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2
ELISENE CASTRO MATOS
CAZUMBAS:
Etnografia de um personagem do
bumba-meu-boi
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal do Maranhão
para obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti
SÃO LUÍS
2010
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Matos, Castro Matos
Cazumba: Etnografia de um personagem do Bumba-meu-boi / Elisene
Castro Matos. - São Luís, 2010.
142fl.
Dissertação (Pós-Graduação em Ciências Sociais)
– Curso de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade
Federal do Maranhão, 2010.
1.Bumba-meu-boi 2.Cazumba 3.Festa 4.Ritual. 5. Maranhão.
CDU: 7.067.26:39
4
ELISENE CASTRO MATOS
CAZUMBA:
Etnografia de um personagem do
bumba-meu-boi
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais da Universidade Federal do
Maranhão, para obtenção do título de
Mestre em Ciências Sociais.
Aprovada em 19/02/2010
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti
(orientador)
______________________________________________
Prof
ª
. Dra. Mundicarmo Ferretti
______________________________________________
Profª. Dra. Madian de Jesus Pereira
5
À memória de Sinésio Mendonça e a
todos os brincantes de Cazumba da
Turma de bumba-meu-boi Proteção de
São João, que conheci ao longo dessa
caminhada, em especial Quita e Mário
Cazumba.
6
AGRADECIMENTOS
"Não sou nada. Nunca serei nada,
não posso querer ser nada.
À parte isso,
tenho em mim todos os sonhos do mundo".
Fernando Pessoa
Quem além de nós acredita em nossos sonhos? Sonhos, porém, precisam de
cúmplices, de pessoas que esperem em nossos devaneios. Hoje posso dizer que, além de mim,
muitos sonhadores confiaram e construíram comigo um trabalho sobre os Cazumbas da
cidade de Penalva. Este resultado é sem dúvida fruto de inúmeras parcerias, algumas desde as
primeiras motivações, em 2003, outras que surgiram ao longo desses anos de pesquisa.
Quero começar os agradecimentos pelos atores deste trabalho: os homens que
brincam vestidos de Cazumba. Agradeço especialmente: José Ribamar dos Santos (Zé Quita),
Mário Marques (Mário Cazumba), Fábio Furtado, José da Conceição Santos Marinho (Zé
Caçota) e Raimundo da Costa (Camaleão),
Em seguida agradeço dona Matilde Braga e sua filha Claudilene Anchieta
Mendonça (Lena), pelo carinho e atenção que me deram em todos os dias da pesquisa.
Também minha prima Suelma Matos, pela acolhida em sua casa e colaboração à distância.
Meus agradecimentos a partir de agora são para os demais sonhadores, com quem
compartilho a autoria deste trabalho:
Ao Deus que eu acredito e que acompanha todos os dias minha bela vida.
Aos meus pais, Limeira e Elineide Matos, que respeitam as escolhas e os caminhos
que invento.
À Lívia, minha sobrinha querida, inteligente, imaginativa e alegre, que com suas
dúvidas de criança sobre os Cazumbas, fez-me repensar várias vezes os passos desse trabalho.
À minha irmã, Elineusa Matos, competente professora e que colaborou com o
abstract deste trabalho. E seu esposo, Djalma Rodrigues, pelo apoio quando necessário.
À Rafaela Matos, minha geniosa e querida irmã, confiante nos Cazumbas e nas
coisas que eu faço.
À Ariel Tavares, primeiro colega de turma, depois namorado e em breve
companheiro, que ajudou criticamente e de maneira muito sensível e relevante este trabalho.
Um sociólogo que nada sabia dos Cazumbas e ainda assim entendia e colaborava com minhas
limitações antropológicas.
7
À professora Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, pela sensibilidade e
ajuda primordial que foi me orientar quantos aos aspectos a serem trabalhados na pesquisa.
Também agradecer o apoio durante minha estada na cidade do Rio de Janeiro, onde tive a
oportunidade de falar sobre o então desconhecido Cazumba.
À Sérgio Figueiredo Ferretti, orientador, professor, a quem tenho muito respeito e
admiração. Agradeço primeiramente o aceite dessa pesquisa, depois a dedicação e o respeito
pelas minhas idéias e pelo texto.
Aos professores do mestrado em ciências sociais da UFMA.
À FAPEMA, pelo apoio com a bolsa de estudos.
Aos amigos Rafael Gaspar, Luciana Vilela, Enne Lima e Socorro Fortes, pela
afinidade e amizade que permanecem após o mestrado;
Aos amigos Thiago Alberto, Hamilton, Valdir e Wheriston Neres, que no início
eram apenas colegas de turma e hoje bons amigos.
Às amigas de trabalho, das festas populares e pesquisadoras que contribuíram para
esta pesquisa: Maria Michol Carvalho, Lenir Pereira e Izaurina Nunes. E ao amigo Jandir
Gonçalves, pelas produtivas conversas.
À amiga Josinelma Rolande, pela sinceridade quando da leitura deste trabalho,
pelas conversas e pela amizade de longas datas.
À Flora Moana, pelas trocas e conversas sobre os Cazumbas. Também pela
acolhida em sua cidade e pela amizade que permanece.
Ao amigo Fábio Costa, pela logística do trabalho e sincera amizade ao longo de
mais de dez anos.
Ao amigo Edgar Rocha, pelo carinho, amizade e ajuda sempre que preciso.
Ao amigo Fábio Ribeiro Lima, pelas correções gramaticais e melhoria no texto.
Aos amigos e amigas dos momentos bons da vida: José Raimundo, Cleudecy
Costa, Flávia Andresa, Carol Aragão, Clícia Abreu, Elizabeth Serra e seu esposo Flanklin,
Nonato dos Santos, Geysa Santos, Mayra Medeiros, Miryan Guterres, Leude Brandão,
Andrezza Brasil, Daniel Oliveira, que com suas boas energias me fortificaram durante esse
prazeroso tempo em que estive afastada das rodas de conversas.
8
[...] toda manifestação do impulso de
produzir mais beleza e aumentar assim o
prazer de qualquer fase da vida, que é
como tal reconhecido por um povo, deve
ser aceita pelo investigador da cultura
como esteticamente válido, recebendo,
por conseguinte, a designação de ‘arte’.
Melville J. Herskovits
9
RESUMO
O presente estudo, realizado na cidade de Penalva, região da Baixada Maranhense, Estado do
Maranhão, tem por objetivo apresentar uma etnografia do personagem Cazumba e das pessoas
que o interpretam na turma de bumba-meu-boi Proteção de São João do Anil. Trata-se de
uma figura dramática, que utiliza como trajes uma máscara em formato animalesco e uma
longa túnica, além de possuir funções específicas na brincadeira.
A descrição e análise desta pesquisa é conduzida a partir de 3 pontos: no primeiro capítulo
apresento a composição social e organização interna da turma de bumba-meu-boi da qual
fazem parte os brincantes de Cazumba pesquisados. No segundo capítulo apresento uma
descrição do personagem e das pessoas que o interpretam, bem como seu processo de
elaboração enquanto objeto artístico e simbólico. No terceiro capítulo delineio o caráter
performático do personagem a partir da descrição de um ritual denominado morte de
esbandalhar. Esta pesquisa constitui-se ainda como um desdobramento de investigações
acerca das suas características artísticas, feitas no mesmo município, nos anos de 2003 a 2006.
Palavras-chave: Bumba-meu-boi. Cazumbas. Pessoas. Festa. Ritual. Maranhão.
10
ABSTRACT
This study, conducted in the city of Penalva, region of Maranhão State, State of Maranhão,
aims at presenting an ethnography of Cazumba character and people who interpret the class
"Bumba-meu-boi Protection of St. John of Anil. This is a tragic figure, which uses as a mask
and costumes, form an animal-and long tunic, and have specific functions in the game.
A description and analysis of this research is conducted from three points: the first chapter I
discuss the social composition and organization of the class Bumba-meu-boi in which the
participants will form part of Cazumba surveyed. In the second chapter I present a description
of the character and the people who interpret and their development process as an artistic and
symbolic. The third chapter outlines the performative character of the character from the
description of a ritual called the death of esbandalhar. This research is still as an offshoot of
research into its characteristics, made in the same county, in the years 2003 to 2006.
Keywords: Bumba-meu-boi. Cazumbas. People. Feast. Ritual. Maranhão
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1 Dona Matilde 35
Foto 2 O boi 38
Foto 3 Dona Maria 38
Foto 4 Bailantes 39
Foto 5 índias 39
Foto 6 Caubóis 39
Foto 7 Cazumbas 39
Foto 8 Marcações, tamboretes e zabumbas 42
Foto 9 Dona Iracir Pereira 50
Foto 10 Boi sendo levado de volta para a sede 50
Foto 11 Lena aguardando a chegada do boi 50
Foto 12 Altar 52
Foto 13 Bailantes e Dona Maria 56
Foto 14 Brincantes de Cazumba escondendo o rosto 57
Foto 15 Caretas embrulhadas para não serem vistas antes da apresentação 57
Foto 16 Brincante que guardava o boi 59
Foto 17 Boi coberto pela sua saia 59
Foto 18 Dona Maria caminhando até a sede com o boi 59
Foto 19
Maria Domingas, mãe de dona Matilde, aguardando a chegada do boi
59
Foto 20 Cazumbas no início da apresentação 68
Foto 21 Personagem Cazumba (veste completa - frente) 72
Foto 22, 23, 24 e 25 Caretas dos Cazumbas 73
Foto 26, 27 e 28 Fardas dos Cazumbas 74
Foto 29 e 30 Torres fixadas sobre as caretas dos Cazumbas 85
e 86
Foto 31 Lena bordando a farda dos Cazumbas 88
Foto 32 Brincantes de Cazumba 96
Foto 33 Homem confeccionando o boi 110
Foto 34 Familiares do falecido no altar 110
Foto 35 Homens esbandalhando o boi 110
Foto 36 Homem segurando a cabeça do boi 110
12
SUMÁRIO
Lista de ilustrações
11
INTRODUÇÃO
13
Primeiras experiências: um começo desajeitado
15
A experiência da pesquisa de campo: tema, objetivo e
metodologia
21
1.
TURMA DE BUMBA-BOI PROTEÇÃO DE SÃO JOÃO:
composição social e organização ritual
29
1.1 Ê Boi! Breves dimensões de um folguedo maranhense
29
1.2
A Turma Proteção de São João: dimensões sociais, rituais e
festivas
33
1.2.1
Ritual e festa para São João: ensaio e apresentações
47
Ensaio 47
Apresentações
54
2.
CAZUMBAS: Pessoas e Personagens
66
2.1 O Personagem: apontamentos gerais sobre o Cazumba no
bumba-meu-boi
67
2.1.1
O visual: aspectos das vestes do Cazumba
71
2.1.2
A confecção do artefato Cazumba
80
2.2
Os Cazumbas da turma proteção de São João: Pessoas e
Personagens
92
2.2.1 Pessoas 92
2.2.2 Personagem: as faces dos Cazumbas
101
3.
MORTE DE ESBANDALHAR: Ritual e Sociabilidade dos
Cazumbas
107
3.1 Comentários sobre uma experiência anterior 107
3.2 Os Cazumbas na Morte de Esbandalhar: observações
preliminares
113
3.3 Promessa feita, promessa cumprida: A realização do ritual da
morte de esbandalhar pela turma Proteção de São João
115
3.3.1 O ritual: festa, rezas e morte
119
CONCLUSÃO
134
REFERÊNCIAS
139
13
1. INTRODUÇÃO
Olha, a gente é devoto muito de São
João. Eu particularmente fico
pedindo assim uma provação de São
João e eu consigo. Tem gente que
brinca porque gosta e tem outros
que brinca por devoção. É igual eu,
eu brinco por devoção, devoção a
São João.
(Zé Quita – brincante de Cazumba)
O presente trabalho tem como principal objetivo apresentar uma etnografia de um
grupo de pessoas que interpretam o personagem Cazumba no bumba-meu-boi Proteção de
São João do Anil
1
do município de Penalva, região da Baixada Maranhense
2
, Estado do
Maranhão. Trata-se de uma figura dramática, que utiliza como trajes uma máscara, também
chamada de careta em formato animalesco e uma longa túnica bordada com miçangas, paetês
e canutilhos. Na brincadeira
3
ele dança, faz travessuras e possui funções específicas, como
veremos ao longo do trabalho.
O depoimento usado como epígrafe descreve a devoção que vivenciei junto
àqueles que interpretam este personagem na turma
4
Proteção de São João. Não apenas eles,
mas grande parte dos que a integram, expressaram sua religiosidade nos bordados fixados
sobre as vestes, nas ladainhas proferidas pelos mais velhos e na imagem do santo São João
carregada pelas ruas, proclamando que a noite será de festa. Assim como a chegada do santo,
que quando colocada sobre o altar anuncia a vinda da turma e convida a comunidade a tomar
1
A turma localiza-se no bairro do Anil, em Penalva, daí o nome “Proteção de São João do Anil”. No decorrer do
trabalho será utilizado somente o nome “Proteção de São João”, tendo em vista que informalmente é chamado
pelos integrantes desta forma.
2
A Baixada Maranhense é assim denominada por ser uma região de campos baixos, possuindo numerosos rios,
lagos e campos alagados. Economicamente essa região sobrevive da agricultura e pesca. Dividida em 21
municípios, temos como os mais conhecidos: Pindaré, Penalva, Pinheiro, Viana, São João Batista, São Vicente
de Ferrer, Arari, Anajatuba, Cajarí, Monção, Matinha, Pinheiro, Santa Helena e Cajapió.
3
No universo popular, os folguedos são comumente chamados de ‘brincadeira’, e ambos os termos assinalam
com propriedade, as dimensões lúdica e festiva que caracterizam a variedade desses processos culturais.
Cavalcanti (2009:93). Assim como o termo ‘brincadeira é utilizado aqui como uma categoria nativa que se
refere à manifestação do bumba-meu-boi, utilizarei em todo o texto, outros termos nativos, sendo os mesmo
identificados em itálico e quando necessário definidos em nota de rodapé ou no próprio texto.
4
Categoria nativa utilizada quando se referem aos grupos de bumba-meu-boi da cidade, ou seja, todas as pessoas
que integram o grupo formam uma turma. Também um grupo composto apenas por brincantes de Cazumbas é
chamado turma de cazumbas.
14
parte no ritual, neste momento, convido também o leitor para adentrarmos juntos neste
universo que agrega o personagem Cazumba na turma de bumba-meu-boi Proteção de São
João. Antes, porém, devo voltar alguns anos até as origens do presente trabalho.
seis anos venho realizando pesquisas acerca do bumba-meu-boi maranhense,
especialmente sobre o personagem Cazumba e suas características estéticas. Minha inserção
no curso de Educação Artística, no ano de 2000, na UFMA
5
teve grande influência nos
primeiros apontamentos sobre este personagem, que, assim como eu, agora transita entre as
artes e as ciências sociais.
No início de 2003 veio a primeira oportunidade de estudo sobre manifestações
populares, quando do meu estágio no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho
(CCPDVF). Durante os dois anos de aprendizado fui monitora nos três museus (Casa da
Festa, Casa do Maranhão e Casa de Nhozinho). Na época, conheci e vivenciei melhor as
festas populares e suas características, como a musicalidade, as danças, os ritos festivos, os
símbolos, as vestes, os cantos, as personagens, os mestres, os adereços, entre outras.
Inicialmente, o que me chamou atenção no universo dessas manifestações, foram
umas máscaras em formato animalesco utilizadas por brincantes
6
do bumba-meu-boi. A
variedade de formas e cores me fez atentar para aspectos relacionados às artes plásticas, como
a criatividade, o uso de elementos visuais, as composições e o fazer artístico daquelas pessoas.
Durante a graduação até participei de uma disciplina de antropologia, porém, não me
interessei naquele momento. Na verdade, não consegui ao certo saber o que vinha a ser
antropologia. Hoje me conforto ao saber que o próprio Geertz (2001, p. 86) diz que uma das
vantagens da antropologia como empreitada acadêmica é que ninguém, nem mesmo os que a
praticam, sabe exatamente o que ela é.
Foi somente quando da minha segunda ou terceira viagem ao campo, para as
pesquisas da monografia, que percebi, ainda superficialmente, uma aproximação entre as artes
e as ciências sociais. Por muitos dias fiquei ouvindo sobre a vida dos meus entrevistados, seus
afazeres, suas relações com os santos; a quem eram muito devotos e ao final, uma sensação de
frustração por não saber como lidar com essas informações. Definitivamente, naquele
5
A escolha pela arte foi motivada, num primeiro momento, pela possibilidade de dar continuidade aos estudos
de dança, visto que na época eu era bailarina e professora, profissão que curiosamente abandonei logo no início
do curso, me interessando então pelas artes plásticas e apenas sendo simpática ao teatro e à dança. Infelizmente,
havia uma divisão clara de áreas de estudos, onde cada aluno deveria ao final escolher sua habilitação: artes
plásticas, artes nicas ou desenho. Largada nesse confuso campo das artes, simplesmente fui me inscrevendo
nas disciplinas que de alguma maneira me pareciam interessantes. Como não queria mais ser bailarina, não tinha
talento para ser atriz, nem tampouco artista plástica, optei após o quarto período por fazer pesquisas sobre a
cultura popular utilizando dos meus conhecimentos nas artes visuais.
6
Nome dado àqueles que integram a brincadeira.
15
momento, eu não era a pessoa mais capacitada para elaborar uma pesquisa antropológica: era
apenas uma estudante de artes querendo observar os elementos artísticos daquelas festas. Com
o passar dos anos, fui aos poucos arquivando informações e concebendo esta dissertação,
mesmo sem ainda ter estivesse adentrado outra área de estudos. Hoje eu consigo dizer, com a
segurança que não tinha anteriormente, que as manifestações populares observadas ao longo
desses anos compreendem formas artísticas e relações sociais, criatividade e crenças,
elementos visuais e simbologia, percepção visual e práticas sociais, teatro e representações.
O caminho percorrido até agora entre estas duas áreas (Artes e Ciências Sociais)
está sendo prazeroso e acima de tudo um importante aprendizado, no sentido de que, se
tratando de uma ou de outra, estava me relacionando com pessoas que vêem na festa o sentido
das suas vidas, que labutam por todos os meses do ano para em determinada época celebrarem
coletivamente suas devoções aos santos juninos, elaborando artística e simbolicamente seus
artefatos.
Primeiras experiências: um começo desajeitado
Quando me refiro a um começo desajeitado penso nas primeiras pesquisas no
município de Penalva em maio de 2003, ano em que começava a pensar no trabalho de
conclusão do curso de graduação em Educação Artística. A primeira visita se constituía, ao
mesmo tempo, em um retorno à minha cidade natal, e às lembranças da minha meninice, onde
vivi até os dez anos, quando então vim morar em São Luis. Voltar depois de tanto tempo à
Penalva acabou criando em mim uma expectativa de reencontrar os lugares onde passara parte
da minha vida, mas ao mesmo tempo tinha um objetivo muito especifico: fazer minha
pesquisa monográfica. Assim, a primeira viagem ocorreu por ocasião da festa “Quinta de
Ascensão”
7
, pois os relatos entusiasmados de pessoas que haviam participado em anos
anteriores, diziam que nas apresentações participava um grupo de bumba-meu-boi, onde eu
7
Esta festa é celebrada tradicionalmente há mais de quarenta anos na cidade, por uma senhora chamada
Raimunda dos Santos Campos, conhecida como Dona Zuquinha. Trata-se de um grande acontecimento de
caráter religioso e popular que ocorre quarenta dias após a Semana Santa no calendário católico, em
comemoração à ascensão de Jesus ao céu. (‘Quinta-feira da Ascensão’ é uma data do calendário litúrgico
católico e ocorre sempre 40 dias após a Páscoa Nesta data em muitos lugares, é costume se erguer o mastro
para a Festa do Divino pela semelhança simbólica entre ascender de Cristo e erguer o mastro Informação Prof.
Sérgio Ferretti).
16
poderia observar os Cazumbas, juntamente com as Caixeiras do Divino
8
e participantes de um
grupo de tambor de mina
9
.
Na ocasião, eu não era uma estranha, pois nasci e passei parte da infância vivendo
entre a cidade e os campos alagados que até hoje a circulam. No meio das lembranças, havia o
período junino, onde ouvia e observava na companhia do meu pai as turmas de bumba-boi.
Do personagem Cazumba não lembrava quase nada, apenas do medo que ele incutia quando
avançava bruscamente em minha direção com sua máscara animalesca e uma veste longa, que
além de deformar seu corpo, dava-me a sensação de pavor.
Dessa forma, importava naquele momento de retorno, quase quinze anos
depois, revê-los, reconhecê-los e presenciar aquela festa, que se repete ciclicamente uma vez
por ano, somente durante dois dias. Na nova condição de pesquisadora, os moradores e
familiares me trataram como se nunca tivesse sido de lá. Para eles, e até certo ponto para
mim, foi um completo estranhamento.
Acomodada na casa de parentes paternos, meu acesso às turmas de bumba-boi
ocorreu, inicialmente, através desse vínculo. Sempre nas saídas para campo era acompanhada
por algum primo ou tio, possíveis informantes, que se sentiam na obrigação de indicar os
locais e pessoas que poderiam ser entrevistadas. Naquele momento, os principais problemas
eram suas opiniões e preconceitos sedimentados e inevitáveis, uma vez que não
participavam da brincadeira. Vez por outra, nas conversas, comentavam que não viam beleza
alguma nas turmas nem nada de admirável que pudesse ser estudado. Sobre a pesquisa,
informei que tinha interesse em escrever sobre o personagem Cazumba e que gostaria que me
apresentassem àquelas pessoas que o interpretavam. Como resposta eles apenas sorriam e me
davam a impressão de que aquilo não era importante.
Depois de algumas visitas, tendo como guias meus parentes que moravam na
cidade, fui aos poucos prescindindo desse acompanhamento/ monitoramento e criando certa
independência, o que me permitiu ser acolhida por brincantes de outras turmas de bumba-boi
além das conhecidas pelos meus familiares. Com essas novas turmas me identifiquei e com
elas permaneci até os últimos dias da pesquisa, no ano de 2003
10
. Agora, eram os próprios
8
Senhoras que tocam caixas em homenagem ao Divino Espírito Santo.
9
Casa de mina, ou tambor de mina, é a designação popular, no Maranhão, para o local e para o culto de origem
africana que, em outras regiões do país, recebe denominações como candomblé, xangô, batuque, macumba etc. é
o nome de uma das religiões afro-brasileiras desenvolvidas por antigos escravos africanos e seus descendentes.
Ver FERRETTI (2009).
10
Naquele período soube da existência em Penalva, cerca de quinze grupos de Bumba-boi, chamado por eles de
turmas de Bumba-boi”. Como grande parte deles encontravam-se em povoados, tive oportunidade de pesquisar
apenas 5 grupos, que foram: Proteção de São João”, “Boi Duvidoso”, Boi Linda Promessa de São João,
Brilho de São Joãoe União do Povo”. Cada grupo tinha em média de 150 a 200 participantes e embora com
17
brincantes do personagem Cazumba meus interlocutores, entrevistados e amigos. Até hoje, a
impressão daqueles dias, desde a acolhida até as conversas informais, os gestos e o
comportamento deles, permanecem atuais e densos. Recentemente
11
, de posse de algum
conhecimento sobre os sistemas de relações sociais, pude repensar aspectos dessa
convivência.
Naquele momento, o que interessava era o personagem Cazumba, se possível,
conversar com alguns dos seus brincantes. Fui tomada, como todo pesquisador, por certa
ansiedade, tensão, conforme me aproximava do quase desconhecido objeto de pesquisa.
Lembro daquele primeiro dia de contato como se fosse ontem: cheguei à festa
“Quinta de ascensão” muito cedo, por volta das 7 horas da manhã. Queria o quanto antes me
aproximar das pessoas e ser aceita. Logo percebi que, durante o evento, seria difícil fazer
entrevistas e que minha tentativa obstinada seria inútil para conseguir algum material para a
pesquisa. Fui notada como uma estranha, com uma mochila nas costas, um caderno e lápis na
mão e olhos curiosos, que vagavam pelas imagens presentes no local. Meu acompanhante me
apresentou a várias pessoas, dando informações superficiais
12
de quem eu era e o que estava
fazendo. Acredito que, de qualquer modo, eles não entenderiam naquele momento quais eram
os meus propósitos, que nem mesmo eu os sabia ao certo. Comecei por fazer perguntas
soltas, como “O senhor é Cazumba?” “O que esse personagem faz na brincadeira?”, “Desde
quanto brinca?” “Com quem aprendeu?”, “Quem faz sua vestimenta?”, a fim de não entrar
diretamente no assunto sobre o personagem. Alguns deles estavam ocupados em suas
obrigações com a festa. Porém, não foi difícil observá-los e obter dados através das conversas
que tínhamos entre uma tarefa e outra e até mesmo registrar algumas falas nativas
características parecidas, como o uso dos mesmos tipos de instrumentos e personagens, decidi na metade da
pesquisa concentrar os estudos em dois grupos: Proteção de São João e União do Povo”. O primeiro por
possuir o maior número de brincantes de Cazumbas (cerca de 20 homens), e também pela grande preocupação
que tinham em relação às mudanças na indumentária e o segundo por ter surgido de uma promessa feita por
Dona Zuquinha, que além de ser dona da turma de boi e de um grupo de Caixeiras do Divino, era a organizadora
da festa “Quinta de Ascensão”, referência cultural na cidade. Em todos os grupos pude identificar a grande
devoção que eles m por Santo Antônio, São Pedro, São Marçal, mas principalmente por São João. Em cada
apresentação, a imagem deste santo é carregada por uma senhora, que representa o personagem chamado de
Dona Maria. Ela, estando à frente do grupo encaminha os brincantes até o altar, onde todos realizam rezas antes
das apresentações. Também observei que realizam um único ensaio antes das apresentações, realizadas no
período que vai de 23 a 29 de junho. Apresentam-se na sede e nas portas das casas das pessoas que os convidam,
não havendo pagamento pela mesma, apenas o oferecimento de comidas e bebidas aos brincantes. Observei
ainda que para cada apresentação, a pessoa que recebe o grupo prepara um altar em sua porta, onde será
colocado o santo carregado pelos participantes.
11
Durante as disciplinas do mestrado procurei associar as leituras ao material que tinha guardado durante as
primeiras pesquisas de campo, resultando em trabalhos de conclusão de disciplinas sobre o personagem
Cazumba, a partir das leituras feitas em sala de aula.
12
Estava acompanhada por um tio, chamado Plínio Matos, que me apresentou como sua sobrinha, filha do seu
irmão, que morava na cidade de São Luís e que queria saber informações sobre o personagem Cazumba.
18
relacionadas ao personagem, como careta, quando se referem à máscara que o Cazumba
utiliza na apresentação e farda, túnica bordada que completa sua composição visual e
performática.
Raimunda dos Santos Campos ou dona Zuquinha, como é conhecida a
organizadora da festa, me cedeu um pouco do seu tempo e indicou os brincantes da sua turma
de bumba-boi, que desde minha chegada se mostravam interessados em conversar, mesmo tão
ocupados. Sua casa era o ponto de concentração e o local principal da festa. Era que as
pessoas vindas de outros povoados ficavam hospedadas, se alimentavam e se preparavam para
as apresentações, feitas dentro e fora da casa por toda a noite. Durante o dia, a movimentação
ficava por conta principalmente das mulheres, que preparavam as comidas ao fundo do
quintal, lugar colado à casa, onde costumam criar animais domésticos, como galinhas, porcos,
patos e cultivar diversas espécies de fruteiras e plantas. As comidas eram normalmente
cozidos de carne de porco, carne de boi e arroz, tudo em grande quantidade, servidas
praticamente durante todo o dia aos festeiros
13
. Aos homens cabia a tarefa de pegar lenha
tanto para o preparo da comida, como para esquentar os instrumentos, que eram tocados
incessantemente, independente se era ou não hora da festa. Faziam isso boa parte do dia em
frente ao cemitério da cidade, que ficava paralelo com a casa onde ocorria a promessa.
Também eram os homens que preparavam as bebidas e ajudavam quando os caminhões e pau-
de-arara
14
chegavam com os festeiros, aqueles que integram a festa, vindos de povoados
próximos ou mesmo de outros municípios. Na ocasião, era impossível identificar quem
naquela multidão de pessoas era brincante de Cazumba. Foi preciso esperar até as primeiras
horas da noite, quando praticamente todos apareceram em suas vestes.
A festa, originada de uma promessa
15
feita por dona Zuquinha, é vista na cidade
como um grande acontecimento de caráter religioso e popular em homenagem ao Divino
Espírito Santo. Dona Zuquinha reúne durante os dois dias em que celebra a “Quinta de
Ascensão” sua turma de bumba-boi
16
, conhecida como Turma de Zuquinha ou União do
Povo, seu grupo de mulheres Caixeiras do Divino, denominado Leão do Norte e traz, como
convidado, um grupo de Tambor de Mina do município de Viana. A festa tem início numa
13
O sentido de festeiro aqui diz respeito àquelas pessoas que participam da festa, são integrantes do grupo.
14
Forma de transporte irregular, usado principalmente na região do Nordeste.
15
Quando criança, Dona Zuquinha não gozava de muita saúde, tinha febre constantemente, falta de apetite e aos
8 anos de idade fez sua primeira promessa ao Divino Espírito Santo para obter sua cura. Inicialmente, era pra ser
feita apenas em um ano, mas como obteve a graça do Divino, até hoje realiza com muito prazer sua festa.
16
A Turma de bumba-boi também surgiu a partir de uma promessa. Dona Zuquinha, que ficou durante cinco
anos sem poder andar, devido problemas no joelho, resolvendo então entregar sua doença ao santo São João,
prometendo que caso ficasse boa iria fazer-lhe um boi como pagamento pela graça recebida. Ficou curada, pagou
sua promessa e há mais de trinta anos apresenta sua turma de bumba-boi pra comunidade.
19
quinta-feira, com a salva de foguetes logo que o dia amanhece. Na verdade, foram os foguetes
que me acordaram avisando que estava na hora de ir a campo. Em seguida ocorre a missa e,
no começo da tarde, o que eles denominam como o momento principal que é a corrida de
ascensão, feita por diversas embarcações decoradas que atravessam o Rio Cajarí e levam os
brincantes das turmas de bumba-boi União do Povo, o grupo de Caixeiras do Divino Leão do
Norte, os integrantes do Tambor de Mina e convidados até ao o pontão, local de embarque e
desembarque de canoas que trazem peixes para serem vendidos no mercado. Ao
desembarcarem seguem caminhando pelas ruas da cidade, retornando até a casa da Dona
Zuquinha, onde os grupos fazem apresentações simultâneas
17
por toda a noite. Finalmente
pude observar os brincantes de Cazumbas em suas vestes. Eram 15 homens naquela noite,
contudo fiquei sabendo que nem todos eram integrantes da turma União do Povo, mas de
outras turmas da cidade e que podiam participar tranquilamente daquela festa vestidos do
personagem. Além da indumentária que os destacavam dos demais, também o comportamento
ousado, brincalhão e provocativo com o público davam conta de que aqueles eram os
Cazumbas. Como a apresentação da turma de bumba-boi era feita na rua, em frente à casa da
dona Zuquinha, eles ocupavam todos os espaços possíveis, dançando e tentando assustar as
pessoas. Com o passar das horas, aos poucos alguns já cansados desistiam da festa,
acomodando-se nas calçadas próximas, enquanto que outros apenas retiravam a careta e
seguiram brincando por toda a noite, porém mais lentamente.
Aquelas imagens, hoje me relembram um ambiente de vida coletiva incomum.
Três grupos de naturezas distintas, com pessoas de diferentes lugares, reuniam-se
especialmente para o pagamento de uma promessa. Ainda de modo intuitivo, apliquei
determinados métodos de coleta, característicos da análise antropológica, tais como:
entrevistas, anotações sobre como se dava cada momento da festa e registros fotográficos.
Naquele ano, em 2003, havia cerca de quinze turmas de bumba-boi, cada uma
com aproximadamente 150 a 200 componentes, grande parte oriunda de povoados ou
municípios próximos. Eram pessoas com idades entre 35 e 65 anos, que, no período junino,
rezavam, cantavam, dançavam, tocavam e bebiam cachaça por toda noite em homenagem a
São João.
Uma vez dentro da festa, os brincantes começavam a dar sentido às minhas
primeiras perguntas sobre o personagem Cazumba: quem era aquele personagem na
17
Os três grupos se apresentam simultaneamente em locais próximos. Assim, os integrantes do Tambor de Mina
dançam em uma sala ampla, na residência da organizadora da festa; enquanto os participantes do bumba-meu-boi
brincam na rua, em frente à casa. As Caixeiras do Divino, por sua vez, apresentam-se no interior de outra
residência, na mesma rua.
20
brincadeira? Qual o seu papel/função? E qual a noção de estética, tento em vista a notável
composição visual da indumentária utilizada por ele? Esta última pergunta, orientou dessa
forma, os dois anos seguintes (2004 e 2005) da pesquisa, realizados naquele município com
seis grupos de bumba-boi
18
. Fui seduzida pela beleza e pelo aspecto assustador, presente tanto
no visual do personagem quanto em seu desempenho durante as apresentações. Quis entender
as atividades artísticas, como a dança, as artes plásticas, a música e o teatro, que envolviam
seu universo místico e sua criatividade.
O mais interessante é que, mesmo com as perguntas direcionadas para os
aspectos artísticas do personagem Cazumba, essas questões traziam respostas sobre as demais
qualidades dele não explorados naquela época.
Acompanhei ensaios, apresentações e, o que é mais importante, conversei com
vários brincantes que interpretavam o personagem Cazumba, fato que permitiu apreender
algumas de suas particularidades, bem como me inteirar de outros aspectos, como o
econômico, o social e o organizacional, comportados pela festa.
Em outras palavras, nas conversas que tive com os homens que interpretavam o
Cazumba, me ocorreram uma série de novas questões. Fui a campo pensando em estudar o
aspecto artístico e ao fazê-lo me dei conta da relevância de outras características que ele
apresentava na brincadeira, como: a rotina das pessoas que o encenam, suas relações de
parentesco, as motivações, principalmente religiosas, que o fazem entrar e permanecer na
brincadeira, o sentido da festa, suas ações emocionais e seu comportamento coletivo e
individual naqueles grupos.
Uma experiência única, por vezes angustiante e cheia de dúvidas. Com o
andamento das pesquisas, pude perceber deficiências em meu estudo que demandavam novas
investigações
19
. No último dia de convívio com os brincantes de Cazumbas decidi deixar de
lado o lápis, o caderno, o gravador e a máquina fotográfica e me envolver como espectadora
somente, apreciando, entre outras coisas, a beleza, os gestos e a dança daquele que seria um
complexo e prazeroso tema de pesquisa. Essa primeira experiência, finalizada em março de
2006, mesmo ‘desajeitada’ me ajudou a pensar na continuidade do trabalho e no retorno
àquele município nos anos seguintes.
18
Foram pesquisados os seguintes grupos: “Proteção de São João”, “Boi Duvidoso”, “Boi Linda Promessa de
São João”, “Brilho de São João” e “União do Povo”.
19
Talvez as deficiências se justifiquem pela ausência de uma analise antropológica daquele personagem, tendo
em vista que priorizei estudos acerca dos seus aspectos estéticos, ficando a análise do Cazumba (homens que o
interpretam e o personagem) incompleta.
21
A experiência da pesquisa de campo: tema, objetivo e metodologia
Minha proposta de pesquisa para o mestrado foi dar continuidade ao trabalho de
campo que vinha desenvolvendo sobre o personagem Cazumba, mais precisamente fazer uma
etnografia do personagem a partir do grupo de pessoas que o interpretam. Saber, por exemplo,
quem são essas pessoas, qual a importância do personagem no ritual desta manifestação, bem
como entender o processo de elaboração do artefato Cazumba.
O caráter espetacular da sua performance, seja na dimensão ritual ou festiva, me
impressiona e posiciona meu olhar para seus aspectos antropológicos enquanto brincantes e
personagens.
A decisão de permanecer com a pesquisa no município de Penalva, dessa vez
como mestranda de ciências sociais, se deu por conta do acesso e familiaridade que tinha
construído com os participantes da turma de bumba-boi Proteção de São João. Contou na
escolha, por exemplo, o fato do grupo possuir a maior quantidade de brincantes de Cazumbas,
cerca de 18 homens, além de serem admirados e respeitados pelos participantes de outras
turmas. Essa admiração, e ao mesmo tempo competição, é favorecida pelas inovações que os
brincantes de Cazumba dessa turma trazem, a cada ano, para a vestimenta. Outro fato foi o
falecimento do seu Sinésio, fundador do grupo. Nos dois anos que fiquei sem visitá-los
pessoalmente, pude acompanhar as dificuldades e as perdas de membros importantes, o que
vem ocasionando mudanças no grupo. Também não posso deixar de considerar as relações
pessoais que passei a manter com os participantes após a primeira pesquisa, quando então
soube que meus pais eram compadres dos donos dessa turma e amigos próximos de outros
membros, que além de me aceitarem facilmente, faziam questão de dizer que lembravam de
mim quando criança.
Bem, mas antes de continuar, gostaria de dizer algumas palavras sobre Penalva,
local onde esta pesquisa se desenvolveu. Segundo Barros (1985, p. 19), a cidade foi povoada
inicialmente por índios Gamelas. Fundada em 1871, como o nome de Vila São José de
Penalva, o município possui duas explicações para seu nome. A primeira, considerada pelo
autor, uma lenda, explica que a origem do nome foi motivada pelo espírito religiosos dos
moradores no início de sua colonização, onde fora encontrado a imagem de São José
conduzindo a figura de uma “pena alva”. A segunda explicação, é de que as vilas, por
influência dos colonizadores tinham nomes de santos como as cidades de Portugal, o que
22
torna provável que a denominação “Penalva” refira-se a alguma cidade portuguesa
20
.
Atualmente conta com uma população estimada em 40 mil habitantes
21
, sendo a maioria
residente na área urbana. Com ruas estreitas e alguns comércios entre as casas, Penalva é uma
cidade pequena, onde as pessoas vivem principalmente da pesca e do trabalho na roça
22
,
comum aos municípios da Região da Baixada.
No meio deste cenário, os belos campos alagados, que dão acesso através de
pequenas embarcações a outros lugares, chamados de povoados, habitados por poucas
famílias, que entre outras coisas organizam-se entre o período do cultivo e o período dos
festejos. São lugares onde as mulheres quebram coco babaçu, ajudam na lavoura e na criação
de animais, juntamente com os homens
23
. Sobre a cultura, se sobressaem as festas religiosas e
populares, com destaque para o festejo de São José – padroeiro da cidade, os festejos juninos,
com a apresentação das turmas de bumba-boi, além de bailes para São Gonçalo e o festejo de
São Benedito. Por vezes, a caminho da sede do grupo, vinham lembranças dessas festas que
acompanhei na infância. Sensações de familiaridade e estranhamento freqüentemente me
acompanhavam nesse percurso até o final da rua. Hoje observo Penalva como um lugar
parecido com tantos outros daquela região, que começa no rural em um ambiente de vida
mais simples e termina no urbano no contexto de vida mais movimentado e moderno, por
exemplo. Vale destacar que os participantes desta pesquisa residem entre esses dois universos:
o rural e o urbano.
Curiosamente, na primeira incursão, senti certa insegurança, um sentimento de
responsabilidade maior com o trabalho de pesquisa. Talvez um medo em relação às
entrevistas, superado à proporção que me aproximava das pessoas que iria conviver.
Em relação à metodologia, realizei um estudo etnográfico com as pessoas que
integram a turma Proteção de São João, em especial aquelas que interpretam o personagem
Cazumba. Foram cinco viagens ao município de Penalva em 2009 e uma viagem no início de
2010. A primeira, no período de 23 a 28 de maio, além de estreitar as relações com os
participantes da turma, o que proporcionou a confiança recíproca necessária para o
20
Ver: Barros (1985).
21
Informação obtida no site da FAMEM Federação dos Municípios do Estado do Maranhão -
http://www.famem.org.br/ Acesso dia 19/05/2009.
22
Roça é o nome dado aos locais onde se planta, cultiva e colhe mandioca, milho, arroz e macaxeira para
sustento próprio daqueles que vivem nos povoados. É ainda sinônimo de trabalho coletivo, lugar das conversas,
lugar de pensar as festas, promessas e celebrações populares. Para um entendimento mais completo sobre a vida
camponesa. Ver PRADO (2007).
23
Ver PRADO (2007).
23
desenvolvimento da pesquisa, foi oportuno me aproximar do cotidiano deles. Também foi o
momento das primeiras entrevistas. Nesse período acompanhei o dia a dia da responsável pela
turma, Dona Matilde, seu trabalho como comerciante, roceira
24
, suas relações com os
moradores próximos, parentes e os demais participantes da turma. Igualmente conversamos
por um longo tempo sobre sua trajetória como atual responsável do grupo de bumba-boi, as
dificuldades e os prazeres obtidos com a festa. Visitamos ainda a sede que fica ao lado da sua
casa, e percorremos as casas de suas duas filhas que naquele período se reúnem todas as
tardes para bordar as vestes dos brincantes. Observar o cotidiano das pessoas, de posse agora
de leituras das Ciências Sociais, foi fundamental para perceber que entre a festa do bumba-
meu-boi e o mundo social delas, existem articulações importantes a serem estudadas.
Quando retornei a campo pela segunda vez, foi somente para acompanhar o único
ensaio da turma, realizado do dia 12 para o dia 13 de junho. Aquele foi um momento
interessante para apreender o personagem Cazumba numa situação de aparente igualdade com
os outros brincantes. Isso porque com a ausência da vestimenta, não é possível distingui-lo de
imediato em relação aos demais, somente quando faz uso do chocalho
25
e inicio aos seus
movimentos corporais específicos, pude perceber que se tratava do personagem pesquisado.
A terceira viagem, no período de 23 a 27 de junho, foi para acompanhar as
apresentações. Dia 23 eles fazem a primeira que deve ser realizada na porta do Patrão
26
, ou
seja, na casa do responsável pela brincadeira. Nos outros dias, as apresentações se seguem a
partir dos convites recebidos, chamados por eles de contrato. Ocorrem sempre nas portas das
casas e algumas são realizadas em povoados próximos. Acompanhei-os em quatro das cinco
apresentações que teriam neste ano durante o período que comemoram os festejos juninos (23
a 25 de junho), sendo as quatro realizadas na cidade de Penalva. A exceção foi a que se
realizou do outro lado do rio, dia 24, onde os brincantes foram transportados em diversas
embarcações por volta das 18 horas e retornariam na manhã do dia seguinte. Meu principal
motivo de não acompanhá-los foi o medo de atravessar o rio nas pequenas embarcações.
Dessa forma, fiz apenas o registro fotográfico da saída do grupo às margens do rio, optando
por acompanhar as apresentações dos demais grupos de bumba-boi, suas características e,
caso necessário, compará-las ao grupo pesquisado. A quarta visita à turma foi nos dias 25 e
24
Pessoa que trabalha na Roça.
25
Sineta cônica feita de ferro que se prende ao pescoço de animais. O personagem Cazumba utiliza o chocalho,
tocando-o durante sua performance corporal na apresentação. O som produzido é agudo e serve ainda para
acompanhar os demais instrumentos.
26
Personagem que representa o dono do boi. Também chamado de Amo, ele aparece na narrativa do auto, como
sendo o dono da fazenda e do animal que é sacrificado pelo Nego Chico. Para maior entendimento, ver:
CARVALHO (1985). Tratarei mais adiante sobre as funções do Patrão na turma Proteção de São João.
24
26 de julho, para acompanhar uma apresentação em comemoração ao dia de Santana e
também para solucionar algumas dúvidas que ainda restavam sobre as apresentações.
A última viagem, feita entre os dias 22 e 25 de janeiro de 2010, foi de certa
maneira um retorno imprevisto, mas necessário. Mesmo com a pesquisa finalizada e impressa
para correções sentia ainda insegurança em relação a alguns pontos do segundo e terceiro
capítulo. Durante a viagem, que dura em média de 5 a 6 horas, aproveitei para reler todo o
texto, fazer novas interrogações e observações. De volta, refleti o quanto foi importante essa
última visita, primeiro pela felicidade que tiveram em ver o trabalho praticamente pronto,
segundo pela oportunidade que tive de ler parte da dissertação e corrigir junto com eles alguns
trechos à medida que fazia a leitura e terceiro porque muita coisa nova aconteceu nos últimos
meses e ainda havia tempo para incluir no trabalho. Percebi muita emoção da parte deles,
principalmente quando relatava seus depoimentos durante a leitura. Faziam sinal afirmativo,
concordando com o que ouviam e sempre nas pausas comentavam sobre a escrita do texto
perguntando como eu consegui escrever exatamente aquilo que falaram”. Resolvi então
explicar de maneira simples como foram os procedimentos metodológicos para essa parte da
pesquisa: relembrei-os que as entrevistas foram gravadas, que depois eu ouvia e transcrevia
suas falas, utilizando-as em seguida no texto. Como entre suas falas havia as citações de
alguns autores, como o Geertz e Mauss, tive ainda que comentar sobre cada um deles. Por fim
recebi de presente, na despedida do grupo, uma cabeça
27
de um boi de promessa
28
e duas
carcaças de couro que cobriam tambores.
Mais independente que nos anos anteriores, percorri de um extremo a outro a
cidade e algumas de suas ruas quase inacessíveis pela lama e buracos que cercavam as casas.
A pesquisa se concentrou principalmente na Rua Cavour Maciel, no bairro do Anil, local da
sede e de moradia de grande parte dos brincantes. Trata-se de um longo percurso, com início
na rua principal da cidade e término nas margens de um rio, que acesso a outros povoados
próximos. Suas casas e a sede localizam-se ao final desta rua, próximo ao rio. Uma rua larga,
porém muito irregular e de difícil acesso no período das chuvas.
Durante o trabalho de campo, utilizei um caderno de anotações, uma máquina
fotográfica, um gravador digital e um notebook. Os registros audiovisuais foram em maior
número no período das apresentações, onde pude contar com a ajuda de uma amiga, também
27
A cabeça foi feita de madeira e coberta por veludo preto. Seus chifres são de um boi de verdade e também
cobertos por veludo. Há na testa uma estrela bordada por miçangas brancas. Disseram-me que o boi se chamou
“linda jóia de São João”.
28
Quando o artefato boi é confeccionado especialmente por ocasião do pagamento de alguma promessa. Em
geral eles costumam destruí-lo após o cumprimento da mesma.
25
aluna do mestrado, Luciana Vilela. Realizei um total de sete entrevistas gravadas em áudio,
seis transcrições, além de algumas conversas coletivas com os brincantes do personagem
Cazumba. Os entrevistados foram: Matilde Braga Anchieta, conhecida como dona Matilde,
atualmente responsável pela turma de bumba-boi Proteção de o João, função antes
ocupada pelo fundador e também esposo falecido Sinésio Mendonça; Mário Marques,
conhecido como Mário Cazumba, é o cabeceira
29
do grupo formado pelos brincantes; José
Ribamar dos Santos, conhecido como Quita, exerce a função de Cazumbá, ou Cazumba
principal
30
no ritual da morte de esbandalhar
31
; José da Conceição Santos Marinho,
conhecido como Caçota, é brincante de Cazumba e também o artesão que esculpe as
torres de isopor colocadas sobre a máscara do personagem; Raimundo da Costa ou Camaleão,
brincante de Cazumba da turma União do Povo e artesão que confecciona o queixo de
madeira (máscara) do personagem; Claudilene Anchieta Mendonça, conhecida como Lena,
filha da Dona Matilde e do Seu Sinésio, é casada com o brincante de Cazumba Quita,
também é integrante da turma e borda as indumentárias utilizadas pelos personagens; João
Batista Mendonça, conhecido como Seu Batista, que interpreta o vaqueiro no ritual da morte
de esbandalhar.
Destes citados, tomo como meu principal interlocutor com o mundo dos
Cazumbas, o brincante Quita, não somente por exercer um papel especial no ritual da
morte, mas pela disposição como aceitou e ajudou na pesquisa, tanto na condição de
entrevistado, como de informante. Ele me aproximou dos demais e intermediou naturalmente
nossas conversas em grupo.
Além das entrevistas digitais, registrei em vídeo algumas conversas em grupos, fiz
registros audiovisuais do ensaio, das rezas, bem como das apresentações na sede e em outros
locais da cidade. Gravei em áudio as ladainhas e toadas
32
cantadas no ensaio, além de ter feito
cópia de alguns CDs de músicas de anos anteriores e de um DVD
33
com o vídeo do ritual da
morte de esbandalhar, cedidos gratuitamente pela Dona Matilde. As imagens, cerca de 300
fotografias, registram a confecção das indumentárias, instrumentos, o dia-a-dia daquela
comunidade, o ensaio, a preparação e chegada dos brincantes, as rezas e as apresentações. O
grupo possui uma cópia de parte desse material, entregue no final do mês de julho.
29
Pessoa que fica a frente do grupo de Cazumbas. É o primeiro da fila e também responsável pela apresentação
dos homens que interpretam o personagem.
30
Cazumbá, com o acento na última letra ‘a’, trata-se na concepção deles do brincante mais importante dentre os
Cazumbas. O principal, aquele que exerce funções distintas dos demais.
31
Ritual de morte do boi realizado por motivo de promessa. Faz parte do ritual, destruir o artefato (boi) para que
a promessa se concretize. O capítulo 3 trata especificamente da Morte de Esbandalhar.
32
Composições musicais produzidas especialmente para serem cantadas no grupo.
33
O DVD com duração de 2h40’ foi produzido por Mackson Ney Cardoso Sousa no ano de 2008.
26
Os procedimentos metodológicos utilizados aqui foram escolhidos por parecerem
capazes de nortear a pesquisa. No trabalho de campo, percebi que tão importante quanto as
entrevistas, foi acompanhá-los no dia-a-dia, nas madrugadas, nas apresentações, percorrer
com eles os povoados distantes, e, ao final perceber a importância que aquela festa tem para
suas vidas. Uma convivência prazerosa, um aprendizado sem livros. Experiência única, que,
por vezes, exigiu a compreensão de coisas que não podem ser racionalmente explicadas.
No início, um dos grandes problemas que enfrentei, foi a atitude dos homens que
interpretavam os Cazumbas, que, diferentemente do comportamento apresentado pelo
personagem, eram bastante reservados. Alguns, inclusive, tinham sido entrevistados nas
pesquisas anteriores e, naquele momento, estranhamente, essas pessoas sentiam-se acanhados.
Talvez o fato de estarem diante de alguém que lhes falava sobre seu personagem de modo
inusitado, os intimidasse a princípio. A vergonha de falar era acompanhada de certa
dificuldade de expressão. Eu tratava os mais jovens de modo informal, o que facilitava o
diálogo, e chamava os mais velhos de senhores ou senhoras. Eles gostavam e davam sinal de
que é assim que as pessoas de mais idade devem ser tratadas.
Em geral, quando eu chegava, estava sendo aguardada por diversos brincantes,
principalmente os que interpretam os Cazumbas. Não era uma estranha no grupo, contudo,
alguns ainda não me conheciam. Eram os mais jovens, que entraram nos últimos dois anos na
turma e isso me obrigou a fazer uma nova apresentação. Disse-lhes que era formada em artes
e, atualmente, estudante do mestrado em ciências sociais. Estava ali para saber um pouco mais
sobre eles e sobre o personagem Cazumba. As respostas vinham em forma de riso e olhares
desconfiados, principalmente porque disseram não ver naquilo que praticavam alguma
importância para serem estudados. O que faziam, segundo eles, se tratava apenas uma
brincadeira. Também o entendiam o que é pesquisar Cazumbas. Após seus comentários
expliquei de maneira simples o que fazia profissionalmente e o que pensava acerca do
personagem, recebendo em seguida sinais de compreensão.
Aos poucos fui me adaptando às conversas
34
que tínhamos informalmente,
sentados na calçada da sede ou na casa de algum deles. Elas rendiam tanto quanto as
entrevistas individuais, servindo também para que eu observasse as palavras peculiares
utilizadas por eles quando se referiam à manifestação.
Além das nossas conversas, assistimos ao vídeo sobre a morte de esbandalhar,
ouvimos o Cd com as toadas deste ano, também saímos certo dia para uma pescaria, além de
34
Conversávamos principalmente sobre suas apresentações, funções na festa e suas vestes, que anualmente são
trocadas e estimula a competição entre eles.
27
dividirmos peixe frito com farinha enquanto conversávamos sobre as travessuras do
personagem. Na maioria das ocasiões que estivemos reunidos eu era a única mulher entre
eles, um grupo de homens que interpretavam Cazumbas. Percebi algumas vezes, quando os
acompanhava nas apresentações, certo ciúme por parte das meninas da turma. Fiquei sabendo
depois que era comum o namoro entre eles e que minha presença, às vezes, incomodava.
Na última apresentação que acompanhei, os vi como personagem apenas.
Mantiveram comigo um comportamento diferente de quando não estavam com as vestes.
Mais soltos, descontraídos, faziam questão de se exibir, alargar os movimentos e serem
registrados pela máquina fotográfica. Percebi como a indumentária mudara suas
personalidades. Ao final, parti com a estranha sensação de que me despedi apenas do
Cazumba e não dos homens que o interpretavam.
Apresento a seguir as partes deste trabalho. Não que o veja de maneira dividida;
mas apenas para situar melhor esse grande universo simbólico vivido pelas pessoas que
interpretam o personagem Cazumba. Não foi minha intenção, e seria humanamente
impossível, esgotar as pesquisas a seu respeito. Quero destacar que todas as pessoas aqui
citadas apresentaram gratuitamente informações sobre suas vidas e sobre a dimensão
simbólica da festa que vivenciam anualmente.
Dessa forma, inicio este trabalho descrevendo o contexto social e ritual da
representação da turma de bumba-meu-boi Proteção de São João. Dividi o mesmo em duas
partes. Abordo no primeiro capítulo, de maneira breve o bumba-meu-boi maranhense; num
esforço de aproximar o leitor do tema e questões a serem tratadas ao longo da dissertação,
bem como descrevo o bumba-meu-boi Proteção de São João em suas dimensões sociais,
rituais e festivas. O objetivo é estabelecer uma primeira aproximação com a turma, tal como a
encontrei durante o trabalho de campo e sua relação com os homens que interpretam o
personagem Cazumba.
Em seguida, no segundo capítulo, trato das pessoas que interpretam o personagem
Cazumba e do próprio personagem em sua atuação cênica na turma Proteção de São João.
Entretanto, inicio com uma análise geral sobre o personagem e suas características estéticas,
bem como a confecção do personagem, denominado aqui de artefato Cazumba. Mais adiante
abordo os Cazumbas da turma de bumba-boi Proteção de São João, primeiramente a partir
das pessoas que o interpretam e em seguida o personagem. Descrevo as pessoas que atuam
como personagem Cazumba, observando como se definem enquanto pessoas, como aprendem
e vivenciam o personagem Cazumba. Apresento características de suas vidas, o sentido, a
28
importância, suas diferentes experiências no contexto da brincadeira e a competição existente
entre eles.
O último capítulo diz respeito à atuação do personagem Cazumba no ritual da
Morte de Esbandalhar. Neste ponto, situo o personagem num importante momento de sua
atuação cênica na brincadeira. neste ritual, entre outras coisas, a possibilidade de vê-lo no
papel de outro personagem, que é o Pai Francisco. Depois apresento as conclusões cerca do
trabalho e as referências bibliográficas.
29
1. TURMA DE BUMBA-BOI PROTEÇÃO DE SÃO JOÃO: composição social e
organização ritual
Neste primeiro capítulo, descrevo o contexto social e ritual da representação da
turma de bumba-meu-boi Proteção de São João. Trata-se do início das explicitações acerca
do trabalho de campo elaborado com a colaboração de diversos interlocutores, com os quais
divido a construção deste trabalho. O capítulo divide-se em duas partes: na primeira abordo de
maneira breve o bumba-meu-boi maranhense, num esforço de aproximar o leitor do tema e de
questões a serem tratadas ao longo da dissertação. Na segunda parte, com base na categoria
turma e nas mesmas dimensões analisadas anteriormente, descrevo o bumba-meu-boi
Proteção de São João em suas dimensões sociais, rituais e festivas. O objetivo é estabelecer
uma primeira aproximação com a turma tal como a encontrei durante o trabalho de campo e
sua relação com os homens que interpretam o personagem Cazumba. Chamo atenção para a
existência no decorrer do texto de uma narrativa particular: trata-se de uma turma de bumba-
meu-boi de natureza própria, dinâmica e controlada pelos seus participantes.
1.1 Ê Boi! Breves dimensões de um folguedo maranhense
No Maranhão, o São João é uma festa dotada de características comuns nos
lugares onde se comemora e o bumba-meu-boi é a manifestação de maior destaque nesse
período, se apresentando em praticamente todas as regiões do Estado, com características e
formas rituais distintas. Fazer boi, brincar de boi, ser boieiro, são categorias criadas por
aqueles que vêem neste folguedo, dimensões simbólicas que representam diferentes aspectos,
como a religiosidade popular, pagamentos de promessas, obtenção de graças, diversão ou
simplesmente uma festa. Carvalho (2009, p. 117), em suas pesquisas sobre o boi destaca:
Dos milhares de maranhenses que anualmente participam do bumba-meu-boi,
muitos o fazem para pagar promessas dirigidas a, e supostamente atendidas por,
São João, ao qual se crê agradar com a oferta dos bois de brincar. Suas motivações
místicas e religiosas, contudo, não se chocam com as dimensões de lazer, jogo,
diversão, teatro e festa, com a fartura de comidas e bebidas, e com os excessos e
gozos corporais que reforçam o caráter lúdico dessa celebração popular.
Designada por Mario de Andrade (1982, p. 23) como uma dança dramática, a
brincadeira apresenta uma narrativa que, em termos gerais, descreve a morte e ressurreição
30
do boi
35
. Chamada ainda de auto, tal narrativa é comumente vista como um espetáculo
cômico, bonito e capaz de dar sentido à vida daqueles que a re-elaboram todos os anos.
Sabe-se que as pesquisas a seu respeito comportam as mais distintas análises,
desde questões referentes às políticas culturais, tradição e modernidade, origens,
características, variações de estilos, personagens, até reflexões sobre qual o seu lugar na
sociedade moderna
36
. Atualmente, constitui, como destaca Carvalho (2007, p.117) um
verdadeiro idioma cultural no Maranhão, capaz de organizar falas, ações, pensamentos e
relações tanto entre os brincantes quanto na sociedade em sentido amplo.
Pesquisadores como Lima (1995); Pinho de Carvalho, 1995; Carvalho 2005;
Araújo, 1996; Azevedo Neto, 1983; Vieira Filho, 1977; Prado, 2007; para citar alguns, são
referências nos estudos sobre o bumba-meu-boi maranhense. De maneira geral, quando se fala
desta manifestação, um ponto comum entre eles é a descrição do auto, que possui como
personagens centrais o Pai Francisco ou velho Chico, Mãe Catirina e o Boi Mimoso, Estrela
ou Barroso, que dão ao enredo diferentes maneiras de celebrar a morte e ressurreição do
animal. Lima (1995, p.5), por exemplo, descreve da seguinte maneira:
Basicamente em todos os grupos (ressalvadas as pequenas diferenças), o enredo
(auto) é o seguinte: Pai Francisco – escravo e vaqueiro de confiança do seu amo – o
dono da fazenda é obrigado a furtar e matar o boi de estimação do senhor para
tirar-lhe a ngua, obedecendo aos apelos e “desejos” de Mãe Catirina, sua mulher,
que encontrava-se grávida. Fato consumado, chega ao conhecimento do amo, que
enraivecido, manda fazer sindicâncias através de vaqueiros e índios para descobrir a
verdade e o autor do crime. Pai Francisco, é, então, encontrado, trazido preso, e por
exigência do amo, morrerá caso não venha a “dar conta” do boi. Segue-se, então,
uma verdadeira pantomima, cujo teor e finalidade de processos mágicos, com a
ajuda de Pai Francisco, ressuscitam o boi. O boi “urra” novamente por entre o
contentamento geral. Pai Francisco é perdoado e os brincantes entoam nticos de
louvor, dançando em volta do animal na comemoração desse milagre da
ressurreição.
Por outro lado, como destaca Cavalcanti (2009, p. 113):
Ao contar essa história, os narradores de ontem e de hoje não falam apenas da
morte e da ressurreição de um boi simbólico (...). De alguma forma, o boi-artefato
precisa ‘sumir’ e, por vezes, reaparecer em algum momento das performances. Ao
se agregar em torno desse boi que a todos vincula, o grupo de brincantes deseja,
sim, perdurar e sobreviver no tempo. A narração de origem, não é, portanto, aquela
da brincadeira tal como efetivamente surgiu e aconteceu no passado. Essa narração,
em vez disso, é a ativação no presente de operações simbólicas que definem a
moldura ritual da brincadeira, ou seja, o boi que morre e ressuscita assinala e
35
Artefato que possui em sua armação o formato de um boi. É feito de diversas matérias-primas naturais como
buriti, paparaúba, jeniparana, entre outras, recoberta de veludo bordado com canutilhos, miçangas, paetês,
pedrarias etc. É a figura central na representação do auto dramático.
36
Ver tese: Carvalho (2005); Dissertação: Vasconcelos (2007); Monografia: Sousa (2003); e Pinho de Carvalho
(1985).
31
instaura a temporalidade cosmológica do ritual, recriada ano após ano no contexto
dos festejos dos santos juninos.
A narrativa é também denominada em alguns municípios do Estado de matança
37
,
comédia, palhaçada, morte-de-terreiro ou morte-de-levantar, sendo a Baixada Maranhense
região que apresenta muitas variedade, como acréscimo de outros personagens e ainda os
dramas vividos no cotidiano e no imaginário dos grupos. Por hora, fico com a narrativa do
brincante falecido Marciano Nunes (1926-2007), da turma “Proteção de São João”, que no
ano de 2006, me fez o seguinte relato quando perguntado sobre como eles representavam a
história do boi:
É na hora de matar o boi, na morte de levante, né? Mode que se chama aqui morte
de levantar.o Pai Francisco faz o papel dele, porque ele matou o boi porque
Catirina tava desejando comer um pedaço do fígado, não teve outro jeito,
então ele matou o boi pra tirar um pedaço do fígado, depois então ele vai ser preso.
Tem as toadas e depois que prende ele, tem o chefe da turma que libera a prisão
dele. que vão tirar a língua pra pra dona da casa, pra depois então chamar o
doutor pra dá receita que é pro boi levantar pra brincar de novo. O boi adoece. É
a morte de levantar que se chama.
Sobre o registro do bumba-meu-boi, as autoras Prado (2007), Pinho de Carvalho
(1995) e Araújo (1996), transcrevem informações que o primeiro foi documentado em um
periódico de Recife/Pe, chamado “O Carapuceiro”, escrito pelo padre Miguel do Sacramento
Lopes. O registro data de 11 de janeiro de 1840 e as referências feitas à festa a denominam
como tola, estúpida e destituída de graça. Em pesquisas recentes, feita pelo Instituto de
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / IPHAN do Maranhão, foram localizados jornais e
documentos maranhenses com referências ao bumba-meu-boi em inícios do século XIX
(décadas de 1820 e de 1830). Da parte dos brincantes, pelo menos daqueles que venho
pesquisando nos últimos seis anos, esta não é por certo uma questão relevante, tendo em vista
que, segundo os mesmos, o essencial é aquilo que foi dito pelos mais antigos, ou seja, que o
folguedo teve suas origens no lugar onde vivem até hoje.
A despeito do ciclo festivo
38
, o bumba-meu-boi ocupa os meses que vão de abril,
quando começam os ensaios, a outubro, quando acontece o ritual de morte do boi. As
apresentações se concentram nos meses de junho e julho, agrupando nesse período um
número maior de pessoas, de diferentes regiões e classes sociais. Os ensaios, primeiro
momento de reunir as pessoas que integram a brincadeira, seguem até 13 de junho, dia de
37
Sobre Matança
ver artigo: CARVALHO (2009).
38
Ver: PRADO (2007).
32
Santo Antônio. Em seguida, vem o batizado, realizado véspera de São João, dia 23 de junho.
Este é momento em que o boi recebe simbolicamente a permissão para se apresentar. Pronto
para as apresentações, que vão de 24 a 30 de junho, os grupos organizam-se para a morte do
boi, que exige da comunidade uma preparação com bastante antecedência, visto que esta
chega a ter duração de uma semana. A morte, assim como o batismo do boi, é uma ação
simbólica, e encerra oficialmente as apresentações.
É importante deixar claro que esses momentos da brincadeira, denominados por
Prado (2007) e por Pinho de Carvalho (1995, p. 105) de ciclos, diferenciam-se em datas e
meses dependendo do grupo ou da região onde a manifestação popular é realizada.
Atualmente, com as novas políticas culturais e a organização institucional dos próprios
grupos, é possível, por exemplo, assistir às apresentações na capital maranhense por dois ou
três meses consecutivos, ou em qualquer mês do ano, dependendo do grupo e dos contratos
propostos para os mesmos. Isso tem favorecido acalorados debates cujos temas são
“dinâmica”, “tradição” e “modernidade”, tanto no meio acadêmico como entre os próprios
brincantes
39
.
Em relação às suas características, o bumba-meu-boi se apresenta com diferentes
ritmos, instrumentos musicais, personagens e indumentárias. Tais particularidades, quando
somadas, constituem o que se convencionou chamar de sotaques, a citar: de Guimarães ou
Zabumba, da Ilha ou de matraca, de Costa-de-mão ou Cururupu, de Orquestra ou do Munim e
de Pindaré ou da Baixada Maranhense (Pinho de Carvalho, 1995).
Mesmo com a crescente demanda turística e criação de novas políticas culturais
voltadas para inserir a brincadeira como “um produto cultural” nos circuitos de
apresentações, observo que a configuração da mesma nos municípios maranhenses possui
caracteres que destoam em vários aspectos dos grupos de bumba-boi da capital. Eles surgem
por diversos motivos e em diferentes lugares, e por isso mesmo com características tão
peculiares, ou seja, há grupos de bois por quase todas as regiões do Estado, porém com
qualidades que os individualizam, o que dificulta o enquadramento dos mesmos na
classificação dos sotaques. Conforme observações de Sousa (2003, p. 5) trata-se de uma
manifestação:
39
Em novembro de 2009, o Governo do Estado organizou, através da Secretaria Estadual de Turismo, um evento
denominado “Bumba Ilha”, com a presença de diversos grupos de bumba-meu-boi de diferentes sotaques que
tocaram na parte de cima de um trio elétrico na Avenida Litorânea. Foram distribuídas camisetas, denominadas
Couro de Boi”. Acompanhei algumas discussões no rum Municipal de Cultura, realizado no final do mês de
outubro e várias pessoas se manifestaram contrários ao evento.
33
Cultural que envolve teatro, representações de determinados segmentos sociais,
identidades, estética, lutas políticas e simbólicas. É possível, inclusive, encará-la
como fato social total (MAUSS: 1974). Tentando abarcar os valores sentimentais,
estéticos, religiosos, econômicos e morais presentes nas representações e nas
práticas das pessoas envolvidas direta ou indiretamente com a manifestação, prefiro
denominá-la, ao invés de folguedo, dança-dramática, ou, simplesmente, dança, uma
celebração.
Dessa forma, é compreendendo esses vários planos expressivos da brincadeira
que me debruço a partir de agora sobre a Turma de bumba-boi Proteção de São João,
dedicando-me especialmente a um dos seus personagens: o Cazumba.
1.2 A Turma Proteção de São João: dimensões sociais, rituais e festivas
Pai Nosso que estás no Céu
Santificado é teu nome
Essa é a minha espada que Jesus deixou
Pra me defender
Pai Nosso que estás no Céu
Santificado é teu nome
Essa é a minha espada que Jesus deixou
Pra me defender
Bendito são os teus frutos
Que a vida inteira já nos dá pra nós colher
Ave Maria cheia de graça e rogai por nós
Não deixa os seus devotos morrer
Bendito são os teus frutos
Que a vida inteira já nos dá pra nós colher
Ave Maria cheia de graça e rogai por nós
Não deixa os seus devotos morrer
Os versos, escritos e cantados pelo brincante de Cazumba Quita, de certa
maneira falam de um aspecto importante nessa festa e que veremos ao longo do trabalho: a
religiosidade daqueles que participam. Esta toada, chamada Pai Nosso, foi a primeira que
ouvi da turma Proteção de São João quando então chegava para iniciar a pesquisa de campo.
O objetivo principal era fazer uma etnografia de um grupo de pessoas que interpreta o
personagem Cazumba, ou seja, conhecê-los, entrevistá-los, criar uma relação que me
possibilitasse entender quem são, quantos são, o que fazem, de que maneira desempenham
34
sua performance quando da vivência como personagem e quem os fazem enquanto artefato
simbólico e artístico. Entretanto, isso não seria possível sem antes conhecer o contexto social,
ritual e festivo do grupo que integram, bem como suas relações com os demais personagens e
pessoas que atuam na brincadeira e fora dela.
A turma Proteção de São João surgiu no final da década de 70, quando alguns
companheiros de boiada, ou seja, homens que estavam acostumados a acompanhar e brincar
nas turmas de bumba-boi da cidade decidiram criar sua própria turma. O grupo foi liderado
por Sinésio Mendonça, fundador e patrão da turma até o ano de sua morte, em janeiro de
2007, quando completaria 60 anos. Inicialmente, a turma se apresentava apenas no dia de
Santana, dia 26 de julho. Com o passar do tempo, o grupo foi se tornando um dos maiores da
cidade, reunindo cerca de trezentos brincantes nos primeiros anos, a maioria integrante de
outras turmas, que naquela época contavam mais de vinte em todo o município. Antes de ter
sua própria turma, seu Sinésio, brincante desde os onze anos, participou de outras, sendo em
algumas, apenas integrante, e em outras exercendo a função de chefe do batuque
40
num
povoado chamado Santo Antônio. Além da turma eles organizaram alguns anos depois um
grupo de Tambor de Crioula
41
chamado Unidos Venceremos, atualmente com cerca de 20
participantes e apresentações constantes.
A turma foi registrada em cartório no dia 24 de junho 1992 com o nome de
“Associação de Bumba-meu-boi Proteção de São João”. Todos os brincantes possuem uma
ficha de identificação, com nome, endereço, nome de pai e mãe, grau de instrução, função que
ocupa no grupo e espaço para foto. Ao total, incluindo aqueles que faleceram, ele guardam
cerca de 350 fichas. Popularmente o grupo recebe diversos nomes como: turma do Anil,
turma de Sinésio ou turma Proteção de São João, sendo atualmente uma das principais da
cidade.
Os participantes em geral são pessoas da família, amigos, visinhos, tendo ainda ao
longo dos anos congregado pessoas de povoados próximos e mesmo de outros grupos da
cidade. Atualmente, a turma de Sinésio, conta com aproximadamente 200 integrantes e está
sob a responsabilidade da viúva, Matilde Braga Anchieta, de 53 anos, chamada pelos
brincantes de dona Matilde ou dona Marta (foto 1). Eles, que antes de casados, se cruzaram
muitas vezes nas apresentações de bumba-boi de outras turmas, ficaram juntos por quase 23
anos. Da união vieram sete filhos e oito netos, grande parte integrante e com funções na
brincadeira. Duas de suas filhas, Claudilene Anchieta (Lena) e Jucivânia Anchieta
40
Pessoa responsável pelos brincantes que tocam os instrumentos.
41
Ver: Ferretti (2002).
35
(cumadinha) são casadas com os brincantes de Cazumbas José Ribamar (Quita) e Paulo
Cesar respectivamente. O filho de Lena e Quita, chamado Klevenny Simplício, de apenas
quatro anos, já observa e repete os movimentos feitos pelo pai.
A turma possui atualmente cerca duzentos participantes, divididos entre
personagens e admiradores que a acompanham. Os personagens em geral são onze:
1. O boi (foto 2), artefato manipulado por um homem que fica embaixo de sua
armação, chamado de miolo, alma ou espírito do boi. É feito com aros de
ferros, madeira, esteira
42
e espuma, sendo recoberto de veludo preto bordado
43
significando seu couro. Utiliza uma barra de tecido branca após o couro,
chamada saia e outro tecido também branco embaixo do seu pescoço que
42
Objeto feito de uma fibra natural chamada junco. É comumente utilizada no lombo de animais para não
machucá-los.
43
Em geral, os bordados são aplicações feitas com miçangas, canutilhos e paetês sobre um tecido aveludado.
Bordam diferentes tipos de imagens, destacando-se principalmente figuras religiosas e elementos da natureza.
Foto 1: Dona Matilde.
Arquivo pessoal, 2005.
36
recebe o nome de toalha. Sua cabeça é esculpida em madeira, coberta por um
veludo preto e alguns bordados. Seu chifre é verdadeiro, ou seja, é retirado da
carcaça de uma rês. Atualmente quem representa o papel de miolo na turma é
o seu Sebastião Lira Mendes, de 56 anos;
2. A burrinha, artefato manipulado por um homem que a coloca na altura da
cintura, presa por alças colocadas sobre os ombros do brincante, que se veste
ainda com uma calça preta, camisa manga longa e um chapéu bordado. É feita
toda em madeira e papelão, sendo recoberta ainda por veludo preto bordado,
porém com um bordado mais simples que aquele aplicado no couro do boi. A
burrinha é interpretada por seu Ribamar Nunes, de 63 anos;
3. A Catirina, personagem feminino interpretado por um homem, representa a
escrava que deseja comer o fígado do boi na narrativa do auto. Não observei
este personagem durante as apresentações, porém eles sempre enfatizavam a
existência dele no auto. Na última visita ao grupo fiquei sabendo que também
é o seu Ribamar Nunes que interpreta este papel;
4. O Pai Francisco, personagem encenado por Quita, de 34 anos. Ele é o
brincante que interpreta também o ‘Cazumba principal’, como eles costumam
chamá-lo, utilizando inclusive a mesma vestimenta, apenas sendo retirada a
máscara para que o mesmo seja identificado como Pai Francisco. É o esposo
da Catirina e responsável pela morte do animal.
5. O Patrão, normalmente interpretado por um homem, representa o dono da
fazenda. É ele quem canta as toadas durante as apresentações. Veste-se com
calça de cetim vermelha e camisa manga longa branca. Atualmente quem
interpreta o papel de Patrão é dona Matilde, fato que explicarei mais adiante;
6. A Dona Maria esposa do Patrão (foto 3), encarregada de conduzir o boi e a
imagem do Santo São João durante as apresentações. Na turma duas
senhoras que vivenciam esse personagem: dona Teodora Martins, de 66 anos e
dona Maria da Conceição, de 69 anos. Esta última representa o papel de Dona
Maria desde a fundação do grupo, sendo ela a que mais atua. Dona Teodora
exerce a função apenas quando dona Conceição não pode, ficando algumas
vezes com a obrigação de segurar o quadro de São João. A vestimenta deste
personagem, é uma saia e blusa cor-de-rosa, além de um chapéu enfeitado da
mesma cor;
37
7. Os bailantes, também chamados baiantes (foto 4), é o grupo com cerca de 40
brincantes formado por homens e mulheres, que dançam e cantam as toadas
do cordão
44
. Os bailantes tocam um instrumento musical, chamado matraca.
Utilizam calça verde e camisa manga longa cor-de-rosa, colocando sobre a
calça um saiote de veludo preto bordado e sobre a camisa um guarda-peito
também bordado. Na cabeça utilizam um grande chapéu em formato de
semicírculo com penas de ema e imagens bordadas na parte da frente e fitas
compridas coloridas presas na parte de trás do chapéu;
8. As índias (foto 5) é um grupo formado por cerca de 20 meninas que compõe o
cordão juntamente com os bailantes. Elas vestem-se com saiotes e peitorais
curtos, feitos com veludo bordado e penas artificiais cor-de-rosa e brancas ou
verdes e brancas. Na cabeça usam um cocar e nas pernas adereços feitos de
penas. Durante as apresentações carregam ainda uma flecha pequena enfeitada
nas pontas;
9. Os Caubóis, (foto 6) que são representados por um grupo de homens e
mulheres, que dançam ao redor da roda, juntamente com os demais
brincantes. Vestem-se com calças e camisas manga longa branca e um chapéu
simples, sem o uso de bordados ou aplicações de miçangas e canutilhos.
Complementam a veste com o uso de um colete de veludo bordado e pela
aplicação de tiras de tecido nas laterais da calça e da camisa. Nas pesquisas
realizadas no ano de 2004, soube que este personagem surgiu primeiramente
na turma Brilho de São João, que tem como responsável a Srª Maria José
Queiroz, conhecida como Maria de Belmino. Ela me informou naquela época,
que viu os caubóis na televisão, achou bonito e decidiu então incluí-lo aos
demais personagens da brincadeira;
10. Os vaqueiros, normalmente representado pelos homens, são em número de
três ou quatro e têm como função brincar com o boi no centro da roda e
capturá-lo quando da sua fulga. Vestem calça de brim ou veludo preta com
aplicação de um couro branco nas laterais da calça e camisa manga longa
branca. Utilizam ainda um cinto bordado com canutilhos e miçanga e um
chapéu também recoberto por bordados;
44
Grande roda formada por todos os participantes da turma.
38
11. Os Cazumbas,(foto 7) grupo formado por cerca de 18 homens, que utilizam
como vestes uma máscara que figura tipos de animais diferentes e uma túnica
comprida feita de veludo e bordada com diversas imagens, como igrejas,
santos e elementos da natureza. Eles organizam a entrada do grupo no local de
apresentação, formando uma grande roda, além de possuírem outras funções
que veremos ao longo do trabalho.
Abaixo fotos de alguns personagens:
Foto 2 – boi e miolo
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
Foto 3 – Dona Maria
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
39
Foto 4 – Bailantes
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
Foto 5 – índia
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
Foto 6 - Caubóis
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
Foto 7 – Cazumbas
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
Dos personagens citados acima, quero fazer uma observação sobre o Patrão, que
como informei é um personagem interpretado pelos homens. Ocorre que, após a morte do
fundador do grupo e Patrão José Sinésio, quem ocupou seu lugar foi o brincante mais velho,
seu Maciano Nunes, na época com 80 anos. No entanto, seu Maciano exerceu essa função
apenas um ano, vindo a falecer no ano seguinte. Atualmente, o papel de Patrão é
desempenhado por dona Matilde, que precisou assumir total responsabilidade sobre o grupo a
partir de então. Em nossas conversas, ela me relatou do constrangimento que sente às vezes
por liderar um grupo tão grande, que exige entre outras coisas dar ordens aos homens:
40
Eu hoje me sinto envergonhada, o que ele fazia, hoje eu faço, pra mim não é elogio,
quando mais as pessoas me elogiam, mas eu fico com vergonha. É, eu sou assim,
quando a pessoa me elogia eu fico com vergonha. Né?
Eu canto. Faço também a morte de terreiro. Ele morreu e ficou eu e Maciano, agora
Maciano morreu ficou eu e os outros. (Matilde Braga, 24/05/2009).
O Patrão, conforme me descreveram é uma espécie de chefe da turma. É ele
quem compõe as toadas, canta, encena com os Cazumbas as dramatizações, conduz as
apresentações, além de ser o dono da brincadeira, ou seja, uma função que naquele contexto é
tipicamente masculina. Porém, desde 2008, quando do falecimento do seu Maciano Nunes,
dona Matilde está à frente da turma, ocupando todo seu tempo com a confecção das
indumentárias, tarefa que exercia antes, preparação dos instrumentos, compra do material
para fazer as vestes, ensaios, apresentações e toda a infra-estrutura do grupo. No entanto, nos
últimos anos, dona Matilde tem dividido algumas tarefas com os brincantes da turma, como a
composição das toadas, antes tarefa apenas do Patrão. Segundo ela, esta foi uma orientação
dada por seu Sinésio antes de sua morte:
É, cada um dos participantes que a gente chama baiante, eles compõe as músicas.
Quando foi no começo, todos compunha e Minegildo fazia a gravação. Ele cantava
as músicas dos compositores. Mas antes de Sinésio morrer ele disse o seguinte: que
ele queria escutar a voz de cada um dos companheiros gravada, inclusive no ano
que ele morreu é assim: você é compositor, você mesmo canta a toada, canta sua
música, aí agora ficou assim, ta completando três anos, quatro anos. (Matilde
Braga, 24/05/2009).
Dona Matilde me relatou ainda que seu Sinésio não acreditava que ela pudesse
exercer ou mesmo desejaria assumir todas essas tarefas que o Patrão assume. Ele acreditava
que após sua morte, ela logo arrumaria um marido e não daria mais atenção à turma, tendo em
vista que a pessoa responsável pelo grupo tem um trabalho que ocupa boa parte ano:
Ele dizia, quando nós conversava, que quando ele morrer o grupo se acabava e eu
dizia que não e ele dizia se acaba e eu dizia que não. então um dia perguntei:
então me diz porque vai se acabar. E ele disse: olha Matilde, tu é nova (...), se eu
faltar tu vai procurar um marido, quem sabe esse marido goste da brincadeira, se ele
não gostar, provavelmente que o grupo vai se acabar. Eu disse: não, ele pode acabar
com outra coisa, agora não te digo que não vou arrumar um marido, agora acabar
com o grupo não, ele não fica perto de mim, ele não vai me querer, se ele me
quiser, tem que querer o grupo. (Matilde Braga, patroa da turma Proteção de São
João, 24/05/2009).
Com essas observações, chego a conclusão de que no universo daquele grupo
existe um princípio que estrutura suas relações: a existência de um Patrão, alguém que
41
mantenha a ordem e a autoridade sobre os demais, neste caso a dona Matilde. Não se trata
apenas de uma pessoa que interpreta um personagem da brincadeira, ou seja, não é apenas o
fato de dona Matilde interpretar o Patrão durante as apresentações, mas de alguma maneira
precisar ter a postura desse personagem fora do espaço da festa. Ela é atualmente a dona do
boi, a pessoa que responde legalmente por ele, é a que vivencia o papel que antes cabia apenas
aos homens. Intencionalmente ou não ela é vista e tratada como uma líder, uma representante
legítima que cria e conduz as principais normas entre eles.
Além dos personagens, participam da brincadeira os tocadores, chamados
também de batuqueiros. São homens encarregados em tocar e cuidar dos instrumentos que em
geral são dez tipos diferentes:
1. Apito, utilizado pelo cantor, serve para dar início e encerrar às toadas;
2. Matracas, pequenas tábuas de madeira batidas umas contra as outras num
ritmo estridente e lento;
3. Pandeiros, normalmente feitos com couro de cobra e armação de jenipapo,
sendo tocado com as mãos;
4. Tarol, instrumento em formato cilíndrico, feito de ferro e nylon, sendo
tocado por duas baquetas;
5. Tambor-onça, confeccionado a partir de uma estrutura de madeira oca por
dentro e coberta por couro de boi. Na parte interna é fixado um ferro que
quando esfregado com um pano produz um som semelhante ao da cuíca;
6. Tamboretes, (foto 8) feitos com uma armação de madeira e coberto com
couro de boi, pesam em média doze quilos e são tocados por uma pequena
baqueta;
7. Marcações, (foto 8) são enorme tambores tocados por uma baqueta e que
chegam a pesas cerca de 30kg;
8. Chocalhos, sinetas cônicas que se prende ao pescoço de animais e que
possuem um som bastante agudo;
9. Zabumbas ou Caixas, tambores confeccionados com estrutura de madeira
no formato de caixas cilíndricas, sendo tocados por uma baqueta. Há
alguns instrumentos tocados por personagens, como as matracas, batidas
pelos bailantes e os chocalhos, utilizados pelos Cazumbas.
10. Maracá, normalmente utilizado pelo Patrão nos grupos de bumba-boi do
Estado, não conta no conjunto de instrumentos da turma. Entretanto, dona
42
Matilde informou que a senhora que interpreta o personagem Dona Maria,
leva durante as apresentações o santo e um maracá.
Foto 8 – Marcações, tamboretes e zabumba
Fonte: arquivo pessoal, 2009
Os instrumentos são tocados na seguinte ordem: primeiramente o apito, em
seguida as matracas, juntamente com o início da música. Depois começam os tarois juntos
com os tamboretes, o tambor onça, as zabumbas, as marcações e por último os pandeiros e os
chocalhos. Os homens encarregados pela percussão vestem-se com camisas manga longa
verde e amarela, sobrepondo ainda um colete de veludo preto bordado e calças pretas. Portam
um chapéu recoberto por veludo preto e também bordado. dentre eles um integrante
chamado Raimundo Gregório que é pessoa responsável pelos instrumentos, também
denominado chefe do batuque. É ele quem faz os instrumentos ou pequenos reparos quando
necessário. Atualmente, a pessoa responsável, chama-se Raimundo Gregório. Antes dele,
quem exercia essa função era seu pai, Gregório Santos da Silva, um dos fundadores do grupo,
juntamente com seu Sinésio e quem construiu os primeiros instrumentos da turma, conforme
relata dona Matilde:
Porque o pai dele que foi um dos fundador, que fizeram os instrumentos pra tocar.
Depois que um não serve mais, inclusive quando tu chegou ele tava arrumando, ele
tava cobrindo um tarol. ele cobre tambores, ele cobre tambor onça, tudo ele faz,
43
ele prepara aquela coisa, organiza tudinho. quando vencer o mandato dele
tem nova eleição, o cargo pra outro e fica na batucada. (Matilde Braga,
24/05/2009).
Em relação aos participantes, grande parte se encontra com idade entre 35 e 80
anos, sendo em geral amigos e vizinhos da família. A maioria analfabeta e nascida em
povoados próximos. As senhoras, que normalmente dançam como bailantes, vivem da
aposentadoria, cuidam dos afazeres de casa, havendo algumas que trabalham em plantações
de arroz para sua própria subsistência e complementação da renda familiar. Os homens
dividem-se na brincadeira entre aqueles que tocam os instrumentos, participam como
bailantes, vaqueiros ou Cazumbas. São em grande parte senhores, que trabalham com a pesca,
a agricultura ou mesmo fazem pequenos serviços como pedreiros.
Em condições de vida muito semelhantes, não abrem mão de participar da turma
de bumba-boi, passando de duas a cinco noites acordados para as apresentações. Mesmo
aqueles que já foram brincantes e hoje, devido a idade avançada, não podem mais brincar,
ainda assim, acompanham a turma por noites consecutivas. Lembro que durante as
apresentações, teve um senhor, de nome João Santos, que chamou muito a minha atenção. Ele
segurava uma bengala e por toda na noite ficou observando os movimentos feitos pelo boi. No
dia seguinte, quando os brincantes se aprontavam no final da tarde para a segunda
apresentação, o vi novamente pronto para seguir com eles. Não contive minha curiosidade e
me aproximei perguntando se ele já havia participado do grupo e se iria para o outro lado do
rio. Ele respondeu que sim. Disse-me ainda que estava com 92 anos e que brincou como
miolo do boi por quase quarenta anos. Comentei que o tinha visto na noite anterior e que
agora entendia porque ele tanto olhava para o boi. Ele continuou a conversa dizendo que após
a festa do dia anterior, atravessou o rio para trabalhar na roça, tarefa que faz todos os dias,
segundo ele.
Quanto aos homens que brincam como Cazumbas, estes são mais jovens, com
média de idade entre 19 e 33 anos. Em geral filhos, vizinhos ou parentes próximos dos outros
brincantes. Em casas de alvenaria e taipa, quase todos residem próximo à sede do grupo, em
uma rua que termina em um campo alagado, onde os moradores, em pequenas canoas pescam,
seguem para as roças ou se deslocam para outros povoados.
Minhas visitas ao grupo se adequavam sempre ao dia-a-dia daquelas pessoas. A
primeira conversa e mais longa foi com Dona Matilde, Patroa e ‘mãe’ da turma. Além de
brincante do bumba-meu-boi e do tambor de criuola, ela participa sempre que convidada
44
Baile de São Gonçalo
45
. Uma senhora de quase sessenta anos, aparentando cansaço e ao
mesmo tempo vitalidade quando o assunto são as noites de apresentações. Durante horas de
conversas, sempre intercaladas com seus afazeres, destacava que o sofrimento causado pela
morte de seu marido e de seu Marciano, brincante muito antigo, afetou a todos os
participantes, além de interferir diretamente no último Cd gravado por eles.
O Cd esse ano foi muito triste. Os companheiros na hora da gravação, (...)
começaram a chorar, aí foi aquele pranto danado.inclusive eu ia tirar a música e
na hora a coragem faltava demais pra mim cantar, mas eles me escolheram pra
cantar, tava doendo demais, mas eu cantei, e o Cd foi todo triste. tava vivendo
um momento de tristeza, foi muito difícil, perdi ele (se referindo ao marido José
Sinésio) em 2007, ficou um patrão que era Marciano, inclusive ele era o
presidente do grupo, aí quando foi agora em 2008 ele faleceu, foi mais difícil ainda
pra mim. (Matilde Braga, 24/05/2009).
Essa narrativa de certa maneira sintetiza parte de nossa conversa, pautada a todo o
momento pelas perdas e dificuldade em dar continuidade ao grupo. Dona Matilde aguarda,
segundo relata na toada que compôs, uma resposta de São João sobre o futuro da turma, tendo
em vista, que ela herdou o grupo.
Meu São João
Eu já te fiz uma pergunta
Ainda eu tô esperando
É tu dá o resultado
As vacas no pasto só ando é berrando
Mas eu to ficando é preocupada
Porque Sinésio foi sua viagem
E depois foi Maciano
Este ano meu filho
Vou chamar Justo mais Gregório pra entregar o teu gado
(Toada cantada por Matilde Braga, 2009)
Emocionada, ela me relatou que em breve deixará o grupo, ‘entregará o gado’
para outros patrões tomarem conta, esperando apenas uma resposta do santo para tomar essa
decisão. Não é exagero dizer que São João nesse momento “decide” os rumos que deverão ser
tomados pelo grupo. Por outro lado, essa confiança depositada nele também é uma forma de
obter graças, em especial a graça de que o santo continue ajudando na realização da festa, que
como destaca Prado (2007, p. 56), representa a maneira mais forte de se provocar um milagre.
Enquanto a resposta não chega, o grupo segue sob sua responsabilidade, preocupando-se
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É uma dança para pagamento de promessa do catolicismo popular, muito comum na Região da Baixada
Maranhense. (informação Prof. Sérgio Ferretti).
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principalmente em cumprir os contratos deixados pelo marido até 2010
46
, ano que talvez
deixe a função de Patroa:
É eu, de tudo que está a minha volta, você chega e nós tamo movimentando com as
coisas do grupo, pode ser em casa, pode ser quando sai, a organização de carro, de
tudo, de tudo, se eu não tiver eles não acho assim jeito, eu organizo oito noites de
boiada. É cansativo. Inclusive agora ficou mais difícil sobre a preocupação, muita
coisa pra resolver, porque antes do Marciano morrer, eu ficava fazendo a minha
parte em casa e ele caia no campo, agora tem que ser eu pra tudo. (...). Em 2010
encerra os contratos dele, então eu to pensando desde o ano passado, eu não dou
conta, to ficando velha, to cansada, em 2010 eu vou chamar alguém do grupo pra
tomar conta, e eu fico ajudando no que eu puder. (Matilde Braga, 24/05/2009).
Após duas horas de conversa, seguimos para a outra parte da casa, onde fica seu
comércio. Nosso diálogo se dava entre um comprador e outro que chegava. Reside em uma
morada simples que se divide entre a casa e a mercearia. Em gestos quase automáticos, ela
ensacava a farinha, vendia aos fregueses, fazia a comida, conversava comigo, dava atenção à
sua mãe e me apresentava aos brincantes que apareciam por lá. Seu comércio ocupa um
espaço pequeno da casa, preenchido nas paredes por prateleiras que guardam mercadorias e
uma mesa onde coloca farinha, arroz e outros alimentos.
O dia da minha primeira visita era um domingo e por volta das 12h ela fechou o
comércio e a seu convite almoçamos um peixe frito com arroz branco. Após o almoço,
sentamos na sala para conversar um pouco, no entanto, a todo o momento cessávamos a
conversa, devido os fregueses que apareciam solicitando compras no comércio. Ela então
decidiu abrir novamente a mercearia e aproveitei para conhecer melhor sua casa.
Por um bom tempo andei sozinha e a sensação era de um lugar por vezes
abandonado, mesmo com a presença constante de pessoas. Na parede branca da sala, em
frente a porta de entrada, estava pendurado um quadro antigo emoldurava a imagem de São
João. Na verdade guardava apenas algumas partes da imagem, como a cabeça e a ovelha que
o santo carrega. Ao seu lado alguns chapéus de fitas e penas pendurados, que com o tempo
foram ficando sem cor e brilho. Em outra parede, um porta-retrato, com uma foto de José
Magno, seu filho de 23 anos que faleceu na cidade de Brasília, no início do ano de 2009. Uma
sala aparentemente grande e com poucos móveis. Apenas duas cadeiras e uma mesa de
madeira que era utilizada tanto pra guardar a televisão, como servia de altar no dia da festa. É
nela que o quadro do santo é colocado no dia da reza. Tempos depois, soube que aquele foi o
primeiro santo do grupo, o santo que os batizou, como disseram. Seguindo um corredor que
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Os contratos são apresentações que ficaram acertadas entre seu Sinésio e algumas pessoas que querem que a
turma de bumba-boi se apresente em sua porta.
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leva até a cozinha, pude ver dois quartos. Eles estavam um pouco escuros e a porta um pouco
aberta, o que me possibilitou ver pendurados os chapéus utilizados pelos bailantes. Um
grande objeto enrolado por um tecido branco me chamou atenção enquanto eu caminhava até
a cozinha. Era uma carcaça do boi guardado no espaço entre o telhado e a parede. De volta ao
comércio retomei as conversas com Dona Matilde, que me levou em seguida até o quintal da
casa.
Sempre muito ocupada, ela cuida da casa, do comércio, da sua mãe, dos netos que
aparecem de vez em quando e da turma de bumba-boi. Sua casa é referência na rua. Está
sempre com muitas pessoas que aparecem para conversar ou mesmo tratar de assuntos do
grupo. Responsável pela confecção das vestes de praticamente todos os brincantes, dona
Matilde corta, costura e borda as roupas. Além da mão-de-obra tem a despesa com a compra
dos tecidos e dos materiais utilizados para o bordado. Ela me relatou que alguns ajudam
dando o tecido, mas a maioria depende dela para se apresentar na turma, principalmente os
mais jovens, como as meninas que brincam vestidas de índias, por exemplo.
Vivendo apenas do comércio, relatou por diversas vezes as dificuldades
financeiras para manter a turma, principalmente porque após a morte do marido, não teve
direito à sua aposentadoria. Ao mesmo tempo em que reclamava dessas dificuldades
financeiras, do cansaço de suas funções e da dependência da turma em relação a sua pessoa, o
poder e o prestígio dado pela comunidade e pelos brincantes eram recompensas que lhe
mantinham a frente do grupo.
A tarde seguimos para visitar a sede, localizada numa rua paralela à casa, onde
conversamos mais sobre o grupo, o período de preparação e as apresentações, que citarei mais
adiante. Tínhamos mais silêncio e apenas o orelhão que ficava na calçada em frente nos
incomodava às vezes. Sobre os Cazumba as conversas se restringiram à confecção das vestes,
pois preferiu deixar que os próprios participantes me falassem mais sobre ele. Em seguida,
fomos até o quintal da casa de sua filha Lena, lugar onde todas as tardes desse período, as
mulheres se reúnem para bordar as vestes.
Nos dias seguintes, eu me sentia mais a vontade na casa e com as pessoas do
grupo. Todos me cumprimentavam, queriam me dar informações, conversar, convidar para
tomar um café, para ver os ensaios e apresentações. Tivemos vários momentos de
convivência, entre eles uma pescaria num lago ao final da rua, um lanche típico chamado
chibéu (uma mistura de água gelada, farinha, muita pimenta e peixes fritos), e assistirmos
juntos ao vídeo que registrava o ritual da morte de esbandalhar, realizado no ano de 2008.
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Significativamente, esses dias iniciais de convivência com o grupo, em especial
com os brincantes de Cazumba, me ajudaram a pensar sobre a importância da festa na vida
daquelas pessoas, sobre suas relações de sociabilidade no grupo e fora dele. Trata-se, como
descreve Prado (2007, p. 53), de um alargamento das fronteiras sociais, pois é considerada
boa se consegue reunir povo em quantidade’. Eu acrescento ainda a fartura, categoria que
assume dimensão significativa na festa, referindo-me às comidas e bebidas simultaneamente
servidas. Paralelo às visitas na sede, destaco o convívio com os brincantes, notadamente os
Cazumbas, até então homens que corriam de um lado para outro aprontando suas vestes e se
guardando para o grande momento da apresentação. Passei, a partir de então, a acompanhar os
preparativos, ensaios e apresentações, observando o desempenho dos personagens,
especialmente dos Cazumbas, quando da realização da festa.
1.2.1 Ritual e festa para São João: ensaio e apresentações
Ensaio
Porque ele brinca do lado de fora, na minha porta, (...),
nós guarnece ele onde tá, vem pra casa, faz a reza,
levanta e brinca na porta. O ultimo ensaio é doze, dia
dos namorados, é o redondo
.
(Matilde Braga Anchieta,
24/05/2009).
Momento de preparação da turma, o ensaio une todos os integrantes, que sem o
uso das vestes especiais, irão treinar as danças e as funções de seus personagens para a
apresentação. Antes do início da atividade, algumas providências deverão ser tomadas, como
o corte da lenha para a fogueira que irá aquecer os tambores, a compra das caixas de foguetes
e das bebidas, a reforma ou confecção de determinados instrumentos e a convocação dos
brincantes. O único ensaio da turma é realizado dia 12 de junho
47
, porém eles realizam um
ensaio denominado sábado da pascolina, feito no sábado após a quaresma. No ensaio que
acompanhei, dia 12 de junho, cheguei aproximadamente às 18h, era sexta-feira, dia de lua
cheia. A rua onde fica a sede estava pouco iluminada, porém com uma atmosfera diferente,
talvez provocada pelo som dos foguetes, que entre outras coisas servia para convidar os
integrantes. Dentro da sede, dois assentos compridos de madeira, a fogueira, algumas crianças
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Normalmente as turmas costumam fazer apenas um ensaio.
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correndo, uma pessoa vendendo laranja, dois cachorros deitados, cinco ou seis moradores da
comunidade aguardando. Do lado de fora uma movimentação maior de jovens parados em
bicicletas, crianças correndo na rua, outras sentadas na calçada em frente, alguns homens
bebendo cerveja no comércio da dona Matilde e com o passar das horas mais e mais
componentes chegavam.
É curiosa a forma como o ensaio começa e o envolvimento gradativo dos
brincantes e da comunidade. Longe da sede é possível, desde cedo (por volta das 19h) ouvir o
som dos tocadores, que batem os instrumentos do início até o final do ensaio. São os
primeiros a chegar e iniciar a batucada, como costumam chamar. Uma hora depois o barracão
estava completamente cheio. Porém, apenas os tocadores animavam a noite, dando
consecutivas voltas circulares, enfileirados e em sentido anti-horário. Tempos depois chegou
um grupo de homens jovens, que naturalmente se aproximaram deles e começaram a
acompanhá-los no círculo. Sem as vestes do personagem não foi possível identificá-los de
imediato, somente quando começaram a dançar e tocar os chocalhos é que ficou claro que se
tratava dos homens que interpretam o personagem Cazumba.
As meninas que representam as índias foram as últimas a chegar, juntamente com
aqueles que dançam vestidos de bailantes. Vez por outra paravam para esquentar os
instrumentos e tudo recomeçava. Todos juntos, num mesmo movimento circular constante,
batiam fortemente com os pés no chão da sede. Apenas os Cazumbas se dispersavam da fila,
ficavam soltos no centro da roda e davam giros e meias-voltas em torno uns dos outros e deles
mesmo.
O local do ensaio é a sede da turma. Uma construção ampla, parte coberta e com
chão de terra. O barracão construído no centro da sede mede 10m de largura e 40 de
comprimento. Toda a área chega a 480m², sendo possível de dentro do prédio se ter uma
perspectiva que vai de uma extremidade a outra. Internamente, além do amplo espaço para o
ensaio, três pequenas salas. Duas delas servem para guardar os instrumentos e chapéus e a
outra funciona como uma espécie de bar, onde são vendidas as bebidas. Percebi que os
brincantes de Cazumbas, ao entrarem no espaço da sede, estão conscientes do olhar do
público sobre eles e reagem a esse estímulo chamando a atenção com seus movimentos soltos,
ocupando um espaço maior que os demais.
Também ficou claro após assistir as apresentações, que o ensaio é o único
momento em que os brincantes de Cazumbas são aparentemente iguais aos outros. A ausência
da exuberante indumentária os torna comum diante dos tocadores e dos demais personagens,
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destacando-se somente por saírem do cordão com movimentos bruscos, giros e meias-voltas
constantes.
Num determinado momento, por volta das 21h saímos da sede para guarnecer o
boi na casa de dona Iracir Pereira, de 71 anos. É costume que o boi se esconda durante o dia
na casa de alguém do grupo e retorne somente quando a turma se reunir para buscá-lo a noite,
ocorrendo o que eles denominam guarnecer reunir todos os brincantes para buscar o boi na
casa em que ele se escondeu durante o dia. Na saída da sede, somos guiados pelos
personagens Dona Maria que seguem na frente com a imagem de São João e o Patrão. Todos
os brincantes acompanham juntamente com os tocadores. A casa da dona Iracir fica
aproximadamente uma quadra da sede, de modo que não tardamos a chegar. Ela nos
aguardava na porta segurando uma vela acesa (Foto 9). Quando chegamos, ela seguiu para
sala onde o animal encontrava-se deitado, com o couro coberto por sua saia branca, em frente
a uma imagem de São João. Devido o pouco espaço da sala não foi possível a entrada de
todos e a maioria permaneceu na porta acompanhando as rezas e cantorias proferidas na parte
de dentro indicando que o boi deverá ser levado para a casa do Patrão, ou seja, a casa da dona
Matilde.
Dessa maneira, após pegar o animal retornamos para a sede (foto 10). Lá será feita
a reza que antecede a apresentação. No percurso de volta Dona Maria caminha ao lado do
boi, segurando uma vela e acompanhando as toadas conduzidas pelos tocadores. Antes da
chegada, apenas sua filha Lena (foto 11) aguarda sentada a vinda do boi. Quando a procissão
se aproxima da casa, os brincantes se espalham, alguns seguem para a sede, outros ficam na
calçada bebendo e somente os mais velhos permanecem na sala para fazer a reza.
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Foto 9 – Dona Iracir Pereira aguardando a chegada da turma
Fonte: Acervo pessoal, 2009
Foto 10 – Boi sendo levado de volta para a sede
Fonte: Acervo pessoal, 2009
Foto 11 – Lena aguardando a chegada do boi
Fonte: Acervo pessoal, 2009
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A reza, que dura aproximadamente uma hora é conduzida por dona Matilde e seu
Manuel de Ramos, conhecido como Menegildo, de 60 anos. Este é o momento de preparar
espiritualmente os brincantes para a festa que se seguirá logo depois. Penso ser este um ritual
de preparação, de ‘santificação’ de um artefato, no caso o boi, que tem também, naquele
momento, a função de mediar e fortalecer a relação entre os participantes e o santo São João.
Durante a reza, algumas orações são em latim e segundo dona Matilde, significa dizer que
todos estão protegidos.
O ritual tem início quando o boi, com o couro ainda coberto por sua saia branca é
deitado no centro da sala, que muito pequena e quente favorecia uma movimentação constante
das pessoas. Este momento é acompanhado principalmente pelos mais velhos, que em
ficam cerca de uma hora rezando. Um altar (foto 12) foi preparado desde a tarde para
aguardar a chegada de todos. Sobre uma mesa coberta por um tecido encontrava-se uma vela
acesa e o quadro mais antigo que o grupo possuía com a imagem de São João. Esta imagem,
que segundo eles, fez parte do batismo da turma, ficava durante todo o ano preso à parede da
sala, sendo retirado apenas para as rezas. Embaixo do altar foi colocada outra vela acesa
dentro de um prato com água. Dona Matilde me explicou que quando uma vela é colocada
daquela maneira, significa que aquele boi é dedicado ao espírito de algum falecido. Naquela
ocasião a vela era oferecida ao seu Sinésio. Ela disse-me ainda que caso o morto esteja com
sede, bebe da água daquele prato, já tendo ocorrido casos em que presenciou esse fato.
Com a vinda da turma é colocado nesse altar outro quadro com a imagem de São
João, que estava até então sob a responsabilidade da Dona Maria, assim como o boi. Com o
início da reza, a sala, lugar comum da casa no dia-a-dia, torna-se sagrada, ou como descreve
Turner (2005, p. 83) um santuário temporário.
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Tudo me parecia aparentemente normal, não fosse uma situação inesperada que
ocorreu durante a realização da reza. Lena, filha do finado dono da turma, seu Sinésio,
sentou-se ao lado do altar de frente para o boi. Pouco tempo depois do início das orações,
observei que ela transpirava muito e seu corpo parecia sem equilíbrio, como se estivesse em
transe. Seus olhos fixados nos olhos daquele animal pareciam comunicar-se com ele. Foi
então que perguntei para alguém próximo o que estava se passando. A impressão que eu tinha
era que todos sabiam o que se passava com ela e preferiam não comentar. Lembrei então da
conversa que tivemos dias antes quando falávamos da morte do seu pai, quando muito
emocionada ela me disse:
Foi muito difícil o período que meu pai morreu e até hoje quando chega assim uma
época dessa, é muito difícil, porque vem a lembrança e ao mesmo tempo que vem
aquela tristeza, vem aquela alegria, porque eu to fazendo aqui porque ele gostava e
onde ele estiver ta contente e aí eu acho que é um pouco difícil. (Lena, 24/05/2009).
Em seguida alguém quase silenciosamente falou ao meu ouvido: é o pai dela que
está ai, ele aparece sempre que tem a reza e ela fica assim todas as vezes”. Passei então a
fixar os olhos entre Lena e o boi, e inacreditavelmente parecia haver algo que os relacionava,
algo que os comunicava. Foi uma situação estranha, algo que ultrapassava a dimensão
racional desse meu estudo. Depois de algum tempo, sua mãe lhe trouxe água e a abanava com
Foto 12 - Altar
Fonte: Acervo pessoal, 2009
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um pedaço de papelão. Com o corpo caído sobre o braço da cadeira branca que sentava, ela
permaneceu até o final da reza, quando então o boi lentamente, guiado pelo miolo, levantou e
a cumprimentou demoradamente. Ficaram estáticos, olhando-se por alguns segundos, até que
com um giro repentino em torno da sala, o boi começou a dançar e movimentar-se
rapidamente. Bailou cerca de três toadas seguindo depois em direção a porta, onde os
tocadores de prontidão o aguardavam, juntamente com os demais brincantes para
ensaiarem até a manhã do dia seguinte.
Voltei a presenciar essa mesma situação de Lena na primeira apresentação do
grupo, dia 23 de junho. Dessa vez, porém, sua irmã, Jucivânia, conhecida como Cumadinha,
pediu-me para filmá-la. Ela justificou que Lena não lembra-se absolutamente de nada quando
finda a reza, nem do seu aparente transe. Cumadinha acreditava que com a gravação ela
provavelmente lembraria. Entretanto eu não consegui ajustar a filmadora, pois a legenda era
em idioma japonês. Observei que mesmo com a saída do boi para a apresentação, Lena
permaneceu ainda algum tempo num estado de transe, com os olhos fechados e sem força
para levantar-se da cadeira. Nesse momento, os brincantes de Cazumba se aproximaram e
alguns conversavam com ela sobre seu pai.
Algum tempo depois do início do ensaio, a Lena me procurou sorridente,
perguntando se eu estava precisando de alguma coisa, como se nada daquilo tivesse
acontecido. No entanto, após comentar sobre a cena que vi com algumas pessoas que
participaram da reza, percebi que aquela situação é vista e aceita pelas pessoas como normal,
ainda que tenha começado a acontecer a partir da morte do seu pai, José Sinésio, dono do
grupo. Como todas as vezes que ocorrem as rezas, esse comportamento se repete, eles
entendem que, de fato, o seu Sinésio, através do boi comunica-se com sua filha, além de ser
uma forma dele está presente ainda no grupo. Neste caso, o boi, torna-se um símbolo que
produz emoções e expressa e mobiliza desejos (TURNER, 2005, p. 90).
A seguir, tratarei sobre as apresentações, antes, porém, quero explicitar acerca da
inexistência do batizado, ritual comum na manifestação do bumba-meu-boi. Meus dados de
campo mostram que eles não identificam as rezas citadas acima, como um batizado, isso
porque repetem esta ação todas as vezes que estão prestes a fazer uma apresentação, mesmo
quando esta não ocorra na sede da turma. Ou seja, rezar antes significa pedir proteção ao
santo e reafirmar a crença que todos têm nele, ainda que somente alguns participem desse
momento. Nas apresentações feitas fora da sede, quem recebe a brincadeira, precisa preparar
desde cedo um altar para este momento.
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Apresentações
É no São João, começa 23 até o dia 30. Às vezes tem
contrato, a gente ainda brinca o dia trinta, mas encerra
primeiro com a reza, mas quando não tem começa dia 29
e encerra dia 30. Chega a reza e guarda o boi no último
dia, quando não tem matança. (Matilde Braga Anchieta,
24/05/2009).
É a hora da festa, dita assim no singular, porque trata-se de uma única grande festa
em homenagem aos santos juninos, especialmente São João. Vale observar que algumas
normalmente vêm acompanhadas pelo pagamento de promessas, entretanto, como destaca
Prado (2007, p. 56):
É bem verdade que a festa não consiste na única forma possível de se pagar uma
promessa. A cultura local registra outras costumeiras como a de oferecer uma prece
pública (‘mandar rezar’), a de queimar um pacote de velas, a de doar uma ‘jóia’ ou
de ‘brincar boi’. Mesmo assim é necessário que haja festa, pois é durante o seu
transcurso que os pagamentos podem ser saldados.
Ao longo da pesquisa, percebi que este é período onde as atividades cotidianas são
substituídas pela rotina que a festa propicia, como preparar todos os dias as vestes, limpar,
colocar no sol para retirar o suor, verificar se algum adorno se perdeu e substituir quando
necessário, preparar as comidas para o jantar antes da saída da sede, dormir durante o dia para
assim poder passar a noite acordado e dessa forma, seguem por seis, sete dias consecutivos
em festa.
Segundo Bakhtin (1987, p. 240):
A festa é a categoria primeira e indestrutível da civilização humana. Ela pode
empobrecer-se, às vezes degenerar, mas não pode apagar-se completamente (...). A
festa é isenta de todo sentido utilitário (é um repouso, uma trégua, etc.) É a festa
que, libertando de todo utilitarismo, de toda finalidade prática, fornece o meio de
entrar temporariamente num universo utópico (...). É preciso também não arrancar a
festa à vida do corpo, da terra, da natureza, do cosmo.
As apresentações feitas durante os festejos juninos constituem o momento mais
aguardado pela turma Proteção de São João, e por que não dizer por todos os grupos de
bumba-boi do Estado. O dia que antecede a primeira apresentação, 23 de junho, é marcado
pela movimentação constante dos brincantes, que entram e saem de suas casas carregando
vestimentas, instrumentos, chapéus, fazendo os últimos acertos dos bordados ou consertando
algum instrumento danificado durante o ensaio. As tarefas são divididas e aos homens são
55
destinadas as que exigem maior esforço físico, como carregar lenha para fazer a comida e a
fogueira que esquentará os instrumentos, transportar os instrumentos da sede até a casa da
dona Matilde, onde será a apresentação, carregar água e comprar a bebida. Às mulheres
cabem as tarefas de preparar as comidas, limpar a casa, o quintal, organizar as vestes, fazer as
últimas costuras e preparar o altar. Cito a propósito a importância do trabalho que dona
Matilde e Lena assumem neste dia e nos outros, sendo referências para todos os afazeres que
antecedem as apresentações. Na casa, um entra e sai de pessoas a todo instante, tanto da
comunidade como dos brincantes que moram próximos. A vinda se aos poucos, sendo que
aqueles que moram mais distantes, em outros bairros, por exemplo, chegam ao final da tarde e
logo se apresentam para ajudar nas necessidades ainda pendentes.
O funcionamento dessas atividades deve ser compreendido como uma ação
coletiva e harmoniosa, onde as diferenças estão apenas nas tarefas que são delegadas aos
homens e às mulheres, não se estendendo às diferenças que possuem quando da interpretação
dos seus personagens na brincadeira.
A primeira apresentação ocorre na comunidade, na porta da casa de dona Matilde,
que não deixa de ser a sede do grupo. Por volta das 18h os brincantes que moram mais
distante, pouco a pouco chegam, alguns com suas vestes e outros ainda por se aprontar. Os
homens que interpretam os Cazumbas, todavia, nunca se vestem antes, ao contrário, são os
últimos a ficarem prontos e aparecerem para a apresentação. Suas caretas e torres são
cuidadosamente escondidas em sacos plásticos escuros e deixadas uma ao lado da outra na
parede da sede.
As meninas que se vestem de índias se arrumam num quarto da casa sob
orientação de Lena, que distribui as roupas, ajuda com a maquiagem e colocação das peças
que compõe a vestimenta. O preparo no quarto também tem a intenção de manter em segredo
as cores da indumentária. Os que se apresentam como tocadores e bailantes não demonstram
preocupação a esse respeito, chegando vestidos, e aguardando o início sentados nas calçadas,
alguns conversando em grupos e bebendo cerveja. Algumas mulheres que representam os
bailantes chegam cedo e talvez pela idade avançada preferem aguardar sentadas as ordens
da Patroa. Acompanhei nesse dia a chegada de três mulheres que vivenciam o papel de
bailantes e junto a elas sentou-se o personagem Dona Maria, interpretado por Maria da
Conceição, de 69 anos (foto 13).
56
Aos poucos a comunidade aproxima-se. Os vizinhos de frente colocam suas
cadeiras nas portas, alguns vendem pipocas, laranjas e mingau. Os homens que interpretam os
Cazumbas vestem a farda e circulam de um lado para o outro, chamando atenção dos que
aguardam a apresentação. No quintal, numa casa construída especialmente para a ocasião das
festas, são preparadas e guardadas as comidas, normalmente carne de gado cozida, carne de
porco e arroz. Quem prepara são duas senhoras amigas da dona da Matilde, conhecidas como
Facinha e Tereza
48
, e que moram próximo à comunidade. A função delas na brincadeira é
esta: preparar a comida e servir por volta da meia-noite.
Dois ou três foguetes seguidos indicam que a apresentação está próxima e que os
brincantes devem se dirigir para frente da casa do Patrão, de onde sairão para apanhar o
boi, da mesma maneira como fizeram no ensaio. Antes da saída, uma breve apresentação para
reunir todos os participantes, que pouco a pouco se inseriam no círculo formado
primeiramente pelos tocadores. Os brincantes de Cazumbas demoraram a se apresentar na
roda. Com o rosto coberto por uma camisa (Foto 14), alguns resistiam em utilizar naquele
momento a careta, até então segredo para a comunidade. Um segredo guardado em sacos de
tecidos ou plásticos, que impediam os espectadores de observar antes da apresentação (Foto
15).
48
Infelizmente dona Matilde não soube informar o nome completo das duas senhoras e elas não possuem
cadastro no grupo.
Foto 13 Bailantes e Dona Maria. Da esquerda para a direita: Maria
Antônia, de 60 anos, Maria Cristina, de 69 anos, Maria da Conceição, de
69 anos e Sônia Maria, de 45 anos.
Fonte: Acervo pessoal, 2009
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Foto 14 - Brincantes de Cazumba escondendo o rosto
Fonte: Luciana Vilela, 2009
Foto 15 - Caretas embrulhadas para não serem vistas antes das
apresentações
Fonte: Luciana Vilela, 2009
Ritualisticamente um a um seguia até um canto escuro, onde estavam as caretas,
retiravam-nas dos sacos, colocavam no rosto e em seguida voltavam para roda. Cada um que
58
retornava era demoradamente admirado pelo blico e pelos outros brincantes que ainda não
tinham visto as exuberantes caretas e torres colocadas sobre elas. Percebi que o público
seguiam com os olhos os movimentos dos Cazumbas por toda parte que caminhavam, como
que hipnotizados pela animalidade e beleza do personagem. As vestes brilhosas e as grandes
esculturas que carregavam na cabeça materializavam suas falas quando se referiam ao prazer
que sentiam e o prestígio que recebiam quando vestidos de Cazumba.
Após a exibição tão esperada do personagem Cazumba, seguimos todos até a casa
onde boi estava escondido para então trazê-lo de volta até a sede. Na saída, cantam a primeira
toada, chamada por eles de guarnecer, que significa reunir toda a turma para ir de encontro
ao animal. Durante a caminhada até o local onde o boi se escondeu durante o dia, são cantadas
outras músicas, como o vai indicando que a turma está chegando e a licença, toada que
pede a permissão para entrar na casa. Desta vez o boi encontrava-se recluso numa casa mais
próxima, na rua seguinte. Como que em procissão, caminhávamos para a rua seguinte
iluminados apenas pela luz forte da lua. Na chegada, éramos aguardados na porta por uma
brincante do grupo, responsável por guardar o boi (foto 16). Ela estava com uma vela acesa e
segurava a imagem de São João. O boi se encontrava coberto no centro da sala (foto 17). Era
praticamente impossível a entrada de todos, apenas dona Matilde e os parentes mais próximos
adentraram na sala para rezar e cantar algumas toadas que avisavam que o boi precisava
seguir para sua casa.
Dessa forma, sem muita demora o animal ainda coberto por sua saia branca, foi
carregado por alguns brincantes. No caminho os foguetes indicavam o retorno do novilho e o
início de uma noite inteira de festa em homenagem a São João. Ao lado do boi, Dona Maria
caminhava com uma vela acesa e entre eles um brincante segurava a imagem de São João
(Foto 18). Naquele dia quem vivenciou o personagem Dona Maria, foi a senhora Teodora
Martins, de 69 anos. Na casa da dona Matilde, local para onde todos seguiam, sua mãe, dona
Maria Domingas, de 94 anos, aguardava calmamente a chegada dos brincantes para a
realização da reza. (foto 19).
59
Foto 16Brincante que guardava o boi
Fonte: arquivo pessoal, 2009
Foto 17Boi coberto pela saia branca
Fonte: arquivo pessoal, 2009
Foto 18 Dona Maria (Teodora Martins) caminhando
até a sede com o boi.
Fonte: arquivo pessoal, 2009
Foto 19 Maria Domingas, mãe da dona Matilde
aguardando a chegada dos brincantes
Fonte: arquivo pessoal, 2009
Assim como no ensaio, apenas os mais velhos entraram com o boi na sala para
fazer a reza. Os brincantes de Cazumbas, as meninas que interpretam as índias e homens que
tocam os instrumentos se espalharam pelos arredores das casas, das calçadas e do quintal.
Também aqui o aparente transe da Lena, filha do finado Sinésio se repetiu. Novamente ela
sentada na cadeira, ao lado de um altar, agora mais decorado, aguardava a chegada do boi.
Logo que as orações começaram, ela foi aparentando tristeza e algumas lágrimas corriam
devagar em seu rosto. A cena parecia comum aos olhos daqueles que estavam perto, apenas
sua mãe, dona Matilde, ficava próxima, dando-lhe água e segurando suas costas. Durante todo
o tempo da reza ela permaneceu da mesma forma, na mesma posição e com os olhos algumas
vezes fixos no boi que estava a sua frente. A reza prosseguiu por quase uma hora e meia.
60
Segundo um dos homens que rezava, seu Batista, aquele é o momento de São João abençoar o
boi e a festa, é obrigação fazer as orações antes de começar a apresentação, tanto faz se for à
porta de sua sede como em qualquer outro lugar que a turma venha a se apresentar. De fato,
nas apresentações que acompanhei, antes do início, eles se reúnem em torno de um altar para
rezar, geralmente mais simples, apenas com os objetos simbólicos que consideram mais
importante para aquele momento: as velas e a imagem de São João.
Terminado esse momento, o boi levanta, cumprimenta Lena e em seguida giros
no centro da sala. Os foguetes são tocados para que os brincantes se reúnam novamente na
porta da sede, e se prontifiquem a dançar até o amanhecer. Algum tempo depois, já no período
de escrita deste trabalho voltei a pensar sobre o comportamento Lena durante as rezas e no
sentido da vela que ficava embaixo do altar, oferecida ao espírito do seu Sinésio. De alguma
maneira observo que naquele espaço, os objetos simbólicos, como o boi e a vela dentro do
prato com água, conseguem manter a crença que todos ainda têm no falecido Patrão e Lena,
por ser a filha que mais o ajudava na turma intercede sua relação com o grupo.
Após a reza vem a tão esperada apresentação na frente da casa da dona Matilde, ou
seja, da casa do Patrão. A abertura é com uma toada, cantada primeiramente por um único
participante, chamado por eles de cantador. A música é acompanhada no início apenas pelas
matracas, recebendo após a primeira estrofe o som dos demais instrumentos. A partir de então
todos participam cantando e dançando na roda, chamada também de cordão. Em anos
anteriores, como observei, as toadas eram compostas pela mesma pessoa que cantava,
normalmente o Patrão, sendo que após a morte do seu Sinésio, dona Matilde decidiu que cada
brincante que desejasse, além de compor iria também gravar sua toada no Cd do grupo. E
assim, nos últimos CDs gravados a participação de cerca de onze brincantes,
principalmente dos mais velhos. As músicas, em geral, descrevem o cotidiano deles. Algumas
tratam da cultura local, de elementos da natureza (noite, lua, rios) ou ainda de algum fato que
tenha marcado o país
49
. sempre uma música em homenagem ao fundador do grupo ou de
pessoas queridas que também já faleceram.
A apresentação é acompanhada de perto por Dona Maria, que segue dançando
entre os brincantes. Os tocadores de vez em quando precisam para esquentar os instrumentos
e os participantes aproveitam então para descansar alguns minutos.
49
No último Cd gravado há uma música com o título “Lembrança de Isabela”, uma referência a uma menina que
foi morta no Estado de São Paulo no ano de 2008 e que foi notícia em todos os meios de comunicação do país.
61
Percebi que com o passar das horas, o cansaço vai ganhando espaço e pouco a
pouco alguns brincantes vão sentando nas calçadas e outros seguem para fazer a refeição no
quintal aproveitando ainda para tirar um rápido cochilo, isso por volta das 2 horas da manhã.
Os brincantes de Cazumbas cansam mais rapidamente que os outros, por conta das torres altas
e pesadas, e em pouco tempo de apresentação encostam-na nas paredes próximas,
substituindo a careta por uma camisa branca que lhe cobre todo o rosto, deixando à mostra
apenas os olhos. Isso de certa maneira mantém o segredo para aqueles que não querem ser
reconhecidos pela comunidade.
Outra característica da apresentação é a sua composição no momento de entrada
dos integrantes. Enfileirados a alguns metros de distância de onde farão a grande roda, os
Cazumbas ou as índias são os que normalmente vêm à frente da fila, como descreve Zé Quita,
brincante de Cazumba:
Olha, tem vezes, tem vezes que a gente chama as índias pra entrar, mas tem vezes
que ela chama a gente pra passar na frente, puxar o pelotão, que a gente chama
pelotão, porque nós, ou Cazumba ou as índias é que puxo a turma inteira. (Zé
Quita, 24/05/2009).
Quem quer que entre primeiro, garante uma relação muito próxima com o público,
além de adquirir um prestígio maior naquela noite. Nas apresentações que acompanhei
somente os brincantes de Cazumbas conduziram a turma para o centro da roda. Eram quinze
homens e, de fato, suas vestes, principalmente as torres que utilizam na cabeça, escondiam
todos os outros integrantes do grupo que estavam na fila.
Somente depois da entrada de todos era possível ver os demais integrantes.
Também a relação com o público é influenciada por esse momento inicial da apresentação,
como descreve outro brincante de Cazumba:
Ah, eles gostam dos Cazumbas! s entramos na frente e os primeirinhos que eles
querem ver são os Cazumbas. Ai fica aquela multidão olhando, dificulta até da
gente brincar às vezes quando entra. (José da Conceição Santos Marinho,
conhecido como Zé Caçota, 24/05/2009).
As apresentações quase sempre ocorrem por motivo de promessas, principalmente
quando são feitas em outros lugares fora da sede. Em alguns casos, a promessa consiste em
esbandalhar o boi, o que exige do grupo a realização de um ritual denominado morte de
esbandalhar que ao final deverá deixá-lo com sua armação destruída e distribuída entre os
participantes através da venda simbólica da sua carne. Por outro lado, normalmente eles
realizam o que costumam chamar de morte de terreiro ou morte de levantar, em que encenam
62
a morte e ressurreição do boi. Se levarmos em consideração que pagar uma promessa à
brincadeira um sentido utilitário, observamos que a festa não é isenta de todo sentido prático,
como descreve Bakhtin (1987, p. 240) na citação colocada no texto.
A dramatização desse ritual segue de um dia para o outro, tendo início no começo
da noite até a manhã do dia seguinte. Os diálogos são longos e é necessário ter todo o domínio
sobre a narrativa para improvisar quando do esquecimento de algum trecho da fala. O Pai
Francisco, por exemplo, chega a falar mais de trinta versos, ora sozinho, e em outros
momentos em diálogo com o Patrão. Como disse, quando da apresentação dos personagens, o
Pai Francisco é interpretado por um brincante de Cazumba, que apenas retira a careta para
fazer a encenação.
A seguir, trechos do diálogo entre o Cazumba, quando o mesmo interpreta Pai
Francisco e o Patrão:
Primeira parte: apenas o Pai Francisco recita os versos
1ª Verso: (Pai Francisco)
“ Tava brincando com o boi
mas não queria matar,
arma foi que disparou meu amo,
lá matou familiar”.
2° Verso: (Pai Francisco)
“ Tava brincando com o boi e,
debaixo da floresta,
arma foi quem disparou,
ô meu amo
abrindo um rombo na testa”
3º Verso: (Pai Francisco)
“Tava brincando com o boi
e debaixo da verde-grama
arma foi quem disparou
Ô meu amo
Lá matou teu boi de fama”
2ª Parte (Diálogo entre o Patrão e pai Francisco)
1º Verso (Patrão)
“ Que espinguarda danada,
essa de pai Francisco,
onde bate um caroço, ô chiquinho
é mesmo de ser um curisco”.
2 º Verso (Resposta de pai Francisco)
“Eu sou raio, sou curisco
quando lá no piquizeiro
eu queimo capim açu meu vaqueiro
quanto mais lá de carneiro”
4° Verso: (Pai Francisco)
“ Tava brincando com o boi
debaixo da tangerina,
mais quem foi culpado disso meu amo
foi a velha Catirina”.
3 º Verso (Patrão)
“Chega, chega vaquerama
traga a tualha nova
para arriar boi de pano ô Chiquinho
é prenda de Nossa Senhora”
4 º Verso
(Resposta de Pai Francisco)
“Minha espingarda é de aço
Da culatra tem três dedo
Para atirar nesse boi do teu amo
63
5 º Verso (patrão)
“Chega, chega vaquerama
Na noite de senhor São Pedro,
Para pegar boi de pano ô meu amo
Não cair de medo”.
6 º Verso (Resposta de pai Francisco)
“Minha espingarda é de aço,
Da culatra de latão
Para atirar nesse boi do teu amo
Na noite de São João”.
Na noite de senhor São Pedro”.
7 º Verso (Patrão)
Chega, chega vaquerama
Na noite de São João,
Para pegar boi de pano ô meu amo
Não deixa cair no chão.
8 º Verso (Resposta de pai Francisco)
“Minha espingarda é de aço
Da culatra de metal,
Para atirar nesse boi do teu amo
Na noite de São Marçal”.
A diferença entre essas duas formas de encenar a morte é explicitada da seguinte
maneira por Zé Quita:
A morte de terreiro é a morte de levantar, uma morte feita na metade da noite pro
boi levantar de manhã, agora a morte de esbandalhar tem que ser é outra, quem
esbandalha o boi, tem vários personagens, tem o pai Francisco, tem o Magarefe,
tem várias pessoas, vários personagens. No caso do cazumba, primeiro ele tem que
dar conta do boi pra matar, depois que ele pega o boi, ele fica até pra num matar
depois que ele entrega, mas ele acaba fatiando o boi e ele entrega na mão do
patrão, pro patrão mandar o magarefe cortar o boi. . (Zé Quita, 24/05/2009).
A morte de levantar, como denominam, ocorre com mais freqüência nas
apresentações, pois o grupo não precisa destruir o artefato, e desse modo, um mesmo boi pode
ser utilizado durante muitos anos, sendo trocado apenas quando ocorre a morte de
esbandalhar ou quando a armação está desgastada e o couro bordado do animal está muito
antigo. No caso da morte de esbandalhar, a pessoa que faz a promessa precisa mandar
construir um boi, utilizado apenas para a realização desse ritual, isto porque ao final ele será
destruído para o cumprimento da promessa. Relataram-me também que é comum nas
apresentações pendurarem no chifre do boi uma miniatura de um boizinho, feita para pagar
algum tipo de promessa. Dona Matilde explica que muitas vezes as pessoas não possuem
condições financeiras para mandar construir um artefato no tamanho maior, pagando sua
promessa durante a festa apenas com a miniatura, que segundo ela, é muito bem aceita por
São João.
Acompanhei outra apresentação também importante para os brincantes. Ela ocorre
todos os anos no dia 25 de junho, na casa de um empresário chamado Raimundo Nonato, mais
64
conhecido como Maciel
50
. Segundo informação dos participantes, ele realiza por motivo de
promessa uma festança em que reúne todas as turmas de bumba-boi da cidade de Penalva.
Elas chegam aos poucos, a partir das 19h. Entra uma turma por vez na área preparada
especialmente para a primeira apresentação. Enquanto os brincantes fazem a roda e dançam, o
boi segue até o altar para cumprimentar São João. Observei que todas as turmas traziam suas
imagens do santo e colocavam naquele altar. Em seguida, o grupo caminha para os demais
espaços onde ficarão cantando e dançando até a manhã do dia seguinte. Diferentemente da
apresentação feita na sede, os Cazumbas chegam vestidos com a indumentária e conduzem
a turma pela porta principal de entrada até o altar preparado na parte de dentro da casa. Esse
também é o momento das turmas se observarem e de certa maneira disputarem entre si a
atenção do público. Nas conversas com os brincantes de Cazumba, eles sempre destacavam o
quanto esta apresentação era aguardada por eles. Percebi que era grande a expectativa em
relação a esse momento e também a oportunidade de exibir sua indumentária para um público
maior, tendo em vista que uma multidão de pessoas se fazia presente.
Conversando com uma prima minha que morou durante muitos anos na casa do
empresário, ela me relatou que a festa ocorre a mais de 15 anos, sendo que sua promessa era
para ser cumprida apenas no primeiro ano. Entretanto, percebendo que as pessoas
participaram e gostaram da festa, ele decidiu dar continuidade nos anos seguintes. Como
pagamento pelas apresentações ele fornece comidas e bebidas aos grupos.
As demais apresentações ocorreram em casas de pessoas que solicitaram,
normalmente para pagar alguma promessa, na cidade e em povoados próximos. Dessa forma,
as apresentações vão de 23 a 30 de junho, caso tenham contratos até essa data, sendo o último
dia marcado pela reza, quando então o boi é guardado. Após esse período, a turma faz ainda
uma apresentação, dia 26 de julho, em que festejam Santana. É preciso explicar que o termo
‘contrato’ utilizado por eles, significa um convite informal feito por moradores da localidade
e de povoados e municípios vizinhos para que se apresentem em suas casas, não incluindo
nesse caso pagamento em dinheiro ao grupo pela apresentação. O convite geralmente se
para pagar uma promessa ou simplesmente pelo prazer de festejar São João na sua porta. Ao
final, os brincantes sentem-se satisfeitos por desempenhar bem o compromisso assumido com
quem os convidou, recebendo como pagamento muita comida, bebida e prestígio na cidade.
Trata-se de um pagamento simbólico, já queo é feito com dinheiro e ainda assim, a
apresentação é feita com muita satisfação por todos eles.
50
O empresário é proprietário de uma rede de supermercados na cidade de São Luís.
65
Das vezes que os acompanhei, pensava com freqüência que aquela era uma
ocasião dotada de funções e sentidos em suas vidas. Mas, ao mesmo tempo, me perguntava
quais seriam. Eu sabia que ali havia uma inversão de papéis e junção das suas diferenças. Os
via com as vestes da festa e juntamente me vinham lembranças de suas falas relatando o
sacrifício de economizar o que ganhavam com o trabalho durante o ano para garantir a
participação na festa. Homens e mulheres que cediam seus corpos e porque não dizer sua
alma festeira aos mais diversos personagens, permitindo com aqueles que assistem inúmeras
possibilidades comunicativas construídas sobre a particularidade de cada um. Bakhtin (1987,
p. 222) lembra que “essa organização é, antes de mais nada, profundamente concreta e
sensível”. Assim,
Até mesmo o ajuntamento, o contato físico dos corpos, que são providos de um
certo sentido. O indivíduo se sente parte indissolúvel da coletividade, membro do
grande corpo popular. Nesse todo, o corpo individual cessa, até um certo ponto, de
ser ele mesmo: pode-se, por assim dizer, trocar mutuamente de corpo, renovar-se
(por meio de fantasias e máscaras). Ao mesmo tempo, o povo sente a sua unidade e
sua comunidade concretas, sensíveis, materiais e corporais.
Com o passar das observações, fui entendendo que também na festa funções
que devem ser cumpridas, assim como no cotidiano daquelas pessoas, e isso me passava a
impressão de uma unidade entre eles. O sentido, penso, é que, mesmo fora da festa eles
acreditam naquilo que é vivido durante a mesma, fazem promessas e seguem cada dia “com a
ajuda dos santos”, como costumam dizer.
66
2. CAZUMBAS: Pessoas e Personagens
Este capítulo trata das pessoas que interpretam o personagem Cazumba e do próprio
personagem em sua atuação cênica na turma Proteção de São João. Entretanto, inicio com
uma análise geral sobre o personagem e suas características estéticas, bem como a confecção
do personagem, denominado aqui de artefato Cazumba. Logo após, trato dos Cazumbas da
turma de bumba-boi Proteção de São João, primeiramente a partir das pessoas que o
interpretam e em seguida o personagem. Sobre as pessoas, busquei saber quem são e como
vivem antes, durante e depois dos festejos juninos. A partida são aqueles fenômenos,
chamados por Malinowski (1984, p. 29) de imponderáveis da vida real, que, como descreve,
são de suma importância e que de forma alguma podem ser registrado apenas com o auxílio
de questionários ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em sua plena
realidade. A rotina, o trabalho, as condições de vida, as crenças religiosas, suas relações
enquanto participantes de um mesmo grupo, os cuidados com a apresentação e representação
do personagem, a competição existente entre eles, a história de vida de alguns participantes,
são fenômenos observados durante a pesquisa. Minha experiência se deu o mais próximo
possível da vida de cada um e das suas ações coletivas. O esforço foi no sentido de trazer,
como destaca Malinowski, os detalhes e o tom do comportamento, e não exclusivamente o
simples esboço dos acontecimentos. Segundo ele, o comportamento é, indubitavelmente, um
fato, e um fato relevante – passível de análise e registro. Sobre o personagem, busquei
analisar suas funções e seu comportamento durante as apresentações, especialmente o duplo
papel exercido por ele durante a realização do ritual da morte de esbandalhar.
O tempo das longas viagens entre São Luís e Penalva, no Maranhão, também me
ajudou, de alguma forma, a repensar como se daria essa parte do trabalho de campo. Das
janelas sujas dos ônibus vinham imagens dos campos alagados, das roças, das casas de taipa e
das pessoas que caminhavam por esses espaços. Entre um município e outro, as palmeiras de
babaçus estreitavam o caminho, muitas vezes chão de terra batida. E assim, durante
aproximadamente cinco, seis horas de viagens, atravessávamos parte da Região da Baixada
indo de encontro a um grupo de pessoas, homens mascarados, que me proporcionariam mais
uma vez o desafio de pesquisar suas vidas e práticas sociais. na condição de mestranda,
logo na primeira viagem, vinham lembranças dos livros, dos conselhos de meu orientador, de
meus professores e das aulas no Mestrado em Ciências Sociais. Num esforço de memória,
lembrei nitidamente de uma aula de metodologia, quando discutimos sobre a pesquisa de
67
campo, a partir de um texto do Roberto Cardoso de Oliveira, intitulado “O Trabalho do
Antropólogo: Olhar, Ouvir e Escrever”.
Enquanto lembrava o texto, fazia perguntas aparentemente banais, como “o que
significa observar os brincantes de Cazumbas?”, “como observá-los?”, “como entender o que
se ouve” ou ainda “como escrever o que se observou e se ouviu sobre eles?”. Das perguntas, a
dúvida era se conseguiria ou não ter informações suficientes para iniciar esta escrita. Pensava
que jamais conseguiria escrever sobre os aspectos do seu dia-a-dia que eu, enquanto
principiante na antropologia, deveria pesquisar. Desse modo, na volta da primeira viagem, ao
reler o texto, observei que o autor faz o seguinte comentário acerca disso:
É no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha,
encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados
provenientes da observação sistemática (...). Pelo menos minha experiência indica
que o ato de escrever e o de pensar são de tal forma solidários entre si que, juntos,
formam praticamente um mesmo ato cognitivo. Isso significa que, nesse caso, o
texto não espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, então,
poder ser iniciado. (OLIVEIRA, 2000, p. 32).
Assim, este capítulo que trata de relacionar aspectos da pessoa e do personagem, foi
escrito aos poucos, quando da volta para casa e algumas vezes até durante as viagens.
Acredito que faltaram respostas; mas, para além de relatos curiosos sobre sua forma de fazer e
viver a brincadeira, analiso suas relações sociais e culturais com a festa, seus talentos e
vocações no contexto da turma de bumba-meu-boi Proteção de São João.
2.1 O Personagem: apontamentos gerais sobre o Cazumba no bumba-meu-boi
Cazumba ou Cazumbá
51
é um personagem mascarado presente em grupos de
bumba-meu-boi da Região da Baixada, e também da cidade de São Luís. Caracteriza-se pela
utilização de caretas ou máscaras, feitas de pano, madeira, borracha ou outros materiais.
Também utilizam uma bata de veludo bordada ou tecido de chita, chamadas por alguns de
fardas, alargadas na área dos quadris pela fixação de um cesto de palha ou por um pedaço de
madeira colocado sob as vestes (foto 20). Freqüentemente porta um instrumento musical,
designado campainha ou chocalho, que constitui um sino de latão normalmente usado para
51
São popularmente chamados de cazumbás (com a última sílaba tônica) pelos residentes em São Luís, e
conhecidos na maioria dos municípios da Baixada Maranhense, como cazumbas.
68
identificar o gado na zona rural. Nas apresentações, os homens que o interpretam, quando do
uso das vestes, se mostram como brincalhões e irreverentes, diferenciando-se dos demais
personagens, tanto por assumirem funções específicas no folguedo, quanto por sua
indumentária.
Embora a identidade visual deste mascarado contemple elementos que, de forma
geral, são comuns a todos os Cazumbas, cada brincante compõe sua indumentária buscando,
entre outras coisas, uma competição dentro daquele universo da festa, chamando ao máximo a
atenção do público para si. É na brincadeira, por assim dizer, um personagem lascivo, fazedor
de travessuras, com modos que transgridem as regras na hora da apresentação. Poderíamos até
arriscar dizer que se parecem com o Amahbul, da Sociedade Cabília, citado por Bourdieu
(1988, p. 159), onde este indivíduo é:
Desavergonhado e descarado que ultrapassa os limites das boas maneiras (...), que
abusa de um poder arbitrário e comete actos contrários aos ensinamentos da arte de
viver em sociedade.
Quanto às suas origens, não registro de onde ele vem ou mesmo de quando surgiu
na brincadeira. Sua presença se concentra principalmente na Região da Baixada Maranhense,
como também em alguns municípios da região do Litoral Norte, bem como em São Luís. As
Foto 20 – Cazumbas no início da apresentação
Fonte: Acervo pessoal, 2009
69
informações que se tem a seu respeito são fruto do imaginário popular dos brincantes, dada a
semelhança entre suas visões do mundo e até na maneira como focalizam o personagem na
brincadeira, ou de antropólogos e pesquisadores que vêem semelhanças, por conta
principalmente do uso das máscaras, com personagens africanos e/ou ibéricos. Observo,
ainda, que o personagem Cazumba possui similaridades com outros personagens da cultura
maranhense, como os Caretas
52
, presentes na festa do Reisado no período natalino e o Fofão,
que se apresenta durante o carnaval. Eles têm em comum o uso de máscaras. O Fofão, por
exemplo, utiliza máscaras com o objetivo de amedrontar as pessoas, principalmente as
crianças. São feitas de borracha ou papel machê e se caracterizam por um nariz comprido,
associado a um órgão fálico. Para compor as vestes, fazem uso de um enorme macacão feito
de tecido de chita, que assim como as trajes do Cazumba, deformam seu corpo. Os Caretas
representam animais e são os palhaços da festa. Utilizam máscaras de diferentes tipos de
materiais e realizam “a morte” ou a “comédia” do careta, que consiste numa encenação em
que um brincante do Careta finge morrer.
Sobre os escritos a respeito do personagem Cazumba, estes começam em meados da
década de oitenta. Entre os poucos trabalhos disponíveis temos os artigos de Sergio Ferretti
(1986), Pinho Carvalho (2005), Américo Azevedo (1983) e Raul Lody (1999) que vêem o
personagem como de origem africana. O pesquisador e padre Bráulio Ayres (1999), também
remete o uso que este personagem faz com as caretas e vestes, aos rituais feitos pelos vodus
53
africanos. Segundo ele:
Observando cuidadosamente, percebemos que a presença vigilante, protetora,
zeladora e alerta dos vodus (‘disfarçados’ com suas longas vestes, seus guizos,
chocalhos e máscaras) é semelhante, salvo em suas particularidades, aos cazumbás
do auto do Bumba-meu-boi. Essas e tantas outras semelhanças podem ser
percebidas se comparadas as atitudes do cazumbá maranhense com as práticas
rituais dos vodus ancestrais do velho Dahomey.
A afirmação feita pelo pesquisador é resultado de suas observações em comunidades
africanas, mais precisamente na cidade de Ouidah (região cultural do culto vodu que se
estende por Gana, Togo e Benin), onde segundo ele, cada vodu possui uma relação metade
humana, metade espiritual.
Mais recentemente, temos o livro ‘Careta de Cazumba’, dos pesquisadores Mazzillo,
Bitter e Pacheco (2005) com depoimentos dos brincantes e imagens do processo de confecção
da indumentária. A publicação mostra a extensa diversidade do personagem em municípios da
52
Ver: Cornélio (2009).
53
Divindade africana de origem Euê-fon procedente da República do Benin, cultuada no Brasil entre os Jêje no
Tambor de Mina. Corresponde a orixá entre os nagôs no Candomblé. (Sérgio Ferretti).
70
Baixada Maranhense, apresentando ainda farta documentação fotográfica que ilustra diversos
tipos de máscaras produzidas na região.
Com efeito, as máscaras africanas possuem semelhança, em alguns aspectos, como o
formato animalesco, com as caretas utilizadas pelo personagem Cazumba. Além disso,
passam a impressão de que protegem os homens que o interpretam no momento da
apresentação, sendo esta ação justificada por eles como apenas uma forma de organização da
brincadeira. No entanto, se observarmos, por exemplo, as máscaras ibéricas (região de Trás-
os-Montes, Portugal), estas também apresentam semelhanças com as utilizadas por eles,
entretanto ainda não pesquisas aprofundadas sobre tais relações de proximidade estéticas
ou históricas
54
.
Neste ponto, caímos em uma velha armadilha: buscar as origens e as definições a
partir de características semelhantes de ritual ou objetos provenientes de cultura diferentes.
Esta atitude, que, segundo Boas (2007, p. 31), é freqüentemente formulada pelos antropólogos
modernos, não pode ser aceita como verdade em todos os casos. Além disso,
Não se pode dizer que a ocorrência do mesmo fenômeno sempre se deve às mesmas
causas, nem que ela prove que a mente humana obedece às mesmas leis em todos
os lugares (...). Em suma, antes de se tecerem comparações mais amplas, é preciso
comprovar a comparabilidade do material.
Trata-se aqui, de observarmos no que concerne ao personagem Cazumba, que
consideramos muito importante os processos pelos quais certos estágios da sua participação
na brincadeira se desenvolveram, ou seja, as razões da sua presença, funções e mudanças ao
longo dos anos. O que venho tentando observar atualmente é a forma como esses brincantes
se definem enquanto personagem, ou seja, qual a idéia que eles têm de um “eu” Cazumba.
Para isso, tenho tentado analisar suas formas simbólicas (imagens, indumentárias, palavras,
espaços), para então compreender como os homens que o interpretam através dessa
simbologia, se apresentam para si mesmo e para os outros.
Sobre a identidade deste personagem, alguns brincantes afirmam que ele é:
Aquele que brinca com a farda, toda enfeitada de paete e canutilho, com uma torre
de isopor na cabeça bem preparado.
É umas pessoas vestidas de coisas brilhosas com umas máscaras muito importante e
é isto. Ele vem para representar o bumba-meu-boi daqui. Eles moram aqui mesmo e
se reúne no dia da festa.
(José Domingos Mendonça e Marciano Nunes, Turma Proteção de São João,
24/06/2006).
54
Ver Ferretti e Matos (2009).
71
O Cazumba enquanto personagem é, para eles, um ser com legitimidade para
representar a brincadeira, além de especial para quem o interpreta. Seus conceitos têm como
base a vivência e a importância dele nos vários momentos da apresentação.
2.1.1 O visual: aspectos das vestes do Cazumba
Como dito anteriormente, o personagem Cazumba é diverso em sua composição
visual. As formas de construí-lo e imaginá-lo mudam dentro de um mesmo município e seus
povoados ou dentro de um mesmo grupo. Atualmente em toda região da Baixada Maranhense,
que conhecemos melhor, encontramos diferentes tipos deste personagem, com vestes que vão
desde as mais conhecidas, como as caretas talhadas em madeira e a farda em veludo bordada,
até as caretas de borracha ou papelão, com as fardas feitas de tecido de chita, seda, pintadas
ou bordadas.
Pinho de Carvalho (1999, p. 6) classificou as caretas utilizadas pelos Cazumbas em
três tipos: “focinho” ou “cabeleira”, feita de madeira pintada e com formato de animais, de
“tecido”, com bordados e orifícios para os olhos, nariz e boca, e “igreja” ou torre”, como
são designadas as esculturas feitas de isopor. Com o passar dos anos, as caretas, bem como a
roupa utilizada por eles foram se diversificando e hoje temos uma variedade tão grande da sua
indumentária que seria um reducionismo dizer quantas e quais são os modelos utilizados por
eles, principalmente porque sua composição visual se distingue dependendo do lugar e da
época.
Os brincantes de Cazumbas do município de Penalva, por exemplo, preferem os
modelos em que as caretas são talhadas em madeira, com formas animalescas, fixando-se
nelas enormes torres feitas de isopor em que são esculpidos diferentes desenhos. As batas ou
fardas são feitas de veludo preto ou vermelho e ricamente bordadas com miçangas, paetês e
canutilhos.
Portanto, há aqui neste ponto, análises fundamentais para se entender alguns
aspectos importantes acerca do personagem Cazumba, a partir das vestes que o identifica e em
seguida os símbolos que se encontram nela. (Foto 21).
72
Podemos dividir a composição visual do personagem Cazumba da seguinte forma:
a máscara e a túnica. Também chamada de careta ou queixo, a máscara é talhada em formato
animalesco (porco, cavalo, jacaré, cachorro) e fixada sobre a cabeça dos brincantes. É feita de
diferentes materiais (madeira, borracha, pano, papelão, entre outros), tamanhos e formas,
incluindo olhos, boca e nariz. Cada modelo é imaginado por aqueles que o interpretam, sendo
este um fator que as diversifica e conduz suas redes de relações.
As caretas de madeira não recebem nome específico, simplesmente chamam de
careta de Cazumba”. São talhadas representando animais (fotos 22, 23, 24 e 25), possuindo
ainda adereços, como o cabelo, feito de fitilhos coloridos e em alguns grupos, os brincantes
colocam sobre ela grandes esculturas, chamadas de torres ou coroas, feitas de ferro, isopor ou
cipó. Utilizam madeira paparaúba ou cedro para o entalhe, pois são mais leves e fáceis de
Foto 21 – Personagem Cazumba (veste completa - frente)
Fonte: Acervo Pessoal, 2009
73
receber cortes, durando em média dez a doze anos. Algumas são feitas em duas partes, onde a
primeira é a parte superior da boca do animal e a segunda, a inferior, que juntas produzem o
movimento de abrir e fechar a boca.
As máscaras de pano o confeccionadas com tecidos resistentes, como o brim,
por exemplo. Chamadas pelos mais antigos de “cabeleira de pelego”, este foi um modelo
utilizado durante muito tempo pelos brincantes. Eram feitas com tecidos velhos, cobertos de
algodão ou pêlo de carneiro e não recebiam adereços brilhosos. Atualmente esse tipo de
careta é comum em apenas alguns grupos, porém em menor quantidade. As máscaras feitas
de borracha são as mesmas utilizadas no carnaval pelo personagem Fofão, com imagens de
caveiras e demônios, que de certa maneira mantém o caráter assustador das demais.
Além dessas, existem também as caretas de papelão e certamente outras que ainda
não foram observadas. Como eles se situam em praticamente toda a Região da Baixada
Maranhense, o resultado será a grande diversidade dos tipos de máscaras, assim como as
diferentes formas de confecção.
A túnica (fotos 26, 27 e 28), chamada de bata ou farda, é feita de tecido pintado,
veludo, seda ou chita, bordadas ou não. As fardas bordadas possuem diversas imagens que
são preenchidas com miçangas, paetês e canutilhos. Alguns bordados chegam a cobrir quase
todo o tecido. Os desenhos são normalmente de caráter figurativo, sobretudo religioso, com
imagens de santos da Igreja Católica, especialmente São João, além de entidades de religiões
afro-brasileira. Também são feitos desenhos de árvores, flores, estrelas, sol, lua, cruz, pomba
do Divino Espírito Santo etc. Mas aqueles brincantes que preferem ter como bordado
Fotos 22, 23, 24, 25 – Caretas dos Cazumbas
Fonte: Acervo Pessoal, 2009
74
figuras abstratas, na maioria das vezes desenhadas por eles mesmos. Quando utilizam o tecido
de veludo, por exemplo, optam quase sempre pelas cores vermelho, verde e preto.
Antes de vesti-la, prendem na parte traseira do quadril um cofo
55
ou pedaço de
papelão, que permitirá o alargamento da veste nessa região do corpo. Juntamente com a bata e
a careta, utilizam ainda uma arma (espingarda) feita de madeira pintada, que serve para matar
o boi e um chocalho, instrumento de ferro tocado pelo personagem durante a apresentação.
Alguns o substituem por uma buzina ou ainda um boneco pequeno de plástico, para assim
interagir com o público. O chocalho serve, segundo eles, para avisar da sua chegada, bem
como complementa os demais instrumentos tocados e certamente relaciona-se com o mesmo
instrumento que é utilizado pelo fofão no carnaval maranhense.
Com relação ao significado dos desenhos, embora prevaleça motivo religioso, os
brincantes admitem que não um significado e nem um motivo objetivo que determine suas
55
O cofo é o nome dado, no Maranhão, à cestaria de natureza utilitária, confeccionada manualmente com as
folhas de palmeiras nativas. Gonçalves, Lima e Figueiredo (2009).
Fotos 26, 27, 28 – Fardas dos Cazumbas
Fonte: Acervo Pessoal, 2009
75
escolhas. O que os leva a escolher a imagem de um santo ou de uma flor, segundo eles, será o
brilho que cada um tena farda e que quanto mais intenso a cor e o brilho, maior o prestígio
daquele brincante em seu grupo. Estes são, sem dúvida, os significados gerais, que segundo
Geertz (1978) levam cada indivíduo a interpretar sua experiência e organizar sua conduta.
Desta feita, o brincante José Santos relata:
Pra saber o significado? A gente pega sempre os melhores desenhos pra colocar na
farda, aquele que mais brilho, como é o pavão e o o João, a gente sempre
coloca os melhores desenhos pra dá mais brilho, pro povo que vai ver a gente
brincando. (José Santos, 24/06/2005).
As vestes, além de distinguirem o personagem dos demais, possuem elementos
simbólicos que complementam sua personalidade: assustador, brincalhão e realizador de
travessuras.
O antropólogo norte americano White (apud LARAIA, 2005, p. 55) diz que:
[...] Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de
símbolos... Toda cultura depende de mbolos. É o exercício da faculdade de
simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua
perpetuação. Sem o mbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas animal,
não um humano (...) o comportamento humano é o comportamento simbólico.
Com efeito, o personagem cria a ilusão de uma realidade que não a meramente humana.
Colocando a indumentária, o brincante passa a existir de outra maneira, passa a ser um
personagem que possui características próprias, assumindo responsabilidades, como de curar
o boi ou mesmo de tirar-lhe a vida, por exemplo. Suas vestes possibilitam, ainda, uma dupla
personalidade, sendo em algumas ocasiões ele mesmo (o Cazumba) e em outras o Pai
Francisco. Nessa perspectiva, quando o personagem veste-se com a farda e a careta, ele
representa o Cazumba. No entanto, quando está vestido apenas com a farda, representa o Pai
Francisco, como explicaremos melhor adiante. nesta situação uma troca temporária de
identidade, fruto da diversidade apresentada pela brincadeira no ritual da morte do boi.
Como vimos, a indumentária permite simbolizar e participar de uma realidade
presente no imaginário popular daquelas pessoas, onde o brincante, quando da sua passagem
de homem sem máscara para personagem mascarado, se diferencia dos demais, se impõe,
incute medo e exerce domínio sobre a vida, a morte e a ressurreição do boi. Tudo isso para
obter reverência, destaque, prestígio e respeito no grupo. O aspecto místico também pode ser
aqui identificado, principalmente quando o personagem Cazumba se encontra na roda,
dançando. A imagem que produz dando giros com as vestes o faz parecer um ser
‘sobrenatural’, que brinca e se comunica com os espectadores através da dança e dos gestos
76
que executa durante a apresentação. Bolungum (apud LODY,1999, p. 10) ao tratar do sentido
do traje, relata que:
O traje sugere e impõe a presença do deus, mesmo no mais insensível dos
espectadores. Muitas vezes, o traje cobre o portador de máscaras da cabeça aos pés,
mas também pode muito bem conseguir apenas em alguns traços de tinta no corpo
ou no rosto. Esse traje tem por função essencial sugerir, designar uma realidade para
lá da presença física do ser humano que o reveste.
Por vezes, o traje do personagem Cazumba chamou minha atenção para algumas
de suas características apresentadas na brincadeira. Por exemplo, sua o participação nas
rezas e no batizado do boi, pois, segundo eles, precisam manter a fama de assustador e
rebeldes. Todavia, no bordado da indumentária os Cazumbas trazem imagens de santos e
igrejas. Trata-se de uma visão de mundo, do modo como articulam suas vidas particulares
com a vida do personagem. Geertz (1978, p. 94) nos coloca algumas formas de se pensar
essas questões, quando aborda o “Ethos”, visão de mundo e a análise de símbolos sagrados.
Segundo ele, a religião nunca é apenas metafísica, além disso, em todos os povos as formas,
os veículos e os objetos de culto são rodeados por uma aura de profunda seriedade moral.
Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada
cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo ‘ethos’, enquanto os
aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo ‘visão de mundo’. O
ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e
estético, e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete (...). A crença religiosa e o ritual confrontam-se e
confirmam-se mutuamente; o ethos torna-se intelectualmente razoável porque é
levado a representar um tipo de vida implícito no estado de coisa real que a visão de
mundo descreve, e a visão de mundo torna-se emocionalmente aceitável por se
apresentar como imagem de um verdadeiro estado de coisas do qual esse tipo de
vida é expressão autêntica.
Outro ponto é a crença descrita pelos brincantes, de que a careta, quando
colocada, permite que este transcenda sua condição de humano, ou seja, ela lhe confere um
poder para além da presença física. Também há uma crença entre alguns deles, entendida
como um pacto que o brincante de Cazumba faz com o demônio, ao optar ser este
personagem, devendo o mesmo ao morrer ir para o inferno. Muitas pessoas, em mais de uma
ocasião, haviam comentado comigo sobre isso em anos anteriores. Estas por sua vez, são
características descritas por alguns brincantes do município de Penalva, o que nos permite
pensar que em outros lugares existam certamente diferentes ‘histórias’ a seu respeito, dando-
nos a possibilidade de reinterpretá-lo, enquanto personagem que apresenta em seu ritual,
objetos simbólicos, comportamentos e características distintas, para além da estética dos
elementos integrantes da sua imagem.
77
Tiza (2004, p. 16) relata um fenômeno parecido quando menciona os rapazes
mascarados no ciclo festivo do Inverno, na região Traz os Montes, em Portugal:
É da crença popular que, se algum ‘careto’ morrer, enquanto revestido dos seus
adereços, vai direto para o inferno, de onde se conclui encontrar-se em estado de
pecado mortal por desempenhar tais funções diabólicas. Esta crença foi ao longo
dos tempos, incentivada pelos membros do clero com o intuito de demover os
jovens destas práticas.
Pensando novamente nas máscaras utilizadas na representação do Cazumba,
veremos que elas, além de reafirmar o personagem enquanto agente comunicador, também
constituem um símbolo que lhe confere autoridade. Ao iniciar a apresentação, por exemplo,
são eles que tomam a frente do grupo, sendo também responsáveis, como dito, pela morte
do boi. O formato animalesco incute temor e medo nas pessoas, sendo esta uma característica
comum entre aqueles que o interpretam, independente de grupo ou município. É com elas que
são encenadas as histórias que envolvem o personagem. Sob essa ótica, a máscara, como
descreve Boas (2007, p. 31), também é empregada em representações teatrais para ilustrar
incidentes mitológicos.
Usar este objeto, seja em tempos mais remotos, ou mesmo nos dias atuais, é uma
prática de caráter religioso e/ou festivo. No teatro, em rituais de passagem, ou simplesmente
para representar um personagem como o Cazumba, por exemplo, as máscaras possuem tanto
um caráter estético como simbólico. Sobre seu motivo Bakhtin (1987, p. 35) escreve:
A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade,
a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida
consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das
violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna
o princípio do jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da
imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos.
Segundo Lévi-Strauss (1979, p. 5) tal como os mitos não podem ser interpretados
em si e por si, a mascara não pode ser vista como objeto isolado. Nesse sentido, esta é para os
brincantes de Cazumbas, o principal símbolo identificador do personagem. O brincante
neste objeto não somente uma forma de fugir do cotidiano, mas também a possibilidade de
assumir uma dimensão além da material. Ao comentar sobre a origem e a importância mágica
da máscara, Monti (1992, p. 07) considera que:
[...] de fato, a máscara, independentemente de sua localização geográfica, aparece na
história da humanidade desde as épocas mais remotas. Ao que tudo indica, seu
primeiro elemento motivador é uma existência mágico-religiosa, ligada às
necessidades da vida cotidiana. [...] A qualidade mágica desse rito põe em relevo a
importância da máscara como elemento catalisador de forças misteriosas que o
homem pode captar e utilizar com finalidades práticas.
78
Lody (1999, p. 09) a caracteriza como partícipe de um mundo sagrado. Segundo
ele, o ato estético e simbólico de mascarar pressupõe o uso de uma peça convencionalmente
preparada para tal finalidade. A máscara, conforme sua descrição, vai além de uma peça. É
antes de tudo, uma preparação, onde quem utiliza vive um estado de predisposição e entrega
àquilo que será o personagem. No entanto, a máscara, como não desempenha apenas uma
função metafísica, possui também base histórica, social, política e religiosa. Na África, por
exemplo, a máscara é empregada com fins práticos, como: educação dos jovens, realização de
cerimoniais religiosos, funerais, presidir julgamentos e verificar certas leis políticas. Apesar
da multiplicidade dos seus usos, considerando a sua grande variedade no mundo, em geral,
elas apresentam algumas características comuns, conforme cita Lody (1999, p. 11):
A máscara não envelhece, não morre, não apresenta mudanças do tempo, as
transformações materiais da pessoa; se o personagem é eterno, seus usuários –
verificadores de símbolo lhe dão continuidade pelo uso e de acordo com a
necessidade específica do grupo no qual a máscara ou conjunto de máscara atua, seja
por tradição, função econômica, culto religioso ou lembranças do cumprimento de
regras e normas da sociedade.
Com relação às enormes esculturas fixadas acima da máscara, os brincantes
atribuem seu uso à atribuição de prestígio e admiração. De fato, tais esculturas, antes não
utilizadas, oferecem atualmente entre eles uma distinção maior em relação aos demais
personagens, assim como causa discórdia entre alguns. Nos dados de campo anteriores, ouvi
de muitos brincantes relatos como:
Antigamente se usava a careta de pelego, ficava até mais bonito e era menor, entrava
em qualquer lugar, hoje os cazumbas são tipos uns presidentes, porque, eles uso
aquelas careta grande, num pode nem entrar numa casa, só pra ta dançando, pra tá
brincando no cordão.
(Raimundo Mendonça, 19/05/2004)
As torres, assim como as caretas, são formas e imagens que segundo Monti
(1992), expressam a passagem do mundo real para o imaginário. É também o símbolo que
provoca competição entre eles, pois quanto maior a careta e mais brilhosa, para os brincantes
significa dizer melhor em relação ao outro brincante. Tal competição, se comparada com a
competição de honra descrita por Bourdieu (1988, p. 166) situa-se numa lógica muito próxima
do jogo ou da aposta, lógica ritualizada e institucionalizada. O ponto de honra é também a
vontade de superar o outro num combate de homem a homem.
Também a forma animalesca do queixo é motivo para disputas entre os
brincantes. Para eles, quanto mais feio e assustador o animal esculpido e mais agressivo em
79
sua expressão, mais bonito” o personagem se torna, ou seja, consegue atrair mais
rapidamente e por um tempo maior o olhar do espectador.
Em todos estes casos, como observa Mazzillo, Bitter e Pacheco (2005, p. 9):
O que parece caracterizar mais singularmente as máscaras é seu poder
transformador. Seu sentido pleno pode ser alcançado quando vestido e posto em
movimento por uma pessoa, um brincante. Aliás, é preciso acrescentar que quase
sempre as máscaras estão associadas a uma indumentária que cobre inteiramente o
corpo. Tudo isso indica ser a máscara e a indumentária uma extensão do corpo ou
mesmo um segundo corpo, um duplo da pessoa. Representando animais totêmicos,
seres sobrenaturais, forças personificadas da natureza, ou mesmo humanos, estas
figuras, em certos contextos não são interpretadas por seus usuários e espectadores
como sendo imagens, mas como a sua manifestação concreta.
A indumentária, como observado aqui, é o componente identificador do
personagem, que permite a ele inúmeras formas de se relacionar com o público. Além de
oferecerem aos homens que brincam uma coragem que de outra forma não teriam para se
apresentar publicamente. Também são as vestes que favorecem a curiosidade das pessoas,
bem como dão a ele a cada brincante o prestígio que tanto buscam, como relata Zé Quita:
O que mais enfeita o Cazumba é a farda, a farda basta você mexer o corpo ela ta
brilhando. Então você não tem muita dificuldade, mas quando eu entrei mesmo, foi,
vixe!, foi muito nervoso, quando eu olhei o público ao redor, meu Deus! Até hoje
mesmo eu não vou te mentir, ainda nervoso mesmo. Mas eu não sei brincar
realmente como os outros brincam (...). Realmente balançar o gingado do corpo
igual todo mundo. Por isso que eu gosto de brincar mais de farda, também secreto,
encapuzado, eu gosto de olhar o público me olhar e não dele dizer assim: aquele ali é
Quita. Não, o cara tem que ter aquela curiosidade de saber quem é (...). Se
dependesse de mim os meus colegas ficavam assim encapuzados, pra ficar naquela
curiosidade. Embora que eles iam descobrir, porque o físico, um conhece o físico
do outro, “Rapaz aquele é fulano de tal”. Porque o Mário Cazumba, ele vem
identificado, ele brinca sem máscara, e eu não, quando eu tiro a careta, coloco
uma camisa, fico tipo um ninja e coloco o boné, e pronto. ninguém reconhece,
fico protegido. Mas eles tem como reconhecer. Aí faz aquela brincadeira pro público
só pra ficar mais atraente assim. (Zé Quita, 24/05/2009).
Dessa forma, a composição visual analisada aqui em seus mais diversos aspectos,
oferece ao personagem Cazumba a manutenção de seu prestígio na brincadeira. Ele é
importante e precisa manter-se nas tradições que o cercam. Evidentemente, que sua
composição visual vem mudando ao longo dos anos, como relatou seu Raimundo Mendonça
acima, o que resulta também em algumas mudanças de comportamento. No entanto, via de
regra, seu comportamento atende ao costume vivido por todo o grupo.
80
2.1.2 - A confecção do artefato Cazumba
Na arte popular, os autores, em geral, são anônimos. Aprendem sem freqüentar as
escolas de arte e suas obras possuem valor artístico e estético que mostram os aspectos
culturais do meio onde vivem. O produto, normalmente chamado de artesanato, surge do
manuseio preciso dos materiais e da criatividade do artesão, resultando, com o passar dos
anos, em técnicas individuais, transmitidas oralmente e mantidas coletivamente. Dessa
maneira, tratarei neste item o artefato Cazumba, sobre o fazer desse objeto que ganha vida no
corpo dos homens que o utilizam. Verificar quem são esses artesãos, como fazem, por que e
desde quando trabalham com a criação e caracterização física deste personagem.
De início podemos verificar que, enquanto o papel de Cazumba é atribuição de
uma única pessoa, sua confecção é tarefa para diversos indivíduos - brincantes ou não, que se
dedicam à preparação de suas partes. Na pesquisa que realizei em 2003, as etapas de
elaboração me chamaram muita atenção. Primeiro porque a pessoa que esculpia a careta não
era a mesma que elaborava as torres ou fazia a farda. Alguns atributos eram das mulheres,
como o bordado, por exemplo. E haviam aqueles brincantes que faziam alguma parte da sua
indumentária, em geral a careta.
Além da ação de confeccionar as vestes do personagem e da técnica, necessária e
adquirida com os mais velhos, tem-se o fazer artístico, entendido como algo que o artesão
produz com o objetivo de agradar ao olhar do espectador. Esse fazer artístico se revela no
cuidado com a escolha das cores, na preocupação com o impacto que cada careta terá ao ficar
pronta e na busca pela unicidade do produto, pois cada Cazumba possui em sua composição
visual, elementos que diferenciam um do outro, seja no formato da careta ou nas cores que
ela é pintada, seja no bordado das fardas. O importante é que em um dado detalhe um
brincante se diferencie do outro.
Os artesãos são os responsáveis pela confecção das caretas, torres e farda que
compõem o visual do personagem. Em alguns casos, é o próprio brincante. As caretas com
formato animalesco, normalmente a cargo dos homens, são talhadas de acordo com o saber
empírico que cada um adquire ao longo dos anos com os mais antigos, obedecendo apenas ao
pedido do dono quanto ao modelo de animal. Como esculpir, que material usar e de que cor
pintar são tarefas do artesão. Eles escolhem segundo seus critérios de beleza, geralmente
associados a cores vivas, como amarelo, vermelho, verde, que, segundo eles, diferenciam o
personagem dos demais.
81
Do mesmo modo são feitas as torres. O cuidado com a escolha da imagem que
será esculpida e a simetria apresentada na forma, resulta numa composição harmoniosa,
revelando que sua percepção está aliada a sua experiência de vida. Estas, além de exigirem
habilidade e cuidado no corte do isopor, ou na dobragem do ferro devido à altura, são as que
mais chamam a atenção do espectador. Ostrower (1984, p. 69), ao analisar a criatividade e os
processos de criação, destaca que, seja qual for a área de atuação, a criatividade se elabora em
nossa capacidade de selecionar, relacionar e integrar os dados do mundo externo e interno, de
transformá-los com o propósito de encaminhá-los para um sentido mais completo.
Após a confecção, a careta, juntamente com a torre, terão significado quando
utilizados e postos em movimento pelo brincante. Elas servem para modificar suas
características físicas, sua individualidade, além de lhe conferir poder diante dos demais
personagens. Na turma Proteção de São João, os brincantes do personagem Cazumba
reformam ou encomendam novas vestes todos os anos. Mesmo com o alto custo, eles não
medem esforços para se exibirem diferentes uns dos outros anualmente. Essa é, na verdade,
uma característica comum para aqueles que se vestem como Cazumba, como observa
Mazzillo, Bitter e Pacheco (2005, p. 3):
Para um Cazumba é importante que, a cada ano, a careta supere a do ano anterior,
mudando de expressão, mostrando mais invenção. Para animar a festa, vale tudo
principalmente misturar traços de animais, inventar cores enlouquecidas nas
cabeleiras das máscaras e, tudo mais que ocorrer ao artista popular encarregado de
criar as caretas.
A criatividade de quem produz o artefato Cazumba é um aspecto de grande
relevância na brincadeira. É definida, segundo eles, como a capacidade de criar algo que
possa ser entendido e principalmente elogiado pelos demais, como destaca o artesão Jackson
(apud Mazzillo, Bitter, Pacheco, 2005, p. 33).
[...] Essas torres que eles fazem com isopor de geladeira, simples, ficam bonitas,
mas a gente não entende o que é o desenho. Elas não tem aquela criatividade. Não
tem como você comparar com uma dessa que você pode olhar o desenho e dizer:
olha, aquilo é um beija-flor, ou aquilo é uma águia. Tudo tem um sentido, e as deles
não tem sentido. (grifo nosso)
Na escolha das cores, por exemplo, é possível identificar a simplicidade no
processo de seleção, muito influenciada pela relação que mantém com a natureza.
A cor vai depender da criatividade do desenho, por exemplo, um cisne é todo
branco. Tem que ficar todo branco, se tiver algum detalhe é na ponta da asa, de
preto, ou então de amarelinho pra destacar mais um pouco. Tem outros desenhos
82
que ficam coloridos, tipo pavão. Quando ele abre aquele rabo é todo colorido,
tem que meter todas as cores de tinta: vermelho, azul, verde, amarelo. Tem que
combinar as cores, se você vai botar azul, bota um verde, um amarelo. Você tem
que saber onde vai colocar a cor certa. A tinta que agente usa mais é o branco,
porque tem que estar em todas as cores. Por exemplo, eu vou passar o azul, aí passo
o azul até uma certa metade, depois pego o branco, passo na outra metade e vou
espalhando ali até chegar bem pertinho do azul. Assim, fica aquele azul mais forte e
aquele azul mais clarinho um pouquinho. que fica uma cor destacada!. Jackson
(apud MAZZILLO, BITTER, PACHECO, 2005, p. 33).
Na cidade de Penalva, diversas pessoas especialistas na confecção do artefato
Cazumba. Eles, em geral, trabalham para seus companheiros de grupo ou para participantes
dos demais, dependendo das encomendas que receberem nos meses que antecedem a festa
junina. Esta atividade é com freqüência resultado de uma vocação que os leva a exercer tal
tarefa, existindo, porém,, a necessidade de se ter outras profissões ou outros afazeres.
casos em que a confecção do artefato é repassada de pai para filho ou entre os
amigos oralmente. Seja como for, o ato de confeccionar a fantasia ou a máscara utilizada pelo
Cazumba, não absorve todo o tempo do artesão, mesmo porque, uma careta, por exemplo,
resiste muito tempo, cerca de dez anos, sendo substituída apenas quando novos brincantes
entram no grupo ou quando algum deles quer trocar a antiga por uma nova.
Quando pronta e colocada no corpo, a indumentária intensifica a expressividade do
personagem no momento da apresentação. Dessa maneira, independente das cores da farda,
ou do modelo da careta, é graças ao trabalho dos artesãos, que seu uso dá vida ao personagem
e permite ao brincante dançar e notabilizar sua performance no bumba-meu-boi. Apresento
aqui o trabalho de três pessoas, com especialidades distintas na elaboração do artefato
Cazumba.
O primeiro chama-se Raimundo da Costa, conhecido como Camaleão. Raimundo
nasceu em 1973, no povoado Jacaré, próximo ao município de Penalva. Casado e com dois
filhos, vive da pesca e da confecção de caretas. Começou a morar na sede do município em
2001, sendo brincante desde os quinze anos de idade. Depois de seis anos participando como
intérprete do personagem, aprendeu a confeccionar sua própria careta apenas observando,
como relata:
Eu olhei o finado Marco Ligão fazendo um dia e eu sou muito curioso, eu fiquei
olhando, inté porque eu tava esperando ele fazer aquele queixo pra me entregar. Ai
fiquei mais de hora e pensei “ah não!, assim eu faço!”. Porque se eu fizer um
desenho no papel eu faço o que quiser (...). Fui reparando e aprendi, tentei fazer.
Quando eu fiz pra mim ai outro olhou e disse: “rapa faz um pra mim”. Ai eu fiz,
deu certo. De lá pra cá eu venho recebendo encomenda. (Raimundo da Costa,
apelidado de Camaleão, 26/05/2009).
83
Trabalha na pequena sala da sua casa, talha as caretas em madeira, fazendo animais
dos mais diversos, dependendo do pedido, como afirma a seguir:
Quando eu comecei a fazer, eu fazia assim como uma feição de uma pessoa.
Quando chegou um dia uma pessoa olhou pra mim e disse: “olha, eu quero pra ti
fazer pra mim um queixo de águia”. Eu nunca tinha feito. Mas olhei uma águia,
fui e fiz pelo pedido dele. Não foi nem assim uma questão do meu saber, que
ele me pediu e fui caprichar pra fazer e fiz feição de cachorro, feição de porco,
qualquer um eu fiz. (Camaleão, 26/05/2009).
Entretanto, casos em que esculpe animais que nunca viu na vida, como
rinoceronte ou hipopótamo, por exemplo. Recebe anualmente muitas encomendas, sendo a
atividade de artesão uma das suas principais fontes de renda.
Raimundo inicia o processo de elaboração das caretas no mês de abril, quando
esculpe a madeira, levando de dois a três dias para talhar e pintar cada uma. Utiliza para o
entalhe a paparaúba, que segundo ele, é a melhor para o corte, além de ser mais leve e de fácil
manuseio pelo brincante. Cobra em média por careta de 15 a 30 reais, dependendo como
explica, do ‘preconceito’ de cada face. O ‘preconceito’ segundo ele, é quando se trata de uma
careta de difícil entalhe e que leva muito tempo para ficar pronta.
Porque quando esse queixo é simples como esse aqui, eu faço ele num dia. Quando
ele é todo cheio de preconceito, ai ele tira o tempo da gente. Isso aqui, é que nem o
ser humano, ele tem a parte superior e a inferior. (Camaleão, 26/05/2009).
A parte superior e inferior a que se refere o artesão relaciona-se à divisão da careta
em duas peças: uma que vai da metade da boca até a parte superior da cabeça e outra que vai
da parte inferior da boca até o queixo. Para terminar prende as duas partes atrás por um arame,
o que permite a movimentação da boca do animal, abrindo e fechando quando movimentada
pelo brincante.
Camaleão é brincante de outra turma, chamada União do Povo, o que não impede
que receba encomendas de pessoas de outros grupos da cidade de Penalva, principalmente dos
brincantes de Cazumba da turma Proteção de São João, como descreve:
depende de encomendar. Desse do Anil (se referindo à turma Proteção de São
João), da turma do Mário aqui, eu já fiz muito queixo pra lá. Não tenho preconceito
porque não é da minha turma. Não, o que importa é se me pagar, eu faço.
(Camaleão, 26/05/2009).
Sobre os instrumentos utilizados e as dificuldades, relata:
Talho com um patacho, ai eu pego, talho. Depois eu pego a lixa, lixo. Ai eu deixo
ele pronto. Quem olha acha que fiz com um maquinário muito importante.
84
Minha maior dificulidade que tenho é (...) você que aquilo que se faz com a
mente consome muito. A maior dificulidade que eu tenho é porque eu não tenho o
desenho aqui perto de mim. Aquele molde perto. O pessoal chego e pede: “rapaz eu
quero um porco”, sem o desenho eu tenho dificulidade. (Camaleão, 26/05/2009).
Também é responsável pelo bordado da sua farda, função geralmente atribuída às
mulheres. Nessa atividade ele recebe ajuda da esposa e dos três filhos, enquanto que na
confecção das caretas, prefere trabalhar sozinho. Atualmente, Camaleão é uma das maiores
referências na confecção das caretas, o que lhe garante prestígio entre os brincantes de
Cazumbas do seu grupo.
Eu me sinto feliz, satisfeito, porque as pessoas vem procurar agente, isso é muito
importante. Quando eu comecei fazer, eu fiz pra duas pessoas esse queixo, foi uma
pra mim e outra pra esse que ta (Mário). No ano procuraro pra ele quem fez,
ele disse que foi eu, foi que recebi umas oito encomendas. E de pra eu fiz
que não tenho mais as contas de fazer. Você vê, quando agente vai pegando o
nome. (Camaleão, 26/05/2009).
Com base nesse relato, observei que o aumento das encomendas é principalmente
em razão dos diferentes e inovadores resultados obtidos em cada careta encomendada. O
formato do animal, por exemplo, obedece não somente às sugestões dos brincantes, mas
também ao seu potencial criador e à sua sensibilidade. Desse modo, conforme Ostrower
(1984, p. 12):
Como processos intuitivos, os processos de criação interligam-se intimamente com
o nosso ser sensível (...). Ainda que em diferentes graus ou talvez em áreas
sensíveis diferentes, todo ser humano que nasce, nasce com potencial de
sensibilidade.
A autora define sensibilidade como uma disposição elementar, num permanente
estado de excitabilidade sensorial, uma porta de entrada das sensações. Representa, segundo
ela, uma abertura constante ao mundo e nos liga de modo imediato ao acontecer em torno de
nós.
No caso do seu Camaleão, observei que as cores escolhidas para pintar as caretas
têm relação com as sensações que elas lhe proporcionam. Por exemplo, o vermelho, vai
significar o sangue, o coração, o amor, o fogo e principalmente será capaz de chamar mais
rapidamente a atenção do espectador. Por isso sua preferência por cores vibrantes.
Para a confecção das torres, também denominadas coroas, artefato fixado
acima das caretas (Fotos 29 e 30), mencionarei o trabalho do brincante e artesão José da
Conceição Santos Marinho, conhecido no grupo como Zé Caçota. Ele nasceu num lugar
chamado Tadéia, povoado do município de Cajari, distante cerca de 30 km de Penalva. Assim
como seu Camaleão, é pescador. Casado, ou como diz amigado, vive na cidade de Penalva
85
desde 1982, participando da turma Proteção de São João desde sua fundação, passando pela
função de tocador e brincante de Cazumba, além de atualmente ser o artesão responsável pela
confecção das torres.
Fotos 29 - Torre fixada sobre a careta do Cazumba
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
86
As torres são extraordinárias esculturas talhadas em isopor. Apresentam figuras
diversas. Costumam ter estrutura de metal, madeira ou vergalhão. Entretanto, as produzidas
por Caçota são feitas de isopor e representam figuras variadas. Alguns anos atrás a forma
mais comum das figuras eram igrejas, sendo substituídas pelas enormes torres atuais.
Algumas chegam a duplicar a altura do brincante. Utiliza na pintura cores claras como azul e
verde ou mais intensas, como vermelho e o amarelo. Como acessórios, Caçota fixa ao
gosto do brincante, cd’s de músicas usados, brilhos coloridos, fitas coloridas, lâmpadas que
acendem e apagam durante a apresentação, festões de natal, entre outros enfeites.
O que é comum nas torres, independente de seu formato é a presença de imagens
religiosas, principalmente São João, como vemos nas fotos 39 e 40. Há casos em que ele pinta
a imagem tanto na frente como atrás da torre, sendo o uso dessas figuras uma característica
compartilhada por todos os brincantes, como relata Zé Quita:
Fotos 30 – Torre fixada sobre a careta do Cazumba
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
87
Todas as torres nossas dos cazumbas tem a imagem de São João. Você pode botar o
que você quiser a careta, mas se não botar São João, não tem graça a careta. É um
símbolo que identifica nosso grupo, e eu acho assim que todos os brincantes
devotos de São João ou não ele tem por direito e até por respeito colocar a imagem
de São João. (Zé Quita, 24/05/2009).
Caçota aprendeu sozinho e relatou que no começo errou bastante quando
esculpir as barras de isopor. Com o passar dos anos, foi adquirindo certa prática e hoje talha e
pinta com facilidade. Sobre o processo de elaboração, relata:
Olha, o desenho é feito primeiro, o rascunho no papel, ou às vezes trago no
rascunho e o brincante diz: olha eu quero o meu nesse modelo aqui, do papel eu
passo pro isopor e em seguida recorto ele, depois de cortado eu lixo pra fazer a
pintura. o que eu uso é uma serra pra serrar o isopor, a lixa que é pra lixar, e o que
mais? Cola que é pra colar as partes, e umas barras de ferro que é pra colocar nos
eixos, pra segurar as torres, e o chapéu pra segurar o queixo. (Zé Caçota,
26/05/2009).
É comum também o formato de animais em pares, como um casal de garças, de
pôneis, pássaros e ao redor, formas complementares que assegurem o equilíbrio do isopor na
cabeça. Quando acontece do isopor quebrar, é passada uma massa corrida. Não ficando ao
gosto do brincante, faz-se um novo corte, modificando o formato da escultura original.
Caçota inicia suas atividades como artesão de torres no final do mês de maio,
fazendo uma média de seis a sete coroas por ano, cobrando a mão de obra e os materiais dos
que encomendam, que em geral são brincantes da própria turma.
Enfatizou que antigamente, quando não existiam isopores grossos, a maneira de
confeccionar era distinta da atual. Hoje é possível adquirir isopor de 30 cm, com um metro e
meio ou dois metros de altura, o que permite mais agilidade no processo do corte.
As torres motivam a competição entre os brincantes, mas dificultam seu
desempenho na hora da apresentação, principalmente por conta do peso e do vento. O
resultado é que por vários momentos os brincantes de Cazumba, apenas caminham segurando
as enormes torres. Caçota destacou em relação à competição: “Tem, tem sim, com certeza
tem. Porque tem uns que quer sair melhor do que o outro faz de conta que são melhor”.
Ouvi deles muitos comentários sobre a altura da torre. Para alguns, ter uma torre altíssima
chama ainda mais a atenção dos espectadores, dá mais visibilidade para a turma e os distingue
uns dos outros. Por outro lado, atrapalha o desenvolvimento de sua performance, chegando
algumas vezes a causar um mal estar entre os brincantes e o público; mas, como recompensa,
o prestígio ajuda os brincantes a conseguirem até mesmo uma namorada, como relata
Quita:
88
É, tem vezes que a gente fica até chateado com o público. - Poxa vocês não deixam a
gente brincar pra vocês! Então vocês tando aí, não tem como a gente não mostrar,
ficar pra vocês a vontade. Aí às vezes é impossível, aí nós arreia as caretas. Por que?
Porque vocês não querem deixar a gente brincar. Tem vez que a gente fica até bravo
com o pessoal, mas geralmente é as meninas, que elas às vezes querem te abraçar, e
aí por isso que tem muita pessoas, principalmente a juventude que quer virar
Cazumba. Ele sabe que o Cazumba através daquilo ele tem fama, e às vezes
consegue até uma namorada. (Zé Quita, 24/05/2009)
Mesmo com prós e contras, as torres são atualmente um elemento identificador do
personagem, tão importante quanto as caretas. Para completar as vestes do personagem
Cazumba, eles utilizam a farda ou bata bordada, em geral feita pelas mulheres. Na turma
Proteção de São João, a artesã responsável pelos bordados da farda, chama-se Claudilene
Anchieta Mendonça, conhecida como Lena (foto 31). Nasceu em Penalva, tem 27 anos, é
esposa do brincante de Cazumba Quita, com quem tem dois filhos. Lena é filha de Dona
Matilde e Seu Sinésio. Ocupa sua função de artesã todas as tardes no quintal da casa de sua
irmã, próximo ao final da rua em que moram. A partir do início do mês de maio, junta-se com
dois ou três assistentes para preparar as vestes das índias e bordar as fardas utilizadas pelos
Cazumbas. Lena participa durante a apresentação interpretando o personagem caubói desde o
início da turma, ajudando, atualmente, também na organização da brincadeira. Para o
bordado das fardas, ela é a única responsável, escolhendo cores, desenhos e determinando a
distribuição dos mesmos ao longo da túnica.
Foto 31 – Lena bordando a farda dos Cazumbas
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
89
A farda ou bata, como já indicada, é uma espécie de túnica, que cobre o brincante
do pescoço aos pés. Ao longo do tecido, normalmente veludo preto e vermelho, são bordadas
imagens como santos, igrejas, flores, pássaros, animais, entre outras. A primeira etapa da
farda, que é cortar suas partes, é feita por dona Matilde, que em seguida entrega para que
Lena borde. Após o bordado, dona Matilde então costura as partes que foram bordadas
separadamente, frente e costa, as mangas compridas e outras duas partes cortadas que ficam
na lateral da veste, chamadas de nesga.
Referindo-se ao bordado, Lena afirma:
Antes era mais simples, sempre mais simples e eu bordava mais era com o paête,
porque tem os dois bordados, tem o paetê e o canutilho, mas sempre eu bordando
mais o paête do que o canutilho, como hoje. Mas eu bordo com os dois. (Lena,
24/05/2009).
Quando perguntada sobre os desenhos mais utilizados, responde:
Porque nesse caso varia dependendo do dono da farda, eles escolhem o desenho, ele
chega e que diz “eu quero um São João, eu quero uma igreja”, como essa farda aqui
(mostra farda que está bordando), ele escolheu duas beija-flor, um sol, uma puma
(onça) e as duas estrelas, isso aqui é na costa. Ai eu bordo, depois que ela ta
pronta, é que vai costurar, depois que termina o bordado que costura. (Lena,
24/05/2009).
Como vimos, ainda que o desenho seja uma escolha dos brincantes de Cazumba,
a costura e o bordado são de responsabilidade das artesãs. São elas que selecionam as cores, o
local onde o bordado será aplicado, bem como os materiais que irão compor os mesmos. A
elaboração do trabalho inclui o que Ostrower (1984, p. 70) denomina de intuição, onde o
homem constrói seu trabalho intuindo. Segundo ela:
[...] A todo instante ele terá que se perguntar: sim ou não, falta algo, sigo, paro...
Isso ele deduz, e pesa-lhe a validez, eventualmente a partir de noções intelectuais,
conhecimentos que incorporou, contextos familiares à sua mente. (Lena,
24/05/2009).
A costura da farda só é feita após o bordado. Sendo ornada por partes até que fique
toda pronta. Em geral vermelho e/ou preto, estas são, para eles, as cores ritualmente
significativas, por refletirem melhor as imagens bordadas. Observei que grande parte dos
brincantes usa o veludo vermelho na frente da farda e o veludo preto na parte traseira,
conforme podemos observar na foto 4. No início, os bordados eram feitos apenas com paetês
e a linha que os prendia ao tecido ficava à mostra. A miçanga passou a ser fixada depois, pois
além do custo maior, era mais difícil de ser encontrada. Atualmente, o bordado é feito fixando
90
primeiro o paetê e por cima dele miçanga, dando mais brilho e impedindo que a linha fique
visível. As cores mais utilizadas dos paetês e miçangas são prata, vermelho, dourado e
amarelo, que segundo Lena, acentuam o brilho durante à noite.
Outra informação importante é que o uso das fardas com as características atuais,
ou seja, de tecido veludo e bordada, começou em meados do ano 2000. Antes, apenas os que
interpretavam o personagem vaqueiro utilizavam as vestes de veludo preto e bordado
(peitoral e tanga), enquanto que os que interpretavam os Cazumbas vestiam uma túnica de
tecido de chita ou algodão estampado. Antes dessa mudança, as vestes de veludo eram
encomendadas na cidade de São Luís e também na cidade Viana, cerca de 30 km de Penalva.
Igualmente as coroas fixadas nas caretas, segundo ela, são da mesma época em que
começaram utilizar o veludo na farda, entre os anos de 1998 e 2000.
Meus dados, obtidos em campo, de modo, em geral confirmam a informação
fornecida por Lena. Em anos anteriores e em conversas recentes, sempre que perguntava
acerca das vestes, alguns davam a mesma referência. A artesã me fez perceber, ainda, que os
brincantes, normalmente os mais jovens, se preocupam exageradamente em trocar ou
modificar a indumentária a cada ano careta, torre e farda. Quando questionada sobre a
necessidade de se refazer tudo anualmente, ela respondeu:
Tudo de novo. É tipo assim: este ano eu bordo esta costa, (mostra farda de
cazumba que estava bordando) que não vai dar tempo de bordar a frente, a manga e
a nesga, que está com bordado antigo, ano que vem eu bordo a frente dessa aqui.
É que eles acham que esse bordado está velho, eles trocam de dois em dois anos.
todo ano tem serviço, ou então eles dizem, “já está pouco, já não presta mais”,
então coloco mais bordado, e outro faz uma nova, sempre tem serviço. Assim
como é a farda é as coroas deles também. (Lena, 24/05/2009).
É importante ressaltar que Lena, quando ordena as imagens a serem bordadas, faz
de forma harmoniosa, apresentando visualmente um equilíbrio simétrico. O cuidado na
composição se até mesmo quanto às indicações de espaço. Assim, as figuras maiores, mais
pesadas visualmente, como igrejas, pássaros; são colocadas na parte inferior da veste,
enquanto que as figuras menores, mais leves visualmente, são postas na parte superior. Fortes
(2001, p. 26) explica que isso ocorre porque praticamente todas as indicações espaciais
percebidas pelo homem estão ligadas a associações com aquilo que ele reconhece desde os
primeiros estágios de vida no seu meio ambiente. Por exemplo, segundo ela, os elementos
visuais que forem colocados na parte inferior de uma composição assumirão um peso visual
muito maior do que aqueles que forem colocados na parte superior, que, ao contrário, é mais
leve e passa a idéia de distância.
91
Quanto aos custos, Lena relata que os brincantes compram todo o material
necessário (veludo, canutilhos, paetês, miçangas) e ela ajuda com a mão-de-obra, não
cobrando dinheiro pelos serviços.
Na pesquisa anterior, conversando com sua mãe, dona Matilde, ela descreveu de
maneira muito simples como se dá esse processo de escolha, muito semelhante às explicações
dadas, em geral, pelas artesãs que bordam.
Nós recebemos o desenho e nós corta e borda. Como eu sei que o coração de Jesus é
vermelho, eu boto paete vermelho, o rosto dele é rosa, e eu boto paete rosa e assim
quando vejo, de pouquinho, pouquinho o Jesus todo bordado. (Matilde Anchieta,
20/05/2004).
Os desenhos bordados preenchem quase toda a farda, incluindo as longas mangas.
Também os detalhes menores recebem preenchimento tão brilhoso quanto às figuras
principais. Para a escolha das cores, Lena concentra nos desenhos maiores as cores quentes,
como vermelho, laranja e amarelo. também muita preferência pela cor prata, que segundo
ela, brilha intensamente no horário da noite. O bordado é feito diretamente no veludo, apenas
seguindo o desenho feito anteriormente, sem nenhuma organização anterior das cores. Os
espaços vão sendo preenchidos pouco a pouco a que se complete a composição visual
desejada pela artesã. O ato criador abrange, portando, a capacidade de compreender; e esta,
por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (Ostrower, 1984). É importante
que se considere a criatividade e o conhecimento destes brincantes/artesãos, que se destacam
pela elaboração de um personagem tão significativo na brincadeira do bumba-meu-boi. Dessa
forma, o ato de confeccionar o personagem, de vesti-lo e interpretá-lo são ações simbólicas e
sociais, revestidas de profunda criatividade e sensibilidade.
92
2.2 Os Cazumbas da turma proteção de São João: Pessoas e Personagens
2.2.1 Pessoas
Muitos dos homens que interpretam o personagem Cazumba nasceram em povoados
próximos e atualmente vivem no município de Penalva. Trabalho e festa dão sentido às suas
vidas. Quando crianças, o plantio e a colheita nas roças eram tarefas diárias que substituíam
as escolas inexistentes naqueles lugares. A saída dos povoados para a cidade não significava
uma melhoria de vida, mas a possibilidade de experimentar coisas novas e a alegria de estar
mais próximo das turmas de bumba-boi. homens, as condições de trabalho são as mesmas,
entretanto, com outras responsabilidades: família, filhos e o compromisso em ser o
personagem Cazumba. Alguns deles moram em casas de alvenaria e outros em casas de taipa,
com paredes de barro sobre estrutura de galhos e tábuas, teto de telha ou palha e chão de terra
batida. A maioria sem encanação interior, de modo que a água é retirada de poços coletivos
ou individuais, feitos no quintal. Suas casas são pequenas, com uma sala, um ou dois quartos
e a cozinha. As paredes chegam a três metros e o telhado fica exposto interiormente. Todas
que visitei tinham luz elétrica e possuíam televisão e aparelho de som na sala. A alimentação
do dia a dia, normalmente é o peixe que pescam ou uma carne que compram no mercado da
cidade.
Na turma Proteção de São João, conheci quinze homens que interpretam o
personagem de Cazumba, identificados como brincantes de Cazumba, ou simplesmente
Cazumbas. Eles têm entre 22 e 47 anos e são, em sua maioria, casados ou amigados como
costumam chamar. Cada um possui de dois a três filhos e moram próximos uns aos outros, no
mesmo bairro. Mantive contato e uma convivência mais direta com três deles, que além de
interpretarem o personagem, são responsáveis pela confecção de alguma parte do artefato:
José Ribamar dos Santos (Zé Quita), de 34 anos, Mário Marques (Mário Cazumba), de 43
anos, e José da Conceição Santos Marinho (Zé Caçota), de 34 anos. Nenhum deles teve
oportunidade de freqüentar a escola e desde cedo trabalhava como lavrador ou pescador
para sustento próprio e da família. O fato de morarem próximo à sede da turma Proteção de
São João e de manterem um convívio direto com os responsáveis pelo Boi, facilitou a criação
de parentesco e relações de casamento entre eles. Por exemplo, os brincantes de Cazumba
Quita e Paulo César, de 20 anos, são casados com as filhas dos patrões da turma, Josilene
Anchieta Mendonça (Lena) e Jucivânia Anchieta (Cumadinha), respectivamente.
93
Atualmente alguns trabalham também como pedreiros, porém a roça e a pesca ainda
são as principais atividades. Um deles, o Quita, começou desde o ano de 2007 a trabalhar
nas plantações de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo. Sua opção por essa atividade foi
em função de débitos adquiridos quando começou a construir sua casa, mas espera que em
breve não necessite mais se afastar da turma e pagar sua promessa, como relata abaixo:
Olha, na época eu não brinquei em 2007, porque eu tinha começado o trabalho
nessa casa aqui, que hoje tu ta vendo(...). Então eu fiz muito gasto, (...) ai eu resolvi
ir pra São Paulo pra trabalhar, pra pagar as contas, pra permanecer brincando.
Inclusive quando chegou, eu fui pagando, quando chegou mês de junho a mulher
disse, minha esposa Lena: Quita se tu quiser vim embora, tua conta ta paga, ai
eu disse: Não mulher, agora eu vou trabalhar, eu vou perder a boiada (...) São João
vai me perdoar, mas esse ano que vem se Deus quiser eu to na boiada. Ai, mas
depois, foi até que eu falei isso pra ela, acontecero vários problemas na minha vida
e foi muito difícil até pra família (...). Mas no outro ano eu me redimir, fui pra
trabalhar de novo, quando eu vim ano passado, 2008, pra fazer também a morte de
Pai Francisco, de papel de Cazum ou Pai Francisco, eu fui assaltado ainda no
caminho, na estrada e eu cheguei mesmo pela proteção de Deus. (Zé Quita,
24/05/2009). (grifo nosso)
A maioria se considera religioso. Não vão à missa, mas guardam em casa imagens de
santos, principalmente São João. Alguns possuem pequenos altares entre seus móveis e
eletrodomésticos. Convencidos da natureza religiosa da turma de bumba-boi que participam,
inserem nos bordados das fardas e nas torres das caretas imagens e símbolos católicos.
Porém poucos participam dos momentos de rezas e ladainhas feitas para guarnecer o boi.
Fora da turma, também a crença em São João os acompanha, principalmente quando
precisam de ajuda pessoal. Ao sinal de alguma doença ou problemas de ordem financeira,
pedem ao santo, com a certeza de que serão prontamente atendidos, como relata Zé Quita:
O ano de 2007 eu deixei de brincar, porque eu tive muitos problemas. Porque eu
acho assim: proteção de São João já ta dizendo tudo. Eu acho que esse nome foi
muito inteligente que o dono, seu Sinésio colocou. Então Proteção de São João,
por que Proteção de São João? Porque proteção, ele ta pedindo aquela proteção
pra Deus, que proteja os brincantes, que proteja todos os brincantes do bumba-boi.
(Zé Quita, 24/05/2009).
Um fato que me chamou atenção quando das pesquisas que fiz em 2003, é que ouvi
dos brincantes de outras turmas de bumba-boi Penalva, algumas histórias que aproximavam a
imagem do personagem com aspectos negativos. Segundo uma delas, aquele que decide ser
um Cazumba faz um pacto com o demônio, daí algumas mães não permitirem que seus filhos
brinquem. Isso explicaria, segundo eles, o anonimato dos brincantes durante a apresentação,
94
quando os mesmos substituem a careta por uma camisa branca para cobrir o rosto e não
serem vistos quando não fazem uso da máscara. Entretanto, nas pesquisas feitas mais
recentemente e apenas na turma Proteção de São João, não escutei nada a esse respeito,
sendo a cobertura do rosto justificada para apenas manter segredo sobre a identidade do
brincante.
Outra característica dos homens que dão vida ao Cazumba diz respeito a sua natureza
quando da interpretação do personagem. Das qualidades, dos novos sentidos e aspectos
adquiridos enquanto indivíduos que temporariamente saem das suas funções sociais e
adentram o universo simbólico e também social do personagem.
Qualquer pessoa pode ser esse Cazumba? O que leva alguém a querer ser Cazumba?
Como esse personagem se comporta? Houve mudanças no Cazumba? Como se sua relação
como o público? Ao longo desses anos de pesquisa, e em momentos distintos da festa, ouvia
daqueles homens com muita naturalidade explicações diversas sobre o Cazumba. Certa vez,
por exemplo, perguntei ao Mário Cazumba se qualquer pessoa podia interpretar o personagem
e ele respondeu:
Qualquer pessoa pode ser cazumba, depende da vontade dele.
Dessa forma, listo
abaixo algumas impressões que eles deixaram em suas entrevistas:
O que a chama atenção do público
Eu achava assim: o cazumba era o personagem assim que mais mete graça com o
público, entendeu? (...) Aí por isso que eu sempre desejei ser um cazumba, mas não
imagina um dia ser um cazumbá (se referindo ao fato de interpretar o Cazumba tido
como principal no ritual da morte de esbandalhar). Entendeu? (Zé Quita,
24/05/2009).
A sensação de ser Cazumba
É, quando eu entrei, (...) nem no ensaio eu não brinquei de cazumba, eu fiquei ali
todo acanhado. Quando eu coloquei a farda eu fui apenas copiando o que os outros
iam fazendo. Eu criei coragem, a farda mais coragem. Eu tomei um pouco de
bebida, você o público, você num círculo de cazumba brincando, junto. (Zé
Quita, 24/05/2009).
Ensinamentos
Tem, tem os ensinamentos. Porque tem pessoas que entro e que não sabe, né. Acha
bonito nossa brincadeira e entro, quando na hora que entro no grupo eles não sabe
fazer aqueles papel que tem, que a gente faz na morte do boi. Aí ele não sabe fazer,
ai a gente tem que ensinar ele alguns papéis. (Mário Cazumba, 26/05/2009).
Os motivos de ser Cazumba
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Olha, meu motivo de ser cazumba é porque quando me entendi, desde criança, né,
que via esse pessoal mais velho brincando, ai eu achava bonito. Aí eu comecei
pegar com um rabo de pindova assim, estalava, ai marrava na cintura e começava a
brincar desde pequeno, né. fui com aquele interesse, ai quando consegui me
arrumar pra brincar, ai comecei brincar. Não é promessa, eu brinco porque gosto.
Acho bonito. (Mário Cazumba, 26/05/2009).
Mudanças
O cazumba é o seguinte, isso não vem de hoje, é de muito tempo que o cazumba
vem, que antigamente não era esse modelo que a gente tem agora né.
Antigamente era mais engraçado porque era feito palhaço (...). Este ano não, de
certo tempo pra a gente faz de madeira, o queixo que voperguntou, as torres
são de isopor, coloca, escolhe o modelo e manda o rapaz fazer o que a gente
quer. (Gilberto Pereira, 13/05/2005).
O que leva alguém a ser Cazumba
Que às vezes tem gente que brinca por gosto o cazumba, que às vezes tem gente
que brinca por promessa, mas maioria aqui acho que é por gosto e vontade, porque
se não tem vontade, não brinca e tem uns que brinca de promessa e termina a
promessa (...). Em termo de gosto, cada qual tem seu gosto. (Gilberto Pereira,
13/05/2005).
Relação com o público
A questão do Cazumba é o seguinte: o Cazumba é querido na brincadeira do
bumba-boi, porque ele faz aquela palhaçada, aquela brincadeira, então tem muita
gente que deixa de olhar às vezes até pro boi pra olhar pro Cazumba (...) é bonito de
ver ele dançar aquela brincadeira, faz pro boi (...) faz na frente do boi aquela
palhaçada e em vez de ficar olhando o boi, eles olha o Cazumba. (Zé Quita,
14/05/2005).
Mas comecemos pelo fato de que somente os homens estão habilitados para exercer o
papel de Cazumba (Foto 32), precisando antes ser aceito pelo ‘dono’ da turma e desempenhar
bem as funções que competem ao personagem. Estes homens vêem-se como pessoas comuns,
simples, mas que ao vestirem-se de Cazumbas adquirem importância e respeito em relação
aos demais. É possível pensar, do ponto de vista daqueles brincantes, que a noção de pessoa
está intimamente ligada a uma concepção de indivíduo humano excepcional, preparado para
simbolizar e participar de uma realidade presente apenas no imaginário daquela festa. Vêem a
si próprios como pessoas dotadas de uma capacidade admirável para exercerem o papel de
Cazumba. Neste caso, somente alguns possuem coragem suficiente para assumir esse
personagem.
96
É interessante perceber, que dentro do próprio grupo de Cazumbas, ou turma de
Cazumba, existe aquele que tem ainda mais prestígio que os demais, sendo apenas um em
todo o grupo, denominado por eles de Cazumbá ou Cazumba principal. Ele se diferencia dos
demais por ser o responsável pela dramatização do auto, juntamente com o Patrão e por ser o
mesmo que exerce o Pai Francisco na realização do ritual da morte de esbandalhar. Na
turma Proteção de São João, esse Cazumba principal que também é chamado de Cazumbá
56
,
é representado pelo brincante Quita. Trata-se de um personagem diferente, conforme ele
descreve:
É pra ser diferente, mas que como todos temos que sair igual, eu não posso
fugir do papel. Mas que geralmente na cultura o cazumbá tem que ser diferente.
Porque aí então se olhar, ta representando. Aí você diz: Olha, aquele ali é o
cazumbá. Ele não é nem chamado como líder. Ele é aquele que sabe fazer um
trabalho. Que nós somos diversos cazumbas, mas nem todos sabe fazer o trabalho.
(Zé Quita, 24/05/2009).
Como sugere Geertz (2007, p. 90), o conceito de pessoa é, na verdade, um veículo
excelente para examinar toda questão relacionada com o andar por aí, investigando o que
56
Cazumbá é como o personagem é chamado pelos brincantes e pela comunidade em geral na cidade de São
Luís. Ver Azevedo Neto (1997).
Foto 32Brincantes de Cazumba. Da esquerda para direita: Paulo Cesar, 20
anos, Vilson Gauvão, 47 anos, Hélio Nunes, 18 anos e Mário Cazumba, de 34
anos.
Fonte: Arquivo pessoal, 2009
97
passa pela mente alheia. Afirma, também, que a concepção do que é essa pessoa, é um
fenômeno universal, que varia de um grupo para outro, existindo, dessa forma, diferenças
profundas entre cada concepção.
Marcel Mauss (2003, p. 371) relata que a acepção primeira de pessoas quer dizer
máscara, sendo esta originária, segundo ele, dos povos etruscos. Na análise que faz acerca da
noção de pessoa, pergunta:
De que maneira, ao longo dos séculos, através de numerosas sociedades, se
elaborou lentamente, não o senso do “eu”, mas a noção, o conceito que os homens
das diversas épocas criaram a seu respeito?
Em seguida responde:
O que quero mostrar é a série das formas que esse conceito assumiu na vida dos
homens, das sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes,
suas estruturas sociais e suas mentalidades.
Em Penalva, observando outras turmas de bumba-boi, foi possível ver as diferentes
noções de pessoa que cada um tem acerca daqueles que interpretam o Cazumba. Antes,
confundidos com o próprio personagem Cazumba, eram vistos como travessos, sem
responsabilidades, beberrões e, portanto, não eram boas pessoas, nem dignas de confiança.
Enquanto que nos últimos dez anos, com a mudança visual da indumentária que ofereceu ao
personagem prestígio e respeito na brincadeira, os homens que o interpretam são vistos como
sérios e comprometidos com a turma, que buscam ser aceitos e respeitados junto à
comunidade. Ou seja, o espectador atribui ao homem que brinca como Cazumba, qualidades
que ele visualiza também nas vestes do personagem; em alguns casos, como se fossem uma
mesma pessoa dentro e fora da brincadeira.
Park (apud Goffman, 1975, p. 2) diz que:
Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que
formamos de s mesmos o papel que nos esforçamos por chegar a viver esta
máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser. Ao final a
concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral
de nossa personalidade no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos
tornamos pessoas.
Sem dúvida, as inovações das vestes foram um dos fatores que propiciaram
mudanças e novas relações entre os brincantes. Evidentemente que este é um processo
dinâmico e vem ocorrendo aos poucos, como relata Lena:
98
Começaram a padronizar as coroas com isopor, que antes eram feitas de varas, ai
colocavam só aquelas fitas, usavam papelão, aí de 98 pra 2000 aí foi que foi
padronizado. sempre tem uma descoberta, um vai descobrindo alguma coisa,
alguma coisa nova. (Lena, 24/05/2009).
Das novas relações favorecidas com as mudanças, uma delas é a competição
gerada em decorrência dos adereços colocados nas indumentárias. Mesmo que sejam
pequenas substituições de enfeites ou reformas, é indispensável que cada Cazumba apresente-
se diferente do ano anterior, fato que não ocorria dez ou quinze anos atrás. Para os homens
desse grupo, é fundamental que suas vestes sejam reformadas, tenham inovações ou mesmo
mudanças a cada ano. Diferença e prestígio são questões importantes quando o assunto é a
análise de suas vestes. O objetivo é que a nova indumentária seja ainda mais expressiva que a
anterior e possua novas invenções, principalmente nas torres fixadas sobre a careta. Tais
mudanças ajudam a refletir traços significativos da expressividade de cada brincante e de
como eles se percebem enquanto personagem.
Essa preocupação dos homens que interpretam os Cazumbas com a elaboração das
suas vestes se assemelha à preocupação dos homens Tchambuli, descritos por Margaret Mead
(1979, p. 239):
Todo homem se preocupa, em especial, com seu papel no cenário de sua sociedade,
com a elaboração de seu traje, com a beleza das máscaras que possui, com sua
habilidade em tocar flauta, com o aperfeiçoamento e o élan de suas cerimônias,
com o reconhecimento e a valorização que outros dispensam a seu desempenho.
É bem verdade que existem aqueles que não demonstram tanta preocupação em
relação à preparação anual de suas vestes, mas, para a maioria, este é um fator que os
distingue cada vez mais na brincadeira, o que, naturalmente, exclui aqueles que pensam
diferente. O importante nesse contexto é ter uma farda e uma careta que os torne
extraordinários naquela apresentação, que prenda o olhar do espectador a ponto de deixá-lo
deslumbrado por um único brincante de Cazumba, o que, facilmente, gera competição entre
eles, como descreve a Lena:
Eu acho que é por isso que é tão bonito. O pessoal fala que é tão bonito por causa
disso. Porque uns dizem: Ah, de quem é essa farda? É de Vilton. Ah ta! que linda,
eu quero a minha desse jeito. Tanto a farda como a coroa vai gerar aquela
competição entre eles. Uns dizem: Ah, eu quero a minha melhor! Eu quero maior. E
assim vai. (Lena, 24/05/2009).
99
Conforme Goffman (1975, p. 36):
Em presença de outros, o indivíduo geralmente inclui em sua atividade sinais que
acentuam e configuram de modo impressionante fatos confirmatórios que, sem isso,
poderiam permanecer despercebidos ou obscuros. Pois se a atividade do indivíduo
tem de tornar-se significativa para os outros, ele precisa mobilizá-la de modo tal
que expresse, durante a interação, o que ele precisa transmitir.
A pessoa que interpreta o personagem precisa, durante o processo de confecção
das suas vestes, imaginar aquilo que o deixará diferente durante a apresentação. E não basta
apenas o exagero visual da indumentária, mas também os gestos, a desenvoltura dos
movimentos e a maneira como se relacionará com o público, tudo isso, claro, mantém vivo o
espírito da competição.
A competitividade, expressa na idéia de “beleza”, reflete-se no universo dos
brincantes de Cazumbas a cada ano. A disputa, tanto dentro de uma mesma turma de bumba-
boi, como entre as diversas turmas existentes na cidade, é hoje parte da dinâmica que
movimenta suas apresentações no decorrer do período junino. Por exemplo, a apresentação
que citei anteriormente no dia 25 de junho, onde são agrupadas todas as turmas da cidade, é
para eles, a grande oportunidade de exibir sua indumentária a um público maior, já que toda a
cidade é convidada e, ao mesmo tempo, dizer aos (outros) brincantes das demais turmas que
“as vestes dos Cazumbas da turma Proteção de São João” são as mais bonitas, não existindo
nem mesmo comparação com os outros grupos, ou seja, a competição era entre brincantes de
Cazumbas dessa turma somente, como relata Zé Quita:
Eu dizendo assim outro dia, nós não temos mais competição com os outros, somos
nós mesmos, não tem quem faça mais bonito que nós, e nós não vamos mais nos
chatear com ninguém, né? Que é nós mesmos, nós não tem mais adversário
assim pra competir, é junto com o grupo, nós não temos mais problemas, antes
tinha a disputa com as outras turmas. É de outras turmas tem competição, quer
dizer nós não somos feios, eu acho que agora as maioria deles tão nos copiando por
causa que tem uns que não tão se preparando em cima da boiada. ( Quita,
24/05/2009).
Convém notar, entretanto, que esta não é uma disputa oficial entre eles. Ela ocorre
naturalmente e somente no âmbito da brincadeira. É uma espécie de competição simbólica,
demonstrada pela preocupação, a cada ano, de tornar a pessoa que interpreta o personagem
mais visível perante os demais brincantes de Cazumba de outras turmas, pois quanto maior a
torre, mais assustadora a careta e mais brilhosa a farda, quer dizer que aqueles brincantes são
os mais importante.
Para Mário:
100
Cada qual querer ser mais bonito que o outro. Tem isso. Mas também não tem
zanga nenhuma, aquilo é no termo da nossa brincadeira. cada qual se esforça
pra ficar mais bonito na brincadeira. (Mário Cazumba, 26/05/2009).
Assim, cada brincante pensa sua grandeza no espetáculo, na certeza de que os
outros estão fazendo a mesma coisa. Neste caso, a necessidade de se distinguir é um fator
motivador que marca suas semelhanças, como destaca Simmel (2006, p. 45):
Bastaria dizer que, para a ão no âmbito das relações do indivíduo, a diferença
perante outros indivíduos é muito mais importante que a semelhança entre eles. A
diferenciação perante outros seres é o que incentiva e determina em grande parte a
nossa atividade. Precisamos observar as diferenças dos outros caso queiramos
utilizá-las e assumir o lugar adequado entre eles.
E ainda:
O interesse pela diferenciação chega a ser grande o suficiente para produzi-la na
prática, mesmo onde não haja um motivo objetivo para isso. (...) É como se cada
individualidade sentisse seu significado tão-somente em contraposição com os
outros, a ponto de essa contraposição ser criada artificialmente onde antes não
existia.
Portanto, a competição confere extraordinária diversidade ao universo visual do
personagem Cazumba, tendo em vista que o ponto central dela são as mudanças e inovações
nas suas vestes a cada ano. Logo que o período junino acaba, os brincantes se mobilizam
para preparar as indumentárias do ano seguinte, um pouco como ocorre com as escolas de
samba do Rio de Janeiro, conforme descreve Cavalcanti (2008, p. 29):
A cada Carnaval as escolas de samba competem entre si, narrando no desfile um
enredo sempre inovado. Por meio de fantasias, das alegorias e do samba-enredo, os
desfiles contam histórias cuja força expressiva, o ideal almejado de realização
imprevisível, está na integração harmoniosa desse conjunto de elementos
dramáticos e em sua comunicabilidade com o grande público.
E por falar em carnaval, meu interlocutor Zé Quita, quando perguntado como
consegue dinheiro para custear as vestes tão ricas do Cazumba, respondeu rapidamente:
Com o próprio suor da gente, porque é tipo assim: a gente faz tipo o carnaval do
Rio de Janeiro, se prepara o ano todinho, pra no tempo sair do jeito. (Quita,
24/05/2009).
Entretanto, diferentemente do carnaval, nas apresentações da turma de bumba-boi,
não ‘vitórias’ ou premiações e a dinâmica da competição permite idealmente a conciliação
entre brincar para São João e brincar para receber prestígio. Evidentemente que precisamos
101
compreender que as turmas de Cazumbas, rivalizam umas com as outras e entre si, uma vez
que como observa Cavalcanti (2008), relacionar-se é também confrontar-se.
2.2.2 Personagem: as faces dos Cazumbas
Na análise do personagem Cazumba, sirvo-me especialmente de três noções
percebidas sobre ele durante a pesquisa de campo. Primeiro trata-se de um grupo de homens
que, quando vestidos com a indumentária do Cazumba, tem como função dançar, fazer a
abertura da festa e interagir com o público e isto ocorre com todos os brincantes de Cazumba.
Segundo, dentre eles um brincante que recebe do Patrão da turma a ordem para exercer o
papel de Cazumba principal ou Cazumbá. Este terá ainda a função de representar o Pai
Francisco na encenação do auto e também será o responsável pela prisão do boi quando da
realização do ritual da morte de esbandalhar. E terceiro, entre eles um Cazumba
responsável por toda a turma, sendo ele o primeiro da fila e o que dará as ordens aos outros
sobre o que deverá ser feito, recebendo por essa função o nome de cabeceira ou chefe. No
caso da turma Proteção de São João, quem ocupa esta função é o brincante Mário Marques,
conhecido como Mário Cazumba.
Comecemos pelo brincante que encena tanto o personagem Cazumba quanto o Pai
Francisco. A presença quase simultânea dos dois personagens ocorre especialmente em duas
situações na brincadeira: primeiro quando da encenação do auto, feito em todas as
apresentações, onde as falas do Pai Francisco são feitas por este brincante, que apenas retira
a careta utilizada por ele. Segundo, como dito, quando ocorre o ritual da morte de
esbandalhar, onde ele novamente se apresenta como Pai Francisco. Na turma Proteção de
São João, o encarregado por desempenhar esses dois personagens é José Ribamar dos Santos,
conhecido como Quita. Também na morte de esbandalhar, ritual que será descrito mais
adiante, ele é o brincante principal da turma, aquele que manterá relações próximas com o
boi, a ponto de prendê-lo e entregá-lo ao magarefe, pessoa encarregada de fatiar o corpo do
animal e vendê-lo. Ou seja, Quita é dentre os brincantes de Cazumbas aquele descrito por
eles como especial, com uma capacidade performática e cênica diferente dos demais.
Antes de descrever sua função como personagem, entraremos em outras questões.
Uma delas é entender como essa pessoa consegue dar ao personagem essa dupla
personalidade durante o ritual, sendo ao mesmo tempo Cazumba e Pai Francisco. Vale
ressaltar que durante o ritual da morte de levantar, demora-se para entender quando ele deixa
de ser Cazumba e assume o papel de Pai Francisco. Não fisicamente uma transferência de
102
papéis. O que ocorre é o seguinte: somente um brincante de Cazumba é escolhido para
representar apenas naquele ritual a função de Pai Francisco, chamado também de Nego
Chico. Essa pessoa que interpreta o Nego Chico permanece com as características físicas do
personagem Cazumba e desse modo é reconhecido como “o Cazumba que faz o papel de
Nego Chico”. Ou seja, é o Cazumba, porque está vestido com suas vestes e comporta-se como
tal, porém também é o Nego Chico, o único capaz de trazer o animal de volta até a fazenda.
Por certo, ser o ‘Cazumba principal’ é possuir características e qualidades que os
demais não possuem, precisa antes de tudo ter a confiança do Patrão da turma e ter o
reconhecimento dos demais brincantes. No caso de Quita, sua escolha se deu através de
uma seleção feita pelo Patrão da turma, na época seu Sinésio, que convidou três
brincantes de Cazumba, para que, dentre eles, um fosse escolhido para ser o principal, tendo
em vista que a pessoa que atuava nessa função estava doente, como descreve Zé Quita:
Na época, o cazumba principal, ele tava muito doente, aí o dono seu Zé Sinésio, ele
chamou os três cazumbas pra ensinar, três pessoas. Aí dos três, o que se saiu
melhor fui eu, todos três de nós sabe, mas o que se saiu melhor foi eu. Eu fiquei
como um cazumba principal. (Zé Quita, 24/05/2009).
Nota-se nas conversas ou mesmo quando das encenações, o prestígio que é exercer
esse papel na turma. A pessoa sente-se muito a vontade e com autoridade para discutir
qualquer assunto do personagem ou mesmo dos outros personagens. É tratado de maneira
diferente em relação aos demais, tanto pelo Patrão, quanto pelos outros brincantes de
Cazumba, que estão sempre ao seu redor, ouvindo e respeitando sua fala. Evidentemente, que
seu trabalho se duplica e o cansaço se justifica pelo prestígio recebido após a apresentação do
auto. Como descreve Zé Quita:
Deus e São João, santo que é muito milagroso e eu prometi que ia brincar pra ele, ia
fazer aquele papel, que era uma promessa. Então, quando é uma promessa eu faço
questão de pagar. Se eu tiver dez noites de boiada e sete ou oito ser promessa,
todas, nenhuma dessas eu falho. (Zé Quita, 24/05/2009).
Aproveitando a fala acima do Quita, chamo atenção para um termo utilizado
por ele papel, para tratar do aspecto da representação do personagem Cazumba na turma
pesquisada. Utilizo-me primeiramente do conceito de Goffman (1975, p. 29), onde ele diz que
o termo ‘representação’ se refere a toda atividade de um indivíduo que se passa num período
caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que
tem sobre estes alguma influência.
103
Os Cazumbas representam na brincadeira do bumba-boi papéis peculiares que o
diferenciam dos demais: são eles que iniciam a apresentação, um deles conduz a turma e é
chamado de cabeceira e aquele chamado Cazumbá é o único capaz de encontrar, prender e
entregar o boi para ser sacrificado no ritual da morte de esbandalhar. Como observa Goffman
(1975, p. 25):
Quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus
observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para
acreditarem que o personagem que vêem no momento possui os atributos que
aparenta possuir, que o papel que representa terá as conseqüências implicitamente
pretendidas por ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser.
Na turma Proteção de São João, tais papéis são considerados como funções e
garantem a eles o prestígio que os demais não possuem. O personagem Cazumba, de forma
geral, além de dançar como os demais personagens, início às apresentações, alternando às
vezes esta função com o grupo de meninas que representam as índias. Para tanto
observaremos agora aquele que segundo eles é o responsável por toda a turma, organizador da
fila de entrada e conhecido como cabeceira ou chefe dos Cazumbas.
No caso da turma proteção de São João, a pessoa responsável por esta tarefa é
Mário Cazumba, de 43 anos. Ele é um dos homens mais velho entre os brincantes e
responsável pela organização deles do início ao final da apresentação. Este primeiro momento
serve para apresentar toda a turma de brincantes à platéia, pois eles seguem enfileirados, um
atrás do outro, começando pelos Cazumbas, em seguida as índias, os bailantes, os vaqueiros e
por último os tocadores. Feita a roda, os demais participantes continuam caminhando e
dançando num mesmo movimento circular, enquanto que os brincantes de Cazumbas dançam,
tocam, se movimentam na roda e fora dela, além de executarem giros em torno de si mesmos,
mantendo uma dinâmica de apresentação diferente dos demais personagens.
Percebi que desses dois brincantes que se destacam do grupo dos quinze
Cazumbas– o cabeceira ou chefe, representado pelo Mario Cazumba e o Cazumba principal,
encenado pelo quita, este último possui ainda mais prestígio, principalmente por
protagonizar os rituais de morte do boi (morte de levantar e morte de esbandalhar), sendo que
estas são formas de interpretação do que popularmente conhecemos pelo termo ‘auto’, que
segundo Cavalcanti (2009, p. 94), designa uma representação tradicional de teatro popular,
alusiva às formas alegóricas do teatro medieval trazidas pelos jesuítas para terras brasileiras.
Ainda segundo a autora, é valendo-se desse auto, que supriria um roteiro para a brincadeira,
que os grupos de brincantes encenariam uma trama sobre a lenda da morte e da ressurreição
do precioso boi.
104
Na morte de levantar, por exemplo, o personagem Cazumba, que passa a
interpretar o papel de Pai Francisco, trava um longo diálogo com o Patrão, cantando em
versos improvisados explicações sobre os motivos que o levaram a matar o boi. Enquanto que
na morte de esbandalhar, ele tem a obrigação de prender o animal, acompanhado pelos
demais Cazumbas. Sobre a morte de levantar, há diversas narrativas, todas semelhantes.
Mário Cazumba, o cabeceira da turma, descreve:
A de levantar é diferente. A de levantar a gente começa umas duas horas da
madrugada, aí mata o boi. É matado de brincadeira. Vamo matar pra levantar.
eles fazem aquela guarnição, os cazumbas junto, ai um que atira no boi, esse
um é que é o Zé Quinta, né. Aí os outros fico fazendo aquela continência, vai e vem
trazendo o boi, ele vai e atira no boi.vamo ficar até na hora de levantar o boi.
quando dá umas quatro da manhã, ele levanta o boi. Aí o boi vai brincar a
de manhã. (Mário Cazumba, 26/05/2009).
Zé Quita, brincante que interpreta o Cazumba principal e o Pai Francisco:
Então o patrão como ele sabe tudo de todo o papel, ele que começa, cantando,
você vai ouvindo ele, (...) é tudo combinado. (...), é combinado até onde ta a arma
do boi que ta brincando, porque na hora que o Chico atirar, você vai sair. Eu que
atiro, faço o papel de Chico e sou cazumba, eu atiro, é que eu vou contar
porque é que eu atirei, aí, é uma desculpa que eu vou dar pro público e até pro
patrão, porque que eu atirei. Mas realmente ele matou por causa da Catirina, porque
ta fazendo aquele papel, atirando naquele boi, por causa da Catirina. (Zé Quita,
24/05/2009). (grifo nosso)
Em seguida prossegue descrevendo o final do ritual:
Aí depois eu, o pai Francisco mesmo ressuscita o boi, ele vai chamar vários
doutores, que dão receita, o Pai Francisco que chama o doutor, diz que é pra
levantar o boi, ele vai chamar o doutor que receita, mas nenhum consegue,
depois ele vai dizer que é pra chamar o vaqueiro que é pra cantar na cabeça dele e
Catirina vai assoprar, que o boi vai levantar, vai fazendo aquelas palhaçadas,
aquelas brincadeiras, pro público animar, pra não ficar uma morte de boi triste. (Zé
Quita, 24/05/2009).
Outro aspecto que me chama atenção no personagem Cazumba e na brincadeira
de maneira geral, é o seu trânsito entre um mundo aparentemente profano, apresentado em seu
comportamento e o universo religioso presente na indumentária e nos momentos dedicados às
rezas da turma de bumba-boi, ainda que alguns não participe desse momento.
Ao longo da pesquisa, observei muitas vezes que nessa turma, a grande
preocupação dos brincantes de Cazumbas é quanto à composição visual de suas vestes. Eles
buscam principalmente um equilíbrio de imagens entre o que eles costumam pensar que
identifica o personagem - que seriam as caretas animalescas, juntamente com os bordados e
imagens de santo. Neste caso, seu caráter não seria nem profano, nem religioso, mas
105
possuidor de um trânsito entre estes dois universos da festa. Eles colocam, de certo modo,
suas características enquanto pessoas que acreditam nos santos juninos, bordando suas fardas
com tais imagens, e ao mesmo tempo, ao interpretar o personagem destacam as qualidades
dele – rebelde, assustador, não participando, portanto, dessas ocasiões consideradas sagradas.
Outra observação é que, com o passar dos anos, essa preocupação com a
composição visual, que os fazem trazer para as vestes elementos novos (lâmpadas que
acendem e apagam, objetos brilhosos) a cada ano, está tirando dele uma característica até
então marcante – a de assustador, como observa Zé Quita:
É, porque antes eu achava assim que até uma criança quando olhava o Cazumba ele
tinha medo, hoje não, eles querem é ser um Cazumba, por que? Porque não ficou
aquela coisa horrorosa, quer dizer que o público é que gosta de ver os Cazumbas.
(Zé Quita, 24/05/2009)
Nessa perspectiva, quando perguntados sobre quais as características do Cazumba,
eles respondem que se trata de um personagem brincalhão, que faz travessuras e é
transgressor das regras, além de causar ainda um pouco de medo nas pessoas. Tais
características são representadas pelas caretas em formato animalesco e pela deformação do
próprio corpo, que é alargado na área dos quadris. Em contrapartida, é permitido que os
mesmos utilizem tanto na roupa que deforma seu corpo, quanto na torre fixada acima da
careta, imagens bordadas de santos e igreja, além de outras figuras que aparentemente
prendem o olhar do espectador. Isso faz com que ele seja ao mesmo tempo, temido e
admirado, belo e feio.
Essas qualidades criadas e descritas por eles ao longo dos anos lhes dão, enquanto
personagem, um caráter múltiplo, complexo e diverso. Podendo ser, como sugere Turner
(1974, p. 117), entidades liminares, que não se situam nem aqui nem lá; estão no meio e entre
as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus
atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos.
Outra característica relevante é sua presença e ausência nos momentos da festa
considerados como religiosos. Comecemos pelas rezas, que normalmente reúnem toda a
turma e a comunidade em torno do boi e da imagem de São João, onde são proferidas
ladainhas. Dona Matilde, considera a reza uma bênção do santo ao boi, uma espécie de
permissão para dançar, sendo importante, segundo ela, que toda a turma se faça presente.
Durante o período de apresentações, a primeira reza é feita na comunidade, na casa do patrão
da turma. Na ocasião, percebi que alguns brincantes de Cazumba sentem-se obrigados a
106
participar. É como se aquele fosse um compromisso de toda a turma. Enquanto que nas rezas
feitas nos outros dias, eles saem de ‘fininho’ e se reúnem em outro local próximo para beber e
ficar conversando. Somente quando tem início a apresentação, eles retornam e fazem a
abertura da festa. Ou seja, os homens que interpretam o personagem Cazumba, mesmo com
inúmeros símbolos religiosos bordados ou pintados sobre as vestes, não se sentem motivados
a freqüentar esses momentos de reza. No entanto, quando questionados sobre sua relação
com o santo, o Zé Quita responde:
Olha, a gente é devoto muito de São João, eu particularmente, eu fico pedindo
assim uma provação de São João e eu consigo, tem assim gente que brinca porque
gosta e tem outros que brinca por devoção, é igual eu, eu brinco por devoção,
devoção a São João, eu quero fazer minhas coisas assim, tudo que eu preciso eu
consigo, e primeiro que a Deus, depois eu acho assim que São João faz milagre,
dependendo da fé que você tem nele, entendeu? (Zé Quita, 24/05/2009).
Em algumas conversas que tive com membros da comunidade, foi comum ouvir
das pessoas comentários como: “Ah! esses querem beber, não gostam de reza” ou então
se referiam a algum deles especificamente: “o Mário Cazumba vive bêbado, mas tá sempre na
reza”. Percebi então que os comentários se cruzavam no sentido de tentar dizer que ali
naquela turma de pessoas que vivenciam seus personagens, cada um possui uma visão distinta
de religião, de compromisso com esse momento de obrigação com o santo que os protege. O
fato de não estarem nas rezas especificamente, não significa dizer que aqueles homens não
são devotos de São João ou não acreditam no efeito simbólico das rezas, ou o fato de estarem
na reza, poderia ser apenas para cumprir com o compromisso assumido com o Patrão da
turma. Quando estive na casa do Mário Cazumba, por exemplo, observei que havia algumas
imagens de São João na parede e ele me falava que todos eles possuem muita nesse santo.
Estes são, sem dúvida, significados gerais, pois segundo Geertz (1978, p. 93):
A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas
são na simples realidade, seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade (...).
O que quer que a religião possa ser além disso, ela é, em parte uma tentativa (...) de
conservar a provisão de significados gerais em termos dos quais cada indivíduo
interpreta sua experiência e organiza sua conduta.
Convém notar, portanto, a partir dessas breves descrições acerca do personagem e
das faces que ele assume na brincadeira, que trata-se de um ser múltiplo, complexo e diverso,
com características que o tornam dinâmico no universo da festa.
107
3. MORTE DE ESBANDALHAR: Ritual e Sociabilidade dos Cazumbas
No capítulo anterior o Cazumba foi apresentado desde suas características mais
gerais na brincadeira do bumba-meu-boi, seus aspectos visuais, bem como o trabalho, as
condições de vida e religiosidade das pessoas que o interpretam e o contexto social da sua
representação enquanto personagem dinâmico e complexo. Neste capítulo analiso sua atuação
em um ritual do bumba-meu-boi, denominado morte de esbandalhar, tendo em vista a
importância de sua performance no mesmo. Dividido em duas partes, inicio com relatos de
uma experiência vivida por mim quando da ida ao município de Penalva especialmente para
presenciar a realização de uma morte de esbandalhar, no ano de 2005. Acompanhei todas as
etapas da festa, porém, ficaram muitas dúvidas quanto à representação do Cazumba, sendo
necessário muitas conversas com os brincantes após o término da promessa. Em seguida, com
base em um vídeo e em entrevistas com os participantes, descrevo outra morte de
esbandalhar, realizada pela turma Proteção de São João, no ano de 2008. O objetivo é
apresentar outras funções do personagem Cazumba dentro das dimensões festivas deste ritual,
tomando como partida a idéia de que trata-se de uma promessa, presidida por um conjunto de
ações sociais complexas que orientam a conduta dos mesmos.
3.1 Comentários sobre uma experiência anterior
A morte de esbandalhar é um ritual que ocorre por motivo de promessa, em que um
artefato, no caso boi, deverá ser sacrificado para que a mesma seja cumprida, cabendo ao
personagem Cazumba a captura e entrega desse animal para sacrifício e pagamento da
promessa. A realização desse ritual, por não ocorrer com muita freqüência, é sempre muito
aguardado entre as turmas de bumba-boi do município de Penalva.
Por ‘ritual’, utilizo a definição de Turner (2005, p. 49), que o descreve como um
comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica, tendo
como referência a crença em seres ou poderes místicos.
Acompanhei há cinco anos um ritual deste tipo encomendado por uma família à uma
turma de bumba-boi, conhecida pelos moradores da cidade como turma do boi de Maria de
Belmino
57
. A promessa dizia respeito a um senhor de nome Lourenço Barbosa, irmão da
57
Esta turma de bumba-boi foi fundada por um senhor de nome Belmino. Após sua morte quem ficou
encarregada foi sua esposa, chamada Maria de Belmino.
108
minha avó materna Neusa Barbosa. Ele, que havia desejado apresentar uma brincadeira de
boi para São João, morreu pouco tempo depois, não sendo possível em vida cumprir sua
promessa, motivo que fez sua família assumir o compromisso para com o santo um ano após
sua morte.
Normalmente aquele que faz a promessa pede à uma turma de bumba-boi que a
cumpra, fazendo as apresentações e realizando o ritual de morte do boi, cabendo ao
promesseiro os custos com comidas, bebidas, a preparação do altar e a confecção do artefato
que será destruído ao final da festa, ou seja, a turma de bumba-boi que realizará a promessa
não brinca com o seu boi de costume, mas com um boi que será construído especialmente
para a ocasião.
Quanto ao tempo em que a promessa deverá ser paga, cada promesseiro decide,
dependendo de suas condições financeiras ou do que ficou acertado com o santo. Ao observar
as diferenças entre aqueles que fazem a festa todos os anos e aqueles que pagam promessas na
brincadeira do bumba-meu-boi, Prado (2007, p. 57), destaca:
Festeiro e promesseiro ainda se distinguem no aspecto prazo de tempo para a
realização do festejo anunciado, pela simples razão de que o primeiro deverá
promovê-lo no ano seguinte ou, no mais tardar o que já é uma exceção -, dentro
de dois anos. Para o segundo, o lapso de tempo será uma razão direta de suas
condições econômicas e, por isto mesmo, indeterminado. Primeiro ele tem de se
‘aprontar’, o que pode durar três, dez, ou mesmo vinte anos. A altitude desse prazo
encontra, porém seus limites com a morte. Será, portanto, durante a vida que o
indivíduo deverá se empenhar para pagar sua promessa, se quiser encontrar sossego
após o falecimento. Em caso de não cumprimento ele será punido, transformando-
se em ‘vagante’ ou numa alma sem repouso que importunará, sem cessar, os
viventes, até que um deles lhe assuma os encargos até então pretendidos.
Neste caso que acompanhei, a pessoa que fez a promessa não a cumpriu devido seu
falecimento, ficando a família com os encargos de pagar e assim livrar o promesseiro de um
débito não pago em vida com o santo.
Naquele período eu havia feito algumas pesquisas e escutado falar na morte de
esbandalhar, mas era sempre muito confuso entender esses dois tipos de morte: de levantar e
esbandalhar. Na ocasião se tratava de uma festa feita por parentes próximos em que toda a
família foi convidada a colaborar financeiramente e participar dos dias de festa. Alguns não
lembravam da minha existência na família, mas sabiam que eu tinha interesse pelas turmas de
boi e reforçavam o convite a minha pessoa.
Fui alguns dias antes para acompanhar os preparativos e diferentes momentos da
promessa. aqueles que podemos chamar de momentos principais, que é a festa em si; a
apresentação da turma e o ato de esbandalhar o boi, e momentos secundários, em que
109
considerei principalmente a preparação das comidas e bebidas. Os dois momentos, porém,
aparecem demarcados por formas específicas de preparação, apresentação, distribuição e
consumo. Ainda acompanhando os preparativos, observei, entre outras coisas, que na cidade a
população não dá muita importância ao evento. As pessoas não envolvidas diretamente com a
promessa continuam seus afazeres do cotidiano durante o período da festa, enquanto a família
comprometida concentra-se completamente em sua realização, envolvendo apenas a
comunidade próxima. Também entrar como um estranho, um pesquisador não é tarefa fácil.
Primeiro você deve ser aceito pelas pessoas que estão na organização, chamados donos da
festa. Serão eles que te darão acesso aos vários momentos do ritual e explicarão certas coisas
não compreendidas somente quando se assiste. No meu caso, por ser parenta próxima, me
receberam muito bem. Isso não significa que aquelas pessoas que são realmente estranhas não
consigam entrar e pesquisar, mas as mesmas terão um pouco mais de dificuldade.
Esta situação de adentrar a intimidade de um ritual assemelha-se com a vivida por
Geertz (1978, p. 185) e sua esposa em Bali, quando ele diz que quando você encontra um
balinês pela primeira vez, ele parece nem ligar para você, ele está “afastado”. E que quando
você consegue se aproximar, de alguma forma conseguiu cruzar uma fronteira de sombra
moral ou metafísica, e que embora não seja considerado exatamente como um balinês, você é
pelo menos visto como ser humano em vez de uma nuvem ou um sopro de vento. Em Bali, ser
caçoado é ser aceito. Em Penalva dizer que gosta daquela turma que está assistindo naquele
momento é um bom caminho para ser aceito, pois há entre elas uma visível competição.
Após ser aceita, o desafio seguinte era analisar os símbolos rituais presentes na festa,
relacionando-os aos demais eventos sociais daquelas pessoas. Queria principalmente observar
o comportamento do personagem Cazumba e quais as funções que exercia naquele ritual.
naquele período percebi que não seria uma tarefa fácil, pois como destaca Turner (2005, p.
50), o mbolo vem a associar-se com os interesses, propósitos, fins e meios humanos, quer
sejam estes explicitamente formulados, quer tenham de ser inferidos a partir do
comportamento observado.
Mesmo sem propósitos antropológicos
58
, na ocasião observei e destaquei alguns
símbolos, como o boi, confeccionado especialmente para ao pagamento daquela promessa, o
altar, construído para os momentos das rezas, as velas, utilizadas tanto no altar como dentro
da casa no momento das orações oferecidas ao falecido, o mourão, pedaço de tronco de árvore
enfeitado e colocado em frente ao altar, o vinho, derramado dentro de uma bacia e servido aos
58
Naquele período estava realizando uma pesquisa para conclusão do curso de Educação Artística, onde o
propósito era abordar apenas as questões estéticas dos Cazumbas e da festa de forma geral.
110
participantes, representando o sangue daquele animal sacrificado, pedaços da armação do boi,
que após o corte, eram vendidos como se fosse a sua carne e a balança, feita com dois
pedaços de paus, um no sentido vertical e o outro na horizontal, formando uma espécie de
cruz, que pendia para um dos lados quando a carne era pesada. (fotos 33, 34, 35 e 36). Junto
ao gesto da venda da carne era cantado um trecho de uma toada, citando-se o nome do
comprador e finalmente o dinheiro, simbolizado por pequenas folhas de uma árvore
apanhadas próximo ao local.
Foto 33 – Homem confeccionando o boi
Fonte: Arquivo pessoal, 2005
Foto 34 – Familiares do falecido no altar
Fonte: Arquivo pessoal, 2005
Foto 35 – Homem esbandalhando o boi
Fonte: Arquivo pessoal, 2005
Foto 36 – Homem segurando a cabeça do boi
Fonte: Arquivo pessoal, 2005
Também as ações simbólicas daqueles homens me chamaram atenção, como o ato
de prender o boi ao mourão, como se representasse o fim de uma etapa daquele ritual, ou seja,
a partir daquela prisão se iniciava outra ação simbólica, que era destruir o animal. E para isso
utilizavam uma faca, manuseada por um único brincante, chamado por eles de magarefe. O
primeiro golpe adentra o pescoço do animal, é de que sairá o sangue, simbolizado pelo
vinho que será bebido num mesmo recipiente por todos eles. Os demais golpes serão para
111
cortar as várias partes da estrutura do boi, que à medida que vai sendo retirada é
imediatamente vendida. E por último a ação simbólica de comercializar os pedaços da
armação do boi, que foram vendidos mediante o pagamento por quilo que cada pessoa
comprava. Depois de acompanhar essas várias ações simbólicas, percebi que elas se
relacionavam umas com as outras e que uma dava sentido à outra. Isso demonstra, como
observa Turner (2005, p. 63), que cada tipo de ritual tem seu modo específico de inter-
relacionar símbolos. Esse modo, com freqüência, depende dos propósitos ostensivos do tipo
de ritual. Em outras palavras, cada ritual tem sua própria teleologia.
Ainda durante esse momento final do ritual me ocorreu outra situação igualmente
importante. Durante a venda dos pedaços da armação, eu decidi que queria levar um pedaço
da carne. O magarefe então pesou, cantou uma toada com meu nome e no ato da entrega me
pediu o dinheiro. Eu não tinha percebido até aquele momento que todos aqueles que
compravam davam como dinheiro folhas de uma árvore que ficava próxima do local, e ele
então gentilmente me mostrou a árvore e disse-me que assim que eu trouxesse o dinheiro, ou
seja, várias de suas folhas, me entregaria a carne. Fiz conforme eles mandaram e obtive meu
pedaço de armação, ou melhor, dois quilos da carne. Nessa situação, o participante do ritual,
como descreve Turner (2005, p. 57), tende a ser governado em suas ações por uma série de
interesses e sentimentos, dependentes da sua posição específica, que prejudicam sua
compreensão da situação total. Por fim, assim que recebi a carne uma senhora se aproximou
dizendo: Olha, dizem que essa carne deve ser guardada, porque ela trás boa sorte para
aqueles que compram, pois é a carne que foi prometida para São João. Infelizmente, tempos
depois, minha mãe se encarregou de jogar o quilo da carne do boi que eu havia comprado
fora. Ela justificou dizendo que se tratava de uma tralha, um pedaço de armação de folhas
secas de bananeira e que não tinham sentido algum de serem guardados.
Após o término da festa, as pessoas se retiravam aos poucos, alguns permaneciam
ainda bebendo, outros dormiam devido o cansaço e os organizadores aparentemente
satisfeitos com o pagamento da promessa se distribuíam para limpeza do local e entrega dos
últimos pratos de comida. Os brincantes também pareciam felizes com o momento final da
promessa e tanto eles como aqueles que pagavam a promessa para o falecido, comentavam
sobre coisas diferentes daquele ritual. Os primeiros falavam sobre a dificuldade de capturar o
boi, sua prisão, o choro de alguns que não queriam que ele morresse. Enquanto que os
segundos discorriam acerca do pagamento da promessa em si, das despesas e de como o
promesseiro deveria estar satisfeito com o cumprimento da dívida que tinha com São João. Ou
seja, cada pessoa que participa de um ritual, como observa Turner (2005, p. 57), o encara de
112
seu ângulo particular de observação. Sua visão, segundo, segundo ele, é circunscrita pelo fato
de cada um ocupar uma posição particular, ou mesmo um conjunto de posições
situaciosamente conflitantes, tanto na estrutura persistente de sua sociedade, como também na
estrutura de papéis do ritual em questão.
Aqui a experiência primeira de presenciar este ritual, me permitiu pensar que a
vida daquelas pessoas, tanto daquelas que cumprem com a promessa como as que executam,
está profundamente envolvida com todos os contextos da festa, e que os símbolos
identificados acima são possuidores, como destaca Turner (2005), de uma eficácia ritual,
carregados de poder de fontes desconhecidas e capazes de agir sobre essas pessoas que entram
em contato com eles.
Ao contexto da festa me refiro aos dois dias consecutivos de festa em que ocorrem
os preparativos de comidas e bebidas, a confecção do boi e do couro de veludo que será
bordado e servirá para cobrir o corpo do animal, a chegada dos parentes e convidados durante
o dia, a apresentação da brincadeira à noite, a despedida do boi em torno das ruas próximas,
sua fuga por diversas vezes, prisão, o oferecimento do animal ao santo através das rezas
(comunicar ao santo que está se pagando a promessa) e por fim a destruição do artefato, ápice
do ritual significando o pagamento da promessa. Naquela ocasião, a comemoração da festa, o
grande consumo de bebidas, comidas e a reza comungavam com igual importância. Tiza
(2004:16), referindo-se ao ritual com as máscaras ibéricas, observa:
Constata-se pois, uma coabitação pacífica entre o sagrado e o profano, no sentido
cristão dos termos e dos conceitos, entre toda essa ‘amálgama de elementos
religiosos, gicos e profanos’, complexamente tramados e difíceis de definir
concretamente (...). Para os romanos, a quem somos herdeiros mais directos, tudo
vai no mesmo barco, sem distinção nítida entre o temporal e o espiritual.
Em relação aos Cazumbas, demorei a dar-me conta que eram eles os grandes
responsáveis pelo ritual da morte de esbandalhar, isso porque não se identificaram pela
composição visual (indumentária) que costumam utilizar durante a apresentação. Ou seja,
somente após o ritual quando conversava com outros brincantes fui informada de que eram os
Cazumbas quem seguiam atrás do boi quando da sua fuga e também quem iniciam o
momento de esbandalhar o animal e entregam em seguida ao magarefe, fato que não se
percebe somente observando o ritual.
Com a destruição e venda da carne do boi, deu-se por encerrada a festa e o
pagamento da promessa, ficando visível a satisfação de todos pelo cumprimento da obrigação
assumida por seu Lourenço para com São João.
esbandalhado
Arquivo pessoal, 2005
113
3.2 Os Cazumbas na Morte de Esbandalhar: observações preliminares
A Morte de Esbandalhar, como já dito, é um ritual realizado por motivo de
promessa, onde ao personagem Cazumba é conferido o trabalho de capturar o boi que se
encontra escondido, prendê-lo e em seguida entregá-lo para ser morto. O termo esbandalhar é
entendido como a circunstância de quebrar, destruir o artefato e assim pagar a obrigação. Ou
seja, todo o processo do ritual ruma para o momento da destruição do artefato, no caso o boi.
é possível compreender uma morte de esbandalhar se levarmos em conta que se trata de
uma promessa e que tudo deve ser organizado para esse fim.
Uma vez feita a promessa, é imprescindível que seu pagamento seja feito,
cabendo ao promesseiro a escolha do ano e da turma que irá realizá-la. Ou seja, a promessa é
cumprida por uma turma de bumba-boi e se divide em dois grandes momentos: primeiro uma
apresentação durante a noite, com todos os personagens da brincadeira e segundo o ritual de
morte do boi, feito na manhã seguinte, onde o animal é preso ao mourão é destruído,
concretizando-se assim a fim da obrigação. Em relação à apresentação, trata-se do começo do
pagamento da promessa, ocorrendo antes a reza que reúnem em torno do altar o promesseiro e
os brincantes. Após as orações, tem início então a primeira parte da festa, que se segue até a
manhã seguinte, quando o boi já se encontra escondido e deverá ser achado pelos Cazumbas.
A segunda parte começa com a prisão do boi que, antes de ser sacrificado, deverá despedir-se
da comunidade, sendo em seguida morto e destruído. Todavia, se a promessa consiste em
diversos dias de festa, a apresentação é feita na primeira noite e apenas no último dia o boi
será esbandalhado.
As ocasiões que dão ensejo à realização de uma morte de esbandalhar vão desde
motivos relacionados à problemas de saúde até graças materiais concedidas pelo santo, sendo
necessário diversas etapas antes da realização da cerimônia:
(1) Contratação da turma de bumba-boi que deverá realizar o ritual: esta é a
primeira providência do promesseiro, embora dificilmente algum grupo se negue a realizar.
Mas o contrato serve justamente para que aquela turma não se comprometa com outra
promessa e disponibilize todos os participantes para a os dias da festa, que podem ser dois,
oito ou quantos dias foram prometidos ao santo. Outro ponto é que o contrato é um acordo
informal entre o Patrão da turma e o promesseiro, necessitando apenas que este último
garanta muita comida e bebida para os brincantes. Da parte da turma fica a responsabilidade
pelas apresentações e pela encenação do ritual. Entretanto, de todos os seus personagens,
114
apenas o boi não é de sua responsabilidade, sendo uma tarefa do promesseiro que manda
confeccionar um especialmente para a ocasião.
(2) Reservas para as despesas da festa: após a contratação da turma o próximo
passo é começar guardar dinheiro e ir adquirindo o que eles chamam de criações (porcos,
gados), para garantir a alimentação dos participantes e convidados nos dias da festa. Como
observa Prado (2007, p. 60), esta é a maneira mais comum de um promesseiro se ‘aprontar’
para pagar a dívida contraída com o santo. Mesmo que conte com a ajuda de amigos, é
importante que ele tenha a certeza de que terá condições financeiras para promover a
cerimônia sozinho.
(3) Confecção do boi: o ápice do ritual é a destruição do animal, sendo, portanto,
necessário a confecção de um especialmente para aquela ocasião. Feito alguns dias antes da
festa, ele possui as mesmas características físicas e estéticas dos utilizados pelas turmas nas
apresentações. Ou seja, uma armação feita com madeira leve e um couro de veludo preto
bordado. Mesmo com sua destruição dias depois de ficar pronto, ele é feito cuidadosamente,
como são feitos os outros que duram de quatro a cinco anos. Na promessa que assisti no ano
de 2005, o bordado foi preparado seguindo orientações da irmã mais velha do falecido que
havia feito a promessa, pois segundo ela, era necessário agradar ao santo e ao promesseiro,
que mesmo antes da sua morte, deixou dito como gostaria que fosse aquele bordado.
(4) Preparação de comidas e bebidas: esta etapa se realiza durante os dias da
promessa, começando nas primeiras horas do dia encerrando apenas quando a mesma termina.
O local escolhido para o preparo das comidas é normalmente o quintal da casa. A comida é
cozinhada em fogões de lenhas improvisados para aqueles dias, sendo colocada em grandes
panelas uma quantidade significativa de carnes de porco e de gado, além de arroz. Para
acompanhar sempre a farinha
59
, que, como destaca Prado (2007, p. 52), é o alimento
básico do camponês, sendo, portanto necessário para aquela ocasião cerca de um paneiro
60
.
As bebidas, preparadas normalmente pelos homens, são a cachaça, o vinho e a cerveja. Para
todos os dias de festa são necessárias várias caixas, repostas a cada dia.
As outras obrigações que o promesseiro deve ter são com relação à hospedagem
dos participantes ou convidados que se deslocam de outros povoados ou cidades próximas, a
compra de foguetes e velas para todas as noites, a preparação do altar, equipamentos de som,
iluminação do local e gastos com transporte.
59
Alimento produzido com a mandioca, produto plantado em roças, que passa por várias etapas após sua retirada
da terra.
60
Cesto feito de palha, que guarda aproximadamente 30 quilos de farinha.
115
Embora a lista das etapas de preparação que precisam ser cumpridas pelos
promesseiros pareça longa, a morte de esbandalhar não é na prática um ritual realizado muito
amiúde, e sua freqüência talvez seja limitada pelas despesas que o envolve. Ocorrendo como
já relatei no capitulo I, outra maneira de se pagar uma promessa, que é colocando no chifre de
um boi que se apresenta uma miniatura de um boizinho. Eu testemunhei, por exemplo, uma
morte de esbandalhar realizada em 2005, onde fiquei sabendo de mais duas durante os
últimos quatro anos, incluindo esta que descreverei a seguir, com base em entrevistas e em um
vídeo gravado durante a realização do ritual.
3.3 Promessa feita, promessa cumprida: A realização do ritual da morte de esbandalhar
pela turma Proteção de São João
É diferente. A morte de esbandalhar,
esbandalha mesmo, a gente tira, entrega
as postas (se referindo aos pedaços de
carne do boi) como manda a comédia.
(dona Matilde, 24/05/2009
)
Por diversas vezes, quando eu estava fazendo o trabalho de campo em 2009, ouvi
dos brincantes sobre uma promessa realizada no ano de 2008 pela turma Proteção de São
João. Sempre nas conversas destacavam os vários momentos do ritual, enfatizando a
participação do Nego Chico e a quantidade de dias de festa, bem como a fartura de comidas e
bebidas. Aproveitei então para assistir juntamente com eles o deo feito na ocasião em que a
festa ocorria e entrevistar dona Maria das Mercês Nunes, responsável pela promessa. Após
ver as imagens, conversar com os brincantes e com a pessoa que fez a promessa, percebi que
o ritual segue as mesmas etapas e possui os mesmos objetos simbólicos da morte de
esbandalhar que acompanhei pessoalmente em 2005. Também observei que este é um ritual
feito por todas as turmas de bumba-meu-boi da cidade, bastando um pedido de alguém que
tenha recebido alguma graça e deverá pagar com a uma morte de esbandalhar. Os grupos, a
partir da realização do ritual, mediam o pagamento da dívida que o promesseiro adquiriu com
o santo. É, como destaca Prado (2007, p. 56), um pagamento, uma contraprestação que só tem
o seu momento após a realização da primeira cláusula do contrato, ou seja, do atendimento
pelo santo.
116
Dessa forma, pretendo descrever a partir de agora, a estrutura e as propriedades de
uma morte de esbandalhar realizada pela Turma Proteção de São João no ano de 2008, com
destaque para a participação do brincante de Cazumba José Ribamar dos Santos, conhecido
como Zé Quita, juntamente com o Patrão, interpretado por dona Matilde Braga e o Vaqueiro,
representado por seu Manuel de Ramos Mota, conhecido como Menegildo.
Começamos pelo entendimento de que cada morte de esbandalhar ocorre por um
diferente tipo de promessa. Neste caso, a razão do ritual se deu em função de um pedido feito
e atendido por São João. Há cinco anos, a senhora Maria das Mercês Nunes, de 80 anos, havia
prometido que, caso conseguisse se aposentar e construir sua casa, pagaria a graça recebida
com uma grande festa para este santo. No dia seguinte ao seu pedido, segundo ela me relatou,
São João havia tomado providências, mandando até sua casa um homem de nome Dico
Andrade e que a ajudou no processo da sua aposentadoria. Ou seja, São João concedeu
rapidamente a graça solicitada. Em seguida, ela então encomendou oito dias consecutivos de
festa como pagamento ao santo, cabendo à turma Proteção de São João a função de realizar o
ritual da morte de esbandalhar, e às outras turmas convidadas da cidade se apresentarem uma
por noite, durante todos esses dias.
Mauss (2003, p. 205), quando trata do presente dado aos homens e o presente
dado aos deuses, observa:
As relações desses contratos e trocas entre homens, e desses contratos e trocas entre
homens e deuses, esclarecem todo um aspecto da teoria do sacrifício (...). Um dos
primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram de estabelecer contrato,
e que por definição estavam aí para contratar com eles, eram os espíritos dos
mortos e os deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e
dos bens do mundo. Com eles é que era mais necessário intercambiar e mais
perigoso não intercambiar.
Na crença daqueles que promovem a morte de esbandalhar, a longa festividade é
realizada para agradar São João, a partir do momento em que é feita a promessa em
retribuição pela graça recebida. Tais noções expressam de maneira sensível as categorias de
dádiva e contradádiva, que estabelece simbolicamente uma relação estável com o santo.
Também o trabalho, tanto da turma de bumba-boi que realiza a promessa, quanto da pessoa
que a fez, pode ser explicado como um constante ciclo de trocas.
Quando, pela primeira vez, observei a morte de esbandalhar, feita pela turma
Brilho de São João, em 2005, fiquei impressionada com a estrutura necessária para realização
do ritual: cerca de dois dias de festa, incluindo o momento preparatório, que compreendiam as
etapas de planejamento feitas meses antes, até as atividades dos dias que antecederam, como a
117
preparação de comidas e bebidas, a confecção do boi, a recepção dos convidados, entre
outros.
Entretanto, na promessa que ocorreu no ano de 2008, foram cinco anos de
preparação e oito dias de festa, o que aumenta em muito a estrutura necessária. Importante
assinalar que todos os gastos são de responsabilidade do promesseiro, que guarda do próprio
dinheiro ou conta com a contribuição de amigos, que, em geral, doam comidas. Segundo
informações dos participantes, o consumo de comidas e bebidas em todos esses dias foi
excessivamente grande. Dona Mercês precisou adquirir oito gados e quatro capados
61
para
alimentar os brincantes e convidados durante todos os dias da festa. Esse banquete oferecido
gratuitamente por quem paga a promessa se assemelha ao que Mauss (2003, p. 188) descreve
no Ensaio sobre a Dádiva, em particular, da obrigação de retribuir os presentes:
De todos esses temas muito complexos e dessas multiplicidade de coisas sociais em
movimento, queremos considerar aqui apenas um dos traços, profundos mas
isolados: o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no
entanto obrigatório e interessado, dessas prestações.
Agora vejamos: ao ter seu pedido atendido por São João, dona Mercês sente-se
obrigada a retribuir a graça recebida por ele, oferecendo à comunidade e aos brincantes que o
ajudarão com o pagamento da promessa, muitas comidas e bebidas. Em geral, ‘retribuir uma
coisa recebida’ é uma prática comum entre as turmas de bumba-boi e entre os que contratam
uma apresentação. As dádivas trocadas e as obrigações de pagamento se fazem da seguinte
forma: quem contrata, normalmente por promessa, retribui com a alimentação e a bebidas,
compra os foguetes e faz a divulgação do evento, enquanto que o contratado, no caso as
turmas, realizando o ritual, seja da morte de levantar ou da morte de esbandalhar, cumprindo
sua parte na troca. Um dom ainda mais precioso dado aos brincantes é o prestígio adquirido
durante as apresentações.
Outro aspecto da morte de esbandalhar para a pessoa que realiza, é fazer real sua
promessa, tornar público aquilo que era pessoal, permitir que os outros vejam suas crenças e
sentimentos. A promessa neste caso é um ato aberto ao público, cada momento é visível e
acessível aos participantes. Dessa forma, quando num determinado momento do ritual o boi é
levado para se despedir da comunidade antes de sua morte, todos são convidados a
acompanhá-lo pelas ruas próximas, retornando em seguida para a sede do grupo, local onde
será esbandalhado. Durante a procissão de despedida, as pessoas, na rua, interrompem suas
61
Capados são os Suínos.
118
atividades cotidianas para presenciar o cumprimento da promessa. O trajeto é acompanhado
ainda pelos tocadores que seguem no final cantando as toadas.
Todo o processo do ritual ruma para o momento da destruição do artefato, no caso
o boi. é possível compreender uma morte de esbandalhar se levarmos em conta que se
trata de uma promessa festiva e que tudo deve ser organizado para esse fim.
Esta não foi, da minha parte, uma observação participante. As informações obtidas
são a partir do vídeo encomendado por dona Matilde e por entrevistas com os brincantes
de Cazumbas, com as algumas pessoas que assistiram e a com a dona Mercês, que foi
quem encomendou a promessa.
Como foi mencionado no início, a morte de esbandalhar permite ao Cazumba,
enquanto personagem, ou melhor, a um Cazumba em especial, exercer determinadas
funções, essenciais para o momento final do ritual.
Ser este brincante que desempenha dois personagens (Pai Francisco e
Cazumba), como explicado no capítulo anterior, implica em possui características e
qualidades que os demais não possuem, entre elas ter boa memória e certa desenvoltura
teatral, devido os longos diálogos, e não pode ter vergonha de atuar diante dos outros
brincantes e dos espectadores. Outra característica desse Cazumba especial, é que sua
apresentação ao público não é feita com a farda de costume (tecido de veludo e bordada),
mas sim com uma túnica de tecido de algodão, estampado, mais leve que a de veludo e
sem bordados, semelhante às vestes utilizadas pelo fofão, personagem típico do carnaval
maranhense. Neste caso, com o uso somente da farda, seu o rosto fica exibido, sem a
careta que identifica o personagem.
A ausência da careta é justamente o que o divide em dois personagens. Ou
seja, aquele brincante que faz o papel de Cazumba nas apresentações, passa nessa ocasião
de realização do ritual a fazer o papel de Nego Chico. Neste ponto, retirar a máscara é
permitir um estado de transição, que, como destaca Turner (2005, p. 137), é um processo,
um devir, uma transformação. A pessoa que interpreta o Cazumba encontra-se numa
situação de margem, flutuando entre o mundo do Cazumba e o do Nego Chico (Van
Gennep, 1978).
A segunda questão se refere a quem os prepara. No caso desta turma é o Patrão
que os treina para atuar exatamente como deve durante o ritual. Somente ele possui todos os
ensinamentos necessários e repassa à pessoa que deverá assumir a função. No caso do
Quita, o aprendizado não se completou com o seu Sinésio, que adoeceu e morreu pouco
tempo depois de iniciar sua preparação. Segundo ele, houve no início muita dificuldade:
119
Olha, no começo foi muito difícil. Por que? Porque era uma coisa que eu só
escutava, hoje dá pra fazer. Eu nunca tinha sentado assim detalhadamente pra
escutar, eu ouvia uma parte e gravava. Eles diziam, eu gravava. Mas quando
partiu pra Proteção de São João, eu... eles começaro me ensinar eu comecei me
desenvolver mais , ai a primeira parte, aí até que eu aprendi com seu Sinésio
mesmo, eu já vi que ia ser difícil, mas quando eu comecei a primeira parte, ele
adoeceu, ai pra mim cabar de aprender já foi um pouco difícil, que era duas pessoas
do grupo, o Maciano e até a Dona Matilde também mesmo, que que foi
passando pra mim, o que seu Sinésio ia me ensinar, entendeu?Aí eu aprendi
através dele. (Zé Quita, 24/05/2009).
A terceira questão é quando da análise do significado exegético do Cazumba/Nego
Chico neste ritual. Primeiro que nas encenações próprias da morte de esbandalhar este é, para
os outros personagens, o único capaz de enfrentar as forças sobrenaturais da floresta,
possuindo além de coragem, um corpo protegido que permite entrar em lugares que os demais
não conseguem geralmente por medo. Neste ponto, observamos que a junção dos dois
expande os significados e sentidos do ritual. Este fato pode ser acompanhado durante a
encenação do ritual, onde o vaqueiro narra por diversas vezes que somente o Nego Chico
conseguirá prender o boi que se encontra escondido no mato, pois o mesmo, segundo ele, é
caçador, anda com os cachorros(representados pelas crianças), além de conhecer e gostar
do mato, como veremos nas narrativas mais adiante.
3.3.1 O ritual: festa, rezas e morte
Vale a pena observar de perto agora como são os momentos principais da Morte de
Esbandalhar e a participação dos Cazumbas. O primeiro deles é a apresentação que ocorre
durante toda a noite na casa da promesseira, dona Mercês. Nela, os integrantes da turma
exibem o boi que será no dia seguinte sacrificado. Todos com suas vestes cantam, tocam e
dançam em torno do animal, que desde esse primeiro momento, tenta por diversas vezes fugir
daquele lugar, mobilizando todos os presentes. O boi faz-se notar também pelo bordado que
recobre sua armação, feito especialmente para a ocasião e guardado após sua prisão. Fazê-lo
fugir por ruas próximas ao local da festa por volta das 3 horas da manhã, é tarefa do miolo,
homem que fica embaixo da armação e direciona todos os movimentos feitos pelo artefato.
A apresentação também indica o início do pagamento da promessa, aonde o
artefato destaca-se como símbolo dominante, capaz de servir como o elo entre o santo e o
promesseiro, ou melhor, representa o pagamento em si, o fim de uma dívida, o agradecimento
pela graça recebida, além de possuir valores tidos como fins em si mesmos, ou seja, valores
axiomáticos.
120
Ao discutirem o simbolismo do artefato, os participantes tendem a destacar seus
aspectos religiosos, observados quando o mesmo é colocado em frente à imagem de São João
no momento das rezas que antecedem as apresentações. Referem-se ainda ao bordado que
recobre sua estrutura, geralmente com imagens e motivos religiosos.
Assim, em diversos contextos o boi atenderá aspectos diferentes, como destaca
Turner (2005:85) ao estudar o simbolismo ritual:
Cada símbolo dominante tem um ‘leque’ ou ‘espectro’ de referentes, os quais são
interligados pelo que é geralmente um simples modo de associação, cuja própria
simplicidade permite a ele interconectar uma grande variedade de significata.
O segundo momento do ritual, e talvez o mais importante, diz respeito à sua
captura e morte. Quando do término da apresentação pela manhã, o boi é conduzido pelo
miolo para sua fuga, por lugares próximos ao local onde se realizará a promessa. Nesse
momento ocorre uma pausa na festa, permitindo que os participantes descansem um pouco. O
ritual é retomado a partir do meio dia, momento em que os homens que interpretam os
Cazumbas entram em cena, seguindo até o início da noite.
No ritual, apresentam-se todos os personagens da brincadeira: o Patrão,
interpretado por dona Matilde Braga, apresenta a festa e canta as toadas juntamente com os
demais; Dona Maria, representada por dona Maria da Conceição, será a responsável por
carregar o quadro com a imagem de São João e uma vela acesa durante todo o ritual, o
Vaqueiro, representado por seu Menegildo, encarregado de cuidar do boi, o Nego Chico,
representado pelo brincante de Cazumba Quita, responsável pela captura e entrega do
animal ao Patrão; Magarefe, interpretado por Mario Cazumba, será responsável por cortar a
carne do animal e vendê-lo; e os cachorros, meninos que acompanham o Nego Chico durante
a captura do boi.
Primeiro o Patrão ordens ao Vaqueiro, dizendo que o boi precisa ser pego
naquele dia, uma vez que necessita morrer. Ele responde que a ordem do Patrão precisa ser
cumprida e sai em busca do animal. O Vaqueiro percorre toda a sede, fingindo estar montado
em um cavalo à procura do boi. Na verdade, ele utiliza um pedaço de vara comprida e coloca-
a entre as pernas. Os demais brincantes, vizinhos e convidados se distribuem ao redor para
acompanhar a encenação, deixando o centro da sede livre para passagem dos personagens que
vão atuar naquele momento.
Por diversas vezes o vaqueiro segue e retorna dizendo que não avistou ou que o
boi encontra-se escondido no mato, lugar de difícil acesso e que não é confiável que se mande
qualquer pessoa. Ele sempre volta expressando muito cansaço, como se estivesse cavalgando
121
por horas atrás do boi. De três a quatro vezes o Patrão ordena que retorne novamente e
apresente o animal e ele então segue sem argumentos.
Durante essas buscas em vão do vaqueiro, alguns brincantes de Cazumbas ficam
circulando entre as pessoas que assistem, enquanto outros se aproximam do mourão
62
. Eles
parecem, entretanto, alheios ao que está acontecendo.
a ponto de desistir, o vaqueiro retorna dizendo: “Não encontrei o boi patrão.
Tive no Canadá, Matinha, Pau queimado, já fui até no Araçatuba e não vi”
63
.
O Patrão questiona: “De jeito nenhum? Ninguém te informou?”.
Ele responde que não e o Patrão um pouco irritado diz: Olha vaqueiro, eu vou
lhe dizer o seguinte: esse boi tem que morrer hoje, vá, dá mais uma volta e trás ele”.
Ele segue então pela última vez. um aparente silêncio no local, somente o
barulho de foguetes ao fundo indica que algo acontece lá dentro. Fora daquele espaço a vida
da comunidade transcorre normalmente. Quando o vaqueiro retorna, faz movimentos
corporais, como se seu cavalo estivesse sem controle. Ele diz: “Hum, esse cavalo ta doido,
quando num acha parece que quer ir atrás de outro boi”. Em seguida continua: É que acho
que o negócio é que parece que esse boi tem um espírito, porque por onde eu andei
ninguém sabe notícia”.
O Patrão inconformado pergunta: “E por onde esse boi pasta?”.
O vaqueiro responde: Esse boi pastava aqui, às vezes ia até o Jacaré
64
, mas
agora sumido, não sei se acuado, se tá com encantado, porque ninguém sabe seu
paradeiro”.
O Patrão novamente pergunta: “E quem pode dar jeito nisso?”.
O vaqueiro responde: Eu tava pensando aqui que talvez o Nego Chico pode
dar conta desse boi, porque ele gosta de andar com um bando de cachorro, por onde ele
anda é com aquela banda de cachorro atrás dele, e eu acho que ele podia dar informação
porque ele é caçador e gosta de viver pelo mato e ele sabe das coisas, talvez ele possa dar
notícia do boi”.
O Patrão pergunta: “E onde se encontra esse Chico?”.
O vaqueiro responde: Eu não sei nem onde ele mora, porque ele é um pouco
perigoso. A gente quer conversar com ele, ele fica escapulindo, não atenção. O senhor
quer pra mim conversar com ele?”.
62
Pedaço de tronco de árvore enfeitado e colocado no centro da sede, onde deverá ser amarrado o boi.
63
Esses locais citados são áreas de criação do gado durante o período do verão. Neles localizam-se pequenas fazendas que ficam próximo ao
município de Penalva.
64
Município próximo à cidade de Penalva.
122
Ao sinal afirmativo do Patrão, o vaqueiro segue em busca do Nego Chico.
Gostaria de chamar atenção aqui para as características do Nego Chico, citadas
pelo vaqueiro. No seu relato afirma que o Nego Chico gosta de “viver pelo mato” e é
“conhecedor de coisas”, talvez se referindo que o mesmo possui qualidades de ordem
sobrenatural. Outro ponto, é que parece pelas características acima, que não é interessante que
as pessoas saibam onde ele mora ou mesmo ter relações de amizade com ele. Dessa forma, o
Nego Chico e/ou Cazumba, representariam o lado ‘negativo’ da brincadeira, aquele que
parece usar de feitiçaria para conseguir seus objetivos. Aquele capaz de trazer um boi
aparentemente ‘encantado’, como descreveu o vaqueiro.
Após ordem do Patrão, o vaqueiro encontra o Nego Chico e rapidamente diz:
Olha, eu trouxe um recado pra ti. Agora tu vai te entender com meu patrão, ele quer pra ti ir
fazer um serviço para ele, que é encontrar o boi da fazenda, e eu sou vaqueiro da fazenda. Eu
procurei muito mas não encontrei e o momento é esse. Ele me perguntou quem podia dar
conta desse boi e eu disse que tu ia”.
O Nego Chico expressa um olhar irônico e sorrindo pergunta: E você num deu
conta não?”.
O vaqueiro responde: Não, não dei. E tu podia dar uma volta pra encontrar,
porque tu é caçador, leva teus cachorro atrás pra vê se acha. O patrão mandou eu ir atrás, a
tua procura e já te procurei demais”.
Nego Chico desconfiado pergunta novamente: “Rapá, tu, vaqueiro desse boi um
tempão e deixa ele escapar? Tu não tava botando água pra esse boi, não, rapá?”.
O vaqueiro responde: “Rapaz eu tava botando comer, botando água, tudo. É
porque o gado, ele ficou escabriado não sei por quê. Ele vinha toda tarde na ração, na
cocheira, mas tipo depois que peguei a notícia com o patrão de que era pra agarrar ele, pra
trazer pra cá, foi que ele desapareceu de uma vez por todas. Eu não sei onde foi essa notícia
do gado, quem teve dando essa informação, e ele quer conversar contigo. te botar pra
falar com ele”.
Nesse momento os dois se aproximam do Patrão que diz: “Chico! Eu to
precisando matar um boi que ontem ele tava aqui nesse terreiro”.
O Nego Chico responde: “Tava ontem aqui nesse terreiro? Mas o vaqueiro é
mentiroso! Ele disse que faz uma semana que num esse boi. se ele ta mentindo pra
mim”.
123
Sua fala quer na verdade, criar uma tensão entre o vaqueiro e seu Patrão. Tanto
que o Patrão olha raivoso para o vaqueiro e diz: “Ta mentindo! Que hoje ele procurou por
toda redondeza e disse que só tu, porque tu tem um mocado de cachorro que vai pro mato”.
O Nego Chico responde: Rapá, eu vou fazer o seguinte: eu vou uma volta
atrás do boi sem cachorro, que esse cachorro, como ele tá escabreado, cachorro pode
espantar ele. Eu levar um cachorro”. Nesse momento ele segue correndo e chama um
menino entre tantos outros, que atenderá como sendo um cachorro: Hum! Bom de Faro
65
, ô
hum!”. O menino late e o acompanha.
Temos a partir dai a participação efetiva do Nego Chico/Cazumba no ritual, que
aceita a tarefa, porém fazendo algumas exigências, entre elas levar os demais brincantes de
Cazumbas e os cachorros, representado por diversos meninos.
O Nego Chico sai pelo mato, que na verdade é rua próximo ao local, levando um
cachorro apenas, entretanto, logo na saída vários cachorros o seguem. Seu afastamento
extrapola os limites da sede, pois ele segue pelas ruas próximas, voltando diversas vezes ao
centro da sede sem o boi, até que cansado pára e diz ao Patrão: “É, ele ta assombrado,
acho que se bater uma macumba pra ver se pega”. Está assombrado, significa segundo
eles, que o animal foi acometido por algum tipo de feitiço e a macumba serve para proteger
tanto o Nego Chico quanto os Cazumbas que o acompanham. Também é exigido um grode,
que são bebidas para tomar antes da partida.
Os Cazumbas que acompanham o Nego Chico começam então sua exibição.
Primeiro eles fazem um círculo bem no centro do local onde é encenando a morte de
esbandalhar. Em seguida, começam o que eles denominam como um ritual de cura, aonde
cada um deles canta uma doutrina, acompanhada pelos instrumentos dos tocadores. A partir
de então, eles fingem juntos estarem recebendo alguma entidade e entrando em transe. Falo
fingimento, porque há uma espécie de ironia e risadas quando da encenação.
O primeiro Cazumba canta:
A água do mar balanceia, a água do mar balanceia, a água do mar balanceia,
olha fogo miúdo me arrudeia”.
Repetem as doutrinas três vezes, se comportando, como se estivessem possuídos,
curvando o corpo para trás e para frente repetidas vezes e dando giros em torno de si e dos
outros. Também jogam o corpo em direção ao chão, rolando-o e indo de encontro uns com os
65
Nome do cachorro, representado por um dos meninos.
124
outros. Ao mesmo tempo dançam, sobem em um tronco de árvore que é colocado no centro
do local, quebram seus galhos e bebem da cachaça oferecida pelo Patrão.
O segundo canta outra doutrina, que assim como a primeira é repetida três vezes:
“Eu entro, eu entro, eu entro, abre a porta que eu vou dentro.
Se eu achar rede eu me deito, se achar cadeira eu sento.
Ao som do apito feito pelo Nego Chico eles silenciam e outra pessoa começa.
iniciam a cantoria da doutrina com os ombros baixos e olhos fechados.
Terminada a macumba, o Nego Chico diz que está preparado, porém tem outra
condição. Ele diz ao Patrão: “É que tenho meus caboco
66
e tem mais meus cachorro e eles
não vão com fome”.
O Patrão responde: “Ah Chico, mas também tu quer demais!”.
Nego Chico, percebendo que tem domínio na situação, responde: Não, mas num
quer matar ele? Então se quer matar ele tem que servir um almoço”.
O Patrão então manda servir uma bacia de comida para os meninos que
representam os cachorros, uma mistura de carne e farinha, chamada por eles de farofa. Os
meninos se aproximam uivando, latindo e comendo desesperadamente a comida como se
fossem realmente cachorros. Após comerem seguem para próximo do Nego Chico,
demonstrando estarem preparados para adentrar o mato em busca do boi.
Retorno aqui no ritual da macumba para análise de outro ponto que é a
competição existente entre os brincantes de Cazumbas durante esse momento. Primeiro que já
existe ali uma pessoa que interpreta o ‘Cazumba principal’, que é naquele momento o Nego
Chico, restando aos demais a oportunidade de nesse momento fazer uma performance melhor,
que chame atenção para si. Outro aspecto da competição é percebido pelo uso que alguns
fazem da farda bordada, que normalmente é retirada especificamente para este ritual. O uso se
dá em função da necessidade de ser percebido pelo público, pois mesmo não sendo o
Cazumba principal, podem nesse momento receber algum prestígio, tendo em vista que fazem
sua exibição com a mesma vestimenta da apresentação. Entretanto, essa atitude é muito
criticada por alguns brincantes, por que, segundo eles, o uso da farda atrapalha a
desenvoltura durante a encenação, pois o mesmo precisa subir em árvores plantadas na sede
para essa ocasião, sendo seus galhos facilmente quebrados, e a todo instante eles caem e
rolam juntos no chão, o que acabaria facilmente com a vestimenta.
66
Cabocos são os demais homens que interpretam os Cazumbas.
125
Terminado o ritual da macumba e a comilança da farofa, o Nego Chico,
juntamente com os demais brincantes de Cazumbas e os meninos que representam os
cachorros seguem em busca do boi, que será, num breve espaço de tempo, esbandalhado por
eles. Esta é para o Cazumba principal a sua mais importante função na promessa. O boi,
capturado por ele, entra no terreiro correndo desesperadamente e com a cabeça coberta por
galhos de árvores, significando que esteve escondido na floresta. uma gritaria por parte
dos cachorros que o cercam enquanto ele ainda tenta fugir.
Após relutar, ele é pego pelos Cazumbas que o fazem levantar o corpo e depois o
soltam. Percebe-se que a tentativa de fuga é um momento performático para o boi. Ele, guiado
pelo miolo faz movimentos espetaculares indicando que quer sair daquele lugar, se joga e se
afasta dos perseguidores como quem está acuado, sem saída, em completo desespero. Numa
espécie de brincadeira o prendem e o soltam até que chega o momento dele ser entregue para
a Dona Maria, personagem responsável por laçar o animal no pescoço e prendê-lo no
mourão. Na verdade, sempre que o boi é preso pelos vaqueiros, é em seguida solto pelos
Cazumbas.
Em todas as ocasiões da promessa, Dona Maria, interpretada por Maria da
Conceição, carrega consigo um quadro com a imagem de São João e entre os dedos uma vela
acesa. Quando os Cazumbas chegam segurando o boi pelo chifre, ela tenta por diversas vezes
laçá-lo, até quando consegue prendê-lo. Chega então o momento de despedida do boi, ou
melhor, chega a ocasião de tornar ainda mais pública aquela promessa, de sair do local aonde
o ritual foi realizado boa parte do tempo e seguir por ruas próximas, numa espécie de
confirmação notória de que uma promessa e que a mesma está sendo realizada. Após sua
prisão, todos saem em procissão, indo de casa em casa cantando as toadas de despedida:
O meu boi tá se despedindo
Pela rua da cidade
Vai morrer sem ter razão
E deixar muita saudade
Refrão: Digo adeus, digo adeus amor, até para o ano se nós todos vivo for
(repetido três vezes)
Meu novilho vai morrer
Uma grande maldade
126
Eu vou matar meu boi
Sem ter necessidade
Refrão: Digo adeus, digo adeus amor, até para o ano se nós todos vivo for
O meu boi ta no mourão
Ele vai se despedindo
Ele vai deixar muita saudade
Pro povo do lugar
Refrão: Digo adeus, digo adeus amor, até para o ano se nós todos vivo for
O meu boi já se despede
Uma dor no coração
Peço pra esse dono da casa
Que solte esse boi de São João
Refrão: Digo adeus, digo adeus amor, até para o ano se nós todos vivo for
Além da despedida, outro objetivo dessa procissão, é que caso alguém da
comunidade se sensibilize com a circunstância de morte daquele animal e peça para soltá-lo,
ele não será mais sacrificado. Como é possível observar na última estrofe, eles pedem que o
boi seja solto. Entretanto, aquele que desejar libertá-lo deverá no ano seguinte arcar com
todos os gastos da promessa. O resultado é que ninguém se arrisca a fazer essa bondade com o
boi de São João.
Aqueles que caminham acompanhando a despedida do boi, ratificam o
cumprimento da promessa, dando a ela características semelhantes à aqueles descritas por
Turner (2005:84) quando narra o ritual dos Ndembu. Ele observa que um dos aspectos do
processo de simbolização ritual entre eles, é fazer visível, audível e tangível crenças, idéias,
valores, sentimentos e disposições psicológicas que não podem ser percebidas diretamente.
Diz ainda:
O processo de tornar público o que é privado, ou tornar social o que é pessoal, está
associado com o processo de revelar o desconhecido, o invisível ou o oculto. (...)
Ao expor seus sentimentos vis a forças rituais benéficas em contexto ritual, os
127
indivíduos são purgados de desejos e emoções revoltosos e se conformam de bom
grado aos costumes públicos.
Durante a caminhada, o boi guiado pelo miolo pára, cumprimenta as pessoas e se
despede. O cansaço e a emoção são visíveis e se misturam entre os participantes. Alguns
caminham já cabisbaixos, tristes, outros alegres e ainda com fôlego para o término do ritual.
Após a despedida por ruas próximas da comunidade o boi segue em direção à
Fazenda, ou seja, a casa do Patrão da turma e é recebido pela dona Mercês, promesseira que
ofereceu aquele boi a São João, que, muito emocionada, segura seu chifre e outro na
corda, sinal que confirma sua promessa e que de fato aquele boi deverá morrer. Também os
tocadores o acompanham, seguindo por toda a moradia até uma pequena casa feita no quintal
especialmente para o preparo de comidas, servidas durante todo o dia pelas senhoras da
comunidade.
A expressão da dona Mercês segurando o chifre do boi me fez lembrar uma
conversa que tivemos em sua casa acerca do surgimento da promessa. Ela contou-me que
certo dia, olhando o quadro com a imagem do santo que estava na parede dizia: “São João,
São João, olha bem o que estou te pedindo, preciso muito me aposentar, preciso ter uma
casa. Olha São João, não ri, se tu me ajudar, eu prometo te oferecer uma boiada”.
Chega o último momento do ritual. O boi, já cansado, desiste da própria vida,
caminhando lentamente guiado pelo miolo em direção ao mourão. De cabeça baixa é
covardemente preso e morto pelos Cazumbas que o entregam em seguida ao Magarefe,
personagem que irá cortar e distribuir sua carne. Aceita a própria morte como se soubesse que
precisa morrer para que se cumpra a promessa. deitado é coletivamente alvo de partilha.
Todos são convidados a beber prazerosamente seu sangue
67
e adquirir sua carne
68
.
Entretanto, entre o momento em que se encontra deitado e morto até a
distribuição de sua carne, um longo diálogo por parte do Patrão, que conduzirá a etapa
final do ritual. Ele dará as ordens sobre como deverá ser cortado o animal, mas antes
informará sobre a genealogia dele, dirá quem era sua mãe, pai, irmã, avó, avô, bisavó e
bisavô. Por fim, orientará sobre como deverá ser cortado cada parte do corpo do animal e para
quem deverá ser entregue. Diferentemente da primeira morte de esbandalhar que acompanhei
em 2005, onde a carne do boi foi vendida, neste, ela era distribuída pelo Magarefe. Abaixo,
descreverei os principais trechos da última etapa do ritual
67
O sangue é simbolizado por vinho, derramado dentro de uma bacia e servido aos participantes.
68
A carne são os pedaços da armação do artefato, doados como se fosse carne de verdade. Dizem que aquele
pedaço da carne de um boi esbandalhado trás sorte aos que adquirem e guardam.
128
Primeiro, quando da distribuição do vinho, que simboliza o sangue, o Patrão
canta:
Corre sangue, tão estirão
Corre até pra todo mundo.
O vinho é servido primeiramente aos brincantes e depois à comunidade. A partir
de então, o Patrão passa a se referir ao boi citando seu nome: ‘Espaço’. Neste caso, significa
que cada boi de promessa possui um nome que é dado pelo grupo. Em seguida, toca o apito e
inicia com estrofes direcionadas ao vaqueiro:
Já morreu meu boi ‘Espaço’
Já morreu familiar
Boi bonito como este
No sertão não haverá
Vaqueiro, tu vem aqui vaqueiro
Fazer o que eu te mandar
Tira o laço do boi
Pra fazenda não brumar
O Patrão prossegue dando ordens ao vaqueiro. A primeira delas é que retire o
laço do animal, para a fazenda assim não brumar, que segundo eles, significa não se acabar. O
vaqueiro então chega, retira a corda e o Patrão segue cantando as seguintes estrofes:
Já morreu meu boi ‘Espaço’
Se acabou meu bonito touro
Boi que eu tinha injeitado
Sessenta milhão de ouro.
Já morreu meu boi ‘Espaço’
Filho de minha vaca
Boi que eu tinha injeitado
Sessenta milhão de prata.
Meu boi ta faquiado
Morto no pé do mourão
Antes de tirar o couro
Eu vou dar toda a geração.
129
O boi até este momento permanece da mesma maneira. O Patrão segue então para
as próximas estrofes, que informam acerca da geração do boi:
Já morreu meu boi ‘Espaço’
A mãe do meu boi ‘Espaço’ é uma vaca
caiada
69
Dava cem frasco de leite por dia
E cem panelão de qualhada.
Já morreu meu boi ‘Espaço’
O pai do meu boi ‘Espaço’ era um garrote
graúna
70
Deu cem arroba de carne
E tenho o couro por testemunha.
Já morreu meu boi ‘Espaço’
As irmãs do meu boi ‘Espaço’ era uma preta
e outra caiada
Do gado eram as mais bonitas
Que todo mundo olhava
Já morreu meu boi ‘Espaço’
A avó do meu boi ‘Espaço’ era uma vaca
araçá
71
Dava serão pra sendeiro
E ligeira no calcanhar
Já morreu meu boi ‘Espaço’
O avô do meu boi ‘Espaço’ era um garrote
preto
Quando urrava na malhada
Estremecia o rochedo
Já morreu meu boi ‘Espaço’
A bisavó do meu boi ‘Espaço’ era uma vaca
fubá
Prendia no curral do meio
Que não podia virar
Já morreu meu boi ‘Espaço’
O bisavô do meu boi ‘Espaço’ era um garrote
azeitão
72
Cria da mesma fazenda
E filho da mesma geração
Já morreu meu boi ‘Espaço’
Os parentes do meu boi ‘Espaço’ era um
gado adomado
Pastava por todo canto
Mas não deixava malhada.
69
Segundo eles, chama-se vaca caiada, ao animal que apresenta mais de uma cor, em geral preto e branco.
70
Nome dado pelo dono ao animal preferido ou mais estimado dentre todos.
71
Segundo eles, é uma vaca que possui as cores vermelho e preto misturado.
130
Já dei toda geração
De tudo que sabia e que vi
Vou mandar tirar o couro
Pra poder dividir.
Nesse momento, o vaqueiro retira o couro do boi, ou seja, o veludo bordado que o
cobria. Em seguida o Patrão dá nova ordem ao vaqueiro cantando:
Vaqueiro tu risca o boi
Risca do peito primeiro
Começa pela mão da frente
Depois pela traseira
Vaqueiro tu risca o boi
Do queixo pra barrigada
Tira o couro dele
Deixa a carne separada.
O vaqueiro retira então a saia branca que fica presa ao couro e inicia o corte da
armação do artefato, ou melhor, da carne do boi, sempre seguindo as orientações do Patrão. O
corte é feito com o uso de uma faca, onde o vaqueiro procura seguir o mesmo procedimento
realizado quando do corte de um animal de verdade, ou seja, separando por pedaços, como
vemos a seguir:
Tu corta duas costelas
Do meio, em cima e embaixo
Cuidado com teu serviço
Num deixa cortar o fato
Fussura
73
se arretira
Do resto não se dá gasto
A carne de cabeça
Também acompanha o fato
72
Segundo eles, é um animal que possui no pescoço uma cor mais escura e a partir da metade do corpo uma cor
mais clara.
73
Fussura são as vísceras do animal (fígado, coração e bofe).
131
Depois de cortada toda a armação do boi, que significa para eles a carne do
animal, ela vai ser pesada e, em seguida, distribuída. O Patrão então canta:
Ê morena, nosso boi já morreu, morena
A falta quem sente é eu
Após esse momento, o Patrão começa solicitar alguns objetos, como a corda, a
balança feita a partir dessa corda e a faca. Ele diz toda a estrofe e todos repetem apenas o
último verso de cada uma:
Ê vaqueiro cadê a corda?
A corda que é pra pendurar, ê morena
As faltas, só quem sente é eu
Ê vaqueiro cadê a faca?
A faca é pra cortar, ê morena
As faltas, só quem sente é eu
Ê vaqueiro cadê a balança?
A balança que é pra pesar, ê morena
As faltas, só quem sente é eu.
Em seguida, o Patrão toca o apito e continua cantando. Dessa vez, é apenas uma
estrofe, sendo que é repetida todas as vezes que um pedaço da carne é oferecido. Os primeiros
pedaços são especialmente para os brincantes que participaram da encenação e em seguida é
entregue para a comunidade.
Meu boi já morreu
Mocotó é meu
Pra pagar a carreira
Que esse boi me deu
Finalmente, quando não mais para quem doar, o Patrão canta ainda três toadas
que encerram a distribuição:
132
A carne que ainda sobra
Num vende um quilo a dinheiro
É pra fazer almoço
Pra todos os meus companheiros
A carne que ainda sobra
Num vende um quilo a tostão
Que é pra dividir
Pra toda a população
A carne que fica nos ossos
Que não se pode tirar
É pra dar para as formiguinhas
Que é pra aproveitar.
ainda duas obrigações a serem feitas antes que o ritual se encerre: primeira,
que aqueles que distribuem a carne precisam prestar conta com São João, que se encontra no
altar, informando como foi a doação e entregando a ele os objetos simbólicos utilizados no
ritual - bacia onde foi colocado o sangue, o mourão em que o boi foi preso, a faca utilizada no
corte, o tecido branco que lhe servia como saia e a toalha, outro tecido colocado abaixo do
pescoço. A segunda obrigação é que todos precisam despedir-se do santo. Um a um,
começando pelos brincantes. Eles se aproximam do altar, recitam um verso e saem. Promessa
cumprida. Já não há mais festa, reza e morte.
Eles me relataram, que este momento final trás um sentimento de tristeza em
todos eles, alguns choram e outros ficam muito abatidos. Falaram ainda que é costume após o
ritual, a realização de uma seresta, justamente para trazer a alegria de volta.
Na última vez que estive com eles, em janeiro de 2010, me relataram a realização
de outra morte de esbandalhar no mês de setembro. Disseram-me que ocorreu de maneira
muito inusitada e apressada, não havendo tempo para que se planejasse como de costume. Os
motivos da morte de esbandalhar foram relatados da seguinte maneira: no ano de 2002, uma
senhora da cidade mandou confeccionar um boi para pagar uma promessa. Na sua promessa
aquele boi deveria brincar durante a noite e na manhã seguinte ser entregue de presente para o
grupo que se apresentou com ele, no caso a turma Proteção de São João. Seu Sinésio, Patrão
da turma na época decidiu então guardar aquele boi em uma casa ao lado da sua, onde são
guardados instrumentos e outras carcaças de boi. Durante um bom tempo, a mãe da dona
133
Matilde, a srª Maria Domingas, hoje com 94 anos, ouvia quase todas as noites o urro de um
novilho no quintal. Ela normalmente acordava sua filha e comentava o que tinha acontecido.
Dona Matilde sempre seguia até o quintal da casa, observava e voltava dizendo que ali não
havia nenhum boi urrando. A história dos motivos que levaram o grupo a realizar o ritual da
morte de esbandalhar começa com esta história e segue com uma outra: um brincante de
Cazumba, chamado Fábio Furtado, no mês de setembro de 2009, solicitou com urgência uma
reunião com todos os componentes da turma. Nessa reunião ele informou que vinha passando
por diversos problemas de saúde e que constantemente tinha sonhos com seu Sinésio
mandando matar um boi que estava guardado na casa. E que tudo tinha que ser feito
urgentemente, pois seus sonhos estavam atormentando-o. Eles então concluíram que o boi que
deveria ser sacrificado era aquele que o grupo havia recebido de presente em 2002, juntando
assim a história da dona Maria Domingas, que ouvia um boi urrando, e que deveria com
certeza ser o mesmo boi que seu Sinésio pedia para matarem.
Assim, nos dias 4 e 5 de setembro de 2009, a turma realizou uma morte de
esbandalhar cumprindo com os desejos do falecido Patrão. Disseram-me que o boi era muito
grande e que rendeu muita carne, não sobrando absolutamente nada, apenas a cabeça, feita de
madeira e coberta por um veludo preto, que me deram de presente durante minha última visita
ao grupo. Sinceramente eu fiquei muito feliz, primeiro porque nunca tinha ganhado um
presente dessa natureza e segundo por se tratar de uma cabeça de um boi muito especial,
chamado por eles de linda jóia de São João”. Entretanto, confesso que senti um pouco de
medo depois, quando transportava o presente para minha casa. Fiquei com receio de ter
sonhos desse tipo, mesmo sabendo que quando colocado na parede do meu quarto não terá o
mesmo sentido que tinha no espaço da casa onde ficou guardado por quase oito anos.
Na despedida da turma, quando agradecia o presente, dona Matilde me falou de
uma morte de esbandalhar que o grupo fará dia 24 de junho de 2010, num povoado chamado
Jacaré, próximo de Penalva. Fiquei curiosa acerca dos motivos e ela então me disse que a
promessa é de um pai, quando do nascimento do seu primeiro filho. Sua mulher teve
problemas durante o parto e ele então prometeu que quando o garoto completasse cinco anos
ele ofereceria um boi para São João. Entretanto eles se separaram, passaram os cinco anos e
somente agora a mãe permitiu que a festa se realizasse na casa onde o menino mora.
Por ora, fico com um refrão cantado pelo Patrão, também como uma forma de me
despedir dos leitores que acompanharam o complexo universo do ritual da morte de
esbandalhar: Digo adeus, digo adeus amor, até para o ano se nós todos vivo for.
134
CONCLUSÃO
Considero este trabalho um experimento. Observando a maneira como as
informações foram conduzidas, acredito que ele teve início com a minha primeira viagem ao
município de Penalva, em maio de 2003, mesmo que naquele período ainda não conhecesse o
significado e as estruturas de vida daqueles brincantes de bumba-boi. Mas o fato de perceber
que naquela cultura havia particularidades distintas das que eu conhecia sobre esta
manifestação, me fez querer entender, ao longo desses anos, como se organizam suas relações
sociais e culturais dentro e fora da roda simbólica que é a festa.
Meu trabalho de campo foi de certa forma, fragmentado. As idas intercaladas nos
meses de maio a julho durante esses anos
74
possibilitaram fazer um significativo levantamento
acerca dos Cazumbas e de todos que fazem parte daquela turma, porém insuficiente, se
levarmos em conta que se trata de uma manifestação cultural extremamente complexa, ainda
que familiar para mim.
Onde cheguei? Foi a pergunta que me fiz após tentar fazer uma etnografia do
personagem Cazumba, a partir de três pontos que considero importantes: os aspectos sociais,
rituais e festivos da Turma Proteção de São João, as pessoas e as dimensões do Cazumba e
por fim a sociabilidade do personagem a partir de um ritual de promessa chamado morte de
esbandalhar. Ao final deste trajeto, não me parece ter alcançado o que poderia chamar de uma
visão definitiva sobre os Cazumbas. Como se sabe, o conhecimento científico nunca é
determinante. Dessa maneira, penso que o presente trabalho deva ser visto como um exercício
exploratório e introdutório ao tema. O objetivo maior desta dissertação é de marcar caminhos
e indicar possíveis direções a serem tomadas. Antes de encerrar, porém, retomo brevemente
algumas questões.
No primeiro capítulo, a partir da análise do bumba-meu-boi maranhense e
principalmente das particularidades apresentadas pela turma Proteção de São João, constatei,
entre outras coisas, o perfil popular e religioso daqueles que fazem parte da festa oferecida a
São João. Tal aspecto pôde ser percebido desde a confecção das vestes, onde bordam
principalmente imagens de santos e igrejas, bem como da preparação da turma para o ensaio e
as apresentações, que é quando tornam ainda mais visível suas preferências religiosas. O
74
Refiro-me aos anos de 2003, 2004, 2005, 2006 e 2009. Nos anos de 2007 e 2008 não foi possível a realização
de pesquisas. No final de 2008 fiz uma breve viagem no mês de dezembro, porém não realizei entrevistas ou
observei alguma festa organizada por eles, apenas para reaver o contato que havia feito anteriormente.
135
tempo das rezas conduzidas pelos mais velhos, também é o momento de iniciar com as
bebidas, de esquentar os instrumentos, de cantar baixinho as toadas, de treinar alguns
movimentos da dança, de ir ver se a comida está pronta, de reparar um último detalhe que
falta na roupa e de aguardar as novidades trazidas pelos Cazumbas. Ou seja, é uma
combinação de todos esses aspectos que fazem daquela uma festa particular, com um sentido
principal que é agradar o santo.
Até mesmo aqueles que apenas assistem, em um dado momento da noite
participam ativamente, seja dançando um pouco mais afastado ou no meio da roda onde estão
os brincantes, seja juntando-se com os batuqueiros e fazendo uso de uma matraca, por
exemplo. Neste caso, Bakhtin (1987, p. 6) nos ajuda a pensar a brincadeira do boi e o papel
ativo daqueles que apenas assistem.
Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem (...). Nesse
sentido, o carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, mas
uma forma concreta (embora provisória) da própria vida, que não era
simplesmente representada no palco. Antes, pelo contrário, vivida
enquanto durava o carnaval.
Outro aspecto destacado neste capítulo é a maneira como são conduzidos o ensaio
e as apresentações, a organização dos brincantes, seus personagens e o contexto social e
simbólico que envolve as relações familiares e de amizade no grupo. As apresentações são
sem dúvida um espaço privilegiado daqueles que interpretam o Cazumba, pois é durante suas
exibições que eles obtêm o retorno de todo um investimento feito no personagem. É naquele
espaço público que terão o prestígio e a admiração que os motivam, a cada ano, serem
diferentes uns dos outros, bem como é durante aqueles momentos que protagonizam sua dupla
personalidade: Cazumba e Pai Francisco quando da narrativa do auto, denominada por eles de
morte de levantar.
No segundo capítulo foi oportuno conhecer quem são os homens que interpretam o
Cazumba e as qualidades artísticas apresentadas pelo personagem. Quanto aos homens,
vimos, por exemplo, que este é um papel eminentemente masculino. Somente eles estão
habilitados para exercer a função de Cazumba. Comportam-se como pessoas comuns,
simples, mas que, de posse das vestes desse personagem, adquirem importância e respeito em
relação aos demais. Do personagem pude observar três noções: primeiro sua função de
dançar, interagir com o público e abrir a apresentação do grupo na festa; segundo, que dentre
os brincantes um que exerce a função de cabeceira, sendo ele responsável pelos demais
durante as apresentações; e terceiro, que há outro brincante reconhecido por eles como
136
Cazumba principal ou Cazumbá, cabendo a este interpretar outro papel que é o de Nego Chico
ou Pai Francisco. Vimos, portanto, que se trata de um personagem múltiplo, complexo e com
uma dinâmica constante na festa, favorecida principalmente por suas vestes, que mudam a
cada ano. Quero destacar que este é apenas um olhar sobre o Cazumba e que o mesmo
apresenta outras características tanto nos demais municípios da Baixada Maranhense, quanto
na cidade de São Luís, onde é possível, por exemplo, ver mulheres desempenhando esse
papel.
Outro ponto apresentado nesse segundo capítulo diz respeito à confecção do
artefato Cazumba, com destaque para os artesãos e suas formas particulares de confeccionar,
que mudam dentro de um mesmo município e seus povoados ou dentro de um mesmo grupo.
Observamos, por exemplo, que cada parte dele é produzida por uma pessoa diferente, e que
além da escolha de materiais, das técnicas utilizadas, tem-se o ato de produção artística,
entendida como algo que o artesão faz com o objetivo de agradar ao olhar do espectador. Isso
pode ser percebido no cuidado como escolhe as cores, na preocupação com o impacto que
cada careta terá ao ficar pronta e na busca por tornar único aquele artefato, pois cada
Cazumba precisa, em sua composição visual, ter elementos que diferenciem um do outro, seja
na forma da careta ou nas cores que ela é pintada, seja nos bordados das fardas. O importante
é fazê-lo diferente a cada ano.
Em alguns casos, como observei, o próprio brincante produz alguma parte do seu
personagem. Aqueles que bordam as fardas e pintam as torres, utilizam em geral imagens
religiosas, enquanto que os responsáveis por esculpir as caretas não fogem ao padrão
animalesco. É comum no bordado das fardas o uso de paetês nas cores vermelho, amarelo,
azul, verde, prata e dourado, nas caretas a cor mais utilizada é o vermelho, enquanto que para
a composição das torres utilizam tonalidades como o azul celeste, o verde claro e o branco.
Nesse sentido, chamei atenção para o entendimento de que todo o processo de confecção tem
como resultado uma composição equilibrada, harmoniosa, o que revela que a percepção
desses artesãos está aliada as suas experiências de vida e sua relação com a natureza. A
constatação a que se chega é que a criatividade daqueles que confeccionam o Cazumba se
revela na capacidade que eles têm em selecionar, relacionar e integrar as partes que
constituem esse personagem (careta, torre e farda), de transformá-lo a cada ano com o
propósito de agradar àquele que o interpreta e ao público que lhe prestígio. Também
observo que a confecção das caretas e torres é normalmente tarefa para os homens, enquanto
que a farda é produzida pelas mulheres.
137
Por fim, no capítulo 3, a partir da descrição do ritual da morte de esbandalhar,
podemos conhecer outra importante função do Cazumba, que é capturar e entregar o boi que
será sacrificado. Como foi dito, este ritual ocorre por diferentes motivos de promessa, em que
um boi é confeccionado para ser oferecido à São João como pagamento pela graça recebida.
Observei aqui a importância do contexto da festa, pois a mesma não ocorre sempre, mas
apenas quando uma promessa para ser paga. Também a interação entre o responsável,
chamado promesseiro e a turma que a cumpre. pontos comuns, como a religiosidade, por
exemplo, e interesses diversos, como da parte dos Cazumbas, a busca por uma boa
interpretação e prestígio do público, e da parte do promesseiro, o interesse de ter pago sua
dívida com São João. Foi interessante observar como se desenvolve o ritual desde sua
organização, as diferentes etapas da promessa, a participação da turma de bumba-boi, a
função de cada personagem, bem como os diferentes elementos simbólicos que compõe a
festa. Sabe-se que há variáveis contextuais, quando da realização neste ritual, pois cada turma
tem sua forma particular de realização. Entretanto pontos em comum, como os elementos
simbólicos e o sacrifício do animal.
Na descrição etnográfica apresentada, a dimensão ritual foi o “lócus” privilegiado
nesta observação sobre a atuação dos Cazumbas e sua interação com os demais personagens
atuantes na promessa: Patrão, Vaqueiro, Cachorros, Magarefe e Nego Chico. Nesse sentido,
a morte de esbandalhar pode ser vista como um espaço que cria comportamentos e novas
formas de relacionamento social.
O maior desafio da análise - apenas delineada devido os limites deste trabalho,
mas que se apresenta a partir de agora como um fecundo caminho para desdobramentos
futuros – foi mostrar como esta promessa tem um profundo sentido tanto na vida daqueles que
a realizam (a turma) como na vida dos que se comprometem a cumprir a promessa (o
promesseiro).
Não poderia concluir, sem destacar a importância de dois autores durante o
trabalho de campo: Geertz (1978) e Turner (2005). O primeiro, por me ajudar a não perder de
vista o contexto e as particulares daquela cultura - (quanto mais eu tento seguir o que fazem
os brincantes de Cazumbas, mais lógico e singulares eles me parecem). O segundo, pelas
recomendações teóricas que muito serviram quando da análise do ritual da morte de
esbandalhar. Uma delas gostaria de destacar aqui:
O observador deve considerar não apenas o símbolo, mas a estrutura e a
composição do grupo que o manipula ou teatraliza atos com referência direta a ele.
138
Deve observar ainda as qualidades afetivas desses atos, se eles são agressivos,
tristes, penitentes, alegres, satíricos, e assim por diante. (TURNER, 2005, p. 86).
Também dizer que chego ao final deste trabalho percebendo que sua análise não
se restringiu apenas ao grupo de Cazumbas da turma Proteção de São João, mas envolveu
outras pessoas, desde os demais personagens, àqueles que assistem, ajudam e interagem entre
si, fazendo com que esta manifestação seja um espaço popular, religioso e social, ou seja,
compreender os Cazumbas ajudou-me a compreender o grupo do qual fazem parte.
Por fim, gostaria de dizer do prazer que foi estar no papel de pesquisadora e do
desafio de adentrar uma cultura, que apesar de familiar, exigiu de mim outro olhar, outra
maneira de ouvir e escrever. Espero ainda que outros sintam-se convidados a conhecer este
personagem e o universo simbólico em que ele se encontra.
139
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