas donas. A barca aportou
ante rei Artur e as donas saírom fora e foram a el-rei. E andava ante elas Morgaim a
encantador, irmaã de rei Artur, que foi a el-rei com tôdas aquelas donas que tragia, e
rogou-o entom muito, que per seu rôgo houve el-rei de entrar na barca. E pois foi
dentro, fêz meter i seu cavalo e tôdas sas armas; dês i, começou a barca de ir polo
mar com el e com as donas, em tal hora, que nom houve i pois cavaleiro nem outrem
no reino de Logres que dissesse pois certamente que o pois vissem.
Quando Giflet, que estava no outeiro, viu que el-rei entrara na barca com as donas,
deceu-se ende e foi-se contra alá quanto o cavalo o pôde levar, ca esmou, se
chegasse com tempo, que se meteria i com seu senhor na barca e que se nom partiria
del per rem que aveesse, se per morte nom.
E quando chegou ao mar, a barca era já alongada da riba e viu el-rei antre as donas e
conhoceu bem Morgaim a fada, ca muitas vezes a vira. E a barca estava da riba tanto
como deitadura de besta. E, quando Giflet viu que assi perdera el-rei, começou aa
fazer o moor doo do mundo e ficou ali todo aquêle dia e tôda aquela noite, que nom
comeu nem beveu, nem já o dia Dante nom comera
388
(ibidem, p. 366).
Coincidência ou não, as mortes de Galaaz e Artur assemelham-se ao fim dado aos
heróis míticos greco-latinos pelos deuses, como se viu no capítulo passado: ou a apoteose ou a
ida para a Ilha dos Abençoados, também conhecida por Campos Afortunados ou por Campos
Elíseos.
A (re)construção do imaginário do (ou “criado em torno do”) cavaleiro mediévico,
neste subcapítulo, a partir da Literatura e da História, permite que sejam realizadas, em torno
dessa figura, algumas considerações. A primeira delas é a de que a Literatura pelo menos a
partir das obras que foram utilizadas nesta pesquisa para a construção do imaginário do
cavaleiro da Baixa Idade Média: a versão portuguesa d‟A Demanda do Santo Graal e o
Amadis de Gaula , apesar do seu caráter ficcional e da subjetividade da interpretação à qual
388
Quando Gilfrete chegou ao outeiro, parou embaixo de uma árvore até que passasse a chuva, e começou a
chorar e olhar aquele lugar onde deixara o rei. E não ficou muito tempo, que viu vir pelo meio do mar uma
barqueta em que vinham muitas mulheres. A barca aportou diante do rei Artur e as mulheres saíram e dirigiram-
se ao rei. E andava entre elas Morgana, a fada, irmã de rei Artur, que se dirigiu ao rei com todas aquelas
mulheres que trazia, e rogou-lhe então muito que, por seu rogo, teve o rei que entrar na sua barca. E depois que
estava dentro, fez meter lá seu cavalo e todas as suas armas; depois começou a barca a ir pelo mar com ele e com
as mulheres, em tal hora que não houve depois cavaleiro nem outrem no reino de Logres que dissesse depois,
com certeza, que o tivesse visto.
Quando Gilfrete, que estava no outeiro, viu que o rei entrara na barca com as mulheres, desceu do outeiro e
dirigiu-se para lá, quanto o cavalo o pôde levar, porque julgou que, se chegasse a tempo, se meteria com seu
senhor na barca e não se separaria dele por nada que acontecesse, a não ser por morte.
E quando chegou ao mar, a barca estava afastada da praia e viu o rei entre as mulheres e reconheceu bem
Morgana, a fada, porque muitas vezes a vira. E a barca estava da praia tanto como um lance de besta. E quando
Gilfrete viu que assim perdera o rei, começou a fazer o maior pranto do mundo e ficou ali todo aquele dia e toda
aquela noite, que não comeu nem bebeu, e já o dia anterior não comera (MEGALE, 2008, pp. 626-627).
335
sujeita todo aquele que se debruça sobre seus textos, pode, sim, conforme defenderam muitos
dos integrantes da École des Annales, ser utilizada como um reduto, ou mesmo como
produtora, de fontes históricas. Pôde-se notar que mesmo os acontecimentos das novelas de
cavalaria que se encontram no âmbito do maravilhoso (encantamentos, milagres, aparições de
seres demoníacos, presença de gigantes na história) mostraram-se fiéis à realidade, ao
cotidiano, da Baixa Idade Média: serviram para documentar o imaginário medieval (cristão
ou pagão) criado em torno do sobrenatural. As novelas de cavalaria, bem como as demais
produções literárias da Idade Média (cantigas lírico-amorosas, satíricas e de Santa Maria),
conforme se viu na Introdução desta dissertação, refletem, ainda que o tenham isto por
objetivo, ainda que não queriam, a realidade da época em que foram produzidas. Exemplo
disso é o fato de as novelas de cavalaria de teor cristão, como é o caso d‟A Demanda, terem
aparecido exatamente na época das cruzadas, com o intuito, como se viu, de justamente
combater os desvirtuamentos da cavalaria que se lançava às Cruzadas ou, então, de levar para
a Igreja os cavaleiros que ainda não se encontravam a serviço de Cristo. O aparecimento das
novelas cristãs (não das canções de gesta nem das lendas arturianas, mas do aspecto cristão
das narrativas) geralmente é fixado, pelos estudiosos, entre o final do século XII e o segundo
quartel do século XIII, exatamente o período em que ocorreram as cruzadas, conforme disse
Le Goff:
Não farei a história das cruzadas. Lembrarei que a primeira conseguiu tomar
Jerusalém em 1099, marcada por um terrível massacre de muçulmanos pelos
cristãos, e conseguiu instaurar estados cristãos na Palestina, sendo o principal deles
o reino latino de Jerusalém. Depois da tomada de Edessa em 1144 pelos
muçulmanos, uma segunda cruzada, pregada por São Bernardo, foi empreendida
pelo Imperador Conrado III e pelo rei da França Luís VII, mas fracassou. Em 1187,
o sultão curdo Saladino, à frente de um grande exército muçulmano, destruiu, em
Hattin, o exército do rei de Jerusalém, tomou a cidade e todo o reino, exceto Tiro.
Uma terceira cruzada foi empreendida pelo imperador Frederico Barba Roxa que,
tomando o caminho por terra, afogou-se acidentalmente num rio da Anatólia , pelo
rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão e pelo rei da França, Filipe Augusto, que
tomaram o caminho marítimo. Foi mais um fracasso, e Jerusalém foi perdida para
sempre pelos cristãos. No século XIII, o espírito de cruzada esfriou muito. O
imperador Frederico II pôs fim à sexta, em 1228-1229, por um tratado com os
muçulmanos que a maioria dos europeus considerava vergonhoso. Uma recuperação
336
anacrônica de fervor pela cruzada, combinada com um objetivo mais de conversão
do que de conquista, animou duas cruzadas infelizes do rei da França Luís IX (São
Luís) no Egito e na Palestina (1248-1253), e na África do Norte, onde o rei morreu
diante de Cartago em 1270. As últimas fortalezas cristãs em Terra Santa caíram nas
mãos dos muçulmanos, Trípoli em 1289, Acre e Tiro em 1291 (LE GOFF, 2007, pp.
138-139).
Literatura e História mostram-se tão próximas, no Medievo, que não raro confundem as
pessoas mesmo estudiosos quanto ao que é real e ao que é ficção: comumente, pensam
que os cavaleiros da vola Redonda pertenciam à Ordem dos Templários, conforme falou
Karen Ralls:
Tanto as lendas do Graal quanto os mitos templários repercutiram através dos
séculos. E apesar da falta de evidências históricas concretas, as pessoas tentam
vincular as duas tradições de várias maneiras até mesmo acreditando que os
templários possuíam o Graal (RALLS, 2005, p. 153).
A idéia de uma única história sobre o Graal é um erro comum hoje em dia. Não
existe isso. Os romances sobre o cálice sagrado são muitos e variados e, quase
sempre, não concordam entre si. Poder-se-ia dizer que há uma história geral e
prototípica, mas até essa deve ser uma fusão de temas, pessoas e lugares extraídos de
diferentes manuscritos. Outro erro comum é presumir que os Cavaleiros Templários
sejam os cavaleiros arturianos da Távola Redonda. Não é o caso (ibidem, p. 155).
A idéia de que os templários possuíram o Santo Graal, ainda que não tenha surgido na
Literatura, foi por esta bastante alimentada: sabe-se que Chrétien de Troyes e Robert de
Boron, os primeiros a escreverem histórias em torno do Graal, tiveram cruzados como
mecenas, e que as obras Parzifal, de Wolfram von Eschenbach, Perlesvaus, de autor
desconhecido, e A Demanda do Santo Graal, de um monge cisterciense de 1215, ligaram,
definitivamente, os templários ao Santo Cálice. Wolfram denominou Templeisen, em seu
poema, os cavaleiros que guardavam o Graal. Essa proximidade entre o termo utilizado por
Eschenbach para nominar os seus cavaleiros e a palavra Templários, aliada, é bem verdade, à
semelhança do nome do local onde teriam vivido os templeisen (Monte da Salvação, em
Jerusalém) com o daquele em que viveram os templários, em Jerusalém, que foi o Monte
Sião, fez com que muitas pessoas, já na Idade Média, passassem a ter os cavaleiros templários
como os verdadeiros detentores do Santo Graal. Para alguns medievistas, o objetivo de
337
Wolfram von Eschenbach, ao escrever Parzifal, foi mesmo o de causar essa confusão entre
fantasia e realidade, ao aproximar os templeisen dos templários. O autor de Perlesvaus
também colocou, no seu texto, elementos capazes de relacionar os seus cavaleiros ficcionais
aos templários: aqueles, como estes, viviam em Jerusalém, usavam uma túnica branca com
uma cruz vermelha ao centro, traziam um escudo com uma cruz vermelha, enfatizavam a
necessidade de uma guerra santa contra os infiéis e possuíam um espírito de grupo. Por fim, o
monge cisterciense que teria escrito, para o cruzado Jean de Nesle, a Demanda do Santo
Graal, também introduziu componentes próprios dos templários na sua narrativa; dentre estes,
o escudo de Galaaz: branco, com uma cruz vermelha no meio. Sobre o papel da Literatura
para a fixação da lenda do Graal em torno dos cavaleiros templários, escreveram estas
palavras Karen Ralls, Alfredo Paschoal e Alain Demurger:
Apesar da enorme antiguidade do material sobre o Graal, ele não aparece sob forma
literária até o surgimento das narrativas dos séculos XII e XIII. Dada a
complexidade de datação medieval, estudiosos eruditos nem sempre conseguem
determinar a data precisa de um manuscrito; podem dizer, entretanto, que muitos
romances sobre o cálice foram escritos entre 1190 e 1240 durante o período da
Ordem dos Templários. Muitos foram escritos por monges, em especial os
cistercienses e os beneditinos. Essas duas ordens, embora de algum modo
interligadas, distinguiam-se uma da outra e da templária. Não evidências
históricas de que um templário tenha escrito um romance sobre o Graal, embora
algumas obras literárias tratem de temas e detalhes relacionados aos templários
(RALLS, 2005, p. 154).
Um dos mais antigos exemplos conhecidos do Graal como tema literário é Le Conte
du Graal, escrito por Chrétien de Troyes em 1190, algumas décadas depois da
fundação da Ordem dos Templários. A personagem principal de Chrétien, Percival,
é um cavaleiro errante (ibidem, p. 155).
O poeta borgonhês Robert de Boron escreveu duas narrativas sobre o Graal, José de
Arimatéia e Merlin suas obras mais famosas entre 1191 e 1200, Walter de
Montbeliard, seu protetor que, assim como o mecenas de Chrétien, era um cruzado
incumbiu De Boron de escrever ambas. De Boron atribui um tom definitivamente
cristão à sua história do Graal, mostrando a demanda dos cavaleiros como uma
busca espiritual em vez da aventura cortesã empreendida pelo amor de uma dama ou
pela honra do rei (ibidem, p. 156).
Wolfram von Eschenbach, um talentoso poeta bávaro, escreveu “várias obras
inacabadas e um poema completo, Parzifal, composto entre 1197 e 1210, no qual
narra a busca de um herói trazido à luz por Chrétien de Troyes. Na obra de Wolfram,
o Graal é uma pedra uma pedra luminosa caída do céu não um cálice, como é
usual nas outras versões, e é guardada por cavaleiros que Wolfram chama de
Templeisen (ibidem, p. 157).
338
Que tipo de ligação existe entre os templários, o Graal e as narrativas do Graal? O
registro histórico não apresentava evidências de que os templários tenham escrito
narrativas do Graal ou que a Ordem tenha sequer possuído o Graal, embora isso
seja afirmado, através dos séculos. Sabemos, entretanto, que alguns mecenas dos
autores dessas narrativas eram cruzados, embora não necessariamente templários, e
que esses escritores decerto conheciam as realizações dos templários na Terra Santa.
E muitos temas e detalhes ligados aos templários aparecem em algumas dessas
narrativas, deslocando-se do simbolismo à imagem do perfeito cavaleiro e a
importantes conceitos da cavalaria e do comportamento cavalheiresco (ibidem, p.
168).
Os temas do Graal e dos templários mesclam-se mais estreitamente no Parzifal de
Wolfram. Wolfram é o único autor de romances do Graal a insinuar que os
guardiões fossem Cavaleiros Templários. A palavra alemã para “templários” era
Tempelherren, mas, em geral, os estudiosos admitem que Wolfram tencionava que
seus Templeisen fossem considerados templários. O foco único nos templários de
Parzifal em parte se deve talvez ao fato de Wolfram e seu mecenas, Herman I, da
Turingia, estarem encantados pelo Oriente. [...] Estudiosos acreditam que o Monte
da Salvação de Wolfram sobre o qual fica o Castelo do Graal e onde vivem os
Templeisen é uma alusão velada ao Monte Sião de Jerusalém, uma vez que os
nove templários originais viviam no Monte do Templo. Entretanto, diferentemente
dos templários, os escudos dos Templeisen exibiam uma pomba um símbolo da
paz, não da guerra santa (ibidem, p. 169, passim).
O romance arturiano do início do século XIII, Perlesvaus, também conhecido como
The High Book of the Grail (O grande livro do Graal), foi escrito por um clérigo
com ligações beneditinas. Nesse conto, o Castelo do Graal situa-se na Jerusalém ao
mesmo tempo terrena e divina uma idéia com conotações templárias evidentes.
Perlesvaus (Percival) é um cavaleiro de Cristo, embora não explicitamente um
templário. Ele atravessa o oceano até uma ilha onde visita o Castelo dos Quatro
Chifres. Ali, encontra 33 homens trajados de túnicas brancas com uma cruz
vermelha no peito, como as vestes dos templários medievais. Seu próprio escudo
mostra uma cruz vermelha com uma borda dourada, similar mas não idêntico ao
escudo dos templários. Perlesvaus enfatiza por toda a parte a idéia de uma guerra
santa contra os infiéis refletindo claramente as Cruzadas, nas quais os templários
desempenharam um papel notável. O romance relata os esforços de Artur e seus
cavaleiros para impor pela força a Nova Lei da Cristandade no lugar da Antiga Lei.
Os cavaleiros de Artur são retratados de modo coletivo como um reino, não como
indivíduos em suas próprias buscas, o que é incomum em um romance do Graal.
Isso lembra o ethos subjacente à Ordem dos Templários, em que a intenção do grupo
é mais importante do que a busca pessoal (ibidem, pp. 169-170).
O Queste del Saint Graal (A demanda do Santo Graal), escrito por um monge
cisterciense em 1215 para outro mecenas cruzado, Jean de Nesle, faz inúmeras
alusões aos templários. A estrela desse romance é Galahad um descendente do rei
Salomão devoto, casto e destinado desde o nascimento a alcançar o Graal. Galahad
não é chamado de templário; ele é um cavaleiro secular. No entanto, em um
mosteiro de frades brancos, recebe um escudo branco com uma cruz vermelha que
pertencera a Jo de Arimatéia talvez porque ele seja retratado como um
descendente direto de José através de sua mãe. Os cistercienses medievais eram
chamados de Monges Brancos, e o manto branco dos templários era adornado com
uma cruz vermelha. Enquanto em Perlesvaus o Castelo do Graal é Jerusalém, em
Queste, os cavaleiros do Graal vão à Jerusalém com o Graal, mas somente depois de
concluírem sua busca. Quando Galahad, Percival e Bors chegam ao Castelo do
Graal, encontram outros nove cavaleiros. Imagina-se que essa seria uma referência
velada aos nove templários originais. Os 12 cavaleiros então celebram a comunhão,
e o próprio Cristo é o padre uma encenação da Última Ceia. Galahad, depois de
comungar a hóstia consagrada ministrada por Cristo, tem uma visão de si mesmo
como Cristo crucificado e morre extasiado diante do altar. [...] Observe também que
o autor de Queste era inclusive um cisterciense; templários e cistercienses estavam
339
intimamente ligados, sobretudo na França [...]. A figura de Galahad em Queste
sublinha o ideal secular da cavalaria cristã e do comportamento cavalheiresco. É o
Galahad não-monástico não um templário que é o cavaleiro do Graal bem-
sucedido. Ele corporifica o cavaleiro cristão perfeito, talvez até mesmo segundo a
concepção dos templários. Todavia ele não morre gloriosamente no campo de
batalha mas no Castelo do Graal. Talvez o autor cisterciense de Queste estivesse
dizendo que qualquer um pode atingir a impecabilidade cavalheiresca cristã sem
precisar juntar-se a uma ordem militar religiosa. Ou, quem sabe, ele esteja sugerindo
que um cavaleiro deve buscar a salvação por si mesmo, não como parte de uma
comunidade enclausurada. Em vez de lutar contra os inimigos de Cristo no campo
de batalha, a tarefa é matar os próprios demônios interiores e aperfeiçoar o próprio
caráter. Os ensinamentos de Bernardo
389
descrevem o progresso de uma pessoa no
caminho da perfeição espiritual como uma série de estados de graça. Queste, muito
influenciado pelas opiniões de Bernardo, apresenta a busca de Galahad pelo Graal
em termos parecidos. Ele é retratado, assim como os templários, como alguém
empenhado na perfeição cavalheiresca em atos e palavras. Entretanto, o mistério do
Graal é de fato encontrado em outro nível de experiência, como um acontecimento
interior inefável. Quase todas as narrativas do Graal concordam nesse ponto (ibidem,
pp. 170-172, passim).
Em Parsifal, “o mais significativo dos romances sobre o cálice”, composto entre
1195 e 1216 por Wolfram von Eschenbach (um cavaleiro originário da Bavária), o
Graal seria uma pedra verde-esmeralda. Sua história contada coloca o Graal-pedra
na mão dos Templários. Wolfram, “que se afirmava Templário”, fez dos cavaleiros
Templários os guardiães do Graal (PASCHOAL, 2006, p. 367).
Também Perlesvaus, outro romance sobre o cálice, que teria sido composto por um
autor anônimo que alguns imaginam ser um Templário, data do final do século XII e
início do século XIII. Aí, o cálice toma outra dimensão, e é delineado a partir de
uma série de visões. De qualquer forma, liga solidamente os Templários ao Graal,
mesmo não citando explicitamente o nome da Ordem... “Eles portavam vestimentas
brancas, e todos sem exceção continham uma cruz vermelha no meio do peito, e eles
pareciam ser todos da mesma idade” (ibidem, p. 368).
O Templo era percebido como puramente militar e ocupava um lugar particular no
imaginário: no romance cortês, principalmente, o cavaleiro do Templo é visto como
o modelo de cavaleiro; ao compor seu Parsifal, Wolfram von Eschenbach inspirou-
se nos templários para descrever os guardiões do Graal (DEMURGER, 2002, p.
188).
Assim, o contexto histórico Baixa Idade Média, época das Cruzadas, que foram
movimentos, a um tempo, cavaleirescos e religiosos (cristãos) , aliado ao trabalho de
clérigos a serviço de mecenas cruzados, é capaz de explicar o porquê de os aspectos religioso
(católico, sobretudo) e cavaleiresco serem aqueles que mais saltam aos olhos, nas novelas de
cavalaria: isso certamente se deve às interferências das classes dominantes do período
medievo, que foram a nobreza e o clero, sobre a cultura da época. Como se pôde notar,
somente a Cavalaria, formada por nobres, e a Igreja tiveram vez e voz, na sociedade
389
São Bernardo, grande abade cisterciense.
340
mediévica. Nada mais natural, então, que o legado cultural da Idade Média traga,
principalmente, elementos pertencentes a essas duas instituições. Dessa forma,
Nobreza/Cavalaria e Igreja (sobretudo esta) são responsáveis, no Medievo, por aquilo que
Raymond Williams chamaria de cultura dominante. Esta, justamente pela qualidade que lhe é
inerente, fez-se sentir em todos os âmbitos da vida medieval: na Literatura, foi responsável
pela criação de obras portadoras das ideologias, da forma como pensaram esse termo os
partícipes da Escola dos Anais, cristã e cavaleiresca; ora dando ênfase a esta, como foi o caso
do Amadis de Gaula, ora privilegiando aquela, a exemplo do que aconteceu com A Demanda
do Santo Graal. O caráter histórico das novelas de cavalaria, porque portadoras, como se viu,
das ideologias cavaleiresca e cristã da Baixa Idade Média, permite ainda o levantamento de
uma hipótese em torno do sucesso d‟A Demanda em terras portuguesas: talvez este tenha se
devido não apenas ao encantamento que as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda
produziam em toda a gente, como disse José Hermano Saraiva, ao falar da importância das
lendas arturianas para a educação de cavaleiros portugueses como Dom Nuno Álvares, mas
também ao fato de os cavaleiros de Artur, que eram tidos como os melhores que tinham
existido no mundo, terem sido identificados, a partir de vários elementos, como pouco foi
mostrado, com os cavaleiros templários, que foram não só conhecidos de perto pela sociedade
lusitana como tiveram, dentre os membros de suas ordens e os seus admiradores, reis
portugueses (Dom Afonso Henriques, Infante Dom Henrique) e, acredita-se, navegadores que
estiveram a serviço de Portugal, na época dos descobrimentos, como Pedro Álvares Cabral.
Por mais de três séculos, também foi celebrado, na Sé Patriarcal de Lisboa, o culto ao Santo
Graal, sob a vigilância dos templários. Desse modo, pode-se perceber que sempre houve, em
solo português, um clima favorável às histórias em torno do Graal. Sobre as intensas relações
da lenda do Graal com a cultura portuguesa, pronunciaram-se Ralls e Campadello:
341
Segundo uma teoria, os templários tiveram acesso à Arca da Aliança não em
Jerusalém mas na Etiópia (RALLS, 2005, p. 187).
Cabe notar que os “homens brancos” que foram para a Etiópia em 1185 podiam ser
portugueses em sua maioria. Como vimos, em 1319, sete anos depois da supressão
oficial da Ordem dos Templários, muitos cavaleiros juntaram-se à recentemente
criada Ordem de Cristo, em Portugal, e todas as propriedades e os fundos templários
no país foram transferidos para essa Ordem. Estudiosos reconhecem que a maior
ambição do famoso português Dom Henrique, o Navegador, era encontrar o
misterioso imperador cristão oriental Preste João e suas terras, que muitos na época
acreditavam estar na Etiópia. Dom Henrique era grão-mestre da Ordem de Cristo.
Estaria ele a par do conhecimento templário original? Ele estabeleceu um nculo
com a Etiópia nos últimos anos de sua vida. Henrique morreu em 1460, pouco
depois de fazer seu testamento, e não foi antes dos primórdios do século XX que
determinados arquivos secretos pertencentes à sua última década de vida vieram à
luz. Entre esses arquivos (cujos detalhes foram publicados por Jaime Cortezão em
1924 na revista Lusitânia) uma breve nota foi encontrada, referindo-se ao fato de um
embaixador de Preste João ter visitado Lisboa oito anos antes da morte de Henrique.
Não se sabe o propósito dessa missão ou o que o príncipe e o enviado etíope
conversaram. No entanto, “dificilmente teria sido por acaso que o rei Afonso V de
Portugal atribuiu à Ordem de Cristo a jurisdição espiritual sobre a Etiópia” dois anos
depois desse encontro (ibidem, p. 190-191).
Sabemos que os templários possuíam uma frota e, como os hospitalários, eram
navegadores experientes. Teriam eles transmitido esses conhecimentos juntamente
com os mapas? Será que eles sabiam como medir a longitude? Colombo e outros
exploradores teriam sido direta ou indiretamente influenciados pelos templários e
pelo que eles sabiam? Bradley pergunta: “Seria apenas uma coincidência o fato de
Dom Henrique, o Navegador, ser também um grão-mestre dos Cavaleiros de
Cristo?” Sabemos que a Ordem de Cristo portuguesa foi criada pouco depois da
supressão da Ordem dos Templários e que muitos ex-templários juntaram-se a suas
tropas. Bradley destaca que Cristóvão Colombo, John Cabot, Samuel de Champlain
e outros exploradores do Novo Mundo talvez estivessem interessados em certas
questões esotéricas. Para ele, alguns eram templários ou afiliados da Ordem e muitos
deles integravam um grupo secreto interessado no Santo Graal. Ele também acha
que os nomes de alguns exploradores fossem pseudônimos, o que alguns não
discutem. Na verdade, a identidade precisa de Cristóvão Colombo permanece um
enigma, visto que pouco se sabe realmente sobre sua infância ou sua linhagem; nem
os historiadores estão certos de onde ele obteve todos esses mapas. Dadas as
limitadas provas documentais, alguns historiadores até questionam se ele era
realmente um navegador comercial genovês. Outros especulam que ele deve ter
pertencido à Ordem de Cristo e, se a Ordem tinha mapas templários, ele deve ter
obtido os mapas necessários desse modo. Ninguém contesta o fato de que os
portugueses eram navegadores extraordinários. Ele ressalta que as bandeiras nos
navios de Colombo levavam uma insígnia quase idêntica à cruz templária uma
cruz vermelha sobre um fundo branco. Isso não significa que o próprio Colombo
fosse um templário ou cavaleiro de Cristo, mas pode ter conhecido homens nesses
círculos. Os registros históricos mostram que ele possuía estreitas relações com a
realeza portuguesa, que, sabemos, que tinha uma história de afiliações templárias
(ibidem, pp. 206-207).
Antes de a Ordem dos Templários ser fundada oficialmente, São Bernardo enviou a
Jerusalém, em 1118, (Milich-Ha-Shadai) nove mestres da Soberana Ordem de Mariz
(El-Xvarnah-Massiah) os quais seguramente não foram a Jerusalém para proteger a
rota de peregrinos incultos. Procuravam algo de muito maior valor nas criptas do
templo salomônico e devem ter encontrado o Cálice do Santo Graal (a Arca da
Aliança, as Pedras da Lei, a Taça de Salomão ou qualquer outro nome que lhe queira
dar), com a orientação do Emérito Grão-Mestre, e com o cálice vieram todos os
valores inerentes a ele, e a posse deste em mãos ocidentais deu início à longa
jornada de liderança do mundo ocidental em todos os campos: espiritual, psíquico e
342
material, pois o Cálice do Santo Graal (Agharta, Arca, Barca) representa o
conhecimento tradicional vindo das civilizações ancestrais para as atuais. Dessa
forma, quando Afonso Henriques criou a Ordem de São Bento de Aviz e a ordem
interna de São Miguel da Asa, seu objetivo era sustentar a Ordem da Sabedoria
Celeste do Santo Graal e a Ordem do Templo de Salomão (Salo-Omar), para
defender e preservar a sabedoria divina na Terra, apoiando-se nas duas colunas de
defesa da secreta Ordem de Mariz, que guarda os mistérios maiores da tradição
iniciática das idades (CAMPADELLO, 2006, p. 195).
Muitos autores concordam com as antigas tradições de que um pouco de sangue foi
retirado do costado de Cristo recolhido em uma taça de ouro, por seu discípulo José
de Arimatéia, como símbolo do supremo sacrifício feito por Jesus em prol da
humanidade. Por volta do ano 985 d.C., a Sagrada Taça do Santo Graal esteve em
terras de Portugal, até o século XV, ficando depois uma cópia desta aos cuidados de
um certo barão, chamado Henrique Antunes da Silva Neves (apud Mistérios
Iniciáticos do Rei do Mundo, p. 59). Por mais de três séculos, o Culto do Santo
Graal foi celebrado na Patriarcal de Lisboa, sob a vigilância e sigilo dos
Templários da Soberana Ordem de Matrix (Xvarnah-Massiah), cujo Rito do Sangue
Sagrado foi identificado, posteriormente, pela Maçonaria, como a “Degola de São
João”, levado depois para o continente americano por Cristóvão Colombo e Pedro
Álvares Cabral (ibidem, p. 191).
Como o Cristianismo, conforme se viu, fez-se presente em todas as esferas da vida
medieva, e como este se opõe, por seu caráter religioso, por seu monoteísmo e por seu
teocentrismo, ao paganismo greco-romano, é comum que se pense a Idade Média como uma
oposição à Antigüidade clássica, como se, em termos de periodologia histórica, aquela nunca
tivesse vindo no encalço desta.
Certamente é esse tipo de raciocínio que impede as pessoas de enxergarem inúmeros
resíduos, de acordo com o que disse Roberto Pontes acerca deste termo, culturais (dentre os
quais os literários) que as antigas Grécia e Roma legaram à Europa mediévica. É bem
verdade, como afirmou Ivan Lins, que a Cavalaria e a Igreja, por meio de seus códigos de
honra e de comportamento, de suas ideologias, tentaram expurgar a Europa não da cultura
greco-romana, do paganismo greco-latino, mas também da barbárie dos povos que invadiram
Roma, cujas origens devem ser buscadas no leste europeu e na Ásia. É certo que não
conseguiram nem uma coisa nem a outra: a cultura européia, como um todo, possui suas
raízes fincadas em solo greco-romano, de modo que não havia (nem há) como se livrar de
séculos de tradição; também muitos aspectos da cultura dos bárbaros, notadamente da dos
germânicos, estavam tão imiscuídos à cultura européia que não havia como extirpá-los. A
343
solução encontrada pela Igreja para essa hibridação cultural da qual não havia como se
desfazer foi então a do reaproveitamento desses resíduos (a maioria, clássicos, mas também
alguns bárbaros; sobretudo germânicos), de modo a permitir a utilização desses por parte dos
cristãos europeus somente após submetê-los, os resíduos clássicos, a um processo de
cristianização. A essa transformação de certos resíduos clássicos em material pronto para ser
utilizado pelos cristãos pode-se dar o nome de cristalização: o termo é de Roberto Pontes
(Teoria da Residualidade).
De acordo com Jacques Le Goff, essa tentativa de homogeneização da cultura européia,
operada pela Igreja Católica a partir da fusão de elementos católicos com os resíduos
clássicos e bárbaros, começou na Alta Idade Média, mas, como não poderia deixar de ser,
fez-se sentir também entre os séculos XI e XV (Baixa Idade Média): durante dez séculos,
muitos dos homens mediévicos seguiram os ensinamentos de Santo Agostinho e
reaproveitaram a partir da cristalização ou mesmo da simples mutilação dos textos dos
antigos, de modo a retirar, destes, passagens, sentenças, que em tudo serviam aos cristãos,
sem a necessidade de fazer qualquer adaptação elementos da cultura greco-romana; outros,
porém, isso não fizeram, mas evitaram qualquer contato com elementos culturais da
Antigüidade clássica. Mal sabiam estes que, inevitavelmente, sem ao menos se darem conta
disso, utilizavam, cotidianamente, elementos provindos das culturas grega, romana e
bárbara: eram, portanto, um pouco (ou muito) gregos, romanos e bárbaros.
Le Goff chama ainda a atenção para o fato de que, se não pôde fazer desaparecer da
Europa os resíduos clássicos, pelo menos a Igreja conseguiu empobrecê-los bastante e, sem
dúvida nenhuma, até os fez perder a sua identidade perante os cristãos, que não mais os
reconheciam como greco-latinos: Raymond Williams teria visto, nisso, nada mais que o
embate entre uma cultura dominante, a cristã, a católica, e fenômenos ou elementos residuais
de natureza clássico-pagã que “teimavam” em sobreviver.
344
Entretanto, nem sempre a Idade Média representou a “Idade das Trevas”, para a cultura
clássica. Momentos houve, no Medievo, ao contrário do que se possa pensar, em que a cultura
greco-romana da Antigüidade foi resgatada, foi recuperada: tratam-se dos renascimentos
mediévicos; dentre os quais, o carolíngio, que sempre foi o de maior fama. Esses
renascimentos, sem dúvida nenhuma, ajudaram na preservação da cultura da Antigüidade
clássica, em pleno Medievo.
Como se viu, não se pode falar em descontinuidade histórica, quando se relaciona a
Idade Média à Antigüidade clássica, pois apenas aparentemente aquela se opõe a esta. Ao ser
realizado um trabalho de investigação como o que foi empreendido nesta dissertação, que
consistiu no cotejo de um imaginário clássico com um mediévico, logo se percebe que o
Medievo renomeou, retrabalhou, adaptou, cristalizou fenômenos, elementos,
comportamentos, da Antigüidade greco-romana. Esta, portanto, nunca deixou de existir na
Idade Média; apenas o Cristianismo empanou o seu brilho. Logo, esta foi a segunda
constatação a que se pôde chegar a partir da pesquisa que aqui se empreendeu, por via
comparativa: o Medievo, como bem mostraram os excertos das novelas de cavalaria da Baixa
Idade Média em torno dos modos de agir, de pensar e de sentir do cavaleiro medieval que
foram apresentados neste subcapítulo, e que não ficaram circunscritos apenas à instituição
cavaleiresca, retoma inúmeros valores da Antigüidade clássica; apenas -lhes uma nova
roupagem, cristaliza-os. Sobre as relações da Idade Média com a cultura da Antigüidade
greco-latina falaram Ivan Lins e Jacques Le Goff:
À vista da crueldade e da luxúria dos romanos, agravadas pelos vícios inerentes aos
bárbaros, é claro que nem o Catolicismo, nem a Cavalaria podiam, na Idade-Média,
suficientemente purificar e abrandar os homens: procuraram fazê-lo, é certo e é o
que constitue o seu mérito mas ficaram muito aquém dos ideais que representavam
e pelos quais propugnaram (LINS, 1939, p. 188).
O mundo medieval resulta do encontro e fusão destes dois mundos que se
interpenetravam, da convergência das estruturas romanas e das estruturas bárbaras
em transformação (LE GOFF, 2005, p. 33).
345
Na história das civilizações, como na dos indivíduos, a infância é decisiva. E muito,
senão tudo, ali se decide. Entre os séculos 5º e 10º, nascem modos de pensar e de
sentir, temas e obras que formam e informam as futuras estruturas das mentalidades
e das sensibilidades medievais.
E, antes de tudo, a própria organização destas novas estruturas. É bem sabido que
em cada civilização existem camadas diferentes de cultura, de acordo com as
categorias sociais de uma parte e com os aportes históricos de outra. Além disso,
sabe-se também que a estratificação das combinações, conjuntos e misturas
constituem sínteses novas.
Isto é particularmente notado na Alta Idade Média ocidental. A novidade cultural
mais evidente são as relações que se estabelecem entre a herança pagã e o aporte
cristão supondo bem longe da verdade, como se sabe que um e outro formassem
então um todo coerente. Mas, ao menos nas camadas instruídas, um e outro tinham
alcançado um grau de homogeneidade suficiente para que possamos conside-los
como pares (ibidem, p. 107).
O debate, o conflito entre a cultura pagã e o espírito cristão encheu a literatura
paleocristã, depois a da Idade Média, e desde então, numerosos trabalhos modernos
consagrados à história da civilização medieval. E é verdade que os dois modos de
pensar e as duas sensibilidades se opunham, como hoje se opõem a ideologia
marxista e a ideologia burguesa. Toda a literatura pagã foi um problema para a Idade
Média cristã, mas no século 5º a questão estava resolvida. Até o século 14 haveria
extremistas de duas tendências opostas: aqueles que proscreviam o uso e até a leitura
dos autores antigos, e aqueles que os usavam largamente de maneira mais ou menos
inocente. A conjuntura favorecerá alternativamente uns e outros. Mas a atitude
fundamental foi fixada pelos pais da Igreja e perfeitamente definida por Santo
Agostinho ao declarar que os cristãos deviam utilizar a cultura antiga assim como os
judeus tinham usado os despojos dos egípcios [...]. Este programa do De doctrina
christiana, que virá a ser um lugar comum na Idade Média, na realidade abre a porta
a toda uma gama de utilizações da cultura greco-romana. [...] É muito difícil apreciar
em que medida a utensilagem mental vocabulário, noções, métodos da
Antigüidade passou à Idade Média. O grau de assimilação, de metamorfose, de
desnaturação varia de um autor a outro e muitas vezes um autor oscila entre esses
dois pólos que demarcam os limites da cultura medieval: a fuga horrorizada diante
da literatura pagã e a admiração apaixonada que leva a largos empréstimos (ibidem,
pp. 107-108, passim).
Conclui-se que, se este compromisso garantiu uma certa continuidade da tradição
antiga, ele também a traiu, razão pela qual, diversas vezes, a elite intelectual sentiu a
necessidade de voltar verdadeiramente às fontes antigas. São os renascimentos que
pontuam a Idade Média: a época carolíngia, no século 12, enfim, ao alvorecer do
grande Renascimento.
Resta notar que, para os autores da Alta Idade dia ocidental, a necessidade de
utilizar o insubstituível instrumento intelectual do mundo greco-romano e de
aproximá-lo aos moldes cristãos criou ou pelo menos favoreceu hábitos intelectuais
deploráveis: a deformação sistemática do pensamento dos autores, o interminável
anacronismo, o raciocínio por citações isoladas de seu contexto. O pensamento
antigo sobreviveu à Idade Média atomizado, deformado, humilhado pelo
pensamento cristão. Obrigado a recorrer aos serviços do inimigo vencido, o
cristianismo teve de apagar a memória de seu escravo prisioneiro e fazê-lo trabalhar
para si, esquecendo suas tradições. Mas acabou sendo ao mesmo tempo arrastado
nesta atemporalidade do pensamento (ibidem, p. 109).
Ainda aqui a Antigüidade declinante facilitou o trabalho dos clérigos cristãos dos
primeiros séculos medievais. O que a Idade Média conheceu da cultura antiga lhe foi
legada pelo Baixo Império, que havia digerido, empobrecido, dissecado a literatura,
o pensamento e a arte greco-romanos de tal maneira que a Alta Idade Média
barbarizada pôde assimilá-los mais facilmente. Não foi a Cícero ou a Quintiliano
que os clérigos da Alta Idade dia emprestaram seu programa científico e
educativo, mas a Marciano Capella, um retórico de Cartago que no começo do
346
século definiu as sete artes liberais em seu poema Nuptiae philologiae et
Mercurii. [...] Os retóricos e compiladores, sobretudo, fornecerão aos homens da
Idade Média um saber em migalhas. O Baixo Império transmitiu à Idade Média
vocabulários, versos mnemotécnicos, etimologias (falsas), florilégios uma
utensilagem mental e intelectual elementar. É a cultura das citações, dos trechos
escolhidos, dos “digests” (ibidem, pp. 109-110, passim).
[O Renascimento carolíngio] Foi um fenômeno brilhante e superficial destinado a
satisfazer as necessidades de um pequeno grupo aristocrático de acordo com a
vontade de Carlos Magno e seus sucessores e com a hierarquia eclesiástica:
melhorar a formação dos quadros laicos e eclesiásticos do grandioso e frágil edifício
carolíngio.
No entanto, o Renascimento carolíngio foi uma etapa na constituição da
instrumentalização intelectual e artística do Ocidente medieval.
Os manuscritos corrigidos e melhorados dos autores antigos puderam servir mais
tarde à nova difusão de textos da Antigüidade. Obras originais vieram constituir uma
nova camada de saber após a da Alta Idade Média, sendo colocada à disposição dos
clérigos dos séculos posteriores.
[...]
Malgrado suas realizações tenham ficado muito longe de suas aspirações e de suas
pretensões, o Renascimento carolíngio comunicaria aos homens da Idade Média
algumas paixões salutares: o gosto pela qualidade, pela correção textual e pela
cultura humanista, mesmo que grosseira, e a idéia de que a instrução é um dos
deveres essenciais e uma das forças principais dos Estados e dos príncipes (ibidem,
pp. 121-122, passim).
Não por outro motivo o cavaleiro medieval, que era o herói na/da Idade Média,
conforme mostrou este subcapítulo, tanto se assemelha ao herói mítico e ao guerreiro da
Antigüidade clássica: de acordo com Le Goff, a figura do herói, a cavalaria e, possivelmente,
a nobreza que era de onde saíam os cavaleiros mediévicos, como se viu foram as
principais heranças (resíduos) legadas ao Medievo pelas antigas Grécia e Roma. Também se
chegou a esta constatação (a terceira), por meio deste trabalho.
A primeira é a herança grega. Lega à Idade Média a pessoa do herói que, como se
verá, se cristianiza ao se tornar um mártir e um santo [...]. A herança romana é
muito mais rica. E a Europa Medieval saiu diretamente do Império Romano. [...]
Aos homens da Idade Média, guerreiros nessa tradição européia, os romanos legam
sua arte militar, tanto mais porque o autor tardio (em torno do ano 400 d.C.) de um
tratado da arte militar, Vegécio, foi um inspirador das teorias e das práticas militares
dos medievais (LE GOFF, 2007, p. 24, passim)
De onde vêm os nobres? Para uns, trata-se da continuação da Antigüidade Romana,
para outros, de uma criação da Idade Média, onde a nobreza teria saído do status de
homem livre reservado a uma elite. Em todo caso, afirmou-se por toda parte no
Ocidente, na Idade Média, uma camada superior, segundo os termos de Leopoldo
Génicot, “orgulhosa de sua antigüidade e forte por sua riqueza, suas alianças, seu
papel público que exerce, às custas do soberano ou com sua ajuda”, essa camada
gozava de privilégios políticos e judiciários e de uma grande consideração social.
Seu prestígio, repito, repousa essencialmente no sangue; também o enobrecimento
feito pelos reis e pelos príncipes de homens que não tinham nascido nobres interveio
347
tardiamente, foi limitado e não trouxe aos enobrecidos a consideração que o
nascimento valia (ibidem, p. 81).
Abaixo da nobreza aparece, também pelo ano mil, e de maneira mais clara e mais
massiva, um outro tipo social, o cavaleiro. Provém do miles e é definido tanto no
Império Romano como entre os bárbaros romanizados por este termo que indica
simplesmente uma função a guerra (o miles é um soldado) , mas que evolui pelo
ano 1000 e designa, muitas vezes ligada ao castelo e ao senhor, uma elite de
combatentes especializados no combate a cavalo e dedicando-se, ao lado dos
verdadeiros combates ao serviço de seu senhor, a práticas que são ao mesmo tempo
divertimento e treinamento, os torneios (ibidem, p. 82).
Com relação, especificamente, à Literatura medieva, notadamente às novelas de
cavalaria, deve-se dizer que ela em muito se assemelha à da Antigüidade clássica, como se viu
ao longo deste capítulo. Isso tanto se deve ao fato de os modos de agir, de pensar e de sentir
do cavaleiro medieval, que foram transferidos para as obras literárias, retomarem certos
comportamentos, pensamentos e ações do herói mítico e do guerreiro da Antigüidade clássica,
de forma inconsciente ou não, quanto ao fato de os escritores do Medievo, que na sua maioria
eram clérigos, monges, voltarem-se para as epopéias greco-latinas na hora de construir as suas
narrativas: certamente isso serve para explicar a presença das intertextualidades “clássicas”,
dos excertos de “sabor” clássico e do imaginário clássico-residual que as novelas de cavalaria
trazem em suas narrativas. Todavia, deve-se salientar que nem de intertextualidades e de
resíduos clássicos viveu a Literatura mediévica: apesar de o componente clássico ser um dos
mais aparece, ao lado dos aspectos cavaleiresco e cristão, não podem ser esquecidos os
elementos célticos e os germânicos que ela, decerto, possui. Assim, a Literatura da Idade
Média apresenta-se: como uma literatura híbrida, porque traz em si elementos cavaleirescos,
cristãos, greco-romanos, célticos e germânicos; e cristalizada, uma vez que se trata de um
refino de uma oratura (as canções de gesta estão na base dos textos das novelas de cavalaria)
ou de um rearranjo dos mitos e das epopéias das antigas Grécia e Roma (não podem ser
esquecidas as novelas de cavalaria da Alta Idade Média que giravam em torno de personagens
das epopéias greco-latinas). As novidades da Literatura medieval giram, portanto,
basicamente em torno dos elementos célticos e germânicos que ela introduz nas novelas de
348
cavalaria e, claro, da língua em que são escritos os seus textos: em romanços, não mais em
latim.
A leitura d‟A Demanda do Santo Graal deixa entrever vários trechos de teor céltico ou
de teor germânico: em geral, estes giram em torno de determinados comportamentos do
cavaleiro mediévico, relacionados à cerimônia da investidura e a táticas de guerra, de batalha;
aqueles, em torno da magia realizada por feiticeiros ou por fadas e da presença de seres
gigantescos, ao longo da narrativa. A quarta constatação a que se chegou com esta pesquisa
diz respeito mesmo às características da Literatura da Baixa Idade Média (tomando-se por
base as novelas de cavalaria portuguesas desse período; em especial, A Demanda do Santo
Graal): ela não possui apenas os aspectos cavaleiresco e cristão, conforme foi dito, mas
também o clássico, em grande medida, o céltico e o germânico; estes dois em proporções
menores. Trata-se, portanto, de uma literatura híbrida e cristalizada, a exemplo da Literatura
clássica. Com relação especificamente aos excertos de teor clássico das narrativas medievais,
deve-se dizer que eles se devem não só, como foi dito, ao imaginário clássico-residual do
cavaleiro mediévico, que ia parar nas ginas das novelas de cavalaria, como também às
intertextualidades que os clérigos, ou monges, realizavam com os mitos e com as epopéias da
Antigüidade clássica, por ter o herói greco-latino como arquétipo, como modelo, como ideal
(pelo menos no que concerne ao aspecto bélico) a ser seguido pelo cavaleiro medieval. Esses
monges-escritores também gostavam imenso das figurações criadas pelos autores clássicos
em torno das batalhas travadas pelos heróis; por isso procuravam imitá-las, ao descrever as
atividades guerreiras dos cavaleiros medievos. Assim se referiram Michel Zink, Jean Flori e
Danielle Régnier-Bohler às influências que a Literatura da Antigüidade clássica exerceu sobre
a Literatura medieval; notadamente sobre as novelas de cavalaria:
Um outro aspecto torna as literaturas medievais ambíguas, um aspecto comum a
toda a cultura de seu tempo. Elas são, ininterruptamente, as herdeiras das letras
antigas, que imitam e perpetuam. Entretanto, certa ruptura existe: são literaturas
349
novas com um perfume às vezes quase primitivo. É que as raízes do mundo
germânico e do mundo celta são estranhas à latinidade. Quanto às línguas
românicas, sua própria novidade conduz à das literaturas de que são veículo (ZINK
in LE GOFF; SCHMITT, 2002, vol. II, pp. 81-82).
A Idade Média é a época em que as literaturas vernáculas emergem e se impõem em
relação aos textos latinos, em concorrência com eles e, ao mesmo tempo, graças a
eles. Mas é também uma época em que a latinidade não só permanece viva, como
ainda monopoliza o essencial da atividade intelectual. [...] A história das literaturas
medievais é a história combinada da literatura latina e das literaturas em línguas
vulgares (ibidem, p. 82, passim).
Mas a Igreja, doravante a única detentora das chaves do saber, podia apagar a
memória dos textos antigos, cujo estudo os Pais São Jerônimo, Santo Agostinho
tinham contudo justificado. Ela tentou-o, nos séculos VI e VII. O renascimento
carolíngio porá fim a essa tentação. É essencialmente por meio de cópias feitas na
Idade Média que os autores da Antigüidade chegaram até nós. Copiar, ler, reescrever
imitar, comentar Virgílio, Horácio, Ovídio ou Estácio é uma parte importante da
atividade literária medieval. A primeira manifestação de vida literária na Idade
dia é a sobrevivência da literatura antiga, principalmente pelo uso que dela se fez
no ensino (ibidem, p. 82).
Essa literatura reflete, ao mesmo tempo e de diversas maneiras, o mundo estranho à
latinidade em que ela mergulha, as novas condições criadas pela emergência das
línguas vulgares e da cultura que lhes é própria. Um estilo, valores, novos temas,
finalmente aparecem sob as reminiscências clássicas e a presunção do letrado
(ibidem, p. 82).
Como em todas as civilizações, a literatura narrativa da Idade Média está, em suas
formas mais antigas, inteiramente projetada no passado: passado carolíngio das
canções de gesta e passado mais distante ainda das lendas heróicas germânicas,
passado antigo ou arturiano dos romances, passado da colonização da Islândia ou
passado lendário das sagas, passado da história. Em todos os casos, é a genealogia
do presente que está em questão. É também a relação com a verdade. Os primeiros
romances franceses são adaptações de obras da Antigüidade latina a Tebaída, de
Estácio, a Eneida. Por um esforço ao mesmo tempo histórico e filológico, eles têm a
ambição de conservar a memória verdadeira do passado. Tomados em conjunto, eles
pintam um afresco dinástico que vai dos Argonautas e da guerra de Tróia a Henrique
II, o Plantageneta. Porém, em seu caminho eles encontram as maravilhas do mundo
arturiano, tema de história mas também tema para histórias que todos escutam e nas
quais ninguém acredita. Fascinado pelas maravilhas da Bretanha, o romance não se
cansa de contá-las. Mas ele não pode mais reivindicar a verdade dos fatos. Procura,
então, a do sentido. É a grande mudança realizada por Chrétien de Troyes (ibidem,
p. 85).
A cultura romana antiga não deixou de fascinar os letrados da Idade Média. Em seus
próprios escritos, eles tentam muitas vezes aplicar às realidades de sua época as
narrativas dos autores clássicos. Eles os liam às vezes diretamente, geralmente em
antologias, coletânea de textos e frases destinadas ao ensino e à transmissão de um
saber antigo admirado, mas com a reputação demoníaca por causa de suas origens
pagãs. As referências que fazem monges e bispos principais redatores das fontes
medievais do século XVI às atividades guerreiras de seu tempo não escapam desse
esquema. Para descrever os exércitos e as batalhas, eles se inspiram nos autores
antigos dos quais estão impregnados. Uma decodificação é, portanto, muitas vezes
necessária para termos acesso às realidades que eles evocam. Não se deve, todavia,
exagerar essa diferença e imaginar eruditos mergulhados em seus calhamaços,
ligados ao passado somente pela leitura dos ancestrais e dos autores antigos e sem
nenhum conhecimento direto dessas realidades cotidianas que eles relatam. Esses
eclesiásticos, na maioria, era oriundos de famílias aristocráticas e guerreiras com as
quais eles conservam estreitos contatos. Alguns estavam presentes nas cortes
350
principescas e até nos campos de batalha e não ignoravam de forma alguma os
métodos e as mentalidades guerreiras de sua época, apesar de eles os condenarem
em nome da moral clerical em vigor em sua época (FLORI, 2005, pp. 67-68).
A renovação de interesse cultural pela Antiguidade greco-romana se traduz, a partir
de meados do século XII, pela moda dos romances antiquizantes (romance de
Alexandre, romance de Thèbes, Enéas, Romance de Tróia, etc), imitados por Estácio
ou Virgílio, misturando aos traços antigos e guerreiros das canções de gesta os
novos charmes da cultura romanesca, em que amor e as alegrias da corte não
prejudicam as proezas cavalheirescas. Os romances antigos abrem assim o caminho
para os romances de aventura, em que se colocam com mais acuidade os problemas
que preocupam então os espíritos, particularmente as relações do amor com o
casamento, do amor com a cavalaria, da cavalaria com o clero (ibidem, pp. 163-
164).
Certos pares de irmãos medievais vivem histórias sangrentas, em particular aquela
que retoma a história dos descendentes de Édipo, o Roman de Thèbes (RÉGNIER-
BOHLER in DUBY, 1990, p. 340).
Não se poderia concluir este subcapítulo sem que se falasse, antes, da primeira epopéia
da Humanidade: a de Gilgamesh. Como se poderá perceber pelo texto da quarta capa do livro
Gilgamesh: o Primeiro Herói Mitológico
390
, de A. S. Franchini e Carmen Seganfredo,
suficiente para mostrar o que aqui se pretende, a história de Gilgamesh em muito se
assemelha às dos heróis míticos greco-latinos (notadamente às de Perseu, Hércules e Ulisses)
e às dos cavaleiros medievais (especialmente às de Galaaz, Persival e Boorz):
Num tempo muito antigo, houve o primeiro herói. Misto de deus e de homem, ele
empreendeu uma jornada heroica incomparável. No curso de sua demanda enfrentou
guardiões de florestas, touros celestes, homens-escorpiões e a ira de uma deusa. Ele
buscava a dádiva suprema da imortalidade. Seu nome era Gilgamesh. Depois dele,
vieram outros heróis e outras epopéias, mas a sua aventura continua sendo a maior
de todas.
Esse pequeno texto é denso, em termos de conteúdo, pois resume muito bem as
principais características do herói mítico: este, como se viu no capítulo passado e mesmo no
presente capítulo, possuía, mais que origens nobres (Gilgamesh teria sido um rei sumério),
origens divinas (“Misto de deus e de homem”); empreendia, ao longo de sua vida, uma busca
(“demanda”) que, geralmente, terminava com o recebimento de um galardão divino (“dádiva
suprema da imortalidade”); enfrentava, ao longo de sua demanda, seres sobrenaturais (“touros
390
FRANCHINI, A. S; SEGANFREDO, Carmen. Gilgamesh: o Primeiro Herói Mitológico / Recriação da lenda
suméria por A. S. Franchini e Carmen Seganfredo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2008.
351
celestes”, “homens-escorpiões”) e excessivamente poderosos (“deusa”). Em suma, esse texto
em torno de Gilgamesh poderia ser aplicado, sem cortes nem acréscimos, a muitos dos heróis
aos quais se dedicaram dois dos três capítulos desta dissertação. Nesse sentido é que se pode
falar na existência de uma mentalidade heróica, da forma como tratou do termo mentalidade a
Escola dos Annales: como os modos de agir, de pensar e de sentir inerentes ao Homem de
todas as épocas. Neste caso, a mentalidade heróica seria o modo de se comportar, de
raciocinar e de se emocionar típica do Herói de todos os tempos. A mentalidade heróica seria
algo anespacial e atemporal, portanto: é o que haveria de invariável na figura do herói de
todas as épocas. Se Gilgamesh não foi invocado antes, nesta pesquisa, foi tão-somente porque
não foi a ele que as novelas de cavalaria do Medievo fizeram alusão, nas suas narrativas; não
foi o herói sumério, babilônico, que influenciou o modo de agir de pensar e de sentir do
cavaleiro medieval ou a construção do imaginário que se criou, na Idade Média, em torno
deste, mas o herói mítico greco-romano, como se viu por meio da Literatura e da História, e
conforme mostrou esta dissertação.
352
CONCLUSÃO
A literatura exagera a característica, ela não a inventa.
Jean Flori
391
Realizado o cotejo entre os excertos dos mitos de Metamorfoses e d‟O Livro de Ouro da
Mitologia e das epopéias da Antigüidade clássica Ilíada, Odisséia e Eneida com os
trechos das novelas de cavalaria portuguesas da Baixa Idade Média, Amadis de Gaula e A
Demanda do Santo Graal (principalmente com os desta última), pôde-se chegar a várias
conclusões. A primeira destas foi a de que a Literatura pode, sim, como afirmou a École des
Annales, ser utilizada como fonte histórica para a compreensão da Antigüidade clássica e do
Medievo: as fontes historiográficas de teor literário em nada ficaram a dever aos livros de
História que giram em torno das antigas Grécia e Roma e da Idade Média.
A segunda, foi a de que o imaginário do (ou “que foi criado em torno do”) cavaleiro
medieval, a partir do que se pôde retirar das novelas de cavalaria, apresenta-se residual,
quando comparado ao do herói mítico greco-romano: a Literatura mostra que os modos de
agir, de pensar e de sentir do cavaleiro mediévico que se movimenta nas novelas da Baixa
Idade Média assemelha-se imenso aos do herói greco-latino que pode encontrar nos mitos e
nas epopéias dos antigos.
A terceira conclusão decorre das anteriores: uma vez que a Literatura pauta-se no real
para, em cima deste, construir um real ainda mais verdadeiro (porque abstração do real),
através da ficção, pode-se afirmar, com segurança, que o cavaleiro medievo real, ou seja, o
que de fato existiu, o que viveu na Europa medieval, agia, consciente ou inconscientemente,
como o antigo guerreiro greco-romano; não o que habitou as páginas da Ilíada, da Odisséia
ou da Eneida, mas o que viveu mesmo na pólis grega ou na antiga Roma. Como foi falado,
391
FLORI, op. cit., p. 102.
353
obras de teor historiográfico corroboram com o que diz a Literatura sobre os guerreiros
gregos, romanos e mediévicos; daí se poder afirmar, com segurança, o que ora foi dito.
A quarta, foi a de que, se os cavaleiros medievos, reais e fictícios, aproximam-se tanto
dos heróis míticos e dos guerreiros da Antigüidade clássica, o universo real em que viveu o
cavaleiro (Idade Média) muito se aproxima daquele (Antigüidade clássica) em que viveu o
guerreiro antigo. De fato, ao se estudar o imaginário do cavaleiro medieval e o do herói
mítico da Antigüidade clássica, freqüentemente se é levado a conhecer o modo de produção
da sociedade em que ambos tiveram suas origens; o funcionamento das principais instituições
das civilizações das quais fizeram parte; a maneira como se relacionavam com o sexo oposto
etc. Em praticamente todos os âmbitos da vida, o cavaleiro medieval das novelas de cavalaria,
que bem representa o que de fato viveu na Europa mediévica, mostrou-se semelhante ao herói
grego-latino que se movimenta nos mitos e nas epopéias da Antigüidade clássica: somente
realidades sociais muito próximas poderiam, de fato, originar seres em tudo tão parecidos.
Talvez não seja à toa o fato de a época em que “viveram” os heróis de Homero ter sido
denominada “Idade das Trevas”, como pejorativamente é conhecida a Idade Média.
A quinta conclusão a que se chegou com a presente pesquisa foi a de que, além de os
cavaleiros se comportarem, pensarem e sentirem salvaguardadas certas especificidades
decorrentes do momento histórico em que viveram, que, não se pode negar, não era
exatamente a Antigüidade, mas algo bem próximo desta (Medievo) , como os guerreiros das
antigas Grécia e Roma, às vezes sem se dar conta disso, aqueles tinham estes como arquétipo,
como modelo, como ideal a ser seguido; exemplo disso são as inúmeras alusões aos modos de
agir, de pensar e de sentir do herói mítico greco-romano que as novelas de cavalaria fazem, a
partir de intertextualidades, aos mitos e às epopéias dos antigos, notadamente à Ilíada. Outro
exemplo deve-se à escrita de novelas de tema clássico durante a Alta Idade Média (época de
cristalização de muitos dos resíduos clássicos, de acordo com Jacques Le Goff): nestas, os
354
heróis greco-romanos exerciam os papéis principais. Enfim, ao longo de toda a Idade Média,
como bem falaram acerca disso Jaeger, Le Goff e Zink, a Literatura da Antigüidade clássica
irá se fazer sentir.
A sexta conclusão a que se chegou foi a de que, tal qual a da Antigüidade clássica
(mitos e epopéias), a Literatura da Baixa Idade Média era híbrida, porque compósito de
elementos de culturas diversas (cristãos, greco-romanos, célticos, germânicos, franceses,
britânicos, ibéricos), e cristalizada, porque resultado de transformações de materiais de
natureza oral (oratura) noutros de natureza escrita, e também pelo fato de, muitas vezes, ser
um rearranjo, uma releitura, como se viu, dos clássicos da Literatura greco-latina.
A sétima conclusão foi a de que se pode falar mesmo na existência de uma mentalidade
heróica, ou seja, que os heróis, de um modo geral, independente da época e do lugar em que
tenham surgido, comportam-se, pensam e sentem de forma muito semelhante: muitos são os
traços comuns entre Perseu, Hércules, Jasão, Ulisses, Galaaz, Boorz, Persival e Gilgamesh,
que é considerado o primeiro herói da Humanidade.
Dito isso, pode-se afirmar que os objetivos desta dissertação (i) demonstrar, através de
comparações, que a Idade Média representa, em boa medida, uma retomada de valores da
Antigüidade greco-romana e que o cavaleiro medieval retoma características do herói das
antigas Grécia e Roma, a quem tinha como exemplo de coragem, de lealdade e de virtude; (ii)
explicar o motivo da existência de passagens clássicas dentro das novelas de cavalaria,
composições literárias tão distantes, em termos temporais, da Antigüidade greco-latina
(objetivos gerais); (iii) apontar os trechos de teor clássico presentes n‟A Demanda do Santo
Graal e mostrar que o aspecto clássico é tão inerente e importante a essa obra como o são os
aspectos cavaleiresco e religioso nela presentes, consagrados pela crítica; (iv) justificar o
porquê de excertos clássicos existirem dentro d‟A Demanda do Santo Graal, obra tipicamente
medieval e cristã (objetivos específicos) foram alcançados.
355
Com relação às hipóteses que foram levantadas na introdução desta dissertação, que
procuravam explicações para o fato de os estudiosos ainda não terem se debruçado sobre as
novelas de cavalaria para delas retirar e estudar, conforme mereciam ser estudados, os seus
resíduos clássicos, deve-se dizer que, ao que tudo indica, nenhuma das duas se aproximou do
que parece ser a verdade (sempre relativa). A resposta para essas indagações encontrava-se já
na Introdução, numa citação: ela foi dada pela pesquisadora Irene Freire Nunes, que dirigiu
uma das edições d‟A Demanda do Santo Graal que foi utilizada ao longo desta dissertação.
Ao tratar do elemento trágico que se encontra em torno do personagem Mordret, filho-
sobrinho de rei Artur, a pesquisadora afirmou: “Como se tivessem querido ne-lo sem o
conseguir” (NUNES in MEGALE & OSAKABE, op. cit., p. 84). De fato, ao que tudo indica,
parece não ter sido por desconhecimento que os pesquisadores (pelo menos os que
debruçaram sobre A Demanda do Santo Graal e o Amadis de Gaula, para fins de
investigação) deixaram de falar dos resíduos clássicos das novelas de cavalaria da Baixa
Idade Média e, em especial, dos d‟A Demanda; antes parece ter sido por desinteresse ou por
querem negá-los, mas sem o conseguir, como outrora fizeram muitos dos homens mediévicos,
puristas e fiéis ao Cristianismo e à sua época (Idade Média), conforme disse Jacques Le Goff.
Porém, as duas hipóteses levantadas no início desta dissertação não devem ser de todo
descartadas: alguns pesquisadores, por não conheceram a realidade das antigas Grécia e
Roma, podem mesmo não perceber o “sabor” clássico de determinadas passagens das novelas
de cavalaria e achar mesmo que determinados comportamentos, pensamentos e sentimentos
dos cavaleiros medievos são mesmos próprios, picos, da Idade Média. Dentre estes
pesquisadores, certamente não se encontram Lênia Márcia Mongelli, Irene Freire Nunes e
Heitor Megale.
Antes de se concluir, em definitivo, esta dissertação, deve-se dizer que, durante toda ela,
houve uma preocupação com o referencial teórico utilizado não no capítulo que leva esse
356
nome como também nos demais: esta pesquisa procurou ser coerente, em todos os momentos,
com relação ao suporte teórico que embasaria as análises realizadas em torno dos excertos dos
mitos e das epopéias e dos trechos das novelas de cavalaria: sempre que possível, foram
utilizados, em todos os capítulos, estudiosos da École des Annales ou outros que a estes
estiveram ligados, em algum momento e de alguma forma, para que houvesse uma coerência
teórico-metodológica ao longo de todo o trabalho.
Por fim, ficam aqui algumas sugestões de pesquisas que poderão ser realizadas com
novelas de cavalaria dos ciclos bretão ou carolíngio sob a ótica da residualidade: o Amadis de
Gaula, apesar de F. Costa Marques ter percebido nesta obra algumas passagens de “sabor”
clássico, ainda espera por uma pesquisa no sentido da que foi empreendida, aqui, com relação
à Demanda do Santo Graal; poderia ser estudada, ainda, a relação do renascimento carolíngio
com os resíduos clássicos que as novelas em torno de Carlos Magno apresentam; as mulheres
medievais que aparecem nas novelas de cavalaria bretãs, ao que tudo indica, nunca tiveram,
por parte da crítica especializada, um estudo sequer em torno do que as une às mulheres da
Antigüidade clássica. Enfim, muitas poderiam ser as sugestões; ficam essas.
357
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I. FONTES
BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (A Idade da Fábula): História de
Deuses e Heróis / Tradução de David Jardim Júnior. 28. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
COSTA MARQUES, F (trad). Amadis de Gaula: Notícia Histórica e Literária / Seleção,
Tradução e Argumento de F. Costa Marques. Coimbra: Atlântida, 1972. Colecção Literária
Atlântida.
HOMERO. Ilíada / Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
________. Odisséia / Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001.
MAGNE, Augusto (org). A Demanda do Santo Graal, por Augusto Magne. Rio de Janeiro:
INL, 1944. (Dois volumes de texto e um volume de glossário.)
________. A Demanda do Santo Graal / Ed. fac-similada org. por Augusto Magne, Vol. I.
Rio de Janeiro: INL, 1955.
MEGALE, Heitor (org). A Demanda do Santo Graal. São Paulo: Companhia das Letras,
2008. Col. Companhia de Bolso.
NUNES, Irene Freire. A Demanda do Santo Graal. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2005.
OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003.
VIRGÍLIO. Eneida / Tradução e notas de Odorico Mendes; apresentação de Antonio Medina;
estabelecimento do texto, notas e glossário de Luiz Alberto Machado Cabral. Cotia /
Campinas: Ateliê Editorial / Editora da Unicamp, 2005. (coleção Clássicos comentados;
dirigida por Ivan Teixeira.)
II. BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA
ALMEIDA, Isabel Adelaide. Amadis de Gaula”. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI,
Giuseppe (org). Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa / Tradução de José
Colaço Barreiros e Artur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993.
BIERLEIN, J. F. Mitos Paralelos / Tradução de Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. III. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
CAMPOS, André Malta. O legado literário de Homero. Revista EntreLivros, São Paulo, n.1,
pp. 21-24, s/d.
CASTRO, Ivo. Demanda do Santo Graal” In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe
(org). Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa / Tradução de José Colaço
Barreiros e Artur Guerra. Lisboa: Caminho, 1993.
MEGALE, Heitor. A Demanda do Santo Graal: o códice 2594 de Viena e os testemunhos
franceses da Post-Vulgata”. In: Signum: Revista da ABREM Associação Brasileira de
Estudos Medievais, São Paulo / Rio de Janeiro, n. 9, pp. 67-93, 2007.
358
________. A Demanda do Santo Graal: das Origens ao Códice Português. Cotia: FAPESP /
Ateliê Editorial, 2001.
________. O Jogo dos Anteparos A Demanda do Santo Graal: a Estrutura Ideológica e a
Construção da Narrativa. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992.
MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Orígines de la Novela. Madrid, 1905. Tomo I, Introducción,
pp. CXCIX-CCXLVIII.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 33. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
________. A Literatura Portuguesa através dos Textos. 30. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
________. (org.). A Literatura Portuguesa em Perspectiva. Vol. I Trovadorismo,
Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992.
MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur.
Cotia: Íbis, 1995.
NUNES, Irene Freire. A Demanda do Santo Graal”. In: MEGALE, Heitor; OSAKABE,
Haquira (org). Textos Medievais Portugueses e suas Fontes: Matéria da Bretanha e Cantigas
com Notação Musical. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 1999.
OLIVA NETO, João Ângelo. A travessia para o português. Revista EntreLivros, São Paulo,
n.1, p. 30, s/d
RODRÍGUEZ-MOÑINO, António; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El Primer
Manuscrito del Amadis de Gaula. Madrid, 1957.
SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 12. ed. Porto:
Porto Editora, 1982.
SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa. Vol. I Era Medieval. 11. ed. Rio
de Janeiro: DIFEL, 2006. Col. Presença da Literatura Portuguesa.
VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero / Tradução de Jônatas Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
ZIERER, Adriana Maria de Souza. “Galaaz e Lancelot: dois modelos distintos de cavaleiro
medieval”. In: PONTES, Roberto; MARTINS, Elizabeth Dias (org.). Anais [do] VII Encontro
Internacional de Estudos Medievais Idade Média: permanência, atualização, residualidade.
Fortaleza / Rio de Janeiro: UFC / ABREM, 2009.
III. BIBLIOGRAFIA GERAL
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Vol. I. 8. ed. Coimbra:
Almedina, 2006.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 1989): a Revolução Francesa da Historiografia
/ Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.
CÁCERES, Florival. História Geral. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
CAMPADELLO, Pier. Templários: sua Origem Mística. São Paulo: Madras, 2006.
DAIX, Pierre. Fernand Braudel: uma Biografia / Tradução de Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: RECORD, 1999.
DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalários e outras
Ordens Militares na Idade Média (sécs. XI-XVI) / Tradução de André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores, 2002.
D‟HAUCOURT, Geneviève. A Vida na Idade Média / Tradução de Marisa Déa. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.
DUARTE, Adriana da Silva. O Sentido Religioso do Mito. O Estado de São Paulo, São
Paulo, 25 abr. 1992. Caderno Cultura.
359
DUBY, Georges. A História Continua / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor / Editora UFRJ, 1993.
FLORI, Jean. A Cavalaria: a Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média / Tradução de
Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, 2005.
FRANCHINI, A. S; SEGANFREDO, Carmen. Gilgamesh: o Primeiro Herói Mitológico /
Recriação da lenda suméria por A. S. Franchini e Carmen Seganfredo. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 2008.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões sobre
Mentalidade e Imaginário”. In: Signum: Revista da ABREM Associação Brasileira de
Estudos Medievais, n. 5, 2003 (Homenagem a Jacques Le Goff).
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o Cotidiano e as Idéias de um Moleiro Perseguido
pela Inquisição / Tradução de Maria Betânia Amoroso e José Paulo Paes; Revisão técnica de
Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia. 8. ed. Petrópolis: Vozes, s/d.
________. História do Mundo Feudal II/2 Civilização. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001.
JAEGER, Werner. Paidéia: a Formação do Homem Grego / Tradução de Artur M. Parreira. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval / Tradução de José Rivair de
Macedo. Bauru: EDUSC, 2005.
________. As Raízes Medievais da Europa / Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes,
2007.
________. “Sonhos”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático
do Ocidente Medieval Vol. II. / Coordenador da Tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru /
São Paulo: EDUSC / Imprensa Oficial do Estado, 2002.
LINS, Ivan. A Idade Média: a Cavalaria e as Cruzadas / Prefácio de Afrânio Peixoto. Rio de
Janeiro: Coeditora Brasílica, 1939.
PASCHOAL, Alfredo. Templários: História da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do
Templo de Salomão. São Paulo: Madras, 2006.
PASTOUREAU, Michel. No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda: França e Inglaterra,
séculos XII e XIII / Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras / Círculo do
Livro, 1989. (Coleção Vida Cotidiana.)
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Vol. I: Cultura
Grega. 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes,
concedida à Rubenita Moreira, em 05/06/06. Fortaleza: (mimeografado), 2006.
________. Lindes Disciplinares da Teoria da Residualidade. Fortaleza: (mimeografado) [s/d].
________. Poesia Insubmissa Afrobrasilusa. Rio de Janeiro / Fortaleza: Oficina do Autor /
Edições UFC, 1999.
________. “Três modos de tratar a memória coletiva nacional”. In: Literatura e Memória
Cultural Anais do 2º Congresso da ABRALIC, vol. II, pp. 149-159, Belo Horizonte, 1991.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2001.
RÉGNIER-BOHLER, Danielle. “Ficções: Exploração de uma Literatura”. In: DUBY,
Georges (org). História da Vida Privada Vol. II: da Europa feudal à Renascença / Tradução
de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
RALLS, Karen. Os Templários e o Graal / Tradução de Paulo Soares e Cynthia Cortes. 2. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2005.
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. 15. Lisboa: Publicações Europa-
América, 1992. (Coleção Saber.)
360
TÉTART, Philippe. Pequena História dos Historiadores / Tradução de Maria Leonor
Loureiro. Bauru: EDUSC, 2000. (Coleção História).
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego / Tradução de Manuela Torres.
Lisboa: Teorema, 1997.
__________ (dir). O Homem Grego / Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa:
Editorial Presença, 1993.
WANDERLEY, Jorge. Literatura”. In: JOBIM, José Luìs (org.). Palavras da Crítica:
Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. (Coleção Pierre
Menard.)
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Tradução de Waltemir Dutra. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1979.
ZINK, Michel. Literatura(s)”. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval Vol. II. / Coordenador da Tradução: Hilário Franco Júnior.
Bauru / São Paulo: EDUSC / Imprensa Oficial do Estado, 2002.
361
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo