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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
VALDIR MARIANO DE SOUZA
AYAHUASCA, IDENTIFICANDO SENTIDOS:
o uso ritual da bebida na União do Vegetal
São Luís - MA
2010
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VALDIR MARIANO DE SOUZA
AYAHUASCA, IDENTIFICANDO SENTIDOS:
o uso ritual da bebida na União do Vegetal
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais PPGCS da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA para
obtenção do Grau de Mestre em Ciências Sociais
(área de concentração: Antropologia)
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti
São Luis - MA
2010
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VALDIR MARIANO DE SOUZA
AYAHUASCA, IDENTIFICANDO SENTIDOS:
o uso ritual da bebida na União do Vegetal
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais PPGCS da
Universidade Federal do Maranhão – UFMA para
obtenção do Grau de Mestre em Ciências Sociais
(área de concentração: Antropologia)
Aprovada em ________/__________/___________
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti (Orientador)
Dr. em Antropologia Social – Universidade de São Paulo – USP
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
_______________________________________________
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos
Dr. em Ciências da Religião – Universidade Metodista de São Paulo – UMESP
Universidade Metodista de São Paulo – UMESP
______________________________________________
Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos
Dr. em História – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
Souza, Valdir Mariano
AYAHUASCA, IDENTIFICANDO SENTIDOS: o uso ritual da bebida na União do
Vegetal / Valdir Mariano de Souza. – São Luís, MA, 2010.
179 f.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal do
Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, 2010.
1. União do Vegetal saúde e doença 2. Ayahuasca cura 3. Evolução espiritual
– expansão da consciência 4. Xamanismo I. Título.
CDU 613.3: 615.852
À minha esposa – Solange e aos meus
filhos Gustavo Mariano e Giordano
Bruno, meus fiéis companheiros de
jornada.
A perfeição da natureza é a medida imediata do
limite humano e a aproximação mais evidente
do homem com a manifestação do poder
criador.
(União do Vegetal)
AGRADECIMENTOS
A Deus pelo dom da vida.
Aos meus pais Manoel e Áurea (in memorian), que com muito esforço
viabilizaram e estimularam meus estudos.
À minha esposa Solange e aos meus filhos Gustavo Mariano e Giordano
Bruno, pelo apoio e compreensão.
Ao meu orientador: Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti, por sua amizade,
generosidade, estímulo e inspiradora sensibilidade aos estudos de religião, pela forma
como me orientou e incentivou no decorrer das atividades de pesquisa.
Aos meus professores do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UFMA pelos momentos de orientação acadêmica e informações
privilegiadas que compartilharam comigo.
A cada um de meus colegas de turma, com os quais muito aprendi e pela
valiosa amizade de todos eles.
Aos Mestres Daniel, Marcos, Jorge e Abraão; e à irmandade da União do
Vegetal pela forma carinhosa e amiga com que me acolheram.
Ao professor e amigo Elmo, pelo apoio de última hora e sua valiosa
contribuição.
A Georgia Patrícia da Silva, por aceitar efetuar uma leitura de última hora, mas
que ofereceu contribuições valiosíssimas para o enriquecimento do trabalho.
RESUMO
Essa dissertação, através de uma abordagem sócio-etnográfica, realiza um estudo sobre o
uso ritual da Ayahuasca (chá enteógeno), buscando identificar “sentidos e significados
atribuídos por seus usuários, a fim de compreender o significado das experiências vividas
com o uso da bebida. Refere-se à história do Mestre José Gabriel da Costa e à fundação da
União do Vegetal, bem como à sua estrutura e organização. Quanto ao uso ritual da
Ayahuasca abordam-se os seguintes temas: aspectos farmacológicos, trajetória da
legalização e os efeitos do chá para aqueles que o bebem (burracheira, peia, mirações),
analisa o princípio da força da palavra e o aperfeiçoamento espiritual dos participantes. Ao
abordar o princípio da eficácia simbólica, trata-se do aspecto curativo do chá e
correlacioná-lo com a cura xamanística, analisando-se o sentido simbólico que este tem
para os seguidores da UDV, neste caso aponta-se a existência de ambigüidades entre
doutrina e prática. Percebe-se que a União do Vegetal, embora em sua gênese tenha como
fundador um homem que exerceu atividades de cura, tem sua própria forma de
compreender a relação entre as categorias doença e saúde e não possui sessões destinadas à
cura, como outras religiões e grupos que fazem uso da Ayahuasca; bem como, estimula e
aconselha os enfermos a buscarem os meios convencionais (medicina científica) para
tratamento de suas disfunções. Não apóia ou incentiva a cura ou práticas semelhantes;
preocupa-se com o equilíbrio do ser humano como um todo; crendo que mais importante
que a “cura da matéria” é a do espírito.
Palavras chaves: União do Vegetal, Ayahuasca, cura, saúde, doença, evolução espiritual,
expansão da consciência, xamanismo.
ABSTRACT
This essay, through a socio-ethnographic approach, conducted a study on the ritual use of
Ayahuasca (entheogenic tea), seeking to identify "senses" and meanings for their users to
understand the meaning of their experiences with the use of drink. Refers to the history of
the Master José Gabriel da Costa and the foundation of the “Union of the Vegetal” (UDV),
and its structure and oreganization. The ritual use of Ayahuasca address the following
topics: pharmacological aspects, path of legalization and the effects of tea for those who
drink (burracheira, community, mirações), analyzes the principle of power of the word and
spiritual improvement of the participants. In addressing the principle of symbolic efficacy,
it is the healing aspect of tea and correlates it with the shamanic healing by analyzing the
symbolic meaning of this project for the followers of the UDV in this case points out the
ambiguities between doctrine and practice. It is observed that the Union of the Vegetal,
although its genesis is the founder a man who had activities of healing, has its own way of
understanding the relationship between disease categories, health and healing and not have
to sessions for healing, and other religions and groups that make use of Ayahuasca, and
stimulates and advises the sick to seek conventional means (scientific medicine) to treat
their disorders. Does not support or encourage healing or similar practices, is concerned
with the balance of the human being as a whole, believing that more important than the
"healing field" is to "cure the spirit."
Keywords: Union of the Vegetal, ayahuasca, healing, health, disease, spiritual evolution,
expansion of consciousness, shamanism.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Estrutura funcional da União do Vegetal (BRISSAC, 1999, p. 19[adaptado])
............................................................................................................................................. 37
Ilustração 2: Croqui do salão do Vegetal ............................................................................ 50
Ilustração 3: Mestre Gabriel. Foto utilizada nos templos da UDV ..................................... 58
Ilustração 4: Núcleo Mestre Gabriel. Centro Espírita União do Vegetal (antiga Sede Geral)
– Porto Velho - RO.............................................................................................................. 82
Ilustração 5: Litro contendo a bebida: ayahuasca................................................................ 86
Ilustração 6: Foto: Marirí (Denominado Caupurí pelos adeptos da UDV). ........................ 87
Ilustração 7: Foto: Marirí (DenominadoTucunacá pelos adeptos da UDV)........................ 87
Ilustração 8: Foto: Chacrona................................................................................................ 88
LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1 - TABELA COM INFORMAÇÕES DOS ENTREVISTADOS.................... 161
ANEXO 2 - RESOLUÇÃO Nº 5 DO CONAD................................................................ 162
ANEXO 3 - Artigo “A encruzilhada do Daime”.............................................................. 164
ANEXO 4 - Artigo “Religiões Ayahuasqueiras” ............................................................. 174
ANEXO 5 - Artigo “Religiões Ayahuasqueiras” ............................................................. 177
LISTA DE SIGLAS
ANEDE Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico
CAETA Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a
Amazônia
CDC Corpo do Conselho
CEBUDV
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
CECP Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento
CEM Centro de Estudos Médicos
CI Corpo Instrutivo
CONFEN Conselho Federal de Entorpecentes
DEMEC Departamento Médico-Científico
DIMED Divisão de Medicamento do Ministério da Saúde
DMD Departamento de Memória e Documentação
IURD Igreja Universal do Reino de Deus
M. Mestre
ONG Organização Não Governamental
OTUS Ordem do Templo Universal de Salomão
QM Quadro de Mestres
QS Quadro de Sócios
SEMTA Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia
UDV União do Vegetal
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................... 13
Justificativa...................................................................................................................... 15
Objetivo e Metodologia................................................................................................... 18
Estrutura do Trabalho ...................................................................................................... 22
Fundamentação Teórica................................................................................................... 23
A. Xamanismo, Imaginário e Equilíbrio Bio-Social .................................................... 26
B. O princípio da Eficácia Simbólica........................................................................... 31
1 A UNIAO DO VEGETAL E SUA ESTRUTURA INSTITUCIONAL ..................... 36
1.1 Os Núcleos e seu Funcionamento........................................................................ 36
1.2 A Sede Geral e seus Departamentos.................................................................... 40
1.3 A UDV e seu Processo de Institucionalização .................................................... 42
1.4 Centro Espírita União do Vegetal: demonstrativo de sócios e unidades............. 45
1.5 O Pré-Núcleo Sereno do Mar em São Luís - MA................................................ 45
1.6 A organização do Espaço no Templo do Pré-Núcleo.......................................... 47
1.7 A Sessão de Escala e seu Funcionamento ........................................................... 51
1.8 Outras Atividades do Centro ............................................................................... 55
2 MESTRE GABRIEL E A FUNDAÇÃO DA UNIÃO DO VEGETAL...................... 58
2.1 Os Primórdios da União do Vegetal em Porto Velho.......................................... 68
2.2 Breve Histórico do Pré-Núcleo Sereno do Mar................................................... 82
3 AYAHUASCA: A BEBIDA QUE DESPERTA A CURIOSIDADE......................... 84
3.1 A Ayahuasca: o Vegetal ...................................................................................... 87
3.2 Farmacologia ....................................................................................................... 90
3.3 A Legalização do Uso da Ayahuasca .................................................................. 93
3.4 Os Nove Vegetais ................................................................................................ 95
3.5 A Burracheira ...................................................................................................... 98
3.6 Peia e Burracheira de Luz.................................................................................. 106
3.7 Mirações ............................................................................................................ 110
3.8 A Força da Palavra e a Evolução Espiritual ...................................................... 113
4 O USO DA AYAHUASCA E O CONCEITO DE SAÚDE NA UNIÃO DO
VEGETAL................................................................................................................ 117
4.1 O que Ensina a União do Vegetal?.................................................................... 126
5 A QUESTÃO DA CURA DENTRO DO REFERENCIAL DOUTRINÁRIO DA
UNIÃO DO VEGETAL ........................................................................................... 132
5.1 A União do Vegetal e os Vícios ........................................................................ 138
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 143
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 152
ANEXOS........................................................................................................................... 160
13
INTRODUÇÃO
O tema da religião tem despertado crescente interesse entre os pesquisadores
de diversas áreas de pesquisas, principalmente das Ciências Sociais. No entanto, a temática
ainda não é suficientemente investigada no que diz respeito a algumas manifestações de
menor difusão no cenário religioso maranhense. Com esta preocupação, o presente
trabalho apresenta uma pesquisa abordando a União do Vegetal (UDV), buscando
desvendar na trama intersubjetiva da “busca por um sentido”
1
para a vida humana, o uso
que a UDV faz do Vegetal e sua relação com os sentidos que transparecem no imaginário
religioso dos udevistas, decorrentes da ingestão da bebida. Pretende ser uma contribuição
ao tema através do estudo de uma comunidade especifica da UDV, o Pré-Núcleo Sereno do
Mar do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV)
2
na cidade de São Luís
– MA.
Segundo a expressão de Pierre Bourdieu, “não podemos capturar a gica
profunda do mundo social a não ser submergindo na particularidade de uma realidade
empírica, historicamente situada e datada” (BOURDIEU, 2007, p. 15). Por isso, o delinear
desta pesquisa está mergulhada na particularidade, pois a compreensão dos princípios de
construção do social implica na apreensão dos mecanismos de reprodução do espaço
social. E embora tais mecanismos de reprodução possam apresentar uma pretensão
científica de “validade universal”, que se ter em conta que um empreendimento
científico, necessariamente, deve considerar as particularidades de uma realidade empírica,
“historicamente datada e situada”, muitas vezes oculta, mas reveladora do universo
religioso das pessoas pesquisadas dentro do Pré-Núcleo Sereno do Mar.
Nas últimas décadas tem havido um significativo despertar do interesse de
estudiosos em relação as assim chamadas “religiões ayahuasqueiras brasileiras”
3
; assim
como, a temática da “Religião e Natureza”, embora familiar ao ser humano desde a
1
Esse é um tema recorrente entre os udevistas e em suas sessões. No site oficial da UDV
(http://www.uniaodovegetal.org.br/imprensa/imprensa.html) encontram-se expressões como: “[...] um c
capaz de nos revelar o sentido de nossa vida [...]”; “A busca do sentido visa despertar os homens para a
legítima e única dimensão da espiritualidade [...]”
2
O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV) e a União do Vegetal (UDV) é a mesma
instituição. UDV é uma forma resumida de se reportar ao CEBUDV.
3
Categoria antropológica utilizada pela primeira vez no livro O uso ritual da ayahuasca, por Labate e Araújo
(2002) e que se refere a movimentos religiosos originários do Brasil que têm como uma de suas bases o uso
ritual da ayahuasca: Santo Daime, União do Vegetal (UDV) e Barquinha, em suas mais diversas vertentes.
14
antigüidade, voltou a ocupar espaço nos mais diversos níveis de discussão, quer
acadêmicos ou de busca por religiosidades alternativas nos últimos tempos.
Não é, portanto, por acaso que a há aproximadamente trinta anos atrás
pouco se conhecia acerca da ayahuasca, que conforme Metzner:
... é uma beberagem de plantas amazônicas que vem sendo usada com propósitos
de cura e de oráculo através dos séculos, ou quem sabe até de milênios, tanto
pelos índios xamãs como pelos mestiços do Brasil, do Peru, da Colômbia e do
Equador. Ela é conhecida pelas diversas tribos por vários nomes, tais como
caapi, natemá, mihi, e yagé. O termo ayahuasca é originário da língua
sulamericana Quéchua: huasca significa “cipó” e aya significa “almas” ou “gente
morta”, ou até mesmo “espíritos” (METZNER, 2002, p. 1).
Bebida essa que é conhecida por uma série de nomes, dentre os quais destaco:
ayahuasca, Vegetal, mariri, rami, e outros; e que, conforme McKenna, é produzida da
combinação de duas plantas o cipó denominado jagube (Banisteriopsis caapi) e uma folha
chamada regionalmente de rainha (Psychotria viridis), tem como princípios ativos os
alcalóides derivados beta-carbolínicos da harmina, tetrahidroarmina e harmalina,
provenientes do Banisteriopsis, e a N,N-dimetiltriptamina (DMT), da Psychotria. A
atuação dessas substâncias no sistema nervoso central do ser humano é descrita, de modo
bem acessível a leigos, por Dennis McKenna, que inicia esclarecendo que usa o termo
“alucinógeno” com “o objetivo de obedecer à nomenclatura científica padronizada”, que o
utiliza para referir-se a uma “substância que quando chega ao sistema nervoso humano
produz alterações perceptivas e/ou do estado de consciência” (MCKENNA, 1991, p. 15); a
qual para as “religiões ayahuasqueiras”, por tratar-se de uma bebida com propriedades
extraordinárias de estimular a imaginação religiosa, é usada com a finalidade de abrir ao
fiel as portas da percepção e do conhecimento; bem como, contém propriedades curativas.
Embora o uso xamanístico da ayahuasca e de outras plantas alucinógenas
remonta a centenas ou, talvez, milhares de anos atrás, será somente depois da década de
1930 que passará a ser usada em religiões não indígenas da Amazônia, com a fundação do
primeiro centro daimista no Acre, conhecido hoje como Alto Santo (ARAÚJO, 1999, p.
31).
Mas, a partir da década de 1970, as religiões oriundas do uso da ayahuasca
foram descobertas por hippies, artistas, intelectuais, pessoas em busca de cura ou
simplesmente curiosas, o que fez com que a partir da década de 1980, parcelas da classe
média de grandes centros brasileiros adotassem o uso da bebida, através das diversas
manifestações religiosas que dela fazem uso. Não tardando muito para que a bebida, bem
como, as religiões a ela ligadas, chamasse a atenção dos estudiosos e da grande mídia.
15
Justificativa
A fim de tornar claro o processo de escolha do meu objeto de estudo, bem
como de meu campo empírico, torna-se necessário uma retrospectiva histórica, qual seja:
dado a minha formação acadêmica em teologia e filosofia, bem como o fato de ter tido
como atividade principal, por um período de aproximadamente 16 anos, o pastorado
ordenado na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, fui despertado pelo interesse por
pesquisar o fenômeno religioso brasileiro. Sendo que, em decorrência de tal interesse, e
ocupando, também, a cadeira de professor de algumas instituições de caráter religioso
(seminários), passei a ser convidado a trabalhar com disciplinas diretamente ligadas a essa
temática. Tal atividade acadêmica compreendida entre os anos de 1998 a 2006
possibilitou-me formar alguns grupos de estudos em tais instituições, os quais me fizeram
ficar cada vez mais apaixonado pelo tema.
Acresce-se a isso o fato de que até algum tempo atrás, a maioria do meio
acadêmico acreditava que, com o avançar das ciências, das tecnologias e do conhecimento,
seria uma tendência natural do ser humano um afastamento ou uma libertação paulatina
das religiões, conforme Weber, em sua sociologia, havia afirmado o retraimento da
religião na razão direta do avanço da modernização capitalista (WEBER, 2001). Contudo,
o que se tem observado é que as expressões e vivências religiosas estão cada vez mais
presentes no cotidiano das pessoas. Causando certo espanto, aos que esperavam o declínio
religioso, o fato de que em pleno século XXI, a religiosidade que parecia estar nos seus
últimos suspiros, esteja se multiplicando numa profusão de novas expressões,
rearticulações, denominações e matizes, fazendo com que haja nos meios acadêmicos, de
forma privilegiada, uma retomada do assunto; de tal forma que a temática da religiosidade
foi novamente colocada como objeto de estudos nas mais diversas áreas de conhecimento.
Isto me fez perceber a importância que este trabalho poderia ter para o momento em que
estamos vivendo, onde há uma significativa retomada dos valores e praticas religiosas.
Inicialmente, propus como projeto de pesquisa à seleção ao Curso de Mestrado
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão uma abordagem relativa à
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD); contudo, ao longo do primeiro semestre e no
decurso das leituras propostas no decorrer do período, detectei alguns obstáculos
epistemológicos que poderiam comprometer o meu trabalho de pesquisador em relação a
16
esse campo empírico inicialmente escolhido. Um dos maiores problemas estaria
relacionado ao fato de que, por um significativo período de tempo, já havia estudado a
IURD sob a ótica e metodologia da filosofia e da teologia, o que me deixaria exposto ao
risco da sedução de generalidades bem mais amplas suscitadas pelo pensamento filosófico.
Como afirma Bachelard: “... uma suave letargia que imobiliza a experiência; todas as
perguntas se apaziguam numa vasta weltanschauung
4
; todas as dificuldades se resolvem
diante de uma visão geral de mundo, por simples referência a um princípio geral da
natureza” (BACHELAR, 1996, p. 103). Isso me levou a tomar consciência de preconceitos
e sendo estes juízos antecipados, que podem constituir-se em obstáculos à produção do
conhecimento científico, os investigadores devem ter consciência que estes existem;
contudo neste caso pareceu-me que não bastaria consciência de sua existência por estarem
eles tão profundamente arraigados em minha formação acadêmico/religiosa – em relação a
este campo empírico (IURD).
Acresce-se, ainda, o fato de que no transcurso de minhas pesquisas junto à
IURD (ainda enquanto filósofo e teólogo) pude identificar algumas dificuldades para a
realização de uma pesquisa naquele campo empírico, as quais prejudicam sobremaneira o
trabalho do pesquisador, quais sejam: a) a IURD nunca autoriza a presença de
pesquisadores, dentro de seus templos e rituais, exceto que seja de seu interesse e para a
defesa de seus princípios; o que torna o trabalho muito difícil de ser feito e alvo de
constantes ameaças e riscos; b) o pesquisador torna-se alvo de atos proselitistas (ex. apelos
para aceitar a Cristo, leituras de versículos da Bíblia, orações, admoestações e pequenos
sermões acerca da proximidade do fim dos tempos e da urgente necessidade de conversão
do pesquisador. Muitos deles, neste intento procuram desqualificar o conhecimento
acadêmico, alegando sua total inutilidade para a salvação da alma e evidente precariedade
diante da palavra de Deus, portadora de Verdade suprema que, de seu ponto de vista, tudo
explica e soluciona); c) a não aceitação da presença do pesquisador nos cultos, por parte
dos dirigentes da IURD, por considerá-los como espiões ou “filhos do diabo”; d) para que
se possam evitar constrangimentos e, sobretudo, tendo a preocupação em não melindrar o
objeto/campo de estudo, torna-se necessário ao pesquisador não utilizar gravadores ou
formular entrevistas para serem respondidas pelas pessoas, bem como, tudo observar sem
fazer qualquer anotação no momento dos rituais, passando a anotar no diário de campo, o
4
Termo que, segundo o Dicionário Michaelis, de Alfred Josef Keller, denota uma visão unitária do mundo,
uma cosmovisão, mundividência, ou ainda, ideologia.
17
que se observa, somente quando já estiver fora do recinto, o que poderá implicar em
esquecimentos e, conseqüente, perdas no trabalho de pesquisa.
Diante do acima observado e em comum acordo com o meu orientador
acadêmico, Prof. Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti, decidi-me por mudar o meu campo
empírico; elegendo como pressupostos para essa escolha alguns princípios: 1) que o tema e
o campo não me fossem familiares, a fim de que eu tivesse o mínimo de preconceitos
possíveis em relação a eles; 2) que não fosse um campo muito difícil, especialmente no que
se refere à aceitação da presença do pesquisador e da liberdade de ação do mesmo; 3) que
eu não possuísse um estudo elaborado sobre o mesmo, a fim de que pudesse construir o
conhecimento acerca deste sobre metodologia e abordagens adequadas às ciências sociais
(BEAUD & WEBER, 2007) e; finalmente, que fosse um assunto de relevância para o
mundo acadêmico e o campo religioso da atualidade.
Em relação a esta opção, devo explicitar o seguinte: tal escolha recaiu sobre o
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (CEBUDV), em virtude de que já havia tido
contato prévio, no ano de 2001, com o meu novo campo empírico enquanto estudioso da
religiosidade brasileira. Este contato foi breve e sem maiores aprofundamentos, mas
permitiu que portas ficassem abertas para uma retomada do estudo. Sendo assim, resolvi
procurar a direção da UDV para que pudesse proceder minha pesquisa junto ao centro que
está localizado na Estrada de Ribamar. Quando fiz o pedido para que efetuasse meu
trabalho junto a UDV ao Mestre Dirigente do pré-núcleo de São Luís, fui pronta e
gentilmente acolhido pelo mesmo. É importante registrar a acolhida que recebi dos
participantes do pré-núcleo. Desde a primeira visita me senti à vontade com o grupo, com
liberdade para me fazer presente nas diversas atividades da “irmandade” e desde então
tenho tido plena liberdade para efetuar o meu trabalho de pesquisa de forma a contemplar
uma abordagem adequada aos meus propósitos e necessidades.
Há, portanto, de se esclarecer que a escolha se deu em virtude dos seguintes
pontos, os quais julgo terem sido decisivos para a escolha: a) ser um grupo com o qual
tinha um contato prévio; b) ser em espaço onde tenho liberdade pra desenvolver meu
trabalho; c) ter pouco conhecimento sobre esse fenômeno religioso; d) não constituir-se em
algo muito familiar, embora esteja dentro de minha temática de pesquisa (religião); e)
constituir-se em um objeto de pesquisa relativamente pequeno, por tratar-se de uma única
unidade existente em nossa cidade e com um número bem pequeno de participantes
(aproximadamente 64 pessoas), o que tornou a pesquisa exeqüível dentro do tempo que
18
dispus para a mesma; f) constituir-se num tema que tenho anseio por aprender mais e que,
por estar dentro de minha área de interesse, possuo alguns instrumentais básicos para a
sua análise; g) tratar-se de um tema, ainda, muito pouco explorado no ambiente acadêmico
maranhense.
Objetivo e Metodologia
O presente estudo tem como objetivo geral compreender as relações entre o
sistema simbólico
5
e a constituição da religiosidade da União do Vegetal, enquanto religião
de “busca” por um “sentido” para a vida humana, bem como a importância do uso da
ayahuasca e a sua relação com os sentidos que transparecem no imaginário dos adeptos da
União do Vegetal. Situa-se na área das Ciências Sociais, configurando-se como um
trabalho sócio-antropológico, realizado através de uma pesquisa de campo, com a
finalidade de se perceber como acontece a experiência de transformação de vida, o
equilíbrio emocional e de saúde na visão dos adeptos do Pré-Núcleo Sereno do Mar do
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Busca compreender o significado das
experiências vividas com o uso da bebida e como alteram o modo de viver de seus
usuários. Como eles compreendem suas aflições e o que proporciona a saída de um pólo
considerado negativo, que é a doença e a aflição, para um pólo positivo, que é a vida
saudável. Busca-se também estabelecer parâmetros de como a religião em concomitância
com um enteógeno pode ou não alterar a vida de algumas pessoas influenciando no modo
como elas interagem com a sociedade e com elas mesmas.
Um dos maiores problemas que se impõem a qualquer cientista social está na
metodologia a ser adotada para com o seu objeto de estudo. Embora, a pesquisa social
tenha sido marcada fortemente por estudos que valorizam o emprego de métodos
quantitativos para descrever e explicar fenômenos; hoje, pode-se identificar outra forma de
abordagem que se tem afirmado como promissora possibilidade de investigação: trata-se
da pesquisa identificada como “qualitativa”. Seguindo essa tendência este trabalho é
resultado de pesquisa de campo realizado no decurso de 15 meses e o procedimento
5
Entendo como sistema simbólico o conjunto de valores, crenças, rituais e procedimentos institucionais, e
imbuídos de ideologia quando produzidos pelos indivíduos que estão em uma posição de preferência para
defender e promover seus próprios interesses.
19
adotado foi o da observação exclusiva das sessões de escala
6
do Pré-Núcleo Sereno do Mar
União do Vegetal (UDV)
7
, seguido de entrevistas formais e informais com pessoas que,
direta ou indiretamente, participaram das narrativas coletadas. Trata-se de uma pesquisa
participativa na medida em que o pesquisador esteve presente regularmente nas sessões de
escala, fazendo uso do Vegetal e tomando parte de todos os momentos da sessão.
O universo estudado compreende o Pré-Núcleo Sereno do Mar. Portanto,
limitar-me-ei a uma abordagem restrita a este universo em renúncia a qualquer intento
comparativo com as demais religiões que fazem uso da mesma bebida em seus cultos e
rituais. Isto não somente por carecer de uma experiência etnográfica com as comunidades
do Santo Daime ou da Barquinha, mas também por considerar que a União do Vegetal
constitui um campo com uma autonomia e relevância específicas.
O intento desta dissertação é discutir se existe ou não uma relação entre o uso
ritual da bebida e os sentidos que os fiéis dão a aspectos relacionados à saúde e ao agir
humano, no contexto doutrinário da UDV, através da etnografia de uma de suas unidades,
situada em um contexto urbano.
O Pré-Núcleo Sereno do Mar, em São Luís - MA, cidade que, segundo a
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), conta hoje com 957.515
habitantes, foi escolhido como o lugar para o trabalho de campo desta pesquisa. Não que
ele pudesse ser considerado como adequado para uma “amostragem representativa” da
UDV no Brasil, nem mesmo da UDV na Região Nordeste. Mas, tendo em vista o perfil de
seus participantes, é possível considerá-lo como emblemático de uma unidade da União do
Vegetal em um contexto urbano sob o impacto da modernidade. Ora, constata-se a
tendência de que essa matriz religiosa vem se reproduzindo cada vez mais nas grandes
cidades brasileiras. Assim, a escolha desse local apresenta-se como procedente não em
termos de compreensão do momento presente da UDV no Brasil, mas também num
enfoque prospectivo.
O trabalho desenvolveu-se seguindo as seguintes orientações: Primeiramente,
pesquisa bibliográfica/documental. Sendo que esta teve como abrangência os teóricos
6
As sessões de escala, aquelas destinadas a todos os sócios, acontecem quinzenalmente, no primeiro e no
terceiro sábado do mês.
7
A UDV organiza-se, em nível local, em núcleos. O núcleo é o lugar onde se reúnem quinzenalmente os
participantes, designados de sócios, para beberem o chá Ayahuasca dentro de um ritual, denominado
sessão. Quando uma unidade local é iniciada, primeiramente é chamada de distribuição autorizada, depois
de pré-núcleo e posteriormente, quando adquire uma estrutura material mais sólida e um quadro de
participantes na hierarquia mais amplo, é que atinge o nível de núcleo.
20
(antropólogos, sociólogos, filósofos, teólogos, etc.). Material este existente, tanto em nível
de fundamentação teórica geral, quanto de alusão específica à UDV, tanto no mercado
editorial, bem como, em minha própria biblioteca particular, visto ter efetuado a aquisição
recente em número significativo de exemplares referentes ao tema. disposto na Rede
Mundial de Computadores um grande volume de trabalhos organizados e veiculados por
estudiosos da UDV, com artigos de cunho científico (teses, dissertações, anais de
congressos, etc.), bem como, de defesa da mesma, seus rituais e uso da ayahuasca.
Na esfera institucional, há produção de fontes registrando suas doutrinas e
história que estão concentradas nos arquivos do Departamento de Memória e
Documentação do CEBUDV, em sua Sede Geral, em Brasília, ao qual, infelizmente não
tive acesso, uma vez que fiquei impossibilitado de efetuar tal viagem; bem como jornais de
circulação interna.
Por fim, a pesquisa de campo foi efetuada com observação participante,
agregando, ainda, entrevistas abertas com os deres e demais membros do Pré-Núcleo
Sereno do Mar. A combinação destas duas técnicas de pesquisa se revelou bastante
frutífera na medida em que me tornou possível visualizar uma relação estreita entre as
ações enfatizadas nos rituais e as falas contidas nas entrevistas.
Em geral, as entrevistas feitas com os líderes dos grupos apresentaram um
cunho doutrinário, colocando-se muitas vezes como documentos orais de pontos-de-vista
oficiais sobre aspectos públicos da União do Vegetal, bem como sobre os aspectos
relacionados aos seus dogmas, símbolos e elementos rituais. De certo modo, pode-se dizer
também que as entrevistas feitas com os fiéis, e que não são líderes, também possuem um
caráter doutrinário, embora talvez devam ser entendidas como pontos-de-vista não-oficiais,
ou semi-oficiais. Contudo, sempre revestidas de um caráter de reprodução e manutenção de
uma doutrina pautada na oralidade. Quanto aos rituais que observei, foi possível perceber
que eles põem em ação aqueles dogmas, signos e gestos que formam o conjunto de crenças
da União do Vegetal, confirmando, através da experiência vivida, a “fala”, isto é, o texto
das entrevistas. Pois, nos rituais se afirmam publicamente tanto o conteúdo doutrinal, como
os símbolos que representam a continuidade da tradição sagrada.
Nesse sentido, as entrevistas e a observação dos rituais se constituíram em dois
caminhos de acesso à ortodoxia que a UDV procura estabelecer e afirmar. Aliás, mais do
que isso, pois a combinação das duas técnicas: entrevistas (“falas”) e observação de rituais
21
(vivência) nos permitiu chegar a versões legitimizantes da história e da teologia do citado
grupo.
Embora, inicialmente tivesse proposto um roteiro de perguntas e pensado em
entrevistas formais com um número reduzido de participantes, logo percebi que as
entrevistas mais livres surtiam maior efeito e no decorrer do processo, especialmente
quando se aproximava do momento em que necessitava de dados e entrevistas mais
especificas, percebi que o material que havia coletado era insuficiente e não possibilitava
uma leitura adequada da realidade em que estava inserido (isso, talvez, por falta de
experiência de minha parte em trabalho de campo e entrevistas), decidi então explorar mais
os diálogos informais e abertos no decorrer dos momentos de confraternização dos finais
das sessões, e o resultado foi muito melhor do que o esperado. Embora não tenha tido
tempo de transcrever esses diálogos, eles foram de grande ajuda e extremamente úteis para
a elaboração de meu trabalho. Muitos deles sequer serão citados outros terão trechos
aproveitados, mas todos foram de grande utilidade na formação de minha abordagem e
estudo da temática. Desta forma, consegui abordar grande parte dos participantes do Pré-
Núcleo Sereno do Mar e ouvi-los através de diálogos, muitas vezes curtos, mas muito
proveitosos e instrutivos.
Os entrevistados são identificados por letras a fim de não expor suas
identidades; contudo, visando melhor contextualizar as informações e verbalizações dos
entrevistados apresento algumas informações dos mesmos através de uma tabela na parte
de anexos.
Quanto à observação participante tomei cuidado para que esta se efetuasse com
atenção voltada aos mínimos detalhes das práticas, doutrinas, ritos, discursos, aspectos
estéticos, éticos, morais, etc. Ou seja, mais do que às crenças e a visão de mundo, busquei
atentar para o não-dito, para os gestos e comportamentos não-convencionados
explicitamente pelo grupo, num esforço descritivo por uma interpretação da cultura.
Não poderia deixar de apontar aqui que o aspecto doutrinário é um elemento
constitutivo essencial em toda a matriz de uma tradição religiosa. No início de minha
aproximação da União do Vegetal, minha intenção era estudar o uso ritual da ayahuasca e a
experiência de cura no contexto da União do Vegetal, tentando explicitar o uso que a UDV
faz do Vegetal e sua relação com possíveis experiências de cura entre os fiéis, decorrentes
da ingestão da bebida. Tal pretensão era motivada pelo fato de se ouvir falar das
propriedades curativas do Vegetal, quer através de manifestações de senso comum, quer
22
em relatos de pesquisas científicas, voltadas mais especificamente para a Barquinha e o
Santo Daime. Contudo, logo no inicio de minha participação no Pré-Núcleo Sereno do Mar
percebi que o tema da cura de enfermidades não era recorrente em seus rituais e discursos;
necessitava, portanto, dar novo enfoque à pesquisa, o qual transpareceu naturalmente
através das entrevistas e conversas estabelecidas com os sócios da unidade estudada.
Uma dimensão emblemática da UDV é que a partilha da doutrina é parte da
economia simbólica desta religião, havendo, desta forma, certa restrição na divulgação
desses princípios fora da comunidade ritual. Portanto, o aspecto doutrinário não é
diretamente referido neste trabalho por razões de uma ética etnográfica, segundo o modo
de minha experiência de contato com a UDV.
Estrutura do Trabalho
O trabalho está estruturado da seguinte maneira:
A introdução apresenta a justificativa e os objetivos da pesquisa, bem como a
metodologia utilizada e a importância do tema para um trabalho dessa natureza, além de
conter esclarecimentos sobre as dificuldades e o desenrolar da pesquisa. Ainda nesta
divisão do trabalho encontra-se uma parte de fundamentação teórica, a qual surgiu como
fruto da necessidade que se teve de estabelecer-se uma fundamentação mais densa de duas
categorias que serão utilizadas posteriormente no decorrer da dissertação, quais sejam: a
cura xamanica e o princípio da eficácia simbólica; sabendo-se que a fundamentação teórica
propriamente dita não se esgotará nesta seção, mas estará presente em todo o transcurso do
trabalho ao serem abordados outros temas e categorias que, a meu ver, merecem
aprofundamento teórico.
O primeiro capítulo apresenta a estrutura institucional da União do Vegetal,
como ela está organizada, seu processo de institucionalização, algumas informações sobre
o campo em questão, o Pré-Núcleo da União do Vegetal Sereno do Mar em São Luis
MA, a organização do espaço do templo do Pré-Núcleo, o funcionamento de uma sessão de
escala, pois foram destas sessões que participei enquanto pesquisador e, ainda, apresento as
atividades existentes atualmente dentro da Unidade.
O segundo capítulo retrata a União do Vegetal: fatos marcantes na história vida
23
do fundador, o Mestre
8
Gabriel; sua trajetória como seringueiro, o contato que teve com
outras religiões antes da UDV, a sua relação com a cura, assim como um breve histórico do
Pré-Núcleo Sereno do Mar.
O terceiro capítulo constitui-se de uma apresentação da Ayahuasca, seus
aspectos farmacológicos, falo sobre a trajetória da legalização, os nove vegetais e os
efeitos do chá para aqueles que o bebem (burracheira, peia, mirações), bem como, sobre a
força da palavra e a evolução espiritual.
O quarto capítulo é dedicado a discutir o uso da Ayahuasca e o conceito de
saúde na União do Vegetal, discutindo, ainda, o que ensina a UDV em relação às doenças e
males da humanidade; bem como, traz, ainda, uma discussão rápida sobre o tema
secularização e dessecularização da religião.
O quinto capítulo está dedicado a analisar a questão da cura dentro do
referencial doutrinário da União do Vegetal, bem como a forma como eles entendem os
vícios e como estes devem ser tratados.
Nas considerações finais observo a forma como os udevistas percebem o
fenômeno do chá, o como se relacionam com a “cura do corpo”, a ênfase dada à “cura do
espírito” e às mudanças decorrentes desta crença; entendendo que, tais aspectos os fazem
terem mudanças significativas na forma de ver e viver no mundo. Saliento, ainda, que os
conceitos e sentidos que os adeptos da União do Vegetal encontram a partir do uso da
bebida evidenciam-se, especialmente, em inúmeras práticas comuns do dia-a-dia de seus
freqüentadores.
Fundamentação Teórica
Essa seção surgiu da necessidade que tive de se estabelecer uma
fundamentação teórica mais densa sobre duas categorias de fundamental importância para
a compreensão da relação existente entre o uso da ayahuasca e os conceitos de doença e
cura no ambiente religioso da União do Vegetal. Tais categorias nos permitirão ampliar a
compreensão de temas relacionados a esses conceitos que estarão esboçados no decorrer
deste trabalho.
8
Mestre: é o tratamento dado àqueles que m a função de comunicar a doutrina da União do Vegetal, sendo
este o nome de maior poder simbólico na UDV.
24
“O feiticeiro e sua magia” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 193-214) e “A eficácia
simbólica” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 215-236) são dois ensaios importantes, ambos
escritos por Lévi-Strauss em 1949, nos quais desenvolve hipóteses sobre a relação entre o
corpo e a palavra, que valem tanto para culturas primitivas, organizadas pelo pensamento
mágico, quanto para explicar a eficácia da psicanálise para o sujeito moderno.
No primeiro ensaio, trata-se de um aprendiz do xamanismo, numa tribo do
norte do Canadá, que tenta descobrir a diferença entre um “verdadeiro” xamã e um
mistificador. Surpreso, o aprendiz vai descobrir que os truques do mistificador podem ser
tão eficientes em promover a cura de um doente quanto à magia do xamã “verdadeiro”,
contanto que sejam capazes de convencer a comunidade a que o doente pertence. A magia
não opera entre duas pessoas, o doente e o feiticeiro, mas no espaço triangular composto
pelo doente, o feiticeiro e a comunidade. Um falsificador investido de autoridade pela
comunidade tem maior poder curativo que um xamã verdadeiro que, por uma razão ou
outra, tenha perdido a credibilidade; a crença que anima as práticas xamanicas é de que
exista o xamã verdadeiro. O Outro funciona simbolicamente como garantia dessa verdade.
As mentiras e os truques de um xamã são eficientes em promover uma cura ou
pelo menos aliviar o sofrimento de um doente, porque organizam sua experiência solitária
e não simbolizada, esta experiência de exceção que é a de estar doente. O mito narrado
pelo xamã para explicar a origem da doença oferece sentido ao que é singular, solitário,
informulável.
No texto seguinte, “A eficácia simbólica”, Lévi-Strauss analisa a cura de uma
mulher em dificuldades de parto, a partir de uma narrativa em que o xamã atualiza o mito
da concepção, da gravidez e do nascimento da criança. O mito não é estático; ele se
compõe de uma parte de tradição e uma parte de invenção. O xamã é este intermediário
entre a tradição e o presente, que acrescenta sempre um elo a mais na corrente narrativa
que liga a crise do presente ao saber constituído pela experiência dos antepassados. A cura
consiste em tornar pensável uma situação que o sujeito não sabe representar, e que se torna
insuportável se for vivida somente em termos afetivos e sensoriais. O mito tem o efeito de
tornar aceitáveis, para o espírito da doente, as dores que o corpo se recusa a tolerar.
Ajudando a parturiente a simbolizar sua dor até então intolerável, o xamã conduz o parto a
bom termo mas para isto, é preciso que não apenas a parturiente, mas a comunidade a
que ela pertence, acreditem no xamã.
25
Lévi-Strauss compara a eficácia do xamanismo à cura pela palavra efetuada
pela psicanálise, mas ele se esquece de observar que na psicanálise a palavra tem outra
origem: não é a palavra dita pelo analista que cura, mas a palavra dita pelo analisando.
No entanto, também no caso da psicanálise, o vínculo que sustenta a relação da
palavra com a verdade não é dual. A transferência, confiança a priori depositada pelo
analisando nos poderes e saberes do analista depende também de que a psicanálise seja
reconhecida como um saber e como uma prática curativa pela comunidade à qual o
analisando pertence.
Da mesma forma, no neopentecostalismo, a palavra falada ocupa lugar central
nos processos mágico-religiosos. Nas sessões de cura, por exemplo, é comum que o pastor
peça para as pessoas fecharem os olhos, ou seja, nesse momento uma concentração da
atenção do fiel no sentido da audição, enquanto o pastor faz uma oração na qual suas
palavras são carregadas de ênfase. Ao final, “ordena” veementemente, “em nome de
Jesus”, que os males saiam do corpo dos enfermos. É no momento dessa “ordem verbal”
que Deus, acredita-se, opera a cura. As pessoas que se sentem curadas são convidadas a dar
pública e oralmente um testemunho sobre a bênção recebida.
Também no processo de exorcismo, o uso da palavra assume grande
importância tanto no momento em que o pastor ordena que os demônios se manifestem no
corpo dos fiéis, quanto no momento em que são expulsos do corpo endemoninhado. Nesse
momento inclusive um ato de efervescência coletiva em que a multidão grita
efusivamente: “Sai! Sai!” ou “Queima! Queima!”. O uso do verbo “queimar” remete, aliás,
a um duplo simbolismo: o da “língua de fogo” do Espírito Santo e o do poder que as
palavras ditas com fé têm de realizar a coisa proferida, nesse caso a destruição (queima) do
demônio. Como mostra Mariano (1999, p. 153), para os defensores desse poder “o
exemplo vem de cima [...] Deus, como relata o livro de Gênesis, criou o universo por meio
da palavra”. As referências bíblicas à palavra e ao sopro que vida (ou ao ar que sai da
boca, vital para a produção da palavra falada) são inúmeras. Nas igrejas neopentecostais
norte-americanas, o pastor sopra na direção dos fiéis para provocar-lhes a queda no
Espírito Santo (MARIANO, 1999, p. 38). Eis aqui mais uma evidência da eficácia
simbólica da palavra e do poder que pode ter o xamã ao usá-la adequadamente.
Será a partir dessas duas categorias “xamanismo” e “eficácia simbólica” que
buscaremos entender alguns dos sentidos encontrados em meio aos fiéis da União do
26
Vegetal que estudei, para tanto, torna-se necessário uma breve fundamentação teórica para
que, posteriormente, possamos utilizar tais categorias de forma mais adequada.
A. Xamanismo, Imaginário e Equilíbrio Bio-Social
Tradicionalmente o xamanismo cura por imagens, isto é, através da criação de
quadros mentais que se refiram ao bem desejado; que focalizem a questão, problema ou
objetivo, a fim de permitir o "ver", sentir e perceber claramente o problema e então estar
receptivo à resposta ou orientação que será transmitida, conforme demonstrou Lévi-Strauss
(1975) em sua análise sobre a “eficácia simbólica”, onde esclarece de que modo o xamã
restaura o mito social inerente a cultura do doente, possibilitando-lhe a experiência de ab-
reação; e, estudos mais recentes abordam o papel da imaginação na cura (ACHTERBERG,
1996; WALSH, 1993).
A cura xamanística estaria, pois, entre a medicina orgânica e terapêutica
psicológicas como a psicanálise. Aproximando o xamanismo e psicanálise, Lévi-Strauss
afirma que conflitos e resistências inconscientes são levados à consciência do paciente,
mas que eles não se dissolvem em razão do seu conhecimento, e sim porque o
conhecimento torna possível uma experiência específica, “no curso da qual os conflitos se
realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem
ao seu desenlace” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 218). Localizando essa experiência na ab-
reação
9
da psicanálise e na própria experiência da cura xamanística, Lévi-Strauss percebe o
paralelo que pode ser estabelecido entre ambas, equivalentes entre si: o psicanalista é o
ouvinte do seu paciente, transformando-se em objeto de transferência, ao passo que o xamã
é orador para seu paciente, proferindo o encantamento e tornando-se o herói transposto. O
neurótico liquida um mito individual (composto pelos elementos do passado) opondo-se ao
psicanalista real, e a parturiente supera sua desordem orgânica verdadeira (através de um
mito coletivo, recebido de fora e que não corresponde a seu estado anterior) identificando-
se com xamã transposto.
9
Lévi-strauss afirma o seguinte sobre a abreção: “A psicanálise denomina abreação ao momento decisivo da
cura, quando o doente revive intensamente a situação inicial que está na origem de sua perturbação, antes
de superá-la definitivamente” (1975, p. 209), acrescenta que a ab-reação, por sua vez, tem por condição a
intervenção não provocada do analista, que surge nos conflitos do doente, pelo duplo mecanismo de
transferência, como um protagonista de carne e osso, e face ao qual este último pode restabelecer e
explicitar uma situação inicial conservada informulada” (1975, p. 229).
27
Operando por métodos semelhantes à psicanálise, o xamã consegue modificar
funções orgânicas (e não apenas psicológicas). Evidenciando a equivalência entre a
experiência psicanalítica e a xamanística, Lévi-Strauss conclui que “é a eficácia simbólica
que garante a harmonia do paralelismo entre mito e operações” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p.
220), pois mito e operações formam um par no qual sempre se encontra a dualidade do
doente e do médico. Na cura da esquizofrenia, o médico executa as operações e o doente
produz seu mito; na cura xamanística, o médico fornece o mito e o doente executa as
operações” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 220-221).
Caso fosse confirmado que as estruturas de neuroses e psicoses equivalem a
certas estruturas fisiológicas e mesmo bioquímicas, então a analogia entre xamanismo e
psicanálise seria ainda mais completa e suas curas se tornariam rigorosamente semelhantes.
A eficácia simbólica consistiria precisamente nessa “propriedade indutora” que
possuiria, umas em relação às outras, estruturas formalmente homólogas, que se
podem edificar, com materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente:
processos orgânicos, psiquismo inconsciente, pensamento refletido (LÉVI-
STRAUSS, 1975
, p.
221).
O inconsciente reduz-se, conforme ele, ao termo pelo qual se designa a função
simbólica, que, apesar de humana e, portanto também individualizada, exerce as mesmas
leis em cada um dos homens, definindo-se, portanto, como o conjunto dessas leis. Sempre
vazio, o inconsciente seria um órgão de uma função específica a simbólica –, limitando-
se a impor leis estruturais a elementos inarticulados provenientes de pulsões, emoções,
representações e recordações; estas se encontram reservadas no subconsciente, esse sim
individualizado, por colecionar imagens ao longo da vida de cada homem, como um léxico
que acumula o vocabulário da história da pessoa. Será através da organização realizada
pelo inconsciente, segundo suas leis, que esse vocabulário adquire significação, tornando-
se discurso.
Seguindo esta vertente, relacionada ao uso da linguagem, para uma análise
quanto à eficácia das terapias aplicadas, sejam por meio do transe ou na ausência deste,
considerando os longos anos de experiências na arte de curar e do contato direto com toda
sorte de queixosos, os curadores, sejam eles pajés, benzedeiras, pais de santo, ou médiuns
que incorporam entidades que curam, considerando ou não o uso de plantas psicoativas,
tais curadores vão com o tempo, desenvolvendo estratégias ou modelos de comunicação
verbal ou não verbal quando diante dos doentes, de forma a ativar o sistema nervoso
central por meio da linguagem. Tal procedimento permite aos interlocutores, extraírem do
diálogo, conteúdos de caráter subjetivo de valores significativos, capazes de promover a
28
cura. Assim, por meio dos recursos da linguagem verbal ou não verbal, é possível ativar
todos os sistemas de representação (visual, auditiva e sinestésica) de uma pessoa durante
uma comunicação inter-pessoal. Tal recurso pode provocar alterações na atividade
cerebral, principalmente nas funções superiores, onde ela é mais sutil, perceptíveis por
meio de micro-expressões do processo comunicativo como o movimento dos olhos,
alterações no tom da voz, expressões faciais, mudanças da cor da pele e da postura
corporal que interagem com a linguagem falada. Seria este, o modelo de investigação
conhecida por Programação Neurolingüística, a qual se baseia na observação da linguagem
verbal ou não verbal, para se compreender quais os sistemas de representação mental que
as pessoas utilizam enquanto pensam e falam (FRANÇA, 2002, p. 39-50).
Podem ser estes, de certa forma, os modelos de comunicação que permeiam as
táticas adotadas pelos curadores, quando diante dos consulentes, nos permitindo admitir
estarem, nelas, os elementos que conduzem à eficácia de suas terapias, entendida como
mágico-religiosas.
Em resumo, baseados de Lévi-Strauss (1975), podemos admitir que, a eficácia
das terapias adotadas pelos detentores da arte e das técnicas de curar, podem estar em 4
elementos básicos:
1. na palavra do curador, dono de profundo conhecimento humano e da arte da
perspicácia, capaz de formular perguntas de forma a corrigir a estrutura
semântica das respostas, a fim de esclarecer as relações de causa e efeito
pressupostos e outras distorções semânticas (FRANÇA, 2002, p. 49) a fim
de conduzir o doente à crença na cura almejada;
2. na crença do curador na eficácia das técnicas por ele adotadas, assentadas
em sua experiência pessoal, deixando transparecer a total segurança no que
faz;
3. na sincera crença do doente quanto aos poderes sobrenaturais do curador,
capaz de atos gicos, que provêm de dons divinos, fazendo-nos lembrar,
ainda, que a magia é, por definição, objeto de crença, pois só se procura o
mágico porque se crê nele (MAUSS, 1974);
4. no consenso, ou seja, na confiança expressa por todo o grupo familiar,
social e religioso, sobre os reais poderes do curador, transmitindo total
confiança ao doente quanto à certeza da cura desejada.
29
Neste sentido, temos que ter em conta, como a relação da linguagem com a
produção de imagens mentais e reações comportamentais, podem causar transtornos
emocionais com sintomas patológicos e como a palavra pode se tornar remédio potente
para curar, principalmente se forem feridas simbólicas (QUINTANA, 1999) que estão ao
nível das representações mentais (FRANÇA, 2002, p. 68-70).
Mas, não se poderia dizer que as significações imaginárias sociais derivam dos
inconscientes individuais? Segundo Castoriadis (1992), não, pois, para ele, o indivíduo é
uma abstração, uma propriedade de coexistência que surge em nível do conjunto. Uma
necessidade social se torna tal em função de uma elaboração cultural. Como ela se faz?
Pelo “investimento do objeto com um valor” (CASTORIADIS, 1992, p. 181). Não sendo
apenas as necessidades naturais e as possibilidades técnicas que determinam as escolhas,
conforme também demonstrou Lévi-Strauss (1989) em “O Pensamento Selvagem”. São os
sistemas de significações imaginárias que valorizam e desvalorizam um conjunto cruzado
de objetos e faltas nos quais se podem ler a orientação de uma cultura. Paralelamente a
esse conjunto de objetos define-se uma estrutura ou articulação da sociedade.
No que pese a diferença entre autores como Castoriadis, Lévi-Strauss e
Durand, um ponto de convergência nos interessa destacar: o reconhecimento que todos eles
dirigem à positividade da imagem. Se, para Castoriadis, o imaginário institui o social, para
Lévi-Strauss (1985) a oposição entre ambos, considerada do ponto de vista da valorização
e da desvalorização das imagens, dos símbolos e dos dados do sentido, pode estar em vias
de superação, porque a ciência começa a ser capaz de reincorporar problemas antes
deixados de lado. Para Gilbert Durand (1988), a imaginação, enquanto função simbólica é
o fator geral que possibilita o equilíbrio psicossocial. Define as funções da imaginação
simbólica como dinamismo de equilíbrio, cuja função é negar eticamente o negativo, sendo
ainda, dinamicamente, negação vital, frente ao “nada”, a “morte” e o “tempo”.
Primeiro, o símbolo surge como restaurador do equilíbrio vital comprometido
pela noção de morte. Durand, respaldando-se na antropologia, define a função da
imaginação, que ele chama “função de eufemização” não como máscara, mas como
dinamismo que tenta melhorar a situação do homem no mundo. A morte é negada,
eufemizada numa vida eterna, e o próprio fato de desejá-la e imaginá-la como um repouso,
a eufemiza e destrói.
Segundo, o simbolismo é pedagogicamente utilizado para restabelecer o
equilíbrio psicossocial. De fato, o autor assinala que Freud, através da concepção da
30
sublimação, havia constatado o papel de “amortecedor” que a imaginação desempenha
entre o impulso e sua repressão, mas reduzia as “aberrações” imaginárias da neurose aos
fatos biográficos da primeira infância. Nesse caso, fora da “sublimação” a imagem seria
um obstáculo ao equilíbrio e não ajuda eficaz. Prossegue afirmando que, com a noção de
arquétipo de Jung, o símbolo é concebido como uma síntese de equilíbrio através da qual a
alma individual se une a psique da sociedade humana e oferece soluções aos problemas
apresentados pela inteligência da espécie. Mas em ambos, adverte ainda Durand, o símbolo
não é encarado como meio terapêutico direto. Entretanto, atualmente, várias terapêuticas
utilizam-se do imaginário para os procedimentos de diagnóstico e de cura, e o fazem
retomando os pressupostos e os métodos tradicionais, a exemplo do xamanismo
(ACHTERBERG, 1996 e WALSH, 1993).
Em terceiro lugar, o imaginário estabelece um equilíbrio antropológico que
constitui o “humanismo da alma humana”, ao negar que o homem seja “pura animalidade”.
E ainda, o imaginário erige o domínio do supremo valor e equilibra o universo que
“passa”, através da imagem de um ser que “não passa”, e o símbolo então resulta numa
“teofania”.
Finalizando o tratamento que pretendo dar a palavra imagem, de acordo com
Taussig (1993, p. 462), dentro de uma linha kantiana de pensamento, elas ocupam o papel
de articuladora entre as impressões sensórias e o a priori do ato de conhecer na geração do
conhecimento. Assim, o que chamo aqui de imagens internas (numa forma de diferenciar
dos tantos outros usos da palavra imagem) seria algo que emergiria na mente do indivíduo
como um resultado particular de: estímulos sensoriais diversos, complexo simbólico
fornecido pelo ritual, estado fisiológico e universo cultural deste indivíduo. Evito utilizar
aqui o termo interpretação por acreditar que tal articulação se num nível não muito
consciente no indivíduo, que emerge à consciência muito mais nas imagens que em
racionalizações.
uma ligação latente com os arquétipos junguianos (JUNG, 1977), mas a
diferença aqui é que o se deseja perceber os caracteres universais das imagens, o que
seria por si algo correlato aos arquétipos, mas sim a forma um tanto individual que os
arquétipos assumiriam dentro das imagens, tornando-as então uma ponte entre estes tantos
fatores relacionados acima.
31
Haveria então um encontro interessante a ser observado, um encontro onde
estariam em jogo diversos fatores, um campo onde se poderia avaliar o como estes fatores
se relacionam.
B. O princípio da Eficácia Simbólica
Tratar de eficácia simbólica implica em tomar vi-Strauss como ponto de
partida. Em “A Eficácia Simbólica” (LÉVI-STRAUSS, 1975) ao comparar o xamã ao
psicanalista e traçar paralelos entre as curas obtidas por ambos, ele considera que o
curandeiro é eficaz em seu trabalho, na medida em que, como o terapeuta, manipula a
estrutura simbólica do paciente, provocando um rearranjo emocional do mesmo, tornando
pensável o que antes era apenas sentido. Toda cura se procede por ser manipulado o ponto-
chave do problema, o inconsciente. Sendo assim, entende ele que nesta parte do psiquismo
está a base de toda estrutura mental, de toda função simbólica humana, que responde, em
todas as pessoas, a uma gama limitada e comum de leis universais. O subconsciente seria a
fonte da história individual, adquiriria significado para nós e para os outros, quando
organizado pela estrutura inconsciente, que teria suas raízes firmemente fincadas no social.
São muitas as críticas traçadas à Lévi-Strasuss, mas as principais vêm da escola
simbólica americana, e podem ser sintetizadas através das colocações de Turner, de que ele
(Lévi-Strauss) lidaria com um plano único de análise do ritual, onde seus símbolos,
seguindo uma perspectiva estruturalista, acabariam por assumir um caráter univocal.
Turner (1980) acaba por lidar com a noção de multivocalidade, que surge quando cada
símbolo é analisado isoladamente no contexto simbólico, em diferentes momentos do
ritual, como fazem os nativos eis aqui outra diferença entre ambos, a utilização de
explicações êmicas. A oposição binária seria a base da univocalidade, mas tal situação
(oposição binária) é algo temporário dentro do ritual, e não referente ao ritual como um
todo este é o procedimento analítico adotado por Lévi-Strauss, que lida com um plano
único em seus trabalhos. Coloca-se que esta antropologia falha em estabelecer uma
conexão entre os símbolos, significados e ação, comportamento, na medida em que se
preocupa primariamente em criar relações entre categorias analíticas, e não incorpora uma
perspectiva orgânica, neuropsicológica, em suas teorizações.
32
Mas aqui temos ainda um estudo de partes dentro do todo. Viso aqui, no
entanto atingir um plano integrativo. Mauss em alguns de seus textos fala das relações bio-
psico-sociais (Técnicas Corporais [1974] principalmente), lançando a idéia do
desenvolvimento de estudos nesta área. Lévi-Strauss também toca neste assunto quando
em Eficácia Simbólica busca a legitimação de seu discurso na psicanálise e em uma
possível afirmação de Freud que diz que as perturbações psíquicas teriam uma “concepção
fisiológica, até mesmo bioquímica” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 232), visando assim
construir uma ligação concreta entre corpo e atividades psicológicas.
Victor Turner aborda esta integração quando põe em xeque o axioma que ele
define como “sagrado” para todo um grupo de antropólogos de sua geração: ou seja, “a
crença que todo comportamento humano era o resultado do condicionamento social”
(TURNER, 1980, p. 156). A partir daí, auxiliado pelas descobertas no campo da
neurobiologia, desenvolve o conceito de um controle duplo do homem, tanto por um
genótipo quanto por um culturótipo, através de um jogo de coadaptações simbióticas entre
ambos.
Segundo Mckenna, a ayahuasca (elaborada a partir do cozimento das plantas
Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi) teria um papel de potencializador dos estados
mentais criados no ritual. Um dos seus princípios ativos a N,N-Dimetiltriptamina, possui
uma estrutura química muito semelhante à seratonina, ativando os receptores deste
hormônio na superfície celular dos neurônios. Além disso, a Harmalina e Harmina são
inibidores da monoamioxidase, enzima que tem a função de controlar a seratonina, a
dopamina e a norepinefrina, todas neurotransmissores. A ausência deste controlador, aliada
a um estímulo na produção desencadeia uma hiperativação do córtex cerebral
(MCKENNA, 1991).
Torna-se, contudo, possível lembrar, ainda neste contexto, o trabalho elaborado
por Aldous Huxley, na obra “As portas da percepção”. Trata-se de um ensaio descritivo,
elaborado em 1954, o qual trata dos efeitos da ingestão de drogas alucinógenas, mais
especificamente a mescalina, um alcalóide encontrado em um cacto mexicano chamado
peiote. Contém a descrição de uma experiência assistida por médicos realizada por Huxley
com intuito científico, e das inferências feitas a partir da análise de dados recolhidos.
O título da obra provém de uma célebre citação do poeta William Blake: "Se as
portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é:
infinito”.
33
Através desse conceito, Huxley acredita que o cérebro humano filtra a
realidade, de forma que apenas parte das imagens e percepções possíveis cheguem de fato
até a consciência, pois o processamento da realidade em sua plenitude seria insuportável
devido ao volume elevado de informação.
Segundo o autor, as formas de atenuar a existência desse filtro e vivenciar o
mundo em sua plenitude seriam a ingestão de determinadas drogas, a prática de jejuns
prolongados, a auto-flagelação e períodos prolongados de silêncio e isolamento, devido aos
efeitos fisiológicos e psíquicos que essas práticas propiciam à percepção humana. É
realizada ainda uma comparação possível entre os efeitos das drogas e os sintomas
esquizofrênicos, pelo desequilíbrio químico semelhante.
Huxley descreve sua experiência como visão da onisciência, com desapego de
idéias e conceitos e percepção da existência em si, deixando de ter a visão cotidiana dos
objetos segundo sua funcionalidade. Essa nova percepção torna-se fascinante pela
intensidade com que tudo parece pulsar existência (paralelo e influência do
Existencialismo, corrente filosófica e literária que destaca a liberdade, a responsabilidade e
a subjetividade do ser humana, considerando cada ser como único, mestre de seu destino, e
afirmando o primado da existência sobre a essência, segundo a definição de Sartre: “A
existência precede e governa a essência”).
A percepção se alarga e o espaço e as dimensões tornam-se irrelevantes,
gerando uma sensação de pequenez, que assim o ser humano percebe sua incapacidade
de assimilar tantas impressões. O autor também descreve sua mudança de interesses, pois o
mundo toma novas formas e significados perante a experiência. Huxley disserta ainda
sobre a necessidade de fuga, a possibilidade da “droga perfeita” e a ligação entre drogas,
transcendência e religiosidade.
Em ensaio posterior ao “As Portas da Percepção”, ao qual nomeia de “Céu e
Inferno”, também trata da ingestão de mescalina, sob o ponto de vista de ser um dos meios
de conhecer “antípodas da mente” (áreas desconhecidas, inconsciente), sendo outro meio
citado o hipnotismo. Visa acrescentar alguns pontos esquecidos no ensaio anterior,
essencialmente a questão da possibilidade de uma experiência negativa com alucinógenos,
talvez por motivos fisiológicos, mas, principalmente, por motivos psicológicos.
Huxley afirma que a mescalina altera a percepção, tornando conscientes coisas
que o cérebro ignora em seu estado normal por serem inúteis a sobrevivência. Interfere,
34
possivelmente, no sistema enzimático, diminuindo a eficiência do cérebro como válvula
reguladora de informações percebidas.
O autor cita a obra “Diário de uma Esquizofrênica” em suas descrições do
inferno na experiência visionária: pode haver existencialismo aterrador, claridade elétrica e
implacável, percepção muito apurada, sensação de estar mais presa ao corpo e à condição.
O exemplo é utilizado para traçar um possível paralelo entre os efeitos de droga e os
sintomas da esquizofrenia, de forma que o desequilíbrio químico que em ambos os
casos fosse semelhante, especulação já feita em As Portas da Percepção.
Huxley descreve mudanças drásticas na percepção, com luzes e cores
intensificadas, ampliação dos valores (passando ao significado puro), visualização
geométrica (enxerga-se “desenhos dentro de desenhos”). O autor afirma que nos antípodas
da mente estamos quase livres de linguagem e conceitos. ainda uma descrição de
componentes comuns nas experiências visionárias, como pedras preciosas, vidro,
paisagens; e a interpretação em termos teológicos e tradução artística da experiência.
Através de suas próprias experiências psicodélicas e também da análise de
relatos de experiências de terceiros, Huxley encontrou um padrão de visões que habitam o
inconsciente coletivo e se manifestam numa mente que se encontra em
“despersonalização”.
Tais visões são o “Céu”: são fantásticas, um êxtase de beleza extrema. Podem
também ser o “Inferno”, o medo profundo, o terror extremo. Isso depende do estado de
espírito daquele que estiver sob efeito da droga e da influência de tal estado na experiência.
Tendo à mão todos estes elementos podemos prever que o aparelho sensitivo
de um indivíduo, sob o efeito do uso da ayahuasca (segundo descrito por Mckenna), além
de ter efeitos semelhantes aos descritos por Huxley, se encontra operando numa velocidade
acima do normal, onde as interações entre corpo, cérebro, mente, planos transcendentais e
ambiente externo se fazem de forma muito marcante. As imagens seriam uma das formas
pelas quais todos estes elementos estariam relacionados, compondo a etapa onde tal
indivíduo perceberia o que ocorre com ele e encaixaria esta percepção em um conjunto
explicativo culturalmente significativo.
Além disso, esta alteração intensa no estado de consciência permitiria que o
caráter integrativo do rito como um todo facilitasse alterações fisiológicas, uma vez que o
sistema formado teria uma coerência e uma coesão bastante forte. Assim, o simples fato de
uma pessoa assentar as mãos sobre um ponto do corpo de outra pessoa desencadearia uma
35
série de estímulos (em diversos planos) que poderiam levar a alterações fisiológicas e
remissões de sintomas no caso de doenças. Não posso desconsiderar aqui a possibilidade
de uma energia transpessoal, mas não possuo material suficiente para tratar deste assunto
com a consideração que ele merece.
36
1 A UNIAO DO VEGETAL E SUA ESTRUTURA INSTITUCIONAL
1.1 Os Núcleos e seu Funcionamento
A UDV organiza-se, no nível local, em núcleos. O núcleo é o lugar onde se
reúnem quinzenalmente os participantes, designados de sócios, para beberem o chá
Ayahuasca dentro de um ritual, denominado sessão. Quando uma unidade local é iniciada,
primeiramente é chamada de distribuição autorizada, depois de pré-núcleo e
posteriormente, quando adquire uma estrutura material mais sólida e um quadro de
participantes na hierarquia mais amplo, é que atinge o vel de núcleo. O início de uma
distribuição autorizada costuma contar com cerca de 30 participantes. em um pré-
núcleo o número de sócios gira em torno de 50. E um núcleo, por sua vez, pode ter desde
uns 70 até por volta de 200 participantes. Porém, é comum que, ao alcançar o patamar de
150 sócios, o núcleo já comece um processo de segmentação, pelo qual algumas pessoas se
dispõem a sair do núcleo e principiar um pré-núcleo em outro local da mesma cidade.
No aspecto “espiritual” (ritualístico), o núcleo é dirigido, por um Mestre
Representante. Esta função é assim nomeada porque aquele que a ocupa representa o
Mestre Gabriel, fundador da UDV. O Representante integra o Quadro de Mestres (QM), o
conjunto daqueles que têm a função de comunicar a doutrina da União do Vegetal,
designados com o nome de maior poder simbólico na UDV: Mestre. Dentre os Mestres é
feito um rodízio a cada dois meses, para que um deles ocupe o lugar de Mestre Assistente,
responsável por assistir o Mestre Representante e os discípulos e conservar a disciplina
durante o ritual. Até o presente, uma mulher no Quadro de Mestres, Raimunda
Ferreira da Costa, a Mestra Pequenina, esposa de José Gabriel da Costa, que foi convocada
por ele ao QM. Ainda que não haja uma lei escrita da UDV vedando esse lugar às
mulheres, muitos (e muitas) consideram que somente os homens podem chegar a serem
mestres. Depois do Quadro de Mestres, na hierarquia o Corpo do Conselho (CDC),
formado pelos Conselheiros e Conselheiras
10
, auxiliares dos Mestres, junto com os quais
formam a Administração do Núcleo. Em seguida, o Corpo Instrutivo (CI), formado por
aqueles discípulos que freqüentam a UDV há certo tempo e têm um compromisso de
10
O número das mulheres no CDC é muito variável a depender de cada unidade. Não havendo nenhuma
norma ou regulamentação a respeito desse número.
37
participação maior nas atividades, tendo sido convocados pelo Mestre-Representante para
assistir as sessões instrutivas, vedadas aos demais sócios, durante as quais são transmitidos
os ensinamentos restritos da União do Vegetal. Por fim, o Quadro de Sócios (QS),
formado por todos os discípulos que se associam ao CEBUDV.
Essas “classes de discípulos” podem ser compreendidas de dois modos: num
sentido estrito, referindo-se apenas ao segmento que designam, ou num sentido abrangente,
incluindo também os segmentos superiores na hierarquia. Assim, num sentido estrito, os
discípulos do Quadro de Sócios são aqueles sócios que não são do CI, nem do CDC, nem
do QM. segundo um sentido abrangente, até mesmo os mestres fazem parte do QS
11
.
Este duplo sentido pode ser expresso num diagrama de círculos concêntricos, no qual as
cores distintas indicam o sentido estrito e o desenho dos círculos, os maiores englobando
os menores, indicam o sentido abrangente:
Ilustração 1: Estrutura funcional da União do Vegetal (BRISSAC, 1999, p. 19[adaptado])
Além daqueles que formam oficialmente o núcleo, a União do Vegetal conta
ainda com os adventícios. Os adventícios são aqueles que bebem o vegetal pela primeira
vez em sessão da União. Normalmente são apresentados à UDV através de um sócio,
fazem uma entrevista com algum mestre do núcleo
12
, na qual o mesmo explica de forma
geral o que é a religião. Existe uma sessão denominada sessão de adventícios onde os
11
De acordo com o Estatuto da UDV, “o quadro de filiados do Centro, entre fundadores e efetivos,
compreende três classes de sócios: Mestres, Conselheiros e Discípulos”. Artigo 39 do Estatuto (UNIÃO DO
VEGETAL, 2003, p. 86). Para mais informações a respeito da estrutura hierárquica da UDV, consultar:
GENTIL e GENTIL: 2002.
12
A entrevista constitui-se em um encontro prévio com o Mestre Representante, em que o mesmo expõe de
forma breve, ao adventício, algumas informações sobre o ritual e o uso do Vegetal.
38
interessados, após a entrevista, bebem o vegetal. Eles usam roupas comuns e podem,
depois de participar de uma sessão ou a depender do grau da sessão e da anuência do
Mestre Representante, freqüentar as sessões da UDV por certo período antes de associar-
se. Foi na qualidade de adventício que o Mestre Representante do Pré-Núcleo Sereno do
Mar me autorizou a freqüentar as sessões, como pesquisador por tempo indeterminado.
No “plano material” (administrativo), o núcleo está sob a direção de um
presidente, também mestre, que encabeça uma diretoria (presidente, vice-presidente, 1
o
e
2
o
secretários, 1
o
e 2
o
tesoureiros, orador oficial), eleita por todos os sócios para um
mandato de dois anos. À diretoria cabe, entre outras funções, coordenar as atividades
necessárias para a estruturação material do cleo, tais como: obras de construção do
templo, casa de preparo do Vegetal, cantina, banheiros, berçário; plantio de mariri e
chacrona; eventos para a arrecadação de fundos para as obras; organização do pagamento
da mensalidade dos sócios
13
. ainda a função da Ogan
14
, mulher responsável por
coordenar a arrumação do templo e sua limpeza, assim como o que se refere à alimentação.
Essa função é ocupada pelas Conselheiras, em rodízio com duração de dois meses. O nome
desta função é uma reminiscência do tempo em que Mestre Gabriel participava de cultos
afro-brasileiros, onde o oé um médium responsável pelo canto e pelo toque ocupa um
cargo de suma importância e de responsabilidade dentro dos rituais de Candomblé e de
Umbanda, que é nesta última, o de conduzir a Curimba conjunto de vozes e toques do
atabaque ajudando nos trabalhos espirituais para que possam ser fortes e bonitos. Entre
os ogãs, auxiliares de confiança do chefe do terreiro, há aqueles que têm a responsabilidade
de zelar pela ordem, limpeza e conservação do terreiro. Há, contudo, aqui uma diferença
significativa, os ogãs nos cultos afro-brasileiros são sempre do sexo masculino e na UDV
13
O valor médio da mensalidade, por todo o Brasil, é de 10% do salário mínimo. Mas não
necessariamente o mesmo valor para todos os núcleos, podendo haver algumas variações, de acordo com as
necessidades e condições do grupo. No Pré-Núcleo Sereno do Mar em São Luís o valor atual da
mensalidade é de R$ 25,00 o qual se destina para a cobertura de custos de manutenção da propriedade em
que está instalada (luz, caseiro e demais necessidades) e inclui o Fundo de Participação. também o
Fundo de Participação, que se remete mensalmente para a Sede Geral, atualmente o valor para o Pré-Núcleo
Sereno do Mar, é de R$ 5,00 por pessoa. Além disso, há a Taxa de Preparo, na ocasião em que se
confecciona o chá (a cada 4 meses aproximadamente). O valor é bem variável, para cobrir os gastos com o
preparo do chá, mas ultimamente ele tem girado em torno de R$ 25,00 por pessoa, sendo este valor
destinado a custo da aquisição e transporte da matéria prima para a confecção do chá (chacrona e mariri),
compra de lenha para ativar a fornalha e despesa de alimentação para os participantes do feitio (em torno de
cinqüenta pessoas por um período de dois a três dias). Quanto a essas três taxas, importa observar que nos
casos em que o sócio não pode pagar o valor completo, é possível a ele falar com os responsáveis e só pagar
o que estiver ao seu alcance.
14
Palavra grafada com an no Boletim da Consciência em Organização, 7
ª
Parte (UNIÃO DO VEGETAL,
2003
, p.
67).
39
esta é uma atribuição e título dados aos discípulos do sexo feminino, enquanto que, nos
cultos afros o cargo feminino equivalente ao de Ogã é assumido pela Equéde (UMBANDA
ONLINE, 2010).
Cabe aqui perceber a análise de Bourdieu segundo a qual a religião, juntamente
com a arte e a ngua, faz parte como “estrutura estruturante” do sistema simbólico das
sociedades; são “instrumentos de conhecimento e de construção do mundo dos objetos,
como formas simbólicas” (BOURDIEU, 2007, p. 8). Segundo ele, os sistemas simbólicos,
como instrumentos de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder
estruturante porque são estruturados. A religião, como estrutura estruturante, exerce um
poder sobre as pessoas porque comporta símbolos estruturados e “os símbolos são
instrumentos por excelência da integração social” (BOURDIEU, 2007, p. 10). Portanto, a
religião enquanto conjunto de símbolos estruturados tem poder de integração social, ou
seja, tem a função de integrar, incluir o indivíduo num determinado grupo social ou na
sociedade de uma maneira geral. Para ele, a religião é o princípio da estruturação do
sistema simbólico que vai justificar o porquê da classe ou grupo social ao qual a pessoa
pertence. Assim, a pessoa busca a religião porque ela fornece justificativa para a sua vida,
seja da sua posição social, da doença, da morte, da angústia, do sofrimento e do seu existir.
Dessa forma, a religião cumpre uma função social entre o conhecido e o desconhecido, por
meio do universo simbólico religioso. Sendo que nesse sentido a UDV torna-se eficiente
em seu papel socializador e de compreensão da vida e de seus porquês, a partir de sua
própria forma de organização e estruturação que lhe confere um capital simbólico
15
capaz
de fazer com que o fiel sinta-se seguro e possa confiar em tudo o que lhe é dito e ensinado.
Ao definir a religião como um conjunto de práticas e representações que se
revestem de caráter sagrado Bourdieu a concebe como linguagem, isto é, sistema simbólico
de comunicação e de pensamento, que se torna uma força estruturante da sociedade, pois
opera a ordenação de mundo para grupos que a ela compõem, assumindo a produção de
15
O capital simbólico, diferentemente, das outras modalidades de capital, não é imediatamente perceptível
como tal e os efeitos de sua duração também obedecem a lógicas diferentes. Espécie de poder ligado à
propriedade de "fazer ver" e "fazer crer", o capital simbólico é, a grosso modo uma medida do prestígio
e/ou do carisma que um indivíduo ou instituição possui em determinado campo. Deste modo, a partir desta
marca quase invisível de distinção o capital simbólico permite que um indivíduo desfrute de uma posição de
proeminência frente a um campo, e tal proeminência é reforçada pelos signos distintivos que reafirmam a
posse deste capital (como as insígnias do militar ou a mitra sacerdotal de um papa).
Como ele é um tipo de capital cuja posse permite um (re)conhecimento imediato da dominação do elemento
que o possui sobre os demais elementos do campo, o capital simbólico é assim o instrumento principal da
violência simbólica, ao impor seu peso sobre os que não o possuem ou o possuem em quantidades inferiores
em um dado campo (BOURDIEU, 2007).
40
sentido. Afirma que
Enquanto sistema simbólico, a religião é estruturada na medida em que seus
elementos internos relacionam-se entre si formando uma totalidade coerente,
capaz de construir uma experiência. As categorias de sagrado e profano, material
e espiritual, eterno e temporal, o que é do céu e o que da terra, funcionam como
alicerces sobre os quais se constrói a experiência vivida (BOURDIEU, 2007
, p.
179).
Ao sublinhar a importância do simbólico, Bourdieu não o entende como mero
reflexo do que se costuma denominar de real, nem como simples subjetividade. Por isso,
aponta para a necessidade de superação da dúvida cartesiana que pressupõe a idéia do
homem sendo exterior ao seu mundo, de onde decorre a concepção de que o pensamento
ou a representação são o produto artificial ou abstrato de seu intelecto: “o mundo social
também é representação e vontade [...] O que nós consideramos como realidade social é
em grande parte representações ou produto da representação, em todos os sentidos do
termo [...]” afirma (BOURDIEU, 1990, p. 70,71,119). Mostra ainda que a subjetividade
da experiência religiosa consegue objetivar-se socialmente em práticas e discursos na
medida em que responde a uma demanda social, ou seja, quando é capaz de dar sentido à
existência de um grupo.
1.2 A Sede Geral e seus Departamentos
Até 1982, a Sede Geral do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
localizava-se na cidade de Porto Velho, Rondônia. Naquele ano, houve a transferência da
Sede Geral para Brasília, Distrito Federal. Na Sede Geral fica o Mestre Geral
Representante, autoridade máxima do CEBUDV. Ele é eleito para um mandato de três
anos pelo Conselho de Administração, formado pelos mestres representantes de todos os
núcleos, os mestres da origem (aqueles que receberam do Mestre Gabriel a estrela de
mestre) e mais alguns mestres da Sede Geral, reunidos em sessão. No seu “aspecto
material”, o CEBUDV é administrado por uma Diretoria Geral, eleita para um mandato de
três anos pelo mesmo Conselho de Administração. A Diretoria Geral tem seus trabalhos
dirigidos por seu Presidente (um mestre eleito para encabeçar uma diretoria), ao qual
41
“compete representar a sociedade”
16
.
Há, no nível nacional, departamentos que cuidam de áreas específicas: o
Departamento Jurídico, o Departamento de Memória e Documentação (DMD), o
Departamento Médico-Científico (DEMEC) e outros. O DMD foi chamado, a princípio, de
Centro de Memória e Documentação e “é responsável pela memória institucional da UDV,
coleta e registra o que diz respeito às suas origens e à história do Mestre Gabriel”
(GENTIL, GENTIL, 2002, p. 565). Por sua vez, o DEMEC foi fundado com o nome de
Centro de Estudos Médicos (CEM) e “dedica-se a assessorar a Administração Geral nos
assuntos referentes à saúde dos associados em todos os seus aspectos e desenvolve
pesquisas biopsicofarmacológicas em parceria com instituições científicas nacionais e
internacionais.” (GENTIL, GENTIL, 2002, p. 566). Em novembro de 1995, o então CEM
realizou a Conferência Internacional de Estudos da Ayahuasca, no Hotel Glória, na Cidade
do Rio de Janeiro. Atividade emblemática do esforço do CEBUDV em se estruturar
institucionalmente e em conquistar credibilidade diante do Estado, da opinião pública e da
comunidade científica, a Conferência teve a participação de um número significativo de
pesquisadores de instituições acadêmicas nacionais e do exterior. Vinculada à UDV, existe
a Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico (ANEDE), ONG
(Organização não Governamental) com objetivo de uma atuação ambientalista, que
recebeu a doação de uma ONG norte-americana de um seringal de 8.025 hectares no
Estado do Acre, o Seringal Novo Encanto. Além dos projetos de desenvolvimento
sustentável no seringal, a ANEDE tem monitores e sócios em cada unidade da UDV, os
quais têm realizado iniciativas de conscientização ecológica no nível local. Trata-se de um
braço ecológico da UDV com a finalidade de preservação e retribuição daquilo que a
União do Vegetal retira da natureza. A associação dos sócios da UDV a ANEDE é
voluntária e não compulsória, associa-se quem quiser e tiver despertado em si o interesse
ecológico. Trata-se de uma iniciativa de pagamento de uma dívida sócio-ecológica.
16
Estatuto do Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Artigo 11 (UNIÃO DO VEGETAL, 2003
, p.
81).
42
1.3 A UDV e seu Processo de Institucionalização
O Mestre Gabriel faleceu em 1971, na cidade de Brasília. Após seu
falecimento, foi escolhido um integrante do quadro de Mestres, Raimundo Monteiro de
Souza, para ocupar o cargo de Mestre-Geral-Representante, que é o cargo máximo da
União do Vegetal. O Mestre Monteiro, contudo, permaneceu alguns meses neste cargo,
e a ele se sucederam o Mestre Raimundo Carneiro Braga e o Mestre João Ferreira de
Souza, conhecido como Mestre Joanico, num espaço de apenas dois anos. Este processo de
escolha do sucessor imediato do Mestre Gabriel aparentemente não se deu sem problemas.
O Mestre-Geral-Representante, responsável pela direção da União do Vegetal, abrangendo
todos os seus núcleos, é eleito para um mandato de três anos. Porém, a atual estrutura
administrativa, bem como os mecanismos estabelecidos para garantir a sucessão de seus
líderes, provavelmente foram elaborados de forma gradual. Pois, de acordo com o que
apurei, enquanto o Mestre Gabriel era vivo, além dos graus de Mestre, Conselheiro e do
Corpo Instrutivo, havia apenas o cargo de Mestre-Representante. Sabemos, também, que
para este último cargo, o fundador da UDV chegou, ainda, a nomear algumas pessoas,
mesmo enquanto ele era a autoridade máxima no grupo.
O processo de institucionalização da UDV parece ter sido impulsionado, em
certa medida, por uma pressão externa local, a qual envolveu inclusive alguns problemas
com a polícia de Porto Velho, bem como perseguições variadas de diferentes setores da
sociedade da época em que se formava esta linha religiosa. Um episódio relevante, que,
posteriormente, passará a marcar a história da UDV, transformando-se num elemento
importante de seu conjunto ritual e mítico, é a prisão do Mestre Gabriel em 1967. Conta-se
que esta ocorreu quando o Mestre Gabriel estava dirigindo uma sessão de Vegetal em
Porto Velho. Nesta ocasião, o chefe da polícia local, acompanhado de alguns auxiliares,
interrompeu a sessão, levando o Mestre Gabriel até à delegacia para prestar
esclarecimentos sobre o “ajuntamento de pessoas” que ele parecia liderar, fato este que
será tratado mais adiante. O Mestre Gabriel ficou detido até o dia seguinte, quando foi
liberado. Nos depoimentos relatados por Brissac (1999, pp. 73-4) sobre o episódio, o autor
destaca a imagem de organização suspeita que, ao menos num primeiro momento, a
sociedade ou irmandade dirigida pelo Mestre Gabriel assumia naquela região. Assim, um
de seus informantes conta que o delegado responsável pelo caso, ao reconhecer um
conhecido seu entre os discípulos do Mestre Gabriel, disse a ele: “o senhor, metido nessas
43
organizações clandestinas?”. Para Brissac, esse tipo de discurso expressava o clima
político da época, pós golpe militar (1999, p. 74). Uma das exigências deste delegado, ao
soltar o Mestre Gabriel, bastante condizente com aquele ambiente político, foi que o grupo
criado por ele elaborasse e registrasse um estatuto. Deste modo, poucos dias após o Mestre
Gabriel ser solto, a sociedade religiosa União do Vegetal foi registrada num cartório de
Porto Velho, passando a ser reconhecida como entidade jurídica.
Essa aspiração por um status de legalidade é, igualmente, identificada nos
relatos narrados por outros estudiosos desta linha religiosa, como Brissac (1999) e Andrade
(1995), parecendo ser uma constante nas relações e negociações entre o grupo criado pelo
Mestre Gabriel em Porto Velho e os diferentes setores da comunidade local de então.
Também logo após a liberação do Mestre Gabriel pela polícia, alguns membros da UDV
publicaram um artigo no jornal Alto Madeira, de Porto Velho. O artigo, denominado
“Convicção do Mestre”, tinha como objetivo esclarecer o episódio da prisão do Mestre
Gabriel, procurando, simultaneamente, mostrar a seriedade e o espírito pacífico do grupo
organizado por ele. O artigo contém trechos de falas do próprio Mestre Gabriel, o qual diz
a seus discípulos, entre outras coisas, que não se deve julgar ou censurar ninguém, sendo
preciso evitar a revolta
17
. Mas, se por um lado, o artigo enfatiza o comportamento
obediente, pacífico, ou seja, uma atitude de submissão às normas e leis vigentes por parte
deste grupo religioso, por outro lado, percebe-se, nele, a idéia segundo a qual a lei dos
homens não pode interferir na lei divina. Pois, num determinado momento desse texto,
relata-se que o próprio delegado encarregado do caso teria admitido ao Mestre Gabriel sua
incapacidade para proibir ou, ao contrário, dar licença ao trabalho espiritual que ele estava
desenvolvendo com o Vegetal. Esta afirmação é interpretada, no âmbito da UDV como a
prova de que o Mestre Gabriel dirigia um trabalho sagrado, que estava acima das
intervenções humanas e profanas. O artigo “Convicção do Mestre” é lido no início de toda
sessão de escala dos núcleos do CEBUDV até os dias hoje, parecendo se constituir, acima
de tudo, num marco simbólico da legitimidade desta religião perante os seus próprios
adeptos.
Relata-se, ainda, no âmbito da UDV a perseguição contra a União do Vegetal
empreendida pelos “padres”, apontando-se, assim, para a ocorrência de conflitos entre o
17
O trecho mencionado diz exatamente o seguinte: “Podemos ser censurados por todos, ma não podemos
censurar a ninguém. Podemos ter inimigos, mas não podemos ser inimigos de ninguém. Podemos ser
ofendidos por todos, mas não podemos ofender a ninguém. Podemos até ser julgados por todos, mas não
podemos julgar a ninguém. Podemos ser revoltados por todos, mas não podemos revoltar e nem ser
revoltados por ninguém”.
44
grupo de Mestre Gabriel e a Igreja católica. Andrade e Brissac também vão se referir a esse
tipo de conflito, discorrendo mais particularmente a respeito dos problemas gerados com o
bispo de Porto Velho, o qual em seus sermões, por várias vezes, teria alertado os seus fiéis
sobre os perigos do Vegetal (ANDRADE, 1995, pp. 161-2 e BRISSAC, 1999, pp. 76-9).
Em algumas situações, estas controvérsias com a Igreja católica são apresentadas como um
dos motivos que levaram a outra mudança de ordem institucional no grupo religioso
fundado pelo Mestre Gabriel. Trata-se da mudança do nome, de Associação Beneficente
União do Vegetal para Centro Espírita Beneficente União do Vegetal.
A substituição do nome ocorreu no final de 1970, quase um ano antes do
falecimento do Mestre Gabriel. Assim, passa a existir o CEBUDV- Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal. Brissac diz que o Mestre Gabriel e seus discípulos foram
“orientados” para realizar esta alteração, num período em que aconteceram novos conflitos
com a polícia de Porto Velho, a qual acabou por determinar que o grupo do Mestre Gabriel
não poderia fornecer o ca novas pessoas, além daquelas que já pertenciam ao culto. A
proibição permaneceu por alguns meses, até que se conseguiu uma sentença favorável a
um mandado de segurança impetrado pelos representantes da UDV (BRISSAC, 1999, pp.
75-6). Alguns membros do CEBUDV, entrevistados por Brissac, colocam explicitamente
que a designação “Espírita” surgiu porque muitas pessoas, naquela época, queriam “fechar
a União do Vegetal” (BRISSAC, 1999, p. 76).
Vale lembrar, aqui, que em outros estudos ressaltou-se, também, a relação
entre a cosmologia da União do Vegetal e a maçonaria (ANDRADE, 1995 e BRISSAC,
1999). Brissac, por exemplo, mostrou que muitos dos primeiros membros da UDV eram
maçons, constatando que alguns destes, mesmos depois de entrarem para o culto do Mestre
Gabriel, continuaram freqüentando as reuniões das lojas maçônicas durante vários anos,
sem sofrerem nenhum tipo de advertência ou punição deste último. Embora o autor não
possua dados para afirmar que o Mestre Gabriel tenha pertencido à maçonaria e
considerando que isto seja realmente improvável , ele coloca que o fundador da União
do Vegetal nunca desaprovou a aproximação com esta sociedade (BRISSAC, 1999, pp. 66-
7). Vimos, aliás, que alguns dos aspectos da estrutura ritual udevista se assemelham a
elementos maçônicos. Portanto, podemos supor que o Mestre Gabriel tenha se deixado
influenciar por alguns de seus discípulos que haviam sido maçons, no momento da
organização do conjunto ritual e doutrinário da UDV.
45
1.4 Centro Espírita União do Vegetal: demonstrativo de sócios e unidades
Dentre as “religiões ayahuasqueiras” brasileiras, o Centro Espírita Beneficente
União do Vegetal é a que tem mais fiéis. De estrutura centralizada e hierárquica, foi criada
em 1961, em Rondônia, pelo baiano José Gabriel da Costa (1922-1971), chamado Mestre
Gabriel. Sua doutrina é cristã e reencarnacionista, e eles chamam o chá de "ayahuasca" ou
de "Vegetal". A UDV manteve um ritmo lento de crescimento durante boa parte de sua
história e em 1998 (segundo censo da própria entidade) contava com pouco mais de seis
mil adeptos. Um pouco mais de uma década depois, um levantamento interno realizado
recentemente revelou que a instituição conta com 13 mil sócios, possui 140 unidades
(núcleos e pré-núcleos) localizadas em todos os estados do país, incluindo cinco nos
Estados Unidos e um na Espanha. Na Itália e na Alemanha existe “distribuição autorizada”
supervisionada pela sede geral em Brasília.
O antropólogo Sérgio Brissac, que pesquisou a UDV em sua dissertação de
mestrado no Museu Nacional, diz que o crescimento da religião está ligado ao próprio
"espírito do tempo" que vivemos. "Frente ao relativismo contemporâneo, a dinâmica do
ritual e a doutrina da UDV apresentam a alternativa de um conjunto sólido de verdades.
Além disso, uma busca por uma experiência intensa do sagrado, e a vivência com a
ayahuasca, unida ao ritual e aos ensinamentos, oferece essa oportunidade", diz. Ele não
aponta um perfil definido de freqüentador, mas nas grandes cidades predominam pessoas
de classe média e formação universitária (BRISSAC, 1999).
1.5 O Pré-Núcleo Sereno do Mar em São Luís - MA
O Pré-Núcleo Sereno do Mar foi o que escolhi para o trabalho de campo desta
dissertação. Para situar o leitor no ambiente que encontrei, cito a seguir as anotações que
fiz em meu diário de campo, no dia em que estive pela primeira vez no pré-núcleo:
A sessão estava marcada para as 20h30min, desta forma marquei com o meu
contato e guia, Silvio, para que nos encontrássemos, às 20h, do dia 03 de
setembro de 2008 (quarta-feira), na saída para a cidade de São José de Ribamar.
Às 19h55min ele chegou ao ponto marcado e nos dirigimos para o CEBUDV,
chegando lá aproximadamente às 20h10min.
Fui apresentado ao Mestre Representante, Sr Marcos, homem simpático e afável,
46
de conversa agradável e que sabe fazer-se amigo. Falei que escolhi realizar meu
trabalho de campo no
pré-
núcleo da UDV em o Luís e lhes disse as
motivações.
Quando chegamos, Silvio me mostrou o
pré-n
úcleo e tudo o que foi possível ver
da propriedade, pois a noite não nos permitiu ver muita coisa, mas me foi
possível perceber o cuidado e a beleza do lugar. Um belo cenário para encontros
da irmandade! Depois fui prontamente apresentado a vários irmãos e irmãs, os
quais se mostraram extremamente amigos e solícitos em ajudar-me em minha
pesquisa. Ficamos conversando até sermos chamados para a sessão.
Esse foi um tempo importante para que eu tivesse uma rápida visão acerca dos
participantes desse centro; pois, além, de ser possível perceber tratar-se de
pessoas de um nível social que permite a todos chegarem em seus próprios
carros, sendo a maioria deles carros novos e de luxo, com aqueles que conversei
e que me foi possível saber acerca de suas profissões destacou-se o fato de serem
profissionais liberais de formação universitária.
Considero que estas notas ajudam a esclarecer vários aspectos de meu trabalho
de campo. Algo que logo salta aos olhos é a acolhida que recebi dos participantes do pré-
núcleo. Em pouco tempo me senti à vontade com o grupo, com liberdade para me fazer
presente nas diversas atividades da “irmandade” e para perguntar nas entrevistas acerca de
tudo o que me parecesse relevante.
Outro aspecto que julgo importante de se destacar é o estilo cultivado dos
participantes do pré-núcleo, indivíduos pertencentes à classe média da cidade de São Luís,
a grande maioria com formação universitária e até pós-graduados.
Relacionado a isto, está o que se poderia qualificar de certo refinamento na
sensibilidade dos membros, perceptível na propriedade onde se encontra o Centro, no
cuidado com os jardins do sítio, nos gostos musicais, na refeição bem preparada, nos
assuntos das conversas, e na própria delicadeza com que me receberam. Estes aspectos que
aponto permitem que se tenha uma idéia de uma característica do trabalho de campo: foi
uma experiência agradável. É relevante esse elemento subjetivo: a interação prazerosa com
os participantes do Sereno do Mar gerou em mim uma empatia com o grupo estudado, da
qual estou consciente e que o desejo ocultar ao leitor. Se esta proximidade afetiva abriu-
me muitas portas e permitiu-me acesso a informações que outros não teriam, por outro
lado, certamente influenciou o meu enfoque. O tempo posterior ao trabalho de campo, a
reflexão antropológica sobre o material coletado propiciaram-me um distanciamento. Mas
reconheço-me livre da ilusão de uma neutralidade do etnógrafo, e sei que esta dissertação é
um olhar interpretativo, entre tantos possíveis, sobre esse objeto.
Como diria Geertz:
Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de”) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com sinais convencionais do
47
som, mas com exemplos transitórios do comportamento modelado (GEERTZ,
1978
, p.
20).
Evidentemente, parto do princípio adotado por ele de que o trabalho de campo
é uma busca acerca de sentidos ocultos em meio aos “textos sociais”
18
de vivência dos
participantes do CEBUDV. Portanto, uma busca que me permite somente construções
sobre construções de outras pessoas, ou seja, parto para a busca na certeza de que o
máximo a ser alcançado será uma construção de caráter pessoal em cima de interpretações
de outras pessoas a respeito do objeto o qual me proponho a estudar: a UDV.
1.6 A organização do Espaço no Templo do Pré-Núcleo
O Pré-Núcleo Sereno do Mar situa-se em área rural da Ilha do Maranhão, entre
os municípios de São Luís e São José de Ribamar, a aproximadamente 30 minutos de carro
do centro da cidade, à Rua das Pessoeiras, 100, Quintas do São João São José de
Ribamar. Os núcleos costumam estar localizados em áreas distantes das cidades, onde não
haja muito barulho ao redor e se possa ter um terreno amplo. O CEBUDV de São Luís tem
uma edificação central, que é chamada de Templo, cujo espaço principal é o Salão do
Vegetal. A estrutura material ainda está em processo de construção e expansão. Possui o
templo, dois banheiros (um masculino e um feminino), Casa de Preparo” (provisória)
que é uma espécie de barracão com uma pequena e tosca fornalha, onde o chá ayahuasca é
preparado ritualmente e a casa do caseiro que serve, também, como cozinha e espaço para
o lanche e convivência social. Atualmente está sendo construído o muro para dar maior
proteção ao patrimônio e os participantes tem se empenhado em adquirir recursos para
auxiliar nas obras; bem como, através de uma parceria com os produtores de flores da
cidade de Holambra SP, na primeira quinzena do mês de dezembro de 2009, ao efetuar
uma amostra e venda de flores na cidade São Luís, foi levantado dinheiro para a construção
da Casa de preparo definitiva.
Em meio a uma reserva de mata, encontra-se o Chacronal, uma área na qual
estão plantados os pés de chacrona. Mais ao fundo do terreno, está o plantio principal de
mariri, ainda que haja pés do cipó em vários pontos do sítio. Junto à entrada, situa-se a casa
18
Uso o termo para significar os valores e princípios estabelecidos pela experiência de vida dos participantes
do CEBUDV do Pré-Núcleo Sereno do Mar em São Luís.
48
do caseiro e o terreno todo (um sítio) está cercado por mata característica da ilha (nativa).
de se registrar que embora o Pré-Núcleo possua uma plantação de chacrona e mariri,
o material para a confecção do Vegetal ainda tem que ser importado, uma vez que são
necessários sete anos para se iniciar a colheita e o plantio ainda é recente (de
aproximadamente três anos). Desta forma, normalmente o Pré-Núcleo tem importado sua
matéria-prima do Estado do Pará.
As sessões são realizadas no Salão do Vegetal, com capacidade para
aproximadamente 90 pessoas. Em lugar de destaque do salão uma mesa retangular, com
um lugar à cabeceira a ela e quatro lugares nas laterais. Na cabeceira, de frente para a
assembléia, fica o Mestre Dirigente da sessão. À sua direita, fica o Mestre Assistente,
responsável pela ordem e a disciplina da sessão. Ao seu lado, fica o discípulo escalado para
fazer a leitura dos estatutos do Centro. À esquerda do Mestre Dirigente, fica um discípulo
que na sessão fauma explanação após a leitura dos estatutos. Os demais lugares à mesa
são ocupados por sócios dos vários graus hierárquicos.
Em frente à mesa e nos seus dois lados, distribuem-se os assentos dos demais
participantes, cadeiras com estrutura de ferro e fios plásticos de cor verde (popularmente
conhecidas por cadeiras de macarrão”), que possibilitam uma postura corporal mais
relaxada durante as quatro horas e quinze minutos de ritual. Atrás da mesa, fica apenas
uma fila de cadeiras, reservadas para os mestres. Os conselheiros e conselheiras, bem como
visitantes ou pessoas que bebem o Vegetal pela primeira vez ficam nas filas laterais, que
são duplas. Em frente à mesa está a maior parte das cadeiras, dispostas em várias fileiras.
Quanto a estas, não há critério especial para a sua ocupação, exceto que as cadeiras da
primeira fila, quando houver necessidade, destinam-se prioritariamente para visitantes ou
pessoas que bebem o Vegetal pela primeira vez. É muito enfatizada a necessidade de as
pessoas andarem no salão, durante a sessão, no sentido anti-horário. Esse é o “sentido da
força”
19
, a maneira como a força do Vegetal circula no salão e nas pessoas. É o mesmo
sentido em que o cipó mariri sobe nas árvores da floresta. Assim, é preciso seguir esse
sentido ao caminhar durante a sessão, para se estar em harmonia com essa força,
possibilitando assim que ela flua do melhor modo entre todos.
O espaço ritual é bem sóbrio, com poucos símbolos. As paredes são de
alvenaria a uma altura aproximada de 1,20 mt, deixando, portanto, o ambiente aberto e
19
Este sentido é considerado, pelos udevistas, como o sentido “correto e bom” porque seria o “sentido da
força”, esta última referindo-se ao poder de atuação do próprio Vegetal. Brissac diz que este é considerado,
também, o sentido em que o cipó sobre nas árvores (BRISSAC, 1999, p. 35).
49
colocando os fiéis em pleno contato com o exterior, pintadas na cor branca. O telhado,
muito alto, com estrutura de madeira bem feita e acabada e que retrata um trabalho de
cuidadoso e gosto refinado, coberto de telhas de amianto. Local extremamente simples,
mas de agradável conforto. Sobre uma mesa de madeira recoberta com toalha branca,
acima do lugar de quem dirige a sessão, um arco de madeira pintado de verde, com as
seguintes inscrições em amarelo: “ESTRELA DIVINA UNIVERSAL UDV”. E no arco
estão desenhadas, também em amarelo, algumas estrelas de cinco pontas e duas estrelas
com cauda de cometa. No centro da parede atrás da mesa, um quadro com a foto do
Mestre Gabriel, de sob um arco semelhante, tendo junto a si um copo de Vegetal; à
esquerda um quadro contendo a imagem do sol, da lua e de uma estrela e à direita um
quadro onde se lê a seguinte inscrição: “LUZ, PAZ, AMOR”. As entradas laterais e o
centro do templo em meio às cadeiras estão forrados por tapetes em cor azul. Na parede ao
lado esquerdo do lugar do Mestre Dirigente há um relógio. Na mesa, à direita do lugar do
Mestre Dirigente, um recipiente de cerâmica no qual se põe o Vegetal. Ficam na mesa
também jarras de água e copos para os participantes. O copo de água do Mestre Dirigente é
mantido cheio durante toda a sessão. No canto direito do salão, atrás da mesa e ao lado da
fileira de cadeiras destinadas aos mestres fica o aparelho de som utilizado para tocar as
músicas durante o ritual— gravação em CD — que pode ser instrumental, acompanhada de
voz, o estilo dependendo do perfil dos membros do grupo que realiza a sessão
20
, a qual é
ocupada pelo Mestre Auxiliar ou qualquer outro mestre (responsável por tocar as
músicas)
21
. Para maior clareza quanto à distribuição do espaço veja-se o seguinte:
20
O estilo destas músicas realmente pode variar bastante. Assim, pode-se optar por forró, new-age, música
erudita, embora geralmente se dê preferência para a MPB e no caso do Pré-Núcleo Sereno do Mar, observa-
se um uso acentuado de músicas maranhenses.
21
O som poderá ser controlado por qualquer discípulo, embora o Pré-Núcleo prefira sempre utilizar um
mestre para esta função, mas a escolha e liberação dessas músicas é sempre do Mestre Representante, pois
isso faz parte de sua competência, visto que as músicas são a extensão de sua palavra e trazem mensagens
específicas.
50
PLANTA DO SALÃO DO VEGETAL DO PRÉ-NÚCLEO SERENO DO MAR
LEGENDA
Foto do Mestre Gabriel
Quadros aos lados esquerdo e direito da foto do Mestre Gabriel
Aparelho de som
Filtro com o Vegetal
Relógio
Arco e Cadeira do Mestre Dirigente
Mesa
Fila de Cadeiras dos Mestres
Cadeira do Mestre Representante
Filas de Cadeiras dos(as) Conselheiros(as) e visitantes
Filas de Cadeiras dos(as) discípulos(as)
Portas de entrada e saída
Sentidos de circulação
Ilustração 2: Croqui do salão do Vegetal
51
1.7 A Sessão de Escala e seu Funcionamento
Para as sessões realizadas no Salão do Vegetal, os membros da UDV vestem
uniformes. Os discípulos do sexo masculino usam calça branca com uma camisa verde
com as letras UDV bordadas em branco no bolso. As mulheres vestem calça amarela e uma
camisa igual à dos homens. Os(as) discípulos(as) do Corpo Instrutivo têm o mesmo
uniforme com a diferença de que o bolso de sua camisa verde tem as letras UDV em
amarelo. Os conselheiros e conselheiras têm em sua camisa, junto às letras UDV as letras
CDC (Corpo do Conselho). Os mestres vestem uma camisa que além das letras UDV e
CDC têm bordada uma estrela amarela. O Mestre Assistente porta sobre seu uniforme uma
faixa branca transversal com as seguintes letras em verde: UDV É OBDC. O Mestre
Representante do Núcleo veste uma camisa azul, com as letras UDV e CDC e a estrela.
Assim, olhando-se para o conjunto dos participantes, as cores do uniforme da União do
Vegetal são as mesmas da bandeira brasileira: verde, amarelo, azul e branco.
As sessões de escala, que são destinadas a todos os sócios, acontecem
quinzenalmente, no primeiro e no terceiro sábados do mês. Ainda que a etnografia de uma
sessão fosse grandemente interessante, com a descrição dos assuntos tratados pelo Mestre
Dirigente, as chamadas realizadas e a participação dos sócios, devido à limitação relativa
ao caráter reservado dos ensinos da UDV, limitar-me-ei a apresentar aqui a estrutura, o
esquema de uma sessão de escala.
A sessão se inicia pontualmente às 20 horas, com o pedido de atenção a todos,
para a distribuição do Vegetal. A assistência se coloca de pé, em silêncio. A distribuição se
hierarquicamente: o Mestre Dirigente da sessão serve a si e aos outros mestres, depois
aos(às) conselheiros(as), em seguida ao Corpo Instrutivo, aos membros do Quadro de
Sócios e por fim aos visitantes não uniformizados. As pessoas aproximam-se da mesa
formando uma fila que vem pela direita e sai pela esquerda (do ponto de vista de quem está
em frente à mesa), ou seja, no sentido da força.
Após a distribuição do chá, os mestres, conselheiros e discípulos do Corpo
Instrutivo o bebem. Depois, o chá é bebido pelo segundo grupo, os sócios que não são do
Corpo Instrutivo e aqueles que o são sócios. Na medida em que o Pré-Núcleo Sereno do
Mar conta hoje com 53 sócios oficiais
22
e tem em torno de 64 pessoas que bebem o
Vegetal, esta primeira etapa do ritual, a distribuição do chá, se estende por
22
Sócios cadastrados conforme o padrão de vigência da UDV.
52
aproximadamente 20 minutos.
Tendo todos bebido o Vegetal, os participantes se sentam. O orador do núcleo
anuncia os visitantes de outro núcleo ou alguma pessoa que esteja bebendo o Vegetal pela
primeira vez, e deseja a todos “uma sessão plena de Luz, Paz e Amor”. O discípulo sentado
ao lado do Mestre Assistente lê então trechos dos documentos escritos da UDV, um
conjunto de normas e regulamentos, a maioria dos quais escritos ainda no tempo do Mestre
Gabriel. Tal leitura se prolonga por aproximadamente vinte minutos. É o tempo para que o
Vegetal comece a fazer efeito. É lido o Regimento Interno do Centro Espírita Beneficente
União do Vegetal, os Boletins da Consciência, o artigo Convicção do Mestre e os Mistérios
do Vegetal, texto em forma de acróstico falando do mariri e da chacrona. Após a leitura
dos documentos, o(a) discípulo(a) do Corpo Instrutivo ou Conselheiro(a) ou Mestre
sentado(a) à esquerda do Mestre Dirigente faz a explanação, um comentário sobre algum
dos pontos abordados nos documentos lidos. Nesse momento, a maioria dos participantes
está começando a sentir a burracheira, palavra que para a UDV significa “força
estranha” e é usada para designar o efeito sentido pelas pessoas que bebem a Ayahuasca.
O Mestre Dirigente faz então as chamadas de abertura. Em meio a um silêncio
absoluto dos presentes, ele entoa hinos que têm importância fundamental no ritual. As
chamadas, como o nome indica, chamam a burracheira, a força estranha do Vegetal, para
que ela atue nos presentes. Assim, é através das chamadas que se orienta a sessão, ou seja,
que se canaliza o efeito do chá para os objetivos espirituais visados pela União do Vegetal.
Os dois pedidos mais presentes nas chamadas são luz e força. A luz, que está relacionada à
chacrona, é o princípio feminino presente no chá, a dimensão do conhecimento espiritual.
A força, atribuída ao mariri, é o princípio masculino.
Após as três primeiras chamadas, o Mestre Dirigente levanta-se e, caminhando
no sentido da força, pergunta individualmente para as pessoas sentadas à mesa e para os
Mestres e Conselheiros(as) ao redor dela se eles têm a burracheira. Tendo perguntado aos
que estão assentados próximos à mesa, o Dirigente em seguida se dirige à assembléia,
fazendo a mesma pergunta de uma vez para todos aqueles aos quais ele ainda não
perguntou. E a assembléia responde afirmativamente, em coro. Esse rito é denominado
ligação da sessão.
Feita a ligação da sessão, o Dirigente volta a se sentar e faz a Chamada do
Mestre Caiano. Caiano é o primeiro hoasqueiro, a primeira pessoa que bebeu o Vegetal.
Pede-se a presença de Caiano para que a própria burracheira possa atuar, trazendo luz para
53
os caianinhos, ou seja, os seus discípulos, os membros da UDV. Esta chamada é central
para a abertura da sessão e nunca pode ser omitida. Logo depois, é o Mestre Representante,
ou algum mestre designado por ele, quem faz a quinta chamada de abertura. Na seqüência,
é comum escutar-se música instrumental. Ouve-se uma música cuidadosamente escolhida
para chamar burracheira”. Passam-se uns cinco minutos ao som da música, tempo no
qual as pessoas costumam sentir a burracheira crescer. Depois, o Mestre Dirigente costuma
fazer alguma outra chamada e em seguida dirige-se aos participantes, introduzindo algum
tema que será tratado na sessão. E ele diz que o oratório está aberto”, ou seja, aqueles
que desejarem podem falar, perguntar, ou fazer chamadas, sendo necessário que antes se
peça licença ao Mestre Dirigente.
A sessão segue com ampla participação dos presentes, embora ninguém possa
manifestar-se (seja para falar algo aos presentes, perguntar ao mestre ou fazer chamadas)
sem que antes tenha recebido autorização do mestre para tanto. Percebe-se, claramente
aqui o que Weber chama de Dominação Tradicional (onde a autoridade é, pura e
simplesmente, suportada pela existência de uma fidelidade tradicional); o governante é o
patriarca ou senhor, os dominados são os súditos e o funcionário é o servidor. Presta-se
obediência à pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma dignidade pessoal que se
julga sagrada. Todo o comando se prende intrinsecamente a normas tradicionais. A criação
de um novo direito é, em princípio, impossível, em virtude das normas oriundas da
tradição. Por isso, trata-se uma dominação estável, devido à solidez e estabilidade do meio
social, que se acha sob a dependência direta e imediata do aprofundamento da tradição na
consciência coletiva. Desta forma, ninguém ousa afrontar tal ordem e todos se submetem,
fazendo com que a sessão transcorra sem nenhum sobressalto ou atitude que possa
atrapalhar a concentração (WEBER, 1995).
Não é por acaso que o Mestre Marcos (Pré-Núcleo Sereno do Mar) afirmou
que a UDV em sua estrutura religiosa hierárquica é uma “monarquia/patriarcal”, onde
existe um rei (o Mestre Gabriel) que é o instrutor e de quem emana as doutrinas, os
ensinos, a conduta, a ordem e os mestres são aqueles que em cada unidade fazem o papel
de “pais”, sendo que tanto as ordens de um rei, quanto as de um pai não podem ser
contrariadas, mas servilmente acatadas. O que se percebe é que uma atitude bastante
ambígua nessa estrutura, pois em vel administrativo há, em certa medida, uma
democracia, mas em nível espiritual há monarquia e patriarcado. Tanto que se torna
necessário, inclusive a existência de um mestre para manter a ordem e disciplina. Em nível
54
espiritual esse mestre é autoridade máxima da unidade, tornando-se o juiz que julga e toma
decisões. Segundo as palavras do Mestre Gabriel, citadas pelo Mestre Marcos, enquanto
juiz “O mestre tem o dever de dar a sentença do complicado na lei da União”. Ele tem que
julgar e caminhar pela verdade, por mais complicado que seja ele tem o dever de seguir a
lei, a ordem, a verdade e a luz, por isso suas palavras e decisões não podem jamais ser
contrariadas. Uma palavra de ordem na União do Vegetal é “obediência”, todo o discípulo
tem o dever de obedecer. Tem que se comprometer com a transformação pessoal e com a
obediência, não pode seguir segundo o seu desejo, mas tem que se submeter à ordem e
disciplina da UDV.
São feitas ao Mestre Dirigente perguntas bem diversificadas, desde questões a
respeito da doutrina da UDV, passando por outras acerca do significado de determinada
palavra numa chamada, até perguntas a respeito do modo de agir dos discípulos no
cotidiano, além de questões mais filosóficas do tipo “o que é a verdade?”. Às perguntas
vão se intercalando chamadas e músicas. As canções brasileiras que se ouvem na sessão
tocam temas relativos ao agir humano, como o valor da amizade, da retidão, do amor, da
harmonia, temas relativos à natureza, ou temas mais propriamente religiosos: Deus, Jesus
Cristo, Nossa Senhora. É de se registrar que são tocadas muitas músicas do cenário musical
maranhense.
Quando a sessão se encaminha para a sua conclusão, se tornam mais
freqüentes as falas de participantes da sessão, que se levantam e vão para frente dirigir
palavras à irmandade reunida. São várias vezes testemunhos sobre a importância da UDV
na vida das pessoas, expressões de gratidão, recordações de aniversários de nascimento ou
de início na União. A seguir vêm alguns avisos práticos. Nesta parte da sessão não se
fazem mais chamadas. São lidos os boletins de ocorrência dos núcleos de todo o Brasil,
informando quem foi convocado para ser conselheiro(a) ou mestre, assim como
anunciando as pessoas que foram afastadas do Quadro de Mestres, do Corpo do Conselho,
do Corpo Instrutivo ou da “comunhão do Vegetal”.
Às 23 horas e 30 minutos, é feita pelo Mestre Dirigente a Despedida do Mestre
Caiano, uma chamada para despedir a burracheira. Então, o Dirigente se levanta e faz o
fechamento da ligação, andando no sentido inverso ao sentido da força e perguntando às
mesmas pessoas a quem se dirigiu no início da sessão se foi boa a burracheira. Após
receber deles a resposta afirmativa, o Mestre Dirigente faz as mesmas perguntas para todos
os outros membros da assembléia de uma só vez. O(a) discípulo(a) que fez a explanação dá
55
o aviso do dízimo, convidando os participantes a doarem uma quantia não estipulada
para a compra de material de limpeza para a higiene do salão”. Nesse momento é feito
um intervalo de aproximadamente 25 minutos, durante o qual as pessoas podem se levantar
e conversar. É um tempo para que a burracheira, o efeito do chá, passando e as pessoas
possam ir gradualmente “aterrissando”, retornando ao estado de consciência “normal”.
Quando faltam por volta de cinco minutos para a meia-noite, todos voltam ao
salão e fazem silêncio. É feito o Ponto da Meia-Noite, chamada que salienta a importância
do tempo, voltando a atenção dos participantes para os ponteiros do relógio e marcando o
início de um novo dia com a renovação trazida por uma sessão de Vegetal. São dados mais
alguns avisos e em seguida, faz-se a chamada de fechamento. A 0 hora e 15 minutos
necessariamente conclui-se a sessão. E o Mestre Dirigente anuncia que "por hoje a sessão
está fechada".
Após a conclusão, as pessoas se levantam e têm um tempo intenso de inter-
relacionamento, partilhando as suas respectivas experiências durante a sessão. Na mesa do
salão é servido um lanche com refrigerantes, trazido pelo grupo que no dia estiver escalado
para essa função. A conversa costuma se estender por mais de duas horas, até que as
pessoas vão retornando para as suas casas.
1.8 Outras Atividades do Centro
Além das sessões de escala, realizadas nas noites dos primeiros e terceiros
sábados do mês, uma série de atividades propostas para a “irmandade”. Primeiramente,
o recrutamento de pessoas para trabalhos a serem realizados aos domingos ou feriados.
São dias em que desde a manhã os discípulos costumam ir para o sítio para realizar os
trabalhos necessários para a sua manutenção: cuidar do plantio de mariri e chacrona, dos
jardins e das dependências do pré-núcleo. Como as pessoas vão de manhã, é preciso que
algumas se dediquem a preparar as refeições: o café, o almoço, lanches, etc. uma
divisão do trabalho segundo o gênero: as atividades na cozinha são tarefa das mulheres.
Mas, ainda que para estas eu tenha visto mais o trabalho feminino, uma tendência de
partilha desse trabalho com os homens. Assim como, muitas vezes, as mulheres cuidam,
também, de atividades relacionadas ao plantio e cuidado do mariri, chacrona e jardins.
Mas o trabalho nos dias de escala não se limita ao exposto acima, porque o pré-
56
núcleo está em construção. Assim, todos os discípulos são motivados pela direção e por
aqueles que se colocam mais à frente das atividades a estarem em mobilização para a
construção. Isso significa disponibilidade para uma série de atividades: desde mutirões
para fazer diretamente alguma etapa da obra até a idealização e execução de eventos para a
arrecadação de fundos para a construção. Em algumas sessões ouvi o Mestre Representante
e o Presidente falarem da necessidade da participação dos discípulos e de maior empenho
nos trabalhos concretos. Não é de se surpreender que haja algumas dificuldades nesse
sentido, na medida em que o perfil dos participantes é de indivíduos que em sua maioria se
dedicam a trabalho intelectual e de pouco esforço físico.
O CEBUDV, como a sua própria denominação indica, tem uma dimensão de
beneficência. Assim, nos núcleos existe o Departamento de Beneficência. Eles auxiliam
famílias necessitadas em doação de alimentos para as pessoas da região, bem como, tem
um trabalho de atendimento em um bairro afastado da cidade de São Luís, que inclui
atendimento médico, odontológico, de orientação sanitária em geral. No entanto, alguns
dos sócios reconhecem que o pré-núcleo ainda precisa expandir muito as suas iniciativas
de solidariedade com os mais necessitados.
Mas a agenda dos sócios não se limita ao descrito até aqui. também as
atividades propriamente religiosas, que não se restringem às sessões de escala. A mais
significativa delas é o Preparo de Vegetal. Periodicamente, aproximadamente a cada três
meses, é necessário preparar ritualmente o chá Ayahuasca. É uma atividade exigente, que
demanda por volta de três dias de trabalho contínuo e um preciso conhecimento prático,
para colheita do mariri (o que na maioria das vezes se em outro local), colheita da
chacrona, bateção” (maceração) do cipó, lavagem das folhas de chacrona, disposição dos
dois vegetais em camadas dentro de grandes tachos acrescidos de água, acompanhamento
da fervura do líquido durante horas e horas, coleta e armazenagem do chá preparado, que
será bebido nas sessões dos meses seguintes.
O Preparo é o grande acontecimento da UDV, momento em que se reforçam os
laços de solidariedade entre os participantes através da partilha do trabalho comum e da
convivência informal e continuada. É também um momento que muitos discípulos
apontam como de aprofundamento da experiência religiosa, o qual acontece sob a
influência do estado alterado de consciência propiciada pela Ayahuasca, a qual é ingerida
várias vezes ao longo do Preparo. Alguns apontam para uma dimensão alquímica do ritual:
prepara-se um chá e simultaneamente o discípulo prepara-se interiormente. Participam do
57
preparo tanto homens como mulheres sendo que, diferentemente de outras “religiões
ayahuasqueiras”, na UDV não a divisão deste trabalho por sexo em razão dos aspectos
masculino e feminino da raiz e da folha. A divisão é feita somente em razão da dificuldade
e do esforço desprendido para a execução de cada tarefa, uma questão meramente física.
Esse trabalho tem sido algumas vezes, feito em parceria com os núcleos do Piauí e Ceará
com a finalidade de maior entrosamento e comunhão entre a irmandade destas unidades,
por isso, nessas oportunidades torna-se necessárias viagens para o preparo do chá, o que
faz com que a taxa de preparo sofra alterações, ficando bem mais caras que as
convencionais. São viagens concorridíssimas, onde a irmandade aluga um ônibus, o qual
tem suas vagas rapidamente preenchidas com a venda das passagens para os interessados.
Há que se notar que essa atividade demanda grande desprendimento do discípulo que, além
da Taxa de Preparo, e do investimento dos valores relativos à viagem em si, requer
dedicação de tempo e disponibilidade para passar alguns dias de má acomodação, uma vez
que a despeito das distâncias a serem percorridas para as viagens, a acomodação dos
participantes visitantes é feita nos próprios núcleos, tendo estes que dormirem em sua
maioria em redes. Mas, nada disso tira o entusiasmo, percebido na irmandade em participar
desses eventos. Embora, no decorrer de minha pesquisa de campo tenha havido duas
viagens dessa natureza não fui convidado, pois sempre faltavam vagas para os próprios
sócios e, portanto, não pude participar de nenhuma delas.
Um rito religioso de grande relevância para os discípulos é a Sessão Instrutiva,
que se realiza a cada dois meses, em um domingo, ao meio-dia, com aqueles discípulos que
foram convocados pelo Mestre Representante para formar o Corpo Instrutivo do Pré-
Núcleo. É o momento da UDV mais propriamente iniciático, no sentido de constituir uma
esfera de segredo reservada aos seus participantes.
Todo esse conjunto de atividades exige dos participantes do Sereno do Mar
uma considerável parcela de seu tempo. Essas pessoas, na medida em que conheceram a
UDV e aderiram a sua proposta, foram solicitadas pela própria dinâmica da interação dos
membros do pré-núcleo a realizar mudanças em suas vidas que lhes permitissem responder
a essa demanda de participação.
58
2 MESTRE GABRIEL E A FUNDAÇÃO DA UNIÃO DO VEGETAL
23
Em 22 de julho de 1961, José Gabriel da Costa fundou a União do Vegetal, na
Amazônia, em região próxima à fronteira entre o Brasil e a Bolívia. No ano de 1965, José
Gabriel da Costa mudou-se para Porto Velho, onde consolidou a União recém-fundada.
Estando o Mestre Gabriel ainda vivo foi fundado o núcleo de Manaus e em 1972, um ano
após seu falecimento, já se inaugurou o núcleo de São Paulo. Inicio apresentando a
trajetória de José Gabriel da Costa e relacionando-a com aspectos da especificidade
cultural brasileira. Acompanhando o percurso de sua vida, é possível tecer uma ampla rede
de relações com diversas configurações culturais presentes na sociedade brasileira.
Ilustração 3: Mestre Gabriel. Foto utilizada nos templos da UDV
Segundo declarações encontradas nos registro da UDV, no dia 10 de fevereiro
de 1922, ao meio-dia, na Fazenda Arroz, no município de Coração de Maria, próximo a
Feira de Santana, na Bahia, nasce José Gabriel da Costa. Filho de Manuel Gabriel da Costa
e Prima Feliciana da Costa. José nasce em uma numerosa família de treze irmãos: João,
Dionísio, Otacílio, Pedro, Romão, Maria, “Miúda”, José Gabriel, “Sinhá”, Alfredo,
23
Todas as citações relativas à vida do Mestre Gabriel e à fundação da União do Vegetal foram conseguidas
a partir de cópia de documentos internos da UDV, gentilmente emprestadas por um Mestre da UDV, com o
compromisso de que deles não se fizessem cópias, mas apenas citações. Estes documentos foram
elaborados pelo Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel, formado por discípulos
conduzidos ao Quadro de Mestres pelo autor da União e outros, convocados posteriormente em virtude da
morte dos mais antigos. Segundo os udevistas, este conselho se destaca pela sua importância para a
preservação da transmissão fiel dos ensinamentos do Mestre Gabriel.
59
Antônio, Maximiano, Hipólito.
De acordo com registros históricos da UDV, desde pequeno, José já era visto e
referido pelos seus familiares como alguém especial. Contam que ainda criança, ele
auxiliou uma mulher com dificuldades de parto. O bebê se encontrava mal posicionado e a
parteira temia que morressem mãe e filho. José entra no quarto, manda todos saírem, tranca
a porta e logo em seguida a destranca. Quando o menino abre a porta, simultaneamente
nasce a criança.
Na cada de 20, o menino José cresce em um meio rural fortemente marcado
pelo catolicismo popular. Uma recordação que narram de sua infância é que o “garoto ia
aos domingos à igreja de sua cidade e levava com ele um barbante. Durante a missa,
amarrava as pessoas umas às outras, pelos passantes das roupas, sem que elas
percebessem” (CENTRO DE ESTUDOS MÉDICOS DA UDV, 1993, p. 1)
24
. Também
conta o seu irmão Alfredo:
Minha mãe era muito devota e zeladora da igreja onde a gente congregava e ia à
missa. E ela tinha o capricho de levar os filhos pra fazer a primeira, segunda e
terceira comunhões. E justamente, não sei se na segunda ou na terceira comunhão,
ele representou alguma coisa ao padre, que eu não sei o que possa ter sido, que o
padre ficou abismado. Ele se confessou e na confissão contou ao padre um assunto
religioso. Não foi uma história qualquer, certamente, que o padre ficou espantado.
Depois, o padre passou a dizer à minha mãe: “Dona Prima, aquele menino seu é
qualquer coisa. A senhora cuide daquele menino, que ele é bem diferente. Ele me
representou um ato que eu fiquei bobo. Não sei. Onde é que aquele menino
esteve?” E minha mãe: “Não, ele não sai de casa, trabalhando junto com os outros,
indo à escola, escolinha fraca...” E o padre: “É. Aquele menino tem qualquer
coisa”. Chamava-se Padre Orlando, um italiano (UDV. Memórias, v. I
, p.
59)
25
.
Adiante, continua Alfredo a falar da participação de seu irmão nas devoções do
catolicismo popular baiano:
Ele não era homem de andar com o nome de Deus na boca. Mas ele gostava de
rezar. Nossa tia era uma rezadeira, Tia Rosa. Rezadeira de terço naquelas casas.
Então o pessoal vinha chamá-lo pra rezar. E ele, por ter voz bonita pra cantar - e lá
tinha aqueles benditos - minha tia levava ele. E ele tinha aquele catecismo que os
padres davam pra gente se preparar. Pois aquele catecismo ele lia de cor. E sabia
aquela ladainha, Salve Rainha. Ele rezava cantando. O pessoal vinha sempre
chamar pras novenas de Santo Antônio e as do mês de Maria, que eram dois
meses de festa. Ele acompanhava tudo. Então, era uma pessoa devota. em casa
tinha uma grande festa, que meu pai comemorava mesmo. Era aquela chegança.
Era o 6 de janeiro. Chamava-se marujada. E José era um dos marujos. Eles
representavam aqueles tempos de Reis Magos (UDV. Memórias, v. I
, p.
65).
Nas chamadas, hinos entoados durante o ritual da União do Vegetal, há
24
O texto continua: “José Gabriel da Costa - Mestre Gabriel era esse menino. Fundou a União do Vegetal
para continuar unindo as pessoas.”
25
Entrevista de Alfredo Gabriel da Costa a Edson Lodi, em 17 de abril de 1987, na Estância Centro-Oeste.
(UDV. Memórias, v. I
, p.
59).
60
referências constantes a Jesus e a santos católicos: a Virgem da Conceição, São João
Batista, a Senhora Santana, São Cosme e São Damião. E até hoje o dia 6 de janeiro, Dia de
Reis, é celebrado na UDV.
Aos 13 anos de idade, em 1935, emprega-se num estabelecimento comercial.
Aos 18 anos, presta serviço militar voluntariamente na Polícia Militar da Bahia, chegando
em poucos meses à patente de cabo de esquadra. Segundo seu irmão Antônio, atualmente
também mestre na UDV, José Gabriel “conheceu todas as religiões, conheceu os terreiros
de Salvador, andou por todas as religiões procurando a realidade”
26
. Segundo outro mestre,
José iniciou na “ciência espírita com apenas 14 anos de idade”
27
. Provavelmente, esta
informação refere-se à participação de José em terreiros de candomblé, e não em centros
kardecistas, com os quais, entretanto ele também entrou em contato, só que posteriormente,
em Salvador. Em 1942, José Gabriel passou a morar em Salvador
28
.
Segundo o pesquisador Afrânio Patrocínio de Andrade, que em 1995 fez uma
dissertação de Mestrado em Ciências da Religião, na Universidade Metodista de São
Paulo, acerca da União do Vegetal, José Gabriel freqüentou sessões espíritas kardecistas na
Bahia (ANDRADE, 1995, p. 170). Foi, aliás, em Salvador que teve início o espiritismo
kardecista no Brasil, no ano de 1865. Luís Olímpio Teles de Menezes fundou nesse ano o
centro espírita Grupo Familiar do Espiritismo. De acordo com Patrocínio de Andrade,
certos temas recorrentes na União do Vegetal poderiam ter sido colhidos do espiritismo
kardecista. Antes de qualquer coisa, a visão reencarnacionista, um dos eixos fundamentais
da visão de mundo da UDV. Assim como o lema “Luz, Paz e Amor”, denominado o
“símbolo da União”, poderia provir dos temas espíritas da “luz interior”, da “paz de
espírito” e do amor ao próximo” (ou caridade). A própria ênfase na “União” é freqüente
entre os espíritas no Brasil (ANDRADE, 1995, p. 170).
Segundo um mestre que conviveu com ele, José “foi considerado pelos
prosadores populares um dos melhores poetas da região; como cantador repentista teve
sucesso inclusive em Alagoas e Sergipe”
29
. Também se destacou na capoeira, chegando a
ser considerado um dos melhores capoeiristas do Nordeste. O livro de Ruth Landes, A
cidade das mulheres, nos auxilia a traçar um panorama dos ares soteropolitanos da década
de 30, que José tantas vezes respirou. A autora é levada por Edison Carneiro para assistir
26
Depoimento de Antônio da Costa, (UDV. Memórias, v. I
, p.
59).
27
Depoimento de Hilton Pereira de Pinho (UDV. Memórias, v. I
, p.
2).
28
Entrevista de Alfredo Gabriel da Costa (UDV. Memórias, v. I
, p.
49).
29
Depoimento de Hilton Pereira de Pinho(UDV. Memórias, v. I
, p.
49).
61
uma capoeira. Ela descreve detalhadamente a seqüência do jogo, e em certo momento,
observa: “silenciados os ecos do desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e
corriam sem descanso em sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o
campeão à frente com os braços levantados” (LANDES, 1967, p. 117. Grifo meu). É
interessante notar que no ritual da UDV a circulação das pessoas no salão se faz também
no sentido anti-horário, pois este é o “sentido da força”. Na capoeira, José cultiva uma
série de habilidades postas em prática posteriormente, em suas experiências de
incorporação nos toques de caboclo como Sultão das Matas. Do mesmo modo, tais
habilidades também foram exercitadas como Mestre da UDV.
Estaria relacionada à capoeiragem uma das explicações possíveis, apresentada
por familiares, para a viagem do jovem José da Bahia para o Norte. De acordo com relato
de seu filho Carmiro Gabriel da Costa, em 1943, José envolve-se num conflito. Um amigo
seu, de nome Mário, tem o pisado por um policial. José Gabriel “compra a briga do
Mário”. Este foge e os policiais seguram José. Num golpe de destreza, ele consegue se
desvencilhar dos policiais. Segue para um navio, para onde tinha ido se refugiar o amigo
Mário. Os dois se alistam no Exército da Borracha e rumam para o Norte no navio Pará,
da frota do Lloyd Brasileiro.
Tudo indica que Mário era companheiro de capoeira de José Gabriel. No
mundo da capoeiragem na época, a ética dos grupos sublinhava a importância da
solidariedade e fidelidade entre os camaradas. E eram freqüentes os conflitos entre os
grupos, com a polícia ou com indivíduos de outros segmentos da sociedade. Tais fatos são
referidos na UDV como um esboço da preocupação de José Gabriel com a “justiça”. Sua
participação na capoeiragem em Salvador não conflita com seu engajamento profissional,
primeiramente como comerciário e depois como enfermeiro.
Chegando a Manaus, José Gabriel e Mário embarcam no navio Rio Mar, com
destino a Porto Velho, aonde chegam “em 13 de setembro de 1943, às 20 horas; neste
mesmo dia estava sendo festejada a criação do Território do Guaporé”
30
. Os dois vão
juntos para o trabalho na seringa e fazem um “pacto de amigo”, de se separarem pela
morte. Como narra Carmiro:
Quando ele veio da Bahia, ele veio com um amigo dele chamado rio. E eles
fizeram um pacto de amigo de se separar com a morte. E vieram pra aquela
região, a região do Alto Guaporé. E naquela época os patrões de seringal
30
Hilton Pereira de Pinho (UDV. Memórias, v. I
, p.
2).
62
levavam os seringueiros pra cortar a borracha e na hora de tirar o soldo, que é
o valor que a pessoa tem a receber do patrão, eles mandavam os capangas pra
tirar o soldo. [...] Mas não era bem isso, não, ele ia lá, matava o seringueiro e
contratava outro. O cara trabalhava e pagava com a vida. [...]
Aí ele [Gabriel] disse: “- Mano nós vamos se embora”.
“- Se embora?
“- Nós vamos se embora porque amanhã os capanga do gerente vai vir aqui e vai
matar nós dois. E contou a história pra ele”.
“- Gabriel, tu vai, que eu não posso andar”.
Ele disse: “- Eu lhe carrego!”
“- Mas rapaz, tu vai te atrasar.
“- O pacto que nós temos é nos separar com a morte. Tu ainda está vivo. Quando
tu morrer eu te enterro”
31
.
José Gabriel cumpre até o fim esse pacto, chegando a carregar Mário nas costas
por vários quilômetros. Quando o doente morre, seu amigo sozinho o enterra na floresta.
Tendo chegado ao Território do Guapo
32
, atual Estado de Rondônia, José
Gabriel se inseriu num ambiente com uma configuração ecológica e sócio-cultural bem
distinta da Cidade de Salvador. O extrativismo da borracha, depois de seu período de
boom, entre 1890 e 1912, havia em seguida atravessado uma fase de declínio, devido à
concorrência no mercado internacional da borracha extraída na Ásia. Com a Segunda
Guerra Mundial, apresentou-se a necessidade de borracha para os exércitos Aliados. Com a
assinatura de acordos com os Estados Unidos, o Governo Vargas iniciou uma ampla
campanha de recrutamento de trabalhadores, principalmente nordestinos, para a extração
gomífera no Norte. Em 30 de novembro de 1942, foi criado o Serviço Especial de
Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, SEMTA, que, no período de menos de um
ano durante o qual funcionou, teria encaminhado 13 mil pessoas, segundo um depoimento
de seu chefe
33
. Essa agência foi substituída pela Comissão Administrativa de
Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia, CAETA, que funcionou até 1945 e
teria enviado à Amazônia, de acordo com um relatório, 24.300 nordestinos. Assim, ainda
que haja outras estimativas numéricas, segundo esses dados oficiais, teriam sido levadas
para o Norte pelo SEMTA e pela CAETA um total de aproximadamente 40 mil pessoas
(MORALES, 1999, p. 88-92).
No ano de 1943, José Gabriel integra essa massa de trabalhadores nordestinos
que se lançam como “brabos” nos seringais amazônicos. “Brabo é gente que nunca cortou
31
Depoimento de Carmiro Gabriel da Costa, filho de JoGabriel da Costa, em 4 de novembro de 1995
(UDV. Memórias, v. I
, p.
64).
32
A respeito do Território, vide a dissertação de mestrado em história de Emanuel Pontes Pinto, Criação do
Território Federal do Guaporé: fator de integração da fronteira ocidental do Brasil (PINTO, 1992).
33
Depoimento de Paulo de Assis Ribeiro, Chefe do SEMTA, à CPI acerca dos soldados da borracha em 13
de agosto de 1946 (MORALES, 1999
, p.
89, nota 6).
63
seringa, nunca andou na floresta. Sofremos muito, como brabo” - declara Pequenina,
esposa de José Gabriel
34
. O sofrimento daqueles homens, submetidos a condições de vida e
trabalho extremamente penosas, em um ambiente desconhecido, sem o auxílio
governamental prometido pela propaganda oficial, ficou bem marcado na memória dos
sobreviventes da “batalha da borracha”. A antropóloga Lúcia Arrais Morales, em sua tese
doutoral a respeito dos soldados da borracha, recolheu o seguinte depoimento, de um Sr.
Chico, ex-integrante do Exército da Borracha, que bem se assemelha ao da esposa de José
Gabriel:
Saímo de Manaus de noite. [...] Nós cheguemo lá, o cabo disse: ‘aqui veio 35
homens para você, pra seu pai’. [...] a casa dele era bem pequenininha. Num
tinha onde a gente dormir. Dormimo no teto mermo. Carapanã! Carapanã, e
agora, a comida? Tudo brabo, tudo! A gente já tinha deixado a Companhia
[SEMTA]. fiquemo sofrendo. Fiquemo jogado que nem cachorro na beira do
rio. [Qual?] era o Solimões acima de Tefé. eu disse: ‘ombora pessoal! vamo
meu povo!, bora cuidar!, bora se virar’. embarquemo numa canoa veia
[velha], jogada por ali, furada. Arremendamo com pano, com vara. Outros
pegaram pau, pedaço de tauba e fumo procurar colocação pra cortar seringa
(MORALES, 1999
, p.
236).
Morales observa que aqueles que conseguiram sobreviver a condições tão
adversas foram homens de significativa inteligência e iniciativa, que conseguiram adaptar
seus esquemas de percepção e recursos cognitivos à nova realidade em que se
encontravam:
Era a questão da sobrevivência mesma que estava em jogo e, por isso,
precisavam agir de forma conseqüente. Não ficaram à mercê dos
acontecimentos, esperando uma ajuda externa. [...] É frente a isso que o Sr.
Chico diz: ‘ombora pessoal! bora se virar!’. Adotam, então, uma linha de ação
onde predominam a iniciativa e a coragem. Onde prevalecem a concentração dos
recursos da percepção, da memória e da atenção para dirigir esforços na
descoberta de meios capazes de resolver a questão (MORALES, 1999
, p.
243).
Esboça-se aqui a construção da figura de José Gabriel como um homem de
aguda inteligência e destreza, que não somente conseguiu sobreviver como chegou a ser
considerado pelos seus companheiros como o “Tuchaua”, o seringueiro que coletava maior
quantidade de seringa na região
35
. Tais êxitos eram acompanhados de dureza e sofrimento,
como quando José Gabriel pisou em uma arraia, e teve de passar “um ano e dez meses sem
poder andar, de muleta”
36
.
Depois de trabalhar um tempo no seringal, José Gabriel muda-se para Porto
Velho, onde fica trabalhando como servidor blico, enfermeiro no Hospital São José.
34
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, ago-out 1995
, p.
6).
35
Entrevista de Mestre Florêncio (ALTO FALANTE, fev-set 1996
, p.
8).
36
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, fev-set 1996
, p.
6).
64
Conhece, em 1946, Raimunda Ferreira, chamada Pequenina, com quem se casa no ano
seguinte. Do casamento nasceram os seguintes filhos: Getúlio, Jair, Jandira, Salomão,
Benvindo, Carmiro, Abomir e José Gabriel Filho. Em Porto Velho, “Seu” Gabriel atendia
pessoas em sua casa, pois jogava búzios. Mais tarde, se torna Ogã e Pai do Terreiro de São
Benedito, de Mãe Chica Macaxeira
37
. Esse terreiro foi citado por Nunes Pereira
(PEREIRA, 1979, p.121-143, 223-225), que o visitou possivelmente em meados da década
de 60 ou no início dos anos 70. O pesquisador maranhense reconhece o terreiro de Porto
Velho como sendo da tradição mina-jeje, oriundo da Casa das Minas. “Os toques,
inegavelmente, tinham a rítmica que me era familiar não da Casa das Minas, de São
Luís do Maranhão, como do Bogum de Mãe Valentina, em Salvador, Estado da Bahia.”
(PEREIRA, 1979, p. 223).
É surpreendente descobrir que Nunes Pereira encontrou no Terreiro de Chica
Macaxeira uma “inovação no ritual mina-jeje, o uso da ayahuasca. E isso, sem dúvida, para
estimular, paralelamente, com os cânticos rituais e com a voz sagrada dos tambores, ogãs e
gôs, o estado de transe, a possessão que ligam os Voduns do panteão daomeano ou do
ioruba às gonjais e noviches que o cultuam” (PEREIRA, 1979, p. 142). Ora, no tempo em
que José Gabriel trabalhava como Ogã, não havia utilização da ayahuasca no culto,
tanto que ele somente viria a conhecer a bebida anos depois, no seringal. Assim, é legítimo
supor que, possivelmente, a Mãe-de-Terreiro Chica Macaxeira conheceu a ayahuasca
através de seu antigo Ogã e Pai-de-Terreiro José Gabriel. Quando Nunes Pereira visitou o
terreiro, o conjunto dos cânticos era denominado Doutrina da Ayahuasca. “Nomes de
santos católicos, nalguns desses cânticos, se misturaram com os dos Voduns mina-jejes,
tais como Xangô, Badé, Avêrêquête, e os ditos Barão de Goré, Sultão das Matas,
Marangalá, Jatêpequare, Tindarerê, etc.” (PEREIRA, 1979, p. 143, grifo meu). É
significativo que nos anos 60 ou 70 haja a presença do Sultão das Matas na lista das
entidades do terreiro, que, como se verá adiante, José Gabriel recebia esse caboclo
quando trabalhava num terreiro que armou no seringal, nos anos 50.
Até 1950, José Gabriel morava com Pequenina em Porto Velho. O casal
tivera dois filhos: Getúlio e Jair. Além de trabalhar como enfermeiro, ele tinha também
uma “taberna de bebidas”. E gostava de política. Os dois partidos que disputavam o
governo do Território do Guaporé eram liderados pelo Major Aluizio Ferreira, ex-diretor
da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré que tinha sido o primeiro governador do Território, e
37
Entrevista do Conselheiro Paixão (ALTO FALANTE, abr-jun 1995
, p.
8-9).
65
o Tenente Coronel Joaquim Vicente Rondon (PINTO, 1992, p. 216). José Gabriel era pró-
Rondon. No entanto, seu candidato perdeu, e ele foi perseguido em seu emprego público
no hospital. Tendo de se afastar de seu trabalho, José resolve voltar para o seringal.
Mais tarde, quando estão no Seringal Porto Luís, Pequenina fica sabendo de
um chá: “o pessoal vê isso, aquilo, o cara falou até com o filho depois de morto”
38
. Ela
fala a José Gabriel e ele vai pedir o chá ayahuasca a quem o distribuía no lugar, o Mestre
Bahia. Mas o homem disse que “não dava o Vegetal praquele baiano que sabe aonde as
andorinhas dormem” (ALTO FALANTE, abr-jun 1995, p. 7). ele volta mais uma vez
para Porto Velho e monta o comércio de novo. Assim, na década de 50, a família de José
Gabriel e Pequenina esteve indo e voltando para o seringal e Porto Velho.
Tendo se mudado para o seringal Orion, José Gabriel abriu o terreiro no qual
“recebia” o caboclo Sultão das Matas. Como recorda Mestre Pequenina, “vinha gente de
tudo quanto era seringal”
39
consultar o Sultão das Matas. E ele curava as pessoas, assim
como indicava o lugar certo onde se encontrava caça. Adaptando-se a um novo contexto
sócio-ecológico-cultural, José Gabriel dirige um rito sincrético afro-indígena, no qual o
valor simbólico da floresta, que perpassa toda a vida dos seringueiros, fica evidente. Tal
rito, designado pelo filho de José Gabriel simplesmente como “macumba” (ALTO
FALANTE, abr-jun 1995, p. 9), parece assemelhar-se à pajelança cabocla amazônica (Cf.
MAUÉS, 1995), uma forma de xamanismo não-indígena na qual tem importância
fundamental a noção de incorporação do curador por entidades espirituais que agem
através dele para a cura dos doentes. No entanto, certamente permaneciam marcantes nos
toques do Seringal Orion os elementos religiosos afros vivenciados anteriormente por José
Gabriel, seja na Bahia ou em sua participação no Terreiro de São Benedito de Porto Velho.
Posteriormente, a família volta para Porto Velho. Depois de um tempo, ele
decide vender tudo e ir novamente para o seringal. As crianças estavam em idade escolar.
Sua mulher, então, discorda:
Eu disse: “Não, o que é isso? Eu não nasci no seringal, em mato. Não quero criar
meus filhos sem saber ler e escrever”. Ele disse: “É porque eu vou atrás de um
tesouro”. Mas eu era uma pessoa de cabeça cheia de muitas coisas e achei que
era riqueza material que ele ia achar, e nós ia enricar, ter uma vida de rosa.
Então, quando ele disse que ia, eu disse: “Então, vamos”. Então eu digo que esse
tesouro que ele encontrou junto comigo e os dois filhos, pra mim, é um tesouro
tão maravilhoso que dinheiro nenhum não paga essa felicidade. [...] Então, esse
tesouro, que é a União do Vegetal, tem me amparado.
40
38
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, abr-jun 1995
, p.
7).
39
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, abr-jun 1995
, p.
7)
40
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, ago-out 1995
, p.
7).
66
Nestas palavras de Mestre Pequenina e provavelmente também na afirmação de
José Gabriel, poder-se-ia detectar a presença dos motivos edênicos que povoaram o
imaginário das populações que se defrontaram com a floresta amazônica. Nos sonhos e
anseios dos nordestinos pobres que se lançam na aventura da borracha ecoam ainda as
buscas das “estranhas coisas deste Brasil”: do Eldorado, da Lagoa do Vupabuçu, ou da
serra anunciada por Filipe Guillén, “que ‘resplandece muito’ e que, por esse seu resplendor
era chamada ‘sol da terra’” (HOLANDA, 1994, p. 36-37). Posteriormente, o sonho do
tesouro a ser encontrado na selva é re-significado, passando a expressar a União do
Vegetal, que nasce da floresta, de um líquido também dourado, denominado por vezes de
“chá misterioso”
41
.
Tempos depois, no seringal Guarapari, numa colocação chamada Capinzal, na
região da fronteira boliviana, José Gabriel recebe pela primeira vez o chá, de um
seringueiro chamado Chico Lourenço, no dia de abril de 1959. Chico Lourenço
representa uma tradição indígena-mestiça de uso xamanico da ayahuasca que se espalha
por uma ampla região da Amazônia ocidental. Tal tradição é designada posteriormente
pela UDV como a dos “Mestres de Curiosidade”. se inicia nova etapa na trajetória de
José Gabriel
42
.
José Gabriel bebe três vezes o chá com Chico Lourenço e, logo depois, viaja
por um mês para levar um filho doente a Vila Plácido, no Acre. Quando retorna traz um
balde com o cipó mariri e folhas de chacrona que colheu no caminho. Diz à mulher: “Sou
Mestre, Pequenina, e vou preparar o mariri”
43
. Segundo seu filho Jair, “nesse período o
Mestre Gabriel não deixou a macumba não. Ele fazia uma Sessão de Vegetal e uma de
umbanda” (ALTO FALANTE, ago-out 1995, p. 9).
Somente em 1961 ele reuniu as pessoas e disse: “Eu quero falar pra vocês que
tudo que o Sultão das Matas fez eu sei: Sultão das Matas sou eu” (ALTO FALANTE, ago-
out 1995, p. 9). Este é um dos momentos mais importantes de ruptura de José Gabriel com
a tradição religiosa à qual estava ligado anteriormente. Ao postular para si mesmo o poder
antes atribuído à entidade Sultão das Matas, o agora Mestre Gabriel nega a incorporação
41
Artigo: Convicção do Mestre – um dos textos lidos no início de todas as sessões (UDV, 2003).
42
Haveria muito a observar acerca da tradição Vegetalista” amazônica, o que transbordaria o âmbito desta
breve exposição da trajetória de José Gabriel da Costa. Remeto aos textos de Luis Eduardo Luna e Edward
MacRae citados na bibliografia. De acordo com Mac Rae, o termo vegetalista refere-se aos curandeiros de
origem cabocla, herdeiros diretos do xamanismo indígena (MACRAE, 1992
, p.
28).
43
Entrevista de Mestre Pequenina e Mestre Jair (ALTO FALANTE, ago-out 1995
, p.
8).
67
dos cultos de caboclo e configura o transe que será típico da União do Vegetal: a
burracheira. A burracheira, que segundo Mestre Gabriel significa “força estranha”, é a
presença da força e da luz do Vegetal na consciência daquele que bebeu o chá. Assim, para
os udevistas, trata-se de um transe diverso, no qual não perda da consciência, mas sim
iluminação e percepção de uma força desconhecida
(http://www.uniaodovegetal.org.br/burracheira/burracheira.html, 2010).
Em seguida, Mestre Gabriel e sua família se mudam para o seringal Sunta. No
dia 22 de julho de 1961, ele reúne as pessoas para um preparo de Vegetal. Nesse dia, o
Mestre Gabriel declara criada a União do Vegetal. Ou melhor, afirma que a UDV foi
recriada, que ela teria existido no passado, quando ele mesmo teria vivido em outra
encarnação. No dia 6 de janeiro do ano seguinte, Mestre Gabriel se reúne com doze
Mestres de Curiosidade no Acre, em Vila Plácido. Numa sessão, eles reconhecem Gabriel
como o Mestre Superior. Finalmente, no dia de novembro de 1964, no seringal Sunta, é
realizada uma sessão na qual o Mestre Gabriel afirma que fez a Confirmação da União do
Vegetal no Astral Superior. Logo depois, em 1965, ele se muda para Porto Velho, para
consolidar a nascente instituição. Apenas seis anos depois, se deu o falecimento de José
Gabriel da Costa, no dia 24 de setembro de 1971.
Descrevendo-se em largos traços a vida de José Gabriel da Costa, fica patente a
sua participação numa larga seqüência de configurações culturais muito próprias da
sociedade brasileira: o catolicismo popular rural do interior da Bahia, a capoeiragem e os
cultos afro-brasileiros de Salvador, a vida sofrida de seringueiro na Amazônia, a
experiência de incorporação dos cultos de caboclo, o transe xamanico do hoasqueiro, e,
finalmente, a atuação carismática do fundador de um novo movimento religioso.
Comparemos essa trajetória do fundador da UDV com o que Gilberto Freyre
aponta acerca da maleabilidade da formação religiosa brasileira:
Verificou-se entre nós uma profunda confraternização de valores e de
sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas; puxando
para o individualismo e para o privatismo, os das casas-grandes.
Confraternização que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo
tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais
ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião
doce, doméstica, de relações quase de família entre os santos e os homens, que
das capelas patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas -
batizados, casamentos, “festas de bandeira” de santos, crismas, novenas -
presidiu o desenvolvimento social brasileiro (FREYRE, 1992
, p.
355).
Considero que a maleabilidade, a destreza, a vivacidade e a ginga da capoeira
capacitaram José Gabriel a elaborar uma criativa síntese de diversos elementos culturais e
68
religiosos, num culto profundamente adaptado à realidade sócio-cultural amazônica. E não
apenas adaptado a esta, mas com virtualidades para se expandir por todo o Brasil,
exatamente por ser constituído por uma invenção vigorosa que se apropriou de
configurações provenientes de diversas regiões brasileiras.
José Gabriel da Costa, nascido nessa sociedade propensa a hibridismos, plena
de plasticidade e inclusividade, elabora uma nova religião afeita ao sabor, desejo e jeito
brasileiro de ser, onde a doutrina tem como base o cristianismo, mas também trabalha com
elementos das culturas africanas e indígenas, e aproxima-se de vertentes religiosas espíritas
por ter a reencarnação como um de seus pilares, na medida em que privilegia o sentir e
propicia ao indivíduo espaço para que ele próprio construa suas reinvenções criativas. Não
teríamos aqui mais um tema a ser aprofundado, através de pesquisas, para melhor
compreensão desta manifestação religiosa?
Com relação à sua vertente espírita a UDV compreende que, pela sucessão de
encarnações, o espírito pode evoluir até atingir a purificação. Mas, ao mesmo tempo
distingue-se do espiritismo por não realizar rituais de incorporação ou recebimento de
espíritos desencarnados, a psicografia e os passes. Segundo o Mestre Marcos (Pré-Núcleo)
a palavra espírita” na UDV está ligada ao cultivo do “aspecto espiritual, pois se estuda o
auto-conhecimento espiritual” sendo que a única fundamentação espírita da União do
Vegetal é a crença no reencarnacionismo.
A União do Vegetal é uma religião iniciática: a transmissão da doutrina é oral e
feita de maneira criteriosa, dentro das sessões. Os discípulos recebem os ensinos
gradativamente, segundo o “grau de memória”
44
ou “grau espiritual” e, ao demonstrar
comportamento em sintonia com os estatutos e boletins – que são leis da instituição,
sempre lidos no início das sessões – vão ascendendo na escala hierárquica da União.
2.1 Os Primórdios da União do Vegetal em Porto Velho
A descrição do início da União do Vegetal em Porto Velho, depois que José
Gabriel da Costa decide mudar-se definitivamente para a capital do Território, não é
meramente a continuação lógica de um relato histórico acerca das origens da UDV.
44
Por “grau de memória” entende-se a capacidade de ouvir, compreender e memorizar os ensinos sob o
efeito do chá, ou seja, da “burracheira”, sendo este diferente da inteligência ou título acadêmico. O grau de
memória está ligado diretamente com a evolução espiritual é o amadurecimento espiritual da pessoa.
69
Considero que a observação do processo de solidificação e institucionalização da nova
religião em Porto Velho possibilitar-nos-á uma compreensão mais ampla do movimento
em direção aos meios urbanos que mais tarde se verificou na “ida da UDV até o Sul”.
Perceber como a “ida à cidade” já aconteceu no início, ou melhor dizendo, ver como a
UDV veio a ser criada em meio a um movimento de ir e vir da família de José Gabriel do
seringal a Porto Velho, nos servirá para desnaturalizar a “ida até o Sul dessa religião da
floresta amazônica”. Assim, o diálogo cultural da “floresta” (focalizada no tópico anterior)
com a “cidade” (objeto deste tópico) é constitutivo da criação do próprio Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal.
Buscarei desenhar em largos traços o início da UDV em Porto Velho, sem
pretensões de elaborar um relato histórico compreensivo, visando mais apresentar um
perfil dos participantes, as dificuldades e os conflitos daquela etapa inicial da presença da
UDV em meios urbanos.
Segundo vários relatos, é no ano de 1965 que José Gabriel da Costa transfere-
se com a sua família para Porto Velho, capital do então Território Federal de Rondônia.
Antes dessa mudança definitiva, desde 1951 a 1959, segundo sua esposa Pequenina, o
casal esteve em constantes idas e vindas de Porto Velho para os seringais e vice-versa. Mas
agora, em 1965, Gabriel não vai à capital simplesmente motivado pelas dificuldades dos
seringais, tentando vida melhor na cidade. Ele, conforme declarações suas gravadas em fita
cassete, tem a auto-consciência de ser o portador de uma missão: plantar a União do
Vegetal na Terra, para que um dia a UDV chegue a “fazer a paz no mundo”.
Quando chegou a Porto Velho, José Gabriel da Costa ficou morando com sua
família na Rua Abunã, n
o
1.215. Sua casa era muito pequena, sem espaço para se
realizarem sessões. No mesmo ano de 1965, bebeu o Vegetal com o Mestre Gabriel o Sr.
Raimundo Carneiro Braga (este veio, mais tarde, a compor o Quadro de Mestres da UDV e
ingressou na UDV em Porto Velho, ainda no tempo do Mestre Gabriel), segundo ele
mesmo afirmou em entrevista. Ele contou que o grupo que participava das sessões era
pequeno:
Eram bem poucas [pessoas], não lembro bem. sei é que quando começamos
havia 16 sócios; posso comprovar porque tenho em casa o primeiro livro. Eu
lidava naquela época com a tesouraria, por isso tenho esse primeiro livro
guardado
45
.
Hilton Pereira de Pinho, já falecido, um antigo amigo, de José Gabriel da
45
Entrevista de Mestre Braga (ALTO FALANTE, nov-dez 1995
, p.
10).
70
Costa, o conheceu “em 1946, no km 101 da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”
46
. José
Gabriel fazia frete de lenha no local e Hilton trabalhava como ferroviário. Posteriormente,
ele veio a ser um dos primeiros a receber a “estrela de mestre” e foi o primeiro presidente
da Associação Beneficente União do Vegetal. Vinte anos após o primeiro contato com o
amigo, ele veio a beber o Vegetal pela primeira vez no início do ano de 1966, na sede do
Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento
47
(CECP). Ele narra:
No dia 06 de janeiro de 1966 tivemos a primeira sessão oficial da União do
Vegetal, precisamente 1 ano após o mestre Gabriel ser reconhecido no astral
superior como mestre geral da União do Vegetal, sendo esta realizada na sede da
Sociedade Tátua, onde nos encontrávamos todos unidos (UDV. Memórias, v. I
,
p.
4).
Essa instituição foi fundada em 27 de junho de 1909, na Cidade de São Paulo,
por Antônio Olívio Rodrigues (RODRIGUES, 1991), espalhando-se pelo Brasil, de modo
que na década de 60 havia um Tattwa, ou seja, um “Centro de Irradiação Mental”, em
Porto Velho. Dentre os “mestres da origem”, o M. Raimundo Carneiro Braga chegou a ser
sócio desse Tattwa. interessantes similaridades na estrutura do ritual das sessões do
CECP e da UDV. O antropólogo Wladimyr Sena do Araújo, em sua dissertação de
mestrado acerca da Barquinha (ARAÚJO, 1999, p. 116-122), indica a influência que ela
recebeu do CECP. Essa influência certamente bem maior do que a recebida pela UDV,
que na Barquinha elementos propriamente doutrinários que advêm do CECP. Até o
presente momento não encontrei tais elementos em meu trabalho etnográfico na UDV. O
máximo que posso supor é que tenha havido certo influxo do CECP na forma da sessão.
Convém lembrar que Raimundo Pereira da Paixão, que iniciou na UDV em 18
de novembro de 1966, um dos “mestres da origem” que depois veio a ter significativa
importância no início da União do Vegetal em São Paulo, era participante ativo do Terreiro
de São Benedito em Porto Velho: “Naquela época eu freqüentava macumba e ele [José
Gabriel] se dava tanto com a dona do terreiro [Chica Macaxeira] e ela convidou ele para o
46
Depoimento de Hilton Pereira de Pinho (UDV. Memórias, v. I
, p.
2).
47
O Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (CECP) é, segundo afirmam seus seguidores, uma
entidade brasileira dedicada ao estudo das doutrinas espiritualistas, definida como uma "sociedade brasileira
de estudos espirituais". Apregoa que tem como finalidade principal o desenvolvimento das forças mentais
latentes em todo ser humano, para que o homem descubra por si mesmo que não é apenas um animal que
veste roupas e caminha na face da terra. Afirmam, aind que ela é a mais antiga escola de esoterismo ainda
em atividade no Brasil. Fundado pelo português Antonio Olívio Rodrigues em 1909, é uma entidade
dedicada principalmente ao estudo e prática de doutrinas como a cabala e o supermentalismo. Possui
Centros de Irradiação Mental em todo o Brasil, denominados Tattwas
(www.ocultura.org.br/index.php/C%C3%ADrculo_Esot%C3%A9rico_da_Comunh%C3%A3o_do_Pensam
ento).
71
batuque.”
Quanto à Ordem Rosacruz
48
, M. José Luiz de Oliveira comenta ao narrar seu
primeiro encontro com José Gabriel da Costa: “Eu vinha seguindo a Rosacruz alguns
anos, inclusive já portava o título de Mestre Rosacruz, por isso quando ele falou de
evolução espiritual, a Rosacruz tem todo um trabalho nesse sentido, me chamou a atenção
é atrás disso que eu ando”
49
. A sua vivência no Rosacrucianismo não foi apenas no
período anterior à sua participação na UDV. Em entrevista a mim, M. José Luiz declarou:
Fiquei 27 anos na Ordem Rosacruz, dos quais uns 15 anos paralelos entre a
Ordem Rosacruz e a União do Vegetal, sabendo que um dia eu ia ter que fazer
uma opção. [...] O Mestre Gabriel nunca exigiu que eu tomasse nenhuma
posição, fizesse uma opção, ou se eu quisesse seguir na União do Vegetal
deixasse a Ordem Rosacruz. Não. Ele nunca exigiu isso de mim. E isso pra mim
foi muito bom. Eu entendi que ele achava que seguir a Deus é uma opção.
Porque Deus deu a nós o livre-arbítrio e a gente não é toda hora que pode ter a
opção. Chega o momento da opção. Quando você chega na encruzilhada da sua
vida, que você tem na bifurcação das veredas da vida, que você tem que tomar
uma opção, você vai pra esquerda ou vai pra direita ou vai em frente. Pra onde
tiver o seguimento, e qual dos seguimentos, às vezes não é uma nem duas,
tem mais, três, quatro, cinco e você vai ter que ter uma opção. Enquanto não
chegou o momento da opção não adianta você querer tomar a opção que ainda
não é o momento da opção. Não pode precipitar as coisas. Quando chega o
momento, você sente. Se é opção é da própria pessoa. Não pode ser uma opção
direcionada por quem quer que seja. [...] Então, meu amigo, chegou o momento
de minha vida em que eu tive de fazer a opção, mas pela minha livre e
espontânea vontade
50
.
É significativa a atitude de Mestre Gabriel, não impondo a José Luiz, nem
48
Sociedade de caráter místico-filosófico que, de acordo com a tradição mais em voga, teria sido fundada por
Christian Rosenkreuz e representa uma síntese do ocultismo imperante na Idade Média. Todavia Harvey
Spencer Lewis pretende que rosenkreuz tenha sido simplesmente, um renovador, já que a instituição
remontaria ao antigo Egito, à época do faraó Amenophis IV. O rosacrucianos tem aceitado essa hipótese,
mas para muitos, isso não condiz com a verdade histórica, pois, na realidade, essa fraternidade nasceu no
período medieval. Embora apresentando, em sua ritualística, muito do misticismo das antigas civilizações.
“A Ordem Rosacruz é constituída por homens e mulheres dedicados à busca das mais sublimes verdades
universais, despertando e desenvolvendo seu potencial interior para uma vida equilibrada, de acordo com as
leis da natureza e do Universo”, diz Charles Vega Parucker, mestre da Ordem Rosacruz no Brasil (www.
amorc.org.br). É uma organização internacional que tem por missão desenvolver a espiritualidade e a
cultura. Os estudos incluem temas como medicina, psicologia, egiptologia, música, ciências e história.
Abstém-se de práticas de magia e discussões políticas Entre as práticas de seus membros estão meditação,
exercícios de concentração e visualização, além da leitura. Os rosacruzes afirmam que seus conhecimentos
se originaram no Egito milênios, mas ficaram populares na Europa no século 17. Os rosacruzes
buscam a evolução por meio do estudo dedicado desses ensinamentos e da aplicação de seus ideais à vida
cotidiana, tendo como meta o aperfeiçoamento pessoal. “Do ponto de vista rosacruz, o que importa é o
despertar de virtudes próprias, como a humildade, a generosidade, a tolerância, a compreensão e a auto-
estima, que nos tornam conhecedores das leis e verdades mais profundas do mundo em que vivemos”,
afirma Charles (www. amorc.org.br). Assim o rosacrucianismo, é um sincretismo de diversas correntes
filosófico-religiosas: hermetismo egípcio, cabalismo judaico, gnosticismo cristão, alquimia etc. A primeira
menção histórica da ordem data de 1614, quando surgiu o famoso documento intitulado “Fama
Fraternitatis”, onde são contadas as viagens do alemão Rosenkreuz pela Arábia, Egito e Marrocos, locais
onde teria adquirido sua sabedoria secreta, que só seria revelada aos iniciados.
49
Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Por Edson Lodi, em dez/ 1990 (UDV. Memórias, v. II
, p.
3).
50
Entrevista de M. José Luiz de Oliveira. Rio de Janeiro, 25 de abril de 1999 (UDV. Memórias, v. II
, p.
7).
72
mesmo após este ser convocado por ele ao Quadro de Mestres, o seu afastamento da
Ordem Rosacruz. Desse modo, o criador da UDV reafirma sua opção de estimular os
discípulos para que eles mesmos “examinem”, decidam segundo a sua consciência e
exerçam o seu livre-arbítrio. Em última análise, essa atitude pode ser relacionada à
característica da experiência com o chá Ayahuasca na União do Vegetal, de propiciar um
englobamento de múltiplas vivências espirituais e religiosas do indivíduo, como veremos
adiante. Além disso, tal modo de agir certamente respondia aos anseios daqueles que
chegavam na UDV com uma longa história de busca, como o mesmo M. José Luiz conta,
fazendo uma leitura ex post de suas experiências anteriores, à luz de seu percurso esotérico
posterior:
E assim eu me dediquei ao catolicismo até uma determinada idade, quando
chegou o momento em que eu senti que não tava mais encontrando resposta pra
algumas coisas no catolicismo, porque devido a eu ser uma pessoa que naquela
época tinha o primário incompleto, não tinha tanto estudo assim, então os
padres naturalmente seguraram algumas coisas que eles não iam revelar pra
quem não tava preparado, de acordo com as normas da Igreja Católica, pra se
aprofundar mais. Mas, como eu não via resposta, e eu sou um buscador das
coisas divinas, tive de procurar outros meios. E eu entrei pelo Círculo
Esotérico da Comunhão do Pensamento, freqüentei o Círculo Esotérico da
Comunhão do Pensamento, entrei pelo Kardecismo, entrei pelo
Rosacrucianismo, no Rosacruz da AMORC, sediado em Curitiba, tive na Igreja
Presbiteriana, com o Pastor Bastos, tive também na Primeira Igreja Batista e tive
também na Assembléia de Deus (UDV. Memórias, v. II
, p.
7).
É relevante observar a recorrência de diversas experiências religiosas e
esotéricas nesses primeiros discípulos da UDV. Especialmente, naqueles que foram
escolhidos por José Gabriel da Costa para integrar o primeiro Quadro de Mestres da UDV,
os quais poderiam ser descritos segundo o perfil de um “buscador das coisas divinas”. Os
primeiros discípulos eram, na maioria, moradores da cidade, o que lhes facultava a
possibilidade de participarem dessa variada gama de atividades religiosas. O que Carlos
Alberto Afonso afirma acerca do início do Santo Daime pode, guardadas as singularidades
de cada fenômeno, ser aplicado à UDV:
Na verdade, o Daime não surgiu numa periferia remota de índios e caboclos, mas
numa sociedade de fronteira internacionalizada pela economia da borracha e
urbanizada pela cultura comercial e várias hierarquias de deslocações internas
(seringueiros, militares, comerciantes, burocratas, políticos), o que inspirou a
disseminação, em Rio Branco e noutras localidades, de casas modestas de
candomblé, umbanda e espiritismo kardecista, segundo o modelo do comércio
religioso das cidades do litoral. E, de fato, todas essas religiões apresentam
influências importantes no Daime. O Acre era, em particular, o espaço de
fronteira e de tráfegos inter-culturais entre a sociedade diaspórica que se
formava, no lado brasileiro, e o multiculturalismo tradicional da Amazônia,
nomeadamente o xamanismo dos ayahuasqueros (AFONSO, 1999
, p.
10-11).
73
No mesmo lote da Rua Abunã, n
o
1.215, em que residia José Gabriel da Costa,
havia uma segunda casa, que tinha outro morador. Depois de alguns meses, este se mudou,
e então Mestre Gabriel passou a distribuir o Vegetal nessa casa, no ano de 1966. Narra o
M. Hilton:
De início não tínhamos sede organizada para realizar nossas sessões, tínhamos
que solicitar a vizinhos lugar em seus quintais a fim de realizar as nossas
sessões semanais, visto que a residência do Mestre era pequena e uma sala que
dispunha, residia o mestre galego. Tivemos dessa forma, que pedir ao Sr.
Macdonald em sua fazenda na Estrada dos Tanques 1 sala para a realização de
nossas sessões. Neste local ficamos 6 a 8 meses, ocasião em que o Mestre
Galego seguiu para a Bolívia (Mamo), desse dia em diante passamos a ocupar a
sala, a qual era forrada com palhas. Em atividade todos os irmãos fizemos o
piso com cimento, sendo encarregado da obra o Sr. José Luiz de Oliveira.
Adquirimos tábuas e fizemos novas paredes de cujo serviço encarregou-se o Sr.
Antonio Cavalcante de Deus (Gia). Antonio de Deus ainda se encarregou da
confecção de duas grandes mesas e bancos a serem colocados ao redor dessas,
servindo ao grande número de irmãos que chegavam em busca de tratamento
pelo Vegetal (UDV. Memórias, v. I
, p.
6).
A afluência de pessoas à procura do chá Ayahuasca para resolver seus
problemas de saúde, mencionada por M. Hilton, é abordada por Afrânio Patrocínio de
Andrade em sua dissertação de mestrado:
De repente o novo irrompeu ali, no meio da cidade. Duma hora para a outra, no
meio de todo um êxodo que interliga a floresta com a cidade, sai um seringueiro
falando de Deus, explicando os mistérios profundos da existência e, mais que
isto, doutrinando centenas de pessoas, com uma casebre lotada (sic) de
seguidores. [...] Em termos de Saúde, é oportuno lembrar que a região como um
todo era um próprio caos, situação que até os dias de hoje ainda não é das
melhores. [...] Foi exatamente nesta época em que esse programa [o Serviço
Especial de Saúde Pública] estava entrando em decadência que a União do
Vegetal chegou na cidade. Ela encontra, ali, nada menos que uma população que
ansiosamente corria atrás de recursos médicos (ANDRADE, 1995
, p.
184, 190-
191).
O autor segue apresentando o relato de um “mestre da origem” que conheceu a
União do Vegetal acompanhando uma pessoa doente que buscava a cura através do chá do
Mestre Gabriel. Esse aspecto, de ser uma via alternativa para os que buscam saúde num
contexto de extrema carência de recursos, certamente teve a sua importância naquele
início. No entanto, é necessário matizar as palavras do autor, que chega a falar de um
seringueiro “doutrinando centenas de pessoas” em um casebre lotado. Tudo indica que não
houve um movimento tão espetacular quantitativamente, tendo sido bem modesto o
número de seguidores da UDV, até o falecimento de José Gabriel da Costa. Uma
estimativa plausível seria supor que eram, em 1965, ano da chegada de Mestre Gabriel a
74
Porto Velho, haveria em torno de 16 seguidores; em 1967
51
, por ocasião da prisão de José
Gabriel da Costa, por volta de 50 seguidores; e em 1971, ano do falecimento do fundador
da UDV, cerca de 70 em Porto Velho, 30 em Manaus e mais alguns seguidores em Jaru e
Jaci-Paraná, totalizando menos de 150 participantes. Mas, voltando à questão da saúde, é
interessante indicar que, posteriormente, o CEBUDV procurou distanciar-se de qualquer
prática de cura:
grupos religiosos que apregoam as virtudes curativas do chá. A União do
Vegetal, nesse particular, tem postura sóbria. Sabe que a Deus nada é impossível,
mas não pratica ou difunde ações curandeiristas. Usamos o chá, como foi dito,
como veículo de concentração mental, para buscar o acesso a um estado de
consciência em que a compreensão dos fenômenos espirituais e metafísicos é
mais nítida. O que se busca, através dos ensinos e da doutrinação reta, é a cura
espiritual - isto é, a evolução (UDV, 1989
, p.
34).
Outro aspecto citado por M. Hilton, a precariedade e pobreza do local em que
os discípulos bebiam o Vegetal, também é lembrado por M. Paixão. Diz ele:
Era muito difícil, era periferia, tinha olarias perto da sede. A sede era pobre
mesmo, coberta de palha, tapada, de bua de refugo e de terra batida. Depois
que fizeram o piso. [...] Na época, não tinha nenhum seringueiro, a pessoa que
ainda veio em Porto Velho e ele chamou para beber o Vegetal duas vezes foi o
Chico Lourenço. [...] Então, o poder aquisitivo era uma situação delicada.
Naquele tempo quem tinha mais poder aquisitivo era o Mestre Ramos, que era
um forte comerciante, e dessas pessoas era ele mesmo. Mestre Braga
trabalhava na praça [era taxista], lutava com sacrifício e outras pessoas também
lutavam com sacrifício. Quantas vezes o Mestre Ramos custeou as despesas para
buscar o Vegetal. Naquele tempo era pouco, nem era em grande quantidade. O
irmão Modesto ia buscar o Vegetal de trem num lugar chamado Pau Grande, na
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, era onde o Modesto ia buscar o Vegetal. A
gente preparava em lata de querosene, comprava aquelas latas de querosene, às
vezes trazia, ou doava. Eu abria, batia com o martelo a beira da lata, abria
direitinho, enchia de jornal e tacava fogo para largar o gosto do querosene.
Quantas vezes nós bebemos o Vegetal com gosto de querosene ou de gasolina.
Quantas vezes aconteceu isso. Nós tinha uma fornalha, na olaria botava tijolos,
botava umas trempes, e ali botava duas latas em cima. Quando bebia o Vegetal,
cada um pegava um sebo de pau ou dois tijolos e se sentava. Tinha alguns que
levavam rede e se sentavam para ficar perto do Mestre, mas não dava para ficar
todo mundo ali, pegavam um pedaço de pau e sentavam ali perto
52
.
No mesmo sentido, afirma Mestre Braga: “Quando cheguei, no início, as coisas
eram como em todo início; tinha pouca coisa, eu digo que tinha tudo porque tinha o Mestre
Gabriel, mas em bens materiais e em organização era bem pouco. Estávamos iniciando”
53
.
51
No artigo Convicção do Mestre, de 1967, fala-se de “198 discípulos que vêm lhe acompanhando [o
Mestre]” (UDV, 2003). Porém, segundo M. José Luiz, esse número foi tirado do Livro de Adventícios,
apontando então para o conjunto dos que já haviam bebido o Vegetal e não para aqueles que então
permaneciam participando.
52
Entrevista de M. Raimundo Pereira da Paixão. Em Campinas, por Lúcia Gentil, em 3 de junho de 1993
(UDV. Memórias, v. II
, p.
84).
53
Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga. Por Edson Lodi, Ruy Fabiano e João Bosco, em junho de
1991 (UDV. Memórias, v. II
, p.
79).
75
A pobreza foi bem marcante nesse começo. Assim como a carência de
instrução escolar formal da maioria, a começar do próprio José Gabriel da Costa, que
freqüentou poucos dias a escola quando criança e era apenas semi-alfabetizado. Por volta
de 1970, D. Francisca e D. Josefa davam aula de alfabetização no templo da UDV. Mas
havia os “intelectuais” do grupo. Além de M. Hilton Pereira Pinho, que havia sido
presidente de sindicato, de M. Raimundo Monteiro de Souza, professor primário, de M.
José Luiz de Oliveira, que, segundo ele mesmo, “já tinha sido secretário, tesoureiro,
membro de diversas entidades e diretorias, inclusive da Federação de Desportos de
Guaporé”, havia também o M. Rubens. Segundo o M. José Luiz, “o M. Rubens chegou na
União assim meio intelectual. A profissão dele era dentista, mas estudava medicina na
Faculdade de Goiânia. Mestre Gabriel queria muito bem a ele [...]. Falava muito mais
intelectualmente do que dentro dos mistérios das coisas da UDV.” Em 1971, pouco antes
do falecimento de Mestre Gabriel, o então Conselheiro Rubens fez uma explanação na
sessão inaugural do Núcleo de Manaus. Cito aqui um pequeno trecho, que bem exemplifica
esse falar “intelectual”:
Muitas vezes se no mundo moderno, tanto progresso, cheio de albores de uma
civilização extraordinária, o homem se deslocando pra Lua, o homem em busca
de Marte, e essa tecnologia, e esse aperfeiçoamento, será que isso está a serviço
realmente de algo útil? Nós nos perguntamos muitas vezes. Será que existe uma
coesão fraterna entre os homens? Será que todo este amparo da tecnologia e da
ciência moderna está servindo para uma coesão, para um amparo, para uma
sistemática, para uma irmandade em si universal? no Vietnã se mata, no
Cambodja se mata, lá no Laos se mata. Por que é que se mata? Por que é que se é
mesquinho? Por que é que se persegue? Por que é que se vilipendia o ser
humano? [...] Sem o amor, meus caros irmãos, muito dificilmente a sociedade
será uma sistematização, uma coesão [...] Por falta de amor é que se mata,
conforme eu disse agora
54
.
Este discurso, ainda que seja a fala daquele membro com maior formação
acadêmica, indica que o grupo dos primeiros anos da UDV não era formado por
seringueiros recém-chegados da floresta, mas sim por indivíduos urbanos, e que ao menos
alguns deles tinham informação dos meios de comunicação acerca da política internacional
e das transformações do “mundo moderno”. A presença de pessoas letradas suscitava
uma indagação acerca do futuro, quando a UDV viesse a crescer. Então, o próprio Mestre
Gabriel, segundo M. Braga, dava uma orientação aos discípulos:
A recomendação é a seguinte: quando a União do Vegetal chegar nas pessoas
letradas, formadas, elas podem querer fazer modificação em função do modo de
ser delas, e que nós tivéssemos muito cuidado quando o Vegetal chegasse nos
54
Rubens Rodrigues, Explanação na sessão inaugural do núcleo de Manaus, 1971. (UDV. Memórias, v. I
, p.
97).
76
grandes centros. Ele dizia: “Nós não podemos ir ao povo.” Não é propriamente o
Vegetal, mas nós. E ainda, “O povo é que tem de vir a nós. Temos que falar
assim, pela linguagem do caboclo, uma linguagem que desse para todos
entender, o mais e o menos letrado.” Essa foi uma das recomendações que ele
nos deu, que nós não fôssemos ao povo, o povo viesse a nós. Se nós fôssemos ao
povo, ficávamos com o povo, mas se o povo viesse a nós, ficava conosco
55
.
Esse grupo de pessoas, que se constituíam em “sociedade” ou “irmandade”,
defrontou-se com os conflitos da sociedade brasileira de seu tempo e com as tensões
próprias de um novo movimento religioso com as especificidades que possuía a UDV.
Primeiramente, o conflito político do Brasil na década de 60 e no início dos anos 70.
Mestre Gabriel chegara a Porto Velho em plena época da ditadura militar. Um momento
emblemático de conflito foi a prisão de José Gabriel em 6 de outubro de 1967. Esse
momento é relembrado em cada sessão de escala, na hora da leitura dos documentos da
UDV, logo no início da sessão, quando se o artigo Convicção do Mestre, publicado no
jornal Alto Madeira, de Porto Velho, logo após o incidente. Paradoxalmente, lembrar em
todas as sessões de escala da prisão do Mestre Gabriel cumpre um papel de sinalizar que o
uso do chá ayahuasca pela UDV é plenamente legal, além de propor ao discípulo da UDV
que experimente em sua própria vida atitudes semelhantes à do M. Gabriel, que disse:
Prestem atenção os que quiserem me acompanhar na missão: podemos ser
censurados por todos, mas não podemos censurar a ninguém; podemos ter
inimigos, mas não podemos ser inimigos de ninguém; podemos ser ofendidos
por todos, mas não podemos ofender a ninguém; podemos até ser julgados por
todos, mas não podemos julgar a ninguém; podemos ser revoltados por todos,
mas não podemos revoltar e nem ser revoltados por ninguém
56
.
M. Hilton narra do seguinte modo a prisão:
No dia 06 de outubro de 1967, quando estávamos em sessão de escala na União
do Vegetal, às 23 horas, entra a polícia comandada pelo chefe de polícia de
guarda policial territorial Antonio Nogueira da Silva que convidou o mestre
Gabriel a acompanhá-lo à Delegacia de Polícia da Capital para prestar
depoimento esclarecimentos sobre aquele ajuntamento de pessoas, mestre
Gabriel encerrou os trabalhos da sessão e seguiu no carro policial, eu entrei no
carro e fui mandado a desocupá-lo. Nesta sessão estavam presentes 38 discípulos
dos 198 que vinham lhe acompanhando. Os discípulos do mestre Gabriel unidos
seguiram em direção a central de polícia e permaneceram a a manhã.
Procuramos as autoridades, inclusive o Sr. Simão Tavenad, que mesmo em sua
residência não foi encontrado. Dia seguinte, domingo eu bem cedinho dirigi-me
a central de polícia onde encontrei o mestre Gabriel em uma sala especial. Em
seguida fui convidado a conversar com o Sr. Rodolfo Menezes Ruiz, muito meu
amigo pois o conhecia desde criança quando eu era professor no grupo Barão do
Solimões ocasião em que este me diz: seu Hilton, o senhor metido nessas
organizações clandestinas? Em resposta lhe expliquei a finalidade da União seu
amor a Deus e a natureza. Então nos foi exigido um estatuto (UDV. Memórias,
v. I
, p.
6,7).
55
Entrevista M. Raimundo Carneiro Braga. Loc. cit., (UDV. Memórias, v. II
, p.
103).
56
Artigo Convicção do Mestre (UDV, 2003).
77
O relato é bem ilustrativo de como as autoridades policiais observavam como
suspeito aquele ajuntamento de pessoas” e logo tendiam a ver qualquer nova associação
que se formasse como mais uma dentre as organizações clandestinas”. A partir dessa
situação, surge a necessidade de se registrar “um estatuto”. E, ao que parece, já antes desse
episódio alguns dos discípulos percebiam essa necessidade, como afirma M. Hilton em
trecho anterior do mesmo depoimento: “Meu desejo constante era que se registrasse a
União do Vegetal legalmente em cartório local. Pois na época (pós-64) qualquer
organização que não tivesse seus estatutos era interditada pela polícia”
(UDV. Memórias, v. I
,
p.
6)
. Ele, que havia sido presidente de sindicato, parecia estar consciente das dificuldades
que a UDV poderia estar sujeita nesse tempo de repressão. E o que se pode observar é que
a direção da União do Vegetal teve grande habilidade na obtenção das condições de
possibilidade para a sua continuidade. A atitude constante da UDV parece ter sido a de
procurar as autoridades”, buscando esclarecê-las acerca das suas atividades, na
convicção de que não havia nada errado em suas práticas. Como nota M. Braga, acerca da
atitude de Mestre Gabriel:
Quando o chá começou a ficar mais conhecido, algumas autoridades pensavam
que era um tóxico, que não era uma coisa boa. Mestre Gabriel sempre reagiu
com firmeza, com a convicção de quem sabia que estava fazendo um trabalho
correto como nós sabemos que é. Ele dizia sempre que era muito difícil as
autoridades fecharem as portas da União do Vegetal porque ele não estava
fazendo nada de errado. Sempre com firmeza e a convicção de vencer, chegar no
lugar das autoridades reconhecerem que ele não estava fazendo nada de errado
57
.
Assim, logo após a libertação do Mestre Gabriel, que se deu no dia seguinte de
sua prisão, a UDV publicou uma nota de esclarecimento no jornal Alto Madeira - a
“Convicção do Mestre” - e M. Hilton e M. José Luiz elaboraram os primeiros estatutos
civis da Associação. Em seguida, eles os apresentaram “em cartório local e em poucos dias
o Meritíssimo Juiz de Direito Dr. Joel de Moura assinava solenemente reconhecendo a
União do Vegetal como entidade Jurídica em todo território Federal de Rondônia”
58
. Esse
empenho em realizar tudo segundo a legalidade tem sido até aqui claramente observável no
agir da direção do CEBUDV.
Outro episódio, narrado por M. Paixão, também mostra a constante vigilância
exercida sobre o grupo naquela cidade de Porto Velho, em que havia uma considerável
presença do Exército:
57
Entrevista M. Raimundo Carneiro Braga (UDV. Memórias, v. II
, p.
89).
58
Depoimento de Hilton Pereira de Pinho (UDV. Memórias, v. I
, p.
7).
78
Um dia, quando Mestre Bartolomeu [que era militar] foi chamado pelo
Comandante do exército, naquele tempo ele estava na ativa, porque haviam
denunciado que ele freqüentava uma seita que servia um chá que era uma droga,
ele explicou: ‘A sociedade que eu freqüento, a União do Vegetal, serve um chá
mas não é o que estão dizendo’ e disse ao Comandante, ‘se o senhor quiser
conhecer, eu levo o senhor lá’. O Comandante quis conhecer
59
.
Depois desses fatos, houve novamente, em 1969, uma ão da polícia contra a
UDV. Esta teve de permanecer, durante um período, sem receber novatos. M. Raimundo
Monteiro de Souza na condição de presidente do CEBUDV, impetrou um mandado de
segurança em 1970, através do advogado Jerônimo Santana, que obteve sentença favorável
à UDV. Posteriormente, esse advogado elegeu-se deputado federal e mais tarde foi o
primeiro governador eleito do Estado de Rondônia, no período de 1986 a 1991.
Acompanharam o processo no fórum o discípulo Francisco Adamir de Lima e o
Conselheiro Bartolomeu, que em seguida foram convocados por Mestre Gabriel para o
Corpo do Conselho e para o Quadro de Mestres, respectivamente. O hoje M. Adamir conta
que até novembro de 1970 “existia a União do Vegetal e a Associação Beneficente União
do Vegetal [entidade civil]. Quando quiseram fechar a União do Vegetal, fomos orientados
para mudar o nome. Foi então feita a junção e surgiu o Centro Espírita Beneficente União
do Vegetal”
60
.
Mas os conflitos não se deram unicamente com o aparelho do Estado. Também
houve uma situação conflituosa com a instituição religiosa predominante em Porto Velho
na época, a Igreja Católica. Primeiramente, observemos a narrativa e as deduções de
Afrânio Patrocínio de Andrade, a partir da entrevista que fez com o bispo de Porto Velho,
atualmente falecido, D. João Batista Costa, que exerceu o governo da Prelazia de Porto
Velho de 1946 a 1982:
As “autoridades eclesiásticas” também chegaram a ser consultadas, mas afinal de
contas, o que elas teriam contra um adepto da “sempre virgem Maria Santíssima”
e do “nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”? Nesta época, era bispo da cidade o
hoje jubilado Dom João, que tivemos oportunidade de entrevistar, em março de
1992. Ele nos informou que, quando o mestre Gabriel chegou na cidade com o
chá, ele era pároco ali 35 anos, dos quais, uma década como bispo. Segundo
ele, alguns dos católicos, “gente de fé”, procuraram por ele, para saber sua opinião
sobre o referido chá. Teria ele interrogado àqueles fiéis sobre o que eles viam
durante o estado de êxtase. Responderam a ele que viam coisas ruins e coisas boas
e “muito bonitas”. Diante disto, teria ele instruído os fiéis a seguirem o conselho
do apóstolo Paulo, “examinar todas as coisas e reter o que é bom”. Em seguida,
designou um de seus assessores episcopais, o já falecido Padre Carlos, para
dialogar com o mestre Gabriel a respeito do assunto. Infelizmente o resultado de
tal diálogo não nos foi acessível, pois, segundo alguns dos adeptos da União do
59
Entrevista M. Raimundo Pereira da Paixão. Em São Paulo, por Edson Lodi, em junho de 1989 (UDV.
Memórias, v. II
, p.
12).
60
Mestre Adamir, um pioneiro do Vegetal (ALTO FALANTE, nov-dez 1990
, p.
4-6).
79
Vegetal, houve um desentendimento entre o mestre Gabriel e o Bispo, o que não é
confirmado por este último. A “prova” de tal desentendimento é um artigo
publicado num dos jornais da cidade e mantido por essa, intitulado “Velando
enquanto dorme”. Uma leitura do texto não indica propriamente uma controvérsia.
Procurado para nos dar mais informações sobre o seu contexto, o autor do texto
não se lembrou absolutamente nada a respeito. Por outro lado, o referido padre,
designado para tal diálogo, faleceu no decurso do processo. Segundo o bispo, é
possível que existam anotações dele na Igreja em que era pároco, em Porto Velho,
o que ainda não confirmamos. Diante disto, nossa ponderação ainda continua
sendo a de que, embora desconhecesse o assunto, a Igreja Católica não chegou a
se posicionar objetivamente sobre ele (ANDRADE, 1985
, p.
185).
No entanto, outras narrativas indicam que a situação foi mais conflituosa: as
entrevistas dos Mestres Braga e José Luiz de Oliveira, respectivamente ao Jornal Alto
Falante. As declarações do bispo a Patrocínio de Andrade vão na direção de uma diluição
do conflito. A aplicação pelo bispo do conselho paulino de “examinar todas as coisas e
reter o que é bom”, quando da pergunta de “gente de fé” sobre sua opinião acerca do chá,
parece expressão de uma mentalidade extremamente aberta. Porém, as lembranças dos
mestres da origem apontam para uma situação diversa. Conta o M. Braga:
É que uma pessoa foi à casa do bispo e transmitiu informações que não eram
verdadeiras sobre a União do Vegetal. Essa pessoa não conhecia a União, por isso
deu aquelas informações. Aí, o bispo num sermão da igreja falou da União do
Vegetal da mesma maneira; maltratou a União, disse um bocado de coisas.
Quando eu soube, pedi ao Mestre Gabriel para conversar com o bispo e o Mestre
Gabriel me autorizou. E eu fui. Expliquei pro bispo o que era o Vegetal e o que
era que aquele senhor, que era o Mestre Gabriel estava fazendo pelas pessoas.
Depois contei toda a história sobre o pensamento da União do Vegetal. Depois
que contei toda a história sobre o pensamento da União do Vegetal, o bispo disse
o seguinte: “Se a União do Vegetal e o chá estão produzindo esse efeito, e se esse
senhor está fazendo esse trabalho, o senhor pode continuar bebendo.” Aí, pedi
para ele autorizar um padre que era muito meu amigo a beber o Vegetal. Ele me
pediu que eu não fizesse isso; pra mim mesmo, ele disse que eu continuasse, mas
pro padre não. [...] Acho que foi a primeira vez que uma autoridade, pesando mais
as palavras, se manifestou favoravelmente
61
.
Assim, segundo a narrativa de M. Braga, corroborada pelas declarações de M.
José Luiz, o próprio D. João Batista Costa teria feito pesadas críticas à União do Vegetal
em um sermão (ou mais de um) na igreja. Isto, a partir de informações de uma pessoa que
“não conhecia a União”.
A resposta da União do Vegetal foi através da publicação em jornal de um
artigo, denominado Velando enquanto dorme, onde se lê:
Disse um Reverendo, em seu sermão de domingo dia 11-7-71: Na União do
Vegetal se vê de tudo. E é verdade, pois a primeira coisa que vi, quando comecei
a freqüentar a União do Vegetal, foi o caminho em que “eu” vivia, no erro. E
hoje, pela minha firmeza em Jesus Cristo e sua bondosa mãe Maria Santíssima,
vejo o caminho limpo e firme [...] (UDV, 2003
, p.
92).
61
Entrevista de M. Raimundo Carneiro Braga (UDV. Memórias, v. II
, p.
93).
80
Esse “caminho limpo e firme” é o argumento de defesa da União do Vegetal
apresentado no artigo: “Afirmo que a União do Vegetal pratica e ensina exatamente o amor
a Deus, sobretudo, extensivo aos seus semelhantes”. Mais adiante, o texto chega a
especificar traços característicos da prática dos discípulos da União: estar “isentos” de
freqüentar
[...] bares, casas de jogos, mesmo sinuca ou bilhar, baixo meretrício e outros
lugares que porventura existam e que sejam perniciosos à formação moral do
homem diante do próprio homem e muito mais diante daquele que se chama
Espírito Santo, que compõe a Trindade Divina (UDV, 2003
, p.
92).
Essa afirmação de uma “regeneração” dos novos participantes, alguns
conhecidos como “farristas” em Porto Velho, era freqüentemente trazida como resposta
àqueles que questionavam acerca dos efeitos do chá Ayahuasca para a pessoa. Além da
publicação do artigo, tanto M. Braga quanto M. José Luiz foram falar com o bispo, de
quem eram amigos. D. João não se deu por convencido acerca do valor religioso positivo
do chá, mas ao menos parou de criticar a UDV em seus sermões. De qualquer modo, as
narrativas dos mestres da UDV indicam que houve uma significativa mudança no
posicionamento depois que os discípulos da UDV o procuraram para conversar.
Ao se verificar a história da UDV fica claro que o Mestre Gabriel, seu
fundador, curou "com o Vegetal", contudo o Vegetal não é mais usado com a finalidade de
cura dentro desta instituição e os udevistas acreditam que a eficácia terapêutica vem do
poder da cura presente no Mestre e não necessariamente do "principio ativo" da planta, o
que também não fica descartado.
Segundo os relatos existentes na instituição, que é fundamentalmente de
tradição oral, algumas curas do Mestre Gabriel foram efetuadas apenas “com palavras”, o
que pode indicar que este utilizou do poder simbólico da palavra para curar. Conforme
entende Bourdieu quando afirma que os instrumentos de poder simbólico são
essencialmente instrumentos de conhecimento e de construção do mundo objetivo, que se
manifestam através dos mais diversos meios de comunicação (língua, cultura, discurso,
conduta, etc.), garantindo àqueles que os possuem a manutenção e o exercício do poder.
Nesse sentido, os sistemas simbólicos do pensamento de Bourdieu podem ser vistos como
uma representação coletiva, numa perspectiva durkheimiana. Por isso mesmo, sua
manifestação se dá de uma maneira que não pode ser percebida conscientemente.
81
[...] o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicosem forma de uma
“illocutionary force” mas se define numa relação determinada – e por meio desta
entre os que exercem o poder e os que lhes estão sujeitos, quer dizer, isto é, na
própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o
poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a
subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia,
crença cuja produção não é da competência das palavras (BOURDIEU, 2007
, p.
14-15).
Desta forma, crêem os udevistas que o poder de cura estava no Mestre, que em
alguns casos utilizou o Vegetal e, em outros, simples palavras. Quer pelas curas que
realizou, quer pelas palavras que pronunciou, quer pela maneira como se comportou, foi
ele reconhecido pelos seus discípulos como Mestre.
Observa-se, por fim, que, embora a literatura sobre a UDV e boa parte dos
relatos comuns nas sessões de escala não enfatizem, o Mestre Gabriel era conhecido e foi
procurado por realizar curas. As curas que realizou provavelmente desempenharam um
papel importante no seu carisma, o que provavelmente influenciou a construção da figura
do Mestre pelos seus discípulos. Contudo, após a sua morte, a escolha de novos líderes e a
formulação de novas leis a fim de atender as novas necessidades da religião apareceu a
recomendação de evitar tais práticas.
Ultrapassando situações conflituosas com a polícia, com o exército, com o
Poder Judiciário, com a Igreja Católica, os primeiros discípulos da União do Vegetal
souberam encaminhar bem as resoluções desses conflitos. E, como narra M. Braga, ainda
conseguiram obter recursos junto ao Poder Público para solidificar a obra começada:
No início, a gente usava uma casinha que não era propriamente a casa do Mestre
Gabriel, era uma casinha pegada à dele. O ambiente físico o era tão agradável,
mas fomos nos organizando, crescendo e aumentando a casa. Com o tempo, foi
enchendo de pessoas. Certa vez ele disse que era bom que a gente encontrasse
um lugar onde pudesse construir nossa sede. Naquele tempo, a gente falava em
sede, depois passamos a falar em templo, porque sede ficou sendo a casa do
Mestre, porque ele nos cedia. Um dia a gente se dispôs a ir à Prefeitura; fomos
eu e o Mestre Ramos, e a Prefeitura doou um terreno de 100 metros por 100
metros. começamos a construção do templo, com Mestre Gabriel ainda em
matéria, mais ou menos em 69, e chegamos a concluir a obra
62
.
Desse modo, com grande habilidade, mesmo em meio a um contexto político
extremamente desfavorável ao surgimento de uma instituição que faz uso ritual de uma
substância psicoativa, gradualmente conseguiram, do mesmo modo como construíram um
templo, plantar os alicerces do CEBUDV na cidade.
62
(UDV. Memórias, v. II, p. 89).
82
Ilustração 4: Núcleo Mestre Gabriel. Centro Espírita União do Vegetal (antiga Sede Geral) – Porto
Velho - RO
2.2 Breve Histórico do Pré-Núcleo Sereno do Mar
Segundo relato do Mestre Marcos para se entender a criação desta unidade será
necessário que se observe dois momentos distintos. Em um primeiro momento, tendo ele
(que é mato-grossense do sul) vindo morar na cidade de São Luís do Maranhão, no ano de
1997, sendo membro da União do Vegetal e participando do Corpo Instrutivo da unidade
onde era sócio, por não haver nenhum Núcleo da União aqui na cidade e nem mesmo em
Teresina PI tinha que se deslocar mensalmente para participar de sessões no Núcleo de
Fortaleza, que era o lugar mais próximo a possuir um cleo. Viagens feitas de carro, as
quais perduraram por um período de dois anos.
Nesse período de participação no Núcleo de Fortaleza conheceu pessoas que
moravam em Teresina e que bebiam o Vegetal, juntamente com elas decidiu que fundariam
um Pré-Núcleo em Sobral CE. Transferiu-se da Unidade Tucanancá do CEBUDV em
Fortaleza para a Unidade de Sobral com a intenção de criar uma nova Unidade em
Teresina, pois ficaria bem mais perto para ele efetuar as viagens a fim de participar das
sessões. Em 2002 foi criado a Unidade de Teresina, sendo ele um dos sócios fundadores,
sendo que quando esta Unidade foi criada, já havia sete pessoas que bebiam o Vegetal aqui
na cidade de São Luís.
No segundo momento torna-se necessário observar que havia aqui em São Luís
outro grupo que bebia o Vegetal e que contava com vinte e oito participantes, esse grupo
era denominado de OTUS (Ordem do Templo Universal de Salomão) e tinha como mestre
83
uma pessoa de nome Jorge, no ano de 2003 e a saída deste da cidade, houve uma
integração das pessoas que participavam deste grupo com os que participavam da União do
Vegetal, sendo que todos eles se filiaram a Unidade de Teresina, onde o mesmo estava
filiado até aquele momento. Com a integração dos sete que eram filiados a UDV e os
vinte e oito novos afiliados começaram a pensar um projeto de criação da Unidade, sendo
que foram esses trinta e cinco os responsáveis pela compra do terreno onde hoje está
instalada a União e a construção do que hoje está edificado. Foi um tempo de muita luta
e sacrifício, segundo o Mestre Marcos, até que em setembro de 2006 foi inaugurada a
unidade de São Luís.
No momento inicial o único mestre existente na Unidade era o próprio Mestre
Marcos, integrando depois o Mestre Jorge, vindo depois três mestres de outras cidades:
Mestres Domingos, Daniel e Estélio. Destes somente o Mestre Daniel ainda permanece na
cidade. Os demais que como o Mestre Daniel vieram para São Luís por motivos pessoais e
trabalho retornaram às suas cidades de origem. Hoje estão no Quadro de Mestre do Pré-
Núcleo os Mestres: Marcos, Daniel, Jorge e Abraão. Sendo que o Mestre Marcos foi o
mestre de Criação e o primeiro Mestre Representante da Unidade. Concluído o seu
mandato de Representante ele não quis mais se candidatar, por motivos profissionais e
familiares, tendo sido eleito em seu lugar o Mestre Daniel.
Fazem parte do grupo que compõe o Pré-Núcleo Sereno do Mar dentistas,
engenheiros, arquitetos, comerciários(as), secretárias, comerciantes, funcionários públicos,
professores(as) sendo que grande parte destes possuem formação universitária, além dos
quais, também, pessoas com baixo grau de escolaridade e de camadas de menor poder da
sociedade, constituindo-se, contudo em um número menor de participantes.
Por ser uma unidade muito nova o muito a ser relatado e o aqui exposto é
suficiente para que entendamos o grupo dentro do qual se procedeu a pesquisa.
84
3 AYAHUASCA: A BEBIDA QUE DESPERTA A CURIOSIDADE
Dentre diversas religiões e grupos que fazem o uso da Ayahuasca no Brasil, as
mais conhecidas e divulgadas pela mídia são: a União do Vegetal (UDV), o Santo Daime
(CEFLURIS e Alto Santo) e a Barquinha. Essas três religiões se baseiam no uso do chá
enteógeno que é a união de duas plantas: Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis,
conhecidos respectivamente como Marirí e Chacrona. Além dessas três religiões,
numerosos grupos indígenas da região amazônica, pajés e xamãs também fazem uso desses
vegetais para fins medicinais e espirituais, assim como praticantes de diversas formas de
neo-xamanismo urbano
63
.
Essas três religiões a UDV, o Santo Daime e a Barquinha, embora tenham
significativas diferenças no tocante à doutrina, possuem algumas características em
comum: as três fazem uso da Ayahuasca, foram desenvolvidas na Região Amazônica e
fundadas por líderes carismáticos
64
que realizavam trabalhos de cura em uma região onde a
medicina científica era praticamente inexistente. Seus líderes eram, respectivamente, José
Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel, que fundou o Centro Espírita Beneficente União do
Vegetal (CEBUDV) em 1961; Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu, que iniciou os
trabalhos públicos com a Ayahuasca na década de 1930, fundador do Centro de Iluminação
Cristã Luz Universal - Alto Santo, o Santo Daime e Daniel Pereira de Matos, o Mestre
Daniel que fundou o Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, a
Barquinha, no ano de 1945.
Embora tenham se iniciado na Região Amazônica, a União do Vegetal e o
Santo Daime estão presentes nos centros urbanos em praticamente todo o Brasil, e outros
países, enquanto que a Barquinha é mais restrita ao estado do Acre. A partir da década de
setenta, artistas, cientistas, jovens de classe média provenientes dos centros urbanos em
busca de novas experiências, entraram em contato com essas religiões e as difundiram pelo
país, participando do que Luís Soares (1990) denomina uma “nova consciência religiosa”.
63
Compreendo por neo-xamanismo o movimento de recriação dos ritos xamanicos nos grandes centros
urbanos, que permitem sentir o sagrado, perceber novas dimensões, profundidades e o sentido para a vida.
O xamanismo é acima de tudo uma técnica de ampliação da consciência e pode ser praticada por todos os
credos. Sendo um caminho de busca, prevê uma disciplina teórica e prática.
64
Uso o termo no sentido weberiano, considerando que Para Weber a dominação carismática se baseia na
crença “cega” a um líder, que acredita possuir poderes "sobrenaturais". Este tipo de dominação tem por
característica a capacidade de superar a vida cotidiana, pois despreza a autoridade revertendo a ordem
constituída. Sua base esno fato deste líder acreditar estar a serviço de uma missão. Para concretizar sua
missão o líder precisa da confiança, da cega e fanática de seus seguidores. A dominação carismática se
fundamenta na emoção, não possui nada de racional (WEBER, 1995).
85
Uma forma diferente de vivenciar e compreender a religião. É uma prática que segundo
MacRae (1992) abrange indivíduos das camadas médias urbanas, atraídos pela religiosa
e pelos mistérios do êxtase místico. Os movimentos da nova consciência religiosa são:
[...] re-significadores do homem e, por extensão, do mundo. E é nesse contexto
que se inscreve também o fenômeno do chá, com uma proposta religiosa que tem
por base a volta do homem à natureza e a correspondente busca de sentido para a
existência concreta, a partir de uma consciência de si, em harmonia com o cosmo
(ANDRADE, 2002
, p.
592).
A busca pelo sagrado, apregoada por essas religiões, através da “consciência de
si” e “harmonia com o cosmo” (termos que caracterizam a forma como se dá essa busca, os
quais são encontrados em: http://www.uniaodovegetal.org.br/imprensa/imprensa.html,
2010) fez com que, apesar de suas origens caboclas, crescessem em direção aos centros
urbanos não no Brasil, mas também em outros países principalmente a partir da década
de 1970. Atualmente a União do Vegetal é a maior religião que faz uso da Ayahuasca em
número de adeptos.
O chá consumido nos rituais (conhecido cientificamente como Ayahuasca) é
denominado Hoasca ou Vegetal pelos adeptos da UDV, mas a nomenclatura difere de
acordo com a religião ou grupo que o utiliza. Existindo pelo menos 42 nomes indígenas
para este preparado. Também, é notável e significativo que pelo menos 72 tribos indígenas
diferentes da Amazônia, não obstante as distâncias de suas separações geográficas, de
idiomas e culturais, manifestem um conhecimento tão comum e detalhado da ayahuasca e
de seu uso. Eis os principais nomes pelos quais a conhecem:
Natema, Yagé, Nepe, Ayahuasca, Santo Daime, Vegetal, Dapa, Pinde, Runipan,
Bejuco Bravo; Bejuco de Oro; Caapi (Tupi, Brazil); Mado, Mado Bidada e
Rami-Wetsem (Culina); Nucnu Huasca e Shimbaya Huasca (Quechua);
Kamalampi (Piro); Punga Huasca; Rambi e Shuri (Sharanahua); Ayahuasca
Amarillo; Ayawasca; Nishi e Oni (Shipibo); Ayahuasca Negro; Ayahuasca
Blanco; Ayahuasca Trueno, Cielo Ayahuasca; Népe; Xono; Datém; Kamarampi;
Pindé (Cayapa); Natema (Jivaro); Iona; Mii; Nixi; Pae; Ka-Hee' (Makuna); Mi-
Hi (Kubeo); Kuma-Basere; Wai-Bu-Ku-Kihoa-Ma; Wenan-Duri-Guda-Hubea-
Ma; Yaiya-Suava-Kahi-Ma; Wai-Buhua-Guda-Hebea-Ma; Myoki-Buku-Guda-
Hubea-Ma (Barasana); Ka-Hee-Riama; Mene'-Kají-Ma; Yaiya-Suána-Kahi-Ma;
Kahí-Vaibucuru-Rijoma; Kaju'uri-Kahi-Ma; Mene'-Kají-Ma; Kahí-Somoma'
(Tucano); Tsiputsueni, Tsipu-Wetseni; Tsipu-Makuni; Amarrón Huasca, Inde
Huasca (Ingano); Oó-Fa; Ya(Kofan); Bi'-ã-Yahé; Sia-Sewi-Yahé; Sese-Yahé;
Weki-Yajé; Yai-Yajé; Nea-Yajé; Noro-Yajé; Sise-Yajé (Shushufindi Siona);
Shillinto (Peru); Nepi (Colorado); Wai-Yajé; Yajé-Oco; Beji-Yajé; So'-Om-Wa-
Wai-Yajé; Kwi-Ku-Yajé; Aso-Yajé; Wati-Yajé; Kido-Yajé; Weko-Yajé; Weki-
Yajé; Usebo-Yajé; Yai-Yajé; Ga-Tokama-Yai-Yajé; Zi-Simi-Yajé; Hamo-Weko-
Yajé (Sionas do Putomayo); Shuri-Fisopa; Shuri-Oshinipa; Shuri-Oshpa
(Sharananahua)
65
.
65
Estes nomes estão disponível na Rede Mundial de Computadores em vários sítios, dentre os quais no
seguinte endereço eletrônico: http://www.universomistico.org/s/uma-planta-de-poder.html, acessado em
02/01/2010, às 8h09min.
86
Este chá é considerado sagrado pelos seguidores da religião, pois possibilita o
encontro com o divino. É também considerado capaz de curar e de transmitir
conhecimento. Também para eles, permite o acesso a uma dimensão espiritual onde se
pode vislumbrar um estado de consciência diferente do cotidiano.
Um número considerável de adeptos afirma ter sido curado fisicamente e
espiritualmente após ter contato com o chá não na União do Vegetal, mas em outras
religiões e grupos que fazem uso da Ayahuasca (ver ROSE, 2005; PELAEZ, 2002;
GUIMARÃES in: http://www.neip.info e MAC RAE, 1992). Os entrevistados afirmam
que esse contato proporcionou uma experiência positiva de transformação nas suas vidas,
dando-lhes mais segurança e sentimento de integração, minimizando ou anulando a
existência de problemas físicos, psíquicos e espirituais. Ainda assim, Labate (2002) destaca
que existe uma carência de estudos sobre a questão da cura nas religiões ayahuasqueiras,
evidenciando a deficiência de uma classificação mais detalhada dos trabalhos espirituais
que são destinados especificamente para a cura.
Ilustração 5: Litro contendo a bebida: ayahuasca
87
3.1 A Ayahuasca: o Vegetal
Não é só a UDV que utiliza a Ayahuasca nos seus rituais, como uma substância
sagrada, como já mencionado acima, existem diversas religiões e seitas que fazem o uso da
Ayahuasca no Brasil e no mundo. Numerosos grupos indígenas da região amazônica,
pajés, xamãs e praticantes de diversas formas de neo-xamanismo urbano também fazem
uso desses vegetais para fins medicinais e espirituais e de auto-conhecimento. É rara a
utilização da Ayahuasca para fins meramente recreativos.
A Ayahuasca é um psicoativo extraído da união de duas plantas: Banisteriopsis
caapi (Marirí)
66
e Psychotria viridis (Chacrona) (Ver fotos abaixo).
Banisteriopsis caapi, Marirí.
Ilustração 6: Foto: Marirí (Denominado
Caupurí pelos adeptos da UDV).
Ilustração 7: Foto: Marirí
(DenominadoTucunacá pelos adeptos da UDV).
66
Para a UDV, existem dois tipos de Marirí: o Caupurí e o Tucunacá, mas ambos pertencem à mesma
espécie (Banisteriopsis caapi). A diferença básica entre eles é a disposição dos “nós” (protuberâncias
existente no cipó) que podem ser mais ou menos proeminentes.
88
Psychotria viridis, Chacrona.
Ilustração 8: Foto: Chacrona.
A UDV o denomina “Hoasca” ou “Vegetal”. O Santo Daime e suas facções o
chamam de “Daime”, e é com esse nome que a Ayahuasca é mais conhecida no Brasil. Os
leigos costumam pensar que todas as comunidades que fazem o uso do chá são
pertencentes ao Santo Daime, em virtude do nome com o qual o chá ficou popularmente
conhecido. Mas é relevante ressaltar que esses grupos, apesar de terem em comum a
utilização de um psicoativo, a Ayahuasca, diferem-se muito entre si no tocante a outros
aspectos.
Existem relatos que dizem que o uso da Ayahuasca era difundido no império
Inca, e a União do Vegetal compartilha dessa idéia. Para os adeptos da UDV, o Vegetal era
utilizado desde a época do Rei Salomão, ou seja, antes da era cristã:
Trata-se de uma religião que existira na terra, muitos séculos antes de Jesus
Cristo. Sua origem data do século X A. C., no reinado de Salomão, rei de Israel.
Por razões diretamente ligadas ao baixo grau de evolução espiritual da
humanidade na época, a União do Vegetal desapareceria por longo período.
Ressurge entre os séculos V e VI, no Peru, na civilização Inca (cujo advento e
apogeu a historiografia oficial registra apenas entre os séculos XIII e XIV)
(UDV, 1989
, p.
35).
Escohotado (1994) afirma que, embora não exista comprovação científica de
tais fatos, sabe-se que o uso de psicoativos acompanha a humanidade desde seus
primórdios e que desde a antiguidade remota já existiam plantações de papoula. A primeira
notícia escrita sobre substâncias psicoativas apareceu três mil anos antes de Cristo em
hieróglifos egípcios onde o uso do ópio era recomendando como analgésico e calmante,
tanto para ser usado como pomadas, como por via retal e oral. O autor descreve como os
89
psicoativos foram utilizados pela humanidade em diversas etapas do seu desenvolvimento
e como o uso dessas substâncias se alterou no decorrer do tempo. No entanto, Ricciardi
(2008), citando o antropólogo Rudgley (1995), relata que existem provas ainda mais
antigas sobre o uso de psicoativos na história da humanidade: evidências de cerâmicas
que foram utilizadas para a ingestão de ópio e cannabis, na região oeste do Mediterrâneo,
na idade de Ouro, no sexto milênio antes de Cristo. Na região hoje ocupada pelos
espanhóis também foram encontrados objetos paleobotânicos da era neolítica (4200 a.C.)
que evidenciam o uso de ópio por povos primitivos que habitavam aquele local. Na região
da Itália, foram encontrados vasos cerâmicos (3.000 a.C.) que continham resquícios de
sementes de cannabis.
Ricciardi afirma, ainda, que através de evidências arqueológicas supõe-se que a
existência do uso ritual da Ayahuasca por indígenas amazônicos remonta a mais de 5000
anos. O primeiro registro por ocidentais sobre essa prática indígena ocorreu no século
XVII, quando missionários jesuítas descreveram a existência de “poções diabólicas
preparadas pelos nativos da selva peruana" (RICCIARDI, 2008, p. 66).
Michael Taussig (1993) em pesquisa realizada na década de setenta em
Putumayo encontrou escritos de um Padre (Manuel Maria Alvis) datados de 1854,
publicados na revista da Sociedade Etnológica Americana em 1960 que, em um anexo
intitulado “Remédio empregado pelos índios”, assim descreve a Ayahuasca:
Aquece e é bom para quem está envenenado. As folhas queimadas são oferecidas
com água misturada com cevada e mel ás mulheres que padecem de amenorréia.
Cozida e misturada com a casca ralada de um cipó denominado yoco, é boa para
desinteria (TAUSSIG, 1993
, p.
297).
Descreve, ainda se referindo aos hábitos indígenas:
[...] Seus médicos estão acostumados a tomar a infusão de um cipó denominado
Yoge (Yagé?), que provoca a mesma sensação que a tonga ou borrachero, e sob
efeito da ilusão provocada por essa intoxicação eles acreditam que vêem coisas
desconhecidas e advinham o futuro. A maior parte desses embusteiros fingem ter
na floresta uma onça que lhes conta tudo. Dedicam-se á sua profissão com muita
atenção e minúcia, como se fosse uma verdadeira ciência. Acreditam que a onça
é o demônio e afirmam que ela fala com eles. Eles ficam de tal modo absortos
em suas quimeras que acabam sendo os primeiros em acreditar em suas próprias
ficções (TAUSSIG, 1993
, p.
297
).
Taussig sustenta que a cura xamanica era realizada naquela época no alto do
Putumayo através principalmente do Yagé. Os índios habitantes dos contrafortes do
Putumayo diziam que se trata de uma dádiva especial de Deus para eles e para eles. O
90
Yagé era considerado o estudo e a escola, algo ligado á origem do conhecimento e da sua
sociedade. Teria sido o yagé que ensinou aos índios o bem e o mal, as propriedades dos
animais, os remédios e as plantas comestíveis. Com isso o autor analisa como essa planta
estava associada e interligada a cultura indígena no que se refere à cura e manejo dos
infortúnios.
Embora o consumo do chá seja considerado um elemento importante, não pode
ser compreendido como objetivo principal da União do Vegetal. O chá é um instrumento
para a interiorização e busca de evolução espiritual e que juntamente com a doutrina
possibilita essa evolução. podem comungar o Vegetal regularmente, e se tornar um
sócio da UDV, os maiores de dezoito anos. Os menores de idade não podem se tornar
sócios, mas podem beber o Vegetal desde que possuam autorização e consentimento oficial
dos pais ou responsáveis. Não é permitida, na UDV, a mistura do chá com outras
substâncias, ou a comercialização do mesmo pelos sócios. Segundo a própria instituição:
A União do Vegetal defende o uso ritualístico da Hoasca, sob a responsabilidade
de um dirigente religioso (que, dentro de sua hierarquia, denomina de Mestre).
Opõe-se categoricamente à comercialização da bebida, por entendê-la
inadequada ao uso indiscriminado por parte de pessoas não iniciadas. E ainda: é
terminantemente contrária ao uso do chá associados a drogas de qualquer espécie
(UDV, 1989
, p.
17).
3.2 Farmacologia
A primeira identificação botânica da Ayahuasca ocorreu no ano de 1852, pelo
botânico britânico Richard Spruce (MCKENNA, 1991). A partir daí iniciou-se
investigações em diversas áreas do conhecimento científico a fim de compreender os
aspectos farmacológicos, psicológicos e sócio-culturais dessa substância.
Não me atenho a descrever os aspectos farmacológicos, médicos e biológicos
que envolvem a Ayahuasca. Porém um breve esclarecimento se faz necessário e para um
panorama mais abrangente é importante o diálogo e apropriação de conhecimento entre as
diversas áreas de estudo sobre o tema.
Como foi dito anteriormente, a Ayahuasca se baseia na decocção de dois
vegetais: as folhas da Chacrona e do cipó do Marirí. Estes têm como nome científico,
respectivamente Psychotria viridis e Banisteriopsis caapi. A psychotria contém um
princípio psicodisléptico: a N, N, Dimetiltriptamina, o DMT. Esta substância não é ativa
quando ingerida por via oral isoladamente, mas pode se apresentar ativa quando mesmo
91
ingerida oralmente for acompanhada do inibidor periférico da MAO existente no Marirí.
Quando administrada por via oral, a DMT é degradada pela monoaminoxidase (MAO),
presente nos tecidos periféricos, tornando-se inativa. O Marirí contém alcalóides que
atuam inibindo a MAO, evitando que esta enzima desative a DMT quando ingeridas
oralmente.
Esta interação é à base da ação do efeito psicológico de “expansão da
consciência” do chá, possibilitando ao indivíduo experiências extras cotidianas, que
segundo os usuários, nada se aproximam de uma “alucinação”, definida como:
Percepção sem objeto, percepção sensorial falsa, sem associação com
estímulos externos reais. Podendo associar-se ou não a uma
interpretação delirante
67
.
Ou ainda:
Aparente percepção de objeto externo não presente no momento; ilusão;
devaneio; loucura; delírio (BUENO, 2000).
Embora os agentes psicodélicos atuem nos receptores cerebrais produzindo
mudanças somáticas, esses agentes não determinam por si as características da experiência;
estes abrem as portas para outras formas de percepção da realidade. Mas nesses espaços
cada indivíduo, imerso na sua cultura, colocaria os seus próprios conteúdos, que seriam
determinantes da natureza e significado atribuído às suas experiências. O agente
psicodélico é apenas um agente, e a experiência é uma combinação entre os efeitos da
substância, a disposição psicológica do indivíduo, e as características do contexto onde a
experiência acontece (BECKER, 1976).
O conjunto destes fatores: sociais, culturais, emocionais e psicológicos é que
torna o efeito do chá uma experiência única dotada de significado especial para os
usuários, sendo essa experiência regulamentada e supervisionada em contextos
ritualísticos. Daí a necessidade de um estudo mais aprofundado, multidisciplinar sobre a
Ayahuasca, buscando perceber não apenas seus aspectos farmacológicos, mas também os
aspectos sociais, psicológicos e antropológicos pertinentes ao uso, para um diagnóstico
mais preciso sobre a utilização e seus efeitos, evitando o “reducionismo farmacológico”.
Os adeptos do uso do chá nos rituais da UDV relatam que a sensação é de total
êxtase religioso. Uma consciência mais clara e uma tranqüilidade interior que possibilita
transcender, mas sempre se sabendo quem é, onde está e o que está fazendo ali. Segundo
67
Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10. Descrições clínicas e Diretrizes
Diagnósticas Coordenação da Organização Mundial de Saúde; trad. Dorgival Caetano Porto Alegre:
Artes Médicas, 1993.
92
os mesmos, em nenhum momento se perde a consciência, o que ocorre é uma expansão
que permite analisar melhor a vida e ver as coisas como realmente são; sem diminuir e sem
aumentar. Experimentei tal sensação nas sessões em que participei e posso testemunhar
que em nenhum momento tive perda de consciência ou alucinações que não me permitisse
manter o controle sobre as minhas sensações e desejos.
A classificação da Ayahuasca como droga alucinógena causa grande
desconforto entre os freqüentadores da UDV e de outras religiões ayahuasqueiras. Um dos
entrevistados para esta pesquisa relata que “o chá não é droga” e que o auxiliou na cura de
problemas físicos e psíquicos. São muitos os relatos de pessoas que conseguiram “se
libertar da dependência de drogas”; “curar um trauma”; e mudar positivamente suas vidas
fazendo o uso do chá. Afirmam que a relação com as “drogas” era em virtude de um vazio
existencial, que foi preenchido quando em contato com o Vegetal.
O termo alucinógeno tem sido amplamente questionado pelos ayahuasqueiros
de diversas religiões porque desqualifica as experiências produzidas nas pessoas além de
possuir um caráter depreciativo. Conforme MacRae (1992) o termo enteógeno é
considerado mais adequado por enfatizar aspectos culturais e simbólicos, evitando um
reducionismo farmacológico que desconsidera o caráter fenomenológico da experiência.
Enteógeno é uma expressão que vem do grego e foi utilizada inicialmente por Gordon
Wasson, Carl A. P. Ruck, Jeremy Bigwood, Danny Staples, e Jonathan Ott (MCKENNA,
1991) para se referir aos vegetais que proporcionam ao ser humano o contato com o mundo
espiritual e suas entidades. Entheos significa “inspirado ou possuído por um Deus que
tenha entrado em seu corpo” e geno “geração, produção de algo” se aplica aos transes
proféticos e aos estados místicos que eram experimentados através da ingestão de
substancias psicoativas. MacRae (1992) explica que enteógeno significando “deus dentro”,
estado em que alguém se encontrava quando inspirado ou possuído por um Deus que
entrou em seu corpo. Propõe também a terminologia “psicoativo” ou “substância
psicoativa”, que indica uma substância que ativa a psique ou age sobre ela, em oposição ao
termo droga, que é empregado como sinônimo de algo que não presta. Nessa perspectiva,
os termos “enteógeno” e “psicoativo” se mostram mais adequados.
93
3.3 A Legalização do Uso da Ayahuasca
Em 1985, a DIMED – Divisão de Medicamento do Ministério da Saúde incluiu
em caráter proibitivo o Banisteriopsis caapi, o Marirí, na lista de substâncias
entorpecentes, e a UDV, em respeito às leis do país, suspendeu imediatamente a
distribuição do Vegetal em todo o país durante dois meses. A direção do Centro Espírita
Beneficente União do Vegetal solicitou ao Conselho Federal de Entorpecentes – CONFEN,
responsável pela política de entorpecentes no Brasil, que examinasse o uso ritual do chá na
UDV, com o objetivo de comprovar que se tratava de um chá inofensivo à saúde,
administrado em um contexto ritualístico que não oferecia nenhum tipo de dano á
sociedade.
Foi instituído um Comitê Interdisciplinar de Pesquisa, organizado pelo
CONFEN, responsável por examinar o uso do chá no contexto religioso da UDV, Colônia
5000 e Alto Santo, desenvolvendo várias atividades, a fim de conhecer os aspectos
sociológicos, antropológicos, químicos, médicos e de saúde em geral a respeito do uso do
chá. Estabeleceu-se, naquela oportunidade, um acordo de cavalheiros entre o Grupo de
trabalho e a UDV: enquanto a equipe não concluísse o trabalho, o ingresso de novos
adeptos seria interrompido, entretanto, os que eram iniciados continuavam com o direito
ao uso ritualístico do Vegetal. Eis algumas observações presentes no relatório do Comitê:
Findas as cerimônias, todos de uma maneira aparentemente normal e ordeira
voltam aos seus lares. Os seguidores da Seita parecem ser pessoas tranqüilas e
felizes. Muitas atribuem reorganizações familiares, retorno de interesse no
trabalho, encontro consigo próprio e com Deus, etc., através da religião e do chá.
(Relatório do CONFEN, in: UDV, 1989:80).
O uso ritual do chá parece não atrapalhar e não ter conseqüências adversas na
vida social dos seguidores das diversas seitas. Pelo contrário, parece orientá-los
no sentido da procura da felicidade social dentro de um contexto ordeiro e
trabalhador (Relatório do CONFEN, in: UDV, 1989
, p.
91).
Com relação ao termo alucinógeno discutido, o Grupo de Trabalho faz no
relatório a seguinte declaração:
O que é possível afirmar é que a busca de uma forma peculiar de percepção,
empreendida pelos usuários da ayahuasca, em seus diversos “trabalhos”, não
parece alucinação, se tomado o termo na acepção de desvario ou insanidade
mental. Houve, sim, em todos os grupos visitados, a constatação de um projeto
rigorosamente comum a todos eles: a busca do sagrado e do autoconhecimento.
Não cabe, também ao Grupo de Trabalho definir se a forma de experimentar o
sagrado ou o autoconhecimento é ilusão, devaneio ou fantasia acepções outras
de alucinação (Relatório do CONFEN, in: UDV, 1989
, p.
91).
94
Neste mesmo período,em 1986, profissionais de saúde vinculados à UDV se
reuniram no sentido de adquirir informações científicas existentes a respeito do chá,
criando o Centro de Estudos Médicos, que posteriormente foi denominado DEMEC
Departamento Médico Científico da União do Vegetal instituição vinculada à UDV que
perdura até os dias atuais, e tem como um dos seus objetivos, comprovar cientificamente
que o uso da Ayahuasca ou Vegetal é inofensivo à saúde. No livro publicado pela
instituição “União do Vegetal Hoasca Fundamentos e Objetivos”, encontramos a seguinte
declaração:
A União do Vegetal, em seu estatuto, afirma que o chá Ayahuasca, ingerido em
suas sessões ritualísticas, é inteiramente inofensivo à saúde, quer física, quer
mental. O Centro de Estudos Médicos da União do Vegetal órgão que
congrega os profissionais de saúde associados, em todo o país, à nossa religião
endossa, sem qualquer receio, essa afirmação.
E o faz não apenas com base em estudos multidisciplinares produzidos no
Brasil e exterior –, mas, e principalmente, tendo em vista uma poderosa
evidência, que não pode ser desprezada por qualquer metodologia científica, por
mais rigorosa: a própria saúde (física e mental) dos usuários do chá.
A União do Vegetal possui numerosos sócios em idade avançada, nos meios
urbano e rural, que utilizam o chá décadas, sem que qualquer prejuízo lhes
tenha dadvindo. Muito ao contrário, os usuários do chá, de um modo geral,
exibem excelente estado de saúde
(
UDV, 1989
, p.
47).
Em 1986 as autoridades do CONFEN Conselho Federal de Entorpecentes,
órgão pertencente ao Ministério da justiça, (após minuciosa pesquisa que envolveu
profissionais de diversas áreas) revogou a medida proibitiva que datava de 1984. A equipe,
por unanimidade de votos, decidiu pelo fim da proibição.
Neste mesmo ano a Ayahuasca foi retirada da lista de substâncias proscritas
por não haver material científico que provasse os efeitos nocivos do chá:
ISTO POSTO, tendo em vista a competência legal do Conselho Federal de
Entorpecentes, a quem cabe, legalmente, exercer a orientação normativa,
coordenação geral, supervisão, controle e fiscalização relativamente ao uso de
drogas, tendo em vista que as decisões do CONFEN deverão ser cumpridas pelos
órgãos de administração federal, integrantes do Sistema Nacional de Prevenção,
Fiscalização e Repressão de Entorpecentes, tendo em vista, destarte, que pode o
CONFEN, a qualquer momento, determinar as medidas para o controle, ou, até, a
proscrição de qualquer substância cujas circunstancias peculiares assim o
aconselhem, tendo em vista, entretanto, que não ocorrem, até o presente
momento, circunstancia que indiquem, relativamente ao uso que vem sendo feito
da “ayahuasca”, a necessidade de qualquer alteração das atuais listas do DIMED,
a proposta á soberana decisão do plenário do Conselho Federal de Entorpecentes
é no sentido de que seja mantida a presente orientação adotada pela DIMED em
suas últimas portarias, elaboradas com a colaboração do próprio CONFEN, de
excluir das supracitadas listas as espécies de vegetais que integram a elaboração
da “ayahuasca”, conhecida, mais comumente, no Brasil, como “Daime” ou “
Vegetal”, entre outros nomes antes citados. Domingos Bernardo Gialluisi da
Silva Presidente do Grupo de Trabalho (Relatório do CONFEN, in: UDV,
1989
, p.
94).
95
Finalmente em 09/11/2004 o chá foi definitivamente liberado e o uso
ritualístico reconhecido oficialmente como inofensivo à saúde.
3.4 Os Nove Vegetais
Uma das práticas realizadas pelo Mestre Gabriel e que está relacionada com a
cura era o preparo da Ayahuasca com os nove vegetais, fato que não mais acontece na
União do Vegetal. Em um momento de necessidade, ele preparou o Vegetal (Marirí e
Chacrona) com nove plantas da região Amazônica sendo elas: O Breuzim, a Samaúma, o
Apuí, a Castanheira, o Pau D’arco, o Mulateiro, a Imburana de Cheiro, a Carnapanaúba e a
Maçaranduba (nomes pelos quais são popularmente conhecidas).
A seguir, descreverei as principais características de cada uma delas com base
em anotações de um curso realizado por um Vegetalista, um caboclo acreano de nome José
Gomes, conhecedor das ervas medicinais da floresta, que trabalha muitos anos
preparando, comercializando e até exportando remédios naturais, as quais foram obtidas
através de um dos Mestres da UDV. Este caboclo realiza palestras e cursos sobre seus
medicamentos. Prepara medicação com os nove vegetais, (sem associação com a
Ayahuasca), que segundo ele tem efeito “milagroso” na cura e alívio de diversas
enfermidades, desde “problemas de pele” a “nervoso e estresse”.
1) O Breuzim é conhecido também como Breu, Mescla e Breu Branco. Têm como
nome científico Protium Caranauma. É uma planta de terra firme que pode chegar
a uma altura superior a trinta metros. É utilizada não com finalidade medicinal,
mas também na construção de casas, móveis, lenhas. Alguns índios a utilizam nos
rituais de batismo. Como propriedade curativa diz-se que ele “acelera os neurônios
e oxigena mais o cérebro, fortalecendo o sistema nervoso central ativando a
memória. È eficiente no tratamento de sinusite, renite, doenças pulmonares e
epilepsia.” A resina também é utilizada como incenso que “afasta as energias
negativas deixando o ambiente saudável”. É uma árvore aromática em todas as suas
partes.
2) A Samaúma: é encontrada nas matas de terra firme e vargem. Possui mais de
cinqüenta metros de altura e é considerada pelos caboclos da região como a rainha
da floresta em virtude do seu tamanho e vigor: é uma das maiores árvores da
96
América do Sul, não pela a altura, mas também pelo diâmetro do caule. “Cura
crianças desidratadas, anemia, diabetes, retira os fluidos químicos do corpo,
recupera pessoas raquíticas. Sua água facilita o parto normal, assim como na
higiene pós-parto e é usada no tratamento da conjuntivite. O travesseiro feito do seu
algodão emana energias positivas.” Seu nome científico é Ceiba sumaúma.
3) Apuí: Planta de grande porte encontrada nas vargens. É comumente conhecido
como mata pau. “É um excelente cicatrizante, fortalece os nervos e a memória, bom
para gastrite e úlcera. A infusão da casca misturada com as folhas e raízes é
calmante e sedativa. Seu leite cura feridas, queimaduras e úlceras e evita a queda de
cabelos.” O nome científico é Fícus fagifolia. A casca exsuda bastante látex cujo
resíduo é a borracha. Também fornece madeira para carpintaria.
4) Castanheira: “É depurativo, expectorante, cicatrizante, combate vermes, fortalece o
físico e o mental, aumenta a reprodução de glândulas, é regulador do fluxo
menstrual, fortalece a memória cura úlcera e gastrite. O chá é regulador do fluxo
menstrual e inibidor do trabalho de parto. O fruto é fortificante, sendo recomendado
o uso de duas castanhas por dia.” Conhecida também como Castanha do Pará têm
como nome científico Bertholletia excelsa. Essa árvore possui grande importância
econômica para o Amazonas e Pará, que tem na exportação da castanha uma
relevante fonte de renda. A casca do fruto é utilizada para peças decorativas e como
combustível. Das castanhas, depois de secas, pode-se obter um óleo amarelo claro
que era antigamente tido como o sucessor do azeite de oliva. Pode ser usado na
fabricação de sabões finos, em preparados farmacêuticos, na lubrificação de
relógios e mecanismos delicados. A madeira é rígida e pesada, boa para construção
civil e naval. A casca produz estopa de excelente qualidade que é usada na
calafetagem de embarcações. A árvore apresenta crescimento moroso, e somente
aos doze anos atinge produção, chegando a produzir quinhentos quilos de fruto por
ano.
5) Pau D’arco: Esse nome é geralmente dado à maioria dos ipês do gênero Tecoma. O
nome científico é Tecoma impetiginosa, conhecida também como Ipê Roxo. É uma
árvore alta. Sua madeira é de boa qualidade para marcenaria, construção civil,
obras hidráulicas, moirões e esteios. “Aumenta os glóbulos vermelhos, serve para
diabetes, câncer e inflamações em geral. Sua infusão ou pomada é usada contra
impetigo. A casca é amarga, adstringente e mucilaginosa. O chá é um depurativo do
97
sangue, bom para problemas estomacais e diabetes. Cura as doenças desenganadas
pela medicina”.
6) Mulateiro: “É um excelente renovador de células e rejuvenescedor da pele. È usado
como fortalecedor de memória e como cicatrizante servindo para inflamações
gerais”. Seu nome científico é Calycophyllum Spruceanum. Grande árvore que
apresenta casca parda e lisa, a madeira recebe o nome de Pau Marfim. É usada
como cosmético através de pomadas, óleos e banhos.
7) Imburana de Cheiro: “cura sinusite, renite, resfriados, bronquite, asma enxaqueca e
solta o catarro do pulmão”. Seu nome científico é Torresia acreana. Atinge mais de
trinta metros de altura. Estimada pela excelente madeira de construção e pelas
sementes empregadas na perfumaria popular.
8) Carnapanaúba: Aspidosperma excelsum. Árvore grande fornece madeira castanho
amarelada, dura, forte e compacta. Conserva água de chuva nas cascas da base
servindo de abrigo e proliferação de mosquitos. É conhecida como Carapanã pelos
índios, justificando-se seu nome. “A casca é útil contra bronquites, diabetes e
malária. O banho cura eczemas conhecidas popularmente como “mau de coruba””.
9) Maçaranduba: Manilkara amazônica. Mede aproximadamente vinte metros e é
encontrada nas matas de terra firme em solo silicoso. Sua madeira é boa para
construção civil e carpintaria. “O chá é fortificante e o banho serve para infecções
da pele”.
Essas plantas não são mais utilizadas em preparos do Vegetal juntamente com
o Marirí e a Chacrona em todos os núcleos da UDV. Sua preparação com o Vegetal está
explicitamente suspensa, principalmente em virtude do relatório do CONFEN que libera o
uso ritual da Ayahuasca, apenas preparados com Marirí e Chacrona. Não foram realizados
testes pelos órgãos federais competentes (até a presente data) associando a Ayahuasca com
os nove vegetais, principalmente em virtude de essa prática ser reservada para algumas
ocasiões em que se apresentava uma necessidade, fato que não era tão freqüente na UDV.
Com isso torna-se necessário que haja um estudo mais aprofundado pelas entidades
competentes para que se possam utilizar os nove vegetais nos rituais da UDV com o
objetivo de trazer a cura para aqueles que dela necessitem como fazia seu fundador, o M.
Gabriel, mantendo os costumes e tradições, fieis à origem.
Apesar de não se utilizar os nove vegetais no cozimento do Vegetal com Marirí
e Chacrona, essa é uma fórmula bastante difundida entre os adeptos da UDV que importam
98
“garrafadas” dessas substâncias (sem associação com a Ayahuasca) de caboclos da Região
Norte do país, e afirmam que realmente trazem um grande benefício á saúde.
inclusive uma maneira bastante sui generis na UDV para se referir a essa
fórmula, qual seja: “os nove vegetal” (sic), isso porque, segundo o um dos mestres do pré-
núcleo de São Luís, o Mestre Gabriel teria unido a força das nove plantas com a do
Vegetal, mas esta sim é a verdadeira força, portanto, o importante na mistura é o
“Vegetal”. Além disso, essa era uma mistura que o Mestre Gabriel utilizava para as
pessoas que tinham necessidade de cura e não para o uso de todos. Também, ressalta que a
atividade de cura era necessária enquanto o Mestre Gabriel estava na floresta e que não
mais necessidade desta nos centros urbanos, uma vez que estes dispõem de médicos e
profissionais aptos a efetuarem a cura. Segundo ele, o próprio Mestre Gabriel teria dito,
quando chegou em Porto Velho para expandir a religião que criou na floresta, que: “o salão
de cura da União do Vegetal estava fechado porque eu criei essa religião não para curar a
matéria, mas para curar o espírito e que a doença do espírito é a ignorância. O Vegetal é
um remédio do espírito”. Portanto, segundo o Mestre Marcos, nem mesmo o Mestre
Gabriel teria como objetivo a atividade de cura de males físicos.
Atualmente, sem a presença dos nove vegetais nos rituais da sessão da UDV,
existe uma Chamada que fala sobre os nove vegetais, explicando as principais
propriedades curativas de cada um deles e mais dois elementos diretamente relacionados
com a cura que são: as sessões de Cosme e Damião (e a chamada) realizadas no dia vinte e
sete de setembro, e a chamada de Doutor Camalango.
3.5 A Burracheira
Burracheira é a denominação dada ao transe proporcionado pela ingestão do
chá Ayahuasca.
No contexto da UDV, beber o chá é a comunhão com o divino, segundo os
preceitos e as práticas da religião. No momento desta comunhão sagrada as pessoas
afirmam sentir a Força espiritual e a Luz divina, provenientes do cipó Mariri e da folha
Chacrona, que unidos dão origem ao Vegetal.
Não foi possível encontrar nos trabalhos sobre transe religioso alguma
definição que realmente abarcasse o fenômeno, tal como ocorre na União do Vegetal. Um
99
dos poucos autores, que se dedicaram ao tema do transe e do êxtase religioso, foi o
antropólogo Ioan Lewis. Em seu livro Êxtase Religioso, Lewis escreve:
O estado de dissociação mental (que pode variar muito consideravelmente em
grau) e que por conveniência, chamamos aqui de transe, está conforme as
circunstâncias em que ocorre, sujeito a diferentes controles culturais e a diversas
interpretações culturais. De fato, da mesma forma que se com a adolescência,
o transe está sujeito tanto a definições fisiológicas quanto culturais (LEWIS,
1971
, p.
50).
Como se vê até mesmo Lewis, ao usar a definição “estado de dissociação
mental”, procurando definir o que é transe, o faz dentro do seu próprio contexto enquanto
pesquisador. O foco do trabalho de Lewis é o transe associado à possessão / manifestação.
Caso no qual se dá a dissociação não patológica. O eu” que ocupava aquele corpo,
durante o transe de possessão / manifestação é outro. O que ocorre durante a burracheira é
exatamente o inverso. O movimento é de integração de todos os conteúdos da
personalidade. Algo análogo ao processo de individuação da terapia junguiana, quando o
sujeito é levado a ver a sombra e a luz dentro de si e a lidar com os conteúdos antes
inconscientes.
Apesar do exposto, a definição que me pareceu mais satisfatória foi
oferecida por Lewis: “estado de dissociação mental ou alteração de consciência, completo
ou parcial, que na maior parte das vezes é acompanhado de visões extraordinárias,
mudanças de comportamento, relacionando-se a aspectos de mediunidade” (Lewis 1971, p.
41). Neste caso fico apenas com a parte que fala sobre alteração da consciência, pois
durante a burracheira as faculdades mentais e o comportamento permanecem preservados e
não perda de contato com a realidade. De fato, as reações provocadas por enteógenos
são descritas como estados alterados de consciência. Mas esta definição também é
comumente utilizada para definir o efeito de drogas alucinógenas e outros entorpecentes.
De modo, que para falar do efeito da burracheira é melhor usar o termo “estado expandido
de consciência”, segundo afirmam os udevistas; pois na compreensão destes a palavra
expandido, ao invés de alterado, aponta para algo de ordem mais positiva. E o objetivo da
burracheira é proporcionar a expansão da consciência, para que a pessoa possa ser capaz de
alcançar uma compreensão mais adequada dos ensinamentos espirituais ministrados em
uma sessão do Vegetal.
Antes de tratarmos do fenômeno proporcionado pela ingestão do Vegetal será
importante percebermos como o transe é visto e sentido por outras religiões. Desta forma,
embora que rapidamente, abordaremos o tema naquelas que parecem estar mais próximas
100
de nossas vivências sociais: umbanda, candomblé, kardecismo, pentecostalismo e
catolicismo carismático.
Na umbanda, o ideal do transe é inconsciente (CAMARGO, 1973, p. 167;
NEGRÃO, 1993, p. 166). No linguajar característico deste grupo religioso, diz-se que o
fiel está “possuído pela entidade”. Na manifestação diálogo entre a entidade e o
consulente. Devido às características do culto, o fenômeno que ali ocorre pode ser
classificado, segundo os tipos propostos, como transe de possessão com diálogo. Porém,
pode haver variações entre os terreiros. É comum se dizer, também, que se está
“incorporado” ou “virado”, termo de sentido mais leve que possessão, que alude à questão
da semi-consciência durante os transes.
Prandi afirma, ainda, que o candomblé tem como modelo o transe inconsciente
(1991, p. 175) pressupões que a divindade possua o fiel totalmente, substituindo-lhe a
personalidade. Este transe só é aceito e reconhecido depois da iniciação. No candomblé, os
fiéis são tomados por entidades mitológicas chamadas genericamente de orixás. São deuses
tribais que, transposição da áfrica para o Brasil, passaram por processos adaptativos que
tornaram possível a continuidade do culto. Dos orixás emanam forças sobrenaturais que
envolvem o mundo sacral de seus adeptos. Estes “descem” nos fiéis, possuem-nos, fazem
deles seus “cavalos”, utilizam-se do corpo do fiel para se apresentarem. O fiel se torna a
divindade. Pelas características e elementos desse tipo de transe, trata-se de transe de
possessão sem diálogo, pois, apesar de a entidade possuir totalmente o fiel, não
comunicação entre ela e algum consulente. As ocasiões em que os orixás transmitem
alguma mensagem durante o transe são raramente observadas no recinto público dos
cultos, limitando-se a diálogos reservados, mantidos com alguns membros da hierarquia do
terreiro. Quando volta do transe, o fiel diz não se lembrar do ocorrido.
No kardecismo, o ideal do transe é de tipo consciente (CAMARGO, 1973, p.
167; CAVALCANTI, 1983, p. 119; PRANDI, 1991, p. 160; NEGRÃO, 1993, p. 166). A
palavra do médium será o instrumento utilizado pelo espírito para fazer a comunicação,
sem, no entanto, substituir-lhe a personalidade. O médium atua tal qual um intérprete. Esse
tipo de transe corresponde ao transe mediúnico, como meio de contato para a comunicação
entre pessoa e espírito. Esta comunicação é unilateral: apenas o médium transmite as
mensagens que recebe do espírito. No caso da dominação do mediu por um espírito, em
que o médium passa a ser controlado totalmente pelo espírito que dele se apoderou, tratar-
se-ia de transe de possessão, em que o médium assume a personalidade do espírito. O
101
kardecismo prefere chamá-lo de subjugação ou de casos de obsidiados e fascinados
(KARDEC, 1991, pp. 277-280)
No pentecostalismo e entre os carismáticos católicos manifestações do
Espírito Santo nos fiéis. No pentecostalismo, as manifestações do Espírito Santo no fiel são
reconhecidas através dos dons de línguas a glossolalia –, de interpretação, de
evangelização, de profecia, de sabedoria, de discernimento dos espíritos, de cura e de fazer
milagres. Entre eles existe uma hierarquia formal dos dons espirituais. Esta pode ter
algumas variações, mas segundo Beatriz Muniz de Souza (1969, p. 56), a escala
apresentada pelos líderes entrevistados por ela segue os seguintes graus de importância, em
sentido decrescente: dons de revelação sabedoria, ciência e discernimento dos espíritos;
dons de poder fé, cura, operação de maravilhas ou de milagres; e os de expressão ou
inspiração – profecia, línguas e interpretação.
O fato de o fiel manifestar alguma das características reconhecidas como
vindas do Espírito Santo é suficiente para o reconhecimento de que aquela pessoa é uma
escolhida de Deus e mantém com Ele algum tipo de comunicação. Entretanto, configura-se
como transe de inspiração apenas o “dom de nguas”, a glossolalia, quando, através da
efusão do Espírito Santo, a pessoa inspirada por ele emite uma seqüência de sílabas sem
vínculo com a coerência lingüística, considerada mensagem divina.
Segundo Mariza Soares, esse tipo de transe apresenta características de
monólogo, em que algum tipo de comunicação unilateral e pressupõe algum estado
alterado de consciência. Por outro lado, se observadas as possessões que ocorrem em
alguns fiéis, nas igrejas pentecostais, nas quais alega-se que o Diabo toma o corpo da
pessoa, temos claramente o tipo de transe de possessão com diálogo, pois diálogo entre
o pastor e a entidade. Esses demônios têm a forma de Exus e Pombagiras. O pastor invoca
toda a legião de entidades da umbanda e alguns Orixás do candomblé durante os cultos de
libertação, que ocorrem freqüentemente às sextas-feiras, dias de realização de trabalhos em
terreiros de umbanda. Depois de invocadas, o pastor conversa com as entidades que se
manifestam nos fiéis fazendo-as falar e confessar sua origem demoníaca, e finalmente as
expulsa, demonstrando força sobre a entidade. A expulsão de demônios no pentecostalismo
representa uma vitória do bem sobre o mal, permitindo a cura de doenças e a libertação do
mal (SOARES, 1990).
Entre os carismáticos católicos, o Espírito Santo também é valorizado e se
revela ao homem através dos dons e carismas. O homem pode se aproximar e entrar em
102
contato com Ele. Estes dons são teoricamente dados a todos os cristãos, mas dependem de
disposições interiores, de uma vida de união com o Senhor, da fuga dos pecados e da
disposição em aceitar a servir a Deus, como Seu instrumento (VALLE, 1993, p. 60).
Os carismáticos aceitam e classificam nove diferentes tipos de carismas ou
dons. Esta colocação não obedece a uma ordem hierárquica de importância. São eles: o
dom da palavra de sabedoria, o dom da palavra de ciência, o dom da fé, de curar doenças,
de milagres, da profecia, dos discernimentos dos espíritos, das variedades das línguas e o
dom da interpretação. Na manifestação do dom ou carisma “é o Espírito que está agindo.
Cabe-nos a abertura maior do coração e da mente para sermos canais, sempre mais abertos,
à ação e poder do Espírito em nós” (VALLE, 1993, p.49). Aqui, como no caso das
manifestações que se referem ao Espírito Santo no pentecostalismo, é considerado transe
de inspiração somente aquele que trata do “dom de línguas”.
Para designar o fenômeno proporcionado pela ingestão do Vegetal, observado
no contexto religioso na UDV, e buscando clareza no que se pretende comunicar, creio que
a melhor designação seria transe numinoso de interiorização. Transe em referência ao
estado expandido de consciência, numinoso em referência ao termo cunhado por Rudolf
Otto, em sua obra “O Sagrado” (2005), para definir o encontro com o sagrado, e
interiorização como o movimento que proporciona o auto-conhecimento.
Quando perguntado a um Mestre o que significa burracheira, ele respondeu:
Entrevistado D:
Burracheira pelo que nós conhecemos que Mestre Gabriel deixou, afirma ser
uma força estranha, e como é que a gente pode compreender essa força estranha.
Porque no momento que a gente bebe o Vegetal, e que, porque, a gente tem um
mundo interior que a gente não conhece, então cada momento desse em contato
com o c que sente a burracheira então aflora um sentimento, um lugar em
nosso espírito que a gente não tinha entrado em contato ainda, então a
burracheira é esse lugar de descoberta de um mundo interior que a gente fica
mais consciente de tudo que a gente precisa.
Outro Mestre afirma que:
Entrevistado E:
Burracheira é uma força e uma luz divina que vem do alto, do superior, e que
vem transformando a vida das pessoas, a gente só tem burracheira quando bebe o
chá. O cé material, porque a gente bebe uma coisa que é matéria, e vem
uma coisa divina que vem modificando e transformando as pessoas.
Os discípulos também compartilham da mesma idéia:
Entrevistado “A”:
– Os mestres dizem e eu também posso dizer que é uma força estranha uma força
que é um mistério, a burracheira é um mistério divino, uma coisa, uma luz divina
que vem pra clarear as pessoas, a mente das pessoas que bebem o Vegetal, pra
mim é isso.
103
Entrevistada “B”:
Eu poderia dizer que a burracheira é o efeito do Vegetal, mas pra mim a
burracheira é uma luz divina que orienta a pessoa a ver o que às vezes a vida,
com toda a sua, seu dia a dia, não lhe deixa perceber [...].
Entrevistado “F”:
– Burracheira prá mim é a verdadeira religação. Religião é religar. Nessa religião
que é a UDV, que se comunga um chá, foi entre todas que eu freqüentei, a
que, a que eu posso dizer que vejo um sagrado em mim, que sinto Deus.
Entrevistado “K”:
– É como se fosse meu terceiro olho.
Para os entrevistados o efeito do chá pode ser comparado ao êxtase religioso
que coloca o indivíduo em contato direto com o plano espiritual. Ele facilita a
concentração mental, a interiorização, produz clareza de consciência e aguça a percepção.
A burracheira é uma “força estranha”, mas o que é essa “força estranha” e como ela age em
cada um é um mistério. Portanto, percebe-se haver na experiência da burracheira algo
subjetivo, impalpável, imaterial, de sentido individual e único.
Na parte em que me refiro aos estudos farmacológicos, fica evidente que o chá
proporciona um efeito, através das substâncias componentes. Mas isso por si não dita o
caráter fenomenológico da experiência. pessoas que o ingerem pela primeira vez e
sentem seus efeitos, outros desistem de beber o chá após longo período de insistência,
pois afirmam nunca terem sentido absolutamente nada mesmo com doses mais elevadas.
Esta questão de dose também é interessante. Alguns precisam de mais. “Copo cheio, na
cinta”, outros com “dois dedos” têm burracheira. A quantidade de Vegetal é dada pelo
Mestre Dirigente por uma “sensibilidade” em relação ao discípulo. É algo subjetivo. Não é
por peso corporal, nem pela altura, nem pelo nero, nem pela idade. É algo que, segundo
afirmam os udevistas, transcende tudo isso. “É a necessidade do espírito naquele momento
para ver o que ele está precisando para melhorar a sua vida”, diz um mestre. Se a pessoa
não tiver burracheira em uma sessão ela pode solicitar ao Mestre Dirigente repetição do
Vegetal. Fica a critério a seu dar ou não. Nas sessões de escala a repetição pode ser
realizada até as vinte e duas horas. A dose da repetição também é dada pelo sentimento,
seguindo a subjetividade acima mencionada. Um dos mestres ao falar sobre esse momento
diz que “é algo que vem de cima, a luz é quem me orienta o quanto devo servir a cada
um... uma espécie de revelação do Vegetal... não é fácil explicar”, afirma ele.
Em uma sessão é previsível que, senão todas, a maioria das pessoas sintam ou
tenham burracheira. A sua intensidade varia de um indivíduo para o outro, de um momento
para o outro, e depende também da capacidade do Mestre Dirigente de dirigir a sessão e de
“chamar a burracheira”, crêem os fiéis. Segundo relatos, o efeito do Vegetal pode se
104
intensificar, ou diminuir com as chamadas e com a utilização da palavra na sessão. As
chamadas realizadas nas sessões da UDV lembram os Ícaros, cânticos realizados por
xamãs e curandeiros ayahuasqueiros que os utilizam para conduzir as visões aumentando
ou diminuindo os efeitos nos seus pacientes.
Nos relatos percebe-se que a experiência de quem toma o chá é sempre única e
imprevisível, independente do grau hierárquico que a pessoa esteja ocupando na UDV.
Assim uma pessoa que bebe o chá pela primeira vez pode ter uma revelação importante,
obter uma cura ou alívio de alguma aflição, ao passo que outros podem passar anos
freqüentando as sessões, ter uma posição hierárquica mais elevada, e ainda assim não
conseguir ter uma visão mais marcante ou a cura (alívio) para algo desejado. É natural que
todos queiram ter ou sentir burracheira, pois para isso bebem o chá. Aqueles que não
sentem o efeito muitas vezes se sentem como que castigados por o ter o merecimento de
ver ou receber algo que precisam.
Em 1964, os psicólogos Leary, Alpert e Metzner (METZNER, 2002) revelaram
a importância do set
68
e setting
69
nos estudos sobre a ingestão de substâncias psicoativas.
Existe uma relação direta entre o usuário da Ayahuasca e o meio social em que ele vive,
sendo que nessa interação são relevantes: a) a substância e sua atuação no corpo humano;
b) o set; e c) o setting. Desta forma, diferentemente do que ocorre com outras drogas
psicoativas, para as quais as propriedades farmacológicas são fortemente relacionadas aos
efeitos psíquicos, os determinantes primários dos efeitos subjetivos das drogas psicodélicas
são as características psicológicas do indivíduo (set) e o contexto ambiental no qual se dá o
uso (setting), incluindo a presença de um guia ou terapeuta (METZNER, 2002).
A burracheira está ligada aos componentes psicoativos, ao set e ao setting. As
visões e as experiências sofrem influência do estado psicológico do indivíduo, das
expectativas do mesmo em relação aos efeitos, do meio social e cultural onde ele está
inserido. O medo, a culpa, a desconfiança, a ansiedade, podem ser potencializados durante
a sessão, gerando desconforto físico e psicológico. É a chamada “Pêia”
70
.
O desejo de participar mesmo que momentaneamente da divindade é um tema
e uma busca recorrente em muitas manifestações religiosas, sejam cristãs ou não. Essa
participação pode ser em nível simbólico ou então produzir um efeito real, um estado
68
Estado psicológico do indivíduo, sua personalidade e as expectativas que possui em torno do efeito da
substância.
69
Representa o meio físico, e sócio-cultural onde ocorre o uso da substância.
70
“Pêia” é quando a burracheira m acompanhada de sentimentos desagradáveis como mal estar físico,
náuseas e vômitos, dor e desconforto psicológico.
105
diferenciado de consciência, que propicia a apreensão e compreensão de conteúdos e
elementos intangíveis no estado ordinário de consciência.
Um dos exemplos mais estudados deste tipo de transe está presente no
xamanismo. Talvez o tipo de transe religioso que mais se aproxime da burracheira seja o
transe xamanístico, provocado pela ingestão de plantas psicoativas. Este fenômeno recebeu
a atenção de alguns estudiosos como Mircea Eliade (1998), que conferiram
respeitabilidade às práticas xamanicas. O xamã não serve apenas de veículo para a
manifestação de divindades, ele mesmo é investido de poderes divinos (ELIADE,1998).
A analogia é ainda um tanto precária, pois o xamã é um sujeito especial dentro
de uma comunidade. Da mesma forma que o médium, o xamã possui um poder inato de
estabelecer contato com o mundo dos espíritos, com a esfera do sagrado. Ele passa a ser o
elo entre o mundo espiritual e os membros de sua comunidade que não são dotados deste
poder. E por isso o procuram nos momentos de maior aflição, quando necessitam de seu
auxílio para sanar problemas como doenças, feitiços, escassez de alimento e toda sorte de
infortúnios que crêem poder ser resolvido com o auxílio dos espíritos. Embora não seja
uma regra, em muitas culturas xamanísticas o xamã é o único habilitado a fazer uso das
plantas de poder, ou outras substâncias enteógenas, ministrando-as aos demais apenas em
ocasiões especiais como os ritos iniciáticos. O importante é sublinhar que o transe
alcançado pelo xamã também é um transe voltado para a comunidade, ele é inerente à sua
cultura e lhe confere poder, ainda que também possua a característica de um mergulho
interior (ELIADE,1998). Mas o estudo do êxtase e do transe religioso induzido por
ingestão de enteógenos praticado por pessoas consideradas instruídas, ou seja, que
receberam uma educação nos moldes ocidentais é incompreendido e freqüentemente
comparado ao uso de drogas e à perda da razão. Não caberiam aqui estudos específicos
acerca do tema com a finalidade de melhor compreender tal fenômeno?
Até mesmo Augras que dedicou anos de suas pesquisas ao estudo respeitoso e
ético dos terreiros de Candomblé apoiada na fenomenologia, confessa sua dificuldade para
falar sobre transe e se desvencilhar da fôrma cartesiana na qual fomos educados.
Nesse ponto, é preciso repensar muito daquilo que se leu ou escreveu sobre o
tema. O transe é basicamente um fenômeno psico-fisiológico, encontrado em
uma infinidade de grupos culturais, que lhe atribuem significações diversas.
Dentro da cultura ocidental, a tradicional cisão cartesiana entre “mente” de um
lado, e “corpo”, do outro, tem produzido um constante estranhamento frente ao
transe, interpretado como sendo um comportamento no mínimo “anômalo”. E
por mais que nós, pesquisadores, nos esforcemos em manter distância em relação
a interpretações desqualificadoras da vivência dos sacerdotes e sacerdotisas cuja
religião faz, do transe, o suporte da possessão pelo orixá, as ferramentas teóricas
106
e metodológicas de que dispomos foram forjadas por aquela mesma tradição
cartesiana e, por conseguinte, dificilmente conseguimos ir além da descrição
externa de um fenômeno corporal (AUGRAS, 2004
, p.
2).
A União do Vegetal vem crescendo em ritmo acelerado e constante, o que
denota que um número cada vez maior de pessoas está buscando respostas para a satisfação
para os seus anseios espirituais. Um dos fatores mais notáveis neste fenômeno é o fato
desta satisfação se dar em moldes bastante diferentes.
3.6 Peia e Burracheira de Luz
As pessoas, individualmente, e por vezes o grupo reunido numa sessão são, vez
por outra, envolvidos por uma onda de dificuldades denominada “peia”. A peia é
comumente entendida como uma "surra" aplicada pelo próprio ayahuasca, que na
concepção nativa e das “religiões ayahuasqueiras”, é considerado um "ser divino" com
vontade própria. A peia pode ser qualquer dificuldade ou sofrimento vivenciado pelo
indivíduo em sua vida e, no ritual, se expressa por vômitos, diarréias, sudorese, tonturas,
ab-reações, visões aterradoras, entre outros. Ela é, contudo, vista como benéfica na medida
em que auxilia no processo de "limpeza" física, moral e espiritual do indivíduo e na
conscientização sobre os motivos das dificuldades vivenciadas.
A experiência da peia pode ser extremamente intensa: um profundo mal-estar
físico após a ingestão do chá, caracterizado por náuseas, vômitos, vertigens. Esse mal-estar
pode não ser somente físico: a pessoa pode sentir-se interiormente oprimida pelo remorso,
pelo medo ou pela culpa, ou então se encontrar assombrada diante de visões temerosas,
perturbadoras. O conjunto de sensações sugere, às vezes, a quem as vivencia que se está
chegando ao limiar da morte. A propósito, o Mestre Gabriel teria dito: “Vocês sabem pra
que é que a gente bebe esse chá? É pra aprender a morrer!” Por outro lado, ele
tranqüilizava os seus discípulos, garantindo que “ninguém morre de burracheira”. Luiz
Eduardo Soares observa, numa “breve descrição de paisagens mentais”, a partir de sua
experiência ao beber a Ayahuasca: “A viagem é suficientemente intensa, imprevisível e
incontrolável (pelo menos para os neófitos), para representar uma aposta de alto risco.
Cada um daqueles homens e mulheres sabia disso. O pasto daquele rebanho é a morte, nem
mais, nem menos” (SOARES, 1994, p. 226).
107
Toda essa “provação” física, psíquica e espiritual costuma ser interpretada
pelos discípulos como “pagamento” por alguma conduta moral errônea. Assim, a peia é
compreendida dentro de uma visão que afirma que o ser humano recebe na vida o que
merece, segundo os atos que praticou. O “merecimento” é um dos pilares da doutrina da
UDV. Essa compreensão da peia aparece bem clara na narrativa de um membro do Corpo
Instrutivo, na faixa dos 40 anos:
Depois de uns 5, 6 meses [de que havia começado a beber o chá] eu comecei a
tomar umas peias daquelas que eu não conseguia beber o Vegetal. Bebia e
vomitava e parei. Encanei que tinha tido taquicardia numa sessão, que tava
passando mal, vomitei 18 vezes... [risos]. Mas era porque tava começando a
fazer efeito coisas assim: tava tendo consciência, mas no dia a dia eu, né? Eu não
conseguia manter, voltava ao dia a dia. Aí fiquei mais ou menos uns 6 meses sem
beber. Até que um dia eu resolvi conversar com o Mestre (?), eu coloquei
algumas coisas que eu tava sentindo, sentindo na burracheira, umas revoltas e tal
com a injustiça e ele me deu uns conselhos, falou pra eu voltar, começar a
beber aos poucos e eu fui voltando
71
.
“Pêia”, segundo os relatos, é quando a burracheira vem acompanhada de
sensações desagradáveis como mal estar físico, náuseas e vômitos, dor e desconforto
psicológico, os quais são atribuídos a alguma desarmonia no corpo e na mente. As
desarmonias do corpo podem ser devido a alguma doença, alguma coisa na alimentação
que não se digeriu, etc. Segundo relatos dos integrantes da UDV, a burracheira mostra, a
depender do merecimento, se a pessoa tem alguma doença ou problema de saúde.
Entrevistada “B”:
Eu parei de usar as drogas e tinha continuado fumano cigarro, e chegou uma
hora que eu senti que o Vegetal estava me botano na parede, mostrando,
mostrando, mostrando, e tipo assim... chegou um momento em que eu sentia que
eu não tava querendo beber o Vegetal porque eu tava sentino muita coisa, vendo
muita coisa do cigarro, ou seja, eu tava escolhendo ficar com o cigarro. E eu fui
nesse dia beber o Vegetal, no dia primeiro de abril, e eu tive uma burracheira
muito forte me mostrando assim que se eu continuasse fumano eu ia ter
conseqüências pra minha saúde grave, mas foi uma sessão tão forte que eu fiquei
passando assim... pedino a Deus pra não morrer naquele momento, e quando eu
pedi isso a ele... aí veio um conforto assim, do céu, mas falano que eu devia fazer
a minha parte. E eu não obedeci né? Eu passei aquele momento e não obedeci.
Continuei fumano Então, quando foi agora em abril, eu [...] tava num momento
difícil de minha vida[...] e eu bebi o Vegetal a burracheira me mostrou
novamente do mesmo jeito, assim, e ainda mostrou que eu já sabia daquilo ali,
que ela tinha me dito aquilo ali, já tinha me mostrado aquilo ali e que o
caminho que ia levar a esse, era aquele ali, que eu tava no momento me
sentindo mais forte pra mudar. Então, desde esse dia que eu não fumo cigarro
mais [...].
Entrevistada “H”:
[...] eu tive uma burracheira muito forte e eu passei muito mal e foi assim
horrível, e eu tive uma miração
72
terrível porque eu vi tudo preto na minha
71
Entrevista de, 7 de setembro de 2009.
72
Miração é o nome dado pelos adeptos às visões produzidas na burracheira. Essas visões são de caráter
individual e normalmente possuem ligação com o momento ou a história de vida de cada um. Alguns
108
frente, eu me vi dentro de um cemitério com um monte de caveira em volta, e eu
respirava e saia fumaça de minha boca, e tudo preto, e eu empesteava o salão do
preparo, tudo com preto, à medida que eu respirava, eu soltava uma fumaça preta
e de repente eu na minha miração né, eu tinha deixado o salão todo preto, e era
eu que tava tão poluída que tava deixando tudo preto. E eu tive essa percepção
clara que eu tava muito doente e que o cigarro é uma coisa muito negativa e que
eu tinha que parar, não tinha escolha se eu queria ou se eu não queria, eu tinha
que parar. Naquele momento eu nem tava com vontade de parar, mas eu me senti
obrigada a parar.
No caso, “B” e “H” fumavam cigarro e viram através da burracheira as
conseqüências nocivas do cigarro para a sua saúde, chegando até a pensar que poderiam
morrer naquele momento. É como se a burracheira mostrasse o que aconteceria com a
saúde delas se as mesmas continuassem fumando. Tal fato impulsionou as entrevistadas a
modificarem um hábito que consideravam nocivo: o tabagismo.
As desarmonias da mente podem ser decorrentes de sentimento de culpa,
ansiedade, raiva, mágoa, vivência de situações traumáticas não resolvidas, estresse, etc.
Apesar de ser vista também como um “castigo” dado pelo Vegetal em decorrência de
algum ato ou pensamento mal sintonizado, os adeptos consideram a pêia como sendo algo
positivo e transformador. Depois do desconforto, normalmente sentem-se invadidos por
um bem estar. É como se tivessem reconhecido em si aquilo que não está bem, e nesse
sentido, buscam solucionar seus problemas, modificar seus pensamentos e ações, em busca
de harmonia, equilíbrio e bem-estar.
Entrevistado “A”:
– Eu uma vez eu tive a experiência do, de ta passando mal e ter que vomitar, e eu
me agachei para vomitar, e nesse dia eu tava com sentimento de muita raiva, um
sentimento ruim assim, sentimento de raiva, de mágoa, e nesse dia eu agachei...
tava um pouco mal, tava passando aperto e fui vomitar. Quando saiu o primeiro
líquido, assim, junto saiu um vulto, assim, um vulto preto que era tipo um
vampiro com uma capa preta, assim, que pra mim assim era esse sentimento
ruim que tava saindo de dentro de mim, que eu tava limpando aquele sentimento
ruim de raiva, de mágoa. Essa foi uma experiência assim... que eu senti, eu tive
essa miração... eu vi uma capa tipo um vampiro assim saindo de dentro de mim,
e aos poucos durante a burracheira eu fui pensando nessa situação dessa raiva e
foi amenizando assim, foi passando, foi tranqüilizando, e hoje em dia assim,
agora mesmo eu sou mais tranqüilo em relação a esse sentimento que eu tinha,
não sinto mais raiva, não tenho mágoa, a religião me ajudou a me dar melhor
com o meu sentimento.
Entrevistado “D”:
Isso tem um ano mais ou menos, eu bebi o Vegetal, onde eu me via dentro do
salão, eu me via, eu abria o olho e me via ali, usando droga, e doidão, e aquela
malandragem, e eu comecei a ficar apavorado com essa miração que eu tava
tendo e pensei: pôxa, vou dar uma volta fora. E quando eu levantei do
salão do Vegetal pra ir fora, eu tava me perseguindo, doidão. eu fiquei
assustado e fui pra fora. fui pra cozinha, concentrei, fechei o olho, quando
adeptos afirmam nunca ter tido mirações, já outros a tem com freqüência. De certa forma essas mirações ou
visões tem um importante papel na experiência de transformação, que são experiências “fortes”, vistas
como um sinal divino de que algo precisa ser transformado.
109
abri o olho, eu tava atrás de uma árvore, cheirando, fumando, tava bebendo,
tava numa miração muito doida, onde eu cheguei e chamei pelo Mestre Gabriel.
Falei: Mestre Gabriel o que o senhor ta querendo me mostrar? Aí na hora veio o
pensamento de como eu era. Aquilo me mostrando como eu era e o quanto eu
venho melhorando, o quanto eu tava bem. E aí desapareceu aquela visão, e eu me
senti confortável por bem, e aí foi onde eu fiz uma limpeza também. Vomitei.
o mestre... foi me um auxílio, me levou pro salão, e eu me senti bem.
Aquilo me mostrando o quanto eu tinha melhorado, o quanto que eu
melhorando.
O oposto da “pêia” é a “Burracheira de luz”. Acontece quando o usuário tem
visões bonitas e positivas. Quando se sente penetrado pela presença de Deus, quando se
sente como fazendo parte do sagrado. A “pêia” pode se transformar em uma burracheira de
luz em uma mesma sessão, como nos casos “A” e “D” e o contrário também pode
acontecer, a depender da “freqüência” de pensamento e sentimento que a pessoa se ligar. É
necessário ter “firmeza no pensamento” a fim de que se possa focalizar a atenção, os
pensamentos e sentimentos na “força positiva”, como forma de evitar sensações
desconfortáveis.
Desse modo, a teodicéia
73
da União do Vegetal aproxima-se muito do tipo
ideal de solução para o problema da teodicéia presente na crença na transmigração das
almas, apontado por Weber em sua Sociologia da Religião (WEBER, 1974, p. 412-417).
Como Weber observa os três tipos ideais de solução o escatológico
messiânico, o dualista do zoroastrismo e o cármico hinduísta não dão conta de abranger
certas tradições de pensamento. E assim, Campbell (1997) apresenta mais um tipo de
teodicéia, que é a teologia filosófica do otimismo do século XVIII. Suponho que a
teodicéia da UDV tem também elementos desse outro tipo ideal, na medida em que seu
reencarnacionismo distancia-se do hinduísta, o qual não é necessariamente ascendente na
seqüência de encarnações, e se aproxima mais da visão kardecista, a qual traz em seu bojo
a expectativa, própria do século XIX (enraizada no século anterior), de contínua superação
de limites pela irresistível evolução da humanidade. Assim, o reencarnacionismo da UDV
tem um caráter evolucionista e otimista. E a “peia” é encarada como um momento
necessário desse processo de purificação, que conduz à salvação. Essa visão, de um
aspecto pedagógico na peia, pode ser observada nas declarações do membro do Corpo
Instrutivo mencionadas acima ele compreendeu que começava a ter consciência de
seus erros nas sessões, mas não estava praticando as transformações necessárias em seu
73
Conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a
crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade,
duvidam de sua existência ou perfeição (FERREIRA, 2002).
110
cotidiano. E assim a peia teve o papel de um “lembrete” educativo.
Por sua vez, Fernando de la Rocque Couto, em sua dissertação de Mestrado em
Antropologia acerca do Santo Daime, ao estudar fenômeno semelhante à “peia” da UDV,
considera que “esse processo é catártico e psicoterápico”, a exemplo da visão de Lévi-
Strauss acerca da cura xamanica (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 209), a qual teria na ab-
reação o seu momento decisivo:
Para pedir o perdão, o doente deve trazer à consciência lembranças emocionais
e/ou traumatizantes que se encontravam reprimidas. Para que isso se observe, ele
tem que sair do conflito e resolver as suas contradições internas. Em termos
psicanalíticos, ele tem que ab-reagir, vivendo e revivendo intensamente a
situação inicial que está na origem da sua perturbação, para poder superá-la
definitivamente (COUTO, 1989
, p.
179).
Luiz Eduardo Soares, a “peia” como ocasião de libertação da hybris,
superação da desmedida do eu que se colocara como centro do universo. A impetuosidade
do temporal desaloja esse eu dos píncaros do orgulho e o lança nas planícies da humildade,
virtude muitas vezes louvada na União do Vegetal:
O chá sagrado do Daime, o Vegetal santo da UDV, assim como outros recursos
religiosos, psicológicos, culturais, ritualizados mundo afora, instruem-nos, rápida
e eficientemente, que a hybris é o pecado original. Como nos ensinara a tradição
Judaico-cristã.” [...] “É o que deduzo de minha própria sensação: afinal, se eu
podia, sem recorrer à linguagem religiosa e sem experimentar o êxtase místico,
vislumbrar a finitude traída pela fetichização do ego; o que não pensariam, da
hybris, os místicos, encantados pela emoção do ultrapassamento? A dedução
confirma-se por depoimentos (SOARES, 1994
, p.
229).
A “peia”, essa vivência complexa, que pode ser lida como fruto da lei do
merecimento, catarse terapêutica, ensinamento e caminho para a humildade, é, com
certeza, uma experiência emocional intensa que é vivida (ou padecida) numa perspectiva
otimista.
3.7 Mirações
Se um membro da UDV sabe que está sujeito a ter de enfrentar uma “peia”, por
outro lado, sabe também que é possível que a sessão prossiga plena de luz, paz e amor”,
como é dito freqüentemente pelos discípulos na conclusão de suas falas durante as sessões.
Seguindo a definição de Sena Araújo (1999), é a “miração” que proporciona o
contato com o mundo espiritual, através do desprendimento do espírito da pessoa do seu
111
corpo, atingindo níveis de consciência mais elevados. Ela ocupa um espaço essencial
durante os rituais, é o meio de transcendência por excelência.
As “mirações”
74
de uma sessão tranqüila podem ser grandemente prazerosas.
Essa sensação de beatitude, em harmonia com todo o universo, é freqüentemente reiterada
nas declarações dos participantes acerca de suas vivências na burracheira.
A pessoa citada na declaração acima, contou-me uma miração marcante que
teve:
O Mestre apareceu pra mim, na casa dele, sentado de cócoras. Essa foi marcante.
De repente ele falou: ‘olha, aqui é minha casa’. De repente eu vi uma casa de
madeira, amarrada com corda e sapé, assim, que ficava no alto de um morro;
atrás da casa dele tinha a floresta e na frente tinha uma vista que dava pra você
enxergar todas as coisas: desde o mar, as pirâmides e... tudo o que tinha na terra
assim, sabe? De repente, você ollhava um golfinho no mar, longe, assim,
que você conseguia enxergar o olho do golfinho. Então, de repente era uma
questão assim que você enxergava tudo assim... E ele me falou pra mim assim:
‘Ah, aqui da minha casa pra ver todas as belezas da terra!’ E era uma casa
bem legal assim, sabe? E eu falei: ‘Pô, que legal!’ E ele deu uns toques pra mim.
[...] Então isso é uma das coisas bem marcadas na minha mente, a casa do
Mestre Gabriel que dava pra ver todas as belezas da terra, ele sentado de cócoras.
E depois eu li numa biografia dele que ele realmente ficava sempre
tradicionalmente sentado de cócoras e eu não sabia disso
75
.
É bem significativo que, na miração do entrevistado, da casa de Mestre Gabriel
se pudesse ver “todas as belezas da terra”. Essa dimensão estética, da beleza que se
apresenta inesperadamente, como um dom, muitas vezes me foi narrada pelas pessoas que
entrevistei e com quem conversei.
A beleza pode estar relacionada a outras percepções, não somente as visuais.
Além das chamadas, faz parte do ritual da UDV a audição de músicas durante
as sessões. Esse costume vem do tempo do Mestre Gabriel, que autorizou os primeiros
discípulos de Manaus a colocarem discos a tocar nas sessões. A razão da introdução da
música, segundo um dos mestres da UDV, é a beleza da “mirações” que ela propicia.
Atualmente, faz parte do ritual da UDV a audição de sica instrumental no início das
sessões, no estilo New Age, andina ou clássica. Na seqüência da sessão, são ouvidas
canções da Música Popular Brasileira, com letra, cuidadosamente escolhidas, de acordo
com o assunto abordado pelo Mestre Dirigente. São freqüentes as que tocam temas ligados
à natureza, à amizade e outras virtudes enfatizadas pela doutrina. É interessante perceber,
sobretudo, a importância da sensação estética nessa valorização ritual de músicas que não
74
As mirações, experiências visuais internas sob o efeito da Hoasca, podem ser de conteúdo “negativo” em
momentos de “peia”. No entanto, quando me refiro a mirações aqui, tenho em vista as agradáveis,
elegendo-as como um “tipo ideal” em contraste com a “peia”.
75
Entrevista 26 de outubro de 2009.
112
foram compostas para uma utilização sacra.
A música no ritual é considerada importante pela UDV, pois há a crença de que
a miração não pode ser simplesmente seqüência de visões: é uma vivência sinestésica, que
toca a sensibilidade dos participantes da sessão em dimensões estéticas e afetivo-
sentimentais. Tal experiência totalizante, que além da visão e da audição pode mobilizar
também os sentidos do tato, do olfato e do paladar. Como o sonho para os românticos, as
“mirações” têm para o discípulo da União um caráter revelatório.
Também no que toca às “mirações” pode-se encontrar bem presente o traço do
otimismo. A burracheira quando “plena de luz” cria uma atmosfera de encantamento,
de harmonia, de “sintonia entre os irmãos”, que propicia um enfoque otimista de todas as
coisas.
Um aspecto interessante observado durante as sessões é o aspecto purgante ou
purgativo do chá. Alguns vomitam, outros têm diarréias, às vezes as duas coisas ao mesmo
tempo. Contudo, mais interessante ainda é como os adeptos encaram com naturalidade
esses procedimentos. Essas manifestações são consideradas positivas, vistas como uma
limpeza do organismo. Limpeza de algo que comeu e o fez bem, limpeza de alguma
energia captada pelo indivíduo, limpeza de sentimentos negativos como ódio, mágoa, etc.
Então o que em um contexto sócio-cultural poderia parecer algo nojento, sinônimo de
enfermidade e mal-estar, em outro contexto é sinônimo de limpeza orgânica e espiritual
que causa alívio e bem estar aos adeptos.
Tomar ayahuasca, que também é conhecida como la purga, é concebido como
uma maneira de “por para fora” as doenças, estados de espíritos negativos e
outras fontes de problemas e infortúnios. A confiança nas qualidades profiláticas
que lhes são atribuídas, aliada á experiência de seu efeito emético e catártico,
sem dúvida contribui muito para a criação de uma sensação de “limpeza” e o
clima de alegria e descontração que reina entre os participantes após a sessão
(MAC RAE, 1992
, p.
54).
Através da burracheira, muitos adeptos se dizem aliviados ou curados de
problemas de saúde, dores, “vícios” e aflições. Maria Cristina Pelaez (2002) em artigo
publicado no livro O Uso Ritual da Ayahuasca” afirma que uma das propriedades
atribuídas a essas substâncias é a de gerar sentimentos de transcendência que
possibilitariam a cura de desequilíbrios físicos, espirituais e mentais, sendo um instrumento
eficaz na cura de doenças, fundamentalmente da doença espiritual que seria a origem real e
verdadeira das doenças físicas e mentais.
Alguns autores, principalmente oriundos da área da psicologia têm se atentado
113
para o aspecto numinoso existente em alguns tipos de transe, inclusive os induzidos por
substâncias psicoativas. É o “Transe Numinoso de Interiorização”. Transe se refere ao
estado alterado da consciência. Numinoso para se referir ao encontro com o sagrado e
interiorização como movimento que proporciona autoconhecimento. O termo numinoso foi
cunhado pelo teólogo Rudolf Otto em 1917, em seu livro “O Sagrado”. Para ele a
experiência religiosa é fundamentada nos elementos irracionais do sagrado, mas para
tornar a experiência compreensível ao senso comum é preciso expressá-la através da
racionalidade:
Em boa verdade não se transmite no sentido próprio da palavra: não pode
ensinar-se, apenas se pode fazer despertar no espírito. Por vezes diz-se a mesma
coisa da religião em geral e no seu conjunto. Mas é um erro. Muitos elementos
que contém podem ensinar-se, isto é, transmitir-se por meios de conceitos,
traduzir-se em uma forma didática, exceto precisamente o sentimento que lhe
serve de fundo e de infra-estrutura. pode ser provocado, excitado, despertado
(OTTO, 2005
, p.
89).
3.8 A Força da Palavra e a Evolução Espiritual
Rudolf Otto já havia dito:
[...] uma coisa são as palavras recebidas em estado de graça, emanando de um
coração vivo e pronunciadas por uma boca viva, outra são as próprias palavras,
inscritas num pergaminho morto... Aqui ficam frias, não sei como, empalidecem
como rosas cortadas (OTTO, 2005
, p.
90)
A UDV é uma religião iniciática na qual a doutrina é passada através da
transmissão oral. Não existem ensinos registrados na forma escrita, portanto, a palavra
falada ocupa um lugar de destaque na religião.
No discurso da UDV, a palavra não possui o significado ordinário, aquele que
as pessoas estão acostumadas a lhe atribuir no uso rotineiro. Ela não é o meio para a
compreensão de um significado, ela é o significado em si. A palavra é sagrada e como tal é
investida de força e poder criadores. Por isso, necessita-se que seja usada com critério e
sobriedade. Jamais utilizando palavras de cunho negativo ou que atraiam o mal sobre si ou
outras pessoas. Desta forma, há a orientação e a exigência rituais de cuidado com a
palavra.
Nas sessões da UDV, as palavras abrem as portas para o conhecimento do
mundo espiritual. um cuidado especial com a escolha das palavras, que são proferidas
114
em uma sessão, pois direcionam e influenciam o transe numinoso
76
.
Mesmo fora das sessões, a maneira como um membro da UDV usa a palavra é
visto como um reflexo de seu desenvolvimento espiritual, a sua vida como um todo
também é direcionada pelas palavras que utiliza. Dá-se preferência ao uso de termos
positivos, para que possam trazer efeitos também positivos a quem os diz.
Para aqueles que não possuem familiaridade com o uso da palavra, segundo os
moldes da UDV, estes significados podem parecer um tanto estranhos, supersticiosos ou
sem sentido. Mas não é um conceito novo, muito pelo contrário. Existem teorias que
reconhecem este uso sagrado como os primórdios da comunicação oral. Em seu livro, O
ser da compreensão, Augras aborda o tema da linguagem, mais especificamente a fala.
Para os antigos egípcios. “o órgão da criação é a boca, que nomeia todas as
coisas”. No Rigveda, a fala é apresentada como imagem materna, que contém o
universo dentro de si: “Da palavra vivem todos os deuses; da palavra vivem os
gênios, os animais e os homens[...] a palavra é imperecível, primogênita da lei,
mãe dos vedas, umbigo da imortalidade (AUGRAS, 1986
, p.
77).
Assim sendo, haveriam dois níveis distintos do uso da palavra: o vel
ordinário, no qual a palavra adquire a importância de sinal, e o vel sagrado, no qual a
palavra adquire a importância de símbolo. No vel ordinário ao se tratar de um sinal é
possível que a palavra tenha vários significados, segundo o contexto em que são
empregadas, pois os sinais são mutáveis. Já no nível sagrado as palavras são símbolos, e os
símbolos são coisas em si e não podem ser relativizados.
A antropóloga Ester Langdon (2005, p. 20) revela a importância da cultura
como fator que contribui significativamente para a estruturação da experiência psicoativa.
Para ela “não é possível separar a experiência xamanica dos mitos, dos ritos e da história.
Essas experiências transformam-se em história oral e, por sua vez, influenciam as novas
experiências”. Dessa maneira, no que diz respeito aos usuários de substâncias psicoativas,
as explicações oferecidas para as experiências com essas substâncias dependem dos
contextos em que as práticas se inserem e dos processos sócio-culturais, biológicos e
76
Este termo foi cunhado por Otto para designar a face puramente religiosa, que está contida na palavra
“sagrado”. Para ele, o termo sagrado já traria em si, não somente uma conotação religiosa, mas também um
aspecto ético e moral portanto racional muito fortes. O termo numinoso traz a compreensão do contato
direto com o sagrado como um evento transcendente, dotado de qualidades que não são apreendidas
racionalmente. Essa numinosidade faz com que a pessoa reconheça na experiência direta, “o Poder
Superior”. Designa puramente o elemento original, vivo em toda religião, e livre de qualquer relação com
definições racionais, que acompanham o sagrado. Numinoso, portanto, é o aspecto irracional do sagrado.
Na experiência numinosa está contido o Mysterium tremendum. Segundo seu pensamento: “Uma vez que
não é racional, isto é, que não pode desenvolver-se por conceitos, não podemos indicar o que é, a não ser
observando a reação do sentimento particular que o seu contato em nós provoca. ‘É diríamos de tal
natureza que arrebata e comove desta ou daquela maneira a alma humana’” (OTTO, 2005
, p.
21).
115
históricos em que se fundam e engendram e são elas que, por força da oralidade recriam e
orientam as novas experiências, dando fundamento e sentido ao que se crê.
Por meio desse entendimento, percebe-se que os padrões culturais – entendidos
como sistemas complexos de símbolos que fornecem um diagrama, que dão forma definida
a processos sociais (GEERTZ, 1978, p. 106) são determinantes na formação do
significado da experiência psicoativa com o Vegetal. Essas matrizes são responsáveis por
oferecer os elementos simbólicos que constroem o ambiente onde as práticas com a bebida
acontecem. Além disso, fornecem o conteúdo semântico que dá sentido aos rituais e
conduz a compreensão dos adeptos antes, durante e após o consumo da bebida. Logo, toda
a compreensão religiosa mostrar-se-á como resultado de uma ampla teia de significados
que se constrói e se reconstrói continuamente por meio da ingestão ritual da bebida e do
compartilhamento da memória oral do grupo. A bebida se reveste, por exemplo, de um
significado esotérico e oculto que, para ser compreendido, deve ser vivenciado. O mesmo
acontece com a formação de todos os demais conceitos religiosos do grupo. São todos
frutos do que se constrói a partir da palavra. Como as palavras são sagradas, as narrativas
são investidas de poder, de autoridade simbólica para os seus seguidores, por isso, segundo
eles, orientam e determinam a forma de viver e de crer do grupo.
De acordo com o artigo 1
o
do Regimento Interno, lido em todas as sessões de
escala, o CEBUDV “tem por objetivos: a) trabalhar pela evolução do ser humano no
sentido de seu desenvolvimento espiritual; b) reunir-se socialmente em seu Templo espírita
e extraordinariamente a critério do Mestre”
77
.
Essas palavras iniciais como que
fundamentam a existência da UDV sobre uma visão de evolução espiritual. E
constantemente, em palavras dos sócios durante as sessões alguma referência à
evolução, no sentido de que “nós estamos aqui na Terra e nesta religião para evoluir
espiritualmente”.
Uma jovem do Corpo Instrutivo, analista de sistemas, na faixa dos 20 anos,
perguntada se há alguma repercussão da sua vivência religiosa na UDV em sua vida
prática, responde:
Com certeza tem. No geral, eu sinto que ela traz mais direção, traz mais
equilíbrio, principalmente, o fato de você ter um objetivo, que é a evolução
espiritual, isso já modifica totalmente a sua vida. Porque uma coisa é você viver
com objetivo e outra coisa é viver sem orientação, né? Então quando você vive
com objetivo, você consegue trilhar mais a sua vida, consegue organizar mais a
sua vida, isso faz com que as coisas aconteçam de uma maneira mais ordenada.
77
Regimento Interno do CEBUDV, artigo 1
o
. (UNIÃO DO VEGETAL, 2003
, p.
92).
116
Principalmente o fato de ter um objetivo na vida, já muda a sua vida
totalmente
78
.
Esse enfoque teleológico está presente no discurso de muitos discípulos da
UDV. Compartilha da mesma província semântica a ênfase da doutrina em temas como a
retidão, a firmeza no pensamento, a simplicidade. É como se predominasse uma imagem
da vida como linha reta, no fim da qual há uma meta bem definida, a qual importa
conhecer e ter diante dos olhos, para alcançá-la mais rapidamente. Nesse aspecto, toda
uma tendência à busca da eficácia, que encaixa bem com a modernidade.
78
Entrevista de 7 de novembro de 2009.
117
4 O USO DA AYAHUASCA E O CONCEITO DE SAÚDE NA UNIÃO DO
VEGETAL
A União do Vegetal, o Santo Daime e a Barquinha possuem um histórico de
líderes carismáticos que utilizavam de seus poderes com o objetivo de realizar a cura e
trazer alívio aos diversos tipos de aflições humanas. Muitos deles sofreram influência
direta ou indireta dos Vegetalistas.
Como referido anteriormente, de acordo com Mac Rae, o termo vegetalista
refere-se aos curandeiros de origem cabocla, herdeiros diretos do xamanismo indígena
(MACRAE, 1992, p. 28). Os Vegetalistas são geralmente índios e caboclos conhecedores
de plantas e ervas medicinais. Alguns utilizavam a Ayahuasca e a administrava dentro de
um sistema ritual e cultural caboclo em um local onde a medicina científica era
praticamente inexistente. Se nos reportarmos á realidade da floresta amazônica
cinqüenta anos atrás, veremos o quanto a natureza se apresentava hostil, principalmente
para aqueles que não estavam acostumados com ela. Essa hostilidade estava representada
pelos perigos inerentes ao ambiente da selva e a falta de socorro médico. Durante o ciclo
da borracha muitos soldados” foram recrutados de diversas regiões do país,
principalmente da região nordeste, para trabalhar nos seringais como soldados da borracha.
Ao chegar à Região Amazônica se deparavam com um sistema de exploração, um sistema
de vida precário, em uma região de difícil acesso. Por não terem muito conhecimento dos
perigos escondidos na selva muitos acabavam por morrer comido por onças e jacarés,
vítimas de malária e outras doenças que matavam milhares de seringueiros despreparados
para enfrentar essa realidade natural e social (MACRAE, 1992, p. 28).
Os Vegetalistas eram conhecedores de ervas medicinais com alto poder
curativo (muitas delas têm sido pesquisadas atualmente, e usadas por cientistas como base
de medicamentos laboratoriais). Eles utilizavam um sistema popular de cura e gozavam de
grande respeito e prestígio nas suas comunidades. Michael Taussig (1993) nos revela que
até os poderosos proprietários de terras e fazendeiros procuravam, e se valiam desses
Vegetalistas e xamãs para se curarem de alguma doença, afastar malefícios e obter alívio
para as suas aflições.
Dentro dessa perspectiva surgem os líderes dessas religiões: Irineu (Santo
Daime), Daniel (Barquinha) e Gabriel (União do Vegetal), os quais realizavam curas, além
de resolver diversos tipos de problemas existentes na comunidade. Esses problemas
118
variavam desde os aspectos espirituais, até as dificuldades na caça e na pesca,
desequilíbrios psicológicos, disputa de terras, relacionamentos familiares, adultério, etc.
Eram procurados e freqüentemente resolviam tais questões com destreza e sabedoria,
consolidando cada vez mais seu prestígio e aumentando sua fama.
No capítulo onde fiz uma breve explanação sobre a vida do Mestre Gabriel
estabelecendo sua relação com a cura, principalmente quando iniciou seus trabalhos com a
Ayahuasca. Ele era freqüentemente solicitado a realizar trabalhos de cura através de ervas
medicinais quando atuava como Sultão das Matas. Mesmo após revelar a realidade sobre
tal entidade: que era ele mesmo, continuou sendo solicitado para diversos fins, inclusive
curativos, embora praticasse outro tipo de ritual (as sessões da UDV), onde a questão da
cura não era seu foco central. Dentre os elementos doutrinários vinculados à cura na UDV,
destacam-se: o uso e a chamada dos nove vegetais; e a crença em entidades espirituais de
cura: Cosme e Damião
79
e Doutor Camalango
80
.
Desde a origem da UDV, o Mestre Gabriel já afirmava, e deixou registrado nos
primeiros documentos do Centro assinados por ele, que o "Vegetal que chamamos de
Ayahuasca" é "comprovadamente inofensivo à saúde", consciente de que a comunhão
desse chá, "para efeito de concentração mental", é benéfica à transformação da consciência
humana, quando bem orientada.
Na concepção dos udevistas, a comunhão (uso) do Vegetal proporciona um
estado de consciência, capaz de ampliar a percepção do indivíduo sobre a sua natureza
essencialmente espiritual, com resultados positivos sobre o desenvolvimento do ser
humano em todos os aspectos, morais e intelectuais.
Pela retórica existente na UDV, todo este trabalho é um exercício integral de
sentir e refletir à luz da Ayahuasca, o que leva os sócios do Centro a adotar gradualmente
79
As sessões de Cosme e Damião são realizadas no dia 27 de setembro, trata-se de uma sessão em que o
tema da cura é bastante recorrente, e é trazida a doutrina deixada pelo Mestre Gabriel no tocante a esse tema
como, por exemplo, a necessidade de um melhor cuidado com a saúde. De acordo com a transmissão oral
da cultura popular, Cosme e Damião detinham o dom ou poder da cura desde a infância, curando crianças
doentes e rezando-as contra “mal olhado” com ramalhetes de ervas. Depois da juventude eles passaram a
curar as pessoas de um modo geral, sem limites de idade, registrando as curas que realizavam em um livro.
Algumas de suas imagens (as imagens dos santos de tradição portuguesa foram introduzidas no Brasil no
século XVI) aparecem os dois gêmeos idênticos com ramalhete e livro na mão.
80
Outra entidade espiritual chamada e reverenciada nas sessões da UDV é o Doutor Camalango. Não se tem
notícias que outras religiões façam referência a essa entidade espiritual de cura, que parece ser exclusiva da
União do Vegetal. O Doutor Camalango é considerado o médico, ou a medicina do Vegetal. Sua história é
contada somente nas sessões instrutivas e por motivos já explicitados anteriormente não pode ser revelada.
A chamada pode ser feita em qualquer sessão a depender da necessidade, que é percebida pela sensibilidade
do Mestre Dirigente. Na chamada, como o nome diz, chama-se essa entidade espiritual para examinar
espiritualmente o corpo humano parte a parte, como as palavras da mesma sugerem.
119
em sua prática cotidiana os princípios ensinados pelo Mestre da União, cientes de que a
medida primordial de seu desenvolvimento espiritual é a repercussão dos seus atos e
palavras no meio que os cerca.
O Vegetal é distribuído pela União do Vegetal somente em seus rituais
religiosos, sob responsabilidade dos mestres, considerados pessoas experientes, observados
ainda certos limites de consumo já definidos pela tradição religiosa da UDV.
Embora o histórico que liga o Mestre Gabriel à realização de curas e alívio aos
diversos tipos de aflições humanas e de ter sofrido influência direta ou indireta dos
Vegetalistas; quando perguntados acerca da experiência de cura dentro da UDV, os
adeptos da União, afirmaram que não buscavam tratamento para males de saúde ou para os
“vícios” ao ingressar no grupo. Não tinham intenção de afastarem-se da cocaína, da
maconha ou mesmo do álcool e do fumo, nem mesmo tinham a intenção de verem-se livres
de qualquer enfermidade que poderiam possuir. A maioria dos entrevistados afirma ter
chegado à ayahuasca levados por pessoas que participavam da religião: amigos ou
parentes, que, após o convite os acompanharam por algum tempo na União do Vegetal,
dirimindo suas dúvidas e dando-lhes apoio. Muitos pensavam que a ayahuasca era apenas
mais uma droga ou que o chá poderia, de forma divinatória, revelar-lhes algo importante e
decisivo sobre suas vidas: um milagre, enfim. Após os primeiros contatos essa visão se
modificaria completamente a partir da compreensão de que o caminho espiritual que os
cultos ayahuasqueiros propõem é árduo e sistemático.
Nos relatos é significativa a ênfase no sentimento de desesperança e vazio
interior que os acometia à época da adesão. Por isso, o primeiro contato com o chá
apresentou-se como surpresa, pois afirmam que suas experiências e percepções começaram
a encaminhá-los de forma mais compreensiva, responsável e consciente no sentido da
resolução de seus problemas.
Essas pessoas descrevem uma longa busca espiritual, em alguns casos, bem
intensa, passando por diversas religiões e grupos como Umbanda, Espiritismo,
Maçonaria
81
e outros, antes de chegarem à UDV. A maioria tinha como religião de origem
81
Considerada, pelos seus seguidores, a maior sociedade secreta do mundo, criada pelas corporações de
pedreiros e construtores de catedrais durante a Idade Média, nas Ilhas Britânicas e nos países sob domínio
britânico. Seu nome deriva da palavra inglesa Stonemason, que significa pedreiro. Com o declínio da
construção de catedrais medievais, algumas lojas maçônicas como eram chamados os vários grupos que
surgiram, começaram a aceitar membros honorários para compensar o declínio de seus membros oficiais.
Algumas dessas lojas se desenvolveram principalmente entre os séculos XVII e XVIII e adotaram as
cerimônias e ornamentos de antigas ordens religiosas. Em 1717, foi fundada na Inglaterra a primeira
Grande Loja, uma fusão de várias lojas. A partir daí, a maçonaria difundiu-se por todo o mundo, mas foi
120
o catolicismo, embora, em muitos casos, eles não fossem praticantes, considerando-se
católicos em função do batismo.
No percurso dessa busca espiritual ao se perguntar aos que afirmaram terem
sido usuários de algum tipo de droga (as licitas e ilícitas) acerca do motivo que os levara ao
fazer tal uso, poucos relataram terem utilizado “droga” para alcançar algum tipo de
consciência ou paz interior. Os que fogem a esse padrão, afirmaram que por influência de
amigos ou por fuga da realidade tornaram-se usuários de drogas. Hoje, todos relatam o
completo afastamento de qualquer tipo de substância prejudicial, mesmo álcool e fumo.
É importante citar que essas pessoas consideram essa fase de envolvimento
com drogas lícitas e ilícitas como perda de tempo e de oportunidades, interpretam o uso de
drogas como uma influência negativa na vida de qualquer pessoa, tanto no trabalho como
nos relacionamentos interpessoais e familiares, e em nível psico-fisiológico.
Quando indagados acerca do entendimento que tinham das propriedades
curativas do Vegetal, todos responderam que a bebida não tem poder mágico curativo, mas
em sua maioria quase que absoluta, acredita que este permite ao indivíduo auto-
conhecimento suficiente para mudar hábitos e conceitos de vida, bem como, regula o
organismo humano e suas funções fazendo com que seu usuário alcance total harmonia
consigo e com a natureza o que, conseqüentemente permite-lhe uma condição de vida e
saúde inigualáveis quando comparadas com a daqueles que não fazem uso do Vegetal.
Os adeptos se consideram, até certo ponto, a margem do restante da sociedade,
não numa visão preconceituosa ou separatista, mas sim como grupo que entende o mundo
de modo diferente, visão declarada, por exemplo, no exposto no site oficial da UDV que
diz: “Mesmo observando um padrão de conduta moral discreto e coerente, o discípulo é
orientado a manter uma atitude tolerante com outros grupos sociais que adotam condutas
diferentes do que preceitua a doutrina da União”
(http://www.udv.org.br/Com+amor+pela+paz/Gente+de+paz/55/, 2010).
Quanto ao nível de ajuda ao próximo, afirmam, não lhes parecer conveniente
promover o crescimento, à base de caridade dos mais necessitados ou de alguma
propaganda ou atividade curativa da bebida; ou seja, eles preferem não utilizar-se desse
tipo de estratagema com a finalidade de alcançar ou fazer novos adeptos. Embora exerçam
banida de alguns países como Hungria, Polônia e Egito, pois, embora não seja uma instituição cristã, adota
muitos dos elementos dessa religião. Seus ensinamentos, segundo os adepetos, pregam a moralidade e a
caridade. Hoje, para ser admitido na associação é necessário ser adulto, do sexo masculino e crer ma
existência de um ser supremo e na imortalidade da alma
(http://www.guiadomacom.com.br/index.cfm?page=oqueemaconaria).
121
a caridade e acreditem que a bebida proporcione a oportunidade de cura, acreditam que não
podem fazer uso deste tipo de discurso com finalidades proselitistas. Quando se referem à
bebida e seus benefícios preferem apresentar o chá como bebida que permite ao ser
humano o desenvolvimento de suas capacidades morais e espirituais. No entanto, percebe-
se que o discurso é contraditado pela prática uma vez que o Vegetal é sempre referido por
suas qualidades e capacidade de trazer a “força espiritual” e o “verdadeiro conhecimento”
ao ser humano.
A ayahuasca suscita um estado de consciência passível de manifestar-se através
de outras técnicas. Logo, a questão de saber se ela é droga ou sacramento não se coloca
para os grupos ayahuasqueiros, pois, para eles, “a ayahuasca não é droga”, seu processo de
produção, entendido do ponto de vista mágico, transmuta “corpo Vegetal” em “corpo
divinal”, situando-o, portanto, na esfera do sagrado.
No que pese o fato de que todos os grupos ayahuasqueiros considerem a bebida
como sagrada, duas diferenças principais são ressaltadas como elemento de demarcação
entre os grupos: a possessão e o uso ou tolerância com o consumo de outros psicoativos
que não a ayahuasca. A linha de Sebastião Mota
82
sacralizou o uso da “cannabis”
provocando crítica por parte dos demais grupos. Mac Rae em um texto publicado na
coletânea “O uso ritual da ayahuasca” (MAC RAE, 2002, p. 493-505) aponta os
primórdios do uso da Cannabis nos cultos daimistas liderados por Padrinho Sebastião
Mota, um dos discípulos de Irineu Serra. Sebastião fundou a Colônia 5.000 com um
conjunto de seguidores das zonas rural e urbana de Rio Branco e de mochileiros e hippies
de outros lugares do Brasil e do exterior. Entretanto, vale ressaltar, que essa polêmica que
se instala no interior dos grupos ayahuasqueiros tem duas faces distintas, de um lado, o
xamanismo assimila diferentes substâncias psicoativas como forma de contatar o sagrado,
mas de outro lado, o contexto cultural, ou seja, a valoração que a cultura atribui a
substância, interfere em sua avaliação. Nesse sentido, o contexto urbano é amplamente
desfavorável aos experimentos com substâncias proscritas, agregando às mesmas,
82
As religiões ayahuasqueiras ganharam amplo destaque na mídia: o fato de organizar-se em torno de
substância psicoativa e de originar-se na floresta amazônica. A divulgação cresceu à medida em que jovens
urbanos, oriundos do Sul e do Sudeste do país aderiram a uma das vertentes do Santo Daime, à “linha” do
“padrinho” Sebastião Mota, dissidência do CICLU Alto Santo. A partir desse contato, o culto, no âmbito da
vertente referida, atraiu acadêmicos, jornalistas, artistas, estudantes e diferentes categorias de profissionais
liberais empenhados em torná-lo objeto de estudo, notícia ou modo de vida. Algumas conseqüências
decorreram dessa aliança, entre elas a adoção pela “linha” de Sebastião Mota, de muitos dos costumes e
crenças dos jovens urbanos, a exemplo do controvertido uso ritual da “Cannabis sativa” e da inclusão da
religião na “questão ecológica”. Desse modo, essa vertente, além de sua base daimista, foi acrescida por
elementos da “cultura alternativa”.
122
procedimentos de desvalorização, sem que, no entanto, o problema se esgote no âmbito da
legalidade, uma vez que diferentes religiões combatem os efeitos desagregadores de
substâncias legais como o álcool e o tabaco. Além do mais, acima dessa polêmica, todos os
grupos ayahuasqueiros reconhecem os efeitos terapêuticos da ayahuasca, inclusive no que
toca a recuperação de consumidores de psicoativos diversos, entre eles as chamadas
“drogas pesadas”, como a cocaína e seus derivados. Ao mesmo tempo, estudos indicam
que o ponto crucial quanto ao uso de psicoativos não é o consumo em si, ou, os efeitos
farmacológicos considerados isoladamente. O fator determinante para o início e a
continuidade do uso é definido pelo contexto sócio-cultural no qual ele ocorre.
Retornando a análise de Lévi-Strauss, feita na fundamentação teórica relativa à
cura xamanica pode-se afirmar que, uma vez que para os adeptos da UDV, a ação de
plantas psicoativas em indivíduos ligados a rituais de cura, propicia-lhes condições
especiais quando da comunicação com os doentes, enquanto linguagem verbal. Tais
plantas, também tidas como plantas mágicas ou plantas de poder, quando nos rituais de
cura, podem fazer despertar naqueles que vão desempenhar o papel de curador, uma
verbosidade e fluência oral, capaz de induzir o doente a crer em suas palavras e em seus
poderes ditos sobrenaturais de realizar curas.
Muitos entrevistados afirmaram que se encontravam em estado de “ruína”
física, psicológica e/ou econômica, devido à crise ou negligência de valores antes de
ingressarem na União do Vegetal. Os sujeitos descrevem essa fase de suas vidas como
desprovidas de sentido, de objetivos, de interesses ou valores. Mas também enfatizam que
essas crises eram indícios de que buscavam caminhos de libertação. Um ''querer'' sair
daquela condição.
Assim, quando observado o contexto espacial e emocional em que se
encontram agora, partilhando do chá, é possível perceber contraste expressivo entre as duas
realidades, antes e depois que aderiram ao uso ritual do chá. Deste modo, indicam que a
ayahuasca é o principal causador do “saber” que eles detêm de como conduzir a vida,
decorrendo daí, mudanças fisiológicas, psicológicas e comportamentais, vistas como
positivas.
É possível afirmar de acordo com o que foi dito por vários entrevistados, que a
compreensão desse caminho e a iniciativa de segui-lo, com o posterior alcance de metas,
devem-se a “força de vontade”, que entendem ser intrínseca ao indivíduo. Ao mesmo
tempo em que atribuem a fatores externos, no caso, o chá, considerado sagrado, o suporte
123
que proporciona a reestruturação psico-fisiológica e social, que, antes de seu ingresso ao
consumo ritual de ayahuasca, estava latente, uma vez que se constata na trajetória dos
indivíduos uma busca permanente pelo equilíbrio espiritual.
Tive a oportunidade de participar de sessões no decorrer da pesquisa, onde
experimentei o chá, sentindo seus efeitos no físico e no emocional. No desenrolar da
experiência observei um estado lúcido constante, sendo o psíquico influenciado, por vezes,
pelo ritual que estrutura a sessão e pelas falas e orientações dos Mestres e da irmandade.
Embora tudo transcorra do ponto de vista coletivo, a experiência individual acontece sem
haver necessariamente ligação com outros participantes do grupo. Os relatos são
diversificados, embora em torno do tema da busca pela espiritualidade e pelo aguçamento
dos sentidos com destaque para os efeitos sinestésicos.
A ritualística é complexa e requer um estudo aprofundado. Os efeitos e a
classificação do chá exigem estudos multidisciplinares e maior tempo para pesquisas
detalhadas visando à compreensão adequada do fenômeno, que, segundo constatei, é
considerado algo muito precioso por todos àqueles que o sustentam e dele se beneficiam. O
imaginário que organiza a cura quanto à dependência de drogas e outros problemas forma
um complexo onde os Mestres e o consumo ritual do chá, que é divindade, assumem
importância como motivadores para os processos de cura física e moral.
Nas igrejas do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, as imagens estão
inseridas no contexto mais amplo das “mirações”, deixo de lado o trabalho com as
“mirações”, por se tratar de um tema bastante complexo para ser abordado no âmbito deste
estudo, e trato com as imagens visuais dentro deste processo. As imagens são um recorte
muito mais preciso que as “mirações” ou mesmo as visões, uma vez que estas seriam como
que uma seqüência de imagens, muitas vezes formando um todo ainda bastante complexo e
nem sempre totalmente recordado por quem as experimenta. As imagens seriam pedaços
mais tidos e que creio muito mais acessíveis a um processo analítico. Uma metáfora que
poderia cair bem nesta situação seria tratar as “mirações” como todo processo de fazer e
exibir um filme, as visões como o filme em si e as imagens como cada fotograma do filme.
Considerar o uso de psicoativo em perspectiva cultural, analisando o imaginário
relativo às motivações, atitudes, experiências anteriores e expectativas, implica investigar o
significado de seus usos e, além disso, ver como o modelo de consumo ritual de ayahuasca
funciona como re-estruturador em relação à desestruturação provocada pelo uso de outros
124
psicoativos. Ou, dito de outro modo, de que maneira o “patológico” pode ser considerado
“normal”?
Embora a psiquiatria faça uso de substâncias psicoativas para instituir o
equilíbrio psíquico, o uso da ayahuasca vem sendo questionado em pelo menos dois
aspectos: como forma de contatar o sagrado e como terapêutica para os males do corpo e
da alma. Seu uso é situado pela sociedade envolvente, no campo do “patológico”: pelos
religiosos, desde o início da conquista, como “coisa do Diabo” (CEMIN, 2000) e no pólo
da terapêutica, como algo potencialmente perigoso que está sendo usado e administrado
por pessoas não preparadas para a função das práticas médicas.
O prestígio dos Mestres da ayahuasca, contudo, fundamenta-se na eficácia de
sua atuação. Eles são procurados por pessoas portadoras de variadas patologias, inclusive
relacionadas ao uso e abuso de “drogas”, que a eles recorrem em busca de cura e de
conforto espiritual. Concomitante a isto, o exemplo de vida e de trabalho, bem como, as
alianças estabelecidas com as autoridades políticas e com instituições a exemplo do
Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, a Ordem Rosacruz e a Maçonaria, pelos
Mestres fundadores e por seus discípulos, consolidaram o respaldo para o consumo ritual
de ayahuasca, ao ponto de tornar o seu consumo religioso legalizado e sob o controle dos
grupos usuários (CEMIN, 2000).
Ao discutir a “estrutura” e o comportamento” patológico no homem,
Canguilhem (1979) argumenta que, apesar de “imenso”, esse problema não deve ser
fragmentado, mas, sim discutido em “bloco”, uma vez que é amparado por uma “cultura
médica”, cujos procedimentos essenciais são a clínica e a terapêutica, “técnica de
instauração e restauração do normal” (CANGUILHEM, 1979, p.16).
Em seu estudo sobre o “normal e o patológico”, Canguilhem (1979) discute a
tese que afirma serem os fenômenos patológicos da mesma ordem que os normais,
diferindo apenas quantitativamente. Argumenta que, sendo a vida não adaptação, mas
instauração do meio, o normal e o patológico se instauram por procedimentos de
valoração, não sendo “absurdo considerar o estado patológico como normal”, desde que ele
esteja em conformidade com “normas de vida” instituídas por uma “certa maneira de
viver” (CANGUILHEM, 1979, p. 187). Curar, diz ele, “é criar para si novas normas de
vida” e o conceito de norma não é redutível, nem mesmo em fisiologia, às determinações
conceituais objetivas (CANGUILHEM, 1979, p. 188). As técnicas terapêuticas, abrigadas
125
nos procedimentos médicos têm “... raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar
o meio e organizá-lo segundo seus valores de ser vivo” (CANGUILHEM, 1979, p. 188).
As conclusões de Canguilhem sobre o normal e o patológico discutidos no
âmbito da fisiologia do homem, convergem para o ponto de vista da antropologia, onde a
“noção de cultura valoriza a rede de significados, a construção social da realidade”,
conforme adverte Gilberto Velho (VELHO, 1999, p. 89) em seu artigo sobre a “Dimensão
cultural e política do mundo das drogas” e, ainda, Furst (1976, p. 27), que assinala: as
substâncias psicoativas não devem ser encaradas apenas do ponto de vista bioquímico,
mas, inseridas em seu contexto cultural por ser ele determinante do modo como ela é
interpretada e assimilada. De fato, essa perspectiva corrobora com minhas próprias
conclusões, pois constato congruência entre a rigidez na aplicação dos modelos de
condutas moral, doutrinária e ritual, com o tipo de resultado que se pode obter nos
processos de interação com o psicoativo em uso.
A ausência de modelos definidos para as condutas ou a não aceitação do
modelo pode ser vivenciada como anulação da proteção requerida para bom trânsito no
mundo espiritual. Ocasionando perturbação na experiência ritual pela produção de efeitos
indesejáveis, a "peia". Isto é, ausência da desejável sensação de paz, harmonia, amor e
integração; ou ainda, cognições e visões úteis e prazerosas.
O meu pressuposto quanto ao “xamanismo ayahuasqueiro”, foi o de que ele
supre a “função simbólica”, “imaginante” propiciada pelo êxtase, entendido como
predisposição antropológica e acionado desde épocas imemoriais como terapêutica pelos
sistemas tradicionais xamanicos. Isto é, ele é marcado por experiências de morte e
renascimento e pela transmissão de segredos e instruções por entidades espirituais. O
Vegetal é visto pelos udevistas como a entidade espiritual que traz a solução para a doença,
fazendo assim às vezes dos seres extra-materiais que viabiliza o processo de cura ao
revelar ao doente o seu mal. Segundo Couto tanto a cura xamanica, quanto a cura dos
ayahuasqueiros se baseiam em um processo catártico e psicoterapêutico. Dessa forma, a
cura no movimento religioso ayahuasqueiro ganha contornos de cura xamanica, com os
hinos norteando a experiência extática e terapêutica, revificando o mito social e, portanto,
substituindo o discurso do xamã. Os vôos extáticos xamanicos podem ser percebidos nos
relatos e descrições das mirações dos consumidores da ayahuasca.
126
4.1 O que Ensina a União do Vegetal?
Para os udevistas “tudo vem através do merecimento”. Desta forma, torna-se
necessário que se semeie coisas boas, para se colher bons frutos. O princípio é bem
simples: aqueles que plantam coisas boas, bons sentimentos e atitudes corretas, tornam-se
merecedores de colher bons frutos. A conformação parte do princípio de que o que está
feito está feito, e nós não podemos mudar o que já fizemos, pensamos ou dizemos.
Podemos modificar as nossas atitudes “daqui para frente”. “O plantio é livre, mas a
colheita é obrigatória”, dizem eles.
Aqui está um elemento bem próprio da doutrina espírita, pois como parte do
princípio do merecimento, está presente a compreensão que têm dos udevistas do tema
relacionado à saúde e doença. Acredita-se que a doença e a aflição sejam uma contribuição
divina para a evolução espiritual como resposta a atitudes e pensamentos negativos, que
precisam ser transformados, servindo como aprendizado e base para um novo modelo de
comportamento mais positivo, prezando os bons sentimentos. Será, portanto, nesse
processo de transformação que o indivíduo será aperfeiçoado e evolui o seu grau de
desenvolvimento espiritual, o que é muito importante dentro da prática religiosa da União
do Vegetal, uma vez que é dada muita atenção a evolução espiritual de todos os seus
adeptos.
O Vegetal tem a dimensão espiritualista de fazer atuar no indivíduo pela
recordação das verdades divinas da natureza de onde veio o ser humano. Tem
também o poder de mostrar as coisas como são na realidade espiritual, muito
além dos limites da ciência material, da cultura do Ocidente dito cristão
(ARARIPE, 1981).
Neste caminho, o discípulo se amolda pela limpeza da consciência propiciada
pelo uso do “Vegetal”, até praticar aquilo que o coração diz ser correto. A ingestão da
ayahuasca faz com que o indivíduo veja como está se conduzindo na vida. Se estiver sendo
fiel a si mesmo, nada para temer com o “Vegetal”. No caso de praticar ação indevida,
atos imorais, negativos ou vacilantes, isso levará a pessoa a negar seu equilíbrio com a
natureza a que pertence, abrindo brechas em sua vida. Tipo de dívidas que o “Vegetal”
pode fazer pagar. Tudo o que houver para ajustar será revelado e cobrado pelo “Vegetal”.
Os udevistas acreditam que a própria “peia” deve ser entendida como uma
oportunidade para a evolução, visto que todos os seres humanos vivem levando “peia”
durante a vida, que de forma cega, sem entender o motivo e, portanto, sem conseguir
aproveitar o sofrimento em prol da própria evolução espiritual; diferentemente para eles, a
127
“peia” nos ensina a sofrer para evoluir, e evoluir para sofrermos cada vez menos.
Desta forma, a transformação de pensamentos e atitudes é a grande
responsável pela evolução espiritual do adepto. Se mudanças é sinal de que este está
evoluindo. Também, crê-se que essa transformação é o que muitas vezes possibilita a cura
de males físicos e espirituais. Apregoam eles que a qualidade de vida é essencial para uma
boa saúde. E qualidade de vida é a busca pelo bem estar, por uma sensação de alegria e
felicidade.
O que é notado nos relatos dos adeptos é que mesmo não obtendo a cura, os
necessitados aprendem a lidar com a enfermidade minimizando suas aflições, obtendo
conformação e buscando um modo de vida capaz de minimizar seu sofrimento. A
enfermidade ou doença física pode não ser curada ou não ter cura (através da medicina
científica), mas os adeptos obtêm alívio da aflição que acompanha o mal, através de uma
capacidade de vivenciá-la de um modo mais harmonioso e menos tenso.
Relata-se, ainda, que muitos adeptos percebem algum tipo de enfermidade
durante a sessão (às vezes durante as chamadas consideradas de cura) e realizam seus
tratamentos através da medicina científica, obtendo êxito devido à descoberta precoce da
enfermidade. Tais descobertas se dão durante o período de “burracheira” seja através de
dores que indicam o local de uma doença ou mesmo visões ou revelações durante o estado
de expansão de consciência em que se encontra o adepto. Tal revelação é, também,
considerada um merecimento: ver a enfermidade para que ela possa ser diagnosticada e
tratada a tempo de não evoluir para um quadro mais complicado.
A doutrina da UDV é voltada para a necessidade de se cultivar boas atitudes,
bons pensamentos e sentimentos para que o indivíduo não seja acometido pelas
enfermidades e aflições. Segundo os udevistas, até problemas de saúde como viroses e
verminoses, causados por microorganismos patogênicos acontecem por um
enfraquecimento do sistema imunológico devido a alguma “abertura” dada pelo indivíduo
por ter deixado penetrar algum sentimento ou pensamento negativo.
A cura, para eles, não se refere apenas a males físicos, mas também às aflições
que atingem o ser humano. Se considerarmos que no meio sócio cultural urbano, o
requerimento da cura para aflições é bem mais comum. Uma vez que o modo de vida
ocidental capitalista tem fornecido um quadro ideal para o desenvolvimento de aflições e
ansiedades, fruto da alta competitividade que nos força a vencer e sermos os melhores.
Fazendo com que nos sintamos frustrados e angustiados quando não alcançamos as metas
128
esperadas ou quando o conquistamos nossos desejos afetivos, sexuais, profissionais,
materiais e tudo que ansiamos obter e conquistar. Assim como, por estarmos tomados pelo
desejo e por querermos tudo para hoje, não sabemos esperar o fluxo natural das coisas.
Sem falar, que as grandes catástrofes naturais, os problemas relacionados com a violência,
crimes brutais, guerra entre traficantes, balas perdidas, assaltos e assassinatos, invadem as
residências através dos telejornais criando uma atmosfera de pânico e desencantamento.
Se considerarmos que a gravidade desse problema, levou a OMS
Organização Mundial da Saúde a apontar a depressão e a ansiedade como duas das
principais causas de doenças cardiovasculares, hipertensão, infarto, câncer e doenças
imunológicas.
Perceberemos que os males de nosso tempo têm culminado em problemas
mentais e psicológicos cada vez mais freqüentes como síndrome do nico, transtorno
compulsivo e obsessivo, ansiedade, depressão, etc. gerando o desencantamento do mundo,
para usar a expressão weberiana. Tal expressão deve ser aqui entendida na perspectiva de
Pierucci:
O desencantamento do mundo, quando traduzido por desencanto e, com isso re-
duzido, piscologizado nos termos de um estado mental de desilusão pessoal com
o mundo (moderno) ou com os rumos da sociedade (nacional), não leva
necessariamente a lugar teórico nenhum. Desencantamento em sentido estrito se
refere ao mundo da magia e quer dizer literalmente: tirar o feitiço, desfazer um
sortilégio, escapar de praga rogada, derrubar um tabu, em suma, quebrar o
encantamento (PIERUCCI, 2003
, p.
7-8).
Diante de tal realidade reaparece em meio a todos os avanços científicos e
tecnológicos que tão bem marcam o início do terceiro milênios, o interesse pela religião.
Contrariando o que o próprio Weber havia preconizado em “A ética protestante e o espírito
do capitalismo” (1995), bem como o que muitos cientistas sociais acreditavam que haveria
de acontecer; que com a modernidade e o avanço da ciência e da cnica, a dimensão
religiosa iria eclipsar-se. O projeto da modernidade previa o declínio da religião, percebido
como uma sombra e um resíduo de tempos arcaicos. Mas o que se viu e o que se percebe
na contemporaneidade, apesar de cada vez mais os comportamentos e atitudes e mesmo as
instituições sociais serem pautadas por normas seculares, é a permanência do religioso, que
se transforma, se modifica, mas não se torna mero assunto e experiência subjetiva e
particular (GEERTZ, 2001). Resta buscar através da religião um reencantamento do
mundo. Uma forma mística de descobrir e compreender a vida sob uma perspectiva
diferente, voltada para um mundo espiritual, e essa descoberta, segundo os udevistas, é
129
proporcionada pelo uso de “plantas de poder” como a Ayahuasca, cujo efeito é capaz de
nos encantar, ou reencantar com o mundo, percebendo coisas imperceptíveis na vida
cotidiana.
Não se pode negar, no entanto, que a relação do religioso com a modernidade é
caracterizada pela tensão entre a visão religiosa do mundo, eivada de símbolos e liturgias
sacrais, com as múltiplas esferas sociais, regidas por normas e princípios seculares,
profanos (WEBER, 2002). As instituições e os diversos campos (científico, cultural,
jurídico, etc.) que conformam as sociedades modernas, se autonomizaram do religioso.
Desta forma, os grupos religiosos tradicionais com suas cosmovisões “encantadas” se
insurgem contra determinados valores da modernidade, como o individualismo, o
racionalismo e o materialismo, concebendo a sociedade contemporânea como
dessacralizadora. Entretanto, tal tensão não significa que a religião tenha se tornado
irrelevante e sem importância no mundo moderno.
Ao contrário do que pretende a teoria da secularização, a religiosidade continua
viva em nosso tempo. Não assistimos a “morte de Deus”, “o fim da religião”, “o eclipse do
sagrado”. Se for verdade que a religião não é mais o elemento axial em torno do qual
gravitam as diversas esferas da vida social, sua influência e poder se preserva. Segundo
Renato Ortiz:
[...] o advento da sociedade industrial não implica o desaparecimento da religião,
mas o declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônicos
de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de
sua atuação, a limites mais estreitos, mas não a apaga enquanto fenômeno social.
[...] Na verdade, a modernidade desloca, sem eliminá-lo, o lugar que ocupava nas
sociedades passadas (ORTIZ, 2001
, p.
62).
Em nosso tempo o religioso se transforma, desloca-se, reconfigura-se
(SANCHIS, 2001). A religião na modernidade não se tornou “invisível”, uma realidade
meramente subjetiva, privatizando-se. De acordo com Geertz (2001) as questões religiosas,
no mundo atual, se movem em direção ao centro da vida social e política:
Hoje em dia, a “luta religiosa” refere-se quase sempre a ocorrências bastante
externas, a processos ao ar livre que acontecem em praça pública choques em
vielas, audiências em tribunais superiores. Iugoslávia, Argélia, Índia e Irlanda.
Políticas de imigração, problemas das minorias, currículos escolares, observância
do sabá, xales para cobrir a cabeça e debates sobre o aborto. [...] Não nisso
nada de particularmente privado encoberto, talvez, ou sub-reptício, mas
dificilmente privado (GEERTZ, 2001
, p.
151).
O surgimento do fundamentalismo islâmico, o revigoramento do integrismo
católico, a expansão evangélica, a explosão de novos movimentos religiosos de feição
130
místico-esotérica e a inquestionável presença de atores religiosos nos grandes debates
públicos contemporâneos, demonstram a atualidade e vigência do religioso em nosso
tempo.
Não por acaso, Berger sustenta a tese de que o mundo atual não é secularizado.
“O mundo de hoje, com algumas exceções [...], é tão ferozmente religioso quanto antes, e
até mais em certos lugares” (BERGER, 2001, p. 10). Ele combate a idéia de que no mundo
a modernização tenha levado a uma diminuição da religiosidade na sociedade e na
mentalidade das pessoas. De fato, considera que embora a modernidade tenha alguns
efeitos secularizantes em alguns lugares mais que em outros, a mesma, também, motivou
fenômenos contrários à secularização.
Berger também diferencia dois níveis de operação da secularização: o nível
societal e o nível da consciência individual. Nesse caso podemos ter, por exemplo, a perda
de poder e de influência das instituições religiosas enquanto práticas, novas ou antigas,
embora continuem fazendo parte da vida das pessoas. Como resultado pode-se ter a
institucionalização dessas práticas, ou a manifestação de explosões de movimentos
religiosos. Por outro lado, uma instituição religiosa pode permanecer atuando socialmente
ou politicamente enquanto poucas pessoas manifestem adesão a ela.
Pierucci defende que não houve secularização do mundo. Na verdade
(PIERUCCI, 1997, p. 101) os dados mostram que na Europa, nos países tidos como mais
secularizados, a porcentagem de pessoas que declaram que crêem em Deus supera a de que
se declara ateu. Esse quadro é ainda mais nítido no final do século XX. No entanto, ele
afirma ter havido sim um declínio da religião no mundo moderno. A religião perdeu
espaço indo parar na vida individual privada. Ele, ainda, critica a idéia de uma
secularização linear e evolutiva. Na verdade, segundo ele, existem momentos de expansão
do campo religioso e de contração. "A secularização consistiria, assim, em momentos em
que os limites do campo religioso (muitas vezes arbitrários, posto que sempre cambiantes)
alternadamente se contraem e se expandem." (PIERUCCI, 1997, p. 111).
Ao refletir sobre os secularização e dessecularização Campbell nos apresenta
uma outra perspectiva, pois segundo o que entende, estamos vivendo contemporaneamente
um processo de “orientalização” do ocidente: "Apresento de imediato minha tese: ocorre
atualmente no Ocidente um processo de ‘orientalização’, caracterizado pelo deslocamento
da teodicéia tradicional por outra uma que é essencialmente oriental na sua natureza"
(CAMPBELL, 1997, p. 5). Desta forma, trata da substituição, no ocidente, do paradigma
131
que caracterizou o mundo ocidental pelo paradigma oriental. Mais especialmente ele trata
das idéias orientais absorvidas ou assimiladas no ocidente com a conseqüente
transformação delas. Ele prioriza os desenvolvimentos culturais e intelectuais orientais que
se deram dentro do ocidente.
Isso permite o aparecimento e o avanço da União do Vegetal como alternativa
religiosa para o nosso tempo. Especialmente porque ao propor a saída de um mundo
materialista para vivenciar uma realidade voltada para o espiritual e o reencontro do ser
humano consigo mesmo e a natureza, do discurso da UDV torna-se eficiente pela
capacidade de tocar no sentimento humano ao oferecer trazendo conforto e paz para
aqueles que estão em busca de um sentido maior para a existência humana.
132
5 A QUESTÃO DA CURA DENTRO DO REFERENCIAL DOUTRINÁRIO
DA UNIÃO DO VEGETAL
Para iniciarmos nossa abordagem a este tema tornam-se necessárias algumas
observações preliminares. Sontag (1984) acredita que, nas sociedades, uma construção
simbólica sobreposta às doenças, que são, normalmente, forjadas por explicações
“primitivas” sentimentais ou sobrenaturais dadas pela população (SONTAG, 1984, p. 7). A
autora acredita que o fenômeno “doença” possa ser depurado dessas construções
metafóricas que o rodeiam, liberando seu aspecto intrínseco, tal como realidade. Desta
forma, a ciência verificaria a veracidade da doença para lidar com seu aspecto essencial.
Com outra interpretação, Laplantine (1986) discorda da autora ao afirmar que
o próprio discurso científico também se constitui como um modelo construído socialmente
a partir de uma determinada lógica de interpretação da realidade. Todas as explicações ou
concepções de doença ou saúde seriam, portanto, construções “estruturantes”, inclusive o
modelo médico-científico. A Antropologia da Saúde teria como tema a tarefa de percebê-
los em suas dimensões sócio-culturais, verificando suas representações e práticas,
analisando como dado grupo social as concebe. Segundo o autor, a forma de perceber a
doença explica as técnicas e rituais terapêuticos que cada sociedade vai criar e considerar
adequadas para tratá-la (LAPLANTINE, 1986, p. 11).
Na prática, os estudos antropológicos têm se dividido entre: estudos de
etnomedicina, investigando medicinas não-científicas em sociedade tradicionais; estudos
de sociomedicina ou sociologia médica, que estudam os sistemas adotados pela medicina
científica; e estudos de psicologia médica, que abordam fenômenos a partir de apreensões e
pontos de vista dos doentes, tanto em sociedades tradicionais, como em sociedades urbanas
modernas.
A partir de uma análise da diversidade de discursos de saúde existentes,
Laplantine realiza a classificação desses modelos a partir da etiologia das doenças
(formulações sobre sua origem) e por modelos de cura que adotam. O modelo de cura,
segundo o autor, serve sempre à lógica do formato etiológico, de forma a respondê-lo.
Entre as explicações para doença, autor verifica: o modelo racional (ou funcional), que vê a
doença como desordem orgânica; o modelo endógeno, que a doença como produção do
próprio corpo; o modelo exógeno, que a doença como algo externo e “invasor” ao
corpo; e o modelo benéfico/maléfico, que a doença como reação de forças
133
maléficas/benéficas que agem sobre o corpo.
Quanto aos modelos de cura haveriam: o homeopático, que busca o re-
equilíbrio interno do corpo; subtrativo, que busca extrair o elemento causador da doença; o
adorcista, que vai agir contra o mal que está provocando a doença; e o excitativo, que visa
estimular o corpo a responder contra a doença.
Tais modelos não seriam produtos de percepções individuais, mas coletivas,
na medida em que explicitam como determinada cultura de grupo ou subgrupo interpreta
os fenômenos e transmite tais representações para seus membros. Assim, os modelos
adotados pela sociedade são formatos, “normas”, interpretativas que justificam e
sancionam uma “ordem social” e cuja formulação, enquanto constructo inconsciente, não é
percebida pelos indivíduos; as explicações verbalizadas (“nativas”) seriam sempre repletas
de vieses devido à crença de quem os expressa. A análise científica das mesmas necessita,
assim, ser externa aos padrões explicativos de seu contexto cultural e examinar as
estruturas de produção do pensamento e do discurso.
A própria formação do discurso da Medicina Ocidental Moderna pode ser
percebida através de suas influências: Hipócrates, que determina a existência do ser
“doença”, que pode ser reconhecido por seus sintomas. Neste sentido, a doença não é o
próprio ser doente, mas um ser estranho, um “outro”. Essa interpretação termina por
promover a revolucionária dissociação corpo (que está infectado por algo) e alma (o ser).
A esta percepção, Galeno acrescenta a delimitação da medicina como um conjunto de
“princípios lógicos”, uma técnica sistematizada, para lidar com esse outro ser animado, que
tem ação própria. Por isso, os princípios lógicos da ação de cura devem ser verificados no
próprio corpo (diagnosticado), conforme Paracelso, que deverá ter o seu funcionamento
orgânico restabelecido, tal como concebe o naturalismo médico de Descartes
(LAPLANTINE, 1986, p. 36). Não é, portanto, por acaso que o conjunto de respostas
adotados na terapêutica da Medicina Moderna Ocidental prevê a regulação da doença por
tratamentos mecânicos e hiperintervencionistas quanto à terapia, procurando restaurar a
ordem (o normal) almejada (FOUCALT, 2003).
Fabrega (1977), acerca dos discursos relativos à saúde, também havia
classificado três tipos de sistemas explicativos de saúde-doença: os biomédicos que se
baseiam na Natureza, que denominam na epistemologia psico-química; os psicológicos
(psicologia, psicossomática, psicanálise) e os relacionais (sócio-médicos). O autor chama a
atenção, que, numa mesma sociedade, esses diferentes sistemas podem conviver
134
temporalmente. Desta forma, sistemas de saúde-doença-cura não se constituem como fatos
isolados em si, mas necessitam de uma interpretação meta-cultural de sua lógica de
funcionamento.
A perspectiva construcionista dos modelos de saúde, doença e cura remete à
questão de que não existe, a priori, um sistema interpretativo correto ou “mais real” que
outro, que todos são produtos de formulações culturais. Isso remete à necessidade de
interpretações mais complexas e relativistas destes, bem como ao questionamento de suas
certezas e implantações. Ao mesmo tempo, remete à questão de como esses sistemas
baseados em representações interagem e se transformam.
Desta forma, ao se pensar a questão da saúde no ambiente religioso necessita-
se observar que em parte significativa deste a doença é, freqüentemente, vista como uma
punição divina ou castigo por alguma transgressão moral, o que pode provocar sensação de
vergonha e culpa. Helman afirma que esta é uma construção social cujo processo de auto-
definição como doente pode ser baseado tanto na percepção do próprio indivíduo, na
percepção dos outros, ou em ambos. E estar doente implica vivenciar experiências
subjetivas como:
a) Percepção de mudanças na aparência corporal. Exemplo: perda ou aumento de
peso, queda de cabelo.
b) Mudança nas funções orgânicas regulares. Exemplo: prisão de ventre ou diarréias,
suspensão da menstruação.
c) Emissões orgânicas incomuns. Exemplo: sangue na urina ou fezes.
d) Mudança no funcionamento de um membro. Exemplo: paralisia, tremor, falta de
coordenação motora.
e) Mudança nos sentidos. Exemplo: surdez, cegueira.
f) Sintomas físicos desagradáveis. Exemplo: dores de cabeça, dores abdominais,
febre.
g) Estados emocionais exagerados ou incomuns. Exemplo: ansiedade, depressão.
h) Mudança no comportamento em relação a outras pessoas. Exemplo: problemas de
família (HELMAN, 1994, p. 106).
Adoecer envolve experiências subjetivas de mudanças físicas ou emocionais,
enquanto que curar, neste caso, não significa apenas a redução ou desaparecimento dos
sintomas, significa experimentar uma harmonização das energias do corpo de maneira que
elas ressoem com as mais amplas forças e leis da natureza.
135
A passagem da doença à saúde corresponde a uma orientação mais completa do
comportamento do doente. Segundo Rabelo (1994), a cura não é o retorno ao estado
inicial, anterior a doença, é a inserção do doente em um novo contexto de experiência. O
fundamental é identificar os meios pelos quais as terapias religiosas efetuam essa
transformação da experiência, que por definição exige uma abordagem compreensiva
voltada para os sujeitos cuja experiência supostamente se transforma (RABELO e ALVES,
1999).
A antropologia da saúde, ao abrir a discussão sobre a experiência, chama a
atenção para o fato de que as categorias como doença, saúde e cura não são universais uma
vez que envolvem aspectos biológicos, sociais e culturais. Trata-se de realidades
simbólicas em que seus significados são construídos e negociados na interação entre os
atores sociais.
É notável a preocupação dos líderes da UDV em manter a imagem da
instituição distante e completamente desvinculada do curandeirismo
83
. Embora o Mestre
Gabriel tenha nos primórdios da história da UDV tido envolvimento com atividades de
cura, a racionalização e institucionalização da UDV excluíram esse tipo de atividade
freqüentemente realizada pelo Mestre Gabriel: é a rotinização do carisma. Para Weber
(1991) a rotinização do carisma acontece quando a dominação carismática não é efêmera e
assume um caráter de uma relação permanente; então a dominação carismática tende a se
modificar substancialmente de caráter, tradicionalizando-se ou racionalizando-se. Foi o
que aconteceu após a morte do Mestre Gabriel, o líder carismático da UDV. Houve a
escolha de uma nova liderança pelo reconhecimento da comunidade, e a partir daí a
necessidade de formular outras leis a fim de atender as novas necessidades de uma religião
que cresce em direção aos grandes centros urbanos, mudando completamente o perfil de
seus adeptos, bem como as suas necessidades e expectativas. Dentro dessas novas leis está
a recomendação de evitar tais práticas para não confundir a sociedade a respeito dos
verdadeiros e principais objetivos da UDV que não é realizar curas e sim possibilitar ao
indivíduo o encontro com o sagrado e a sua evolução espiritual.
grupos religiosos que apregoam as virtudes curativas do chá. A União do
Vegetal, nesse particular, tem postura sóbria. Sabe que a Deus nada é impossível,
mas não pratica nem difunde ações curandeiristas. Usamos o chá, como foi
83
É facilmente observável que há, na UDV, uma atitude de cunho preconceituoso em relação à prática de
cura em outras religiões, do uso feito por eles da palavra curandeirismo e seus correlatos terem sempre
uma perspectiva negativa.
136
dito, como veículo de concentração mental, para buscar o acesso a um estado de
consciência em que a compreensão dos fenômenos espirituais e metafísicos é
mais nítida. O que se busca, através dos ensinos e da doutrinação reta, é a cura
espiritual – isto é, a purificação (UDV, 1989
, p.
34).
Mesmo com a UDV tentando manter-se distante de práticas de curas, alguns
adeptos acreditam ter recebido a cura de “doenças da matéria” através da UDV: em uma
sessão; por uma chamada que traz a “força da cura”; através de uma mudança de hábitos
que teria facilitado ou possibilitado a cura; através do recebimento, na burracheira, de uma
revelação importante de como ou onde buscar um tratamento, enfim, a cura pode vir de
forma direta ou indireta.
Na unidade administrativa estudada não foi verificado, no decorrer da pesquisa,
nenhum relato ou informação de alguém que tenha sido curado de alguma “doença física”
diretamente ou de forma mágica, ou seja, que atribua sua cura única e diretamente á sua
estadia na UDV e ao uso do Vegetal. É perceptível que a cura indireta é muito mais
comum. A cura indireta não está diretamente vinculada à UDV, mas a mesma tem uma
participação indireta no processo: seja possibilitando uma melhor compreensão da vida;
seja aliviando ou amenizando as aflições, medos e ansiedades pertinentes as enfermidades
ou contribuindo com um quadro conceitual e cognitivo no ritual que contribui para cura.
Como no referencial doutrinário da UDV tudo vem pelo merecimento. Ou seja,
tudo o que recebemos assim acontece porque agimos de tal forma a recebermos tal
retribuição, pois colhemos somente o que plantamos; o mesmo acontece com a doença e a
cura
84
. São, também, merecimento: a doença tem o intuito de ensinar algo importante para
que se possa vislumbrar a evolução espiritual futura. Muitas vezes, a doença acontece por
situações plantadas em outras vidas, isto é, em outras encarnações, mas também acontecem
por descuido, desobediência, más atitudes na presente encarnação.
Ao se comparar a UDV com os demais grupos ayahuasqueiros, esta não exige
nenhum tipo de dieta, nem faz restrições a nenhum tipo de alimento, nema necessidade
de abstinência sexual nem antes nem após as sessões. Mas a moderação e o equilíbrio são
ressaltados como atitudes desejáveis. Os excessos alimentares, ou de qualquer outra
natureza, são prejudiciais e vistos como atitudes potenciais para o desenvolvimento de
doenças e aflições. A melhor forma de cuidar das enfermidades é prevenindo, tendo um
cuidado consigo mesmo de modo que se possa viver em harmonia com todos os setores da
vida, buscando uma vida saudável e tranqüila.
84
A doença é um merecimento desagradável e a cura é um merecimento bom, agradável e desejável.
137
Para os adeptos da UDV nem sempre é possível de se receber a cura “da
matéria”. Neste caso, restará ao “doente” aprender a conviver com a enfermidade, quando
esta não o levar a óbito. Nessa situação a convivência com a enfermidade o ajudará a
progredir espiritualmente visto que a conformação e a adaptação com a enfermidade (vista
como um merecimento) transformam-se em oportunidade para que, através do sofrimento,
o fiel alcance degraus em sua evolução espiritual, que é a meta principal dos udevistas.
que lembrar que a UDV não apregoa a cura, no sentido estrito da palavra,
ou seja, como algo mágico proveniente do uso da ayahuasca, mas o auto-conhecimento, a
mudança de hábitos e conceitos de vida, bem como, afirmam que o uso do chá regula o
organismo humano e suas funções fazendo com que seu usuário alcance total harmonia
consigo e com a natureza promovendo a verdadeira cura: a cura do espírito.
A morte
85
é encarada com naturalidade, é a vontade do poder superior e faz
parte da jornada de evolução. É uma passagem para outra vida, outra encarnação. O corpo
morre, mas o espírito é eterno. Devemos cuidar do corpo e principalmente do espírito. A
doença do espírito, na visão dos udevistas, é a falta de conhecimento, é preciso aprender
com a vida, ter sabedoria, aumentar o grau espiritual, para se chegar a ser um espírito são
ou santo. E isso é a purificação, essa é a meta principal a ser atingida – ser um espírito são.
A doença da matéria muitas vezes traz a oportunidade de aprender coisas novas,
transformar valores para melhorar o “grau espiritual”.
Desta forma, são capazes de observar a morte de uma forma diferente.
Conseguem vê-la como uma passagem, como se o espírito mudasse de roupa, e o corpo
fosse a roupa do espírito. Esse sistema de crenças e valores fornece um quadro ideal para
minimizar a ansiedade da morte, que é vista, principalmente na sociedade ocidental
materialista, como o fim de tudo. Vendo-a como um início de uma nova vida fica mais
fácil lidar com o medo e a ansiedade perante o “desconhecido”. A diminuição da ansiedade
proveniente do medo da morte é um facilitador para a obtenção da cura, que reduz o
nível de estresse do paciente. Laplantine acredita que:
[...] as religiões são suscetíveis de responder à questão da morte e,
correlativamente, dar um sentido absoluto à vida de alguma forma reside sua
superioridade sobre as ciências biológicas e até mesmo sobre as ciências humanas
que, na verdade, nada nos tem a ensinar sobre a morte enquanto que a medicina
pode responder razoavelmente quanto à vida, e o sentido que ela lhe atribui
consiste apenas, segundo a expressão de Nobert Bensaid, em “reintroduzir uma
aparência de eternidade no efêmero (LAPLANTINE, 1986
, p.
241).
85
Palavra que é evitada por eles, havendo preferência para, à semelhança dos espíritas, referirem-se a esta
como o desencarnar da alma.
138
5.1 A União do Vegetal e os Vícios
Fato que chamou minha atenção desde os primeiros contatos que mantive com
a UDV foram os relatos de sócios que testemunhavam envolvimento e uso de drogas
fossem elas as legais ou as ilegais e que ao participarem ativamente dos trabalhos da UDV
e ao tomarem o chá deixaram tais vícios. É importante observar que todos os sócios
relatam algum tipo de transformação, mas que muitos deles relatam o abandono do uso de
tais drogas. Iniciando pelas drogas legais e socialmente aceitas como o cigarro e o álcool,
alcançando outras drogas como a maconha, cocaína, etc.
Quanto ao uso dessas drogas de se observar que a vida institucional da
União do Vegetal é regida por um conjunto de documentos, as Leis do Centro”, normas
gerais de conduta, convívio social e organização que balizam a boa prática dos discípulos e
que entre outras orientações as Leis do Centro”: “condenam o uso de drogas, legais ou
proscritas, e toda forma de vícios, incompatíveis com estados equilibrados de conduta
pessoal”. É, portanto vedado ao cio o uso de qualquer tipo de droga, pois os documentos
prevêem restrições de acesso à comunhão do Vegetal e aos graus hierárquicos em função
de eventuais incompatibilidades entre a conduta do sócio e o que recomendam as normas
da instituição.
Aos membros da Direção cabe uma observância ainda mais atenciosa às
recomendações previstas nos documentos, que são lidos no inicio de todas as sessões de
escala. E estas recomendações referem-se à conduta do sócio não apenas no âmbito da
União, mas também em sua conduta familiar e profissional. Para tanto tais temas são
freqüentemente tratados durante as sessões durante o período de doutrinação, quando os
mestres do centro de forma recorrente falam da necessidade de sobriedade e
comportamento adequado.
um discurso de que não se proíbe tais práticas, mas aqueles que a elas
recorrerem serão obviamente impedidos de participar da comunhão do chá, bem como,
jamais poderão galgar postos hierárquicos dentro da instituição. Os discursos dos membros
da Direção são sempre de controle, mas, também, de apoio e companheirismo. Por parte
dos membros os relatos são de vidas que passaram por uma experiência de transformação
de personalidade. Não são poucas as pessoas que fazem tais relatos. Este é um discurso
recorrente entre a maioria de seus sócios. A abstenção de tais vícios é observada pelos
udevistas como uma virtude.
139
O abandono de tais vícios se deve à transformação de personalidade e hábitos
que a maioria dos adeptos afirma ter tido após entrar em contato com a religião. Eles se
dizem transformados e dizem que o uso constante de drogas era devido a um vazio
existencial que, ao ser preenchido, gerou uma mudança profunda no modo como viam a
vida e a si mesmos. Essa modificação de conduta e de personalidade é percebida pelos
familiares, amigos, etc., que passam a ter uma referência positiva da religião como sendo
um lugar que possibilita uma transformação nas pessoas. Essa referencia se divulga nas
inter-relações sociais, ampliando as proporções. Rabelo (1994, p. 55) acredita que o
sucesso de um projeto de cura depende, em larga medida, da existência de redes de
relações sociais que o sustentem enquanto discurso dotado de autoridade e esta é uma
prática constante entre os udevistas, pois não só os discursos induzem ao abandono do
vício, bem como, percebe-se uma clara é profunda preocupação entre a irmandade no
tocante aos sócios que ainda mantêm algum tipo de fraqueza ou vício. Cria-se, assim, uma
rede de relações que dão sustento e motivam os enfraquecidos a lutarem contra seus vícios.
Além de “desaprovar” o uso de bebidas alcoólicas e entorpecentes e oferecer
apoio aos que ainda fazem uso destes, a UDV dispõe de sanções coercitivas, presente nos
boletins e estatuto, para punir os comportamentos desviantes: “O associado que for
encontrado em visível estado de embriaguez será advertido pela Representação, e em caso
de reincidência, será punido por desobediência”
86
; “O afastamento será imposto ao sócio
que infringir a ordem pública com a prática de roubos, consumo de tóxicos ou transações
ilícitas devidamente comprovadas”
87
.
Durkheim (1955) apresentou uma idéia que bem se ajusta a esse tipo de
coerção existente na UDV, quando declara que obstáculos são quase sempre enfrentados
por quem se aventura a não atender a convenção, a resistir a uma lei, ou a violar uma regra
moral
88
. Ele encontrará resistência com os demais membros da sociedade que tentarão
impedi-lo utilizando de sanções: advertindo-o ou punindo-o.
O pensamento durkheimiano se ajusta ao que acontece na UDV porque aqueles
que não tiverem comportamentos compatíveis com o proposto pela religião são
86
Idem: Regimento Interno. Artigo 17. p. 61.
87
Idem: Estatuto. Artigo 58, letra d. p. 42.
88
A moral para Durkheim é um conjunto de normas de conduta que prescreve como o sujeito deve conduzir-
se em determinadas circunstâncias.
140
advertidos
89
, ou punidos pelo Mestre Representante, que, amparado pelos boletins e
estatuto, dará a pena social. A pena social poderá ser o afastamento do grau hierárquico
(quadro de mestres, corpo do conselho, corpo instrutivo) voltando a ser um sócio “bolso
branco”
90
. Poderá ser a suspensão da comunhão do Vegetal, na qual o associado fica por
um determinado período de tempo, a critério do Mestre Representante, sem fazer uso do
Vegetal. E poderá ser também o afastamento do âmbito do Centro Espírita Beneficente
União do Vegetal, em que o associado fica impossibilitado de freqüentar sessões, festas,
mutirões e outras atividades que se realizem nesse âmbito, conseqüentemente
impossibilitado de fazer uso do chá (o tempo do afastamento também é a critério do Mestre
Representante).
Os sócios que querem continuar freqüentando as sessões devem ter um
comportamento compatível com o que reza os boletins e estatuto, com a orientação do
quadro de mestres e com a doutrina. A obediência dos sócios às leis da UDV acontece por
eles acreditarem na autoridade de quem impõe essa ordem, ou seja, por existir, segundo o
pensamento de Weber, uma vigência legítima. Para Weber (1991), a vigência legítima
pode ser atribuída a uma ordem, pelos agentes, em virtude de um estatuto existente em cuja
legalidade se acredita. Esta legalidade pode ser considerada legítima pelos participantes
que a submissão das pessoas à imposição de uma ordem pressupõe a crença na
legitimidade, em algum sentido, da autoridade daquele ou daqueles que impõem essa
ordem. A crença neste caso pode ser atribuída ao Mestre Gabriel, ao Mestre Representante,
ou aos dois simultaneamente, que o Representante representa a autoridade do Mestre
Gabriel.
Weber (1991), ainda ressalta que a dominação é a probabilidade de encontrar
obediência para ordens, dentro de determinado grupo de pessoas. A obediência é um
atributo valorizado na UDV. Os discípulos devem ser obedientes a Deus, às coisas
corretas, e também às leis da UDV, que são vistas como instruções para levá-los à ordem e
à harmonia no convívio no âmbito da UDV.
89
As advertências podem ser verbais ou escritas. As advertências escritas e os afastamentos da comunhão do
Vegetal, do âmbito do CEBUDV, e dos graus hierárquicos quadro de mestres e corpo do conselho são lidas
nas sessões de escala, nos núcleos da região ou em todos os núcleos da UDV, a depender do caso.
90
Os sócios constantemente se referem ao grau pelas características do uniforme: “Bolso branco”, para os
sócios, “bolso amarelo”, para os sócios que estão na instrutiva, o “CDC”, para os conselheiros, a “estrela”
para os mestres e os “camisa azul” para os Mestres Representantes e aqueles que apresentam um maior grau
hierárquico dentro da instituição. No caso de afastamento, voltam a usar as letras UDV na cor branca, ou
seja, voltam para “o bolso branco”, para a condição de sócio, sem nenhum grau na hierarquia.
141
A dominação exercida pela instituição acontece de forma indireta e direta.
Indireta quando os sócios são orientados para que tenham consciência do que devem ou
não fazer, através da doutrina, dos conselhos, etc.; e direta quando os cios agem de
forma indevida e os representantes ou autoridades competentes da UDV tomam decisões
mais efetivas, exercendo essa dominação através de advertências e punições. Nem todos os
advertidos e punidos reconhecem e recebem de bom grado as punições e advertências
recebidas, mas normalmente respeitam, pois crêem na sua legitimidade. A dominação
repousa principalmente na crença dessa legitimidade.
O que se pode observar é que os três tipos de dominação propostos por Weber
(1995) se mesclam de forma que é difícil estipular ou padronizar um tipo puro de
dominação que caracterize a exercida na UDV. No caso da dominação baseada em
estatutos (dominação legal), obedece-se á ordem impessoal, objetiva e legalmente
instituída, em virtude da legalidade formal de suas disposições. Há quem obedeça às leis da
UDV, simplesmente por que são leis, pelo medo de ser enquadrado no regulamento e ser
suspenso das atividades religiosas. No caso da dominação tradicional, se obedece à pessoa
do senhor, nomeado pela tradição e vinculado a esta, em virtude da devoção aos hábitos
costumeiros. também na UDV quem obedeça às leis por tradição, simplesmente pelo
hábito, pelo respeito ao “senhor”, no caso, o Mestre Representante. Já na dominação
carismática, se obedece ao líder carismaticamente qualificado como tal. Neste caso a
obediência pode ser ao Mestre Gabriel, que mesmo desencarnado é considerado um
profeta que está presente em espírito, segundo os adeptos da UDV.
O que pude perceber é que os líderes da instituição estimulam os discípulos a
obedecer por uma consciência, e não por simples submissão. A consciência de que algo
não faz bem, de que é prejudicial para o indivíduo, e às vezes para o grupo, é a atitude
desejável. Contudo, de forma quase contraditória, se não se aprende a obedecer por uma
tomada de consciência, aplica-se a lei e o força a submeter-se.
Como adeptos da “lei do retorno”
91
, orientam o cuidado com a nossa saúde. O
consumo de substâncias tóxicas lícitas ou ilícitas é visto como uma “abertura” para o
aparecimento de doenças e aflições. Como nem todos desenvolvem essa consciência, e
obedecem através da mesma, a dominação é exercida de forma mais direta, o estatuto e a
doutrina são claros: os comportamentos desviantes serão punidos com o afastamento.
91
Para os adeptos da UDV a lei do retorno reza que todas as ações praticadas, direcionadas para o bem ou
para o mal, voltará um dia para quem as praticou. Por isso é necessário semear coisas boas, ou seja, plantar
flores para colher flores.
142
O que é notável, é que a junção de um enteógeno sagrado, dentro de um
contexto religioso que possui uma doutrina efetivamente contrária ao uso meramente
recreativo de drogas, tem um efeito transformador nos usuários que declaram terem se
sentido melhor e curados da dependência das drogas após ter freqüentado as sessões da
UDV.
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os udevistas percebem no fenômeno do chá um conteúdo que ultrapassa o aqui
e agora e que remete para um significado transcendente capaz de transformar ou resgatar
vidas. Além disto, tem-se afirmado ser o chá capaz de curar enfermidades da alma. Sendo
assim, a UDV tem sua própria forma de compreender a relação entre as categorias doença,
saúde e cura. É importante destacar que ela não possui sessões destinadas à cura, como
outras religiões e grupos que fazem uso da Ayahuasca; bem como, a sua atitude de
estimular e aconselhar os enfermos a buscarem os meios convencionais (medicina
científica) para tratamento das disfunções. Não apóia nem incentiva a cura em perspectiva
mágica, nem práticas ligadas a esse tipo de atividade no âmbito
92
da UDV. Nenhuma
prática ou uso da medicina tradicional, a exemplo: o uso de “garrafadas” ou qualquer outro
tipo de medicação cabocla ou indígena pode ou deve ser vinculada à instituição. Segundo
os seus mestres, a sede geral da UDV orienta as unidades administrativas para que não se
comercialize, nem se aplique “terapias alternativas” no âmbito da UDV a fim de manter
distante a imagem da instituição com a prática “curandeirista”. O que se observa é que
parece existir uma relação entre institucionalização da UDV e diminuição das narrativas de
cura. Se, no começo, no período da floresta, as pessoas procuravam o Mestre Gabriel por
causa da cura, hoje tal prática não é mais incentivada e chega, até mesmo, a ser proibida.
Na UDV geralmente não se atenção para a cura do corpo e sim do espírito.
Os relatos encontrados hoje na UDV referem-se, especialmente, a benefícios espirituais,
mas, segundo crêem, o chá pode levar quem o experimenta a afirmar, a partir de sua
experiência pessoal, que essa bebida sagrada é benéfica à saúde.
No Regimento Interno da União do Vegetal afirma-se, que o chá Ayahuasca é
"comprovadamente inofensivo à saúde". Contudo, os udevistas insistem em afirmar que ele
não somente é inofensivo, mas que é, ainda, benéfico. E aqui está um ponto que ainda
carece de melhores esclarecimentos, pois que toda possível benesse oferecida pelo chá
parece estar intimamente ligada á crença do indivíduo nesta propriedade e ao controle
exercido pela entidade sobre os fiéis, através de seus discursos e ações, que propriamente a
alguma propriedade farmacológica do mesmo.
"Inofensivo" significa que não faz mal para a saúde em geral. Por outro lado,
"benéfico" significa, afirmativamente, que faz bem. Em poucas palavras, a experiência dos
92
Neste caso, âmbito significa a parte física do núcleo, ou seja, suas instalações.
144
udevistas com esse chá ao longo de sua história institucional, leva-os a afirmar que o chá
não é somente inofensivo à saúde: ele é, positivamente, benéfico à saúde. Partem do
princípio que ninguém bebe um chá somente porque ele é inofensivo, mas, principalmente,
porque é, de alguma forma, benéfico. Embora esta formulação esteja logicamente
estruturada ela carece de bases de sustentação prática que extrapolem as afirmações da fé.
Para melhor compreender o processo que levou os udevistas a tal compreensão
podemos recorrer a Weber (1979), para quem a humanidade partiu de um universo
habitado pelo sagrado, pelo gico, e chegou a um mundo racionalizado material,
manipulado pela técnica e pela ciência. O mundo encantado e mágico dos deuses e mitos
foi despovoado, sua magia foi substituída pelo conhecimento cientificista e pelo
desenvolvimento de formas de organizações burocratizadas: é o desencantamento do
mundo.
A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um
conhecimento melhor e geral das condições sob as quais vivemos. Significa mais
alguma coisa, ou seja o conhecimento ou a crença em que, se quiséssemos,
poderíamos ter esse conhecimento a qualquer momento. Significa
principalmente, portanto, que não forças misteriosas incalculáveis, mas que
podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isso significa que o
mundo foi desencantado. não precisamos recorrer aos meios mágicos para
dominar ou implorar os espíritos [...]. Os meios técnicos e os cálculos realizam o
serviço. Isto, acima de tudo, é o que significa a intelectualização (WEBER,
1979
, p.
165).
[...] ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nessa prisão, ou se, no
fim desse tremendo desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramente novos,
ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias [...] (WEBER,
1981
, p.
131).
O pensamento de Weber ajuda a compreender o que tem sido observado na
presente pesquisa. Realmente o mundo vem se racionalizando e se burocratizando, e essa
tendência também atingiu a esfera religiosa. No caso da União do Vegetal, os poderes
“mágicos” e “sobrenaturais” de cura, atribuídos a José Gabriel da Costa (fundador da
UDV), seja atuando como Sultão das Matas, seja como o Mestre Gabriel, foi
paulatinamente passado á instituição através da rotinização do carisma. Mudou de sentido,
racionalizou-se, em virtude de novas necessidades. Adequou-se aos grandes centros
urbanos e transformou-se parcialmente, uma vez que rituais de cura não são mais
empregados, como na época em que ele liderava a instituição, a exemplo: o uso dos nove
vegetais, e a utilização de plantas e ervas medicinais utilizadas por ele para realizar a cura
àqueles que o procurava. Os mestres atuais não se intitulam com tais poderes.
Atualmente, a doutrina potencializada com a burracheira, é que pode trazer de
145
volta o contato com o mágico e com o sobrenatural. Desta forma, segundo eles, pode-se
vislumbrar a cura, o alívio e a transformação do indivíduo numa burracheira, nesse estado
em que se pode ver a vida sob outra ótica, em uma nova dimensão. Uma dimensão
espiritual.
Contudo, percebe-se que por muitas razões é difícil falar da burracheira. É
preciso senti-la, mas mesmo sentindo é difícil explicar. Todas as definições
farmacológicas, e todas as descrições médicas, psicológicas, biológicas, sociais,
antropológicas, dificilmente chegariam à essência de conhecer os efeitos da Ayahuasca,
pois para cada um(a), e em cada momento, o efeito é diferente. Em cada um(a) ela provoca
um tipo de sensação, em cada forma de uso, ela é potencializada de uma maneira. Os
princípios ativos, o set e o setting são indispensáveis para a compreensão da subjetividade
das experiências. Cada ser é único. Cada um tem sua história de vida. Cada um está imerso
em uma cultura. Existe UDV em áreas rurais e urbanas, áreas com menor e maior
desenvolvimento econômico. Das reuniões da UDV participam diversos tipos de pessoas:
homens, mulheres, homossexuais, crianças e adolescentes (devidamente autorizados pelos
pais), jovens, adultos e idosos. Pobres, ricos, com doutorado e PhD e analfabetos. Como,
em um universo tão amplo captar uma definição de burracheira que enquadre todos os set's
e setting's? Como objetivar a subjetividade?
Os aspectos racionais da religião são apenas o fruto inteligível da experiência
irracional. É por isso que é difícil falar da burracheira. Essa experiência por mais que se
tente explicar é algo que advém do sentimento e essa tentativa de explicar é quase sempre
incompleta, pois o contato com o sagrado, com o numinoso, é algo que adquire sentido na
medida em que se sente e que se experimenta essa sensação.
O que tem sido observado na pesquisa, é que a ciência e a intelectualidade
muitas vezes não conseguem dar conta de explicar determinados fenômenos,
principalmente a origem das dores, aflições e sofrimentos humanos. Assim como em
determinados momentos não consegue, de forma eficiente, aliviar ou curar tais problemas.
Por isso, parte da humanidade tem buscado nas religiões uma explicação e um consolo
para as suas aflições. Isso explica parcialmente o crescimento da UDV, e das demais
religiões que fazem ou não uso de psicoativos, é por essa busca de encontrar respostas às
questões que a ciência, com todo seu aparato e tecnologia, não consegue explicar.
A possibilidade de ter visões, mirações, de encantar-se com a natureza, através
da burracheira, tem fascinado os adeptos da UDV, e despertado o interesse daqueles que
146
ainda não conhecem, mas desejam vivenciar o encontro com o sagrado e esse
reencantamento com o mundo.
[...] é importante que tenhamos um segredo e a intuição de algo incognoscível.
Este mistério dá à vida um tom especial e “numinoso”. Quem não teve uma
experiência desse tipo perdeu algo de importante (JUNG, 1977
, p.
308).
Através do crescimento no número de adeptos de diversas religiões, e em
especial dos adeptos da UDV, nota-se um novo movimento: ao invés de um
desencantamento, um reencantamento do mundo: um interesse por explicações
sobrenaturais, divinas ou mitológicas, principalmente dos fenômenos que a ciência ainda
não consegue explicar ou que, embora explicando, não consegue convencer, aliviar ou
consolar com as suas explicações. As pessoas com doenças consideradas incuráveis pela
ciência, aqueles que se sentem aflitos e infelizes e que não encontram instituições ligadas á
ciência capazes de aliviar e transformar esses sentimentos recorrem aos meios “mágicos” e
aos “espíritos” e muitas vezes têm sucesso. Encontram respostas e alívio para os problemas
enfrentados. “Os meios técnicos e os cálculos” não realizam determinados tipos de
serviços. Então se inicia a busca de outras instituições e métodos para minimizar e aliviar o
sofrimento, e está o papel das religiões: possibilitar ao indivíduo um reencantamento do
mundo, um reordenamento de suas ações rumo à transformação dos sentimentos que os
afligiam ou que ainda os afligem.
Os adeptos da UDV declaram que essa religião modificou a forma com que
encaravam a vida, com que lidavam consigo mesmos e com a sociedade, a ponto de
estruturarem suas narrativas em termos de antes e depois de conhecerem a instituição. Esta,
por sua vez, embora não faça propagandas e nenhum tipo de investimento para arraigar
discípulos, reconhece que o poder do chá Hoasca, consumido nos rituais, associado com
uma doutrina dita de forma simples e direta, tem um poder transformador nos indivíduos.
Embora não se intitule como uma instituição de cura ou destinada à cura, a UDV tem
possibilitado um reordenamento de muitas pessoas que apresentam diversos tipos de
problemas, que vão desde as doenças físicas e da matéria aos desequilíbrios de diversas
ordens. Acresce-se a isso os discursos de reencontro e equilíbrio do indivíduo com a
natureza, da saúde como fruto de uma vida saudável e equilibrada, da possibilidade de se
encontrar como indivíduo e de se ter um sentido para a existência humana: temas tão atuais
na sociedade contemporânea e que juntando aos demais, acabam por exercer fascínio em
meio ao mundo tecnicista em que vivemos.
Tudo isso fica claro através dos discursos e testemunhos que são feitos no
147
transcurso de uma sessão. São todos estruturados de tal forma que, não aparentando um
discurso de cura, comunicam as benesses do uso do Vegetal e os seus poderes em benefício
de quem o utiliza. Na verdade, é possível afirmar que contrariando o que está oficialmente
dito em relação ao fato de que a bebida não tem poder mágico curativo o que se observa é
que nas entrelinhas dos discursos dos fiéis está sempre presente a idéia de que o chá é uma
fonte inesgotável de poder e cura.
Os adeptos da União do Vegetal interpretam o chá ayahuasca como o principal
motivo de felicidade e de alcance de maior nível de consciência de si mesmos e do mundo,
expresso por melhorias comportamentais e fisiológicas. O verdadeiro responsável por
terem encontrado um sentido para a vida. Todos consideram a União do Vegetal uma
religião, afirmam existir uma intimidade muito grande entre os sócios, vistos como uma
grande família, e que sua doutrina valoriza o sentimento familiar e os laços de amizade
entre os adeptos, onde todos se ajudam e compartilham momentos festivos e de auxílio a
sua comunidade.
No decorrer da pesquisa procurei orientar-me pela indagação acerca da
importância do Vegetal para a formulação dos conceitos e sentidos que transparecem no
imaginário religioso dos udevistas e como eles conseguem perceber a ação do chá em suas
vidas e o que pude observar é o seguinte: fica evidente que essas experiências são
subjetivas, e a busca de objetivá-las e categorizá-las quase sempre é passível de grandes
dificuldades. Pude perceber através dos relatos dos entrevistados, um pouco da
cosmologia, ou seja, da visão de mundo compartilhada pelos adeptos da UDV, diluídas no
decorrer do trabalho. Pude, ainda, verificar como essa visão de mundo é interiorizada nos
rituais e na convivência social do grupo e como ela é importante no processo de
transformação do indivíduo. O abandono de determinados hábitos, considerados nocivos à
saúde como o uso de drogas e a libertação de sentimentos negativos como mágoas, ódio,
rancor e ressentimentos, conflito com familiares e com a sociedade, têm uma influência
direta para essa transformação.
Isso faz com que os conceitos e sentidos experimentados pelos adeptos dessa
religião sejam evidenciados na prática cotidiana de suas vidas dando sentido a inúmeras
práticas comuns de seus freqüentadores. A abstinência do uso de drogas lícitas ou ilícitas, a
busca da harmonia do ser humano com o meio em que vive, o cuidado com a alimentação,
a forma positiva de encarar a vida e de evitar qualquer atitude que contrarie a ordem
natural do mundo criado, referem uma visão prática da vida, onde está implícita a idéia de
148
que uma vida em equilíbrio é fruto do auto-conhecimento, da mudança de hábitos e
conceitos de vida e que isso poderá ser alcançado com o uso do Vegetal que é tomado para
efeito de concentração mental, e que crêem ter poder de favorecer estados ampliados de
consciência benéficos ao desenvolvimento moral e intelectual do ser humano fazendo com
que seu usuário alcance total harmonia consigo e com a natureza, promovendo a verdadeira
cura: a cura do espírito.
Fica claro, contudo, que a maioria das pessoas que busca conhecer a UDV, não
procura a instituição diretamente para se curar. Pretendem, sim, ter um encontro consigo e
com o sagrado. Buscam novas experiências e autoconhecimento, assim como condições
para resolverem conflitos internos e descobrir um sentido mais profundo para a existência.
Mesmo assim, o tema da cura e da saúde é recorrente no cotidiano de sua prática religiosa
desde a sua origem (lembre-se que o Mestre Gabriel se tornou conhecido na sua
comunidade pelos trabalhos de cura que realizava). Está presente nas chamadas (Nove
Vegetais, Doutor Camalango e Cosme e Damião), sessões (Cosme e Damião) e doutrina.
Está presente também nas declarações dos participantes que afirmam suas melhorias com a
adesão a essa religião. Aqueles que ainda não se sentem inteiramente curados sentem-se ao
menos aliviados da aflição que o problema ou doença lhes trazia.
Eles aparentam ter otimismo e a esperança de modificarem sua conduta para
serem merecedores de receber a força da cura. Aprendem também a lidar com o medo da
morte de forma mais tranqüila, de modo que a reconhecem como uma passagem para uma
nova vida, e não simplesmente como o fim de tudo, o que minimiza consideravelmente a
ansiedade principalmente dos portadores de doenças físicas.
Os adeptos acreditam que o uso do chá por si não impulsiona o indivíduo à
transformação, ele possibilita o encontro com o sagrado e o acesso a conteúdos
inconscientes antes desconhecidos, cabe ao indivíduo transformar-se ou não. Por isso o
querer é fundamental. O Vegetal, a doutrina, o auxílio e exemplo das pessoas não farão
muito efeito se não houver no interior do indivíduo a busca por se sentir melhor, de sair da
situação que gerava desconforto, ou curar-se daquilo que o incomodava.
Significativo também é que a União do Vegetal possui um número
considerável de pessoas que apresentavam um quadro de dependência de drogas lícitas ou
ilícitas antes de freqüentar a instituição e que declaram terem sido curados do problema da
compulsão. Creio que esse é um aspecto que requer uma atenção e um estudo mais
detalhado.
149
Também fica claro que os adeptos da União o Vegetal atribuem a
transformação de suas vidas, o equilíbrio emocional e de saúde a fatores como a doutrina,
o chá, o querer se transformar, ao Mestre Gabriel e ao convívio com as pessoas do grupo,
ou seja, as relações que se desenvolvem dentro da comunidade estudada. Ressaltando,
contudo, que o chá é sempre tido como o principal agente para a descoberta que traa
transformação. Tais categorias se interpenetram na forma como os entrevistados, às vezes,
atribuíam a melhora a dois ou três desses fatores. É válido ressaltar que essas categorias
foram construídas exclusivamente através dos relatos, sem nenhum tipo de indução por
parte do pesquisador, uma vez que todas as entrevistas foram orientadas através de
diálogos livres e abertos ou em simples conversas ocasionais.
Quando iniciei meu trabalho imaginei a hipótese de encontrar relatos de
pessoas que se sentiram curados pela força do Vegetal de forma mágica e extraordinária ou
por uma chamada que traz a “força da cura”, mas no grupo de entrevistados isso não
aconteceu. Para confirmar essa hipótese seria necessário entrevistar um grupo maior de
pessoas, em diversos cleos, o que não foi possível também em virtude da limitação
temporal.
Hoje existem estudos tentando comprovar que a Ayahuasca é eficiente nos
casos de dependência de drogas, compulsão e depressão, os quais, embora em andamento,
parecem comprovar certo grau de eficiência. Um destes estudos foi divulgado pelo Jornal
Folha de São Paulo, do dia 19/11/2008, e está disponível na sua versão online, na Rede
Mundial de Computadores
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u469235.shtml), nesta matéria a
jornalista, Juliana Coissi, afirma que a bebida “tornou-se a base de uma pesquisa inédita
bem-sucedida da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto para tratar pacientes
com depressão” e que, embora o programa seja piloto, pessoas “com problemas crônicos
de depressão, que tomaram uma dose do chá, relataram melhora imediata” e que esses
estudos deverão ser ampliados em curto espaço de tempo (COISSI, 2008). Outra pesquisa
foi divulgada pelo Jornal da UNICAMP e afirma que a
tese de doutorado de Manoel Trindade Rodrigues Júnior [...] da Unicamp, apontou
o grande potencial das substâncias beta-carbolínicas como estruturas privilegiadas
para o desenvolvimento de fármacos [...] apresentaram uma variedade de
propriedades farmacológicas, como atividade antiparasitária contra leishmania e
atividade citotóxica contra células de linhagens de ncer humano, além da
atividade analgésica sobre o Sistema Nervoso Central (GARDENAL, 2009).
150
Contudo, o que se observa no uso da bebida dentro da União do Vegetal é que
seus efeitos não estão ligados apenas as propriedades químicas da bebida. Penso que a
crença no poder da ação do chá, a participação dos usuários nos rituais, a doutrina escutada
e praticada, a convivência com o um grupo que possui crenças e valores comuns, são
fatores que dão sustentação à reestruturação dos indivíduos, modificando a sua visão de
mundo e a sua conduta.
Percebo, ainda que restam várias outras possibilidades para abordagem deste
mesmo tema, tais como: um estudo que consiga confrontar o efeito do chá em usuários da
Ayahuasca descontextualizados de todo e qualquer ritual em comparação com aqueles que
o usam dentro do contexto ritualístico, buscando perceber se ambos teriam as mesmas
possibilidades de transformação de suas vidas, de equilíbrio emocional e de saúde. Ou
ainda: um estudo comparativo, no tocante à questão da cura, entre as três religiões
ayahuasqueiras mais conhecidas: A União do Vegetal, o Santo Daime (Alto Santo e
Cefluris) e a Barquinha. Seria possível estabelecer uma teoria mais ampla sobre a
experiência de transformação, saúde e cura que abarcasse essas três religiões?
É claro que ao chegar ao final de um trabalho dessa natureza parece-me restar
muito mais perguntas que respostas, contudo, creio ter conseguido responder alguns
questionamentos. Outros, porém, permaneceram em aberto, estimulando a mim e a outros
cientistas a continuar nesse caminho de superação de paradigmas a fim de ampliar os
limites da ciência e da religião. Dentre os questionamentos possíveis poderíamos citar:
Qual o efeito do uso da ayahuasca fora do ambiente ritual? Não seria possível alcançar os
mesmos efeitos sem que o mesmo seja consumido ritualmente? Qual o real efeito do
chá? Se adotado dois grupos experimentais dentro de um ambiente religioso, um tomando
o chá e o outro um placebo de características de sabor e coloração idênticos, sentiriam os
dois efeitos diferentes? Que efeitos seriam estes? grupos que poderiam ser
considerados grupos de risco em relação ao consumo do chá? Quais seriam eles? Por que?
Por proporcionar um estado alterado de consciência quais os riscos que o chá apresenta
para a saúde humana e a que tipo de usuário esse risco é maior? Pode o consumo desse chá
desencadear processos patológicos diversos?
Embora restem todos esses e outros questionamentos mais, pareceu-me
oportuna a reflexão aqui apresentada, esperando ter contribuído para a melhor
compreensão desse fenômeno religioso brasileiro, ligado ao uso de uma bebida que, por
razões diversas, tem sido abordada sistematicamente pelos meios de comunicação e
151
telejornais de nosso país. Ficam, portanto, o desafio para que novas abordagens e pesquisas
sejam efetivadas para uma melhor compreensão das religiões ayahuasqueiras no Brasil.
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JORNAIS
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b) Abr / Jun 95 - p. 8-11 - Entrevista com Cons. Paixão
c) Nov/Dez 95 - p. 8-11 - Entrevista M. Braga
d) Ago / Set / Out 95 - p. 6-9 - Entrevista com M. Pequenina e M. Jair
e) Fev / Set 96 - p. 8-11 - Entrevista com M. Florêncio
160
ANEXOS
161
ANEXO 1 - TABELA COM INFORMAÇÕES DOS ENTREVISTADOS
Entrevistado “A”
27 anos, sexo masculino, solteiro, segundo grau completo, auxiliar de
vendas, pertence ao quadro de sócios (sem ter ocupado outro grau
hierárquico anteriormente). Freqüenta a UDV há dois anos.
Entrevistada “B”
32 anos, sexo feminino, solteira, nível superior completo, tradutora e
professora de inglês, pertencente ao quadro de sócios (sem ter
ocupado outro grau hierárquico anteriormente), freqüenta a UDV
três anos.
Entrevistado “C”
39 anos, sexo masculino, separado, nível superior completo com
especialização, relações públicas, pertencente ao quadro de sócio (sem
ter ocupado outro grau hierárquico anteriormente), freqüenta a UDV
há um ano e meio.
Entrevistado “D”
45 anos, sexo masculino, casado, vel superior completo, gerente de
consultoria de vendas, pertencente ao quadro de mestres, freqüenta a
UDV há vinte e dois anos.
Entrevistado “E”
54 anos, sexo masculino, casado, terceiro grau completo, comerciário,
pertence ao quadro de mestres, freqüenta a UDV há vinte e seis anos.
Entrevistado “F”
53 anos, sexo masculino, solteiro, segundo grau completo,
cabeleireiro, pertence ao corpo instrutivo, freqüenta a UDV treze
anos.
Entrevistado “G”
47 anos, sexo masculino, casado, terceiro grau completo, dentista,
pertence ao quadro de mestres, freqüenta a UDV há sete anos.
Entrevistada “H”
25 anos, sexo feminino, solteira, mestranda na área de informática,
pertence ao corpo instrutivo, freqüenta a UDV há cinco anos.
Entrevistado “I”
49 anos, casado, nível superior incompleto, gerente administrativo e
financeiro, pertencente ao quadro de sócios (sem ter ocupado outro
grau hierárquico anteriormente), freqüenta a UDV há três anos.
Entrevistada “J”
43 anos, solteira, segundo grau completo, vendedora, pertence ao
corpo do conselho, freqüenta a UDV há vinte anos.
Entrevistado “K”
32 anos, solteiro, nível superior completo com especialização,
dentista, pertence ao quadro de sócio, freqüenta a UDV há três anos.
162
ANEXO 2 - RESOLUÇÃO Nº 5 DO CONAD
Publicada em 10.11.2004 no Diário Oficial da União, e que trata sobre assunto
referente ao uso religioso da ayahuasca
Edição Número 216 de 10/11/2004
Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República Presidência da República
Secretaria Nacional Antidrogas
RESOLUÇÃO N o 5-CONAD, DE 4 DE NOVEMBRO DE 2004 (*)
Dispõe sobre o uso religioso e sobre a pesquisa da ayahuasca
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL ANTIDROGAS - CONAD, no uso de suas
atribuições legais, observando, especialmente, o que pre o art. do Regimento Interno do
CONAD; e
CONSIDERANDO que o plenário do CONAD aprovou, em reunião realizada no dia 17 de agosto
de 2004, o parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-Científico que, por seu turno,
reconhece a legitimidade, juridicamente, do uso religioso da ayahuasca, e que o processo de
legitimação iniciou-se, mais de dezoito anos, com a suspensão provisória das espécies
vegetais que a compõem, das listas da Divisão de Medicamentos DIMED, por Resolução do
Conselho Federal de Entorpecentes - CONFEN, n° 06, de 04 de fevereiro de 1986, suspensão
essa que tornou-se definitiva, com base em pareceres de 1987 e 1992, indicados em ata do
CONFEN, publicada no D.O. de 24 de agosto de 1992, sendo os subseqüentes considerandos
baseados na já referida decisão do CONAD;
CONSIDERANDO que a decisão adequada, da Administração Pública, sobre o uso religioso da
ayahuasca, foi proferida com base em análise multidisciplinar;
CONSIDERANDO a importância de garantir o direito constitucional ao exercício do culto e à
decisão individual, no uso religioso da ayahuasca, mas que tal decisão deve ser devidamente
alicerçada na mais ampla gama de informações, prestadas por profissionais das diversas áreas do
conhecimento humano, pelos órgãos públicos e pela experiência comum, recolhida nos diversos
segmentos da sociedade civil;
CONSIDERANDO que a participação no uso religioso da ayahuasca, de crianças e mulheres
grávidas, deve permanecer como objeto de recomendação aos pais, no adequado exercício do
poder familiar (art. 1.634 do Código Civil), e às grávidas, de que serão sempre responsáveis pela
medida de tal participação, atendendo, permanentemente, à preservação do desenvolvimento e da
estruturação da personalidade do menor e do nascituro;
CONSIDERANDO que qualquer prática religiosa adotada pela família abrange os deveres e
direitos dos pais "de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos de maneira
acorde com a evolução de sua capacidade" , incluída a liberdade de professar a própria religião
e as próprias crenças, observadas as limitações legais ditadas pelos interesses públicos gerais (cf.
Convenção Sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, promulgada pelo Decreto nº
99.710, de 21/11/1990, art. 14);
CONSIDERANDO a conveniência da implementação de estudo e pesquisa sobre o uso
terapêutico da ayahuasca, em caráter experimental;
CONSIDERANDO que o controle administrativo e social do uso religioso da ayahuasca somente
poderá se estruturar, adequadamente, com o concurso do saber detido pelos grupos de usuários;
RESOLVE:
Art. Fica instituído GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO para levantamento e
acompanhamento do uso religioso da ayahuasca, bem como para a pesquisa de sua utilização
terapêutica, em caráter experimental.
Art. O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO será composto por seis membros,
indicados pelo CONAD, das áreas que atendam, entre outros, aos seguintes aspectos:
antropológico, farmacológico/bioquímico, social, psicológico, psiquiátrico e jurídico. Além disso, o
163
grupo será integrado por mais seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos
grupos religiosos, usuários da ayahuasca.
Art. O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO escolherá seu presidente e vice-
presidente e deverá, como primeira tarefa, promover o cadastro nacional de todas as instituições
que, em suas práticas religiosas, adotam o uso da ayahuasca, devendo essas instituições manter
registro permanente de menores integrantes da comunidade religiosa, com a indicação de seus
respectivos responsáveis legais, entre outros dados indicados pelo GRUPO MULTIDISCIPLINAR
DE TRABALHO.
Art. O GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO estruturará seu plano de ação e o
submeterá ao CONAD, em até 180 dias, com vistas à implementação das metas referidas na
presente resolução, tendo como objetivo final, a elaboração de documento que traduza a
deontologia do uso da ayahuasca, como forma de prevenir o seu uso inadequado.
Art. O CONAD, por seus serviços administrativos, deverá consolidar, em separata, todas as
decisões do CONFEN e do CONAD sobre o uso religioso da ayahuasca, para acesso e utilização
dos interessados que poderão, às suas próprias expensas, extrair cópias, observadas as
respectivas regras administrativas para tanto.
Art. 6º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação.
JORGE ARMANDO FELIX
Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional e
Presidente do Conselho Nacional Antidrogas
(*) Republicada por ter saído com incorreção no DOU do dia 08/11/2004, Seção 1, página 8.
164
ANEXO 3 - Artigo “A encruzilhada do Daime”
Publicado na Revista ISTO É, de 10/fev/2010, ano34, nº 2100 – o qual fala da legalização o uso religioso
da ayahuasca.
Encruzilhada do Daime
O governo legaliza o uso religioso do chá alucinógeno, mas peca ao
deixar que mortes ocorram e ao abrir uma brecha jurídica que pode
estimular o tráfico
Hélio Gomes
Governo legaliza o uso religioso do chá do Santo Daime, assunto de capa da IstoÉ desta semana.
Alucinógeno
O chá ayahuasca é parte dos rituais de várias religiões nativas brasileiras
Tudo começou no início do século passado, no coração da Amazônia. Caboclos
nordestinos atraídos pela extração da borracha mergulharam na cultura secular dos povos
da floresta, inevitavelmente absorvendo muito de sua essência. Logo nasceram as
chamadas religiões ayahuasqueiras, grupos em sua maioria cristãos que incorporaram o
consumo de um chá alucinógeno utilizado pelos indígenas em seus rituais. Hoje, essas
mesmas seitas estão no centro de uma polêmica que envolve questões delicadas e
perigosas, como o respeito à liberdade de crença, tráfico de drogas e morte.
No dia 25 de janeiro, em resolução publicada no “Diário Oficial da União”, o governo
brasileiro oficializou o uso religioso do chá ayahuasca – também conhecido como daime,
hoasca e vegetal. Sem força de lei, o texto, formulado depois de décadas de negociações e
estudos realizados pelos órgãos de combate às drogas, define as responsabilidades das
religiões institucionalizadas e garante o direito de consumo do alucinógeno a adultos,
mulheres grávidas, jovens e até crianças durante os rituais. Por outro lado, ele veta a
comercialização e a propaganda do composto feito a partir do cipó mariri e das folhas da
165
erva chacrona, além de sugerir que qualquer tentativa de turismo motivado pelo chá seja
coibida.
Personagens
Flávio Mesquita da Silva, presidente da União do Vegetal. Acima, a oferta do daime na web para fins
recreativos.
Abaixo, Fernando Tavares, morto depois de tomar o chá
A decisão do governo repercutiu com força. Políticos como Eduardo Suplicy e Fernando
Gabeira, por exemplo, defendem a medida. “A resolução é o reconhecimento de uma
religião autenticamente brasileira”, diz Suplicy. Por outro lado, outras vozes levantaram a
hipótese de que a liberação do daime poderia abrir o perigosíssimo precedente para a
criação de religiões que incorporem drogas como a cocaína e a maconha em seus rituais. E
ainda há quem considere o trabalho desenvolvido pela comissão multidisciplinar –
166
composta por médicos, juristas, psicólogos e membros de religiões como Santo Daime,
Barquinha e União do Vegetal, entre outros especialistas – do Conad (Conselho Nacional
Antidrogas) um exemplo de respeito aos direitos individuais a ser exportado para o mundo.
Porém, o noticiário indica outra direção.
No penúltimo final de semana, Alexandre Viana da Silva, 18 anos, morreu afogado em um
lago em Ananindeua (PA), depois de tomar o chá em um culto independente. Claro que
não é possível afirmar que o alucinógeno levou o rapaz, que não sabia nadar, a enfrentar
uma situação de risco sem medir as consequências. Mas a hipótese não pode ser ignorada.
Outra história contundente é a de Fernando Henrique Queiroz Tavares. Aos 15 anos, ele
era usuário regular de haxixe, LSD e ecstasy. Depois de muito sofrimento, encontrou ajuda
167
na chácara Céu de Krishna, sede da seita Encantamento dos Sonhos, localizada na região
metropolitana de Goiânia (GO). Lá, participou de rituais que envolviam o consumo de
ayahuasca durante três anos. “Ele deixou o vício, voltou à escola e até parou de sair à
noite”, diz sua mãe, Neila Maria Queiroz. Ela foi duas vezes até a chácara. Na primeira,
para assistir a uma das cerimônias. Depois, para alertar a todos que Fernando Henrique
sofria da síndrome de Marfan, enfermidade degenerativa do coração.
Por volta das 4h30 da manhã do dia 15 de novembro do ano passado, depois de consumir
150 ml do chá em um intervalo de quatro horas e meia, o rapaz de 18 anos sentiu-se fraco,
apresentou dificuldade para respirar e caiu no chão. Segundo seu atestado de óbito, a morte
foi causada por um ataque fulminante do coração, com rompimento da artéria aorta.
Apesar de o laudo oficial com a causa do ataque só ter previsão de publicação daqui a dois
meses, o que a ciência já sabe sobre os efeitos da ayahuasca no organismo indica forte
possibilidade de relação entre o consumo do chá e o ocorrido. “Estamos realizando análises
sofisticadas e fora do padrão. Precisamos de mais tempo”, afirma Rejane Sena Barcelos,
diretora do Instituto de Criminalística Leonardo Rodrigues. Segundo o delegado que cuida
do caso, Maurício Massanobu Kai, “se o chá facilitou ou potencializou a morte, o
responsável pelo ritual responderá por homicídio doloso”. O delegado fala de Marcelo
Henrique Ribeiro, líder do ritual Encantamento dos Sonhos. “Foi como perder um filho”,
diz Ribeiro.
Ritos e normas
Acima, culto da igreja Céu da Lua Cheia, em São Paulo.
168
Abaixo, o presidente do Cefluris, Alex Polari, participa do feitio do daime
Segundo a nova normatização das regras do uso religioso da ayahuasca, as seitas
cadastradas pelos órgãos passam a ser totalmente responsáveis pelo que acontece com seus
adeptos durante os rituais. Cabe a elas decidir quem está apto ou não, tanto do ponto de
vista médico quanto do psicológico, a tomar o chá. Também não há regras de dosagem:
quem serve a bebida decide quanto o usuário deverá ingerir. Por fim, a determinação
recomenda que todos os participantes permaneçam nas igrejas até o final dos rituais – e dos
efeitos alucinógenos do chá.
Não é preciso dizer que o risco de algo dar errado é alto, o que pode transformar o caso em
uma questão de saúde pública. Se alguém que começa a frequentar uma academia de
ginástica é obrigado a passar por avaliação médica, o mesmo não deveria ser feito por
quem consome um alucinógeno? “Assim como em se tratando de qualquer instituição
desportiva, de ensino ou recreativa, quem quer que dê causa, por negligência, imprudência
ou imperícia, ao prejuízo alheio responderá civil e criminalmente pelos atos que praticar”,
diz Paulo Roberto Yog de Miranda Uchôa, secretário nacional de Políticas sobre Drogas e
secretário executivo do Conad.
169
Simbolismo
Acima, despacho do daime na igreja Céu da Lua Cheia. Abaixo, detalhe da produção do chá
O texto publicado no “Diário Oficial” recomenda que as entidades façam uma entrevista
com aqueles que forem ingerir o chá pela primeira vez e evitem seu uso por pessoas com
transtornos mentais e por usuários de outras drogas. Segundo Enio Staub, secretário do
Cefluris – Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo, que
reúne as igrejas conhecidas como Santo Daime –, esse primeiro contato é fundamental.
“As pessoas que buscam a ayahuasca devem obter informações da origem dos grupos para
verificar sua confiabilidade. Temos essa responsabilidade”, diz.
O Santo Daime ganhou notoriedade nos anos 80, quando chegou aos centros urbanos do
Sudeste e do Sul do País. Celebridades como Lucélia Santos e Ney Matogrosso entraram
para a seita e o perfil de seus seguidores mudou. Era a vez das classes mais abastadas,
universitários e todo tipo de profissional entrarem na história. Paralelamente, a União do
Vegetal também cresceu rapidamente. Hoje, segundo dados fornecidos pelas duas
instituições, o Santo Daime conta com cinco mil associados e visitantes, enquanto a UDV
contabiliza cerca de 15.000 sócios. Ambas estão presentes em países como Estados
Unidos, Espanha, Reino Unido e Canadá, nos quais, segundo os religiosos, o chá entra de
forma totalmente regular. “Não corremos atrás das pessoas. Elas vêm até nós”, diz Flávio
Mesquita da Silva, presidente da União do Vegetal.
170
171
Mesquita, 54 anos, narra uma história muito parecida com a de inúmeros adeptos do
daime. “Consumia todo tipo de droga e bebia muito na adolescência. Conheci a UDV e
tudo mudou”, diz. De fato, a promessa da resolução de males como a dependência química
e a depressão é um dos maiores chamarizes das seitas. Apesar de a normatização
governamental sugerir que o chá não seja usado em conjunto com outras drogas, muitos
seguidores fazem isso. A substituição de um vício por outro é altamente condenada pela
medicina porque, no fundo, não resolve o problema. Fica a pergunta: o daime é uma
droga?
Polêmica
Acima, crianças participam do feitio do chá em Visconde de Mauá (RJ). Elas
e mulheres grávidas também consomem o alucinógeno durante os rituais
Um dos pilares da argumentação do Conad para a regulamentação do uso religioso da
ayahuasca é uma decisão da ONU. “São consideradas drogas ilícitas todas aquelas nas
listas de substâncias proibidas das Convenções das Nações Unidas, das quais o Brasil é
signatário”, diz Miranda Uchôa, do Conad. De acordo com o texto publicado no “Diário
Oficial”, “a decisão da ONU relativa à ayahuasca afirma não ser esta bebida nem as
espécies vegetais que a compõem objeto de controle internacional”. Sandro Torres Avelar,
presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, vê a questão de
forma diferente: “O efeito do daime preocupa porque é semelhante ao de drogas proibidas
no ordenamento jurídico”, afirma. Infelizmente, uma distorção preocupante do processo já
ocorre na internet.
Basta digitar “comprar ayahuasca” no Google para encontrar ofertas de todo tipo. Há quem
tente maquiar o comércio usando o modelo das seitas organizadas e peça uma carta do
possível comprador na qual ele divida suas angústias e diga por que quer tomar o chá.
Depois da análise dos vendedores, sobre a qual não há nenhum controle, o alucinógeno é
vendido. Pior: sob os dizeres “Pronto para o consumo e bem concentrado – enviamos para
o Brasil e para o mundo”, outra página oferece o litro do chá por R$ 45, mais o Sedex, a
quem estiver disposto a pagar por ele. Tráfico puro e simples, portanto, e espiritualidade
zero.
172
A falta de controle do governo preocupa e não para por aí. Além das três religiões
institucionalizadas, inúmeros cultos independentes como o frequentado pelo jovem
Fernando Henrique, em Goiânia, espalham-se pelo País. Segundo o Conad, cerca de 100
organizações já estão cadastradas. Trata-se de centros espíritas, cultos universalistas e
terreiros de umbanda, entre outros, surgidos de dissidências das seitas originais ou que
simplesmente incorporaram o uso de ayahuasca em seus ritos.
“Achei que aquela religião não era para mim quando fui tomar o chá. Agora, vivo
feliz”
Carlos Maltz, ex-baterista dos Engenheiros do Hawaii e sócio da UDV
Diante do quadro de desorganização e alto risco, não espanta que o Cefluris e a União do
Vegetal apoiem a normatização do governo e cobrem atitudes que garantam seu direito
adquirido. “Acredito que a publicação no “Diário Oficial” servirá principalmente para
orientar os órgãos de repressão e fiscalização”, diz o presidente da UDV. “É mais ou
menos como se tivéssemos passado 30 anos lutando para dirigir do lado direito da estrada.
Agora, alguns que querem partir para a pista da esquerda nos atrapalham”, resume
Mesquita da Silva.
Não há dúvida de que as religiões ayahuasqueiras têm os seus méritos. Na apuração desta
reportagem, ISTOÉ ouviu histórias comoventes de transformação, que traduzem intenções
semelhantes às de crenças seculares como o catolicismo, o islamismo e o judaísmo, para
citarmos apenas algumas.
Baterista da formação original dos Engenheiros do Hawaii, Carlos Maltz viveu todos os
excessos que a vida de um pop star é capaz de reunir – “do sexo inseguro ao uso de todo
tipo de droga. Eu queria morrer jovem”, diz. Hoje, aos 47 anos, ele atua como psicólogo
junguiano e é sócio da União do Vegetal em Brasília, onde vive com sua mulher e suas três
filhas. Eis a sua história.
173
“Em 1995, tive uma briga muito feia com o Humberto (Gessinger) e saí da banda. Acabou
a fama, acabou a grana e tudo ficou escuro. Fui convidado para ir até a UDV e tomar o chá.
Quando vi aquela gente fardada, pensei que não era para mim. Depois de tomar o vegetal,
vi várias letras de música passando na minha frente e reconheci o meu estilo no texto. Uma
voz me disse: ‘Gostou? É tudo seu.’ Respondi que sim e disse que queria anotar as letras.
A voz explicou que eu só conseguiria fazer isso depois que tirasse a mágoa do meu coração
e perdoasse o meu parceiro. Explodi e vi que realmente ainda estava magoado. Então a voz
me disse que eu deveria compor uma música de amor para o Humberto e que, só depois
disso, estaria preparado para evoluir. Hoje somos amigos como nunca, vivo feliz e tenho
orgulho do meu trabalho, mas ainda não escrevi a canção.”
Para garantir que histórias como a de Maltz continuem a ser escritas, é preciso muito mais
do que normatizar as regras para o uso da ayahuasca em rituais. Se a intenção do governo é
legitimar o patrimônio religioso brasileiro, é preciso evitar mortes absurdas e garantir que
algo sagrado para alguns não entre para o rol das substâncias que corroem nossa sociedade.
174
ANEXO 4 - Artigo “Religiões Ayahuasqueiras”
Publicado no Jornal Universidade (on line) do Instituto Ciência e Fé, ANO 11 - ED 125 -
FEVEREIRO DE 2010. Acessível em: http://www.cienciaefe.org.br/JORNAL/ed125/ayahuasca1.html
AYAHUASCA, governo oficiliza uso religioso
Por Michelle de Crejat Duarte
As regras do uso do chá, utilizado em religiões como Santo Daime e União do Vegetal, proibem
qualquer tipo de propaganda ou comércio da substância.
O governo brasileiro publicou, no dia 25 de janeiro, no Diário Oficial da União, as regras do
Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) para o uso religioso do ayahuasca, chá
utilizado em cerimônias religiosas. O texto oficializa o uso religioso do composto, porém proíbe
qualquer tipo de propaganda e comércio da substância. A norma veta o uso do chá com outras
drogas e em eventos turísticos, além de estabelecer um cadastramento das entidades que o
utilizam.
O texto foi elaborado por uma comissão, criada em 2004 pelo governo, para estudar e avaliar o
uso religioso do ayahuasca. O documento, finalizado desde 2006, responsabiliza as entidades
religiosas pelo consumo do chá e recomenda que estas façam uma entrevista com aqueles que
forem ingerir o composto pela primeira vez, tomando os devidos cuidados com pessoas que
possuam situações de risco.
Regulamentação - De acordo com o advogado criminalista, Eduardo Sanz, a regulamentação
que permite o consumo da ayahuasca em rituais religiosos está em acordo com a Constituição,
que prevê liberdade de crença. “A Constituição garante liberdade de fé. Se o chá é consumido
durante o ritual não há como proibir isso”, explica o jurista.
Eduardo Sanz, advogado criminalista
.
No entanto, Sanz alerta para o perigo do uso indiscriminado do chá. Segundo o jurista, se há
uma regulamentação ela deve ser seguida e o comércio do composto será considerado tráfico
de drogas. O advogado explica que a substância ativa do chá, o DMT (N-dimetiltriptamina), é
listado no item 8 da lista F2 da Portaria do Ministério da Saúde como substância psicotrópica, e
por isso a sua comercialização caracterizaria tráfico de drogas. “Atualmente o consumidor de
drogas não pode ser apenado com prisão no Brasil, mas o comércio de drogas caracteriza crime
e será punido como tal”.
175
O chá ayahuasca - Também conhecido como daime, hoasca e vegetal, é feito a partir da
cocção de duas plantas, o cipó Mariri Banisteriopsis caapi e a folha da Chacrona Psychotria
viridis, presentes na floresta amazônica – e já cultivadas em outras regiões do país, inclusive no
Paraná. A bebida possui substâncias psicoativas e segundo relatos dos adeptos das religiões
ayahuasqueiras, o seu consumo expande a consciência e permite uma experiência religiosa,
pois faz com que quem o ingere “entre em contato com a sua divindade interior”.
O cipó Mariri Banisteriopsis caapi, uma das plantas utilizadas
para a realização do chá (acima). A folha da Chacrona
Psychotria viridis também é utilizada no preparo
da ayahuasca (abaixo).
Fotos: José Eliézer Mikosz
Efeitos do Chá - De acordo com o psiquiatra que fez parte da comissão de estudos que
elaborou as novas regras do uso do ayahuasca, Dartiu Xavier da Silveira Filho, o composto pode
ser considerado uma droga, pois contém substâncias psicoativas na sua composição, porém
afirma que a conclusão de permitir o uso religioso do ayahuasca, foi feita após uma série de
experimentos e estudos realizados com a ingestão da bebida, em seres humanos e animais, que
provaram que seu consumo não constitui um perigo, se usado dentro das regras estabelecidas
pelo Conad.
Entretanto, o psiquiatra afirmou que é preciso observar se os adeptos a religião não possuem
um quadro de risco. “Pessoas com problemas mentais graves, como psicose e esquizofrenia não
devem ingerir o ayahuasca, nem quem toma remédios anti-depressivos”, alerta o médico.
176
A preparação da bebida ritualística.
Fotos: José Eliézer Mikosz
177
ANEXO 5 - Artigo “Religiões Ayahuasqueiras”
Publicado no Jornal Universidade (on line) do Instituto Ciência e Fé, ANO 11 - ED 125 -
FEVEREIRO DE 2010. Acessível em: http://www.cienciaefe.org.br/JORNAL/ed125/ayahuasca2.html
Religiões Ayahuasqueiras
Por Michelle de Crejat Duarte
Doutrinas de cunho cristão que mesclam elementos
do espiritismo e de outras religiões
De acordo com o doutor em Ciências Humanas, José Eliézer Mikosz, no Brasil a ayahuasca ficou
conhecida no período dos seringais. “Os trabalhadores iam para a região amazônica para extrair
borracha e nesta região conheceram a ayahuasca. O mestre Irineu foi um destes trabalhadores
que experimentou a bebida”, explica ele. Mikosz aponta o sincretismo presente nas religiões
ayahuasqueiras: “Há vários elementos presentes nessas religiões, uma mistura de ritos afros,
espiritismo, devido à crença na reencarnação, além do cristianismo e influências do xamanismo
indígena”.
José Eliézer Mikosz, doutor em Ciências Humanas
.
A antropóloga da Universidade Federal do Paraná, especializada em Etnologia Indígena, Edilene
Coffaci de Lima, explica que o Santo Daime é uma religião genuinamente brasileira, que surgiu
na década de 20 no coração da Amazônia e que com o tempo surgiram outras religiões que
utilizavam a ayahuasca em suas cerimônias, como a União do Vegetal. “As religiões
ayahuasqueiras são religiões muito ecléticas, que possuem elementos de diversas outras
religiões e os seus adeptos tomam o chá para poder ter acesso a uma experiência religiosa”.
Coffaci se posiciona a favor da regra que permite o uso do ayahuasca em cultos religiosos.
Segundo ela, para chegar a esta conclusão os estudiosos que escreveram o texto publicado no
Diário Oficial passaram anos analisando de perto como se desenvolvem estes rituais religiosos
que utilizam o chá de ayahuasca. “Esta resolução acabou de ser publicada, mas antes dela já
haviam sido publicadas outras”.
Para a antropóloga da Universidade Federal do Paraná, “a experiência religiosa pode ser vivida
de diversas maneiras. Prender-se no uso da bebida para condenar uma religião é intolerância e
preconceito”. Afirma que dentro dessas religiões o uso da bebida tem uma finalidade e por isso
não pode ser proibido ou julgado superficialmente por pessoas que nao conhecem a religião.
178
Edilene Coffaci de Lima, antropóloga da UFPR
.
Santo Daime
Religião autenticamente brasileira
O Santo Daime surgiu na década de 20 a partir de uma crença difundida no interior da
Amazônia. O movimento religioso que originou o Santo Daime teve início com o neto de
escravos, Raimundo Irineu Serra, o mestre Irineu, que recebeu uma revelação: uma aparicão
de Nossa Senhora da Conceição, na primeira vez que tomou o chá ayahuasca, que nomeou de
Daime. A doutrina do Santo Daime faz uma nova leitura dos evangelhos e traz uma forte
influência do cristianismo nos seus ensinos. As celebrações da religião são feitas através de
letras de músicas, transformados em hinos e danças, que eles chamam de bailado. Durante
essas celebrações, os participantes ingerem a ayahuasca.
O movimento religioso que originou o Santo Daime teve
início com o neto de escravos, Raimundo Irineu Serra,
o Mestre Irineu.
União do Vegetal
Mikosz, membro do NEIP (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos), descreve que
a União do Vegetal ou UDV surgiu cerca de 30 anos após a criação do Santo Daime. A religião
foi fundada pelo seringueiro José Gabriel da Costa, mestre Gabriel, e também utiliza a
ayahuasca nos seus rituais para auxiliar seus adeptos a terem uma experiência espiritual mais
profunda. Segundo Mikosz, para se tornar sócio da UDV, o interessado deve ser indicado por
alguém que já é membro e participar de uma entrevista. Ele conta ainda, que todas as religiões
ayahuasqueiras são reencarnacionistas.
179
A União do Vegetal foi criada por
José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel.
O doutor em Ciências Humanas defende a resolução do Conad. Mikosz, que já fez parte da
União do Vegetal, explica que não há perigo na ingestão do chá durante as cerimônias. O
estudioso ressalta o resultado do Projeto Hoasca, um estudo realizado em 1992 que
demonstrou que a quantidade de DMT, composto psicoativo, presente no chá é abaixo do
considerado tóxico. Além disso, Mikosz ressalta que nenhum alucinógeno cria dependência. “No
caso da ayahuasca, sempre haverá um efeito mesmo depois de anos de uso”.
Mikosz conta que os participantes da União do Vegetal acreditam muito na parte cristã da
religião, em Deus, em Jesus e nos santos. No Santo Daime, segundo ele, também é assim. “Há
pessoas que acreditam que o mestre Irineu é uma reencarnação de Jesus”. O doutor ressalta
ainda a importância que a natureza tem para a religião. “Quase todas as pessoas que entram
em contato com a ayahuasca começam a amar a natureza”.
Na Grande Curitiba existem dois núcleos da União do Vegetal. Os dois, conta Mikosz ficam
localizados em Quatro Barras. São eles: o Núcleo de São Cosmo e São Damião e o Núcleo
Monte Alegre. Segundo ele, os sócios da UDV pagam uma mensalidade e usam uniformes
durante as cerimônias realizadas pela religião.
A experiência - Mikosz relata sua experiência com o consumo do chá. “Eu experimentei o chá
pela primeira vez em 2003 e foi para mim uma surpresa a maior sensibilidade e consciência que
a bebida pode oferecer”. Ele explica que o ambiente é muito importante nesse tipo de situação.
Durante o ritual, afirma ele, são colocadas músicas com letras que podem falar de Deus e de
Jesus, “sempre com mensagens positivas”.
“Na minha experiência eu via as imagens do que era dito, das letras das músicas”. Ele relata
que antes do ritual são lidos documentos, que são como se fossem normas e estatutos da UDV.
“As pessoas bebem o chá de livre e espontânea vontade para concentração mental e para
vivenciar mais facilmente uma experiência espiritual. Mas para esses grupos esse estado
aumenta muito a sua sensibilidade, funciona como um amplificador de sensações. Nesse
momento você consegue fazer muitas reflexões sobre a sua vida pessoal”, afirma ele.
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